7409 - Silvio Mota Rebeldes - Miolo5

  • Uploaded by: Silvio Mota
  • 0
  • 0
  • February 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View 7409 - Silvio Mota Rebeldes - Miolo5 as PDF for free.

More details

  • Words: 49,899
  • Pages: 224
Loading documents preview...
Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 1

2009-08-06 08:15

Projeto Gráfico e Arte da Capa Geraldo Jesuino Revisão Mariana Araújo Valdevino Desenho da Capa Arquiteto Damião Lopes Editoração Eletrônica Fernando Lima

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 2

2009-08-06 08:16

EXPRESSÃO

GRÁFICA

FORTALEZA/2009

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 3

2009-08-06 08:16

Copyright 2009 © Silvio de Albuquerque Mota

Catalogação na Fonte

M 917 r Mota, Silvio de Albuquerque Rebeldes./ Silvio de Albuquerque Mota. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009. 224 p. 1. Movimentos de libertação nacional- Brasil 2. Prisioneiros políticos

3. Brasil- política e

governo I. Título CDD: 322.420981

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 4

2009-08-06 08:16

Agradecimentos; - a Manoel Coelho Raposo, que sempre foi o maior incentivador deste livro; - a todos os que foram citados no livro; - a Francisco Willian Montenegro Medeiros,Fabiani Cunha, Moema Correia São Thiago, Valdemar Menezes, Benedito Bezerril, Mário Miranda de Albuquerque, Iara Xavier Pereira e Lourdes Ferreira, que me ajudaram com seus depoimentos; - e aos que anonimamente o fizeram.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 5

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 6

2009-08-06 08:16

DEDICO ESTE LIVRO

Aos que se foram com esperança, Aos que sentem culpa por estarem vivos e Aos que virão depois de nós e transformarão nossos farrapos manchados de pólvora e sangue em bandeira.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 7

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 8

2009-08-06 08:16

SUMÁRIO

Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo

11

Prefácio (Moema São Thiago)

21

Introdução

25

Capítulo I As Raízes

29

Capítulo II Os Primeiros Combates

39

Capítulo III Comando do Santa Cruz

65

Capítulo IV Treinamento e Socialismo

81

Capítulo V Exílios

125

Capítulo VI As Mortes no Tempo dos Combates

135

Capítulo VII As Torturas

138

Capítulo VIII Luta na Prisão

167

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 9

2009-08-06 08:16

Capítulo IX A Luta pela Anistia

175

Capítulo X Considerações Finais

185

Glossário

203

Iconografia

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 10

207

2009-08-06 08:16

Rebeldes

11

Pronunciamento do agrupamento comunista de são paulo Com o pronunciamento que tornamos público através deste documento, desejamos tornar conhecidos nossos pontos de vista acerca da maneira de conduzir a luta armada no Brasil. Pertencemos àquele agrupamento dos comunistas de São Paulo que, discordando da linha pacífica, resistiram ao Comitê Central, tendo sido muitos deles expulsos ou vítimas de outras arbitrariedades, sem poderem defender-se, por não terem sido chamados a participar das reuniões em que foram punidos. A separação entre nós e o CC tem caráter de ruptura definitiva. Essa ruptura tornou-se evidente em toda sua plenitude no momento da realização da conferência da OLAS ( Organização Latino Americana de Solidariedade-1967 ), quando o CC se exasperou mais ainda e aplicou medidas punitivas de extrema violência contra os discordantes da linha pacífica. Tais medidas foram ratificadas e mesmo agravadas pela decisão do VI Congresso, realizado sem a presença dos discordantes e transformado numa fraude. Nem ao menos os delegados de São Paulo ou os seus suplentes foram convocados.

Nossa posição em face da OLAS No que diz respeito à luta armada, já nos definimos anteriormente em verias oportunidades, afirmando sempre que somos pelo caminho armado da revolução. Quanto à OLAS, nossa posição é de apoio e aprovação da “Declaração Geral” daquela conferência, sustentando a necessidade de ler, estudar e seguir as diretrizes dos 20 pontos finais do referido documento.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 11

2009-08-06 08:16

12

Silvio Mota

A linha política da “Declaração Geral” da OLAS é a linha que adotamos.

A guerrilha não é um foco Pensamos sobre a guerrilha o mesmo que a Conferência da OLAS quando, no ponto 10 de sua “Declaração Geral”, apresenta a guerrilha como embrião dos Exércitos de Libertação e como método mais eficaz para iniciar e desenvolver a luta revolucionária na maioria dos países latino-americanos. Não se trata, portanto, de desencadear a guerrilha como um foco, como querem insinuar nossos inimigos, acusandonos daquilo que não pretendemos fazer. O foco seria lançar um grupo de homens armados em qualquer parte do Brasil, e esperar que, em consequência disso, surgissem outros focos em pontos diferentes do país. Se assim fizéssemos, estaríamos adotando uma posição tipicamente espontaneísta e o erro seria fatal. Para nós, a guerrilha brasileira não terá condições de vitória senão como parte de um plano estratégico e tático global. Isto quer dizer que a guerrilha exige preparação e que o seu desencadeamento depende dessa preparação.A preparação da guerrilha, coisa muito complexa e muito séria, não pode ser vista com leviandade. Tal preparação exige o adestramento do combatente, a coleta de armas, a escolha do terreno, a fixação da estratégia e da tática, e, por fim, o estabelecimento do plano de apoio logístico.

Apoio logístico e estrutura global da guerrilha O plano de apoio logístico tem que ser posto em execução desde já. Para isso merece uma importância decisiva o trabalho na área urbana, dado que é impossível a vitória

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 12

2009-08-06 08:16

Rebeldes

13

da guerrilha brasileira sem o apoio da cidade. Por sua vez, o camponês é o fiel da balança da revolução brasileira, e a guerrilha não conseguirá implantar-se se não houver trabalho entre os camponeses ou se não estiver estreitamente vinculada a eles e não contar com o seu apoio. Enfim, o que queremos é construir a estrutura global necessária ao desencadeamento e enraizamento da guerrilha, com seu núcleo armado operário e camponês, visando a transformá-lo em exército revolucionário de libertação. Para nós, a guerrilha é a vanguarda revolucionária, o seu núcleo fundamental, e constitui o centro do trabalho dos comunistas e demais patriotas.

O Comitê Estadual não tem mais razão de ser nem os seus órgãos subordinados Para uma ação diferente como a guerrilha, precisamos de um instrumento diferente, que não pode ser o antigo CE. Consideramos, assim, que não há mais razão de ser na manutenção do antigo Comitê Estadual, seu secretário e seus órgãos subordinados. A estrutura partidária em que se apoiavam o CE e os demais órgãos subordinados era feita do sistema de organização estabelecido em função do VI Congresso, e, essencialmente, em contradição com os objetivos revolucionários. Comissões, seções auxiliares, tais como a seção sindical, a seção TE, assistentes, etc, tudo isso são formas de organização que dão à estrutura partidária a configuração de uma cúpula pesada e ineficiente. E, mais do que isso, destina das a alimentar a burocracia, a entravar a ação revolucionária e a impedir a iniciativa dos militantes de base. Não deve, pois, continuar existindo.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 13

2009-08-06 08:16

14

Silvio Mota

O Profissionalismo Político O profissionalismo político da antiga organização também deve acabar, pois só serviu para que se corrompessem muitos companheiros através do poder econômico. Os chamados funcionários do partido são sempre homens sujeitos a perder a ajuda de custo do CC ou de qualquer órgão dirigente, se manifestam opiniões contrárias à direção. O profissional revolucionário deve existir, mas suas relações com a organização devem ser estabelecidas segundo critérios revolucionários e de acordo com os interesses da revolução, jamais para satisfazer à vontade de um grupo que manda.

Precisamos de uma organização revolucionária Uma organização como o antigo CE e seus órgãos subordinados, à imagem do CC, com seções auxiliares, assistentes, aparelhos, etc, não pode ir à luta armada e muito menos à guerrilha, que é uma expressão elevada de guerra revolucionária. Precisamos agora de uma organização clandestina, pequena, bem estruturada, Flexível, móvel. Uma organização de vanguarda para agir, para praticar a ação revolucionária constante e diária, e não para permanecer em discussões e reuniões intermináveis. Uma organização vigilante, severa contra os delatores, aplicando métodos de segurança eficientes para evitar que venha a ser destroçada pela polícia e para impedir a infiltração do inimigo. Os membros desta organização são homens e mulheres decididos a fazer a revolução. Os comunistas de tal organização são companheiros e companheiras de espírito de

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 14

2009-08-06 08:16

Rebeldes

15

iniciativa, livres de qualquer espírito burocrático e rotineiro, que não esperam pelos chamados assistentes, nem ficam de braços cruzados aguardando ordens. Ninguém é obrigado a pertencer a esta organização. Os que a aceitam, tal como ela é e dela vêm a fazer parte, só o fazem voluntariamente, só querem ter compromissos com a revolução.

Democracia Revolucionária A democracia desta organização é a democracia revolucionária, onde o que vale é a ação, o que se leva em conta é o interesse da revolução, onde a iniciativa concreta é o dever fundamental. Os princípios pelos quais se rege esta organização são três: o primeiro é que o dever de todo revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para praticar atos revolucionários e o terceiro é que só temos compromisso com a revolução.

Os pontos de partida da organização revolucionária Esta organização está começando a constitui-se, por vontade dos revolucionários e sem pedir licença a ninguém, partindo dos comunistas em rebeldia e das organizações e agrupamentos que resistiram ao CC e não se submeteram às suas arbitrariedades. Dessa rebeldia e dessa resistência surgiu um pequeno centro de coordenação que já existe em função da guerrilha. Dessa rebeldia e dessa resistência também estão surgindo grupos revolucionários. Pensamos que chegou a hora de acabar com as intermináveis discussões internas e que não devemos mais continuar perdendo tempo na luta com o CC.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 15

2009-08-06 08:16

16

Silvio Mota

Também não queremos fazer outro partido comunista ou algo semelhante. O que queremos é a ação revolucionária, a preparação e o desencadeamento da guerrilha. O que pretendemos com a nossa decisão de lutar agora é contribuir para liberar as forças revolucionárias até então represadas e expandi-las até o limite máximo da tensão.

O que são os grupos revolucionários O fundamental para lutar é contar com os grupos revolucionários. Quem parte para a luta armada deve saber que enfrentará a fúria cada vez maior da reação, e deve prepara-se para tal. As organizações grandes e pesadas são a morte para os revolucionários. E é este o perigo que correm os comitês municipais e organizações provenientes da antiga estrutura. Os grupos revolucionários constituem as bases da organização revolucionária. São grupos pequenos, compostos pelos revolucionários de mais iniciativa e maior capacidade de luta. Há grupos revolucionários que constituem o primeiro escalão da organização revolucionária, o escalão que tem as responsabilidades decisivas em função da luta armada e do estabelecimento da estrutura global da guerrilha. O nome que tenham tais grupos revolucionários pouco importa. O fundamental é que passem à ação revolucionária imediata. Todos nós sem exceção devemos organizar grupos revolucionários e pertencer a eles. O comando geral da organização pertence à guerrilha, onde quer que ela esteja. E para ela é que devemos trabalhar, a ela subordinando o cumprimento de todas as tarefas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 16

2009-08-06 08:16

Rebeldes

17

As tarefas revolucionárias Não pode existir comunista e patriota que não tenha uma tarefa a cumprir. Os grupos revolucionários de primeiro escalão realizam quaisquer tarefas, sobretudo as mais difíceis. As tarefas que têm prioridade são as que se relacionam mais de perto com a guerrilha, ou as que são por ela exigidas em cada momento. Na fase atual são as tarefas de preparação da guerrilha e as tarefas de apoio logístico. Entre as tarefas exigidas para a preparação da guerrilha encontram-se a organização de aprendizagem do tiro, a seleção e o adestramento do combatente. Pode-se fazer o treinamento andando a pé, acampando no mato, praticando defesa pessoal. É preciso capturar e fabricar armas ou comprá-las. Bem como munições e cartucheiras. O material clandestino deve ser impresso e distribuído pelos grupos revolucionários. É preciso organizar imediatamente grupos de apoio financeiro para obtenção de fundos para a caixa da guerrilha. Devem ser criados grupos de sabotagem nas cidades, bem como grupos armados. Inclusive os que são compostos por operários e por camponeses devem treinar por sua própria conta e dirigir-se para a guerrilha, tão logo seja esta desencadeada. Grupos de guerrilha urbana devem ser organizados. Comitês volantes, que não têm sede fixa, e franco-atiradores são indispensáveis para manter as cidades num clima de rebelião, enquanto a guerrilha se desenvolve na área rural. A agitação política das massas deve ser posta em prática, com a distribuição de volantes nas portas de fábricas e no seu interior, e com pinturas murais, defendidas por grupos armados. O trabalho de massas anti-americano deve prosseguir, com o castigo dos americanos agindo no Brasil, seja nas ci-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 17

2009-08-06 08:16

18

Silvio Mota

dades ou no interior. A defesa da Amazônia e de nossa soberania exige passarmos à ação concreta. O movimento de massas sindical deve fazer-se de baixo para cima, abolindo o sistema de trabalho pela cúpula, e visando à radicalização, para desmascarar o governo e despertar o espírito de luta revolucionário dos operários. É preciso estimular a ocupação de terras pelos posseiros, fazer do trabalho de organização dos sindicatos rurais um meio para desencadear a luta de classes no campo e obter apoio revolucionário para a guerrilha, dando-lhe novos pontos de apoio e armando os camponeses às custas das armas tomadas aos latifundiários. As mulheres e os jovens, particularmente os estudantes, devem ser organizados em grupos específicos ou mistos, para que, além das tarefas gerais, possam realizar missões e tarefas revolucionárias específicas. Uma questão decisiva é que a aliança armada operário-camponesa comece a concretizar-se na organização do núcleo fundamental da guerrilha, o que se consegue trabalhando revolucionariamente com os operários nas fábricas e desenvolvendo o trabalho entre os camponeses. O sentido deste trabalho deve ser que os operários e camponeses, vindos dos grupos armados em ação nas áreas urbanas e nas áreas camponesas acabem se juntando na luta de guerrilhas e nos grupos guerrilheiros. A realização desse conjunto de tarefas, que visa dar à guerrilha o apoio logístico indispensável, será a grande motivação que vai permitir formar, em torno dos grupos revolucionários, uma extensa e profunda rede revolucionária, apoiada no povo, e que será o sustentáculo definitivo da guerrilha.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 18

2009-08-06 08:16

Rebeldes

19

Porque não organizamos outro Partido Comunista O Agrupamento Comunista de São Paulo é contrário organização de outro partido comunista. Não desejamos fazer outro partido, o que seria a volta às antigas discussões e até mesmo a repetição da velha estrutura partidária, com prejuízo da atividade revolucionária imediata. Nossa estratégia é partir diretamente para a ação, para a luta armada. O conceito teórico pelo qual nos guiamos é o de que a ação faz a vanguarda. Seria para nós imperdoável perder tempo organizando uma nova cúpula, lançando os chamados documentos programáticos e táticos e fazendo novas conferências, de onde surgiria outro Comitê Central, com os vícios e deformações já por demais conhecidos. A mesa das discussões hoje em dia já não une os revolucionários. O que une os revolucionários brasileiros é desencadear a ação, e a ação é a guerrilha. Trabalhando por ela, sem disputarmos qualquer parcela de liderança, sem nos imiscuirmos nos assuntos das demais organizações revolucionárias e sem tentar misturar organizações, apenas procuraremos somar esforços para que a guerrilha seja desencadeada, pois o nosso dever é fazer a revolução. Da guerrilha, afinal, surgirá a vanguarda revolucionária brasileira. Por enquanto o que nos interessa é trabalhar a fundo por essa guerrilha. E ela surgirá como, quando e onde os “gorilas” e os imperialistas menos esperam. Para nós o que vale é o exemplo de Guerrilheiro Heróico do Che Guevara. O Agrupamento Comunista de São Paulo

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 19

2009-08-06 08:16

Silvio Mota

20

RONDÓ DA LIBERDADE

É preciso não ter medo É preciso ter a coragem de dizer Há os que têm vocação para escravo Mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão Não ficar de joelhos Que não é racional renunciar a ser livre Mesmo os escravos por vocação Devem ser obrigados a ser livres Quando as algemas forem quebradas É preciso não ter medo É preciso ter a coragem de dizer O homem deve ser livre O amor é o que não se detém diante [de nenhum obstáculo, E pode mesmo existir quando não se é livre E no entanto ele é em si mesmo A expressão mais elevada do que houver de mais livre Em todas as gamas do humano sentimento É preciso não ter medo É preciso ter a coragem de dizer

Carlos Marighella

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 20

2009-08-06 08:16

PREFÁCIO

A ALN, como movimento de massa, surge no Ceará através de uma tomada de posição dos estudantes, e sua alegada visão militarista se consolida através de lutas marciais, inclusive curso de karatê (no Ceu – DCE). Sopram os ventos revolucionários mundiais de 1968Vietnam [maio de 68]; Paris; calabouço no Rio; e AI-5, impulsionando a juventude para a chamada: “o dever de revolucionário é fazer a revolução”. Infelizmente, não entenderam nem seguiram o Marighella, quando ele afirmou que o compromisso era por um mundo mais justo e não pela luta de egos daqueles que querem o poder pelo poder. “Não estamos aqui para sermos heróis, mas para ganhar a guerra”, advertia Carlos Marighella. Sílvio Mota, primeiro comandante da ALN, hoje juiz aposentado, volta ao passado e começa a desvendar a história dessa organização no Ceará, em sua trilha de erros e equívocos revolucionários. Tem a coragem de, mesmo depois do tempo de prescrição judicial, contar fatos e verdades sobre desvios e desvirtuamentos ocorridos. Não importa se as ordens do Comando Nacional da ALN foram desobedecidas ou se houve confusão entre tática e estratégias. Importa, sim, que houve manipulações, dores, mortes, traições, prisões, torturas, condenações e expiações.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 21

2009-08-06 08:16

22

Silvio Mota

Sílvio é companheiro e foi a encarnação da revolução, resistente, porém disposto a aceitar as mudanças do tempo – ele personifica a própria paixão revolucionária. Viver a revolução com seriedade, companheirismo, compromisso em relação ao próximo e com a história foram e ainda são as marcas que o distinguem. Disciplinou suas emoções não apenas para dar um testemunho, mas para realizar um verdadeiro registro histórico daquela época de luta. Agora, tem a coragem de, pela primeira vez, contar a verdade sobre o polêmico e discutível “justiçamento”, fuzilamento ocorrido em São Benedito. Se o dever do revolucionário é fazer a revolução, Silvio foi além: cumpriu sua revolução interior, na qual só a verdade liberta, e ainda teve a atitude fraterna de apresentar aos companheiros e à história a sua verdade, sem medos nem véus. Também, pela primeira vez, tem-se a oportunidade de conhecer, através de seu relato, como era um treinamento de guerrilha em Cuba. A revolução cubana se materializava nos estudos e aprendizados de tática, estratégia, logística, deslocamentos e ações de guerrilheiros, armamento, sobrevivência e a história dos movimentos revolucionários. Era a continuidade da Cuba de Fidel e de Che Guevara. Foi lá que viveu momentos angustiantes e de extremo conflito. Crises políticas e ideológicas que o levaram a ansiar pela morte, mas sua firmeza ideológica foi mais forte, porquanto foi forjada a ferro e dores. Será essa firmeza ideológica que não permitirá que compactue com jogos de poder, não se deixará embevecer por privilégios... Podemos e devemos discordar de Sílvio em muitos aspectos, mas há que se respeitar sua coragem e integridade. São “outros” os que se beneficiarão dos “privilégios revolu-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 22

2009-08-06 08:16

Rebeldes

23

cionários cubanos” sendo, anos mais tarde, levados à lama de escândalos como o do “mensalão “. O poder corrompe, sim. Mas há os Ches, os Toledos (Joaquim Câmara Ferreira) e muitos mais que sabem contornar o poder, mantendo-se íntegros, éticos e humanos. O sonho não acabou, pois: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. (Fernando Pessoa)

Moema São Thiago

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 23

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 24

2009-08-06 08:16

INTRODUÇÃO

E

sta é uma narrativa necessária. O cumprimento de

um dever. Já foram escritos muitos livros sobre a luta armada no Brasil e sobre a resistência à ditadura militar, mas o pouco que se tratou sobre a luta do grupo a que estou ligado no Ceará é falho e contém inclusive erros históricos. Falo em grupo a que estou ligado, apesar dos muitos anos que já passaram, porque é assim que me sinto de coração. È assim que nos sentimos, aliás, pelo menos a maioria. Não se passa sem consequências pela entrega total a uma causa, pelo risco cotidiano, pelo sacrifício e pela superação do medo no dia a dia, o amor pelo povo e pelo país... Entre os que viveram experiências semelhantes se desenvolve um profundo sentimento de fraternidade. É isso que nos une e unirá - pelo visto, para sempre. O reverso da medalha é verdadeiro, pois não podemos ver sem indignação os que traíram. Esta é uma história de um grupo pequeno, que não se pode comparar com a força da luta em São Paulo e no Rio de Janeiro. É uma história do GTA da ALN do Ceará, inclusive da trajetória dos seus integrantes. Alguma coisa até anterior

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 25

2009-08-06 08:16

26

Silvio Mota

à organização do GTA e da ALN, mas relevante para a formação do grupo. A ALN, Ação Libertadora Nacional, foi a organização estruturada por Carlos Marighella, principalmente, a partir dos militantes do Partido Comunista Brasileiro de São Paulo e do Rio para travar a luta armada contra a ditadura militar implantada no Brasil com o golpe de estado de 1964. Data de 1967, mas pode-se dizer que se gerou, tanto no Partido Comunista como na sociedade, a partir do golpe militar. “Não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários”; “O dever do revolucionário é fazer a revolução”; “A ação faz a vanguarda”. Essas eram as palavras de ordem. Expressavam uma tática nova, uma nova estratégia, uma concepção diferente de organização Como tática o que se queria era romper com o imobilismo das reuniões intermináveis e dos compromissos políticos, com a eterna espera do amadurecimento das condições objetivas para a ação revolucionária. A estratégia era a da guerra de guerrilhas nas condições do momento histórico brasileiro, partindo da cidade para o campo, com perspectiva de fortalecimento cada vez maior da luta de massas e das forças militares revolucionárias. A organização era a de pequenos grupos compartimentados, com as tarefas próprias de travar a luta no campo militar, de organizar e apoiar a luta de massas ou de constituir a base logística para o enfrentamento político-militar com a ditadura. Cada região do país deveria ter níveis de enfrentamento diversos. No primeiro momento, o eixo Rio -São Paulo –Belo Horizonte formava o principal teatro de guerra: a guerrilha urbana.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 26

2009-08-06 08:16

Rebeldes

27

Ali, houve o maior número de enfrentamentos, estava a maioria dos militantes e, como se tratava do centro econômico do país, dali deveriam vir as maiores contribuições para a formação da guerrilha rural, desde o início concebida como força estratégica que evoluiria em força política e militar, mudando de qualidade no processo e propiciando a tomada do poder pelo povo em armas. A ALN, por sua história e princípios, porém, não tinha o menor interesse em sufocar a iniciativa revolucionária. Surgiram grupos em outros pontos do país, e formaram-se na luta, seguindo seu exemplo. Foi o que aconteceu no Ceará. Houve todo um processo de luta interna no Estado, como a nível nacional, a partir do golpe militar, com características próprias. A narrativa tentará seguir esses passos. Tentará, também, seguir a trajetória dos militantes até a luta pela anistia em 1979, na prisão, no exílio e no eixo Rio-São Paulo. Os nomes usados serão fictícios , inclusive os dos apoiadores dos grupos de tortura e informações da ditadura. É preferível omitir nomes que omitir fatos. De qualquer jeito, alguns nomes são verdadeiros, outros, os nomes de guerra da época, outros, completamente inventados. Fica mais bonito. As fontes são absolutamente fidedignas - os próprios protagonistas dos fatos. Mesmo que isso implique em redução do texto e em algumas lacunas, pois o autor não conseguiu extrair das suas fontes mais do que escreveu, e escreveu muito mais sobre os acontecimentos de que participou diretamente.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 27

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 28

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO I

As Raízes

F

ortaleza. Ceará. 1º de abril de 1964. -Tem um vigia lá dentro. Só tem um jeito: é matar ou amarrar o homem. -Matar é exagero, e o pobre não merece isso. Vamos ver se dá para amarrar. -É melhor olhar na esquina, para ver o que está aí por perto. Já estamos aqui há muito tempo. Ernesto, Luís e Rubens estavam no jipe do Rubens, ao lado da Reitoria da Universidade Federal, junto aos Institutos Básicos. O dia era 1º de abril de 1964. A hora, duas da madrugada. O armamento um 32 da Taurus, para todo mundo. Uma volta até a esquina e a surpresa. A rua em frente ao Centro do Estudante Universitário estava toda tomada por soldados do Exército. Tinha até metralhadora de fita 30. -Não dá não, gente. Vamos ficar devendo essa. Entram no jipe e vão pelas ruas laterais. De repente, já longe dali, uma patrulha do Exército. Tinham saído perto do Grupo de Obuses. Pararam. Fingiram uma farra e responderam às perguntas comendo salsichas. -Vão-se embora, bando de bêbados!

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 29

2009-08-06 08:16

30

Silvio Mota

No dia anterior, Ernesto tinha ido, como sempre, trabalhar, no Conselho de Economia. Lá tinha ouvido bem claro de um deputado: -Tudo depende do Kruel e do 2º Exército. O Governador Virgílio garante os mandatos dos comunistas e sua lealdade ao presidente. Mas, se o Kruel aderir, não vai haver mais presidente, e vão pedir as cassações. Não foi dia de ficar muito tempo no trabalho. Foi para o Sindicato dos Ferroviários, onde se concentrava uma multidão em apoio a João Goulart. Ouviu o discurso do Jataí, e logo veio o recado do Partido, ao pé do ouvido: -Estão lhe esperando na Faculdade de Odontologia. Era perto. Naquele tempo tudo ficava no Centro. - O 3º Exército está resistindo no Rio Grande do Sul. Arranje uns cabras bons, que a ordem do Partido é para vocês tomarem um mimeógrafo no Sindicato dos Bancários e uma off set nos Institutos Básicos. Precisam fazer com que a população ouça nossa voz. Quem falava era William Sá, em nome do Comitê Estadual. Ernesto ficou com aquilo na cabeça, mas nem sabia direito o que era uma off set. Pensava que era uma estação de rádio. O Sindicato era de esquerda, mas os milicos já deviam estar lá, senão o próprio Beleza já teria tirado o mimeógrafo. Só conseguiu o Luís, o Rubens, um jipe e um revólver. Deixaram cair a noite, e mais tarde, deram uma volta pelo Sindicato. Naquele tempo, a sede era perto da Boate Guarani, o bordel da moda. Com o bordel funcionando e o entra e sai de homens e mulheres em diversos estados de embriaguez, foi fácil subir o Luís e o Rubens e levar a máquina ao jipe.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 30

2009-08-06 08:16

Rebeldes

31

Ernesto ficou de segurança na calçada, com o revólver escondido. Até esqueceram dele. Mas a casa onde ficava o mimeógrafo era perto e ele foi encontrar a turma a pé. Ainda bem que o esperaram. Não haviam feito mais que uma ou outra pichação até o momento e a inexperiência era natural. Depois houve o lance da Reitoria e do Grupo de Obuses, e entregaram o material ao Partido. No dia seguinte, chega um alarme falso que estão procurando o Ernesto. Ele olha pela janela da frente da casa e vê um jipe do Exército cheio de milicos, passando devagar.Não conversa. Sai por detrás da casa e passa o dia na Universidade Federal. Telefona para casa, já de tarde. -Meu filho, onde você está? -Estou no CEU, mamãe. Interrompe-se a ligação. Ernesto tem que voltar para casa para explicar que estava no Centro do Estudante Universitário, o CEU. Aí sabe que o alarme fora falso. A inexperiência era geral. Dos dois lados. O Parangaba, famoso agitador do Liceu, cai numa das saídas de Fortaleza. Estava na mala do carro, mas quando param na barreira, acha de perguntar lá de dentro se já tinham chegado. Aí vêm as cassações, as prisões e coisas mais graves, que não se justificam. O Partido devolve o mimeógrafo à repressão, alegando que não queria prejudicar os dirigentes sindicais. Um Secretário entrega todo o Comitê Estadual dizendo que comunista não mente, e que as anotações do CE que o Tarcísio tinha dito que eram do seu Comitê Eleitoral eram na verdade os nomes dos membros da direção do Partido.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 31

2009-08-06 08:16

32

Silvio Mota

No Rio de Janeiro, o Santa Cruz também recebe ordens do Partido para dar segurança no prédio da UNE.As armas iriam chegar. O General Assis Brasil vai garantir o esquema militar contra os golpistas. Muita pancadaria depois, Santa Cruz tem que recuar e sem receber arma nenhuma vem parar no Ceará. O Pedro Leda, quadro que o Comitê Central tinha deslocado para o Ceará, some. Começam as prisões. O Tarcísio vai bater em Fernando de Noronha. A grande greve operária, da Fábrica Santa Cecília, tinha sido derrotada após longo combate. Os estoques eram grandes e os patrões tiveram como esmagar o movimento pela fome.Os dirigentes operários surgidos na luta não titubearam, mas foram despedidos e caíram na lista negra dos patrões de Fortaleza. O Ferreira, que era tecelão, virou metalúrgico à força. Agora, é soldador de portões. Alencar, que tinha recrutado o Ernesto, também é preso. A repressão,mesmo vitoriosa, não é tão feroz como foi depois. O que não quer dizer que não torturaram e não mataram desde o início. Mas ainda dava para respirar. Com os que não foram atingidos diretamente pela repressão, em um primeiro momento, e com os que saíam das prisões nos quartéis, reorganiza-se o Partido. Realiza-se a Conferência Estadual, em uma propriedade no interior do Estado, para discutir o golpe militar e suas repercussões, já preparada por uma Conferência Municipal em Fortaleza. Dá-se a primeira cisão. A esquerda separa-se da direita.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 32

2009-08-06 08:16

Rebeldes

33

Na esquerda, ficam os que acusam as traições, a ilusão de classes; na direita, os que continuam a defender a linha do Comitê Central. A esquerda continua unida em torno do Comitê Municipal de Fortaleza, o qual inicia o trabalho no campo também. O PCB era hegemônico na esquerda no Ceará, mas depois do golpe militar e da falta de autocrítica, começam a se firmar outras tendências em Fortaleza. Ernesto e Santa Cruz já estudam os primeiros livros do Trotsky trazidos pelo Clóvis. Não se interessaram muito, mas o Ferreira e suas bases operárias tentam organizar algo por essa via por algum tempo, mas depois desistem também. A influência da Revolução Cubana é muito mais forte, embora não haja nenhum contato. Chega-se a publicar, divulgar e estudar “150 Perguntas a um Guerrilheiro”, de Alberto Bayo. Fechadas, cada vez mais, as vias legais, o apelo das armas é forte. Aparecem os primeiros contatos do Partido Comunista do Brasil, o PC do B. O apelo à Revolução Chinesa também era forte, e a luta contra o revisionismo. Foram estudadas, publicadas e difundidas as obras de Mao. A vida orgânica das bases normalizou-se sob outra linha, cresceram as do movimento estudantil, aprofundou-se o trabalho no campo. Começaram a ser coletadas armas e munições, por compra ou doação.Até mesmo um treinamento de guerrilha rural foi dado às bases camponesas no interior. Naturalmente precário, baseado nas “150 Perguntas” e alguma coisa que foi conseguida do Che Guevara, como deslocamento clandestino, segurança, internamento, marchas em terreno montanhoso e prática rudimentar de tiro. Tudo feito pelos militantes do Ceará.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 33

2009-08-06 08:16

34

Silvio Mota

A direção nacional do PC do B não gostou, insistindo na luta de massas estudantil. Houve acusações de aventureirismo. Inibiu-se a iniciativa. Tudo ia ficando muito parecido com o que tinha acontecido na época do golpe. Havia que combater, mas quem tomava a iniciativa era aventureiro. Houve uma Conferência Estadual, com assistência do Comitê Central, e o resultado foi o mesmo. O momento era da luta de massas. A questão das armas era da direção. Já na cisão do PCB, o Alencar disse que não ia trocar uma direção burocrática por outra, e nem entrou no PC do B Os outros companheiros começaram a ver que ele tinha razão. Pouco a pouco, Santa Cruz, Ernesto, Joaquim, Ferreira e outros foram-se afastando. Novamente estavam órfãos políticos. Mais para o movimento nacional contra a ditadura militar do que para quem aceita a tutela burocrática. Chegam notícias da OLAS. O exemplo do Che Guevara brilha em contraste com a paz dos mortos que a ditadura e o imperialismo querem impor. Chegam as primeiras notícias da atuação de Marighella. Ernesto vai para São Paulo e faz contato com Torres no CRUSP, o qual o encaminha para o Agonalto Pacheco. Depois das discussões iniciais, é bem recebido e transferido para o apartamento de duas companheiras. Lá, recebe o Pronunciamento do Agrupamento Comunista de São Paulo para discussão com os companheiros no Ceará e conhece Marco Antônio Braz de Carvalho, comandante do GTA de São Paulo na época. Conversaram como velhos amigos, parecia que já se conheciam de longa data. Engraçado é que o Marquito se apresentou como Marquito mesmo, mas disse que era baiano, sendo carioca. Estranha segurança...

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 34

2009-08-06 08:16

Rebeldes

35

De volta a Fortaleza, o Pronunciamento é discutido e aceito por quase todos os companheiros. “Não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários.” Nenhuma palavra de ordem seria mais bem recebida no grupo. Já decepcionado por tantas tentativas infrutíferas de cumprir com o seu dever. Apenas o Alencar ainda continuou desconfiado, mas depois acabou fazendo contato com a VAR-PALMARES e ajudando nas operações do grupo principal. A sensação era a de liberdade. Depois de algum tempo, o necessário para a divulgação e discussão do Pronunciamento,foi remodelado à estrutura organizacional do grupo, sendo as antigas bases transformadas em grupos de apoio, grupos de trabalho de massa e um grupo de fogo, o GTA - Grupo Tático Armado. A compartimentação entre pessoas conhecidas, que foram, naturalmente, as primeiras a serem abordadas, foi muito difícil a princípio. Acabou sendo assegurada com a suspensão de reuniões entre os integrantes dos grupos de apoio e rigoroso segredo sobre quem iria para o GTA e o que ele faria. Os grupos de trabalho de massas continuaram trabalhando como antes, mas com muito menos reuniões e mais ações práticas. Na maior parte das vezes trabalhavam no movimento estudantil, cujas ações de massa estavam em ascensão em todo o país. O movimento camponês no Ceará era muito incipiente, mais derivado de Grupos dos 11 brizolistas que do trabalho do PCB ou PC do B. Mesmo assim, a tarefa do levantamento e mapeamento de áreas impunha-lhe tarefas imediatas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 35

2009-08-06 08:16

36

Silvio Mota

O movimento operário estava esmagado como movimento de massas e seus quadros foram distribuídos nos três níveis de organização. A direção consolidou-se no GTA, o qual recebeu reforços de Pernambuco e Rio de Janeiro, companheiros que tinham ficado desgarrados pelos golpes sofridos nos movimentos dos Estados de onde vinham e tinham vindo morar em Fortaleza. A missão no Ceará não era, de modo nenhum, deflagrar um processo de guerrilha urbana. A luta de guerrilhas impõe uma divisão territorial em área de combates, área intermediária e área urbana, na estratégia da guerrilha rural, que era a da ALN. A área de combate seria o interior do Brasil, a fronteira agrícola da época, o chamado “fundão”, incluindo zonas de tradição de luta camponesa e zonas desabitadas, com boas condições militares de defesa, como o relevo, a distância e obstáculos naturais. Na zona urbana, o eixo econômico Rio-São Paulo-Belo Horizonte, deveria ser travada ampla luta de massas e guerrilha urbana, visando enfraquecer o inimigo em uma guerra de atrito e desorganizar sua logística. O Ceará pertencia à zona intermediária, via de comunicação com a guerrilha rural para os suprimentos e os quadros, sendo também zona de guerra de atrito. Não seria possível, porém, empolgar a militância, tantas vezes desiludida, sem pelo menos algumas ações de guerrilha urbana, que marcassem a diferença de qualidade. O fundamental era que essas ações não fossem assinadas, assumidas como guerra de guerrilha urbana, nem fossem tão espetaculares ao ponto de provocar uma repressão

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 36

2009-08-06 08:16

Rebeldes

37

que não se poderia enfrentar por falta de zonas de recuo. Cair nessas ilusões seria cometer erro estratégico grave; por maiores que fossem as vantagens táticas, seria colocar em perigo o que era principal por uma vantagem secundária. Isso não quer dizer que os militantes da ALN sempre compreenderam essa relação entre tática e estratégia, nem, muito menos, que sempre a respeitaram. Infelizmente, o personalismo e, mesmo, o desespero, várias vezes, os fizeram agir de modo oposto. Outra peculiaridade do movimento no Ceará é o pequeno número de guerrilheiras. Uma das causas parece ter sido a forma de recrutamento na frente de massas estudantil, feito a partir das aulas de lutas marciais. Por isso mesmo, há que destacar os nomes da Maria, da Jane, da Fabíola, e da Eliane, embora todas as esposas de guerrilheiros tenham arcado, de um maneira ou de outra, com o ônus da participação no movimento.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 37

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 38

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO II

Os Primeiros Combates

C

om a ida do Rubens para São Paulo, e a do Luís para o Grupo de Apoio, onde, aliás foi muito útil, o GTA do Ceará só contava inicialmente com Ernesto, Santa Cruz, Guilherme, o militante que tinha vindo do Rio, e o Ferreira. Todos já eram provados e dispensavam a ação individual fictícia que sempre era utilizada para verificar o sangue frio dos novos integrantes do GTA. Contrariamente à imagem que se tem dos militantes da luta armada daquele tempo, todos eram casados e trabalhavam para ganhar a vida. A clandestinidade terminou por ser a norma depois, mas, naquela época e no Ceará, não era necessária e não foi imposta artificialmente. Isso possibilitava, inclusive, que os primeiros recursos da organização viessem de seus próprios militantes. O Grupo de Apoio era mais generoso e a Frente de Massas contribuía com recursos mais modestos, naturalmente. As primeiras armas, já estavam armazenadas, e vieram dos tempos dos treinamentos de camponeses na época da ligação com o PC do B, e os revólveres também podiam ser adquiridos no comércio local, sem registro. Só havia rifles Winchester de alavanca e calibre 44 e revólveres 38. Mais tarde foram tomados ou doados fuzis de repetição, do tipo

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 39

2009-08-06 08:16

40

Silvio Mota

Mauser ou Mannlicher, de 7 mm. As pistolas eram poucas, houve uma Colt 45 e uma Luger 9 mm, mas as outras eram todas de calibre 7,65. A munição só era abundante no calibre 38, também adquirida no comércio local sem registro. Do resto sempre havia, mas pouco. Apesar da luta armada no eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte, no Ceará havia um comércio menor que vendia de tudo sem registro. Chegou-se a comprar boas quantidades de clorato de potássio, ácido sulfúrico, e até mesmo detonadores, pavios e dinamite. Chegaram a adquirir revólveres 38 e munição para o PCBR, pois interessava à organização a disseminação da luta. O dinheiro foi deles e entre os que receberam a encomenda estava o Odijas Carvalho. Entre as armas havia inclusive algumas raridades, como uma pistola com o brasão do império austro-húngaro, um Smith & Wesson calibre 44, de abrir por cima, um fuzil Mannlicher 7 mm, uma pistola Luger 9 mm e um rifle Winchester 44 que tinha pertencido ao José Pedro, um dos mais famosos jagunços do Padre Cícero, além de algumas espingardas. Alguns comerciantes eram amigos, mas a maioria só estava interessada no dinheiro pois pagavam à vista. Após estabelecida a organização e levantado o material bélico, além de colocar alguns aparelhos de segurança, teve-se a notícia, através das gabolices do pai da Elenir, esposa do Santa Cruz, cujo pai era informante policial, de que estava sendo fundado o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no Ceará. A organização era forte e chefiada por um dos maiores industriais do Estado, com a participação de jornalistas e comerciantes, com perspectiva de muito dinheiro para financiar, clandesti-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 40

2009-08-06 08:16

Rebeldes

41

namente, a repressão, centrada, na época, no movimento de massas estudantil. -Não é possível ficarmos parados. -O Industrial sofre do coração e talvez consigam até parar o CCC por conta disso. -Mas os alvos não podem ser as suas empresas, se não estaremos atacando os trabalhadores. -Ataquemos um alvo americano, então. -Como é que o povo vai perceber o que queremos? -Basta distribuir muitos panfletos com a bomba. Dinamite nós já temos. -Existe um escritório do USIS aqui, mas é uma coisa pequena, dentro de uma galeria comercial. A retirada é difícil e vamos atingir pequenos comerciantes que não têm nada a ver com “o pato”. -Então não há jeito. Só resta o IBEU (Instituto BrasilEstados Unidos, escola de língua inglesa financiada pelo Departamento de Estado, que tinha até apoiado o golpe militar). -Há outra vantagem. O IBEU não tem vigia. Depois foi só meter umas duas bananas de dinamite dentro de uma caixa e introduzir um detonador com um estopim longo, que permitisse o afastamento do local sem nenhum problema, contado o tempo para a distribuição dos panfletos. Os panfletos não tinham identificação de quem lançava a bomba, mas denunciavam o Industrial, davam detalhes das suas reuniões para apoiar a repressão, listavam os participantes das reuniões e diziam que eles não iam ficar impunes. Tudo em cópias precárias, mas bem legíveis. Parte deveria ser lançada na ação e outra parte deixada em edifícios altos da cidade com as folhas de cima molhadas. Na medida em que o sol secava as folhas de cima, os panfletos caíam na rua.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 41

2009-08-06 08:16

42

Silvio Mota

Havia o problema do transporte, e aí houve uma sorte fenomenal. Um agente do Departamento de Endemias do grupo de apoio informou que perto de sua casa, na zona industrial de Fortaleza, perto da Siqueira Gurgel, numa fábrica de sabão, que incomodava a todos com a sua poluição, havia uma pessoa que fizera um pequeno jardim em frente à sua casa e usara placas de carro para montar os canteiros. Não deu outra. O Santa Cruz e o Ernesto fizeram uma visita ao jardim altas horas da noite e levaram as placas. Pequeno tesouro para o grupo, embora houvesse poucas duplas do mesmo número. Foram feitos dois ensaios usando o fusca do Ernesto com placas falsas. Na terceira noite, o Ernesto parou o carro na frente do IBEU na rua deserta, acendeu o estopim e lançou a carga, enquanto os outros lançavam os panfletos. Saíram dali lançando panfletos, inclusive perto da Central da Polícia Civil, que não ficava longe do IBEU. Pararam, esperando o barulho da explosão, e nada. Não tiveram outra saída senão voltar para casa. Depois, souberam que o estopim só tinha queimado até o meio. Mas outros panfletos foram lançados de edifícios, porque a repercussão na imprensa fora enorme e o objetivo fora conseguido mesmo sem a explosão. O Industrial ficou doente, e, pelo menos naquele momento, a iniciativa do CCC para apoiar a repressão em Fortaleza fracassou. É o próprio Clausewitz quem diz que vencer é tirar a vontade de resistir do inimigo. Nesse sentido essa ação foi uma vitória, por mais canhestra que tenha sido. Além disso, preservou as forças do grupo e não revelou sua face à repressão, cumprindo com as orientações estratégicas da organização.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 42

2009-08-06 08:16

Rebeldes

43

O mais incrível é que produziu resultados na captação de militantes na frente de massas estudantil. Um segredo que convenceu as massas, e embora tão difundido, não alertou a repressão. A sensação era apenas uma para os estudantes: “Alguém está fazendo alguma coisa séria por aí, então nós também temos que fazer alguma coisa.” A frente das massas estudantil era de responsabilidade do Acauã, o qual logo veio a reforçar o GTA, que ficou com ele e o Ferreira, com a responsabilidade também pelo trabalho de massas, o estudantil com o Acauã, e o operário, do qual fazia parte o Raimundo Guerreiro, com o José Ferreira Lima. Acauã era de molde único. Livre e inventivo, tinha verdadeira mania por animais. As reuniões do GTA na sua casa, na Aerolândia, eram sempre animadas por estranhos convidados, como gaviões, lagartos, e até uma onça vermelha, domesticada como um cachorro. Era a época do acordo MEC-USAID, da luta contra os planos do relatório Atcon. O Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, foi devidamente recepcionado pelos protestos do movimento estudantil em Fortaleza, com a participação da Frente de Massas da ALN, que chegou a pichar seus protestos no refeitório da Faculdade de Direito, onde o Ministro ia falar. Ação Acauã e Marcos. O próprio Ernesto, que não tinha que se meter nisso, puxou uma passeata contra o relatório Atcon, saindo da Faculdade de Direito, quando o Genuíno vacilava, e foi queimada uma bandeira americana na Praça do Ferreira. O Acauã não deixou por menos e aproveitou a passeata para atacar o escritório do USIS, que ficava numa galeria no centro da cidade. A rejeição dos estudantes contra a reforma universi-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 43

2009-08-06 08:16

44

Silvio Mota

tária de orientação americana era completa. Também ficou firmado nas massas o prestígio do Acauã, reconhecido como chefe da segurança do movimento estudantil. Logo, começaram treinamentos de defesa pessoal no Clube do Estudante Universitário, com a cooperação do Ariel, vindo do Rio de Janeiro, o qual, com o tempo, também reforçou o GTA. Ferreira também trouxe Pernambuco, operário portuário pernambucano, para o GTA. Todos os novos membros do GTA foram testados em pequenas ações de ensaio, tendo, previamente, discutido e aceito a linha da organização. Apesar de vigorar na organização o centralismo de guerra, não eram abolidos o planejamento, o controle, a crítica e a autocrítica, e Ernesto é criticado por sua atuação na passeata, pois exercia responsabilidade de comando. É fortalecida a segurança com a ampliação dos pontos de apoio e a criação de um grupo de retaguarda para cada ação, com apoio médico, no qual se destacaram o Tarcísio e o Alencar, apesar desse último e seu grupo não integrarem, organicamente, a ALN. Executada a recuperação do material bélico pelo Ernesto, com mortais consequências para o inimigo. O movimento de massas estudantil radicaliza-se com enorme passeata de protesto, na qual foram, pela primeira vez, utilizados coquetéis molotov químicos fornecidos pela ALN. Como medida tática, a garrafa era lançada ao mesmo tempo em que eram lançados fogos de artifício explosivos, causando enorme confusão nas forças policiais. A massa de estudantes terminou acuada frente à Faculdade de Odontologia na Praça José de Alencar. Ernesto e

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 44

2009-08-06 08:16

Rebeldes

45

Santa Cruz atuaram corretamente desta vez, acompanhando a ação do alto de edifícios próximos, e usando mensageiros. Uma viatura policial foi incendiada por coquetéis molotov, mas o Bergson Gurjão, do PCdoB, mais tarde morto heroicamente no Araguaia cumprindo a linha do partido, lançou-se ao carro para apagar o fogo, mas só conseguiu queimar-se seriamente e ser preso. A ALN ofereceu-se para libertá-lo do hospital, pois estava vigiado por um único policial com submetra-lhadora INA, mas ele recusou a ação por orientação do seu partido. Nem tudo eram flores entre quem enfrenta va o canhão... A direção nacional da ALN enviou o Pacheco para conferir os dados do primeiro contato e trazer novas orientações. Estas vinham em fitas gravadas com música do Martinho da Vila depois das quais ouvia-se a voz do Marighella com saudações, instruções e documentos políticos. Foram feitas visitas ao interior do Estado e estabelecidos pontos de apoio em Quixadá, no Crato, em Sobral e, principalmente, na Serra da Ibiapaba e adjacências: São Benedito, Carnaubal e Pedro II, no Piauí. Tinham recebido a tarefa do levantamento estratégico das posições do Batalhão de Engenharia do Exército em Crateús e do Batalhão de Polícia Militar em Salgueiro, já em Pernambuco. Isso tudo foi feito pelo Ernesto e pelo Santa Cruz, juntos e separados, tendo, cada um deles, atendido a cada uma das tarefas, em caráter inicial. Na Serra da Ibiapaba foi estabelecida uma rede de pontos de apoio para encontros regulares. Até nas lonjuras de Barra do Corda, no Maranhão, chegavam os pontos de apoio, através do Antônio.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 45

2009-08-06 08:16

46

Silvio Mota

A partir de um contato do Santa Cruz com um antigo sargento cassado pelo golpe militar, fizeram um levantamento noturno no local das instalações militares da Base Aérea de Fortaleza, que, na época, possuía um grupo de caças F-80. Para surpresa de todos, verificaram que os aviões de caça ficavam estacionados em frente aos hangares, asa com asa, sem vigilância permanente da Infantaria da Aeronáutica. Com os explosivos e incendiários que tinham, era possível destruir toda a esquadrilha. Também receberam a denúncia de que lá havia um cemitério clandestino de militares rebeldes, mas não tiveram como comprovar isso, por falta de meios. Ernesto foi a São Paulo, com a missão de conseguir munição 44/40, meios de disfarce que permitissem uma atuação mais segura, pois ninguém estava na clandestinidade, reportar os levantamentos e conseguir autorização e instruções para a ação contra a Base Aérea. A munição foi adquirida em uma casa de armas pertinho do DOPS paulista, uma multidão de bigodes e barbas em uma casa de apetrechos teatrais e o contato logo foi feito, sendo o Ernesto encaminhado pelo Pacheco a um apartamento em Vila Mariana, onde encontrou Marighella, Toledo e Rolando Fratti. Marighella estava sem nenhum disfarce, sua voz já era conhecida por causa das gravações, mas foi apresentado como companheiro Maluf... Ernesto apresentou o relatório, tanto dos levantamentos como da ação urbana de massas, militar e de organização. A munição de calibre 44/40 não foi vista com bons olhos, por causa da falta de padronização, insistindo-se nas armas de calibre 38. Toledo dirigia a reunião e Marighella estava mais ouvindo, até que Ernesto, entusiasmado, apresentou os planos

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 46

2009-08-06 08:16

Rebeldes

47

da ação contra a Base Aérea. Naquela época, havia pouco tempo, houve um ataque do Viet Cong contra uma base americana naqueles termos, tendo despertado grande admiração. -Você está ficando louco, rapaz? Não entendeu nada da nossa linha estratégica? Se vocês fizerem uma loucura dessas, vão fazer uma ação bem bonitinha, e em seguida não vão aguentar a repressão que vai cair e vão destruir todo o trabalho que já fizeram e esculhambar os planos da guerrilha rural! -Não tinha pensado nisso... -É para isso que você tem cabeça, companheiro. Esta guerra do pequeno contra o grande só pode ser ganha com inteligência, não com a procura da glória fácil. Nós não estamos aqui para sermos heróis, mas para ganhar a guerra. O resto virá como consequência. Silêncio total. Falara o comandante em chefe, com qualquer nome que fosse. Fratti amenizou a situação, dando algumas balas 44/40 como se fossem bombons. Todos riram. Ernesto estranhou, pois esperava críticas pela bomba mal feita, talvez pelos requintes dos disfarces, e agora era criticado por aquilo que apresentava com orgulho, como uma grande oportunidade. Acabara, no entanto, de receber uma grande lição militar sobre a superioridade dos interesses estratégicos sobre os táticos e uma grande lição moral sobre a humildade do guerrilheiro, que deve ver, em tudo, as necessidades do movimento e do povo, e não a sua ânsia de glória. Depois de pensar e assimilar, nunca mais esqueceu. Mais alguns detalhes, e a reunião acabou sem outros incidentes. Ernesto foi avisado de que o Ceará receberia a visita de dois companheiros que faziam um levantamento mais extenso de área e lhe foi dito que se preparasse para largar

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 47

2009-08-06 08:16

48

Silvio Mota

tudo e ir fazer um curso militar em Cuba em data próxima. A coluna de guerrilha rural precisava formar seus quadros, seus primeiros oficiais. De volta ao Ceará, foi reportado o resultado da reunião, impressos distribuídos e discutidos os documentos nela entregues. Houve até discussão porque o Ernesto deveria ir a Cuba, mas foi esclarecido que se tratava de uma ordem do Marighella, não de pedido de ninguém. Ernesto perderia, inclusive, contato com sua família, o que, evidentemente, não era do seu interesse. Santa Cruz, que levantara as objeções, deu-se por satisfeito com os esclarecimentos. Realizou-se então um primeiro treinamento do GTA, empregando armas longas e curtas, e acampamento em uma área das dunas da Praia do Futuro, também às vezes usada pelo Exército para treinamento com canhões, de tão deserta que era. Participaram desse treinamento a Maria e o Ariel, vindos da Frente de Massas. Fortaleza era, realmente, muito pequena por isso não houve nenhum problema de segurança no treinamento, presenciado no máximo por algumas cabras e vacas. O grupo do Ceará foi visitado, como previsto, por dois seminaristas vindos de Brasília, o Giordano e o Esperidião. O último, mais tarde, delataria a organização. Os dois receberam apoio logístico e seguiram no seu levantamento, revelando que também iriam para Cuba, o que se deu. Chega a notícia da morte do Marquito nas mãos do Raul Careca e da queda e prisão do Agonalto Pacheco em São Paulo. Ficam sem contato com a organização nacional. Apesar de tudo, foi decidido prosseguir no trabalho e nas ações. Também caiu o Congresso da UNE em Ibiúna, com fortes consequências adversas para o movimento de massas

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 48

2009-08-06 08:16

Rebeldes

49

estudantil, embora a organização no Ceará não fosse diretamente atingida. O que fascinava, na época, era fazer uma expropriação em um banco. A necessidade de dinheiro não era premente, mas bem que seria uma boa contribuição a nível nacional e era uma ação que, por suas características, não precisava identificar a organização. Um grande problema eram as condições táticas em Fortaleza. As agências bancárias estavam todas localizadas no centro da cidade, com ruas estreitas e de tráfego intenso, o que cortava as vias de retirada. Para pequenas ações, sob a cobertura da noite, as placas velhas que tinham eram suficientes, mas era necessário expropriar um carro para uma ação em um banco. Um alvo atraente surgiu quando foi instalada uma agência bancária fora do centro da cidade, perto do Mercado São Sebastião. Os bigodes e barbas teatrais adquiridos pelo Ernesto foram postos à prova em uma ação em frente à Faculdade de Medicina. O Pernambuco teria que ficar em traje compatível com o ambiente para verificar a movimentação em frente de uma das saídas da Faculdade. Qual não foi a surpresa quando o viram de paletó, gravata e chapéu em frente a uma pequena árvore que mal tinha sido plantada, em pleno sol. E não parou por aí a palhaçada. Quando Ernesto, Santa Cruz, Guilherme e Ferreira desceram do fusca com seus disfarces, e alguns meninos, que estavam brincando em frente, pararam o jogo de bilas e fitaram surpresos o grupo. Logo explodiu uma enorme vaia. Não era para menos. O que acontecera era que não souberam usar os bigodes e barbas, que teriam que ser recortados, e os aplicaram como vieram. O resultado foi quatro homens com imensos

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 49

2009-08-06 08:16

50

Silvio Mota

bigodes aparecendo de repente em grupo. Deve ter sido engraçado mesmo. Ficaram completamente desmoralizados com a situação e apenas recolheram o Pernambuco e foram embora. Não havia mais o que fazer. Atraíram mais atenção que um elefante branco de chapéu, e até eles riram quando perceberam o que tinham feito. Tomar um carro nessas condições seria impossível. Talvez seja a primeira vez que esse acontecimento é revelado e serve apenas para provar que na luta armada houve de tudo, até palhaçada. E continuou a maré de má sorte. Em uma outra ação, para expropriar as caixas de um supermercado, deixaram como segurança Ferreira e Pernambuco, com uniformes da Polícia Militar e armas nos coldres regulamentares, em frente do supermercado. Quando o carro, com o grupo de ação, chegou não havia ninguém. Deram um tempo e voltaram, mas o local continuava sem Ferreira nem Pernambuco. Naquelas condições não podiam agir, pois o desaparecimento dos dois era um tremendo risco de segurança. O grupo soube, depois, que, quando estavam no ponto combinado, Ferreira e Pernambuco tinham sido abordados por um sargento da Polícia Militar. -O que vocês estão fazendo aí? Não tem nenhum posto de serviço aqui. Vão para seus postos de serviço, seus preguiçosos! Os dois só bateram continência e foram embora, pois a ação não tinha começado e não havia vias de retirada se atacassem o sargento e não podiam subjugá-lo na frente de todos os fregueses do supermercado sem provocar uma tremenda confusão, que atrairia a repressão em peso.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 50

2009-08-06 08:16

Rebeldes

51

Ainda bem que o sargento não os seguiu, dando-se por satisfeito com um Sim, senhor ! E as continências. Foram recebidos com alívio, apesar do fracasso da ação. Após os dois fracassos e com a interrupção do contato com a direção nacional, instalou-se uma crise ideológica no GTA. Santa Cruz, particularmente, insistia para que partissem para ações ousadas e denunciava vacilação. Não aceitava os argumentos de que constituíam uma zona intermediária, de que o papel estratégico era o de conseguir quadros e suprimentos, de que o estavam cumprindo, apesar de tudo, e de que a expropriação era, no caso, secundária. Acabou vencendo a tese do Santa Cruz. Ernesto percebeu que se instalava uma crise de comando e de autoridade e concordou. O objetivo final imediato era a expropriação da agência do banco perto do Mercado São Sebastião, para a qual precisavam de pelo menos um carro roubado, pois seria facilmente identificado na ação. Fortaleza, naquele tempo, quase não tinha motéis e os encontros amorosos eram feitos em carros na Praia do Futuro. Os assaltos eram frequentes na área. Foram até a área em um carro com placas falsas. Aproximaram-se de um carro isolado, a pé. -Polícia! Saiam do carro e entreguem as chaves! -Polícia aqui sou eu, seus vagabundos! A mulher ria alto. Ernesto sentiu uma picada na altura do umbigo. Tinha sido apunhalado. Saltou para trás instintivamente e abriu fogo com uma mão só. Várias vezes. O ataque cessou e o oponente tombou. Ouviu o disparo mais alto do revólver 44 que estava com o Ariel. Ferreira manteve a calma e organizou a retirada do resto do grupo. Viam-se faróis de carros saindo para todos os lados.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 51

2009-08-06 08:16

52

Silvio Mota

Ernesto sentiu uma dor fina e forte na barriga, e foi ajudado pelo Ariel, que não o deixou parar de correr, até chegarem em um ponto de abrigo, vários bairros distantes. Era tarde da noite. Depois, viu-se que os que menos vacilaram e mantiveram a cabeça fria tinham sido os mais criticados pelo Santa Cruz. O bom senso voltou, apesar das consequências funestas que houve. Policial ou não, não podiam culpar alguém por ter coragem e acabaram fazendo o que não queriam. A guerra leva a situações inesperadas em que a própria defesa da vida repercute mal politicamente e leva a sequelas psicológicas. O sangue que tiveram que derramar não era bem vindo. Não eram nem nunca foram terroristas. Terrorista é aquele desesperado que ataca sozinho o inimigo de classe, sem nenhuma ligação com as massas e com o momento histórico. Essa política sempre foi repelida, de Lênin a Guevara. Tampouco, atacavam injustamente populações civis, nem nessa ocasião, em que se tratava de defender a própria vida, não se tratava de um cidadão comum, como em outras ocasiões posteriores, em que havia a justificativa de proteger a organização ou de justiçar criminosos de guerra. O terror é inerente a qualquer forma de guerra, pois seu objetivo é justamente o de quebrar a vontade de prosseguir do inimigo, mas terrorismo só existe em ações desvinculadas das massas e das situações políticas e na ação, mesmo do Estado, deliberadamente contra as populações civis. Não podiam esquecer que o Estado contra o qual lutavam empregava o terror como método de controle da população. A luta armada surgiu como método de defesa do povo, privado de sua legalidade e de suas possibilidades de melhorias sociais por interesses estrangeiros e das classes dominan-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 52

2009-08-06 08:16

Rebeldes

53

tes, que o atacaram e introduziram a prática constante e a banalização dos crimes de lesa-humanidade. Ernesto recuperou-se bem dos ferimentos e, na verdade, o GTA foi ampliado com a entrada do Maurício, a partir do grupo de segurança, comandado pelo Acauã. Ferreira também ampliou o GTA com o metalúrgico João, vindo do seu grupo. O grupo reuniu-se e, por enquanto, fez uso da experiência. Surgiram até algumas iniciativas individuais. Ernesto estava ministrando aulas de inglês no Clube dos Advogados em uma sala isolada, quando todos tiveram sua atenção despertada por uma agitação na rua Guilherme Rocha, que passava por baixo e podia ser facilmente vista das janelas do clube. Era o Guilherme, que, sozinho, havia organizado a massa, que sempre se concentrava naquelas imediações, dissolvia uma manifestação do grupo Tradição, Família e Propriedade (TFP), esparramando bandeiras e símbolos fascistas com o auxílio da massa e pondo em fuga os manifestantes de direita. Havia vaias e aplausos, vaias ao TFP e aplausos ao Guilherme. Tal era o ânimo da população de Fortaleza. Maurício também se meteu em algumas manifestações. Na primeira vez, colidiu com uma Kombi cheia de coquetéis molotov destinados à segurança do movimento estudantil, feitos de garrafas com gasolina e ácido sulfúrico, com clorato de potássio e açúcar no exterior, e não só nenhuma garrafa quebrou nem incendiou, mas também recebeu desculpas do outro motorista, um comerciante e notório direitista. Na segunda vez, foi preso quando dava voltas nessa Kombi, com uma pistola Beretta 7,65 a bordo, em torno do Palácio da Luz, na época a sede do governo estadual. Leva-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 53

2009-08-06 08:16

54

Silvio Mota

do para o DOPS, foi deixado, só, em uma sala para que refletisse sobre sua situação, pelo delegado que havia voltado recentemente dos Estados Unidos e se gabava dos seus conhecimentos de psicologia e de tortura. Então, Maurício viu uma oportunidade e não hesitou: pulou do segundo andar da sede da Polícia Central, caindo em um carrinho ambulante de venda de sorvetes e mandou-se a correr para a rua Conde d’Eu, onde tinha amigos, passando novamente pelo Palácio e sumindo. Só foi criticado pela perda da Beretta... Sempre havia o que fazer. Ernesto fez outra visita, mais demorada, ao setor da Serra de Ibiapaba. Lá, estreitou os contatos com o José Bento, agente do DNERU, que tinha feito parte de um grupo dos 11 do Brizola e coordenava o trabalho da organização na região. Primeiramente, estabeleceu um ponto de apoio em Sobral, maior cidade do sopé da Serra. Depois, foi pessoalmente recebido pelo José Bento em sua casa, em São Benedito. Verificou tratar-se de pessoa muito ativa, com férreo controle sobre sua família e possuidor de uma propriedade rural na Serra. Tinha reputação de homem de coragem, possuía armas e providenciou algumas para a organização, assim como um ponto de apoio em Carnaubal. Nessa viagem, Ernesto tomou conhecimento de um problema que desde então o preocupou. José Bento tinha uma concepção de moral sexual, ao mesmo tempo, arcaica e contraditória. Prezava muito a virgindade de suas filhas, mas ao mesmo tempo morava com uma amante e a esposa legal na mesma casa. Considerava-se pessoalmente atingido por qualquer relacionamento de suas filhas, e estava obcecado com os boatos que corriam em São Benedito sobre um possível relacionamento entre uma das suas filhas e um comer-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 54

2009-08-06 08:16

Rebeldes

55

ciante da cidade, homem casado com fama de conquistador de jovens corações. Ernesto tentou passar-lhe a concepção de família que aprendera nos livros de Engels, apontou-lhe a necessidade do exemplo e da falta de contradição quando se tratava de assuntos entre pai e filha, e que a virgindade das filhas era assunto delas e não capital dos pais. Sendo cearense, sabia que era muito difícil que José Bento aceitasse tudo, mas chamou-lhe a atenção para o fato de que os interesses da organização e da revolução não podiam ser confundidos nem preteridos por interesses pessoais. José Bento e sua família tinham que sair do meio em que viviam, da cidade de São Benedito, tão logo fosse possível. Não poderiam permanecer lá com tantos conflitos. Na volta a Fortaleza, Ernesto ouviu do Santa Cruz uma notícia ao mesmo tempo surpreendente e bem vinda. Um dos pontos de apoio, o Ari, que era contador, tinha recebido do Sr. Focius Tsaquiridie, irmão do comerciante grego George Tsaquiridie, proprietário da loja Helena de Tróia, no centro da cidade, preso por sonegação de impostos, uma proposta para que a organização o libertasse, em troca do pagamento de uma quantia equivalente ao preço de um carro de passeio. Estando a ALN em luta armada contra o Estado dirigido pela ditadura militar, estava claro que podia expropriar seus impostos, no todo ou em parte, assim como expropriava bancos. Não havia obstáculos políticos para a aceitação da proposta, contanto que houvesse segurança. O plano do grego era muito simples, e naturalmente, facilitado por dinheiro por ele fornecido a autoridades prisionais. George obteria uma licença do presídio para ir na sua residência com uma escolta da Polícia Militar, onde trocaria suas roupas e levaria comidas e livros para facilitar sua

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 55

2009-08-06 08:16

56

Silvio Mota

vida na cela. Chegando em casa, onde havia uma empregada doméstica de confiança, iria tomar primeiro um banho, enquanto os policiais esperavam na sala, onde seriam servidos salgadinhos e uísque da melhor qualidade; a janela do banheiro dava para o exterior da casa, George saltaria por ela, e o recolheriam, levando-o para um esconderijo previamente preparado. O grego ficaria nesse esconderijo até as coisas acalmarem, e depois o levariam para fora do Ceará, onde ele seria recolhido por seus amigos e sairia do país. O pagamento seria feito ainda no Ceará. Exigiram que o esconderijo e o controle das comunicações do George fosse exclusivamente do grupo enquanto estivesse com eles, o que foi aceito. Logo, foi conseguido um esconderijo em Bom Jardim, um bairro operário muito afastado e com características quase rurais. Lá, havia uma parteira que era ponto de apoio, muito segura, armada e com instruções de defender o grego ou a organização contra ele, contando para isso com outros apoios. A operação em si foi extremamente simples, só necessitando do Acauã, que ficou como retaguarda em uma casa fora da área, Ernesto e Santa Cruz na execução. Na hora combinada, Ernesto dirigiu seu fusca até atrás da casa do grego, Santa Cruz ajudou-o a descer da janela, todos entram no carro e vão para o esconderijo. Lá chegando, Acauã foi desmobilizado e o grego ficou sob o poder da organização. Os policiais, muito bem tratados, ficaram na casa do comerciante até a entrada da noite, quando só então descobriram que tinham sido enganados. Levaram até um tempo para ter coragem de comunicar o fato a seus superiores, o que contribuiu para a segurança da operação.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 56

2009-08-06 08:16

Rebeldes

57

No outro dia, a imprensa local ficou em polvorosa, até porque ninguém tinha a mínima idéia do que tinha acontecido, só sendo conhecidos os relatos parciais e altamente contraditórios de dois policiais em plena ressaca... O povo ria em surdina. Qualquer coisa que ridicularizasse dessa maneira os poderosos só podia levantar o ânimo popular, abatido com a repressão. O alvoroço durou pelo menos uma semana. Chegado em paz ao seu refúgio, o grego era pura cordialidade. Chegou até a dizer que ele também tinha pegado em armas contra os alemães durante a Segunda Guerra Mundial, na ocupação da Grécia, afirmação a que não davam muito crédito, já que partia de um grego dono de uma Helena de Tróia... Nas conversas do Focius com o Ari, passadas algumas semanas, o assunto começou a azedar. Dizia Focius que estava difícil arranjar o dinheiro prometido, que a organização devia esperar e confiar na palavra dele. Parecia que queriam dar um presente de grego, julgando-os tolos e mercenários. Quando o assunto chegou a esse ponto, simplesmente comunicaram ao George que ele passava de hóspede a prisioneiro, e que só o libertariam mediante o pagamento da quantia prometida, que não era para a organização, e sim, para a revolução. Ele não estava tratando com bandidos, mas com guerrilheiros. Se as condições de segurança ameaçassem a organização, ele seria executado. A guarda foi dobrada. Passaram-se alguns dias e o Focius mudou de conversa. O resgate foi pago e o George entregue em outro Estado a um pequeno grupo armado de seus amigos em uma estrada deserta, com armas apontadas dos dois lados da pista. A en-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 57

2009-08-06 08:16

58

Silvio Mota

trega foi coordenada pelo Santa Cruz. A operação foi absolutamente segura e só foi revelada décadas depois. O GTA então tinha recursos financeiros, armas e quadros com moral alta. As divergências passaram para segundo plano. Só os atingia a quebra do contato com a direção nacional, problema realmente sério com o recrudescimento da repressão, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Teriam que quebrar o cerco. Ariel tinha contatos estudantis no Rio e se prontificou a usá-los. Somente o Ernesto era conhecido da direção nacional, pois o Pacheco era o único deles a ter vindo para o Ceará e estava preso. Tratava-se então de colocar o Ernesto em contato com a direção nacional, a partir do Rio de Janeiro. Viajaram Ariel e Ernesto juntos para o Rio. Ernesto ficou hospedado na Tijuca, na rua Barão de Mesquita, em frente aos quartéis da Polícia do Exército ( PE ). O quartel da PE era então um notório centro de torturas. Foram feitos contatos com estudantes cariocas, e eles insistiram para que o Ernesto mudasse de aparelho por causa da proximidade física da repressão, apesar de não estar na clandestinidade. Ernesto foi morar em uma favela em Jacarepaguá, no barraco de um velho operário. O velho era admirador do Getúlio Vargas. O barraco era limpo, de madeira, mas as frestas entre as tábuas deixavam passar o vento, o que resultava em um frio danado. Embora procurasse sempre sair com sol alto, um dia Ernesto saiu mais cedo, carregando uma pasta tipo 007 com roupa para lavar na Tijuca. Teve logo uma amostra da diferença de tratamento entre o asfalto e a favela: ao passar por um beco, foi emboscado por dois policiais militares

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 58

2009-08-06 08:16

Rebeldes

59

com armas apontadas, que o revistaram todo e o trataram com palavrões, sem que ele tivesse feito nada. Era apenas a força do hábito... Finalmente, os estudantes marcaram um encontro para o Ernesto em uma lanchonete do Meyer, perto de um supermercado. Ele ficou esperando, de noitinha, comendo alguma coisa para passar o tempo, e logo viu uma estranha figura aproximando-se. Era um moreno forte, com uma peruca ruiva. A peruca estava tão bem colocada, que só o reconheceu quando ele falou: -Que é que há, Ernesto? Como vai? Era o próprio Marighella, absolutamente só, sem escolta nem nada. Passada a surpresa, os dois se abraçaram e depois sentaram-se à mesa como velhos amigos. Conversaram um pedaço, mais sobre amenidades que sobre coisas sérias, mas Marighella foi informado do principal da situação no Ceará e marcou um ponto no dia seguinte. Já no dia seguinte, Ernesto foi recolhido por um fusca onde iam o Marighella, o Domingos e o Pereira, do GTA do Rio. Feitas as apresentações, foram aprofundados os informes e repassados documentos, inclusive o Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano, e Marighella disse a Ernesto que ele tinha perdido a época de ir para Cuba, que já havia sido combinada por causa da quebra de contato, mas que iria em breve, em um terceiro grupo. Também disse que Ernesto tinha que mudar de aparelho e marcou outro ponto em um apartamento. De repente, deram com uma barreira policial. -Alguém aí está armado? -Não. -Então vão passar assim mesmo. Sejam gentis.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 59

2009-08-06 08:16

60

Silvio Mota

Passam, com Marighella e tudo. Realmente, o homem era coragem pura. Isso deixava seus inimigos loucos, pois nunca imaginavam um comportamento assim, que eles achavam impossível de ter. Ernesto foi ao apartamento, onde conheceu Gilney Viana, que tinha vindo de Minas Gerais, e recebeu mais material e instruções do seu comandante em chefe, as-sim como um sobretudo para enfrentar o frio na viagem, o qual guarda até hoje, apesar de não caber mais. O bom é que muito tempo depois acabou encontrando um igualzinho em uma loja na Argentina, no tamanho da sua idade madura, que, naturalmente, está guardado junto com o outro.-Você vai encontrar a companheira Carmem em Havana. Obedeça aos cubanos em tudo, mas nunca se esqueça de que é brasileiro e de que seus chefes são os seus companheiros daqui. Ninguém é comandante em Cuba. Você vai ser simples soldado. Depois, veremos. Aliás, tenho que desautorizar um certo Comandante Raul que anda por lá. Deixe isso claro para a Carmem e os cubanos. Ernesto recebeu outro ponto onde conheceu Ronaldo Dutra Machado, do GTA do Rio, o qual deveria ir, em breve, fazer uma visita de inspeção no Ceará e aprofundar os conhecimentos no levantamento estratégico. Em Fortaleza, as novidades e os documentos foram devidamente analisados e difundidos pela militância. Ronaldo chegou em seguida e logo partiu com Ernesto para um levantamento estratégico. Desta feita cobriram todas as guarnições do Batalhão de Engenharia de Crateús. Em Crateús e em Independência, no Ceará, e Castelo do Piauí, naquele Estado. Fizeram uma visita mais demorada ao José Bento. Desta feita foram até sua propriedade rural na Serra de Ibiapaba,

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 60

2009-08-06 08:16

Rebeldes

61

onde receberam armamento e testaram explosivos e incendiárias, pois lá havia locais bem desertos. O que mais impressionou o José Bento foi o coquetel molotov químico, talvez por já estar familiarizado com explosões em pedreiras. À noite, houve um incidente que mais uma vez demonstrou as concepções arcaicas do José Bento. Ronaldo, que era epiléptico, esqueceu de tomar seu remédio diário e teve uma crise epiléptica. Ernesto segurou-o até que se acalmasse, com o cuidado de que não engolisse a língua, e então José Bento veio-lhe com a proposta de que executassem o companheiro e enterrassem o corpo, porque ele estava endemoniado!... Solucionada a situação, sem exorcismos, com repouso e medicamentos, partiram os três, a cavalo, por cima da serra até Pedro II, no Piauí. Lá, Ernesto tinha parentes distantes, os Mourões, mas a quem procuraram foi o Coronel Nogueira, amigo do José Bento. Na primeira pousada, como na casa só havia arroz, Ernesto conseguiu abater um jacu, o qual teve de servir para todos. No dia seguinte, chegou o Nogueira, o qual concordou em militar como ponto de apoio, e até arranjou uma Comblain e um revólver Smith & Wesson calibre .44/40 para a organização. A Comblain foi deixada lá, por absoluta falta de munição, mas o revólver serviu longo tempo no GTA. No dia seguinte, com mais gente para comer, o Ernesto conseguiu abater uma putrião no vôo e esse pato selvagem de mais ou menos 5 quilos forrou mais as barrigas famintas. Depois, foi só uma visita rápida na casa do Alcides Mourão, parente do Ernesto, para não fazer desfeita, e fizeram o caminho de volta a São Benedito. Para aliviar a situação entre o José Bento e sua filha que estava falada na cidade, Ernesto prontificou-se a levar a moça

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 61

2009-08-06 08:16

62

Silvio Mota

para sua casa em Fortaleza por uns tempos. José Bento logo aceitou a proposta e assim foi feito. A garota ficou um bom tempo na casa do Ernesto com sua família e depois voltou para São Benedito. Não provocou problemas, mas ficou bem namoradeira depois que se adaptou. É uma pena que não tenha encontrado ambiente melhor para se desenvolver na época. Chegando ela em São Benedito, recomeçaram as confusões, e José Bento veio a Fortaleza pedir a execução do comerciante conquistador para lavar sua honra, o que considerava obrigação da organização. Não houve outra opção senão organizar um julgamento revolucionário do comerciante pelo GTA, mas a tese de José Bento não convenceu, sendolhe explicado o arcaísmo de suas concepções morais e que sua honra não dependia disso, e ordenado o deslocamento dele e de sua família de São Benedito logo que possível. Pelo que aconteceu um tempo depois, a ordem não foi cumprida, e isso acarretou consequências desastrosas para a organização. A seguir, já era tempo de o Ernesto partir para o Rio de Janeiro e daí para Cuba, o que foi feito segundo as ordens da organização. Ernesto entrava pela primeira vez na clandestinidade, mantendo laços e comunicações apenas com a organização, embora ainda tivesse os documentos legais, inclusive passaporte, pois sua militância não era ainda conhecida da repressão. Um dos seus últimos contatos no Ceará foi com o Grupo político do Miguel Arraes, do qual recebera militantes no Cariri e uma pistola Colt calibre .45 novinha em folha com munição. Deixara a organização em bom estado, sem quedas, com dinheiro, explosivos, munições e armas, bem compartimentada, ao ponto de ele próprio, mais tarde, não conhecer

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 62

2009-08-06 08:16

Rebeldes

63

militantes influentes e famosos, como o Machadinho, recrutado pelo Ariel, e o Timoshenko, recrutado pelo Santa Cruz; o primeiro, que militou algum tempo na ALN e depois foi para outra organização, conhecido como o preso político que mais resistiu a seus algozes no Ceará; o segundo, vindo dos quadros da Polícia Civil, o que enfureceu sem dúvida a repressão. A saudade da família era cruel. Para todos os efeitos ele a perdera, e sempre fora homem de família, tendo começado a trabalhar muito cedo e não se diferenciando nesse aspecto de um trabalhador de classe média nordestino comum. Alojou-se em um hotel e fez ponto com o Ronaldo. Este logo o levou para seu aparelho, em Copacabana, e passou a tratá-lo como membro do seu grupo de ação. Lá, Ernesto conheceu inclusive Nelson Lott de Moraes Costa, neto do Marechal Lott. Aliás, o próprio Ronaldo Dutra Machado era neto de almirante. Ernesto sabia que passara o comando do GTA do Ceará ao Santa Cruz, por orientação do Marighella, que não queria saber de comandantes em Cuba, e passou a atuar como simples membro do grupo de ação do Ronaldo. Assim, teve alguma experiência de militância armada no Rio de Janeiro. Quando o Marighella se inteirou dos fatos, desligouo do grupo de ação, fazendo-o retornar a um hotel e partir imediatamente para a Itália. Deste país, feitos os contatos necessários, Ernesto embarcou em uma longa viagem que o levou para Praga, Moscou, Irlanda, Canadá, e finalmente Cuba. Enquanto isso, havia o sequestro do embaixador americano no Rio de Janeiro, caía Costa e Silva e recrudescia a repressão. Atraído para uma emboscada em São Paulo, morre Carlos Marighella, o grande estrategista da revolução. Seus

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 63

2009-08-06 08:16

64

Silvio Mota

substitutos foram bravos, mas nenhum recuperou a iniciativa estratégica, a qual, naquelas condições, implicava no lançamento e estratificação da guerrilha rural que, mesmo no Araguaia, não passou de ações defensivas. Toledo acabou sendo vítima do seu coração enorme, que não viu a traição cometida por José Silva Tavares, o “Severino”, apesar de todos os sinais que a indicavam.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 64

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO III

Comando do Santa Cruz

N

essas condições, Ronaldo Dutra Machado volta a Fortaleza. Extremamente bravo, capaz de tomar uma INA de um soldado com um tapa (fato presenciado pelo Ernesto quando estava no grupo do Rio), não distinguia bem áreas táticas de estratégicas, de intermediárias e considerava que o grande problema do GTA do Ceará era ainda não ter conseguido assaltar um banco. Depois da partida do Ernesto, houve uma reunião em que o Santa Cruz assumiu o comando do GTA do Ceará. Ele identificava-se mais com as concepções do Ronaldo que o Ernesto. Foi feito o assalto ao BMC instalado na Praça São Sebastião. Participaram, pelo menos, o Santa Cruz e o Ronaldo. Apesar de terem dominado o bando e tirado a submetralhadora INA do soldado que o guardava, esqueceram-se de retirar também o seu revólver. O resultado foi que o soldado abriu fogo, mesmo em inferioridade de condições, e o GTA teve que bater em retirada sem levar dinheiro, somente a INA. Frustrados, os guerrilheiros atacaram dias depois, após as preparações necessárias, um garagem de um empresa de ônibus em Jacarecanga. O carro utilizado foi a Kombi do Guilherme, o qual atuou como motorista.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 65

2009-08-06 08:16

66

Silvio Mota

-O dinheiro do dia, rápido! O empregado da empresa, surpreso e despreparado, entregou tudo. Santa Cruz e Acauã voltaram tão rápido que o Guilherme nem teve tempo de fingir trocar o pneu do carro. Jogou tudo para dentro, e a modesta Kombi transformou-se em carro de corrida e de combate... Levaram o apurado do dia. Apesar da queda do Congresso da UNE, o movimento estudantil continuava atuante, principalmente sua Comissão de Segurança, chefiada pelo Acauã. Houve um episódio bem marcante. Duas estudantes de Minas Gerais desfraldaram uma faixa “ABAIXO O AI-5” em frente ao Clube do Estudante Universitário, corredor de ônibus, movimentado. Ora, nesse momento passavam dois oficiais do Exército em um ônibus, e, ao ver aquilo, desceram e confiscaram a faixa. Queriam levar as moças presas, mas aí interveio o Acauã, que prostrou um dos oficiais por terra com um golpe de caratê. O outro quis avançar. -Não venha não, que eu sou lutador profissional! O oficial limitou-se a recolher a faixa e o colega ferido. As meninas correram. O Acauã também se retirou e ficou tudo por isso mesmo. Quatro novos integrantes do Grupo de Segurança, que era um grupo de massas, escalada para o GTA, o Sertanejo, o Telmo e o Ed, praticamente repetiram a antiga ação do Ernesto no dia 31 de março de 1964, confiscando um off-set, tinta e papel, que foram parar na casa do Acauã. A turma tomou gosto. Foi assaltada, também, a fábrica local da Coca-Cola, com a participação de pelo menos o Santa Cruz, o Acauã e o Giordano, que já tinha voltado de Cuba. Ação rápida, do tipo da executada na empresa de ônibus de Jacarecanga, com a expropriação do movimento do dia.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 66

2009-08-06 08:16

Rebeldes

67

O que não fica muito claro é porque a organização necessitava de tanto dinheiro, já tendo armas, munições e o dinheiro do Grego. As medidas de segurança de São Benedito, como a retirada da família, não foram executadas, apesar das decisões anteriores, e de ter havido um encontro em Cuba, na Praia de Guanabo, entre o Ernesto e o Giordano, em que foi explicado todo o problema, na presença do Agonalto Pacheco e do Ricardo Zarattini. Subitamente, eis que o próprio torturador Sérgio Paranhos Fleury decide fazer uma visita a Fortaleza. Hospeda-se no Hotel Savannah, um dos melhores do centro da cidade e deleita-se em passear pelos arredores, lépido e faceiro, sempre metido em elegante fatiota. Era demais. Os problemas para uma retirada em uma ação no centro de Fortaleza continuavam os mesmo, mas mesmo assim o Acauã não resistiu e montou uma campana de dias. Infelizmente, nada pode ser feito. As notícias vindas do sul eram más, e a vida orgânica da ALN no Ceará estava um pouco frouxa, favorecendo os contatos pessoais e espaçando as reuniões onde decisões mais maduras poderiam ser tomadas. A frente de massas tomou uma boa iniciativa. Passaram a ser feitos comícios relâmpagos na Praça do Ferreira, com panfletos e palavras de ordem da organização. A receptividade do povo era boa. Vem a Fortaleza Carlos Bicalho Lana, da direção nacional. Um dos seus episódios é encontrar-se com o agente federal e torturador, Lucena, em plena Praça do Coração de Jesus. Ambos se reconheceram, sacaram as armas e atiraram, as duas falharam. Depois disso, foi cada um para seu lugar, para não tentar mais a sorte...

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 67

2009-08-06 08:16

68

Silvio Mota

Foi tentada uma expropriação em uma empresa de exportação de lagostas, frustrada por problemas de segurança ocorridos durante sua realização. O GTA bateu em retirada, apesar da oposição do Santa Cruz, que queria fazer a ação de todas as maneiras, mesmo com as falhas de segurança. Isso trazia atritos entre o comando e a tropa, mais ainda, quando era o comando que sempre ficava tomando conta dos produtos das expropriações, feitas quando não se tinha um quadro de clandestinidade. Foi também tentada uma expropriação na residência de um suposto agiota no município vizinho de Maranguape, tendo dessa ação participado pelo menos o Santa Cruz, o Acauã e o Timoshenko. A informação não era verdadeira. Não havia dinheiro e foi o jeito “meter a viola no saco”. De um modo geral, o nível das ações era o mesmo de antes. Fracassos e vitórias táticas. Quadros vivendo em vida dupla, sem clandestinidade cerrada, a não ser no caso dos militantes do sul. Pressão psicológica da ditadura e amargura pelas perdas sofridas em outras regiões, mas a organização não agia dentro de um cerco tático da repressão, sendo por ela subestimada. Nem mesmo o sumiço do Ernesto despertava maiores suspeitas. Enfrentava-se uma perseguição burocrática, e a própria organização acabou caindo na rotina, descuidando das tarefas estratégicas e de segurança, e cometendo o perigoso pecado de subestimar o inimigo. Continuaram até episódios jocosos com o GTA. Numa ocasião, perto do ginásio coberto Paulo Sarasate, estavam Acauã e Giordano verificando a possibilidade de uma levantamento de ação, quando foram surpreendidos por uma grupo de moçoilas gritando e pulando: Rivelino! Rivelino!

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 68

2009-08-06 08:16

Rebeldes

69

Estavam na época da Copa do Mundo e o Giordano parecia com o Rivelino mesmo. Quando tinha cabelo. O levantamento teve que ser suspenso e foi fogo desfazer o equívoco... Entretanto, mesmo com toda a calmaria, cada vez mais se aprofundava o problema da segurança em São Benedito. Até que um dia, a própria filha do José Bento chega com a notícia de que o comerciante inimigo do seu pai, com o qual continuava a manter relações amorosas, apesar de todos os esforços feitos para rompê-las, tinha uma lista com todos os membros da ALN que conhecia e ia entregá-la ao Exército. A lista era bastante duvidosa, pois o comerciante só poderia conhecer o Ernesto e o Ronaldo, que estavam fora do seu alcance, e talvez o Santa Cruz, o José Bento, o Homem Sério, os quais já eram seus inimigos. O fato é que nunca apareceu a tal lista. A notícia, porém, causou enorme reboliço, pois todos sabiam que a situação de segurança em São Benedito não era boa e não tinha sido resolvida. Haveria até condições para mandar a filha do José Bento para o Rio ou São Paulo e nada foi feito, ficando a brecha em aberto. Hoje dá para pensar se o próprio recrutamento do José Bento não foi um grande erro. O problema se tornou mais sério porque a organização resolvera fazer uma grande ação revolucionária no interior do Ceará. Fora escolhida a cidade de Ubajara, que contava com uma agência do Banco do Brasil. A idéia era, simultaneamente, invadir a Delegacia de Polícia, render a guarnição e assaltar a agência do banco, além de realizar um comício em praça pública, onde seriam distribuídos panfletos explicando a ação do banco como um ato de expropriação revolucionária e anunciar a luta armada que se estava travando com a di-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 69

2009-08-06 08:16

70

Silvio Mota

tadura e sonegada pela imprensa, devido à censura. Essa ação tornara-se a obsessão de Santa Cruz, pois ela iria se constituir em grande golpe de propaganda e deixar claro que a ditadura continuava sendo fustigada, apesar da morte de Marighella. A expropriação também serviria para fortalecer a logística da organização, o sustento dos militantes clandestinos e a compra de armamento. Santa Cruz também alimentava a idéia de concretizar, em seguida, a explosão dos aviões da Base Aérea. Ora, havia consciência de que tais ações iriam desencadear uma repressão violenta no Estado e era preciso eliminar qualquer vulnerabilidade na segurança. A notícia de que havia a ameaça potencial de delação por parte do comerciante, temor insuflado cada vez mais por José Bento, que alegava que ele e seus companheiros da região iriam cair tão logo viesse a primeira investida da polícia contra todos os suspeitos de, no passado, ter apoiado o governo João Goulart, ou ter ligações com os comunistas, terminou por vencer a resistência dos que ainda tinham dúvidas, principalmente os militantes de fora que haviam vindo para o Ceará. A essa altura as advertências feitas por Ernesto já tinham sido suplantadas pela dinâmica dos fatos. A ação de ocupação da cidade de Ubajara tornara-se “estratégica” para a ALN local. Os companheiros que haviam vindo de Cuba, agiam dentro do princípio da organização de que deviam respeitar o comando local, pois estavam há apenas dois meses no Ceará, não conheciam a realidade local com profundidade a ponto de poderem intentar uma luta interna, no caso de discordância. Mesmo porque a precipitação dos acontecimentos já não permitia parar a engrenagem em andamento. A decisão tomada foi então a de eliminar o comerciante, pois se chegara à conclusão de que não se podia brincar com a segurança, pois muitas vidas estariam em risco. Contudo, a ação

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 70

2009-08-06 08:16

Rebeldes

71

não poderia aparecer naquele momento como de natureza revolucionária, pois chamaria a atenção da repressão, prejudicando a ação de Ubajara. Havia rumores, propalados pelo pessoal da Serra, de que o comerciante, além de egoísta, era suspeito de ligações com falsificadores de dinheiro. A essa altura, tudo o que vinha como informação do “pessoal da Serra” já era recebido acriticamente. Bolou-se, então, a idéia de se fazer passar por uma força policial que daria ordem de prisão ao comerciante, acusando-o de ter dinheiro falso, obrigando-o a abrir o cofre, quando seria confiscado o dinheiro a pretexto de ser analisado pelos peritos. Com isso, imaginava-se que as testemunhas da ação (empregados) suporiam que se tratava realmente de uma ação policial e assim se ganharia tempo, contando-se com o silêncio deles, já que, naquele tempo, os órgãos de repressão realizavam sequestros desse tipo para interrogatório e as pessoas tinham receio de questioná-los. Num trecho do caminho, o detido seria executado, em nome de um tribunal revolucionário, seu corpo jogado no abismo da serra, na suposição de que esta era a única forma de mantê-lo ignoto, até a realização da operação Ubajara, pois o lugar era inacessível Quando a operação se realizasse, aí então tudo seria explicado à população no panfleto que seria distribuído na cidade. Este era o plano. Só a subestimação do inimigo explica como nos próprios ensaios não foi descoberto o enorme erro tático que se iria cometer, lançando-se um pequeno grupo a centenas de quilômetros sem nenhum apoio e submetido a horas de exposição a um ataque inimigo utilizando um veículo legalizado, usado no trabalho profissional de um dos integrantes.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 71

2009-08-06 08:16

72

Silvio Mota

Foram feitas pelo menos umas três viagens à região. Nelas, foi escolhida uma forma heterodoxa (para os padrões revolucionários) de despistar a atenção da população sobre a presença de rapazes de Fortaleza no interior, ainda mais motorizados (a venda de automóveis ainda não estava massificada). Santa Cruz, Hélio Ximenes e Guilherme costumavam ir para o cabaré da cidade de Tianguá - como faziam na época os rapazes - farreavam e se comportavam como boêmios. Chegaram até a namorar moças da região, dando nomes fictícios, não estavam na clandestinidade, e se tornaram conhecidos da cidade serrana de Tianguá. Foi isso o que levou, logo após a queda de Guilherme e Giordano, ao primeiro ser identificado por pessoas da região, logo que as fotos saíram na imprensa. As paqueras foram trazidas da área para a sede da Polícia Federal e identificaram Guilherme e Hélio Ximenes, o qual fora preso pouco antes, e tinha deixado o endereço com uma das paqueras. O próprio Bicalho, que fazia parte da direção nacional, havia participado de uma dessas viagens. Por aí se vê o quanto o entusiasmo juvenil havia tomado conta do grupo, levando-o a um erro tão primário, com a completa subestimação do aparelho repressor e o abandono da estratégia, a qual era evidentemente nacional e não local, pois se tratava do uso das batalhas e do terreno para ganhar a guerra em todo o Brasil. Giordano estava vestido com um uniforme que o Santa Cruz mandara confeccionar, com outros propósitos. A farda tinha distintivos revolucionários. Como não havia outro uniforme igual ao da Polícia ou do Exército, foi usado esse

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 72

2009-08-06 08:16

Rebeldes

73

mesmo, na suposição de que as pessoas do interior não perceberiam a diferença. Os outros participantes eram o Timoshenko, militante da ALN e agente da Polícia Civil, o Guilherme, motorista do carro, o Telmo e o Esperidião. O disfarce era bom, mas foi superestimado, em face da distância e do tempo, que possibilitavam a reação do inimigo. O carro foi um DKW do Guilherme, dirigido por ele próprio. Santa Cruz ficou num ponto do caminho, em outro veículo, na companhia do Homem Sério, para recolher o dinheiro da expropriação, que serviria para financiar o restante da logística necessária para a operação Ubajara. A ação combinou uma expropriação com um justiçamento, o que em si já foi outro erro político. O comerciante foi justiçado com quatro tiros, um da pistola Colt 1911 cal. 45 ACP portada por Giordano, os outros tiros foram dados pelos outros companheiros que desceram, ficando o motorista no carro, junto a um barranco da Serra Grande. O corpo foi atirado no abismo, pois se esperava que não fosse encontrado e o mistério do paradeiro do comerciante perdurasse até que fosse consumada a grande operação. O DKW prosseguiu a retirada rumo a Fortaleza, centenas de quilômetros adiante. Quando o carro chegou a São Luís do Curu, topou com uma barreira policial e foi recebido à bala. Guilherme, então, engatou uma cinematográfica marcha a ré pela estrada, enquanto os demais ocupantes do carro respondiam ao fogo e abandonavam o veículo, que tivera os pneus furados pelos tiros e se embrenhara no matagal. A uma certa altura, o grupo se dispersou para tentar furar o cerco seguindo Giordano e Guilherme por um lado, e Timoshenko, Esperidião e Telmo por outro. Giordano e Guilherme desco-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 73

2009-08-06 08:16

74

Silvio Mota

briram, ao amanhecer do dia seguinte, que tinham girado em círculo; Timoshenko, valendo-se de sua carteira de policial, furara o cerco, apresentando-se como elemento da Polícia Civil envolvido na busca, Giordano e Guilherme perceberam que só poderiam ter a chance de não serem identificados por moradores da área se se desfizessem do armamento (metralhadora INA). A arma foi então embrulhada numa parte do uniforme junto com o quepe e enterrada. Giordano e Guilherme, já extenuados pelo calor, sede e fome (a região estava seca) andaram pelo mato, procurando distanciar-se e furar o cerco e foram ter a uma pequena casa, onde pediram água para beber. Estando no pátio da casa, foram cercados, subitamente, por uma patrulha chefiada pelo agente federal Lucena, que os capturou. Guilherme e Giordano foram levados dali diretamente para o Departamento de Polícia Federal, onde passaram a ser imediatamente torturados, inclusive pelo Lucena. Foram submetidos a pau de arara, afogamento e espancamentos em turnos seguidos, que não os deixavam descansar. O Superintendente do Departamento, Laudelino Coelho – mais tarde prosaicamente morto em um acidente de trânsito e que deu o nome a uma das ruas de Fortaleza - tinha pleno conhecimento das torturas. Apesar de tudo, nem Giordano nem Guilherme apontaram o nome de nenhum companheiro, nem mesmo admitiram serem da ALN, elaborando uma versão de que fariam parte de uma organização inspirada na Revolução Praieira de 1848, denominando-se Movimento 1848. Era a forma de ganhar tempo até que os demais militantes pudessem escapar. A Polícia Federal engoliu a história do 1848 e chamou a imprensa, inclusive a revista VEJA, que noticiou a versão. Isso

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 74

2009-08-06 08:16

Rebeldes

75

salvou a vida principalmente de Giordano, que estivera em Cuba e estava, assim, condenado pelas forças repressivas a ser eliminado se o pegassem. Quando a verdadeira história veio à tona, a imprensa já publicara seus depoimentos e fotos. A lista do comerciante continua sem aparecer e ninguém é preso com base nela. A ação tem grande repercussão política negativa no meio da população, e os órgãos de repressão agem quase às cegas, atacando sobretudo o movimento estudantil. Alguns nomes, como os dos moradores de São Benedito e vizinhanças, e o do Timoshenko, são logo identificados. José Bento fala tudo o que sabe. Mesmo assim, não resultam mais prisões imediatamente. A repressão então captura Hélio Ximenes, estudante, baseada na sua amizade com Timoshenko e ele fala tudo o que sabe. As prisões então se sucedem, embora a resistência de Giordano e Guilherme tenha fornecido um tempo precioso aos revolucionários. Timoshenko é ajudado pelo PCBR, tendo ficado até escondido em um buraco no quintal de uma casa, e consegue ir para o Uruguai. Maria organiza a retirada de vários companheiros, tendo, inclusive, socorrido o Telmo de um tiro no pé, e vão para o Rio, onde se juntam novamente à organização, prosseguindo na luta armada. Ferreira é espancado, pela repressão, em uma Kombi na frente da sua casa na presença da sua família, e sua esposa, Lourdes Ferreira, é espancada dentro de casa em frente as suas filhas. Apesar disso, nenhum outro membro do grupo operário é preso.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 75

2009-08-06 08:16

76

Silvio Mota

A postura dos revolucionários presos diante da tortura é de resistência. Acauã chega a indicar como local de esconderijo de armas um covil de cobras na Serra do Pereiro, para onde se desloca o Exército sem nada encontrar além de cobras venenosas e escorpiões. Essa é a postura geral. O José Bento, além de falar tudo, fi nge-se de vítima. Outros são logo soltos, como o Ximenes e o Esperidião, que delatou seus antigos companheiros. Todos são isolados e, inclusive, deslocados para o Corpo de Bombeiros. As torturas continuam, , em vários lugares, até que se saciem os sádicos algozes. Uma vez, um soldado apontou um fuzil com bala na agulha para um grupo dentro de uma cela. A reação é imediata. O Giordano se levanta e abre a camisa. -Atira, filho de uma égua! O Ferreira pula logo atrás dizendo para atirar também. Atrás de todos, o Barretinho desafia o algoz. Nada acontece. È verdade que se tivesse havido o tiro no peito do Giordano, o Barretinho não teria sido atingido, de tão pequeno que era... Uma ação. Um erro crasso, tático, estratégico e político. Uma organização político- militar que não havia perdido ninguém desde seu surgimento em 1967, com raízes na história e no povo, respeitada pela população, ainda que nas condições das mais ferozes repressões, como provaram os comícios relâmpagos, com armas, trabalho estratégico e tático, militantes com curso em Cuba, desmorona quase completamente, reduzindo-se a alguns militantes em outro GTA, alguns no exterior, muitos na prisão e uma récua de traidores. O próprio respeito do povo é perdido e precisa ser reconquistado à força de muito sofrimento e muito tempo.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 76

2009-08-06 08:16

Rebeldes

77

Quando Santa Cruz se apresentou à ALN no sul do país, a proposta que havia era a de justiçá-lo pelos seus erros, o que só foi impedido a muito custo pela Maria. A ALN, porém, nunca mais o aceitou nem confiou nele, e mesmo quando foi preso, apesar de seu extenso depoimento não ter levado à prisão de ninguém, os outros presos o mantiveram no ostracismo. Ele, o comandante. Triste sina. Triste sinal que um comandante revolucionário não pode desprezar a estratégia em função da tática. A roda viva de ações de expropriação que houve no sul do país era devida às condições de cerco em que vivia a guerrilha urbana após a morte do Marighella. Nada disso era necessário no Ceará. A subestimação da segurança no caso de São Benedito foi imperdoável. A cidade deveria ter sido abandonada como área de trabalho há meses, e houve decisão a respeito disso, nunca cumprida. Se o José Bento não acatasse as ordens, deveria ser expulso e recomeçado o trabalho estratégico em outras bases, talvez até em outra região. Isso tudo já tinha sido discutido antes da troca de comando do Ernesto pelo Santa Cruz. A grande verdade é que o comando do Ceará só via dinheiro e expropriações, subestimando tudo mais. Houve mortes no comando anterior, mas nem por isso a organização caiu nem foi estigmatizada pelo povo. Não expulsaram o José Bento, e o José Bento acabou expulsando a ALN do Ceará. Liberalismo e irresponsabilidade. A revolução não é feita com flores, como já disse Augusto César Sandino, mas não se pode ser tão cego para não ver que tudo estava errado com a ação de São Benedito. O comando levou a tropa à estupidez, no mínimo. A alienação da realidade era tão grande que não se pensou que, mesmo que não tivessem caído o Guilherme e

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 77

2009-08-06 08:16

78

Silvio Mota

o Giordano, que aliás não delataram ninguém, a organização não resistiria à repressão e um ou outro Hélio Ximenes ia acabar por surgir. O Fleury escapou, mas um comerciante do interior não podia escapar... O GTA da ALN no Ceará, porém, não foi só São Benedito. Através dos seus membros, no exterior, no sul do país, e na prisão continuou a existir, teimosamente. O fogo não matou a árvore da liberdade, outros rebentos surgiram, e ela nunca morrerá. A ação de São Benedito não foi um erro isolado. Foi a consequência de toda uma conduta triunfalista, que alienou os membros da organização da realidade. Na verdade, ninguém estava pensando no enorme risco de segurança que constituía a situação familiar do José Bento, e quando a ameaça se concretizou, a reação foi de descontrole, o que levou à perda da iniciativa estratégica por mero fator psicológico. A tortura há muito já tinha sido alçada a método de controle da população, mas para os militantes da ALN no Ceará ainda era uma coisa teórica, que não tinham sentido na pele. Não foi por crueldade que amarraram um homem e o jogaram de um barranco depois de matá-lo a tiros. Foi por descontrole, incapacidade de raciocinar. Algo terrível os ameaçava, e simplesmente decidiram eliminar esse algo terrível da realidade, apagando-o sem medir consequências. A velha reação de fuga ou ataque, prevalecendo no caso apenas um retalho incompreensível das experiências passadas do grupo. Realmente, faltou razão. E faltou quem a impusesse. Faltou quem tivesse coragem de parecer covarde para salvar a organização. O erro veio de muito atrás, mas no momento em que se tomou conhecimento da possibilidade da denúncia ao Exér-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 78

2009-08-06 08:16

Rebeldes

79

cito por parte do comerciante, tratava-se de uma ameaça real e a curto prazo. Resolver a situação só teria duas vertentes. Ou promover uma retirada geral de todos os ameaçados e substituí-los por novos quadros desconhecidos em São Benedito ou, realmente, eliminar o perigo com o sacrifício provável do executor. É duro dizer isso, mas se a questão era executar, essa execução podia ter sido feita por uma única pessoa, a qual poderia preparar uma rota de fuga que não fosse o evidente retorno a Fortaleza, embora nisso houvesse enorme risco pessoal. A guerra implica sempre no uso do terror e da força, e não seria a primeira vez na História que alguém pereceria por estar causando risco mortal a uma força combatente. Mas o (a) executor (a) teria que por sua vida em jogo, arriscá-la, inclusive, porque só assim o fato seria culturalmente aceito. Isso ou a retirada de todos os ameaçados. Nunca o que aconteceu. O erro fora do comando; a tarefa de solução da crise era do comando. Só assim recuperaria a iniciativa estratégica e cumpriria os mandamentos da batalha, de conservar suas próprias forças e aniquilar ou desgastar as do inimigo. O aspecto da conservação das próprias forças foi completamente esquecido no planejamento da ação. E mesmo que se tivesse optado pela execução, ou que não fosse possível a retirada total dos ameaçados, o povo teria compreendido como sua a ação, e não a teria repudiado. Os prussianos agiram melhor que um comandante guerrilheiro, no caso, pois o coronel que tentou matar Hitler, Von Stauffenberger, embora não tivesse tido êxito e provocado um banho de sangue, ainda hoje é considerado como heróico. É a lição que fica para as gerações futuras.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 79

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 80

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO IV

Treinamento e Socialismo

E

rnesto recebe a notícia da morte do Marighella em Moscou, de um diplomata cubano. Já é com o coração mais pesado que chega a Havana. É recebido pelos cubanos Olaf e Conrado. Cuba mal tinha saído da Luta Contra Bandidos, a guerra civil travada nas montanhas do Escambray e ainda sofria ações armadas da CIA em Havana e outras cidades. O povo andava armado nas ruas, milicianos de azul e verde oliva, membros do Exército Rebelde de verde oliva. O posto máximo ainda era o de Comandante, equivalente a Major, evidenciando a organização guerrilheira. As armas curtas portadas não eram ainda padronizadas, havendo Makarovs, Stechinas, P-38s, Browning HPs, revólveres Colt e Smith & Wesson, pistolas Colt modelo 1911, com cabos personalizados, submetralhadoras checas Scorpion, de calibre 32 ACP, do tamanho de uma pistola. Apesar da distância, acentuada pelas voltas no caminho de chegada, Ernesto teve uma estranha sensação de ter chegado em casa. O povo armado era real. E não havia nenhum aumento de criminalidade por causa disso. Ao contrário, ela havia diminuído com a redução da miséria e a vigilância do povo.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 81

2009-08-06 08:16

82

Silvio Mota

Logo, entram todos em um carro americano reluzente que parecia ter saltado de uma figura de quinze anos atrás, com rabo de peixe e tudo. A conversa é num portunhol horrível, que todos parecem achar muito natural e todos se entendem. Hoje em dia, Ernesto já fala espanhol, mas desconfia se Olaf e Conrado continuam usando o mesmo portunhol... Nas ruas, já começa a faltar pintura nas casas, consequência do bloqueio, mas há bairros reluzentes de imóveis confiscados ainda nas mesmas condições de 1959, em geral ocupados por estudantes e escolas. As praias, antes privativas, são livres para todos, e Ernesto nota que mesmo os clubes estão abertos para a população e bem cuidados. As praias não lhe surpreendem, pois também eram abertas no Brasil naquele tempo, mas os clubes abertos lhe causam impacto, pois eram redutos fechados da burguesia em seu país. Chegam ao apartamento da Carmem. Os cubanos se retiram para voltar mais tarde. Ernesto já conhecia Carmem do Brasil e era o primeiro brasileiro que chegava com missão do Marighella após sua morte. As perguntas são muitas, e a maioria fica sem resposta, pois Ernesto estava em um esquema completamente diferente do esquema em que o Marighella tinha morrido. A Carmem estava ansiosa, mas firme. Não havia lágrimas. Pelo contrário, ela foi que tratou de animar o Ernesto, com aquela sua alegria reservada que tira não se sabe de onde. Foi transmitida a recomendação sobre o Raul. Não haveria comandantes da ALN em Cuba. Ponto final. A Carmem disse que já estava tendo dificuldades com os cubanos em relação a isso, mas a ordem foi transmitida e cumprida. Mais ainda, quando se sabia que o Toledo estava vindo para Cuba e

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 82

2009-08-06 08:16

Rebeldes

83

que ele, com a morte do Marighella, era Comandante mesmo, e no Brasil. Comandante de luta, e não nomeado por política. Política no estrangeiro, em que havia compartimentalização e falta de informações. Não sei se os cubanos gostaram, mas não tugiram nem mugiram. Logo em seguida, Ernesto foi levado a uma casa ampla, em um bairro de primeira qualidade, com amplos espaços e áreas gramadas, antes refúgio da alta burguesia de Havana e, na época, área onde viviam estudantes de todas as partes da ilha. O ambiente era tão grande que ali ficava todos os integrantes do 3º grupo de treinamento da ALN, conhecido, talvez de forma um tanto exagerada e otimista, como 3º Exército. Eram quase 40 pessoas. Lá,encontrou Agonalto Pacheco e Ronaldo Fratti, libertados das masmorras brasileiras no sequestro do embaixador americano. Por intermédio deles, logo fez amizade com Ricardo Zarattini, também libertado no sequestro, e que havia atuado no Nordeste. Pela disciplina do grupo, todos tinham nomes de guerra, e ninguém deveria saber de onde o outro ou a outra era. Claro, que tudo funcionava de modo relativo, pois muitos dos integrantes do grupo já se conheciam do Brasil. No caso de Ernesto, porém, realmente pouquíssima gente o conhecia nem sabia de onde ele era. Tendo ele chegado diretamente de viagem. Ainda vinha com o sobretudo preto que lhe fora presenteado pelo Marighella calças pretas e gravata. Em um ambiente daqueles, com tudo mundo de bermudas e roupas esportivas, chamou a atenção, e na típica gozação brasileira, começaram a comentar que o Marighella tinha recrutado um sacristão. Antes que o apelido pegasse, o

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 83

2009-08-06 08:16

84

Silvio Mota

Arno Preiss, com aquele seu sotaque alemão de catarinense, percebeu que se tratava de um nordestino, e, para evitar conotações pejorativas na brincadeira, disse que se tratava de um monsenhor. Aí o apelido pegou... Era a cultura brasileira em ação. Muitos acabavam com nome de guerra sendo o apelido, além do próprio, que era inevitável que viesse à mente no caso dos mais conhecidos, como os libertados no sequestro. Todos deviam esperar ali até serem chamados para os treinamentos. Havia gente de todo o Brasil, de diversas idades e origens sociais, prevalecendo, entretanto, os estudantes paulistas. As atividades na casa foram disciplinadas, havendo escalas para a cozinha, a limpeza da cozinha, a limpeza da casa e a vigilância noturna, das quais todos participavam. Havia atividades físicas, ginástica e futebol, e constantes discussões teóricas montadas a partir da biblioteca da casa, sobre temas políticos e militares. O nível era muito bom, havendo vários intelectuais no grupo, pessoas com muita experiência de militância comunista e muitos veteranos da guerrilha urbana. Os integrantes do grupo eram instruídos para não se afastarem do bairro e recebiam uma pequena quantia em dinheiro cubano para irem à praia, aos clubes e aos pequenos restaurantes da área. Tudo muito modesto, no padrão dos estudantes que eram vizinhos. A comida da casa tinha mais variedade que a dos pequenos restaurantes, com suas invariáveis pizzas, croquetes e refrigerantes que imitavam a Coca-Cola. A praia era muito boa, e geralmente iam a um clube também expropriado da burguesia de Havana, muito organi-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 84

2009-08-06 08:16

Rebeldes

85

zado, com vestiários e amplas áreas de esporte e dança, além da praia típica do Caribe. As aventuras mais distantes eram ir ao cinema, sempre muito bom e barato, e sair para tomar os sorvetes cubanos, tão consumidos na época, não apenas por sua boa qualidade, como por constituírem complemento nutricional para a população, vendidos a preços muito baratos. Já as bebidas alcoólicas eram mais raras, assim como para a população em geral, que vivia em regime de racionamento subsidiado, consequência do bloqueio e do estado de guerra civil. Isso, na verdade, não os afetava tanto assim, porque estavam acostumados ao regime de rigorosa proibição de bebidas alcoólicas durante a luta armada, pois o álcool afetaria nossos reflexos, podendo acarretar a morte, como porque moravam em uma zona estudantil, em que o consumo de bebidas alcoólicas era desaconselhado mesmo. Só, ocasionalmente, havia alguma cerveja nas festas, servida em grandes copos de papelão impermeável, e nunca se podia beber muito, mesmo porque, as filas eram enormes. Entre um copo e outro, o freguês ficava bom. Ainda mais se fosse dançar... O magnífico rum cubano só aparecia em ocasiões especiais, levado pelos assistentes da inteligência cubana. Havia bares, rum e coquetéis no Vedado, outro bairro onde iam assistir a filmes e comer sorvetes, mas presença deles era desaconselhada lá, ante o risco de encontrarem jornalistas ou mesmo agentes da CIA. Ninguém queria arriscar tanto por tão pouco. Um problema em todas as saídas fora de casa eram as filas, as famosas “colas”. Havia mais dinheiro para consumir

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 85

2009-08-06 08:16

86

Silvio Mota

nas mãos da população que produtos para vender, e as filas eram uma consequência inevitável. Desenvolvera-se toda uma cultura e uma luta ideológica em torno das filas, da qual participavam com toda a população, sempre discutindo o regime, explicando a razão de existirem filas, combatendo os pecadilhos egoístas dos furadores de filas, que desrespeitavam o coletivo em seu proveito pessoal. Se alguma vez alguém do grupo furava a fila, e o fato era visto, a crítica era dura e acerba. Não era raro encontrar verdadeiros inimigos do regime nas filas, o que recordava que estavam em um país com guerra civil recente e ainda sujeito a atentados, o que contribuía para não baixarem a guarda. Os cubanos são, em geral, muito faladores, e havia gente que tinha perdido parentes e pessoas queridas na guerra civil. Era preciso ter cuidado, pois não tinham guardacostas. De qualquer forma, era melhor do que se vivessem em uma bolha de cristal psicológica, criando uma falsa sensação de segurança. As pequeninas lutas eram para valer, e não tinham ido para Cuba para fugirem da luta, mas sim para aprenderem e voltar para lutar melhor e com maior intensidade. Os encontros amorosos, para quem tinha a sorte de arranjar namorada ou já estava casado, eram feitos nas pousadas, logo conhecidas de todos. O mais engraçado era, que lá, também havia filas, e grandes, apesar de todo mundo saber o que iam fazer as pessoas que estavam naquela fila. Como a situação da casa, com pouca privacidade, se repetia na população com déficit habitacional, imagina-se que a instituição das pousadas tenha contribuído para diminuir com os casos de infidelidade conjugal...

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 86

2009-08-06 08:16

Rebeldes

87

A prostituição existia, embora muito combatida, ao redor dos grandes hotéis, visando os estrangeiros. Não havia fome, nem necessidade real, mas nunca deixou de existir. Após alguns dias de convívio na casa, ainda sob o impacto da morte recente do Marighella, receberam a visita do Toledo, ora no comando da organização. Vinha fardado de verde oliva, sem galões, mas com cinturão militar e coldre fechado com uma pistola Makarov. Aquilo deve ter sido idéia dos cubanos, pois Toledo nunca foi dado a se exibir. Mesmo assim, a língua ferina da rapaziada logo começou a falar em patrulheiro Toddy... Toledo ficou meio encabulado, mas logo se recuperou, e prontamente os reuniu. A marca da nossa relação com o Marighella sempre foi mais a admiração, mas a da nossa relação com o Toledo sempre fora a afeição, embora as duas relações existissem juntas tanto quanto a um como quanto ao outro. Ambos heróicos, ambos combatentes comunistas desde a época do Estado Novo de Getúlio Vargas, das eras de 1930, tinham a mesma têmpera, mas como eram pessoas diferentes... Com seu jeito de avô, que logo desfez o impacto da brincadeira inicial, narrou-nos com precisão como tinha sido a morte do seu velho camarada de armas, como estava a organização, as traições, a situação da ditadura, e nossa disposição de continuar lutando até a morte ou a vitória. Convenceu-nos disso, como sempre fazia. Disse da esperança que a organização depositava em nós, agora que os quadros escasseavam e o cerco se montava nas grandes cidades. Reafirmou a linha estratégica e a necessidade premente do lançamento das ações

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 87

2009-08-06 08:16

88

Silvio Mota

no campo, da guerrilha rural. Depois daquilo, não houve muito que discutir, e passou a fazer reuniões com grupos separados, para dar notícias específicas sem quebrar a compartimentação. Ernesto ficou convencido do que ouvira. Se alguém já vacilou ali, pelo menos não demonstrou. Mais tarde iriam ouvir críticas que foram caladas naquela ocasião. As datas para início dos treinamentos não foram definidas, mas ficou claro que seriam para logo. Pouco tempo depois, começou o treinamento de guerrilha urbana. Na verdade, para a maioria não havia muita necessidade dele, pois já eram veteranos, mas sempre se aprende algo, e sob ângulos diferentes. Os cubanos, além das peculiaridades de sua guerrilha urbana, a qual se desenvolveu por toda a ilha, e foi a razão da sobrevivência da guerrilha rural depois do desastre de Alegria del Pio, tinham muita experiência na repressão da ações de atentados nas cidades, desenvolvidas tanto pela CIA como pelos bandidos contra-revolucionários. Primeiramente, tiveram aulas teóricas, na casa mesmo. Depois, foram deslocados para outras cidades, para dar maior realismo aos exercícios práticos. Também tiveram prática de tiro com armas curtas. Certamente, terá mudado a teoria dessa prática, depois de tantos anos, mas o que os cubanos usavam então era a velha teoria do tiro instintivo, sem uso das miras e com extrema velocidade, a teoria de Sykes-Fairbairn, com algumas adaptações desenvolvidas por eles mesmos ou por movimentos guerrilheiros. É incrível, que um método desenvolvido pelos ingleses em 1927 tenha influenciado tanto o manual de armas cuba-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 88

2009-08-06 08:16

Rebeldes

89

no. Talvez seja influência da II Guerra Mundial, pois foi muito usado nessa época. Fizeram, também, um treinamento em uma instalação militar, mais aprofundado, incluindo o uso de explosivos. Aí ficaram aquartelados, sob disciplina militar. As instalações eram rústicas, pois todos os antigos quartéis de Cuba tinham sido convertidos em escolas. Ficar, permanentemente, em tendas ou instalações rústicas só fez bem ao soldado cubano, habituando-o às condições de campanha e dificultando o acesso do inimigo às suas instalações militares, apropriadas ao deslocamento constante. Terminados esses treinamentos, houve longa espera sem definição de data para o curso de guerrilha rural. Manifestaram a inconformidade várias vezes, pois ficar na casa só com ginástica e discussões teóricas já estava sendo prejudicial para o moral do grupo. Por essa época, até apelidaram a casa de “Maison Charcot”, uma referência a um antigo estabeleci mento psiquiátrico francês. Não era para menos. Um deles, o Xuxu, achou por bem encenar umas sessões de tortura com pau-de-arara, para que se preparassem no caso de serem capturados. Treinamento fascista típico. Acabam descobrindo que ele mesmo tinha falado na tortura e denunciado vários companheiros. Foi expulso do grupo. Receberam companheiros de outras organizações brasileiras que iriam fazer o curso de guerrilha. Mas nada de sair o curso. Em uma iniciativa do Zarattini e do Fratti, foi feito um contato com a embaixada da Coréia do Norte. O resultado foi um convite formal para uma conversa com o grupo na embaixada, onde foram recebidos pelo adi-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 89

2009-08-06 08:16

90

Silvio Mota

do militar, o Coronel Park. Este, muito simpático, ofereceu o curso de preparação das tropas especiais do seu exército, famoso pelas frequentes infiltrações na Coréia do Sul e choques armados com os americanos. Chegaram a preencher planilhas, e, como havia entre eles participantes do sequestro do embaixador americano, o Franklin Martins, a conversa tomou o rumo dos relatos sobre as ações, com grande entusiasmo do coronel e outros militares coreanos, que chegaram a contar das suas também. Tudo entre grandes gargalhadas e pires de uma bebida de ginseng fortíssima. Depois, foi um banquete oriental que não acabava mais, dezenas de pratos servidos em pires, com mais pires de bebida. Entraram madrugada adentro. Voltaram em grupos separados para casa depois, mas todo mundo estava entusiasmado e cantando. É preciso dizer que nem todos aceitaram o convite dos coreanos, mas os que foram, inclusive o Ernesto, não estavam descumprindo as ordens da organização, pois já haviam sido estabelecidas relações formais entre a ALN e a República Democrática da Coréia. O próximo tema de estudo foi um livro sobre a guerra de libertação da Coréia e a vida do Camarada Kim Il Sung, que trouxeram da embaixada. Não houve quem segurasse. Os cubanos ficaram furiosos, mas nada podiam fazer. O curso de guerrilha rural acabou tendo a data marcada. Ao partirem para o curso de guerrilha rural, os militantes da ALN e das organizações irmãs que franquearam foram divididos em dois grupos, denominados Outono e Primavera. Ernesto ficou no grupo Primavera. Os grupos foram separados por simples facilidade de instrução, pois reunir todos em um grupo só iria, dessa vez,

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 90

2009-08-06 08:16

Rebeldes

91

implicar em um acampamento muito grande e em menos atenção dos instrutores por aluno individual. O acampamento Primavera, doravante denominado simplesmente acampamento, pois não havia membros do GTA do Ceará no outro, foi estabelecido como um acampamento de campanha em condições de selva e de montanha. As facilidades sanitárias foram compostas por tendas com solo de pranchas de madeira cobertas por tendas, com um buraco sanitário fundo. Os alunos do curso fizeram as pranchas e cavaram pessoalmente os buracos, a uma distância, razoável, do acampamento. As instruções tinham que ser seguidas com rigor. Colocar as facilidades sanitárias muito perto do acampamento significava ter que conviver com o seu cheiro; colocá-las muito longe significava uma longa caminhada, muito desconfortável na hora do aperto. Fazer os buracos fundos demais significava trabalho extra e duro; fazê-los rasos demais significava ter que repetir o serviço braçal em outro lugar em pouco tempo. Pois ninguém aguentava uma latrina cheia. Parece de mau gosto começar a descrição do acampamento pelo destino das fezes e da urina, mas nada é mais importante para uma construção coletiva de ocupação permanente. E não só de tipo militar. Os invasores sem teto bem deviam tomar essas providências na hora das suas ocupações, pois teriam muito mais conforto e menos doenças. A falta de instalações sanitárias nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial e da Guerra Civil Espanhola tornou-as um verdadeiro inferno, fator de morte e de baixo moral. Resolvida a questão sanitária básica, tinham que ser montadas as tendas permanentes do comando, das reuniões, da sala de aula e do refeitório. Isso não levou muito tempo, pois as peças já eram pré-fabricadas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 91

2009-08-06 08:16

92

Silvio Mota

Não foi necessário montar uma cozinha, pois, para poupar tempo para a instrução, a comida já vinha preparada em grandes latões de uma instituição militar próxima, logicamente, compartimentada. Mas montaram áreas para lavar os pratos, talheres e latões e fizeram buracos para lixo, periodicamente cobertos. Para dormir, todos tinham redes com mosquiteiro impermeáveis e um lugar próprio nas árvores vizinhas. Os nortistas e nordestinos gostaram muito da novidade, e levou tempo para alguns dos outros aprenderem a dormir em rede... As redes e mosquiteiros faziam parte do equipamento individual, juntamente com as mochilas, cinturões, coturnos e uniformes, fornecidos em duas mudas. Os próprios alunos cuidavam desse equipamento, e quanto melhor conservado ele estivesse, melhor passariam. O estado das mãos e dos pés era muito mais importante que luvas ou meias - cada um foi logo cuidando de manejar pás e picaretas e a andar com coturnos sem meias, para que mãos e pés ficassem com calos resistentes. Mesmo que isso significasse muitas bolhas primeiro. Era melhor suportar a dor das bolhas um tempo que não ter calos. Não havia melhor proteção para o trabalho duro e as marchas forçadas que esses calos, e a falta deles podia significar falta de mobilidade, o que equivalia à morte para o guerrilheiro. Havia homens e mulheres no grupo, e não houve nenhum problema por isso. Os instrutores eram experientes e muito capacitados. Notava-se que todos tinham experiência de combate, o que não surpreendia, com a proximidade da guerra civil, da invasão de Girón, e da própria luta de guerrilhas que derrubara Batista e suas forças armadas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 92

2009-08-06 08:16

Rebeldes

93

O comandante do campo era um oficial de cabelos brancos, antigo companheiro de Fidel Castro na Sierra Maestra, de origem camponesa. Sempre tentava manter uma postura marcial, mas sentia-se bem que os considerava como seus filhos ou até seus netos. Mais tarde isso ficará ainda mais claro. O que já sabiam era que o Capitão Modesto recebera o apelido de “Vovô Bronquinha” do grupo que nos antecedera. Ele, raramente, nos acompanhava nas marchas, dado a sua idade avançada, mas todos o respeitavam. Deve-se levar em conta que capitão era o penúltimo posto nas forças armadas cubanas, na época, e não se viam muitos deles. Pelas conversas e sotaques, não haveria nenhuma surpresa, se houvesse veteranos da Guerra Civil Espanhola entre os instrutores. O próprio grupo de Fidel fora treinado por um deles, o Coronel Alberto Bayo, cujo livro de instrução chegara a influenciar muito no Ceará. Montado o acampamento central, o dia começava com formação e instrução física. Tinham que aprender tudo, até a andar. No mato, o soldado tem que se mover levantando os pés muito mais que na cidade. Também havia que aprender a rastejar de várias maneiras e a considerar a terra como sua aliada, em qualquer montículo ou depressão. Não usavam munição, mas logo foi introduzido o equipamento completo, com fuzil e tudo. Acostumaram-se a olhar para o fuzil quase como uma parte do corpo, e sentiam falta dele quando se separavam. Não usavam os AKs cubanos, mas os FALs que eram adotados nas forças armadas brasileiras. Estes provinham dos que tinham sido comprados na Bélgica pelo exército de Batista e acabaram chegando tarde demais para ajudá-lo.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 93

2009-08-06 08:16

94

Silvio Mota

Sempre estavam sem munição, no início. Ensarilhadas e sem munição, também havia várias outras a que tinham acesso para maior familiaridade, como fuzis Springfield, Mauser e Garand M-1, submetralhadoras Thompson, MP40, M-3, carabinas M-1, e até um fuzil metralhador dinamarquês Madsen, arma do Exército Brasileiro. Sabe-se lá onde foram achar aquele último, aliás, já fora de dotação no Brasil. Após a ginástica e um banho rápido, vinham as aulas teóricas, na sala de aula. Ali revisavam tudo, tática, estratégia, logística, deslocamento, teoria da guerra de guerrilhas e da convencional, armamento, sobrevivência, história do movimento revolucionário. Também podiam sugerir temas, e até as campanhas de Lampião foram estudadas. Embora os instrutores insistissem muito em transmitir suas experiências pessoais, nenhuma teoria era realmente imposta. Pode-se dizer que tinham a humildade intelectual dos guerreiros experientes, sabiam que cada povo acaba tendo uma história diferente e que muito pouco na arte da guerra é abstrato o bastante para ser imutável e universal. Logo, passaram às primeiras marchas, sempre com equipamento completo. No começo tudo eram rosas, com a estação seca e os caminhos e trilhas firmes. Mas começou a chover, e tudo que não estava coberto pela vegetação se transformou em uma pasta viscosa que desafiava todo movimento. As quedas eram constantes, até na área do acampamento, aliás a mais viscosa, porque era onde mais se andava. Foi preciso reaprender a andar naquilo. Havia um morro próximo ao acampamento por onde sempre passavam e que se transformou em um verdadeiro

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 94

2009-08-06 08:16

Rebeldes

95

sabão e um inferno. Era baixo, mas algumas vezes havia que engatinhar com o equipamento todo. Segurar-se nos cipós e nas plantas não era uma boa política, porque assim iam tornando o morro cada vez mais destituído de vegetação e consequentemente muito mais liso, que era tudo o que queriam evitar. No acampamento, às vezes se hesitava em ir até às latrinas. Deve ter havido muita prisão de ventre no grupo antes de vencer o barro. As marchas podiam ser diurnas ou noturnas, ou também mistas. Marchar à noite foi algo que também tiveram que aprender a duras penas. O melhor era distinguir a silhueta de quem ia à frente. Quase um outro sentido, na escuridão. Depois, já pelo final, tudo se tornou tão automático que se chegava a dormir marchando, como Ernesto experimentou algumas vezes. E havia sempre quem procurasse tornar as coisas mais difíceis. Nas proximidades do acampamento sempre havia estojos ocos de ferro fundido com a aparência externa de granadas ofensivas, jogados ali como abandonados. Daqui a pouco, todos estavam, puerilmente, acrescentando alguns como peso extra nas suas mochilas. Olha que pesavam uns cinco quilos cada um. Os instrutores olhavam e não diziam nada, mas depois não permitiam que o aluno se livrasse do peso extra, que só podia ser devolvido na volta ao local encontrado. Bela lição de responsabilidade e de auto-avaliação das próprias forças. Ernesto chegou, uma vez, a encostar o fuzil em uma árvore para ajeitar a mochila porque levava uma carga extra. O instrutor logo roubou o fuzil e Ernesto se viu sob sua mira quando se virou. Nunca abandonar a arma. Também nun-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 95

2009-08-06 08:16

96

Silvio Mota

ca superestimar as próprias forças, mas essa última lição só aprendeu mais tarde, em outras circunstâncias. Aliás, no grupo, o Ernesto estava na média ou talvez um pouco abaixo dela quanto ao assunto de força física e agilidade. Tinha até os pés chatos, o que lhe prejudicava a agilidade. E havia muitos atletas no grupo, como o João Carlos Reis e o Ailton Mortati, por exemplo, que pareciam não ter dificuldade com nada. Como a progressão da coluna é dada por seu elemento mais lento, era mortificante ficar atrás. Os exercícios e as marchas logo resolveram isso, porém, até os bem-vindos e úteis calos nas mãos e nos pés logo chegaram. Antes mesmo de chegarem as marchas aos primeiros locais de treinamento intensivo, começaram os alarmes noturnos. Todo mundo tinha que deixar seu equipamento bem preparado, porque a qualquer hora da noite podia soar o alarme e havia que pular da cama, por o equipamento todo e entrar em formação com arma e tudo. Tudo parecia bem real. E era real alguns ficarem com sono na aula do dia seguinte. Outra coisa que aprenderam no período chuvoso foi a ficar várias horas com a roupa molhada. Com o aumento paulatino da duração das marchas, chegavam a ficar dias e não só horas, nesse estado. Logo dispensaram as cuecas, aliás, já todas do tipo samba canção. As meninas devem ter dispensado a roupa de baixo também. Com o solo escorregadio e a roupa molhada, torciam pela aparição do sol. Os coturnos tinham trato diário, com sebo e graxa. Se não, a vingança era terrível, em forma de bolhas, mesmo com calos defensivos formados. Não tinham galões nem fivelas para lustrar, mas a experiência dá um cuidado rigoroso com o equipamento. Todo mundo aprendeu a costurar também.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 96

2009-08-06 08:16

Rebeldes

97

Depois de muito treinamento com desmontagem e montagem, e armas longas e curtas, marcharam até a área de treinamento intensivo. Começou o curso de tiro - sem tiros. Nossos exercícios eram de colimação entre as armas e um alvo em uma caixa, em várias distâncias, sempre ao alcance da vista em detalhe. Depois, tiros em calibre 22 LR. Usaram magnífi cos rifles tchecos, Brno ou Cz, e não havia desculpa para errar com os olhos jovens que quase todos tinham, sobretudo porque quando ainda estavam na casa tinham feito muito treinamento com 22 LR n os clubes de tiro da área, que eram baratíssimos. Veio o treinamento em primeiros socorros, com improvisação de macas, tipóias, transporte de feridos, e respiração boca a boca, que deixou o Ernesto entusiasmado, pois não havia moças feias. Sorteados os pares, coube ao pobre Ernesto treinar respiração boca a boca com o pobre sergipano Agonalto Pacheco, com muitos pedidos mútuos de desculpa... Em uma aula posterior, quando era explicado o funcionamento das submetralhadoras, depois de uma noite com dois alarmes, ao ser perguntado à alguém porque uma delas se chamava MP, o que não sabia o instrutor Roy, veio a explicação sonolenta do Ernesto: “Maschinepistole”. O Arno Preiss, que falava alemão de berço, ficou feliz com o nordestino, o qual logo pegou a fama de falar alemão. Na verdade, Ernesto só tinha noções elementares dessa língua, aprendidas de um soldado SS alemão desgarrado, que havia aparecido no Ceará. O fato, aparentemente sem significação na época, veio a complicar bastante a vida do Ernesto depois. O curso de tiro era o que mais atraía.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 97

2009-08-06 08:16

98

Silvio Mota

Fizeram uma longa marcha de sobrevivência na selva, sem alimentos na mochila e com os cantis vazios. Aprenderam a tirar água de cipó e comer palmitos e larvas de pau, e até cobras. Não houve, porém, nenhum treinamento de torturas nem foi ferida a dignidade de ninguém, como sempre ocorre no treinamento das forças especiais americanas e derivadas. Voltando ao curso de tiro, receberam um polígono amplo, de mais de 300 metros de fundo. A maioria dos tiros seria disparada contra silhuetas humanas de papelão erguidas de uma trincheira na marca dos 300 metros. Começaram com FALs em calibre. 308, Garands e Springfields calibre 30.06, munições já conhecidas de muitos, mas logo notaram que a maioria das armas e da munição que iriam usar era alemã, nazista mesmo, capturada pelos soviéticos durante a II Grande Guerra e depois doada aos cubanos para treinamento. Os calibres que mais dispararam foram o 7,92 x 57 (8 mm Mauser) e o 9 mm para pistolas e metralhadoras, com cargas alemãs bem fortes. As armas mais usadas foram o fuzil Mauser 7,92 e a MP-40 calibre 9mm, a famosa Lurdinha do Tenório, com carregador de 32 disparos. Os disparos eram feitos, a princípio, a 300 metros em silhueta humana, com o atirador deitado. Depois, passaram a atirar de joelhos e finalmente de pé, tudo sem apoio e sem a utilização da bandoleira. Os resultados foram bons, e interessante foi que se destacaram o Ernesto e o Camilo, ambos usando óculos. Foi feito, inclusive, um curso de tiro noturno, com um expediente interessante e simples: iam para o polígono de noite, e era acesa uma lâmpada incandescente comum em cada posto por um pequeno momento, para simular o dis-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 98

2009-08-06 08:16

Rebeldes

99

paro de uma arma inimiga. Era, perfeitamente, possível disparar na claridade resultante com o uso das miras abertas. Centro. Borde inferior. E depois víam que o disparo estava lá. Em posição mortal. Os exercícios físicos também evoluíram. Agora havia exercícios de equilíbrio sobre troncos fixados no solo, rastejamento sob arame farpado, corridas com trincheiras, escalar paredes e janelas, cobrir distâncias segurando- se em cordas com mãos sobre grandes alturas e passar uma escada de ferro horizontal só com mãos sobre uma distância de 10 metros, tudo com equipamento completo. Lançaram granadas de mão reais a partir de trincheiras ou através de janelas. Os únicos acidentes aconteceram com a escada horizontal, com progressão de mãos. O Ernesto uma vez caiu dela ao tentar passar uma segunda vez, já com as mãos molhadas de suor e feridas, respondendo a uma provocação. Mas caiu de pé, e mesmo com o peso do equipamento, tudo o que sofreu foi uma bruta distensão muscular por todo o corpo, que lhe rendeu algumas semanas de repouso forçado no acampamento com aplicação de relaxantes musculares. Aí, se deu conta de que havia um tratamento diferenciado com, pelo menos, um dos alunos, o José Dirceu, o qual ia frequentemente a Havana alegando estar sofrendo de dor nas costas. Algumas das companheiras tiveram pequenos problemas de saúde e foram a Havana algumas vezes, mas isso era justificável em se tratando de mulheres, com problemas próprios delas, mas o caso do José Dirceu não se justificava. Tampouco se justificavam as visitas do Dariel Alarcón no acampamento, sempre muito engomado e perfumado, arrastando a asa para as meninas. Ele contava

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 99

2009-08-06 08:16

100

Silvio Mota

bravatas e atrapalhava as marchas, prevalecendo-se da sua posição de sobrevivente da guerrilha do Che na Bolívia. Era um chato de galochas. Depois, acabou traindo a Revolução e asilando-se na Europa. Quem diria?! Á guisa de recreação, havia sessões de cinema no acampamento, em geral com temas ligados às guerras de libertação. Aprendera-se muito com eles, inclusive sobre guerrilhas em países que nunca tinham notícia de algo assim, como a Romênia e a Bulgária. O curso de tiro prosseguiu com novas armas e novas técnicas. A submetralhadora foi usada extensamente. Tiro visado, tiro sem visar, da cintura, aproveitando o impacto dos primeiros disparos para guiar a rajada, mesmo em uma arma sem controle de rajada, como a MP-40 que usavam. Havia que conseguir rajadas de dois ou 3 disparos. A seguir, em polígono coberto por vegetação alta, o atirador era surpreendido por alvos que saltavam na sua frente, nem sempre figuras inimigas. Ali havia que empregar tirocínio, velocidade e força. Os tempos eram cronometrados. O atirador tinha a escolha de usar as miras ou não, mas devia saber quando atirar e quando não atirar, e acertar os disparos em zonas mortais. Foram usadas pistolas e submetralhadoras. Mais ou menos como em uma prova de tiro prático. Eventualmente, podia até haver o uso de granadas de mão. A pista era excelente; não houve nenhum acidente e o aproveitamento foi muito bom. A arma seguinte foi o fuzil metralhador. Usaram um excelente Vz checo, parecido com uma Bren. A idéia era avançar e jogar-se deitado com o fuzil metralhador, dirigindo os disparos para o alvo ou alvos na trincheira de 300 metros. O movimento era repetido várias vezes a critério do atirador,

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 100

2009-08-06 08:16

Rebeldes

101

o qual deveria neutralizar o alvo ou alvos designados como inimigos. A precisão era excelente, com os apoios de ombro e bipé da arma. Exercícios semelhantes, mas com a arma sempre na mesma posição, foram feitos com a Metralhadora Browning .30 e com a .50. As distâncias eram compatíveis e também houve destruição de material bélico. Com muitas precauções, passaram para a destruição de fortificações e material velho com bazucas e canhão sem recuo. Os resultados foram excelentes. Tiveram oportunidade de examinar e manejar em seco tanques e blindados de modelo americano, os quais, por existirem em pequena quantidade, não puderam ser usados nas provas de .50, bazuca e canhão sem recuo. Mas pelo menos saíram com uma idéia do que se tratava, pois seriam usados contra eles. As marchas e deslocamentos táticos seguiram, acompanhando o ritmo do curso de tiro. Usaram armadilhas vietnamitas, tanto primitivas como mais elaboradas, inclusive repetindo o efeito de uma mina Claymore antipessoal. Cavaram trincheiras e túneis de tipo vietnamita e os utilizaram taticamente. Os movimentos em campo eram feitos, naturalmente, com cartuchos de festim, sem balas. Minaram campos e abriram passagem por campos minados. Isso e os túneis eram os trabalhos mais duros e perigosos. Ninguém falhou. Os nervos estavam bons. Só não se sabe bem é se todos fizeram essas tarefas. Ernesto estava ocupado demais para verificar. Os primeiros combates fictícios foram travados entre eles, com balas de festim. A emboscada com suas variantes e o cerco foram os movimentos táticos mais estudados, assim como as manobras de flanco.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 101

2009-08-06 08:16

102

Silvio Mota

Aí, puderam apreciar o valor de tudo por que tinham passado em termos de formação física. Seria totalmente impossível flanquear uma posição naquelas condições de montanha e selva se já não tivessem incorporado o resultado do treinamento anterior. Numa das primeiras emboscadas houve um fato curioso. O Arno Preiss foi ferido no braço, apesar de só usarem munição de festim. É que mesmo a munição de festim tem um fechamento de cera, que foi o que atingiu o braço do Arno. A partir daí tratam de proteger bem os olhos, pois um acidente daqueles poderia cegar, embora a possibilidade fosse muito remota. Voltando ao acampamento central, tivemos uma reunião política com o Olaf, com as péssimas notícias da morte do Toledo e do recrudescimento da repressão, que fizera várias vítimas. Foi também relatado o caso da ação de São Benedito, no Ceará, como um absurdo erro militar e político. Houve até cobrança para cima do Ernesto. Este pediu mais detalhes e ligação direta com o emissário da ALN, pois havia decisões diretas contra essa ação, mas nada lhe foi concedido, embora na ocasião não dissessem sim nem não. Ernesto ficou furioso. Sem informações nem discussão, nada podia fazer, e ainda por cima tentavam passar-lhe a responsabilidade, quando nada pudera fazer na hora da ação. Percebeu que as informações estavam sendo usadas como instrumento de controle, e ter sua posse gerava poder. Muita gente já pensava assim, inclusive o João Leonardo e o Arno, que lhe eram mais próximos. Entretanto, o treinamento prosseguia. Entravam na fase mais decisiva, uma longa marcha de meses, em uma região antes desconhecida, enfrentando tropas especiais cubanas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 102

2009-08-06 08:16

Rebeldes

103

Atravessaram rios caudalosos, em que quase não se podia nadar, levando uma corda para a outra margem e passando com o corpo pendurado, progredindo com a força pura das mãos e com equipamento completo, menos os que tiveram a tarefa de passar a corda para a outra margem, os quais, no final, tiveram que fazer duas viagens na corda, para que pudessem resgatar seu equipamento. Atravessaram estradas e regiões habitadas, nas barbas das tropas especiais cubanas, usando a camuflagem, o trabalho de equipe e a velocidade de progressão, levando vantagem do terreno e da hora. Nas montanhas, usavam a crista militar para a progressão, um pouco abaixo do cume, pois se marchassem na crista do cume, os corpos apareceriam em silhueta contra a luz do horizonte. O comando da coluna era rotativo. Esta estava dividida em vanguarda, centro e retaguarda, com batedores avançados, que iam e vinham e se revezavam. Aliás, graças à leitura dos textos do Che, os primeiros comandantes deram a ordem de que ninguém devia tomar banho, para evitar fadiga por excesso de transpiração quando os poros fossem abertos pela água. A ordem foi seguida, e a verdade é que o cheiro desaparece em poucos dias, pois o corpo se adapta perfeitamente, e, também, não usávamos cuecas nem meias há muito tempo. As companheiras reclamavam sempre. Um dia, finalmente, uma delas, a Ana Maria, assumiu o comando, e sua primeira ordem foi um banho geral, com muito sabão esfregado, pois afinal tinham economizado bastante. Obedeceram prontamente, embora depois, realmente, os poros se abrissem e suaram muito mais. O cheiro devia estar melhor, porque também tiveram que lavar bem as fardas. As botas já eram bem cuidadas, mesmo quando não havia banho.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 103

2009-08-06 08:16

104

Silvio Mota

Ernesto agora tinha um novo apelido, Tetéu, o QueroQuero dos pagos do Rio Grande, pássaro que era conhecido por esse nome no Nordeste. É um pássaro pequeno, mas valente, que nunca dorme. Gostou do apelido, pois significava sua aceitação definitiva pelo grupo. O grupo enfrentou várias emboscadas das forças especiais cubanas. Perdeu muita gente, mas não conseguiu nenhum prisioneiro; Ernesto lembra até hoje o clarão das AKs atirando festim em grupo, atrás de troncos caídos, de cima para baixo no meio da mata. Era uma coisa surreal. Foi considerado morto nessa ocasião. Os cubanos eram ágeis e sabiam preparar emboscadas. Mas nem assim conseguiram evitar que o grupo tomasse um quartel, que era talvez o maior objetivo da marcha. Tocou ao Ernesto o comando do grupo daquela vez, auxiliado pelo João Carlos Reis. Acabou sendo um trabalho bem feito, elogiado pelos próprios cubanos. Havia até um grupo de reserva, preparado para alguma surpresa e para garantir a retirada. Ernesto nunca esquecia o princípio de preservar as próprias forças ao aniquilar o inimigo e prever sempre um passo adiante dele. O último exercício foi furar um cerco, o que foi muito bem executado e preservou o grupo inteiro. Estavam dominando os movimentos táticos, não importava quem fosse o comandante da vez. Isso refletia o como estavam levando a sério o treinamento e como haviam absorvido suas lições. Também, era o grupo mais maduro que a ALN havia mandado para Cuba, com mais experiência de vida e de combate. Na marcha de volta estavam contentes. Tinham lutado contra os próprios defeitos e os tinham superado em conjunto. O moral era alto e a ligação entre os membros do grupo

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 104

2009-08-06 08:16

Rebeldes

105

muito sólida. Apesar das fardas em farrapos e de estarem tão fatigados que o Ernesto teve uma experiência surrealista de dormir marchando. Ao chegarem ao acampamento central, um dos instrutores, talvez o que tinha comandado os cubanos, disse que todos mereciam o posto de capitão nas forças especiais cubanas. Houve grande celebração, com um porco alçado (fugido do cercado e criado na mata) caçado por eles mesmos e assado inteiro no espeto. Muita cerveja., rum e canções revolucionárias, sobretudo da Guerra Civil Espanhola. Ninguém deu problema. O que destoava era a aparência triste do Capitão Modesto, comandante do campo. Quando foram falar com ele, ele chorou, dizendo que talvez fosse a última vez que os via e que muitos iriam morrer logo. O velho guerrilheiro os via como filhos e filhas. E, talvez, soubesse de coisas que não sabiam... De qualquer maneira, aquele treinamento os marcou para sempre e deu ao grupo uma enorme coesão. Essa coesão, juntamente com a falta de informações e intrigas movidas por algumas pessoas, chegou a provocar até resultados negativos, apesar de ser uma coisa boa em princípio. Os paradoxos históricos existem. Voltaram, em seguida, para Havana, onde foram alojados em outra casa ampla e espaçosa, perto das casas onde estavam alojados estudantes vietnamitas. O ambiente do treinamento logo se modificou. Alguns membros dos grupos Primavera e Outono nem sequer tinham feito o treinamento; outros tinham feito apenas parte dele. A intriga estava no ar e o Olaf trazia apenas informações parciais e o grupo, como um todo, não teve contato com a direção da ALN. Nem sequer sabiam de quem se tratava,

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 105

2009-08-06 08:16

106

Silvio Mota

com as mortes do Marighella e do Toledo. Tampouco receberam documentos da ALN. O José Dirceu, como sempre, circulava onde queria, um privilégio abertamente estimulado pelos cubanos, que muitas vezes se referiam ao outro grupo da ALN como aqueles meninos indisciplinados do II Exército. Isso pegava mal, pois haviam sido disciplinados e a disciplina lhes custara muito. Estavam surpresos de que os companheiros fossem ainda mais jovens do que eles, que estavam em média pelos vinte e cinco anos. Circulou também, a intriga de que havia uma Viúva I e uma Viúva II do Marighella. Na realidade, o Marighella tinha envolvimento amoroso tanto com a Zilda Xavier como com a Clara Charf. Até aí nada de mais. Mas o que se insinuava é que cada uma delas mantinha uma política separada para a organização, o que não era verdade, mas de tão repetido acabou adquirindo foros de veracidade. A realidade é que a Zilda havia voltado ao Brasil e tinha sido torturada sem nada revelar, e não gostava muito dos cubanos, enquanto que a Clara sempre tinha permanecido em Cuba e após sua chegada lá se comportava sempre como uma lady, mantendo ótimo relacionamento com os cubanos. O ambiente ficou tão pesado que houve alguns, como o Arno Preiss, que não falavam mais com ninguém na casa. Essa foi a verdadeira Maison Charcot. Um ambiente neurotizante e deprimente causado pela falta e manipulação de informações, pelas notícias sucessivas de mortes de companheiros e companheiras e pelas intrigas políticas. O grande responsável por tudo isso foi sem dúvida o Olaf, por ação e omissão. A coisa chegou a tal ponto que houve uma reunião com caráter de verdadeiro motim, em que escolheram alguns

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 106

2009-08-06 08:16

Rebeldes

107

companheiros para ir tratar com a direção da ALN e todos revelaram a todos. Tudo com a bênção do Olaf. Ernesto também participou dessa reunião pois estava desesperado com a falta da mais mínima informação sobre o destino do GTA do Ceará, atitude pela qual hoje se autocrítica. Isso aconteceu sem dúvida com a maioria de nós. Todos queriam saber de informações sobre os caídos, e todos queriam saber porque ainda não havia começado a guerrilha rural, estando tão evidente o cerco estratégico nas cidades. A comissão foi e voltou sem notícias. Decidiram voltar ao Brasil de qualquer jeito, e discutir as inquietações e críticas com a direção no combate. Essa foi a decisão do grupo, e o MOLIPO só foi fundado no Brasil bem mais tarde. Ernesto só teve conhecimento desse nome muito depois de ter voltado para o Brasil em 1971. Surpreendentemente, tiveram o apoio dos cubanos para essa decisão, o que evidencia sua participação direta no fracionamento da ALN. Receberam alguns dólares, passagens e pontos no Brasil. Como a volta era feita um a um, o restante foi encaminhado a cursos. Ernesto tocou um curso de fabricação de armas explosivas e incendiárias, complementado com tornearia básica, para a fabricação de corta chamas e silenciadores a serem usados pela Frente Sandinista. O local foi uma instalação militar nas proximidades de Havana, onde já tinham feito cursos anteriores, e na qual foram, uma vez, visitados por Carlos Fonseca Amador. Havia outros companheiros no curso, inclusive Camilo, e companheiros de outros países latino americanos. Estiveram muito ocupados por um bom tempo. Também havia exercícios físicos no local, que poderia ser usado como campo de treinamento físico de pára-quedistas. A preparação estava tão boa que podiam

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 107

2009-08-06 08:16

108

Silvio Mota

correr uma légua monte acima e outra monte abaixo todas as manhãs. Finalmente, Ernesto foi chamado por Joel, que coordenava a volta para o Brasil, e foi-lhe passado um ponto com repetições em Petrolina, no interior de Pernambuco, com o companheiro Jeová, que tinha contatos no campo, a fim de que organizassem a preparação de áreas para a guerrilha rural. A perspectiva era excelente, e estava bem de acordo com a preocupação, muitas vezes externada pelo Ernesto, de romperem o cerco estratégico em que a repressão os encerrara nas grandes cidades. Porém, o passaporte fornecido era alemão ocidental. Ernesto logo protestou, dizendo que não falava alemão, e tudo o que conhecia da língua eram algumas frases. Contudo, Joel argumentou que isso era o que os cubanos tinham para ele, e não poderia conseguir outro passaporte tão cedo, além do que Ernesto sabia falar outras línguas e poderia passar facilmente por alemão falando inglês no nordeste do Brasil. Ernesto acabou concordando. O incrível é que os cubanos concluíram que ele falava alemão simplesmente porque traduzira “maschinepistole”. Estavam todos no fio da navalha, e não havia como recusar sem arriscar-se a ficar sem passaporte, pois estava claro, a pessoa da inteligência que afirmara que ele falava alemão ia defender sua informação e dizer que ele estava vacilando. A volta do Ernesto foi coordenada com a do Coutinho, um companheiro paraense jovem. Os dois iriam para a Itália, e lá receberiam outras passagem para o Brasil, entrando por Recife, Pernambuco. O problema foi que, quando receberam as passagens no embarque, notaram que passavam por Zurique, cidade suíça de língua alemã. Ernesto protestou de novo,

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 108

2009-08-06 08:16

Rebeldes

109

mas de nada adiantou. A única coisa que pode fazer foi combinar com o Coutinho que, se alguma coisa acontecesse com ele no aeroporto, o Coutinho devia afastar-se, marcando um ponto com ele em Recife. Claro que aconteceu alguma coisa com o Ernesto em Zurique. Logo que foi passar com seu passaporte para abordar a nova aeronave do seu vôo, o atendente suíço fez-lhe uma pergunta, de praxe, em alemão, que ele não entendeu. Só pode escapar dizendo uma das frases que sabia em alemão “Ich bin krank” (“Estou doente”), fingindo que não podia falar, com a mão na boca. O suíço ficou espantado, mas acabou deixando-o passar. A pergunta deve ter sido sobre o vôo que o Ernesto ia abordar e ele estava com a passagem na mão. O Coutinho sumiu. Na Itália, Ernesto comunicou o fato na embaixada cubana e recebeu ordens para ir para Praga, onde teria um encontro com o Joel. O encontro aconteceu em um apartamento, em Praga, onde Ernesto fora alojado. Joel já estava de volta para o Brasil. Ernesto explicou, com detalhes, tudo o que tinha acontecido na sua volta e, mais uma vez, reclamou do passaporte alemão. Esperava que Joel estivesse trazendo um outro passaporte. Afinal de contas, um passaporte alemão ocidental era muito útil, melhor que um de um país da América Latina. O problema era a adequação do passaporte à pessoa. E já havia fatos que comprovavam que a situação era problemática. Porém, o que Joel trouxe foi um ponto de segurança em São Paulo e uma pistola de calibre 9 mm Largo. Não era nem uma Astra, que poderia em último caso disparar cartuchos 9 mm Luger.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 109

2009-08-06 08:16

110

Silvio Mota

Ernesto explicou que preferia não levar a pistola, pois não encontraria munição para ela no Brasil, e uma vez disparado o carregador ela seria inútil, tratando-se de um calibre espanhol obsoleto. O ponto em São Paulo também tinha pouca ou nenhuma utilidade, pois havia muita gente que falava alemão lá, principalmente nos hotéis. Entretanto, tudo ficou por isso mesmo. Joel não se mostrou hostil, aceitou as explicações apesar de ainda não ter sido localizado o Coutinho, até concordou que o passaporte tinha que ser trocado mesmo, mas que não conseguira outro dos cubanos. A situação ficou até constrangedora. Foi dado um prazo para o Ernesto ficar na Tchecoslováquia e Joel continuou na sua viagem de volta para o Brasil. Só restou ao Ernesto fazer turismo em Praga à pé, pois seu dinheiro só dava para comer. Como não sabia tcheco e pouca gente falava inglês, francês nem espanhol nas suas vizinhanças, comeu muita batata, “goulasch” e bebeu cerveja, pois as únicas palavras que aprendeu do tcheco foram justamente ‘brambor”, “goulasch” e “pivo”, que correspondem justamente a batata, ao prato húngaro e a cerveja. O resto só apontava e usava linguagem de gestos e sinais. Usou o pouco alemão que sabia, mas ele só lhe ajudou um pouco com “wasser”, água. Decidiu usar inglês com sotaque alemão para entrar no Brasil, pois, mesmo no Nordeste, seria extremamente suspeito um alemão falar português como um nordestino e falar alemão como um principiante que era, no conhecimento da língua. Decorrido o tempo de espera, foi para a Itália, e lá comprou um bilhete da South African Airways para Recife. A companhia aérea foi escolhida a dedo, pois estavam em plena

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 110

2009-08-06 08:16

Rebeldes

111

época do apartheid, e um avião sul-africano não despertaria suspeitas no Brasil da ditadura militar. Chegou a Recife sem problemas, com seu inglês com sotaque alemão. Conseguiu um hotel logo no aeroporto, e logo após a primeira noite saiu dele, pois viu que o dono do hotel era alemão e ainda viu um escritor cearense conhecido seu no restaurante. Conseguiu um flat perto de Boa Viagem e mudou-se. Lá, estava tranquilo, fazendo as refeições sempre fora para evitar encontros. Cobriu dois pontos que marcara com o Coutinho em frente ao restaurante Veleiro, muito conhecido, e ninguém apareceu. Quando se aproximou o dia, foi para Petrolina de ônibus e hospedou-se, normalmente, em um hotel. O ponto com o Jeová era no dia seguinte, em frente à agência dos Correios e Telégrafos, como era o nome na época. Jeová não apareceu, por mais que esperasse. Ernesto foi então para Salvador, pois não havia o que justificasse sua permanência prolongada em Petrolina. Lá, chegou justamente quando traziam o corpo de Lamarca para o Instituto Nina Rodrigues, o mesmo lugar para onde foram os restos mortais de Lampião. Mais um grande brasileiro que tombava, mais dor e raiva no coração. Depois, ainda tentou encontrar Jeová, as suas tentativas não deram resultado nenhum. Voltou para Recife, onde encontrou alojamento no mesmo flat. Ainda cobriu alguns pontos que marcara com o Coutinho, mas não encontrou ninguém. Então, decidiu entrar em contato com sua família, através do seu irmão Hélio, que morava no Recife. Conseguiu o contato sem problemas, e pediu-lhe uma arma e documentos brasileiros, pois não podia permanecer com seu passaporte alemão, o qual com o

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 111

2009-08-06 08:16

112

Silvio Mota

tempo iria até necessitar de renovação do visto, nem podia ir a São Paulo com ele. Hélio e Estefânia, esposa dele na época, tiveram muita coragem, conseguindo-lhe um revólver, mas não arranjaram nenhum documento brasileiro. Talvez a família estivesse mais interessada em ter o Ernesto fora do Brasil, pois nenhum deles tinha participação revolucionária anterior, mas o que fizeram foi conseguir-lhe dinheiro. Diante das circunstâncias, Ernesto devolveu o revólver, aceitou dinheiro suficiente para comprar uma passagem para a Itália e para lá voltou, entrando em contato com a embaixada cubana e lá, relatando o que lhe ocorrera no Brasil. Recebeu ordens e condições à voltar para Cuba e para lá voltou. Foi recebido pelo Olaf, a quem relatou os fatos acontecidos. Nessa ocasião, estava imensamente deprimido com o fracasso da missão, o que era aparente. Olaf abriu-lhe contato com o João Leonardo, que era um dos seus melhores amigos no grupo Primavera, e ele fez, novamente, o relato das suas experiências, pois o João Leonardo estava, na época, no comando do grupo. Seu relato foi aceito e ele foi encaminhado para um apartamento onde se encontrava o resto do grupo em Havana. João Leonardo voltou para o Brasil e deixou o comando do grupo com o José Dirceu, que estava no mesmo apartamento em que foi alojado o Ernesto. Ernesto estava em uma situação difícil perante seus companheiros, pois, a situação que passara, o mais lógico seria que ele tivesse sido capturado. Os contatos posteriores, no Brasil, comprovaram que o Jeová não fora aos pontos marcados. Inclusive, também voltou a Cuba o companheiro Samuel, por problemas ocorridos durante sua viagem antes de entrar no Brasil, o qual voltou a viajar.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 112

2009-08-06 08:16

Rebeldes

113

Como Ernesto necessitava de tratamento dentário e diante da sua depressão, que o deixou dias sem dormir, ele foi encaminhado para tratar dos dentes. Depois, como não entendia de depressão, Ernesto pediu um trabalho físico duro, para que ficasse em forma e voltasse a dormir normalmente. Recebeu um trabalho em uma fábrica de cimento, onde havia uma pedreira e seus conhecimentos de explosivos seriam úteis, mas acabou com uma infecção nos olhos, provocada pela poeira, o que provocou sua volta a Havana para tratamento. As notícias do Brasil eram quedas e mais quedas, mas continuava a disposição de voltar ao grupo.Ernesto foi curado da infecção, só lhe restando cicatrizes nas córneas que não afetavam sua visão, na época. Teve, inclusive, tratamento para sua depressão. Passou a trabalhar, voluntariamente, na construção de um hospital oncológico. A vida continuou, normalmente, na casa, embora o Ernesto fosse o único que trabalhava nela. Não iria permitir que os cubanos o sustentassem quando tinha condições de ganhar o pão com o suor do seu rosto. Essa foi uma atitude que manteve durante toda sua vida, e não apenas ante os cubanos. Veio a notícia que as conversas com a ALN tinham falhado e que se tinha constituído uma nova organização, o MOLIPO, Movimento de Libertação Popular. Ernesto, em processo de recuperação e investigação para a nova volta ao Brasil, não pode fazer muita coisa. As informações eram de que o MOLIPO estava pondo em prática a linha do Marighella com a abertura das frentes da guerrilha rural, em fase de preparação concreta, e ele ficou onde estava. Entrou, praticamente, à força no MOLIPO, ante as circunstâncias, pois só MOLIPO podia esclarecer seu caso.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 113

2009-08-06 08:16

114

Silvio Mota

Houve muitas sessões de cinema para o grupo no ICAIC, já que o José Dirceu era muito amigo do Alfredo Guevara, seu presidente, e amigo do Fidel Castro de longa data. Foram até a uma unidade militar fazer exercícios de tiro com AK-47, usando inclusive gongos para distâncias até 600 metros. Os exercícios foram bem sucedidos e levantaram o moral. Mais tarde o Ernesto conseguiu uma colocação na Brigada Comunista de Construção Industrial, em trabalho stakhanovista, que construía a termoelétrica de Regla, na zona portuária, obra de tecnologia tcheca que necessitava ser completada com urgência, inclusive porque afetava o fornecimento de energia elétrica para Havana. O trabalho stakhanovista exigia um sacrifício especial dos comunistas, os quais trabalhavam mais de dez horas, dando exemplo a jovens trazidos de outras províncias. Ernesto muitas vezes se alojava por lá mesmo. Houve muitas discussões políticas na época, mas sempre conduzidas, exclusivamente, pelo José Dirceu. Até foi recebida uma proposta de voltarem com o grupo, que seria conduzido pelo Cabo Anselmo, homem de confiança de Cuba na época, e só não foram porque a traição do Cabo foi descoberta antes. Os meses foram passando, até que uma vez, em discussão com o José Dirceu, Ernesto acabou dizendo que a maior fidelidade que devia era aos seus companheiros do Ceará, os quais comandara e com os quais combatera. Isso provocou uma explosão verbal do José Dirceu, que acabou acusando-o de traidor, porque os companheiros do Ceará eram da ALN, e, portanto, o Ernesto tinha mais fidelidade à ALN que ao MOLIPO. Para Ernesto, aquilo era um absurdo tão grande

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 114

2009-08-06 08:16

Rebeldes

115

como dizer que alguém era mais fiel ao Che que a Fidel. Mas, é claro que havia outros interesses em jogo. Ernesto foi expulso do apartamento, o que na verdade não lhe afetou, pois, apesar da sua ansiedade por partir, estava trabalhando com alguns dos melhores militantes do Partido Comunista de Cuba, e aí o Dirceu não podia mexer. Não deixou de lembrar que o José Dirceu nunca tinha combatido de verdade, nem na ALN nem no MOLIPO, e que tinha sido admitido na ALN por um favor especial do Toledo, contra a linha da organização, e sempre tivera privilégios. Os meses continuaram passando. Um dia, no início de setembro de 1973, o José Dirceu marcou um encontro com o Ernesto no Malecón, onde estava em companhia de Rafael Moya e Cervantes, nossos contatos cubanos na época. Era praxe que os cubanos participassem em comunicados importantes, inclusive como testemunhas. Isso não aconteceu naquela ocasião. Dessa vez, o José Dirceu afastou-se com o Ernesto, e lhe comunicou que ele só tinha uma das duas opções: ou pedir asilo político em Cuba ou ir para o Chile “desbundar”, que era o termo que usavam na época para as deserções da luta. A situação do Chile era de pouco conhecimento do Ernesto, cujos contatos com brasileiros tinham sido, praticamente, cortados. Ele não sabia da atuação de organizações revolucionárias brasileiras naquele país, e só o conhecia como exemplo de revolução sem luta armada, tese com que ele não concordava, sempre enfatizando que enquanto Allende não tivesse o controle militar do país não teria o poder, o que irritava tanto o Dirceu como os assistentes cubanos. Assim, estava claro que ele não ia aceitar nenhuma das duas soluções. E foi o que fez, colocando-se em franca rebel-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 115

2009-08-06 08:16

116

Silvio Mota

dia contra o que faziam com ele, que na ocasião achava que se devia a seu antagonismo com o José Dirceu. O José Dirceu foi então para um lugar e o Ernesto colocado em um hotel no centro de Havana, conhecido como o hotel onde a Imigração cubana concentrava os sequestradores de aviões. Lá chegando, foi para seu quarto, e, em um paroxismo de sua depressão, tentou o suicídio, só não o conseguindo graças à má qualidade das lâminas de barbear soviéticas. Logo se recuperou, pois estava sozinho e só podia combater sozinho. Voltou ao trabalho. Os cubanos, ao tomarem conhecimento do curativo no pulso, transferiram-no para o Hotel Lincoln, também no centro, mas que não era o hotel dos sequestradores. Quase no dia seguinte a essa confusão toda, cai o governo de Allende, no Chile, em 11 de setembro de 1973. Ernesto foi, no ato, na Praça da Revolução, onde ouviu Fidel dizer que armas sem povo, nem povo sem armas fazem uma revolução, referindo-se à queda de Allende, algo que nunca tinha ouvido do Dirceu nem dos assessores cubanos. Se tivesse ido para o Chile na certa estaria morto, pois não tendo informações sobre nada, não teria tido tempo para entrar em contato com nenhuma organização. Seria um brasileiro chegando ao Chile com documento de viagem cubano as vésperas do golpe e à disposição dos militares chilenos. Tinha consciência de que a Revolução Cubana não era aquilo e voltou ao trabalho de novo. Não tinha a menor noção de onde estava o José Dirceu e, muito menos, do que planejava e fez: operação plástica e voltar ao Brasil para não participar das ações armadas, ficando escondido, até que todo o mundo morresse e houvesse

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 116

2009-08-06 08:16

Rebeldes

117

condições para ele reaparecer politicamente, conforme suas próprias declarações. No trabalho, logo chegou um companheiro argentino do ERP, com quem Ernesto fez amizade, e o qual lhe conduziu para um contato com sua namorada brasileira, a Sílvia. Ela disse ao Ernesto que participara tanto da ALN como do MOLIPO no Brasil, e que não havia nada contra o Ernesto no MOLIPO. Então, ele desconfiou de ter sofrido um golpe e tentou, várias vezes, contato com o Cervantes, que nunca lhe atendeu o pedido para um contato. Mais tarde, o Ernesto viu a Zilda Xavier e o Xavier no restaurante do Hotel Lincoln, e depois, a Iara Xavier. Zilda logo o reconheceu e foi falar com ele. Ernesto explicou o que tinha acontecido. Xavier também veio falar com ele, mas Iara se mostrava arredia. Depois que Iara, em outra noite, resolveu falar com o Ernesto, veio muito sentida porque um antigo membro do GTA do Ceará, o Gilberto Telmo, tinha contribuído, diretamente, para a morte do seu irmão Alex, levando a repressão para o ponto que tinha com ele, onde ele tinha sido morto. A muito custo, Ernesto convenceu-a de que ele também estava indignado com o fato, mas que não tivera nenhuma intervenção nele, pois, há muito não via o Telmo, e que o recrutara para a frente de massas estudantil, mas não tinha tido notícias de que ele fora para o GTA nem muito menos para o sul. Ernesto também relatou a Iara o que tinha acontecido com ele. Em outra ocasião, Iara resolveu revelar a Ernesto que as instruções que José Dirceu tinha recebido da Maria Augusta, a qual estava no comando do MOLIPO no Brasil, eram de que o Ernesto deveria voltar imediatamente para o Brasil

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 117

2009-08-06 08:16

118

Silvio Mota

com outra documentação, pois havia sido feita uma pesquisa completa pelo MOLIPO sob sua volta anterior, e não havia mais suspeitas sobre ele. Em vez disso, José Dirceu tinha transmitido a Ernesto uma mensagem diferente das instruções da organização, e completamente deturpada. Ernesto ficou arrasado. Aquilo era uma verdadeira traição. Continuou, porém interpretando tudo como consequência da sua discussão anterior, em que demonstrara preferência pela ALN e que não era necessário formar mais uma organização para corrigir o rumo estratégico que tinha tomado a luta. Mal sabia que o José Dirceu o tinha sacrificado para ter mais segurança nos seus planos de se esconder sem participar da luta até que pudesse se apresentar politicamente. O diabo não era tão feio como parecia, mas muito mais feio, como costumava dizer o Xavier. Agora, não havia mais jeito. Ernesto ficou muito contente com a presença de mais companheiros brasileiros além da Sílvia, com quem já tinha o grupo de estudos com outros companheiros brasileiros vindos do Chile. Continuava na Brigada Comunista como antes. Um dia, foi surpreendido no seu quarto do hotel, de madrugada, pela Imigração Cubana, a qual o levou para uma pequena ilha fora de Havana, onde estava reunida muita gente, na maioria sequestradores de avião e trotskistas. A justificativa era a realização do Congresso dos Partidos Comunistas da América Latina, para onde veio o Luís Carlos Prestes. As pessoas que tinham sido isoladas eram consideradas como perigosas para os participantes do Congresso. Foram muito bem tratadas e o ambiente era de férias, mas não podiam sair de lá enquanto durasse o Congresso. Ernesto ficou completamente deslocado, pois não era trotskista nem anti-cubano. Ao voltar, comunicou

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 118

2009-08-06 08:16

Rebeldes

119

o fato e seu protesto à organização do Partido Comunista de Cuba (PCC) na Brigada e a seus companheiros brasileiros. Isso levou a um encontro organizado pela Zilda com o Baraúna, representante do PCB, que ficara em Cuba, o qual demonstrou indignação com a medida e ficou inclusive de protestar contra ela. Ernesto não era um desconhecido no Comitê Central do PCB, embora não fizesse parte dele e tivesse rompido com ele. A organização do PCC na Brigada discutiu o problema e protestou, pois conheciam a atitude do Ernesto perante o trabalho e sua defesa da Revolução Cubana. O que acontecia era que a revolução já se tinha aprofundado, a participação popular era muito maior, e não era linha do PCC compartilhar com injustiças. Já estava sendo finalizado o trabalho na termoelétrica de Regla, e foi uma alegria muito grande vê-la funcionando. No fi m do ano, Ernesto recebeu, pela primeira vez, a classificação de “Obrero de Avanzada”. Por essa época, Zilda, Xavier e Iara se mudaram para um apartamento novo em Alamar, assim como a maioria dos companheiros brasileiros. Derlei foi mais longe, para Santiago de Cuba. As organizações estavam despedaçadas no Brasil e as perspectivas de volta eram longínquas. Ernesto, como não tinha família em Cuba, ficou nos alojamentos da Brigada. Era um alívio ver-se livre da vida no hotel, a qual, por melhor que fosse, asseme-lhava-se à dos judeus em Casablanca na II Guerra Mundial, um mundo provisório e fi ctício, cheio de esperanças que nunca se materializavam. Terminada a termoelétrica de Regla, Ernesto participou da construção de armazéns com peças metálicas pré-fabricadas. Também, por essa época, participou ativamente, na discussão

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 119

2009-08-06 08:16

120

Silvio Mota

popular, dos principais instrumentos legais de Cuba, a Constituição, os Códigos Civil e Penal e a Lei contra a Vagabundagem. Já estava se estratificando a legalidade revolucionária, e o povo inteiro, organizado por unidades produtivas ou pelos Comitês de Defesa da Revolução (CDR), que existiam em quase todo quarteirão da ilha, recebia as propostas do Comitê Central do PCC e as discutia, voltando o resultado para a Assembléia Nacional para decisão final. É interessante notar quer várias propostas foram mudadas na discussão popular, e a mudança foi acatada pela Assembléia. Um exemplo surpreendente disso foi que a proposta do Comitê Central para o Código Penal não continha a pena de morte, e ela foi estabelecida pela discussão popular. A Lei contra a Vagabundagem refletia a situação de pleno emprego da época, em que só quem não trabalhava era quem não queria, e, como era subsidiado como todos pelas conquistas da revolução, estava na verdade explorando o povo, e devia ser reprimido. Houve ampla aceitação e participação do povo, um eloquente exemplo de democracia direta. O Ernesto recebeu novamente o título de “Obrero de Avanzada”, e com ele, como era de regra, o convite para filiarse ao PCC. O convite teve que ser recusado, com consternação, pois Ernesto considerava que seu papel era estar lutando no Brasil, e não considerava estar cumprindo com seu dever de revolucionário na situação em que estava, exilado à força. No fundo sentia a velha culpa que sentem todos os revolucionários nessas ocasiões, de não ter morrido quando tantos dos seus companheiros estavam mortos, sentimento que o acompanhou durante toda a vida. Os seus companheiros de trabalho lamentaram, mas respeitaram sua decisão. Ernesto não tinha deixado de frequentar as casas dos companheiros brasileiros, e participava até de suas atividades

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 120

2009-08-06 08:16

Rebeldes

121

familiares. Isso era até uma necessidade emocional sua, desgarrado como vivia. O grupo da Brigada foi enviado para uma escola de aperfeiçoamento técnico, inclusive o Ernesto. Como havia regime de internato, os brigadistas, vindos de toda a ilha, tinham uns dez dias aproximadamente por mês para irem visitar suas famílias. Muitos deles, sabendo que Ernesto vivia só, convidavam-no para ir com eles para a casa de suas famílias. Desses passeios, os que mais o Ernesto gostava eram os para a casa de Trini, em Trinidad, velha cidade histórica cubana perto das montanhas do Escambray, onde se havia travado a maior parte da guerra civil, a luta contra bandidos. Ernesto, acompanhado por Trini ou veteranos da guerra civil foi muitas vezes nas montanhas, para caçar “jutías” com uma carabina. 22. A “jutía” é um animal típico de Cuba, do tamanho de uma paca mas com o aspecto de uma cotia grande, um roedor cuja defesa é subir nas árvores e é caçada com cães. Sua carne tem sabor forte, e chega a pesar de 5 a 6 quilos. A caçada é muito movimentada, seguindo os cães monte acima e monte abaixo. O tiro é na verdade a parte menos importante, sendo dura e feroz a perseguição. O número de peças abatidas estava limitado pela força dos caçadores, que tinham que trazê-las na mochila, monte acima, monte abaixo. Isso sem contar com as frutas que colhiam no caminho, jambos brancos e graviolas enormes. O Xavier, que estava trabalhando com restaurações em Havana, acabou acompanhando o Ernesto em alguns desses passeios, tanto para Trinidad, como para Santiago de Cuba. Em Trinidad, cidade costeira, chegaram até a pescar lagostas com as mãos nos recifes. A festa era grande... Também houve muitas visitas a museus em Trinidad e Santiago de Cuba.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 121

2009-08-06 08:16

122

Silvio Mota

Uma vez, Ernesto recebeu como prêmio, no sistema de estímulos materiais, no trabalho, uma temporada em uma casa de praia em Guanabo, e levou a outra turma de compa-nheiros brasileiros. Era bom para ele também conviver com as crianças, o Arnaldo, que saía sempre com ele e o Xavier, a filha do Enzo, o José, filho da Derlei, que sendo criança já tinha sido abandonado no Brasil, e os que nasciam em Cuba, filhos da Sílvia, da Iara. Seu curso de aperfeiçoamento, com muito cálculo e desenho, chegou-lhe a ser útil mais tarde. Não era perfeito, e algumas vezes seu desespero se manifestou de formas estranhas, que poderiam ser mal interpretadas, mas, com o tempo, seu caráter foi-se tornando cada vez mais resistente às condições que enfrentava. Chegou-lhe novo título de “Obrero de Avanzada” e nova indicação ao PCC, mas manteve a mesma atitude de antes, que foi novamente respeitada. Os brasileiros em Havana chegaram a reunir-se, mas muito pouco se podia fazer pela luta no Brasil a partir de Cuba, pois era óbvio que os que estavam lá apoiavam os movimentos de oposição à ditadura. Muitos se apresentaram como voluntários para ir com os cubanos para Angola e para a Etiópia, mas ninguém foi indicado para ir. Alguns fatos interessantes ocorreram. O companheiro Thales Godoy, marido da Josina, mesmo sem ser identificado como brasileiro, foi condecorado com a Ordem de José Martí, por ter salvo um barco cargueiro cubano que estava sob seu comando, sob o fogo de canhões, durante o golpe do Chile; outro companheiro, que havia sequestrado um avião para Cuba e não tinha relacionamento com os partidos ou organizações, conseguiu ir para a Nicarágua e

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 122

2009-08-06 08:16

Rebeldes

123

lutar com a Frente Sandinista. Tudo acontece no mundo. E havia sempre o bom e velho Dutra, membro do PCC, que estava em Cuba desde antes da Revolução e viveu para ajudar ao Ernesto, muitos anos depois, em 1992, a organizar a solidariedade a Cuba no Ceará depois da queda da União Soviética. O curso de aperfeiçoamento continuou, até que Ernesto foi surpreendido por uma carta da Maria, onde ela o convidava para ir à Portugal e dava instruções para se apresentar no edifício onde funcionava o Comitê Central do PCC. Foi uma surpresa imensa. Ernesto foi ao Comitê Central do PCC, na Praça José Martí, onde havia escutado muitos discursos de Fidel, e lá foi conduzido ao Departamento de América, onde foi recebido pelo Cervantes. Este lhe confirmou a carta e disse que podia tomar as providências que desejasse, mas que Cuba só poderia fornecer um documento atestando sua identidade, por não poder expedir passaporte por não ser ele cidadão cubano. Na carta da Maria vinha um cartão do Partido Socialista de Portugal para o Embaixador em Cuba, dizendo para atender Ernesto naquilo que ele precisasse. Era pouco depois da Revolução dos Cravos em Portugal, e Mário Soares, que tinha sido exilado, era a autoridade máxima. Ernesto foi na embaixada portuguesa e lá sendo recebido, apresentou suas credenciais e explicou que desejaria ir para Portugal com o documento que os cubanos lhe forneciam. O diplomata português disse-lhe que iria consultar seus superiores e marcou uma data próxima para nova visita à embaixada. Decorrido o prazo e feito o novo contato na embaixada, foi confirmada a aceitação do governo português e confirmada a viagem. Depois, só restaram as despedidas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 123

2009-08-06 08:16

124

Silvio Mota

No aeroporto, Cervantes disse para Ernesto que Cuba não o estava expulsando, e ele replicou que apenas estava tentando cumprir com seu dever de revolucionário brasileiro, e Cuba não mais podia ajudá-lo nisso, ele iria procurar meios na Europa para voltar ao Brasil, onde era seu lugar. Disse que não era anticubano nem mesmo antisoviético, e que suas ações o provariam. Cuba tinha confiado no Cabo Anselmo e não tinha confiado nele, mas não era sua a responsabilidade, pensou. A propósito, aplica-se uma frase de José Martí em “La Edad de Oro”: “Os homens não podem ser mais perfeitos que o sol. O sol tem manchas. O sol queima com a mesma luz que alumia. Os desagradecidos se lembram das manchas. Os agradecidos se lembram da luz.”. Por mais dificuldades que tenha passado, Ernesto sempre teria uma imagem luminosa de Cuba, do seu povo e de sua revolução. Durante muito tempo, simplesmente muito poucas pessoas acreditariam na atitude que José Dirceu teve com ele, tendo os fatos ocorrido entre eles dois. Nada como um dia depois do outro, porém. O destino quis que José Dirceu perdesse sua credibilidade e aparecesse sua verdadeira face de político oportunista, disposto a tudo por seu interesse pessoal. Ele sempre disse que era um grande erro confundir moral com política. Hoje, talvez, até ele esteja sentindo na pele o peso de acusações injustas sem que possa se defender. Se assim for, estará pagando um preço justo. Não se entende como os cubanos ainda continuam se relacionando com ele, apesar de ele ter renegado, explicitamente, o socialismo. Ainda deve haver muita coisa sobre esses assuntos que não se conhece, e nada indica que sejam fatos edificantes. Um dia saberemos.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 124

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO V

Exílios

M

aria preparou-se, apreensiva, para aquele baile no Ideal, clube de elite de Fortaleza. Giordano e Guilherme estavam presos, e a repercussão da ação de São Benedito era a pior possível. Sobrinha do governador, ela não poderia faltar. O problema não era só dela, mas também dos companheiros que deveriam sair do Ceará. Foi para o baile com o melhor dos seus sorrisos. A repressão estava lá, mas não ousava ultrapassar a barreira dos smokings e dos vestidos longos. Depois, foi voltar para cuidar do Telmo e do Timoshenko. Os dois tinham que sair do estado e saíram. Ela própria foi para o sul. Ali chegando, entrou em contato com a organização e logo foi incorporada. O Telmo, tendo seguido por caminhos diferentes, também foi incorporado. As críticas à ação de São Benedito foram severas. Ninguém entendia uma loucura daquelas. As quedas no Ceará continuavam, até o ponto de desmontar a organização. Claro que houve traição, a do Hélio Ximenes, mas ela só não explicava o descalabro. O golpe tinha sido duro. Não tarda muito, aparece o Santa Cruz. O Clemente queria justiçá-lo, e não era o único. Maria consegue a cus-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 125

2009-08-06 08:16

126

Silvio Mota

to demovê-los. O Santa Cruz, contanto, não consegue mais se integrar na organização. Ele, que estava no comando, é o principal responsável pelos erros e a ojeriza contra ele é grande demais. Ele toma seu rumo próprio. A organização no Rio e São Paulo também sofre baixas constantes Estrategicamente, a cidade está cercada. O único rompimento possível é o início da guerrilha rural, e isso é tentado embora não pareça, mas a queda do Toledo desbaratara os planos, a curto prazo, por falta de contatos. Maria agora participa do GTA de São Paulo. Partem para a tomada de carros que serão usados em ações posteriores. O revólver calibre. 38 na mão de Maria já não é mais só para treinamento. Guerra aberta e enfrentamento de militares. Maria também prepara documentação, tão necessária para a circulação dos militantes. São atacados postos do Ministério do Trabalho e usadas as Carteiras de Trabalho e Previdência Social. A propaganda armada também é ação frequente. Na visita de Rockefeller ao Brasil, Maria é designada a ir numa fábrica que seria visitada por ele, com spray de tinta e revólver. Entra na fábrica de manhã cedo, rende um grupo de uns trinta operários e começa a pintar “ABAIXO O IMPERIALISMO”. Um dos operários se mexe. -Parado aí! Ninguém se mexe, se não toma chumbo! Silêncio e paralisia total. A pichação e a ação terminam sem incidentes. Mais tarde, fica deprimida. E se tivesse que atirar em um operário? Os companheiros a convencem de que ela agiu bem, e afinal, nada aconteceu de ruim. A guerra é dura mesmo, mas um pouco de energia e surpresa fazem milagres.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 126

2009-08-06 08:16

Rebeldes

127

Depois, mais um ataque a um posto do Ministério do Trabalho. Maria levanta cedo, vai para o ponto, espera, chega a hora, e nada. Repete o ponto alternativo, Eliana não chega e Maria comunica o fato a Curumim, pois isso não costumava acontecer com Eliana, na época companheira do Telmo. Eliana estava dormindo, quando percebeu movimentação em torno da casa, e procurou escapar pelo quintal dos fundos. O fogo inimigo foi cerrado, e ela tombou com uma bala de FAL que a atingiu de raspão na cabeça. Telmo tinha sido preso indo pagar a conta da luz, que contém o endereço do esconderijo.Após resistir às torturas mais brutais, desanima e conta tudo. Depois, Telmo converte-se no seu oposto. Nada resta do militante disciplinado e humilde, embora desajeitado, que abrira caminho desde as quedas do Ceará e fora socorrido pela Maria. Fora recrutado no grupo de massas do Acauã, mas fora colega de escola secundária do Ernesto, o qual foi um dos primeiros a parabenizá-lo pela sua entrada na ALN. Torna-se colaborador ativo da repressão, um “cachorro”, que era o nome que os repressores davam aos que os conduziam à “caça”, ou seja, aos guerrilheiros nos pontos. É um dos responsáveis pela morte de Alex Xavier Pereira. Mais tarde aparece na televisão, alardeando sua condição de “arrependido” e defendendo a ditadura. Participou em torturas.Traidor. Maria volta à ação, e mais tarde vai a Cuba, onde se encontra com Clemente. Por indicação de Carlos Bicalho Lana, seu companheiro na época, que tinha tido atuação no Ceará, é que sai do Brasil. Mais tarde vai para o Chile, onde, sur-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 127

2009-08-06 08:16

128

Silvio Mota

preendida pelo golpe de Pinochet, refugia-se na Argentina de Perón, e de lá, mais tarde, vai para Portugal, depois da Revolução dos Cravos. Seu companheiro na época é o Domingos Fernandes, havendo sido o Carlos Bicalho Lana morto em combate. Em Portugal, já dissolvida a ALN em reunião presidida pelo Clemente, aproxima-se de Leonel Brizola. É aí que manda a carta e o cartão de recomendações para o Ernesto em Cuba, os quais lhe permitiram a saída do país. Acontece até um evento meio constrangedor depois que o Ernesto chega em Lisboa, para onde foi com esperança de entrar em contato com a ALN e abrir seu caminho para voltar à luta. Maria e Domingos levam o Ernesto até um edifício de apartamentos para um contato com uma personalidade. No momento de subir no elevador, Ernesto fica um pouco escabrinhado com essa personalidade misteriosa e exige saber quem é. Quando sabe que é o Brizola, recusa-se a subir, dizendo que tinha vindo a Portugal encontrar a ALN, e não um político com pretensões eleitorais. Hoje, Ernesto reconhece que sua atitude foi sectária, e que perdeu, na ocasião, a oportunidade de conhecer um grande brasileiro, embora suas opiniões fossem diferentes das dele. O choque entre as suas esperanças e a realidade é que foi muito grande. É incrível o grau de distanciamento da realidade que aparece quando se vive tanto tempo em outro sistema social, sem acesso constante a informações e cumprindo tarefas específicas ou mesmo travando lutas específicas. Como Domingos e Maria tinham a perspectiva de ligação e construção do PDT, já tendo sido feita a desmobilização da ALN em Cuba, fato que Ernesto desconhecia, não se justificava mais a presença dele em Portugal. Sobretudo, por-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 128

2009-08-06 08:16

Rebeldes

129

que o Ernesto, mesmo sabendo da desmobilização, resistia a ela, e tinha intenção de reatar contatos para reconstruir a organização como fosse possível, tanto a partir do MOLIPO como da ALN, em uma perspectiva de por em prática toda a linha teórica que os tinha orientado, a qual era, ao final de contas, a elaborada por Carlos Marighella. Domingos então utilizou um passaporte português com a foto do Ernesto, correndo riscos, e este foi para a França como o faziam tantos imigrantes portugueses na época. Maurício também se exilou, e foi o primeiro do GTA do Ceará a fazê-lo, pois não tinha outra saída após sua fuga do DOPS. Com a ajuda da família, saiu do Brasil e foi parar no Chile quando Salvador Allende assumiu o poder. Esteve ligado com os exilados brasileiros e com as manifestações da esquerda, sendo preso pouco depois do golpe de Pinochet. Submetido a torturas, nada revelou, e foi levado para um barco de prisioneiros, onde foi submetido a banhos de água gelada. Conseguiu, novamente, escapar e asilou-se na embaixada da Holanda. Chegando na Europa, constituiu sua primeira família, com a companheira Marejke, e lhe foi reconhecido pela Holanda o status de combatente antifascista, com pensão e tudo, pela sua atuação no Chile. Mais tarde, encontrou-se com Ernesto na França, com grande alegria para ambos. Como possuía bons contatos na Holanda, conseguiu inclusive um projeto com numerário que foi empregado na construção de uma escola comunitária para a Associação de Moradores de Vila Cazumba, uma invasão de trabalhadores sem teto de Fortaleza, em que trabalhou com o Ernesto após sua volta ao Brasil. Mais tarde, divorciou-se de sua esposa holandesa, com quem teve um filho e casou-se novamente no Brasil, constituindo uma segunda família.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 129

2009-08-06 08:16

130

Silvio Mota

Outro caso de exílio foi o do Ariel com sua esposa, Ana. Ariel saiu do Brasil por vontade própria, segundo suas próprias declarações. Após vaguear pela América Latina, foi parar no Chile do governo de Salvador Allende. Uma vez no Chile, chegou a ligar-se com os exilados da ALN e militou no Partido Comunista chileno. Mais consequente foi sua participação nos movimentos de massa da Unidade Popular, que deram sustentação a Allende, embora, destituídos de apoio militar com força suficiente para enfrentar os reacionários, não tenham podido mantê-lo no poder. No dia do golpe de Pinochet, 11 de setembro de 1973, protagonizou um episódio da resistência chilena. Com seus companheiros dos Partidos Comunista e Socialista, e do MIR, colocaram uma metralhadora Browning. 30 na cobertura do edifício do Hospital J.J. Aguirre, quando Salvador Allende estava sendo atacado por caça-bombardeiros da Força Aérea Chilena. Conseguiram munição com o MIR, pois os outros não a possuíam, e enfrentaram os aviões golpistas, os quais, certos de sua impunidade voavam muito baixo e em baixa velocidade. Depois da queda do governo e do assassinato de Allende, conseguiu sair do Chile, foi para a Alemanha Democrática e para a Romênia e só foi encontrado muito tempo depois da anistia no Brasil. Carlos Timoshenko também sofreu as agruras do exílio. Negro, de origem operária e comunista, foi, particularmente, perseguido por ter aderido à revolução sendo agente da polícia civil. Depois da ação de São Benedito, antes de São Luís do Curu desceu do DKW em que seu grupo fazia a retirada para Fortaleza e conseguiu furar o cerco da repressão usando sua própria identidade de policial, fazendo-se passar

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 130

2009-08-06 08:16

Rebeldes

131

por um dos que estavam cercando em vez de um dos cercados. Chegando em Fortaleza, soube, na polícia, que seu chefe já sabia que havia um policial entre os revolucionários, embora não soubesse que era ele. Com uma desculpa qualquer, saiu da repartição policial e foi para a casa da Jane, militante da ALN e sua namorada na época, no vizinho município de Maranguape, lá passando alguns dias e recebendo notícias através dela. Não podendo permanecer muitos dias no local e sendo este muito inseguro, pois comprometia a própria Jane, teve que sair de lá. Não tinha aparelhos de refúgio, marcada improvisação da malfadada ação de São Benedito. Foi então para o cabaré da Odaléia, em Monte Castelo, de cujo fechamento tinha participado como policial, mas continuava funcionando clandestinamente. A recepção foi boa, e as prostitutas até queriam ir à polícia civil em comissão, não acreditando que uma pessoa tão boa fosse o monstro que os jornais pintavam. Conseguiu dissuadi-las e passou um bom tempo lá. Afinal, o local era clandestino e cheio de segredos. Jane e Timoshenko estiveram até mesmo na casa do Fabiani Cunha, na Aerolândia. Lá, ficaram protegidos pela D.Margarida, mãe do Fabiani. Tiveram que sair de lá durante uma batida da Polícia Federal, ocasião em que D.Margarida os escondeu no galinheiro e enfrentou, bravamente, os policiais. A ALN fez contato com o PCBR para conseguir um refúgio para ele, e consegue transferi-lo para a casa de um operário que já estava clandestino. Depois, ele e a Jane foram para um escritório no centro da cidade, tendo a Maria garantido as notícias e a alimentação dos dois durante esse tempo. Finalmente, o PCBR consegue uma casa de refúgio no subúrbio de Fortaleza, e para maior segurança, Timoshenko

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 131

2009-08-06 08:16

132

Silvio Mota

fica instalado em um buraco no quintal, com uma Colt calibre. 45 na mão. Em seguida, sai dessa posição precária, indo para Natal, Recife e Rio de Janeiro por terra, saindo do Estado do Ceará, onde se concentrava sua perseguição por ordem direta do comando policial. Já no Rio de Janeiro, faz contato com vários grupos revolucionários. Tenta asilar-se na embaixada do México, mas lá sabe que ficaria detido pois para sair do Brasil necessitaria de um salvo conduto do governo brasileiro, praticamente impossível de conseguir-se na época. Dirige-se para Brasília, onde tenta o mesmo na embaixada do Chile, com o mesmo resultado. Não lhe restando outra saída, foi então para o Uruguai de ônibus. Estava tão desprovido de dinheiro que chegou a pedir comida durante a viagem. Em Montevidéu, saiu em busca das embaixadas de Chile e de Cuba, mas aí é preso pela polícia uruguaia. Resistiu na hora, mas não conseguiu escapar. Levam-no para um local da polícia e aí é torturado com pancadas, afogamento em um barril e pela técnica que combina falta de repouso com exposição ao frio, a qual pode até provocar o surgimento de enfermidades cardíacas. Continuou resistindo e não disse nada além de que viera para o Uruguai procurar trabalho. Não tinham mesmo muitas informações dele lá nessa ocasião, e transferem-no para o CIM, Centro de Instrução da Marinha uruguaia. Lá, acontece o que a repressão uruguaia devia ter tido, por seus interesses, o maior cuidado de evitar. Ele entra em contato com os Tupamaros. Expande esse contato e é bem recebido. Depois de idas e vindas entre centros repressão uruguaios, acaba saindo. Pelo menos para isso serviu ter atuado no Ceará, terra longe até das notícias... Já em contato com os Tupamaros, vai exilar-se no Chile pelas suas vias de escape e de contato. Ficou no Chile

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 132

2009-08-06 08:16

Rebeldes

133

com os Tupamaros, onde fez curso e trabalhou como decorador. Graças a esse trabalho, trava relações com várias pessoas da burguesia chilena. No dia do golpe de Pinochet, refugia-se justamente na casa de uma dessas pessoas, que tinha parentesco no oficialato do exército chileno. Consegue, assim, tempo suficiente para evitar a repressão de primeira hora e informações para onde dirigir-se, mesmo tratandose de um refúgio precário. Não era a primeira vez que lhe acontecia essa situação...Foi então para o refúgio da ONU em Santiago do Chile, e de lá conseguiu o buscado salvo conduto para a França, sob a responsabilidade de um centro de refúgio católico. Na França, ficou a princípio em um castelo convertido em refúgio católico ao sul de Paris, em Morsan-Sur-Orge. Conseguiu sua carteira de trabalho e trabalhou alguns meses na International Harvester-France como embalador de peças de tratores. Cursou cinema e teatro na Universidade de Vincennes e depois trabalhou como doméstico para um escritor, Jean Pierre Castelneau, fazendo limpeza, o que lhe permitia continuar nos seus estudos. Por fim, iniciou sua carreira artística como músico, na Boîte Chez Felix, na rua Mouffetard, em Paris. Nessa atividade, viajou para muitos países e regiões com seu passaporte da ONU. A Itália, a Grécia, a Bélgica, a Alemanha, a Suécia, a Dinamarca, a Suíça, a Inglaterra, a Arábia Saudita, o Golfo Pérsico, a África, a Índia, a China, o Japão e os Estados Unidos foram os lugares para onde viajou. Um verdadeiro artista profissional. Voltou para o Brasil em 1980, após a anistia.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 133

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 134

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO VI

As Mortes no Tempo dos Combates

M

uitos militantes da ALN no Ceará foram presos e torturados e alguns até foram mortos sumariamente pela repressão. As mortes se deram em uma campanha feita pelo Departamento de Polícia Federal no interior do estado, na qual teve destacada participação o agente Lucena, figura controvertida de comportamento similar ao de um matador profissional, e que se vangloriava do que fazia. Foi ele quem revelou essas informações ao Acauã, que, estando preso, preparouo para o vestibular. Deixou até de participar das sessões de tortura do Acauã, em respeito aos conhecimentos que dele obtivera. A campanha, segundo o que foi revelado em vanglória, resultou em duas mortes em Brejo Santo, uma em Jati, e outra em uma cidade próxima, talvez o Crato. Os mortos eram todos militantes de apoio recentes identificados pela Polícia Federal. Não havia prisão nem nada. O agente apenas chegava e matava o militante marcado. O motivo podia ser um simples pichamento ou uma antiga ligação com os comunistas. No caso de Brejo Santo, o agente teria morto as duas pessoas ao mesmo tempo, com uma arma em cada mão, segundo se gabou para o Acauã.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 135

2009-08-06 08:16

136

Silvio Mota

O trabalho da ALN no Cariri foi duramente atingido. O militante morto em Jati era Antonio Bem Cardoso, e a seu respeito merce ser ora reproduzido o verbete do livro “Direito à Memória e à Verdade”, fls. 130: “Seu nome nunca constou das listas de mortos e desaparecidos, sendo conhecido a partir do requerimento apresentado por sua viúva. Protocolado em 10/04/1997 foi examinado pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos na reunião de 25/03/1998. sendo indeferido por unanimidade, por se tratar de pleito intempestivo. O caso voltou a ser apresentado à Comissão Especial quando entrou em vigor a Lei 10.536/02, que substituiu a Lei 9.140/95, abrindo, novamente, o caso para a apresentação de requerimentos. Antônio Bem Cardoso foi morto na madrugada de 01/06/1970 nacidade de Jati, no Cariri cearense. O relato do ocorrido foi feito por sua mulher, Iulene, que presenciou a morte, na casa onde moravam. Iulene foi despertada por um estouro. Ato contínuo, Antônio passou correndo pelo corredor gritando “Atiraram em mim!”. Tinha o peito encharcado de sangue. As filhas acordaram em pânico. Da rua, a esposa ouviu vozes que se identificaram como sendo da Polícia Federal e ordens para que o marido se entregasse. Antônio agonizava. Com a arma de um policial apontada para sua cabeça, Iulene foi obrigada a sair de casa com as duas filhas. No pátio e na rua outros policiais ameaçavam os que tentavam defendê-la. À tarde, foi levada da casa onde se refugiara para prestar depoimento na delegacia de Brejo Santo. Matéria de um jornal da época, não identificado, noticiou a morte. Em julho de 2004, o jornal O POVO publicou a história de Antônio, citado dentre os 15 cearenses mortos ou desaparecidos durante a ditadura.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 136

2009-08-06 08:16

Rebeldes

137

Diversas tentativas foram feitas pela relatora para localizar o inquérito, laudo ou perícia de local junto à Delegacia de Polícia de Jati e de Brejo Santo. Duas fotos do corpo integram o processo, cuja procedência não é informada. Antônio fora militante da ALN, atuando no Ceará sob a coordenação de Arnaldo Cardoso Rocha, dirigente da organização morto em 1973.” Do relato, fica claro o modo de operar da Polícia Federal: o agente chega, mata, e depois é acobertado pelos outros policiais. Sirva de homenagem ao bravo militante da ALN de Jati, e para os outros cujos nomes ainda são desconhecidos, a publicação desse relato.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 137

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 138

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO VII

As Torturas

O

s militantes da ALN no Ceará sabiam que estavam sujeitos a torturas, que era o próprio modo de controle social da ditadura, como já reconheceu o historiador Élio Gaspari. Além disso, já circulavam, de longa data, desde os tempos do PCB, as instruções do panfleto “Se fores preso, camarada.” Esse panfleto foi distribuído, várias vezes, entre os militantes e pessoas de apoio da organização no Ceará. Um fato importante que pesou muito na realidade, foi a preparação para a tortura ministrada por Tarcísio Leitão, já experiente no assunto, e que resultou, além de uma boa preparação, na ocorrência de duas desinformações em que caiu a repressão a partir das torturas que praticou, as quais foram desmoralizantes para a ditadura: 1. A divulgação de uma fictícia organização revolucionária 1848, alardeada até na imprensa nacional, através da revista VEJA, obtida das torturas de Valdemar Menezes e Willian Montenegro; 2. O envio de forças da repressão, especialmente do Exército, para vasculhar os olhos d’água da Serra do Pereiro, região cheia de plantas espinhosas e cobras venenosas,

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 139

2009-08-06 08:16

140

Silvio Mota

procurando fictícios depósitos de armas da ALN, obtido das torturas de Fabiani Cunha. Não foi verdade que a tortura venceu os militantes da ALN no Ceará, nem que lhes tenha destruído o moral de combate. Os casos de delação e de traição, apesar da enorme destruição que provocaram, foram a exceção e não a regra, e de responsabilidade dos que os cometeram, pois todos estavam cientes do que lhes esperava e estavam lutando com risco da própria vida. Essa é a dura lei da guerra, que não diminui o crime hediondo e contra a humanidade dos torturadores, mas não pode perdoar a traição nem a delação. A forma principal que assumiram as torturas no Ceará foi a da desorientação espacial e temporal, ainda muito praticada hoje. Essa forma de tortura funciona a longo prazo, deixando o torturado sem saber onde está nem em que tempo está. Combina tortura física com tortura psicológica, consiste na repetição constante e aleatória de longos interrogatórios, revezamento de torturadores, aparentemente, “bons” e “maus”, sendo servida comida salgada sem água, no caso do Ceará. Em outros locais podem ser usadas temperaturas frias sem abrigo. O torturado é vestido em uma espécie de roupão acolchoado e amarrado em vários locais, sempre em locais onde não fiquem marcas, de modo que permaneça imobilizado e indefeso, o que por si provoca a sensação psíquica de impotência e tem como objetivo predispô-lo a obedecer a seus carrascos. Interessante é que Antônio Carlos Fon, no seu livro “Tortura-A história da repressão política no Brasil”, publicado sob os auspícios do Comitê Brasileiro pela Anistia em 1979, fala:

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 140

2009-08-06 08:16

Rebeldes

141

“O Sistema Inglês A pressa foi, também, o principal argumento dos torturadores brasileiros contra o sistema inglês de tortura. Em fins de 1970 conta o general Hugo Abreu: “Enviamos um grupo de oficiais do I Exército à Inglaterra para aprender o sistema inglês de interrogatório.” Fundamentalmente, o sistema inglês procura quebrar a resistência do prisioneiro desorientando-o psicologicamente sem que o interrogador necessite praticar qualquer ato de violência física. “O método consiste em colocar o prisioneiro em uma cela sem qualquer contato com o mundo exterior”, lembra o general. Através de uma sofisticada aparelhagem eletrônica, variava-se aleatoriamente o nível de ruídos, a iluminação e a própria temperatura da solitária. “Os carcereiros eram instruídos a deixarem o prisioneiro até 18 ou 24 horas sem alimento, depois, dava-se o almoço e, uma hora depois, o jantar.”, continua o oficial. O objetivo era fazer o prisioneiro perder a noção do tempo, causandolhe um tal desequilíbrio psíquico que não tivesse condições de resistir ao interrogatório.”(...) Ora, as torturas no Ceará, depois da ação de São Benedito, ocorreram no final de 1970, e é possível que tivessem alguma influência do sistema inglês de tortura psicológica, aliás tão perverso quanto qualquer espancamento. Também é usado o “pau-de-arara”, trava onde o torturado fica preso por pés e mãos em situação que lhe causa dor. No mesmo livro de Antônio Carlos Fon, vemos: “Pau-de-arara, o instrumento de tortura mais usado no Brasil. São dois cavaletes de madeira com cerca de 1,5 metro de altura e uma ranhura na parte superior, onde se encaixa um cano de ferro.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 141

2009-08-06 08:16

142

Silvio Mota

A vítima, geralmente nua, tem os pulsos e tornozelos envoltos em tiras de cobertores ou pano grosso e amarradas com cordas. Em seguida, o interrogado é obrigado a sentarse no chão, de tal forma que os joelhos, dobrados, sejam abraçados. No espaço entre os joelhos e os cotovelos introduz-se a barra de ferro, por onde se levanta o prisioneiro para pendurá-lo entre os dois cavaletes. Nesta posição, o supliciado, além das dores provocadas pelo próprio “pau-de-arara”-devido à tração e à paralisação da circulação nos membros inferiores e superiores-fica completamente à mercê dos interrogadores para ser submetido a outros tipos de torturas.” São aplicadas pancadas de diversas maneiras, sempre com a preocupação de causar dor e não deixar marcas, com uso das superfícies acolchoadas. No caso do Ceará, as pancadas eram aplicadas com pau de vassoura. O resultado de um interrogatório desse tipo é que o torturado chega a um estado de choque e de imobilidade que a porta da cela pode ser deixada aberta, e o prisioneiro, por mais que tente, não consegue se mover, o que lhe pode causar pânico. Essa situação foi vivida uma vez pelo Acauã. Giordano e Guilherme também sofreram choques e afogamento, o que sem dúvida também aconteceu com o Telmo, torturado em São Paulo. Também do livro de Antônio Carlos Fon: “Afogamento Como o “pau-de-arara”, a “maquininha de choque” ou a “cadeira do dragão”, um dos métodos de tortura mais usados pelo CODI-DOI. Originalmente, a técnica consistia em imergir a cabeça da vítima na água do mar, em um rio, ou até mesmo em um barril, até que esteja próxima da morte por afogamento.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 142

2009-08-06 08:16

Rebeldes

143

Foi em um acidente durante uma sessão de afogamento, por exemplo, que morreu em 1966, no rio Jacuí, em Porto Alegre, o sargento Manoel Raimundo Soares. Outra forma, aliás mais difundida, de afogamento, é, estando a vítima pendurada no “pau-de-arara”, imobilizar-lhe a cabeça e, através de tubos plásticos ligados a um funil, despejar água em suas narinas, enquanto a boca é amordaçada. Para aumentar o sofrimento do supliciado, eventualmente podem ser adicionados alguns produtos químicos à água.”(...) “Maquininha de Choque Ou “pimentinha”, “perereca”, ou simplesmente, “manivela”. O mais comum é o magneto de telefone de campanha, consistindo basicamente de um dínamo semelhante aos utilizados em telefones de campanha do Exército e acionado por uma manivela que, conforme a velocidade, fornece uma descarga elétrica de maior ou menor intensidade. Dos terminais do dínamo saem dois fios que são ligados ao corpo da vítima.”(...) Os choques eram aplicados com uma máquina geradora de modo a provocar muita dor e não eletrocutar, sendo os fios aplicados em partes sensíveis do corpo, como o pênis, a vagina, o ânus, os lábios, ou ferimentos. Essas últimas torturas não foram aplicadas muitas vezes no Ceará, mas sim a de deixar o torturado descalço, equilibrado sobre duas latinhas, equivalentes a uma lata de leite condensado, por horas. Essa tortura foi aplicada ao Ferreira em frente de sua esposa e filhas, o que lhe aumentava a força de humilhação. Hélio Ximenes, que delatou os membros da organização após a ação de São Benedito, quando foi perguntado, pelo Acauã, porque tinha delatado os companheiros, disse que só

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 143

2009-08-06 08:16

144

Silvio Mota

o fizera porque o agente Airosa lhe enfiara um pau de bandeira no ânus, empalando-o. O mesmo Airosa, para testar se a dinamite apreendida da ALN ainda funcionava, introduziu uma banana com detonador no ânus de um jumento, deu fogo ao pavio, e ficou esperando até que o animal explodisse, o que aconteceu, espalhando pedaços de ossos, órgãos e carne toda parte, para grande divertimento dele e dos outros policiais. Há que salientar que Mário Alves também foi empalado e não delatou ninguém. Os torturadores da ALN no Ceará eram chefiados por um órgão central de repressão com a participação de oficiais do Exército, e se compunham de agentes do Departamento de Polícia Federal. O próprio Superintendente do Departamento de Polícia Federal, Laudelino Coelho, participou de sessões de tortura e hoje é nome de rua em Fortaleza. Sua morte foi misteriosa, pois duas rodas saíram desparafusadas do seu veículo enquanto ele estava dirigindo. A rotina no Ceará era a de que as prisões eram feitas pela Polícia Militar ou pela Polícia Federal, as torturas pela Polícia Federal, assim como as varreduras pelo interior do Estado, que resultavam em assassinatos. Todos agiam com a certeza da impunidade. Finalmente, a Polícia Militar era encarregada de vigiar os militantes encarcerados. No dia 31 de julho de 2008, realizou-se no Ministério da Justiça audiência pública sob o tema “Limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes violadores de direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil.” O evento foi público, aberto a qualquer interessado, civil ou militar.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 144

2009-08-06 08:16

Rebeldes

145

Na discussão jurídica subsequente ressaltaram-se os problemas da anterioridade e da tipicidade que impediam a aplicação da legislação atual sobre a tortura e a violação dos direitos humanos, mas também ficou claro que a Lei de Anistia de 1979 não protegia os agentes violadores dos direitos humanos, pois suas ações não constituíam crimes políticos, os quais deveriam ser, necessariamente, praticados contra o Estado, não poderiam ser considerados crimes conexos, pois não havia nenhuma conexão com crime político, nem crimes com motivação política, inclusive porque nem mesmo a ideologia dominante da época pregava as violações cometidas. Eram crimes, mesmo ante as leis vigentes durante a ditadura. Foi levado em conta o problema da prescrição para a punição efetiva, mas foi admitida a aplicação de uma justiça narrativa, como ocorrera na República da África do Sul. As ações individuais ante o Judiciário têm pouco efeito e são morosas. Essa é tarefa do Estado brasileiro. Argumentou-se pelo Ministério Público se era possível a responsabilização civil e criminal, como no exemplo da identificação das ossadas do Cemitério de Perus, já havendo na época dos delitos os tipos penais da lesão corporal, do sequestro, do homicídio qualificado, da ocultação de cadáver e da falsidade ideológica e que a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade é prevista pela ONU desde 1948.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 145

2009-08-06 08:16

146

Silvio Mota

Na verdade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, naturalmente ratificada pelo Brasil, inclui no seu artigo V, que: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”; e seu artigo XXX dispõe que: “nenhuma disposição da presente declaração pode ser interpretada como reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.” Isso inclui qualquer auto-anistia pretendida com base na Lei de Anistia de 1979. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969, o Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, também enuncia no seu artigo 2º o dever de adotar disposições de direito interno, explicitando que “Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo I ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.” A referida Convenção inclui no seu artigo 5º, inciso 2, que “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”; o artigo 9º da Convenção, que trata do Princípio da legalidade e da retroatividade, apenas diz que “Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tam-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 146

2009-08-06 08:16

Rebeldes

147

pouco poder-se-á impor pena mais grave que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.” Nada disso assegura a impunidade dos torturadores. A Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos e Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes, de 10 de dezembro de 1984, ratificada pelo Brasil em 12 de janeiro de 2007, também estabelece, no seu artigo 10: 1. “Cada Estado Parte deve assegurar educação e informação sobre a proibição contra a tortura e que sejam incluídas no treinamento de todos os seus agentes com funções policiais, civis e militares, assim como de todo seu pessoal médico e funcionários públicos e outras pessoas que lidem com a custódia, interrogatório ou tratamento de qualquer indivíduo sujeito a qualquer forma de prisão, detenção ou encarceramento. 2. Cada Estado Parte deve incluir essa proibição nas regras ou instruções dadas a respeito dos deveres e funções das pessoas acima mencionadas.” Todos esses deveres ainda são dívida do Estado brasileiro. No site The Center For Victims Of Torture (Centro Para as Vítimas de Tortura) da Internet encontramos o artigo: “Efeitos da Tortura Psicológica A tortura é o desmantelamento sistemático da identidade e da humanidade de uma pessoa. O propósito da tortura é o de destruir o sentido de comunidade, o de eliminar líderes e criar um clima de medo. Espancamentos e tortura psicológica são as formas mais comuns vistas pelo Centro para as Vítimas de Tortura. Os clínicos do CVT viram formas mais sofisticadas de tor-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 147

2009-08-06 08:16

Silvio Mota

148

tura, especialmente de tortura psicológica, que não deixam cicatrizes físicas. Isso torna mais difícil a justiça para os sobreviventes, assim como torna mais difícil que sejam beneficiários do direito de asilo. (...) Em 2006, novos casos atendidos pelo CVT mencionaram as seguintes formas de tortura (...): ATAQUES FÍSICOS, inclusive espancamentos, obrigação de ficar de pé durante prolongados períodos de tempo, estrangulamentos, sufocação, queimaduras, choques elétricos, ataques sexuais ou estupro, e exposição a extremo frio ou calor; TORTURA PSICOLÓGICA, inclusive ataques verbais, ameaças contra a família, amigos ou pessoas queridas, falsas acusações, falsas execuções, e ser forçado a ver torturas, mutilação ou homicídios cometidos contra outras pessoas; PRIVAÇÃO DE CONDIÇÕES HUMANAS, inclusive privação de comida e água, isolamento, restrição de movimentos, privação de visão. Privação do sono e de cuidados médicos, e ULTRA-ESTIMULAÇÃO SENSORIAL, inclusive exposição a constantes ruídos, gritos e vozes, luzes poderosas e ingestão forçada de drogas. EFEITOS DA TORTURA Os efeitos prolongados da tortura incluem cicatrizes, dores de cabeça, dores musculares ou ósseas, dores nos pés, perda de audição, problemas visuais, dores abdominais, dificuldades sexuais ou danos neurológicos. Os efeitos prolongados da tortura psicológica incluem dificuldade de concentração, pesadelos, insônia, perda de memória, fatiga, ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático. (...)” No site PsiqWeb-Psiquiatria Geral da Internet, encontramos: “Depois da experiência traumática pode ocorrer

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 148

2009-08-06 08:16

Rebeldes

149

uma transformação duradoura da personalidade dos pacientes com Transtorno por Estresse Pós-Traumático.” Assim, os efeitos da tortura caracterizam também um crime continuado contra suas vítimas. Foram encontrados dois dossiês referentes a torturadores do GTA do Ceará junto ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro: 1. Dossiê de João Lucena Leal O Grupo Tortura Nunca mais-RJ, após pesquisar em diferentes volumes do Projeto Brasil Nunca Mais, editado pela Arquidiocese de São Paulo, e em outras fontes, vem denunciar João Lucena Leal como ex-torturador e solicitar à OAB de Rondônia e da OAB/Federal um posicionamento em relação a tal fato. Também espera um posicionamento das diferentes seccionais da OAB, assim como todos os advogados democratas de nosso país. João Lucena Leal, natural de Brejo Santo, no estado do Ceará, nascido a 22 de setembro de 1939, é atualmente advogado inscrito na OAB de Rondônia sob o n° 525, com CPF n° 003349283/2 e identidade n° 374570 expedida pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Ceará. Seu escritório de advocacia, chamado “Pronto Socorro Jurídico”, está situado à Av. Rogério Weber, no 2022, na cidade de Porto Velho, em Rondônia, tendo os seguintes telefones (69) 221 4350 e (69) 221 4355. É advogado de Darly Alves da Silva, um dos acusados pelo assassinato do líder seringueiro Chico Mendes. João Lucena é citado em 4 diferentes listas do Projeto Brasil Nunca Mais, contidas no Tomo II, volume III “Os Funcionários”.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 149

2009-08-06 08:16

150

Silvio Mota

Na primeira lista “Pessoas diretamente envolvidas em torturas”, seu nome aparece 7 (sete) vezes, às páginas 26 e 32. É indicado como policial e/ou agente da Polícia Federal do Ceará e tais denúncias referem-se aos anos de 1970 e 1973. Há, neste caso, 7 (sete) depoimentos de ex-presos políticos contra João Lucena Leal. São eles: Fabiani Cunha, professor, 30 anos em 1970, denuncia torturas na Polícia Federal do Ceará, nas quais Lucena participou diretamente. Tais denúncias encontram-se às páginas 894, 895, 896, 897, 898, 899, 900, 901, 902, 903, 904, 905, e 906 do Tomo V, no volume 1 “As Torturas” do Projeto BNM. Eis alguns trechos de seus depoimentos: “(...) que o interrogando foi levado para uma cela inferior e, lá, foi pendurado na posição de “pau-de-arara” pelos policiais Peres e Lucena, que o interrogando se encontrava praticamente nu, passando a ser açoitado nos rins com uma vassoura de pêlos (...) que o interrogando desmaiou por três vezes (...) que o interrogando após os maus-tratos recebidos não conseguia engolir coisa alguma, pois, imediatamente vomitava (...) Esclarece que tais fatos se teriam passado no dia 26 para 27 de outubro do ano passado (1969)”. O processo ao qual Fabiani Cunha respondeu está na 10ª RM/CJM sob o no 61/70. José Jerônimo de Oliveira, estudante, 26 anos em 1970, também denuncia torturas sofridas na Polícia Federal do Ceará, nas quais Lucena participou diretamente.Tais denúncias encontram-se da página 560 à 563, do Tomo, volume 2 “As Torturas” no Projeto BNM. Eis alguns trechos de seus depoimentos: “(...) que o interrogando deseja ressaltar os maus tratos que lhe foram infligidos desde o momento da sua prisão, constituindo tais maus tratos em ofensas morais, pancadas nas nádegas, pancadas com sapatos no tórax, tapas nos ou-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 150

2009-08-06 08:16

Rebeldes

151

vidos e ameaças de morte (...) que os referidos maus tratos se repetiram por diversos dias (...) que o interrogando esclarece que a ameaça de morte que lhe foi dirigida consistiu no seguinte: o agente Lucena apontou a arma para o tórax do interrogando e perguntou ao agente Deusdedith: atiro para matar?”, tendo o agente Deusdedith permanecido em silêncio, foi a arma apontada ao ouvido esquerdo do interrogando e foi afirmado pelo agente Lucena que atiraria para matar.” O processo ao qual José Jerônimo respondeu é o mesmo o do ex-preso político anteriormente citado, no Projeto BNM leva o n° 194 e está à página 148 do Tomo II, volume I “A pesquisa BNM”. Geraldo Magela Lins Guedes, comerciante, 24 anos em 1973, também denuncia torturas sofridas na Polícia Federal do Ceará e num local ignorado para onde foi levado por João Lucena Leal, que também participou da sua tortura. Tais denúncias encontram-se da página 37 a 43, do Tomo V, volume II “As Torturas” do Projeto BNM. Eis alguns trechos do seus depoimentos: “(...) que, das testemunhas arroladas, conhece João Lucena Leal, pois foi esse Policial quem efetuou a prisão do interrogando em Icó; foi esse policial, juntamente com outros, que conduziu o interrogando para o local ignorado, onde o mesmo Lucena aplicou torturas em outras pessoas em presença do interrogando; (...) que durante o trajeto, por duas vezes, o veículo parou, quando, então, foi ameaçado de morte pelo policial de nome João Lucena Leal; que Lucena dizia ao interrogando que ele era comunista e pertencia a uma organização clandestina; que, nessas ocasiões, o interrogando respondia negativamente; que Lucena acrescentava que com elementos da natureza do interrogando, o governo mandava matar e deixar no meio da rua; (...) que, no local

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 151

2009-08-06 08:16

152

Silvio Mota

ignorado para onde foi levado, presenciou torturas em José Leite Filho que estava despido e sofrendo aplicação de “paude-arara”, bem como choques elétricos e pancadas em seu corpo; (...) tem quase certeza que foi quebrado pelo impacto no corpo de José Leite Filho um cabo de vassoura, pois enquanto o mesmo estava sendo torturado, o interrogando viu quando um dos seus torturadores, no caso João Lucena Leal, veio até ele, interrogando-o se ele estava vendo “como eram as coisas”, e, igualmente presenciou torturas em José Tarcísio Crisóstomo Prata, que sofreu aplicação de “pau-de-arara”, choques e pancadas, que, quando o referido José Tarcísio estava na posição de “pau-de-arara”, o mesmo João Lucena Leal encostou o solado de seu calçado no rosto do preso e disse para o mesmo que ele podia aspirar aquele odor, pois, se tratava de perfume francês; que também estava nesse local e foram torturados o professor Antônio dos Santos Teixeira e Pedro Granjeiro do Amorim; (...) que a equipe de policiais que conduziu o interrogando para esse local ignorado era composta dos seguintes elementos: Ozanan, como motorista, Jair, Benedito, Nelson da Silva Meira e João Lucena Leal”. O processo ao qual Geraldo Magela Lins Guedes respondeu está na 10ª RM/CJM sob o número 19/73. José Auri Pinheiro, estudante, 22 anos em 1973, também denuncia torturas sofridas na Polícia Federal do Ceará e num local ignorado para onde foi levado por João Lucena Leal que também participou de suas torturas. Tais denúncias encontram-se de página 463 a 465, do Tomo V, volume 2, “As torturas”, do Projeto BNM. Eis alguns trechos de seus depoimentos: “(...) que conhece apenas a testemunha João Lucena Leal, tendo a alegar contra o mesmo ter sido essa testemunha quem conduziu o interrogando para um determinado local

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 152

2009-08-06 08:16

Rebeldes

153

onde foi por ele, testemunha, torturado (...) que chegando a Fortaleza, foi recolhido à Polícia Federal, e, pela manhã, conduzido pelo policial João Lucena Leal a um local que entende ser destinado a torturas; que, nesse local, foi perguntado por João Lucena Leal acerca de nomes de pessoas e de organizações, indagado se essas pessoas e organizações eram do conhecimento do interrogando, que o interrogando respondeu negativamente e, em face disso, o policial João Lucena Leal colocou um fio ligando um dos dedos da mão do interrogando e um dos dedos de um pé do mesmo; que foi-lhe aplicado choques elétricos que variavam de posições, que esse fio foi colocado em outras partes do corpo do interrogando, recebendo os mesmos choques, inclusive, nos testículos; (...) que foi colocado na posição de “pau-de-arara”, por duas vezes (...) que ainda nessa posição, foi inquirido e recebeu ameaças e mesmo pancadas a cacetes, desferidas pelo policial João Lucena Leal”. O processo ao qual José Auri Pinheiro respondeu é o mesmo do ex-preso político anteriormente citado. José Tarcísio Crisóstomo Prata, estudante, 28 anos em 1973, também denunciou torturas sofridas na Polícia Federal do Ceará e num local ignorado para onde foi levado por João Lucena Leal, que também participou de suas torturas. Tais denúncias se encontram na página 658 a 663, Tomo V, volume 2 “As Torturas”, do Projeto BNM. Eis alguns trechos de seus depoimentos: “(...) que das testemunhas arroladas, conhece apenas o nome de João Lucena Leal, tendo a alegar contra o mesmo haver sido ele um de seus torturadores; que conheceu João Lucena Leal após a prisão; (...) que na referida casa o interrogando recebeu pancadas, choque elétricos e a aplicação da modalidade de tortura conhecida “pau-de-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 153

2009-08-06 08:16

154

Silvio Mota

arara”; que outrossim teve suas mãos amarradas para trás; chegando em dita casa com capuz introduzido na sua cabeça, que estas torturas lhe foram aplicadas durante os quatro dias de permanência em tal casa (...)que, desse local, foi removido para o 23 BC. E, de lá, frequentemente era levado à Polícia Federal, onde prosseguiam os interrogatórios; que, inclusive, foi ameaçado verbalmente por parte do policial de nome Juca Xavier, o qual de certa feita, disse ao interrogando que iria chamar, como realmente o fez, os policiais que tomaram parte nas torturas da casa de campo e que eram; Dr. Alan, Dr. Leônidas e João Lucena Leal (...) que igualmente foram torturados naquela casa de campo, os seguintes presos: José Leite Filho, Pedro Granjeiro, José João Aracati, um velho, chamado professor, e um filho deste último, menor de 16 anos; que, além, dessas pessoas, também lá estiveram Geraldo Magela Lins Guedes e Luís Carlos Leite.” O processo ao qual José Tarcísio Crisóstomo Prata respondeu é o mesmo que o dos outros dois ex-presos políticos anteriormente citados. Em reportagem da revista VEJA, de 5 de setembro de 1990, após as denúncias do GTMN/RJ, à página 28 e sob o título “O advogado do Porão”, José Tarcísio Crisóstomo Prata dá o seguinte depoimento sobre João Lucena Leal; “Ele não se importava em ver sua vítima ter espasmos ou desmaiar, queria mais sofrimento.” Paulo Farias Veras, estudante, 21 anos em 1973, também denuncia torturas sofridas na Polícia Federal do Ceará com a participação de João Lucena Leal. Tais denúncias encontram-se às páginas 440 e 441, Tomo V volume 3 “As Torturas”do Projeto BNM. Eis alguns trechos de seu depoimento: “(...) que das testemunhas arroladas ao interrogatório conhece apenas o de nome João Lucena Leal, que colocou

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 154

2009-08-06 08:16

Rebeldes

155

um capuz na cabeça do interrogando, quando este foi retirado de sua cela na Polícia Federal e a de nome Nelson da Silva Meira que, juntamente com o policial de nome Porci assistiram ao espancamento do interrogando, quando esteve preso na Escola de Aprendizes Marinheiros.” O processo ao qual Paulo Farias Veras respondeu é o mesmo dos três ex-presos políticos anteriormente citados. Ricardo de Matos Esmeraldo, estudante, 24 anos em 1973, também denunciou torturas na Polícia Federal do Ceará e num local ignorado para onde foi levado por João Lucena Leal, que também participou de suas torturas. Tais denúncias encontram nas páginas 590 e 591, do Tomo V, volume 3 “As torturas” do Projeto BNM. Eis alguns trechos de seu depoimento: “(...) que, então, teve fios elétricos amarrados nos dedos das mãos e dos pés, recebendo aplicações de choques; que recebeu pancadas, chutes e tapões com as mãos espalmadas, inclusive, nos ouvidos; (...) que durante essa inquirição havia uma pessoa que, postada às suas costas, segurava a venda de seus olhos; que essa pessoa tinha a mesma voz daquele que acompanhou o agente Barbosa quando da inquirição no apartamento; que veio a saber que essa pessoa se chamava João Lucena”. O processo ao qual Ricardo de Matos Esmeraldo respondeu é o mesmo que o dos quatro ex-presos políticos citados anteriormente; no Projeto BNM leva o número 696 e está à página 224, do Tomo II, volume 1, “A pesquisa BNM”. Além dessa primeira lista, João Lucena Leal é ainda indicado em três listas constantes do Projeto BNM. Na segunda lista de “Pessoas envolvidas em prisões e cercos”, seu nome aparece uma vez à página 71, do Tomo II, volume III, “Os Funcionários”. É indicado como agente

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 155

2009-08-06 08:16

156

Silvio Mota

auxiliar da Polícia Federal do Ceará que, em agosto de 1970, participou do processo que apurava o assalto e o sequestro de um comerciante na cidade de São Benedito, no estado do Ceará, provavelmente, segundo as autoridades, por militantes da ALN. A descrição de tal processo, que no Projeto BNM leva o número 20, está à página 149 do Tomo II, volume 1, “A Pesquisa BNM”. Encontra-se na 10ª RM/CJM sob o número 64/70. Na terceira lista do Projeto BNM que indica “Pessoas envolvidas em diligências e investigações”, João Lucena Leal tem seu nome citado uma vez, à página 100 do Tomo II, volume III “Os Funcionários”. É indicado como agente auxiliar da Polícia Federal do Ceará que, em janeiro de 1972, participou do processo que apurava a possível estruturação de uma ala dissidente da ALN no Nordeste. A descrição de tal processo, que no Projeto BNM leva o número 461, está à página 190, Tomo II, volume I “A Pesquisa BNM”. Encontra-se na 10ª RM/CJM sob o número 23/72. Na quarta lista que indica a relação de “Membros dos órgãos de repressão”, o nome de João Lucena Leal aparece três vezes à página 225, do Tomo II, volume III “Os Funcionários”, como agente da Polícia Federal do Ceará e envolvido diretamente em torturas. Na primeira vez a denúncia é de janeiro de 1971, estando envolvido no processo que apurava o assalto realizado na fábrica Coca-Cola em Fortaleza, provavelmente, segundo as autoridades, por militantes da ALN. A descrição de tal processo, que no Projeto BNM leva o número 168, está na página 144, do Tomo II, volume 1, “A Pesquisa BNM”. Encontra-se na 10ª RM/CJM sob o número 01/71. A segunda denúncia é também de janeiro de 1971, estando Lucena envolvido no processo que apurava assalto a

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 156

2009-08-06 08:16

Rebeldes

157

uma residência provavelmente, segundo as autoridades, por militantes da ALN. A descrição de tal processo que, no Projeto BNM leva o número 194, está à página 148, Tomo II, volume 1, “A Pesquisa BNM”. Encontra-se na 10ª RM/CJM sob o número 61/70 e é o mesmo a que responderam os expresos políticos Fabiani Cunha e José Jerônimo de Oliveira, que denunciaram haverem sofrido torturas infligidas por João Lucena Leal. A última denúncia é de outubro de 1970, estando envolvido no processo que apurava assalto ao Instituto de Matemática da Universidade Federal do Ceará, provavelmente, segundo as autoridades, por militantes da ALN. A descrição de tal processo que, no Projeto BNM leva o número 617, esta à página 213, do Tomo II, volume 1, “A Pesquisa BNM”. Encontra-se na 10ª RM/CJM sob o número 02/71. Posteriormente, levantou-se que João Lucena Leal foi demitido a bem do serviço público, não se sabendo porquê, nem quando. Em 1982 candidatou-se a deputado federal pelo PDS de Rondônia, ficando como suplente. Em 1985 assumiu o cargo. Em 1986, candidatou-se a deputado federal pelo PFL de Rondônia. Numa reportagem publicada pela revista VEJA, de 09 de dezembro de 1998, com o título ‘ESSE MALDITO PASSADO”, João Lucena Leal deu as seguintes declarações: “(...) e preso não tem resistência. Vai resistir para quê? Eu dava dez quinze socos, mas não na cara, pois arrebenta o maxilar, quebra os dentes. Eu batia na barriga, no peito. Não deixava marca, hematoma, nada. Aí eles davam a informação. Eu sempre procurei prender vivo, assim a gente podia desenvolver a investigação e avançar no trabalho. Pratiquei muita ação psicológica. Levava o cara para a estrada e parava o car-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 157

2009-08-06 08:16

Silvio Mota

158

ro. Aí dizia “Vamos matar”. Ele sabia que matava (...) Quando colocava a mão num terrorista, levava para um descampado, à noite, e dizia: “Ou você confessa ou está rachado. Vamos te matar agora”. (...) E a ordem era baixar o pau. Então, eu baixava o pau. (...) Dizer que ninguém morreu ou foi espancado é negar a própria história.” Ainda segundo a reportagem “(...) Há quinze anos, João Lucena Leal, já instalado em Porto Velho, trocou a polícia pela banca de advogado. Especializou-se na defesa de traficantes de drogas. Pelas suas contas, já defendeu “uns 300” e, geralmente, com sucesso. “Eu sei tudo sobre como se monta um inquérito falso”, declara. “Por isso, acabo convencendo os juízes de que os inquéritos contra meus clientes são forjados” Tendo em vista a gravidade de tais fatos, mostrada principalmente através dos vários depoimentos de ex-presos políticos, solicitamos que, em nome da construção de uma nação democrática, medidas sejam tomadas pelas OABs seccionais e pela OAB/Federal. Dezembro de 2000. Publicado em 28/06/2008.” 2.Dossiê de Roberto Felipe de Araújo Porto Nas pesquisas feitas pelos Grupos Tortura Nunca Mais de Pernambuco e do Rio de Janeiro e nos 12 volumes do Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, o nome de Roberto Felipe de Araújo Porto aparece em três listas diferentes constantes no Tomo II, volume 3 “Os Funcionários”. Na primeira delas, “Pessoas Diretamente Envolvidas em Torturas”, às páginas 44 e 45, seu nome aparece 6 (seis)

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 158

2009-08-06 08:16

Rebeldes

159

vezes, sendo denunciado por cinco (5) presos políticos, atuando na Polícia Federal do Ceará, nos anos de 1970 e 1973. A primeira denúncia desta lista é feita por João Alves Gondim Neto que, em 1972 era estudante, tendo 25 anos. Seu depoimento encontra-se às páginas 311, 312, 313 e 314 do Tomo V, volume 2 “As Torturas” do Projeto Brasil Nunca Mais. Afirma ele no auto de qualificação e interrogatório: “(...) que o interrogando foi preso no dia 22 de março do corrente ano (1972) e foi torturado desde esse dia até o dia 08 de abril; que essas torturas foram-lhe aplicadas no interior da DR do DPF/CE, sendo comandadas pelo inspetor Xavier e executadas pelos policiais Barbosa, Pires, Porto e Benedito, constituindo-se tais torturas em murros, pontapés, choques elétricos por todo o corpo, pau de arara, afogamentos e outras; que essas torturas foram aplicadas no xadrez do DPF denominado “Porão”, que, (posteriormente) estava no quartel do 23º BC (...) e que nessa época estava urinando sangue devido às pancadas nos rins (...)”. Estas declarações de João Alves Gondim Neto encontram-se no Processo 09/71, da 10ª RM/CJM (informação contida à página 64 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”, do Projeto Brasil Nunca Mais) que trata de réus acusados de pertencerem à ALN e terem feito ações em Maranguape, no Ceará, em 11/09/70 (informação contida à página 217 do Tomo II volume 1 “A Pesquisa BNM”). A segunda denúncia da referida lista é feita por José Bento da Silva que, em 1970 era funcionário público federal, tendo 51 anos. Seu depoimento encontra-se à página 474 do Tomo V, volume 2 “As Torturas” do Projeto Brasil Nunca Mais. Afirma ele no auto de interrogatório realizado na Auditoria Militar: “(...) que foi preso e encaminhado à delegacia regional do DPF, no Ceará, onde recebeu uma série de maus

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 159

2009-08-06 08:16

160

Silvio Mota

tratos, quais sejam: obrigaram-no a permanecer acordado, algemado às grades de uma janela, obrigaram-no a permanecer sentado, cinco dias em uma cadeira, além de ameaças dirigidas à sua pessoa e seus familiares; que pelo fato de haver visto outros companheiros sofrerem maus tratos físicos, acreditou nas ameaças que lhe foram feitas, (...) que o autor dos maus tratos a outros prisioneiros foi o Dr. Porto; (...) que o interrogando esclarece ter sido preso José Gerônimo de Oliveira, o elemento a quem viu apanhar nas nádegas, sendo o agressor o Dr. Porto (...). Estas declarações de José Bento da Silva encontramse no Processo número 64/70, da 10ª RM/CJM (informações contidas à página 51 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que trata dos réus acusados de pertencerem à ALN e terem feito ações em São Benedito, no Ceará, em agosto de 1970 (informação contida à página 149 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”). A terceira denúncia da referida lista é feita por José Gerônimo de Oliveira, que em 1970 era estudante, tendo 26 anos. Seu depoimento encontra-se às páginas 560, 561,562 e 563 do Tomo V, volume 2 “As Torturas”. Afirma ele no auto de qualificação e interrogatório realizado em Auditoria Militar: “(...) que o interrogando deseja ressaltar os maus tratos que lhe foram infligidos desde o momento de sua prisão, constituindo tais maus tratos em ofensas morais, pancadas nas nádegas, pancadas com sapatos no tórax, tapas nos ouvidos e ameaças de morte, (...) ; que os responsáveis por tais atos foram os funcionários do Departamento de Polícia Federal, Dr. Porto e agente Deusdedith, sendo o autor da ameaça de morte o agente Lucena (João Lucena Leal, advogado de Darly Alves da Silva, um dos assassinos de Chico Mendes

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 160

2009-08-06 08:16

Rebeldes

161

E já denunciado à OAB/Federal pelo Grupo Tortura Nunca Mais, em dossiê de 10 de setembro de 1990); que os referidos maus tratos prolongam-se por toda a tarde tendo o interrogando perdido a consciência três vezes; (...) que os referidos maus tratos se repetiram por diversos dias e que sempre, ao iniciar-se era relembrado ao interrogando o tratamento recebido no dia anterior (...). Que o Dr. Porto (...) (ilegível) o interrogando ter este um cabelo muito bonito e, agarrou os cabelos do interrogando e puxou-os, querendo arrancá-los e causou ao interrogando muita dor. Que o Dr. Porto colocou as mãos em torno do pescoço do interrogando e apertou, como se fosse estrangulá-lo, tendo (ilegível) já que não se encontrava algemado, nessa ocasião o interrogando passou três horas algemado; que o ouvido direito do interrogando foi perfurado por tapas que lhe foram aplicadas pelo Dr. Porto, modalidade conhecida por “telefone” (...) Essas declarações de José Gerônimo de Oliveira encontram-se no Processo número 02/71, da 10ª RM/CJM (informação contida à página 64 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que trata de réus acusados de pertencerem à ALN e terem feito ações no Instituto de Matemática da Universidade Federal do Ceará em 23/08/1970 (informação contida à página 213 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”). A quarta denúncia da referida lista é feita por José Machado Bezerra que, em 1972 era professor, tendo 25 anos. Que o depoimento encontra-se à página 582, 583, 584, 585 do Tomo V, volume II “As Torturas”. Afirma ele no auto de interrogatório realizado em Auditoria Militar: “(...) que foi conduzido ao quartel do 23º BC e lá teve suas mãos amarradas para trás, os pés igualmente amarrados e nessa ocasião

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 161

2009-08-06 08:16

162

Silvio Mota

recebeu choque elétrico (...); que, em seguida, foi esmurrado (...); que na mesma manhã introduziram um cabo de vassoura no ânus do interrogando; que nessa ocasião foi colocado no pau de arara e com o cabo de vassoura; que os policiais embalavam o corpo do interrogando (...); que, com esse embalo, a cabeça do interrogando se chocava de encontro com a parede (...); que (mais tarde) o interrogando apresentava uma lesão na cavidade ocular direita, marcas nos pulsos e ferimentos na cabeça, a que já se referiu (...); que passou vinte e um (21) dias na cela solitária do 23º BC, trajando apenas cuecas. Que foi levado à Polícia Federal, onde, quando do inquérito, o inspetor Dr. Porto declarou ao interrogando que não adiantava negar as acusações, portanto já tinha afirmado sua participação, exibindo naquela ocasião os documentos que assinou sob coação física e moral (...)”. Essas declarações de José Machado Bezerra encontramse no Processo número 44/72 da 10ª RM/CJM ( informação contida à página 48 do Tomo II volume 1 “A Pesquisa BNM”) que investiga as atividades do PCBR em Fortaleza, no ano de 1971 ( informação contida à página 131, do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”. Sobre as torturas sofridas por José Machado Bezerra, além de suas declarações acima transcritas, há ainda a denúncia do preso político Gilberto Telmo Sidney Marques, à página 581 do Tomo V, volume 2 “As Torturas” que em 1972 em Auditoria Militar, afirmava: “(...) que o interrogando reconheceu, entre as pessoas marcadas por pancadas, os indivíduos que já conhecia ou que ficou conhecendo de nome: José Machado Bezerra (...)”. Esta declaração de Gilberto Telmo Sidney Marques encontra-se no Processo número 02/71, da 10ª RM/CJM (infor-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 162

2009-08-06 08:16

Rebeldes

163

mação contida à página 64 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que trata de réus acusados de pertencerem à ALN e terem feito ações no Instituto de Matemática da Universidade Federal do Ceará em 23/08/1970 (informação contida na página 213 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”). A quinta denúncia da referida lista é feita por Vandeilton Ferreira de Souza que, em 1973 era estudante. Seu depoimento encontra-se à página 825 do Tomo V, volume 3, “As Torturas”. Afirma ele no auto de interrogatório realizado em Auditoria Militar: “(...) que atribui o motivo de seu envolvimento no presente processo às declarações que foram obtidas mediante violência contra sua pessoa, na Polícia Federal, violências estas que começaram desde o momento em que o interrogando, algemado, foi conduzido à Polícia Federal e, lá, jogado pelos policiais de um lado para outro, recebendo pancadas e aplicações de choques elétricos e sendo obrigado a permanecer ajoelhado e de cuecas por largo espaço de tempo; (...) que não obstante às violências realizadas quando de sua captura, na própria Polícia Federal, o interrogando foi, por duas vezes, conduzido a um lugar que acredita ser uma fazenda, onde endureceram o tratamento ainda mais para com ele, interrogando; (...) que dentre os coordenadores dos seus tratos havia um senhor baixo, cabelos lisos e pretos, gordo, que ameaçava o interrogando; que ouviu dizer que atende pelo nome de Porto (...)”. Estas declarações de Vandeilton Ferreira de Souza encontram-se no Processo número 19/73, da 10ª RM/CJM (informação contida à página 66 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que trata de réus acusados de pertencerem ao PC do B no Ceará, agindo de 1969 a 1973 e compondo um Comitê Regional, um Comitê Universitário e várias bases es-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 163

2009-08-06 08:16

164

Silvio Mota

tudantis ( informação contida às páginas 224 e 225 do Tomo II, volume 111 “A Pesquisa BNM”. Além dessa lista de “Pessoas envolvidas diretamente em torturas” o nome de Roberto Felipe de Araújo Porto aparece, dentro do Projeto Brasil Nunca Mais em mais duas outras. A segunda lista em que consta por duas (2) vezes seu nome é a de “Encarregados de IPM”, à página 148 do Tomo II, volume 3 “Os Funcionários”, como inspetor da Polícia Federal do Ceará. A primeira denúncia nessa citada lista é de outubro de 1970 e está no Processo número 03/71 da 10ª RM/CJM ( informação contida à página 55 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que trata dos réus acusados de pertencerem à ALN e terem feito ações em Fortaleza, em fins de agosto de 1970, como o assalto à garagem da empresa de ônibus CIALTRA (informações contidas à página 172 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”). A segunda denúncia contida ainda nessa lista é de abril de 1972 e encontra-se no Processo número 03/71, da 10ª RM/ CJM ( informação contida à página 48 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que investiga a estruturação e atividades do PCBR em Fortaleza, no ano de 1971 (informação contida à página 131, do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”). A última lista, dentro do Projeto Brasil Nunca Mais, em que aparece uma vez o nome de Roberto Felipe Araújo Porto é a de “Membros dos órgãos de repressão”, à página 241 do Tomo II, volume 3, “Os Funcionários”, como inspetor da Polícia Federal do Ceará. A denúncia nessa citada lista é de abril de 1972, e encontra-se no Processo número 60/71, da 10ª RM/CJM ( informação contida à página 63 do Tomo II, volume 1 “A Pesquisa BNM”) que trata de réus acusados

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 164

2009-08-06 08:16

Rebeldes

165

de pertencerem ao PCBR e terem feito ações em Fortaleza como o assalto ao Bank of London, em 16/03/1970 ( informações contidas à página 209 do Tomo II, volume 1, “A Pesquisa BNM”). Diante do exposto fica claramente evidenciada a participação do Sr. Roberto Felipe de Araújo Porto em crimes de LESA HUMANIDADE, crimes que até hoje continuam impunes, que mancham e envergonham a nação brasileira. Em reportagens publicadas nas revistas VEJA ( de 08 e 15 de janeiro de 1986) e ISTO É ( de 15/01/1986) foi denunciada a participação direta do Sr. Roberto Felipe de Araújo Porto nos órgãos da repressão da ditadura militar brasileira. Em 19 de abril de 1993, os Grupos Tortura Nunca Mais de Pernambuco e do Rio de Janeiro denunciaram através de um documento a indicação do Sr. Roberto Felipe de Araújo Porto para um cargo na Superintendência da Polícia Federal de Pernambuco, por indicação vinda de Brasília pelo Sr.Amaury Galdino. Publicado em 28/06/2008”.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 165

2009-08-06 08:16

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 166

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO VIII

Luta na Prisão

N

o presídio para onde foram enviados, o Instituto Penal Paulo Sarasate, nas cercanias de Fortaleza, os militantes da ALN capturados pela repressão, juntamente com os militantes de outras organizações de esquerda também presos, foram separados dos presos comuns, e ficaram sob a guarda da Polícia Militar. Os presos políticos do Ceará eram muito respeitados pelos presos comuns, tanto pelo enorme aparato militar que era mobilizado nas suas movimentações, pelo que os presos comuns os consideravam muito perigosos, como porque defendiam os presos comuns de espaçamentos e arbitrariedades. O moral revolucionário não desapareceu com as prisões e as torturas. Pelo contrário, formou-se um coletivo com aulas sob a responsabilidade de um dos militantes na 4ª feira, sobre temas nacionais, e nos sábados, sobre temas internacionais. Escolhido o tema o preso que tinha na sua responsabilidade fazer uma exposição, a qual era seguida por um debate, em que todos participavam. Não havia exclusão de ninguém. Apenas os delatores Hélio Ximenes e Esperidião ficaram no Quartel dos Bombeiros em Fortaleza, como prêmio por suas delações.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 167

2009-08-06 08:16

168

Silvio Mota

Estava proibido o suicídio entre os presos. Havia biblioteca, farmácia e cozinha coletivos. Os presos faziam e vendiam trabalhos manuais em madeira, couro e faziam xilogravuras. Acauã, com o seu gosto por animais, chegou a criar um gavião, uma raposa e uma jaguarundi, chamada de Iara. Sua criação mais famosa, entretanto, foi a de um tejo, um lagarto grande, o qual fugia o entrava nos esgotos do presídio. O resultado era que às vezes, quando um preso ia defecar, aparecia a cabeça do tejo, alegremente passando sua língua de um lado para o outro... Houve muita prisão de ventre no presídio, e o Acauã foi obrigado a recapturar seu animal e a mantê-lo sob vigilância severa. Mas vá se tentar disciplinar um lagarto selvagem... O espírito de luta tampouco cessou. Uma delas foi a da parede humana que os presos fizeram ante os fuzis com baionetas caladas dos policiais, que chegaram a carregá-los, contra a retirada do traidor Gilberto Telmo da prisão. É claro que sua traição e colaboração com o inimigo ainda não eram conhecidas, mas sabiam que ele fora muito torturado e pensaram que iam levá-lo para mais torturas. É irônico que nessa ocasião o Telmo ia fazendo outras vítimas entre os revolucionários, e em sua defesa... O Acauã entrou em confronto direto com a Polícia Militar outra vez e impediu na marra a retirada do companheiro José de Alencar da sua cela. Foram feitas 3 greves de fome, com repercussão nacional e internacional, uma de 11 dias, que quase mata gente, em que apenas bebia-se água; outra de uma semana, quando, mais experientes, ingeriam também sal e açúcar (soro caseiro), e outra de 17 dias, também com soro caseiro.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 168

2009-08-06 08:16

Rebeldes

169

As condenações à morte de alguns presos, como o Guilherme, o Giovani e o Santa Cruz, por exemplo, foram recebidas com firmeza e sem perda do moral do coletivo. Mais tarde, foram comutadas por longas penas de prisão. A ditadura não tinha moral para matar em público, só acorbertadamente. Havia mesmo entre os presos políticos do Ceará uma preparação de fuga coletiva para dar reforço à Guerrilha do Araguaia, com estrutura preparada, mas o PC do B, contatado através do Rogério, respondeu, por sua Direção Nacional, que não tinha condições para receber os reforços. As grades já estavam até serradas e disfarçadas com cera. Não havendo condições de contato com a ALN nem com o PCBR, o plano teve que ser abandonado. Entre os presos fi gurava até o Aldenor Arrais, militante da ALN e parente do Miguel Arrais. Havia também sessões de crítica e autocrítica perante o coletivo, as quais contribuíam para a manutenção de um relacionamento saudável entre os presos políticos. Interessante é que o Romão, camponês preso no Cariri com o Aldenor, participou da 1ª greve de fome, e só então perguntou o que era o comunismo, tendo então recebido instruções sobre fi losofia, sociologia e economia política, saindo da prisão com um conhecimento teórico melhor que o de muitos universitários. Os presos políticos receberam muito apoio de seus familiares, do Movimento Feminino pela Anistia e de D. Aloísio Lorscheider, cardeal e então arcebispo de Fortaleza. Sua libertação foi paulatina, e quase total quando sobreveio a anistia de 1979, quando ainda ficaram alguns, sendo o último o Santa Cruz, libertado por pressão popular dos

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 169

2009-08-06 08:16

170

Silvio Mota

movimentos de anistia. Ernesto foi até preso na campanha para a sua libertação, quando pichava a palavra LIBERDADE, tendo sido libertado por pressão política do MDB, nela destacando-se Maria Luísa Fontenelle, Iranildo Pereira e Castelo de Castro. Não se pode falar dos presos políticos do Ceará durante a ditadura sem mencionar a Dr.a Wanda Rita Othon Sidou, já falecida, que foi a advogada da maioria deles, sem receber nenhum pagamento e com risco da própria vida e segurança. Fique aqui o testemunho da Maria: “Quando estudante de Direito, ia ao fórum e, muitas vezes, quando assisti à defesa de uma brilhante e jovem advogada, que me impressionava pela sua firmeza, pela lógica do seu pensamento e pela serenidade da sua postura. Anos depois, quando estava fora do Ceará-em missão de informar ao Comando Nacional da ALN ( Ação Libertadora Nacional ) sobre as quedas e prisões ocorridas, ocasião em que já preparava meu retorno ao Ceará-liguei para meu saudoso e querido irmão Jorge (o do Cartório Moraes Correia). Ele me relatou que 15 homens armados de metralhadoras tinham invadido a casa dos meus pais e da minha avó à minha procura, mas que a minha família já tinha contratado um advogado famoso e que os meus tios (Virgílio Távora e Flávio Marcílio) iriam tentar me ajudar. Imediatamente, disse “não, não vou voltar, vou entrar na clandestinidade e para advogada, eu só quero a Dr.a Wanda. Esta escolha da mandatária para minha defesa jurídica traduziu uma escolha de vida e de postura compatível com os meus ideais. Hoje, 35 anos depois, quando sento no plenário da Câmara dos Deputados para conversar com o meu amigo e companheiro Deputado Luiz Eduardo Greenhalgn, que também foi meu advogado, por escolha da Dra. Wanda

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 170

2009-08-06 08:16

Rebeldes

171

para acompanhar meus processos que resultaram em minha condenação na auditoria de São Paul, por vezes sinto que não é só com Greenhalgn que troco idéias. A presença serena da Dr.a Wanda está entre nós. Ambos foram advogados abnegados na causa dos perseguidos políticos. E, em diferente trincheiras, travaram a mesma luta por justiça e liberdade. A tortura psicológica é tão perversa quanto a física. O fato de eu ser de uma família politicamente bem posicionada dificultava ao sistema repressivo tocar fisicamente em minha família-o que ocorria com facilidade em famílias operárias. Mas este fato nunca impediu que a tortura psicológica ocorresse. E, cada vez que ocorria uma queda, ou seja, uma prisão de algum quadro da ALN no Rio ou em São Paulo, a repressão policial, mesmo sabendo que não era eu, tinha o frio e sádico prazer de avisar à minha família que eu tinha sido presa e estava sendo torturada-evidente que isto era de enlouquecer uma mãe. E minha amada mãe, D.Branca, se desesperava e ficava ligando como louca para os meus tios Virgílio e Flávio Marcílio em Brasília-note-se que há 30 ou 35 anos atrás ligações inter-estaduais não eram fáceis como hoje. O prazo transcorrido até que minha mãe tivesse o retorno da investigação operada por meu tio Virgílio, que desmente a minha prisão computava muitas horas, até dias vividos em desespero, lágrimas, angústias e dor no coração da minha mãe.Muito anos depois, li num jornal nacional sobre uma briga política na Bahia em que um adversário de famoso cacique baiano acusava este último de ter tido o sádico prazer de ligar para sua família avisando da morte de seu irmão, o que evocoume o fato de que, só muitas horas depois de muito sofrimento e estrada até chegar na fazenda, pois enfatizo que naqueles anos não se tinha a telefonia de hoje, foi que também aquela

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 171

2009-08-06 08:16

172

Silvio Mota

mãe sofrida podia suspirar aliviada, ao saber que seu filho estava vivo. Vi, então, que a mesma tática não foi usada só no meu Ceará nem apenas com meus familiares. A Dra. Wanda não foi apenas minha abnegada advogada, que nunca cobrou nada para minha família. Ela foi também uma amiga generosa com a minha mãe sofrida. Como sabia que mamãe gostava de mangas, toda vez que as mangas rosa do sítio começavam a cheirar, ela enviava para minha mãe uma cesta de lindas e perfumadas mangas rosa. Com isto procurava acalentar o coração de uma mãe desesperada. Este era o contraste entre a crueldade da ditadura e a ternura dos que tinham a generosidade e a grandeza histórica de lutar por um mundo mais justo e fraterno, como era o caso da Dra.Wanda. Quando voltei do exílio, passei 3 tardes no escritório da Dr.a Wanda, quando li todos os processos e depoimentos em que fui citada. E, depois de vários dias de leitura, disse a ela que era uma questão de tempo para que a repressão militar nos pegasse pois dispunha de tudo-armas, homens, carros, força, poder e tempo. E nós estávamos em desvantagem e despreparados, pois só tínhamos a coragem e o coração cheio de sonhos de liberdade. Tratava-se de uma guerra perdida, embora não soubéssemos naquele momento.Mas era sobretudo uma luta válida. E não esqueço aquele seu sorriso de concordância e tristeza, que demonstrava o respeito com a luta da nossa geração, sorriso que eu guardo na memória. (...)” Lembre-se que uma guerra só é perdida quando falta aos combatentes vontade de lutar, como já dizia Clausewitz. Um registro da luta na prisão é o seguinte manifesto, publicado no jornal alternativo MUTIRÃO: “Neste momento em que é lançado publicamente o núcleo cearense do

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 172

2009-08-06 08:16

Rebeldes

173

COMITÊ BRASILEIRO DE ANISTIA, nós, presos políticos deste Estado expressamos o nosso mais vivo entusiasmo e esperança pelo passo à frente que o fato significa na luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. O acontecimento se dá numa situação política em que o regime, através de meias reformas, tenta dar continuidade ao sistema de arbítrio e aos privilégios dos grupos econômicos nacionais e multinacionais que dele tiram proveito. No terreno específico da Anistia, o governo empreende manobras com as propaladas anistias parciais e a nova Lei de Segurança. Tais artifícios, se por um lado constituem prova de recuo de um regime que até bem pouco tempo dava mostras de intransigência frente ao reclamo geral da Nação, tem também o significado inequívoco de tentar confundir e dividir o movimento democrático e popular, na medida em que exclui ponderáveis setores de opositores presos, cassados e exilados, dos benefícios da anistia. Além disso, tenta lançar uma cortina de esquecimento sobre as mais flagrantes violações dos direitos humanos, realizadas pelos órgãos de segurança numa impunidade afrontosa à consciência democrática do país. São mortes e “desaparecimentos” que ocupam as manchetes de órgãos importantes de imprensa, à medida que vão sendo revelados os subterrâneos da repressão. O movimento democrático e popular já conhece os interesses espúrios que há por trás das manobras do regime e não se deixará envolver. Ao mesmo tempo em que se deve encarar uma possível anistia parcial e a redução de penas altíssimas pela novo Lei de Segurança como conquistas parciais e insatisfatórias, os movimentos de anistia e a oposição democrática em geral devem fazer impulsionar ainda mais a luta pela ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA, pelo

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 173

2009-08-06 08:16

Silvio Mota

174

fim de todo o aparato de tortura e de repressão instalado no país e pela conquista de um regime garantidor das mais plenas liberdades democráticas, entre as quais o direito de organização de todas as correntes de opinião políticas e ideológicas. Neste sentido interpretamos a criação do CBA-Ceará como um importante avanço no desenvolvimento desta luta em nosso Estado. Ressaltamos ainda a importância da criação do CBACeará nos esforços que ora desenvolvemos pela melhoria de nossas condições carcerárias, em progressiva deterioração. E se faz necessário lembrar aqui o pequeno mas abnegado e valoroso grupo de mulheres que em 1975 criaram em nosso Estado o núcleo do Movimento Feminino Pela Anistia, plantando as primeiras sementes dessa luta que neste momento marca um vigoroso passo. Instituto Penal Paulo Sarasate, 25 de março de 1979. Fabiani Cunha José Ferreira Lima José Sales de Oliveira João Alves Gondim Neto Mário Miranda de Albuquerque José Jerônimo de Oliveira Valdemar Rodrigues de Menezes William Montenegro O Ernesto chegou a ser um dos presidentes do CBACeará.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 174

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO IX

A Luta pela Anistia

U

ma vez chegado a Paris, desembarcando em uma estação que tanto servia para o trem como para o metrô, Ernesto ficou em uma situação confortável. Seu tipo físico era comum na França e ele falava francês muito bem, com sotaque parisiense. Foi encaminhado por companheiros brasileiros para um Foyer da CIMADE, organização de origem protestante, em Massy Palaiseau, um subúrbio de Paris, aliás por onde entrou na cidade o general Leclerc com a 2ª Divisão Blindada dos franceses livres depois que Paris foi libertada dos nazistas por uma sublevação sob o comando do Coronel Rol-Tanguy, veterano das Brigadas Internacionais na Espanha, guerrilheiro comunista francês.Aliás, essa 2ª Divisão Blindada incorporava o 3º Batalhão de Marcha do Chad da Legião Estrangeira, composto em sua maioria por antigos soldados espanhóis republicanos, os quais tinham sido antes confinados em campos de concentração insalubres pelo governo da derrotista Frente Popular de Daladier, e agora lutava sob as ordens do rebelde general De Gaulle. E a primeira companhia de tanques que entrou em Paris, sob as ordens do capitão Raymond Drone, era composta pelos tanques Madrid, Teruel, Ebro, Guernica e Don Quijote. (Beevor, “A Batalha pela Espanha”, 2ª edição, Record)

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 175

2009-08-06 08:16

176

Silvio Mota

E não deixou de chamar a atenção do Ernesto que fossem justamente os protestantes franceses, os huguenotes, massacrados na noite de São Bartolomeu, e que tinham vindo tantas vezes ao Brasil durante a colonização portuguesa, aqueles que agora o acolhiam. O responsável pelo Foyer era um refugiado haitiano, que logo lhe providenciou acomodações, enquanto Ernesto providenciava o envio de documentação que comprovasse sua condição de perseguido político no Brasil, principalmente, jornais, para que ele pudesse solicitar asilo político na França e passasse a ser atendido pelo órgão de refugiados ligado às Nações Unidas. Nesse intervalo, para não ficar ocioso e porque havia necessidade, Ernesto aproveitou para organizar um turma e ensinar francês aos refugiados montoneros que constituíam a maior parte dos abrigados pelo Foyer e com os quais logo travou amizade por seus conhecimentos de espanhol. Chegados os documentos, Ernesto logo se dirigiu à polícia francesa acompanhado pela Maria, esposa do Sérgio, ambos ligados ao Miguel Arrais, que trabalhavam na CIMADE. Lá, foi só invocar a proteção que a Constituição Francesa dá a todos os que são perseguidos na sua luta pela liberdade, e obteve o asilo político e documentos provisórios. Mais tarde, conseguiu uma carteira de trabalho e um emprego como atendente noturno em um hotel próximo ao Quartier Latin, o Grand Hotel Moderne, que não era grande nem tampouco moderno, sendo apenas uma aconchegante casa de cômodos, que mantinha apenas um empregado durante a noite, no balcão. Quem tinha suas tarefas de dia era um português, o Pires, o qual se gabava de ganhar mais que um professor universitário em Portugal, pois sofrera um aci-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 176

2009-08-06 08:16

Rebeldes

177

dente de trabalho na França e fora considerado ferido grave, recebendo uma pensão, além do que recebia no hotel. Daí foi um passo para que Ernesto também se relacionasse com os amigos do Pires, parte da grande colônia de portugueses em Paris. O trabalho era bom, mas era estafante trocar o dia pela noite. Ernesto levou algum tempo para se acostumar a dormir durante o dia. Além disso, continuou sua turma com os argentinos. Logo, aprendeu que poderia dormir um pouco no sofá depois das três ou quatro horas da manhã, deixando a porta da frente fechada, pois pouca gente chagava além desse horário. Melhorou um pouco suas condições de vida. O chato foi quando uma turma de espanhóis decidiu chegar tarde e ele não acordou com a primeira chamada da campainha. Depois de abrir a porta, pediu desculpas, mas os espanhóis vingaram-se. Pegaram todos os rolos de papel higiênico do hotel, distribuídos na véspera pelo Ernesto em frente de cada quarto, e os lançaram pelas janelas, formando serpentinas brancas. Quando amanheceu, o quarteirão parecia um carnaval. A sorte foi que o Pires também tinha tido seus problemas com os espanhóis, e logo os denunciou como baderneiros ao dono do hotel, que os expulsou logo. Outro episódio foi a chegada de um árabe saudita com suas mulheres, as quais logo abrigou em cima nos quartos, e ficou se queixando de que tinham feito compras muito caras, e que o seu governo não ia aumentar sua ajuda por causa disso. Foi aí que souberam que era da tribo original, e, nesse caso, o governo não lhe cobrava impostos, mas dava uma ajuda de custo dos lucros do petróleo. Trajava-se pobremente em roupas ocidentais e poderia ser confundido com qualquer proletário árabe do Marrocos ou da Tunísia, mas era um sócio do petróleo saudita...

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 177

2009-08-06 08:16

178

Silvio Mota

Finalmente, hospedou-se um professor universitário português, que confi rmou que o Pires ganhava mais que ele. Pouco a pouco, o Ernesto foi também fazendo contato com os exilados e estudantes brasileiros que faziam cursos em Paris. Encontrou dois exilados da ALN, José Vidal e Darcy, e ficaram inseparáveis. Encontrou estudantes cearenses, como a Irma e o Geraldinho. Fez contato, sem maiores dificuldades nem problemas,

com o Comitê Brasileiro pela Anistia, o maior da Europa, e logo começou a trabalhar lá, com o Jean Marc Von der Weid, a Carmela Pezutti, o José Luís, Paula e outros. Participou da direção do CBA, que era colegiada para evitar disputas entre as organizações. Uma das primeiras campanhas em que participou foi a da libertação do Renato Rabelo, presidente do PC do B, que havia sido preso pelos franceses como terrorista árabe... Outro incidente interessante foi a visita do Xavier a Paris. Não apenas organizou o contato do Ernesto com o José Maria Crispim, como uma vez o levou a Montmatre para visitar um pintor ou escultor amigo seu, de nome Artur Hernandez, talvez. O tugúrio era típico de artista, cheio de obras e de gatos. O Artur era espanhol, e ainda não tinha voltado para a Espanha, apesar da morte do Franco. Quando Ernesto lhe perguntou o motivo, disse que não podia, pois havia sido considerado criminoso de guerra. Sabendo que ele era anarquista, Ernesto quis saber da história. Acontece que Artur comandava uma tropa anarquista quando surpreendeu o desembarque de um grupo de paraquedistas de um avião nazista da Legião Condor.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 178

2009-08-06 08:16

Rebeldes

179

Entre eles havia um que chamava muito a atenção, por estar com batina de padre católico. Revistado, encontraram com ele um rosário feito de orelhas humanas, sem dúvida de militantes ou camponeses republicanos. Artur então lhe perguntou sobre as orelhas humanas. O padre respondeu que eram sem importância, pois seus donos não precisavam delas. -Ah, é? Então, diga-me, padre, o senhor fez voto de castidade? -Naturalmente, fiz. -Então não precisa disso aqui, disse Artur, e castrou o padre... Desde então fez questão de castrar quantos padres caíssem em suas mãos... Foram muitas as reuniões e atividades de anistia em que participou, organizando e fazendo parte de manifestações de rua, palestras, contatos políticos com personalidades como Ruth Escobar, Almino Afonso, Miguel Arraes, Luís Hildebrando, José Maria Crispim, Diógenes Arruda e D. Hélder Câmara. Com o último, teve até uma discussão surrealista, em plena catedral de Notre Dame, quando D. Hélder comentou que ele e os outros companheiros da luta pela anistia eram verdadeiros cristãos, e o Ernesto retrucou o elogio dizendo que ele sim, D. Hélder, era um verdadeiro comunista... Não se pode esquecer tampouco da grande amiga dos exilados brasileiros que foi a Chantal Poindron. Ernesto redigiu cartas e vários textos, chegando mesmo a publicar um livro em parceria com um estudante brasileiro, “Les investissements français au Brésil” ( Os investimentos franceses no Brasil”) que tinha uma capa chamativa de um Mirage com todos os seus armamentos e que denunciava as vendas de armas e equipamentos militares sofisticados pela França ao

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 179

2009-08-06 08:16

180

Silvio Mota

Brasil, e os interesses das grandes corporações francesas no país, o que revestia de hipocrisia os pronunciamentos oficiais franceses em defesa dos direitos humanos. Por essa época, ele conseguiu uma colocação e um salário melhores, indo trabalhar em Stains, na periferia norte de Paris como torneiro mecânico. Não tinha todas as qualificações para a profissão, tendo apenas os conhecimentos adquiridos ao trabalhar com armamento em Cuba, e então fez parte de um grupo de operários aprendizes em um grande centro do Ministério do Trabalho para re-qualificação de mão-de-obra, que tinha inclusive moradia. No centro funcionavam vários cursos e unidades de trabalho, inclusive um de alta cozinha, o que era uma sorte incrível, pois os operários tinham ótimas refeições, preparadas pelos cozinheiros que estavam se aperfeiçoando. Além disso, a camaradagem, o contato com imigrantes negros e árabes, o trago de pastis nas sextas-feiras... O Ernesto poderia ter optado por um curso de pós-graduação na Sorbonne, pois já tinha graduação como professor, ou talvez ter trabalhado em informática, mas não tinha perdido sua esperança de entrar no Brasil clandestinamente para desenvolver atividades revolucionárias, e era mais fácil fazê-lo como operário. Não era o único a pensar assim. Pelo menos o Murilo Pezutti, da VPR, também tinha esses planos, e até recebeu do Ernesto um Certificado Militar brasileiro para documentação. Tendo recebido o passaporte de refugiado das Nações Unidas, o Ernesto pode viajar para Milão, onde estavam a Iara e a Zilda, e lá obteve documentos normais de identidade italianos, vindos dos revolucionários daquele país, ou do grupo do PCI do velho partigiano Giacomo Pajetta, que sem-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 180

2009-08-06 08:16

Rebeldes

181

pre tinha ajudado à ALN. Nunca soube ao certo, e seria uma falta de educação perguntar. A grande facilidade era a de que seus primeiro e último nomes formavam um nome italiano perfeito, embora sua família não seja de ascendência italiana. Também encontrou-se com o Maurício, que já estava casado com a Marejke, e lhe contou suas peripécias no Chile e na Holanda, e se integrou aos trabalhos da luta pela anistia, além de ter feito contatos com ONGs holandesas. Ernesto também participou de várias manifestações do PCF e da CGT, embora seu status de refugiado na verdade não o permitisse. Como eram manifestações massivas e abertas ao público, não chamou a atenção e não foi importunado. Conheceu sim, uma soldadora filiada à CGT, Margueritte, a qual fora companheira de um revolucionário português morto pela PIDE. Ela gostava de falar português e de vez em quando organizava almoços aos domingos em sua casa, onde morava com duas outras operárias, e para os quais o Ernesto foi convidado várias vezes, com outros companheiros da ALN. Eram verdadeiros banquetes, com comida francesa típica, vinhos e aguardente de pêra, que só terminavam de noite, com todo mundo em estado de graça... As visitas à Cidade Universitária resultaram para o Ernesto em uma oportunidade inesperada. Acontece que a Casa do Brasil ficava bem próxima à Casa do Irã. O entrosamento entre as duas comunidades era natural, não só por causa da proximidade, como também por causa da beleza das estudantes iranianas. Daí vai, que foi deposto o Shah, e foram convidados para visitar nada menos que o Aiatolá Khomeini, em uma casa nas proximidades de Paris. Não chegaram a manter uma conversa com ele, mas estiveram em seus aposentos e lhe prestaram seus respeitos. Todos estavam mui-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 181

2009-08-06 08:16

182

Silvio Mota

to alegres, apesar da solenidade do Aiatolá, mas o que surpreendia era ver todas as garotas de shador, e quem beijava os brasileiros não eram as moças, mas os rapazes... Não se sabe quantos dos que estavam naquela festa continuaram no processo iraniano, pois seu próprio dirigente na época, Bani Sadr, foi dele alijado. As atividades no CBA de Paris continuavam, cada vez mais intensas. O apoio internacional que recebiam já indicava que a ditadura não conseguiria manter-se com os mesmos métodos por muito tempo. Foi então que o Ernesto conclui seu curso de torneiro mecânico, e recebe uma notícia que não aguardava do Brasil. Sua advogada, Dr.a Wanda Sidou, conseguira absolvição nos dois processos a que respondia na Justiça Militar, um por fazer parte da ALN e outro por querer separar o Ceará do resto do Brasil, aliás idéia absurda que nunca lhe passou pela cabeça. A absolvição no primeiro processo era surpreendente, com tantas delações que foram feitas, mas a Dr.a Wanda conseguira desqualificá-las por terem sido obtidas mediante tortura. Era uma surpresa, mas aí estava o fato. Ernesto recebeu a notícia com emoções conflitantes. Por um lado, era muito bom estar livre dos processos, mas por outro, nessa situação, não mais se justificava sua volta clandestina ao Brasil, cujo processo já ia bem adiantado. No CBA, a notícia caiu muito bem. Já havia sido discutida a volta de alguns exilados para apressar, com situações de fato concretas, o processo da anistia. Alguns haviam voltado justamente com absolvições ou por não terem processos, mas era a primeira vez que um dirigente do CBA de Paris, guerrilheiro com treinamento em Cuba e atuação concreta no Brasil, marcado para morrer pela repressão, ficava nessa situação. Sua volta seria um avanço político de peso.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 182

2009-08-06 08:16

Rebeldes

183

Estavam em junho de 1979. Ficou decidida a volta legal do Ernesto, com todos os riscos. Ernesto foi à embaixada brasileira, e concederam-lhe um passaporte brasileiro com apenas alguns dias de validade. Não havia como hesitar nem fugir da responsabilidade. O Jean Marc, a Carmela e outros passaram uma noite inteira com o Ernesto, considerando tudo o que podia ser feito e dando-lhe instruções para o interrogatório no aeroporto. Ernesto embarcou em um avião suíço, e em pouco tempo estava no Rio de Janeiro, onde foi recebido por seu tio Aurélio Mota e suas tias Rita e Betinha. Só foi entrevistado pelo Jornal do Brasil, em uma reportagem que lamentava muito o fato de ter ele trabalhado como torneiro na França. Depois de algumas horas no Rio, no apartamento do seu tio Aurélio, foi para o Ceará, onde estava havendo a reunião da SBPC. No aeroporto, a primeira a quem viu foi a Terezinha Zerbini, já visada de sua chegada. A família e muitos políticos de esquerda estavam lá. Saiu dali para a Praça do Ferreira, a principal de Fortaleza, onde discursou em um comício pela anistia, antecedido pelo Tarcísio Leitão e pela Maria Luísa Fontenelle. Voltava o primeiro exilado político para o Ceará. Não foi só o Ernesto quem lutou pela anistia no GTA do Ceará, nem ele nunca quis fazer transparecer isso. Apenas retifica uma estranha lacuna das suas informações policiais, que nada registram sobre seu trabalho pela anistia, tendo sido ele até preso e ocupado a Presidência do Comitê Brasileiro pela Anistia no Ceará. Maria trabalhou pela anistia em Portugal, e, principalmente, por ela trabalharam os presos políticos da ALN no Ceará, nas duras condições da luta na prisão. Houve desdobramentos, mas não perfeitos, pois a lei posterior de reparações reproduziu a desigualdade da distri-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 183

2009-08-06 08:16

184

Silvio Mota

buição da renda na sociedade brasileira, que era justamente contra o que os anistiados lutavam, e ainda não foi feita a punição dos torturadores. Pelo contrário, eles continuam poderosos. A tortura ainda existe metodicamente no Brasil, e quem tem sido condenado é quem a denuncia, numa total inversão de valores e como prova de que a atuação do Poder Judiciário é apenas mais uma peça da ditadura de classe que oprime o povo brasileiro sob o manto formal da democracia. Mesmo no campo dos direitos humanos, as vitórias do povo brasileiro foram muito parciais e a luta continua. Nela continuam empenhados os sobreviventes, da luta, da idade e das doenças, dos que formaram a ALN no Ceará. Até mesmo os mortos ainda lutam, com o seu exemplo e o seu sacrifício.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 184

2009-08-06 08:16

CAPÍTULO X

Considerações Finais

O

s termos delator e traidor aqui usados refletem categorias distintas. São chamados de delatores os que, sob tortura, revelaram integrantes e outras características da organização; de traidores os que colaboraram abertamente com o inimigo, passando para o seu campo e indicando companheiros para a morte e as torturas. Ninguém chegou a pagar por isso no Ceará. Temos provas de tudo o que foi afirmado anteriormente sobre delação e traição. O tratamento para os delatores variaria com os resultados da delação; o dos traidores só poderia ser a eliminação física. Aliás, nas condições da luta armada no Brasil, só era possível a aplicação de 3 punições: 1. A exclusão da próxima ação, ou suspensão, para as faltas leves; 2. A expulsão da organização, para os delatores que trouxessem prejuízos menores; 3. O justiçamento, a eliminação física, para os traidores e os delatores que trouxessem prejuízos mais graves; 4. As mesmas regras dos delatores eram aplicadas para os desertores. Se tivéssemos tido uma área libertada e mais segurança, não necessitaríamos ser tão draconianos, mas éramos um Es-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 185

2009-08-06 08:16

186

Silvio Mota

tado em embrião, e quanto mais frágeis são os Estados, mais severas são suas regras, como reconheceu o próprio Beccaria, enciclopedista considerado como pai do direito penal atual, em “Dos Delitos e das Penas”. A ALN, como organização, foi dissolvida muito antes da anistia, como admite o seu último comandante de GTA, que no final era toda a organização, Carlos Eugênio Paz. Houve esforços para sua refundação, mas não lograram êxito, sobretudo ante a perspectiva de re-democratização formal do país. Lamenta-se que não tenha gerado um movimento político, como foi o caso de muitos movimentos de libertação latino americanos. Esse fato só pode ser consequência da eliminação das suas lideranças mais experientes e da imaturidade da liderança sobrevivente. Ernesto se inclui nessa crítica, por não ter clareza do fato na época, embora resistisse à derrota. Poderíamos ter continuado a luta sob outras formas, em vez de, simplesmente, reconhecer a derrota. É preciso recapitular o que Marighella propunha para o povo brasileiro:

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 186

2009-08-06 08:16

Rebeldes

187

Chamamento ao povo brasileiro De algum lugar do Brasil me dirijo à opinião pública, especialmente aos operários, agricultores pobres, estudantes, professores, jornalistas e intelectuais, padres e bispos, aos jovens e à mulher brasileira. Os militares tomaram o poder pela violência em 1964 e foram eles mesmos que abriram o caminho à subversão. Não se podem queixar nem ficar assombrados de que os patriotas trabalhem para desalojá-los dos postos de mando que usurparam descaradamente. Afinal, que classe de ordem querem preservar os “gorilas”? Os assassinatos de estudantes em praça pública? Os fuzilamentos do “Esquadrão da Mote”? As torturas e os espancamentos no DOPS e nos quartéis militares? O governo desnacionalizou o país, entregando-o aos Estados Unidos, o pior inimigo do povo brasileiro; os norte-americanos são donos das maiores extensões de terra do Brasil, têm em suas mãos uma grande parte da Amazônia e de nossa riquezas minerais, inclusive dos minerais atômicos. Possuem bases de foguetes em pontos estratégicos de nosso território. Os agentes de espionagem norte-americanos, da CIA, estão dentro do país como se estivessem em sua própria casa, orientando a polícia em caçadas humanas aos patriotas brasileiros, e assessorando o governo na repressão do povo. O acordo MEC/USAID (acordo entre o Ministério da Educação e Cultura e a USAID norte-americana) vem sendo posto em prática pela ditadura, com o propósito de aplicar em nosso país o sistema norte-americano de ensino e de transformar nossa universidade numa instituição de capital privado, onde somente

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 187

2009-08-06 08:16

188

Silvio Mota

os ricos possam estudar. Enquanto isso, não há vagas e os estudantes são obrigados a enfrentar as balas da polícia militar, disputando com o sangue o direito de estudar. Para os operários, o que existe é o arrocho salarial e o desemprego. Para os camponeses, os despejos, a ocupação ilegal de terras, os arrendamentos usurários. Para os nordestinos, a fome, a miséria e a doença. Não existe liberdade no País. A censura é exercida para coibir a atividade intelectual. A perseguição religiosa cresce dia a dia, os sacerdotes são presos e expulsos do País, os bispos agredidos e ameaçados. A inflação segue desenfreada. Há demasiado dinheiro em poder dos grandes capitalistas, enquanto é cada dia mais escasso nas mãos dos trabalhadores. Nunca pagamos tão caros os aluguéis e os artigos de primeira necessidade, com os salários tão baixos e cada vez mais reduzidos. A corrupção campeia no governo. Não é de se estranhar que os maiores corruptos do país sejam ministros e oficiais das forças armadas. Membros do governo vivem como príncipes, praticando o contrabando e o roubo. Entretanto, os empregados públicos não recebem mais que um miserável 20% de aumento. Diante da escandalosa avalanche de mentiras e acusações terrivelmente injuriosas lançadas contra mim, não tenho outra atitude a tomar senão a de responder à bala ao governo e às suas asquerosas forças policiais, empenhadas em minha captura, vivo ou morto. Agora não será como em 1964, quando eu estava desarmado e a polícia disparou sem que pudesse pagar com a mesma moeda. As organização ultradireitistas assaltam, atiram bombas, matam, sequestram. Contudo, ninguém tem conhecimento de que o governo esteja perseguindo sequer um dos assaltantes ou terroristas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas).

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 188

2009-08-06 08:17

Rebeldes

189

A ditadura diz que existe um plano subversivo e uma conspiração dos políticos, privados de todos os seus direitos, para derrubar o governo. E fazendo uma caçada às bruxas, procura encarniçadamente o comando da subversão. Porém, o comando da subversão está no descontentamento popular, pois ninguém pode aguentar mais tal governo. O movimento que produz tanto pavor aos “gorilas” surge de baixo para cima. Não vem dos políticos privados de seus direitos, mas sim das entranhas do povo descontente, decidido agora a recorrer à força das massas para sua unidade e organização. Não derrubaremos a ditadura através de quarteladas, nem de eleições, redemocratizações ou outras panacéias da oposição burguesa consentida. Não acreditamos num parlamente conformado e submisso, mantido com o beneplácito da ditadura e disposto a ceder em tudo para que os deputados e senadores possam sobreviver com seus subsídios. Não cremos na solução pacífica. As condições para a violência nada têm de artificiais e estão criadas no Brasil desde que a ditadura se impôs pela força. Violência contra violência. E a única saída é fazer o que estamos fazendo: utilizar a violência contra os que tiveram a primazia em usa-la para prejudicar os interesses da pátria e das massas populares. A violência que anunciamos, defendemos e organizamos é a da luta armada do povo, concebida como guerrilha. Os “gorilas” pensam que a morte do Che na Bolívia significou o fim da guerrilha. Ao contrário, inspirados no desprendido exemplo do Guerrilheiro Heróico, prosseguimos no Brasil sua luta patriótica, trabalhando junto a nosso povo com a certeza na mente e a história a nosso favor.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 189

2009-08-06 08:17

190

Silvio Mota

O que acontece em nosso país é um vasto movimento de resistência contra a ditadura. E, de dentro dele, irromperam as operações e táticas guerrilheiras. E aceitando o honroso título de “inimigo público número um” que me foi outorgado pelo governo “gorila”, assumo a responsabilidade pela irrupção de tais operações e táticas guerrilheiras. Quem desencadeará os ataques vindouros, onde, como e quando serão desencadeados? Isto é um segredo da guerrilha que o inimigo em vão tentará saber. A iniciativa revolucionária está em nossas mãos. Já passamos à ação. Nada mais vamos esperar. Os “gorilas” ficarão num labirinto escuro até que sejam obrigados a transformar a situação política numa situação militar. Ao desencadear a revolução popular, utilizando táticas guerrilheiras, temos como objetivo organizar a guerra justa e necessária total do povo brasileiro contra seus inimigos. A guerra revolucionária no Brasil é uma guerra longa e não uma conspiração. Sua história já se escreve com o sangue dos estudantes nas ruas e nas prisões, onde os patriotas são torturados e aniquilados; na ação dos sacerdotes perseguidos, nas greves dos operários, na repressão aos camponeses, nas lutas das áreas rurais e dos grandes centros urbanos, envolvidos na violência. O destino das guerrilhas está nas mãos dos grupos revolucionários e na aceitação, apoio, simpatia e participação direta ou indireta de todo o povo. Para isso, os grupos revolucionários devem unir-se na ação de baixo para cima. Os revolucionários de todos os matizes e de qualquer filiação partidária, onde quer que se encontrem, devem prosseguir na luta e criar pontos de apoio para a guerrilha. Uma vez que o dever de todo revolucionário é fazer a revolução, não pedimos permissão a ninguém para praticar atos revolucionários e somente temos compromisso com a revolução.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 190

2009-08-06 08:17

Rebeldes

191

A experiência recente das lutas de nosso povo nos demonstra que o Brasil entrou numa fase de táticas guerrilheiras e ações armadas de todos os tipos, ataques de surpresa e emboscadas, captura de armas, atos de protesto e sabotagem. Manifestações de massa, comícios-relâmpago, manifestações estudantis, greves, ocupações, sequestro de policiais e “gorilas” para trocá-los por presos políticos. O princípio tático que devemos seguir agora é distribuir as forças revolucionárias para intensificar essas formas de luta. Mais adiante deveremos concentrar as forças revolucionárias para organizar planos e manobras. Na área rural ou urbana, dentro dos caminhos a serem escolhidos pelos revolucionários, existem três opções: atuar na frente guerrilheira, na frente de massas ou na rede de sustentação. Em qualquer uma destas frentes, é necessário que o trabalho seja clandestino, é preciso organizar grupos secretos, manter a vigilância contra a infiltração policial, castigar com a morte os delatores, espiões e batedores, não deixando filtrar nenhuma informação ao inimigo. Seja qual for a situação, é necessário ter armas e munições, aumentar a potência de fogo dos revolucionários e utiliza-la com acerto, decisão e rapidez, inclusive em pequenas ações como a distribuição de panfletos e pichações de muros. Entre algumas das medidas populares previstas para serem executadas de forma inapelável, com a vitória da revolução, executaremos as seguintes: -aboliremos os privilégios e a censura; -estabeleceremos a liberdade de criação e a liberdade religiosa: -libertaremos todos os presos políticos e os condenados pela atual ditadura;

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 191

2009-08-06 08:17

192

Silvio Mota

-eliminaremos a polícia política, o SNI (Serviço Nacional de Informações), o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e os demais órgãos da repressão policial: -depois de julgamento público sumário, executaremos os agentes da CIA encontrados no país, e os agentes policiais responsáveis por torturas, espancamentos, tiros e fuzilamentos de presos; -expulsaremos os norte-americanos do país e confiscaremos suas propriedades, incluindo as empresas, bancos e terras; -confiscaremos as empresas de capital privado nacional que colaboram com os norte-americanos e que se opuseram à revolução; -tornaremos efetivo o monopólio estatal das finanças, comércio exterior, riquezas minerais, comunicações e serviços fundamentais; -confiscaremos a propriedade latifundiária, terminando com o monopólio da terra, garantindo títulos de propriedade aos agricultores que trabalhem a terra, extinguindo as formas de exploração como a meia, a terça, os arrendamentos, o foro, o vale, o barracão (escravidão agrária), os despejos e a ação dos grileiros, e castigando todos os responsáveis por crimes contra os camponeses; -confiscaremos todas as fortunas ilícitas dos grandes capitalistas e exploradores do povo; -eliminaremos a corrupção; -serão garantidos empregos a todos os trabalhadores e às mulheres, terminando com o desemprego e o sub-emprego e aplicando o lema “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo seu trabalho”; -extinguiremos a atual legislação do inquilinato, eliminando os despejos e reduzindo os aluguéis, para proteger os

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 192

2009-08-06 08:17

Rebeldes

193

interesses dos inquilinos, assim como criaremos condições materiais para a aquisição de casa própria; -reformaremos todo o sistema de educação, eliminando o acordo MEC-USAID e qualquer vestígio de intromissão norte-americana, para dar ao ensino brasileiro o sentido exigido pelas necessidades da libertação de nosso povo e seu desenvolvimento independente; -daremos expansão à pesquisa científica; -retiraremos o Brasil da condição de satélite da política exterior norte-americana para que sejamos independentes, seguindo uma linha de nítido apoio aos povos subdesenvolvidos e à luta contra o colonialismo. Todas essas medidas serão sustentadas pela aliança armada de operários, camponeses e estudantes, de onde surgirá o exército revolucionário de libertação nacional, do qual a guerrilha é o embrião. Estamos nos umbrais de uma nova época no Brasil, que marcará a transformação radical de nossa sociedade e a valorização da mulher e do homem brasileiros. Lutaremos para conquistar o poder e pela substituição do aparelho burocrático e militar do estado pelo povo armado. O governo popular-revolucionário será o grande objetivo de nossa estratégia. Ódio de morte aos imperialistas norte-americanos! Abaixo a ditadura militar! Viva Che Guevara!

Carlos Marighella Brasil, dezembro 1968.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 193

2009-08-06 08:17

194

Silvio Mota

As críticas que circularam na discussão em Cuba de que o programa da ALN não era socialista não tinham a menor razão de ser. O que Marighella não fazia era descartar, a priori, setores sociais médios que sofriam com a ditadura terrorista da burguesia de uma aliança contra ela, não subordinava os interesses do socialismo aos dos eventuais aliados. Por mais que muitos reclamem, o patriotismo em um país como o nosso é muito diferente do patriotismo da I Guerra Mundial, e joga um papel revolucionário Inevitável seu apelo, até biológico, relacionado com a necessidade de território, e que tantas vezes se vê em tempos atuais, assumindo até formas tribais, racistas ou religiosas. Não cabe aos revolucionários fabricar inimigos onde pode encontrar aliados. O imperialismo não é só dos Estados Unidos da América, e ninguém está dizendo que é, mas sem dúvida, no caso do Brasil, é o inimigo mais próximo e por isso é citado. Na linha da ALN não se adotou, jamais, o foquismo, nem teorias estranhas como a do poder aglutinador das grandes ações armadas. Em suma, a linha política da ALN era mais que suficiente para fundamentar um movimento político, com as devidas adaptações táticas diante das diversas mudanças da situação política e da forma de dominação da burguesia. Dispersá-la foi um grave erro. A formação do MOLIPO foi um erro grave também, mas não se lhe pode negar o mérito de ter morrido em combate. Aliás, essa formação está muito ligada com a dissolução posterior da ALN, e a responsabilidade pelo erro tanto foi dos militantes que se amotinaram, como da direção da ALN que não lutou para discutir com eles e convencê-los, sabendo que viviam em um ambiente de falta de informações vitais para a tomada de decisões, como dos cubanos, os quais, pos-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 194

2009-08-06 08:17

Rebeldes

195

suindo as informações políticas de toda a situação, lavaram as mãos e não cumpriram com seu dever de solidariedade revolucionária, deixando-se levar por intrigas e permitindo um verdadeiro vôo de kamikases, o qual sacrificou os que poderiam ser os quadros com mais amadurecimento e experiência que a ALN necessitava para continuar a viver. Mas não é objetivo dessa modesta narrativa analisar a fundo a história da ALN nem muito menos da luta armada no Brasil; apenas a de contar a história de uma das suas unidades, o GTA do Ceará, para que não se perca da memória das gentes e possa guiar as gerações futuras. Quando os últimos integrantes do GTA do Ceará se viram livres, já não existia ALN como organização há algum tempo, embora eles tivessem continuado com sua luta e tentassem refunda-la. A tarefa se mostrou superior a suas forças e dispersaram-se por partidos políticos que abandonaram a luta pelo socialismo depois, e até por esperanças vãs de que os comunistas voltassem a se unir e combater. Devemos ter a coragem de dizer, a perseverança de continuar lutando pelo fim da exploração do homem pelo homem, a humildade de reconhecer nossas limitações, e a esperança no futuro e nas gerações que virão, às quais deixamos nosso legado de luta. Hoje em dia, houve transformações na situação política, econômica e social, tornando o mundo diverso daquele que existia em 1968. Foi dissolvida a União Soviética, caíram os governos populares da Europa, muitas vezes em bárbaros conflitos étnicos. O recente desenvolvimento científico acarretou mudanças sócio-econômicas estruturais nos países capitalistas.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 195

2009-08-06 08:17

196

Silvio Mota

A revolução eletrônica-informática substituiu a ferramenta pelo computador e pelo robô. O avanço da biotecnologia e da engenharia genética modificou a agricultura. O comércio, as finanças, a recreação e a investigação foram profundamente modificados com os progressos da informática e a transmissão de dados em tempo real. “Se a revolução keynesiana e a profunda transformação das instituições durante a Segunda Guerra Mundial foram necessárias para produzir o ciclo de ascenso do pós-guerra, inovações sociais, institucionais e políticas da mesma envergadura são necessárias para que se chegue ao ciclo de Ascenso da quinta onda larga. É necessário, entretanto, levar-se em conta, como víamos anteriormente, que existe uma inércia natural das instituições, reforçada por êxitos passados e interesses particulares e que essa inércia normalmente só pode ser vencida mediante a pressão social por mudanças políticas. Essa pressão geralmente surge como rechaço aos processos de polarização da riqueza, de empobrecimento e de marginalização que resultam da destruição criadora da economia.” (Marta Harnecker, “La izquierda em el umbral del siglo XXI” e Carlota Perez “The Social and Political Change”). Entenda-se. Não existe propriamente um determinismo tecnológico, às mudanças tecnológicas não corresponde necessária nem imediatamente a um conjunto de mudanças institucionais, mas sem dúvida se estabelece uma crise estrutural. Até mesmo há quem sustente, como o investigador cubano Pedro Monreal, que o desenvolvimento da tecnologia não é unidirecional e sempre existem tecnologias alternativas, e o processo de escolha entre as várias alternativas pos-

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 196

2009-08-06 08:17

Rebeldes

197

síveis reflete uma decisão socialmente condicionada. (Pedro Monreal, “Tecnología flexible y crisis económica”). Entendidos os aspectos acima abordados, existe uma tendência de mudanças na organização da produção nos países capitalistas, a qual pode ser resumida em quatro características: 1. Flexibilidade empresarial; 2. Substituição do fordismo e do taylorismo pelo toyotismo; 3. Emergência das práticas de subcontratação e das redes multidirecionais; 4. Aliança entre as grandes empresas. A flexibilidade empresarial é caracterizada pela realização dos objetivos da empresa por vários caminhos e maneiras. O taylorismo e fordismo, das grandes cadeias de montagem, foi substituído pelo toyotismo, que consiste na produção por um núcleo estável e altamente qualificado, sendo as funções periféricas delegadas a trabalhadores precarizados. A sub-contratação é consequência direta da prática do sistema toyotista, sendo a forma preferida para as funções periféricas, as redes multidirecionais substituem as grandes empresas centralizadas e especializadas. A aliança entre as grandes empresas simplesmente continua a tendência já anteriormente existente da concentração do capital. O novo paradigma organizacional substitui a empresa centralizada pela empresa rede ou empresa horizontal, a qual consiste em vários empreendimentos, podendo inclusive estar, geograficamente, separados, e com vários tipos de produção, unidos em torno de um objetivo comum, formando um

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 197

2009-08-06 08:17

198

Silvio Mota

todo empresarial. O novo padrão é a formação de grandes redes mundiais, com controle descentralizado e terceirização dos serviços menos importantes. Por outro lado, a globalização, nova fase de internacionalização do capital, implica em: 1. Desregulamentação dos mercados; 2. Queda da autonomia das economias nacionais; 3. Centralização e concentração do capital industrial. E o projeto político neoliberal, a chamada democracia autoritária, é caracterizado por: 1. Destruir as conquistas dos trabalhadores; 2. Busca da governabilidade com a instituição de uma fachada democrática com fundo autoritário; 3. Fabricação do consenso; 4. Utilização do consumismo como forma de domesticação das massas; 5. Emergência de órgãos governamentais permanentes não submetidos a eleições populares para a consecução da estabilidade do sistema. O próprio Mikhail Gorbachiov se referiu aos efeitos desregulamentadores, antinacionais e centralizadores da globalização já em 1987 (Gorbachiov, “Outubro e a Perestroika”) apesar de muito ter contribuído para sua difusão e o fim da política do Estado do Bem Estar Social. Aliás, a máfia russa, instrumento da acumulação primitiva do capitalismo russo, adota o padrão organizacional das empresas horizontais, e o amortecimento da luta de classes. Não é mais necessário para as empresas respeitar as conquistas dos trabalhadores e seduzi-los com assistência médica, previdenciária e social. Com o enfraquecimento político nacional e internacional dos trabalhadores resultante da queda de modelos onde eram hegemônicos e da queda da

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 198

2009-08-06 08:17

Rebeldes

199

autonomia das economias nacionais e o aumento da produção e da exclusão social, hoje basta fabricar o consenso com a utilização do consumismo como forma de domesticação das massas. A governabilidade é buscada em um processo que pode até atingir garantias individuais fundamentais. “A sociedade civil necessita da ordem para sobreviver; o mercado, sua outra face, reclama segurança e certeza jurídicas, a fim de que suas relações possam fluentemente reproduzir-se.” (Eros Grau, “Déspota de si mesmo”). Assim, logicamente impõe-se afastar do controle das massas e tornar imunes aos votos do povo órgãos permanentes, como o Banco Central, a Receita Federal, o Poder Judiciário. Pela lógica do sistema, tais órgãos devem ter autonomia em relação aos eleitores e rígida hierarquia interna. São efeitos da globalização neoliberal sobre os setores populares: 1. O desaparecimento das fábricas baseadas em cadeias de montagem; 2. A flexibilização da produção; 3. A contração da classe operária industrial; 4. O aumento do desemprego e da marginalização e da exclusão social. “Na atualidade, pela primeira vez, o trabalho humano está sendo paulatina e sistematicamente eliminado do processo de produção (...) Uma nova geração de sofisticadas tecnologias das comunicações e da informação irrompe em uma ampla variedade de postos de trabalho. As máquinas inteligentes estão substituindo, pouco a pouco, os seres humanos em todo tipo de tarefas, forçando a milhões de trabalhadores de produção e de administração a formar parte do

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 199

2009-08-06 08:17

200

Silvio Mota

mundo dos desempregados, ou pior ainda, a viver na miséria (...) Alguns dos nossos mais importantes dirigentes, assim como alguns dos nossos mais representativos economistas dizem-nos que os dados do desemprego representam ajustes “a curto prazo” produzidos por importantes forças do mercado (...) Na verdade entramos em um novo período da história no qual as máquinas substituem, cada vez mais, aos seres humanos nos processos de fabricação, de venda, de criação e de fornecimento de serviços (...) (Jeremy Rifkin, “The end of work”). Assistimos ao aumento da flexibilidade laboral, com o estabelecimento de núcleos estáveis com elasticidade periférica. A flexibilização atinge: 1. À posição ocupacional; 2. Aos salários; 3. Ao tempo de trabalho; 4. À mobilidade geográfica; 5. À segurança contratual. 6. Às tarefas realizadas. A flexibilização atinge à posição ocupacional suprimindo a garantia de cargos na empresa, propiciando a utilização do mesmo trabalhador em várias funções;atinge aos salários e tempo de trabalho possibilitando uma redução por livre negociação, na qual sempre prevalecem as pretensões empresariais, ante a hipossuficiência econômica dos trabalhadores; à mobilidade geográfica com a produção geograficamente distribuída em vários lugares, forçando o deslocamento da mão de obra; à segurança contratual e às tarefas realizadas com a precarização geral dos contratos de trabalho e a restrição da estabilidade ao núcleo altamente qualificado e flexível característico do sistema toyotista de produção.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 200

2009-08-06 08:17

Rebeldes

201

A recente crise financeira mundial até agora só fez aumentar os efeitos dessas funestas mudanças na situação dos trabalhadores. Os fatos históricos, uma vez passados, são definitivos. Mas deles deve aprender a Humanidade. O que fizemos não pode ter sido em vão, mas sim um caminho para os que virão, e por isso torna-se indispensável apontar as principais mudanças sócio-econômicas havidas no sistema de exploração capitalista. Para que as levem em conta ao planejarem seu caminho, qualquer que seja a via, armada ou pacífica, possível e escolhida, no tempo em que for possível escolher. É claro que não se prega a luta armada contra o atual governo, em vista das possibilidades pacíficas de luta ainda existentes. A luta armada só é possível quando todas as outras vias estiverem fechadas ao povo, com a ditadura terrorista da burguesia. Não se trata aí de que devamos respeitar o estado democrático de direito, porque no Brasil, com tanta desigualdade social, não existe estado democrático senão formalmente, e, estado de direito por estado de direito, o III Reich também era um, como reconheceu o jurista Hans Kelsen. Parafraseando Lênin, o que importa é que os de baixo não aguentem mais, e que os de cima não possam segurá-los. Às vezes, como ele também disse, é preciso um século para que a luta pela libertação da exploração do homem pelo homem avance um dia; outras vezes, essa luta avança um século em um dia.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 201

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 202

2009-08-06 08:17

Rebeldes

203

GLOSSÁRIO

ERNESTO - Sílvio de Albuquerque Mota SANTA CRUZ - José Sales de Oliveira ACAUÃ - Fabiani Cunha GUILHERME - Francisco William Montenegro Medeiros MAURÍCIO - Adolfo Calvano SERTANEJO - José Jerônimo de Oliveira GIORDANO -Valdemar Rodrigues de Menezes MARIA - Moema São Thiago HOMEM SÉRIO - João Lacerda OLAF - Daniel Herrera ED - Swami Cunha CURUMIM - Marcos Nonato da Fonseca JOEL - Antônio Benetazzo CARMEM - Zilda de Paula Xavier Pereira ARIEL - David Farias STAKHANOVISMO - movimento político dos operários comunistas nos países socialistas para mudar a metalidade do trabalho alienado dos outros operários pelo trabalho em prol da sociedade, inclusive trabalho voluntário, a partir do próprio exemplo. Fortaleza, 25 de março de 2009.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 203

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 204

2009-08-06 08:17

Rebeldes

205

Para Ana Maria Bezze ( e todos os revolucionários e revolucionárias)

Pensando bem O que é que importa o amor? A dor, o que importa? A culpa por estar vivo é natural O tempo e o espaço São relativos O que importa é que sejamos Galhos Caule Raízes Da grande árvore que será Um dia Com certeza Justiça E liberdade para o povo.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 205

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 206

2009-08-06 08:17

ICONOGRAFIA

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 207

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 208

2009-08-06 08:17

Rebeldes

209

Silvio de Albuquerque Mota, na TV de Nova Yorque, como participante do World Youth Forum. Na volta ao Brasil, entrou para o PCB. (1963)

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 209

2009-08-06 08:17

210

Silvio Mota

Moema São Thiago, deputada Constituinte, logo após a publicação da Constituição de 1988

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 210

2009-08-06 08:17

Rebeldes

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 211

211

2009-08-06 08:17

212

Silvio Mota

José Ferreira Lima

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 212

2009-08-06 08:17

Rebeldes

213

Cartaz de propaganda da ALN

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 213

2009-08-06 08:17

214

Silvio Mota

Passaporte de Silvio Mota, com validade apenas para voltar ao Brasil, antes da anistia.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 214

2009-08-06 08:17

Rebeldes

215

Carteira de Trabalho de Silvio Mota na França, como vigia noturno.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 215

2009-08-06 08:17

216

Silvio Mota

Passaporte de refugiado da ONU de Silvio Mota.

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 216

2009-08-06 08:17

Rebeldes

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 217

217

2009-08-06 08:17

218

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 218

Silvio Mota

2009-08-06 08:17

Rebeldes

219

Barretinho

Carlos Tmoschenko

Gilberto Telmo Sidney Marques

Fabiani Cunha

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 219

2009-08-06 08:17

Silvio Mota

220

Jane Vasconcelos

José Bento da Silva

José Jerônimo de Oliveira

José Sales de Oliveira (Santa Cruz)

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 220

2009-08-06 08:17

Rebeldes

221

João Xavier de Lacerda

Moema São Thiago

Valdemar Menezes

William Montenegro

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 221

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 222

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 223

2009-08-06 08:17

Silvio rebeldes 2 (revisado).indd 224

2009-08-06 08:17

Related Documents


More Documents from "Moises Pineda D"

February 2021 2
January 2021 4
Allouch La Escena Lacaniana
February 2021 0
4.5 Casos De Estudio
January 2021 2