42 - Psicologia Do Feminino

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SCIENTIFIC AMERICAN

_



mente cérebro psicologia

I psicanálise I

neurociência

SAÚDE TRABALHO SEXUALIDADE SEDUÇÃO RELACIONAMENTO MATERNIDADE OPÇÃO POR NÃO TER FILHOS FORMAS DE LIDAR COM PODER

PSICOLOGIA D N tmoçoes, lógicas, desanos, desejos: o que torna tão específico o psiquismo da mulh

BIBLIOTECA MENTE E C É R E B R O

Em cinco edições, a nova coleção Biblioteca Mente e Cérebro da Duetto Editorial, reúne artigos de especialistas sobre grandes temas: criatividade, aprendizagem, filhos, liderança e emoções.

U m a

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muitas, muitas e m

ÊL M ulher" é uma dessas palavras que costumam I \ # I evocar tantas mais: maternidade, emoção, afeJ mto, hormônios em ebulição, relacionamentos, sedução, diferenças e similaridades, conflitos, conquistas sociais, transformação - e muitas outras mais. Fala-se do "enigma do feminino" (como se o mistério maior, ainda e talvez sempre, não fosse simplesmente o humano). Mas é preciso reconhecer que esse ser - capaz de conceber e parir, sangrar todos os meses e não como sinal de adoecimento ou morte e expressar enorme labilidade de humor sem que isso seja patológico - ainda hoje, provoca estranheza, certo incómodo e, claro, profunda atração em homens das mais diversas culturas em variadas épocas. Não por acaso, direta ou indiretamente, mulheres são tema de músicas, poesias, textos de literatura, filmes, obras de arte. É compreensível: independentemente de nosso sexo biológico, género ou orientação, em algum momento todos nós já fomos apaixonados por uma mulher-e mesmo que não lembremos mais disso a experiência com certeza deixou marcas em nosso psiquismo. li

Nesta edição especial de Mente e Cérebro nos propomos uma tarefa ao mesmo tempo ingrata e fascinante. Ingrata porque por mais que tenhamos selecionado artigos interessantes, abrangentes, cheios de informações sobre variados aspectos da mente e do cérebro da mulher, que dêem conta de oferecer um panorama amplo e simultaneamente aprofundado da psi-

u m a

cologia do feminino, sabemos que não será possível dar conta dessa tarefa (mulheres são complexas demais para um número limitado de páginas, reconheço). Certo, mas também falamos do fascínio de nos voltarmos a um campo tão complexo e cheio de nuances para abordar desejos, sentimentos, sofrimentos, lógicas, desafios e, principalmente, repleto de sentidos que não estão postos, mas são construídos - na maioria das vezes como resultado um árduo entalhe psíquico. Afinal, como propõe a psicanálise, não nascemos mulheres, nos tornamos mulheres. Esse processo inclui a constituição de formas de ser e de se relacionar consigo mesma e com os outros. Muitos deles serviram às nossas mães e avós, mas hoje precisam ser reinventados-e, possivelmente, devemos reconhecer com humildade que não servirão às meninas que já chegaram e que estão por vir. Mas uma coisa é certa: únicas, absurdamente parecidas e ao mesmo tempo diferentes e incomparáveis, fazemos parte de uma linhagem, como elos de uma corrente antiga que vem do "antes" e se projeta no "depois", nos lembrando de que não estamos sozinhas. Nessa aventura de ser mulher levamos pouca coisa na bagagem: um batom seria útil, claro, mas a informação pode ajudar mais ainda. Boa leitura!

GLÁUCIA LEAL, editora [email protected]

s u m a r i o

Psicologia d o feminino CAPAI TRÊS FIGURAS, ÓLEO S/TELA, ISMAEL NERY, S . D . , COLEÇÃO PARTICULAR, SÃO PAULO

6

Poder dos hormônios por Ulrich Kraft

O estrogênio não influi só em aspectos da sexualidade, mas também nas emoções, memória e capacidade de reter informações

12 Quando elas estão no comando por Paola Emilia Cicerone

A presença de mulheres em cargos de chefia desperta interesse sobre novas dinâmicas psíquicas e sociais

16 Mexendo c o m a cabeça dos homens por Daisy Grewal

Ser observado por uma desconhecida prejudica o desempenho cognitivo masculino

2 2 Eles preferem (mesmo) as loiras? por Nicolas G u e g u e n

Os cabelos claros evocam fantasias de sensualidade, mas também despertam preconceitos

cérebro www.mentecerebro.com.br

COMITÉ EXECUTIVO Jorge Carneiro e Rogério Ventura EDITORA-CHEFE Gláucia Leal EDITORA-ASSISTENTE Fernanda Teixeira Ribeiro EDITOR DE ARTE João Marcelo Simões ASSISTENTE DE ARTE Ana Salles ASSISTENTE DE ICONOGRAFIA Luiz Loccoman ESTAGIÁRIOS Ana Carolina Leonardi (redação); Jéssica Nogueira (planejamento) COLABORADORES Isabela Jordani (arte); Celina de Souza (tradutora/italiano); Luiz Carlos L Júnior (tradutor/ inglês); Edna Adorno e Luiz Roberto Malta (revisão); Paulo César Salgado (tratamento de imagem); Denise Martins (arte); Thaisi Albarracin Lima (iconografia) COORDENADOR DE PUBLICIDADE Robson de Souza (11) 2713-8185 REPRESENTANTES COMERCIAIS COORDENAÇÃO GERAL Mauro R. Bentes (21) 3882-8315/ 8135-3736 - [email protected] BRASÍLIA: Sônia Brandão (61) 3321-4304 RIO GRANDE DO S U L Roberto Cianoni (51) 3388-7712/ 9985-5564 - [email protected] GOIÁS - RONDÔNIA: Marco Antônio Chuahy (62) 8112-1817/ 3281-2466 - [email protected] PARANÁ-SANTACATARINA-TOCANTINS: Euclides de Oliveira, Marco Monteiro (4"\) 3023-0007/ 9943-8009/ 9698-8433 [email protected] / [email protected] PARÁ: Alex Bentes (91) 8718-3351/ 3222-4956 [email protected] MINAS GERAIS: Tadeu da Silva (31) [email protected]

OS ARTÍGOS PUBUCAOOS N ESTA EDIÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES E NÃO EXPRESSAM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DOS EDITORES. 4

I mentecérebro I Psicologia do feminino

2 6 Encantos da maquiagem por Nicolas Gueguen

Um rosto feminino pintado com bom gosto e sem exagero pode ter efeito no comportamento alheio

6 2 Facebook o novo espelho de "Narcisa" #

por Isabelle Anchieta

Vaidade e necessidade de afirmação podem explicar interesse feminino pelas redes sociais

3 2 Mundo Barbie por Maria Lúcia Homem

66

Boneca mais vendida no mundo reflete modelos idealizados de beleza e desejos de acumulação

4 0 O fascínio da segunda pele por Catherine Joubert e Sarah Stern

Maternidade pode tornar mulheres mais atentas e corajosas quando se trata de cuidar dos filhos

7 2 Filhos? Não obrigada #

A forma como nos vestimos desvela movimentos subjetivos

por Paola Emilia Cicerone

Finalmente a ciência reconhece que o chamado "instinto materno" não é inato e pode ser vivido de diversos modos

4 4 Diferentes sim, mas o que isso quer dizer? por Lise Eliot

Área cerebral responsável por julgamento moral é maior em "pessoas mais femininas", independentemente do sexo biológico

Na cabeça da mamãe por Craig Howard Kinsley e Elizabeth Meyer

78

Meninas com TDAH por A n a Beatriz Barbosa Silva

Sonhadoras e desorganizadas, mulheres com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade podem passar despercebidas

5 0 Naqueles dias por Daniela Ovadia

Relacionado ao incómodo físico, o período menstrual tem implicações emocionais, sociais, psicológicas e sexuais

82

56 As bruxas e as faces do feminino por Isabelle Anchieta

Mitos que até hoje pautam crenças e fantasias

Meninas são boas em matemática, sim! por Susana Herculano-Houzel

Estudo confirma que a crença em estereótipos prejudica, e muito, o aprendizado

ESPÍRITO SANTO: Dídimo Effgen (27) 3229-1986/ 3062-1953/ 8846-4493/9715-7586 MATO GROSSO - Mato Grosso do Sul: Luciano de Oliveira (65) 9235-7446 - [email protected] CEARÁ - PERNAMBUCO - BAHIA - SERGIPE: Rozana Rocque (11) 4950-6844/ 99931-4696 - [email protected] / [email protected]

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69126 Heidelberg, Alemanha EDITOR: Carsten Kõnneker DIRETORES-GERENTES: Markus Bossle eThomas Bleck Mente e Cérebro é uma publicação mensal da Ediouro Duetto Editorial Ltda., com conteúdo estrangeiro fornecido por publicações sob licença de Scientific American.

Duetto

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GehirrçgGeis Spektrum der Wissenschaft Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5

ANER

Poder dos hormônios O E S T R O G Ê N I O N Ã O I N F L U I A P E N A S NA S E X U A L I D A D E

FEMININA.

T E M E F E I T O S T A M B É M EM D I V E R S A S C A P A C I D A D E S C O G N I T I V A S

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T A N T O N O H O M E M Q U A N T O NA M U L H E R

por U l r i c h Kraft

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O AUTOR ULRICH KRAFT é médico e colaborador da revista GehimeiCeist. 6 I mentecérebro I Psicologia do feminino

e forma quase imediata, a palavra estrogênio • evoca sexo e provoca associações quase sempre M direcionadas à mulher. Esse hormônio sexual deve WÊ^m^ sua grande notoriedade à participação decisiva na condução de todos os processos do corpo feminino necessários à reprodução. Controla o ciclo menstrual, exerce influência no amadurecimento do óvulo a ser fecundado, dispara a ovulação e prepara o útero para a implantação do embrião. Sem o estrogênio, produzido em grande parte nos ovários - e existente, § aliás, em variações muito semelhantes, razão pela qual se S fala também em "estrogênios", no plural -, vida nenhuma se § desenvolveria no ventre materno. Na puberdade, seus níveis | crescentes arredondam as formas femininas, trazendo a matu- S ridade sexual. Em suma: é ele que faz das mulheres mulheres, g Não por acaso, o estrogênio é tido como o hormônio típica- £ mente feminino, e isso fez com que especialistas acreditassem | durante muito tempo que sua atuação se restringia aos órgãos \ fundamentais para a reprodução. Mas posteriormente se verifl- | cou a existência de um complicado circuito regulatório portrás § do controle dos níveis de estrogênio. Por um lado, mensageiros § químicos do hipotálamo e da hipófise influem na produção hor- f monal dos ovários; por outro, o próprio estrogênio atua tam- | ^ ^ estruturas cerebrais (veja quadro na pág. s m

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9°' ° ^ g ° ° Pensamento I - o u ao menos partes dele - é sensível ao hormônio sexual. 1 A

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Hoje, porém, os pesquisadores sabem que os estrogênios exercem sobre o cérebro influência muito maior que o mero controle da produção do hormônio sexual. Eles contribuem em diversas capacidades cognitivas, tais como o aprendizado e a construção da memória; controlam quais estratégias de comportamento ou de resolução de problemas vamos adotar; e também regulam nossa vida emocional. Vários estudos indicam que as células nervosas de algumas regiões cerebrais precisam dos estrogênios para entrar e permanecer em funcionamento. De resto, isso vale também para os homens, em cujo cérebro o mais importante hormônio sexual masculino - a testosterona - é transformado em estrogênio. As primeiras indicações de que o estrogênio auxilia o trabalho cerebral provêm do início da década de 70, quando pesquisadores descobriram em células nervosas do cérebro de ratos moléculas de proteína que só se ligam ao hormônio sexual feminino. Por intermédio desses receptores o mensageiro químico transmite informações para as células nervosas. Receptores de estrogênio, porém, possuem não apenas neurónios transmissores de sinais, mas também outras células cerebrais, como as micróglias, importantes para a defesa imunológica, e as macroglias, que atuam como células de apoio e nutrição. É provável que o estrogênio cumpra tarefas distintas nos diferentes tipos de células, mas essas funções ainda não foram explicadas. Experiências com animais comprovam que o hormônio

reprime a reação natural de defesa das micróglias contra estímulos inflamatórios. Isso pode ser muito útil, por exemplo, nos casos de esclerose múltipla ou da doença de Alzheimer, já que nessas duas enfermidades proteínas anómalas se depositam nos neurónios provocando um estado inflamatório que danifica e, em última instância, destrói as células nervosas. Nas macroglias, o hormônio sexual cumpre função claramente trófica. Isso significa que ele estimula o metabolismo dessas células. Sob influência do estrogênio, as macroglias multiplicam a produção dos hormônios do crescimento, que, por sua vez, põem à disposição dos neurónios todas as substâncias de que necessitam para um funcionamento otimizado. Não apenas experiências com animais, mas também a observação de seres humanos indica que os estrogênios oferecem proteção contra algumas doenças neurodegenerativas, ou ao menos retardam seu avanço. Muito provavelmente, eles exercem esse efeito protetor não nos neurónios em si, mas sobretudo por intermédio dos receptores nas células gliais. Segundo descoberta recente, o estrogênio é capaz também de amenizar as consequências de um derrame cerebral. Sob o comando de Phyllis White, pesquisadores da Universidade da Califórnia removeram os ovários de camundongos, limitando a produção natural de estrogênio. A seguir, dividiram os roedores em dois grupos, um dos quais recebeu estrogênios em baixa dosagem. Uma semana depois, bloquearam breve-

A s i n e r g i a e n t r e cérebro e ovários Os hormônios sexuais femininos são produzidos nos ovários, mas sua síntese está sujeita ao controle de um circuito regulatório no qual duas regiões cerebrais desempenham papel decisivo: o hipotálamo e a hipófise (glândula situada na parte inferior do cérebro). Na primeira fase do ciclo menstrual, chamada folicular, o nível de estrogênio no sangue é baixo. No hipotálamo, isso estimula a síntese dos hormônios liberadores de gonadotropina. Um desses mensageiros químicos, o FSH-RF (sigla em inglês de fator liberador do hormônio folículo-estimulante), induz na hipófise a liberação do hormônio folículo-estimulante (FSH), que, então, via corrente sanguínea, chega aos ovários. Ali, o FSH intensifica a síntese de estrogênios, ao mesmo tempo que fomenta o amadurecimento de um óvulo.

Ampliação Hipotálamo Hormônio liberador d e gonadotropina Hipófise

Quando o nível de estrogênio atinge determinado patamar, o hipotálamo a um só tempo interrompe a produção do FSH-RF e intensifica a de LH-RF (sigla em inglês de fator liberador do hormônio luteinizante, ou lutropina). Esse segundo hormônio liberador de gonadotropina provoca a ovulação e, com o auxílio da progesterona produzida nos ovários, prepara a membrana mucosa do útero para a implantação de um embrião. Caso não ocorra a fecundação, a concentração de estrogênio no sangue diminui drasticamente e, em consequência disso, a membrana mucosa do útero é expelida. Um novo ciclo, então, tem início.

mente o fluxo de sangue em determinada artéria do cérebro, desencadeando um derrame. Então, passados poucos dias, compararam os vestígios do experimento deixados no cérebro. Nos camundongos submetidos à "terapia de reposição hormonal", os danos foram visivelmente menores. Segundo Phyllis, o estrogênio torna mais lento o avanço das lesões nas células induzidas pelo derrame. "Mais neurónios sobrevivem, sobretudo no córtex cerebral." Em especial durante a fase final de um derrame, muitas células cerebrais sucumbem à chamada morte celular programada, mediante a qual o corpo se livra até de células pouco danificadas. O estrogênio parece limitar esse processo, também conhecido como apoptose. E mais: exerce um efeito positivo sobre o crescimento de novos neurónios. O hormônio sexual transformou-se em tema discutidíssimo nas neurociências não só graças a essa atuação neuroprotetora. Interesse científico semelhante desperta a observação de que o estro8

I mentecérebro I Psicologia do feminino

Resposta negativa Estrogênio e progesterona

\\

FSH (hormônio folículoestimulante) LH (hormônio luteinizante)

Ovário

Estrogênio e progesterona

gênio influencia diversas esferas cognitivas, como aprendizado, memória e comportamento. Afinal, independentemente de estereótipos e clichés, não há como ignorar a "pequena diferença" entre os sexos no tocante à prevalência de certos talentos específicos em homens e mulheres. Hormônios sexuais dão aí sua contribuição, e disso existe comprovação bastante convincente: nas mulheres, determinadas capacidades cognitivas se alteram de acordo com o nível do hormônio. Não faz muito tempo, Onor Gunturkun, biopsicólogo do Instituto de Neurobiologia Cognitiva da Universidade do Ruhr, Alemanha, começou a investigar como voluntárias se saíam nos chamados testes de rotação mental em momentos diversos de seu ciclo menstrual. Atarefa a cumprir nesse teste é girar na mente uma figura geométrica. Ele avalia, portanto, nossa capacidade de visualização espacial. E, vejam só: durante a menstruação, quando os hormônios sexuais se encontram nos níveis mais baixos, as mulheres

se saíram tão bem quanto os voluntários do grupo de controle. Ao final do ciclo, porém, quando os níveis de estrogênio sobem, o desempenho delas caiu sensivelmente. Mas melhorou em outro teste realizado paralelamente, no qual o objetivo era encontrar palavras apropriadas. Os resultados comprovam que as habilidades espaciovisuais das mulheres não são, em essência, inferiores às dos homens: o que ocorre com elas é, antes, uma oscilação mais forte do nível de estrogênio no cérebro, deslocando a ênfase de um talento para outro. Também os ratos exibem certos comportamentos específicos de cada sexo. Como nos humanos, o nível de estrogênio parece desempenhar aí algum papel. Nos ratos, salta aos olhos sobretudo que machos e fêmeas não demonstrem o mesmo grau de interesse por um novo ambiente. Postos em território desconhecido, e em companhia de três objetos diferentes - uma garrafa, um tubo e uma bola, por exemplo - , as fêmeas põem-se no primeiro dia a examinar seu entorno de forma muito mais intensa que os machos. Com o tempo, seu ímpeto investigativo decresce, mas torna a despertar de imediato se há um rearranjo dos objetos na gaiola. Isso, porém, acontece apenas com as fêmeas prontas para conceber, com baixos níveis de estrogênio. Somente elas inspecionam o ambiente modificado com curiosidade contínua. Os companheiros revelam de fato algum breve interesse, mas seu ímpeto investigativo torna a ceder com rapidez. Contudo, se as fêmeas não estão em fase de concepção, apresentando níveis altos de estrogênio, o novo arranjo do ambiente lhes é totalmente indiferente. Essa espécie de "balizamento hormonal do comportamento" faz todo o sentido. Provavelmente, fêmeas prontas para conceber tendem, na época da ovulação, a proceder a uma extensa investigação de seu entorno porque assim aumentam suas chances de encontrar um macho disposto ao acasalamento. Mesmo depois do parto, os níveis de estrogênio permanecem baixos, mas o ímpeto investigativo da mãe prossegue, o que lhe facilita proteger o rebento de eventuais perigos e prover-lhe comida suficiente. Estudos como esse não deixam dúvida quanto à conexão entre os níveis de estrogênio e de desempenho de determinadas funções cognitivas, uma relação capaz de explicar certas diferenças entre os sexos. Pesquisas realizadas com o auxílio

da ressonância magnética funcional mostram ainda que, já de antemão, homens e mulheres não utilizam as mesmas regiões cerebrais no cumprimento de algumas tarefas. Conforme se verificou em experiências com voluntários de ambos os sexos, quando se trata, por exemplo, de encontrara saída de um labirinto virtual, ativam-se nas mulheres regiões nos lobos parietal e frontal direitos do córtex, ao passo que, nos homens, são neurónios do hipocampo que se agitam. Apesar disso, tanto homens como mulheres muitas vezes encontram a solução com a mesma rapidez. Seus cérebros, portanto, têm igual desempenho, embora adotem caminhos diversos. A fim de descobrir como os estrogênios influem nessa complexa interação, pesquisadores passaram a investigar que regiões cerebrais possuem, afinal, células nervosas com acoplamentos compatíveis. A concentração de receptores de estrogênio é particularmente alta no hipotálamo e na chamada área pré-óptica. Era de esperar, uma vez que o hipotálamo integra o circuito regulador da síntese de estrogênio e, por meio de mensageiros químicos próprios, estimula a

D u r a n t e as fases d o ciclo menstrual algumas habilidades físicas e mentais sofrem alterações

RATINHAS CURIOSAS: em território desconhecido, no primeiro momento as fêmeas tendem a explorar o ambiente de forma mais intensa que os machos

9

produção de hormônios sexuais. Quanto à área pré-óptica, ela parece participar no balizamento do comportamento reprodutor, ao menos nos animais. A hipótese é admissível, já que se trata de um hormônio sexual. Mas ocorre que também no hipocampo, e no córtex pré-frontal se encontram receptores de estrogênio em abundância. E essas são regiões vinculadas a funções intelectuais mais elevadas, tais como o aprendizado, a memória e o pensamento abstrato. Experiências com camundongos e com ratos que tiveram os ovários removidos visando a diminuição do nível natural de estrogênio demonstraram que, após a remoção, os animais passaram a se sair muito pior em diversas tarefas de aprendizado e em testes de memória. Doses do hormônio, porém, anularam esse efeito negativo. Portanto, deve haver alguma ligação entre o estrogênio e a atividade no hipocampo, um centro de aprendizado. Com o intuito de esclarecer essa conexão, a neurobióloga Catherine Woolley, da Universidade Rockefeller, em Nova York, passou a pesquisar as sinapses das células nervosas. É nesses pontos de contato que acontece a transmissão da informação entre os neurónios, e eles se situam nos chamados espinhos dendríticos - pequenos apêndices dos dendritos. Quanto mais ligações sinápticas existirem numa rede neuronal, melhora transmissão. E, na linguagem do cérebro, aprender alguma coisa nada mais é que estabelecer novas sinapses e intensificar as conexões já existentes. No hipocampo, os neurónios cultivam um gosto particular pelo contato: uma única célula nervosa pode estarem contato sináptico com até 20 mil outras. Quando estamos em processo de aprendizado, esse número comprovadamente aumenta. Como descobriu há alguns anos o

isca d e ) Teste de deslocamento

grupo comandado por Catherine, com o auxílio de seções do cérebro com coloração especial, o estrogênio estimula a formação de novos espinhos dendríticos em determinados neurónios do hipocampo. Em 2001, Catherine e seu colega Bruce McEwen demonstraram que os espinhos adicionais não apenas fortalecem as conexões já existentes como também estabelecem novos contatos com outras células nervosas. Estudos equivalentes foram efetuados com fêmeas adultas de rato. O resultado ressalta acima de tudo como o cérebro permanece maleável mesmo na idade adulta. É à enorme plasticidade desse órgão que devemos o fato de uma antiga crença felizmente não corresponder à realidade: a de não ser possível aprender na velhice. É possível sim. Os resultados da pesquisa também despertaram a esperança de, com o estrogênio, podermos desenvolver um novo medicamento contra a doença de Alzheimer, por exemplo, que causa a morte dos espinhos dendríticos no hipocampo. Em consequência disso, vai desaparecendo o poder da memória, que já não aceita novos dados. E outras capacidades cognitivas sofrem perdas crescentes, como a de orientação e visualização espacial. Considerando-se que o estrogênio dá suporte à formação de novas conexões sinápticas, esse hormônio talvez detenha a demência, ou desacelere seu avanço. Mas as ambições de alguns cientistas vão mais longe, alimentadas pela observação de que, em todos nós, o número de espinhos dendríticos no hipocampo diminui com o tempo, assim como nosso desempenho intelectual decresce com a idade. Daí a ideia de empregar o estrogênio como o chamado cognítive enhancer - ou seja, como remédio para a melhora direcionada da memória e da capacidade de aprendizado.

Lent<

O Teste de resposta

Embora ambos os testes se assemelhem, eles solicitam áreas diferentes da memória. Ratos com nível normal de estrogênio levam a melhor no teste A. Mas aqueles com deficiência de estrogênio compreendem a tarefa B com mais rapidez.

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I mentecérebro I Psicologia do feminino

Bruce McEwen, neuroendocrinologistada Universidade Rockefeller, pesquisa os mecanismos por meio dos quais o hormônio sexual feminino estimula, no plano molecular, o crescimento dos espinhos dendríticos nos neurónios do hipocampo. Para ele, está claro que esse mensageiro químico fortalece as funções de aprendizado e memória normais. "Mesmo sem a presença do estrogênio, há ainda um sem-número de ligações sinápticas no hipocampo. Nossos trabalhos mostram, porém, que, sem o hormônio, essas redes não operam com seu melhor rendimento no armazenamento e na evocação de determinados conteúdos de memória." O pesquisador defende uma espécie de terapia de reposição hormonal para o cérebro, da qual se beneficiariam sobretudo mulheres de mais idade. A razão para tanto é que, com a menopausa, os ovários praticamente param de sintetizar estrogênio. Sintomas como as ondas de calor e também os problemas psíquicos de que tantas mulheres sofrem durante essa fase parecem ter vínculo causal com a relativa escassez do hormônio-isso porque, em geral, as queixas diminuem com a aplicação de estrogênio. Nesse meio-tempo, também o desempenho cognitivo de mulheres na menopausa já foi objeto de diversos testes. Os resultados são contraditórios. Em muitos estudos, o estrogênio melhora a capacidade de aprendizado, mas somente em relação a tarefas que demandem a utilização da memória verbal. É para essa atuação seletiva que nos chama a atenção a psicóloga Donna Korol, da Universidade de Illinois. Ela se dispôs a investigar se, em ratos jovens que tiveram os ovários removidos, doses de estrogênio exerciam influência sobre determinadas estratégias de resolução de problemas. Com esse objetivo, aplicou dois testes aparentemente semelhantes, cujas soluções, porém, demandam do cérebro a ativação de redes neuronais distintas. Em essência, os ratos tinham de aprender a encontrar comida num labirinto. No teste A, a comida fica sempre no mesmo lugar, mas altera-se o ponto a partir do qual os ratos dão início à busca. Os animais que receberam estrogênio apreenderam o princípio do teste com muito mais rapidez do que os companheiros privados do hormônio. Mas esses últimos foram muito superiores no teste B, em que o ponto de partida também é alterado, mas o rato sempre encontra sua comida,

bastando para tanto que ele vire à direita no primeiro corredor. De acordo com Donna, o fato de os animais com deficiência de estrogênio terem aprendido a cumprir a tarefa com mais rapidez contradiz a noção de que o hormônio prestaria ajuda generalizada ao órgão do pensamento. "Se o estrogênio melhora nossa capacidade geral de aprendizado, então os resultados dos dois testes teriam de ser iguais." Na opinião da psicóloga, o nível do hormônio sexual determina, antes, a estratégia cognitiva com o auxílio da qual o cérebro se lança à solução de um problema. "O estrogênio de fato favorece algumas formas de aprendizado, mas inibe outras." E, mais importante: "Sem esse mensageiro químico, o cérebro trabalha de modo diferente, mas continua trabalhando bem".

A substância endógena favorece a realização de atividades que requerem a utilização d a memória verbal

Os estudos de Donna Korol lançam nova luz sobre o declínio da capacidade cognitiva que muitas mulheres sentem após a chegada da menopausa. Em seu livro Animal research and human health, Donna defende a tese de que o nível decrescente de estrogênio pura e simplesmente altera o modo como o cérebro trabalha - direcionando-o para pontos que são fortes sobretudo nos homens, como a capacidade de orientação espacial. "Depois da menopausa, as mulheres poderiam melhorar seu desempenho em muitas tarefas se encarassem a coisa toda de maneira diferente", explica. "Mas percebem as alterações provocadas pelo declínio hormonal como piora." Descobrir e fazer uso de novas forças decerto não é fácil, e Donna Korol ainda não ofereceu comprovação definitiva de sua teoria. Ainda assim, seus resultados parciais ensejam algumas dúvidas quanto à ideia de que, depois da menopausa, o cérebro feminino se beneficiaria como um todo de uma espécie de terapia de reposição de estrogênio. Certo, porém, é que o estrogênio pode fazer muito mais que dar às mulheres aparência diferente da masculina. Por meio de receptores em regiões cerebrais como o hipocampo, o mais importante hormônio sexual feminino contribui para muitas "pequenas diferenças" no modo de pensar e nos talentos específicos de homens e mulheres. Mas enquanto os efeitos do estrogênio sobre o cérebro não forem conhecidos com exatidão, é necessário conter a euforia. Ou não servem de advertência as acaloradas discussões da atualidade a respeito da ampliação do risco de câncer em decorrência de terapias de reposição hormonal? ««c

iiiiiiimiiimmiiiiimiiiiimiimiiiii PARA SABER MAIS

Tornar-se mulher obstáculos à feminilidade. Lusimar de Melo Pontes. Zagodoni, 2012. O tempo, a escuta, o feminino. Silvia Alonso. Casa do Psicólogo, 2011. Estrogen-induced changes in place and response learning in young adult female rats D. L Korol e L L Kolo, em Behavioral Neuroscience, 116, págs. 411-420, 2002. Electrophysiological and cellular effects of estrogen on neuronal function. C. S. Woolley et a l . , em Criticai Reviews Neurobiology, 13(1), págs. 1-20, 1999.

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Q u a n d o elas estão n o comando E M B O R A ELAS A I N D A E S T E J A M EM M I N O R I A , A C O N Q U I S T A F E M I N I N A DE POSTOS DE L I D E R A N Ç A É U M A R E A L I D A D E JÁ C O N S O L I D A D A . M A S C O M O S E C O M P O R T A M A Q U E L A S Q U E C H E G A M A O T O P O ? H Á I N D Í C I O S DE Q U E T E N D E M A P R I V I L E G I A R A C O L A B O R A Ç Ã O , E N Q U A N T O OS H O M E N S COSTUMAM FAVORECER A H I E R A R Q U I A

por Paola Emília C i c e r o n e

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unca tantas ocuparam tantos cargos de chefia seja no setor público, em empresas privadas, no Judiciário ou no Executivo. A presença feminina em postos-chave tem se tornado cada vez mais comum - uma realidade impensável há pouco mais de duas décadas, e parece irreversível. Na população em geral, essa situação já tem aparecido nos resultados das pesquisas: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, atualmente, em 35% dos lares as mulheres são chefes de família (veja quadro Dupla Jornada na pág. 16). E pela primeira vez no Brasil uma representante do sexo feminino chega à presidência da República.

A AUTORA PAOLA EMÍLIA CICERONE é jornalista. 12

I mentecérebro I Psicologia do feminino

A conquista de visibilidade e de espaço e o aumento de responsabilidades fora de casa, porém, ainda são relativamente recentes. Não raro, ainda associamos ao poder um rosto masculino. Até há poucos anos era difícil encontrar uma mulher que pudesse representar um modelo de liderança - e acabava-se recorrendo a exemplos atípicos como Golda Meir ou Margaret Thatcher. Porém, agora que a situação está mudando, pesquisadores começam a se voltar para esta questão buscando compreender como as mulheres se comportam quando chegam ao poder. Será que tendem, inevitavelmente, a assumir um estilo masculino de comando? Mulheres em posição de liderança, porém, encontram dificuldade de ser consideradas competentes e ao mesmo

tempo admiradas. É o que revelam pesquisas - reunidas sob o título Double bind-realizadas pela empresa americana Catalyst, com a contribuição da IBM. Foram entrevistadas mais de 1.200 executivas na Europa e nos Estados Unidos. Em outras palavras, se elas assumem comportamentos femininos são consideradas menos competentes; se, ao contrário, adotam um estilo de liderança masculina são criticadas pela dureza. Historicamente, as primeiras executivas costumavam apoiar-se na cultura masculina dominante, eliminando a própria identidade. Hoje isso não é mais necessário. Mas parece que ainda é preciso aprender a não dar importância aos julgamentos, aos comentários sobre a aparência e à falta de popularidade.

ELES FORTES, ELAS CHATAS Muitos estudos analisam a diferença entre valores de homens e mulheres, buscando identificar se, de fato, elas dedicam mais atenção a temas como paz, meio ambiente e educação. A psicóloga italiana Donata Francescato desenvolveu um estudo sobre o assunto, publicado no periódico Psicologia dicomunità. Para isso, realizou entrevistas com 109 dos 154 parlamentares de seu país e aplicou questionários para identificar características de personalidade e valores. "Queríamos verificar se as mulheres bem-sucedidas na política têm traços predominantemente masculinos, como energia, assertividade, iniciativa, dinamismo e estabilidade emocional", diz

Donata. Segundo ela, as parlamentares apresentam uma "boa mistura" de traços masculinos e femininos. "Particularmente as que obtêm mais sucesso em sua carreira tiveram pontuação mais alta em relação à média das mulheres não só quando se trata de valores "masculinos", mas também nos aspectos considerados femininos, como sensibilidade, empatia e tendência a cooperar", observa a pesquisadora. Ela sugere que as líderes têm um "algo a mais" - e não apenas as que atuam na política. Um estudo sobre a bolsa de valores francesa publicado no jornal Financial Times revelou que a manutenção dos preços das ações está ligada à presença feminina na direção das empresas. "Uma pesquisa americana também indica que a percepção e a sensibilidade femininas possivelmente reduziriam o risco de desastres em Wall Street. Outras análises mostram ainda que as empresas administradas por mulheres foram menos prejudicadas pela crise mundial", salienta Donata. As executivas, no entanto, tendem a ser extremamente exigentes e até cruéis consigo mesmas - e muitas vezes têm atitude similar com seus subordinados. E, não raro, encontram em outra mulher com a qual trabalham o espectro daquilo que temem. Apesar dos avanços e das transformações sociais, é possível que muita gente ainda acredite que, para não ter problemas no âmbito profissional, as mulheres devessem aceitar o modelo que ainda impera no imaginário masculino: aquela que deseja

ser conquistada, a secretária que faz tudo sem nunca pedir nada em troca, a mãe que acolhe e apoia. Mas hoje muitas se sentem livres para exigir, competir, ser protagonistas, e isso deixa muitos - e muitas - colegas desconfortáveis. Disso resulta uma equação simplista: mais poder para "elas", menos para eles. Mesmo em cargos de chefia, muitas mulheres enfrentam a resistência velada quando, por exemplo, decisões são tomadas em sua ausência - como se houvesse um nível sutil de acesso a elas não permitido. A reação explícita a essas situações, entretanto, pode custar caro. Em geral, existe uma crença tácita: só quem tem taxa elevada de testosterona está autorizado a revelar a própria arrogância e a intervir de forma agressiva. O homem que grita e dá um murro na mesa pode ser considerado grosseiro, mas também é visto como forte. Se uma mulher agir de forma semelhante, fala-se de descontrole, loucura e, não raro, surgem comentários maldosos sobre sua vida pessoal. Quando uma mulher tem prestígio e é determinada, geralmente já é definida como intransigente mesmo por aqueles que não convivem com ela. Possivelmente prevalece um estereótipo difícil de superar: a competência feminina ameaça mais que a masculina - e isso vale tanto para homens quanto para outras mulheres. Neles, porém, a arrogância costuma ser perdoada, mas nelas não: ele é forte; ela é chata. tlflllll!!ltlItlllllllilltlIllllfilItttl!lflllllfIfliIlllilÍflliiltllIIltftIIIIllll3tlfiilltllllÍIIilltttil!t!Iilllitlll«llfIIIl!IllÍfIillMiliiÍlttll

Dupla jornada No Brasil, cada vez mais mulheres estão encarregadas do sustento da família e das decisões tomadas no ambiente doméstico. Um perfil traçado pelo Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea), por meio do cruzamento de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2009 divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que entre 2001 e 2009 a proporção de famílias chefiadas por mulheres no Brasil subiu de aproximadamente 2 7 % para 35%. Só em 2009, 21,9 milhões famílias se identificaram nessa condição. Esse quadro, porém, não alterou os valores tradicionais: o trabalho doméstico não foi transferido para os homens, e a maioria das mulheres ainda cumpre jornada dupla. O resultado dessa configuração é a sobrecarga da mulher em todos os perfis estudados. Dados do Ipea indicam que o tradicional arranjo "casal com filhos tendo o homem como cabeça" passa a ser substituído por situações em que a mulher é a pessoa de referência na casa.

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Pesquisada Universidade de Michigan indicou que os estrógenos podem ter papel semelhante no organismo, independentemente do género. Um teste revela o aumento da produção de hormônios nas mulheres que têm comportamento dominante nas situações de conflito. Outros estudos, entretanto, mostram que elas são menos avessas à dominação social e mais inclinadas a tomar atitudes que favoreçam o igualitarismo, enquanto eles tendem a favorecer as hierarquias. Além disso, estão mais propensos a valorizar o próprio trabalho, aceitando compensações e reconhecimentos, ainda que não merecidos.

QUESTÃO DE AUTOESTIMA Já as mulheres muitas vezes sentem que devem render ainda mais, como se as rondasse a culpa de ter feito "um pouco menos" - mesmo que na prática isso não se confirme. E as críticas mais mordazes, não raro, vêm de outras mulheres - o que é compreensível, pois pretendem que as outras também sejam perfeitas. Em geral, o processo se repete em casa, na relação entre mães e filhas. Resultado: espera-se de uma mulher na chefia mais compreensão, e de uma subordinada,mais esforço. Talvez não seja por acaso que as mulheres se afirmem principalmente em alguns setores. Quando não estão ocupando posições importantes por motivos familiares, geralmente são executivas em setores como jurídico, comunicação, finanças. É difícil encontrá-las nos cargos mais altos, principalmente das redes de comércio e vendas. Parece que, na prática, é mais fácil para elas dirigir pequenas equipes. Por outro lado, é pouco provável que se tornem figuras carismáticas que arrebatam as massas. Estudos desenvolvidos na Universidade de Michigan revelam que, em situações de grupos, inevitavelmente há o reconhecimento da autoridade feminina - ainda que isso não seja necessariamente de bom grado para a maioria - desde que a competência profissional se evidencie. Com os homens essa aceitação em geral se dá de forma mais fácil: eles parecem ter menos a provar em relação ao direito de ocupar determinado lugar. Às vezes, o difícil é separar o pessoal do profissional, entrar em confronto com os colegas sem que isso interfira na amizade-e nisso parece mais fácil para os homens seguir o ditado "Amigos, amigos, negócios à parte". Um "truque" que

alguns consultores costumam ensinar a executivos é observar aquilo que estão vivendo como se fosse uma cena de um filme, e depois pensar nos conselhos a serem dados ao "ator" ou à "atriz" que interpreta o papel. Isso ajuda, por exemplo, a fugir de uma armadilha comum: o risco de exagerar na empatia quando estão em jogo decisões que influenciam a vida das pessoas. É frequente, por exemplo, que as mulheres se sintam responsáveis pelos outros e em condições de enxergar mais adiante, ocupando-se de problemas que as afastam da decisão momentânea. A pesquisa feita por Donata revela que as parlamentares progressistas são as que têm menos disposição para a liderança, bem como para perceber as dificuldades advindas de serem deixadas de lado ou da escassa exposição na mídia. Os homens conseguem obter visibilidade com muito menos esforço. Para elas, com frequência a política é fonte de ansiedade, traz um sentimento de precariedade, de incerteza. Durante muito tempo, as parlamentares de esquerda acharam difícil se imaginar como líderes, vivendo a competição pelo poder como uma oportunidade de trazer à tona capacidades ocultas. E, não raro, elas preferem ficar na sombra - uma posição, aliás, bastante comum também nas empresas. E a maioria delas tem como referência um homem de poder, como se, apesar do sucesso que alcançaram, devessem se dedicar de alguma forma a uma figura masculina.

UM PREÇO A PAGAR De vez em quando, porém, são justamente elas que têm uma visão negativa do poder, encarado como um obstáculo que se acrescenta àqueles que a sociedade já lhes traz. Se pensarmos no contexto histórico, no qual a mulherficou durante tanto tempo escondida em casa, faz sentido que restem em muitas os resquícios do medo de "sujar as mãos" com decisões que lhes trarão algum ónus, e não se dão conta de que, inevitavelmente, o poder tem um lado obscuro, mas também há outro positivo. A diferença está em desejar esse poder para si ou para a organização. Não é por acaso que muitas profissionais crescem na carreira em contextos nos quais o compromisso com questões sociais é claro. Muitos defendem que elas são mais sensíveis à justiça e têm um sentido mais amplo do que é coletivo, mas faltam pesquisas que comprovem essa opinião. No caso delas, a maior satisfação vem principalmente de saber

que executam bem suas funções e que seu trabalho é reconhecido pelos chefes e colaboradores. Exceções à parte - e elas sem dúvida existem - , os homens gostam de exibir o poder, enquanto as mulheres escolhem o estilo "baixo perfil". Em uma pesquisa na Universidade de Roma, foram ouvidos homens e mulheres acerca de uma mesma situação fictícia: todas as manhãs se formava, em frente a determinado escritório, uma fila de pessoas em busca de atendimento. Eles viam o fato como um símbolo de status e importância do serviço, associavam palavras que expressavam sentimentos de gratificação, orgulho e admiração. Já as voluntárias encaravam a situação como um transtorno, um problema a ser resolvido, e vinculavam à cena ideias de preocupação e angústia. Em alguns casos, porém, o poder pode trazer medo. Afinal, em última instância nosso ideal é que todos nos amem, mas para quem é "o chefe" isso dificilmente é possível. É raro que alguém se torne uma unanimidade quando se concentra em suas mãos a possibilidade de tomar decisões, e, muitas vezes, as escolhas são interpretadas como incorretas. Impopularidade e solidão quase sempre são companhia certa daqueles que assumem postos de comando. E isso parece pesar mais para as mulheres; nesses casos, uma amiga (ou amigo), o marido ou até o terapeuta podem funcionar como interlocutor, ajudando a equalizar sentimento e razão. Para os homens, entretanto, ficar só e "retirar-se para a caverna" costuma ser suficiente para administrar o estresse. ™ t

EM O DIABO VESTE PRADA, Meryl Streep vive Miranda Priestly, uma executiva insensível e caprichosa

tfllttlllllllifllfllltlliltllitllililltllllll PARA SABER MAIS

Percepções femininas. M. Rauscher Gallbach. Especial Mente e Cérebro n° 18, págs. 11-15. Guardiãs da inteligência. H. Hameister. Especial Mentee Cérebro n° 18, págs. 22-25.

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Mexendo c o m a cabeça d o s homens BASTA D I Z E R A E L E S Q U E ESTÃO S E N D O O B S E R V A D O S POR U M A PARA Q U E SEU D E S E M P E N H O C O G N I T I V O SEJA

DESCONHECIDA

PREJUDICADO

por Daisy G r e w a l

R

omances, filmes e roteiros para televisão estão reple- 8

tos de cenas em que um rapaz procura inutilmente interagir com uma jovem bonita. Em muitos casos, o conquistador em potencial acaba fazendo algo tolo em suas incansáveis tentativas de impressionar a moça. É como se o cérebro do homem, de repente, não estivesse funcionando direito. E segundo uma pesquisa recente é exatamente o que acontece. *

A AUTORA DAISY GREWAL é psicóloga e pesquisadora da Escola de Medicina da Universidade Stanford. 16

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Há algum tempo, pesquisadores começaram a investigar como a interação com representantes do sexo oposto afetava aspectos cognitivos dos homens. Um estudo de 2009 demonstrou que após breve contato com uma mulher atraente os homens experimentam um declínio momentâneo do desempenho mental. Um novo estudo nessa área vai mais longe: sugere que não é preciso nem se aproximar concretamente de uma figura feminina interessante para que esses efeitos apareçam. Segundo a pesquisa, basta que o homem antecipe mentalmente a interação com uma mulher sobre a qual não sabe muita coisa para que seja constatada a deterioração cognitiva.

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Seduções íntimas Embora hoje as rendas e os lacinhos já não estejam tão escondidos, até há poucos anos sutiãs, calcinhas, combinações, anáguas e corpetes, sempre em cores discretas, eram encontrados apenas em lojas de armarinhos ou nas prateleiras dispostas disfarçadamente nas grandes lojas. Atualmente a roupa íntima é um fenómeno de moda presente em campanhas publicitárias famosas; tornou-se um aspecto da cultura. Quem não se lembra, por exemplo, do comercial dos anos 80 cujo tema era o "primeiro sutiã", ou do advento do modelo wonderbra, que inaugurou as curvas falsas? "Essas peças estão em uma posição 'intermediária' entre a pele e o tecido das roupas comuns; é essa carga simbólica que faz com que um corselete cause um impacto visual muito diferente daquele provocado por um maio inteiro, que também cobre - ou deixa de cobrir - exatamente a mesma extensão do corpo de uma mulher", afirma o semiólogo Ugo Volli, pesquisador da Universidade de Turim. Até o século 18, porém, eram os homens que usavam meias e ligas para deixar as pernas e até os genitais à mostra (veja quadro abaixo). As calcinhas também são uma invenção moderna. "No passado, acreditava-se que a mulher deveria ser 'aberta embaixo', uma ideia que ainda permanece disfarçadamente presente no imaginário erótico e é expressa por meio de imagens como a de Sharon Stone no filme Instinto selvagem, de 1992", ressalta Volli. Segundo o estudioso de sistemas de signos e símbolos, essa crença, que estimula a fantasia de descobrir algo "secreto", pode explicar por que os homens preferem, por exemplo, as meias femininas que vão até a altura das coxas em vez dos modelos inteiriços. "O fascínio da roupa íntima está na brincadeira do vejo/não vejo que atrai a atenção para as zonas erógenas, o que faz com que estar vestido seja, em geral, mais erótico que ver o corpo completamente nu", afirma o psicólogo e terapeuta de casais Giuseppe Rescaldina. O pesquisador dinamarquês Per Ostergaard lembra que, em certas situações, usar determinada roupa é uma espécie de ritual, um momento de passagem: há peças que, na intimidade, despertam o imaginário erótico e permitem ao casal encarnar o que ele chama de "personagens de si mesmos". Em geral a renda branca, por exemplo, evoca a ideia de pureza; já a cor preta costuma ser associada à ideia de mis-

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tério e sofisticação. Para grande parte das pessoas o vermelho vivo lembra tanto sensualidade quanto transgressão, enquanto estampas que imitam pele de animais podem remeter ao erotismo e à sensualidade. Embora não haja consenso, fatores culturais também entram em jogo, e persiste um imaginário erótico constantemente incrementado pela mídia. O fato é que a roupa íntima "fala de nós" e nos permite viver diferentes papéis. Talvez por isso a renda transparente, o corselete e as meias 7/8 continuem sendo tão atraentes por tantas décadas. Embora a tecnologia proponha cortes e tecidos confortáveis outrora inimagináveis, as imagens que realmente seduzem são as da roupa íntima que parece ser usada justamente para ser tirada. Já para os homens, a visão é um dos sentidos fundamentais para alimentar a excitação, enquanto mulheres costumam se voltar para o conjunto. Não é à toa que a maioria delas consegue manter vários focos de atenção simultaneamente "Trata-se de uma herança da época na qual o macho deveria escolher uma parceira com a qual propagar os próprios genes, por isso se voltava para detalhes, enquanto a fêmea precisava de um companheiro para criar a prole, e fazer essa avaliação exigia observar o conjunto com um olhar mais abrangente", observa o sexólogo Fabrizio Quattrini, presidente do Instituto Italiano de Sexologia Científica, em Roma. É por isso que peças transparentes em cores que se destacam do tom da pele, cobrindo (e ao mesmo tempo evidenciando) as zonas erógenas excitam tanto os homens. Ou pelo menos grande parte deles. A cor da pele, em geral, é menos apreciada porque lembra demais a própria carne - e a suavidade, remetendo à realidade concreta, causando uma dicotomia entre carinho e paixão. "Simplificando, podemos afirmar que homens apreciam elementos que 'forçam' e ressaltam a imagem, que em nossa imaginação poderiam ser usados por um travesti ou uma prostituta. O vermelho forte, o sutiã que realça os seios ou a bota de salto fino superalto têm algo de tentador e ao mesmo tempo de proibido", comenta a sexóloga Chiara Simonelli. "É uma espécie de fantasia que, para algumas pessoas, ajuda a acordar os sentidos, dá asas à imaginação e permite experimentações que, se estivessem vestidas de forma 'comum', dificilmente fariam", diz. Nesse contexto,

GRACHIKOVA LARISA/ SHUTTERSTOCK

Para compreender por que isso ocorre, a pesquisadora Sanne Nauts e seus colegas da Universidade Radboud de Nijmegen, na Holanda, realizaram dois experimentos com a participação de estudantes universitários de ambos os sexos. No primeiro, avaliaram seu desempenho cognitivo aplicando um teste de Stroop. Desenvolvido em 1935 pelo psicólogo Ridley Stroop, o instrumento é usado para avaliar a capacidade de elaborar informações que competem entre si. O teste consiste em mostrar uma série de nomes impressos em cores diferentes. Por exemplo, "azul" pode estar impresso em verde, "vermelho" em laranja, e assim por diante. Os participantes devem nomear, o mais rápido possível, as cores nas quais as palavras estão escritas. O teste é cognitivamente exigente porque nosso cérebro tem dificuldade em processar o significado da palavra sem relacioná-la imediata-

mente à cor da tinta na qual foi impressa. Quando as pessoas estão mentalmente cansadas, tendem a completar essa tarefa de modo mais lento. No estudo de Sanne Nauts, após terem completado o teste de Stroop os voluntários realizaram outra prova, apresentada como dissociada da anterior. Os pesquisadores pediram aos universitários que lessem em voz alta uma série de palavras em holandês diante de uma webcam. Os cientistas explicaram que durante a "tarefa de leitura labial" um observador - ao qual era atribuído um nome qualquer, masculino ou feminino - estaria acompanhando o desempenho dos participantes através de uma câmera. Os voluntários não interagiam de modo algum com essa pessoa, que não era identificada nem por fotografia. Tudo o que sabiam - sobre ele ou ela - era o nome. Logo depois de concluírem a leitura, os participantes foram submetidos a outro teste de Stroop. O desempenho das mulheres nessa segunda ava-

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Fotos de garotas bonitas p o d e m despertar agressividade Apesar dos avanços sociais e tecnológicos, ainda conservamos instintos primitivos. No caso dos homens, persiste a tentativa de garantir sucesso reprodutivo por meio de disputas físicas. Pelo menos é o que mostra um estudo publicado no periódico científico Personality and Social Psychology Bulletin. Uma das pesquisas citadas no trabalho foi coordenada pelo psicólogo Chang Lei. Ele pediu a 41 mulheres e a 60 homens chineses que analisassem 20 fotografias de pessoas do sexo oposto, divididas em dois grupos, o dos mais atraentes e o dos menos interessantes. Em seguida, o pesquisador pedia aos voluntários que respondessem a 39 questões relacionadas à possibilidade de a China participar de guerras ou de conflitos comerciais com três países estrangeiros. Ao avaliar as respostas, os pesquisadores observaram que a maior parte dos homens apresentou tendências bélicas depois de ver ima-

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gens de moças que julgavam atraentes. O mesmo efeito não foi notado quando as perguntas eram sobre conflitos comerciais. Entre as mulheres as fotografias não exerceram influência em nenhum dos casos. Em outro experimento, 23 voluntários do sexo masculino viram oito imagens com a bandeira da China e oito com pernas femininas antes de participarem de um teste de computador no qual deveriam identificar a palavra "guerra" o mais rápido que conseguissem. Se fossem motivados por patriotismo, era esperado que os participantes do estudo se saíssem melhor após verem a bandeira de seu país. Mas, na verdade, os mais ágeis foram os que observaram fotografias de pernas de mulheres. Uma A W P ' explicação é que talvez S JGE homens acreditem, mesmo inconscientemente, que garotas preferem parceiros fortes, capazes de derrotar possíveis "concorrentes", como acontece em outras espécies. (Da redação) 0 S S I v e

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liação foi muito semelhante ao do primeiro, não importando o sexo do misterioso observador. Mas, entre os homens que julgaram ter sido observados por uma mulher, o desempenho foi pior nesse segundo teste. E essa deterioração cognitiva ocorreu independentemente de eles terem interagido com a suposta observadora. Numa segunda etapa da pesquisa, Sanne Nauts e seus colegas iniciaram novamente o experimento aplicando o teste de Stroop em voluntários que haviam sido levados a pensar que precisariam fazer uma leitura em voz alta, como no primeiro experimento-na verdade, porém, eles nem sequer chegaram a realizar essa atividade; o importante era que acreditassem que teriam de cumpri-la. Metade dos voluntários foi induzida a crer que seria observada por um homem, e a outra parte, por uma mulher. Em seguida, todos foram convidados a realizar outro teste de Stroop. Mais uma vez, o desempenho das mulheres não apresentou diferença, independentemente do género do suposto observador. Já entre os rapazes, aqueles que acharam que seriam acompanhados por uma mulher tiveram desempenho significativamente pior no segundo teste.

PARA IMPRESSIONAR Na sociedade moderna, muitas vezes as pessoas interagem através do telefone ou on-line, sendo a voz ou o nome os únicos modos de saber o sexo da outra pessoa. A pesquisa holandesa sugere que até interações muito limitadas como essas bastam para ameaçar a capacidade cognitiva dos homens quando são confrontados com o sexo oposto. Embora esses estudos não ofereçam uma explicação concreta e definitiva para o fenómeno, os pesquisadores acreditam que o motivo esteja no fato de o homem considerar - pelo menos num primeiro momento - toda mulher uma possível parceira amorosa, ainda que nem sempre tenha clara consciência disso. Como todos os participantes das pesquisas eram jovens e heterossexuais, provavelmente fantasiaram que a misteriosa observadora poderia vir a ser uma parceira em potencial. Os resultados podem estar relacionados às expectativas sociais. É possível que a sociedade induza os homens a impressionar as mulheres com quem interagem. A hipótese é ainda especulativa, mas estudos anteriores demonstraram que quanto mais a pessoa se preocupa em transmitir

ATRAPALHADOS: personagens masculinos constrangidos diante de garotas pelas quais se interessam são comuns em séries e filmes como Os Normais

uma boa impressão, mais seu cérebro se cansa. De fato, as interações sociais exigem quantidade significativa de energia mental, usada para imaginarmos como os outros poderão interpretar nossas palavras e ações. As psicólogas americanas Jennifer Richeson e Nicole Shelton, por exemplo, descobriram que os brancos com preconceitos raciais enfrentam rebaixamento cognitivo (similar ao constatado em homens que acreditavam ser observados por uma mulher desconhecida) logo após interagir com pessoas negras. As pesquisadoras supõem que isso provavelmente ocorra porque os primeiros procuram não revelar seus preconceitos - e têm de se esforçar para tal. Outra pesquisa desenvolvida por Jennifer e seus colegas registrou problemas cognitivos similares em jovens provenientes de famílias pobres, que eram alunos de universidades de elite, logo depois de eles terem sido observados por colegas mais ricos enquanto resolviam exercícios que supostamente mediam o quociente intelectual (Ql). Enfim, parece evidente que, quando nos encontramos em situações nas quais nos sentimos inseguros, intimidados ou estamos particularmente preocupados com a impressão que causaremos, podemos ter dificuldades concretas para raciocinar claramente. No caso dos homens, o simples fato de pensar em interagir com uma mulher seria suficiente para ofuscar-lhes um pouco o cérebro. Se ela for bonita, então, pior ainda. «ec

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiin PARA SABER MAIS

A magia do beijo. Chip Walter. Mente e Cérebro especial n° 25, págs. 26-31. Mi seduci e non lo sai. CueguenlOO esperimenti pratici per capire i nostri comportamenti amorosi. Rizzoli, 2008.

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Eles preferem (mesmo) as loiras? OS C A B E L O S C L A R O S EVOCAM FANTASIAS DE S E N S U A L I D A D E , MAS T A M B É M DESPERTAM PRECONCEITOS Q U E ASSOCIAM A COR DOS FIOS À FALTA DE I N T E L I G Ê N C I A , F U T I L I D A D E E G R A N D E

DISPONIBILIDADE

PARA E N V O L V I M E N T O S S E X U A I S . O Q U E EXPLICA O FATO DE S U P O S I Ç Õ E S POVOAREM O I M A G I N Á R I O A RESPEITO DESSA CARACTERÍSTICA

Por

FEMININA?

Guéguen

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onhece aquela piada da loira que ficou feliz da vida quando terminou de montar um quebra-cabeça em

O AUTOR NICOLAS GUÉGUEN é psicólogo social, professor de ciência do comportamento da Universidade Bretagne-Sud e dirige o grupo de pesquisa em ciências da informação e da cognição em Vannes. 22

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"apenas" seis meses, pois na caixa estava escrito: "de ^ • ^ 2 a 4 anos"? Ou a da loira que não conseguiu fazer gelo porque esqueceu a receita? Anedotas preconceituosas sobre mulheres de cabelos claros não faltam. Por que tantos preconceitos estigmatizam sua suposta ingenuidade e a baixa capacidade intelectual? Esses estereótipos têm razão de existir? Pesquisas recentes demonstram que não. O economista David Johnston, da Universidade de Queensland, na Austrália, por exemplo, apresentou um estudo controverso, no qual concluiu que o salário das loiras tende a ser mais alto que o de outras mulheres com o mesmo nível de instrução. Johnston argumenta que os cabelos claros substituem competência: uma loira com um nível cultural correspondente a dois anos de estudos universitários receberia o mesmo salário que uma morena com três anos do mesmo estudo. Ou seja: outros atributos além a inteligência e da competência seriam característicos das donas de fios platinados. Obviamente, pesquisas como essa estabelecem correiações superficiais. O próprio Johnston observou que - pelo

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menos na Austrália, onde predominam pessoas de cabelos e pele claros, maridos de loiras geralmente ganham mais. Pode-se, então, imaginar que as mulheres loiras vivam em um ambiente que lhes permite estabelecer contatos privilegiados e, consequentemente, conseguir salários mais altos. Mais uma vez o preconceito está implícito: a influência masculina, aqui, seria responsável pelo sucesso delas. Mas o próprio pesquisador reconhece que essa é só uma hipótese que não leva em conta o preconceito mais amplo com pessoas de ascendência negra ou oriental. Se excluirmos os favores dos quais as loiras podem se beneficiar por meio de sua situação conjugal e se nos concentrarmos unicamente no seu "valor" no mercado de trabalho, os resultados vão depender muito do setor levado em consideração. Estudos dirigidos pela psicóloga MargaretTakeda e por seus colegas da Universidade doTennessee, em Chattanooga, sobre profissões em que o aspecto físico é um requisito importante, ser loira pode constituir vantagem. Já as morenas seriam preferidas nas profissões mais bem remuneradas, que requerem competências cognitivas específicas e nas quais a competição é grande.

Margaret catalogou a cor dos cabelos dos principais analistas de comércio internacional da bolsa de valores de Londres. Nesse ambiente o processo de contratação é muito longo e complexo e o candidato precisa ter uma ampla gama de qualidades para ser aprovado ao final de um longo percurso de seleção. É possível, então, supor que não exista espaço para preconceitos e estereótipos durante uma seleção desse tipo. No entanto, segundo a psicóloga, a avaliação das loiras analisadas dentre as 500 mulheres que se destacam no mercado financeiro é 10% inferior em comparação à das outras candidatas. O estereótipo da loira menos competente poderia explicar esse resultado. Entretanto, nenhuma pesquisa científica evidenciou diferenças entre a capacidade intelectual associada à cor dos cabelos. Quando se trata de capacidade de sedução, sensualidade (e no polo negativo, de vulgaridade), a coisa muda de figura - pelo menos no imaginário dos homens ingleses. Em um experimento, o pesquisador Viren Swami, da Universidade de Westminster, em Londres, pediu a uma jovem voluntária que usasse uma peruca loira, na sequência uma de cor castanha e depois, ruiva - e passeasse por diversos locais de Londres à

As m o r e n a s levam vantagem quando a função e x i g e elevado nível d e competência intelectual

ESTEREÓTIPOS PODEM SER "AUTORREALIZANTES", provocando justamente os comportamentos esperados de determinada pessoa em razão de suas características; na série The Big Bang theory, a personagem Penny, vivida por Kaley Cuoco, parece ocupar o "lugar de burra"

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noite. A proposta era contar o número de homens que se aproximavam da moça quando estava com cada cor de cabelo. Sozinha, a peruca loira atraiu tantos rapazes quanto a ruiva e a castanha juntas - ao menos nos locais de programação noturna. Na hora de conseguir uma carona as loiras têm mais sucesso que a mulher de cabelos escuros. Em uma variação do teste precedente, realizamos um experimento no qual uma jovem ficava na beira de uma estrada ostentando uma peruca loira, depois ruiva e castanha. Novamente a loira "venceu". No fim das contas, parece que embora tantas mulheres se empenhem em clarear os fios, ser loira não é exatamente vantajoso, na opinião de Swami. O pesquisador retocou a fotografia de uma jovem, de modo a justapor cabelos de diversas cores, e em seguida pediu a alguns homens que dessem sua opinião sobre sua beleza. Com surpresa, constatou que a garota era considerada mais bonita quando usava a peruca castanha-escura. É um curioso paradoxo: embora um considerável número de homens ache as loiras menos atraentes, eles tendem a abordá-las com mais frequência. No entanto, o fascínio que elas exercem no imaginário masculino pode ser atribuído a alguns fatores. O primeiro é muito simples: em uma lógica de mercado, o que é raro é mais procurado. Avalia-se, de fato, que as loiras naturais constituem apenas 2% da população mundial: por isso atraem mais a atenção e poderiam tirar alguma vantagem disso. A segunda razão está relacionada à lógica indireta referente à juventude: o psicólogo Davis

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Matz, do Augsburg College de Minneapolis, em Minnesota, demonstrou que quanto mais claros os cabelos de uma mulher, mais se tende a considerá-la jovem. De forma geral, os homens sentem-se mais atraídos por mulheres mais jovens, provavelmente porque são mais férteis e a evolução favoreceu a busca de parceiros para reprodução. Privilegiando outra hipótese, alguns pesquisadores acreditam que os homens busquem, geralmente, companheiras mais jovens para poder ocupar posição dominante no relacionamento, fazendo prevalecer sua maior experiência. As duas primeiras hipóteses, porém, não explicam o aparecimento de um estereótipo negativo em relação às mulheres loiras. Um terceiro fator, de ordem social, poderia ser determinante. A imagem da loira foi forjada há mais de meio século, no cinema e em outras mídias, como a de uma mulher fácil, sensual, que explora mais os atributos físicos que os intelectuais. É difícil intuir as razões de uma estratégia que atingiu seu ápice nos anos 50 com Marilyn Monroe e depois avançou nos anos seguintes com Grace Kelly, Brigitte Bardot, Sharon Stone até Scarlett Johansson. É inegável que a luminosidade e o brilho desempenham um papel essencial nos filmes e que as mulheres com cabelos dourados tenham sido favorecidas nesse contexto. Mas o cinema foi seguido também pelas outras mídias, nas quais as loiras estão muitas vezes presentes em proporção amplamente superior em relação à que encontramos no mundo "de verdade". Os pesquisadores Melissa Rich e Thomas Cash, da Universidade Old Dominion, de Norfolk, nos Estados Unidos, examinaram revistas publicadas ao longo de 40 anos - como Vogue, de moda, ou destinadas ao público masculino, como Playboy. Constataram que, embora apenas 5% das mulheres americanas tenham os cabelos naturalmente claros, nas revistas de moda 35% das modelos aparecem loiras. Não há dúvida de que o cinema tenha sacralizado a imagem da blondies, suscitando um desejo de imitação nas leitoras. A indústria de cosméticos, e principalmente a de tinturas de cabelo, tornou-se um dos principais anunciantes das revistas femininas e, naturalmente, criaram uma super-representação da loira apresentando modelos que reforçam o desejo de glamourização. As revistas femininas não foram as únicas a condicionar os gostos neste campo. Playboy, por exemplo, apresenta 4 1 % de loiras, ou seja,

quase oito vezes mais do que a população que representam na realidade. Muitos psicólogos acreditam que esta superexposição leva a associação das loiras a uma imagem feminina vinculada unicamente ao corpo. Se ainda for somado o fato de que muitas atrizes de cinema pornográfico clareiam seus cabelos, a ligação entre a "loirice" e o culto ao corpo parece confirmada. De fato, os homens - quase a totalidade do público de revistas pornográficas - tendem a associar as loiras à disponibilidade sexual. A representação dessas mulheres simplesmente como objeto sexual explicaria a difusão de muitos preconceitos. A prova de que essa associação é produto de uma construção da mídia consiste no fato de que o equivalente masculino não existe. Aliás, não há nenhum preconceito contra os homens loiros. Os fios dourados masculinos não causam nenhum impacto específico sobre as mulheres. Em nossos experimentos sobre cor de cabelo, observamos que os homens que fingiam pedir carona não tiveram mais sucesso em razão da cor dos cabelos. Da mesma forma, peruca loira ou castanha não influiu na aceitação de convites para dançarfeitos a mulheres durante uma festa. Também neste caso, pesquisadores acreditam que existe responsabilidade da mídia, sobretudo porque o cabelo claro é super-representado entre as mulheres, mas o mesmo não ocorre com os homens.

ARMADILHAS INCONSCIENTES Em todo caso, os estereótipos criaram raízes. Em nossas pesquisas, constatamos que a jovem de peruca loira sentada à mesa de um bar enquanto lê uma revista provoca maior número de comentários preconceituosos e machistas por parte de homens sentados à sua volta do que a moça morena. Do mesmo modo, Swami demonstrou, usando fotografias retocadas para mudar a cor

dos cabelos das mulheres, que os fios dourados induzem os homens a considerar a mulher menos competente, menos inteligente e mais volúvel independentemente de esses traços terem algo de verdadeiro. É preciso levar em conta, porém, que estereótipos podem ser, ao menos em alguns casos, "autorrealizantes": ou seja, acabam realmente provocando comportamentos que estigmatizam. Ao ouvirem dizer que são incompetentes - e se familiarizarem com essa ideia - , algumas loiras podem se sentir pressionadas e inseguras, acabando por duvidar da própria capacidade, mostrandose justamente como os outros as veem, criando armadilhas inconscientes para si mesmas. O fenómeno de autorrealização foi estudado pela psicóloga Oémentine Bry, da Universidade de Nanterre, em Paris. Ela e seus colegas submeteram um grupo de mulheres morenas e loiras a testes de cultura geral. De modo muito discreto, pouco antes da avaliação, lembravam às participantes o estereótipo segundo o qual "as loiras se destacam mais pelo físico do que pela inteligência", ou mostravam uma série de fotografias de misses loiras. Resultado: no teste realizado em seguida à menção desses estereótipos, as participantes de cabelos claros tiveram pontuação mais baixa, embora sua pontuação tivesse sido normal quando não houve comentários. Assim ficou evidenciado o poder autorrealizante dos estereótipos - nesse caso específico sobre as loiras. Felizmente, o experimento forneceu também a chave para não ser vítima desse efeito: quando era aconselhado às participantes que se considerassem autónomas, com história única e combinação de capacidades próprias, diferentemente de qualquer outra pessoa, elas mantinham boa pontuação e não sofriam mais o impacto dos preconceitos, rrr c

GRACE KELLY, Brigitte Bardot, Sharon Stone, Scarlett Johansson: indústria cinematográfica contribuiu para o surgimento dos preconceitos

limmmiimminmmimimiimmi PARA SABER MAIS

The influence of skin tone, hair length, and hair color on ratings of women's physical attractiveness, health and fertility. V. Swami, A. Furnham e K. Joshi, em Scandinavian Journal of Psychology, vol.49, págs. 429-437, 2006. Hair color stereotyping and CEO selection in the United Kingdom. M. Takeda et al., em Journal of Human Behaviour in the Social Environment, v o l . 13, págs. 85-99, 2006.

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Encantos d a maquiagem M U L H E R E S USAM C O S M É T I C O S PARA FICAR MAIS B O N I T A S , MAS OS EFEITOS NÃO SÃO APENAS ESTÉTICOS! UM ROSTO F E M I N I N O BEM PINTADO, COM BOM GOSTO E SEM EXAGERO, PODE TORNAR

ESPÉCIMES

DO " S E X O F O R T E " MAIS G E N E R O S O S , P R O P E N S O S A SE DEIXAR SEDUZIR, E ATÉ M E S M O A L T E R A R AS C A P A C I D A D E S C O G N I T I V A S

MASCULINAS

por Nicolas G u e g u e n

^ ^ ^ | ã o poucas as mulheres que se arriscam a sair de casa sem pelo menos uma cor nos lábios - ou levar um ^ ^ b a t o m na bolsa, para casos de "emergência". Não ^^mW por acaso, mesmo em tempos de crise, a indústria dos cosméticos continua próspera. Bases e corretivos para as olheiras, blush e gloss são usados todos os dias por milhões de consumidoras no mundo todo. E não há novidade nisso, trata-se de uma prática milenar. No fundo, prevalece a crença de que um rosto mais colorido é sinal de beleza e aparência saudável-e, em última instância, tornará as mulheres aceitas e bem tratadas. O curioso é que essa percepção encontra respaldo científico. Já há alguns anos, pesquisadores têm se dedicado a entender como a ação dos cosméticos influi na percepção e no comportamento da maioria das pessoas, provocando a impressão de que mulheres maquiadas com discrição e sem exageros são mais competentes, seguras e emocionalmente estáveis.

O AUTOR NICOLAS GUEGUEN é psicólogo social, professor de ciência do comportamento da Universidade Bretagne-Sud e dirige o grupo de pesquisas em ciências da informação e da cognição em Vannes. 26

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E isso se deve, pelo menos em parte, aos cosméticos. Cremes e bases corretivas, por exemplo, deixam a pele mais lisa, aumentam sua firmeza e brilho e eliminam impurezas. Resultado: as pessoas parecem mais jovens e, principalmente, mais saudáveis. Durante uma experiência na Universidade de Aberdeen, na Escócia, vários rostos femininos foram fotografados e, posteriormente, algumas imagens, com diferentes tipos de pele, foram mostradas a um grupo de homens. Foi solicitado que indicassem as

§ fotos que, em sua opinião, correspondiam a | mulheres com pele mais sadia. Depois disso, I veriam os rostos inteiros e poderiam avaliar se de fato eram bonitos. A experiência revelou que peles consideradas mais saudáveis eram justamente das pessoas classificadas como mais atraentes. Também foi observado que, quando uma mulher usa base, é vista como mais bonita e em melhores condições de saúde. O pesquisador Robert Mulhern e seus colegas da Universidade de Buckinghamshire, na Grã-Bretanha, pediram a alguns homens que avaliassem a beleza do rosto de algumas mulheres de 31 a 38 anos de idade. Antes da sessão de fotos, todas foram submetidas a uma limpeza profunda da cútis. Para evitar distorções, as imagens mostravam apenas o rosto de cada voluntária, e o penteado era idêntico. De acordo com o caso, a maquiagem foi feita nos olhos, nos lábios, na pele, em todo o rosto, ou optou-se por não aplicar absolutamente nada. Os homens e as mulheres que viam as fotos deveriam dizer o quanto a pessoa fotografada parecia atraente, usando para isso escalas de avaliação da beleza. Também lhes foi pedido que indicassem a foto que consideravam mais fascinante dentre as cinco de cada modelo. Como era de prever, as avaliações positivas foram feitas principalmente quando a pintura tinha sido aplicada simultaneamente nos lábios, olhos e pele. A maquiagem dos olhos tinha poder de atração mais forte, seguida da pele e dos lábios. Mas a impressão de beleza era maior se apenas uma área do rosto estivesse enfatizada.

A PINTURA é muito mais que um ritual de beleza; em alguns casos, pode ser considerada um coadjuvante psíquico, capaz de favorecer a autoestima 28

As vantagens da maquiagem poderiam parecer irrefutáveis à luz dessas pesquisas. No entanto, existem situações em que ela pode ser contraproducente. É o caso das fotos anexadas aos currículos para emprego. As psicólogas Diana Kyle e Heike Mahler, da Universidade do Estado da Califórnia, apresentaram a estudantes de recursos humanos a fotografia de uma mulher de 40 anos que se candidatava a uma vaga de direção. Com base nas informações profissionais, os voluntários deveriam avaliar se ela podia ocupar o posto e tinham de determinar a remuneração que deveria receber caso fosse admitida. Naturalmente, o currículo era sempre o mesmo; o que mudava era a fotografia da candidata, que em alguns casos aparecia com maquiagem,

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e em outros de "cara lavada". Quando a mulher estava sem pintura, os voluntários tinham a impressão (apenas pelo currículo) de que ela era mais competente. E estavam prontos para lhe oferecer um salário mais alto. Segundo os psicólogos, para explicar esse mecanismo é necessário fazer uma referência aos estereótipos sociais. Quando precisam designar alguém para um cargo de responsabilidade, os avaliadores seriam inconscientemente atraídos pelas características físicas masculinas. A maquiagem produziria, portanto, um efeito negativo, deixando o candidato demasiado feminino. Em um caso como esse que acabamos de mencionar, é provável que maquiagem sóbria, ou a ausência dela, seria mais adequado para a candidata. Mas a maquiagem mais pronunciada pode se revelar útil em algumas profissões tipicamente femininas. Experiências realizadas pela mesma equipe revelaram que, para um cargo de secretária ou de recepcionista, a maquiagem aumenta a possibilidade de admissão. Já a psicóloga Maggie McCIafin, da Universidade de Missouri, retocou a imagem do rosto de um monarca inglês do século 16 de forma que parecesse que ele estivesse usando base. Nessa versão, alguns examinadores lhe atribuíram menos capacidade de liderança em relação a quando o rosto estava ao natural.

SIM, ELES PERCEBEM! Pintar o rosto pode ter impacto profundo na percepção de si mesmo. O pesquisadorThomas F. Cash, da Universidade de Norfolk, na Virgínia, confrontou a opinião que algumas mulheres tinham sobre seu próprio aspecto antes e depois de uma sessão de maquiagem. Dessa forma, constatou que elas achavam não apenas o próprio rosto mais atraente, mas também o próprio corpo e o aspecto geral. Além disso, exprimiam maior confiança em si mesmas em aspectos não relacionados à aparência, principalmente no que dizia respeito a suas capacidades profissionais. Esse estudo revela que a maquiagem é muito mais que um sinal de beleza: em alguns casos, pode ser considerada um coadjuvante psíquico, que favorece a autoestima e, literalmente, a forma como a pessoa se vê. Alguns psicólogos pensam até que poderia expressar certas características da personalidade. A pesquisadora Julia Robertson e seus colegas da Universidade

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U m p o u c o de cor para alegrar a vida

É provável que a pele tenha sido a primeira "tela" de nossos ancestrais - antes mesmo que as paredes das cavernas fossem decoradas com cenas de caçadas, já que a ornamentação do corpo parece ter sido usada muito antes de qualquer outra forma de expressão gráfica. Bem antes do surgimento da linguagem era nas formas coloridas no corpo que se exprimiam desejos, crenças, conceitos, e era impressa a própria história. Usava-se a pintura em diversas ocasiões como a guerra, a caça e os rituais religiosos. Os índios brasileiros, séculos depois, adotaram práticas semelhantes, e continuamos fazendo isso ainda hoje, como expressão de arte ou como manifestação cultural. Entre os indígenas, a pintura corporal tem sentidos diversos, não somente como expressão da vaidade, mas de Buckinghamshire, no Reino Unido, submeteram um grupo de moças estudantes a testes de personalidade e a questionários que avaliavam o uso que faziam dos cosméticos. Os pesquisadores descobriram que as pessoas ansiosas, que estão sempre preocupadas em saber como os demais as veem ou apresentam fortes traços de conformismo, recorrem com mais frequência aos produtos de beleza - e também os usam em maior quantidade, já as mais seguras, com autoestima mais forte e boa capacidade de

também para ressaltar valores e transmiti-los. É usada na preparação para a guerra e como forma de afastar os maus espíritos. Em muitas etnias indica a distinção e divisão hierárquica social - embora haja registros de grupos que a usam apenas segundo suas preferências. Para os povos primitivos há também a busca pela estética perfeita, daí a pintura sertão presente em rituais de embelezamento e cerimónias que marcavam a formação de casais - nada muito diferente do que acontece hoje nas festas de casamento ou mesmo quando as mulheres se arrumam para agradar aos pretendentes. O mais interessante é que nos últimos anos a ciência tenha buscado comprovar o que nossos ascendentes sabiam havia muito tempo: um pouco de cor pode deixar a vida mais interessante. (Da redação)

controle das emoções, utilizam menos pintura, especialmente base. Os resultados, porém, não são conclusivos, pois outras investigações mostram que mulheres que recorrem a cremes e maquiagem revelam cuidado consigo mesmas e valorizam a própria feminilidade. Em que medida o impacto da maquiagem é concreto e mensurável? No grupo de pesquisa em ciências da informação e da cognição em Vannes, na França, estudamos o tema solicitando a colaboração de algumas jovens voluntárias.

A atração sexual norteada pela lógica d a propagação de genes, prioriza busca

a

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parceiros jovens, c o m

traços

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cosméticos ajudam

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Duas delas tinham de se sentar a uma mesa de um bar muito frequentado no centro da cidade e conversar entre si, esperando que os homens lhes dirigissem a palavra. Dependendo do caso, as voluntárias deveriam maquiar olhos e lábios e passar um pouco de base no rosto. Ou deveriam apenas limpar a pele com leite adstringente. Os pesquisadores observavam as duplas de voluntárias de perto, cronometrando o tempo que se passava entre o início da experiência e o momento em que algum homem lhes dirigia a palavra. Quando as mulheres estavam maquiadas, o tempo médio que um rapaz levava para aproximar-se era de 17 minutos, em comparação a 23 minutos nos casos em que elas não usavam cosméticos. Portanto, se o objetivo é seduzir e fazer novas amizades, a maquiagem permite economizar pelo menos 2 5 % de tempo! Ou seja: a experiência mostrou também que mais homens tentam _ se aproximar de uma mulher maquiada - e | fazem com maior rapidez. Sem dúvida, a pintura exerce atração de caráter sexual. Como demonstrou um estudo coordenado por Michael Lynn, da Universidade Cornell, a frequência de um restaurante com clientela formada exclusivamente por homens aumentava quando as garçonetes estavam maquiadas. 0

U m a experiência recente demonstrou que a m a q u i a g e m pode até se tornar um incentivo para a generosidade. Os psicólogos James McElroy e Paula Morrow, da Universidade de lowa, estudaram o efeito da maquiagem durante uma coleta de fundos organizada para estudos médicos: os homens aceitavam fazer doações de valores mais altos quando PRODUTOS FAVORECEM a impressão de que a mulher é saudável, o que lhe confere mais fascínio 30

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uma mulher maquiada lhes fazia o pedido. No entanto, para conseguir esse resultado, a voluntária tinha de se aproximar a cerca de 30 centímetros do homem e, segundo resultados da experiência, não era a beleza do rosto que mais induzia a generosidade-e sim a presença da maquiagem. Os homens são, portanto, o alvo preferido dos cosméticos - afinal, é sobre eles que o impacto da maquiagem se manifesta com mais evidência. A ponto, até mesmo, de leválos a parar mais para uma mulher que pede carona maquiada. Durante nossa pesquisa, algumas garotas de 20 a 22 anos deveriam pedir carona numa estrada muito movimentada que leva a um conhecido balneário. Elas o fizeram várias vezes, com ou sem maquiagem (as roupas e o penteado eram sempre os mesmos). Pudemos, assim, observar que 19% dos motoristas paravam para uma mulher maquiada, mas só 15% se detinham para as mesmas jovens com o rosto ao natural. Portanto, uma mulher que pede carona maquiada aumenta em 2 5 % suas possibilidades de sucesso. Provavelmente, trata-se de um mecanismo automático e inconsciente que tem um efeito muito rápido: a 90 quilómetros por hora (velocidade média em que estavam os motoristas), o tempo de reação é muito breve e o cérebro não tem tempo para analisar conscientemente todos os fatores da situação. O psicólogo John Hartnet, da Universidade de Richmond, nos Estados Unidos, demonstrou, em parceria com colegas, que o desempenho masculino em várias tarefas cognitivas - solução de problemas de aritmética ou aprendizagem de sílabas em um idioma estrangeiro, por exemplo - se reduz consideravelmente na presença de uma mulher pintada sem exageros, mas permanece quase inalterado diante de uma mulher sem nenhuma maquiagem. Talvez este seja um dos aspectos mais interessantes do efeito dos cosméticos: sua capacidade de enfraquecer as faculdades cognitivas do homem, tornando-o mais generoso e sensível à sedução. Como explicar esses efeitos? Para entendêlos é necessário analisar os comportamentos masculinos e femininos: a atração sexual é norteada pela lógica da propagação dos genes e, consequentemente, pela busca do parceiro

TRANSFORMAÇÃO EM NOME DA ARTE: Nicole Kidman, irreconhecível no papel de Virgínia Woolf em As horas (2002), ganhou o Oscar por sua atuação no filme

ideal para procriação. Sabe-se que uma das qualidades básicas de um bom reprodutor é sua saúde: um rosto maquiado reforça essa percepção no homem e aumenta o poder de atração exercitado por determinada mulher. Outro "truque" da maquiagem poderia estar em sua capacidade de melhorar a simetria do rosto. De fato, os produtos permitem eliminar as pequenas imperfeições, pequenas manchas e variações do tom da pele. Na procura por uma parceira capaz de ajudá-lo a transmitir o próprio patrimônio genético, o homem daria prioridade àquelas de rosto simétrico, pois essa característica é associada a melhores qualidades genéticas, como um sistema imunológico mais resistente. Dessa forma, uma mulher maquiada daria a impressão de gozar de boa saúde e provavelmente seria capaz de gerar crianças fortes. Durante milénios foi justamente essa lógica - arraigada, mas nem sempre consciente - que tornou o homem sensível ao fascínio de um rosto feminino simétrico, corado e, em geral, maquiado. Além disso, estudos indicam que em geral

quem se pinta é considerado digno de confiança. Também nesse caso os teóricos evolucionistas valorizam essa impressão. Para eles faz sentido que após ter encontrado a parceira ideal do ponto de vista genético o homem necessite saber com certeza que seus recursos não serão desperdiçados no esforço de criar o filho de outro. Desse ponto de vista, a fidelidade da parceira passa a ser um critério fundamental. Obviamente, o uso dos produtos cosméticos surgiu em uma época em que o ser humano já tinha parcialmente se distanciado do rastro evolucionista para agir segundo critérios culturais ou de livre escolha. Mas esse rompimento na escala evolutiva da nossa espécie é ainda suficientemente próximo para nos deixar sempre sensíveis a esses indícios que outrora eram essenciais na busca de um parceiro: saúde, juventude, simetria no rosto e capacidade de inspirar confiança. Parece que os cosméticos, e particularmente a maquiagem, ainda são capazes de suscitar as sensações que no passado eram indispensáveis.

iiiimimimmmimmiiiiiiiiitmim PARA SABER MAIS

Seduções íntimas. Paola Emitia Cicerone. Mente e Cérebro n° 219, págs. 42-49, abril de 2011.

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Mundo Barbie O S U C E S S O C O M E R C I A L E S I M B Ó L I C O DA B O N E C A M A I S V E N D I D A N O M U N D O É P R Ó P R I O DE U M A E S T R U T U R A S O C I A L C O M

PADRÕES

M E R C A N T I S DE B E L E Z A E R E A L I Z A Ç Ã O P E S S O A L Q U E C O N C E N T R A NAS C R I A N Ç A S OS D E S E J O S DE A C U M U L A Ç Ã O DOS A D U L T O S

por M a r i a Lúcia H o m e m

Êk m^L JÊêêêêL

MARIA LÚCIA HOMEM é psicanalista. Fez mestrado e doutorado em psicanálise e estética na Universidade de Paris 8/Collège International de Philosophie e na FFLCHUSP. É professora da Faculdade de Comunicação da FAAP, em São Paulo. Tem artigos publicados em revistas especializadas e é autora de livros, dentre os quais Leitores e leituras de Clarice Lispector (Hedra, 2004). 32

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cada três segundos uma Barbie é vendida no mundo. Já se ultrapassou a cifra de centenas de milhões de bonecas comercializadas, isso sem falar de suas t r é p l i c a s , irmãs, sósias ou cópias. Uma espécie de Barbie muçulmana, com véu e estojo de maquiagem, é sensação no Oriente Médio, sucesso de vendas em reduto anticapitalista. A Barbie é a boneca mais vendida no planeta e ocupa as vitrines de nada menos que 150 países. Como compreender esse fenómeno? Quais suas causas e origens? E que efeitos produz no imaginário social, tanto masculino como feminino? Para acompanhar essas questões, é interessante buscar no advento da modernidade os fios que trançam sexualidade, infância e indivíduo, apontando como o corpo e suas projeções psíquicas passam a ser objeto privilegiado da ciência e do imaginário modernos. O papel do consumo e, mais especificamente, da boneca - e sua transformação ao longo das últimas décadas - permite jogar alguma luz nos processos de constituição subjetiva no momento contemporâneo. Dito de forma mais específica: esse percurso possibilita entender melhor o que faz com que vivamos numa cultura em que a boneca Barbie modela de maneira onipresente nosso desejo e nossas práticas sociais, saibamos disso ou não.

Diz-se que a psicanálise "criou" a sexualidade. Freud teria sido o articulador-mor desse processo ao tomá-la como objeto de estudo, dando voz às histéricas que sofriam na carne, trazendo dessa forma ao patamar da palavra o que corpos censurados gritavam: sexo. Foram esses corpos que nomearam a patologia, especificamente seu útero, do grego hysteron. O sintoma vinha no lugar do livre escoamento da carga sexual reprimida. O processo inverso, analítico, do sintoma ao canal da palavra, foi definido de maneira precisa por Anna O., paciente "inaugural" da psicanálise: talkingcure. A cura pela fala poderia aliviar o ser de seus sintomas e, nesse movimento, delimitar a construção de um terreno fértil para que a ciência dirigisse sua luneta para uma obscura seara: a subjetividade humana, em uma de suas interfaces mais enigmáticas, a da inter-relação mente/corpo. O último quarto do século 19 delimitou o ambiente intelectual que estabelece a sexualidade como campo possível e legítimo a ser abordado e, assim, o corpo propriamente psíquico como objeto a investigar, eventualmente mensurar e, finalmente, tratar.

ENTRE CORPO E MENTE Sim, Freud foi um brilhante investigador, homem de insights originais e coragem ímpar para segui-los até a raiz. No entanto, soube frutificar e colher na seara já plantada em seu tempo: a sexualidade já era objeto da ciência, por mais positivista e moralista que fosse (na linha dos manuais sexuais da época). O que o século 19 fortificou foi de fato a possibilidade de se debruçar sobre qualquer tema da vida humana, inclusive o das práticas sexuais, posto que este assunto, como qualquer outro, era objeto do olhar inquisidor que espiava pela lente epistemológica ávida por conhecer os recônditos de qualquer célula, semente, neurônio, comportamento. E esta é uma criação não exatamente de Freud ou dos iluministas do século 18, mas da modernidade em sua essência. Em que medida? Na medida em que, na lâmina do cogito cartesiano, a modernidade funda o sujeito, atribui-lhe racionalidade e consciência inquisidoras e opera uma separação entre esta e o objeto pensado. É na esteira desse viés moderno do século 17 que hoje, na além-modernidade, podemos nos debruçar sobre nosso corpo e sobre "identidades sexuais", mo\danâo-as com objetos materializados e consumíveis, bonecas nomeadas que não só desenham, como modelam e buscam controlar cada vez mais esse irrequieto domínio que é o da sexuação, ou, de forma mais poética, o do vir-a-ser homem, o do vir-a-ser mulher, o do vir-a-ser sexuado. A psicanálise se coloca, de certa forma, nessa corrente, situando a sexualidade como objeto da ciência, porém de forma distinta do olhar mais positivista em voga na época, uma vez que distingue instinto de pulsão. A via pulsional é aquela no delicado limiar entre "o somático e o psíquico", o que nos proporcionará os mecanismos de investimento de energia e 33

Na modernidade, a criança deixou de ser considerada "adulto e m miniatura" e adquiriu singularidade, espaço, desejo e objetos próprios

A BONECA-BEBÊ, que leva a criança a se identificar com o papel de filha, cada vez mais cede espaço à boneca-mulher

de sublimação que permitam compreender o fascínio por uma boneca e o lugar privilegiado que ela pode ocupar no imaginário tanto individual como social. Psicanálise, teoria da relatividade, física quântica, genética, cinema, rádio, telégrafo, eletricidade, surrealismo, dadaísmo, música dodecafônica... inúmeras transformações na ciência, na arte e no pensamento - a virada do 19 para o 20 é fervilhante e ordena em seu eixo transformações tais que uma nova subversão de valores e conceitos toma corpo, instaurando aquele que foi chamado, também, de "o século da subjetividade".

FAMÍLIA, INFÂNCIA E BRINQUEDO O sujeito, agora descentrado em relação à consciência racional e palco de conflitos pulsionais, de classe, de género, de culturas, passa a ser objeto fundamental do olhar do século 20. O século 20 se debruça sobre esse anjo desviado do paraíso artificial da racionalidade com cuidado e curiosidade, além de dominação e usufruto, ou, em outras palavras, num misto de investigação, oferta, vigilância e controle. Como se dá o processo de formação do humano? A 34

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inquietação sobre sua constituição - biológica, psíquica, social - é onipresente. Nesse contexto, subjetividade, sexualidade e infância se entrelaçam. É nessa constelação que se inserem, e mais, se tornam possíveis, as Barbies. A boneca é um objeto privilegiado no longo percurso de constituição do sujeito. E um objetochave na construção do feminino na cultura globalizada contemporânea. Objeto em dupla acepção: objeto material, no campo da circulação de mercadorias que representam as demandas dos indivíduos consumidores no capitalismo massificado contemporâneo, e objeto psíquico, polo de intersecção de investimentos libidinais por parte de um sujeito dessa mesma cultura. A boneca tem como função ocupar o lugar de modelo identificatório representante dos ideais propostos à subjetividade em formação. Hoje, a boneca é uma mercadoria presa numa complexa rede de circulação de produtos, movida por estratégias precisas de marketing e comunicação de massa, dirigidas para um público determinado: a criança. Temos aí entrelaçamentos entre infância, consumo e mídia. A infância surge como categoria específica, propriamente moderna, num momento relativamente recente da história humana. Apenas há alguns séculos a criança é um "ser" em sua singularidade, com espaço, tratamento e objetos próprios, e não um mero adulto em miniatura. A "criança" surge com a família moderna, que se constitui paralelamente ao hábito de educar a criança na escola, no início do século 17. A esses dois pontos de apoio, família e escola, o contemporâneo acrescenta um terceiro, a mídia, e assim forma-se o tripé no qual se apoia a circulação simbólica e imaginária que sustenta o fenómeno Barbie. Sigamos esse processo. Já no Renascimento, época de lentas e profundas transformações, passou-se a uma variação da amplitude da frequência escolar. Até a era medieval, a criança nascia e vivia em casa, formando-se no universo cotidiano que lhe era "imediatamente" oferecido, tendo-se como pressuposto que a formação se dava pela imersão no mundo dos adultos. O movimento de individualização e subjetivação crescente na modernidade recorta o coletivo familiar "ampliado" da pré-modernidade e constrói espaços materiais e simbólicos privatizados. O "lar" moderno passa a ser uma figura importante, moldando o surgimento da família

nuclear, espaço de maior intimidade, propiciando a circulação afetiva entre pais e filhos. A família não é mais somente um agrupamento moral e patrimonial no qual se cuida da transmissão da herança a um primogénito privilegiado, mas um núcleo sustentado por laços afetivos e de responsabilidades quanto à educação desse ser em formação que era - e ainda é - a criança. É nesse universo potencialmente protegido da intimidade e da familiaridade que vai cada vez mais se potencializando um lugar privilegiado para a criança como centro de atenção, demanda e poder. E é aí que o pequeno ser efetua sua formação e se dedica ao brincar. Esse domínio - do brincar- sofre alterações importantes no decorrer do século 20 seguindo o duplo movimento de industrialização crescente (com sua "artificialização" dos objetos) e a mercantilização extensiva que inclui na lógica consumista do atual estágio da produção capitalista todos os domínios da vida humana, inclusive a infância e suas atividades de compreensão e decodificação do mundo através da atividade lúdica. Nesse sentido, cada vez mais possibilidades e tipos da mercadoria "brinquedo" são oferecidos ao pequeno consumidor infantil. Nesse cenário, ocorre um fenómeno específico, a oferta de um novo produto: em 1959 é lançada a primeira boneca "adolescente", que recebe como nome o apelido da filha de sua criadora: Barbie. Logo ela se torna uma sensação e milhares de exemplares são vendidos.

um bebé, as opções são basicamente duas e se localizam no interior da relação mãe-filha. Ou seja, é o polo materno do amplo espectro feminino que se atualiza no brincar. A menina é a mãe, a menina é a filha. A menina é a mãe mais ou menos jovem, mais ou menos severa, mais ou menos interativa. Ou a menina é a filha, maior ou menor, mais ou menos obediente, mais ou menos amada. E assim a menina vai construindo, pela via do imaginário e do simbólico, numa atividade real, o mapeamento de seu lugartanto presente quanto futuro. Coloca-se aí efetivamente como filha, em sua relação com as irmãs e os irmãos, com as amigas, com sua própria mãe e com os derivados da função materna, como avós e babás, e ainda com o pai; e, outro lado da moeda, joga com o vir-a-ser mãe, o cuidar e educar a prole, ninando, amamentando, ensinando, brigando, vestindo, alimentando, constituindo, assim, o desejo e o lugar "naturalizado" da identificação com o materno como aquele que preenche a mulher e lhe dá sentido. Nesse campo, da boneca-bebê, os tipos de boneca são vários e redundam no mesmo convite de identificação do feminino com

A MENINA vai construindo, pela via do imaginário e do simbólico, numa atividade real, o mapeamento de seu lugar tanto presente quanto futuro

Delineiam-se, dessa maneira, dois tipos de boneca disponíveis no universo infantil feminino: a boneca-bebê e a boneca-Barbie. O sucesso desta última é crescente e conquista cada vez mais amplas fatias do mercado de tal forma que hoje temos, de fato, um fenómeno de transição no universo do "brincar de boneca": a boneca-bebê cede cada vez mais espaço à Barbie, e cada vez mais cedo. A menina trilha o processo de formação de seu papel social apoiada menos na relação com o objeto bebé e mais no outro, corporificado pela moça glamourosa. O que está em jogo aí? Em primeiro lugar, um reflexo claro da abertura dos campos disponíveis para o feminino que se oferecem no final do século da chamada Revolução Sexual. Ao brincar de boneca, a menina se joga no círculo quase infindável da repetição das atividades e posturas de seu lugar na cultura, introjetando-os mais ou menos conscientemente. Se a boneca com a qual o sujeito interage é 35

o materno, tendo as funções de maternagem como os esteios do brincar. Nesse sentido, o objeto boneca pode ser um bebé, uma boneca com cara de bicho, uma menina pequena. Em suas variações situacionais, a posição ocupada pela menina é a daquela que cuida ou é cuidada, educa ou é educada. Já a Barbie, e seus derivados, opera prioritariamente em outro polo: o da jovem mulher sexuada, que se torna "moça". É nesta via que se oferta como modelo identificatório à criança, mesmo que muito pequena, à menina, à púbere, à adolescente. A Barbie é aquela que tem, em primeiro lugar, o corpo sexuado da adolescentemulher, com longas pernas e cabelos compridos, cintura e seios proporcionais, harmonia dos traços faciais adultos, isto é, cumpre as proporções corretas, inclusive normatizadas e midiatizadas, que delineiam o ideal do corpo perfeito da mulher contemporânea.

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Em segundo lugar, ela é uma mulher com o atributo de vaidade num mundo em que este não é mais pecado e sim virtude, fonte alimentadora de uma indústria bilionária. Dessa maneira, a boneca-você-no-futuro ensina um "ser-mulher" que irá se replicar nos salões de beleza, shopping centers e academias: ela vem com estojinho de maquiagem, esmalte, secador e um variado e enorme guarda-roupa com peças, sapatos e acessórios. Lenta e cotidianamente se delineia a mulher que queremos ser e que parece que estamos desejando que nossas filhas sejam. E quanto aos pactos afetivos e de sociabilidade próxima? A Barbie, como mulher adulta e não mais bebé ou criança, l à tem namorado e amigas. Exercita uma • vida social intensa que transita do buV eólico ao metropolitano, passando pelo Oeste a ser desbravado, assim como por inúmeras culturas, das mais remotas e já desaparecidas às mais contemporâneas. Nessa medida, há o conjunto para piquenique assim como a coleção de metralhadoras. Esses pactos sociais remetem aos lugares simbólicos propostos para a boneca e, assim, para o sujeito em constituição. E aí temos talvez o mais poderoso canal de formatação e mode-

O AMOR ROMÂNTICO e a imagem da princesa constituem a base de formação da mulher como "rainha do lar"

lização vigente no contemporâneo, propiciado pela boneca onipresente e onipotente - quanto à representação de papéis sociais, há tudo quanto é tipo de Barbie, das noivas e princesas às executivas e pilotas. O universo feminino (e sua contraparte masculina, comoveremos) encontra em princípio a totalidade de poios identificatórios possíveis: desde a bela moça para casar que se tornará dona de casa e mãe até a profissional e líder do século 2 1 . Portanto, Barbie opera com enquadres sobrepostos e talvez excludentes. Alimenta o ideal do amor romântico e portanto da posição de princesa que encontra o príncipe e com ele se casa, constituindo a família como "rainha do lar", detentora do poder no espaço privado cuja função prioritária é parir e acompanhar a prole -eixofundamental no universo Barbie, contemplado nas infindáveis séries de noivas, princesas e estrelas. Acontece que o mundo mudou, e só essa roupagem é pouco para contemplar a nova mulher, aquela que conquistou o direito ao trabalho no universo público, ou seja, aquela submetida ao mercado. Nesse sentido, proliferam as Barbies "profissionais", dentro, claro, da glamourização necessária para o funcionamento da indústria de consumo de objetos e imagens que é a nossa cultura, baseada no comércio de sonhos. A nova mulher conquistará seu lugar ao sol no mundo do "self-made-indivíduo" como celebridade: pop star, modelo, atriz, alta executiva, atiradora. Isso sem falar na incrível Barbie candidata à presidência, talvez um dos postos mais concentradores do imaginário do poder no nosso mundo globalizado-leia-se, como cantam alguns, americanizado. A apropriação consumista dos brinquedos por todas as classes cresce de forma exponencial, junto com o processo mais amplo de transformação da polis republicana em mercado global, isto é, nossa passagem de cidadãos a consumidores. E qual o lugar da criança nessa ciranda? A partir da virada declaradamente consumista da segunda metade do 20, com o apoio das mídias de massa na retaguarda do processo de idealização que promove a acumulação de objetos, temos o surgimento de uma sociedade descartável que não cessa de vetorizar seu desejo ao acumular e comprar, alimentando os circuitos básicos do capital financeiro volátil. Nesse processo crescente-e numa aceleração,

assim, necessária - , não temos como deixar de assistir ao espraiamento infinito do mercado: todos os seres vivos devem se tornar, e se tornam, consumidores - por mais incapacitados que sejam para a tarefa, por falta de moeda ou consciência, não importa: o imperativo do consumo é soberano. Propiciamos, desse modo, o surgimento de sua majestade, a criança consumidora. Aquela que pode se tornar - e às vezes se torna de fato - bulímica em sua apreensão incessante do mundo e nos limites da perversão despótica: a que diz "eu quero" e "compra para mim" numa frequência bem mais alta que a de décadas atrás. E perguntas surgem: porque não colocar minicarrinhos de supermercado em suas mãos tão fofinhas? Por que não um passeio pelos parques temáticos no shopping center ou uma incursão pelas lojas especializadas em brinquedos que vêm se espalhando por todo o planeta na última década? Por que não trabalharmos mais para podermos dar uma vida confortável para aquele que faz nossa vida ter sentido? Por que não o esforço que não tem preço para ver nosso pimpolho feliz com seu minicastelo encantado com televisão, computador, celular, roupas "de grife", escolas "de grife", cursos dos mais variados tipos, games, brinquedos, brinquedos, brinquedos? Que efeitos esse tresloucado carrossel gesta em nosso tempo? A lógica Barbie amplia-se para toda uma cultura.

INFINITOS PRODUTOS O "mundo Barbie" é o nosso mundo hoje. Não somente porque Barbie talvez seja a mais precisa representação daquilo que devemos ser e almejamos conquistar, tanto como mulheres, quanto como homens ou qualquer outro género, em sua perfeição de formas e possibilidades. Mas ainda na medida em que preenche excepcionalmente bem as linhas de força da nossa cultura hiperconsumista, ao mesmo tempo individualista e massificada, global e regionalizada, descartável e apoiada no imaginário pretensamente fixo da marca reconhecível. Em grande medida, é como se a criança funcionasse como o termómetro e, de certa forma, o álibi que faltava para a assunção de nossos desejos acumulativos mais primários. Aí fomos pegos numa armadilha. Adultos e

crianças, poios anteriormente contrapostos agora unidos pela totalização crescente e aparentemente inescapável da mercantilização extensiva. O indivíduo que foi se construindo pouco a pouco desde os primórdios da modernidade, agora, em seu impasse ultramoderno, se transforma no superindivíduo consumista por excelência, sedento de qualquer produto que possa lhe dizer quem é e lhe dar a garantia de pertencimento ao coletivo, somente possível numa submissão vivida como identificação, imaginária ao menos, com os ideais constituídos no momento. Essa é a "forma-moda" ditadora dos enquadres em que a pessoa busca rapidamente se encaixar, em processos identificatórios incessantes e infinitos, de tal forma que agora a estabilidade sonhada parece se esvair nesta modernidade líquida, pós ou hipermoderna. Nesse sentido, é quase da ordem da obviedade que a boneca adquira diversas e sucessivas roupagens, e domine materialmente a construção do imaginário de possibilidades identificatórias numa série infindável de lançamentos, tal como qualquer outra mercadoria. Barbie passa a ser um substantivo e uma forma de vida, em seu ciclo, portanto, também necessariamente infinito, das mais conservadoras às mais modernas, das que propõem um lugar mais celestial ao feminino àquelas que as inserem no "mercado", na explícita justaposição capitalista de valores anteriormente contraditórios, agora subsumidos pela mesma e única lógica da mercantilização: Barbie princesa (uma série infinita de princesas,

A DISSEMINAÇÃO DE videogames entre crianças cada vez mais jovens transforma indivíduos em consumidores desde muito cedo

com diversas roupas, tonalidades e culturas), Barbie noiva (idem), Barbie de longos cabelos, Barbie loira, Barbie morena, Barbie ruiva, roqueira, executiva, adolescente, revolucionária, funcionária, pilota de avião, super-heroína... Barbies de todos os países, passados e futuros, reais, imaginários, tailandesa, egípcia, inca, chinesa, francesa, nativa, contemporânea. Barbies declaradamente ligadas a marcas: Barbie CocaCola, Ferrari (num interessante processo de retroalimentação das grandes marcas), idílicas, Barbies campestres, Barbies ícones da indústria do entretenimento, notadamente do cinema, com as scarletts e marilyns da série Hollywood. E, sem dúvida, para arrematar a lista com chave de ouro: a Barbie hippie. Aí está a explicitação cristalina do processo de apropriação, por parte de quem produz, de qualquer tipo de ideia ou valor, mesmo que contraditórios; e mais, o esfacelamento do próprio conceito de valor ao inutilizar a contraposição submetendo os lados contrários à uniformização mercantil das várias possibilidades numa mesma infinita prateleira do hipermercado global. O que uma Ferrari tem a ver com uma camiseta do Che Guevara? E o que uma boneca Barbie tem a ver com uma Barbie hippie? Nada. E tudo.

Já d i z i a W e b e r q u e a ética protestante andou de mãos d a d a s c o m o espírito capitalista, p o i s a aura puritana n o s faz passar fome, malhar, fazer tratamentos, cirurgias e muito m a i s 38

Os imperativos de gozo, prazer, fruição (e, claro, tudo numa aura de diversão) constituem nossos controles mentais. Sabemos também que esses são imperativos majoritários em nossa cultura do entretenimento, cujas bases se reproduzem na circulação de bens e serviços da classicamente nomeada indústria cultural, da qual sem dúvida o produto/marca/imagem Barbie faz parte. No tempo do só-prazer e só-beleza, todo desprazer e toda desarmonia são rapidamente expulsos para uma periferia qualquer da mente ou da cidade. As pessoas ficam, portanto, presas a mecanismos de identificação a um objeto ditatorialmente idealizado, enfeitiçado - que tem origem etimológica no português castiço "fetiche" - moldado pela cultura em seus tentáculos midiáticos (a mesma que, assim prenhe de feitiçarias, dissemina, logicamente, paulo-coelhos e harry-potters). E como se dá a circulação real e simbólica da mercadoria Barbie no universo que vai fazendo sentido para o sujeito? Prioritariamente no circuito fechado família-escola-televisão, os três poios basais de reconhecimento e persuasão

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operantes na cultura infantil (e que se replicam de forma estrutural na vida adulta, embora com circuitos mais amplos: família-mídia-trabalho e canais sociais coligados). Ou seja, a escola recebe as meninas e suas Barbies, instaurandose a rede de transmissão de conhecimento e reconhecimento. Funções de que a escola vem se apropriando cada vez mais, desde sua formatação moderna, e que hoje exerce de maneira mais ampla, praticamente monopolizando a totalidade das funções de formação intelectual, moral, política e, portanto, ideológica, propondo - e mesmo propagandeando - a inserção desse indivíduo no mercado. E, como decorrência, na nossa era de materialismo hedonista utilitarista, não há como viver sem possuir um corpo que se esforça por se assemelhar a esse modelo fetichizado. A perfeição das formas se torna insuficiente. É a perfeição da possibilidade de gozo, isto é, do usufruto "livre" e contínuo de um corpo sexuado. Ao extremo. Engendra-se, portanto, um movimento de duplo alcance: uma sexualização ampla da sociedade e seu imaginário constituído, que segue paralela a uma identificação com a adolescência, que passa a ser o modelo da era feliz e idealizada desse gozo. Todas e todos somos Barbies! É preciso gozar o tempo todo, como um adolescente liberal, filho da lógica do prazer. Porque já somos isto, na essência, é que a boneca da Mattel pôde conquistar um espaço que de fato era todo seu. Cada indivíduo segue o seu caminho, singular e submetido, na medida do possível, somente às ambições e vontades do eu soberano. Temos projeto então? Falência das utopias políticas coletivas e nascimento das novas utopias ultra-individualistas?

METROSSEXUAIS Tudo fazemos para nos assemelhar aos lugares iluminados dos modelos. Todos, ou ao menos muitos, lançamos mão de gastos e submissões, o que não deixa de operar pela via de um puritanismo ostentatório que sacraliza o corpo e o prazer ao mesmo tempo que instaura a prática do sacrifício para a obtenção dessa máxima graça terrena (transcendente, desejaríamos). Já dizia Weber que a ética protestante andou de mãos dadas com o espírito capitalista, pois a aura puritana nos faz passar fome, malhar, fazer tratamentos, cirurgias e muito mais.

Desde o boom das academias de ginástica a partir dos anos 80, com sua tarefa incrível de construir o corpo (novos deuses que somos do body-building, por falta de poder construir um futuro ou um sistema mais interessante para viver) até a prática crescente das cirurgias estéticas que floresceram a partir dos anos 90, a década de ouro que fecha o milénio revelando cada vez mais claramente as forças atuantes neste século. A biologização absoluta que nos fará em breve poder escolher as células-tronco mais adequadas para o tipo de sexo, tecido e modelo de nós mesmos. E o homem, no mundo Barbie? E os meninos, estão fora da discussão? De forma alguma, pois que as Barbies adolescentes de todas as idades se fazem para eles, se constroem, esculpem, vestem, imitam para o olhar do outro, como sempre. Quem é esse outro masculino sustentador de toda essa lógica? É aquele que brinca de carrinho em seu clube do Bolinha enquanto as mini-Barbies brincam de boneca? Ah, não, doce ilusão. Não somente moldam, sim, também eles, o modelo soberano em voga, com suas escolhas e construções midiáticas, como-e mais importante-eles próprios se tornam Barbies. Ah, sim, com outros nomes, como "metrossexual" ou o novo homem urbano que "assume" a veia consumista dirigida para a escultura do eu potente. É pura e simplesmente a lógica Barbie. Próteses, botox, peelings, carapaças e vestimentas nelas, cremes e grifes neles. Ainda timidamente. Mas a enxurrada da agora permitida e viril "vaidade masculina" não tardará. Os inquietos consumidores saberão encontrar seu lugar ao sol e no salão. Afinal, os homens não estão penetrando as delícias do jardim privado? Não estão entrando em contato com sua sensibilidade, chorando no cinema, discutindo a relação e descobrindo o prazer de cuidar dos filhos? Por que não iriam brincar de Barbie logo mais? Porém, assim como Barbie hippie é um paradoxo, Barbie princesa também o é, pois que a via principesca leva indubitavelmente à busca do encontro com o príncipe e o viver feliz no interior do lar. O que, além da aura de mágica e fantasia que logo irá se revelar inalcançável e geradora de expectativas frustradas, implica a transformação do casal em família, o que implica engravidar, amamentar e criar. Será que a mulher que se ocupa dessas funções tem tempo, dinheiro e energia

para permanecer com seu corpo de princesa Barbie? Difícil. A mulher adulta que se esforça em estar à altura - elevada - de seus variados papéis e múltiplas demandas é cria da menina que brincava de Barbie de dia e dormia abraçada à boneca-bebê de noite, criança fragilizada que voltava a ser o que era quando o sol se escondia. E, ao acordar, reinicia-se o ciclo para toda mulher: se arrumar bonita para enfrentar mais um McBarbie dia feliz. Mas eis que estamos justamente nessa era, não somente da dupla jornada de trabalho, no espaço público e no espaço privado, mas, hoje, da quádrupla ou quíntupla jornada, cujas tarefas de fato se misturam no trânsito entre o dentro e o fora de casa: com os filhos, com a administração doméstica, com o parceiro, com o mercado de trabalho e com o cuidado de si. Este, aliás, hoje demandante de cada vez mais investimento, seja em academias, seja em cirurgias. Isso é muito difícil. Para não dizer impossível. Mais uma vez se decanta a estrutura central desse universo, que de fato é o nosso: Barbie, modelo contraditório e impossível. Mas extremamente adequado às formas de vida hiperconsumista e massificada. Ela tem e nós desejamos: corpo, maquiagem, roupas, sapatos, acessórios, carros, casas, amigos, namorados, carreiras, tudo de sonho... Enfim, "Tm a Barbie girl in a Barbie world". Barbies estão cada vez mais à nossa volta e dentro de cada um de nós. Afinal, o mundo em que vivemos é o mundo Barbie. Barbies de todos os tipos: de plástico, de luz projetada na tela, pigmento no papel, de carne e osso. Posando para a foto.

OS HOMENS TAMBÉM estão cada vez mais submetidos, assim como as mulheres, à ditadura dos padrões estéticos

iflililllttllllllllllitliltlfitftlilllillllll PARA SABER MAIS

A sociedade dos indivíduos. N. Elias. Jorge Zahar, 1997. A sociedade do espetáculo. G. Debord. Contraponto, 1997. Dialética do esclarecimento. T. Adorno e M. Horkheimer. Jorge Zahar, 1986. O mal-estar na civilização. S. Freud, em Obras completas. Imago, 1976. Sexualidade feminina. S. Freud, em Novas conferências introdutórias da psicanálise. Obras Completas. Imago, 1976. Subversion du sujet et dialectique du désir. J. Lacan, em Écrits. Seuil, 1966.

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O fascínio d a segunda pele A FORMA C O M O NOS VESTIMOS DESVELA MOVIMENTOS ÍNTIMOS E DESEJOS MUITAS VEZES DESCONHECIDOS, FAZENDO COM QUE A ROUPA OCUPE L U G A R DE I N T E R F A C E E N T R E A PESSOA E O M U N D O ; PARA AS M U L H E R E S , H I S T O R I C A M E N T E ESSE F E N Ó M E N O PARECE SER A I N D A MAIS FORTE

por C a t h e r i n e J o u b e r t e S a r a h S t e r n

AS AUTORAS CATHERINE jOUBERT e SARAH STERN são psiquiatras e psicanalistas em Paris. As duas dividem a autoria de Dispa-me! O que nossa roupa diz sobre nós (Jorge Zahar, 2007). Este artigo foi adaptado do livro com autorização da editora. 40

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Êk s roupas estão em toda parte: multiplicam-se m^L em nossos armários, estão nas lojas, são exibiJhA das como objetos de desejo nas revistas, criam W códigos sociais, são dadas de presente, trocadas e nos deixam loucos nos dias de liquidação... Sua onipresença, sustentada por um interesse geral crescente, pode porém surpreender e nos levar a questionamentos. Afinal, por que elas ocupam tanto espaço em nossa vida? O que será que nos prometem em suas dobras silenciosas? O que buscamos compensar ou exibir aos olhos dos outros? Qual o uso que fazemos delas, às vezes até sem perceber? Em comportamentos como colocar sempre o mesmo vestido, usar apenas preto, ser fanático por shoppings, guardar cuidadosamente peças de vestuário daqueles que morreram prevalecem aspectos de nossa história pessoal. Por trás de uma aparente futilidade desvelam-se movimentos íntimos e, muitas vezes, desejos desconhecidos. A roupa, essa segunda pele, pertence ao mesmo tempo ao dentro e aofora, tanto protege a intimidade quanto abre para o espaço social e relacional, ocupa uma posição fronteiriça, de interface entre o eu e o mundo, podendo mascarar o sujeito ou, ao contrário, revelá-lo.

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NA TENTATIVA DE SE DIFERENCIAR DOS PAIS e buscar a própria identidade, adolescentes adotam seus próprios padrões estéticos

A maneira de se vestir insere-se numa história, indica a margem de liberdade do indivíduo diante da família, de seus pares e nas interações sociais. A roupa acompanha a trama da construção de si e expressa a relação com sua imagem, expondo as marcas de fracassos ou sucessos na edificação do narcisismo. Por meio dela, descobrimos vestígios de identificações e memórias. Porém, esse trabalho de decifração de vínculos por meio das roupas só é possível dentro de um contexto determinado e para um sujeito considerado em uma história na qual se insere.

DE LUTO E DE FESTA Não se trata aqui de propor "diga-me como te vestes e te direi quem és", mas sem dúvida é possível, com base nos exemplos da vida cotidiana, seguir algumas pistas de reflexão sobre um elemento que carrega a má fama de futilidade. As histórias ligadas à infância ilustram alguns elementos em jogo quando os pais escolhem as roupas dos filhos. Os tecidos absorvem em suas fibras a memória dos primeiros cuidados maternos. A criança é vestida pela mãe e, assim, inserida em uma tradição 42

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familiar. Por meio da roupa os pais imprimem sua marca no corpo do filho, modelando-o inconscientemente segundo seu desejo. Farão dele um bebé? Um adulto em miniatura? Seu super-herói num uniforme cintilante? Nos primeiros meses de vida, a roupinha da criança é, em geral,uma preocupação exclusiva da mãe. Ela ocupa-se do filho, lava-o e veste-o - e há um investimento emocional nesses gestos. Os cuidados maternos criam um mundo sensorial rico em sensações táteis e olfativas. As roupas carregam o aroma da mãe e testemunham essa relação no corpo da criança, criando assim uma continuidade e afirmando laços afetivos. Mãe e criança formam, então, um par isolado do resto do mundo. Ao longo do desenvolvimento infantil, as roupas continuam carregando os estigmas dessa troca subjetiva, cuja significação a criança descobrirá no olhar dos outros quando deixar o ambiente familiar para entrar na escola. Nas primeiras experiências de socialização, suas roupas não devem de forma alguma distingui-la das outras crianças - e sim fundi-la ao grupo.

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O m u n d o trata m e l h o r q u e m se v e s t e b e m Nos primórdios da humanidade, os seres humanos recorriam à pele dos animais abatidos para se proteger do frio. Ao longo do tempo, essa proteção foi se tornando cada vez mais sofisticada: surgiram os adereços, e as roupas passaram a ser uma importante forma de comunicação. Como ocorre nos dias atuais - tanto em povos indígenas como nas populações urbanas, nos mais diferentes meios - a maneira como uma pessoa se vestia podia indicar sua procedência, o clã ao qual pertencia e até seu status no grupo. Diferentes trajes sinalizavam até mesmo eventos como preparação para a guerra ou cerimónias religiosas. Em algumas culturas antigas eram valorizadas cores específicas. Em Constantinopla, capital do Império Bizantino, fundada em 667 a.C. pelos gregos, por exemplo, as peças tingidas com matizes de roxo eram as mais valorizadas, pois para obter essa tonalidade eram utilizados pigmentos raros, que só os nobres podiam comprar. Mas não é preciso ir muito longe para obter exemplos de que as roupas transmitem informações: nas décadas de 60 e 70, por exemplo, os trajes dos hippies remetiam à ideia de conforto, simplicidade e certa ingenuidade; as flores e os símbolos da contracultura eram constantes. O importante era propagar uma mensagem. Nada muito diferente do que acontece também hoje: não é novidade que determinadas etiquetas tornam as peças extremamente valorizadas e revelam o poder de quem as usa. Afinal, quem discorda que "o mundo trata melhor quem se veste bem"? Mas o que é se vestir bem? Usar peças confortáveis, de qualidade e, principalmente, adequadas a cada ocasião? Talvez. Mas esses critérios certamente dependem mais da cul- f tura de cada grupo que de preferências individuais. (Do redação) f

TECIDO DE DESEJOS O vestuário desempenha outro papel importante: pode revelar tramas inconscientes. Torna-as palpáveis, passíveis de apreensão; à sua maneira, diz à criança sobre os sonhos de seus pais em relação a ela. E ainda favorece questionamentos infantis sobre a identidade sexual. Em certa medida, também oferece aos pais a ilusão do filho ideal que têm em mente. Em geral, o adulto consegue estabelecer uma distância entre a satisfação de seu desejo e a realidade - mas e quanto à criança? Ela é, desde o início da vida, joguete de uma encruzilhada de desejos e projeções identificatórias de seus pais. Assim, a suntuosidade de um traje exprime o orgulho dos pais, um ideal de êxito, como se a criança devesse dar conta de promessas que eles próprios talvez não tenham sido capazes de cumprir. Por meio da roupa, diversas informações são trocadas inconscientemente, mas pouco a pouco vão constituindo em torno da criança um tecido de desejos parentais, de modelos nos quais ela terá de se apoiar para construir suas próprias

referências. Pois, apesar da energia das forças que a pressionam, a criança geralmente preserva a liberdade de suas escolhas e identificações. Porém, em certos casos patológicos, quando sua autoconfiança é muito frágil, ou a pressão do desejo exterior, muito forte e pouco diversificada, o leque de possibilidades se reduz, o que pode acarretar graves distúrbios de identidade. Na adolescência, a roupa acompanha as provações da puberdade, permitindo ao sujeito mascarar ou revelar sua sexualidade. O jovem se vê às voltas com a questão da autonomia em relação aos pais. A roupa torna-se, então, o carro-chefe dessa apropriação de si, multiplicando códigos e referências. As relações amorosas, mesmo na vida adulta, introduzem complicações e embaralham o jogo: a roupa seduz ou esconde, desvelando fantasias do casal. Lutos e perdas, assim como conquistas e rituais (formaturas, casamentos, batizados) também são marcados pelas roupas que usamos em cada ocasião, como telas nas quais dia após dia se inscrevem nossos sofrimentos e alegrias. ™ <

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AUDREY HEPBURN, com figurino de Bonequinha de luxo, 1961

miimnuimfimmiimminiimiim PARA SABER MAIS

Dispa-me! O que nossa roupa diz sobre nós. Catherine Joubert e Sarah Stern. Jorge Zahar, 2007.

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Diferentes sim, m a s o q u e isso quer dizer? ESTUDOS NEUROCIENTÍFICOS MOSTRARAM QUE UMA ÁREA CEREBRAL R E S P O N S Á V E L PELA C O G N I Ç Ã O SOCIAL E PELO J U L G A M E N T O

MORAL

É P R O P O R C I O N A L M E N T E M A I O R EM " P E S S O A S MAIS F E M I N I N A S " , I N D E P E N D E N T E M E N T E DE S E U S E X O

BIOLÓGICO

por Lise Eliot

A AUTORA LISE ELIOT é professora adjunta de neurociências da Chicago Medicai School da Universidade Rosalind Franklin e autora de Pink brain, blue brain - How small diferences grow into troublesome gaps - And what we can do about It (Houghton Mifflin Harcourt, 2009). 44

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or que mulheres não pensam como homens, e vice-versa? Eles se localizam no espaço sem grandes esforços, se destacam na elaboração de sistemas que exigem precisão, e lhes parece fácil tanto elaborar quanto compreender mapas. Elas são mais hábeis para memorizar palavras, discriminam melhor os fonemas, prestam atenção aos detalhes e se saem muito bem em tarefas que exigem coordenação motora fina. Elas conversam sobre seus sentimentos e fazem confidências sem grandes dificuldades. Eles preferem falar de temas concretos e se sentem perdidos quando são convocados a discutir o relacionamento. Em situações profissionais representantes do sexo masculino tendem a ser diretos, valorizam a execução de tarefas e a obtenção de resultados, Já o estilo feminino de gerenciamento costuma ser voltado para a consulta e a inclusão - afinal, quando se trata de empatia é difícil que um representante do outro sexo possa superá-las. Mesmo as estratégias de dominação são diversas: enquanto eles utilizam a autoridade e, em alguns

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discrepâncias - no desempenho escolar, na propensão a correr riscos, na competitividade, na empatia e no zelo, por exemplo - já que, embora sob alguns aspectos diluídas, elas se apoiam em aspectos neuroquímicos, anatómicos, culturais e evolutivos. Entre tantos campos de estudo e possibilidades de olhares, a cognição social é uma área na qual a pesquisa de diferenças sexuais cerebrais pode ser especialmente proveitosa. Mulheres de todas as idades superam homens em testes que exigem o reconhecimento da emoção ou relacionamento com outras pessoas. O aparecimento precoce de qualquer diferença entre os sexos sugere que essa característica é programada de forma inata - selecionada ao longo da evolução e fixada em nosso desenvolvimento comportamental por meio da exposição prénatal a hormônios ou da diferente expressão precoce de genes. À primeira vista, estudos do cérebro parecem oferecer uma saída para o antigo dilema entre natureza e criação. Qualquer discrepância na estrutura e ativação de cérebros masculinos e femininos é biológica (veja artigo na pág. 38). Entretanto, pensar que tais diferenças são exclusivamente inatas ou programadas é inválido, visto tudo que aprendemos sobre a plasticidade e maleabilidade cerebral. Afinal, sabemos que, de forma simples, experiências mudam nosso cérebro.

UM POUCO MAIOR

BILLY ELLIOT, DE 2000, dirigido por Stephen Daldry (acima), e Menina de ouro, de 2004, de Clint Eastwood apresentam protagonistas com interesses que desafiam estereótipos de género: o garoto é apaixonado por balé, e a moça por boxe

casos, até a agressão física, elas recorrem às habilidades verbais e, em certas situações, apelam para intrigas e manipulações. Há variações nas maneiras masculinas e femininas de olhar para si mesmo e para o mundo ao redor; há especificidades na forma de pensar, aprender, compreender e resolver problemas e, muitas vezes, até mesmo de sentir e desejar. Uma melhor compreensão das influências ambientais nos ajuda a analisar 46

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Estudos recentes, conduzidos por Peg Nopoulos, Jéssica Wood e seus colegas da Universidade de lowa, nos Estados Unidos, ilustram como é difícil desembaraçar as influências da natureza e da criação, mesmo no âmbito da estrutura cerebral. Num primeiro estudo, publicado em março de 2008, os pesquisadores revelaram uma descoberta: a subdivisão do córtex pré-frontal ventral (uma área envolvida na cognição social e no julgamento interpessoal) é proporcionalmente maior nas mulheres que nos homens. (O cérebro dos homens, aliás, é, ao todo, aproximadamente 10% maior que o das mulheres; portanto, comparações entre áreas cerebrais específicas devem ser colocadas em escalas proporcionais a essa diferença.) Essa subdivisão, conhecida como giro reto (GR), é uma estreita faixa do córtex cerebral

que margeia a linha central sob a superfície do lobo pré-frontal. Peg e Jéssica descobriram que o giro reto era cerca de 10% maior nas 30 mulheres que elas estudaram que nos 30 homens também estudados por elas (considerando o tamanho do cérebro deles). E mais: chegaram à conclusão de que o tamanho do GR se correlacionava com testes de habilidades sociais e de que as pessoas (de ambos os géneros) que tinham maiores pontuações em cognição interpessoal tendiam também a ter GR maior.

Em um artigo, Wood e seus colegas especulam sobre as bases evolucionárias dessa diferença sexual. É possível que, uma vez que mulheres são as educadoras primárias, seu sistema cerebral tenha sido programado para desenvolver GR maior, de forma a prepará-las para serem criadoras mais sensíveis. Sabe-se que hormônios sexuais pré-natais alteram o comportamento e certas estruturas cerebrais em outros mamíferos. Talvez esses hormônios - ou genes sexuais específicos - aumentem o

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Dois idiomas Mulheres e homens usam linguagens próprias - por isso nem sempre o entendimento é tão simples. Enquanto o discurso deles tende a se concentrar na hierarquia e na competição pelo poder, o delas é voltado ao objetivo de se aproximar ou se afastar do interlocutor. Ao falar, de alguma forma almejamos o poder e queremos nos conectar com os outros. Em minhas investigações tenho constatado que nuances na forma de homens e mulheres se expressar nos ajudam a esclarecer como o estilo de conversa de cada um revela modos diferentes de alcançar os mesmos objetivos. Em meus estudos, constatei um padrão paralelo nas conversas entre as mulheres e os homens: uma espécie de choque cultural baseado na diferença de géneros. Costumo ilustrar e definir esse fenómeno usando filmagens de vídeo de crianças em idade pré-escolar em um jardim de infância. Em uma cena, quatro garotinhos sentados juntos estão conversando sobre a altura da qual conseguem rebater uma bola. "A minha vai até aqui", declara um deles, elevando o braço acima da cabeça. "A minha chega até o céu", garante o segundo, apontando mais alto. O terceiro contrapõe: "A minha vai mais longe que o céu". Por fim, o quarto menino afirma: "A minha chega até Deus!". É óbvio que a conversa dos garotos é um jogo de hierarquia, no qual cada menino alega ser melhor que o anterior. Na mesma escolinha duas meninas estão sentadas diante de uma mesa pequena, desenhando. De repente, uma delas ergue a cabeça e diz (provavelmente se referindo a lentes de contato): "Você sabia que a minha babá, chamada Amber, já usa lentes?". A segunda garota parece surpresa no começo, mas se recompõe rapidamente e anuncia, com visível prazer: "Minha mãe também já usa lentes, meu pai também!". A pri-

meira garota ri, divertida, com a resposta espelhada, que até lexicalmente se ajusta à fala dela. A constatação de "similaridade" propicia às garotinhas satisfação semelhante à que os colegas do sexo masculino experimentam tentando se superar. Embora os movimentos específicos de conversa - superação em contraste com a chegada ao mesmo ponto - sejam diferentes, o que esses discursos diversificados têm em comum é que são rituais "disfarçados". O discurso dos homens costuma se concentrar na hierarquia - a competição pelo poder; enquanto as mulheres tendem a focar a conexão - na proximidade ou distância com outras pessoas. Porém, todas as conversas e todos os relacionamentos refletem uma combinação de hierarquia e conexão. Os dois aspectos não são excludentes; ao contrário, estão intimamente ligados. Afinal, em algum grau todos temos o desejo de sermos poderosos e buscamos a conexão com as outras pessoas. Os dois estilos de conversa, o masculino e o feminino, são simplesmente maneiras diferentes de atingir o mesmo objetivo. A família é o contexto privilegiado no qual podemos perceber que as mulheres também se concentram na hierarquia, e os homens na conexão - e de que forma essas relações se tornam mais óbvias e mais intensas em determinadas circunstâncias. Em especial, as irmãs fornecem uma visão dos relacionamentos entre mulheres, profundamente influenciados pela competição. DEBORAH TANNEN é professora de linguística da Universidade de Ceorgetown e autora de You were aJways mum'sfavorite!: Sisters in conwersation throughout their lives (Random House, 2009), entre outros livros.

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Desde bebes Meninos e meninas não são tão diferentes no início da vida no que diz respeito a emoções. Quando muito, sabe-se que os bebés do sexo masculino choram mais e fazem mais barulho que os do feminino. Ao crescerem, os garotinhos - muito mais que elas - são ensinados a esconder suas manifestações de medo, tristeza e ternura. É consenso entre os cientistas que a aprendizagem social em grande medida molda a disparidade entre as reações emocionais de homens e mulheres. O resultado disso é que eles se tornam menos expressivos e sensíveis aos sentimentos alheios. É quase certo que tal treinamento imprima sua marca na amígdala, uma das estruturas mais plásticas do cérebro. Deixemos de lado a lenda urbana de que "mulheres falam três vezes mais palavras por dia do que os homens". E vamos aos números reais: 16.215 para as mulheres e 15.669 para os homens, segundo um estudo conduzido pelo psicólogo Matthias Mehl, da Universidade do Arizona, em 2007, do qual participaram 400 universitários monitorados por gravadores digitais. As mulheres de fato superam os homens na maioria das avaliações - habilidades de fala, leitura, escrita e ortografia desde o início da infância (e ao longo da vida). Mas a diferença, em geral, é pequena e se altera com a idade. As variações na linguagem surgem já nas primeiras fases do desenvolvimento. As garotinhas começam a falar cerca de um mês antes dos meninos e, ao entrar na pré-escola, estão por volta de 12% à frente deles nas habilidades de leitura. Ao longo do período escolar, a vantagem feminina na leitura e na escrita continua a se ampliar, até o último ano do ensino médio. Dados reunidos pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos por várias décadas levam a uma conclusão alarmante: o número de meninas que se formam como boas leitoras é 47% maior que o de meninos. E no que se refere à escrita o desnível é ainda maior. A distância, entretanto, parece diminuir na idade adulta. A pontuação média de uma mulher é superior à de apenas 54% dos homens, numa avaliação combinada de todas as habilidades verbais, conforme uma análise feita pela psicóloga Janet Hyde e seus colegas da Universidade de Wisconsin-Madison. O fato de a variação ser tão pequena pode explicar por que os fundamentos neurais da diferença na linguagem e no domínio da leitura e da escrita ainda não foram descobertos. Em 2008, a neurocientista Iris Sommer e seus colaboradores do Centro Médico Universitário de Utrecht, na Holanda, desmentiram a teoria popular de que as mulheres usam os dois lados do cérebro no processamento da lingua-

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gem enquanto os homens recorrem principalmente ao esquerdo. Na análise de 20 estudos de ressonância magnética funcional, os pesquisadores não identificaram nenhuma diferença no grau de lateralização da linguagem entre ho- * mens e mulheres. Da mesma forma, as evidências de que meninas e mulheres apresentam estrutura neurológica mais adequada à leitura são escassas. Se a habilidade está relacionada a algo, trata-se simplesmente do quanto a criança lê por prazer fora da escola. E elas lêem mais que os meninos. Desde o nascimento, a exposição de uma criança à linguagem é o fator mais importante na determinação de suas habilidades verbais futuras. Estudos amplos, realizados em vários países, demonstram que o sexo determina no máximo 3% da variação na habilidade verbal das crianças na faixa de 1 a 3 anos, enquanto o ambiente e a exposição à linguagem são responsáveis por pelo menos 50%. Portanto, os meninos terão mais chances de desenvolver a linguagem, a leitura e a escrita desde cedo se forem expostos pelos pais a um ambiente rico em conversas, livros, canções e histórias. Livros de versos ou que explorem o alfabeto são ótimos para treinar a consciência fonológica - a conexão entre sons e letras que representa a primeira dificuldade na aprendizagem da leitura. Comparados às garotas, eles demonstram uma preferência maior por outros géneros - especialmente pela não ficção e por histórias cómicas e de ação; assim, fazer com que leiam pode ser, em grande medida, uma questão de encontrar livros e revistas que lhes despertem o interesse. Escolas com bons programas de leitura conseguem eliminar a diferença no desempenho masculino e feminino, provando que o desnível causador de tantas preocupações é mais uma questão de educação e prática do que de potencial inato. Se as meninas se saem melhor nas habilidades verbais, os meninos se destacam no domínio espacial - e na capacidade de visualizar e manipular objetos e trajetórias no tempo e no espaço tridimensional. As diferenças sexuais nas facilidades espaciais estão entre as maiores discrepâncias cognitivas. Em média, um homem é capaz de realizar rotações mentais (isto é, imaginar como seria o aspecto de um objeto complexo depois de girado) melhor que 80% das mulheres.

desenvolvimento do GR feminino (ou diminua o masculino), levando ao aparecimento de diferenças inatas na cognição social. A melhor maneira de testar essa hipótese é olhar as crianças. Se as diferenças sexuais no GR estiverem presentes no início da vida, a força da ideia de programação inata se fortalece. Peg e Jéssica realizaram um segundo estudo, junto com a colega Vesna Murko, no qual mediram as mesmas áreas do lobo frontal de crianças de 7 a 17 anos. Os resultados, porém, foram inesperados: descobriram que o GR é, na verdade, maior em meninos! O mesmo teste de consciência interpessoal mostrou que a habilidade nessa área está correlacionada ao GR menor, e não maior, como em adultos. As autoras reconheceram que suas descobertas são complexas e discutem se a reversão entre adultos e crianças reflete a maturação tardia do cérebro dos meninos, comparado ao das garotas. (Cérebros adolescentes passam por uma poda substancial para redução no volume da matéria cinzenta - nesse processo as meninas antecedem dois anos os meninos). Entretanto, em ambos os estudos, Jéssica adicionou outro teste que nos lembra de ter cautela ao interpretar qualquer descoberta em relação a diferenças sexuais entre os cérebros. Em vez de simplesmente dividir os voluntários entre homens e mulheres, ela também deu a cada participante um teste psicológico de "género": um questionário que avalia o grau de masculinidade ou feminilidade de cada um independentemente do sexo biológico. E tanto em adultos como em crianças essa medição se correlaciona também com o tamanho do GR - o mais desenvolvido está relacionado à personalidade mais feminina em adultos e mais masculina em crianças.

NATUREZA O U EDUCAÇÃO? Em outras palavras, parece haver vínculo entre o tamanho dessa área e a percepção social, mas não se trata de simples diferença macho-fêmea. Na realidade, o tamanho do giro reto parece refletir a feminilidade de uma pessoa, mais do que o sexo biológico: mulheres "menos femininas" apresentam GR correspondentemente menor, comparadas às "mais femininas", e idem para homens.

Essa descoberta de que a estrutura do cérebro se correlaciona tão bem, ou até melhor, com o "género psicológico" que com o sexo biológico deve ser levada em consideração quando comparamos cérebro de homens e cérebro de mulheres. Sim, pois eles são psicologicamente diferentes, e os neurocientistas têm comprovado isso. Porém o fato de a diferença ser biológica não significa que seja programada. Os traços de género dos indivíduos - suas preferências por roupas femininas ou masculinas, carreiras, hobbies e estilos interpessoais - são inevitavelmente moldados pela criação e pelas experiências, e não pelo sexo biológico. Da mesma forma, os cérebros que produzem os comportamentos masculinos ou femininos devem ser influenciados - pelo menos em algum grau - pela soma das experiências de cada um como meninos ou meninas. Assim, cada vez que os cientistas relatam uma diferença entre cérebros segundo o sexo, cabe o questionamento: "natureza ou criação?". Afinal, o GR maior das mulheres é a causa de sua sensibilidade social ou consequência de uma prática de busca por percepções e respostas empáticas? Jéssica e seus colegas fazem parte dos poucos neurocientistas que analisam as diferença entre o cérebro masculino e o feminino e sua relação com "tipo de género", em vez de se basear estritamente no sexo biológico. Suas descobertas não provam que o aprendizado sustenta diferenças entre os cérebros masculino e feminino. E desafiam a ideia de que essas discrepâncias são simplesmente um produto do cromossomo Y. Ou X. mec

ELES ODEIAM PEDIR INFORMAÇÃO: quando não conseguem encontrar o caminho homens e mulheres têm formas diversas de solucionar o problema

iimiiiimimmmiiimimmiiimmi PARA SABER MAIS

Meninos e meninas. David

Dobbs. Especial Mente e

Cérebro n°10, págs. 56-61.

Arquitetura da diversidade. Larry Cahill. Especial Mente e Cérebro n°10, págs. 42-49.

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Naqueles dias RELACIONADO A INCOMODO E DESCONFORTO

FÍSICO

PELA M A I O R I A DAS M U L H E R E S , O P E R Í O D O M E N S T R U A L T E M IMPLICAÇÕES EMOCIONAIS, SOCIAIS, PSICOLÓGICAS E SEXUAIS Q U E N E M S E M P R E SÃO LEVADAS EM C O N T A

por D a n i e l a O v a d i a

M

uitas vezes sentido como um problema a ser contornado ou, mais raramente, como símbolo do poder reprodutivo feminino, o ciclo menstrual Dcupa parte considerável da vida e dos pensamentos das mulheres. "Constrangimento e vergonha ainda cercam um eventofisiológicoque afeta, todo mês, metade da população mundial e torna complexo o estudo sobre como é vivenciada, I por exemplo, a menarca, ou seja, o início do primeiro ciclo", jj afirma a psicóloga Anne Burrows em artigo noJournal ofRepro- | ductive and Infant Psychology. A pesquisadora se propôs avaliar | a experiência da primeira menstruação e para isso elaborou S questionários voltados a estudantes adolescentes. No entanto, ° ela teve de enfrentar a recusa de pais e professores que vetaram a >participação das jovens. "Apesar dos avanços nas mais diversas \ áreas, há coisas das quais ainda é difícil falar", reconhece Anne. 1 Mas à revelia dessa atitude as meninas constroem a própria \ vida social e seus relacionamentos em função do calendário f do ciclo, evitando viagens, festas, encontros, exames escolares -I e competições esportivas nos períodos "de risco". | As lembranças ligadas ao evento repercutem na percepção õdo próprio corpo, do sexo e da reprodução. Um estudo do | psicólogo Davis Pillermer publicado na década de 80 noJour- l nal of Adolescence sugere que a menarca tem, para a maioria * das mulheres, a nitidez típica das memórias decorrentes de 5 eventos estressantes. Diversas pesquisas revelam que sin- § 0

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DANIELA

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A AUTORA ovADiAéjornalista.

tomas relacionados ao início do sangramento menstrual são sentidos de maneira mais intensa por mulheres que consideram o período um estorvo. Esse é o caso de muitas adolescentes. Entre elas, é comum o pensamento recorrente de não parecer "menstruada", especialmente aos olhos dos homens - com frequência, absorventes são escondidos nas divisões da bolsa, com receio de que alguém possa vê-los, e suéteres são amarrados na cintura nos dias de sangramento. A maioria delas tem grande preocupação em Illllffllllllf 1

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Fértil e i m p u r o As poucas referências sobre os ciclos femininos nos textos bíblicos aludem ao sangue menstrual como uma substância impura que deve ser evitada pelos homens. O livro Levítico, parte do Antigo Testamento, proíbe os maridos de tocar suas mulheres, objetos que elas tenham segurado ou até mesmo se sentar em lugares onde elas estiveram. Ainda hoje judias ortodoxas realizam mensalmente o ritual do mikvé, um banho de imersão após o último dia do sangramento. A primeira menstruação, a menarca, tem grande significado simbólico em várias culturas. Nas tribos guajajaras, um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil, as adolescentes são recolhidas em ocas por vários dias, alimentam-se apenas de peixe e arroz e tomam banhos de ervas. De cócoras, vertem seu sangue para a terra - uma espécie de retribuição à energia vital. No Quénia, a menarca é festejada por toda a comunidade e a jovem é submetida a rituais de passagem. Em algumas cidades da Sardenha há o costume de dar às meninas um maço de flores brancas, convite implícito a conservarem a pureza.

MALDIÇÃO DE EVA: segundo o Velho Testamento, o sangramento menstrual e as dores do parto são castigos divinos pelo pecado original 52

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se mostrar "limpas" durante o período de sangramento, como mostra uma pesquisa realizada no final dos anos 90 por psicólogos da Universidade de Massachusetts. Eles entrevistaram estudantes americanas para avaliar qual tipo de informação priorizavam sobre o ciclo menstrual. A maioria delas mostrou mais interesse por aspectos como marcas de absorventes cuja publicidade garantia mais eficiência na retenção do fluxo ou sabonetes de higiene íntima (veja quadro na pág. 55). Apenas uma entre as 157 entrevistadas mencionou que gostaria de entender mais sobre a fisiologia feminina e o ciclo reprodutivo. Duas disseram que era importante orientar as mais jovens sobre maturação sexual. Nenhuma citou a necessidade de falar sobre métodos anticoncepcionais e de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). A mancha vermelha visível na roupa é uma prova da natureza sexuada. Para Anne, a rejeição social do ciclo feminino não está necessariamente relacionada ao tabu da sexualidade. "Hoje se fala de sexo mais livremente, e muitas meninas não hesitam em buscar uma imagem mais 'adulta', usando maquiagem e adotando determinados comportamentos, por exemplo. Entretanto, a menstruação continua a ser vivenciada com vergonha", diz Anne. Em 2002, a revista PsychologfofWoman Quarterly divulgou um experimento que analisou como a menstruação é vista socialmente. Voluntárias foram orientadas a deixar cair da bolsa um absorvente ou uma fivela de cabelo durante uma simulação de reunião de trabalho da qual participavam homens e mulheres. Em seguida, os participantes do sexo masculino foram convidados a fazer uma avaliação das competências das que deixaram cair os objetos: a voluntária que recolheu o absorvente do chão foi considerada menos eficiente. Um dado interessante: em entrevistas após o experimento, homens que presenciaram o incidente com o absorvente revelaram maior tendência a julgar a colega como elemento passivo do grupo, menos útil e pouco apta a tomar decisões. Segundo a psicóloga Tomi-Ann Roberts, uma das autoras do estudo, apesar de as mulheres ocuparem cada vez mais posições de liderança e serem reconhecidas pelos homens como iguais no ambiente de trabalho, a "pré-memória" da existência do ciclo, acionada durante o experimento, remete a padrões ancestrais de organi-

f Em u m experimento que s i m u l o u uma reunião de trabalho, participantes do sexo masculino avaliaram de f o r m a bastante negativa u m a jovem que deixou u m absorvente cair d a bolsa ADOLESCENTE DE 13 ANOS cumpre o ritual chhaupadi em aldeia do Nepal: nessa tradição hindu, as garotas devem ficar isoladas e protegidas dentro de casa quando menstruadas

zação social e preservação da espécie: enquanto os homens defendiam o grupo e saíam para caçar, as mulheres, que abrigavam os filhos no ventre, desempenhavam tarefas consideradas secundárias, como cuidar dos mais jovens e preparar os alimentos.

FLUTUAÇÕES HORMONAIS Dois anos depois, Tomi-Ann conduziu outra pesquisa, dessa vez analisando a percepção das próprias mulheres sobre a relação entre menstruação e o conceito de feminilidade passiva, associado à vulnerabilidade e à necessidade de se apegar ao outro. Segundo Sigmund Freud, a "feminilidade primária" é rechaçada por ambos os sexos, pois remete à exclusão do universo fálico, simbolicamente relacionado à força e à potência. Com base nessas ideias, Tomi-Ann pediu a voluntárias que respondessem a um questionário que avaliava seus sentimentos em relação ao ciclo menstrual e à tendência a adotar condutas sensuais fundamentadas na necessidade de obter o reconhecimento e a proteção da figura masculina. Os resultados revelaram que as mulheres que mais aderiam a esse tipo de comportamento eram as que

mostravam maior repulsa em menstruar. A maioria das mulheres relata sentir desconforto durante o período menstrual - dores abdominais e de cabeça e cansaço físico são os sintomas mais comuns. No entanto, um pequeno percentual (cerca de 10%) experimenta sensação de euforia e melhora da produtividade nos dias de sangramento. Segundo os psiquiatras Camille Logueb e Rudolf Moosb, da Universidade Stanford, convicções e expectativas em relação ao ciclo menstrual influenciam esses sentimentos tanto quanto as variações hormonais. Entretanto, outros estudos frisam que as flutuações dos hormônios femininos impactam não só o humor, mas o desempenho cognitivo. No final dos anos 80, uma pesquisa da Universidade de Ontário, no Canadá, publicada na revista Brain and Cognition, mostrou que a capacidade de concentração e raciocínio era relativamente menor durante a fase lútea do ciclo, na qual há aumento da produção de progesterona, hormônio que prepara o corpo para uma possível gestação. Outros experimentos, realizados com primatas, indicam influência dos hormônios sexuais no funcionamento do cérebro - o que parece não se restringir às mulheres. 53

ÁREAS CEREBRAIS LIGADAS ÀS EMOÇÕES, como a amígdala e o córtex orbitofrontal, encontram-se mais ativas durante a fase folicular do ciclo, na qual há maiores índices de estrógeno e menores quantidades de progesterona no sangue

Pesquisas recentes identificaram alterações de humor masculino relacionadas às variações da quantidade do hormônio testosterona. "É um fenómeno menos preciso que o feminino, mas parece existir. Voluntários têm revelado queda no desempenho cognitivo nas fases em que há menor concentração de testosterona no sangue. É possível que as variações emocionais e cognitivas, portanto tempo atribuídas à flutuação hormonal nas mulheres, sejam comuns a ambos os sexos", diz o psicólogo Marco dei Giudice, pesquisador do Centro de Ciência Cognitiva da Universidade de Turim, na Itália. iiiiiijiiitjiiimmmmijiiimmiii

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Segundo ele, nas mulheres o pico de testosterona (elas também produzem esse hormônio, em menores quantidades) coincide com o do estrógeno, responsável pelas características sexuais femininas. Justamente nessa fase se verifica uma melhora do desempenho cognitivo em testes de habilidades visuais e espaciais. Contudo, seria precipitado associar a testosterona a maior agilidade mental. Em experimentos com mulheres que já passaram pela menopausa e receberam doses de testosterona, não se verificou nenhum efeito sobre o desempenho cognitivo. Estudos de neuroimagem têm contribuído para analisar alterações neurais relacionadas ao ciclo menstrual. Ao observar imagens do cérebro de voluntárias captadas ao longo do mês, o neurocientista Jean-Claude Dreher, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, em Lyon, constatou que áreas neurais ligadas às emoções, como a amígdala e o córtex orbitofrontal, são ativadas mais facilmente durante a fase folicular, quando há no sangue maiores índices de estrógeno e menores quantidades de progesterona. As participantes assistiram a vídeos em que pessoas ganhavam e perdiam prémios em máquinas caça-níqueis, de forma a estimular seu sistema de recompensa. "A antecipação de vitórias, do

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S e m d i r e i t o d e "ser m o c i n h a " O nome do primeiro homem, Adão, em hebraico, está relacionado tanto a adamá, "solo vermelho", quanto a adom, "vermelho", e dam, "sangue". Segundo o mitólogo americano Joseph Campbell, o termo evoca o sangue menstrual e o poder de dar a vida. Estima-se que tenha surgido há mais de 300 mil anos. Na mitologia grega, a deusa Reia (ou Cibele, entre os romanos), a mãe de todos os deuses, exprime essa veneração na própria etimologia de seu nome, já que a palavra "reia" significa "terra" e está associada à ideia de fluxo e fertilidade. Os gregos associavam as fases da Lua ao ciclo menstrual e nesse período promoviam nos templos dedicados a Hera - uma das 12 divindades do Olimpo (equivalente a Juno entre os romanos), casada com Zeus, considerada a protetora das mulheres - rituais de purificação nos quais a figura feminina tinha papel importante. "Nas sociedades contemporâneas, entretanto, menstruar tornou-se um perigo", afirma a psicóloga junguiana Lúcia Rosenberg, mestre em psicologia analítica, "O sangue parece carregar em si algo de diabólico: há 54

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o risco do constrangimento, do descontrole; mas, contraditoriamente, muitas meninas, incentivadas pelos adultos e pela mídia, desde muito jovens se preocupam em parecer mais velhas e terminam 'ficando mocinhas' antes mesmo da menarca." Autora do livro Cordão mágico - Histórias de mães e filhos (Ofício das Palavras, 2009), Lúcia ressalta o período menstrual como um marco da natureza, intimamente vinculado ao poder feminino da criação. "Simbolicamente, a menstruação está ligada à ideia de iniciação, à lua nova; é um tempo de não fertilidade, de reciclagem, no qual corpo e psiquismo precisam de uma pausa", ressalta. "Se a mulher puder se dar o direito de um pouco de recolhimento nesses dias, será mais fácil encarar essa fase como um momento de conexão interna", sugere. "É possível que os outros não compreendam essa necessidade nem nos ofereçam esse espaço, mas é preciso começar consigo mesma e, em meio a tantos compromissos, encontrar um lugar para ficar em silêncio dentro de nós." (Por Gláucia Leal)

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W a l t D i s n e y , p u b l i c i d a d e e alimentação d e e s t i g m a s Um líquido azul e transparente entornado sobre a su1946, a companhia americana Kotex lançou, em parceria perfície de algodão indica seu potencial de absorção. com a Walt Disney Corporation, o filme educativo A história Lembrou-se dos comerciais de absorventes descartáveis? da menstruação (The story of menstruation), que se tornou Não é de hoje que a exibição do sangue é evitada pelas parte do programa de educação sexual de muitas escolas marcas que tentam conquistar suas consumidoras. Na nos Estados Unidos. Enquanto são exibidas imagens de década de 50, um poster publicitário exibia uma bela muadolescentes de pele alva e bem penteadas que lembram lher vestida de branco e, discretamente, no canto direito a personagem Branca de Neve, a narradora explica o papel do anúncio, destacava-se o logo da da hipófise no controle do ciclo menstruprimeira linha de descartáveis comeral. Os órgãos sexuais externos não são reE u sou cializada no Brasil: o Modess, da mulpresentados e os internos aparecem em secretária tinacional Johnson & Johnson, uma do g e r e n t e . . . um corpo de contornos embaçados. Não verdadeira evolução em relação às toahá orientação sobre métodos contracepIhinhas laváveis, chumaços de algodão tivos e doenças sexualmente transmissíe outros improvisos até então usados veis. Fala-se brevemente da importância para conter o sangue menstrual. da menstruação para a gravidez, mas há Um estudo sociológico apresentado atenção especial em instruir as jovens a ( p r e c i s o e s t a r s e m p r e e m forma!) em 2005 no encontro da American Um» po*«:So invejável e um óUmo chefe controlar as alterações de humor e a tenimas exigente!) É necessário e*tar sempre stlettn e bem disposta. Por Uso, Sociological Association analisa protmitut ero Modess para meu conforto tar parecer agradáveis "naqueles dias". "naqueie* ala*". Modess é super-absorvente è acapia-M- táto bem ao corpo! pagandas e panfletos informativos Segundo o estudo da American SocioloDe concepção n e d m u . Modess sobre o ciclo feminino produzidos nos v e i e Jogado lor», gical Association, dos anos 70 em diante Estados Unidos a partir de 1942. Para os anúncios passaram a aludir à aparente vender produtos sempre mais seguros libertação das mulheres. Lindas jovens são e à prova de "acidentes", a indústria retratadas enquanto desenvolvem todo apostou na ideia de que sujar a roupa tipo de atividade física ou intelectual apesar ANÚNCIO DOS ANOS 50 alude à necessidade de com sangue era algo desastroso. Em da menstruação. parecer limpa e disposta no mercado de trabalho

prazer, ativa regiões associadas às emoções. Isso ocorre quando há maior quantidade de estrógeno. A brusca diminuição desse hormônio pouco antes e durante a menstruação, porém, parece convergir para uma espécie de 'trégua' dos circuitos relacionados ao prazer", diz Dreher. A descoberta pode ajudar a entender comportamentos patológicos, tanto em homens como em mulheres. Estudos anteriores ao de Dreher constataram que as mulheres respondem de forma diferente a drogas, como a cocaína, ao longo do ciclo. As mudanças na ativação de estruturas como a amígdala, por exemplo, poderiam explicar por que algumas psicoses, como a esquizofrenia, costumam se manifestar mais tarde nas mulheres. Os hormônios femininos podem até mesmo influenciar a capacidade de memorização. Em artigo publicado em 2008 no Hippocampus, neurocientistas do Hospital Presbiteriano de Nova York sugerem que o volume do hipocampo,

fundamental no armazenamento de informações, muda no decorrer do ciclo. Os resultados foram obtidos por meio de análise morfométrica voxel a voxel - técnica que permite avaliar o volume das estruturas cerebrais por meio de ressonância magnética. De acordo com os autores, os hormônios interfeririam na nitidez com que alguns eventos são registrados. Apesar das descobertas, ainda não é possível afirmar que o cérebro masculino e o feminino funcionam de maneira distinta, e muito menos que essa diferença se deve aos hormônios sexuais. Como eles influenciam a formação do embrião, podem ter efeitos sobre a plasticidade neural na vida adulta, mas não há prova consistente de que suas oscilações ao longo do ciclo interfiram nas habilidades cognitivas. "Além disso, o modo como as mulheres vivem a própria condição fisiológica pode ser decisivo em seu desempenho intelectual e em sua interação social durante o período menstrual", diz Del Giudice. ™&

iiiimimmmumimmimimmmii PARA SABER MAIS

Perigo para elas. Emily Anthes. Mente e Cérebro n° 212, setembro de 2010.

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As bruxas e a s faces do feminino NA E U R O P A D O S É C U L O 1 5 C I R C U L A V A M M I T O S S O B R E B E L A S J O V E N S S O L T E I R A S Q U E SE R E U N I A M N O S C A M P O S PARA A D O R A R O D I A B O ™ E ATÉ H O J E ESSAS C R E N Ç A S P E R S I S T E M . A A U T O N O M I A E A S E X U A L I D A D E DA M U L H E R F O R A M , P O R MUITO T E M P O , C O N D E N A D A S E RELACIONADAS A PRÁTICAS PAGÃS -

ASSOCIAÇÃO

C A R R E G A D A DE FANTASIA E E R O T I S M O

por Isabelle A n c h i e t a

. or que as mulheres são as principais adeptas fdas superstições malignas?" "Seriam elas conduzidas pelo demónio ao pecado ou seriam, por sua própria vontade, as responsáveis por seduzir, fazer o mal e pecar?" Essas são duas das dezenas de questões levantadas pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger no século 15, no livro Malleus maleficarum, uma espécie de manual prático sobre como reconhecer uma bruxa e se proteger contra ela. Organizado em perguntas e respostas, o documento escrito sob encomenda do papa Inocêncio VIII apontava como fortes suspeitas de praticar feitiçaria mulheres solteiras, sem filhos e com função de destaque em suas comunidades, como parteiras ou conhecedoras das faculdades medicinais das ervas. Nesse mesmo período, as índias das Américas recémdescobertas fascinavam e confundiam os europeus. Em uma xilogravura de 1509 que ilustra as narrativas do explorador italiano Américo Vespúcio, três mulheres tupinambás seduzem um branco enquanto outra prepara o golpe mortal em sua cabeça com um tacape - ação que tradicionalmente

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A AUTORA

ISABELLE ANCHIETA é jornalista, doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMC). 56

I mentecérebro I Psicologia do feminino

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das feiticeiras é, sem argumentação mais aprofundada, relacionada pelos autores do manual de caça às bruxas ao incontrolável desejo sexual feminino. Havia um forte componente erótico nas confissões. Na ata de uma das primeiras execuções de que se tem registro - a da francesa Angèle de la Barthe, em 1275 - , a acusada dizia haver conhecido o "pênis do diabo", descrito como gigantesco (por vezes se dividia em dois órgãos), capaz de ejacular de uma só vez quantidade de esperma que excedia a de mil homens. Algumas afirmavam que o membro pendia do traseiro do demónio - imagem corriqueira nas obras que retratam rituais sabáticos, nas quais mulheres beijam o ânus de um ser metamorfoseado em homem e bode.

PERSONIFICAÇÃO DOS "VÍCIOS" DO NOVO MUNDO: as tupinambás do Brasil colonial eram retratadas como protagonistas de rituais de canibalismo

caberia a outro homem. Essa imagem é emblemática, pois elege a figura feminina como representante dos vícios do Novo Mundo e de valores que os cristãos europeus deveriam repudiar e combater. Não por acaso, após o descobrimento, nota-se um aumento das produções artísticas que retratam as feiticeiras europeias como adeptas de danças circulares, de rituais antropofágicos e do uso de caldeirões para fabricar poções destinadas a provocar doenças e abortos, o que indica contaminação com o estereótipo das tupinambás, descritas como protagonistas das cerimónias em que esquartejavam e cozinhavam o corpo do inimigo, usando suas vísceras na preparação do cauim, uma bebida ritual.

DESEJO REPRIMIDO Dissimulação, luxúria, ambição e infidelidade são características atribuídas às bruxas europeias e às índias. Sua beleza é tratada como armadilha. Um imaginário temido que repercute o medo original de Eva e do pecado, a "costela torta" de Adão. Sua ambição e curiosidade estariam implícitas na conduta de suas descendentes. Em uma passagem do Malleus, os inquisidores alertam: "Os homens são capturados quando veem e ouvem as mulheres. Como diz São Bernardo, 'seu rosto é um vento quente, a sua voz, um apito das serpentes'". A razão do aparecimento da tipologia social 58

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Os supostos relatos de experiências em êxtase das "bruxas" poderiam ser fruto de alucinações influenciadas por lendas sobre a busca do prazer e o desprezo das convenções sociais pelas praticantes de magia. Os depoimentos denotam não só fantasias femininas, mas também masculinas, especialmente em relação ao órgão sexual. Como ressalta o historiador David Friedman, autor de Uma mente própria - A história cultural do pênis (Objetiva, 2002), "cinco séculos antes da caça às bruxas as mulheres eram consideradas insaciáveis; acreditava-se que eram capazes de tornar um homem impotente e até mesmo de fazer seu pênis desaparecer". Essa noção se traduziu em práticas sociais curiosas no período - alguns homens exibiam por cima da calça falos feitos de tecidos de cores chamativas, moldados em forma de ereção. "A primeira peça na armadura de um guerreiro", ironizou o escritor francês François Rabelais. O imaginário da bruxaria evidencia a transmissão inconsciente de construções populares - c o m o as histórias de mulheres que se reuniam para praticar orgias e oferecer crianças ao demónio nos campos (na verdade nunca comprovadas, mas circulavam em locais distintos da Europa) - e de mitos clássicos, como o da deusa pagã Diana, guerreira que não se submetia aos homens e montava altiva em seu cavalo, imagem que remete ao domínio da mulher na relação sexual, por cima do parceiro. A própria vassoura, aliás, é um símbolo fálico. "São as bruxas culpadas ou vítimas do demónio?", perguntam os autores do Malleus.

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Vítimas p e r f e i t a s d a Inquisição Em um documento de 1233, o papa Gregório IX admitiu a existência do sabá - uma festa noturna na qual homens e mulheres prestavam homenagem a divindades femininas pagãs, com sacrifícios de animais, uso de bebidas alcoólicas e orgias sexuais. Essas reuniões nunca foram comprovadas, mas possivelmente os boatos surgiram de histórias sobre costumes antigos, presentes em muitas culturas. As deusas representavam fertilidade, boas colheitas e equilíbrio da natureza. No entanto, a Europa vivia um período histórico e político delicado: havia a ameaça das invasões dos bárbaros, temidos tanto pela violência quanto pelas religiões que propagavam. Obviamente a Igreja enxergava essas crenças como ameaça à sua hegemonia, por isso decidiu combatê-las com violência. A alta cúpula da Igreja, com apoio de várias monarquias europeias, criou uma instituição para tentar suprimir a heresia, a Inquisição, que adquiriu plena autonomia para decidir o que era suspeito e qual pena devia ser aplicada. Era preciso, antes de tudo, eleger um alvo para as perseguições - e a primeira edição do Malleus maleficarum não deixou a menor dúvida: "Mentirosa por natureza, ela o é em sua linguagem; excita com seus encantos. (...) Matam, efetivamente, porque esvaziam a bolsa, tiram a força, obrigam a perder a Deus", destilaram os autores do manual sobre a figura feminina. Prevalecia o senso comum de que a mulher se sentia mais atraída pela bruxaria. Segundo o Malleus, por ser "mais crédula, menos experiente, mais maldosa e predisposta à vingança". Elas se tornaram vítimas perfeitas de uma sociedade tomada pelo medo da guerra e da fome - uma neurose coletiva que transformou juízes e cidadãos comuns em torturadores, fiéis seguidores das hoje absurdas instruções do Santo Ofício, que encontrou na credulidade do povo uma forte aliada para as repressões. Um dos critérios para reconhecer uma feiticeira, por exemplo, era amarrar pés e mãos da suspeita e atirá-la na água. Se fosse culpada, deveria flutuar; inocente, afundaria. A prova era repetida três vezes, de forma que a ré terminava se afogando. Se continuasse viva, era levada para a fogueira. Critério semelhante era aplicado às lágrimas derramadas durante rituais de tortura: se a vítima chorasse, era uma confissão, sinal da

astúcia feminina, uma tentativa de comover os inquisidores. Caso contrário, significava que estava tomada por um endurecimento diabólico. Dentre os sentenciados à fogueira, estima-se que mais de 8 0 % eram do sexo feminino. Paradoxalmente às descrições do Malleus, que apontava as mulheres jovens e bonitas como principais emissárias do demónio, a maioria das executadas na forca ou na fogueira tinha mais de 60 anos. Eram, em geral, viúvas, sem chances de se casar, ter filhos, ou seja, um peso para parentes ou vizinhos - que muitas vezes eram os autores das denúncias. Não raro, quando surgia uma suspeita de bruxaria em um vilarejo ou cidade, surgiam várias outras acusações no mesmo lugar. Quase sempre as suspeitas eram presas e a comunidade aguardava ansiosa pelo julgamento, descrito por historiadores como um grande evento. (Da redaçao)

PINTURA DO SÉCULO 17: os sabás excitavam a imaginação do povo e das instituições religiosas

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H i s t e r i a : o s demónios r e p e n s a d o s Em 1676, na França, uma mulher de 46 anos foi queimada em praça pública, acusada de bruxaria. No entanto, ela se assemelhava muito pouco à imagem da feiticeira libertina que chegava aos sabás montada em um cabo de vassoura. Segundo os depoimentos de testemunhas, Marie d'Aubray, marquesa de Brinvilliers, apresentava contrações nervosas frequentes na face e, não raro, convulsões. Tinha um histórico de violência sexual e confessou que planejou envenenar o pai, pois ele era contra seu relacionamento com um jovem oficial. Condenada à fogueira, a marquesa de Brinvilliers, se fosse examinada dois séculos depois pelo médico Jean-Martin Charcot (1825-1893), no hospital francês La Salpêtrière, teria seus sintomas exibidos em uma aula para médicos recém-formados, entre eles Sigmund Freud (1856-1939). No século 19, os casos de bruxaria e possessões demoníacas migraram dos domínios da religião e da lei para o da medicina. As visões de Satanás e os sintomas físicos de uma atuação maligna passaram a ser, aos poucos, cogitados como alucinações e sintomas de patologias que mal começavam a ser identificadas, como epilepsia e histeria. Charcot, aliás, analisava registros de antigos processos de bruxaria em suas aulas sobre doenças do sistema nervoso, apontando sinais de possíveis distúrbios nas acusadas. Freud se interessou especialmente pelos casos de histeria - um desafiador conjunto de sintomas, sem causa orgânica aparente, que envolvia desde alucinações até a paralisia de algumas partes do corpo, mais frequente em mulheres. Sob a influência de Charcot, o médico austríaco usou a hipnose para tentar descobrir vivências dolorosas do

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passado de suas pacientes, muitas vezes esquecidas, o que ele chamava de "trauma". Segundo Freud, ao se lembrarem do evento, elas reviveriam as emoções que não puderam expressar de forma adequada no passado. Surgiam assim a noção de recalque e o tratamento centrado na fala, fundamentais na psicanálise. Diante de desejos intensos e repressões igualmente fortes, a organização psíquica da histérica elabora fantasias e se manifesta em somatizações. Uma "teatralização" que, segundo sugerem documentos históricos sobre os grandes julgamentos de feitiçaria, encontrou um público sedento pelo bizarro e o espetacular. E, nesse sentido, nada mais sedutor que a bruxaria. "A histeria é uma forma específica de se relacionar com o outro. O sintoma explicitado no corpo pode ser considerado como instrumento a mais para tentar estabelecer vínculos", define o psicólogo Fábio Riemenschneider, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), autor de Histeria, para além dos sonhos (Casa do Psicólogo, 2004). Segundo o psicólogo, essa complexa engrenagem tem uma peça fundamental: o intenso - e recalcado - desejo pela figura parental do sexo oposto durante a infância, o que Freud definiu como "complexo de Édipo". Esse conflito psíquico se manifesta principalmente na sexualidade. É uma queixa pela falta do objeto amado e desejado, que se reflete na criação de fantasias, nos atos (falhos ou não) e na busca por formas alternativas de satisfação da fantasia edípica. "Certamente, muitas das 'bruxas' foram queimadas por seus sintomas e não por seus supostos poderes mágicos", diz Riemenschneider. (Da redação)

A questão retoma a ambígua relação entre Eva e a serpente, na qual a mulher de Adão, ao mesmo tempo que é seduzida, também induz o companheiro a pecar. As bruxas, igualmente, eram retratadas tanto como donzelas ludibriadas pelo diabo quanto como as próprias protagonistas do mal, responsáveis pela impotência masculina e pela infertilidade das outras mulheres. Ainda, a nudez das ameríndias remetia simultaneamente ao paraíso, um novo Éden, e ao inferno, terreno fértil para os ritos diabólicos. A ligação com a víbora na passagem bíblica foi habilmente associada à perfídia, falha de caráter "mais frequente nas mulheres que nos homens", como atesta o manual de caça às bruxas. Estas, por sua vez, são frequentemente representadas junto de animais peçonhentos ou de hábito noturno, como as corujas. O historiador italiano Carlo Ginzburg atenta para a figura do sapo - em várias línguas de raiz germânica, essa palavra designa, além do anfíbio, cogumelos alucinógenos. O consumo de infusões que causavam alucinações chegou a ser cogitado por cientistas do século 16 como explicação para as descrições de voos, visões do demónio e reuniões sabáticas relatadas pelas acusadas de bruxaria. Essa hipótese é, no entanto, desconsiderada por Ginzburg. Para ele, "a chave dessa repetição codificada só pode ser cultural".

Alucinações podem ter sido influenciadas por lendas sobre a busca d o prazer pelas adeptas d e cerimonias místicas

CONSTRUÇÃO PSÍQUICA A pergunta é inevitável: as bruxas existiram? Sim, se considerarmos que elas foram construção social de uma época na qual realidade e ficção se fundiram não apenas entre o povo, mas entre as instituições. As perseguições contra qualquer manifestação feminina de diversidade resultaram em prisões, torturas e cerca de 100 mil mortes nas fogueiras da Inquisição medieval. As bruxas personificavam os medos da sociedade, como pestes e infertilidade, e toda sorte de pecado. Temidas representações do feminino, elas são produto de um "caldeirão cultural" que une poderosamente o exótico, o erótico e o macabro, e de uma estrutura mental e discursiva que associou o protagonismo feminino às práticas consideradas diabólicas e mágicas. «e*

iimiiimiiiiiimiiiiiiiiiiiiiiiiiiimm PARA SABER MAIS

História noturna. Carlo Ginzburg. Companhia das Letras, 2007. Bruxas: do confinamento à fogueira. História Viva n° 35, págs. 32-38, setembro àe2DD6. Malleus maléfica rum-O martelo das feiticeiras. Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger. Rosa dos Tempos, 1991.

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Facebook, o n o v o espelho de "Narcisa" AS M U L H E R E S ESTÃO SE T O R N A N D O M A I O R I A NAS R E D E S I N T E R A T I V A S J A V A I D A D E E A N E C E S S I D A D E D E A F I R M A Ç Ã O DA I D E N T I D A D E P O D E M E X P L I C A R O I N T E R E S S E F E M I N I N O POR ESSE R E C U R S O T E C N O L Ó G I C O - A F I N A L , DO P O N T O DE VISTA SOCIAL E H I S T Ó R I C O ELAS PASSARAM DE C O N S U M I D O R A S DE I M A G E N S Q U E L H E S ERAM IMPOSTAS A "AUTORAS" VIRTUAIS

por I s a b e l l e A n c h i e t a

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AUTORA

ISABELLE ANCHI ETA é jornalista, doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em comunicação social pela UFMC. 62

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s mulheres gastam mais do que o dobro do tempo dos homens no Facebook: três horas por dia, enquanto eles gastam uma hora, em média. Entrar na rede social é a primeira ação diária de muitas delas, antes mesmo de irem ao banheiro ou escovarem os dentes. Uma atividade cumprida como um ritual todos os dias - e noites. Em um estudo, 2 1 % admitiram que se levantam durante a noite para verificar se receberam mensagens. Dependência? Cerca de 40% delas já se declaram, sim, dependentes da rede. Elas são a maioria não só no Facebook (onde representam 57% dos usuários); também têm mais contas do que os homens em 84% dos 19 principais sites de relacionamentos. Essas são algumas revelações da pesquisa feita pelas empresas Oxygen Media e Lightspeed Research, que analisou os hábitos on-line de 1.605 adultos ao longo de 2010. Mas cabe ainda perguntar: que motivos levam as mulheres a ficar tanto tempo na frente do computador? Vaidade? Necessidade de reconhecimento? Seria esse fenómeno uma nova forma de autoafirmação? Uma maneira de desenvolver sua individualidade aliada ao reconhecimento do outro? Será essa uma nova forma de buscar sociabilização?

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Mais do que procurar uma resposta fácil, cabe, antes, compreender por que a autorrepresentação é mais importante para as mulheres que para os homens. Historicamente as representações femininas foram fabricadas por motivações sociais diversas: míticas, religiosas, políticas, patriarcais, estéticas, sexuais e económicas. E, há mais de 20 séculos, essa fabricação esteve sob o poder masculino. As mulheres não produziam suas próprias imagens, eram retratadas. Em obras de arte célebres vemos inúmeras Vénus adormecidas (como as de Giorgione, 1509; Ticiano, 1538; e Manet, 1863); Madonas castas (nas imagens religiosas das catedrais católicas como as pintadas por Giotto, no séculol3, e Botticelli, no 15) ou mulheres burguesas no espaço doméstico cuidando da cozinha e da educação dos filhos (como as pintadas por Rapin e Backer no século 19). Eram cenas "pedagógicas", que ensinavam o valor da maternidade, da castidade, da beleza e da passividade. O pano de fundo dessas produções artísticas era uma tentativa masculina de "gerenciar" o imaginário feminino, transmitindo sugestões sobre a conduta social desejada até uma estética sexual e familiar. Como enfatiza a historiadora Anna Higonnet, "os arquétipos femininos eram muito mais do que o reflexo dos ideais de beleza; eles constituíam modelos de comportamento". Sua capacidade de persuasão era ativada pelo contexto cultural. Um exemplo pontual, mas significativo, pode ilustrar essa hipótese. O nu é quase sinónimo do "nu feminino". Do Império Romano, passando pelo Renascimento, pela era moderna e até os dias de hoje, o corpo da mulher reflete os ideais estéticos predominantes. A historiadora francesa Michelle Perrot chegou a afirmar que "a mulher é, antes de tudo, uma imagem". Aqui sua ênfase é irónica. Refere-se a uma forma de retratar que associava os cuidados com o corpo, os adornos, as vestimentas e a beleza em geral à atividade, ou melhor, à ociosidade tipicamente feminina", enquanto os homens deveriam se ocupar de tarefas consideradas sérias: política, economia e trabalho. Quando a era moderna pareceu, enfim, trazer a emancipação da mulher, a conquista revelou-se contraditória. Estar na moda, ser magra, bem-sucedida e boa mãe tornou-se uma exigência. Com a ajuda do photoshop, top models, estrelas de televisão e cantoras exibem nos meios de comunicação o êxito que conquistaram em todos os aspectos do sucesso - o que, na prática, nem sempre é verdade. Elas, em 63

A ESTÉTICA FEMININA foi estabelecida, durante muitos séculos, pelo olhar masculino; as obras de arte tinham cunho pedagógico, isto é, a intenção de ensinar como as mulheres deveriam ser

geral, são tão "irreais" quanto a Vénus grega. A verdade é que a mídia veicula uma série de estereótipos sobre como agir que se tornam um peso para a mulher. Não devemos nos esquecer de que quem assume o comando é o mercado interessado em vender roupas, revistas e produtos destinados ao públicofeminino-e não propriamente a mulher. Assim, mesmo no século 20, quando pareciam ganhar "autonomia", elas passaram a ser atormentadas por padrões estabelecidos por outra base imaginária: a do consumo. O que muda no século 21 para as mulheres que usam as redes sociais? Quanto à importância da imagem, nada. Ela continua a ter papel central para a identidade social feminina, confundindo-se com ela. Por outro lado, vivemos, sim, uma revolução: pela primeira vez a mulher passa a se autorrepresentar, a produzir representações de si publicamente. Essa produção não está mais sob o domínio exclusivo dos homens, nem restrita a um grupo de mulheres como as artistas (atrizes, fotógrafas, cineastas, pintoras, escultoras etc.) ou as modelos. As mulheres comuns tornam-se protagonistas de sua vida. Chegam a dispensar a ajuda de outra pessoa para tirar a própria foto: estendem o braço e miram em sua própria direção. Algumas marcas de câmeras fotográficas desenvolveram até um visor frontal para que a pessoa possa ajustar o foco caso use o equipamento para se fotografar. A mulher "hipermoderna" reivindica algo novo: o seu protagonismo público e sua "autenticidade". O que se soma, agora, à revolução

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tecnológica da sociedade capitalista. Com acesso facilitado a câmeras digitais, a telefones móveis que dispõem desse equipamento e à rede, além da existência de uma plataforma que dá suporte ao armazenamento e oferece possibilidades ao usuário para compartilhar essas imagens pela internet, a mulher passa a se autofotografar nas mais diversas ocasiões, de situações corriqueiras a viagens. Nas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky: "O retrato do indivíduo hipermoderno não é construído sob uma visão excepcional. Ele afirma um estilo de vida cada vez mais comum, 'com a compulsão de comunicação e conexão', mas também como marketing de si, cada um lutando para ganhar novos 'amigos' para destacar seu 'perfil' por meio de seus gostos, fotos e viagens. Uma espécie de autoestética, um espelho de Narciso na nova tela global".

DITADURA DA ESPONTANEIDADE Nesse novo ambiente o artificialismo e a mistificação da imagem passam a ser "cu/t". Deusas etéreas cedem espaço a mulheres que querem ser vistas como "reais": escovam os dentes, fazem caretas para a câmera, dirigem seu carro e não se importam em ser fotografadas em momentos que antes estariam à margem da esfera pública. Tanto que 42% das usuárias do Facebook admitem a publicação de fotos em que estejam embriagadas, e 79% delas não veem problema em expor fotos em que apareçam beijando outra pessoa. A regra é: quanto mais caseiro, "mais natural"; melhor. O que não

significa que essa imagem seja, efetivamente, "natural", mas que há agora um "gerenciamento da espontaneidade". O imperativo da representação feminina nas redes sociais é: "seja espontâneo". Uma norma paradoxal, assim como a afirmação "seja desobediente, é uma ordem", escreve o sociólogo Régis Debray. Ele faz uma interessante leitura do que poderíamos chamar de "ditadura da espontaneidade". Segundo o autor, abandonamos o culto da morte, vivido pelas sociedades tradicionais e religiosas, para vivermos o "culto da vida pela vida" - uma espécie de "divinização do que é vivo" que se apoia no eterno presente e não mais em uma crença no além. Vemos emergir mulheres que cultuam o que veem no espelho e postam, "religiosamente", novas imagens de seu cotidiano - sem que tal culto resulte em algum tipo de censura externa ou de autocensura moral. Em outro contexto, como durante o período em que a religião católica era dominante, esse "culto de si" e do corpo seria considerado um dos sete pecados capitais: a vaidade. Esse imaginário, aliás, é muito bem representado por um quadro do século 15, de Hieronymus Bosch, no qual o demónio segura um espelho para que uma jovem se penteie. Hoje o novo espelho global não é marcado pela vigilância moral. Ao contrário, há um contínuo incentivo da cultura para que as mulheres "se valorizem", busquem sua singularidade e não mais se baseiem em modelos inalcançáveis (como as top models e outras famosas). E para que percebam em si mesmas uma possibilidade legítima e singular de ser no mundo. A própria familiaridade e aproximação da mulhQr com o universo da produção de autorrepresentações pode levá-la a questioná-las. As mulheres já estão, como escreve Lipovetsky em seu livro A tela global, "cultivadas" pela mídia. Educadas em sua gramática, sabem que o photoshop, a produção e a edição das imagens criam uma mulher irreal e passam a ver essas representações entre aspas, distanciando-se criticamente delas. Elas aprendem com recursos autoexplicativos a modelar sua iconografia, a alterá-la, brincar com ela ou melhorá-la (possibilidades, antes, restritas aos profissionais). Mas a consagração do "culto de s i " não significou um isolamento da mulher. Os álbuns publicados nas redes sociais conciliam, contra

todas as expectativas, o individualismo e as trocas. Um se alimenta do outro. Há um ciclo: exponho minha individualidade, acompanho a do outro e ele a minha e, assim, somos incentivados a produzir e expor, cada vez mais, as nossas imagens. Trata-se do nascimento de uma "identidade coletiva", em que a individualidade não elimina a interação, mas é seu motor. Nesse sentido, a identidade coletiva não é produto apenas de uma adesão grupai e sim uma forma de negociação de posições subjetivas - esse é o paradoxo identitário a ser considerado. Fotos pessoais e "amigos" virtuais (ou não) ditam o ritmo desse espaço interativo. Quanto mais caseiro, mais cotidiano, mais espontâneo, maior o número de relações entre as pessoas, que passam a valorizar a autenticidade e a vida de quem é "próximo", "real". Há, na base desse fenómeno, uma democratização dos desejos de expressão individual na medida em que as mulheres buscam conquistar espaços de autonomia pessoal - que traduzem a necessidade de escapar à simples condição de consumidoras daquilo que outros produzem. Elas querem colocar seu rosto no mundo. Aparecer ou não na "tela global" passa a ser uma questão de existência. Por essa razão, ter visibilidade e oferecer sua identidade publicamente é conferir importância à própria existência. O que é, também, uma forma de poder. Nesse ponto a mídia - como campo de visibilidade - passa a ter papel central para entendermos a luta simbólica pelo reconhecimento. No entanto, essa "democratização" da autorrepresentação feminina não deve ser tomada como sinónimo do fim da competição estética e ética entre as mulheres. Ao que tudo indica, o que presenciamos não é a instauração de uma igualdade, mas a ampliação do número de mulheres na disputa por visibilidade e poder. Amplia-se, assim, a arena para buscar um poder que não está dado de antemão, mas que deve ser conquistado e manejado pela apresentação e representação de suas singularidades, de suas diferenças. Um agir que se manifesta na criação, no controle e no poder simbólico de sua própria imagem no espaço público, que só se realiza com o reconhecimento do outro nas interações sociais, associativas, e na ampliação dos círculos de reconhecimento que estão dentro e fora do espaço de produção da imagem. «e*

S e g u n d o Gilles Lipovetsky, o retrato do "homem hipermodemo" é marcado pela compulsão de priorizar o marketing pessoal

tiiiiitiittiiiitiifiitiiiiiiitiiiiiiiitiiiiti PARA SABER MAIS

A tela global. Gilles Lipovetsky. Sulina, 2009. A sociedade pós-moralista. G i l l e s Lipovetsky. Manole, 2005. A transformação da intimidade. Anthony Giddens. Unesp, 1994. Imagens da mulher. Georges Duby e Michelle Perrot. Afrontamento, 1992. A representação do eu na vida cotidiana. Erving Goffman. Vozes, 1985.

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N a cabeça d a mamãe E M B O R A A L G U M A S M U L H E R E S SE Q U E I X E M DE PERDA DE A G I L I D A D E MENTAL DURANTE A GRAVIDEZ, ESTUDOS RECENTES SUGEREM QUE A M A T E R N I D A D E , NA V E R D A D E , ESTÁ A S S O C I A D A A O A U M E N T O DE M A T É R I A C I N Z E N T A EM ÁREAS ENVOLVIDAS C O M O C U I D A D O DOS F I L H O S , O Q U E AS T O R N A MAIS ATENTAS A A M E A Ç A S E C O R A J O S A S PARA B U S C A R A L I M E N T O E T O M A R D E C I S Õ E S NA I M I N Ê N C I A DE A L G U M

RISCO

por C r a i g H o w a r d K i n s l e y e E l i z a b e t h M e y e r

CRAIG HOWARD KINSLEY é professor de psicologia da Universidade de Richmond; ELIZABETH MEYER é pós-doutoranda, pesquisadora do Departamento de Psicologia e do Centro de Neurociência da mesma instituição. 66

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om o segundo filho a caminho e crescendo a olhos vistos, Liz está passando pelas mudanças opressivas da gravidez. Ela sente que sua barriga parece inacreditavelmente maior. Dormir bem é coisa do passado, agora que ela carrega vários quilos a mais na cintura. Além disso, sofre com dificuldades digestivas e azia após a maioria das refeições. Mas ela não é uma futura mãe qualquer no fim da gravidez. Ela é também neurocientista, empenhada no estudo das mudanças no cérebro materno - na verdade, ela é coautora deste artigo. Embora isso não alivie seus problemas gástricos, ela se consola ao observar a quantidade sempre crescente de novas pesquisas que revelam as alterações marcantes - e geralmente positivas - no sistema cerebral de uma mãe. Porém, o "cérebro maternal" surge gradualmente, e enquanto esse processo ocorre há mulheres que se queixam da sensação de "cabeça vazia" e da impressão de estarem ligeiramente confusas. De fato, resultados de alguns estudos até revelam leve encolhimento do cérebro durante a gravidez. Mas há compensações. Pesquisas sugerem que a maternidade aperfeiçoa alguns aspectos cognitivos, melhora a resistência ao estresse e aguça aspectos da memória. Obviamente não

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é possível fazer comparações com mulheres que nunca tiveram filhos, pois a comparação, nesse caso, é em relação à própria pessoa - antes e depois da gravidez. Ou seja: uma mulher com filhos não será necessariamente "mais esperta" que outra que nunca foi mãe, mas a primeira tem grande possibilidade de ter desenvolvido habilidades de que não dispunha antes da gravidez. O que impressiona os cientistas é o fato de o sistema nervoso se reorganizar para formar uma nova mãe transformando um organismo autocentrado em outro preocupado, antes de tudo, em cuidar de seu bebê. Tudo o que o cérebro faz serve para estimular o crescimento de novos neurónios, aumentar o tamanho de certas estruturas e criar ondas de poderosos hormônios para defender a fisiologia. O resultado é um cérebro diferente e, sob vários aspectos, mais capaz de driblar os desafios da vida diária, mantendo o foco sobre a criança.

GATILHO SENSORIAL Desde as primeiras horas de vida o bebê - ou pelo menos a maioria deles - faz o possível para atrair e manter a atenção de quem cuida dele. As sensações provocadas pelo som do choro, pelo odor de seu pequeno corpo e por gestos, como o de agarrar com força dedos ou cabelos dos adultos, invadem o sistema nervoso altamente sensibilizado da mãe. É como se a presença da criança estimulasse seu cérebro, levando-o a funcionar de forma mais rápida. Entre todos os sentidos, o olfato é o que desempenha papel principal na reprodução. Mesmo sem se dar conta conscientemente, as fêmeas confiam nessa capacidade, desde o primeiro instante, para ajudá-las a escolher o parceiro com quem terão filhos, até o momento de o bebê desmamar, quando o olfato, então, funciona como uma forma de comunicação entre mãe e filho. Um exemplo extremo do poder desse sentido é conhecido como efeito Bruce-fenômeno pelo qual certos odores induzem ratas prenhes ao aborto. Se o parceiro desaparece depois da concepção e um intruso começa a rodear a fêmea, o cheiro do novo macho pode inibir a produção de hormônios-chave, fazendo-a abortar. Caso contrário, é muito provável que o intruso acabe matando e comendo os recém-nascidos, obtendo assim uma refeição altamente proteica e eliminando os genes do rívaí. Num tipo de "escolha de Sofia" para os roedores, a fêmea age friamente: é melhor perder os filhotes como embriões que como recém-nascidos. 67

Hormônios da gravidez são capazes de criar u m a blindagem neural, protegendo o animal de ameaças q u e poderiam comprometer sua capacidade d e cuidar do filho

Já que há restrições em relação ao estudo minucioso do sistema cerebral humano, os roedores nos ajudam a conhecer melhor as mudanças que ocorrem em futuras mamães. É sabido que, quando as circunstâncias exigem, o cérebro dos mamíferos apresenta incrível capacidade de promover mudanças. Durante a gestação de uma rata, por exemplo, o sistema olfativo começa a produzir novos neurónios rapidamente. Pelo menos na teoria, essas células adicionais devem permitir que as mães se tornem mais competentes em reconhecer as pistas escondidas nos odores dos filhotes. Evidentemente, a forma como as mães reagem diante dos cheiros que reconhecem diverge bastante. Para ratas virgens, os recém-nascidos são malcheirosos, mas quando ficam prenhes esses mesmos odores se tornam atraentes para elas. Segundo a psicóloga Alison Fleming, da Universidade deToronto-Mississauga, no Canadá, também mulheres que se tornam mães apresentam esse sintoma. Analisando um universo de mães e não mães a pesquisadora descobriu que a probabilidade de as primeiras considerarem agradáveis os cheiros de bebés é muito maior, em comparação com as que não tiveram filhos. Para transformar a percepção dos odores nas mulheres, o sistema olfativo utilizaria uma região conhecida como amígdala medial. "Essa área do cérebro pode agir como um centro para o sistema olfativo, transformando a informação que entra em conteúdo emocional", afirma o neurobiólogo Michael Numan, da Faculdade de Boston. Ele ressalta que os estímulos olfativos podem ajudar

O AUMENTO DA MASSA CINZENTA periaquedutal pode explicar por que ratas permanecem cuidando da ninhada em vez de se arriscar em busca de alimento 68

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na consolidação do vínculo mãe-filho tornando atraentes os aromas exalados pelo bebê. Não são raros os casos de mulheres que antes de terem o primeiro filho evitavam os odores de crianças de colo mesmo as da família. Mas após dar à luz descobrem que não têm problemas de aproximar o nariz das fraldas de uma criança para saber se precisam trocadas.

CAUTELA E CORAGEM No entanto, se uma mulher dedicar toda sua atenção ao bebê, tanto ela quanto o filho acabarão sucumbindo. Da mesma forma, uma rata que permaneça na segurança do ninho com seus filhotes pode morrer de fome e sede junto com sua prole. Mães das duas espécies precisam encontrar formas de atender a necessidades prioritárias na hora certa. Para uma rata poder decidir entre manter sua cria em segurança e sair em busca de alimento, uma área do cérebro chamada matéria cinzenta periaquedutal (PAG, na sigla em inglês) age como um interruptor do circuito. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) propuseram em 2010 que o PAG determina o equilíbrio entre comer e agir maternalmente avaliando os inputs do sistema límbico, o conjunto de estruturas que controlam comportamentos como os instintos de sobrevivência. Ainda não foi identificado entre humanos um paralelo exato para a função decisória do PAG observada em ratos, mas tem sido bastante estudada a capacidade das mulheres relacionada às multitarefas, talvez refletindo uma adaptação similar. Quando uma mãe se aventura pelo mundo (em busca de alimento na floresta ou de volta ao trabalho no escritório) ela põe em risco seu bebê vulnerável. Mas pode discernir melhor possíveis ameaças, talvez até exagerando-as, como sugerem pesquisas em ciências da saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Segundo os pesquisadores foram observadas alterações significativas na arquitetura de dendritos no núcleo da amígdala medial, que, além de desempenhar importante papel no sistema olfativo, controla comportamentos de fuga e defesa. De fato, quando uma grávida vai às compras, ela examina tudo que possa causar riscos ao seu bebê, evitando pessoas que lhe pareçam desagradáveis ou perigosas. Mais cautelosa, provavelmente essa mulher também estará muito mais preparada agora para enfrentar ameaças do que estava antes

de engravidar. A psicóloga Jennifer Wartella, de nosso laboratório na Universidade de Richmond, Virgínia, descobriu que, em comparação com as virgens, mães ratas colocadas num labirinto aberto complexo ficavam menos propensas a permanecer quietas; eram mais rápidas em explorar o ambiente e demonstravam menos medo (ou seja, Jennifer observou poucos neurónios ativados na amígdala). Com sua predisposição ao medo ameaçada, uma mãe rata pode encontrar alimento com mais eficiência e voltar mais rapidamente para o ninho onde deixou sua prole vulnerável. O que ajuda uma mãe em sua jornada é a capacidade aperfeiçoada de decifrar pistas no ambiente. Recentemente a pesquisadora Kelly Rafferty investigou em nosso laboratório a capacidade de planejamento de uma mãe. Ela permitiu que um grupo de ratas com filhotes e outros de animais virgens buscassem alimentos em um labirinto não familiar com água disponível. Depois os roedores eram devolvidos para suas gaiolas, algumas contendo uma garrafa de água e outras não. Mais tarde, os animais eram colocados novamente no labirinto com água. As ratas mães que viviam em gaiolas sem água passavam mais tempo perto de fontes de água do labirinto e bebiam mais, em relação às mães com total acesso à água e às fêmeas virgens. Depois de considerarem as possíveis diferenças na sede das ratas, os neurocientistas concluíram que as mães pareciam antecipar um ambiente futuro e se preparavam para eventuais situações de privação.

MORFINA MATERNAL Como mostram experimentos anteriores, as ratas com filhotes parecem sobressair em tarefas que requerem maior atenção. A neurocientista comportamental Kelly Lambert, da Faculdade Randolph-Macon, em Ashland, na Virgínia, e seus colegas reuniram evidências interessantes. Em 2009, os cientistas mostraram que quando é preciso identificar uma pista entre vários sinais de alimentos, as fêmeas com filhotes têm melhor desempenho. E os pesquisadores Amy Au e Tommy Bilinski, de nosso laboratório, começaram a estudar o desenvolvimento da capacidade dos ratos para deduzir o significado de símbolos. Amy e Bilinski montaram um experimento em que, em determinado ambiente, um rato aprende a associar, por exemplo, um triângulo ou um conjunto de linhas onduladas com uma recompensa

de alimento. Ao serem transportadas para outro ambiente, fêmeas lactantes transferiam melhor que as ratas virgens o conhecimento adquirido no ambiente antigo para o novo, mais uma vez sugerindo um aumento de atenção aos detalhes. O cérebro de mulheres grávidas ou que tiveram bebê recentemente também sofre metamorfose estrutural surpreendente. No ano passado, usando dados de imageamento por ressonância magnética, a neurocientista Pilyoung Kim, atualmente na Universidade de Denver, e seus colegas descobriram aumentos significativos de matéria cinzenta no cérebro de mães semanas e até meses após o parto. A matéria cinzenta, assim denominada devido à cor do corpo das células, é uma camada de tecido abarrotada de neurónios. O crescimento, segundo os cientistas, era particularmente visível na região medial do cérebro, nos lobos parietais e no córtex pré-frontal, áreas envolvidas nos cuidados com o bebê. As mães que tiveram maior aumento dessas estruturas mostraram atitude mais afetuosa em relação aos seus bebés.

DURANTE A AMAMENTAÇÃO opiáceos são liberados no sangue, causando sensação de prazer à mulher

À medida que o dia do parto se aproxima, mais hormônios poderosos entram em ação. Embora os principais atores nesse cenário sejam a oxitocina, que estimula as contrações uterinas e a liberação do leite, e a prolactina, que estimula a produção, outros hormônios coadjuvantes provocam mudanças no cérebro. Neuroanatomistasda Universidade Victor Segalen Bordeaux2, na França, observaram reconfiguração estrutural intensa do hipotálamo - região do cérebro que funciona como um grande regulador dos hormônios associados a comportamentos emocionais básicos, como agressividade e desejo sexual. Os neurónios de uma parte do hipotálamo conhecida como área pré-óptica medial (ou mPOA, na sigla em inglês) tornam-se maiores e mais ativos. De fato, lesões nessa região podem impedir a manifestação do comportamento maternal. Já o hipotálamo faz aumentar a sensação de prazer da mãe ao cuidar de seu bebê. Robert S. Bridges,da Faculdade de Medicina Veterinária Tufts Cummings, em Boston, e seus colegas descobriram

diferentes concentrações de receptores opiáceos em ratas, dependendo se a fêmea era virgem, se estava prenhe ou amamentando. Mas o fenómeno se dilui com a experiência. Aquelas que tinham engravidado várias vezes apresentaram diminuição de sensibilidade aos seus próprios opiáceos, como dependentes químicos que precisam de doses cada vez maiores da droga para ficar "ligados". A analogia não é em vão. Os animais podem assumir comportamentos maternais simplesmente porque é bom. Muitas mulheres também relatam sentir muito prazer ao amamentar seus filhos. Depois que os ratinhos abocanham os mamilos da rata, ela recebe "uma injeção" estimulante de opiáceos. Mas o próprio corpo do animal impõe um limite. Enquanto os ratinhos sugam, a temperatura corporal da mãe começa a se elevar. Depois de certo tempo ela começa a sentir-se desconfortável e abandona os filhotes. Mais tarde, desejando outra "dose" de opiáceo, ela volta ao ninho, os seus bebés começam a sugar novamente e o ciclo recomeça.

Cérebro e m construção A maioria das mulheres sofre profundas mudanças cerebrais durante a gravidez e após o parto. Mas os homens também vivenciam uma importante transformação cognitiva. Abaixo estão algumas das regiões provavelmente envolvidas quando os pais começam a criar um filho. Embora muitas das descobertas sejam preliminares e obtidas com base em estudos com roedores, as evidências sugerem que nosso cérebro se adapta flexivelmente para enfrentar esse desafio.

LOBO PARIETAL Aumento de matéria cinzenta

CÓRTEX PRÉ-FRONTAL Aumento de matéria cinzenta HIPOTÁLAMO Na área pré-óptica medial, os neurónios crescem mais e tornam-se mais ativos. O número de receptores opiáceos aumenta

MATÉRIA CINZENTA PERIAQUEDUTAL Em ratos, a atividade dessa área permite que a mãe escolha entre alimentar sua cria e arriscar-se pelo mundo

SISTEMA OLFATIVO Em mães e pais, aí são produzidos novos neurónios

CÉREBRO MÉDIO Aumento de matéria cinzenta

AMÍGDALA MEDIAL Controla a resposta de agressividade e medo da mãe. Teoricamente, é também o centro onde pistas odoríferas são processadas, tornando-o vital para os pais 70

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HIPOCAMPO Aumento de espinhos dendríticos; novos neurónios crescem no pai

Além disso, os hormônios maternais podem tornar o cérebro mais flexível. A neurobióloga Teresa Morales Guzman, da Universidade Nacional Autónoma do México, mostrou que o cérebro de fêmeas lactantes é mais resistente aos efeitos de uma neurotoxina. Os hormônios da gestação parecem criar uma blindagem neural que protege a mãe rata de danos que, de outra forma, poderiam comprometer sua capacidade de cuidar dos filhotes.

MELHORES CONEXÕES As marés e os fluxos contínuos de hormônios esteroides predispõem as células do cérebro a produzir inúmeras protuberâncias minúsculas. Muito parecidas com espinhos do talo de uma rosa, esses nódulos são chamados de espinhos dendríticos. Eles ampliam a área da superfície do neurônio, permitindo maior contato sináptico e, portanto, melhor processamento de informação. Esses filamentos podem crescer no neurônio depois da estimulação hormonal e após repetidos confrontos de estimulação por células cerebrais próximas. Nosso laboratório ampliou descobertas anteriores da Universidade Rockefeller, em Nova York, mostrando que a densidade de espinhos dendríticos no hipocampo aumentava de acordo com as mudanças hormonais do ciclo estral de ratas, muito semelhante ao ciclo menstrual das mulheres. Mais conhecido por seu papel no processamento de memórias, o hipocampo é responsável também pelo comportamento maternal. Mesmo depois de poucas horas de estrogênio elevado, o crescimento era espantoso. Mas aprendemos que o crescimento dos espinhos não é causado simplesmente pela presença de estrogênio. Testamos três grupos: fêmeas no final da gestação, fêmeas tratadas com uma droga que mimetiza os hormônios do fim da gravidez e fêmeas que estavam começando a amamentar, e observamos que todas mostraram aumento significativo na concentração de espinhos dendríticos. Diferentemente dos outros dois grupos, as fêmeas lactantes apresentaram níveis muito baixos de estrogênio. Acreditamos que embora os hormônios da mãe sejam responsáveis pelo crescimento dos filamentos, o processo é mantido pelos inúmeros estímulos provocados pelos filhotes. Com esta reconfiguração em andamento, não surpreende que muitas mulheres se queixem de

mudanças durante a gravidez. O dano colateral dessas alterações pode incluirfalhas ocasionais de memória. Trabalho realizado pelo psicólogo clínico J. Galen Buckwalter e seus colegas da Universidade do Sul da Califórnia sugere déficits mnêmicos no pós-parto. Em testes cognitivos de memória com palavras e números, eles descobriram que mulheres gestantes ou que tiveram filhos recentemente têm pior desempenho que não grávidas da mesma idade. A facilidade cognitiva em relação ao aprendizado não ligado ao cuidado do bebê também é rebaixada nas mães. Esses, porém, são somente alguns percalços que podem ocorrer enquanto o cérebro materno se reestrutura. Afinal, gerar um filho requer que a mulher ponha em risco sua própria saúde, segurança e sobrevivência para desenvolver habilidades de proteção e defesa da prole. Nesse cenário em que o cérebro é golpeado pelos hormônios da gravidez e pelas pressões da maternidade, desponta uma mulher mais eficiente e preparada para sobreviver. Nesse contexto, a compensação pelos aspectos adversos da maternidade não provém somente da ciência, mas também das emoções. E mesmo para quem estuda o funcionamento dos meandros neurais, como Liz, parece inegável que toda a neurobiologia do mundo seja ofuscada diante da inefável ligação entre mãe e filho. A ciência pode explicar o cérebro material, mas há mistérios que vão além da biologia e são influenciados pelo afeto e por questões psíquicas - principalmente quando a mãe ajeita carinhosamente a manta em volta do queixo de seu bebê enquanto ele dorme em seus braços. Há nessa cena algo que nem sempre pode ser abarcado pela ciência. ™*

ESPINHOS DENDRÍTICOS são protuberâncias minúsculas inseridas nos neurónios que crescem em maior quantidade no cérebro de uma grávida. Esses filamentos têm o papel de acelerar a transferência de sinais entre neurónios; seu crescimento anormal foi observado em pacientes com graves transtornos psiquiátricos

mmmiiiimmmmiiiiimmmmm PARA SABER MAIS

A sombra da mãe. Cláudia Suannes. Casa do Psicólogo, 2011. The lab rat chronicles: a neuroscientist reveals life lessonsfromthe planefs most successful mammals. Kelly Lambert. Penguin Press, 2011. The construction of the maternal brain: theoretical commenton kin et al. Craig H. Kinsley e Elizabeth A. Meyer, em Behauioral Neuroscience, vol. 124, n° 5, págs. 710-714, outubro de 2010.

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F i l h o s ? Não, obnqada NAS Ú L T I M A S DÉCADAS S U R G I R A M PARA A M U L H E R

INÚMERAS

POSSIBILIDADES DE ESCOLHA E REALIZAÇÃO POR MEIO DO E S T U D O , DO T R A B A L H O , DA D I V E R S Ã O . A O M E S M O T E M P O , A C I Ê N C I A

MOSTROU

Q U E O C H A M A D O " I N S T I N T O MATERNO" NÃO É INATO E PODE SER VIVIDO DE DIVERSOS MODOS. AINDA ASSIM, PREVALECE A PRESSÃO S O C I A L Q U E COBRA A OPÇÃO PELA

MATERNIDADE

por Paola Emília C i c e r o n e

E

PAOLA EMILIA

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A AUTORA cicerone é jornalista.

raro alguém perguntar o que levou um homem ou uma mulher a ter filhos. Em contrapartida, é comum escutar: "Não tem filhos? Por quê?". E, em geral, o principal alvo das indagações são as mulheres. Talvez algo como "não tive tempo", "não sou casada" ou "não encontrei o homem certo, no momento certo" fossem boas respostas, mas há algo mais em jogo. É como se - ainda hoje, apesar de todas as transformações sociais dos últimos anos - continuasse necessário explicar à sociedade essa escolha (às vezes mais, às vezes menos consciente). Ao serem questionadas, as mulheres percebem na curiosidade alheia a pressão e as críticas disfarçadas, como se a opção de não terem sido mães as fizesse pessoas 1 especialmente egoístas ou fosse sinal de algum "grande s problema" em relação à sua feminilidade. | "Em nossas pesquisas promovemos a discussão do i tema em grupos de mulheres sem filhos, em diversas cida- I des italianas, e muitas das participantes admitiram que se 5 sentiam julgadas, às vezes até severamente, por parentes % ou conhecidos, estigmatizadas como se fossem cidadãs de £ segunda categoria", conta Maria Letizia Tanturri, professora \ de demografia da Universidade de Pádua, na Itália, que parti- \ cipou de um importante projeto de pesquisa coordenado por £ várias universidades. "É como se, de certa forma, a materni- § dade fosse a garantia de nos tornarmos pessoas melhores, i

A NEUROLOGISTA RITA LEVI-MONTALCINI, ganhadora do Nobel de Fisiologia e Medicina em 1986, e a escritora Simone de Beauvoir não foram mães, mas criaram conhecimento

mais sensíveis", observa. Ela lembra que, em 2007, uma senadora democrata da Califórnia, Barbara Boxer, atacou a secretária de Estado Condoleezza Rice: "Como não tem filhos nem família, a senhora não pagará nenhum preço pessoal pelo envio de mais 20 mil soldados americanos ao Iraque". As palavras podem ser entendidas como uma variante de algo como: "Quem não tem filhos não pode entender o que só nós, seres humanos privilegiados pela graça de ter filhos, conseguimos compreender".

Transformações culturais trouxeram a oportunidade de fazer opções, o q u e ajudou muita gente a chegar à conclusão d e q u e não q u e r engravidar - algo simplesmente impensável n a época d e n o s s a s avós IA

No entanto, desde as históricas tomadas de posição de Simone de Beauvoir no século passado e mais recentemente da filósofa Elisabeth Badinter - autora de O conflito: a mulher e a meie (Record, 2011), entre outros livros - , o debate feminista parecia ter eliminado o mito da maternidade como destino e do instinto materno como pulsão inata. Enquanto isso, multiplicam-se na Europa e nos Estados Unidos publicações (algumas sérias, outras apelativamente populares) que analisam o problema, além de sites dedicados ao mundo childfree (livre de filhos) - neologismo inglês que distingue as mulheres sem filhos (childless) das que realmente não desejam tê-los, por escolha. Vários pensadores, em especial da área da sociologia, porém, continuam falando em voluntary childlessness. A expressão é empregada, por exemplo, pela socióloga inglesa Catherine Hakim, pesquisadora da London School of Economics. "Hoje, mulheres com melhores condições socioeconómicas podem escolher,

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e, pelo menos na Europa, uma a cada quatro não parece estar interessada em ter filhos", afirma. "Em termos numéricos, não é novidade: mesmo no passado havia cerca de 20% de mulheres sem filhos, mas isso era devido à pobreza, desnutrição ou à emigração que impedia casamentos. Ainda assim, a família era o centro da vida. Agora existem mais possibilidades de trabalho, de diversão. Ou seja, mais escolhas." E entre as opções está a de não ter filhos: "Trata-se de uma decisão que, se consciente, é tão saudável e natural quanto a de ser mãe", ressalta a psicanalista Geni Valle, membro da Associação Italiana de Psicanálise (Aipsi). "Vivemos em uma época em que grande parte das mulheres conseguiu estabelecer uma hierarquia do que é importante para a própria vida; algumas conciliam elementos muito diferentes, outras escolhem privilegiar um aspecto em detrimento de outro."

| | § | \ |

Permanece o fato de que a escolha de | fazer diferente é mais aceita quando vem de £ uma cientista como a neurologista Rita Levi- | Montalcini, ganhadora do Nobel de Fisiologia g e Medicina em 1986, que faria 104 anos dia 22 ; de abril de 2013 (faleceu aos 103 anos em de- | zembro de 2012). "Durante anos vi a cara que f as pessoas faziam quando eu dizia que nunca s tive nem desejei ter filhos", diz a socióloga e \ psicóloga Paola Leonardi, especializada em \ questões de género. "Parece um problema se | manifestar contra 'as alegrias' da família." Vol- | tada a questões ligadas à psicologia de género, % ela desenvolveu na Itália um projeto no qual %

entrevistou mulheres engajadas no feminismo que eram jovens quando a maternidade era ainda vista como um destino.

SEM VOLTA O mesmo aspecto une as entrevistadas por Paola e as participantes dos grupos de discussão acompanhados por Maria Letizia: a exigência de justificar suas escolhas para outras pessoas - o que parece uma contradição, já que vivemos em uma sociedade que privilegia as escolhas. "Hoje as jovens podem e querem optar; a identidade não está mais relacionada à maternidade, mas à própria realização por meio do trabalho e da independência. E ter filhos pode parecer uma decisão sem volta, que impossibilita seguir outros caminhos", acredita Maria Letizia. Resultado: a opção childfree está ganhando seguidores. No Brasil, em 38,7% dos domicílios as mulheres são chefes de família, segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dez anos antes, esse percentual era de 24%. Aumento da escolaridade, novos arranjos familiares e maior participação feminina no mercado de trabalho influem nas mudanças. O cenário pode ajudar a explicar a queda vertiginosa da taxa de fecundidade no país. No final da década de 60, a mulhertinha em média seis filhos, passando para 4,5 no final dos anos 70. Em 2010, esse número caiu para 1,86, dados semelhantes aos dos países desenvolvidos e abaixo da taxa de reposição populacional, que é de 2,1. "Algumas mulheres reconhecem que não nasceram para ser mães, o que, de certa forma, é um alívio para elas", observa a demógrafa Catherine Hakim. Ela fala também de uma categoria de mulheres que não consegue sem decidir se querem

JENNIFER ANISTON, de 45 anos, já declarou não acreditar que um filho será a grande alegria de sua vida: "Ter um bebê não me trará felicidade, isso não é medida para meus sucessos e conquistas", afirmou em entrevista ao programa CBS This Morning

ser mãe e ainda das que chama de "retardatárias". Nessa última categoria ela enquadra aquelas que dizem "Depois vejo isso", até se darem conta de que o momento certo não chega nunca. Elas esperam conseguir um trabalho, estabelecer-se na profissão, ter um companheiro-e depois desejam tertempo para desfrutar de alguma tranquilidade. Então, o "depois" pode ser tarde demais. "Ou, talvez, muitas simplesmente fiquem satisfeitas com o equilíbrio encontrado e sem nenhuma vontade de alterá-lo", observa Maria Letizia. "Se considerarmos mulheres tecnicamente férteis que não conseguem engravidar podemos pensar que é a inteligência do corpo que entra em jogo", acrescenta Paola Leonardi. Ou uma instância inconsciente que simplesmente se nega a ser mãe.

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S e m crianças p o r p e r t o A National Organization for Non-Parents (NON), com sede na Califórnia, criou nos anos 70, no dia 1° de agosto, o No Parents Day, uma data dedicada àqueles que optaram por não se reproduzir. Mais recentemente, a organização, rebatizada de National Alliance for Optional Parenthood, vem promovendo o estilo childfree, apontando para os riscos do aumento demográfico. Abordando temas semelhantes, a No Kidding (www.nokidding.net) escolheu como nome um jogo de palavras com o termo kid

(criança) e com a expressão coloquial "sem brincadeira". Nascido em 1984, em Vancouver, o grupo tem hoje "filhotes" na Nova Zelândia, na China e na Espanha. O tema é assunto também na internet. Sites americanos como o www.childfree.net, o www.child-free.com e o www.happilychildfree.com promovem debates e oferecem conselhos práticos para seguidores. Existem também cada vez mais pousadas, resorts, hotéis e restaurantes e até agências de viagem dedicadas a quem não deseja crianças por perto.

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Isso não significa que quem não tem filhos não ame os pequenos - muitos gostam, mas por motivos variados não querem tê-los. "Há pessoas muito envolvidas com as crianças, que ficam felizes em cuidar delas, profissionalmente ou dedicando-se a filhos de familiares e amigos, mas não pensam tê-los como uma presença permanente", afirma Catherine. "Eu, por exemplo, descobri ter necessidade de leveza na vida: gosto das crianças dos outros, mas não imagino ter uma relação exclusiva como acontece com um filho", explica Paola. "São principalmente os homens que veem com ressentimento as mulheres que não têm filhos, julgando-as frias e incapazes de se relacionar com os outros."

TIA SIM, POR QUE NÃO? Um estudo conduzido pela socióloga Caroline Gattrell, professora da Lancaster University Management School, revelou que muitas vezes mulheres sem filhos sofrem preconceito por ser consideradas frias, carentes e egoístas. "O curioso é que raramente as pessoas questionam a atitude de alguém que escolhe ter filho para dar sentido à própria vida ou ter um apoio na velhice.

E o que dizer de uma mulher que usa a maternidade como desculpa para renunciar a desafios profissionais que teme?", salienta a psicóloga Leslie Leonelli, uma das entrevistadas por Paola. O problema do trabalho é concreto, pois existem ocupações dificilmente conciliáveis com uma vida familiar convencional. Mas nem sempre a questão é profissional. "A quem me perguntava porque não tinha filhos, muitas vezes respondi que tinha outras coisas a fazer, optei por viajar e desempenhar atividades voltadas para o bem-estar das pessoas, dei aulas, acompanhei grupos e criei um centro de autoestima da mulher", conta Paola. É possível pensar que sua experiência se refira a uma espécie de maternidade simbólica, já que ela se empenhou em projetos e produção cultural - fazendo eco a Simone de Beauvoir e a seu "não faço filhos, faço livros". "O instinto materno não é inato, desenvolve-se na relação e pode ser vivido de modos diversos", afirma Letizia Bianchi, socióloga da família da Universidade de Bolonha. "Além disso, a maternidade é, sobretudo, um ato criativo que pode ser expresso por meio do trabalho, dos relacionamentos ou simplesmente do esforço de tornar a vida diária mais rica." Nesse sentido, ao assumir "o lugar da tia", é possível estabelecer uma relação afetiva intensa com a criança ou o adolescente, sabendo que são filhos de outras pessoas e que não se pode (nem se deve) assumir um papel parental. Em contrapartida, há espaço para agir de forma até mais livre, diferentemente dos pais. "Embora não sejam necessariamente fundamentais, as tias (biológicas ou não) podem ocupar um papel importante na educação; na prática, o fato de serem menos implicadas no cotidiano dos sobrinhos.

TRÊS PODE SER DEMAIS: muitos casais temem que a chegada de um bebê altere o equilíbrio conquistado ou piore uma relação já complicada 76

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"O que é triste é não saber a quem deixar as próprias coisas, não tanto os bens materiais, e sim as lembranças; quanto à solidão, todos nós vivemos em uma sociedade em que estamos sós, tanto as crianças quanto os idosos, e certamente não serão os filhos que resolverão o problema", afirma a psicóloga Leslie Leonelli, uma das entrevistadas de Paola Leonardi. Ciente disso, Leslie tem se empenhado em levar adiante o projeto de criar um cohousing, um residencial que una espaços privados e comuns, onde as pessoas possam encontrar "outros jeitos de morar", sem necessariamente ser tragadas pela solidão ou ser um peso para os mais jovens.

SEM ESPAÇO PARA A MATERNIDADE: no filme Preciosa - Uma história de esperança (2009), protagonista, vítima de abuso sexual dentro de casa, não é reconhecida afetivamente como a filha e, consequentemente, não consegue cuidar das crianças que gerou; essa capacidade é desenvolvida aos poucos, à medida que pela personagem resgata sua autoestima

Não é de estranhar que a família de origem tenha grande peso na hora da escolha da maternidade. Não raro, mulheres que optam por não engravidar (ou adotar) se lembram do sacrifício vivido pela própria mãe e reafirmam não querer revivê-lo. O curioso é que muitas escolhem não ter filhos primeiramente em um nível inconsciente - mesmo que os motivos estejam vinculados a fatores externos, como esterilidade ou falta de um parceiro adequado.

MELHOR NÃO TÊ-LOS? Para ser mãe é preciso ser filha - o que equivale a dizer que para oferecer cuidados é necessário ter sido (e se sentido) cuidada. Por outro lado, há aqueles que almejam oferecer aos filhos o amor e o amparo que gostariam de ter recebido na infância - o que em muitos casos acarreta problemas porque em vez de olhar para as necessidades da criança a pessoa só consegue ver as próprias carências e as possibilidades de supri-las. Nesse sentido, faz sentido a afirmação da filósofa italiana Luisa Muraro: "Mulheres que não têm filhos estão mais em paz com a figura materna em relação às outras, pois não têm necessidade de se comparar colocando-se no papel de mãe". Nesse contexto, também é preciso considerar a figura do pai e a forma como o casal parental era visto na infância. Com certeza não há fórmulas: quando falamos de psiquismo é impossível supor consequências exatas de al-

guma experiência, embora haja desdobramentos bastante prováveis a ser considerados. "É difícil definir um modelo, visto que experiências similares podem levar a situações opostas; uma mãe ausente pode provocar o desejo de ter filhos que consintam em cuidar da criança que existe dentro de cada uma de nós, ou então pode ser difícil se imaginar em um papel que lhe é estranho", salienta a psicanalista Geni Valle. "Em todo caso, a ideia da maternidade de alguma forma sempre faz pensar nas próprias vicissitudes das relações, e isso pode fazer com que surjam conflitos não resolvidos." Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Michigan com 6 mil mulheres com idade entre 50 e 60 anos revelou que ter ou não ter filhos não tem efeito relevante no bem-estar psicológico nessa faixa etária-o que, de certa forma, contradiz a ideia de que é preciso criar os filhos para ter com quem contar no futuro. "Os aspectos mais importantes para uma maturidade feliz são a presença de um companheiro e de um círculo de relações sociais significativas", salienta a socióloga Amy Pienta, coautora da pesquisa publicada no periódico científico International Journal of Aging and Human Development. Assim - e considerando todo o risco, trabalho e preocupação que significa ter filhos - , seria melhor não tê-los? Depende. O único dado certo é que hoje existe uma liberdade maior de escolha: é possível ser mulher de forma plena e prescindir da maternidade. «e*

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiniiiiiiiiiii PARA SABER MAIS

De mãe em filha: a transmissão da feminilidade. Marina Ribeiro. Escuta, 2011. O conflito: a mulher e a mãe. Elisabeth Badinter. Record, 2011. Sem filhos: a mulher singular no plural. Luci Helena Baraldo Mansur. Casa do Psicólogo, 2003. Elogio às mães más. Catherine Serrurier. Summus, 1993.

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Meninas com TDAH S O N H A D O R A S E D E S O R G A N I Z A D A S , M U L H E R E S C O M T R A N S T O R N O DE D É F I C I T D E A T E N Ç Ã O E H I P E R A T I V I D A D E P O D E M PASSAR D E S P E R C E B I D A S E S O F R E R POR M U I T O S A N O S , S E M T R A T A M E N T O

por A n a Beatriz B a r b o s a Silva

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dia era sempre a mesma coisa. Mal começava a aula, a professora se via às voltas com as reações em cadeia provocadas na classe por Joãozinho, aquele menino endiabrado, e ainda assim adorável. Seus movimentos eram rápidos e causavam enorme ansiedade à pobre "tia" que, além de todos os afazeres, ainda precisava localizá-lo durante a aula, já que ele certamente não estaria sentado quieto em sua carteira. O garotinho só podia ser hiperativo! Era preciso falar com a psicopedagoga da escola, pois ele devia ter o chamado transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Totalmente preocupada em pôr fim à guerrinha de bolinhas de papel iniciada pelo aluno, a jovem professora estava alheia à menina sentada lá pelo meio da sala, olhando tão pensativa pela janela que parecia não se dar conta da bagunça. Todos os dias eram assim, e aparentemente não havia por que se preocupar com aquela aluninha tranquila que mal se mexia na cadeira. Mas o que a professora não sabia era BB

ANA BEATRIZ BARBOSA SILVA é psiquiatra, professora da UniFMU (SP) e presidente da Associação dos Estudos dos Distúrbios de Déficit de Atenção de São Paulo (AEDDA), autora do livro Mentes Inquietas (Fontanar, 2009), entre outros. 78

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que, por baixo da antiga carteira escolar inteiriça de madeira escura, um par de pezinhos balançava irrequieto na mesma velocidade dos pensamentos de sua dona. O nome dela só era lembrado na hora da chamada. Absorta em sua imaginação, vivia alheia ao ditado que a jovem professora começava a passar. Por causa disso, seria mais tarde duramente repreendida em casa e aceitaria todos os adjetivos com que seus pais a definiam: preguiçosa, relaxada, "abilolada". Invisível para sua professora, que, preocupada demais com Joãozinho, só a notava momentaneamente quando percebia sua desatenção aos deveres em sala de aula, ela atravessaria os anos sofrendo com sua distração crónica. Ainda que criativa, perderia autoestima à medida que ganhasse altura, peso e hormônios. Seu colega Joãozinho, diagnosticado precocemente, não precisou passar pela mesma carga de sofrimento. Diferentemente dos homens, mulheres com TDAH podem passar despercebidas, já que nelas predomina a falta de hiperati-

vidade, o contrário do que acontece com seus pares masculinos. Tal característica, determinada por particularidades biológicas e aliada ao componente cultural, pode contribuir para que o número de homens diagnosticados com o transtorno seja maior que o de mulheres; para cada uma delas com o distúrbio, em média há três deles. Embora o tipo hiperativo seja menos frequente na população feminina, as meninas mais travessas dificilmente passam sem ser notadas. Precocemente diagnosticadas, elas são poupadas. Garotas com o transtorno, mas sem hiperatividade, sofrem com sua desorganização, esquecimentos, sensação de abandono, dificuldade de adaptação e de cumprimento de horários; com tarefas meticulosas, prazos, obrigações e cuidado com os filhos. O preço a ser pago quando o diagnóstico de TDAH não é feito é bastante alto para mulheres, pois diferentemente dos homens, espera-se que elas sejam atentas, calmas e dedicadas, além de organizadas e delicadas nos ges-

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Distração, i m p u l s i v i d a d e e h i p e r a t i v i d a d e Quando nos referimos a transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, não devemos pensarem um cérebro "defeituoso", mas em um sistema que trabalha com foco diferenciado do da maioria das pessoas. O sistema neural de homens e mulheres com TDAH tem funcionamento peculiar com comportamento típico, que pode ser responsável tanto por características positivas como por angústias e desacertos. O comportamento TDAH nasce do que se chama "trio de base alterada", formado por variações da atenção, da impulsividade e da velocidade da atividade física. Essa estrutura mental oscila entre a plenitude criativa e a exaustão, já que esse cérebro parece nunca parar. A alteração da atenção, o sintoma mais importante do desempenho TDAH, é uma condição para o diagnóstico. A pessoa com o distúrbio nem sempre sofre de hiperatividade física, mas jamais deixará de apresentar tendência à dispersão. Para o adulto com essa característica, manter-se concentrado em algo, por menor tempo que seja, pode ser um desafio tão grande como para um atleta de corrida com obstáculos que precisa transpor barreiras cada vez maiores até chegar ao fim da pista. E várias vezes, o adulto com TDAH é flagrado em lapsos de atenção. Em relação à impulsividade deve-se ter em mente que a palavra impulso tem um significado próprio: 1) ação de impelir; 2) força com que se impele; 3) estímulo, abalo; 4) ímpeto, impulsão. Todas essas definições literais ajudam a entender a maneira pela qual o portador de TDAH reage diante dos estímulos do mundo externo. Pequenas coisas são capazes de lhe despertar grandes emoções, e a força desses sentimentos gera o combustível //l aditivado de suas ações. Sua mente funciona como receptor de alta sensibilidade que, ao captar um pequeno sinal, reage automaticamente sem avaliar as características do objeto gerador do estímulo. Um exemplo simples dessa situação seria o

MENINOS COM O TRANSTORNO costumam dizer o que lhes vem à cabeça, envolver-se em brigas e brincadeiras perigosas

caçador que, ao detectar um mero ruído na floresta, dispara sua arma a fim de abater sua caça. Poucos minutos após a rajada de tiros, descobre que a sua grande presa não passava de um inofensivo tatu que abrira um pequeno buraco no solo em busca de abrigo. Quanta energia em vão! Exagerado! - diria a maioria das pessoas. Mas, na verdade, tudo não passou de um ato impulsivo, ou seja, disparou e só depois pensou. E, com certeza, lamentou! Se pensarmos na vida real, em que tatus podem ser comparados a pessoas e caçadores, isto é, aqueles com o distúrbio, pode-se imaginar quanto sofrimento, culpa, angústia e cansaço um impulso sem filtro pode ocasionar nos relacionamentos cotidianos. Em especial os meninos com TDAH costumam dizer o que lhes vem à cabeça, envolver-se em brincadeiras perigosas e brigas com os colegas, o que pode render-lhes rótulos desagradáveis como mal-educado, mau, grosseiro, agressivo, autodestrutivo etc. E, é claro, isso será um dos grandes influenciadores na formação de uma autoestima cheia de "buracos". Toda pessoa com TDAH quando adulta apresentará problemas de autoestima, e esse é o maior de todos os desafios de seu tratamento: a reconstrução dessa função psíquica que, em última análise, constitui o espelho da própria personalidade. A impulsividade trará outras consequências. A pessoa terá aprendido a diminuir determinados riscos vitais, como olhar antes de atravessar a rua, praticar esportes com proteção adequada ou desligar o gás do aquecedor. No entanto, seu impulso verbal pode continuar a lhe trazer sérios problemas, principalmente em situações em que esteja sob forte impacto afetivo ou pressão pessoal. Atitudes impensadas podem levar aquele que sofre de TDAH a viver em constante instabilidade: entrar e sair de relacionamentos, empregos e grupos sociais. Para evitar muito sofrimento, informação sobre o distúrbio e acompanhamento psicológico são fundamentais.

METÁFORA DA EQUILIBRISTA: se para a maioria das mulheres contemporâneas | o desafio de dar 5 conta de inúmeras | demandas simultâneas £ é complexo, para | aquelas que enfrentam | dificuldade de | concentração a tarefa é i ainda mais difícil

tos. Antes de chegarem à vida adulta, sofrem com as constantes reprimendas. Sua letra não é tão benfeita, seu caderno não é muito caprichado, sua mochila contém um amontoado de papeizinhos amassados, lascas de lápis apontados, canetas sem tampa e tampas sem caneta. Sua falta de habilidade para planejar, administrar tarefas e se concentrar causa ansiedade e depressão, não só pela condenação implícita ou explícita de parentes, professores e colegas, mas também pelo próprio desconforto e prejuízo que essas características trazem. Conforme vão crescendo, aumentam a carga de responsabilidade e a exigência das tarefas que devem cumprir, seja no âmbito académico, seja no profissional.

FALTA DE CAPRICHO A dificuldade em manter-se atenta, concentrada e em terminar seus afazeres pode ser agravada pelo grau de complexidade e responsabilidade crescente, inerente às ocupações de adulto. As mulheres com TDAH passam por dificuldades bem específicas durante seu desenvolvimento. Imagine como a adolescência pode ser dolorida para alguém que se vê às voltas com sua atenção inconstante. No entanto, algumas características podem tornar essa adolescente uma figura popular em seu grupo - principalmente a que, quando criança, era do tipo "falante". Felizmente, a posição de mãe e dona de casa, anteriormente reservada às mulheres de forma quase exclusiva, certamente não teve o poder de anestesiar essas mentes inquietas e ferviIhantes. Elas foram à luta pelo direito de exercer atividades que lhes proporcionassem o estímulo

de que tanto necessitavam e, mais do que isso, de abrir as portas do mundo em movimento a todas as que antes só podiam contemplá-lo pelas cortinas da janela. Não é preciso pensar muito para concluir que justamente as características dessas mulheres, mais do que das outras, podem fazê-las sofrer desaprovação. Apesar de em geral serem dinâmicas, é comum que desenvolvam baixa autoestima; afinal, desde cedo foram acostumadas a ouvir observações sobre sua falta de modos, desorganização, desleixo e falta de capricho. Críticas que pessoas do sexo masculino normalmente não costumam ouvir, pois as cobranças sociais e culturais são mais acentuadas em relação às mulheres nesses aspectos. Mas meninas têm um papel a cumprir, e em pleno século 21 muitos ainda pensam que melhor seria se elas não chamassem atenção sobre si, ficassem comportadas em seu canto. Raramente suas qualidades mais evidentes, como criatividade, energia e iniciativa, são devidamente estimuladas e reforçadas. Para evitar isso, a família e os educadores precisariam ter conhecimento do que é o transtorno e como essas meninas devem ser estimuladas e valorizadas. Na vida adulta, a tendência aos devaneios e os frequentes esquecimentos costumam trazer problemas, principalmente se a mulher exercer função burocrática. No entanto, isso pode ser compensado seforfocada sua criatividade. Muitas vezes é importante buscar ajuda especializada para melhorar a capacidade de organização e atenção, tornando sua mente irrequieta mais apta a deixar florescer as vantagens que o "funcionamento T D A H " pode proporcionar. nr c

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PARA SABER MAIS

Mentes inquietas. Ana Beatriz Barbosa Silva. Editora Fontanar, 2009.

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Meninas são boas e m matemática, sim! Estudo da Universidade de Chicago mostra que crenças em estereótipos atrapalham, e muito, o aprendizado

A prender é uma propriedade universal # \ d o cérebro. Essencialmente, todas as conexões estabelecidas no sistema nervoso podem ser alteradas conforme são usadas. O aprendizado ocorre à medida que as conexões que "funcionam"-ou seja, que contribuem para um comportamento bem-sucedido-são reforçadas com o uso, impactando cada vez mais o comportamento, ao mesmo tempo que as conexões que "não funcionam" se enfraquecem, até que são simplesmente eliminadas. Por isso, o aprendizado depende de prática: é a experiência que guia a transformação do cérebro. Assim nos tornamos melhores naquilo que mais fazemos. É importante aceitar que diferenças inatas no processo de aprendizado existem, assim como há as que tornam nossa pele mais clara ou escura. Contudo, é fundamental reconhecer que, desde que não exista algum impedimento biológico real (o que é raro), o maior determinante do aprendizado é a prática: o uso que se faz do próprio cérebro.

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AUTORA

SUZANA HERCULANOHOUZEL, neurocientista, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRj), autora do livro Pílulas de neurociência para uma vida melhor (Sextante, 2009). 82

Por outro lado, há um fator muito influente e bem mais difícil de reconhecer: nossas expectativas sobre o próprio aprendizado. Elas são, em geral, baseadas em estereótipos que muitas vezes adotamos sem nos dar conta e que acabam mudando para sempre os rumos do aprendizado - e não necessariamente para melhor. Considere, por exemplo, a matemática. Há quem a adore, há quem a deteste, às vezes a ponto deter uma resposta emocional negativa, de ansiedade, só de pensar em fazer contas "de cabeça". Claro que a motivação para aprender, necessária para levar adiante a prática que move o aprendizado, será menor em quem tem esse tipo de ansiedade - que é mais comum em mulheres e meninas do que em homens e meninos. Para alguns, isso é uma evidência de que a menor aptidão do sexo feminino para a matemática já se manifesta desde a infância. No entanto, não há provas de inaptidão inata em um dos sexos para os cálculos. Ao contrário, a

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ansiedade feminina em relação aos números é aprendida - por exemplo, com a própria professora de matemática. Um estudo recente da Universidade de Chicago mostrou que, no início do ano letivo, todos os alunos dos primeiros anos do ensino fundamental tinham desempenho semelhante em matemática. Ao final do ano, contudo, as meninas que tiveram aulas com professoras inseguras no ensino da disciplina tiveram pior desempenho nas provas do que as outras alunas. Além disso, elas se mostraram mais crentes no estereótipo "meninos são melhores em matemática, e meninas em leitura". Isso não significa que professoras desconfortáveis em ensinar matemática são as culpadas pelo pior desempenho de suas alunas. Estereótipos negativos estão em toda parte, desde a cor da decoração do quarto de dormir até escolhas que os pais estimulam nas crianças. Muitas já chegam à escola esperando menos de si. E algumas delas serão professoras da disciplina um dia - e nada mais natural que projetem, involuntariamente, as expectativas que tiveram em relação a si mesmas na infância. Por isso, ainda que diferenças inatas existam aqui e ali, é muito mais justo, positivo e democrático partir do princípio de que todas as crianças têm as mesmas potencialidades. O que importa é ajudar cada uma a se encontrar, dando-lhe oportunidade para descobrir a grande motivação que poderá levar, com esforço e dedicação, ao desempenho excelente. ™«

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psicologia I psicanálise I neurociéncia

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CORPO ESTRANHO Distorções da percepção fazem essoas ignorar frio, sede e fome

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FREUD E FERENCZI Humor e ironia nas cartas trocadas pelos psicanalistas

Grandes temas Descubra mais

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A edição americana de Scientific

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centenária revista francesa

American tem 168 anos de vida.

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Publicação do grupo Scientific

prestigiada revista de história

edições internacionais, que

American, Mente e Cérebro é

geral do mercado brasileiro.

circulam em mais de 30 países,

voltada principalmente para

Nascida do encontro entre

sendo lidas por cerca de 5 milhões de pessoas.

profissionais e estudantes, mas

jornalistas e historiadores

também se constitui em leitura

brasileiros e franceses, publica

muito procurada por todos que se

matérias de leitura prazerosa,

interessam pelos mistérios da

sem prejuízo do rigor histórico,

mente humana.

ilustradas por riquíssima iconografia.

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