A Logoterapia Em Contos.pdf

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Leg A LOGOTERAPIA CLAUDIO GARCIA' PINTOS

rwícmww GARCIA' PINTOS

A LOGOTERAPIA EM CONTOS O livro como recurso terapêutico

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PAULUS

Título original La Iogoterapia en cuentos © San Pablo. Buenos Aires. Argentina. 1996. Tradução Thereza Christina F. Stummer Revisão Iranildo B. Lopes

Ãymadedamd A Iamara, Elizabeth, Antonio Carlos, GabrieL Elisabeth, por me haverem permitido publicar os seus trabalhos. Ao meu amigo Luiz Falcão, porque, com essa mescla de m'ocência e genialidade, alegra 0 meu espín'to com tudo o que escreve. \ A Coco, pela sua nobreza. A Doutora Martha Iglesia, por tudo.

A Fátima, porque no seu coração sempre encontro amparo e luz. AAgustín e Federico, que enchem a minha vída de amor, alegria e projetos. AJavier e Macarena, meus ñlhos do coração. A Graciela, porque nela sempre encontro o calor de que necessito para ser feliz.

© PAULUS - 1999 Rua Francisco Cru2, 229 04117~091 São Paulo (Brasi|) Fax (011) 570-3627 Tel. (011) 5084-3066 httpzllwww.paulus.org.br dir.editon'[email protected] ISBN 85-349-1343-9 ISBN 950~861-256-8 (ed. original)

quuwe este livro na parte doente do paciente e a cura pode ser milagrosa. ” Leopoldo MARECHAL Escñlor argentino (l9001970)

INTRODUÇÃO

Sobre a biblíoterapia A dor, a pena, o sofrimento, são alternativas cotidíanas e comuns à natureza e à realidade humana. Constituem pressupostos básicos da exístência do homem, de tal modo que negálos ou crer que podem ser erradicados e', em última análise, uma utopia que, caso se concretizasse, de1x'aria a existência mesma sem sustento. Não se trala de uma apologia do sofrimento, mas de añrmar a sua inegável realidade e a sua inevitáv vel presença no honz'0nte humano. Cada dia somos mais hombardeados com a idéia e a suposta solução de uma vida prazerosa, hedonista, livre de sofrimento e pesar. Se você dirige determinado automóveL ou se toma determinada bebida ou fuma aquele Cigarro, se usa este creme contra 0 envelhecimento ou viaja para aquela praia da moda, enñm, parece haver tantas maneiras de se chegar a experimentar a “plenitude do prazer” terreno “isento” de sofrimento que é uma tolice sofrer, fazêlç como se a pessoa realmente fosse um ser humano. E que curiosamente esquecemos a nossa própria realidade humana, a eSVdZ'ÍamOS, ou acabaremos por esvaz'ia'-la, daquilo que a redime ou que a eleva, lhe dá identidade como humana. Nós a esvaziamos de valores.

A vida humana é uma realidade dinam^ica, vale dlz'er, em movimento, em permanente mudança. Mas se desenvolve em um honz'onte de valores que se mamf'estam como realidades permanentes e estáveis, eternas. O amor será sempre 0 amor; a s<› lidariedade, o respeito, a famüia, et cetera, sempre representarão um mesmo conteúdo. Mas não é verdade que vão mudando como passardo tempo? Por exemplo, os meus avósv1v'eram o amor de forma d1f°erente daquela que o viveram os meus pais e am'da muito mais d1f'erente de como o vivo hoje. E então, os valores são estáveisP Os valores são permanentes como bensem~si. O que tem mudado ou mod1íi'cadoé a manelra' de encarálos ou m'terpretálos. E isso ocorre não somente de época para época ou de geração em geração, ocorre também de m'dívíduo para m'dív1'duo. Quando escolho um valor, um bem.em-sí, o constituo algo meu, um bem-em-si-para-mim, e ele adquire então matxz' pessoa1, m'dividual, sm'gular.A351m', ele conclama somente a mun'. Desta maneira, os meus valores constituem o fundamento mais estável, continente da dinâmica vital. Esta saída ao encontro do va10r, esse pressuposto fundamental e básícol é estimulada pela minha natural necessidade de descobrir sentido em tudo aquilo que devo viver. Vale dlz'er que palpita em mim uma necessidade, uma verdadeíra fome de sentido tão natural à minha humanidade quanto a minha fome de alimento, de conhecnm'ento, de afeto, e assim por diante. Talvez não seja necessário, mas mesmo assím torna-se indispensável recordar agora a defmição do homem enunciada por Frankl, apresentando-o como “buscador de sentido”. A partir da sua própria realidade tñdímensionaL convivem no homem três apeütes fundamentaisz a) da suad1m'ensão biológica surge o apetíte do corpo, orientado para o abrig0, o al1m'ent0, a sexuah'dade, 0 movimento etc. b) da sua dimensão psicossocial surge o apetite do Eu, orientado para a obtenção de vínculos estáveis (casal, amigos, familia, Deus), ao conhecimento, ao saber, êxitos peslSegundo Karl Jaspers. o homem acaba sendo tal homem conforme a causa que abraçar na vida.

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soais (proñssão, posição socioeconômica e cultural etc.), cresciment0, participação em grupos de diversos tipos etc.; c) da sua dimensão espiritual surge o apetite da pessoa, orientado especial e especmcamente para a descoberta e a posse de valores (“alimento” ou objeto de satisfação especíñco e concreto deste apetite espiritual). Assim como não posso satisfazer a necessidade concreta de pão com um valor, porque o apetite do corpo reclama um objeto concreto de satisfação (fome = comida), não posso satisfazer as necessídades concretas do espírito com pão, quando na realidade elas são satísfeitas com valores.2 De modo que este esvaziamento de valores tem um efeito trágico e duplo: a) por um lado, substitui as necessidades reais e pessoais dos indivíduos por necessídades implantadas, enxertadas e un1f'0rmlz'adas. Deste m0d0, todos nós necessítamos da mesma coisa ao mesmo tempo e, quando acreditamos que chegamos à “plenitude do prazer”, nos apresentam nova necessidade, e assim a hístória continua. A conseqüência mais imediata é de nos manter então em estado permanente de insatisfaça'o. Sempre aparecerá algo novo de que necessitamos Ie que não temos. E como se vivêssemos em cultura peculiar que fez do consumo valor traiçoeiro. Eu 0 defmo como “traiçoeiro" porque, muíto embora consumír nos faça sentir mais (p0r exem~ plo, mais status), nos oculta que nessa corrida consumista na realidade nos consumimos a ponto de viver esse próprio consumo com angústia e insatisfaçã0. A teoria do marketing, com 2 Cerlamenle poderíamos recordar aqui diversas teorias conhecidas subre as necessidades. Poderíamos igualmente cilar as próprias reflexões de Frankl a respei~ to da vivência nos campos de concentração relatando históñas dele próprio e de companhciros que u'raram - Iiteralmente - o pão da boca para dá~lo ao companheiro doenle. Mas o que qucro dizer é que, muito embora em função de um valor supen'or eu possa ürar o pão da boca para dá-lo a outra pessoa. mesmo estando faminto - como aconteceu reiteradas vezcs nos relatos cilados -, isso não sng'mñ'ca que a fome desapareça ou que o corpo ñque mtisíeita As necessidades básicas de alimento permanecem inmüsfeitas 0 homem ou a pessoa na sua unidade integrada e em função da sua natureza espiritual pode redimir esm necessidade insaüsfeita do corpo, dar-1he uma intcnção, dar-lhe ou descobrir-lhc um senlido; mas em si mesma, enquanto taL a fome se satisfaz com pa'0.

as suas estratégias de venda agressiva, parte de fazer o comprador potencial (isto é, todos nós) ter uma sensação de insegurança, deslocamento, ansiedade e marginalização. Slogans tais como: “Como, você ainda não 0 experimentou? Se não dirigiu este automóvel, não sabe o que é dirigir. Não pode delx'ar passar esta oportunidade de te-^lo, por sorte, agora pode te~^lo” etc., conseguem nos fazer sentir à beira de ñcar fora da nova cultura do mçvimento ou da “onda”, como se costuma dxz'er atualmente. E assim que me esforço para “experimentar” o que quer que seja, “dirigir” este automóvel e “ter” o que tiver de ter, embora não saiba muito bem para que fazer aquilo. E tudo isso serve para vender desde um lote em cemitério particular até uma semana de tempo compartilhado em Miami ou Cancún, passando por guloseímas, roupa de ba1x'o, automóveis, e a Bíblia. Cria-se assim uma cultura de insatisfeitos, que nunca verão “preenchidas” as suas necessídades. Nos nossos dias temos o exemplo dos telefones celulares: quanta gente que os ostenta na realidade precísa deles? Andando pela cídade, vi um homem parado numa esquina falando ao mesmo tempo em dois telefones celulares, e algumas vezes os ouvi tocar em lugares inesperados, c0m0, por exemplo, no meio de uma missa. Isso responde a uma necessidade real ou criada? Será esta a cultura do “homem un1'dimensional” de Marcuse? b) Acredito que 0 sentido pode ser defmido como algo semelhante a um “princípio de coerência". Quero dizer, marca uma orientação e umñ'ca os meus esforços em direção do desenvolvimento e interpretação desse valor sigmñ'cativo. Primeiro se gera a vivência de ínsatisfação, mas é insatisfação que não tem a possibilidade nem o destino de ser saüsfeita, muito pelo contrário. O esvaziamento ou deslocamento dos valores por esses “subsütutos padronizados” que pretendem umf'ormlz'ar as nossas necessidades, resta-nos a possibilidade m'dividual e pessoal de orientar sigmñ'cat1'vamente a nossa própria exístência. Cria-se assim uma cultura dos “pequenos amores”, porque faz com que nos apa1x'onemos (isto é, disponhamos de toda a nossa existência em função de

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alguma coisa ou de alguém) por um automóveL um perfume, uma lavadora elétrica ou qualquer quínquilharia. Mais ainda, porém, esse amor não apenas é “pequeno" em função do signiñcado (peq,ueno) do seu objeto, mas, porque dura pouco, é muito frágiL E muito intenso quando surge, mas no momento de ter esse automóveljá pensamos e olhamos com carinho o novo modelo que acaba de sair, diminuindo sensivelmente a pos,51'b1'lidade de desfrutar deste que temos. E assim que, quando os valores perdem o seu poder simgular de apelo e em seu lugar aparecem substitutos padronizados, perco este princípio de coerência. Deste modo, agora à insatisfação vem se somar a “falta de integridade”, aquela que me concede presença na vída para viver, cncarar e superar, transcender os pressupostos básicos da própria existe^ncia. Este duplo efeito (ínsatisfação e falta de integridade) é “trágico”, porque concerne sensivelmente à vida do homem, afastando-o da possibilidade de descobrír o senüdo singular da própría existência. Surge a partir daí um vazío que muitas vezes é “preenchido" com neuroses, desespero, desesperan~ ça, dloença. E freqüente encontrar na prática clínica índeuos doentes por causa da frustração da vontade de sentido. Muito embora isso seja associado conceitualmente e de maneira ime~ diata a Viktor Emil FrankL vale recordar que outros autores e pesquisadores também conseguiram vislumbra'-lo e até mesmo sistematizá-lo como entidade nosológica. Tomemos, por exemplo, Karl Gustav Jung, 0 qual defmia que aproxima~ damente um terço dos seus casos não sofria de nenhuma neurose clinicamente defmíveL e sim mais exatamente da falta de propósito na sua vida; assinalaremos também Nicolau Hobbs, Salvatore Maddi ou Benjamín Wolman, que falam de uma “d0ença existencial” ou de uma “neurose existencial”, derivada da incapacidade de responder à pergunta sobre o sentído da vida. Somemos a estes exemplos a obra de autores como Allport, May, Rogers, Fromm, Jaspers, Adler, entre outros.

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Neste ponto das reflexões, me pergunto então: como o terapeuta desempenha 0 seu papel nestes casos? Que fmalidade ou sentido adquire então a terapia? Quais os elementos que podem constituir recursos terapêuticos? Na contínuidade destas reflexões não se pretende dar respostas acabadas a essas perguntas. Talvez se consiga m'corporar no leitor um espaço novo e aberto de inquietudes, mais do que um círculo fechado de respostas e fórmulas. Focalizarei especialmente a letra, o livro como um possível recurso terapêutico e apresentarei exemplos concretos de prosa e poesia, que não esgotam a projeção maravilhosa de todo o material que pode ser usado neste sentido. Viktor Frankl falou e insistiu nas suas Reflexões a respeito do valor do livro como recurso terapêutico, assentando as bases de uma verdadeira bíbliotempía. Nestas reflexões pretende se particularizar uma biblioterapia aplicada, em ação, uma “10goterapia em contos”.

1a PARTE A LOGOTERAPIA EM CONTOS

O ser humano é um ser sempre “incompleto”, que vive e luta para se completar. Vai alcançando 0 seu objetivo ao longo da vida, de muitas maneiras, muito especialmente através e a partir dos vínculos que vai constituindo. Assim, as relações familiares, sociais, de trabalho e os seus vínculos com a cultura o vão “integrando” como se fossem abraços que, ao apertá-lo, o unem cada vez mais nas suas próprias partes constitutivas. Dentro desta trama de relações, a relação terapêutica adquire tonalidade muito especial. Ela se insere no grupo das relações de ajuda assumindo características próprias entre todas elas. Muitas vezes se propôs o papel do terapeuta como uma espécie de observador analítico, aquele que, tomando distância, observa o paciente e sua situação daquela perspectiva e a analisa na sua estrutura e na sua dinâmica. Desse 1ugar, funciona como uma espécie de intermediário entre os seus aspectos não conhecidos e a possibilidade de conhece-^los e 0 cumpre fundamentalmente através da interpretação. A realidade do processo de interpretação assume al-

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guns traços que, evídentemente, não bastam para invalida'lo como recurso e técnica. De qualquer forma, vale a pena assinalar esses traços, Clr'cunstan^cia que resumo no seguintez mui~ tas vezes os conteúdos inconscientes do paciente nada mais são do que a projeção das teorias conscientes do terapeuta. Vale dizer, ñltro os meus próprios conteúdos pela trama das minhas teorias e acabo sem poder deñnir Claramente o que realmente está acontecendo com ele e aquilo que a minha teon'a d12' que deve acontecer com ele. Como ocorre com toda “interpretação”, a ñdelidade da coísa interpretada está sujeita à subjetividade daquele que interpreta. Torno a repetir que com isso não estou depreciando nem invalidando a prática da interpretação; aponto o que na minha opinião são os seus riscos. No outro extremo talvez do exercícío do pape1, temos a proposta do terapeuta como modelo que praticamente se institui um “educador” que impõe uma atitude de vida ou resposta. Ora, o rísco de imposição exemplar ou paradigmática é modelar com umf'ormidade as respostas dos outros como se fossem iguaís, e obrigados a responder de maneira idêntica. Em ambos os casos se perde a individualidade do outro. Em um ou em outro extremo é possível que encontremos terapeutas que, dando diariamente muitas consultas, parecem estar dando uma só, pois terminam todas elas dando a mesma resposta padronizada. Agindo assim, no meu entender, posso não cumprír com a intenção terapêutica de que 0 paciente descubra 0 “seu dever ser" para seguí-lo e cumpri-lo. Se corro o risco da primeira modalidade, acabarei devolvendo a ele um dever ser relativamente certo, algo assim como o reflexo distorcido que nos devolvem os espelhos truncados dos parques de diversões, nos quais chego a me ver mais gordo, mais magro, mais alto ou mais cambaio. Esta distorção se produziria quando se c0nfunde o seu conteúdo com a minha teoria. No segundo caso, o “seu dever ser” se vê substituído por uma forma obrigada ou imposta de ser que até pode se mamf'estar contrar1"a à sua própria intencionalidade. O ideal

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seria poder funcionar, em tal caso, como um fe1x'e de luz que o ajude a ver os contornos do seu dever ser com boa ñdelidade, estimulando a descoberta da sua intencionalidade, promovendo a “conscie^ncía do dever”, e não a “consciência da 0br1',cgaç.al”o”.3 Poderíamos chamar esta modalidade de terapeuta facilitad0r. Mas, é claro, a ñm de evítar confusões, cabe esclarecer que falamos de “facilitador” não no sentido de fazer as coisas mais fáceis para o paciente, mas no de prover (facilitar). Como terapeuta, deve procurar lhe dar os meios para que possa se conectar com o seu dever ser e desenvolver a sua consciência do dever, para garantir o seu cumprimento, para seguir a sua orientaçã0. Lembremos que “terapia” deriva do latim therapeuticaorum (tratado de medicina) e do adjetivo derivado therapeutiko's, que sigmñ°ca serviça1, que cuida de algo ou de alguém Do mesmo modo se segue 0 verbo therapeutes, que signiñca “eu cuido”. Do grego também temos a acepção therapeuo, que signiñca servidor. Quer dizer que o nosso papel como terapeutas é estar a serviço dessa tarefa pessoal do paciente, facilitando, provendo as situações e os recursos que lhe podem servir para esse ñm. Ora, para muitos, esta defmição do papel do terapeuta o põe em posição secundáría ou de menor peso dentro da relação terapêutica. Para responder a esta questão devería-

3 Entendo por consciência da 0bn'gação aquele caso em que a lei está fora de m¡m, ao passo que a consciência do dever é introjetada. Por exemplo, quando imponho ao meu ñlho pequeno que não ponha os dedos na tomada. ele não o faz, obedccendo a esla lei, que está fora dcle. Não o faz porque é “obn'gado" a se absten Quando cresce. se dá conta do dever de faze-^lo. circunstâncía diante da qual decide se abster; mas esse “se dar conta", essa consc*íência o lcva a se apropñar do direito de legislm e e' então que não o fu porque uma “lci pr0'pn'a” aSSim o indica. Evoluüvamentc, então, primeiro aparece a consciência da obrigação e posteñormente a consciência do dever, sendo esta u'1u'ma. em termos de matun'dade, mais elaborada. 0 apwecimenlo da segunda não invalida a primeira, mas esta ñca sob o domínio ou suprcmacia daquela. A consciência do deven ass¡m. marca o canünho que resolve, ñnalmente, a tensão entre o ser e o dever ser. 0 grau de contato ou de conexão com essa consciência termina sendo um indicador de saúde. Como teslemunha o generalJosé de San Martín à sua nela através de uma das suas máxímas, bem poden'amos recordar aquela de que você será o que deve ser ou não será nada.

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mos nos deter na seguinte perguntaz quem cura e quem sara? Talvez, entre os principais defeitos que nós, terapeutas, devamos superar, um deles seja, por assim d12°er, a onipotência. Este espaço do poder que é em parte atribuído pela própria cultura apresenta algo parecido com o feiticeiro da tribo. Por outro lado, o manejo da verdade (neste caso, a verdade pessoal do paciente) sempre confere certo atributo de poder. Essa idéia generalizada de que o terapeuta conhece mais do paciente do que este conhece de si mesmo, e, pior ainda, que somente chegará a se conhecer à medida que o considere oportuno, acentuou esta posição privilegiada e poderosa. Obviamente a compartilho apenas relativamente e com reser~ vas, e preñro partlr' da certeza de que quem mais conhece o paciente e a sua círcunstan^cia é o próprio paciente, ao passo que o terapeuta acaba por acompanhá-lo no caminho de descoberta de si mesmo, mas não lhe dizendo quem é, mas, o que é melhor, por onde pode chegar a sabe-^10. Não vamos fechando respostas, mas abrindo caminhos. Por qualquer razão que seja, é um defeito que muitos de nós precisamos superar. E, em virtude disso, muitas vezes temos d1ñ'culdade em d1f'erenciar duas coisas: “curar” e “sarar”. “Curar”, do latim cura, signiñca dar assistência a um doente. Dar-1he os meios e recursos adequados para que possa recuperar a saúde. Mas “sarar”, do latim sanus, signiñca recuperar o juízo, 0 critério, a sensatez. A partir daqui, parece ñcar bastante claro o seguinte: com relação ao indivíduo doente, curar é um processo ou prlocedimento que se origina e se dirige de fora para dentro. E ordenado e conduzido por terceüo (0 médico ou terapeuta), que assume o papel de agente e se sustenta ou desenvolve com relação ao indivíduo, que assume o papel de paciente. Este ato de “curar” se comple menta necessariamente com 0 de “sarar”, que, como processo e com relação ao indivíduo doente, se produz e se concretüa de dentro para fora. Neste caso, é ordenado e conduzido pelo própn°0 indivíduo, que acaba sendo, entã0, o agente e o paciente do mesmo processo. Vejamos:

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Êz

_› EU TE CURO

MÉDICO / TERAPEUTA

ENFERMO

Ambos os processos (curar + sarar) se complementam no ato perfeito do restabelecimento da saúde, física ou psíquica. Vale d12'er que os médicos/terapeutas curam, mas que o próprio indivíduo é que sara a si mesm0. A possibilidade de curar chama o proñssional à responsabilidadc de reallzar' diagnóstico adequado e ordenar os meios e recursos mais expeditivos em função da recuperação do paciente A possibílidade de sanar chama o indivíduo ao desdobramenlo do poder desañador do espírito a ñm de se opor à desordcm que a sua doença implica. Na complemcnlação de ambas as respostas, repit0, reside a possibilidade de reslabelecimento. Mu¡tas tentativas terapêuticas de cura fracassam por falta da vontade de sarar do indivíduo doente e, muitas vezes. mornos ou vagos esforços terapêuticos alcançam resultados surpreendentes em função de um poderoso desaño à adversidade mobilizado pelo doente. Daí, seguese que a principal responsabilídade do proñs~ sional é certamente ordenar ns recursos e meios terapêuticos não pensando somente no quadro clínico, mas também cstimulando e promovendo que se ponha em marc11a, use esse poder desañador. Contar com essa energia é fundmnental para que o ato seja plen0, mas é o próprio doenle quem deve trazê la. Quantas situações de doença acabam se resolvcndo lanlo ou mais por causa do temperamento do paciente do que pelo plano ou pela perícia do terapeula? Quantas outras fracaswm pelo mesmo motiv0?

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Nesta linha de pensamento, acabamos por compreender que são muitos os meios e recursos que podemos utilizar como terapêuticos. Tantos quantos nos lembrarmos. Tantos quantos possam servir para estimular ou promover essa vontade de sarar do indivídua Nessa ótica podemos então colocar 0 livro como um desses recursos válidos.

Para uma biblioterapia No ano de 1977, o professlor doutor Viktor Emil Frankl m'augur0u a Feira do Livro da Austria com uma conferência sobre o livro como recurso terapêutico na qual defendeu a possibilidade de cura através da leitura. Na oportunidade assinalou, até casuisticamente com histórias nas quais um livro pode mudar a vida do leitor, casos nos quais um livro salvou uma vida, fazendo o leitor desistir da idéia de se suicidar, 0u~ tros em que pessoas no seu leito de doente se viram reconfortadas pela leitura. Comenta igualmente 0 caso de pessoas que, estando presas, melhoram a sua atitude de vida por intermé~ dio de um livro. Cita, por exemplo, o caso de Mitchell, um preso de San Quentin, em San Francisco, sentenciado à pena de morte na cam^ara de ga's. Intekado de tal circunstância por ocasião de uma palestra para presidiários, Frankl 0 convida a descobrir o sentido da sua vida, mesmo estando às vésperas certas da sua morte. Até 0 alenta de alguma maneira a leitura da obra de TolstoiA morte de Ivan Illitch. A personagem de Tolstoi vive uma circunstância semelhante à do presidiário. Tempos depois, Mitchell foi conduzido à câmara de gás e a condenação foi executada. Lendo uma entrevista que concedeu ao Chronícle de San Francisco, alguns dias antes do cumprimento da sentença, podia-se perceber que a mensagem de Tolstoi havia sido captada por aquele homem que, embora não tivesse podido evitar a condenação, pôde evitar recebê-1a em meio ao vazio e ao desespero.4 4 FrankL Viktor E., Psicoterapia y Humam'smo, Fondo de Cultura Económica, México, 1984, pp. 100~10L

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0 que é então que ali se defende? O valor terapéuüco do livro. Pois bem, como se deve entender isso? Vejamos:

1) o QUÊ? Por “biblioterapia” devemos entender, então, n utilização terapêutica do 1ivr0, mas tomando por tal (livro) não só e estritamente “um 1ivro”, mas estendendo a idéia a toda letra escrita, seja ela prosa, poesia, canções, aforismos, reñexões. Nós, terapeutas, conhecemos muito bem o valor da palavra; assinalo particularmente três elementos que acemuam o seu valor: m O próprio peso da palavra, vista sob os aspectos do ético e do estético, da mensagem e da forma. a Quando esta palavra é dila por alguém investido com certo valor, conta com acentuação do seu peso. A palavra de vizinho, por exemplo, não é a mesma coisa que a palavra do terapeuta. => A permeabilidade com que geralmente recebe a palavra quem está necessitando dela, quem está à procura de respostas.

Em função disso, se resgala a palavra escrita, como formidável recurso terapêutico. Não devemos pensar em escritos realizados especmca~ mente para ñm terapêutico, mas também em obras que nunca foram intencionalmente destinadas para esse efeito. Por 0utr01ado, o seu valor terapêutico é ordenado segundo a distinção precedente entre curar e sarar, e segundo a caracten'stica de cada caso e situação.

2) COMO? A ulilízação do livro não se pode estabelecer como pres-* crição obrigatória nem especiñcamente indicada em algum quadro clínico concret0. Tudo dependerá, 0bviamente, do caso peculiar do paciente, do seu perñl de personalidade e interesses, das suas circunstâncias concretas etc. O valor do

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livro ñca condensado no seguinte: cada história, cada linha reflete maneira pessoal de encarnar um valor ou uma atitude diante de situação concreta de vida. Deste modo poderíamos falar até de verdadeira solidariedade entre autor e 1eitor. A literatura moderna não precísa continuar a ser tão-somente mazs' um sintoma das neuroses de massa de hoje em dia. Pode contríbuír também para a terapêutíca. 05 esm'tores que atrauessaram 0 infemo da desesperança e que experimentaram a aparente carência de sentído da vida podem oferecer o seu sofrímento, como um sacrzfí'cz'o, no altar do gênero humano. As suas revelações ajudarão o leítor que sofra estado idêntíco a su_t)erá-lo.5 O leitor pode se aproximar de testemunho vivencial que estimule, promova e alente 0 indivíduo para a descoberta do sentido da sua própria situação de vida. Apresentando situações de vida resolvida de maneira peculiar que possam disparar no leitor respostas próprias. Muito embora esta funcionalidade terapêutica não seja a primeira intenção do autor, seria interessante que, no momento de escrever uma linha, cada um assumisse a projeção que pode alcançar em relação a quem o ler. Assumisse a responsabilidade deste compromisso solidan"o reconhecendo que cada letra implica uma meusagem, cada linha encarna um valor. Se o escritor não é capaz de imunizar o leitor contra o desespero, deve pelo menos evitar inocular nele 0 desespero.6

3) PARA QUÊ? Frankl cita um episódio que bem pode nos servir para responder a esta pergunta. Diz que a presidenta do Instituto Alfred Adler de Te1-Aviv, por ocasião de uma conferência pública, cítou 0 caso de um jovem soldado israelense que perdeu as duas pernas na guerra do Iom Kippur. Não houve meio de tirá-lo da sua depressão -- ele mesmo chegou a pensar em suicídio. Até que um dia ela o encontrou como que trans5Frankl. Viklor 0p. cit.. p. 100. 5 FrankL Viklor E.. op. ciL, p. 100.

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formado, francamente alegre. “O que aconteceu com você?”, perguntou ela, surpreendida e assombrada. Rindo, ele lhe deu um exemplar da tradução em hebraico de “O homem em busca de sentido"e1he díssez “Este livro aconteceu em mim". Ao que parece, há algo assim como uma autobiblioterapia e, ao que parece, a logoterapia é especíalmente apropn'ada para isto.7 A relação de intimidade que se estabelece entre leitor e leitura é de tamanha magnítude que a letra ganha peso e relevo muitas vezes insuspeitados. Assim o seu poder de penetração é admirável e seu efeito catalisador, muíto efetjva A mensagem chega quase com surpresa e mobiliza no indivíduo o seu poder de resiste^ncia, o que nele resta de são, a sua possibilidade de superação de adversidades. Quantas vezes nos encontramos retratados em um conto ou em uma cançã0? Quantas vezes recorremos a uma personagem de ñcção ou a uma poesia para dar resposta a uma situação? Quantas vezes apelamos para uma história para compreender uma Circunstância da vida? Em última ana'1ise, quantas vezes sentimos que tal livro “aconteceu” em nós? Aí, como elemento catalisador, como circunstância que me permite me “perceber”, como encarnação de um va10r, ali mesmo encontramos resposta ao “para quê” da biblioterapia.

A leítura terapêuüca do livro Quando falamos de bibliolerapia, pensamos em recurso terapêutico que pode ser implementado de diversas maneiras. Muitas vezes será oportuno que o paciente leia um texto para logo reflet1r' sobre 0 que leu e a mobilização que isso originou; outras vezes essa mobilização será espontânea em virtude de uma leitura que não foi indicada pelo terapeuta, mas que o paciente traz para a consulta; mas em algumas oportunidades - a meu ver 0 mais apropriado - a leitura

7 FrankL Viktor

La voluntad de sentído. Barcelona, Herden 1988. pp. 63-64.

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pode ser realizada no âmbíto da consulta. Nestes casos o processo biblioterápico orientado e sustentado pela presença do terapeuta. Vejamos. A leitura terapêutica do livro: O terapeuta escolhe um relato que se relaciona com as inquietudes remotas do paciente -- vale dizer, não plenamente conscientes -, mas com os temas que deseja enfocar diretamente. A própría leitura vai introduzindo 0 paciente em estado de meditação, para lhe dar algum nome, no qual certas vivências m'teriores e percepções vão adquirindo maior m'tensidade. Nestas circunstan^cias os pacientes acabam compreendendo intuitivamente o conteúdo da mensagem que a narrativa encerra, até sem necessidade de intervenção do terapeuta, que, ao faze-'lo, conduz a atenção do paciente para si mesmo. Neste momento, o paciente se aproxima de si mesmo de maneira mais relaxada e efetiva. Pois bem, a leitura de um relato pode ser verdadeiramente proveitosa para o consulente? Sim. Ela atua do mesmo modo que o impacto que exerce sobre nós um ñlme que nos emociona, se identiñca conosco, nos de1x'a pensativos. Alia's, essa mobillz'ação permanece durante dias. No cinema, a atmosfera ou clima (por exemplo, escuridão, silêncio, som etc.) nos dispõe a absorver este impacto de maneira totaL ñcando abertos a viver este feitíço - que tecnicamente poderíamos deñnir como estado muito leve ou ligeiro de alteração da consciência. No caso da biblioterapia, esse clima deve ser criado pelo terapeuta a partir da sua inüexão de voz, ritmo de 1eitura, conteúdo da narrativa etc., gerando, promovendo, facilitando ou estimulando essa disposição no paciente. Muito embora o impacto do cínema possa ser mais ou menos duradouro, a intenção agora é que seja assimilado para ñns de ser incorporado na sua conduta, resultando em comportamentos mais construtivos e ñrmes. Quando 0 terapeuta descobre que o paciente assimilou o impacto do conto ou da narrativa, circunstan^cia que se pode inferir das suas expressões, gestos, verbalizações, é eflciente reforçar o sucesso com alguma frase como, por exemplo, isso é

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bom, isso é com certeza o que este conto está dizendo, ñque com isso etc. Desta maneira, añrmamos a díreção da meditação e pomos o acento sobre a mensagem a ser lembrada. Produz-se assim uma espécie de “aprendizagem direta", isto é, que não passa por ñltros de autocensura. Dc alguma maneira, o paciente foí surpreendido nas suas defesas e resistências. Já me aconteceu muitas vezes que os pacientes recordem coisas que lhes disse há tempo e que evocam espontaneamente em algum momento, dizendo sempre me lembro de que uma vez você me dis'se... Na maioría dos casos, recordam palavras, comenta'rios, reñexões feitas por mim ao ñnal de uma entrevista ou mesmo quando me despedia deles no umbral da porta - mesmo comentários tr¡v¡w's sem intenção terapêutica especíñca - e recordam textualmente. Quase nunca se trata de coisas ditas ao recebe-^lo ou no início da sessão. Isso me fez pensar que é assim porque, à medida que o encontro avança, 0 paciente vai entrando numa espécie de transe leve - por assim dizer - e, nesse estado, as palavras têm um impacto maíor e são assimiladas inconscientemente com nitidez surpreendente. Isso de modo algum signiñca que seja hipnotizado como nos espetáculos de ilusionismo, onde se acredita que 0 sugestionador pode submeter à sua vontade o controle dos atos do paciente Em certa ocasião, um colega me ouviu do seu consultório ao lado do meu. enquanto eu estava me despedindo de um paciente. Aproximou-se quase imediatamente e perguntou como eu o havia cumprimentado. Em princípio ñquei surpreendido com a sua pergunta e o seu interesse pela minha maneira de me despedir daquele paciente. E respondi como o havia feito, isto é. com um até a próxima... passe uma boa semana... Ele me pergumou cntão se eu cslava conscienle de que, me despedindo dele assim, o estava condicionando a passm uma boa semana. Primeiro me senti como se houvesse sido “pego” surpreendido cometendo alguma falta grave, porque o meu colega insistia que se, na semana seg1n'nte, aquele homem vollasse tendo vivido uma boa semanzL isso seria um

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produto da minha despedida, e não êxito pessoal em conseqüência de haver resolvido o seu conñito de fundo. Tentei convencélo de que na realidade se tratava de costume meu de cumprimentar assim todas as pessoas, procurando me desculpar ou me justiñcar. Passados alguns dias, durante os quais me senti envergonhado e culpad0, cumprimentando rigidamente os meus pacientes para não cometer novos erros, eu me propus a comprovar o impacto do cumprimento sobre eles. Tratei entào de ver de que maneira cumprimentar, nem rotineira nem rigidamente os meus pacientes, e sim terapeuticamente, isto é, personalizando o cumprimento de acordo com a necessidade de cada um, e fazendo isso de maneira concisa e efetíva, usando uma u'nica palavra, incluindo uma brincadeira. Assim, comecei a introduzir, ao me despedir na porta do consultóri0, expressões tais como cuíde-se, passe uma boa semana, nos veremos na semana que vem se Deus quise,r divirta-se etc. As respostas foram formidáveis. Algumas se manifestaram ímediatamente através de gestos 0u aínda de verbalizações que acusam 0 recebimento da mensagem enquanto outras são mediatas, isto é, são reconhecidas por aquilo que 0 paciente comenta no encontro seguinte, às vezes até fazendo referência direta ao cumprimento como, por exemp10,jiquez' pensando no que 0 senhor me dísse quandofui embora, como você dísse, fiz tal coisa etc. Dali em diante compreendí que essa circunstância pode ser efetiva se for utilizada como apoio da mobilização que pudemos motivar durante o encontro, dando uma orie~..tação ou intenção. Além disso, conf1rmei 0 que pensava a respeito do estado de transe leve que se consegue com 0 paciente e que o torna permeável a sugestões que ele assimila diretamente e reñete nos seus comportamenlos concretos. De modo que, conseguído esse estado, as intervenções terapêuticas se orientam concretamente para facilítar ou proporcionar ao paciente elementos para que ele se descubra com a oportunidade de desenvolver melhores respostas às

suas situações concretas. 24

Mas isso não seria mera sugestão? Não. Funcionaña como “mera sugestão" se 0 paciente não eslivesse consc*iente daquilo que está acontecendo. A instfumentalização terapêutica implica que o paciente. comojá foi dito, alua de maneira determinante na intençào de cum. Procuramos aproximá-lo de elementos que o 1'nspirem, que 0 instiguem a mudar, e não somente a atenuar um pouco uma condula. Retornemos agora à bib11'oterapia. Eu dizia que este clima favorável ao impacto através da narraüva deve ser moüvado pelo próprio terapeuta. Vale acrescenlar que é particularmente efetívo ler a narrativa acentuando ou marcando espe cialmente a parte que nos imcressa em função do objeüvo buscad0. Muitas vezes uma mesma narraüva deve ser lida de maneira diferente depcndendo de qucm seja a pessoa que temos diante de nós e 0 objetivo perseguido. A biblioterapia nos oferece, fundamentalmente, os seguintes benefíciosz 1) Não constítui risco, isto é, as narraüvas sâo aceitas habitualmente como inlervenção não inlrusiva, como poderiam ser vívidas outras formas de assinar ou de inlerprelan Nesse sentido, nos permitcm chegar ao interior do outro com maior liberdade. Alia's, muitos pacientcs goslam que se lciam para eles contos ou histórias a pomo dc se cntusiasmarem e trazerem eles próprios novos textos. 2) Pelo que foí dito anlcr1'orn1cnlc, se reduz o m'vel de resistência dos pacientes às nossas intcrvençõcs c sc agilim o processo de troca. 3) Identzjí'ca a idéia e a dircçào da troca com uma imagem que permanece no indivíduo e que sc rcmemora com valor terapêutico dali em diante, estzlbelecendwse novo recurso para 0 próprio paciente. 4) Oferece novos modelos deflexíbílidade aponhwdo 0utros esquemas de resposta possíveis cm situaçóes similares às próprias. 5) Estimula a independência do paciente e assegura a sua valiosíssima parücipação no proccsso terapêuüco (“eu me curo”) ao ter de receber e 1'nferir, ou melhor. descobrir a men-

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sagem da narratíva, chegando às suas próprias conclusões e não seguindo interpretações do terapeutzL Nesse sentido, é muito ímportante fortalecélo nesse papel ativo se pretendermos que logo ele possa passar dessa mensagem descoberta à ação. Poder-se-ía dizer, talvez, que as interpretações típicas fecham a metáfora - por assim dizer - ao atribuir “um” sentido ao fato, ao passo que neste caso a própria aproxímação do paciente abre um universo pessoal ríquíssimo, a ñm de descobrir o “seu" sentído, que acaba sendo o verdadeiro e u'nico. Atribui-se a Milton Eríkson a idéia de que as interpretações são reducíom'stas, como se pretendessem resumir uma obra de Shakespeare em uma frase.

Da biblioterapia ao bibliodiagnóstíco Basícamente a partir da abordagem logoterapêutíca, e das idéias e tentativas mais ou menos sistemáticas de outros autores, propôs-se a chamada “biblioterapia”, com a intenção de utilizar 0 lívro como recurso terapêulíco. Considerando 0 valor testemunhal e referencial do 1ivro, podemos facílmente compreender que a sua implementação terapêutíca pode ser válida e efetíva. Muitas vezes, como se tem dito, atua de maneira espontânea quando o paciente chega à consulta mobilizado pelo que leu ou está 1end0. Mas, entã0, se falamos de biblioterapia, não poden'amos falar de bibliodiagnóstico? Sim. De fato, o livro também pode ser usado como recurso de díagnóstico. Obvíamente não poderíamos estabelecer convalidações estatísticas nern pautas psicométricas, e sim concebe-^10 como recurso projetívo a serviço do diagnóstic0. Certamente como método de conhecimento do paciente não reconhece param^etros convencíonais, mas se apresenta como excelente recurso para 0 conhecimento intuítivo do outro. Claro, dizer “intuitivo” não signiñca inventar nada, mas praticar um minucioso processo de observação das respostas do paciente à narrativa, isto é, os seus comentários a respeito do conteúdo, assim como as suas mudanças durante a

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leitura, Lanto quanto as conclusõcs a que chega. Deven'a. de acordo com cada caso, escolher a narraüva que mais sc adapte às suas necessídades de diagnóstico e lrabalhar sobrc o conjunto de respostas obtidas. Desdejá. assim como a bibl¡0terapia se reconhece imersa como técnica em um conjunlo ou arsenal terapêutico, atuando somente em conjunção com outros modos de abordagem, o bibliodiagnóstico será concebído somente como mais uma técnica projetiva em colaboração com 0utras, integradas em função de um processo de psicodiagnóstico. Exemplos Apresento a seguir uma séñe de histórias através das quais pretendo exempliñcar o uso concreto do escñto com uma fmalidade terapêutica. Trzúa~se de três casos nos quais enxerto a utilízação da biblíoterapia na prátíca índividual ou grupaL de acordo com a dinâmica própria dc cada circunstância. Vejam0s. Caso 1 . Tra1a-se de João, um rapaz dc 37 anos. casado com Maria (32) e pai de dois ñlhos, Robcrto, dc 6 anos, c I'*crnanda. de 3. João é funcionário público. O relato da sun vida eslá re pleto de fatos dramá1ic05. como a morlc prcnmlura da mãc, o falecimento posteríor do pai, as suas diñculdadcs pma scr alguém na vida, até que conhcceu Maria c a parlir daí as coisas começaram a se apresentar um poucu mclhon Nasccram os ñlhos sadios, e agora vivc as diñculdudcs cconómicas dc lodo empregado cujo salar'i0 não é suñcicntc para uma vida trnn~ qu"ila. Mais além do carálcr dramálico dos falos. Joào assumiu diante da vida uma atitudc francamcme pcssímism POdüSO dizer que vive certo derrolismo, agravadq obv1'zu¡1mtc. pelas suas atuaís condiçõcs dc vida. Muito cmbora scja vcrdadc que 0 dinheiro é cscasso, e que suas prclonsõos não sào corrw pondidas ncm um pouco na realidade, podosc dizcr que a vida de João é uma vida fcliz. A sua mulhcr o anm, os scus ñlhos têm saúde e elc lem a possibílidadc dc tmbalhar c muntcr a sua casa d1'gnamente. De qualqucr maneirm a sua atitudc lhe pcsa, Lransformando a sua vida cm pesnda carga. 0 vazio muitas vczes toma conla e com clc a descspcrança. o dcscspcro, a angu'stia.

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...voar com líberdade... ser livre é um desaño quando se tem a vida sempre presa por um ño. João leu e releu a letra var'ias vezes. Em determinado ma mento me olha e me d1'z:sabe que é certo... nunca havia pensado que a pípa, que voa tão alto e parece tão Iívre, está amarmda... a letra é boa... A parür dali Começamos a reñetir juntos sobre o caráter condicionante - não determinante - das círcunstâncias e do espaço de liberdade que sempre podemos encontrar mesmo na situação maís adversa. Abordamos a sua alitude de se sentir “vítima” e nos propusemos a assumír a de protagonista da sua própria existência. Finalmente João me 8'I'r2¡la-se de Lutz' Falcão, um carioca que víve em Flon'anópoljs, autor de numerosas peças. 9 O leilor pode encontrar a letra de “P¡pa”, na 3' parle desle livro.

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Um dia, João comenta que no domingo, segum'd0 uma sugestão minha, foi com a famüia ao parque que ñca ao lado de uma auto estmda. Era um dia ensolarado e muita gente já havia ocupado o lugar. Enquanto Maria caminhava Com Fernanda, João come~ çou ajogar bola com Robcrto. Todos se divertiram muito, com exceçã0, é clar0, de Joã0. “Enquanto jogava Com Roberto, olhava toda aquela gente... todos parecíam tão felizes, como se não livessem problemas... tive de fazer um grande esforço para sair com as crianças e com Maria e, acredítc, cles se divertiram bastante, mas eu contínuei sofrendo por dentro... Eu me perguntava como essas pessoas farão para não ter problemas...” Evidentemente o discurso de João era tão pessímísta como sempre. Continuava a dar às circunstâncias um Caráter determinante que o “obrigava" a viver mal, sofrendo. Em certo mo~ mento faz o seguinte comentan"o: “Sabe que... eu estava olhando as cn'anças que estavam fazendo pipas e pensava nas pipas. .. lá em cu'na, livres, fazendo 0 que querem... como seria lindo ser uma pipa, ou um avião, ou um pássaro e poder voar, como se estivesse apagando os problemas e ser Iivre...” Naquele preciso momento recordei uma canção escríta por um grande amigo meu, um poeta popular brasileiro,8 que se chama “Pipa". Disse então aJoão que queria fazer Com que ele ouvisse aquela cançã0. A melodia é muito símples, mas muito bonita, e a letra, em porluguês, mesmo para quem, como eu, fala espanhol, é fácil de entender. João a ouviu duas vezes e logo lhe dei a letra por escrito.9 Eis o ñnal da canção:

pediu para levar a letra dc “PIPA”. obviamentc a idéia on'ginal era que ele a levasse Na scmana seguinte. quando nos rccn~ contramos, Comenta Comigo que a Colocou embaixo do vidro da sua mesa de Cabeceira, e que Cada manhã, quando se levanta, a lê; aprendeu an1elod1'a,c durante 0 dia a assobia. muito especialmente quando sente que 0 pessimismo vem surgino do, e parece lhe ser muito útíl pma “espantá~lo". Refleümos sobre isso e descobñmos juntos que a leítura dc “PIPA" pcla manhã lhe dá algo parecido com uma “prime¡ra ccrteza" ou como ele prefere chama'-la, “a certeza do dia", que lhe recorda que ele pode ser protagonista e nào vítima daquilo que lhe acontecer nesse dia que se inicia. Depois de passadas várias semanas, então, um dia João me faz 0 seguinte Comemán'o: No domíngo passado voltei ao parque com Maria e as crianças e passamos muito bem porquefez um dia bonito e cstava cheío de gente, e, sabe de uma coisa, comecei a pensar nas pipas que estavam subindo e me deí conta de uma cots'a que não me hauia ocom'do. As pipas não somente se movem com líberdade apesar do fío que as amarra, como diz a canção, mas também se, o fío for cortado, já não podem voar... Então pensei naquilo que mtas vezes o senhor me disse acerca de descobrír o sentido das coisas e que deuia me perguntar mais sobre a para quê do que sobre o porquê e tudo ísto... e creío que neste domingo me deí conta do que 0 senhor quería me dizer... Se talvez não houvessem me acontecido as coisas que me acontecemnu eu não sen'a o que sou agora, ou se tivesse muito dinheiro, não desfrutaria tanto das crianças, porque com o dinheiro acreditaría poder dar a elas tudo de que necessitam e não como agora, que não posso dar a elas um computador de presente para eIas bn'ncarem sozinhas ou coisas assim,' me preocupo em bríncar com elas, em sair com elas, nem que seja para jogar bola no parque ou andar de velocípede e estou com elas... Ev1'dentemente, João descobriu muitas coisas, e essa certe za com a qual começa cada dia vcm lhe permitjndo se abrir para uma comprcensão divcrsa das Circunslâncias. e modiñcar assim a sua atitude de vida, passando vcrdadeiramente dc vítima a protagonista. Como frisa o próprio FrankL lembran~ do a expressão daquelc soldad0, João também poderia dizer que essa poesia havia acontecido ncle. Caso 2: Neste caso, trata~se dc um grupo; concretumenlc um grupo dejovens esportislas que formam uma equipe proñssia nal. Sou chamado pelo técnico, porque ele detectou que 0 baixo desempenho do üme sc deve fundamcntalmcnte em ques~

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tiram ao grupo prosseguir 0 trabalho sobre essas questões, modiñcar a sua atitude e renovar a sua disposição para o jogo. signiñcando uma sensível melhoria para o seu rendimento. Também neste caso a bíblioterapia abriu terrenos e esu'mulou o grupo de maneira efetiva, de modo que pudesse prota~ gonizar uma modiñcação necessária para o seu crescimento individual e grupaL

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tões anímícas mais do que em aspectos ou déñcits técnicos ou ta'ticos. Em uma entrevista com a equipe, se detectam sérios problemas no tocante à motivação do time, particularmente assocíados com uma autoestima muito ba1x'a, um limíar muito ba1x'o de tolerância de frustraçã0, e uma vivêncía de medo no tocante ao enfrentamento com 0 adversário que bloqueava sensivelmente os potenciais técnicos dos jogadores. Resumindo, a vivência da equipe era a seguintez considerava~se uma equipe muito pequena que não conñava nos própños recursos no momento de enfrentar o rivaL Em uma das entrevístas com a equipe, trabalhei com um conto de Mamerto Menapace que se chama “Morrer no Bando de Perus". A narrativa é uma versão semelhante à íradícional históría do patinho feio, mas conta a história de um condor que é criado por uma perua choca e cresce “no bando de pe rus", pensando que é um peruzinh0, e olhando com admiração 0 vôo dos condores nas alturas. Assim, acaba “morrendo no meio do bando de perus”, quando na realidade havia nascido para ser aquilo que tanto admirava. Evídentemente, se faz um jogo de palavras, jogando com a contundência das expressões “viver no meio do bando de perus” e “morrer no meío do bando de perus". O díretor técnico da equípe me havia adiantado que se tratava de um grupo com o qual era d1f1"cil manter detalhes e reuniões de reflexão que durassem mais de 25 a 30 minutos. “São rapazes que não estão acostumados com zs'so: depozs' de 15 ou 20 minutosjá se díspersam efícam muito inquíetos", foi a apreciação com a qual antecipou 0 meu enconlro com o time. Certamente existe um mito em torno de alguns ambientes de esportistas proñssionaís no sentido de que carecem de cultura, e também de interesse em adquin'-la. Mesmo assim, se levou adíante a experiência, por certo inédita para este grupo, de reuní-los nos momentos anteriores a uma partida e ler um conto para eles. No princípio, quando im'ciamos a ativídade, houve algumas bn°ncadeiras entre eles e uma mínima resistência diante dist0, que parecia “dever de escola” ou uma “infantilidade”. Mas, logo depois de iniciada, todos a aceítaram e responderam à convocação com atenção e particípação em uma atividade que se estendeu ñnalmente por 80 mínutos. Terminada a leitura, houve um momento de silêncio e logo se abriu a reflexão, breve, sobre a semelhança da narrativa com a sua própña história. Este conto sign1f1'cou para o time uma espécie de palavra de ordem tácita ou de “b0rdão”: “Não morrer no meio do bando de perus”. A partir dali começaram a aparecer d1f'erentes elementos que rapidamente permi-

Caso 3: Nesta oportunídade, trata-se da utilização da bíblioterapía em um workshop de convivência. Ele faz parte de uma série de atividades que são realizadas com um grupo de ap0sentados recentes e pessoas que estão próximas da aposentadon'a. Eles receberam através de díferentes palestras e apre sentações assessoria previdcncían"a, legal e fmanceira. Mas ainda não enfrentaram o mais importante neste momento para elesz preparar-se emocionalmente para viver como aposentados, para enfrentar uma crise vilal 1ão importante como a que se desenvolve nesta etapa da vida. Evídenlemente, a chave para superar - ou começar a fazélo - 0 pico críüco (e também para preveni-lo) é poder responder à pergunta a respeito de qual é 0 sentido da vida a partir desse momenlo. E essa resposta não poderá ser obtida a partír da assessoria prevídenciária, legal e fmanccira. E assim quc se prctendc mobilizar o grupo em torno da questão do sentido da vida na nova etapa que se ínicia para eles. Organiza-se este encontro workshop em torno da leitura e posteñor elaboração de um conto, Quebmcabeça,1° escrito especialmente para ser utilizado em biblioterapia. Reu'ne-se 0 grupo no salão onde habilualmcnte sc realiza 0 ciclo de atividades. Os membros sào dispostos em círculo e a tarefa é apresentada a eles. A ordcm recebida indíca que sc trabalhará sobre a leitura de uma história que reílctc a alitude de diversas personagens diante de dcterminada situação. Eles deverão ouvir a história com atenção. Le-“se emão Quebra-cabeça. Terminada a leitura, espcra-se um momento cm silên~ cio, e se pede que resumam em uma frase a vivência que a história mobilizou neles, isto é, a própria vivência. Recolhemse os cartões com as frases que escreveran1, que são cm seguida repartidas entre os participantes. Cada um receberá então a frase escríta por outro dos pdr't1'cipantes, desconheL cendo quem era o autor. Se algum delcs por acaso recebia a sua própria frase, devia devolvéla e pegar outra. Estabelece '° 0 leitor pode encontrar o lcxto de Quebraiabeça na 3' pwte dcste Iivro.

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se um momento para que cada um leia inteñormente e procure compreender a frase que recebeu. Posteriormente, se abre a reflexão em grupo em torno das frases e vivências que f(› ram surgindo. A mobilização gerada pela históña se reñete naquelas frases, que man1f'estam temores, fantasías, decepções, ilusões, projetos, expectativas, desesperança, desorientação, negação, de pressã0, otimísmo..., isto e', um leque de alternativas que no seu conjunto revelam o panorama complexo que o aposentado enfrenta. A elaboração em grupo, possibílídade de empregálas em âmbíto diferente, se apresenta como uma boa oportunidade para começar a transitar nele com maior certeza. A mobilização não pode aparecer nem conseguiu se manifestar em momentos pre'vios, mas sim por meio da imrospecção propicíada pela leitura do conto. Nessas personagens conseguimos nos idennf1'car e descobrimos d1f'erentes opções para encarnar ou interpretar os camínhos de resolução da crise que estamos vivendo. Como din'a Buytendijk em Psicologia da novela, encontramos no outro o Dasein de todos, todas as possibilidades humanas e ao mesmo tempo a líberdade humana.

Poderíamos cítar muítíssimos casos de aplicação da biblioterapia, tanto em modalidade individual como em grup0, na prática psicoterapêutica como psicoproñlática ou psicagógica. E, do mesmo modo, é va'lida a utilização deste recurso na prática docente, em todos os níveis. Muitas vezes, acontece que a partir de uma narrativa, idéias teóricas que o aluno não conseguia assimilar a partir do texto especíñco, pode faze-'10 desde uma narrativa de ñcção, que mostra mais imediatamente o seu conteúdo. Neste sentid0, cito a utilização do conto de Edgar Allan Poe “William Wilson” como excelente recurso para estudar e compreender 0 conceito: consciêncía/c0nsciência, por exemplo.

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2“ PARTE AS DUVI'DAS

Reiteradas vezes, na universídade, em palestras ou comunicações, quando se aborda o tema da biblioterapia, costuma-se propor algumas perguntas. Isso porque o adjetivo “terapêutic0” vem sendo utilizado indiscriminadamente na lm'guagem comum. Muito possívelmente nenhum outro viu populanz'ado 0 seu discurso técnico, como aconteceu com a P51'cologia. Em alguns aspectos, isso é benéñco, mas em muitos outros atenta contra a própria disciplina à medida que distorce sensivelmente o conteúdo dos conceitos. Acontece o mesmo com “terapêutico”. Na atualidade, diversas coisas parecem ser, ou pretendem ser, terapêuticas. Desde um pas~ seio, uma visita a uma exposição, fazer aula de teatro etc. Embora possam chegar a ser recursos ou instrumentos com fmalidade terapêutica, não são circunstâncías sístematizadas nem ordenadas enquanto tal. Então, quando se fala de “bib1ioterapia", se interpreta que é ou uma ocorrência lingüística daquele que a menciona ou uma denoxmn'ação equívoca ou equivocada do hábito de ler. De fato, trata-se de uma técnica ordenada em torno de um recurso potencialmente terapêutico que é o livro e, por extensão,

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toda letra escn'ta. De toda forma, mesmo explicando a essêncía dessa tec'nica, surge sempre uma série de dúvidas que pretendem deñnir alguns dos seus aspectos ínteressantes. Acredito que seja interessante selecionar e apresentar ao leitor alguns deles que por um lado se reiteram e, por 0utro, permitem resolver um pouco mais as dúvidas sobre o que reñetimos até aquí.

As dúvidas LLJ Olivro substituioterapeuta? Muitas vezes a apresentação enfática do valor da biblioterapia leva a essa inquietude. A resposta é “não”. De maneira nenhuma podemos pensar que algum recurso poderia subs° tituir 0 terapeuta diante de uma verdadeira necessídlade terapêutica. Esta resposta está baseada no “encontro”. E o am^bito enriquecedor e insubstituível de reunião de duas pessoas, ambas comprometidas na busca da verdade pessoaL Uma delas participa pela necessidade de descobrir sentidos na sua vida, ao passo que a outra o faz pela possibílidade de acompanha'-1a nesse m'tento, proporcionando-lhe recursos que lhe facilitem a empreitada. Ainda que conte com uma variada gama de técnicas e métodos, o seu principal argumento é a sua própría presença. Isto é, 0 aporte pessoaL a sua palavra, o seu olhar, 0 seu cumprimento. O terapeuta em si mesmo é o principal recurso do processo terapêuüco, nunca substituível por nenhum materiaL seja da natureza que for. Em algumas oportunidades, encontramos referências, ou tomamos conhecimento de casos em que se gestou uma verdadeira “autobiblioterapia", isto é, circunstan^cias nas quais a leitura de um livro sigmñ'cou uma renovação pessoal evidente nesta ou naquela pessoa. Nestes casos, 0 fato ocorreu espontaneamente, sem a participação da presença de nenhum terapeuta. Não podemos absolutamente duvidar, ou diminuir a veracidade de sucessos desta ordem, o que não impede de aflrmar que, de modo geral, a presença do terapeuta não pode ser substituída pela presença de um lívro.

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m 0 que acontece com o paciente depozs' de vivero impacto da leituraP Em princípío devemos nos propor duas situações possíveis: a primeira é quando o paciente leu um livro por indicação ou sugestão do terapeuta, e a segunda é quando o paciente vem para a consulta ou traz para a consulta a mobilização gerada a partir da leitura do livr0. Mas vamos por partes. Em primeiro lugar, a utilização do livro como recurso terapêutico participa das mesmas indicações que a implementação de qualquer outro recurso como pode ser 0 desenho, a pintura, a música etc. Vale dizer, não existe uma indicação universalmente válída a respeito da musicoterapia; seña ilo-' gico pensar que se deve recomendar ou ¡ndicar a musicote~ rapia a todo paciente, considerando que cada pessloa apresenta uma circunstância e necessidades individuais. E assim que, no momento de usar a música como recurso terapêuüco, avaliamos a sua conveníência, escolhemos a música mais apropriada para o seu caso, objetivamos a sua implemenlação Gsto é, a assocíamos com um “para quê”) e estamos prevenidos no que diz respeito às áreas e aos recursos que pretendemos mobilizar no paciente. Obviamente, essa resposta absolutamente não pode ser prevista, de modo que, sabendo que vamos mobilizá-la, manteremos um acompanhamento lógico desta manobra terapêutica. Com o caso do livro se alua exatamente da mesma maneira. Nào se pode pensar na biblioterapia como tendo validade universaL de modo que haverá casos nos quais desaconselharemos a sua implementaçã0, assim como outros nos quais a sustentaremos como um recurso excelente. Nestes últimos, a incluiremos em uma estratégia terapêutica já prevista, em complementação com outros recursos, reconhecendo um “para quê” defmido. Escolhemos o material de leitura de acordo com aquilo que pre tendermos elaborar e acompanharemos de perto a mobilização que este passo, dentro do processo terapêuüco, possa gerar. A ordem não é simplesmente “leia” nem sequer “leía isto”, e ponto ñnaL Sempre buscamos depois da imple-

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mentação do recurso um movimento em grande parte previst0, esperado, alentado e fundamentalmente contido. Ora, o que acontece quando o paciente é mobilizado pela Ieitura espontânea de um livro, fora do contexto do plano terapêutic0? Obviamente os pacientes, por estarem fazendo terapía, não de1x'am de víver normalmente sua vida, nem devem pedir permissão para ler tal livro, ou para ir ao cinema ver tal ñlme. Seria ridículo pensar- terapeuticamente lamentável e equivocado - que assim deveria ser. Portanto, é factível que venham à consulta mobilizados pela leitura de determinado livro; mesmo por algum livro que por ñns terapêuticos lhe havíamos recomendado não ler. Nestes casos, devemos atuar como faríamos diante de mobilizações ocorridas por qualquer outro fato da vida do paciente. De toda forma, considero que é conveniente conhecer os hábitos de vida do paciente, que tipo de leitura prefere, que tipo de passeio costuma fazer, os ñlmes que gosta de ver, os programas de televisão a que assiste etc. Este conhecimento nos permitirá descobrir muitas vezes tanto hábitos prejudiciais quanto potenciais recursos terapêuticos que poderemos implementar à medida que seja necessa'rio. Em linhas geraís, da elaboração do impacto que segue à leitura, considero que o que devemos fazer é “colocar” - por assim dizer - o paciente dentro da história lida, e fazer com que ele “desempenhe" essa históría desde o lugar da letra escrita, levandtyo a transitar por caminhos que na vida real talvez não transitasse, cumprir com aquílo que assinalava Buytendijk, de la' encontrarmos todas as possíbilidades humanas diante de determinada circunstância. E, desde este ponto, permitir que ele aceda à descoberta do seu caminho, da sua história. Em certo sentid0, eu dm"a que poderíamos ver a biblioterapia como uma espécie de “desreñexão”, à medida que nos leva a focalízar a atenção na situação de outro, que logo internalizamos como “ja' experimentada”. Ora, a partir desta experiência, acredito que é conveniente elaborar com o paciente uma espécie de palavra de 0rdem, uma frase que resuma a conclusão daquílo que foi

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descoberto através dessa leitura, e que gosto de chamar “certezas cotidianas”. Trata-se de uma frase que possa servir ao paciente de lembrete daquilo que expeñmentou e descobriu. No caso um, João elabora a partir do trabalho com a letra da canção Pipa uma palavra de ordem que ele resolveu chamar “a certeza do dia”, e que lia ou recordava toda manhã quando se levantava. A partír dela, interpretava ou enfrentava diversas situações com uma atitude renovada. Trata-se de verdadeiro catalisador, que detona a reação mais sadia e sn'gnnñ'cat1'va diante do cotidiano. Lu l l Existem livros ”contraproducentes”? De perspectiva de crítica literária, poden'amos falar de livros bem escritos e mal escritos, de histórias acabadas ou errátícas, de equilíbrios rítmicos e harmonia estética ou não. Porém da perspectiva terapêutica, a avaliação do livro é dife~ rente. Mais ainda: pode aconlecer que algum material tecnicamente sem importância seja excelente neste sentid0; se recordarmos que por extensão ao falar de biblioterapia incluía “toda palavra escríta”, até um texto pubh'cita'n'o pode cumprir tais 0bjetivos. Realmente, existem livros que, pelo seu conteúdo humanista e seu perñl testemunhaL se prestam à prática biblioterápica, ao passo que outros podem dif1cultar (seja pelo estilo literári0, seja pelo conleúdo etc.) a sua ímplementação para esse f1m. De qualquer forma, não poderíamos defmir maneira deñnitiva que tais livros são terapêuticos e outros são contraproducentes, pretendendo dar a estas defmições validade universaL De toda forma, existem reservas por parte de algumas pessoas em relação a certos livros e gêneros lilerán'os. Um día, um paciente comentou comigo a idéia ou 0 ensinamento que desde sempre lhe haviam transmitido na sua igreja (pelo menos, era essa a interpretação que ele acabou fazendo daquilo que lhe foi ensinado), no tocante aos romances. Segundo essa oríentação, a leitura destc lipo de livros é contrapro ducente, porque afasta a pessoa da realidade, levandoa ao plano das ñcções e fantasias. Por outro lad0, seria inoportuno

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gastar com coisas tão pouco ediñcantes energia que poderia ser dedicada à meditação, à oração ou à leitura de lívros de doutn'na, ou de vidas exemplares. Foi assim que esta pessoa havia censurado desde sempre a leitura de outros livros que não fossem aqueles estritamente sugeridos pela sua igreja. Mas estas posições, que no fundo nos lembram a história de 0 nome da rosa, de Umberto Ec0, não são as únicas. Durante muito tempo se defendeu que a leitura das hístórias em quadrinhos não era boa para as crianças; entretanto, nos últimos anos, pesquisadores da lingüística e da pedagogia do hábito da leitura e do estudo em geral reconheceram na leitura destas histórias em quadrinhos um excelente recurso para se iniciar as crianças nesta atividade. Parece que o conjunto gra'ñco (text0 mais ilustração), a sua estrutura, a agilidade da linguagem, a possibilidade de concluir a história (em função da menor extensão em comparação com a de um conto, por exemplo), entre outras caracten'sücas, fazem delas um recurso muíto produtivo.H Isto é, existem várias avaliações deste estilo que qua11f1'cam como contraproducentes algumas produções Iiterárias. Nem é preciso dízer que isso acontece já não com gêneros, mas com obras em particular. O que é certo, do meu ponto de vísta, é que não podemos determinar de maneira taxativa 0 que foi dito anteriormente. Diante de cada pessoa concreta podemos chegar a “ Eu me animaria a ínterpretar a parlir das Icis de fechamcmo e proximidade da Gestalt de Wertheímer, Kõhler e Koíka. que o falo de a ilustração ser predominanle e de o texto ñcar imerso no desenho, quase como se fosse apenas um detalhe a mais desse texto, permite à criança - ao leilor de hislórías em quadrinhos em geral -- se habituar com a mensagem escñta sem se dar conta. adquirindo assim o hábito da leitura. Por outro lado, o tipo de apresentação que dispõe em cada página uma se qu"ência inlcira a pmjr da sucessào de quadros facilita e olimiza a caplação da ilação do relato. Isso não acontece nos contos ínfanüs, nos quais em cada págína sc estabe~ lece um momcnto da seqüéncia, cortando - por assím dlz'er - a ilação do relato. Estes elementos, entre 0qu05, demonstraran1. segundo estatísücas realizadas nestes úllímos anos, especialmente na Inglatcrra, que cn'zmças com antecedentes de Ieilura de históñas em quadrinhos têm menos dmculdades em desenvolver o hábito da Ieílura, lcndo com menos erros de dicção e cnlonaçâo e oümimdo a compreensão do que foi lido, em comparação com grupos de crianças sem esses antecedentes, mesmo quando estes haviam lido contos.

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conceber que esta ou aquela obra ou ainda que este ou aquele gênero não é parücularmenle oporluno ou conveniente na sua atual circunstância. Daí a importância de se ter m'formação a este respeito, a ñm de poder sugen'r a cada um o que mais convém na sua necessidade ou sítuação concreta e do objetivo terapêutico que pretendemos abordar. Lu Isto s¡'gnzjí'ca que qualquer livro pode servir pam osjíns da biblioterapiaP Consíderando 0 que já dissemos, a resposta é aürmaüva. Entretanto, poderíamos especiñcar 0 serviço que prestam especíalmente “alguns” livros. Nos últimos anos, vêm proliferando os Chamados livros de “auto-ajuda". A história deste gênero é longa e antiga. A mentalidade prática da cultura amen'cana (o famoso self-made man) trouxe muitos autores neste senüd0. Nos anos 50, foram muito vendidos os Iívros de Dale Carnegie. por cxemplo, que ofereciam soluções pautadas e imedialas para a resolução de situações tais como vencer a timidez, encarar empresas de venda, fazer amigos etc. Embora essa modalidade tenha se burílado, perdendo a caractcñslica de decálogo para passar a contar com uma modalidadc mais vivenciaL inümista e testemunhaL livros desse tipo no fundo continuam a ser oferecidos como alternativas voltadas para gerar mudanças nas condutas dos leitores. Muitos deles apontam para as aptidões do indivíduo, cujo contato e cxercício se propõem a esü~ mular, dispondaas de maneira mais operacional em relação ao ñm buscad0. Não 0bstante, uma nova linha de livros de auto-ajuda, mais humanizada lalvez, aponta cspecialmente para as atitudes do leitor, para 0 modo pessoal de encamr alternativas de vida, lanlo no cotidiano quanto no acidemaL no ordinário como no extraordinário. de modo mais signiñcativ0. Dentro dessa linha encontramos livros como os de Harold Kushner (por exemplo, Quando wisas ruins arontecem com gente boa, entre outros títulos) ou a obra tão difundida de Louise Hay, que aborda especialmento a circunstância de adoecer, vísta da sua própria experiência de doente de cân-

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estes livros de auto-ajuda podem ser considerados recursos especialmente válidos para a biblioterapia. São escritos e pensados, de alguma maneíra e de posíções distintas, como se estivessem a serviço desta metodologia. Outro tipo de bibliograña muito útil são os livros que poderíamos denominar de reflexãa Neste sentido, contamos com autores muito d1fu'ndidos em nosso meio, de Leo Buscagüa até Anthony de Mello, passando por um número infmito de nomes entre os quais podemos recordar entre nós os de René Juan Tossero, Mamerto Menapace,Ju1í0 Cesar Labaké e outros. Estes livros, muitas vezes escritos em poesia, em forma de fábulas, contos, aforismos etc., têm a virtude de nos levar do entendimento de uma idéia até a sua compreensão vivenciaL quero dizer, não nos falam dos valores essenciais em termos puramente abstratos; vão nos levando à sua descoberta encarnada no cotidiano e próxima de nós. Ainda que não nos dêem a íórmula para sermos fehz'es, vencer a ünn"dez, nos comunicarmos melhor com o marido/a mulher, vão nos fazendo penetrar no mundo signiñcativo dos valores e vão nos acompanhando na descoberta desse sign1ñ'cad0 no nosso cotidian0. Finalmente colocaria nesta distinção, muito ampla, o restante da biblíograña disponível no mercad0, destacando espeCialmente uma nova linha de romances que incorporou certos condimentos dos livros de autoajuda, bem como dos livros de reñexã0. TraLa-se de histórias em cuja trama sucedem fatos que são resolvidos de maneira tal que levam o leitor a re fletir sobre o mundo dos valores, incorporando muitas vezes várias páginas de reflexão sobre o sentido das atitudes dos protagonislas Recentemente apareceu entre nós com característica de best-seller o livro de James Redfíeld A Nona revelação, que, dentro desta línha, chegou a muitas pessoas com um impacfo verdadeiramente revelador no tocante a questões vivencíais e existenciais. Muitos pacientes chegaram ao consultório comovídos pelo que haviam lído, e mobilizados pelo conteúdo da obra, até se questionando sobre aspectos

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cer. É claro que poderíamos destacar maís autores nesta 1inha, mas o aspecto imporlante que deve ser sublinhado é:

diante dos quais haviam manifestado certa resistência a abordar dentro do processo terapêuüco. Certamenle isso nos leva a pensar que o terapeuta deveria se manter informado pelo menos a este respeito das novidades de livraña e dos bestsellers de atualidade. que são os títulos que chegam mais facilmente às mãos do leitor comum. Com esta distinção quase elementar em Lrês rubricas (de auto-ajuda, de reñexão, geraD quero responder à pergunta inicialz na realidade qualquer livro pode servir para os fíns de implementação da biblioterapia: especíalmente adequados costumam ser os livros de auto-ajuda, os de reflexão e os mmances de atualidade, à medida que interpretam de maneira próxima ao indivíduo circunstáncias afíns com a sua própria condíçãa Lu Pode-se implementar a biblioterapia no trabalho com as crianças? Responder a essa preocupação pode nos servir ao mesmo tempo para dar resposta a outras duas, com certeza mais profundas, ligadas à Logoterapia em geraL Reñro-me ao seguintez para muitos críüc0s, a Logoterapia é um enunciado mais fllosóñco do que psicológíco, que na realidade não pode ser concebido como verdadeira psicoterapia, e ainda se o fosse, seria aplicável somente a pessoas dotadas de certa capacidade de raciocínio e de reflexão sobre questões morais, espi~ rituais, étícas, religiosas e ñlosóñcasx De modo que considero oportuno e interessante me deter muito sucintamente nestas duas questões antes de dar uma resposta prátíca à pergunta enunciada:

1) A Logoterapia é uma verdadeíra psícoterapiaP 2) Caso a resposta seja afirmativa, é aplícável somente a pessoas dotadas de capacidade reflexiva para esses assuntosP Muito já foi dito a respeilo da primcira questão. A reftL rência mais recente que conheço é aqucla publicadu no u'ltimo número do journal des Víktor Frankl Instituts, na qual aparece a resposta da doutora Elisabeth Lukas a uma nota da

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que, corevista “Der Spiegel” (n. 30 de 25 de julho de mTàúw fazer a si mesmo e por si mesmo pessoa. Aparece novamente mentando a conferêncía “A evolução da Psicoterapia”, feita a referência ao sefl-made man, que em lermos do humanismo em Hamburgo, nega à Logoterapia o status de psicoterapia, e acaba alimentando a idéia do autodesenvolvimenm, o auto~ denuncia uma suposta falta de fundamentação cientíñca12 0 artigo da revista alemã añrma que a Logoterapia ainda não conseguiu provar ou demonstrar nem a sua eñciência nem a sua aplicabílidade prática em campos de necessidade especíñca. Lukas responde de maneira enérgíca e fundamentada que não é assim e ainda resenha a título de exemplo algumas das diversas experiências e trabalhos concretos que estão sendo desenvolvidos em várias partes do mundo aplicando a Logoterapia como psicoterapía. De qualquer maneira, apesar de a trajetória percorrida pela Logoterapia ser bastante ampla, e bem-sucedida, muitos ainda continuam a discutir a sua entidade como prática terapêutica. Creío que esta discussão está assocíada às raízes mesmas da Logoterapia Vamos procurar nos localizar de forma rápida e sucinta na história recente. Quase simultaneamenle vã0-se gestando na Europa e na América dois movímentos, que, sem terem contato nem conexão entre si, começam a amadurecer idéias semelhantes. De um lad0, os existencialistas europeus e, de outro, os humanistas americanos. De marcos históricos e perspectivas d1f'erentes e de situações históricas e existenciais distintas, começam a renovar as suas idéias sobre o homem. Talvez a característica mais representativa - entre outras - dos europeus seja a sua forte fundamentação ñlosóñca. Não podemos negar que a ñlosoña moderna vem«se nutrindo maravilhosamente dos ñlósofos europeus, e neste clima e ambiente culturais o existencialismo emerge como lm'ha de pensamento renovadora. Por sua vez, ñel à idiossincrasia cultural do povo american0, uma nota característica do humanismo - entre outras -- poderia ser o seu pragmatismo. Daí se seguem enunciados com pouca fundamentação cientíñca e um forte acento na possibilidade de o indivíduo 12Trala-se do arügo Wer 1s't der GlaukerP Einspruch gegen eine thfamíerung der logotlterap¡e, escrilo pela doutora Elisabeth Lukas,pub1ícado nojournaldes Víktor Frankl Instituts (vol. 2; nu'm. 2; 1994), pp. 89~93.

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desenvolvimento como ñm últim0. Em conseqüência dos movímentos que se produziram em virlude da “Grande Guerra”, muitos existencialistas europeus acabaram emigrando para a América e a partir dali começaram a contatar uns aos outros. Dessa mistura vai se gerando paulaünamenle o que acabaria sendo o movimçnto humanista existenciaL enn'que cendo-se mutuamente. assim que autores como Gordon Allport, que já havia escrito um livro sobre a personalidade. reedita a obra depois deste encontro, notando-se nela forle inñuência do pensamento existenciaL Mas não somente ele. encontramos reelaborações em outros pensadores importantes como o próprio Abraham Maslow, que, junlamente com Allport, foi um dos pioneíros no desenvolvimento e na 0rganização do movímento na América nos anos 50. Mas não são somente os americanos que se enriquecem com os fundamentos que os europeus lhes dão a conhecer, mas estes também se enriquecem com o pragmatismo dos americanos. Neste sentido, eu diria que Rollo May é muito possivelmente o mais existencialista dos humanistas (valc lembrar o seu maravilhoso livro Existência, ao passo que Viktor Frankl continua a ser o mais humanista dos existencialistas (levzmdo-se em conta que é 0 único que ba1x'a 0 nívcl de abstmção do fun~ damento ñlosóflco e inícia uma psicoterapia, com metodologia própria, alimentada com essa on'entaçã0). Na atualidade. como expoentes reconhecidos dessa complementação de fundamentação cient1f1'ca e pragmatism0, podcríamos lembrar, por exemp10, James Crumbaugh e Elisabeth Lukas. Ora, a Logoterapia conseguiu “tirar dos ombros" a aparência de ser mais uma ñlosoña do que uma psicoterakaP Os críticos puderam reconhecer esse processo de instrumcnta~ llz'ação técnica do ñlosóñco a serviço de uma terapêuüca psicolo'gica? Evidentemente, essa ótica do cn'u'co, que não lhe per~ mite descobrir a maneira de operacionalizar os fundamentos ñlosóñcos, me faz pensar que, se olhássemos com essa mes-

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_. V-. ~__.

ma ótica estreita a psicanálise freudiana, concluir-se-ia que não se trata de uma psicoterapía, e sim de uma teoria física. De qualquer maneira, a Logoterapia é, evidente e deñnitivamente, uma psicoterapia com clara fundamentação üloso-' ñca, uma deñnida antropologia de base e uma concreta cosmovisão que atua como moldura do trabalho terapêutico, o qual não somente se defme pela própria metodologia de diagnóstico (por exemplo, o Logotest de Lukas, ou 0 PILTest e 0 SONG Test de Crumbaugh, entre muitos outros) e terapêutica (por exemplo, as técnicas de desreflexã0, intenção paradoxal etc.), mas pela sua intenção (não é um catecismo leig0, nem pretende fazer adeptos para certa orientaça'o), trajetóría e êxitos. Pois bem, dada resposta añrmativamente à primeira questão, devemos passar à segunda: ela e' aplicável somente a pessoas dotadas de capacidade retlexiva para estas temáticas ligadas à cosmovisão e à ñlosoña? Esse perñl ñlosóñco que se atribui à Logoterapía tem levado muita gente a crer que a tempia consiste em reñetir sobre ñlosoña, abordando conceitos abstratos tais como valor e sentido. Sendo assim, é lógico supor que se pode empregar esta terapia com pessoas que alcan~ çam nível de reflexão de acordo com a complexidade do conceit0. Mas nada é mais errado do que pensar assim. Evidentemente, a Logoterapia não implíca conduzír um processo de reñexão, e sim um processo de descoberta. Não se trata de círculos fllosóñcos, e sim de encontros vivenciais em torno de questões existenciais. Em Logoterapia o paciente não se questiona sobre a vida, équestionado por ela, é ele o questionado por cada círcunstância que lhe cabe víver. Em outras palavras, 0 paciente não se questíona sobre a vida, mas lhe dá respostas. Sendo assim, absolutamente não existe a necessidade de que o pacíente seja versado em questões ñlosóñcas nem sequer que tenha escolaridade. Mais do que isso, ela pode ser aplicada no trabalho com deñcientes físicos, idosos, pacientes psícótícos etc. Não existem restrições neste sentido. Agora, tendo esclarecído estas duas questões, vamos responder à dúvida iniciaL A biblioterapia, como qualquer outra técníca logoterapêutica, pode ser ímplementada com

uma população infantil sem nenhum tipo de impedun'ento nem de restrição e alcançando resultados com o mesmo sucesso. As crianças podem chegar a se “meter” na históña lída até, com menos resistência, e participam da trama com um protagonismo muitas vezes maior do que os adultos. Existem mu1-' tos livros, histo'n'as, fábulas e histón'as em quadrinhos que po dem ser utilizados em um trabalho dessa natureza com as crianças. Podemos ainda assinalar que alguns logoterapeulas brasileiros vêm trabalhando especialmente escrevendo contos para serem utilizados com ñnalidade biblioterapéuüca. e muitos deles, como, por exemplo. Iamara M. Porcelh', Elisabeth Kipman Cerqueira e Eloísa Míguez (entre outros) vém se ocupando especiñcamente da literatura infzmtiLl3 Porém, mesmo quando se trata de obras escritas especíalmente para fms terapêuticos, a maioria dos livros m'fantis apresenta narratjvas que encarnam valores dos quais a criança pode se aproximar e apreende-“los, incorporáJos solidamente.14 Tanto para fms biblioterapêuticos quanto para ñns b¡-' bliodiagnósticos, são muito úteís aqueles livros que m'iciam uma aventura e vão denx°and0 a criança escolhcr a conünuação. Propõe-se uma situação e se dão ao leitor várias possibilida~ des para resolve-^la; dependendo de qual seja a sua escolha, a hístória continuará em uma ou outra dirlgvão e assim se pode chegar a diversos fmais. Nestes casos podemos utihza"-los para ñns diagnósticos, por exemplo, descobrindo que. dianle de certas circunstâncias, o paciente habitualmente evita enfrentálas ou o faz desta ou daquela maneira, ou instrumentalizá-lo terapeuticamente, permitindo precisamente que ele supere os seus temores e inibição e tome a decimro de resolve~^las. “ Durante as sessões do ll Enconlro Brusileiro dc lngotcmpín urgaluza"tio pela SOBRAL (bo“cicdade Brasileira de lngolcrapim cm São Paulo (l995) Í01'oücw'lm'do 0 ínicio dc um movimenlo lileran"o dentro da logutempx'a. prumovido pela DnL Mnr~ tha G. de lglesia, e efetivado por Antonio C. Giampietro, lva Folino. lnmara PomellL Elisabeth K. Cerqueira. Eloísa M1'gucz,enlrc oulros. " Na terceira parte deste livro apremnlmnos à considemção do lcilor uma sele ção de maleñzús que podem ser uülimdos em bibliolcmpia. incluindo malcñal que foi escn'to para ser especiñcamente tmbalhado com um público infanüL

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Lu A bíblioterapia tem aplicabilidade quando se trabalha com dejícientesñsicos? Complementando a resposta à questão anterior, podería dizer que não somente tem aplicabilidade, como também possivelmente seja um dos recursos mais eñcientes neste terreno. Evidentemente, não de1x'ando de contemplar as características próprías de cada deñciência e as parücularidades de cada pessoa deñciente, podese ajustar a seleção de material (extensa'o, nível de abstração, grau de complexidade conceitual etc.) obtendo resultados formidáveis. A narrativa gera um efeito focalizador da atenção que amplia a possibilídade de captação e assimilação da mensagem, resultando na modíñcação de atitudes. Pessoalmente, acho que o trabalho biblioterapêutico com deñcientes é ideal para levar a mudanças de conduta', porque a persistêncía do conteúdo da narrativa na consciência da pessoa deñciente atua como uma imagem permanente de referência e continência, gerando palavras de ordem que permitem imrojetar normas de convivência, de trabalho etc. LLJl Ler e escrever são a mesma coísa? Evidentemente são atividades diferentes. Quando nos referimos expressamente à bíblíoterapia, estamos falando do trabalho com a leitura, e não com a criação de material escrito. De qualquer m0d0, vale a pena aproveitar a 0portunidade para propor que “escrever” também pode ter valor terapêutico. Muitas vezes já foram propostos em diversos tipos de trabalho terapêutico modalidades que instrumentam o fato de escrever a procura de mobiüzar certos conteúdos e pór em funcionamento recursos genuínos até agora inibidos ou não utilizados, que são reconhecidos como polencíalmente nocivos à saúde. Neste sentido devemos lembrar os trabalhos que vêm sendo realizados há alguns anos na Chamada lzfe'-review therapy, aplicada na terapía de pacientes idosos. Ela utílíza este recurso estimulando alguns pacientes a escrever a sua própria biograña, lembranças da sua cidade natal, a históría do seu bairro, a poesia que sempre quiseram escrever e nun-

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ca se animaram etc. Também se ulilizam, no trabalho com essa mesma população, em geragogia, esquemas de promoção, prevenção e aprend12'agem para o adulto mais velho. No nosso meio, há alguns anos o PAMI reahz'ou uma experién~ cia bem-sucedida convocando os avós a um concurso literá~ rio de contos curtos. Uma vez selecionados os ganhadores, foram convocadas as crianças para um concurso de manchas ilustrativas de alguns dos contos selecionados. O resullado da experiência é um belo livro que se chama Contos e cora. no qual se resumem os resultados.15 Como parte da mesma iniciaüva, foram percorñdas ddades e cidadezinhas do inten'0r da província dc Buenos A1r'es, convocando os habitantes maís idosos a escrever sobre a história do 1ugar.16 Em outra ordem, Jaspers soube defender a validade de se considerar o registro da biograña do paciente como um elemento altamente revelador. 70'da vida psíquica é um todo comoforma temporal (Zeitgestalt). Captar um homem é cozs'a que exige a contemplação da sua vída, do nascimento até a morte. A enfermidade psíquica se enraíza no todo da vida e para a sua captação não pode ser isolado dele. Esse todo se chama bios do homem, e a sua descrição ou relato, biografía.17 Embora não nos proponha que 0 registro biográñco seja revelado pelo próprio paciente (dando uma série de Íundamentos e explicações a respeito do valor desse regislro e de como 0 profxssional deve realizá-lo, podemos elaborar a idéia da importância de que seja escrita por clc mesmo com a condução e as sugestões que 0 terapeuta possa dar. Neste senü~ do, contamos também com a conlribuição da doutom Elisa~ beth Lukas, que nos assinala que quem está íntercssado em uma ampla regeneração espz'n'tual-am'mica de si mesmo encontrará muitos métodos e ofertas dzferentes no psicomercado '5 Cuentos y calares é uma publicação do lnslitulo Nncional de Serviços Socuu"s para Aposcnlados c Pension|'stas, realiudo cm 1994 (95 páginns). m Trala-se da colcção Contares de los grandes. publicada pclo mesma inslilulo cntre 1993 e 1994. ”Jaspers, KarL Psícopatolugia generaL Fundo dc Cullum Económicm Mx'xJ"co. 1993, p. 743.

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atual: sérios e não séríos, saudáveis e não saudáveis. Dentre os sérios e sauda'vets' se tomará e descobrirá aqui um método que se baseia na abordagem frankleamg a elaboração de uma autobiografía logoterapeuticamente guiadzL18 Ela nos assinala reiteradamente a importância do acompanhamento proñssional no transcorrer de um trabalho que exigirá tempo, perseverança, dedicação, mas que terminará sendo mais valioso e revelador do que os projetos habituaís para a auto-expen'êncz'a. w Vale dizer que a prálica de escrever pode ser em alguns pacientes um recurso altamente revelador e potencíalmente terapêutic0, sem que isso sigmñ'que converter o âmbito da terapia em uma oñcina literária ou algo parecido. Isto é, não se trata da qualidade narrativa escrita nem sequer de implementar esta técnica exclusívamente com pessoas que escrevam bem; a partir de indicações que vão estruturando a autobiograf1a, vai-se guiando o paciente para que o produto do seu trabalho termine sendo uma explicação temporal da pessoa em seu tempo próprio, ao mesmo tempo que uma conñontação da existência com o logos no aqui e agora, o que permite elaboração incrivelmente densa e intensiva, no d12'er da autora. Esta densidade do estar-consigo-mesmo não deve serperdida, por isso é necessário dezx'arp0rescríto tudo o que foi elaborado: os sinais do rolo de papíro aberto devem ser traçados novamente com a própria letra para que não percam nitidez na vida diária dofútum Desta maneira, a autobiografía realizada se converte em document humain, que ocupa 0 seu lugar entre a certidão de nascimento e o atestado de óbito de uma pessoa como uma constâncía do seu ser-pessoa com vida.2U No desenvolvimento do relato autob1'ograñ'co, 0 paciente se vê sempre confrontado na lembrança com tripla perguntaz O que sinto acerca de tudo ísto? O que penso de tudo "' Lukas Elisabelh, Una m'dafascinante, “Colecção Noesis", Ediloñal San Pablo, Buenos Aires, 1994, p, 182. '90p. ciL, p. 182. m Op. cit., p. 184.

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isto? Como o elaboro? Convidado pelo acompanhamento do terapeuta a dar respostas que Ihe permitam se reconhecer e se assumir como “sendo” com essa histón'a. Como aprendemos de Viktor Emíl Frankl, a exislência humana sempre tem a característica de resposta e dar resposta é como um documento de identidade com o qual nos damos a conhecer21

21 Op. cit., p. 189.

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3° PARTE MATERIAL

Nesta 3a parte apresentamos à aprecíação do leitor uma série de escritos que podem ser utíhz'ados como b1'bh'oterapia. Alguns são escrítos especialmente para esse fím por logoterapeutas, e outros são obras que, embora não tenham sido escritas com esta ñnalidade, pelo seu conteúdo podem se ajustar perfeitamente para tal ñm. Esclareço que não se trata de lista exaustiva de materíaL mas de apresenlação para orientação que possa sugerir ao leitor a descoberta de outro material que se ajuste em Cada caso à aplicação desejada. Em todos os Casos, introduzimos a obra Com breve sugestão referente à temática que ela aborda ou que poderia ser abordada a partir de sua utilízação como detonadon

MATERIAL Ng 12 “Quebra-cabeça", de Claudio García Pintos

“Quebra-cabeça" nos apresenta a história de quatro tolos que, diante da circunstância de resolver a travessia de um bosque, assumem atitudes diferentes. Basicamente se propõe a

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alternativa de quais atitudes assumimos quando temos de enfrentar uma cn'se ou qualquer circunstan^cia de travessia de determinada sítuação. As d1f1'culdades que essa travessia signmca e a alternativa de dois elementos fundamentais para faze~^lo: a descoberta do sentido (tratado aquí como “princípio de coerêncía” - é o botão da ñcha que arma o quebracabeça) e a coragem que exige de nós assumir a tarefa de segu1r' 0 caminho proposto pelo sentido descoberto.

Zuhawaáeça Era uma aldeia de tolos. Uma aldeia habitada por pessoas acostumadas a viver assim, buscando a maneira de evitar pro blemas, não resolvendo situações, mantendo relações superñciais e passageíras. .. Ninguém conhecia bem o seu vizínho e alguns nem sabiam se alguém vívia na porta ao Iad0. Um dia, um grupo de quatro tolos organiza uma excursão. Tratava-se de passeío por bosque que ñcava próximo da aldeía. Assim, sem previsões nem provisões, os tolos saíram da aldeía. Chegando à entrada do bosque, descobriram que tinham diante dos olhos a obscura maravilha de sendas caprichosas e galerias desenhadas por árvores de frondosa presença e úmida acolhida. Escolheram uma clareira como entrada e se m'troduziram nessa cativante imagem. Uma vez dentro, facilmente foram enganados por maravilhosa manhã tão espetacular que confundiram os seus passos e os flzeram perder a referência da entrada escolhida. Sem mais o que decidir, seguiram adiante certos de encontrar a qualquer momento, por acaso, uma saída, porque assim devia acontecer. Logo, muito logo, tiveram de enfrentar riscos de todo o tipo. Um deles começou a perceber sons, ruídos estranhos, desconhecidos. Em seguida, pensou que se tratava dos duendes do bosque, fantasmas que habita~ vam aquela úmida escuridão e perseguiam os intrusos que ousavam invadi-la. Sentiu med0, vacílou um momento, quis fugir, mas logo reagiu e achou 0 que fazerz tapou os ouvidos

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com as mãos e ñcou tranqu"i10, porque, assim pensou, os duendes já não existem Outro deles descobriu entre as sombras cerradas do bosque presenças estranhas que 0 seguiam e o olhavam Eram curiosos seres cujas formas se modiñcavam à medida que ele se aproximava ou se afastava deles e que surgiam da escun'dão como personagens ameaçadoras. Também senüu medo. Também quis fugir desse círculo no qual fora apanhado pe las sombras e seus temores. Logo reagiu e, como aconteCeu com o outro tolo, descobriu o que fazerz tapou os olhos com as mãos e ñcou tranqüilo, porque, assim pensou, as sombras ameaçadoras já não existem O terceiro tolo, que gostava de cantarolar enquanto caminhava, começou a sentir personagens invisíveis que, com vozes estranhas, lânguidas, e muitas vezes também graves, repetiam os seus cantos com melodia diferente, talvez mais profunda. Sentiu medo. Quem seriam essas personagens que repetiam invariavelmente as suas vozes com um tom que o assustava, com uma sonoridade inquietante? Quis fugir deles, mas não conseguiu. Aonde ia, elas o perseguiam, rep& tindo espantosamente os seus cantos. Logo reagiu, e como aconteceu com os tolos anteriores, ele também pensou no que fazer: tapou a boca e parou de cantar, e ñcou tranqüilo, porque, assim pensou, as vozes ameaçadoras já não existem. O quarto tolo, que gostava de caminhar e percorrer to-

dos os atalhos do bosque, logo descobriu que por mais que caminhasse e camm'hasse, sempre chegava ao mesmo lugar. Acelerava o passo como se isso lhe permiüsse sair mais depressa do labirinto verde~escuro em que havia se meüdo. Mas nada adiantava; por mais que corresse, sempre Chegava ao mesmo 1ugar. Sentiu-se apanhado pela própria impossibilidade de encontrar a saída. Quis fugír, mas não pôde. Aonde quer que caminhasse, os atalhos invariavelmente o levavam ao mesmo lugar, sempre. Logo reagiu, e como aconteceu com os outros três tolos, descobriu o que fazerz ñcou parado, porque, assim pensou, os caminhos não se cruzariam, impedin-

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dcro de sair do lugar. Mas logo sentiu que não havia resolvido o problema. Permaneceu parado ali um momento... e também não havia saído do labirinto, que contínuava a existir ao seu redor, cerrado, enigmátic0, e verdeescura Pensou um instante e disse consigo que, se exístia uma entrada, devia exisür' uma saída que só acharia buscand0a, e, apesar do medo e do temor, decidiu encontrá-la. Pegou uma pedra, amarrou-a a uma corda que fez com raízes e a lançou para a frente em meio à espessura verde do bosque Logo, seguindo a corda como atalho, se encaminhou de maneira pausada, mas decidida. Assim, inventando atalhos através do verde espesso do bosque, chegou à presença do duende do bosque. Era uma pequena e muito simpática personagem, que o recebeu com curiosa afetividade. 0 tolo se assustou, mas não tentou fugir dele, porque percebeu que era bem recebído. O duende o guiou até a saída mais próxima do bosque. Ao chegar a ela, deparou curiosa montanha formada por milhares de peças de quebracabeça gigante. Então lhe disse que a única condição para sair do bosque pela única saída que o bosque tinha era armar m'teiramente a ñgura do quebra-cabeça. O nosso tolo se sentiu decepcionado por ter de encarar tarefa tão árdua levando em conta aquela enorme quantidade de peças. Mas o duende do bosque o animou dizendo que devia tentar, ou então voltar ao centro do 1abirinto, e ñcar parado lá, como já havia experimentado antes. 0 duende o de1x'0u sozm'ho para que decidisse o que fazer e, desejand0-lhe sorte, se perdeu na espessura do bosque. O tolo íniciou a tentativa. Trabalhou muitas horas tentando armar a ñgura em questão. Teve de enfrentar desânim0s, frustrações, desesperança, o desesper0. Teve algum sucesso e conseguiu armar parcialmente algumas áreas do desenho. Procurando, tentando, armando, encontrou em meio à montanha uma peça curiosa. Era semelhante às demais, mas tinha uma partícularidadez no canto da peça havia alguma coisa que parecia um botão vermelh0. Ele a de1x'ou de lado e continuou tentando. Passado um moment0, voltou àquela

peça... e como se alguma coisa denlro dele o impulsionasse. apertou o botão. No mesmo instante, presenciou um fato maravilhosoz na mesma hora todas as peças começaram a se juntar auto~ maticamente umas com as outras, de mane1r'a precisa e muito cuidadosa, até formarem a ¡magem perfeíta e acabada do quebra-cabeça. Ainda sob o efeíto da surpresa, percebeu que se tratava do desenho de uma porta tão vividamente pintada que parecia reaL Tão real parecia que teve vontade de segurar a maçaneta e abri-la. Foi o que fez, e a sua surpresa foi ainda maior porque a porta se abriu, e assim, fmalmente. ele pôde sair do bosque. Passou assim para uma paisagem espetaculan intensa, ]uminosa, com vales regados por sinuosos regatos e enfeita~ dos por pomares coloridos, percorridos por pessoas que cantavam sem tapar a boca, que olhavam com um brilho especial que não ocultavam e que desfrutavam ouvindo com atenção cada som, cada canto, cada silêncio. Enquanto ele desfrulava caminhando por ali, mesclado, integrado na sua nova paisagem, certo de nunca mais retornar à aldeia de onde havia saíd0, os outros tolos permancciam com os olhos tapados e a boca fechada, acreditando tolamente que. assim, os fantasmas do medo e do temorjá não cxistiam

MATERIAL N° 2 “A estrada que não tomei” (1916), de Roberl Frost22 Que caminho devo t0mar? Essa é a pergunla que nos fazemos freqüentemenle quando deparamos a alternativa humana de cscolher. Essa pergunla revela que a cscolha não 22 Robcrl Frosl é um dos muis inumruInlcs poclas norlomncñcnnos. Muitns das suas produções rcvulam a sua proÍunda rclação com a nulurcza. scndo clc um desmcado cantor das pa1'›u'gclls da Novu lnglulcrm Frusl nusccu em ba""o anciwo no ano de 1875. c morreu em Boslon cm l9b$". A pocsiu aqui aprcscnlndn Íui cuñu em 1916, ganhando certa populan"dadc a parlir da suu inclusào no ñlme 'Socicdadc dos poetas mortos". com a qual o protagonisla. o proíeswr Kcuu'ng. prctcndc csu-' mular nos seus alunos o excrcício da deciúo pessoaL

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Ámdammmm Duas estradas num bosque amarelo divergiam; tríste por não poder seguir as duas sendo um só viajante, muito tempo parei olhando uma delas, até onde podia alcançar, pois por trás das moítas ela dobrava. Então tomei a outra que me pareceu de ígual beleza. Uma vantagem talvez oferecendo por ser cheia de grama, querendo ser pisada. Embora neste ponto o estado fosse o mesmo e uma, como a outra, tívesse sido usada. E naquela manhã todas duas tinham folhas ainda não escurecidas pelos passos. Ora! Guardei a primeira para outro dia! Mas, sabendo como uma estrada leva a outra, duvidei poder um dia voltar! Contarei esta história suspírand0. Daqui a séculos e séculos em algum outro lugarz

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duas estradas, num bosque, divergiam; e eu tomei a menos frequ"cntada; e foi isso a razão de toda a diferençal23

MATERIAL N° 3 “O sapateiro

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é simples. Por um lado, queremos optar por camínho fácil e cômodo, aquele que todos seguem; mas por outro lado, se nos apresenta outro, pouco transitado, mas que nos oferece alternativa de crescimento pessoa1. Sabemos que a opção nos levará dali em diante por direção que não tem volta, diñcilmente poderemos tomar esse caminho assim que tomarmos a decisão que temos diante de nós. Sempre contamos com a possibilidade de escolher, e ali onde se abrem dois caminhos a opção que se apresenta a nós é o caminho mais fácil e cômod0, o conhecido e transítado, ou aquele outra, d1f'erente, que nos impele a crescer. A decisão depende de nós, das nossas atitudes, dos nossos projetos, da nossa aspiração, da nossa coragem para assumir o risco de transitar pelo nosso caminho. Nesta poesía de Robert Frost está proposto esse momento de decisão consciente de que do caminho escolhido depende a orientação de uma vida.

0 sapateiro nos remete à experiência do ínconformismo e da insatisfação. Relala o caso de que aqueles que não che gam a ter valores, o que possuem e vivem é a eterna insatisfação por causa daquilo que não têm. A história, em linguagem simples, nos introduz profundamente na reflexão sobre o valor das coisas, mesmo aquele das pequelms fortunas cotidia~ nas, aquelas que habitualmente desconsideramos. Esta curta narrativa se associa a expressões tais como “n'co não é aquele que mais tem, e sim aquele que menos necessita" ou “somente o barato se compra com dinheiro”.

amceow Deus tomou forma de mendigo e um dia desceu a uma aldeia. Procurou então a casa do sapateiro e lhe dissez Irmão, sou muito pobre... não tenho nem uma única moeda na minha bolsa e estas são as minhas únicas sandálias... e estão rotas... se mefízesses o fav0r... 0 sapateiro lhe respondeuz bs'tou cansado: todos vêm pedir e ninguém vem dar... O Senhor lhe disse: Posso dar-te o que necessitas. O sapateiro, desconñado, vendo um mendig0, pergunlou se ele poderia lhe dar o milhão de dólares de que necessitava para ser feliz. E o Senhor lhe dissc: Posso dar-te dez uezes mais do que zs'so... mas em troca de alguma coisa. 0 sapateiro, interessa~ 23 Poemas Escolidos de Robert FrosL lradução de Man'sa Murmy. Editora Lidadon Rio dc Janciro, 1969, p. 39. z' Sobre um relato do espeláculo Lo Cortéz no quita lo Cabml (Albert0 Cortéz/ Facundo Cabral).

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do, perguntou em troca de quê. Em troca das tuas pemas, respondeu o Senhor. O sapateiro respondeu: Mas pam que quero dez milhões de dólares se não vou poder andarP Então 0 Senhor lhe disse: Posso dar-te cem milhões de dólares em troca... em troca dos teus braços. O sapateiro respondeu: Para que quero cem mílhões de dólares se nem sequer vou poder comer sozinho... Depois de uma pausa, 0 Senhor lhe ofereceu novamente, dizendcrlhez Bom, posso dar-te mil milhões de d0-' lares em troca... em troca dos teus olhos... O sapateiro pensou, pensou e fmalmente respondeu: Para que quero míl milhães de dólares se não vou poder ver a minha mulhe,r nem os meus fílhos, nem os meus amigos... Então o Senhor lhe d1'sse:Ah... Irmá'0, irmão, quefortuna tens e não te dás conta...

MATERIAL NQ 4

Pópa de Luiz Falcão Pipa vai, pipa vem, voa, voa me elcva também Pipa vai, pipa vem, voa, voa até onde os olhos não véem. Fazendo piruetas no ce'u. lindas tão coloridas de papeL Voar por toda parte. Umjogo feito arte. No ar, semprc alcgre como um passarinh0. Voar em liberdade. Ser livre é um desaño. Com a vida sempre presa por um ño. Pipa vai, pipa vem, voa, voa me eleva também Pipa vai, pipa vem, voa, voa até onde os olhos não vêem

“PIPA", de Luiz Falcão Pipa, do poeta brasileiro Luíz Falcã0, nos apresenta de maneira muito simples e bela a vivência da liberdade. A ima~ gem de uma pipa brincando no ar, fazendo piruetas vistosas e coloridas, se associa imediatamente com a idéia de liberdade. Voar, sub¡r, chegar até onde os olhos já não conseguem ver, são circunstâncias que muitas vezes percebemos como privilégios dos pássaros ou das pipas, especialmente quando nos sentímos atados por diversas circunstan^cias da vida. Nessa busca de liberdade, muitos de nós assumem papéis de vítima ou de submissão algumas vezes acreditando que na nessa situação ser lívre é d1f'ícil. Mas a canção nos chama a atenção sobre alg0, sobre a própria condição da pipa, que não denx'a de ser liv."e, não se submete nem assume 0 papel de vítima, apesar de estar atada. E lá nos de1x'a a sua mensagemz ser livre é um desaño quando se tem a vida sempre presa por um ño. Da nossa atitude depende, pois, sermos vítimas ou protagonistas das nossas circunstâncias, descobrir a verdadeira liberdade ou desistir da sua busca.

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MATERIAL N° 5 “O caminho da verdade" (Lenda dos Homens e da Vida), dc Elisabeth Kipman Cerquelra' Esta história de Elisabeth Kipman Cerquoira nos inlrcr duz em temáticas variadas, mas que giram fundamentalmen~ te em torno da noção da consciência, aquela que incessanle mente vai nos guiando através de uma mensagem ñrme e clara que muitas vezes nos recusamos a escutar e. por conse guinte, a seguir. Uma voz que por força de difcrentes circunstâncias pode se manifestar em leve sussurr0, opuco ou oculto por ansiedades, desassossegos ou falsas esperanças. lodos eles vícios que afetam a vontade no momcmo de agir c dccidir. Essa mesma voz pode chegar a cxplodir como um grito revelador que nos permitirá aceder, como no caso do conto. ao caminho da verdade. Muitos ângulos intcressantcs podem se abrir a partir da narrativa lanto para a tmefa em grupo quanto para a individual. O tempero da ilustração - realxz'a-

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da especialmente para o conto -1he acrescenta atrativo que o habilita para o trabalho com pacientes muito jovens.

Úmúzéodamdade ...Conta a lenda que houve um tempo na terra em que tudo era frio, silencioso e escuro. Não havia sol. Não havia 1uz. A Lua sempre pálida estava coberta pelas nuvens. Os homens andavam pelo mundo sem saber bem por quê. Não conheciam as cores. Tudo estava rodeado de Cinzas. Não se via nem sequer o cume das montanhas. Era d1f°ícil plantan Era difícil comer. Os homens eram calados. Desconñados, viviam sempre armados e escondidos. Não se entendiam bem uns com os outros. Não se olhavam nos olhos. Os adultos estavam sempre abatidos e as crianças não brincavam. Cada qual vivia para si. Eram tristes e medrosos... alguns dizíam que nem sempre foi assim. Os mais velhos cochichavam indecisos e recordavam vagamente 0 que seus bisavós contavamz “Quando a humanidade era jovem, em algum lugar, 0 céu era azu1”. Mas nem todos aceitavam esta situação... Havia um jovem guerreiro, Marrau, que buscava sempre o caminho que o levaria até onde o céu era azuL Um dia, se casou com Abaué, e tiveram um ñlh0, Yoasi. Eles sempre conversavam e se que1x'avam de que a noite pesava sobre a aldeia. Talvez alguém, com coragem, pudesse livrá-los... Quando Yoasi completou dois anos, começou a enfraque cer, como as outras cn'anças. Todas as criaturas começaram a deñnhar, como brotos que não se abriam e logo morriam. Cheios dc añição por todas as crianças, Marrau e Abaué tomaram Yoasi nos braços e part1r'am em busca da 1uz. De1x'aram a única pequena segurança que tinham na aldeia, enfren~ taram as trevas. Foram surpreendidos por víolentíssíma tempestade. Cheios de desespero, invocaram a força que governava o

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mundo e ouviram através do ventoz “Subam na montanha mais alta e toquem o céu com as mãos!”. Carregando 0 menino, começaram a subir mesmo scm ver os picos das montanhas. Caíam e se machucavam Sempre que chegavam ao cume das montanhas, aparecia outra mais alta. Mas cominuavam apesar do cansaço e da aflição, porque a voz, mais forte do que a própria dor que parecia saír do coração deles, insisüaz “Sobe na montanha mais alta!”. Por ñm, exaustos, apoiando-se um no outro, chegaram ao ponto mais alto daquelas montanhas, e trataram de alcançar 0 céu... Cercados pelo negro abismo, Marrau c Abaué. fen'dos, gelados, no meio da borrasca, abraçando Yoasi para protegê lo do frio, se perguntavamz “Será que a voz disse a verdade?". E ouviram novamente a voz, que diziaz “Sim! conñem, porque vocês me ouviram com 0 espírito dos fortes e dos valorosos! ,. Eles então se abraçaram, e. trêmulo, Marrau levantou Abaué nos seus ombros. Chorando de emoção, Abaué, vitoriosa, levantou Yoasi, e diante do geslo milagroso dos bracinhos abertos, o céu, que parecia tão distante, se abriu e surgiu a luz. O Sol também apareceu e se pôs a dançar com eles. A terra explodiu em cantos com a voz dos pássaros e dos Homens. Tudo se cobriu de folhas, de Hores e de írutos chcios de vida que nascem do amor e se ah'mean da fé e da esperança Os amm'ais começaram a correr e os riachos procurm também saciar as gramíneas sedentas. Na Terra, haviam encomrado 0 caminho da verdade e os Homens já podiam se olhar nos olhos.l

MATERIAL N° 6 “Aventuras em busca de am0r", de Iamara M. Porcellí A narrativa de Iamara M. Porcelli possui um estilo que a torna especialmente adequado para o trabalho com crian~ ças, permitindo identiñcações imediatas a partir da apre-

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sentação das personagens. De certa forma, lembra a temáti~ ca tratada por outras histórias, como, por exemplo “A Lenda do pássaro azul", nas quais a personagem saí desesperadamente em busca de um bem que na realidade possui no seu própn'o ínteri0r, mas com o qual não consegue entrar em contato. Aquí, o bem buscado é, genericamente, “0 am0r”, molivo das aventuras que este grupo de meninos vive, percorrendo o mundo e superando episódios de diversos tipos. A resistência em crer que o possuem e a alegria ao conñrmálo constituem as emoções que habitualmente se dão no outro quando tentamos fazê-lo descobrír que é possuidor do bem almejado. A imagem do conto vale também para frisar que, para 0 descobrimento e a apropriação desses bens, sempre é necessáría a presença do outro, como acompanhante e revelador.

Áummmdem Era uma vez... Parece que toda história começa assiml ...Um grupo de sete amígos que gostavam de se arríscar sempre. Vamos apresentá-los: Pedrinh0, inteligente e travesso; Kiko, observador; Lelé, sábío; Maria, muito sensível; Dri, maliciosa; Camila, indócíL e Viviana, conversadora. Com estas características, juntos se completavam Gostavam de conversar e investigar sobre qualquer assunto. Um dia, em uma dessas conversas, falaram da coisa mais

- Sempre ouvimos dizer que é grande e lindo, não é mesmoPl - E sim, añrmaram com grande expectativa. - Sabemos que quem 0 encontra é feliz para sempre, não é mresmo? - E sim, é sim! - Então lhes proponho uma aventura, uma aventura maravilhosa em busca do amor. E não vamos desisür até encontrar 0 lugar onde ele se encontra. Nesse momento, o olhar de todos tinha o mesmo brilhoz o brilho da aventura, do desejo de encontrar um tesouro muito valioso. Melhor do que os encontrados em navios piratas naufragados ou nos castelos dos pn'ncipes. Com os corações acelerados, gritavam em uma só voz: - Esta vai ser a aventura mais linda da nossa vida. Va~ mos lál Começaram então a se preparar para a viagem Procura~ ram se lembrar de tudo aquilo que precisavam levar: mochi1a, 1anterna, cantil, comida, para que não desisüssem durante a viagem. Estavam dispostos a qualquer sacrifício porque sabiam que valeria a pena. E partiram para a grande aventura! Chegaram primeiro a uma grande cidade que na realidade parecía uma “se1va de pedra". Pedrínho teve a brilhante idéia de subirem ao edifícío mais alto, pois de lá, com segurança, conseguiriam localizar onde morava 0 amor. Do terraço do edifício, todos procuravam olhar atentamente. Olhavam, olhavam... Dri usava binóculos. Nada. Mas

linda e preciosa que existe no mund0: o amor.' Pelo menos,

não desistiram; passaram horas a observm a grande cidade. E nada encontraram. Finalmente Pedrinho disse:

sempre ouviram falar nele. Surgiu então a perguntaz se o amor é tão lindo e tão pre-

- Bom, se o amor morava aquí, nesta cidade, acho que se mudou. PareCe que tudo aqui é tão triste...

Cioso, por que não procuramos descobrir onde encontra'-lo? Todos se entusiasmaram com a idéía, mas se perguntaram

- Tudo aqui é pó, acho que ele não gostaria de viver aquí, concluiu Viviana imediatamente.

como fazer para consegui-lo. Pensaram, pensaram, pensaram... E logo Lelé, com brilho especial nos olhos, dissez - INós sabemos que 0 amor existe, não é mesm0? - E sim, responderam todos.

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- Acho que vocês têm razão, vamos para o mar, talvez seja 1á... - disse Lelé, com 0 seu olhar sempre alent0. - Vamos passar mal se viajarmos de barc0! - disseram

preocupadas Dri e Camila.

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bem já prevendo problemas desse tip0, tratou de tranqüilizá-las: - Eu trouxe no meu estojo de primeiros-socorros um remédio contra enjôo. - Que bom.l Partiram então com a esperança e a alegria de encontrar no Grande Oceano a morada do amor. Navegaram muito. Mar revolt0, mar calmo, sol, chuva e ventos. Turbulências e golñ~ nhos. Enñm, atravessaram os sete mares. Kiko, que observava em silêncio tudo 0 que acontecia, disse chamando a atenção de todos: ' - Não acho que 0 amor mora aqui. E melhor irmos para outros 1ugares. Lele', como chefe da expediçã0, pensou um pouco e propôs: - Concordo com a sua observaçã0, Kiko. Vamos então percorrer todos os países perguntando pelo amor. Todos se olharam espantados, mas logo concordaram Primeiro foram ao Japão. Dri, que já não agüentava mais de tanta vontade de encontrar o tesouro, foi logo perguntando a um japonêsz -- Moço, você sabe onde se encontra o amor? Por favor, desejamos encontra'-lo. - Eunãossei. - Mas na verdade, o que foi que ele disse? - Eunãossei - foí só o que foi que ele me disse... - Mas não dá para entenderl - Vamos continuar, disse Le1é, dando meia volta. Foram à Grécia. Viviana, com a certeza de que agora o encontrariam, foi correndo na frente e perguntou à primeíra pessoa que viu: - O senhor sabe onde se encontra 0 amor? Estou desesperada atrás dele.' - Eunãossei - respondeu o ateniense, inclinando-se na díreção da menina. Todos chegaram perguntando com ansiedade qual a resposta obtida. Com o olhar tríste, Viviana procurou repetirz - Eunãossei.

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- Outra vez a mesma coisa? - Não entendemos nada! - disseram todos, menos Kiko, que preferiu observar calado. Mesmo assim, não desistiram Foram indo em ziguezague, percorrendo o mundo: Itália, França, Inglaterra. os países asiáticos e os afn'canos. As coisas foram ñcando mais d1fí'ceis, pois já estavam caminhando pelo deserlo. Que calor insuporláveL que sede insaciável... E recorda~ vam os momentos felizes na terra nataL Mas foi grande o susto quando Maria, com muita sede, abriu o cantil e viu que restavam apenas algumas poucas gotas de água. Que momento d1f1"cil.' Lelé aproximou-se dela e disse, com voz suave e ñrme: - Maria, não vamos desistir, não é verdade? E decidiu então repartir aquelas gotas de água entre todos. Foi o que fez, e logo depois, olhou ao seu redor, d12'endo: --Acho que o amor não se encontra aqui, pois este é um lugar muito quente e sem a'gua. Ele morrería de calor e de sede, não é mesmo? Todos concordaram e partiram Foram para os bosques, dispostos a enfrentar todos os perigos. Caminharam durante horas e o desânimo começou a surgir de nov0. Que penaI A noite chegou de repente e Lelé notou que todos começavam a desanimar. Por isso, decidiram descansar e tratar de dormir para estarem bem e mais dispostos para o dia seguinte. Todos se acomodaram, mas estavam inquietos, pois duvidavam que iam encontrar o amor. Camila começou a Chorar de tristeza e dlz'ia entre suspiros: - Procuramos em todos os lugares da terra e não o encontramos. Se ele existe, então que apareça para nós!... E acabaram adormecendo de tanta lrislezzL Na mesma hora, uma luz apareceu no céu e toda a zona do bosque ñcou iluminada. Espantados e com muito medo, perguntavam uns aos outros: - 0 que será isso? - Será um sonho? - Será uma estrela gigante que vai cair na terra?

- Será que o bosque está pegando fogo? Ouviu-se então uma voz forte, mas meiga, que vinha da luz: - Vocês estão procurando fora aquilo que Vive dentro de cada um de vocês. Cuídem dele.I Realmente é a coisa mais linda e preciosa que existe na terra. Emtum ímpeto de alegria, todos começavam a gritarz -- E 0 amor, é 0 amor, nós 0 encontramos, ele vive dentro de nós... Vival Nós o encontramos.I Pedrinho dava cambalhotas. Os outros começavam a cantar canções que falavam de am0r. Era uma grande festa, a festa do encontro! Lelé, emocionada, junto com os demais, concluiuz - Devemos contar isto ao mundo inteiro...! Todo o mundo precisa saber por que quem encontra o amor é feliz para sempre...! MATERIAL N° 7: “0 rei que queria ser fehz'”, de Antonio Carlos Giampietro Com uma temática bastante añm àquela do conto anteri0r, mas com tratamento totalmente distinto, Antonio Carlos Giampietro nos propõe uma história na qual a busca da felicidade e' 0 elx'o princípal, mas a busca da autotranscendência é a façanha. Certamente, assim como a história de Iamara Porcelli é ideal para o trabalho com crianças, esta história apresenta características que a tornam adequada para adultos. 0 caso deste rei é 0 daquela pessoa que busca a felicidade como meta e ofaz“cravar1do os olhos no próprio umbigo”, isto é, de si para si. A história o coloca ao lado de personagem que o acompanha, proporcionado-lhe elementos plara que possa ir se aproxímando da verdade da sua busca. E assim que o erro de buscar a felicidade como meta -- quando na realídade ela é efeito ou produto - e pretender encontrá-la no próprio umbigo, vão dando lugar a elaboração e reñexões que lhe permitam “se curar" no momento de poder se trans-

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cender encontrando o que procurava não em si mesmo. mas no horizonte do interpessoaL Como dizia o lema fratcrno que unia os cavaleiros do lendário re1'Artur.serviraos outros para ser livre.

Ómgaegmmmqu Era uma vez um rei que, desde os remotos tempos da sua juventude, buscava a felicidade eterna. Em função disso, trat0u, em todas as atitudes que tomava, de não se afastar do seu objetívo. Os anos passavam e o rei, apesar dos seus esforços. não conseguia atingir a meta. Com freqüência se senüa amargurad0, entediado, sem inquietudes e sozinho. Resolveu comsultar um sábio de muito prestígío que vivia nas proximidades. O sábio, ao ouvir as suas que1x'as, disselhez - O homem sempre busca satisfazer os seus desejos mais íntimos, mais reprimidos. Somente quando consegue realizá-los é que se sente livre para gozar da paz e da felicidade. Por isso, sào tão poucos os homens felizes. Vossm majes~ tade viveu ocultando os seus anseios com realúações que não o satisfazem. O rei voltou ao palácio, refugiou-se nos seus aposentos e procurou reíletin Depois de algum tempo se decidiu; in'a em busca de satisfazer os seus desejos e fantasias. Por algum tempo, viveu rodeado de prazeres. Nada lhe era proibido, e para ele tudo era possível. Não obstante. ape~ sar de tudo isso, a sensação de tédio não o delx'ava, nem a impressão de inutilidade da sua vida. E queria morrer. Foi então aconselhado a consultar oulro sábio que tinha grande inñuência no reino. Foi o que fez. Contou-lhe a sua história, as suas que1x'as, as suas tentativas de se livrar do mal que o afligia e escutou 0 conselho do sábio: - A satisfação dos prazeres é importante, majestade, mas não é tudo. O homem nasce se sentindo pequeno e infen'or. Para superar essa sensaçã0, deve se sentir bem e fehz',

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precisa conquistar poderes que lhe permitam trocar esse senLIm'ento de inferioridade pelo sentimento de ser poderoso. 0 rei voltou animado. Então era isso. Não lhe bastava esse reino, precisava conquistar outras terras e melhores riquezas. E se pôs em açã0. Chamou o comandante do seu exército e lhe deu ordens. Os anos passavam e agora o rei, além de gozar dos pra~ zeres, possuía o maior reino e as maíores riquezas então conhecidas em todos os arredores. Nunca se ouviu falar de um soberano tão forte e tão poderoso. E, enquanto lutava para atíngir essas metas, o rei parecia se sentir bem, mas logo ao alcançá-las, de novo o tédio, os dias monótonos e a sensação de frustração tomaram conta dele. O seu estado de ânimo foi decaindo aceleradamente. Enfraqueceu e ñcava triste e calad0. Por ñm, se abandonou totalmente e ñcou na cama à espera da morte. - Morte sem conhecer o prazer de viver! - repetia constantemente para si mesmo. Os membros da sua família e toda a corte procuravam fazer alguma coisa para evitar 0 pi0r. Resolveram então chamar o médico rea1, um velhinho muito culto e com grande experiência que gostava de citar os grandes autores, que, di~ zía, eram amigos seus. Comentava~se pelo reino que esse médico inventava histórias e era um tanto extravagante, mas todos concordavam em considerá-lo excelente médico e homem muito bondoso. O médico os aconselhou a internar o rei no hospital para poder estudar melhor o seu caso e então tratar dele. E assim f0i. O rei foi internado em um apartamento especial separado dos outros doentes. O médico conversou muitas vezes longamente com e1e, e íniciou 0 tratamento. -Acho que Deus se esqueceu de mim! - queixouse 0 rei. - Não se deve contar demais com Deus. Talvez Deus deseje contar com a gente. - Mas, doutor, procuro tanto a felicidade, que oriento tudo o que aprendo para conseguí-la.

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- Um amigo meu, Herman Hesse, em um livro chamado Sidarta, d12' o seguintez Quando alguém busca muito, pode facilmente suceder que seus olhos se concentrem exclusivamente no objeto buscado e que seja íncapaz de encontraraquilo que realmente deseja, e que se torna inacessível porque só pensa naquele objeto e porque tem meta que o cega totalmente. Procurarsigmfca ter meta. Mas encontrarsignjííca estaraberto a tudo... Pode ser que você seja pessoa que busca, já que, pelo seu afã de se aproximar da sua meta, você não percebe certas coisas que estão muito perto dos seus olhos. - Muito perto dos meus olhos!... repeüu o rei pensativo. Em algumas semanas se produziu uma melhora física. O rei se alimentava bem, 0 seu peso aumentava e ele parecia bem disposto. Mas o seu coração continuava angustiad0. 0 médico sugeriu então ao rei que, disfarçado de paisano, passeasse por todo 0 hospital e conhecesse todos os seus su'ditos doentes, sem que eles o reconhecessem O rei aceitou. No pnm°eir0 dia parou diante de um leito onde um mon'bundo era alimentado por outro paciente, gravemente enfermo. Ambos pareciam irmanados naquela ação. A cena o comoveu fortemente. Encontrou depois um jovem paraplégico que procurava, na medida das suas possibilidades, ajudm a outros companheiros. Durante todo aquele dia observou situações semelhantes. Nos dias seg1u'ntes, tornou a repetü a expe~ riência. Pouco a pouco, foi conhecendo uma realidade que não parecia distante do seu mundo habitual. Certa manha', ñcou tão distraído, que se atrasou para o almoç0. Como 0 hospital era pobre, apesar da n'queza do reino, não encontrou comida para que lhe fosse servída fora de hora. Para sua surpresa, um jovem paciente, muito doente, o convidou para a sua mesa e repartiu com ele a sua comída. - Muito agradecido, meu jovem! Você é muito generoso. Mas estou vendo que está muito fraco e que prccisa de uma boa alimentação para se recuperar. Não pode ñcar sem a parte da refeição que está me oferecendo. - Veja, senhor, o prazer de poder reparür 0 meu pão me fortalecerá. Sentese... por fav0r.

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O rei aceitou. Sentou-se à mesa com o jovem e, durante a refeição, perguntou da vida de1e. Conheceu a sua pobreza, ñcou sabendo dos ñlhos e da esposa, de quem ele tinha de cuidar e até dos pais idosos que víviam com ele. - Como pode manter esse aparente bom humor com essa situação difícil, com uma família que precísa de voce^, doente, longe dela? - Veja o senhor, eu não abandono a minhafamí1ia. Estou me preparando para voltar a viver com eles. Esta doença foi uma fatalidade inevitáveL mas procuro fazer 0 que está ao meu alcance para me recuperar e estou orgulhoso disso. Vou estar bem assim que seja possíveL De qualquer maneira, preciso ñcar bom para cuidar dos meus entes queridos. A 1embrança desse agradável compromisso me dá forças e humor para sobrelevar cada dia que passo. O rei ñcou pensatív0. Como aquele pobre homem enfra~ quecido pela doença, sem bens materiaís, sem possibilidades de gozar dos prazeres da vida, podia estar ali, apesar de tud0, aparentemente feliz? Tudo 0 que via parecia contradizer 0 que aprendera com os sábios. Intn'gad0, falou com o médico: - Doutor, que lugar é este que me produziu sentimentos ímprevisíveis? Que lugar é este onde me encontro que me faz desejar participar das atividades que realizam os meus súditos mais pobres e doentes? 0 médico lhe respondeuz - Este é um lugar qualquer do mundo dos humanos. Outro amigo meu, Gibran Khalil Gibran, escreveu um livro cujo título é Para'bolas. Em certo momeinto ele diz: “Deves ter ouvido falar da montanha sagrada. E a montanha mais alta do mundo. Se chegas ao topo, nasce em ti um desejo de descer e viver com aqueles que vivem no vale mais profundo. Por isso, ela se chama montanha sagrada”. Pense nisso, majestade. Nos dias seguintes, o rei realizou todas as tarefas que surgiram E não eram poucas, com tantos doentes e tão p0uca gente para ajudá-los. Assim se passaram várias semanas.

O rei se sentia u'til, como nunca havia se sentido antes. Reahz'ou atos de companheirismo, de amízade desinteressada, de afeto, e enfrentou a dor com valentia. Por sua vez, sentia que, apesar de estar doente, conseguia dar um grande senu'do à sua vida. E, embora ainda esüvesse magro, se sentia forte. Passados alguns dias, voltou a falar com o médico. Sen› tía-se curado. O seu coração palpitava alegremente e pela pn'meira vez sem amarguras. - Doutor, em que lugar me encontro? Que milagre aconteceuP Enquanto procurava a felicidade, não a encontrei. e quando desisto de procurar, a encomro no lugar mais imprevisto. - Este é um lugar qualquer do mundo, majeslade. Nem sempre aguilo que se procura se encontra onde pensamos que está. As vezes, depois de percorrer numerosos caminhos e andar muitas 1éguas, descobrimos que aquilo que procurávamos sempre esteve muito perto de nós. E ísso que nos ensina o encantador conto 0 pássaro azul da felícidade. Outras vezes não notamos que, sem bússola, nos perdemos denlro de nós mesmos, e quanto mais procuramos prossegmr', mais pn'sioneiros estamos. Rodando então até o mais profundo dos abismos. Lá emba1x'o, no escuro, sozinho. olhamos para o alto e vemos uma fendaz a nossa única saída. Alravés dessa estreita abertura, entrevemos o céu e as estrelas. Os abismos nos aproximam das alturas. - Os abismos nos aproximam das alturas. .. - repetiu 0 rei pensativ0. - Vossa majestade buscava a felicidade gratu1'ta. Não é assim que ela é encontrada. O bem-estar humano surge de uma vida plena de sentid0. E quando o encontra, com a realização de um traba1h0, com a experiência do amor. ou enfrentando o sofrimento, o ser humano se realiza como ser autotranscendente que é. - Autotranscendente? - Sim, que se realiza fora de si mesmo, no encontro com outros, na realização de valores.

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- No encontro com outros... na realízação de valores... - repetiu o rei, ainda pensativo. - O bem é o encontro de tod0s os seres, 0 idioma com o qual todos se entendem, a aliança defmitiva dos corações. Como já lhe disse duas vezes, majestade, este é um lugar qualquer do mundo. Volte para o seu palácio e viva como homem pode víver, procurando dar 0 melhor de si para que o mundo seja melhor. - Tenho receio de que a minha contribuição seja somente uma gota no oceano. - Talvez seja assim, mas 0 oceano seria menos oceano sem essa gota, como diria a minha amiga Madre Teresa de Calcutá. 0 rei, agradecido, despediu-se do me'd¡co. A ponto de sair, resolveu, pensativo, voltar-se e comentarz - Doutor, 0 senhor possui uma grande sabedoria. Parece-me que, por modéstia, talvez, cita idéias de amigos seus que na realidade são parte das suas próprias idéias. Notei, além disso, que, através das nossas conversas, me ajudou a, pouco a pouco, dar senlido às minhas ações. Tudo foí muito proveitoso e inesquecíveL Mas tenho uma grande curiosida~ dez como aprendeu a ag1r' assim, como homem, como amigo e como médico? - Agradecido, majestade, por suas generosas palavras. Aprendi na mm'ha vida, com meus pais, irmãos e amigos. Com meus mestres e pacientes, em meus acertos e em meus erros... Muito tempo atrás, era um bom rapaz e em outras terras em outro reino, durante uma guerra tem've1, fui feito prisíone1r'o injustamente. Comigo Lambém foram presos nume~ rosos companheiros e muito poucos conseguiram sair com vida. No cativeiro, durante anos, vivi as situações mais degradantes para um ser humano. Entretanto, apesar disso, aprendi muito daquilo que sei nessa dolorosa experiência. A prísão foi a minha montanha ma'gica... meu fundo do abismo... Foí então que conheci o meu eterno e grande amígo, 0 doutor Viktor FrankL Apesar da sua condição de prisioneiro, ele nos falava com palavras e atitudes, do sentido da vida, da auto~

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transcendência do ser humano e da capacidade do homem para conseguir valor mesmo diante do ínevitável sofn'mento. - A montanha mágica... o fundo do abismo... as estre las... o valor do sofrimento... - murmurou o rei. Diga-me, doutor, o doutor Frankl escapou com vida? - Sim, escap0u. - Ele ainda vive? - perguntou, com grande bn'lho nos olhos. - Longe, muito além destes mares. em um lugar muito distante deste reino, ele ainda vive. Está bastame velho, como eu também est0u, mas continua trabalhando todos os dias. amorosamente para que o homem seja mais humano. O rei respirou profundamente - Para que o homem seja mais humano... homem... humano... homem-humano... agora estou começando a entender... O mundo precisa de pessoas como o senhor, como esse seu amigo, como todos os seus amigos... - E como vossa majeslade. O rei sorríu emocionado. - Gostaria de encontrá-lo outras vezes, doutor, para conversar sobre as nossas existências. Gostaria de conhecer mais coisas relacionadas com esse grande amigo seu. - Estou à sua disposiçã0. - Eu 0 consultarei várias vezes, se isso não o incomodzL - Cada encontro será um grande prazen Já estou desejando concretizá-lo. O rei saiu do hospital e resolveu voltar para casa a pé. Respirava o ar puro daquela manhã como se fosse a primeira vez. Caminhou ñrme e segum Sabia o que buscar e para quê. O seu coraçã0, por ñm, eslava aliviado e na sua cszeça fervilhavam idéías de novas e difercntes conquistas. Chegou ao palácio e todos notaram a difcrcnça. O reí estava curado e alegre. - AfmaL perguntou a rainha. que doença você tinha? - Ah, minha quen'da esposa, era uma doença muito simples, mas muito grave. Eu tinha os olhos cravados no meu umbigo.|

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Todos os presentes riram, na certeza de que o rei estava fazendo uma piada. Referénciasz FrankL V. E. 0 homem em busca de sentido, Editora Herder, 1991/ Sede de vive,r Edilora Quadrante, Lisboa, 1986; Um sentido para a vida, Editora Santuário, Aparecida, 1989. Gíbran KhaliL G., Parábolas, Editora Vecchí. Rio de Janeiro, 1973. Hesse, Herman, Sidarta. Editora Civilízação Brasileira, Rio de Janeiro, 1974.

MATERIAL N° 8: “Quando”, de Gabn'el Jorge Castellá Nesta bela apresentação de Gabriel Castellá, a reflexão vai nos levando a tomar contato com aütudes e valores que constituem a bagagem necessária para encarar a vida em seu conjunto e particularmente as situações em que a existência nos coloca. Com um engenhoso encadeamento de idéias e de conceitos, partimos da fé chegando à felicídade, também entendída aqui como o resultado, efeito ou conseqüência de assumir certas atitudes voltadas para a autotranscendência e à descoberta do Supra-sentido que responde às perguntas sobre a orígem e o destino da vida humana. Este material é ideal, na minha opinião, para o trabalho em bibüoterapia pela sua dinâmica e pelo seu conteúdo, altamente imbuído do pensamenio logoterapêutico. Esse encadeamento vai nos levando, ou melhor dizend0, vai nos ac0mpanhando na idéia de uma aposta na nossa própria atitude paründo da fé - como ponto de partida, passando pela consecução de outras atitudes - por exemplo, coragem, autonomia, responsabiüdade, vigor etc. - que conduzem a busca da descoberta do sentido. Vale igualmente como exemplo da utílização do pôster, cartão postaL mm'ipôster, como material b1'bh'oterapêutico que atue para a obtençâo de logotipos positivos.

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Zamda Quando se añrma a fé, se desenvolvc a esperança. Quando há esperança, se cultiva 0 amor. Quando bn'lha o amor, se amplia a consdência. Quando se tem consciência. se dcscobre o sentid0. Com o conhecimento do sentido se alcança autonomia. Com o uso da autonomia se conscgue auton'dade. Com 0 exercício da auloridade se assume a responsabilidade. Com o emprego da responsabilidade se desperta a coragem Se se tem coragem, se aumenta o vigor. Se se culliva 0 vigor, surgc a alcgn'a. Se se vive com alegria, se aprende a correr n'scos. Se se sabe correr riscos, se cultiva a hum1'ldade. Quando se é humilde, se incrementa a sabedon'a. Quando há sabedoria, se exercita a liberdade. Quando se assume a liberdade, sc irradia paz. Quando há paz, se consegue harmonizL Com a harmonia se pode dar o melhor de si mesmo. Com o melhor de si mesmo se atinge a plenitude. Se se tem plenitude, se alcança transccndôncia. Se se consegue transcender, se obtém fclicidade. Se há felicidade, se consegue cumprir a missào que o Supremo Criador e a vida nos haviam dcsünado. Quando se cumpre esta missã0, se está maís perto de Deus.

MATERIAL N“ 9: “P0esias”, de Elisabeth Lukas A doutora Elisabeth Lukas é reconhecida pelos seus trabalhos de pesqujsa e difusão da Logoterapia, aplicada em diversos âmbitos. E também aulora de uma técnica de diagnóstic0, difundida e aplicada com sucesso em diferentes países. A leitura da obra de Lukas vai nos introduzindo maravilhosamente no mundo da Logoterapia, através de conceitos claros, práticos, e especialmente nas últimas realizações, esteticamente belos. Evi(lentcmente, o estilo desta autora vem nos mostrando matizes poéticos que não prejudicam a ñrmeza conceitual, mas, pelo contrário, a aflrmam, a

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enriquecem, a ilustram, dand0-1he um renovado poder de penetração no leitor. Neste caso, desejo incluir nesta brevíssíma resenha de material algumas poesias da doutora Lukas imbuídas obvia~ mente do pensamento logoterapêutico, que se prestam para o trabalho biblioterápico tal como foi apresentado neste trabalh0. Estas poesias, ou reñexões poéticas, não têm título e são extraídas de um trabalho que, há alguns anos, a doutora Lukas fez chegar às minhas mã0525 e no qual cada uma das proposições apresentadas é encerrada com uma poesia que ilustra a temática abordada. Nesta oportunidade, para que o leitor possa se localizar no conteúdo e no sentído da poesia, daremos o título da conferéncia a que corresponde, bem como uma resenha muíto rápída do conteúdo abordado em cada caso. “Introdução da pessoa à auto-responsab111"dade. Um programa logoterapêuüco para a redução do índice das recaídas em psicoterapia” (1982) Nesta conferência a doutora Lukas apresenta um programa de trabalho elaborado com a ñnalidade de garantir que os pacientes que tiveram alta não precisem, passado algum tempo, voltar ao tratamento por causa de recaída. Encerra a conferência dizendo que qualquer pessoa que realmente quez'ra curar-se, deve querer curar-se de uma vez e para sempra E qualquerpessoa que rlealmente ame os seus pacientes deve lhes facilitar aceder, fínalmente, à responsabilidade de si mesmos. Quão livre sou? Perguntou o homem ao seu Criador.

Não posso rechaçar meu corpo. 25Lukas, Elisabcth, Psícotempia en digm'dad, Apoyo pam la vida con oríentaciân al sentído según Víktor FrankL San Pablo. Buenos Aires, 1995.

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Não posso renegar meus anceslrais. Não posso desaparecer do meu entom0. Não posso escapar do meu tempo. Tu não és livre de tuas condições, respondeu ele. Mas és livre para cscolher uma atitude diante de tuas condições. E isso é o máximo que jamais concedL

“Juventude. Uma contínua busca de sentido” (1986) Neste caso. a autora aborda o tema da juventude e a re~ lação dos mais velhos, especialmente dos pais, com osjovens. A circunstância de conñar neles e guiáJos ou condquos em meio a um mundo confuso e repleto de obstáculos procurdn'do não perder de vista a busca, e a descoberta, do senüdo. 0 que é o homcm? Não há resposla porque há milhões de resposlas. É louco e superinteligente. E uma besta e um santo.

E tão primitivo como um animal e, ainda assim. um ser espirituaL Então, 0 que é 0 homem? Há uma resposta: é a criatura que se defme a si mesma.

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“As aütudes pessoais e a preservação da vída” (1987) Agora Lukas aborda o tema da decisão pessoal, colocando-o em termos de poder dizer sím ou não às d1f'erentes alternativas de vida que vão surgindo. Mas ela os associa com as decísões cotidianas, mesmo com as pequenas, convidandonos desse modo a assumir 0 compromisso de ter permanentemente uma atitude e de ajudar os nossos ñlhos a crescer nessa postura, os nossos alunos a fazer 0 mesmo, os nossos pacientes a consegui-lo etc. Isto é, a preservação da vida depende fundamentalmente de assumir atitudes pessoais signiñcativas, não só diante do extraord1'nán'o, mas também diante do ordinário, do cotidiano. Quisera ver uma porção da realidade em todas as suas dimensões. Tudo o que há ali: noite e dia, proximidade e distância, acerto e erro, pena e graça, alegria e tristeza...

Mas quem decidirá o que, de tudo isto, será para mim? Vi uma porção da realidade em todas as suas dimensões. Tudo estava 1á: o bem e o mal, a luz e a escun'da'o, a quíetude e o desassosseg0, o ser e o não ser, tu e eu. Mas eu decidi 0 que sería para mim.

“Enfrentando a tríade trágica” (1985) Agora Lukas nos leva ao terreno do sofrimenlo da culpa e da morte e coloca modos testemunhais de encarar a supe ração destas vivências a partir da descoberla do sentido encoberto em cada caso. Encerra a conferéncía dlz'endo que na verdade, a vida tem e conserva um sentido com todas as nossas perdas efracassos, apesar da sua transítan'edade. Não há ms'tência humana que não possa ser iluminada pelo sentido. Como dzs'se uma vez Martín Buber, todo serhumano determina o destino do mundo. E ts'to inclui todas as pessoas que estão sofrendo, lutando com as suas culpas e até mesmo com a morte. Duas portas. Por uma somos empurrados, pela outra passamos. Se opõem entre si? Talvez, mas se ligam por meio de nossos passos. Uma se chama destíno; a outra, liberdade. Uma nos obriga a ir na dircção que devemos; a outra nos permite escolher que caminho queremos tomar... Enquanto caminhamos, podemos escolher, mas, ao escolher, devemos continuar o caminho. Duas portas, dois mundos c gcnte na soleira, vacilando entre 0 destino e a liberdadeP Nem tanto assim. Porque ser cmpurrados através da porta do destino dexx'a 0 destino para trás dc nós, mas, se escolhemos cntrar pela porta da liberdade, enírentamos a nossa liberdade. Desta maneira, caminhamos eretos,

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Com o destino por detrás de nós para a liberdade.

“Da auto-atuahza'ção à responsabilidade” (1989) Nesta conferência, a doutora Lukas nos convoca maravilhosamente ao exercício da nossa responsabilidade, aquela que m'1plica a autotranscendência ao dar resposta à vida saindo de si mesmo. 0 que esperamos da vida? A resposta é silêncio. O que a vida espera de nós?

manentemente, de forma consciente ou subliminar, essa men~ sagem irá sendo assimilada a uma espécie de linguagem interior que pode chamá-10 na direção terapeuticamente pre~ vista.' E evidente que as possibilidadvs de material neste senü~ do são múltiplas. Seria impossível catalogar cilações ou frases célebres de maneira absoluta; de qualquer forma, incluo aqui algumas que me foram trazídas pelos própn'os pacientes no momento de abordar trabalhos do tipo do descn'to, e que possuem um conteúdo enriquecedor. Vejamosz

- A pessoa mats'fácil de enganarsomos nós mesmos.

A resposta aguarda na nossa língua e na nossa mão.

Edward Lytton (1803-1873), romancista inglês. ° Ver é crer, mas sentír é me1h0r. John Ray (162&1705), naturalista inglês.

MATERIAL N° 10: “Ref1exões” Como já foi dito ao longo do trabalho, Consídero de grande utilidade todas as frases, citações, refrões, provérbios e aforismos que encerram um conteúdo que possa ser assimilado como um conteúdo que interesse a pessoa que o recebe. Muítas vezes, é altamente terapêutico que o pacíente trabalhe com este tipo de material proporcionado pelo terapeuta ou trazido por ele mesm0, até parafraseando frases célebres ou expressões conhecidas, e elaborar para si mesmo uma espécie de cartão ou minípôster com cuidado, isto é, que tenha o trabalho de faze-^lo “bonito”, por assím d12'er. Pode trabalhálo em casa ou durante a sessão de terapia, para depois, tendose apropriado e recreado do seu conteúdo - daí a importância de trabalhá~10 criativamente -, guardar esse cartão onde achar mclhor; pode leva'-lo na carteira, na agenda, pendurá-Io na parede do quarto, na pasta do colégio, na cozinha etc. Per-

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0 A vida é uma longa lição de humildade. James Barrie (18601937), dramaturgo britânico. ° A liberdade é como o movímento: não se defíncz se mostm E'. de Girardin, (1806-1881), jornalista francês. 0 Aprendo enquanto vivo. Provérbio indiano. 0 A vida é aquilo que uai lhe acontecendo, enquanto você cuida de outros planos. John Lennon (1940-1980), cantor e Compositor inglês.

0 Nunca se desespere em meio às mais sombrias aflições da sua vida, p0w' das nuvens mais negras cai uma água limpa efecunda. Provérbio chinês. 0 Viuemos todos sob o mesmo céu, mas ninguém tem o mesmo horizonte. Konrad Adenauer (187('›1967), chanceler alemão.

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0 Quem de nada duvida nada sabe. Provérbio grcg0. 0 Se sentes amargura, levanta os olhos e olha o céu. Provérbio espanhoL

0 Quando não se tem a coragem de viver como se pensa, acabase pensando como se m've. Victoria Ocampo (1891-1979), escritora argentina. Evidentemente, repit0, poderíamos citar inúmeras frases ou reflexões célebres ou conhecidas; a idéia da referência anterior é trazer alguns exemplos trabalhados por pacientes de diferentes idades. Muitas vezes eles mesmos parafraseíam ditados, refrões, ou expressões conhecidas, adequando-as ao seu próprio caso. Tal é 0 exemplo de José, um jovem que cresceu em um meío com uma ordem e uma disciplina muíto severas, tanto em casa como no colégio onde havia feíto, na qualidade de aluno semi-interno, toda a sua escolaridade. Man1f'estava-se como rapaz muito rígid0, fortemente controlado, amargo, com desproporcionado nível de auto-exigência que atualmente o colocava, já na universidade, diante de incompreensível fracasso. Não conseguia estudar, concentrar-se, prestar um exame, progredir na carreira. Recordava permanentemente, como uma frase que o acompanhava sempre, uma espécie de Iema que circulava na escola e que desde muito pequeno até a sua saída do secun~ dário ñcou na sua cabeça: Tudo é uma questão de excelêncía. A sua vida era amarga, sem esperança, vivia desconcertado e com certo ar dramático. Nas primeiras entrevistas, proponho a ele trabalharmos com esta técnica das frases. Durante a mesma sessão em que combinamos a tarefa, começa a recordar algumas que, considerando a sua formação escolar, brotavam-1iteralmente - da sua memória. Mas nenhuma delas 0 satisfazia como especialmente interessante para ele naquele momento. Fica então encarregado de resolver o problema durante a semana para trabalhar na sessão segum'te com aquela frase escolhida.

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No nosso próximo encontro, comenta a amargura de uma semana na qual a sua tribulação maior é a proximidade dos exames parciais na faculdade. Desculpa~se por não haver cum~ prido com a tarefa combinada, por estar totalmcnte ocupado com os seus estudos, ou melhor dizendo, com a sua angúsüa diante da iminêncía de um possível novo fracasso. Tratamos de propor uma modalidade de estudo que resulte em maior aproveitamento do tempo que lhe restava até lá. Eu o ajudo a conceber e a decidir uma estratégia equilibrada que lhe permita criar melhores condições para assumir a tarefa, especialmente tempos livres de recreação, lazer, esporte. Ao comprovar que a sua semana ücava estruturada com tempos para o esludo e tempos para a dislração, me olha as» sombrado e perguntaz “Como vou ao clube correruma hora ou sair um pouco à noíte com a minha noiva se tenho de estudar?” Começamos a reavaliar o peso do tempo, a necessidade de continuar a viver mesmo quando tiver de estudar. a importância de conceber 0 tempo livre como um tempo reparador para o momento do estudo, da produção etc. Encerra a sessào com uma mistura de assombro, dúvida e desconcerto a respeito do que foi falad0. Finalmente, peço a ele que pense nisso como uma tentativa possíveL como uma experiência nova. Agora, sim, vai-se embora convencido de que se tratava de uma “receita" - por assim dizer - e que tinha um caráter experimenlaL se aníman'a a tentar. Comparece ao nosso próximo encontro um pouco mais relaxado. Os exames parciais já terminaram. Em alguns foi bem, em outros mais ou menos, mas foi aprovado. De toda a forma, teve alguns êxitos interessantesz em pn'meiro lugar, pôde começar aviver com menos dramatícidade e n'gidez incor~ porando à sua vida o valor do tempo livre, dando a ela um tom muito mais vilal; em segundo lugar, pôde defmir a frase que estava pendente. Com um tom de satisfação e muito humor comenta que já a havia encontrado e começou a trabalhar com e1a. Elaborou um cartão multicolorido com desenhos muito simples de meninos jogando bola, descansando embako de uma árvore, e em cima das letras do texto que, em maiu'scu-

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Todos os Iivros podem ser divididos em duas dassm Iivros do momento e Iivros de todo momenla '

__i d12'ia:TUDO É UMA QUESTÃO DEEXCELÊNCIA E DE PRAZER Finalmente havía começado acompreender que 0 “ato perfeito” era aquele que não 0 afastava nem do melhor rendimento nem da vida.

John Ruskin (18191900). cscñlor e cñlico dc arle inglés.

4n PARTE CONCLUSÃO: ÚLTIMA PÁGINA

Todos nós que abraçamos vocações agógicas (gogeín= Conduzir; vocações de ajuda) contamos com o prívilégio de ser observadores preferenciais do maravilhoso mistéño humano. Isso acontece porque compartilhamos muitas histórias pessoais de indivíduos que conseguem superar~se, redímir-se, transcender em relação às suas limítações e c0ndições, acedendo assím a maduras evoluções. Aquele que se aproxima de nós abatido por sofñmentos concrelos e que consegue descobrir signiñcatívamente em caminho para a fclícidade, sem negar 0 peso da sua carga; aquele outro que, desesperançado reencontra a esperança em si mcsmo e na vida, mesmo através de uma doença. Aqueles que, enñm, trzmsformam um Calvar'io em caminho de redenção e crescimento, vão testemunhando para nós, encontro após encontro, o "p0der desañador do espírito”, o desdobramento da própria vida abrindo caminho através das sombras. E esse nmr'avilhoso espetáculo acontece díante dos nossos olhos. Clar0, a nossa participaçào não se reduz a ser mero e passivo espectador; a nossa intervenção é partícipe desse espetáculo. Mas de que maneira?

Comjá foi dit0, considero que a verdadeira equação que redunda nesse desdobramento formidável é eu curo você, mas quem se sara é você. Desta maneira, o potencial pessoal do paciente é de imprescindível presença e concurso fundamentaL Assim o papel do terapeuta ñca defmido comofacílitador, provedor de recursos e elementos que estimulem, detonem, dísponhm esse autêntico potencial em função da cura. Dentre esses recursos, tomamos o livro como catalisador útil entre o ser e o dever ser do paciente. Resumindo as reHexões e t0mando por referentes os casos apresentados, eu defenderia o valor da biblioterapia em dois sentidos fundamentais: DJ 0 lívro como espelho Como foi assinalado pelo próprío professor doutor Frankl, muitas vezes encontramos nas histórias lidas a chave de resolução das nossas próprias circunstâncias. A conhecida expressão 0 lívro aconteceu dentro de mim ilustra claramente esse fatoz a partir do texto descubro diferentes formas de resolução dos problemas ou encruzilhadas que a vída me apresenta. Ele atua como se fosse espelho que me devolve armada uma imagem na qual posso descobrir a chave. Isso não signiñca que eu copie ou imite o vivido por esta ou aquela personagem, aplicando a sua atuação ao meu caso, e sím que esta palavra, aquela proposição que faz a trama da hístória, pode me esclarecer para descobrir a minha palavra, a minha posição e a minha decisão.

u M B A palavra como certeza Mas talvez o maior trunfo da biblioterapia, na minha opinião, é dado em função de poder aceder à elaboração de mensagens pessoais (ou de validade pessoal) - para lhes dar um nome - que inspiram o que costumo chamar as certezas cotidianas. Levando em conta que o que foi posto anteriormente (0 livro como espelho) é defa'cilentend1m'ent0, preñro me deter por algumas linhas neste tema, especialmente interessante.

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Segum'do os ensinamentos sempre claros do profcssor doutor Pedro D'A1fonso, gostan'a de me refenr' muito sucintamente ao conceito de logotípos. Segundo a sua deñnição, enten~ demos como tal aquelas verbalizações negativas que reforçam ou enfraquecem as decisões ou as tomadas de posição do sujeit0.26 Ora, essas verbalizações consüluem al-go assim como men~ sagens m'ternas, m't1m'as, ou ordens que condicionam com maior ou menor força as nossas condulas ou comportamentos. D'A1fonso recorda outros autores C0m0, por exemplo, Roger Mucchie11i, que descreveu a existência destas ñases mentats' que ñcam gravadas em cada m'div1'duo, tmn'sf0rmam'-se em mandatos e, em geral, começam a regular nossos comporlamentos. Constitui-se assun° uma espécie de linguagem interior ou de endofasia, formada pela sislemaüza'ção de imagens do própño Eu em torno desses 10gotipos. Como na maioria das vezes são de conteúdo negaüv0, acabam constituindo sério obstáculo para a livre expressão da personah'dade. 0 sujeito, antes de atuar ou quando se decide a agir, fala consigo mesm0, e se estimula ou se freia com estasfórmulas já estereotàbadas27 Se, pelo contrário, são logotipos positivos, estimulam o indivíduo a executar a decisão. Seguindo por sua vez autores como Ferstcr ou Perr0t, chega a qualiñcar os logotipos de “reforçadores” - do mesmo modo que os defme Skinner na sua teoria do condici0namento operante28 positivos ou negativos, isto é, como elemen-

26 D'Alfonso, Pedro; La personalidad humana. Eslrutura, formación y asesonr mierto. Psicagogía, Buenos Aires, Editoñal Plus Ullra. 1979. p. 23. 27 D'A1fonso, Pedro, op. cil., p. 41. 28 Skinner, teóñco pertencente à esL“oIa conexionista e cn'ador da leoria do cond¡cionamento operanle, introduz o conccilo dc reforço. entcndendo por lal o efeito que signmca dar determinada resposta a dctcrminado csu'muk›. Como resultado dcmaw respostn scguese um cfeito que 1r'á atuar "ref0rçando" a conexño dcsse tslímulo com essa resposta com caráter de m'equívoco, cn'dn'do um csquema de comportmento que se insrreve no indivíduo. Desse modo, scmpre quc sc apreswnle detcrminado esllmulo, se' dará idônüca rcsposuL Sc essc cfcito conuqücntc com a rcsposta dada for saüsfalón'o. o reforço scrá posítivo e a concxão se ñxará ñrmcnwntc; e. pclu cun. lrán'o, se 0 efeilo for insatísfalóño - ou porquo não resolve o que foi colocado pelo esümulo ou porque gern pcrturbação ou desppuzer - cssc reforço se'ra' negau'vo. islo e', impedká que a conexão scja estabelecidzL lí assim que os “reforçadores" acabam por deümr' a execução de delerminada ação ou a sua evilação.

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tos que sustentam ou inibem o comportamento. Ele também os classmca da seguinte maneira: Logotipos NEGATIVOSz Atuam como inibídores verbaísz ® NEGATIVOS: aumentam a atuação negativa ou inibem a positiva, como, por exemp10: mmca vou conseguír, ou sempre me saio maL ® ADVERSATIVOSz opo'em-se à execução, como, por exemplo: mmca tive sorte para isso. ® JUSTIFICATIVOSz Afastam da execução, mas nos justiñcam por agir assim ou por não agir, com0, por exemplo: não tenho capacidade para essa tarefa, por isso não a faço, ou quem sou eu pam pedir tal coisa ao meu chefe. Logotipos POSITIVOSz atuam como reforçadores positivos em três sentidos possíveis: © ASSERTIVOS: Favorecem a açã0, como, por exemp10: possofazer isso, posso conseguir. © INCENTIVADORESz Estimulam a ação, como, por exemplo: vale a pena tentar. © ENERGETIICOS: São logotipos que revitalizam a ação, como, por exemplo: as cozs'as estão dando certo para mz'm, estou conseguindo. Muito habitualmente estes logotipos estão inscritos em nós desde a infância, idade em que somos especialmente permeáveis às avalíações de pais, professores, amigos etc. e vão se cristahz'ando em torno do Eu, levando-nos a alimentar uma auto-estima afetada por essas palavras de ordem. Desta forma, pomos o “crer ser” no lugar do “querer ser", e assim acabamos agindo verdadeiramente de acordo com aquilo que “cremos ser”. Estes logotipos, então, podem ir se “inscrevendo” em nós de maneira quase imperceptíveL de modo tal que não somos conscientes desta verdadeira linguagem interior que

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tanta presença tem nas nossas ações e decisões. Uma vez descobertos na sua participação e dinam^ica no am^bito da conduta, devemos desarticu1á-los para pôr ñm no seu efeito perturbadon A biblioterapia é precisamente um dos recursos mais interessantes para conseguir isso, à mcdida que podemos focalizar em uma frase um conteúdo assertívo, energéüco ou incentivador, por um lado, ou justiñcatívo, adversativo, por outro, dependendo de pretendermos esümular ou inibir determinada ação ou decisão. Por ocasião da leitura, como sua conclusão, resgatada do texto, podemos formular uma frase que, como costumo chamar, passe a ser uma certeza cotidiana. Recordemos a história de João, o homem do Caso 1, que, a partir do trabalho com a letra da canção “Pipa”, obteve uma certeza com a qual inicia cada dia, dispondase a viver a sua atualidade de maneíra d1f'erente. Recordo também o caso de Rau1, paciente de 65 anos que chega ao consultório apresentando uma sintomatologia depressiva posterior a um AVC que denx°a como seqüela a paralisia do membro superior esquerdo e uma ligeira diñculdade de marcha. Toda a sua vida, Raul havia sido estudioso, e tendo-se dedícado à advocacia dentro da carreira judiciaL chegou a ser juiz do trabalho. Durante muitos anos - atualmente está aposentado - havia desírutado do seu trabalho, o qual correspondia precisamente à sua vocação proñssionaL e da alternativa, sem vaidade, de ser nada menos do que juiz. Um dia, sem antecedentes prévios, Raul sofre um acidente vascular cerebral e assim, em um momento, a sua vida muda completamente. Como seqüela do AVC, teve de freqüentar uma clínica para fazer a sua recuperação f1'sica, que consegue com diñculdade, não em virtude da gravidade do quadro, mas da sintomatologia depressiva que se manifesta, diminuindo a sua energia, gdr'ra, intenção para a reabilitação. Mesmo assim, ela somente se consegue com as seqüelas já comentadas. Quando realizamos a semiologia do quadr0, se diagnostica uma reaçào depressiva em conseqüência do AVC e da mudança fundamental que introduz na vida do paciente, gerando uma profunda alteração da sua vida cotidiana, e uma conseqüente crise de identidade. Começa o

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trabalho terapéutico com Raul, passando primeiramente pela instan^cia de que ele aceite a terapia e 0 seu estado de necessidade dela, até que, defmído o objetívo da consulta, abordamos a superação desta reação depressiva. Através dos diversos encontros vai-se armando a história de Rau1, com base na técnica da reminiscência ou lzf'e review therapy, destacandose o profundo interesse do paciente pela história em geral e pela história das instituições nacionais em particular. Recorda a sua prática docente, particularmente nos ginásíos, onde era responsável pela matéria História da Argentina, na sua juventude e acentua a sua admiração pelos pro-'homens, especialmente o general José de San Martín. Recorda que sempre lia para os alunos d1f'erentes aspectos da vida do estadista, procurando criar neles a admiração que ele próprio sentia por este homem. Como parte do processo de reminiscência, convid0-o a trazer na próxima entrevista material sobre San Martín e compartilharmos alguns dos seus trechos favoritos. Efetivamente, no encontro seguinte, veio trazendo um velho livro com anotações nas margens e sublinhados antigos, do tempo em que ele mesmo 0 lera pela primeíra vez e seleciona uns dois episódios que lemos e comentamos.29 Logo, pego o livro e sugiro que eu mesmo escolha um trecho para 1er. Detenho-me nas max1"mas que San Martín legou às netas, insistmdo especialmente na sentença: você será o que deve ser ou não será nada. Como resultado da leítura reñetimos junto com Raul sobre o valor desse legado e a sua importâncía testemunhaL considerando que, segundo conta a história, sintetlz'a com verdade a ética de vida do generaL Mas é o próprio Raul quem se volta para aquela máxima acentuada por mim, detendose no sentido do seu conteúdo. Elaboramos as suas reflexões sobre 0 assunto, dado que Raul acaba reconhecendo nela um caráter de incentivo que convida cada pessoa a se esforçar para superar as suas próprias hm'itações, a ñm de conseguir aquilo que se propôs para si, nTralase da Ilistaria de San Martín y Ia emancipacián sudamen'cana, de Bartolomeu Mitre.

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aquilo que a pessoa se propôs a ser. assumindo que, se não o conseguir, a pessoa acaba não sendo nada. A partír de então, sugíro a Raul que adote a máxima do seu admirado estadista, e a incorpore para si, que a assimile na sua vida diária, e se lembre dela cada vez que tivcr de enfrentar as suas própn'as limitações atuais. Foi o que ele fez, conseguindo uma sensível revitalização do seu estado anleríor. A cada dia, em diversos momentos, quando ele necessitava, a írase o convidava a “ser” ele mesmo apesar de tudo. Raul encontrou nesta frase uma certeza cotidiana. Um caso similar ao de Raul é o de Walter, operário uruguaio que participou de diferentes grupos políücos e síndicais do seu país nos anos de juventude. Passado o momento do furorjuvenil e maís apaziguado pelos anos, estava em tratamento em virtude de d1f1'culdades de relacíonamento com os ñlhos, com quem convivía haviajá alguns anos. depois de ter ñcado v¡u'vo. Eram dois ñlhos que haviam decidído sair dos apartamentos que ocupavam - alugavam -- para ir morar com mulher e ñlhos na casa do pai com a idéia inicial de “não de1x'ar o papai sozinho”. Na realidade, Walter se sentia deslocado na sua própria casa, pois o haviam desalojado, literalmente, do seu quarto, para ali acomodar um dos casais e o haviam instalado em um quarto localizado nos fundos da grande casa. A vida diária era bastante difícil para ele que se seutia sozinho e abandonado, com medo de dlz'er alguma coisa que aborrecesse os ñlhos, ou as noras, e convencido de que era uma carga para eles. E preciso esclarecer que Walter. aos 73 anos de idade, não sofria de nenhuma perturbaçãm doença ou alteração e recebia a sua aposentadoria e o aluguel de um local de sua propriedade. Mesmo assim, a situação o ha~ via confundido e ele vivía com receio de os ofender, o que signmcaria que iriam embora da sua casa. 'I'ambém uso com Walter uma estratégia terapêutica baseada na reminiscéncia e inevitavelmente aparecem as lembranças do seu tempo de sindicalista e a sua luta para melhorar as condições de trabalho. No modo antigo, isto e', lutando por verdadeiros ideais solidários com o bem comum, Walter não somente arengava

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com palavras de ordem políticas do moment0, mas também dava uma espécie de instrução cívica aos companheiros, a quem levava informação sobre as lutas da organização nacio~ naL a recuperação do sentimento pátrio e a valorização da tarefa dos grandes homens do seu país. Evidentemente, o perñl de Gervásio de Artigas aparecia nas suas representações da época tanto quanto nas suas lembranças atuais. Trabalhando com material trazido pelo próprio paciente - tal como se propõe na técnica da reminiscência - resgato um pôster muito velho, comemorativo da data nacional do Uruguai, que mostrava o rosto ñrme de Artigas como imagem de fundo para a sua célebre frase “com a verdade, não temo nem ofendo”. Descobri imediatamente 0 valor terapêutico deste pôster para Walter. Resgatado do conjunto do material com 0 qual contávamos nesse encontro, começo a trabalhar com o pôster, refletindo com Walter sobre o sentido desta expressão. Falamos do valor desta palavra de ordem convidando os uruguaios a se alinharem atrás de um valor - a verdade para a partir dela agirem sem temor. Logo ao comentar a importância desta atitude nos dirigentes para a sorte dos nossos países, pergunto a ele qual seria o valor de aplicá-la na vida privada de cada pessoa. Como conclusão, Walter decidiu adotá-la para si, a ponto de pendurar no seu quarto 0 velho pôster 'p'ara não se esquecer dele, sabe... porque às vezes é bom lembmr dessas coisas, elas dão forças ou âm'mo... Quem diría que depois de falar tanto de Artigas aos meus companheiros, alguém ia falar dele comígo e ía descobrir para mím 0 que eu queria mostrar aos outros?” Certamente ele também acedeu a uma certeza cotidiana, que 0 animou a falar com os ñlhos e as noras com menos receio de ofende~^los, com mais ñrmeza e melhor resultado, pois pude esclarecer uma série de circunstâncias próprias dessa convivência. Para fms deste objetivo concreto, acredito que seja interessante destacar também o valor dos cartões, cartões postais, pôsteres e minipôsteres, os quais, a partir de uma frase curta, se ajustam precisamente à intenção terapêutica de obter essas “certezas cotidianas”.

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Ul'tima página Em últíma análise, 0 livro como recurso terapêuüco maliza um serviço formidável no momento de pretender despertar no paciente uma resposta operacíonal pessoal c signiñcativa díante do embate de situaçàn cn'tica que o inibe dc dccidir e atuar intencionalmente. A letra escrita com toda a n'queza encoberta do “na'o-escrito" se transforma em presença parmanente que assume caracteñstícas dinam'icas especiais: a) esse texto interage conosc0; de certo modo se poderia dizer que nos ouve e nos fala, dialoga incondicionalmente com o leitor; b) no contexto desse díálog0, não de1x'a de nos dar respostas, não se furta a faze-'lo; c) compartilha conosco os nossos própños pensamen~ tos, e colabora na sua elaboração. Várías vezes já se defmiu 0 livro como uma boa companhia; agora podemos deñnHo também como uma boa companhia terapêutica que nos acompanha na busca dc respostas novas para situações de vida. Dcsse mod0. bem poden'amos estabelecer que 0 livro em ñnalidade biblioterapéuüca nos revela tanto quanto nos rebelaz Quero dizer que em um primeíro momento nos faz vcr. nos ilumiua uma siluação, teveland0-nos aspectos, matizes, Circunslâncias. allcrnaüvas. giros que até então não eram vistos ou aprcciados por no's. Log0, uma vez iluminado 0 panorama, clc nos sacodc, nos estimula e incentiva nas nossas gcnuínas possibilidudes de elaborar uma resposta própria c sign1'ñcaüva. nos rebclando no tocante à situação a ser resolvida, saindo do dcscspero, da confusão ou da resignaçã0, c atuando em função de uma res~ posta nova e possível. Quando esta revelação e esta rebeldia se conjuganL o indivíduo se apropria da situação de vida que tcm diante de si e ñca numa posição invejável para resolvôla signiñcativamcn~ te. Esse objetivo e', seguramentc, “o objelivo" fundzunenlal da psicoterapia, isto é, que o indivíduo acabe scndo cada vez mais

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ele mesmo em função de descobrir o sentido do seu próprio transcorrer; 0 lívro não é a única alternaüva para consegui-lo, mas a biblioterapía se oferece como espaço nobre para que toda pessoa possa acabar fazendo da sua biograña uma história dotada de sentid0.

5' PARTE SOBRE A CONSCIÊNCIA EM UM CONTO DE POE

O conto: “William Wilson” 0 que dizer dela? 0 que dizer dessa turva conscíéncia, desse espectro em meu camínhoP Com esta frase de Chamberlayne, o autor antecipa o Conteúdo de um maravilhoso conto que nos põe de maneira prccisa no univcrso da conwiém cia. Trata-se de WilliamWilson,(10 prolíñco Edgnr Allan Poc.30 30 Edgar Allan Poc (18091849). Por momcnlos. n vida dc Poc Íoi uágic4.- Hcou óraFo muilu cedo. sendo adomdo pcla Íamilia Allan, da Virginia. Esludou cm csculns inglesas e com professores parl¡"Lularcs, c cnlrou na Unívcrsidmk da Vügính onde esludou durante um ano - passando lambém por um curlo pcríodu pcln am demia de Wcsl Poinl, dc onde foi cxpulso. lsw uumcnlou as bngn°s c auilos que Poc vivia com o pai adotivo, provocandu o rompimcnto de rcl.¡'ç0c."s aus 23 nnos dc ¡dadc. Forçado a viver com os seus própn'os rccursoax Puc comcçou a carrcvcr c a odilar as suas 0bras, ascendcndo rapidamcnlc a ccrlo sucosso comu pocla. crílico lilcráño e, muilo especn'alnlcnte, como aulor dc contos. Eslava convcncido dc que o conlo dL~ via produzir no Ieilor um impaclo cmocional muilo concrclo. dc lal modo que a lrama, as caraclcñsücas das personagcns. as idéias. as palnvms, ludu dcvh vmr cmr lhido a ñm dc conscgmir cssc impuclu. cvilzmdo dispcrsar o lcilor com oulms cmo ções. Poucos autores conseguíram manejar csla íórmula dc forma lño mntundcnlc quanto Poc, reflclida em obrus inlcrcssu'mlLs*simns ondc sc obwrvum d|'vcm›s Angulos da natureza humana.

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Neste relato, Poe nos conta a hístória de uma personagem, Willíam Wílson, que tem um xará com quem compartilha uma série de inquíetantes semelhançasz o seu nome é igual, têm a mesma data de nascímento e, por conseguinte, a mesma idade, entraram no mesmo colégio no mesmo dia, e a parür dali irão se confrontand0, reiteradas vezes, seme1hanças, coincidéncías que fazem com que eles se cruzem ao longo de toda a história de uma maneira surpreendente. O protagonista é um jovem pertencente a uma família economicamente abastada, muito amigo de desregramentos e v1'cios. Nasceu e cresceu em meio bem pouco contido, em família com pais que não souberam pôr límites na educação do ñlho. A história começa a ser narrada pelo próprío protagonista com vísão retrospectíva no momento em que está morrendo (qua$e a transporo sombrio vale), começando porjustíñcar seus passos em aspectos em parte alheios a ele mesmo, taís como características dos pais, a natureza da sua “raça” (aing1esa, com 0 seu típíco desvío imaginativo Ie fabulador) e, fundamentalmente, o destino ou fatalidade. E assim que nos d12': Querería convencê-los de queñti arrastado porforças supen'ores â reszs'tência humana. Desejaria que descobn'ssem pam mim, no vasto deserto de crime que vou descrever, um pequeno oászs' defatalídade. 31

Falando da sua críaçã0, refere-se à influência dos pais e a uma natureza constitucionalmenle afetada por algum suposto defeito no qual descarrega parte da responsabílidade dos seus “erros”. Cresci me gouernando por mínha conta, entregue aos caprichos mazs' extravagantes e vítima daspazkões mazs' inconlrola'vets'. chos de espírito e sofienda além dzss'o, do mesma mal, meus

3' Conlos de Edgar Alldn' Poe, lradução de Mañsa Murray. Cultnx', São Paulo. 1985, pp. 10930. Na versão em ínglês do conto, nesta passagem, esta expressão é ainda maís conlundenle ao dlz'er “l want them to Iook ofr something in my story that mgiht lessen Ihe shame afmy guilt”. ísto é, “...que buscassem algo na mínha históría que pudesse dimínuir a vergonha da mínha culpa".

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pais pouco ou nada jízeram para modzfi'car os maus instíntos que eu tinha. (...) Desde então, passei a mandar em mínha casa, ditando ordens numa idade vm quc poucas crianças pensam em dezkar o regaço matcrno, entregue ao meu l¡'vre-arb¡'tri0, senhor absoluto de todas as minhas aço'es.

William Wílson freqüenta uma escola ínglesa, din'gida por pastor, o reverendo doutor Bransby. com características vitorianas. e, de acordo com a narrativa. organizada segundo lezs' drac0m'anas, que acabavam sendo paradoxais. considerando-se o rosto sereno e benevolente do reverend0. 0h, imenso paradoxo, monstruoso demaís para ter solução! No contexto do colégio, William -- assim chamarei agora a personagem central - era uma espécie de líder, seguido e bem consíderado pelos colegas, com a única exccção do seu xará, o outro William Wílson, a quem de agora em diante chamarei Wilson. A ascendência que William rapidamenle conseguiu ter sobre os colegas contrastava com a oposição que Wílson representava. ...um ascendente poderoso sobre todos as que cram mazs' novas ou da mesma idade que eu, exceto sobre um. Era este um aluno que, sem ter comigo nenhum parentesco, tinha o mesma nome de batismo e o mesma nome defamília, fato este pauco noláveL ms°to que 0 meu nome, apesar da sua nobre on'gem, em um nome vulgar, um destes nomes que, desde tempos ímemon'ats', são também propriedade do povo. (...) Como já dzss'e, só um colega meu, o meu homôm'mo, rivalizava comigo nas lições, nos jogos e nas lutas do recreio; não acreditava nas minhas afírmtb ções, assím como não recusava, enjím a suportara minha dita~ dura e manzf'estava-o sempre que lhe era possíveL A rebeldia de William constituía para mim fonte de desgostos, tanto mats' que, apesar do desdém com que afetaua tratá-la e ás suas pretensões, bem no fundo temia-0, e não conscguía poder olhar a igualdade que ele tão facilmente mantinha comígo senão como uma prova de completa supen'on'dade, porque pela minha parte só conseguia conseruar-›ne à sua altura graças a grandes esforços. Mas eu era o úníco a reconhecer essa ígualdade, ou melhor, essa supen'on'dade; os outros rapazes, inexplicavelmente, pareciam não dar por talfato.

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Evidentemente, William tinha medo de Wilson à medida que este último aparecia dianle dos seus olhos como supe ri0r, ao não se submeter ao seu domínio; não podia controlá10.Apesar desse sentimento e procurando tentar submete-^lo, William era amigo inseparável de Wilson, tanto que os demais colegas acreditavam que - também pela questão do sobrenome -- os dois fossem irmãos. Não obstante, William o atacava permanentemente com piadas e brincadeiras pesadas e de mau gost0, o que não o impedia de manter “boas relações”, especialmente em virtude da °^grande dignidade” com que Wilson as suportava. Na realidade, em muitos aspectos, William sentia grande afmidade com Wilson, mas essa rivalidade que se havia gerado a partir dele mesmo, essa impossibilidade de dobrá-10 ou sub~ mete-^lo à sua vontade, se interpunha e evitava que se estabelecesse entre ambos mesmo uma relação de amizade. Tanto assim que ele mesmo revela que nunca pôde manter franca hostilidade em relação ao xará. Na verdade, é-me dfíícíl defínir os verdadeiros sentimentos que nutría por ele. Eram uma mistura conñzsa e heterogênea: am'mosidade petulante, sem chegarao ódio, amízade, receío, grande temor, e curíosidade imensa com muito de expectativa.

No afã de subjugá-lo, William sofria porque, apesar de seus ataques encobertos, nunca podia acertar o calcanhar de Aquiles de Wilson, que sempre respondia a todas as brincadeiras de mau gosto com uma modesta e tranqüila austeridade. Mas ñnalmente conseguíu encontrar nele um ponto vu1nerávelz Meu rival tínha umafiaqueza nas cordas vocazs' que o impedía de_a"lar alto. Quandofalava, a sua voz dz'r-se-ia um mumzúria E desse defeito tírava eu as mínhas mesquinhas desfomz3.

Esta relação de tirania se acentuava pelo irritante aborrecimento que sigmñ'cava para William esse conjunto de sur~ preendentes coincidências entre ambos. Mais ainda quando a partir da narrativa vão aparecendo novas e inquietantes semelhançasz

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...Notava, no entanlo, que tínhamos a mrsma altura e thcguei até a descobrir certa semclhança dcfísionomia, o que muíto mc contrariava. Com tudo isso, a resposta de Wilson aos seus ataques irritava William ainda mais. Essa indignação que ele sentia em virtude das coincidências e pclo fato de os colegas pensa~ rem que os dois fossem írmãos se acentua à medida que Wilson parecia tentar c0piá-lo ou imitá-lo ainda mais, só que em versão melhorada. Tendo, por 1ss'o, notado quanto essas semelhanças me dcsgostw vam, William tornavaus mais notadas, arremedandwne com prodigiosa habilidade. Copíaua-me os gestos e as palavras, imítava a minha maneim de vestir, o meu anda,r os meus modos e enfím nem a mínha voz lhe havía cscapado não obstante a seu defeita Não podia ímítar o meu tom alto, mas o timbre c a entonaçãa eram idêntícos. Quando eu falava bau'o, a voz dírL se-ia um eco da minha. Felizmente para William, somente ele detectava essa imitaça'o, ñcando livre das piadas que geraria a sua descoberta por parte dos colegas. Ao que par0cia, Wilson lzunbém não pretendia que os outros a dcscobrisscm e ücava satísfeito apenas com o fato de provocar nclo a humillmção com esw imitação. Apesar de tudo, reconhece ncle certo ar protetor que se propunha fundamenlalmentc a interferir nos caminhos da minha vontade, vontade essa que era movida, principalmente, por paixões desmcdidasx Essa protcçño se tmduzia em conselhos, que, muito embora cm princípio irn'lzlssem e incomodassem William, ele ñnalmentc concorda que, sc os uvesse seguido ou 0uvido. a su.1'história pcs.s'o.1'lten'a evitado certos erros. ...e eu seria hoje lwmem molhur e por isso mesmu maisfelíL se houvesse seguido os tonselhos que essas sensatas sugestães cantí~ nham e que, então, só me inspírauam raiva e dcspreza

Foi assim que os sentirncntos de William foram se inclinando, pouco a pouc0, para 0 mais profundo ódio.

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A partir dali, as suas relações foram mais tensas, che~ gando alé 0 ponto de fazer Wilson perder a calma e responder ñrmemente quando houve uma violenta altercação entre ambos. Nessa reação não habitual, William se mostrou surpreendido por notar em seu xará certa semelhança entre ambos, quanto à veemência da reaçã0. Como mais uma das bríncadeiras de mau gosto com que fustigava Wilson, William responde à altercação e à reação do xará entrando uma noite no quarto dele. Descreve~o como um quarto muito pequeno, sombrio e afastado. ...além diss0, Izavia -- como era ínevítáveL num edzjí'cio tão irregular - ínúmeros cantos e recantos - sobras e remates da construção que o talento econômíco do doutor Bransby transformara também em dormito'ríos; eram, porém, divisões tão pequenas que apenas comportavam uma pessoa Wilson ocupava um desses quartos.

Nessa noite, deshz'a furüvamente na escuridão em dire~ ção ao quarto de Wilson A sua intenção era levar a cabo a mais pesada das bn'ncadeíras, para que 0 rival compreendesse o tamanho da sua animosidade. Entrou no quarto iluminandose com a fraca luz de um candeeiro. Abriu as espessas cortinas que cercavam a cama e, quando se dispunha a pôr em prátíca a sua brincadeira, quando a luz bateu de chapa sobre 0 rosto do rapaz adormecido, William teve uma sensação estranhaz “Sentz'-me penetrado por uma sensação defrío; 0 coração pulsava-me furiosamente no peít0, as pernas vacilavam-me, senti uma sensação de horror ínexplicáveL Minha respiração tornouse commlsa quando aproxímei mais a qu do candeeím Seríam realmente aquelas asfeíções de William Wilson? Sím, eram! Que havia então de ertraordinánb no seu rosto para que eu me sentisse assím impressionado? Contemplez'-o durante algum tempo, trêmulo, emocionad0; o meu cérebro agitaua-se, sob a ação de mil pensamentos sem nex0. Ele não era assím, nãol Nunca fora assim nos momentos em que me contrariaval Seria humanamente possível, ou o que eu agora contemplava era o resultado desse hábito de imitação sarcásticaP Apagueí o candeeiro, gelado de espanto, e, silenciosamente, saí do quarto, abandonando pam sempre 0 ambiente de mzs°tério daquele velho e espantoso colégio.

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Ao deparar com o verdadciro rosto de Wilson. o seu próprio, Wílliam sofre um tremcndo horror, que 0 cspanla e o faz sair correndo. Dcpois de alguns meses, já em um novo colégio - o de Eton -, renetia sobre o cpisódi0, atribuindo à extraordina'n'a ímagínação que hereditariamente possuía. o fato do espanto daquela m0im. De qualquer maneira, passado 0 espanlo. William se entregou a uma vida desregrada e descontrolada, na pretensão de superar essa experiêncía. Mergullzei num turbílhão de Ioucura. e de súbito todo o passado desapareceu, menos as sálídas e sc›'nas' impmsões que dtle me restavam.

Foram trés anos de loucura durante os quais, como já havía sucedido na escola anlcrior, conquistou a admiração e a popularidade entre os colegas. Nesse clima, uma noite organizou na sua casa uma orgia secreta para a qual convidou os colegas. Excitado pelo álcooL no preciso inslanle em que se dispunha a fazer um brinde blasfemo, a porta se abn'u violentamente, ao mesmo tempo que um dos criados anunciava que uma pessoa queria vê-lo com urgência. William saiu cambaleando do quarto e chegou ao veslíbulo, pobremente ilumi~ nad0. Logo reconheceu um jovem da sua idadc, vesüdo com um fato de casimira branca absolulamente igual à que ele estava usand0. A luz fraca me permitiu distinguir tudo zss'o, mas não asfeições do visitante. Mal me viu, veio para mim, agarr0u-me pelo braço com um gesto imperativo e ¡'nzpacíente, d:'ss°e-me ao ouuido: "William Wilson”. Como por encanto, a minha embn'aguez dzss'ip0u-se completamente àquelas palavras.

Avida os havia cruzado nova111e11t0. Justamente no auge da sua embriaguez, ele tornou a aparecer, levmdo William a uma violenta comoçã0. A importância e a solenidade que as suas palavras surdas e sibilantes continham o mod0, o tz'mbre, a chave dcssas sílabas simples, familiares mas segredadas em mistérío fízerarn~rne estremecer como se na minha alma se tivesse produzido a des-

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carga de uma pillza galvâm'ca. Dumnte alguns momentos, o espanto e o terror paralísaram~me o cerebro; quando voltei a mim, o estrangeiro desaparecera. Este episódio quase fugaz tirou William da sua embriaguez, e durante algumas semanas 0 manteve ocupado e preoCupado tratando de descobrir quem era 0 estranho visitante. Não pretendia ocultar a identidade dele, mas não podia deixar de duvidar daquela visita, de duvidar da sua veracidade. De qualquer maneira, tratou de averiguar a respeito de Wilson, e só conseguiu saber que um súbito acidente acontecido na sua família o levara a abandonar a academia do doutor Bransby, na mesma tarde em que ele empreendeu a sua fuga. Esse dado o perturbou por alguns dias, mas logo ele Começou a cuidar da sua incorporação a Oxford. Nessa nova etapa da sua vida, a irrefletida atitude dos seus pais, que lhe designaram uma gorda pensão anual, lhe permítia se entregar ao luxo e às dissipações, juntando-se aos altivos ricos da GrãBretanha. Já instalado em 0xford, voltou a monopolizar a atenção dos colegas, que o seguiam em seus excessos e loucuras. Acho sufíciente dizer que ultrapassei as extravagâncias de Herodes. Inventei inúmeras loucuras, ajuntando assim um bem fomecido apêndice ao longo catálogo das vícíos que então reinavam na uníversidade mais devassa de toda a Europa.

Uma das principais atividades de William em Oxford foi jogar cartas, e ele acedeu rapidamente a todos os segredos da arte de trapacear. Convertido em um verdadeiro jogador trapaceir0, tinha encontrado uma maneira de aumentar a sua já grande fortuna à custa da fraqueza de caráter dos colegas. Gozava de um apreço e de uma popularidade que o mantinham impune. Quem suspeitaria de William, aquele nobre, liberal e alegre companheir0? Depois de dois anos de prática deste ofício, decidiu se aproveilar de um dos seus maís abastados Colegas. Reunidos no quarto de seu colega Prest0n, induzíu Glindinning a beber demais enquanto jogavam. Já bastante endividad0, Glindinning propôs aquílo que William esperava: dobrar a

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aposta ñnal para recuperar o que havia perdido. William ñngiu duvidar, de modo que todos os colegas tralaram dc convence~^lo; fmalmente aceitou. Em meio a um clima de expectativa se desenvolveu a u'lt¡ma parlída, que obviamente William acabou ganhando. Glindinning ñcou pálido, perdcn~ do a vermelhidão que 0 vinho lhe dera. Fez-se um silêncio denso e um clima de tensão. Desconcerlado, William procurou no olhar acusador dos colegas a respostaz Glindinníng estava defmitivamente arruinado. William senüu uma opressão no peito, gerada pelo clima de tensão, pela palidez do parceiro e pelos olhares dos colegas. Dc repcnte. houve uma súbita interrupção que 0 aliviou daquela intolerável ansie~ dade. As grandes e pesadas portas da sala se abriram de repente e de parem par, tom tal ímpeto que todas as velas se apagaram como par encanto. Antes, porém, que a luz se extingulss'e, pudemos ver quem entrava. Era um índívíduo com a mínha estatura, apmximadamente embuçado numa capa. Agora. porém. ímersos em profunda escun'da'0, sentíamos a sua presença entre nós. Anta que pudéssemos nos recobrar do enorme espanto que ele provocara com a sua víolenta entrada, ouvímothe a voz: “Meu$ senho~ res", dzs'se ele com uma voz muito baúa ainda que sufícientr mente audíveL com uma voz ínesquccíveL que me causou arrepios até a medula dos ossos: “Não vos pedirei desculpa de for-ma intempestiva como entrei, porque, procedendo assinL nada mais fíz do que cumprír aquilo que considero um dcvet Por certo não conheceis o caráter da pessoa que acaba de ganhar nu écarté uma quantía enorme a Lorde Glindinning. Vou, pons', indicar-vos um modofácil de adquirirdes esse conhecimenm Para tss'0, rogtrvos que examinetk oforro do punho da sua manga esquerda e alguns pequenos maços que encontrarets' nos Iargas bolsos do seu casaco

Era escutado em tão profundo silêncio que, sc um alñnete tivesse caído no chão, ter-se-ia ouvido 0 ruído. Assím que disse a última palavra, a estranha personagem dcsapareceu, e tão bruscamente Como emrara. (...) No forro da manga encontraram as carlas principais do écarté e nos bolsos do jaquetã0, alguns baralhos de cartas. (...) Enxovalhado c humílhado, foi convidado pelos compwlheims a abandonar a casa

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e Oxford. Quando ele se retirava, Mr. Preston lhe estendeu a capa que levantara do Chã0. “Vi com um espanto que melhor se diria terrorjá ter no braço a que me pertencia (...) peguei-a e a delx'ei sobre a minha". Perdido em um abísmo de espanto e vergonha, Willíam Wilson foge de Oxford, iniciando uma apressada viagem ao continente. Mas em qualquer lugar que estivesse, sempre aparecia Wilson sussurrando, e interp0nd0-se entre William e as suas ambições. Na realidade, Wilson sempre aparecia para frustrar planos que, se levados a cabo, por certo lhe acarretariam desgraças. Acaso poderia eu imaginar que no meu conselheiro de Eton, no destruidor da minha reputação em Oxfonk naquele que obstara a realização das minhas ambições em Roma, a minha vingança em Pans', os meus amores em Nápoles e a minha cobiça no Egíto, que nesse ser, simultaneamente meu ínimigo e meu gênio mau, eu não reconhecia o William Wilson do colégio, o meu homôm'mo, o meu camarada, 0 temído e odiado rival da casa do doutor Bransby? Era impossíveL Mas já é tempo de contar a terrível cena com que termínou este drama. (...) Passou-se isto em Roma, no camaval (...), encontraua-me eu num baíle de máscaras dado no palácio do duque Di Broglio. Nessa noíte, bebera mais do que de costume e sentz'a-me excepcio« nalmente irritado pela atmosfera pesada dos salâes repletos de gente. Havia grande dzfí'culdade em passar por entre os pares, o que me exasperava sobremaneira: procurava ansiosamente (não confessei aqui o meu índígno propósit0) a jovem, alegre e bonita esposa do duque, homem velho e excêntrico. Ela contara-me, imprudentemente, a maneira como uiria vestida ao baíle. Quando, ñnalmente, a avistara no outro extremo e me dirigia para ela, senti que alguém me tocava levemente no ombro e ouvi o bem conhecido, porque inesquecível murmúrío ao ouvíd0, murmúrio que eu tantas vezes já amaldiçoara!

Furios0, voltou-se para 0 indívíduo que ousava distraí10 do seu ñm e violentamente segurou~0 pelos ombros. Vestia, como era de prever, roupa absolutamente igual à delez um manto de veludo (...) uma espada suspensa da cintura por um talim vermelho. Tínha 0 rosto completamente oculto por uma máscara de seda preta.

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“Mts'erável exclamei com voz rouca de co'lera, cólera que crescia em mim a cada palavra que dizia. "Mts'erável! Embusteirol Maldíto pat1f'e! Não voltarás mats' a pmeguir-me, a atonnentar-me! Acompanha-me, ou mato-te aqui mesmo!' Mal entrei, empurrei-o contra a paredefronteiriçm fechei a parta, ao mesmo tempo em que Iançava uma tremenda praga c ordenei-lhe que desembainhasse a espada. 0 combate não durou muito. (...) Em poucos minutosjíJo ncuar até a parede e uma vez ali, vendw impotente para defen-

der-se, trespassei-lhe o peito repetidas vezes com selvagem feroa'dade.

Nesse momento, sentiu um ruído que o distraiu apenas por um instante, mas, ao voltar os olhos para seu inimigo agonízante, sentiu um horror tremend0. Alga havia mudado. Durante o curto momema em que eu me afastara, o aposento mudara completamente nas suas dts'posíçõesl No lugar onde antes eu nada vira, havia agora um grande espelho (pelo menos assim me pareceu na minha axcitação). Aproximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mím a minha própria imagem, com o rosto extremamente pâlido e todo salpicado de sangue, avançando com passos Ientos e vac¡'lantes. Tratava-se do meu im'mígo, de William Wilson, que, agomz'ante, se erguía perante mim. Era Wilson, mas um Wilson que já não murmurava aofalarl Pelo contra'n'o, falava de tal maneira alto que tive a impressão nítida de ouvir a minha própria voz dízendo: - Venceste e eu pereça Mas daqui para o futuro também tu estarás mort0. Morreste para o mund0, para o céu e para a esperançal Exts'tías em mim. OIha bem agora para a minha morte, ealnessa ímagem - que é a tua - verás o teu próprio suicídioV A leitura

O conto de Poe nos aproxima de maneira vivencial da luta interior de um indivíduo com a própria consciência. Essa dinâmica permanente entre o ser c o dever ser é alimentada 32 Na versão on'ginal, em inglês. do conto, o lexto parcce scr um pouco maís contundentez "You were a part ofme” ( Você cra uma parle de mím).

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por uma tensão vital que, longe de ser relaxada, merece, deve e está destinada a ser orientada signiñcativamente. Fazendo um jogo de palavras, bem se poderia dizer que antes de pensar em suprimir essa tensão, devemos pensar em lhe dar uma “intenção”. A narrativa nos introduz na vida de William Wilson, um homem que luta procurando resolver essa dialética entre ser e dever ser, desde 0 princípio da sua história pondo as diñculdades com que muitas vezes deparamos no momento de tomar decisões e executá-las. Evidentemente, as duas personagens centrais da obra, William Wilson e seu xará, são a mesma pessoa; um deles, o narrador - que na resenha Chamei de William - representa o desregrament0, 0 excesso, a pa1x'ão sem limite, a expressão pura de tensões, a falta de signiñcado, o sem sentido, e como tal, a fonte de desesperança e desespero, desordem e dispersão. O outro - a quem chamei Wilson - representa, por sua vez, “a voz da consciência”, os valores éticos, de atitude, a ordem - entendida não em termos concretos de cada coisa em seu lugar, mas antes de “ordenament0”, isto é, de orientação signíñcativa. Seguindo 0 ño da narrativa, podemos observar expressões, perñs, às vezes muito sutis e outras muito explícitos que nos evocam imediata e claramente 0 conteúdo de signif1cado de cada personagem Vejamos 0 seguintez Em um princípio aparece a idéia de William de declinar a responsabílidade dos seus atos em aspectos absolutamente alheios ao âmbito da sua própria responsabilidade. Ele nos fala do império da cultura “da sua raça”, como ele se refere à sua nacionalidade, da cultura familiar e até da característica de país que, ao longo da história, aparecem sempre como pouco atentos ao crescimento do ñlho, pouco capazes de conte-^lo, distantes. Encontra nestes aspectos um princípio de just1f1'cação, buscando até 0 alívio da própria consciência na idéia do destino ou da fatalidade. Desejaria que descobrissem para mim, no vasto deserto de crime que vou descrever, um pequeno oásís de fatalí-

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dade. Quer dizer que ele entendia a presença do erro, e em alguns episódios reconhece a intcnção de agir “mal" e ainda as conseqüências planejadas pelo erro (por exemplo, o episódio de Oxford), mas se submete a esse modo de agir, paradoxal-mente, procurando fugir da “submissão à voz da consciêncía”. De alguma maneira nos leva a essa dislorcida idéia de “líberdade” entendida como o fato de fazer aquilo que tenho vontade, quando na realidade isso não expressa mais do que uma verdadeira “escravidão das vontades"; a verdadeira liberdade signiñca, neste caso, ter vontade defazer aquilo que devo fazer. Esta fórmula implica 0 livre compromisso com um valor. William, cujas “ambições" sempre se lígavam a uma vontade movida pelas paixões, é expoente ñel dessa escravi~ dão, que o acaba levando a esse “deserto de erro". Também não ñca isento da vívência de “Cu1pa", que está ligada fundamentalmente com a presença de Wilson, isto é. da consciêncía. Isso então signiñca que a função da consciência é nos culpar em nossos erros? Claro que nãoz estañamos desvirtuando a natureza da consciência se pensássemos que é essa a sua íunçã0. A consciência se expressa como uma mensagem ñrme ou ainda como um leve murmu'rio, mas 0 faz sempre eml função de nos orientar rumo a um dever ser signiñcativo. E Wilson que em Oxford diz: Não vos pedirei desculpa pela minha conduta - ao entrar de surprem em um quarto ondejogavam cartas --porque, procedendo assim, nada maisfíz do que cumprír aquilo que considero um dever. Aconsciência nos faz ver, ilumina 0 caminho, marca rumos. aponta destinos; quando percebemos os nossos erros e desacertos, se manifestam vivências de todo 0 tipo, especialmente orienta~ das para despertar a nossa responsabi11'dade, entendida como a capacidade de dar uma resposta àquele err0. Quando o de~ certo foi grande, quando foi contra os nossos própños valores, aparece a culpa. No caso de uma vida muito dispersa, como a de William, a vivência geradora de culpa é uma presença quase permanente, cena a que se expõe 0 própño inclivíduo na sua busca.

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Na narrativa, Wilson é o único que não se submete aos enganos e manipulações de William; é insubornável e impossível de ser seduzido. Sempre parece saber as intenções ocultas de William, circunstância que gera neste último um verdadeiro tem0r. Assim é a nossa consciência. Assume exatamente as caracten'st1'cas de Wilson, com seus perñs protetores, admoestadores, pacientes, que servem para conte~^lo, interpretação ñel do nosso dever ser, aquele que nos realiza como seres humanos. Sempre se faz presente no momento em que estamos agindo mal e nos faz perceber essa alternativa, desaparecendo depois, isto e', nos de1x'ando espaço para agir como quiserm0s, mas sem podermos alegar desconhecimento ou distração. Na nossa história, William descobre um defeito que torna Wilson vulnerável - ou 0 atribui a ele: a sua voz está afetada (por um problema constitucionaD e ele emíte apenas um murmúri0. Ao mesmo temp0, quando narra 0 episódio da escola do doutor Bransby, lhe atribui um quarto pequeno e localizado em um lugar afastado. Além diss0, havía, como era inevitável num edtfí'cio tão z'rregular, uma quantidade de amtos e recantos, sobras e arremates da construção, que 0 talento econômico do doutor Bransby transformara também em dormit0'n'os; eram, pore'm, divisões tão pequenas que apenas c0mportavam uma pessoa. Wilson ocupava um desses quartos. Pretende separar e minimizar a força da sua presença. Mesmo assim, é esse murmúrio que ele escuta nos momentos culminantes, pois a voz da consciência sempre se faz ouvir, sempre é reconhecida, mesmo entre outras vozes. A consciência cumpre uma função reveladora do dever ser, nos lembra o caminho e a orientação, 0 sentido e o valor desta ou daquela atitude. William acusa Wilson de interferír nas suas ambições, ao passo que na realidade é resgatado

Por outro lado, não há fuga possível desta voz da consciência. Por mais que tentemos. William correu mundo pensando que seria capaz, e não conseguiu. E se o tivesse per' corrido várías vezes, também nãu leria conseguido, pela simples razão que ela vem do nosso interion Não é o eco da moral ou da lei exterior, é a manifestação Ida nossa própn'a natureza, da nossa própn'a interioridade. E a voz éüca que nos alerta do nosso agir contrla os valores que dão sentido e coerência à nossa existência. E a voz ética que nos alerta do nosso agir contra nós mesmos, onde muitas vezes entmmos sem perceber. William não se anima - ou não consegue - a ver o ros~ to de Wilson em uma imagem que nos remete à situação da nossa atitude de evitar enfrentar a nossa própña consciência. Quando não queremos olhá~la nos olhos, ou não temos a cora~ gem para isso, estamos propensos ao erro. Qumdo não queremos ouvi-la, ou reduzimos o impacto da sua voz ao mínimo sussurro possíveL estamos expostos a perder o rumo. Vítima das suas desordens e excessos, da díspersão originada nessa atítude de evitar a consciência. o nosso destíno é o vazío. Quando perdemos de visla esse guia e nos fecha~ mos para essa palavra, o resultado acaba sendo invariavel~ mente o desespero e a desesperança. Quando nos negamos a esse elemento facililador do sentido e da coerência. a dispersão, o desassossego e a escravidão se apoderam da nossa exis~ tência. Poe 0 narra extraordinariamente na u'ltima cena do relato. Embriagado por todos os excessos imagináveis, os daquela noite somados à deterioração de todos os anten'ores. William acaba aniquilando a sua consciência, matando Wilson, o que sign1ñ'ca se malar. Nesse momento é que Wilson lhe sentencia que na realidade ele se suicidou porque na consciência está a vida.

delas, evitando que as concretize, redundando em episódios de prejuízo maior para ele e para os outros, ajudando-o, em últíma análise, a retomar - pelo menos lhe facilita o acesso aos meios para conseguir retomar - uma direção humanizante.

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O ñnal: Caso Manuel Quantas vezes agimos como William? Muito possivelmente não no extremo em que ele se localizava, mas quantas vezes agimos assimP Quantas vezes nós também queremos nos livrar dessa voz que nos percebe, nos adverte, nos ap0nta alg0? Quantas vezes vemos a consciência como um “espectro no nosso caminho” que se interpõe entre nós e nossas ambições? Muitas, com certeza, mesmo sem acabar vivendo como William O que quero dlz'er e': esta narrativa de Poe não é pura ñcção, mas uma descrição contundente da nossa própria consciência e da atitude que podemos assumir perante e1a. Ouvila, assumí-la, segui-la, sem que isso signiñque submissão a uma norma moral escrav12'ante; não lhe dar atenção, fazer com que se cale, ignorá-la, sem que isso signifxque se líbertar. Neste conto encontramos matizes riquíssimos para abordar esta temáüca não somente no aspecto terapêutico, mas também como recurso a serviço da sua aprendnz'agem. Em função bibüoterapêuüca, eu gostaria de recordar um caso. Trata-se de Manuel, umjovem de 23 anos, ñlho maís velho de uma família econorrúcamente abastada. Se*u pai é funciondn"'0 público e constituiu com a esposa uma famílía de tradicional orientação cat0-' 1ica. Manuel sempre foi um garoto muito inquieto, e foi muito d1f1"ci1 para os pais lídarem com ele. Como conseqüência de reiterados episódios de fracasso escolar, terminou o curso de segundo grau como aluno m'terno em um estabelecun'ento locahz'ado a muitos quilômetros de distan^cia de sua casa. Ao terminar os estudos, retornou a Buenos Aires e m'icíou a sua carreira un1°versitán"a na disciplina do pai, com a idéia de poder usufruir 0 dia de amanhã com o bom nome, o prestígio e as conexões dele para conseguir um bom emprego. Ao m'iciar os estudos, resolve morar sozinho em um apartamento emprestado por um parente. Seu pai lhe consegue trabalho, que ele realiza de maneíra responsáveL ao mesmo tempo que leva a sua carreira universitária com altos e baixos, numa alternância de sucessos e fracassos.

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A sua vida pessoal é totalmente dispersa. Dc dia traba~ lha, pratica esporte, come comída saudáveL mas à noite bebe demais, e se permite todos os excessos que se apresentem E isso por entender que é muito jovem para se pn'var dessas coisas. Tem apenas poucos amigos, mas inúmeros conheci~ dos da noite de todas as idades e caracten'stícas, freqüentando por intermédio deles todos os ambientes, desde os mais reconhecidos, os esnobes, até os mais desprestigiados. Manuel vem ao consultórío um ano maís tarde. O que quero dízer? Um dia a mãe de Manuel pediu que eu marcasse uma hora para o ñlho, em razão da sua diñculdadc para progredir nos estudos. Ele conñrmou a consulta por lelefone, o horário da consulta, mas nunca compareceu. Um ano mais tarde, por volta da mesma data, voltou a se comunicar e ñnalmente concretizou a entrev1'sta. O motivo da sua consulta também se referia ao estudo. Nenhum dos seus excessos - a maioria dos quais punha em risco a sua vída, como, por exemp10, subír no teto de um aulomóvel que roda a grande velocidade por uma avenida de madrugada, beber demais, brigar para se divertir etc. - eram consíderados moüvo de uma conversa sequer. Manuel não queria tomar conhecun'ento dessas coisas. Em um primeíro momento, o trabalho terapêuüco pre~ tendeu ligá-lo a uma busca sadia de realização que o afastasse desses excessos, que começaram a ser postos por cle masmo como vazios de signiñcado, e, mais, como geradorcs de um vazio ainda maior. Nesse ponto, incorporo o conto de Poe. Com a sua voracidade típica, Manuel o leu em voz alta na sessão. Quando termin0u, me olhou com uma expressão de assombr0, surpresa e desconcerto. O seu primeiro comentário foiz Mas o conto não termina bem... eu pensei que nofínal os doisfícassem amigos... A parür desse comentário começamos a nos perguntar sc, tendo trilhado caminhos tão diversos, era lógico pensar cm um reencontro quando na realidade já se teriam dísmnciado muito entre si. Nos perguntamos se nesse ponto de tal excitação na vida de William, este úllimo poderia repensar as intenções de

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Wilson e entendélas como positivas. Recordamos a famosa poesia de Frost, aquela que fala dos doís caminhos, um deles muito tentador - que é o que todos Seguem - e o outro, mais árduo talvez, que é aquele que conduz ao meu próprio destino. Como resultado de tudo isto, Manuel concluiu a entrevista com o seguinte comentárioz Faço 0 quefaço porque não sei, sempre pensei que em determinado momento ia parar e não ia fazer mais e pront0, ponto jínaL mas não sei, no ano passado quisfícar noivo e não pude porque estou acostumado a saír com autro tipo de moças e com essas não se pode... mas talvez seja verdade que a pessoa dep013' não pode parar... A partir do momento em que Manuel descobriu a existência de Wilson na sua vida, o processo terapêutico deu uma volta admira'vel; alguma coisa aconteceu em Manuel para reacomodar a sua vida e orientar a sua busca pessoaL Aos poucos, ele foi incorporando novos hábitos que foram substítum'do velhos vícios, vivendo esta transformação afastado do perigo do tédio, de não gozar a vida. Manuel continua em terapia. Como díz Ortega y Gasset: 0 importante não é chegar, e sim ir, estar a caminh0.

ÍNDICE

Introdução Sobre a biblioterapia

13

1” parte A LOGOTERAPIA EM CONTOS

18 21 26 27 27 29 31

Para uma biblioterapia A leitura terapêutica do livro Da biblioterapía ao bibliodiagnósüco Exemplos Caso 1: João (37 anos) Caso 2: Grupo de jovens esporüslas Caso 3: Ccntro dc convivência de idosos

33

2° parfte AS DUVIDAS

34 35 37 39

112

O livro substitui 0 terapeuta? O que acontece com 0 paciente depois de viver 0 impacto da leitura? Existem livros “conlraproducentes"? Isto signiñca que qualquer livro pode servir para os ñns da biblioterapia?

46 46

85

40parte ~ 1 l CONCLUSAO: ULTIMA PAGINA

95

5“ parte A SOBREA CONSCIENCIA EM UM CONTO DE POE

66

95 105 110

95

61

SHPPÚNH

74 75 80

3” parte MATERIAL “Quebra-cabeça”, de Claudio García Pintos “A estrada que não tomei”, de Robert Frost “O sapateir0” “Pípa”, de Lulz' Falcão “O carrun'h0 da verdade”, de E. Kipman Cerqueira “Aventuras em busca de am0r”, de Iamara M. Porcelli “O rei que queria ser feliz”, de Antonio C. Giampietro “Quand0”, de Gabriel Jorge Castellá 8. 9. “Poesias”, de Elisabeth Lukas 10. “Reflexões”, de vários autores

51 51 55 57 58 59

O contoz “William Wilson” A leitura O ñnalz Caso Manuel

.

Pode~se implementar a biblioterapia no trabalho com as crianças? A biblioterapia tem aplicabilidade quando se trabalha com deñcientes físicos? Ler e escrever sào a mesma coisa?

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