1961 - Paulo Markun, Duda Hamilton.pdf

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Para Leonel Brizola (in memoriam).

Agradecimentos

OS AUTORES AGRADECEM aos seguintes entrevistados: Almino Affonso,

Carlos Bastos, Darcy von Hoonholtz, Dilamar Machado, Emílio Neme, Flávio Alcaraz Gomes, Flávio Tavares, Ib Kern, Índio Vargas, João Aveline, João Brusa Neto, João Souza, José Aparecido de Oliveira, Lauro Hagemann, Lauro Schirmer, Leonel Brizola, Lucídio Castello Branco, Luís Carlos Barreto, Maria Teresa Goulart, Mauro Borges, Mila Cauduro, Milton Mattos, Ney de Moura Calixto, Odilon Lopez, Paulo Brossard, Pedro Américo Leal, Pedro Flores, Sereno Chaise e Zuenir Ventura. Utilizamos ainda as gravações originais de dez preciosas entrevistas — entre elas as dos já falecidos Machado Lopes, Homero Simon e Hamilton Chaves — realizadas pelo jornalista Amir Labaki, autor do pioneiro 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista, a quem agradecemos. Ricardo Chaves foi igualmente gentil ao abrir os arquivos do pai, Hamilton, de onde pinçamos os scripts originais da Rede da Legalidade. Agradecemos também a Belmiro Sauthier, Beto Tibiriçá, Carlos Fehlberg, Cláudio Amaral Hamilton, Divino Fonseca, Gildo Marçal Brandão, Gracinda Assucena de Vasconcellos, Guaracy Cunha, José Augusto Ribeiro, José Nêumanne Pinto, Juca Kfouri, Marco Antônio Coelho Filho, Mário Borgneth, Ricardo Chaves, Ricardo Maranhão, Roberto D’Avila, Rosa Maria Gonçalves Vasconcelos, Virgínia Ana Zimmermann, Vera Souto, Vera Vergo e Washington Novaes. A equipe de pesquisa foi formada por Arlindo Almeida, Bia Lopes, Daniela Fernandes, Diego Fontoura, Ellen Sezerino, Fernanda Goss, Felipe Zylbersztajh, João Novaes, Juarez Cademartori, Nerci Ferrari, Pablo Urchoeguia Corti, Priscila Moritz, Ricardo Pereira, Suzane Itoh e Tais Shigeoka.

Sumário Nota do editor 1. Ao imprevisível 2. Uma vassoura no planalto 3. Uma valise florentina 4. O colar do guerrilheiro 5. Forças terríveis 6. Derrotas parciais 7. Absoluta inconveniência 8. Lamentável mal-entendido 9. Tudo azul em Cumbica 10. O porão da Legalidade 11. No Palácio das Esmeraldas 12. A saída política 13. As tropas 14. O longo regresso 15. Que as armas não falem 16. A posse 17. O olhar de Tio Sam 18. O fim e o recomeço Notas Bibliografia

Nota do editor

DESDE 1991, QUANDO empossou seu primeiro presidente da República

eleito democraticamente em 30 anos, o Brasil vive um período de liberdade plena em todas as esferas; tão plena que muita gente se esquece (e os mais jovens não sabem) que nem sempre houve essa liberdade. Quase três décadas de ditadura militar não foram embora facilmente: custaram vidas, sofrimento e, no final, além do atropelamento dos direitos mais elementares, um imenso prejuízo econômico e social. Esse prejuízo só passou a ser revertido com a depuração que a própria democracia permite, ao avançar cada vez mais na solução dos problemas com a escolha de gente mais adequada para o governo e orientada conforme as necessidades coletivas, expressas no voto popular. A democracia é essencial e deveria ser inalienável, mas sabemos que não é assim, porque o Brasil, mesmo depois de viver períodos democráticos importantes, já perdeu o rumo da liberdade política e civil, mais de uma vez. No caso mais recente, é fundamental entender essa história, porque o preço da liberdade, como diz o ditado, é a eterna vigilância — para que não se repita nunca mais. Numa era em que sombras do passado rondam toda a América Latina, torna-se ainda mais oportuna a republicação deste livro, lançado inicialmente em 2001 e agora revisto e praticamente reescrito. Mais clara e abrangente, esta edição toma como marco os 50 anos do momento em que o Brasil começou a se perder no caminho democrático — o ano de 1961, gravado na história brasileira pela renúncia do presidente Jânio Quadros e pelas turbulências subsequentes que culminaram no golpe instaurador da ditadura militar, em março de 1964. Este 1961 é uma obra essencial para entender o Brasil e para nossa

democracia. Com ajuda do efeito iluminista da informação, é nossa tarefa manter acesa a conquista da democracia plena, assim como a velha chama da liberdade, tão caras aos brasileiros que lutaram para que ambas voltassem a brilhar em nosso país. Thales Guaracy Diretor editorial

1 Ao imprevisível

A MENSAGEM CHEGOU pelo rádio de faixa exclusiva que interligava os

quartéis do Exército às 9h45 do dia 28 de agosto de 1961. Era uma determinação formal, uma ordem assustadora: o III Exército, sediado em Porto Alegre, deveria reunir todas as tropas para colocar fim nas atividades “subversivas” do governador do Rio Grande do Sul. Se as tropas fossem insuficientes, o general de brigada que recebeu a mensagem, José Machado Lopes, comandante do III Exército, estava autorizado a solicitar reforços — se fosse o caso de bombardeio, a acionar a Aeronáutica. Uma força-tarefa da Marinha estava a caminho. O responsável pelo comunicado, ouvido pelo general na sala de comunicações, em companhia de um coronel, dois majores e um ajudante de ordens, era o general Orlando Geisel, em nome do ministro da Guerra, Odílio Denys. “O ministro confia em que a tropa do III Exército cumprirá o seu dever”,1 afirmava ele, em sua mensagem final. Quem estava entrincheirado no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, não era um invasor, mas seu ocupante legal. Visto como “subversivo” pelos comandantes das Forças Armadas, Leonel de Moura Brizola fora eleito para o governo do estado quase três anos antes e lutava com unhas e dentes para garantir a posse do vice-presidente, que também era seu cunhado, como rezava a Constituição no caso da renúncia do titular. Tinha sob seu comando as forças mal armadas e despreparadas para a guerra da Brigada Militar, o equivalente gaúcho da PM. Pouco depois de a ordem ter sido recebida pelo III Exército, a seis quadras

dali, o governador Brizola atendeu o telefone na sede do governo gaúcho. Alertado do perigo num curto diálogo com um informante dentro do III Exército, ajeitou a metralhadora que levava a tiracolo e desceu a estreita escada que conduzia ao porão do Palácio, que, de trincheira, de repente parecia se transformar em local de sacrifício. Em Brasília, o deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, exercia a Presidência da República em caráter extraordinário. Empossado sete meses antes, Jânio Quadros havia renunciado e agora se preparava para embarcar num navio rumo a Londres. Seu vice, João Goulart, estava fora do país, em missão oficial. Naquele momento, Mazzilli, presidente por direito assegurado pela Constituição, nomeava e demitia auxiliares, mas não mandava nada. O poder de fato era compartilhado pelos três ministros militares, que já haviam anunciado aos quatro ventos: se Goulart, o vice com simpatias pela esquerda, ousasse voltar ao país, não só não assumiria a Presidência como ainda seria preso. Em agosto de 1961, o Brasil tinha 11,7 milhões de eleitores e algo além de 70 milhões de habitantes espalhados por 23 estados e um Distrito Federal recém-inaugurado. O censo realizado no ano anterior registrara 70.070.457 brasileiros, sendo 35.055.457 homens e 35.015.000 mulheres, com expectativa média de vida de 55 anos. Mais da metade da população — 55% — vivia no campo, mas algumas cidades cresciam rapidamente. São Paulo e Rio já esta vam na casa dos 3 milhões de habitantes, Recife, acima dos 800 mil, Salvador e Belo Horizonte, próximos dos 700 mil. Porto Alegre somava pouco mais de 600 mil moradores e Curitiba, quase 400 mil. (O Censo 2010 contabilizaria 190.732.694 habitantes, sendo a esmagadora maioria — 84% — de cidadãos urbanos. A expectativa de vida dos brasileiros nascidos em 2009 era, em média, de 73,17 anos.) Em segredo, as indústrias de automóveis preparavam novos carros capazes de dar água na boca dos consumidores, a serem apresentados em outubro, no Segundo Salão do Automóvel. Desde 1957, as fábricas tinham produzido 407.550 veículos. Entre as novidades programadas estava o Willys Interlagos,

todo em fibra de vidro! A Miss Brasil, uma mineira, que recente decreto do presidente proibira desfilar de biquíni, chamava-se Stael Maria da Rocha Abelha, mas, apesar da similitude no sobrenome, não deixou lembranças, ao contrário da colega de 1954, Marta Rocha, com suas duas polegadas a mais. A seleção brasileira de futebol, detentora temporária da Taça Jules Rimet desde a vitória na Copa de 1958, participou de cinco jogos — três contra o Paraguai e dois contra o Chile — e, sob o comando do técnico Aimoré Moreira, ganhou todas as partidas. Seu maior craque não tomou parte de nenhum jogo. Mineiro, 20 anos, titular absoluto do Santos Futebol Clube, Pelé, no dia 5 de março, driblou todos os adversários de uma área a outra e marcou contra o Fluminense. Boquiaberto, um jovem repórter de um pequeno jornal esportivo comentou: “Esse gol merece uma placa!”. Joelmir Beting, esse repórter iniciante, não ficou no comentário: mandou fazer uma placa de bronze em homenagem ao feito e afixou-a no Maracanã. Estava lançada a expressão gol de placa. No Instituto Nacional da Propriedade Industrial, Edson Arantes do Nascimento registrou uma palavra bem mais lucrativa — seu apelido, que alugaria para inúmeros produtos desde então. Pelé só voltou para a seleção em 1962. Na reestreia, fez um dos seis gols sofridos pelo Paraguai. Em 1961, o Brasil fazia arte nas ruas, nos campos, nos alto-falantes e nas telas. Paulo César Saraceni criava o slogan “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Glauber Rocha filmava seu primeiro longa, Barravento. Anselmo Duarte voltava de Portugal e preparava O pagador de promessas. Em Salvador, no Teatro Vila Velha, alguns rapazes ligados ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que acabara de ser criado, encenavam a peça Nós, por exemplo. Nenhum deles imaginava viver de música, muito embora a melhor amiga da turma fosse balconista em uma loja de discos. Eram eles Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso, inseparáveis de uma certa Maria da Graça, que todos chamavam de Gal. Sucesso faziam Carlos Gonzaga, com a versão do rock Bat Masterson (“No Velho Oeste ele nasceu/ e entre bravos se criou/ seu nome em lenda se

tornou/ Bat Masterson/ Bat Masterson”), e João Gilberto, em seu terceiro long-play. Em 27 de julho, foi muito mais aplaudido do que seus colegas no palco da Universidade Mackenzie, em São Paulo. (Vinícius de Morais, Agostinho dos Santos, Baden Powell e Geraldo Vandré, registre-se, também foram aclamados ao mostrarem a bossa nova para os estudantes paulistas.) João era ídolo também entre os músicos, a ponto de, sete meses depois de lançar seu LP “Chega de Saudade”, influenciar um iniciante: o jovem Roberto Carlos, ainda em busca de seu rumo. Naqueles últimos dias de agosto, no entanto, os jornais estavam de olho era na situação política: bancos fechados, escolas sem aula, passeatas e comícios, centenas de presos e aviões revistados no Aeroporto do Galeão, em busca do homem que, pela Constituição, tinha o direito de governar o Brasil. No momento em que a ameaça militar soou, transmitida pela faixa exclusiva de rádio do Exército, João Goulart estava num dos mais luxuosos hotéis de Paris, providencial escala do longo retorno de sua viagem ao Oriente. Dois dias antes, hospedado na suíte no Hotel Raffles, na colônia britânica de Cingapura, Sudeste da Ásia, fora acordado às cinco da manhã por batidas insistentes na porta. Ao abri-la, Jango, como era chamado desde garoto, ainda estremunhado, encontrou seu secretário, Dirceu di Pasca, que o cumprimentou de modo diferente: “Senhor presidente...”. Como, do outro lado do mundo, alguém sabia o que se passava no Brasil? Minutos antes, João Etcheverry, um repórter do jornal Última Hora que acompanhava a comitiva de Jango em viagem à China, recebera a notícia da renúncia do presidente Jânio Quadros e a repassara ao secretário de Jango. Em poucos minutos, os senadores Dix-Huit Rosado e Barros de Carvalho, além do deputado Gabriel Hermes, juntaram-se a Di Pasca na suíte de Jango. Na época, uma ligação telefônica intercontinental demorava horas para ser completada. Assim, os cinco brasileiros em Cingapura só conseguiriam saber horas depois que um deputado assumira provisoriamente o posto reservado ao vice-presidente. Enquanto a notícia da resposta militar à posse de Jango não chegava, durante o café da manhã asiático, o senador Barros de Carvalho pediu um

champanhe e propôs um brinde ao novo presidente.Jango ergueu a taça, mas, como bom zagueiro, foi precavido: “Ao imprevisível...”. Gaúcho, estatura mediana, cabelos crespos, entradas pronunciadas, rosto redondo e silhueta rotunda, João Belchior Marques Goulart tinha a fala mansa, um temperamento frio e a mania de olhar para baixo quando conversava com alguém. Aos 42 anos, com seus dois filhos, Denise e João Vicente, e a bela mulher, Maria Tereza, morava num grande apartamento decorado em estilo inglês, no edifício Chopin, ao lado do hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, mas continuava ligado ao campo. Acordava às seis e meia da manhã para tomar o primeiro chimarrão, criava cavalos de corrida e possuía fazendas no Rio Grande do Sul, além de terras em Araraquara, São Paulo, e em Uruaçu, Goiás, sem contar o sítio em Jacarepaguá, subúrbio do Rio. Nada a espantar para o terceiro dos oito filhos de um rico estancieiro, nascido em 1º de março de 1919 e que até os 9 anos vivera entre vacas e ovelhas nas duas grandes propriedades da família, na fronteira com a Argentina. Seu pai, Vicente Goulart, jamais teve cargo público, mas pegara em armas mais de uma vez por questões políticas — fora correligionário do governador Borges de Medeiros, do Partido Republicano, que comandou o Rio Grande do Sul por um quarto de século. O charque que produzia no Saladeiro Itaqui era vendido por intermédio da Vargas, Goulart, Gomes & Cia. Ltda., empresa cujo primeiro sobrenome correspondia a Protásio Dornelles, o segundo dos cinco irmãos Vargas. Até os 23 anos, Jango só queria saber de campo — inclusive de futebol. No Sport Clube Internacional de Porto Alegre, cidade onde fora estudar depois de ter sido reprovado em Uruguaiana, tornara-se campeão gaúcho juvenil de 1932, jogando na defesa. Aos 16 anos, depois de seu pai ter aumentado ilegalmente sua idade com uma certidão de nascimento falsa, entrou na faculdade de direito. Distante do político que confrontava direita e esquerda e pouco aplicado nos estudos, ficava mais tempo em São Borja, ajudando nos negócios e conversando com

peões e estancieiros. Nessa época, tornou-se o melhor amigo do filho do presidente Getulio Vargas, Manuel Antônio, mais conhecido como Maneco. Depois de formado, Jango passou a cuidar das fazendas da família e, quando seu pai morreu de câncer, em 1943, assumiu o controle dos negócios — que iam mal, apesar de um patrimônio de 14 mil hectares de terras e 30 mil cabeças de gado. Quando Vargas caiu e voltou para São Borja, o jovem estancieiro tornou-se seu grande confidente e também sua maior aposta política — foi o ex-ditador quem indicou Jango para ser candidato a deputado estadual em 1946 pelo Partido Trabalhista Brasileiro, uma das duas organizações políticas criadas com o apoio de Getulio (a outra era o Partido Social Democrático). Na Assembleia estadual, passou quase em branco: fez um único discurso, em defesa dos criadores de sua terra natal. Mas, no final de 1947, sua atitude mudou. Já candidato a presidente, Getulio instalou seu quartel-general em uma das estâncias de Jango, que por sua vez assumiu o comando do PTB no estado, a coordenação da campanha do padrinho político e a posição de candidato à Câmara Federal. Ao lado de Vargas, percorreu o país e foi eleito com 39.832 votos. Mal esquentou a poltrona na Câmara: renunciou ao mandato para assumir a Secretaria do Interior e Justiça do novo governo gaúcho, chefiado pelo primo de Getulio, Ernesto Dornelles. Nesse posto, reformou o sistema penitenciário e fortaleceu o PTB até tornar-se presidente nacional do partido, em 1952. Em seguida, mudou-se para o Rio de Janeiro e passou a morar num quarto dos fundos do Palácio do Catete. Na reforma ministerial de junho de 1953, tornou-se ministro do Trabalho de Getulio. Durou apenas oito meses no cargo. Torpedeado por Carlos Lacerda, um dos líderes da conservadora União Democrática Nacional (UDN) e antigetulista até a medula, acabou substituído, depois de propor um aumento de 100% no salário mínimo. Mas manteve suas ligações com os sindicatos e o ministério até meados de 1954, quando a queda de Getulio já era uma possibilidade real.

No dia 23 de agosto, Vargas mandou chamá-lo, entregou-lhe um envelope lacrado e pediu que Goulart fosse a Porto Alegre informar Ernesto Dornelles sobre a crise. Na manhã do dia 24, Jango foi avisado de que o presidente havia se suicidado. Abriu o envelope e leu a carta-testamento que Getulio lhe confiara para driblar uma eventual censura aos jornais cariocas. Abalou-se tanto com a morte de seu mentor que passou dois meses em São Borja, apartado da política. Em outubro de 1954, Jango não conseguiu eleger-se senador. Mesmo assim, no ano seguinte, quando o PTB apoiou Juscelino Kubitschek, do PSD, para presidente, saiu como seu vice. Naquele tempo, os eleitores recebiam cédulas separadas e podiam escolher presidente e vice de partidos diferentes. A chapa JK-Jango foi vencedora, mas o tímido gaúcho teve quase meio milhão de votos a mais do que o mineiro esfuziante. Durante o governo, longe dos holofotes, continuou garimpando seu espaço político nos sindicatos. Em julho de 1956, substituiu Juscelino por cinco dias, enquanto o presidente visitava o Panamá. Na eleição seguinte, o PSD fechou com o marechal Henrique Teixeira Lott, e os trabalhistas aderiram à candidatura do militar que ajudara a derrubar Vargas em 1945 e fora duas vezes ministro da Guerra. Jango era o vice da chapa, outra vez. A UDN acertou-se com Jânio. A legislação eleitoral da época, aquela que admitia votos diferenciados para presidente e vice, multiplicou os comitês Jan-Jan, muito embora os dois políticos pouco ou nada tivessem em comum, em termos programáticos, ideológicos e partidários. Jânio ganhou com folga — teve quase 1,8 milhão de votos à frente de Lott. E Jango ultrapassou o candidato a vice da UDN, Milton Campos, por 300 mil votos, mesmo perdendo em seu estado para Fernando Ferrari, dissidente do PTB. Nos primeiros meses de governo, o nome João Goulart só voltou às manchetes em razão das investigações que apuravam denúncias sobre a Previdência Social no período Kubitschek. Citado numa sindicância — fase que antecede o inquérito —, Jango pediu para ser ouvido, não obteve resposta

e mandou uma carta ao presidente, reclamando. Jânio recusou a missiva, com o seguinte despacho: “Devolva-se ao ilustre signatário, por não estar vazado em termos próprios, além de não representar a verdade”.2 Na casa do ministro da Guerra, Odílio Denys, os comandantes da Marinha, Sílvio Azevedo Heck, e da Aeronáutica, Gabriel Grün Moss, festejaram o bilhetinho. Para eles, Jango era uma espinha na garganta, e seu distanciamento do presidente devia ser comemorado. No final de julho, as arestas entre os dois pareciam aparadas. Assim, quando um repórter do jornal O Estado de S. Paulo perguntou se era possível conciliar a apuração de irregularidades na Previdência com a nomeação de Jango para a chefia da delegação brasileira que iria à China, o presidente deu a seguinte resposta, no melhor estilo Jânio Quadros: Antes de mais nada, o sr. João Goulart não vai como o sr. João Goulart. E, antes de mais nada, o sr. João Goulart, que não vai ao exterior apenas como o sr. João Goulart, não vai ao exterior também apenas como representante do presidente da República. O sr. João Goulart vai ao exterior como vice-presidente da República e como representante do presidente da República e da nação brasileira.3

Primeiro membro de um governo latino-americano a visitar Pequim, Jango foi saudado por multidões uniformizadas, recebeu flores, elogiou os desfiles de operários sorridentes e sincronizados, conversou com Mao Tsé-tung e aplainou o caminho para o estabelecimento de relações diplomáticas com o gigante comunista. Diante de 10 mil pessoas, entusiasmou-se: A China Popular, debaixo da direção do grande líder Mao Tsé-Tung, é uma realidade e um exemplo que explica como um povo, que sofria o desprezo de outros durante muitos séculos no passado, pôde emancipar-se do jugo dos exploradores. [...] Como alguém estreitamente ligado com as gloriosas lutas da comunidade dos operários do meu país, quero expressar meu profundo apreço aos trabalhadores, tanto do campo como da cidade, por sua heroica e extraordinária participação na edificação de uma Nova China livre e poderosa.4

De Cingapura, enviou um longo telegrama ao presidente relatando seus contatos e elogiando “o sentido de independência que vem V. Exª imprimindo à nossa política exterior e que está nos desobrigando da adoção de eventuais incompatibilidades alheias”. Jânio deve ter-se alegrado. Seu projeto era assumir um papel de liderança no chamado Terceiro Mundo. Sonho vitaminado durante a volta ao mundo que empreendeu em 1959, depois de entregar o cargo de governador de São Paulo. Esteve no Egito, na Índia, na Iugoslávia e na União Soviética e regressou convencido de que poderia tornar-se um líder como Nasser, Nehru ou Tito, aproximando o Brasil dos países do Leste, sem perder as ligações com o Ocidente. Ainda durante a campanha, tocava no assunto com frequência. Num discurso lido na sede dos Diários Associados, uma frase chamava a atenção: “Nosso tempo é um crematório de ideologias”. É bom lembrar que a ideologia movia o mundo naquele tempo em que os russos instalavam mísseis em Cuba, marines americanos davam todo o suporte à invasão da ilha de Fidel, e os alemães orientais cortavam Berlim ao meio com um muro enorme. Jânio esboçou um equilibrismo delicado nesse contexto: política econômica afinada com as regras do Fundo Monetário Internacional, com o qual JK rompera dois anos antes, freando a inflação com o rigor do monetarismo e descolando sua política externa do modelo determinado pelos Estados Unidos. Ousadia que provocou o seguinte comentário do secretário de Estado norte-americano: “Se o Brasil quer se dar ao luxo de ter uma política externa independente é porque pode; os Estados Unidos não podem”. No esforço de renegociar a dívida externa brasileira, o presidente mandou o americanófilo Roberto Campos à Europa ocidental, o nacionalista Walter Moreira Salles a Washington e João Dantas, o diretor do influente Diário de Notícias, para o Leste Europeu. E, em sua primeira mensagem ao Congresso, chamou a atenção para outro confronto, além do que separava comunistas e capitalistas: o conflito Norte-Sul. Acabar com a diferença entre o Norte rico e o Sul pobre, disse ele, “é um imperativo de sobrevivência de uma sociedade

internacional em que as nações tenham de escolher o seu destino”, imaginando que o choque entre o Leste e o Oeste iria restringir-se, cada vez mais, “ao campo das atitudes ideológicas”. Antes mesmo da posse, o embaixador norte-americano John Moors Cabot informava que o novo governo brasileiro poderia reatar com os soviéticos, mas descartava qualquer risco imediato para os investimentos americanos. Em seu gabinete no Palácio do Planalto, Jânio mandou colocar uma enorme foto autografada de Gamal Abdel Nasser, líder revolucionário nacionalista que havia deposto o rei Faruk, do Egito, e reprimia os comunistas egípcios. Detalhe: Nasser estava mais à vista do que a imagem de Abraham Lincoln, outro de seus ídolos permanentes. A independência da política externa desagradou a UDN, que havia apoiado Jânio, e mais ainda ao governador da Guanabara, Carlos Lacerda, um americanista militante. Em julho, para preocupação dos americanos, Jânio recebeu com festa o soviético Iúri Gagárin, o primeiro homem a alcançar o espaço sideral. Ao percorrer Brasília, o cosmonauta comentou, surpre so: “A impressão que tenho é a de estar chegando a um planeta diferente”. A atitude do governo brasileiro em relação a Cuba era outro calo no pé dos ianques. Em sua visita à ilha, na condição de candidato a presidente, em fevereiro de 1960, Jânio encontrara- se por três vezes com Fidel Castro e ficara encantado com as conversas. Numa dessas ocasiões, o líder cubano enumerava os produtos exportados pelo país — açúcar, rum, charutos —, quando Ernesto Che Guevara emendou, em tom de blague: “Y revolución...”.5 Meses antes, como informou Jover Telles, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao Comitê Central, num relatório de sua viagem à ilha, os cubanos já admitiam a possibilidade de treinar militantes brasileiros e fornecer armas para organizações de esquerda.6 Na mesma época, Jânio refutou a proposta de um emissário do governo americano que acenava com 100 milhões de dólares a mais de ajuda econômica para que o Brasil fizesse vista grossa, caso algo acontecesse em Cuba. Jânio disse não e foi além: no início de agosto de 1961, a delegação brasileira, com o apoio da Argentina, impediu que a conferência da

Organização dos Estados Americanos em Punta del Este discutisse temas políticos, inviabilizando o projeto americano de excluir Cuba da OEA naquela reunião. Che Guevara foi a Brasília agradecer a gentileza, e Jânio condecorou-o. Foi nesse cenário que Jango, compreensivelmente, resolveu brindar ao imprevisível naquele café da manhã regado a champanhe em Cingapura, muito embora a Constituição lhe assegurasse 39 meses na Presidência do Brasil. Nem o telegrama que recebeu no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia, fez com que mudasse de ideia. Assinado por Ranieri Mazzilli, informava apenas que ele assumira a Presidência durante a ausência de Jango, mas o gaúcho prudente resolveu passar por Paris, antes de retornar. Em Zurique, na Suíça, tentou falar com seus correligionários. Na capital francesa, foi finalmente contatado por telefone. O deputado San Thiago Dantas, vice-presidente de seu partido, informou-lhe que os ministros militares vetavam seu retorno e que o Congresso estava em busca de uma saída política. Jango concordou em aguardar 48 horas até que um emissário, o deputado Carlos Jereissati, do PTB do Ceará, chegasse a Paris e lhe apresentasse o panorama político. Depois, voltaria por um caminho seguro. No dia seguinte, os brasileiros puderam ler, na Última Hora, um resumo livre da conversa telefônica entre o vice e o futuro chanceler. San Thiago Dantas foi eleito deputado federal em 1958 por Minas Gerais. Em 22 de agosto de 1961 foi convidado por Jânio Quadros para assumir a embaixada do Brasil na ONU, não chegando a fazê-lo devido à renúncia do presidente. No tom vibrante empregado pelo jornal criado por Samuel Wainer para apoiar o governo Getulio Vargas, a manchete anunciava, em letras garrafais: “Jango: Vou voltar, para assumir ou morrer”. Na mesma edição, uma pequena matéria confirmava a prisão do exministro da Guerra e candidato derrotado por Jânio à Presidência, o marechal Henrique Teixeira Lott. Nela, um leitor atento encontraria uma frase crucial: “Chegou a hora de optar entre o comunismo e a democracia”. Seu autor era o marechal Odílio Denys, ministro da Guerra, que confirmou (e lamentou) a prisão de Lott e disse nada ter contra Jango — mas

sim contra sua forma de governar. Denys falou rapidamente com os jornalistas em sua casa, em Brasília. Entre os repórteres estava Louis Stein, da United Press International. A agência de notícias transmitiu a informação para o mundo todo, para fúria do marechal, que tentou desmentir e mandou fechar a UPI, o que foi evitado graças à intervenção de Carlos Lacerda. Não foi o único ataque à imprensa. A sucursal da Folha de S. Paulo em Brasília foi vasculhada por militares, em busca de um suposto transmissor que estaria emitindo comunicados subversivos. Nada foi encontrado. A redação do Diário de São Paulo na nova capital também foi invadida. Os soldados arrombaram a porta e levaram um radiotransmissor, deixando em seu lugar um bilhete sobre as razões do ato: “Ordens superiores”. No Rio, as edições do Correio da Manhã, Diário de Notícias e de A Noite foram apreendidas, e a agência telegráfica Asapress foi fechada. A edição extra de O Globo, com a frase de Denys como manchete, também foi tirada de circulação. Mundo afora, a crise brasileira repercutia, turbinada pela guerra fria. Em editorial, o jornal The New York Times antevia uma época perigosa para a América Latina, dizia que Jânio havia feito um mal para o Brasil e condenava a perspectiva de um golpe: “O sr. Goulart poderá voltar-se demasiado para a esquerda, o que não nos agradará, certamente, porém um golpe militar para evitar que um vice-presidente legalmente eleito assuma a Presidência está longe de ser uma solução ideal”. Para a revista Newsweek, os funcionários do governo americano estavam divididos em relação à renúncia. Tinham esperanças de que o novo governo acabasse com a política neutralista de Jânio, mas temiam uma possível esquerdização com Jango na Presidência. E arriscavam um palpite: se fossem convocadas novas eleições no Brasil, o vencedor seria o político mais popular da atualidade: Jânio Quadros. O subsecretário de Estado americano, Robert Woodward, classificou de “absurda” a acusação de que os EUA teriam maquinado a renúncia de Jânio Quadros: “Nossas relações com o governo de Quadros sempre foram muito cordiais e de mútua cooperação. Somente esperamos que nossas cordiais

relações continuem como no passado”. No dia 25 de agosto, o diretor da CIA, Allen Dulles, num informe enviado ao presidente Kennedy, classificava Jango de “extremamente esquerdista” e antecipava que o Exército se oporia à sua posse. Dulles atribuía a renúncia de Jânio a uma tentativa do presidente de voltar ao posto fortalecido, lembrando que Fidel Castro e Perón haviam usado o mesmo expediente, e arriscava uma previsão: “Se Quadros não retornar à Presidência, acreditamos que o próximo governo será conservador, apesar dos regulamentos nacionalistas, porque o Exército não irá tolerar nada diferente”. A Rádio de Moscou declarou que a renúncia de Jânio havia sido resultado da intervenção dos Estados Unidos nos assuntos do Brasil: “Mais de cem golpes de estado na América Latina encontram explicação nos arquivos do Departamento de Estado e do serviço secreto norte-americano, onde se refletem as maquinações dos trustes e monopólios internacionais”. Os chineses divulgaram uma nota apoiando o povo do Brasil “em sua justa luta contra os planos imperialistas norte-americanos e contra os reacionários”. E, em Cuba, o Congresso Nacional da Produção acusou as “marotas forças do imperialismo norte-americano” pela renúncia de Jânio Quadros. O comandante Fidel conclamou os brasileiros a repetir a revolução cubana: “Se o povo brasileiro aproveitar a experiência de Cuba e tomar armas para lançar-se à luta nas montanhas, os militares reacionários nunca poderão derrotá-los”. No porão do Palácio Piratini, em Porto Alegre, atrás de janelas e portões protegidos com sacos de areia e metralhadoras, uma linha telefônica conectava um microfone à torre da Rádio Guaíba, na ilha da Pintada. Foi para essa sala que o governador se dirigiu, com uma metralhadora a tiracolo, como se fosse um comandante guerrilheiro. Ao sentar-se diante do microfone, o técnico informou que, enquanto a luz vermelha estivesse acesa, estariam no ar. Com a voz embargada e um forte sotaque, ele começou a falar: “Peço a vossa atenção para a comunicação que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul! Atenção, Brasil! Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção para minhas palavras!”.

Eram 11 horas da manhã de segunda-feira, 28 de agosto de 1961. Aos 39 anos, Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, iniciava o mais inflamado discurso de sua vida.

2 Uma vassoura no planalto

CENTRO DE SÃO PAULO, década de 1930. Na porta do escritório de

advocacia do ex-ministro da Justiça, Vicente Rao, um estudante chama a atenção do homem que está entrando. Instantes depois, aguardando o elevador, o rapaz é chamado de volta pelo jurista, cujo cliente faz um pedido inusitado: “Desculpe-me, rapaz, mas senti algo de estranho à sua passagem. Gostaria de ler sua mão”. Entre desconfiado e curioso, o jovem concorda. O outro examina as linhas da mão estendida, perturba-se, vai às lágrimas e diz para Rao: “Professor, estamos diante de alguém com um destino excepcional e estranho. Vejo este moço prefeito, deputado, governador de São Paulo e presidente da República. Será assassinado como Lincoln no segundo período de governo, numa cidade do interior do Brasil”.1 O vaticínio, testemunhado por um observador cético como o professor Rao, era do famoso quiromante Sana Khan e seria confirmado quase inteiramente pela história. Naquele momento, contudo, os planos do rapaz não iam tão longe. Sua primeira eleição, não apontada pelo guru, aconteceria logo depois, em 1938. Enfrentando um candidato aparentemente imbatível, ele colocou uma fita no chapéu com os dizeres “Vote em Jânio Quadros”, sentou-se num barril diante das arcadas do edifício e ganhou a parada, elegendo-se secretário da Associação Acadêmica Álvares de Azevedo da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Jânio da Silva Quadros tinha 21 anos.

Seu pai, Gabriel Nogueira Quadros, um paranaense de classe média, trabalhara como farmacêutico até se formar em medicina e elegera-se deputado estadual pelo Partido Republicano Paranaense, antes da Revolução de 1930. Casara-se em Miranda, Mato Grosso, com Leonor da Silva. Tiveram o primogênito em Campo Grande, na época uma pequena cidade ao sul daquele estado, no dia 24 de janeiro de 1917. Um ano depois chegou Dirce, a quem o irmão mais velho foi muito ligado e que morreria aos 15 anos. Os Quadros não esquentavam lugar, e o menino chegou a passar um semestre em cada escola. Até Jânio completar 16 anos, viveram em Campo Grande, Curitiba, Garça, Bauru, Cândido Mota, São Paulo, Lorena e São Paulo novamente, onde ele foi aluno do rigoroso Colégio Arquidiocesano e passou muitos recreios de castigo, copiando trechos de autores franceses. No colégio, andava limpo e arrumado, mas ia mal em matemática e português — sua melhor média era em desenho. Péssimo em todos os esportes, só conseguia a indisputada vaga de goleiro no futebol. O mau aluno virou bom professor — já lecionava português e geografia em algumas escolas em 1935, quando entrou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, reduto da elite paulistana e tradicional centro de agitação política. Como universitário, era apenas razoável. Como poeta, nem isso: Há medos no meu eu que anseia e treme; Há soluços e pragas sufocadas Eu sinto em mim o sangue de um Paes Leme; Eu sinto em mim a fome das estradas.2

Se a fome era grande, a sede era ainda maior. Dez doses depois, mantinha o prumo e o raciocínio aparentemente intactos, mas tornava-se mais alegre e menos lacônico. Sempre sem dinheiro, evitava as rodinhas durante os intervalos, para não ter de pagar o café. Conheceu Eloá do Vale, de 15 anos, filha de um farmacêutico amigo de seu pai, com quem se casou em 1939, logo após a formatura. Já lecionando

nos renomados colégios Dante Alighieri e Vera Cruz, abriu um pequeno escritório de advocacia no centro de São Paulo junto com um ex-colega dois anos mais velho, que viria a ser seu mais íntimo colaborador. Francisco de Paula Quintanilha Ribeiro nascera em Franca, interior de São Paulo. Participara da Revolução Constitucionalista de 1932 como soldado e, ao entrar na faculdade de direito, mergulhara na política estudantil, atraindo Jânio. Era Quintanilha o cabeça da chapa com que ambos venceram as eleições para a Associação Atlética e, pouco depois, ganharam também o Centro Acadêmico. Em 1945, os dois sócios tentaram, sem sucesso, filiar-se ao diretório do bairro da Vila Maria da recém-criada UDN, antigetulista. Dois anos depois, Jânio disputaria as eleições municipais na capital paulista, pelo Partido Democrata Cristão (PDC), obtendo 1.707 votos e tornando-se suplente de vereador. Com a suspensão do registro do PCB e a posterior cassação dos mandatos dos parlamentares eleitos em sua legenda, em 1948, assumiu o posto. Na tribuna, adotou a moralidade administrativa como bandeira, criticando duramente o governador Ademar de Barros, líder nacional do Partido Social Progressista (PSP). Pelo menos uma vez, sua capacidade de iniciar uma polêmica terminou em agressão física. Magro, alto, bigode farto, cabelos pretos, ondulados e abundantes, era praticamente cego do olho direito desde jovem, quando, num baile de carnaval, foi atingido por um lança-perfume. Alternava a elegância e o desalinho, de acordo com a necessidade. Sua figura estranha, quixotesca, chamou a atenção da imprensa, e, em outubro de 1950, foi o mais votado para a Assembleia Legislativa. Como líder da bancada do PDC, conseguiu a expulsão de quatro deputados de seu partido, acusando-os de ligação com o governador Lucas Garcez, filiado ao PSP, e percorreu todo o interior do estado, pedindo sugestões da população para resolver os problemas de cada região e, acima de tudo, pregando a moralização do serviço público como quem repete um mantra.

Com o slogan “o tostão contra o milhão” e o apoio do PDC e do Partido Socialista Brasileiro (PSB), elegeu-se prefeito na primeira campanha eleitoral na capital paulista desde a Revolução de 1930. Nos palanques, tanto falou em limpar a Prefeitura que adotou a vassoura como símbolo. Com o apoio velado de Ademar de Barros, que pretendia lançar o filho como candidato, Jânio destroçou as principais máquinas partidárias: 285.155 votos contra menos de 17 mil do segundo colocado. Feito um furacão, assinou demissões em massa, visitou repartições de surpresa, atormentou seus subordinados com bilhetinhos e saneou as contas públicas, entregues ao professor Carlos Alberto de Carvalho Pinto, seu secretário de Finanças. Um ano depois, pediu licença do cargo e passou três meses na Europa, visitando Roma e Paris, entre outros programas. Na volta, disputou o governo do estado contra o mesmo Ademar. Como um ator dramático, transformou os palanques em palcos. Tomava injeções em público, simulava desmaios, comia sanduíches de mortadela e muita banana. O final era sempre o mesmo: saía de cena nos braços da multidão, que lotava as praças com vassouras e velas acesas, não importando o frio ou o horário, muitas vezes tarde da noite. Os discursos tinham o molho adicional de seu português precioso, de sílabas escandidas. O visual era outra arma infalível: paletós escuros surrados e amassados, cabelos compridos, os ombros cheios de caspa, barba por fazer. Enfim, um homem do povo, jamais um representante da elite. Jânio venceu por pouco: em 31 de janeiro de 1955, chegou ao Palácio dos Campos Elísios montado em 660.264 votos — Ademar conseguiu 641.960. Empossado, repetiu o script encenado na Prefeitura: desalojou o PSD da máquina governamental e empreendeu intensa campanha de desmoralização pessoal e administrativa de Ademar, durante a qual reabriu o processo sobre a compra irregular de automóveis Chevrolet para a polícia. Cercado de assessores sem compromissos partidários, colocou Quintanilha Ribeiro no Gabinete Civil, Carlos Castilho Cabral (que se tornaria o líder do Movimento Popular Jânio Quadros) no Trabalho e Carvalho Pinto novamente nas Finanças. Para a Saúde, nomeou o deputado Scalamandré

Sobrinho, do Partido Trabalhista Nacional (PTN), abrindo uma vaga na Assembleia Legislativa para o suplente, seu pai, Gabriel Quadros. Em 1956, passou mais dois meses no exterior com a mãe, a esposa e a filha, a pretexto de tratamento de saúde. Durante a viagem, defendeu o reatamento com os países comunistas. No ano seguinte, seu pai foi assassinado num crime passional. E, mais uma vez, o governador surpreendeu a todos, declarando encerrada sua carreira política. A anunciada desistência durou pouco: depois de admitir sua candidatura a presidente, anunciou o apoio a Juarez Távora, da UDN, que acabaria derrotado por Juscelino Kubitschek, do PSD, com Jango de vice. Os famosos “50 anos em cinco”, de JK, favoreciam a industrialização de São Paulo e, por tabela, seu governador, mas Jânio alinhou-se com a oposição udenista, enquanto pavimentava estradas, construía hidrelétricas, investia em água e saneamento. No fim do mandato, fez o anódino Carvalho Pinto seu sucessor e conquistou para ele mesmo uma vaga como deputado federal pelo PTB do Paraná, em outra demonstração de desprezo pelos partidos políticos (a legislação eleitoral vigente não exigia que os candidatos comprovassem o domicílio eleitoral). No fim do governo, Juscelino tentou somar o PSD e a UDN, em torno do governador da Bahia, Juraci Magalhães. Com isso, calculava, empurraria para cima da principal força de oposição a responsabilidade de realizar um impopular governo de austeridade econômica, facilitando sua volta ao poder em 1965. Foi quando o governador Carvalho Pinto promoveu um encontro entre Jânio e Carlos Lacerda, que, havia oito anos, já farejara algo diferente naquele político provinciano, a ponto de enviar o seguinte bilhete ao chefe da sucursal paulista de seu jornal, Tribuna da Imprensa, em 1951: “Quem é este Jânio Quadros que está se tornando tão famoso em São Paulo? Entreviste-o”.3 Lacerda fora pouco gentil nas primeiras referências a Jânio, escritas quando o prefeito de São Paulo estava próximo de Getulio, chamando-o de “paranoico”, “sinistro” e “delirante virtuose da felonia”. Os adjetivos dissolveram-se no primeiro encontro entre os dois. Impressionado com aquele

sujeito com “bigodes de Nietzsche e olhos de Bette Davis”, escreveria mais tarde: Dava uma sensação de algo novo, de um homem que tinha alguma chispa de grandeza dentro de si, embora fosse inquietante a sua visível insegurança, disfarçada em um modo categórico, excessivamente categórico, de falar. Parecia pensar muito antes de cada palavra ou sílaba. Pensaria mesmo, ou era sestro, um truque de apresentação, para impressionar?4

Em fevereiro de 1959, uma longa conversa entre os dois, em Santos, levou o maior polemista do Brasil a trocar o governador da Bahia pelo de São Paulo como seu candidato à Presidência. Mas a convenção da UDN, em março, marcada pelas manifestações em favor de Jânio, terminou sem nada resolver. Ou melhor: partido e candidato resolveram adiar a decisão para novembro. Jânio estava novamente fora do país (como deputado, não compareceu a uma única sessão da Câmara), quando seus correligionários reuniram-se na Associação Brasileira de Imprensa e fundaram uma organização suprapartidária, o Movimento Popular Jânio Quadros. Um dia depois, o minúsculo PTN oficializou seu nome como candidato. Outros partidos seguiram o PTN e, em novembro de 1959, numa tumultuada convenção, sob vaias de janistas e lacerdistas, Juraci Magalhães jogou a toalha, deixando no ar uma interrogação crucial: Acenam-nos na futura batalha, com o encontro da esperança e do desespero no apoio à candidatura que não defendo nesta convenção. Temo, porém, que cedo os largos campos da esperança sejam batidos pelo vento do desespero. E então? E depois? Ficaríamos, talvez, como no poema de Carlos Drummond: “E agora, José?”.5

Por 205 votos contra 83, a candidatura do outsider de carreira meteórica foi homologada pelo autodenominado partido da eterna vigilância. Para vice, a UDN escalou o obscuro governador de Sergipe, Leandro Maciel.

Menos de vinte dias depois, reunida com o candidato na casa de um seu colega de faculdade, o deputado Roberto de Abreu Sodré, a cúpula da UDN teve a primeira lição prática das dificuldades de lidar com seu candidato. No meio da conversa, Jânio isolou-se num canto, escreveu algumas linhas num pedaço de papel e entregou o bilhete a José Aparecido, seu secretário particular, dizendo: “Dê isto a estes senhores”. O texto era o seguinte: Nesta data renuncio à minha candidatura à Presidência da República. Não consegui, como é do conhecimento de V. Exª e da opinião pública, reunir, em torno de meu nome, as diversas legendas e correntes políticas que procuram novos rumos para o país, com a unidade e a harmonia indispensáveis ao êxito de nossa jornada. Quero agradecer a V. Exª e à UDN o apoio que recebi em memorável convenção, e este agradecimento é extensivo ao PL, ao PTN e ao PDC, que também adotaram meu nome. Se nesta fase é difícil, assim, coordenar os esforços e somar os anseios dos homens de bem que militam nos vários partidos, impossível será governar no atendimento das reivindicações do povo e das necessidades brasileiras. Receba, presidente, as expressões do meu respeito. Jânio Quadros6

Em outra carta, endereçada ao governador Carvalho Pinto, os editores encontrariam a manchete dos principais jornais do dia seguinte: “[...] é preferível um cidadão livre a um presidente prisioneiro”. Dias mais tarde, a UDN liberou-o para escolher seu companheiro de chapa. Jânio reassumiu a posição de candidato fixando-se no liberal Milton Campos para seu vice. Em fevereiro de 1960, nova prova de independência, ao visitar Fidel Castro em Cuba e demonstrar, ao vivo, simpatia para com a incipiente experiência socialista dos barbudos da Sierra Maestra. Diante dos cubanos e de alguns expoentes da política e do jornalismo brasileiros, que levou a tiracolo, elogiou a reforma agrária cubana e defendeu o reatamento com a União Soviética, o reconhecimento da República Popular da China e a

legalização do Partido Comunista. Essa atitude acima dos partidos funcionava com os eleitores. Seu slogan, “Jânio vem aí”, e seus comícios atraíam gente de todas as classes. De norte a sul, multiplicavam-se as vassouras, presentes na fachada das casas mais populares e, em miniaturas douradas, nas lapelas mais elegantes. Dinheiro não era problema. O tostão tinha agora o milhão — mais de um, na verdade — a seu lado. Jânio recebeu o apoio do Conselho Nacional das Classes Produtoras, de várias associações empresariais e de grupos poderosos, como Matarazzo e Votorantim. No PSD, já que o desejo de JK não se concretizara (aliança com a UDN, tendo como cabeça de chapa Juraci), o jeito foi encontrar outro caminho. Dois deputados da Ala Moça do partido — Cid Carvalho e José Joffili — lançaram pelo jornal Correio da Manhã a candidatura do ministro da Guerra, marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott. Mesmo tendo Jango como companheiro de chapa, era um projeto que não emocionava quase ninguém, salvo Leonel Brizola, o governador do Rio Grande do Sul. Muitos trabalhistas relutavam em apoiar o marechal sem jogo de cintura, que só prometia austeridade. E a candidatura recebeu novo golpe quando o industrial paulista Roberto Gusmão empunhou a bandeira de aliança informal entre Jânio e Jango, ao lançar um comitê Jan-Jan, logo replicado Brasil afora. O cenário eleitoral completou-se com a candidatura de Ademar de Barros pelo PSP. Os militares estavam engajados — e divididos. Ao terminar o expediente nos quartéis, oficiais da ativa rumavam para os comitês eleitorais de seus candidatos e ali davam ordens, formulavam planos de campanha, elaboravam sistemas de segurança para os comícios, quantificavam as possibilidades eleitorais de seus candidatos. Os membros da Cruzada Democrática, comandada pelo grupo do general Osvaldo Cordeiro de Farias, trabalhavam na campanha de Jânio, enquanto os chamados nacionalistas, ligados ao movimento de 11 de novembro, estavam à frente dos escritórios de Lott. Aos 21 anos, o jornalista Carlos Chagas acompanhou a campanha como repórter de O Globo. No DC-3 que transportava Jânio, sua mulher e uma

comitiva de políticos e repórteres, a 400 quilômetros por hora, Chagas percorreu o país de cima a baixo. Segundo Chagas, o candidato viajava sempre ao lado de Eloá, agarrado aos braços de uma das primeiras poltronas, cortinas fechadas, cinto de segurança afivelado, fumando muito. Driblava o medo com uísque, mas o jornalista jamais o viu perder a compostura ou tornar-se inconveniente, como intrigavam seus opositores: “Pelo contrário, quanto mais bebia, mais brilhante ficava em seus discursos, apesar de mais vermelho também”.7 Jânio usava o mesmo método para todas as cidades, não importava se um pequeno povoado ou uma grande metrópole. O anúncio de sua chegada — sempre falava por último, claro — interrompia qualquer locutor. Vassouras de todos os tipos — piaçava, estopa e até algumas fluorescentes — eram erguidas e agitadas para todos os lados. Com uma memória prodigiosa, Jânio começava tratando dos problemas da cidade, citando políticos, rios, ruas e morros. Mas logo ia para o assunto que levantava as multidões: moralizar os costumes, varrer a corrupção, os empresários gananciosos e os péssimos políticos que apoiavam o governo de JK. Prometia, entre gritos e gestos, cadeia para os ladrões e chicote para os maus funcionários públicos. O povo delirava. A pedra de toque era a mesma de outras campanhas: crítica moralista à corrupção e à ineficiência burocrática, temperada com alguns ataques à injustiça social. Entraves que o candidato prometia destruir com a força de sua personalidade. A Juscelino, acusado de irresponsável e de “presidente voador”, Jânio empurrava a responsabilidade pela inflação e pela alta do custo de vida, desancando sua obra mais vistosa — a nova capital, que era apresentada como um inútil sorvedouro de dinheiro. Seu sucesso crescente baseava-se na imagem de “antipolítico”, o amador honesto que oferecia a possibilidade de uma transformação radical em relação aos detentores do antigo estilo, pré-1930, incapazes de se adaptar às exigências do Brasil urbano e moderno. A fórmula deu tão certo que ele a repetiria em toda a carreira, sempre passando por cima dos partidos, como observaria mais tarde o brasilianista Thomas Skidmore.

Seu oponente não fazia qualquer concessão. Numa viagem a Florianópolis, a comitiva do marechal Henrique Teixeira Lott foi recebida pelo chefe do PSD local, Celso Ramos. Numa pausa para o cafezinho, Ramos pediu-lhe que não mencionasse a estatização do ensino, uma das bandeiras do exministro da Guerra. No final do discurso, o candidato que tinha o apoio de JK e dos comunistas não se conteve: Nosso correligionário aqui presente pediu-me, ao desembarcar, que omitisse o que penso sobre a questão do ensino. Mas sou um homem autêntico, um candidato que não teme a impopularidade, se julga estar de acordo com sua consciência. Se for eleito, não tenham dúvidas: estatizarei todas as escolas e todos os colégios, porque meu governo não será de privilégios [...].8

Em Goiânia, uma outra prova da incontrolável sinceridade do marechal. Tentando convencer os pecuaristas de que exportar era a solução, Lott sentenciou: “O brasileiro tem mania de comer o traseiro, mas precisava habituar-se a comer o dianteiro...”. No último dia de campanha, 30 de setembro, Jânio passou por quatro capitais: Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e São Paulo, recebido por multidões crescentes. Gesticulando muito e com os óculos na ponta do nariz, encerrou seu derradeiro discurso sem qualquer originalidade — prometendo varrer a corrupção. Deixou o palanque nos ombros da massa, com um chapéu de motorista de ônibus da Companhia Municipal de Transportes Coletivos sobre a cabeleira desgrenhada, enquanto os alto-falantes tocavam o maior sucesso musical da época: “Varre, varre, vassourinha./ Varre, varre a bandalheira,/ Que o povo já está cansado/ De sofrer desta maneira./ Jânio Quadros é a esperança deste povo abandonado [...]”. Em clima de euforia, 11 milhões de brasileiros foram às urnas. Jânio aparecia em 48% das cédulas apuradas, ou seja, em 5.6l6 milhões de votos. Lott, o candidato do PSD-PTB, obteve 28%, e Ademar de Barros, do PSP, 23%. Foi a maior votação individual na história do Brasil até então e a primeira vitória de um nome da oposição nas eleições presidenciais. Como já

foi dito, o trabalhista Jango, beneficiado pelos comitês Jan-Jan, foi eleito vice, derrotando Milton Campos, da UDN, por pequena diferença. As disputas regionais — houve eleição em apenas onze estados — foram influenciadas pelo desempenho espetacular de Jânio. A UDN conseguiu vitórias importantes, até mesmo em redutos pessedistas, como Minas Gerais (José de Magalhães Pinto derrotou Tancredo Neves), Paraíba (Pedro Gondim ganhou de Janduí Carneiro), Mato Grosso (Fernando Correia da Costa derrotou Filinto Müller) e Paraná (Ney Braga, do PDC, partido aliado da UDN na política nacional, venceu Plínio Costa). Carlos Lacerda elegeu-se na recém-criada Guanabara, e Luís Cavalcanti, em Alagoas. Já o PSD fez quatro governadores: Celso Ramos em Santa Catarina, Newton Belo no Maranhão, Aurélio de Carmo no Pará e Mauro Borges em Goiás. Além disso, cedeu a legenda para o udenista Aluísio Alves no Rio Grande do Norte. Mas no Congresso não houve mudanças: era ainda o que fora eleito em 1958, em que o PSD tinha 35% das cadeiras, a UDN, 21%, o PTB, 20%, e o PSP, 8% — o que dava folgada maioria à aliança oposicionista PSD-PTB. Para descansar da estafante campanha, que lhe custou sete quilos, Jânio tirou férias e, em companhia da mulher e da mãe, partiu para a Europa. Em Londres, internaram-se todos na London Clinic. Ele, para examinar a vista, a mãe, para uma avaliação da progressão do câncer, e a mulher, para cuidar da garganta. A bordo do cargueiro Aragon estava o repórter Joel Silveira, do Diário de Notícias. Os encontros regados a scotch e cerveja Guinness passavam ao largo da política, mas Silveira concluiu que o presidente eleito já esperava que seus aliados cobrassem a fatura do apoio com cargos. E não parecia disposto a pagá-la. Entre um gole e outro revelou ao jornalista: “Nesta guerra eu dispararei o primeiro tiro”. Jânio divertia-se ao comentar que a UDN queria tudo em seu governo — ministérios, cargos de primeiro, segundo, terceiro e até quarto escalão: “Lá no Brasil, a UDN já montou o meu ministério”.9 Quando retornou, dias antes da posse, sua equipe estava praticamente definida – sem consultas à UDN. Era uma colcha de retalhos que não

assegurava maioria parlamentar. Fora costurada por Oscar Pedroso Horta, um dos fundadores do Movimento Popular Jânio Quadros (MPJQ). Nove anos mais velho do que Jânio, o paulista Horta tinha entrado para o time dos íntimos do presidente três anos antes. Ex-jornalista, apoiara a Aliança Liberal armada em torno de Getulio Vargas e fora nomeado diretor da Guarda Civil e delegado de trânsito do estado, unificando os dois serviços. Na mesma Revolução Constitucionalista de 1932, em que Quintanilha foi à luta do lado dos revoltosos de São Paulo, Horta ficou ao lado do poder central. Afastou-se da política quando o movimento foi derrotado, abrindo um escritório de advocacia. Atuou em favor de Jânio e depois de Ademar de Barros, e, em 1955, o prefeito Lino de Matos lhe entregou a presidência da Companhia Municipal de Transportes Coletivos. Em 1957, disputou e perdeu para Ademar de Barros a Prefeitura de São Paulo. No ano seguinte, Jânio colocou- o na Secretaria Estadual de Justiça. Horta montou o ministério com base nos políticos que haviam participado da campanha e com os quais se afinava. Juntou conservadores ligados à burguesia e políticos sem expressão nacional. O banqueiro Clemente Mariani, por exemplo, ficou com a Fazenda. As exceções — como o inovador Afonso Arinos de Melo Franco, encarregado das Relações Exteriores — só confirmavam a regra. Na área militar, a fórmula mantinha Odílio Denys no Ministério da Guerra, mas escalava o almirante Sílvio Heck para a Marinha e o brigadeiro Grün Moss para a Aeronáutica. Denys havia sido o braço direito do marechal Lott no contragolpe preventivo que assegurou a posse de Juscelino. Heck comandara o contratorpedeiro Tamandaré, que abrigou o presidente Carlos Luz, seus fiéis ministros e Carlos Lacerda, na tentativa de resistir ao movimento militar pró-JK. E Moss era muito amigo do novo ministro da Marinha. O que parecia uma sacada digna de um estrategista revelou-se uma alquimia que se voltaria contra aquele aprendiz e seu feiticeiro... Para seu secretário particular, Jânio chamou José Aparecido de Oliveira, 32 anos, outro fundador do Movimento Popular Jânio Quadros. Durante a campanha, Aparecido deu palpites nos comitês de Magalhães Pinto e Ney

Braga, enquanto atuava como a verdadeira sombra de Jânio, viajando sempre ao lado do candidato a presidente. Na prática, era um contrapeso diante da força do chamado grupo de São Paulo — Horta, Quintanilha, Castilho Cabral —, e sua opinião tinha levado Virgílio Távora à presidência do MPJQ, contrariando o desejo dos paulistas,que apoiavam Quintanilha Ribeiro. Mineiro de Conceição do Mato Dentro, Aparecido fora jornalista em Belo Horizonte antes de entrar para a política, como coordenador da campanha e depois chefe de gabinete do prefeito Celso Melo de Azevedo, em 1954. Aproximou-se do deputado udenista José de Magalhães Pinto e passou a trabalhar no banco do político, o Nacional, tornando-se seu grande amigo. Foi seu primo, Geraldo Andrade Carneiro, alma de boêmio, veia de músico e poeta, que o apresentou a Jânio. Secretário de Juscelino Kubitschek, Geraldo recebera incumbência difícil, em que outros tinham fracassado: buscar uma aproximação com o governador de São Paulo. Jânio gostou tanto de Carneiro que o fez pernoitar no Palácio dos Campos Elísios e ainda emprestou-lhe uma camisa, uma cueca e um par de meias. O governador imprevisível e aquele jovem impulsivo tornaram-se grandes amigos. Para preencher o recém-criado cargo de secretário de Imprensa da Presidência, Aparecido escolheu um piauiense de 41 anos, baixo e narigudo, com dicção complicada e uma memória punitiva imune a doses diárias e cavalares de Black Label. Carlos Castello Branco, o Castelinho, nascera em Teresina, mas ainda garoto fora estudar em Belo Horizonte. Aluno da faculdade de direito, fizera um teste para repórter. Ao fim dos vinte dias de estágio, o diretor de redação deu o seguinte veredicto: “Fique com aquele que escreve como se estivesse mandando um bilhete para a lavadeira”. Era Castelinho. Começou na reportagem policial, passou a redator do farto noticiário internacional durante a Segunda Guerra, antes de consolidar-se como o mais respeitado e influente jornalista político brasileiro da segunda metade do século XX. Foi nas redações da capital mineira que ele e Aparecido tornaramse amigos. Em 1945, mudou-se para o Rio de Janeiro, a convite de Lacerda, praticamente nomeado que estava para assumir a direção do Diário Carioca.

Quando chegou à capital, descobriu que Lacerda perdera a vaga e que estava sem emprego. Foi editor político da revista O Cruzeiro e chefe de redação da Tribuna da Imprensa, do mesmo Lacerda, que mais tarde o acusaria publicamente de distorcer o noticiário para prejudicá-lo, chamando- o de “diretor do Sindicato da Mentira”. (Injustiça que Lacerda conseguiu corrigir no fim da vida, tornando-se editor dos livros do colunista.) A imprensa que Castelinho deveria abastecer de notícias durante o novo governo torceu o nariz para o ministério inexpressivo e conservador com que Pedroso Horta pretendia pôr em prática o revolucionário programa de Jânio. O Correio da Manhã acentuou em seu editorial que faltava povo naquele conglomerado conservador “que não era nada”. O Diário de Notícias foi na mesma toada: “Jânio teve toda a liberdade e autoridade para formar um governo independente de compromissos, mas não conseguiu escapar às pressões e formou uma equipe incapaz de corresponder aos anseios do Brasil”.10 Mas a população não estava nem aí para o time do novo presidente: queria era ver seu ídolo varrendo as impurezas de Brasília. Em 31 de janeiro, Juscelino entregou-lhe a faixa presidencial, diante das delirantes galerias do Congresso. E a multidão que tomava a praça dos Três Poderes, debaixo de chuva, aplaudiu por longos minutos o novo presidente, que prometia governar com eles: O povo estará comigo e comigo governará. O povo será a um tempo minha bússola e meu destino [...] este será um governo rude e áspero; tais adjetivos não têm sentido de ameaça, antes exprimem a franqueza de quem não mente aos seus concidadãos porque não foge a seu dever, nem abdica das suas convicções. Se não me faltar o arrimo da inspiração divina, se não me faltar o apoio do Legislativo e do Judiciário, sei de mim que resgatarei a palavra da fé empenhada nas praças.11

No mesmo discurso, atacou o comunismo, sem mencioná-lo diretamente, definindo-o como “um novo tipo de imperialismo que se atirou à conquista da

supremacia mundial, impondo a todos a insegurança, o arbítrio, a prepotência, o desconhecimento de quaisquer prerrogativas que não as do pequeno grupo, estas absolutas”. E acenou com reformas para adaptar a democracia às novas condições vigentes. Em política externa, imaginava o Brasil como uma comunhão sem rancores ou temores: Ao Brasil cabe estender as mãos a esse mundo jovem (as ex-colônias), compreendendo-lhe os excessos, os devaneios ocasionais, que decorreram da secular contenção de aspirações enobrecedoras. Compreender significa auxiliar no que for possível e no que for preciso [...] Abrimos nossos braços a todos os países do continente, abrimo-los também às velhas coletividades europeias e asiáticas, sem prevenções políticas e filosóficas.12

Mais tarde, com JK sobrevoando o Atlântico, diante de um batalhão de jornalistas, Jânio traçou um quadro sombrio da economia do país que passava a dirigir: O que se fez, acresço, o que logrou retumbantes repercussões publicitárias, cumpre agora saldar amargamente, pacientemente, dólar a dólar, cruzeiro a cruzeiro. [...] Sacamos o futuro, contra o futuro, muito mais do que a imaginação ousa arriscar.13

Ao assumir, tinha o mesmo ímpeto que marcara sua gestão na Prefeitura e no Governo do Estado de São Paulo: exonerou os que haviam sido nomeados na administração direta e nas autarquias, proibiu novas contratações e abriu inquéritos contra o governo de Juscelino. Não contente, desfiou uma série de pequenas medidas destinadas a criar uma imagem de inovação dos costumes e saneamento moral e que ficariam famosas: proibiu as rinhas de ga-los, as corridas de cavalo em dias úteis, os desfiles de misses com maiôs cavados e o uso dos lança-perfumes nos bailes de carnaval (há quem diga que Jânio vetou o lança-perfume por causa do acidente que lhe custara a vista).

O governo também investiu fortemente contra alguns direitos e regalias do funcionalismo público, começando por instituir, em 16 de fevereiro, horário integral de trabalho nas repartições federais. Do ponto de vista administrativo, Jânio centralizou o poder. Reduziu o peso do Congresso Nacional, indicou majores para as chefias dos gabinetes militares nos estados e passou a despachar nas várias regiões. Em março, esteve com os governadores do Sul; em abril, reuniu os do Centro-Oeste; em maio, os do Nordeste; e em junho, no Rio, discutiu os problemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara. Numa de suas primeiras viagens, para inaugurar a Festa da Uva, em Caxias do Sul, foi recebido por Brizola. O governador nunca havia falado com o presidente e até o criticara durante a campanha, em que apoiara o marechal Lott. Ao desembarcar, Jânio sorriu e atalhou: “Nós temos muito o que conversar”. Brizola tinha preparado alguns textos para entregar ao presidente. Durante a longa viagem de carro, foi apresentando seus pedidos: Preparei, por exemplo, um texto relacionado com a soja que recém surgia e que na época era apenas um subproduto da cultura do trigo. Só era produzida no Rio Grande do Sul e assim mesmo como cultura doméstica, não havia mecanização, praticamente não se exportava, compreendeu? Era ração para os animais domésticos, especialmente para porco.

O presidente pegou aquele fascículo, colocou-o bem diante dos olhos para enfrentar a letra miúda e disse: “Governador, o presidente Sukarno me fez boas referências a respeito desse grão, diz que o Ford também era muito entusiasta desse grão [...] será que temos possibilidade de desenvolvê-lo aqui?”. Brizola respondeu que sim. Dois dias mais tarde, o Rio Grande do Sul recebia dinheiro para o pioneiro programa da soja. Outras questões, como a construção de uma usina termelétrica, também foram solucionadas, mudando a visão do governador gaúcho sobre o novo presidente.

Em 1961, a economia brasileira estava crescendo algo em torno de 7% ao ano, mas a inflação estava na casa dos 30% anuais, e o déficit era alto — 100 bilhões de cruzeiros era a previsão para aquele ano, um terço da receita estimada. O ministro da Fazenda, Clemente Mariani, um monetarista, definiu como principais metas de sua gestão a correção do desequilíbrio orçamentário e do déficit do balanço de pagamentos, o que exigia contenção dos gastos públicos, restrição do crédito e estímulo às exportações. Em 13 de março de 1961, em cadeia de rádio e televisão, Jânio anunciou uma verdadeira paulada em relação à política econômica: “Com um déficit potencial de 240 bilhões de cruzeiros, a situação é mais dura do que se pensava. [...] Daí os sacrifícios que pedi e continuarei pedindo. O desenvolvimento econômico só é admissível em ambiente de justiça social”.14 O dólar subiu de 90 para 200 cruzeiros. Foram suspensos os subsídios para a importação, atendendo aos reclamos dos credores estrangeiros e dos exportadores, mas penalizando os grupos nacionais que já haviam contraído financiamento externo. O país, que havia rompido com o FMI, voltou a cumprir a ortodoxa receita do Fundo. Para negociar novos acordos financeiros, Walter Moreira Salles, Roberto Campos, Miguel Osório de Almeida e João Dantas foram aos Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Holanda, Suíça e Suécia. Depois de mexer no câmbio, baixando a Instrução 204 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), o presidente enviou ao Congresso a nova lei antitruste e a proposta de criar a Comissão Administrativa de Defesa Econômica. Dois petardos recebidos com reservas pela turma do milhão, como a Conclap. Mas Jânio queria mais. Em 7 de julho, juntou o ministério para discutir mudanças importantes no imposto de renda e nos códigos Penal, Civil e de Contabilidade. À noite, em cadeia de rádio e TV, comunicou o envio ao Congresso do projeto de lei sobre a remessa de lucros para o exterior. O tema colocaria em campos opostos o ministro da Fazenda — que queria

facilitar a entrada do capital estrangeiro — e João Agripino, de Minas e Energia, favorável a um endurecimento das regras para as empresas estrangeiras. Jânio fez menção de enfrentar a reforma agrária também. Depois de criar um grupo de trabalho misto, integrado por técnicos, parlamentares e até um bispo, o presidente apoiou o projeto de José Joffily, da Ala Moça do PSD, relator da Comissão Especial sobre a Reforma Agrária, que propunha desapropriar terras por sua utilidade social, pagando os latifundiários com base no valor declarado para fins de imposto, ou seja, muito menos do que valiam na realidade. Adepto da ação direta, Jânio enviava bilhetinhos cobrando providências, determinando atitudes, estabelecendo normas. Nos sete meses como presidente, disparou 1.534 mensagens sobre os mais variados temas e para os mais diversos destinatários. Só os grupos de trabalho receberam 164 desses “memorandos”. Qualquer assunto podia ser objeto de um recado direto do presidente, como demonstram os exemplos a seguir: Ao chefe do Gabinete Militar Autorizo a selecionar 21 oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (majores e equivalentes nas duas outras Armas), a fim de servirem nas capitais dos estados, como chefes de Gabinete Militar. Recomendo que a seleção seja rigorosa, não devendo os escolhidos ter qualquer incompatibilidade no estado em que irão servir, nem devem ter militado na política partidária, em qualquer momento. *** Ao diretor da Rede Ferroviária Federal Determino o envio, ao meu gabinete, em 48 horas, do nome da firma que levou a protesto um título da organização.

*** Ao ministro da Justiça (com cópia para o presidente do Banco do Brasil) Li nos jornais que o juiz da Vara dos Feitos da Fazenda, em São Paulo, concedeu mandado de segurança contra decreto por mim baixado. Aprendi que isso não é possível. Somente o Supremo Tribunal Federal pode revogar decreto do presidente. Adote providências imediatas. Determino ao Banco do Brasil excluir de quaisquer operações a firma Comércio e Indústria Hugo Stinnes, que impetrou o mandado. Quaisquer. Cumpra-se, imediatamente. *** Ao Gabinete Civil Determino a expedição de circular aos governadores dos estados solicitando coibirem, nos termos do decreto em vigor, rigorosamente, as chamadas rinhas. *** Ao ministro da Educação Providenciar, possivelmente junto à Escola Nacional deBelas Artes, quadros a óleo com retratos de todos os presidentes da República. Deverão ser padronizados, nas dimensões e nas molduras, a fim de formar galeria no Salão de Despachos da Presidência da República. *** Ao chefe da Casa Civil Tendo em vista notícias de que o diretor-geral da Companhia Usinas Nacionais teria adquirido um carro de luxo para o seu uso, determino providenciar, ainda hoje, a rescisão dessa compra.

Capaz de passar horas discutindo questões técnicas e de torpedear seus auxiliares com tais mensagens, Jânio também não aguentava bem o jogo com os parlamentares e mais de uma vez reclamou do Congresso. Não tinha estômago para suportar o jogo político da democracia, que submete qualquer determinação a um longo processo de debate e negociação no Legislativo e geralmente amplia a distância entre intenção e realidade. Mas o 51 líder de seu governo na Câmara, deputado Pedro Aleixo (UDN/MG), jamais admitiu que o Legislativo tivesse dificultado a vida do governo: Todos os projetos constantes de mensagens, normalmente encaminhados às comissões, não sofreram qualquer obstrução, e muitos deles tiveram pareceres unânimes recomendando sua aprovação. [...] O Congresso nem sequer teve oportunidade de recusar qualquer projeto que lhe haja sido enviado pelo governo e reputado indispensável para a realização de profundas reformas programadas.15

O maior revés foi a rejeição do Senado ao nome do industrial José Ermírio de Moraes para embaixador do Brasil em Bonn, na Alemanha, em 6 de junho, por 26 votos a 22. Grande amigo de Jânio, José Ermírio era dono de uma mansão em Bertioga, onde frequentemente hospedava o presidente. Foi vetado justamente pelo fato de ser íntimo do governante que desprezava o Congresso. Agosto começou tenso e com a temperatura alta na Esplanada dos Ministérios. O aumento do custo de vida provocava protestos, e o presidente parecia disposto a montar uma nova equipe econômica, convocando homens que haviam trabalhado com Juscelino para integrar a Comissão Nacional de Planejamento. Mariani pediu demissão, e Jânio não disse nem sim, nem não. Pediu apenas que permanecesse no cargo até a realização da Conferência da Organização dos Estados Americanos, em Punta del Este. Brizola foi nomeado vice-presidente da delegação, sob o argumento de que ele seria um símbolo da união dos brasileiros em torno da política externa. Depois de aplaudir, solitariamente, o discurso feito contra os norteamericanos por Ernesto Che Guevara, ministro da Economia de Cuba, o

governador gaúcho voltou a Porto Alegre. Nem esperou o final do encontro, insatisfeito com o que classificava de complacência dos brasileiros em relação ao predomínio dos Estados Unidos. Conservadora demais para satisfazer o governador gaúcho, a política externa de Jânio estava na mira de outro governador, não menos incendiado: Carlos Lacerda.

3 Uma valise florentina

NOITE DE SEXTA-FEIRA, 18 de agosto de 1961, Palácio da Alvorada,

Brasília. No portão do jardim, um negro alto e elegante espera o visitante. Na mão, uma valise de couro; na boca, uma história mal contada: “O presidente manda pedir desculpas, estava muito cansado, foi dormir e me disse para lhe entregar a valise; convém o senhor ir para o hotel”.1 O visitante não diz nada, apenas olha longamente para João Hermínio, o mordomo do Palácio da Alvorada que horas antes carregara a mesma valise até o apartamento de hóspedes do segundo andar. O mordomo certamente ignorava que o temperamento explosivo e perigoso de seu quase hóspede vivia um de seus ápices — e que Jânio Quadros pagaria caro por isso. Em seguida, manda o motorista seguir para o Hotel Nacional. Enquanto o Aero Willys preto percorre as avenidas vazias de Brasília, seu passageiro sente-se tão desamparado como na primeira noite no internato, aos 14 anos, ou ao deixar a embaixada de Cuba, rumo ao exílio, em 1955. Pelo menos, assim ele descreveria aquele momento, ao relembrar os principais lances de sua vida numa série de artigos que não quis chamar de autobiografia: “Memórias, não. É cedo. Talvez nunca. História, deixo aos outros. A minha contribuição pretensiosa consiste em lhes dar matéria-prima para escrevêla”.2 A frase soava bem, mas não correspondia à realidade. Definitivamente, se Carlos Frederico Werneck de Lacerda deixou algo para os outros, não foi sua história. Suas ideias, opiniões e reminiscências estão registradas em 23 livros

que o fazem o personagem mais conhecido entre os que tiveram participação ativa na crise de 1961. Bisneto de um açoriano que migrou para o Brasil e virou padeiro e contador no povoado de Comércio, próximo a Vassouras, no norte do Estado do Rio, herdou do avô Sebastião e do pai Maurício o gosto pela política. Além dos genes — se é que política se transmite assim —, no próprio nome, há uma dupla homenagem aos ídolos de seu pai. Carlos Frederico Werneck de Lacerda, seu terceiro filho, nasceu na rua Alice, no bairro das Laranjeiras, no dia 30 de abril de 1914. O prenome duplo fazia referência a dois alemães admirados por seu pai: Carlos Marx e Frederico Engels. Se tinha algum talento musical, foi sufocado pela disciplina: o menino que gostava de cantarolar trechos de óperas no banheiro chegou a apresentar-se com um violino diante de alguns parentes,mas apanhava quando tocava mal e passou a estalar os dedos, achando que engrossar as juntas o afastaria do instrumento — hábito que o acompanhou até o fim da vida. As juntas não o impediram de tornar-se um exímio redator, embora jamais tenha assimilado a mais elementar lição de datilografia — sempre batucou seus textos furiosamente usando apenas dois dedos. Inteligente, alerta e curioso, tinha opiniões agressivas e parecia ter prazer em discordar dos adultos. A aritmética era um transtorno, mas ia bem em história e línguas. Nunca foi atleta e jamais aprendeu a nadar. Aos 9 anos, numa carta endereçada à mãe, traçou seu futuro — e errou redondamente: “Já escolhi minha profissão. Hei de ser engenheiro-agrônomo. Não me meterei na política. Já fiz este juramento. Não defenderei, mas também não atacarei. Sei que isto te desgosta, porque foi com esta maldita política que meu pai se perdeu”.3 O pai realmente respirava política. Maurício foi prefeito de Vassouras e deputado federal. Cercado de anarquistas, socialistas, bolcheviques, volta e meia estava envolvido numa conspiração fracassada. No governo de Epitácio Pessoa, tornou-se o tribuno do proletariado e ajudou a financiar a Voz do Povo, jornal dos anarquistas. Sem processo, interrogatório, defesa ou acusação definida, ficou dois anos

e quatro meses preso, para indignação do filho de 10 anos: A pátria, a meus olhos, tornou-se uma criatura a salvar, literalmente amada e idolatrada. Os políticos, com raras exceções, viviam dos empregos que arranjavam, conseguindo votos, fazendo-se favores uns aos outros para sustentar a curriola. [...] A pátria tornou-se a Dulcineia de um Quixote de calças curtas.4

Carlos jamais esqueceu a imagem do pai desembarcando de um trem repleto de políticos, com a cabeça enfaixada, em 1922. Maurício fora apedrejado por partidários de Artur Bernardes, ao discursar em Juiz de Fora, defendendo a candidatura de Nilo Peçanha. Os tios aderiram ao comunismo e aliciaram o sobrinho: “Eu tinha uns 12 anos quando meu tio Paulo me deu a ler o ABC do comunismo, de Bukharin. Não li o livro todo. De lá para cá, o autor foi fuzilado. O leitor, não. Mas bem depressa minha vida mudou”.5 Carlos acompanhou as peripécias do pai, arranjou o primeiro emprego como jornalista aos 16 anos, entrou para a faculdade de direito, conseguiu o diploma e chegou a atuar como defensor gratuito, garantindo a absolvição de uma prostituta acusada de ter afogado seu bebê recém-nascido e de um ladrão que roubara duas colchas, um leque, uma caixa vazia e um alfinete de gravata do promotor de Vassouras. Trocou a banca pela brocha ao cumprir as típicas tarefas com que os comunistas testavam os simpatizantes. A primeira foi pichar uma estátua de Pedro Álvares Cabral. Na segunda missão — um comício para os trabalhadores do cais do porto —, sofreu sua primeira prisão. Durante a fracassada rebelião comunista de novembro de 1935, foi o orador oficial dos estudantes. Procurado pela polícia, escondeu- se na casa de amigos. Viveu seis meses sozinho num quarto, na casa de sua tia-avó, onde tentou o suicídio, cortando o pulso. Quando o Congresso decretou o estado de guerra, provocado por um suposto complô comunista para tomar o poder, Lacerda foi localizado pela polícia em Itaparica, na Bahia, e levado para a Casa de Detenção. Dali,

acompanhou a instalação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937. Libertado, redigiu um longo artigo sobre a história do comunismo que foi mal digerido pelo PC e provocou sua expulsão do partido. Classificado de “agente provocador, espião da Gestapo, elemento a serviço do nazismo e desagregador trotskista”, tornou-se um feroz adversário de seus excompanheiros. Na mesma medida, atazanou Getulio Vargas. Em 1945, dominou a cena no Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores em São Paulo, um verdadeiro aríete que a intelectualidade brasileira assestou contra a ditadura. Além de ter um papel de destaque na campanha presidencial do brigadeiro Eduardo Gomes, lançou-se candidato à Câmara dos Vereadores. Teve o triplo dos votos do segundo colocado — 34.762 votos ou 42,5%. Sozinho, assegurou à UDN mais quatro parlamentares. Seu arqui-inimigo, o PCB, com 24% dos votos, fez a maior bancada: dezoito vereadores, contra nove da UDN e nove do PTB. Quando o PCB perdeu seu registro, sob o argumento de que se tratava de organização dependente de potência estrangeira — a União Soviética —, Lacerda criticou a medida, dizendo que abria caminho para prisões políticas e censura à imprensa. A posição pública não impediu que seu ex-defensor, o advogado católico Sobral Pinto, o acusasse de ser o principal responsável pelo fechamento do partido. Trocou o Diário Carioca pelo Correio da Manhã, onde sua coluna “Na Tribuna da Imprensa” se tornou a trincheira na qual instalou a mais poderosa metralhadora giratória da imprensa brasileira. Acusou Jorge Amado de ter recebido dinheiro da embaixada alemã durante a guerra, martelou insistentemente a figura de Vargas — a quem denominou “Rebeco, o ditador inesquecível”, referindo-se ao grande sucesso da atriz Rita Hayworth em Rebeca, a mulher inesquecível — e denunciou um suposto plano de Getulio para criar um bloco neofascista sul-americano junto com Perón. Sua fuzilaria, que cobria 360 graus ininterruptamente, volta e meia recebia um troco: foi agredido duas vezes e ainda sofreria um atentado a tiros. Quando se deu conta de que nenhum outro veículo tinha vaga para um

jornalista tão insubmisso, Lacerda resolveu montar seu próprio jornal, usando o título da coluna, liberado por seu ex-patrão. Um empréstimo bancário e o apoio de 3.404 acionistas garantiram o dinheiro necessário para colocar em pé a Tribuna da Imprensa. O jornal saiu-se melhor no projeto que na banca. Em pouco tempo, tinha manchetes escandalosas na primeira página, mas a circulação não atingia os 10 mil exemplares, garantindo à Tribuna o apelido de Lanterninha. Lacerda não se fez de rogado: acrescentou ao logotipo uma lanterna — supostamente a de Diógenes, que buscava a verdade. De cabo a rabo, o produto tinha a marca de seu dono, que se envolvia muito mais com o conteúdo do que com a administração. Nem mesmo a balbúrdia após a vitória do Brasil num jogo da Copa do Mundo tirava-o da frente do teclado, onde, óculos no alto da cabeça, reescrevia os textos de quase todos os repórteres. A tiragem reduzida era compensada pela agressividade, que continuava custando caro a seu responsável. Na campanha presidencial de 1950, brigou outra vez com a UDN, que se aliara ao líder dos integralistas, Plínio Salgado. Quatro meses antes das eleições, disposto a impedir de qualquer modo a volta de Vargas, Lacerda escancara: “O sr. Getulio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.6 Getulio ganhou com folga. Acusado de fascista e golpista, Lacerda manteve a tese, passando a justificá-la com o fato de que Vargas não obtivera maioria absoluta — hipótese rejeitada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Menos de dois anos depois do surgimento da Tribuna da Imprensa, sua ira contra o presidente sobe de tom com o lançamento de um novo diário no Rio de Janeiro. O projeto surgira num encontro entre Samuel Wainer e Getulio Vargas, ainda na estância de São Borja. Fora Samuel o responsável pela manchete que sinalizara a volta de Getulio ao jogo político, após sua queda. Aos 39 anos, era uma das estrelas do time dos Diários Associados — o grupo de comunicação mais poderoso da história

do Brasil — e fora até a estância de São Borja seguindo um impulso, segundo diria mais tarde (história difícil de acreditar). Com sua fala mansa, obteve do ditador no ostracismo a frase que seria transformada na manchete do ano: — E se o senhor viesse a ser candidato? — Eu não sei... Mas pode dizer uma coisa: eu voltarei. Eu voltarei, mas não como líder de partidos e, sim, como líder de massas.

Wainer era, portanto, um parceiro confiável do presidente quando travou nova conversa, também em São Borja: — Por que tu não fazes um jornal? Respondi que aquele era um sonho de um repórter com o meu passado. Ponderei que não seria difícil articular a montagem de uma publicação que defendesse o pensamento do presidente que, como era o seu caso, tinha o perfil de um autêntico líder popular. — Então, faça — determinou Getulio. — Perguntei lhe se queria saber como faria. — Não — cortou. — Troque ideias com a Alzira e faça rápido. Reagi com o entusiasmo de sempre: — Em 45 dias dou um jornal ao senhor. — Então, boa noite, Profeta — encerrou Getulio. — Boa noite, presidente. A Última Hora começava a nascer, e eu a encontrar a minha razão de viver.7

A “razão de viver” de Wainer superou rapidamente a Tribuna da Imprensa e continuou a crescer. A Última Hora pagava melhor, era mais moderna, mais ágil e mais benfeita que a publicação de Lacerda. E ainda contava com um reforço importante: o apoio financeiro do Banco do Brasil e de empresários favoráveis ao governo. Certo dia, Lacerda, sempre provocador, apareceu no enterro de um repórter da Última Hora vestido de preto dos pés à cabeça. Samuel Wainer, irritado, deixou o velório e comentou: “Vou voltar para o jornal. Não aguento

ver esse corvo na minha frente”, explicou a amigos. Na redação, pediu ao cartunista Claudius que desenhasse uma caricatura de Lacerda como corvo. O apelido pegou, e de modo algum Lacerda conseguiu livrar-se dele. Em 1953, a rivalidade dos jornais transformou-se numa guerra aberta que desembocaria no suicídio do presidente da República. O primeiro tiro foi dado por Castelinho, editor-geral da Tribuna: uma foto de Wainer, sorridente, num elegante smoking e o título “Esbanjavam dinheiro do Banco do Brasil”, numa referência ao apoio do banco oficial à empresa Érica, editora da UH. A fonte da matéria desmentiu tudo. Lacerda, possesso, resolveu transformar a “barriga” — erro jornalístico crasso, no jargão das redações — numa cruzada para provar que Samuel Wainer realmente recebera dinheiro do Banco do Brasil. O caso resultou em uma das mais ruidosas comissões parlamentares de inquérito já instauradas. Durante cinco meses, Lacerda comentava quase diariamente o avanço das investigações pelo rádio e pela televisão. Usando um quadro-negro para explicar os detalhes do caso, transformou-se num líder de audiência, até porque toda a imprensa tinha interesse em torpedear a Última Hora. Wainer acabou preso, por recusar-se a revelar o nome de seus financiadores diante da CPI, cujo relatório final concluiu que os empréstimos concedidos à UH eram realmente resultado de tráfico de influência. A polêmica em torno de sua verdadeira nacionalidade aumentou seu pesadelo. Pela lei, só brasileiros natos ou naturalizados podem ser proprietários de jornal no Brasil, e Lacerda conseguiu provar que o dono da Última Hora nascera na Bessarábia, entre a Ucrânia e a Moldávia, então território romeno. Jango também foi atingido, quando ficou evidente que o Departamento de Imigração, subordinado ao Ministério do Trabalho, falsificara a lista de passageiros de um navio para nela incluir o nome dos pais de Wainer, reforçando a tese de que Samuel nascera no Brasil. Jango e Lacerda só tinham se encontrado uma vez, às vésperas de sua nomeação. A conversa foi até altas horas e incluiu o seguinte diálogo: — Se algum homem público, no Brasil, deve ser grato à democracia é você, Jango.

Nunca fez nada na vida pública e está vitorioso graças ao voto popular. Só porque fez companhia ao velho Vargas na estância de São Borja, quando ele foi deposto e abandonado por tantos amigos, você se elegeu no Rio Grande do Sul com uma imensa votação, dada pela gratidão do povo a Getulio Vargas. Na Câmara, também não chegou a fazer nada, e agora é hóspede do palácio presidencial e vai ser nomeado ministro do Trabalho. Tudo isso você teve porque a democracia permitiu. Então, por que você é peronista? — Não sou peronista. Sou, sim, grande amigo do general Perón, que me manda buscar da Argentina no seu avião particular; e sou admirador dele, pela organização que deu à Argentina. Ele aperta um botão e desencadeia uma greve geral. Aperta outro, faz parar a greve.8

A explicação não adiantou nada, e Lacerda passou a desancar Jango em seu jornal. Um exemplo, de 1953: “Joãozinho Boa-Pinta deve sair do ministério e voltar ao cabaré, que é a sua universidade, a sua caserna e o seu santuário. [...] O Brasil não está mais em idade de aturar as impertinências de um irresponsável [...]. Ser ministro não é o mesmo que dançar tango”.9 A campanha da Tribuna da Imprensa contra o governo Vargas parecia não ter fim. Em 1954, o jornal denunciou a corrupção na Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil, fornecendo combustível para a manifestação de militares con trários à agitação dos operários e à corrupção no governo. Jango caiu, depois de propor aumento no salário mínimo, mas nem sua demissão acalmou Lacerda: “Vão-se os anéis de Jango, ficam os dedos de Vargas”.10 Na madrugada de 5 de agosto de 1954, diante do prédio de Lacerda, na rua Tonelero, um homem dispara contra o jornalista, que leva um tiro no pé. Em seguida, mata o major Rubens Vaz, com dois tiros de pistola 45. A Aeronáutica instaura um Inquérito Policial-Militar para apurar o crime, com a justificativa de que a arma utilizada era de uso privativo das Forças Armadas. O taxista que atendeu o criminoso na fuga fornece pistas importantes. O pistoleiro, Alcino do Nascimento, é preso. As investigações conduzem ao chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato.

Nunca ficou provado que Getulio ou seu irmão tivessem sido os mandantes do crime, mas Lacerda morreu convencido de que Bejo Vargas era o mentor intelectual do atentado fracassado. No dia 23 de agosto, o movimento pela renúncia do presidente chega ao auge, quando 27 generais — entre eles Peri Beviláqua e Henrique Lott — exigem a saída de Vargas. Na manhã do dia 24, Getulio dá um tiro no coração, saindo da vida para entrar na história, como reza sua cartatestamento. Lacerda passara a noite na casa de amigos, festejando a vitória iminente que a queda de Getulio lhe traria. Mas o suicídio do presidente reverteu o quadro. O povo saiu às ruas, queimou os caminhões que transportavam a edição de O Globo e tentou ocupar a embaixada americana. Os getulistas também tentaram impedir a circulação da Tribuna da Imprensa, que, no entanto, publicou o suicídio como manchete. Do Aeroporto Santos Dumont, Lacerda telefonou para membros do governo, tentando evitar que a carta-testamento continuasse a ser lida nas emissoras de rádio, tendo como fundo musical a marcha fúnebre. Nesse momento, descobriu que estava só: “Ninguém queria a responsabilidade de ter deposto Vargas. Todos queriam ser bons moços. Pois morto, com o gesto do suicídio, como que se santificou. E os ambiciosos, assim como os ingênuos, não queriam perder seu apoio póstumo”.11 Café Filho assumiu a Presidência e garantiu as eleições. Lacerda foi contra. Em artigos, discursos e conversas, repetia insistentemente que era preciso reformar a lei eleitoral, porque o povo estava traumatizado com o suicídio do presidente: Parecia que estava falando uma língua desconhecida. Os mais famosos golpistas do país, revolucionários desde 1922, pareciam atacados de legalismo agudo e me chamavam de golpista porque eu insistia em dizer que tinha havido uma revolução no país. Esses senhores não sabiam o que é revolução; por isso, até hoje, estão confusos. A maioria dos líderes da UDN desligou-se de mim como se eu sofresse de doença contagiosa.12

Na campanha eleitoral de 1955, Lacerda divulgou uma carta endereçada a Jango, quando ministro do Trabalho, supostamente escrita por Antônio Brandi, um deputado peronista. O texto fazia referência a brigadas de choque operárias e algum tipo de contrabando. O documento era falso, e Lacerda foi acusado pela Última Hora de tê-lo encomendado. A confusão não impediu a vitória de Juscelino e de seu vice, Jango. Lacerda e Brizola foram eleitos para a Câmara dos Deputados, e Jânio Quadros tornou-se governador de São Paulo. O resultado do pleito não silenciou a metralhadora lacerdista, que continuou disparando contra a posse de Juscelino, brandindo novamente a duvidosa munição da maioria absoluta e da fraude eleitoral. Mas, com o apoio de Ademar de Barros e Plínio Salgado, derrotados no mesmo pleito, o PSD inviabilizou qualquer tentativa legal de impedimento de JK. Os militares se dividiram, e o marechal Lott, ministro da Guerra, puniu os que se pronunciaram politicamente. Samuel Wainer foi preso outra vez, agora por ter feito uma declaração falsa (a de que seria brasileiro), e o presidente Café Filho sofreu um distúrbio cardiovascular, foi internado e passou o cargo para Carlos Luz, presidente da Câmara. Depois de tomar um chá de cadeira de 45 minutos no gabinete presidencial, Lott foi informado de que seria substituído pelo novo presidente e deu um golpe preventivo. Na madrugada do dia 11 de novembro de 1955, as tropas da Vila Militar, comandadas pelo general Odílio Denys, tomaram o Palácio do Catete, as centrais telefônicas, a Tribuna da Imprensa e o lacerdista Clube da Lanterna, uma organização dedicada à agitação, comandada pelo jovem Amaral Neto. Mas o presidente não estava mais no palácio e sim no Ministério da Marinha, onde Lacerda encontrou-o, acompanhado por Eduardo Gomes e pelo anticomunista almirante Pena Boto. Este convenceu o grupo a deixar o Rio a bordo do cruzador Tamandaré, transferindo o governo para São Paulo, onde teriam o apoio do governador Jânio Quadros. Sob o comando do almirante Sílvio Heck, a cúpula do governo Café Filho cruzou a baía de Guanabara na velocidade de uma tartaruga (duas das quatro

caldeiras do navio estavam quebradas e sob o cauteloso bombardeio do Forte de Copacabana, tentando evitar uma tragédia, para espanto do almirante Pena Boto: “Como atiram mal esses nossos camaradas do Exército!”.13 Enquanto isso, o Congresso depusera Carlos Luz e colocara no cargo o presidente do Senado, o catarinense Nereu Ramos, pró-JK. Como as forças de Lott já controlavam Santos, Carlos Luz resolveu voltar ao Rio. O navio passou rente ao Forte de Copacabana, com seus alto-falantes entoando Cisne branco, hino não oficial da Marinha. Mas a aventura terminara. Convencido de que corria risco de vida, Lacerda asilou-se na embaixada de Cuba e de lá partiu para os Estados Unidos e Portugal. Só voltaria ao Brasil em 1956. Do exílio, continuou criticando o governo. No segundo aniversário da morte de Vargas, sua Tribuna foi apreendida ao publicar um manifesto, no qual Lacerda chamava Juscelino de exibicionista delirante, Jango de traidor e denunciava o controle comunista sobre as informações. Pouco antes de seu retorno, o governo federal baixou uma norma suspendendo a concessão às emissoras que veiculassem programas obscenos ou insultuosos às autoridades. Impedido de falar no rádio e na televisão, Lacerda tornou-se líder da UDN na Câmara dos Deputados. Sempre pronto a atacar Jango, leu em plenário um telegrama secreto da embaixada brasileira em Buenos Aires. O documento envolvia João Goulart numa negociata. Sua atitude foi condenada, sob a alegação de que violava um código sigiloso, configurando um crime contra a segurança nacional. Lacerda transformou o golpe em pretexto para nova campanha de denúncia. Quarenta e cinco dias e muitos comícios depois, ganhou a guerra: o governo não conseguiu os votos necessários para puni-lo. O placar — 152 a favor do governo, 132 contra e 13 em branco — provava sua força. Fortalecido, percorreu o país no comando da Caravana da Liberdade, que buscava aproximar a UDN do povo. Uma peregrinação que o então prefeito de Porto Alegre, Leonel Brizola, tentou impedir sem sucesso. Em 1958, reelegeu-se, como o deputado federal mais votado, a partir de comícios feitos sobre o Caminhão do Povo. Na mesma eleição, Brizola

assumiu o governo do Rio Grande do Sul. Depois de passar três meses na Europa, Lacerda lançou-se candidato ao governo do recém-criado Estado da Guanabara, elegeu-se por pequena margem e partiu para outra longa viagem. O roteiro incluía Estados Unidos, Japão, Formosa e Europa, onde deveria conversar com o presidente eleito, Jânio Quadros, em Lisboa. O encontro não aconteceu. Na bagagem, Lacerda trouxe Vicente, um corvo minhoto que instalou no Palácio da Guanabara, tentando esvaziar a força do apelido que tanto o incomodava.Logo após a posse, começou a cobrar do presidente o esperado apoio para seu novo estado, cheio de problemas, e percebeu que não teria a participação com que sonhara naquele governo que ajudara a eleger. Jânio prometeu resolver os assuntos durante a conferência dos governadores de São Paulo, Guanabara e Rio de Janeiro, em junho. E realmente aprovou a maior parte dos pedidos. Mas esse não foi o único assunto discutido entre os dois numa visita do presidente ao Rio. No Palácio das Laranjeiras, antes da conferência, o presidente perguntou ao governador: — Você consegue governar na Guanabara com esta Assembleia? — Com dificuldade, mas consigo. — O Magalhães Pinto, em Minas, consegue? O Juraci, na Bahia, consegue? Eu, não. Eu não consigo. Com esse Congresso,meu caro, é impossível governar. Procuro fazer todo o possível para fazer funcionar o regime democrático, mas não há jeito.14

Dias depois, no edifício Chopin, em frente à praia de Copacabana, Jânio olha pela janela e vê Jango numa roda de engravatados, à beira da piscina do hotel Copacabana Palace. Ergue os olhos, identifica um barco sueco ao longe no mar e confidencia para Lacerda, que o acompanhava: “Qualquer dia largo tudo e vou para a chácara de uns amigos, na Itália, escrever romances”.15 O governador ainda brincou, exigindo que a prosa fosse melhor que a poesia do presidente, mas suspeitou que Jânio estivesse falando sério.

No plano administrativo, as relações entre os dois eram boas, embora Lacerda quisesse sempre mais verba e reclamasse da decisão de transferir importantes estatais para Brasília. O problema estava na política externa do presidente. A fracassada invasão da baía dos Porcos, em Cuba, em abril, saudada pelo governador da Guanabara como “o começo da libertação de um povo que foi traído pelo revolucionário transformado em tirano”, não mereceu nenhum comentário do presidente, apegado ao princípio da autodeterminação dos povos. No fim de julho, o anúncio do iminente reatamento das relações com a União Soviética, devidamente aplaudido por Luiz Carlos Prestes, líder máximo dos comunistas, levou Lacerda a acusar a infiltração soviética no país, embora, diante dos jornalistas, continuasse jurando que não estava rompido com o presidente. Finalmente, perto do dia 18 de agosto, por intermédio de dona Eloá, marcou uma audiência particular com Jânio, alegando “motivos imperiosos e de ordem pessoal”, dizendo que o considerava como a um pai — embora, na realidade, fosse três anos mais velho do que o presidente. No começo da noite de sexta-feira, 18 de agosto, Carlos Lacerda foi recebido na base aérea de Brasília pelo chefe da Casa Militar.No carro oficial, o general Pedro Geraldo informou-lhe que Che Guevara havia desembarcado pouco antes e seria condecorado pelo presidente na manhã seguinte. O governador calou-se. Ao chegar ao palácio, João Hermínio, o mordomo, levou a valise preta do governador para um dos apartamentos de hóspedes no segundo andar do Alvorada. No banheiro ao lado, Lacerda colocou seus pertences e fez a toalete. Ao entrar ao salão, encontrou a mesa posta para dois. Jânio, no entanto, já jantara. Estava vendo um filme, que mandou interromper para receber o governador. O presidente sentou-se à mesa enquanto seu convidado comia. Os termos exatos da conversa são impossíveis de ser apurados. Segundo Lacerda, ele disse a Jânio que pretendia renunciar. Até John W. Foster Dulles, seu biógrafo autorizado, reconhece que um dos motivos centrais era a situação

financeira de seu jornal. A Tribuna da Imprensa tinha dívidas acumuladas, e o buraco aumentava todo mês. Mas Lacerda teria apresentado outros motivos para deixar o cargo, como a desilusão com os rumos do governo federal, o não cumprimento das promessas para com a Guanabara e a intenção de colocar o Congresso em recesso remunerado, mencionada dias antes pelo ministro da Justiça, Pedroso Horta, durante uma discussão. Lembrou ainda da conversa entre ele e o presidente, sobre a dificuldade de governar com aquele Congresso. Jânio, segundo o governador, não contra-argumentou. Disse que só poderia tratar daquele assunto dali a 30 ou 45 dias e lhe fez um convite inesperado: “Vamos ao cinema?”. Lacerda aceitou, e ambos desceram para a grande sala com poltronas brancas e mesinhas com amendoins, uísque e cerveja e uma tela de projeção, onde o presidente driblava a solidão das noites de Brasília. Uma comédia com Jerry Lewis começou a ser exibida, mas logo Jânio mandou parar, trocando de filme duas vezes, antes de fixar-se num faroeste. Quando o governador tentou retomar o assunto, Jânio levantou- se e foi até o telefone. Ao sentar-se novamente, disse-lhe que o ministro Horta queria falar com Lacerda. Por trás desse estranho minueto, haveria uma razão inconfessável: Jânio teria arranjado uma companhia feminina — a mulher de um dirigente de uma indústria automobilística — e queria livrar-se do convidado o mais rapidamente possível. Despachou-o, recomendando que tratasse dos assuntos — inclusive do socorro financeiro para o jornal — com o ministro da Justiça. Horta estava jantando com José Aparecido e San Thiago Dantas, mas a conversa entre ele e Lacerda não teve testemunhas. Os relatos posteriores também são muito diferentes. De acordo com o governador da Guanabara, o ministro da Justiça perguntou se ele havia falado com o brigadeiro Grün Moss, ministro da Aeronáutica, sobre a possibilidade de participar de um movimento para fortalecer o Executivo — já apoiado pelos ministros da Marinha e do Exército — e voltou a lhe pedir cópia dos artigos escritos pelo governador depois do

suicídio de Vargas, em que defendia a necessidade de um regime de exceção. Horta teria dito que aquele momento exigia o mesmo tipo de atitude, levando Lacerda a reagir com indignação: “Mas vocês estão loucos? Por que isso? Preciso falar com o Jânio. Isto é uma loucura e é inadmissível”. Segundo Pedroso Horta, a conversa foi bem outra. Já fora do cargo, o exministro apresentou sua versão num pronunciamento transmitido em São Paulo, pela TV, na noite de 25 de agosto, e proibido por Lacerda no Rio. Horta descreveu os dois encontros que mantivera com o governador — no primeiro teriam discutido a criação de uma frente parlamentar, e, no segundo, assuntos administrativos. O ex-ministro admitiu estar em desvantagem, por não estudar oratória, nem ter aulas de impostação de voz, mas procurou desqualificar acusação e acusador numa só tacada: “Se conspirando estivesse, jamais chamaria para participar dessa conspiração um homem que é conhecido como o maior boquirroto do país”.16 Para a imprensa, logo adiante, descartaria qualquer sentido adicional nos encontros: Não vejo como extrair, de ambos os colóquios, contornos de conjura. E estranha conspiração seria essa, da qual participavam, em caráter de estrita exclusividade, o ministro da Justiça e o governador da Guanabara, o mais intransigente, o mais ousado adversário da política externa do governo federal. Estranha conspiração para a qual não se convidou um só dos 70 milhões de brasileiros!17 [...] Como iria eu, ministro da Justiça, convidar um homem de extrema direita para que participasse de um movimento de extrema esquerda? Jamais cometeria o equívoco de convocar o ilustre almirante Pena Boto para ingressar no Partido Comunista e o sr. Luiz Carlos Prestes para ingressar no Partido Integralista. Jamais cometeria o equívoco, porque não sou imbecil.18

Quando a conversa terminou, Lacerda voltou ao Palácio da Alvorada. Pedroso Horta, por sugestão de José Aparecido, telefonou ao mordomo pedindo que ele esperasse o governador no portão, já com sua maleta, pois ele

não dormiria ali. De posse da valise preta que comprara em Florença e com a qual viajava sempre, o governador foi para o Hotel Nacional, recusando- se a ocupar a suíte presidencial reservada pelo palácio. Hospedou-se no quarto de seu assistente, o comandante Wilson S. Machado, para quem contou o que se passara. Em seguida, telefonou para o ministro da Justiça: “Fui enxotado do palácio! Puseram minha mala no portão do jardim, e isto é um desacato a mim, pessoalmente, e ao governador da Guanabara. Cobrem-me de ridículo”.19 Horta foi até lá, na tentativa de contornar a situação. Lacerda não queria recebê-lo e mandou dizer que estava dormindo, mas o ministro da Justiça insistiu. A conversa, embalada por uma garrafa de uísque e em boa parte travada aos berros, durou até o amanhecer. No bate-boca, o ministro tentou provar que o governador estava errado. Lacerda ameaçava denunciar a tentativa de golpe pela televisão. No fim, despediram-se com a promessa mútua de que a crise não comprometeria o relacionamento pessoal entre eles. Às sete da manhã, antes de partir para o Rio num avião da Força Aérea, Lacerda ligou para Adauto Lúcio Cardoso e informou que renunciaria ao chegar, para poder agir livremente. Telefonou também para o general Pedro Cardoso e mandou um recado a Jânio: “Diga ao presidente que vou fazer o que disse que faria”.

4 O colar do guerrilheiro

19 DE AGOSTO DE 1961, sábado, 7h20, Palácio do Planalto, Brasília.Sob a luz dos flashes, o presidente Jânio Quadros retira a medalha da caixa e a coloca no peito do homenageado. Em seguida, passa a faixa de seda pelo pescoço daquele homem magro, barba cheia de falhas, com uma farda verde-oliva. Boina na mão, Ernesto Guevara Lynch, 33 anos, agradece a mais alta condecoração que o Brasil concede a personalidades: a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Nascido em Rosário, Argentina, a 13 de maio de 1928, mas registrado em 13 de junho, Ernesto foi o primeiro dos cinco filhos de Ernesto Lynch e Célia de La Serna y Llosa. O casal, de origem aristocrática, trocou Buenos Aires pelo interior por causa da gravidez pré-nupcial de Célia, que retardou o registro do primogênito em um mês, para que ninguém desconfiasse. Sua asma levou a família a mudar várias vezes, em busca de um clima mais adequado. Assim chegaram à região serrana de Córdoba, em Alta Gracia, onde Ernesto cresceu. Passou longas temporadas acamado e tomou gosto pela literatura, devorando clássicos de Júlio Verne, Cervantes, Garcia Lorca e outros. Ótimo aluno, estudava em escola pública. Em 1946, depois de completar o curso secundário, a família voltou para Buenos Aires. A morte da avó, à qual era muito ligado, levou-o a decidir-se pela medicina. Namorador, atrevido e divertido, não fez parte de nenhuma organização estudantil e pouco se importava com a política. Seu fascínio eram

as viagens: aos 21 anos, percorreu o norte da Argentina numa bicicleta motorizada construída por ele mesmo. No ano seguinte, alistou-se como enfermeiro da marinha mercante e viajou em petroleiros e cargueiros por vários países, inclusive o Brasil. Em 1952, mais uma aventura, dessa vez com seu amigo Alberto Granado: oito meses para cruzar cinco países e 10 mil quilômetros. Uma experiência que marcou sua ruptura com os laços nacionais. As anotações feitas durante o trajeto — mais tarde transformadas num sucesso editorial — indicam sua politização crescente e o choque causado pela pobreza, injustiça e arbitrariedade que encontrou no longo caminho. Na volta, concluiu o curso de medicina e colocou outra vez o pé na estrada, passando pela Venezuela, Bolívia, Costa Rica e Guatemala, onde se aproximou de um grupo de exilados cubanos que haviam sobrevivido à tentativa de tomada do Quartel Moncada em 26 de julho de 1953. Ficou sabendo da malograda ação de Fidel Castro para derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista e ganhou o apelido de Che. Na Guatemala, adotou os ideais comunistas, com base na convivência com Hilda Gadea, uma peruana, com quem viveu uma experiência amorosa e política. Apesar de alguma influência marxista, Hilda, filiada à Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra), do Peru, permanecia nos marcos da social-democracia, mas nenhum partido entusiasmou seu amante. Para Che, qualquer organização deixaria de ser revolucionária se participasse das eleições. Depois de um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos, Hilda foi presa, e ele pediu asilo na embaixada da Argentina, conseguindo chegar ao México. Lá conheceu os irmãos Raúl e Fidel Castro. Em setembro de 1955, inscreveu-se no treinamento para a luta armada em Cuba. Em 1958, integrou o pequeno grupo de guerrilheiros que desembarcou na ilha e acabaria vencendo as forças do ditador Fulgêncio Batista no ano seguinte. Che agradeceu a comenda entregue por Jânio em castelhano: Senhor presidente: como revolucionário, estou profundamente honrado com esta distinção do povo e do governo brasileiros. Porém não posso concebê-la nunca como uma condecoração pessoal, mas sim como uma condecoração ao povo e à nossa

Revolução. E assim a recebo, comovido com a saudação desse povo que V. Exª pessoalmente representa e a transmitirei com todo o desejo de estreitar as relações entre os nossos dois países.1

Mesmo acompanhada apenas por fotógrafos e cinegrafistas, a cerimônia era importante o suficiente para garantir lugar na primeira página de todos os jornais. Seis dias antes, com rolos de arame farpado e blocos de pedra, guardas da República Democrática Alemã e voluntários tinham começado a erguer um muro em Berlim — o símbolo mais explícito do confronto que envolvia meio mundo — separando a metade ocidental da cidade, controlada pelos americanos, da oriental, sob controle comunista. Era a materialização da Guerra Fria, que levava a coexistência entre as duas superpotências — com armas nucleares, projetos hegemônicos excludentes e sistemas sociais e políticos antagônicos — a um passo do cataclismo: um em cada três bombardeiros norte-americanos estava no ar a qualquer hora do dia ou da noite, transportando ogivas nucleares. Nesse contexto, a vitória da revolução em Cuba, dois anos antes, mesmo sendo resultado de um movimento dos próprios cubanos, significava o surgimento de um enclave pró-União Soviética no continente americano. Circunstância que colocou a pequena ilha do Caribe na crista da onda e transformou seu ministro da Economia e Indústria em figurinha carimbada (naquele mesmo 19 de agosto, o Congresso americano aprovaria o boicote a Cuba). No início de agosto, em Punta del Este, Richard Goodwin, 29 anos, um dos mais importantes integrantes da delegação norte-americana, mantivera uma amigável conversa com Guevara. Goodwin relatou suas impressões ao próprio presidente norte-americano: Che estava com um uniforme de campanha verde e a costumeira barba rala e crescida demais. Por trás dos fios da barba, as feições eram bastante suaves, quase femininas, e sua fisionomia estava contraída. Tem um bom senso de humor, e houve boa troca de gracejos de parte a parte durante o encontro. Quando começamos a

conversar parecia muito pouco à vontade, mas logo se descontraiu e falou livremente. Embora não deixasse qualquer dúvida quanto à sua intensa dedicação pessoal ao comunismo, suas palavras não continham propaganda nem bazófia. [...] Guevara principiou dizendo que eu precisava entender a Revolução Cubana. Eles pretendem erigir um Estado socialista, e a revolução que iniciaram é irreversível. Também estão agora fora da influência dos Estados Unidos, e isso também é irreversível. Vão estabelecer um sistema de partido único, com Fidel como seu secretário-geral. Seus laços com o Leste provêm de simpatias naturais e crenças compartilhadas quanto à estrutura de poder na nova ordem social. Sentem que têm o apoio das massas para sua revolução e que esse apoio crescerá à medida que o tempo for passando.2

Na conferência da OEA, os Estados Unidos pretendiam isolar Cuba completamente e lançar seu ambicioso programa de ajuda econômica — a Aliança para o Progresso. Mas o encontro foi dominado pela performance daquele dublê de guerrilheiro e ministro. Num discurso de duas horas e quinze minutos, interrompido por aplausos (Brizola foi o único brasileiro a bater palmas) e pelos gritos de “assassino”, Che fez duras críticas aos americanos e defendeu a exportação da revolução. No final, sob protestos de exilados, deixou a sala com toda a sua delegação. Todos acreditavam que ele abandonara a conferência. Cinco minutos mais tarde voltou, como se nada houvesse acontecido, justificando-se: “Fui lavar as mãos”. No final, vinte nações votaram a favor da Aliança para o Progresso. Menos Cuba, cujo representante explicou-se, com a tranquilidade de quem recusa um salgadinho engordurado num coquetel: Sou contra. O regime de Fidel Castro converterá meu país, dentro de dez anos, na maior potência industrial da América Latina. Já temos um crédito de 375 milhões de dólares nos países comunistas. É isso que os Estados Unidos querem dar para todos os países latino-americanos.

Na volta da conferência, Che parou em Brasília. Dormiu cinco horas e às sete da manhã, precedido pelos batedores da Aeronáutica, entrou no Palácio

do Planalto. Com a boina na mão, mas sem fazer continência, ouviu perfilado a execução dos hinos dos dois países pela banda do batalhão da guarda presidencial e passou a tropa em revista. Depois foi levado ao gabinete de Jânio. O guerrilheiro ficou pouco tempo na capital: embarcou às 14h55, levando o colar, a medalha e uma carta para Fidel, com um pedido de Jânio para que os asilados que lotavam a embaixada brasileira fossem autorizados a deixar Havana. Sua rápida passagem deixou um rastro de confusão. O primeiro a reagir foi Carlos Lacerda. Naquele mesmo sábado, às seis da tarde, o governador entregou as chaves da Guanabara ao líder anticastrista Manoel Verona, justificando-se: É uma das mais destacadas personalidades, não apenas por seu passado de lutas, mas, antes de mais nada, por uma honestidade e uma conduta retilínea que, apesar de todas as adversidades, jamais alguém conseguiu atacar. Neste seu quarto exílio, depois de haver combatido, sempre na primeira linha, as tiranias de Machado e Batista, esta última por duas vezes, Verona nada perdeu de seu poder de luta, nem da sua fé, colocando-se sempre na primeira linha dos homens que empenham todas as suas forças para realizar a redemocratização de Cuba.

Ao agradecer, Verona, que fora primeiro-ministro e presidente da Câmara, admitiu que haviam sido cometidos erros gravíssimos na invasão de abril de 1961 à baía dos Porcos, reafirmou a disposição de derrubar Fidel e seus barbudos e pediu ajuda aos brasileiros. Caso contrário, alertou, vastas áreas da América seriam, em breve, transformadas em novas Cubas. O governador interrompeu-o para dizer que, mesmo fazendo parte do poder, a UDN não aceitava a política externa de Jânio: “Apenas os comunistas apoiam a política do presidente Jânio Quadros”. Entre os políticos, foram poucos os que defenderam a homenagem a Che. Dentre eles, Ernâni do Amaral Peixoto, presidente do PSD, que não via motivo para crise: “É praxe conceder uma condecoração a todo ministro

estrangeiro que visita o país. Esta é perfeitamente razoável”.3 Na Câmara e no Senado, o que mais se ouviu foram queixas e críticas. O padre Calazans, senador, amigo e cabo eleitoral de Jânio, bateu duro: Política se faz com mais seriedade, menos uísque e menos outras coisas. Não sei por que Che Guevara foi condecorado. Por ter as mãos ensanguentadas como Fidel Castro? Porque se fez assassino de milhões de cubanos? Porque saqueou terras? Porque tomou propriedades particulares? Porque aprisionou o povo e enganou uma nação? Porque entregou Cuba a Krutchev para que tivesse um baluarte, uma trincheira, um bastião dentro do continente americano, para ameaçar todas as nações da América?4

A imprensa dividiu-se. Em editorial, o jornal O Globo, de 21 de agosto, reprovou o título dado ao ministro de Cuba: Sob nenhum pretexto a Ordem do Cruzeiro do Sul poderia ser concedida a Guevara, já que uma condecoração como essa é um prêmio a serviços prestados ao Brasil ou ao gênero humano. Pregar no peito de Guevara a mesma estrela que o governo Epitácio Pessoa entregou a Alberto I, o Rei Soldado, representa, no mínimo, um sacrilégio, uma desmoralização. Jânio Quadros condecorou um aventureiro internacional, representante de um bando de fanáticos que se apoderou, pela violência, do governo da pátria de José Martí, desrespeitando os compromissos, desvinculando a República das obrigações e tratados interamericanos, para jogar-se nos braços do comunismo sino-soviético.

Já o liberal Correio da Manhã, do Rio, procurou esvaziar o gesto de sua importância: “A ordem conferida ao sr. Guevara não significa nada. Significa, sim, que o governo do Brasil considera o atual governo de Cuba como um fato. Mas isto não é nada de novo”.5 No início da semana, o tema tomou de assalto as tribunas da Câmara e do Senado, principalmente nos dias 21 e 22 de agosto. O deputado João Mendes, da UDN, presidente da conservadora Ação Democrática

Parlamentar, foi veemente: O Brasil é nitidamente uma nação cristã e democrata, devotada ao respeito à pessoa humana. Trairá o mandato dela recebido, porque estará em choque com os próprios sentimentos do povo brasileiro, quem, no exercício desse mandato, aceitar o paredón cubano como forma de justiça. E como não se considerasse bastante conferi-la aos membros de certa missão soviética, secundários representantes de interesses comerciais russos, escolheu-se o peito de Che Guevara, argentino que renegou sua pátria a fim de servir ao comunismo internacional, para nele colocar, profanando-a, a Cruz de Cristo.

Outra voz no coro dos descontentes foi a do moderado Adauto Lúcio Cardoso, da UDN carioca, que classificou a homenagem de “provocação inútil”. A crise ultrapassou o cenário político, atingindo as Forças Armadas. Contrariados com a condecoração do revolucionário, generais, almirantes e brigadeiros que já tinham recebido a Ordem do Cruzeiro ameaçaram devolver suas condecorações. O chefe do Estado-Maior do Exército, general Emílio Ribas, e o comandante da Vila Militar, Ademar de Queirós, reclamaram. Outros generais e almirantes também fizeram críticas à decisão de Jânio, levando o ministro da Guerra, Odílio Denys, a advertir seus subalternos. A crise ganharia novo impulso na semana seguinte. Para comemorar o dia 22 de agosto, nome do centro acadêmico da Faculdade de Direito da PUC paulista, o presidente da entidade, Mário Garnero, convidou treze governadores, representantes de entidades empresariais e jornalistas para a Semana da Unidade Nacional. A última autoridade a confirmar sua participação foi Carlos Lacerda, que agendou sua palestra justamente para quarta-feira, 22 de agosto. Às cinco da tarde, Garnero recebeu o governador no aeroporto, ao lado do presidente da Assembleia, Abreu Sodré. As palestras aconteciam no auditório da TV Excelsior, que as transmitia ao vivo. Lacerda foi recebido por uma pequena multidão. A muito custo, o governador da Guanabara conseguiu

alcançar o corredor lateral do auditório, enquanto lacerdistas e esquerdistas se engalfinhavam. Estes, liderados por José Serra, soltaram urubus na porta do auditório — já que o Brasil não tem corvos. Quando as cortinas foram abertas, começou a vaia — que só parou durante a execução do Hino Nacional. Lacerda perguntou se estavam ao vivo, Garnero confirmou, e o governador começou a falar sobre seu estado. Mas, diante dos apupos, reagiu: “Não vim aqui para falar da Guanabara, mas de vocês, comunistas, que estão querendo derrubar tudo!”. Foi a senha para que a confusão se generalizasse. Ricardo Zarattini, um estudante grandalhão, invadiu o palco, disposto a avançar sobre ele. Foi dissuadido, e o governador continuou: “O que quero dizer a vocês é que não são esses comunistoides que estão criando problemas. Quem está criando problemas e articulando o golpe, e me convidou para participar, é Jânio Quadros”. A palestra virou discurso e durou duas horas, em vez da meia hora prevista. O programa teve grande audiência, e, no dia seguinte, o episódio estava na primeira página dos jornais. No Palácio do Planalto, José Aparecido viu no incidente um movimento para constranger o presidente e teve uma ideia: viajaria para o Rio, chamaria a imprensa e denunciaria o projeto golpista de Lacerda. No dia seguinte, Jânio o demitiria, mas a manobra estaria liquidada. Durante uma tarde, Aparecido e Horta discutiram o assunto — o ministro da Justiça resistia. Finalmente, às seis da tarde do dia 23, pelo interfone que comunicava seu gabinete ao do secretário particular, ouviu-se a inconfundível voz do presidente: “Pode seguir para o Rio. Converse antes com o Horta e receba instruções do ministro da Justiça”.6 Aparecido desistiu: vários repórteres estavam naquele momento na sala — entre eles, Fernando Pedreira, de O Estado de S. Paulo —, e a operação perderia toda a eficiência caso a imprensa noticiasse que ele tinha ido ao Rio acusar Lacerda autorizado pelo próprio Jânio. O terremoto causado pelo colar do guerrilheiro seria suplantado por outra crise, deflagrada pelo pronunciamento de Lacerda na noite de 24 de agosto,

aniversário do suicídio de Getulio Vargas. Na TV Rio, a líder de audiência, durante mais de uma hora, o governador disparou uma bomba de alto impacto. Começou suavemente, apresentando os motivos que o teriam levado a pensar em renunciar. Mais adiante, entrou no assunto principal: Quero contar ao povo, simplesmente, sem daí tirar efeitos alarmistas, sem contribuir para envenenar seja o que for, o que se passou, para que julgue. [...] No dia da reunião dos governadores,o presidente da República manifestou-me a sua profunda inquietação com as dificuldades de funcionamento do regime: o pouco ou nulo rendimento do Congresso, a desagregação sensível dos partidos, o esvaziamento da vida pública, o não atendimento de suas solicitações por reformas profundas de que carece para governar. Essa con versa havia sido precedida de outra, do senhor ministro da Justiça, na qual o sr. Oscar Pedroso Horta dissera-me que o presidente, em crescente inquietação, poderia chegar à renúncia se não obtivesse do Congresso as medidas necessárias ao cumprimento de seu programa. [...] Esperei, pois, até que há dias, em minha penúltima visita a Brasília, o ministro da Justiça esclareceu-me a questão. Traçou-me, com sua irrecusável inteligência, um panorama que resumiria assim: “Consideramos necessário preparar o país para uma reforma institucional na qual o Congresso, já que deseja ‘recesso remunerado’, fique realmente em recesso remunerado. Para isso, disse-me o ministro da confiança do presidente da República, precisamos de apoio de alguns governadores, a começar pelo seu. O governador de São Paulo ainda não está maduro para esta conversa, mas depois conversaremos com ele”.7

Apresentando sua detalhada versão do que ocorrera nos encontros de Brasília com Jânio e Pedroso Horta, Lacerda denunciou a tentativa de golpe e atribuiu a maior parte da responsabilidade ao ministro da Justiça, sem inocentar o presidente: O que realmente existe no Brasil no momento, cifra-se, resume- se, consiste afinal numa pequena, astuta, mas medíocre trama palaciana para resolver, por meios ilegítimos, dificuldades que todos reconhecemos e devemos resolver por meios

legítimos.

O golpista do passado parecia agora um intransigente defensor da legalidade e recusava todos os rótulos: Tenho às vezes vontade, não sei se diga, de rir — mas será em todo caso um riso melancólico — quando vejo dividirem as nossas posições entre direita e esquerda e atribuírem ao presidente uma posição de esquerda e a mim darem-me a direita. Desde quando é direita querer que as coisas se façam direito? Desde quando é direita, a não ser por um jogo de palavras, querer que se faça democraticamente o que nunca se deve fazer por vias espúrias? Desde quando será esquerda aplaudir tiranias e deixar que elas se introduzam no Brasil? [...]. Desde quando é esquerda o poder pessoal que vai se aperfeiçoando primeiro no confinamento de um palácio no ermo, depois, cercando-se de um grupo de palacianos bisonhos, que fazem da intriga e da chalaça a matéria-prima de sua adulação?

Na política externa de Jânio, Lacerda via uma manobra destinada a agradar internamente à esquerda: Vejam bem que nunca se fará, nem faria eu, a injustiça de supor que homem da inteligência e da lucidez do presidente Jânio Quadros seja capaz de cair de amores pela Bulgária somente pelo que a Bulgária nos possa comprar ou vender, tampouco verberar os Estados Unidos no momento exato em que eles corrigem seus erros e se aproximam do Brasil com uma linguagem franca que consiste afinal, objetivamente, num apoio efetivo ao nosso desenvolvimento.

O colar dado a Guevara também entrou na roda: Por trás da condecoração dada ilegalmente a esse aventureiro internacional, a esse apátrida especialista em oprimir a pátria alheia, que coisas se escondem, que aventuras, que tramas da madrugada, que torvas conversas, que sinistras combinações!

Lacerda ainda acenou com apoio ao presidente, desde que o projeto de golpe fosse abandonado: Ninguém no país ousará dizer — e muito menos eu que conheço as dificuldades no meu estado — que o presidente da República esteja tendo facilidades para cumprir o seu programa e realizar o seu governo. Reunamo-nos todos, ofereçamo-lhe todas as facilidades ao nosso alcance, o nosso apoio, a nossa confiança lúcida e correspondida — e correspondida —, porque confiança não se entrega unilateralmente, confiança é recíproca e reciprocamente conquistada. Ofereçamos ao presidente tudo que ao nosso alcance esteja para que ele possa licitamente, legitimamente, democraticamente, governar como conquistou o poder: com a esperança e a confiança da imensa maioria da nação.

Renunciar? Não mais, garantiu: Para não silenciar, fiquei. Para não silenciar, desisti de renunciar, porque quero ser aqui, realmente, o intérprete do povo da Guanabara. [...] O meu sacrifício consiste em permanecer [...] não para organizar qualquer força que se oponha ao presidente da República, mas para contribuir na organização de uma força que ajude o presidente da República a não se opor a si mesmo. [...] Fico na Guanabara para todos os que me estimam e os que me odeiam, os que me compreendem e os que me difamam saibam que na hora da trama e da intriga eu não faltei ao meu dever. Muito obrigado.8

O bombardeio desnorteou os políticos que se encontravam em diferentes locais do país. Começaram as ligações, as reuniões e os conchavos. Já na madrugada, líderes partidários fo ram para a Câmara. Os adversários José Maria Alkmin, do PSD, e Pedro Aleixo, da UDN, chegaram primeiro. Às quatro da madrugada, acertaram a convocação do ministro da Justiça para responder ao governador da Guanabara (Lacerda também deveria ser chamado). Embora Horta tenha interpretado a atitude dos deputados como uma

ameaça, Carlos Castello Branco, que passara a noite na casa do ministro da Justiça, concluiu que a Câmara buscava uma fórmula de o ministro rebater as acusações: “Apesar da repercussão da denúncia e do abalo que provocou em muitas consciências, o interesse político da Câmara parecia ser hostilizar Lacerda e, em consequência, aceitar as explicações do ministro”.9 De madrugada, José Aparecido ligou para o deputado Seixas Dória e pediu-lhe que fosse ao Congresso. O líder do governo, Pedro Aleixo, acertou o horário em que Pedroso Horta deveria comparecer: quatro da tarde do dia 25 de agosto. Mas o depoimento jamais se realizaria.

5 Forças terríveis

25 DE AGOSTO DE 1961, 11h, Base Aérea de Brasília. Ao pé da escada, o general Pedro Geraldo, chefe da Casa Militar, tenta impedir que o major Chaves Amarante embarque. Mas o ajudante de ordens ignora a determinação de seu superior, sobe os degraus rapidamente e entra no avião prestes a decolar. Por baixo da farda, carrega uma tira de seda verde e amarela bordada e adornada com 21 diamantes, uma medalha e um broche de ouro: a faixa que os presidentes recebem como símbolo do poder concedido pelo voto. Naquele momento, os brasileiros ainda ignoravam que Jânio havia abandonado, inesperadamente, o poder simbolizado pela faixa que seu fiel correligionário ocultava. A ignorância alcançava até o coronel-aviador Agenor Figueiredo, um dos subchefes da Casa Militar, comandante do avião presidencial naquela viagem rumo a São Paulo. O Viscount prefixo FAB-2101, em operação havia apenas três anos e meio, era um orgulho da Força Aérea Brasileira. Adquiri do para atender aos deslocamentos do presidente da República desde a mudança para Brasília, era impulsionado por quatro turbo-hélices Rolls-Royce Dart, que podiam levá-lo a 537,54 quilômetros por hora e a mais de 8 mil metros de altura. Assim que colocou aquela maravilha tecnológica em altitude e velocidade de cruzeiro, o piloto deixou a cabine de comando. Nas poltronas, apenas três passageiros: o major Amarante, dona Eloá e o marido, a quem o comandante perguntou o que estava acontecendo. Lacônico, Jânio disse que havia renunciado. O

coronel Figueiredo retornou à cabine, conversou com seus colegas e procurouo outra vez: “Presidente, estamos à sua disposição. Temos gasolina suficiente para alcançar um país estrangeiro — o Paraguai, por exemplo — ou outro ponto do Brasil que o senhor preferir. É só dizer”. Não era a primeira oferta do gênero que Jânio recebia naquele dia. Desde as cinco da manhã, escutara vários pedidos de reconsiderar sua atitude e algumas demonstrações explícitas de lealdade, como as dos ministros militares, dispostos a fechar o Congresso, intervir na Guanabara ou prender seu governador, para que ele desistisse da renúncia. Na madrugada de 24 para 25 de agosto, depois de ouvir pelo rádio o discurso de Lacerda acusando-o de planejar um golpe, Jânio ligou várias vezes para Quintanilha Ribeiro. Por volta das cinco da manhã, nova chamada: “Chico, mande arrumar suas coisas. Voltamos hoje para São Paulo”. Pouco depois, Quintanilha telefonou para o general Pedro Geraldo, pedindo que o encontrasse no gabinete do presidente. Diante da dupla, Jânio reiterou sua decisão. O chefe da Casa Militar tentou discutir o assunto, mas o presidente não cedeu: a resolução era definitiva. Não iria sequer à solenidade militar do Dia do Soldado, programada para aquela manhã, na Esplanada dos Ministérios. Seus dois auxiliares convenceram-no do contrário: se a renúncia não era conhecida e ele não tinha nada contra o Exército, não havia por que antecipar o impacto. O presidente concordou e foi ao desfile. Perante as tropas e o escasso público, manteve a pose. Embora odiasse vitrines, Jânio era vaidoso: comprava seus ternos em Londres, adorava perfumes e tentara lançar no Brasil a moda do slack ou safári — um conjunto de calça e camisa esporte, largas e confortáveis, geralmente de cores claras, com bolsos largos — que usava o tempo todo, salvo quando o protocolo exigia terno e gravata. Esta, por sinal, costumava colocar já com o nó, porque tinha dificuldade de fazê-lo. As filmagens da Agência Nacional mostram o presidente demissionário empertigado num terno de bom corte, a gravata atada com um laço perfeito, os cabelos crespos corretamente penteados, passando a tropa em revista,

curvando-se com a mão no peito diante da bandeira, acompanhando o desfile e as homenagens, tudo como manda o figurino. A seu lado, no palanque, os ministros Catete Pinheiro, da Saúde, e o marechal Denys. A ordem do dia do ministro da Guerra continha os tradicionais elogios ao Exército, que reprimira a rebelião estudantil em Pernambuco — na nota transformada em ajuda para “dissipar, com exemplar urbanidade e prudência, os eventuais surtos de agitação social ocorridos em alguns pontos do território nacional” —, e a seu patrono, Caxias, “um dos maiores generais do continente americano”. As últimas linhas alfinetavam sutilmente a política externa do governo, ao dizer que o país seguia em busca de seus gloriosos destinos, sob a orientação firme, esclarecida e patriótica daqueles que têm o honroso mandato de guiá-lo na hora presente e se propõem a conduzi-lo pelos caminhos da paz, do progresso e da fraterna compreensão entre os povos, sem quebra dos compromissos assumidos com as demais nações que vivem em comunhão conosco nos mesmos ideais democráticos e cristãos. O desfile impecável e a distribuição de medalhas do Mérito Militar, no grau de Grande Oficial — um dos agraciados foi o general Ernesto Geisel, comandante militar de Brasília (irmão de Orlando Geisel e futuro presidente da República no regime militar) —, desenharam um sorriso nos lábios finos do corpulento e normalmente carrancudo marechal Denys, obstinado devoto da disciplina e do garbo militares. José Aparecido também deveria receber a medalha, mas chegou atrasado e foi condecorado depois. Mas se alguém soubesse o que se passava veria sinais de extrema preocupação na fisionomia dos dois auxiliares diretos do presidente — hoje perfeitamente identificáveis nos filmes mudos dos cinejornais da época. O general Pedro Geraldo tinha o semblante carregado; Quintanilha Ribeiro, os olhos úmidos. As aparências foram mantidas até o fim: o presidente despediu- se do marechal Denys dizendo que tinham muito a fazer e voltou ao palácio com o general Pedro Geraldo. Em outro carro oficial, ignorando ainda a decisão radical, ia a dupla que travara a mais surda luta pelo poder nos bastidores do governo, durante aqueles sete meses. Só no gabinete presidencial Pedroso

Horta e José Aparecido foram informados do que ocorria pelo próprio Jânio: Chamei-os para dizer-lhes que renunciarei agora à Presidência. Não sei assim exercê-la. Já que o insucesso não teve a coragem da renúncia, é mister que o êxito o tenha. Não exercerei a Presidência com a autoridade alcançada perante o mundo, nem ficarei no governo discutido na confiança, no respeito, na dignidade indispensáveis ao primeiro mandatário. Não se trata de acusação qualquer. Trata-se de denúncia de quem tem, como eu, solenes e grandes deveres de mandato majoritário. Não nasci presidente da República. Nasci, sim, com a minha consciência. É a esta que devo atender e respeitar. Ela me diz que a melhor fórmula que tenho, agora, para servir ao povo e à pátria é a renúncia.1

Em seguida, determinou a Horta que chamasse os ministros militares e os informasse oficialmente. Sua intenção era convocar o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, e entregar-lhe a faixa presidencial. Mas o ministro da Justiça observou que, se não pretendia ouvir apelos nem criar constrangimentos, o melhor seria viajar primeiro e só então comunicar a decisão ao Congresso, a quem caberia empossar o substituto. Jânio concordou e pediu que se retirassem. Minutos depois, no gabinete militar, Horta anunciou a renúncia a Denys, Heck e Moss, assinalando que qualquer apelo seria inútil. Inconformado, o trio insistiu em encontrar-se com o presidente. O nervosismo era tão grande que Moss esqueceu seu quepe na sala do chefe da Casa Civil. Diante dos ministros militares e na presença do general Pedro Geraldo, de Quintanilha, Horta e Aparecido, Jânio comunicou outra vez que estava abandonando o cargo. Emocionado e quase em prantos, o brigadeiro o aparteou: “Não faça isso, presidente!”. Aflito, o almirante confidenciou: “Esse é o maior golpe que sofro na minha vida!”. Sem perder a calma, o marechal foi mais explícito: “Senhor, tem o apoio das Forças Armadas para prestigiá-lo e obedecer a suas ordens. O presidente devia saber que esse moço (Carlos Lacerda) é assim mesmo...”.

O brigadeiro ainda observou que o governo não poderia passar para as mãos de Jango. Foi interrompido: “Meus amigos, poupemo-nos desses constrangimentos, quando nada em homenagem ao meu gesto. Minha decisão é definitiva”. Já em pé, sem permitir que a conversa prosseguisse, agradeceu-lhes a colaboração e a lealdade. Era bem mais moço, mas os comandantes ficavam sempre em posição de sentido na pre sença dele, até ouvir o tradicional “à vontade”. Na hora da saída, era a mesma coisa. Prestavam continência, de pés juntos e mãos coladas às coxas. E assim despediram-se. Sobre a mesa, manuscrita e inacabada, a carta de renúncia, cuja redação Jânio retomaria em seguida. Jânio Quadros assinou o documento e a carta de sua renúncia com uma caneta esferográfica Bic de 35 cruzeiros — o salário mínimo era de 9.400 cruzeiros —, que seu secretário particular guardaria como lembrança, e deixou o gabinete. Apressado, a caminho do carro oficial, diante dos funcionários que encontrava, repetia a mesma frase: “Perdoem-me, meus amigos, perdoem-me”. Às 10h25, deixou o palácio. No elevador, segurou a cabeça de Aparecido com as duas mãos e disse: “Agora vai ter tempo de tratar da úlcera”. O carro oficial os levou ao Alvorada, onde, logo cedo, mandara Eloá fazer as malas. A mulher já o esperava, pronta e preocupada com o destino dos dois: a casa deles em São Paulo estava alugada, e não tinham onde morar. Antes de deixarem o palácio residencial, voltou-se para Aparecido e referiu-se explicitamente a Lacerda: “Tenho pena desse homem. Não consegue pôr tijolo sobre tijolo”. O presidente enfatiza o raciocínio com o gesto de colocar uma mão sobre a outra e lembra que o governador recorrera a dona Eloá para conseguir um encontro com ele. Pede que a mulher conte o episódio a Aparecido, mas, mal ela começa, interrompe-a: “Quando ele estava a caminho de Brasília, já era outro homem. Espalhara que vinha a meu chamado para resolver questões políticas. Que destino o desse homem, terrível...”. Ainda a caminho do aeroporto, diz para Aparecido:

— Você não está convencido do meu gesto... — Não estou. Não sei se foi a melhor solução. — Pensei muito antes de decidir. Se continuássemos no governo, eu não seria mais eu, você não poderia ser você, nem o general Pedro seria o mesmo. A solução é a renúncia. Com o tempo, você concordará comigo.

Antes de embarcar, tira várias vezes o lenço branco bordado com as iniciais JQ do bolso do paletó e o esfrega sobre a testa. Depois, abraça os amigos e relembra o artigo que lera com Aparecido na véspera: “Tristão de Ataíde tinha razão... Enfrentamos de uma só vez os três R: ricos, ratos e reacionários”. Olhando o céu luminoso do planalto, completa: “Cidade amaldiçoada, espero nunca mais vê-la”. Enquanto Jânio deixava o palácio, Denys, Heck e Moss seguiam para o gabinete do ministro da Guerra, iniciando os preparativos para amortecer o impacto da notícia nos meios militares. Colocaram as Forças Armadas em prontidão em todo o território nacional e mandaram chamar o deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. Aquela manhã de 25 de agosto na cidade que o presidente detestava foi escarafunchada por repórteres, políticos e especialistas. Mas o relato mais circunstanciado e preciso foi feito justamente por Carlos Castello Branco, o secretário de Imprensa de Jânio. Durante 30 anos, o relato de Castelinho ficou guardado em seu cofre, só vindo a público após sua morte, em 1º de junho de 1993. Castello escreveu A renúncia de Jânio entre 1º de agosto e os últimos dias de dezembro de 1963 e completou o trabalho depois do furacão de 1964, entre os dias 10 e 12 de março de 1965. Toda a experiência do velho repórter, construída na apuração diária para sua coluna, que foi publicada durante 31 anos, entre janeiro de 1962 e junho de 1993, primeiro na Tribuna da Imprensa e depois na página 2 do Jornal do Brasil, não o levou a arriscar uma explicação razoável para o episódio. Paciente coletor de grãos de informação, com os quais produzia todos os dias

— após separar o joio do trigo — uma consistente massa de análise resumida em 75 linhas de 72 toques, ele admitiu, no penúltimo capítulo de seu livro: Creio ir-se tornando evidente, na medida em que chega ao fim este relato, que seu autor também não sabe por que Jânio Quadros renunciou. Se soubesse não teria escrito o que escreveu — esforço cambaleante de depoimento e de pesquisa, acumulação de recordações às vezes desconexas de sete meses vividos intensamente sem ter em vista um desfecho, mas interiormente preparado para qualquer desfecho.2

Excesso de zelo provocado pela proximidade excessiva entre o autor e o personagem? A trajetória profissional de Castelinho tem outros exemplos — inúmeros — que demonstram ter sido ele perfeitamente capaz de separar amizade e notícia. Dona Cantídia Soares, secretária de José Aparecido, datilografou metade dos originais e comentou o que lera com seu chefe, injuriada: “O senhor não pode deixar que o Castello escreva essas coisas sobre o senhor!”. Apesar da indignação da secretária, seu patrão não faz má figura no livro de Castelinho, mas este não deixa de registrar que foi atropelado pelo amigo, sutil como um trator: Aparecido, de resto, percebeu que eu não desempenharia a Secretaria de Imprensa politicamente e ele mesmo pôs-se a suprir a deficiência: reunia os repórteres, influindo no preparo das notícias, filtrando interpretações, orientando, na valorização do que seria o interesse político do governo, a máquina publicitária.3

Pouco a pouco, Castelinho transformou-se em redator de boa parte dos documentos cruciais do governo Jânio. Na noite que antecedeu à renúncia, estivera até altas horas no apartamento de Pedroso Horta, na superquadra 206, discutindo o que fazer diante do discurso de Lacerda. Aparecido insistia: o ministro da Justiça deveria divulgar uma nota enérgica. Castelinho redigiu a primeira versão, Horta modificou-a enquanto, no saguão do prédio, os

repórteres aguardavam a manifestação do ministro acusado de planejar um golpe. Às duas da manhã, Castelinho transmitiu por telefone o texto longamente gestado aos jornais do Rio e de São Paulo. Do apartamento de Horta, foi para o quarto de Aparecido, no Hotel Nacional. Conversaram e beberam até as 7 horas, quando o secretário recebeu uma chamada telefônica e saiu, e o jornalista foi tomar um banho, fazer a barba e trocar de roupa, chegando ao trabalho depois das 10 da manhã. No palácio, Aparecido informou-lhe que Jânio renunciara e estava voando para São Paulo. Ao receber a notícia mais importante de sua carreira, Castelinho lembrou-se, imediatamente, do argumento utilizado por Jânio na hora de convencer Leão Gondim de Oliveira, diretor da revista O Cruzeiro, a liberá-lo para que assumisse a Secretaria de Imprensa: “Preciso de Castello por seis meses. Sete, no máximo...”. Outra curiosidade: ao convidar Otto Lara Resende para integrar seu governo, entre março e abril de 1961, Jânio abriu os dedos da mão direita, pedindo apenas cinco meses do tempo do jornalista. Castelinho e Aparecido trancaram-se para redigir outra nota — a última —, enquanto um excitado oficial de gabinete brandia um velho recorte de jornal. Nele, um astrólogo previa que, a 25 de agosto, o governo cairia — para reerguer-se logo adiante. Castelinho anotou precisamente cada palavra de Aparecido. Quintanilha e o general Pedro Geraldo aprovaram os termos do documento, que ficou guardado no bolso do jornalista — os ministrosmilitares haviam pedido pelo menos três horas paratomar providências, e Horta se comprometera a segurar os documentos por esse tempo. Depois de retirar seus objetos pessoais da sala, a dupla foi ao apartamento do ministro da Justiça, onde estavam o líder Pedro Aleixo, o consultor-geral da República, Caio Mário da Silva Pereira, e o vice-presidente da Light, Antônio Galotti. Durante a refeição, ninguém tocou na renúncia. O brigadeiro Moss passou pelo apartamento, puxou Horta a um canto e conversou a sós com o ministro da Justiça. Na hora da sobremesa,

completaram-se algumas ligações pedidas por Pedroso Horta. Na primeira, Carvalho Pinto, governador de São Paulo, foi informado de que Jânio estava chegando ao estado, já como ex-presidente. Ao desligar o telefone, o anfitrião desculpou-se com Pedro Aleixo por surpreendê-lo daquela maneira, justificando ter recebido instruções precisas. Logo depois, a telefonista fez a chamada para o Palácio da Guanabara, no Rio de Janeiro, onde Lacerda almoçava com Flexa Ribeiro e Rafael de Almeida Magalhães: — É o governador da Guanabara? Aqui fala o ministro da Justiça. — É o Pedroso? — Não. É o ministro da Justiça. O presidente da República determinou-me que comunicasse a V. Exª que renunciou hoje à Presidência e seguiu para São Paulo. Pediu-me que avisasse a V. Exª antes de divulgada a notícia, para que tenha tempo de tomar suas providências. Deseja felicidades a V. Exa. Boa tarde.4

O almoço terminou por volta das 14h40. Horta foi para o Congresso entregar o ato de renúncia, e Castello, para o palácio,onde, à hora combinada, daria a notícia para os jornalistas. O presidente do Congresso estava de passagem marcada para São Paulo. Preocupado com a convocação de Horta para depor sobre as denúncias de Carlos Lacerda, mandara controlar o quórum nas duas casas do Legislativo. Ao constatar que era elevado, às 14h30, abriu a sessão do Senado, passou a direção dos trabalhos ao vice-presidente, Cunha Mello, e retirou-se para o gabinete da presidência. Estava cochilando num sofá quando sua secretária avisou que o ministro da Justiça estava na antessala. Auro Moura Andrade explicou à moça que Horta podia entrar — eram conhecidos e não havia razão para nenhuma formalidade. A funcionária foi à antessala e voltou, dizendo: “O ministro Horta pede que indiquemos ao senhor que ele quer encontrá-lo para a entrega de um documento importante”. Moura Andrade saiu ao encontro de Horta. Quarenta e seis anos

incompletos (nascera em Barretos, interior de São Paulo, no dia 19 de setembro de 1915), filho de um conhecido fazendeiro, comerciante e industrial, Moura Andrade participara ativamente da Revolução Constitucionalista de 1932, tendo sido preso pelas tropas federais comandadas pelo coronel Eurico Gaspar Dutra, na Frente de Campinas. Com o fim do movimento, concluiu o curso de psicologia, lógica e pedagogia na Escola Caetano de Campos. Em 1934, reiniciou os estudos, ingressando no curso de direito. Na Faculdade do Largo de São Francisco, fundou vários jornais de oposição a Getulio — todos retirados de circulação pelos censores do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Depois de formado, passou a exercer a profissão de advogado nos foros da capital e do interior e, no final de 1944, participou das articulações para o lançamento da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à Presidência da República, ponto de partida para a formação da UDN. Deputado estadual na Constituinte paulista em 1947, tornou-se em seguida líder da oposição — durante o mandato ordinário — e elegeu-se para a Câmara em 1950. Um ano depois, abandonou o partido e, após mudar algumas vezes de legenda, elegeu-se senador pelo PTN, em 1954. Cotado para ser o vice de Juscelino, com o apoio de Jânio, não conseguiu respaldo dentro do PTN, transferindo-se para o PSD. Foi vice-líder e líder da maioria do Senado, antes de assumir a vice-presidência da casa, o que, na prática, correspondia à presidência, formalmente exercida por João Goulart. Poucas vezes, em sua já longa carreira, Moura Andrade vira um ministro tão emocionado. Controlando-se com dificuldade, mas absolutamente formal, Pedroso Horta anunciou: Senhor presidente do Congresso Nacional: cumpro o mais grave ato de minha vida pública. Compareço diante de V. Exª para, na forma constitucional, dar-lhe ciência de um fato que terá profunda repercussão e se inscreverá nas páginas de nossa história. Ainda agora falo na condição de ministro da Justiça, mas cumprida esta missão, e no exato momento em que o haja feito, já não serei ministro. Passo às mãos de V. Exª o documento da renúncia do sr. Jânio da Silva Quadros à

Presidência da República.5

Com essas palavras, entregou-lhe o ofício datilografado. Trinta palavras que sacramentavam o fim do governo: Nesta data e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República. Brasília, 25 de agosto de 1961. Jânio Quadros

As tais razões estavam numa espécie de manifesto à nação: Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços para conduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira emancipação política e econômica era o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça federal a que tem direito o seu generoso povo. Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando e denunciando a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interesses gerais às ambições de grupos dirigidos, inclusive do exterior. Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis se levantam contra mim e me infamam ou me intrigam até com a desculpa de colaboração. Se permanecesse, não manteria a consciência e a serenidade indispensáveis ao exercício da nossa autoridade. Creio, mesmo, não manteria nem a própria paz pública. Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes, para os operários, para a grande família do país, esta página da minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia. Saio com um agradecimento e um apelo. Um agradecimento aos amigos que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo, e de forma especial às Forças Armadas, cuja conduta exemplar em todos os instantes e oportunidades não canso de proclamar. Apelo à paz, ao congraçamento, à estima de cada um dos meus patrícios, para todos, por tudo, e para cada um. Somente assim seremos dignos deste país e do mundo. Seremos dignos de nossa herança e da predestinação cristã. Retorno agora ao meu

trabalho de advogado e profes sor. Trabalhamos todos. Há muitas formas de servir nossa pátria. Em 25 de agosto de 1961. Jânio Quadros

Horta confirmou a Moura Andrade que a renúncia era voluntária e não resultara de qualquer pressão militar, muito pelo contrário.E concluiu: “Tudo se resume a isso: o presidente não quer mais ser presidente [...]”.6 Ao jornalista Murilo Melo Filho, na antessala, entregou uma das cópias dos documentos. Na saída, encontrou Vitorino Freire, senador pelo Maranhão, com quem travou o seguinte diálogo: — Certamente, senador, a renúncia não será apreciada hoje, sexta-feira, por falta de quórum. — O senhor está enganado, ministro. Devido à crise com o Carlos Lacerda, o Congresso está em peso em Brasília.7

Realmente, desde a manhã, os deputados sucediam-se na tribuna, analisando as denúncias do governador da Guanabara. Enquanto Pedroso Horta entregava formalmente a renúncia, o deputado Geraldo Freire, da UDN, ocupava a tribuna. Nesse momento, Almino Affonso, líder do PTB, ouve um verdadeiro tropel cruzando o Salão Verde, que separa o Senado da Câmara. Deputados, senadores e jornalistas entraram correndo no plenário,onde o mineiro Geraldo Freire fazia um laudatório discursosobre o duque de Caxias. O deputado Dirceu Cardoso, PSD/ES, pediu um aparte. Presidindo a sessão, Sérgio Magalhães chamou a atenção dos deputados para o fato de que havia um orador na tribuna, ainda que com o tempo esgotado. Mendes Gonçalves, PSD/MT, tentou acelerar a coisa: “Sr. presidente, o deputado Dirceu Cardoso vai fazer da tribuna um pronunciamento da mais alta importância para o país e para o mundo...”. Finalmente, Geraldo Freire encerrou, pedindo que Deus abençoasse e

protegesse o Brasil por intermédio daquele herói — Caxias — que estava a seu lado. Dirceu Cardoso leu o documento em que Jânio se dizia vencido pela reação. Nos dois primeiros apartes, surgiram as questões que mobilizariam o Congresso e o país inteiro nos dias seguintes. Osmar Cunha, PSD/SC, queria a posse imediata do presidente da Câmara: “Que assuma Ranieri Mazzilli imediatamente o governo, de acordo com a Constituição da República, para que se mantenha a legalidade neste país, para que se mantenha a ordem e para que não venha o golpe contra a nação”. Mendes Gonçalves, pessedista de Mato Grosso, propôs uma mudança no regime: “Vamos imediatamente adotar o regime parlamentarista, com o objetivo de evitar que a aventura tome conta deste país”. Dali por diante, legalidade e parlamentarismo balizariam o debate político nacional. Mas a fila de deputados dispostos a falar foi aumentando. Nestor Duarte, líder da minoria, classificou a renúncia de “calamidade”, enquanto Último de Carvalho, do PSD, disse: “Congratulo-me com a nação. O sr. Jânio Quadros fez o que devia fazer”. No plenário, Almino Affonso leu uma cópia da carta que explicava as razões da renúncia. Tomou a palavra e apontou uma contradição — não havia um fato que justificasse a atitude: Nada, sr. presidente, neste instante permite, sob pena de nos considerarem ingênuos, aceitar que o documento corresponda à verdade dos fatos. [...] O Partido Trabalhista Brasileiro, neste instante, fiel às suas tradições democráticas, não pode aceitar esta renúncia senão como um golpe em que o presidente da República pretende retornar ao governo à maneira de um ditador, disfarçado ou não, seja sob que forma for.

O líder do PTB arrematou: “O sr. Jânio Quadros entendeu que não tem possibilidade de comandar. Renunciou. A renúncia está aceita”. Almino ponderou que, com o vice ausente, deveria assumir o presidente da Câmara e que as Forças Armadas não tinham motivo para ficar alarmadas.

Gustavo Capanema pediu um aparte. Queria retificar o verbo aceitar, usado pelo líder do PTB: A renúncia é, por definição, ato unilateral. Irretratável. A renúncia, portanto, não está aceita. É um acontecimento histórico. Não temos competência constitucional para aceitá-la, recusá-la, para aplaudi-la, para tomar qualquer pronunciamento em face dela. A única coisa que nos cabe é tomar conhecimento. [...] Nestas condições, o que se segue é a aplicação pura e simples da Constituição. Assume o governo o vice-presidente, pelo resto do período.

O presidente do Senado se encaminhou para o plenário, para dar ciência a seus companheiros do acontecido, quando Rubens Ricupero, jovem funcionário do Itamaraty, lhe entregou um telegrama do chanceler Afonso Arinos, que estava no Rio: “Os ministros militares não podem tomar conhecimento do documento da renúncia antes do Congresso Nacional, e o Congresso Nacional, por sua grande maioria, é concitado a recusar a renúncia, sem o que será o caos, a guerra civil”. Moura Andrade manteve Ricupero em seu gabinete, entrou no plenário do Senado, interrompeu o orador da tribuna, Nogueira da Gama, e comunicou a suspensão da sessão, convidando os líderes dos partidos ao seu gabinete e convocando uma sessão do Congresso para dali a trinta minutos. Eram quatro da tarde. Ao mesmo tempo, mandou telefonar para o aeroporto, fazendo anunciar nos alto-falantes a todos os deputados e senadores que se encontrassem por lá que retornassem imediatamente, “em face da renúncia do sr. Jânio Quadros”. A sessão do Congresso, extraordinária, foi aberta às l6h45, presidida por Auro Moura Andrade. Diante de 45 senadores e 230 deputados, ele leu o documento de Jânio e disse: Conforme sabem os senhores congressistas, a renúncia é um ato de vontade do qual deve tomar conhecimento o Congresso Nacional. Nos termos da Constituição, caberá ao presidente da Câmara assumir a Presidência da República. [...] Sei que o

faço interpretando o sentimento do Congresso e interpretando a suprema aspiração do povo brasileiro, desejo declarar que temos a mais absoluta e irrestrita confiança nas Forças Armadas! [...] Sabemos que elas realizarão, mais uma vez, a missão histórica de que nunca se afastam, de defender as instituições. [...] Claro, teríamos todos desejado que esta renúncia não se tivesse dado com os fundamentos que li. O Congresso vinha prestigiando a ação do presidente Jânio Quadros, particularmente no campo das relações internacionais. A nação saberá e a história escreverá aquilo que tocar a cada um de nós daqui por diante. [...] Tenho a certeza de que, no que diz respeito à defesa do regime, à defesa da ordem, o Congresso se manteve à altura das suas responsabilidades [...].8

Em seguida, convidou todos a comparecer à posse do presidente interino no Palácio do Planalto, dali a quinze minutos. Paulista de Caconde, 51 anos, casado, três filhos, Ranieri Mazzilliera descendente de imigrantes italianos que se tornaram comerciantes e fazendeiros no nordeste paulista. Estudante de direito no Largo de São Francisco, teve seu curso interrompido pela Revolução de 1930. Começara a trabalhar como coletor estadual em Taubaté, interior de São Paulo, mas fora substituído após a Revolução de 1932, voltando à capital, onde passara a se dedicar ao jornalismo, como especialista em assuntos fiscais. Nomeado coletor fiscal em Sorocaba e Jundiaí, transferiu-se em 1936 para o Rio de Janeiro e concluiu o curso de direito em Niterói. Filiado ao PSD, tornou-se secretário-geral de Finanças da Prefeitura do Distrito Federal, até meados de 1943. Em junho de 1949, assumiu a chefia de gabinete do Ministério da Fazenda e no ano seguinte elegeu-se deputado federal pelo PSD em São Paulo. Reeleito em 1954, candidatou-se à presidência da Câmara com o apoio de Juscelino Kubitschek. Perdeu para seu companheiro de partido, o mineiro Carlos Luz, que obteve o apoio da UDN. Reeleito em 1958, usou a mesma tática que o derrotara: conquistou a presidência da Câmara contra a orientação do PSD, mas com o apoio da UDN e dos partidos de oposição. Tomou posse em março, substituindo outro pessedista paulista, o deputado Ulysses Guimarães.

Em agosto de 1960, Juscelino estava em Portugal, Jango era novamente candidato a vice, e Mazzilli assumia pela primeira vez a presidência interina da República. No dia 25 de agosto, portanto, estava longe de ser um novato. E foi com a experiência de veterano que reagiu ao telefonema do coronel Tácito Gaspar de Oliveira, informando que o marechal Denys tinha urgência em falar com ele. Às cinco da tarde, no gabinete que fora de Jânio, no Palácio do Planalto, diante dos três ministros militares e de diversos deputados, Mazzilli assumiu a Presidência com um discurso tão curto quanto cauteloso: Por força do dispositivo da Constituição federal, em virtude da renúncia formal de Sua Excelência, o senhor presidente Jânio Quadros, apresentada ao Congresso Nacional, cumpre,na ausência de Sua Excelência, o senhor vice-presidente João Goulart, ao presidente da Câmara dos Deputados assumir, nessa eventualidade histórica, a Presidência da República. No cumprimento estrito desse mandamento constitucional aqui me encontro para assumir as árduas funções da chefia do Estado brasileiro, como presidente da Câmara dos Deputados. Deus é testemunha de que o faço com o pensamento voltado para este bom e grande povo brasileiro, visando, no cumprimento do meu dever, esforçar-me nessa eventualidade para que o Congresso Nacional, presente na chefia da República por mandamento da Constituição, seja efetivamente o representante de toda a nação brasileira, sem quaisquer discriminações. Assumo a Presidência da República com a nação sensibilizada pela renúncia do grande brasileiro Jânio Quadros e, por isso, estarei atento nessa emergência a todos os deveres que me cabe cumprir religiosamente. A nação, através dos órgãos legítimos de segurança nacional e com o funcionamento normal dos órgãos de representação popular, está neste momento assistindo a um ato histórico, é certo, mas de rotina, na construção do nosso direito constitucional.

Em seguida, mandou telegrafar a João Goulart, comunicando- lhe que, “na sua ausência”, assumira a Presidência da República. Ao lado do presidente empossado, a boca em curva para baixo, expressando desalento, um grandalhão fardado é abordadopelos repórteres:

“Ministro, o que o senhor tem a dizer sobre a posse do vice-presidente, João Goulart?”. O ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, responde de má vontade: “Estou aqui para outra posse”.

6 Derrotas parciais

26 DE AGOSTO DE 1961, 12h15, Base Aérea de Cumbica, a 20 quilômetros do centro de São Paulo. Sob uma típica garoa paulistana, o sentinela registra a saída de um DKW vermelho, placa 269. Defronte do portão, naquele ermo cercado de mato, dezenas de jornalistas rodeiam o carro, tentando arrancar qualquer declaração de seu motorista. Todas as perguntas ficam sem resposta, até que, à insistência de um fotógrafo — “presidente, presidente, presidente...” —, ele resume a história em apenas duas palavras, perfeitamente escandidas: “Ex-presidente!”. Jânio Quadros posou para a câmera e arrancou. Ao lado dele ia Borges Nunes, um amigo. No banco de trás, dona Eloá, a mãe dele e dona Leonor. E, em outros dois automóveis, Quintanilha Ribeiro e o major Chaves Amarante; José Aparecido e Castro Neves. Complementada por uma viatura da radiopatrulha e por um furgão da base aérea, a pequena comitiva seguiu para Santos, acompanhada pelos carros de reportagem. O presidente, ou ex-presidente, passara menos de 24 horas na base aérea. Mais precisamente, das 13h30 do dia 25 de agosto às 12h15 do dia seguinte, como esclarecia o comunicado assinado pelo comandante da 4ª Zona Aérea, brigadeiro Nelson Freire Lavanére-Wanderley, acrescentando que Jânio estivera ali “por sua livre e espontânea vontade”. Embora não gostasse de andar de avião e costumasse enfrentar o medo com generosas doses de uísque, ele não bebeu nada no trajeto entre Brasília e São Paulo.

Enquanto o ex-presidente voava para São Paulo, Carvalho Pinto reunia no Palácio dos Campos Elísios, para um almoço, quatro colegas que estavam na cidade participando da Semana da Unidade Nacional promovida por estudantes da PUC: Magalhães Pinto, de Minas, Carlos Lindemberg, do Espírito Santo, Chagas Rodrigues, do Piauí, e Ney Braga, do Paraná. Mauro Borges, de Goiás, que viera para outro evento, também participou do almoço, bem como o ministro do Trabalho, Castro Neves. Ao saber da renúncia, Carvalho Pinto ligou para Pedroso Horta e pediu que postergasse a comunicação ao Congresso, para que os governadores tentassem demover o presidente. O ministro da Justiça explicou que a decisão era irrevogável e irretratável e, por isso, teria de cumprir as ordens recebidas. O governador de São Paulo voltou para a mesa, pálido, e explicou o que se passava. Pouco depois, recebeu outro telefonema e saiu: Jânio queria encontrá-lo no aeroporto. O Viscount presidencial pousou em Congonhas, foi reabastecido sem que ninguém descesse do aparelho e seguiu para a base aérea de Cumbica. Ao voltar ao palácio, Carvalho Pinto disse a seus colegas: “Nada mais se pode fazer. O presidente declara que sua renúncia é irrevogável. Entretanto, terá prazer em recebê-los no aeroporto militar de Cumbica, para onde se dirigiu”.1 O destino do avião presidencial foi cercado por mistérios e boatos, como tantos outros detalhes dessa história. Jânio não queria ir para Cumbica, mas, antes de decolar, o general Pedro Geraldo comunicou ao ex-presidente que continuava responsável por sua segurança e não permitiria que ele deixasse a base aérea até que se esclarecesse a situação e fossem conhecidas as repercussões. Jânio concordou: a residência dele estava alugada, e sua presença na casa de algum amigo traria constrangimentos. Depois do episódio, surgiram versões atribuindo a mudança de rota do Viscount a uma traição de Carvalho Pinto, já que o isolamento de Cumbica impediria que a massa fosse ao aeroporto e trouxesse o ex-presidente nos ombros de volta ao poder. Outra versão diz que o brigadeiro Moss mandou trocar o piloto e a

tripulação do aparelho, impedindo que Jânio fosse para qualquer lugar menos desabitado. Fantasiosas, as duas hipóteses não têm nenhuma comprovação. O fato é que, quando o Viscount estacionou, Jânio mandou a mulher e dona Leonor para a residência do comandante, irmão do brigadeiro Faria Lima, seu antigo auxiliar, e passou quase duas horas sentado na poltrona do avião, a cabeça apoiada sobre as mãos cruzadas. Ao desembarcar, instalou-se numa das salas e fez um apelo ao coronel, que o aguardava: “Providencie o policiamento em torno da base. Não desejo ser importunado”. Em seguida, voltou-se para um sargento da Aeronáutica postado junto à porta e pediu algo para comer. Ele lhe trouxe sanduíches e refrigerantes. Ao terminar o lanche, foi informado da presença dos governadores. Jânio recebeu-os separadamente. De slack branco e aparentando tranquilidade, repetiu a mesma história a cada um deles, mudando apenas uma palavra ou outra: nada o faria voltar atrás, imaginava ter adotado “a melhor solução para o Brasil”. Aos poucos, jornalistas, políticos e curiosos começaram se aglomerar do lado de fora da base aérea. Entre eles, igualmente barrado e fervendo de ansiedade, estava o ex-deputado Carlos Castilho Cabral. Presidente da Caixa Econômica Federal em São Paulo e um dos principais dirigentes do Movimento Popular Jânio Quadros, ele exigiu ser recebido pelo comandante da base. Por intermédio do coronel Faria Lima, conseguiu encaminhar uma única pergunta a seu chefe supremo: o que o MPJQ deveria fazer? A resposta mais parecia uma charada: Jânio confiava na prudência de Castilho, que deveria agir de acordo com a sua consciência. De volta a seu escritório, o ex-deputado convocou a diretoria estadual do movimento. A decisão foi unânime: ir para a rua, repetindo, em ponto maior, a campanha de 1959, quando o movimento conseguira reverter a renúncia de Jânio à candidatura. O primeiro grande comício ficou marcado para as quatro da tarde do dia 26, na praça da Sé. Por seu turno, os governadores enviaram o seguinte telegrama ao Congresso Nacional:

Os governadores dos Estados do Paraná, Minas Gerais, Piauí, São Paulo, Espírito Santo e Goiás, ora reunidos nesta capital, depois de terem levado, pessoalmente, ao presidente Jânio o pedido para que retire o pedido de renúncia dirigido ao Congresso Nacional, exortam à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal para que recusem a medida de renúncia, tendo em vista a normalidade democrática e os superiores interesses da nação.

Anoiteceu. Diante das câmeras da TV Record, numa incompleta cadeia de rádio e televisão — as emissoras da Guanabara ficaram de fora, por ordem de Carlos Lacerda —, o ministro da Justiça, Pedroso Horta, rebateu as acusações de que teria tramado um golpe. E passou ao largo do único assunto que interessava aos brasileiros naquele momento: a explicação para a renúncia do presidente. Jânio não acompanhou o pronunciamento. Parecia mais interessado na saúde da neta Ana Paula, tema de várias ligações para seu genro Alaor Gomes. Pouco depois de uma da madrugada, deixou a sala, cruzou a pista, onde o Viscount continuava de prontidão, e entrou na residência do comandante da base. Ligou mais uma vez para a casa da filha e só então mencionou sua decisão ao genro: “Estou bem-disposto. Não irei para a rua, a fim de evitar agitações. Sairei após a posse de João Goulart e então farei revelações à nação”.2 Naquela mesma noite, seus principais auxiliares tiveram certeza de que a renúncia estava consumada: Mazzilli tomara posse em Brasília, e, em São Paulo, intelectuais e políticos pareciam mais preocupados em assegurar a posse de Jango do que em levar Jânio de volta ao poder. Até aquele momento, a inesperada decisão frustrara e surpreendera o país, mas não havia gerado nenhuma onda de protestos. Numa reunião que avançou madrugada adentro, a UNE decretou greve nacional, mas em favor da posse de Goulart. A Comissão Permanente das Organizações Sindicais, órgão de orientação comunista, esboçou uma greve entre os marítimos e portuários, trabalhadores das empresas de transporte de passageiros e nas indústrias da Guanabara.

No dia 26, os ferroviários da Leopoldina cruzaram os braços, houve uma passeata dos operários navais em Niterói, mas os 4 mil trabalhadores da Central do Brasil não aderiram. O silêncio de Jânio e a repressão minaram a capacidade de mobilização dos sindicatos. E pior: os janistas, que poderiam ocupar ruas e praças, também estavam prestes a abandonar o campo de batalha. No dia 26, logo cedo, Castilho Cabral fora à casa de Quintanilha Ribeiro. Queria saber se tinha havido pressão militar para que Jânio renunciasse, como supunha. O ex-chefe da Casa Civil explicou que os ministros fardados tinham ficado tão chocados com a decisão do presidente que um deles chegara a chorar durante a conversa. “Por que a renúncia, então?”, perguntou o dirigente janista. “Foi a última gota, Castilho: o Jânio se convenceu de que não lhe era possível governar como precisava.”3 Às quatro da tarde, diante de uma multidão militante, no comitê central do Movimento Popular Jânio Quadros, no Rio de Janeiro, Castilho Cabral relatou o que ouvira e propôs o cancelamento de todos os protestos: “Nós não somos nem baderneiros nem linha auxiliar dos comunistas”.4 Pouco depois, terminavam os conflitos na Cinelândia. Nas intermináveis discussões sobre o episódio, alguns de seus auxiliares mais próximos diziam que o ministro da Justiça poderia ter reprisado a salvadora incúria exibida anteriormente por Afrânio de Oliveira, secretário particular de Jânio no governo de São Paulo. Contrariado com a oposição que enfrentava na Assembleia Legislativa, o governador entregou a Oliveira uma mensagem para ser divulgada pelos jornais, em que renunciava ao cargo. Na manhã seguinte, estranhando a falta de repercussão da notícia, Jânio perguntou a seu auxiliar onde estava a mensagem: — Comigo, no bolso. — Rasgue-a.5

José Aparecido morreu convencido de que Horta fizera o que tinha de ser

feito: “Uma ordem de Jânio era como uma mensagem a Garcia. Ninguém poderia deixar de cumpri-la”. O secretário particular do presidente lembraria na entrevista ao autor, anos mais tarde, a dedicatória de Jânio num livro comprado para seu ex-ministro da Justiça: “A Oscar Pedroso Horta, cujas excelências como advogado chegam a ser perigoso incitamento à criminalidade”. Naquele outro dia seguinte, 26 de agosto, cruzando o vale do Anhangabaú ao volante de um carrinho vermelho, o homem de 5.636.623 de votos irritouse com a perseguição, desceu do automóvel e, pela primeira vez em sete meses, viu uma ordem sua ser completamente ignorada: “Deixem-me em paz!”. Os jornalistas não arredaram pé. No posto de pedágio da balsa do Guarujá, na Ponta da Praia, arrancaram, finalmente, as primeiras frases do motorista do DKW, que parecia bem-disposto.Jânio explicou que pretendia viajar por algum tempo, “porque a presença em minha terra poderia ser prejudicial”. Disse que seu sucessor precisaria de tranquilidade para enfrentar os terríveis problemas do Brasil e que não pretendia perturbar, nem servir de pretexto para nada: “À volta, reorganizarei meu escritório de advocacia e retornarei às minhas aulas. Afinal, o que estou fazendo é regressar ao povo”.6 A conversa terminou com um definitivo “é ponto final”. Desde as cinco da manhã do dia 25, Jânio falara muito pouco sobre sua decisão. No primeiro encontro com seus auxiliares mais próximos — Quintanilha Ribeiro, Aparecido, Castro Neves e Castelinho —, em São Paulo, na manhã do dia 26, tocou no assunto, mas pouco esclareceu: Entrei neste mês de agosto apreensivo, com o coração apertado. Algo por dentro dizia-me que as coisas não iriam bem. Se me perguntam, não sei dizer por quê. Talvez a morte de Getulio, a lembrança da morte de Getulio, ocorrida nesse mês fatídico, dava-me pressentimentos.7

Sobre Lacerda, praticamente repetiu o que dissera no dia anterior: “Não lhe guardo ódio, tenho pena dele. Não constrói nada. É uma vocação para o

mal, como se mil pequeninos demônios vivessem em luta dentro de sua cabeça. Que destino terrível...”. Castro Neves interrompeu-o, puxou o ex-presidente para um canto e pediu instruções: os sindicatos do Rio e de Santos aguardavam apenas uma ordem para entrar em greve. Jânio vetou: “Não, senhor, não devemos tomar qualquer iniciativa. Não dê palavra alguma. Não quero assumir a responsabilidade de incendiar o país” Voltando para o centro da roda, completou: Não farei nada por voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de três coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e rapidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém, que reúna esses três requisitos. Pode ser que o processo demore mais do que o previsível, um ano, até dois. Mas é inevitável.

Ficou alguns segundos olhando para o nada e concluiu: “Se tal não ocorrer, a renúncia se completa em si mesma. Pelo menos legarei o gesto. Num país em que ninguém renuncia, eu renunciei a quatro anos e meio da Presidência da República”.8 Jânio informou sua equipe de que iria para a Europa, até porque sua casa estava alugada. Os preparativos para deixar a base aérea estavam em marcha quando Leonel Brizola conseguiu, afinal, contato telefônico com Cumbica. Castelinho foi atender. O governador gaúcho, ansioso, perguntou o que acontecia, se o presidente estava bem. O jornalista respondeu que o expresidente não estava sofrendo nenhum constrangimento e que partiria para a Europa no dia seguinte. Brizola colocou-se às ordens e ofereceu o apoio do Rio Grande do Sul. Quando o recado lhe foi repassado, ouviu em silêncio. Pouco depois, deixou a base aérea. Na hora da partida, o major Amarante disse a Castelinho que o presidente determinara que a faixa presidencial fosse entregue ao comandante do II Exército, Osvaldo de Araújo Mota.

Às 14h40 do dia 26, o DKW entrou num sobrado amplo, em frente ao mar do Guarujá, então o balneário da elite paulistana, na esquina da avenida Marechal Deodoro com a praça dos Expedicionários. Minutos depois, os repórteres já esticavam o pescoço tentando identificar qualquer movimento para além da sacada direita do primeiro andar do casarão do industrial José Khalil — justamente a do quarto ocupado por Jânio e dona Eloá. Uma pequena multidão foi se formando, fiscalizada pelo delegado de polícia do Guarujá, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e soldados da Força Pública e da Guarda Civil — estes dispensados, a pedido do ex-presidente. Jânio ficou apenas 48 horas no Guarujá. Tempo insuficiente para ler tudo o que havia sido publicado sobre ele — e não apenas no Brasil. A renúncia de quem acenara com o reatamento de relações com os comunistas, no auge da Guerra Fria, foi devidamente registrada pelos maiores jornais do mundo. Em editorial, o The New York Times afirmou que o Brasil mantinha a reputação de ser uma das nações mais dramáticas do mundo, descartou qualquer participação do governo americano no episódio e previu dificuldades: Superficialmente, poderia parecer que os Estados Unidos sairiam ganhando com a eliminação de um líder latino-americano independente com simpatias para a Cuba revolucionária, o qual estava estabelecendo relações diplomáticas com a União Soviética e que se entendia amistosamente com a China comunista. Apesar disto, Jânio Quadros era um democrata, um economista ortodoxo, um crente fervoroso nos valores ocidentais e um administrador e político extremamente hábil, e até brilhante. É duvidoso que algum outro consiga tirar o Brasil do atoleiro.9

O Wall Street Journal manifestou apreensão sobre o futuro das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, lembrando que Jango era ainda mais simpático às esquerdas do que o próprio Jânio. O The Herald Tribune registrou o assunto sob o título “Caos no Brasil; turbas atacam: os EUA são alvo”; o Daily News, com “Quadros se retira, partidários provocam distúrbios, turba, no Rio, apedreja a embaixada dos EUA”; e o Journal American foi de

“Esquerdista brasileiro voa de regresso para assumir o poder”. O francês Le Monde levantava a suspeita de que Goulart também poderia renunciar, o que provocaria novas eleições, que dariam vitória ao mesmo grupo. O L’Humanité, órgão do Partido Comunista Francês, encontrou o que nenhum jornalista brasileiro viu: “Em Brasília a multidão se manifesta contra os líderes reacionários que a obrigaram a marchar”. O Libération também deu espaço para as manifestações populares contra a renúncia e, em subtítulo, dizia que “o Exército afirma ao presidente seu completo apoio”. O inglês The Guardian concluiu que era duvidoso que “Quadros tivesse sido vencido por elementos revolucionários, como afirmou”, enquanto o conservador Daily Mail acentuava que Jânio nada tinha de comunista: “É um nacionalista que não vacilaria em sentar-se à mesa com o Diabo, se isso fosse útil ao Brasil. Entretanto, como a Marinha e a Aeronáutica brasileiras são contra Goulart, é possível que Quadros volte ao poder, graças a uma revolução”. Na Argentina, o matutino Democracia (que habitualmente refletia os pontos de vista do presidente Arturo Frondizi) foi o único jornal a comentar a renúncia de Quadros, recuperando uma antiga frase do renunciante: “No Brasil, o difícil não é chegar à Presidência, mas manter-se nela”. Já a agência soviética Tass divulgou que “a negativa de Quadros em apoiar os estratagemas dos EUA contra Cuba provocou insatisfação em Washington”, acusando a CIA de estar por trás da decisão. A denúncia foi prontamente desmentida pelo Departamento de Estado dos EUA. Classificando as acusações da imprensa comunista nesse sentido de “absurdas”, o comunicado definia como “excelentes” as relações entre Washington e Brasília e “estreitas e amistosas” com o próprio Jânio. O marechal Tito, da Iugoslávia, adiou sine die sua visita oficial ao Brasil, proposta por Jânio em março. O governo cubano decretou uma greve de quinze minutos em solidariedade, e Fidel Castro classificou o episódio como “um traiçoeiro golpe do imperialismo”. O jornal La Revolución vaticinava em editorial: “Ante a renúncia de Quadros, não há outro caminho senão a revolução”, e o Hoy — órgão oficial do Partido Comunista — concluiu que “este governo foi derrotado pelos mesmos senadores de Washington e lacaios

internos. Algo semelhante aconteceu com Getulio Vargas”. Na busca das razões para a atitude, O Estado de S. Paulo apostou na nova capital, garantindo que “são às vezes os fatores menos considerados na hora da adversidade que maior poder exercem na evolução dos acontecimentos”. O jornal de Júlio de Mesquita Filho mencionava outra frase de Jânio, pronunciada justo na hora da partida — “é terrível esta cidade. Acho que nunca mais voltarei aqui”. E registrava ainda o início do pronunciamento do ministro da Justiça em cadeia de rádio e televisão: “Ontem à tarde, na terrível, enfadonha, desastrosa Brasília [...]”. Quintanilha Ribeiro levantara a mesma suspeita, ao perguntar a Jânio o quanto sua atitude tinha a ver com sua ojeriza à nova capital. Resposta do expresidente: “Uns dez por cento, se tanto”. No sábado, dia 27, os jornais brasileiros estavam mais preocupados com a reação militar, embora a sorridente imagem de Jânio ao volante do DKW ainda ilustrasse muitas capas. No Jornal do Brasil, ela aparecia logo abaixo da manchete que registrava a promessa do deputado Sérgio Magalhães, presidente em exercício da Câmara dos Deputados, de jogar na lata do lixo qualquer emenda destinada a impedir a posse de Jango. E no pé da primeira página, a seguinte nota de 22 linhas: O repórter Edísio Gomes de Matos, da sucursal do Jornal do Brasil em Brasília, revela na página 3 que o presidente Jânio Quadros tentara uma primeira renúncia, na última semana de junho, fato que ficou em segredo por terem o ministro Pedroso Horta e o sr. José Aparecido de Oliveira dissuadido o presidente do seu intento. Indignado com o Congresso, que recusara o seu veto a projeto que dava estabilidade a funcionários da Novacap, muitos dos quais com apenas 72 horas de exercício, o presidente declarara a seus auxiliares diretos: “Não posso governar este país com um Congresso de imorais. Elaborem a carta de renúncia. Quero um documento para a história”.10

Os rios de tinta gastos em torno do episódio jamais conseguiram aplacar o sentimento de perplexidade de Quintanilha Ribeiro, o único amigo íntimo de

Jânio no primeiro escalão da República. José Aparecido volta e meia encasquetava com a ideia de que seu maior rival, Pedroso Horta, estava tramando algo. Um dia antes da malsucedida visita de Lacerda ao presidente, incluiu outro personagem na sua lista de suspeitos. Aparecido trancou- se com o ministro das Relações Exteriores e desabafou: — Esse sujeito está conspirando? — Que sujeito? — Esse aí, o presidente. Ele e o Horta estão tramando um golpe.

As suspeitas do secretário particular do presidente não contaminaram Afonso Arinos, para quem tudo não passava de especulação, sem respaldo em fatos. Mais tarde, porém, o ministro das Relações Exteriores lembrou-se da conversa telefônica que mantivera com Jânio na véspera da renúncia. No meio de um elogio a seu desempenho durante uma conferência, o presidente perguntou, sem mais nem menos: “Ministro, onde está Jango hoje?”. Arinos explicou que não lera ainda o despacho enviado diariamente pelo embaixador que acompanhava o vice-presidente e propôs ligar novamente mais tarde com a resposta. Jânio fez questão de ter a informação imediatamente. Ao saber que seu vice chegaria a Hong Kong no dia seguinte, fez um breve silêncio e arrematou: “Longe, não é?”. Apesar desses indícios, o artífice da política externa independente que tanta confusão tinha provocado atribuía a renúncia a uma conjugação de fatores: a coexistência nem um pouco pacífica entre o sistema presidencialista e o voto proporcional e as características do próprio Jânio, a quem teriam faltado confiança, simplicidade, apego ao real, alheamento às abstrações e inocência. Revirada do avesso, contada e recontada, a renúncia continua fomentando mil explicações. O marechal Cordeiro de Farias, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), foi visitar Jânio no camarote do navio que o trouxe de volta ao Brasil, depois de curtir a renúncia em Londres. Quando o

encontrou, disse à queima-roupa: — O que lhe faltou em Brasília foi alguém a seu lado, com serenidade para agir. — Agir, como? — Eu prenderia. Rasgaria a carta-renúncia e o prenderia. Isto é, eu o levaria de avião para São Paulo e de lá para a casa de campo de algum amigo, até que acabasse a sua loucura.

Jânio levantou-se, abraçou o marechal em prantos e disse: “O senhor foi a primeira pessoa a afirmar que faria isso”.11 Companheiro de juventude do marechal, o líder comunista Luiz Carlos Prestes examinou o episódio e considerou irrelevante especular seus motivos: Chegou um momento em que o senhor Jânio Quadros teria de definir: ou ficaria com os generais golpistas que ele colocara à frente dos ministérios militares, desmascarando-se, portanto, diante do povo que o elegera, ou ficaria com o povo, contra os generais golpistas. Preferiu a saída da fuga, na esperança de poder, ainda mais tarde, enganar novamente a nação.12

Amaral Peixoto, então presidente do PSD, viu a renúncia como uma jogada malsucedida: “Ah, era golpe. Ele queria voltar como o Perón fez na Argentina em 1945: vitorioso. Mas não contava que o Congresso tomasse a decisão que tomou no mesmo dia”.13 Durante muitos anos, essa foi também a ideia do general Ernesto Geisel. Mas, no fim da vida, o homem que Jânio havia nomeado comandante militar de Brasília mudou de ideia, depois de ouvir o relato do almirante Faria Lima, que na época servia na Casa Militar: “Jânio se acovardou diante das condições de governo. Ele não tinha condições de governar. Resolveu ir embora mesmo e não sonhava voltar”.14 Antes de partir para Londres, o ex-presidente já deixara o centro dos acontecimentos. Na manhã do dia 28, só nove jornalistas continuavam de plantão diante da casa em que estava hospedado, no Guarujá. Os repórteres

tentaram mandar bilhetes para o ex-presidente, dentro dos jornais que ele mandou comprar, mas o truque foi descoberto. As crianças que se juntavam diante da casa foram organizadas num improvisado coral que entoou o Hino Nacional por três vezes, mas apenas uma fresta da janela foi aberta, logo fechada quando os pequenos cantores começaram a deixar o local. Pouco depois, Jânio rumava para o porto de Santos num fusca. Usando um terno claro sem gravata, evitou o cais cheio de gente, tomando uma lancha até o vapor inglês Uruguai Star, um cargueiro misto da Blue Star Line, onde reservara o camarote 17. Acompanhavam-no Pedroso Horta, Quintanilha Ribeiro, Saulo Ramos e o major Amarante. Seus familiares — esposa, mãe, filha, genro e neta — já estavam a bordo. Às 15h45, com o apito tradicional, o navio deixou o porto de Santos, iniciando uma viagem de 19 dias com destino a Londres e escalas no Rio, em Las Palmas, Lisboa e Amsterdã. Suas últimas declarações para uma emissora de Santos: “Bem disse o presidente Getulio — mandam-me embora, mas eu voltarei. Consigne. Apenas derrotas parciais”. A bordo, ele encontrou o repórter George Torok, da revista O Cruzeiro, a quem chamou de “moleque muito mal-educado”, ameaçando tomar o filme fotográfico com imagens de um passageiro alto e magro, trajando slacks escuros. O humor de Jânio melhorou dias mais tarde, ao receber notícias do Brasil, mas sua disposição para o silêncio manteve-se: “Quem viaja neste navio é Jânio Quadros, cidadão brasileiro que pretende descansar. O político não embarcou”.

7 Absoluta inconveniência

25 DE AGOSTO, 11h30 da manhã, plenário do Congresso Nacional, Brasília. Ranieri Mazzilli está presidindo a sessão agitada pela convocação do ministro da Justiça, Pedroso Horta, quando um funcionário de seu gabinete aproximase e lhe informa, ao pé do ouvido, que um coronel do Exército precisa falar urgentemente com ele. E mais: pergunta se o presidente permitiria ao militar chegar até a mesa da Câmara, evitando que Mazzilli saia de seu lugar, chamando a atenção dos parlamentares. O presidente da Câmara concorda, e ali mesmo o coronel transmite a imperiosa convocação de Odílio Denys para que vá até o gabinete do ministro da Guerra. Não há dúvidas — é algo urgente: “Nós precisamos de sua presença lá, prontamente”.1

Mazzilli é informado de que o assunto é grave, por isso esperam dele essa gentileza. Para completar, o coronel revela: os três ministros militares não podem sair de lá. Entre surpreso e aflito, o deputado responde que irá em seguida. O militar não cede: diz que ficará aguardando, porque é preciso que os dois cheguem juntos ao Ministério da Guerra, para não despertar nenhuma curiosidade. Ranieri Mazzilli pede então que o coronel o aguarde lá fora: quer ganhar tempo e informar ao líder da maioria, José Maria Alkmin, do PSD, o que imagina ser uma brusca mudança na área militar. Horas antes, o mesmo Alkmin recebera um telefonema do presidente do

PSD, Ernâni do Amaral Peixoto, que estava no Rio de Janeiro, e lhe dissera para ficar atento aos acontecimentos. Mazzilli puxa Alkmin para um canto do piso elevado em que fica a mesa da Câmara, explica que está sendo convocado para uma reunião e faz um pedido insólito: Preciso que você me siga. Vá noutro carro, atrás do meu, pois quero verificar, realmente, para onde estou sendo levado. Depois você segue para a minha casa e espera eu chegar. Se o tempo de espera lhe parecer desarrazoado, de modo que julgue necessário tomar qualquer providência, fique sabendo que fui convocado para ir ao gabinete do ministro da Guerra e estarei lá conferenciando com ele.2

Em menos de cinco minutos, o carro o leva até o prédio de mármore branco, na Esplanada dos Ministérios. Ao chegar ao gabinete de Denys, encontra também os ministros da Marinha, Sílvio Heck, e da Aeronáutica, Gabriel Grün Moss. O trio prestes a assumir as rédeas no país podia ter divergências políticas, mas possuía um objetivo comum: governar o Brasil sem a sombra de João Goulart. Os três eram cariocas. Denys, 69 anos, o mais velho, estava na reserva desde o ano anterior — para mantê-lo ao máximo na ativa, o Congresso aprovara a cha mada Lei Denys, a pedido de Juscelino. Heck e Moss — um com 56, outro com 57 anos — eram amigos e contemporâneos de escola. Ambos haviam entrado para a vida militar através da Escola Naval, um ano depois do levante de 1922, em que Denys já atuara. Na madrugada de 5 de julho, os canhões do Forte de Copacabana começaram a disparar sobre a cidade. A revolta contava com o apoio de todo o corpo de cadetes e instrutores da Escola de Realengo. No comando de uma companhia de infantaria da Escola, o tenente Denys movimentou-se com sua tropa ao longo do leito da ferrovia Dom Pedro de Alcântara. Dominado o levante, foi desligado do quadro de instrutores da Escola de Realengo, ocupada por tropas legalistas comandadas pelo capitão

Euclides de Oliveira Figueiredo. Juntamente com outros oficiais que participaram do levante, foi preso e recolhido ao quartel do Corpo de Bombeiros, de onde saiu para o lo Regimento de Cavalaria, sendo dali transferido para um navio, colocado sob a guarda de unidades da Marinha. Condenado a um ano e quatro meses de reclusão pelo juiz Olímpio de Sá Albuquerque, reconquistou a liberdade em 1923, por força de habeas corpus. Conrado Heck fora ministro da Marinha entre dezembro de 1930 e junho de 1931. Seis anos depois, seu filho Sílvio fora promovido a primeiro-tenente e transferido para a Flotilha de Contratorpedeiros, sendo indicado para servir na Paraíba. Em janeiro de 1931 foi designado ajudante de ordens do contraalmirante Augusto César Burlamaqui, comandante em chefe da esquadra. Descendente de ingleses e húngaros, Grün Moss estava a bordo do destroier Maranhão quando eclodiu a Revolução de 1930. Seu navio foi encarregado de vigiar o avanço dos rebeldes do Rio Grande do Sul no litoral de Santa Catarina, quando o líder tenentista Luiz Carlos Prestes divulgou um manifesto aderindo ao marxismo. No Rio, alguns tenentes reuniram-se, divulgando um documento que expressava a divergência radical e absoluta do grupo em relação a Prestes. Denys foi um dos seus signatários. Na segunda reunião, Prestes foi destituído da liderança tenentista e substituído por Juarez Távora. Denys chegou a ser indicado para integrar o núcleo conspirador instalado em Belo Horizonte por Djalma Dutra e Osvaldo Cordeiro de Farias, mas preferiu ficar no Rio de Janeiro. Com a vitória da revolução e a queda de Washington Luís, assumiu o comando da Escola de Sargentos de Infantaria da Vila Militar. Os três haviam atuado juntos pela primeira vez na Revolução Constitucionalista de 1932. Capitão-tenente, Moss combateu a revolução, baseado em São Sebastião, no litoral paulista. Ele e seus companheiros de aviação participaram de vários ataques às posições paulistas do vale do Paraíba. Na fase final do conflito, foi preso pela primeira vez, acusado de simpatizar com a causa rebelde. Permaneceu dez dias num presídio no subúrbio carioca do Méier e outro tanto no navio Pedro I, ancorado na baía de Guanabara. Nove anos mais tarde, deixou a Marinha para integrar a

recém-criada Força Aérea Brasileira. Na frente de batalha de 1932, o capitão Denys enfrentou os paulistas sob o comando do coronel João Guedes da Fontoura, entre as serras da Bocaina e Mantiqueira, no médio vale do Paraíba. Após a rendição dos rebeldes, em outubro de 1932, ele continuou no 2º Regimento de Infantaria. Já Heck participou das operações navais realizadas no litoral paulista. Em dezembro do mesmo ano, foi nomeado ajudante de ordens do chefe do Estado-Maior da Armada (EMA). Denys simpatizava com Getulio, tanto que não assinou o manifesto dos generais que pediram a cabeça do presidente em agosto de 1954. Depois do suicídio do presidente, foi encarregado de manter a ordem na capital, impedindo depredações, principalmente na embaixada norte-americana e no Ministério da Aeronáutica, alvos principais da indignação popular. Ao ser nomeado para o Ministério da Guerra do novo governo, o general Henrique Teixeira Lott elogiou sua conduta e manteve-o no comando da Zona Militar Leste, que cuidava da capital do país, o Rio de Janeiro. Heck, ao contrário, meteu-se até o pescoço na conspiração antigetulista. Em outubro de 1955, assumiu o comando do cruzador Tamandaré, respondendo diretamente ao vice-almirante Carlos Pena Boto — um anticomunista radical e dos mais destacados opositores de Juscelino e Goulart dentro dos círculos militares. A tensão reinante entre partidários e adversários da investidura de JK transformou-se em conflito aberto em novembro de 1955. Na noite do dia 10, depois que o presidente Carlos Luz deu um chá de cadeira em Lott, o ministro da Guerra, Denys foi para sua residência oficial e ali obteve o respaldo de todos os generais comandantes de tropas na capital da República para o ministro, contra o presidente. Em seguida, telefonou para Lott, que foi para seu gabinete, desfechando, na madrugada do dia 11, o contragolpe que asseguraria a posse de Juscelino e destituiria Carlos Luz. Preocupado com os acontecimentos, o almirante Pena Boto pôs os navios da esquadra em prontidão. Heck recebeu ordens de colocar o Tamandaré em condições de zarpar, caso fosse necessário. Às nove da manhã, o barco partia

rumo a Santos, com parte da cúpula do governo a bordo, mais Carlos Lacerda, o principal arauto daquele grupo. O fato de ter sido um integrante da facção derrotada não impediu que Heck continuasse no comando do Tamandaré até o início de fevereiro de 1956, logo após a posse de Juscelino. Crítico severo do governo JK, envolveu-se em várias conspirações contra o presidente, perdendo algumas promoções. Em janeiro de 1957, ao lado de alguns oficiais da armada, planejou prender o presidente a bordo do cruzador Barroso, durante viagem que JK faria do Rio a Santos e em cujo transcurso deveria ser homenageado pela Marinha. Mas a falta de apoio de outros oficiais levou o plano ao fracasso. Inconformado, Heck lançou um manifesto à nação no qual responsabilizava aqueles que se recusaram a participar da conspiração pelo “triste espetáculo” da homenagem a Juscelino. Depois dessas declarações, foi punido pelo governo com cinco dias de prisão a bordo de um navio. Tendo pedido passagem para a reserva ao deixar a ativa, Heck foi duplamente promovido a contra-almirante e a vice-almirante em fevereiro de 1959. Em setembro, recebeu mais dez dias de prisão por declarações contrárias ao governo. Diferentemente de Denys e Heck, Moss não teve participação visível nesses episódios. Após o suicídio de Vargas e a posse de João Café Filho na Presidência, passou a chefiar a Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. Em fevereiro de 1955, ganhou a patente de brigadeiro e pouco depois assumiu o Estado-Maior da Aeronáutica interinamente. No início do governo Kubitschek, assumiu um dos mais importantes órgãos da Aeronáutica, o Comando do Transporte Aéreo, renunciando em 1957 por divergir do brigadeiro Francisco Correia de Melo, recém- empossado no Ministério da Aeronáutica. Durante a campanha eleitoral de 1960, a Cruzada Democrática de Cordeiro de Farias trabalhou para Jânio, enquanto os mais ligados ao movimento de 11 de novembro estavam à frente dos escritórios de Lott. Lott saiu para ser candidato e deixou Denys como ministro da Guerra de Juscelino. Ao assumir o ministério, facilitado pela neutralidade de Juscelino,

Denys começou a aplicar sanções disciplinares aos oficiais empenhados na luta eleitoral. No entanto, ao compor seu gabinete, deu preferência à turma da Cruzada Democrática, fazendo do general Orlando Geisel, irmão de Ernesto, seu chefe de gabinete. Desse modo, as medidas punitivas só atingiam os partidários de Lott, que viam nesse comportamento uma mudança radical nas posições de Denys, provavelmente já persuadido da inevitável vitória de Jânio. Terminada a apuração, o grupo da Cruzada imaginou que Denys seria substituído e pressionou em favor do próprio Cordeiro. O novo presidente não tinha nenhum interesse no esquema militar, que foi estruturado por Pedroso Horta. Cordeiro de Farias tornou-se o chefe do EMFA; Sílvio Heck ficou com a Marinha, por sugestão de Carlos Lacerda, e indicou Grün Moss para a Aeronáutica. Denys foi mantido na pasta da Guerra. Depois de agradecerem a presença de Mazzilli, de modo cortês, Denys muda o tom da conversa: “Este é um diálogo entre homens com cada vez mais responsabilidade”.3 De forma pausada, o ministro da Guerra informa que Jânio Quadros deixou o poder, alertando também que a sucessão deveria ocorrer ainda naquele dia, nas próximas horas. Odílio Denys argumenta que o fato de Jango não estar no país “era realmente muito favorável, para que não houvesse as dificuldades que, com a presença dele, estariam fatalmente criadas para o dispositivo da sucessão”. Mazzilli leva um choque, mas mantém as aparências. Pergunta se eles podiam informar o real motivo da renúncia de Jânio. Os três entreolham-se, e Denys, mais uma vez, toma a dianteira, respondendo com firmeza: “Temperamento”. Diante da lacônica resposta, o presidente da Câmara indaga se podiam dar alguma informação sobre a situação geral e a segurança nacional naquele momento — dado fundamental para a conversa com líderes dos partidos que planeja ter logo depois de sair dali. Denys tranquiliza-o, afirmando que está tudo absolutamente calmo em todo o território nacional. E mais: eles já haviam acionado os dispositivos de segurança para a perfeita manutenção da ordem.

Mazzilli se diz então pronto a cumprir seu dever constitucional, substituindo, eventualmente, o presidente da República, mas lembra que desde a véspera a área política está apreensiva. A conversa está chegando ao fim, quando o almirante Heck resolveu complementar as informações de Denys, dizendo: “O presidente deixou o governo em nossas mãos”.4 Foi nesse momento que Mazzilli ficou sabendo que havia um documento de renúncia, que seria encaminhado ao Congresso Nacional por Pedroso Horta. Logo depois, o deputado pediu licença e foi para casa, onde Alkmin o aguardava. Lá relatou a conversa em detalhes. Alkmin voltou ao Congresso e convocou os líderes partidários para uma reunião urgente com o presidente da Câmara. De volta a seu gabinete, ouviu pelo sistema de alto-falantes o anúncio da renúncia e de sua posse às 17hl5. Pouco depois, recebeu um telefonema: os ministros militares o aguardavam no Palácio do Planalto. Passou a mão no telefone e ligou para Denys, pedindo autorização para indicar um novo chefe do gabinete militar, já que o general Pedro Geraldo pedira demissão. O pedido é atendido na hora. Gaúcho de Bento Gonçalves, Ernesto Geisel, 53 anos recém-completados — nascera em 3 de agosto —, participara da Revolução de 1930 como primeiro-tenente, comandando por dois meses uma bateria do Destacamento Miguel Costa, que se deslocou do Rio Grande do Sul para São Paulo, na vanguarda das forças revolucionárias gaúchas hostis ao governo de Washington Luís. No ano seguinte, comandara sua bateria no levante do 21º Batalhão de Caçadores em Recife e dos constitucionalistas paulistas em 1932. Três anos mais tarde, ajudara a debelar o levante do Campo dos Afonsos, no Rio, parte da Intentona Comunista. Excelente aluno já no tempo da Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro, formara-se em primeiro lugar na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais em 1938 e ingressara na Escola do Estado-Maior do Exército em 1945, como major. Fizera um rápido estágio em Fort Leavenworth, nos Estados Unidos e, na volta, fora chefe da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional, adido militar no Uruguai e adjunto do EMFA.

No governo Juscelino, Ernesto Geisel atuara como chefe da Seção de Informações do Estado-Maior do Exército e como representante do Ministério da Guerra no Conselho Nacional de Petróleo. Com Jânio Quadros, fora nomeado comandante militar de Brasília. Desde 1952, Ernesto Geisel era membro permanente da organização que fazia a cabeça das mais altas patentes brasileiras: a Escola Superior de Guerra (ESG). Consequência direta do contato entre militares brasileiros e norteamericanos e efeito das exigências e alianças resultantes da Segunda Guerra, a ESG não era, no entanto, mera cópia do National War College ianque, fundado em 1946, que lhe serviu de modelo. A comissão encarregada de elaborar seu anteprojeto fora liderada pelo general Cordeiro de Farias, que a comandara até 1952. Entre os princípios da ESG, havia um que sobressaía: a segurança nacional, que já era preconizada por Alberto Torres de Oliveira e Góes Monteiro. Oficiais norte-americanos das três armas atuaram como assessores do diretor da ESG, mas o general Cordeiro de Farias sempre procurou desqualificar a influência do trio, dizendo que o da Marinha tinha sido ferido doze vezes e ficara neurótico, o do Exército era muito fraco e só o da Aeronáutica dava bons palpites. O primeiro documento oficial da ESG já ressaltava as diferenças com seu modelo: Afasta-se a Escola Superior de Guerra de sua similar norte-americana. Esta, agindo em um meio mais desenvolvido, em que o sistema educacional que formou as elites se encarregou de lhes inculcar um método de trabalho e de solução de problemas gerais já consagrado na vida nacional, não tem necessidade de voltar a percutir esse ponto e se orienta no sentido da ampliação do campo de conhecimentos e sua imediata aplicação na guerra. A Escola proposta no Brasil encontra ambiente diverso: aqui é tão permanente o problema da preparação para a guerra; lutamos ainda para resolver o problema da vida nacional em tempo de paz; por outro lado, reconhecemos que nosso atraso é motivado, sobretudo, pelo defeito do sistema educacional, que habilita as elites com conhecimentos gerais, mas não as Armas com recursos para resolver os problemas da vida nacional. A Escola Superior de Guerra visa, principalmente nos estudos dos problemas nacionais e internacionais, preencher

essa lacuna e, complementarmente, ministrar conhecimentos relativos à preparação para a guerra e à conduta de operações combinadas.

Na fase de Cordeiro de Farias, a Escola não pretendia interferir no governo. A ênfase, naquela época, era a segurança externa, que os fundadores acreditavam ser resultado da promoção do desenvolvimento do país. Aos poucos, foi se constituindo um grupo afinado em torno da ideia de que era preciso desenvolver o país, para que a segurança nacional fosse alcançada. Quando Mazzilli chegou ao Planalto, Geisel estava a postos, junto com os três ministros. Filmes e fotos mostram os três seriíssimos ao lado do novo presidente, durante a posse. Minutos depois, Denys, Heck e Moss, que comandavam a orquestra, saíram do Planalto para o gabinete da Guerra com a finalidade de afinar o discurso contra Jango. Enquanto isso, no gabinete presidencial, Mazzilli pedia a ajuda de Ernesto Geisel para redigir o telegrama que comunicaria o ocorrido ao vice-presidente. O chefe do gabinete militar leu o texto e perguntou: “Presidente, o senhor acha necessário mandar este telegrama?”.5 Na manhã de sábado, 26, Mazzilli acordou presidente do Brasil, mas só formalmente. Até para nomear o ministro da Justiça tinha de pedir autorização — e o trio ainda fez questão de dizer que as nomeações deveriam parar por aí. Mazzilli recusou o pedido de renúncia do ministro da Fazenda, Clemente Mariani, que não fez muito mais do que decretar um longo feriado bancário. Depois de enviado o telegrama, Denys voltou ao palácio e disse para Mazzilli: Presidente, o senhor tem toda a nossa confiança e o nosso apoio. Infelizmente nós não podemos dar esse apoio, nem temos confiança no senhor João Goulart. É da mais absoluta inconveniência a volta dele ao país.6

O presidente interino pediu explicações: O senhor poderia me dar algumas informações sobre essa inconveniência. Eu estou aqui para cumprir um dever muito penoso, mas quero cumpri-lo qualquer que seja o

incômodo. Entretanto, gostaria também de dispor de algumas informações sobre essa inconveniência, porque quero avaliar até onde ela realmente colide com a situação de expectativa de o vice-presidente assumir.

O grandalhão da Guerra não gostou do que ouviu e retrucou: Nós não concordamos com a vinda do senhor João Goulart para assumir a Presidência da República. Nós dispomos de farta documentação sobre as atividades subversivas dele no país.7

8 Lamentável mal-entendido

25 DE AGOSTO DE 1961, fim de tarde, Cinelândia, centro do Rio de Janeiro. Junto ao busto de Getulio, uma pequena multidão, aos brados, pede a volta de Jânio Quadros ao poder. Em seguida, tenta invadir, sem sucesso, o imponente prédio da embaixada dos Estados Unidos, na avenida Presidente Wilson. Alguém apanha uma pedra, e em poucos minutos quinze vidraças são destruídas. A polícia dispersa a massa com violência e interdita o quarteirão. No mesmo horário, alguns tanques do Exército cruzam a avenida Rio Branco. A crise se instaura no coração do país; embora Brasília tivesse sido inaugurada havia mais de um ano, para a opinião pública, o Rio de Janeiro continuava a ser a capital do Brasil. Logo após receber do ministro Pedroso Horta a lacônica comunicação da renúncia, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, cancelou o passeio que faria no fim de semana a Brocoió e tomou as primeiras providências: mandou para casa as 500 crianças da escola Anne Frank — que instalara na antiga casa da guarda do palácio —, dispensou todos os funcionários, despachou os filhos para outro local, reuniu os secretários e avisou aos jornalistas para ficarem no pátio interno até segunda ordem. Em seguida, mandou fechar os portões e determinou: “Que só entrem as autoridades!”. Num comunicado, o homem que acusara o presidente de planejar um golpe classificou sua renúncia de “lamentável e não desejada por ninguém”. Disse que era preciso garantir a liberdade e o regime democrático e pediu ao povo que não desse crédito a boatos nem servisse de instrumento de agitações,

que seriam reprimidas pela lei. Duas horas mais tarde, a turma do pátio recebeu cópias de seu telegrama de apoio ao presidente em exercício, Ranieri Mazzilli, no qual garantia a manutenção da ordem na Guanabara. O teor do documento fora discutido com o ministro da Guerra, Odílio Denys, por telefone. Além dos secretários, estavam em seu gabinete o governador do Rio Grande do Norte, Aluízio Alves (ex-diretor da Tribuna da Imprensa), o general Alencastro Guimarães e vários deputados cariocas. De acordo com o colunista social Ibrahim Sued, de O Globo, Lacerda teria feito o seguinte comentário diante de seus interlocutores: “A mim só uma coisa interessa: a legalidade do regime, mesmo com Jango Goulart. A obediência à Constituição do país é a minha bandeira”.1 Por volta das nove da noite, chegou a notícia de que a Tribuna, O Globo e o Diário de Notícias estavam sendo depredados. Diante do jornal do governador, a multidão ameaçava e gritava: “Fora Lacerda! Viva Jânio! Abaixo o Corvo!”. Do lado de dentro, os novatos, nervosos e excitados eram tranquilizados pelos jornalistas mais antigos, habituados aos constantes ataques à Tribuna. Soldados da Polícia Militar atiraram para o alto e dispersaram os manifestantes, que retornaram pouco depois em maior número, sendo repelidos a pauladas pelos empregados do jornal. Para coibir os protestos, 16 mil homens comandados pelo capitão Jorge Alfonsus, chefe do Policiamento Ostensivo da Guanabara, foram para as ruas, com ordem de guarnecer pontos-chave, como a adutora do Guandu, a estação da Central do Brasil, barcas, aeroportos, embaixadas e edifícios públicos. Exército, Marinha e Aeronáutica, Polícia Civil e Militar, Vigilância e Guarda Civil também entraram em prontidão. A confusão aumentou: às dez e meia da noite, oito pessoas foram presas na avenida 13 de Maio e nas escadarias do Teatro Municipal. Houve troca de tiros e explosões de bombas de gás lacrimogêneo. Noite adentro, os protestos agitaram a Cinelândia e o largo da Carioca, sempre dispersados pela polícia com gás e cassetetes. Também às 22h30, Pedroso Horta iniciou seu pronunciamento pela TV

Record, de São Paulo. Pouco antes da meia-noite, o investigador Hélio Guaíba Nunes, da Delegacia de Vigilância, pediu à Rádio Jornal do Brasil que não transmitisse o discurso de Horta, considerado arbitrário. Nunes disse que agia por “ordens superiores”. A Rádio Guanabara ignorou apelos e ordens e transmitiu o pronunciamento, até as válvulas de seus retransmissores no bairro de Bonsucesso serem quebradas por policiais. A emissora passou a noite fora do ar e só voltaria a transmitir na manhã de sábado, 26, apresentando uma entrevista com o governador. Lacerda classificou o episódio de “um lamentável mal-entendido” e tentou justificar-se dizendo que era impróprio que “tais informações contraditórias e por vezes falsas, rumores, boatos, intrigas e calúnias viessem a público”. E saiu-se com esta pérola: “Não é o momento de os políticos falarem — só os órgãos responsáveis pela segurança nacional: o Exército, a Marinha e a Aeronáutica”.2 No sábado pela manhã, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Herbert Moses, foi à polícia central pedir o relaxamento da prisão de Fragmon Carlos Borges, do jornal comunista Novos Rumos, detido durante a madrugada. À tarde, um manifesto agitou as redações. Era endereçado “aos meus camaradas das Forças Armadas” e dizia o seguinte: Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do sr. ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, manifestada ao representante do governo do Rio Grande do Sul, deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual presidente da República, sr. João Goulart, entre no exercício de sua função e, ainda, de detê-lo no momento em que pise em território nacional. Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades militares, mantenho compromissos de honra com a minha classe, com a minha pátria e com as instituições democráticas e constitucionais. E por isso sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à nação. Dentro dessa orientação, conclamo todas as forças vivas no país, as forças da produção e do pensamento, os estudantes e intelectuais, os operários e o povo em geral para tomar posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição

e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo ainda de que meus nobres camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam a sua história nos destinos da pátria.3

O peso do documento estava na assinatura. Aos 66 anos, seu autor era um paradigma para as Forças Armadas. Alto, empertigado, pele clara, olhos azuis, testa alta, que a falta de cabelos ampliava, Henrique Batista Duffles Teixeira Lott carregava no biotipo a ascendência inglesa que o sobrenome atestava. Em 56 anos de vida militar, construíra reputação de um soldado a serviço da legalidade. Seis anos antes, fora a peça decisiva no movimento que destituiu o presidente em exercício para assegurar a posse do escolhido nas urnas. Ao ser procurado por jornalistas, ainda no dia 25, dissera que só havia uma coisa a fazer — cumprir a Constituição. Filho do pequeno industrial Henrique Matthew Lott e da professora primária Maria Batista Duffles Teixeira Lott, nascera na cidadezinha mineira de Sítio, no dia 16 de novembro de 1894. Até os dez anos, estudara em Barbacena, no Ginásio Mineiro, e, quando a família se mudara para o Rio de Janeiro, ingressara como interno no Colégio Militar, seguindo a tradição familiar: seu bisavô e avô do lado paterno haviam pertencido ao exército inglês. Aluno aplicado, foi sempre o primeiro da turma. Participou de operações na Guerra do Contestado e lutou ao lado dos legalistas na revolta de 5 de julho de 1924. Quando irrompeu a Revolução de 1930, era instrutor da Escola Militar de Realengo e tinha um batalhão sob seu comando, mas já estava convicto de que o dever dos militares era garantir o poder constituído. Por isso, opôs-se ao levante e pediu demissão do cargo Estudou na Escola Superior de Guerra de Paris e em Fort Leavenworth, nos Estados Unidos, antes de ser nomeado subchefe da comissão que organizou a Força Expedicionária Brasileira (FEB), enviada para lutar na Itália ao lado dos Aliados. Da guerra mesmo, pouco participou: passou apenas um mês no front — e sem função. Estava no comando da divisão de infantaria sediada em Santa Maria, Rio Grande do Sul, quando Vargas caiu, em 1945, com seu apoio tácito. No

governo Dutra, foi subchefe do Estado-Maior do Exército e adido militar em Washington. Retornou ao Brasil, e Café Filho, quando assumiu a Presidência, com o suicídio de Getulio, entregou-lhe o Ministério da Guerra. Em novembro de 1955, com a decisiva ajuda do general Odílio Denys, deu o golpe preventivo que assegurou a posse de Juscelino e Jango. No governo JK, foi mantido na pasta da Guerra. Transferido para a reserva remunerada no posto de marechal, deixara o ministério para ser o candidato presidencial da coligação PSD-PTB, com Jango de vice. Derrotado por Jânio, continuava a ser uma referência para o grupo nacionalista do Exército e para boa parte do espectro político. Assim, quando a notícia da renúncia chegou ao Rio, seu apartamento virara um quartelgeneral. Para lá se dirigiram companheiros de armas, nacionalistas, democratas civis, jornalistas e simples eleitores. Todos queriam ouvir a opinião, os conselhos e as previsões de Lott. Na manhã de sábado, fora procurado pelo deputado Armando Falcão. O líder do PSD, falando em nome do presidente Mazzilli, procurara mostrar que a posse de Jango era inconveniente e pedira o apoio de Lott ao veto dos ministros militares a Jango. Em suas memórias,4 Falcão assegura que o marechal não contestou seus argumentos e teria autorizado o deputado a redigir uma minuta de declaração no sentido proposto. O parlamentar deixou o apartamento para escrever o documento, enquanto o deputado Rui Ramos, do PTB gaúcho, relatou a Lott o encontro dele com o ministro da Guerra no Palácio do Planalto. Ao deputado e a Bocaiúva Cunha Ramos, Denys foi taxativo: “Diga ao Brizola que em hipótese alguma o Jango toma posse!”. Às onze da manhã, Brizola conversou com o marechal por telefone e informou que o Rio Grande do Sul estava pronto a resistir ao golpe. Antes de manifestar-se publicamente, Lott telefonou a Denys para tentar convencê-lo de que não havia base legal para o veto. Do outro lado da linha, Denys repetia sempre a mesma frase, como um mantra: “Estou ouvindo, estou ouvindo, estou ouvindo”.5 Os dois militares tinham sido amigos e vizinhos de prédio, mas suas

relações esfriaram quando o segundo assumiu o ministério e substituiu diversos comandantes militares. Quando Armando Falcão voltou com o rascunho do manifesto contra a posse, Lott lhe disse que ia se manifestar, sim, mas a favor de Jango. O líder do PSD atribui tal resolução ao resultado “da pressão e do cerco de militares esquerdistas em cima do velho chefe”. E, realmente, os generais nacionalistas tinham bom trânsito com o ex-ministro. Para verificar com que forças poderiam contar, Lott e os generais Osvino Alves, Nelson de Melo e Jair Dantas fizeram um balanço da situação. Constataram que as Forças Armadas estavam divididas, mas era difícil precisar o poderio de cada lado. Uma coisa era certa, na visão do grupo: os ministros militares estavam agindo fora da lei, e só havia um caminho, como resumia o próprio marechal: “Era preferível o Congresso resistir a tão absurda imposição e ser fechado pela força das armas, porque cairia de pé e teria a seu lado a solidariedade de todos os brasileiros”.6 Ciente da retaliação, Lott esperou calmamente o desenlace em sua casa. No início da madrugada de domingo, um forte aparato militar, com tropas de choque da Polícia Militar, dezenas de agentes da Divisão de Polícia Política e Social e soldados armados de metralhadoras cercaram a rua Dias da Rocha, em Copacabana. Às três da madrugada, o filho do marechal acordou- o. Pouco antes, o coronel Ardovino Barbosa, chefe do Policiamento Ostensivo da Guanabara, terno tropical azul e Colt 45 na cintura, estivera lá para dizer que Lott seria preso. Antes de sair, Ardovino ainda avisou ao major Duffles: “Volto mais tarde para arrombar esta porta”.7 Perto das cinco da manhã, agentes da Polícia Política e Social arrombaram outra porta — a do número 108 da rua 19 de Fevereiro, em Botafogo, onde morava Luiz Carlos Prestes. Todos dormiam na casa. A polícia cortou o fio do telefone, impedindo que a filha do líder comunista, Anita Leocádia, telefonasse para os jornais. Foram presos o faxineiro Carlos Alberto Gomes da Silva e o porteiro Raimundo da Silva. Prestes não estava lá. Praticamente no mesmo horário, um princípio de pânico agitou o Palácio Guanabara: o governador sumira! Pelo menos, foi o que concluíram seus

assessores, ao acordar de um cochilo. Os oficiais de gabinete começaram a vasculhar o palácio, preocupados, mas seus dois ajudantes de ordem finalmente encontraram Lacerda, insone, dando uma volta pelo jardim. No começo da noite, já houvera algum tumulto no palácio, por causa de uma série de estampidos. Pensou-se que eram rajadas de metralhadora, mas logo se viu que eram fogos de artifício no campo do Fluminense, no jogo de juvenis entre Botafogo e América. Ao retornarem a Copacabana, pouco antes das cinco da manhã, o coronel Ardovino e seus homens não precisaram disparar um só tiro nem arrombar porta alguma. Mas tiveram seu instante de glória, ao flagrarem vários oficiais num jipe. Cercados por soldados armados com metralhadoras, o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, o tenente-coronel-aviador Pamplona e o major Correia Lima foram presos. O quarto ocupante do jipe, o capitão Niepcer, conseguiu escapar. A etiqueta militar determina que um oficial só pode receber ordem de prisão de alguém da mesma patente. Como não havia um marechal disponível, o coronel Ardovino levou consigo um general — e da reserva. Horácio de Oliveira Sucupira bateu no apartamento 1.003 e informou a Lott que ele estava preso, a mando do ministro Denys, pedindo que o acompanhasse ao Ministério da Guerra. Sem demonstrar contrariedade, Lott convidou-o a entrar. Terminou a ginástica calistênica que fazia todas as manhãs, colocou um terno tropical cinza-claro, de risca de giz, tomou um café e avisou que estava pronto. A seus familiares, surpresos por vê-lo à paisana, explicou: “Estou habituado a vestir uniforme limpo, e a farda do Exército nestes dias está enodoada”.8 Naquele momento, pelo sistema de rádio que interligava os quartéis, o III Exército, em Porto Alegre, recebia a seguinte mensagem: Elementos comunistas Congresso estão perturbando encontro solução legal crise decorrente renúncia presidente. Marechal Lott envolvido por tais agitadores lançou manifesto subversivo forçando ministro Guerra determinar sua prisão. Ministro pretende defender instituições e manter a lei e ordem em todo o país mesmo que para isso tenha que impedir posse Jango. Conveniente chamar e reter qualquer

pretexto cmt 3 DI e 1 DC Palegre.9

Às 7h15 de domingo, diante de populares, repórteres e fotógrafos, o marechal Lott entrou no Chevrolet preto, placa 9-81-79. Havia muita gente na rua, em silêncio. De repente, alguém começou a cantar o Hino Nacional, seguido em coro pelos que assistiam à cena. Alguns acenaram com lenços brancos, e das janelas próximas soaram aplausos. Seguido por jornalistas, Lott e seus captores levaram vinte minutos até o Ministério da Guerra. Lá estavam o marechal Mascarenhas de Morais, os generais Nestor Souto de Oliveira, Emílio Rodrigues Ribas e Aurélio de Lira Tavares. Diante dos colegas, Lott condenou o flagrante descumprimento de dispositivos legais e militares, inclusive o desrespeito a um direito comum dos cidadãos — a inviolabilidade do lar. Disse também que não compreendia como um marechal poderia ser recolhido a uma fortaleza comandada por um major. O general Nestor Souto explicou que para lá havia transferido o comandante da Artilharia de Costa. Lott replicou que era posto de patente inferior à sua. Cansado das réplicas e tréplicas, simplesmente desistiu: “A palavra ‘direito’ está proscrita”. Mascarenhas reiterou que, por ordem do ministro Denys, ele seria levado para a Fortaleza de Laje e ponto final. Construída em 1642, na entrada da baía de Guanabara, para enfrentar a ameaça holandesa nos mares do sul, a fortaleza fora utilizada por quase um século como presídio, onde ficaram encarceradas centenas de pessoas, entre elas o poeta Olavo Bilac; o patriarca da Independência, José Bonifácio; Rafael Tobias de Aguiar, um dos destacados chefes liberais da primeira metade do século XIX; e o líder da Revolta da Armada, Sílvio Honório de Macedo — fuzilado no local por ordem de Floriano Peixoto. Outros militares já tinham sido detidos ou seriam presos naquele final de semana. O ex-ajudante de ordens de Lott, capitão William Stockler Pinto, ficou incomunicável num navio de guerra, à disposição do chefe do EstadoMaior da Armada, a partir da noite de sábado, dia 26. Na manhã de

domingo, os majores Frederico Augusto Ferreira e Sousa e Correia Lima, o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório e Fernando Risque, além do tenente-coronel-aviador Pamplona, do tenente-coronel Antônio Joaquim Figueiredo, do almirante Silva Júnior e do brigadeiro Francisco Teixeira, foram levados para navios de guerra. O quartel-general das operações secretas ficava na esquina da avenida Presidente Vargas com a rua Uruguaiana, no centro do Rio, sobre uma loja que acabou batizando aquela central de arapongagem: a Casa da Borracha. Ali funcionava o Serviço Federal de Informações e Contrainformação, o Sfici. Criado em 1946, portanto antes da CIA, o organismo fora vitaminado por Juscelino Kubitschek. Jânio indicou o coronel Golbery do Couto e Silva para comandá-lo e passou a ler com satisfação os relatórios semanais do militar. A renúncia de Jânio e a perspectiva da posse de Jango transformaram a Casa da Borracha num acampamento militar, com direito a camas de campanha, rede de escuta telefônica e a coordenação da censura. O manifesto do marechal foi censurado ao vivo: a Rádio Continental teve sua programação interrompida à meia-noite e vinte de domingo, quando o locutor Perez Júnior lia, por telefone, direto da casa de Lott, os termos de seu pronunciamento. Pela manhã, a rádio voltou ao ar, sob um compromisso: o de “não tratar de assuntos políticos alarmantes”. A censura fora estabelecida pelos militares, mas o governador que começara a vida como jornalista não fez um só movimento para impedi-la. Ao contrário, foi o primeiro a cercear a liberdade de imprensa, impedindo que os cariocas acompanhassem o pronunciamento de Horta. O general Golbery do Couto e Silva, secretário do Conselho de Segurança Nacional, designou cinco majores, chefiados pelo tenente--coronel Otávio Alves Velho, para cuidarem da censura. Mas era muito trabalho para pouca gente, e o Serviço de Censura e Diversões Públicas da Secretaria de Segurança da Guanabara passou a operar a tesoura também. No seu comando, um paraibano de 46 anos, bem relacionado entre escritores e intelectuais, cuja carreira se encerraria junto com aquela crise. Quando Jânio renunciou, Ascendino Leite era diretor de redação do Diário

de Notícias e do Serviço de Censura e Diversões Públicas da Secretaria de Segurança Pública, que cuidava de filmes e espetáculos. Nascido em Conceição, às margens do rio Piancó, na Paraíba, foi para João Pessoa estudar no Liceu Paraibano (não terminou o colegial). Aos 18 anos, um professor de francês arranjou-lhe um emprego de revisor no jornal A União, mantido pelo governo do estado, onde Ascendino passou a repórter, redator e redator-chefe. Em 1936, casou-se com Maria Rosa Franca Leite, que conheceu durante uma novena. No ano seguinte, com seu colega e amigo José Leal, lançou a Gazeta da Paraíba, vespertino que circulou três meses até ser fechado, por ordem do general Newton Cavalcante, comandante do IV Exército. Em 1938, foi para o Rio, onde trabalhou na Revista da Semana e na Cena Muda. Passou só seis meses na capital federal: uma gripe muito forte provocou um acidente vascular em seu olho, e ele retornou a João Pessoa. Assumiu a direção de A União, mas enfrentou a hostilidade do interventor nomeado por Vargas, Argemiro de Figueiredo. Com um emprego de escriturário garantido por um deputado, voltou ao Rio. O emprego público assegurava parte da sobrevivência: trabalhou no Departamento de Admistração do Serviço Público e no Ministério da Educação e Cultura, onde foi colega de Anísio Teixeira, Murilo Braga e Darcy Ribeiro. O jornalismo complementava o orçamento, mas seu sonho era a literatura. Sua poesia foi elogiada por nomes como Antônio Olinto, e desde 1938 mantinha um diário repleto de observações filosóficas, pequenas crônicas, crítica de livros, que mais tarde transformaria num jornal literário. Como jornalista, atuou em A Manhã e A Vanguarda — onde fez crítica de teatro — até ser contratado pela Folha da Manhã (mais tarde, Folha de S. Paulo), cuja sucursal dirigiu por doze anos. Em seguida, foi para o Diário Carioca como redator-chefe. Nessa época, lançou, com grande repercussão, seu romance de estreia, A viúva branca. Em relação à política, tinha ojeriza a Getulio Vargas (“ele foi o pior ditador que o país teve, muito pior que os militares de 1964”) e se opunha aos comunistas. Eleitor de Lacerda, que conheceu nos anos 1940, na cobertura da

Câmara dos Deputados, foi nomeado diretor da Censura de Diversões, a pedido do general Syzeno Sarmento, de quem também era amigo. Quando a crise se instalou, o comandante da 1ª Região Militar, general Nestor Souto, mandou chamá-lo. Ascendino disse ao militar que a censura era ilegal, já que o Congresso não fora fechado nem havia sido decretado o estado de sítio, mas não se recusou a fazer sua parte nem pediu demissão. Subordinado ao Exército, o Serviço de Censura de Diversões Públicas foi encarregado de controlar as emissoras de rádio e televisão da Guanabara. No dia 27 de agosto, Ascendino negou a O Globo que tivesse tido qualquer participação na apreensão do jornal comunista Novos Rumos e dos matutinos de domingo que traziam o manifesto do marechal Lott. Anunciou ainda que havia entregado a João Dantas, diretor do Diário de Notícias, sua renúncia do cargo de redator-chefe, “por considerar incompatível a condição de autoridade pública com a função jornalística”, acrescentando que iria afastar-se definitivamente da imprensa, “a fim de dedicar-se melhor às funções públicas”. No Diário, alguns jornalistas disseram que, dez minutos antes de o prédio ser invadido por policiais civis e militares, Ascendino telefonara perguntando se a redação recebera o manifesto de Lott — a polícia ocupou também o Diário Carioca. Em entrevista ao jornalista Arlindo Almeida, Ascendino negou a acusação: Não tive nada a ver com a invasão do Diário de Notícias, rigorosamente nada. A invasão ao jornal foi obra dos militares, uma decisão dos oficiais do Exército. Para mim, a censura era ilegal. Todos os jornais da época sabiam que eu não mandei invadir coisa nenhuma.10

Com ou sem a participação de Ascendino, o Jornal do Brasil, o Diário Carioca, a Gazeta de Notícias, o Correio da Manhã e O Dia tiveram parte de sua circulação apreendida na manhã de domingo, por causa do manifesto. As redações dos jornais que publicaram o texto assinado por Lott ficaram sob a vigilância de um censor, com direito a radiopatrulha na porta de cada prédio.

Os censores queriam que se veiculassem apenas as notas fornecidas pela Agência Nacional, segundo as quais reinava a mais absoluta ordem na Guanabara e em todo o Brasil. Boa parte da imprensa tentou resistir, manifestar algum tipo de protesto. A partir do domingo, a Rádio Jornal do Brasil suspendeu todos os seus informativos, passando a transmitir apenas música. O jornalista Clóvis Paiva, do Departamento dos Jornais Falados do JB, declarou: “Há absoluta impossibilidade de apresentar bons programas, que sejam realmente informativos e que registrem fatos de veracidade comprovada”. A tentativa de mascarar a realidade incluiu a divulgação de notícias falsas. O Conselho Nacional de Telecomunicações (CNT), entidade ligada à Presidência da República, transformou a declaração de Fidel Castro conclamando os brasileiros a pegarem em armas em oferta de tropas para ajudar Brizola. E ainda anunciou a nomeação (fictícia, evidentemente) de Prestes como comandante em chefe da Brigada Militar do Rio Grande do Sul (essas duas mentiras e outras do mesmo quilate seriam demolidas dias depois, em entrevista coletiva, pelo próprio CNT). Durante toda a tarde de segunda-feira, a censura estendeu-se a todas as comunicações radiotelegráficas. As embaixadas sediadas no Rio ficaram sem contato com seus países, até que o decano dos embaixadores, Sanson Balladares, da Nicarágua, recorreu ao Itamaraty. Nos Correios e Telégrafos, telegramas políticos não eram aceitos, e, em muitos locais, os telefones estavam grampeados. Uma manifestação em prol da Legalidade, que reuniu milhares de pessoas na Cinelândia, na tarde do dia 28, foi dispersada pela polícia com tiros de metralhadoras para o alto e bombas de gás lacrimogêneo. Logo aos primeiros disparos, houve correria, pessoas feridas, e o comércio foi obrigado a fechar as portas. Os manifestantes, que arrancaram os bancos dos jardins da Cinelândia e fizeram uma grande fogueira, clamavam pela posse de Jango e concitavam o povo a pegar em armas para defendê-lo. O cerco apertava mais e mais: a União Nacional dos Estudantes, interditada pela Polícia Militar, transferiu sua sede para a Assembleia

Legislativa, enquanto seus dirigentes viajaram para Porto Alegre, para ali instalar a entidade. O coronel Ardovino e o general Syzeno Sarmento empregaram carros e efetivos da polícia da Guanabara contra os sindicatos — foram invadidas as entidades dos metalúrgicos, dos têxteis, dos bancários e dos foguistas da marinha mercante. O número de operários presos chegaria a 600. Entre eles, um dos mais conhecidos sindicalistas, Dante Pelacani, presidente da Federação Nacional dos Gráficos e diretor do Departamento Nacional de Previdência Social. Na noite de segunda, o Correio da Manhã do dia seguinte foi apreendido na boca da expedição. Outros jornais foram retirados dos quiosques e bancas de venda por um verdadeiro batalhão de investigadores à paisana. Batista de Paula, da Última Hora, foi preso, e correu o boato de que o próximo jornalista detido seria Luís Alberto Bahia, redator-chefe do Correio da Manhã, que tentou resistir à censura. (Bahia escapou graças ao habeas corpus preventivo impetrado pelo ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria.) O jornalista e político Mário Martins, diretor do jornal A Noite, usou a experiência acumulada durante o Estado Novo para driblar a tesoura. A primeira providência foi pedir aos censores que assinassem um termo de responsabilidade, sempre que quisessem cortar uma notícia: Como a situação política ainda era incerta, eles, com medo de se expor, limitavam-se a passear pela redação. Além disso, inverti o esquema de distribuição do jornal, come çando a reparti-lo pelo subúrbio e não pelo centro da cidade. Assim, quando a polícia partia para a apreensão de A Noite, a edição já estava praticamente esgotada. [...] Chegamos a vender quase 100 mil exemplares naqueles dias, marca espetacular para um jornal que, meses antes, costumava encalhar nas mãos dos jornaleiros.11

Irritado com a solércia de A Noite, Lacerda mandou a PM invadir o prédio. Na sede da Associação Brasileira de Imprensa, discutiram-se alternativas para tirar a polícia das redações. Um jovem advogado, chamado Marcelo Dória,

apontou a solução: “O caso tem de ser tratado nos Feitos da Fazenda, e não na Ordem Política e Social. Deem-me uma procuração que tiro a polícia de lá. Não adianta entrar na Justiça alegando razões políticas”.12 A tática deu certo. Uma hora depois, uma ordem judicial fez a polícia deixar a redação de A Noite. Mas a tesoura também atingiu em cheio o Jornal do Brasil. No dia 29, o JB não pôde publicar uma palavra sobre a advertência do ministro da Guerra, que via o Brasil numa encruzilhada entre a democracia e o comunismo (notícia que O Globo deu em oito colunas, no alto da primeira página) e saiu com uma manchete enviesada: “Comissão decide em 48 horas impedimento de Goulart”. Por causa da censura, a prisão de Lott também apareceu sem destaque no JB, que mal pôde registrar a decisão do Congresso de interceder junto às Forças Armadas para libertar o marechal. O jornal saiu pelo lado da ironia. Foi ela que temperou a seguinte legenda, ao lado de uma foto que mostrava gente caída na Cinelândia: A polícia, que usou de todos os seus meios de persuasão para dissolver os grupos que se formaram na Cinelândia, desde as 17 horas, julgou necessário disparar tiros para o ar e lançar bombas de gás lacrimogêneo para dispersar o povo, que fugia aos trambolhões em frente ao Cinema Capitólio, onde é exibido o filme A volúpia do poder.13

A última página do “Caderno B” trazia duas grandes fotos: uma de bicheiros na porta de um ponto e de dois PMs diante do jornal e outra de um cartum de Claudius, em que um preocupado cidadão explica-se diante de um policial: “Eu só disse que absurdo era o Olaria vencer o Flu”. Os textos davam um panorama daqueles tempos bicudos: Fortalezas esperam por um dia de fraqueza Com a atenção da polícia voltada para outros assuntos mais importantes, as fortalezas de bicho tiveram seu refresco, voltando a funcionar na base do vigia e do porteiro, calmamente sentados e atentos apenas às senhas.

Canetas importadas a Cr$ 100,00, telefones de barbante e listas antes proibidas também voltaram a circular, e, para quem acompanhou os acontecimentos e soube tirar seus palpites, o dia de ontem foi de sorte, pois deu cavalo, com 812.

A matéria “Para a Apoio defesa é apenas caso pessoal” praticamente transcrevia o folheto distribuído por uma academia, que anunciava cursos de defesa pessoal, briga de rua e vale-tudo. No impresso, os cursos eram apontados como “a contribuição da academia à campanha de defesa e segurança da população da Guanabara”. Outro texto satirizava o assessor de imprensa de Lacerda, Valert Cunto, que reclamou do tumulto em sua sala: eram jornalistas querendo repercutir a renúncia de Jânio, que Cunto ignorava totalmente. A página trazia ainda os perfis do cabo corneteiro Paulo Ferreira dos Anjos e do soldado Jackson Alves da Silva, tocador de requinta, uma espécie de pequena corneta, que passaram seis longas horas diante do prédio do JB com suas carabinas 1908, num “severo plantão contra qualquer coisa”. Mas a melhor tirada aparecia sob o título “Boa notícia é o que passa pelo bom-senso”: O Jornal do Brasil estará recebendo na parte da tarde, durante os dias da crise política, a visita permanente e, segundo opinião do próprio visitante, “muito cortês”, do capitão de fragata Euclides Quandt de Oliveira, encarregado da tarefa de “auxiliar a diretoria da rádio na identificação e seleção das boas e más notícias”, a serem transmitidas pelo seu jornal falado. O capitão de fragata Euclides Quandt de Oliveira, carioca de 44 anos, morador da Gávea, casado e pai de seis filhos, fora antes diretor da Escola de Marinha Mercante de Belém, mas tendo vindo ao Rio para estudar na Escola de Guerra Naval, foi destacado pelo Conselho Nacional de Telecomunicações para passar as tardes “conversando” com a nossa equipe de repórteres. Confessando-se um estreante na tarefa de averiguação de notícias, o capitão de fragata Euclides Quandt de Oliveira diz, modestamente, contar para a execução de sua tarefa apenas com o seu bom-senso. No momento em que surja alguma notícia “que, ao que tudo indique, possa causar alarma e preocupação”, o capitão de fragata,

baseado na lógica e no raciocínio — que diz ter em alta dose na idade que considera “provecta” —, aconselha a não divulgá la. De resto, gostou muito de vir trabalhar no Jornal do Brasil, porque, além de ser especialista em eletrônica na Marinha, sempre ouvia “com prazer” a Rádio Jornal do Brasil, pois gosta de boa música e de boa informação. Pela primeira vez, entretanto, lera com interesse o Jornal do Brasil, no momento em que, por razões alheias à sua vontade, passará também a ser notícia.

No dia seguinte, só circulou o caderno de classificados do Jornal do Brasil. Novos censores, mais rigorosos, estavam a postos, e a redação resolveu apimentar todas as matérias, citando a crise gaúcha em cada um dos textos. Como todo o material acabou vetado, a direção do jornal resolveu imprimir apenas os anúncios. No mesmo dia 29, o Diário de Notícias circulou com toda a sua primeira página em branco. A materialização da censura fez o presidente do Senado, Auro Moura Andrade, pedir a Mazzilli, “enérgicas providências” para que fosse suspensa a censura à imprensa na Guanabara, anexando ao ofício exemplares do jornal mutilado. Na quarta, 30 de agosto, a edição extra de O Globo foi apreendida. Às seis da tarde daquela quarta-feira, diretores dos jornais e revistas mais importantes do país redigiram uma nota que era um soco no estômago do governador: Reunidos no Sindicato de Proprietários de Jornais e Revistas do Estado da Guanabara, os diretores de jornais abaixo assinados comunicam à Sociedade Interamericana de Imprensa que o sr. Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, que em inúmeras oportunidades, como membro da SIP, protestou contra restrições à liberdade de imprensa, impôs, durante vários dias, aos jornais do Rio de Janeiro, ilegal e intolerante censura, além de apreender edições e determinar a interdição de oficinas, o que o incompatibiliza para continuar como membro dessa entidade, campeã da defesa dos ideais democráticos.

Assinavam o documento os diretores dos Diários Associados, Diário de

Notícias, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Última Hora, Manchete, Luta Democrática, O Dia, Gazeta de Notícias, Vida Doméstica, Diário Carioca e A Noite, cujos diretores estavam dispostos a suspender a publicação de seus jornais no dia seguinte. A Tribuna da Imprensa (por razões óbvias) não mandou ninguém à reunião, e O Globo ficou de fora também, alegando que as sanções visavam ao jornalista Lacerda, e não ao governador “a braços com uma das mais sérias crises por que já passou o país e obrigado a manter a ordem pública no Rio de Janeiro nesta fase de profunda intranquilidade”. A reunião na sede do sindicato patronal foi interrompida por um telefonema: o chefe de gabinete de Lacerda, Rafael de Almeida Magalhães, queria ser recebido pelo grupo. Diante dos donos de jornal, transferiu a responsabilidade da censura para o governo federal e explicou que o serviço estadual só entrara no circuito porque a censura era ato “anormalmente estadual e federal”. De todo modo, informou que a redação do jornal A Noite fora desocupada e assegurou que as restrições estavam suspensas. Almeida Magalhães só não encontrou uma resposta para a pergunta do diretor da Última Hora, Paulo Silveira: “E do governo federal, vai haver censura, daqui para a frente?”. No dia seguinte, a Última Hora foi invadida pela polícia civil a mando do secretário da Segurança de Lacerda, general Syzeno Sarmento.

9 Tudo azul em Cumbica

28 DE AGOSTO DE 1961, 11 horas. No Palácio Piratini, em Porto Alegre, o governador olha fixamente para uma pequena luz vermelha à sua frente. Com as mãos entrelaçadas sobre a pequena mesa, começa a falar de improviso: Peço a vossa atenção para a comunicação que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul! Atenção, Brasil! Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção para minhas palavras! Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas! Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais! Tudo em ordem! Tudo em calma! Tudo com serenidade e frieza! Mas mandem as crianças para casa! Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas estaduais, nada há de anormal. Os serviços públicos terão seu início normal, e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, porventura, se verificar no dia de hoje. Hoje, nesta minha alocução, tenho os fatos mais graves a revelar [..].1

O homem que dizia essas palavras nasceu Brizola, mas não Leonel: até um ano e três meses, sua mãe só o chamava de gurizinho. Oniva queria batizá-lo como Itagiba. José, mais conhecido como Beja, não aceitou e, antes que os dois resolvessem o impasse, estava entre os mil homens arregimentados pelo camponês maragato (federalista) Leonel da Rocha para participar da

Revolução de 1923. Beja foi assassinado perto de sua casa, em Cruzinha, pequeno povoado que pertencia ao município de Passo Fundo. O órfão recebeu o nome de Leonel, em homenagem ao líder camponês, e Itagiba, por causa de um irmão mais velho que não resistiu ao parto. Era o caçula entre cinco: Francisca (Quita), Irani, Paraguassu, Frutuoso (Xito) e Leonel de Moura. Todos descendentes dos Brizola que chegaram ao Brasil entre 1700 e 1720, para trabalhar com café e tropas de mulas. Em 24 de fevereiro de 1924, o garoto foi levado pela mãe até Passo Fundo. Na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, seu irmão e sua filha Quita tornaram-se padrinhos de Leonel Itagiba de Moura Brizola, nascido em 22 de janeiro de 1922. O nome era uma dupla homenagem — ao irmão que virara anjo e ao líder maragato ao lado de quem seu pai tinha lutado. Mas, em casa, Leonel Itagiba virou Lelo. Em São Bento, para onde Oniva se mudara depois da morte do marido, Lelo começou a estudar e a frequentar cultos metodistas. Aos 9 anos, o garoto mudou-se para Passo Fundo. Por três anos, foi bom aluno da escola Joaquim Fagundes dos Reis, como atestam suas notas: 9,5 em aritmética; 9 em história; 8,6 em português; 9,3 em ciências; 9,6 em geometria; 8,9 em geografia; 9,7 em “lições de cousas”; 9,2 em moral e cívica. Regular, só em civismo: 7. (Em 1933, foi o segundo melhor aluno, com média 8,9.) Para prosseguir os estudos, mudou para Carazinho, empregando-se no Hotel Scherer, onde lavou pratos, carregou malas e vendeu jornais. Bem em frente, viviam o reverendo Isidoro Pereira e sua esposa Elvira, donos de um colégio. Um dia, segundo diria ele próprio mais tarde, teria batido à porta do casal e pedido para falar com o reverendo: “Eu quero estudar. Tenho uma vaca, e o meu padrinho Otávio vai vender o leite para pagar meus estudos. Além disso, posso fazer alguns trabalhos, como lavar a louça, carregar água e outras coisas”. Na versão de Brizola, impressionado com a decisão, o reverendo teria matriculado o menino de 12 anos e ainda o hospedara. Segundo os irmãos mais velhos, foi Oniva quem ajeitou as coisas para que ele fosse recebido pelo reverendo. De todo modo, Otávio, um negro velho que tirava leite, cortava

madeira e encilhava cavalos na pequena propriedade dos Brizola em São Bento, foi a figura masculina com que mais teve contato nos primeiros anos de vida. Aos 13 anos, com a passagem de segunda classe paga pelo prefeito, tomou o trem para a capital. Lá deveria frequentar a Escola Técnica de Viamão, na vaga reservada à Prefeitura de Carazinho. A vida em Porto Alegre não foi fácil. Dois dias depois de chegar à cidade, soube que a época da matrícula era outra. Ainda assim, resolveu ficar. Sem escola e sem dinheiro, hospedou-se numa casa de negros, que o ajudaram a procurar emprego nos anúncios de jornal. Teve vários empregos menores e, em 1939, diplomou-se como técnico rural no Instituto Agrícola de Viamão. Durante o dia trabalhava como graxeiro numa refinaria de óleo em Gravataí, perto da capital, e à noite cursava o Colégio Júlio de Castilhos, a melhor escola pública da cidade. Em 1945, entrou para a Escola de Engenharia da Universidade do Rio Grande do Sul. Os estudantes estavam divididos em dois grupos. Os chamados Punhos de Renda, partidários do brigadeiro Eduardo Gomes, e os intelectuais do Partido Comunista. Brizola, com mais uns poucos, não se enquadrou em nenhuma das facções. Num final de tarde, viu uma manifestação subindo a avenida João Pessoa em direção ao centro, protestando contra a queda de Vargas. Carregavam cartazes improvisados em pedaços de papelão, em favor da legalização do trabalho e de outras garantias para os trabalhadores. Embora não houvesse um só universitário entre os manifestantes, Brizola achou que finalmente encontrara sua turma. O grupo fazia parte do recém-criado Partido Trabalhista Brasileiro. Daquela passeata em diante, ele aproximou-se cada vez mais do partido, tornando-se o primeiro presidente da Ala Moça do PTB. Em 1947, com 25 anos, conquistou seu primeiro mandato, como deputado estadual constituinte, ficando em 11º lugar no cômputo geral. Na Assembleia, conheceu outra nova liderança do partido — João Goulart. Dois anos mais tarde, engenheiro formado, cabelos crespos em forma à custa de gomalina, bigode bem aparado, conquistou Neusa, a irmã de Jango,

nas reuniões da mocidade trabalhista. Em 1º de março de 1950, casou-se com a moça morena, cuja aparência frágil escondia uma mulher determinada. Na campanha presidencial de 1950, foi um dos coordenadores da candidatura de Getulio no Rio Grande do Sul. No ano seguinte, disputou a Prefeitura de Porto Alegre, sendo derrotado por Ildo Meneguetti, por apenas mil votos.2 Em 1952, foi nomeado secretário de Obras Públicas do governo Ernesto Dornelles, primo de Getulio. Não gostava de gabinete: todo dia vistoriava as obras do Aeroporto Salgado Filho. Brizola desenvolveu um ambicioso projeto para a construção de escolas e projetou uma estrada que cortaria o Rio Grande do Sul de oeste a leste, facilitando o escoamento da produção agrícola pelos portos do estado. Em 1955, chegou à Câmara Federal. Na hora da posse, os deputados, chamados pela mesa ao microfone, deveriam complementar com a expressão “assim prometo” o enunciado de um juramento de fidelidade às leis e à democracia. Ao ouvir o nome de Carlos Lacerda, Brizola pediu uma espinhosa questão de ordem: Ou aceitaremos esse juramento como válido e legítimo, e então o panfletário está enganando o povo lá fora, ou o panfletário está falando a verdade e assistiremos, aqui, consternados, a um juramento falso.

Lacerda nem estava no plenário. No dia seguinte, revidou o ataque. Disse que não cabia aos deputados analisar questões de ordem de nenhum tipo e que por estar fora do plenário só poderia ter tomado conhecimento da fala de seu adversário “por fenômeno espírita.”3 Brizola não se destacou na Câmara, mas, em 1956, elegeu-se afinal prefeito de Porto Alegre, derrotando por larga margem a Frente Democrática, uma coligação entre PSD, UDN e Partido Libertador. Seu programa educacional, baseado no slogan “Nenhuma criança sem escola”, foi um dos eixos da administração, que também priorizou saneamento básico, transporte coletivo e reforma tributária. O saldo de sua administração credenciou-o a disputar o governo do estado

em outubro de 1958. Apoiado pelo PTB, pelo Partido da Representação Popular e pelo PSP, obteve mais de 55% dos votos, derrotando Válter Peracchi Barcelos, candidato da coligação PSD-UDN-PL. Empossado, deu início a uma administração voltada para os problemas econômicos do estado, mas sem descuidar da área social. Crítico radical do capital estrangeiro, propunha a industrialização do Rio Grande do Sul, a partir do capital privado nacional e da intervenção direta do Estado na economia. Criou a Caixa Econômica Estadual, submeteu o Banco do Rio Grande do Sul (Banrisul) ao controle acionário do governo e constituiu, com Paraná e Santa Catarina, o Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BRDE). Na parte social, cumpriu o prometido, construindo 6.302 estabelecimentos de ensino e admitindo 42.153 novos professores. Foi o primeiro a preocuparse com os sem-terra, ensaiando um esboço de reforma agrária na região, quando o governo federal ainda não atinara para o tema. Ajudou a organizar um acampamento de sem-terra à beira de uma rodovia no município de Sarandi e para lá levou jornalistas, militares e religiosos. Na manhã de 25 de agosto de 1961, o governador estava entre os que acompanhavam, debaixo de chuva, as comemorações do Dia do Soldado, no Parque Farroupilha, em Porto Alegre. No meio da cerimônia, o ajudante de ordens aproximou-se do comandante do III Exército e cochichou algo ao ouvido do general Machado Lopes. Carioca, 61 anos, José Machado Lopes fora promovido a general de exército havia apenas três meses e estava no comando do III Exército desde 15 de fevereiro. Em sua longa carreira, fora punido apenas uma vez — e injustamente. Um sargento denunciou-o ao chefe de polícia como participante do levante tenentista de 5 de julho de 1922. Na realidade, ele se opusera ao movimento: Meu grande ato de revolta consistira em atender ao pedido de um grande amigo, verdadeiro irmão de criação, Durval Custódio Nunes, cedendo-lhe umas roupas civis. Sempre critiquei os meus colegas que, comprometidos com a revolução, nada faziam por ela, mas declaravam-se, com grande orgulho, revolucionários e

pacificamente se deixavam prender. Foram esses os que maior proveito tiraram de sua vitória de 1930.4

Transferido contra sua vontade para a 5ª Região Militar, em Curitiba, Machado Lopes cristalizou sua devoção à disciplina e à legalidade: três anos mais tarde, foi preso pelos revoltosos que formariam a Coluna Prestes e, em 1935, combateu o levante comunista no Rio. Filho do comerciante José Lopes e da professora Elisa Machado Lopes, nascera em 13 de maio de 1900, no Rio de Janeiro, e sempre estudara em escolas públicas. Aos 13 anos, perdera o pai e entrara no Colégio Militar de Barbacena, em Minas Gerais. Aos 19 anos, ingressou na Escola Militar de Realengo, por onde passaram também Luiz Carlos Prestes e Cordeiro de Farias. Foi sempre o primeiro aluno da turma. Estava em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, em outubro de 1924, quando um grupo de jovens oficiais comandados pelo capitão Prestes revoltou-se. Contrário ao levante, Machado Lopes foi feito prisioneiro. Libertado, apresentou-se em Cruz Alta, também em território gaúcho, ao comando da 3ª Brigada, fiel ao governo central. Sua unidade aderira ao movimento (os rebeldes iriam unir-se a um grupo de São Paulo, dando origem à chamada Coluna Prestes). Em novembro de 1935, já cursando a Escola do Estado-Maior do Exército, no Rio de Janeiro, combateu de arma na mão os revoltosos que haviam tomado o 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, sonhando com um regime comunista para o país. Em 1944, assumiu o comando do 9º Batalhão de Engenharia, que se integrou à Força Expedicionária Brasileira, organizada em consequência da Segunda Guerra Mundial. Na Itália, participou do ataque a Monte Castelo, em fevereiro de 1945. De volta ao Brasil, o presidente Dutra nomeou-o interventor federal no Ceará, onde ficou até janeiro de 1947, quando entregou o cargo ao governador eleito. Passou novamente pelo Rio Grande do Sul, como comandante da 3ª Divisão de Cavalaria de Bagé, e voltou ao Rio para dirigir o

setor de Engenharia do Exército. Em 1954, foi para Washington como adido militar. De volta ao Brasil, comandou a 7ª Divisão de Infantaria, em Pernambuco. Ao lado do general que recebera uma informação ao pé do ouvido, Brizola notou uma alteração no semblante daquele homem alto, de cabelos brancos, lábios grossos, bolsas sob os olhos e que fumava muito. Pouco depois, o assessor de imprensa do governador chegou ao palanque. Estava de capa de chuva verde e trazia no bolso interno um despacho que apanhara no teletipo da agência de notícias France Press, no Palácio Piratini. Hamilton Chaves fez sinais para o governador — não queria falar com ele na presença dos militares. Finalmente, conseguiu dizer-lhe uma frase em particular: “Há uma notícia da renúncia do Jânio confirmada, estou com o despacho aqui no meu bolso, gostaria que o senhor saísse daqui para lê-lo na íntegra”.5 Minutos depois, a cerimônia foi suspensa, a pretexto da chuva forte. No carro, Brizola leu o telegrama com a notícia que mudara o humor de Machado Lopes e resolveu instalar-se na sede da Caixa Econômica Estadual, na esquina da rua da Praia com a Dr. Flores, a umas oito quadras do Piratini. “Foi uma decisão inconsciente e instintiva. Talvez uma influência longínqua do velho guerreiro gaúcho Leonel Rocha, que sempre se localizava a uma distância prudente do acampamento geral”. A informação teria um impacto ainda maior em Porto Alegre, que a partir daquele sábado, 26, hospedaria por cinco dias o presidente da República. Jânio deveria inaugurar o evento econômico mais importante do estado: a 28ª Expointer — Exposição Nacional de Animais e Produtos Derivados. Estava tudo cuidadosamente preparado: a Companhia de Guardas, uma tropa de elite, revisara o percurso e estava a postos para recebê-lo e escoltá-lo do Aeroporto de Gravataí até o Piratini. O gabinete de trabalho do presidente fora montado no quartel-general do III Exército, na rua dos Andradas, e Jânio seria hóspede do general Machado Lopes. Da sede da Caixa, Brizola telefonou para Carlos Contursi, também assessor de imprensa do palácio, que já tinha confirmado a renúncia com outras fontes. Sem conseguir ligar para Brasília e São Paulo, voltou ao

Piratini. Num rápido discurso para a pequena multidão que já se reunira diante da porta, prometeu defender o mandato de Jânio até o fim, mesmo não sendo seu correligionário. Até aquele momento, Brizola imaginava que o presidente fora deposto por um golpe, e é bem provável que não tenha levado em conta o momento de descontrole emocional que presenciara meses antes, a bordo de um DC-3. Sentado ao lado de Jânio, no último banco do avião, várias filas atrás dos generais e ministros, o governador serviu de confidente: Eu notei que ele estava um pouco alterado. Começou a relatar, logo para mim, governador provinciano, lá daquela distância, coisas internas do relacionamento presidencial com algumas figuras internacionais (ele imaginava que eu era ultrainformado...). Contou detalhes de como havia colocado para fora do gabinete um plenipotenciário norte-americano. Foi falando com tal veemência e revolta sobre a situação do país que acabou debruçado em cima de mim, dizendo: — Governador, este país é uma vergonha, tenho a impressão de que só temos de nosso a nossa bandeira; o resto, tudo está sob o controle, sob os interesses internacionais... Disse isso e chorou no meu ombro. E eu pensei, tomara que essa gente lá na frente não veja o presidente chorando no meu ombro... Mas Jânio recuperou-se, estivemos na Argentina, e foi tudo muito bem em Uruguaiana.6

Lembrando-se do episódio, Brizola pediu ligações telefônicas para políticos e militares, Brasil afora. Nos idos de 1961, a comunicação interurbana era complicada. Porto Alegre, com 640 mil habitantes, tinha apenas 14 mil telefones, administrados pela Telefônica Nacional, subsidiária do grupo International Telephone and Telegraph. Enquanto aguardava as chamadas, o governador colocou a Polícia Civil e a Brigada Militar — força policial do estado com 13 mil homens — de sobreaviso. As ligações interestaduais não foram completadas, e o governador telefonou para o general Machado Lopes, que confirmou a renúncia do presidente e fez um único comentário: “Se Jânio desembarcar no Aeroporto de Gravataí será um

cidadão comum e não mais um presidente”.7 Brizola descreveu para o general as providências que tomara e combinou manter contato. Enquanto discutia a situação e as medidas preventivas com seu secretariado, no prédio ao lado, o desavisado deputado Poti Medeiros pediu a palavra e saudou a chegada de Jânio: Seja bem-vindo S. Exa. E seja feliz e fecunda a sua estada em nossos pagos. [...]. O Rio Grande do Sul, esteja convicto S. Exa, não faltará ao imperativo do dever de auxiliar o Brasil no equacionamento preciso e na solução adequada dos problemas brasileiros. Não fugiremos ao cumprimento de nossas obrigações patrióticas.8

Depois dessas palavras finais inconscientemente proféticas, o deputado Cândido Norberto, do PSB, aproximou-se do microfone e informou aos 23 parlamentares presentes que o presidente renunciara. Houve todo tipo de reação: Mariano Beck, do PTB, foi aplaudido de pé ao mencionar que a Constituição deveria ser defendida; Paulo Brossard, do PL, exaltou o regime parlamentarista e execrou o presidencialista. Por unanimidade, a Assembleia declarou-se em sessão permanente, ideia de Sereno Chaise, do PTB, excompanheiro de Brizola num quarto de hotel, nos primeiros tempos de Porto Alegre. No fim da tarde, com a manchete “Renunciou o presidente Jânio Quadros”, a edição extra da Folha da Tarde chegou às bancas, anunciando a posse de Mazzilli. Na mesma edição, o gaúcho Clóvis Pestana, que já estava em Porto Alegre, se esquivou de qualquer compromisso, em seu último pronunciamento como ministro da Viação: “Não tenho conhecimento oficial da renúncia. E nada sei a esse respeito”. Na sede do III Exército, o general Machado Lopes estava mais bem informado. Um radiograma assinado pelo ministro Denys deixara claro que o Brasil já tinha novo governo — e, nele, o comando militar não mudara: Urgente — Cmt — III Ex — Palegre — RS No 125 — D2 Circular de 25 de Agosto 61 pt

Comunico Vossência senhor Jânio Quadros acaba renunciar presidente República pt Assumiu governo vg acordo parágrafo primeiro artigo setenta e nove Constituição vg senhor Ranieri Mazzilli vg presidente Câmara Deputados vg estando presentes ministros Marinha vg Guerra et Aeronáutica pt Situação calma todo país pt Mal Odílio Denys, Ministro Guerra pt9

Ao receber o comunicado, Machado Lopes colocou a tropa em prontidão. Depois, tranquilizou os sulistas: “O III Exército garantirá a ordem em todo o território sob sua jurisdição, que compreende o Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina”.10 A afirmação era do responsável pelos 120 mil homens que integravam a maior força militar brasileira. Embora estivesse havia pouco tempo no comando Sul do Exército, conhecia bem seus subordinados: nas manobras gerais de 1953, de que participaram todas as unidades do III Exército, comandara a Divisão de Cavalaria, que foi a melhor unidade em campanha e recebeu elogios públicos. Por saber com quem estava lidando, Machado Lopes reagiu imediatamente ao receber cópia do telegrama enviado a Jânio pelo general Peri Beviláqua. O comandante da 3ª Divisão de Infantaria, sediada em Santa Maria, no centro do estado, pedia ao presidente para reconsiderar a renúncia e oferecia o apoio irrestrito da opinião pública e das Forças Armadas em defesa de sua autoridade constitucional “contra forças antagônicas de qualquer origem”. O comandante do III Exército respondeu, sintético e fiel à sua linha de conduta: Urgente — Gen Peri — Cmt 3ª DI — S. Maria — 25 ago 61 Recomendo V. Exª evitar manifestações pessoais ante fato consumado pt Presidência República está legalmente exercida sr. Ranieri Mazzilli pt gen Machado Lopes III Ex.11

Enquanto o general tentava controlar seus subalternos, o governador

entrou em campo soprando a brasa da resistência. Diante de toda a imprensa, deputados de vários partidos, lideranças empresariais, sindicais e estudantis, propôs a união dos gaúchos contra o golpe: Na defesa do regime, na defesa da ordem legal e das liberdades públicas, acredito que nós, gaúchos, pelo nosso passado, pelas nossas tradições, saberemos nos inspirar, esquecendo nossas diferenças. O Rio Grande do Sul comparece perante a Federação como uma unidade. O governo do estado não pactuará com qualquer golpe nas instituições que venha a acarretar o cerceamento das liberdades públicas.12

À noite, aumentou a aglomeração diante do Palácio Piratini. Surgiram os primeiros protestos, ainda pelo retorno de Jânio ao poder. A crise começava a afetar a rotina dos porto-alegrenses: pelo rádio, seguindo instruções do Ministério da Educação, a Secretaria de Educação suspendeu as aulas; os bancos fecharam as portas até segunda ordem; os secundaristas entraram em greve, e os universitários reuniram-se em assembleia. Até o clássico Grêmio versus Internacional — o Gre-Nal —, marcado para domingo, foi prejudicado. Na sexta à noite, o presidente da Federação RioGrandense de Futebol, Aneron Correia de Oliveira, rejeitou a proposta de transferir o jogo. No sábado pela manhã, se convenceu e condenou à lata de lixo — ou, mais exatamente, à fábrica de aparas de papel — os 60 mil exemplares da edição extra da Folha Esportiva, do Grupo Caldas Júnior, prontos para ser vendidos no Estádio Olímpico do Grêmio. Às onze e meia da noite, Brizola entrou no plenário da Assembleia e, ao microfone, utilizou pela primeira vez a expressão que martelaria insistentemente nos dias seguintes: Se há uma estrutura golpista em marcha no país, evidentemente ela não se dirige somente contra o senhor Jânio Quadros, mas também contra o vice-presidente, contra o Congresso, contra os governadores, contra as Assembleias Legislativas. E se isso ocorrer não sei o que vai acontecer, mas tudo que for para defesa da legalidade eu farei.

Executivo e Legislativo formaram uma comissão. No gabinete do presidente da Assembleia, Hélio Carlomagno e o governador buscavam uma fórmula de apoiar a elucidação das denúncias contidas na carta de Jânio e a posse do vice-presidente, defendida por seu cunhado: “Jango deverá ser, irrecorrivelmente, o presidente da República”. A essa altura, tropas do III Exército já ocupavam vários pontos da capital para garantir a ordem. Em mais de um ponto, houve algum estranhamento entre os militares e os brigadianos — o equivalente à Polícia Militar em outros estados —, também dispostos a ocupar áreas estratégicas. A fria madrugada de 25 para 26 foi de vigília. Nas primeiras horas da manhã, o governador recebeu um contato via rádio de Brasília. O deputado trabalhista gaúcho Rui Ramos estava muito exaltado: ouvira do ministro da Guerra, Odílio Denys, que o vice-presidente não tomaria posse e, quando pisasse em território brasileiro, Jango seria preso. Brizola relatou o que ouvira para o comandante do III Exército, argumentou que a Constituição determinava a posse de Jango, disse que pretendia resistir a qualquer tentativa de golpe e perguntou qual a posição de Machado Lopes. Num tom de voz mais frio, o general encerrou a conversa: “Governador, eu não posso me definir assim. Sou soldado e fico com o Exército”. Brizola desligou o telefone e disse para seus auxiliares: “Ninguém dará o golpe por telefone! O Rio Grande não aceita o golpe e a ele não se submeterá!”.13 O governador tentou contato com outros estados. A muito custo, falou com a base aérea de Cumbica, em São Paulo, e se deu conta de que Jânio não mudaria de ideia. Em busca de aliados civis e militares, conversou com o general Osvino Ferreira Alves, na época sem comando militar, mas favorável à posse de Jango. Os principais chefes militares o atenderam, mas nenhum admitiu contrariar os ministros. O mais ríspido foi o general Artur da Costa e Silva, que estava em Recife. Brizola esgrimiu seus argumentos pró-Legalidade, tentando convencer o comandante do IV Exército a fechar com o movimento legalista. Apelou até

para a origem gaúcha de Costa e Silva, que não se sensibilizou: “Por favor, não me procure mais, porque não vou atendê-lo. Só recebo ordens do ministro da Guerra”.14 Contrariado, o governador respondeu: “Não vou ligar mais. Mas ouça bem: estou vendo que o senhor nada mais é do que um golpista!”.15 A conversa terminou com uma troca de palavrões. Brizola telefonou então para o marechal Henrique Lott, que o aconselhou a procurar o general Peri Beviláqua, na 3ª Divisão de Infantaria, em Santa Maria, e o general Oromar Osório, da 1ª Divisão de Cavalaria, em Santiago. O coronel Assis Brasil, um oficial nacionalista, serviu de emissário e foi parar em Santa Maria, para encontrar o comandante da 3ª Divisão de Infantaria, Peri Constant Beviláqua, que herdara do avô Benjamin Constant o ideal positivista e o respeito à Constituição e já enviara um telegrama a Jânio. Estava a favor da Legalidade desde o primeiro momento. No sábado, 27, o general Beviláqua envia a seguinte mensagem a seu superior imediato: Urgente Cmt III Exército — Palegre — 169 Ago de 27 Nosso compromisso soldados nos impõe vg sem tergiversação vg dedicação serviço pátria vg defesa sua honra vg integridade e instituições com sacrifício própria vida pt Não admitiremos desrespeito à Constituição brasileira e atenções regime democrático pt Vice-presidente dr. João Goulart terá ser empossado acordo vontade povo brasileiro na soberania seu voto pt Ninguém é forte fora da lei pt Estamos certos comungar mesma opinião V. Exª pt Gen. Peri Beviláqua Cmt 3ª DI.16

No início daquela noite de sábado, o taquígrafo do Piratini, Hélio Fontoura, recebeu o texto do manifesto de Lott. A quatro quadras, num prédio desocupado de madeira, o primeiro Comitê de Resistência Democrática começou a alistar voluntários. Às onze da noite, Brizola chamou seu assessor de imprensa, Hamilton Chaves. Juntos, redigiram um texto para ser anexado ao de Lott e entregue aos jornais, rádios e TVs de Porto Alegre, defendendo a Legalidade e

anunciando que havia entrado em contato com Jango, pedindo que regressasse (na verdade, Brizola não falou com o cunhado, mas manteve a lorota, divulgada diversas vezes ao longo da crise). A nota terminava apelando às tradições gaúchas: O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à pátria comum e de defesa dos direitos humanos. E seu governo, instituído pelo voto popular — confiem os riograndenses e os nossos irmãos de todo o Brasil —, não desmentirá essas tradições e saberá cumprir seu dever.

Com o texto na mão, o governador atravessou o pátio interno e pedras portuguesas que levava à ala residencial do palácio com uma missão: convencer a mulher a deixar o Piratini. Foi derrotado: Neusa ficou, mas mandou os três filhos — Neusinha, João Vicente e João Otávio — para a casa da amiga Mila Cauduro. Ao mesmo tempo, Hamilton Chaves percorria as redações para colocar os dois manifestos em espaços pagos. No Correio do Povo, chegou a aumentar o corpo em que o texto foi composto, para ficar mais destacado na contracapa. Na imprensa escrita, Brizola pôde contar com a militante adesão da Última Hora, cuja redação, àquela altura, já produzia uma edição extra para o domingo. O editorial, redigido pelo jornalista Franklin de Oliveira — que nem era funcionário do jornal, mas assessor de Brizola —, foi submetido ao governador. Brizola tivera um jornal chamado O Clarim e, desde então, costumava opinar até mesmo sobre textos que passavam por suas mãos. A Neu Reinert, diretor da UH, Brizola determinou, como se fosse o editorchefe: “Este editorial tem de estar na primeira página”.17 O texto “Constituição ou guerra civil” começava com uma frase de efeito: “O golpe é uma bofetada na face do Brasil”. E seguia adiante, exclamativo: O golpe é uma afronta ao Rio Grande do Sul. Povo brioso, o brasileiro não recebe injúrias. Gente altiva, o gaúcho não se alaparda diante de ultrajes. [...] Nem que seja

para ser esmagado, o Rio Grande do Sul reagirá. Mas não será esmagado porque todo o Brasil está pronto para repelir o insólito desafio.18

Grande demais para o espaço existente, o texto acabou sendo composto com dois tamanhos de tipos, numa solução de arrepiar os cabelos de qualquer diagramador, mas saiu exatamente como e onde Brizola mandou. E, no domingo cedo, as camionetas com a edição extra da UH foram para a rua sob proteção de soldados da Brigada Militar. Às 11h30, o general Machado Lopes recebeu a visita do arcebispo de Porto Alegre, dom Vicente Scherer, preocupado com a situação. Logo depois, o comandante do III Exército enviou pelo rádio uma mensagem cifrada a Brasília: Fui procurado arcebispo dom Vicente Scherer pedindo transmitir apelo V. Exª solucionar crise dentro lei empossando João Goulart vg a fim evitar guerra fratricida pt Situação grave pt. 19

Naquela noite, ninguém dormiu no Piratini. Às três da madrugada, rodeado de jornalistas e assessores, Brizola deu uma entrevista coletiva marcada pela emoção e falou por mais de 20 minutos: O Rio Grande não permitirá atentados. A renúncia do senhor Jânio Quadros é definitiva. Resta agora dar posse ao presidente constitucional do Brasil. Resta entregar a Presidência ao senhor João Goulart. [...] Nós, que governamos o Rio Grande do Sul, não aceitaremos quaisquer golpes. Não assistiremos passivamente a quaisquer atentados às liberdades públicas e à ordem constitucional. Reagiremos como estiver ao nosso alcance. Nem que seja para sermos esmagados. Mas defenderemos nossa honra e as nossas tradições. A Constituição do país tem de ser respeitada.

Reproduzida pelas principais emissoras, as palavras do governador encontraram eco imediato nos mais diferentes setores. Ainda durante a

madrugada, políticos de diferentes partidos, líderes empresariais, sindicatos, estudantes e grupos culturais começaram a chegar ao Piratini. Funcionários e assessores, correligionários e até mulheres tinham recebido os revólveres Taurus 38, recolhidos às pencas pelo repórter fotográfico Nery Garcia, na loja da empresa na avenida Farrapos.20 Dona Neusa, por exemplo, andava com um dentro da pequena bolsa. Alguns jornalistas, mesmo sem jamais terem dado um só tiro, andavam com duas armas na cintura. Após a entrevista, o governador requisitou todo o armamento da Brigada Militar: soldados e cabos receberam mosquetões e algumas metralhadoras INA. Sargentos portavam carabinas 30, e os oficiais, pistolas Colt 45. Poucos eram os civis que portavam metralhadoras. Entre eles, Josué Guimarães — na época, o publicitário mais bem pago do Sul do país, a serviço do governo gaúcho — e o próprio governador, que trocara seu terno por um casaco de couro preto, mais apropriado à sua nova condição de quase guerrilheiro. Preocupado com essa movimentação e com a adesão de alguns de seus comandados ao governador, o comandante do III Exército trocou novas mensagens pelo rádio com Denys: 1h20: Governador Brizola declarou-me resistirá contra ação impeça posse João Goulart. Coordena ação nesse sentido. Tenho percebido grande número de oficiais ideia ser mantido princípio constitucional, inclusive comandantes da 3 DI e 1 DC. Todas unidades cumprindo ordens, manutenção ordem pública. Situação tensa porém calma todo III Exército.21

Quatro minutos depois das três da manhã, Machado Lopes recebeu a resposta. Assinada pelo ministro Denys, acusava elementos comunistas de estarem “perturbando encontro solução legal crise decorrente renúncia”, informando a prisão do marechal Lott e dizendo que iria “defender instituições et manter a lei et ordem em todo país mesmo que para isso tenha que impedir posse Jango”.22 O comunicado pedia que Machado Lopes

retivesse em Porto Alegre os generais Oromar Osório e Peri Beviláqua. O comandante do III Exército demorou apenas seis minutos para responder: 3h10: Entendido vg vou providenciar pt Situação Palegre muito tensa pt Governador Brizola organizou defesa palácio et parece ter distribuído armamento civis seus adeptos pt Estou vigilante manutenção ordem pt Seria todo conveniente encontrar solução legal pt Gen Machado Lopes, Cmt III Exército.23

Às cinco da manhã, pelo rádio, nova mensagem, agora do general Orlando Geisel, em nome do ministro da Guerra: Enquanto existir possibilidade de João Goulart assumir Presidência, governador Brizola tem todo interesse manter ordem pt Trata-se de um estratagema que só favorece inimigo potencial pt.24

Pouco depois, o comando do III Exército comunicou a todas as guarnições que Denys fora forçado a prender o marechal Lott, por ter lançado manifesto subversivo, mas acrescentou que o ministro,da Guerra pretendia defender a lei e a ordem por todos os meios e que ele, Machado Lopes, ainda aguardava “confiante” o encontro de uma “solução legal desejada” pelo governo constituído e pelos chefes militares. Na manhã de domingo, Porto Alegre estava isolada, sem nenhum contato telefônico com o resto do país. Todo o efetivo da Brigada Militar estava mobilizado. O maior evento do estado, a 28ª Expointer abriu as portas, mas sem o brilho usual: poucos negócios foram realizados. A praça da Matriz, onde ficam o Palácio Piratini, a Assembleia e a igreja, parecia um acampamento militar, com montes de sacos de areia e rolos de arame farpado. Mesmo com o frio intenso e o vento minuano chicoteando, milhares de pessoas não arredaram o pé da praça. A maioria dos secretários de Estado e deputados foi para casa, depois de passar a noite em claro. O governador recolheu-se à ala residencial às seis da

manhã. Meia hora depois, voltou à sala de imprensa, onde outros repórteres queriam cópias da proclamação feita durante a madrugada. O governador telefonou para as guarnições do Exército em Santana do Livramento, Santa Maria, Uruguaiana, Cruz Alta e outras cidades. A recepção foi positiva: os comandos do interior estavam com a Legalidade. Enquanto isso, chegavam mais caminhões com armamentos na frente da praça. O plano de segurança foi reforçado, prevendo mais soldados e metralhadoras, principalmente no telhado do palácio e na torre da catedral. Depois da tradicional missa dominical, visivelmente nervoso, dom Vicente Scherer deixou a catedral, deu alguns passos, venceu a aglomeração e chegou até o saguão do Piratini. O governador não o recebeu — estava irritado com o arcebispo, porque achava que políticos contrários à resistência estavam se reunindo na Matriz. O arcebispo entregou ao chefe da Casa Militar a seguinte nota: Nesta hora de graves apreensões para a nação brasileira, tenho o dever de dirigir-me aos meus diletos filhos, homens de todas as convicções [...] reservem a clareza de discernimento, a retidão e a serenidade do julgamento, sem as quais nenhuma decisão de importância pode ser adotada para a salvaguarda da paz e do bem comum. [...] Devemos todos confiar no critério e na ação das autoridades constituídas, às quais estão encarregados a defesa da ordem constitucional, a garantia da paz pública e o respeito a todos os direitos individuais [...]. Dom Vicente Scherer, arcebispo metropolitano.

No domingo ainda, o comandante da 5ª Zona Aérea, brigadeiro Aureliano Passos, comunicou ao general Machado Lopes que recebera ordem de fazer rasantes sobre o palácio, para intimidar o governador. Mas não atenderia à determinação. A decisão de instalar uma rádio no palácio nasceu quase por acaso, na manhã desse domingo, depois que Hamilton Chaves levou o texto dos comunicados de Lott e Brizola para ser veiculado como matéria paga nas emissoras. Tão logo começaram a veicular os textos, ao som de marchas

militares, como pedido pelo governo, as rádios Farroupilha e Gaúcha saíram do ar. Eram funcionários dos Correios e Telégrafos, que, acompanhados por soldados do Exército, estavam lacrando os transmissores ou retirando os cristais. Ao voltar ao Piratini, o assessor de imprensa alerta Brizola: Governador, vou lhe dar uma informação: dentro de duas horas nós não vamos ter nem alto-falante pra falar, porque à medida que mando irradiar aqueles manifestos vem um serviço do Exército fechando, lacrando as rádios.25

A reação foi imediata: — Mas nós precisamos manter o povo informado! Quais são as rádios que existem? — Olha, a que está aí ainda é a Guaíba, onde eu não fui... — Então vai a Guaíba mesmo.

O governador determinou ao secretário de Justiça, João Caruso, que encontrasse uma saída jurídica para requisitar a emissora. E delegou a espinhosa missão de executar a ordem a seu secretário da Fazenda, Gabriel Obino, irmão do gerente da Folha da Tarde, um dos jornais do Grupo Caldas Júnior, de Breno Caldas, seu tradicional opositor. Duas Kombis cheias de homens da Polícia de Choque pararam diante da sede do grupo. À frente de seus homens, o chefe de polícia, delegado Joaquim Vila Nova, tomou o velho elevador e entregou a requisição ao diretor comercial da emissora, Flávio Alcaraz Gomes. Alcaraz telefonou para Breno Caldas, que morava em uma fazenda perto de Porto Alegre. O empresário pediu que a rádio não fosse operada dali e que sua torre fosse guarnecida pela Brigada Militar. Sob o olhar atento dos policiais, os estúdios foram desligados, enquanto brigadianos começavam a montar guarda aos transmissores. Nascia assim o embrião da mais importante cadeia de comunicação radiofônica já montada no país. Um caminho improvisado, mas eficiente, pelo

qual a voz de Brizola e as teses da Legalidade chegariam a todo o país e mundo afora. Às onze da manhã de segunda-feira, 28 de agosto, quando desceu ao porão do palácio para falar aos gaúchos, o governador já dispunha de informações cruciais e contraditórias. No domingo à noite, o telegrafista João Carlos Guaragna, responsável técnico pelo Departamento de Correios e Telégrafos e conhecido no meio como PY3RO, estava em casa, regulando seu aparelho de radioamador, quando identificou uma transmissão nervosa pelos sinais tremidos do osciloscópio. Começou a tomar nota dos sinais e percebeu que o assunto era grave. Guaragna levou as mensagens, captadas parcialmente, até o palácio. Quase deu meia-volta em frente ao palácio, que estava fechado, mas cruzou com o jornalista Hamilton Chaves, com quem trabalhara no jornal O Clarim, e lhe entregou as anotações. Pouco depois, um tenente-coronel informou a Casa Militar do Piratini que o III Exército fora instado a silenciar o governador, bombardeando o palácio, se necessário. Era a mesma ordem que seria novamente transmitida por rádio às 9h45 daquela segunda, 28 de agosto. Quando o comando do III Exército solicitou uma audiência urgente a Brizola, o governador achou melhor agir primeiro e parlamentar depois. Postergou o encontro, suspeitando que o tema da conversa pudesse ser outro: Eu calculei, ele vem aqui para fazer como fez o general Ubino, para o general Ernesto Dornelles, em 1945, quando derrubaram o presidente Vargas. Vem nos aconselhar a não resistir, porque já está o poder tomado lá em cima. Pensei, ele vem me aconselhar que eu renuncie.26

O Piratini parecia uma fortaleza: todos os seus funcionários e até os jornalistas estavam armados, e as tropas da Brigada Militar estavam a postos, mas a segurança era muito relativa: parte do armamento ali utilizado era do tempo do general Flores da Cunha, estava guardada havia muito e já nem funcionava direito: “A munição era tão antiga que de cada quatro ou cinco

tiros saía um”.27 Quando a perspectiva de um ataque parecia mais real, dom Vicente Scherer voltou ao Piratini. Abraçou dona Neusa e procurou confortá-la: “Não vai ser nada, dona Neusa. E, se for, que os primeiros tiros sejam para mim”.28 Brizola só soube da história por terceiros, mas não deixou de dar mais colorido ao diálogo que não presenciou, mandando divulgar que o arcebispo de Porto Alegre estava no palácio, pronto para sentar-se na frente do prédio e receber o primeiro tiro. Andando para cima e para baixo com uma metralhadora a tiracolo, o governador resolveu usar a arma que manipulava melhor: as palavras. Depois de pedir que as escolas fossem fechadas e de relevar as faltas dos funcionários, assestou suas baterias contra o ministro da Guerra: O Palácio Piratini, meus patrícios, está aqui transformado em uma cidadela que há de ser heroica, uma cidadela da liberdade, dos direitos humanos, uma cidadela de civilização, da ordem jurídica, uma cidadela contra a violência, contra o absolutismo, contra os atos dos senhores, dos prepotentes. No Palácio Piratini, além da minha família e alguns servidores civis e militares do meu gabinete há um número bastante apreciável, mas apenas daqueles que nós julgamos indispensáveis ao funcionamento dos serviços da sede do governo. Mas todos os que aqui se encontram estão de livre e espontânea vontade. [...] Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste palácio, numa demonstração de protesto contra esta loucura e este desatino. Venham, e, se eles cometerem esta chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a minha esposa e muitos amigos, civis e militares do Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta nação. Aqui resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar. Que decolem os jatos! Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome do povo e do sacrifício! Joguem estas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se

necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência de nosso povo! Um abraço, meu povo querido! Se não puder falar mais, será porque não me foi possível! Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever.29

O governador estava terminando seu discurso quando entraram na sala, esbaforidos, o diretor da Folha da Tarde, Arlindo Pasqualini, e o diretor comercial da Guaíba, Flávio Alcaraz Gomes. Alcaraz, que fora colega do governador no Colégio Júlio de Castilhos, agarrou Brizola e disse: “O general vem aderir!”. O governador não acreditou, mas Alcaraz explicou que a informação saíra do quartel-general do III Exército. Desde que a Guaíba fora requisitada, ele estava revivendo suas origens de jornalista como repórter no quartel-general do III Exército, a serviço dos jornais do grupo. Naquela manhã, estivera no comando militar, onde um oficial lhe informara que Machado Lopes ia aderir: Saí correndo do quartel-general — estava com um jipe nosso —, cheguei na rádio e comuniquei ao Arlindo Pasqualini. E aí subimos a rua da Ladeira, uma das mais tradicionais de Porto Alegre, na contramão e entramos no palácio, corremos para o porão, e lá estava o Brizola de submetralhadora a tiracolo, barba por fazer, se despedindo [...].30

Machado Lopes mudara de posição. Da primeira reação — em que dissera a Brizola que ficaria com o Exército — até a rejeição absoluta às ordens emanadas do Ministério da Guerra, fora um longo processo. Nos primeiros radiogramas, o comandante do III Exército assinalara, discretamente, sua opinião sobre a crise, sugerindo que o melhor seria encontrar uma solução legal. Depois, advertiu para a movimentação de Brizola. Em seguida, informou que aguardaria, “confiante”, que o governo constituído e os chefes militares encontrassem uma solução legal. A mudança de Machado Lopes aconteceu diante da ordem de convergir

todas as tropas para Porto Alegre e bombardear o Palácio Piratini, se fosse necessário. Ao general Orlando Geisel, o comandante do III Exército informou que não cumpriria a ordem, “por não encontrar apoio legal”. Ao meio-dia, Machado Lopes informou a seus subordinados: Comunico que, tendo recebido ordem do sr. ministro, por intermédio do general Geisel, que implicaria deflagrar guerra civil, declarei que não a cumpriria e, a partir deste momento, e enquanto Cmt do III Exército, só cumpriria ordens legais, dentro da Constituição vigente.

As Forças Armadas tinham rachado. Pouco depois, o general chegou ao palácio. Adauto Vasconcelos, repórter político da Última Hora, descreve a cena de modo dramático, em seu depoimento para o livro Legalidade 25 anos: “À frente de um grupo de oficiais, o comandante se aproxima. Alguém dá um grito: ‘Ali estão os golpistas’”. A massa começou a deslocar-se na direção dos militares, quando o Hino Nacional, “brotado da garganta de milhares de pessoas, petrificou os oficiais. Eles pararam e cantaram com o povo. Machado Lopes estava emocionado e trêmulo. O III Exército estava aderindo à Legalidade”. As imagens feitas por um cinegrafista da TV Tupi, no entanto, mostram apenas o comandante do III Exército descendo calmamente de seu carro oficial, um Chevrolet Bel Air preto com a bandeirola do III Exército fincada sobre o para-lama direito, avançando Piratini adentro, sem nenhum problema (alguns populares até o aplaudiram ao passar). Nenhum cinegrafista ou fotógrafo presenciou a conversa entre o general e o governador. Desconfiado, pouco antes de receber Machado Lopes, Brizola determinara ao fotógrafo do palácio, Pedro Flores, e a Santos Vidarte, do Correio do Povo, que aguardassem do lado de fora do gabinete e explicou: “Entrem se eu chamar. Conforme for, eu me despeço dele e não quero fotografia”. Os dois não esperaram mais do que dez minutos, recorda Flores: “O Brizola abriu a porta e nos chamou. Nós entramos, e eles ficaram sentados,

fingindo que estavam conversando”. Na ponta da mesa, estava o governador. À sua direita, Machado Lopes. Ao lado dele, o secretário da Justiça, Francisco Brochado da Rocha. Do lado esquerdo de Brizola, o comandante da 6ª Divisão de Infantaria, generalbrigadeiro Sílvio Américo Santa Rosa, e o coronel Diomário Moojen, comandante da Brigada Militar. Atrás do governador, falando ao telefone, o procurador- geral do Estado, Floriano Maia D’Ávila. Sobre o tampo de vidro, xícaras de café, copos de água e cinzeiros. No encontro a portas fechadas, Machado Lopes teria dito: Governador, os generais do III Exército reunidos decidiram, por maioria de votos, que só aceitam solução para a crise dentro da Constituição, por conseguinte, com a posse do vice-presidente.31

Brizola levantou-se e apertou a mão do militar: General, eu não esperava outra decisão do III Exército. O III Exército vai ser reconhecido por toda a nação, está cumprindo um papel histórico.32

Na hora de sair, o governador praticamente conduziu o general, lembra o fotógrafo do palácio: “Quando o Machado Lopes ia saindo, o governador pegou-o pelo braço e levou o general até a sacada do palácio, meio na marra”. Ao selar o acordo, Brizola teria subordinado voluntariamente a Brigada Militar e a Polícia Civil ao comando de Machado Lopes, mantendo o comando político da situação. (Mais tarde, o general diria que a iniciativa, destinada a reduzir o poder de Brizola, fora dele.) Não é a única controvérsia encontrada nas memórias do general, publicadas em 1980. Machado Lopes não poupa ninguém. Chama os ministros militares de obcecados, incoerentes e intransigentes. Define Jânio, que ele chegou a hospedar, como esquizotímico, recordando a única recomendação do presidente: que em seu quarto houvesse sempre uma garrafa do legítimo Lacrima Christi — o general mandou buscá-la na Argentina.

Jango, acreditava o comandante do III Exército, era despreparado para comandar o país por causa do que classificou de “imaturidade notória”: Nascido num meio caudilhesco, não podia deixar de ser por ele influenciado, apesar de sua índole eminentemente pacífica. Não era um comunista. Era um homem simples e bom, que se deixava influenciar facilmente pelos que o cercavam e sempre voltado para a querência. Sua grande vocação era a estância e nada além do potreiro, de fato, o entusiasmava.33

Brizola, então, com quem mantivera “boas relações protocolares”, o general chama de grotesco, por andar “com uma metralhadora numa das mãos e a Constituição na outra”. E vai adiante: “O sr. Leonel Brizola foi o anjo negro do sr. João Goulart. Ambicioso em extremo, agitador, procurou tumultuar o governo, em busca de alcançar o poder”.34 Sobre o encontro entre os dois, o comandante do III Exército diz o seguinte: Nessa ocasião fiz ver ao governador Leonel Brizola a necessidade de moderar os seus atos de exaltação revolucionária e de devolver as estações de rádio (emissoras) às suas atividades normais, o que foi por ele prometido.35

Cada um preservou sua versão dos fatos como podia: pródigo em observações sobre os personagens centrais do episódio, Machado Lopes reproduziu todos os comunicados trocados entre o III Exército e o Ministério da Guerra, mas passou batido sobre as circunstâncias em que se juntou à tese da Legalidade. A ordem para bombardear o palácio fora transmitida inicialmente ao general de brigada Antônio Carlos Murici, chefe do Estado-Maior (Machado Lopes não informa a que horas, mas deve ter sido na madrugada de domingo para segunda). Às 9h45 de segunda-feira, 28, a ordem foi reiterada por fonia, o sistema de rádio exclusivo que interligava os quartéis, numa recepção testemunhada pelos

seguintes oficiais: general Murici; coronel Virgílio Cordeiro de Melo, comandante interino da 3ª Região Militar; major Harry Alberto Schnardnorf, assistente do chefe do EM; capitão Luís Omar de Carvalho, ajudante de ordens do comandante; e major Álcio Barbosa da Costa e Silva, chefe do Serviço de Comunicações e filho do futuro presidente da República, Artur da Costa e Silva. O grupo estava na sala de Comunicações do quartel-general. A minúcia justifica-se, já que a existência da determinação foi negada até o fim pelos irmãos Orlando e Ernesto Geisel. O documento realmente não se encontra nos arquivos do Exército. Machado Lopes argumentava que, por ter sido enviada via rádio, a ordem não deixou vestígios documentais. Às seis da tarde de terça-feira, 29, o Estado-Maior do III Exército reuniuse, com a presença dos generais Peri Beviláqua e Sílvio Américo Santa Rosa. Aplaudiu quando Machado Lopes informou que não mais acataria as ordens do ministro da Guerra, permaneceria no comando e, a partir daquele momento, agiria por conta própria, dentro da ideia de manter o regime liberal democrático cristão, assegurando a ordem pública. Mas quando ele tomara essa decisão? O que o levara a isso, já que dois dias antes dissera a Brizola que não podia se definir assim, porque era um soldado e ficava com o Exército? A justificativa do general, em suas memórias, é insuficiente e usa palavras quase idênticas às empregadas no telegrama enviado a ele por Peri Beviláqua: Com o passar das horas e a sucessão dos dias, cada vez mais se arraigava no meu espírito a ideia de manter-me fiel ao compromisso que havia assumido com a nação ao assentar praça, reafirmando-o quando declarado oficial: “[...] e dedicar-me integralmente ao serviço da pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei com o sacrifício da própria vida.”36

O comandante tenso que na noite de domingo, perto da meia-noite, chamara a seu gabinete o capitão Pedro Américo Leal podia ter qualquer coisa em seu espírito, menos a frase com que mais tarde justificaria a guinada em sua posição. Aos 37 anos, Leal era o comandante da Companhia de

Guarda — 222 homens altos (pelo menos 1,80 metro), jovens (18 anos em média), armados com metralhadoras INA e sempre acompanhados por cães. Uma tropa de elite, mais preparada que a média do Exército, especializada em assaltos rápidos. Tenso, mãos no bolso da japona (era uma noite fria) e em pé, o comandante do III Exército ordenou que Leal fosse à ilha da Pintada e tirasse o cristal do transmissor da Rádio Guaíba do ar, silenciando a Rede da Legalidade. O capitão ponderou que poderia haver mortes, já que desde as duas da tarde uma força da Brigada Militar zelava pelo local. Machado Lopes mandou-o cumprir a ordem, levando consigo o major Álcio Costa e Silva, que conhecia bem o funcionamento das rádios. Pedro Américo ainda perguntou se não seria mais viável ocupar primeiro as companhias de luz, água e telefone, deixando a rádio para a manhã seguinte, mas o general bateu o pé. Ao sair do gabinete, situado no quarto andar do quartel-general, o capitão cruzou com Floriano D’Ávila Maia, promotor e procurador do Estado, e o auditor de Guerra da 3ª Região Militar, Lauro Schuch. Leal seguiu para a rua Vieira de Castro, ao lado da Escola de Cadetes de Porto Alegre, no parque Farroupilha ou da Redenção. Ao chegar lá, reuniu seus comandados e começou a planejar a ação, quando foi chamado ao telefone. Na linha, o capitão Mauro, ajudante de ordens do general Murici, mandou suspender a missão. Leal retrucou que não descumpriria assim uma ordem expressa de seu comandante máximo. Cinco minutos mais tarde, chegou às suas mãos uma determinação assinada pelo próprio Machado Lopes, mandando parar tudo. Mais tarde, aos 77 anos de idade, lúcido, o ex-capitão, então vereador pelo Partido Progressista Brasileiro (PPB) em Porto Alegre, tinha uma versão para o ocorrido: Tentei por duas vezes demover o comandante do III Exército, porque ia haver enfrentamento, mas não tive êxito. Quem conseguiu foram o Floriano e o Lauro. Os dois conheciam muito bem o Brizola: Floriano era amigo íntimo dele e o Lauro

também se dava bem com o governador. Eles sabiam tudo que estava acontecendo no palácio, inclusive a distribuição de armas. Foram os argumentos deles que levaram o Machado Lopes a aderir.37

Schuch já havia levado a Brizola algumas recomendações de Machado Lopes e, no dia 30, encontrou-se com o ministro da Guerra em Brasília, relatando a situação em Porto Alegre. Machado Lopes garantiria mais tarde que as duas ações foram iniciativas isoladas do auditor, sem nenhuma influência sobre sua decisão de contrariar as ordens do marechal Denys e seu grupo. As lembranças do general passam como gato sobre brasas por outro fato importante: no momento em que ele se definiu a favor da Legalidade, três esquadrões de cavalaria estavam acampados em Porto Alegre — o esquadrão da 1ª Divisão de Santiago, subordinado a Oromar Osório, estava acantonado no 18º Regimento de Infantaria, no bairro do Partenon, e os de Quaraí e São Gabriel, no Parado Velho, no bairro da Independência. Os jornais da época publicaram fotos dessas tropas entrando na cidade, com uma legenda ridícula: cavalos e soldados estariam ali para as festividades da Semana da Pátria, que aconteceriam dez dias mais tarde... Para chegar a Porto Alegre, as tropas do general Osório tinham se utilizado de trens e caminhões fornecidos pelo governo do estado: “Eu providenciei os trens, providenciamos os caminhões, que eram agarrados na estrada, descarregados e levados para Santiago”. Pouco depois do meio-dia de segunda-feira, 28, o governador Leonel Brizola e o general Machado Lopes ergueram os braços na sacada do Palácio Piratini e foram aplaudidos por uma multidão. A Legalidade tinha agora uma considerável força militar. E a guerra parecia mais próxima. A dupla desceu as escadas do Piratini e foi ovacionada pela massa na saída. No Bel Air do III Exército, o governador acompanhou Machado Lopes e o comandante da 6ª DI até o quartel-general. Na volta, diante do mesmo microfone em que fizera seu apelo, apresentou sua versão para o encontro que já mudara o rumo daquela crise:

Aqui nos encontramos perfeitamente harmônicos, o Poder Civil e as Forças Armadas [...]. A nossa atitude, patrícios, não é e nunca foi de revolução. Resistiremos até a última gota de sangue de nossas energias, mas, se quiserem rasgar a Constituição [...], então a nossa atitude passará de resistência à revolução. É melhor perder a vida do que a razão de viver [...]. Posso vos garantir, e a todo o Brasil, que não daremos o primeiro tiro. Mas creiam, o segundo será nosso.38

Brizola sabia que o general Machado Lopes podia ter lá suas restrições a ele, mas era um aliado imprescindível. Por isso, todos os comunicados da Rede da Legalidade passaram a enaltecer a atitude do III Exército e a classificá-la como apoio — jamais como adesão. Sem atentar para o detalhe, a Última Hora lançou uma edição extra com a manchete “Terceiro Exército adere a Brizola”. O jornalista Hamilton Chaves, de comum acordo com o diretor do jornal, mandou recolher os exemplares já distribuídos. E hoje, no Museu da Comunicação Hipólito da Costa, em Porto Alegre, não há um só com a tal manchete. Aquela segunda, 28 de agosto, ainda poderia entrar para a história de modo trágico. Osvaldo França Júnior, que mais tarde se tornaria um escritor conhecido, era chefe do setor de informação do Esquadrão de Combate de Porto Alegre na base aérea de Canoas. No domingo, 27, ele ouviu seu comandante, Cassiano Pereira, do 1º Esquadrão do 14º Grupo de Aviação, informar à equipe: Acabamos de receber uma ordem para silenciar Brizola. Vamos tentar convencê-lo a parar com esse movimento de rebeldia. Se ele não parar com essa campanha, vamos bombardear o palácio e as torres de transmissão de rádio que ele vem usando.39

Na madrugada seguinte, João Carlos Guaragna foi chamado ao Departamento de Correios e Telégrafos (DCT). O superintendente do tráfego telegráfico tinha uma mensagem pessoal para transmitir a ele. Guaragna recebeu a comunicação destinada ao capitão Haroldo Melo, da 5ª Base Aérea, e uma descrição de seu destinatário. A mensagem era a seguinte:

“Tudo azul em Cumbica. Boa viagem”.40 O telegrafista percebeu que era a senha para o bombardeio do Piratini. Recusou-se a levar a mensagem: entregou-a ao diretor regional do DCT, pediu demissão e foi dormir. França Júnior foi encarregado de verificar o combustível necessário e o tempo que os aviões poderiam ficar no ar. Dos 16 jatos britânicos Gloster Meteor, de duas turbinas — iguais aos que haviam combatido as guerrilhas na Malásia —, apenas 12 estavam em condições de operar; receberam quatro bombas de 250 libras e 15 foguetes cada um. Conta ele: Pelos meus cálculos, a gente ia pulverizar o Palácio do Governo! O armamento que a gente tinha em mãos era para pulverizar o palácio. Um ataque para acabar com tudo que estivesse lá. Não ia haver dúvida. [...] Colocamos as bombas e os foguetes nos aviões. Ficamos somente esperando chegar a hora, quando o dia amanhecesse.

Os pilotos deveriam bombardear o palácio e seguir para São Paulo. Mas a ação foi adiada para as duas e meia da tarde, dando tempo para que os sargentos da FAB entrassem em campo. Ney de Moura Calixto, 31 anos, primo de Brizola por parte de mãe, estava entre eles: Éramos mais de 100 sargentos. Toda a tropa estava conosco e contra o comando, inclusive 30 subchefes. Nenhum dos pilotos era gaúcho, tinha gente de São Paulo, do Rio e também do norte do país. Quando percebemos que os aviões estavam prontos para a decolagem, nos insurgimos. Éramos maioria e eles, apenas 12 pilotos.

Sargentos e soldados deram-se as mãos e fizeram um círculo em volta dos Glosters para impedir que os aviadores tivessem acesso aos aviões. Depois, começaram a desarmar os aviões e a esvaziar os pneus. Até dois caminhões dos bombeiros foram colocados na pista para inviabilizar a decolagem. O movimento não tinha um líder: foi praticamente espontâneo. Neutralizado o ataque, quatro sargentos, uniformizados e chefiados por Ney Calixto, partiram para o Piratini para relatar o ocorrido. Na avenida Borges

de Medeiros, foram detidos pela Brigada Militar. Usando o sobrenome de Ney — seu irmão era chefe de gabinete do governador —, conseguiram passar. Mas, a uma quadra do palácio, foram cercados pela multidão: “O povo queria virar o carro, quebrar os vidros e gritava: ‘É a Aeronáutica, eles vão prender o Brizola, vão matar, vão bombardear. Vamos virar o carro e vamos linchar’”.41 Naquele momento, Calixto teve medo de ser morto. Um dos sargentos pediu: “Sobe no capô do carro e grita que tu és parente do Brizola, senão eles vão nos matar!”. Finalmente, conseguiram safar-se e encontrar o governador. Encaminhados ao III Exército, foram recebidos por Machado Lopes às três da madrugada, depois do encontro entre o general, o comandante da base aérea, tenente-coronel Honório Pereira de Magalhães, e outros três oficiais da Aeronáutica. O comandante não deu espaço para muita conversa: “Muito bem, sargento, o senhor não precisa explicar o que se passa, eu quero lhe apertar a mão e dizer que tomaram uma atitude heroica e patriótica de não deixar bombardear a cidade”. Diante do elogio, Calixto arriscou uma pergunta: “E o comandante da base aérea que estava conversando com Vossa Excelência?”. Machado explicou que havia substituído o comandante da base pelo major Mário de Oliveira e que o tenente-coronel Alfeu Monteiro assumira a chefia da 5ª Zona Aérea, no lugar do brigadeiro Aureliano Passos, fiel aos ministros militares e que recebera um DC-3 para voltar ao Rio com a família. (Durante o golpe de 1964, o mesmo tenente-coronel Alfeu Monteiro seria assassinado, em meio a uma reunião do Estado-Maior da 5ª Zona Aérea. O crime jamais foi esclarecido.)

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O porão da Legalidade

28 DE AGOSTO DE 1961, 22 horas, Porto Alegre. Na pequena sala sem janelas, um locutor ajeita-se na cadeira desconfortável para seu quase 1,90 m de altura: “Atenção, ouvintes do Rio Grande do Sul e do Brasil! Neste momento, as emissoras que compõem a Rede Nacional da Legalidade passam a apresentar uma programação de homenagem especial às Forças Armadas do Brasil [...]”. A seu lado, em outra pequena mesa de madeira, o técnico de som pousa a agulha da vitrola sobre o lado A do disco com duas marchas-rancho. Instantes depois, a voz inconfundível é ouvida novamente: Este primeiro espaço da homenagem especial que oferece a Rede Nacional da Legalidade às Forças Armadas do país é dedicado aos bravos soldados do Exército Nacional, localizados em todo o território do Brasil, e dignamente representados pelos heroicos militares do III Exército, sob o comando do ínclito general Machado Lopes, símbolo de amor à pátria e à democracia. O povo brasileiro aplaude seus soldados e com eles está solidário neste transe da vida nacional [...].1

Em 1961, Porto Alegre tinha oito jornais diários2 e apenas uma emissora de televisão, a Piratini, dos Diários Associados, que ainda engatinhava. O meio de comunicação de massas, por excelência, era o rádio. Leonel Brizola utilizava-o como ninguém — desde o tempo de prefeito, falava a seus eleitores todas as semanas. Mas a voz que lia a inflamada exaltação aos militares era mais grave e muito mais bem colocada: pertencia a Lauro Hagemann, o mais conhecido e acreditado locutor gaúcho, uma das vacas sagradas do rádio brasileiro. Trabalhando de graça pela primeira vez, ele experimentava a maior

audiência de sua vida. Locutor em Santa Cruz, saiu de sua cidade natal em 1950 para cursar jornalismo em Porto Alegre e foi escolhido num concurso para apresentar a versão regional do Repórter Esso, o informativo mais importante da época, na Rádio Farroupilha. Ex-presidente da União Estadual dos Estudantes, casado, quatro filhos pequenos, gostava de política, mas não estava ligado a nenhum partido — considerava-se um socialista desgarrado. Sem serviço desde que a Farroupilha fora tirada do ar, ouviu as primeiras transmissões da Rede da Legalidade, feitas pelo locutor da Piratini, Naldo Charão, um militante do PTB. Certo de que sua voz, conhecidíssima, daria credibilidade às transmissões, Hagemann apresentou-se no palácio. Quem o atendeu foi João Brusa Neto. Formalmente, esse gaúcho de 46 anos, nascido em Caxias do Sul, mas criado em Santa Catarina, exercia o cargo de subsecretário do Ensino Técnico. Na prática, estava funcionando como o comissário político de todas as transmissões. Militante do PTB, fora um dos coordenadores de campanha de Brizola, que conhecia desde os tempos da União Social Brasileira, partido que Alberto Pasqualini tentava organizar e pelo qual ambos haviam resvalado. Quando a Guaíba foi requisitada, Hamilton Chaves incumbiu-o de zelar pelo microfone. Brusa praticamente agarrou Lauro Hagemann e colocou-o no ar. Não havia um estúdio realmente: o microfone e o toca-discos tinham sido instalados às pressas numa das salas do porão, com as paredes cobertas de material acústico, para permitir que, um dia, ali fossem gravados os programetes semanais que Brizola veiculava pela Farroupilha. Até então, o meio de comunicação mais eficiente entre aquele porão e o mundo exterior era uma rede de túneis secretos que permitia a seus ocupantes fugir em caso de ataque. Sabe-se até a data em que foi assentada a pedra fundamental do edifício — em 1896, no governo de Júlio de Castilhos —, mas o traçado e a origem desses túneis continuam a desafiar os arquitetos do governo, que ainda hoje os estudam. A obra do palácio parou várias vezes, sendo retomada em 1909, no governo de Carlos Barbosa. O arquiteto francês Maurice Gras usou uma

mescla dos estilos neoclássico, Luís XV e Luís XVI. Toda a serralheria — grades das portas, lustres, luminárias e o gradil da escadaria nobre — foi feita em Paris, na casa Cristophel & Durval. Até as pedras calcárias do embasamento e o mármore da escada vieram de Villars. Quarenta anos antes, em 1921, o governador Antônio Augusto Borges de Medeiros instalara-se no prédio, ainda inacabado — as obras se prolongariam por muitos anos. A partir de domingo, 27 de agosto de 1961, aquele pavimento com salas de teto baixo, paredes grossas, raras janelas e corredores estreitos encheu-se de fumaça, jornalistas, radialistas e brigadianos. Ali funcionou o coração da resistência em favor da posse de Jango. Brizola requisitou a emissora, mas era preciso resolver as questões técnicas. Tarefa para Homero Carlos Simon, 41 anos, gaúcho de Carazinho, engenheiro civil e mecânico eletricista, diretor técnico da Guaíba e presidente do Conselho Estadual de Comunicações, encarregado de fiscalizar o serviço telefônico no estado. Simon sabia que a Guaíba tinha duas estações de ondas curtas — uma de 49 metros e outra de 25 metros, de escala internacional — e que, quando uma funcionava, a outra não operava, porque ambas dividiam o mesmo transmissor. No dia anterior, o palácio solicitara uma linha telefônica exclusiva para a mesa de som que serviria a todas as emissoras, durante a apresentação de Jânio ao secretariado de Brizola. Foi esse o caminho utilizado nas primeiras comunicações. Temendo que a Telefônica Nacional fosse tomada pelo Exército, Simon estabeleceu uma ligação direta por ondas VHF, a partir do transmissor do Piratini. Quando a Brigada Militar ocupou a Telefônica, essa alternativa foi abandonada. Algumas antenas foram improvisadas. Concentrou-se mais energia através das ondas dirigidas, para atingir áreas povoadas no Paraná, Santa Catarina e sul do Mato Grosso. A cobertura em ondas curtas levava o sinal muito longe e dificultava as tentativas de interferência por parte do governo federal. Mesmo assim, houve uma verdadeira guerra eletrônica. O Exército passou a erguer antenas rômbicas, iguais às que russos e americanos usavam para

interferir nas emissões uns dos outros, tornando o sinal inaudível. Os técnicos comandados por Simon reagiram, mudando a antena constantemente de posição. Quando as emissoras lacradas voltaram a funcionar, 24 horas mais tarde, não havia quem as operasse: os radialistas já estavam em sua maioria no porão do Piratini como voluntários. Uma a uma, as rádios solicitaram que o governo estadual as requisitasse também. Assim, estariam resguardadas do ponto de vista político, caso a situação pendesse para o lado federal. No dia 28, segunda-feira, a Rede reunia quatro emissoras. No dia seguinte, eram 114. Antes do fim da crise, havia quase 200 rádios. Em outros estados, a censura comia solta. No dia 3 de setembro, a Rádio Jornal da Verdade, de Florianópolis, saiu do ar em sinal de protesto em oposição ao controle do noticiário imposto pelo 5º Distrito Naval. As outras emissoras se negaram a atender à solicitação do contra-almirante Luiz Clóvis Siqueira, que pretendia divulgar as atividades e pronunciamentos do 5º Distrito Naval, contra a posse de Jango. No Piratini, qualquer frase só chegava ao microfone depois do crivo de Brusa Neto, que apunha um ok no papel. O fiscal de Brizola conseguiu driblar, entre outros, o imprevisível deputado fluminense Tenório Cavalcanti, que queria falar para o Brasil. Alagoano, 55 anos, fizera carreira política na Baixada Fluminense, depois de conquistar fama como pistoleiro. Conhecido como “O Homem da Capa Preta”, envolveu-se nas tramas políticas da região, enriqueceu, formou-se em direito, foi vereador e deputado estadual pela UDN, conquistando os votos dos nordestinos. Em 1954, fundara o jornal popular Luta Democrática, obtendo a maior votação para deputado federal do estado. Derrotado no pleito para o governo do Estado do Rio de Janeiro, elegeu-se novamente em 1962 para a Câmara, onde permaneceu até sua cassação, em junho de 1964. Andava para cima e para baixo com uma metralhadora, apelidada de Lurdinha – que não aparece nas fotos de Tenório na crise da Legalidade. Jornalistas e radialistas engajados na Rede da Legalidade divulgaram um manifesto nos jornais gaúchos, assegurando que não estavam sofrendo

nenhuma coação: Não temos armas na cintura, e muito menos nas nossas costas. Nossa arma é a pena e nossa tribuna a Rede da Legalidade. Somos 200, 300 ou 400. Todos voluntários. Momentos há que somos em número superior às máquinas de escrever, aos microfones e aos aparelhos de controle de som. Queremos auxiliar. Queremos ajudar. Esperamos nossa vez. Ninguém nos chamou. Viemos atendendo a um ditame de consciência. Viemos para defender a Constituição Não somos trabalhistas, não somos pessedistas, não somos udenistas, nem comunistas. Somos brasileiros. Somos democratas. Somos legalistas. Nada recebemos. Nossos serviços são gratuitos. Nossa colaboração é espontânea. A matéria que divulgamos não é censurada. Nós afirmamos: trabalhamos de acordo com a nossa consciência, de acordo com a nossa capacidade.3

Aos colegas de outros estados, submetidos à censura, ofereciam a tribuna da Rede da Legalidade para divulgar suas notícias, garantindo: “A Rede Nacional da Legalidade é um produto nosso, dos locutores, redatores e técnicos em radiodifusão. Foi criada pelos jornalistas livres do Rio Grande do Sul. Ela merece vossa sintonia”. Certas mensagens nem chegavam à mesa de Brusa: Hamilton Chaves enfurnou em sua gaveta a pilha de telegramas enviados por Cuba e pelos países do Leste. A solidariedade era bem-vinda, mas a prudência recomendava vista grossa diante do entusiasmo revolucionário alheio. Além das transmissões regulares, funcionou um arremedo de serviço secreto, com um sistema de contrainformação. Tudo começou quando um caminhão da Brigada Militar trouxe um equipamento de radioamador emprestado por um amigo de Hamilton Chaves. O rack de quase dois metros de altura foi instalado no porão do palácio, e sua potência colocada acima dos limites permitidos por lei. As transmissões passaram a interferir na navegação aérea. Eram tão potentes que, um mês depois, Hamilton Chaves recebeu uma mensagem de radioamadores da Nova Zelândia, reproduzindo o que aquele transmissor levava ao ar.

Hamilton Chaves pediu a um major do Exército que se instalara no Palácio Piratini que anotasse a localização de todas as corporações e guarnições militares que conhecia Brasil afora. Em seguida, o major redigiu boletins de guerra psicológica, com supostas mensagens em código, que eram repetidas horas a fio, durante as madrugadas. Algo semelhante a isto: “Atenção, operação morteiro... Atenção, guarnição de Xerém. Não ajam sem o sinal combinado. A ação deve ser fulminante. Não deve haver sobreviventes”. Hamilton imaginava que a artimanha pudesse surtir efeito: Como os informes incluíam os nomes de lugares onde realmente havia guarnições militares, do Rio Grande do Sul até o Amazonas, isso preocupava quem estava captando aquelas mensagens. Parecia que havia uma rede secreta, fulminante, aterrorizante, criada pela Rede da Legalidade.4

Alguns dias depois do início da crise, Brizola mandou Josué Guimarães para o Rio de Janeiro com uma missão impossível: instalar em pleno território de seu arquirrival, Carlos Lacerda, uma rádio clandestina. Com o codinome de Samuel Ortiz, Josué, que já era um excelente escritor, foi recebido por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Conseguiram um radioamador para montar a traquitana num automóvel. Por segurança, criaram um código: o técnico seria o alfaiate, e Samuel/ Josué, o freguês. Felizmente, Josué publicou romances e contos, não livros de espionagem, porque sua primeira experiência nesse campo resultou em alguns diálogos telefônicos surrealistas: “Olha aqui, seu Samuel, tem um problema com o seu terno. Eu não vou poder fazer a lapela de 20 metros; tem de fazer de 40 metros”.5 A antena/lapela de 40 metros permitiu fazer algumas transmissões a partir de Petrópolis, até que um radiogoniômetro, que identifica a origem de emissões, localizou o alfaiate e o freguês, que zarparam zunindo. A Rede da Legalidade não tinha uma programação regular: a qualquer momento, Brizola podia descer ao porão e ocupar o microfone (seu primeiro pronunciamento, dia 27, pouco depois das duas da tarde, levou 36 minutos).

Os locutores — Lauro Hagemann, Naldo Charão, Petrônio Cabral, Gonçalves Júnior, Carlos Miguel, Marino Cunha, José D’Elia, Almir Ribeiro, entre outros — revezavam-se, lendo telegramas e mensagens de entidades, associações, lideranças, gente do povo. Alguns programas especiais chegaram a ser veiculados, como a homenagem às Forças Armadas, que tentou conquistar Exército, Marinha e Aeronáutica de uma só vez com parágrafos como estes: Locução — Que as notas musicais ora transmitidas signifiquem o abraço amigo dos brasileiros do Sul àqueles que nos quartéis, nas ruas, nos campos, envergando a farda verde-oliva do glorioso Exército Nacional, guardam atentos a ordem e a legalidade. [...] Técnica — Entra marcha “Aí vem a Marinha”. Locução — Orgulhosamente os brasileiros veem chegar às águas amigas do Atlântico Sul as unidades da indômita e valorosa Marinha do Brasil... Navegando tranquilas, em oceano calmo, as belonaves brasileiras percorrem nossas costas, dando comovente e impressionante espetáculo de vitalidade da Marinha Nacional que o nome de tantos heróis inscreveu na história do Brasil. Sede bem-vindos, brasileiros denodados! Nosso povo acena lenços brancos — símbolo dos desejos de paz que a todos reúne em comunhão — dando boas-vindas aos descendentes de Tamandaré e Barroso.

De tanto em tanto, marchas militares, um pequeno pronunciamento e meia dúzia de vivas: “Viva o governo gaúcho! Viva o Terceiro Exército! Viva a Quinta Zona Aérea! Viva a Brigada Militar! Viva as Forças Armadas! Viva a Legalidade! Viva Leonel Brizola! Viva o general José Machado Lopes! Viva o brigadeiro Aureliano Passos!”. Pontos de exclamação não podiam faltar: “Gaúchos! Trabalhadores e estudantes! Homens e mulheres! Chegou a hora da mobilização total do Rio Grande do Sul para a defesa a qualquer preço da Constituição! Organizai os comitês populares contra o golpe! Cada casa, cada família, cada lar é uma frente de batalha contra o golpe!”.

Para saudar a Legalidade e seus defensores ou criticar o inimigo solerte, toda forma de expressão era válida, do poema — como o que César Pereira encaminhou, com a observação de que poderia ser lido ao microfone “quantas vezes a Rede da Legalidade quiser” — à oração assinada por Lia Corrêa, da rua Coronel Fernando Machado: Salve a Constituição Gaúcho valente e bravo/ que jamais será escravo/ de ditaduras cruéis. Nosso grito já se expande/ de norte a sul do Rio Grande/ em direção aos quartéis. Nosso grito é de união/ pra libertar a Nação/ das garras do Imperialismo. Lacerda — Judas maldito/ há de cair frente ao grito/ de justiça e patriotismo. [...].6

A partir de terça-feira, 29, começou a funcionar a Ponte da Amizade, nos mesmos moldes do serviço prestado pelas emissoras de pequenas localidades. Das duas às quatro da madrugada, os locutores transmitiam recados e mensagens para parentes e amigos dos gaúchos momentaneamente isolados em Porto Alegre. Registrados em formulários mimeografados, com o nome do informante, endereço no Rio Grande do Sul, destinatário e conteúdo da mensagem e submetidos ao crivo de Brusa Neto ou Hamilton Chaves, os recados eram como estes: João César de Albuquerque, morador de Porto Alegre, informa a Maria de Sousa, em Natal, Rio Grande do Norte, que está tudo bem por aqui e que aguarda, ansioso, notícias. A sra. Teresa Izaguirre, de Porto Alegre, pede que se diga a Jaime Izaguirre, seu marido, no Parque da Aeronáutica, Rio de Janeiro, que aguarda notícias. Sólon Andrade de Araújo Sobrinho, desta capital, informa a Salomão Andrade de Araújo, em Botafogo, no Rio de Janeiro, que estão todos bem e que ele espera solidariedade para com a Legalidade. Gentilina Torres de Oliveira, da avenida dos Industriários, nesta capital, informa a Orlando Gomes da Silva, no Rio de Janeiro, que Baiano, Maria da Graça, sua mãe e

seus irmãos pedem notícias. Nelson Vaccari, diretor de programação da TV Piratini, manda avisar sua mãe no Rio de Janeiro que está tudo em paz e ela não precisa se preocupar. Ele já recebeu a escova de dentes e a toalhinha, mas por enquanto não está precisando. Atenção: Wilson Fogassi, em Belém do Pará: Rita Castilhos Fogassi, de Porto Alegre, pede notícias, insistentemente. Esta é a Ponte da Amizade, um serviço da sua Rede da Legalidade. Para que você mande a sua mensagem, o telefone é o 75-82, repetindo, 75-82, aqui em Porto Alegre.7

No dia 31, começaram as transmissões em língua estrangeira. Érica Coester Kramer, estudante de jornalismo da Universi dade Federal, fazia as traduções para o alemão e ia para o microfone. Até em árabe a Rede transmitiu, graças aos préstimos de Abul, um vendedor de roupas jordaniano com pendores para a locução. Dublê de ator e repórter de televisão, Odilon Lopez lia telegramas em inglês, francês, espanhol e italiano. Na TV Piratini, Odilon aparecia todos os dias. Mais exatamente, um slide com a foto dele empunhando a câmera e os dizeres “O dia no aeroporto com Odilon Lopez”. O jovem repórter registrava quem estava chegando e quem partia do Salgado Filho. Com sua câmera Bell & Howell, 16 milímetros e dois rolinhos de filme, Odilon foi para a Assembleia Legislativa no início da confusão. Os oradores sucediam-se ao microfone, um mais inflamado que o outro, quando se ouviu o estampido seco de um tiro: “Foi uma correria naquela Assembleia. Tinha sido dado um tiro do lado de fora. Eu fiquei preso no plenário, porque os desgraçados, além de terem ido embora, ainda trancaram a porta. Pulei a janela e saí no pátio do palácio. O tal tiro era um dos guardas que tinha deixado cair o mosquetão [...].”8 No Piratini, Odilon filmou a montagem das metralhadoras na torre da igreja, a movimentação dos soldados da Brigada Militar, a multidão chegando à praça em frente. Viu, por exemplo, o corre-corre provocado pelo barulho de um grande

veículo aproximando-se. Todos imaginavam que era um tanque do Exército, mas tratava-se de um velho caminhão da Brigada Militar. O cinegrafista ainda estava no palácio quando Gudy Edmunds, estrela do programa Patrulheiros Toddy, da TV Piratini, chegou acompanhado de um grupo de fãs do programa devidamente uniformizados, para juntar-se aos militantes. Os rapazes receberam armas, para irritação de um senhor já idoso, que protestou: “Olha aqui, o perigo é esses guris atrás da gente, porque eles estavam reclamando pra mim que os fuzis estavam furados.Eles pegaram bala de 22 e queriam botar nos fuzis. Quando baixavam o cano, a bala saía”.9 A praça da Matriz foi o cenário das ações coletivas durante toda a crise. Ali os porto-alegrenses passavam boa parte dos dias e das noites, em busca de notícias, dispostos a viver cada lance da novela que acompanhavam pela rádio e pelos jornais. Na manhã de segunda, 28, com um grupo de manifestantes que dava vivas à Legalidade, surgiu o couro de um jacaré empalhado com os dizeres “Denis, traidor”. Denis com i mesmo, já que o importante era o protesto, não a grafia. Um grupo de mineiros vindos de São Jerônimo passou dez dias acampado em barracas, preparando as refeições num fogão de trempe, e fazendo correr a cuia de chimarrão sempre fumegante. Na mesma praça, um cinegrafista mais experiente, chamado Esperandi, que estivera na Segunda Guerra Mundial, instruía Odilon Lopez sobre como filmar o anunciado bombardeio do Piratini, quando ambos, cigarro no canto da boca, foram cercados por soldados da Brigada Militar, dispostos a prendêlos: “Vocês estão sinalizando para o inimigo!”. Odilon ficou apenas com as lembranças daqueles dias. As imagens que fez para a TV Piratini ele entregou, anos mais tarde, a um adido cultural norteamericano, identificado apenas como sr. Barrett, que lhe ofereceu uma bolsa de estudos e pediu alguns exemplos de seus trabalhos: “Ele botou a mão no filme da Legalidade, não me atendeu mais e sumiu. E aí, como eu fiquei em cima, quero o meu filme, quero meu filme, eles me deram uns filmes virgens e disseram que meu trabalho tinha desaparecido”.10 Os dias de Odilon deviam ser longos em 1961. Além de suas atividades

como repórter, integrava, ao lado de Ítala Nandi, Paulo José, Paulo César Pereio, Fernando Peixoto, Ivete Brandalise, Milton Mattos, o elenco do maior sucesso teatral da cidade: O despacho, de Mário de Almeida e Lara de Lemos. Essa sátira ao poder constituído contava a trajetória de um casal humilde, Maria e Manuel, que se elegeu deputado federal e que, em Brasília, acompanhava as mazelas políticas da época, fazendo violentas críticas ao Corvo, Carlos Lacerda. A música da peça — “em marmita de pobre/ não entra caviar nem estrogonofe/ marmita de pobre é banquete de macaco” — virou sucesso popular. O despacho não teve sua carreira de quatro meses interrompida nem naqueles dias — ficaria um ano em cartaz, indo para os bairros nos fins de semana. O elenco e todo o Teatro de Equipe tinham mais o que fazer. Artistas, jornalistas, escritores e habitués escreviam slogans, desenhavam faixas e cartazes. Era o Comitê de Artistas e Intelectuais pela Legalidade. O Teatro de Equipe foi fundado em 1957 pelo diretor Mário de Almeida, que trocara o Rio por Porto Alegre. Ele juntou-se a Milton Mattos, Paulo César Pereio, Paulo José, Ruy Carlos Ostermann e Glênio Peres, alugou uma casa de três pavimentos na rua General Vitorino, 512, próximo à Santa Casa, no centro de Porto Alegre. Começou a reformá-la com trabalho voluntário e materiais doados. O projeto ganhou impulso depois que informações sobre o grupo passaram a ser publicadas diariamente no rodapé da página que a jornalista Célia Ribeiro tinha no jornal A Hora. A oferta de poltronas cativas foi tão bem recebida que conseguiram vender 240 lugares — o dobro da lotação —, terminando a obra e equipando o teatro. Além de O despacho, o Equipe teve outros sucessos, como Farsa da esposa perfeita, de Edy Lima, remontada três vezes. O local transformou-se num polo cultural da cidade: o bar foi decorado pelo escultor Xico Stockinger e pelo artista plástico Glênio Bianchetti; no porão, instalou-se uma galeria de arte; estabeleceu-se um intercâmbio com o Teatro de Arena, de São Paulo, e o Teatro Jovem, do Rio, e havia palestras todas as se gundas-feiras. Outros juntaram-se ao núcleo original, como os

jornalistas Fernando Peixoto e Luís Carlos Maciel, os arquitetos Miguel Pereira e Oscar Trindade e a atriz Lilian Lemmertz. Quando a crise começou, a poetisa Lara de Lemos criou oito versos entusiasmados, a pedido de Brizola. Musicados por Paulo César Pereio, que se inspirou no Hino Nacional e na Marselhesa, o Hino da Legalidade foi gravado a toque de caixa em acetatos confiscados nas Lojas Mesbla, por um coral improvisado pelo elenco do próprio Equipe. Nos primeiros dias da crise, os ouvintes já decoravam a letra: Avante brasileiros de pé Unidos pela liberdade Marchemos todos juntos de pé Com a bandeira que prega a igualdade Protesta contra o tirano Se recusa à traição Que um povo só é bem grande Se for livre como a nação.

A primeira versão sofreu duas pequenas mudanças: os gaúchos do original viraram brasileiros — afinal, era preciso empossar o presidente do país, não de um estado apenas. E a igualdade preconizada na bandeira era liberdade originalmente. O Comitê de Artistas não vivia só de arte: para comprar gasolinae movimentar os dois caminhões que deveriam animar comitês no interior, entrava em ação a Comissão de Requisição de Combustível — novo nome para a velha prática do pedágio. Uma atriz, como Moema Brum, saía para a rua com um cartaz, desenhado pelo Xico Stockinger, enquanto um ator, Paulo César Pereio, por exemplo, carregava um galão de vidro e uma mangueira. Moema convencia o motorista: “Nós queremos tirar só quatro litros para os carros do Movimento”. No fim do primeiro dia, Pereio chegou ao teatro tão intoxicado de chupar gasolina com a mangueira que foi para o pronto-socorro. O grupo todo

dormia no teatro e, a partir do terceiro dia, passou a receber mantimentos das famílias de Porto Alegre. A mobilização em favor da Legalidade era ampla, geral e irrestrita. Quem quisesse se engajar no movimento tinha um endereço certo: um edifício provisório no formato de uma cuba cortada ao meio, que recebera o apelido de Mata-Borrão. Construído para abrigar uma exposição fotográfica das obras do governo, estava abandonado. Na tarde de sábado, 25, Fernando Almeida, funcionário do Instituto de Aposentadoria dos Industriários, o advogado Victor Douglas Nunez e alguns líderes sindicais discutiam o que fazer diante da renúncia de Jânio quando resolveram instalar naquele prédio um comitê ainda indefinido. Procuraram o guarda que cuidava do edifício, que exigiu uma autorização. Vinte metros adiante, Fernando pegou um pedaço de papel, inventou a autorização e assinou-a. Faltava um nome: Comitê de Defesa da Democracia, Comitê de Resistência, Comitê de Resistência Democrática. Diretoria escolhida: presidente, Fernando Almeida; 1º vice, Marat Buazewsk; 2º vice, Demóstenes Escobar; 3º vice, Paulo Medeiros; 4º vice, Salvador Viaro; secretário, Jary Schmidt; e diretor de propaganda, Victor Nunez. Objetivos definidos: “Recrutar voluntários, para quaisquer eventualidades, organizar palestras e comícios, confeccionar cartazes e faixas e coletar fundos”. Nunca um comitê foi tão bem recebido pela população. Cinco dias mais tarde, com cem pessoas trabalhando nos subcomitês de saúde, divulgação e cozinha, as inscrições chegavam à casa dos 40 mil. Gente disposta a pegar em armas, trabalhar de graça, doar sangue pela Legalidade. Um pequeno jornal chamado Resistência fornecia toda a orientação para a multiplicação dos comitês, que logo se espalharam por todo o estado. Surgiram batalhões operários e estudantis. A UNE, já instalada em Porto Alegre, decretou greve geral, seguida pela União Estadual de Estudantes (UEE) e pela União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas. (O movimento era facilitado pela decisão do governo de suspender as aulas durante toda a crise.) Entre os que coletavam inscrições no Mata-Borrão havia pessoas sem

vínculos com nenhuma organização e militantes de vários partidos. Como João Amazonas, então dirigente do PCB, que a direção do PC exilara em Porto Alegre por ter se recusado a acompanhar a autocrítica feita pelos comunistas brasileiros, na esteira do relatório de Krutchev. (No XX Congresso do PCUS, em 24-25 fevereiro de 1956, o primeiro-ministro soviétivo Nikita Krutchev apresentara um relatório em que denunciava os crimes de Stálin e o “culto da personalidade”.) As filas na porta do estranho edifício cresciam cada vez mais. Jovens e idosos, anônimos e famosos tinham orgulho em assinar as fichas improvisadas. O folclórico deputado Tenório Cavalcanti esteve lá e preencheu uma ficha, cercado de admiradores e curiosos. O cantor e compositor Juca Chaves, no auge do sucesso, também. Passado o sufoco, Juca comporia mais uma modinha: Constituição, Constituição, acabou-se, que tormento, já temos um parlamento, falta um rei. Que papelão! Parlamento na Inglaterra é artigo de alto luxo, fica bem na Inglaterra, não pro Jango, que é gaúcho. E o Brizola não deu bola, Jango botou cartola e acabou a revolução. E viva a Constituição.

O governador Brizola foi ao Mata-Borrão mais de uma vez, muito embora seus organizadores quisessem manter certa independência do governo do estado. Certa noite, chegou um integrante de um Centro de Tradições Gaúchas e apresentou-se pilchado — vestido a caráter — ao chefe do alistamento:

— Sou lá do interior e viemos aqui nos apresentar para defender a Legalidade. — Mas onde está seu grupo, quantos são? — Pra lutar só eu, os outros são da invernada artística.11

No centro nervoso da resistência, muita gente passava dias e dias dentro do Palácio Piratini, comendo quando dava e dormindo nas poltronas. A intendência do corpo de guardas fazia sanduíches. Antônio Carlos Porto, repórter e comentarista esportivo da Rádio Guaíba e da Folha da Tarde, lembra de um guisado de charque com couve e feijão; dona Odete, a mulher de Brusa Neto, levava todos os dias comida e chocolate quente. Houve até um arroz carreteiro na terceira noite, mas o cozinheiro teria ido embora para defender a mulher e os filhos, depois de ter recebido um revólver Taurus tinindo de novo. Pode ser lenda, mas existem fotos do cozinheiro com uma arma sobre o avental branco. Mais de 400 jornalistas credenciaram-se na assessoria de imprensa. As credenciais eram batidas à máquina e assinadas por Hamilton Chaves. Uma tarde, ele reuniu os correspondentes estrangeiros — havia gente do mundo todo — e tentou amaciar a turma: Queria dizer aos senhores que esse movimento não tem nenhuma conotação, a não ser o cumprimento da Constituição. Não é um movimento revolucionário, não pretende mudar a estrutura do país, quer simplesmente o cumpri mento do preceito constitucional que assegura ao senhor João Goulart a posse na Presidência da República. Agora, se houver uma ruptura e houver choque armado, só o processo revolucionário vai determinar quem vai sentar na cadeira em Brasília. Então, a responsabilidade dos senhores é muito grande em bem informar a opinião pública mundial, no sentido dos objetivos democráticos do nosso governo. Faço um apelo para que não haja deformações neste sentido, nem intrigas. Aliás, peço aos senhores que mostrem suas credenciais [...].

Entre preocupados e curiosos, os profissionais sacaram imediatamente as cartas datilografadas que o governo gaúcho lhes fornecera. Hamilton, revólver

na cintura, continuou: Estou pedindo isso, apenas pra dizer o seguinte: como esse movimento é democrático e de improviso, eu não tive tempo de plastificar as credenciais. Mas na próxima revolução, pra mostrar que talvez seja pra valer, nós vamos ter documento plastificado [...].

A gargalhada foi geral. Nesse clima de improviso e descontração, todos os jornalistas tinham acesso livre aos precários meios de comunicação do Piratini, e, desse modo, o mundo inteiro pôde acompanhar o desenrolar da crise. Transportar filmes e fotos para fora de Porto Alegre ficou complicado. Não havia voos regulares para outras capitais, e todos os aviões eram revistados ao pousar. Com um pacote de filmes para a televisão, negativos para jornais e alguns para as revistas, Hamilton Chaves foi para o aeroporto. Lá conseguiu um piloto, um pequeno avião do governo e um funcionário do Departamento de Aeronáutica Civil disposto a levar a encomenda. Era preciso burlar a vigilância militar no desembarque. Hamilton notou então um negro bem-vestido. Era Dorval, um dos jogadores gaúchos mais expressivos da época, que começara a carreira no Força e Luz de Porto Alegre — clube já extinto. Ponta-direita, nascido na capital gaúcha, Dorval estava no Santos Futebol Clube e precisava ir para São Paulo jogar no domingo. Hamilton ofereceu carona ao craque, em troca de um favor: levar aquele saco de lona. O avião foi reabastecido em Curitiba e, ao pousar no Campo de Marte, em São Paulo, foi imediatamente cercado por militares. Seus tripulantes foram detidos, até o funcionário do Departamento de Aeronáutica Civil (DAC) explicar ao coronel da Aeronáutica que chefiava a tropa: “Esse aí é o Dorval, do Santos, ele joga domingo...”.12 O coronel voltou-se para o atleta, mudou o tom da conversa e liberou todos, sem submetê-los a revista: “Pois é, negão, eu não tinha te visto, faz o teu no domingo, faz o teu...”.

O jogador foi liberado, e o material chegou às redações e emissoras de TV de São Paulo. Mesmo nos momentos de maior tensão, certo clima de caserna ou de assembleia estudantil era inevitável. Na madrugada de segunda, 28, dava-se como certa a chegada dos tanques que viriam atacar o Piratini. (Eles saíram do quartel, mas ficaram no bairro da praia de Belas.) Às duas da manhã, Josué Guimarães, que dormitava num sofá, a metralhadora ao lado, foi sacudido pelo jornalista Carlos Contursi, da assessoria de imprensa do Piratini: — Acorda, Josué, os tanques da Serraria estão chegando! — Que horas são, Contursi? — Duas da manhã. — Contursi, deixa eu dormir... Me chama quando chegarem os tanques das quatro...

O repórter João Souza, da Última Hora, estava sentado num sofá comprido, próximo ao estúdio improvisado, quando alguém alertou, nervoso, que os tanques estavam chegando. Foi o suficiente para que um garçom com uma bandeja de água mineral começasse a tremer tanto que quase derrubou as garrafas. Alta madrugada, surgiu outra vez a história dos tanques da Serraria, e o jornalista Carlos Bastos, da UH, ouviu o grito de Josué Guimarães: “Fechem as portas porque senão não fica ninguém aqui”. Pouco depois, o locutor de plantão encerrava mais um dia de transmissões da Rede da Legalidade, com a despedida usual: — Boa noite, soldados do Exército Nacional. Boa noite, soldados da Brigada Militar. Boa noite, marinheiros do Brasil. Boa noite, aviadores da nossa pátria. Boa noite, compatriotas de todo o país. Voltem a sintonizar a Rede Nacional da Legalidade às sete horas de hoje, com seu primeiro boletim informativo. — Boa noite, Brasil.

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No Palácio das Esmeraldas

28 DE AGOSTO, início da manhã, Palácio das Esmeraldas, Goiânia. No gabinete privativo do segundo andar, um homem de 41 anos, acentuadas entradas e estatura média, relaciona num pedaço de papel — como quem faz a lista do mercado — a força federal estacionada em seu estado. Eram 849 homens, armados com 37 canhões, 21 bazucas, 800 granadas, 6 morteiros e mais de 100 mil tiros para 9 metralhadoras pesadas e 20 INAs. Para se deslocar, dispunham de 8 aviões DC-3, 4 jatos Paris, 4 aviões Gloster Meteor, 4 Sky Master e 8 carros de combate. Numa crise, essas tropas ainda poderiam receber reforços rapidamente, já que a 180 quilômetros de distância, em Brasília, a nova capital, unidades de elite das três armas estavam prontas para entrar em ação. Para enfrentar esse contingente todo, o governador Mauro Borges Teixeira só dispunha de 300 mal armados policiais militares. Mesmo assim, o tenentecoronel reformado resolveu enfrentar a força dos ministros militares, apoiando a Legalidade. Filiado ao PSD, o governador de Goiás não tinha intimidade com Jango, mal conhecia Brizola e não votara em Jânio — seu estado fora o único a dar a vitória ao marechal Lott. Menos de 24 horas depois da renúncia do presidente, durante uma reunião com secretários, deputados, assessores, simpatizantes e seu pai, o médico e senador Pedro Ludovico Teixeira, ele recebera um estímulo vital para sua decisão. Amigo e companheiro de Getulio desde a Revolução de 1930, Pedro Ludovico tinha sido um dos maiores caciques da política regional. Fora interventor em Goiás durante o Estado Novo. Em 1942, inaugurara a nova capital do estado, Goiânia, construída a partir de um projeto art déco. Dessa forma, Mauro Borges anunciou sua posição: “Se a sucessão não ocorrer dentro do respeito da Constituição, Goiás estará pronto a lutar em defesa da ordem

nacional. Qualquer atitude que não diz respeito à Constituição constituirá em sérios riscos à Nação”.1 Nascido em Rio Verde, Goiás, Mauro Borges estudou no Colégio Salesiano de Uberaba, em Minas, e, aos 18 anos, matriculou-se na Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro. Oito anos depois estava no 7º Regimento de Infantaria, em Santa Maria, centro do Rio Grande do Sul. Nas folgas do quartel frequentava as matinês dançantes. E foi numa delas que conheceu uma moça de 15 anos, Maria de Lourdes Dornelles Estivaler, com quem se casou um ano depois. O casal teve cinco filhos — Mauro Borges Júnior, Ubiratan, Yara, Pedro Ludovico e Rodrigo Borges. Entre 1952 e 1954, já como major do Exército, foi diretor da Estrada de Ferro de Goiás. Exonerou-se após o suicídio de Vargas e voltou ao quartel. Entusiasta da mudança da capital federal para o planalto central, participou de vários órgãos que cuidaram do assunto. Em 1958, elegeu-se deputado federal na legenda do PSD. Apresentou projetos de interesse para a região Centro-Oeste, que lhe deram projeção regional. Entre eles, a criação de uma comissão para os vales dos rios Araguaia e Tocantins e a formação de uma empresa mista para a exploração industrial de babaçu. Integrou a Frente Parlamentar Nacionalista, entidade interpartidária que condenava a entrada maciça de capital estrangeiro no país e defendia a manutenção do monopólio estatal sobre o petróleo. Já como coronel da reserva, candidatou-se em 1959 ao governo do estado, com o lema “Nacionalismo e desenvolvimento”. Goiás, naquela época, tinha 1,9 milhão de habitantes e uma economia baseada na criação de gado e na agricultura — arroz, feijão, café e algodão. Seu programa de planejamento, reformas e justiça social agradou os eleitores. Derrotou seu primo, José Ludovico de Almeida, candidato à reeleição pela coligação UDN-PSP, e assumiu o governo em fevereiro de 1961. Acusado de comunista pela direita, de conservador pelos comunistas e por outros de liberal, defendia uma economia livre e competitiva, sem excesso de Estado. Enfrentou os cartéis da indústria farmacêutica, de seguros, metais e outros setores.

O governador via nas jazidas metálicas da região de Niquelândia, as maiores do planeta, uma possibilidade de desenvolvimento para Goiás. Mas a concessão estava nas mãos do empresário José Ermírio de Moraes, que alegava dificuldades econômicas, postergando o início da exploração. No Palácio do Planalto, antes da renúncia de Jânio, Mauro Borges apresentara o problema e pedira a intervenção do presidente. Jânio ouvira em silêncio e, quando o governador terminou, fizera apenas uma pergunta: “O senhor sabe o que está me pedindo?”. Borges respondera que o caso fugia de sua alçada, era de competência federal. Jânio prosseguira: “O senhor talvez não saiba que o senhor José Ermírio de Moraes foi o homem que mais me ajudou financeiramente em minha campanha política... Mas isso não impede que eu cumpra o meu dever”.2 Mandara chamar um taquígrafo e ditara um bilhetinho ao ministro de Minas e Energia, João Agripino, dando 90 dias ao Grupo Ermírio de Moraes para iniciar a exploração da jazida, sob pena de declarar-se a caducidade da concessão. O gesto conquistara para sempre a confiança de Mauro Borges. No sábado, 19 de agosto, durante um voo para Vitória, no avião presidencial, ele ouvira um verdadeiro rosário de queixas contra o governador da Guanabara. Jânio dissera que Lacerda sentia-se um fracassado e ameaçava renunciar e que isso poderia causar grandes confusões no país. Inaugurado o novo cais de minérios, mudara a rota de retorno, indo para o Rio, enquanto Mauro Borges voltava a Goiás. Só reencontraria Jânio seis dias mais tarde, na base aérea de Cumbica, já como ex-presidente. Ainda em São Paulo, o governador deu suas primeiras declarações sobre a renúncia, defendendo a manutenção da discutida política externa: “Lamento profundamente a renúncia de Jânio Quadros, que se empenhava de corpo e alma na solução dos angustiantes problemas de nossa terra. [...] Não podemos dar passos atrás e regredir a situação do país tutelado na conduta de seus negócios externos. [...]”.3 No final da manhã de sábado, 26 de agosto, foi recebido no aeroporto e seguiu diretamente para o Palácio das Esmeraldas, na praça Cívica, o coração

da cidade, onde nascem todas as avenidas importantes da capital goiana. Depois da reunião com seus companheiros, em que seu pai deu o tom, como sempre, o coronel Clementino Gomes mandou isolar o palácio, colocando uma tropa da Polícia Militar na parte de trás do edifício. Diante do veto militar à posse de Jango, o governador não teve dúvidas: ficou do lado da lei e da democracia. Não via nenhum problema na posse de Goulart, que considerava um político equilibrado e dócil.4 Além disso, não concordava com a tutela do Brasil por organizações militares e muito menos por ministros fardados. “Este foi o principal motivo que me fez enfrentar o golpe”, disse, mais tarde. Mauro Borges tinha consciência de que, mesmo com sua experiência militar, a resistência não seria fácil: os três batalhões do Exército existentes em Goiás obedeceriam ao Comando do Exército. No final da noite de domingo, recebeu seu amigo Archimedes Pereira de Lima, que vinha de uma reunião em Brasília, na casa do deputado federal pelo Rio Grande do Sul César Prieto, trazendo uma carta. Nela, o parlamentar fornecia algumas informações sigilosas e fazia dois pedidos: uma proclamação em favor do cumprimento da Constituição e garantias para o desembarque de Jango em Goiânia. A proximidade de Brasília era um complicador adicional. O Distrito Federal está incrustado em território goiano. A energia que alimentava a capital federal provinha toda da Cachoeira Dourada: bastava desligar uma chave para que Brasília ficasse às escuras e parasse. Por esse motivo, os ministros militares viam Goiás como uma ameaça real. Precavido, Mauro Borges organizou um Estado-Maior e um esquema detalhado que previa a retirada de dois ou três aviões pequenos do Aeroporto Santa Genoveva, um plano de defesa de Goiânia contra ação externa, distribuição de armas a voluntários e controle das rádios e das transmissões. Às oito horas da manhã de segunda-feira, 28, distribuiu as tarefas a seus auxiliares, de acordo com a função de cada um. Antônio Porto, chefe das Relações Públicas, ficou responsável pela instalação, no Palácio das Esmeraldas, de um equipamento adequado para transmissões de longo

alcance da Rádio Brasil Central, emissora governamental. O técnico Francisco Kolovisck montou o esquema, adaptando uma linha telefônica aos equipamentos. Logo depois do primeiro teste, estava tudo pronto para a leitura do manifesto, escrito pouco antes por Mauro Borges: [...] Lutemos, tão logo seja oportuno e enquanto for possível, pelas formas que se fizerem necessárias, porque, depois de implantado e consolidado o regime de opressão, será muito difícil, senão impossível, destruí-lo e restabelecer a legalidade democrática, devolvendo ao povo a sua dignidade conspurcada. [...] Aos companheiros e ao povo de Goiás, peço para que se mantenham calmos, que aguardemos as decisões do Congresso e dos responsáveis pela manutenção da paz social, pois das atitudes deles dependerá a nossa palavra de ordem.5

Seguindo a orientação do governo do estado, a Rádio Brasil Central repetiu a transmissão da nota duas vezes, deflagrando o Movimento de Resistência em Defesa da Legalidade em Goiás. A repercussão foi imediata e positiva, não só no estado, mas nacionalmente. O Correio da Manhã do Rio de Janeiro estampou na primeira página: “Governador goiano faz apelo pela Legalidade”. Em Brasília, o deputado Almino Affonso aplaudiu a “admirável atitude do governador, que convoca à luta legalista, democrática e patriótica”.6 No manifesto, Mauro Borges denunciava os ministros militares e apoiava a posse de Jango. O Popular, diário mais importante da região, deu em manchete: “Mauro denuncia ministros e conclama o povo à resistência legalista”. O jornal esgotou-se rapidamente. A censura também veio logo. A Rádio Brasil Central e outras emissoras tiveram seus transmissores lacrados pelo Exército, que obedecia ordens de Brasília. Em Anápolis, segunda cidade mais importante do estado, a Rádio Carajá foi fechada depois de divulgar a decisão do governo, apesar dos protestos diante do prédio. A Rádio Brasil Central foi ocupada pela Polícia Militar e passou a operar sob o comando direto do governador, desobedecendo à ordem de censura. O

manifesto despertou o povo para a luta. O Palácio das Esmeraldas começou a fervilhar de gente que levava solidariedade e também se colocava à disposição para a resistência, fazendo imensas filas para o cadastramento. Jovens que nunca tinham lidado com armas começavam a ser treinados em ruas, praças, pátios de escolas e órgãos estaduais. As surpresas do dia 28 ainda não tinham acabado. No meio da tarde, chegou a notícia de que o comandante do III Exército, Machado Lopes, apoiava a resistência, ficando ao lado de Brizola, o que deu certo alívio a Mauro Borges: “Só pensei duas coisas quando soube da adesão. Ou mergulhamos numa guerra civil ou os ministros militares vão tentar negociar uma saída para não enfrentar o III Exército”.7 Por prudência, o governador decretou feriado escolar de 28 a 31 de agosto. A Secretaria de Segurança proibiu o uso de bebidas alcoólicas em Goiânia, e todas as forças policiais do estado — civis e militares — foram convocadas para treinar os voluntários. À noite, uma sessão conjunta da Assembleia Legislativa e do Grande Conselho da Maçonaria de Goiás hipotecou integral apoio ao governador. O vereador Tabajara Póvoa preparou um grande comício na praça dos Bandeirantes. A União Estadual dos Estudantes e a União dos Estudantes Secundaristas também prestaram solidariedade. Não havia uma voz dissonante no estado: “Não lembro de alguém que tenha ficado contra aquele movimento que surgiu rapidamente”.8 No dia seguinte, terça-feira, 29, aconteceu a primeira troca de informações entre Brizola e Mauro Borges. Pela rádio de Goiás, falando do porão do Piratini, o governador gaúcho elogiou a disposição de Borges de abrigar Jango, se necessário. A perspectiva era levada tão a sério que, em apenas três horas, o Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de Goiás (Dergo) construiu uma pista de pouso ao lado de penitenciária agrícola para receber o presidente. À tarde, em razão da precariedade de armamentos à disposição, o governador apreendeu, sem nenhuma dificuldade, todas as armas e munições dos estabelecimentos comerciais de Goiânia, colocando-as sob custódia no Batalhão Anhanguera.

A partir de Brasília, lideranças políticas e militares tentaram, sem sucesso, demover Mauro Borges da ideia de resistir. A partir de então, várias medidas de agressão foram tramadas contra Goiás. Na manhã do dia 30, o telefone tocou no gabinete. Era a deputada Ivete Vargas, do PTB, querendo falar com o governador: “Tenho a informação de que está seguindo para Brasília, com passagem por Goiânia, um grupamento de canhões antiaéreos 40 mm”.9 E, esquecendo da formação militar de Mauro Borges, completou: “Cuidado com esses canhões, ao mesmo tempo que atiram para cima, atiram também na horizontal e têm grande poderio de fogo”. O governador agradeceu a informação e ligou para o general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar do presidente interino, que não o atendeu. Mauro Borges só conseguiu falar com o general Reinaldo Almeida Melo, chefe do Estado-Maior e seu ex-professor na Praia Vermelha. Pediu que a Unidade de Artilharia não passasse por Goiânia, porque isso seria uma afronta ao seu governo. Nervoso, o general perguntou o que faria caso as tropas passassem pelo estado. Mauro Borges não teve dúvidas: “Eu ataco a Unidade na estrada”.10 Os canhões não passaram por Goiânia. Mas, logo em seguida, outra notícia inquietou o governador. Parte da brigada de paraquedistas atacaria a cidade, tendo como alvo o Palácio das Esmeraldas. Os soldados ocupariam a sede da resistência. Para evitar o assalto, foi reforçada a defesa, com barricadas na frente do prédio, canhões na marquise e metralhadoras no telhado. Tudo muito bem vistoriado pelo governador, que, de botas, calça escura, paletó claro e mãos cruzadas nas costas, conferia armamentos, munições e soldados. Policiais e voluntários treinados às pressas, sob o comando do coronel Clementino Gomes, foram espalhados pelos pontos estratégicos da cidade. Na praça Cívica, a partir do dia 30, o trânsito foi proibido. À noite, nem pedestres podiam passar — só os credenciados com senhas distribuídas pela segurança do governo. O maior problema eram armas e munições: Tentei muitas vezes obter armas, mas não consegui. Quis comprar da Companhia Brasileira de Cartuchos algumas munições, mas não tive sucesso porque era necessária autorização do II Exército. A única coisa que me valeu foi dar a

contrainformação: espalhei que havíamos comprado um milhão de tiros de metralhadora e de fuzil no Paraguai, que estariam guardados no palácio. Cada vez que dava a notícia, pedia para que as pessoas não divulgassem. Todo mundo acabou pensando que tínhamos armamentos suficientes para nos defender.11

Uma das maiores preocupações do governador era manter um grupo de prontidão para o caso de ser atacado. Ele, a mulher e seus principais assessores não arredavam o pé do palácio. Dona Lourdes foi peça importante na crise, segundo o próprio Borges: “Ela funcionava como relações-públicas, atendendo as pessoas. Eu ficava mais ligado aos planos de defesa e ataque”.12 Dona Lourdes atendia em sua sala, sempre com a porta aberta. Os populares a procuravam para se inscrever nos comitês pró-Legalidade, que logo foram espalhados em diversos pontos da cidade. Além disso, a primeiradama liderou a adesão das mulheres, criando o Comitê Constitucionalista Feminino, com centenas de inscritas. As pessoas registradas eram rapidamente colocadas no treinamento, responsabilidade dos coronéis Clementino Gomes e Luiz de Freitas Silveira. Eles ensinavam como manejar armas, defesa pessoal, primeiros socorros e educação física. As aulas eram dadas nos pátios das faculdades e da Casa de Detenção — Penitenciária Velha. Para manter bem informada a população, Mauro Borges resolveu, a partir do dia 30, expedir comunicações oficiais, dando conta do desenrolar dos acontecimentos. Era uma forma de acabar com a boataria e com as notícias desconexas que chegavam ao povo. O comunicado nº 1 citava Rui Barbosa na abertura: “Com a lei, dentro da lei, porque fora da lei não há salvação”.13 Informava que os ministros militares haviam se retirado para o Rio de Janeiro e a situação só seria esclarecida quando Jango chegasse ao Brasil e assumisse o governo. Manifestava absoluta confiança no Exército nacional, dizendo que era o mais democrático da América Latina. Mais uma vez pedia calma e o apoio de seus conterrâneos. E encerrava o comunicado dizendo que em Goiás “superam-se todas as dissenções. Acima do partidarismo político, acima das escolas filosóficas, para a ordem legal e democrática”. Cada vez

mais o governador aglutinava forças em todas as esferas da sociedade e ia quebrando a resistência de setores do Exército e da Aeronáutica. De Brasília, um deputado informou que o Congresso podia ser fechado a qualquer momento pelo trio militar. Irritado com a notícia, o governador ligou para o presidente da Câmara, deputado Sérgio Magalhães, do PTB, afirmando que Goiás estava disposto e pronto para garantir o funcionamento do Legislativo federal em Goiânia, provisoriamente, até a posse de Jango. Um ofício, com os mesmos termos, foi encaminhado ao presidente do Senado, Auro Moura Andrade, que recusou a oferta, mas agradeceu a preocupação de Mauro Borges.14 Após conversas com deputados federais goianos, que relataram o clima em Brasília, o governador preparou um carregamento de armas para ser enviado à capital federal. Como as rodovias de acesso a Brasília estavam vigiadas, com várias patrulhas revistando os veículos, todo o trajeto foi feito por estradas vicinais. As armas levaram quase 12 horas para percorrer os 180 quilômetros que separam as duas capitais. Para afinar o discurso com o Sul do país, o governador usou duas táticas. A partir de quinta-feira, 31, manteve um radiotransmissor em permanente contato com Brizola. E enviou a Porto Alegre os deputados estaduais Venerando de Freitas Borges e Pedro Celestino Filho, além de seu cunhado, Ananias Dornelles Soares, gaúcho e amigo do governador do Rio Grande do Sul. Sob forte tensão, o trio partiu para Porto Alegre, por volta das 15 horas, num pequeno avião. Na bagagem, uma carta do governador de Goiás para Jango, apresentando seus enviados especiais e demonstrando todo o apoio. Para Brizola, a informação de que 40 mil voluntários estavam à disposição para resistir. Às seis da manhã do dia 31, 200 soldados do Exército, integrantes do 6º Batalhão de Caçadores enviados pelo general Ernesto Geisel, ocuparam a base aérea de Anápolis, a 50 quilômetros de Goiânia, que estava a favor de Mauro Borges. Logo depois, no entanto, aquartelaram-se no Depósito de Subsistência do Exército. No comunicado nº 2, o governo goiano informou que Anápolis não estava ocupada pelas tropas do 6º BC.

Na sexta-feira, 1º de setembro, os enviados ao Rio Grande do Sul mandaram uma informação curta, mas promissora, para Mauro Borges: “Aqui no Sul vislumbra-se uma negociação”. A mensagem não dava maiores detalhes.

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A saída política

28 DE AGOSTO DE 1961, segunda-feira, 8h30, Palácio do Planalto, Brasília. Começa a primeira reunião do governo Mazzilli, encontro absolutamente fora da rotina, a não ser pelo cenário, o gabinete presidencial projetado por Oscar Niemeyer. O elenco incluía as principais lideranças políticas, salvo o PTN, que se recusara a participar. Além de presidentes e líderes de onze partidos, estavam lá o senador Auro Moura Andrade, presidente do Congresso; os novos chefes das Casas Civil e Militar, Floriano Augusto Ramos e Ernesto Geisel; o único ministro nomeado, o pessedista cearense Martins Rodrigues, da Justiça; o próprio Mazzilli e o trio que realmente mandava no país: Odílio Denys, Sílvio Heck e Grün Moss. O enredo era impreciso: as lideranças haviam sido convocadas sem uma explicação clara do tema em debate. Na tentativa de descobrir o real objetivo daquele encontro, um dos participantes atrasou-se. Ao entrar no gabinete, provocou olhares de estranhamento entre os ministros militares, até que um deles perguntou: “Quem é esse moço?”. Moreno, lábios grossos, bigode, o moço representava ali o partido cujo presidente nacional era o verdadeiro motivo daquela reunião: João Goulart. Aos 32 anos, Almino Monteiro Álvares Affonso era líder do PTB havia cinco meses e fora eleito contra a vontade de Jango. Nascido em Humaitá, Amazonas, filho de tradicionais famílias de seringalistas, convivera com a política já no berço: seu avô fora deputado e senador pelo Rio Grande do Norte, e seu pai, prefeito de Porto Velho. Fizera o primário em Porto Velho, o secundário em Manaus e, nessa época, entrara para o movimento estudantil. Começara a cursar direito em Manaus, mas em 1949 transferira-se para a

Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo. Participara da campanha pela criação da Petrobras, fora secretário e presidente da União Estadual dos Estudantes e, depois de vencer dois concursos nacionais de oratória, ganhara o apelido de Uirapuru da Eloquência. Filiado ao PSB, participou das campanhas de Jânio para prefeito e para o governo do estado. Em 1955, tentou uma vaga de vereador na Câmara Municipal pelo PSB. Não foi eleito e, três anos mais tarde, voltou a Manaus, onde, depois de apenas 90 dias de campanha, conseguiu uma vaga de deputado federal pelo Partido Social Trabalhista (PST). Desde sua posse, juntou-se à Frente Parlamentar Nacionalista, como subsecretário. Transferiu-se para o PTB e organizou o grupo compacto, que reunia os parlamentares afinados com as teses mais radicais, como a reforma agrária e a estatização de setores da economia. Almino ouviu a exposição inicial de Mazzilli, mas o presidente interino foi genérico e cheio de circunlóquios. Os ministros militares falaram em seguida, mas disseram apenas estar unidos na defesa da ordem pública e da segurança nacional. Martins Rodrigues foi quem avançou a conversa, assim mesmo aos rodeios, explicando que os ministros militares viam com inquietação o retorno de Jango. A questão rondava a cabeça do líder do PTB desde as cinco da manhã, quando fora despertado por uma chamada internacional. Era do Hotel George V, em Paris. Firme e sereno, Jango queria notícias, dizia-se disposto a fazer um governo de coalizão, mas estava determinado: iria tomar posse. Antes de desligar, informou que, em conversa com Afonso Arinos, pouco antes, este aventara a possibilidade do parlamentarismo e quis saber a opinião de Almino: — O que é que tu achas? — O senhor sabe que eu sou a favor do parlamentarismo, doutrinariamente, mas no fundo isso é um golpe, vão tirar-lhe o poder.1

O deputado amazonense desfiou seus argumentos. Jango ouviu, mas não

descartou a possibilidade de chegar à Presidência sob o parlamentarismo: “Tu vê lá, Almino, a gente conversa. Mas não corta isso por inteiro...”. No Palácio do Planalto, o petebista apresentou sua versão do diálogo, enfatizando que o presidente não abria mão do cargo. Ao dizer que Goulart admitira discutir o parlamentarismo, porém, Menezes Cortes, líder da UDN, quase saltou da cadeira: “Você mostrou a saída, Almino!”. Silenciosamente acompanhada pelos três ministros militares, a discussão passou a girar em torno dessa hipótese. Raul Pilla, líder do PL, ponderou que instituir o regime desse modo seria escamotear um dos fundamentos do sistema de governo. Plínio Salgado, do Partido Republicano Progressista (PRP), defendeu a alternativa. Finalmente, segundo Almino, Mazzilli deu uma hora para os líderes consultarem as bancadas e retornarem para uma reunião decisiva. No atropelo da saída, Almino perguntou a Herbert Levy, da UDN: — Aonde vamos chegar, deputado? — Não há alternativa, o presidente João Goulart não pode tomar posse.2

A reunião consumara um contrassenso aparente e duplo: o líder do partido cujo presidente tinha o direito constitucional de assumir apontara involuntariamente a saída que enfraqueceria o poder de Jango, enquanto o principal defensor do parlamentarismo enchia-se de escrúpulos doutrinários no exato momento em que seu antigo sonho podia tornar-se uma realidade. Desde 1937, o gaúcho Raul Pilla, 69 anos, via no regime parlamentar a solução para as crises brasileiras. A vocação política manifestara-se cedo: aos 17 anos, antes de formar-se médico, já era secretário do diretório regional do Partido Federalista. Chegou a lecionar como titular na Faculdade de Medicina, mas foi se afastando da vida acadêmica, até se transformar no mais importante líder dos federalistas gaúchos. Em 1928, junto com Assis Brasil, ele fundara o PL, reunindo republicanos e federalistas dissidentes. Único representante desse partido eleito para a Assembleia Nacional Constituinte, passou a defender abertamente o

parlamentarismo em artigos e na tribuna. Em março de 1949, já deputado federal, conseguiu o apoio de 110 parlamentares para apresentar uma emenda à Constituição, rejeitada na primeira comissão mista encarregada de examinála. Reeleito em 1950, reapresentou a emenda, que passou pela comissão, mas não chegou ao plenário, apesar do apoio de representantes da esquerda. Sete anos depois, um levantamento revelou que mais de dois terços dos deputados estavam dispostos a votar a emenda parlamentarista. Com 220 assinaturas, o projeto foi engavetado. No ano seguinte, Raul Pilla relacionava (e absolvia) vários suspeitos de terem liquidado a iniciativa — a mesa da Câmara, a Comissão Especial, alguma autoridade em direito constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF) —, antes de apontar o verdadeiro culpado: “Quem fulminou de inconstitucional a reforma foi o senhor ministro da Guerra”. Enterrado pelo marechal Lott, o sonho ressurgiria na legislatura seguinte, outra vez embalado pela persistência de Pilla. O deputado gaúcho chegou a relacionar os golpes de Estado, conspirações e estados de sítio registrados na América Latina entre 15 de janeiro e 18 de novembro de 1958 (27 ao todo) como argumento em defesa de seu regime predileto. E desancou o presidencialismo novamente: “O sistema presidencial já foi definido como um aborto por parada de desenvolvimento. Comparado com as formas superiores, é um aleijão”. Os generais Denys e Lima Brainer condenaram a emenda constitucional. Lott, já candidato, disse que sairia da disputa, caso mudassem a regra do jogo. Jânio não tocou no assunto, mas seus correligionários agiram como se ele fosse contra o parlamentarismo também — a admiração do mato-grossense em relação à ilha de Albion não ia tão longe assim... Em outubro de 1959, até a polêmica sobre a compra do porta-aviões Minas Gerais, um dos temas mais quentes do momento, foi usada pelos adeptos da mudança. O deputado da UDN da Guanabara, Mário Martins, estava dizendo que, num regime parlamentarista, o Congresso teria poderes para determinar a venda do elefante branco, quando foi aparteado pelo

pessedista do Ceará, Expedito Machado: “Se estivéssemos no parlamentarismo, talvez o porta-aviões não houvesse sido comprado”. A emenda foi à votação em novembro, novamente classificada de inoportuna. O deputado baiano Antônio Carlos Magalhães, da UDN, ainda não relacionado com a sigla ACM, reclamou: Fala-se demais, nesta Casa, na inoportunidade da votação da emenda. Quando, então, seria oportuno, pergunto? Sempre haverá um interesse em jogo porque vivemos no Brasil, ou seja, no regime presidencial, a soma do poder que detém o presidente da República é imensa, e como o presidente, via de regra, tem maioria no Congresso, ou, quando não a tem, consegue por meios diversos, ele será sempre um interessado para que não se instaure o regime parlamentarista no Brasil.

ACM tinha razão. Com parecer contrário da Comissão Especial, a emenda foi novamente engavetada. Na hora da votação, Herbert Levy, da UDN, usou o estilo do PSD para escapar da decisão: “Não estarei presente na votação, porque não desejo votar a favor — pois julgo inoportuna a medida — e também não quero votar contra, porque, na verdade, continuo adepto do regime parlamentarista, sou favorável a ele”. E o projeto foi novamente engavetado. No dia 6 de julho de 1961, Raul Pilla apresentou nova emenda. Vinte e nove dias mais tarde, nem bem a renúncia de Jânio foi anunciada no plenário da Câmara, a proposta outrora desprezada passou a ser apontada como a fórmula capaz de “evitar que a aventura tome conta deste país”. Quem lançou a ideia foi o carioca Fernando Jorge Mendes Gonçalves, de 40 anos, empresário e vice-líder do PSD na Câmara, eleito pelo Mato Grosso. Primeiro vice-presidente da Ação Democrática Parlamentar, uma espécie de contrafação da Frente Parlamentar Nacionalista, Fernando Jorge imaginava transformar a entidade na “principal trincheira de resistência ao avanço do bolchevismo no país”. A prescrição do parlamentarismo como saída não foi a primeira reação ao anúncio da renúncia – que, supostamente, deveria se resolver com o

cumprimento da lei. Antes de Mendes Gonçalves alcançar o microfone, Osmar Cunha (PSD/SC) reclamou a posse imediata de Ranieri Mazzilli, para “que se mantenha a legalidade nesse país, para que se mantenha a ordem e para que não venha o golpe contra essa nação”. Aos 42 anos, Cunha era de uma família modesta da capital catarinense. Estudara com bolsa no elitista Colégio Catarinense, formara-se contador e economista, antes de tornar-se vereador, pelo PTB, em 1951. Três anos mais tarde, já presidente da Associação Brasileira de Municípios, em coligação com o PSD, tornou-se o primeiro prefeito de Florianópolis, após a concessão de autonomia à cidade. Em 1958, alcançou a Câmara Federal pelo PSD. Sua bandeira era a criação do Bloco Parlamentar Municipalista. Durante o final de semana, Câmara e Senado reuniram-se para discutir a crise, mas a temperatura ainda não atingira o ponto de ebulição. No sábado, os parlamentares souberam que o ministro da Guerra pretendia impedir a posse de Jango e prendê-lo. O senador Sérgio Marinho, do PTB, propôs que se apurassem os termos da conversa entre Denys e o deputado gaúcho Rui Ramos, mas a ideia não prosperou. Sérgio Magalhães, do PTB da Guanabara, exercendo a presidência da Câmara desde a posse de Mazzilli, divulgou um manifesto que parecia capaz de impedir qualquer golpe: Na defesa da Constituição, que rege a legalidade democrática, não entro em conchavo e não transijo da presidência, ainda que eventual. Não receberei, não darei prosseguimento, não despacharei qualquer emenda constitucional. A Constituição, segundo seu próprio texto, não se reforma em regime de anormalidade ou de crise. Prefiro a guerra civil à desmoralização do Poder Legislativo, que é a viga mestra do regime democrático.3

No plenário, Aurélio Viana, líder do PSB, foi quem primeiro denunciou em voz alta o que já se cochichava nos gabinetes — que os militares não deixariam João Goulart assumir. No domingo, 27, com a prisão de Lott e a censura comendo solta na Guanabara, a Câmara realizou outra sessão

extraordinária. Logo no início dos debates, o deputado Eloy Dutra, petebista da Guanabara, reproduziu o manifesto de Lott e anunciou que Denys queria prender Jango. No dia seguinte, leu o ofício enviado por Mazzilli a Auro Moura Andrade, nos seguintes termos: Eu tenho a honra de comunicar a V. Exª que, na apreciação da atual situação política, criada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militares, na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso do presidente da República João Belchior Marques Goulart. Brasília, 28 de agosto de 1961. Ranieri Mazzilli

Dutra não fez uma leitura anódina do documento — encerrou lembrando que ele e os colegas tinham jurado defender a Constituição e concluiu, sob aplausos: “Tão logo esse fato se dê, nesta Casa, eu renunciarei ao meu mandato!”. A carta, que punha em letra de forma o pensamento dos ministros militares, fora ideia de Ernâni Amaral Peixoto, presidente do PSD. Este alertara Mazzilli: “Você vai ficar com a pecha de estar impedindo a posse do Jango. Peça aos ministros que façam uma declaração”.4 O conselho carregava toda a experiência de 56 anos de vida e 28 de política de Amaral Peixoto. Desde o Estado Novo, ele estivera presente em todos os momentos decisivos da vida do país. Seu pai, Augusto Amaral Peixoto, fora chefe de gabinete do prefeito do Rio, Pedro Ernesto, e seu irmão, Júnior, participara das revoluções de 1924 e 1930 e elegera-se constituinte e deputado federal. Amaral Peixoto cursou a Escola Naval com Sílvio Heck e Grün Moss. Formou-se guarda-marinha em 1927, foi promovido a segundo-tenente e diplomou-se engenheiro geógrafo pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Aproximou-se do tenentismo, combateu a Revolução Constitucionalista de 1932 lutando como voluntário ao lado das tropas federais e, em 1933, substituiu o ajudante de ordens do presidente Getulio Vargas, que morrera

num acidente. Foi aí que sua vida mudou: filiou-se ao Partido Autonomista, de Pedro Ernesto, mas sucumbiu à estrela de Getulio. Às vésperas do Estado Novo, foi nomeado interventor do Rio de Janeiro pelo grupo de José Eduardo Macedo Soares. Vargas deu o golpe e manteve seu ex-auxiliar no cargo. Amaral Peixoto reorganizou o estado administrativamente, mas aplicou-se mesmo no campo político: com o fim dos partidos, organizou a Legião Cívica Nacional, que pretendia ser o suporte político do governo. Em julho de 1939, casou-se com Alzira Sarmanho Vargas, a filha do presidente. Licenciou-se e foi para os Estados Unidos. A partir desse momento, transformou-se num destacado defensor da adesão brasileira à causa dos Aliados. De volta ao Brasil, abrigou a manifestação organizada pela UNE em favor da entrada do Brasil no conflito, que havia sido proibida no vizinho Distrito Federal, e no dia 21 de junho de 1942 fez um candente discurso pela entrada do país na guerra, contra o Eixo. No ano seguinte, tornou-se presidente de honra do Comitê Interaliado e membro da Liga de Defesa Nacional. Em março de 1945, foi uma das peças-chave na criação do Partido Social Democrático, ao lado dos interventores Benedito Valadares, Fernando Costa, Renato Pinto Aleixo e Nereu Ramos. Com o apoio de Vargas, conseguiu impor a ideia de um partido nacional. Exonerou-se do governo fluminense em outubro de 1945 e ameaçou largar a política quando Getulio saiu do poder, sendo impedido pelo próprio sogro. Elegeu-se constituinte pelo Estado do Rio com 29.088 votos e levou o PSD à vitória naquela disputa: o partido fez dois senadores e dez deputados federais, contra apenas quatro da UDN. Quando Getulio voltou ao poder pelo voto, Amaral Peixoto deu um banho no Estado do Rio, conquistando 63% dos sufrágios. Em agosto de 1954, em meio à crise política que levaria o presidente ao suicídio, sugeriu a Getulio que se licenciasse do cargo. Pouco depois de sua morte, encontrou e deu publicidade a uma cópia da carta-testamento — a outra estava com Jango, como já foi dito. Na eleição seguinte, Amaral Peixoto consolidou a candidatura presidencial

de Juscelino e recusou a proposta de Afonso Arinos, que pretendia incorporar a UDN ao barco de JK e Jango, se este aceitasse a tese da maioria absoluta e o parlamentarismo. Quando tentaram impedir a posse de JK, o genro de Vargas aproximou-se do Movimento Militar Constitucionalista, articulando o contragolpe. Empossado JK, tornou-se embaixador em Washington. Defendeu o reatamento de relações com a União Soviética e teve de voltar ao Brasil várias vezes, para arbitrar as pinimbas entre o PSD e o PTB. Em 1959, assumiu o Ministério de Viação e Obras Públicas, tocando o projeto da rodovia BelémBrasília. Foi o último cacique do PSD a apoiar a candidatura Lott. Em janeiro de 1961, tornou-se ministro do Tribunal de Contas da União. Estava no Rio de Janeiro quando Alkmin o chamou em razão da crise que levaria à renúncia de Jânio. Desde então, estava no olho do furacão. O dedo de Amaral Peixoto está evidente no documento enviado por Mazzilli a Auro Moura Andrade: transferia o problema para o Congresso — Mazzilli não tinha força para demitir ministro algum, muito menos aquele trio — e designava Jango como presidente da República. O ofício seria discutido naquela noite, durante uma sessão conjunta do Congresso. Enquanto isso, o verdadeiro jogo acontecia nos bastidores. O senador Jefferson Aguiar redigira uma emenda que permitia ao Congresso eleger, de modo indireto, o presidente e o vice, em caso de vacância. A tese era encampada por Lacerda, que articulava o impeachment do presidente, e a eleição, pela via indireta, do governador da Bahia, Juraci Magalhães. Em Salvador, os jornalistas registraram a posição do governador baiano sobre a crise: “Rei morto, rei posto. O princípio constitucional determina que o substituto do presidente da República, em caso de renúncia, é o vicepresidente. Então não podemos fazer outra coisa, senão dar posse ao sr. João Goulart”. A frase pegou mal — muitos a viram como expressão do desejo de beneficiar-se da crise —, e Juraci teve de lembrar seu passado em favor da legalidade. Ao mesmo tempo, proibiu os comícios e mandou prender os agitadores. Jornais e rádios da Bahia enfrentavam os primeiros atos de censura

oficial ao noticiário. Trabalhadores do petróleo entraram em greve e, junto com os estudantes, tomaram a praça da Sé, sendo reprimidos primeiro pela Polícia Militar e depois por guarnições federais. O ofício de Mazzilli não foi o único fato novo a ser assimilado pelo Congresso naquela segunda, 28 de agosto. Pouco depois do meio-dia, a notícia de que o comandante do III Exército, Machado Lopes, estava com a Legalidade, oferecia aos defensores da posse pura e simples de Jango um reforço fundamental — a divisão nas Forças Armadas. Outra reação à tentativa de golpe veio do udenista Adauto Lúcio Cardoso. Mineiro de Curvelo, 57 anos, mudara-se para o Rio aos 19 anos, para cursar direito. De família remediada, teve de trabalhar como repórter no jornal A Política para manter-se na capital. Formado, tornou-se consultor jurídico do Ministério da Viação. Sua aversão a Getulio aumentou depois de ter comandado uma campanha pelo fechamento dos cassinos, que eram ilegais, mas funcionavam nas barbas da polícia — a denúncia provocou apenas a mudança da lei, permitindo o jogo. Signatário do Manifesto dos Mineiros, ao lado de Afonso Arinos, Virgílio de Mello Franco, Pedro Aleixo e Magalhães Pinto, que atacava o governo Vargas, Adauto Lúcio Cardoso fundou o Movimento de Resistência Democrática em 1944 e passou dez dias na prisão. Em janeiro de 1947, elegeu-se vereador no Distrito Federal pela UDN, com 2.647 votos. Renunciou junto com Lacerda, quando o Senado restringiu os poderes da Câmara. Três anos mais tarde, inscreveu-se na disputa do Senado, para poder impugnar a candidatura de Ademar de Barros — a lei só permitia aos candidatos essa iniciativa —, e realmente logrou seu intento. Em outubro de 1954, tornou-se deputado federal pela UDN, sempre no Distrito Federal. Quando o marechal Lott derrubou Carlos Luz, encontrouse com ele sigilosamente, para negociar um acordo. Durante uma invasão da sede da UNE, que protestava contra o aumento do preço da passagem nos bondes, foi derrubado no chão e espancado. Em 1960, assumiu a vice-liderança de seu partido e foi nessa condição que viajou

para a Guanabara, pouco antes da renúncia de Jânio, numa tentativa de evitar que Lacerda assestasse suas baterias contra o presidente da República. Não teve êxito, evidentemente. Da tribuna, Adauto Lúcio Cardoso explicou que refletira muito antes de apresentar aquela proposta, porque não queria prejudicar possíveis soluções conciliatórias: Já agora nenhum homem daqueles mais hábeis, nenhum homem daqueles mais prudentes pode dizer-nos que há alguma coisa ainda a esperar [...]. Neste momento encaminho à Câmara dos Deputados, como gesto final do exercício de meu mandato, como gesto final da minha vida pública, a seguinte representação criminal.

Cardoso acusava expressamente os três ministros militares e Mazzilli de tentar mudar a Constituição e a forma de governo pela violência e de atentar contra a liberdade do presidente da República, opondo-se diretamente ao funcionamento dos poderes. E apresentava os deputados Almino Affonso, San Thiago Dantas, Rui Ramos, César Prieto e Batista Ramos como testemunhas. A iniciativa não tinha chance alguma de seguir adiante, mas era um ato de protesto indiscutível. (Herbert Levy apressou-se a informar que o deputado carioca agira em nome pessoal, não da UDN.) Às l6h50, com 265 deputados em plenário e as galerias superlotadas, o padre Vidigal, do PSD mineiro, estava na tribuna. Pedro Maciel Vidigal III (1906/2006) deixaria o sacerdócio cinco anos mais tarde, para se casar, mas continuou na política. O padre pedessista reclamou dos boatos que tomaram conta do ambiente e assegurou que o marechal Denys não havia recebido nenhum telegrama do comandante do III Exército, quando foi interrompido por gritos: “Viva a Constituição! Viva a República! Viva a Legalidade!”. Cabeleira branca esvoaçando, à frente de um grupo de petebistas, o deputado Rui Ramos, 52 anos, entrou no plenário ignorou o orador e levantou uma questão de ordem. Advogado e promotor em Alegrete (RS), Ramos era membro da Frente Parlamentar Nacionalista e um dos

inspiradores do movimento dos sem-terra. Ligado à Igreja Metodista, fora eleito deputado em 1950. Candidato ao Senado, ao lado de Jango, em 1954, sofrera forte campanha da Igreja católica e fora derrotado. Voltou à Câmara em 1958, sempre pelo trabalhismo gaúcho. Depois de conversar com Odílio Denys, no sábado, Ramos fora a Porto Alegre. Passara a noite de domingo para segunda no Piratini e, após o encontro entre Brizola e Machado Lopes, voou para Brasília. Tomando a palavra quase na marra, ele chocou o plenário: “O sr. ministro da Guerra determinou, esta manhã, o massacre do governador do Rio Grande do Sul, ordenando ao comandante do III Exército o assalto do palácio do governo e o assassinato do governador Leonel Brizola!”. O petebista explicou que Machado Lopes havia aderido à Legalidade, transformando Porto Alegre num “jardim de festa e de alegria”. Ramos relatou sua conversa com Denys e resvalou para o perigoso terreno da bravata: “[...] se em 48 horas — friso bem isto — o presidente Mazzilli não exonerar o seu ministro da Guerra e não o recolher à prisão por atos contra a Constituição, nós, do Congresso, o deteremos!”. Quando o padre Vidigal conseguiu, enfim, retomar seu raciocínio, disse apenas que tinha votado em Jango, mas não o apoiaria, caso ele demonstrasse ser um adepto do comunismo: “Quem está criando dificuldades para a posse do sr. João Goulart não é o marechal Denys, são certos amigos do sr. João Goulart que atraem para ele a desconfiança da nação!”. À noite, na sessão conjunta, com 54 senadores e 299 deputados, foi lida a carta que Mazzilli encaminhara com o ofício, em que se dizia incompatibilizado para candidatar-se ao exercício efetivo da Presidência, caso o Congresso reconhecesse que os militares tinham razão. O presidente do Senado concluía que nenhum dos dois documentos tinha elementos para tramitar normalmente e designou uma comissão de 14 deputados e senadores para analisá-los e sugerir providências. A comissão5 reuniu-se em seguida e fixou prazo de 48 horas para achar uma solução. Plínio Salgado, um dos integrantes, não participou: estava na tribuna, lendo uma carta que enviara a Denys. O ex-líder dos integralistas

avaliara que os comunistas ficariam com a bandeira da legalidade e inflamariam o regionalismo gaúcho, caso Jango não tomasse posse. Propôs devolver a política externa ao padrão convencional, organizar um ministério de união nacional e deu seu aval a Jango: “Dou meu testemunho pessoal de que se trata de um homem equilibrado, que muitas vezes manifestou sua índole e pensamento conservadores”. Em seguida, Ivete Vargas leu um pronunciamento de Juscelino. O expresidente, agora senador por Goiás, também defendeu a posse do vice: “Todos os processos que conduzam para fora da lei serão extremamente perigosos”. A renúncia de Jânio desorganizara o jogo político. O veto militar a Jango completou a confusão. Por isso, em apenas uma noite — a de segunda, 28 de agosto —, a tese parlamentarista conquistou a maioria do Congresso. Até a bancada trabalhista foi contaminada, a partir da pregação de Osvaldo Lima Filho e de San Thiago Dantas. Na votação interna, Almino Affonso, pelo presidencialismo, ganhou (30 a 19) mas não levou: cada parlamentar ficou livre para votar como achasse melhor. Na terça-feira, 29, Câmara e Senado continuaram tratando do assunto, denunciando a censura no Rio, defendendo Jango ou alertando sobre a “esquerdização” do país, especulando se Mazzilli fora ou não coagido a enviar o ofício, mas a bola estava com a comissão mista. Na primeira reunião, esta concluiu não haver nada a deliberar ou relatar, nem na carta, nem no ofício, passando a discutir a saída parlamentarista e como assegurar sua meteórica tramitação. Os ministros militares não pareciam dispostos a permitir que o Congresso escolhesse o rumo a tomar. Na quarta-feira, 30 de agosto, já no Rio, eles divulgaram um pesado documento contra Jango, acusado de incentivar e promover “agitações sucessivas e frequentes nos meios sindicais”, permitir a infiltração comunista e esquerdista no Ministério do Trabalho, apoiar greves e de ter tornado patente em suas viagens sua admiração pelo regime soviético e chinês: [...] Ora, no quadro de grave tensão internacional em que vive dramaticamente o

mundo em nossos dias, com a comprovada intervenção do comunismo internacional na vida das nações democráticas e, sobretudo, nas mais fracas — avultam à luz meridiana, os tremendos perigos a que se acha exposto o Brasil [...]6

E seguia a carta justificando que o país não conseguiria superar o subdesenvolvimento se os agentes da desordem, da desunião e da anarquia tivessem apoio. O futuro, imaginavam os comandantes das Forças Armadas, seria a ruína das próprias instituições democráticas... [...] e com elas, a justiça, a liberdade, a paz social, todos os mais altos padrões da nossa cultura cristã. [...] Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas domesticadas e infiltradas, transformar-se-iam, como tem acontecido em outros países, em simples milícias comunistas. […]

O documento saíra da cabeça de um militar que se notabilizara não pelo desempenho nos bancos escolares ou nos jogos de guerra, mas pela capacidade de operar nos bastidores. Com exatos 50 anos — nascera em 21 de agosto de 1911 —, Golbery do Couto e Silva, gaúcho da cidade do Rio Grande, na entrada da Lagoa dos Patos, formara-se em 1931 como segundo-tenente pela Escola Militar de Realengo e, em maio de 1937, já capitão, assumiu a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional. Para onde voltaria, nomeado por Jânio, 21 anos mais tarde, como chefe de gabinete da Secretaria Geral. Em pouquíssimo tempo, conquistou a confiança do presidente, a quem apresentava, diariamente, relatórios sigilosos sobre o panorama político e os movimentos da oposição. Entre uma e outra passagem pelo Conselho, Golbery cursara a Escola do Estado-Maior do Exército, servira em Porto Alegre, estagiara em Fort Leavenworth, nos Estados Unidos, atuara como oficial de informações com a FEB, na Itália, e passara cinco anos sob o comando de Juarez Távora, na

Escola Superior de Guerra. Em 1954, havia redigido outro manifesto, igualmente explosivo: o documento assinado por 84 coronéis e tenentes-coronéis sediados no Rio, que condenava o aumento de 100% no salário mínimo, proposto por Jango e que custou o cargo ao afilhado político de Getulio. Na crise de 1955, Golbery foi punido com oito dias e transferência compulsória para Curitiba, por ter sido um dos articuladores do movimento contra a posse de Juscelino. Em março do ano seguinte, assumiu a chefia da seção de operações do Estado-Maior do Exército. Àquela altura da crise da renúncia, discretamente, como de praxe, já estava com o grupo que trabalhava pelo parlamentarismo, iniciando a dobradinha que, dali por diante, teria um papel cada vez mais importante no cenário nacional: Geisel e Golbery. Ou vice-versa, como querem alguns. Já tinha mostrado a minuta de um manifesto que abria a porta para o parlamentarismo a Geisel, que o mandou procurar o chefe de gabinete do ministro da Guerra, seu irmão Orlando, para assim fazer o papel chegar às mãos de Denys. O marechal recebeu o texto, mas não gostou: “Há coisa muito melhor. Há um manifesto feito pelo ministro Moss, da Aeronáutica”. E engavetou a minuta. Dias depois, como a situação parecia mais complicada, Denys chamou Orlando Geisel: — Onde está aquele documento que no fim vem com o parlamentarismo? — O senhor guardou.7

De acordo com Ernesto, “foi aí que o Denys acordou e resolveu se engajar nessa saída que propunha o regime parlamentarista”. O chefe da Casa Militar de Mazzilli preferia que as forças favoráveis aos ministros militares controlassem o Sul e se arranjasse outro presidente — achava que isso fortaleceria a posição do Exército e das Forças Armadas —, mas reconhecia não saber o que poderia acontecer dali em diante: “O que viria então, eu não sei. Poderia haver um período de regime anormal, e depois, fatalmente,

haveria nova eleição. Não se imaginava fazer uma ditadura ou um regime como o que se verificou depois de 1964”.8 Na Câmara, o manifesto escrito por Golbery e assinado pelos ministros foi lido pouco antes do telegrama enviado pelo general Machado Lopes, dizendo que seus comandados estavam com ele e apoiavam integralmente a Constituição vigente. O petebista José Raimundo relatou a situação em Minas Gerais, onde os jornais estavam censurados; o JB, o Diário de Notícias e o alternativo Binômio tinham sido apreendidos; as faculdades de economia e filosofia, invadidas; estavam as lideranças presas, as reuniões proibidas e o aeroporto transformado em parque de guerra. Raimundo leu um manifesto do governador Magalhães Pinto (UDN), que se dizia preocupado com a preservação da ordem e elogiava a conduta do povo, sem dar uma palavra sobre legalidade ou a posse de Jango. E concluiu: “A verdade é que Minas está sob intervenção federal”. A comissão chegou a um parecer, com os votos em separado de Eloy Dutra e Barbosa Lima Sobrinho. Mas nem o relator sentia-se confortável: defensor histórico do presidencialismo, Oliveira Brito teve de explicar a mudança de posição: “É preferível cedermos do nosso ponto de vista a levarmos o regime a uma derrocada”. Aurélio Viana acusou o grupo de ter silenciado sobre a verdadeira questão: “Pode voltar ao país o presidente eleito? Deve ficar no desterro?”. O parecer propunha que a emenda do parlamentarismo, adaptada às condições do momento, fosse votada, reduzindo-se ao mínimo as formalidades de sua tramitação. Os mais de 300 oradores inscritos desistiram de falar, e o documento foi aprovado por 264 votos a favor e apenas dez contra. Para muitos, o ponto mais importante estava num adendo: O respeito à Constituição Federal implica em cumprimento do seu art. 79, com a investidura do dr. João Goulart na Presidência da República, com os poderes que o povo lhe conferiu, cujo exercício, se vier a ser adotado o parlamentarismo, se ajustará às condições peculiares a esse sistema.

O clima não era nem de vitória, nem de alívio: as últimas informações (ou boatos, era impossível separar uns e outros) davam conta de que os ministros militares não aceitavam Jango nem com parlamentarismo. San Thiago Dantas e Juscelino Kubitschek, dois dos principais intermediários entre o Congresso e as Forças Armadas, diziam ter esgotado todos os recursos e que nada mais podia ser feito. Na quinta-feira, dia 31, à tarde, Rui Ramos informou em plenário que o general Segadas Viana, o mais velho oficial do Exército do país, aceitara a incumbência de transmitir ao ministro da Guerra a disposição dos generais de aceitar a resolução do Congresso, fosse qual fosse. Odílio Denys teria concordado com essa posição.9 Rui Ramos parecia informado até dos detalhes do encontro entre os três ministros militares, o comandante do I Exército, Nestor de Oliveira, e os generais Segadas Viana, Osvino Ferreira Alves e Cordeiro de Farias, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em que Denys acabou por admitir que acataria a decisão do Legislativo, arrastando consigo os chefes da Marinha e da Aeronáutica. Naquela mesma noite, seis governadores chegavam ao Rio para uma reunião com os ministros militares: Carvalho Pinto, de São Paulo, Juraci Magalhães, da Bahia, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, Carlos Lindemberg, do Espírito Santo, Celso Peçanha, do Pará, e Cid Sampaio, de Pernambuco — que tomara a iniciativa de convocá-los. A eles juntou-se Carlos Lacerda — Brizola e Mauro Borges nem foram convidados. O paranaense Ney Braga e Celso Ramos, de Santa Catarina, chegaram tarde demais, quando o encontro já havia terminado, mas mesmo assim foram conversar com Denys. Antes da reunião, os governadores se encontraram com o ministro da Fazenda, Clemente Mariani, enquanto o Repórter Esso, em edição extraordinária, informava que o general Osvaldo de Araújo Mota, comandante do II Exército, sediado em São Paulo, comunicara que os ministros militares aceitavam o parlamentarismo. A conversa no Ministério da Guerra não foi conclusiva. Na primeira meia

hora, a palavra esteve com Denys, que reiterou todas as restrições a Jango, mas acenou com a possibilidade de acatar a decisão do Congresso. Moss e Heck, contudo, insistiam no veto, e os três disseram que pediriam demissão antes da eventual posse de Jango. Para Juraci Magalhães, o mais irredutível era o ministro da Marinha: “Denys estava mais sereno, porém Heck, muito exaltado, não se conformava em deixar Jango assumir”. Em seguida, em nome dos governadores, Carvalho Pinto procurou mostrar que não havia alternativa de respeito à lei sem a posse de Jango. Depois, dividiram-se: os governadores a sós no salão do gabinete, Denys e os generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel numa antessala, Grün Moss e Sílvio Heck na sacada. Às 23h40, voltaram a se encontrar. Ao deixar a reunião, o governador de São Paulo declarou, sem esconder certa decepção: “Procuramos evitar o agravamento de uma situação que já se encontra por demais dramática Procuramos soluções, discutimos hipóteses, formulamos sugestões. Infelizmente não conseguimos, pelo menos de imediato, o resultado desejado. Só nos resta agora lutar junto ao Congresso”.10 Cid Sampaio avaliava: “O êxito não foi completo, e acreditamos que só marcharemos para o parlamentarismo rígido”. Celso Peçanha mencionou uma nota — não divulgada — que seria, “infelizmente, apenas um documento para a história”, ressaltando que os ministros militares não tinham deixado “uma porta aberta para a solução desejada”. Os ministros não falaram com os repórteres, mas Cordeiro de Farias disse aos jornalistas que tinha o apoio da maioria absoluta das tropas dos exércitos do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina e o respaldo integral da Marinha e da Aeronáutica naqueles estados. Muito do que foi dito estava longe de representar o que de fato ocorria. Para Juraci Magalhães, o mesmo Cordeiro de Farias admitira que a situação estava saindo do controle e que nem sua já decidida nomeação para o comando do III Exército seria concretizada: “Juraci, tudo isso é fantasia. Fui designado comandante do III Exército, no Rio Grande do Sul, exatamente para tentar impor a ordem no estado, mas posso lhe assegurar que Denys não tem mais o controle da situação”.11

A reunião entre os governadores e os chefes militares pode ser interpretada como uma forma de dar cobertura para o recuo organizado dos militares em direção à aceitação do parlamentarismo, já assimilado por eles, ou como uma fracassada tentativa de convencer o comando das Forças Armadas a permitir a posse de Jango, sem o parlamentarismo. Ney Braga e Celso Ramos retornaram, em virtude das notícias de movimentação de tropas em seus estados, mas os outros governadores ficaram no Rio e reuniram-se novamente no dia seguinte. De todo modo, sua participação na crise terminara. Na sexta-feira, 1º de setembro, Moura Andrade convocou uma sessão conjunta do Senado e da Câmara para a segunda-feira, 4, a fim de dar posse a Jango. O pedido fora feito por Goulart, a partir de Montevidéu. Na mesma sessão, Afonso Arinos relatou a conversa telefônica que mantivera com o vice, em que Jango dera sinal verde ao parlamentarismo, aceitando “qualquer solução que restitua a paz e a tranquilidade à família brasileira e evite o sangue e os horrores da guerra civil”. Era mais uma pá de cal na tentativa — a essa altura, inócua — de impedir que o parlamentarismo fosse aprovado no Congresso. O senador Dix-Huit Rosado e os deputados Franco Montoro e Gabriel Hermes, que tinham estado com Jango em Paris, também deram seu testemunho sobre a tendência conciliatória do presidente, disposto a abrir mão de seus poderes, em troca de uma solução para a crise. Almino bem que tentou pôr diversas questões de ordem, alegando que a Constituição não podia ser reformada sob estado de sítio — e explicando que essa era a situação de fato. Não colou. Em seu discurso, Raul Pilla disse que se fosse apenas um doutrinador do parlamentarismo votaria contra a emenda. Mas, como cidadão brasileiro, daria seu sim ao projeto. Foi contestado por Lourival de Almeida. Como conciliar o parlamentarismo federal com governadores e prefeitos em pleno exercício de seus poderes, calcados no sistema presidencialista? Pilla admitiu que seria uma experiência, mas achava necessários pelo menos dez anos para que os eleitores pudessem avaliar os resultados do novo regime e que um plebiscito antes disso

deformaria tudo. À 1h10 do dia 2 de setembro, sábado, começou a 168ª sessão da Câmara. À noite, uma comunicação revoltou parte do plenário: o Repórter Esso, o mais respeitado informativo do rádio brasileiro, anunciara a renúncia de Jango. De madrugada, no início da fase de votação, vários deputados dormiam nas poltronas do Salão Verde, assim como jornalistas e funcionários. Às três da manhã, a emenda foi aprovada em primeira discussão, por 234 votos contra 59; às seis da manhã, em segunda votação, por 233 a 55. José Sarney não respondeu à chamada. Antes, encaminhara à mesa sua posição contrária à emenda e fez questão de consignar que teria votado não: “Faço todas as restrições possíveis ao sr. João Goulart, menos a de ser presidente da República e prefiro combatê-lo como adversário durante cinco anos a vê-lo fora do poder, jogado o país na convulsão irreversível”. O resultado da manobra conciliatória no Congresso não correspondia à vontade dos eleitores cariocas — nem à dos gaúchos, claro. Pelo menos é o que indicava a pesquisa feita pelo IBGE, na Guanabara, naqueles dias: 81% dos eleitores eram pela posse de Jango sem parlamentarismo; apenas 10% pela posse com parlamentarismo; 9% preferiam o impedimento. Entre os que votaram em Jânio Quadros, 73% diziam-se a favor da posse de Goulart sem parlamentarismo; o percentual elevava-se a 94% entre os eleitores de Lott, também sem parlamentarismo; dos eleitores de Ademar, 82% queriam a posse pura e simples. Estavam a favor da posse sem parlamentarismo 69% do eleitorado de Lacerda, 93% do de Sérgio Magalhães e 83% do de Tenório Cavalcanti. Aprovada na Câmara, a emenda passou pelo Senado sem problemas, por 47 a 5 e 48 votos a 6. Juscelino formou ao lado dos que foram contra. Dizia que não havia nada mais melancólico do que privar o povo do direito de escolher seus dirigentes. O PSD, com maioria no Congresso (35% das cadeiras) e até então oposição ao governo, via-se, com o parlamentarismo, novamente de cara com o poder. Já o PTB (20% das cadeiras), mesmo dividido, chegaria à Presidência: seu líder máximo, Jango, aceitava a troca do sistema, enquanto os

compactos e os oito representantes do trabalhismo gaúcho continuavam contra, sob a liderança de Almino. O governador Brizola emergia como liderança nacional dentro do partido, que desde a morte de Getulio não tinha um representante à altura — Jango era dócil demais. A UDN (21% das cadeiras), que imaginara alcançar o poder com Jânio, ficou totalmente desnorteada com a renúncia e parecia incapaz de se articular. O novo presidente do partido, o paulista Herbert Levy, andava a esmo com Amaral Peixoto, do PSD. Afonso Arinos também apostava no parlamentarismo, enquanto Lacerda parecia apagado no cenário que havia incendiado. Juraci Magalhães colocava-se pela continuação do sistema. Sem divisão, só os nanicos PSB — o único dos 12 partidos que votou em bloco contra a emenda — e PL estavam a favor do parlamentarismo. Promulgada no domingo, 3 de setembro, na presença de 56 senadores e 280 deputados, a emenda virava de cabeça para baixo o sistema político do país, ao dividir as atribuições do Poder Executivo entre o presidente da República e o Conselho de Ministros, “cabendo a este a direção e a responsabilidade da política do governo, assim como a administração federal”. O presidente da República seria eleito pelo Congresso, para um mandato de cinco anos, por maioria absoluta dos votos. A lei definia as atribuições do presidente, do primeiro-ministro e do Conselho de Ministros, dava um prazo para as constituições estaduais adaptarem-se ao sistema e admitia a perspectiva de um plebiscito para decidir sobre a manutenção ou não do regime, nove meses antes da eleição seguinte, isto é, em janeiro de 1965. O artigo 21 garantia a João Goulart, depois de prestar compromisso diante do Congresso Nacional e nomear o Conselho de Ministros, o exercício do cargo de presidente até 31 de janeiro de 1966. Bem ou mal, os outros artigos foram postos em prática (o plebiscito acabou antecipado). Mas o artigo 21 acabaria virando letra morta.

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As tropas

3 DE SETEMBRO DE 1961, 11 horas, oceano Atlântico, proximidades da ilha de Santa Catarina. Há 48 horas, um pequeno avião bimotor vasculha, sem sucesso, o litoral catarinense. De repente, ao sair da massa de nuvens, o comandante Ivan Eggers toma um susto: abaixo dele, oito navios de guerra. Entre eles, um gigantesco: duas vezes mais comprido do que um campo de futebol, com 20 metros de altura, 45 de largura e um punhado de aviões e helicópteros sobre seu convés. Era o porta-aviões Minas Gerais, orgulho da Marinha brasileira! Adquirido pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1956, custara uma fortuna: 52 bilhões de cruzeiros ou 12 milhões de dólares da época. Construído 11 anos antes, estava longe de representar o estado da arte da indústria bélica, mas provocou uma polêmica equivalente a seu poder de fogo. JK pretendia fazer um afago nas Forças Armadas. Mas o controle do portaaviões, apelidado de Belo Antônio, numa referência ao filme estrelado por Marcello Mastroianni e seu impotente personagem, passou a ser disputado entre a Aeronáutica — que via o navio usado para lançar aviões como um aeroporto sobre o mar — e a Marinha, que acabou levando a melhor. Verdadeira cidade flutuante, para usar um chavão gasto, mas apropriado, o Minas Gerais tinha três barbearias, três bibliotecas, três bares, uma alfaiataria, uma fábrica de oxigênio, outra de nitrogênio e equipamento capaz de produzir 340 toneladas de água potável por dia para seus 1.300 tripulantes. Naquela manhã, o comandante Eggers e seu parceiro, o capitão do Exército Faneli Martins, tinham decolado de Porto Alegre com a visibilidade prejudicada pelas nuvens, muito comuns no final do inverno. Em Florianópolis, onde o céu se abria, eles avistaram o aeroporto, em seguida uma montanha e logo adiante os oito navios: “Voando em circular dentro das

nuvens, em dado momento, por uma abertura, avistei o mar e, imediatamente debaixo de nós, incrivelmente perto, aquele gigantesco porta-aviões. No momento em que enxergamos a esquadra, estávamos preocupados com um Gloster Meteor que, alertado pelo radar do Minas Gerais, nos procurava”.1 Um confronto seria fatal: o Aerocommander modelo 520 estava desarmado, e seus dois motores de 260 HP davam-lhe uma velocidade máxima de 450 quilômetros por hora. Já as duas turbinas Rolls-Royce do bem armado Gloster Meteor garantiam-lhe 960 quilômetros horários. Antes de escapulir, o comandante e o capitão notaram rolos de fumaça que saíam das chaminés dos navios, prova de que tinham as caldeiras acesas. A esquadra estava a menos de dois quilômetros da quase desabitada praia dos Ingleses, ao norte da ilha de Santa Catarina, numa posição em que não podia ser vista pelos florianopolitanos. Os barcos de escolta, contratorpedeiros e cruzadores, em fila indiana, interpunham-se entre o litoral e o porta-aviões, prontos para iniciar operações de desembarque e ocupação em território controlado pelos rebeldes do III Exército. A escolha de Florianópolis justificava-se: o almirante Luís Clóvis de Oliveira, do 5º Comando Naval estava a favor dos ministros militares, assumira o controle do 14º Batalhão de Caçadores, com cerca de 700 homens, e havia imposto censura às emissoras de rádio locais. O comandante Eggers e seu parceiro não identificaram nenhum movimento de tropas em terra: voltaram a Porto Alegre e viraram notícia, como os heróis do dia. O abusado rasante sobre o Minas Gerais e aqueles três minutos de perseguição do bimotor por um jato Gloster Meteor foram dos momentos mais críticos de um confronto que não se consumou. Se as armas tivessem falado, o diálogo inicial teria acontecido em Curitiba, primeiro ponto estratégico controlado pelo III Exército, no caminho do Rio Grande do Sul. Em 1961, até por conta da antiga rivalidade com a Argentina, o III Exército era a maior força do país, com 40 mil homens e todos os tipos de unidades, com exceção de paraquedistas. A 3ª DI, sediada em Santa Maria, possuía a maior unidade de infantaria do Brasil. A cavalaria e a artilharia ficavam na fronteira; os principais regimentos de infantaria e

unidades blindadas estavam em Porto Alegre e no centro do estado. A 5ª Zona Aérea tinha a mesma jurisdição do III Exército, mas sua força estava concentrada na Grande Porto Alegre. Em Santa Maria existia uma grande base militar sem uso. O brigadeiro João Aureliano Passos não aderiu à Legalidade, mas também recusara a ordem de bombardear o Piratini. Quando Machado Lopes tomara partido, o comandante da 5ª Zona Aérea simplesmente fora para casa, ligara para seu colega do Exército e declarara-se preso, sendo liberado para deixar Porto Alegre com a família. Em Curitiba, o comandante da 5ª Região Militar, general Benjamin Rodrigues Galhardo, divulgou um comunicado sintonizado com Machado Lopes, seu superior imediato, e mandou suas tropas até 20 quilômetros da divisa com São Paulo. Em pouco tempo, o III Exército controlava os portos de Paranaguá (PR) e São Francisco do Sul (SC). As tropas fiéis aos ministros militares chegaram a desembarcar em Laguna, mas ali também o confronto foi evitado, por uma conjugação de fatores: a relutância em atacar seus companheiros de armas, o avanço dos entendimentos políticos e a atuação de alguns intermediários. Em Tubarão, a 130 quilômetros ao sul de Florianópolis, o bispo dom Anselmo Pietrula recebeu o pedido de um contra-almirante para que intercedesse junto às tropas gaúchas que subiam em direção a Laguna e poderiam entrar em choque com parte do 23º Batalhão de Infantaria, postada na ponte de Cabeçudas, perto de Laguna. Já passava da meia-noite quando dom Anselmo transformou em mensageiro o coordenador do Movimento Agrário de Santa Catarina, que morava no palácio episcopal. O padre Osni Carlos Rosembrock pediu emprestado um potente Ford V-8 a um vizinho, convocou o padre Névio Cappeller como seu copiloto e partiu rumo ao sul. Perto de Jaguaruna, encontraram um oficial caminhando sem uniforme. O padre Osni fez sinal de luz, o oficial parou e informou que a tropa estava 7 ou 8 quilômetros adiante. Pouco depois, os dois deram com os soldados caminhando à margem da estrada, seguidos por um jipe, levando um oficial. O padre Osni parou o carro e aproximou-se:

— Major, eu preciso lhe comunicar uma mensagem do bispo de Tubarão. — Diga, padre. — O contra-almirante pediu para avisar que, se as tropas do Rio Grande do Sul não retornarem imediatamente, serão bombardeadas.2

O major agradeceu, mas mandou as tropas seguirem em frente. Mais tarde, ficaram sabendo que os soldados tinham se abastecido em Tubarão e só depois voltado, ficando acantonados por dez dias na localidade de Içara. Ali, como em Araranguá e Criciúma, as tropas receberam solidariedade — e suprimentos — das comunidades que estavam do lado da Legalidade. Oficialmente, a movimentação contra o Rio Grande do Sul começou na madrugada de quinta-feira, 31 de agosto. A frota de guerra que fundeou junto à praia dos Ingleses, em Florianópolis, fazia parte da Operação Anel, que mobilizara tropas da Marinha e da Aeronáutica para a proteção do sistema defensivo do Sul. O Minas Gerais, guarnecido por aviões P-16, da FAB, deveria supervisionar o desembarque de fuzileiros navais e grupos de combate da Marinha no litoral catarinense. Nos navios-transporte, comboiados por contratorpedeiros, estavam três regimentos do Corpo de Fuzileiros Navais, prontos para entrar em ação. No dia anterior, Denys mandara desmobilizar todos os cabos e soldados que serviam na tropa do Sul e identificar os comandos revoltosos: os generais Machado Lopes; Carlos Luís Guedes, da 5ª Divisão de Infantaria; Joaquim Vicente Rondon, da Artilharia Divisionária; José Teófilo de Arruda, da 6ª Divisão de Infantaria; Oromar Osório, da 1ª Divisão de Cavalaria; Peri Constant Beviláqua, da 3ª Divisão de Infantaria; e Benjamin Rodrigues Galhardo, da 5ª Região Militar. O ministro da Guerra destituiu Machado Lopes e designou para seu posto o general Cordeiro de Farias. Porém, o chefe do Estado-Maior do Exército nem saíra do Rio de Janeiro. Se havia um traço comum nas operações militares ordenadas contra o Rio Grande do Sul era a falta de planejamento. Os ministros militares deram muitas ordens e expediram dezenas de portarias, sem nenhum efeito prático.

Tropas da Guanabara chegaram a embarcar em oito comboios ferroviários especiais, rumo ao Sul. O regimento Ipiranga, de Caçapava, acampou no quilômetro 284 da rodovia Presidente Dutra. Na cidade de Registro (perto da divisa São Paulo-Paraná), foi instalado um hospital de campanha. Dezessete mil litros de gasolina foram gastos ali em um único dia de operações, sem nenhuma consequência. No sábado, 2 de setembro, a 2ª Companhia do 2º Regimento de Infantaria desembarcou em Florianópolis. Eram recrutas com menos de um mês de quartel, sem instrução bélica, levados de surpresa, o que fez com que suas famílias procurassem o Jornal do Brasil para reclamar da decisão, dizendo que os rapazes mal sabiam bater continência. O comandante do 2º Batalhão de Engenheiros de Santos, coronel Creso Coutinho Moutinho, recusou-se a enviar um pelotão para a rodovia São Paulo-Curitiba, porque ele e seus oficiais chegaram à conclusão de que não deviam aceitar missão contra o III Exército. Ao anunciar sua decisão, o coronel declarou que a oficialidade resolvera manter-se alheia à situação política, cumprindo apenas as ordens baseadas na Constituição. Informou que continuaria a proteger a Refinaria de Cubatão, mas não aceitaria outra missão. Por causa desse pronunciamento, o coronel Creso foi substituído pelo major Múcio Mena Barreto Falcão. Mais 26 oficiais foram presos. O 4º RI, o 2º Grupo de canhões antiaéreos de 40 mm, o 2º Grupo de canhões antiaéreos de 90 mm e o 2º Regimento Mecanizado receberam ordens de seguir para o sul. Mas nem todos se moveram: o coronel Celso Freire de Alencar Araripe comunicou que os 400 homens do Grupo Antiaéreo de 40 mm não sairiam de Barueri, São Paulo, onde estavam aquartelados. O Grupo de 90 mm permaneceu estacionado em Quitaúna, e os boatos eram de que ele não se deslocaria rumo ao Sul. O próprio comandante do II Exército, general Osvaldo de Araújo Mota, divulgou uma nota dizendo que o ministro da Guerra aceitaria qualquer decisão tomada pelo Congresso. A força encarregada de barrar o avanço dos gaúchos parecia cada vez menos disposta a cumprir suas ordens.

Nas primeiras 24 horas da crise, o ex-presidente Eurico Gaspar Dutra já havia advertido Denys, por intermédio do deputado Armando Falcão: “Diga ao Denys que ele ou age rápido ou perde a guerra. Eu conheço bem o general Machado Lopes, que, aliás, fiz interventor federal na sua terra, o Ceará. Penso que, de um momento para o outro, ele recua e muda de posição. Vai se recusar a cumprir as ordens do ministro e abre uma brecha difícil de se fechar”.3 O chefe do Estado-Maior do III Exército, Antônio Carlos Murici, foi a Brasília como emissário de Machado Lopes e confirmou que a situação no Rio Grande do Sul pendia para a resistência. De volta a Porto Alegre, Murici declarou ao comandante do III Exército, eufórico: “Tudo resolvido, o senhor será chamado a Brasília, onde o marechal Denys o porá a par de tudo”.4 Machado Lopes simplesmente ignorara o comunicado nº 13, de 29 de agosto, que determinava sua imediata presença em Brasília. Avisou a Murici que não iria à capital federal, onde seria fatalmente preso. Além disso, dispensou o chefe do Estado-Maior, dando-lhe ampla liberdade para fazer o que achassemelhor. O mais comum naqueles tempos seria prendê-lo. Ao despedir-se, Murici, sensivelmente emocionado, declarou ao superior: “Lamento sua decisão, o senhor pode ser esmagado rapidamente”. Machado Lopes reconheceu que era possível, mas emendou: “Cairei de pé”.5 Em Brasília, na quarta-feira, 30 de agosto, o ministro da Guerra recebeu a visita do auditor de Guerra do Rio Grande do Sul, Lauro Schuch — o mesmo que estivera no gabinete de Machado Lopes na madrugada da segunda-feira crítica —, e ouviu um relato da situação: Ponderei ao digno marechal que ele estava equivocado e dando seu respeitável nome para a cobertura da causa de um grupo de conhecidos golpistas, por ele mesmo derrotado em 1955. Relatei-lhe que o Rio Grande do Sul em peso estava exigindo o fiel cumprimento da Constituição, sem qualquer compromisso com o comunismo. Referi-me aos pronunciamentos maciços em prol da Legalidade, emanados por todos os órgãos representativos e de todas as classes e do clero, a começar pela figura vigilante e luminosa de d. Vicente Scherer. O marechal se surpreendeu. E quando

lhe afirmei que o III Exército apoiava a causa constitucionalista do Rio Grande do Sul, mostrou-se ainda mais perplexo.6

Há uma teoria para explicar a suposta ignorância de Denys: “elementos golpistas” teriam formado um cinturão de segurança em torno do ministro, filtrando as informações dirigidas a ele. De todo modo, dois dias depois, o ministro da Guerra divulgou uma nota oficial assegurando que tinha o apoio dos principais chefes militares do país. O comunicado admitia que Machado Lopes era uma exceção, mas afirmava que o comandante do III Exército tinha reduzido apoio no estado: o grosso da tropa do Rio Grande do Sul estaria solidário com o marechal Denys. E, portanto, permanecia integrado na coesão existente nas três Forças Armadas, que zelavam pela integridade da segurança nacional, alheando-se a pronunciamentos impatrióticos e demagógicos, explorados por comunistas e inocentes úteis.7

A essa altura, Ernesto Geisel já estava irritado com Cordeiro de Farias, que relutava em assumir o comando do III Exército. Em conversa com seu irmão, Orlando, apresentara alternativas de ação: — Você usa os paraquedistas do Exército e os joga no campo de aviação de Curitiba, o Afonso Penna. Eles tomam conta do campo e organizam a defesa. Em seguida, voa do Rio o Regimento-Escola de Infantaria. Não tenha dúvida de que quando esse regimento descer em Afonso Penna, a guarnição de Curitiba, que é uma guarnição relativamente pequena, vai se entregar, vai aderir a nós, e o Cordeiro assume o comando lá. — Ah, mas o Denys não quer empregar os paraquedistas, que são as suas reservas. — Mas para que serve a reserva? A reserva é usada para obter uma decisão num ponto crítico.8

A ideia não foi aceita. Poucos generais admitiam o confronto militar: Castello Branco, segundo Ernesto Geisel, era um dos que achavam melhor

deixar Jango governar e só agir mais tarde. (Efetivamente, Geisel viria a ser presidente da República, entre 1974 e 1979.) Nem a Operação Panfleto deu resultado. Gastou-se muita gasolina para lançar boletins contrários a Machado Lopes e Brizola sobre as cidades gaúchas, sem nenhum resultado prático. A panfletagem acabou criando problemas com a vizinhança: às 13h30 do dia 1º, um avião não identificado sobrevoou a uruguaia Rivera, a 486 quilômetros de Porto Alegre. Um dos folhetos encontrados na avenida Sarandi dizia o seguinte: Sargentos e soldados do III Exército. Não existe mais o dever de obedecer o general Machado Lopes. Ele foi destituído como comandante do III Exército. E o substituto é o general Cordeiro de Farias. Machado Lopes está na ilegalidade e será julgado por isso. Não se entreguem em mãos de agitadores e dos comunistas vendidos ao imperialismo vermelho. Viva o Brasil!

Outro panfleto destituía todos os cabos e sargentos do III Exército. Um terceiro acusava Goulart de pretender transformar o Brasil numa ditadura. O voo comoveu a população, e o chefe de polícia de Rivera, coronel Mandado, enviou informações para o Ministério de Defesa Nacional. Isso foi o que publicou o jornal El País, de Montevidéu, no dia 1º de setembro. Detalhe: Rivera fica no Uruguai — o avião tinha violado o espaço aéreo do país vizinho. A cidade brasileira mais próxima (muito próxima) é Santana do Livramento, separada de sua vizinha apenas por um parque, o Internacional. A indisciplina avançava. Em São João del Rey (MG), o comandante do 11º RI, coronel Luna Pedrosa, negou-se a abandonar a cidade com destino desconhecido. Em Belém (PA), o comandante da Força Aérea, coronel Fausto Gerp, foi detido por recusar- se a cumprir ordens superiores. O coronel tentou convencer seus oficiais a aderir à Legalidade, mas fracassou e ordenou a prisão de seus subordinados. Em Porto Alegre, um grande aparato simulava a interdição da barra do Rio Grande. No primeiro momento, o governador Leonel Brizola queria realmente afundar algumas chatas no local, mas acabou cedendo diante do

custo para desimpedir a barra após a crise. Os rebocadores Rienzi e 15 de Novembro foram amarrados no centro do canal, carregados de alimentos para cinco dias. Os batelões e as chatas disponíveis foram reunidos, e a sinalização náutica, apagada. O piloto de qualquer avião de reconhecimento poderia jurar que a entrada de Porto Alegre por água estava realmente impedida. Mas no sábado, 2 de setembro, quando o Batalhão de Operações da Brigada Militar — correspondente local à Polícia Militar — partiu para Torres, no litoral norte do estado, as informações sobre a situação ainda eram confusas. Antes do embarque, o major Heraclides Tarrago falou com seus homens: Caso seja desfechado um ataque ao nosso estado, nossa missão será de guerra. Missão perigosa, que, por enquanto, ninguém está obrigado a cumprir. Esperamos que nossas autoridades consigam manter a paz e a ordem em nossa República. Caso isso não seja possível, é provável que tenhamos que derramar nosso sangue numa guerra civil. Quem não quiser seguir em frente, pode sair de forma. Alguns têm família numerosa e outros compromissos. Enquanto não houver luta que obrigue ao cumprimento do dever, o comando de Brigada não tomará nenhuma medida punitiva contra aqueles que não quiserem ir.9

Ninguém moveu um só músculo, colocando um sorriso no rosto do major, que concluiu: “Vocês sabem honrar as tradições da nossa querida Brigada Militar!”. No caminho, perto de Três Cachoeiras, as tropas encontraram um comboio motorizado deslocando-se para o sul. Com a aproximação da vanguarda, os veículos do comboio pararam à margem da estrada e apagaram as luzes. Os PMs cercaram rapidamente as viaturas e mandaram uma patrulha para reconhecimento, a quem um alegre bando de ciganos informou que estavam indo “apoiar Brizola”. Ao entrarem em Torres, última cidade antes do território catarinense, havia três dezenas de homens além do efetivo previsto: eram brigadianos de

várias graduações e unidades, inclusive da reserva, que haviam entrado clandestinamente nas viaturas. As tropas do III Exército avançaram por Santa Catarina, e a Brigada Militar ficou encarregada de enfrentar um eventual ataque por mar. Foram construídos abrigos subterrâneos, até porque os armamentos disponíveis eram absolutamente inócuos diante de um ataque aéreo — seria preciso esperar o desembarque, para só então reagir. Na noite de 2 para 3 de setembro, o comando da Brigada concluiu que os fuzileiros haviam desembarcado: o rádio silenciou inexplicavelmente, e a Delegacia de Polícia informou que barcos aproximavam-se da praia. Na manhã seguinte, tudo foi esclarecido — eram apenas pescadores. Naqueles 12 dias, entre agosto e setembro de 1961, o Brasil esteve à beira de uma guerra civil com movimento de tropas para lá e para cá e muita preparação, mas as batalhas restringiram- se ao campo da propaganda e da contrainformação. Morte mesmo, houve apenas uma: na sexta-feira, 1º de setembro, Darvin Mário Ponzi, ex-pracinha da FEB, morador da rua da Azenha, 1.218, em Porto Alegre, sofreu um colapso cardíaco, quando marchava, com outros colegas, do Mercado Público em direção ao Palácio Piratini para esperar João Goulart. Ponzi, além de ser um ex-combatente, desempenhava também as funções de tesoureiro do Diretório Assistencial Doutor João Goulart.

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O longo regresso

30 DE AGOSTO DE 1961, três horas da manhã, Hotel George V — o mais badalado de Paris, que recebe estrelas de todo o mundo, local de hospedagem de ex-presidentes americanos como Gerald Ford e Jimmy Carter e atores como John Wayne, Orson Welles e Burt Lancaster. João Goulart recebe, por telefone, uma longa explicação sobre a crise brasileira do deputado San Thiago Dantas, vice-presidente do PTB, que pode ser resumida em quatro palavras: a democracia corre perigo. Em voz alta, para ser entendido do outro lado do planeta, Jango pondera: Não posso, não devo apresentar meu pedido de renúncia, porque seria uma covardia. Mas, se vocês, meus amigos, que estão no fogo, vivendo o drama com tanta intensidade, julgarem que o Congresso Nacional, que tem sido tão formidável em sua atuação, deve votar o meu impedimento para preservar a paz social e evitar o derramamento de sangue, então que o façam. É uma questão de consciência dos congressistas.1

No Brasil, o telefone troca de mãos. Juscelino pede a Jango que não sacrifique o regime e ouve uma resposta não muito diferente: “Aceito o parlamentarismo, mas deixo ao Congresso a suprema decisão”. A ligação cai. Os participantes da conversa ignoram, mas os primeiros a conhecer o teor do diálogo, fora daquela sala e da suíte do hotel, seriam os ministros militares: o telefonema fora grampeado, admitiria o general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar.2 Meia hora depois, novo contato. Mesmo sem dormir havia quatro noites, Jango ainda tem ânimo para duas observações: “Querem me fazer de rainha Elizabeth... O Juscelino, entre o parlamentarismo e o presidencialismo, prefere o impedimento”.

Na suíte do George V, Jango e seus acompanhantes dispararam ligações para Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre, o que faria a já salgada conta do hotel alcançar cifras astronômicas. Numa das conversas, Amaral Peixoto, presidente do PSD, recomendou prudência, sugeriu a Goulart chegar mais perto do Brasil e prometeu: “O PSD não vai apunhalá-lo pelas costas”.3 Jango embarcou para Nova York às 13h30 daquele dia, para fazer a rota do Pacífico, única forma de chegar à América do Sul sem pisar em São Paulo ou Rio de Janeiro. A ideia era entrar no Brasil via Porto Alegre. Para isso, teve de fazer escalas na Cidade do Panamá, Lima, Buenos Aires e Montevidéu. Em todos esses pontos, ligou para o Brasil e deu dúzias de entrevistas, reafirmando sua disposição de ser empossado, sem parecer uma ameaça à democracia e ao mundo livre. Entre Cidade do Panamá e Lima, o repórter Jean Porterelle, do jornal La Dernière Heure, estava no avião. Foi para ele que Jango afirmou: Embora queira a paz geral, sei que uma parte dos brasileiros deseja ver-me na prisão. A guerra civil seria uma coisa terrível e não creio que meu país queira chegar a isso. Jamais concordaria em subir à Presidência se soubesse que, no dia seguinte, a luta estaria nas ruas. O Brasil atravessa uma gravíssima crise e estou perfeitamente preparado para as responsabilidades que me esperam.4

Quando o jato branco e dourado da Transcontinental pousou em Buenos Aires, por volta das 14h30 do dia 31, nenhum civil pôde entrar no Aeroporto de Ezeiza. Por ordem do presidente argentino, Arturo Frondizi, centenas de agentes da Polícia Federal ocuparam pontos-chave em edifícios e ruas, impedindo a aproximação de veículos. Trajando terno azul-escuro, camisa branca, gravata escura e um lenço claro no bolso esquerdo do paletó, Jango foi recebido na pista pelo deputado Lopes de Almeida, do PTB gaúcho, portador do segundo relatório sobre a crise — o primeiro fora entregue no dia anterior, em Paris, pelo cearense Carlos Jereissati, também trabalhista. Um grupo de parlamentares argentinos do Bloco Nacional Radical e

Popular quis furar o bloqueio e foi retirado aos empurrões, ao mesmo tempo que a comitiva abandonava rapidamente o aeroporto. Sem dar uma só palavra aos jornalistas, Jango passou quatro longas horas nos apartamentos 113 e 144 do Hotel Internacional. De repente, uma confusão na rua: eram os mesmos deputados tentando entrar no prédio. A polícia feriu um deles no rosto, enquanto uma senhora de idade, falando portunhol, atravessou a calçada, tentando apressadamente infiltrar-se entre os agentes: “Soy la tia del señor Goulart!”.5 A mentira não colou. Romualdo Salazar teve mais sorte: empunhando um cartaz com os dizeres “Jango, trago uma mensagem do Leonel Brizola”, em letras vermelhas, conseguiu alcançar o hotel, com ajuda do cônsul brasileiro Alfonso Palmero. Desde o primeiro momento, Jango percebeu que não estava seguro na Argentina. Seu velho amigo Floreni Lisboa Carrion, chefe do Departamento Comercial da embaixada, armou a saída da comitiva por uma porta dos fundos. Correndo junto ao carro e levando empurrões da polícia, os jornalistas puderam fazer apenas duas perguntas básicas através da pequena janela entreaberta do carro: “O senhor vai assumir a Presidência do Brasil?”. Sorridente, Jango respondeu: — É claro, está escrito na Constituição. — Com quem o senhor se reuniu no hotel? — Vou para o Brasil tomar posse.6

Foram as únicas declarações de João Goulart na Argentina. Minutos mais tarde, o carro voltou ao eroporto de Ezeiza. Enquanto isso, o voo 231 da Transcontinental saiu na hora prevista para Montevidéu. Seus passageiros tinham ficado em terra, sob o pretexto de que o aparelho sairia num voo de prova. Mal decolou, o avião fez uma breve escala em Ezeiza para recolher Jango e seus três companheiros — o senador Barros de Carvalho, seu secretário, Dirceu di Pasca, e Carrion, que alugara o aparelho por 120 mil

pesos argentinos. Mal acomodou-se na poltrona, Jango agarrou os jornais. Em seguida, leu com atenção o relatório entregue por Lopes de Almeida. Quando o aparelho atingiu a altura prevista no plano de voo, a aeromoça Anselmi serviu uísque para a comitiva, registrando a reação do ilustre passageiro: “Ele não tocou no uísque e fez todo o percurso de muito bom humor”.7 Diferente dos argentinos, os uruguaios estavam de braços abertos para Jango. O Aeroporto de Carrasco estava repleto. Duas horas antes, haviam pousado dois aviões C-46, com cerca de 80 jornalistas enviados pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. A viagem, de última hora, começara às dez da manhã daquela mesma quinta-feira, 31 de agosto, no porão do Piratini, com o seguinte convite feito por Brizola: “O Jango chega hoje no final da tarde a Montevidéu. Ele precisa voltar para o Brasil, e quero que vocês o tragam. Já consegui dois aviões da Varig que os levarão até a capital uruguaia”.8 “Vocês serão a guarda de honra do presidente...”.9 O repórter político da Folha da Tarde e do Correio do Povo, Lucídio Castello Branco, irmão do Castelinho, secretário de Imprensa de Jânio, encontrou uma explicação para a estratégia do governador: “Ele fez isso porque ninguém iria bombardear um avião cheio de jornalistas, inclusive com correspondentes internacionais”.10 Enfurnados desde o dia 26 no porão e sempre dispostos a qualquer negócio em troca de uma notícia, os jornalistas embarcaram — literalmente. Assim que o avião pousou no Aeroporto de Carrasco, foi cercado pelo Exército. Não era uma ação de repressão, e sim preventiva, de acordo com Lucídio: “Viajamos com revólveres na cintura. Os militares pediram para deixar o armamento dentro do avião, e o chão ficou coalhado de armas. Descemos em fila para tomar a vacina contra a febre amarela. Depois fomos liberados, mas não pudemos sair do aeroporto”.11 Um olho na pista, outro nos corredores, os ornalistas ficaram vagando pelo aeroporto, até as 18h50 daquela quinta, 31 de agosto, quando Jango afinal chegou. Na porta do avião, sorriu, sem dar sinais de fadiga, e deteve-se por

um instante, saudando os jornalistas brasileiros e uruguaios com um largo aceno da mão direita, como era seu hábito. Ao pé da escada, foi recebido como presidente pelo ministro das Relações Exteriores do Uruguai e pelo embaixador do Brasil. A primeira pessoa a cumprimentá-lo foi o chanceler Martinez Montero. Mas quem lhe dirigiu as primeiras palavras foi a filha do presidente: “Seja bem-vindo ao Uruguai”.12 Um corre-corre em direção ao avião provocou muita confusão. Eram os jornalistas com câmeras a tiracolo e, nas mãos, canetas, blocos e papéis em busca de uma declaração. Os seguranças fizeram Jango voltar para dentro da aeronave, acompanhado pelos representantes do governo uruguaio. Por dez minutos, eles ficaram conversando no interior do avião, até a situação estar sob controle. Às 19h11, Jango desceu do avião e encaminhou-se para a área administrativa do aeroporto. Diante do escritório da Varig, cercado pelos repórteres, afirmou: “Estou feliz em pisar no solo uruguaio, país tão conhecido por seu respeito à Constituição e às leis. Mas sobre meu país prefiro não fazer declarações agora, preciso conhecer qual a situação atual, para depois falar”. No escritório, conversou a sós com o embaixador brasileiro no Uruguai, Walder Sarmanho. Logo depois se dirigiram, sem abandonar o perímetro vigiado, para a Base 2, ficando lá até as 20h30, fazendo ligações telefônicas — duas delas para Brizola —, mas as linhas não estavam boas. De surpresa, às 20h43, Jango apareceu na sala de embarque e conversou com os jornalistas. Entrevista mal-ajambrada: cercado por sete guarda-costas e pela polícia uruguaia, o vice-presidente disse as primeiras palavras, muito pausadas, para que os jornalistas uruguaios entendessem, agradecendo ao governo do Uruguai pela amabilidade. Antes que alguém lhe perguntasse, disparou: “Só vou falar sobre o Brasil mais tarde, depois de me comunicar com algumas pessoas. Os telefonemas, vou dar da embaixada do Brasil”.13 Era a senha para dizer que dormiria em Montevidéu. Encostado no braço de uma poltrona e com aparência tranquila, Jango continuou a responder às

perguntas: Só posso opinar sobre a crise como presidente, respeitador da Constituição e esta, segundo o artigo 79, me confere o cargo de presidente. Só um detalhe falta para cruzar a fronteira. Espero nova comunicação telefônica com o Brasil, que decidirá a crise em definitivo.

Emendou elogiando Brizola e prometendo defender a Legalidade. Foi nesse momento que o repórter do jornal Última Hora, Dilamar Machado, na época com 26 anos, explicou que os jornalistas estavam ali para levá-lo a Porto Alegre. — Essa missão nos foi dada pelo governador. Nós não vamos abrir mão de levá-lo para a capital gaúcha. Estamos aqui para escoltá-lo. — Olha, eu nunca me senti orgulhoso em ter uma escolta tão segura, porém vou pedir a vocês que me deem um prazo, pois estou em negociações.

Em relação à renúncia de Jânio, o vice presidente declarou ter ficado tão surpreso quanto todo o Brasil. Sem dar tempo para mais perguntas, desfiou um rosário de elogios. Chamou Machado Lopes de herói por seu respeito à Constituição e à Legalidade. Agradeceu o apoio do clero e revelou nunca ter agido, na vida pública, sob a pressão de “forças ocultas”, embora soubesse que “tais forças conspiravam contra o Brasil e a sua Constituição”.Congratulou-se com a Assembleia do Rio Grande do Sul, falou bem do Congresso Nacional e citou várias vezes o artigo 79 da Constituição. Lamentou a censura imposta à imprensa em alguns estados. Rasgou seda para a atitude de Almino: “Ele é um dos grandes valores do trabalhismo brasileiro”. Disse ainda que tudo estava a seu favor, a julgar pelos telefonemas que recebera dos amigos e correligionários e pelo apoio compacto do povo brasileiro. Finalizou a entrevista às 21h30 e etirou-se debaixo do frio intenso e de chuvisco para uma estação da Força Aérea Uruguaia, de onde tentou mais uma vez, sem sucesso, comunicar-se com Brizola.

Um jornalista do El Dia abordou-o no corredor e perguntou: “Quais os vínculos que o unem ao Partido Comunista?”.14 Jango não gostou, mas respondeu, rapidamente: “Nenhum. Eu sou membro do Partido Trabalhista, que tem no Brasil uma tradição democrática. Eu viajei à China comunista, mas o marechal Montgomery também foi, e ninguém suspeitou de sua convicção democrática por isso”. Escoltado por quatro patrulheiros da Polícia Rodoviária Uruguaia, conhecida como polícia caminera, Jango seguiu para a embaixada do Brasil num Impala preto, último modelo. No Aeroportode Carrasco, os jornalistas passaram por maus bocados. Ney Fonseca tinha apenas 200 cruzeiros no bolso. O dinheiro brasileiro valia quase nada no Uruguai, e não havia carros suficientes no aeroporto para levá-los até a embaixada: “Eu, com os meus míseros trocos, sobrei”.15 Alguns jornalistas uruguaios estavam mais exaltados do que os brasileiros — mais pareciam revolucionários prestes a tomar o poder. Outros propunham que Brizola separasse o Rio Grande e se juntasse ao Uruguai, formando assim um grande país. Notícia, de verdade, não havia uma sequer — só fome, sono e bravatas. Alguns se deitaram nos sofás e cochilaram, até serem acordados com a informação de que Jango resolvera ficar em Montevidéu e não seguiria com os jornalistas para Porto Alegre. Decidiu-se então que um dos aviões voltaria naquela noite para a capital gaúcha, levando a turma que ficara no aeroporto. Fonseca, Dilamar e o fotógrafo Lemyr Martins partiram — este com a incumbência de levar seus filmes e os de Assis Hoffmann, da Última Hora, mais as anotações de Adauto Vasconcelos. Era uma noite escura, sem lua, e, logo após cruzar a fronteira, o comandante desligou as luzes de navegação e baixou a altitude. Curioso, Fonseca perguntou: “Por que estamos voando tão baixo? Estou vendo os morros bem pertinho”. A resposta veio curta e grossa: “Estamos a 100 metros de altura. É que por aqui tem coisas no ar! Temos notícias de que caças da Força Aérea querem atingir aviões no Sul do Brasil”.16

Foram momentos de pavor, lembraria Dilamar Machado: “Quem não tem medo numa hora dessas é anormal. Um dos tripulantes do avião passou com um fuzil na mão. Imagine, um fuzil para enfrentar caças!”.17 Ao amanhecer, depois de muita tensão, os repórteres desceram no Aeroporto Salgado Filho, sãos e salvos. Jango ainda estava na esquina da rua General Rivera com boulevard Artigas, em Montevidéu. Ali ficava o Palácio Pietracaprina, um prédio de dois andares, portas grandes e jardins bem cuidados, um dos bons registros da influência francesa sobre a arquitetura uruguaia. Construído nos primeiros anos do século XIX por Roberto Pietracaprina, foi adquirido pelo governo brasileiro em 1941, para ser a sede da embaixada brasileira, que Getulio Vargas entregara a seu cunhado, João Batista Luzardo. No primeiro andar, a ala residencial ocupada pelo embaixador Sarmanho, Jango atracou-se ao telefone, tentando ligações para Porto Alegre, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. O repórter Adauto Vasconcelos e o fotógrafo Assis Hoffmann, da Última Hora, fazendo-se passar por integrantes do governo Brizola, tinham conseguido entrar na embaixada brasileira. Quando encontraram Jango, este estava ladeado pelos seus concorrentes: Ubiratan Lemos, de O Cruzeiro, e Lucídio Castello Branco, da Folha da Tarde e do Correio do Povo, de Porto Alegre. Adauto não perdeu a oportunidade e foi incisivo: “Presidente, sou da Última Hora e tenho ordens do Samuel Wainer de só retornar ao Brasil na companhia de V. Exª”. Jango encarou-o e respondeu: “Transmita o meu abraço ao Samuel e digalhe que vocês voltarão ao Brasil comigo”.18 O embaixador Sarmanho interferiu, pedindo para os repórteres se retirarem, deixando Jango tratar dos problemas de 70 milhões de brasileiros. Sonolentos, os jornalistas ficaram de plantão nos jardins da embaixada, olhos grudados nas janelas do primeiro andar. Pouco depois, Lucídio conseguiu chegar ao primeiro andar. Encontrou Jango descansando. O vice-presidente confessou ao jornalista que estava atordoado:

Eu não sei o que vou dizer, porque eu nem sei o que está acontecendo no Brasil. Eu vou começar agora a telefonar para as pessoas para que elas me digam o que está acontecendo e o que eu posso dizer. Nós vamos fazer o seguinte: você chega lá e diz que foi nomeado secretário da Presidência da República no exílio e que, a partir de hoje, eu só falo com eles por seu intermédio.

Lucídio, também correspondente do Jornal do Brasil em Porto Alegre, não era nem mesmo funcionário do governo gaúcho, embora tivesse atuado como uma espécie de braço direito do assessor Hamilton Chaves no Palácio Piratini. O jornalista aceitou a proposta, procurou os colegas — 35 profissionais de veículos do mundo inteiro — e explicou que o vice-presidente só falaria às dez da manhã do dia seguinte. À 0h40 do dia 1º, Jango conversou por alguns minutos com os repórteres que continuavam na embaixada. Informou que tinha feito contato com políticos de Brasília e com Brizola, mas admitiu que ainda não decidira quando voltaria ao Brasil: “Quem sabe nas próximas horas”. Ninguém ficou sabendo a que horas ele foi dormir, nem mesmo se conseguiu pregar os olhos naquele tenso dia. Na manhã seguinte, o improvisado porta-voz acordou muito cedo e presenciou uma cena incomum. Jango falava alternadamente em dois telefones, no gabinete do embaixador. Num aparelho estava Leonel Brizola, utilizando uma linha instalada nos primeiros meses de seu governo, ligando a capital a Santana do Livramento, na fronteira, e à vizinha Rivera, no Uruguai. Na outra linha, o interlocutor era Tancredo Neves. O trisavô deste chegara a São João del Rey, Minas Gerais, vindo do arquipélago dos Açores e assumiu o posto de ouvidor-mor da comarca de Rio das Mortes. No solar que comprou, nasceu Tancredo de Almeida Neves, o quinto dos 12 filhos de Francisco de Paula Neves, comerciante de secos e molhados, com Antonina de Almeida Neves, a dona Sinhá, em 4 de março de 1910. Seu pai morrera aos 48 anos, quando ele ainda era um pré-adolescente, mas fora uma influência decisiva na vida do garoto:vereador pela oposição,

Francisco costumava pedir ao filho que lesse discursos imensos feitos pelos mais importantes políticos no Senado e na Câmara. A família era marcada pela disciplina — tinha hora para tudo. Apesar disso, Tancredo teve uma infância normal, nadando nos rios, colhendo jabuticaba no pé e jogando futebol no Esparta Futebol Clube, na mesma posição em que faria toda a sua carreira política: meia-direita. Depois de tentar sem êxito uma vaga na Escola Naval, formou-se em direito. No tempo de faculdade, participou das manifestações que precederam a Revolução de 1930 e garantiu seu sustento como revisor, repórter e redator do jornal O Estado de Minas. Aos 26 anos, já era promotor de Justiça quando se elegeu vereador pelo Partido Progressista em São João del Rey. Em 1937, a habilidade como negociador assegurou-lhe a presidência da Câmara Municipal, cargo que exerceu por pouco tempo, até ser cassado, como todos os outros parlamentares, pelo Estado Novo. De volta à banca de advogado, passou nove anos atendendo boa clientela, e sua competência nos tribunais assegurou-lhe o apelido de Patativa do Rio das Mortes. Em maio de 1938, casou-se com Risoleta Tolentino, de 21 anos, de sólida família do município de Cláudio. O casal teve três filhos: Tancredo Augusto, Maria do Carmo e Inês Maria. Prestigiado por Benedito Valadares, entrou para as fileiras do PSD. Em 1946 obteve 5.256 votos e foi o penúltimo colocado na relação dos eleitos para a Assembleia Constituinte mineira. Até 1950, liderou a oposição ao governador Milton Campos, eleito pela UDN, participando ativamente da costura que resultou no lançamento da candidatura do pessedista Juscelino ao governo de Minas Gerais. Juscelino foi eleito, Tancredo também. Sua atividade na Câmara Federal começou a lhe garantir ressonância fora de Minas. Gustavo Capanema, líder da bancada do governo no Congresso, pediu-lhe que defendesse o primeiro veto de Getulio Vargas a um projeto aprovado pelo Parlamento. Tancredo enfrentou a chamada banda de música da UDN — Lacerda, Afonso Arinos e outros — e, depois de 20 minutos de discurso, conseguiu manter a decisão do

presidente. Era o começo de um relacionamento cordial com Getulio, que o levaria ao Ministério da Justiça, com o aval de Juscelino, em meados de 1954, quando alguns ministros se desincompatibilizaram para concorrer às eleições. Tancredo ficou ao lado do presidente até o fim do governo. Mais de uma vez, propôs a Getulio que reagisse ao cerco estabelecido por Lacerda, a UDN e os militares, sugerindo ao presidente utilizar as tropas que ainda lhe eram fiéis e o uso de todos os meios para resistir. Getulio não levou as sugestões em conta; incumbiu Tancredo de redigir a nota que informava sobre seu afastamento do cargo até que fossem concluídas as investigações sobre o atentado contra Lacerda e deu-lhe uma caneta Parker 51 de ouro, indo para o quarto onde se suicidou. Tancredo ainda viu o presidente agonizante, depois do tiro no coração: “Foi o instante de maior emoção da minha vida pública”.19 Reassumiu a cadeira de deputado, ajudou a eleger Juscelino para o governo de Minas, assumiu a diretoria do Banco de Crédito Real de Minas Gerais e, quando JK tornou-se presidente, passou a dirigir a carteira de redescontos do Banco do Brasil. Foi secretário das Finanças do governador Bias Fortes e saiu candidato ao governo de Minas em 1960, sendo derrotado pelo udenista Magalhães Pinto. Segundo Lucídio Castello Branco, Tancredo tentava convencer Jango a não voltar imediatamente: O Tancredo fazia um apelo a ele para não vir para o Brasil. Para não aceitar a provocação do Brizola, porque eles estavam articulando uma saída. Que ele não desse entrevista, que ele não falasse, não botasse lenha na fogueira. O Jango dizia para o Brizola: “Olha, o doutor Tancredo está dizendo isso, isso, isso”, e o Brizola dizia: “Deixa de ser mole, vem pra cá, essa tá ganha e por aí afora”. No estilo do Brizola. Na conversa com o Tancredo, Jango disse: “Olha, doutor Tancredo, eu lhe prometo que esperarei pelo senhor até a tarde, pelas suas informações, e não vou dar entrevistas, nem vou viajar para Porto Alegre, antes deste telefonema à tarde”. Aí, ele pegou o telefone do Brizola e falou: “Olha, Brizola, me comprometi com o doutor Tancredo Neves que, primeiro, não daria entrevista, segundo, não vou para Porto Alegre”. O Brizola deve ter ficado buzina da vida, porque, como todo mundo,

estava confiante.20

Lucídio relatou a conversa aos jornalistas. Às dez horas, foi servido o café da manhã. Uma hora e meia mais tarde, dois visitantes chegaram à embaixada. Antes de pisar no tapete abóbora que recobria a escada para o segundo andar, o mais baixo deles, 51 anos, calva pronunciada, nariz pontudo, olhos muito vivos, anunciou aos repórteres: “Vim em missão de paz e legalidade”. No topo da escada, Jango aguardou os emissários. Nenhum dos dois tinha mandato. Um era o advogado Hugo Araújo de Faria, membro do diretório nacional do PTB, que dois meses antes deixara a diretoria da Confederação Nacional da Indústria. Carioca, 46 anos, ele substituíra Jango no Ministério do Trabalho de Vargas, em 1954, e tinha excelente relacionamento com o vice-presidente. O outro, que falara com os jornalistas, era o mesmo homem que participara da improvisada conferência telefônica naquela mesma manhã: Tancredo Neves. Sua missão fora ideia de Amaral Peixoto. Ranieri Mazzilli queria que o dirigente pessedista voasse até o Rio e dali fosse a Montevidéu no avião presidencial conversar com Jango. Amaral Peixoto já havia mandado o deputado Euclides Pessoa, do PSD do Ceará, ao Rio Grande do Sul e recebera um relatório preocupante, dando conta de que os gaúchos estavam dispostos à luta e tinham mesmo o apoio do III Exército. Por isso, achou melhor ficar em Brasília e indicou Tancredo em seu lugar. Hábil negociador, bem relacionado com Jango, capaz de ser aceito pelos militares, o mineiro tinha a vantagem adicional de não ter mandato. Sua primeira tarefa foi conversar com o general Ernesto Geisel. Mesmo inscrito entre os militares que admitiam a saída política, o chefe da Casa Militar de Mazzilli apresentou três precondições para que Jango assumisse o cargo a que tinha direito: aceitar o parlamentarismo, passar ao largo de Porto Alegre em seu retorno e chegar a Brasília sem ter Brizola a tiracolo. Acertadas as condições, Tancredo preparou a partida, enquanto Almino Affonso entregava ao deputado Wilson Fadul, que deveria representar a

bancada do PTB no encontro com o vice-presidente, a seguinte mensagem, escrita às pressas: Brasília, 30 de agosto de 1961. Presidente, Hei de cumprimentá-lo quando atravessarmos a cachoeira. Agora, opino (em caráter estritamente pessoal) sobre o problema maior que o senhor terá de enfrentar: a adoção do parlamentarismo. O parlamentarismo, agora, é “golpe branco” das forças reacionárias. É o mesmo “golpe”, em termos civis, que os militares tentaram dar. É eminentemente de sentido reacionário. Não significa apenas um veto ao seu nome. É o veto a todos que se propunham a defender as teses que correspondem hoje aos interesses do povo. Em termos populares, é um desastre. O povo, por intuição talvez, percebe o caráter reacionário da medida a ser adotada neste instante e não o perdoará. Não me parece uma solução para a crise em termos políticos e talvez não o seja em termos militares. Imagino que a única hipótese aceitável, à parte o conteúdo da emenda que analisaríamos, é que seja condicionada à prévia aprovação do povo em plebiscito. Ontem, o Congresso reconheceu a legitimidade de seu mandato e, a rigor, o direito à sua investidura, mesmo antes da emenda parlamentarista. Hoje, entretanto, o presidente Mazzilli confessou-me que, se o senhor chegasse a Brasília agora, seria preso pelos militares. É claro que o Mazzilli apenas narra uma situação de fato. O Fadul completará esta informação feita de corrida. O momento é por demais tumultuado e não é fácil apontar a diretriz com absoluta clareza. Até breve. Grande abraço. Almino Affonso21

Fadul não completou coisa alguma, e Jango jamais recebeu a carta. Quando o emissário de Almino chegou à base aérea, o avião já havia partido. Antes de chegar ao Aeroporto de Carrasco, às dez da manhã de 1º de setembro, no Viscount presidencial, que levara Jânio para longe do poder,

Tancredo ainda teve de dar a volta em Brizola. O governador gaúcho fora informado por Jango de que o mineiro estava a caminho, mas deveria passar antes por Porto Alegre. Foi Brizola quem relatou: Na manhã seguinte, recebi o aviso de que o avião do Tancredo se aproximava do Aeroporto Salgado Filho. Nessa altura nós já éramos donos do aeroporto, donos da torre, a Aeronáutica não tinha mais controle da situação. Mandei desimpedir o campo, que estava cheio de tonéis, e preparar a descida do Tancredo. A minha intenção — parece que ele adivinhou, ele tinha um sexto sentido — era prendê-lo.22

O Viscount sobrevoou uma, duas, três vezes o Aeroporto Salgado Filho e arremeteu em direção a Montevidéu, derrubando por terra o plano brizolista de manter Tancredo em Porto Alegre e usar o avião presidencial para buscar Jango no Uruguai. No primeiro andar da embaixada brasileira em Montevidéu, Tancredo, Hugo de Farias e Jango ficaram horas trancados numa sala. Não houve intervalo para o almoço — funcionários levaram refrigerantes e sanduíches —, e, do lado de fora, nem um murmúrio foi ouvido. Jango, que já admitira o parlamentarismo em conversas telefônicas, recusou a ideia com veemência, segundo relatos posteriores de Tancredo. eria lembrado que sua família sempre fora presidencialista e que a história do Rio Grande do Sul tinha vários episódios sangrentos de confrontos entre adeptos dos dois sistemas. Tancredo argumentou que valia a pena pagar esse preço para evitar a guerra civil, e o vice-presidente acabou cedendo. Por telefone, o mineiro informou ao general Geisel sobre o avanço das negociações, mas, espertamente, acrescentou que Jango exigia discursar em Porto Alegre. O chefe da Casa Militar não admitiu, em nenhuma hipótese, que Jango jogasse lenha na fogueira acalentada por Brizola. O pessedista propôs então que Jango fosse até Porto Alegre, mas não abrisse a boca diante do povo. Geisel concordou. Faltava obter o sim de Jango. De volta à sala, passou as informações para o vice-presidente, que se irritou: “É uma humilhação passar pela capital da resistência em silêncio”.23

Com muita calma, Tancredo lembrou-lhe que, se dissesse palavras duras, agravaria a crise e, se fizesse um discurso brando, daria a impressão de ter se curvado aos militares. O certo, aconselhou, era limitar-se a aparecer na sacada do Palácio Piratini e dali acenar para o povo. Jango achou boa a ideia. Contornadas duas das três exigências militares, Tancredo disse que existia mais uma precondição para sua posse. Quando começou a falar, o gaúcho perdeu a calma e soltou muitos palavrões, assegurando ao interlocutor que não faria mais nenhuma outra concessão. Mostrando tranquilidade, Tancredo disse: “Essa é a mais fácil, justamente por isso deixei-a por último. Os militares não querem ver Brizola na sua posse”. Ao ouvir o recado, Jango abriu um largo e franco sorriso e concordou: “Eu também não quero isso”. As negociações demoraram das 11h45 às 15 horas, sendo interrompidas várias vezes por telefonemas e por um entra e sai de políticos e assessores. Enquanto isso, correu o boato de que estava sendo apresentado a Jango o texto de uma nova Carta Constitucional. A notícia desnorteou os jornalistas. Um alto funcionário da embaixada informou que Tancredo trazia uma proposta conciliadora, mas dentro da Constituição. Um dos repórteres perguntou: “Qual o texto da proposta?”. O funcionário simplesmente deu as costas e dirigiu-se de novo para o primeiro andar. A maior parte dos jornalistas estava nos jardins externos da embaixada. Do lado de dentro, havia apenas três: Ubiratan Lemos, Lucídio Castello Branco e Adauto Vasconcelos. Às 13 horas, a primeira informação oficial: o vice-presidente ficaria mais duas horas em Montevidéu. O telefone tocou, e Jango atendeu. Era preciso gritar, para que o outro escutasse. A voz deveria ser um chiado distante. Os três jornalistas começaram a anotar algumas frases de Jango, nítidas, soletradas: “Brizola, eu não resolverei nada sem consultar vocês. Hein? Fala mais alto. Não escuto bem. Sim, sim, consultarei você e o nosso amigo general sobre as conversações. Segura esta linha, que vou falar um pouco mais com o Tancredo”.24

Em Porto Alegre, o governador recebia o primeiro sinal concreto de que Jango estava cedendo: “Naquela ligação ele me comunicou que estava assumindo uma posição conciliatória porque não tinha conhecimento da realidade no Brasil”.25 A ligação terminou, e os repórteres já não escutavam mais nada, até que o professor Ajadil de Lemos, que Brizola enviara a Montevidéu e funcionava como consultor jurídico de Jango, deu mais uma pista: “Tudo vai bem, e eu vou tomar um cafezinho”. Em novo telefonema internacional, os repórteres conseguiram ouvir Jango dizendo que seguiria naquele dia e pretendia chegar a Porto Alegre na manhã seguinte. O que permitia imaginar que a viagem seria por terra. Mas eram 14 horas de estrada até Porto Alegre, argumentou Adauto Vasconcelos, para quem aquele era apenas um despiste. O telefone tocou mais uma vez. Jango atendeu, mas não ouvia nada. Pediu para Brizola fazer outra ligação, trocando o número 41-0481 para 41-0445. “Neste último eu te ouvirei melhor.” Às 15 horas, terminou a reunião. Todos desceram as escadas com semblante sério. Jango aparentava cansaço. O almoço foi servido. A embaixatriz, Gilda Sarmanho, fez um pedido a Tancredo: “Deputado, pelo amor de Deus, resolva isso direitinho. Eu sempre ouvi dizer que Deus é brasileiro. Prove isso, sim?”. A resposta não poderia ser mais mineira: “O espírito de 1932 transferiu-se de São Paulo para o Rio Grande. O Rio Grande salvou o país da guerra civil. Salvou as instituições”. Na saída do almoço, Adauto Vasconcelos abordou Tancredo, que repetiu as palavras ditas à embaixatriz e acrescentou: “As negociações em torno do parlamentarismo tiveram um avanço substancial. Será o fim da crise”. Isso deu certeza aos jornalistas de que Goulart concordara com a mudança de regime. Às 16 horas, os emissários saíram da embaixada rumo ao aeroporto. Uma hora mais tarde, horário marcado para a partida de Jango, o vice-presidente desceu para o segundo encontro formal com os jornalistas. Nos jardins, em pé, com o mesmo terno azul-escuro da véspera, Jango

explicou: Tenho o espírito aberto para encontrar uma solução para a crise dentro da ordem legal. Os homens mais responsáveis da nação estão empenhados em manter o regime existente. Considero que temos de evitar o derramamento de sangue, e todas as forças vivas da nação estão procurando a forma de encontrar uma solução aceitável.26

Para não criar problemas, a entrevista foi dividida em duas. Primeiro, por dez minutos, Jango atendeu os jornalistas uruguaios e os representantes das revistas Life e Time. Para os brasileiros (apenas três presentes), 40 minutos de respostas, resumidas na edição especial da revista O Cruzeiro, do dia 16 de setembro de 1961, desta forma: Minha primeira preocupação é debelar a crise. O caso da política externa pertence não só a mim, como às forças partidárias, a todas as correntes vivas dos setores populares e do governo. Essas correntes é que devem estudar os rumos da política externa, as suas conveniências ou inconveniências. É assunto que convoca toda a nação e que deverá atender à índole dela. Sou grato ao povo paulista e ao seu governador, na presente crise que a nação atravessa. O respeito à lei e à Constituição, que vejo nos paulistas, muito me comove. Não posso, até o presente, pronunciar-me sobre a emenda parlamentarista. É assunto complexo, que ainda não conheço em profundidade. Irei até o impossível, para que não haja derramamento de sangue. Confio em Deus e nos brasileiros para que se evite, a qualquer custo, a guerra civil. Penso, como base para um governo, na presente conjuntura, numa composição ministerial de todos os partidos. Não conheço os motivos da renúncia de Jânio Quadros. Recebi essa renúncia com surpresa, em Cingapura. Acredito na elevação dos propósitos do presidente Mazzilli. E aguardarei, confiante, a data para a minha posse.

Perguntado sobre se acreditava que Jânio tentara um golpe, como denunciado por Lacerda, limitou-se a dizer que nada sabia a respeito. Portanto, não poderia comentar o que desconhecia. E firmou-se, em todas as respostas, na tecla do respeito às instituições, na restauração da ordem democrática, como único meio de superar a crise. Mas de uma pergunta Jango esquivou-se: “O que foi tratado com Tancredo e Faria?”. A resposta foi evasiva: “Falei longamente com eles”. Quando os jornalistas apertaram o vice presidente para conhecer o conteúdo da conversa, Jango desviou o diálogo para temas mais gerais. Bateu nas costas de Adauto e disse, com seu forte sotaque: “Te prepara, vamos para o Rio Grande”. Em passos lentos e com a mão direita no bolso, entrou novamente na embaixada. Às 18h46, um carro preto saiu em alta velocidade do prédio, seguido de outros três veículos. A rapidez da manobra desconcertou os presentes. Quando alguns jornalistas indagaram o que estava acontecendo, um funcionário da embaixada informou que o senhor Goulart tinha ido “por terra” até Porto Alegre. Um jornalista do El País conseguiu seguir o carro, que em alta velocidade pegou a boulevard Artigas. Ao chegar à avenida Itália, dobrou para o leste rumo ao Aeroporto de Carrasco. Quando chegou lá, Jango percebeu que os jornalistas brasileiros estavam entrando no avião. Segundos depois, já no avião da Varig, sentou-se na terceira fila, ao lado do senador Barros de Carvalho, e acenou. Às 19h24, o avião levantou voo com destino a Porto Alegre. Jango pegou os jornais e examinou as manchetes. Logo depois, acomodou-se melhor na poltrona e repousou. A tripulação do Caravelle apagou as luzes e ordenou a todos que não fumassem. Tempos depois, o comandante avisou os dez passageiros: “Nós vamos fazer uma descida numa área onde temos absoluta certeza de segurança”. Ao sobrevoar Porto Alegre, o avião apontou o bico para baixo. Os passageiros ficaram com as costas grudadas nas poltronas. O Caravelle, o jato mais moderno da época, pousou finalmente na capital da resistência.

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Que as armas não falem

1º DE SETEMBRO, 21h40, Aeroporto Salgado Filho, Porto Alegre. Não há multidão alguma esperando o homem que deve comandar o país e cujo retorno foi tão tumultuado. Depois de 31 dias fora do Brasil, João Goulart é recebido por não mais de 50 pessoas. Todas ouvem o ruído do Caravelle, que desce num ângulo radical, mas ninguém vê o avião — suas luzes estão apagadas. Na pista, enfrentando o forte vento nordeste, Brizola, Machado Lopes, o presidente da Assembleia Legislativa, Hélio Carlomagno, alguns assessores, deputados, secretários e muitos jornalistas. Finalmente, cercado por policiais civis e ladeado por Brizola e Machado Lopes, Jango, com o mesmo terno azul-marinho usado em Montevidéu, desceu do avião, entrou num Alfa Romeo produzido no Brasil pela Fábrica Nacional de Motores e partiu para o Palácio Piratini em alta velocidade, precedido por batedores e soldados da Brigada Militar. Mal o Caravelle pousou no aeroporto, um dos locutores da Rede da Legalidade leu um comunicado histórico: A partir deste instante, o doutor João Goulart é o presidente da República. Todos os cidadãos do Brasil deverão submeter-se à ordem do comandante supremo da nação, no cumprimento da Constituição. Como primeiro magistrado, é ele comandante em chefe das Forças Armadas e responsável pelo destino do povo do Brasil, defendendo os direitos da Constituição.1

Os termômetros marcavam nove graus. As sirenes da comitiva chamavam a atenção, e os populares saíram às portas e janelas. Porto Alegre estava mobilizada, mas enfrentava problemas.

Naquele 1º de setembro, o racionamento era total. A escassez de dinheiro fizera Brizola utilizar uma lei sancionada por ele mesmo em 1959, autorizando a emissão de Letras do Tesouro para pagamento à vista. A Secretaria da Fazenda acabara de implantar um severo sistema de fiscalização para evitar a saída de dinheiro do estado. Até o Departamento da Loteria transferiu sine die a extração nº 766, que deveria ser realizada em 5 de setembro.2 O estado estava praticamente isolado do resto do país. Ligações interurbanas não eram completadas; o tráfego aéreo estava paralisado; os transportes rodoviários para Santa Catarina e Paraná, interrompidos. Além disso, com o bloqueio da barra do Rio Grande, por ordem do governador, o transporte marítimo também havia parado. As lojas andavam às moscas, e o boato era de que, dentro de poucas horas, não haveria mais combustível. Com medo de uma retaliação, muitos portoalegrenses fugiam para o interior do estado. Mais de 10 mil pessoas deixariam a cidade pela estação rodoviária, nos primeiros dias de setembro (em épocas normais saíam, em média, 3 mil pessoas a cada fim de semana). O êxodo seria ainda maior se metade dos horários de ônibus não tivesse sido suspensa por causa do racionamento de combustível. Walter Galvani, na coluna “Preto no branco”, da Folha da Tarde, informava que os gaúchos tomavam o rumo do litoral para se sentirem seguros. Mas a mobilização era intensa: no dia em que Jango pisou na cidade, o Comitê de Resistência Democrática contabilizava mais de 45 mil inscritos no posto central — o Mata-Borrão. Para facilitar o alistamento, tinham sido organizados diversos centros de recrutamento nos bairros e cidades próximas, a maioria atendendo durante 24 horas. A Procissão da Paz, com estudantes, crianças, senhoras e donas de casa de Sapucaia do Sul, cidade localizada na Grande Porto Alegre, foi até São Leopoldo, na Parada 72 da Estrada Estadual, percorrendo oito quilômetros até o túmulo do padre João Batista Réus. Ali todos rezaram e pediram graças e a intercessão divina para que o Brasil superasse a grave crise. Às 21h50, quando chegou à rua Duque de Caxias, no centro da cidade, o

Alfa Romeo teve de avançar lentamente: havia mais de 80 mil pessoas defronte do Palácio Piratini, cercando toda a praça da Matriz. Sentado no banco traseiro, Jango saudou o povo pela janela aberta. Com dificuldade, o carro entrou pelo portão lateral, junto à catedral, alcançando os jardins da ala residencial. Eram pontualmente dez da noite: aplaudidos e cumprimentados por todos, Brizola, Machado Lopes e Jango subiram a estreita escada e entraram no gabinete do governador. No primeiro andar, uma parada estratégica: Jango e Brizola, abraçados, posaram para os fotógrafos, enquanto os repórteres pediam uma entrevista. Do lado de fora, a multidão gritava “Jango, Jango, Jango”, num coro que pedia sua presença na sacada. Às 22hl8, com Machado Lopes, apareceram no primeiro andar do Palácio Piratini. O povo delirava, Jango acenava com a mão direita aberta ao alto da cabeça, mas não pronunciou uma só palavra. As imagens feitas pela TV Tupi mostram um governador eufórico e um prudente presidente. Jango voltou à sacada mais duas vezes, saudando o povo, que empunhava dezenas de cartazes: “Todo o Rio Grande de pé pela Legalidade”, “O bancário é um soldado da Legalidade”, “Os golpistas são contra o povo”. Brizola apontou para o povo e disse a seu cunhado: “Este povo não votou conosco em 3 de outubro. Agora está aqui, aplaudindo. Não as pessoas, o aplauso deles é muito maior. É o aplauso aos princípios que tu encarnas. A nossa missão é ajudar que eles se mantenham!”. Jango continuou em silêncio. Em Brasília, o Congresso discutia a emenda do parlamentarismo. Todas as lideranças políticas sabiam que sua aprovação era questão de horas. O vice-presidente entrou no gabinete do cunhado. Em torno da mesa retangular, postaram-se Brizola, Machado Lopes, Francisco Brochado da Rocha, Ney Brito, João Caruso e o general Santa Rosa. Machado Lopes perguntou a Jango se ele assumira realmente compromisso com a saída parlamentarista. Diante da afirmativa, deixou o palácio e mandou publicar nos jornais do dia seguinte este anúncio: O dr. João Goulart, vice-presidente da República, declara que acatará as decisões soberanas do Congresso.

O general Machado Lopes, comandante do III Exército, de pleno acordo com o vice-presidente da República, declara que acatará as decisões soberanas do Congresso.

No mesmo andar, no salão onde funcionava o Gabinete de Administração e Planejamento (GAP) do Piratini, os repórteres aguardavam, ansiosos, a palavra de João Goulart. Sua adesão ao parlamentarismo ainda era uma especulação. Por volta das 23 horas, ele chamou o jornalista e assessor do governo gaúcho, Carlos Contursi, e, com seu forte sotaque, fez um apelo: “Me dá uma mão, avisa os jornalistas que não vou dar entrevista, só distribuir uma nota”.3 A essa altura, os jornalistas nacionais e internacionais já estavam inquietos. No gabinete, o vice-presidente redigiu a nota e mostrou-a a Hamilton Chaves. A nota estava correta, mas faltava alguma coisa. O assessor de imprensa de Brizola foi lendo o texto, enquanto caminhava até a datilógrafa. No meio do corredor, colocou o papel sobre a parede, tirou a caneta do bolso e acrescentou 15 palavras ao final: “Que Deus me ilumine, que o povo me ajude, e que as armas não falem”. Em 26 de fevereiro de 1985, em entrevista ao jornalista Amir Labaki, Chaves justificou: “Faltava uma frase de impacto, capaz de dar manchete nos jornais”.4 Datilografado, o documento foi entregue a Contursi, que voltou a enfrentar os aflitos colegas e distribuiu a seguinte nota: Chego à minha pátria para cumprir os deveres que me são impostos pela nossa Constituição. Não alimento ódios nem ressentimentos de qualquer espécie. O meu desejo identi- fica-se com os anseios do povo brasileiro, a preservação da ordem legal, o respeito à Constituição e às leis. Confio no patriotismo de todos os homens e de todas as forças que respondem pelos destinos do Brasil. Entendo que, depois do impacto decorrente da renúncia do presidente Jânio Quadros, nenhum governo poderá ser instalado no país senão com base no congraçamento de todas as forças responsáveis do Brasil. A mensagem que trago é de paz e esperança. Permaneço, como em toda a minha

vida pública, inteiramente devotado aos princípios democráticos, à manutenção da ordem, pronto a servir à República no interesse do progresso e do bem-estar político, econômico e social e espiritual da Nação. Que Deus me ilumine. Que o povo me ajude, e que as armas não falem.5

O salão virara uma balbúrdia: os repórteres acharam os termos da nota vazios e, diante da recusa de Jango a falar, ameaçaram quebrar tudo, revoltados. Para amenizar, Contursi voltou ao gabinete: “Vou ser franco, presidente. Se o senhor não falar com os jornalistas, eles vão quebrar os móveis, estão revoltados”.6 Num alinhado terno risca de giz, tendo do lado direito um distintivo da Legalidade e no esquerdo um lenço branco, Jango entrou no salão do GAP. Uma avalancha de jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas, repórteres de TVs, assessores, políticos e alguns populares que conseguiram furar o cerco rodeou o presidente. Eram mais de 300 pessoas entre empurrões e gritos, fazendo do trajeto até a mesa algo impossível. Para contornar o tumulto, chegaram oficiais da Casa Militar e conseguiram colocar Jango sentado na cadeira na ponta da grande mesa retangular. Com o cigarro na mão direita e uma diversidade de cinzeiros transparentes à sua frente, ele não disse uma só palavra. A tensão aumentou. Todos perguntavam ao mesmo tempo. Atônito, Jango levantou-se e saiu. Alguns jornalistas mais irados foram atrás, aos gritos, perguntando se aquilo era um desfile de miss. Durante a fracassada e tumultuada entrevista, um cinegrafista caiu sobre uma cadeira e foi arrastado por alguns metros. A caminho da ala residencial, Brizola foi cercado por jornalistas, que pediam sua intercessão junto a Jango, para uma entrevista. Flávio Tavares, da Última Hora, que a tudo assistiu dentro do palácio, lembraria mais tarde que um repórter do jornal francês Le Figaro chegou a gritar com o governador, dizendo: “O senhor nos enganou!”.7 De madrugada, os ânimos se acalmaram. Jango retornou à sala do GAP e respondeu algumas perguntas. Cinco minutos de coletiva, que só renderam uma resposta sobre a votação do parlamentarismo pelo Congresso: “O

Congresso é soberano. Como já disse, estou de espírito aberto”. Além disso, reafirmou que sua missão era de paz e somente em Brasília iria examinar a emenda em toda a sua extensão: “Só conheço o conteúdo da emenda em termos gerais e através de informações radiofônicas”.8 Fim da curta coletiva. Além de repórteres de vários veículos brasileiros, estavam presentes correspondentes internacionais das agências Associated Press, United Press International, Agence France Presse, Columbia Broadcasting Corporation, Time-Life International e dos jornais e revistas Paris-Match, France-Soir, The Chicago Tribune, The New York Times, El País, La Nación, La Prensa, El Mercúrio, Daily Mirror. O faro de Hamilton Chaves não funcionou: no dia 2 de setembro, sua frase não apareceu em nenhuma manchete: o Jornal do Dia, ligado à Igreja, foi de “Porto Alegre capital do Brasil: Jango aclamado pela multidão”. No Correio do Povo, “João Goulart exige posse imediata dispondo-se a cumprir após quaisquer decisões do Congresso”. A Folha da Tarde do mesmo dia estampava a manchete que saiu da boca de Brizola: “Mudar o regime agora é suprema degradação”. O Jornal do Brasil preferiu “João Goulart chega a Porto Alegre com recepção triunfal e ouve Brizola”, destacando na primeira página sua aceitação ao parlamentarismo. A Última Hora, três linhas com letras garrafais: “Jango chegou: Brasil já tem presidente!”. Na outra metade da capa estava a opinião do jornal, uma carta aberta a Denys, com o título “Está na hora, marechal”: Marechal, o presidente chegou. A notícia correu o Brasil inteiro e já deve ter entrado no Ministério da Guerra. O povo foi receber o seu presidente querendo saber o dia do início da marcha sobre Brasília. A data ainda não está marcada, marechal. Depende única e exclusivamente do senhor. Lance os olhos sobre um mapa, marechal. Lance os olhos bem abertos e examine friamente a situação. [...] Não há mais lugar para medalhas no seu peito, marechal. Já são tantas que mais uma não faria diferença. Peça reforma, marechal. Deixe o ministério e essa coisa de política e vá aproveitar a vida. Vá para o campo em paz consigo mesmo e com todos os brasileiros. [...] Encomende um traje novo, marechal, e deixe o Brasil viver tranquilo, cuidando de sua Constituição e seguindo em paz o seu caminho.

No dia seguinte, Jango permaneceu no primeiro andar do Palácio Piratini, conversando pessoalmente ou por telefone com várias lideranças políticas. Amaral Peixoto, em Brasília, tentou consolá-lo: “No parlamentarismo que está sendo criado você ainda ficará com muita força”. Ao ouvir isso, Jango passou o telefone para Brizola, que falou por 40 minutos com o líder do PSD. É Amaral Peixoto quem relembra: Eu fechado dentro de uma cabine telefônica no Senado, num calor horroroso, aquela secura de Brasília, a imprensa toda esperando do lado de fora, e o Brizola atacando o parlamentarismo, dizendo que o Rio Grande do Sul não aceitaria. Uma loucura!9

Já com a orelha quente, o deputado pediu para falar novamente com Jango e disse: — Jango, há dois caminhos para você chegar a Brasília: através desse entendimento ou através de uma revolução. Nós aqui não podemos escolher, a escolha é sua. — Quero um acordo, mas não quero ficar diminuído.

Amaral dá a palavra final: “Você não vai ficar diminuído. Venha, que aqui conversaremos melhor”.10 Entre um telefonema e outro, Jango leu todos os jornais e recebeu vereadores, deputados estaduais e federais, representantes da Justiça, de movimentos tradicionalistas, sindicalistas, estudantes secundaristas e universitários, entre muitos outros. Nos porões, Brizola vociferava na Rede da Legalidade contra o que considerava uma capitulação diante do poder militar. Na praça, o povo ainda aguardava uma palavra definitiva de Goulart. Ao entardecer, corria de boca em boca que o silêncio de Jango devia-se à aceitação do parlamentarismo. Surgiam faixas, no meio de centenas de outras, pedindo ao presidente uma definição. Do delírio, o povo passava à frustração. Os manifestantes rasgavam e queimavam os cartazes enormes, onde estava escrito: “Viva o presidente

constitucional do Brasil!”, “Governo constitucional contra a fome e a miséria”, “A Legalidade vencerá”. Eram ouvidos vaias e gritos de “traidor!” e “covarde!”. Furiosos, os populares tentaram invadir o palácio. Mas não foi preciso utilizar a força, muito menos bombas de gás, para acabar com a revolta: a natureza encarregou-se de mandar dos céus um violento temporal, com raios, trovões e forte chuva. O povo começou a se dissipar. Mesmo assim, 6 mil pessoas ficaram ali, plantadas, extravasando sua indignação. A frustração tomou conta de todos: dentro e fora do palácio. Algum tempo depois, os jornalistas encontraram Jango saindo da ala residencial para o gabinete. Na escada — que ligava os porões ao primeiro andar —, um grupo de repórteres cercou o vice-presidente. Carlos Bastos, da Última Hora, então com 27 anos, participou do tumulto e testemunhou a exaltação do jovem repórter e fotógrafo da revista O Cruzeiro, Luís Carlos Barreto, que mais tarde ficaria conhecido como produtor cinematográfico de obras como O quatrilho, Bossa nova e Lula, o filho do Brasil: Na frente do pessoal, ele gritava, indignado com a atitude de Jango. Quem comandou isso (o protesto) foi ele, mas também havia um outro cara de São Paulo, que não era jornalista, e sim envolvido na política e se chamava Roberto Cardoso Alves (mais tarde deputado federal por São Paulo e ministro da Indústria e Comércio).11

O repórter da Rádio Gaúcha, Júlio César Dreyer Pacheco, de apenas 17 anos, registrou parte dessa discussão em seu gravador portátil Grundig, tal como está transcrita abaixo: Uma voz — O presidente está aqui, ó! [Seguem-se gritos e aplausos] Voz — Atenção! Atenção! Atenção, colegas! O presidente sem emenda parlamentarista João Goulart nos quer dar algumas palavras aqui... Jango — Não, eu vim dar um abraço em vocês, apresentar minhas desculpas, recém eu consegui uma linha para Brasília... Eu quero pedir desculpas que agora recém consegui uma linha para Brasília que hoje à tarde foi impraticável...

Um jornalista — Eu acho que este é o pensamento da maioria do pessoal aqui, esse mesmo pessoal que esteve aqui quando nos ameaçavam e tudo isto... O pessoal está emocionado ainda com estes acontecimentos... Jango — ...Vocês sempre estiveram na primeira trincheira, sempre numa demonstração extraordinária de civismo, defendendo as instituições, arriscando o sacrifício a própria vida, e eu compreendo, reconheço e proclamo esta posição heroica que o Rio Grande assumiu... Outro jornalista — Este pessoal que está aqui aguarda desde a sua chegada uma palavra sua, exatamente isto. Agora, nós abrimos um crédito de confiança, mais uma vez, desde que o senhor nos dê esperança, porque essa luta é para nós muito valiosa, tem conteúdo... Jango — A minha responsabilidade é muito grande nesta hora, porque o momento é muito difícil. Eu estaria, talvez, traindo a grandeza da causa, não estaria sendo digno do momento histórico que nós estamos vivendo se eu tomasse uma resolução precipitada. É que eu tenho que medir, que ponderar, porque hoje não é o Jango, não é o João Goulart que está em jogo, é o símbolo da Legalidade, esta bandeira que vocês desfraldaram é uma bandeira que foi desfraldada pelo povo brasileiro e que se encontra tremulando em todas as praças de nosso país. Eu tenho que ponderar, tenho que meditar e para meditar e ponderar eu tenho que ter dados, ter elementos, que é o que eu estou tentando obter por todos os meios com Brasília, com o Rio, com São Paulo. Mas nunca contra a confiança do povo, jamais seria capaz também de trair urna causa popular... Agora, é necessário que vocês compreendam a gravidade do momento, a responsabilidade tremenda que pesa sobre os meus ombros nesta hora. Eu, se estivesse decidindo ao calor do primeiro impulso, talvez amanhã vocês estivessem me acusando de decidir contra os interesses do povo brasileiro. Eu, para ser digno desta hora e desta responsabilidade, preciso ponderar, meditar, ouvir. É exatamente o que estou fazendo. Se tivesse uma palavra para vocês, eu daria... Agora, ouvir vocês, eu ouço com todo o respeito. Uma voz — Nós queremos que o senhor ouça principalmente o que se fez, e o senhor sabe exatamente a mobilização que houve no Rio Grande do Sul. Não dê ouvidos a grupos que desde há muito têm opinião definida sobre o senhor e sobre a

Legalidade... Jango — Hoje eu ouvi a classe operária, os sindicatos. Ouvi os estudantes através de seus elementos mais representativos, ouvi a Assembleia Legislativa, toda ela, aqui vieram todos os seus representantes. Eu estou preocupado em ouvir e farei com que outros poderes responsáveis também ouçam esta voz no Rio Grande. E o governador sabe que eu jamais tomaria qualquer posição à revelia dele, que foi indiscutivelmente o grande comandante civil deste movimento... [aplausos] Não tomaria também sem uma palavra ao comandante militar deste grande movimento que é o nosso general com quem já conversei longamente. Hoje eu conversei... Vocês podem estar certos de que eu fiz hoje, o fato de eu não ter contato com a imprensa, nem ter tempo de fazer as declarações foi porque eu tive contato com todas essas forças. Quer a cúpula, quer os comandantes, quer a base também, constituída pelo povo através de seus representantes, procurei escutá-los, procurei ouvi-los... Pergunta — Uma palavra de ordem... Jango — Eu acho que vocês devem continuar mobilizados sob o comando do grande comandante que vocês tiveram a felicidade de encontrar. Feliz do povo que em determinado momento encontra o seu líder. Vocês, nessa luta, têm aqui os grandes líderes: líder militar e líder civil. Portanto, vocês devem combinar... Eu só neste instante simbolizo a bandeira que vocês desfraldaram. Por isso eu digo: a minha responsabilidade é muito grande. E muito maior ainda se eu fosse tomar qualquer decisão que não fosse em sintonia com todos eles. Isso eu não faria nunca. Eu seria incapaz de tomar uma decisão, a não ser de comum acordo com estes homens que, nas horas mais difíceis, mantiveram viva esta chama e mantiveram alta esta bandeira. Esta é a minha posição, agora eu não posso fazer uma afirmação neste sentido, inclusive porque eu não sei dos últimos acontecimentos que estão se processando agora. [Segue uma discussão com os jornalistas sobre as informações que haviam sido distribuídas sobre a viagem de Jango a Brasília, tudo em tom muito enérgico.] Jango [irritado] — Mas vocês não publiquem, está resolvido... [Aumenta a discussão] Jango — O Contursi me pediu que desse uma nota qualquer porque todos estavam esperando, mas eu não tenho nenhuma declaração mais...

[Aumenta a confusão] Um jornalista — Presidente, acabo de ser informado que o Congresso Nacional vai aprovar a emenda parlamentarista. Todos sabem que tem de levar à consideração... Desejo nesta hora manifestar minha... Jango — Vocês querem penetrar meu pensamento, mas eu tenho a impressão de que isto é um privilégio meu, não é verdade? Eu nunca tive medo do julgamento popular e o fato de eu estar ponderando e me cercando de tanta segurança para uma decisão é porque exatamente eu tenho responsabilidades muito grandes com este público, com este julgamento. Jornalista — O senhor deu... Jango — Como eu disse para vocês, eu jamais tomaria a decisão sem ser de acordo com os grandes comandantes que vocês têm aqui, general Machado e Leonel Brizola. Vozes — Muito bem! Jango — Evidentemente, eu gostaria de ouvir a opinião de cada um, mas isto é impossível numa hora destas. É necessário que vocês vejam estas pessoas também, homens identificados com a causa e que, portanto, num determinado momento como comandantes poderão chegar... Eles também terão que ponderar como nós estamos fazendo. Eles terão que meditar... Não quero fazer uma afirmação... [Enorme confusão]12

Na mesma noite, chegaram duas personalidades ao Rio Grande do Sul: general Amauri Kruel e o embaixador Walter Moreira Salles. Kruel deslocara-se para Porto Alegre, partindo do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, disposto a dar total apoio a Brizola. Moreira Salles fora convocado por Jango, num telefonema feito de Montevidéu. Os dois foram recebidos pelo subchefe da Casa Militar, major Emílio Neme: Ninguém devia saber da chegada deles, pois era secreta. Aí eu fui para o aeroporto, com um temporal tremendo, cheguei inclusive a perder o meu quepe com aquele vendaval. Dei ordens para que o avião ficasse lá na cabeceira, que não viesse até o terminal de desembarque.13

Ao descerem do avião, os dois foram colocados num carro. Kruel estava com roupa civil, para não despertar curiosidade. Saindo pelos fundos do aeroporto, Neme levou-os ao Palácio Piratini, onde os aguardavam Brizola e Jango. Assim como o povo, Neme também ficou frustrado com a adesão de Jango ao parlamentarismo: “Eu queria amarrar de novo os cavalos no obelisco”.14 Depois da tumultuada conversa com os jornalistas, Jango voltou à ala residencial. Lá encontrou a irmã, Neusa. Foram juntos até o quarto falar com o governador. É Brizola quem conta: O Jango sentou ali na cama, e ficamos conversando. Contou o que acontecera na entrevista e da reação contra a situação. Ele me disse: olha, Brizola, eu preciso te dizer, eu nem penso assim, mas acho que nós precisamos chegar lá primeiro. O que poderá acontecer se nós resolvermos seguir esse caminho que é o que a nossa consciência está indicando? Eu prefiro chegar lá, depois lá nós vamos tratar de operacionalizar essa situação e ver se conseguimos mudar.15

Às seis da manhã, Jango telefonou para o general Machado Lopes e disse que Brizola não lhe permitira um minuto de sossego, tentando convencê-lo a não aceitar o parlamentarismo. O comandante do III Exército foi ao Palácio Piratini encontrar-se com ele e Brizola. O governador puxou um papelzinho do bolso e disse: “Não quero criar dificuldades, já sei que há um entendimento e o próprio Congresso já resolveu. Mas quero deixar aqui por escrito a minha discordância”.16 O governador pousou o papel na mesa e, de forma pausada, começou a ler os três pontos. Propunha, em resumo, que Jango proclamasse à nação estar sendo vítima de um esbulho, já que o Congresso rasgara a própria Lei Orgânica para mudar a Constituição às pressas. O presidente deveria ir a Brasília por terra, à frente das tropas favoráveis à sua posse no pleno exercício de seus poderes. E, ao tomar posse, dissolveria o Congresso, convocando novas eleições. Ao terminar de ler, Brizola levantou-se, disse que estava exausto, quase

dormindo em pé, que não pretendia criar problemas “até porque quem toma essa decisão não sou eu, é o presidente”. Jango não reagiu. Machado Lopes disse ao governador, ao se despedir: “Se o senhor tentar criar qualquer dificuldade à solução pacífica da crise oriunda pela renúncia, ficará falando sozinho na estrada”.17 A emenda fora aprovada em segunda discussão naquela madrugada, mas as informações continuavam desencontradas. Na capa do Jornal do Brasil, edição conjunta de 3 e 4 de setembro, uma reportagem informava que Jango teria decidido, na noite do dia 2, assumir a Presidência em Porto Alegre, nos termos do artigo 79 da Constituição, não aceitando, portanto, a instituição do parlamentarismo. Na Rede da Legalidade, anunciava-se, às 23h45, que o vice-presidente, ao ser informado da aprovação da emenda, decidira embarcar nas horas seguintes para tomar posse em Brasília. Após conhecer a decisão do Congresso Nacional, Jango fez um pronunciamento pela Rede da Legalidade: Desejo manifestar minha inabalável confiança no povo brasileiro, na sua independência, no seu equilíbrio, no seu patriotismo e na sua incomparável generosidade. Retomei o contato direto com os meus cidadãos, com o seu pulsar do coração e o vibrar da consciência moral e jurídica, da consciência cívica de toda a Nação. [...] Sou um escravo da Lei que jurei cumprir e fazer respeitar. Não renego o meu juramento, que fiz livre e consciente, diante de Deus e diante do Povo. [...] Recebi o mandato popular e devo cumpri-lo dentro da Lei. Quando não puder cumprir dentro da Lei, deverei devolvê-lo ao povo. Não me curvo nem jamais me curvaria à prepotência. Deus ilumine aos que, incumbidos de manter a ordem e zelar pela lei de todos os cidadãos, dela se desviaram e se divorciaram da vontade popular. Eu me submeto à Lei para que o povo não seja escravo do arbítrio. Não deserto, não renuncio. Vou à Presidência da República com o povo ou ficarei com o povo fora da Presidência da República. Entrego a minha decisão à grande família brasileira. Que Deus a conduza no caminho da paz, da harmonia e da fraternidade cristã e não permita a desunião nem a luta fratricida. Que Deus preserve a Pátria Unida e a República.18

Como para bom entendedor meia palavra basta, o pronunciamento sacramentou o fim da resistência. Mas, para chegar ao Palácio do Planalto, ainda havia um grande obstáculo.

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A posse

5 DE SETEMBRO 1961, quatro horas da manhã, Palácio do Planalto, Brasília. Os três ministros militares chegam ao gabinete de Ranieri Mazzilli. Antes de dizer qualquer palavra, o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Gabriel Grün Moss, põe a mão no bolso, tira uma carta e coloca-a sobre a mesa. É sua demissão — que o presidente interino não aceita. “Recuso-me a recebê-la”, diz Mazzilli. “Não é o momento apropriado para serem examinados pedidos de demissão de ministros militares. O país está em crise.”1 O fato, novo, grave e aparentemente incontrolável, tinha um nome ridículo, mas parecia uma ameaça real: a Operação Mosquito, idealizada por um grupo de oficiais da Aeronáutica para abater o avião presidencial em sua viagem de volta ou forçá-lo à rendição. Mazzilli assustou-se e disparou perguntas como uma metralhadora: “Por que não impedir a ação? Por que não usar os mesmos processos e ameaçá-los de ser abatidos? Por que a Aeronáutica pode criar condições de ameaçar, mas não pode obstruir a operação?”. Era difícil aceitar que os chefes das três armas se mostrassem incapazes de evitar a derrubada do avião presidencial. Ernesto Geisel, ali presente, também questionou: “Não podemos controlar a situação com os dispositivos que temos em terra, de onde vão partir os aviões?”. Os ministros explicaram que, pelas comunicações via rádio, todas as bases aeronáuticas, entre Porto Alegre e Brasília, saberiam a hora exata do voo, e um ou mais caças poderiam partir de qualquer uma delas, atacando o avião presidencial. Diante de um atarantado Mazzilli, Geisel afirmou a Denys: “Não podemos deixar que uma minoria ponha em risco todo um sistema”.2 O ministro da Guerra cedeu: “Vamos tentar, é possível...”. A reunião prolongou-se até as cinco da manhã. As providências propostas

por Geisel foram aceitas, entre elas a ocupação do aeroporto por tropas do Exército. Na tarde daquela segunda-feira, 4 de setembro, tudo parecia estar sob controle, e Ranieri Mazzilli tinha inclusive enviado ao Congresso uma carta dando as garantias necessárias ao desembarque, permanência e investidura de Jango no cargo de presidente. Às 21 horas, no entanto, quando o primeiro grupo de deputados e senadores chegou ao Aeroporto de Brasília para embarcar e buscar Jango em Porto Alegre, todos foram surpreendidos com a notícia de que o avião comercial da Panair do Brasil não podia decolar. A proibição era do chefe de relações públicas do Ministério da Aeronáutica, coronel Márcio Coqueiro de Leal. Por volta das 22 horas, o presidente do Senado entrou no aeroporto para despedir-se dos colegas. Auro Moura Andrade queria dizer que ficaria em Brasília, certo de que nada aconteceria a Jango no trajeto até a capital. “É a minha forma de demonstrar a confiança nas Forças Armadas e inspirar segurança ao presi dente.”3 Surpreso com a notícia de que o avião fora retido, Moura Andrade ligou para Mazzilli, solicitando garantias para a viagem do grupo. O presidente pediu 15 minutos para resolver a situação. Em seguida, dilatou esse prazo para 40 minutos e, ao final, não conseguiu a autorização. Mais uma vez estava bloqueado o caminho de Jango para a Presidência, e o Brasil parecia mergulhar na crise novamente. De volta ao Senado, Moura Andrade recebeu a visita do ministro da Justiça, deputado Martins Rodrigues, que lhe entregou uma comunicação, em nome de Mazzilli. As palavras não eram alentadoras: [...] Mazzilli havia comunicado, na tarde de hoje, ao presidente do Congresso Nacional, que podia dar todas as garantias necessárias ao desembarque [...]. Essas garantias Sua Excelência as assegurou ao Congresso Nacional, porque as havia recebido dos elementos militares, que por elas poderiam responder. Acontece, porém, que ocorre um fato novo: o ministro da Aeronáutica declarou ao presidente da República que havia elementos inconformados na sua corporação, os quais estavam dispostos a praticar operações que importavam em risco grave para os

transportes aéreos e, nesse caso, não podia permitir que o avião destinado a conduzir parlamentares [...] levantasse voo no aeroporto da capital da República. O presidente, em face dessas informações, manteve entendimentos sucessivos com o ministro da Aeronáutica, para se esclarecer a situação [...] e, finalmente, convocou os ministros militares, que estão viajando para a capital da República.4

Mazzilli assegurava que, quando tivesse mais esclarecimentos,os transmitiria aos presidentes da Câmara e do Senado. Além disso, acrescentava que “a comunicação desses fatos já foi feita ao presidente João Goulart”, embora não dissesse quem os comunicara. Moura Andrade convocou uma sessão extraordinária: Convoquei a sessão permanente porque não podíamos esconder da nação que as garantias haviam sido retiradas. Esta é a razão pela qual se reúne o Congresso em caráter excepcional, nesta hora, para ter conhecimento e registrar nos seus anais um fato que não deve ficar no silêncio dos congressistas.5

A mensagem sobre a rebelião da Aeronáutica foi recebida em silêncio pelos parlamentares. Às três da manhã do dia 5 — 11 horas antes da provável posse de Jango, portanto —, a sessão foi encerrada, deixando uma grande dúvida no ar: quando ele assumiria? Os jornais daquele dia já haviam tornado pública a Operação Mosquito. Pela manhã, no plenário da Câmara, o deputado José Silveira (PTB/PR) criticou a omissão do Congresso diante das frequentes ações militares ilegais: “Desejo declarar que grande culpa cabe ao Congresso por esses movimentos de lambretistas do ar, de irresponsáveis como o senhor Veloso e outros, eles sabem que o Congresso sempre perdoa..”.6 Silveira terminou sob fortes aplausos. O clima era tenso. Outros deputados revezavam-se na tribuna. O deputado Pereira da Silva leu um comunicado assinado em que Denys, também em nome de Grün Moss e Sílvio Heck, dava seu aval à posse: As Forças Armadas apoiam e prestigiam integralmente o presidente Ranieri

Mazzilli; As Forças Armadas dão apoio ao Congresso Nacional; As Forças Armadas acatam a deliberação do Congresso Nacional, com a promulgação da Emenda Constitucional, que institui o sistema parlamentar de governo; As Forças Armadas, em consequência, asseguram as garantias necessárias ao desembarque nesta capital, nesta data, do presidente João Goulart, a sua permanência em Brasília e a sua investidura na Presidência da República.7

Mesmo depois de lida a nota e desmantelada a Operação Mosquito, a viagem de João Goulart parecia encantada: desmarcada duas vezes, acabou atrasando várias horas. Sob o comando de Ernesto Geisel e com o auxílio do coronel Borges Fortes, os militares controlavam a capital. As medidas eram rigorosas, inclusive com a estratégica carretera cobierta — cobertura militar das estradas, em que os passantes não podem ver as armas e os soldados, mas estes conseguem ver toda a extensão da estrada, ficando toda ela sob mira de fogo. A avenida de acesso à base aérea estava fechada, com passagem permitida apenas para parlamentares e autoridades. Mesmo assim, furando o bloqueio, muita gente conseguiu chegar até lá. Enquanto isso, em Porto Alegre, Machado Lopes enviara uma nota aos jornais para “esclarecer e orientar o altivo povo dos pampas”. Nela, o general concitava todos a voltar à normalidade e a restabelecer a paz de espírito, “porque a solução política da crise que atravessamos já está assegurada e, com ela, também, a crise militar”. Em seu nome — e de Leonel Brizola —, dizia: “[...] vamos nos empenhar a fundo para apoiar e prestigiar o atual Supremo Mandatário da Nação brasileira e os demais poderes constituídos”. As horas passavam, e o Caravelle da Varig não pousava. Ninguém entendia nada. Pelo rádio da Aeronáutica, Moura Andrade passou uma mensagem a Jango. Em Porto Alegre, desconfiado, Goulart enviou o seguinte telegrama: “Não temos como identificar se as mensagens são realmente do presidente do Senado. Continuaremos em Porto Alegre até reconhecermos a existência de

garantias”. Na verdade, Jango queria era ouvir a voz de Auro para certificar-se de que a Aeronáutica não estava interferindo naquela mensagem. As horas iam passando, e a tensão, aumentando: era necessário que ele chegasse a Brasília naquela mesma terça-feira, pois não havia condições de restabelecer todo o aparato militar no dia seguinte. Quando um pequeno avião particular pousou no aeroporto, todas as atenções se voltaram para a pista. A maioria imaginava que era Jango que, para despistar, teria trocado de aeronave sem aviso. O avião chegou quase às portas da estação de passageiros, onde uma tropa do Exército estava formada para prestar honras militares ao novo presidente. A portinha foi aberta, e desceram dois jornalistas, considerados os mais “furões” de São Paulo: José Carlos Morais, o Tico-Tico, e Carlos Spera. Eles dirigiram-se ao general Geisel e elogiaram o garbo da tropa. Contrariado por ver seu perfeito bloqueio furado, Geisel convidou a dupla a se retirar da área do aeroporto, mas os dois não atenderam ao pedido. Até aquele momento, nenhuma estação de radiodifusão tivera permissão para entrar no aeroporto. Assim que Espera e Tico-Tico viram Moura Andrade, solicitaram uma entrevista. O senador percebeu que ali estava a oportunidade de mandar um recado a Porto Alegre. Através da Rádio Tupi, assegurou que estava tudo certo para a viagem de Jango: “Pode vir, presidente, não há risco nenhum, as garantias são amplas no trajeto e totais em Brasília. Até os três ministros militares estão aqui”.8 Denys, Moss e Heck estavam bem longe dali, mas a deslavada mentira tinha um bom motivo: Moura Andrade sabia que boa parte da Aeronáutica ouviria o noticiário. A estratégia funcionou. Mais tarde, o senador recebeu de volta um chamado pelo telégrafo, perguntando se fora ele mesmo quem dera aquela entrevista. Diante da confirmação, o Caravelle decolou do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Voando a maior parte do tempo a 12 mil metros por precaução — os aviões da FAB não alcançavam essa altitude —, o jato chegou

a Brasília às 20h25. Quando aterrissou, a multidão transpôs as barreiras militares e invadiu a pista. Não havia comitivas organizadas ali — eram pessoas que queriam certificar-se de que o presidente realmente chegava. Lá estavam também Mazzilli, o presidente da Câmara, Sérgio Magalhães, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Barros Barreto, mais centenas de políticos e jornalistas. Em Porto Alegre, no mesmo horário, o clima era de fim de festa. O porão da Legalidade estava quase vazio, mas o homem que havia controlado o microfone da Legalidade continuava lá. Quarenta anos depois, João Brusa Neto relembraria: “E agora? O Brizola tinha meio que entrado em rusga com o Jango porque ele tinha aceitado o parlamentarismo. Foi dormir, e eu fiquei sozinho. Pensei em falar com o governador, mas não iria tirá-lo da cama para perguntar o que eu faria com a rádio”.9 Ao receber a notícia de que o avião de Jango descera em Brasília, Brusa Neto pegou caneta, papel, acomodou-se na cadeira e escreveu o que leria em seguida: No momento em que o presidente constitucional do Brasil, doutor João Goulart, chega a Brasília, enviamos daqui, do subterrâneo da Legalidade, um abraço a todos os brasileiros que nos acompanharam em defesa da ordem, da legalidade e das instituições do Brasil. É o fim das transmissões da Rede da Legalidade.

Na base aérea de Brasília, a confusão era geral. Escoltado por Geisel e outros militares, Jango mal conseguia ver quem o cumprimentava. O empurra-empurra era tamanho que ele foi praticamente arrastado pela multidão. Depois de alguns minutos, ladeado pelos amigos mais chegados e forte dispositivo militar, Jango conseguiu embarcar na limusine oficial. Dividiu o espaçoso banco traseiro com Mazzilli e Moura Andrade. Na frente, seguiam o motorista e o general Ernesto Geisel. Destino: a Granja do Torto. No trajeto,

a conversa foi formal. As primeiras palavras foram de Jango: “Cheguei aqui sob a censura até de meus familiares, inclusive da minha irmã, mulher de Brizola. Ouvi coisas muito duras a respeito da minha vida, por ter aceitado essas condições para assumir”.10 Mazzilli aproveitou para incluir-se entre os que se tinham sacrificado pela pátria: “Todos cumpriram com seus deveres. Isso é o importante”. Geisel também deu sua opinião: “Saiba que tivemos imensas dificuldades para V. Exª assumir. Esperamos que pacifique a nação. Precisamos de paz”. Mazzilli concordou e emendou: “A que horas o senhor quer assumir amanhã?”. O futuro presidente surpreendeu seus interlocutores: “Amanhã vou almoçar com a dona Sílvia [a mulher de Mazzilli]. E depois disso vou ficar muito ocupado. Amanhã conversaremos sobre o assunto”. Quando chegaram à bem vigiada Granja do Torto, Jango não conseguiu descansar — era preciso articular um nome de consenso para primeiroministro. Cinco estavam cotados: Francisco San Thiago Dantas, do PTB; Juraci Magalhães, da UDN; Amaral Peixoto, Moura Andrade e Tancredo, do PSD. Por volta da uma hora da manhã de quarta-feira, 6 de setembro, Jango telefonou para Amaral Peixoto e pediu que ele fosse até sua casa, onde muitos deputados dormiam pelos corredores. No quarto, Jango começou a fazer a lista dos ministros, quando foi interrompido: — O seu problema é só escolher o primeiro-ministro, e ele é quem escolherá o ministério e trará a proposta a você. Aí você dará a palavra final. — Mas, então, eu não vou escolher o meu ministério? — Vai, mas junto com o primeiro-ministro – disse Amaral Peixoto. — Nós estamos antecipando, pulando uma etapa, que é a escolha do primeiro-ministro.11

Desde o governo Vargas, eles eram bons amigos. A diferença de idade fazia Jango chamar Amaral Peixoto de senhor enquanto este se dirigia a ele por você. Mas o presidente do PSD tinha certeza de que Jango o considerava

um estorvo para a expansão do PTB: “Naquele momento, Jango não queria alguém que lhe fizesse sombra, queria alguém que tivesse compromisso com ele”.12 Teria sido esse o principal motivo pelo qual o presidente do maior partido da época não se tornou primeiro-ministro. Na manhã do dia 6, quando a bancada do PSD fechou em torno do nome de Amaral Peixoto, Jango desconversou, afirmando que não tinha nada contra, mas disse que o genro de Vargas enfrentaria resistências em certas áreas trabalhistas. Ao ser informado da conversa, Amaral Peixoto pôs uma pedra em cima do caso: “Não toquem mais nesse assunto. Vamos procurar outro nome e fazer o primeiro-ministro”. A partir desse momento, abriu-se novamente o leque de nomes para incluir Moura Andrade e os mineiros Tancredo Neves e Gustavo Capanema. O presidente do Senado saiu na dianteira, prometendo à petebista Ivete Vargas um número maior de pastas para o PTB. Mas Amaral Peixoto disse à deputada que jamais assumiria um compromisso desses e vetou a alternativa. O presidente do Senado tentou viabilizar seu nome na bancada do PSD, enquanto Juscelino apoiava abertamente Tancredo, e Amaral ficava em cima do muro em relação aos dois mineiros. No meio da eleição, Moura Andrade perdeu forças e tentou retirar sua candidatura. Disposto a lhe infligir uma derrota, Amaral não aceitou. Resultado: 49 votos para Tancredo, 39 para Capanema e 20 para Moura Andrade. Enquanto isso, Jango conversava com gente de todos os partidos, em busca de alternativas. Chegou a pensar num gaúcho sem expressão política, como Ajadil de Lemos, Rubem Berta, o presidente da Varig, ou Siegfried Heuser. No começo da manhã, consultou o líder do PTB. Fora o candidato do PTB, San Thiago Dantas, Almino aceitava Moura Andrade ou um técnico apolítico. No fim da conversa, Jango resumiu sua intenção: “Tenha certeza, vai ser de congraçamento partidário, atendendo a todos os setores do Parlamento”. Naquela quarta-feira, durante o almoço na casa de Mazzilli, Jango pediu que convocassem Carvalho Pinto, do Partido Democrata Cristão (PDC), para uma conversa. O político que Jânio colocara no governo de São Paulo, e

que ficara praticamente mudo durante a maior parte da crise — só se pronunciara timidamente e sob pressão de seus auxiliares, como Hélio Bicudo e Jorge da Cunha Lima —, foi a Brasília, mas recusou o convite para ser o primeiro-ministro. No começo da noite, Jango encontrou-se rapidamente com Raul Pilla, para discutir as peculiaridades do parlamentarismo. Sua conversa mais importante, porém, passou quase despercebida — somente o jornal O Globo a registrou e nessas curtas linhas: “Por volta das dez horas, João Goulart saiu da Granja do Torto, dirigindo-se à residência de Ranieri Mazzilli, onde se reuniu com o marechal Denys, por cerca de uma hora”.13 Mais tarde, Mazzilli diria que fora o promotor do encontro destinado a “desarmar os espíritos, já que o marechal foi o responsável pelo veto à posse de Goulart”.14 A conversa teria sido cordial e respeitosa, com Denys à paisana, já pronto para voltar ao Rio de Janeiro. A nota que o ministro da Guerra divulgou em seguida — e o fato de ele não ter pedido demissão do cargo, como seus dois colegas da Marinha e da Aeronáutica — dá a impressão de que, na verdade, Denys ainda imaginava que poderia continuar no posto. Sua última ordem do dia dizia o seguinte: Meus camaradas, [...]. Se é certo que neste ano não oferecemos ao povo o espetáculo das fanfarras e dos estandartes em desfile, alenta-nos a satisfação de assistir uma vez mais à vitória do bom-senso, da razão, da democracia e das nossas melhores tradições cristãs. Conforta-nos a certeza de que o Brasil, longe de se afogar no sangue de seus filhos, suplanta a crise, evoluindo e aperfeiçoando o seu processo democrático.

Para o filho dele, general Rubem Bayma Denys, aquele encontro com Jango teria sido quase inútil: Meu pai nunca fez segredo deste encontro com o vice-presidente. Ele se referia ao episódio como inócuo, pois saíra da casa do presidente da Câmara mais certo do que nunca de que era preciso começar a trabalhar para derrubar Jango da Presidência da

República.15

À tarde, Moura Andrade convocou Câmara e Senado para a posse de Jango no dia seguinte, 7 de setembro, às 15 horas. Mas Jango não confirmava. Às dez da noite, o já quase presidente dirigiu- se ao Senado, onde recebeu parlamentares no gabinete da presidência do Congresso. Até esse momento não decidira quem seria o primeiro-ministro e continuava conversando com Herbert Levy, Amaral Peixoto, Plínio Salgado, San Thiago Dantas e Tancredo, entre outros. Na porta do gabinete, um batalhão de jornalistas plantava-se em busca da próxima manchete. Jango foi até eles, mas, ao ser perguntado pela data da posse, confundiu os repórteres: “Não temos ainda data marcada”. Alguém arriscou: “Não será amanhã, 7 de setembro, conforme declarações à tarde do presidente do Senado?” “É uma grande data, mas ainda não combinei nada”, foi a resposta. Na verdade, era só jogo de cena para tentar forçar o Congresso a fixar uma data para o plebiscito em que os eleitores escolheriam entre o presidencialismo e o parlamentarismo. Voltando à Granja do Torto, o presidente encontrou o advogado Evandro Lins e Silva, que participara da sua comitiva na China, mas não chegara a acompanhá-lo a Cingapura. Pegou-o pelo braço, entregou-lhe uma papelada e convidou-o a assumir a Casa Civil. Evandro não aceitou e foi para o Hotel Nacional analisar aqueles papéis. Estava iniciando a leitura quando entraram no apartamento Tancredo, Chagas Freitas, Almino e Bocaiuva Cunha, insistindo para que ele assumisse um cargo no governo. Para despistar e não entregar o que estava examinando — um rascunho do discurso de posse —, Evandro disse aos políticos que até poderia aceitar, desde que o cargo tivesse relação com o Judiciário. Na madrugada do dia 7, o advogado voltou a encontrar-se com Jango e Ajadil de Lemos, notável constitucionalista e advogado em Porto Alegre. Apressadamente, trocaram ideias sobre o discurso de posse e fizeram algumas alterações. Jango voltou a

insistir para que Evandro aceitasse um cargo, e ele cedeu, finalmente. Na quinta-feira, a capital federal amanheceu ensolarada e em clima de festa. A cidade se apressava para assistir à terceira posse de um presidente naquele ano de 1961. Brasília, apesar de construída em linhas simétricas, oferecia naquele dia da Independência uma surpresa em cada ângulo. A massa humana dava à capital federal o calor que lhe faltara nos últimos tensos dias. Uma hora antes, a longa alameda que conduz ao Congresso já estava tomada por automóveis dos dois lados. Mais de 500 pessoas aguardavam Jango na frente do edifício. Às 14h30, as galerias estavam lotadas — apenas as duas fileiras reservadas ao corpo diplomático continuavam desocupadas. Exatamente às três da tarde, João Goulart chegou ao Congresso num traje de verão azul-marinho. Foi aplaudido e ouviu gritos contínuos de “Jango, Jango, Jango...”. Dentro e fora do Congresso, o clima era de euforia. Alguns minutos depois, uma comissão de parlamentares retirava-se do plenário para buscá-lo. Às 15h20, Jango entrou, acompanhado da comissão e sob forte salva de palmas. O Congresso estava tão cheio que a segurança da Câmara teve dificuldade de abrir caminho no corredor que dividia o plenário. Apertado e empurrado, Jango levou cinco minutos para chegar à mesa. Durante todo o percurso, respondeu aos aplausos com acenos de mão e largo sorriso. Na mesa, abraçou longamente os senadores Auro Moura Andrade e Cunha Melo e o deputado Sérgio Magalhães. Sentou-se, tendo a seu lado direito Moura Andrade e à esquerda o ministro do Supremo Tribunal Federal, Barros Barreto. O presidente do Congresso convidou todos a ouvir em pé o Hino Nacional e o ato de compromisso de Jango: Prometo manter, defender e cumprir a Constituição da República, observar as suas leis, promover o bem geral do Brasil, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência.

Muita gente foi às lágrimas, mas, segundo a Folha de S. Paulo, de 8 de

setembro, o senador Cunha Melo quase monopolizou a emoção. Chorou quando Moura Andrade foi aplaudido, quando Jango entrou no plenário, durante o Hino Nacional, durante a leitura do compromisso, na assinatura do termo — e só parou de soluçar quando, como secretário da mesa, teve de proceder à leitura do termo de compromisso. Ainda aí, engasgou-se. Na hora de assinar o documento, Jango apalpou seus bolsos, em busca de uma caneta — não tinha nenhuma e foi socorrido por Barros Barreto. Quando a salva de palmas arrefeceu, Moura Andrade voltou a falar: Declaro cumprida e satisfeita a exigência do Artigo 83, parágrafo único, da Constituição Federal e da primeira parte do disposto no Artigo 21 da Emenda Constitucional no 4, obedecidas, também, as normas do Artigo 13, do Regimento Comum.

Sorridente e aliviado, Jango leu as 90 linhas datilografadas em que resumiu seus compromissos: [...] Assumo a Presidência da República consciente dos graves deveres que me incumbem perante a nação. A minha investidura, embora sob a égide de um novo sistema, consagra respeitoso acatamento à ordem constitucional. Subo ao poder ungido pela vontade popular, que me elegeu duas vezes vice-presidente da República e que agora, numa impressionante manifestação de respeito pela legalidade e pela defesa das liberdades públicas, uniu-se, através de todas as suas forças, para impedir que a decisão soberana fosse desrespeitada. Considero-me guardião dessa unidade nacional, e a mim cabe o dever de preservá-la. Não há razão para ser pessimista diante de um povo que soube impor a sua vontade, vencendo todas as resistências para que não se maculasse a legalidade democrática. A nossa grande tarefa é a de não desiludir o povo. [...] Tudo isso fiz para não marcar com o sangue generoso do povo brasileiro o caminho que me trouxe à nova capital, o caminho que me trouxe a Brasília. Sabem os partidos políticos, sabem os parlamentares, sabem todos que, inclusive por temperamento, inclino-me mais a unir do que a dividir. Prefiro pacificar a acirrar

ódios, prefiro harmonizar a estimular ressentimentos. [...] O destino, numa advertência significativa, conduziu-me à Presidência da República na data da independência política do Brasil. Vejo na coincidência um simbolismo que me há de inspirar e orientar na mais alta magistratura da Nação. Peço a Deus que me ampare para que eu possa servir à nossa pátria com todas as forças, com energia e sem temores, para que possa defender o que os nossos maiores souberam defender: a independência do Brasil, a grandeza nacional e a felicidade do povo brasileiro.

Enfim, João Belchior Marques Goulart, 42 anos, era o presidente de Brasil parlamentarista, pela primeira vez. Os três ministros que haviam tentado impedir sua posse já estavam a 1.148 quilômetros de distância, no Rio de Janeiro. Sílvio Heck e Gabriel Grün Moss tinham deixado suas cartas de demissão. Odílio Denys, de terno cinzaclaro, dava uma entrevista a um repórter de O Globo, falando ainda como ministro. Seria demitido em seguida. Os três homens decisivos para que Jango chegasse ao poder estavam igualmente distantes. Lott seguia trancafiado na Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Machado Lopes estava em Porto Alegre, a 2.027 quilômetros de Brasília, onde participara das comemorações do Dia da Independência, ao lado do governador e sua família. Brizola deixara Porto Alegre depois dos festejos e fora até a fronteira com a Argentina comer uma costela assada em fogo de chão, com um grupo de voluntários do Comitê de Resistência Democrática de São Borja — terra natal de Jango e Getulio.

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O olhar de Tio Sam

NO TEMPO DA Guerra Fria, dois tipos de denúncia — fossem verazes ou

falaciosas — disputavam as manchetes. Um tipo via em cada golpe e reviravolta política na América Latina o dedo do serviço secreto norteamericano. O outro identificava a insidiosa presença da KGB por trás de movimentos sociais, parlamentares de esquerda ou grupos guerrilheiros. Distinguir fantasia de realidade — e apartá-las da influência ideológica, para um lado ou para outro — era missão quase impossível. Em agosto de 1961, Moscou, Havana e Pequim acusaram a CIA e o Departamento de Estado norte-americano de estarem por trás da renúncia de Jânio Quadros. Prontamente desmentida pelos porta-vozes do governo Kennedy, levou-se a denúncia tão a sério que ela foi tema de uma conversa privada entre o secretário de Estado, Dean Rusk, e os embaixadores da GrãBretanha, França e Alemanha Ocidental em Washington, no dia 26 de agosto. O fato de não ter nenhuma responsabilidade no gesto desvairado do presidente brasileiro não significava que o serviço secreto norte-americano agiria apenas como um observador neutro dali por diante. Na J. F. Kennedy Library de Boston, as pesquisadoras Nerci Ferrari e Priscila Moritz localizaram a caixa 112 do President’s Office Files (Arquivos do Escritório do Presidente), que guarda as pastas de documentos secretos já liberados pelo governo norte-americano referentes aos meses de agosto e setembro de 1961. Cartas, telegramas e informes ali coletados indicam que Dean Rusk tinha razão. Mas os mesmos documentos deixam claro que o governo americano seguiu as recomendações do serviço quando se eximiu, propositalmente, de emitir qualquer sinal em favor da posse de Jango, o sucessor constitucional de

Jânio. Na verdade, o cenário brasileiro era acompanhado com preocupação redobrada havia um bom tempo. Em 17 de janeiro de 1961, o embaixador americano no Rio de Janeiro, John Moors Cabot, enviara uma carta ao senador Leverett Saltonstall, de Massachusetts sobre a eleição de Jânio, dizendo: [...] situação no Brasil no momento é enormemente mais confusa do que até mesmo nos Estados Unidos. O novo presidente [...] irá tentar fazer alguma coisa para endireitar as finanças brasileiras [...] A previsão também é de que ele irá seguir uma tendência mais neutra na política externa. De que consistirá essa política e quão longe irá, permanece uma dúvida. Ela pode incluir o reconhecimento dos soviéticos, uma linha mais independente nas Nações Unidas etc. [...] o que seriam más notícias para nós e também, acredito eu, para eles. [...] Eu sinto muito não poder dar um quadro mais encorajador do que este!

Cabot concluía dizendo que não sabia se o governo Kennedy iria mantê-lo no cargo, lembrando com saudade do clima de sua cidade natal e reclamando que não tivera um minuto de descansoefetivo desde 1956. Dez dias mais tarde, pouco depois da posse do novo presidente americano e quatro dias antes da posse do brasileiro, McGeorge Bundy, assistente especial de Kennedy para questões de segurança nacional, recebeu um memorando que propunha transformar o Brasil numa espécie de contraponto para Cuba. Bundy apresentou a ideia na reunião do Conselho de Segurança Nacional naquela mesma tarde e deve ter sido convincente: no início de fevereiro, um documento oficial reconhecia a importância do Brasil no hemisfério ocidental e recomendava que o país recebesse atenções especiais, inclusive em termos financeiros. Ao assumir o poder nesse momento singular, Jânio tinha tudo para transformar-se em beneficiário dessa repentina generosidade: uma semana após a reunião do Conselho de Segurança Nacional norte-americano, o secretário de Estado, Dean Rusk, autorizou um crédito de 100 milhões de

dólares para o comércio bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos (no ano anterior, esse crédito fora de apenas 8,5 milhões). Mas o presidente deu uma guinada brusca na política externa. No final de fevereiro, praticamente expulsou de seu gabinete o enviado especial Adolph Berle, que lhe ofereceu mais 100 milhões de dólares para não criar problemas diante de um eventual ataque a Cuba. Dois meses depois, reatou relações com vários países da Europa oriental. (Os primeiros lances dessa reaproximação tinham ocorrido no governo Juscelino, mas sem provocar os americanos.) Malvisto por Jânio, John Moors Cabot foi chamado de volta aos Estados Unidos. Em seu lugar, ficou um adido com um sobrenome que Ian Fleming, o criador do agente 007, acharia perfeito — Bond, Niles Bond. Ele e Berle operaram em uma afinada dobradinha. Ambos viam as atitudes de Jânio muito mais como resultado de concessões aos grupos de esquerda, dentro do Brasil, do que uma opção ideológica consistente, ressaltando que o monetarismo do governo brasileiro era um dado a considerar. Em telegrama enviado no dia 19 de agosto, às 1lh20, pouco depois da condecoração a Che Guevara, Bond propôs que o governo americano convidasse o ex-presidente Juscelino para visitar os Estados Unidos, sem consultar Jânio. E justificou sua proposta deselegante e antidiplomática de modo bem claro: Acredito que tal convite seria reconfortante para muitos de nossos amigos no Brasil que apoiam Kubitschek politicamente ou que, enquanto não aliados de Kubitschek, estão seriamente preocupados com o que consideram aquiescência imprópria dos EUA para a crescente orientação de esquerda da política externa de Jânio. Consultar Jânio seria arriscar resposta negativa, o que nos impediria de aproveitar essa oportunidade. Além disso, acredito que tal abordagem nessa conjuntura, depois das recentes ações de Jânio — como a condecoração a Che Guevara e mensagem a Krutchev, sem mencionar os relatos das declarações do vice- presidente Goulart em Pequim (tudo reportado separadamente) —, seria considerada por Jânio como um convite para mais humilhações.

Logo após a renúncia, outro telegrama informava o governo norteamericano sobre a situação em todo o país. O antigo aliado, Carlos Lacerda, não fora contatado: Action Department 107; Information Rio de Janeiro Niact 31 Situação aqui aparentemente calma, centro da cidade e tráfego normais. Reação brasileiros eventos do dia varia. Alguns envergonhados com renúncia de Jânio sentem que ele, de fato e aos olhos do mundo, os traiu e ao país. Um pequeno grupo tende a levar tudo alegremente, insistindo que Jânio voltará à Presidência, embora não saibam dizer de onde virão aqueles que o apoiam; outros apontam isso como improvável, pois ele só poderia voltar como ditador. A maioria está atordoada e preocupada com o futuro. Sente que segunda crise surgirá amanhã com esperada volta de Goulart, a quem consideram “incompetente” para ocupar Presidência, e “pior que Jânio”. Expectativas consideráveis de que militares vão tomar poder como guardiões das instituições democráticas, como aconteceu no passado, antes de permitir que Jânio [sic] assuma Presidência, embora alguns militares possam deixálo assumir “para preservar legalidade”. Incapaz de conseguir contatos próximos ao governador. Também incapaz determinar localização de Jânio, embora rádio noticie ele ainda na base aérea de Cumbica. Sentimento aqui é que documento de renúncia de Jânio é ápice de egocentrismo e demagogia, considerando-o cuidadosamente escrito para incitar as massas, com claro apelo nacionalista e antiamericano. Apelo às massas parece entretanto ineficiente pois massas desorganizadas. Poderes políticos aqui completamente estupefatos imprevisibilidade e renúncia de Jânio em face dificuldades. Presentes indicações aqui são de que país mais apto a mover para a direita do que esquerda.

No dia seguinte, depois de transmitir o manifesto do ex-presidente, Bond enviou um telegrama descrevendo as circunstâncias em que o presidente havia renunciado. O diplomata estava bem informado — sabia que a denúncia de Lacerda tivera seu peso, que Jânio continuava em Cumbica e seu manifesto fora censurado, enquanto Mazzilli fazia suas primeiras nomeações. Indicava

também que havia quem admitisse a posse de Jango por dois meses, até a realização de novas eleições. A CIA também encaminhou ao presidente John Kennedy sua avaliação da renúncia. Considerou o assunto tão urgente que entregou o longo memorando no meio de uma festa: RGR K SFI — 004/25 PP ESF DE ESI P 252253Z FM Diretor Cia Para Casa Branca Passar festa presidencial em Hyannisport, atenção cor. Mc Hugh, Para entrega ao presidente Kennedy Confidencial Em sequência memorando sobre renúncia de Quadros preparado pela Cia: 1. A atenção de Quadros a Che Guevara e Gagarin e mais geralmente suas manifestas tendências de se aproximar do Bloco despertaram fortes expressões de desaprovação do Exército e de elementos conservadores no Brasil. Nós achamos provável que ele renunciou na expectativa de provocar uma forte manifestação de apoio popular, em resposta à qual ele retornaria à Presidência em melhor posição diante de seus adversários. (Fidel renunciou uma vez com este propósito e Perón mais de uma.) Embora as patentes mais altas do Exército desgostem de Quadros, elas provavelmente não bloqueariam seu retorno nessas circunstâncias. 2. Se Quadros não regressar, acreditamos que o próximo governo seguirá políticas conservadoras, embora nacionalistas, pois o Exército não vai tolerar qualquer outra coisa. 3. Vice-presidente Goulart, o sucessor constitucional, acabou de sair da China vermelha pelo mar, e não estará disponível por pelo menos alguns dias. Ele é fortemente de esquerda, e é improvável que o Exército permita que ele exerça um controle real da política brasileira. 4. A possibilidade de problemas no Brasil, devido ao flerte de Quadros com o Bloco

e sua tendência à ação dramática e precipitada, já havia sido reconhecida por algum tempo; Usib chamou atenção para isso em 24 de agosto num “levantamento de situações de crise da Guerra Fria” e numa avaliação da National Intelligence em 8 de agosto. 1812 1812 25/2303z Aug

Em nova mensagem naquele sábado, 26 de agosto, Niles Bond informava que os militares estavam divididos em dois grupos. Um era o de Denys, que não aceitava a posse de Jango. O outro, de Lott. Minoritário, dizia o diplomata, preferia que o vice assumisse a Presidência: Esse grupo, que pode estar bem mais motivado pela devoção à Constituição do que por amor a Goulart, aparentemente imaginou situação na qual Goulart, embora presidente, seria de fato prisioneiro das normas e controlado pelas lideranças militares. Denys evidentemente, não disposto a assumir esse risco, expressou visão de que Goulart seria outro Fidel Castro.

Bond calculava que, se Jango não assumisse, poderia haver uma guerra civil. Ou, no mínimo, uma confusão armada pelos comunistas — o que poderia ser bom para Jânio. Bond arrematava o memorando com uma previsão digna de pitonisa: Em conexão a esta última possibilidade, embaixada de maneira nenhuma descarta possibilidade renúncia Quadros ter sido tática caracteristicamente bizantina, cujo produto final ele imaginou como seu retorno triunfante cargo, nos seus próprios termos, para trazer ordem ao caos que sabia provavelmente seguiria sua dramática saída. Vários brasileiros responsáveis com quem embaixada manteve contatos nas últimas 24 horas, a maioria dos quais não tem nada além de desprezo por Goulart, expressaram esperanças que seja permitido a ele assumir cargo de maneira ordeira, na confiança de que possa ser controlado pelos militares e, através dos militares, por outros elementos conservadores. Isso, parecem acreditar, seria a melhor garantia contra o retorno tanto de Quadros quanto de Kubitschek (cujo retorno poderia ser

uma possibilidade real no evento de novas eleições), que eles temem seriam muito fortes de controlar e poderiam arruinar o país, cada um a seu modo.

Um desses comunicados secretos contém informação não localizada em nenhuma outra fonte: teria havido uma tentativa de tomar a Vila Militar na madrugada de 27 de agosto, por parte de militares favoráveis à Legalidade. Nessa mesma madrugada, o marechal Henrique Lott fora preso por ordem do ministro da Guerra, Odílio Denys. Erro dos americanos ou eficiência de seus agentes secretos? No dia 27, domingo, Bond informou a Secretaria de Estado sobre os movimentos militares e as articulações no Congresso. Relatou a prisão de Lott, a mobilização de Brizola, o deslocamento do porta-aviões Minas Gerais, as tentativas da oposição de conseguir os dois terços necessários para eleger um novo presidente pelo Congresso (desde que Jango ficasse um mês fora do país) e assinalava os principais candidatos nessa hipotética eleição: Candidatos principais mencionados no evento de eleição no Congresso são, além de Denys, Mazzilli, Juraci Magalhães e Carvalho Pinto. Apesar da óbvia cisão da liderança militar entre os campos de Denys e Lott, fontes próximas a Denys continuam a assegurar-nos que situação dentro das Forças Armadas está devidamente sob controle e que a lealdade das três forças a Denys é inquestionável. Além dos eventos anteriormente citados, uma leva de boatos sensacionalistas, muitos obviamente lançados pelos comunistas, contribuiu para a inquietude subjacente à aparente calma que prevalece no Rio e, de acordo com relatos, em outras cidades também.

A informação sobre a movimentação militar — incluindo o suposto plano de tomar a Vila Militar — foi transmitida em caráter urgente para vários organismos do primeiro escalão norte-americano e todos os adidos militares na América do Sul. Sua origem seria um comunicado sigiloso das Forças Armadas brasileiras.

No dia 1º de setembro, Bond recomendou à Casa Branca que deixasse de lado sua atitude usual, de apoio às soluções constitucionais, adotando a tática do silêncio total diante da crise brasileira. As referências ao Peru nos informes podiam estar relacionadas ao agitado momento político vivido pelo país naquela época. Depois de anos no exílio, o criador da Aliança Popular Revolucionária Americana, Haya de la Torre, estava em cena novamente, com a complacência do presidente Manuel Prado y Ugarteche, um banqueiro liberal que fora eleito com o apoio dos apristas. Em julho de 1962, as Forças Armadas peruanas destituiriam Prado, com o apoio dos americanos: De: Embaixada Americana Rio de Janeiro Para: Casa Branca Info: Citação: Dept 625 Action Department 625, Lima Priority 11, Information Buenos Aires 46, Montevideo 19, Brasília, São Paulo, Porto Alegre Não numerado do Rio de Janeiro, 1º set., 8 p.m., Ref Lima 184 ao Departamento repetidos todos endereços Enquanto apreciamos problemas que podem ser criados no Peru pela solução militar da crise brasileira, duvidamos conveniência qualquer declaração neste momento pelo governo dos EUA em favor de qualquer lado ganhar presente luta pelo poder. Embora declaração apoiando processo constitucional possa parecer mera reiteração da posição tradicional dos EUA, na presente situação Brasil ela constituiria claro endosso causa Goulart, que seria fortemente ressentida por aqueles de nossos amigos que apoiam esforços militares para excluir Goulart da Presidência por razão de sua conhecida simpatia comunista. EUA tem sido amplamente elogiado pela postura pública de não interferência (como refletido, entre outras coisas, na declaração do presidente de 30 de agosto) que tem sido favoravelmente contrastada com os esforços de Castro de se ejetar para dentro de crises. Acreditamos que qualquer desvio desta posição enquanto questão pendente seria contraproducente.

Superada a crise, às vésperas da posse de Jango, Niles Bond já pontificava sobre a postura da administração Kennedy diante do novo governo brasileiro: De: Rio de Janeiro Para: Secretaria de Estado Nº: 702, 6 de setembro, 9 p.m. PRIORIDADE [...] Bem distintas da atitude, tom e ritmo do próprio Goulart, nossas negociações com o novo governo serão, é claro, afetadas significativamente, se não amplamente determinadas, pela escolha presidente do Conselho e outros ministros-chave, com quem será nossa tarefa estabelecer as mais eficientes relações de trabalho possíveis consistentes com a orientação geral do governo. [...] [...] Talvez as mais profundas cicatrizes deixadas por esta crise serão as infligidas às Forças Armadas, cuja unidade foi seriamente prejudicada e cujo prestígio sofreu severamente por sua defesa de uma causa impopular. Nossas futuras negociações com os militares brasileiros vão portanto requerer um grau particular de tato e compreensão. Na nossa abordagem da situação brasileira como um todo devemos sobretudo não perder de vista o fato de que as Forças Armadas, embora ostensivamente agindo contra a Constituição, estavam sem dúvida sinceramente motivadas a preservar os mais básicos valores democráticos.

Um dia após a posse de Jango, o embaixador em exercício já sugeria ao presidente Kennedy pisar no tubo de oxigênio representado pelos empréstimos norte-americanos, caso o governo brasileiro não se comportasse: De: Rio de Janeiro Para: Secretaria de Estado No: 713, 8 de setembro, 6 p.m. Referência: Embtel 702 [...] Embaixada acredita que EUA devem ser particularmente lentos em entrar em novos compromissos de ajuda. As associações comunistas do passado de Goulart e

suas posições antiamericanas são matérias de registro público e bem conhecidas por toda a América Latina. Pressa em oferecer auxílio americano, na falta de desaprovação convincente para essas associações e posições, indubitavelmente enfraqueceria a força política dos amigos dos EUA por todo o hemisfério e em particular no Brasil.

Tancredo Neves, como primeiro-ministro de Jango e com o aval do presidente, montou um gabinete conservador,1 mas mesmo assim a CIA já identificava uma invasão comunista na administração Goulart: Central Intelligence Agency Office of Current Intelligence 27 de setembro 1961 Memorando Inteligência Atual Assunto: Invasões comunistas no governo brasileiro 1. Presidente João Goulart tem uma longa história de trabalho com comunistas em um esforço para aumentar sua força política, especialmente em grupos de trabalhadores. Desde a posse de Goulart, existem relatos de que comunistas estão tendo considerável sucesso na obtenção de empregos no governo federal. [...] 2. Em 25 de setembro a embaixada americana declarou que está preocupada com o padrão emergente das indicações de Goulart, “que até o momento parece pesar significativamente em favor dos comunistas”. A embaixada notou que ainda é muito cedo para tirar conclusões, mas é “difícil excluir totalmente a possibilidade de estarmos testemunhando os estágios iniciais de uma tentativa de um lento golpe no qual Goulart, consciente ou inconscientemente, está preparando o caminho para uma efetiva infiltração comunista planejada como prelúdio para uma eventual tomada de poder”. 3. Raul Ryff, membro do Partido Comunista, foi indicado secretário particular de Goulart. Evandro Lins, que acompanhou Goulart na sua visita à China Comunista neste verão, foi indicado procurador-geral. Lins tem uma longa história de apoio às causas comunistas, embora sua mais recente atividade relatada antes da viagem à China tenha sido há cinco anos. 4. Outros relatos dão conta de que o coronel Carlos Cairoli, um pró-comunista, foi

indicado chefe da polícia de Brasília e que, desde 23 de setembro, era bem provável que o general Oromar Osório, o simpatizante comunista de mais alta patente nas Forças Armadas, seria indicado comandante da Vila Militar, a estratégica guarnição do Exército no Rio de Janeiro. Tanto Cairoli quanto Osório têm sido apontados como pró-comunistas em vários relatos nos últimos anos. Os relatos de suas indicações não estão confirmados. General Osório foi dispensado de um posto-chave em março de 1960 pelo presidente Kubitschek em uma ação geral para demover prócomunistas e ultranacionalistas de comandos-chave. 5. As indicações de Cairoli e Osório seriam especialmente sérias, uma vez que a penetração comunista no Exército brasileiro, enquanto leve, é maior que em qualquer outro estabelecimento militar da América Latina. A divisão não é clara, mas comunistas, pró-comunistas e ultranacionalistas no Exército brasileiro tendem, desde a campanha eleitoral de Getulio Vargas em 1950, a pertencer à facção que apoiou Vargas e desde então apoia aqueles considerados seus herdeiros, como Kubitschek, Goulart e Neves. 6. Alguns relatos de indicações de comunistas se provaram equivocados. Pompeu de Sousa, que de acordo com relatos havia sido indicado secretário de Imprensa, pertence ao Partido Social Democrata do ex-presidente Kubitschek, e está associado, desde 1953 e pelo menos até 1960, ao Diário Carioca, um jornal anticomunista. Em 1960 Pompeu era diretor do Diário Carioca. Hermes Lima, indicado chefe da Casa Civil, um cargo geralmente ocupado pelo “quebra-galhos” político do presidente, havia sido reportado como sendo pró-comunista. De acordo com relatos, ele é um crítico do sistema econômico americano. Lima, entretanto, não parece ser prócomunista, e declarou que sentia que o sistema americano estava sendo modificado em uma direção que achava favorável. Politicamente, Lima comentou, o Brasil não tem outra escolha senão se alinhar com os Estados Unidos. Em 1955, Lima foi descrito em um encontro do Partido Comunista como “um inimigo do partido”. 7. Incerteza quanto à orientação do novo governo é acentuada pela ambiguidade no relacionamento entre o presidente Goulart e o primeiro-ministro Neves e pelo caráter oportunista de muitos dos membros do Conselho de Ministros. De acordo com a emenda constitucional de 2 de setembro que estabeleceu o sistema parlamentarista de governo, Neves deveria ser o chefe do Executivo brasileiro, e Goulart deveria estar destituído de quase todo o poder. Evidências agora disponíveis,

enquanto não conclusivas, sugerem que de fato Goulart está agindo como chefe do Executivo e Neves pode estar ajudando-o ao invés de competir pelo poder. 8. Os membros do Conselho de Ministros são caracterizados pela embaixada como “oportunistas políticos da velha escola”. Neves, de acordo com o que é dito a seu respeito, é considerado por seus partidários de Minas Gerais como anticomunista, mas aceitou o apoio comunista na sua campanha política para governador do Estado em 1960. Ele tem uma reputação dúbia na área das finanças públicas. O ministro do Trabalho parece ser um “neutralista”, tanto nas relações exteriores quanto em assuntos domésticos, e na luta entre comunistas e não comunistas pelo controle do movimento trabalhista. O ministro da Indústria é descrito pela embaixada como “um ex-ultranacionalista cujas políticas parece trocar com a mesma frequência com que troca suas meias”. Os ministros de Minas e Saúde são ambos ultranacionalistas, e o ministro do Exterior é um antigo fascista, agora conhecido como um importante líder intelectual da esquerda.

Outro americano a pontificar sobre a situação brasileira foi Richard Goodwin. Jovem advogado formado em Harvard, tinha menos de 30 anos quando se aproximou de John Kennedy, ainda candidato a senador. Quando este chegou à Presidência, passou a conselheiro especial, redigindo a maioria de seus discursos.2 Dois dias antes da posse de Jango, Goodwin encaminhou um esclarecedor memorando a Kennedy. Preconizava uma ação afirmativa (e discreta) para enfrentar a ameaça comunista no continente agitado pela Revolução Cubana: Nosso problema na América Latina não são os governos não amigáveis: são pessoas não amigáveis em países amigáveis — uma situação quase impossível para empreendimentos oficiais e abertos de propaganda. O caminho que teríamos de percorrer para organizar os dólares de nossa propaganda sob esta orientação seria, estou convencido disto, de longe o maior que já realizamos até agora. Para a organização de tal empreendimento, isto seria necessário, já que nem a Usia [agência de negócios externos do governo americano, existiu de 1953 a 1999] nem a CIA estão atualmente preparadas para levar adiante este esforço — e grande parte deste esforço teria de ser encoberto para evitar comprometer a posição dos grupos que

estamos financiando.

Em 13 de outubro de 1961, Niles Bond foi substituído. Seu sucessor, Lincoln Gordon, aos 48 anos já tinha uma bem-sucedida carreira, dividida entre a academia e o governo. Formado em Harvard e com doutorado em economia em Oxford, chefiara a missão londrina do Plano Marshall. De volta aos Estados Unidos, lecionara política e ajudara a construir a Aliança para o Progresso, com a qual os Estados Unidos pretendiam barrar o surgimento de novas Cubas, fornecendo 20 bilhões de dólares para países americanos controlados por governos amigáveis, na definição de Richard Goodwin. Em seu primeiro encontro com Jango, este explicou que teria não mais do que três meses de plena aceitação de seu governo por parte da opinião pública e pediu mais ajuda financeira. Gordon não deu um passo nessa direção. Coincidentemente, foi nessa época que surgiu o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes). Oficialmente, era iniciativa de um grupo de empresários — entre os quais Augusto Trajano de Azevedo Antunes, dono de uma mineradora, e o advogado Antonio Galotti, ex-dirigente da Ação Integralista Brasileira e principal defensor dos interesses da Light no Brasil. Objetivos oficiais: estimular a educação cultural, moral e cívica do povo brasileiro; estimular, por meio de pesquisa, o crescimento econômico, o bemestar social e o fortalecimento do regime democrático. Dinheiro não faltava: para defender a moral e os bons costumes da família brasileira, a livre iniciativa e a democracia, o Ipes já nasceu com um capital inicial de meio milhão de dólares.3 Em pouco tempo, foram organizadas comissões. O projeto original cobria quase toda a sociedade: Forças Armadas, Congresso, Executivo, classe empresarial, camadas intermediárias, sindicatos, classe camponesa, Igreja, partidos políticos, meio estudantil e mídia. Na prática, eram cinco grupos: GLC — Grupo de Levantamento e Conjuntura, encarregado de acompanhar todos os acontecimentos políticos contrários à linha de pensamento do Ipes, elaborando táticas para influenciar no processo (esse

acompanhamento ficou sob a responsabilidade do próprio Golbery), recrutar outros empresários para o Ipes e instalar escutas telefônicas. GAP — Grupo de Assessoria Parlamentar. Associado ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática, criado dois anos antes, e à Ação Democrática Parlamentar, frente que reunia metade dos deputados federais sob o lema “anticomunistas sim, reacionários, jamais”, o GAP utilizava o material coletado nas escutas telefônicas para identificar congressistas dispostos a aderir ou cooperar. GPE — Grupo de Publicações e Editoriais. Responsável pela seleção de editoriais de jornais, artigos em revistas e livros que podiam ser publicados. Empresas que publicassem material contrário aos interesses da iniciativa privada perdiam a publicidade das 278 maiores empresas do país e o crédito bancário para compra de papel. A Unidade Editorial era coordenada pelo romancista José Rubem Fonseca. GDP — Grupo de Doutrina e Propaganda. Com a ajuda de 20 notáveis tecnocratas, entre os quais estavam Mário Henrique Simonsen, Delfim Neto, Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões, fornecia projetos para serem apresentados por parlamentares amigos e apontava os que deviam ser recusados por prejudicarem os interesses do Ipes. GOP — Grupo de Opinião Pública. Força-tarefa destinada a enfrentar os comunistas na batalha pela opinião pública. Um de seus principais projetos foi a criação da Camde (Campanha da Mulher pela Democracia). O maior divulgador do GOP foi o principal telejornal da época, o Repórter Esso. Organizado por estados, era no Rio de Janeiro que funcionava o cérebro do Ipes: o GLC. Instalado em 13 salas de um prédio no Rio, estava sob o comando do então general da reserva Golbery do Couto e Silva, que fichava os subversivos. Outro general de pijama no comando do Ipes era Heitor Herrera, que trabalhava na empresa Listas Telefônicas Brasileiras e escolhia os livros a serem publicados. João Baptista Figueiredo e o coronel Heitor de Aquino também atuaram no Instituto. Do outro lado do campo, o Brasil decidira não endossar a posição

americana de tentar expulsar Cuba da Organização dos Estados Americanos, na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, realizada entre 23 de janeiro e 2 de fevereiro de 1962 em Punta del Este, no Uruguai. A delegação brasileira, comandada por San Thiago Dantas, opôs-se às sanções contra Cuba e, junto com Argentina, México, Chile, Bolívia e Equador, absteve-se da resolução que suspendia o governo cubano da OEA. Na visão do chanceler brasileiro, as sanções americanas, contraproducentes e ilegais, consolidariam a influência soviética sobre o regime de Fidel Castro, que já se declarara marxista-leninista. Na mesma época, Brizola expropriou a Telefônica Nacional, subsidiária da americana IT&T (International Telephone and Telegraph) no Rio Grande do Sul, depois de tentar uma solução negociada para a contenda. Depositou 400 mil dólares — valor apontado por uma comissão de arbitragem liderada por um aliado político —, mas a companhia concluiu que merecia 7,3 milhões. Uma reunião no Itamaraty entre o governador gaúcho, o ministro das Relações Exteriores, San Thiago Dantas, o embaixador brasileiro em Washington, Roberto Campos, e Lincoln Gordon terminou mal, depois que Brizola argumentou que a empresa podia recorrer à Justiça para alterar a indenização, e o embaixador americano disse que a Justiça brasileira era suspeita para arbitrar o conflito. No dia 30 de julho de 1962, Lincoln Gordon e Richard Goodwin reuniram-se na Casa Branca com o presidente Kennedy. A conversa, uma das primeiras depois da instalação de um equipamento de gravação que podia ser acionado pelo presidente, foi registrada. Evidenciava ainda mais a desconfiança americana em relação ao Brasil. Lincoln Gordon colocou a bola em jogo: “Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a estrutura militar. É preciso deixar claro, porém com discrição, que nós não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, contanto que fique claro o motivo...”. Nem terminou a frase, Kennedy rebateu: “Contra a esquerda”. O embaixador devolveu: “Ele [Goulart] está entregando o maldito país aos...”.

Kennedy: “Aos comunistas”. Goodwin matou o ponto: “... nós podemos muito bem querer que eles assumam o poder até o final do ano, se puderem”. Errou por pouco. Em setembro de 1962, o Congresso aprovou a lei de remessa de lucros obtidos por empresas estrangeiras instaladas no Brasil. Baseada em projeto do deputado Sérgio Magalhães, presidente da FPN (Frente Parlamentar Nacionalista), fixava, para o envio de lucros ao exterior, um teto de 10% sobre o capital efetivamente ingressado no país. Jango não sancionou a lei — e ainda retardou sua regulamentação até janeiro de 1964. Considerada rigorosa demais pelos americanos, redundou todavia em financiamento farto para os candidatos parlamentares alinhados com os interesses norte-americanos. Numa reunião da Câmara Americana de Comércio, em São Paulo, os empresários perguntaram a Lincoln Gordon se deviam investir nas eleições. A resposta foi bem clara, na lembrança do próprio, que seria registrada em 2002, pelo programa Roda Viva, da TV Cultura. Ele disse: “Isso vai contra nossas políticas. Vocês têm parcerias com brasileiros. Se sua empresa quiser financiar algum candidato, deixe que ela faça isso”. Em outubro de 1962, quase 15 milhões de brasileiros foram às urnas. Apesar da ação do Ipes e dos empresários, o partido de Jango saiu vitorioso, superando a UDN e tornando palpável a volta ao presidencialismo. Brizola foi eleito deputado federal pela Guanabara, com uma votação consagradora: mais de 269 mil votos, a maior já obtida até então por um parlamentar. Apesar disso, todas as condições que tinham levado à crise institucional, e os obstáculos à posse de Jango, permaneciam no mesmo lugar. E mais, tinham se potencializado, minando as bases da fragilizada democracia. Fortalecia-se aos poucos o cenário do golpe militar que, desenhado em 1961, mesmo sem sucesso, enfraquecera o presidente e preparara o cenário que, ainda sob a bandeira do “risco comunista”, levaria ao golpe militar de 1964, instalando a ditadura.

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O fim e o recomeço

SE ESTE LIVRO fosse um filme de Hollywood, a essa altura a tela já estaria

escura, exibindo apenas a ficha técnica. O tradicional The End ficaria para trás. Mas, como em determinadas películas baseadas em fatos reais, cabe aqui apresentar, no ritmo dos letreiros finais, o destino de personagens para além da posse de Jango. Ponto de convergência dos maiores protagonistas daquele teatro político, 1961 deixou esboçado o cenário do golpe que afinal ocorreria três anos mais tarde. A crise trouxe para o roscênio figuras-chave do futuro regime militar, que só acabaria realmente com a posse de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direto em 1991, 30 anos depois de Jânio Quadros. Orlando Geisel nunca bombardeou palácio algum; Machado Lopes recusou o posto de ministro da Guerra; Brizola jamais chegou a Brasília; Mazzilli voltou à Presidência por 13 dias, sem nenhum poder; Jânio contrariou o vidente Sana Khan; Lacerda, escanteado, juntou-se a seus exinimigos e morreu longe da política; Guevara foi assassinado quando tentava transformar a Bolívia num Vietnã; Tancredo foi primeiro-ministro por 11 meses, governador de Minas por um ano e meio e presidente da República durante 89 dias, até ser internado, horas antes da posse. Jango só voltou para o Brasil morto, em 1976. Quanto aos três ministros militares de 1961, ganharam sua guerra três anos mais tarde. Veja a seguir, com mais detalhes, o destino dos principais personagens dessa história: ODÍLIO DENYS deixou Brasília e chegou ao Rio no dia 8 de setembro, sendo

festivamente recebido pelos militares que o apoiaram durante a crise da renúncia de Jânio. Demitido, começou a conspirar contra Jango e apoiou o golpe de 1964. Depois disso, não exerceu maior atividade política ou militar. Em 1967 foi convidado pelo então presidente, marechal Humberto de Alencar Castello Branco, para ser presidente de honra da Arena (Aliança Renovadora Nacional), o partido do governo, criado em 1966 após a extinção das antigas agremiações políticas pelo Ato Institucional no 2. Recusou a oferta, declarando que nunca tivera interesse na militância partidária. Longe da política e dos quartéis, faleceu em 5 de novembro de 1985 no Rio de Janeiro. GABRIEL GRÜN MOSS também perdeu o cargo no dia 8 de setembro de

1961. No ano seguinte, entrou para a Escola Superior de Guerra (ESG). Tomou parte ativa no movimento militar que depôs Jango em 31 de março de 1964 e, em janeiro de 1965, foi reconduzido ao Comando do Transporte Aéreo, ocupando-o até setembro de 1965, quando foi empossado ministro do Superior Tribunal Militar. Em 1974 foi aposentado no STM por ter atingido a idade-limite de 70 anos. Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de julho de 1989. SÍLVIO DE AZEVEDO HECK foi o mais empenhado opositor da trinca a

Jango, mantendo encontros com militares e com empresários de São Paulo e do Rio, descontentes com a ligação do presidente com movimentos sindicais. Ao longo de 1963, Heck aproximou-se dos conspiradores militares, como o general Olímpio Mourão Filho, que viria a se constituir num dos principais artífices da queda de João Goulart em 31 de março de 1964. O almirante deveria comandar três navios da esquadra (Tamandaré, Pará e Amazonas), que rumariam ao Sul para debelar os insurgentes contra a deposição de Goulart. No início de abril, Heck foi nomeado membro do Conselho do Almirantado, função que exerceu até 1965. Integrante da chamada “linha dura”, grupo de militares favoráveis à radicalização das medidas de exceção,

opôs-se ao presidente general Humberto Castello Branco, considerado tolerante com os partidários do governo deposto. Heck faleceu no Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1988. PASCOAL RANIERI MAZZILLI voltou à presidência da Câmara dos

Deputados depois de instalado o parlamentarismo. Com o afastamento de Jango pelo golpe militar, assumiu novamente a Presidência da República por 13 dias, de 2 a 15 de abril de 1964. Seu curto, anódino e aziago governo acabou quando o trio da junta militar, formado pelo general Artur da Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis Correia Melo, se autodenominou Comando Supremo da Revolução. Em 1965, não conseguiu ser reeleito para a Câmara dos Deputados. Em seguida abandonou a vida pública. Passou seus últimos anos como fazendeiro, até falecer em São Paulo em 21 de abril de 1975, aos 65 anos. HUMBERTO DE ALENCAR CASTELLO BRANCO, nomeado chefe do

Estado-Maior do Exército por Jango em 1963, foi um dos principais líderes militares do golpe de 1964, que destituiria o presidente. Em 9 de abril, foi decretado o Ato Institucional que cassava os mandatos políticos de opositores ao regime. Dois dias depois, Castello Branco era empossado presidente pelo Congresso Nacional, com 361 votos, contra 72 abstenções. Inicialmente deveria limitar-se a completar o mandato de cinco anos iniciado por Jânio Quadros. Seu governo foi prorrogado, com a suspensão das eleições presidenciais diretas marcadas para 3 de outubro de 1965. Castello Branco adotou a ortodoxia econômica, instituiu o bipartidarismo e reformou a administração pública. Fechou o Congresso, aprovou a Lei de Imprensa (que na prática instaurava a censura aos veículos de comunicação) e criou o SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão de espionagem que servia ao propósito de investigar “subversivos”, comandado pelo general Golbery do Couto e Silva. Insistiu no discurso de que o governo militar tinha por objetivo devolver o país ao rumo da democracia, no que não foi seguido por Costa e Silva. O general que discutira aos palavrões com Brizola e se

recusara a permitir a posse de Jango foi mantido por Castello no ministério e veio a ser seu sucessor, eleito também no Congresso emasculado pelas cassações e pelo fim dos partidos, num jogo de cartas marcadas, em 15 de março de 1967. Castello Branco morreu em um acidente aéreo em 18 de julho de 1967, quando um caça T-33 da FAB atingiu a cauda do Piper Aztec PA 23 no qual ele viajava. O inquérito militar sobre o incidente não chegou à sua causa de forma conclusiva. ERNESTO GEISEL assistiu ao último discurso de Jango no apartamento do

general Castello Branco no dia 30 de março de 1964 e ali passou o dia seguinte, no coração do golpe, ao lado de Golbery do Couto e Silva. Assumiu a chefia da Casa Militar da Presidência e ficou no posto até a etapa final do governo, sendo promovido a general de divisão. Pediu demissão junto com Golbery quando ficou evidente que Castello não iria barrar o caminho do marechal Costa e Silva até a Presidência. Passou para a reserva e foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar, posto em que atravessou o governo de Costa e Silva. O terceiro presidente militar, general Emílio Garrastazu Médici, lhe entregou a presidência da Petrobras e deu o Ministério do Exército para seu irmão Orlando, condição que asfaltou o caminho de Ernesto para a Presidência da República no período 1974/1979. Fez um governo nacionalista e austero. Tendo Golbery como parceiro e braço direito, acatou o avanço da oposição nas eleições legislativas de 1974, mas depois fechou o Congresso e criou os senadores biônicos. Enquadrou os militares da chamada linha dura mais pelo que eles representavam de insubordinação do que por ideologia e admitiu a tortura como instrumento de ação contra os subversivos. Ainda assim, deu início ao processo de redemocratização do país e elegeu seu sucessor, o chefe do SNI, João Figueiredo. No final do mandato, revogou o AI-5, mas, logo depois, deu ao presidente seguinte o direito de decretar estado de sítio sob qualquer pretexto. GOLBERY DO COUTO E SILVA projetou, criou e assumiu a direção do

Serviço Nacional de Informações, herdeiro oficial do que esboçara durante a

crise da Legalidade, na chamada Casa da Borracha. Pediu demissão com Geisel, depois de fracassadas tentativas de conspiração contra Costa e Silva e foi nomeado para o Tribunal de Contas da União, onde se aposentou. Tornou- se presidente da Dow Química no Brasil. Articulou a candidatura de Geisel, que o colocou na Casa Civil, posto que manteve durante parte do governo Figueiredo. Pediu demissão em 1981, por divergir da ação do governo diante do terrorismo de direita, e ingressou na diretoria do Banco Cidade. Morreu em 1987, aos 76 anos, aparentemente afastado da vida pública. TANCREDO NEVES foi primeiro-ministro de Jango por 11 meses. Quando

ficou claro que o parlamentarismo não era para valer, e diante da aproximação das eleições, renunciou, levando com ele seu gabinete. Quando Jango deixou Brasília, rumo ao Sul e dali para o exílio, esteve no aeroporto para as despedidas. No dia seguinte, protestou no Congresso quando Moura Andrade declarou vago o cargo de presidente. Em 1966, com a extinção dos partidos, filiou-se ao MDB. Manteve atuação discreta até ser eleito governador de Minas em 1982. Participou da campanha elas diretas, mas ao mesmo tempo articulava a candidatura oposicionista no Colégio Eleitoral. Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito presidente do Brasil, ainda pelo voto indireto no Colégio Eleitoral que, dentro do Congresso, escolhia o presidente da República. Tancredo, porém, não tomaria posse. Já doente, foi operado com urgência na véspera, 14 de março, para choque da nação. Morreu 39 dias depois, após longa agonia que todos os brasileiros acompanharam, emocionados. Na frente do Hospital do Coração, onde Tancredo passou todo esse tempo internado, entre a vida e a morte, caravanas de brasileiros faziam vigília dia e noite pelo homem que, naquele momento, representava a esperança de condução novamente a um Brasil democrático. JOSÉ SARNEY declarou seu apoio em 1961 à posse de Jango no sistema

presidencialista, mas foi um dos esteios do regime militar no Congresso. Alçado à condição de vice na chapa de Tancredo Neves, em 1986,

representando os dissidentes do PDS aglutinados na Frente Liberal, enfrentou um dilema diante da internação do presidente eleito, a menos de 24 horas da posse. Não queria assumir, mas foi levado a isso e conduziu o governo sem o respaldo de Tancredo, mantendo os compromissos assumidos pelo titular. Seu governo foi sacudido pelos embates políticos na Assembleia Constituinte, que em 1988 estabeleceu uma nova Carta e reinstituiu a eleição direta em todas as esferas do poder público. A condução errática da economia o levou ao céu da popularidade política com o congelamento de preços do Plano Cruzado, e também ao inferno, assim que o gelo derreteu. Deixou ao seu sucessor eleito em voto direto, Fernando Collor, um país esfrangalhado pela hiperinflação, em que o restabelecimento do regime democrático tornava-se urgente não somente como defesa de um princípio, mas como salvação da economia. Reelegeu-se ainda como senador pelo Amapá e manteve-se no Congresso como líder no Senado. CARLOS LACERDA foi um dos líderes civis do golpe militar de 1964, contra

o qual se voltou dois anos depois, quando a prorrogação do mandato de Castello Branco indicava que a ditadura militar não tinha prazo para terminar. Frustrados seus planos de candidatar-se à Presidência, participou da chamada Frente Ampla, ao lado de Juscelino Kubitschek e João Goulart, na luta pela redemocratização. Teve seus direitos políticos cassados em 1968 e morreu em 21 de maio de 1977, em uma clínica particular, depois de contrair gripe. JOSÉ MACHADO LOPES foi convidado por Jango em 1961 a assumir o

Ministério da Guerra no governo parlamentarista. Não aceitou: preferiu ficar no comando do III Exército, de onde saiu em outubro do mesmo ano. Recebeu, então, o título de cidadão gaúcho e uma espada banhada a ouro. Em setembro de 1964, instalado o regime militar, foi transferido para a reserva como marechal, aposentando-se em 1969. Morreu aos 84 anos, em 18 de março de 1990. Pode-se dizer que as Forças Armadas não deixaram de reconhecer o seu valor: colocaram seu nome no Espaço Cultural Museu

Marechal José Machado Lopes, no 9º Batalhão de Engenharia de Combate, em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, que abriga uma exposição do acervo da FEB na Segunda Guerra Mundial. JÂNIO QUADROS — De volta ao Brasil depois da renúncia, no ano seguinte

concorreu ao governo de São Paulo e foi derrotado por Ademar de Barros. Com o golpe de 1964, teve seus direitos políticos cassados, assim como João Goulart e Juscelino Kubitschek. Detido por ordem do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, por conta de declarações, foi confinado num hotel em Corumbá, o Santa Mônica. Recuperou os direitos políticos em 1974, mas manteve-se afastado das urnas até 1982, quando concorreu novamente ao governo paulista — perdeu, dessa feita, para Franco Montoro. Em 1985, elegeu-se prefeito de São Paulo. Com a saúde fragilizada, pouco participou das eleições de 1989 à Presidência, manifestando apenas seu apoio a Fernando Collor. Vítima de derrames cerebrais, entrou em estado vegetativo e faleceu no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, em 16 de fevereiro de 1992. JOÃO GOULART — Em novembro de 1961, o presidente João Goulart

reatou relações diplomáticas com a União Soviética, revertendo a decisão tomada no governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). Em abril do ano seguinte, o presidente foi para Washington, num sinal de que o alinhamento com os Estados Unidos estava mantido. Pediu dinheiro, mas os norteamericanos exigiram o rompimento das relações com Cuba e nenhuma relação com países socialistas, o que não foi aceito pelo presidente, que voltou de mãos abanando. Em junho de 1962, quando Tancredo renunciou com seu gabinete, Jango tentou aprovar o nome de San Thiago Dantas. Não conseguiu e contentou-se com Brochado da Rocha, do PSD, ex-ministro da Fazenda que tivera participação ativa na Legalidade. Em meio à crise econômica e insatisfações sociais, o governo divulgou, em dezembro de 1962, o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social,

elaborado pelo economista Celso Furtado. O documento abordava rapidamente um tema que dominaria a cena política dali por diante: as chamadas reformas de base que mudariam as estruturas agrária, política, fiscal, bancária e universitária do país. Depois de pressões militares, o Congresso aprovou, no início de 1963, a antecipação do plebiscito. Na hora do voto, 80% dos eleitores optaram pela restauração do presidencialismo. Novamente presidente da República com plenos poderes, Jango montou mais um ministério para dar início às reformas vagamente inspiradas no socialismo. Mas 1963 foi um ano difícil, com aumento do custo de vida e a negativa dos EUA em renegociar a dívida externa. Atacado pela direita e pela esquerda — inclusive pelo cunhado Brizola —, o presidente recuou. A crise se intensificava, e num contra-ataque, em 13 de março de 1964, Jango realizou um comício na Central do Brasil, no Rio, com mais de 150 mil pessoas. Ali anunciou a nacionalização de refinarias e um decreto assegurando para a reforma agrária faixas de terra ao longo das rodovias. A resposta veio seis dias depois, quando grupos contrários ao presidente, incluindo o governador de São Paulo, Ademar de Barros, empresários, padres e senhoras católicas, organizaram a passeata Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo, a mais impressionante manifestação de massa contra o governo já realizada no Brasil até então. A agitação política se intensificava. Em 25 de março, ocorreu um motim entre os marinheiros e fuzileiros da Marinha do Brasil. Chefiada por José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, a assembleia contou com a participação de mais de 2 mil oficiais de baixa patente. O ministro da Marinha ordenou que os líderes do movimento fossem presos, mas os fuzileiros acabaram aderindo à agitação. Para complicar ainda mais o cenário, Jango decidiu anistiar a todos. Em 31 de março, tropas mineiras comandadas pelo general Mourão Filho marcharam em direção ao Rio de Janeiro e Brasília, recebendo apoio do comandante do II Exército, general Amaury Kruel. Jango estava no Rio de Janeiro quando recebeu o manifesto do general Mourão exigindo sua

renúncia. No outro dia pela manhã, o presidente foi para Brasília com a esperança de controlar a situação. Quando chegou, constatou que não tinha nenhum dispositivo militar a seu dispor, muito menos apoio armado. Daí sua decisão de partir para Porto Alegre. No dia 2, ainda com Jango no país, o presidente do Senado, Auro Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República, ocupando o cargo mais uma vez Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Jango foi para o Uruguai, enquanto uma junta assumia o poder: o general do Exército, Artur da Costa e Silva; o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e o vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald. De 1964 até sua morte em 1976, Jango viveu entre o Uruguai, a Argentina e países europeus, principalmente França e Grã-Bretanha. Embora tivesse direito a circular livremente pelo território uruguaio, os militares brasileiros queriam-no muito bem vigiado e distante da fronteira. Contrariado com toda a situação e sentindo-se perseguido, Jango enfrentou sua primeira crise cardíaca. Em maio de 1965 viajou à França para cuidar da saúde. E entre um check-up e uma agulhada, ele se encontrou com lideranças políticas exiladas. De volta ao Uruguai, manteve correspondência com vários políticos, concedeu entrevistas e recebeu, em sua estância El Rincón, muitas visitas. Entre 1966 e 1968, João Goulart dividiu as lides do campo com articulações para a criação da Frente Ampla, junto com Juscelino e Lacerda, numa tentativa de restaurar a democracia por meios pacíficos. O documento da Frente Ampla foi declarado ilegal pelo regime militar. Seu coração dava sinais de cansaço, e, em fevereiro de 1968, Jango sofreu novo ataque cardíaco. Na década de 1970, eram frequentes as notícias de espionagem, monitoramento, perseguição, tentativas de sequestro e assassinato de Jango, em razão do aparato de repressão montado pelas ditaduras na América Latina. O golpe no Uruguai, em 1973, complicou ainda mais sua vida e a dos outros exilados no país. O Paraguai, governado pelo general Alfredo Stroessner, concedeu passaporte diplomático ao ex-presidente em outubro. Foi nesse momento que

Jango recebeu o convite do então presidente da Argentina, Juan Domingo Perón, para trabalhar em Buenos Aires. Com a morte de Perón, em 1974, Jango começou a negociar seu retorno ao Brasil com as autoridades. Temendo por sua segurança, resolveu enviar os filhos para Londres, afastando-se aos poucos de Buenos Aires. Aproveitou para cuidar da saúde que, mais uma vez, andava debilitada, com seguidos desmaios, quedas de pressão e fortes dores no peito. Em setembro de 1976, voltou à França para novos exames e ouviu de seu cardiologista o seguinte diagnóstico: “Presidente, se a gente não quer viver, não vive”. Menos de três meses depois, em 6 de dezembro de 1976, aos 58 anos, João Goulart morria de um ataque cardíaco, na sua fazenda La Villa, em Mercedes, na Argentina. No momento da morte, conta seu ex-secretário Cláudio Braga, sua mesa de cabeceira abrigava um cinzeiro com cinco baganas de cigarro e um livro de cowboy. Não faltaram dificuldades diplomáticas no translado do corpo até São Borja. O carro funerário foi seguido por um carro da Polícia Federal e pelo automóvel onde se encontravam a viúva, Maria Teresa, Cláudio Braga, Carlos Piegas e a mulher. Ao chegar a São Borja, no final da tarde, o caixão foi exposto na igreja. Na manhã seguinte, Jango foi sepultado em sua cidade natal na presença de 30 mil pessoas, entre as quais políticos oposicionistas e antigos colaboradores de governo. Foi o único presidente brasileiro a falecer no exílio. LEONEL BRIZOLA terminou seu governo em janeiro de 1963, deixando

como marca administrativa um inédito plano de escolarização que fez surgir 5.902 escolas primárias, 278 escolas técnicas e 122 ginásios e escolas normais, além de 42.153 vagas para professores. Foi ele também quem patrocinou os primeiros acampamentos de sem-terra, num pioneiro gesto concreto a favor da reforma agrária, que o governo federal prometia sem jamais cumprir. Mas as medidas mais contundentes foram a encampação da Companhia de Energia Elétrica Rio-grandense, pagando-se por ela o valor simbólico de um

cruzeiro, e da Companhia Telefônica Riograndense, ligada à multinacional ITT. Brizola disputou uma vaga de deputado federal pela Guanabara (a legislação da época era mais flexível quanto ao domicílio eleitoral). E, em outubro de 1962, foi eleito com 269 mil votos, a maior votação obtida até então por um deputado na história do Congresso Nacional. Ao chegar a Brasília, com a popularidade em alta, foi eleito vice-líder da maioria da Câmara dos Deputados. Passou então a exercer pressão sobre Jango, pedindo reformas de base, como a tributária, bancária, constitucional, administrativa e agrária. Atingido pelo Ato Institucional nº 1, que cassou mandatos parlamentares e suspendeu, por dez anos, os direitos políticos de muitas lideranças de esquerda, Brizola se escondeu em várias casas entre 9 de abril e 7 de maio, quando embarcou num Cessna azul e branco, na praia de Cidreira (RS), seguindo para o Uruguai. Ali começava o longo exílio. Depois de percorrer os 150 quilômetros que separavam Sarandi Grande do balneário Solimar, Brizola encontrou a mulher Neusa e os filhos, na casa do cunhado Jango. Dali tentou por dois anos organizar um movimento contra os militares. Em fevereiro de 1965, o governo brasileiro pediu ao Uruguai o confinamento do ex-governador no balneário de Atlântida, onde ele permaneceu até 1971. Nesse período, dedicou-se à fazenda no departamento de Durazno. Seis anos mais tarde, foi expulso do Uruguai sob a alegação de que “o referido asilado não respeitou as obrigações inerentes a esta condição”. Brizola foi para os Estados Unidos, onde a política de direitos humanos do presidente Jimmy Carter apagava mágoas de ambos os lados. Em Nova York, apresentou-se como um social-democrata, distante do radical dos anos 1960, e ganhou notoriedade internacional, para desagrado do governo militar brasileiro. Em janeiro de 1978, mudou-se para Lisboa e, em fevereiro, participou da reunião da Internacional Socialista em Hamburgo, na Alemanha. Em julho, organizou, em Lisboa, uma Assembleia Trabalhista e Socialista. Era o

embrião do novo PTB. Um ano depois, em 11 de abril, o Tribunal Superior Eleitoral receberia o pedido de registro do partido, acompanhado de seu programa, com assinaturas de Darcy Ribeiro e Doutel de Andrade, entre outros. Um mês depois da anistia de agosto de 1979, Brizola voltou ao Brasil. Cauteloso, desembarcou no Aeroporto de Foz do Iguaçu, para evitar muita agitação na chegada. Na bagagem, 15 anos de exílio, 21 vezes réu e oito condenações que poderiam lhe valer 42 anos de prisão se não fosse o decreto assinado pelo presidente João Figueiredo, depois de muita pressão popular. Brizola fixou residência no Rio de Janeiro e fundou, no final de 1979, o novo PTB na cidade de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. A sigla ficou por pouco tempo em suas mãos. Em maio de 1980, o TSE concedeu a legenda histórica ao grupo de Ivete Vargas, e Brizola fundou o PDT (Partido Democrático Trabalhista), elegendo-se governador do Rio de Janeiro em 1982. Deixou no governo carioca sua marca na educação, com a construção das escolas batizadas como Ciep e o Sambódromo. Embora tenha se aproximado do presidente Figueiredo, na tentativa de encontrar uma solução negociada para o fim do regime, foi um dos líderes da campanha das Diretas-Já, maior movimento cívico da história brasileira — de que Tancredo também participaria. Finalizou seu governo em 1987 fazendo críticas à transição civil e denunciando “as forças imperialistas” por trás do atraso social e da crise econômica. Dois anos depois concorreu ao Palácio do Planalto, ao lado de Lula, Fernando Collor de Mello e outros 19 candidatos. Com 67% das intenções de voto dos fluminenses para a Presidência da República, até setembro manteve a condição de favorito. A um mês da eleição, uma pesquisa do Ibope mostrava Collor na frente e Brizola em segundo, com apenas dois pontos de vantagem sobre Luís Inácio Lula da Silva, que acabou chegando ao segundo turno e foi derrotado por Collor.

Em 1994, Brizola deixou o governo do Rio para se tornar, pela segunda vez, candidato à Presidência da República. Foi o quinto colocado, atrás de Orestes Quércia, Enéas Carneiro, Lula e Fernando Henrique Cardoso. Quatro anos depois, nova tentativa. Dessa vez na garupa de Lula, como candidato a vice. Fernando Henrique foi reeleito. Mais uma derrota em 2000, agora para César Maia, que se tornou prefeito do Rio de Janeiro. Ele não desistiu e, dois anos depois, candidatou-se ao Senado e apoiou Ciro Gomes à Presidência. Ambos perderam, enquanto Lula chegava afinal à Presidência. Em dezembro de 2003, o PDT já havia rompido com Lula, de cujo governo, segundo Brizola, participara por “gravidade”. Mas ele continuava atrás do poder. No início de 2004, confessou a vários amigos a vontade de ser prefeito do Rio de Janeiro. Foi nocauteado antes de a luta iniciar. Descansava na estância El Repecho, na província de Durazno, no Uruguai, quando pegou uma forte gripe no rigoroso inverno do pampa. Voltou para o Rio de Janeiro na segunda quinzena de junho. No dia 21, apresentando febre, diarreia e dores por todo o corpo, foi internado no Hospital São Lucas. Ao sair do prédio 3.210 da avenida Atlântica, Brizola mostrava bom humor ao pedir à médica: “Ligue a sirene. Vamos fazer barulho”. Por volta das 21h30 do dia 21 de junho, Brizola faleceu, aos 82 anos. Seu corpo foi velado no Palácio Guanabara, sede do Governo do Estado do Rio, e depois no Salão Negrinho do Pastoreio, no Palácio Piratini, em Porto Alegre. Como em agosto de 1961, mais de 10 mil pessoas aglomeraram-se em frente ao Palácio, na praça da Matriz, até o corpo ser levado num avião da FAB para São Borja, onde foi velado mais uma vez e no dia 23 sepultado no jazigo da família Goulart, ao lado da mulher Neusa e do cunhado Jango.

Notas Capítulo 1 1 LOPES, José Machado. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros: um depoimento, Rio de Janeiro, Alhambra, 1980, p. 47. 2 CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000, p. 54. 3 DÉ CARLI, Gileno. Anatomia da renúncia, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1962, p. 153. 4 Ibid., p. 159. 5 CHAGAS, Carlos. O Brasil sem retoque — 1808-1964, vol. 2, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 819. 6 Reportagem de Mário Magalhães publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 8.4.2001.

Capítulo 2 1 CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000, p. 88. 2 HENRIQUE, Marcelo. Jânio Quadros sem retoque, Campinas, Komedi, 2001, p. 36. 3 DULLES, John W. F. Carlos Lacerda, a vida de um lutador, vol. 1, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 152. 4 LACERDA, Carlos. Rosas e pedras de meu caminho, Brasília, UnB, 2001, p. 272. 5 ABREU, Alzira Alves de (coord.) et al. Juraci Magalhães: minhas memórias provisórias, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982, p. 158. 6 CHAGAS, Carlos. O Brasil sem retoque — 1808-1964, vol. 2, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 800. 7 Ibid., p. 804. 8 Ibid., p. 811. 9 SILVEIRA,Joel. Viagem com o presidente eleito, Rio de Janeiro, Mauad, 1996, p. 40. 10 CHAGAS, Carlos. Op. cit., p. 821. 11 CARONE, Edgard. A Quarta República — 1945-1964, São Paulo, Difel, 1980, p. 150. 12 Ibid., p. 159. 13 Ibid., p. 153. 14 Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas. Dicionário histórico-

bigráfico brasileiro, 1930-1983, Rio de Janeiro, Forense Universitária/FGV/CPDOC, 1983, p.

2.852. 15 DÉ CARLI, Gileno. Anatomia da renúncia, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1962, p. 93.

Capítulo 3 1 LACERDA, Carlos. Rosas e pedras de meu caminho, Brasília, UnB, 2001, p. 281. 2 Ibid., p. 30. 3 Ibid., p. 33. 4 Ibid., p. 110. 5 Ibid., p. 72. 6 LAURENZA, Ana Maria de Abreu. Lacerda x Wainer: o Corvo e o Bessarabiano, 2ª ed. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 1998, p. 55. 7 WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter, Rio de Janeiro, Record, 1988, p. 127. 8 Lacerda, Carlos. Op. cit., p. 237. 9 Ibid., p. 241. 10 Ibid., p. 242. 11 Ibid., p. 249. 12 Ibid., p. 261. 13 Ibid., p. 230. 14 Ibid., p. 279. 15 Ibid., p. 280. 16 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26.8.1961, p. 10. 17 O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 18.11.1961. 18 O Globo, Rio de Janeiro, 26.8.1961. 19 DULLES, John W. F. Op. cit., p. 47.

Capítulo 4 1 PINHEIRO, Luiz Adolfo. Jânio, Jango & Cia., Brasília, Eco, 1988, p. 29. 2 ANDERSON, John Lee. Che Guevara: uma biografia, Rio de Janeiro, Objetiva, 1987, p. 594. 3 CAMARGO, Aspásia. Diálogo com Amaral Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 442. 4 LOPES, José Machado. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros, um depoimento, Rio de Janeiro, Alhambra, 1980, p. 35. 5 PINHEIRO, Luiz Adolfo. Op. cit., p. 32.

6 CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000, p. 59. 7 LACERDA, Carlos. O poder das ideias, Rio de Janeiro, Record, 1962, p. 321. 8 Ibid., pp. 317-331. 9 CASTELLO BRANCO, Carlos. Op. cit., p. 66.

Capítulo 5 1 CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000, p. 29. 2 CASTELLO BRANCO, Carlos. Op. cit., p. 121. 3 Ibid., p. 123. 4 Ibid., p. 63. 5 ANDRADE, Auro Moura. Um Congresso contra o arbítrio: diários e memórias. 1961-1967, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 39. 6 Ibid., p. 40. 7 FREIRE, Vitorino. Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. 8 ANDRADE, Auro Moura. Op. cit., p. 394.

Capítulo 6 1 TEIXEIRA, Maria Dulce Loyola. Mauro Borges e a crise político-militar de 1961 em Goiás: movimento da Legalidade, Brasília, Senado Federal, 1994, p. 21. 2 Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 2.9.1961. 3 CABRAL, Castilho. Tempos de Jânio e outros tempos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962, p. 235. 4 Ibidem. 5 DÉ CARLI, Gileno. Anatomia da renúncia, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1962, p. 29. 6 O Estado de S. Paulo, 27.8.1961. 7 CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000, p. 46. 8 Ibid., p. 47. 9 O Estado de S. Paulo, 27.8.1961. 10 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, edição conjunta de 27 e 28.8.1961, p. 1. 11 CAMARGO, Aspásia & GÓES, Walder de. Meio século de combate: diálogo com Cordeiro de Farias, Coleção Brasil Século XX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 506. 12 DÉ CARLI, Gileno. Op. cit., p. 77. 13 CAMARGO, Aspásia. Diálogo com Amaral Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986,

p. 441. 14 D’ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Ernesto Geisel, Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1997, p. 136.

Capítulo 7 1 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. 1964: golpe ou contragolpe?, Porto Alegre, L&PM, 1978, p. 39. 2 Ibidem. 3 Ibid., p. 40. 4 Ibidem. 5 CHAGAS, Carlos. O Brasil sem retoque — 1808-1964, vol. 2, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 892. 6 Ibid., p. 893. 7 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. Op. cit., p. 96.

Capítulo 8 1 SUED, Ibrahim. “Reportagem social”, O Globo, Rio de Janeiro, 26.8.1961. 2 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 e 28.8.1961, p. 5. 3 SODRÉ, Nelson Werneck. Memórias de um soldado, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 535. 4 FALCÃO, Armando. Tudo a declarar, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 220. 5 DÉ CARLI, Gileno. JQ, Brasília e a grande crise, Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti, 1961, p. 48. 6 SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 534. 7 Ibid., p. 536. 8 Ibidem. 9 Ibid., p. 537. 10 Entrevista de Ascendino Leite a Arlindo Almeida para este livro, agosto de 2001. 11 CHAGAS, Carlos. O Brasil sem retoque — 1808-1964, vol. 2, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 899. 12 Ibidem. 13 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29.8.1961, p. 1.

Capítulo 9 1 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, Porto

Alegre, Redactor, 1986, p. 176. 2 FELIZARDO, Joaquim. A Legalidade: último levante gaúcho, Porto Alegre, UFRGS, 1988, p. 26. 3 No fim da vida, Brizola admitiu que Lacerda fora “um bom administrador”e duvidou que a súbita morte do político carioca tivesse sido natural. Mas antes disso, como se verá, eles sempre estiveram em campos opostos. 4 LOPES, José Machado. Op. cit., p. 23. 5 Entrevista de Hamilton Chaves ao jornalista Amir Labaki, 26.2.1985, especialmente cedida aos autores. 6 Entrevista de Leonel Brizola a Paulo Markun, em julho de 2001. 7 FELIZARDO, Joaquim, op. cit., p. 43. 8 Diário da Assembleia do Estado do Rio Grande do Sul, 90ª sessão, em 25.8.1961. 9 LOPES, José Machado. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros: um depoimento, Rio de Janeiro, Alhambra, 1980, p. 33. 10 Folha da Tarde, Porto Alegre, 26.8.1961, p. 4. 11 Ibid., p. 56. 12 Correio do Povo, Porto Alegre, 26.8.1961. 13 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, op. cit., p. 98. 14 SILVA, Antônio Silveira da. A Brigada Militar e a Legalidade, Porto Alegre, Martins, 1989, p. 18. 15 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brizola e o trabalhismo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, p. 78. 16 LOPES, José Machado. Op. cit., pp. 56-57. 17 BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal: desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora, Porto Alegre, Já, 1999, p. 132. 18 Última Hora, Porto Alegre, 27.8.1961, p. 1. 19 LOPES, José Machado. Op. cit., p. 43. 20 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, op. cit., p. 75. 21 Ibid., p. 127. 22 A íntegra desse comunicado está no capítulo 8 (p. 139). 23 LOPES, José Machado. Op. cit., p. 127. 24 Ibid., p. 43. 25 Entrevista de Hamilton Chaves ao jornalista Amir Labaki, 26.2.1985, especialmente cedida aos autores. 26 Entrevista de Leonel Brizola a Paulo Markun, em julho de 2001.

27 Ibidem. 28 VÁRIOS AUTORES. Nós e a Legalidade: depoimentos, Porto Alegre, AGE/IEL, 1991, p. 86. 29 FELIZARDO, Joaquim. Op. cit., pp. 33-40. 30 Entrevista de Flávio Alcaraz Gomes a Duda Hamilton, em agosto de 2001. 31 Entrevista de Leonel Brizola a Paulo Markun, em julho de 2001. 32 Ibidem. 33 LOPES, José Machado. Op. cit., p. 81 34 Ibid., p. 91. 35 Ibid., p. 109. 36 LOPES, José Machado. Op. cit., p. 46. 37 Entrevista de Pedro Américo Leal a Duda Hamilton, em agosto de 2001. 38 SILVEIRA, Norberto da. Reportagem da Legalidade — 1961-1991, Porto Alegre, NS Assessoria em Comunicação, 1991, p. 111. 39 MORAES NETO, Geneton. Dossiê Brasil: as histórias por trás da história recente do Brasil, Rio de Janeiro, Objetiva, 1997, p. 89. 40 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, op. cit., p. 148. 41 Entrevista à jornalista Bia Lopes para este livro, em maio de 2001.

Capítulo 10 1 Arquivo pessoal de Hamilton Chaves, cedido aos autores pela família. 2 Folha da Tarde, Correio do Povo, Última Hora, A Hora, Folha Esportiva, Jornal do Dia, Diário de Notícias e Jornal do Comércio. 3 Folha da Tarde, Porto Alegre, 4.9.1961. 4 Entrevista de Hamilton Chaves ao jornalista Amir Labaki, 26.2.1985, especialmente cedida aos autores. 5 VÁRIOS AUTORES. Nós e a Legalidade: depoimentos, Porto Alegre, AGE/IEL, 1991, p. 168. 6 Arquivo pessoal de Hamilton Chaves, cedido aos autores pela família. 7 Ibidem. 8 Entrevista de Odilon Lopez à jornalista Bia Lopes para este livro, em maio de 2001. 9 Ibidem. 10 Ibidem. 11 Ibidem. 12 Entrevista de Hamilton Chaves ao jornalista Amir Labaki, 26.2.1985, especialmente cedida aos autores.

Capítulo 11 1 TEIXEIRA, Maria Dulce Loyola. Mauro Borges e a crise político-militar de 1961 em Goiás: movimento da Legalidade, Brasília, Senado Federal, 1994, p. 35. 2 Ibid., p. 18. 3 Ibid., p. 33. 4 Entrevista de Mauro Borges a João Novaes para este livro, em agosto de 2001. 5 TEIXEIRA, Maria Dulce Loyola. Op. cit., p. 52. 6 AFFONSO, Almino. Raízes do golpe: da crise da legalidade ao parlamentarismo — 1961-1963, São Paulo, Marco Zero, 1988, p. 37. 7 Entrevista de Mauro Borges a João Novaes para este livro, em agosto de 2001. 8 Ibid. 9 Teixeira, Maria Dulce Loyola. Op. cit., p. 73. 10 Entrevista de Mauro Borges a João Novaes para este livro, em agosto de 2001. 11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Teixeira, Maria Dulce Loyola. Op. cit., p. 76. 14 Ibid., p. 68.

Capítulo 12 1 Entrevista de Almino Affonso a Paulo Markun, em agosto de 2001. 2 Ibidem. 3 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27.8.1961. 4 Aspásia Camargo, Diálogo com Amaral Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 445. 5 Formada por Ulysses Guimarães, Oliveira Brito, Eloy Dutra, Geraldo Freire, Paulo Lauro, Manoel Novais, Plínio Salgado, Barbosa Lima Sobrinho e os senadores Jefferson de Aguiar, Alô Guimarães, Paulo Fernandes, Heribaldo Vieira, padre Calazans, Argemiro de Figueiredo, Nogueira da Gama e Novais Filho. 6 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. 1964: golpe ou contragolpe?, Porto Alegre, L&PM, 1978, p. 86. 7 D’ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Ernesto Geisel, Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1997, pp. 139-140. 8 Ibidem. 9 O grupo era composto pelos generais Osvino Ferreira Alves, Ladário Teles, Amaury Kruel, Paiva Chaves, Teles da Costa, Idálio Sardenberg e Nelson de Melo. 10 O Globo, Rio de Janeiro, 1.9.1961. 11 ABREU, Alzira Alves de (coord.) et al., Juracy Magalhães: minhas memórias provisórias, Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 1982, p. 161.

Capítulo 13 1 Folha da Tarde, Porto Alegre, 4.9.1961. 2 Entrevista de Osni Carlos Rosembrock a Fernanda Goss para este livro, em agosto de 2001. 3 FALCÃO, Armando. Tudo a declarar, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 219. 4 LOPES, José Machado. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros: um depoimento, Rio de Janeiro, Alhambra, 1980, pp. 46-47. 5 Ibid., p. 47. 6 DÉ CARLI, Gileno. JQ, Brasília e a grande crise, Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti, 1961, pp. 139-140. 7 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, edição conjunta de 3 e 4.9.1961. 8 D’ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Ernesto Geisel, Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1997, p. 138. 9 Força Pública de São Paulo, Militia, ano XIV, no 91, setembro-outubro, p. 15.

Capítulo 14 1 DÉ CARLI, Gileno. JQ, Brasília e a grande crise, Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti, 1961, p. 133. 2 D’ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Ernesto Geisel, Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1997. 3 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. 1964: golpe ou contragolpe?, Porto Alegre, L&PM, 1978, p. 125. 4 O Globo, Rio de Janeiro, 1.9.1961. 5 La Mañana, Montevidéu, 1.9.1961. 6 El País, Montevidéu, 1.9.1961. 7 La Mañana, Montevidéu, 1.9.1961. 8 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, Porto Alegre, Redactor, 1986, p. 115. 9 Entrevista de Dilamar Machado a Bia Lopes para este livro. 10 Entrevista de Lucídio Castello Branco a Paulo Markun, em março de 2001. 11 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, op. cit., p. 117. 12 El Debate, Montevidéu, 1.9.1961. 13 La Mañana, Montevidéu, 1.9.1961.

14 El Dia, Montevidéu, 1.9.1961. 15 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, op. cit., p. 117. 16 Ibid., p. 118. 17 Entrevista de Dilamar Machado a Bia Lopes para este livro, em abril de 2001. 18 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência que levou Jango ao poder, op. cit., p. 68. 19 NUNES, Augusto. Tancredo, Coleção Os Grandes Líderes, São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 36. 20 Entrevista de Lucídio Castello Branco a Paulo Markun, em março de 2001. 21 AFFONSO, Almino. Raízes do golpe: da crise da legalidade ao parlamentarismo — 1961-1963, São Paulo, Marco Zero, 1988, p. 41. 22 Entrevista de Leonel Brizola a Paulo Markun, em julho de 2001. 23 Augusto Nunes, op. cit., p. 44. 24 O Cruzeiro, edição extra de 16.9.1961. 25 Entrevista de Leonel Brizola a Paulo Markun, em julho de 2001. 26 O Cruzeiro, edição extra de 16.9.1961.

Capítulo 15 1 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2.8.1961. 2 Folha da Tarde, Porto Alegre, 2.8.1961. 3 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, Porto Alegre, Redactor, 1986, p. 93. 4 LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 119. 5 VÁRIOS AUTORES. Legalidade 25 anos: a resistência popular que levou Jango ao poder, op. cit., p. 186. 6 Ibid., p. 93. 7 Entrevista de Flávio Tavares aos autores, em março de 2001. 8 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. 1964: golpe ou contragolpe?, Porto Alegre, L&PM, 1978, pp. 141-142. 9 CAMARGO, Aspásia. Diálogo com Amaral Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 448. 10 Ibidem. 11 Entrevista de Carlos Bastos aos autores, em março de 2001. 12 SILVEIRA, Norberto da. Reportagem da Legalidade: 1961-1991, Porto Alegre, NS Assessoria em Comunicação, 1991, pp. 98-102. 13 Entrevista de Emílio Neme aos autores, em março de 2001.

14 Ibidem. 15 Entrevista de Leonel Brizola a Paulo Markun, em julho de 2001. 16 Ibidem. 17 LOPES, José Machado. O III Exército na crise da renúncia de Jânio Quadros: um depoimento, Rio de Janeiro, Alhambra, 1980, p. 85. 18 Folha da Tarde, Porto Alegre, 4.9.1961.

Capítulo 16 1 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. 1964: golpe ou contragolpe?, Porto Alegre, L&PM, 1978, p. 144. 2 Ibidem. 3 ANDRADE, Auro Moura. Um Congresso contra o arbítrio: diários e memórias 1961-1967, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 92. 4 Ibid., pp. 92-93. 5 Ibid., p. 94. 6 Diário do Congresso Nacional, 6.8.1961, p. 6.478. 7 SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. Op. cit., pp. 146-147. 8 ANDRADE, Auro Moura. Op. cit., p. 100. 9 Entrevista de João Brusa Neto aos autores, em março de 2001. 10 CHAGAS, Carlos. O Brasil sem retoque — 1808-1964, vol. 2, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 953. 11 CAMARGO, Aspásia. Diálogo com Amaral Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 448. 12 Ibid., p. 449. 13 O Globo, Rio de Janeiro, 7.9.1961. 14 Depoimento de Ranieri Mazzilli ao Centro de Memória Social Brasileira, da Universidade Cândido Mendes. 15 CHAGAS, Carlos. Op. cit., p. 957.

Capítulo 17 1 O ministério parlamentarista de João Goulart era o seguinte: primeiro-ministro, Tancredo Neves, que acumulara a pasta da Justiça; Trabalho, Franco Montoro, deputado federal pelo PDC de São Paulo; Indústria e Comércio, Ulysses Guimarães, deputado pelo PSD de São Paulo; Minas e Energia, Gabriel Passos, deputado federal pela UDN de Minas Gerais; Relações Exteriores, San Thiago Dantas, ex-deputado federal pelo PTB de Minas Gerais. Na Fazenda, assumiu o banqueiro Walter Moreira Salles; na Agricultura, o

deputado federal do PSD de Pernambuco, Armando Monteiro Filho; na Viação e Obras Públicas, Virgílio Távora, deputado federal pela UDN do Ceará; Saúde, Estácio Souto Mayor, deputado federal pelo PTB de Pernambuco; Educação, Oliveira Brito, deputado federal pelo PSD da Bahia; Guerra, general Segadas Viana; Marinha, almirante Ângelo Nolasco de Almeida; Aeronáutica, brigadeiro Clóvis Travassos. A chefia da Casa Civil ficou com Antônio Balbino, membro do PSD da Bahia, e, na Casa Militar, Amauri Kruel. 2 No final de 1961, Goodwin foi nomeado secretário assistente substituto de Assuntos Interamericanos. Ocupou o posto até 1963 3 Segundo o professor Almir dos Santos, no começo de 1963 já eram contribuintes 320 grandes empresários, que representavam: 25 bancos; 31 empresas de seguros; 29 indústrias farmacêuticas e químicas; 38 indústrias de alimentos e produtos agrícolas; 100 indústrias de eletrônica, de maquinário e têxtil; 28 de engenharia; 15 de publicidade e 12 de transporte.

Bibliografia ABREU, Alzira Alves de (coord.) et al. Juracy Magalhães: minhas memórias provisórias, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982. AFFONSO, Almino. Raízes do golpe: da crise da legalidade ao parlamentarismo — 1961-1963, São Paulo, Marco Zero, 1988. ALMANAQUE ABRIL 1995. São Paulo, Abril, 1994. AMARAL, Anselmo F. Brizola e a Legalidade, Porto Alegre, Intermédio, 1986. ANDERSON, John Lee. Che Guevara: uma biografia, Rio de Janeiro, Objetiva, 1997. ANDRADE, Auro Moura. Um Congresso contra o arbítrio: diários e memórias 1961-1967, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. BARROS, Jéfferson. Golpe mata jornal: desafios de um tabloide popular numa sociedade conservadora, Porto Alegre, Já, 1999. BATISTA, Antenor. Corrupção: fator de progresso?, São Paulo, Letras & Letras, 2001. CAMARGO, Aspásia & GÓES, Walder de. Meio século de combate: diálogo com Cordeiro de Farias, Coleção Brasil Século XX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981. CAMARGO, Aspásia. Diálogo com Amaral Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. CARONE, Edgard. A Quarta República — 1945-1964, São Paulo, Difel, 1980. CARRION JR. Brizola: momentos de decisão, Porto Alegre, L&PM, 1989. CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000. CASTILHO CABRAL. Tempos de Jânio e outros tempos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1962.

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