Aconselhamento Em Dependencia Quimica.pdf

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AC O N SELH AM EN TO EM

D e p e n d ê n c i a

Q

u i m i c a

Neliana Buzi Figlie Selma Bordin Ronaldo Laranjeira «/U i

ROCA

ACONSELHAMENTO EM

Dependência C/uímica N elia n a B u z i F

ig l ie

Psicóloga. Especialista em Dependência Química, Mestre em Saúde Mental e Doutoranda pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenadora do Ambulatório de Alcoolismo e de Projetos Preventivos da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD).

S e l m a B o rd in Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Psicóloga do Hospital Israelita Albert Einstein.

R o n ald o L a ra n jeir a Psiquiatra. Doutorado pelo Institute o f P sychiatry-London University. Coordenador Geral da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD), Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

ROCA

Copyright © 2004 da 1- Edição pela Editora Roca Ltda. ISBN: 85-7241-552-1 Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, guardada pelo sistema “retrieval” ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja este eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação, ou outros, sem prévia autoriza­ ção escrita da Editora.

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F483a Figlie, NelianaBuzi Aconselhamento em dependência química / Neliana Buzi Figlie, Selma Bordin, Ronaldo Laranjeira. São Paulo : Roca, 2004. Inclui bibliografia ISBN 85-7241-552-1 1. Toxicomania. I. Bordin, Selma. II. Laranjeira, Ronaldo. III. Título. 04-1308.

CDD 616.86 CDU 613.83

2004 Todos os direitos p a ra a língua portuguesa sã o reservados p ela E D IT O R A R O C A L T D A .

Rua Dr. Cesário Mota Jr., 73 CEP 01221-020 - São Paulo - SP Tel.: (11) 3331-4478-F ax: (11) 3331-8653 E-mail: [email protected] - www.editoraroca.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil

Colaboradores

Andrezza Fontes - Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Psicóloga Infantil no Projeto Centro Utilitário de Interven­ ção e Apoio aos Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA) e Mestranda pelo Departamento de Psiquiatria da Universi­ dade Federal de São Paulo (UNIFESP). Carolina Fernandes - Psicóloga. Especialista em Depen­ dência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Psicologia Hospitalar pelo Hospital Brigadeiro/Németon. Pesquisadora da Unidade de Pesquisa em Ál­ cool e Drogas (UNIAD) - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Celina Andrade Pereira - Psicóloga. Especialista em Depen­ dência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Coordenadora Executiva do Programa Indepen­ dência (Prevenção do Consumo de Substâncias Psicoativas em Escolas) e Pesquisadora da Unidade de Pesquisa em Ál­ cool e Drogas (UNIAD) - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Cláudio Jerônimo da Silva - Psiquiatra. Especialista em De­ pendência Química. Doutorando e Professor de Pós-gradua­ ção Lato Sensu na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) - Departamento de Psiquiatria - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

VI ■ Aconselhamento em Dependência Química Daniel Cruz Cordeiro - Psiquiatra. Especialista em Dependência Química pela Uni­ versidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Denise Getúlio de Melo - Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenadora do Programa Inde­ pendência (Prevenção ao Consumo de Substâncias Psicoativas no Ambiente de Trabalho). Pesquisadora da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Edilaine Moraes - Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela Univer­ sidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Psicóloga de Adolescentes no Projeto Cen­ tro Utilitário de Intervenção e Apoio aos Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA). Mestranda pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Lillian Ratto - Psiquiatra. Coordenadora da Unidade de Álcool e Drogas do Cen­ tro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) - Santa Casa de São Paulo. Doutoranda pelo Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Roberta Payá - Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela Universi­ dade Federal de São Paulo (UNIFESP). Especialista em Terapia de Família e Casal - Pontifícia Universidade Católica - São Paulo (PUC). Coordenadora Clínica do Projeto Centro Utilitário de Intervenção e Apoio aos Filhos de Dependentes Quí­ micos (CUIDA). Pesquisadora da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Luis André Castro - Psiquiatra. Especialista em Dependência Química pela Uni­ versidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Doutorando pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenador de Pesquisas da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) - Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Marcelo Ribeiro - Psiquiatra. Diretor Clínico da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD). Mestre em Psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Editor e responsável pelo desenvolvimento do conteúdo do site “Ál­ cool e Drogas sem Distorção” (Hospital Israelita Albert Einstein). Marcos Romano - Psiquiatra. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Mestrando pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Prefácio

Em 1993, cheguei ao Brasil, meio desnorteado, com uma bolsa do CNPq e um convite do Departamento de Psiquia­ tria da Escola Paulista de Medicina para ajudar a montar e avaliar um novo serviço de atendimento a usuários de álcool e drogas. Meu compadre, nessa tarefa, foi o Ronaldo Laran­ jeira, recém-doutorado na Inglaterra. Juntos resolvemos montar um centro de pesquisa, estudos e atendimento de álcool e drogas. Foi o Ronaldo que cunhou o nome do cen­ tro UNIAD - Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas. Na­ quela época, a UNIAD era Ronaldo, eu e muitas idéias! Logo chegaram outras pessoas interessadas em nossa visão: Neliana, Sandra, Miriam, Ilana, Flávia, Marcelo, André Luís, Cláudio e muitos outros colegas. Chegou-se a um ponto em que não cabíamos mais no pequeno escritório que era nos­ so domínio no Departamento de Psiquiatria, mas o Ronaldo conseguiu convencer a universidade a alugar uma casa na rua Botucatu, onde a UNIAD seria instalada. Com essa mudança, as atividades da UNIAD começaram ase expandir: aulas, cursos, pesquisas, publicações, mestrados, doutorados, cursos virtuais e programas de atendimento a usuários de álcool, cocaína e maconha e atendimento espe­ cífico aos familiares, a mulheres e a adolescentes. A UNIAD continuou crescendo e logo a gente mal cabia em nossa casi­ nha e precisava de mais espaço. Conseguimos alugar um ca­ sarão, ao lado da casinha, para montar uma unidade maior. Durante os últimos anos, a UNIAD virou um centro de refe­ rência e treinamento - um verdadeiro centro de excelência.

VIII ■ Aconselhamento em Dependência Química Para mim, a UNIAD é como uma filha, presenciei o seu nascimento, a sua in­ fância e o começo da sua adolescência. Depois, tive que abandoná-la e voltei para a Inglaterra, mas continuo presenciando, a longa distância, o seu desenvolvimen­ to. Sinto muito orgulho por tudo o que os profissionais da UNIAD conseguiram. Agora estamos vivendo uma nova fase no desenvolvimento com os cursos presenciais e virtuais, que foram iniciados alguns anos atrás: a UNIAD está come­ çando a ter impacto em todo o Brasil. Os cursos estão contribuindo para a forma­ ção de uma nova geração de profissionais de saúde na área de dependência química. Este livro é um dos frutos desse trabalho e é uma obra que surgiu dos cursos de dependência química. Eu me lembro de um estudante que, depois de fazer uma avaliação inicial de um paciente dependente químico, reclamou que não sabia o que falar a mais ao paciente: - "Professor, ele reclamou, eu não tenho mais assunto!” Se, naquela épo­ ca, eu tivesse esse livro disponível, teria respondido, “Leia este livro e você terá bastante assunto”. Para mim, é uma grande honra ser convidado a escrever esse prefácio e tenho certeza de que este livro será muito útil para quem quer saber mais sobre aconselhamento na área de dependência química. D r. John Dunn Lead Consultant fo r Substance Misuse and Honorary Senior Lecturer - Camden & Islington Mental Health & Social Core Trustand Royal Free & University College M edicai School, London

A partir de um curso de aperfeiçoamento em Aconse­ lhamento em Dependência Química, eu e Ronaldo Laranjeira começamos a verificar a necessidade de adaptar alguns mate­ riais de modo a tomá-los mais acessíveis e, por que não dizer, práticos a profissionais que se dedicam em sua maioria a ativi­ dades clínicas e de assistência. Assim, a participação de Selma Bordin foi fundamental para assegurar uma linguagem sim­ ples e objetiva, bem como a participação dos colaboradores, que forneceram a especificidade de algumas temáticas com riqueza de detalhes imprescindíveis. Este livro almeja instrumentalizar profissionais no sen­ tido de aprimorar as habilidades diagnosticas e terapêuti­ cas dentro do universo da Dependência Química, de modo a viabilizar uma estreita ligação entre o conhecimento cien­ tífico e as diferentes abordagens de tratamento. A elabora­ ção desta obra se deve à necessidade de profissionais da área de saúde, que têm sua prática em dependência quím ica mas não têm acesso a obras de cunho científico e/ou em outros idiomas - reciclarem seus conhecimentos pautados na seriedade acadêmica. Para tal finalidade, procurou-se reunir as mais variadas informações, de modo a facilitar a aquisição desse conhecimento. Cremos que a utilidade desta leitura consiste em adqui­ rir um conjunto de ferramentas teórico-práticas que visam à ampliação de recursos técnicos como forma de aprimora­ mento e crescimento para lidar com os desafios da área. Este livro é dividido em três partes, para facilitar sua utilização:

X ■ Aconselhamento em Dependência Química

Parte I - Bases Teóricas R elacionadas à D ependência e ao Consumo Nocivo de Álcool, Tabaco e Demais Substâncias Psicoativas: abrange desde os sistemas diag­ nósticos e de recompensa cerebral até a psicofarmacologia das mais variadas subs­ tâncias psicoativas. Parte II - Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e Tratamento da D ependência Química: envolve as questões mais práticas ligadas ao tratamento, englobando as diferentes linhas técnico-teóricas e abordagens de grupos específicos dentro da Dependência Química. Parte III - Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Pú­ blicas Frente ao Consumo de Substâncias Psicoativas: importante e necessária, em termos da visualização da prática profissional em nível de Saúde Pública por meio da Prevenção, Políticas Públicas e Organização de Serviços para usuários de subs­ tâncias psicoativas. Para finalizar, este livro foi elaborado por um grupo de profissionais espe­ cialistas e amigos que colocaram todo seu empenho, almejando criar uma sa­ bedoria prática em cada uma de suas páginas, na esperança de serem extremamente úteis a todos aqueles que têm a árdua tarefa de desenvolver con­ dições para que o cliente possa se reabilitar e ir além da abstinência, adquirindo “independência” pessoal no sentido mais amplo da palavra. Portanto, gostaria que pessoas que tenham participado de alguma forma, se considerem agrade­ cidas por mim e um agradecimento especial a Ronaldo Laranjeira, Selma Bordin, colaboradores e alunos, que criaram as condições necessárias para que este ma­ nual pudesse ser planejado e desenvolvido. N eliana B uzi F iglie

y

Indice

PARTE I

Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool, Tabaco e Demais Substâncias Psicoativas....................

1

Sistemas Diagnósticos em Dependência Química - Conceitos Básicos e Classificação Geral.......

3

Capítulo 2

Neurobiologia da Dependência Química........................

12

Capítulo 3

Álcool......................................................................................

30

C apítulo 4

Tabaco ....................................................................................

55

Capítulo 5

Cocaína e C rack....................................................................

68

Capítulo 6

Opióides................................................................................

84

Capítulo 7

Alucinógenos........................................................................

93

Capítulo 8

Maconha................................................................................

107

C apítulo 9

Anfetaminas..........................................................................

118

Capítulo 10

Solventes e Inalantes...........................................................

125

Capítulo 11

Sedativos-Hipnóticos..........................................................

130

Capítulo 12

Esteróides Anabolizantes....................................................

139

Capítulo 13

Cafeína....................................................................................

146

Capítulo 1

PARTE II

B a se s T e ó rica s R e la c io n a d a s à C lín ica e ao T ra ta m en to d a D e p e n d ê n c ia Q u ím ic a ............

151

C apítulo 14

Como Organizar uma História Clínica.............................

153

C apítulo 15

Principais Comorbidades Psiquiátricas na Dependência Química........................................................

167

C apítulo 16 ^Terapia Cognitiva..................................................................

187

C apítulo 17 I Motivação..............................................................................

213

C apítulo 18

Entrevista Motivacional......................................................

223

C apítulo 19

Prevenção da Recaída..........................................................

249

C apítulo 20

Filhos de Dependentes Químicos.....................................

301

—Ç?C apítulo 21

Dependência Química na Mulher.....................................

315

j?

Abuso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas na Adolescência......................................................

321

C apítulo 23

Abordagem Familiar em Dependência Química...........

339

C apítulo 24

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento da Dependência Química.........

359

C apítulo 25

Dependência Química e o Portador de HIV....................

385

C apítulo 26

Dependência Química no Idoso........................................

391

C apítulo 27

Sexualidade e Disfunções Sexuais Masculinas na Dependência Química..............................

397

N o çõ es G erais d e P rev en ção , O rg a n iz a çã o de S erv iço s e P o lítica s P ú b lica s F ren te ao C o n su m o d e S u b stâ n cia s P s ic o a tiv a s........................

419

Redução de Danos - Uma Alternativa para Lidar com o Consumo de Substâncias Psicoativas...................

421

Conceitos Básicos em Prevenção ao Abuso de Álcool e Outras Drogas...................................................

445

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química............................................

460

Políticas Públicas para Álcool.............................................

513

ín d ice R em issivo..............................................................................................

529

Capítulo 22

PARTE III

C apítulo 28 C apítulo 29 C apítulo 30 C apítulo 31

P arte I

Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Alcool, Tabaco e Demais Substâncias Psicoativas

C A P lT U L O

Sistemas Diagnósticos em Dependência Química - Conceitos Básicos e Classificação Geral S el m a B ordin N elia n a B uzi F

ig lie

R onaldo L aranjeira

Aresposta à pergunta O que é dependência química?ainda não está clara, apesar dos inúmeros estudos já realizados. Existe uma grande variedade de teorias que tentam explicar a com­ plexidade da natureza da dependência química. Podemos re­ sumi-las em quatro modelos básicos: o modelo de doença, o modelo de comportamento aprendido, o modelo psicanalítico e o modelo familiar, que descreveremos resumidamente. O modelo de doença teve muita influência nas aborda­ gens de tratamento desde os anos 70. Entende a dependên­ cia como um transtorno primário e independente de outras condições: uma herdada suscetibilidade biológica aos efei­ tos do álcool ou drogas. A dependência é vista como sendo similar a transtornos como a hipertensão essencial, por exemplo, que tem um componente bioquímico herdado. As principais características da dependência, de acordo com esse modelo, são: a perda de controle sobre o consumo de álcool ou drogas; a negação; o uso continuado, a despeito de conseqüências negativas, e um padrão de recaída. Como diz o próprio nome, os teóricos do modelo de com­ portamento aprendido acreditam que os comportamentos são aprendidos ou condicionados. Logo, os problemas comportamentais, incluindo pensamentos, sentimentos e mudanças fisiológicas poderiam ser modificados pelos mes­ mos processos de aprendizagem que os criaram. Fazem par­ te deste modelo as seguintes escolas de pensamento:

4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. a. Condicionamento clássica explica como diversas situações ambientais tomamse estímulos condicionados capazes de gerar respostas {craving por exemplo). b. Condicionamento operante, estes teóricos acreditam que os padrões de comportamento são determinados por reforçadores positivos ou negati­ vos que ocorrem como resultado do comportamento. O abuso de álcool e drogas seria influenciado pelos dois tipos de reforço: o uso produziria o reforço positivo da euforia, relaxamento e bem-estar e removeria a ansie­ dade^ depressão ou tensão (reforço negativo). c. Modeíagem envolvem a observação do comportamento de outras pessoas como forma de desenvolver habilidades. Seria a imitação de comportamen­ tos. É vista como uma forma rápida e eficiente de mudança. Este modelo tem explicado a iniciação do abuso de álcool ou drogas, especialmente em adoles­ centes, os quais imitariam os comportamentos dos pais e colegas. Esta escola propõe a imitação de comportamentos mais funcionais como tratamento. d. Modelo cognitivo-comportamental: este modelo acredita que as emoções e os comportamentos são influenciados pelos processos de pensamento. Para estes teóricos, determinados estímulos (internos ou externos) interagem com as vulnerabilidades do indivíduo, com suas crenças disfuncionais a respeito de si mesmo e a respeito do uso de substâncias, e levam ao craving e ao comportamento de busca1. As escolas do modelo psicanalítico mais antigo entendiam o comportamento de uso de álcool e drogas como uma tentativa de se retornar a estados prazerosos da infância. As teorias psicanalíticas mais contemporâneas vêem o uso de álcool e drogas como uma forma que o indivíduo encontra de se adaptar a seus déficits de auto-regulação, que emergiram de privação ou de interações disfuncionais na primeira infância. Essas teorias têm sido rotuladas como “hipótese de automedicação”. De acordo com essa hipótese, algumas deficiências do indivíduo pode­ riam levar a problemas com abuso de substâncias: 1. Déficits na tolerância aos afetos: aquele paciente que sente “muito” ou “absolu­ tamente nada”; que alterna entre intensa ira e vagas sensações de desconforto. 2. Prejuízo nas habilidades de autoproteção - esses indivíduos falham em man­ ter-se atentos, tomar precauções ou evitar aqueles comportamentos que pos­ sam ter conseqüências perigosas. 3. Vulnerabilidade no desenvolvimento da auto-estima. 4. Problemas na construção dos relacionamentos e intimidade. Há três teorias de modelos familiares utilizados no campo de estudos do uso de álcool e drogas: o modelo de doença familiar, o modelo familiar sistêmico e o modelo comportamental. Apesar de cada um deles ter características distintas, a maioria dos centros de tratamento acaba usando todos os três, emprestando ele­ mentos de cada um deles. Estas teorias contribuíram muito para o entendimento da dependência, principalmente no que diz respeito ao conceito de equilíbrio e à importância das regras e metas que governam os relacionamentos familiares e como elas contribuem para a manutenção do uso de substâncias. Abordaremos essas questões no capítulo sobre famílias.

Sistemas Diagnósticos em Dependência Química - Conceitos Básicos... ■

5

Um quinto modelo concebe a dependência como sendo um fenômeno biopsicossocial. Este modelo tenta integrar as contribuições de todos os quatro an­ teriores numa teoria unificada. Parece haver um componente biológico herdado nos transtornos de abuso de substâncias, mas este componente isolado não ex­ plica a complexidade do fenômeno. Fatores psicológicos, sociológicos, culturais e espirituais desempenham um importante papel na causa, curso e resultados do transtorno.

Uso,

A

buso e

D epen d ên cia

Não existe uma fronteira clara entre uso, abuso e dependência. Poderíamos definir “uso”como qualquer consumo de substâncias, seja para experimentar, seja esporádico ou episódico; “abuso” ou “uso nocivo” como o consumo de substâncias já associado a algum tipo de prejuízo (biológico, psicológico ou social); e, por fim, dependência como o consumo sem controle, geralmente associado a problemas sérios para o usuário. Isso nos dá uma idéia de continuidade, como uma evolução progressiva entre esses níveis de consumo: os indivíduos passariam, inicialmente, por uma fase de uso, alguns deles evoluiriam posteriormente para o estágio de abuso e, finalmente, alguns destes últimos tornar-se-iam dependentes. Portanto, nem todo uso de álcool ou drogas é devido à dependência. Na ver­ dade, a maior parte das pessoas que apresenta uso disfuncional não é dependen­ te. Estudos populacionais demonstram que das pessoas que fazem uso nocivo do álcool, 60% não progredirão para a dependência nos próximos 2 anos; 20% volta­ rão para o uso considerado normal e 20% ficarão dependentes. Não existe ne­ nhum fator que determine, de forma definitiva, que as pessoas se tornarão dependentes. Na verdade, uma combinação de fatores contribui para que algu­ mas pessoas tenham maiores chances de desenvolver problemas em relação às substâncias durante algum período de suas vidas. O conceito de síndrome de dependência alcoólica propõe, como veremos, a existência de duas dimensões distintas: a psicopatologia do beber, de um lado e os problemas decorrentes do uso, de outro (e isso se estende ao consumo de drogas). Uma coisa é a pessoa intoxicar-se. Outra coisa é, por estar intoxicada ou intoxicarse freqüentemente, sofrer um acidente, desenvolver uma cirrose, brigar com o patrão ou com os familiares, ser detida por policiais, etc2. A Figura 1.1 mostra estas duas dimensões. No eixo horizontal temos a dimensão “dependência”, en­ tendida como um fenômeno gradativo que pode ser caracterizado em tantos graus quantos se queiram, conforme necessidades clínicas, terapêuticas ou de pesqui­ sa. No eixo vertical, está representada a ampla variedade de problemas associa­ dos ao uso de drogas, incluindo os de natureza física, psicológica, familiar e social, que também podem ser categorizados em diversos graus. A sobreposição dos dois eixos forma quadro quadrantes: A, B, C e D2. Quadrante A-Neste quadrante, localizamos os indivíduos que, independen­ temente de seus padrões de ingestão, não apresentam indicação alguma de de­ pendência, bem como de problemas associados ao uso. Em relação ao álcool, seriam eles os chamados bebedores sociais.

6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Probllemas i

C

B

Dependência

D

A

Figura 1.1 - Psicopatologia do beber e problemas associados1.

Quadrante B-Aqui encontramos os indivíduos cujo padrão de ingestão já lhes traz algum tipo de dano, prejuízo, complicação ou problema que afeta seu funcionamento físico, psíquico, familiar ou social. No entanto, eles não eviden­ ciam o menor grau de dependência. Na literatura técnica, seriam chamados de usuários problemáticos e o uso definido como nocivo. Quadrante C - Representa os indivíduos cujos padrões de ingestão acham-se, evidentemente, associados a danos, prejuízos, complicações ou problemas e que apre­ sentam, inequivocamente, algum grau de dependência. Estes indivíduos são os de­ pendentes propriamente ditos. Quadrante D - É uma possibilidade inexistente, uma vez que é inconcebível um indivíduo com algum grau de dependência, ainda que mínimo, sem que ao menos o próprio diagnóstico de dependência não seja considerado um problema. Sabendo que o uso nocivo é uma condição clínica muito comum, os orga­ nizadores do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos (DSM) e da Classifi­ cação Estatística Internacional de Doenças (CID) desenvolveram critérios para identificá-lo e diferenciá-lo da dependência, como vemos nas Figuras 1.2 a 1.5. As classificações de uso nocivo e dependência do DSM-IV e CID-10 fornecem critérios gerais para diagnóstico, independentemente da substância consumida, e tendem a considerar o uso nocivo como categoria residual, ou seja, absorvem aqueles indivíduos cujos quadros clínicos não caracterizam claramente a depen­ dência3. Estes critérios, quando comparados aos elementos da síndrome de dependência alcoólica, propostos por Edwards e Gross, são mais restritivos e por isso estudaremos estes últimos mais detalhadamente.

S índrom e

de

D epen d ên cia

O conceito de síndrome é utilizado na medicina para designar um agrupa­ mento de sinais e sintomas. Nem todos os elementos estão presentes em todos os casos, mas o quadro deve ser suficientemente regular e coerente para permi­ tir seu reconhecimento clínico e a distinção entre síndrome e não-síndrome. A síndrome de dependência alcoólica (SDA), proposta em 1976 por Griffith Edwards e Milton Gross, psiquiatras inglês e americano, respectivamente, traz importantes distinções em relação aos conceitos anteriormente propostos3:

Sistemas Diagnósticos em Dependência Química - Conceitos Básicos... ■

Q u a d ro 1.1 - Critérios do DSM-IV para Dependência de Substâncias2 DSM-IV - Critérios para dependência de substâncias Um padrão de uso disfuncional de uma substância, levando a um comprometimento ou desconforto clinicamente significativo, manifestado por três (ou mais) dos seguintes sinto­ mas, ocorrendo durante qualquer tempo, num período de 12 meses: 1. Tolerância, definida por um dos seguintes critérios: a. necessidade de quantidades nitidamente aumentadas de substância para atingir in­ toxicação ou o efeito desejado b. efeito nitidamente diminuído com o uso contínuo da mesma quantidade da substância 2. Abstinência, manifestada por um dos seguintes critérios: a. síndrome de abstinência característica da substância b. a mesma substância (ou outra bastante parecida) é usada para aliviar ou evitar sinto­ mas de abstinência 3. A substância é freqüentemente usada em grandes quantidades, ou por período maior do que o intencionado 4. Um desejo persistente ou esforço sem sucesso de diminuir ou controlar a ingestão da substância 5. Grandes períodos de tempo utilizados em atividades necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se de seus efeitos 6. Reduzir ou abandonar atividades sociais, recreacionais ou ocupacionais por causa do uso da substância 7. Uso continuado da substância, apesar do conhecimento de ter um problema físico ou psicológi­ co persistente ou recorrente que tenha sido causado ou exacerbado pela substância

Q u a d ro 1 .2 - Critérios da CID-10 para Dependência de Substâncias2 CID-10 - Critérios para dependência de substâncias O diagnóstico de dependência deve ser feito se três ou mais dos seguintes critérios são experienciados ou manifestados durante o ano anterior: 1. Um desejo forte ou senso de compulsão para consumir a substância 2. Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância em termos de início, término ou níveis de consumo 3. Estado de abstinência fisiológica, quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por: síndrome de abstinência característica para a substância, ou o uso da mesma substância (ou de uma intimamente relacionada) com a intenção de ali­ viar ou evitar os sintomas de abstinência 4. Evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância psicoativa são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas 5. Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da subs­ tância psicoativa: aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou tomar a substância ou recuperar-se de seus efeitos 6. Persistência no uso da substância, a despeito de evidência clara de conseqüências manifesta­ mente nocivas, tais como dano ao fígado por consumo excessivo de bebidas alcoólicas, esta­ dos de humor depressivos conseqüentes a períodos de consumo excessivo da substância, ou comprometimento do funcionamento cognitivo relacionado com a droga: deve-se procurar determinar se o usuário estava realmente consciente da natureza e extensão do dano

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Q u a d ro 1.3 - Critérios do DSM-IV para Uso Nocivo de Substâncias2 DSM-IV - Critérios para uso nocivo de substâncias A. Padrão de uso disfuncional de uma substância, levando a um comprometimento ou desconforto clinicamente significativo, manifestado por um ou mais dos seguintes sin­ tomas: 1. Uso constante da substância, resultando no fracasso em cumprir obrigações no trabalho, na escola ou em casa 2. Uso constante da substância em situações fisicamente comprometedoras 3. Problemas legais constantes relacionados com o uso da substância 4. Uso contínuo da substância, apesar de ter um problema social ou interpessoal persis­ tente ou constante, ou que seria exacerbado pelos efeitos da substância B. Nunca preencher os critérios para dependência desta substância

Q u a d ro 1 .4 - Critérios da CID-10 para Uso Nocivo de Substâncias2 CID-10 - Critérios para uso nocivo de substâncias • O diagnóstico requer que um dano real tenha sido causado à saúde física e mental do usuário • Padrões nocivos de uso são freqüentemente criticados por outras pessoas e estão asso­ ciados a conseqüências sociais adversas de vários tipos • Uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome de dependência, um distúrbio psicótico ou outra forma específica de distúrbio relacionado com o álcool ou drogas esti­ ver presente

1. A SDA foi uma proposta a ser testada empiricamente e não uma verdade absoluta, requerendo, portanto, um programa rigoroso de pesquisa para ser completamente entendida. Como conseqüência, houve uma vasta gama de estudos mostrando sua validade clínica. 2. Em oposição ao conceito de alcoolismo visto como doença sob uma pers­ pectiva categorial (é ou não é), a SDA propõe um diagnóstico dimensional, ou seja, deve-se avaliar não só a presença, mas também a intensidade dos sintomas ao longo de um contínuo de gravidade. Esse modelo dimensional foi a base sobre a qual os autores da CID-10 assentaram tanto o conceito como as diretrizes diagnosticas da síndrome de dependência2. A síndrome pode ser reconhecida pelo agrupamento dos sintomas, embora não seja ne­ cessário que todos estejam presentes ao mesmo tempo (o que tenderá a ocor­ rer conforme a gravidade aumenta). 3. O conceito de Edwards e Gross reconhece a importância dos processos de aprendizado na etiologia da SDA: o aprendizado social ou social learning (o significado simbólico do álcool dentro de determinada cultura), o con­ dicionamento clássico, o condicionamento operante, etc. Um aprendizado importante que contribuiu muito para o desenvolvimento e manutenção da dependência é o da ingestão para alívio dos sintomas de abstinência.

Sistemas Diagnósticos em Dependência Química - Conceitos Básicos... ■

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4. O conceito de SDA faz uma distinção importante entre o que é dependência e o que são problemas relacionados ao uso do álcool. 5. A SDA sempre sofrerá influências de fatores como personalidade e ambiente cultural (uma cultura não permissiva ou uma personalidade rígida poderi­ am, por exemplo, coibir o uso do álcool pela manhã, embora os sintomas de abstinência estejam presentes). Os elementos-chave para diagnóstico da síndrome de dependência alcoólica, que também podem ser utilizados para diagnosticar dependência de outras dro­ gas, estão abaixo relacionados e em conformidade com os originalmente formu­ lados por Edwards e Gross (1976). Estreitamento do repertório - Conforme a dependência avança, os estímulos relacionam-se crescentemente com o alívio ou evitação da abstinência. Logo, o repertório pessoal torna-se cada vez mais restritivo, com padrões cada vez mais fixos: o indivíduo passa a ingerir a mesma bebida ou droga, nos mesmos horários e nas mesmas condições; as companhias, o estado de humor ou as circunstâncias vão se tornando cada vez menos relevantes4. Saliência do uso - Com o avanço da dependência, o indivíduo passa a priorizar a manutenção da ingestão da droga. O consumo vai se tornando mais importante que a família, que o trabalho, que a casa, que a saúde. O sujeito passa a centrar seu comportamento e suas atividades em função da droga, organizando sua vida e compromissos em função da existência ou não dela2. Aumento da tolerância - O sistema nervoso central é capaz de desenvolver tolerância ao álcool e às drogas. Tolerância é definida como a diminuição da sen­ sibilidade aos efeitos da droga, que ocorre como resultado da prévia exposição a ela. Clinicamente, a tolerância se manifesta no fato de, por exemplo, a pessoa ser capaz de ingerir grandes quantidades de bebidas alcoólica e conseguir fazer coi­ sas com uma alcoolemia que incapacitaria o bebedor não-tolerante. É observada tanto em dependentes quanto em usuários pesados. Nos estágios mais avançados da dependência alcoólica, por razões que ainda não estão claras, o indivíduo co­ meça a perder sua tolerância e fica incapacitado com quantidades de álcool que antes suportaria: pode então começar a cair bêbado na rua4. Sintomas de abstinência - Os sintomas de abstinência resultam de adapta­ ções feitas pelo cérebro à interrupção ou redução do uso das substâncias. As ma­ nifestações clínicas da abstinência variam conforme a droga ingerida. Por exemplo: a abstinência do álcool caracteriza-se principalmente por tremores, náuseas, sudorese e perturbação do humor (entre outros). A depressão, ansiedade e para­ nóia são sintomas típicos de abstinência de cocaína. Descreveremos com deta­ lhes as manifestações clínicas típicas de cada droga nos capítulos adiante. Alívio ou evitação dos sintomas de abstinência pelo aumento do consumo - Constitui o mecanismo adaptativo do indivíduo ao aparecimento da síndrome de abstinência, envolvendo comportamentos que a evitem2. O indivíduo pode tentar manter um nível de consumo da substância estável, que aprendeu a reco­ nhecer como confortável e acima de um nível perigoso. Assim, seu consumo agora é desencadeado com o objetivo de evitar ou aliviar os desagradáveis sin­ tomas de abstinência3.

10 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. Percepção subjetiva da compulsão para o u so -É a percepção que o indivíduo tem de sua falta de controle. O paciente pode relatar isso como sendo uma sensa­ ção de estar nas garras de algo indesejado, como fissura, craving, desejo intenso ou ainda de uma forma bem particular4. A compulsão tem sido tomada pratica­ mente como sinônimo da perda de controle que, durante algum tempo, foi tida como elemento central do alcoolismo, em termos conceituais e classificatórios. Entretanto, do ponto de vista psicopatológico, a compulsão é definida como um ato executado contra a vontade ativa do sujeito e apesar do reconhecimento de seu caráter absurdo. Em muitas ocasiões em que se emprega a compulsão como sinônimo de perda de controle, trata-se, na verdade, de uma desistência do con­ trole, em vez de uma perda2. Reinstalação após a abstinência - É o processo por meio do qual uma síndrome que levou anos para se desenvolver pode se reinstalar dentro de 72 horas de ingestão. A dependência re-emerge como se houvesse uma “memória” irreversível instalada4. Quanto mais avançado tiver sido o grau prévio de dependência, mais rapidamente o paciente exibirá níveis elevados de tolerância2.

G raus

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D epen d ên cia

O estado de dependência não constitui um estado do tipo “tudo ou nada”: trata-se de um contínuo, de uma gradação entre um extremo e outro, entre a nãodependência e a dependência. Mesmo o estado de dependência não constitui uma categoria homogênea. É mais adequado pensarmos em termos de “graus de dependência”2. Não é fácil estabelecer regras absolutas para avaliar a severidade da síndrome. Embora algum elemento possa estar mais ou menos desenvolvido do que outros, o quadro coerente que emerge deve ser o de um certo grau de dependência, com cada elemento mais ou menos no nível dos outros. Assim, por exemplo, se um indivíduo apresenta sintomas de abstinência graves diariamente, podemos espe­ rar que exista um padrão bem estabelecido de ingestão para alívio. Uma tolerân­ cia já estará bem desenvolvida e talvez possa começar a aparecer alguma evidência de tolerância em declínio. Muito provavelmente, esse indivíduo estará bebendo as mesmas quantidades diariamente, estará consciente de sua compulsão e apre­ sentará uma reinstalação rápida após alguns dias de abstinência. Podemos dizer que quanto mais vezes o indivíduo tiver repetido os ciclos de abstinência e alívio, mais grave será sua dependência4. Também poderíamos dizer que estará gravemente dependente aquela pes­ soa que experiencia sintomas de abstinência, numa base mais ou menos diá­ ria, por um período de 6 a 12 meses, e que bebe para aliviar esses sintomas durante o mesmo período (com outros elementos congruentemente desem volvidos). Poderíamos diagnosticar como um caso inicial de dependência, aquela pessoa que experienciou sintomas de abstinência apenas em algumas ocasiões e que percebeu que o álcool traz alívio (mesmo sem ingerir intencio­ nalmente o primeiro drinque do dia). Entre estes dois quadros existem muitas graduações e não graus fixos4.

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A

specto s

M orais

Até aqui falamos do uso do álcool e drogas sob os aspectos psiquiátricos e psicológicos. Ao lidarmos com pacientes e seus familiares precisamos levar em conta o caráter moral que permeia nossa sociedade. Apesar de todos os avanços científicos que fizemos, ainda encontramos muitas pessoas, inclusive profissio­ nais de saúde, respondendo ao usuário de álcool ou drogas com idéias e atitudes preconceituosas. Expressões como “Outra vez bêbado?”, “é um fraco”, “não tem vergonha na cara” são, infelizmente, muito comuns. É por esse motivo que deve­ mos evitar o uso de palavras como “vício”, “viciado”, ou “drogado”, as quais acaba­ ram se tornando pejorativas. O dependente químico, assim como qualquer outro paciente, precisa ser res­ peitado e atendido com atenção. Atitudes preconceituosas criam distanciamento e pioram o prognóstico. Antes de tudo, é fundamental uma revisão de crenças pessoais sobre o fenômeno da dependência química, por todos os profissionais de saúde que tenham contato direto ou indireto com esses pacientes. Tratar com competência requer, acima de tudo, uma atitude respeitosa.

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C A P ÍT U L O

Neurobiologia da Dependência Química C láud io J erônim o

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R onaldo L aranjeira

I ntro du ção Avanços científicos nos últimos 20 anos mostram que a dependência é uma doença crônica e recorrente, que resulta de uma interação de efeitos prolongados da droga no cére­ bro. Entretanto, como muitas outras doenças cerebrais, im­ portantes aspectos sociais, culturais, educacionais e comportamentais são partes integrantes desta doença1,2. Adiscussão sobre uma droga causar maiores ou menores sintomas de síndrome de abstinência, tolerância ou causar efeitos biológicos mais ou menos pronunciados não esgota todas as questões envolvidas na dependência. Por exemplo, se alguém sob efeito de droga comete um delito, é preso e não recebe tratamento na prisão, corre-se o risco de criar um verdadeiro tráfico de drogas no sistema prisional, como vem ocorrendo no Brasil nos últimos 2 anos. Cria-se uma série de problemas sociais da mais alta gravidade e de difícil resolu­ ção. Adequado seria tratar as duas dimensões: a dependên­ cia química e o conflito com a lei, sem polarizar nem para o lado do crime, esquecendo-se da doença e nem para o lado da doença, negligenciando-se o crime. No Brasil ainda existe uma tendência, observada empiricamente, a tratar a depen­ dência química como uma questão de saúde ou de justiça. O uso de drogas e os problemas dele decorrentes se agravam na humanidade do século XXI e para serem tratados de forma adequada é necessário o envolvimento direto de muitas áreas do conhecimento, como a medicina, a psicologia, as ciências

Neurobiologia da Dependência Química ■

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sociais, as ciências políticas, a jurídica, entre outras. Este capítulo focalizará os as­ pectos neurobiológicos da dependência, mas devem ficar claros aos estudantes e profissionais todos os aspectos compreendidos nesta doença complexa - que serão discutidos nos capítulos subseqüentes.

N euro bio lo gia A dependência química pode ser entendida como uma alteração cerebral provocada pela ação direta da droga nas diversas regiões cerebrais3. Entenden­ do os mecanismos pelos quais as drogas de abuso agem no sistema nervoso cen­ tral, podemos entender grande parte das alterações comportamentais e das conseqüências sociais que decorrem do aumento progressivo do uso e estabele­ cer ações de tratamento pareadas com as necessidades do paciente, aumentan­ do as chances de sucesso. Os fatores de risco para o uso de droga, já salientados, ultrapassam o campo biológico e qualquer estratégia preventiva leva em conta o indivíduo, a família, a escola, a comunidade e as leis de restrição do uso. Mas falando em conseqüências e não em etiologia, a dependência tem caráter essencialmente cerebral. Entretanto, grande parte dos sintomas decorrentes dos usos agudo e crônico das drogas de abuso pode ser explicada pela ação da droga nas diversas áreas cerebrais. A altera­ ção do comportamento, da motivação (volição, pragmatismo) e da capacidade de julgamento (crítica) são sinais e sintomas psicopatológicos que se originam da ação direta das drogas de abuso no sistema nervoso central. Portanto, para tratar a dependência é essencial conhecer os mecanismos pelos quais as drogas levam a tais alterações psicopatológicas. É necessário, ainda, reco­ nhecer que as alterações, inclusive comportamentais, são manifestações da doença. Caso contrário, corre-se o risco de exigir do dependente químico que ele não apre­ sente ou que suprima determinadas alterações comportamentais, como se estas esti­ vessem sob seu controle voluntário e não como sendo uma alteração psicopatológica merecedora de um tratamento adequado, na linha farmacológica ou não farmacológica, que ajude o paciente a se motivar e engajar-se em ações que mudem seu próprio comportamento. Amudança do comportamento, sem dúvida, exige uma participação direta do paciente, mas de forma assistida e orientada por um profissio­ nal bem preparado. Exigir que o dependente químico suprima as alterações de seu comportamento alterado sem qualquer intervenção é o mesmo que exigir do pacien­ te cirrótico que elimine sua icterícia, para que possa ser admitido no tratamento. Será feita uma revisão breve sobre o funcionamento celular, sobre o sistema de recompensa cerebral (SRC) e estabelecida uma correlação entre as ações das principais drogas de abuso no sistema nervoso central e as alterações psicopatológicas delas decorrentes.

F u ncionam ento C elular N o rm al O líquido existente dentro das células (líquido intracelular) é muito diferente do líquido contido fora das células (líquido extracelular). Os fluidos extracelulares

14 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool... incluem o líquido do plasma sangüíneo que circula nas veias, nas artérias e nos capilares - pequenas ramificações dos vasos sangüíneos que penetram nos teci­ dos4. Os capilares possuem um endotélio (células justapostas que formam a parede do vaso) permeável aos íons e está em constante troca com o líquido que circunda o espaço entre as células dos diversos tecidos - este espaço é chamado de interstício e, o líquido aí presente, de fluido intersticial. Portanto, todas as células dos tecidos estão banhadas por um líquido extracelular repleto de oligoelementos (fosfatos, aminoácidos, etc.) e de íons positivos (cátions) e negativos (ânions) (Fig. 2.1). En­ tretanto, as concentrações desses elementos são diferentes entre o espaço intersticial e os espaços intracelulares. A diferença de concentração de íons den­ tro e fora das células é de fundamental importância para a vida celular e é deno­ minada gradiente de concentração.

E strutura

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M em brana C elular

As células são delimitadas por uma membrana de estrutura elástica e muito fina, com 7,5 a 10nm de espessura. Ela é composta de 55% de proteínas, 25% de fosfolipídeos, 13% de colesterol, 4% de outros lipídeos e 3% de carboidratos. A disposição destes elementos forma uma estrutura constituída por uma dupla ca­ mada lipídica - uma delgada película composta de fosfolipídeos e colesterol, disposta de forma contínua por toda a extensão celular. Os radicais fosfato e ácido graxo dos fosfolipídeos são insolúveis em água (hidrofóbicos). O núcleo esteróide dos ácidos graxos também é hidrofóbico, mas a hidroxila presente na molécula do áci­ do graxo é hidrofílica. Visto que a parte hidrofóbica dessas moléculas é repelida pela água, elas tendem a se atrair formando uma camada lipídica voltada para o interior da membrana celular, de modo que a parte solúvel em água ocupe a su­ perfície da membrana4. Esta estrutura da membrana celular já é a primeira estra­ tégia celular na seletividade das trocas de íons e outros elementos entre o espaço intracelular e o extracelular, porque torna a membrana impermeável às substân­ cias hidrossolúveis comuns como glicose, íons, uréia, entre outras; no entanto, substâncias lipossolúveis como o oxigênio e os alcoóis podem atravessar parte da membrana. Submersa nessa camada contínua de membrana existem proteínas globulares que se movimentam livremente na membrana celular. Tais proteínas que são receptores celulares - têm a capacidade de se ligar precisamente a outras proteínas (os neurotransmissores) e funcionam como meio de comunicação en­ tre as células nervosas, permitindo que o estímulo gerado em um neurônio se pro­ pague adiante, através de circuitos bem desenhados. Essa possibilidade de movimentação das proteínas submersas nas membranas (receptores) dá à célula a capacidade de manter a homeostase de seu funcionamento: caso haja muito estímulo chegando aos receptores pelos neurotransmissores, a célula nervosa di­ minui o número de proteínas (receptores) expostas na membrana. O fenômeno de neuroadaptação é o principal responsável pelo mecanismo de tolerância chamado de dow-regulation. Ao contrário, em vigência de poucos estímulos, as células expõem à membrana maior número das proteínas - fenômeno de neuroadaptação conhecido por up-regulation4.

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C élulas N ervosas As células nervosas diferem das células de outros tecidos, exceto as mus­ culares, por serem excitáveis. Sob determinadas situações eletroquímicas, elas se excitam (despolarizam) e promovem a liberação de proteínas que têm a ca­ pacidade de se ligar a outra célula nervosa por meio de receptores específicos e, assim, provocar modificações elétricas na célula vizinha, de modo que esta também possa liberar substâncias químicas que se ligarão a outras células, e assim sucessivamente. Essa corrente de transmissão de informação só é possí­ vel pela presença dos neurotransmissores, moléculas protéicas fabricadas pela célula nervosa por comando de seu material genético, contido no núcleo. A comunicação de uma célula nervosa com outra se dá através de um espaço denominado fenda sináptica. É nesse espaço que a célula excitada (despo­ larizada) libera os neurotransmissores. Estes seguem três caminhos diferen­ tes: a) ligam-se aos receptores específicos presentes na célula contígua; b) são recaptados por receptores existentes na célula que os liberou para serem usa­ dos como matéria-prima na fabricação de novos neurotransmissores; c) são metabolizados por enzimas encontrados na fenda sináptica. Portanto, existem três diferentes maneiras de aumentar o estímulo à célula nervosa pelos neurotransmissores: a) impedindo que os neurotransmissores sejam recap­ tados de volta pelo neurônio que os liberou (neurônio pré-sináptico); b) aumentando a liberação de neurotransmissor pelo neurônio pré-sináptico, ao bloquear a bomba de recaptação; c) impedindo que os neurotransmisso­ res sejam metabolizados na fenda sináptica, ao inibir as enzimas encarre­ gadas desse papel. Outra característica que diferencia uma célula nervosa de outras é sua confor­ mação. Como todas as células, são delimitadas por membrana celular e contêm um núcleo com seu material genético mas, ao contrário das demais, elas possuem diversos prolongamentos da membrana a partir do núcleo, chamados de dendritos e um prolongamento maior (uma espécie de cauda) chamada de axônio. São es­ ses prolongamentos que permitem que as informações se transmitam célula a célula por longas distâncias. Assim, as fendas sinápticas são os locais de encontro nos quais o axônio de uma célula se comunica, pelos neurotransmissores, com os dendritos das células pós-sinápticas5.

C om o O correm

os

E stím ulos E létricos

As Figuras 2.1 a 2.4 descrevem como se dão as trocas iônicas entre o interior das células nervosas e o interstício. A mudança no gradiente de concentração iônico é a grande responsável pelo estímulo celular e sua despolarização. Quan­ do uma célula está em estado de repouso, diz-se que ela está despolarizada e seu potencial elétrico é ligeiramente negativo em relação ao espaço extracelular (interstício). Tal diferença de concentração iônica é mantida graças aos meca­ nismos de transporte de íons dos quais a célula dispõe: transporte passivo; trans­ porte ativo; canais de íons voltagem-dependentes; transporte de cloro. Quando estimuladas, há uma alteração importante nos mecanismos de transporte iônico

16 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool...

Pótmcuü de membrana

Figura 2.1 - Desenho esquemático da comunicação de dois neurônios e os íons que os cercam no ambiente extracelular. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

pela membrana celular e ela se torna levemente positiva em relação ao ambien­ te extracelular. A inversão de cargas positivas e negativas, alterando a confor­ mação original de repouso, provoca alterações que culminam com a liberação de neurotransmissores na fenda sináptica. Os neurônios que liberam os neurotransmissores na fenda sináptica são chamados de neurônios présinápticos e os neurônios que possuem os receptores, aos quais se ligarão os neurotransmissores liberados, são chamados de pós-sinápticos. Portanto, os neuro­ transmissores liberados se ligam aos receptores das células pós-sinápticas e o

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; 2. Transporte ativo

Figura 2.2 - Desenho esquemático dos canais de transporte ativo e voltagem-dependente. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

estímulo então se propaga. Nesse momento, diz-se que a célula está excitada ou despolarizada. Entretanto, quando o gradiente de concentração entre o ambien­ te intra e o extracelular atinge um valor de -70 a -õOmv4, os canais de sódio e po­ tássio voltagem-dependentes são ativados e provocam um grande fluxo de potássio de dentro para fora da célula. Esse é um dos mecanismos que participa da re-

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Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Figura 2.3 - Desenho esquemático da fisiologia dos canais de cálcio e potássio e etapas do processo de atividade celular. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

composição da célula ao seu estado de repouso original: saindo íons potássio (positivos) o gradiente de concentração volta a ser ligeiramente negativo no in­ terior da célula em relação ao exterior. Assim, a célula volta ao seu estado de re­ pouso após uma despolarização e está pronta para ser despolarizada novamente diante de um novo estímulo. O processo de volta ao gradiente de concentração iônica original de repouso celular é denominado repolarização. Leia atentamente as Figuras 2.1 a 2.4 para entender os mecanismos aqui descritos.

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Figura 2.4 - Desenho esquemático do processo de despolarização e repolarização das células nprvncAç /'Dpçpnhrv Gkplp Grimpvicius Garbe)

20 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

S ist e m a

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Sentir prazer também é uma das funções vitais do organismo na medida em que é a sensação de prazer que nos impulsiona a ter relações sexuais e, portanto, perpetuar a espécie; é a sensação de prazer que nos impulsiona a comer; a tocar um instrumento musical, entre outras atividades. Estes comportamentos que nos geram prazer são denominados recom pensas naturais; entretanto, existe outra possibilidade de se obter prazer de uma forma não “natural” pelo uso de cocaína, metanfetamina, maconha ou outras drogas de abuso4. A questão que se impõe é: o que há de comum entre o uso de drogas e a obten­ ção de prazeres tão saudáveis? Esta questão há muito tempo vem sendo estudada. As primeiras linhas de investigação datam da década de 19506 cuja conclusão foi de que existe uma determinada região cerebral relacionada ao prazer. Ratos, ao receberem estímulos nessas regiões, pressionavam a barra que deflagrava o estí­ mulo milhares de vezes, negligenciando todas as outras necessidades normais, como se alimentar ou beber água. Pesquisas posteriores7mostraram com maior clareza a anatomia e a fisiologia do “centro do prazer”, como é popularmente chamado. O termo científico adotado, entretanto, foi sistem a d e recom pensa cerebral Se saciar a fome, ter relações sexuais, saciar a sede são fenômenos prazerosos e estão relacionados à atividade do sistema de recompensa cerebral, outras ques­ tões se impõem: por que os ratos negligenciam prazeres vitais e saudáveis em fun­ ção da obtenção do prazer pelo estímulo elétrico do sistema de recompensa cerebral ou pela injeção de drogas psicoativas? Parece que, se há semelhanças, há também algumas diferenças associadas às diversas formas de se obter prazer. As semelhanças são explicadas a partir de pesquisas que avançaram desde a déca­ da de 19506, mostrando que o sistema de recompensa cerebral (Fig. 2.5) compreendia estruturas cerebrais, cujos estímulos caminhavam a partir da área tegumentar ventral (ATV) - uma região localizada no tronco cerebral - para o núcleo accumbens (NA) e córtex pré-frontal (CPF). A comunicação entre esses neurônios se dá pela liberação de dopamina - um dentre centenas de neurotransmissores utilizados para comunicação entre as células nervosas. Hoje, portanto, está claro que todas as sensações prazerosas estão relacionadas à liberação principalmente de dopamina no sistema de recompensa cerebral, compreendendo estímulos que partem da ATV para NA e CPF (Fig. 2.6). O que diferencia as sensações obtidas de estímulos distintos (uso de cocaína, ou uso de álcool ou outras drogas, ou saciar-se da sede, etc.) é a capacidade que cada estímulo tem de provocar liberação de dopamina no SRC - quanto ao tempo de estímulo, quantidade de dopamina liberada e mecanismo envolvido no au­ mento de dopamina nas fendas sinápticas das estruturas do SRC.

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P r in c ip a is D r o g a s d e A S is t e m a N e r v o so C e n t r a l

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Cocaína e Anfetaminas O prazer relacionado ao uso de cocaína coincide com o aumento em pico de dopamina no sistema de recompensa cerebral. Este aumento se dá pela capaci-

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Figura 2.5 - Circuito de recompensa cerebral. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

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Figura 2.6 - Circuito de recompensa cerebral. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

dade da cocaína bloquear sítios de recaptação de dopamina no neurônio pré-si­ náptico, de forma aguda e abrupta. As anfetaminas têm efeitos clínicos diferentes - elas não provocam prazer em pico, mas sim uma sensação de energia e bemestar, mais duradoura que a cocaína8. Esta diferença explica-se pelo mecanismo

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de ação da anfetamina que, além de bloquear sítios de recaptação de dopamina no neurônio pré-sináptico, também inibe a ação de uma enzima que metaboliza a dopamina na fenda sináptica, denominada inibidora da monoaminoxidase (IMAO). Assim, as anfetaminas provocam efeitos clínicos (sensação de prazer) de forma diferente da cocaína: não é em pico, porém mais duradoura. Essas sutis diferenças nos mecanismos de ação de cada droga ou de cada estí­ mulo gerador de sensações prazerosas talvez respondam à questão sobre o fato dos ratos “escolherem” um estímulo prazeroso (injeção de cocaína) em detrimento de outro (alimentar-se). Hipoteticamente, cada estímulo tem a capacidade de pro­ vocar prazeres diferentes, embora todos eles, em última análise, provoquem a libe­ ração de dopamina no SRC. Portanto, se comprovada a hipótese anterior, seria ingenuidade propor, na clinica, que o paciente encontre um substituto para o pra­ zer que tinha com o uso da droga. Esta seria uma busca inútil e incessante porque jamais ele encontraria um estímulo que gerasse a mesma sensação proporciona­ da pelo uso da droga. Um número maior de pesquisas básicas é necessário para a confirmação das hipóteses aqui levantadas.

Álcool O álcool (etanol) pode ser classificado como uma droga depressora do siste­ ma nervoso central, se tomarmos como base sua ação bioquímica e o correspon­ dente efeito clínico. A ingestão aguda provoca alterações em vários sistemas neuroquímicos cerebrais. O álcool estimula o sistema GABA - ácido gamaaminobutírico (Fig. 2.8), que é o maior sistema inibitório cerebral e inibe o siste­ ma glutamatérgico (Fig. 2.9) que é o maior sistema estimulante do cérebro9. Assim, o álcool estimula o sistema que inibe a despolarização celular e inibe o sistema que estimula a despolarização. Esta ação corresponde aos diversos efei­ tos clínicos observados pelos usos agudo e crônico do álcool, como mostram as Figuras 2.7 a 2.9. Além disso, o álcool inibe a entrada de cálcio nas células nervo­ sas bloqueando os canais de cálcio do tipo L (Fig. 2.7). Como o cálcio desempenha um importante papel na liberação de neurotransmissores e na despola­ rização das células nervosas, a inibição de entrada deste íon na célula provoca inibição na despolarização celular.

Maconha O delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) é a principal substância química, com ação no sistema nervoso central10, contida na erva (Cannabis sativa), utilizada no preparo da maconha. OTHC age em dois tipos de receptores canabinóides: CB1, que está espalhado em diversas regiões cerebrais e é o grande responsável pelos efeitos psicotrópicos da maconha (Fig. 2.10) e CB2, presentes em células do sis­ tema imunológico. A amandamide é um neurotransmissor endocanabinóide ca­ paz de estimular os receptores CB1 no sistema nervoso central; entretanto, a fisiologia deste sistema canabinóide endógeno é ainda pouco esclarecida11. O efeito Hfi rfiforrn nnsitivn HnTHr fnMypmcnl CP Hp^rp a um pctímnln m<4irotA nnc

Presença de álcool

Ausência de álcool

I •

Estímulo elétrico

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*§> # # o

Neurotransmissor Receptor

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Bomba de recaptação

Álcool

Figura 2.7 - Ação do álcool nos canais de cálcio do tipo L. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

neurônios dopaminérgicos do sistema de recompensa cerebral, como mostrado na Figura 2.10.

Tabaco (Nicotina) A nicotina é a substância química responsável pelo alto potencial dependógeno do tabaco. Além da nicotina, o tabaco contém mais de 4.000 substâncias químicas

Neurobiologia da Dependência Química ■

Ausência de álcool

Afunção dos receptores GABAé moderar o influxo de íons eioroparaomeiolníracelular.

Presença de álcool

f Estímulo elétrico



C

Vesícula com GABA

GABA

H O ® Receptor GABAérgico

Bomba de recaptação

Álcool

Figura 2 .8 - Ação do álcool no sistema GABA (ácido gama-aminobutílico). (Desenho: Gisele Grimevirius Garbe)

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Ausência de álcool

Estímulo elétrico

Vesícula com Glutamato glutamato

Receptor NMDA

Bomba de recaptação

Álcool

Figura 2.9 - Ação do álcool no sistema gfutamatérgíax (Desenho: GiseJe Grimevicius Garbe)

identificadas12 com efeitos prejudiciais à saúde, como doenças cardiovasculares, doenças respiratórias não malignas, câncer pulmonar e outros tipos de câncer orofaringe, estômago, pâncreas, útero, rins, ureter8.

Neurobiologia da Dependência Química ■

» Estímulo elétrico

• Vesícula com dopamina

Dopamina

Receptor de dopamina

o Bomba de recaptação

Receptor THC

THC

Figura 2.10 - Ação do delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) no sistema nervoso centrai. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

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Figura 2.11 - Ação da nicotina no sistema nervoso periférico. (Desenho: Gisele Grimevicius Garbe)

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Os receptores de nicotina estão presentes, principalmente, no córtex, tálamo, área tegumentar ventral, locus ceruleus, amígdala, núcleo interpeduncular, septo e núcleos motores do tronco cerebral8. A nicotina estimula, ainda, a liberação de dopamina no sistema de recompensa cerebral - ação responsável pelo reforço positivo (prazeroso) do uso8. No sistema nervoso periférico, a ação da nicotina se dá principalmente através do estímulo de gânglios autonômicos levando à liberação de uma grande variedade de neurotransmissores, entre eles, acetilcolina e norepinefrina, como mostrado na Figura 2.11. O hormônio prolactina (responsável pelo estímulo de células das glândulas mamárias), o hormônio do crescimento e ACTH também são liberados por ação da nicotina no sistema nervoso central8.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. WEEKS, J.R. Experimental morphine addiction method for automatic intravenous injection in unrestrained rats. Science, 738:143-144, 1962. 2. SCHUSTER, C.R., THOMPSON, T. Self administration of and behavioral dependence on drugs. Ann. Rev. Pharmacol. 9:483-502, 1969. 3. VALENZUELA, C.F., HARRIS, A. Alcohol: neurobiology. In: LOWINSON, J.H. et al. Substance Abuse: a comprehensive textbook. 3.ed. Philadelphia: Williams & Wilkins, 1997. p. 119-120. 4. GUYTON, A.C. Tratado de Fisiologia. 7. ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1989. p. 12 - 2 1 .

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C A P ÍT U L O

Alcool S elm a B o rd in N elia n a B u z i F

ig l ie

R onald o L a ra n jeira

V isão G er a l O uso do álcool é detectado desde os tempos pré-bíblicos, mas somente na virada do século XVIII para o século XIX, após a Revolução Industrial, é que aparece, na literatu­ ra, o conceito do beber nocivo como uma condição clínica1. A produção do álcool a que o homem estava acostuma­ do até o século XVIII era artesanal e predominavam, por­ tanto, as bebidas fermentadas (vinhos e alguns tipos de cerveja). Com a Revolução Industrial Inglesa, passou-se a produzi-las em grandes quantidades, o que diminuiu seu custo. Além disso, desenvolveu-se o processo de destilação dos fermentados, técnica capaz de aumentar muito as con­ centrações alcoólicas. Soma-se a isso o fato de que, com a urbanização, o perfil das relações sociais foi modificado, e o álcool tem importante papel nessas relações2. Todas essas mudanças permitiram que um número muito maior de pessoas passasse a consumir álcool com freqüência. Foi a partir daí que alguns médicos começaram a observar uma série de complicações físicas e mentais, decorrentes desse con­ sumo excessivo2. Dois nomes estão especialmente ligados à introdução do conceito de alcoolismo: Benjamin Rush, dos Estados Unidos, e Thomas Trotter, do Reino Unido1. Rush foi muito influente em sua época e um dos primei­ ros a perceber que 30% dos pacientes internados em insti­ tuições psiquiátricas americanas faziam uso excessivo do álcool. Descreveu o comportamento de beber desses pacien­ tes em seu livro An Inquiry into the Effects o f Spirituous Liquors on the Human Body; em 1790, onde também consta

Álcool

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sua célebre frase: “Beber começa como um ato de liberdade, caminha para o hábito e, finalmente, afunda na necessidade”. Além de ter dado início à descrição de qua­ dros clínicos associados ao uso do álcool, também iniciou a tradição de campa­ nhas de saúde pública, ao envolver-se com a comunidade e tornar-se um dos signatários da Constituição Americana1. Thomas Trotter também desenvolveu idéias avançadas sobre o hábito de be­ ber para sua época, como “o hábito da embriaguez é uma doença da mente”. Esta foi a primeira vez que a palavra “doença” foi relacionada ao álcool. Apesar disso ter ocorrido no século XIX, o debate sobre ser o beber excessivo uma doença ou não ainda é muito atual. Outros pesquisadores também tiveram influências na literatura dessa época e Magnus Huss, médico sueco, talvez tenha sido o mais re­ presentativo deles, com a criação do conceito clínico de “alcoolismo crônico”2. Nos cem anos seguintes houve uma grande produção de idéias e mais de 39 classificações do alcoolismo: quanto ao padrão de beber (contínuo ou intermi­ tente); quanto à cronicidade (aguda ou crônica) e quanto à etiologia (causas here­ ditárias, orgânicas ou de personalidade). Bowman e Jellinek, em meados do século XX, analisaram todas as classificações publicadas, buscando identificar tipos pu­ ros de alcoolistas. Em 1960, lellinek publicou um livro de muita influência, que persiste até hoje entre os seguidores dos Alcoólicos Anônimos, chamado The Disease Concept ofAlcoholism , onde classifica o alcoolismo em cinco tipos: alfa, beta, gama, delta e epsílon, e propõe que o beber excessivo deva ser chamado de alcoolismo somente quando ocorrer uma conjunção entre tolerância, abstinên­ cia e perda do controle ou inabilidade para abster-se (tipos gama e delta), Os tipos alfa, beta e épsilon, segundo essa classificação, apresentariam apenas problemas comportamentais, psicológicos ou sociais associados ao beber1. Foi em 1976 que Griffith Edwards e Milton Gross propuseram o conceito da síndrome de dependência alcoólica (SDA), visto no capítulo 1, que utilizamos até hoje.

E pid em io lo g ia Nos últimos anos, vários estudos epidemiológicos sobre abuso e dependência de álcool têm sido conduzidos nos países desenvolvidos. Segundo o ECA, estudo multicêntrico americano, o alcoolismo foi o transtorno mais encontrado, consi­ derando-se a prevalência durante toda a vida: aproximadamente 14% dos adultos entrevistados preencheram critérios para abuso e/ou dependência de álcool3. Conforme estudo brasileiro multicêntrico de morbidade psiquiátrica, conduzi­ do por Almeida Filho e cols. em Brasília, Porto Alegre e São Paulo4, o abuso/depen­ dência do álcool tem posição de destaque dentre os diagnósticos psiquiátricos considerados, ocupando a quarta colocação em Porto Alegre, dividindo o terceiro lugar com os distúrbios conversivos em Brasília, e o segundo lugar com os distúrbios fóbicos em São Paulo. Para o gênero masculino, o alcoolismo constitui o principal problema de saúde mental, com níveis de prevalência em torno de 15% nos três Estados. O alcoolismo é 11 vezes mais freqüente em homens que em mulheres. Uma pesquisa domiciliar realizada em 24 cidades do Estado de São Paulo, com mais de 200 mil habitantes, no ano de 1999, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) estimou que 10,9% da população masculi­ na pesquisada, e 2,5% da feminina, eram dependentes de álcool5.

32 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. Outro levantamento, de 1997, também conduzido pelo CEBRID6, entre os es­ tudantes brasileiros, revelou que: • Entre os estudantes de l 2 e 2° graus, o álcool é a droga mais amplamente utilizada, muito à frente do segundo colocado, que é o tabaco. Nas dez capi­ tais pesquisadas, verificou-se que o uso na vida está sempre acima dos 65% em qualquer dos quatro anos estudados (1987,1989,1993 e 1997). • O uso de álcool se inicia muito precocemente na vida desses estudantes, e cerca de 50% dos alunos entre 10 e 12 anos já fizeram uso dessa droga. • 28,9% dos estudantes já usaram bebidas alcoólicas até se embriagar (toma­ ram um “porre") e 28,6% tomaram bebidas pela primeira vez na própria residência, oferecidas pelos pais (21,8%). Os amigos aparecem também como importante influência para o primeiro uso (23,81%). • A cerveja é a bebida usada mais freqüentemente pelos estudantes (36,5%), seguida dos vinhos (15,3%). • Onze por cento dos estudantes referiram que já haviam brigado após beber, e 19,5% que haviam faltado à escola. Outro estudo do CEBRID, publicado em junho de 20007, refere que de 80 a 85% de todas as internações por intoxicação em hospitais e clínicas psiquiátricas são devidas ao abuso/dependência de álcool. O álcool é, sem dúvida, a droga que mais danos causa à sociedade.

E feitos

do

U so A

gudo

Absorção, Excreção e Metabolismo do Álcool O álcool ingerido vai diretamente para o estômago, onde uma pequena por­ ção é absorvida. A maior parte dele vai do estômago para o intestino delgado, onde também será absorvido. Em ambos os casos (estômago e intestino delgado), o álcool atravessa as “paredes” e alcança a corrente sangüínea8. Na corrente sangüínea, é distribuído por todo o corpo. É solúvel tanto em água quanto em gordura e, por isso, acumula-se nos tecidos com maiores quantidades de água e pode atravessar a placenta até a circulação fetal. Órgãos com alta perfusão (cérebro, pulmões e rins) apresentam níveis alcoólicos mais elevados que os tecidos com pouco fluxo sangüíneo (músculos). A concentração de álcool no san­ gue (CAS) é muito semelhante ao nível dos tecidos em quase todo o corpo, exceto na gordura, onde o álcool também se dissolve, gerando uma CAS mais alta. O tempo necessário para atingir a concentração máxima no sangue varia de 30 a 90 minutos, dependendo de determinados fatores. Concentrações alcoólicas mais elevadas e a presença de dióxido de carbono e bicarbonato em bebidas efervescentes au­ mentam a absorção. Se o estômago estiver vazio, a absorção é mais rápida. Se es­ tiver cheio, é mais lenta. Mas, em ambos os casos, todo o álcool será absorvido. A temperatura mais baixa do corpo e o exercício físico também reduzem a absor­ ção, assim como a presença de açúcar no álcool. Os níveis sangüíneos máximos

Álcool ■

33

são mais altos se a mesma quantidade de álcool for ingerida numa só dose, ao invés de em várias doses menores8. Metabolismo é o processo pelo qual o corpo humano converte uma substân­ cia ingerida em outras substâncias, mais ou menos tóxicas do que a original9. 0 álcool sofre a primeira passagem de metabolismo no estômago, mas de 90 a 98% do álcool é metabolizado no fígado8, que tem uma capacidade limitada (metaboliza cerca de 10g por hora). Isso significa que, até que o fígado tenha tem­ po de metabolizar toda a quantidade ingerida, o álcool ficará circulando por todo o corpo, inclusive pelo cérebro. O caminho mais importante de metabolização do álcool no fígado é a oxida­ ção (Fig. 3.1). O álcool etílico é oxidado em acetaldeído, pela ação da enzima ál­ cool desidrogenase (ADH). O aldeído, por sua vez, é oxidado em acetato pela enzima aldeído desidrogenase (ALDH). O acetato transforma-se em dióxido de carbono e água, que são liberados para a circulação8. Apesar da ADH ser o caminho mais importante para a oxidação do álcool, ela também pode ser oxidada por dois outros sistemas de enzimas: sistema microssomal etanol-oxidante (MEOS) e a catalase (cuja contribuição é considerada mínima). O MEOS, responsável pela metabolização de 10 a 20% do álcool, depende do sistema citocromo P-450, que normalmente desempenha um papel pequeno no metabolis­ mo do álcool, mas que aumenta com a ingestão crônica, levando a uma maior pro­ dução de acetaldeído, que é, também, uma substância tóxica8.

Efeitos Farmacológicos do Álcool nos Diversos Aparelhos Sistema Cardiovascular Os efeitos do álcool sobre a circulação são pequenos. Doses moderadas cau­ sam um pequeno aumento temporário no ritmo cardíaco e vasodilatação, es­ pecialmente na pele, provocando rubor facial. Não há aumento no fluxo sangüíneo coronariano. A pressão arterial, o débito cardíaco e a força de contratilidade cardíaca não são significativamente afetados por quantidades mo­ deradas de álcool. Grandes doses provocam um aumento do fluxo sangüíneo cerebral, menor resistência cerebrovascular e uma captação de oxigênio redu­ zida no cérebro8.

Acetaldeído

Álcool etílico

(ou aldeído acético) t

ADH (enzima álcool desidrogenase)

Figura 3.1 - Metabolização do álcool.

t

- Acetato

ALDH (enzima aldeído desidrogenase)

34 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Temperatura Corpórea Quantidades moderadas de álcool podem levar a vasodilatação periférica e sudorese. A sudorese aumentada pode, por sua vez, levar à perda de calor e a uma queda na temperatura corporal. Grandes quantidades de álcool podem deprimir o mecanismo central regulador, causando uma queda mais pronunciada da tem­ peratura do corpo8.

Trato Gastrintestinal O álcool pode estimular a secreção gástrica pela excitação reflexa dos termi­ nais sensoriais na mucosa bucal e gástrica, e por uma ação indireta sobre o estô­ mago, possivelmente envolvendo a liberação de gastrina. Bebidas com alta concentração alcoólica causam inflamação do revestimento do estômago e pro­ duzem uma gastrite erosiva. A intoxicação alcoólica causa a parada das funções gastrintestinais secretoras e motoras8.

Rins O álcool diminui a secreção de um hormônio antidiurético. Além disso, nor­ malmente é ingerido em grandes quantidades. O efeito diurético provocado é pro­ porcional à concentração de álcool no sangue (CAS) e ocorre quando os níveis estão subindo, mas não quando estão estáveis ou caindo8. O álcool não parece causar prejuízos à estrutura ou funcionamento dos rins10.

Respiração Quantidades moderadas de álcool podem estimular ou deprimir a respiração. Grandes quantidades produzem depressão respiratória8.

Sistema Nervoso Central Os efeitos do álcool sobre o sistema nervoso central (SNC) dependem da dose e do ritmo de aumento da concentração alcoólica no sangue8: • 30mg% afetam a habilidade de dirigir veículos. • 50 a 100mg% provocam mudanças de humor e de comportamento (prejuí­ zo da coordenação e aumento dos riscos de acidentes). • 150 a 300mg% geram perda do autocontrole (coordenação motora e coor­ denação da fala). • 300mg% evidenciam intoxicação. • Indivíduos não tolerantes com concentração alcoólica de 300 a 500mg% estarão gravemente intoxicados (intoxicação alcoólica aguda), podendo seguir-se estupor, hipotermia, hipoglicemia, convulsões, depressão dos re­ flexos, depressão respiratória, hipotensão, coma e morte. Os usuários regulares tornam-se tolerantes aos efeitos do álcool sobre o SNC e podem apresentar níveis de CAS de 500mg% sem sinais óbvios de intoxicação.

Álcool

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Efeitos Psicoativos do Álcool que Favorecem a Dependência Redução da Ansiedade O álcool é um potente agente ansiolítico e este efeito parece ser amplamente mediado por sua ação sobre o receptor GABA-a. Agudamente, o álcool intensifica a ação do ácido gama - aminob utíric o (GABA), o neuro transmissor inibitório mais importante do SNC, sobre o receptor GABA-a. A ação ansiolítica do álcool é, teori­ camente, um efeito “recompensador” e tem o potencial de contribuir para o de­ senvolvimento da dependência8. No entanto, após o efeito relaxante inicial, devido à sedação do sistema nervoso provocada pelo álcool, ocorrerá uma espécie de excitação desconfortável do orga­ nismo e o usuário ficará ainda mais ansioso. Alguém que bebeu para dormir, por exemplo, terá um sono com qualidade inferior à que teria se não tivesse bebido, dormirá apenas enquanto o álcool estiver fazendo efeito e acordará mais facilmen­ te. O álcool é um péssimo indutor do sono e só prejudica quem tem problemas para dormir. Não há quem consiga um sono satisfatório sob o efeito do álcool2.

Efeitos Estimulantes/Euforizantes Avisão de que o álcool causa estimulação e euforia foi muito controversa, mas atual­ mente tem sido aceita de forma mais ampla, embora ainda haja debates a respeito. O suposto efeito estimulante do álcool pode ser explicado por sua ação no sistema mesolímbico do cérebro, onde provoca a liberação de dopamina. Esse efeito estimulante/euforizante é menor do que o provocado por anfetaminas e cocaínas. No en­ tanto, o reforço positivo associado ao sentimento de euforia ou “recompensa” também pode explicar o desenvolvimento da dependência do álcool8.

Efeitos Anestésicos O álcool também tem uma ação anestésica e pode induzir amnésia, a qual ocorre em concentração subanestésica da droga. Estes efeitos amnésicos podem ser devidos à ação inibitória do álcool sobre o receptor NMDA (N-metil-D-aspartato). Os receptores NMDA são uma subclasse de receptores para o glutamato, o maior neurotransmissor excitatório do cérebro humano. Poderíamos postular que os efeitos anestésicos do álcool seriam recompensadores numa depressão grave, por exemplo, e o efeito amnésico, em situações em que se queira “amortecer” me­ mórias traumáticas (como abuso sexual na infância, por exemplo)8. Algumas pessoas bebem para “esquecer” seus problemas. Mas, o que ocorre, é uma certa tendência a aumentar a rigidez na forma de pensar e intensificar os sentimentos preexistentes. Assim, uma pessoa triste ficaria ainda mais triste. O álcool faz com que os processos mentais ocorram na forma “preto ou branco”: ou a pessoa está muito alegre, ou muito triste, ou muito dócil, ou muito agressiva. A capacidade de ponderar e analisar as situações fica nitidamente comprometida, o que aumentam as chances de ocorrência de muitas brigas2.

36 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

E feito s

do

U so C rô n ico

Para melhor avaliar os efeitos do uso prolongado do álcool, podemos pensar em três dimensões (ainda que, na prática, estas dimensões não estejam separa­ das): complicações físicas, complicações psiquiátricas e complicações sociais. De uma forma geral, quanto maior for a gravidade da dependência, maior também serão os problemas nestas três áreas.

Complicações Físicas Essa é uma questão bastante importante, uma vez que o consumo de álcool é uma causa significativa de morbidade física. Identificar estas complicações no paciente é importante por dois motivos: para avaliar a gravidade da sua situação e para promover um estímulo que possa influenciar o comportamento de beber. O álcool causa danos físicos por meio de efeitos diretos e indiretos sobre o corpo. Sendo uma fonte de calorias (sem qualquer valor nutricional), desloca nutrientes normais, provocando desnutrição. Uma desnutrição secundária ocorre devido à insuficiência pancreática e ao metabolismo deficiente do fígado. Além disso, o ál­ cool e seu metabólito acetaldeído são substâncias tóxicas que têm o potencial de provocar dano tissular. Em algumas condições, tanto o elemento tóxico quanto a perturbação do estado nutricional podem estar simultaneamente implicados como causa do dano. Abaixo, seguem as principais complicações físicas associadas ao uso de álcool1.

Transtornos Gastroenterológicos a. Doenças hepáticas alcoólicas Os danos ao fígado constituem as conseqüências mais sérias do consumo excessivo de álcool. Mudanças irreversíveis tanto na estrutura quanto no funcionamento do fígado são comuns. A maioria das mortes (75%) atribuí­ das ao alcoolismo é causada por cirrose10. I. Fígado gorduroso: as células do fígado aumentam a produção de gor­ dura, resultando num aumento do tamanho do mesmo. É, normalmen­ te, assintomático, mas pode apresentar queixas inespecíficas de mal-estar, cansaço, náusea ou testes anormais de função hepática. Oca­ sionalmente, pode levar à icterícia obstrutiva. Esta condição está pre­ sente em 90% dos usuários pesados. II. H epatite alcoólica: inflamação crônica do fígado, cujos sintomas são perda de apetite, dores abdominais, náuseas, perda de peso, icterícia e febre. As graves têm 60% de probabilidade de levar à morte. É reversível se o consumo alcoólico cessar. III. Cirrose alcoólica: ocorre quando o tecido hepático se enche de cicatri­ zes, prejudicando a arquitetura normal do fígado, podendo levar à in­ suficiência hepática ou a uma compressão dos vasos sangüíneos, gerando aumento da pressão e sangramento grave ou fatal. Uma vez que a cirrose começa, é irreversível11.

Álcool ■ 37 b. Pancreatite aguda: inflamação do pâncreas cujos sintomas iniciam-se com forte dor abdominal irradiando para as costas e associada a vômitos. c. Pancreatite crônica. d. Gastrite (inflamação do estômago) que pode evoluir para ulceração péptica; e. Síndrome de Mallory-Weissr. esgarçamento do esôfago causado por vômi­ tos freqüentes.

Transtornos Musculoesqueléticos a. Gota: depósito de ácido úrico nas articulações que causa dores. b. Osteoporose. redução da massa óssea. c. M iopatia: dores intensas, hipersensibilidade, edema e fraqueza dos mús­ culos esqueléticos.

Transtornos Endócrinos a. Pseudo-síndrom e de Cushing. quadro semelhante à síndrome verdadeira, caracterizada por obesidade troncular e enfermidades delgadas, aparên­ cia pletórica, fácies de lua cheia, equimoses, estrias, fraqueza muscular e hipotensão. b. H ipogonodism o m asculina diminuição da concentração de testosterona plasmática.

Câncer O consumo pesado está associado a um risco aumentado de câncer em orofaringe, laringe, esôfago, fígado e mamas. O álcool por si só não é cancerígeno, mas pode potencializar a ação de agentes cancerígenos, diminuindo a proteção do organismo às células cancerosas10.

Doenças Cardiovasculares a. Arritmias: perturbação do ritmo cardíaco normal. b. Hipertensão: o álcool é o segundo maior fator de risco (não genético). c. Doença vascular cerebral ou derram e. d. Doença cardíaca coronariana. e. M iocardiopatia alcoólica: doença do músculo do coração, caracterizada por um coração aumentado e disfunção na contratilidade.

Doenças Respiratórias Excesso de infecções respiratórias decorrentes de defeitos nas respostas imunológicas geradas pelo consumo alcoólico.

38 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Transtornos Metabólicos a. Hipoglicem ia (mais provável após episódio de uso agudo) e hiperglicemia (mais provável como resultado do uso crônico)9. b. Cetoacidose alcoólica: sonolência e prostração. c. H iperlipidem ia: aumento nas gorduras circulantes do sangue (triglicérides séricos).

Transtornos Hematológicos a. Anemia. b. Macrocitose. hemácias aumentadas. c. D eficiência de ferro. d. Redução dos leucócitos (neutropenia) e de plaquetas (trombocitopenia).

Transtornos nos Sistemas Nervosos Central e Periférico a. Convulsões. b. Degeneração cerebelar alcoólica: ataxia da marcha e falta de coordenação das pernas. c. A m bliopia alcoólica: turvação gradual da visão, acompanhada, talvez, pela dificuldade de distinguir o verde do vermelho. d. Síndrome d e W ernicke-Korsakojf. causada por uma deficiência nutricional de tiamina, caracteriza-se pela paralisia dos músculos do olho, ataxia, con­ fusão, profunda amnésia para eventos recentes e passados, desorientação no tempo e no espaço, ausência de insight. e. Encefalopatia por pelagra alcoólica: estado confusional com perda de me­ mória global, alucinações visuais, agitação alternando-se com apatia e ou­ tros sinais neurológicos. f. Demência alcoólica: atrofia cerebral, gerando prejuízo de leve a moderado na memória a curto e longo prazos, na aprendizagem, na organização e abs­ tração visoespacial e controle dos impulsos. g. M ielinose centropontina: transtorno raro na substância branca do tronco cerebral, gerando paralisia pseudobulbar e quadriplegia que se desenvolve em alguns dias ou semanas, resultando em coma ou morte. h. Doença de M archiafava-Bignam i: transtorno raro, caracterizado pela de­ generação ou desmielinização do corpo caloso e substância branca adja­ cente. De forma aguda gera agitação, apatia, alucinações, epilepsia e coma. Insidiosamente gera demência, espasticidade, disartria e incapacidade de caminhar. i. Encefalopatia hepática: prejuízo da consciência, variando da hipersonia ao coma, delírio, memória recente prejudicada e alterações do humor. j. N eu ropatia periférica: início insidioso de fraqueza, dor, parestesias e amortecimento dos pés, que progride numa distribuição tipo “dedo de luva”.

Álcool ■

39

Síndrome Fetal Alcoólica O álcool é facilmente transferido da corrente sangüínea da mãe para o feto. Atravessa a placenta e chega ao cérebro do feto com rapidez e facilidade. Os níveis fetais de álcool tornam-se os mesmos que os da mãe. A síndrome fetal alcoólica ocorre em 30 a 50% de todos os bebês nascidos de mães alcoolistas. As crianças têm seu crescimento reduzido, anormalidades morfológicas no rosto e cabeça, deformidades nos membros e doença cardíaca congênita. Posteriormente, estas crianças apresentam deficiências cognitivas significativas (retardo mental).

Doenças de Pele Psoríase, eczema discóide e infecções cutâneas por fungos, exacerbação da rosácea e da acne, e pelagra (danos pelo sol) devido à deficiência vitamínica.

Supressão do Sistema Imunológico A supressão do sistema imunológico pode aumentar os riscos de contágio e/ ou desenvolvimento de doenças infecciosas, tais como tuberculose, pneumonia, febre amarela, cólera e hepatite B. A desinibição social provocada pelo álcool au­ menta a probabilidade de envolvimento em relações sexuais desprotegidas, au­ mentando o risco de contágio pelo vírus da imunodeficiência humana - HIV. Uma vez infectado pelo vírus, a supressão do sistema imunológico favorece o desen­ volvimento de síndrome da imunodeficiência adquirida - AIDS12.

Alteração do Funcionamento Sexual Apesar do álcool aumentar a desinibição social, seu uso interfere no funcio­ namento sexual. Como disse Shakespeare, “o álcool provoca o desejo, mas retira a perform ance”. O uso contínuo do álcool provoca inflamação da próstata, o que interfere diretamente na habilidade do homem em manter a ereção. Além disso, como se viu, o álcool atrofia os testículos, resultando em baixa produção de espermatozóides e diminuição dos hormônios no sangue11.

Complicações Psiquiátricas Algumas das doenças psiquiátricas que serão apresentadas são, claramente, induzidas pelo abuso ou pela abstinência alcoólica. Outras podem ser tanto causa como conseqüência da ingestão alcoólica8.

Experiência Alucinatória Temporária Pode anunciar o início do delirium tremens mas, não implica, necessariamente, uma evolução para apresentações mais graves. O paciente experimenta, súbita e rapidamente, perturbações na percepção. O grau de insight é característico: ime­ diatamente o paciente desconfirma a realidade da alucinação.

40 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool...

Delirium Tremens Segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS (1992), é um estado confusional tóxico, de curta duração, que habitualmente ocorre como resultado da redução da ingestão de álcool em indivíduos dependentes com longa história de uso. É, portanto, uma complicação da abstinência alcoólica. A clássica tríade de sin­ tomas inclui: a) obnubilação da consciência e confusão; b) alucinações vívidas, afetando alguma modalidade sensorial; e, c) acentuado tremor. Os sintomas nor­ malmente ocorrem de 24 a 150 horas após a última ingestão (o mais comum é o início mais próximo às 24 horas), com um pico depois de 72 a 96 horas. O início é, em geral, à noite, com medo, inquietude e insônia.

Convulsões Ocorrem em cerca de 5 a 15% dos indivíduos dependentes de álcool, aproxi­ madamente de 7 a 48 horas após a cessação da ingestão. É uma outra complicação da abstinência alcoólica. As convulsões são generalizadas, tonicoclônicas (grande mal) e, portanto, estão associadas a perda de consciência, seguidas por movimen­ tos convulsivos nos quatro membros. Pode ocorrer apenas um episódio, mas o mais comum é ocorrerem de três a quatro convulsões em 2 dias. Os fatores predisponentes incluem hipocalemia, hipomagnesemia, história prévia de convulsões por abstinência e epilepsia concomitante.

Alucinose Alcoólica Alucinação mais tipicamente auditiva que ocorre após um período de pesado consumo alcoólico. É uma outra complicação da abstinência alcoólica. As aluci­ nações são vívidas, de início agudo, e costumam ocorrer num cenário de clara consciência. Incluem sons de “cliques”, rugidos, baladas de sinos, cânticos e vozes que normalmente ocorrem 48 horas após a diminuição ou cessação da ingestão. Os pacientes expressam medo, ansiedade e agitação, que são decorrentes dessas experiências2. Tipicamente se resolve após algumas semanas, mas pode persistir por meses. Delirium tremens e transtornos psicóticos devem ser excluídos antes de se fazer esse diagnóstico.

Transtorno Psicótico Delirante Induzido pelo Álcool Esses pacientes desenvolvem, tipicamente, delírios paranóides ou grandiosos no contexto de um uso pesado, mas permanecem alertas e não manifestam qual­ quer confusão ou obnubilação da consciência. Como na alucinose alcoólica, não parece haver qualquer associação com a esquizofrenia.

Intoxicação Patológica Início súbito de um comportamento agressivo e freqüentemente violento, não típico do indivíduo enquanto sóbrio, que ocorre logo após a ingestão de

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pequenas quantidades de álcool, as quais não produziriam intoxicação na maioria das pessoas. Existe classicamente uma amnésia para o evento e o que se alega é que o agressor estava num estado de transe ou automatismo. O episódio é, nor­ malmente, seguido por um longo período de sono. Trata-se de uma entidade não muito bem definida e que é, muitas vezes, utilizada por advogados em defe­ sas de clientes agressores.

Blackouts Alcoólicos (Episódios de Amnésia Induzidos) Referem-se à perda de memória transitória que pode ser induzida pela intoxi­ cação. Embora estas ocorrências sejam relatadas em cerca de dois terços ou mais dos indivíduos dependentes, também são relativamente comuns em usuários so­ ciais, após incidentes de consumo pesado. Há dois tipos descritos: a variedade em bloco, caracterizada por amnésia densa e total; e a variedade fragmentária, ca­ racterizada por fragmentos de amnésia. Podem começar a ocorrer num estágio tardio da carreira de beber, ou nunca. Quando acontecem, tendem a recorrer. Não são claras as razões para esta suscetibilidade, mas estão associadas a um início precoce de ingestão, picos de consumo elevados e a uma história passada de lesão cerebral. O uso concomitante de sedativos e hipnóticos pode aumentar a proba­ bilidade de amnésia. Durante um blackout, uma pessoa pode realizar qualquer tipo de atividade sem parecer estar num estado mental alterado. Alguns pacientes valorizam estes episódios e outros não dão importância alguma.

Depressão A depressão é comum entre os indivíduos com problemas com álcool e pode ser o fator decisivo na busca de tratamento. Todavia, ainda não se entende bem a natureza da relação entre eles. É importante conhecer e caracterizar a doença de­ pressiva, cujos sintomas freqüentemente estão evidentes em outras síndromes psiquiátricas como, por exemplo, na esquizofrenia, na doença obsessiva e na de­ mência. O aspecto essencial de um episódio depressivo é um período de pelo menos duas semanas durante o qual existe um humor deprimido e perda de inte­ resse ou prazer em quase todas as atividades. A perturbação do humor freqüente­ mente é pior num determinado momento do dia (em geral, pela manhã). Perda de energia, fadiga e atividade diminuída são comuns, assim como um grande cansa­ ço após qualquer esforço, mesmo que leve. Outros sintomas incluem concentra­ ção e atenção reduzidas, baixa auto-estima e autoconfiança, idéias de culpa e desvalia, visões pessimistas do futuro, perda do interesse sexual, perturbações do sono e apetite, idéias de auto-agressão e suicídio. Em geral, existe uma irritabili­ dade aumentada, diminuição da capacidade de pensar ou tomar decisões e má concentração. O paciente pode ficar agitado ou “devagar”. Num episódio depres­ sivo grave, podem ocorrer sintomas psicóticos como delírios e alucinações. No entanto, definir se uma pessoa está apenas infeliz ou se está com depressão pode ser muito difícil quando ela está bebendo e existe a possibilidade de suicídio como preço a ser pago por um erro diagnóstico. A avaliação da história é muito im­ portante e o mais sensato é admitir que o diagnóstico não pode ser feito na presença

42 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. do álcool, e considerar a sua interrupção como o pré-requisito para a resolução da dificuldade diagnostica. Em muitos casos, a depressão é secundária ao problema com bebida. O estudo Epidemiological Catchment Area (ECA) relatou que a depressão pre­ cedia a dependência ou abuso do álcool em 66% das mulheres. Além disso, deve se considerar que os sintomas depressivos são comuns durante a abstinência alcoólica. Se a depressão existe, precisa ser tratada. Caso contrário, qualquer tentativa de tratar o problema com álcool será profundamente prejudicada. O princípio norteador é que, quando o alcoolista está sofrendo de uma doença depressiva, a prioridade terapêutica será persuadir o paciente a parar de beber. A abstinência aliviará a depressão. Tratá-la será a segunda fase do tratamento. Da mesma forma, será desastroso e ineficaz tentar tratar uma doença depressiva enquanto o pa­ ciente estiver bebendo.

Suicídio O risco de suicídio no alcoolismo é estimado em 3 a 4% nos Estados Unidos e outros países ocidentais. Este índice é de 60 a 120 vezes maior do que o da popula­ ção em geral. A comorbidade desempenha um papel importante, sendo a depres­ são o risco mais substancial. Perdas interpessoais e isolamento social também são importantes.

Hipomania A elevação patológica do humor não é uma condição tão comum quanto a depressão patológica e, quando ocorre, não tende a estar associada à bebida. Oca­ sionalmente, o paciente hipomaníaco pode achar que o álcool alivia sua ansieda­ de, irritabilidade e desconfiança. O tratamento é, primariamente, o da doença subjacente. Um problema diagnóstico mais difícil surge quando se desconfia que o humor do paciente se eleva um pouco, ciclicamente (personalidade ciclotímica). Do outro lado, há a franca mania: um estado de superexcitação. Um paciente to­ talmente maníaco está tão desorganizado que hospitalizá-lo é a única coisa a ser feita. A bebida surgirá como um problema por um curto período de tempo.

Ansiedade Estudos clínicos relatam, consistentemente, uma associação entre alcoolis­ mo e transtornos de ansiedade. Cerca de 30% dos alcoolistas podem ter uma ex­ periência de ansiedade significativa. Pode se desenvolver como resultado de agorafobia ou fobia social e refletir tentativas de automedicação. Paradoxalmen­ te, o álcool parece aumentar ou exacerbar a ansiedade em indivíduos dependen­ tes que apresentam histórias de uso pesado prolongado. Além disso, os sintomas de abstinência alcoólica podem imitar o transtorno de ansiedade e de pânico: é possível que haja um processo neuroquímico comum. Sabe-se que indivíduos com dependência de álcool e com transtorno de ansiedade experienciam sintomas mais graves de abstinência. É difícil avaliar a gravidade dos sintomas fóbicos até que o

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paciente esteja completamente abstinente por algumas semanas. Se os sinto­ mas fóbicos persistirem em grau severo, o mais recomendado é que sejam trata­ dos enquanto o paciente ainda estiver internado. Os tratamentos mais efetivos envolvem aplicação planejada da terapia cognitivo-comportamental. O uso de tranqüilizantes e hipnóticos com esses pacientes deve ser considerado com ex­ trema cautela.

Danos ao Tecido Cerebral A dúvida sobre existir ou não um dano cerebral no paciente alcoolista está presente freqüentemente. As manifestações clínicas de comprometimento cere­ bral variam de déficits cognitivos leves, detectados somente por meio de testes psicométricos, até danos graves que produzem incapacitação1. Se o dano for gros­ seiro não haverá dificuldade em diagnosticá-lo. O problema surge com danos menores. O quadro mais familiar é o da demência alcoólica associada: este pa­ ciente apresenta uma história de muitos anos de pesado consumo com um de­ senvolvimento final de dano cerebral. Na demência não-alcoólica a seqüência dos eventos é contrária: o uso abusivo do álcool é conseqüência da desinibição decor­ rente e deterioração da personalidade. Lamentável é o fato de que o dano cerebral será mais facilmente diagnosticável que tratável. No entanto, é importante que se faça para adequar o tratamento da melhor maneira possível. Os déficits cognitivos mais freqüentes incluem comprometimento da capaci­ dade de resolver problemas e abstração, rigidez mental, dificuldade para apresen­ tar respostas sensoriomotoras complexas, capacidade visoespacial reduzida e memória para eventos recentes alterada. A inteligência geral e habilidade verbal não são afetadas1.

Ciúme Patológico O ciúme é uma emoção humana e não é fácil estabelecer um ponto que divida o normal do patológico. Mas, há um grupo de pessoas cujas vidas são atormentadas e corroídas por seus sentimentos ciumentos e que tornam in­ felizes um outro grupo: o daquelas pessoas de quem se tem ciúme. A visão usual é a de que a dependência do álcool causa o ciúme. Mas, há outras duas visões. Numa explicação psicodinâmica, o indivíduo duvidaria de sua mas­ culinidade e então beberia. A bebida o levaria à impotência e o ciúme seria sua reação à própria impotência. Também há a visão de que o álcool aliviaria momentaneamente a angústia associada à experiência de ciúme. Nesses ca­ sos, a história anterior do indivíduo sugeriria que o ciúme sempre esteve pre­ sente na vida deste sujeito. De qualquer forma, quando ele busca ajuda, ambos existem há muito tempo e se exacerbam mutuamente. A abordagem prática é persuadir o paciente a parar de beber, avaliar a gravidade do ciúme e torná-lo manejável. Quando o paciente não consegue parar de beber, o resul­ tado é o final do casamento ou um trágico assassinato cometido em estado de embriaguez.

44 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Transtornos de Personalidade É impossível trabalhar com pacientes com problemas com álcool sem perceber a relevância da personalidade para o entendimento da gênese do beber e para o trata­ mento. As escolas de pensamento, apesar de divergentes, concordam que os pacien­ tes são, às vezes, e em vários graus, infelizes, zangados, não-conformistas, anti-regras, agressivos e prejudicados em sua capacidade de lidar com as demandas e expectati­ vas sociais. Também concordam que é difícil determinar o que é causa e o que é con­ seqüência. Além disso, a perturbação da personalidade pode dificultar o tratamento e precisa ser manejada terapeuticamente como uma questão significativa. Existe uma estreita associação entre personalidade anti-social e consumo de álcool, sendo que o primeiro antecede o segundo, promovendo um consumo exagerado. Por outro lado, o consumo de álcool também pode levar a comporta­ mentos anti-sociais1.

Transtornos Alimentares Os transtornos alimentares mais comuns que resultam do uso alcoólico abusivo são: obesidade e, paradoxalmente, a perda de peso. A obesidade resulta de dois principais fatores: em primeiro lugar, o álcool é uma grande fonte de calorias (sem qualquer valor nutricional). Em segundo lugar, quando presente, o álcool impede que o organismo “queime” gorduras para transformá-las em energia6. A perda de peso está associada à má nutrição geral e ambas são conseqüências da negligên­ cia dietética que normalmente acompanha o quadro. O terapeuta também deve­ rá estar atento às possibilidades de anorexia nervosa (6,7% de prevalência) e de bulimia nervosa (prevalência de 9 a 49%). Indivíduos com problemas alimentares e problemas com bebida também podem ter uma predisposição para outros trans­ tornos de “impulso”, tais como automutilação, parassuicídio, uso inadequado de drogas ilícitas ou prescritas, e roubo em lojas.

Esquizofrenia O estudo ECA relatou uma prevalência de 3,8% de esquizofrenia entre indivíduos com qualquer problema com álcool. Contrariamente, índices elevados de problemas com álcool foram encontrados nos indivíduos com esquizofrenia (22,1%) e psicose (31,6%). O problema vem aumentando, provavelmente devido ao fato de que a maioria dos pacientes está vivendo na comunidade, onde o aces­ so ao álcool é facilitado. Os esquizofrênicos podem usá-lo para lidar com o estresse associado à doença. O uso os toma mais propensos à violência e aumenta o risco de desenvolvimento de discinesia tardia.

Complicações Sociais Uma complicação social implica no fracasso em cumprir adequadamente um papel social desejado, seja ele de pai/mãe, marido/esposa, filho/filha, profissio-

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nal, estudante, motorista, etc., e que resulta em prejuízos para si mesmo e, quase que inevitavelmente, para outras pessoas. O paciente alcoolista normalmente aca­ ba perdendo sua reputação e a maneira como outras pessoas pensam ou reagem em relação a ele acaba reforçando seu novo papel de alcoolista8. Identificar problemas sociais e considerá-los no prognóstico do paciente são elementos fundamentais para um melhor planejamento das estratégias de inter­ venção, sejam elas preventivas, terapêuticas ou reabilitadoras3. É importante, mas muitas vezes difícil, distinguir entre os efeitos patológicos do uso do álcool e as deficiências no funcionamento social que podem levar a um uso abusivo (quem veio primeiro?). Uma baixa capacidade de se conter, que é uma medida de funcionamento social, é um forte elemento para predizer problemas relacionados ao uso de álcool, especialmente quando combinada com alto nível de angústia13. Em geral, homens e mulheres alcoolistas apresentam deficiências no funcionamento interpessoal14. Resumidamente, poderíamos dizer que as complicações sociais do uso abusivo do álcool são as seguintes8: • Funcionamento fam iliar e violência dom éstica: o uso abusivo do álcool (e outras drogas) está freqüentemente associado a mau funcionamento fa­ miliar, violência doméstica e abuso físico e sexual de crianças9. Segundo o Programa Nacional de Controle dos Problemas Relacionados com o Consu­ mo de Álcool (PRONAL, 1987) do Ministério da Saúde, cerca de 39% das ocorrências policiais relativas a conflitos familiares estavam associadas com o abuso de álcool. • P roblem as no trabalho: são muitas as influências adversas que o uso abusivo do álcool pode ter sobre o trabalho, e acometem desde a presi­ dência até o chão de fábrica. Os perigos e prejuízos variam conforme as profissões e precisam ser investigados, caso a caso. Um motorista ou pilo­ to alcoolizado pode provocar um acidente fatal. O presidente de uma em­ presa pode comprometer a sobrevivência da corporação com julgamentos equivocados. Isso sem falar nos constrangimentos, indiscrições, discus­ sões, faltas, demissões, prejuízos, acidentes, etc. Seja qual for a atividade profissional, o resultado será uma eficiência prejudicada. O alcoolismo é a terceira causa mais freqüente de absenteísmo no Brasil, segundo o Ministério da Saúde (PRONAL, 1987). • H abitação: nas áreas urbanas, os problemas de habitação e os problemas com o uso abusivo de álcool geralmente caminham juntos, exacerbando-se um ao outro. Freqüentemente encontramos casos em que o uso de álcool acarreta problemas de habitação (má manutenção da casa, problemas com vizinhos, falta de pagamento de aluguéis e taxas, muitas mudanças de en­ dereços, etc.). • D ificuldades fin an ceiras:béber excessivamente é um ato dispendioso. Além das despesas com a bebida para si mesmos, muitos usuários gastam dinheiro com amigos, refeições fora de casa, táxi para retornar, consumo aumentado de cigarros, jogos, etc. Uma demissão do emprego pode complicar ainda mais a organização financeira do usuário.

46 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. • Crimes: a personalidade, os antecedentes e as circunstâncias sociais que predispõem ao crime também predispõem ao álcool. Com muita freqüên­ cia o álcool parece ser o responsável pela desinibição e liberação de com­ portamentos violentos ou sexualmente agressivos, mas isso não prova que o álcool causou o ato criminoso, apesar de estar cada vez mais evidente que existe uma ligação causal genuína de grande importância8. • Dirigir alcoolizado: de 18 a 75% dos acidentes de trânsito entre 1976 e 1985 envolveram pelo menos uma pessoa alcoolizada, segundo o Ministério da Saúde (PRONAL, 1987). • Vitimização: uma pessoa embriagada torna-se alvo fácil de ladrões e crimi­ nosos violentos.

S in to m a s

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bstin ên cia

Os sintomas de abstinência assumem um papel fundamental na síndrome de dependência do álcool e foram bastante estudados nas últimas décadas1. A sín­ drome de abstinência alcoólica é considerada, muitas vezes, o principal indica­ dor da existência da dependência: para que esse quadro se desenvolva, é necessário, na maioria dos casos, que o indivíduo tenha feito uso de álcool por muitos anos, em grandes quantidades, e que tenha diminuído ou cessado a ingestão abruptamente3. O álcool é um depressor do sistema nervoso. Após a metabolização e elimina­ ção do álcool do organismo, processo que leva somente algumas horas, o sistema nervoso sofre um efeito “rebote” e o indivíduo experimenta um quadro oposto ao produzido pelo álcool3. A princípio, os sintomas são leves, intermitentes e causam pouca incapacitação. No entanto, com a progressão da dependência, a freqüência e a intensidade aumentam e podem se tomar mais persistentes. Esses sintomas, quan­ do completamente desenvolvidos, começam tipicamente logo após o despertar, ou mesmo no meio da noite, permanecendo com intensidade variável durante todo o dia, muito embora possam ser mascarados pelo uso adicional de álcool1. São vários os sintomas de abstinência: tremores, náuseas e vômitos, sudorese, sensibilidade ao som, tinidos no ouvido, coceiras, câimbras, perturbações do hu­ mor e do sono8. Complicações da abstinência alcoólica envolvem alucinações, convulsões e o quadro desenvolvido de delirium tremens, os quais já vimos nos efeitos do uso crônico. Os quatro principais sintomas são: • Tremores: podem variar de tremores finos nas extremidades até tremores gene­ ralizados pelo corpo inteiro. O paciente pode tê-los experimentado uma única vez ou muitas vezes; podem ser intermitentes e leves ou incapacitantes. • Náuseas, que não incluem, necessariamente, vômitos. • Sudorese: que vai desde uma sensação de pele úmida nos estágios iniciais da dependência até acordar completamente molhado pela manhã. • Perturbação do humor: vão desde uma irritabilidade ligeiramente aumenta­ da nos estágios iniciais, até um estado atordoante de agitação, depressão e ansiedade (que pode ser exacerbada se já houver um transtorno adjacente).

O paciente gravemente dependente pode experienciar sintomas de abs­ tinência leves a qualquer hora do dia em que os níveis alcoólicos caiam: ou seja, não é preciso um longo período de abstinência completa para precipi­ tar os sintomas8. 0 pico da sintomatologia, nos casos não complicados, ocorre entre 24 e 48 horas após a cessação da ingestão e tem duração de aproxima­ damente 5 a 7 dias, embora sintomas como irritabilidade e insônia possam persistir por semanas15. A ressaca é uma pequena síndrome de abstinência, um efeito “rebote” do ál­ cool que toma o cérebro mais sensível. Também contribuem para a ressaca: a queda dos níveis de glicose do sangue, a desidratação e a irritação do estômago - todos diretamente provocados pela ação do álcool. Para a maioria das pessoas, a ressaca não é fisiologicamente séria, mas pode trazer complicações para portadores de epilepsia, doenças cardíacas ou diabéticos9.

B en efício s

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Há estudos indicando que o álcool, em pequenas quantidades, pode ser be­ néfico e proteger contra algumas doenças cardíacas. Inúmeras pesquisas já foram conduzidas para se determinar o que seriam “pequenas” quantidades2. Para entendermos como essas pesquisas foram organizadas precisamos, , antes, compreender o conceito de “unidade de álcool” Uma unidade de ál- 'j (^Lequivale a 10 a 12g de álcool puro. Existe uma grande divêrsí3ãde^¥ /• bebidas, com diTerentesliíveis de concentração alcoólica (o que deve figurar nos respectivos rótulos). Na Tabela 3.1, podemos observar essas diferenças com clareza2. A partir desses dados, buscou-se descobrir quantas unidades de álcool um adulto poderia consumir por semana, sem que isso acarretasse problemas à saú­ de. Chegou-se a três níveis de risco: baixo, moderado e alto (Tabela 3.2). Como vemos na Tabela 3.2, os valores de referência para os homens são maio­ res do que para as mulheres e isso se deve a várias razões. Em primeiro lugar, as mulheres apresentam um número maior de células gordurosas, o que faz auTabela 3.1 - Quantidade de Álcool Puro nas Diversas Bebidas Alcoólicas

Tipo de Bebida Cerveja - 350mL (lata) Cerveja - 600mL (garrafa) Chopp - 200mL Chopp - 300mL Vinho - 200mL (copo) Vinho - 750mL (garrafa) Destilados-50mL(1 dose) aguardente, whisky, vodka Destilados-750mL

Porcentagem de Álcool (%)

Gramas de Álcool

Unidades de Álcool

5 5 5 5 12 12

17 30 10 15 24 90

1,7 3 1 1,5 2,4 9

40 40

20 400

2 40

48 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool... Tabela 3.2 - Riscos de Consumo Alcoólico em Homens e Mulheres

Riscos

Mulheres

Homens

Baixo

Menos de 14 unidades por semana (menos de 2 unidades por dia)

Menos de 21 unidades por semana (menos de 3 unidades por dia)

Moderado

De 15 a 35 unidades por semana (de 2 a 5 unidades por dia)

De 22 a 50 unidades por semana (de 3 a 7 unidades por dia)

Alto

Mais de 36 unidades por semana (mais de 5 unidades por dia)

Mais de 51 unidades por semana (mais de 7 unidades por dia)

mentar os níveis de concentração do álcool no sangue. Além disso, elas absor­ vem quantidades de álcool maiores do que os homens. Outro dado importante com relação às mulheres é que nem mesmo essas baixas quantidades são segu­ ras para grávidas. Para estas, recomenda-se total abstinência2. É importante termos em mente que as quantidades referidas, apesar de esta­ rem expressas em valores semanais, não devem ser ingeridas de uma só vez. Por exemplo: se um homem tivesse como hábito ingerir a sua cota semanal de 21 uni­ dades em um único dia, apresentaria várias alterações físicas decorrentes desse padrão de consumo agudo2, e correria outros riscos, como envolvimento em bri­ gas, sexo desprotegido, e acidentes, entre outros.

P rin cípio s G era is

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T ra ta m en to

Tratamento da Síndrome de Abstinência Alcoólica O tratamento que descreveremos foi extraído do Consenso sobre a síndrome de abstinência Alcoólica (SAA) e seu tratamento, elaborado pelo Departa­ mento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria, em setembro de 1999. O tratamento da abstinência alcoólica tem quatro objetivos: • • • •

Aliviar os sintomas e o desconforto do paciente. Prevenir complicações associadas ao quadro (alucinações e convulsões). Favorecer o vínculo do paciente com o tratamento da dependência. Possibilitar síndromes de abstinência menos graves no futuro.

O primeiro e mais fundamental passo no tratamento da síndrome de abs­ tinência alcoólica é a avaliação inicial: além, obviamente, de um exame da situação clínica do paciente, é preciso investigar suas várias áreas de funcio­ namento (familiar, ocupacional, social, médica, psiquiátrica, forense, etc.), seu histórico e seu padrão de consumo. Essas questões serão vistas mais detalhadamente no capítulo sobre avaliação do paciente. A avaliação também deverá incluir os seguintes exames laboratoriais: hemograma completo, eletrólitos, função hepática, uréia e creatinina, glicemia em jejum, tempo de

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protrombina, colesterol e triglicérides, cálcio e magnésio, albumina com pro­ teína total, raios X de tórax e eletrocardiograma e exame de urina para detecção da presença de outras drogas1. Com base nesta primeira avaliação, podemos determinar o grau de compro­ metimento do paciente, que pode ser classificado em dois níveis: Nível I ou leve e Nível II ou moderado/grave, cujos quadros são os seguintes: a. Nível I (Leve) Quadro biológico: leve agitação psicomotora; tremores finos de extre­ midades; sudorese facial discreta; episódios de cefaléia; náuseas sem vômitos; sensibilidade visual e nenhuma alteração da percepção audi­ tiva ou tátil. Quadro psicológico: está orientado no tempo e no espaço; mantém funcio­ nais o contato interpessoal e o juízo crítico; leve ansiedade e sem episó­ dios de violência contra si mesmo ou contra outras pessoas. Quadro social: mantém preservada sua rede social, ou seja, mora com fa­ miliares ou amigos, com os quais mantém bom ou regular relacionamen­ to; e tem sua capacidade para o trabalho preservada (podendo mesmo estar desempregado). Quadros clínico e psiquiátrico: não se detectam comorbidades graves. b. Nível II (Moderado/Grave) Quadro biológico: apresenta agitação psicomotora intensa; tremores ge­ neralizados; sudorese profusa; cefaléias; náuseas com vômitos e sensibili­ dade visual intensa. Quadro psicológico: encontra-se desorientado no tempo e no espaço; seu contato interpessoal e juízo crítico estão comprometidos; ansiedade in­ tensa; referência de episódios de violência; pensamento descontínuo, rá­ pido e de conteúdo desagradável e delirante e alucinações auditivas, táteis ou visuais. Quadro social: os relacionamentos familiares e sociais estão comprometi­ dos e, por isso, não tem quem possa apoiá-lo; tem estado desempregado e sem qualquer atividade produtiva. Quadros clínico e psiquiátrico: comorbidades graves. A indicação do tipo de tratamento a ser seguido dependerá da gravidade apre­ sentada, das condições da rede de serviços disponível para o paciente e de seu sistema familiar e social. Consideraremos dois tipos de tratamento: o ambulatorial e a internação hospitalar.

Tratamento Ambulatorial com ou sem Internação Domiciliar Este tipo de tratamento, indicado para pacientes cujos sintomas de abstinência alcoólica são leves (Nível I), inclui esclarecimentos sobre os sintomas da síndrome, tanto para o paciente quanto para seus familiares; uma dieta leve e restrita; hidratação adequada; ambiente calmo e com pouca estimulação visual; supervisão de fami­ liares e encaminhamento para atendimento emergencial, se necessário.

5 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool...

A abordagem farmacológica, quando necessária, é a seguinte: • Reposição vitamínica:tiamina intramuscular, nos primeiros 7 a 15 dias. Após este período, a via de escolha é a oral. Doses de 300mg/dia de tiamina são recomendadas para evitar a síndrome de Wernicke (ver tópico “Compli­ cações Psiquiátricas” em Efeitos do Uso Crônico). • Benzodiazepínicos: a prescrição dos mesmos deve ser baseada em sinto­ mas. Ou seja, a dose certa é aquela que diminui os sintomas de absti­ nência. Portanto, doses maiores do que as recomendadas abaixo podem ser necessárias. O paciente e seus familiares devem ser informados so­ bre os sintomas que deverão ser monitorados e orientados sobre a con­ veniência de utilizar a maior dosagem à noite. A qualquer sinal de dosagem excessiva, deve-se proceder à interrupção da medicação. Re­ comenda-se o uso diazepam: de 20 a 40mg/dia, via oral, com retirada gradual ao longo de uma sem ana; ou de 100 a 200mg/dia de clordiazepóxido, via oral, com retirada gradual ao longo de uma sema­ na; ou de 4 a 8mg/dia de lorazepam, via oral, com retirada gradual em uma semana, para os casos de hepatopatias graves.

Tratamento com Internação Hospitalar Indicado para pacientes cujos sintomas de abstinência vão de moderados a graves (Nível II). Inclui repouso absoluto; dieta leve ou jejum; monitoramento dos níveis glicêmicos, eletrólitos e hidratação; controle pela escala CIWA-Ar. A abordagem farmacológica indicada é a seguinte: • Reposição vitam ínica: a mesma recomendada para o tratamento ambulatorial; • Benzodiazepínicos: a prescrição deve ser baseada em sintomas, que deve­ rão ser avaliados pela escala CIWA-Ar a cada hora. Quando a pontuação obtida for superior a 8 ou 10, escolher entre uma das seguintes opções: 10 a 20mg de diazepam, via oral, a cada hora; ou 50 a 100mg de clordiazepóxido, via oral, a cada hora; ou 2 a 4mg de lorazepam, via oral, a cada hora para os casos de hepatopatias graves. Observação: a administração de benzodia­ zepínicos por via intravenosa requer técnica específica e retaguarda para manejo de eventual parada respiratória. Deve-se administrar no máximo 10mg de diazepam durante 4 minutos, sem diluição. Como vimos, a síndrome de abstinência alcoólica pode evoluir para compli­ cações mais graves, cujo manejo passamos a descrever:

Convulsões Quando houver um histórico anterior de epilepsia, devem ser mantidos os medicamentos já utilizados pelo paciente. O diazepam é a medicação de escolha,

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na dose de 10 ou 20mg, via oral. O uso endovenoso é especialmente indicado du­ rante os episódios convulsivos. Não há consenso para indicação de carbamazepina no tratamento de crises convulsivas da síndrome de abstinência alcoólica. A lite­ ratura não respalda a utilização de difenilidantoína (fenitoína) no tratamento dessa complicação.

Delirium Tremens Doses elevadas de benzodiazepinicos são necessárias, mas o uso associado de neurolépticos é geralmente indicado. O tratamento farmacológico inclui: 60mg/ dia de diazepam (ou até 12mg/dia de lorazepam, para casos de hepatopatias gra­ ves) e 5mg/dia de haloperidol. Em casos de ocorrência de distonia induzida por neurolépticos (particularmente se forem administrados por via parenteral), esse efeito colateral poderá ser controlado com o uso de anticolinérgicos (2mg de biperideno).

Alucinose Alcoólica É tratada com 5mg/dia do neuroléptico haloperidol, devido seu menor poten­ cial de induzir convulsões. Como se viu, os neurolépticos podem induzir distonias agudas e outros distúrbios de movimento, que poderão ser tratados com anticolinérgicos. O que não se deve fazer: I. Administrar glicose indiscriminadamente, o que aumentaria os riscos da síndrome de Wernicke. A glicose só deverá ser aplicada parenteralmente após a administração de tiamina. II. O uso rotineiro de difenilidantoína (fenitoína) parenteral, a chamada “hidantalização”, uma vez que o uso desse anticonvulsivante não parece ser eficaz no controle de crises convulsivas da síndrome de abstinência alcoólica. III. Administrar clorpromazina e outros neurolépticos sedativos de baixa po­ tência para controlar a agitação, uma vez que poderiam induzir convul­ sões. O haloperidol é a melhor indicação. IV. Conter o paciente fisicamente de forma inadequada e indiscriminada, o que poderia provocar lesões.

Tratamento da Síndrome de Dependência Alcoólica Devido às dificuldades em lidar com a vasta gama de problemas médicos, psi­ cológicos e sociais associados à dependência, houve um grande interesse por parte dos pesquisadores em buscar alternativas de tratamento. Uma condição tão hete­ rogênea requer várias abordagens de tratamento1. As alternativas propostas sugerem organizar os tratamentos oferecidos por uma comunidade ao longo de um continuum de cuidados, que incluiria a com­

52 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. binação de serviços de internação hospitalar; cuidados residenciais; pensões protegidas e tratamento ambulatorial diversificado, com várias técnicas e mo­ dalidades de aconselhamento para os pacientes que procuram a rede primária de saúde1. Discutiremos aqui apenas o tratamento farmacológico da dependência do ál­ cool. Os vários modelos de intervenções psicológicas, utilizados no tratamento das dependências, serão abordados detalhadamente em capítulos posteriores.

Tratamento Farmacológico do Abuso e Dependência do Álcool Estamos em um período de grandes mudanças em relação ao tratamento far­ macológico das dependências. Melhores modelos biológicos sobre a ação das dro­ gas no cérebro e medicações mais específicas estão contribuindo de uma forma significativa para um tratamento mais efetivo. A Food and Drug Administration (FDA), órgão que aprova a liberação de dro­ gas e alimentos para a comunidade americana, aprovou, até o momento, so­ mente duas drogas para o tratamento da dependência do álcool: o dissulfiram e a naltrexona. Tudo leva a crer que o acamprosato também será aprovado.

Dissulfiram (Nome Comerdal: Antietanol®) Foi a primeira droga antiálcool aprovada pelo FDA, na década de 1940. Reduz o consumo alcoólico mas não reduz o desejo pelo álcool. Atua inibindo a ação da enzima aldeído desidrogenase, provocando no indivíduo, após ingestão de álcool, um aumento da concentração tóxica de aldeído (metabólito do álcool) no sangue e gerando os seguintes sintomas desagradáveis: enrubescimento facial (flushing), hipotensão, tonturas, fraqueza, sonolência, turvação da visão, náuseas, vômitos, palpitações, taquicardia, dores pulmonares e cefaléia. Reações mais graves incluem delirium, convulsões, arritmias cardíacas, insuficiência cardíaca, infarto do miocárdio e depressão respiratória. Em vista desses efeitos, é importante que o pa­ ciente seja informado sobre a necessidade de evitar qualquer ingestão alcoólica, incluindo vinagre e soluções de higiene oral. É contra-indicado para grávidas, ido­ sos e pacientes portadores de cardiopatias, insuficiência renal e hepática, doença vascular cerebral e doenças pulmonares graves16. O objetivo do uso do dissulfiram não é, obviamente, provocar desconforto no paciente e, sim, agir como um “freio psicológico”. Vários estudos têm demonstra­ do que o dissulfiram é útil para promover abstinência, especialmente em pacien­ tes bem motivados e socialmente estáveis.

Naltrexona (Nome Comercial: Revia*) O álcool parece aumentar a atividade dos receptores opióides e o efeito desta estimulação está associado à sensação de euforia produzida pelo álcool15. A naltrexona é um antagonista opióide que atua inibindo esses receptores e redu­ zindo o desejo por álcool. Tem perfil seguro: não foi constatado potencial de abu-

Álcool ■ 53

so ou dependência. Os efeitos colaterais mais comuns são náuseas e vômitos. Cefaléia, ansiedade e fadiga são menos comuns e se resolvem em poucos dias. É contra-indicada para pacientes com hepatite aguda, deficiência hepática, mulheres em controle da natalidade, pacientes com infecções agudas ou imunodeficiência, dependentes ou abstinentes de opióides16.

Acamprosato (Nome Comercial: Campral9) A forma como o acamprosato age na redução da ingestão alcoólica permane­ ce incerta e muitos estudos foram e estão sendo conduzidos. É uma droga que parece agir inibindo a atividade excitatória (glutamatérgica) e aumentando a ati­ vidade inibitória (GABAérgica) do cérebro. De alguma forma, o acamprosato pa­ rece restituir o balanço excitação/inibição cerebral e, aparentemente, reduz a ingestão voluntária de álcool em animais e humanos. É uma medicação segura, com poucos efeitos colaterais e não parece produzir dependência15. O efeito colateral mais comum é a diarréia. Apresenta pouca interação medicamentosa e a excreção é renal. É contra-indicado para mulheres grávidas ou em fase de amamentação, idosos e pacientes portadores de deficiências hepáticas e renais16.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. LARANJEIRA, R., NJCASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, O., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 2. LARANJEIRA, R. R., PINSKY, I. O Alcoolismo. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1998. 61 p. 3. RAMOS, S. P., BERTOLOTE, J. M. et al. Alcoolismo Hoje. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 240p. 4. ALMEIDA FILHO, N. et al. Estudo multicêntrico de morbidade psiquiátrica em áreas urba­ nas brasileiras. Rev. ABP-APAL, 74:93-104, 1992. 5. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. Pes­ quisa domiciliar sobre o uso de drogas no Estado de São Paulo: Aspectos da dependência. Boletim CEBRID, n. 44, maio 2001. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/ BoletimCebrid. Acesso em 17/03/2002. 6. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. O álcool entre os estudantes brasileiros. Dados obtidos no IV Levantamento sobre o uso de drogas entre estudantes de 1ge 2 9 graus em 10 capitais brasileiras - 1997. Boletim CEBRID, n. 32, março 1998. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/BoletimCebrid. Acesso em 17/03/2002. 7. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. Internações por problemas com drogas psicotrópicas no Brasil. O Álcool é ainda o grande vilão. Boletim CEBRID, n. 41, junho/2000. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/ BoletimCebrid. Acesso em 17/03/2002. 8. EDWARDS, G., MARSHALL, E. J., COOK, C. C. H. O Tratamento do Alcoolismo: um guia para profissionais de saúde. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 318 p. 9. MOAK, D., ANTON, R. Alcohol. In: McCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions: a comprehensive guidebook. Specific drugs o f abuse: pharmacological and clinicai aspects. Oxford: Oxford University Press, 1999. Cap. 4, p. 75-94.

5 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

10. JULIEN, R.M. /A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. Nova York: W. H. Freeman and Company, 1995. 51 Ip. 11. HANSON, G., VENTURELLI, P.J. Drugs and Society. 4 ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 12. RAY, O., KSIR, C. Drugs, Society, and Human Behavior. 8. ed. New York: WCB. McGrawHill, 1999. 494p. 13. WEINBERGER, D. A.# BARTHOLOMEW, K. Social-emotional adjustment and patterns of alcohol use among young adults. J. Person., 64:495-527, 1996. 14. NIXON, S. J., TIVIS, R., PARTONS, 0. A. Interpersonal problem-solving in male and female alcoholics. Alcohol. Clin, Exper. Res., 76:684- 687, 1992. 15. LARANJEIRA, R. Abuso e dependência do álcool: diagnóstico e tratamento farmacológico. In: FOCCHI, G. R. A. et al. Dependência Quimica: novos modelos de tratamento. 1. ed. São Paulo: Roca, 2001. Cap.1, p. 1-18. 16. SCHAFFER, A., NARANJO, C. A. Recommended drug treatment strategies for the alcoholic patient. Drugs. 56(4): 571-585, Oct., 1998.

C A P ÍT U L O

Tabaco S e l m a B o rd in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isã o G e r a l A dependência de nicotina per se tem sido menos estu­ dada que a dependência de álcool e outras drogas, apesar de ser apontada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o problema de saúde pública número um1, e a maior causa de morbidade e mortalidade em muitos países2. No Brasil, estima-se que mais de 200 mil pessoas morram por ano devido ao fumo. Os riscos de saúde associados já ha­ viam sido reconhecidos desde a década de 1950 e, nos últi­ mos anos, as evidências acumuladas têm sido muito grandes para que haja qualquer dúvida com relação à associação en­ tre o uso do fumo e uma maior mortalidade1. Por muitos anos, discutiu-se se o uso de tabaco era ou não uma dependência. Uma parte importante de profissio­ nais de saúde e, principalmente, a indústria do fumo, relutou em aceitar a caracterização da nicotina como droga causa­ dora de dependência. Em 1988, no “Surgeon General” dos Es­ tados Unidos, um relatório reuniu evidências de que a nicotina era o agente que provocava a dependência e reforçava o com­ portamento de fumar1. Também descreveu a dependência do tabaco como sendo determinada por processos biológicos, comportamentais, psicológicos e socioculturais2. Apesar da fumaça do cigarro conter mais de 4.000 substâncias (60 delas cancerígenas), o fumante busca, especificamente, a nicoti­ na. Estudos mostraram que, quando se retira a nicotina do cigarro, os fumantes param de fumar1. Dessa forma, a depen­ dência do cigarro deixou de ser vista como um "vício psicoló­ gico” apenas, mas como uma dependência física que deveria ser tratada como uma doença clínica2.

5 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool...

As evidências sugerem que fumar é um hábito que começa na adolescência, não devido aos efeitos psicoativos da nicotina, inicialmente muito desagradáveis, mas devido a uma série de fatores socioculturais: pressão do grupo, curiosidade em relação aos efeitos, busca de independência, rebeldia e imagem culturalmente as­ sociada ao prazer e bem-estar. À medida que o uso se intensifica e toma-se diário, começa a existir a possibilidade do aparecimento de sintomas de abstinência. Os fatores sociais que contribuíram para o início do uso tomam-se menos importantes e a motivação do fumante passa a ser controlar os sintomas de abstinência. Uma prova disso é o padrão de consumo dos fumantes: somente 5% deles fumam menos de 5 cigarros por dia. A grande maioria fuma mais de 12 cigarros, ao longo do dia, em períodos entre 60 e 90 minutos1.

D ados

de

E p id em io lo g ia

Existe mais de um bilhão de fumantes no mundo e a metade deles, se permanecer fiimando, morrerá prematuramente. Em 1990,20% das mortes nos EUAforam atribuí­ das ao tabagismo. Entre as 25 doenças decorrentes do tabagismo, as causas de morte, em ordem de incidência são: doenças cardiovasculares (43%); câncer (36%); doenças respiratórias (20%) eoutras (1%). Aprevalência do tabagismo na população adulta ame­ ricana diminuiu a partir de 1965, de 42 para 25% e, desde então, este número não se alterou. A prevalência na população adulta brasileira é semelhante à americana3. Estudos realizados nos EUAe na Inglaterra têm demonstrado que de 30 a 50% das pessoas que começam a fumar evoluem para um uso problemático. A idade média de início de consumo é entre 13 e 14 anos nos EUA e Brasil. O US Department of Health and Human Services demonstrou que 25% dos adolescentes que começam a fumar (70% deles) passam a fumar todos os dias rapidamente. O uso das demais drogas nes­ ta mesma população declina com a idade, mas isso não ocorre com o tabaco3. Um indivíduo que fuma muito pode apresentar uma diminuição de 25% na sua expectativa de vida quando comparado a um não-fumante3. Um estudo pu­ blicado em 1994, que retratava o seguimento de 40 anos de um gmpo de 35.000 médicos ingleses, demonstrou que o fumo produziu um excesso de mortalidade maior do que o esperado. Cerca de 50% dos fumantes morreram por causas rela­ cionadas ao cigarro. Aqueles que morreram entre os 35 e 69 anos de idade perde­ ram, em média, 22 anos de vida. Mesmo aqueles que morreram após os 69 anos de idade, perderam 8 anos em média, quando comparados aos não fumantes1. Apesar de 70% dos fumantes desejarem parar de fumar, somente 5% deles con­ seguem fazê-lo por si mesmos2. Apenas 40% dos fumantes fazem sérias tentativas de parar de fumar e mais de 90% dessas tentativas são feitas sem tratamento for­ mal: 33% deles permanecem abstinentes por 2 dias e apenas de 3 a 5% permane­ cem abstinentes por um ano4.

D ep en d ên c ia

de

N ic o t in a

A relutância do fumante e a falta de serviços dotados de profissionais treina­ dos para detectar o paciente de risco são barreiras na procura de tratamento. Todos os indivíduos que fumam e chegam aos serviços de saúde deveriam ser acon-

Tabaco ■ 57

selhados a interromper o uso de tabaco3. Duas perguntas simples e fundamentais para o diagnóstico podem ser facilmente incorporadas nas rotinas de atendimento dos profissionais de saúde: • Qual seu consumo diário de tabaco? • Você acredita ter problemas associados a esse consumo? Uma avaliação mais completa pode incluir questionários, escalas e inventári­ os desenvolvidos para diagnosticar e avaliar a gravidade do consumo. Um bom critério para avaliar a gravidade da dependência é o tempo decorrido entre o des­ pertar e o uso do primeiro cigarro do dia. A grande maioria o acende na primeira hora de vigília, o que caracteriza uma dependência maior2. As diretrizes diagnosticas da Classificação Internacional de Doenças - CID-10 (F15) ou do Manual de Diagnóstico e Estatística DSM-IV, também podem ser uti­ lizadas para se fazer o diagnóstico da dependência. Consulte o Capítulo 1.

V ias

de

A

d m in istr a ç ã o

A nicotina é principalmente absorvida pelos pulmões, na forma de cigarros. Mas também pode ser absorvida pela mucosa bucal: como no hábito de mascar rapé úmido ou tabaco. Charutos e cachimbos oferecem absorção tanto pelos pul­ mões quánto pela mucosa bucal5.

E feito s

do

U so A

gudo

Absorção, Excreção e Metabolismo A nicotina pode ser absorvida dos pulmões, das mucosas nasal e bucal, da pele e do trato gastrintestinal. Pelos pulmões a absorção é de 90%. Pelas mucosas, chega a 20 a 50%. A nicotina absorvida dos pulmões é levada ao coração e dali é rapidamente distribuída por todo corpo. Uma boa parte do sangue contendo ni­ cotina vai diretamente para o cérebro e leva cerca de 7 segundos para alcançá-lo. \ Depois de aproximadamente 30 minutos, a nicotina deixa o cérebro e se concentra no fígado, rins, glândulas salivares e estômago. A nicotina cruza muitas barreiras, inclusive a placenta, e pode ser encontrada no suor, saliva e no leite materno6. A metabolização da nicotina é feita no fígado. Lá é transformada em dois metabólitos inativos, sendo a cotinina o principal deles (e usado como coadjuvante no tratamento farmacológico do tabagismo). A meia-vida da nicotina é variável: estima-se que seja entre 30 minutos6 e 2 horas4. Parece haver diferenças genéticas na forma de metabolizar a nicotina. De 16 a 25% da população têm um defeito genético em suas habilidades para metabolizála e isso parece ser um fator de proteção para essas pessoas: elas têm menos pro­ babilidade de se tornarem fumantes e, caso se tornem, fumarão uma quantidade menor de cigarros6. A quantidade de nicotina excretada pelos rins depende do pH da urina e atinge de 2 a 35% da eliminação total.

58 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Efeitos Farmacológicos A ingestão inicial da nicotina é geralmente uma experiência aversiva, com náuseas, dores de cabeça e um mal estar generalizado, mas a tolerância a esses efeitos desenvolve-se rapidamente5. A nicotina pode estimular, deprimir ou perturbar o sistema nervoso central, dependendo da dose e da freqüência de utilização. Estas ações são mediadas pe­ los receptores nicotínicos, que estão distribuídos por todo o cérebro e pela coluna vertebral. Os receptores periféricos estão em gânglios autonômicos, na supra-re­ nal, nos neurônios sensoriais e na musculatura esquelética3. A nicotina tanto ati­ va quanto dessensibiliza os receptores nicotínicos5. A dessensibilização de receptores cria um mecanismo compensatório, ou seja, ocorre um aumento regu­ lador do número de receptores e, numa próxima ingestão, a nicotina encontrará mais receptores para estimular. Esta dessensibilização pode, portanto, explicar a rápida aquisição de tolerância5. A ação aguda da nicotina no sistema nervoso central envolve vários neurotransmissores3: • Liberação de dopamina, gerando euforia. • Liberação de noradrenalina, gerando aumento da freqüência cardíaca, ná­ useas, vômitos, piloereção e melhora da atenção. • Liberação da serotonina, gerando ansiedade. • Liberação da acetilcolina, gerando melhora da memória.

Efeitos Psicoativos que Favorecem a Dependência A nicotina promove um rápido e pequeno aumento do estado de alerta, me­ lhorando a atenção, a concentração e a memória. Ou seja, fumar cigarro de taba­ co produz um efeito estimulante rápido, semelhante àquele descrito pelos usuários de cocaína/crack. A sensação de relaxamento e calma descrita pela maioria dos usuários tem sido atribuída à inibição de sintomas desagradáveis da síndrome de abstinência em vários estudos. Além disso, diminui o apetite3. O efeito estimulante contraposto aos sintomas desagradáveis da ausência da subs­ tância no cérebro pode contribuir para a dificuldade de manutenção da abstinência3.

E feito s

do

U so C r ô n ico

Complicações Físicas Doenças Cardiovasculares • • • • •

Infarto do miocárdio: o uso de cigarro representa o maior dos fatores de risco; Arteriosclerose: o uso de cigarros é o maior fator de risco. Aneurisma da aorta. Ataques de angina. Doenças coronarianas.

Tabaco ■ 59

Cânceres • Pulmão: de 75 a 85% dos cânceres de pulmão decorrem do uso de cigarros. O câncer de pulmão é o tipo de câncer que mais faz vítimas. • Laringe: são significativamente mais comuns em fumantes que em não-fumantes. • Cavidade uterina. • Esôfago. • Bexiga. • Pâncreas. • Rins.

Doenças Pulmonares • Enfisema. • Bronquite crônica. • Infecções respiratórias.

Efeitos sobre o Feto Fumantes têm riscos maiores de: • • • • • • •

Aborto espontâneo. Crescimento fetal defeituoso. Nascimento prematuro. Morte do neonatal. Menor peso corpóreo. Menor circunferência craniana. Síndrome de morte repentina.

Complicações Psiquiátricas O uso de tabaco é comum entre pacientes psiquiátricos e é mais prevalente entre pacientes depressivos e psicóticos. Homens e mulheres com dependência de nicotina têm maiores probabilidades de incidência de desordens de uso de ál­ cool e drogas ilícitas, depressão maior e desordens de ansiedade7. Fumantes com história passada ou presente de ansiedade, depressão ou esquizofrenia terão menor probabilidade de parar de fumar e isso pode ser em decorrência de vários fatores: dependência e sintomas de abstinência aumen­ tados, carência de suporte social, ou menores habilidades de enfrentamento. Fumantes com problemas de abuso ou dependência do álcool têm menores probabilidades de parar, a menos que resolvam esse problema. Fumantes com desejo intenso induzido pela abstinência também têm menores probabi­ lidades de parar4.

60 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Complicações Sociais A fumaça expirada pelos fumantes polui o ar e pode ser inspirada por não-fumantes, sendo causa de doenças e mortes entre eles. Em adultos não fumantes, causa câncer de pulmão e doenças do coração, levando a mais de 50 mil mortes por ano nos EUA. Além disso, essa fumaça piora os estados de asma e outras condições respirató­ rias. Entre crianças, pode causar otite, bronquite e pneumonia. Apesar de somente 25% dos americanos fumarem, cerca de 40% das crianças vive em casas onde pelo menos uma pessoa fuma5. Afumaça do tabaco contida no ar foi listada como a segun­ da maior causa previsível de doenças depois do próprio ato de fumar8. Além disso o uso de cigarros por outra pessoa é um importante fator precipitante de recaída entre aqueles que pararam de fumar recentemente5.

S ín d ro m e

de

A

bstin ên cia

Nos Estados Unidos, 90% dos fumantes usam mais que cinco cigarros por dia. A maioria daqueles que já experimentou reduzir o uso descreve sintomas de abs­ tinência. A síndrome de abstinência, cujos sinais e sintomas estão descritos no Quadro 4.1, pode se instalar se o consumo for reduzido a 50%. Parece que quanto maior o consumo, maior a gravidade da síndrome, que pode persistir por meses3. A síndrome de abstinência é mediada pela noradrenalina e se inicia 8h após o último cigarro, atingindo o auge no terceiro dia.

P rincípios G erais

de

T ra tam en to

A dependência da nicotina é um importante fator para a manutenção do há­ bito de fiimar. No entanto, outros fatores contribuem para a persistência do uso.

Q u ad ro

4.1 - Sinais e Sintomas d a Síndrome de Abstinência d a Nicotina

Psicológicos • Humor disfórico ou deprimido • Insônia e sonolência diurna • Irritabilidade, frustração ou raiva • Ansiedade • Dificuldade para se concentrar e manter a atenção • Inquietação • "Fissura" Biológicos • Freqüência cardíaca diminuída • Pressão arterial diminuída • Aumento do apetite • Ganho de peso • Falta de coordenação motora e tremores

Tabaco ■ 61

O desejo de consumo pode ser desencadeado por estímulos ambientais relativa­ mente independentes do estado ou da necessidade fisiológica. É por isso que o indivíduo pode ter um forte desejo de fumar anos após a interrupção do consu­ mo. Portanto, no tratamento da dependência da nicotina (e de outras drogas) de­ vemos estar atentos também aos aspectos comportamentais e situacionais: estados emocionais negativos como irritabilidade, depressão, ansiedade, etc.; uso de bebidas alcoólicas; ver alguém fumando; etc. Nesses casos, o indivíduo não esta­ ria buscando alívio dos sintomas de abstinência, mas sim o “reforço positivo” da nicotina, como aumento do prazer, por exemplo2. De uma maneira geral, os tratamentos para dependência de nicotina podem ser agrupados em três tipos: os psicossociais, os somáticos e terapia combinada (psicossocial e somática)4.

Terapias Psicossociais Há vários tipos de terapias psicossociais: as comportamentais, os grupos de educação e suporte, a hipnose, aquelas que utilizam materiais de auto-ajuda, o programa de 12 Passos adaptado, terapia de atividade física, terapia familiar, tera­ pia interpessoal, terapia psicodinâmica e outras. No entanto, a principal e de com­ provada eficácia é a terapia comportamental. O objetivo da terapia comportamental é mudar as cognições anteriores a res­ peito do fumo, reforçar o não fumar e ensinar habilidades para evitar o fumo em situações de risco. Trabalha com técnicas de treinamento de habilidades, preven­ ção de recaída, controle de estímulos, terapia de aversão, suporte social, manejo de emergências, exposição aos estímulos, redução de nicotina (sem evidências comprovadas), relaxamento efeed b a c k fisiológico (mostrar o decréscimo nos ní­ veis de monóxido de carbono).

Terapias Somáticas As terapias somáticas incluem terapia de reposição de nicotina, uso de medi­ cações que imitam os efeitos da nicotina, uso de antagonistas (para bloquear os efeitos reforçadores da nicotina) e outras medicações, sendo que, as duas primei­ ras são as principais formas de tratamento desse grupo.

Terapia Combinada O objetivo da terapia combinada é oferecer tratamento para a síndrome de abstinência e, concomitantemente, desenvolver habilidades de não fumar. O tra­ tamento psicossocial não é essencial para obter resultados com os tratamentos somáticos. No entanto, é importante notar que a terapia combinada aumenta con­ sideravelmente o número de pessoas que param de fumar, quando comparada aos tratamentos isolados. Assim, a combinação da terapia psicossocial e somática é o tratamento recomendado.

62 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. Independentemente do tipo de tratamento que o paciente venha a rece­ ber, é importante que se faça inicialmente uma boa avaliação, que deve in­ cluir: histórico do uso, estágio atual de uso do tabaco, avaliação psiquiátrica e clínica geral, diagnóstico da dependência, avaliação da prontidão para mudança; estímulos e barreiras para cessar; fatores psicossociais e as prefe­ rências do paciente4. Da mesma maneira, um adequado manejo terapêutico é necessário em qual­ quer abordagem e envolve4: 1. Estabelecimento da aliança terapêutica: a maioria dos fumantes requer de cinco a sete tentativas antes de finalmente conseguir parar de fumar e, a maioria deles, não tem conhecimento disso. Será necessário, portanto, saber remotivar o paciente após um lapso. Uma boa aliança terapêutica fa­ vorecerá o retorno desse paciente, caso ele falhe. 2. O fum o deve ser proibido no consultório: o melhor tratamento ocorre num ambiente que encoraja a cessação. 3. Trabalhar para aum entara motivação: este é um dos principais objetivos de todo profissional que trabalha com dependentes químicos. Os capítulos re­ ferentes às várias abordagens de tratamento trazem muitas informações e técnicas úteis a essa finalidade. Consulte-os também. • Os pacientes ambivalentes quanto a parar de fumar podem se beneficiar de informação sobre os riscos que correm. • Pacientes que se sentem “desmoralizados” podem se beneficiar da infor­ mação de que mesmo os fumantes mais comprometidos em parar de fu­ mar precisam de várias tentativas para consegui-lo. • Pacientes que temem parar podem se beneficiar de técnicas de solução de problemas dirigidas a seus temores; da exploração de suas razões para fumar e não fumar; do encorajamento a adotar pequenos passos em di­ reção à ação, como reduzir o número de cigarros utilizados ou parar por apenas 24 horas. Independentemente do grau de motivação do paciente, advertências devem ser feitas. 4. Educação sobre a dependência e tratamento: muitos fumantes desconhecem que seu hábito é devido à dependência da nicotina e a dificuldade em parar deve-se aos sintomas de abstinência. Convém serem informados sobre a de­ pendência, sobre os sintomas de abstinência e sua duração; sobre as várias ten­ tativas que normalmente são necessárias; sobre a possibilidade de repor a nicotina e o que mais possa auxiliá-los a abandonar o uso. 5. Considerar o momento do paciente: devemos ter cautela ao recomendar a cessação do uso da nicotina a um paciente, cujo quadro psiquiátrico esteja instável ou quando modificações em seu tratamento estão sendo tomadas, uma vez que a abstinência poderia interferir no diagnóstico e nas medica­ ções. Por outro lado, ela deve ser fortemente encorajada em casos nos quais exista sofrimento por alguma doença relacionada ao fumo. 6. Cessação abrupta versus cessação gradual: a maioria dos profissionais reco­ menda a cessação abrupta. A cessação gradual tem menos possibilidade de sucesso porque os pacientes têm dificuldade em reduzir o número de cigarros

Tabaco ■ 63

7.

8.

9.

10.

diários para menos de cinco a dez. Mas, por outro lado, a maioria dos estu­ dos não refere diferenças nos resultados das duas formas. Logo, se o pa­ ciente preferir parar gradualmente, deverá ser respeitado, mas também advertido de que é importante determinar uma data em que parará com­ pletamente e de que a reposição de nicotina não deverá começar até que tenha parado completamente. Lidar com o medo de ganhar peso: o medo de ganhar peso parece ser o maior fator impeditivo da tentativa de parar de fumar, principalmente entre as mu­ lheres4. Os fumantes pesam, em média, de 2 a 3kg menos que as pessoas que nunca fumaram. Ao parar, as pessoas recuperam esse peso “perdido”. No entanto, os benefícios de parar de fumar superam o ganho de peso. Além de enfatizar tais benefícios, pode-se incentivar o paciente a uma alimentação saudável (uma dieta associada seria muito difícil), a praticar exercícios, a aceitar o aumento de peso inicial e trabalhar para perdê-lo após os três pri­ meiros meses. Aconselhar sobre uso de álcool e cafeína: o uso de álcool é um fator de risco apontado na maioria dos estudos sobre recaída. Assim, a diminuição da in­ gestão alcoólica ou mesmo a abstinência devem ser recomendadas. A cafeí­ na como fator de risco de recaída é incerta. Fumar aumenta o metabolismo da cafeína. Logo, ao parar de fumar acontece um aumento de 50 a 60% dos níveis de cafeína. Muitos dos sintomas da intoxicação por cafeína são se­ melhantes aos da abstinência da nicotina: ansiedade, insônia, inquietude. Reduzir a cafeína após a cessação da nicotina pode ser útil, mas isso não foi confirmado por estudos. Por outro lado, cessar a cafeína abruptamente também pode criar uma síndrome de abstinência por si só. Ou seja, com essas evidências contraditórias, as preferências do cliente deverão ser con­ sideradas. Visitas de seguimento: a primeira deve ocorrer entre 1 e 3 dias após a data marcada para a cessação, uma vez que a maioria das recaídas acontece nos primeiros dias. A freqüência das visitas seguintes dependerá de vá­ rios fatores: das impressões do paciente sobre sua necessidade; do histó­ rico passado de interrupção (se houver); das condições e história psiquiátrica do paciente; do uso de medicações cujos níveis sangüíneos podem aumentar com a cessação; e do uso de medicações antinicotínicas que requerem monitoramento dos efeitos colaterais. Nessas visitas, devese averiguar se o paciente fumou (e quanto); a severidade dos sintomas de abstinência; sintomas psiquiátricos; uso de álcool e/ou drogas; como o paciente lidou com a “fissura”; efeitos colaterais de medicações e ou­ tros aspectos pertinentes. Alguns estudos sugerem que acompanhamen­ tos breves (inclusive chamadas telefônicas) aumentam a possibilidade de cessação. Lidar com lapsos e recaídas: o uso de um único cigarro pode levar a uma completa recaída. Caso isso ocorra, devem-se considerar formas de abor­ dar as situações “gatilho”; aumentar a medicação, etc. Diante de uma com­ pleta recaída deve-se estimular o paciente a perceber pequenos sucessos; discutir o que foi aprendido com esta tentativa e sobre quando ele gostaria

64 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. de tentar novamente. A maioria dos pacientes continua desejando parar. O Capítulo 19, Prevenção da Recaída é totalmente dedicado a este tema.

C onsenso

sobre

o T ratam ento

da

D ependência

de

N icotina

Em março de 2001, o Departamento de Dependência Química da Associa­ ção Brasileira de Psiquiatria publicou o Consenso sobre o Tratamento da De­ pendência de Nicotina. Não transcreveremos todo o trabalho, mas sim aquilo que consideramos relevante. Segundo este consenso, pesquisadores america­ nos e ingleses preconizam o tratamento da dependência com métodos de pri­ meira linha, que incluem a terapia de reposição de nicotina, a utilização de bupropiona e a terapia comportamental breve, em grupo ou individual. Os gru­ pos de auto-ajuda e outros medicamentos são considerados de segunda linha e podem ser coadjuvantes efetivos. A associação de recursos melhora a efe­ tividade. As sessões de aconselhamento podem ser mínimas (de 3 a 10 minu­ tos) ou intensivas (de 10 a 30 minutos). Quanto mais intensiva é a intervenção, melhores serão os resultados em longo prazo.

Aconselhamento Uma ótima oportunidade para estimular fumantes a abandonarem o uso do tabaco é quando eles procuram os serviços gerais de saúde. Nestes serviços, um aconselhamento mínimo pode ser utilizado. Esta intervenção consiste em: • • • • •

Perguntar sobre o uso do tabaco. Aconselhar sua cessação. Investigar sobre o desejo de interromper o uso. Oferecer assistência e acompanhamento do processo. Planejar seu seguimento.

Caso o fumante não esteja interessado em interromper o uso, as seguintes estratégias motivacionais podem ser tentadas (Quadro 4.2): • • • • •

Informar sobre os aspectos individuais relevantes para a cessação. Falar sobre os riscos agudos, crônicos e ambientais do tabagismo. Descrever as recompensas decorrentes da interrupção do uso. Investigar as barreiras na procura do tratamento. Repetir os tópicos relevantes da avaliação inicial.

Para aqueles que querem interromper o uso, um aconselhamento mais inten­ sivo ou mesmo um tratamento mais estruturado, como a intervenção breve, po­ dem ser indicados. Materiais didáticos também podem ser utilizados, assim como a terapia de reposição de nicotina. No entanto, se essas ações falharem, o paciente deverá ser encaminhado a um especialista.

Tabaco ■ 6 5

Q u a d ro 4.2 - Estratégias Motivacionais Recompensas ou Vantagens • Melhoria da saúde • Paladar e olfato mais aguçados • Economia • A casa, as roupas, o carro e o hálito terão melhor odor • Despreocupação quanto a parar de fumar • Bom exemplo para os filhos • Filhos mais saudáveis • Não precisará se preocupar em expor os outros ao tabaco • Sentir-se-á melhor fisicamente • Melhor performance em atividades físicas • Redução do envelhecimento da pele e diminuição das rugas. Riscos ou Desvantagens • Agudos: dificuldade respiratória, asma, impotência, infertilidade, alterações fetais • Crônicos: acidentes vasculares hemorrágicos e infarto, câncer de laringe, boca, fa­ ringe, esôfago, pâncreas e baço. Bronquite crônica e enfisema • Ambientais: aumento de câncer no cônjuge; altas possibilidades de filhos fuman­ tes ou de nascerem com baixo peso, risco de asma, doenças do ouvido médio ou respiratórias Fonte: Consenso sobre o Tratamento da Dependência de Nicotina3.

Intervenção Breve Trata-se de um modelo de tratamento mais estruturado, replicável em qual­ quer nível de atenção à saúde. O referencial teórico mais recomendado para esta intervenção é a terapia comportamental e a abordagem mais utilizada é a grupai (pode envolver até 25 pacientes, tendo, portanto, baixo custo). Uma entrevista inicial individual é necessária. Depois, pode-se utilizar o se­ guinte modelo: quatro a cinco sessões de intervenção, com 1 hora de duração, seguidas de pelo menos quatro sessões de seguimento. 1* sessão • Apresentação dos membros do grupo. • Discussão sobre os pressupostos da terapia de reposição de nicotina. • Aconselhamento sobre a importância de interrupção do uso e sobre os ris­ cos associados à saúde, de forma clara, firme e individualizada. • Definição da data de interrupção do uso. 2- sessão • Orientação para o uso da terapia de reposição de nicotina. • Discussão das dificuldades.

66 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. 3a sessão • Discussão das situações de alto risco e planejamento das estratégias de enfrentamento. 4a sessão • Orientação quanto às sessões de seguimento e alta. Seguimento • Pelo menos mais quatro sessões.

Terapia de Reposição de Nicotina O objetivo da terapia de reposição de nicotina é o alívio dos sintomas de abs­ tinência, permitindo ao paciente concentrar-se nos fatores comportamentais e condicionantes. Qualquer profissional de saúde treinado pode aplicar a terapia de reposição de nicotina para os pacientes que consomem mais de 10 cigarros por dia. É considerado um método seguro e mais popular3. Esta reposição é feita atra­ vés de adesivos transdérmicos, gomas de mascar, spray nasal, inaladores e tabletes (os três últimos ainda não disponíveis no Brasil). A dose inicial preconizada é de 21mg por dia, mas fumantes pesados (mais de 25 cigarros diários) podem precisar de doses iniciais maiores. Esse tipo de administração de nicotina deve ser gra­ dualmente reduzido de forma a evitar que o paciente sofra os sintomas de absti­ nência. Nos países desenvolvidos, o custo da reposição de nicotina é semelhante ao custo dos cigarros utilizados no mesmo período. O mesmo não ocorre no Bra­ sil, onde o custo é muito alto. No Brasil temos adesivos de 7,14 e 21 mg disponíveis, com utilização pelo pra­ zo médio de 8 semanas e trocados diariamente. Esta forma de reposição de nico­ tina é mais indicada, devido seus menores efeitos colaterais. A redução da dose é progressiva por até 1 ano. A goma de mascar encontrada no Brasil é de 2mg por unidade. A média de consumo é de 10 gomas por dia, podendo chegar até 20. Pode produzir irritação da língua e da cavidade oral. Apesar de ser um tratamento considerado seguro, como já dissemos, há algu­ mas restrições: para mulheres grávidas, adolescentes com menos de 18 anos e pacientes portadores de doenças cardiovasculares instáveis, como infarto recente do miocárdio, angina e determinadas arritmias.

Bupropiona (Nome Comercial: Zyban®) Como qualquer outra substância que causa dependência, a nicotina age tanto na região do prazer (sistema de recompensa cerebral), quanto na região da abs­ tinência. Acredita-se que a bupropiona atue no sistema dopaminérgico e noradrenérgico, alterando, portanto, os mecanismos de dependência e abstinên-

Tabaco ■ 67

cia da nicotina. No entanto, seu mecanismo de ação ainda não é totalmente com­ preendido8. Embora seja, tecnicamente, um antidepressivo, sua ação antinicotínica pare­ ce ser independente. Nos estudos feitos até o momento, os pacientes depressivos foram excluídos e as amostras selecionadas beneficiaram-se dos efeitos antinicotínicos da bupropiona3. Foi o primeiro medicamento não derivado de ni­ cotina aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) e é indicado como tra­ tamento de primeira linha nos EUA, para adultos que consomem 15 ou mais cigarros por dia. Para tabagistas com depressão, a indicação é ainda mais precisa3. Inicia-se o tratamento uma semana antes da cessação. Adose inicial é de ISOmg por dia, até o terceiro dia, passando-se para 300mg por 7 a 12 semanas. As contraindicações incluem: hipersensibilidade à substância, convulsões, distúrbio bulímico ou anorexia nervosa; uso concomitante de inibidores da monoaminoxidase ou de compostos de bupropiona.

Nortriptilina (Nome Comercial: Pamelor®) Também é um antidepressivo que parece ajudar os fumantes a pararem de fumar. Porém, ainda não recebeu aprovação da FDA e é considerada como farmacoterapia de segunda linha. A grande vantagem desse medicamento em relação à bupropiona é o preço: por ser uma droga já existente no mercado há muito tempo, é um dos antidepressivos mais baratos.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e Drogas. In: ALMEIDA, 0., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 2. LARANJEIRA, R., GIGLIOTI, A. Tratamento da dependência da nicotina. Psiq. Prát. Méó., 33(2):9-18, 2000. 3. MARQUES, A. C., CAMPANA, A., GIGLIOTI, A., LOURENÇO, M. T„ FERREIRA, M.f LARAN­ JEIRA, R. Consenso sobre o tratamento da dependência da nicotina. Rev. Bras. Psiq., 23(4):200-214, 2001. 4. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Practice Guideline for Treatment o f Patients with Nicotine Dependence. Am. J. Psych., 753(Suppl.):10, Oct., 1996. 5. SLADE J . Nicotine. In: McCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions: a comprehensive guidebook. Specific drugs o f abuse: pharmacological and clinical aspects. Oxford: Oxford University Press, 1999. Cap. 9, p. 162-170. 6. McKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice Hall, 2000. 400p. 7. TARTER, R. E., AMMERMAN, R.T., OTT, P. J. Handbook o f Substance Abuse - Neurobehavioral pharmacology. New York: Plenum Press, 1998. 602p. 8. LONGENECKER, G.L. Como Agem as Drogas-O abuso das drogas e o corpo humano. São Paulo: Editora Quark do Brasil, 1998. 143p.

C A P ÍT U L O

Cocaína e

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V isão G er a l O uso da cocaína começou nos países andinos (Peru, Bolívia, Equador e Colômbia) há mais de 2000 anos. Seu isolamento químico foi feito por um alemão, chamado Albert Niemann, cujo trabalho foi publicado em I8601. A partir de então passou a ser usada, prescrita e vários de seus efeitos foram relatados como benéficos por diversos autores. Koller, por exemplo, descreveu as propriedades anestésicas da cocaína e introduziu seu uso em cirurgias oftalmológicas2. Freud a experimentou pessoalmente e descreveu-a como “droga mágica”2. 0 uso da cocaína tor­ nou-se tão popular nos Estados Unidos que, em 1863, Ângelo Mariani patenteou um vinho, que se tornou muito popular, cuja fórmula continha cocaína1. Em 1885, a cocaína foi incorporada a uma bebida que de­ pois ficou conhecida como Coca-Cola e foi banida ape­ nas em 19142. O uso mais difundido gerou uma série enorme de complicações relacionadas que passaram a ser descritas pela literatura médica. Tais evidências levaram os Esta­ dos Unidos a proibirem seu uso e a cocaína quase desa­ pareceu no começo do século XX. Seu reaparecimento aconteceu na década de 1960, como droga de elites eco­ nômicas. Na década de 1980, o consumo da cocaína au­ mentou muito e várias razões contribuíram para isso: o aumento da oferta, a redução do custo e a diversificação nas vias de administração (além de aspirada, a cocaína passou a ser injetada e fumada)13.

Cocaína e Crack ■

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D a d o s de E p i d e m i o l o g i a Os Estados Unidos mostraram um aumento progressivo de uso durante os anos 1980 e um certo declínio em algumas populações escolares nos anos 90. No Brasil, há evidências de que o uso aumentou progressivamente nos últimos 20 anos3. Uma avaliação epidemiológica realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Dro­ gas Psicotrópicas (CEBRID), no período de 1988 a 1999, revela que as internações para tratamento da dependência de cocaína e seus derivados foram as que mais cresceram: de 0,8% em 1988, para 4,6% em 1999: um aumento de 475%u. OIV Levantamento sobre uso de drogas entre estudantes da rede pública de l 2 e 2- graus, realizado pelo CEBRID em 10 capitais brasileiras no ano de 1997, indica que o uso da cocaína vem se popularizando entre esses estudantes. Apesquisa indi­ cou o aumento da tendência de uso na vida, do uso freqüente (seis ou mais vezes no mês) e do uso pesado (20 vezes ou mais no mês) em Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Salvador e São Paulo. Em Belém, por exemplo, o uso na vida aumentou de 1% em 1993 para 1,8% em 1997 e, embora essa porcentagem não seja muito elevada, indica tendência a aumento de uso. Somente no Rio de Janeiro e em Recife não se observaram esses aumentos. Também indicou que o crack aparece muito raramente: somente 0,2% dos estudantes pesquisados fez uso dessa substân­ cia. Esse dado pode estar apenas traduzindo que aqueles que fazem uso dessa dro­ ga perdem o vínculo escolar, já que a dependência do cracké sempre muito severa5.

V ias

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A

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A produção da cocaína começa com as folhas de coca e passa por vários estágios até chegar à forma de cloridrato de cocaína, que é a droga na forma de sal, vendida como pó. Durante a produção, existe uma forma intermediária da droga, especial­ mente perigosa devido à sua impureza, conhecida como pasta de coca ou basuco, que é fumada em alguns países. A cocaína em pó não pode ser fumada, pois é volátil, ou seja, grande parte de sua forma ativa é destruída a altas temperaturas. Para poder ser fumada, o sal da cocaína precisa retomar à forma de base, neutralizando-se o cloridrato ou a parte ácida O produto resultante é conhecido como crack ou cocaína freebase. Assim, o crack não é uma droga nova: é uma forma de cocaína que pode ser utilizada pela via pulmonar. Sua grande vantagem, do ponto de vista do usuário, é que a absor­ ção é mais rápida e produz, aparentemente, um efeito mais intenso3. A cocaína pode ser usada por diferentes vias de administração: oral, intranasal, injetável ou pulmonar9. No Brasil, a forma mais comum de uso da cocaína era a via nasal. No final da década de 1980, a via injetável passou a pre­ dominar. Já no ano de 1995, a maioria dos pacientes atendida nas clínicas usava, predominantemente, a cocaína na forma de crack (fumada)3. Cada uma destas vias de administração apresenta diferenças, vistas adiante, tanto na quantidade e qualidade dos efeitos esperados quanto nos riscos de complicações associa­ das. Quanto maior e mais rápido o início e duração dos efeitos, maior é a proba­ bilidade de dependência6.

7 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

E feitos

do

U so A g u d o

Absorção, Metabolismo e Excreção Quando a cocaína é tomada oralmente (mascada) sua absorção é lenta e in­ completa: requer mais de 1 hora e 75% da droga absorvida é rapidamente metabolizada no fígado logo na sua primeira passagem por ali. Somente 25% da droga ingerida alcançam o cérebro, e isso requer um longo período de tempo. Por isso não existe, nessa forma de administração, o sentimento de rush comum a outras formas2. A cocaína aspirada também é pobremente absorvida por dois motivos: somente uma pequena quantidade atravessa a mucosa nasal; e, a vasoconstrição, gerada pela própria cocaína, acaba limitando sua absorção. De 20 a 30% da droga são absorvidos e o pico de concentração nos níveis sangüíneos acontece entre 30 e 60 minutos. Os efeitos duram também entre 30 e 60 minutos2. Obviamente, quando injetada, a cocaína cruza todas as barreiras de absorção e alcança a corrente sangüínea imediatamente. O tempo que leva para atingir o cérebro e instalar seus efeitos é entre 30 a 60 segundos2. Produz um rápido, pode­ roso e breve efeito. Por essa razão, foi uma das formas de uso preferidas entre os usuários compulsivos7. Entretanto, para os consumidores ainda mais compulsivos, a via de adminis­ tração preferida é a pulmonar7. A absorção da cocaína vaporizada e fumada é rá­ pida e quase completa2. Os pulmões provêm uma grande área e a circulação do sangue dos pulmões até o cérebro é rápida7. Os efeitos se instalam em segundos e duram de 5 a 10 minutos2. Por essas razões o uso do crack gera uma dependência mais rápida que o uso endovenoso7. Depois que a cocaína penetra no cérebro é rapidamente redistribuída para | outros tecidos2ese çoncentmnobaça n n se cérebro1. Durante a gravidez, a cocaíj na cruza a placenta e alcança, no bebê, níveis semelhantes aos da mãe2. As moléculas de cocaína são metabolizadas por enzimas no sangue e no fíga­ do. A atividade dessas enzimas é variável entre os indivíduos. Em geral, a cocaína é rapidamente eliminada pela urina: tem meia-vida de cerca de 1 hora7. Seu prin­ cipal metabólito pode ser detectado em exames de urina até 3 dias depois do uso; em usuários crônicos, até 22 dias2. Há determinados grupos de pacientes, com mecanismos de metabolização deficientes, que são mais vulneráveis aos efeitos tóxicos da cocaína: idosos, pa­ cientes com doenças no fígado, mulheres grávidas e crianças. Na presença de ál­ cool, um outro metabólito ativo tóxico é formado, cuja potência é semelhante à da cocaína. Por isso, o uso combinado de cocaína e álcool aumenta o risco de toxicidade da cocaína8.

Efeitos Farmacológicos Na farmacologia, a cocaína tem três ações principais: anestésico local; vasoconstritor e um poderoso psicoestimulante2.

Cocaína e Crack

»71

Efeito Anestésico A cocaína é o anestésico local preferido para determinadas cirurgias de gar­ ganta, devido às suas propriedades anestésicas e vasoconstritoras (que reduzem o sangramento). Apesar de relativamente segura quando usada topicamente, uma quantidade significativa de cocaína pode entrar na corrente sangüínea e, em pes­ soas sensíveis, provocar estimulação do sistema nervoso central, psicose tóxica e, em raríssimas ocasiões, morte9. \ ' \ . ■/">- >

Efeitos Cardiovasculares

"

A cocaína pode produzir alterações importantes no sistema cardiovascular, aumentando os níveis de adrenalina e provocando vasoconstrição. Os efeitos ini­ ciais são taquicardia e aumento da pressão arterial. Ao mesmo tempo em que o coração está sendo estimulado a trabalhar mais, os efeitos da vasoconstrição pri­ vam o músculo cardíaco do sangue necessário. Essa combinação pode causar grave arritmia ou ataque cardíaco (mesmo em jovens usuários). Outros processos degenerativos no coração e vasos sangüíneos foram descritos em usuários crôni­ cos. Além disso, a vasoconstrição pode causar danos a outros órgãos: aos pulmões de indivíduos que fumam a cocaína, destruição da cartilagem nasal daqueles que a aspiram e danos ao trato gastrintestinal9.

Efeitos sobre o Sistema Nervoso Central A cocaína age no sistema nervoso central de duas formas: causando impacto no sistema neurotransmissor e nos mecanismos de tolerância e dependência. Pro­ duz uma ativação nos sistemas de dopamina, norepinefrina e serotonina8. No funcionamento normal, a dopamina, durante o repouso, acumula-se em vesículas (bolsas) dentro dos neurônios. Quando estes neurônios são ativados, a dopamina atravessa a membrana do neurônio onde está e liga-se aos receptores do próximo neurônio (pós-sináptico), ativando-o e provocando nele várias alte­ rações. Depois disso, a dopamina retorna e é recapturada pelo neurônio présináptico (volta para onde estava) para ser utilizada novamente numa próxima transmissão. Quando a cocaína chega a essas células, o funcionamento delas altera totalmente10. A cocaína bloqueia a recaptação da dopamina, fazendo com que esta permaneça na fenda sináptica por mais tempo, estimulando os recep­ tores8. Com o uso continuado, esse sistema passa a necessitar da droga para exer­ cer suas funções e os estímulos naturais para ativá-lo tornam-se insuficientes10. O uso crônico de estimulantes resulta no esvaziamento dos neurotransmissores. As sinapses operam usando um sistema de feed back negativo. Logo, mudanças compensatórias ocorrem para permitir que os neurônios se adaptem às alte­ rações causadas8. As conseqüências destes efeitos serão vistas nos efeitos cardiovasculares e psicoativos. Além da dependência, a toxicidade do sistema nervoso central pode causar dores de cabeça, perda de consciência temporária, convulsões e morte; alguns desses efei­ tos talvez sejam devidos ao aumento da temperatura corporal causado pela droga9.

7 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Efeitos Psicoativos que Favorecem a Dependência Os efeitos estimulantes da cocaína parecem aumentar as habilidades físicas e mentais dos usuários. Eles experimentam euforia, exaltação da energia e da libi­ do, diminuição do apetite, exacerbação do estado de alerta e aumento da auto­ confiança. Altas doses de cocaína intensificam a euforia, a agilidade, a verbosidade, os comportamentos estereotipados e alteram o comportamento sexual8. Esses efei­ tos positivos encorajam o uso contínuo e a dependência dessa droga. Esses sentimentos de alegria e confiança causados pela cocaína podem trans­ formar-se facilmente em irritabilidade, inquietude e confusão. O uso da cocaína aumenta o risco de suicídio, traumas maiores e crimes violentos9. Os diversos efeitos do uso agudo da cocaína estão resumidos no Quadro 5.1. Q u a d ro 5.1 - Principais Efeitos do Uso Agudo da Cocaína e do Crack1 Sistemas

Efeitos

Geral: Psicológico

• Euforia • Sensação de bem-estar • Estimulação mental e motora (ficar "ligado") • Aumento da auto-estima • Agressividade • Irritabilidade • Inquietação • Sensação de anestesia

Geral: Físico

• Aumento do tamanho das pupilas • Sudorese • Diminuição do apetite • Diminuição da irrigação sangüínea nos órgãos

Neurológico

• Tiques • Coordenação motora diminuída • Derrame cerebral • Convulsão • Dor de cabeça • Desmaio • Tontura • Tremores • Tinido no ouvido • Visão embaçada

Psíquico

• Desconfiança e sentimento de perseguição ("nóia") • Depressão (efeito rebote da intensa excitação)

Cardiovascular

• Aumento dos batimentos cardíacos • Batimento cardíaco irregular • Aumento da pressão arterial • Ataque cardíaco

Social

• Isolamento • Falar muito • Desinibição

Respiratório

• Parada respiratória • Tosse

Cocaína e Crack ■ 7 3

E feito s

do

U so C rô n ico

O uso prolongado da cocaína faz com que o sistema nervoso central promova algumas modificações para adaptar-se à nova situação. Três fenômenos podem ser observados: a tolerância, a sensibilização e o kindling.

Tolerância É a necessidade de doses cada vez maiores para se obter o efeito esperado. No caso da cocaína, a tolerância aparece para os efeitos euforizantes e cardio­ vasculares. A sensação de euforia desaparece completamente com o uso de doses regulares. A tolerância aos efeitos cardiovasculares é parcial: com o uso repetido, há diminuição da freqüência cardíaca, apesar de ainda manter-se aci­ ma da média. A tolerância resulta de adaptações neurofuncionais à ação prolongada da co­ caína. O aumento da dopamina na fenda sináptica decorre do bloqueio dos trans­ portadores da recaptação dopaminérgica. Em resposta, há uma diminuição dos disparos neuronais. O resultado é a depleção dos níveis de dopamina extracelular e o aumento do limiar de auto-estimulação.

Sensibilização É a exacerbação da atividade motora e dos comportamentos estereotipados após a exposição a doses repetidas de cocaína. A depleção dopaminérgica, resul­ tado do uso crônico de cocaína, provoca alterações anatômicas e funcionais nos receptores neuronais: há um aumento do número e da sensibilidade dos recepto­ res pós-sinápticos de dopamina. Com a administração da cocaína, a dopamina liberada na fenda, além de permanecer mais tempo ali, encontrará um número maior de receptores mais sensíveis para estimular.

Kindling O processo de sensibilização também pode levar ao aparecimento de convul­ sões, em grande parte como resultado de um fenômeno chamado kindling. Neurônios de determinadas regiões do cérebro expostos intermitentemente às propriedades anestésicas da cocaína, tomam-se mais sensíveis aos seus efeitos e disparam com maior rapidez a cada exposição. Com o uso crônico, a resposta neuronal é intensa, mesmo perante baixas doses da substância. O sistema límbico tem seu funcionamento elétrico alterado e essa disfunção pode se espalhar, cau­ sando convulsões generalizadas.

Complicações Físicas Como se viu, a cocaína - e outros estimulantes - são amplamente distribuí­ dos por todo o corpo e as maiores concentrações acontecem no cérebro, baço,

7 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool...

rins e pulmões. A ativação do sistema nervoso simpático provoca uma resposta de fuga ou luta, que afeta o coração, os pulmões, o sistema de vascularização e até mesmo a performance sexual. Os efeitos agudos de grandes doses ou mes­ mo os efeitos cumulativos do uso crônico podem deixar importantes seqüe­ las810, a saber:

Cardiovasculares • • • • • •

Hipertensão Arritmias Cardiomiopatia e miocardite Infarto do miocárdio Isquemia do miocárdio Endocardite

Sistema Nervoso Central • • • • • • • • • •

Dores de cabeça Convulsões Hemorragia cerebral Infarto cerebral Edema cerebral Atrofia cerebral Encefalopatia tóxica/coma Transtornos dos movimentos (tiques, reações distônicas, coréias) Encefalites fúngicas Abscessos cerebrais

Gastrintestinais • • • • •

Náuseas, vômitos e diarréia Anorexia Má nutrição Isquemia intestinal Perfuração do duodeno

Cabeça e Pescoço • • • • • •

Ulceração da gengiva Midríase Erosões no esmalte dentário Alterações no olfato Rinite crônica Perfuração do septo nasal

Sistema Renal • Falha aguda renal

Sistema Endócrino • Diminuição dos níveis de prolactina • Elevação dos níveis de tirosina

Sistema Respiratório • • • • • • • • • • • • • • • • •

Tosse crônica Dores torácicas Hemoptise Pneumotórax Hemopneumotórax Pneumomediastino Pneumopericárdio Piora da asma Lesões nas vias aéreas Deterioração das funções pulmonares Bronqueolite obliterante Edema pulmonar Hemorragia pulmonar Rinite alérgica e /ou vasomotora crônica Ulceração ou perfuração do septo nasal Sinusite Colapso nasal

Sistema Reprodutor Obstétricos • Aborto espontâneo • Placenta prévia • Ruptura prematura das membranas

Fetais • Retardo do crescimento intra-uterino • Má formação congênita

Neonatais • Infarto cerebral • Retardo do desenvolvimento neurológico • Síndrome da morte súbita

76 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Infecções (decorrentes de compartilhamento de seringas) • • • •

HIV Hepatite B e/ou C Tétano Contaminação por bactérias que se instalam no coração e válvulas

Outros • Hipertermia • Morte súbita • Disfunções sexuais

Overdose A maioria dos usuários capazes de controlar os efeitos da cocaína prefere a via nasal e utiliza menos que 250mg por vez. Essa dosagem causa um pequeno au­ mento da freqüência cardíaca e da pressão arterial. Não há alterações significati­ vas na rede capilar e na função pulmonar. Psiquicamente, há uma elevação da euforia, da sensação de bem-estar, da capacidade cognitiva, da auto-estima e do desejo sexual. O apetite diminui. Sudorese, tremores leves de extremidades e dila­ tação das pupilas também podem ser observados. Uma dose suficientemente alta pode levar à falência de um ou mais órgãos do corpo, levando à overdose, que pode acometer qualquer tipo de usuário (crônico, even­ tual ou iniciante). O mecanismo é a hiperestimulação do sistema nervoso simpático, por meio do bloqueio da recaptação das catecolaminas. Os principais sistemas envol­ vidos na overdose são o circulatório, o nervoso central, o renal e o térmico. A dose letal de cocaína depende muito da via de administração1. Para o uso oral é de 1 a l,2g de cocaína pura6. O mais importante parece ser o quão rápido acontece o aumento dos níveis da droga no cérebro1. Fatores como a tolerância do indivíduo, presença de patologias (insuficiência coronariana, por exemplo) e o grau de pureza da droga têm importante influência sobre a ocorrência da overdose?. A overdose acontece em duas fases: uma excitação inicial é seguida por fortes dores de cabeça, náuseas, vômitos e convulsões severas. A essa fase, segue-se a perda de consciência, depressão respiratória e falha cardíaca, levando à morte. A morte pode ser muito rápida (de 2 a 3 minutos) ou durar cerca de meia hora. Al­ guém que sobreviva por mais de 3 horas tem maior probabilidade de recupera­ ção. Porém, se a depressão respiratória tiver sido prolongada, provavelmente causará algum dano cerebral devido à falta de oxigenação1.

Complicações Psiquiátricas Altas doses de cocaína podem provocar alterações severas de comportamento devido ao prejuízo da capacidade de julgamento, da memória e do controle do pensamento (o usuário parece muito confuso). A sensação intensa de medo ou

Cocaína e Crack ■ 7 7

paranóia pode levar o indivíduo a recorrer à violência. Manifestações psicóticas incluem alucinações e delírios que podem levar ao suicídio. Formigamento e sen­ sação de insetos rastejando sobre ou sob a pele podem levar a escoriações. Ansie­ dade, insônia e depressão são exacerbadas com o aumento do uso. Entre uma ingestão e outra, os usuários ficam irritáveis e disfóricos6. Transtornos psiquiátricos conhecidos podem ser exacerbados com o uso da cocaína e outros estimulantes. Pacientes esquizofrênicos têm maior probabilidade de recair e os transtornos de pânico podem aumentar em intensidade e freqüên­ cia. O uso de drogas freqüentemente representa uma tentativa de manejar sinto­ mas psiquiátricos já existentes (hipótese da automedicação). Os usuários de crack têm maior incidência de problemas psiquiátricos, psicoses e comportamento violento que usuários de outras formas de cocaína6.

Complicações Sociais Nas décadas de 60 e 70 pensava-se que os estimulantes promoviam o convívio e eram utilizados como “drogas de festas”. As pessoas os usavam inicialmente para reduzir a inibição social e promover a comunicação interpessoal. No entanto, o uso continuado provoca paranóia. Logo, os usuários passam a evitar aqueles que jul­ gam poder “prejudicá-los”6.Várias são as conseqüências sociais do uso da cocaína6: • Menor participação social. • Menor capacidade de julgamento, resultando em dificuldades profissionais, familiares, sociais e comportamentos de risco. • Prejuízo da capacidade para o trabalho. • Comportamento violento - é a principal causa de morte entre os usuários. As principais mortes são devidas a acidentes, suicídios e homicídios. • Atividade criminosa - roubo para manutenção do uso. • Prostituição, como moeda de troca pela droga. • Comportamento sexual de risco - sexo desprotegido, com múltiplos parceiros. • Disseminação de doenças e infecções - o uso da cocaína/crack está associa­ do à epidemia do vírus HIV de duas maneiras: pelo uso de agulhas e serin­ gas compartilhadas e pelo sexo indiscriminado e desprotegido. • Efeitos sobre as crianças - maus tratos, maus cuidados, abuso, prejuízos no desenvolvimento, risco destas crianças tornarem-se também dependentes. • Rompimento de vínculos familiares. • Custos econômicos: internações, tratamento ao usuário e seus familiares. O Quadro 5.2 apresenta um resumo dos principais efeitos do uso crônico da cocaína e do crack.

S ín dro m e

de

A

b stin ên cia

Em 1986, Gawin e Kleber propuseram o primeiro modelo de apresentação e evolução clínica da síndrome de abstinência da cocaína. Dividiram a síndrome em três fases - crash, abstinência e extinção - sendo que a primeira começa ime­ diatamente após o último uso e pode durar muitos meses810.

78 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Q u ad ro 5 .2 -

Principais Efeitos do Uso Crônico da Cocaína e do Crack1

Sistemas

Efeitos

Geral: Psicológico

• • • • • • • • •

Irritabilidade Agressividade Inquietação Irresponsabilidade Mentiras Aumento dos "segredos" Diminuição dos cuidados consigo (higiene pessoal) Perda de valores morais e sociais Diminuição do apetite sexual

Geral: Físico

• • • • • • • •

Insônia Infecções (AIDS, hepatite, etc.; cocaína injetada) Coriza (cocaína aspirada) Perfuração do septo nasal (cocaína aspirada) Sinusite Diminuição do apetite Perda de peso Diminuição da irrigação sangüínea nos órgãos

Neurológico

• • • • • • • • •

Dor de cabeça Tontura Visão embaçada Tinido no ouvido Tremores Atenção diminuída Falta de concentração Convulsão Derrame cerebral

Respiratório

• •

Tosse Infecções pulmonares

Psíquico

• • • •

Depressão Ansiedade Psicose Estados confusionais

Nutricional

• •

Diminuição da vitamina B6 Desnutrição

Cardiovascular

• • •

Infarto Cardiopatia Batimento cardíaco irregular

Obstétrico: Mãe

• •

Placenta prévia Aborto espontâneo

Obstétrico: Feto



Baixo peso fetal Sofrimento fetal Nascimento prematuro

• •

Cocaína e Crack ■ 7 9

Crash Ocorre uma drástica redução do humor e da energia, na forma de lentificação e fadiga, de 15 a 30 minutos após o último uso. É causada pela rápida depleção da dopamina em nível sináptico. Os usuários experimentam o craving (“fissura”), de­ pressão, ansiedade e paranóia. O craving por estimulantes diminui de 1 a 4 horas após e é substituído por um forte desejo de dormir. A última parte dessa fase con­ siste em uma hipersonolência, que dura de 8 horas a 4 dias e normaliza o humor.

Abstinência Esta fase começa de 12 a 96 horas após o crash e pode durar de 2 até 12 semanas. Decorre do aumento do número e da sensibilidade dos receptores de dopamina. A anedonia é importante nesse período e contrasta com as memórias eufóricas do uso. A presença de fatores e situações desencadeadores de craving normalmente suplanta o desejo de se manter em abstinência e as recaídas são comuns nessa fase. Ansiedade, hiper/hiposonia, hiperfagia e alterações psicomotoras (tremores, dores musculares, movimentos involuntários) são outros sintomas típicos dessa fase.

Extinção Nesta fase, ocorre a resolução completa dos sinais e sintomas físicos. O craving é o sintoma residual que aparece eventualmente, condicionado a lembranças do uso e seus efeitos. Seu desaparecimento é gradual e pode durar meses ou anos.

P rincipais C o m o r b id a d es É comum encontrarmos usuários de cocaína com sintomas psiquiátricos. Os estudos epidemiológicos que descrevem esta associação mostram taxas de prevalência variáveis, conforme os locais onde os estudos foram feitos. Pacientes em clínicas, quando comparados aos usuários da comunidade, apresentam maior prevalência de distúrbios psiquiátricos. O fator que contribui para isso é o fato de que as pessoas mais doentes buscam mais tratamento. Porém, mesmo os estudos conduzidos entre os usuários da comunidade revelam uma alta taxa de comorbidade entre essa população: 76% dos usuários apresentam alguma comorbidade psiquiá­ trica, segundo o ECA (estudo comunitário realizado nos Estados Unidos). Essa taxa é 11 vezes maior do que a encontrada na população geral, duas vezes maior do que a encontrada entre pessoas dependentes de álcool e quatro vezes maior do que a encontrada em pessoas dependentes de outras drogas. As comorbidades associadas apontadas pelo ECA são os transtornos afetivos, transtornos de ansie­ dade, esquizofrenia e transtornos de personalidade3.

Transtornos Afetivos Embora o diagnóstico (na vida e atual) de depressão seja grande em pacien­ tes em tratamento para dependência de cocaína, a maioria deles não preenche

80 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. critérios diagnósticos para depressão. Os sintomas depressivos são, na maior parte das vezes, devidos a dois principais fatores: ao efeito biológico da absti­ nência da cocaína (que melhora após algumas semanas) e à condição psicossocial associada ao uso da cocaína. Os pacientes com sintomas depressivos são espe­ cialmente propensos a recaídas e, por isso, deve-se considerar a terapia farma­ cológica com antidepressivos como complemento à psicoterapia. Os usuários de cocaína apresentam também uma maior incidência de transtorno bipolar e podem se apresentar para tratamento em qualquer uma das fases. Muitos se apresentam na fase hipomaníaca. O tratamento desses pacientes deve incluir um com­ ponente educacional que objetiva uma melhor adesão ao tratamento. Nessa aborda­ gem, informações sobre ambos os transtornos são apresentadas ao paciente.

Transtornos de Ansiedade O diagnóstico de transtorno de ansiedade generalizada é difícil devido à seme­ lhança com os sintomas de abstinência. Também são relatadas crises de pânico du­ rante a intoxicação ou na fase de abstinência da cocaína, ocorrendo, em alguns casos, uma evolução do distúrbio ansioso independente da continuidade do consumo.

Transtornos de Personalidade Os transtornos de personalidade anti-social, borderlinee narcisista são os mais comumente associados ao uso de cocaína. Esse diagnóstico também é difícil de ser feito, já que o paciente, em início de tratamento, apresenta vários sintomas semelhantes aos de um transtorno de personalidade, tais como: negação, culpar os outros, mentir, minimizar os problemas, raiva, vitimização e grandiosidade. Além disso, muitos usuários estão envolvidos em várias atividades anti-sociais.

Esquizofrenia A prevalência de esquizofrenia entre os usuários de cocaína é maior do que aquela encontrada na população em geral. Varia de 1 a 17%, conforme o estudo. Os pacientes diagnosticados como esquizofrênicos também abusam mais de co­ caína: de 10 a 50%. Esses pacientes têm um pior diagnóstico, sua adesão ao trata­ mento é menor e têm maior risco de suicídio. A manifestação dos sintomas da esquizofrenia nesses pacientes é mais severa. A cocaína age nas regiões cerebrais onde os esquizofrênicos apresentam anormalidades e pode, aparentemente, potencializar os efeitos colaterais dos neurolépticos, incluindo a discinesia tardia.

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade se inicia na infância e pode continuar na vida adulta. Os sintomas são de baixa atenção, impulsividade, inquie-

Cocaína e Crack ■ 81

tação e irritabilidade. Um estudo mostrou que 5% dos usuários poderiam fazer uso da cocaína como uma forma de medicação.

P rincípios G erais

de

T ra ta m en to

Tratamento Emergencial dos Quadros Agudos Associados à Cocaína Uma avaliação clínica completa é o primeiro passo a ser dado pelo profissio­ nal responsável. Essa avaliação deve incluir uma rápida obtenção do quadro geral do paciente: níveis glicêmicos, temperatura, quadro cardíaco, funções renais, fun­ ções hepáticas e exames completos (hemograma, eletrólitos e outros que possam ser considerados necessários)6. Os transtornos psiquiátricos como inquietação aguda e predomínio da ansie­ dade podem ser tratados com sedativos benzodiazepínicos. Quadros de agitação e/ou heteroagressividade devem ser tratados com neurolépticos (que podem ser associados aos benzodiazepínicos). Quadros hipertensos severos devem ser tratados prontamente, a fim de garantir a vasodilatação coronariana. Deve-se evitar a ação vasodilatadora abdominal, caso a cocaína tenha sido utilizada oralmente, pois isso potencializaria a sua absorção. As cardiopatias devem seguir os procedimentos protocolares do serviço, to­ mando-se cuidado na introdução da terapia trombolítica em pacientes usuários de vias endovenosas. Podem ser utilizados bloqueadores alfa/beta-adrenérgicos, bloqueadores de cálcio e cardioversão nas arritmias. As convulsões de curta duração devem ser tratadas com diazepam intravenoso. A hipoglicemia e hipertermia devem ser descartadas e efetuada a investigação de hemorragias intracerebrais. O coma anestésico e a entubação são procedimentos de escolha para convulsões persistentes com hipertermia. A falência renal deve ser prevenida com o auxílio da hemodiálise. O paciente com hipertermia severa deve receber diazepam e tiamina, além das medidas de resfriamento. Os pacientes que não responderam ao diazepam devem receber supositório retal de acetaminofeno. O paciente que ingeriu cocaína para livrar-se de flagrante policial deve receber car­ vão ativado, se ainda estiver assintomático. Aretirada endoscópica pode romper o invó­ lucro e óleos podem dissolvê-lo. A retirada cirúrgica de grandes quantidades pode ser indicada. Em caso de overdose;ficam contra-indicados vasodilatadores de ação entérica.

Tratamento Farmacológico da Dependência de Cocaína A farmacoterapia não é para todos os usuários de cocaína e deve ser reservada para aqueles cujos sintomas responderiam às medicações. Várias medicações foram propostas, mas as evidências científicas dos benefícios ainda são discutíveis. Ao se decidir pelo tratamento farmacológico, deve-se levar em conta o eventual diag­ nóstico psiquiátrico concomitante (comorbidade) e a presença de sintomas de abs­ tinência de cocaína3. Os medicamentos adjuntos utilizados na dependência da cocaína são: agentes dopaminérgicos, agentes antidepressivos, agentes antipsicóticos e os agentes antiepilépticos10.

82 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Agentes Dopaminérgicos Os agentes dopaminérgicos, aparentemente, são mais úteis em melhorar os sinto­ mas de abstinência imediatos após uso intenso de cocaína3. O objetivo do uso destes medicamentos é reverter o estado de desequilíbrio provocado pelo consumo crônico da cocaína no sistema dopaminérgico. Como vimos, o neurônio extensivamente esti­ mulado pela cocaína apresenta um esvaziamento dos estoques de dopamina, impe­ dindo sua ativação pelos estímulos naturais. Avantagem destes medicamentos é o efeito de ação imediata, teoricamente. A droga padrão utilizada é a bromocriptina10. Outras medicações estudadas foram a amantadina, a L-dopa, o metilfenidato, o mazindol e o pergolide3e nenhuma delas teve o efeito terapêutico confirmado.

Agentes Antidepressivos A primeira indicação para uso desses medicamentos é a presença de quadro depressivo. A indicação se torna ainda mais precisa na presença de transtornos persistentes de humor: quando os sintomas depressivos e ansiosos persistem após um prazo mínimo de 2 semanas depois de ter sido promovida a abstinência. Um inconveniente deste grupo de medicamentos é que sua ação tem início lento (2 a 3 semanas após ter sido atingida a dose desejada). O medicamento padrão é a fluoxetina, que age inibindo a recaptação de serotonina, resultando num efeito modulador da resposta do sistema dopaminérgico.

Agentes Antipsicóticos (Antidopaminérgicos) Este grupo de agentes atua bloqueando a transmissão dopaminérgica em de­ terminadas regiões cerebrais, as quais apresentam importantes desequilíbrios durante o consumo de cocaína. Os quadros paranóides seriam uma conseqüên­ cia disso. Quando utilizados em dependentes, estes medicamentos atuam redu­ zindo a euforia durante a intoxicação pela cocaína. No entanto, devido ao risco de toxicidade promovido por esses agentes (principalmente a discinesia tardia), eles se tornaram incompatíveis com a reabilitação do paciente dependente. A olanzapina parece ter um efeito terapêutico significativo.

Agentes Antiepilépticos (Carbamazepina) A carbamazepina é um anticonvulsivante e também utilizada na psiquiatria como um estabilizador do humor. Passou a ser uma opção terapêutica para o tra­ tamento da dependência de cocaína a partir da hipótese de que o craving pode ser uma manifestação comportamental do kindling. Teoriza-se que o craving e a intensidade dos sintomas de abstinência sejam diretamente proporcionais à supersensibilidade induzida pela cocaína. Estudos com animais demonstraram que a carbamazepina pode reduzir esta supersensibilidade dos receptores dopaminérgicos. No entanto, resultados de outros estudos não foram encorajadores. Parece que a carbamazepina é capaz de bloquear o desenvolvimento, mas não a manifestação do kindling, ou seja, a carbamazepina precisaria ser adminis­ trada logo ao primeiro contato do usuário com a substância e tal ação profilática não tem qualquer embasamento ou indicação nesse momento11.

Cocaína e Crack ■ 8 3

Não há um tratamento medicamentoso específico para a dependência de co­ caína até o momento. Esses grupos de agentes disponíveis procuram atuar sobre as alterações neurofisiológicas desencadeadas pela substância (e muitas vezes sem sucesso). Seus mecanismos de ação são capazes de bloquear ou antagonizar fe­ nômenos como o craving apenas de maneira superficial. O alívio dos sintomas para aqueles que desejam interromper o uso ainda é desprovido de garantias. Es­ tudos estão sendo conduzidos na tentativa de buscar uma maneira de impedir que a cocaína chegue ao seu local de ação (imunobiologia)11.

Dissulfiram (Antietanol®) Estudo recente mostrou que o dissulfiran diminui a vontade de uso de cocaí­ na, mesmo em pacientes sem problemas com álcool.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. McKIM, W. A. Drugs and Behavior: An Introduction to Behavioral Pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice Hall, 2000. 400p. 2. JULIEN, R.M. A primer of drug action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects of psychoactive drugs. 7. ed. Nova York: W. H. Freeman and Company, 1995. 511 p. 3. LARANJEIRA, R., NICASTRI, 5. Abuso e dependência deÁlcooi e Drogas. In: ALMEIDA, O., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 4. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. Pes­ quisa domiciliar sobre o uso de drogas no Estado de São Paulo: Aspectos da dependência. Boletim CEBRID, n. 44, maio 2001. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/ BoletimCebrid. Acesso em 17/03/2002. 5. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. IV Levantamento sobre o consumo de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua. Boletim CEBRID, n. 36, abr./ago.1999. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/ BoletimCebrid. Acesso em 17/03/2002. 6. LARANJEIRA, R. R., DUNN, J., RIBEIROARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N. J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001. 7. RAY, O., KSIR, C. Drugs, Society, and Human Behavior. 8. ed. Estados Unidos: WCB McGrawHill, 1999. 494p. 8. WEAVER. M.F., SCHNOLL, S.H. Stimulants: amphetamines and cocaine. In: McCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions-A Comprehensive Guidebook. Specific Drugs o f Abuse: pharmacological and clinical aspects. Oxford: Oxford University Press, 1999. Cap. 6, p. 105-120. 9. HANSON, G., VENTURELLI, P.J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 10. FOCCHI, G. R. A., CABRAL, A. C. J., LEITE, M. C. Tratamento farmacológico nas dependên­ cias- Enfoque na dependência de cocaína. In: FOCCHI, G. R. A. et al. Dependência Quími­ ca: novos modelos de tratamento. 1. ed. São Paulo: Roca, 2001. Cap. 3, p. 49-64. 11. RIBEIRO ARAÚJO, M., LARANJEIRA, R, R., DUNN, J. Cocaína: bases biológicas da adminis­ tração, abstinência e tratamento. J. Bras. Psiq.f 47(10):497-511, 1998. 12. LARANJEIRA, R. R., JUNGERMAN, F., DUNN, J. Drogas: maconha, cocaína e crack. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. 67p.

C A P ÍT U L O

Opióides S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isã o G er a l O termo opióide refere-se a qualquer droga que tenha pro­ priedades semelhantes ao ópio ou a seu princípio ativo, a mor­ fina1. Otermo opiáceoé freqüentemente utilizado para se referir aos opióides naturais e semi-sintéticos2. Estas drogas também são comumente chamadas de narcóticos e produzem analgesia (perda da sensibilidade à dor) e adormecimento. Este nome (narcótico) distinguia estas drogas de outros analgésicos que não provocam adormecimento (como a aspirina, por exem­ plo). No entanto, com o passar dos anos, o termo narcótico adquiriu um novo significado e por isso não tem sido mais uti­ lizado para se referir a essas drogas1. De origem grega, a palavra ópio significa “suco”. Esse nome deriva do modo como a substância é obtida: ao se cortar a pa­ poula, é obtida uma seiva leitosa, que é colocada para secar. Entre os vários alcalóides presentes nessa preparação, encon­ tramos a morfina (nome derivado da figura mitológica grega de Morfeu, deus dos sonhos) e a codeína. Por meio de modifi­ cações nas moléculas dessas substâncias naturais, obtêm-se os opióides semi-sintéticos, como a heroína e os opióides sin­ téticos, como a meperidina, a metadona e outros. A nalorfina, a naltrexona e a naloxona são conhecidas como antagonistas opióides e têm capacidade de bloquear ou anular seus efei­ tos2'3. No Quadro 6.1, vemos a classificação geral. O uso de opióides pela humanidade confunde-se com sua própria origem. A papoula, conhecida como dormideira, era cultivada nos “fundos de quintal” da Antigüidade e con­ sumida sem restrições pelas famílias. Entre os egípcios, os

Opióides ■ 8 5

Q u ad ro 6.1 -

Classificação Geral dos Opióides

Opióides naturais Opióides semi-sintéticos Opióides sintéticos Agonistas-antagonistas de opióides Antagonistas opióides

• Ópio, morfina, codeína, tebaína • Heroína, oxicodona, hidromorfona, oximorfona, hidroxicodona • Metadona, meperidina, fentanil • Pentazocina, nalbufina, buprenorfina • Naloxona, naltrexona, nalorfina

opióides eram utilizados inclusive na primeira infância, com finalidade de ame­ nizar o choro e a agitação. Apesar do uso difundido (profano ou sagrado), não há relatos médicos de dependência ou abstinência para estas substâncias entre as diversas culturas do Mundo Antigo. No século XIX, milhões de chineses tomaramse dependentes com a entrada destas drogas no país. Nesse mesmo período, os opióides eram utilizados na Europa, na forma de pílulas ou dissolvidos em álcool (tintura de ópio). O aparecimento de apresentações injetáveis e a invenção da seringa hipodérmica tornaram a dependência e a abstinência de opióides um dos maiores problemas de saúde da atualidade. No Brasil, os opióides não são populares e complicações em salas de emergência são raras4. Clinicamente, os opióides são utilizados como potentes analgésicos, antitussígenos e antidiarréicos3. Nos Estados Unidos, a morfina e a codeína estão disponí­ veis legalmente somente com prescrição; a heroína é ilegal, não podendo ser prescrita ou utilizada. No Canadá, a morfina pode ser utilizada com prescrição médica e a codeína está disponível, em pequenas quantidades, em alguns medica­ mentos para dor e tosse, cuja compra não requer prescrição médica. Tanto no Canadá quanto no Reino Unido a heroína pode ser utilizada sob determinadas condições1.

D ados

de

E pid em io lo g ia

Entre 1995 e 1996, segundo o Projeto Brasil, que reúne entidades de combate à AIDS, o consumo de heroína entre usuários de drogas intravenosas aumentou 17% no Rio de laneiro e 5% em Santos. Contudo, segundo o Conselho Internacional de Entorpecentes (CONFEN), órgão ligado ao Ministério dalustiça (1988), “as evidências da presença da heroína no Brasil são baixas”. No mundo, o consumo aumenta e o custo/grama da heroína diminui2. Um artigo publicado no Jornal Brasileiro de Psiquiatria, em 1997, sugere que a heroína possa ser a próxima droga de abuso no Brasil. Em São Paulo, há muito tempo se sabe que parte da comunidade oriental que habita uma região central da cidade consome heroína. Outro grupo consumidor é o de indivíduos de classe média que viajam para os EUA, a Europa ou a Ásia e se tomam dependentes nesses países. Esse mesmo artigo relata, porém, o caso clínico de um paciente dependente que não pertence a nenhum desses grupos e alerta para a necessidade de vigilância e de organização de serviços e políticas preventivos5.

86 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool.

V

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A

d m in istr a ç ã o

Apesar de ser comum a utilização via oral do ópio (comido ou bebido) e da morfina (medicamentos), os opióides administrados dessa forma são menos efetivos que as mesmas dosagens administradas parenteralmente. Além da lenta absorção, a morfina administrada por via oral fica sujeita a um significante metabolismo já na sua primeira passagem pelo fígado, antes de atingir o cérebro. Clinicamente, essa forma de adminis­ tração é vantajosa, uma vez que fica mais fácil manter os níveis da droga no sangue1. Usuários de opióides preferem a via parenteral, uma vez que a droga, nesta forma de administração, atinge rapidamente altos níveis sangüíneos. A heroína (mas não a morfina) pode ser aspirada via intranasal. Há muitos anos, os chineses desenvolveram um método de fiimar ópio em cachimbos. Recentemente, com a epidemia de AIDS, muitos usuários, relutantes em utilizar agulhas, desenvolveram outra forma de fumar o ópio, que foi chamada de “caça ao dragão”: a heroína, quase pura, é aquecida numa chapa de metal e seu vapor é inalado com a ajuda de um tubo. Os usuários “caçam” a fumaça para que nada seja perdido1.

E feitos

do

U so A g u d o

Absorção, Metabolismo e Excreção Uma vez absorvida no sangue, a maior parte da droga se concentra nos pulmões, no fígado, no baço e uma grande parte se liga às proteínas do sangue. Na gravidez, estas drogas atravessam rapidamente a placenta e alcançam o feto1. Os opióides, em geral, são pouco solúveis em gorduras e, por isso, sua penetra­ ção no cérebro é lenta. Ao contrário da maioria, a molécula da heroína é altamente solúvel em gorduras e penetra no cérebro com rapidez e em grandes quantidades. Ali, a molécula da heroína é inativa, mas, por outro lado, é rapidamente transforma­ da em metabólitos (morfina e monoacetilmorfina). Como resultado, a heroína fica 10 vezes mais potente que a morfina. A codeína, da mesma forma, parece ter pouca ação direta sobre os receptores cerebrais e seus efeitos se estabelecem por meio de seus metabólitos, em especial a morfina. Os antagonistas opióides penetram no cére­ bro muito mais rapidamente que a morfina e nele alcançam altas concentrações1. A morfina é rapidamente metabolizada pelo fígado e seus efeitos têm duração de 4 a 5 horas, fator muito importante para pessoas dependentes, uma vez que precisam buscar e administrar a droga em intervalos de 3 a 5 horas6. Cerca de 10% da morfina são excretados inalterados; o restante é convertido em vários metabólitos, eliminados por meio da urina e das fezes, dentro de 24 horas. A meiavida da morfina é de cerca de 2 horas e a da codeína se situa entre 3 e 6 horas1. A meperidina é extensivamente metabolizada no fígado e seus metabólitos são eliminados pelos rins. Sua meia-vida é 3 horas e meia aproximadamente1. Cerca de 10% da metadona administrada são eliminados inalterados pela urina; se comparada a outros opióides, tem meia-vida longa, de 10 a 25 horas (ela se liga às proteínas do sangue e não se torna disponível para o metabolismo). Esse efeito de longa duração a torna ideal como tratamento terapêutico1.

Opióides ■ 8 7

Os testes de urina são capazes de detectar a presença da codeína, da morfina e de seus metabólitos. Suspeita-se do uso da heroína quando se detecta a presença tanto de codeína quanto de morfina (a heroína disponível nas ruas contém acetilcodeína, que é metabolizada em codeína e a heroína propriamente dita é metabolizada em morfina). Dependendo da droga utilizada, os testes podem de­ tectar seu uso 2 a 4 dias após a administração6.

Efeitos Farmacológicos Os opióides aliviam as dores por meio da ativação do mesmo grupo de recepto­ res, que são controlados por substâncias endógenas chamadas endorflnas. As endorfinas são pequenas proteínas (peptídeos) lançadas no cérebro e medula espinal em resposta ao estresse e à dor. Funcionam como transmissores e estimulam os receptores do tipo opióide. A ativação desses receptores (pelas endorfinas ou pelos opióides exógenos) bloqueia a transmissão da dor e altera sua percepção no “centro da dor” localizado no cérebro7. As beta-endorfinas, liberadas durante ati­ vidades físicas estressantes, por exemplo, aliviam a sensação de desconforto nor­ malmente esperada nestas circunstâncias4. O sistema de endorfína também parece sofrer influências psicológicas. É pos­ sível que o alívio de dor obtido com a administração de placebos ou da acupuntura se deva, em parte, à liberação de endorfinas. Isso sugere que fatores fisiológicos, psicológicos e farmacológicos estariam entrelaçados no manejo da dor, o que tornaria impossível lidar com a questão sem considerar todos esses fatores7. Apesar de os opióides serem analgésicos efetivos, causam alguns efeitos co­ laterais particularmente alarmantes. Assim, seu uso clínico é, em geral, limitado ao tratamento de dores moderadas e severas. Além disso, tenta-se diminuir a quantidade de opióides utilizada pela combinação com outros analgésicos, como aspirina e acetaminofeno (ingrediente ativo do Tylenol®). Com o uso continuado, desenvolve-se tolerância aos efeitos analgésicos da morfina e de outros opióides e, muitas vezes, é necessário um drástico escalonamento das doses7. Os opióides, por exemplo, são utilizados para outros tratamentos que não o da dor. Eles suprimem o centro da tosse no cérebro e, por isso, são efetivos antitussígenos; a codeína, por exemplo, é comumente adicionada a medica­ mentos com essa finalidade. Também tornam mais lenta a movimentação dos materiais contidos no intestino, podendo ser utilizados para alívio da diarréia. Assim, quando empregados cuidadosamente, são ferramentas terapêuticas bastante efetivas7. Seu efeito colateral mais comum é a constipação. Outros efeitos incluem sono­ lência, turvação mental, depressão respiratória, náuseas, vômitos, coceiras, difi­ culdade para urinar, queda da pressão arterial e contração das pupilas. Com a continuação do uso, desenvolve-se tolerância a muitos desses efeitos7. Os efeitos dos opióides no funcionamento do coração são pequenos, mas há leve diminuição da pressão sangüínea em decorrência da dilatação dos vasos sangüíneos periféricos. Em razão dessa dilatação, o rosto e o pescoço ficam vermelhos e quentes, podendo

88 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool. haver suores1. A utilização de um antagonista opióide pode bloquear e até mesmo reverter os efeitos dos opióides quando estes tiverem sido utilizados6,7. Apesar de a morfina levar o nome do deus dos sonhos, os opióides não aumen­ tam o sono. Sob circunstâncias normais, provocam uma sensação de sono. Expo­ sições agudas à morfina e à heroína, contudo, levam à insônia. O usuário até pode cochilar, mas logo despertará sem se sentir descansado. Por outro lado, são úteis para induzir o sono naqueles que se mantêm acordados em razão de dores1. O mais dramático quadro clínico decorrente do uso de opióides é a superdosagem (overdosé)} que pode ou não ser acidental. A tríade composta de coma, pupilas constritas e depressão respiratória sugere superdosagem de opióides. Edema pulmonar, hipoxia, hipotensão, hipotermia, hipotonia e morte são conseqüências da intoxicação aguda, que, portanto, constitui emergência clínica2.

Efeitos Psicoativos Normalmente, a primeira experiência com heroína provoca efeitos desagra­ dáveis, como náuseas, vômitos ou sensação de estar doente7. Estes sintomas se devem à estimulação de determinada área do cérebro que detecta impurezas no sangue e estimula o centro que provoca vômitos. Porém, os opióides deprimem este centro e bloqueiam sua ação (inibição do vômito). Como resultado, náuseas e vômitos, em geral, acontecem apenas na primeira administração da droga. Com o uso contínuo, estes sintomas diminuem1e, gradativamente, a euforia se sobre­ põe a eles7. Esse estado eufórico agradável inclui forte sensação de contentamen­ to, bem-estar e ausência de preocupações6. Usuários também reportam aumento da sensibilidade auditiva e visual, não com relação a sons ou luz, mas no tocante à “habilidade da mente em construir a partir do som orgânico e elaborar prazer intelectual”. Em altas doses, os opióides induzem um estado de transe, durante o qual os usuários têm visões ou sonhos. Usuários acreditam que o ópio ajuda no processo criativo. Essa intensa e momentânea sensação de prazer é resultado de altas concentrações de droga que alcançam repentinamente o cérebro. Alguns usuários a descrevem como um orgasmo no estômago ou no corpo inteiro1. Os opióides agem por meio do mecanismo de recompensa cerebral, que pro­ porciona ao usuário uma experiência que o cérebro compara a eventos muito importantes, como comer, beber ou fazer sexo. Ao usar opióides, muitos usuários podem estar tentando entorpecer uma dor, física ou psicológica, por meio de sua propriedade anestésica6. O que se tem, então, é um processo de desenvolvimento da dependência por meio de dois tipos de reforço: positivo e negativo. Reforço positivo é a recompensa que se consegue com determinado comportamento (a agradável euforia após a ad­ ministração da droga, por exemplo). Reforço negativo é a eliminação de um des­ conforto por meio de um comportamento específico (como o alívio da dor após a administração da droga). Nos usuários de heroína, os prontos e potentes efeitos eufóricos resultantes de uma dose intravenosa, combinados com o aparecimento de sintomas de abstinência (poucas horas depois) e com o rápido alívio destes por meio de outra injeção, levam ao desenvolvimento de forte dependência8.

Opióides ■ 8 9

E fe ito s d o

Uso C r ô n ic o

Complicações para o Usuário A heroína alivia a tensão e produz euforia apenas nos primeiros dias de admi­ nistração. Com a continuação do uso, ocorrem mudança para estados de humor desagradáveis e aumento dos sintomas psiquiátricos. Esses sentimentos negativos são aliviados por um breve período de 30 a 60 minutos após cada injeção. Além dessa “deterioração” do humor, há diminuição da atividade física e da interação social, além de aumento do isolamento e de comportamentos agressivos1. Uma importante mudança no padrão de vida dos usuários também pode acon­ tecer. Com doses moderadas de heroína ou morfina, indivíduos dependentes podem manter boa saúde e produtividade por longos períodos. Há numerosos casos de indivíduos nestas condições que foram capazes de alcançar sucesso e de desen­ volver carreiras brilhantes1. Mas há também quem sofra sérias conseqüências. Como os sintomas de abstinência começam 4 a 8 horas após a última administra­ ção, muitos dependentes mantêm um padrão de 3 a 4 aplicações diárias (1.000 a 1.400 aplicações por ano). A heroína é uma droga cara e o usuário pode gastar de US$ 30 a US$ 100 por dia. Além disso, não se sabe a quantidade nem qual é a qualidade da droga vendida nas ruas; sempre existirá, a cada aplicação, o risco de uma overdos&. Sendo a aplicação intravenosa a forma mais comum, existe risco de conta­ minações. Como analgésicos, os opióides podem mascarar importantes doenças, como a pneumonia, por exemplo. A falta de dinheiro ou de vontade de comer pode resultar em desnutrição e em doenças importantes. Se o usuário superar os perigos de overdose, contaminação, apreensão policial, infecções e desnutrição, poderá utilizar a droga por muitos anos8. Não há evidências de que o uso de opióides, a longo prazo, cause danos, a quaisquer tecidos ou sistemas orgânicos. Abscessos e infecções se devem à falta de técnicas de esterilização e não à droga, especificamente8.

Complicações Sociais Vários estudos associaram a dependência de heroína com atividades crimi­ nosas e alguns fatores contribuem para essa associação. Os efeitos farmacológi­ cos da heroína encorajam o comportamento anti-social, pois a diminuição da inibição leva as pessoas a se envolverem em atividades nas quais normalmente não se envolveriam. O alto custo da droga associado aos sintomas de abstinência, favorece o comportamento criminoso como forma de manter o uso7.

SíNDROME DE ABSTINÊNCIA A abstinência dos opióides possivelmente seja um dos mais incompreendidos aspectos do uso da droga. É provável que isso se deva às imagens mostradas em filmes e na literatura popular. Essa noção popular da severidade da abstinência da

90 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool... heroína vem dos anos 1920 a 1930, quando os dependentes da droga tinham mais acesso a ela e a utilizavam em quantidades maiores do que se faz hoje. Atualmente, poucos dependentes poderiam usar uma quantidade de droga suficiente para cau­ sar sintomas tão drásticos como os mostrados no cinema. Mesmo ria sua forma mais severa, a abstinência de heroína não é tão perigosa ou terrível como a do álcool ou a dos barbitúricos. De fato, a abstinência de opióides nunca é fatal como a do álcool1. A abstinência clássica de heroína acontece em estágios previsíveis. Inicia-se de 6 a 12 horas após a última administração da droga, atinge um pico entre 26 e 72 horas e, na maioria dos casos, se encerra em uma semana1. Os primeiros sinais são craving, inquietude e agitação. Cerca de 14 horas depois, começam os bocejos (que podem ser muito intensos) e perspiração e os olhos começam a lacrimejar. Dezesseis horas mais tarde, há intensificação dos sintomas anteriores mais piloereção, tremores, ondas de frio e calor, dores nos ossos e músculos e perda de apetite. Após 24 a 36 horas, além desses sintomas, ocorrem insônia, aumento da pressão arterial, da temperatura, das freqüências cardíaca e respiratória e náuseas. De 36 a 48 horas após a última administração, ocorrem também vômitos, diarréia, perda de peso, ejaculação e orgasmo espontâneos e aumento dos níveis de açúcar no sangue7*8. Estes sintomas diminuem progressivamente até desaparecerem1. Contudo, a compulsão para continuar usando a droga permanece muito forte7. A severidade da abstinência depende da dose diária e raramente é drástica como a descrição anterior. Os sintomas são os mesmos para todos os tipos de opióides e variam conforme a potência de cada um deles, ou seja, serão menos severos quanto menor for a potência do opióide utilizado. O desconforto pode ser instantaneamente interrompido com a administração de qualquer droga opióide e pode ser reduzido com o uso de álcool1.

P rincípios G erais

de

T ra ta m en to

Tratamento da Intoxicação Aguda A overdose por opióides, como já dito, é caracterizada por inconsciência, con­ tração pronunciada das pupilas, depressão respiratória e coma. É uma emergên­ cia psiquiátrica e deve receber intervenção imediata. A chegada do paciente ao pronto-socorro em tempo hábil e o manejo clínico adequado garantem um prog­ nóstico satisfatório ao paciente4. O paciente em coma deve ser atendido com uma abordagem adequada: avaliação dos aparelhos respiratório e cardíocirculatório, do grau do coma, de sinais de trauma­ tismo, de exames laboratoriais e do tipo e da quantidade do opióide utilizado. Outras investigações precisam ser feitas em usuários crônicos, pois eles podem apresentar problemas clínicos associados (pneumonia, tuberculose, doenças dos rins, etc.)4. As intoxicações leves requerem medidas de suporte até que o paciente recupere o estado de vigília. Casos graves de overdose requerem administração imediata de naloxona, antagonista opióide capaz de reverter a analgesia e a sedação, Na falta

Opióides ■

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de resposta a múltiplas doses de naloxona, outras causas para o coma precisam ser investigadas. O uso deste tipo de medicação pode desencadear a síndrome de abstinência em usuários crônicos.

Tratamento Farmacológico da Síndrome de Abstinência A síndrome de abstinência de opióides tem baixa letalidade na ausência de problemas clínicos associados. As medidas medicamentosas e de suporte são instituídas com o objetivo de proporcionar bem-estar ao paciente e prevenir com­ plicações clínicas4. O tratamento deve ocorrer em ambiente tranqüilo e iluminado, abrangendo as comorbidades detectadas e provendo aporte nutricional ao paciente. A clonidina é capaz de inibir atividades autonômas, como o lacrimejar, a rinorréia, a sudorese, a diarréia, os calafrios e a piloereção. A associação com algum benzodiazepínico me­ lhora as dores musculares, a insônia, a inquietação e a fissura pelos efeitos euforizantes. A metadona pode ser introduzida para abortar a crise por completo4.

Tratamento Farmacológico da Dependência A meta do tratamento farmacológico da dependência de opióides se baseia na desintoxicação, ou seja, consiste em possibilitar ao indivíduo se afastar da droga, de maneira gradual ou abrupta. Isso pode ser feito de várias formas2: • utilizando-se a própria droga, com redução progressiva das doses; • utilizando-se outras drogas que produzam tolerância cruzada com a droga empregada; • utilizando-se medicações que aliviem os sintomas de retirada da droga; • utilizando-se medicações que alterem os mecanismos responsáveis pelos sintomas de abstinência. O tratamento da dependência de heroína será considerado bem-sucedido se o dependente parar de usar a droga, não mais se associar a outros usuários, evitar atividades associadas ao uso, melhorar seu status profissional e for capaz de se engajar em relacionamentos sociais e familiares normais. Para muitos usuários, es­ sas metas podem ser atingidas com a substituição da droga por um opióide cujos efeitos tenham maior duração que heroína7. A metadona tem sido utilizada com esta finalidade. É um opióide sintético com meia-vida entre 15 e 40 horas2. En­ quanto os sintomas de abstinência para a heroína se iniciam em 6 horas, para a metadona se iniciam entre 24 e 48 horas, o que a torna conveniente por poder ser utilizada apenas uma vez ao dia7. Além disso, ela apresenta outras vantagens, como reduzir o uso de opióides não prescritos, reduzir comportamentos anti-sociais, suprimir os efeitos de abstinência, não interferir nas atividades cotidianas dos pacientes e ter baixo custo2.

92 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool... A metadona tem potencial de abuso por isso é administrada por via oral. Logo, o estabelecimento dos efeitos é muito lento para poder causar o rush da heroína, minimizando, assim, o risco de abuso dessa substância. Outras medicações utili­ zadas com a mesma finalidade são o LAAM (l-alfa-acetilmetadol) e a buprenorfina7. A metadona pode ser utilizada tanto para desintoxicação (uso por até 90 dias) como para manutenção (uso por mais de 3 meses). Esta segunda forma é utilizada em vários serviços da Europa e dos Estados Unidos e o tempo ideal para esse tipo de tratamento é de 6 a 24 meses2, o que nem sempre acontece. O tratamento com a metadona constitui uma forma de atingir um estilo de vida mais saudável e normal, e não a cura para a dependência de heroína, cuja abstinência não fica garantida. Para aumentar as chances de sucesso do tratamento, os pacientes devem receber sessões de aconselhamento7.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. MCKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2000. 400p. 2. BALTIERI, D. A. Opióides: aspectos gerais. In: FOCCHI, G. R. A. et al. Dependência Química: novos modelos de tratamento. 1. ed. São Paulo: Roca, 2001. Cap. 7, p.109-116. 3. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, O., DRACTU, L.f LARANJEIRA, R. R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 4. LARANJEIRA, R., DUNN, J., RIBEIRO ARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N. J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001. 5. LARANJEIRA, R., RATTO, L., DUNN, J. Heroína: a próxima epidemia de drogas no Brasil?/ Bras. Psiquiat., 46(1):5-7, 1997. 6. JULIEN, R. M. A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. New York: W. H. Freeman and Company, 1995. 51 Ip. 7. HANSON, G., VENTURELLI, P. J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 8. RAY, O., KSIR, C. Drugs, Society and Human Behavior. 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999. 494p.

C A P ÍT U L O

Alucinógenos S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isã o G e r a l Desde as antigas civilizações, diversas plantas com pro­ priedades alucinógenas têm sido utilizadas com finalidades místicas, assumindo um papel importante em rituais reli­ giosos, principalmente em culturas primitivas1. Em 1965, o Congresso americano proibiu a utilização de alucinógenos, mesmo em rituais religiosos. Também na década de 1960, uma controvérsia foi causada por Timothy Leary, professor de psicologia em Harvard: ele alegava que esse tipo de droga proporcionava o contato consigo mes­ mo e o alcance de um estado de paz e serenidade. Por essa razão, ele foi expulso de Harvard; então, fundou uma re­ ligião e tentou legalizar o uso do LSD. Foi condenado à prisão por porte de drogas2. Em 1978, voltaram a ser permi­ tidos, em pequenas quantidades, para membros de deter­ minada igreja. Em 1990, por decisão da Suprema Corte Americana, o uso foi novamente proibido. Muitos nomes foram sugeridos para classificar esse tipo de droga. A denominação atual - alucinógenos - tem al­ guns problemas de definição, uma vez que doses muito altas de vários tipos de drogas são capazes de gerar psico­ ses tóxicas, durante as quais as alucinações são freqüen­ tes. As drogas classificadas aqui se referem àquelas que, com dosagens e efeitos tóxicos pequenos, são capazes de produzir alucinações. Ou seja, as alucinações provocadas são resultado direto dessas drogas, e não de seus efeitos tóxicos. No entanto, essa distinção, muitas vezes, não é fácil de ser feita3.

94 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. Uma outra dificuldade relacionada à definição do termo alucinógeno refere-se à inexatidão do conceito alucinação, normalmente tida como uma forma alterada ou distorcida da realidade. Se apertarmos nossos olhos, veremos bolinhas colori­ das. Seria essa experiência uma alucinação semelhante àquelas induzidas pelas drogas? Quando se bebe muito álcool, pode-se ter visão dupla. Seria isso uma alu­ cinação semelhante àquela induzida pela mescalina? Como resultado da dificul­ dade em se definir o termo, ele permanece impreciso3. Existem mais de 100 tipos de alucinógenos com estruturas moleculares di­ ferentes, agrupados segundo sua similaridade com algum neurotransmissor4: • O LSD, a psilocibina e o DMT (dimetiltriptamina) são semelhantes à serotonina. • A mescalina e vários derivados de anfetaminas, como DOM (2,5-dimetoxi4-metilanfetamina), MDA (metilenedioxifenilisopropilamina) e MDMA (metilenedioximetanfetamina), são semelhantes às catecolaminas, norepinefrina e dopamina4. • Um outro grupo, menos utilizado, bloqueia os receptores de acetilcolina e, por isso, é chamado de anticolinérgico; inclui a beladona, mandrágora, henbane, datura e muitas outras drogas sintéticas usadas no tratamento dos sintomas parkinsonianos. • Um outro grupo, sem similaridade com qualquer neurotransmissor conhecido e chamado de “miscelânea”, inclui a penciclidina, a cetamina e a Amanita muscaria.

A

lu cin ó g en o s

S em elh a n tes

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S er o to n in a

LSD (Dietilamida de Ácido Lisérgico) O LSD foi descoberto por Albert Hoffman, em 1943. Produzido sinteticamente, é o mais clássico, potente e utilizado dos alucinógenos. Age sobre os receptores serotoninérgicos, que, quando estimulados, vão limitar a liberação de mais sero­ tonina. Limitada, a serotonina não pode exercer sua função inibidora sobre a dopa­ mina no circuito de recompensa cerebral, levando o usuário a experimentar uma sensação de euforia4. Seus efeitos ocorrem em três fases: somática, sensorial e psíquica. Os efeitos imediatos ocorrem tipicamente no sistema nervoso autônomo e produzem dila­ tação das pupilas, aumento da freqüência cardíaca, da temperatura corporal, da pressão sangüínea, da salivação e dos níveis glicêmicos no sangue. O indivíduo pode experimentar boca seca, náuseas, vertigens e sentimentos subjetivos de frio ou calor. Gradualmente, o foco das mudanças fisiológicas enfraquece e as distorções perceptuais e as alucinações tornam-se proeminentes4,5,6. Os efeitos visuais são os mais comuns: experiências estéticas são alteradas, as cores parecem mais intensas, objetos tornam-se mais afiados e eventos to­ mam novos significados. A música parece mais rica e menos significante. Ocor-

Alucinógenos ■ 9 5

ie sinestesia (cruzamento dos sentidos): sons são vistos e objetos são ouvidos. O tempo parece parar. Padrões geométricos que ocorrem no começo da expe­ riência, com ou sem os olhos abertos, dão lugar a visões de paisagens, pessoas ou objetos simbólicos. Os limites do corpo podem se tornar de difícil distinção. Ansie­ dade e grande energia coexistem com euforia e relaxamento. Pode haver senti­ mentos intensos de proximidade seguidos de isolamento. Amemória de curto prazo e a performance em tarefas cognitivas são prejudicadas. O número e a intensidade dos efeitos dependem da dose e algumas das mais extremas distorções perceptuais e cognitivas não são experimentadas com baixas doses, que provocariam mais efeitos somáticos4. Em geral, o LSD é ingerido por via oral3na forma de comprimido, cápsula ou tablete de açúcar, mas raramente na forma líquida2. Seus efeitos começam 30 a 90 minutos após a ingestão e podem durar de 6 a 12 horas4. De modo rápido e eficiente é distribuído por todo o corpo5. Somente 1% atinge o cérebro1, onde se difunde rapidamente, assim como na placenta5. É metabolizado no fígado, e seus metabólitos são secretados no sistema digestivo e na bile. A excreção ocorre nas fezes3. A meia-vida no corpo é de aproximadamente 2 horas4. Por sua extrema potência, quantidades muito pequenas podem ser encontradas na urina, por meio de testes ultra-sensíveis5. A dose letal é 200 a 300 vezes maior que a dose eficaz de 30 a 100 milionésimos de grama4, tornando-a um composto não letal. No entanto, este cálculo não inclui os riscos de acidentes fatais ou suicídios que podem ocorrer quando a pessoa está intoxicada. Não se recomenda seu uso du­ rante a gravidez5. A rápida aquisição de tolerância tanto aos efeitos fisiológicos quanto aos psicológicos previne o uso diário ou muito próximo4. O uso diário repetido leva à perda completa da efetividade em três ou quatro dias6. Essa tolerância acaba dias após a interrupção do uso5: é possível o uso semanal de uma mesma dosagem. Não há descrição de síndrome de abstinência quando da interrupção do consumo por um usuário crônico7. A dependência física não se desenvolve, mesmo após o uso prolongado, mas pode ocorrer dependência psicológica quando, por exemplo, as experiências com o LSD são encaradas como “respostas aos problemas da vida” ou “formas de encontrar a si mesmo”7. São quatro os tipos de reações adversas atribuídas ao uso do LSD:

Efeitos sobre o Estado Psicológico do Usuário Experiências desagradáveis com o LSD são um tanto quanto freqüentes e podem envolver confusão, reações dissociadas, reações agudas de pânico ou estados psicóticos agudos5. Estas reações decorrem possivelmente da interação da droga com estado de humor ou circunstâncias ambientais negativos. Reações adversas em indivíduos escolhidos por ajustamento psicológico em estudos controlados são muito raras4. Reações não-psicóticas prolongadas incluem distorção do tempo e do espaço, alteração da percepção da imagem corporal e estado depressivo residual. As altera­

96 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. ções perceptuais induzidas pela droga podem se tornar tão intensas a ponto de o sujeito se sentir incapaz de lidar com a situação5. Outra repercussão psíquica do LSD sobre o cérebro acontece na forma de delírios, ou seja, falsos juízos da realidade. São comuns os delírios de grandio­ sidade (o sujeito se julga com capacidade ou força extraordinárias e pode, por exemplo, atirar-se de janelas, acreditando ser capaz de voar; pode, também, tentar caminhar sobre as águas ou parar um veículo com a força da mente) e os perse­ cutórios (acreditando que haja uma conspiração contra si, o indivíduo pode tentar se defender com comportamentos agressivos)7. Outro possível problema é a ocorrência de flashbacks: semanas após o uso, o indivíduo volta a experimentar, repentinamente, todos os efeitos psíquicos da ex­ periência anterior, sem que tenha tornado a utilizar a droga. As conseqüências, neste caso, são imprevisíveis, uma vez que tais efeitos não estavam sendo esperados ou mesmo procurados7. Ocorrem com 15% dos usuários5.

Possibilidade de Dano Cerebral Permanente Ainda não está confirmado se o uso freqüente de altas doses, por um longo período de tempo, causa dano cerebral permanente. Por outro lado, há um certo consenso de que o uso ocasional de LSD não induz danos físicos5.

Efeitos sobre o Feto Possíveis prejuízos ao feto de uma gestante que utiliza LSD também não são conhecidos e parecem ser improváveis. Estudos laboratoriais demonstraram que doses massivas de LSD, não usuais, podem causar danos aos cromossomos das células. Porém, dados indicam que a incidência de anormalidades em bebês de usuárias de LSD é a mesma que na população normal5.

Efeitos sobre a Sociedade O medo de o LSD se tornar amplamente utilizado pela sociedade parece não ter fundamento. Apesar de alguns usuários poderem se tomar psicologicamente dependentes, a maioria deles volta a utilizar drogas menos potentes. Drogas como álcool, nicotina, cocaína, anfetaminas e opiáceos continuam causando maiores preocupações5. No Brasil, não há nenhum uso clínico reconhecido pelo Ministério da Saúde. Sua produção e comércio são proibidos7.

Psilocibina e Psilocina São princípios ativos encontrados em pelo menos 15 espécies de cogu­ melos pequenos, pertencentes aos gêneros Psilocibe, Panaeolus e Conocibe,

Alucinógenos ■ 9 7

não comestíveis58e nativos da América do Norte. Estes cogumelos foram con­ siderados sagrados no México e na América Central por centenas de anos34. Na época da conquista dos astecas, os espanhóis descobriram uma impor­ tante religião que utilizava estes cogumelos como sacramento e proibiram sua utilização3. A diferença entre a psilocibina e a psilocina é que a primeira contém uma mo­ lécula de ácido fosfórico. Quando o cogumelo é ingerido, o ácido fosfórico é aparen­ temente removido, produzindo a psilocina5. A psilocibina foi isolada em 1958, por Albert Hoffman, que também descobriu o LSD38, e extensivamente utilizada pelos hippies, mas nunca foi tão popular quanto o LSD, uma vez que é mais difícil de ser manufaturada e menos potente. Seu uso decresceu na década de 1970, juntamente com o uso do LSD e a cultura hippie*. Normalmente, estes cogumelos são comidos frescos ou secos2 e são necessá­ rios de 4 a 8mg, via oral, para produzir efeitos alucinogênicos em humanos, que levam cerca de 30 minutos para se estabelecer3e podem durar de 6 a 10 horas5. Os efeitos dependem da dosagem: 4mg provocam uma experiência agradável, rela­ xamento e alguma sensação corporal. Altas doses causam, em alguns indivíduos, consideráveis mudanças na percepção e imagem corporal. Apsilocibina estimula o sistema nervoso autônomo, ocasionando dilatação das pupilas e aumento da tem­ peratura corporal2. Apenas 5% são metabolizados3e convertidos em um metabólito mais psicoativo e responsável pela maioria dos efeitos4. Na urina, 25% são excretados inalterados. Não se sabe o que acontece com os outros 70%. O LSD é 100 ve­ zes mais potente3. Ajustadas as doses, os efeitos são qualitativamente os mes­ mos34. A psilocibina é mais potente e menos tóxica que a mescalina3. A mortalidade por intoxicação é praticamente nula, pois a dose letal ao ser humano é 200 a 300 vezes maior que a dose eficaz4. Apesar disso, existe a possibilidade de morte indireta resultante de acidentes envolvendo pessoas sob influência desta droga2.

DMT (Dimetiltriptamina) Pode ser encontrado numa variedade de plantas ao redor do mundo4. Na virada do século XX, um antropólogo alemão registrou a forma como os índios a produ­ ziam: extraíam uma substância das árvores e a ferviam até que toda a água se evaporasse. O restante era tostado no fogo e depois transformado em pó com a ajuda de uma faca. O pó, então, era aspirado3. O DMT é facilmente sintetizado e sua primeira produção ocorreu em 19313. É tipicamente sintético quando disponível nos EUA4. Foi muito utilizado du­ rante a cultura hippie. É muito menos potente que o LSD (a dose efetiva é de lmg/kg)3 e que a psilocibina2. 0 DMT não é eficaz quando absorvido via oral ele precisa ser fumado, aspirado5 ou injetado. A dose intramuscular efetiva é por volta de lmg/kg. Quando a aplicação é endovenosa, os efeitos alucino­ gênicos começam 2 minutos após a aplicação de doses de 0,2mg/kg ou mais e

9 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

duram por volta de 30 minutos6. Quando aspirado ou fumado, a dose usual é de 60 a 150mg2. É conhecido como almoço de homens de negóci& ou LSD dos homens de negócio por causa do rápido estabelecimento dos efeitos, que desaparecem dentro de 30 minutos a 1 hora4. Como os outros alucinógenos discutidos, o DMT não provoca dependência física2. No Brasil, as seitas religiosas União dos Vegetais e Santo Daime utilizam um chá feito de uma preparação de Banisteriopsis caapi e Psycotria viridis. O DMT está presente nesta última espécie e é esta combinação que permite uma absor­ ção do DMT via oral. Os efeitos iniciais deste chá são caracterizados por vertigens, náuseas, vômitos intensos, diarréias, palpitação, taquicardia, tremores, midríase, euforia e excitação agressiva, que, dentro do ritual, são considerados de “purifi­ cação”. Entre os principais efeitos alucinógenos, temos as alucinações visuais de animais, a comunicação com divindades e demônios, o “vôo a lugares distan­ tes” e outros9.

A lu cin ó g en o s S e m elh a n tes à s C a t e c o la m in a s , À N o repin efrin a e à D o pa m in a

Mescalina A mescalina é o ingrediente ativo de um pequeno cacto conhecido como peyote, nativo dos desertos do México e do sudoeste dos Estados Unidos. Foi usado por sécu­ los no México e, como os cogumelos de psilocibina, foi considerado uma planta sa­ grada pelos astecas. Quando lá chegaram, os espanhóis consideraram o cacto “satânico” e fizeram grandes esforços para acabar com ele, que, entretanto, sobrevi­ veu em áreas remotas3. Nos EUA, a mescalina é utilizada legalmente em alguns Esta­ dos como parte de uma cerimônia religiosa realizada por membros da Igreja Nativa Americana4. Somente a parte superior do cacto é utilizada. Fatias espessas são cortadas e colocadas ao sol para secar. A fatia seca é colocada na boca, sugada e mascada até se desintegrar, sendo, então, engolida. Durante uma cerimônia religiosa, pode-se comer até 12 dessas fatias. Elas têm um gosto amargo e odor particularmente desa­ gradável e nauseante3. A mescalina foi isolada no final do século XIX por um químico alemão chamado Arthur Heffter. Ele isolou várias substâncias deste cacto e experimentou cada uma delas até descobrir qual produzia os efeitos alucinogênicos. Em 1919, a estrutura da mescalina foi determinada e a droga foi sinteticamente produzida3na forma de cristais semelhantes aos do sal, que pode não produzir efeitos semelhantes nesta apresentação4. Como o LSD e o DMT, também foi utilizada por Timothy Leary e pelos hippies da década de 19603. Cerca de 200mg são necessários para produzir efeitos alucinogênicos, tor­ nando-a 2.000 vezes menos potente que o LSD3 e 30 vezes menos potente que outros alucinógenos, como a psilocibina2. A dose letal é de 10 a 30 vezes a dose efetiva, o que torna grande o risco de toxicidade4. A morte é causada por convulsões e problemas respiratórios6.

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A dose oral usual é de 5mg/kg5. A mescalina é rapidamente absorvida no sistema digestivo3 e atinge o máximo de concentração no cérebro de 30 a 120 minutos4. Os efeitos iniciais são náuseas, vômitos, tremores, falta de coorde­ nação3, dilatação das pupilas, aumento da pressão, do ritmo cardíaco e da tem­ peratura corporal (em razão das semelhanças com a norepinefrina)5. Cerca de 1 hora depois, segue-se um período de efeitos psicológicos semelhantes aos do LSD, que podem durar várias horas. Cerca de 50% é metabolizada3 e a outra parte é excretada sem modificações4. A meia-vida da mescalina é de 1 hora e meia a 2 horas3 e seus efeitos podem durar de 8 a 9 horas4. A droga é excretada pela urina3. A tolerância para a mescalina desenvolve-se mais lentamente que a do LSD e há uma tolerância cruzada entre ambas as drogas6.

Drogas Sintéticas Semelhantes à Mescalina e às Anfetaminas Na tentativa de se encontrarem remédios úteis aos seres humanos, transfor­ mou-se a estrutura da molécula da mescalina em compostos semelhantes à anfetamina3 que são considerados mais potentes e tóxicos que a própria mes­ calina5. Infelizmente, sua única utilização ocorre na subcultura das drogas. Pode­ mos considerar estas drogas um cruzamento entre a anfetamina e a mescalina3e, como era de se esperar, produzem efeitos semelhantes5.

DOM (Dimetoximetilanfetamina) Provavelmente, é a droga sintética mais conhecida. Foi sintetizada em 1963 e apareceu nas ruas de São Francisco em 1967. Foi conhecida pelo nome STP, de super terrific psychedelic ou serenidade, tranqüilidade e paz*. A anfetamina é a estrutura básica do DOM. Todavia, é um alucinógeno razoa­ velmente potente que parece atuar de forma similar à mescalina e ao LSD2. É 100 vezes mais potente que a mescalina, mas muito menos potente que o LSD5. Inge­ ridas na forma de pílula6, doses de 1 a 6mg produzem euforia, seguida por um período de 6 a 8 horas de alucinações. Tem a reputação de induzir experiências extraordinariamente longas, e isso parece se dever ao uso de doses muito eleva­ das: algumas pílulas compradas na rua continham cerca de 10mg, o que é uma dose muito alta6. O uso de DOM está associado com uma alta incidência de overdose, em razão de sua potência e da dificuldade de controlar as doses. Rea­ ções tóxicas agudas são comuns e consistem em tremores que podem levar a movimentos convulsivos, prostração e morte. Por isso, o uso de DOM não é am­ plamente disseminado5.

MD A, MMDA, TMA Na década de 1960, auge do uso de alucinógenos, muitas drogas foram ile­ galmente sintetizadas em laboratórios clandestinos numa tentativa de evitar a lei,

1 0 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

que proíbe apenas determinadas substâncias. Ficaram conhecidas como designer drugs e, nas ruas, tinham os mais variados nomes. Mas, diferentemente das drogas comerciais, seus efeitos adversos não eram testados e muitas eram extremamente tóxicas3. De maneira geral, os efeitos farmacológicos destas drogas se assemelham àqueles produzidos pela mescalina e pelo LSD, ou seja, refletem um misto das interações de catecolamina e serotonina. O MDA foi sintetizado em 1910 e sua estrutura se assemelha tanto à mescalina quanto à anfetamina. É um anorexígeno que, em algumas pessoas, provoca elevação do humor. Age de maneira similar à anfetamina, provocando liberações extras de serotonina, dopamina e norepinefrina2. O MDA já foi utilizado como adjunto da psicoterapia e, nesse contexto, foi conduzido um estudo com oito voluntários: doses de 150mg de MDA produzi­ ram efeitos entre 40 e 60 minutos que persistiram por aproximadamente 8 horas. Nenhum dos sujeitos experimentou alucinações ou distorções perceptuais com esta dose. Reportaram intensificação dos sentimentos, aumento de insights e da empatia2. Nas ruas, foi chamado de “droga do amor”. Usuários reportam uma sensação de proximidade, bem-estar, aumento das sensações táteis, do prazer sexual e das expressões de afeto. Sob influência desta droga, as pessoas demonstram mais necessidade de estar e conversar com outras2. Os efeitos desagradáveis reportados são náusea, enrijecimento dos músculos do pescoço, ranger de dentes e dilatação das pupilas. Sérias convulsões e morte podem resultar do uso de altas doses. A utilização de 500mg de MDA pode provocar morte. Uma marcada exaustão física, que pode durar dois dias, parece ser a reação adversa de doses moderadas2.

MDMA - Ecstasy Esta droga não foi criada em laboratórios clandestinos. Foi sintetizada nos labo­ ratórios Merck e patenteada em 1914. Até 1960 nunca havia sido utilizada para qualquer propósito. É mais comumente conhecida como ecstasy (ou X, Adam, MDM, MSíMe the yuppie drug). Sua popularidade foi grande na década de 1980 e é mais comumente utilizada por intelectuais da classe média3. O MDMA se assemelha ao MDA em estrutura, mas é aparentemente muito diferente de outros alucinógenos6. A sensação de elação pode ser maior que aquela obtida com a mescalina5. Além de proximidade, outros efeitos incluem aumento da freqüência cardíaca, boca seca, ranger de dentes, suores profusos e outros efeitos no sistema nervoso autônomo. Apesar de muitas pessoas reportarem que os objetos parecem mais luminosos, muito poucos referem alucinações visuais6. A droga pode ser ingerida oralmente e alcança o pico de concentração sangüínea em cerca de 2 horas. A maior parte é excretada inalterada ou metabolizada em MDA3. O MDMA não parece provocar efeitos adversos agudos e há poucos casos de internação hospitalar de emergência para esta droga3. Sob determinadas condições, a morte pode ser causada por hipertermia, que leva a convulsões, instabilidade do sistema nervoso autônomo ou falha no funcionamento dos rins2.

Alucinógenos ■ 101

Por volta de 1985, alguns psiquiatras fizeram uso desta droga em seus pa­ cientes para aumentar a comunicação e a intimidade, mas, logo em seguida, foi descartada porque se descobriu que ela possuía efeitos tóxicos3, podendo cau­ sar danos cerebrais permanentes. Muitos laboratórios relataram que o uso de MDMA em ratos provocou destruição dos neurônios de serotonina. Efeitos si­ milares foram observados em macacos com doses apenas duas ou três vezes superiores às utilizadas por humanos. Isso levou muitos observadores a con­ cluir que danos cerebrais similares podem ocorrer em humanos. Estes efeitos não são causados pelo LSD, pela mescalina, pela psilocibina e pela maioria das outras drogas6. Como o sistema serotoninérgico está envolvido no controle e na modulação do sono, da ingestão alimentar, no comportamento sexual, na ansiedade e no humor, os efeitos decorrentes da perda destas células podem ter conseqüências maiores, ainda não determinadas5.

A

lu c in ó g en o s

S im ila res

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A c e t ilc o lin a

O uso recreacional de anticolinérgicos é raro4. São substâncias provenientes de plantas que crescem ao redor do mundo (beladona, mandrágora, henbane, datura) ou são sintetizadas em laboratório e que têm a capacidade de bloquear as ações da acetilcolina7nos respectivos receptores, distribuídos nos sistemas nervoso central e periférico4. Produzem efeitos sobre o psiquismo quando utilizadas em doses relati­ vamente grandes. São drogas pouco específicas, pois provocam alterações do fun­ cionamento de diversos sistemas biológicos7. Seus efeitos agudos são diferentes daqueles produzidos por outros alucinóge­ nos e se assemelham a uma psicose tóxica, com delírios, confusão e perda da me­ mória para eventos recentes4. São comuns os relatos de sentimentos de perseguição7e não ocorrem alucinações visuais4. Esses sintomas dependem da per­ sonalidade do usuário e das condições ambientais. Em geral, os efeitos são bas­ tante intensos e podem durar até 3 dias. Também produzem efeitos somáticos, como midríase, boca seca, aumento da freqüência cardíaca, diminuição ou paralisia da mobilidade intestinal e dificuldades de micção7. A toxicidade é geralmente alta e a morte acidental por overdose não é incomum4. Doses elevadas podem produzir grande elevação da temperatura (até 41 graus Celsius) que, por sua vez, pode re­ sultar em convulsões. Nessa circunstância, o usuário se apresenta com a pele muito quente e seca e hiperemia no rosto e no pescoço.

Beladona É uma planta nativa do centro e do sul da Europa, do norte da África e do Oriente Médio3. A atropina é o ingrediente ativo desta planta e foi sintetizada em 1831. Era usada como veneno e como dilatador de pupilas (as mulheres acreditavam que isso as tornava mais belas)6. Usuários relatam uma sensação de levitação, provavelmente conseqüente de uma combinação de batimentos cardíacos irregulares, sonolência e sugestão. Abeladona

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tem, também, a reputação de ser afrodisíaca e foi muito utilizada em rituais pelas bruxas da Idade Média, na forma de um ungíiento, que era esfregado no corpo6.

Mandrágora É nativa do Mediterrâneo e do Himalaia e cresce em solos secos e áreas pedre­ gosas. O formato de sua raiz lembra, com alguma imaginação, o corpo humano e, por esse motivo, teve grande significado para feiticeiros e bruxas. Estes acreditavam que a raiz precisava ser removida do solo com muito cuidado. Se ela fosse tratada asperamente, a mandrágora gritaria e aqueles que a ouvissem sofreriam conseqüências medonhas. As bruxas a utilizavam no preparo de uma mistura que as fazia “voar”, assim como a beladona3. A mandrágora contém vários alcalóides psicodélicos ativos e foi utilizada como poção do amor por séculos, mas também era conhecida por suas propriedades tóxicas. Na medicina folclórica antiga, era recomendada como sedativo e para aliviar dores2.

Henbane É tão ativo quanto a beladona e a mandrágora, mas muito menos utilizado6. É nativo da Europa, Ásia e índia e nunca se espalhou ao redor do mundo. Como a mandrágora, foi muito utilizado para alívio de dores e como anestésico. Também foi usado por bruxas, que assavam suas sementes e folhas e aspiravam a fumaça exalada3.

Da tura As origens dessa planta são desconhecidas, mas ela cresceu no norte da América e índia por séculos. Também foi extensivamente utilizada como veneno e como ungüento em diversos rituais de bruxaria pelos astecas, que também tinham pro­ pósitos mágicos3. Tem uma longa história de associação com crimes: embora não induzisse com­ portamentos criminosos, era utilizada por eles para matar ou sedar suas vítimas. Na índia, supõe-se ter sido utilizada por adeptos de Kali, a deusa da destruição, que rou­ bavam e matavam a seu serviço. Na Europa, era utilizada por envenenadores pro­ fissionais e por traficantes de escravos brancos que a misturavam com um afrodisíaco e ofereciam a garotas pouco “dispostas”3. A datura teve, também, um lugar na medicina tradicional. Era usada na índia como sedativo e no tratamento dos pés. Na Europa e América do Norte era usada no tratamento de asma, epilepsia, delirium tremens, reumatismo e dores menstruais3. Apesar de ter havido alguns abusos recentes, os efeitos desagradáveis e perigosos efeitos colaterais desta planta funcionam como limite para o uso recreacional. Na Ásia, a prática de utilizar suas sementes esmagadas misturadas ao tabaco, à ma­ conha ou à comida persiste ainda nos dias de hoje6.

Alucinógenos ■ 103

A

lu c in ó g en o s d o

G rupo " M

is c e l â n e a "

Peniciclidina A peniciclidina (PCP) e a cetamina são chamadas de drogas psicodélicas anes­ tésicas5; não se relacionam estruturalmente com as outras drogas e é provável que não atuem modificando a transmissão serotoninérgica. Os receptores aos quais se ligam foram denominados “receptores de PCP”6, que estão intimamente ligados aos receptores para o glutamato6. Considerado por muitos o mais perigoso dos alucinógenos2, o PCP é uma droga sintética criada em 1963 com finalidades anestésica e analgésica. Recebeu o nome de Sernyl®. Mostrou ser eficaz e seguro para este propósito, uma vez que não de­ prime o coração, a pressão sangüínea ou a respiração. Causa um certo tipo de transe e não a perda de consciência. Foi retirado do mercado em 1965 porque seus usuários referiam delírios, desorientação e agitação enquanto se recuperavam dos efeitos da droga3. O PCP começou a ser vendido nas ruas dos EUA em 1967, com o nome de P eaceP ill Desde então, já teve mais de 50 nomes: “cristal” “pó de anjo” “tranqüi­ lizante de elefante”, “ciclone”, “cadilac” e muitos outros2. Só se tornou popular após o declínio do uso do LSD3. Inicialmente, era vendido na forma de tabletes ou de cápsulas para ingestão oral. Hoje não é mais vendido nesta forma em razão da dificuldade de controlar as doses, mas na forma de cristais, que podem ser borri­ fados em folhas de hortelã e fumados com tabaco ou maconha. Também pode ser aspirado, dissolvido em água e injetado ou absorvido pelas mucosas (olhos, reto e vagina)3. Quando é vendida na forma de cristais, a droga normalmente apresenta concentrações que vão de 50 a 100%. Quando vendida sob outra forma, a quanti­ dade diminui e varia de 10 a 30%, sendo de 5mg a dose típica5. A dose letal é esti­ mada em 40 vezes a dose efetiva, apesar de alguns revisores acreditarem que seja substancialmente menor que isso4. O PCP apresenta boa absorção quando fumado ou ingerido oralmente. Quando fumado, o pico dos efeitos ocorre em cerca de 15 minutos. A absorção oral é mais lenta e os níveis sangüíneos máximos não são atingidos antes de 2 horas após a ingestão. É rapidamente absorvido do intestino para o plasma, sendo distribuído por todo o corpo e voltando ao intestino, onde é novamente reabsorvido (recirculação). Esse processo pode prolongar os efeitos e acarretar uma demorada into­ xicação clínica5. O PCP é metabolizado no fígado e seus metabólitos são excretados pelos rins, na urina. A meia-vida é de cerca de 18 horas, mas esse tempo pode variar muito, provavelmente em decorrência da recirculação. Curiosamente, esse mesmo pro­ cesso pode ser utilizado para tratar as overdoses: como ele retorna ao estômago várias vezes, pode-se administrar carvão ativado, que se ligará ao PCP, diminuindo sua toxicidade. Um resultado positivo de PCP na urina indica que ele fora utilizado na semana anterior. Testes de sangue e saliva também podem ser realizados. Como são comuns os resultados falsamente positivos, uma segunda análise para confir­ mação é sempre indicada5. O PCP não produz alucinações verdadeiras, como o LSD4. Em doses de 5 a 10mg, causa relaxamento, calor, formigamento e entorpecimento. Há também sen-

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timentos eufóricos, distorções na imagem corporal e uma sensação de estar flu­ tuando no espaço. Estes efeitos permanecem por 4 a 6 horas e, muitas vezes, são seguidos por uma moderada depressão, que pode durar de um a sete dias3. As percepções subjetivas relatadas por usuários são de força, poder, invul­ nerabilidade, aumento da sensibilidade para estímulos externos, sensação de estimulação e elevação do humor, dissociação do ambiente. Além disso, o PCP tem uma função social: seus usuários preferem utilizá-lo em grupo2. A ativação do sistema nervoso simpático por doses medianas ou altas pode provocar sintomas como suor excessivo, enrubescimento, aumento da pres­ são e da freqüência cardíaca, nistagmo, falta de coordenação dos músculos, visão dupla, vertigens, náuseas e vômitos2. O estado de intoxicação produzido pelo PCP geralmente implica complicações comportamentais importantes, como severa ansiedade, agressão, pânico, paranóia e raiva5. Em razão de sérias distorções da percepção causadas pelo PCP, seus usuários falham em interpre­ tar os estímulos ambientais e, por isso, podem se envolver em acidentes, mui­ tos deles fatais2. Com altas doses, o usuário pode experimentar um estado que varia do estupor ao coma3, que pode durar vários dias e ser marcado por convulsões intensas, aumento da pressão sangüínea e depressão respiratória potencialmente letal. Seguindo-se a este estupor, ocorre a fase de recuperação, que pode durar duas semanas e ser marcada por confusão5. Freqüentemente, ocorrem comportamentos psicóticos, que vão da mania à catatonia. Pode haver mudanças de humor repentinas, acom­ panhadas de risos ou choro, desorientação, confusão e ações repetitivas. Esse es­ tado psicótico pode desaparecer lentamente, conforme os níveis da droga vão declinando, mas, algumas vezes, pode permanecer por semanas e requerer inter­ nação3. O curso da recuperação de qualquer estado induzido por drogas e similar à esquizofrenia é variável, por razões ainda pouco compreendidas. Os flashbacks podem representar tanto a recorrência da psicose como a mobilização do PCP que ficou armazenado em tecidos adiposos5. O PCP tem a reputação de tornar as pessoas violentas. Muitas pessoas justi­ ficam judicialmente seu comportamento criminoso ou violento com o uso desco­ nhecido de PCP: haviam fumado um cigarro de maconha contaminado por ele. No entanto, uma revisão da literatura não encontrou evidência de que o PCP causa, especificamente, comportamento violento ou criminoso. É verdade que o estado psicótico induzido por altas doses de PCP causa desorientação, agitação e hiperatividade e que estes efeitos são difíceis de manejar e podem causar dano ao próprio indivíduo ou a quem estiver próximo a ele. Porém, o PCP não parece trans­ formar pessoas normais e inocentes em criminosos perigosos ou violentos. Pes­ quisas desenvolvidas com animais de laboratório sugerem que o PCP tem o efeito de domesticar animais normalmente agressivos3. Tradicionalmente o PCP é utilizado de maneira esporádica, como o LSD. Porém, seu uso contínuo está se tornando mais comum. Quando utilizado diariamente, a tolerância se desenvolve e há alguma evidência de dependência e de sintomas de abstinência3. É o único alucinógeno auto-administrado por macacos em experi­ mentos laboratoriais. Em humanos, o padrão de uso compulsivo também é visto. Por isso, infere-se que o PCP estimule as regiões do sistema de recompensa cerebral5.

Alucinógenos ■ 105

Cetamina Nos últimos anos a cetamina, comercialmente chamada de Ketalar®, tem sido chamada de “droga dos clubes”, por causa de seu uso freqüente em danceterias. Outros nomes pelos quais é conhecida são k, ket> heroína psicodélica, k especial e vitamina k. Produz efeitos dissociativos similares aos do PCP. Foi desenvolvida como anestésico infantil e ainda é utilizada na medicina veterinária. Alguns usuários relatam experiências espirituais e passagem para realidades alterna­ tivas, enquanto outros referem excitabilidade desagradável, confusão e compor­ tamento irracional. Parece que conseqüências ainda mais negativas acontecem em casos de dosagens bastante altas. Os efeitos duram de 1 a 4 horas, dependendo da dose e da via de administração4. A cetamina é vendida na forma de tabletes, cápsulas ou cristais. A dose usual é de 50 a 375mg e as vias de administração utilizadas são: oral, nasal ou intravenosa4.

P rincípios G erais

de

T ra tam en to

Quadros ansiosos e de pânico com leve inquietação, derivados do uso de qual­ quer tipo de alucinógeno, são controlados com reasseguramento e orientação voltada para a realidade8. É muito importante colocar o indivíduo num ambiente tranqüilo para minimizar os estímulos sensoriais5. Sintomas mais intensos são con­ trolados com benzodiazepínicos ou neurolépticos. Comportamentos violentos e heteroagressivos requerem contenção, a fim de assegurar a integridade física do paciente e a de terceiros8. A lavagem gástrica e o uso de carvão ativado são indicados para intoxicações por anticolinérgicos ocorridas via oral e há menos de 6 horas. Convulsões são tra­ tadas com aporte de oxigênio e diazepam endovenoso. Hipertensão, taquicardia e hipertermia têm prescrições específicas8.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. CAZENAVE, S. Banisteriopsis caapi: ação alucinógena e uso ritual. Rev. Psiq. Clín., 27(1)32-35, 2000 . 2. HANSON, G., VENTURELLI, P. J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 3. MCKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2000. 400p. 4. STEPHENS, R. S. Cannabis and hallucinogens. In: MCCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions A Comprehensive Guidebook. Specific drugs o f abuse: pharmacological and clinical aspects. New York: Oxford University Press, 1999. Cap. 7, p. 121-140. 5. JULIEN, R. M. A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. New York: W. H. Freeman and Company, 1995. 511 p. 6. RAY, 0., KSIR, C. Drugs; Society, and Human Behavior. 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999. 494p.

1 0 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool.

7. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, O., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 8. LARANJEIRA, R., DUNN, J., RIBEIRO ARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N. J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001. 9. LONGENECKER, G. L. Como Agem as Drogas - o abuso das drogas e o corpo humano. São Paulo: Quark do Brasil, 1998. 143p.

C A P ÍT U L O

Maconha S e l m a B o r d in N el ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isão G er a l O primeiro registro do uso de canabis aparece no livro Book ofDrugSy escrito em 2737 a.C. pelo imperador chinês Shen Nung: ele prescrevia canabis para tratamento de gota, malária, dores reumáticas e doenças femininas. Aparen­ temente, os chineses tinham muito respeito pela planta. Du­ rante milhares de anos, utilizavam-na medicinalmente e dela extraíam fibras para fabricação de tecidos1. Porém, foi somente no início do século XX que o uso da canabis como medicamento praticamente desapareceu do mundo oci­ dental, em razão da descoberta de drogas sintéticas2. Recentemente voltou-se a discutir o uso terapêutico da maconha, gerando considerável controvérsia a respeito. Por um lado, estudos já demonstraram que o princípio ativo puro da maconha (THC) é útil no alívio de náuseas e vômitos e\ na estimulação do apetite. Os efeitos analgésicos, antiespas- \ módicos, anticonvulsivantes, de broncodilatação em casos V de asma e de alívio da pressão intra-ocular em casos de glaucoma requerem mais pesquisas3. Porém, por outro lado, , existem medicamentos sintetizados para estas finalidades, mais seguros e eficazes, não justificando a utilização de uma droga que pode gerar dependência e cujos efeitos nocivos ainda não são completamente conhecidos. Cannabis sativa, a planta da maconha, cresce vigo­ rosamente em várias regiões do mundo. Uma espessa resina, secretada principalmente pela planta fêmea, cobre os brotos e folhas superiores e contém o agente ativo da planta4. A substância delta-9-tetrahidrocanabinol, ou THC, é um dos

108 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool, 60 canabinóides presentes e o principal responsável por seus efeitos psicoativos5. A maioria dos outros canabinóides é inativa ou tem uma atividade fraca, apesar de poder aumentar ou diminuir a potência do THC4. É a concentração do THC que determina a potência dos efeitos. Essa con­ centração depende das condições em que a planta cresceu, de suas caracterís­ ticas genéticas e da combinação de diferentes partes da planta. A flor contém a maior concentração de THC, que diminui progressivamente quando se analisam as folhas superiores, as inferiores, o caule e as sementes5. A concentração de THC também varia entre as três formas mais comuns da Cannabis sativa: a maconha, o haxixe e o óleo de hash6. A maconha é a forma mais utilizada no Brasil e também é conhecida pelos nomes marijuana, erva, fumo, back, etc.2 É uma mistura das folhas, sementes, caules e flores secas da planta5. Existem evidências de que nos últimos anos a concentração de THC na maconha vem aumentando: nos anos 60, ficava em torno de 1%. Atualmente, chega a 4%, podendo, em algumas situações, atingir 20%. Produtores de alguns países, como a Holanda, criaram uma nova cepa da planta com concentrações de THC superiores a 20%. Este procedimento poderá alterar substancialmente as complicações cau­ sadas pela droga num futuro muito próximo2. O haxixe é uma resina extraída da planta seca e das flores. É cinco a dez vezes mais potente do que a maconha comum2. 0 óleo de hash é uma substância viscosa ainda mais potente, cujo THC é extraído do haxixe ou da maconha com o uso de um solvente orgânico. Esse “extrato” é filtrado e, muitas vezes, purificado. A con­ centração de THC no óleo de hash fica entre 15 e 50%6.

D ados

de

E p id em io lo g ia

Entre 1977 e 1979, houve um pico de consumo de maconha nos EUA entre estudantes mais velhos da High School (ensino médio) (36% deles a haviam uti­ lizado no mês anterior à pesquisa). Essa porcentagem declinou e voltou a subir, conforme dados de uma pesquisa realizada pela mídia em 1994, indicando que o uso da maconha tivera um aumento superior a 50% quando comparado ao ano de 1993, entre esta mesma população7. Outra pesquisa conduzida pelo National Household Survey on Drug Abuse, também em 1994, indicou que a maconha era a substância ilícita mais comumente utilizada entre os america­ nos: 8,5% deles (aproximadamente 17,8 milhões de pessoas) já a haviam utilizado e mais de um quarto desses usuários (cerca de 5,1 milhões de pessoas) referiram utilizá-la uma ou mais vezes durante a semana. No Brasil, um estudo epidemiológico realizado em Santo Ângelo (RS) e divulgado em fevereiro de 2001 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) indicou que 14,1% dos estudantes de l 2 e 2- graus daquela cidade já haviam utilizado maconha na vida, correspondendo à segunda droga mais expe­ rimentada (a primeira foram os solventes)8. Dados do IV Levantamento sobre o Uso de Drogas entre os estudantes de l s e 2- graus de 10 capitais brasileiras, realizado em 1997 por J. C. Galduróz e cols., também publicado pelo CEBRID9, indicam tendência de aumento do uso de ma­ conha na vida, quando comparados aos levantamentos feitos em 1987, 1989 e

Maconha ■ 10 9

1993.0 levantamento também indicou que esta unanimidade de crescimento de uso em todas as capitais só foi observada para esta droga. A comparação dos quatro levantamentos mostrou que o uso freqüente (seis ou mais vezes no mês) e o uso pesado (vinte ou mais vezes no mês) também cresceram de maneira estatisti­ camente significante. Diante desses resultados, duas hipóteses foram levantadas: ou as pessoas perderam o medo de confessar o uso, que sempre fora elevado, ou, de fato, o uso entre estudantes brasileiros aumentou. De qualquer forma, existe a necessidade de realizar programas de prevenção mais adequados. Talvez a atitude da sociedade, que hoje debate a descriminalização e o uso terapêutico da maco­ nha, seja uma justificativa para esses aumentos. OI Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil10, realizado em 2001, indicou que há cerca de 1% de dependentes de maconha nas 107 cidades pesquisadas, o que corresponde a uma população estimada de 451.000 pessoas, sendo cinco vezes mais prevalente no sexo masculino.

V ias

de

A

d m in istr a ç ã o

Todas as vias de administração possíveis já foram tentadas. Fumar é o método mais comum de utilização6. A maconha tem uma aparência marrom-esverdeada, apresenta folhas secas e é mais comumente fumada num papel de cigarro ou de seda. O produto final tem aspecto de cigarro e é conhecido como “baseado". As vezes, a maconha é misturada com tabaco comum para diminuir sua potência2. O haxixe também pode ser misturado com tabaco e fumado como cigarro, mas é mais comumente fumado em um cachimbo, com ou sem tabaco. O óleo de hash é utilizado de maneira mais econômica, em razão de sua alta potência psicoativa: algumas gotas podem ser colocadas no cigarro ou cachimbo ou o óleo pode ser aquecido e seu vapor, inalado. Qualquer que seja o método utilizado, os fumantes inalam a fumaça profundamente e a prendem por alguns segundos nos pulmões, a fim de aumentar a absorção do THC6. O consumo de haxixe e maconha via oral é menos comum, mas pode ser feito cozinhando-os em bolos ou biscoitos11. 0 THC também já foi preparado em cápsu­ las de gelatina e administrado oralmente, para fins clínicos e de pesquisa expe­ rimental. Na índia, uma forma popular de ingestão é na forma de chá. A injeção intravenosa do extrato de THC é muito rara: ele é insolúvel em água e, por isso, pode causar dores ou inflamação no local da aplicação4.

E feito s

do

U so A

gudo

Absorção, Metabolismo e Excreção O THC é rapidamente absorvido dos pulmões para a corrente sangüínea, onde atinge um pico de concentração 10 minutos após ter sido inalado. Porém, o declí­ nio da concentração sangüínea é igualmente rápido: apenas de 5 a 10% dos níveis iniciais permanecem após 1 hora. Isso se deve ao rápido metabolismo e à distri­ buição da substância para o cérebro e outros tecidos. A absorção será muito mais

110 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,. lenta se o THC tiver sido ingerido oralmente, e o estabelecimento dos efeitos pode demorar 1 hora ou mais e permanecer por mais de 5 horas11. O metabolismo do THC começa imediatamente nos pulmões (se tiver sido inalado) ou no intestino (se ingerido oralmente), mas a maior parte da substância é absorvida pela circulação sangüínea e levada ao fígado, onde é convertida em metabólitos11. Um destes metabólitos é 20% mais potente que o THC e penetra no cérebro mais rapidamente que ele. Ambos contribuem para a maioria dos efeitos psicoativos da canabi&. OTHC, altamente solúvel em gorduras, é prontamente armazenado nos tecidos gordurosos, de onde é liberado lentamente para a corrente sangüínea11. A meiavida do THC é mais curta em usuários experientes (19 a 27 horas) que em usuários inexperientes (50 a 57 horas) e isso se deve à rapidez com que o TCH é metabolizado logo após sua liberação dos tecidos gordurosos. Por sua lenta eliminação, o THC e seus metabólitos podem ser detectados no sangue vários dias após a ingestão, e traços podem persistir por muitas semanas6. As principais formas de excreção são a urina, a bile, o leite materno e as fezes12. Os níveis de THC no sangue não mostram forte correlação com a experiência subjetiva de intoxicação, cujo pico normalmente ocorre quando as concentrações no sangue já estão declinando. Isso sugere que outros metabólitos podem estar contribuindo ou que os níveis de THC no cérebro aumentam mesmo depois que os níveis sangüíneos começam a cair.

E feitos F a r m a c o ló g ic o s O THC afeta primeiramente o funcionamento do sistema cardiovascular e do sistema nervoso central. O aumento da pulsação é seu efeito fisiológico mais comumente observado, apesar de a pressão sangüínea ser pobremente afetada. Os vasos sangüíneos da córnea se dilatam, resultando em olhos avermelhados (freqüentemente observados em pessoas que acabaram de fumar maconha). Os usuários costumam referir aumento do apetite, boca seca, vertigens ocasionais e leve náusea. Não se observa depressão respiratória7. O THC e outros canabinóides agem por meio de receptores específicos nos sistemas nervosos central e periférico, embora nem todos os efeitos sejam me­ diados por esses receptores. A presença do THC no sistema nervoso central hiperestimula o funcionamento do sistema canabinóide, cujos receptores estão distribuídos pelo córtex, hipocampo, hipotálamo, cerebelo, amídala, giro do cíngulo anterior e gânglios da base. Como resultado, desencadeiam-se alterações cognitivas (afrouxamento das associações, fragmentação do pensamento, confusão, alterações na memória de fixação), prejuízo da atenção, alterações de humor, exa­ cerbação do apetite e dificuldades de coordenação motora, em vários graus11. Muitos estudos demonstram que a intoxicação pelo THC compromete a ca­ pacidade de dirigir automóveis e de realizar outras atividades que requeiram maior atenção e coordenação motora até cerca de 10 horas após o uso. É possível, ainda, que alguns desses efeitos persistam até o dia seguinte. As habilidades de falar coerentemente, formar conceitos, concentrar e transferir material da memória

Maconha ■ 111

imediata para a de longo prazo ficam comprometidas5, além de ocorrerem impor­ tantes alterações na percepção de tempo e espaço.

E feito s P sico a tiv o s A principal razão para um uso tão indiscriminado da maconha é a sensação de “barato” que os usuários experimentam: trata-se de um estado alterado de cons­ ciência caracterizado por mudanças emocionais, como euforia moderada e relaxa­ mento; alterações perceptuais, como distorção do tempo; e, intensificação das experiências sensoriais simples, como comer, assistir a filmes, ouvir músicas e ter relações sexuais. Quando a maconha é utilizada num contexto social, essas expe­ riências são acompanhadas de risadas, fala excessiva e aumento da sociabilidade6. Nem todos os efeitos da canabis são agradáveis. Ansiedade, disforia, pânico e paranóia são os efeitos indesejáveis mais comumente relatados por usuários não familiarizados com seus efeitos. Usuários experientes também podem refe­ rir esses efeitos, principalmente após ingestão oral4. Sintomas psicóticos, como delírios e alucinações, também podem ocorrer com o uso de altas doses5. O Quadro 8.1 resume os efeitos do uso agudo da maconha.

E feito s

do

U so C rô n ico

Q uadro 8.1 - P rincipa is E fe ito s d o Uso A g u d o da M a c o n h a 2 Gerais

• • • • • • • •

Relaxamento Euforia Pupilas dilatadas Conjuntivas avermelhadas Boca seca Aumento do ôpetrte Rinite Faringite

Neurológicos

• • • • •

Comprometimento da capacidade mental Alteração da percepção Alteração da coordenação motora Maior risco de acidentes Voz pastosa (mole)

Cardiovasculares

• Aumento dos batimentos cardíacos • Aumento dâ> pressão arterial

Psíquicos

• • • • •

Despersonalização Ansiedade/confusão Alucinações Perda da capacidade de insights Aumento do risco de sintomas psicóticos entre aqueles com história pessoal ou familiar anterior

112 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,.

Complicações Físicas Nas últimas décadas, vários estudos científicos e relatórios, feitos por diferentes países, tentaram mostrar a enorme repercussão física decorrente do uso da canabis. Do outro lado, alguns autores argumentam a favor da absoluta segurança e da ausência de efeitos do uso crônico. Um resumo da literatura indica que a maconha não é uma droga que produz grandes efeitos físicos após semanas de uso, tampouco uma droga inócua ou mais segura que o tabaco. As evidências apontam para os seguintes efeitos do uso crônico5.

Efeitos nas Células e no Sistema Imunológico Há evidências de que a maconha seja potencialmente carcinogênica. Os canabinóides prejudicam a imunidade das células de roedores e as outras subs­ tâncias da maconha prejudicam os alvéolos. A relevância desses resultados para os humanos é incerta, uma vez que as doses de THC administradas em animais são muito altas e que, talvez, o homem desenvolva tolerância para os efeitos da maconha no sistema imunológico13.

Efeitos no Sistema Cardiovascular Não existem evidências de que haja lesão permanente provocada pela canabis no sistema cardiovascular de indivíduos normais. O uso aumenta o trabalho car­ díaco, induzindo taquicardias de até 140 a 160bpm, e isso pode prejudicar por­ tadores de hipertensão, doenças cerebrovasculares ou coronarianas. Logo, esses pacientes devem ser aconselhados a não utilizar a droga5.

Efeitos no Sistema Respiratório A canabis tem efeitos tanto positivos quanto negativos no sistema respiratório. O THC parece agir como um broncodilatador: ele aumenta o diâmetro dos brônquios e, por esta razão, alivia os sintomas da asma. Por outro lado, o uso crônico diminui o tamanho das passagens de ar nos pulmões, causando asma. É uma situação incomum: o usuário pode sofrer de asma causada pelo uso e aliviar os sintomas fumando mais15. O uso crônico também está associado ao aumento dos sintomas de bronquite (tais como tosse, catarro, roncos e sibilos). A função pulmonar é significativamente prejudicada. Há também evidências de produção de alterações histopatológicas que predispõem os pulmões ao câncer13.

Efeitos no Sistema Reprodutor A canabis aumenta a vasodilatação nos genitais e retarda a ejaculação. O uso crônico de altas doses leva à diminuição da libido e à impotência, possivelmente em decorrência da diminuição da testosterona1. O sêmen é afetado de diversas maneiras. O número total de espermatozóides e sua concentração diminuem durante a ejaculação. Além disso, há aumento do

Maconha ■ 113

número de espermatozóides com aparência anormal e diminuição de sua mobili­ dade. Estas características estão normalmente associadas com baixa fertilidade e alta probabilidade de produzir embriões anormais, caso a fertilização aconteça. Apesar desses efeitos, não há casos relatados de nascimento de crianças defeituosas1. A testosterona também é importante num estágio precoce do desenvolvimento. Por volta da oitava ou décima semana, o feto masculino começa a secretar testos­ terona, que será muito importante na diferenciação e no desenvolvimento do cé­ rebro e do sistema urogenital, incluindo órgãos sexuais. A supressão da testosterona causada pela canabis utilizada pela gestante poderia causar prejuízos ao feto nessa fase. A redução da testosterona na puberdade masculina também pode ser pro­ blemática14. Com a interrupção do uso, a qualidade dos espermas gradualmente retorna ao normal ao longo de meses1. Vários estudos referem que mães que usam maconha durante a gravidez têm bebês cujos pesos corporais são menores ao nascer15. Estudo conduzido com 7.000 mulheres grávidas mostrou que o uso não estava associado a prematuri­ dade ou baixo peso fetal ao nascimento14. Algumas diferenças funcionais foram detectadas em crianças expostas aos canabinóides no útero: um estudo mostrou padrões de sono anormais em recém-nascidos que persistiram até pelo menos os 3 anos de idade14. Entre as idades de 4 a 9 anos, estas crianças apresentam defi­ ciências na sustentação da atenção, na memória e nas funções cognitivas mais elevadas. A significância clínica destes efeitos permanece obscura, uma vez que os estudos são poucos13.

Câncer Sabe-se que o tabaco está associado ao câncer. É verdade que os usuários de maconha inalam menos fumaça que os tabagistas, mas a fumaça da maconha contém 50 a 70% mais agentes carcinogênicos que a do tabaco. Além disso, os usuários de maconha inalam mais profundamente e prendem a fumaça por mais tempo. Porém, há pouca pesquisa nesta área, e os resultados são geralmente in­ conclusivos, pelo fato de muitos usuários de maconha também usarem tabaco. Há dados sugerindo que o uso da maconha acelera os efeitos carcinogênicos do tabaco. Por outro lado, há relatos de que o THC é um potente antioxidante (com­ posto que neutraliza a ação dos radicais livres que danificam o DNA, levando ao câncer). Muita pesquisa precisa ser feita nesta área14.

Complicações Psiquiátricas Há um número substancial de casos que se referem a uma “psicose de canabisf, e descrevem indivíduos que desenvolveram sintomas psicóticos após o uso. Os sintomas mais comuns são confusão, alucinações (principalmente visuais), delírios, labilidade emocional, amnésia, desorientação, despersonalização e sintomas paranóides16. Estas reações são raras e ocorrem após um uso pesado eventual. Na maioria dos casos, estes sintomas desaparecem com a abstinência13.

1 1 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,.

As razões para se crer que a canabis provoca psicose incluem uma combinação de fatores: • Os sintomas se estabelecem logo após o uso de grande quantidade de canabis. • Os indivíduos afetados mostram sintomas “orgânicos” como confusão, desorientação e amnésia. • Muitos não têm histórico, pessoal ou familiar, de psicose anterior ao uso. • Os sintomas desaparecem rapidamente após um período de abstinência. • A recuperação é normalmente completa, ou seja, o indivíduo não apresenta qualquer sintoma psicótico residual, como aqueles vistos em esquizofrênicos. • Há nova ocorrência de desordem após o indivíduo recomeçar o uso. No entanto, há quem critique essas razões. O que se sabe é que, se existe uma “psicose de canabis”, ela é incomum ou raramente recebe intervenção médica nas sociedades ocidentais. Outra possibili­ dade seria a de que a “psicose de canabis” só ocorreria em indivíduos com vulne­ rabilidade preexistente a desordens psicóticas16. Existem muito menos evidências de que o uso de canabis provoque uma psi­ cose que persista além do período de intoxicação. Isso se deve à relativa raridade desse fenômeno e à dificuldade de distinguir esse tipo de psicose da esquizofrenia e de quadros afetivos que ocorrem em usuários de canabis. Existe uma associação entre o uso da canabis e a esquizofrenia: • O uso crônico de canabis pode precipitar a esquizofrenia em indivíduos vulneráveis13. • Os portadores de esquizofrenia podem fazer uso de canabis como uma forma de medicar os sintomas desagradáveis associados ou os efeitos colaterais dos , neurolépticos utilizados no tratamento, tais como depressão, ansiedade, le­ targia e anedonia16.? • O uso de canabis pode exacerbar os sintomas da esquizofrenia16.

Complicações Sociais Há muita polêmica sobre a maconha ser a “porta de entrada” para o uso de outras drogas ilícitas. Há evidências de certa seqüência no uso de drogas. A teoria dos comportamentos problemáticos de Jessor e Jessor mostra que vários dos chamados comportamentos desviantes (bebida, fumo, uso de drogas, rebeldia, delinqüência, direção perigosa, agressão, baixos resultados acadêmicos, menor freqüência a igrejas, menor orientação para o trabalho, iniciação sexual precoce e sexo desprotegido) ocorrem em um mesmo indivíduo. Outra pesquisa indica o desenvolvimento de uma seqüência iniciando pelos comportamentos delin­ qüentes, progredindo para a ingestão de álcool e o uso de cigarros, para o uso da maconha e, então, para problemas relacionados à bebida e finalizando com o uso de drogas pesadas17. A melhor explicação para esses fenômenos não seria qualquer

Maconha ■ 115

efeito farmacológico específico da maconha (ela, por si só, não gera necessidade de outras drogas). Deve haver uma combinação de fatores: por um lado, a escolha inicial do uso da maconha por um grupo de adolescentes já reflete maior curio­ sidade por drogas e, portanto, maior chance de prosseguir experimentando outras delas. Por outro lado, o processo de socialização e a subcultura dos usuários aumen­ taria a exposição destes a outras drogas e encorajaria seu uso. Mas vale a pena dizer: nem todo usuário de maconha progredirá para o uso de outras drogas. O uso de maconha na adolescência está associado à piora no desempenho escolar. Embora isso possa não ter grande impacto na vida do adolescente, pode resultar em rendimento profissional e qualidade de vida inferiores, o chamado “efeito cascata”5. Existem evidências de que o uso crônico de maconha produza déficits leves nas funções cognitivas de memória, atenção, organização e integração de infor­ mações complexas. Se, por um lado, o déficit é sutil, por outro, ele é mensurável a ponto de poder afetar tarefas do dia-a-dia. Não se sabe se esses danos são ou não reversíveis5. Há muita preocupação quanto aos efeitos da maconha no comportamento e na motivação. Uma síndrome amotivacional foi identificada em 1971 por alguns psiquiatras, mas ainda necessita ser confirmada por mais estudos15. Tal síndrome se caracteriza por falta de motivação e reduzida produtividade. Os usuários pare­ cem apáticos, com dificuldade de concentração e desinteresse em cumprir me­ tas7. É importante lembrar a longa vida do THC no corpo humano: usuários diários podem, de fato, estar cronicamente intoxicados e exibir prejuízos comportamentais e motivacionais, mesmo antes da primeira dose diária. Ou seja, essa síndrome parece estar mais associada com um constante estado de intoxicação do que com mudanças de personalidade ou do funcionamento cerebral, tendendo a melhorar com a inter­ rupção do uso e aconselhamento15. A intoxicação produzida pela canabis pode comprometer as habilidades ao volante. Uma pesquisa conduzida com 6.000 adolescentes revelou que aqueles que dirigiam seis ou mais vezes por mês, após terem usado maconha, tinham 2,4 vezes mais probabilidade de se envolver em acidentes de trânsito que aqueles que não haviam fumado antes de dirigir. Estudos realizados com base em resultados de testes do sangue de motoristas envolvidos em acidentes também indicaram um papel importante da maconha na causa dos acidentes. Porém, a maioria dos usuários com resultado positivo para TCH também apresentou resultado positivo para uso de álcool. Ou seja, os estudos foram inconclusivos15. O Quadro 8.2 sumariza os efeitos do uso crônico da maconha.

S ín dro m e

de

A

bstin ên cia

Estudos demonstram que sujeitos que haviam cessado abruptamente o uso de grandes doses diárias de canabis relataram certo “desassossego interno”, horas após a última dose de THC. Irritabilidade, calores repentinos, insônia, suores, inquietude, coriza, soluços, diminuição do apetite11, náuseas, dores musculares, ansiedade, sensação de frio, diarréia, sensibilidade aumentada à luz, vontade intensa de usar a droga, depressão, perda de peso e tremores discretos2. Em

1 1 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,...

Q u adro 8 .2 - Principais Efeitos do Uso Crônico da Maconha2 Gerais

• • • •

Fadiga crônica e letargia Náusea crônica Dor de cabeça Irritabilidade

Neurológicos

• • • •

Diminuição da coordenação motora Alterações de memória e da concentração Alteração da capacidade visual Alteração do pensamento abstrato

Psíquicos

• • • • •

Depressão e ansiedade Mudanças rápidas de humor/irritabilidade Ataques de pânico Tentativas de suicídio Mudanças de personalidade

Respiratórios

• • • • • •

Tosse seca Dor de garganta crônica Congestão nasal Piora da asma Infecções freqüentes dos pulmões Bronquite crônica

Reprodutivos

• • • •

Infertilidade Problemas menstruais Impotência Diminuição da libido e da satisfação sexual

Sociais

• •

Isolamento social Afastamento do lazer e de outras atividades sociais

alguns casos, notou-se comportamento não-cooperativo e resistente11. Estes sintomas não são sempre aparentes e ainda são controvertidos na literatura, care­ cendo de mais estudos11.

P rincípios G erais

de

T ra tam en to

A toxicidade aguda da maconha é extremamente baixa18. Considerando as ex­ periências feitas com animais, supõe-se que seria necessária uma quantidade de 8,45kg de THC para matar um adulto com ôSkg6. Não existe caso de morte por intoxicação confirmado na literatura médica mundial, tampouco complicações agudas são relatadas com freqüência. Os sintomas desagradáveis que podem acompanhar o uso são ansiedade, pânico, medo intenso, disforia e reações depres­ sivas. Quadros psicóticos agudos têm sido descritos tanto em usuários crônicos como em principiantes, e os sinais e sintomas freqüentes são inquietação motora, insônia, “fuga” de idéias e leves alterações do pensamento11. Normalmente, a intoxicação aguda pela canabis não leva a uma atenção pro­ fissional. O reasseguramento psicológico e a orientação para a realidade, feita por

Maconha ■

117

amigos e familiares, costumam ser suficientes5. Os benzodiazepínicos podem ser úteis nos quadros ansiosos agudos, assim como nos psicóticos, se associados a algum neuroléptico18.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. HAN50N, G.# VENTURELLI, R J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 2. LARANJEIRA, R., JUNGERMAN, F., DUNN, J. Drogas: maconha, cocaína e crack. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. 67p. 3. KALANT, H. Medical use of cannabis: history and current status. Pain Res. Manag., 6(2):80-91, 2001 . 4. SOLOWIJ, N. Cannabis and Cognitive Functioning. New York: Cambridge University Press, 1998. 290p. 5. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, O., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 6. HALL, W., SOLOWIJ, N., LEMON, J. The Health and Psychological Consequences o f Cannabis Use. Monograph Series no. 25. National Drug and Alcohol Research Center. Prepared for the National Task Force on Cannabis. Australian Government Publishing Service, 1994. 21 Op. 7. JULIEN, R. M. A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, usesf and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. New York: W. H. Freeman and Company, 1995. 51 Ip. 8. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. O COMEN de Santo Ângelo (RS) em Ação! Realizado um estudo sobre o uso de drogas entre os estudantes do 1Qe 2Qgraus. Boletim CEBRID n. 43, fev./2001. Disponível em: http:// www.cebrid.drogas.nom.br/BoletimCebrid. Acesso em: 17/3/2002. 9. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. A Maco­ nha entre os Estudantes Brasileiros. Dados do IV levantamento sobre o uso de drogas entre os estudantesdo 1- e 2- graus em 10 capitais brasileiras - 1997. Boletim CEBRID n. 36, abr.-ago./ 1999. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/BoletimCebrid. Acesso em: 17/3/2002. 10. CARLINI, E. A., GALDURÓZ, J. C. F., NOTO, A. R., NAPPO, S. A. I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil -2001. São Paulo: CEBRID/UNIFESP, 2002. 380p. 11. STEPHENS, R. S. Cannabis and hallucinogens. In: MCCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions A Comprehensive Guidebook. Specific drugs o f abuse: pharmacological and clinical aspects. New York: Oxford University Press, 1999. Cap. 7, p. 121-140. 12. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA -UNIDADE DE ÁLCOOL E DROGAS (UNiAD). CASTRO, L. A. Dependência de Maconha - Cannabis Sativa. 1999. Disponível em: http://www.uniad.org.br. Acesso em: 30/7/2003. 13. HALL, W., SOLOWIJ, N. Adverse effects of cannabis. The Lancet, 352, Nov. 1996. 14. MCKIM, W. A. MCKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2000. 400p. 15. RAY, O., KSIR, C. Drugs, Society, and Human Behavior. 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999.494p. 16. HALL, W. Cannabis use and psychosis. Drug Ale. Rev., 77:433-444, 1998. 17. MCMURRAN, M. The Psychology o f Addiction. London: Taylor & Francis, 1994. 183p. 18. LARANJEIRA, R., DUNN, J., RIBEIRO ARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N.J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001.

C A P ÍT U L O

Anfetaminas S e l m a B o rd in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isão G er a l As anfetaminas são potentes estimulantes do sistema ner­ voso central capazes de criar dependência em razão de seus efei­ tos euforizantes e de sua habilidade de reduzir a fadiga e aumentar o estado de alerta1. São substâncias sintéticas; deste gru­ po fazem parte, além da própria anfetamina, vários outros deri­ vados, como femproporex, metilfenidato, pemolina, mazindol, dietilpropiona e as metanfetaminas2. Apesar de seus efeitos adictivos, as anfetaminas podem ser prescritas para fins clíni­ cos. Conseqüentemente, o abuso destas substâncias é cometi­ do por pessoas que as conseguem tanto legal como ilegalmente1. A anfetamina foi sintetizada em 1887 por um farmacêu­ tico alemão chamado Edeleano. Porém, foi apenas em 1910 que seus compostos foram testados em animais de labora­ tório. Outros 17 anos transcorreram até que Gordon Alies, um pesquisador, descrevesse seus efeitos, após ter, ele próprio, ingerido a substância1. Em 1937, a Associação Médica Americana sancionou o uso desta drogapara o tratamento da narcolepsia (desordem do sono) e da depressão. Além disso, começou a ser prescrita para controle de peso e amplamente comercializada como inalador para tra­ tamento da asma, sem prescrição médica2. Entre 1935 e 1946, as anfetaminas foram utilizadas para tratamento de diversos pro­ blemas: esquizofrenia; dependência de opióides, cafeína e taba­ co; doenças cardíacas; náuseas; enjôos; hipotensão e soluços4. Porém, o uso não se limitou a questões clínicas. Em conseqüência da falta de controle, boa parte da produção

Anfetaminas ■ 1 1 9

legalmente manufaturada foi absorvida pelo mercado negro. A fabricação destas substâncias é bastante simples; assim, uma importante quantidade foi produzida em laboratórios clandestinos2. As anfetaminas foram muito utilizadas durante a Segunda Guerra Mundial, tanto legal como ilegalmente. Houve muitos relatos de que soldados alemães as utilizavam para aumentar a eficiência. 0 mesmo uso foi observado no Japão, para manter a produtividade na linha de frente e manter os homens despertos. Neste mesmo país, para reduzir o grande estoque remanescente após a guerra, as metanfetaminas foram vendidas sem prescrição; conseqüentemente, houve gran­ de abuso pelos japoneses. Em 1944, na Suécia, em virtude do grande consumo, as prescrições foram rigorosamente controladas. Como resultado, houve significante declínio nas vendas e no consumo. Porém, criou-se um mercado negro para atender aos usuários pesados. O abuso em larga escala começou no final dos anos 1940, principalmente por estudantes e motoristas de caminhões5. As metanfetaminas são formas de anfetaminas mais potentes. O ice é uma metanfetamina altamente pura. Designer drugs são derivados sintéticos facilmente criados em laboratórios clandestinos, por meio de uma alteração desprezível na estrutura molecular das anfetaminas. Existe pelo menos meia dúzia delas, e a mais popular é o MDMA, conhecido nas ruas como ecstasy4 (ver Cap. 7). Atualmente, com o objetivo de controlar a prescrição indiscriminada, muitos países colocaram limites3. Em 1970, o uso das anfetaminas nos Estados Unidos foi restrito ao tratamento de três condições: narcolepsia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e programas breves de redução de peso1. A produção e a comercialização são cuidadosamente monitoradas3.

D ados

de

E pid em io lo g ia

As anfetaminas aparecem entre as quatro drogas mais utilizadas entre os estu­ dantes de l 9 e 2- graus de 10 capitais brasileiras, segundo os levantamentos feitos pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) nos anos de 1987, 89, 93 e 97 (foram excluídos da análise o álcool e o tabaco)6. OIV Levantamento, conduzido em 1997, indicou que os medicamentos com substâncias do tipo anfetamina mais citados foram o Inibex® e o Moderex®. Assim como acontece com os ansiolíticos, os medicamentos anfetamínicos são niti­ damente mais consumidos pelo sexo feminino, e esta tendência tem se mantido ao longo dos anos. Uma explicação para este fato seria a exigência que se faz com relação ao corpo feminino, que tem como padrão a magreza extrema das modelos publicitárias. Tem crescido o número de casos de anorexia nervosa, que nor­ malmente se iniciam após um regime malconduzido na adolescência6. Este mesmo levantamento também indicou que a tendência do uso na vida cresceu em Belém, Curitiba, Fortaleza e Recife. A tendência do uso freqüente (uso de seis vezes ou mais no mês) aumentou em Belém, Fortaleza, Porto Alegre e Recife. O uso pesado (20 vezes ou mais no mês) também demonstrou tendência de crescimento em Fortaleza, Porto Alegre e Recife.

120 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. Outro estudo, realizado pelo COMEN de Santo Ângelo (RS)7, entre estudantes de l 2 e 2- graus, indicou que 8,9% da população pesquisada já havia feito uso de anfetaminas na vida. Elas apareceram em 4" lugar, seguidas pela cocaína (álcool e tabaco foram excluídos).

V ias

de

A

d m in istr a çã o

As anfetaminas podem ser administradas via oral, via intravenosa, via nasal ou via pulmonar (“fumada”) e, como será visto a seguir, a intensidade e a duração dos efeitos variam conforme a via utilizada16. As anfetaminas se apresentam numa variedade de preparações comerciais, lícitas e ilícitas. Quando utilizadas para propósitos terapêuticos, são mais comumente tomadas na forma de com­ primidos. Cristais de metanfetaminas, como o ice e o “cristal”, são fumados em cachimbos de vidro, injetados ou inalados. O ecstasy normalmente é consumido em tabletes ou cápsulas8.

E feito s

do

U so A g u d o

Absorção, Metabolismo e Excreção A droga é mais potente quando administrada por meio de injeção ou inalação. Quando ingeridas oralmente, as anfetaminas tendem a ser ionizadas no sistema digestivo, o que torna sua absorção mais lenta. Neste caso, a perda da potência do efeito pode ser compensada com o aumento da dose e tem a vantagem de poder manter os níveis sangüíneos razoavelmente constantes, sem muita variação ao longo do tempo3. Quando o uso tem como finalidade o rush, a administração é normalmente feita por meio de injeção, o que provoca o repentino e necessário aumento da droga no sangue para tal2. Com o uso de altas doses, desenvolve-se rápida tole­ rância, o que se explica pelo fato de as anfetaminas deslocarem muitos neurotransmissores de seus locais de armazenamento. Uma segunda dose, administrada pouco tempo depois, encontrará os “reservatórios vazios”, e poucos efeitos serão alcançados9. A rapidez da absorção da droga ingerida oralmente depende de fatores como presença de alimento no estômago e nível de atividade física. Os picos de con­ centração sangüínea acontecem de 30 minutos a 4 horas após a ingestão. No sangue, circula por todo o corpo e se concentra no baço, nos rins e no cérebro3. Cerca de 80% da anfetamina ingerida é excretada inalterada10. A outra parte pode ser metabolizada de várias maneiras, por muitas enzimas. Vários de seus metabólitos também são ativos e têm longa meia-vida3. A excreção depende muito do pH da urina. Quando mais básica ela for, mais anfetamina será reabsorvida. A meia-vida das anfetaminas pode ser curta (de 7 a 14 horas), caso a urina seja ácida, ou longa (de 16 a 34 horas), caso a urina seja básica. As anfetaminas também são excretadas pela saliva e pelo suor3.

Anfetaminas ■

121

Efeitos Farmacológicos As anfetaminas são substâncias sintéticas, similares a neurotransmissores naturais, como a norepinefrina e a dopamina, e ao hormônio do estresse, a epinefrina (adrenalina). As anfetaminas agem aumentando a atividade das catecolaminas (norepinefrina e dopamina) e da serotonina (outro neurotransmissor), tanto no cérebro quanto nos nervos associados ao sistema nervoso simpático. Como resul­ tado, tem-se a estimulação ou ativação do sistema de resposta “fuga ou luta”, de forma semelhante àquelas que acontecem em situações de crise ou emergência1. As conseqüências farmacológicas variam conforme a dose, a via de admi­ nistração e a rapidez de absorção. De maneira geral, podemos pensar nos efei­ tos de doses pequenas ou moderadas (5 a 50mg), em geral administradas oralmente e nos efeitos de altas doses (mais de lOOmg), normalmente adminis­ tradas por via intravenosa5. Estas doses não são as mesmas para todos os tipos de anfetaminas. Por exem­ plo, a dextroanfetamina é 3 a 4 vezes mais potente que a anfetamina: uma dose baixa ou moderada equivale a 2,5 a 20mg (50mg já é considerada uma dose alta). Como as metanfetaminas são ainda mais potentes, as doses podem ser bem menores5. Em baixas doses, todos os tipos de anfetaminas induzem um significativo aumento da pressão sangüínea e da freqüência cardíaca, vasodilatação, bronco dilatação e uma variedade de outras respostas pertinentes à preparação química do corpo para a fuga ou a luta2,5. Esses efeitos do sistema nervoso simpático não são prazerosos para muitas pessoas, que, por essa razão, preferem as metanfetaminas, cuja ação é intensa sobre o sistema nervoso central e pequena sobre o periférico3. Em doses moderadas (20 a 50mg), ocorrem efeitos adicionais, incluindo esti­ mulação da respiração, tremores finos, inquietude, aumento da atividade motora, insônia, agitação, prevenção da fadiga, supressão do apetite e intensificação do estado de vigília5. Estudos conduzidos com animais demonstram que alguns dos efeitos das anfetaminas são maiores quando os testes são realizados em grupos. Em humanos, um estudo mostrou que a anfetamina tende a causar, em pessoas testadas em grupos, maior aumento na pressão sangüínea e na temperatura corporal do que naquelas pessoas testadas isoladamente3. A dose letal varia muito. Reações severas podem ocorrer com a administração de pequenas doses. Por outro lado, sabe-se de pessoas não-tolerantes que sobre­ viveram a doses de 400 a 500mg5. Sintomas de uma overdose incluem vertigem, confusão, tremores, alucinações, estados de pânico, irregularidade dos batimentos cardíacos, colapso do sistema circulatório, convulsões e coma.

Efeitos Psicoativos Mantenedores da Dependência Quando administradas por via intravenosa, a cocaína e as anfetaminas provo­ cam efeitos idênticos. No sistema nervoso central, as anfetaminas são poderosos estimulantes psicomotores, produzindo efeitos que os usuários relatam como

122 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. aumento do estado de alerta, euforia, excitação, redução da sensação de fadiga e aumento da energia, perda do apetite, elevação do humor, aumento da atividade motora e da fala, sensação de poder, clareza e organização da mente3,5. Apesar de haver aumento da performance em tarefas, a destreza e a habilidade motora fina podem ser prejudicadas5. Estes efeitos são seguidos, horas depois, de um sentimento de depressão3. Alguns usuários descrevem a sensação provocada pela anfetamina administrada por via intravenosa como “um orgasmo de todo o corpo”. Muitas pessoas reportam que o uso de anfetaminas prolonga a atividade sexual por horas; uma minoria as utiliza com esta finalidade. Outros referem que, quando utilizam a droga, não con­ seguem alcançar o orgasmo de forma alguma1. O Quadro 9.1 mostra um resumo dos efeitos provocados pelas anfetaminas no corpo e na mente.

E feito s

do

U so C rô n ico

Em animais, a administração crônica de anfetaminas está associada com a depleção persistente de dopamina e de tirosina (necessária para a síntese de dopamina). Isso sugere que as anfetaminas podem ser potencialmente tóxicas para os neurônios dopaminérgicos, que, por sua vez, podem perder sua sensibilidade aos reforçadores naturais. Quando isso acontece, a única maneira de se conseguir uma experiência positiva é com a administração de mais anfetamina5. Essa con­ dição pode permanecer por meses após a cessação do uso. Ainda não se sabe como esse dano ocorre ou qual seu efeito sobre o comportamento1. Alguns pacientes que receberam anfetaminas por razões médicas relataram dores de cabeça, boca seca, distúrbios do estômago e perda de peso decorrente da depressão do apetite3. Como a necessidade fisiológica do sono não pode ser adiada indefinidamente, um sono profundo se segue à descontinuação da droga. A

Q uadro 9.1 -- Resumo dos Efeitos das Anfetaminas no Corpo e na M ente1 Doses

Corpo

Mente

Baixas doses

• • • • • • • • • • • •

• • • • • • • • • •

Altas doses

• Morte decorrente de overdose

Aumento dos batimentos cardíacos Aumento da pressão arterial Diminuição do apetite Aumento do ritmo respiratório Dificuldade para dormir Suores Boca seca Tremores dos músculos Convulsões Febre Dores torácicas Batimentos cardíacos irregulares

Diminuição da fadiga Aumento da confiança Aumento do estado de alerta Inquietude, fala excessiva Aumento da irritabilidade Medo e apreensão Desconfiança Comportamento estereotipado Alucinações Psicose

Anfetaminas ■ 123

recuperação completa do padrão normal do sono pode levar semanas. O uso pro­ longado de baixas doses ou a administração de uma única dose alta são, caracte­ risticamente, seguidos de intensa depressão mental e fadiga5. Usuários crônicos de altas doses sofrem efeitos diferentes. Comportamentos estereotipados incluem atos ininterruptos, despropositados e repetitivos, explo­ sões súbitas de agressividade e violência, delírios paranóides e anorexia severa. Um estado psicótico pode se desenvolver e ser indistinguível de um ataque agudo de esquizofrenia5. Estudos sistemáticos demonstram que o uso de anfetaminas causa insônia3. Experimentos feitos com macacos, a quem se administrava metanfetamina injetável, resultaram em prejuízos às artérias e veias, causando-lhes ruptura e provo­ cando severos danos cerebrais. A administração oral de metanfetaminas a macacos e ratos resultou em mudanças cerebrovasculares e sérios danos aos rins, semelhantes àqueles provocados pelo uso intravenoso. Não se pode dizer ao certo o que é dire­ tamente responsável por muitos desses efeitos: a própria droga, a má nutrição oca­ sionada pela droga ou outro fator associado ao estilo de vida do usuário1. Outras deteriorações incluem funcionamento mental subnormal e grande variedade de condições resultantes da má nutrição, da falta de cuidados consigo mesmo, da perda do sono e do uso inadequado de injeções intravenosas. A maioria dos usuários crônicos de altas doses também mostra progressiva deterioração social, pessoal e ocupacional5.

S ín d ro m e

de

A

bstin ên cia

Sabe-se que as anfetaminas induzem tolerância, mas não está claro se há uma verdadeira síndrome de abstinência2 e, por anos, questionou-se o potencial de dependência dessas drogas. Porém, há evidências de que o uso repetido de altas doses produza um consis­ tente grupo de sintomas: o humor e a energia caem dramaticamente e o usuário pode dormir por 24 horas ou mais. Ao acordar, estará num humor deprimido que poderá durar dias; durante esse tempo, a pessoa se sentirá impotente e desprezí­ vel9. Esse estado pode ser muito severo e vir acompanhado de pensamentos e tenta­ tivas de suicídio3. Sintomas mais pronunciados de abstinência foram observados em fumantes de metanfetaminas {ice e cristal), tais como dores abdominais, gastrenterites, letargia, dispnéia, aumento do apetite, depressão profunda e, ocasionalmente, suicídio8. Obviamente, a maneira mais rápida de acabar com esse estado é ingerir a droga de novo. Para muitos, esse quadro configura uma definição de síndrome de abstinência9.

P rincípios G erais

de

T ra tam en to

As principais complicações ameaçadoras à vida na overdose por anfetaminas são hipertermia, hipertensão, convulsões, colapso cardiovascular e traumas. São possíveis os edemas pulmonares cardiogênicos8. Estes quadros devem ser tratados por profissionais competentes e devidamente treinados.

124 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool. Na ausência de complicações clínicas ameaçadoras à vida, nâo se justifica o atendimento de emergência para a síndrome de abstinência. O aporte nutricional e uma avaliação clínica do estado geral, associados a terapêuticas ansiolíticas e antidepressivas, podem ser instituídos8.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s *\. HANSON, G., VENTURELLI, P. J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 2. LARANJEIRA, R., NJCASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, 0., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 3. MCKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2000. 400p. 4. WEAVER. M. F., SCHNOLL, S. H. Stimulants: amphetamines and cocaine. In: MCCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions - A Comprehensive Guidebook. Specific Drugs of Abuse: pharmacological and clinical aspects. New York: Oxford University Press, 1999. Cap. 6, p. 105-120. 5. JULIEN, R.M. A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. New York: W. H. Freeman and Company, 1995. 51 Ip. 6. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. Os Anfetaminicos entre os Estudantes Brasileiros. Dados do IV levantamento sobre o uso de drogas entre estudantes de 1- e 2e graus em 10 capitais brasileiras -1997. Boletim CEBRID n. 34, jun./1998. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/BoletimCebrid. Acesso em: 17/3/2002. 7. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. O COMEN de Santo Ângelo (RS) em Ação! Realizado um estudo sobre o uso de drogas entre os estudantes do 1Qe 2Qgraus. Boletim CEBRID n. 43, fev./2001. Disponível em: http://www.cebrid.drogas.nom.br/BoletimCebrid. Acesso em: 17/3/2002. 8. LARANJEIRA, R., DUNN, J., RIBEIRO ARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N. J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001. 9. RAY, 0., KSIR, C. Drugs, Society, and Human Behavior. 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999. 494p. 10. TARTER, R. E., AMMERMAN, R. T., OTT, P. J. Handbook o f Substance Abuse - neurobehavioral pharmacology New York: Plenum Press, 1998. 602p.

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Solventes e Inalantes S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

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V isão G e r a l Os solventes também são chamados de inalantes ou substâncias voláteis. Representam um grupo de substâncias psicoativas quimicamente bastante diversificado e envolvem uma grande variedade de produtos: gasolina, cola, solventes, tintas, vernizes, esmaltes, aerossóis, removedores, fluido de isqueiro, gás de botijão, benzina, inseticidas, extintores de in­ cêndio, laquês, acetonas, lança-perfume, cheirinho-da-loló, etc.12,3. Freqüentemente, são divididos em quatro classes: voláteis ou solventes orgânicos, aerossóis, anestésicos e nitra­ tos voláteis4. Podem ser inalados involuntariamente por traba­ lhadores da indústria ou utilizados como drogas de abuso3. O fenômeno da inalação de produtos químicos desenvolveu-se nos países industrializados a partir de 1940, período do início da produção industrial e uso generalizado destas substâncias. Nos últimos 50 anos, uma grande variedade de produtos começou a ser inalada visando à obtenção de efeitos psicoativos. O abuso de colas, que deu o nome a seus usuários de “cheiradores de cola”, foi relatado pela primeira vez em 1959, na Califórnia1. A inalação voluntária é um fenômeno que acontece em vários países do mundo, sobretudo com crianças e adolescen­ tes de países subdesenvolvidos e a população marginalizada dos países industrializados3. A disponibilidade e a facilidade de acesso parecem ser as razões primárias para o abuso destas substâncias, contribuindo para a grande prevalência do uso entre esta população2. Os solventes são de baixo custo, legal­ mente distribuídos, disponíveis e fáceis de ocultar1.

1 2 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,.

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De acordo com estudos epidemiológicos, os solventes estão entre as drogas mais utilizadas pela população de jovens e crianças de baixa renda, provenientes de diferentes países, sendo ultrapassados apenas pelo álcool e pelo tabaco. No Brasil, dados apontam que o consumo, tanto na população estudantil como nos grupos sociais de risco (menores de rua sem moradia fixa, menores infratores institucionalizados e adolescentes que não freqüentam escolas), é bem mais intenso que em outros países1. Num estudo realizado em 1987, em 10 capitais brasileiras, os solventes já estavam entre as drogas mais utilizadas por estudantes de escolas públicas3.0 IV Levanta­ mento sobre o Consumo de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, realizado em 1997 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), nas cidades de Brasília, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de laneiro e São Paulo, indicou que 30 a 80% da população pesquisada já havia inalado algum solvente e 20 a 30% destes entrevistados relataram fazer uso quase diário1. Outro estudo epidemiológico realizado pelo COMEN de Santo Ângelo (RS)5, entre estudantes do l s e 2- graus, publicado em fevereiro de 2001 pelo CEBRID, indicou que o uso de solventes na vida aparece em primeiro lugar entre as drogas psicotrópicas (álcool e tabaco foram excluídos da análise). O I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, também realizado pelo CEBRID, indicou uso na vida de 5,8% do total da população pesquisada, contrastando com os resultados anteriores. Provavelmente, esta dife­ rença de prevalência se deve ao fato de que a população reconhecida como grande consumidora de solventes é a de meninos em situação de rua (sem domicílio, portanto)6. O consumo de inalantes geralmente se inicia entre 9 e 12 anos de idade, fre­ qüentemente entre estudantes do sexo masculino. Esta idade só é menor que a do uso inicial do álcool (o qual é culturalmente aceito em todas as camadas da socie­ dade brasileira). A curiosidade é a principal razão do uso, que também é justificado pela pressão ou sugestão dos amigos. Os adolescentes transferem a sua preferência para outras drogas após 1 ou 2 anos de uso dos solventes, à medida que crescem ou experimentam outras substâncias psicoativas. Assim, apenas uma pequena porcen­ tagem mantém os solventes como droga de escolha. O uso por adultos, que é ainda mais raro após os 35 anos de idade, pode estar relacionado a problemas sociais como desemprego, delinqüência e encarceramento1. Apesar de se focar o abuso por crianças e adolescentes, é preciso ressaltar que os trabalhadores envolvidos com estes produtos, em processos industriais ou pres­ tação de serviços, podem se intoxicar, voluntária ou involuntariamente, e tam­ bém merecem atenção1.

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O uso por inalação é o preferido para a intoxicação voluntária. No entanto, existem relatos de ingestão oral para esconder a prova, em caso de aproximação policial. Em geral, um chumaço de algodão ou trapo de pano embebido com a substância é encostado no nariz e na boca e seus vapores são inspirados. Alguns

Solventes e Inalantes ■ 127

usuários aquecem esses compostos para acelerar a vaporização. As substâncias a serem inaladas também podem ser colocadas em um saco plástico ou de papel, para aumentar a concentração dos vapores. Podem, ainda, ser inalados de suas embalagens, e os aerossóis podem ser levados diretamente à boca ou ao nariz1.

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Absorção, Metabolismo e Excreção Independentemente da sua classificação, os solventes apresentam algumas propriedades comuns: suas moléculas são pequenas e de baixo peso, o que facilita sua penetração e distribuição pelo corpo4. Os solventes são rapidamente absorvidos pela corrente sangüínea, pela rica superfície capilar dos pulmões. Picos de concentração ocorrem em minutos, e os efeitos são praticamente imediatos, durando de 5 a 15 minutos2. Por meio da corrente sangüínea, atingem os tecidos mais vascularizados, como o cérebro e o fígado1. Pela sua alta lipossolubilidade, são rapidamente armazenados em depósitos de gorduras (incluindo o sistema nervoso central, o periférico, o fígado e os rins), o que torna difícil a mensuração exata dos níveis sangüíneos2,4. O metabolismo e a excreção são variáveis e dependem dos compostos utilizados2. O metabolismo da gasolina, da acetona e da benzina é feito no fígado. A maior parte da acetona é excretada pelos pulmões e uma pequena quantidade, inalterada, pelos rins. O produto final da benzina também é eliminado pelos rins1.

Efeitos Farmacológicos e Psicológicos Diversas teorias estão sendo estudadas para explicar os mecanismos de ação dos solventes1. Parece que esse mecanismo envolve a fluidização das membranas celulares. Os receptores do GABA devem ser o alvo primário da maioria dos solven­ tes2 e os receptores de glutamato também podem estar envolvidos, sendo blo­ queados pela ação destas substâncias1. A intoxicação se assemelha àquela produzida pelo álcool: euforia inicial se­ guida de depressão. Quando inalados em concentrações suficientes, os solventes produzem alterações comportamentais e psicológicas agudas no usuário. Os efeitos desaparecem rapidamente e, por isso, o usuário repete as inalações inúmeras vezes, para conseguir efeitos mais duradouros. Assim, a intoxicação pode durar várias horas. Os efeitos podem ser divididos em quatro fases14: • Primeira fase: são os sintomas mais procurados pelos usuários e incluem euforia, excitação, exaltação e alterações auditivas e visuais. Podem ocorrer sintomas desagradáveis como vertigens, tonturas, náuseas, vômitos, espirros, tosse, salivação, fotofobia e rubor facial. • Segunda fase: depressão inicial do sistema nervoso central, produzindo confusão, desorientação, obnubilação, perda do autocontrole, turvação da visão, diplopia e cólicas abdominais. Podem surgir cefaléia e palidez. • Terceira fase: depressão média do sistema nervoso central, com redução acentuada do estado de alerta, dificuldade de coordenação ocular e motora, ataxia, fala pastosa, reflexos diminuídos e nistagmo.

1 2 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,

• Quarta fase: depressão profunda ou tardia do sistema nervoso central, podendo ocorrer inconsciência, convulsões, alterações no eletroencefalograma, paranóia e comportamento bizarro. Esta fase ocorre com freqüência em usuários que inalam a substância de um saco plástico e que, após certo tempo, já não conseguem afastá-lo do nariz, agravando a intoxicação, que pode levar à morte por asfixia mecânica. A intoxicação aguda por ingestão oral de quantidades excessivas é relati­ vamente rara e costuma ser fatal. Quantidades de 40 a 50mL de thinner ingeridos oralmente, por exemplo, são suficientes para causar complicações severas, como rabdomiólise, polineuropatia, pneumonia química e coma1. Além desses efeitos, ressaltamos que o hábito de aquecer os solventes constitui risco imediato, uma vez que estes produtos são altamente inflamáveis e acidentes são freqüentes. O uso de recipientes fechados e em ambientes pouco ventilados pode aumentar o grau de intoxicação1.

E feitos

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U so C rô n ico

A exposição crônica aos efeitos dos inalantes pode ocorrer pela inalação ocupacional, quando os trabalhadores são expostos a baixas concentrações por longos períodos ou pelo uso intencional, que normalmente envolve exposições a altas concentrações de solventes por períodos de tempo menores1. Os estudos das con­ seqüências do abuso de solventes ainda são bastante escassos. Além do abuso e da dependência, os solventes são drogas com alto potencial de morbidade e morta­ lidade1. Há muitas evidências de que o uso abusivo de solventes é mais danoso ao cérebro e a outros órgãos que o das drogas que chamam mais a atenção do público (cocaína, maconha, etc.). O risco de uma fatalidade também é muito maior4. O uso está associado com a síndrome da “morte súbita”, ocasionada por falha cardíaca12, que pode ocorrer em razão da sensibilidade do miocárdio à estimula­ ção pela noradrenalina1. Além disso, também existe o risco de prejuízos crônicos ao coração, aos pulmões, aos rins, ao fígado e aos nervos periféricos2. Prejuízos psicológicos, psiquiátricos e comportamentais podem ocorrer a longo prazo e incluem: fadiga; esquecimento; dificuldade de pensar clara ou logicamente; irritabilidade; alterações da personalidade; redução da motivação, vigilância e ini­ ciativa; depressão do humor; disforia; distúrbio de conduta; psicose esquizofrênica e sensação de perseguição1. Quando submetidos a testes de avaliação neuropsicológica, usuários crônicos apresentam baixos resultados nos itens concentração, atenção, percepção visual, aprendizagem e memória2. As alterações neurológicas envolvem patologias por irritação cortical (epilepsia) ou atrofia cortical (demência), síndrome cerebelar (nistagmo, alterações da marcha, tremores, reflexos profundos acentuados, disdiadococinesia e disartria) ou sín­ drome parkinsoniana. Com lesão neuronal, podem ocorrer atrofia óptica, surdez, diminuição do olfato e polineuropatia periférica com sério comprometimento motor. É muito importante a utilização da ressonância magnética na avaliação e no diag­ nóstico dos danos cerebrais causados pelos solventes1. O uso de solventes na gravidez pode provocar aumento do risco de aborto espontâneo e de malformações fetais. Recém-nascidos nestas condições apresen-

Solventes e Inalantes ■ 129

tam baixo peso e anormalidades craniofaciais semelhantes às produzidas pela síndrome fetal causada pelo álcool1. Há forte relação entre o abuso de solventes e a delinqüência juvenil: os delin­ qüentes que abusam de solventes apresentam comportamento mais violento ou criminoso. O abuso de solventes pelo adulto jovem está fortemente associado ao transtorno de personalidade anti-social e ao abuso de múltiplas substâncias. No entanto, não há dados conclusivos sobre quais sintomas psiquiátricos precedem ou resultam do abuso2.

SíNDROME DE ÂBSTINÊNCIA A síndrome de abstinência dos solventes não foi bem documentada e parece não ser clinicamente significativa1. Também não está claro qual a intensidade da exposição (duração e dosagem) necessária para resultar em sintomas de absti­ nência2. Ela se inicia 24 a 48 horas após a cessação do uso, pode durar de 2 a 5 dias1 e inclui perturbações do sono, tremores, irritabilidade, respiração acelerada, náu­ seas e desconforto no abdome e no tórax2.

P rincípios G erais

de

T ra ta m en to

O tratamento das intoxicações graves, com depressão respiratória, coma, ar­ ritmias cardíacas e convulsões, são emergências médicas e devem receber trata­ mento imediato. O usuário poderá ter passado vários dias sem aporte alimentar e chegar ao pronto-socorro necessitando mais de reposições (reidratação, reposi­ ção de glicose, eletrólitos, etc.) do que de cuidados ligados à intoxicação7.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. FERIGOLO, M. et al. Aspectos clínicos e farmacológicos do uso dos solventes. J. Bras. Psiquiat. 49(9)1331-341, 2000. 2. PANDINA, R., HENDREN, R. Other drugs of abuse: inhalants, designer drugs, and steroids. In: MCCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions - A Comprehensive Guidebook. Specific drugs o f abuse: pharmacological and clinicai aspects. New York: Oxford University Press, 1999. Cap. 10, p. 171-184. 3. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, O., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 4. TARTER, R. E., AMMERMAN, R. T., OTT, P. J. Handbook ofSubstance Abuse - neurobehavioral pharmacology. New York: Plenum Press, 1998. 602p. 5. CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS - CEBRID. O COMEN de Santo Ângelo (RS) em Ação! Realizado um estudo sobre o uso de drogas entre os estudantes do 1Qe 2- graus. Boletim CEBRID n. 43, fev./2001. Disponível em: http:// www.cebrid.drogas.nom.br/BoletimCebrid. Acesso em: 17/3/2002. 6. CARLINl, E. A., GALDURÓZ, J. C. F., NOTO, A. R., NAPPO, S. A. I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil-2001. São Paulo: CEBRID/UNIFESP, 2002. 380p. 7. LARANJEIRA, R. DUNN, J., RIBEIRO ARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N. J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001.

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Sedativos-Hipnóticos S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

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V isão G er a l Os sedativos-hipnóticos se referem a vários compostos químicos, assim agrupados em razão da similaridade de seus efeitos. Fazem parte de um grupo maior, conhecido por depres­ sores do sistema nervoso centrala. Em toda sua história, os seres humanos buscaram meios de diminuir ou controlar a ansiedade e a insônia. O álcool é, certa­ mente, o mais antigo agente sedativo-hipnótíco utilizado para este propósito. Historicamente, os opióides também foram uti­ lizados com essa finalidade, mas seu uso ficou limitado em vir­ tude de seu potencial letal. No final do século XDC, o hidrato de cloral e o brometo se tomaram as alternativas mais seguras2. Os barbitúricos foram introduzidos na prática clínica no início do século XX, com o barbital e o fenobarbital. Entre 1912 e 1950, cerca de outros 50 barbitúricos se tomaram disponíveis no mercado e foram as drogas mais comumente utilizadas no tratamento da ansiedade, da insônia e das convulsões, até a in­ trodução do clordiazepóxido, o primeiro dos benzodiazepínicos, no início dos anos 1960. Comparados aos barbitúricos, os benzodiazepínicos oferecemvantagens significativas em termos de segurança e opções123: nas décadas de 1940 e 1950 ocorre­ ram muitas mortes associadas à ingestão de doses tóxicas de barbitúricos; por isso, os benzodiazepínicos foram recebidos com alívio e praticamente sem críticas, levando os clínicos a uma expectativa exagerada em relação a seu potencial terapêutico4. Hoje são amplamente utilizados na prática clínica da maioria dos países, têm indicações precisas e validade comprovada5. A diferença entre os barbitúricos e os benzodiazepínicos está mais na dose e na duração dos efeitos do que em suas

Sedativos-Hipnóticos ■

131

características químicas propriamente ditas. O risco de uma overdose é sempre maior quando a droga é vendida em grandes quantidades, como aquelas prescritas para efeitos hipnóticos. Quanto mais rápido for o estabelecimento dos efeitos (quan­ to mais rapidamente a droga atingir o cérebro), maior será a probabilidade de produzir dependência (é por isso que as drogas fumadas ou injetadas têm maior potencial adictivo). E, quanto mais rapidamente a droga deixar o corpo, maior a probabilidade de provocar dependência: o corpo não teria tempo suficiente para se adaptar, o que acabaria produzindo sintomas de abstinência1. A Figura 11.1 fornece uma idéia comparativa entre os benzodiazepínicos e os barbitúricos, com relação ao estabelecimento e à duração dos efeitos. Como se pode observar, o barbitúrico secobarbital tem ação rápida e curta, o que aumenta seu potencial adictivo. Os efeitos do diazepam se estabelecem mais rapidamente que os do clordiazepóxido, mas duram por mais tempo: ele provavelmente provoca mais dependência e menos sintomas de abstinência1. Apesar de os benzodiazepínicos serem efetivamente mais seguros que os barbi­ túricos, eles também são capazes de induzir tolerância, sintomas de abstinência e têm algum potencial de letalidade. Usuários destas drogas costumam procurar as salas de emergência em busca de receitas, referindo sintomas de abstinência e, algumas vezes, intenções suicidas4. Dois novos agentes não são benzodiazepínicos em termos de sua estrutura quí­ mica, mas atuam nos mesmos receptores que eles, produzindo os mesmo efeitos bási­ cos5: a buspirona e o zolpidem. Abuspirona é uma droga ansiolítica que se mostrou efetiva no tratamento de transtornos de ansiedade generalizada, mas não no trata­ mento de outros transtornos de ansiedade. Não tem nenhum potencial de abuso, e estudos conduzidos com alcoolistas ansiosos indicaram que esta droga pode ser útil com esta população. O zolpidem é um agente hipnótico de curta duração2.

Secobarbital (barbitúrico)

Fenobarbital (barbitúrico)

Midazolam (benzodiazepínico)

Diazepam (benzodiazepínico)

Figura 11.1 - Duração dos efeitos de barbitúricos e benzodiazepínicos.

1 3 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,.

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E p id em io lo g ia

Dados internacionais referem que uma entre dez pessoas usa regularmente esses medicamentos. Estudo conduzido no Brasil concluiu que a prevalência de consumo de benzodiazepínicos em São Paulo era de 12,2% em 1979 e de 10,2% em 1993. Estudo conduzido em 1994, em Porto Alegre, indicou uma prevalência de uso de 13,1% no último mês, 21,3% no ano anterior e 46,7% na vida7.0 1 Levanta­ mento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, conduzido em 107 cidades com mais de 200 mil habitantes pelo CEBRID - Centro Brasileiro de Infor­ mações sobre Drogas Psicotrópicas, revelou uso na vida de benzodiazepínicos por 3,3% da população (2,2% da população masculina e 4,3% da feminina). O uso de barbitúricos é menor: 0,5% da população pesquisada (0,3% da masculina e 0,6% da feminina)8. Estima-se que 1,6% da população adulta é usuária crônica de ben­ zodiazepínicos, principalmente mulheres com mais de 50 anos de idade e por­ tadoras de problemas crônicos, como transtornos de ansiedade9. Tanto no Brasil como em outros países, a maior parte das prescrições de benzodiazepínicos não é feita por psiquiatras7.

Uso C lín ico , Uso

N o c iv o

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D epen d ên cia

Como já foi visto, os benzodiazepínicos são importantes ferramentas te­ rapêuticas no tratamento de diversos quadros clínicos: alívio de ansiedade, relaxamento muscular, tratamento de algumas desordens convulsivas, indu­ ção do sono, alívio de sintomas de abstinência do álcool, indução de anestesia para procedimentos médicos desconfortáveis ou cirúrgicos, etc.10 Esse im­ portante papel dos benzodiazepínicos pode dificultar o diagnóstico de uso nocivo e dependência, uma vez que seu uso pode ter sido prorrogado indevi­ damente. Além disso, indivíduos predispostos ao uso de múltiplas substâncias podem usar os benzodiazepínicos para potencializar os efeitos euforizantes de outras drogas ou para automedicar sintomas intensos de ansiedade. Os critérios diagnósticos para uso nocivo e dependência são os mesmos que para as demais drogas. O quadro de dependência pode se instalar após vários anos de baixas doses (10 a 40mg de diazepam) ou após o uso de altas doses num espa­ ço superior a 2 meses. Alguns indivíduos podem desenvolver tolerância a altas doses, como, por exemplo, lg/dia de diazepam. A tolerância ao efeito sedativo-hipnótico aparece nas primeiras 2 a 3 semanas, embora o efeito antiansiedade pos­ sa persistir4.

V ias

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A escolha da via de administração depende do propósito do uso. Se a droga esti­ ver sendo utilizada como anestésico ou se for necessário o rápido estabeleci­ mento de seus efeitos, uma injeção intravenosa é o procedimento indicado. Porém, se um efeito de longo prazo for desejado, a administração oral é a mais apropriada6.

Sedativos-Hipnóticos ■ 133

E feito s

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Absorção, Metabolismo e Excreção Tanto os barbitúricos quanto os benzodiazepínicos são prontamente absor­ vidos após a ingestão oral ou administração parenteral. A absorção do sistema digestivo é mais rápida do que a absorção intramuscular, provavelmente porque a droga tende a se ligar à proteína, o que pode ser feito mais facilmente no local da injeção do que no sistema digestivo. O diazepam, um dos benzodiazepínicos de ação mais rápida, atinge um pico de concentração por volta de 30 a 60 minutos, enquanto outros podem levar várias horas. Também há uma grande variação de indivíduo para indivíduo na taxa de absorção dos benzodiazepínicos administrados: uma dose de diazepam dada a uma pessoa pode apresentar uma concentração sangüínea 20 vezes maior que a mesma dose dada a outra pessoa6. A absorção pelo sistema digestivo pode ser potencializada com a ingestão de bebidas alcoólicas. Após o consumo de pequenas quantidades de álcool, os níveis sangüíneos de diazepam podem quase dobrar6. Uma vez que o barbitúrico ou benzodiazepínico esteja no sangue, a distribui­ ção e, conseqüentemente, a duração da ação será determinada pela lipossolubilidade de cada droga em particular. Quanto mais lipossolúvel for a droga, mais rapidamente ela atravessará o cérebro e se estabelecerão os efeitos. Por outro lado, esses efeitos podem passar em minutos, uma vez que os níveis no cérebro caem rapidamente. Esse decréscimo acontece porque a droga é redistribuída por outras áreas do corpo que contêm gorduras. Desses depósitos de gordura, a droga é len­ tamente lançada no sangue e metabolizada no fígado. Tanto os benzodiazepínicos quanto os barbitúricos atravessam a placenta facilmente e podem ser encontrados no leite materno. A excreção é feita pelos rins6. A meia-vida dos benzodiazepínicos é bastante variável e pode ser dividida em quatro categorias: ultracurta duração (midazolam); curta duração (triazolam); du­ ração intermediária (temazepam, lorazepam, oxazepam) e longa duração (flurazepam, diazepam)3.

E feito s F a r m a c o ló g ic o s

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P sico a tiv o s

Todos os agentes sedativos-hipnóticos têm a habilidade de produzir de­ pressão no sistema nervoso central, por meio da ativação do sistema GABAérgico. Em doses menores, a maioria deles diminui o nível de atividade do indivíduo, modera a excitação e tem efeitos calmante e ansiolítico. Em doses maiores, produzem sonolência e facilitam a indução e a manutenção do sono3. Pode haver casos de desinibição do comportamento, com agressividade e hostilidade, principalmente se for combinado com o álcool5. Alguns barbitúricos, mas não os benzodiazepínicos, podem induzir anestesia geral. Alguns têm propriedades anticonvulsivantes e de relaxamento muscular. Os benzodiazepínicos têm efeito ansiolítico em dosagens não sedativas, os barbitúricos não. Os barbitúricos suprimem o centro respiratório a dosagens somente três vezes

134 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,. maiores que as usadas para indução do sono e, por isso, são muito perigosos (risco de overdose)3. Doses maciças de benzodiazepínicos são necessárias para se atingirem níveis tóxicos letais5. A Figura 11.2 mostra como o aumento da dose dos sedativos-hipnóticos afeta o comportamento. Vários riscos estão associados ao uso dos benzodiazepínicos4: • Riscos biológicos - Os benzodiazepínicos afetam o controle central da função endócrina e aumentam os níveis plasmáticos de cortisol, prolactina e hormônio do crescimento. - Várias deformidades fetais associadas ao uso já foram descritas, mas a determinação da verdadeira influência dos benzodiazepínicos precisa ser mais bem estudada. - Os idosos são outro grupo que está sujeito a maior risco: as drogas com meia-vida longa aumentam a sedação, a ataxia, a disartria e os estados confusionais agudos. • Riscos psicológicos - Existem evidências de que o uso dos benzodiazepínicos no tratamento à reação ao estresse ou luto pode retardar a adaptação normal. - Tem sido, também, demonstrado um risco aumentado de acidentes, envolvendo, principalmente, veículos automotores. Um estudo con­ duzido no Reino Unido mostrou que o risco era cinco vezes maior. - Podem aumentar a agressividade em algumas situações (apesar de serem utilizados para tratá-la).

Normal

L

Alívio da ansiedade Perda da inibição Sedação L^-Sed açã I— Sono

u

Anestesia geral Coma

u

Morte

Aumento da dose

Figura 11.2 - Efeitos comportamentais mediante o aumento de sedativos hipnóticos.

Sedativos-Hipnóticos « 1 3 5

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E feito s

Há inúmeros estudos que mostram que os benzodiazepínicos prejudi­ cam o desempenho psicomotor, a atenção, a vigilância e a capacidade de julgamento11.

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U so C rô n ico

Estudos demonstram que usuários crônicos de benzodiazepínicos apresentam desempenho consistentemente menor que grupos-controle em várias medidas psicomotoras e de memória11, incluindo aumento do tempo de reação, dificuldades na coordenação motora, confusão mental, amnésia, tonturas e moleza. Estes pre­ juízos podem dificultar e comprometer o funcionamento social do indivíduo (sua habilidade ao volante e seus resultados acadêmicos, profissionais e nos relacio­ namentos sociais e familiares)3. E mais: o desempenho não melhora nem mesmo 10 meses após a descontinuação do uso, sugerindo alterações persistentes das funções cognitivas e psicomotoras, o que precisaria ser mais bem investigado11. O tratamento dos transtornos ou sintomas de ansiedade é, talvez, a finalidade mais freqüente do uso de sedativos, apesar de outros agentes poderem ser adequa­ damente utilizados para este mesmo propósito (antidepressivos e a buspirona). As pessoas com transtornos de ansiedade têm maior predisposição a se tornarem dependentes e, por outro lado, a descontinuação do uso pode induzir mais sin­ tomas de ansiedade. Em alguns casos, usuários podem perder parte da habili­ dade para lidar com sintomas de ansiedade após extensos períodos do uso de sedativos, o que dificulta a descontinuação. Sentimentos de ansiedade fazem parte da síndrome de abstinência de sedativos, principalmente se alguma tolerância se desenvolveu. Essa ansiedade induzida normalmente gera o ímpeto para a readministração da droga, fazendo o paciente subjugar sua capacidade de reduzir ou descontinuar o uso12. O uso de sedativos normalmente está associado com depressão. Em al­ guns casos, os benzodiazepínicos podem ser prescritos para tratar os sinto­ mas de ansiedade concomitantes com a depressão ou ser auto-administrados. O uso de sedativos por longos períodos pode ter efeito similar ao do álcool, resultando em alterações cuja correção pode requerer longos períodos de abstinência. Depressão e irritabilidade freqüentemente fazem parte da descontinuação de sedativos12. A maioria dos especialistas recomenda que o uso destes medicamentos seja li­ mitado a curtos períodos de tempo para o tratamento da insônia. Porém, na prática, o que ocorre é o contrário: são prescritos por longos períodos, o que aumenta a probabilidade de desenvolvimento de dependência e prejudica ainda mais um pa­ drão de sono já conturbado. Apesar de poderem prover alívio temporário para a priva­ ção do sono, não oferecem a mesma qualidade proporcionada pelo ciclo do sono natural. Além disso, não são úteis para restaurar esse padrão natural. Pessoas que sofrem de insônia podem experimentar o ressurgimento dos sintomas quando alguma tolerância se desenvolve e, conseqüentemente, ser levadas ao esca­ lonamento de doses ou ao uso diário. Geralmente, torna-se impossível, para aque­ les que fazem uso diário destes medicamentos, o alcance do sono natural, principalmente a curto prazo12.

1 3 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,.

SíNDROME DE ABSTINÊNCIA A síndrome de abstinência para os sedativos-hipnóticos pode começar 12 a 72 horas após a última dose, dependendo da meia-vida da droga utilizada. Os sinto­ mas são similares aos da abstinência alcoólica6e podem ser leves, moderados ou severos. Os leves incluem ansiedade, insônia, vertigens, cefaléia, anorexia, irrita­ bilidade e agitação. Os moderados podem envolver pânico, diminuição da con­ centração, tremores, sudorese, palpitações, dores musculares e elevação dos sinais vitais. Os severos incluem hipotermia, instabilidade dos sinais vitais, fasciculações musculares, convulsões, delírios e psicose3. As convulsões, que podem ocorrer a qualquer momento entre o segundo e o oitavo dia, são do tipo “grande mal” e, se não forem tratadas, podem levar à morte. Os delírios ocorrem normalmente 2 a 4 dias após a interrupção, podendo durar até 10 dias. Vívidas alucinações visuais e auditivas, desorientação, agitação, confusão e medo são comuns. A melhora dos sintomas é gradual e eles desaparecem dentro de duas semanas, mas uma fraqueza física pode durar até 12 semanas8.

P rincípios G erais

de

T ra ta m en to

Tratamento Farmacológico da Síndrome de Abstinência A síndrome de abstinência de barbitúricos é considerada uma emergência psi­ quiátrica e deve ser tratada em ambiente hospitalar. Basicamente, o tratamento farmacológico da síndrome de abstinência dos sedativos-hipnóticos consiste na reintrodução da dose habitual utilizada pelo paciente, após o que haverá um alívio imediato dos sintomas e proteção contra o ressurgimento da abstinência e suas complicações3.

Tratamento Farmacológico da Dependência Há três abordagens utilizadas no tratamento da dependência feitas pela administração dos sintomas de abstinência3: • Redução gradual da dose: como guia, sugere-se redução da dose em 25%, com intervalos. Se houver algum desconforto importante, a dose deve ser manti­ da um pouco mais alta, buscando-se maiores reduções a partir daí10: - Em pacientes com menos de 6 semanas de uso, recomenda-se reduzir a dose em três estágios, por períodos de 7 a 10 dias. - Em pacientes com uso de 6 semanas a 6 meses, recomenda-se reduzir a dose progressivamente durante um período de 10 a 20 dias. - Em pacientes com mais de 6 meses de uso, recomenda-se reduzir a dose durante um período de 6 a 8 semanas e só recorrer a períodos maiores se houver sintomas muito intensos.

Sedativos-Hipnóticos » 1 3 7

• Substituição por outro benzodiazepínico: para aqueles pacientes que expe­ rimentam sintomas de abstinência com a abordagem anterior de redução gradual da dose, pode-se tentar a substituição por outro benzodiazepínico de meia-vida longa, em dosagem equivalente, facilitando a retirada e pre­ venindo complicações. A partir daí, deve-se seguir o protocolo de redução gradual da dose10. • Substituição por outra droga: terapias de substituição foram propostas com, pelo menos, quatro outras drogas: propanolol, clonidina, carbamazepina e fenobarbitaL O propanolol diminui alguns dos sintomas físicos presentes na abstinência (tremores, aumento da freqüência cardíaca e pressão arte­ rial), mas não interfere nos sintomas psicológicos. Portanto, seu uso justifica-se somente naqueles pacientes que apresentam sintomas físicos importantes. A clonidina, embora tenha sido inicialmente prometida como substituta, não tem tido seu uso justificado por estudos mais recentes. A carbamazepina é uma das drogas mais promissoras, mas carece de maiores estudos. Um protocolo de substituição por fenobarbital foi descrito por Smith e Wesson. No entanto, deve-se ter muito cuidado ao administrar an­ tidepressivos e neurolépticos durante o período de abstinência para ben­ zodiazepínicos, pois essas medicações diminuem o limiar convulsivo e podem, dessa forma, facilitar a ocorrência de convulsões10.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. RAY, O., KSIR, C. Drugs, Society, and Human Behavior 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999. 494p. 2. JULIEN, R. M. A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. New York: W. H. Freeman and Company, 1995. 51 Ip. 3. BRADY, K. T., MYRICK, H., MALCOLM, R. Sedative-Hypnotic and anxiolytic agents. In: MCCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions - A Comprehensive Guidebook. Specific Drugs o f Abuse: pharmacological and clinical aspects. New York: Oxford University Press, 1999. Cap. 5, p. 5-104. 4. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, 0., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 5. LARANJEIRA, R., DUNN, J., RIBEIRO ARAÚJO, M. Álcool e drogas na sala de emergência. In: BOTEGA, N. J. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed, 2001. 6. MCKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2000. 400p. 7. BERNIK, M. A. Benzodiazepínicos e dependência. In: BERNIK, M. A. Benzodiazepínicos quatro décadas de experiência. São Paulo: Edusp, 1999. p. 211-231. 8. CARLINI, E. A., GALDURÓZ, J. C. F., NOTO, A. R., NAPPO, S. A . I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil - 2001. São Paulo: CEBRID/UNIFESP, 2002. 380p. 9. LARANJEIRA, R., CASTRO, L. A. Potencial de abuso de benzodiazepínicos. In: BERNIK, M. (Org.). Benzodiazepínicos - quatro décadas de experiência. São Paulo: Edusp, 1999. p. 187-198.

138

■ Bases Teóricas Relacionadas à Dependência e ao Consumo Nocivo de Álcool,.

10. HANSON, G., VENTURELU, P. J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 11. POMPÉIA, S., GORENSTEIN, C. Benzodiazepínicos e desempenho psicomotor e cognitivo. In: BERNIK, M. A. Benzodiazepínicos - quatro décadas de experiência. São Paulo: Edusp, 1999. p. 199-209. 12. TARTER, R. E., AMMERMAN, R. T., OTT, P. J. Handbook o f Substance Abuse - neurobehaviorai pharmacology. New York: Plenum Press, 1998. 602p.

C A P ÍT U L O

Esteróides Anabolisantes S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isão G er a l Esteróides são hormônios naturais. Existem vários tipos de hormônios esteróides, produzidos em diferentes locais do corpo e com efeitos distintos e necessários para o funcio­ namento normal do organismo. O isolamento químico dos esteróides aconteceu na década de 1930 e, a partir de então, pôde-se sintetizá-los, objetivando-se a reposição naquelas pessoas impossibilitadas de produzi-los1. Também são uti­ lizados no tratamento de asma, em determinados tipos de anemia, no controle de certos tipos de cânceres e no tra­ tamento de hipogonadismo masculino2. Os hormônios esteróides podem ter dois efeitos diferen­ tes no metabolismo: catabolizante e anabolizante. O efeito catabolizante refere-se à quebra tanto de proteína quanto de armazenamentos de energia celular. O efeito anabo­ lizante refere-se à produção e ao acúmulo de proteína e é este o efeito buscado por aquelas pessoas que utilizam os esteróides de maneira errônea1. Os esteróides anabolizantes são derivações sintéticas de testosterona (hormônio sexual masculino) que têm dois efei­ tos primários: efeitos androgênicos e efeitos anabolizantes propriamente ditos. Os efeitos androgênicos contribuem para o desenvolvimento das características sexuais mascu­ linas, como crescimento do pênis e dos pêlos, engrossamento da voz, aumento da libido e da potência sexual, etc. Os efei­ tos anabolizantes incluem aumento da massa muscular, aumento do tamanho de vários órgãos internos, controle da distribuição da gordura corporal, aumento da síntese (pro-

1 4 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool.

dução) de proteína e de cálcio nos ossos24. A partir da década de 1950, vários labo­ ratórios começaram a sintetizar esteróides com efeitos mais anabolizantes que androgênicos, e, por essa razão, eles são mais conhecidos pelo nome esteróides anabolizantes, apesar de nenhum deles ser totalmente livre de efeitos androgênicos (masculinizantes)3. A atenção popular para os esteróides anabolizantes começou na década de 1960, quando o sucesso dos atletas soviéticos foi atribuído, em parte, ao uso destas substâncias2. A partir daí, houve muita controvérsia pelo fato de homens e mulheres estarem utilizando tais substâncias para promover a perform ance atlética e melhorar a aparência física5. Efeitos mais amplos, como a modulação da agressividade e do humor, também já foram referidos. E não se pode dizer que o aumento da agressividade em esportes competitivos seja indesejado2. A preocupação popular levou o Congresso norte-americano a controlar a distri­ buição e a venda destas drogas, classificando-as com potencial de abuso e de levar à dependência.

D ados

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E p id em io lo g ia

Durante os anos 1980 e 1990, foram feitas várias tentativas para obter uma estimativa da extensão do uso dos esteróides anabolizantes. Os resultados indi­ cam prevalência de 2 a 6,6% na vida e de 0,6% no último mês. O uso é predomi­ nante no sexo masculino, entre aqueles envolvidos em atividades esportivas e entre aqueles não envolvidos em programas escolares. Apesar de a maioria dos estudos ter se focado no sexo masculino, algumas poucas tentativas foram feitas para estudar a prevalência entre o sexo feminino, principalmente entre as atletas. A conclusão de um destes estudos foi de que de 6 a 10% de atletas do sexo feminino, de várias modalidades esportivas, referem o uso destas substâncias2.

P o ten c ia l

de

A

buso e

D ep en d ên c ia

Apesar da controvérsia a respeito, muito material e resultados de pesquisas apareceram para documentar o potencial dos esteróides anabolizantes de criar dependência. Os mecanismos que a criam e sustentam estão longe de ser conhe­ cidos. A forma como estas substâncias são utilizadas e o propósito do uso tor­ nam difícil aos pesquisadores chegar a conclusões a respeito da freqüência, da duração do uso e das dosagens necessárias para gerar dependência2. Tipicamente, os esteróides anabolizantes são consumidos em períodos in­ termitentes, uma prática chamada de cycling (“cíclico”): o período de uso pode variar, mas, normalmente, abarca muitas semanas ou meses, durante um trei­ namento, e, então, é interrompido. Outra prática, chamada de stacking (“em­ pilhamento”), envolve o uso de vários esteróides diferentes. Os propósitos para os quais eles são utilizados também geram dificuldades ao se estudarem os mecanis­ mos da dependência. Como se vê, a principal motivação para o uso é a melhora da performance. Efeitos como aumento da intensidade do treinamento, da agressivi-

Esteróides Anabolizantes ■ 141

dade e outras alterações de humor podem ser considerados secundários e, para alguns, talvez indesejáveis. Por isso, quando comparados a outras drogas, os es­ teróides anabolizantes são atípicos em termos dos efeitos que se buscam e da­ queles que se seguem. Usuários referem experiências subjetivas de bem-estar, mudanças afetivas, dificuldade ou falta de vontade para reduzir o uso e outros aspectos compatíveis com aqueles referidos por dependentes de outras drogas. Além disso, tolerância e sintomas de abstinência já foram reportados2. Outro fator importante é que os dados da literatura parecem deixar claro que, para muitos indivíduos, os valores subjetivos do uso dos esteróides anabolizantes são substanciais, mesmo quando ganhos físicos não são nitidamente demonstrados. Isso sugere uma forte intermediação psicológica na iniciação e manutenção do uso2.

V ias

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Existem mais de 100 compostos com ações anabolizantes. A administração pode ser feita de duas maneiras: por via oral e com injeções intramusculares2. Alguns têm efeitos quando ingeridos oralmente; outros, só quando injetados1. Isso porque pequenas mudanças na estrutura química da molécula de testosterona (e de outros hormônios sexuais endógenos) podem provocar drás­ ticas mudanças no efeito, na potência e na produção de conseqüências adversas. Essas mudanças são feitas por vários motivos: para aumentar o efeito anabolizante e diminuir o efeito androgênico; para aumentar a potência da droga de forma que menores quantidades sejam suficientes para se obter os mesmos resultados; para aumentar a biodisponibilidade da droga quando ingerida oralmente; e para dimi­ nuir o tempo de absorção quando administrada por via intramuscular4.

E feito s

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gudo

Absorção, Excreção e Metabolismo Uma vez na corrente sanguínea, a testosterona ou qualquer esteróide ana­ bolizante exógeno atravessa as paredes das células-alvo e se liga a seus recepto­ res no citoplasma4. Estas células-alvo se encontram em vários tecidos do corpo humano, incluindo esqueleto, músculo cardíaco, sistema nervoso central, pele e próstata2. Estes complexos receptores de hormônios alcançam, então, o núcleo da célula e seu material genético (DNA). Isso dá início a um processo cujo resul­ tado final será a produção de proteínas específicas, que vão deixar a célula e mediar as funções biológicas do hormônio. O aumento dos níveis de testosterona (ou drogas similares) produz um efeito de feed b ack negativo no hipotálamo, ini­ bindo o lançamento de mais testosterona (o mesmo processo que ocorre com os contraceptivos orais à base de estrogênio e progesterona)4. É difícil obter uma identificação precisa do mecanismo de ação dos esteróides anabolizantes por vários motivos: pela ampla variedade dos tecidos atingidos; pela variedade das drogas deste tipo; pela complexidade dos processos de regulação hormonal, etc. Por motivos semelhantes, também é difícil chegar ao conhecimento

1 4 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool...

preciso do metabolismo destas substâncias, principalmente, pelo fato de ele se realizar por caminhos naturalmente utilizados pela testosterona2. Atestosterona é metabolizada no fígado e excretada na urina; somente pequenas quantidades são eliminadas inalteradas. Em alguns órgãos, como a próstata, por exemplo, a testosterona é convertida em outros compostos ativos2.

Efeitos Psicoativos Os efeitos psicológicos que podem favorecer a dependência incluem a euforia (ação estimulante) e o aumento da agressividade, que podem ser benéficos para incrementar o esforço durante um treinamento ou mesmo durante uma com­ petição. Usuários referem que podem “trabalhar mais duro” quando usam este­ róides, o que pode se dever a uma ação semelhante à dos estimulantes: sensação de energia, redução da fadiga ou aumento da agressividade, expressa na forma de um treinamento mais intenso3. Resultados de um estudo conduzido em 1993 indicam que o uso de altas doses destas substâncias está associado com sutis alterações do humor (aumento da euforia, da energia e da estimulação sexual; aumento da irritabilidade, da instabilidade, dos sentimentos violentos e da hostilidade) e com prejuízos cognitivos (distratibilidade, esquecimentos e confusão). Há, também, risco de ocor­ rência de um episódio agudo de mania ou hipomania. Interessante é o fato de que as doses que os condutores deste estudo consideraram baixas eram relativa­ mente altas quando comparadas àquelas recomendadas para fins terapêuticos4.

E feitos

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Uso C rô n ico

Os dados disponíveis na literatura sobre a efetividade dos esteróides anaboli­ zantes em aumentar a performance física são controversos. Porém, parece não existir nenhuma dúvida sobre isso na mente dos atletas, que as utilizam, no mundo todo, para aumentar seus músculos e sua força4. Não há dúvida dos importantes efeitos da testosterona sobre a massa e a força musculares durante a puberdade e experimentos demonstram claramente a habilidade dos músculos em sintetizar anabolizantes. Entretanto, não são cla­ ros os efeitos de estimulação anabolizante adicional, tanto nos adolescentes quanto nos adultos do sexo masculino, que já dispõem de altos níveis de tes­ tosterona em circulação3. No início da década de 1990, a comunidade científica acreditava que eles não produziam efeito algum sobre a perform an ce e que o aumento de peso se devia à retenção de sal e de água4. Atualmente, o con­ senso parece ser o de que, sob determinadas circunstâncias (treinamento e dieta apropriados), com alguns indivíduos (atletas competitivos maduros, com substanciais históricos de treinamento) e por determinados períodos de tempo, alguns ganhos podem ser obtidos2. Da mesma maneira, as conseqüências negativas do uso também são difíceis de averiguar. Dado o grande número de órgãos que são alvo dos esteróides

Esteróides Anabolizantes ■ 143

anabolizantes, não surpreende que uma grande variedade de conseqüências nega­ tivas tenha sido reportada. Praticamente todos os tecidos do corpo atingidos por essas substâncias já tiveram seus prejuízos relatados. A seguir, apresenta-se um resumo das conseqüências negativas e positivas reportadas124.

Efeitos Positivos • Aumento transitório do tamanho dos músculos e da força muscular. • Tratamento de traumas e cirurgias.

Efeitos Negativos Cardiovasculares • Aumento de fatores de risco cardíacos, como hipertensão e taxas de coles­ terol (LDL e HDL). • Infarto do miocárdio • Trombose

Hepáticos (Associados ao Consumo Oral) • Aumento do número de enzimas • Tumores do fígado: benignos e malignos (uso superior a 24 meses)

Sistema Reprodutor • • • • • •

Diminuição da produção de testosterona Espermatogênese anormal Infertilidade transitória Atrofia dos testículos Impotência Alterações da menstruação

Sistema Endócrino • Diminuição do funcionamento da tireóide

Efeitos Imunológicos • Diminuição das imunoglobulinas

Efeitos musculoesqueléticos • Fechamento prematuro dos centros de crescimento dos ossos • Degeneração dos tendões

144 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool.

Estéticos • • • • • • • • •

Ginecomastia em homens Atrofia dos testículos Acne e seborréia Estrias Calvície Aumento do clitóris Crescimento dos pêlos do corpo e rosto (principalmente em mulheres) Engrossamento da pele Engrossamento da voz (em mulheres)

Psicológicos • • • • • • • • •

Risco de desenvolvimento de dependência Alterações severas do humor Tendência à agressividade Episódios psicóticos Depressão Distimia Ansiedade generalizada Transtorno de pânico Suicídio

SíNDROME DE ABSTINÊNCIA A interrupção do uso de altas doses de esteróides anabolizantes pode vir acompanhada de depressão psicológica, fadiga, inquietude, insônia, perda de apetite e diminuição da libido. Outros sintomas que já foram reportados incluem craving, dores de cabeça, insatisfação com a imagem corporal e, raramente, ideação suicida. Apesar disso, nenhuma síndrome de abstinência foi psiquiatricamente descrita5.

P rincípios G erais

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T ra ta m en to

Assim como acontece com outras drogas, o tratamento da dependência de esteróides anabolizantes requer a interrupção do uso. Logo, os sintomas de abs­ tinência são o primeiro alvo do tratamento, e a terapia de suporte (incluindo reasseguramento, informação e aconselhamento) é a mais recomendada. O uso de antidepressivos pode ser indicado para casos de depressão maior, e tratamento endocrinológico pode ser necessário em casos de alterações hormonais. Passada essa fase, a terapia deve se centrar na manutenção da abstinência e na prevenção da recaída.

Esteróides Anabolizantes ■ 145

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. LONGENECKER, G. L. Como agem as drogas - o abuso das drogas e o corpo humano. São Paulo: Quark do Brasil, 1998. 143p. 2. PANDINA, R., HENDREN, R. Other drugs o f abuse: inhalants, designer drugs and steroids. In: MCCRADU, B., EPSTEIN, E. Addictions - A Comprehensive Guidebook. Specific drugs o f abuse: pharmacological and clinical aspects. New York: Oxford University Press, 1999. Cap. 10, p. 171-184. 3. RAY, 0., KSIR, C. Drugs, Society, and Human Behavior. 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999.494p. 4. TARTER, R. E., AMMERMAN, R. T., OTT, P. J. Handbookof Substance Abuse - neurobehavioral pharmacology New York: Plenum Press, 1998. 602p.

C A PÍTU LO

Cafeína S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

V isã o G er a l A cafeína é o estimulante mais utilizado e, talvez, a droga mais popular do mundo. O estimulante ativo da cafeína, ex­ traído de grãos de café, foi descoberto por cientistas alemães e franceses no início da década de 1820. Ao longo dos anos seguintes, a cafeína foi identificada em muitos outros tipos de plantas, como mate, nozes-de-cola, etc.1O chá contém quantidade significativa de cafeína e teofilina. O chocolate (cacau) contém quantidades relativamente baixas de cafeína e teobromina. Teofilina e teobromina são parentes químicos da cafeína. A teofilina, em particular, atua de modo se­ melhante a quantidades proporcionais de cafeína2. A ca­ feína é ingrediente de analgésicos, estimulantes e bebidas à base de cola (Coca-Cola®, Pepsi-Cola®)3, de energéticos e está presente no guaraná (Paullinia cupanà). Provavelmente, as sementes de café eram comidas an­ tes da criação do processo de torrar, moer e coar os grãos em água quente. Como bebida quente, o café foi consumido pela primeira vez em território árabe, por volta de 1000 d.C. O chá originou-se na China, por volta de 2700 a.C. O cho­ colate era consumido na forma de bebidas amargas e, gra­ ças às freiras suíças, foi convertido em bebidas e derivados doces e saborosos, por volta do início do século XX2. Em virtude do uso tão freqüente, pode haver desenvol­ vimento de dependência, que não acarreta, porém, disfun­ ções importantes; por isso, o abuso de cafeína não é visto como um problema de saúde pública1.

Cafeína ■ 1 4 7

D a d o s de E p id e m io l o g ia Bebidas e refeições que contêm cafeína são consumidas pela maioria dos adultos e das crianças que vivem nos Estados Unidos, onde a média de ingestão diária de cafeína é de aproximadamente 3 xícaras (cada xícara contém cerca de 50 a 150mg de cafeína). Dessa população, 3% consomem 600mg ou mais por dia1,4.

V ias

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Normalmente, a cafeína é ingerida por via oral. Porém, quando utilizada para propósitos terapêuticos, a droga pura pode causar náusea e irritação gástrica, prin­ cipalmente em crianças. Nestes casos, ela é administrada na forma de suposi­ tórios retais ou por meio de injeções intramusculares ou intravenosas3.

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gudo

Absorção, Metabolismo e Excreção Apesar de a cafeína ser absorvida pelo estômago, ela é muito mais rapi­ damente absorvida pelas paredes do intestino. A presença de alimento no estômago retarda o processo. Após a ingestão, os picos de concentração sangüínea são alcançados em 30 a 60 minutos, em média. Esses picos podem va­ riar de 15 a 120 minutos, dependendo da quantidade ingerida, do consumo de outros alimentos e de características individuais3. A cafeína é livre e igualmente distribuída por toda a água dos tecidos; por isso, é encontrada em concentrações semelhantes em todo o corpo e no cérebro4. Atra­ vessa facilmente as barreiras do cérebro e da placenta e também é encontrada no leite materno3. A maior parte da cafeína é metabolizada pelo fígado e excretada pelos rins, por meio da urina. Somente 10% da droga são excretados inalterados. A meia-vida da cafeína é de 3 a 5 horas, na maioria dos adultos. Esse tempo é maior para crianças, grávidas e idosos e menor para fumantes4.

Efeitos Farmacológicos e Psicoativos No sistema nervoso central, a cafeína atua bloqueando os receptores de adenosina, um neurotransmissor ou neuromodulador que atua em muitas regiões do cérebro para produzir sedação por inibição do lançamento de vários neurotransmissores5, incluindo norepinefrina, dopamina, acetilcolina, glutamato e GABA4. A cafeína bloqueia os receptores para este efeito inibitório5. Como conseqüência, há grande ativação dos neurotransmissores, principalmente do sistema dopaminérgico4. A ingestão de cerca de 200mg de cafeína (duas xícaras) ativa o córtex cerebral e, como conseqüência, a sonolência e a fadiga decrescem. Na ausência de tolerância, essa mesma quantidade aumenta o tempo necessário para o adormecimento e

148 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Depêndencia e ao Consumo Nocivo de Álcool. prejudica o sono. Altas doses (mais de 500mg) são necessárias para afetar o centro autonômo do cérebro e, neste ponto, pode haver aumento dos batimentos cardíacos e do ritmo respiratório. A cafeína atua dilatando os vasos sangüíneos do corpo e contraindo os do cérebro, o que atenua dores de cabeça e alivia enxaquecas3,5. Outro efeito conhecido é o diurético (aumento do volume de urina)2. Doses diárias superiores a lg podem provocar tinidos no ouvido, visão de flashes luminosos1e até convulsões que podem levar à morte3. A cafeína diminui a sensação de tédio. Por esta razão, pessoas envolvidas com tarefas repetitivas ou não estimulantes costumam consumi-la para compensá-lo. Certamente é por isso que essa substância é tão popular1. A atividade central da cafeína poderia ser chamada de bifásica: em pequenas doses, produz efeitos posi­ tivos, aumentando o estado de alerta, combatendo a fadiga e melhorando o humor. Em altas doses, pode causar inquietude e ansiedade6. Há seis casos de morte por overdose de cafeína relatados na literatura. A dose letal para seres humanos foi estimada entre 3 e 8g (30 a 80 xícaras de café) ingeridos oralmente. As mortes resultaram de convulsões e de colapso respiratório3. O guaraná, rico em cafeína, é utilizado na produção de estimulantes e de bebidas leves. Existe na literatura a descrição de um caso de desenvolvimento de problema cardíaco intratável numa mulher de 25 anos de idade, após a ingestão de um “ener­ gético natural” à base de guaraná7. Um outro estudo, conduzido com 47 cães, conclui que a ingestão de suplementos contendo guaraná pode levar a uma condição letal que requeira pronta desintoxicação e tratamento de suporte por muitos dias. A maioria dos cães recuperou-se com o tratamento e 17% deles morreram ou foram submetidos à eutanásia. As doses alcançadas ficaram entre 4,4 e 296,2mg/kg de peso corpóreo. A dose letal mínima foi de 19,lmg de guaraná por quilo8. Apesar de os fabricantes dos energéticos assegurarem que são inofensivos, contanto que não sejam ingeridos com álcool, ainda existe muita preocupação a esse respeito. Autoridades do Canadá, da França e da Dinamarca ainda não aprovaram muitos desses energéticos, como o austríaco Red Buli®, sucesso nos Estados Unidos e no Brasil. Uma lata de Red Buli® contém 80mg de cafeína e lg de taurina (outro estimulante, se ingerido em grande quantidade). O consumo destas bebidas associado com álcool é perigoso, uma vez que álcool e cafeína são diuréticos e, portanto, promovem a perda de líquidos.

E feito s

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U so C rô n ico

O uso freqüente de altas doses pode causar tanto problemas físicos quanto psicológicos1. O termo “cafeinismo” foi utilizado para descrever sintomas de agi­ tação, ansiedade e insônia associados ao consumo excessivo6. Efeitos periféricos incluem taquicardia, hipertensão, arritmias cardíacas e distúrbios gastrintestinais4. Esta condição é encontrada em 10% dos adultos que consomem café1. Em determinados padrões, a cafeína parece ter efeitos reforçadores do consumo, tanto em humanos quanto em animais5. Ela provoca dependência limitada, muito menor que aquela provocada por outros estimulantes e que, provavelmente, não interfere nas rotinas diárias do indivíduo1. Adaptações celulares ocorrem com o uso crônico2, levando ao desenvolvimento de tolerância, tanto em humanos quanto em

Cafeína " 1 4 9

animais6. O DSM-IV reconhece a cafeína como substância psicoativa que induz desordens psiquiátricas, cujas principais características são inquietude, nervosismo, excitação, insônia, enrubescimento da face, diurese, fasciculações dos músculos, pensamentos e discurso vagos e reclamações sobre o estômago1. Alguns autores sugerem que o consumo de grandes quantidades está associado a cânceres de bexiga, ovários, cólon e rins, mas os dados encontrados não são substanciais. Também há relatos de associação com a formação de cistos mamários e, apesar de não haver consistência nos dados, muitos médicos recomendam às pacientes com cistos nas mamas evitar o consumo de café. O uso superior a 300mg diários está associado ao aumento do risco de aborto e, por isso, mulheres grávidas devem evitá-lo1. Outro ponto de preocupação é o potencial de aumentar a perda óssea. Um estudo mostrou que o consumo diário de duas a três xícaras de café acelera a perda óssea naquelas mulheres que já saíram da menopausa e que consumem quantidades de cálcio menores do que as recomendadas3. Não há fortes evidências de que o consumo moderado de café cause proble­ mas; entretanto, cuidados devem ser tomados por pessoas em determinadas situa­ ções de risco: portadores de doenças cardiovasculares, portadoras de cisto nas mamas e portadores de desordens psiquiátricas, como ansiedade severa, episó­ dios de pânico e esquizofrenia1.

S ín dro m e

de

A

bstin ên cia

Uma síndrome de abstinência pode ocorrer 24 horas após a cessação do consumo e inclui dores de cabeça, irritabilidade, nervosismo6, fadiga, altera­ ções de humor, dores musculares, um estado semelhante à gripe e a náuseas1.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. HANSON, G.f VENTURELLI, P. J. Drugs and Society. 4. ed. Boston: Jones and Bartlett Publishers, 1995. 516p. 2. LONGENECKER, G. L. Como Agem as D rogas-o abuso das drogas e o corpo humano. São Paulo: Quark do Brasil, 1998. 143p. 3. MCKIM, W. A. Drugs and Behavior: an introduction to behavioral pharmacology. 4. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2000. 400p. 4. JULIEN, R. M. A Primer o f Drug Action: a concise, nontechnical guide to the actions, uses, and side effects o f psychoactive drugs. 7. ed. New York: W. H. Freeman and Company, 1995. 511 p. 5. RAY, O., KSIR, C. Drugs, Society and Human Behavior. 8. ed. New York: McGraw-Hill, 1999. 494p. 6. TARTER, R. E., AMMERMAN, R. T., OTT, P. J. Handbook o f Substance Abuse - neurobehavioral pharmacology New York: Plenum Press, 1998. 602p. 7. CANNON, M. E., COOKE, C. T., MCCARTHY, J. S. Caffeine-induced Cardiac Arrhythmia: an unrecognized danger healthfood products. Department of Emergency Medicine, Fremantle Hospital, WA. Med. J. Aust, 774(10):520-521, 2001, May. 8. OOMS, T. G., KHAN, S. A., MEANS, C. Suspected caffeine and ephedrine toxicosis resulting from ingestion of an herbal supplement containing guarana and ma huang in dogs: 47 cases (1997-1999). College of Veterinary Medicine, University of Illinois. J. Am. Vet. Med. Assoc., 218(2).225-292, 2001, Jan.

P arte

II

Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

C A P ÍT U L O

Como Organizar uma História Clínica S e l m a B o r d in N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n je ir a

Existem evidências científicas demonstrando o poten­ cial do encontro clínico inicial para mudar as atitudes do cliente, aumentar seu comprometimento e esclarecer obje­ tivos na modificação do comportamento adictivo1,3. A his­ tória clínica pode marcar o início do tratamento em termos de engajamento e da aliança terapêutica. A seguir, são esclarecidos alguns pontos-chave que obje­ tivam coletar informações que auxiliarão no planejamento do tratamento, bem como levantar parâmetros diagnósticos.

A

lia n ç a

T e r a p ê u t ic a

Muitos clientes que nos são encaminhados não querem se tratar: são aqueles encaminhados por familiares, juizes, patrões, etc. Normalmente, mesmo aquele cliente que nos procura por vontade própria, inicia o tratamento ainda muito confuso ou ambivalente: quer e não quer se tratar. Ele não quer, como o paciente deprimido ou ansioso, liber­ tar-se de sensações desagradáveis. Ao contrário, o uso de álcool ou drogas é um comportamento que gera prazeres. O que ele quer é evitar as conseqüências prejudiciais desse uso. A ambivalência é, portanto, uma característica relevante nes­ ses clientes e precisa ser levada em conta pelo terapeuta. Veremos mais sobre ambivalência no Capítulo 18, Entrevista Motivacional. Habilidades terapêuticas como sensibilidade, since­ ridade e empatia são tão importantes aqui quanto em

qualquer outra terapia2. Na verdade, esses fatores podem ser mais importantes com dependentes químicos. Pequenas cortesias como caminhar ao lado do cliente, indicar-lhe a cadeira para sentar e sorrir são gestos poderosos3. O am­ biente deve ser cuidadosamente preparado para facilitar uma auto-avaliação honesta pelo cliente. Igualmente importante é a prática da escuta ativa: estar e demonstrar-se atento a todas as colocações do cliente, parafraseando-o, olhando-o e cuidando para não julgar ou criticar seus pensamentos, sentimentos e comportamentos. Ele pode ainda não estar pronto para revelar alguns aspectos, e isso precisa ser respeitado para preservar a aliança e a qualidade do relacionamento. Se o contato inicial não for agradável ou simpático, o cliente poderá interpre­ tar a situação como um ataque. E, conseqüentemente, erguerá suas defesas e a história será filtrada por elas (e, portanto, inexatas), prejudicando, dessa forma, o início do processo terapêutico. O profissional que for conduzir uma avaliação pela primeira vez não deve fi­ car preocupado em compreender tudo o que estamos dizendo aqui, com uma única leitura. O treinamento é o melhor mestre. Com o hábito de conduzir a histó­ ria clínica, ficará cada vez mais clara a relevância de cada item de avaliação.

H istó r ia C lín ic a Sendo a dependência um fenômeno biopsicossocial, é importante que cole­ temos dados sobre todas essas dimensões. Uma história clínica tem os seguintes objetivos: • Criar a aliança terapêutica e favorecer o engajamento do cliente no tratamento. • Buscar compreender o contexto dentro do qual a dependência se desenvolveu. • Identificar os fatores que favoreceram a instalação da dependência. • Identificar os fatores que mantêm a dependência. • Identificar os fatores que favorecem a abstinência. • Reunir condições para estabelecer a hipótese diagnostica. O modelo de entrevista, descrito no Apêndice, é utilizado por profissionais e pesquisadores da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIAD)4. Existem outras abor­ dagens estruturadas de avaliação do cliente: Diagnostic Interview Schedule ou DIS5'6, Structured Clinicai Interview do DSM-III-R ou SCID7,8, Comprehensive International Diagnostic Interview ou CIDI9 n. Uma comparação entre tais instru­ mentos foi conduzida por Hasin12. A condução do levantamento de uma história clínica precisa englobar duas partes: a história pregressa do cliente e a história da ingestão. Obviamente, isso não pode ser feito em 10 minutos. Mas, por outro lado, também não seria produ­ tivo reter o cliente por 2 horas1. Uma hora é o tempo ideal e, caso não seja sufi-

Como Organizar uma História Clínica ■ 1 5 5

ciente, no máximo, 1 hora e meia. Quanto mais familiar o instrumento se torna, menos tempo é necessário para a obtenção da história clínica. Ao avaliarmos a história pregressa é importante nos perguntar se estamos realmente conseguindo imaginar como foi a vida desse cliente. Como era a casa onde vivia? Como o pai ou a mãe o tratava? Ele podia brincar? Como se relacio­ nava com outras crianças na escola? Era bagunceiro? Uma tentativa de compreen­ der a cultura e o meio ambiente social não pode ser separada da tentativa de ter empatia com o indivíduo. O propósito de avaliarmos a história pregressa é ob­ termos um entendimento dos primeiros relacionamentos e experiências cruciais que contribuíram para moldar as forças ou vulnerabilidades do cliente, e conse­ qüentemente, o possível significado atribuído ao álcool/drogas e o simbolismo cultural deste. Na investigação das doenças prévias estamos mais interessados naquelas re­ lacionadas com o uso/abuso de álcool e drogas. Além da saúde física, a saúde mental também é nosso alvo e devemos buscar por sinais e sintomas de depres­ são, alterações pronunciadas do humor, ansiedade, transtorno obsessivo, ciúme patológico, tentativas de suicídio, etc. É preciso saber como era o cliente antes de usar substâncias psicoativas: como é sua personalidade anterior. É preciso reunir informações, anteriores e posterio­ res à dependência, sobre seu autoconceito, autocontrole, agressividade/passivi­ dade/assertividade, irritabilidade, aceitação de regras, introversão/extroversão, como lida com situações estressantes ou resolve conflitos, etc. A história da evolução da ingestão deve nos fornecer uma visão de como o álcool/droga foi se infiltrando na vida do cliente, e deve se relacionar com a evolução dos problemas relacionados ao uso (físicos, psicológicos e sociais), à evolução da dependência e à evolução das pressões e circunstâncias experimentadas pelo mesmo (casamento, divórcio, nascimento de filhos, promoções, demissões, doenças, etc.). Enquanto a avaliação da história pregressa e da história do uso oferece uma perspectiva longitudinal do álcool ou drogas na vida do cliente, a avaliação de um dia típico dá a perspectiva de corte transversal: como está o cliente aqui e agora. O dia típico (ver Apêndice, Tabela 2) informa sobre o momento presente do cliente e requer uma investigação mais detalhada no sentido de fornecer indícios de possíveis gatilhos e fatores mantenedores da dependência. As Tabelas 1 e 2, do Apêndice, também são úteis, uma vez que sintetizam o panorama semanal do padrão de consumo de álcool/drogas, indicando sua gra­ vidade e facilitando o aconselhamento do cliente. Seu preenchimento é bastante simples, mas existem algumas questões às quais devemos prestar maior atenção: • Tipo de bebida: o que interessa aqui é saber se o cliente ingeriu cerveja, vinho, uísque, aguardente, rum, etc. Precisamos dessa informação para po­ der calcular a quantidade de unidades/álcool ingerida. • O cálculo de unidades/álcool, referido nas Tabelas 1 e 2, do Apêndice, está adequadamente detalhado no Capítulo 3. • É importante considerar que as doses caseiras são, normalmente, mais ge­ nerosas. Mesmo em alguns bares, o famoso chorinho pode representar uma segunda dose.

• As informações de onde e com quem bebeu são úteis para indicar padrões estabelecidos que precisarão ser modificados se o que se pretende é dimi­ nuir, parar ou controlar o hábito de ingestão. • Nos quadrantes m anhã, tarde e noite, das Tabelas de Uso Semanal de Drogas (ver Tabela 3, no Apêndice), devemos considerar a quantidade e o tipo de droga utilizado. Por exemplo: na tarde da segunda-feira, ele utilizou dois “ba­ seados” de maconha, ou três pedras de crack} dois papelotes de cocaína, etc. A avaliação do cliente precisa nos oferecer condições para examinar e reunir as evidências da dependência, por meio da história da evolução e do dia típico. O Estreitamento do Repertório poderá ser avaliado ao questionarmos as seme­ lhanças e diferenças entre a ingestão nos dias de semana, finais de semana e nas férias. A Saliência do Beber, mais sutil, pode ser percebida no relato da impor­ tância progressiva do álcool/drogas na vida do cliente e no quão relevantes e funcionais as substâncias são no aqui e agora. O Aumento da Tolerância normal­ mente aparece em discursos onde o cliente refere agüentar beber muito sem parecer intoxicado ou então quando refere preocupações sobre o declínio da tolerância, num estágio mais avançado da dependência. Os Sintomas de Absti­ nência, mais comuns, precisam ser investigados quanto à intensidade e freqüência e, se e como, a Ingestão para Alívio ou Evitação dos Sintomas d e Abstinência acon­ tece. A Percepção Subjetiva d a Compulsão pode ser referida pelo cliente como um desejo intenso e incontrolável. E, caso o cliente tenha experimentado perío­ dos anteriores de abstinência e teve uma recaída, a investigação de quão rapida­ mente ele voltou a experimentar sintomas de abstinência nos indicará o processo de Reinstalação da D ependência.

I m p o r tâ n c ia

da

R e l a ç ã o : C lien te

e

T er a p e u ta

Na obtenção de informações para a obtenção de uma história clínica, vale res­ saltar a importância de não apenas analisar situações de uso, risco de uso, conse­ qüências sociais, psicológicas e de saúde, decorrentes da dependência química. É necessário verificar, antes de qualquer coisa, a pessoa que está na sua frente de modo a estabelecer uma relação de ajuda. A relação de ajuda pode ser definida como uma situação em que uma das par­ tes procura promover na outra o crescimento, o desenvolvimento, a maturidade, um adequado funcionamento e uma maior capacidade de enfrentar a vida. Para tal, é necessário reunir informações que possam contribuir para o direcionamento e desenvolvimento do plano de trabalho a ser realizado. No entanto, mais do que coletar informações, faz-se necessário estar com o cliente, poder ouvi-lo, colocarse no lugar dele para poder compreender seus medos, desejos, angústias e atitu­ des de modo a não julgar, mas sim compreendê-lo e recebê-lo sem emissão de juízos de vedor de modo a garantir a continuidade do tratamento no futuro. Os juízos e/ou julgamentos fazem parte da vida de todo ser humano, nas mais variadas esferas, contudo não favorecem o desenvolvimento da personalidade e por conseguinte, não fazem parte de uma relação de ajuda. Manter uma relação

Como Organizar uma História Clínica ■ 1 5 7

livre de qualquer juízo de valor permite ao cliente admitir suas responsabilidades, uma vez que não terá que acirrar defesas para enfrentar julgamentos. Ao profissional cabe a necessidade de sensibilidade para verificar até que ponto poderá recolher todas as informações necessárias para a história clínica em uma ou mais sessões; se o cliente não se encontra intoxicado a ponto de comprometer a veracidade das respostas; se naquele momento não será mais produtivo garantir o vínculo e a aliança terapêutica de modo a que o cliente com­ pareça a próxima consulta; a capacidade de realizar uma escuta empática e de poder estar na relação com o intuito da ajuda, sendo que o conceito de ajuda deve ser estabelecido pelo cliente e não apenas pelo profissional ou requisitante do tratamento, atribuindo a auto-eficácia ao cliente de forma a evitar a argu­ mentação e fluir com a resistência.

I d e n t if ic a ç ã o e T ria g em em S er v iç o s N ã o E s p e c ia liz a d o s p a r a D e p e n d ê n c ia Q u ím ic a É muito comum encontrarmos dependentes químicos buscando ajuda para outras questões que não a dependência. E, infelizmente, o uso abusivo de álcool (e outras drogas) é freqüentemente ignorado pelos profissionais nos vários servi­ ços de saúde, tais como atendimento básico, hospitais e serviços sociais de ma­ neira geral. O preço a ser pago por esse desconhecimento poderá ser o fracasso do tratamento ao qual o profissional se propôs, seja ele psiquiátrico, físico, psicoló­ gico, familiar, etc. Há várias razões para que esse diagnóstico não seja feito: falta de conheci­ mento das questões relacionadas à dependência e aos problemas a ela associa­ dos; falta de atenção e vigilância; inibição por parte do profissional; não saber ao certo o que fazer com o problema, caso o detecte; falta de habilidade em lidar com as evasivas e negações dos clientes, entre outros. Esse contexto revela a neces­ sidade de treinamento dos profissionais da área da saúde para melhor diagnosti­ car, encaminhar e tratar dependentes químicos. A adoção de alguns itens simples e importantes poderia aumentar muito o índice de identificação desses clientes nos vários serviços113: • Incluir na rotina de avaliação perguntas relacionadas ao uso de álcool e dro­ gas e/ou questionários estruturados14. • Atenção especial a situações sociais reveladoras, como mudanças de em­ prego ou faltas freqüentes, desarmonia ou violência conjugal e familiar, delitos criminais, acidentes, etc. • Atenção a sinalizadores biológicos e psiquiátricos: insônia, depressão, ansiedade, delírios, ciúme patológico, sintomas paranóicos, tentativas de suicídio, má nutrição, obesidade, problemas de fígado ou estômago, con­ vulsões, queimaduras, etc. • Entrevistas familiares. • Testes laboratoriais: VCM (volume corpuscular médio - medida do tama­ nho das células vermelhas); função hepática (gama-glutamiltransferase -

GGT; transaminase oxalacética - TGO e glutamato piruvato transaminase - TGP); nível de álcool no sangue (alcoolemia); ácido úrico; colesterol; transferrina. O desafio do profissional neste contexto é sensibilizar o cliente para a dimi­ nuição ou abstenção do consumo da substância; realizar uma intervenção breve e/ou encaminhar para tratamento especializado. Adaptações na história clínica sugerida podem ser realizadas no sentido de torna-la mais concisa e breve, uma vez que este instrumento é sugerido em ambiente de tratamento especializado no tratamento da dependência química. Finalizando, existe um amplo espectro de atuações possíveis no tratamento da dependência química. Daí a necessidade de uma avaliação cuidadosa que identifi­ que a natureza, os problemas e os objetivos apropriados e possíveis no tratamento, concernentes a cada tipo de cliente, almejando atingir um resultado satisfatório.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. EDWARDS, G., MARSHALL, E.J., COOK, C. C. H. O Tratamento do Alcoolismo'. Um guia para profissionais de saúde. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 318p. 2. MOOREY, S. Abusadores de drogas. In: SCOTT, J., WILLIAM, J. M. G., BECK, A. T. Terapia Cognitiva na Prática Clinica - Um manual prático. Porto Alegre: Artmed, 1994. Cap.7, p. 192-223. Trad. BATISTA, D. 3. THORN, B. et. al. Engaging patients with alcohol problems in treatment: the first consultation. Brit. J. Ad., 87:601-11, 1992. 4. DUNN, J., LARANJEIRA, R. Desenvolvimento de entrevista estruturada para avaliar consu­ mo de cocaína e comportamentos de risco. Rev. Bras. Psiq., 22(1 ):11-16, 2000. 5. GRIFFIN, M. L. et al. The use of the diagnostic interview schedule in drug dependent patients. Am. J. Drug Ale. Abuses, 73:281-291, 1987. 6. MacGRADY, R.G., ROGLER, L. H., TRYON, W. W. Issues of validity in the diagnostic interview schedule. J. Psych. Res., 26:59-67, 1992. 7. SEGAL, D. C., HERSEN, M. VAN HASSELT, V. B. Reliability of the structured clinical interview for DSM-III-R: an evaluative review. Compr. Psych., 35:316-327, 1994. 8. KRANZLER, H. R. etaL Validity of the SCID in substance abuse patients. Addictions, 97:859864, 1996. 9. COTTLER, L. B., Robins, L. N., Helzer, J. E. The reliability of the CIDI-SAM: a comprehensive substance abuse interview. British Journal o f Addiction, 759:653-658, 1989. 10. COTTLER, L. B., COMPTON, W. M. Advantages of the CIDI family of instruments in epide­ miological research on substance use disorders. Int. J. Met. Psych. Res., 3:109-119, 1993. 11. COMPTON, W. M. et. al. Comparing assessment of DSM substance dependence disorder using CIDI-SAM and SCAN. Drug A le Dep., 47:179-188, 1996. 12. HASIN, D. S. Diagnostic Interviews for Assessment: background, reliability, validity. Ale. Health Res. World, 75:293-302, 1991. 13. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO/ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. Usuários de Substâncias Psicoativas: Abordagem, Diagnóstico e Tratamento. Coordenação de Ronaldo Laranjeira et. al. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo/Associação Médica Brasileira, 2002. 14. GORENSTEIN, C., ANDRADE, L. H. S. G, ZUARDI, A. W. Escalas de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. Versão atualizada e ampliada da Rev. Psiq. Clín. 25(5-6), 1998; 26(1-2), 1999. Texto de FORMIGONI, M. L. e CASTEL, S., Lemos Editorial.

Como Organizar uma História Clínica ■

A

159

pên d ice

Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Escola Paulista de Medicina/ Hospital São Paulo Departamento de Psiquiatria Unidade de Pesquisas em Álcool eDrogas (UNIAD) RuaBotucatu, 394-S ão Paulo/SP-Telefone: 5575-1708

E n tr ev ista p a r a P esso a s R e la c io n a d o s a Á l c o o l Nome:

co m ou

P r o b lem a s

D roga Sexo:

Endereço: Data de nascimento:

Idade:

Telefone:

Estado civil:

Naturalidade:

Reliaião:

Escolaridade:

Profissão:

Entrevistador(a):

Data da entrevista:

Encaminhado por quem?

Razão para o Encaminhamento (Escreva por que o cliente foi encaminhado e o que ele pensa terem sido as ra­ zões - use palavras do próprio cliente).

História Familiar Pais, irmãos e outros parentes: alguém já morreu? Por qual motivo? Alguém tem/teve problemas com álcool ou drogas? Quais as atitudes dos familiares dian­ te do problema do cliente? Como é o ambiente familiar?

Genograma Genograma é uma representação gráfica que registra informações sobre os membros da família por três gerações, proporcionando uma visão rápida de pa­ drões complexos de interação familiar, permitindo mapear a estrutura da família. O genograma é aplicado coletando-se informações demográficas (idades, datas de nascimento e morte, locais, ocupações e nível educacional) e informações fun­ cionais (trabalho, padrões de beber, eventos críticos, mudanças e transições importantes, mortes, casamentos, separações e divórcios).

Símbolos

©

52 Homem: colocado à esquerda da representação. Idade dentro e nome ou inicial fora

Mulher: colocada à direita. Idade dentro e nome ou inicial fora

16 Ligação, casamento

O número acima indica o número de anos de casamento

I I I Indica separação, divórcio, rompimento

15

s i

Os filhos são colocados obedecendo à seguinte ordem: mais velho à esquerda e mais novo à direita

9

W

J

Indica filhos

?

9

Indica gêmeos

?

? ô

Indica gêmeos idênticos

Significa adotado

? j .

Significa aborto espontâneo

Significa aborto provocado

Como Organizar uma História Clínica ■

Gravidez

Qualquer símbolo cruzado significa que a pessoa morreu. Acresce-se acima a data de morte e causa 1980 coração

(A) teria hoje 72 anos. Morreu em 1980, do coração

Aliança intergeracional

Aliança intergeracional

Relacionamentos — //— Biológico e normal

Rompimento



Conflito

Pouco relacionamento

Relacionamento fusionado e conflituoso

161

li—

Separação

Relacionamento fusionado

História Pessoal Nascimento (complicações); Infância: doenças, ambiente familiar, separação dos pais, pobreza, traumas, lembranças); Educação (até que série estudou; se pa­ rou antes de terminar o ensino fundamental e por quê; se já foi expulso ou teve problemas disciplinares).

História Marital/Sexual Tem parceiro? É casado? Já se separou por causa da bebida/droga? O parceiro também tem problema com álcool ou drogas? Qual a atitude do parceiro e familia­ res perante o problema? Como é a qualidade do relacionamento?

Filhos Quantos? Quais as idades e estados civis? Algum deles tem problemas com álcool/drogas? Qual a atitude deles diante do problema? Como é o relacionamento?

História Ocupacional Ocupações: todos os empregos que já teve, demissões, relacionamento com chefia e colegas; promoções; advertências relacionadas ao uso de álcool/drogas. Trabalhou no último ano? Período integral ou parcial? Trabalho formal ou infor­ mal? Estado atual no trabalho.

História Social Moradia; empregado ou não; situação social; passatempos; lazer; amigos não usuários; contato com outros usuários de drogas.

História Médica e Psiquiátrica Doenças, internações médicas e psiquiátricas, tratamentos ambulatoriais, remédios.

História de Atendimento para Problemas com Álcool/Drogas Inclui atendimento ambulatorial, enfermaria, pronto-socorro, clínicos gerais, psiquiatras, grupos de auto-ajuda, ONG, religiosos, Alcoólicos Anônimos - AA/Narcóticos Anônimos - NA. Duração/local/tipo/objetivos. Ficou abstêmio após o tratamento? Por quanto tempo? Que fatores se relacionaram à recaída?

Como Organizar uma História Clínica ■ 1 6 3

História Forense Delitos criminais. Já foi apreendido ou preso? Por qual motivo?

Linha Evolutiva do Consumo de Substâncias Psicoativas A linha evolutiva é construída com o cliente de modo a facilitar a visualização do padrão de consumo e problemas associados às substâncias psicoativas. Este método pode facilitar a obtenção de informações posteriores mais detalhadas, bem como auxiliar o cliente pedagogicamente, pois não é raro alguns relatarem dificuldades de memorização. O exemplo que segue é fictício.

13 anos

Álcool + tabaco

14

Uso de álcool esporádico

Internação

A

T

15

Coma alcoólico

16

17

a

18

Cocaína

19

Começo crack

20

21

22

23

24

25

Aumento no padrão de uso

T

▼ Início do uso de maconha

Em recuperação

A droga começa Pinga e a ser prioridade cerveja

Obs.: Outra possibilidade é a realização da Linha Evolutiva da Vida do Cliente englobando também acontecimentos marcantes na história de sua vida, não se atendo apenas ao padrão de consumo de substâncias.

História do Beber Início: primeira vez que bebeu álcool; primeira vez que comprou para si uma bebida alcoólica; idade/circunstância. Evolução; quando começou a beber na maioria dos finais de semana? Quan­ do começou a tomar bebidas destiladas? Quando começou a beber quase todos os dias? Quando começou a beber no padrão atual? Quando começou a perce­ ber que seu hábito de beber estava causando problemas? Quando foi a primeira vez que teve sintomas de abstinência (tremores, náuseas, ânsia de vômito, sudorese) especialmente pela manhã? Em que períodos parou de beber: com­ pletamente, por alguns dias/semanas/meses? O que motivou a abstinência? Qual foi a última vez que bebeu?

Padrão de Consumo Durante um Dia Típico Quantidade de álcool ingerida, calculada em unidades. Uma unidade = 10 a 12g de álcool puro.

Tabela 1 - Tabela de Uso Semanal de Álcool Quantidade e Tipo de Bebida

Onde e com Quem Bebeu

Número de Unidades

Total Consumido

Segunda-feira Terça-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira Sábado Domingo Total Semanal:

Tabela 2 - Padrão de Consumo Durante um Dia Típico Onde

Quantidade

Unidades

Quando acorda Antes ou com o café da manhã Durante a manhã Na hora do almoço À tarde Após o trabalho Com o jantar À noite Antes de dormir Durante a noite Consumo nas últimas 24 horas; no último mês; pico de consumo.

Problemas Relacionados ao Álcool Físicos: embriaguez, amnésia, colapso, vômitos, gastrite, úlcera, hepatite, cir­ rose, convulsões, acidentes, feridas, etc. Psicológicos: depressão, idéias ou tentativas de suicídio, agressão, ansiedade, delirium tremens, mentiras, etc. Sociais: problemas com cônjuge, com a família, com os amigos, polícia, tra­ balho, financeiros, escolares.

Como Organizar uma História Clínica " 1 6 5

História de Uso de Drogas Já Usou

Idade na primeira Vez que Usou

Última Vez que Usou

Tabaco Álcool Maconha Solventes (cola, benzina, etc.) Alucinógenos Anfetaminas Tranqüilizantes Cocaína Crack Heroína

Padrão de Consumo de cada Droga no Decorrer dos Anos Droga(s) Príncipal(ais) de Uso

Evolução do Problema e o Envolvimento da Pessoa com Drogas Com quem usa? Onde usa? Quem a compra? Onde a compra? Como financia seu uso? Já chegou a usar alguma droga todos os dias ou quase todos os dias? Qual? Se estiver usando cocaína, quais as vias de administração que já experi­ mentou (cheirar/inalar, injetar/picar, fumar/pipar)? Já injetou alguma droga? Já compartilhou seringas/agulhas? Com quem? Com quantas pessoas? Quando co­ meçou a usar no padrão atual? Quando percebeu que seu uso de drogas estava causando problemas? Períodos em que parou o uso completamente por dias/ semanas/meses? O que motivou a abstinência? Quando foi a última vez que usou?

Padrão de Uso da(s) Droga(s) Preferida(s) num Dia Típico Quando usa? Com que freqüência e que quantidade? Usa todos os dias? Já chegou a usar direto, por dias, sem dormir ou comer?

Problemas Relacionados às Drogas Físicos: tosse, queimaduras nos dedos e lábios, overdose, tromboflebite, septicemia, colapso, hepatite (B ou C), vírus da imunodeficiência humana - HIV perfuração do nariz, pneumonia, convulsões, acidentes. Psicológicos: depressão, psicose, tentativas de suicídio, agressão, ansiedade, mentiras. Sociais: problemas com a esposa, com a família, amigos, polícia, trabalho, financeiros.

Tabela 3 - Tabela de Uso Semanal de Drogas Manhã

Tarde

Noite

Total Consumido

Segunda-feira Terça-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira Sábado Domingo

História de Risco de Contaminação por HIV Já injetou drogas? Já compartilhou seringas ou agulhas? Já trocou sexo por dro­ gas ou dinheiro (se prostituiu)? Já fez sexo com prostitutas? Faz ou fez sexo sem preservativo com parceiros fixos ou casuais? Já fez tatuagem? Usou drogas na pri­ são? Fez sexo na prisão? Recebeu transfusão de sangue?

Situação de Vida Apoio familiar e social (amigos que não bebem ou usam drogas; atividades de lazer e ocupacionais alternativas; aspectos financeiros).

P la n o

de

T r a ta m en to

Obs.: Seção a ser preenchida pelo profissional após o estudo das infor­ mações obtidas.

Hipótese Diagnóstica: Fatores de Risco e Mantenedores da(s) Dependência(s): Fatores de Proteção e Prognósticos para Progressão da Dependência: Plano de Trabalho/Tratamento:

C A P ÍT U L O

Principais Comorbidades Psiquiátricas na Dependência Química L

il l ia n

R atto

D a n ie l C r u z C o r d e ir o

In t r o d u ç ã o A ocorrência de uma patologia qualquer em um indi­ víduo já portador de outra doença, com potencialização re­ cíproca entre estas, é conhecida como comorbidade. O surgimento de um transtorno adicional é capaz de alterar a sintomatologia, interferindo no diagnóstico, no tratamento e no prognóstico da primeira doença. Esta definição foi uti­ lizada pela primeira vez por Feinstein1em 1970, porém, no meio psiquiátrico, só ganhou uso há pouco mais de 15 anos. No que se refere aos transtornos mentais, é comum o consumo de substâncias psicoativas coexistindo com outras doenças. De modo geral, o uso de substâncias psicoativas, mesmo ocasional e em pequenas doses, nesta população pode gerar conseqüências mais sérias que as vistas em pa­ cientes sem comorbidade23. Embora o termo seja utilizado para definir todos os pa­ cientes com diagnóstico concomitante de abuso/dependên­ cia de drogas ou álcool e outro transtorno psiquiátrico, existe grande heterogeneidade em tal grupo e, por isso, diferentes intervenções4. Estudos demonstraram que pacientes com comorbidade, principalmente aqueles com transtornos psiquiátricos graves, apresentam maiores taxas de agressividade, de detenção por atos ilegais, suicídio, maior número de recaídas e mais gastos com tratamento; além disso, utilizam mais os serviços médi­ cos, passam por mais reinternações e maiores períodos de

hospitalização, bem como carecem de moradia359. As evoluções clínica e social des­ tes pacientes tendem a ser piores que daqueles que não apresentam tal comorbidade, além de causarem maior impacto financeiro e sobre a saúde do cuidador310. Existem dificuldades na abordagem terapêutica destes pacientes, que geralmente acabam não encontrando locais com adequado treinamento para o tratamento11. Profissionais de centros de psiquiatria geral possuem pouca ou nenhuma expe­ riência no tratamento de usuários de substâncias psicoativas, e ocorre algo seme­ lhante nos centros de tratamento de dependência química, que acabam por sentir insegurança diante de pacientes psicóticos. Por esta razão, têm sido propostos para estes pacientes programas específicos que permitam às equipes de saúde mental desenvolver formas eficientes de lidar com eles, visando conscientizá-los da necessidade de se tornar abstinentes, melhorar sua adesão ao tratamento e reorganizar suas redes sociais12.

E p id em io lo g ia Os primeiros estudos sobre a comorbidade entre transtornos mentais graves e abuso/dependência de substâncias foram conduzidos com populações hospitali­ zadas durante as décadas de 70 e 80. Somente após esse período foram desenvol­ vidos estudos envolvendo populações extra-hospitalares e da comunidade13. São diversas as limitações a que estão sujeitos os estudos de pacientes com transtornos mentais graves e transtornos por uso de substâncias psicoativas. As mais importantes são as relacionadas aos diagnósticos do transtorno mental grave e de abuso/dependência de substâncias, às características da amostra investigada e a informações sobre o padrão de consumo de substâncias psicoativas, particularmente de drogas ilícitas. Entretanto, a literatura é clara ao afirmar que esta condição é inade­ quadamente diagnosticada na prática clínica, sendo muito mais prevalente do que se acredita. Muitas vezes, o uso de substâncias pode não ser detectado pelos profissio­ nais responsáveis pelo cuidado de pacientes com transtornos mentais graves, em ra­ zão da ausência de relato de uso por estes (intencionalmente ou não) ou da pouca importância dada a esta questão pelos serviços13. Uma questão muito importante na prática clínica é a dificuldade em diferen­ ciar a presença de comorbidade (abuso de substâncias psicoativas e transtornos mentais graves) dos quadros psicóticos, em virtude do efeito destas substâncias. Muitas drogas podem produzir sintomas psicóticos durante a intoxicação ou du­ rante os quadros de abstinência, como é o caso dos alucinógenos e do álcool, res­ pectivamente. Quadros de psicose induzida por drogas psicoativas são bastante confundidos com quadros de esquizofrenia e até mesmo com quadros de mania, sendo, muitas vezes, impossível o diagnóstico sem um longo período de avaliação do paciente, estando este abstinente do uso destas substâncias. Também ainda não é claro o efeito destas substâncias na apresentação dos sintomas em pacientes com transtornos mentais graves, não sendo possível estabelecer a real influência das drogas psicoativas sobre a psicopatologia: alucinações experimentadas por dependentes de álcool podem não diferir significativamente das alucinações experimentadas por pacientes esquizofrênicos13.

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No entanto, estudos mostram grande diferença no que se refere à prevalência de abuso/dependência de substâncias psicoativas na população geral e na popu­ lação de pacientes com algum transtorno psiquiátrico. Na primeira, a prevalência estaria em torno de 13%, enquanto em pacientes com transtornos mentais tal prevalência giraria em torno de 0,5 a 75%, conforme os estudos14. Acredita-se que, em algum período de suas vidas, cerca de 50% dos pacientes com transtornos mentais graves desenvolvem problemas relativos ao consumo de álcool/drogas15. Em um levantamento realizado com 20.000 indivíduos de cinco cidades dos Estados Unidos, feito pelo Epidemiologic CatchmentArea (ECA), foi observado que, entre os pacientes com abuso/dependência de álcool, 36,6% tinham outro diagnóstico psiquiátrico. Existe grande variabilidade nos números relacionados a estas comorbidades. Por exemplo, a população de pacientes com esquizofrenia apresenta prevalências de 20 a 75% de problemas relacionados a substâncias psicoativas2. Esta grande diferença está relacionada com os tipos de estudo, a amostra que é investigada, com o fato de a substância investigada ser lícita ou ilícita16, com as definições de doença mental adotadas, os métodos utilizados na avaliação, além das caracte­ rísticas sociodemográficas e a disponibilidade das substâncias na comunidade. Fatores que também explicam a variabilidade das prevalências encontradas nesta população, são explicadas pela heterogeneidade do grupo. Esta se deve a alguns fatores, como as combinações possíveis entre os transtornos mentais e as subs­ tâncias utilizadas, a idade de início destes transtornos, a gravidade do quadro e o tempo de duração do uso de substâncias e do transtorno mental14. No Brasil, até o momento, poucos estudos foram realizados para investigar a comorbidade entre transtornos mentais graves e abuso ou dependência de substâncias psicoativas; a maior parte dos estudos restringe-se a revisões ou a pa­ cientes que fazem acompanhamento em serviços específicos. A prevalência da comorbidade entre outros transtornos mentais graves e abu­ so/dependência de substâncias psicoativas em pacientes que tiveram contato com quaisquer tipos de serviços de saúde mental de uma região da cidade de São Paulo foi investigada por Ratto14: a prevalência de abuso de substâncias psicoativas foi maior entre homens do que entre mulheres (RR* 2,64; IC** 95% 1,0 a 7,0), migrantes (RR = 2,06; IC95% 0,86 a 4,9) e indivíduos separados/divor­ ciados (RR = 1,9; IC95% 0,75 a 4,7). A presença de sintomas negativos foi signifi­ cativamente menor entre os indivíduos que receberam o diagnóstico de substâncias psicoativas (média = 10,5; desvio padrão = 4,7) em comparação aos demais participantes do estudo (média = 15,3; desvio padrão = 8,8) (p < 0,001). Menezes17, estudando os mesmos indivíduos, observou que o atendimento mais utilizado nos seis meses anteriores à entrevista foi a consulta com psiquiatra (83%) e que as pessoas com comorbidade utilizaram mais serviços de emergência psiquiátrica que aquelas sem comorbidade; não houve diferenças quanto ao uso de internações psiquiátricas ou de consultas com psiquiatras. O autor sugere que fatores socioeconômicos e socioculturais podem estar associados à baixa

* RR = risco relativo. ** IC = intervalo de confiança.

prevalência de comorbidade encontrada neste estudo quando comparada àque­ las encontradas em estudos internacionais. A incidência destes transtornos parece estar aumentando nas últimas déca­ das5, achado que pode estar relacionado diretamente àpriorização dos cuidados de saúde mental na comunidade: o fechamento de hospitais psiquiátricos, a priorização de tratamento ambulatorial e o aumento da disponibilidade das dro­ gas e do álcool18. No entanto, é possível que o aumento desta incidência se deva somente ao fato de, nesse período, terem melhorado as condições clínicas para o diagnóstico e acompanhamento de pacientes com transtornos mentais.

E t io l o g ia Várias teorias tentam elucidar os mecanismos das associações entre a doença primária e a comórbida.

Principais Teorias Causal A presença de um transtorno é necessária para o surgimento de outro. Nesta teoria, um transtorno primário causa ou predispõe ao surgimento de um segundo. Por exemplo, o surgimento de um comportamento anti-social pode gerar abuso de substâncias e vice-versa. Comportamento anti-social ^ Abuso de substâncias

Etiologia Comum Ambos os transtornos seriam resultado da mesma combinação de genes, associada a fatores de risco intrínsecos e extrínsecos. O transtorno comórbido e o primário poderiam ser manifestações em diferentes apresentações ou es­ tágios da mesma doença. No exemplo, os fatores resultariam tanto no compor­ tamento anti-social quanto no abuso de substâncias. Poderiam ter a mesma explicação neurobiológica e, por isto, a coexistência seria facilitada. Abuso de substâncias Fatores de risco/Etiológicos Anti-social

Automedicação A presença de psicopatologia estimulando o abuso de substâncias com o intuito de minimizar ou aliviar sintomas relativos a um transtorno primário, por exemplo, o álcool utilizado como ansiolítico de fácil acesso, aceito socialmente

Principais Comorbidades Psiquiátricas na Dependência Química ■

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e usado por adolescentes, caso em que, muitas vezes, é difícil a diferenciação entre o quadro inicial e os sintomas observados durante possível síndrome de abstinência.

Uso de Substância Precipitando Psicopatologia Inúmeros estudos revelaram que o consumo de álcool e drogas pode levar ao surgimento de uma psicopatologia. O álcool, por ser um depressor do sistema ner­ voso central, poderia desencadear sintomatologia depressiva, ou este consumo levaria à deterioração do afeto, com sintomas ansiosos. Abuso de substâncias —>Esquizofrenia

Hereditariedade Apesar de muitos mecanismos já terem tentado elucidar esta coexistência, nenhum foi suficiente para explicá-la. Na tentativa de reduzir sintomas, efeitos colaterais de remédios ou mesmo com a intenção de automedicação, pacientes com transtornos psiquiátricos acabariam utilizando drogas e álcool12. Em alguns estudos envolvendo pacientes com transtornos mentais graves, foram relatados alívio e melhora de alguns sintomas pelo uso de substâncias psicoativas. Em 1991, Drake e cols.19observaram que, após consumirem álcool, 70% de 75 pa­ cientes esquizofrênicos tinham melhora subjetiva de ansiedade e tensão, 62,1% efeitos positivos no humor, 59,1% melhora nos sentimentos de apatia e anedonia, e 56,1% de distúrbios do sono. Outro estudo, realizado por Serper20e cols. em 1995, observou que pacientes esquizofrênicos que consumiam cocaína apresentavam, tanto na intoxicação como na abstinência, menos sintomas negativos que aqueles que não a utilizavam; não foi possível, porém, determinar se estes apresentavam menos sintomas negativos pelo uso da droga ou se, por terem menores prejuízos, acabavam possuindo maiores chances de obter tal droga.

Principais T ra n s to rn o s A sso cia d o s

Esquizofrenia Segundo a CID-1021, este transtorno é caracterizado por distorções do pen­ samento e da percepção, sem mudanças do nível de consciência, e pela presença de afeto embotado ou inadequado. Inicialmente, não ocorrem alterações in­ telectuais, porém, estas podem surgir no decorrer da evolução da doença. Apesar de nenhum dos sintomas ser patognomônico, é útil dividi-los para fins diagnósticos. • Irradiação, eco, inserção ou roubo do pensamento. • Delírios de controle, influência ou passividade, referidos ao corpo ou a movimentos dos membros, percepção delirante.

• Alucinações auditivas que comentam o comportamento do paciente, que discutem entre si sobre ele ou outras vozes que vêm de alguma parte de seu corpo. • Delírios persistentes que vão de encontro à cultura ou são completamente impossíveis, como identidade religiosa ou política, habilidades ou poderes sobre-humanos (por exemplo, comunicação com seres extraterrestres ou controle do tempo). • Alucinações persistentes de qualquer modalidade, quando acompanhadas de delírios sem conteúdo afetivo claro ou idéias prevalentes persistentes. • Interrupções ou interpolações no curso do pensamento, resultando em dis­ curso incoerente, irrelevante ou neologismos. ^ } • Comportamento catatônico, com negativismo, mutismo, estupor, excitação, postura inadequada, flexibilidade cérea. • Sintomas negativos, que podem ser pobreza de discurso, embotamento, apatia marcante ou respostas emocionais incongruentes, que geralmente evoluem para retraimento social e diminuição do desempenho social; tais sintomas não se devem a quadros depressivos ou ao uso de antipsicóticos. • Alteração consistente e significativa na qualidade global de certos aspectos do comportamento pessoal, como perda de interesse, inatividade, falta de objetivos e retraimento social. O diagnóstico é feito com a sintomatologia perdurando na maior parte do tempo no período mínimo de um mês, quando deverá ser apresentado pelo menos um sintoma claro, ou dois, se não tão claros, entre os mencionados nos quatro pri­ meiros itens ou dois sintomas entre o quinto e o oitavo.

Comorbidade A esquizofrenia é uma patologia complexa, crônica e com dificuldades de tra­ tamento próprias, que são exacerbadas quando associadas a quadros de abuso/ dependência de substâncias, acarretando pior evolução em comparação com pa­ cientes que não apresentam tal comorbidade22. Cerca de 29% dos indivíduos com esquizofrenia possuem problemas relativos ao consumo de substâncias psicoativas23. Tanto os sintomas positivos como os negativos podem ser exacerbados pelo consumo de álcool/drogas24. Várias hipóteses associam o consumo de substâncias com o transtorno: pa­ cientes usariam drogas para minimizar os sintomas da doença e os efeitos colaterais dos remédios utilizados; em pacientes suscetíveis, o abuso de substân­ cias propiciaria o surgimento da patologia ainda não desperta; ou, por fim, não existiria relação causal entre estas, mas uma coincidência no surgimento dos dois transtornos por apresentarem semelhanças quanto à idade de instalação, à idade e à prevalência25. O álcool, em virtude de suas propriedades, poderia causar o surgimento de sintomas latentes da doença, como reações de raiva, ciúme patológico, desconfiança, idéias de referência24. Talvez seja a droga mais utilizada por pacientes crônicos e moradores de rua, em razão das facilidades de obtenção.

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f

Os efeitos da cocaína e das anfetaminas podem, em muito, se assemelhar aos sintomas psicóticos observados na esquizofrenia, como persecutoriedade e alucina­ ções visuais, sendo menos intensos os produzidos pelas anfetaminas. Em pacientes esquizofrênicos, o uso destas pode tomar mais freqüentes os quadros psicóticos e, nes­ tes casos, o diagnóstico deve ser feito somente após seis semanas de abstinência24. A maconha pode estar relacionada com o surgimento de quadros psicóticos em pacientes com alguma suscetibilidade, agindo como fator desencadeante. Em altas doses, proporciona alucinações e delírios paranóides, sintomas maníacos e alterações do humor, gerando um quadro semelhante ao da esquizofrenia ou, quando esta já está presente, piorando sua apresentação24. Na população em geral, o consumo de tabaco costuma ser de cerca de 30%, pacientes esquizofrênicos têm prevalência em torno de 74% para este consumo, o que costuma aumentar para 90%, se a população avaliada for de pacientes institucionalizados25. Algumas teorias tentam explicar este consumo alegando que a nicotina poderia ser responsável pela melhora de alguns efeitos colaterais de medicamentos antipsicóticos. Outra teoria acredita que os sintomas negativos vis­ tos na esquizofrenia, resultantes de menor liberação de dopamina na região do núcleo accumbens, seriam atenuados pela liberação deste neurotransmissor por outras partes do cérebro, quando do consumo de nicotina25. Para prevenir ou medicar sintomas extrapiramidais relacionados com os me­ dicamentos antipsicóticos, é comum a administração de anticolinérgicos, que, por suas ações sobre os canais de cálcio, podem produzir sintomatologia psicótica em abusadores desta substância25.

Transtornos do Humor Depressão Segundo a CID-1021, é caracterizada por humor deprimido, perda do interesse e do prazer e energia reduzida, que resulta em diminuição de atividade, em virtude de maior fatigabilidade. Outros sintomas importantes são: • • • • • •

Redução da concentração e da atenção. Redução da autoconfiança e da auto-estima. Idéias de inutilidade e culpa, pessimismo acerca do futuro. Idéias que podem levar a atos autolesivos ou ao suicídio. Alteração de sono. Apetite diminuído.

O diagnóstico é feito com a sintomatologia apresentada, envolvendo dois dos sintomas principais e pelo menos dois dos seis itens anteriores por um período mínimo de 2 semanas. No paciente, é observado o humor rebaixado e pouco responsivo às circuns­ tâncias; esse quadro varia pouco de dia para dia, porém, pode ocorrer uma pe­ quena variação no decorrer do dia. Também podem ser observadas variações individuais, além de quadros atípicos serem particularmente comuns na ado-

lescência. Alguns aspectos adicionais, como preocupações hipocondríacas, irritabilidade, consumo excessivo de álcool, comportamento histriónico, piora de sintomas fóbicos ou obsessivos preexistentes, podem mascarar o humor depressivo. Por vezes, a ansiedade, a agitação motora e a angústia podem ser sin­ tomas mais intensos que a própria depressão. O episódio deve durar pelo menos duas semanas e pode ser definido como leve, moderado ou grave, de acordo com a exuberância dos sintomas e a presença de sintomas somáticos e psicóticos21.

Comorbidade A droga mais freqüentemente associada ao quadro é o álcool27. Na psiquiatria a dependência de álcool e a depressão são as patologias mais comumente ob­ servadas23. Segundo Griffith28, o conhecimento da depressão é tão importante quanto o da própria dependência do álcool para aqueles que têm interesse em trabalhar com tal dependência. Em geral, a depressão antecede o surgimento da dependênciá do álcool, prin­ cipalmente em mulheres28, porém, na maioria das vezes, é muito difícil determi­ nar o transtorno primário e o secundário, visto que há interferência entre os transtornos depois de instalada a comorbidade15. A importância deste diagnóstico reside em determinar se os sintomas apresen­ tados pelo paciente fazem parte da depressão ou se estão relacionados ao consumo de álcool28. É necessária abstinência de pelo menos duas semanas para que seja rea­ lizado o diagnóstico26, quando, então, os sintomas podem persistir ou pode haver remissão total do quadro depressivo, mesmo sem a utilização de antidepressivos. A abstinência também é útil, visto que aumenta a possibilidade de sucesso terapêutico da depressão. Um outro aspecto, não menos importante, da abstinência é o fato de que pacientes somente poderão expressar sintomas depressivos que estavam mascarados pelo uso do álcool após este período28. Em virtude de sua ação desinibitória, o álcool também pode ser um agravante em pacientes deprimidos, uma vez que promove aumento de atos impulsivos15. Atualmente, o risco de suicídio para alcoolistas é estimado em 3 a 4% nos EUA e em outros países ocidentais, tornando-se 60 a 120 vezes maior que o da população em geral. Isto sem associar a depressão, o que torna o risco ainda mais substancial28. Associadas à depressão, também podermos encontrar a cocaína, as anfetaminas e a cafeína. Estas drogas podem ser utilizadas na tentativa de amenizar os sinto­ mas, na depressão primária ou porque sintomas depressivos podem estar presentes, nos usuários crônicos, nos períodos de abstinência1529. Estes sintomas podem ser explicados pelas mudanças nos neurotransmissores desta população29. Nestes casos, sintomas depressivos são comumente observados em pacientes em tratamento de cocaína e crack, porém, a maioria destes não preenche critérios diagnósticos para depressão. Na maior parte das vezes, tais queixas se devem ao efeito biológico da abstinência e da condição psicossocial associada ao uso crônico destas substâncias29. Sintomas depressivos também têm sido observados em pacientes abusadores de opiáceos, e existem evidências de que o uso agudo ou o crônico produza ou

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exacerbe esta sintomatologia. Ao mesmo tempo, a depressão pode predispor ao abuso, havendo um mecanismo complexo e bidirecional interagindo entre estes29. Alguns estudos observaram que dependentes de nicotina apresentavam maio­ res taxas de depressão e ansiedade. Porém, é difícil definir se a nicotina contribui para a depressão, se ocorre o inverso ou se um terceiro elemento estaria contribuin­ do para o surgimento de ambos26. Benzodiazepínicos também são drogas envolvidas na evolução da depressão, principalmente quando ocorrem sintomas ansiosos. Isto facilitaria o uso abusivo e a dependência. É útil lembrar que a abstinência de benzodiazepínicos pode cursar com quadros disfóricos29. Por último, vale lembrar que efeitos produzidos pela dependência, como alte­ rações da cognição e do controle dos impulsos, causam impacto na vida profis­ sional e na pessoal, contribuindo para fracassos em vários setores29.

Transtorno Afetivo Bipolar O transtorno afetivo bipolar (TAB) é caracterizado por repetidos episódios de perturbação do humor e dos níveis de atividade, que ocasionalmente estarão re­ lacionados com o aumento da atividade e energia, a elevação do humor e, outras vezes, apresentarão redução de energia e atividade com humor rebaixado. A recu­ peração entre os episódios é completa e tem incidência igual para ambos os se­ xos, podendo ocorrer em qualquer idade, de crianças até idosos. Os episódios depressivos tendem a durar por volta de 6 meses e, os quadros de mania, de 2 semanas a 4 meses21. O padrão de recaídas e remissões e a freqüência dos episódios são muito variá­ veis, ainda que as remissões tendam a se tornar cada vez mais breves e as depres­ sões, após a meia-idade, mais comuns e com maior duração21. O diagnóstico de mania é feito com os sintomas perdurando pelo menos 1 semana quando, em razão destes, o paciente apresenta perturbação em atividades como trabalho e sociabilidade. Entre os principais sintomas estão: aumento de energia, diminuição da necessidade de sono, grandiosidade, aumento da pres­ são de voz, além de otimismo excessivo; o humor pode estar exaltado, porém, pode também ser irritável.

Comorbidade Depois do transtorno de personalidade, que pode atingir até 90% dos casos, o TAB é um dos transtornos psiquiátricos mais comumente observados junto ao consumo de substâncias7,3032. No estudo ECA, foi verificada prevalência de 31,5% de quadros de dependência de álcool e de 27,5% de quadros de dependência de drogas para pacientes com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar tipo I, e, res­ pectivamente, de 20,8% e 11,7% para o do tipo II33. Nos estudos, em aproximadamente 60% dos casos o uso de álcool/drogas pa­ rece preceder sintomas afetivos. Porém, na maioria destes estudos, não são averi­ guados sintomas prodrômicos ou subsindrômicos de TAB, isto é, sintomas p u A - . *‘*v “ ^

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associados a este transtorno já poderiam estar presentes antes do início do con­ sumo, contudo, por estarem mais atenuados, não seriam verificados até serem potencializados33. Nos episódios depressivos, o consumo de álcool pode aumentar em 15%; já nos quadros de mania, este aumento pode ser ainda mais significativo, de cerca de 25%33, tornando o diagnóstico das doenças afetivas ainda mais difícil por apre­ sentarem vários sintomas em comum com os quadros relacionados à substância. Por exemplo, grandiosidade, irritabilidade e expansividade podem ser apresenta­ das na intoxicação ou em um episódio de mania. Também fazem parte da sin­ tomatologia da mania insônia, ansiedade e agitação psicomotora, sintomas comuns aos quadros de abstinência ao álcool29. O consumo de cocaína produz sintomas semelhantes aos dos quadros de hipomania/mania, como agitação, disforia, aumento de energia, pensamento ace­ lerado e grandiosidade, que, contudo, ficam limitados à ação da droga e surgem após consumo recente29. Tais sintomas poderiam perdurar até 3 dias após o tér­ mino do consumo33. Em pacientes com ambos os diagnósticos, este consumo po­ deria ocorrer na tentativa de medicar os sintomas depressivos em um episódio de TAB misto ou para se prolongar a sensação de euforia33. Outro aspecto a ser consi­ derado é a capacidade de substâncias que estimulam o sistema nervoso central, como as anfetaminas, em produzir, mimetizar e perpetuar um quadro maníaco. O TAB associado ao consumo de drogas/álcool costuma ter pior prognóstico, com maior número de episódios e internações, sendo estas mais prolongadas, além de levar a maior risco de suicídio433.

Transtornos Ansiosos Alguns estudos indicam que um terço dos alcoolistas apresenta um quadro significativo de ansiedade28, com evidências de que 50 a 67% dos alcoolistas e 80% dos dependentes de outras drogas têm sintomas que se assemelham aos do transtorno de pânico, dos transtornos fóbicos ou do transtorno de ansiedade generalizada.

Agorafobia Este termo é utilizado atualmente para definir o medo de espaços abertos e outros tipos de medo, como presença de multidões e a dificuldade de fugir para um local seguro. A gravidade é variável, porém, entre os transtornos fóbicos, esta é a mais incapacitante - alguns pacientes podem ficar completamente confina­ dos em casa. A maioria dos pacientes é do sexo feminino e o transtorno normal­ mente ocorre no começo da idade adulta. Para um diagnóstico definitivo: • Os sintomas psicológicos ou autonômos devem ser, primariamente, mani­ festações de ansiedade e não secundários a outros sintomas, tais como de­ lírios ou pensamentos obsessivos.

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• A ansiedade deve ser restrita ou ocorrer em pelo menos duas das seguintes situações: lugares públicos, multidões, viagens para lugares distantes ou sem companhia. • A evitação da situação fóbica deve ser ou estar sendo um aspecto proe­ minente21.

Transtorno de Pânico Neste quadro, ocorrem ataques recorrentes de ansiedade grave que caracteri­ zam o pânico, têm início súbito e duram alguns minutos, com sintomas como palpitações, dor no peito, sensações de choque, tontura e sentimentos de despersonalização, acompanhados do medo de morrer, de ficar louco, de perder o controle e, no decorrer do quadro, de medo de ter outra crise. O indivíduo, geralmente, sente uma onda crescente de medo e sintomas autonômos que resultam em fuga do local onde está e posterior evitação do local ou da situação associada com o surgimento da crise. O diagnóstico é feito na presença de vários ataques graves de ansiedade ocor­ ridos durante o período de 1 mês, com as seguintes características: • Em situações nas quais não há perigo real. • Os ataques não deveriam ocorrer em situações de confinamento e/ou previsíveis. • Com relativa diminuição dos sintomas ansiosos entre os ataques, mesmo que a ansiedade antecipatória seja comum21.

Transtorno de Ansiedade Generalizada É caracterizada por sintomas primários de ansiedade, com ou sem manifesta­ ções somáticas. Os sintomas devem conter, usualmente, elementos como: • Apreensão (preocupações com desgraças futuras, dificuldades de concen­ tração, sentimento de estar no limite); • Tensão motora (cefaléias tensionais, tremores, incapacidade de relaxar e inquietação); • Hiperatividade autonôma (sensação de cabeça leve, taquicardia ou taquipnéia, sudorese, desconforto epigástrico, boca seca, tonturas) e na maioria dos dias pelo menos durante várias semanas, ansiedade com ou sem manifestações somáticas21. Estes devem estar presentes por um período mínimo de 1 mês, com ansieda­ de autonôma surgindo em vários ataques.

Comorbidade Os quadros ansiosos são comumente associados aos transtornos por consumo de drogas. Esta estreita relação pode ser explicada pelo fato de as drogas psicoativas,

de modo geral, gerarem sintomas de ansiedade, por intoxicação por drogas esti­ mulantes do sistema nervoso central ou por um quadro de abstinência a depressores deste sistema1. Outras drogas perturbadoras do funcionamento do sistema nervoso central, como a maconha, também podem produzir efeitos como ansiedade, com quadros de pânico transitório29. Os sintomas de abstinência alcoólica podem imitar os transtornos de ansie­ dade generalizada e de pânico, podendo existir, por trás destes mecanismos, um processo neuroquímico comum. Muitas vezes, os sintomas fóbicos aparentemente muito graves desaparecem após um período de abstinência e, nestes casos, não necessitam de tratamento28. O inverso também pode ocorrer, isto é, quadros ansiosos podem ser amenizados por determinadas substâncias. Miller1, em 1994 observou, que o álcool é a substância mais envolvida em tal mecanismo, chegando a ser duas vezes maior que a soma das demais drogas utilizadas para amenizar sintomas ansiosos. No entanto, pacientes que encontram alívio para sua ansiedade podem desenvolver quadros de progressão da sintomatologia ansiosa, passando rapidamente do abuso à dependência Geralmente, os dependentes de álcool relatam que as bebidas melhoram a auto-estima, reduzem o isolamento, aliviam a depressão, além de diminuir a an­ siedade. Porém, estudos verificam que estes, no decorrer da dependência, se tor­ nam mais retraídos e deprimidos, menos autoconfiantes e com aumento da intensidade da ideação suicida; a ansiedade pelo álcool, aliviada nos usuários crô­ nicos, nada mais é que os próprios sintomas de abstinência recente, como tremo­ res, pânico e disforia24. Evidentemente, alguns aspectos relacionados à ansiedade, como tensão mus­ cular e culpa, são aliviados pela ingestão de pequenas doses de álcool24. A maioria dos estudos sugere que o álcool diminui a ansiedade após alguns minutos, po­ rém, atua aumentando os níveis de ansiedade posteriormente26. Pode existir, en­ tão, um papel etiológico destes transtornos no desenvolvimento da dependência ao álcool. Alguns estudos vêm tomando mais consistente a hipótese de que os transtornos ansiosos seriam, por via de regra, secundários ao alcoolismo e o in­ verso seria menos comum24. Resumidamente, podemos dizer que pacientes com transtornos ansiosos po­ dem utilizar substâncias para amenizar seus sintomas, assim como pacientes usuá­ rios de drogas podem ter sintomas ansiosos decorrentes do consumo ou da abstinência destas. Isso resulta em sintomatologias muito semelhantes, e que, em muitos casos, é necessária abstinência para que se obtenha um diagnóstico preciso.

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) O termo “déficit de atenção” não é utilizado na CID-1021; quadros relaciona­ dos estão englobados no diagnóstico de transtornos hipercinéticos. Este grupo de transtornos caracteriza-se por: início precoce; comportamento hiperativo pobre­ mente modulado, com desatenção marcante e falta de envolvimento persistente nas tarefas, além de conduta invasiva nas situações e persistência na duração des­ sas características de comportamento.

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Apesar de ser mais comum na infância, o diagnóstico pode ser feito na idade adulta, com atenção e atividades sendo julgadas com referência a normas apro­ priadas do desenvolvimento21. As crianças que apresentam esse tipo de déficit possuem falta de atenção se­ vera e/ou hiperatividade e impulsividade, que se manifestam antes dos sete anos. São crianças que fracassam em completar tarefas, cometem erros por descuido, têm dificuldade em seguir instruções, apesar de terem inteligência normal. Além disso, falam incessantemente, perturbam os outros e apresentam aumento im­ portante de motricidade, que acaba por predispor a acidentes21. Em virtude das dificuldades escolares, cerca de um terço não conclui o ensi­ no médio (High SchooJ). Também é comum serem taxadas de más, preguiçosas e irresponsáveis por pais e professores e gerarem conflitos quando os pais aca­ bam se culpando ou à própria criança. Cerca de 10 a 65% das crianças com este diagnóstico continuam com sintomas importantes e persistentes durante a vida adulta e, destes, 20 a 40% têm problemas com substâncias psicoativas34. O diagnóstico no adulto é hipótese que deve ser aventada na presença de história do transtorno na infância, dificuldades de atenção, hiperatividade motora, labilidade afetiva, temperamento esquentado, impulsividade, into­ lerância ao estresse e inabilidade para completar tarefas. Outras característi­ cas podem estar presentes: instabilidade marital, dificuldades sociais e acadêm icas, abuso de substância e respostas atípicas para m edicação psicoativa21.

Comorbidade Pesquisas associando este transtorno e o uso de substâncias têm revelado alto grau de sobreposição e de comorbidade. Estudos prospectivos de crianças cujos sintomas persistiram na adolescência e na idade adulta têm demonstrado que estas possuem risco aumentado de abuso de substâncias, que se torna ain­ da maior se associado a comorbidades com outras entidades psiquiátricas, como transtorno de personalidade anti-social34. Cerca de 33% dos adultos com déficit de atenção e hiperatividade (DAHA) têm problemas relacionados ao abuso/dependência de álcool e drogas, entre as quais a maconha é a mais comumente utilizada, seguida dos estimulantes e cocaína. O consumo de álcool nesta população, segundo estudo recente, pos­ sui representativa prevalência: cerca de 38% das pessoas que apresentaram DAHA na infância34. Geralmente, nos usuários de cocaína com diagnóstico de DAHA, o consumo é mais precoce e, o uso, mais severo que no resto da população34. Sintomas comuns para o DAHA e o consumo de substâncias psicoativas, como ansiedade e alterações no humor, dificultam o diagnóstico. Quando am­ bos os quadros estão presentes, o DAHA implica maior dificuldade de trata­ mento e resultados mais restritos. Mulheres recebem menos diagnósticos de DAHA por apresentarem menos comportamentos agressivos, o que resulta em dados imprecisos34.

Transtornos de Personalidade Segundo a CID-1021, são uma perturbação grave da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo ou padrões de comportamentos mal-adaptativos e desvios significativos da norma cultural do modo de pensar, sentir, perceber e, particularmente, de se relacionar com os outros. Estes transtor­ nos tendem a surgir no final da infância ou adolescência, porém, o diagnóstico antes dos 16 ou 17 anos talvez seja inapropriado. Na CID-1021 são fornecidas diretrizes gerais para estes transtornos e, em seguida, descrições suplementares para cada tipo. Entre as características gerais, estão: • Várias áreas do funcionamento, como afetividade, controle dos impulsos, modos de percepção e de relacionamentos, envolvidas com atitudes e con­ dutas marcadamente desarmônicas. • Este padrão anormal de comportamento é permanente, de longa duração e não está envolvido apenas em episódios de doença mental. • Tal comportamento é invasivo e claramente mal-adaptativo para uma am­ pla série de situações pessoais e sociais. • Estas manifestações surgem na infância e adolescência e se estendem pela idade adulta. • O quadro produz angústia pessoal considerável, porém, esta pode se tornar aparente tardiamente. • É usual, porém não invariavelmente associado a problemas de real significância nos desempenhos ocupacional e social. Entre os tipos mais comumente relacionados com o uso de substâncias, estão os borderline e o anti-social21.

Transtorno de Personalidade Anti-Social É observada uma disparidade importante entre o comportamento do indiví­ duo e as normas sociais predominantes. Caracteriza-se por: • Indiferença pelos sentimentos dos outros. • Atitude flagrante e constante de irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais. • Incapacidade de m anter relacionam entos, sem dificuldade para iniciá-los. • Baixa tolerância à frustração e baixo limiar para descarga de agressão, incluindo violência. • Incapacidade de experimentar culpa e de aprender com a experiência, em particular com a punição. • Propensão para culpar os outros ou para oferecer respostas racionais para explicar comportamentos que levaram a entrar em conflito com a sociedade.

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Transtorno de Personalidade Borderline Neste transtorno, são observáveis várias características de instabilidade emo­ cional; em adicção, a auto-imagem, objetos e preferências internas são, com fre­ qüência, pouco claros ou perturbados. Geralmente, existem sentimentos crônicos de vazio. Ocorre, ainda, propensão a relacionamentos instáveis e intensos, que podem causar repetidas crises emocionais e estar associadas a tentativas de evitar o abandono. Tentativas de suicídio e de autolesão também podem ocorrer, mes­ mo que sem precipitantes21.

Comorbidade Desde a introdução do DSM-III, muitos estudos têm documentado a prevalência de transtornos de personalidade e uso de substâncias28. A presença de um transtorno de personalidade pode modificar os sintomas apresentados, a res­ posta terapêutica e o curso da dependência35. Existem modelos teóricos que tentam explicar esta associação, porém, ainda, inconclusivos. Na década de 1970, aventou-se a hipótese de uma personalidade predisposta à dependência (pré-adicta), mas não se encontrou um único tipo de personalidade que pudesse ser predeterminante ao consumo de drogas. Outro modelo diz respeito ao surgimento do quadro de personalidade secundário ao consumo de drogas, no qual estas contribuiriam para o transtorno de personali­ dade. Por último, haveria um terceiro fator, que implicaria o desenvolvimento de ambas as patologias de forma independente35. Uma das dificuldades diagnosticas deste transtorno é o fato de as medi­ das tomadas para obtenção das drogas serem, muitas vezes, vistas como anti­ sociais e de sintomas que são comuns aos de transtorno de personalidade, como negação, culpar os outros, raiva, vitimização, minimização dos proble­ mas e grandiosidade26, serem apresentados por pacientes que iniciaram tra­ tamento21. Normalmente, as características da personalidade anti-social antecedem os sintomas provenientes do consumo de álcool/drogas, porém, o maior consumo destas favorece o surgimento de comportamentos anti-sociais26. Outro problema diagnóstico diz respeito às mulheres que fazem uso abusivo de álcool, que acabam sendo diagnosticadas como tendo transtorno de persona­ lidade devido a este comportamento ser menos bem aceito socialmente26.

Transtornos Alimentares Anorexia Nervosa É um transtorno caracterizado por deliberada redução de peso, induzida e/ou mantida pelo paciente, mais comum em adolescentes e mulheres jovens. Para o diagnóstico definitivo, são necessários os seguintes critérios:

• O peso corpóreo é mantido 15% abaixo do ideal, ou a adolescente nunca alcança o peso esperado durante o período de crescimento. • A perda de peso é auto-induzida por abstenção de alim entos que engordem, associada a vômitos auto-induzidos, exercício excessivo, purgação autoinduzida ou uso de anorexígenos e diuréticos. • Auto-imagem distorcida: o paciente impõe baixo limiar de peso a si pró­ prio em decorrência de pavor de engordar persistente como uma idéia intrusiva. • Ocorre um transtorno endocrinológico generalizado, com várias alte­ rações manifestadas em mulheres, como amenorréia e em homens, como diminuição de interesse e potência sexuais. Outros achados são níveis elevados de hormônio do crescimento, de cortisol, alterações no metabolismo periférico do hormônio tiroidiano e secreções anormais de insulina. • Se o início é pré-puberal, ocorre retardo ou o não surgimento de eventos comuns na puberdade (crescimento, não desenvolvimento de mamas e dos órgãos genitais, etc.). Após a recuperação, a puberdade é completada nor­ malmente21.

Bulimia Nervosa É um quadro caracterizado por repetidos ataques de hiperfagia e preocupa­ ção excessiva com o peso corpóreo. Pode ser seqüela da anorexia nervosa (porém, o inverso também pode ocorrer) e sua incidência tende a ser semelhante quanto à idade e ao sexo, porém é um pouco mais tardia. Para o diagnóstico, os seguintes critérios são necessários: • Preocupação persistente com o comer e desejo irresistível de comida; o pa­ ciente apresenta episódios de hiperfagia, ingerindo grandes quantidades de alimento em curto período de tempo. • Para tentar neutralizar os efeitos de engorda dos alimentos, o paciente autoinduz vômitos, abusa de purgante, tem períodos de inanição e utiliza dro­ gas anorexígenas, preparados tiroidianos ou diuréticos. Em diabéticos, pode haver negligência do tratamento com insulina. • Existe um pavor mórbido de engordar, gerando um limiar de peso, estabe­ lecido pelo próprio paciente, bem abaixo do que se consideraria saudável na opinião de um médico. Pode haver a existência prévia de um quadro de anorexia, expresso completamente ou de forma mais amena, por meio de moderada perda de peso e/ou fase transitória de amenorréia21.

Comorbidade A coexistência de transtornos alimentares com o consumo de álcool começa a receber atenção na literatura. Obviamente, o próprio consumo crônico do álcool, gerando quadros de má nutrição, implica alterações de peso corpóreo28, porém, os diagnósticos de bulimia e anorexia não são mais considerados raros.

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A prevalência do uso inadequado do álcool em pacientes com bulimia varia de 9 a 49%. Entre pacientes com quadros alimentares associados ao consumo de bebi­ das, parece haver, ainda, comportamentos impulsivos, como automutilação, uso de drogas ilícitas ou uso inadequado de medicamentos28.

D ia g n ó st ic o Uma das dificuldades encontradas na realização do diagnóstico é a inespecificidade dos sintomas ou o fato de serem comuns tanto para o quadro produzido pela substância (ou pela falta dela) quanto para um quadro primário. Porém, um tratamento adequado só será possível após um diagnóstico mínimo. Para tanto, podem ser utilizados: anamnese e exames clínicos adequados, ques­ tionários padronizados, dados do prontuário e entrevistas aos profissionais que atendem ou atenderam o paciente, entrevistas familiares, análise de amostras de urina e cabelo. O diagnóstico adequado facilita a abordagem terapêutica e lança meios de formulação de estratégias de prevenção de recaída. Alguns aspectos a serem lem­ brados durante o diagnóstico: • História familiar e questões específicas sobre possíveis distúrbios psiquiá­ tricos. Estes dados devem ser colhidos junto ao paciente e também a fami­ liares e amigos. • Exames laboratoriais: devem ser incluídas as alterações típicas do consumo crônico de álcool, alterações metabólicas e detecção de drogas na urina; a escolha e seleção dos exames devem levar em consideração a história do indivíduo e o perfil do consumo de drogas. • Questionários padronizados e testes psicológicos para auxiliar no processo diagnóstico do tratamento. • Observação clínica: uma vez que o diagnóstico diferencial pode ser inviabilizado durante a fase de uso da substância, é de grande valia um período de desintoxicação no qual possa ser realizada a observação. A per­ sistência ou não de sintomas psiquiátricos após este período pode facili­ tar o correto diagnóstico. • Conhecimento adequado e aplicação dos critérios: a utilização do DSM-IV e da CID-10 é necessária para detecção das principais comorbidades asso­ ciadas à dependência química.

T r a ta m en to Por se tratar de uma população com diferente apresentação de sintomas e evo­ lução, muitos dos tratamentos propostos para pacientes sem comorbidade se mostram impróprios para os que possuem este diagnóstico. Muitos programas têm sido propostos para auxiliar na conscientização da necessidade da abstinên­ cia, adesão ao tratamento e reorganização de redes sociais12. Existe uma gama de programas propostos para estes pacientes. Alguns serviços seguem o modelo dos

12 Passos dos Alcoólicos Anônimos (A.A.); outros oferecem lares abrigados, entre outras opções, porém nenhum destes se mostrou superior36. Alguns importantes tópicos quanto ao tratamento: • A abordagem deve ser integrada e devem-se usar estratégias de manejo biopsicossocial. • Deve haver sinergismo, melhorando o quadro psíquico comum ao quadro de abuso de substâncias e redução do risco de recaídas, melhorando a qua­ lidade de vida. O tratamento seqüencial, isto é, iniciar sempre pelo quadro mais agudo ou fazê-lo de forma paralela, em diferentes settings (por exemplo, ambulatório de dependência química e hospital psiquiátrico, com duas equipes visando a patolo­ gias diferentes), parece ser menos eficaz.

Estratégias de Manejo Biopsicossocial 1. Ao escolher o melhor método de tratamento, deve-se considerar a combi­ nação específica da comorbidade e do estágio de motivação. 2. Observar se existe necessidade de tratamento farmacológico para o trans­ torno psiquiátrico, para a desintoxicação, a fase inicial de recuperação e a prevenção de recaída. 3. Técnicas psicossociais devem ser utilizadas na tentativa de aumentar a motivação, auxiliar na resolução de problemas e no manejo de situa­ ções difíceis. 4. Devem ser oferecidos apoio familiar e informação sobre o tratamento adi­ cional de apoio, como grupos fundamentados nos 12 Passos dos Alcoóli­ cos Anônimos e em outros grupos de auto-ajuda. 5. Fornecer apoio psiquiátrico para controlar os sintomas de mania e depres­ são, com ou sem ideação suicida.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s

2. 3. 4.

5.

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C A P ÍT U L O

Terapia Cognitiva S e l m a B o rd in N elia n a B u z i F

ig l ie

R o n ald o L a r a n jeir a

Existem mais de 20 terapias que têm sido chamadas de cognitivas ou cognitivo-comportamentais. Aqui nos referi­ mos à teoria, à terapia e aos modelos conceituais desenvol­ vidos por Aaron T. Beck e seus colaboradores. Embora seja \ chamada de cognitiva, existe, na verdade, uma ênfase so- ^ bre a interação entre cinco elementos: ambiente (incluindo / história do desenvolvimento e da cultura), biologia, afeto, \ comportamento e cognição.jíT termo cognitivo foi usado porque, na década de 1960 e no início dos anos 1970, a maior parte das terapias dava menos atenção a este aspecto do problema do que aos outros quatro elementos1. Há mais de 40 anos, a terapia cognitiva tem sofrido impor­ tantes mudanças. Nas formulações iniciais do modelo cognitivo, Beck estava mais interessado em compreender e tra- P; tar a depressão. Descreveu-a como sendo resultante de cren-f s ças negativas sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre o futuro (a tríade cognitiva). Essas crenças negativas influenciariam a forma como a pessoa deprimida recebia e processava infor­ mações. Erros cognitivos sistemáticos, baseados no processa­ mento disfimcional das informações, mantinham essas crenças e, em conseqüência, a depressão. Beck, Rush, Shaw e Emery desenvolveram uma terapia utilizando técnicas cognitivas e comportamentais, por meio das quais a pessoa deprimida era capacitada a identificar, avaliar objetivamente e mudar suas crenças negativas e, conseqüentemente, aliviar sua depressão. Beck e cols, adaptaram, então, a terapia cognitiva para o trata­ mento da ansiedade e de outros problemas psiquiátricos, in­ clusive a dependência química2.

1 8 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

A terapia cognitiva é um modelo estruturado, limitado no tempo e disponível tanto para grupos como para tratamento individual. Um curso típico deste tipo de terapia é de 12 a 20 sessões. No entanto, um tratamento de longo prazo pode ser recomendado para pacientes com sérias patologias. Após o período crítico da terapia, outras sessões podem ser conduzidas para fortalecer as habilidades de prevenção de recaída. Este modelo de tratamento dá ênfase a um relacionamento terapêutico ativo e colaborador, no qual terapeuta e paciente trabalham juntos para identificar os processos cognitivos e comportamentais associados aos problemas, a fim de me­ lhorar ou desenvolver habilidades e diminuir o risco de recaída. Uma sessão típica envolve breve atualização (humor, anuência às medicações, uso de drogas), uma ponte com a sessão anterior (assuntos mais importantes dis­ cutidos), pauta da sessão, revisão das tarefas estabelecidas na sessão anterior, discussão dos tópicos da pauta, indicação de nova tarefa, resumo dos pontos abor­ dados mais importantes e feedback dado pelo cliente3. Embora a terapia deva ser personalizada, alguns princípios estão por trás do trabalho com todos os pacientes3: • A terapia cognitiva baseia-se numa contínua formulação do paciente e de seus problemas em termos cognitivos. Conceitua as dificuldades em nível de pensamento, sentimento e comportamento; identifica os fatores précipitantes e levanta hipóteses sobre eventos-chave do desenvolvimento e padrões de interpretação duradouros. • A terapia cognitiva requer uma aliança terapêutica segura: cordialidade, empatia, atenção, respeito genuíno e competência. • A terapia cognitiva enfatiza a colaboração e a participação ativa: deve ser vista como um trabalho em equipe e o terapeuta deve ser mais ativo apenas no princípio. • A terapia cognitiva é orientada em metas e focalizada em problemas: nas sessões iniciais, enumeramos os problemas e estabelecemos metas e sub­ metas específicas para cada um deles. • A terapia cognitiva enfatiza o presente. A atenção volta-se para o passado em três circunstâncias: quando o paciente mostra forte predileção; quando o trabalho voltado para os problemas atuais produz pouca ou nenhuma mudança cognitiva e quando o terapeuta julga importante compreen­ der como e quando idéias disfuncionais se originaram e como afetam o presente. • A terapia cognitiva é educativa: visa ensinar o paciente a ser seu pró­ prio terapeuta e enfatiza a prevenção da recaída. O terapeuta estimula o paciente a registrar idéias importantes e o ensina a estabelecer metas, identificar e avaliar pensamentos e crenças e a planejar mudanças com­ portamentais. • A terapia cognitiva visa ter um tempo limitado. • As sessões de terapia são estruturadas independentemente do diagnóstico ou do momento do tratamento. Seguir um formato estabelecido torna o processo mais compreensível para o paciente e aumenta a probabilidade de ele ser capaz de fazer autoterapia no futuro.

Terapia Cognitiva " 1 8 9

• A terapia cognitiva ensina os pacientes a identificar, avaliar e responder a seus pensamentos e crenças disfuncionais por meio do questionamento socrático. • Aterapia cognitiva utiliza uma variedade de técnicas para mudar pensamento, | humor e comportamento. Embora o questionamento socrático e a descoberta orientada sejam centrais, técnicas de outras orientações (comportamental ou gestali) são também utilizadas, com base na formulação do caso.

C o n c eitu a ç ã o C o g n itiv a A terapia cognitiva se baseia numa compreensiva teoria de personalida­ de que dá ênfase à importância de crenças e processos de pensamentos na mediação de comportamentos, emoções e respostas fisiológicas2. A cognição é um pensamento ou uma imagem visual da qual podemos estar muito pouco cientes, a menos que focalizemos nossa atenção sobre ela. Caracteristicamente, uma cognição é uma avaliação de eventos, de qualquer perspectiva de tempo (passado, presente ou futuro), em geral vista como a representação factual da realidade; por isso, nela se crê e raramente se questiona sua validade4. O modelo cognitivo tem como hipótese que as cognições (percepção e inter­ pretação dos eventos) influenciam as emoções e os comportamentos dos indivíduos3. Não é uma situação por si só que influencia o que as pessoas sentem, mas sim o modo como elas interpretam tal circunstância3. Imagine a se­ guinte situação: duas pessoas que se conhecem estão andando pela mesma rua, mas em calçadas opostas. Uma delas vê a outra, que passa reto sem cumprimentá-la. Aquela que viu pode pensar de várias maneiras. Vide exem­ plos no Quadro 16.1:

Q uadro

16.1 - Influência da Interpretação sobre o Estado Emocional

Se e/a pensar

Ela se sentirá

"Fulano não gosta mais de mim"

Triste

"Será que eu fiz alguma coisa? E se ele não quiser mais falar comigo?"

Ansiosa

"Quem ele pensa que é para nem mesmo olhar para mim? Ele deveria ter me cumprimentado"

Com raiva

"Será que o fulano não me viu? Ou será que ele estava preocupado? 0 que será que aconteceu para ele não me cumprimentar?"

Com sua emoção normalizada

190 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química A “visualização induzida” é uma forma de demonstrar a relação entre pensa­ mento e afeto a nossos pacientes: pedimos a ele para imaginar uma cena desagra­ dável e nos falar sobre ela e sobre como se sente. Em seguida, pedimos a ele que imagine uma cena agradável e que descreva seus sentimentos. Tipicamente, o paciente é capaz de reconhecer que, mudando o conteúdo de seu pensamento, é capaz de alterar seu estado emocional4. O terapeuta cognitivo está particularmente interessado num determinado tipo de pensamento, que opera simultaneamente com o nível mais óbvio e superficial. Enquanto você está lendo este livro, pode perceber alguns níveis de pensamento: uma parte presta atenção ao texto, outra parte está tentando entender e integrar as informações, e existe uma outra parte que está fazen­ do avaliações rápidas. Esses últimos são chamados pensam entos autom áti­ cos, porque surgem automaticamente; são bastante rápidos, breves e não decorrentes de deliberação ou raciocínio3. É neles e nas crenças que o tera­ peuta cognitivo está interessado. Os pensamentos automáticos são a manifestação superficial de outros tipos de fenômeno cognitivo mais duradouros, fundamentais, globais, rígidos e supergeneralizados: as crenças. Todas as pessoas, começando na infância, de­ senvolvem determinadas crenças sobre si mesmas, sobre as outras pessoas e sobre o futuro. São entendimentos tão profundos que normalmente não são articulados conscientemente3. A pessoa do nosso exemplo anterior, que pensa “E se ele não gostar mais dé mim?” poderia ter a crença “Ninguém gosta de mim”. Essa crença pode estar ativada somente em determinadas situações ou na maior parte do tempo. Quando ativada, faz com que o indivíduo inter­ prete as situações pela sua lente, embora possam ser flagrantemente inverdades. Existe uma tendência de focalizarmos seletivamente as informa­ ções que confirmam nossas crenças, desconsiderando ou descontando aque­ las que forem contrárias. Desse modo, a crença se mantém, mesmo imprecisa e disfuncional3. A Figura 16.1 mostra-nos o modelo cognitivo.

Crenças ----------- ► Cogniçoes ----------- ► Emoções -------------► Comportamentos

Figura 16.1 - Modelo cognitivo.

Para se fazer terapia cognitiva, é preciso pensar como um terapeuta cognitivo. Uma construção cuidadosa e acurada da conceituação cognitiva possibilita ao terapeuta desenvolver um completo entendimento dos problemas do paciente e fornece a base para desenvolver uma estratégia de tratamento apropriada. As melhores técnicas podem ter pouco valor se aplicadas à pessoa errada ou de uma maneira errada2.

Terapia Cognitiva ■

C o n ceitu a çã o C o g n itiv a

do

A buso

de

191

S u bstân cias

O modelo cognitivo para abuso de substâncias foi desenvolvido ao longo de muitos anos e após numerosas observações e discussões com pacientes dependen­ tes químicos. Muitos estudos foram feitos até que se chegasse à hipótese cognitiva de abuso de substâncias. Aqui e em nossa discussão sobre o Modelo Cognitivo do Desenvolvimento do Abuso de Substâncias, baseamo-nos no trabalho de Liese e Franz2, sintetizado na Figura 16.2.

- O r -----------------í.

Estímulo eliciador

Crenças ativadas

Uso continuado ou recaída

Pensamentos automáticos

Foco em estratégias instrumentais

Craving, fissura

Crenças facilitadoras

Figura 16.2 - Modelo Cognitivo Básico de Abuso de Substâncias2.

Estímulo Eliciador Estímulos eliciadores são sugestões ou “gatilhos” muito próprios e particula­ res para determinado indivíduo. De fato, o que é eliciador para um pode ser total­ mente inócuo para outros indivíduos. No modelo cognitivo, um estímulo é considerado eliciador quando “dispara” crenças ou pensamentos automáticos re­ lacionados a drogas, levando ao cravingou fissura. O modelo cognitivo faz distinções entre sugestões internas e externas, úteis para facilitar a identificação das situações de risco. São exemplos de sugestões internas (que acontecem dentro do indivíduo) os estados de humor ou emoções, como ansiedade, depressão, ressaca, raiva, frustração, solidão, etc. Sugestões ex­ ternas (que acontecem fora do indivíduo) são, por exemplo, conflitos interpessoais, disponibilidade de drogas, sucesso na realização de determinado objetivo ou ta­ refa, um convite para o uso, uma festa, etc. É preciso levar em consideração o fato de que as drogas atuam como re­ guladores imediatos dos estados de humor. O álcool e os tranqüilizantes, por exemplo, produzem efeitos ansiolíticos imediatos. A cocaína, as anfetaminas, a nicotina e a cafeína produzem estimulação imediata. Apesar de muitos pa­ cientes poderem identificar as situações de alto risco como sendo externas (disponibilidade de cigarros, por exemplo), seu objetivo último é regular ou modular seu humor. Embora muitos pacientes referiram o uso de drogas para aliviar estados emocionais negativos, muitos outros as utilizam quando se

19 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

sentem bem: “celebram” com drogas porque acçeditam poder transformar um “bom” humor em um “excelente” humor. Ujtia característica muito im­ portante, que torna a terapia cognitiva bastante apropriada para o tratamento de abuso de substâncias, é o fato de que ela oferece estratégias cognitivas alternativas para a regulação do humor. I v

Crenças Ativadas

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As sugestões internas e externas ativam dois tipos dè^renças básicas rela­ cionadas a drogas: antecipatórias e de alívio. As crenças antecipatórias envol­ vem previsões de gratificações, de aumento de eficácia e de exaltação da sociabilidade, seguidos do uso da substância. Por exemplo: “Poderei curtir a noite inteira com algumas carreiras de pó” ou ainda “Tudo é mais divertido quando fumo um baseado”. Conforme as pessoas vão se tornando dependen­ tes, desenvolvem crenças a respeito de alívio que envolvem expectativas quanto a diminuir ou afastar estados emocionais ou físicos desagradáveis. Por exem­ plo: “Fumar me relaxa”; “Eu vou ficar muito irritado se não beber uma dose”. Dependentes químicos normalmente desenvolvem ambos os tipos de crença (antecipatórias e de alívio), apesar de uma ou outra poder ser mais saliente para determinado indivíduo.

Pensamentos Automáticos Como já havíamos visto, a ativação de crenças “dispam^pexisainentos auto­ máticos, os quais seriam versões abreviadas de suas crenças correspondentes. Por exemplo: se um indivíduo tem a crença de que é socialmente inadequado, seu pensamento automático pode ser “Se eu der um ‘tapa', vou ficar engraçado e as pessoas vão me aceitar”. Uma crença do tipo “Eu sou vulnerável, um fraco” pode ter como pensamento automático “Se eu cheirar uma carreira, vou me sentir bem”. Pensamentos automáticos podem tomar a forma de imagens mentais, como, por exemplo, a visualização de acender o primeiro cigarro do dia, a de virar a primeira cerveja ou a de tomar uma injeção de heroína. A ocorrência de pensamentos automáticos leva ao craving ou fissura.

Craving

ou Fissura

O craving ou fissura manifesta-se como sensações físicas, de forma similar à fome ou sede. Muitas vezes, inclusive, os pacientes referem estar “sedentos" de um drinque ou “morrendo” por uma tragada. A intensidade do craving varia de indivíduo para indivíduo. Quanto mais pensamentos se tem sobre o uso, mais a fissura aumenta. Muitos indivíduos em estágio inicial de abstinência experienciam severos cravings porque ficam “ruminando”pensamentos sobre usar a droga, ao mesmo tempo em que resistem a isso.

Terapia Cognitiva « 1 9 3

Crenças Facilitadoras O termo crenças facilitadoras é sinônimo de “permissão”. Normalmente, en­ volve minimização de conseqüências e justificativas, com cognições distorcidas que levam o usuário a ignorar os efeitos negativos das substânciasí Por exemplo: “Só um cigarro não vai me matar” (minimização); “Hoje tive um dia muito difícil, mereço um gole” (justificativa). Indivíduos que estão buscando mudar seus com­ portamentos relacionados ao uso de substâncias muito provavelmente têm cren­ ças facilitadoras como “Apenas mais um” ou “Logo eu vou parar”. Estas crenças podem minar a habilidade do indivíduo em tolerar a fissura. Quanto mais forte for a crença facilitadora, maior será a probabilidade de o indivíduo sucumbir à fissura. Indivíduos com crenças facilitadoras “fracas” têm maior resistência ao craving. Uma crença facilitadora forte seria, por exemplo, “Ninguém morre por fumar um cigarro”; uma crença fraca seria “Talvez eu possa fumar apenas um”.

Foco em Estratégias Instrumentais Desenvolver um plano de ação é essencial para adquirir drogas. Após o indiví­ duo ter se permitido usá-las, sua atenção se concentrará em como consegui-las. As estratégias para isso são muito variadas e dependem da substância a ser utili­ zada e da pessoa que o fará. Se a droga for nicotina, a estratégia é simples: “Vou comprar cigarros (na padaria)”. Já para obter drogas ilícitas, as estratégias podem ser difíceis, complicadas ou arriscadas (ir a uma favela).

Uso Continuado ou Recaída Seguindo a implementação das estratégias instrumentais, muito provavè^mente o indivíduo utilizará sua droga de escolha. Os lapsos ou deslizes, que são eventos isolados e independentes, podem variar de um único “trago” em um cigarro até uma completa festa que dure a noite inteira. Qualquer uso de substância pode se tornar um estímulo eliciador para a continuação do uso. Os lapsos podem deflagrar estados emocionais negativos (depressão decorrente da inabilidade para ^bsterse), conflitos interpessoais (uma briga com a esposa) ou pressão social para o uso (encontrar-se com antigos companheiros de uso). Estas condições podem colo­ car o indivíduo sob risco de uma recaída total, na medida em que se vir preso num círculo vicioso de uso e auto-recriminação. Estes episódios também podem confirmar determinadas crenças (“Eu sou um fraco mesmo”) e contribuir para o desenvolvimento de novas crenças facilitadoras (“Já que eu usei um pouco, posso muito bem continuar usando”, “Agora já foi mes­ mo...”). Este tipo de pensamento “tudo ou nada” é encorajado por mitos e clichês como “Um drinque, um bêbado”. Por esse motivo, os teóricos da terapia cognitiva sugerem total abstinência como meta de tratamento de indivíduos dependentes de substâncias psicoativas. Os pacientes que conseguiram alcançar a abstinência muito provavelmente de­ senvolverão novas crenças de controle, como “Eu posso sobreviver sem isso”.

1 9 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Quando os pacientes não podem alcançar êxito, entretanto, estes teóricos acei­ tam uma meta de redução de danos, em que o uso de substâncias é visto em continuum, num processo de “degrau a degrau” e não de “tudo ou nada”.

Modelo CoGNmvo do Desenvolvimento do Abuso de Substância ; Os ambientes familiares, sociais, culturais e financeiros da primeira infância jsão centrais na formação das crenças de determinado indivíduo. Experiências |negativas levam a crenças negativas, que tornam o indivíduo vulnerável aos proj blemas com substâncias. Experiências positivas, ao contrário, levam a crenças ypositivas, que aumentam a resistência do indivíduo a estes problemas. Uma expe­ riência negativa seria, por exemplo, um ambiente onde há prevalência de álcool ou de drogas* Exemplos de experiências positivas seriam, por exemplo, pais que utilizam as substâncias de maneira responsável, relacionamentos interpessoais seguros e suporte familiar. /Ás crenças não estão, inicialmente, relacionadas às substâncias, e sim à visão qiáe o indivíduo tem de si mesmo, do mundo, das outras pessoas e do futuro. Con­ forme se inicia o uso de substâncias como estratégia compensatória (uma forma encontrada para “resolver” o problema), vão se formando crenças relacionadas às drõgas, que se associam às crenças disfuncionais anteriores. Por exemplo: “A vida é uà\ tédio” é uma crença disfuncional básica. “Tomar uns tragos é um ótimo jeito de e ^ a r o tédio” é uma crença relacionada ao álcool e está associada à crença anteriót^Ambas tornam o indivíduo vulnerável ao uso e aos problemas com subs­ tâncias. Uiyia crença básica positiva, como “Meu futuro é promissor”, associada à crença secundária “As drogas não levam a lugar algum'*, fortalece o indivíduo contra o uso e os problemas com drogas. O desenvolvimento de problemas com uso de substâncias requer, obviamen­ te, exposição e experimentação de drogas, e muitos indivíduos o fazem em sua juventude, especialmente com álcool, tabaco e maconha. A decisão de se engajar nesses comportamentos é provavelmente influenciada pelas crenças individuais. / Assim, por exemplo, um jovem que se sinta inseguro ou não amado pode estar vulnerável à pressão dos colegas para se engajar no uso, para não se arriscar a ser ridicularizado ou rejeitado. Indivíduos guiados por crenças sobre perfeccionismo podem estar vulneráveis ao “poder” de drogas como cafeína, nicotina, cocaína ou I anfetaminas, que podem melhorar suas habilidades. Indivíduos que não acreditam [ em sua capacidade de lidar com sentimentos dolorosos ou situações difíceis são Jmais vulneráveis a substâncias de efeitos ansiolíticos, como o álcool, os cal­ mantes e a maconha. Com o uso continuado, as crenças relacionadas às drogas tornam-se mais ar­ raigadas, salientes e acessíveis. Conforme são ativadas por um número sempre crescente de estímulos, vão se tomando mais e mais disponíveis e automáticas. Os indivíduos dependentes são apanhados por um círculo vicioso de uso de dro­ gas e crenças reforçadoras, que fazem com que eles “escalem” o comportamento de abuso. A Figura 16.3 mostra o Modelo Cognitivo de Desenvolvimento do Abuso de Substâncias.

Terapia Cognitiva " 1 9 5

Dificuldades familiares, sociais, culturais e/ou econômicas.

“Eu não tenho valor”; “Minha situação nunca vai melhorar"; “Não posso suportar a dor”.

Amigos que usam e encorajam o uso; familiares que usam substâncias.

“Me divirto mais quando uso drogas”; “A droga me faz forte/comunicativo”

As crenças se tomam mais salientes e acessíveis.

Estímulo eliciador

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Uso continuado ou recaída

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Figura 16.3 - Modelo Cognitivo do Desenvolvimento do Abò^o de Substâncias2.

T ra tan d o D epen d en tes Q u ím ico s

c o m /T er a pia

C o g n itiv a

A terapia cognitiva para abuso de substâncias tjefti os seguintes componentes essenciais: relacionamento terapêutico colaborativo, conceituação cognitiva do caso, estrutura e técnicas cognitivo-comportamentais.

Relacionamento Terapêutico Colaborativo Tradicionalmente, os terapeutas consideram difícil trabalhar com um pa­ cientes que abusa de substâncias. Há sempre o risco de ele abandonar a terapia prematuramente, e a aliança terapêutica pode ser prejudicada por baixo com­ prometimento, desonestidade e pelas crenças disfuncionais desse paciente a respeito da terapia. Estes comportamentos requerem alto nível de habilidades do profissional.

196 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química O relacionamento aberto, respeitoso e colaborativo entre paciente e terapeuta aumenta a probabilidade de o paciente permanecer engajado no tratamento. Muitas intervenções da terapia cognitiva aumentam a colaboração, incluindo o estabelecimento da agenda e ofeed b a ck áo paciente à terapia. Quando o terapeuta utiliza estas intervenções de maneira eficaz, diminui a probabilidade de o paciente se sentir ameaçado e aumenta a probabilidade de ele participar abertamente da terapia. Mediante alguma desonestidade do paciente, é muito importante que o tera­ peuta explore sua visão, seus pensamentos, suas crenças e atitudes com relação ao terapeuta e à terapia2. Uma das mais importantes barreiras à colaboração são as próprias crenças e os pensamentos automáticos do terapeuta em relação aos pacientes. A ativação de tais crenças e pensamentos leva o terapeuta a ter sentimentos negativos em relação a seus pacientes2. Por exemplo: “Usuários de drogas são todos iguais” “Lapsos e recaídas são catastróficos” “Esse paciente é o típico dependente” “Depois da desintoxicação, todos eles recaem novamente” “Ele pensa que eu sou estúpido” “É perda de tempo” É importante reconhecer quais comportamentos dos clientes ativam estes pensamentos e crenças, examina-los e modificá-los. Normalmente, mas nem sem­ pre a falta às consultas, o uso daí substância, a desonestidade, a superficialidade e a atitude defensiva desempenham papel ativador2. Diante da ocorrência destes comportamentos, o terapeuta dçve refleti-los ao próprio paciente, direta e objeti­ vamente, em vez de ceder a seü§ pensamentos disfuncionais, que acarretarão comportamentos de confrontação ou de indiferença. “Parece que seu compro­ misso com a terapia se desfez”, por exènmlo, é uma maneira de refletir ao paciente suas últimas faltas às consultas. Se o pacietttefor receptivo, devem-se explorar as crenças e os pensamentos subjacentes.

Conceituação Cognitiva do Caso A conceituação cognitiva do caso é a base sobre a qual o terapeuta desen­ volve e implementa as estratégias de tratamento apropriadas. Uma concei­ tuação cognitiva do caso integra informações pessoais sobre o paciente, seu desenvolvimento (ver Cap. 14) e seu perfil cognitivo. Este último consiste em informações a respeito dos estímulos que ativam o comportamento de uso de substâncias, as crenças relacionadas às drogas, os pensamentos automáticos e as crenças facilitadoras. Também inclui informações sobre as crenças básicas do paciente. O perfil cognitivo pode ser sintetizado numa representação visual do modelo cognitivo (Fig. 16.4), disponível com espaços em branco a serem preenchidos pelo terapeuta em conjunto com o paciente2.

Terapia Cognitiva « 1 9 7

* Espaços a serem preenchidos

Figura 16.4 - Modelo Cognitivo do Abuso de Substâncias2.

Estrutura A estrutura é essencial para a terapia cognitiva, principalmente no caso de usuários de^kqgas, que freqüentemente têm uma vida instável ou caótica2. Após a avaliação iniciàlNdo paciente, temos a primeira sessão, que, em sua estrutura, é um pouco diferentedas demais sessões. Esta sessão tem a seguinte estrutura: de­ finição da agenda; verificação do humor; revisão do problema apresentado e iden­ tificação de problemas e metas da terapia; educação do paciente sobre o modelo cognitivo; levantamento\e correção das expectativas com relação à terapia; edu­ cação do paciente sobre o seu transtorno; resumo final da sessão, definição da tarefa de casa e, por último, o feedback. A estrutura da segunda e das demais ses­ sões é um pouco mais simples: verificação do humor; resumo da sessão anterior; definição da agenda; revisão da tarefa de casa; discussão dos itens da agenda, com resumos periódicos; definição de nova tarefa de casa; resumo final efeedback?. • O primeiro passo numa sessão de terapia cognitiva é a definição da agenda. Uma agenda é uma lista finita de tópicos sobre os quais se falará durante essa sessão. Sem ela, a discussão provavelmente seria improdutiva. Ela en­ coraja o paciente a uma colaboração ativa e contribui para a criação de um senso de responsabilidade e controle durante as sessões. Também contri­ bui para ajudar o paciente a aprender a identificar e a priorizar seus proble­ mas e suas metas2. Por exemplo: o terapeuta diz, na primeira sessão: “Eu gostaria de começar a nossa sessão estabelecendo a agenda, decidindo so­ bre o que nós falaremos hoje. Faremos isso no começo de cada sessão para nos assegurar de ter tempo para cobrir as coisas mais importantes. Eu te­ nho alguns itens que gostaria de sugerir e então perguntarei a você o que gostaria de acrescentar. Está ok?... Nossa primeira sessão será um pouco diferente das sessões futuras, porque nós temos muito chão a percorrer e precisamos nos conhecer melhor. Primeiro, eu gostaria de verificar como você tem se sentido, o que trouxe à terapia e o que espera dela. Está ok até aqui? Também gostaria de explicar como essa terapia funciona. No final, resumirei o que falamos e pedirei seu feedback- o que você achou da sessão... Tem alguma coisa que você gostaria de acrescentar ao roteiro de hoje?”3 É preciso estar atento às dificuldades do paciente em definir a agenda. O terapeuta precisa encorajá-lo a fazê-lo. Se a dificuldade persistir, ela pró-

1 9 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

pria poderá ser colocada como item da agenda: “Parece difícil, para você, definir os itens da agenda; vamos colocar isso como item a ser discutido e tentar entender o porquê da dificuldade”. Freqüentemente, os pacien­ tes colocam na agenda itens que são irrelevantes quanto a seu consumo de drogas. O terapeuta astuto saberá escolher aqueles assuntos que le­ vam potencialmente ao uso das substâncias: dificuldades financeiras, solidão, depressão, ansiedade, problemas de relacionamento, etc. É muito importante perguntar ao paciente sobre fissuras, uso da substância e si­ tuações de alto risco e, dessa forma, ir habituando-o a colocar estes itens na agenda regularmente. Se ele não os colocar na agenda, o terapeuta deverá fazê-lo2. • A avaliação do humor tem como objetivo ajudar o terapeuta a ter uma rápi­ da idéia de como o paciente se sentiu na semana anterior e, ao longo das sessões, do progresso do paciente3. Como sabemos, as drogas se relacio­ nam com o humor de várias maneiras: podem ser estímulos ativadores ou resultado de uso crônico. Alguns pacientes podem ter dificuldade em iden­ tificar seu estado de humor, e a avaliação semanal pode ser uma ótima opor­ tunidade para aprender a fazê-lo. Para isso, se necessário, o terapeuta pode oferecer uma lista de emoções para que o paciente tente expressar o que sentiu por meio de uma delas1. Além de seu relatório subjetivo, podemos incluir escores objetivos: questionários de auto-relato objetivos e inventá­ rios de depressão e ansiedade são muito úteis. Se não estiverem disponí­ veis, convém estabelecer com o cliente uma classificação em escalas (de 0 a 100, por exemplo)3para seu humor. • Revisar brevemente o problem a presente e obter uma atualização (desde a avaliação). Isso é feito apenas na primeira sessão. Por exemplo: terapeuta: “Ok, estabelecemos a agenda e verificamos seu humor. Se estiver ok, gostaria de me certificar se entendi por que você veio à terapia. Li o resumo inicial (avaliação) e parece que... estou certo?” Nesse momento, é útil ajudar o paciente a focalizar e separar os problemas em segmentos mais manejáveis3. • Na segunda e nas demais sessões, fazemos um resumo da sessão anterior, também chamado de “ponte” entre as sessões. O propósito deste item é uma breve verificação da percepção e do entendimento do paciente a respeito da sessão anterior. Saber que será indagado motiva o paciente a se preparar para a sessão, pensando sobre a terapia durante a semana. Se o paciente não se recordar do que houve, pode-se sugerir a ele que anote brevemente o conteúdo das sessões3. A “ponte” provê continuidade e ajuda o paciente a se assegurar de que pontos importantes não estão sendo esquecidos. Pode­ mos perguntar apenas o que ele achou de importante na sessão anterior. Também podemos perguntar de que maneira ele utilizou o Modelo Cognitivo de Abuso de Substâncias desde a semana anterior, permitindo ao paciente e ao terapeuta um refinamento da conceituação do caso. Assuntos impor­ tantes que surgirem neste momento e que precisarem de maior discussão deverão ser colocados na agenda2. • Revisão da tarefa de casa - Esse item é verificado a partir da segunda ses­ são. Estudos sugerem que os pacientes que fazem tarefa de casa regular-

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// mente melhoram mais do que os pacientes que não a fazem. Revisar a tarefa reforça o comportamento e expressa o valor do trabalho entre as sessões. Se não for revisada, o paciente começa a acreditar que ela não é importante3. Se algum tópico relevante surgir nesse momento, deverá ser colocado na agenda. Na primeira sessão, temos como itens da agenda (trazido pelo terapeuta) a identificação de problemas e o estabelecimento de metas. Junto com o paciente e com base na queixa principal e em todos os outros dados trazidos e levan­ tados, estabelecemos os objetivos a serem alcançados com a terapia, incenti­ vando-o a participar do processo e a anotar as metas em caderno adequado3. Aqui se devem incluir as metas relacionadas ao uso de substâncias e à sua vida em geral (aspectos fortalecedores da abstinência ou uso controlado). Discussão dos itens da agen da-N a maioria das vezes, o terapeuta pergun­ ta ao paciente qual item ele gostaria de discutir primeiro, o que lhe dá a oportunidade de ser mais ativo, assertivo e de assumir mais responsabili­ dade. Quando julgamos que algum dos itens surtirá mais resultado, con­ vém que assumamos a liderança3. Priorizar os itens da agenda garante que os mais importantes sejam discutidos. Os itens relacionados às drogas devem ter prioridade. É importante manter-se focado para evitar a ten­ dência de pular de um assunto para o outro, e isso pode ser feito resumindo e revisando os assuntos da agenda2. “Já falamos sobre os assuntos tal e tal. Agora vamos falar sobre tal?” Resumos periódicos- O terapeuta faz dois tipos de resumo ao longo da ses­ são. O primeiro tipo é um breve sumário ao término de uma parte da sessão (agenda, verificação do humor, discussão do primeiro item, etc.), para que ambos tenham entendimento claro do que acabaram de fazer. O segundo tipo tem relação com o conteúdo do que o paciente falou: o terapeuta resume a essência das declarações, assegurando-se de que identificou corretamen­ te o que é mais problemático para o paciente e utilizando, sempre que pos­ sível, as palavras dele3: “Você estava considerando a possibilidade de parar de fumar até que pensou ‘não serei capaz de suportar a vontade’. Foi quando você desistiu. É isso mesmo?”. Educar o paciente sobre o modelo cognitivo - O objetivo, aqui, é ensinar o paciente a ser seu próprio terapeuta cognitivo, ou seja, a compreender e manejar seus processos cognitivos e comportamentais3, o que inclui ajudálo a desenvolver pensamentos e crenças que inibam o uso da droga. Nesse ponto, deve-se, em linguagem adequada, explicar-lhe os pressupostos teó­ ricos da terapia cognitiva, utilizando-se de seus próprios exemplos3 e do Modelo Cognitivo para Abuso de Substâncias, orientando-o no preenchi­ mento de cada uma das partes. Um erro comum é tentar ensiná-lo antes de ter uma substancial conceituação cognitiva, pois o paciente terá dificuldades de relacionar os conceitos à sua própria vida2. Identificar expectativas do paciente em relação à terap ia- Muitos pacien­ tes vêm para a terapia acreditando que se trata de algo místico ou incom­ preensível. O terapeuta deverá, então, enfatizar que esse tipo de terapia é ordenado e racional e que os pacientes melhoram porque entendem a si

200 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química









mesmos, resolvem problemas e aprendem fundamentos (ferramentas) que podem aplicar para resolver, superar, enfrentar ou prevenir situações em suas vidas3. Educar o paciente sobre seu transtorno - A maioria dos pacientes deseja conhecer seu diagnóstico geral e saber que seu terapeuta já ajudou outros como ele antes. É preferível evitar rótulos de diagnósticos e utilizar-se de algo mais geral e livre de jargões. É, também, desejável dar ao paciente alguma informação inicial sobre seu transtorno para que ele possa come­ çar a atribuir alguns dos seus problemas ao seu transtorno e, por meio disso, reduzir a autocrítica3. Prover um resumo - Assim como os breves resumos que o terapeuta deve fazer ao fim de cada item, o resumo final une e reforça os pontos importan­ tes. À medida que a terapia progredir, o terapeuta deverá encorajar o paciente a fazer, ele mesmo, o resumo da sessão3. Estabelecer as tarefas de casa - Essas tarefas deverão ser expressas em termos comportamentais, ser claras, objetivas, mensuráveis, ter por base a problemática do paciente e relacionadas com os itens discutidos3. Repre­ sentam oportunidades de o paciente testar novas habilidades e crenças disfuncionais. É importante que o terapeuta explique o sentido das tarefas, pois, quanto mais o paciente compreender, mais ele investirá nesse item2. Também importante é evitarmos atividades muito extensas ou cansativas6. Exemplos de tarefas comumente sugeridas: registrar os cravings, manter-se abstêmio, analisar os pensamentos automáticos ocorridos durante o craving, descobrir e percorrer rotas alternativas, ir ao culto/à missa, etc. Obter o feedback - Pedir feedback fortalece o rapport e transmite a mensa­ gem de que o terapeuta se importa com aquilo que o paciente pensa. Tam­ bém é uma oportunidade de ela se expressar e de corrigir possíveis mal-entendidos. Perguntar ao paciente se houve algo que o incomodou dá a ele a oportunidade de verbalizar e ao terapeuta de tirar conclusões3.

Técnicas Cognitivo-Comportamentais Milhares de técnicas podem ser consideradas cognitivas e comportamentais. Na terapia cognitiva de abuso de substâncias, a principal meta é utilizar técnicas que minem as crenças relacionadas às drogas e que as substituam por crenças de controle. A maioria destes pacientes, como vimos, é ambivalente quanto ao uso de drogas, ou seja, tem crenças de controle que contradizem as crenças relacionadas ao uso. As crenças de controle reduzem a probabilidade do uso. Exemplos de cren­ ças de controle incluem “Fumar e beber estão me matando”, “Eu preciso parar de usar drogas” ou “Eu não preciso de drogas para me divertir” Na fase ativa do uso, as crenças de controle não são suficientemente fortes para predominar sobre as outras. Logo, as técnicas são escolhidas de forma a debilitar as crenças de uso e a fortalecer as de não uso2. A seguir, descreveremos algumas das principais técnicas da terapia cognitiva, que consideramos importantes no tratamento de nossa população-alvo.

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Descoberta Orientada ou Questionamento Socrático É uma técnica fundamental na terapia cognitiva. O terapeuta faz ao pa­ ciente perguntas de final aberto, que são formuladas para avaliar e examinar objetivamente a relação entre crenças, pensamentos automáticos, emoções e comportamentos. O importante, aqui, não é responder às perguntas corre­ tamente, mas estimular o autoconhecimento e o pensamento independente. Pela descoberta orientada, o paciente pode explorar hipóteses formuladas durante a conceituação cognitiva do caso2. As perguntas constituem impor­ tante e poderosa ferramenta para identificar, considerar e corrigir pensamentos e crenças. Se não forem utilizadas adequadamente, o paciente poderá se sentir num interrogatório ou colocado numa armadilha4. O processo de questio­ namento deve ser diretivo, empático e encorajar a exploração de pensamen­ tos automáticos e erros cognitivos, gerando formas alternativas de pensamento em resposta a estímulos ativadores. De maneira geral, os pacientes preferem esta técnica a ler, orar ou confrontar2. É importante tentar extrair o que o paciente está pensando, e não o que acreditamos que ele esteja pensando\ Um exemplo: Paciente: “Eu não tenho absolutamente nenhum autocontrole.” Terapeuta: “Com base em que você diz isso?” P: “Alguém me convidou para fumar (maconha) e eu não consegui recusar.” T: “Você vinha fumando diariamente?” P: “Não, foi só desta vez.” T: “Você fez algo para recusar durante a semana?” P: “Bem, eu não cedi à tentação de pedir para minha irmã cada vez que eu a via acendendo um baseado. Foi só essa vez.” T: “Se você contasse todas as vezes em que se controlou e as vezes em que cedeu, que resultado acha que conseguiria?” P: “Umas 20 para 1.” T: “Se você se controlou 20 vezes e não se controlou apenas uma vez, isso seria um sinal de que você é absolutamente fraco?” P: “Acho que não. Não mesmo (ri).”

Identificação de Crenças Relacionadas ao Uso e de Crenças de Controle Como vimos no tópico sobre conceituação cognitiva, podemos dar a nossos pacientes o Modelo Cognitivo do Abuso de Substâncias para que, juntos, preen­ chamos os espaços em branco com os estímulos ativadores, as crenças, os pensa­ mentos, etc. Uma vez que tenhamos completado e alcançado bom entendimento do uso que ele faz de substâncias, podemos pedir ao paciente que use o mesmo processo para identificar crenças de controle, pensamentos e comportamentos, utilizando-se do Modelo Cognitivo de Controle2. Reproduzimos o original na Figura 16.5 e na Figura 16.6 exemplificamos seu preenchimento.

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Figura 16.5 - Modelo Cognitivo de Controle2.

Figura 16.6 - Exemplificação do Modelo Cognitivo de Controle2.

Identificação de Distorções Cognitivas A identificação e a descrição das distorções cognitivas comuns associadas a exemplos concretos da vida do paciente são altamente eficazes para a compreensão do modelo cognitivo e para intervenções adequadas. Distorções cognitivas são erros sistemáticos no pensamento que mantêm a crença do paciente na vali­ dade de seus conceitos negativos, apesar da presença de evidências contraditórias4. As principais são: • Supergeneralização: refere-se ao padrão de extrair uma regra geral ou con­ clusão com base em um ou mais incidentes isolados e aplicá-la indiscrimi­ nadamente4. Com esse erro cognitivo, o paciente parece estar dizendo: “Se aconteceu uma vez, irá acontecer em qualquer situação que for seme­ lhante”. “Se eu escorreguei e dei um trago, não serei capaz de evitar escor­ regar novamente”5.

Terapia Cognitiva ■ 2 0 3

• Abstração seletiva: consiste em focalizar um detalhe extraído do contexto, ignorar outras características mais salientes da situação e conceituar a ex­ periência toda com base neste fragmento4. Por exemplo, um paciente com seis meses de abstinência que deu um trago num cigarro de maconha e que passou a acreditar que todo seu tratamento e esforços de recuperar-se tinham sido em vão. • Catastrofização: consiste em erros de avaliação da importância ou magni­ tude de um evento4. Com este erro, os pacientes antecipam o pior. Um pa­ ciente, por exemplo, estava convencido de que, depois de tomar uma cerveja, voltaria a ser um drogado sem casa, que perambularia de bar em bar e ter­ minaria morrendo na rua. • Pensamento dicotôm ico: manifesta-se pela tendência de colocar todas as experiências em uma entre duas categorias opostas4: tudo ou nada, sempre ou nunca, preto ou branco, péssimo ou excelente; impecável ou defeituoso; imaculado ou imundo; santo ou pecador. Este paciente ora julga que está fazendo “tudo” pela abstinência, ora que não está fazendo absolutamente “nada”.

Reatribuição Um padrão cognitivo comum envolve atribuir incorretamente a si mesmo a culpa ou responsabilidade por eventos adversos. A técnica da reatribuição é particularmente útil com pacientes propensos a auto-incriminação exces­ siva e/ou que assumem a responsabilidade por qualquer ocorrência adversa. O terapeuta pode eleger combater as cognições do paciente de várias manei­ ras: (1) revisando os “fatos” que resultam em autocrítica; (2) demonstrando os diferentes critérios que o paciente utiliza para atribuir responsabilidade a si mesmo e aos outros (duplo-padrão); ou (3) desafiando a crença de que o paciente é “100 por cento” responsável por quaisquer conseqüências negati­ vas. O termo des-responsabilizar também foi aplicado a esta técnica. O ponto \ não é absolver o paciente de toda a responsabilidade, mas definir a infini­ dade de fatores que contribuem para uma experiência adversa. Obtendo objetividade, além de o paciente tirar de si o peso da auto-incriminação, também poderá buscar modos de resgatar situações ruins e de prevenir uma recorrência4.

Avaliação de Prós e Contras A avaliação de prós e contras, ou vantagens e desvantagens, é um importante instrumento para a tomada de decisões. Usuários de drogas normalmente focam os benefícios do uso e minimizam as conseqüências negativas. Esta técnica tem dois objetivos: (1) possibilitar ao paciente uma visão e avaliação dos efeitos ad­ versos, comparando-os aos efeitos positivos; e (2) identificar as vantagens que vê na continuação do uso, possibilitando a busca de alternativas mais saudá­ veis. Muitas vezes, esta análise motiva o paciente para a abstinência; outras

2 0 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

vezes, não2. Além disso, esta técnica pode auxiliar o paciente a tomar qualquer outro tipo de decisão em sua vida. É comum encontrarmos pacientes com difi­ culdades em tomar decisões3. A análise começa com o Quadro 16.2, que deverá estar em branco. As va­ riáveis m anter o uso versus abstinência podem ser substituídas por outras, que revelam aspectos da dúvida do paciente, como, por exemplo: mudar versus não mudar de emprego, estudar versus não estudar, afastar-se ou não se afastar de fulano, etc. Utilizando a descoberta orientada, o terapeuta deve ajudar o paciente a pre­ encher o quadro, listando as vantagens e desvantagens de usar e não usar dro­ gas nos respectivos espaços em branco, até que todos estejam completos2. É muito importante que o terapeuta fique atento à possibilidade de o paciente subestimar ou superestimar as desvantagens de parar, processo que normalmente inclui sintomas de abstinência, craving, aumento dos sintomas depressivos e ansiosos, perda dos efeitos desejáveis da substância, mudança de amigos e rela­ cionamentos, etc. Em geral, as vantagens superam as desvantagens e ajudam o paciente a tomar uma decisão. Podemos ajudá-lo variando as perguntas: “De que você gosta na droga?” “De que não gosta?” “De que você gosta em si mesmo usando a droga?” “E não usan­ do?” “De que você não gosta em si mesmo quando usa?” “E quando não usa?” Se o paciente tiver dificuldades em visualizar os efeitos negativos, podemos tornar as perguntas mais objetivas: “Que conseqüências negativas (e positivas) o uso traz para a família?” “E para o trabalho?” “E para sua saúde?” “E para o relaciona­ mento com amigos? A seguir, devemos ajudá-lo a avaliar os itens colocados. Isso pode ser feito pe­ dindo-se ao paciente que pese cada um dos itens e que sublinhe (ou circule) os mais importantes3. Utilizando novamente a descoberta orientada, devemos ajudálo a tirar conclusões do exercício. Também importante é procurar aumentar a probabilidade de o paciente utili­ zar esta técnica novamente, valendo-se de perguntas: “Você achou útil esse pro­ cesso de relacionar e pesar as vantagens e desvantagens?” “Você pode pensar em

Q u a d ro 1 6 .2 - Inventário de Vantagens e Desvantagens Abstinência Vantagens

Desvantagens

Manter o Uso

Terapia Cognitiva ■ 2 0 5

outras situações em que poderia fazer a mesma coisa?” “Como poderá se lembrar de fazer isso da mesma maneira?”3.

Registro de Pensamentos Disfuncionais O registro dos pensamentos disfuncionais ajuda o paciente a analisar, objetivamente, aqueles pensamentos e sentimentos que têm potencial de levá-lo ao uso de drogas1. É um formulário que consiste de cinco colunas: situação, pensamento automático, emoção, resposta adaptativa e resulta­ do (Quadro 16.3). Alguns pacientes o usam de forma bastante consistente. Outros, apesar dos melhores esforços do terapeuta, não conseguem ou não estão dispos­ tos a escrever seus pensamentos e raramente o utilizam. Os pacientes ten­ dem a utilizá-lo quando é adequadamente apresentado, demonstrado e praticado3. Tendo identificado uma situação problemática, primeiro o terapeuta ajuda o paciente a identificar os pensamentos automáticos específicos e as emoções as­ sociadas apenas por meio do questionamento verbal, sem o formulário, para evi­ tar confundi-lo3. Uma situação pode ser um fato (uma pessoa o convida para usar drogas), um pensamento (preciso dormir), uma recordação ou uma sensação física. O pensa­ mento automático pode ocorrer na forma de palavras ou imagens. Por exemplo: a situação é o pensamento “Preciso dormir e não quero beber”. O pensamento automático, nesta situação, é “E se eu não conseguir dormir sem um drinque?”; a emoção é ansiedade. Quando o paciente conclui de maneira satisfatória as primeiras três colu­ nas, com pouca ou nenhuma assistência na sessão terapêutica, podemos, de forma colaborativa, estabelecer a tarefa de casa: “Como você se sentiria com relação a tentar preencher as primeiras quatro colunas algumas vezes esta se­ mana, como tarefa de casa?”3. Uma vez que o paciente tenha dominado esta parte, passamos a ensiná-lo a preencher as duas últimas colunas. O primeiro passo, agora, é ajudá-lo a avaliar seu pensamento automático, a princípio ver­ balmente. Isso é feito utilizando-se as seguintes perguntas, que constam no final do formulário3. 1. Quais são as evidências de que o pensamento automático é verdadeiro? 2. Quais são as evidências de que o pensamento automático não é ver­ dadeiro? 3. Existe uma explicação alternativa? 4. Qual é a pior coisa que poderia acontecer? Eu poderia superar isso? 5. Qual é a melhor coisa que poderia acontecer? 6. Qual é a avaliação mais realista? 7. Qual seria o efeito de mudar o pensamento? 8. O que eu deveria fazer em relação a isso? 9. O que eu diria a um amigo se ele estivesse na mesma situação?

206

Q u a d ro 1 6.3 -

Registro de Pensamento Disfuncional - Copyright 1 9 9 5 , por Judith Beck3 Pensamento Automático

1. Que evento real, 1. fluxo de pensamen­ tos, devaneios ou recordações leva­ ram à emoção desa­ 2. gradável? 2. Qual (se houver) sen­ sação física aflitiva você teve?

Que pensamento(s) ou imagem(ns) passou pela sua cabeça? Quanto você acredita em cada um no momento?

Emoção 1. Que emoção(ões) tristeza, ansiedade, raiva-você sentiu no momento? 2. Quão intensa (0 a 100%) foi sua emoção?

Resposta Adaptativa 1. (Opcional) Que distorção cognitiva você realizou? 2. Use as perguntas abaixo para compor uma resposta ao(s) pensamento(s) automático 3. Quanto você acredita em cada resposta?

Resultado 1. Quanto você acredita agora em cada pen­ samento automático? 2. Que emoção(ões) você sente agora? Quão intensa (0 a 100%) é a emoção? 3. O que você fará (ou fez)?

Perguntas para ajudar a compor uma resposta alternativa: 1. Quais são as evidências de que o pensamento automático é verdadeiro? 2. Quais são as evidências de que o pensamento automático não é verdadeiro? 3. Existe uma explicação alternativa? 4. Qual é a pior coisa que poderia acontecer? Eu poderia superar isso? 5. Qual é a melhor coisa que poderia aconte­ cer? 6. Qual é a avaliação mais realista? 7. Qual seria o efeito de mudar o pensamento? 8. O que eu deveria fazer em relação a isso? 9. O que eu diria a um amigo se ele estivesse na mesma situação?

■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Situação

Terapia Cognitiva ■ 2 0 7

Nem todas estas perguntas são úteis para todas as situações. Às vezes, ne­ nhuma parece ser útil, e o terapeuta deve assumir uma abordagem diferente3. Mas, para efeito de aprendizagem e para demonstrar ao paciente como é feito, convém utilizá-las. Uma vez compreendido o formulário, pede-se ao paciente que escreva nele suas respostas. A seguir, o terapeuta poderia solicitar ao paciente que praticasse o registro de pensamentos disfuncionais novamente, com outro pen­ samento automático, e estabelecer uma tarefa para casa3. Vamos voltar ao nosso exemplo, em que a situação era o pensamento “Pre­ ciso dormir e não quero beber”. O pensamento automático, nesta situação, era “E se eu não conseguir dormir sem tomar um drinque?" e a emoção era a ansie­ dade. O Quadro 16.4 mostra o formulário preenchido por este paciente, com ajuda do terapeuta.

Monitoramento de Atividades e Agendamento Este instrumento visa prover os pacientes com uma “agenda” onde pos­ sam registrar suas atividades semanais e, com ajuda do terapeuta, examinar este calendário com relação às situações de alto risco. Também é utilizado para planejar atividades futuras, maximizando as situações de baixo risco (Tabela 16.1). Em sessões seguintes, o formulário preenchido é utilizado para avaliar o sucesso do paciente na implementação das mudanças. O sucesso nesta atividade contribui para as sensações de satisfação e de auto-eficácia do paciente, promovendo também o desenvolvimento de crenças de controle e de comportamentos funcionais2.

Resolução de Problemas Em associação aos problemas com álcool e drogas, os pacientes apresen­ tam muitos problemas na vida real, que são indagados pelo terapeuta na pri­ meira sessão e colocados na lista de problemas ou traduzidos em metas positivas. Em cada sessão, o paciente é encorajado a colocar na agenda pro­ blemas que surgiram durante a semana ou que, segundo sua crença, poderão surgir nos próximos dias. Embora inicialmente o terapeuta possa assumir um papel mais ativo em sugerir soluções possíveis, deve encorajar o paciente a fazer uma ativa resolução de problemas por si mesmo à medida que a terapia progredir3. Muitos pacientes apresentam deficiências nestas habilidades e, freqüen­ temente, se beneficiam de instruções sobre como especificar um proble­ ma, como projetar soluções, como selecionar uma dentre várias soluções, sobre como implementá-la e avaliar sua eficácia. Outros pacientes têm essas habili­ dades, mas precisam de ajuda para testar suas crenças disfuncionais, que im­ pedem essa resolução. Um instrumento útil que pode ser utilizado é o Relatório de Resolução de Problemas3 (Quadro 16.5). Uma vez encontradas as soluções, elas deverão tornar-se tarefas de casa, escritas em termos comportamentais e checadas na sessão posterior.

208

Q u a d ro 1 6 .4 - Registro de Pensamento Disfuncional. Copyright 1995, por Judith Beck, PH.D.3 Pensamento Automático Emoção

Resposta Adaptativa

Resultado

1. Que evento real, fluxo de pensamentos, devaneios ou recordações levaram à emoção desagradável? 2. Qual (se houver) sensação física aflitiva você teve?

1. Que pensamento(s) ou imagem(ns) passou pela sua cabeça? 2. Quanto você acre­ dita em cada um no momento?

1. (Opcional) Que distorção cognitiva você realizou?

1. Quanto você acredita agora em cada pensamento automático?

Pensando que eu precisava dormir e não queria beber

E se eu não conseguir dormir sem tomar um drinque?

1. Que emoção(ões) tristeza, ansie­ dade, raiva você sentiu no momento? 2. Quão intensa (0 a 100%) foi sua emoção? Ansiedade 90%

2. Use as perguntas abaixo para compor uma resposta ao(s) pensamento(s) automático(s) 3. Quanto você acredita em cada resposta?

2. Que emoção(ões) você sente agora? Quão intensa (0 a 100%) é a emoção? 3. O que você fará (ou fez)?

A/a verdade, já dormi outras vezes sem ter bebido antes. Se eu ficar na cama, provaveimente uma hora dormirei, como aconteceu outras vezes. A qualidade de meu sono nunca é boa quando durmo, logo, não descanso direito. Outra ex­ plicação para minha dificuldade de dormir é a ansiedade de não conseguir dormir 0 pior que poderia acontecer é eu demorar para dormir. Eu poderei superar isso após algumas noites e com orientação do meu médico. 0 melhor que poderá acontecer é eu dormir rapidamente. 0 mais realista é pensar que posso ter alguma dificuldade inicial, mas que será superada com algum tempo Acreditar no pensamento me deixa ainda mais ansioso Mudando meu pensamento eu relaxo e aumento minhas chances de dormir mais rapidamente Eu deveria apenas me deitar, conversar com Deus e só pensar em coisas tranqüilas e agradáveis

h P.A. 50% 2. Ansiedade 40% 3. Vou me deitar sem beber

Perguntas para ajudar a compor uma resposta alternativa: 1. Quais são as evidências de que o pensamento automático é verdadeiro? 2. Quais são as evidências de que o pensamento automático não é verdadeiro? 3. Existe uma explicação alternativa? 4. Qual é a pior coisa que poderia acontecer? Eu poderia superar isso? 5. Qual é a melhor coisa que poderia acontecer? 6. Qual é a avalia­ ção mais realista? 7. Qual seria o efeito de mudar o pensamento? 8. O que eu deveria fazer em relação a isso? 9. 0 que eu diria a um amigo se ele estivesse na mesma situação?

■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Situação

Terapia Cognitiva ■ 2 0 9

Tabela 16.1 - Tabela de atividades - Copyright 1995, por Judith S. Beck3

Horas

Dia 1

Dia 2

Dia 3

Dia 4

Dia 5

Dia 6

Dia 7

6-7 7-8 8-9 9-10 10-11 11-12 12-1 1-2 2-3 3-4 4-5 5-6 6-7 7-8 8-9 9-10 10-11 11-12 12-1 1-2 2-3 3-4 4-5 5-6

Q u a d ro 16.5 - Relatório de Resolução de Problemas - Copyright 1993, por

Judith S. Beck3 Nome do paciente: Data: Problema:

Significado especial (pensamentos automáticos e crenças):

Resposta ao significado especial:

Soluções possíveis:

210

■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Veja um modelo preenchido com um exemplo no Quadro 16.6:

Q u a d ro 16.6 - Relatório de Resolução de Problemas - Copyright 1993, por

Judith S. Beck3 Nome do Paciente: ANDRÉ Data: 11/2 Problema Abordar uma garota Significado especial (pensamentos automáticos e crenças) Eu não sou capaz, ela não vai gostar de mim e vai me rejeitar, só conseguirei se estiver "louco" Resposta ao significado especial: Eu sou competente e atraente o suficiente para interessar a uma garota. Não saberei se ela se interessará por mim até que eu me aproxime. Mesmo que ela me rejeite, nada de mal acontecerá. Vivi sem ela até hoje e posso continuar a viver bem apesar disso, Posso fazer isso de cara limpa Soluções possíveis - Aproximar-me gradualmente - Aprender com colegas experientes como abordar uma garota - Treinar com garotas inexpressivas

Cartões de Enfrentamento Cartões de enfrentamento são cartões de 8 x 13 cm, preparados anteriormente, que o paciente mantém consigo e é encorajado a ler regularmente (três vezes ao dia ou sempre que for necessário, de forma a integrar a informação a seu pensamento). Podem assumir várias formas, como as exemplificadas a seguir3. O cartão de enfren­ tamento número 1 é uma resposta adaptativa a um pensamento automático negativo e é indicado àqueles pacientes que não conseguem avaliar os pensamentos aflitivos.

Q u a d ro 16.7 - Cartão3 de Enfrentamento 1 Lado 1 - Pensamento automático: Eu não consigo parar de fumar Lado 2 - Resposta adaptativa Eu poderia sentir que não consigo fazer isso, mas isso pode não ser verdade. Muitas vezes, no passado, eu consegui ficar sem fumar. Quando fiquei no hospital, ao lado de minha esposa, que acabara de ter nosso bebê, me mantive horas sem fumar. Quando estou no escritório também sou capaz de ficar várias horas sem fumar. Isso significa que posso ficar sem fumar esse cigarro também. É muito prazeroso fumar. Mas também é prazeroso olhar para mim mesmo e dizer: "Consegui!! Sinto-me mais forte e feliz a cada cigarro que não fumo. Além disso, tantas pessoas foram capazes de parar de fumar; por que eu não conseguiria? Elas não são melhores que eu!!! Pensamentos negativos apenas abalam minha convicção. Eu deveria continuar testando a idéia de que sou capaz de parar de fumar

Terapia Cognitiva ■ 211

Cartões com estratégias de enfrentamento devem conter algumas técnicas para o paciente experimentar quando se encontrar em alguma situação difícil. Ao criar esse cartão, o terapeuta deverá estimular o paciente a se lembrar de estratégias que foram discutidas em sessões, que já foram experimentadas com sucesso ou que, segundo ele, podem funcionar. O cartão de enfrentamento nú­ mero 2 é um exemplo deste tipo de cartão.

Q u a d ro 1 6 .8 - Cartão3 de Enfrentamento 2 Estratégias para quando estiver com craving 1. 2. 3. 4. 5.

Fazer um registro do pensamento automático disfuncional Ler os cartões de enfrentamento Revisar minhas anotações de terapia Ligar para meu terapeuta ou um amigo Ir ao parque correr, colocando meu troféu mental no final do circuito e comemorar

O cartão de enfrentamento número 3 é utilizado para ajudar o paciente a se motivar para algum comportamento. Assim como os outros, esse cartão também é desenvolvido de forma colaborativa entre paciente e terapeuta. Deve-se ter em mente, no momento de sua confecção, que o objetivo é identificar, prever e responder aos pensamentos automáticos disfimcionais que poderiam inibir seu comportamento.

Q uadro 1 6 .9

- Cartão3 de Enfrentamento 3 Quando eu desejo recusar um drinque

1. Relembrar a mim mesmo que é o que quero e o melhor para mim 2. O pior que pode acontecer é que aquele que o ofereceu pode se ofender e me achar indelicado 3. Se ele se ofender, é porque não sabe o quanto aquele drinque pode me prejudicar 4. Mesmo que ele nunca mais me convide para sair, e daí? Acho que não terei perdido grande amigo, já que ele só queria companhia para beber 5. Dizer não àquilo que me é prejudicial é um ótimo treinamento para mim

Exposição Graduada Para atingir determinada meta, em geral, é necessário executar algumas me­ didas ao longo do caminho. Focalizar o próximo passo é mais fácil do que foca­ lizar o caminho todo. Uma representação gráfica dos passos a serem dados para se atingir a meta normalmente tranqüiliza o paciente. Em geral, deve-se sugerir ao paciente que comece com uma atividade mais simples, associada à baixa

212 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química ansiedade, e que pratique esse passo até que a ansiedade tenha se reduzido signi­ ficativamente. Quando isso ocorrer, o passo seguinte na hierarquia poderá ser ten­ tado até que possa ser realizado com tranqüilidade, e assim sucessivamente. É muito importante ter em mente que devemos sempre facilitar as chances de sucesso do paciente, pois isso contribuirá muito para sua motivação e sensação de auto-eficácia. Esta técnica poderá ser utilizada em várias situações que podem funcionar como “gatilho” para o comportamento de uso. Vamos retomar o exem­ plo do rapaz que tinha medo de se aproximar das garotas. Uma das soluções apon­ tadas no Relatório de Resolução de Problemas, no Quadro 16.6, foi a de se aproximar gradualmente. A Figura 16.7 exemplifica como isso poderia ser feito. Pedir seu telefone Conversar Aproximar-se Acenar para a garota Sorrir para a garota Olhar para a garota

Figura 16.7 - Modelo da Exposição Graduada.

Role Play (Dramatizações) As dramatizações podem ser utilizadas para muitos propósitos, incluindo a identificação de pensamentos automáticos, o desenvolvimento de respostas, a modificação de crenças e para aprender e praticar algumas habilidades sociais3. Normalmente, o terapeuta participa da dramatização representando algum papel na cena a ser dramatizada.

R e f e r ê n c ia s B ib l io g r á f ic a s 1. DATTILÍO, F. M., PADESKY, C. A. Terapia Cognitiva com Casais. Trad. D. Batista. Porto Ale­ gre: Artes Médicas, 1995. 143p. 2. LIESE, B. S., FRANZ, R. A. Treating substance use disorders with cognitive therapy: lessons learned and implications for the future. In: SALKOVSKIS, P. M. Frontiers o f Cognitive Therapy. New York: The Guilford Press, 1996. p. 470-508. 3. BECK, J. S. Terapia Cognitiva - teoria e prática. Trad. S. Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. 348p. 4. BECK, A. T. et al. Terapia Cognitiva da Depressão. Trad. S. Costa. Porto Alegre: Artes Médi­ cas, 1997. 316p. 5. REINECKE, M. A., DATTILÍO, F. M., FREEMAN, A. Terapia Cognitiva com Crianças e Adoles­ centes - manual para a prática clinica. Trad. M. R. Hofmeister. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 312p.

CA PÍTU LO

1

/

Motivação S elm a B ordin N elian a B uzi F

ig lie

R onaldo L aranjeira

Apalavra motivaçãove m da raiz latina que significa “mover(-se) ” e é uma tentativa de compreender o que nos movi­ menta ou por que fazemos o que fazemos. É uma série inferida de processos que fazem com que uma pessoa se mova em direção a um objetivo específico1. Na área das dependências, até alguns anos atrás, a mo­ tivação era vista como um traço da personalidade do indi­ víduo dependente, que negava grande parte dos problemas que enfrentava. Esse traço seria o resultado de uma falha em seu desenvolvimento emocional e, portanto, a melhor abordagem terapêutica seria quebrar suas resistências para que ele pudesse enxergar a realidade2. A prática clínica vi­ nha adotando uma perspectiva que via a motivação como algo relativamente imutável: ou o paciente está motivado ou não está motivado. Se estivesse, o terapeuta teria um pa­ pel na vida desse paciente; se não, o tratamento não seria possível3. Nos últimos anos, o conceito de motivação rece­ beu grande atenção na área das dependências. A entrevista motivacional, técnica que estudaremos no Capítulo 18, re­ sulta de uma nova forma de conceber a motivação. Miller, seu principal expoente, postula que “a motivação é um es­ tado de prontidão ou de avidez para a mudança, que pode oscilar de tempos em tempos ou de uma situação para a outra e que é passível de ser influenciado”4. Um modelo útil do processo de como a mudança ocorre foi desenvolvido pelos psicólogos americanos James Prochaska e Cario DiClemente4. No início dos anos 1980, eles analisaram a literatura sobre as várias teorias que ex­ plicavam como as pessoas mudavam comportamentos

2 1 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

dependentes e chegaram ao que denominaram modelo “transteórico”, ou seja, um modelo que não dependia de nenhuma teoria específica, mas de uma com­ binação de idéias que visava propiciar um modelo para ação2. Esse modelo tem como base os conceitos de motivação enquanto um estado de prontidão ou von­ tade de mudar e de mudança enquanto um processo com diferentes estágios3. O modelo de Prochaska e DiClemente reconhece o papel central do paciente no processo de mudança e descreve os estágios que podem ser aplicados tanto no entendimento do comportamento de ingestão quanto no tratamento5. São cinco os estágios descritos: pré-contemplação, contemplação, preparação, ação e manutenção. Inicialmente, esses estágios foram descritos por meio da metáfora de uma porta giratória, substituída pelos autores por uma espiral, que, segundo eles, melhor ilustra como a maioria das pessoas se move pelos estágios de mu­ dança (Fig. 17.1). Este modelo também contempla a recaída e a reentrada do in­ divíduo no estágio da pré-contemplação mais de uma vez antes de chegar ao fim do problema1. Essas idéias são úteis no aconselhamento em geral, uma vez que clientes com ampla variedade de problemas passam pelos estágios de mu­ dança da mesma maneira que as pessoas com problemas com álcool e drogas6. Entretanto, a categorização separada dos vários estágios talvez seja supersimplificada e artificial, e o modelo deve ser visto como um modelo de mudança ideal, que pode ajudar no planejamento das intervenções5. A Figura 17.1 apre­ senta o modelo em espiral dos estágios de mudança. Os indivíduos parecem necessitar de diferentes tipos de abordagem, de­ pendendo do estágio de prontidão em que se encontram. De maneira geral, os clientes nos estágios mais iniciais do processo necessitam de mais suporte motivacional do que aqueles que estão nos estágios mais avançados do pro­ cesso de mudança7.

Figura 17.1 - Espiral dos Estágios de Mudança de Prochaska e DiClemente.

Motivação ■ 2 1 5

P ré - co n tem pla çã o ' É o primeiro estágio, e nele a pessoa sequer considera a mudança, uma vez que não encara seu comportamento como problemático. As pessoas, aqui, po­ dem procurar os serviços de tratamento por estarem sendo pressionadas por um parceiro, pela família, pelo empregador ou por seu médico5. Os indivíduos nesse estágio podem permanecer nele por anos7.0 fato de não pensarem em mudar seu comportamento num futuro próximo talvez se deva à crença de que os benefícios do uso compensam um possível e eventual custo e à minimização dos aspectos negativos do uso de drogas, em virtude da falta de informação, da falta de insight ou da negação pura e simples2: "Prefiro prejudicar o funcionamento do meu fígado a viver entediado”. Uma pessoa nesse estágio necessita de informação e de feedback para tomar consciência de seu problema e da possibilidade de mudança. Atarefa do terapeuta diante de um paciente em pré-contemplação é levantar dúvidas para aumentar a percepção desse paciente quanto aos riscos e problemas do comportamento atual4, levando-o ao estágio seguinte, o da contemplação. Também é recomendável78: • Estabelecer rapport; pedir permissão para falar sobre o assunto, construir confiança. 0 estilo de aconselhamento adotado pelo profissional pode afe­ tar o padrão de uso dos clientes: conselheiros que utilizam a abordagem empática de não confrontar ou competir, que utilizam o bom humor e o otimismo são mais bem-sucedidos que aqueles conselheiros que utilizam a abordagem de confronto, argumentativa, incrédula ou sarcástica. Conse­ lheiros experientes, autoridades no assunto (álcool, drogas e seus efeitos), competentes no uso das intervenções e flexíveis têm mais probabilidade de manter o paciente em contato com o tratamento. • Explorar o significado dos eventos que trouxeram o paciente ao serviço ou os resultados de tratamentos anteriores. • Obter as percepções do paciente a respeito do problema7. Mudanças repen­ tinas, que alteram o balanço entre as vantagens e desvantagens do compor­ tamento de uso de álcool ou drogas, podem desencadear a mudança do estado motivacional do paciente para o tratamento. Doenças inesperadas, falecimento de pessoas importantes, divórcio, nascimento de filhos, etc. são exemplos destas situações. Porém, mais importantes que os eventos em si são as interpretações que o paciente faz deles. • Eliciar, ouvir e reconhecer os aspectos do uso da substância que agradam ao paciente. • Evocar dúvidas ou preocupações a respeito do uso da substância. A mudança do estágio da pré-contemplação para a contemplação ocorre quando se ins­ tala o conflito a respeito do comportamento de uso. Isso acontece quando não há coerência entre os pensamentos e o comportamento: pensamentos de saú­ de, controle e responsabilidade entram em conflito com o comportamento de beber em demasia, por exemplo. O terapeuta deve auxiliar o paciente a estabe­ lecer conexões entre os acontecimentos de sua vida e o comportamento de uso; a exacerbar o conflito entre “o que eu faço” e “o que eu quero” e a mudar seus pensamentos a respeito de seu comportamento e da substância.

2 1 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

• Oferecer informação factual a respeito dos riscos do uso de substâncias. • Prover/mibacfcpersonalizado sobre os resultados da avaliação diagnostica, comparando-os com as normas, informando sobre os prejuízos existentes • ou prováveis caso mudanças não sejam feitas. • Ajudar uma pessoa significativa para o paciente a intervir. • Examinar as discrepâncias entre as percepções do cliente e as de outras pes­ soas a respeito do problema. • Recomendar ao paciente que se trate. • Expressar preocupação com os problemas do paciente e manter as portas abertas, demonstrando interesse em manter contato, têm mostrado melho­ ras nas taxas de retenção dos clientes nos serviços. Usuários de álcool e drogas em pré-contemplação raramente são vistos em ambientes de tratamento, em virtude da reação negativa que em geral encontram. Devemos lembrar que estes pacientes não estão motivados a parar de usar álcool ou drogas e que somente vão permanecer no serviço se perceberem que temos algo útil a lhes oferecer. Conselhos sobre os riscos do álcool e do uso de drogas serão úteis para pacientes que resolveram mudar, mas serão evitados por aqueles que querem continuar a beber ou a usar drogas. Informações sobre as deficiências de tiamina provocadas pela ingestão de álcool, por exemplo, serão úteis para aque­ les que querem continuar a beber mas também querem evitar prejudicar seu sistema nervoso central8. Alguns fatores referentes à organização também contam muito para o processo de encorajar o paciente a aderir ao serviço: as condições da acomodação, atenção a detalhes e um curto tempo de permanência na sala de espera são exemplos de atitudes que carregam a mensagem de que o paciente tem valor, de que seu tempo tem valor. Obviamente, estes pontos se aplicam a todos os pacientes, mas assumem um significado ainda mais relevante para o paciente resistente e desconfiado8. As mudanças desencadeadas pelos eventos da vida ou pelo processo de ama­ durecimento do indivíduo ocorrem primeiramente num nível cognitivo e, depois, num nível comportamental8. No entanto, está aumentando o número de pacien­ tes que estão sendo encaminhados para tratamento por meio de medidas coercitivas como mandatos judiciais, ameaças de divórcio ou demissões, numa tentativa de forçar mudanças no comportamento, antecipando as mudanças cognitivas que as sustentam8. Essas situações representam um grande desafio para os terapeutas, pois, para ocorrerem, as mudanças requerem um compromisso advindo de pres­ são interna (e não externa)7.0 papel do terapeuta será o de dar ênfàse aos resulta­ dos positivos da mudança e aos resultados negativos do comportamento anterior, bem como de explorar novas maneiras de resolver antigos problemas8.

C o n tem plação O estágio seguinte à pré-contemplação é chamado de contemplação. Os pa­ cientes, neste estágio, têm conhecimento da conexão entre seus comportamen­ tos e os problemas a eles associados6, fazem uma avaliação de custo versus

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Motivação ■ 2 1 7

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benefício mais realista, e a possibilidade de considerar alguma mudança está mais presente2. Nesse momento, eles ainda não se comprometeram a agir e poderão per­ manecer no estágio por muito tempo se não resolverem sua dúvida em relação à mudança5. Eles “pensam” mais do que “agem”8. O contemplador considera a mu­ dança, ao mesmo tempo em que a rejeita. É o ponto do processo em que a ambivalência está no seu ápice e precisa ser trabalhada para possibilitar um mo­ vimento rumo à decisão de mudar3. Muitos podem até decidir não mudar e man­ ter o padrão de uso da substância; outros podem continuar contemplando a mudança e esperando o “momento certo” para agir8. Se deixarmos um contemplador livre para falar sem interferências, provavel­ mente ouviremos uma pessoa dividida entre os motivos de preocupação e as jus­ tificativas para a despreocupação, numa forma de vaivém, semelhante à seguinte4: “Eu não acho que realmente tenha um 'problema' com a bebida. Provavel­ mente eu bebo demais, mas não bebo mais do que meus amigos bebem. Às vezes, eu me sinto mal na manhã seguinte, e me preocupa quando não consigo me lem­ brar de coisas de vez em quando. Mas não sou alcoolista. Posso parar de beber quando eu quiser e não sinto falta do álcool”. É comum as pessoas virem à consulta no estágio da contemplação e é aqui que a entrevista motivacional, que veremos no Capítulo 18, é especialmente útil. Quando a balança da decisão se inclina em direção à mudança, de quando em quando podemos ouvir nosso paciente dizendo coisas como “Eu preciso fazer algo em relação a esse problema”; “Isso é sério! Alguma coisa tem que mudar”; “O que eu posso fazer? Como posso mudar?”4. A tarefa do terapeuta, neste estágio, é ajudar o paciente a inclinar a balança em favor da mudança, por meio da evocação das razões para mudar e dos riscos de não se mudar, bem como a fortalecer sua sensação de auto-eficácia4. Processos que ajudem o paciente a aumentar sua consciência ou a catarse (expressão de emo­ ções ou sentimentos) são os mais utilizados nessa fase. A catarse pode ser a ponte entre a contemplação e a determinação para a ação. Da mesma forma, uma expe­ riência emocional, como uma briga com a esposa ou com um grande amigo, pode precipitar a mudança. Enquanto as técnicas comportamentais são mais adequa­ das aos pacientes que já se comprometeram com a mudança, conversar com o paciente é o mais importante para prepará-lo para a ação8. 0 terapeuta que iniciar com estratégias apropriadas para o estágio da ação (o próximo na espiral) neste ponto provavelmente provocará a resistência do paciente4. A maioria dos pacientes que procura por tratamento neste estágio está disposta a conversar a respeito de seus problemas e busca confirmação de sua capacidade de resolvê-los. De modo geral, estes pacientes são receptivos a artigos, livros, folders e material educativo sobre álcool e drogas. Apesar desta disposição, haverá inaçãoWé que ocorram mais insights. A angústia de se perderem as recompensas associadas ao uso será um importante obstáculo à mudança8. Muitos pacientes se movem para o estágio da contemplação com base no re­ conhecimento de fatores externos. Identificar motivos próprios, intrínsecos, os ajudará a se mover para o estágio da ação. O uso da balança de decisão ajuda os pacientes a considerarem os aspectos positivos e negativos do uso de substâncias. Obviamente, o propósito último desta técnica é ajudá-los a reconhecer e pesar os

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aspectos negativos do uso de substâncias e concluir pelos benefícios da mudança de comportamento. Isso pode ser feito da seguinte maneira7: • • • • •

Resumir as preocupações do paciente. Explorar prós e contras do comportamento de uso. Normalizar a ambivalência do paciente. Discutir novamente os resultados das avaliações anteriores. Examinar a compreensão do paciente a respeito da mudança e as expec­ tativas do tratamento. • Reexplorar os valores do paciente em relação à mudança.

Por meio desse processo, dá-se ênfase às opções pessoais do paciente, res­ ponsabilizando-o pela mudança. A tarefa do terapeuta é ajudá-lo a fazer escolhas que representem seus melhores interesses, e isso pode ser feito pela exploração e definição de metas. Estabelecer metas fortalece o compromisso com a mudança7, mas isso só poderá ser feito se o paciente parecer pronto para tanto quando as preocupações foram eliciadas: “Parece que você está preocupado com seu uso de álcool/drogas. O que fará, então? Que caminho tomará?”4. A duração do estágio da contemplação dependerá da natureza, intensidade, duração e severidade dos problemas do paciente e das habilidades do conselheiro. O profissional qualificado fará acurada avaliação das necessidades do paciente e evitará aplicar procedimentos estereotipados. Nem todos os pacientes, por exem­ plo, responderão positivamente às tentativas do terapeuta de prover informações escritas ou ao estilo “professor”8. Identificar o nível deste estado de disposição é um desafio para o terapeuta8.

P reparação Uma vez trabalhada a ambivalência, a pessoa pode passar para o estágio da preparação, no qual ela está pronta para mudar e compromissada com a mudan­ ça3; um plano a ser implementado a curto prazo é formulado, podendo incluir busca de ajuda especializada e/ou desintoxicação6. Se, durante esse tempo, a pes­ soa entrar em ação, o processo de mudança continuará. Do contrário, ela voltará à contemplação4, uma vez que o reconhecimento das importantes discrepâncias em sua vida é muito desconfortável para durar muito tempo. Os seguintes sinais nos ajudam a identificar a prontidão do paciente para agir4,7: • A resistência do paciente, isto é, as argumentações, negações, interrupções ou objeções diminuem. • O paciente faz menos perguntas a respeito do problema, parecendo ter in­ formações suficientes. Existe uma sensação de conclusão. • O paciente mostra várias soluções e pode parecer mais pacífico, calmo, relaxado, aliviado ou acomodado. • Ele faz afirmações automotivacionais, refletindo o reconhecimento de um pro­ blema (“Acho que isso é sério”), preocupação (“Isso me preocupa”), abertura para a mudança (“Preciso fazer algo”) e otimismo (“Vou vencer esta batalha”).

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• Faz mais perguntas a respeito do processo de mudança (o que pode fazer ou como as pessoas mudam). • Começa a falar sobre como a vida pode ser depois da mudança, a antecipar dificuldades que surgiriam se uma mudança fosse feita ou a discutir as van­ tagens de mudar. • Ele pode ter feito alguma tentativa de mudança, como, por exemplo, ir a uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, parar de usar a substância por al­ guns dias, ou ler um livro de auto-ajuda. De modo geral, o papel do terapeuta, neste estágio, é de aumentar a responsa-, bilidade do paciente pela mudança e ajudá-lo na elaboração de um plano de ação3 específico, optando pela linha de ação melhor, mais aceitável, acessível, ade­ quada e eficaz4. ' Ao trabalharmos com pacientes neste estágio, devemos7: • Deixar claras as metas do paciente e as estratégias para a mudança. • Discutir as diversas opções de tratamento e os recursos disponíveis que aten­ dam as múltiplas necessidades do paciente. • Aconselhá-lo, com a sua permissão. • Negociar uma mudança, plano de tratamento ou contrato de comportamen­ to, levando em consideração a intensidade e a qualidade da ajuda necessária; a disponibilidade de suporte social, identificando quem, onde e quando; a seqüência de pequenos passos ou degraus necessários para o sucesso; e múltiplos problemas, como questões legais, financeiras ou de saúde. • Considerar e diminuir as barreiras para a mudança, antecipando possíveis problemas familiares, de saúde e outros. • Ajudar o paciente a enumerar o suporte social, como, por exemplo, grupos, igrejas ou centros recreacionais. • Explorar as expectativas do tratamento e o papel do paciente. • Anunciar seus planos de mudança publicamente para as pessoas significa­ tivas em sua vida. Alguns cuidados precisam ser tomados nessa fase. O primeiro deles é não subes­ timar a ambivalência que, na grande maioria das vezes, ainda acompanha o paciente nesta fase. O segundo é não prescrever o que o paciente precisa fazer, mas perguntar o que ele quer fazer, no momento em que estiver no ápice da consciência do proble­ ma. Por outro lado, não podemos correr o risco de oferecer pouca orientação, por meio de uma abordagem totalmente não-diretiva, que poderá deixar o paciente atrapalhado4. Veremos essas questões mais detalhadamente no próximo capítulo.

A ção O estágio da ação é o que as pessoas mais freqüentemente pensam ser o aconselhamento ou a terapia. Nesse estágio, o paciente se engaja em ações es­ pecíficas para alcançar uma mudança4. Essas mudanças de comportamento po­ dem ser das mais variadas: o indivíduo pode tentar diminuir o consumo por si

220 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química mesmo, pode conversar com alguém importante (um familiar, por exemplo) so­ bre o seu problema ou procurar um tratamento especializado2. A maioria das pessoas que deixa de fumar, por exemplo, o faz por conta própria, sem trata­ mento de nenhum tipo4. Porém, freqüentemente, as pessoas precisam de consi­ derável apoio e encorajamento5, e a terapia pode ser um meio de se assegurar do cumprimento do plano de ação para ganhar auto-eficácia e criar condições ex­ ternas para a mudança3. O objetivo, durante esse estágio, é produzir uma mudança em alguma área-problema4. A ênfase do terapeuta deve ser firmar e aprofundar a decisão8. Atingir uma mudança, entretanto, não garante que ela será mantida. As experiências humanas estão repletas de boas intenções e mudanças iniciais, seguidas de pequenos (lap­ sos) ou grandes (recaídas) passos para trás4. Se o paciente sustenta ações bemsucedidas por 3 a 6 meses, se move para o próximo estágio, o da manutenção6. Muitos pacientes, e mesmo terapeutas, acreditam que as intervenções motivacionais não são mais necessárias neste ponto, o que não é verdade, por algu­ mas razões. Primeiro, porque os pacientes ainda podem precisar de muito suporte e encorajamento para se manterem em determinado programa de tratamento ou para sustentarem os ganhos que alcançaram após medidas de ação bem-sucedi­ das. Segundo, porque a ambivalência ainda se mantém neste estágio, entre con­ templar e continuar a agir, porém, de forma muito sutil. Além disso, aqueles pacientes que de fato implementam alguma mudança repentinamente encaram a realidade de interromper ou de reduzir o uso da substância, o que é mais difícil do que ape­ nas contemplar tal possibilidade (pensar em fazer é mais fácil do que fazer)7. Os pacientes, neste estágio, podem ser ajudados de maneira mais eficaz quando os terapeutas7: • Engajam-nos no tratamento, mantendo uma boa aliança terapêutica; in­ duzindo-os a assumir seu papel no processo; explorando e corrigindo as expectativas com relação ao tratamento; alertando-os sobre as futuras e nor­ mais situações desconfortáveis que encontrarão; investigando e resolven­ do as barreiras para o tratamento; aumentando a coerência entre os fatores motivacionais externos e internos; examinando e interpretando os com­ portamentos não complacentes num contexto de ambivalência; demons­ trando contínuo interesse e preocupação pessoal. • Reforçam a importância de se permanecer em recuperação. • Dão suporte a uma visão realista da mudança, a qual ocorre par mei© de pequenos passos. • Reconhecem suas dificuldades iniciais. • Ajudam-nos a identificar as situações de alto risco, através de análise funcio­ nal e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento apropriadas. • Ajudam-nos a encontrar novos reforçadores para as mudanças positivas. • Avaliam a consistência das famílias e o suporte social.

M an u ten çã o Aqueles pacientes que tiverem sucesso na sua tentativa de mudar entrarão no estágio de manutenção e poderão, eventualmente, chegar ao término. No entanto,

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é mais provável que eles recaiam e, tipicamente, passem pelos estágios várias vezes antes de atingir a manutenção a longo prazo1. Este é o estágio de se tentar integrar o novo comportamento à sua vida em geral, mantendo a direção escolhida. Atentação gradualmente decresce e a evitação do comportamento de uso vai se tornando menos central na vida do paciente6. A manutenção de uma mudança pode exigir um conjunto de habilidades e estraté­ gias diferentes das que foram necessárias, num primeiro momento, para a obten­ ção da mudança. Largar uma droga, reduzir o consumo de álcool ou perder peso é um passo inicial, seguido do desafio de manter a abstinência ou a moderação. O papel do terapeuta, neste estágio, é, basicamente, o de ajudar o paciente a iden­ tificar e a utilizar estratégias de prevenção de recaída4. Seu sucesso será maior se7: • Ajudar os pacientes a identificarem várias fontes de prazer que não envol­ vam substâncias, isto é, novos reforçadores de comportamentos. • Der suporte às mudanças no novo estilo de vida. • Reforçar a capacidade dos pacientes em resolução de problemas e autoeficácia. • Ajudar os pacientes a praticar novas estratégias de enfrentamento para evi­ tar retorno ao uso de substância. • Manter um contato que ofereça suporte. O paciente, neste estágio, ainda precisa construir um estilo de vida suficiente­ mente satisfatório. Uma grande variedade de mudanças precisa ser feita para se manter a abstinência, e o terapeuta pode ajudá-lo neste processo utilizando reforçadores competitivos. Um reforçador competitivo é qualquer coisa que o cliente desfrute e que possa se tornar uma fonte de satisfação saudável e alterna­ tiva ao álcool ou às drogas. O mais essencial, nesse processo, é envolver o paciente com suas próprias idéias, explorando os reforçadores em todas as áreas de sua vida. Eles não precisam vir de uma mesma fonte ou ser de um mesmo tipo. Assim, um revés em determinada área poderá ser contrabalançado por reforçadores de outra área. Aseguir, apresentamos uma lista de reforçadores potencialmente com­ petitivos para o paciente7: • Trabalho voluntário: preenche seu tempo, coloca-o em contato com amigos socialmente aceitáveis e aumenta sua sensação de auto-eficácia. • Envolvimento com grupos de auto-ajuda. • Estabelecimento de metas para melhorar seu trabalho, educação, saúde fí­ sica e estado nutricional. • Passar mais tempo com os familiares e pessoas significativas. • Participação em atividades espirituais ou culturais. • Socialização com pessoas não-usuárias de drogas. • Desenvolver novas habilidades ou melhorá-las em áreas como esportes, artes, música ou outros passatempos. Como vimos, atingir o estágio da manutenção não significa que a pessoa man­ terá a mudança, mas que, muito provavelmente, ela recairá e terá de recomeçar o

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processo. Nem sempre esse recomeço ocorre pelo estágio inicial. Muitas pessoas passam inúmeras vezes pelas diferentes etapas até chegar ao término, isto é, a uma mudança mais duradoura. A representação do processo na forma de espiral supõe um movimento ascendente, ou seja, a recaída não implica, necessariamente, a conclusão de que o paciente esteja regredindo ou parado no mesmo lugar, e sim que estará se tomando mais experiente e mais próximo ao final do processo. A recaída é, portanto, um aspecto essencial na mudança de hábitos3, e as evidências sugerem que 70 a 80% das pessoas com um comportamento de beber problemá­ tico passaram várias vezes por esse ciclo de mudança. Um modelo de recaída mais otimista foi formulado por Marlatt e Gordon. A recaída envolve uma série de processos cognitivos, comportamentais e afetivos. É um estado de transição que pode ou não ser seguido de uma melhora. De certo modo, pode-se dizer que a recaída faz parte do processo de mudança e que, mui­ tas vezes, é até essencial para que a pessoa possa aprender com a experiência e recomeçar de forma mais consciente. Hoje, é praticamente impossível falar em tra­ tamento de dependências sem levar em conta alguns princípios da prevenção de recaída3, sobre os quais falaremos mais detalhadamente no Capítulo 19.

R efer ên c ia s B ib lio g r á fic a s 1. EDWARDS, G., DARE, C. Psicoterapia e Tratamentos de Adições. Trad. de M. A. V. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 2. LARANJEIRA, R., NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: ALMEIDA, O. P., DRACTU, L., LARANJEIRA, R. Manual de Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: GuanabaraKoogan, 1996. Cap. 7, p. 83-112. 3. JUNGERMAN, F., LARANJEIRA, R. Entrevista motivacional - a teoria e uma experiência de sua aplicação em grupos. In: FOCCHi, G. R. A. et al. Dependência Química: novos modelos de tratamento. São Paulo: Roca, 2001. 4. MILLER, W. R., ROLLNICK, S. Entrevista Motivacional: preparando as pessoas para a mu­ dança de comportamentos aditivos. Trad. de A. Caíeffi e C. Dornelles. Porto Alegre: Artmed, 2001. 293p. 5. EDWARDS, G., MARSHALL, E. J., COOK, C. C. H. O Tratamento do Alcoolismo: um guia para profissionais de saúde. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 318p. 6. VELLEMAN, R. Counseíling for Alcohoi Problems. 2. ed. London: Sage Publications, 2001.202p. 7. U.S. DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES, PUBLIC HEALTH SERVICE, SUBSTANCE ABUSE AND MENTAL HEALTH SERVICES ADMINISTRATION, CENTER FOR SUBSTANCE ABUSE TREATMENT. Enhancing Motivation for Change in Substance Abuse Treatment Rockville (MD), 1999. (Treatment improvement protocol - TIP series, n. 35). (313 references). 8. DAVIDSON, R., ROLLNICK, S., MACEWAN, I. Counseíling Problem Drinkers. London: Routledge, 1991. 164p.

C A PÍTU LO

Entrevista Motivacional S elm a B o rd in N elia n a B u zi F

ig l ie

R onaldo L aran jeira

In tro d u çã o A entrevista motivacional, também conhecida como inter­ venção motivacional, éuma técnica originalmente descrita pelo psicólogo americano William Miller, na Universidade do Novo México (EUA), amplamente difundida na Europa, na Austrália e mais recentemente no Brasil1. De acordo com Rollnick e Miller, a entrevista motivacional é “um estilo de aconselhamento diretivo centrado no cliente que visa estimular a mudança do comportamento, ajudando os clientes a explorarem e resolve­ rem sua ambivalência”2. É uma técnica breve que pode ser uti­ lizada em uma única entrevista, porém, mais tipicamente é empregada em quatro a cinco consultas. Foi delineada basica­ mente para clientes com diagnósticos de transtorno alimen­ tar, abuso e dependência de álcool e outras drogas, jogo patológico e outros comportamentos compulsivos1.

B ases T eóricas O resultado de qualquer terapia depende não só do uso de estratégias de tratamento adequadas, como também de quão persistente e conscienciosamente o cliente as execu­ ta. A tenacidade do indivíduo na busca de seu objetivo constitui fator crucial no sucesso a longo prazo. Nesse pro­ cesso, o terapeuta é mais do que mero fornecedor dos recursos necessários ou conselhos: deve ajudar o cliente a liberar as forças motivacionais que contribuem para a iniciação de comportamentos novos mais adaptativos, bem

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como para o abandono dos comportamentos disfuncionais. Há décadas tem-se reconhecido que fatores “inespecíficos” contribuem para o tratamento bem-sucedido. Pesquisas indicam que, em ampla variedade de escolas de psicoterapia, certas características dos terapeutas estão associadas a tratamentos bem-suce­ didos e podem ter impacto significativo mesmo numa única consulta. Terapeutas que trabalham nos mesmos settings e que oferecem as mesmas abordagens te­ rapêuticas apresentam enormes diferenças na qualidade de seus resultados e aos índices de abandono do tratamento pelos pacientes. Isso sugere que o estilo do terapeuta é determinante fundamental do sucesso do tratamento3. A teoria mais claramente articulada e testada em relação às características do terapeuta que são essenciais à mudança do cliente é a de Carl Rogers. Ele afirmou que uma relação interpessoal centrada no cliente, na qual o terapeuta manifesta empatia, acolhimento não-possessivo e autenticidade, proporciona o ambiente ideal para uma mudança natural. Nessa perspectiva, o terapeuta não é diretivo, não fornece soluções, sugestões ou análises. Evidências subseqüentes têm apoia­ do a importância de tais condições de mudança, particularmente a da empatia. O que Rogers define como empatia envolve a escuta reflexiva e habilidosa, que es­ clarece e amplifica a experiência e o significado próprios do cliente, sem impor o material do terapeuta3. Esse quadro de condições que criam um ambiente favorável à mudança con­ trasta com as abordagens de confrontação freqüentemente defendidas, em parti­ cular nos Estados Unidos, para pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool ou drogas3. As abordagens de confronto pressupõem que o dependente possui defesas muito rígidas que o impedem de reconhecer sua situação e que, para tratá-lo, é preciso ir de encontro a estas defesas4. Muitos acreditam que esses clientes “precisam” deste tipo de tratamento e que não são afetados por princípios e processos terapêuticos comuns. No entanto, o que tem sido demonstrado é que a terapia de confrontação produz resultados adversos e pode ser particularmente prejudicial aos indivíduos com baixa auto-estima, não havendo evidências de que essas estratégias tenham alguma utilidade no tratamento de com­ portamentos de dependência ou de outros problemas. Terapeutas com estilos abertamente diretivos e confrontadores tendem a evocar altos níveis de resis­ tência nos clientes, enquanto um estilo mais empático está associado a pouca resistência e melhores mudanças a longo prazo3. Por outro lado, a confrontação é um pré-requisito para toda mudança delibe­ rada, em qualquer aconselhamento e psicoterapia, e seu propósito é fazer com que o cliente veja e aceite a realidade, de forma que possa mudar de acordo com ela. Nesse sentido mais amplo, a confrontação não é vista como um estilo do terapeuta, e sim como um objetivo, o que condiz muito com a filosofia centrada no cliente de Carl Rogers, que buscou proporcionar às pessoas uma atmosfera terapêutica na qual pudessem examinar e mudar a si mesmas com segurança3.

M udar

ou

N ã o M u d a r : E is

a

Q uestão

As pessoas que lutam contra problemas de dependência geralmente chegam ao aconselhamento com motivações flutuantes e conflitantes. Elas querem, mas não querem. Esse conflito, que pode ser chamado de ambivalência, permeia prin-

Entrevista Motivacional ■ 2 2 5

cipalmente as primeiras sessões do tratamento e parece ter um potencial especial para manter as pessoas aprisionadas e criar estresse. Nele, a pessoa é, ao mesmo tempo, atraída e repelida por um único objeto. O efeito ioiô resultante é uma ca­ racterística clássica do conflito aproximação-evitação. A ambivalência é um estado mental no qual a pessoa tem sentimentos coexistentes e conflitantes a respeito de alguma coisa. Uma postura de vulnerabilidade pode transformar-se em desafio e voltar à vulnerabilidade em poucos minutos. Talvez seja essa prontidão flutuante para considerar a mudança que torne as pessoas com problemas de dependência tão sensíveis ao modo como são abordadas pelo terapeuta3. Como esse conflito se desenvolve? Um ingrediente importante é o apego ao comportamento, o que torna mais difícil resistir ou afastar-se dele. A dependên­ cia farmacológica é uma forma de apego: o corpo do indivíduo adapta-se à pre­ sença da droga (tolerância) e, quando ela é retirada, o corpo entra em um estado de desadaptação (abstinência). Os padrões de aprendizagem ou condicionamento também podem ser fontes muito poderosas de apego a certos comportamentos: por esse processo, a descontração e o convívio da happy hourpassam a estar asso­ ciados ao álcool e uma tragada no cigarro está associada a uma dose de nicotina enviada ao cérebro. Os comportamentos adictivos também podem ser utilizados como meio de enfrentamento (dependência psicológica): a pessoa passa a contar com a substância para ajudá-la a lidar com estados difíceis ou desagradáveis (a se aproximar ou falar com pessoas, a relaxar num momento de raiva, a sentir cora­ gem, etc.) e, com o tempo, torna-se mais difícil enfrentar tais situações sem o com­ portamento adictivo3. Um terapeuta que escuta uma manifestação comum de ambivalência do tipo “Eu quero, mas não quero” poderia pressupor a existência de algo errado com o julgamento ou com o estado mental do cliente. Sua incerteza poderia ser vista como anormal, inaceitável e como sinal de pouca motivação; uma conclusão sensata, nessa linha de raciocínio, seria a de que o cliente precisa ser educado e persuadido quanto às conseqüências adversas de seu problema. O que acontece­ ria então? O terapeuta tentaria convencer o cliente de que o problema é sério e precisa ser mudado. Confrontado com um lado de seu conflito - “Você deve mu­ dar”, o cliente dá voz ao outro: “Sim, mas.. Com isso, o terapeuta insiste mais no lado da mudança e o cliente replica com razões ainda mais fortes, pelas quais o comportamento é atraente ou aceitável. Terapeuta e cliente estão, em essência, atuando o conflito do paciente. Essa estratégia é geralmente contraproducente e o resultado costuma ser oposto ao desejado3. Em vez de ver a ambivalência como um “mau sinal”, esperamos demonstrar como é frutífero entendê-la como normal, aceitável e compreensível. Sentir-se 100% seguro quanto a algo importante é, provavelmente, mais excepcional do que normal. Isso leva a uma maneira inteiramente diferente de lidar com os clientes em conflito, e a entrevista motivacional está centrada na administração desta ambivalência no aconselhamento. Trabalhar com a ambivalência é trabalhar com a essência do problema dos clientes com problemas de álcool e outras drogas3. Uma maneira útil de ilustrar o conflito da ambivalência envolve a metáfora de uma gangorra ou de uma balança. A pessoa experimenta motivações rivalizantes porque existem tanto benefícios como custos associados a ambos os lados do con­

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flito, independentemente do lado da balança em que ela esteja: pode estar abs­ têmia e ainda assim vivenciar o conflito. É importante sempre levarmos em consideração que, quando a balança pende para um dos lados, a pessoa tende a se concentrar (a deslocar os pesos) para o outro lado1. Um inventário de van­ tagens e desvantagens, ou folha de balanço, pode ser utilizado com a entrevista motivacional para se penetrar nesse estado de ambivalência, clarificar os fato­ res motivacionais rivalizantes e encorajar a pessoa a considerar a validade de algumas delas mais detalhadamente, de maneira semelhante à vista no Capítulo 16. O perigo em um modelo desse tipo é a supersimplificação. Não queremos di­ zer que os clientes estejam sempre conscientes do processo de equilíbrio ou que, quando o compreenderem, passarão a proceder como contadores, tomando so­ mente decisões racionais. O valor de cada item pode se transformar com o tempo. Os elementos das listas estão ligados entre si e uma mudança em um deles causa transformações em outros. Quase por definição, a folha de balanço estará repleta de contradições, podendo deixar cliente e terapeuta frustrados e confusos. Mas, ainda assim, é preciso persistir, pois é freqüentemente a ambivalência a essência do problema. O aconselhamento dentro desse referencial pode requerer paciên­ cia e tolerância consideráveis3. Nunca devemos pressupor que o cliente veja um dado custo ou beneficio da mesma maneira que nós. As ameaças de multas e de prisão evitam que muitas pes­ soas se envolvam em comportamentos ilegais, mas, para outras, são simplesmente riscos que fazem parte de suas vidas. O que é altamente valorizado por alguns (ser saudável, magro ou ter um emprego) terá pouca importância para outros3. Além de seus valores, as pessoas também têm expectativas próprias quanto aos resultados prováveis, tanto positivos como negativos, de certos cursos de ação e estas expectativas podem ter um efeito poderoso sobre o comportamento. As­ sim, uma pessoa pode desejar fervorosamente parar o uso de alguma droga, mas pode não fazer absolutamente nada nesse sentido porque não acredita ser capaz. Até mesmo a importância de metas em geral valorizadas, como a saúde, por exem­ plo, pode ser minada pela baixa auto-estima; reforçá-la é um pré-requisito impor­ tante para a mudança3. Também precisamos considerar que o aumento no custo de um comporta­ mento não significa, necessariamente, que a mudança terá maior probabilidade de ocorrência, e o inverso pode suceder. A perda de um emprego pode significar que “não há mais nada a perder”. O aumento da censura familiar pode elevar a ansiedade e a substância pode ser mais necessária para lidar com o desconforto. Pessoas com problemas de álcool e drogas podem persistir em seus hábitos, ape­ sar de incríveis sofrimentos e perdas pessoais. Além disso, como vimos, se a pes­ soa perceber que sua liberdade pessoal está sendo ameaçada, pode haver um aumento na incidência e na atratividade do comportamento (teoria da reatância)3.

P rincípios

da

E ntrevista M o tiv a cio n a l

A entrevista motivacional é um meio particular de ajudar as pessoas a reco­ nhecerem e fazerem algo a respeito de seus problemas. É especialmente útil com

Entrevista Motivacional ■ 2 2 7

pessoas que relutam em mudar, pretendendo ajudá-las a resolver a ambivalência e colocá-las em movimento no caminho da mudança. E muitas vezes é só disso que precisam: um impulso. O terapeuta não assume um papel autoritário; ao con­ trário, o cliente é livre e responsável por aceitar ou não seus conselhos. As estraté­ gias são mais persuasivas do que coercitivas, mais encorajadoras do que argumentativas. Mais do que um conjunto de técnicas, a entrevista motivacional é uma maneira de estar com os clientes provavelmente muito diferente da maneira como outros podem tê-los tratado no passado. A meta final é aumentar sua moti­ vação intrínseca, de forma que a mudança venha de dentro, em vez de ser imposta de fora. Quando esta abordagem é utilizada de forma correta, é o cliente quem apresenta os argumentos para a mudança, mais do que o terapeuta1. Os princípios básicos da entrevista motivacional são:

Expressar Empatia O estilo terapêutico empático é uma característica essencial e definidora da entrevista motivacional e deve ser empregado desde o início e durante todo o pro­ cesso. A atitude que fundamenta o princípio da empatia pode ser chamada de aceitação. Por meio da escuta reflexiva habilidosa, o terapeuta busca compreen­ der os sentimentos e as perspectivas do cliente sem julgá-lo, criticá-lo ou culpálo. Aceitar não significa concordar ou aprovar e não proíbe o terapeuta de diferir dos pontos de vista do cliente. Aceitar as pessoas como são (o que sentem e o que pensam) parece libertá-las para a mudança, enquanto a não aceitação insistente (“Você não está bem, tem que mudar”) pode ter o efeito de mantê-las do jeito que estão. Aatitude de aceitação e de respeito constrói uma aliança terapêutica e estimula a auto-estima do cliente. A ambivalência é aceita como normal, a relutância em mudar é esperada e sua situação é entendida como de imobilidade (ocasionada por princípios psicológicos compreensíveis)1,3'5. Uma forma de treinar essa estratégia é começar a pensar reflexivamente, o que consiste em ouvir alguém e pensar no que ouviu, sem preconceitos, tentando entender o sentido do que foi dito. A afirmação feita com a escuta reflexiva deve ser mais um palpite sobre o que o cliente diz, e não uma pré-concepção, que se torna uma barreira para a relação. Geralmente, uma intervenção como essa é bas­ tante adequada após o cliente ter respondido uma pergunta aberta6.

Desenvolver Discrepância Não queremos dizer que a meta da entrevista motivacional deva ser aceitar o cliente como ele está ou acompanhá-lo em suas divagações. Como dissemos, nossa meta, e não nossa atitude, deve ser a de confrontar o cliente com sua realidade desagradável, ou seja, uma discrepância entre seu comportamento atual e suas metas mais amplas na vida: entre onde está (ou que caminho está seguindo) e aonde quer chegar. Em geral, as pessoas têm como metas a saúde, o sucesso, a felicidade da família e uma auto-imagem positiva. Quando seu comportamento atual é confrontado com isso, é provável que a mudança aconteça. Muitas pessoas

228 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química que buscam terapia já percebem alguma discrepância entre onde estão e onde gostariam de estar; nosso objetivo, então, é ampliá-la até que o apego ao compor­ tamento atual seja suplantado. É preciso lembrar mais uma vez: as pessoas, com freqüência, são mais persuadidas pelo que ouvem de si mesmas do que pelo que os outros lhes dizem1,2’4’7’8.

Evitar a Argumentação O terceiro princípio refere-se à evitação do uso de argumentações e do con­ fronto direto. O que aconteceria seria o terapeuta dizendo que o cliente tem um problema e este último defendendo o ponto de vista oposto. A argumentação direta tende a evocar a reatância nas pessoas, ou seja, resulta na afirmação de sua liberdade para agir como lhes agrada. Quanto mais dissermos a alguém “Você não pode fazer isso”, mais provável será que responda “Sim, eu posso e farei”3,5. Deve­ mos sempre ter em mente que as discussões são contraproducentes, suscitam defesas e resistência46. Alguns terapeutas dão muita importância à disposição do cliente em “admi­ tir” um rótulo diagnóstico, tal como “alcoolista” (aliás, pouca importância se dá a isso em outros diagnósticos na medicina em geral). Forçar um cliente a aceitar um rótulo pode ser contraproducente e não há evidências que sugiram que a recuperação seja promovida persuadindo-se as pessoas a admitirem um diagnóstico. Acusar os clientes de estarem presos à negação ou à resistência provavelmente não os motivará para a mudança1.

Acompanhar a Resistência Jay Haley e outros pioneiros no campo da terapia estratégica familiar se referi­ ram a um tipo de “judô psicológico”, no qual um ataque não é enfrentado com uma oposição direta, mas fazendo-se com que a força do atacante seja utilizada em benefício do atacado (no nosso caso, do próprio atacante). Segundo o princípio de acompanhar (ou fluir com) a resistência, as declarações que um cliente oferece podem ser ligeiramente modificadas ou reformuladas de modo a se criar nova força de mudança. O cliente começa “golpeando” com suas percepções presentes e descobre (se o terapeuta for habilidoso) que elas caem em outro lugar3. Fluir com a resistência significa saber reconhecer o momento do cliente e usá-lo (e não ir contra ele) para auxiliá-lo na resolução de sua ambivalência1,6. É preciso ter em mente que as percepções do cliente podem mudar, que novas perspectivas são mais bem recebidas quando não são impostas e que o cliente é uma rica fonte de soluções para seus problemas6.

Promover a Auto-Eficácia Um terapeuta pode utilizar os quatro primeiros princípios e persuadir o cliente a concluir que ele tem um sério problema. Se, porém, esse cliente não perceber

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uma esperança de mudança, nada fará a respeito. Há muito se reconhece que a esperança, a fé e as expectativas do próprio terapeuta quanto às chances de recu­ peração de um cliente podem ter forte impacto no resultado3. Auto-eficácia é a crença da própria pessoa em sua habilidade de enfrentar uma tarefa ou desafio específico e é considerada elemento-chave no processo de motivação para a mu­ dança, sendo um bom fator preditivo do sucesso do tratamento4. Trata-se de um processo cognitivo, uma vez que lida com julgamentos ou avaliações feitos pela pessoa sobre sua competência. Não significa ter habilidades, mas ter a percepção, a certeza sobre sua capacidade de exercer as habilidades1. Uma importante meta da entrevista motivacional é aumentar as percepções do cliente quanto a sua ca­ pacidade de enfrentar os obstáculos e de ter sucesso. Embora a auto-eficácia pos­ sa ser influenciada pela auto-estima como um todo, ela é muito mais específica. Um cliente pode, por exemplo, sofrer em virtude de auto-estima baixa, mas, ainda assim, pode ser persuadido de que é possível, dentro de sua capacidade, mudar determinado problema3. Existem várias mensagens que promovem a auto-eficácia. Uma delas é a ênfa­ se na responsabilidade pessoal: ninguém mais poderá fazer a mudança senão o próprio cliente. Um cliente também pode ser encorajado pelo sucesso de outros; portanto, fazer contato com ex-pacientes que possam ser tomados como mode­ los é útil nesse sentido. Outra maneira é a utilização, pelo terapeuta, das estimati­ vas de sucesso de outras pessoas. Além disso, o fracasso pode ser entendido como um sinal de que a pessoa ainda não encontrou a abordagem certa entre as muitas disponíveis. Na gama de opções de tratamento, as chances de um dado indivíduo encontrar algo que funcione para si são bastante boas3.

E str a té g ia s G erais de M o t iv a ç ã o Quais são os modos mais eficazes de ajudar as pessoas a examinarem e aceitarem a realidade, particularmente uma realidade desconfortável? Que estratégias um terapeuta pode utilizar para melhorar a motivação para a mudança? Existe uma vasta literatura referente a pesquisas sobre o que motiva as pessoas para a mu­ dança e para o tratamento. Resumiremos aqui oito estratégias gerais de motiva­ ção (note que no original em inglês, por motivos mnemónicos, as iniciais vão de A a H). Salientamos que nenhuma delas é mágica e que as abordagens eficazes com­ binam, em geral, diversas estratégias motivacionais. São ingredientes, e não uma receita. Assim como na produção de pães, há ingredientes essenciais e outros de­ sejáveis; há regras básicas e espaço para criação artística; assim, quanto maior for a experiência do profissional, melhores serão os resultados alcançados3,4,6.

Oferecer Orientação (Advice) Um elemento que estimula a mudança é a orientação clara. Embora tenha­ mos grande respeito pelas idéias de Cari Rogers, acreditamos que uma estratégia totalmente não-diretiva pode deixar o cliente confuso e perdido. Uma orientação oportuna e moderada em favor da mudança pode fazer a diferença. Os elementos

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de uma orientação eficaz estão sendo esclarecidos por pesquisas atuais. Minima­ mente, podemos dizer que ela deve ajudar o cliente a identificar claramente o problema ou a área de risco, explicar por que a mudança é importante e defender ou recomendar mudanças específicas.

Remover Barreiras (Barriers) Uma segunda abordagem motivacional eficaz é a identificação e a remoção de barreiras significativas aos esforços para a mudança. Tais barreiras podem in­ terferir não apenas no início do tratamento, mas nos esforços para a mudança em termos mais genéricos. Uma vez identificadas as barreiras, a tarefa do terapeuta é ajudar o cliente na resolução prática do problema. Muitas das barreiras têm a ver com o acesso ao tratamento: fatores econômi­ cos, transporte para o local da terapia, tempo de espera, conforto, atendimento acolhedor, ter com quem deixar os filhos, acesso de deficientes ou idosos, etc. Outras barreiras podem estar mais associadas às estratégias de mudança: o cliente pode temer que ela resulte em conseqüências adversas ou no corte de fontes im­ portantes de reforço positivo. Seu contexto cultural pode reforçar sua percep­ ção de que os comportamentos “problemáticos” são normais ou aceitáveis e de que, portanto, a mudança não é necessária. A remoção de barreiras para a mu­ dança pode exigir um número maior de estratégias cognitivas e informativas.

Proporcionar Escolhas (Choice) Poucas pessoas gostam que lhes seja dito o que devem fazer e, de fato, pode surgir resistência quando percebem que sua liberdade está sendo limitada ou ameaçada. A motivação intrínseca aumenta com a percepção de liberdade para escolher um modo de ação, sem influência externa significativa nem coerção. Um terapeuta que deseja melhorar a motivação para mudança, por conseguinte, deve ajudar seus clientes a se sentirem livres (e certamente responsáveis) para esco­ lher. Isso pressupõe a existência de alternativas disponíveis: modos de ação, de tratamentos, de objetivos e metas no tratamento, etc. A insistência em um objeti­ vo terapêutico em particular, a despeito das percepções e dos anseios do cliente, pode comprometer tanto a motivação quanto os resultados.

Diminuir o Aspecto Desejável do Comportamento (Desirability) No estágio da contemplação, a pessoa considera as vantagens e desvanta­ gens, os custos e os benefícios da mudança em relação ao comportamento ante­ rior, como se fizesse um balanço. As estratégias motivacionais para o estágio da contemplação envolvem, assim, a remoção dos pesos a favor do comportamento atual e o aumento dos pesos a favor da mudança. É seguro presumir que um padrão de comportamento persistente, apesar de suas conseqüências negativas, é mantido por incentivos positivos, e uma tarefa motivacional importante é

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identificá-los para, então, poder buscar abordagens eficazes para diminuí-los, enfraquecê-los ou contrabalançá-los. Também não se deve esperar que uma sim­ ples reflexão racional sobre os fatores induza à mudança. O comportamento terá mais chance de ser alterado se as dimensões emocionais ou valorativas do as­ pecto desejável do comportamento forem afetadas. De maneira geral, esta abor­ dagem aumenta a percepção da pessoa a respeito das conseqüências negativas do comportamento. Também é possível fazer mudanças em contingências sociais, pois a motiva­ ção não se encontra exclusivamente no indivíduo; ela é afetada pelos relaciona­ mentos e pelo meio onde a pessoa vive. Se as pessoas em sua vida facilitarem a manutenção de um problema ao fazer com que tudo pareça normal, tentando ignorá-lo ou protegendo-o de suas conseqüências, a mudança será menos prová­ vel. Se, em comparação, aqueles ao seu redor expressarem preocupação, oferece­ rem ajuda e reforçarem as conseqüências negativas do problema, a motivação para a mudança aumentará.

Praticar a Empatia (Empathy) Como vimos, estudos têm mostrado que um estilo terapêutico mais empático está associado a níveis baixos de resistência do cliente e a uma maior mudança de comportamento a longo prazo. A empatia é uma habilidade específica que pode ser aprendida para que haja a compreensão dos significados de outra pes­ soa pelo uso da escuta reflexiva, quer se tenha ou não vivência pessoal seme­ lhante (um terapeuta não precisa ter sido dependente para conseguir compreender o que o álcool significa para a pessoa). Embora possa parecer fácil e natural, a escuta reflexiva requer atenção aguçada a cada nova afirmação e contínua gera­ ção de hipóteses em relação ao significado subjacente. Falaremos mais sobre isso ao longo do capítulo.

Proporcionar Feedback (Feedback) Se não soubermos onde estamos, será impossível planejarmos como chegar a qualquer lugar. Algumas vezes, as pessoas deixam de mudar porque não recebem feedback suficiente a respeito de sua situação atual. As expressões de preocupa­ ção da família e de amigos constituem uma forma de feedback, assim como o uso de resultados de testes objetivos ou diários de automonitoramento. Proporcionar um feedback claro sobre a situação atual do cliente e suas conseqüências ou riscos é uma importante tarefa motivacional do terapeuta. Voltaremos a esse assunto logo adiante.

Esclarecer Objetivos (Goals) O feed b ack se refere a onde a pessoa está e o objetivo ao qual quer chegar. Ofeedback, por si só, não é suficiente para provocar a mudança e precisa ser com­

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parado a alguma referência. Quão motivador pode ser saber onde estou se não tenho claro aonde quero chegar? É esse processo de auto-avaliação que influen­ cia a ocorrência ou não da mudança. Ajudar o cliente a estabelecer metas defini­ das facilita a mudança. Também é fundamentalmente importante que o cliente veja esta meta como algo realista e alcançável. Do contrário, pouco ou nenhum esforço será feito. Da mesma forma, as metas são de pouca utilidade se falta à pessoa o feedback em relação a sua situação atual. As metas e o feedback atuam juntos na criação da motivação para a mudança.

Ajudar Ativamente (Helping) Da perspectiva do terapeuta, significa estar ativa e afirmativamente interessado no processo de mudança de seu cliente, o que pode exercer grande influência sobre sua tomada de decisão. Ajudar ativamente envolve dois aspectos: tomar a iniciativa terapêutica e expressar preocupação. Diante da falta a uma consulta, por exemplo, o terapeuta toma a iniciativa e demonstra preocupação com um telefonema ou uma comunicação escrita personalizada. Se este cliente precisar ser encaminhado, o terapeuta toma novamente a iniciativa e demonstra preocupação telefonando para o serviço e marcando uma hora durante a consulta na presença do cliente. Alguns profissionais relutam em fazer isso, alegando não assumir a responsa­ bilidade pela mudança de seus clientes. Mas, se uma carta ou um telefonema pode duplicar, triplicar ou quadruplicar as chances de um cliente continuar em trata­ mento e manter seus esforços para a mudança, de que modo isso constitui um prejuízo? Nossa tendência é primeiro engajar e reter o cliente no tratamento e depois nos preocupar em encorajá-lo a assumir sua responsabilidade.

A p l ic a b il id a d e d a E n t r e v is t a M o t iv a c io n a l De maneira geral, podemos pensar em algumas estratégias para estimular a motivação e em outras para fortalecer o comprometimento com a mudança. As primeiras devem ser utilizadas no momento mais inicial da terapia.

Estratégias para Estimulara Motivação para a Mudança A premissa, na fase inicial da terapia, é a de que o cliente está ambivalente e no estágio de contemplação (quer, mas não quer mudar) ou até mesmo de précontemplação3. Uma vez que a ambivalência tenha sido entendida e ultrapassada, a pessoa estará mais próxima do estágio da preparação e conseguirá tomar a deci­ são de mudar4. É comum, na fase inicial do tratamento, surgirem armadilhas. A primeira sessão é crucial e determina o tom e as expectativas para a terapia. Como vimos, as ações do terapeuta podem ter uma influência poderosa sobre a resistência do cliente e sobre os resultados a longo prazo. É, portanto, importante adotar a abordagem adequada desde o início e evitar cair em algumas armadilhas que podem comprometer o progresso do cliente no tratamento3:

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Armadilha da Pergunta-Resposta No início da terapia, é fácil cair em um padrão no qual o terapeuta faz perguntas e o cliente dá as respostas, uma vez que o terapeuta tem necessidade de obter infor­ mações específicas. Existem diversos pontos negativos nisso: 1. estimula o cliente a dar respostas curtas e simples, em vez do tipo de colaboração que será necessária; 2. sugere uma interação entre um especialista ativo e um cliente passivo; e 3. dá pouca oportunidade ao cliente de explorar e oferecer afirmações automotivacionais. Tal armadilha é relativamente fácil de ser evitada. Recomendamos que você peça ao cliente que preencha um questionário com perguntas que forneçam as informações necessárias antes da consulta. Outra forma é utilizar as perguntas abertas e a escuta reflexiva, que veremos a seguir. Contudo, é preciso ter cuidado, pois uma pergunta aberta desacompanhada da escuta reflexiva pode ter efeito semelhante a uma série de perguntas fechadas.

Armadilha do Confronto-Negação É a mais importante a ser evitada. Os clientes chegam à terapia em estado de ambivalência, sentem-se divididos quanto a sua situação: querem e não querem mudar. Se o terapeuta argumentar em favor de um dos lados do conflito, é muito provável que o cliente dê voz ao outro lado. Veja o exemplo abaixo: T: “Bem, parece que você tem um problema sério com a bebida, pois está mos­ trando muitos sinais de alcoolismo.” C: “O que você quer dizer?” T: “Você teve um episódio de desmaio por beber muito; se sente desconfortável quando não pode beber e está perdendo o controle sobre seu hábito.” C: “Mas muitas pessoas que conheço bebem como eu.” T: “Talvez sim, talvez não. Mas não estamos falando delas, e sim de você.” C: “Mas eu não acho que seja tão sério.” T: “Não é sério?! É pura sorte que você não tenha sido preso ou não tenha ma­ tado alguém dirigindo depois de ter bebido.” C: “Eu dirijo muito bem.” T: “E quanto a sua família? Eles acham que você está bebendo demais e que deve parar.” C: “Ah, mas a minha esposa é de uma família de abstêmios. Não tem nada de errado comigo. Ela acha que qualquer um que beba mais que três doses é um alcoolista.” Quando o terapeuta atuar de um dos lados do conflito, o cliente atuará do outro, e quanto mais vigorosamente ele argumentar que não tem um problema, mais se convencerá disso. Ninguém gosta de perder uma discussão ou de ter que admitir que está errado.

Armadilha do Especialista O terapeuta entusiasmado e competente pode dar a impressão de que tem todas as respostas, conduzindo o cliente a um papel passivo. A entrevista

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motivacional tem como objetivo dar ao cliente a oportunidade de explorar e re­ solver sua ambivalência por si mesmo. Haverá momentos para a opinião do espe­ cialista, mas o foco deve ser o de estimular a motivação do próprio cliente. Veja o exemplo a seguir: C: “A dependência química tem cura?” (Terapeuta fornece a resposta) C: “Então, posso tomar remédios para auxiliar no tratamento?” (Terapeuta pode dar inform ação de m edicação, mas um exem plo m otiva­ cional seria:) T: “Parece que você está muito interessado em métodos para o tratamento da dependência química. Posso te ajudar indicando vários métodos, mas o mais importante é você ter em mente que pode conseguir.”

Armadilha da Rotulação Terapeuta e cliente também podem ser facilmente seduzidos pela questão da rotulação diagnostica. Muitas vezes, pode haver um processo subjacente de briga por poder, na qual o terapeuta busca afirmar seu controle e conhecimento ou uma comunicação de julgamento. Para alguns clientes, até mesmo pequenas frases apa­ rentemente inofensivas, como “Seu problema com...” podem gerar sentimentos de pressão e desconforto, evocando uma resistência prejudicial ao progresso. Ora, os problemas podem ser inteiramente explorados sem o uso de rótulos. Muitas vezes, a preocupação pode ser do cliente, e a nossa resposta pode ser muito im­ portante. Também não há motivos pra desencorajar os clientes a aceitarem um diagnóstico, se estiverem inclinados a isso. Nossa ênfase é não entrar em discus­ sões quanto a rótulos. Veja um exemplo: C: “Então, você está sugerindo que eu sou dependente?” T: “Não, eu realmente não ligo para os rótulos. Mas parece que você sim, e que essa é uma preocupação para você.” C: “Bem, eu não gosto de ser chamado de dependente.” T: “Quando isso acontece, você tem vontade de dizer que sua situação não é tão séria assim.” C: “Isso! Eu não estou dizendo que não tenho problemas...” T: “Mas não gosta de ser rotulado como 'tendo um problema'. Isso lhe soa muito mal.” C: “É verdade.” T: “Isso é muito comum, como você pode imaginar. Muitas pessoas com quem falo não gostam de ser rotuladas. Não há nada de estranho nisso. Também não gosto que as pessoas me rotulem.” C: “Me sinto como se estivessem me colocando em uma caixa.” T: “Certo. Deixe-me explicar como vejo essa situação e, então, podemos pros­ seguir. Para mim, não importa o nome que damos a uma situação. Não

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me importa se o chamamos de ‘dependente7,ou 'com problemas' ou até mes­ mo 'João'. Não temos que dar um nome a isso. Se você quiser um rótulo, posso lhe dar um, mas isso não é importante para mim. O que realmente importa é determinarmos como o uso de cocaína o prejudica e o que você quer fazer em relação a ele, se é que quer fazer algo. Isso é o que importa para mim.”

Armadilha do Foco Prematuro Não é incomum que o terapeuta queira concentrar-se logo de imediato nas questões relacionadas ao uso de álcool/drogas, enquanto o cliente quer discutir outras questões. O importante é evitar o envolvimento em disputeis quanto ao tópico mais adequado para as primeiras conversas. Começar pelas preocupações do cliente evitará que esta armadilha aconteça.

Armadilha da Culpa Outra armadilha muito comum encontrada nas primeiras sessões é a preo­ cupação do cliente com a causa do problema ou o culpado por ele, que, se não for tratada adequadamente, poderá tomar muito tempo e energia em atitudes de defesa. A chave, aqui, é que a culpa é irrelevante, e isso pode ser enfrentado com o auxílio e a reformulação das preocupações do cliente. Veja o exemplo a seguir: “Você parece estar preocupado em saber de quem é a culpa e cabe a mim lhe dizer que, na terapia, não se trata de decidir quem é o culpado. Isso é para os tri­ bunais. Não estamos interessados em descobrir quem é o culpado ou qual a causa dos seus problemas, mas sim o que o está incomodando e o que você poderá fazer quanto a isso.” Uma explicação estruturada oferecida no início da terapia também pode ser útil, uma vez que, se o cliente tiver um entendimento claro dos objetivos do traba­ lho, as questões sobre a culpa podem ser evitadas.

Cinco Estratégias Iniciais As quatro primeiras estratégias que passaremos a descrever, derivam do aconselhamento centrado no cliente, embora na entrevista motivacional elas sejam utilizadas para um fim específico: ajudar os clientes a explorar sua ambivalência e expressar motivos para mudar. A quinta estratégia é específica da entrevista motivacional e integra o uso das quatro anteriores3,4’6'7.

1. Fazer Perguntas Abertas Uma boa maneira de começar a terapia é fazer as primeiras perguntas de um modo que encoraje o cliente a falar o máximo possível. As perguntas abertas são aquelas que não podem ser respondidas facilmente com uma palavra ou frase

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simples. Alguns clientes falam com muita facilidade; outros são mais defensivos e precisam de encorajamento; o modo como reagimos às suas respostas iniciais in­ fluenciará fortemente os próximos acontecimentos. Veja alguns exemplos de per­ guntas iniciais: • “Eu gostaria de entender como você vê as coisas. O que o trouxe aqui? Qual é o problema?” • “Você disse ao telefone que está usando drogas há bastante tempo e que queria conversar sobre isso. Por que você não começa do início, quando usou drogas pela primeira vez e como tem sido até hoje?” As perguntas abertas também são bastante úteis para explorar a ambivalência do cliente, especialmente daqueles no estágio de pré-contemplação. Alguns terapeutas preferem perguntar primeiro aos clientes de que eles gostam em seu comportamento atual e depois sobre o lado negativo. • “Fale-me sobre seu uso de cocaína. O que você gosta nela? Quais são suas preocupações quanto a isso? O que você não gosta nela?” • “Entendo que você esteja aqui para falar sobre seu hábito de jogar. Ajudeme a ter uma idéia geral. De que você gosta no jogo? De que você não gosta? Quais são os aspectos negativos de jogar?” Podemos esperar reações diversas a essas perguntas. Alguns responderão pron­ tamente; outros revelarão pouco e poderão mudar de assunto. Tais perguntas são apenas aberturas que oferecem oportunidades para o uso de outras estratégias.

2. Escutar Reflexivamente Talvez essa seja a habilidade mais desafiadora na entrevista motivacional e deve constituir uma proporção substancial durante a fase inicial da entrevista motivacional. O elemento crucial na escuta reflexiva é como o terapeuta responde ao que o cliente diz. Thomas Gordon esboçou 12 barreiras que não são escutar e que atrapalham a exploração do cliente (desviam-no do foco). • • • • • • • • • • • •

Ordenar, dirigir ou comandar. Advertir ou ameaçar. Dar conselhos, fazer sugestões ou oferecer soluções. Persuadir com lógica, argumentação ou sermões. Moralizar, pregar ou dizer aos clientes o que “devem” fazer. Discordar, julgar, criticar ou culpar. Concordar, aprovar ou elogiar. Envergonhar, ridicularizar ou rotular. Interpretar ou analisar. Consolar, solidarizar-se ou tranqüilizar. Questionar ou interrogar. Retrair-se, distrair, ser indulgente ou mudar de assunto.

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Não queremos dizer que seja “errado” utilizar alguma dessas 12 barreiras, mas que existe um momento certo para isso. Antes de falar, uma pessoa tem um certo sentido a comunicar, que é codificado em palavras, muitas vezes, de maneira im­ perfeita. O ouvinte tem de escutar as palavras atentamente e, então, decodificar seu sentido. O ouvinte reflexivo forma uma inferência razoável quanto ao sentido original e dá voz a essa inferência sob a forma de afirmação. Por que não uma pergunta em vez de uma afirmação? Porque esta última, quando bem formulada, evoca menos resistência. Indagar parece distanciar os clientes da vivência, fazen­ do-os recuar e se perguntar se realmente sentem ou deveriam sentir aquilo que expressaram. A diferença é sutil, e nem todos a percebem. Oferecer uma escuta reflexiva requer treinar-se para pensar reflexivamente, o que inclui se dar conta de que aquilo em que você acredita ou supõe que as pes­ soas queiram dizer não é necessariamente o que elas realmente querem dizer. Veja o seguinte exemplo: C: “Às vezes me preocupa que eu possa estar bebendo demais.” T: “Você anda bebendo bastante.” C: “Na verdade, eu não sinto que seja tanto assim. Eu posso beber muito e não sentir.” T: “Mais do que a maioria das pessoas.” C: “Sim, posso ganhar de quase qualquer um.” T: “E isso é o que o preocupa.” C: “Bem, isso é o que eu sinto. Na manhã seguinte, eu geralmente fico muito mal. Me sinto trêmulo e não consigo pensar direito toda a manhã.” T: “E isso não lhe parece certo.” C: “Não, acho que não. Não pensei muito sobre isso, mas não acho que seja bom estar de ressaca o tempo todo. E, às vezes, eu tenho dificuldade em lembrar coisas.” T: “Coisas que acontecem enquanto você está bebendo.” C: “Também. Às vezes, eu apago durante algumas horas.” T: “Mas isso não é o que você quis dizer quando falou que tem dificuldade de lembrar coisas.” C: “Não. Mesmo quando eu não estou bebendo parece que estou esquecendo as coisas com mais freqüência e não estou pensando com clareza.” T: “E você acha que isso pode ter a ver com a bebida.” C: “Não sei o que mais poderia ser.” T: “Você nem sempre foi assim.” C: “Não! Só nos últimos anos. Talvez eu esteja só ficando velho.” T: “Pode ser simplesmente o que acontece com todo mundo quando chega aos 45 anos de idade.” C: “Não, provavelmente é a bebida. Eu também não durmo muito bem.” T: “Então talvez você esteja prejudicando sua saúde, seu sono e seu cérebro bebendo tanto assim.” C: “Veja bem, eu não sou um bêbado. Nunca fui.” T: “Você não está tão mal. Ainda assim está preocupado.” C: “Não sei se a palavra é “preocupado”, mas estou pensando mais sobre isso.”

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T: “E se perguntando se não deve fazer alguma coisa, e é por isso que veio até aqui.” C: “Acho que sim.” T: “Você não está bem certo.” C: “Não tenho certeza do que quero fazer em relação a isso.” T: “Então, se estou entendendo bem, você acha que anda bebendo demais e está prejudicando sua saúde, mas não tem certeza de que quer mudar isso.” C: “Não faz muito sentido, faz?” T: “Posso entender que você se sinta confuso neste ponto.” As afirmações da escuta reflexiva podem ser muito simples. A mera repetição de uma ou duas palavras pode manter o cliente em movimento. Uma reflexão mais sofisticada substitui as palavras do cliente por outras ou faz uma inferência quanto ao sentido implícito. Às vezes, também é útil refletir como o cliente parece estar se sentindo enquanto fala. A reflexão, porém, não é um processo passivo. O terapeuta decide o que refletir e o que ignorar, o que enfatizar e o que não enfatizar, que palavras usar para captar o sentido. A seguir, apresentamos alguns tipos de reflexão3,46:

. . Reflexão Simples

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É o tipo mais simples de reflexão e o que mais deve ser utilizado quando não se possui amplo conhecimento da história do cliente. Muitas vezes, pode ser a mera repetição de uma palavra dita pelo cliente. Exemplo: P: “Hoje acordei extremamente desanimada!” T: “Desanimada...” Repetir algum conteúdo que o cliente tenha dito utilizando sinônimos ou al­ terando ligeiramente para clarificar também pode ser uma reflexão simples. Exemplo: 'Você está me dizendo que está desanim ada... ” A reflexão simples é uma boa estratégia para responder à resistência com a não-resistência. Um simples reconhecimento da discordância, da emoção ou da percepção permite mais exploração, em vez de atitudes de defesa, evitando, as­ sim, a armadilha do confronto- negação.

2.2. Reflexão Amplificada Uma abordagem muito útil é refletir algo que o cliente tenha dito de forma exagerada ou amplificada - afirmá-la de maneira ainda mais extrema do que ele. Se a estratégia for bem-sucedida, encorajará o cliente a recuar e eliciará o outro lado da ambivalência. Mas, cuidado: uma afirmação exagerada demais ou sarcás­ tica pode eliciar ainda mais resistência.

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Exemplo: C: “Eu consigo controlar a bebida.” T: “Então, você quer dizer que não tem nada a temer e que o álcool não é, absolutamente, nenhum problema para você.”

2.3. Reflexão Dupla Implica reconhecer, por meio da escuta reflexiva, o que o cliente disse e acres­ centar o outro lado da ambivalência. Para isso, podemos usar material que o cliente tenha oferecido anteriormente, mesmo que em outra sessão. Exemplo: C:“Está bem, eu tenho problemas com maconha, mas não sou um dependente.” T: “Você não tem dificuldade em assumir que a maconha está lhe causando problemas. O que você não aceita é ser dependente.”

2.4. Reflexão de Sentimentos É a forma mais profunda de reflexão, à qual são incorporados elementos emo­ cionais para que o cliente se dê conta dessa dimensão. Vale ressaltar que este tipo de reflexão é utilizada somente diante do conhecimento da história do cliente, sendo contra-indicada na sessão inicial. Exemplo: C: “Estou muito aborrecida.” T: “Parece que esta sensação de aborrecimento e desânimo vem te preocu­ pando nos últimos meses...”

3. Encorajar ou Reforçar Positivamente Também pode ser muito útil encorajar e apoiar seu cliente durante o pro­ cesso terapêutico, o que pode ser feito com elogios e afirmações de apreciação e compreensão. • “Acho ótimo que você queira fazer algo em relação a este problema.” • “Você certamente é uma pessoa forte, pois foi capaz de conviver com esse problema tanto tempo e não se desestruturar.” • “Essa é uma boa sugestão.” • “Parece que você é uma pessoa bem-disposta, que gosta de estar com pes­ soas e fazê-las rir. Por isso é duro pensar em parar de beber.” • “Aprecio sua pontualidade.” • “Obrigado por vir à sessão hoje!”

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4. Resumir Resumos podem ser utilizados para conectar os assuntos que foram discuti­ dos, reforçando o que foi dito, demonstrando que você escutou e preparando o cliente para seguir adiante. Podem ser especialmente úteis para a ambivalência, permitindo ao cliente examinar os pontos positivos e negativos simultaneamente. Na entrevista motivacional, os resumos podem ser utilizados em vários momen­ tos da sessão, ou seja, quando o cliente coloca várias idéias simultaneamente e o profissional tenta conectá-las e refleti-las ao cliente para sua melhor compreen­ são. Além disso, é um forte indício para o cliente de que está sendo ouvido atenta­ mente pelo profissional, e este fato per se gera menor resistência. Exemplo: • “Parece que você está dividido. Por um lado, se preocupa muito com o fato de que a bebida está prejudicando sua família e de que seu trabalho tam­ bém está sendo afetado. Você ficou especialmente surpreso porque, na mes­ ma semana, dois amigos lhe disseram que estavam preocupados com seu hábito de beber. Ao mesmo tempo, você certamente não se considera um alcoolista e acha que pode passar uma semana sem beber e não sofrer efei­ tos ruins. Isso deve ser confuso para você.” Ao final da sessão, é útil oferecer um resumo geral. Avise o cliente de que o fará. Utilize um tom de colaboração, permitindo-lhe acrescentar ou corrigir seu resu­ mo. Uma forma um pouco mais curta pode ser utilizada no início da sessão se­ guinte, aproveitando os progressos já feitos e fazendo uma ponte entre as sessões.

5. Eliciar Afirmações Automotivacionais Essa é uma estratégia mais orientada à resolução da ambivalência do cliente. A tarefa do terapeuta é facilitar a expressão, pelo cliente, de afirmações auto­ motivacionais, argumentos para a mudança. Há quatro tipos de afirmações automotivacionais: 1. reconhecimento do pro­ blema; 2. expressão de preocupação; 3. intenção de mudar e 4. otimismo em rela­ ção à mudança. Cada afirmação desse tipo faz a balança pender um pouco mais para a mudança. Exemplos: • “Eu acho que o problema é maior do que eu pensava. Não tinha percebido o quanto estou bebendo. Isso é sério!” • “Estou realmente preocupado com isso. Eu me sinto impotente. Como isso pôde acontecer comigo? Não posso acreditar!” • “Acho que está na hora de pensar em parar. Tenho que fazer alguma coisa. Como é que as pessoas abandonam um hábito como esse?”

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• “Acho que consigo fazer isso. Agora que me decidi, estou certo de que posso mudar. Vou superar esse problema.” Cada afirmação automotivacional do cliente deve ser refletida para ele. Assim, ele a ouvirá uma segunda vez. Quando fizermos um resumo, devemos incluí-las; desse modo, ele as ouvirá pela terceira vez! Como evocá-las? • Utilizando-se de perguntas abertas para explorar suas percepções, sua preo­ cupação, sua intenção de mudar e confiança em sua capacidade. • Utilizando-se da balança de decisão (listando o que o agrada e desagrada no uso que faz e na abstinência). • Aprofundando-se em um dado tópico motivacional levantado, de forma a reforçá-lo e a evocar outras afirmações automotivacionais. • Pedindo-lhe que descreva os extremos de suas preocupações, que imagine as piores conseqüências de seu comportamento atual. • Pedindo-lhe que se recorde de uma época anterior ao problema ter surgido e que a compare com sua situação presente (reconhecer o aumento da tole­ rância pode ser muito motivador). • Ajudando-o a visualizar um futuro modificado. “Se você decidir fazer a mu­ dança, quais são suas expectativas para o futuro?” • Explorando metas, perguntando ao cliente quais são as coisas mais im­ portantes em sua vida. O objetivo é gerar discrepância: descobrir pon­ tos nos quais o comportamento presente entra em choque ou prejudica valores e metas importantes para o cliente. Quando os valores estive­ rem definidos, perguntamos ao cliente como o problema se encaixa nesse quadro. • Fazendo uso do paradoxo: assumindo sutilmente o papel do lado “Não existe problema algum”: “Você veio aqui para conversar comigo sobre isso, mas ainda não me convenceu de que está realmente preocupado. Isso é tudo?”; “Não tenho certeza de que você acredita que poderia mudar, mes­ mo que quisesse”.

Outras Estratégias Motivacionais Método PARR P A R R

Perguntas Abertas Afirmar/Reforço + Refletir Resumir

A metodologia consiste em uma relação 2-1, ou seja, a cada duas alternativas de reflexão, reforço positivo ou resumo, fazer uma pergunta aberta. Não é indicada a realização de duas perguntas seguidas.

2 4 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Linhas Gerais • Falar menos que o seu cliente. • A resposta mais comum deve ser uma reflexão. • A cada duas opções de reflexão, reforço positivo ou resumo, fazer uma per­ gunta aberta. • Quando perguntar, usar perguntas abertas. • Evitar adiantar-se em relação à prontidão do cliente para a mudança.

Estratégias Práticas • Solicitar ao cliente que descreva um dia típico, de modo a poder colher dados sobre sua rotina, situações de risco, bem como dificuldades ambientais que possam representar obstáculos para a mudança. • Solicitar ao cliente que relate os prós e contras do consumo de substân­ cias: esta técnica, também chamada de balança decisória (Quadro 18.1), consiste em listar e discutir os aspectos positivos e negativos do compor­ tamento presente, proporcionando ao cliente uma percepção amplificada do que o uso da substância está lhe causando. Este exercício, quando bem conduzido, gera um sentimento confortável no cliente, que favorece a ex­ posição de sua ambivalência. • Fornecer informação quando solicitada pelo cliente ou para desfazer cren­ ças errôneas e mitos. • Identificar o que o cliente fazia no passado e o que pretende fazer no futuro, de modo a pesquisar a discrepância. • Escala de disposição: esta técnica consiste em suscitar no cliente o conhe­ cimento do quanto ele deseja realizar uma mudança em sua vida e do quanto se sente confiante para tal realização, por meio de uma pontua­ ção que o próprio cliente se atribui, conforme modelo (Quadro 18.2).

Q uadro 18,1 - Balança Decisória Vantagens

Consumo

Abstinência

Desvantagens

Entrevista Motivacional ■ 2 4 3

Q uadro 18.2 - Escala de Disposição Quão importante é, para você, realizar esta mudança? 0...1 ...2...3 ...4 ...5...6 ...7 ...8 ...9...10 Sem importância Extremamente importante

Quão confiante você se sente para realizar esta mudança? 0...1 ...2...3...4...5...6...7...8...9...10 Sem confiança Extremamente confiante

De acordo com a pontuação atribuída, podemos inferir o estágio motivacional do cliente (Quadro 18.3). • Perguntar sobre os extremos: ao não obter mudança em seu cliente, o pro­ fissional pode exagerar ou maximizar alguns atributos, de modo a gerar insight. Por outro lado, ao obterá mudança no cliente, os mesmos atributos podem ser minimizados. (Quadro 18.4).

Q uadro 18.3

- Níveis de Disposição para Mudança

Não preparado

Inseguro

Pré-contemplação

Preparado

6...7...S...

1... 2 ...

Contemplação

Preparação

Mudando 9.. .10 Ação

Q uadro 1 8 .4 - Maximização e minimização Animado Contente Calmo Seguro

Abatido Preocupado Irritado Indeciso

Desanimado Triste Nervoso Inseguro

Contatos Pós-consulta O risco de um cliente abandonar o tratamento após a primeira consulta é superior a 50%. As estratégias descritas anteriormente contribuem muito para que isso não aconteça, mas uma medida adicional aumenta significativamente a taxa de clientes que dão continuidade ao tratamento: um simples contato pós-consulta,

2 4 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

que aumenta a taxa de retorno em mais de seis vezes. Um contato simples, por meio de um telefonema pessoal após uma falta, reduz a taxa de abandono de 92 para 60%. Ou seja, uma simples expressão de preocupação e afeto pode ter impor­ tante efeito na motivação do cliente para retornar ao tratamento3.

Resistência Em geral, quanto mais um cliente resistir, menor será a probabilidade de que ele mude e maior a de que ele abandone o tratamento. Uma de nossas metas é evitar eliciar ou fortalecer a resistência. Como vimos, ela é altamente influenciada pelo estilo do terapeuta: ele pode aumentá-la ou diminuí-la3,4. Aresistência é um comportamento observável que ocorre durante o tratamento e sinaliza ao terapeuta que o cliente não está acompanhando sua linha de ação. Pode indicar que o terapeuta está utilizando estratégias inadequadas para o estágio de mudança em que o cliente se encontra3. Um grupo de pesquisa do Oregon criou um sistema engenhoso e muito útil para observar comportamentos de resistência durante sessões de tratamento que indicam que o cliente está se afastando do caminho de mudança. Em oposição a esses comportamentos estão as afirmações automotivacionais vistas anteriormente. São quatro categorias3: 1. Argumentar: aqui o cliente contesta o conhecimento, a experiência e a inte­ gridade do terapeuta, desafiando-o, depreciando-o ou hostilizando-o. 2. Interromper: o cliente corta a fala do terapeuta de maneira defensiva, sobre­ pondo-se a ele (falando junto) ou interrompendo-o. 3. Negar: o cliente não expressa disposição de reconhecer problemas, coope­ rar, assumir responsabilidades ou aceitar orientação. Culpa outras pessoas, discorda do terapeuta sem mostrar alternativa, justifica seu comportamento, alega que não corre riscos ou os minimiza, mostra-se pessimista ou derrotista, reluta quanto às orientações dadas e mostra contrariedade. 4. Ignorar o terapeuta: o paciente mostra-se desatento, não responde às per­ guntas, não reage e muda de assunto. Reações de resistência são normais, devem ser esperadas e não são motivos de preocupação, a menos que persistam ou se tornem o padrão do paciente3. A seguir, apresentamos algumas estratégias para lidar com a resistência3,4,6: • Utilização das reflexões descritas nos itens 2.1, 2.2, 2.3 e 2.4. • Mudança de foco: consiste em desviar a atenção do paciente daquilo que parece ser um obstáculo no caminho do progresso, ou seja, trata-se de con­ tornar as barreiras em vez de passar por cima delas. • Ênfase no controle e na escolha pessoal: deixar claro, desde o início do pro­ cesso, que, no fim das contas, é o paciente quem determina o que acontece, atribuindo a ele a responsabilidade integral pelos seus atos. O terapeuta funciona como um roteirista no processo.

Entrevista Motivacional ■ 2 4 5

• Reformulação: reformular as informações que o paciente está oferecendo sig­ nifica oferecer um novo sentido ou interpretação para elas, sob uma nova luz, a qual propicia mais chances de instauração da mudança. Uma oportunidade de reformulação para clientes com problemas com bebida é dada pelo fenô­ meno da tolerância. Muitos deles consideram sua capacidade de “beber bem” como um sinal de que estão seguros, quando, na verdade, essa informação sugere exatamente o oposto: a tolerância ao álcool é um fator de risco. Exemplo: C: “Não agüento mais tentar parar e não conseguir. Eu desisto.” T: “Realmente, muitas vezes é difícil ver a luz no final do túnel. Percebo seu esforço em parar e o admiro por isso. Lembre-se do processo de mudança que discutimos: quanto mais vezes você passar pelas fases, mais chance de chegar à manutenção você terá.”

Estratégias para Fortalecer o Comprometimento com a Mudança No momento em que o cliente estiver determinado a mudar, precisaremos trocar de estratégia, de forma a ajudá-lo a fortalecer seu compromisso. Não existe um mo­ mento ideal. O estágio da contemplação se parece mais com um longo continuumy cobrindo desde a prontidão incipiente até a decisão madura. Uma vez alcançado o final deste estágio, existe um período de tempo durante o qual a mudança deve ser iniciada. O reconhecimento de uma discrepância importante é suficiente­ mente desconfortável para ser mantido por muito tempo e, se a mudança não ocor­ rer, a pessoa provavelmente fará uso de defesas para diminuir seu desconforto3. Que sinais podemos utilizar para identificar o momento certo?Aí vão algumas dicas3: • Menor resistência: o cliente pára de argumentar, negar, interromper. • Menos perguntas sobre o problem a: existe uma sensação de conclusão. • Resolução: o cliente pode parecer mais calmo, por já ter tomado uma deci­ são. Pode-se seguir um momento de angústia e emotividade. • Afirmações automotivacionais: o cliente faz afirmações que refletem o reco­ nhecimento do problema, a preocupação, a abertura à mudança e o otimismo. • Mais perguntas sobre a mudança: pergunta o que pode fazer, como mudar. • Prefiguração: fala sobre como a vida poderia ser após a mudança, antecipa dificuldades se a mudança fosse feita ou discute as vantagens de mudar. • Experimentação: ele pode começar a experimentar mudar (ir a encontros dos AA, ficar sem beber alguns dias, ler um livro de auto-ajuda). Nem todos os sinais mencionados ocorrem ao mesmo tempo. Quando estiverem presentes, é hora de mudarmos nossas estratégias. Esse momento pode ser bas­ tante agradável, trazendo uma sensação de companheirismo entre terapeuta e cliente, e o ritmo fica mais rápido. Apesar disso, precisamos tomar cuidado para não subestimar a ambivalência, que pode se manter ao longo de todo o processo.

2 4 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Da mesma forma, não podemos “descarregar” todas as técnicas sobre o cliente, considerando-o pronto para todas elas, tampouco podemos correr o risco de dar-lhe informações insuficientes, pois o resultado disso seria um cliente perdido3.

Recapitulação A primeira coisa a fazer nesse momento de transição é um resumo da situação do cliente, que tem como objetivo reunir todos os motivos possíveis para a mu­ dança e, simultaneamente, reconhecer a relutância ou ambivalência do cliente. Esse resumo deverá conter, se possível, os seguintes itens3: • As percepções que o cliente tem do problema, do modo como elas se refle­ tem em suas afirmações motivacionais. • Reconhecimento da ambivalência do cliente, incluindo o que permanece de positivo ou atraente no comportamento-problema. • Revisão de quaisquer evidências objetivas que você tenha quanto à presença de riscos e problemas. • Reafirmação de quaisquer indicações que o cliente tenha dado de querer, pretender ou planejar mudar. • Sua própria avaliação da situação, particularmente nos pontos em que ela converge para as preocupações do cliente.

Perguntas-chave Nesse momento, não se diz ao cliente o que ele deve fazer, mas pergunta-se o que ele quer fazer. As perguntas, também aqui, devem ser «abertas, não permitindo res­ postas do tipo simlnão, pois têm como meta fazer o cliente pensar e falar sobre a mudança. O tema central das perguntas que tipicamente são feitas após a recapitula­ ção deverá ser o próximo passo. As respostas também deverão ser ouvidas com a es­ cuta reflexiva, de forma a esclarecer seus pensamentos e a encorajar mais exploração3. • “O que você acha que vai fazer?” • “Deve ser desconfortável para você agora, vendo tudo isso... Qual é o próxi­ mo passo?” • “Quais são suas opções?” • “Que caminho vamos tomar agora?” • “Como você gostaria que as coisas se resolvessem agora, idealmente falando?”

Informações e Orientações Com freqüência, durante essa fase, os clientes pedem orientações ou idéias, e é apropriado oferecê-las nesse momento. Convém, porém, não ficarmos muito ansio­ sos por oferecer conselhos e esperar por um convite direto. As orientações devem ser dadas de maneira impessoal, permitindo ao cliente julgar como elas se adequam à sua situação. Por esse motivo, é útil oferecermos um conjunto de opções (aumenta a sensação de liberdade de escolha do cliente, aspecto importante para a adesão)3.

Entrevista Motivacional ■ 2 4 7

Negociando um Plano As respostas do cliente às perguntas abertas e a provisão de informações e orien­ tações podem começar a dar origem a um plano de mudança, e o seu desenvolvi­ mento envolve: determinação de metas; análise das opções e montagem de um plano. 1. Determinação de metas: o primeiro passo é determinar metas claras, com perguntas-chave (Como você gostaria que as coisas fossem diferentes? Se tivesse certeza de sucesso total, o que mudaria?). Mais uma vez: as metas devem ser do próprio cliente. É melhor mantermos uma forte aliança de trabalho e começar pelo que é importante para ele. São muito comuns si­ tuações em que o terapeuta quer abstinência total e o cliente se recusa ou resiste. O importante é acompanhar o cliente, definindo metas aceitáveis e viáveis que representem progressos no caminho para a recuperação. Tenha certeza de que a meta pareça certa3. 2. Análise das opções: uma vez que as metas estejam claras e definidas, convém analisar os meios de alcançá-las. Nesse ponto, devemos fazer uma revisão das modalidades de tratamento disponíveis. No tratamento das dependên­ cias não existe uma única abordagem destacadamente eficaz. Existe uma literatura crescente sobre como adequar as estratégias de tratamento ao cliente, e ter familiaridade com elas é importante para ajudá-lo a selecionar a mais correta. Apesar disso, essa primeira escolha pode não ser a melhor, e é importante preparar o cliente para essa possibilidade3. 3. Montagem de um plano: pode ser útil preencher com o cliente um formulário de plano de mudança, resumindo suas respostas às seguintes perguntas3: • Os motivos mais importantes pelos quais quero mudar são... • Minhas metas principais, para mim mesmo, ao fazer uma mudança são... • Planejo fazer estas coisas: Ação

Momento

• Os primeiros passos que planejo dar para mudar são... • Outras pessoas poderiam me ajudar a mudar destas maneiras: Pessoa

Como poderia me ajudar

• Espero que meu plano tenha estes resultados positivos...

2 4 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

O resumo do plano nos conduz diretamente à questão do comprometimento, e isso envolve obter a aprovação e a concordância do cliente quanto ao plano e decidir sobre os próximos passos a serem dados. Isso pode ser feito com uma sim­ ples pergunta: “É isso que você quer?”. Também pode ser útil explorar dificuldades e relutância3. A experiência nos mostra que tornar público um plano de ação aumenta o comprometimento. Esse plano pode ser divulgado para o cônjuge (se estiver pre­ sente) e para outros membros da equipe, por meio de telefonemas dados do pró­ prio consultório. Se o cliente sentir que terá dificuldades, podemos fazer um ensaio. Mas, lembre-se: ele precisa consentir3.

C o n sid era çõ es F inais Noonan e Moyers fizeram uma revisão da literatura sobre a entrevista motivacional e de onze estudos analisados, nove mostraram a efetividade desta técnica em settings variados8. No entanto, algumas críticas lhe são feitas: é muito passiva; colabora para o estado de negação do cliente; demora muito tempo para fazer efeito; mantém a pessoa sem mudança nesse período e faz os terapeutas parecerem ingênuos. Existe também a noção de que a entrevista motivacional é ideal para todos os clientes. Como outros tratamentos das dependências, a entre­ vista motivacional não é eficaz para todos os indivíduos4. A entrevista motivacional se revela uma ferramenta útil quando clientes se mostram resistentes quanto à modificação de determinados comportamentos. Sua eficácia será determinada mediante a aplicação das estratégias adequadas ao es­ tágio de motivação em que o cliente se encontra, de forma prática e empática, totalmente oposta a um estilo confrontador e autoritário, podendo ser utilizada em diversas abordagens teóricas.

R e fe r ê n c ia s B ib lio g r á f ic a s 1. OLIVEIRA, M. S. Entrevista motivacional. In: CUNHA, J. A. e cols. Psicodiagnóstico -V . 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. Cap. 9, p. 88-95. 2. ROLLNICK, S., MILLER, W. R. What is motivational interviewing? Behav. Cog. Psych., 23:325-334,1985. 3. MILLER, W. R., ROLLNICK, S. Entrevista Motivacionai - preparando as pessoas para a mudança de comportamentos adictivos. Trad, de A. Caleffi e C. Dornelles. Porto Alegre: Artmed, 2001.293p. 4. JUNGERMAN, F., LARANJEIRA, R. Entrevista motivacional - a teoria e uma experiência de sua aplicação em grupos. In: FOCCHI, G. R. A. et al. Dependência Química: novos modelos de tratamento. 1. ed. São Paulo: Roca, 2001. Cap.2, p. 19-48. 5. ROLLNICK, S., MORGAN, M. Motivational interviewing: increasing readiness for change. In: WASHTON, A. M. Psychotherapy and Substance Abuse - a practitioner's handbook. New York: The Guilford Press, 1995. Chap. 9, p. 179-191. 6. JUNGERMAN, F. S., LARANJEIRA, R. Entrevista motivacional: bases teóricas e práticas. J. Bras. Psiquiat., 48(5): 197-207, 1999. 7. U.S. DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES, PUBLIC HEALTH SERVICE, SUBSTANCE ABUSE AND MENTAL HEALTH SERVICES ADMINISTRATION, CENTER FOR SUBSTANCE ABU­ SE TREATMENT Enhancing Motivation for Change in Substance Abuse Treatment. Rockville (MD), 1999. (Treatment improvement protocol -TIP series, n. 35). (313 references). 8. NOONAN, W. C., MOYERS, T. B. Motivational interviewing. J. Subst. Mis., 2:8-16, 1997.

CA PÍTU LO

i y -------------

Prevenção da Recaída S elm a B ordin N elia n a B uzi F

ig lie

R onaldo L aranjeira

I ntro dução O termo “prevenção de recaída” refere-se a uma ampla variedade de técnicas, quase todas cognitivas ou comportamentais. No entanto, convém ressaltar que a grande maioria dos programas de prevenção de recaída embasa-se no modelo teórico do processo de recaída, proposto por Marlatt, em 19851'3, para o qual vários outros autores con­ tribuíram após sua formulação pioneira1. Marlatt notou que a maioria dos tratamentos colocava ; muita ênfase em alcançar a abstinência e pouca atenção era dada à manutenção da mudança2.Aprevenção da recaída busca, essencialmente, mudar um hábito autodestrutivo e manter essa mudança1. Os autores descreveram dois níveis de intervenção: intervenções específicas e intervenções globais2. As intervenções específicas consistem na identificação de situações de alto risco para um determinado indivíduo, no desenvolvimento de estratégias para lidar efetivamente com essas situações e em mudanças nas reações cognitivas e emocionais associadas2. O próprio paciente ajuda ativa-; mente a identificar as situações que, para ele, se configu­ ram como sendo de alto risco, que podem envolver fatores intrapessoais (como estados emocionais negativos e positi­ vos) e f ou fatores interpessoais (como conflitos e pressão social). Identificadas tais situações, o paciente precisa en­ tão aprender mecanismos de manejo mais efetivos, incluindo estratégias cognitivas, atividades substitutivas planejadas in­ dividualmente e uso gratificante do lazer. As estratégias ( envolvem aprender a evitar riscos desnecessários e a li­ dar positiva e confiantemente com os riscos inevitáveis1.

2 5 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Essas intervenções têm também o objetivo de prevenir que um pequeno lapso ou escorregão se torne uma completa recaída2. I As intervenções globais focam o desenvolvimento de comportamentos positi­ vos e saudáveis para substituir aqueles associados com o abuso de substâncias e reforçam o não uso2. Marlatt discutiu o desequilíbrio do estilo de vida e o planeja­ mento velado da recaída por meio de uma série de decisões aparentemente irrelevantes13.0 objetivo da prevenção de recaída é bem mais amplo do que apenas ajudar o paciente a desenvolver habilidade para aprender a viver sem ter no álcool ou na droga uma prioridade. Seu comportamento de uso é apenas o ponto de partida para a modificação de todo um estilo de vida, de um jeito de ser no mundo4.

T eo ria

de

A prendizado S o cia l

O modelo proposto por Marlatt embasa-se na Teoria de Aprendizagem Social de Bandura3. Segundo essa teoria, o comportamento de uso ou abuso de substâncias é aprendido, e sua freqüência, duração e intensidade aumentam em função dos bene­ fícios psicológicos alcançados5. Da mesma maneira, este mesmo comportamento pode ser alterado, mudando-se os fatores que sabidamente o afetam, tais como as con­ dições antecedentes, as crenças, expectativas e as conseqüências que o seguem2. ATeoria de Aprendizagem Social reconhece a importância e interação de fato­ res biológicos, genéticos e psicossociais: ou seja, é possível que uma vulnera­ bilidade genética interaja com fatores psicossociais, resultando em habilidades deficientes que requeiram treinamento e remediação6. Esta teoria afirma que o uso de substâncias é um mecanismo aprendido, por meio de reforço e de modela­ gem, que tem como finalidade reduzir o estresse. Conforme o uso da substância continua, o indivíduo poderá utilizá-la com mais freqüência, e em doses maiores, para evitar os sintomas de abstinência5. Desde seu início, a Teoria de Aprendizagem Social procurou embasar-se nas pesquisas clínicas do álcool e seu abuso para formular alguns princípios que cons­ tituem uma versão compreensiva de uma abordagem conhecida como Teoria de Aprendizagem Social do Uso e Dependência do Álcool. Estes princípios são: mo­ delagem, reforçadores, estímulo ambiental e auto-eficácia6. O princípio da m odela^m envolve uma noção de desenvolvimento: aprender a beber acontece como parte do crescimento em uma determinada cultura, onde as influências sociais da família e dos amigos formam comportamentos, crenças e expectativas no jovem a respeito do álcool. Ou seja, o consumo de álcool pelo jo­ vem é influenciado por modelos de consumo e criação de expectativas dos benefícios do comportamento de beber. A mídia desempenha uma importante função nesse processo, associando o comportamento de beber a benefícios como potência sexual, força e sucesso6. O conceito de reforçadores é outro princípio central da Teoria de Aprendizagem Social. O comportamento de consumo de álcool ou drogas é fortemente influenciado por reforçadores positivos ou reforçadores negativos. Os reforçadores positivos es­ tão mais associados à busca de prazer: sensação de euforia, maior sociabilidade, atenção de outras pessoas, sensação de calor (derivada do aumento do fluxo sangüíneo na pele), etc. Os reforçadores negativos se associam mais à evitação de

Prevenção da Recaída ■ 251

sofrimento: redução da tensão ou de humor negativo, alívio de dor, redução da ini­ bição, etc. Obviamente, os reforçadores positivos e negativos do consumo de álcool ou drogas devem ser pesquisados ao se planejar o tratamento de pacientes6. Se um determinado comportamento, em uma situação específica, foi previamente refor­ çado, então as expectativas para esta situação e o valor percebido de reforço são altos, havendo muita probabilidade de o comportamento voltar a ocorrer. É o que Bandura chama “expectativa de ação-resultado4”. Um outro princípio envolve o papel do estímulo am biental Este estímulo pode eliciar o comportamento de uso de álcool ou drogas tanto por meio do condicionamento clássico pavloviano quanto pelo condicionamento operante (reforços positivo e negativo). Os estímulos associados à ingestão alcoólica ou à abstinência eventualmente tornam-se capazes de eliciar respostas fisiológi­ cas que, por sua vez, se tornam outros estímulos discriminativos que ocasio­ nam o comportamento de beber. Por exemplo: a visão de uma garrafa de cerveja (estímulo ambiental) desperta o craving (reflexo condicionado pavloviano) que, por sua vez, causa um desconforto (estímulo discriminativo). O sujeito então bebe para aliviar esse desconforto (reforço negativo). A resposta terapêutica a esse fenômeno pode envolver a identificação e rearranjo desses estímulos ambientais: os pacientes são orientados a evitar certas situações e pessoas con­ sideradas de alto risco, especialmente nas fases iniciais da recuperação, até que tenham tido oportunidade de aprender habilidades cognitivas e comportamentais para acabar com os estímulos que eliciam o craving ou o comportamento de uso6. O quarto princípio fundamental da Teoria de Aprendizagem Social do Uso e Dependência de Álcool é o conceito de auto-eficácia, de Bandura. Auto-eficácia é o sentimento de ser capaz de resolver com sucesso uma de­ terminada situaçãoj E é essa estimativa de chances de ser bem-sucedido que determinará a seleção do comportamento6. A importância da auto-eficácia não pode ser negligenciada: pesquisas indicam que uma baixa auto-efi­ cácia está substancialmente associada a recaídas e a alta auto-eficácia está positivamente correlacionada à abstinência5. Logo, um plano de tratamento eficaz deve ser planejado de forma a desenvolver uma forte e realista confi­ ança do paciente em sua capacidade para lidar com as demandas da vida, sem o uso de substâncias6. Marlatt coloca que “a probabilidade de beber ocorre em função do nível de tensão percebido na situação, o grau de controle pessoal, a disponibilidade de respostas adequadas para lidar com a situação, a disponibilidade de álcool e as expectativas de resultado positivo oferecidas pelo álcool, como resposta para lidar com a situação”. Portanto, o beber pode ser determinado por uma gama de expectativas, aprendidas ao longo do tempo, que privilegiam o relati­ vo reforço oferecido pelo uso do álcool, negligenciando tantos outros compor­ tamentos mais adequados que poderiam estar acessíveis ao indivíduo. As expectativas relacionadas a bebidas alcoólicas já existem antes mesmo que o indivíduo as experimente pela primeira vez, e são estimuladas pela nossa cul­ tura química. A ação farmacológica do álcool só dará maior refinamento a es­ sas expectativas4.

2 5 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

P rocesso

da

R e c a íd a : D eterm inantes I m ediatos

Em primeiro lugar, presume-se que o indivíduo experiencie um senso de controle (auto-eficácia), enquanto mantém a abstinência. Quanto maior o tempo de absti­ nência, maior será sua percepção de auto-eficácia. Este senso de controle continuará até que a pessoa encontre uma situação de alto risco. Uma situação de alto risco é definida, de maneira ampla, como qualquer situação que represente uma ameaça ao senso de controle e aumente o potencial risco de recaída. Diante de uma situação de alto risco, o indivíduo apresenta ou não uma resposta de enfrentamento eficaz. Aquele que lida eficazmente com a situação tende a experi­ mentar um senso de domínio, cujo efeito é cumulativo e, conseqüentemente, dimi­ nui ainda mais a probabilidade de uma recaída. Quando não há uma resposta de enfrentamento, o indivíduo tende a experimentar uma diminuição na auto-eficácia (impotência e tendência a render-se passivamente). Esse estado, associado às expectativas positivas quanto aos resultados, aumenta a probabilidade de recaída, que poderá ser desencadeada com o uso inicial da substân­ cia, ou lapso. As reações cognitivas e afetivas ao primeiro lapso (ocorrido após um pe­ ríodo de abstinência), e principalmente à causa à qual se atribui o lapso, exercem uma influência significativa que pode determinar se este lapso será seguido ou não por uma recaída. Essas reações foram chamadas de efeito da violação da abstinência. Ase­ guir, discutiremos cada uma dessas etapas do processo de recaída, bem como as inter­ venções específicas apropriadas, segundo a visão de Marlatt3. (Figura 19.1).

Situações de Alto Risco {

Situação de alto risco significa qualquer determinante interno (psicológico) ou externo (ambiental) que ameace a percepção de controle (auto-eficácia) do indivíduo3. Em uma análise de 311 episódios iniciais de recaída, obtidos de clien­ tes com uma variedade de comportamentos problemáticos (ingestão alcoólica, tabagismo, adicção em heroína, jogo compulsivo e excesso alimentar), Cummins, Gordon e Marlatt7identificaram três situações primárias de alto risco associadas a

Figura 19.1 - Modelo Cognitivo-comportamental do Processo de Recaída3.

Prevenção da Recaída ■ 2 5 3

quase 75% de todas as recaídas relatadas: estados emocionais negativos (35% de todas as recaídas na amostra); conflitos interpessoais (16% das recaídas) e pres­ são social (20% das recaídas). Estados emocionais negativos são aquelas situações nas quais o indivíduo está experienciando um estado de humor ou sentimento negativo ou desprazeroso, como frustração, raiva, ansiedade, depressão ou tédio, antes ou no momento da ocorrência do primeiro lapso. Conflitos interpessoais são aquelas situações que envolvem um conflito em andamento ou relativamente recente, associado, em qualquer relacionamento interpessoal, tal como casamento, amizade, membros familiares ou relações de trabalho. Discussões e confrontações ocorrem freqüen­ temente nessa categoria. E, finalmente, pressões sociais são aquelas situações nas quais o indivíduo está respondendo à influência de outra pessoa ou grupo de pes­ soas exercendo pressão para que ele se engaje no comportamento tabu. A pressão social pode ser direta (contato interpessoal direto com persuasão verbal) ou indi­ reta (estar na presença de outros que se engajam no mesmo comportamento-alvo, ainda que sem qualquer pressão direta).

Respostas de Enfrentamento Se o indivíduo for capaz de executar uma resposta de enfrentamento cognitiva ou comportamental eficaz diante da situação de alto risco (ser assertivo, por exem­ plo, no combate à pressão social), a probabilidade de recaída diminui significativa­ mente. Aquele que lida eficazmente com a situação tende a experienciar um senso de domínio ou controle. Essa sensação de domínio cria, no indivíduo, uma expecta­ tiva de que será capaz de lidar bem nas próximas ocasiões. Àmedida que a duração da abstinência (ou período de uso controlado) aumenta, e ele é capaz de lidar efeti­ vamente com mais e mais situações de alto risco, a percepção de controle aumenta de uma forma cumulativa e a probabilidade de recaída diminui proporcionalmente. A pessoa que não é capaz de lidar eficazmente com uma situação de alto risco pode jamais ter adquirido as habilidades de enfrentamento necessárias, ou talvez a resposta necessária tenha sido inibida por medo ou ansiedade. Pode ser, ainda, que o indivíduo não consiga reconhecer e responder ao risco envolvido antes de ser demasiado tarde. Qualquer que seja a razão, a ausência de uma resposta de enfrentamento tende a diminuir a sensação de auto-eficácia do indivíduo. “Não adianta, não consigo lidar com isso” é uma reação comum. À medida que a autoeficácia diminui diante da situação de alto risco precipitadora, as expectativas do indivíduo, para lidar eficazmente com situações problemáticas subseqüentes, tam­ bém começam a cair. Se a situação também envolve a tentação de engajar-se no comportamento proibido, como um meio de tentar lidar com o estresse envolvido, o terreno está preparado para uma provável recaída.

Expectativas de Resultados Positivos A probabilidade da recaída aumenta se o indivíduo tiver expectativas positi­ vas quanto aos efeitos da substância (ou do comportamento) envolvida. Freqüen-

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temente, a pessoa antecipa os efeitos positivos imediatos, com base na expe­ riência passada, e ignora as conseqüências negativas. A sedução da gratifica­ ção imediata toma-se a figura dominante na área perceptiva, enquanto a realidade das conseqüências totais do comportamento é negligenciada. Para muitas pes­ soas, fumar um cigarro ou tomar uma bebida está associado, há muito tempo, a lidar com o estresse. “Uma bebida me ajudaria a passar por isso” ou “Se eu fumar, vou me sentir mais relaxado” são crenças comuns. A combinação da incapacidade para lidar eficazmente com uma situação de alto risco com expectativas de resultado positivo para os efeitos da antiga e habi­ tual forma de enfrentamento aumenta imensamente a probabilidade de ocorrên­ cia de um lapso inicial. Por um lado, o indivíduo precisa enfrentar uma situação de alto risco sem qualquer resposta de enfrentamento disponível e a auto-eficácia diminui; por outro, existe a sedução do hábito antigo: a bebida ou a droga. Neste ponto, a menos que ocorra uma resposta de enfrentamento ou uma súbita mu­ dança na circunstância no último minuto, o indivíduo pode atravessar a fronteira da abstinência (ou uso controlado) para a recaída (uso descontrolado), por meio de um uso inicial ou lapso.

Uso Inicial da Substância: Lapso e Recaída Um aspecto polêmico dos modelos cognitivo e comportamental do alcoolis­ mo é o conceito de lapso e recaída, muito diferente do modelo médico (que vê o alcoolismo como doença e não como comportamento aprendido), onde o indicativo de recaída é qualquer consumo de bebidas alcoólicas, numa visão de tudo ou nada, em que os casos são tidos como sucesso (manutenção da abstinên­ cia total) ou fracasso (qualquer violação da abstinência)4, A recaída, em perspectiva, não é vista como uma catástrofe inexplicável pelo modelo de prevenção de recaída, mas como um evento que acontece por meio de uma série de processos cognitivos, comportamentais e afetivos1. Um lapso refere-se a um escorregão, descuido ou falha. Uma recaída refere-se a uma retomada do antigo padrão de consumo alcoólico, a um retorno ao beber nos mesmos níveis anteriores à intervenção terapêutica ou abstinência3. Os lapsos ou escorregões durante a abs­ tinência são inevitáveis e vistos como um ponto crítico, a partir do qual o indivíduo pode retomar à abstinência ou desenvolver um completo padrão de recaída como Iresposta ao efeito da violação da abstinência proposta pelo próprio indivíduo2.

Efeito da Violação da Abstinência Se o uso inicial ou lapso evoluirá ou não para uma completa recaída depende­ rá, em grande parte, das percepções da "causa” deste lapso e das reações associa­ das à sua ocorrência. A abstinência é um veredicto absoluto e uma única dose de álcool ou um único cigarro é suficiente para violar a regra da abstinência, e esta violação não pode ser desfeita. Areação a essa transgressão foi chamada de efeito da violação da abstinência (EVA).Vários fatores contribuem para a intensidade do EVA: a força do compromisso, esforço despendido, duração da abstinência,

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envolvimento de outras pessoas significativas, percepção do lapso como opção voluntária, etc. Outros dois elementos cognitivo-afetivos são importantes deter­ minantes da intensidade do EVA: dissonância cognitiva e auto-atribuição. A dissonância cognitiva refere-se a uma disparidade entre as cognições ou cren­ ças do indivíduo sobre si mesmo e a ocorrência de um comportamento incoerente: o indivíduo que se vê como abstêmio (crença) e faz uso de álcool (comportamento incoerente), por exemplo. A dissonância resultante é experienciada como conflito ou culpa: “Eu não deveria ter bebido, mas bebi” Ora, um conflito pede uma resolu­ ção. Uma reação dissonante precisa ser reduzida. Dessa forma, por exemplo, aquele indivíduo que não “resistiu à tentação” pela primeira vez pode continuar a beber após o primeiro lapso na tentativa de aliviar o conflito e a culpa associados à pró­ pria transgressão. Uma outra forma de resolver o conflito, é mudando a auto-imagem: “Eu sou um alcoolista mesmo, e não consigo me controlar depois do primeiro gole”. Em ambas as formas de resolução do conflito, o resultado é o mesmo: aumento da probabilidade de que o lapso se transforme numa recaída. O segundo componente cognitivo do EVA é o efeito da percepção da causa da ocorrência do lapso: em vez de vê-lo como uma resposta a uma situação particular­ mente difícil (específica e temporária), o indivíduo vê, como causas, fatores como falta de força de vontade ou fraqueza pessoal (global e permanente). Ora, qualquer pessoa se sentirá mais confiante para resolver um problema específico e temporário do que um problema global e permanente. Por exemplo, uma pessoa que pensa: “Fumei porque ela me pegou desprevenida, quando entrou no carro, e me ofereceu um cigarro”terá mais chances de evitar um segundo cigarro do que a pessoa que pensa “Eu não consigo resistir à tentação do primeiro cigarro”. Se a pessoa se sente impotente para resistir ao primeiro gole, sua expectativa de resistir ao segundo ou terceiro será proporcionalmente menor. Uma atribuição global pressupõe que a impotência ocorrerá em diversas situações e uma atribuição especí­ fica implica impotência apenas na situação original. Uma atribuição permanente pressupõe que a impotência permanecerá no tempo, enquanto a atribuição tem­ porária implica dizer que a impotência é passageira.

I ntervenções E specíficas Como exposto anteriormente, as intervenções específicas consistem na iden­ tificação de situações de alto risco para determinado indivíduo, no desenvolvi­ mento de estratégias para lidar efetivamente com essas situações e em mudanças nas reações cognitivas e emocionais do indivíduo.2A Figura 19.2 oferece uma vi­ são geral e esquemática das várias estratégias específicas de intervenção. Como se pode observar, para cada uma das etapas do processo de recaída existem inter­ venções que podem ser utilizadas com o paciente.

Intervenções em Situações de Alto Risco Aprimeira etapa na prevenção de recaída é ensinar o paciente a reconhecer as situações de alto risco que podem precipitar ou desencadear uma recaída. O quanto

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Figura 19.2 - Prevenção de Recaída: Estratégias Específicas de Intervenção3.

antes ele for capaz de se conscientizar de estar envolvido em uma cadeia de even­ tos que aumenta a probabilidade de um uso inicial, mais cedo poderá fazer algo a respeito. Marlatt sugere que se pense a respeito como uma auto-estrada e no paciente como um motorista que precisa ser treinado para reconhecer sinais de perigo para poder evitar os acidentes de percurso. Diversos métodos podem ser utilizados para ajudar os pacientes a identificar as situações de alto risco, descritos a seguir: a. Automonitoramento: o paciente é encorajado a manter um registro contí­ nuo da ocorrência do comportamento de uso da substância e das circuns­ tâncias em que se deu (dia, hora, o que estava acontecendo, estado de humor antes e depois do uso, etc.). Caso o paciente já esteja abstinente, os mesmos registros relacionados às intenções, compulsões e desejos de uso também podem ser feitos, bem como às habilidades utilizadas para evitá-los, e se foram bem-sucedidas ou não. O automonitoramento funciona como ins­ trumento de avaliação e também como uma estratégia de intervenção, uma vez que o paciente vai se conscientizando cada vez mais do comportamento de uso, a cada nova avaliação.

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b. Avaliações de auto-eficácia: este procedimento envolve a apresentação de uma lista de várias situações de alto risco e a solicitação ao cliente para ava­ liar o grau de tentação que tende a experienciar e o grau de segurança que sente sobre sua capacidade de lidar efetivamente (evitar um lapso) em cada uma dessas situações. Uma variação deste método, o Teste de Competência Situacional, consiste em perguntar ao paciente o que ele realmente faria se estivesse na situação descrita (o que nos dará uma idéia sobre as suas res­ postas de enfrentamento). c. Descrições de episódios passados ou fantasias de recaída: as recaídas pelas quais o pacientp já passou, ou teme passar, podem ser utilizadas como fon­ tes de informação e aprendizado. Quais foram as circunstâncias que culmi. naram ou culminariam com o uso inicial? Que habilidade(s) seria(m) necessária(s) para enfrentar essas situações? De que maneira o uso inicial evolui para uma recaída? O que o paciente pensa/sente a respeito do uso inicial? A que atribui a causa?

Intervenções em Respostas de Enfrentamento Uma vez identificadas as situações de alto risco, é preciso que o paciente apren­ da a lidar com elas, a enfrentá-las com uma resposta efetiva. Em alguns casos, pode ser melhor simplesmente evitá-las, e é o que recomendamos que o paciente faça, especialmente no início do tratamento, até que reúna condições mais ade­ quadas ao enfrentamento. Porém, muitas vezes, tais situações não podem ser pre­ vistas ou evitadas e é preciso que o paciente utilize estratégias alternativas para “atravessá-las” sem fazer uso da substância. a. Dessensibilização sistemática: técnica da terapia comportamental que en­ volve um planejamento de aproximação gradual, passo a passo, da situa­ ção provocadora de ansiedade (ver também no Cap. 16). Esta técnica é especialmente útil para aqueles pacientes cujas respostas de enfren­ tamento estão bloqueadas por medo ou ansiedade (situações fóbicas, por exemplo). b. Treinamento de habilidades: as abordagens de treinamento de habilida­ des são especialmente úteis para aqueles pacientes que mostram deficiên­ cias em seu repertório de habilidades e requerem que o terapeuta os ensine a praticá-las, por meio de uma abordagem sistemática e estruturada, envolvendo componentes de instrução direta, modelagem e ensaio comportamental. Recomendamos, especialmente, o trabalho desenvolvido pelo Dr. Peter Monti, David B. Abrams, Ronald M. Kadden e Ned L. Cooney, apresentado no livro TreatingAlcoholDependence, cujos protocolos serão encontrados no final deste capítulo, no Apêndice. c. Aabordagem preferida por Marlatt combina o de treinamento da capacidade geral de solução de problemas (ver Cap. 16) com treinamento específico de habilidades (ver item b). A capacidade de solucionar problemas em

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situações estressantes dá às pessoas maior flexibilidade e adaptabilidade em situações problemáticas, em vez de confiar apenas no aprendizado de­ corado de diversas habilidades isoladas que podem ou não ser generaliza­ das para vários contextos. d. Ensaio de recaída: existem algumas situações que não podem ser treinadas na vida real e é para estas situações que esta técnica é indicada. O terapeuta estimula o paciente a imaginar/visualizar a situação de alto risco e inclui cenas nas quais o paciente se imagina engajando-se em respostas de enfrentamento apropriadas. Este procedimento, também conhecido como modelagem encoberta, pode ser utilizado para ajudar os pacientes a lidar com suas reações a um lapso, pelo ensaio de técnicas de reestruturação cognitiva. e. Treinamento de relaxamento e manejo do estresse. estas técnicas têm o obje­ tivo de aumentar a capacidade geral do indivíduo para lidar com o estresse, provendo um aumento da percepção global de controle, reduzindo, assim, a “carga” de estresse desencadeada por uma situação qualquer. Incluem trei­ namento de relaxamento muscular progressivo, meditação, etc.

Intervenções em Expectativas de Resultado Positivo do Uso da Substância Após um período de abstinência, ocorre uma mudança nas atitudes e crenças do paciente sobre os efeitos da substância utilizada anteriormente e a expectativa de um resultado positivo para os efeitos imediatos torna-se uma força motivadora potente para retornar ao uso, principalmente quando ele precisar enfrentar uma situação de alto risco ou estiver reagindo a um estilo de vida desequilibrado. Marlatt chamou esse fenômeno de Problema da Gratificação Imediata. Educar o paciente a respeito dos efeitos imediatos e retardados da droga pode ajudar a evitar a ten­ dência de ver “a grama mais verde” do outro lado do muro da abstinência. É pre­ ciso contrabalançar os efeitos iniciais imediatos, agradáveis, com informações a respeito dos efeitos e riscos do uso excessivo sobre a saúde física, mental e sobre os relacionamentos. É também importante a utilização da matriz de decisões como uma forma de ajudar o paciente a pensar para poder decidir entre manter a abstinência ou reto­ mar o hábito de usar álcool ou drogas. A matriz orienta o pensamento a respeito das conseqüências imediatas (positivas e negativas) e das conseqüências tardias (positivas e negativas) com relação a qualquer uma das posições: abstinência ou uso. O Quadro 19.1 contém uma matriz de decisões preenchida.

Intervenções para Frear o Uso Inicial É conveniente que o paciente esteja preparado, de antemão, para lidar com o possível uso inicial da substância e para aplicar alguns “freios” cognitivos e comportamentais, de modo que o lapso inicial não se transforme numa recaída plena. A melhor forma de se fazer isso é combinar treinamento de habilidades de enfrentamento e reestruturação cognitiva.

Prevenção da Recaída ■ 2 5 9

Q u a d ro

19.1 - Matriz de Decisões3 Conseqüências Imediatas

Manter a abstinência do cigarro

Conseqüências Tardias

Positivas

Negativas

Positivas

• Auto-eficácia aumentada • Aprovação social • Estado físico melhorado

• Negação da gratificação • Desconforto da abstinência • Frustração/raiva

• Autocontrole

• Ganho financeiro

• Ganho de peso

aumentado • Evitação de doenças • Ganho financeiro

Negativas

• Negação da gratificação (torna-se menos intensa)

• Evitação de desaprovação social

Retomar o hábito de fumar

• Gratificação imediata

• Remoção do desconforto da abstinência • Perda de peso

• Culpa + atribuição • Gratificação de ausência de continuada controle • Censura social • Efeitos físicos negativos • Cheiro

• Autocontrole diminuído • Riscos para a saúde • Perda financeira • Desaprovação social contínua

As habilidades comportamentais envolvem ensinar o paciente a moderar ou controlar o comportamento, uma vez que este ocorra. Esses comportamentos podem estar especificados num “contrato de recaída”, a ser firmado em concor­ dância com o paciente, que pode incluir: • Adiamento do uso da substância por, pelo menos, 20 minutos. Isso favo­ recerá que o paciente pense antes de se engajar no uso, em vez de ceder a um impulso. • Utilizar a matriz de decisões, antes de se engajar no uso. • Se o uso inicial não puder ser evitado, deverá ao menos ser contido. Assim, o uso do álcool deve ser limitado a uma dose, em um bar ou restaurante e o cigarro a apenas uma unidade, que deverá ser solicitada a alguém em vez de se comprar um maço inteiro. • Depois disso, o paciente deverá concordar em aguardar pelo menos 1 hora antes de engajar-se completamente no comportamento de uso. O período imediatamente após o lapso é crucial para a prevenção da recaída total, já que é quando a maioria das pessoas experienciará o efeito da violação da abstinência. Durante esse período, o paciente deverá concordar em ler cartões lembretes, especialmente preparados para esses momentos, e tentar ativa­ mente outrós procedimentos de reavaliação. Nesse momento, poderá telefo­ nar para o terapeuta ou para alguém que o apóie na decisão de conter o uso.

2 6 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

O que Fazer se um Lapso Ocorrer O lapso é um momento de crise e representa tanto uma oportunidade (de aprendizado) quanto um perigo (de recair) e algumas estratégias podem ser apli­ cadas no momento imediatamente posterior ao evento. As estratégias a seguir podem ser desenhadas segundo as necessidades de cada paciente e resumidas na forma de cartão lembrete, o qual o paciente levará sempre consigo, numa carteira ou bolsa. • Pare, olhe e escute. Pare tudo que estiver fazendo e recolha-se a um lugar tranqüilo, onde não poderá ser perturbado ou distraído por várias tenta­ ções. Olhe, observe, escute e entenda o que está acontecendo. É uma si­ tuação similar a um pneu que fura (lapso). Esta situação requer que o motorista encoste seu veículo em um local seguro. Assim, poderá obser­ var o estrago, pensar no que poderá ser feito e agir. • Mantenha a calm a. A primeira reação provavelmente será a de sentir-se culpado e fracassado, o que é uma reação normal, faz parte do efeito da violação da abstinência (EVA). Pensar apenas é inofensivo. O perigo está em ceder aos pensamentos, desistir do controle e engajar-se no compor­ tamento de uso. O que se pode fazer é colocar-se como observador, como um espectador diante de uma tela na qual se desenrolam diálogos de um drama, e esperar que o filme termine. Lembra-se do Garfield? Quando tem vontade de trabalhar, ele se deita quietinho e espera até que a vontade tenha passado... Um lapso é um lapso, não é uma recaída. É um equívoco, não um fracasso total. • Renove seu comprometimento. Depois de um lapso, o problema mais difícil a ser enfrentado é a motivação. Reveja as razões pelas quais você decidiu mudar. Lembre-se dos benefícios que pode obter a longo prazo com essa mu­ dança. Inicie uma conversa íntima entre o lado que deseja continuar ade­ rindo ao objetivo original e o lado que quer desistir. Reflita, de maneira otimista, sobre seus sucessos passados, em vez de se focar em seu revés atual. Você acredita realmente que um único lapso anule todo o progresso feito até aqui? É justo reprovar um aluno em função de um único erro? Um único erro significa que nada foi aprendido? • Reveja a situação que o levou ao lapso. Não ceda à tentativa de culpar-se. Em vez disso, indague a si mesmo sobre as circunstâncias associadas ao lapso: que eventos o levaram ao lapso? Houve algum sinal que o precedeu? Houve envolvimento de outras pessoas? Qual era seu estado de humor? Como estava se sentindo? O que eu estava pensando? Sua motivação pode ter sido enfraquecida por fadiga, efeito de outra droga, pressão social, con­ flitos ou outros fatores? Tentou evitar ou enfrentar a situação de alto risco de alguma maneira? Que pensamentos alternativos poderia ter tido? Como poderá lidar com essas situações no futuro? • Faça um plano imediato para recuperação. Livre-se do maço de cigarros, da droga ou da bebida. Afaste-se das situações de alto risco. Saia, faça uma caminhada, cante uma música, telefone para um amigo que o apoie. Se não

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for possível sair fisicamente, saia psicologicamente: feche os olhos, respire fundo, relaxe e imagine-se num lugar maravilhoso, o sol aquecendo-o de forma muito agradável, ou a brisa refrescando-o, envolvendo-o completa­ mente. Planeje uma atividade alternativa: exercícios físicos ou algo emocio­ nante, que drene sua energia excessiva. Faça algo bom para si mesmo. Se não puder evitar a culpa, imponha-se uma penitência positiva e saudável: fazer uma boa ação, orar ou rezar. • Peça aju da. Peça ajuda aos amigos com quem pode contar: seja para encorajá-lo, oferecer-lhe atividades alternativas ou sugerir modos de en­ frentar a situação. Se estiver sozinho, ligue para seu terapeuta.

Intervenções sobre o Efeito da Violação da Abstinência O principal objetivo da reestruturação cognitiva é combater os componentes cognitivos e afetivos do efeito da violação da abstinência (EVA). Em vez de reagir ao primeiro lapso como um sinal de fracasso pessoal caracterizado por conflito, culpa e atribuição interna (a si mesmo), o paciente precisa aprender a reconceitualizar o episódio como um evento isolado e independente, a vê-lo como um engano, em vez de um desastre que jamais poderá ser desfeito. As reações a um deslize freqüentemente estão carregadas de uma bagagem cognitiva ex­ cessiva, que tem o efeito de colocar mais peso sobre o indivíduo e tornar mais difícil seu engajamento em um comportamento de enfrentamento construtivo. Os problemas de atribuições normalmente embasam-se em suposições maladaptativas e erros cognitivos e as técnicas da terapia cognitiva são bastante adequadas nesses momentos (desafios de pensamentos automáticos e crenças, reatribuições, descoberta orientada, etc.). A seguir, é apresentada uma descrição de algumas estratégias gerais de reatribuição para combater suposições errôneas e erros cognitivos associados aos lapsos iniciais. • Um lapso é similar a um equívoco, a um erro no processo de aprendizado: todo processo de aprendizado pressupõe erros. Se a mudança de hábitos é o que está sendo aprendido, o lapso é o erro implicado no processo. Quan­ do estamos aprendendo a andar de bicicleta, caímos, e com isso aprende­ mos que é preciso ir mais devagar nas curvas, por exemplo. Aprendemos com os nossos erros. A literatura do aprendizado apoia a noção de que se aprende mais com os erros do que com os acertos. • Um lapso é um evento específico e único no tempo e no espaço: errar uma equação matemática hoje não implica errar sempre no futuro. O paciente deve ser encorajado a evitar a supergeneralização e a focar-se no aqui e agora, evitando trazer “excesso de bagagem” do passado (“Sempre que experienciava um lapso no passado, eu perdia o controle”) ou fazer proje­ ções para o futuro (“Agora que fumei um cigarro, não haverá jeito de parar”). Os cartões lembretes podem trazer a seguinte mensagem: “Uma andorinha não faz verão. Um gole é apenas o que é: um simples gole e não implica, necessariamente, que eu tenha que beber a garrafa toda”.

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• O lapso pode ser reatribuído a fatores externos, específicos e controláveis: como vimos anteriormente, a magnitude do EVAaumenta dramaticamente quando o indivíduo atribui a causa do lapso a fatores internos, permanentes e glo­ bais, como a falta de força de vontade. A reatribuição exigirá um cuidadoso exame do episódio do lapso para determinar a influência de diversos fato­ res em sua ocorrência: nível de dificuldade da situação de alto risco, ade­ quação da resposta de enfrentamento (se tiver ocorrido), déficits transitórios na motivação (por exemplo, fadiga, estresse, estilo de vida desequilibrado) e singularidade geral da situação. A finalidade dessa reatribuição é isolar fatores controláveis: a situação externa pode ser modificada, novas respos­ tas de enfrentamento podem ser aprendidas, o estresse pode ser reduzido, os hábitos de estilo de vida podem ser modificados. Ou seja, os fatores são externos, específicos e controláveis. • O lapso pode ser transformado em prolapso, em vez de uma recaída: o aspec­ to em questão aqui é o significado que se atribui ao lapso. A“catastrofização” é um erro cognitivo que tem como conseqüência a previsão do pior resultado possível: um lapso = recaída = colapso. Por outro lado, o lapso também pode ser interpretado como uma oportunidade importante de aprendizado, de aumentar a conscientização sobre fontes de estresse e necessidade de trei­ namento de habilidades. Essa conceituação mais otimista do lapso é vista como um prolapso: uma queda “para frente” e não uma “queda para trás”, que tende a aumentar a capacidade e motivação do paciente para um enfrentamento efetivo. • A abstinência ou controle estão sempre próximos: um erro cognitivo comum, que os pacientes cometem após um lapso (uso inicial), é presumir que a abstinência não pode ser readquirida e a recaída é um resultado inevitá­ vel. No entanto, o fato é que a abstinência é um estado que pode ser readquirido simplesmente não reiniciando o comportamento de uso: tudo o que o paciente precisa fazer é evitar o próximo trago, a próxima dose e ter sucesso neste esforço é readquirir o controle.

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Como vimos, o alto risco está associado ao desencadeamento do uso inicial, após um período de tempo de abstinência, e na grande maioria das vezes, o pa­ ciente não está esperando sua ocorrência ou está mal preparado para lidar efeti­ vamente com ela. Existem outras situações, entretanto, em que a situação de alto risco parece ser o resultado de uma série de eventos; o último elo de uma cadeia. Muitas vezes, o paciente prepara ou planeja a recidiva - esse processo é chamado de antecedentes encobertos de uma situação de recaída. AFigura 19.3 mostra uma visão esquemática desse processo. Nesse contexto, entendemos equilíbrio como a harmonia existente na vida diária de uma pessoa entre aquelas atividades percebidas como “deveres” e aquelas vistas como “prazeres”. Marlatt3coloca que esse grau de equilíbrio tem impacto direto sobre o desejo de indulgência ou gratificação im ediata: um estilo de vida desequilibrado, em que predominam os “deveres”, freqüentemente está

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Figura 19.3 - Antecedentes encobertos de uma situação de recaída3.

associado a uma maior percepção de privação e um desejo correspondente de gratificação. É como se a pessoa, que passa a maior parte de seu dia empenhada em obrigações a serem cumpridas, tentasse equilibrar esta desarmonia com in­ tensos prazeres (beber demais, comer demais, usar drogas, etc.): “Trabalhei o dia inteiro: eu mereço um descanso/drinque/chocolate” Uma outra forma de desequilíbrio envolve uma reação contrária às regras per­ cebidas como impostas para controlar o comportamento proibido. Algumas pes­ soas interpretam a regra de abstinência como uma ameaça a sua liberdade e arbítrio pessoal. Essa reação contrária pode provocar um tipo de “motim” interno, no qual a pessoa tenta se livrar da carga opressiva de controle, preparando uma recaída (rebela-se contra si mesma). Essas reações podem ser especialmente in­ tensas naqueles pacientes que se sentem obrigados a mudar, em resposta às exi­ gências de outras pessoas ou a proibições sociais. Muitas vezes, o desejo de indulgência ou gratificação imediata é mediado por processos tanto afetivos quanto cognitivos. No lado afetivo, o desejo por gratifica­ ção imediata pode ser experienciado como fissura ou compulsão. Nesse contexto, a fissura refere-se ao desejo subjetivo de experienciar os efeitos ou conseqüências de determinado ato; e a compulsão refere-se ao impulso relativamente súbito de se engajar em um comportamento. Para se instalarem, ambas requerem que o indivíduo tenha experimentado a satisfação associada ao comportamento de uso em situações anteriores (condicionamento). Os processos cognitivos que se associam ao desejo de gratificação imediata envolvem três conceitos centrais: racionalização, negação e decisões aparentemente irrelevantes. Uma racionalização é uma razão cognitiva ou uma desculpa legítima para o engajamento em determinado comportamento (“Eu mereço um cigarro”).

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A negação é um processo semelhante no qual a pessoa recusa-se a reconhecer determinados aspectos de uma situação: aquela pessoa, por exemplo, que ape­ sar de desejosa de não fazer mais uso da cocaína, vai ao encontro do parceiro de “baladas” para buscar algum objeto absolutamente desnecessário, negando qual­ quer intenção de fazer uso da droga. Esta situação descrita exemplifica tanto uma negação quanto uma decisão aparentemente irrelevante. Uma recaída pode ser planejada por meio de várias decisões como essas, aparentemente irrele­ vantes: o alcoolista abstinente que compra um litro de uísque “para o caso de alguém visitá-lo” e que depois convida alguém que aceitaria uma dose. Uma vantagem na preparação de uma recaída desta maneira é poder evitar assumir a responsabilidade pessoal pelo próprio episódio de recaída e poder afirmar que as circunstâncias tornaram impossível a evitação do uso.

I ntervenções G lobais Não é suficiente ensinar o paciente a responder a uma situação de alto risco após a outra, pois é impossível identificar ou trabalhar todas elas. Um programa de prevenção mais completo requer a intervenção em seu estilo de vida, de modo a aumentar sua capacidade para lidar com o estresse com maior senso de autoeficácia. A Figura 19.4 nos dá uma visão esquemática de diversas estratégias glo­ bais de controle. Serão apresentadas somente as três mais importantes: intervenções no estilo de vida, no desejo por indulgência e nas compulsões e fissuras.

Desequilíbrio no estilo de vida

Desejo de indulgência

Compulsões e fissuras

Racionalizaçao, negação e DAI

como sinais de ^ alerta __-

Figura 19.4 - Prevenção de recaída - estratégias globais de autocontrole3. DAI = decisões aparentemente irrelevantes.

Situação de alto risco

Prevenção da Recaída ■ 2 6 5

Intervenções no Estilo de Vida A intervenção no estilo de vida é uma das principais estratégias globais de autocontrole empregadas na abordagem de prevenção de recaída e um de seus principais objetivos é substituir o comportamento de uso de álcool ou drogas por outros positivos, chamados adicções positivas. Enquanto uma adicção negativa é considerada um comportamento prazeroso inicialmente, mas que causa danos a longo prazo; uma adicção positiva é, geralmente, desagradável a princípio, mas muito benéfica a longo prazo, como praticar esportes, por exemplo. A “adicção positiva” freqüentemente se transforma em “desejo”, à medida que o indivíduo começa a esperar com prazer pela atividade, ou então sente falta desta, quando se afasta. Além de substituir o comportamento negativo, a adicção positiva aumenta o sentimento de auto-eficácia, a capacidade de relaxar, o bem-estar físico e a ca­ pacidade geral de enfrentamento. Exemplos de adicções positivas são: atividades físicas (como caminhar, correr, freqüentar academias, praticar natação, hidroginástica, etc.); prática de hobbies (pescar, bordar, colecionar, xadrez, pintura, fo­ tografia, etc.), prática de técnicas de relaxamento, alongamento, massagem, etc. As intervenções no estilo de vida também podem envolver outras atividades terapêuticas que têm um impacto importante sobre a vida do paciente, como te­ rapia conjugal ou familiar, aconselhamento de carreira ou mudanças no ambiente social ou físico.

Intervenções no Desejo por Indulgência A programação de períodos de tempo livres, durante o dia, quando o cliente pode buscar seus próprios interesses (fazer compras, almoçar com um amigo, etc.) também pode oferecer equilíbrio em um estilo de vida lotado de “deveres”. Indul­ gências substitutivas ou atividades que proporcionem uma forma imediata de autogratificação (por exemplo, submeter-se a uma massagem, a uma atividade sexual, ir a um bom restaurante, etc.) também podem servir como alternativas de auto-indulgência.

Intervenções sobre as Compulsões e Fissuras Como vimos, diversos estímulos são capazes de condicionar respostas de desejo, ou seja, podem provocar fissura. O processo de condicionamento foi descri­ to, pela primeira vez, por um cientista chamado Pavlov, com base em seus estudos feitos com cães. Antes de apresentar um suculento bife ao cão, Pavlov soava uma campainha. Após sucessivas apresentações, ao mesmo cão, desta seqüência campainha-bife, o animal, antes mesmo da apresentação do bife, salivava após o soar da campainha. Ora, uma campainha não desencadeia o processo de salivação em ninguém, a menos que esteja condicionada a outro estímulo que possa produzi-lo (bife suculento). Após a campainha, o cão esperava pelo bife. E como se extingue o comportamento? O que você imagina que aconteceria a esse mesmo cão se várias e várias vezes a campainha soasse e o bife suculento não viesse? A princípio, ele sali-

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varia muito, mas depois “aprenderia” que o bife não viria mais, depois do soar da campainha e a resposta de salivação se extinguiria gradativamente. Assim, se o pa­ ciente que parou de fumar resistir ao desejo pela nicotina após o almoço, por exem­ plo, vez após vez, chegará gradualmente aquele dia em que não haverá mais deseja Portanto, a coisa mais importante a ser lembrada pelos pacientes é que as compulsões e fissuras surgirão, depois diminuirão e desaparecerão. Os indivíduos que cedem ou se identificam com essas compulsões podem manter a presunção equivocada de que a compulsão continuará aumentando de intensidade até que se torne impossível resistir. Ceder a fissura ou a compulsão no pico de sua intensi­ dade, entretanto, aumenta a probabilidade de que o antigo hábito ou resposta ganhe força. E se o indivíduo for capaz de aguardar pelo alívio e desaparecimento da fissura, sem retornar ao antigo padrão de hábitos, a pressão interna para a res­ posta desaparecerá, pelo processo de extinção. O modo mais eficaz de lidar com fissuras e compulsões é desenvolver um senso de distanciamento em relação a elas. Em vez de se identificar com a fissura (por exemplo: “Eu realmente desejo um cigarro neste momento”), o cliente pode ser treinado a monitorar a fissura ou compulsão a partir do ponto de vista de um observador distanciado (“Estou sentindo vontade de fumar agora”). Ao to­ mar distanciamento da fissura ou compulsão e observar como elas vêm e vão, haverá uma tendência menor à identificação com a fissura e à sensação de ser esmagado por seu poder. As fissuras e compulsões devem ser vistas como parte natural do processo de recuperação, caso contrário, poderão ser entendidas como indicação de que o tra­ tamento foi ineficaz ou a recaída é iminente.

R efer ên c ia s B ib lio g r á fic a s 1. EDWARDS, G., MARSHALL, E. J., COOK, C. C. H. O Tratamento do Alcoolismo: um guia para profissionais de saúde. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 318 p. 2. DODGEN, C. E., SHEA, W. M. Substance Use Disorders. San Diego, Califórnia: Academic Press, 2000. 173p. 3. MARLATT, G. A. Prevenção de recaída: racionalidade teórica e visão geral do modelo. In: MARLATT, G. A., GORDON, J. R. Prevenção de Recaída - Estratégias de manutenção no tratamento de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993. p. 3-63. 4. KNAPP, P. Prevenção de recaída. In: RAMOS, S. P.#BERTOLOTE, J. M. et al. Alcoolismo Hoje. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 173-196. 5. STEVENS-SMITH, P., SMITH, R. L. Substance abuse counseling - theory and practice. New Jersey: Prentice-Hall, 1998. 298p. 6. MONTI, P. M., ABRAMS, D. B., KADDEN, R. M., COONEY, N. L. TreatingAlcoholDependence - A coping skills training guide. United States: The Guilford Press, 1989. 240p. 7. CUMMINGS, C., GORDON, J., MARLATT, G. A. Relapse: strategies of prevention and prediction. In: MILLER, W. R. TheAddictiveBehaviors. Oxford, U. K.: Pergamon Press, 1980.

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A pêndice

Treinamento de Habilidades Peter Monti, David B. Abrams, Ronald M. Kadden & Ned L. Cooney Treating Alcohol Dependence - Cassei Educational Limited Tradução de Selma Bordin Aterapia de habilidades sociais deriva dos princípios da Teoria de Aprendizado Social e, apesar de abranger todos os princípios desta teoria, dá uma maior ênfase ao treinamento de habilidades per se. Acreditam os seus teóricos que os déficits de habilidades submetem o indivíduo a grandes riscos. Esses déficits interagem com as demandas situacionais e com as vulnerabilidades genéticas e podem solapar a capacidade do indivíduo de manejá-las adequadamente. Portanto, eles estão as­ sociados ao desenvolvimento e manutenção de problemas com drogas, assim como à recuperação e ao potencial de recaída. Há pelo menos duas categorias principais que podem aumentar o risco de abuso de drogas ou de recaída. São os fatores interpessoais (como suportes sociais, relacionamentos conjugais, familiares, de trabalho, etc.) e fatores intrapessoais (tais como cognições, percepções, expectativas e humor). O treinamento de habi­ lidades incide principalmente sobre esses dois fatores. • Habilidades interpessoais: iniciar conversações, dar e receber elogios, co­ municação não-verbal, ouvir, assertividade, dar e receber críticas, receber críticas sobre o beber, negar drogas, relacionamentos íntimos, criar uma rede social de apoio. • Habilidades intrapessoais: manejo de pensamentos sobre drogas, resolu­ ção de problemas, aumento de atividades prazerosas, relaxamento, técni­ cas de imaginação, relaxamento em situações de estresse, manejo e evitação da raiva, evitação e manejo de pensamentos negativos, decisões aparentemente irrelevantes, plano de emergências, resolução de proble­ mas persistentes.

Habilidades de Fazer e Receber Elo gios

Fundamentações 1. Asatisfação obtida nos relacionamentos depende, em parte, de compartilhar­ mos coisas positivas com as outras pessoas. Logo, é importante sermos capa­ zes de dizer coisas positivas e de responder apropriadamente quando elas nos são ditas. Os tipos de elogios podem variar muito: a nota tirada em uma pro­ va; o novo corte de cabelo; o jeito carinhoso com que fomos tratados; a res­ ponsabilidade com relação a horários; o entusiasmo com o tratamento, etc. 2. Apesar da importância dos elogios na construção e manutenção dos relacio­ namentos, muitas pessoas normalmente falham nesse aspecto: por achar

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que já sabem, porque têm dificuldade em fazê-lo ou por imaginar conse­ qüências negativas (vai se sentir “cheio” vai “relaxar” etc.). 3. Muitas pessoas que gostam de fazer elogios podem se sentir desconfortáveis ao recebê-los. O inverso também pode ser verdadeiro: pessoas que gostam de recebê-los podem se sentir desconfortáveis ao fazê-los. 4. Problemas de relacionamento normalmente acompanham os problemas com drogas. Conforme a gravidade aumenta, os aspectos positivos de um relacio­ namento começam a ser negligenciados. Fazer esforços em compartilhar comentários positivos são uma forma de começar a melhorar as coisas. 5. Rejeitar um elogio sincero pode provocar uma sensação de mal-estar em quem o fez e desencorajá-lo no futuro. Recebê-los adequadamente encoraja quem os fez a continuar.

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Técnicas de Manejo 1. Sempre que possível, faça elogios à pessoa em vez de fàzê-los às coisas. “Você limpou muito bem seu quarto” em vez de “Seu quarto está limpo” Na última forma, parecerá que o elogio é para o quarto e não para a pessoa. 2. Sempre que possível, faça elogios em termos de seus próprios sentimentos, e não em termos gerais: “Você fica bem com essa camisa” Apesar da forma genérica também ser agradável para quem a recebe, a mais específica é mais efetiva. Além disso, não favorece a rejeição - o fato pode ser contestado, seu sentimento não. 3. Um elogio só tem valor se for sincero. Um falso elogio pode ser percebido e, em vez de melhorar um relacionamento, pode prejudicá-lo. Se não houver nada a ser elogiado (?), é melhor não dizer nada. 4. Ao fazer elogios, tente especificar o que você gosta. Por exemplo, se seu filho mais velho olha o bebê por alguns minutos, enquanto você fàz alguma outra coisa, em vez de dizer-lhe: “Você é muito gentil” procure dizer: “Você foi muito gentil em cuidar do bebê por mim” Apesar de a primeira forma tam­ bém ser agradável, pode não ficar muito claro que você o acha gentil. Além disso, a especificidade indica que você prestou atenção ao que ele fez. Tam­ bém é útil para ajudá-lo a identificar o que você considera desejável e au­ menta a probabilidade do comportamento ser repetido. 5. Aceite os elogios que lhe são fèitos: não os negue ou deprecie. Se alguém elogia uma foto sua e você diz “Está horrível” é o mesmo que dizer que essa pessoa tem péssimo gosto ou que sua opinião não conta- essa pessoa pode­ rá se sentir rejeitada. 6. Caso não concorde com o elogio, responda delicadamente, indicando que apreciou o comentário positivo. Aceitar um elogio dessa maneira não é de­ sonesto, já que não implica dizer que você tem a mesma opinião, e, sim, que apreciou o cumprimento. Por exemplo: “Obrigado, é muito gentil de sua parte dizer isso”.

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F o l h a de E xer c íc io s

Sessão: Habilidade em Dar e Receber Elogios LEMBRE-SE - Tenha sempre em mente: Ao FAZER elogios: • Faça o elogio em termos de seus próprios sentimentos e não em termos absolutos ou na forma de fatos. • Seja sincero. • Elogie algo específico. Ao RECEBER elogios: • Não desqualifique um elogio que lhe é feito. • Mostre que o apreciou.

E xercício s P ráticos 1. Observe algo em seu filho/esposa/etc. que possa ser elogiado. Você poderá abordá-lo somente para fazer o elogio ou fazê-lo durante alguma conversa que tiverem. Escreva, a seguir, qual foi o elogio que você fez: Verifique: a. Fiz o elogio em termos dos meus próprios sentimentos? () sim () não b. Fiz um elogio específico? () sim () não 2. Fique atento, até a nossa próxima sessão, a qualquer elogio que possa vir a receber e tente responder conforme o que aprendeu aqui. Depois preencha as perguntas a seguir: Descreva a situação: Qual foi sua resposta? Verifique: a. Aceitei o elogio? b. Desqualifiquei ou rejeitei o elogio que me foi feito? c. Demonstrei minha apreciação?

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Habilidades de Falar e Ouvir sobre Sentimentos, Opiniões, etc.

Fundamentações 1. Algo que todos têm em comum são os sentimentos. Todos nós já experimen­ tamos tristeza, raiva, alegria, frustração, realização, medo, etc. Experi­ mentamos sentimentos diferentes em situações diferentes, e cada um à sua maneira. Alguns mais, outros menos. Mas, todos já experimentamos uma grande variedade de sentimentos. 2. Há duas habilidades relacionadas à expressão de sentimentos: a de com­ partilhar sentimentos, opiniões e atitudes com outras pessoas; e a de ouvir outras pessoas, de forma a deixá-las saber que são importantes e compreen­ demos o que compartilha conosco. 3. Apesar de muitas pessoas terem dificuldades em compartilhar ou ouvir ati­ vamente, estas são habilidades de comunicação que podem ser melhoradas com a prática. 4. Há muitos benefícios em compartilhar emoções com outras pessoas: • As pessoas que não o fazem acabam sendo erroneamente rotuladas de frias ou arrogantes. E isso pode levar a um círculo vicioso, no qual as pes­ soas a evitam e ela acaba tendo ainda menos oportunidades de conver­ sar sobre seus sentimentos. • Intensifica o relacionamento com familiares e outras pessoas que dese­ jamos conhecer melhor. É a melhor maneira de construir afeto e confi­ ança entre as pessoas. • A melhor forma de conhecer mais sobre alguém é compartilhando sen­ timentos sobre alguma coisa (“Como se sente sobre crescer numa ci­ dade pequena? O que achou daquele filme? O que achou da sua viagem? E como está no trabalho? Como se sente com relação ao uso de drogas?)”. Compartilhar sentimentos com outrem ajudá-lo-á a se sentir mais próximo a você, possibilitando a ambos a descoberta de coisas em comum. Quanto mais você souber sobre o outro, maior será o sentimento de amizade. E isso é verdadeiro tanto para desconheci­ dos quanto para os próprios familiares: apesar de muitas pessoas es­ tarem juntas todos os dias, os sentimentos podem ficar fora das conversas. Quanto menos se fala sobre sentimentos, mais distante uns dos outros nos sentimos. • Falar sobre si mesmo contém a mensagem: “É bom falar sobre senti­ mentos”. Permite ao outro saber que pode compartilhar algo impor­ tante com você. • Freqüentemente, outras pessoas ficam aliviadas ao descobrir que não estão sozinhas ao sentirem algo. Logo, compartilhar informações sobre seus sentimentos pode ser uma importante forma de dar apoio a alguém (ou a si mesmo). 5. Ouvir atentamente quando alguém compartilha algo conosco é importante, se quisermos conhecer ou nos aproximar dessa pessoa. O uso dessa habili­ dade tem várias conseqüências positivas: permite que o outro saiba que

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estamos interessados e queremos entendê-lo; encoraja-o a falar mais sobre si mesmo; e nos permite saber mais a seu respeito. 6. Relação entre essas habilidades e o uso de drogas: • Pessoas que utilizaram drogas, na tentativa de aliviar sentimentos desagra­ dáveis, descobrem que a abstinência traz, inicialmente, uma intensificação dos mais variados sentimentos. Conversar com amigos ou familiares sobre tais sentimentos favorece o recebimento de apoio e senso de proximidade. • Alguns usuários relatam que usaram drogas para ajudá-los a expressar sentimentos positivos (afeto, carinho, proximidade). Para essas pessoas, compartilhar sentimentos positivos, sem a droga, será uma valiosa aju­ da para manter a abstinência. • O uso da droga prejudica a habilidade de ouvir dos usuários, mesmo da­ queles que eram bons nisso, por terem perdido sua capacidade de con­ centração. E essa habilidade pode demorar a retornar, mesmo após a abstinência. Assim, a prática é importante, tanto para quem está apren­ dendo como para quem está reaprendendo, • Muitos usuários relatam sentimentos de solidão e, muitas vezes, a droga é utilizada para acabar com ela. Outras vezes, esse sentimento pode vir com o próprio uso, porque o distancia de amigos e familiares. Em ambos os casos, aprender a resolver a solidão ajudará a prevenir a recaída. E as habilidades de falar e ouvir são importantes ferramentas para isso.

Técnicas de Manejo 1. Habilidade de fadar sobre sentimentos: a. É bom falar sobre sentimentos. Todos nós os temos. Todos temos bons e maus sentimentos. b. É importante compartilhar tanto os bons quanto os maus sentimentos. Alguns se sentem mais confortáveis falando sobre os positivos e outros sobre os negativos. Mas as pessoas nos conhecerão melhor, se falarmos sobre todas as variedades. c. Raiva, tristeza e medo estão sempre presentes em familiares de usuários de drogas. E é importante saber comunicá-los diretamente, evitando a comunicação indireta, mais prejudicial. Também é importante deixar­ mos claro os comportamentos que nos despertam sentimentos negativos: por exemplo: “Sinto-me...” “Quando você...” • “Sinto-me ansiosa, quando você demora a chegar.” • “Sinto raiva, quando você não cumpre o que prometeu.” • “Fico triste, quando você não me ouve.” • “Tenho medo que você se prejudique por usar maconha.” • “Fico feliz, quando você chega em casa cedo.” • “Sinto-me orgulhosa pelos seus resultados na escola.” 2. Habilidade de ouvir: a. Ouvir é mais do que simplesmente sentar-se em silêncio ou passiva­ mente, enquanto o outro fala. Ouvir é uma habilidade ativa porque

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envolve uma tentativa de compreender o que o outro está comunican­ do, e não apenas esperar sua vez de falar. b. Seu comportamento não-verbal pode dar um apoio para que o outro con­ tinue falando. Manter o olhar, acenar com a cabeça, dar um toque sim­ pático ou murmurar são expressões que indicam que você está interessado e está ouvindo. Olhar para o relógio, bocejar ou olhar para outras coisas distraem quem feda e revelam que você não está realmente interessado no que está sendo dito. O comportamento não-verbal é a primeira coisa que as pessoas notam, quando estão monitorando a forma como estão sendo recebidas. c. Reconhecer o comportamento não-verbal de quem fala é outra caracte­ rística importante dos bons ouvintes. Estes estão afinados com os senti­ mentos do outro; ouvem a mensagem que está por trás das palavras. O tom de voz e a expressão facial fornecem várias informações, além da­ quelas que estão sendo expressas em palavras. Por exemplo, se alguém está falando sobre um casamento, provavelmente descreverá o vestido, a recepção, a comida, a decoração, etc. Mas, com um comportamento nãoverbal, esta pessoa pode transmitir um sentimento de tristeza. O bom ouvinte perguntará sobre recordações que o casamento pode ter des­ pertado, sobre seus sentimentos, ou sobre a tristeza diretamente, aju­ dando-a a falar sobre o que a experiência significou para ela. d. São formas verbais de dizer: “Estou ouvindo, estou ligado”, fazer pergun­ tas, parafrasear o que foi dito ou acrescentar comentários (“Puxa, que legal!”). e. Um bom ouvinte não faz julgamentos, quando estes não são solicitados; não confronta diretamente. Uma crítica inibe o interlocutor. f. Um bom ouvinte compartilha sentimentos semelhantes. Faz parte do dar e receber da conversa. Mas é conveniente esperar que o outro tenha terminado. Interrompê-lo prejudica a comunicação. 3. Importante: a. Essas habilidades demandam tempo para serem utilizadas com maestria. b. Você não mudará de um momento para o outro, mas aos poucos. E o outro pode demorar a perceber que você mudou. c. Conte com o insucesso inicialmente. Persista - é como aprender a andar. Não saímos andando simplesmente, começamos nos agarrando em móveis, que nos suportam apenas alguns segundos... caímos muitas ve­ zes, antes de aprender... erramos muito antes de acertar.

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F o l h a de E xer c íc io s

Sessão: Habilidades de Falar e Ouvir sobre Sentimentos LEMBRE-SE - Tenha sempre em mente: Ao FALAR: • É bom falar sobre seus sentimentos, tanto positivos quanto negativos. • Defina aquilo que dirá (uma parte do que quer compartilhar). • Você compartilhará mais com aquela pessoa de quem se sente mais próximo do que com aquela que acabou de conhecer. Ao OUVIR: • Use sua expressão corporal para mostrar que está ouvindo (olhar nos olhos, acenar com a cabeça). • Preste atenção ao tom de voz, expressão facial e linguagem corporal da outra pessoa, para facilitar “sintonizá-la”. • Escute até o momento apropriado para falar. • Mostre interesse e compreensão por meio de perguntas sobre como se sente, parafraseando-a ou fazendo comentários apropriados.

Exercícios Práticos Exercite expressar seus sentimentos e ouvir os sentimentos do outro. Descreva as seguintes situações: 1. Inicie uma conversa com alguém e compartilhe algum sentimento durante ela. Responda: a. Com quem você conversou? b. Que sentimento compartilhou? 2. Durante uma conversa, mantida com alguém, perceba algum sentimento que essa pessoa expressa, tanto verbal como não-verbal. a. Que sentimento essa pessoa expressou verbalmente? b. Que comportamentos não-verbais você observou? c. Que sentimentos a pessoa expressou não-verbalmente? d. Como você demonstrou que estava ouvindo?

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M anejo da Raiva

Fundamentações 1. O que é a raiva? a. Raiva é uma emoção humana normal. b. Distinção: emoção de raiva versus comportamentos raivosos. c. A raiva não é causada pelos eventos, mas sim por nossos pensamentos e crenças sobre esses eventos. d. Modelo cognitivo da raiva:

2. A raiva pode ter conseqüências construtivas ou destrutivas. A raiva em si não é boa nem ruim.

Efeitos Destrutivos • Confusão mental, impulsividade e pobreza de decisões. • Inibe a comunicação, mascara outros sentimentos, cria distanciamento emocional e estimula a agressividades nos outros. • Reações passivas à raiva: nos fazem sentir desamparados ou depressivos, reduzem a auto-estima; mascaram sentimentos reais com uma aparên­ cia de indiferença; criam barreira à comunicação e formam ressentimen­ tos que podem ser "despejados” diante de uma leve provocação.

Efeitos Construtivos • A raiva sinaliza uma situação problemática que nos move à solução. • Uma resposta assertiva à raiva aumenta nossa força pessoal; ajuda a comu­ nicar nossos sentimentos negativos; ajuda-nos a evitar futuros desentendi­ mentos; fortalece o relacionamento; ajuda a aumentar os efeitos construtivos e a diminuir os destrutivos. 3. Relação entre raiva e problemas com drogas: • Muitos usuários relatam que as usam quando sentem raiva ou quando se sentem perturbados com outras pessoas. • Os comportamentos de usuários de drogas estimulam a raiva de duas ma­ neiras: com a própria raiva e com a violação de regras (cumprir compromis­ sos, dizer a verdade, cuidar dos sentimentos das pessoas importantes, etc.).

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Técnicas de Manejo 1. Estar consciente da emoção é o primeiro passo. Aumentar nossa consciên­ cia sobre a raiva ajuda-nos a identificá-la precocemente e a agir antes que cresça e saia do controle. a. Tornar-se mais consciente DAS SITUAÇÕES que a despertam: • Gatilhos diretos: um ataque direto (verbal ou físicoL ataque a alguma coisa sua; alguém lhe dando ordens; frustração resultante de inabilidade em alcançar uma meta. v^ ^ , • Gatilhos indiretos: observar alguém sendo atacado; su^ interpretação ) /dè uma situaçaô^achar que está sendo repreendido, desaprovado, afa- r, .. càd^ouque estão exigindo muito de você). b. Tornar-se mais consciente das REAÇÕES INTERNAS que sinalizem raiva: • Sentimentos: sentir-se frustrado, irritado, insultado, maltratado, agi­ tado. Esses sentimentos menos intensos geralmente precedem a rai­ va e é a estes que se deve dar atenção, antes de se tornarem mais difíceis de serem controlados. • Reações físicas: tensão muscular nos maxilares, garganta, braços, pu­ nhos; dores de cabeça, taquicardia, sudorese, ritmo respiratório ace­ lerado. • Dificuldade de pegar no sono: pode ser causada por pensamentos e sentimentos de raiva experimentados durante o dia. • Sentir-se cansado, desamparado ou deprimido: também pode ser um sinal de raiva. Pode significar què tentativas passadas de expressar raiva não foram efetivas. Você pode ter desistido de tentar e ter se tomado deprimido. 2. Relaxe. Manter-se calmo aumenta sua habilidade de controlar o próprio comportamento e a situação. Eis algumas frases que podem ser usadas para se manter calmo: RELAXE... VÁ COM CALMA... RESPIRE FUNDO... CONTE ATÉ DEZ... FIQUE FRIO... DEVAGAR... NÓS VAMOS CUIDAR DISSO, MAS COM CALMA.. 3. Já calmo, pense sobre a situação: • “Meu pensamento é verdadeiro? Quais as evidências a favor? Quais as evidências contra?” • “O que está me deixando com raiva?” • “É realmente um ataque pessoal ou insulto?” • “Será que não estou com raiva porque estou esperando muito de mim mesmo ou de alguém?” • “Há alguém tentando me deixar com raiva?” • “O que há de positivo nessa situação?” 4. Depois de avaliar o que o está deixando com raiva, pense sobre suas opções: • “O que é melhor pra mim aqui? Qual minha meta nesta situação?” • “Ficar com raiva me ajuda ou atrapalha?”

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• • • •

“Existe algum problema que precisa ser resolvido?” “Posso resolvê-lo? Se sim, como? (Implemente a solução.)" “Não posso resolvê-lo. Posso minimizá-lo?” “Não posso minimizá-lo. Não posso resolver todos os problemas, princi­ palmente os problemas cujas soluções necessitem de outras pessoas. Também preciso aprender a me adaptar e a conviver com problemas de forma a causar o mínimo prejuízo a mim mesmo.”

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Fo lh a de Exercícios

Sessão: Manejo da Raiva LEMBRE-SE - Tenha sempre em mente: 1. Use frases como estas para se acalmar: RELAXE... VÁ COM CALMA... RESPIRE FUNDO... CONTE ATÉ DEZ... FIQUE FRIO... DEVAGAR... NÓS VAMOS RESOLVER ISSO, MAS COM CALMA... 2. Depois, pense no que o está deixando tão irritado. Reveja a situação, ponto a ponto. • “O que está me deixando tão nervoso?” • “É um ataque pessoal ou insulto?” • “Será que estou tão nervoso porque estou esperando muito de mim (ou de outra pessoa?)” • “Quais os pontos positivos aqui?” 3. Então, pense sobre suas opções: • “O que eu posso fazer?” • “Qual a minha meta nessa situação?” • A raiva pode ser uma indicação de uma necessidade de resolver um pro­ blema. 4. Se o problema não tiver solução ou for permanecer: • Lembre-se de que você não pode resolver tudo. • Não deixe que isso interfira em sua vida: há duas formas de passar pela situação: com ou sem sofrimento. • Use exercícios de relaxamento. 5. Se você resolver o conflito, congratule-se: “Lidei com isso muito bem”!

Exercício Prático Até nossa próxima sessão, preste atenção a suas reações a situações provo­ cadoras de raiva. Tente identificar e mudar seus pensamentos nessas ocasiões. Selecione uma situação e a descreva a seguir: 1. Descreva a situação “gatilho”: 2. Que frases tranqüilizadoras você utilizou? 3. Quais foram os pensamentos geradores da raiva? 4. Quais os pensamentos minimizadores da raiva? 5. Que outros pensamentos podem tê-lo ajudado a resolver essa situação?

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Habilidade de Fazer Críticas

Fundamentações 1. Às vezes, desaprovamos ou achamos desagradáveis algumas coisas que outras pessoas fazem. É importante saber dizer-lhes isso e pedir-lhes que mu­ dem sem, no entanto, magoá-las ou provocar discussões. 2. Fazer isso pode ser muito difícil. Muitas pessoas falham por vários motivos: a. Porque acham que fazer isso é feio. b. Querem evitar magoar a pessoa. c. Têm medo de “perder” a pessoa ou de serem rejeitadas. d. Têm medo de começar uma briga. Essa relutância é, normalmente, resultado de anos de experiência com a críti­ ca “destrutiva”. As habilidades a serem praticadas aqui se referem a uma crítica “construtiva” 3. Há muitas razões para aprender a fazer críticas construtivas: a. Muitas vezes, as pessoas fazem coisas que irritam aqueles que estão à sua volta, e nem mesmo percebem, e isso pode limitar sua habilidade de interagir com sucesso. Ao lhe dizermos que seu comportamento é desa­ gradável (interromper quem fala, estar sempre muito atrasado, não cum­ prir o que promete, etc.) estaremos ajudando-a. b. Se ficarmos durante muito tempo evitando fazer uma crítica necessária, provavelmente acabaremos nos sentindo estressados e desconfortáveis com o relacionamento. Depois de algum tempo, sentiremos raiva, frus­ tração ou ressentimento e esses sentimentos se refletirão em nosso diaa-dia com essa pessoa. c. Além de mudanças positivas, nossa habilidade em fazer críticas constru­ tivas também nos ajudará (e ao outro) a nos sentirmos bem sobre nossas capacidades de discutir e resolver dificuldades. d. Uma crítica destrutiva não traz resultados positivos, pois são percebidas como “ataques” pessoais. Diante de um ataque, uma pessoa tem duas opções: fugir (ressentida) ou atacar (defender-se). O resultado final é um distanciamento ou uma séria discussão. 4. Muitos usuários relatam que fazem uso de drogas quando se sentem frustra­ dos ou com raiva de outras pessoas por causa de conflitos interpessoais. Esses conflitos podem ser gerados por críticas colocadas de maneira destrutiva.

Técnicas de Manejo 1. Acalme-se. Se estiver com raiva ou a ponto de explodir, espere alguns minu­ tos até estar calmo, antes de falar. 2. Ao fazer uma crítica, fale sobre seu sentimento em vez de falar sobre o com­ portamento do outro. Por exemplo, imagine que seu filho não telefonou como disse que faria. Em vez de lhe dizer: “Você nunca cumpre o que promete.

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Você não se importa com ninguém”, diga-lhe: “Senti-me ignorada, despre­ zada e muito aflita por você não ter telefonado como disse que faria” Isso tem menos probabilidade de gerar um comportamento de defesa e de pro­ vocar uma discussão. Uma boa forma de lembrar-se disso é usar o seguinte tipo de frase: “Quando você faz X, eu me sinto Y”. Perceba como isso é dife­ rente de “X é uma coisa má de se fazer” Faça a crítica num tom de voz claro e firme, mas não raivoso. Se a crítica for recebida em um contexto de explosão emocional, será menor a probabili­ dade de ser ouvida e de ser efetiva. O sarcasmo, a raiva e a ironia podem ser efetivos para punir, e este não é o objetivo da crítica construtiva. Dirija sua crítica ao comportamento da pessoa e não à pessoa como um todo. Todos nós aceitamos o fato de que, às vezes, fazemos coisas que abor­ recem outras pessoas. No entanto, é muito provável que nos tornemos de­ fensivos e argumentativos, se nos fizerem uma crítica pessoal ou nos ofenderem. Um comportamento que aborrece não faz de ninguém uma má pessoa. Outro exemplo, imagine que tenha usado a calculadora de seu filho e se esquecido de colocá-la no lugar. Ao chegar, lhe diz ele: “Como você é burra! Não sabe que não é para deixar minhas coisas por aí?” Como você se sentiria? Como reagiria? E se a crítica fosse colocada dessa manei­ ra: “Mãe, você não guardou minha calculadora e isso me incomoda”? Como você se sentiria? Como reagiria? Solicite uma mudança de comportamento específica, Às vezes, presumimos que o outro sabe o que deve ser feito para nos agradar. Mas, geralmente, não sabe. Aquilo que pode ser completamente óbvio para uma pessoa pode não ser para outra. Assim, ao fazer uma crítica sobre determinado comporta­ mento, diga, especificamente, o que você gostaria que tivesse sido feito. No exemplo do item 2, devemos acrescentar à crítica formulada “Senti-me ig­ norada, desprezada e muito aflita por você não ter telefonado como disse que faria. Gostaria que tivesse cumprido o combinado”. O exemplo do item 4 ficaria assim: “Mãe, você não guardou minha calculadora e isso me inco­ moda. Eu gostaria de encontrá-la no lugar, quando precisar dela”. Esteja disposto a firmar um compromisso com a pessoa. Ameta não é ganhar um a ^ t^ ^ , mã^alcançar uma solução mutuamente satisfatória. Outro exem­ plo, você pode estar aborrecida com seu filho porque freqüentemente lhe pede para trazer amigos para uma festa em sua casa, que geralmente termina muito mais tarde do que o combinado. Em vez de ficar insistindo com ele para que a termine no horário prometido, ou então não mais permitir, você pode fazer um compromisso de concordar com longas festas, mas em intervalos de dois meses e num dia que lhe seja adequado. Inicie e termine a conversa com comentários positivos. Amelhor crítica é aque­ la que^contém um elogio. Podemos reforçar um ponto forte da pessoa qué poderá ajudá-la a resolver um ponto fraco. Exemplo: “Filho, você sempre respeitou minha privacidade e a de seu pai, consultando-nos sobre as pessoas que pre­ tendia trazer a nossa casa No entanto, hoje pela manhã, surpreendi-me quando dei de cara com uma garota em nosso banheiro. Fiquei assustada, a princípio, e depois zangada. Gostaria de ter sido consultada antes. Estou certa de que uma pessoa tão zelosa, como você, tomará esta precaução da próxima vez”.

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Fo lh a de Exercícios

Sessão: Fazer Críticas LEMBRE-SE - Aqui há algumas sugestões para fazer críticas construtivas e assertivas. • Primeiro: acalme-se. • Coloque a crítica em termos de seus sentimentos, não em termos de fatos absolutos. • Critique o comportamento, não a pessoa. • Solicite uma mudança de comportamento específica. • Esteja aberto a negociar um compromisso. • Inicie e comece de maneira positiva. • Tom de voz: claro e firme, não raivoso.

Exercício Prático Aproxime-se de uma pessoa para a qual tenha a intenção de dizer algo negativo. Faça críticas construtivas. Tente seguir as recomendações aqui apresentadas. Antes de deixar a sessão de hoje: Identifique o problema: Qual sua meta nessa situação: Depois de ter conversado com a pessoa, registre o que aconteceu: O que disse a ele/ela? Como ele/ela respondeu? Quais sugestões anteriores você utilizou?

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Introdução

à

A ssertividade

Fundamentações 1. Significa reconhecer seu direito de decidir o que fazer em vez de ceder às expectativas ou solicitações de outras pessoas. Também significa reconhe­ cer o direito dos demais. 2. Direitos significam: a. De expressar sua opinião. b. De falar sobre seus sentimentos. c. De pedir que outros mudem os comportamentos que o afetam; d. De aceitar ou recusar qualquer coisa que digam ou peçam. 3. Há quatro estilos: passivo, agressivo, passivo-agressivo e assertivo. a. Passivo: pessoas que tendem a abrir mão de seus direitos, quando acredi­ tam na possibilidade de que, para defendê-los, precisam entrar em conflito com alguém. Normalmente falham em deixar os outros saberem o que pensa ou sente, escondendo seus sentimentos, mesmo quando isso não é necessário. Conseqüentemente, estão sempre se sentindo ansiosas ou com raiva. Às vezes, ficam depressivas por sua falta de efetividade, ou magoa­ das com os outros. As pessoas não têm como saber o que as pessoas do estilo passivo desejam e, assim, acabam fazendo o que querem. Além disso, podem ficar ressentidas porque o passivo não diz o que quer. b. Agressivo: são aquelas pessoas que agem para proteger seus direitos mas, ao fazerem isso, acabam subestimando o direito dos outros. Ape­ sar de terem suas necessidades imediatas satisfeitas, os resultados da agressividade são geralmente negativos a longo prazo. Como descon­ sideram as necessidades alheias para conseguirem o que querem, aca­ bam por entrar em suas “listas negras”, e poderão ser alvo de retaliação no futuro. c. Passivo-agressivo: são pessoas indiretas. Elas podem indicar o que que­ rem, fazendo comentários sarcásticos ou murmurando coisas, sem dizer diretamente o que está em suas mentes. Ou então, podem “dizer” o que querem batendo portas, agindo com indiferença para com a pessoa, atra­ sando-se, etc. Às vezes, podem conseguir o que querem sem negociar diretamente. No entanto, as pessoas a seu redor normalmente não en­ tendem a mensagem e se sentem confusas ou com raiva, e o passivoagressivo acaba se sentindo frustrado ou vítima da situação. d. Assertiva: a pessoa assertiva decide o que quer, planeja uma forma de conseguir e age. Normalmente, o plano mais efetivo é deixar claros suas opiniões ou sentimentos e solicitar ao outro as mudanças que gostaria que ele fizesse, diretamente, evitando ameaças e declarações negati­ vas. No entanto, em certas circunstâncias, uma pessoa assertiva pode decidir que uma resposta mais passiva é a melhor (com um chefe insen­ sível), ou que uma resposta agressiva é necessária (com pessoas a quem inúmeras solicitações feitas de maneira polida não foram suficientes). É típico da pessoa assertiva que ela adapte seu comportamento conforme

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a situação. Geralmente, sentem-se satisfeitas e são bem vistas. A assertividade é o modo mais efetivo de fazer com que os outros saibam o que se passa com você ou que efeito o comportamento deles tem sobre você. Ao se expressar, você pode resolver sentimentos desconfortáveis que, de outra maneira, permaneceriam e cresceriam. Ser assertivo ge­ ralmente resulta em solucionar problemas e em se sentir no controle da própria vida. A pessoa assertiva não se sente vítima das circuns­ tâncias. No entanto, lembre-se que suas metas não podem ser atingi­ das em todas as situações. É impossível controlar a forma como as pessoas responderão.

Técnicas de Manejo 1. Pensar antes de falar. Identifique aquilo a que você está reagindo. O que a outra pessoa lhe fez? Tente não tirar conclusões sobre as intenções dela. Não assuma que ela deva saber o que se passa em sua mente. 2. Planeje o melhor jeito de falar. Seja específico e direto naquilo que disser. Evite misturar outros assuntos. Seja positivo, sem pedir desculpas ou fazer apologias. Não deixe a outra pessoa mal. Culpá-la somente causará uma rea­ ção defensiva e diminuirá a probabilidade de que ela a ouça. 3. Preste atenção à sua linguagem corporal: contato visual, postura, gestos, ex­ pressões faciais e tom de voz. Suas palavras e expressões devem levar a mesma mensagem. Fale firmemente. 4. Mostre vontade de ser compreensivo. As pessoas o ouvirão, se souberem que você deseja trabalhar para resolver a situação. Ninguém quer sair com o sen­ timento de ter perdido alguma coisa. Tente achar um jeito para que ambos ganhem. Dê ao outro sua total atenção, quando ele lhe responder. Tente com­ preender seu ponto de vista e peça esclarecimentos, se forem necessários. Se discordar de algo, fale sobre isso. Não domine, nem se submeta. Busque um senso de igualdade no relacionamento. 5. Insista. Se você achar que não está sendo ouvido, precisará agir novamente. Em algumas circunstâncias, persistência e consistência são necessárias à assertividade. 6. Mudar uma forma habitual de responder requer esforços conscientes e o desejo de conviver com o não-natural por um certo período. Alguém nãoassertivo terá que se forçar inicialmente, já que a resposta não-assertiva ocorrerá quase que automaticamente. O primeiro passo é ficar atento à sua forma habitual de responder e fazer um esforço consciente de mudança.

Prevenção da Recaída ■ 2 8 3

F o l h a de E xer c íc io s

Sessão: Introdução à Assertividade LEMBRE-SE - Tenha sempre em mente ao praticar a assertividade: • • • • •

Pense um pouco antes de falar. Seja específico e direto naquilo que disser. Preste atenção à sua linguagem corpórea. Esteja disposto a se comprometer. Repita novamente, se achar que não foi ouvido.

Exercício Prático Este exercício tem a finalidade de ajudá-lo a identificar o estilo que você tem usado nas várias situações sociais. Os quatro estilos são: passivo, agressivo, passivo-agressivo e assertivo. Eleja três situações sociais diferentes antes da próxima sessão, descreva-as e a forma como você respondeu. Situação Um:

Sua resposta:

Que estilo foi utilizado? () passivo () agressivo () passivo-agressivo () assertivo Situação Dois:

Sua resposta:

Que estilo foi utilizado? () passivo () agressivo () passivo-agressivo () assertivo Situação Três:

Sua resposta:

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Que estilo foi utilizado? () passivo () agressivo () passivo-agressivo () assertivo Como você poderia ter respondido assertivamente cada uma destas três situações (caso não tenha sido): Situação Um:

Situação Dois:

Situação Três:

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Habilidade

de Iniciar

C onversações

Fundamentações 1. Conversar é o importante primeiro passo para estabelecer contatos casuais ou íntimos com outras pessoas. É uma habilidade de comunicação básica. 2. Algumas pessoas têm mais facilidade e outras, mais dificuldade. De qual­ quer forma, há sempre espaço para aprimoramento. 3. As pessoas, de uma maneira geral, sentem-se mal quando a conversa é po­ bre e bem quando é agradável e interessante. 4. Há uma grande relação entre a habilidade e o conforto em estabelecer con­ versações e problemas com álcool e drogas: a. Algumas pessoas usam álcool e drogas porque acreditam que isso as aju­ da a conversar com as pessoas em festas e encontros e se sentem desconfortáveis sem um primeiro drinque. b. Algumas pessoas evitam se socializar ou encontrar pessoas em virtude dessa dificuldade, o que contribui para a solidão, para o tédio e isola­ mento (situações de alto risco). c. Freqüentemente, as pessoas que bebem muito têm amigos que bebem muito também. As pessoas que decidem parar de beber podem se sentir solitárias e é muito importante começar a conhecer novas pessoas e cons­ truir novas amizades, de forma a reduzir a tentação de retornar aos luga­ res e amizades anteriores.

Técnicas de Manejo 1. Falsas percepções que podem ser obstáculos ao início de conversações: a. Que se deve apenas falar sobre assuntos importantes, sérios e de grande relevância. Não é necessário iniciar uma conversa sobre a fome do mun­ do ou sobre as políticas nacionais. Você não tem que resolver os proble­ mas do mundo na sua primeira conversa com alguém. A conversa deve ser divertida, uma forma de compartilhar idéias ou de conhecer pessoas de uma maneira confortável. Logo, não há problemas em conversar so­ bre assuntos menores ou menos relevantes. Esportes, o clima, sobre as pessoas conhecidas em comum são boas e simples portas de acesso a conversas. b. Que você é totalmente responsável em manter a conversa. Conversar é um processo de duas vias, em que cada pessoa contribui igualmente. Assim, comece com algum assunto que proporcione à outra pessoa a oportunidade de responder fácil e confortavelmente. c. Que você nunca deve falar sobre si mesmo. Alguns aprendem que falar sobre si mesmo não é polido e geralmente se sentem desconfortáveis nestas situações. As pesquisas em psicologia social mostram que as pes­ soas gostam daquelas pessoas que gostam das mesmas coisas e têm ati­ tudes semelhantes. A única maneira de conseguir saber quais são as idéias e os gostos que compartilhamos é falar sobre isso, de forma a estimular que o

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outro fale também. Falando sobre nós, abrimos uma porta para que o outro fale sobre ele. Dê o exemplo. É bom falar sobre nós mesmos. Você pode começar a falar sobre si mesmo enquanto conversa sobre coisas simples. Se o assunto for automóveis, você pode dizer, por exemplo, por que gosta de determinado modelo. O nível das revelações varia de situa­ ção a situação, de pessoa a pessoa. 2. Aqui estão algumas sugestões que facilitam iniciar conversações: a. Ouça e observe: as pessoas dão pistas que podem ajudá-lo a decidir so­ bre os assuntos da conversa. Estas pistas estão nas conversas que estão tendo com outras pessoas ou em coisas nas quais elas parecem interes­ sadas. Como você percebe se as pessoas estão interessadas ou aborreci­ das com alguma coisa? Aproxime-se de alguém quando ela não estiver envolvida em alguma atividade, com pressa ou no meio de uma outra conversa. Se essa pessoa estiver em meio a um grupo, espere até que haja uma “brecha” no assunto. Não hesite, nem interrompa. b. Deixe que a pessoa saiba que você deseja falar, estabelecendo contato visual e dizendo algo primeiro, em vez de permanecer ali e esperar que ele(a) fale. Perceba se sua xícara de café está vazia e sugira que comple­ tem suas xícaras juntos. Pergunte se conhece alguém ali. Lembre-se: a conversa não tem que ser de “peso”. c. Use questões de final aberto. Esta é uma técnica simples de ser utilizada e muito efetiva em iniciar e manter uma conversação. Uma questão de final aberto encoraja a discussão enquanto uma pergunta fechada pode ser respondida com um sim ou não. Por exemplo: “O que você achou do filme?” versus “Você gostou do filme. Perguntas abertas sinalizam que você quer conversar. d. Também é importante checar como a sua conversa está sendo recebida. Como o outro está respondendo? As respostas a suas perguntas estão sendo curtas? A pessoa está devolvendo perguntas e comentários? Ela está olhando para o relógio, olhando para outros pontos ou por trás de você? Ou está mantendo contato visual e posicionada à sua frente? Se parecer que a outra pessoa não está mais interessada, termine a conver­ sa. Você não tem que dizer tudo num primeiro momento. Lembre-se sem­ pre que a conversa deve ser divertida e fácil. Se alguma das partes não estiver aproveitando, termine de maneira delicada. As conversas podem ser longas ou breves. É preciso ter cuidado para não sobrecarregar nosso interlocutor. Se achar que um determinado assunto não está sendo inte­ ressante ou está desconfortável para o outro, mude-o. e. Termine a conversa delicadamente. Quando a conversa estiver chegan­ do a um final ou alguém tiver de ir embora, você pode terminar a conver­ sa de forma educada, dizendo algo agradável a respeito do quanto aproveitou ou gostou da conversa. Você pode mencionar que tem de sair ou que percebe que ele(a) tem de ir e talvez se encontrem mais tarde. Basicamente, o que é apropriado aqui é deixar seu ouvinte com a sensa­ ção de que você gostou da conversa e que seu sentimento é sincero. Ter­ minar de forma agradável aumenta a probabilidade de que a pessoa queira voltar a falar com você.

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Folha

de

Exercícios

Sessão: Iniciar Conversações LEMBRE-SE - Tenha sempre em mente: É positivo: • Começar com tópicos simples. • Falar sobre si mesmo. Lembre-se de: • • • • •

Ouvir e observar. Falar. Usar perguntas de final aberto. Checar a recepção. Terminar graciosamente.

Exercícios Práticos 1. Inicie uma conversa com alguém que você não conhece muito bem ou com alguém com quem gostaria de praticar uma conversa mais agradável:

Onde a conversa aconteceu? Sobre o que foi a conversa? Quais foram os resultados da conversa?

Verifique: a. Você ouviu e observou antes de começar a conversa? b. Você começou com assuntos "breves”? c. Você fez perguntas de final aberto? d. Você compartilhou alguma de suas idéias, opiniões ou informações? e. Você terminou com delicadeza?

() sim () não () sim () não () sim () não () sim () não () sim () não

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R eceber C ríticas

Fundamentações 1. As críticas são freqüentes na vida de todas as pessoas, todos os dias e, recebêlas de forma educada é uma das coisas mais difíceis em nossa interação com os demais. 2. As críticas, quando feitas e recebidas apropriadamente, nos fornecem uma chance valiosa de aprender sobre nós mesmos e sobre a forma como afe­ tamos as outras pessoas. Sempre há o que ser melhorado e ofeedback cons­ trutivo de outras pessoas nos ajuda a mudar. 3. Outra razão para praticar a habilidade de receber uma crítica educadamente é que isso nos ajuda a evitar argumentos desnecessários e permite às outras pessoas saber que estamos abertos a ouvir seu ponto de vista. A pessoa que responde agressivamente a uma crítica desencoraja o outro a voltar a falar numa próxima vez, o que pode levar a uma conseqüência mais danosa (um empregado que não recebe uma crítica adequadamente pode acabar per­ dendo o emprego ou a oportunidade de crescer profissionalmente; um ma­ rido que não pode aceitar uma crítica de maneira apropriada prejudica uma conversação que pode contribuir para um relacionamento satisfatório). 4. Há dois tipos básicos de críticas que nos podem ser feitas: construtivas (ou assertivas) e destrutivas (ou agressivas): a. As críticas construtivas são dirigidas ao comportamento e não à pessoa. Neste caso, a pessoa descreve seus sentimentos que se relacionam a algo que você fez e solicita alguma mudança. b. As críticas destrutivas ocorrem quando alguém nos critica como pessoas, em vez de criticar nosso comportamento. Este tipo de crítica está mais freqüentemente relacionado ao estado emocional do outro ou a uma provocação para a discussão do que ao seu comportamento. Seja a crítica construtiva ou destrutiva, não vale a pena uma reação emo­ cional e é particularmente inútil brigar por causa disso. 5. Relação entre esta habilidade e o problema com álcool e drogas: a. Conflitos interpessoais e a raiva ou outros sentimentos negativos resul­ tantes deles são situações de alto risco para recaídas. Falhar em respon­ der efetivamente às críticas pode levar a sérios conflitos interpessoais, enquanto responder de uma maneira efetiva pode reduzir conflitos e a probabilidade de fazer uso da substância. b. O problema com álcool e drogas provoca rupturas no funcionamento da pessoa de várias maneiras (com os pais, cônjuge, colegas de trabalho, etc.) e torna o usuário suscetível a uma variedade de críticas a respeito de seu comportamento. Esse aumento da probabilidade de receber críti­ cas torna esta habilidade especialmente importante.

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S obre R eceber C ríticas

a

R espeito

de

B eber

Fundamentações 1. Muitas vezes, a crítica sobre beber tomará a forma de acusações ou interro­ gatórios (“Você está atrasado e sei que esteve bebendo de novo”), mesmo que você esteja sinceramente comprometido com a decisão de parar de be­ ber e completamente engajado no tratamento. Levará algum tempo para as pessoas recuperarem a confiança em você e reduzirem a excessiva vigilân­ cia. E, muitas vezes, essa excessiva vigilância resultará em críticas infunda­ das, mas quase sempre a crítica poderá ser apropriada. Em ambos os casos, é importante ser capaz de responder às críticas de forma a facilitar uma co­ municação produtiva, em vez de começar uma briga. Mesmo que a crítica seja feita de maneira destrutiva, você terá de ser capaz de responder assertiva e efetivamente. 2. Muitas vezes, a crítica sobre beber se focará no passado e poderá tanto ser destrutiva (“Você foi horrível durante os anos que bebia. Você arrui­ nou nosso lar e nossa família”) quanto construtiva (“Estou feliz com suas mudanças, mas algumas vezes fico frustrada com tudo que sofremos no passado. Penso que me sentiria melhor e mais esperançosa sobre nós se você voltasse a jantar conosco novamente e ouvisse as crianças sobre como foi seu dia na escola”). Ao responder a estas críticas é importante nos focarmos em soluções no aqui e agora, em vez de voltar a discutir sobre os conflitos do passado. 3. Durante a fase inicial de abstinência, é possível que as críticas sobre beber sejam ocasionadas por outros comportamentos associados ao uso que in­ comodam a outra pessoa. Por exemplo: sua esposa pode estar incomoda­ da com o seu isolamento ou com seu temperamento instável e, em vez de falar diretamente sobre isso, poderá simplesmente focar-se no seu uso pas­ sado ou no risco presente de voltar a usar. Esta crítica mal dirigida pode ocorrer porque o comportamento de beber esteve associado a esses outros comportamentos no passado e talvez por ser mais fácil ou mais automático criticar o beber do que abordar outro problema. A questão original não surgirá, a menos que você responda à crítica feita sem se envolver em uma discussão. Evitando ser defensivo e fazendo perguntas esclarecedoras so­ bre os comportamentos que estão incomodando sua esposa você terá uma chance melhor de redirecionar a crítica que ela lhe faz.

Técnicas de Manejo O principal objetivo, ao se receberem críticas destrutivas ou construtivas, é prevenir a escalação para uma briga. Sempre que possível, uma segunda meta poderia ser tentada: a de mudar a natureza da crítica e ajudar a outra pessoa a se comunicar com você de maneira mais produtiva. Mesmo uma crítica destrutiva, colocada da pior maneira possível, pode conter alguma informação útil.

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1. Não fique na defensiva, não entre numa discussão e não contra-ataque.

2.

3.

4.

5.

Fazer isso só aumentará a argumentação e diminuirá a chance de uma co­ municação efetiva entre você e o outro. Considere a seguinte situação: um marido que está saindo para pescar e recebe críticas da esposa a respeito do ato de pescar. Ele replica: “Quem é você para dizer se pescar é bom ou não? Você não entende de pescaria”. Esse tipo de colocação é absoluta­ mente ofensivo e agrava os sentimentos entre o marido e sua esposa le­ vando a esse tipo de argumentação. Faça perguntas à outra pessoa para tentar, sinceramente, esclarecer e es­ pecificar melhor a crítica para que você perceba seu conteúdo e propó­ sito. Fazendo mais perguntas sobre a colocação da crítica, você encoraja o outro a colocá-la de uma forma mais provável de melhorar a comuni­ cação mútua. Continuando com o exemplo anterior: uma resposta não defensiva e que ajudaria a esclarecer a crítica poderia ser: “Percebo que o fato de eu ir pescar está incomodando você. Mas não sei como. Você po­ deria me dizer?” Encontre algo na crítica com que você concorde e recoloque-a de forma mais direta. Isso é particularmente importante quando a crítica está 100% correta. Em vez de responder com culpa ou hostilidade, aceite-a de modo assertivo e admita o que for negativo. Voltando ao exemplo anterior: “Você está certa. Estou deixando-a sozinha com muita freqüência nas últimas semanas”. Esta abordagem retira grande parte do impacto negativo da crítica e ajuda a esposa a ser mais objetiva nos seus feedbacks. Proponha um compromisso que você possa assumir. Isso significa pro­ por alguma mudança de comportamento adequada à crítica. No exem­ plo anterior, essa proposta poderia ser, por exemplo, ir pescar nesta semana e ir com a esposa ao cinema (ou outra alternativa que a agrade) na próxima semana. Rejeite uma crítica injusta. Muitas vezes, uma crítica não tem justificati­ va. Nessas situações, é importante rejeitá-la de maneira polida, mas tam­ bém firme. Por exemplo, o marido que chega em casa e diz agressivamente para a esposa: “Parece que um ciclone passou por essa casa e as crianças ainda não jantaram. Às vezes, acho que a única coisa que você faz é ficar sentada dentro de casa, enquanto estou trabalhando”. Uma resposta apro­ priada da esposa poderia ser dizer, de maneira firme e não raivosa: “De fato, a casa está uma bagunça e eu estou atrasada com o jantar das crian­ ças. Mas hoje eu não me senti bem durante todo o dia e não gosto da ma­ neira como está falando comigo”.

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F o lh a

de

E xercício s

Sessão: Receber Críticas LEMBRE-SE - Quando receber uma crítica, lembre-se do seguinte: • • • •

Não fique defensivo, não discuta, não contra-ataque. Encontre algo com o que concordar. Faça perguntas para esclarecimentos. Proponha um compromisso realizável.

Exercícios Práticos Fique atento, até nossa próxima sessão, a qualquer crítica que venha a receber e tente responder a ela de acordo com os parâmetros discutidos aqui e faça suas anotações a seguir:

Descreva a situação:

Descreva sua resposta: Verifique: • • • •

Você se comportou como se a crítica não valesse a pena? Você encontrou algo com o que concordar? Você fez perguntas para esclarecer a crítica? Você propôs um compromisso?

() () () ()

sim sim sim sim

() () () ()

não não não não

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H a bilid a d e

de

R ecusar B ebidas /D rogas

Fundamentações 1. Receber um convite ou pressão para beber (ou usar drogas) é uma situação de alto risco comum. Já aconteceu com você? 2. Ser capaz de recusar um drinque requer mais do que uma sincera decisão de parar de beber. Requer a assertividade específica para agir de acordo com essa decisão. 3. O uso social do álcool é muito comum em nossa cultura e podemos encontrá-lo numa grande variedade de lugares e situações. Assim, mes­ mo aquela pessoa que evita todos os bares se encontrará em situações em que outras pessoas estarão bebendo ou fazendo planos para beber em encontros familiares, festas no escritório, restaurantes, jantares em casa de amigos, etc. Muitas pessoas poderão oferecer-lhe um drinque (parentes, amigos, encontros de negócios, maitres de restaurantes, etc.) e esse convites poderão ser casuais ou até mesmo repetitivos e argumentativos. Diferentes situações serão mais ou menos difíceis para dife­ rentes pessoas. 4. Praticar a recusa ajudá-lo-á a responder mais rápida e efetivamente quando essas situações reais ocorrerem.

Técnicas de Manejo A natureza específica de uma resposta assertiva a um convite para beber é variável, dependendo de quem o está oferecendo e de como a oferta é feita. Mui­ tas vezes um simples: “Não, obrigado” será suficiente. Compartilhar seu proble­ ma com a outra pessoa poderá ser útil para eliciar um suporte útil em alguns momentos e em outros não.

Comportamentos Não-verbais 1. Fale de maneira clara, firme e com voz não hesitante. Caso contrário, deixa­ rá a pessoa em dúvida sobre o que realmente você quer dizer. 2. Olhe diretamente nos olhos da pessoa. Isso aumenta a efetividade de sua mensagem. 3. Não se sinta culpado. Você não magoa ninguém por não querer beber e, em muitas situações, as pessoas sequer vão saber se você bebeu ou não. Você tem o direito de não beber. Mantenha-o!

Comportamentos Verbais 1. “Não” deveria ser a sua primeira palavra, pois termina logo com o assunto. Se você hesitar em dizer “não”, as pessoas ficarão em dúvida sobre o que realmente quer dizer.

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2. Você pode sugerir uma alternativa: um café, um sorvete, um suco, um lan­ che, uma caminhada, uma volta de carro, etc. 3. Solicite uma mudança de comportamento. Se a pessoa estiver repetidamente insistindo, peça-lhe que não mais lhe ofereça um drinque. Por exemplo, se a pessoa lhe disser: “Vamos lá, apenas um drinque pela nossa amizade”, uma resposta apropriada pode ser: “Se quiser ser meu amigo, então não me ofereça um drinque”. 4. Depois de dizer “não”, mude de assunto para algo que evite entrar numa longa discussão sobre beber. Por exemplo: “Não, obrigado, eu não bebo. Es­ tou feliz por ter vindo a esta festa. Há muitas pessoas que não via há muito tempo, inclusive você. O que tem feito?”. 5. Evite desculpas (como “Estou tomando remédios”) e o uso de respostas vagas (“Hoje, não”). Elas querem dizer que noutro dia você aceitará. Ape­ sar de ser preferível evitar as desculpas, poderão ser úteis em algumas circunstâncias.

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F o lh a

de

E xercício s

Sessão: Recusar Bebidas/Drogas LEMBRE-SE - Quando você receber um convite para beber/usar drogas: • • • • • • • •

Sua primeira palavra deverá ser “não”. Sua voz deve ser clara, firme e não hesitante. Olhe diretamente nos olhos. Sugira uma alternativa (algo a fazer ou algo a comer/beber). Peça à pessoa que pare de lhe oferecer bebida. Mude de assunto. Evite o uso de respostas vagas. Não se sinta culpado.

Exercícios Práticos Abaixo há uma lista de pessoas que poderão oferecer um drinque a você no futuro. Pense nas maneiras que você poderá responder a elas e escreva suas res­ pondas abaixo. Alguém próximo a você tem conhecimento de seu problema com álcool/drogas?

Colega de trabalho: Chefe: Uma pessoa que você acaba de conhecer: Garçom (com outras pessoas presentes): Parente, numa festa em família:

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M a n ejo

de

P ensam entos

sobre

Á lcool / D rogas

Fundamentações 1. Pensamentos sobre beber/usar drogas são normais e a maioria das pessoas que cessa o uso pensa em voltar ocasionalmente e, na verdade, não há ne­ nhum mal nisso, desde que não se aja de acordo com esses pensamentos. O propósito desta sessão é identificar aqueles pensamentos que podem levar a um uso inicial e aprender novas maneiras de se “flagrar”. 2. As situações seguintes podem levar ex-usuários a ter pensamentos sobre be­ ber/usar drogas: a. Nostalgia: alguns usuários em recuperação pensam a respeito do uso que faziam como se fosse um velho amigo. Por exemplo: “Eu me lem­ bro daqueles bons tempos em que pegava algumas latas de cerveja e descia o rio para pescar” ou “O que é a festa de Ano-Novo sem um drinque?” b. Teste de controle: algumas vezes, após um período de abstinência bemsucedido, os ex-usuários se tornam superconfiantes. Por exemplo: “Acho que posso beber com o pessoal hoje à noite e voltar ao normal amanhã de manhã. A curiosidade também pode ser problemática, por exem­ plo: “como seria dar apenas uma tragada?” ou “Vamos ver se eu posso deixar apenas algumas latas na geladeira para os convidados”. c. Crises: durante períodos de crise ou de estresse, um ex-usuário pode pensar: “Eu preciso de um drinque/trago/baseado/tiro” ou “Eu só pos­ so suportar isso com alguns goles”, ou “Quando isso terminar, poderei voltar à abstinência novamente”. d. Sentir-se desconfortável quando sóbrio: algumas pessoas acreditam que novos problemas surgem com a abstinência e pensam que voltar ao uso seria útil para resolver esses problemas. Por exemplo: “Quan­ do não bebo fico muito mal humorado e irritável com minha família. Talvez seja mais importante ser um bom pai e marido do que parar de beber agora” ou “Eu não sou uma pessoa interessante e divertida quan­ do não bebo. Se eu parar de beber, as pessoas não vão gostar de mim como antes”. e. Dúvidas sobre si mesmo: algumas pessoas duvidam de sua habilidade de serem bem-sucedidas. Por exemplo: “Eu não tenho força de vonta­ de”, ou “Eu já tentei parar muitas vezes, no passado; por que eu deveria esperar conseguir agora?”

Técnicas de Manejo A maioria das pessoas em recuperação tem pensamentos sobre álcool ou dro­ gas uma vez ou outra. Aqui estão algumas maneiras de lidar com eles. 1. Desafie-os. Use outros pensamentos para desafiar os pensamentos rela­ cionados ao uso. Por exemplo: “Não posso beber um drinque sequer sem

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correr o risco de beber mais” ou “Eu não tenho que beber um drinque para conseguir relaxar após o trabalho. Posso praticar exercícios de relaxamento para isso” Recorde-se e liste os benefícios de não usar drogas ou beber. Pensar a res­ peito ajuda a desarmar as desculpas para fazer uso. Entre os benefícios, inclua melhoras na saúde física, na vida familiar, maior estabilidade no trabalho, mais dinheiro disponível para diversão ou pagamento de contas, maior auto-estima, sensação de autocontrole, etc. É importante prestar atenção aos aspectos positivos da sobriedade e ao progresso que está sen­ do feito. Acrescente mais itens a essa lista e leve-a consigo para rever os benefícios, caso se encontre repentinamente em alguma situação em que se sinta persuadido a fazer uso. Recorde-se e liste as experiências desagradáveis associadas ao uso de álcool/ drogas. Lembre-se da dor, do medo, da vergonha e de outros sentimentos negativos, dos esquecimentos, das ressacas, dos riscos corridos, dos malestares, dos sintomas de abstinência, problemas físicos, discussões familia­ res, perdas sofridas e coloque-os numa lista que poderá ter sempre consigo, para rever quando se sentir tentado a fazer uso. Nos momentos de tentação, é muito importante lembrar-se das vantagens da abstinência e das desvan­ tagens do comportamento de uso. Distraia-se. Para evitar pensar em pensamentos relacionados ao álcool, dis­ traia-se com outros pensamentos não relacionados. Pense em coisas agra­ dáveis, como plano de férias, reforma da casa, algo que possa comprar ou mudar em sua casa, nos planos que tem para o futuro de seus filhos, no seu cachorro, no planejamento do final de semana. Concentrar-se em coisas que precisam ser feitas também é uma forma construtiva de distração. Auto-reforço. Recorde e liste seus sucessos (o tempo de abstinência ou o abandono do uso de outra droga, por exemplo) e mantenha-o consigo. Adie a decisão de fazer uso por 15 minutos. A maioria das fissuras tem um pico de ascensão e então declina. Se esperar alguns minutos, o desejo passa­ rá. Tente imaginar que está surfando uma onda (a fissura) até que ela termine. Deixe ou transforme a situação na qual você começou a ter pensamentos sobre fazer uso. Tente um hobbie ou um exercício físico, por exemplo. Telefone para alguém com quem tenha sido importante para você conver­ sar em situações semelhantes, no passado (padrinho de A.A., seu terapeuta ou algum amigo).

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Sessão: Manejo de Pensamentos Sobre Álcool e Drogas LEMBRE-SE: • Desafie seu pensamento: você precisa usar realmente? Você não poderá realmente ficar bem sem álcool/droga? • Pense nos benefícios de não beber (leia a lista). • Pense nas experiências desagradáveis associadas ao uso (leia a lista). • Distraia-se: pense em algo agradável não relacionado ao álcool/droga. • Pense positivo: recorde seus sucessos passados. • Imagine-se surfando a onda da fissura. • Imagine uma fotografia das pessoas que ficarão desapontadas com você, se fizer uso. • Adie a decisão: olhe para seu relógio e adie a decisão por apenas 20 mi­ nutos, enquanto se concentra em algo até que a vontade ceda. • Deixe ou mude a situação. • Converse com alguém.

Exercício Prático Uma forma de manejar os pensamentos sobre álcool/drogas é recordar os benefícios da abstinência e os efeitos negativos relacionados ao uso. Utilize o es­ paço abaixo para elaborar uma lista com estas características e transfira-as a um cartão que você possa manter consigo para ler quando tiver pensamentos sobre beber ou usar drogas.

Benefícios de não usar:

Efeitos desagradáveis associados ao uso:

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A umentar

as

A tividades P razero sas

Fundamentações 1. Muitos usuários de álcool e drogas sentem um tipo de repulsa por suas vidas ao pararem de usar tais substâncias. Por exemplo: se a vida de uma pessoa envolver apenas comer, dormir, trabalhar e beber e se delas retirarmos o “beber” restará apenas o comer, dormir e trabalhar. A ausência de atividades de lazer prazerosas pode ser um grande problema. 2. Pesquisas indicam que o número de atividades prazerosas com as quais uma pessoa está envolvida está diretamente relacionada com a ocorrência de sen­ timentos positivos. Quanto menos atividades prazerosas a pessoa tiver, maior será a probabilidade dela experienciar sentimentos negativos, como tédio, solidão e depressão. Isso sugere que atividades de lazer prazerosas são im­ portantes ferramentas no controle destes sentimentos. 3. Muitas pessoas passam muito de seu tempo envolvidas em atividades que precisam ser cumpridas ou obrigatórias, mas não necessariamente prazerosas (trabalho, serviços de casa, etc.), ou seja, “Eu preciso fazer” e não “Eu quero fazer”. Um estilo de vida cheio de “Preciso fazer” e com raros “Quero fazer” pode levar uma pessoa a acreditar que “deve” a si mesmo um drinque ou droga como recompensa por trabalhar tão duro. Uma opção melhor é encontrar uma forma equilibrada entre os deveres e os prazeres.

Técnicas de Manejo 1. Crie um menu de atividades prazerosas. O primeiro passo, ao se mudar um estilo de vida, é concentrar-se em atividades prazerosas que você gos­ taria de começar ou aumentar a sua freqüência. Uma forma de se fazer isso é por meio de brainstorm: coloque num papel absolutamente tudo o que lhe vier à mente, por mais absurdo ou ridículo que possa parecer. De­ pois, selecione aquelas que lhe são agradáveis. Algumas das atividades selecionadas poderão ser coisas que você costumava fazer para se divertir e outras que gostaria de fazer. 2. Algumas atividades prazerosas podem se tornar “adicções positivas”. Enquan­ to uma adicção negativa pode ser descrita como uma atividade prazerosa, inicialmente, e que leva a maus sentimentos e resultados no futuro; uma adicção positiva pode não ser muito prazerosa inicialmente (correr), mas se toma desejável conforme o tempo vai passando. Uma adicção positiva é uma atividade que segue os seguintes critérios: a. não é competitiva; b. não de­ pende de outras pessoas; c. tem algum valor para a pessoa (físico, mental ou espiritual); d. você pode melhorar com a prática; e. você aceita seu nível de desempenho sem autocríticas. Por exemplo, relaxamento, meditação, exer­ cícios (jogos, natação, ciclismo, etc.), hobbies, leituras, atividades culturais, atividades criativas (música, artes, literatura, etc.). 3. O próximo passo, depois de completar seu menu, é desenvolver um “plano de atividades prazerosas”. Reserve um pequeno período de tempo diário (30

Prevenção da Recaída ■

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a 60 minutos) para atividades prazerosas. Comece a usar esse “tempo pes­ soal” sentando-se em silêncio e revisando mentalmente seu menu. Prova­ velmente, você não desejará fazer as mesmas coisas todos os dias. Em um dia, poderá ter vontade de relaxar, em outro, de praticar exercício e, num terceiro, de praticar jardinagem. Planeje um tempo diário, mas não a ativi­ dade, de forma que o que você faça no seu tempo diário não se transforme em obrigação. Cuidados a serem tomados: a. Comprometa-se com seu planejamento. b. Lembre-se que um estilo de vida “equilibrado” não significa que esteja distribuído eqüitativamente: você não precisa ter um tempo igual para deveres e prazeres. “Equilibrado” refere-se ao grau de satisfação com o próprio dia-a-dia. c. Preveja os problemas que poderão interferir em seus planos. d. Esteja certo de que as atividades escolhidas são prazerosas.

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F o lh a

de

E xercício s

Sessão: Aumentar Atividades Prazerosas LEMBRE-SE: • Elabore uma lista de atividades prazerosas. • “Adicções positivas” são atividades não competitivas; não dependem de ou­ tras pessoas; tem valores físicos, espirituais ou mentais; você pode melhorar com a prática e pode aceitar seu nível de desempenho sem se criticar. • Planeje 30 a 60 minutos diários para seu “tempo pessoal”. • A meta é alcançar um equilíbrio entre as coisas que você “tem que fazer” e as coisas que você “quer fazer”, de maneira que se sinta satisfeito com seu dia. • Quanto mais divertidas forem as coisas que fizer, menos sentirá falta do álcool ou drogas e menos provavelmente usará tais substâncias para en­ contrar diversão em sua vida.

Exercícios Práticos Escreva seu menu de atividades prazerosas. Defina um tempo de 30 a 60 minutos como seu “tempo pessoal” para se envolver nessas atividades e escreva-o ao lado do dia da semana. Defina o tempo, e não a ati­ vidade. No final da semana, anote a atividade que escolheu para cada um dos dias. Escreva aqui o que decidiu fazer: Segunda-feira: Terça-feira: Quarta-feira: Quinta-feira: Sexta-feira: Sábado: Domingo:

C A PÍTU LO

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Filhos de Dependentes Químicos R o berta P ayá N elia n a B u zi F

ig lie

Introdução Apreocupação com filhos de dependentes químicos vem notoriamente ocupando um espaço maior na área de saúde. Há 20 anos este público passou a receber interesse tanto da comunidade médica como de pesquisadores. Basicamente, dois aspectos fizeram com que os filhos fossem estudados: Primeiro, o fato de o alcoolismo desencadear uma série de disfunções no ambiente familiar e, a partir daí, a preocupa­ ção de como os filhos reagiriam ao impacto da dependên­ cia; depois, a própria necessidade de os pesquisadores investigarem o processo e as causas da dependência, mais precisamente do alcoolismo. Investir na população de filhos de dependentes signifi­ ca trabalhar com o setor de prevenção da área de depen­ dência química, especificamente a prevenção seletiva, por ser direcionada a um determinado grupo de risco. Uma vez que o grupo seja recrutado, pode receber informação, edu­ cação e até mesmo ter a oportunidade de se inserir em pro­ gramas preventivos que já começaram a ser implantados no país. Mas dizer, simplesmente, que um filho de alcoolista se tornará, um dia, dependente, é simplificar demais os fato­ res envolvidos na questão. Daí a importância de se enten­ der os fatores de risco que levam um filho de dependente a iniciar o uso de alguma substância. Há fatores relevantes que aproximam um jovem do ris­ co, como a própria disponibilidade da droga, a situação le­ gal ou ilegal desta, a influência do grupo de amigos, adesão ou não na escola, os aspectos psicológicos e, sem dúvida, a influência do meio familiar.

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O fato de, na família, alguém se envolver com bebidas alcoólicas ou outras drogas aciona, nos demais membros, uma série de reajustes, à qual cada membro tenderá reagir de uma forma, uns com melhores recursos, outros não1. Torna-se, então, necessário compreender que existem vários mecanismos am­ bientais específicos e não específicos pelos quais os pais podem transmitir maior risco de abuso de substância a seus descendentes. Os mecanismos por meio dos quais as famílias podem aumentar o risco de uso e abuso de drogas em seus filhos compreendem:

Fatores Específicos Referem-se à modelagem parental de uso de substâncias, podendo acarretar a imitação direta devido a: • Exposição a drogas; • O próprio modelo para o uso de drogas; • Concordância paterna com o abuso de drogas.

Fatores Não Específicos Os fatores não específicos referem-se ao funcionamento familiar: como as regras estão estabelecidas em relação à educação dos filhos, se os membros são unidos ou não, se vivem de modo coeso, se há permissividade dos pais, histórico de separação ou grandes perdas que provocaram traumas psicológicos, aconte­ cimentos violentos envolvendo abusos e outros. Basicamente, os aspectos seguintes resumem tais fatores não específicos: • • • • • •

Ruptura da estrutura familiar; Discórdia conjugal; Exposição a estresse; Psicopatologia familiar; Negligência; Abuso.

Embora a transmissão dos fatores genéticos determine os efeitos fisiológicos das drogas e metabolismo, uma vez que se tenha iniciado o uso, a família também pode aumentar o risco do abuso de drogas e/ou álcool por meio dos fatores espe­ cíficos, assim como pela ampla gama dos fatores não específicos que caracteri­ zam os lares de pais com disfunção secundária a uma enfermidade psiquiátrica ou somática. Em resumo, os pais podem influenciar diretamente o uso e abuso de drogas/ álcool em seus filhos por: 1. exposição a drogas/álcool na fase pré-natal do desen­ volvimento; 2. proporcionando modelos negativos de papéis, em termos de uso / abuso de drogas/álcool como um mecanismo de adaptação; e 3. aumento da disponibilidade de drogas2.

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Risco O Alcoolismo e a Família F ato res de

A convivência com um alcoolista não recuperado na família pode contribuir para o estresse de todos os membros3. Cada membro da família pode ser afetado de forma diferente. Nem todas as famílias de alcoolistas têm a experiência ou reage ao estresse da mesma maneira. O nível de disfunção ou de resiliência do cônjuge não-alcoolista é um fator-chave nos efeitos dos problemas que causam impacto nos filhos. As crianças criadas em famílias de alcoolistas têm experiências de vida diferentes daquelas de crianças criadas em famílias de não-alcoolistas. As crian­ ças criadas em outros tipos de famílias disfuncionais podem ter perdas e fatores de estresse semelhantes de desenvolvimento, mas diferentes das crianças em fa­ mílias de alcoolistas4. As crianças que vivem com um alcoolista não recuperado obtêm pontuação inferior nas mensurações de coesão da família, orientação intelectual cultural, orientação ativa-recreacional e independência. Elas normalmente experimentam maiores níveis de conflito dentro da família5. Muitos filhos de alcoolistas têm experiência dos outros membros da família como distantes e não comunicativos, podendo sofrer dificuldades por sua impos­ sibilidade de crescer de maneira saudável em termos de desenvolvimento. As per­ cepções das crianças a respeito da quantidade e circunstâncias do alcoolismo paterno parecem influenciar sua própria freqüência de ingestão de álcool. Os padrões de interação familiar também podem influenciar o risco dos fi­ lhos de alcoolistas para o abuso de álcool. Tem-se constatado que as famílias com um genitor alcoolista mostram uma interação mais negativa durante as dis­ cussões de solução de problemas do que as famílias não-alcoólicas. O alcoolis­ mo paterno influencia o uso de substâncias, pelo adolescente, por meio de muitas vias diferentes, incluindo estresse, afeto negativo e diminuição do monitora­ mento paterno. O afeto negativo e o monitoramento paterno prejudicado estão associados ao fato de o adolescente se unir a companheiros que apoiam o com­ portamento de uso de drogas6. Em comparação com as famílias não-alcoólicas, as famílias de alcoolistas de­ monstram capacidades mais precárias de solução de problemas, tanto entre os pais quanto na família como um todo. A comunicação e habilidades precárias de solução de problemas podem ser mecanismos pelos quais a falta de coesão e um conflito maior se desenvolvem e crescem nas famílias de alcoolistas. Nurco7 afirma que filhos de alcoolistas têm maior risco de problemas comportamentais disruptivos e mais probabilidade de procurar sensações e de ser agressivos e impulsivos do que os filhos de não-alcoolistas e mostram índices elevados de psicopatologia, como ansiedade, depressão e distúrbios de externalização de comportamento. Filhos de alcoolistas geralmente têm dificul­ dades na escola; muitas vezes, eles não vêem a si mesmos como bem-sucedidos. Em idade pré-escolar, mostram linguagem e raciocínio mais precários que os fi­ lhos de não-alcoolistas e o mau desempenho dos filhos de alcoolistas é previsto, pela qualidade inferior do estímulo presente em casa.

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O autor ainda aponta que os filhos de alcoolistas têm maior dificuldade de abstração e de raciocínio conceituai. A abstração e o raciocínio conceituai desem­ penham um importante papel na solução de problemas, sejam eles acadêmicos ou de situação relacionada à vida. Portanto, os filhos de alcoolistas poderiam ne­ cessitar de explicações e instruções mais concretas e aprofundadas. Daí a necessidade de trabalhar positivamente com esse grupo, a fim de que eles possam perceber suas experiências de maneira construtiva, mesmo que pro­ voquem sofrimento e adquirir, bem cedo na vida, a atenção de outras pessoas que lhes sirvam positivamente, possibilitando experiências modificadoras.

Influências Paternas Tanto as influências paternas específicas como as não específicas do uso de substâncias afetam o desenvolvimento do abuso e dependência nos filhos. As in­ fluências específicas do álcool são particularmente relevantes para o desenvolvi­ mento de abuso e dependência de álcool em filhos de dependentes de álcool. Tais influências, que compreendem cuidados paternos e padrões inadequados de interação entre pai e filho, podem promover agressividade e comportamento anti­ social nas crianças, aumentando o risco de um subtipo de alcoolismo, nos des­ cendentes, associado ao distúrbio de personalidade anti-social7. Estudos demonstraram que os padrões alcoólicos dos pais e de seus filhos adolescentes e adultos estão altamente correlacionados. Entretanto, existe ainda considerável incerteza quanto à maneira pela qual o abuso de álcool paterno au­ menta o risco de problemas de alcoolismo dos filhos. Os efeitos individuais repre­ sentam o impacto do comportamento de uma pessoa sobre a conseqüência no filho. Os estudos desses efeitos concentraram-se nos papéis da modelagem paterna e expectativas referentes ao álcool. A percepção, dos filhos, da quantidade e cons­ tância do alcoolismo paterno parece influenciar sua própria freqüência de inges­ tão alcoólica8. Vários estudos avaliaram a qualidade do relacionamento entre pai e filho nas famílias com um genitor usuário de drogas, com a finalidade de conhecer melhor os fatores que contribuem para o alcoolismo em adolescentes4. Os resultados su­ gerem que o abuso de álcool e drogas por parte do pai pode se associar à diminui­ ção do monitoramento do comportamento dos filhos. Esta faceta específica dos cuidados paternos, por sua vez, constitui um fator de risco para uma tendência a procurar substâncias psicoativas ou maior associação a companheiros que usam drogas /álcool e, portanto, ao uso de drogas entre os filhos8,9. Os padrões de interação familiar também podem influenciar no risco de abuso de álcool e drogas. Além disso, a excessiva ingestão alcoólica paterna parece estar associada a uma interação familiar mais perturbada do que a ocorrida no alcoo­ lismo estável1011. Estas observações indicam a importância de avaliar uma am­ pla variedade de famílias e características sociais para facilitar o prognóstico de que o jovem filho de dependente se encontra em maior risco de futuros proble­ mas alcoólicos. Os cuidados paternos inadequados, que se caracterizam por falta de afeto e/ ou altos níveis de crítica e hostilidade, disciplina e supervisão relaxadas ou incon-

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sistentes e ausência de participação geral, proporcionam a base para o desenvol­ vimento de um padrão agressivo, anti-social12. Já nos anos pré-escolares, um pa­ drão desse tipo pode se manifestar na forma de não-adesão. Com o tempo e com as contínuas dificuldades paternas, a não-adesão progride para um padrão de comportamento caracterizado por rejeição precoce dos colegas de escola, mau desempenho acadêmico, delinqüência, abuso de álcool e drogas e vínculo com amigos desviados5. A primazia da família em relação ao desenvolvimento social e cognitivo da criança tem sido o fundamento do desenvolvimento infantil, assim como a litera­ tura de estudos familiares, por mais de 50 anos, vem elaborando duas conclusões relevantes: a) todas as variáveis familiares que podem afetar o efeito sobre a criança são desenvolvidas no âmbito das interações entre pai e filho, e b) a interação entre pai e filho caracteriza-se, primariamente, por duas dimensões paternas impor­ tantes: cuidados educacionais e controle. Os distúrbios em uma ou nas duas dimensões paternas podem causar efeitos de grande extensão sobre o desenvol­ vimento social-emocional e cognitivo da criança. É bem estabelecido que o ambiente familiar, em especial os efeitos dos cuida­ dos paternos, exerce forte influência sobre o risco de uso e dependência química do filho. A evidência mais abrangente e substancial desses efeitos provém de pes­ quisa fundamentada na teoria de aprendizagem social sobre o desenvolvimento do comportamento agressivo, anti-social e de estudos longitudinais que rastrearam as influências familiares e de companheiros sobre o desenvolvimento de abuso de álcool e outras drogas6. Os tipos de pesquisa com base genética podem esclarecer as contribuições independentes e/ou associadas do ambiente familiar, assim como das influên­ cias genéticas para o desenvolvimento de comportamento subcontrolado e, subseqüentemente, de distúrbios comportamentais da infância, adolescência e início da vida adulta. Embora seja um campo para ser mais bem explorado, sabe-se que, à medida que se elaboram modelos multifatoriais adicionais, os pesquisadores terão a pro­ babilidade de identificar correlações significativas entre alguns dos diversos fato­ res de risco. Por exemplo, as características de personalidade como desinibição comportamental e a busca de sensações parecem constituir fatores de risco de abuso de álcool e outras drogas. Essas dimensões da personalidade também podem afetar o ambiente familiar e existe um agrupamento inter-relacionado de fatores genéticos e ambientais que influenciam a trajetória de uma pessoa em direção aos problemas com drogas. O fato de a heterogeneidade do alcoolismo paterno ser uma classe-chave de variáveis que devem ser identificadas, numerosos outros domínios precisam ser considerados ao se avaliar a relação do alcoolismo paterno com as conseqüências nos filhos. Primeiro, existe considerável variabilidade nas características de irmãos de qualquer família. Ou seja, duas crianças podem partilhar os mesmos pais bio­ lógicos e condições gerais de educação e ainda ser profundamente diferentes ao longo das múltiplas dimensões psicológicas, mesmo em características conheci­ das como moderadamente hereditárias. Portanto, ainda que classes relativamente homogêneas de alcoolistas (e seus cônjuges) possam ser identificadas, seria espe­ rada uma considerável variabilidade nas características de seus filhos13.

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Segundo, a extensão em que o alcoolismo paterno se associa a características es­ pecíficas nos filhos depende, em grande parte, da comparação. Conquanto seja razoável indagar simplesmente se o filho de alcoolista difere dos filhos de não alcoolistas, a evidência acumulada revela que os filhos de famílias com uma varie­ dade de problemas mostram diversas deficiências semelhantes, como questões emocionais ligadas à baixa auto-estima, possíveis traços depressivos, atitudes im­ pulsivas e/ou agressivas, por exemplo14. Devido às inúmeras formas de psicopatologia possíveis nos genitores desses elementos de risco, quase sempre surgem dificuldades para atribuir uma ca­ racterística aparente de um filho de alcoolista especificamente ao alcoolismo paterno. Este princípio geral foi ilustrado num estudo clássico de história fami­ liar que Winokur15 conduziu por quase 30 anos, no qual se examinaram a prevalência do alcoolismo, depressão e sociopatia nas mães. Os achados revela­ ram que membros familiares em primeiro grau exercem maior influência sobre outros membros. Nesse grupo de influências, deve-se também considerar a interação de irmãos dependentes.

M u lh er D ep e n d e n te de Á l c o o l e a G e sta ç ã o O consumo de álcool materno durante qualquer momento da gravidez pode provocar defeitos de nascimento ou déficits neurológicos relacionados ao álcool. Os efeitos do álcool pré-natal têm sido detectados em níveis moderados de con­ sumo alcoólico por mulheres não-alcoolistas. Ainda que a mãe não seja alcoolista, o filho pode não ser poupado dos efeitos da exposição pré-natal ao álcool. O de­ sempenho cognitivo é menos afetado pela exposição ao álcool em bebês e crian­ ças cujas mães pararam de beber no início da gravidez, apesar de a mãe retornar ao uso de álcool após ter dado à luz. Os filhos de alcoolistas, principalmente os expostos ao álcool durante o período de gestação, mostram déficits de crescimento, anormalidades morfológicas, re­ tardo mental e dificuldades comportamentais. Os efeitos secundários em adoles­ centes e adultos incluem problemas de saúde mental, má escolaridade (evasão escolar, ou suspensão ou expulsão), problemas com a lei, vida dependente como adulto e problemas de trabalho. Chassin e cols.4verificam que filhas de mães alcoolistas têm maior prevalência de abuso e dependência de droga, fobias e pânico que seus irmãos. Filhos ho­ mens de mães alcoolistas, por sua vez, têm maior índice de uso e dependência de álcool e ansiedade generalizada que suas irmãs. Porém, ambos têm a mesma prevalência de distúrbios de humor16.

P a pel d o s I r m ã o s e o u so de Á lc o o l e D r o g a s Estudos indicam que os irmãos são moderadamente semelhantes em seus padrões de uso de álcool e outras drogas descrevendo três formas potenciais pe­ las quais esses padrões poderiam estar relacionados. 1. Um irmão mais velho pode

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influenciar um mais novo por meio de processos de modelagem (o comporta­ mento do filho mais novo segue o modelo do filho mais velho). Como resultado, os irmãos compartilhariam atitudes semelhantes, valores e comportamentos que poderiam induzir semelhanças no uso de álcool e drogas. 2. Assim, eles podem ter herdado a mesma predisposição genética para o uso e, portanto, experimentam os mesmos efeitos. 3. Um relacionamento positivo, saudável, com um irmão mais velho pode resultar em menos conflito e desconforto para um irmão mais jovem e reduzir, por conseqüência, o uso de álcool e drogas. Além desses mecanismos, Nurco e cols.7 fizeram hipóteses de que a escolha de amigos de um irmão mais velho pode influenciar, de modo significativo, o ambiente social do irmão mais novo, influindo nos padrões de uso de álcool e drogas e no grau de desvio de comporta­ mento da criança.

P erfil d o s F ilh o s de D ep e n d e n te de Á lc o o l Há mais de 20 anos os pesquisadores notaram que os filhos de alcoolistas parecem ser afetados por uma variedade de problemas no transcorrer de suas vidas. Esses problemas englobam a síndrome alcoólica fetal, que se manifesta durante a lactância; problemas emocionais e hiperatividade na infância; pro­ blemas emocionais e de conduta na adolescência e desenvolvimento de alcoo­ lismo na vida adulta. Pelo menos dois constituintes significativos geraram interesse nas caracterís­ ticas psicológicas de filhos de alcoolistas. Patterson17 descreveu os filhos de alcoolistas como vítimas de um ambiente familiar alcoólico caracterizado por rup­ tura, modelos de papel paterno desviante, cuidados paternos inadequados e rela­ cionamentos perturbados entre pai e filho. Acredita-se que tais variáveis familiares debilitem o desenvolvimento psicológico normal e provoquem desconforto e fun­ cionamento interpessoal deficiente, tanto em termos agudos como crônicos. A maioria das descrições de alcoolistas, entretanto, têm tido base em relatos empíricos de pessoas em busca de ajuda para uma série de problemas comportamentais. Um segundo constituinte que estuda o problema dos filhos de alcoolistas é a comunidade de pesquisa que busca a compreensão das causas do alcoolismo. Os filhos de dependentes de álcool estão em maior risco de se tornar alcoolistas e esse risco elevado parece ser uma função de fatores genéticos e ambientais. Com a identificação das características que distingue os filhos de alcoolistas dos filhos de não-alcoolistas, os pesquisadores esperam estabelecer as variáveis que pode­ riam ser importantes na etiologia do alcoolismo. A maioria das descrições baseiase nos dados obtidos de forma relativamente sistemática em populações clínicas e não clínicas.

Características de Personalidade As pesquisas identificaram duas amplas classes de sintomas psicopatológicos na infância: sintomas de internalização e externalização. A psicopatologia de

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internalização abrange sintomas como ansiedade e depressão. Uma série de estu­ dos mostra que os filhos de alcoolistas relatam altos níveis de depressão e ansie­ dade18. Conforme observado por West e Prinz15, não fica claro se esses problemas de ajuste relacionam-se diretamente ao alcoolismo paterno e indiretamente ao tipo de ruptura familiar. Apsicopatologia de externalização abrange principalmente os tipos de com­ portamento de “expressão de ações”- caracterizada por quebra das normas, pro­ vocação, agressão, desatenção e impulsividade - e corresponde ao que se denomina “distúrbios do déficit de atenção e de comportamento disruptivo”. A alta comorbidade dificulta a especificação da natureza exata da psico­ patologia de externalização dos filhos de alcoolistas Não obstante, os filhos de alcoolistas, como grupo, mostram muitas características associadas a essa vasta classe de distúrbios. Isso não surpreende, já que a psicopatologia da exter­ nalização se associa a uma variedade de diagnósticos paternos, em especial os distúrbios de personalidade anti-social paterna e a uma ampla gama de estressores familiares. Outra área de pesquisa refere-se à extensão em que os filhos de alcoolistas se encontram em risco maior de distúrbios de personalidade. Os distúrbios de per­ sonalidade são caracterizados por relacionamentos interpessoais perturbados, que resultam em dificuldades como problemas com a lei, conflito e discórdia familia­ res e deficiências nos funcionamentos sociais e ocupacionais19. As características da personalidade dos filhos de alcoolistas têm sido o foco da comunidade de pesquisa do álcool, em razão de teóricos influentes terem espe­ culado que grande parte da hereditariedade para o alcoolismo é mediada por ca­ racterísticas de personalidade. Em outras palavras, seria possível esperar que o filho de dependente de álcool diferisse dos filhos de não-alcoolistas nas dimen­ sões de personalidade-chave, diferenças que poderiam explicar o risco de alcoo­ lismo e de outros problemas comportamentais. A neurose/emocionalidade negativa é uma categoria que abrange as caracte­ rísticas de personalidade tais como a tendência a experimentar estados afetivos negativos (depressão e ansiedade), propensão à culpa e autocensura e sensibili­ dade à crítica. Estudos transversais de filhos de alcoolistas revelam apoio misto para diferenças nesta dimensão da personalidade. Alguns estudos comprovaram que os filhos de alcoolistas são mais neuróticos que os filhos de não-alcoolistas. Ainda que, em geral, os filhos de alcoolistas reportem níveis relativamente altos de depressão, este estado parece ser situacional e ligado ao alcoolismo ativo de um pai alcoolista20. Em relação à dimensão de neurose/emocionalidade negativa encontra-se a variável de auto-estima. O alcoolista parece ter menor auto-estima que o nãoalcoolista, nas fases de infância, adolescência e adulto jovem. Os déficits de autoestima poderiam refletir altos níveis de neurose ou, possivelmente, de estados depressivos transitórios21. A categoria de personalidade que parece estar mais associada à condição de filho de alcoolista é a impulsividade/emocionalidade, que abrange características com busca de sensação, agressividade e impulsividade. Numerosos estudos trans­ versais indicam que as características anti-social, agressiva e impulsiva são pró-

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prias dos filhos de alcoolistas23. Estas mesmas características de personalidade parecem ser as mais ligadas ao desenvolvimento de alcoolismo, sugerindo que poderiam representar mediadores importantes de transmissão de alcoolismo entre gerações. Na maioria dos estudos, a magnitude dessa associação não é grande, sendo possível que em boa parte ela seja atribuível a tendências comórbidas de antisociabilidade no genitor alcoolista22. A dimensão da extroversão/sociabilidade, algumas vezes também referida como afetividade ou emocionalidade positiva, abrange características como gregarismo, sociabilidade, dominância e energia. Tais características não têm sido encontradas de modo a distinguir, com confiabilidade, o alcoolista do nãoalcoolista23. Outros estudos que pesquisam as diferenças entre os filhos de alcoolistas e filhos de não-alcoolistas, para identificar um marcador adicional, concentra­ ram-se nas características eletrofisiológicas, como os potenciais relacionados aos eventos. Uma outra área crítica de pesquisa investiga a possibilidade de que a psicopatologia do início da infância pudesse prognosticar o alcoolismo na vida adulta. A maior parte dos estudos demonstrou níveis significativamente maiores de psicopatologia em filhos de alcoolistas em comparação com a de filhos de não-alcoolistas. Estas observações sugerem que, em famílias de alcoolistas, pode existir certa continuidade entre a psicopatologia infantil e a da fase adulta24. O conceito mais popular surgido da literatura de filhos de alcoolistas é o da co-dependência. Duncan e cols.2 observaram que a co-dependência foi pela pri­ meira vez descrita como uma “doença” de “cuidados compulsivos” verificados em cônjuges de alcoolistas. O significado do termo atualmente foi estendido para englobar os filhos de alcoolistas e quase todos aqueles envolvidos no relaciona­ mento com um alcoolista ou com alguém com problemas significativos (psicopatologia ou doença). Embora várias conceituações alternativas de co-dependência possam ser en­ contradas, Wright e Wright24 notaram que a maioria das noções populares é a de uma síndrome de personalidade composta de negação, constrição de emoções, depressão, hipervigilância, compulsões e uma série de outras características. Até o momento, a pesquisa existente indica a necessidade de cuidado ao fa­ zer generalizações sobre as características psicológicas dos filhos de alcoolistas. É claro que evidências indicam que, como grupo, os filhos de alcoolistas se en­ contram em maior risco que os filhos de não-alcoolistas. Com exceção do risco de distúrbios de uso de substância, no entanto, a proporção de filhos de alcoo­ listas afetados por esses outros distúrbios psicológicos não parece ser muito gran­ de. Além disso, é potencialmente prejudicial inferir-se muito a respeito de uma pessoa específica com base apenas em sua história familiar de alcoolismo. Atendência do alcoolismo é disseminar-se pelas famílias: em comparação com os filhos de não-alcoolistas, os filhos de pais alcoolistas têm um risco aproxima­ damente quatro vezes maior de também se tornar alcoolistas1518. Os fatores cau­ sais subjacentes ao desenvolvimento (etiologia) do abuso e dependência de álcool, no entanto, não foram ainda determinados de maneira conclusiva8.

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Apesar dessa forte evidência de contribuição genética, poucos pesquisadores negariam a influência dos fatores ambientais no desenvolvimento do alcoolismo. O termo “ambiental” refere-se, aqui, a todos os fatores que não contribuem dire­ tamente para o risco genético do alcoolismo, agindo no período pré-natal, início da infância, ou nas fases inicial, ou final, da adolescência. Os exemplos dessas variáveis compreendem o alcoolismo materno durante a gravidez, características de temperamento e personalidade dos pais e dos filhos, psicopatologia nos pais e nos filhos, localização geográfica, ambiente familiar e comunitário, envolvimento religioso, falha acadêmica e associação com companheiros desviados8.

P erfil d o F il h o d o D ep e n d e n te de D r o g a s Os filhos de dependentes de drogas como cocaína e heroína, mostram maior número de psicopatologias de internalização e externalização relativas aos filhos de não-dependentes em drogas equiparados, indicando que constituem um grupoalvo importante para as intervenções preventivas. Os fatores de risco para o abuso de drogas geralmente se enquadram em três domínios principais: ambientes in­ dividual, familiar e social, que abrangem companheiros, escola, vizinhança e ex­ periência cultural mais ampla13.

Fatores Familiares na Etiologia do Abuso de Drogas Muito do que tem sido pesquisado sobre filhos de dependentes de drogas ainda é mantido em comparação com filhos de dependentes de álcool. Por isso, a agre­ gação familiar do alcoolismo e abuso de drogas tem sido bem estabelecida. Mas o relevante é que ambas as substâncias afetam as relações familiares, influenciando no uso e abuso, uma vez que estudos familiares controlados com alcoolistas reve­ laram um risco três vezes maior de alcoolismo e duas vezes maior de abuso de drogas entre seus parentes. Os estudos familiares que investigaram diferenças de geração na transmissão do abuso de substância demonstraram que o uso/abuso de drogas18é elevado en­ tre irmãos de usuários de drogas e que existe uma relação direta com o uso/abuso de drogas dos pais. O uso e o abuso em descendentes mostraram que existe uma associação entre os índices de abuso de drogas em irmãos de usuários de opióides e o número de pais que abusam de substâncias. A investigação do risco dos distúrbios por drogas em jovens descendentes de dependentes em substâncias mostra que a psicopatologia pode ser um resultado intermediário para os distúrbios por uso de substâncias. Verificou-se que o abuso de substâncias está associado a distúrbios psiquiátricos importantes, em especial a ansiedade e os distúrbios afetivos. Acredita-se que pessoas com distúrbios psi­ quiátricos importantes possam, de fato, ter maior vulnerabilidade ao abuso de substâncias, visto que estas podem melhorar os sintomas da condição psiquiátrica de base (hipótese da automedicação). O abuso de substâncias ilícitas na idade juvenil apresenta informações so­ bre problemas de comportamento e fatores temperamentais associados com

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o uso paterno de substâncias. Uma elevação dos problemas de comportamento, ou seja, externalização de problemas de conduta e problemas de socializa­ ção13, índices maiores de distúrbios da ansiedade e níveis mais altos de agressividade, desatenção e impulsividade em relação aos filhos de pais não usuários de drogas. Da mesma forma, estudos relataram que filhos de pais que abusam de subs­ tâncias tiveram um maior número de diagnósticos de conduta, em associação com grave comportamento agressivo/destrutivo, que os filhos de pais que não abusam de substâncias. Em contrapartida, as filhas de pais que abusam de substâncias apresentaram maior probabilidade de receber diagnósticos de distúrbio de hiperatividade, de déficit de atenção e de conduta que as garotas com pais não usuá­ rios de substâncias8. Estudos que investigaram a ligação entre o uso de drogas paterno e do adoles­ cente2 relataram uma associação entre o uso de álcool e droga ilícita nos pais e seus filhos em idade universitária. Os achados de um estudo de história familiar de alcoolismo revelaram o uso de droga entre indivíduos com história paterna de alcoolismo e os controles podem ocorrer em um momento de transição do final da adolescência para o início da vida adulta, geralmente um período crítico para a expressão da vulnerabilidade ao uso de substâncias psicoativas14.

Fatores Genéticos e Ambientais Os resultados dos estudos de família, gêmeos e de adoção do abuso de substância revelam que o uso e o abuso constituem fatores familiares e os fatores genéticos explicam uma proporção substancial na variação da etiologia do abuso de drogas. Os fatores associados à maior agregação familiar de abuso de drogas incluem o sexo masculino, concordância paterna com o abu­ so de drogas e psicopatologia comórbida, em particular o alcoolismo e com­ portamento anti-social. A dependência de droga é um pouco mais hereditária que o uso ou abuso de drogas e os fatores genéticos parecem ser mais importantes na transmissão dos problemas de drogas no sexo masculino. Barton26, partindo do pressuposto que o desenvolvimento de um comporta­ mento anti-social é resultante da combinação relativa de fatores ambientais e ge­ néticos, agruparam 143 adotivos com registro criminal e constataram que 11% destes tinham pais biológicos e pais adotivos sem registro criminal e 36% tinham pais biológicos e pais adotivos com antecedentes criminais. Esse exemplo sugere transmissão genética de criminalidade e um efeito somatório entre precursores genéticos e ambientais. Thomas e Ager27citam inúmeros outros estudos com ado­ tivos, que foram valiosos para esclarecer a transmissão genética de transtornos psiquiátricos como o alcoolismo, transtorno afetivo bipolar, esquizofrenia, perso­ nalidade anti-social e hiperatividade. Alexander e Parsons28 demonstraram que crianças adotivas em lares pro­ blemáticos aumentam os riscos de apresentar distúrbios dos pais biológicos. O que agrava tal quadro é saber que mais de três quartos de todos os filhos adotivos, nos EUA, são oriundos de pais usuários de drogas e álcool. Então,

3 1 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

pode-se supor a necessidade de investigar melhor esse quadro em nível nacio­ nal, levantando a hipótese de que o resultado pode indicar a mesma necessi­ dade de intervenção.

I n t e r v e n ç ã o , P r e v e n ç ã o e F a t o r de P r o t e ç ã o Uma parte do problema da intervenção é que a estrutura de risco é estável e intratável para alguns indivíduos e famílias e mais fluida para outros. Estudos lon­ gitudinais indicam que o padrão de variação, com o passar do tempo, não é con­ sistente para todas crianças e para todas as famílias. Em especial, programar a intervenção para famílias mais densamente oprimidas pelo risco requer estraté­ gias contínuas e a longo prazo de concessão de ajuda, enquanto as famílias com menores níveis de risco podem se beneficiar o suficiente com abordagens a curto prazo e/ou intermitentes. Os pais em ambientes de risco mais intenso apresentam maiores índices de distúrbio de personalidade anti-social; assim, a expectativa é que sua propensão à não-adesão impeça a implementação de um programa terapêutico6,26'29. Em suma, o contexto de desenvolvimento no qual uma criança em grande risco se desenvolve é, no mínimo, tão problemático quanto o peso de fatores de risco es­ pecificamente infantis, bem como a estrutura de socialização, que constitui a base em torno da qual ocorre uma mudança, é problemática nesses contextos. Poucos estudos de intervenções fundamentadas na família examinaram a in­ fluência do investimento no tratamento paterno sobre os resultados. Essa litera­ tura indica que a eficácia do treinamento paterno e de outras intervenções com enfoque na família, visando ao comportamento infantil aversivo, associa-se forte­ mente à extensão em que os pais cumprem as tarefas atribuídas, participam e são cooperativos com o terapeuta e investem no êxito do protocolo. O investimento no tratamento, conforme refletido na abertura paterna à mu­ dança e à cooperação com as atribuições de tarefas, é apenas um aspecto do pro­ cesso de tratamento. Outras características, como as expectativas dos pais sobre um programa e sua satisfação com os resultados durante o tratamento, talvez se refiram tanto ao investimento quanto ao resultado. As expectativas do terapeuta sobre a capacidade de uma família beneficiar-se de um protocolo de tratamento também podem influenciar o curso e o êxito de uma intervenção20. Pelos aspectos apresentados, torna-se clara a importância das abordagens interventivas que sustentem, ainda num período de prevenção, o desenvolvimento e o crescimento de filhos de dependentes químicos. No próprio contexto da dependência química, a abordagem familiar revela-se um importante recurso para o tratamento30. No contexto da prevenção, investir em programas que ofereçam assitências aos filhos, bem como aos familiares, tam­ bém é relevante para assegurar laços afetivos, cuidados básicos e promover recur­ sos que ampliem os fatores de proteção. Em suma, o contexto de desenvolvimento no qual uma criança em ambiente de risco se desenvolve é, no mínimo, tão problemático quanto o peso de fatores de risco especificamente infantis e a estrutura de socialização. Por isso, a necessi­

Filhos de Dependentes Químicos ■ 3 1 3

dade de um olhar diferenciado aos filhos de dependentes químicos e da organiza­ ção de serviços como alternativas de assistência para essa população, que merece oportunidades, ao menos para se proteger do meio em que vive.

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C A PÍTU LO

z i ------------------

Dependência Química na Mulher S elm a B ordin N elia n a B uzi F

ig lie

R onaldo L aranjeira

I ntrodução Amaior prevalência do alcoolismo entre os homens é um fato sem contestação na maioria dos países. OILevantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil rea­ lizado em 2001, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), a pedido da Secretaria Nacio­ nal Antidrogas (SENAD)1, estima que a prevalência de depen­ dência do álcool entre o sexo masculino é de 17,1%, enquanto j para o sexo. feminino é de 5,7%. Embora tais diferenças se mantenham em termos globais, existe uma certa tendência para sua redução, como resultado das mudanças mais gerais das relações entre homens e mulheres e das modificações ; ocorridas nos papéis de cada sexo2. j As mulheres começaram a procurar mais os centros de tratamento a partir da segunda metade do século XX, mas o estudo das particularidades desse grupo de pacientes é mais recente. As dificuldades em se estudar tais especificidades resultaram de três fatores principais: 1. as mulhe­ res não eram incluídas em trabalhos de seguimento e fo­ ram, portanto, menos estudadas; 2. as mulheres procuram menos os serviços assistenciais (apesar de haver dois ho­ mens para cada mulher com problemas de uso de álcool, encontram-se 4 a 5 homens para cada mulher em serviços de tratamento especializado); 3. a dependência é subdiagnosticada em mulheres, provavelmente por elas pro­ curarem mais os serviços não especializados com queixas vagas sobre seu estado físico3. L

3 1 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

Como conseqüência da deficiência de estudos, criaram-se alguns mitos a respeito da dependência de álcool em mulheres: o de que elas aderem menos ao tratamento do que os homens e o de que a evolução e o prognóstico das mulheres, em relação aos homens, são piores. No entanto, estudos controlados conduzidos posteriormente indicaram que isso tudo não passava de um grande equívoco. Ao contrário do que se pensava, as mulheres não abandonam mais os tratamentos do que os homens e parecem até mesmo aderir mais do que eles. Uma outra pesquisa conduzida não encontrou diferenças de evolução entre homens e mulheres3. Todos esses fatores contribuíram para que os resultados de pesquisas existen­ tes fossem indevidamente generalizados para ambos os sexos. Por conseguinte, os programas de tratamento foram desenhados com base nas necessidades mas­ culinas e com poucas considerações para as diferenças entre os sexos, sejam elas fisiológicas, psicológicas ou sociais3. ■?

C aracterísticas

do

A lcoolismo

em

M ulheres ^

Atualmente, pode-se dizer que existem evidências suficientes para afirmar que as mulheres apresentam características distintas das dos homens e, portanto, os tratamentos precisam ser adequadamente desenhados e manejados para garantir maior eficácia terapêutica. Vários estudos sugerem que as mulheres dependentes obtêm maior benefício quando tratadas em programas especializados e que res­ pondem de forma específica às variadas dimensões de sua problemática3. O alcoolismo em mulheres não pode ser entendido sem uma clara referência a certas características fisiológicas e psicossociais femininas, responsáveis pela maior vulnerabilidade desse sexo ao álcool25e que precisam ser levadas em con­ sideração ao se tratar essa população: • As mulheres têm maior quantidade de gordura que os homens. Tal fator, associa­ do a certos aspectos do metabolismo hepático, contribui diretamente para que a mulher atinja o estado de intoxicação com quantidades menores de álcool que as necessárias para intoxicar um homem. Por essa razão, os limites de consumo sugeridos pelas autoridades sanitárias são menores para as mulheres. • O consumo de álcool pode trazer prejuízos ao feto de uma mulher grávida e, por isso, recomenda-se total abstinência durante a gestação. O consu­ mo médio de 10g de álcool por dia (uma unidade) implica numa significa­ tiva redução do crescimento do feto e do peso do bebê ao nascer. O uso de 80g de álcool por dia (8 unidades) eleva muito a probabilidade de ocor­ rência da síndrome fetal alcoólica (ver capítulo sobre Álcool). • A experiência clínica sugere que a resposta “normal” das mulheres a even­ tos traumáticos pode desencadear um padrão de ingestão problemático (morte de pessoa querida, perda de emprego, separações, rupturas senti­ mentais, saída dos filhos de casa e menopausa). • Certas categorias diagnosticas apresentam, em mulheres, uma taxa maior de comorbidade com o alcoolismo do que em homens, como, por exemplo, os transtornos de humor e a dependência e uso abusivo de outras substân­ cias, particularmente os tranqüilizantes e as anfetaminas.

Dependência Química na Mulher ■ 31 7

• É fato bem conhecido que as mulheres alcoolistas apresentam maior ten­ dência à união com homens alcoolistas. O principal motivo de iniciação e de aumento no uso de álcool por mulheres é o relacionamento íntimo com algum abusador de substâncias. A proteção mútua que ocorre entre am­ bos acaba retardando a busca de ajuda e tratamento. Homens que não têm problemas com o uso de álcool têm maior probabilidade de abando­ nar suas companheiras dependentes do que as mulheres nas mesmas cir­ cunstâncias. • A intoxicação por bebidas alcoólicas sempre foi mais tolerada nos homens, e, até hoje, os primeiros “porres” do garoto são muitas vezes vistos como sinal de masculinidade. Já, para as mulheres, “não fica bem exagerar” e es­ pera-se que tenham controle sobre seus atos. Por essa razão, o alcoolismo feminino tende a ser mantido em segredo, tanto pela dependente como por sua família, tornando necessária a exploração das questões relacionadas à culpa e vergonha. • As mulheres em geral, e não os homens, têm responsabilidade primária so­ bre o cuidado dos filhos. • Devido à sua maior vulnerabilidade aos efeitos do álcool, as mulheres alcoolistas apresentam mais problemas de saúde. • As mulheres alcoolistas têm maior tendência a provir de famílias disfuncionais ou com problemas de dependência química. • Em geral, os relacionamentos são o centro da vida e das decisões das mu­ lheres e, se o seu parceiro não concordar, provavelmente ela não aderirá a um programa de tratamento. • Mulheres tendem a sentir um forte senso de falta de controle sobre suas vidas e a se responsabilizarem pelos problemas muito além do razoável.

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de

M ulheres D ependentes

de

Á lcool

A maioria dos estudos sobre busca de auxílio médico em geral indica que as mulheres procuram ajuda mais rapidamente que os homens quando identificam algum problema. Porém, no caso das dependências (e outros problemas social­ mente rejeitados) isso pode ser diferente. Parece que as mulheres buscam ajuda com maior rapidez quando identificam algum problema associado ao uso de ál­ cool. No entanto, uma vez estabelecido o diagnóstico, parece ocorrer o inverso nos países industrializados2. Seja qual for a abordagem a ser utilizada com essa população específica, ela deverá dirigir-se muito mais ao fato de serem mulheres do que propriamente de­ pendentes e, portanto, deverá considerar e relevar diversos aspectos que serão discutidos a seguir2*3'6-7. Maior isolamento social e maior sensibilidade aos efeitos de fatores estressantes implicam maior necessidade de suporte emocional. Questões potencial­ mente conflitivas como interação mãe-filho, relacionamentos interpessoais em geral, habilidades cotidianas, complicações médicas, problemas de baixo autoconceito, falta de treinamento vocacional, questões relacionadas à violência sexual e doméstica, etc., precisam ter a oportunidade de receber intervenções.

3 1 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

A melhor maneira de se abordar tais questões é indagar abertamente sobre elas, ao invés de ficar tentando “ler nas entrelinhas” Perguntando-se, por exemplo, so­ bre seus relacionamentos, a paciente começará a entender como de fato eles são e como gostaria que fossem. As perguntas devem ser colocadas de forma a identifi­ car tanto os problemas como as soluções, m As mulheres em geral não se sentem confortáveis com uma abordagem de ( confronto e preferem os programas dirigidos à resolução de problemas. Ao ajudálas na busca de soluções, é preciso considerar a forma como pensam e se expres­ sam, ou seja: a necessidade de se chegar a um consenso entre as pessoas envolvi­ das; a possibilidade de negociações entre dar e receber; a manutenção do foco na conciliação, ao invés de na confrontação; prestar atenção aos significados espe­ ciais e pessoais dos eventos; usar uma linguagem adequada, utilizando palavras como talvez, poderia ser, imagino, etc. Nos últimos anos, muito foi escrito sobre a questão da vergonha e como é tanto causa como conseqüência de problemas com álcool e a abordagem mais comum é conversar a respeito. Porém, muitas vezes, ficar revolvendo o assunto poderá tor­ nar a vergonha ainda maior. Compreender a vergonha como uma desconexão entre a forma como a pessoa se vê, interna e externamente, a tarefa do terapeuta será conectar as duas imagens. Um modo de se fazer isso é ajudá-la a se recordar de como via a si mesma quando ainda não tinha problemas com o álcool (época em que as duas visões de si não eram tão distantes) ou o que precisaria ser feito para se parecer, mais externamente, com a sua visão interna. Estudos demonstraram que uma equipe de profissionais predominantemente feminina é um importante fator atrativo e que aumenta a adesão das mulheres, além de poder servir como modelo positivo para a internalização de novos pa­ péis. Além disso, os grupos compostos unicamente por mulheres são considera­ dos mais úteis por essa população. A participação da família é uma questão considerada crucial para a recupera­ ção dessa população, em especial a participação dos filhos. Não parece útil colocálos para dizer de que maneira a mãe tem sido disfuncional, mas sim estimulá-los a identificar de que modo eles têm ajudado ou poderão ajudar a si mesmos e a ela também. As crianças sempre fazem o melhor que podem e se deve descobrir os ^ comportamentos a serem mantidos. Pesquisas indicam significativos déficits no | manejo dos filhos dentre essa população e o treinamento de tal habilidade benel ficiaria não só a mãe, mas também as crianças implicadas. Outro aspecto importante relacionado aos filhos é que a maioria das mulhe­ res alcoolistas se preocupa mais com a proteção dos filhos do que com nutri-los. Ter mães e filhos em tratamento conjunto oferece uma oportunidade única para facilitar o crescimento emocional e atividades nutritivas, de envolvimento emo­ cional. As mulheres aprenderão comportamentos parentais positivos e, as crian­ ças, a ser crianças (ao invés de ter de cuidar das próprias mães) e, principalmente, a esperar que suas mães estejam lá para cuidar delas. Ditar regras ou dizer o que as pacientes devem fazer apenas contribui para a sensação de falta de controle em suas vidas. Em vez disso, deve-se estimulá-las a buscar soluções, fazendo perguntas sobre o que já tentaram fazer, onde falharam, o que ainda não foi feito, como outras pessoas resolveriam uma situação similar, etc.

Dependência Química na Mulher ■ 31 9

Identificar e trabalhar seus pontos fortes as ajudarão a ir desenvolvendo um senso de si mesmas e do que querem, facilitando a tendência a colocar os outros em primeiro lugar a se dissipar e, em seu lugar, surgir a habilidade de fazerem lindas coisas por si mesmas. Outras observações importantes são: • Considerar o uso de naltrexona com cautela, por seu alto poder de indução de ovulação. • As mulheres consideram mais úteis os serviços que oferecem transporte, cuidado com as crianças e aconselhamento individual ofertado por alguém que “acredita mais nelas do que elas próprias”. Asexualidade precisa receber atenção especial e compreender temas como iden­ tidade sexual, imagem corporal, educação sobre saúde sexual e reprodução huma­ na, transtornos alimentares e sua inter-relação com a sexualidade, importância da cultura sobre a sexualidade, comportamento sexual, dependência de sexo, etc. Muitas mulheres têm dificuldades de faiar a respeito de alguns assuntos, como não conhe­ cer seu próprio corpo, por exemplo. Obviamente, a equipe precisa estar treinada e preparada para lidar com essas questões de maneira confortável, principalmente pelo fato de os programas de tratamento abrangerem mulheres heterossexuais, ho­ mossexuais e bissexuais, de modo a proporcionar um ambiente adequado e segu­ ro; o tempo do grupo deve utilizado para educar, focando relacionamentos sexuais saudáveis e o conhecimento do próprio corpo. As questões referentes à segurança estão sempre presentes em mulheres alcoolistas: segurança de si mesmas, segurança de seus filhos e segurança de seus filhos em relação a elas próprias. Traumas e violência sexual são extrema­ mente freqüentes na vida dessas mulheres. Por tal razão, a equipe precisa ser treinada para lidar com questões muito complexas. A necessidade e a expressão da raiva de mulheres vítimas de traumas e abusos sexuais pode assustar a equi­ pe, que precisa encontrar uma forma de ajudá-las a fazer algo com sua raiva e, ao mesmo tempo, tentar contê-las e manter o grupo funcional. Pode ser muito difícil trabalhar com mulheres infratoras que abusaram fisicamente de seus fi­ lhos. Algumas pessoas da equipe podem considerar os níveis de violência e abu­ so perturbadores e provocadores de trauma em si mesmas, gerando ansiedade, pesadelo e sentimentos de impotência. Outra questão muito importante é que, muitas vezes, essas mulheres podem não ter um lugar seguro onde viver. Como se pode mandá-las de volta para uma comunidade na qual não estarão seguras? Por esse motivo, alguns programas de tratamento americanos lhes oferecem so­ luções de moradia. E nós, brasileiros?

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3 2 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

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CA PÍTU LO

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Abuso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas na Adolescência E d ila in e M oraes N elian a B uzi F

ig lie

I ntrodução Atualmente, muito se tem discutido a questão do uso de drogas pelos adolescentes. A cada nova notícia vinculada pela imprensa, atribuída ao uso de drogas, surgem justifica­ tivas para as mais cruéis barbáries, bem como comentários os mais variados possíveis: desde avaliações fundamentadas dos profissionais da saúde, até as opiniões formadas por lei­ gos a partir de estórias e mitos do senso comum. Diante de tamanha disparidade de conhecimentos, este capítulo ten­ tará abordar diversos e diferentes aspectos da vida do ado­ lescente (principalmente no que tange ao abuso de drogas), na tentativa de desmitificar alguns preconceitos existentes e compartilhar com o leitor um pouco do saber produzido na área de dependência química. Algo que poderia ser apenas um dos vários mitos, mas infelizmente é uma constatação científica, refere-se ao nú­ mero cada vez mais crescente de adolescentes que mantêm contato com as drogas. Para tal, foram destacados dados ob­ tidos pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), referentes ao ano de 2001 :l em amostra pesquisada de 1.000 adolescentes (idade entre 12 e 17 anos, residentes em cidades brasileiras com mais de 200.000 habitantes), aproximadamente 48% deles já haviam feito uso de substâncias alcoólicas e 5% foram diagnostica­ dos como dependentes químicos. Para o tabaco, os índices encontrados foram de 16% de uso e 2% de dependência, na mesma faixa etária. No que tange às drogas ilícitas, a maco-

3 2 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

I nha foi usada por 35 adolescentes pesquisados, caracterizando a dependência em | seis deles; a cocaína foi usada por cinco dos adolescentes, não se comprovando nenhum caso de dependência dessa droga. Cabe ressaltar que um dos dados mais alarmantes do estudo foi a verificação de que 54% desses adolescentes considera­ ram a obtenção de maconha como algo muito fácil, enquanto a obtenção de co­ caína foi assim considerada por 38% dos entrevistados. Características próprias da adolescência e as inferências causadas nos diversos contextos vividos pelos adolescentes são tópicos imprescindíveis para melhor enten­ dimento das atitudes e comportamentos apresentados por eles. A ampla compreen­ são dessas características e de suas influências sobre o comportamento adolescente se reveste de grande relevância, visto que este capítulo pretende revelar um adoles­ cente que, muitas vezes, está escondido atrás de máscaras estereotipadas ou invisí­ veis aos olhos de uma sociedade que o relega à mera situação de “criatura-problema”. Várias teorias e inúmeros autores tentam elucidar as “causas” de tamanha atra­ ção dos adolescentes pelas drogas. Cada qual, dentro de sua abordagem, dará sua contribuição para que esta reflexão atinja seu objetivo, que é demonstrar a com­ plexidade do binômio “adolescentes-drogas” e da necessidade desta relação ser apreciada sob diversos ângulos. Neste sentido, torna-se extremamente útil a discussão de conceitos como o de resiliência, fatores de risco e de proteção. O conhecimento de tais fatores e sua utilização no processo terapêutico muito pode contribuir para a mudança do com­ portamento adictivo em adolescentes usuários de drogas e, também, ser extrema­ mente eficaz em programas preventivos. A importância da identificação dos fatores de risco e de proteção em traba­ lhos preventivos será destacada em breves apreciações sobre adolescentes filhos de dependentes químicos, também com o propósito de chamar a atenção para populações que, como essa, necessitam de um olhar cuidadoso (no próprio sentido da palavra “cuidar”), para que possam escapar de um futuro permeado com dro­ gas, distúrbios psiquiátricos e criminalidade. Ao se falar de complexidade de um determinado problema, supõe-se tam­ bém a mesma complexidade nos aspectos conseqüentes a ele. Tornar-se-ia, então, tarefa interminável falar sobre os impactos causados pelas drogas nos mais dife­ rentes contextos da vida do adolescente, de forma a contemplá-los. Por isso, sem a pretensão de esgotar o tema, serão abordados apenas aqueles mais freqüentes. Por se tratar de uma população com características próprias, o tratamento para o adolescente usuário abusivo ou dependente de drogas deverá ser adaptado às suas peculiaridades, diferenciando-se do tratamento de adultos. O respeito a essas parti­ cularidades toma-se imprescindível para a evolução satisfatória da intervenção, bem como a importância do papel familiar e escolar como coadjuvantes no tratamento. O leitor poderá perceber a preocupação com que foi escrito o capítulo, de não fazer nenhumjulgamento de valor sobre este ou aquele conceito, esta ou aquela abor­ dagem. Aintenção é que se reflita sobre as pressões sofridas na adolescência e sobre a importância do mundo adulto na formação das futuras gerações. Por fim, espera-se que a leitura possa auxiliar na compreensão da busca de prazer e de identidade - característica da adolescência - e de que tal busca é pos­ sível, sem que seja necessário recorrer a “artifícios” como as drogas. Boa leitura!

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A A d o lescên cia Não pensa mais nada, no final dá tudo certo de algum jeito. Eu me acerto, eu tropeço e não passo do chão. Pode ir que eu agüento, eu suporto a colisão. Na verdade... na contramão. (Zélia Duncan)

Aspectos Biopsicossociais da Adolescência Ser adolescente é ser sonhador; é testar a possibilidade de adultecer; é ser oni­ potente e ir sempre na contramão “do adulto”. Ser adolescente é crer que tudo é possível; é ser inconseqüente, impertinente e provedor natural de problemas para o mundo adulto. Em muitas ocasiões, o adolescente poderá ser definido desta forma, mas rotulálo assim, simplesmente, será um grande erro. Outra definição simplista, com base apenas na questão cronológica, seria afirmar que adolescente é o ser que está em fase de transição - da infância para a fase adulta -, aproximadamente dos dez ou doze até vinte anos. Embora tais caracterizações estejam presentes nesse período conhecido por adolescência, não podemos reduzi-lo apenas a elas, pois é na adolescência que aflora todo o processo de desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo2. É fato que a adolescência é uma etapa da vida repleta de “turbilhões”, na qual ocorrem rápidas, reais e significativas transformações físicas, psíquicas e sociais, gerando, no adolescente, crises2'3,4impregnadas de instabilidade emo­ cional. É também um momento muito peculiar, em que ele deixa de ser uma criança totalmente dependente de seus pais, para adquirir e exigir autonomia. Conseqüentemente, além da necessidade de formar novos laços afetivos, pas­ sa a conviver e interagir mais com o seu grupo de iguais, para poder se sentir amado e respeitado pelo que julga agora ser5. Concomitantemente, o adoles­ cente acredita que tais sentimentos de amor e respeito para consigo não mais estão presentes em sua família.

A Crise Normal da Adolescência Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia, Eu não encho mais a casa de alegria... Eu não tenho mais a cara que eu tinha, No espelho essa cara não é minha... quando eu me toquei, achei tão estranho, A minha barba estava desse tamanho... Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia? Eu não vou me adaptar. (Arnaldo Antunes)

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A chamada “crise do adolescente” é permeada com conflitos que envolvem26: • Perda da identidade infantil (término dos privilégios de criança versus obri­ gações e responsabilidades impostas). • Luto pelos pais da infância (acolhimento e proteção versus conflito de gerações). • Alterações corporais (perda do corpo infantil conhecido versus transforma­ ções corpóreas incontroláveis e involuntárias). • Adoção de papéis sexuais (social e biologicamente impostos versus livre opção). • Valores morais e éticos (absorvidos dos pais versus adquiridos por si mes­ mo); entre outros. Surge, então, uma questão muito característica da adolescência: “quem sou eu?” A busca da identidade, nos adolescentes, difere das formas utilizadas pelas crianças; enquanto estas últimas formam sua identidade infantil por intermédio dos modelos parentais presentes em suas vidas, os primeiros reúnem as várias identificações pregressas, modificando e atualizando-as para formar uma nova estrutura psicológica. Dessa forma, a constituição da nova identidade se dará pela afirmação e organização dos novos desejos e necessidades, vinculados às habili­ dades descobertas para expressá-los ao seu contexto social5,7. Por outro lado, cabe ressaltar que esses novos interesses, embora possam ser oriundos do próprio adolescente, muitas vezes estão impregnados da interferên­ cia do grupo de iguais, tornando-os supostamente individuais, quando na verda­ de são aquisições atribuídas pelo coletivo. Outros autores darão maior ênfase à influência grupai na constituição de uma identidade configurada individualmente, a partir de padrões oferecidos pela estrutura social8. Uma vez vinculado a um determinado contexto social, o desenvolvimento dessa identidade se dará na constatação de igualdades e di­ ferenças, o que acarretará ao adolescente uma conscientização de si pelas re­ lações socialmente mantidas. A identidade torna-se, então, uma intersecção entre a identificação atribuída pelos outros e a auto-identificação apropriada pelo adolescente9. Além dos fatores psicológicos e sociais já citados, a identidade do adolescente é influenciada também por aspectos biológicos resultantes de transformações fí­ sicas decorrentes da produção hormonal, havendo diferença entre os sexos. Papalia e Olds5citam diversos estudos nos quais se evidencia que maturação precoce ou tardia pode desencadear diversos efeitos psicológicos nos adolescentes. Foram verificados maior equilíbrio emocional, tranqüilidade, popularidade, menor impulsividade, liderança, maior cautela e melhor desempenho cognitivo nos me­ ninos com amadurecimento precoce101112; sentimento de inadequação, rejeição, agressividade, insegurança, rebeldia e baixa auto-estima naqueles com amadure­ cimento tardio13*16; menor sociabilidade, expressividade e equilíbrio emocional, maior introversão e timidez, piores imagem corporal e auto-estima em meninas com maturação precoce1722. Como pode ser observado, existem vantagens e des­ vantagens, tanto no amadurecimento precoce quanto no tardio; o que realmente poderá gerar conflitos psicológicos é a diferenciação muito acentuada do adoles­ cente perante seu grupo.

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Retomam-se, então, as definições populares iniciais, que vêem o adolescente apenas como um ser “aborrescente”, para mostrar o quanto é temeroso e injusto julgá-lo somente por suas atitudes, desconsiderando-se toda a real complexidade dessa etapa de vida e as contextualizações inerentes aos processos biológicos, psi­ cológicos e sociais que nele atuam. Finalizando, salienta-se a existência de uma relação entre o desenvolvimento dos aspectos biopsicossociais com o envolvimento - ou não - dos adolescentes com as drogas.

Adolescentes e as Drogas sob Diversos Prismas Assuntos tão complexos quanto às questões da adolescência e da drogadição possibilitaram diversas leituras por parte dos estudiosos desses temas. Neste mo­ mento, o que interessa é tão somente apresentá-las, sem a pretensão de confirmálas ou contradizê-las: • Merlhi23concebe o uso de drogas como a formação de sintoma substitutivo às perturbações corporais e dificuldades de abertura ao encontro com o outro. • Gurfinkel24 contempla a dependência como um objeto intermediário que auxilia o adolescente na elaboração do luto pelos pais da infância e na cons­ trução de um “eu” desmembrado da relação simbiótica com os pais. Pondera que, no âmbito do funcionamento econômico do psiquismo, a utilização da droga seria a busca do prazer imediato, bem como a evitação do desprazer. Por fim, adentrando nas vicissitudes das pulsões, as drogas aparecem como um objeto ilusoriamente fixo utilizado para as satisfação das mesmas. • Osório2 discorre sobre a dissolução dos valores e instituições sociais que antes ofereciam respaldo estável para a constituição da identidade, como algo que reveste a realidade de um caráter angustiante para o adolescente. Imerso nesse contexto cultural, ele recorreria à droga como uma fuga a tal realidade angustiante e como a busca desenfreada e inconseqüente pelo gozo imediato, que constitui um facilitador veiculado nas “entrelinhas” do discurso social. • Freud25 concebe que “a masturbação é o vício primário, do qual álcool, ta­ baco, morfina são substitutos”. • Glover26 assevera que a “drogadição implica fixação no sistema edípico ‘transicionaT. Controla o sadismo, protegendo o ego contra reações psicóti­ cas regressivas”. • Winnicott27vê a droga como uma “patologia dos processos transicionais”. • Kohut28escreve que “falhas na adequada intemalização dos objetos do self, em dependentes de droga, levam a um comprometimento do seZ/arcaico, o que acaba se expressando por grandiosidade, furia narcisista e vazio interno”. • Khantzian29,30pondera que “falhas no autocuidado e auto-regulação, decor­ rentes de problemas na intemalização dos objetos, levam o indivíduo à dro­ ga, visando automedicação” e também discorre: “quando indivíduos usam drogas eles alteram qualidades e quantidades de sentimentos, e mais im-

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portante, eles substituem um sofrimento incontrolável por outro controlá­ vel, possibilitando assim que a disforia que eles não entendem possa ser substituída por outra, droga-induzida, que eles entendem”. • Dias31 vê as drogas atuando, para o adolescente, como um revelador das soluções para os problemas gerados por uma cultura em crise. • Papalia e Olds32 acreditam que, em momentos de crise de identidade mui­ tos adolescentes buscam nas drogas a resposta para seus problemas. • Lennard33associa o consumo de drogas pelos adolescentes aos padrões de uso da sociedade adulta. Assim como adultos utilizam diversas drogas líci­ tas para aliviar sua “infelicidade, depressão e pressões cotidianas, o mesmo fazem os jovens”.

Sexualidade e Drogas na Adolescência O desenvolvimento da sexualidade, no adolescente, é permeado com neces­ sidades de buscar novas experiências, provar a maturidade, sentir intensamente prazeres físicos, encontrar alívio de pressões externas e acompanhar os amigos em atitudes e comportamentos5. Esse momento da vida pode se transformar em um percurso saudável e prazeroso ou conturbado e sem sentido. Alguns fatores poderão direcionar o percurso, como: • Envolvimento dos pais nas questões relacionadas à sexualidade dos filhos (orientação, diálogo, compreensão e afeto). • Atuação da escola eliminando preconceitos, aprofundando informações, propiciando um amplo campo de discussões. • Influência de amigos, benéfica ou não. • Experiências traumáticas relacionadas ao sexo durante a infância; e outros. O adolescente irá significar o seu próprio conceito de sexualidade por inter­ médio desses contextos; caso essas vivências não tenham ocorrido de forma sa­ tisfatória, poderão desencadear comportamentos inadequados, no que tange à sexualidade. Se vinculada ao consumo de drogas, a atividade sexual poderá aumentar a / probabilidade de situações indesejadas - e às vezes graves - na vida do adoles­ cente, como engravidar ou contrair doenças sexualmente transmissíveis, o que poderá ser precipitado, principalmente, pela promiscuidade e pela prática de relações sexuais sem as devidas proteções (comuns em usuários abusivos, por terem a capacidade de avaliação e juízo crítico rebaixados sob o efeito de álcool e outras drogas). Dessa forma, ressalta-se a importância de atenção redobrada por parte de pais, educadores e profissionais da saúde ao tema “sexualidade e drogas na ado­ lescência”, para que seja minimizada a probabilidade de ocorrência desses pos­ síveis danos. O que fazer, então, para que se consiga tal minimização de prejuízos futuros? Inicialmente, a simples preocupação com o tema já gera, por si só, um movimen­ to contínuo de autoquestionamentos e busca de respostas que, invariavelmente,

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esbarra na disponibilidade para a ajuda. Ou seja: apenas se preocupando com as questões relacionadas à sexualidade do adolescente, o adulto significativo já esta­ rá dando o primeiro passo para ajudá-lo a navegar por essas “águas” em calmaria. É possível que o leitor possa^^^^j se identificar com uma ou mais das situações seguintes e, assim, auto-avaliar sua conduta na relação com os ado­ lescentes: • Se você é pai de adolescente, busque maior aproximação com seu filho; fale sobre suas próprias dúvidas quando adolescente e como foram lidadas com seus pais (os adolescentes se interessam muito pelo que aconteceu na vida dos pais e isso facilita a relação pai-filho). Não evite o diálogo, não fuja dos questionamentos de seu filho. Divida suas preocupações com eles e se co­ loque como um amigo e não como um pai - ou mãe - apenas proibitivo e punitivo. Você não precisa ter todas as respostas, ninguém as têm; quando surgir algo que não saiba, assuma seu desconhecimento e busque essas res­ postas com profissionais especializados, amigos ou parentes (desde que sejam pessoas confiáveis e capazes de ajudá-lo) e depois retome o assunto com seu filho. • Se você é um educador, torna-se extremamente importante estar em “sin­ tonia” com as normas da instituição em que atua, no que se refere à forma de abordar tais questões, sendo fundamental que todos - professores, dire­ tores, coordenadores, etc. - tenham uma mesma postura no trato do tema sexualidade e drogas. Informe os pais de seus alunos o que será abordado e oriente-os em suas dúvidas, caso necessitem. Preocupe-se em conhecer os estágios de desenvolvimento da adolescência e identifique, no seu aluno, aquele que está sendo vivenciado no momento. Algumas dinâmicas em grupo podem ser utilizadas para tratar o tema; atividades como teatro, música ou vídeos podem propiciar momentos de participação, reflexão, criatividade e expressão de sentimentos, valores e conflitos de seus alunos. Seja o media­ dor de debates e proporcione um ambiente que possa valorizar o mundo interno dos jovens e suas potencialidades. • Se você é um profissional da saúde e atua com o público adolescente - mesmo que não diretamente com questões ligadas às sexualidade e drogas - abor­ de o assunto como forma de prevenção. O estabelecimento de um bom vín­ culo é essencial para que os adolescentes compreendam que o tema está sendo tratado para ajudá-los. Não lhes imponha mais deveres e obrigações, como geralmente fazem os pais; você não é o pai deles, portanto não deve agir como tal. “Não os obrigue a usar camisinha, faça-os entender por que é necessário usá-la”. É preciso realmente “estar junto” deles, pois assim, tal­ vez, consiga compreendê-los um pouco mais e ajudá-los. Utilizar as ativi­ dades propostas para os educadores poderá ser eficaz. Vale ressaltar que as “dicas” citadas - eficazes na abordagem do tema sexualidade e drogas - têm maior abrangência, podendo ser empregadas em diversas questões referentes à adolescência (profissão, futuro, relacio­ namentos, etc.).

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R e s il ie n c e F atores

de

R isco

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F atores

de

P ro teção

Resiliência Uma questão que muito tem interessado aos profissionais da área de saúde é o porquê alguns adolescentes buscam as drogas para solucionar conflitos enquanto outros, submetidos às mesmas condições (por exemplo: irmãos), não o fazem. A este fenômeno dá-se o nome de resiliência (termo originário da Física, que significa a “força de recuperação” e retorno de um material ao seu estado original, após ser submetido a forças de distensão, até seu limite elástico máximo).JNeste sentido, um ser resiliente é aquele que, submetido às adversidaíes da vida, consegue enfrentar e superar problemas34, sem vitimizar-se. Para Rutter35, resiliência é um conjunto de processos sociais e lintrapsíquicos que possibilitam ao indivíduo uma vida “sadia”, num amipiente “insano”. Com os conhecimentos obtidos a partir dos anos noventa, vê-se a resiliência, atualmente, como uma imunidade psicológica que, embora possua característi­ cas inatas, pode ser desenvolvida no ser humano. * Situações que causam risco à saúde, nos âmbitos biológico, psicológico e so­ cial, poderão ser minimizadas pelo desenvolvimento da resiliência, mesmo em indivíduos que não as enfrentam satisfatoriamente. Na área de saúde, tais situa­ ções são denominadas “fatores de risco”.

Fatores de Risco Os principais fatores de risco para o uso de drogas entre adolescentes são36,37: • Âmbito individual: baixa, auto-estima; sintomas depressivos; necessidade de novas experiências e emoções; baixo senso de responsabilidade; aliena­ ção; rebeldia; suscetibilidade herdada do uso de drogas; vulnerabilidade aos efeitos das drogas; problemas de saúde física, mental e emocional; pouca religiosidade; intolerância às frustrações; uso precoce de álcool, tabaco e outras drogas; carência de vínculos familiares, escolares e comunitários; iniciação sexual precoce e sem proteção. À Âmbito familiar: uso ou dependência de álcool e outras drogas pelos pais; relacionamento deficitário com estes; tolerância da família às infrações; conflito e/ou violência familiar; ausência de normas e regras claras; insta­ bilidade familiar; pais com comportamentos anti-sociais, sexualmente ina­ dequados ou com doenças mentais; baixo relacionamento social; mãe solteira sem apoio de outros familiares. • Âmbito escolar: desempenho insatisfatório; baixo comprometimento com a escola; evasão escolar. • Âmbito sociocultural: leis e normas sociais favoráveis ao uso; facilidade de acesso às drogas; pouco investimento social; serviços sociais e de saúde ina­ dequados; alta prevalência de crimes.

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Fatores de Proteção As conseqüências desses fatores de risco na vida do adolescente poderão ser minimizadas pela presença e fortalecimento de “fatores de proteção”: aqueles que diminuem a probabilidade de ocorrência de um comportamento adictivo e, se- ■ gundo Wilson e Kalander36, os mais importantes são: • Âmbito individual: elevada auto-estima; senso de responsabilidade; religio­ sidade; fortes vínculos familiares, escolares e comunitários; ausência de déficits cognitivos e.emocionais. • Âmbito familiar: relacionamento afetivo com os pais; supervisão destes com regras claras do que se pode ou não fazer; envolvimento dos pais na vida de seus filhos; baixo conflito marital; participação dos familiares em ativida­ des sociais. • Âmbito escolar: sucesso no desempenho escolar e ambiente favorável ao aprendizado. • Âmbito sociocultural: leis e normas sociais de controle ao uso; investimen­ tos sociais e opções de lazer; serviços sociais e de saúde eficazes; baixa criminalidade na vizinhança. Cabe ressaltar que, num mesmo âmbito, poderão coexistir fatores de risco e de proteção. Identificá-los e agir sobre eles com o intuito de reduzir os de risco e maximizar os de proteção torna-se o grande desafio dos profissionais que atuam com a população adolescente. Neste contexto, serão analisadas algumas especificidades de uma população de risco para abuso e dependência química, bem como transtornos psiquiátricos: os filhos de dependentes químicos.

A d o lescen tes , F ilhos

de

D ependentes Q uímicos

Quando nasci veio um anjo safado, o chato do querubim E decretou que eu estava predestinado a ser errado assim. Já de saída a minha estrada entortou, Mas vou até o fim. (Chico Buarque de Holanda) Os adolescentes apresentam diversas características específicas em seu pro­ cesso de desenvolvimento. Somado a elas, um fator interfere principalmente na formação psíquica de adolescentes filhos de dependentes químicos: a presença de um dependente na família. Este evidente fator de risco pode ocasionar inúme­ ras conseqüências negativas nesta atribulada formação. Inicialmente, pode-se perceber que o ambiente em que os adolescentes vi­ vem se encontra repleto de alcoolizações e/ou intoxicações por outras drogas, brigas constantes, violência doméstica, além de distúrbios de conduta dos pais dependentes.

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Estudos constatam que filhos de dependentes crescem em ambientes caracterizados por falta de aproximação e altos níveis de conflitos entre os mem­ bros da família38. O adolescente filho de dependente químico também apresenta um preocu­ pante isolamento social, em geral causado por vergonha da situação, raiva, senti­ mento de culpa e/ou negação da realidade. Não encontram apoio familiar, pela ausência ou agressividade do dependente e de outros familiares. Pesquisadores relatam que filhos de alcoolistas exibem índices eleva­ dos de psicopatologias como ansiedade, depressão e distúrbios de conduta38. De Angelis39 discorre sobre o desenvolvimento de um padrão agressivo e anti-social em filhos de dependentes químicos, devido a cuidados pater­ nos inadequados. Outro estudo relaciona o baixo síafussocioeconômico em famílias com dependentes de álcool a algumas manifestações na saúde mental dos filhos40. O modelo oferecido por pais alcoolistas pode distorcer o processo de sociali­ zação da criança, que passa a adotar formas inadequadas de lidar com relaciona­ mentos interpessoais41; crianças filhas de alcoolistas experimentam tensão e competitividade com seus colegas; os adolescentes têm dificuldade em construir e manter amizades42. Problemas afetivos e emocionais nessa população colocam em detrimento o desenvolvimento cognitivo, ocasionando repetência e evasão escolar43. Quanto ao uso de substâncias psicoativas, Zucker e cols.44descrevem a influên­ cia familiar a que os filhos de alcoolistas estão submetidos, como fator de risco para o desenvolvimento do alcoolismo. Uma interação familiar perturbada parece estar associada a uma excessiva ingestão alcoólica paterna, que pode influenciar também o risco de abuso de ál­ cool e outras drogas por seus filhos45. Embora seja inquestionável a influência negativa da dependência dos pais para a formação de uma identidade aditiva em seus filhos, não se pode consi­ derar tal vulnerabilidade como fator determinante e incontestável. Dados pre­ liminares de estudo realizado por Moraes e Figlie46, na cidade de São Paulo, mostram que a prevalência do uso de substâncias psicoativas nos adolescen­ tes pesquisados (filhos de dependentes químicos, de 11 a 18 anos) é relativa­ mente pequena, contrastando com outras afirmações encontradas na literatura. Tal constatação evidencia a imprescindibilidade de trabalhos preventivos com essa população, antes que, fatalmente, as drogas entrem na vida dos adoles­ centes em situação de risco. Outro dado relevante do mesmo estudo realizado no Centro Utilitário de Pre­ venção e Apoio aos Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA), localizado no Jar­ dim Ângela- região considerada uma das mais violentas da cidade de São Paulo, é o elevado índice de psicopatologias nesses adolescentes, gerando grande preocu­ pação não somente por ser um fator de risco para o uso de álcool, tabaco e outras drogas, mas também pelos problemas que poderão ser desencadeados por tais psicopatologias (comportamento suicida, isolamento social, delinqüência e criminalidade, entre outros).

Abuso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas na Adolescência ■ 331

Im pacto D rogas

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A buso de Á lco o l , T a b a c o e outras D iversos C o n texto s d a V ida do A do lescente

Tomou-se evidente, nos últimos anos, o início cada vez mais precoce do uso de álcool, tabaco e outras drogas. Tal precocidade é um fator de predição do abuso e dependência dessas substâncias, embora seja verdadeiro que muitos adolescentes usuários não evoluam para um quadro de uso nocivo ou dependência. Vale ressaltar que um adolescente usuário de tabaco dificilmente não se tomará um dependente47. Na adolescência, quando a busca da identidade está associada à escassez de recursos psicológicos, quanto mais cedo ocorrer a experimentação de drogas, maior será o risco de evolução para um quadro abusivo ou até dependente48. Nes­ sa etapa, os danos decorrentes do abuso tornam-se evidentes (problemas psíquicos do adolescente, conflitos familiares, escolares e sociais) e cuidados especiais se fazem necessários.

Impacto Individual Um aspecto que muito tem prejudicado a conscientização do adolescente usuá­ rio para os danos decorrente de seu consumo abusivo é o fato de não apresentar com­ plicações físicas, pois estas se manifestam somente após um longo período de uso. As conseqüências psíquicas e sociais, contudo, podem aparecer mais rapida­ mente. Os transtornos psiquiátricos estão presentes em 89% dos adolescentes usuários de drogas49, sendo mais encontrados os transtornos de humor (ansieda­ de e depressão) e de conduta. Tais transtornos podem ser preexistentes ou origi­ nados pelo uso, o que merece atenção especial no momento da elaboração de um diagnóstico50. Agressividade, impulsividade, falta de motivação para os estudos e para ativi­ dades anteriormente prazerosas, desrespeito a regras e valores, afastamento do convívio familiar, comportamentos inconseqüentes, entre outros, podem existir na vida de um usuário de drogas; entretanto, não se pode desconsiderar que mui­ tos destes sintomas estão presentes no processo de desenvolvimento normal da adolescência, independentemente do uso ou não de drogas.

Impacto Familiar No ambiente familiar, muitas vezes, os pais só se dão conta de que o filho extrapolou os limites “aceitáveis”, depois de muito tempo. O reconhecimento tar­ dio evidencia ausência ou fragilidade de fatores de proteção como bom relaciona­ mento familiar, diálogos, vínculos afetivos, monitoramento de atividades, entre outros. Pais atentos, disponíveis e presentes na vida de seus filhos provavelmente percebam qualquer alteração brusca de comportamento. Uma vez descoberto o uso abusivo de drogas num adolescente, afloram nos outros membros da família sentimentos de culpa, impotência e incredulidade que, embora compreensíveis, de nada adiantarão para a resolução do problema. Além

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disso, constantes brigas entre pais e adolescente usuário, como forma de tentar sanar o problema a qualquer preço, poderão gerar um indesejado afastamento entre adolescente e família e maior aproximação deste com seu grupo de iguais, talvez também usuários. Nesse momento, o mais indicado seria a busca de orien­ tação e apoio para os familiares, seja ela médica, psicológica, comunitária ou reli­ giosa, deixando-se de lado a busca de culpados. Na outra face da moeda encontra-se um adolescente em plena fase de busca e afirmação de identidade; carente de novos relacionamentos e aceitação pelo grupo de iguais; bombardeado por transformações físicas por vezes indesejadas; em luto pela perda da condição infantil e assustado por ter que assumir responsabilidades que anteriormente não tinha.

Impacto Escolar Acentuadamente presente nessa etapa da vida do adolescente encontra-se a instituição escolar que, embora reúna todas as pré-condições imprescindíveis para atuar como um importante fator de proteção, algumas vezes parece estar se trans­ formando em um perigoso fator de risco. Segundo dados divulgados pelo CEBRID51, as drogas mais utilizadas por estu­ dantes de primeiro e segundo graus são álcool, tabaco, maconha e solventes. Um dado preocupante, obtido de forma comparativa com os quatro levantamentos anteriores realizados pelo próprio CEBRID (com intervalo de dez anos entre o pri­ meiro e o quarto), é o significativo aumento do uso de maconha, cocaína e anfetaminas pelos estudantes de primeiro e segundo graus. É inquestionável a necessidade de o adolescente vencer o desânimo, quebrar a rotina, sentir-se estimulado, estabelecer e superar desafios e sentir prazer e bemestar52. Seria extremamente benéfico que a escola propiciasse aos seus alunos a satisfação dessas necessidades, fazendo com que a busca do prazer não tivesse, nas drogas, seu mais atraente caminho. André e Vicentin53 fazem uma interessante analogia sobre como a escola e o tráfico encaram sua "clientela”: • O traficante espera satisfazer o cliente, aproximando-se de seu mundo e conhecendo seus desejos; torna o produto facilmente acessível, o reveste apenas de benefícios e “vende” a ilusão de um mundo mágico, no qual o adolescente se tornará todo-poderoso e nada lhe será impossível... alcan­ çará, finalmente, o prazer e o bem-estar tão almejados. • Em contrapartida, as constantes reclamações de “indisciplina, rebeldia, des­ respeito e desinteresse” parecem demonstrar a insatisfação da escola com sua clientela que, por sua vez, queixa-se de “desrespeito, indiferença, auto­ ritarismo e preconceito entre professores e alunos, direção e alunos e, con­ seqüentemente, alunos e alunos” Evidenciada a relação precária e insatisfatória do “fornecedor/cliente” exis­ tente entre escola e alunos, a mesma relação entre o tráfico e o adolescente é mas­ carada apenas de falsos e ilusórios benefícios.

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Mais alarmante do que o desgaste da relação escola/aluno é a utilização da escola, pelo tráfico, como um “ponto de distribuição” que lhe fornece clientes em potencial, cada vez mais “fracassados, incapazes e impotentes”, originados da caótica distância existente entre os sonhos dos alunos e a capacidade da escola em realizá-los. Conquanto esse quadro seja assustador, a situação pode ser melhorada com a implantação de programas preventivos, visando dotar as escolas de mecanismos capazes de oferecer espaço e condições suficientes para o desenvolvimento das potencialidades de seus alunos e, por conseqüência, tornar-se um local de obten­ ção de prazer e bem-estar.

Impacto Social No que tange ao contexto social, uma reflexão preliminar que se faz impres­ cindível: a forma como a sociedade atribui aos indivíduos uma ampla mudança de valores sociais, em que a idéia do lucro crescente e incessante, do alívio ime­ diato de situações desprazerosas e da busca do prazer rápido e intenso deva ser alcançada a qualquer custo, mesmo que seja o isolamento humano, até no am­ biente familiar. André e Vicentin53 vêem nas “adicções do mundo adulto (como) afogar-se disciplinadamente no trabalho, nas compras, na bebida, no cigarro, no futebol, na política, no sexo, na informação, na novela, na farmácia...” modelos perigosos que freqüentemente são traduzidos e absorvidos pelos adolescentes em adições de “drogas potencialmente mais destrutivas”. Muitas vezes, a apologia ao consumo das drogas lícitas feita pela mídia ou até mesmo pela família (uso de álcool, tabaco, barbitúricos, etc.) poderá induzir o ado­ lescente a iniciar o consumo. Tem-se, então, uma sociedade que, ao mesmo tempo em que critica, repudia, combate e sofre com o uso de drogas e suas conseqüências, também pode, involuntariamente, “incentivar” e influenciar o adolescente a buscar as soluções imediatas por ela preconizadas. Surge uma dialética perniciosa na qual a sociedade figura como cúmplice e vítima de um mesmo fenômeno. Tal situação poderia ser diferente se houvesse maior preocupação com a res­ trição ao consumo das drogas lícitas (propagandas, horários de venda e consumo, alta de preços, tarifação, etc.) e implantação de outras políticas públicas, visando à prevenção e ao tratamento da população consumidora e/ou dependente.

P eculiaridades do T ratam ento para a P o pu la çã o A do lescente Longe de tentar descrever as formas possíveis de tratamento de dependentes e usuários abusivos de drogas, este tópico privilegiará as particularidades dos ado­ lescentes frente ao tratamento. Aprimeira delas refere-se à cautela com que deve ser cercado todo o processo diagnóstico de abuso ou dependência. As características normais da adolescên­ cia, a presença de transtornos psiquiátricos independentes da drogadição e a ine­

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xistência de danos físicos provenientes da tolerância e dos sintomas de abstinên­ cia podem distorcer e dificultar o processo. Atualmente, o critério diagnóstico mais utilizado para abuso e dependência de substâncias psicoativas é o DSM-IV54, “entretanto, há poucos estudos sobre a aplicabilidade dos critérios existentes para o diagnóstico de abuso e dependência para os adolescentes”55. Outra singularidade a ser observada é a pouca eficácia demonstrada por tra­ tamentos voltados para adultos, quando aplicados aos adolescentes. Estes vivem intensamente o presente, não se apegam às coisas do passado, tampouco sentem qualquer nostalgia por esse tempo. Estratégias que tentem mostrar ao usuário/ dependente como era melhor a vida sem a droga não causam, no adolescente, a repercussão esperada, até porque, em muitos casos, poucas experiências agradá­ veis são lembradas55. Ainda que a abstinência seja preconizada no tratamento, tão imprescindíveis quanto ela, às vezes até pouco valorizados, são os treinamentos de habilidades para enfrentar a vida sem a droga, a busca de novas formas de relacionamento com familiares e outras pessoas que não sejam usuárias, engajamento em ativida­ des sociais, retorno à escola, etc.56 O adolescente necessitará ressignificar sua identidade (o que se torna muito difícil, haja vista que a busca por essa identidade, que agora necessita de ressignificação, possa ter sido um dos fatores que o levaram a iniciar o consumo), re­ aprender a encontrar prazer em outras atividades (sem o uso) e reconhecer-se como capaz disso. São tarefas árduas e aparentemente impossíveis para um ado­ lescente em início de tratamento. Nesse momento, a psicoterapia individual trará grandes benefícios. Também de grande valia será o engajamento do adolescente (e de sua família) em psicoterapia de grupo, terapia familiar, acompanhamento escolar e orienta­ ção vocacional, nos quais serão trabalhados, de forma ampla, tudo que fora “des­ pedaçado” durante o comportamento adictivo. Dependendo da situação biopsicossocial em que o adolescente se encontra e até de seu envolvimento com o tráfico e a criminalidade, poderão ser indicados programas de tratamento que contemplem as especificidades de cada caso55: • Tratamento ambulatoriai, indicado para casos em que não existam com­ plicações físicas e/ou psiquiátricas agudas; haja o desejo de abstenção; exista interesse e envolvimento familiar. Um diferencial deste modelo é o não-afastamento do adolescente de suas atividades rotineiras, embora em alguns casos isso seja necessário. • Internação hospitalar>recomendada em casos em que a vida do adolescente ou de pessoas próximas esteja em risco, além da possibilidade de com­ plicações clínicas (decorrentes ou não dos sintomas de abstinência) e comorbidades; insucesso em tratamentos ambulatoriais anteriores. • Internação em comunidades terapêuticas, apropriada para casos em que existam comorbidades psiquiátricas graves (desde que a comunidade dis­ ponha de médicos), comportamentos anti-sociais, problemas familiares, ausência de resposta ao tratamento ambulatoriai e necessidade de perío­ dos de internação maiores que os oferecidos pelos hospitais.

Abuso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas na Adolescência ■ 33 5

Cada um dos programas de tratamento aqui apresentados tem sua efetividade comprovada e particularidades que se enquadram a cada caso, dependendo do estado físico, emocional, comportamental e delinqüente em que o adolescente se encontra. Mesmo diagnosticado o abuso ou a dependência, quase sempre há nãoadesão do adolescente ao tratamento. Em conseqüência, a busca por novas abordagens que aumentem o vínculo desses adolescentes ao tratamento se faz permanentemente necessária57, gerando um significativo aumento de re­ cuperações. Diante de todos os elementos dificultadores, a identificação de fatores de risco e atuação sobre eles como forma de revertê-los e o aumento dos fatores de proteção tornam-se fundamentais. Sem dúvida, a importância da partici­ pação da família no processo, a modificação da forma de olhar para o adoles­ cente (não como um marginal e, sim, como um filho que precisa da ajuda dos pais) e a obtenção de orientações de um especialista para se auto-ajudarem (grupos de familiares, terapias de família) farão com que os familiares consi­ gam encontrar maneiras de motivar o usuário a aderir ao programa de trata­ mento. A família tem um papel exponencial, uma vez que fornecerá as novas bases que reestruturarão a vida do filho50 e para isso deverá estar preparada e orientada.

C onsideraçõ es F inais Ao se abordarem questões relativas aos adolescentes, entrou-se num campo extremamente vasto e rico de particularidades importantes em suas trajetórias de vida, sejam elas intrínsecas (fatores biológicos e psicológicos) ou extrínsecas (re­ lacionamentos familiares, afetivos e sociais). Se, para os adultos, o mundo das drogas parece muito sedutor, quão mais para o adolescente, que está descobrindo a vida e cheio de “rumores” que o arrastam para a busca plena de situações prazerosas. Fortalecendo esse movimento, o ado­ lescente encontra, ao seu redor, um mundo no qual as pessoas que o deveriam proteger, orientar e lhe servir de modelo estão cada vez mais se despindo de valo­ res afetivos e morais. Neste capítulo, pôde-se discorrer sobre uma pequena parte do imenso uni­ verso que circunda o adolescente, particularmente daquele que faz uso abusivo de álcool, tabaco e outras drogas. Seria proveitoso se os adultos pudessem lembrar que também já foram ado­ lescentes e o quanto careceram, conscientes ou não, de compreensão, apoio, orien­ tação, carinho e afeto de seus familiares. Fatores de risco existem sim, nos mais diversos contextos. Todavia, se os fato­ res de proteção estiverem presentes, em especial aqueles referentes aos contextos familiares, é provável que o número de adolescentes envolvidos nesse mundo tão “sedutor” seja significativamente menor. Ressaltando a vital importância de trabalhos preventivos, este capítulo será finalizado com o propósito de sensibilizar não somente as famílias, mas também as escolas, os profissionais da área da saúde, as comunidades, as autoridades e

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toda a sociedade civil para a necessidade de se precipitarem diante de tão pode­ roso “inimigo”. Como se já não bastassem todos os problemas apresentados, o custo financeiro com tratamentos de dependências químicas é exorbitante58-59. Dessa forma, a luta por maiores incentivos públicos precisa ser abraçada por todos, para que os programas de prevenção possam abranger e beneficiar uma parcela bem maior da população, minimizando, assim, de forma bem menos one­ rosa à sociedade, os tão conhecidos problemas gerados pelo consumo de álcool, tabaco e drogas.

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Abuso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas na Adolescência ■ 337

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C A P ÍT U L O

Abordagem. Familiar em Dependência Química R o ber ta P ayá N e l ia n a B u z i F

ig l ie

I n tro d u çã o O impacto de determinada substância, a história do uso da droga entre as gerações, os papéis dos membros familia­ res e o uso da droga por um dos membros como indicador de que algo não vai bem dentro do sistema familiar passa­ ram a receber atenção dos terapeutas familiares, favorecendo o desenvolvimento de novas alternativas para melhor se ex­ plorar o tema clinicamente. A exemplo disso, formulações mais psicológicas relacionam o cônjuge tanto como causa importante no surgimento do problema, quanto como víti­ ma (juntamente com os filhos) do estresse originário do uso de drogas. Formulações pautadas em contextos sociais exa­ minam basicamente o funcionamento da família como um sistema em constantes movimento e interação. Apesar de a instituição familiar ter uma história anti­ ga, somente a partir da década de 1950 passou a constituir área de interesse da psicologia, contribuindo para o desen­ volvimento da psicoterapia familiar como abordagem de tratamento de problemas1. Abordagens familiares são compreendidas como in­ tervenções com a participação da família no processo de tratamento, destacando-se modalidades como a psico­ terapia e a orientação familiar. No que se refere à depen­ dência química, o pressuposto básico preconiza que as pessoas que usam drogas estão dentro de um contexto no qual seus valores, crenças, emoções e comportamentos in­ fluenciam os comportamentos dos membros da família

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e são por eles influenciados. Por isso, o meio familiar pode ser compreendido como cenário direto do enfoque terapêutico. Apartir desta breve introdução, o presente capítulo tem a finalidade de elucidar o entendimento do sistema familiar quando este está inserido na complexidade da dependência química, bem como de apresentar as abordagens terapêuticas que incluem a família como uma das peças-chave no tratamento da dependência de álcool e drogas. Vale ressaltar que, mesmo tendo conquistado reconhecimento clínico, nenhuma abordagem de terapia familiar tem sido aceita como a mais eficaz no tratamento das famílias; daí a necessidade de se investigar mais o tema, bem como de ter conhecimento da ampla gama de possíveis intervenções com famílias.

C aracterísticas P resentes em Famílias de D ependentes Q uímicos O conceito de família pode ser definido levando-se em consideração as múlti­ plas funções reguladoras dos papéis familiares, contradições de comportamento, afetos, tensões, conflitos presentes no meio, que, ao mesmo tempo, contribuem para que o sistema permaneça vivo, superando uma visão estática da própria cons­ trução familiar. A família é um sistema dinâmico e em constante transformação, que cumpre sua função social transmitindo os valores e as tradições culturais. O impacto que a família sofre com o uso de drogas por um de seus membros é correspondente às reações que vão ocorrendo com o sujeito que as utiliza2. Este impacto pode ser descrito em quatro estágios, pelos quais a família progressiva­ mente passa sob a influência das drogas e do álcool: 1. No primeiro estágio, prepondera o mecanismo de negação. Ocorrem ten­ são e desentendimento, e as pessoas deixam de falar o que realmente pen­ sam e sentem. 2. No segundo estágio, a família toda está preocupada com essa questão, ten­ tando controlar o uso da droga, bem como as suas conseqüências físicas e emocionais no campo do trabalho e no convívio social. Mentiras e cumpli­ cidades relativas ao uso abusivo de álcool e drogas instauram um clima de segredo familiar. A regra é não falar do assunto, mantendo a ilusão de que as drogas e o álcool não estão causando problemas para a família. 3. No terceiro estágio, a desorganização da família é enorme. Seus membros assumem papéis rígidos e previsíveis, servindo de facilitadores. As famílias assumem responsabilidades de atos que não são seus e, assim o dependen­ te químico perde a oportunidade de perceber as conseqüências do abuso de álcool e drogas. É comum ocorrer uma inversão de papéis e funções, como por exemplo, a esposa que passa a assumir todas as responsabilidades de casa em virtude do alcoolismo do marido ou a filha mais velha que passa a cuidar dos irmãos em conseqüência do uso de drogas pela mãe. 4. O quarto estágio é caracterizado pela exaustão emocional, e podem surgir graves distúrbios de comportamento em todos os membros. A situação fica insustentável e leva ao afastamento entre os membros, gerando grave desestruturação familiar.

Abordagem Familiar em Dependência Química ■ 341

Embora tais estágios definam um padrão da evolução do impacto das subs­ tâncias, não podemos afirmar que em todas as famílias o processo será o mesmo, mas, indubitavelmente, a família que passa por essa problemática reage de acor­ do com os valores, a compreensão e os recursos para lidar com o problema do álcool ou da droga. Também podemos dizer que há uma tendência de os familia­ res se sentirem culpados e envergonhados por estar nesta situação. Muitas vezes, deve-se a estes sentimentos o fato de a família demorar muito tempo para admitir o problema e procurar ajuda externa e profissional, o que corrobora para agravar o desfecho do caso. Os principais sentimentos da família que convive com dependentes são3:í raiva, ressentimento, descrédito das promessas de parar, dor, impotência, medoj do futuro, falência, desintegração, solidão diante do resto da sociedade, culpa e \ vergonha pelo estado em que se encontra. ' Do lado oposto, raramente o usuário assume que está bebendo em demasia ou que faz uso de drogas. Seus sentimentos podem ser negados por ele mesmo. A “confirmação” da presença da droga no meio familiar pode acontecer por iniciati­ va de terceiros; por um ato falho do próprio usuário, ao esquecer a droga em lugar visível, ou numa situação extrema, de prisão, overdose, morte e acidentes. A partir dessa revelação, a crise familiar atinge seu ápice, uma vez que, em geral, a família já vinha sofrendo de desequilíbrios não perceptíveis ao seu olhar. De modo contraditório, o dependente químico pode parecer ter perdi­ do todos os vínculos com a família, mas, mesmo assim, ter fortes emoções a respeito dos relacionamentos e ainda manter dependências afetivas e finan­ ceiras45. Em estudos com dependentes de heroína, Stanton e Todd puderam identificar que 82% dos pesquisados moravam com a mãe, 58% viam seus pais semanalmente e 66% viam o pai diariamente. Disto concluíram que, apesar de os adictos se dizerem independentes, a maioria demonstra manter laços es­ treitos com a família, e aqueles que não moram na casa dos pais moram nas proximidades.

I n flu ên cia

do

M eio

Muitos estudos demonstram a necessidade de compreendermos como e por que o fenômeno da dependência química pode se repetir em outras gerações. Dentro da perspectiva familiar, podemos inferir que o comportamento do depen­ dente é apreendido do mesmo modo que interfere fortemente nas pessoas envol­ vidas pela convivência. A exemplo disso, no caso do alcoolismo, foi observado que sua perpetuação pode estar associada à manutenção da identidade familiar, pois as famílias que possuem dependentes químicos são bastante particulares em ra­ zão de suas características incomuns, percebidas e vividas por todos os seus mem­ bros6. Atitudes como “rituais familiares normais” muitas vezes ocorrem em torno do beber, o que interfere no desempenho normal da família7. Geralmente, é desta forma que os filhos crescem num contexto cultural onde a bebida se torna parte de suas vidas. A mitologia familiar é, muito provavelmente, infestada de cenas relacionadas ao álcool.

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Os filhos podem permanecer imersos neste ambiente, inconscientes do que ocorre; podem repetir a identidade familiar e, sem muito refletir, se casar com alcoolistas ou virem a ser um. O desafio destes filhos seria construir novos rituais e mitos familiares, abandonando os de sua família de origem, para, assim, desen­ volver uma identidade familiar não-alcoólica como maneira de não perpetuar o alcoolismo. Cabe lembrar, ainda, que serviços de prevenção aos filhos de dependentes químicos podem atuar diretamente para que a identidade familiar seja reconstruída; também se pode recorrer à psicoterapia familiar, quando esta per­ mitir a inclusão dos filhos, mesmos sendo pequenos.

I nterferên cia

das

D ro gas

no

S istem a F a m ilia r

Adependência química afeta o sistema familiar mediante certos fatores, como a substância de escolha, a idade e o sexo do dependente, o estágio em que a famí­ lia se encontra, os fatores sociais, econômicos e culturais, tanto do dependente como da família, e as psicopatologias. Segundo Kaufman8, todos esses fatores in­ teragem com o efeito do abuso de substância para produzir um sistema familiar disfuncional. Stanton9encontrou dados associados ao gênero dos membros ou tipo de vín­ culo dentro da família. Dependentes químicos masculinos, por exemplo, têm suas mães envolvidas em uma relação de superproteção, as quais, em sua grande maio­ ria, são extremamente permissivas. No caso das mulheres dependentes, apresen­ tam-se geralmente em competição com suas mães e seus pais são considerados inaptos. Em alguns casos, como, por exemplo, quando a questão de gêneros ou papéis está sendo apontada, o uso de drogas pode aparecer como fator essencial para a interação familiar, uma vez que revela a desorganização do sistema, anterior ao uso da droga. Stanton e Todd5resumiram características dos sistemas familiares de usuários de drogas: • Alta freqüência de drogas e dependência multigeracional. • Expressão rudimentar e direta do conflito familiar com parcerias entre os membros, de modo explícito. • Mães com práticas simbióticas quando os filhos são crianças, estendendose por toda a vida. • Coincidência de mortes prematuras não esperadas dentro da família. • Tentativas dos membros de se diferenciarem entre si, como uma pseudoindividuação, mas de modo frágil, em virtude das regras e dos limites que deveriam ordenar o funcionamento e, no entanto, estão distorcidos. Diante da conduta de dependência química, a família passa a pensar por que um de seus membros se droga, por quem ele é mais protegido, quem deveria as­ sumir a culpa e como poderiam evitar isso. Olievenstein10 assinala as seguintes

Abordagem Familiar em Dependência Química ■ 3 4 3

características, denominadas patológicas, encontradas nas famílias de depen­ dentes químicos: • Falta de barreiras entre as gerações: a autoridade dos membros mais velhos nem sempre é suficiente para impor limites e regras. • O nível de individuação dos adultos é precário; freqüentemente, há inversão dos papéis na família nuclear, com o filho assumindo o papel do adulto. • Os mitos familiares são acentuados. Por isso, é muito comum os familiares manterem certa desesperança ou até mesmo comodismo, por acreditarem que o problema da droga é algo do “destino” da família como um todo. • Desentendimento no casal parental, principalmente quando um dos cônju­ ges é alcoolista ou quando o casal não age de modo coerente em relação às condutas que deve assumir para apoiar a recuperação de um dos filhos. • Alianças secretas com filhos diante da desordem das condutas que deve­ riam ser seguidas ou falhas de comunicação entre os membros, que auto­ maticamente fortalecem parcerias dentro do meio familiar.

C iclo

de

V id a F a m ilia r

Muitas vezes, membros envolvidos e preocupados com o problema da droga se perguntam como e quando tudo isso começou. A partir disso, consideramos relevante compreendermos que o momento no qual a droga ou o álcool passa a existir dentro de um sistema familiar está fortemente ligado ao próprio ciclo de vida em família. Steinglass11e cols. referem, em seu trabalho com famílias farmacodependentes, que o ciclo familiar vital serve como parâmetro para a identificação de variáveis relacionadas aos problemas de abuso de álcool e drogas para determinar a dire­ ção do tratamento. Dentro do amplo conceito do ciclo de vida familiar12, fases do processo his­ tórico familiar podem ser compreendidas. Serão apontadas brevemente as fases do ciclo de vida relacionadas à identificação da presença da droga ou do álcool. A primeira fase do processo do ciclo de vida familiar corresponde à forma­ ção do casal. A adaptação para uma nova vida familiar demanda tempo, maturi­ dade individual para trocas, respeito mútuo pelas diferenças pessoais e familiares. Em famílias de dependentes químicos nessa fase, também chamada de fase de aquisição, encontram-se casais muito jovens, sem maturidade necessária para a construção de um novo sistema familiar; são freqüentes casamentos que nas­ cem de uma gravidez precoce. Neste caso, podem ser encontrados problemas desencadeadores de uma dependência química que vão se agravando, uma vez que, conforme afirmam Carter e cols. e Nichols e cols., a tarefa de constituir um casal é a mais difícil do ciclo familiar12,13. Esses casais jovens enfrentam muitas dificuldades, que não raro os impossibilitam de se tornar uma família. A presença da dependência química pode estar revelando o padrão dependente de cada parte do casal, entre si ou com suas famílias de origem. Por isso, é aconselhável que a terapia familiar seja centrada no casal, nas demandas comuns dessa fase de aquisição e no seu contexto sociofamiliar, incluindo a família de origem.

3 4 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

A fase adolescente é caracterizada pelo sistema familiar composto de um casal de meia-idade com filhos adolescentes. O casal, nesta fase, convive com os filhos, que estão em fase de transição e mudança, evidenciada por aspectos esperados na vida dos adolescentes, como a iniciação sexual, os riscos da vio­ lência e a influência dos hábitos alcoólicos e do uso de drogas. A família está em momento de transição, adaptação, e tais aspectos passam a ser grandes preocupações dos pais. Muitas vezes, os responsáveis são obrigados a reviver suas histórias para conseguir compreender o que está se repetindo com um dos filhos. Em tempos atuais, a preocupação com as drogas se intensifica, mas não po­ demos desconsiderar, de modo algum, o fato de sua disponibilidade ter aumen­ tado consideravelmente, tornando-se, também, uma questão de âmbito social. De qualquer forma, isso reforça a vulnerabilidade do jovem, que necessita do grupo de amigos para se diferenciar dos pais e, ao mesmo tempo, para buscar sua aceitação social. Nesta fase, muitas revelações podem surgir, como a descoberta sobre o uso de algum filho pelos pais, ou, ainda, o abuso de álcool pelo pai, que vai ao encontro do experimento da maconha pelo filho. O que se deve estabelecer como foco é a questão das mudanças, transições e apoio para a família receber condições para se adaptar. A crença de que tal crise pode ser apenas uma fase deve ser mantida. A fase da adolescência exige mudanças estruturais e renegociação de papéis nas fa­ mílias, pois ocorrem mudanças no físico dos filhos e tem início a transição psico­ lógica da infância para a idade adulta. Na maioria das famílias com adolescentes, os pais estão se aproximando da meia-idade, seu foco está nas questões maiores do meio de vida, tais como; reavaliar o casamento e a carreira. De acordo com Carter e McGoldrick12, tal estágio do ciclo de vida familiar indicaria que a família estaria num processo emocional de transição e teria no desenvolvimento da flexibilidade seu ponto de sucesso. Aumentar a flexibilidade das fronteiras familiares e modular a autoridade paterna permitem aos terapeutas promover maior independên­ cia e desenvolvimento para os adolescentes. Quando isto não ocorre, as de­ mandas da adolescência e da fase adolescente do ciclo vital familiar se entrecruzam, podendo fragilizar o sistema familiar, deixando-o mais vulne­ rável à drogadição. Conseqüentemente, a interferência da dependência nesta fase do ciclo pode dificultar a passagem para a fase seguinte. Geralmente, as famílias com depen­ dência química não conseguem chegar à fase de maturidade - ficam presas na fase anterior do ciclo, na adolescência, por não conseguirem elaborar perdas, ganhos e/ou situações do “ninho vazio”. A maneira de encarar essas mudanças está ligada não só aos padrões da famí­ lia nuclear, mas a padrões multigeracionais, caracterizados pela falta de flexibili­ dade diante dessas demandas. Geralmente, encontramos intensificado o triângulo relacional mãe e filho com pai distante. Também é comum receber famílias nas quais a esposa, por estar enfrentando o desejo de liberdade dos filhos, confronta mais diretamente o abuso de substância do marido e, não raro, age de modo agres­

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sivo com os familiares, principalmente com o cônjuge. De qualquer forma, o terapeuta deve estar ciente de que a passagem desta fase vai depender do estado em que cada membro se encontra emocionalmente para encarar as mudanças relacionais. Outro tópico correlacionado ao entendimento das fases do ciclo de vida na família é a probabilidade de os avós assumirem as responsabilidades da educa­ ção dos netos quando outra variável na fase adolescente pode estar presente: a gravidez indesejada. Além de os avós terem de se dedicar aos netos, ao menos enquanto os próprios pais não têm condições de assumir a paternagem e maternagem, passam a convi­ ver com os receios da fase do ciclo, que permeiam fatores biológicos, psíquicos e sociais, os quais implicam fragilidade física, problemas psíquicos relacionados com os balanços de vida e social advindos, muitas vezes, das perdas financeiras pela redução do poder aquisitivo. Os idosos, em vez de serem cuidados em razão da idade, continuam a cuidar de familiares mais jovens e, de modo direto ou indireto, mantêm um padrão de relacionamento no sistema, que, de alguma forma, impede que os pais adoles­ centes amadureçam. A fase madura é representada por filhos adultos, e a relação pais-filhos se tor­ na horizontal, de adulto para adulto. Os filhos jovens adultos deveriam apresentar independência econômica, pessoal e emocional, estarem condições de deixar o lar e desenvolver sua própria família. A família recebe novos elementos (genros, noras e netos) e, ao mesmo tempo, tem a sensação de “ninho vazio”.

H istó ria

da

T era pia F a m ilia r

Segundo Alexander14, a família, indiscutivelmente, é um fator crítico no trata­ mento, e sua abordagem é um procedimento fundamental nos programas tera­ pêuticos. A terapia familiar evoluiu a partir de uma multiplicidade de influências. A for­ mulação da psicanálise de Freud, desde o início, enfatizou que o interesse do psica­ nalista deveria ter como foco as relações familiares dos pacientes. Da mesma forma, ressaltou que, em alguns casos, a neurose teria relação com conflitos entre mem­ bros da família, uma vez que os familiares considerados “sadios” preferem não pre­ judicar seus interesses a colaborar na recuperação daquele que está doente. A psicanálise muito contribui para o desenvolvimento da terapia familiar e segue com seu enfoque, dando ênfase ao passado, à história da família como causa de um sintoma e como meio de transformá-lo. Seu método, geralmente, é interpretativo, com a finalidade de ajudar os membros da família a tomar consciência dos comportamentos passado e presente e das relações entre eles. Porém, abordagens relevantes surgiram, tomando notoriamente um espa­ ço importante no campo da psicologia, assim como no tratamento de álcool e drogas. O desenvolvimento teórico da biologia, da sociologia, da antropologia, da informática e da teoria geral dos sistemas influenciou as primeiras formulações do trabalho terapêutico com famílias. Na psicologia, um importante precursor foi

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Adler, seguido por Sullivan e Frieda Fromm-Reichmann2. No final da Segunda Guerra, surge o movimento proposto por Maxwell Jones para reformulação da assistência psiquiátrica. Pichon Rivière incluiu a família na sua compreensão da doença men­ tal, desenvolvendo a noção de '‘bode expiatório” como depositário da patologia que é de toda a família13. Todos os movimentos e formulações teóricas levaram aos primeiros estudos no campo da terapia familiar. Considerada uma prática de tratamento ainda muito recente em relação aos problemas de álcool e drogas, em que os terapeutas vêm criando novas aborda­ gens por meio dos pontos de interfaces, a dependência química teve início como abordagem familiar em 1940, com a criação dos grupos Al-Anon dos Alcoólicos Anônimos. Em 1981, foi introduzido o conceito de co-dependência por Wegscheider16, caracterizando uma obsessão familiar sobre o comportamento do dependente, visando, no controle da droga, ao eixo da organização familiar. O usuário era analisado como doente e seus familiares como co-doentes. Posteriormente, Andolfi17trouxe o conceito do paciente identificado, no qual o sistema familiar necessitaria do outro como forma de pedir ajuda, uma vez que a pessoa sintomática estaria em um papel em que outro membro da família, pro­ vavelmente, não assumiria. Na década de 1990, houve crescimento das terapias focadas na solução, que não examinam causas da doença ou disfunções, somente enfatizam as soluções13. Segundo Figlie e cols.18, este método parece facilmente aplicável e aparentemente traz resultados rápidos, porque se concentra no problema, sendo aceito pelas famílias e dependentes, pois não atribui responsabilidades implícitas. O terapeuta utiliza o “reenquadramento”, no qual os problemas da família ou do paciente são colocados numa estrutura de significados, oferecendo novas pers­ pectivas e possibilitando novos comportamentos. Na realidade, a abordagem familiar em dependência química como modali­ dade de tratamento é recente. E, como mencionado, vários modelos de atuação estão em operação, sendo que a maioria dos terapeutas familiares vem descobrindo a sua própria mistura, utilizando uma gama de idéias e práticas diferentes19. In­ discutivelmente, a família é um fator crítico no tratamento e sua abordagem é um procedimento fundamental nos programas terapêuticos20. Contudo, até o momento não foi estabelecida uma abordagem de maior eficácia nesta área. O Quadro 23.1 mostra as várias modalidades terapêuticas.

23.1 - Modalidades Terapêuticas na Abordagem Familiar em Dependência Química

Q uadro



Grupos de auto-ajuda



Enfoque sistêmico



Abordagem cognitivo-comportamental



Terapia familiar funcional



Terapia familiar estratégica breve



Solução de problemas

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I m po r tâ n cia da s A bo r d a g en s F a m ilia r e s : M o d a lid a d es T era pêu tica s

Grupos de Auto-Ajuda As origens do termo co-dependência são obscuras. Há indicações de que evo­ luiu do termo co-alcoólatra, no final da década de 1970, quando o alcoolismo e a dependência de drogas começaram a ser considerados dependência química21. Rapidamente, o termo se tornou usual no campo da dependência química, tendo diversas definições. No início da década de 1940, por um grupo de esposas de alcoólicos, foi fun­ dado o Al-Anon - grupo de mútua ajuda para familiares e amigos de alcoólicos com o objetivo de adaptar o programa de recuperação dos Alcoólicos Anônimos (A.A.) para os que sofreram os efeitos do alcoolismo em suas vidas, definidos nessa época como pessoas que não sabiam administrar suas vidas. A definição mais abrangente de co-dependência foi feita por Schaef21, que des­ creve a co-dependência como doença que cresce no meio relacional em que a pessoa está inserida. A definição mais operacional de co-dependência é a de Wegscheider-Cruse16, que combina elementos comportamentais e intrapsíquicos, descrevendo-a como condição específica, caracterizada por preocupação e de­ pendência extremas a uma pessoa ou coisa. A co-dependência existe indiferente­ mente à existência de dependentes químicos na família, podendo ser vista como uma doença de relacionamentos, em que um dos membros pode ser quimica­ mente dependente22. Os grupos de auto-ajuda, que têm como base as 12 etapas dos Alcoólicos Anô­ nimos, representam uma fonte importante de apoio para a recuperação de mui­ tas pessoas que procuram ajuda para problemas com drogas lícitas. Embora os fatores responsáveis pelo aumento da participação em grupos de auto-ajuda não sejam bem conhecidos, a ênfase do estilo de vida americano recai sobre o indivi­ dualismo e o senso de solidariedade em relação àqueles indivíduos que se encon­ tram estigmatizados social, econômica e culturalmente. Uma perspectiva23 tem sido a de considerar os grupos de auto-ajuda um meio de atender às necessidades inadequadamente satisfeitas por outras instituições sociais. Um outro grupo que merece destaque é o Amor Exigente, que atualmente conta com cerca de 1.000 grupos em nosso país. É um programa dirigido a pais cujos filhos estão envolvidos com abuso de álcool e drogas, e aos próprios filhos, para que assumam a responsabilidade por seus comportamentos. É basicamente uma proposta de educação destinada a pais e orientadores como forma de prevenir e solucionar problemas com seus filhos24.

Enfoque Sistêmico A partir da teoria geral dos sistemas e da teoria da comunicação, surgiram vá­ rias escolas de terapia familiar: Escola Estrutural, Estratégica, de Milão e Construtivista. A família é vista como um sistema que se mantém em equilíbrio

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por meio das regras do funcionamento familiar. A terapia a partir desse enfoque busca a mudança no sistema entre os membros da família pela reorganização da comunicação. Os terapeutas se abstêm de fazer interpretações, pois novas expe­ riências comportamentais devem provocar modificações no sistema familiar, ge­ rando mudanças. O principal teórico da Escola Estrutural é Minuchin25, que entende a família como um sistema que se define em função dos limites de uma organização hie­ rárquica, executando suas funções por meio de subsistemas (grupo dos pais, fi­ lhos, casal, etc.). A terapia estrutural é uma terapia de ação e o sintoma é visto como um recurso do sistema para manter determinada estrutura. É com as regras familiares que as fronteiras entre os subsistemas se formam, definindo os papéis dos membros. Neste contexto, as famílias emocionalmente saudáveis têm fron­ teiras claras. Partem também desta abordagem conceitos importantes, como o da hierar­ quia e da definição dos papéis familiares, que permitem ao terapeuta intervir di­ retamente na estrutura e no funcionamento da família. Tais conceitos são aplicados a famílias com dependentes químicos, ainda mais porque, com freqüência, nes­ sas famílias são encontradas inversões de papéis. A Escola Estratégica tem como um de seus principais teóricos Jay Haley, jun­ tamente com Jackson, Bateson, Weakland e Watzlawick13. O que caracteriza o sistema familiar é a luta pelo poder26. A visão estratégica define o sintoma como expressão metafórica de um problema representado e também como uma for­ ma de solução insatisfatória para os membros do sistema. A abordagem tera­ pêutica é pragmática: trabalham-se as interações e evitam-se os porquês. Desta forma, o fenômeno da dependência química é entendido como algo revelador de problemas dentro do sistema. A Escola de Milão é representada por Mara Selvini Palazzoli, Boscolo, Ceccin e Prata, que partiram dos pressupostos teóricos da Escola Estratégica. Partindo do conceito de homeostase, os problemas surgem quando as regras que gover­ nam o sistema são tão rígidas que possibilitam padrões de interação repetitivos, vistos como pontos nodais do sistema. A intervenção terapêutica é o ritual fami­ liar, uma ação ou série de ações das quais todos os membros da família são leva­ dos a participar. A Escola Construtivista surge da concepção de retroalimentação evolutiva de Prigogine, em 1979. A crise ganha novo sentido no sistema familiar, passando a ser parte do processo de mudança, assim como o sintoma. A ênfase não é colocada na pergunta, mas na construção da interação e a ação do terapeuta pretende ex­ plorar as construções de onde surgem problemas27. A visão sistêmica da família pressupõe que a pessoa, apesar de sua complexi­ dade, não está isolada do contexto sociofamiliar. Ao contrário1, está conectada e interagindo com as outras pessoas que lhe são familiares. A família, apesar da di­ versidade cultural, social e afetiva, é o lugar onde as expectativas são construídas, transformadas ou repetidas, dependendo da qualidade das interações. Sob o aspecto familiar, para avaliar e tratar a dependência química “sistemicamente” é necessário levar em conta as expectativas familiares, não refor­ çando preconceitos, para, assim, trabalhar as crenças moralistas e culpas quanto

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à questão da dependência, visando ao resgate da autonomia de cada um dos membros e buscando, principalmente, a mudança de padrões familiares es­ tabelecidos.

Abordagem Cognitivo-Comportamental A abordagem cognitivo-comportamental mescla técnicas da escola comportamental e da linha cognitiva. O princípio básico da abordagem comportamental reza que os comportamentos, incluindo o uso de drogas/álcool, são aprendidos e mantidos por meio de reforços positivos e negativos, os quais podem ser proveni­ entes das interações familiares. O foco está na mudança das interações conjugais/ familiares, que servem de estímulo ou provocam recidivas, melhorando a comu­ nicação, as habilidades de solucionar problemas e fortalecendo a capacidade de lidar com os recursos e a sobriedade28. A dependência química tem um efeito perturbador e prejudicial sobre a vida dos familiares. Por conseguinte, os objetivos da terapia comportamental consis­ tem em reduzir o estresse de todos os membros da família e melhorar sua capaci­ dade de lidar com a doença, por meio de uma combinação de educação, treinamento em comunicação e habilidades em solução de problemas. A educação se refere a informações sobre dependência química, formas de tratamento e medicações, motivação para a modificação do comportamento adictivo, bem como trabalho do conceito de recaída. Ao final das sessões educativas, recomenda-se aos membros da família desenvolver um plano de ação visando à melhoria na relação com o dependente químico. O treinamento de habilidades em comunicação consiste em tomar a comuni­ cação breve e direta por meio da expressão de sentimentos positivos e negativos, fazer solicitações positivas, escuta ativa, sensibilizar para a necessidade de assu­ mir compromissos e poder de negociação. O objetivo deste tipo de treinamento é diminuir interações tensas e negativas sobre os membros da família, substituin­ do-as por habilidades sociais mais construtivas. O treinamento da solução de problemas implica ensinar aos membros da fa­ mília passos para a resolução de questões como: definição do problema; lista de possíveis soluções; avaliação das vantagens e desvantagens de cada solução; es­ colha de uma solução e formulação de um plano de ação. Do ponto de vista cognitivo, a dependência de drogas é concebida como um comportamento aprendido, possível de ser modificado com a participação ativa da pessoa e da família no processo. A terapia cognitivo-comportamental visa ao resgate de recursos pessoais para lidar com o processo de mudança de padrões de comportamentos familiares antigos, auxiliando na modificação de distorções cognitivas e crenças disfuncionais e possibilitando lidar de maneira mais eficiente com o dependente químico. A abordagem cognitiva tenta efetuar mudanças na família enfatizando o mo­ mento presente e investigando o núcleo do problema, em vez de se fixar em questões mais superficiais. O objetivo do terapeuta é investigar as crenças e os pensamentos familiares e ensinar métodos para que os clientes resolvam os atuais problemas que são fontes de sofrimento29.

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Terapia Familiar Funcional A terapia familiar funcional (TFF) é um modelo de terapia familiar que aplica conceitos advindos de abordagens sistemáticas, comportamentais e cognitivas no tratamento do adolescente delinqüente ou atuante. Esta terapia tem sido aplica­ da a jovens com risco de delinqüência que foram internados, mas continuam si­ nalizando problemas, jovens em liberdade condicional e criminosos contumazes apresentando 100% de reincidência. O modelo tem sido pesquisado com estudos de seguimento de 1 a 3 anos. Os estudos bem controlados demonstram reduções de 30 a 50% nas reincidências, em comparação com os tratamentos alternativos15,30. Sua aplicabilidade não tem demonstrado limitações étnicas, raciais ou sexuais. ATFF reconhece que o comportamento problemático se desenvolve e é man­ tido por forças internas (genéticas, aprendizagem, atribuições e emoções) e por forças externas (efeitos interpessoais e sociais). Na TFF, a função do comporta­ mento não é vista como boa ou má, saudável ou não, desejável ou indesejável, pois todos os relacionamentos requerem distância e proximidade em vários graus. Certos processos comportamentais podem ser problemáticos, mas representam meios eficazes de promover a distância ou a intimidade. As pessoas precisam explicar os eventos pessoais que ocorrem ao seu redor. As qualificações das características são vistas como explicação para o comporta­ mento. Assim, os membros da família podem explicar comportamentos com qua­ lificações de características como: “Ele é um jovem criminoso irresponsável, não presta para nada”. As pessoas atendidas não dão todas as informações relevantes; atêm-se ao que lhes é proeminente. Além disso, podem responder a estímulos proeminentes com pouco raciocínio31. Neste processamento automático as infor­ mações provenientes dos sentidos são processadas com rapidez, levando respostas cognitivas comportamentais e emocionais inter-relacionadas sem pensamentos conscientes. Nas famílias em conflito, os membros podem estar envolvidos num padrão de comportamento muitas vezes repetido. O início deste comportamento pode desencadear o processamento automático. Assim, por exemplo, quando o pai ou a mãe se dirige ao filho com uma frase repetida (exemplo: “Já lhe disse mil vezes...”), o que vem a seguir acaba sendo o mesmo discurso de sempre. Os padrões funcionais de comportamento são complexos. Os resultados de­ sejados pelos indivíduos diferem de um relacionamento para outro e variam con­ forme as funções do comportamento que estão inter-relacionadas. Uma criança pode estar muito entrosada com os pais, porém, quando chega a adolescência, aumentam os comportamentos de distanciamento. Caberá ao terapeuta mostrar que o distanciamento e a proximidade são necessários e apropriados e que, com o tempo, precisam ocorrer misturas. Existem maneiras produtivas de se distanciar dos pais. O afastamento, o furto ou problemas com a lei são meios destrutivos de legitimação ou resultado. Os ado­ lescentes delinqüentes reconhecem o pessimismo sobre sua capacidade de nego­ ciar diretamente aquilo que desejam de suas famílias, e é por isso que a TFF supõe que os comportamentos-problema têm sido a única forma de conseguir legitimar algumas funções interpessoais.

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O terapeuta da TFF ajuda a família a fazer alterações cognitivas e comportamentais. Ajuda, também, os membros da família a parar com as censuras mútuas, promovendo uma abertura para uma visão diferente, descobrindo comportamen­ tos novos, não-problemáticos, que levam às obtenção dos resultados funcionais desejados de seus antigos comportamentos. Para conduzir o tratamento, a TFF é precedida pela fase de avaliação, seguida de duas fases principais: a fase de terapia (mudança cognitiva) e a fase de “educação (mu­ dança de comportamento), seguida da conclusão. É típico que os membros da família ingressem no tratamento com explicações punitivas e acusativas para seus problemas. O terapeuta deve ajudar os membros a ver a si próprios e uns aos outros como partes de um sistema disfuncional e reconhecer que a mudança pode beneficiar a todos”. Requalificar é um método primário de estabelecer novas perspectivas den­ tro da família, descrevendo o retrato verbal de um comportamento familiar ou individual “negativo” sob uma luz benevolente, descrevendo propriedades “po­ sitivas” do comportamento e retratando os membros da família como vítimas, e não como perpetradores14.

Terapia Familiar Estratégica Breve Esta abordagem foi desenvolvida na Universidade de Miami, em 1975, para ser aplicada em famílias de baixa renda, famílias de americanos de origem africa­ na e hispânica. A terapia familiar estratégica breve (TFEB) é uma intervenção com base fami­ liar que visa à prevenção e ao tratamento de problemas comportamentais da criança e do adolescente (de 8 a 17 anos), abrangendo o abuso leve de substâncias. Este tipo de abordagem é fundamentado na hipótese de que as interações familiares adaptativas podem desempenhar um papel na proteção de crianças contra in­ fluências negativas e de que as interações de má adaptação da família podem contribuir para a evolução de problemas comportamentais. O objetivo da terapia é melhorar os problemas comportamentais do jovem que se presume estarem relacionados aos sintomas da criança, reduzindo fatores de risco e fortalecendo fatores protetores no caso de abuso de drogas do adoles­ cente e outros problemas de conduta. Os terapeutas procuram diagnosticar as interações de má adaptação e os pontos fortes da família e mudar estes padrões por meio de treinamento e reestruturação. A terapia é uma intervenção de curto prazo focalizada no problema. Uma ses­ são dura de 60 a 90 minutos e a extensão média do tratamento é de 12 a 15 sessões, durante 3 meses. Nos casos mais graves de abuso de substâncias por adolescen­ tes, o número de sessões e a extensão do tratamento podem ser dobrados. ATFEB tem sido avaliada em estudos com projetos experimentais, nos quais se verificou que as abordagens são eficientes na melhora do comportamento juvenil, reduzindo a recaída de jovens agressores. Quanto às expectativas de uma terapia breve, em geral, espera-se32: • Fazer com que as pessoas se sintam mais felizes e menos ansiosas e consi­ gam visualizar atividades, sentimentos ou situações positivas reestabelecedores de sua saúde mental.

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• Não estar sempre zangado ou frustrado, podendo falar de seus sentimen­ tos, tornando-se mais conscientes de suas reações de violência, a ponto de poder evitá-las. • Não falar apenas de drogas; manter um diálogo saudável sobre outros as­ pectos da vida. • Trabalhar a sensação de impotência, percebendo que existe a possibilidade de fazer algo ou aceitar o fato de não poder fazer nada em determinadas situações. • Tentar fazer o melhor para a família e para si mesmo, considerando as ne­ cessidades de todos os envolvidos. • Estar apto a ouvir, pois este simples fato pode ser terapêutico. Ser capaz de contar aos outros o que pode ser feito e não ficar chateado quando não ocorrer o esperado. • Estimular a capacidade de sair e se divertir sem culpa, tornando as pessoas aptas a realizar atividades fora do lar.

Solução de Problemas Na terapia familiar com dependentes de álcool pode ser usada a abordagem da solução de problemas, que enfoca diretamente a bebida e as tentativas de mo­ dificar a situação com a participação ativa dos membros da família. A solução de problemas é uma abordagem clínica genérica33, mas em seu con­ texto comportamental está vinculada ao estímulo e ao controle de reforço. Tanto os comportamentos iniciais como o reforço que se segue precisam ser identifica­ dos para que a freqüência dos comportamentos desejados possa ser aumentada e, a dos comportamentos indesejáveis, diminuída. Os passos a seguir ressaltam os procedimentos de solução de problemas: • Definição clara dos problemas em termos comportamentais que especifi­ quem o enfoque da mudança. • Operacionalização dos aspectos relevantes da situação problemática: os pro­ blemas, em sua maioria, são queixas com direção de culpa, em vez de idéias de mudança. É preferível formular o problema de forma consistente, para facilitar as negociações de mudança de comportamento. • Brainstorm e geração de soluções alternativas: a geração de soluções envol­ ve a ajuda mútua em seus respectivos esforços para mudar. • Avaliação de custo e resultado de cada solução alternativa: cada possível solução precisa ser avaliada com ênfase na qualidade do resultado de cada alternativa. • Implementação da solução escolhida: uma combinação de propostas pode ser formulada com um consenso específico de mudança para que os com­ portamentos de adesão necessários sejam claros, cada membro sabendo qual é o seu papel na implementação da mudança. • Avaliação do resultado da escolha: neste passo final, a família deverá ter al­ guma experiência de êxito ou fracasso na realização da solução do proble­ ma que concordou em fazer e ter a oportunidade de alterar o acordo, caso a situação o requeira.

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A solução de problemas é uma abordagem que não pode ser descrita como sistêmica por si só, pois a ênfase não está no sistema familiar, mas em como a família unida pode ajudar o dependente de álcool ou drogas a aliviar seu proble­ ma. A estratégia de tratamento depende da motivação da família para a mudança e inclui a participação de todos os afetados pelo problema.

C om o

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Q u a n d o E n c a m in h a r ?

Com as abordagens descritas, torna-se possível compreender a versatilidade das diferentes modalidades terapêuticas dentro de uma intervenção familiar. As indicações para que o encaminhamento possa ocorrer são: disponibilidade; com­ prometimento emocional e foco nos problemas familiares ou do casal advindos da dependência química. Inicialmente, a disponibilidade dos membros será um fator relevante para um bom encaminhamento; no entanto, nem sempre isso é possível. Por isso, algumas intervenções que antecedem este processo são favoráveis, como aten­ dimentos individuais às esposas ou aos pais. É por meio do atendimento familiar que os membros passam a receber atenção para suas angústias e informações fundamentais para a melhor compreensão do quadro de dependência química e, conseqüentemente, a melhora no relacionamento familiar. Uma avaliação fa­ miliar pode ser grande auxílio no planejamento do tratamento: fornece dados que corroboram com o diagnóstico do dependente químico e funciona como forte indicador do tipo de intervenção mais adequado, tanto para a família quanto para o dependente. Tratar as famílias de dependentes químicos é uma necessidade, uma vez que elas também adoecem. O apoio familiar é vital para a reestruturação do depen­ dente químico; tanto o processo de adoecimento quanto a recuperação interfe­ rem na dinâmica familiar e, por isso, se faz necessário algum tipo de orientação de apoio. Por fim, os profissionais necessitam do auxílio de familiares para a recupe­ ração do dependente. Segundo dados de pesquisa20, no caso de pacientes dependentes de álcool, geralmente o problema relacional está no casal, sendo, assim, indicada terapia de casal. Em relação às drogas, estes estudos revelaram que, em virtude da intensa relação dos usuários com suas famílias de origem, seria positivamente indicado que todo o sistema participasse do atendimento familiar34. Conforme o local de tratamento, são importantes algumas adaptações, que poderão ser mais bem compreendidas a seguir.

M eios

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O ferecer A ten d im en to F a m ilia r

Em termos de objetivos, independentemente da abordagem terapêutica, é esperado do profissional: • Identificar o padrão familiar. • Considerar que o sistema familiar, e não apenas o membro usuário, necessita de ajuda.

3 5 4 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

• Desafiar este padrão, com profundo respeito à história familiar presente. • Colocado obstáculo diante do padrão habitual, recuperar outras capaci­ dades de relacionamento, bem como promover o reconhecimento de ou­ tras competências da família. • Ter formação teórica, técnica e profissional adequada para lidar com fa­ mílias. • Propiciar um ambiente que ofereça, ao dependente e à sua família, con­ dições de adquirir conhecimentos e ferramentas que proporcionem a re­ cuperação, e não a criação, de um cenário de ataque e críticas. Com relação ao tratamento, famílias sadias podem se beneficiar de técnicas psicopedagógicas de modo a receber orientação básica sobre como lidar com a dependência química. Por outro lado, famílias patologicamente estruturadas ne­ cessitam de tratamento mais aprofundado, sendo indicada a psicoterapia familiar. Em termos de modalidades, podemos trabalhar com: • Psicoterapia fam iliar: abordagem segundo um referencial teórico de esco­ lha do profissional para a compreensão do padrão familiar e a intervenção. Nesta modalidade, se reúnem a família e o dependente químico. • Grupos de pares: nesta modalidade, os membros da família são distribuídos em diferentes grupos de pares: dependentes químicos, pais, mães, irmãos, cônjuges, etc. A interação entre pares é facilitadora de mudanças, uma vez que escutar não de um par é o mesmo que o escutar de um terapeuta. • Grupos de multifamiliares: por meio de um encontro de famílias que com­ partilham da mesma problemática, cria-se um novo espaço terapêutico que permite um rico intercâmbio a partir da solidariedade e da ajuda mútua, em que as famílias se convocam para ajudar a solucionar o problema de todas, gerando um efeito em rede. Todas as famílias são participantes e des­ tinatárias de ajuda31. • Psicoterapia de casal: casais podem ser atendidos individualmente ou em grupos, uma vez que o terapeuta tenha habilidade para conduzir as ses­ sões sem expor particularidades de cada casal que não sejam adequadas ao tema focado. Vale ressaltar que a diversidade do atendimento familiar também se refere ao processo, havendo diferenças entre as famílias que recebem psicoterapia familiar e aquelas que são esporadicamente atendidas dentro do tratamento do depen­ dente químico. Conforme a modalidade adotada, é possível conciliar sessões aber­ tas com sessões dirigidas, tanto em grupos como em atendimentos familiares individualizados, com ou sem a presença do dependente, desde que acordado pre­ viamente entre as partes. Torna-se fundamental seguir o bom senso entre a abordagem utilizada e a mo­ dalidade. No entanto, cada sistema familiar merece receber um programa de tra­ tamento adequado às suas necessidades e condições. Havendo flexibilidade dos terapeutas, é possível seguir algumas indicações: as sessões normalmente duram 1 hora e se tornam cada vez mais espaçadas ao longo de 6 a 9 meses: semanal­

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mente, durante os três primeiros meses; a cada duas semanas, durante os dois meses seguintes e, por fim, mensalmente, nos três meses posteriores. Em modali­ dades de intervenção breve, o número de sessões deve ser previamente estipulado para organização da participação dos familiares. No entanto, quando falamos de grupos de auto-ajuda, as sessões são abertas e a participação é espontânea.

P a p e l T era pêu tico Os terapeutas familiares esperam que a família produza um contexto de idéias, interação e formas organizativas diferente do que produziam até o mo­ mento da procura da terapia, isto é, que com sua intervenção seja criado um contexto diferente, que tenha o efeito de promover condutas distintas daquelas que os preocupam35. Os terapeutas familiares acreditam que os fenômenos que afligem a família, podem deixar de ser repetidos se as interações que os retroalimentam forem detidas. Certos atributos e comportamentos do terapeuta são importantes para uma terapia familiar bem-sucedida. Desde o início, o terapeuta deve estruturar o trata­ mento de modo que o controle do abuso de álcool e drogas seja prioridade antes de tentar ajudar a família com outros problemas. Os terapeutas devem estar aptos a tolerar a forte ira nas sessões iniciais e em momentos de crise tardios e a lidar com ela de modo eficiente. O terapeuta pode utilizar a escuta empática para ajudar cada membro da família a sentir que foi ouvido e insistir que fale apenas uma pessoa por vez. Ajudar a família a acalmar sua intensa raiva é muito importante, visto que deixar de o fazer quase sempre leva a maus resultados. Ao mesmo tempo em que é indicado não perder de vista o foco da depen­ dência, torna-se fundamental para o terapeuta potencializar as competências dos membros do sistema. A exemplo disso, na prática, é muito favorável ressignificar à família que o dependente tem e pode utilizar outras habilidades além daquelas observadas como problemas.

C o n sid er a çõ es F inais O sintoma da utilização de drogas num dos membros da família denuncia que aquela estrutura familiar está comprometida em diversos setores das relações humanas, seja individual, grupai ou social. Neste aspecto, é importante compreen­ der qual lugar o dependente químico ocupa no seio da família e como foi estabe­ lecido o rearranjo dos membros diante disso. O usuário é transformado em um problema único familiar, em que são depositadas todas as atenções, cobranças e expectativas. É solicitado a ele que mude de comportamento, porém ele não tem interesse em fazê-lo. A família reage culpando-se e, muitas vezes, responsabiliza suas companhias pelo uso das drogas. O usuário é culpado pelos problemas fami­ liares, já que, se ele não usasse drogas, não haveria problemas. Estas são formas de minimizar ou negar os conflitos familiares e de projetar em um só membro a dinâmica do sistema como um todo. O dependente químico,

3 5 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

com seu comportamento, denuncia a falsa harmonia do mito familiar e insere sua conduta num sistema social: permanece dependente da família e, ao mesmo tem­ po, mostra aparente independência. A problemática das terapias familiares com dependentes químicos tem um caráter muito complexo e se deve compreender que as famílias estão sofrendo uma condição danosa ao próprio bem-estar físico e emocional e outras perdas33. Então, o terapeuta deve assumir a responsabilidade de expor as mentiras que po­ dem estar encobrindo o cerne da questão, buscando lidar com a atitude de resis­ tência de trazer segredos familiares à luz e descartando discussões infrutíferas sobre conceitos certos ou errados, culpa ou inocência36. Estimular a comunicação entre os membros e promover o reconhecimento do papel de cada um também benefi­ ciam o desfecho terapêutico. Do mesmo modo, o trabalho complementar é fundamental. Conforme o qua­ dro familiar presente, é indicado que o paciente dependente receba acompanha­ mento individual e/ou psiquiátrico individualizado, garantindo, assim, a assistência à dependência química. Deve-se, porém, tomar o extremo cuidado de não o manter num lugar ainda mais problemático. O tempo de um processo familiar acaba sendo lento e, é claro, terá suas varia­ ções conforme o enfoque terapêutico seguido. Mas é a família que sinalizará o momento de parar, de acordo com sua necessidade. Ainda que muitas famílias que convivam com a presença do álcool e drogas tenham características semelhantes, deve-se considerar a história de vida de cada uma e suas particularidades. Além disso, situações de aliança e cumplici­ dade de um dos membros com o terapeuta poderão ser freqüentes; daí a relevân­ cia de o terapeuta familiar sempre ter em mente que o pedido deve ser dirigido à família, pois é esta que, de modo direto ou indireto, busca ajuda para o sofrimento da dependência química.

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Abordagem Familiar em Dependência Química ■ 3 5 7

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C A P ÍT U L O

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento da Dependência Química D e n is e G e t ú l io

de

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N e lia n a B u z i F

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elo

In tr o d u çã o A psicoterapia de grupo tem se mostrado, ao longo do tempo, um recurso com vantagens consideráveis no trata­ mento da dependência química, tendo sido amplamente empregada a ponto de, às vezes, ser tida como tratamento de escolha1. Sua ampla utilização tem como base o consenso de vários especialistas, que a consideram uma intervenção valiosa, que pode ser aplicada no tratamento de diferentes substâncias, como nicotina, álcool, cocaína, anfetaminas e outras24. Apesar do uso bastante comum, existem poucos es­ tudos controlados - e estes têm limitações metodológicas5que confirmem sua efetividade, o que também acontece em relação a outros tratamentos. No entanto, em termos práti­ cos, sua aplicabilidade tem levado a resultados viáveis. A complexidade de estrutura prevista na dependência e suas conseqüências para o indivíduo promovem uma série de necessidades diversificadas quanto ao tratamento. O gru­ po é uma forte contribuição dentro da esfera multidisciplinar. A soma de possibilidades de cuidados, tanto psicológico, quanto físico e medicamentoso, aumenta a probabilidade de recuperação do dependente. A escolha de apenas uma técnica provavelmente não daria conta da demanda confi­ gurada na dependência química. A utilização da psicoterapia de grupo requer conhe­ cimento de técnicas e aprimoramento constante, que pos-

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sibilitam ao especialista ser atuante no processo de mudança, dirigindo o grupo de forma a permitir que estas pessoas possam emergir na direção construtiva de suas vidas. Neste capítulo, abordaremos conteúdos básicos que dizem respeito à forma­ ção e ao movimento do grupo, seus conteúdos manifestos e latentes e direções que podem ser tomadas terapeuticamente. Serão abordados, também, outros ti­ pos de intervenções grupais utilizadas no tratamento da dependência química. Busca-se, com isto, disponibilizar ao leitor uma gama de conteúdos que possam acrescentar algo à prática cotidiana daqueles que lutam e acreditam que a “dife­ rença” pode ser construída.

U m O lh a r

para a

D epen d ên cia Q u ím ica

Quando nos propomos a trabalhar a questão da dependência química, certa­ mente nos deparamos com um cenário bastante complexo, repleto de nuanças que se interligam numa rede de fatores. Pensar na dependência apenas em nível individual reduz a abrangência do papel social em que está inserida. Ahumanida­ de cria suas próprias armadilhas, incentiva a criação de subterfúgios para lidar com a angústia, a espera, a impotência, o limite, a falta de identidade, entre ou­ tros, oferecendo produtos sedutores com promessas de resultados imediatos, na fantasia de uma outra condição de vida. “Nas práticas do consumo contínuo e substitutivo, tudo há que se esperar do objeto, nada do sujeito, nem sequer a me­ mória, menos ainda a crítica; o sujeito do consumo desaparece por trás do objeto que o satisfaz e que, a partir de então, o constitui”6. A dependência se configura numa condição física, psicológica e social, muitas vezes fruto da tentativa do indivíduo em “lidar” com as forças da rea­ lidade que o afligem. Muitos fatores podem representar riscos para que a pessoa trilhe o caminho da dependência, como sua constituição psíquica, somada às circunstâncias do ambiente e sua história de vida. A dependência causa muitos problemas, mas, certamente, sua causa está associada a fato­ res de ordem maior na estruturação do sujeito. “Onde quer que a droga apa­ reça, ela sempre busca apresentar-se como a questão essencial; contudo, com quanto mais profundidade a encaramos, percebemos é a configuração de um sintoma, na tentativa de calar aspectos fundamentais da vida e da subjetivi­ dade nos nossos dias”7. Uma vez desenvolvida a dependência, os esforços para a recuperação do in­ divíduo são bem mais complexos e caros (em todos os sentidos) e, paradoxal­ mente, com menores garantias diante do círculo de perdas configurado e do hábito estabelecido, o que faz pensar na necessidade de os especialistas freqüentemente reverem suas técnicas e aprimorarem suas atuações. A mudança se constitui na capacidade mínima do indivíduo lidar com as perdas, sejam estas perda da sensação de um refúgio imediato ou mesmo a perda da idéia de uma “companheira de todas as horas”, encontrada no álcool, no ta­ baco ou na droga.

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento... ■ 361

Im po r tâ n cia

dos

G rupos

no

T ratam en to

Atualmente, vários esforços vêm sendo empregados a título de alternativas de tratamento, tanto no campo medicamentoso como na esfera psicossocial. Sabemos que a dependência química, pela sua complexidade, nos per­ mite pouca padronização (no sentido de personalidade do dependente, plano de recuperação específica para certas tipologias, entre outros), dificul­ tando, assim respostas mais assertivas do tipo “qual o melhor tratamento para determinadas condições”. O que fica claro é que não há um único tratamento que seja eficaz8. Mesmo diante de perguntas ainda sem respostas, algumas técnicas de tra­ tamento têm se consolidado ao longo do tempo. Vários fatores tornam a esco­ lha da psicoterapia de grupo viável, ou como forma principal de tratamento (principalmente em casos de dependentes leves) ou como forte coadjuvante (em casos de maior gravidade), quando associada a recursos como: acompa­ nhamento médico, psiquiátrico, treinamentos de inclusão social, grupos de auto-ajuda e a própria psicoterapia individual. A primeira e mais simples questão que viabiliza a psicoterapia de grupo é a praticidade que esta oferece ao permitir atender um número maior de pessoas, o que é de grande valia, considerando a demanda e, ao mesmo tempo, as dificuldades do atendimento público. Entretanto, além do aspecto econômico, há fatores técnicos que a tornam uma alternativa viável e bastante produtiva. Sabemos que o consumo das dro­ gas e do álcool é, de uma forma ou outra, incentivada pela indústria (no caso das drogas lícitas) e pelo tráfico (no caso das drogas ilícitas), cada uma com um con­ junto de incentivos diferenciados. No entanto, o subproduto desse consumo - o dependente - é renegado por essa mesma sociedade. O nível de exclusão e dis­ criminação em que vivem os dependentes é de abrangência impactante para eles, produzindo, em geral, a sensação de que são únicos e isolados em seu so­ frimento. Nesse sentido, a abordagem grupai entra como um contraponto, ofe­ recendo meios para que esse indivíduo se perceba como parte integrante do grupo, com o qual se identifica, vendo pelo sofrimento, pela experiência e pelos anseios do outro, parte de sua própria história. A sensação de pertencimento e de experiência compartilhada com pessoas “iguais” a ele auxilia-o a criar saídas para o isolamento e a solidão. O grupo tem a força de criar uma identidade única, que servirá posterior­ mente como apoio para a construção de uma identidade própria, mais fortalecida e autêntica. A psicoterapia de grupo, com objetivos focados, bem definidos e coerentes com a realidade, tem sido uma grande contribuição para que o indivíduo atualize seus conflitos e sofrimentos num ambiente protegi­ do, que o auxilia a reestruturar uma maneira mais saudável de agir e reagir aos eventos de sua vida. A pessoa, no contexto grupai, encontra maior possibilidade de perceber a si mesma e ao outro. Pode ver que aquilo que pensava ser peculiar a si é comum aos outros e aquilo que pensava ser comum é peculiar a si, “reação espelho”; além

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disso, poder se familiarizar com novas maneiras de sofrimento e de soluções, re­ presentadas por pessoas reais colocadas na mesma sala9. Tendo em vista as limitações cognitivas e simbólicas provocadas pela depen­ dência e a urgência em trabalhar aspectos básicos, o objetivo maior do grupo deve ser a elaboração de dificuldades pessoais do presente8. Abordar problemas da rea­ lidade, o que existe aqui e agora, é de suma importância nos grupos de orientação e aconselhamento em dependência química. O alvo das sessões deve, portanto, ser o problema comum dos integrantes, no caso, o comportamento dependente9. O grupo, com este enfoque, estimula a discussão e procura potencializar a força de ego da pessoa, por meio da aceitação de si, dos demais, da identificação dos problemas e da força criadora que permite a busca de soluções. Quando se trabalha um objetivo, não apenas o objetivo está sendo modificado, mas também o sujeito e vice-versa e as demais coisas acontecem ao mesmo tempo. Objetiva-se, assim, a aprendizagem vital, que pressupõe a mudança de atitudes a respeito da pessoa inteira, ou seja, a modificação de linhas de conduta10.

E sco lh a

do

R eferencial T eórico

na

P sicoterapia

de

G rupo

A psicoterapia de grupo pode ser utilizada para diversas finalidades, desde busca do autoconhecimento e mudanças nas relações interpessoais até grupos que se propõem a trabalhar sintomas específicos, como é o caso do alcoolismo e das adições, da esquizofrenia, do estresse e vários outros temas. Além das muitas aplicabilidades, vários referenciais teóricos podem ser utilizados, dependendo da formação do especialista, do perfil do grupo, dos objetivos terapêuticos, entre outros critérios básicos. No caso da dependência química, é importante que a abordagem teórica leve em conta a amplitude da problemática e as conseqüências negativas nela inseridas, principalmente quanto ao potencial destrutivo (físico, mental e social). Somado a isso, geralmente, o indivíduo apresenta um quadro de perdas e limitações, o que dificulta, em primeira instância, o aprofundamento para questões mais amplas, inconscientes e angustiantes de sua vida. Mesmo o especia­ lista tendo plena consciência do caráter sintomatológico da questão, existe aqui a necessidade de abordar o comportamento de maneira menos angustiante. Gru­ pos de orientação, aconselhamento ou apoio centralizam na busca de soluções mais práticas, objetivando a mudança de padrões de comportamentos destrutivos por novas atitudes para lidar com as mesmas questões conflitantes. No campo da dependência, existem atividades diversas que operam sob o amplo título de “trabalho de grupo”, sendo a prevenção à recaída e o tratamento cognitivo comumente realizados dessa maneira4. Bastante respeitada na área, a terapia cognitiva vem demonstrando maior eficácia em termos de custo-benefício quando aplicada em grupo do que individualmente1112. A terapia cognitiva atua basicamente no fortalecimento das atitudes e do pensamento, focando, de maneira mais diretiva, o comportamento “mal-adaptativo”. Abor­ da os determinantes do hábito adictivo, incluindo antecedentes situacionais e ambientais, crenças e expectativas, história familiar individual e experiências anteriores com a substância psicoativa, atividades que envolvem o consumo e as conseqüências do hábito. Segundo a teoria, sendo o comportamento resultado

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento... ■ 3 6 3

do aprendizado, o ser humano pode, conscientemente, aprender e adquirir atitudes mais adaptadas. A prevenção à recaída, derivada do enfoque cognitivo-comportamental, tem sido um bom alicerce para o trabalho em dependência. Formuladas por Marlatt e Gordon13, refere-se à abordagem de uma série de situações práticas que faziam parte do comportamento dependente e que, mesmo diante da abstinência, po­ dem continuar presentes, como, por exemplo: receber a oferta de drogas ou ál­ cool; vontade compulsiva de usar a substância (craving); situações conflitantes que causem estresse, cobranças familiares, entre outras situações em que, antes, a pessoa recorria facilmente ao uso. Com o auxílio desta abordagem, o indivíduo aprende outras respostas para as mesmas situações pela percepção de crenças errôneas ligadas ao uso, treinamento de habilidades comportamentais e modi­ ficações no estilo de vida. O treinamento destas estratégias de prevenção é parte importante do trabalho grupai; os pacientes compartilham idéias sobre como consolidar a sobriedade e evitar a recaída4. Como a mudança é parte integrante deste novo processo de aprendizagem, a técnica motivacional também tem se mostrado de grande valia para o tratamento das dependências. Esta postula que a adesão do dependente ao tratamento de­ pende de sua motivação. A motivação, sob este enfoque, não é encarada como um traço de personalidade inerente ao caráter da pessoa, mas um estado de pronti­ dão ou vontade de mudar, que pode flutuar de um momento para o outro e de uma situação para a outra14. Em termos práticos, é entendida como a possibilidade de a pessoa iniciar, dar continuidade e permanecer num processo de mudança específica15. De forma participativa e compartilhada, a abordagem motivacional possibilita à própria pessoa perceber suas razões para a mudança, os ganhos que pode adquirir com isso (o que possibilita lidar com a perda do padrão antigo de maneira menos sofrida) e a descoberta do potencial interno para cuidar dos obje­ tivos, dispondo de auto-estima e autodirecionamento para tanto. A técnica motivacional tem a vantagem de poder ser utilizada em todos os estágios propos­ tos por Prochaska e DiClemente16, que abordam, de maneira simples e prática, como se dá o processo de mudança. Por meio desta técnica, é permitido um novo olhar para todos os graus de motivação. No caso de clientes relutantes com a mu­ dança, se esta for manuseada ao longo dos estágios, percebe-se, por exemplo, a mudança qualitativa de pensamento quando eles (na pré-contemplação) come­ çam a considerar as perdas acarretadas pelo comportamento. Sair do estágio précontemplativo (visualização dos ganhos do uso) para um outro estágio que integre a percepção das perdas fazendo com que a pessoa fique indecisa quanto aos be­ nefícios do uso (contemplação), é um sinal de mudança, mesmo que esta ainda não tenha se dado efetivamente com a decisão de parar o consumo. O psicodrama, a Gestalt e outras terapias de ação também podem ser úteis como abordagens principais ou inseridas na terapia convencional, principalmente em casos em que o grupo apresenta maiores resistências. Apesar das diversas linhas teóricas, alguns fatores psicodinâmicos foram des­ tacados por Yalom17e subseqüentemente modificados por Bloch e Crouch18como parte da estrutura de trabalho nas interações grupais, independentemente da abor­ dagem teórica: aceitação (o cliente se sente aceito pelo grupo); altruísmo (ajuda

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aos outros membros do grupo); universalidade (“Estamos todos no mesmo bar­ co”); instalação da esperança (desejo de um resultado bem-sucedido); aprendiza­ gem (observação da interação entre os membros do grupo); auto-entendimento; aprendizagem a partir de ações interpessoais (aquisição de comportamentos mais adaptativos dentro do grupo); auto-revelação e catarse. Tão importante quanto o referencial teórico do psicoterapeuta é seu preparo técnico, pessoal e sua disponibilidade para flexibilizar alternativas para as diver­ sas demandas, independentemente do referencial teórico. A tarefa inicial do terapeuta, de extrema importância, é auxiliar a pessoa a perceber quais são as situações de risco para recaída e desenvolver estratégias para evitá-las. Geralmente, na primeira fase de tratamento, predominam sentimentos ambivalentes e poucas condições para lidar com a angústia e a frustração, o que aumenta o risco de retor­ no ao uso; portanto, nesta fase de tratamento, a utilização de técnicas de preven­ ção de recaída é bastante útil. Num segundo momento (quando estão mais seguras do processo de absti­ nência), é natural que as pessoas comecem a entrar em contato com outras esfe­ ras pessoais, tendendo a olhar para si e para os demais, propiciando, assim, a utilização de técnicas que abordem o indivíduo nas diversas áreas de sua vida, com possibilidades de maior autoconhecimento. Mesmo nesta fase, não se deve esquecer de dar atenção à dependência, que foi central na vida da pessoa e prova­ velmente continuará sendo um referencial que pode ou não ser reativado. Além do mais, a sobriedade está associada a ter de enfrentar dificuldades e responsabi­ lidades que o cliente conseguia ignorar quando bebia ou usava drogas19.

A spectos P sicológicos P resentes

na

P sicoterapia

de

G rupo

A relação psicodinâmica que é estabelecida no grupo apresenta algumas se­ melhanças, mas também diferenças básicas da psicoterapia individual. Existe uma complexidade no processo grupai que o torna peculiar, conferindo-lhe abrangên­ cia de fenômenos grupais. Cada grupo possui uma dinâmica única, resultado de fatores como: relacio­ namento entre os participantes, postura do coordenador e sua interação com estes, estágio de motivação dos clientes, tipo de droga utilizada, conteúdo psi­ cológico manifesto e latente, entre outros aspectos que estabelecem o movimento particular do grupo. Cada acontecimento no grupo o envolve como um todo, ainda que esteja aparentemente limitado a um ou dois participantes. Antony20 considera estes acontecimentos como se fizessem parte de uma Gestalt, configuração da qual constituem as figuras (Is plano), ao passo que o terreno (pano de fundo) é ma­ nifesto no resto do grupo. Qualquer mudança (seja em relação aos colegas, ao terapeuta, à infra-estrutura, etc.) tem a possibilidade de trazer o inesperado para o grupo, o que pode ser considerado perturbador por dependentes mais sensíveis. Desta forma, cabe ao terapeuta estar atento a todo o movimento do grupo, evitando trabalhar as questões de maneira unilateral ou somente na esfera individual.

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento... ■

365

Em geral, no início do tratamento, as pessoas chegam ansiosas, com receio do que vão encontrar, de como serão vistas e, na maioria das vezes, ambivalentes e inseguras quanto ao que pensam e desejam. Algumas pessoas que não passaram pela experiência grupai podem, também, se intimidar com a idéia de estar se ex­ pondo a várias pessoas que não conhecem. É, portanto, sempre indicado o conta­ to individual (entre terapeuta e cliente) anterior ao grupai. Em razão da ansiedade pelo novo, é comum as pessoas apresentarem atitu­ des de defesa, como ficarem alheias, relutantes ou agressivas com o terapeuta ou os demais membros do grupo, o que se deve não só aos aspectos angustian­ tes, mas à função da negação do problema com a droga ou o álcool21 como justi­ ficativa ou “autorização interna” para continuidade do hábito. Quando a ansiedade de um paciente ultrapassa seu nível de tolerância, este pode tentar se proteger fugindo do grupo ou mesmo do tratamento; daí a importância de tra­ balhar as defesas iniciais com bastante sensibilidade e acolhimento, encorajando a pessoa a se permitir tentar e, se necessário, explicando as reações comuns no processo inicial de mudança. No caso de um grupo aberto (com pacientes podendo entrar e sair a qualquer momento), a percepção destas defesas pode ser mais clara para quem já faz parte dele, que geralmente visualiza, por intermédio do novo integrante, possivelmente como estava quando chegou ao tratamento. Por outro lado, para quem está che­ gando, perceber que tem à sua volta pessoas mais certas de seus objetivos pode ser um bom encorajamento. É comum, nestes casos, os integrantes mais antigos abordarem as defesas da pessoa que está iniciando, auxiliando na abertura para um novo olhar. Entretanto as defesas precisam ser bem manejadas e o terapeuta deve estar atento à forma como o grupo expõe seus sentimentos (para que a con­ frontação não seja vista como um ataque ou demonstração de superioridade). A atenção, nesse caso, é importante, pois não raro acontece de o grupo reagir à en­ trada do novo com sentimentos de ciúmes ou inveja, insegurança, etc., o que pode fazer com que apresente modos hostis de recepção, mesmo que aparentemente o discurso seja de ajuda. Num primeiro estágio de tratamento (fase de maior ambivalência e de recente abstinência), é necessário muito investimento, principalmente do cliente, para que o processo de mudança se estabeleça. Investir no tratamento torna necessá­ rio, entre outras coisas, se dispor a rever comportamentos e atitudes diante dos eventos da vida, a lidar com estes de forma nova e, conseqüentemente, desconhe­ cida. Isso implica “lutar” contra a tendência natural de voltar aos padrões antigos, nos quais se encontram a bebida ou as drogas como “saída” imediata. Quando há oportunidade de contar com a força de um grupo que caminha com o mesmo objetivo, o efeito tende a ser um grande auxílio para a manutenção do propósito de abstinência. Os membros de um grupo coeso e com forte identidade grupai tendem a apresentar bons resultados17,18,2225. Faz parte da dinâmica grupai (uma vez que o grupo se propõe à mudança do esquema referencial) o surgimento de ansiedades e tensões, pois, em todo pro­ cesso de aprendizagem, existe a tensão causada pela mudança. A existência de um conjunto de experiências, conhecimentos e afetos com os quais o indivíduo pensa e atua configura seu “esquema referencial”10, denominado também um con-

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junto de crenças e cognições, como as descreve a Terapia Cognitiva. O esquema referencial representa parte da maneira como o sujeito se relaciona. O ques­ tionamento do esquema referencial é o caminho para romper estereótipos. Neste momento se estabelece um paradoxo: ao mesmo tempo em que há necessidade de uma “inquietude interna” para a mudança, esta, dependendo da intensidade com que é vivida, pode levar a uma ameaça desestruturante. Sem nenhuma an­ siedade não ocorre mudança, mas sim a paralisação, o “saber tudo”; por outro lado, em virtude de muita ansiedade, não se aprende (em razão do impacto e da defesa que se levanta diante do perigo e persecutoriedade). Principalmente le­ vando em consideração a população dependente, que em geral busca aplacar a angústia com sua droga de escolha, podemos afirmar que um bom nível de an­ siedade é aquele que funciona como um sinal de alarme. É importante que a ansiedade seja dosada de modo que possa ser discriminada, trabalhada e elabo­ rada, dentro do que o próprio grupo indica como sendo possível; Pichon26 argu­ menta sobre a “regra de ouro”: respeitar o emergente do grupo (trabalhando a informação que o grupo atualiza a cada momento, correspondente ao que pode ser admitido e elaborado). O grupo de psicoterapia é uma situação que propicia aos seus participantes transpor sentimentos e seu modo de funcionamento relacional para os demais membros do grupo. As pessoas projetam conteúdos psicológicos em sua forma de interagir. Algumas pouco se relacionam com o outro; geralmente não confiam no contato interpessoal, sentindo-se muito inseguras neste processo. Costumam se “isolar” como forma de defesa, dificultando o acesso a elas. Por outro lado, existem pessoas que se misturam ao outro, vendo nele a extensão de si; geral­ mente esperam que as decisões venham prontas e que o outro se responsabilize por seus atos. Outro aspectos psicológico importante no grupo é o processo de transfe­ rência. Na psicoterapia grupai, esse processo foi observado por vários auto­ res, porém, no grupo, como destaca Foulkes9, os padrões de transferência são mais horizontais do que verticais, ou seja, o paciente se dirige emocional­ mente ao terapeuta e/ou a um ou mais membros do grupo. O entendimento dos processos transferenciais pelo terapeuta é importante (mesmo não sendo utilizado de maneira central), uma vez que estes representam formas signifi­ cativas de expressão dos sentimentos, refletindo esquemas mentais de fun­ cionam ento. Em grupos com objetivos focados, é im portante que a transferência seja abordada, porém, dentro de uma estrutura delimitada e objetiva, em que a pessoa tenha acesso ao seu significado sem precisar vivenciar um nível acentuado de angústia, geralmente presente em interpre­ tações mais abstratas e profundas. Deve ser abordada de maneira simples e objetiva para que seja útil e acessível. Acima de tudo, é importante que o dependente estabeleça vínculos saudá­ veis no grupo, como a possibilidade de construção interpessoal fora do círculo de tratamento e que recupere o papel de agente ativo de sua própria vida. Quando um cliente tem um insight, é importante que seja encorajado neste processo de fortalecimento e descoberta, percebendo que há respeito, preocupação e aten­ ção para com ele16.

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento... ■ 3 6 7

Mesmo diante do desejo de mudança, as pessoas apresentam (muitas ve­ zes, sem perceber) uma contra-força que resiste ao próprio desejo, como defe­ sa para aplacar a ansiedade e a angústia. Estes movimentos precisam ser abordados para serem compreendidos. Caso não sejam abordados, o grupo tende a apresentar um movimento repetitivo que pode revelar o receio coletivo de mudança. Os mecanismos de defesa representam, desta forma, processos mentais que buscam “segurança”, a fim de afastar a percepção da necessidade de mudança ou o medo da desestruturação diante da ansiedade. Quando um indivíduo sente que a situação grupai está ameaçando sua “segurança”, ele pode agir de maneira defensiva. Uma das funções da psicoterapia grupai é tornar as defesas o mais conscientes possível, focando em paralelo outras possibilida­ des, para que aprenda a lidar com a ansiedade dentro de um referencial menos perturbador. As defesas podem aparecer, assim como na psicoterapia individual, de diver­ sas formas: não ter nada a dizer; disparar compulsivamente numa conversa de conteúdo inócuo (como forma de não trabalhar o conteúdo central), ou até mes­ mo a maneira entusiástica como algumas pessoas comentam e analisam outros integrantes ou até ex-integrantes do grupo a fim de evitar se concentrar em seus próprios sentimentos. Outro tipo de reação típica de processos grupais é o “efeito dominó”, que é a reprodução múltipla de determinada reação pela maioria dos integran­ tes, gerando uma tensão/campo emocionalmente tonificado, que pode ser expresso verbalmente ou não. Nestes casos, é importante a intervenção do terapeuta com a finalidade de revelar para o grupo o movimento que está presente e perceber o quanto se trata de um sentimento realmente compar­ tilhado pela maioria, mas que não era manifesto (necessitando apenas de um porta-voz para que viesse à tona), ou o quanto se trata de um efeito do tipo “onda” (referente à vulnerabilidade diante das influências), sem signifi­ cado maior para as pessoas. A interpretação do terapeuta, em todos os processos grupais, deve ser sempre em benefício do paciente, e não uma “descarga” de sua ansiedade, ou ainda, de­ monstração de poder do tipo “Eu tenho o conhecimento”. A interpretação fora de contexto e de “tim ing pode se tornar uma agressão para a pessoa10. Não se deve atuar além das possibilidades reais e momentâneas do sujeito. A interpretação do dependente em atividade ou recém-abstêmio pode mobilizar forte ansiedade, que, por vezes, o levará a recair8. Em suma, o grupo tem problemas, recursos e conflitos que devem ser estuda­ dos e considerados por ele próprio à medida que emergirem, devendo ser exami­ nados em relação à tarefa e em função dos objetivos propostos. Maior objetividade é alcançada quando o ser humano é inserido ativamente em seu contexto, de for­ ma que este perceba a realidade do jeito que é, entendendo-a e agindo para que aconteça da melhor forma possível. Não se trata de transmitir aos integrantes do grupo apenas informações, mas sim de auxiliá-los e caminhar paralelamente com eles para que incorporem e utilizem seus recursos pessoais e ambientais para atuar construtivamente sobre a vida presente.

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■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

A specto s N o r tea d o r es

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Grupos Abertos ou Fechados? Grupos Abertos Na prática do tratamento em dependência química é mais freqüente a esco­ lha de grupos abertos, caracterizados pela possibilidade de receber um novo inte­ grante, que, a qualquer momento, está iniciando o tratamento, assim como pela saída de alguém, por processo de alta ou por desistência. Nos serviços ambulatoriais, a rotatividade de clientes é consideravelmente maior do que em locais de internação e consultórios particulares. Desta forma, é importante uma prática que viabilize o atendimento de maior número de pessoas dentro do mo­ mento das necessidades destas, sendo geralmente esta uma das razões para a es­ colha desse tipo de grupo. Em grupos abertos, é mais presente o contato real com a separação, no caso da saída de pacientes, assim como o acolhimento do novo, configurado no movimento dos que ingressam ao grupo. O grupo automaticamente se torna mais heterogêneo, considerando o tempo de entrada das pessoas, a consciência que possuem da pro­ blemática, o estágio de motivação dos integrantes, os tipos característicos de defe­ sas, o que geralmente enriquece a interação e a ajuda mútua entre os participantes.

Grupos Fechados Caracterizam-se por um número fechado de pessoas que têm o propósito de caminhar juntas durante o tratamento, não sendo permitida a entrada de outros participantes. Geralmente, este tipo de escolha trabalha com um tempo específico, idealizando um início e um término para o tratamento. Uma questão importante a ser analisada de acordo com os objetivos da instituição e sua linha de tratamento é a alta dos clientes, considerando que as pessoas têm “tempos” diferentes para a mudança, devendo ser bem estudado o posicionamento quanto a essa questão. Clientes dependentes químicos em geral apresentam problemas quanto à assi­ duidade e continuidade do tratamento, uma vez que se trata de uma sintomatologia vulnerável a recaídas, ambigüidades e quebra de regras. Por isso, a desistência de várias pessoas, sem a possibilidade de reposição do quadro, pode colocar em risco a ^ continuidade do grupo. Nos grupos fechados, é provável que a desistência dos participantes coloque em cena a ansiedade e o tema morte/separação9; daí a necessidade de o terapeuta estar atento para apontar e trabalhar esta questão de acordo com a dinâmica do i grupo, sempre fazendo um paralelo com a dependência química.

Grupos Homogêneos ou Heterogêneos? Existem algumas discussões sobre a possibilidade de um grupo ser homogê­ neo ou heterogêneo. Certamente, um grupo nunca será homogêneo, levando em

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consideração as diferenças individuais. Entretanto, existem algumas questões im­ portantes a serem analisadas sob a óptica da eficácia. Há tempos, quando poucos dados de pesquisa estavam disponíveis, aparentemente havia maior tendência de constituir grupos de dependentes de drogas e álcool conjuntamente. Com o pas­ sar do tempo, em razão de algumas evidências práticas e mais estudos sobre a dinâmica das diferentes dependências, foi observada a dificuldade em compor um grupo de pessoas com escolhas de drogas diferentes. A experiência ensinou que convém reunir os alcoolistas em grupos homogêneos, ou seja, só de alcoolistas8. Mesmo se tratando do mesmo sintoma (a dependência), o padrão de funcionamento das drogas lícitas e ilícitas é peculiar, apresentando diversidades significativas quanto aos comportamentos, à forma de encarar o vício, ao nível de percepção, aos tipos de perda, à idade predominante, além do estereótipo. Outro fator observado é a tendência ao preconceito que existe entre os dois grupos (quan­ do não se trata de dependência cruzada). É comum o grupo de alcoolistas criticar os de adictos, considerando-os “fora-da-lei”, provavelmente na tentativa de apla­ car o sentimento de exclusão que sofrem; os dependentes de drogas ilícitas tendem a destacar a coragem de se envolver com algo mais perigoso, provavelmente encon­ trando no proibido fontes motivadoras para a expressão de seus sentimentos e ne­ cessidades. No entanto, em consultórios, ambientes de internação ou comunidades terapêuticas em que não sejam possíveis grupos específicos, introduzir o dependente de drogas não acarreta dificuldade técnica maior6. Outro fator de importância para analisar é o critério de homogeneidade quanto ao sexo. Existe um considerável debate sobre os benefícios dos programas de tra­ tamento homogêneo versus “misto”. O nível de funcionamento mental e emocio­ nal entre homens e mulheres é bastante diferente, assim como a forma como cada um vivência suas perdas, suas ansiedades, prioridades e o nível de dificuldades que possuem. Se considerarmos que a população dos alcoolistas tende a ter mais idade, pois, em geral, demora um tempo maior para admitir as perdas (talvez pelo tempo necessário para a instalação da dependência e pelo fato de ser uma subs­ tância lícita), chega ao tratamento com vários anos de relação com a bebida, apre­ sentando, não muito raramente, uma série de limitações por conta de seu efeito. No caso da mulher, tem-se observado que tal fato é ainda mais relevante, levando-se em conta que as complicações do alcoolismo para ela são maiores, tanto no aspecto físico (mulheres têm maior proporção de gordura corpórea, o que faz com que o álcool atinja maiores níveis de concentração no sangue, além de absorve­ rem maiores quantidades de álcool do que os homens27), quanto no aspecto so­ cial (o julgamento da sociedade é mais severo com mulheres); tendem a ser desprezadas, percebidas como tendo abandonado os papéis de esposa e mãe e como sendo vulneráveis à promiscuidade sexual4, o que dificulta ainda mais a busca e aceitação do tratamento, uma vez que isto implica se expor. Diante dessa complexidade, em grupos mistos, no caso do alcoolismo, podem trazer dificuldades de aceitação e adaptação. Segundo Edwards4, é possível que serviços exclusiva­ mente femininos atraiam mulheres com níveis específicos de necessidades, como mulheres com filhos dependentes, lésbicas, mulheres com história materna de problemas com álcool ou drogas e mulheres que sofreram de abuso sexual na infância.

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Quanto ao grupo de adictos, apesar de poucos dados de pesquisa, é possí­ vel que, pela tipologia da droga e pelo perfil mais jovem dos dependentes, ocor­ ra maior flexibilidade para trocas produtivas entre os dois sexos. De qualquer forma, é muito importante a constante reflexão sobre a prática e seus resulta­ dos e a possibilidade de mudanças de estratégia quando estas não se mostra­ rem eficazes e produtivas. Quanto aos demais aspectos, em geral, combinar pacientes com diferentes escalas educacionais, ocupacionais e até de idade pode ser enriquecedor9. É inte­ ressante haver heterogeneidade dos integrantes e máxima homogeneidade da ta­ refa e dos objetivos10.

Papel do Terapeuta Em grupos terapêuticos, é comum a coordenação por profissionais de diver­ sas especialidades da área da saúde, como terapeutas ocupacionais, enfermeiros, assistentes sociais, entre outros. No entanto, os grupos psicoterapêuticos são comumente coordenados por profissionais habilitados em psicologia. A postura do terapeuta gera inúmeras influências no comportamento grupai. Maturidade, equilíbrio, seriedade e conhecimento da dinâmica da de­ pendência, das técnicas psicoterápicas e dos processos grupais são o mínimo necessário para que um profissional possa conduzir o grupo com eficácia e responsabilidade. Quando o terapeuta se porta de maneira simples e objetiva, tende a atrair maior participação das pessoas, o que é bem mais enriquecedor do que o distanciamento e a imagem de superioridade. Principalmente quando a fi­ nalidade é o tratamento de pessoas desestruturadas, de nada ajuda a postura de um terapeuta frio, distante e neutro. A prática clínica tem demonstrado a necessidade de um “facilitador”, ou seja, de um terapeuta participativo, sen­ sível, disposto a interagir com o grupo em suas necessidades, gerando confian­ ça e apoio firme e consistente. O terapeuta precisa agir como um catalisador para auxiliar na liberação de forças motivacionais que contribuem para a per­ sistência de antigos comportamentos destrutivos, ou alternadamente, para iniciação e manutenção de comportamentos novos mais adaptativos. Nenhum profissional é onipotente. Certamente, se trata de um ser humano, que também possui dificuldades e anseios dentro de uma história de vida. É importante que seja percebido como especialista em psicoterapia de grupo e dependência química, mas não como alguém perfeito, sem falhas ou proble­ mas. O imprescindível é a busca constante do equilíbrio psicológico pelo profis­ sional, o que permite maturidade e condições para a nobre função de ajudar o outro em seu equilíbrio. Desta forma, o profissional ter sua psicoterapia é um pré-requisito de extrema importância. Outra questão que não deve ser negli­ genciada é a supervisão por outro profissional, que possibilita o desenvolvimento contínuo e aprimoramento de suas percepções e intervenções. A supervisão é fortemente indicada19.

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Importância do Co-terapeuta Convém que o terapeuta do grupo tenha um co-terapeuta, o que lhe permitirá discutir processos e conteúdos da sessão com o enriquecimento de outro olhar, possibilitando maior troca e amplitude naquilo que está sendo observado tecni­ camente. Até em termos práticos, um co-terapeuta permite que o grupo funcione mesmo quando um dos profissionais não está presente.

Importância da Equipe Multidisciplinar A dependência química é um quadro dentro de um continuum de gravidade. Várias decorrências físicas, mentais, sociais e psicológicas podem ocorrer, secun­ dárias ou primárias ao quadro. Em ambas as situações, torna-se imprescindível a necessidade de acompanhamento e cuidados nessas diversas especialidades. É comum o cliente ser atendido por vários profissionais da instituição, como médico, enfermeiro, assistente social, psicólogo e terapeuta ocupacional, com o intuito de atender as suas demandas. Quando a equipe que cuida do cliente trabalha em conjunto, maiores são as possibilidades de evolução do tratamento. Podem ser constantemente discutidas, sob a óptica de várias áreas, questões como diagnós­ tico, prognóstico, encaminhamentos, evolução do tratamento, mudanças de es­ tratégia necessárias, entre outros aspectos que potencializam a capacidade de assertividade.

Seleção dos Clientes De grande importância para o processo psicoterapêutico é o contato indivi­ dual anterior com o cliente, para que o terapeuta tenha condições de conhecer sua dinâmica de funcionamento, sua problemática, grau de motivação, presen­ ça de comorbidades, entre outros. Como contra-indicações para o grupo, desta­ cam-se fatores como: • Funcionamento psicótico: neste caso, o psicótico pode dificultar a dinâ­ mica do grupo e mesmo o acompanhamento e desenrolar da sessão. Des­ taca-se, ainda, a dificuldade de trabalhar questões típicas do psicótico junto a outros clientes, como características de persecutoriedade e desin­ tegração, geralmente presentes em tais casos. Estes clientes, quando depen­ dentes químicos, tendem a se beneficiar mais com cuidados individualizados específicos e direcionados. • Indivíduos com nível acentuado de agressividade/perversidade e/ou trans­ tornos de personalidade: pela transferência negativa e destrutiva que esta­ belecem em seus vínculos afetivos, a probabilidade de reprodução desse comportamento é reforçada no grupo, pois geralmente vêem neste o espa­ ço para a necessidade de domínio e de transgressão de limites. A prática clínica tem demonstrado que o impacto dessas pessoas no grupo não é po­ sitivo nem para elas nem para os demais membros, que podem se sentir

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intimidados. Vale ressaltar a dificuldade que existe para o terapeuta conduzir o grupo sem perder o foco, diante de pessoas com tais características. O mais indicado, nesses casos, é o atendimento multidisciplinar personalizado. • Indivíduos com danos cognitivos tendem a não produzir e não acompanhar o desenrolar das sessões. Em alguns casos, seu ganho se dá pelo contato social que o grupo possibilita. Geralmente, se beneficiam em grupos espe­ cíficos que trabalhem com outros participantes com danos cognitivos ou grupos de habilidades sociais. • Indivíduos intoxicados ou pouco convictos quanto à abstinência também não são indicados para o grupo psicoterápico. Os intoxicados graves estão com a percepção alterada e com pouquíssimas condições (em virtude da reação da droga) de interagir positivamente, necessitando estar desintoxicados como pré-requisito para a participação. Por outro lado, para pessoas que recaíram, mas que, embora sob efeito da substância consigam manter um contato mínimo preservado, pode ser uma boa oportunidade de auxílio, tanto para aquele que recaiu (no sentido de recuperação), quanto para os participantes, que podem identificar aspectos pessoais na situação de re­ caída. Os clientes pouco convictos dos objetivos de abstinência provavel­ mente vão atuar no grupo tentando negar a importância dessa necessidade, além de possivelmente não estarem disponíveis para ouvir outras opi­ niões. Assim, precisam primeiro de atendimento individual, para pode­ rem ser motivados para a mudança e maior definição de seus objetivos pessoais para a questão da dependência. No caso de clientes que almejam a abstinência, mas que resistem ao grupo, pode-se sugerir que assistam a algumas sessões, variando de quatro encontros19a três meses8para repen­ sar suas decisões. • Indivíduos de reconhecimento público: talvez não tirem proveito do trata­ mento, em razão de possíveis conseqüências negativas da exposição de di­ ficuldades pessoais devido ao status que possuem, podendo ter maior beneficio em um tratamento individualizado. Quando nos referimos a pes­ soa de reconhecimento público, não nos referimos apenas a atores, canto­ res ou políticos, entre outros, mas também a cargos de chefia ou superiores em termos da hierarquia de uma instituição.

Q u estõ es P rá tica s pa ra A d m in istra çã o dos G rupos P sico ter a pêu tico s

Contrato Terapêutico A presença e o cumprimento das regras são necessários como norteador do trabalho grupai, sendo os pilares de sustentação da estrutura organizadora, por meio da qual se estabelece o representante simbólico da organização interna. Ter regras uniformes e claras, objetivamente expostas a todos os partici­ pantes, permite o acompanhamento de seu cumprimento e referencial seguro para todos. Se o contrato é dúbio ou implícito, a pessoa se sente em condições

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de mudar as regras de acordo com visão e desejos particulares8, reproduzindo sua função desadaptativa no grupo. É preciso que o contrato terapêutico conte­ nha a definição de todos os aspectos previsíveis do tratamento. Existem autores que sugerem que o contrato seja escrito e assinado em duas vias (uma para o paciente, outra para o grupo) ou até mesmo em três vias (incluindo um representante familiar, significativo como fiador do paciente)28. De qualquer forma, os itens do contrato devem ser discutidos claramente, um a um, no atendi­ mento individual (antes do grupai) e reforçados, quando necessário, no grupo.

Objetivos do Tratamento De acordo com os elementos-chave acerca da síndrome de dependência for­ mulados por Edwards e Gross29, um dos itens se refere à reinstalação da síndrome após abstinência, que reflete como o dependente, mesmo com um longo período de abstinência, apresenta novamente o quadro de dependência (com tendência a progressão e piora) após retorno ao uso da substância. Dessa forma, parte expres­ siva dos tratamentos considera a recuperação diretamente ligada à abstinência da substância, objetivo final da maior parte dos tratamentos em dependência química, excetuando abordagens que trabalham com a redução de danos. Para muitos, aceitar este limite é difícil, pois implica uma mudança radical e bastante significativa. No entanto, em termos de eficácia, a abstinência precisa ser enten­ dida sob uma óptica que vai além de não usar a substância. A prática tem mostra­ do que pessoas abstêmias, mas que se mantêm desintegradas em várias áreas da vida, tendem a maiores chances de recair comparadas às pessoas mais adaptadas à sua realidade e às suas necessidades. Daí a importância de, mesmo focando a abstinência, olhar o indivíduo como um todo, levando em conta o espectro de suas especificidades. Caso o cliente esteja em dúvida quanto a querer ficar abstinente em um grupo cujo objetivo é a abstinência, é indicado encaminhá-lo para uma abordagem de redução de danos, abordagem do beber social para pacientes que abusam de ál­ cool ou acompanhamento individual, pois ele pode confundir e desestimular os que aceitaram o objetivo da abstinência.

Q uadro

24.1 - Itens do Contrato



Objetivo (abstinência e melhoria da qualidade de vida)



Prazo mínimo de compromisso e alta



Tentativa de abstinência no dia da sessão



Evitar segredo entre os membros do grupo



Necessidade de sigiío no tocante ao conteúdo das sessões, bem como a participantes



Horários e local das sessões



Aviso de faltas previstas



Honorários, dia de pagamento, reajustes e férias do terapeuta

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Prazo Mínimo de Compromisso e Alta Combinar um prazo mínimo de 3 meses para adaptação ao grupo é uma boa estratégia para manter maior compromisso do cliente com o tratamento8, o que contribui para diminuir as possibilidades de desistência pela ansiedade de fazer parte do grupo e pelo próprio momento tenso de mudança. Quanto à alta, a prática demonstra não estar indicada para pacientes com menos de 2 anos de abstinência e que estejam readaptados à família, ao trabalho, ao lazer e em boas condições física e psíquica8. Uma vez combinada a alta, esta não deve ocorrer de imediato. Alguns autores sugerem o desligamento gradativo do cliente: ele começaria a comparecer quinzenalmente, depois mensalmente: até que o desligamento ocorresse por completo, podendo, assim, facilitar ao gru­ po e ao cliente a elaboração da separação. É importante que o pedido de alta seja iniciativa do cliente, procurando ser entendida pelo grupo e de acordo com a percepção do terapeuta. Existem casos em que o paciente tem alta do grupo e busca uma nova forma de tratamento, como a terapia individual, mas, dessa vez, não focada somente na dependência química. O pedido de alta deve sempre ser avaliado dentro da complexidade correspondente. Um cliente, por resistência ao tratamento e/ou ao desejo de usar a substância, pode se achar pronto para alta e, intimamente, estar “premeditan­ do” uma recaída. Há, ainda, casos de clientes com considerável melhora em diversas áreas da vida, abstinentes que, no entanto, não cogitam a alta como objetivo, podendo se mostrar “abalados” em razão da alta de outros colegas. Isso indica apego e certa “dependência” do tratamento, por isso, devem ser estimulados a enfrentar (de acordo com suas possibilidades) um desligamento saudável e pautado na confiança pessoal. Vale ressaltar que possibilitar aos clientes com alta retornarem ao grupo, caso necessitem de ajuda, serve como garantia de que não estão sozinhos e de que não foram abandonados.

Abstinência no Dia da Sessão O pré-requisito para o tratamento é o compromisso sincero do cliente quanto à tentativa de abstinência, o que não implica que a recaída seja algo descartado do processo. Sabemos que, muitas vezes, ela ocorre, o que não é impedimento para a continuidade do tratamento. Caso o cliente beba ou use drogas no dia da sessão, é necessário avaliar se estará em condições de aproveitá-la, pois, caso contrário, poderá dificultar o andamento do grupo. Caso ele apareça na sessão extremamente alcoolizado ou drogado, sem condições de manter um contato preservado, deve ser retirado do grupo pelo co-terapeuta, que lhe for­ necerá a assistência necessária em termos de desintoxicação. No grupo, diante do acontecimento, é indicado discutir o fato e refletir sobre ele, reforçando a necessidade do cumprimento do contrato. Em casos de pacientes que têm lap­ sos (uso de pouca quantidade da substância ou poucas conseqüências), pode ser frutífera a discussão no grupo, desde que mantido o grau de consciência do envolvido.

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento... ■ 3 7 5

Sigilo sobre Conteúdo da Sessão/ Evitar Segredos entre os Membros do Grupo Ressaltar a importância do sigilo quanto ao que é dito nas sessões é dividir com os participantes a tarefa de cuidar do grupo, respeitando a si e aos demais e permitindo, assim, a construção de vínculos confiáveis entre eles. Quando, no grupo, o terapeuta perceber o desrrespeito a essa regra (que pode ser observado, por exemplo, quando os clientes se embrenham em contar histórias e a falar da intimidade de clientes não presentes), é importante intervir, reforçando o signi­ ficado do sigilo. Por outro lado, evitar segredos entre os membros do grupo permite que con­ teúdos significativos de suas vidas sejam trabalhados com maior profundidade e sinceridade. Não é possível, para o psicoterapeuta, o controle total deste aspecto, mas ele pode preservar um ambiente seguro e de confiança, pré-requisito para que as pessoas se expressem verdadeiramente.

Horário/Local das Sessões e Faltas É importante que sejam fixados horário, dia da semana e local das sessões, pois isso garante segurança para os clientes, tanto de um ambiente preparado para eles quanto da necessidade de se prepararem e cuidarem de um horário para o próprio tratamento. Devem ser informados sobre a importância da assiduidade, inclusive como pré-requisito para ter seu lugar no grupo. É recomendável seja solicitado ao cliente que não puder comparecer à sessão que avise o coordenador do grupo com antecedência. Sugere-se também o esta­ belecimento de uma quantidade limite de faltas toleradas sem justificativa, carac­ terizando-se como abandono do tratamento o alcance desse limite previamente firmado entre terapeuta e grupo. Em nossa prática clínica, sugerimos duas ou três faltas sem justificativa, o que deve ser adaptado de acordo com a realidade de cada local de tratamento. Em relação à quantidade de sessões semanais, alguns autores sugerem duas sessões de 1 hora cada; outros optam por uma sessão (variando entre 1 hora à 1 hora e 30 minutos).

Honorários O preço das sessões, o dia de pagamento e os reajustes devem ser administra­ dos como o são na terapia individual. Conforme o histórico do cliente, é aconse­ lhado o pagamento antecipado.

Férias e Outras Intervenções É importante ressaltar que todo cuidado é pouco em se tratando de clientes dependentes, pois eles tendem a agir de modo desconfiado e/ou inseguro. Por

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isso, é indicada, sempre que possível, uma apresentação prévia daquilo que pode ocorrer no percurso do tratamento, como férias ou uma intervenção familiar, quan­ do necessário, entre outros.

Número de Participantes Na literatura, existem várias opiniões a esse respeito, desde a sugestão de números maiores até o número restrito de pacientes. Pensamos que dificil­ mente haverá um número ideal preestabelecido, principalmente porque cada grupo apresenta uma dinâmica de funcionamento diferente mediante o tipo de intervenção estabelecida. É recomendável cerca de 8 a 12 pessoas. O que deve ser levado em conta, acima de tudo, é a condição de o grupo produzir e funcionar de maneira que todos se sintam assistidos. Porém, na prática, nem sempre isso é possível.

Eventos Importantes da Vida Quando o cliente passa por marcantes situações de vida, como morte de um ente querido, perda de emprego, separação, brigas, sugere-se que ele, além de ser atendido em grupo, seja acompanhado individualmente, para que te­ nha maiores possibilidades de elaborar esses momentos de maneira positiva.

Pacientes que Continuam Recaindo ou que Não Atingem o Objetivo do Tratamento Quando os clientes dificilmente conseguem manter a abstinência ou atin­ gir a meta do tratamento, é recomendável pensar na necessidade de mudança de estratégia. Sua continuidade no grupo pode ser uma fonte de decepção, desestímulo ou o antimodelo para os demais integrantes, fazendo com que os demais se beneficiem da situação. A prática clínica sugere o afastamento desses clientes e a tentativa de uma outra estratégia, como, por exemplo, acompanhamento individual, associado ao casal e/ou à família, dependendo do caso. Até mesmo a modificação do tipo de tratamento e referencial teórico pode ser benéfica. Em casos de clientes encaminhados pelo empregador ao tratamento, al­ guns podem se “tratar” apenas para o cumprimento da exigência, sem estarem efetivamente motivados para a mudança. Então, é importante ser esclarecido, desde o início, que haverá acompanhamento da chefia quanto à evolução do tratamento, buscando, dessa forma, responsabilizar o cliente pelos resultados de sua escolha.

Psicoterapia de Grupo e Outras Abordagens Grupais no Tratamento... ■ 3 7 7

Utilização de Recursos Adicionais A utilização de técnicas adicionais nas sessões grupais pode ser uma grande aliada do terapeuta no sentido de promover mudança, despertar para a projeção de sentimentos, assim como para um fundo ilustrativo e informativo. Nestes ca­ sos, a dinâmica de grupo pode ser um auxílio, se utilizada coerentemente com os objetivos e a demanda grupai. Brown e Yalon30 preconizam a existência de um quadro-de-giz para aulas expositivas, bem como de videocassetes e outros recursos didáticos como auxilia­ res. Recursos mistos muitas vezes são interessantes; um exemplo é a possibilidade de dramatização (não necessitando ser um grupo especificamente de psicodrama) de algumas situações: como dizer não para o oferecimento de bebida ou drogas em determinadas situações, como lidar com a raiva ou a provocação, como se comportar numa entrevista de emprego, entre outras4.

Situações Diversas É comum clientes, principalmente em grupo, questionarem os hábitos alcoó­ licos ou de fumar do terapeuta. Se este não estiver preparado, pode ficar muito ansioso, respondendo afoitamente a questão ou devolvendo-a para o grupo sem respondê-la, o que pode criar fantasias “impedidoras” ou que dificultem a relação de confiança com o terapeuta. Duas questões implícitas se fazem presentes no questionamento quanto aos hábitos alcoólicos do terapeuta: “Se não bebe, o quanto entende de beber para me tratar?”; “Se bebe, por que quer que eu pare?” Interpretar, neste caso, não é a me­ lhor maneira, pois pode criar maior ansiedade e fantasia. Abordar o aspecto da dependência e esclarecer que nem todo mundo tem problemas com álcool, por exemplo, oferecendo o conceito de uso, é um caminho viável e esclarecedor; pode ser realizada, nesse momento, uma sessão informativa sobre diversos tipos de con­ sumo (uso/abuso e dependência), pois a falta de informação pode contribuir para uma generalização de senso comum. Quando falamos do uso de tabaco ou de outras substâncias, o conceito de uso pode ser fonte de polêmica.

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Alcoólicos Anônimos O grupo de auto-ajuda mais popular do mundo é o A.A. (Alcoólicos Anôni­ mos). Criado nos Estados Unidos, em 1935, por dois alcoolistas que se beneficia­ ram com a troca de experiências e estenderam a descoberta aos demais, tornou-se, tempos depois, uma referência no tratamento. Calculam-se mais de 88.000 gru­ pos em 134 países4. No Brasil, a semente foi plantada no Rio de Janeiro, em 1948, quando o primeiro grupo foi fundado. A última estimativa feita foi de 2.515 gru­ pos distribuídos pelo país31.

3 7 8 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

A proposta de tratamento do A.A. é relativamente simples e parte do pressu­ posto de que o alcoolismo é uma doença (física, psicológica e espiritual) que não tem cura, mas pode ser “interrompida” por meio da abstinência total. Para o be­ bedor dependente, a volta ao beber controlável é improvável e a experiência de­ monstra que o A.A. tende a atrair o bebedor dependente. O A.A. trabalha com um objetivo único e consistente: a abstinência. A confiança com que este objetivo é determinado atrai principalmente pessoas que se encontram sem condições de ter objetivos próprios. O A.A. sabe muito bem que não tem o poder de impor, mas tem a confiança de, sem negociação, propor4. Alguns autores relacionam o “poder” do A.A. aos “processos curativos na­ turais”. Vaillant32, com apoio de sua pesquisa longitudinal, sugere que o A.A. pode conter importantes elementos daquilo que os estudos de carreira do bebedor revelam como sendo possíveis alavancas ou processos que efetuam a mudança. O sucesso do A.A. e de seus similares provavelmente se deva a ele se adaptar tão bem aos princípios curativos naturais, como se fosse um espe­ lho colocado diante da natureza, no qual podemos ver refletidos os proces­ sos curativos naturais. A provável fonte de motivação que o A.A. oferece é a integração que o indiví­ duo faz das conseqüências negativas e positivas do uso. A mensagem constante é de que a sobriedade trará benefícios (reforçados por depoimentos, experiências e a vivência/modelo de pessoas em recuperação) e de que a bebida progressiva­ mente trará inúmeros malefícios. Em termos práticos, o tratamento se constitui basicamente de reuniões entre dependentes de álcool (Alcoólicos Anônimos) ou de drogas (Narcóticos Anôni­ mos) . O ponto de partida da reunião é a reafirmação, por todos os presentes, daqui­ lo que, nos termos do A.A., é fundamental para a recuperação: o reconhecimento de que sofre de uma doença - o alcoolismo32. No grupo, podem ser encontradas pessoas que o integram há muitos anos e ou­ tras que chegam pela primeira vez. Freqüentemente, o novo integrante encontra um “padrinho”, pessoa que se disponibilizará a lhe dar conselhos pessoais, oferecer um número de telefone para contato, combinar irem juntos à reunião e atender a outras necessidades do novo integrante. É como se fosse um modelo de recupe­ ração, operando simbolicamente como aquele que mostra que ela é possível. O A.A. possui uma linha estruturada e uniformizada de pensamentos e nas reuniões são feitas constantes referências aos 12 Passos que expressam sua ideo­ logia básica33. Objetiva uma nova forma de vida em que o sujeito não use drogas. A prioridade máxima é lidar com a bebida, mas o programa dos 12 Passos envolve também o contato com sentimentos como culpa, ressentimento, vitimização, entre outros. Sua proposta de tratamento é bastante concreta e simples, acessível a todos os níveis intelectuais e fundamentada em metas de curto prazo. O aconselha­ mento é “viver um dia de cada vez”4. É comum cronometrarem abstinência dia após dia, como uma vitória vivida passo a passo. Pode-se dizer que o objetivo de abstinência total é ousado, mas a maneira como é proposto é simples e atraente: o compromisso de se manter abstinente “só por hoje”. A idéia de evitar o “primeiro gole” é constantemente reforçada, pois é considerada o desenca-

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deante imediato da compulsão no comportamento adictivo. Contudo, vale res­ saltar que, frente à recaída, a pessoa não é rejeitada, sendo estimulada a retor­ nar e recomeçar o tratamento. Um aspecto que talvez propicie bons resultados no tratamento é os depen­ dentes serem considerados e valorizados pelos companheiros: na divisão de res­ ponsabilidades, na identificação com os outros, na expectativa de melhora nele depositada ou, ainda, na necessidade de estar presente e apoiar as pessoas que chegam, fonte de gratificação que abre novos horizontes na vida31. Apesar da escassez de evidências, o A.A. é eficaz; sua aceitação mundial im­ põe respeito, o que não pressupõe a idéia de um tratamento único e ideal, con­ siderando a abrangência de diversidades de problemas, necessidades e diferenças individuais. Por ser um trabalho leigo, não consegue suprir as necessidades mé­ dicas, muito importante na grande maioria das vezes. O fato de serem indivíduos expostos a complicações clínicas tem ajudado a crescer o interesse de unir o trabalho do A.A. ao das instituições34.

Os 12 Passos l 2 - Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que nossas vidas ti­ nham fugido de nosso controle. 2- - Passamos a acreditar que um Poder maior do que nós mesmos poderia nos devolver a sanidade. 32- Tomamos a decisão de entregar nossa vontade e nossas vidas ao cuidado de Deus conforme O concebíamos. 42 - Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos. 52 - Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante um outro ser hu­ mano a natureza exata de nossas falhas. 62 - Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter. 7- - Humildemente pedimos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições. 8- - Fizemos uma lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dis­ pusemos a reparar os danos a elas causados. 99 - Fizemos reparações diretas a essas pessoas sempre que possível, exceto quando isso significava prejudicá-las ou a outros. 10e - Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, prontamente o admitíamos. 112- Procuramos, por meio de preces e meditação, melhorar nosso contato cons­ ciente com Deus conforme O concebíamos, rogando apenas o conhecimen­ to de Sua vontade em relação a nós e o poder de realizar essa vontade. 122 - Tendo experienciado um despertar espiritual em resultado desses passos, tentamos levar essa mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades. Os procedimentos formais da reunião se encerram com todos rezando juntos a Oração da Serenidade:

3 8 0 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

“Concedei-me, Senhor, a serenidade Para aceitar as coisas que não posso mudar A coragem para mudar aquelas que posso E a sabedoria para perceber a diferença ” Os fundamentos da estrutura organizacional do A.A. estão contidos nas 12 Tradições33: 1. Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar: a reabilitação indi­ vidual depende da unidade do A.A. 2. Somente uma autoridade preside, em última análise, o nosso propósito co­ mum - um Deus amantíssimo, que se manifesta em nossa consciência cole­ tiva. Nossos líderes são apenas servidores de confiança; não têm poderes para governar. 3. Para ser membro do A.A., o único requisito é o desejo de parar de beber. 4. Cada grupo deve ser autônomo, salvo em assuntos que digam respeito a outros grupos ou ao A.A. em seu conjunto. 5. Cada grupo é animado de um único propósito primordial - o de transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre. 6. Nenhum grupo de A.A. deverá jamais sancionar, financiar ou emprestar o nome de A.A. a qualquer sociedade parecida ou empreendimento alheio à Irmandade, para que problemas de dinheiro, propriedade e prestígio não nos afastem de nosso objetivo primordial. 7. Todos os grupos de A.A. deverão ser absolutamente auto-suficientes, rejei­ tando quaisquer doações de fora. 8. Alcoólicos Anônimos deverá manter-se sempre não-profissional, embora nossos centros de serviços possam contratar funcionários especializados. 9. A.A. jamais deverá organizar-se como tal; podemos, porém, criar juntas ou comitês de serviço diretamente responsáveis perante aqueles a quem pres­ tam serviços. 10. Alcoólicos Anônimos não opina sobre questões alheias à Irmandade; por­ tanto, o nome de AA jamais poderá aparecer em controvérsias públicas. 11. Nossas relações com o público baseiam-se na atração em vez de promoção; na imprensa, no rádio e em filmes, cabe-nos sempre preservar o anonimato pessoal. 12. O anonimato é o alicerce espiritual das nossas Tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades. A partir do modelo do A.A., outros grupos foram constituídos, como é o caso do N.A. (Narcóticos Anônimos), que segue os mesmos passos e princípios, e dos grupos familiares, que se baseiam na concepção de que a família também cria padrões de doença frente ao convívio com o alcoolista ou adicto. Os grupos fami­ liares são: Al-Anon (familiares de dependentes de álcool) e Nal-Anon (familiares de dependentes de drogas). Embora independentes, funcionam aliados ao A.A. Levam em conta a ansiedade gerada pela situação que, muitas vezes, escraviza o familiar e o faz querer resolver o problema pelo doente ou, ainda, controlar e alterar

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seu comportamento sem antes ter resposta para muitas de suas perguntas e sem poder fazer isso com suas próprias emoções35-36. O trabalho é parecido com o feito no A.A., com os 12 Passos adaptados para os familiares. Um outro grupo que merece destaque, também derivado da filosofia do A.A., é o Al-Ateen, fundamentado para atender às necessidades dos jovens que sofrem com alcoolismo de alguém representativo em sua família. Trabalha com os 12 Prin­ cípios e os 12 Passos, porém, adaptados para adolescentes que convivem com dependentes químicos.

Amor Exigente O Amor Exigente é um grupo de apoio que vem ganhando cada vez mais espaço no Brasil. Atualmente, conta com cerca de 1.000 grupos em nosso país. Faz parte de um dos setores da Associação Promocional Oração e Trabalho (APOT). Foi fundado pelo Padre Haroldo Joseph Rahm, em 1985, que já trabalhava no tratamento e na recuperação de dependentes químicos. O Amor Exigente pode ser definido como um programa de prevenção, mas também age sobre a recupe­ ração. Ajuda não só jovens quimicamente dependentes, como também qualquer jovem ou casal de pais com problemas. É basicamente uma proposta de educação destinada a pais e orientadores como forma de prevenir e solucionar problemas com seus filhos. O Amor Exigente é composto por 12 princípios norteadores, dez dos quais foram extraídos do programa americano Toughlove (causas da desestruturação familiar). A partir desses 12 princípios, visualizam-se preceitos para a organiza­ ção da família e proteção dos filhos, que são trabalhados nas reuniões. Os 12 princípios e os argumentos que os fundamentam, segundo a óptica do Amor Exigente, são: 1- Princípio - Raízes culturais: a família é uma organização ativa e com vida própria, mas diretamente influenciada pelos estímulos e problemas do mun­ do, estando, portanto, entrelaçada com o contexto cultural e atual. No en­ tanto, os princípios de integridade, moral e ética são imutáveis; o respeito, a compreensão e o amor devem nortear as relações humanas37. 2- Princípio - Os pais também são gente: os pais não são super-heróis, portan­ to, são passíveis de falhas. Assumir com tranqüilidade suas limitações e fra­ quezas torna os laços de afeto com os filhos e o mundo mais consistentes. 3- Princípio - Os recursos são limitados: nenhum extremo é bom, nem “nada para a criança”, nem “tudo para a criança”, é preciso saber dizer não seriamente. Fazer os filhos entenderem deveres e responsabilidades ajuda-os a dar valor ao que são e possuem. Para tanto, os pais precisam saber seus próprios limites. 4- Princípio - Pais e filhos não são iguais: os pais precisam ser pais para que seus filhos sejam filhos, e não seguir a linha de ser “amigos” de seus filhos. O pai é diferente do filho, pois o ama independentemente do que ele é ou do que pode oferecer37. Pai é guia, orientador, o que cria regras a serem respei­ tadas; daí a importância da direção de valores com firmeza.

3 8 2 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

52 Princípio - Culpa: a culpa torna as pessoas indefesas e sem ação. O método do Amor Exigente visa resolver problemas, e não caçar culpados. Quanto mais liberto de emoções, como culpa, autopiedade, raiva, entre outras, mais racionais se tornarão. 6- Princípio - Comportamento: os pais devem estar conscientes de seu papel. Não devem utilizar o comportamento inaceitável do filho como justificativa de seus comportamentos desajustados. É preciso manter o equilíbrio para dominar a situação. 7- Princípio - Tomada de atitude: quando as coisas começam a ficar complica­ das no relacionamento entre pais e filhos, os pais tendem a minimizar a situa­ ção ou negar o problema, justificando o comportamento dos filhos: “É apenas uma fase” ou “Tudo se corrige com o tempo”. Assumir posições claras e bem definidas nas tomadas de decisão ajuda no direcionamento da situação. 8- Princípio -A crise: de uma crise bem administrada surge a possibilidade de uma verdadeira mudança37. Este é um momento de extrema importância para o sucesso da proposta do Amor Exigente, que pode ser definida por uma palavra que representa estratégias para administrar crises: • DE = Defina o alvo. • FI = Fixe prioridades. • NE = Negocie um plano de ação. 9- Princípio - Grupo de apoio: as famílias precisam dar e receber apoio em sua comunidade. Para o Amor Exigente, esconder-se, fazer de conta ou isolar-se diante de um problema é não querer resolvê-lo. Poder contar com o outro é uma forma de ajudá-lo e de se ajudar. 102 Princípio - Cooperação: a dedicação amorosa sem disciplina não garante bons resultados; pelo contrário, gera pessoas que necessitam ser servidas sem poderem colaborar. A cooperação, aqui, é vista como a união das pessoas em volta de um trabalho para o bem de todos. É preciso instalar na família o primeiro e principal núcleo de formação do indivíduo responsável. O amor exigente valoriza a distribuição de tarefas (mesmo em casa) para os filhos. 11 - Princípio - Exigência ou disciplina: a postura dos pais no Amor Exigente gira em torno de: “Nós o amamos, mas não aceitamos o que está fazendo”. A exigência tem o objetivo de ordenar, organizar com disciplina as decisões pessoais e familiares. Portanto, neste caso, é importante a determinação de limites emocionais, físicos e econômicos que serão aceitos pelos pais, den­ tro de seus valores. 129 Princípio -A m or: no Amor Exigente, o amor vem antes, mas deve ficar no mesmo nível da exigência, da disciplina. No Amor Exigente o amor com­ preende e respeita o outro, não tem egoísmo nem comodismo; exige, orienta e educa. Fundamentados nesses princípios, existem 12 outros para grupos de pais cujos filhos já não usam drogas e grupos para jovens. Vale ressaltar que os gru­ pos de apoio para jovens devem ter a coordenação de voluntários adultos. Para atingir os objetivos, três pontos básicos são firmados no grupo: sobriedade, união e serviço.

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C A P ÍT U L O

Dependência Química e o Portador de H IV S e l m a B o rd in N

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A síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) foi identificada em 1981 e nomeada em 1982. É provocada por um vírus que debilita o sistema de resposta imunológica do orga­ nismo, tomando-o vulnerável a infecções e cânceres oportu­ nistas. Este vírus foi identificado em 1983 e denominado vírus da imunodeficiência humana (HIV).Testes para identificar sua presença no organismo foram introduzidos a partir de 19851. O vírus é transmitido por meio do contato sangüíneo e do sêmen. Abrasões mínimas da pele são suficientes para que ele penetre no organismo. Amucosa retal é frágil e facilmente sujeita a sofrer abrasões, ocasionando uma alta probabi­ lidade de contato sangüíneo por meio do sexo anal. A conta­ minação também pode ocorrer, porém com menor facilidade, durante o intercurso vaginal. Outras formas de contágio in­ cluem uso de seringas e agulhas infectadas e não esteriliza­ das (usuários de drogas), sangramentos gengivais (transmis­ são para dentistas), ferimentos com agulhas (equipes de en­ fermagem) e derivados de sangue não tratados (transfusão de sangue)2. Pode ainda acontecer transmissão perinatal, no útero, durante o nascimento (no momento do parto) ou pelo aleitamento materno3. Não há evidências de transmissão do vírus por meio de picadas de mosquitos e do beijo (em­ bora ele já tenha sido encontrado na saliva)2. A evolução da AIDS pode ser divida em estágios:

3 8 6 ■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

• Infecção prim ária por HW ou infecção aguda - Soroconversão é o nome que se dá à reação do organismo ante a presença do vírus, quando são produzidos anticorpos contra sua capa de proteína. Isso não acontece no momento em que se dá o contato, mas ao longo de 2 ou 3 meses, durante os quais o portador já pode transmitir a doença. De fato, é durante esse período que o indivíduo se encontra mais infectado e os testes para sua identificação ainda não têm condições de se mostrar positivos. Na época da infecção, algumas pessoas podem apresentar indisposição, incapaci­ dade prolongada, irritação na garganta, inchaço das glândulas, articula­ ções doloridas, febre, erupções na pele, diarréia, dores de cabeça, náuseas e vômitos. Em quase todos os casos a recuperação desses episódios é com­ pleta e, na maioria das vezes, não diagnosticada devido à semelhança com outras doenças virais2,3. • Infecção assintomática - Intervalo durante o qual a pessoa é soropositiva mas não apresenta sinais de que algo esteja errado. Aproximadamente um terço dos indivíduos soropositivos desenvolvem sintomas de AIDS no es­ paço de 10 anos, dependendo da saúde geral e da atitude adotada perante a vida. Para alguns, o caminho pode ser muito difícil2. • Infecção sintom ática precoce relacionada ao HIVou complexo relaciona­ do à AIDS - Nome que se dá ao início de sintomas adicionais que indi­ cam que o vírus está se multiplicando e ganhando força, incluindo condições que estão mais relacionadas à infecção pelo HIV do que pro­ priamente à imunodepressão severa que caracteriza a AIDS-doença. Exemplos: monilíase oral, leucoplasia oral pilosa, neuropatia periférica, displasia cervical, herpes-zoster recorrente e púrpura trombocitopênica imunológica3. • AIDS - É a condição da doença sintomática indicativa de grave imu­ nodepressão. Há surgimento de febre prolongada, perda de peso significa­ tiva, diarréia crônica, sudorese noturna, astenia e adenomegalia. As doenças ditas “oportunistas” aparecem nas formas mais diversas, sendo as princi­ pais pneumonia por Pneumocystis carinii (principal causa de morte), tu­ berculose, tumor de pele (manchas descoloradas da pele em tons rosa-escuro), alterações cognitivas devidas a manifestações no sistema ner­ voso central (toxoplasmose cerebral, meningite criptocócica, leucoencefalopatia multifocal progressiva, demência associada ao HIV), doenças por micobactérias atípicas, etc. A decisão de se iniciar a terapia requer uma cuidadosa avaliação e contagem de linfócitos do tipo T-CD4 e da carga virai. A terapia está indicada para todo pa­ ciente com manifestações clínicas definidoras de AIDS ou para aqueles pacientes que ainda não apresentam sintomas, mas cuja contagem de linfócitos esteja abaixo de 500 células/milímetro cúbico ou carga virai acima de 30.000 cópias/ml. As dro­ gas anti-retrovirais devem ser iniciadas todas ao mesmo tempo e em doses com­ pletas. A adesão do paciente a esse esquema de tratamento é de extrema impor­ tância e a terapia não deve começar até que o paciente tenha entendido e aceito

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esse fato. Isso porque a baixa adesão ao esquema anti-retroviral pode resultar em resistência do vírus aos medicamentos. Por isso, cabe ao médico, de preferência infectologista, orientar o paciente a utilizar a terapia sem interrupções, buscar sua confiança e adesão, a fim de evitar a falha terapêutica ou, na pior das hipóte­ ses, detectá-la precocemente e iniciar a terapia de resgate apropriada3. Cabe aos outros profissionais que atuam junto ao paciente motivá-lo intensamente para essa adesão. Originalmente, a AIDS foi vista como uma condição biomédica, com inter­ venções feitas exclusivamente por médicos. Atualmente, a infecção por HIV e as doenças associadas são mais bem compreendidas por meio de um modelo bioló­ gico, psicológico, social e espiritual, envolvendo muitos profissionais, que neces­ sitam de treinamento e habilidades para trabalhar com pessoas portadoras de uma doença crônica ameaçadora à vida. A buso de S ubstâncias e

AIDS

Além dos impactos social e econômico, o uso de drogas injetáveis traz graves conseqüências do ponto de vista de saúde pública, em particular a disseminação do HIV e de outras doenças infectocontagiosas (como as hepatites, HTLV e sífilis) entre os usuários e seus parceiros sexuais4, como também para crianças, no mo­ mento do parto ou pelo aleitamento materno3. Uma outra questão importante quanto à disseminação do HIV relaciona-se aos comportamentos sexuais de risco facilitados pelo uso de substâncias. As dro­ gas, em geral, inibem a habilidade de uma pessoa tomar decisões racionais (julgar melhor o parceiro ou praticar sexo com camisinha, por exemplo). Algumas drogas diminuem a inibição social e dão a ilusão de aumento do desejo sexual5,6. Todo profissional que trabalha com pacientes usuários de drogas deve desen­ volver habilidades para ajudá-los a se prevenir contra a infecção pelo HIV5, o que pode ser feito por meio de: • Abstinência. • Manutenção de relacionamentos com pessoas não portadoras de HIV. • Prática de sexo seguro (uso de camisinha e evitação de contato entre fluidos corporais e sexo anal). • Interrupção uso de drogas injetáveis ou, pelo menos, do compartilhamento de seringas e agulhas. • Evitação do uso de substâncias quando isso implicar risco para sexo não seguro. Além disso, todos aqueles pacientes considerados de “maior risco” (homosse­ xuais, usuários de drogas injetáveis) e seus parceiros devem ser bastante encora­ jados a se submeterem a testes para infecção por HIV por especial aqueles que apresentam sinais de mau funcionamento orgânico ou psiquiátrico, febre ou perda de peso. A autorização do paciente é necessária e deve ser conseguida7. Os programas de redução de danos com usuários de drogas concentram-se mais intensamente na redução da disseminação do vírus1. Obviamente, uma for­ ma de se conseguir isso é com programas de prevenção e tratamento de usuários

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de drogas injetáveis. Por outro lado, existe uma significativa proporção de usuários que não vai parar com a injeção de drogas. É preciso, portanto, encorajá-los a prá­ ticas seguras. Um importante empreendimento iniciado na década de 1980 foi o esquema de “troca de seringas”. Esse esquema atraiu um grande número de usuá­ rios de drogas e a incidência do comportamento de compartilhar agulhas caiu de 36 para 27%; tem sido dada atenção à necessidade de engajar aqueles usuários que não aderiram voluntariamente ao esquema. Parece que são eles os que cor­ rem maior risco, pois têm maior probabilidade de compartilhar equipamentos, usar vários tipos de drogas, ter menos conhecimento sobre a transmissão do HIV e menos probabilidade de usar camisinha nas relações sexuais. Estratégias para atrair essa população abrangem tornar os serviços mais acessíveis, buscando o usuário, ao invés de esperar sua iniciativa. Usuários de drogas com HIV apresentam múltiplas necessidades de trata­ mento. Porém, existem significativas barreiras, tais como inabilidade para for­ necer tratamento, ausência de serviços para cuidado dos filhos; relutância para buscar serviços médicos e falta de confiança nos serviços de saúde. Ademais, os serviços para tratamento dessa população são fragmentados: os serviços para tratamento de usuários de drogas costumam não estar preparados para tratar os problemas médicos associados à AIDS. Por outro lado, a grande maioria dos programas de tratamento médico não está preparada para tratar usuários de drogas. O que se recomenda é a integração desses serviços: locais preparados para atender às necessidades de cuidados médicos primários, de saúde mental e dos usuários de drogas88. Os tratamentos contra infecção por HIV/AIDS e abuso de substâncias são mais bem direcionados quando tais condições são compreendidas por meio do modelo biopsicossocial-espiritual. Biológico, porque fatores médicos estão presentes, ob­ viamente. Psicológico, porque o bem-estar de uma pessoa tanto afeta quanto é afetado pelo abuso de substâncias ou pelo próprio HIV. Social, porque familiares, grupos e comunidade afetam tanto nossa vulnerabilidade quanto nossa resposta ao estresse, incluindo o estresse relacionado à infecção pelo HIV Espiritual, no sentido de um senso de Deus que pode estar presente ou ter um significado que transcenda a realidade corrente. Todos esses fatores são mutuamente afetados. Segue uma lista de itens a serem verificados para se formar uma visão mais com­ preensiva do paciente HIV-positivo5: • Condição médica: em que estágio do desenvolvimento o paciente está? Exis­ tem outras condições médicas como diabetes, anemia, hipertensão, etc.? Que medicamento está tomando? Que outros tratamentos tem feito (acu­ puntura, auto-ajuda, etc.)? Quem são seus médicos, terapeutas e cuidadores? Como tem respondido aos tratamentos? • Condição neurológica: de que maneira o vírus afetou suas funções cognitivas? Como é (ou era) seu funcionamento cognitivo de base? Existe algum sinto­ ma como lentidão ou perda de memória? Tem utilizado alguma estratégia compensatória (como tomar notas)? • Conhecimento, atitudes e resposta emocional do paciente: o paciente tem co­ nhecimento de sua situação real? Tem um bom entendimento a respeito das condições relacionadas ao HIV e de sua própria condição? Existe negação?

Dependência Química e o Portador de HIV ■ 3 8 9

• Condição psicológica e psiquiátrica: o paciente está sofrendo de ansiedade, infelicidade, depressão ou desespero? Já sofreu traumas, incluindo os se­ xuais? De que maneira a infecção recapitula esse trauma? Sofre de culpa ou vergonha relacionadas à infecção, ao uso de drogas ou práticas sexuais? De que maneira essas questões serão abordadas na terapia? Já esteve em tratamentos anteriores? Utiliza medicamentos psiquiátricos? Que drogas tem uti­ lizado? Com que finalidade? • Condição social: qual é seu contexto social? Foi estigmatizado na família ou no grupo social? De que suporte dispõe para encarar o HIV? As pessoas de seu convívio também estão infectadas? De que maneira o cônjuge respon­ de? A quem designa a competência para tomar decisões sobre seu trata­ mento caso venha a ficar incapacitado? Os documentos apropriados já fo­ ram assinados? Existem crianças envolvidas? Se há isolamento social, qual é a razão? Quem o terapeuta deve contatar numa situação de emergência? • Funcionamento sexual: com foi e tem sido seu funcionamento sexual? Pra­ tica sexo seguro? Que tipo de relação sexual prefere: oral, anal, receptiva? O que mudou desde o diagnóstico? Há ocorrências de sexo não desejado? Que nível de conforto experimenta o paciente com sua opção sexual? • Assuntos espirituais: o paciente tem alguma crença ou prática espiritual? No que acredita? Essas crenças geram conforto ou desconforto? Com quem discute esses assuntos? Quais são suas preocupações espirituais? Ser terapeuta de pacientes soropositivos requer habilidades complexas: com­ paixão, competência e flexibilidade. Compaixão abrange as atitudes do terapeuta (que os modelos psicodinâmicos chamariam de contratransferência). Lidar com a AIDS é também lidar com assuntos desconfortáveis como preconceito, julgamen­ tos morais a respeito de condutas sexuais, com sentimentos de impotência, per­ das, morte, desvantagens sociais, etc. É preciso estar preparado. Competência implica conhecimento técnico e suas aplicações práticas; é preciso estudar e man­ ter-se atualizado. Flexibilidade compreende a disponibilidade para considerar e assumir outros papéis e funções no relacionamento, que podem incluir assistência ao paciente e seus familiares para lidarem com a morte, acompanhá-los até o limiar da morte, garantir que suas crianças serão cuidadas, encontrar soluções socioeconômicas, etc.5. O modelo terapêutico tradicional referente aos processos de morte encoraja o terapeuta a estar sempre atento à negação, a estimular a expressão da sua depres­ são e raiva e estar sempre esperando que o paciente aceite a inevitabilidade da morte. Acredita-se existir uma outra maneira de trabalhar com esses pacientes e que o trabalho é ser útil e continuar perguntando, como na primeira sessão: “de que maneira posso lhe ser útil hoje?” ou “o que podemos abordar hoje de forma que você saia daqui com a sensação de que utilizou bem o seu tempo?”9. O terapeuta precisa atender às necessidades de uma pessoa que sofre de uma doença crônica, ameaçadora à vida e que pode mudar a qualquer momento. Es­ sas necessidades podem ser variadas, visitá-lo num hospital, barbeá-lo ou ajudálo a se alimentar, levá-lo a um cemitério, dar-lhe suporte ao telefone, ter um papel de gerenciador do caso do paciente, etc. Por isso é preciso estar disponível para

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flexibilizar conforme as circunstâncias e mudanças do estado do paciente. Ao invés de impor as próprias metas, deve-se ouvir cuidadosamente aquilo que o paciente quer que sejam suas metas. Estas podem abranger planejar o fu­ turo, aprender mais sobre sua condição e formas de lidar com ela, evitação de uma recaída, morrer com dignidade, etc. De qualquer forma, a meta é de­ finida por ele5. É aconselhável estar sempre com ouvidos abertos a determinados temas como a vida na comunidade; relação entre o abuso de substâncias e outros aspectos da vida; abandono ou ostracismo; “por que eu?”; culpa e vergonha; dependência e falta de controle; medo de morrer solitário, na dor ou de forma vergonhosa; medo de viver infectado; etc. Estes são apenas exemplos de vários temas que podem surgir na terapia. Trabalhar com esses pacientes mobiliza emoções e pode gerar ansiedade e dú­ vidas sobre a própria competência. É preciso encarar a possibilidade de se sentir desconfortável ou relutante para discutir assuntos como sexo, morte, perda e doen­ ça. Pior seria entrar num relacionamento com um paciente e não conseguir fazer uma boa terapia devido ao desconforto5. É preciso humildade para uma busca con­ tínua de suporte: em profissionais qualificados, em livros e revistas, onde quer que seja, para poder continuar ajudando com competência, flexibilidade e compaixão.

R eferências B ibliográficas 1. McMURRAN, M. The Psychology o f Addiction. London: Taylor & Francis, 1994, 183p. 2. BALL, J. Compreendendo as doenças - Pequeno Manual do Profissional de Saúde. São Paulo: Agora, 1998, 294p., tradução HELLER, E.C. 3. MARRA, A., BURATTINI, M.N. Sindrome da Imunodeficiência Adquirida. In: SEIBEL, S., TOSCANO JR., A. Dependência de Drogas. São Paulo: Editora Atheneu, 2001, p. 443-453. 4. CARVALHO, H.B. Drogas e Doenças Infecciosas. In: SEIBEL, S., TOSCANO JR., A. Depen­ dência de Drogas. São Paulo: Editora Atheneu, 2001, p. 427-442. 5. WINIARSKI, M.G. HIV and AIDS. In: WASHTON, A.M. Psychotherapy and Substance Abu­ se. New York: The Guilford Press, 1995, p.428-450 6. STEVENS-SMITH, P., SMITH, R.L. Substance abuse counseling - theory and practice. New Jersey: Prentice-Hall, 1998, 298p. 7. PERKINSON, R.R. Chemical Dependency Counseling - a practical guide. Califórnia: Sage Publications, 1997. 8. DODGEN, C.E., SHEA, W.M. Substance Use Disorders - Assessment and treatment. San Diego: Academic Press, 2000, 173p. 9. BERG, I.K., REUSS, N. Solutions step by step - a substance abuse treatment manual.. New York: W.W. Norton & Company, Inc., 1998, 185p.

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Dependência Química no Idoso Luís A n d r é

C astro

R o n a ld o L a r a n jeir a

Intro dução Entre os idosos, os transtornos por uso do álcool e drogas têm recebido pouca atenção, apesar de serem a terceira condi­ ção psiquiátrica mais prevalente, atrás dos transtornos depressivos e da demência1. Historicamente, têm sido realiza­ dos poucos estudos clínicos ou experimentais voltados para o abuso de drogas entre idosos. Isso pode ser explicado, em par­ te, pelos preconceitos relacionados com a idade (por exemplo, o abuso de drogas ocorre em indivíduos jovens, porém não em idosos)2. Até recentemente, o tema despertava pouco interes­ se entre pesquisadores clínicos, pois acreditavam que tal trans­ torno era raro nessa população. A partir da década de 1980, começaram a ser publicados estudos demonstrando a prevalência de alcoolismo nas faixas etárias mais avançadas3.

F a to r e s de R isco Entre os fatores de risco para abuso de drogas no idoso destacam-se: 1. comorbidade psiquiátrica com transtornos ansiosos (transtorno de estresse pós-traumático e transtor­ no de ansiedade generalizada) e transtornos depressivos (distimia); 2. estressores psicossociais (viuvez, sentimentos de solidão, isolamento social e aposentadoria); 3. doenças crô­ nicas (cardiopatias, hipertensão arterial, diabetes mellitus, pneumopatias, artrite reumatóide, doença de Parkinson e AVC); 4. alterações neuroquímicas associadas à senescênciat que aumentam a sensibilidade aos efeitos sedativos e ansiolíticos do álcool e medicamentos controlados1.

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A l c o o l is m o n o s I d o s o s Os pacientes idosos são uma população de alto risco para evoluir com proble­ mas físicos causados pelo abuso de álcool, pelas seguintes razões: 1. as concentra­ ções sangüíneas de álcool são elevadas em relação aos jovens adultos, devido à diminuição da atividade da enzima álcool desidrogenase gástrica e do volume de distribuição; 2. aumento da sensibilidade ao álcool, particularmente no SNC; 3. estima-se que 90% dos idosos usam medicações que podem interagir de forma ad­ versa com o álcool. O padrão de consumo de álcool de todo paciente acima de 65 anos deve ser investigado anualmente, para identificar precocemente problemas associados ao consumo excessivo. Estima-se que a metade desses pacientes consuma álcool, sendo que 2 a 4% podem preencher critérios diagnósticos para abuso ou depen­ dência (“alcoolismo”).

Características Clínicas A dependência do álcool no idoso possui as seguintes singularidades: 1. pro­ blemas psicossociais; 2. síndrome de abstinência mais grave com aumento de duração; 3. aumento da sensibilidade aos efeitos do álcool; 4. taxa elevada de com­ plicações psiquiátricas (delirium, depressão e demência) e médicas (quedas repetitivas, desnutrição, diarréia, fraqueza e insônia). O alcoolismo no idoso pode ser dividido em dois tipos: início precoce e tardio. No início precoce, os idosos desenvolveram a dependência antes dos 45 anos e sobreviveram até idade avançada. Constituem dois terços dos casos e apresen­ tam maior incidência de alterações psicopatológicas, transtornos de personalidade, complicações médicas e problemas psicossociais. O prognóstico é pior, pois o tra­ tamento é mais difícil. A dependência do álcool de início tardio desenvolve-se após os 45 anos, geral­ mente em resposta a fatores estressantes (por exemplo, aposentadoria, perda fa­ miliar, separação conjugal). São indivíduos sem antecedentes psiquiátricos e sem história familiar de alcoolismo. Têm melhor prognóstico, pois o quadro clínico é mais leve3.

Tratamento Os idosos com abuso ou dependência do álcool respondem igualmente, ou melhor, ao tratamento do que pacientes de outras faixas etárias. A resposta ao tratamento tende a ser maior quando o idoso é submetido a programas terapêuti­ cos específicos. Schonfeld5 propôs as seguintes recomendações para tratamento de idosos com alcoolismo: 1. Identificar estados emocionais negativos e o isolamento social. 2. Capacitar os profissionais a tratar idosos.

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3. Associar intervenções psicossociais individuais ou grupais, que utilizem téc­ nicas não confrontativas e que proporcionem suporte social. 4. Implementar relações com serviços de saúde que prestam assistência aos idosos. 5. Adequar o ritmo e o conteúdo do tratamento aos idosos. Eles precisam de programas de tratamento que atendam às suas necessidades (por exemplo, complicações médicas, reação adversa às intervenções de confrontação, di­ ficuldade para se relacionar com pessoas mais jovens, menor capacidade de reorganização mental e emocional)3. Dentre as intervenções farmacológicas preconiza-se o uso do cloridrato de naltrexona com as seguintes recomendações: 1. abstinência há pelo menos 5 dias; 2. ausência de hepatopatia grave; 3. provas de função hepática com níveis séricos quatro vezes acima dos valores de referência; 4. abstinência de opióides há pelo menos 7 a 10 dias; 5. estimular o envolvimento do paciente em algum tipo de inter­ venção psicossocial ou grupo de auto-ajuda; 6. iniciar o tratamento com 25mg/dia por dois dias, aumentando a dose para 50mg/dia a partir do terceiro dia; 7. monitorar o padrão de consumo pelo período de três meses e os exames laboratoriais, especial­ mente as provas de função hepática. Descontinuar o tratamento com naltrexona, caso os níveis séricos se encontrem com valores quatro vezes acima dos valores de referência; 8. revisar periodicamente a adesão à naltrexona, bem como seus efeitos adversos (náuseas, cefaléia, tontura, fatiga, insônia e ansiedade) e 9. avaliar a neces­ sidade da continuidade da naltrexona, após três meses de tratamento.

Evolução Segundo estudos de corte transversal, o consumo de álcool diminui entre os idosos. Contudo, os estudos longitudinais observaram alterações discretas no padrão de consumo ao longo dos anos. Os autores discutem a influência da ida­ de como fonte de viés nesses estudos (coorte de pacientes jovens versus coorte de pacientes idosos). As principais razões para interrupção do consumo de álcool entre os idosos são: 1. aumento dos efeitos fisiológicos, problemas médicos, di­ minuição do poder aquisitivo para sustentar o padrão de consumo e restrição de uma rede social, que estimule o consumo de álcool4.

A b u s o de B e n z o d ia z e p ín ic o s e m I d o s o s Os pacientes idosos consomem aproximadamente um terço de todos os me­ dicamentos vendidos sob prescrição, em especial aqueles com condições médi­ cas crônicas (por exemplo, insônia, ansiedade e dor crônica), Estima-se que até três em quatro idosos, já usaram algum medicamento psicoativo em determinada época da vida (Rossiter, 1983). Segundo Finlayson e Davis6, um terço dos pacientes com dependência de alguma droga psicotrópica com potencial de abuso (sedativos, hip­ nóticos, ansiolíticos e analgésicos narcóticos) desenvolveu a síndrome de depen­ dência após os 60 anos de idade2.

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Entre os usuários de benzodiazepínicos, destacam-se alguns fatores de risco para o desenvolvimento de uma síndrome de dependência: prescrição excessiva e uso prolongado de altas doses de medicamentos com potencial de abuso. Os me­ canismos implicados na prescrição excessiva de benzodiazepínicos podem ser re­ sumidos da seguinte forma: 1. Medicação excessiva, que pode ser definida pela tendência de se prescrever medicamentos controlados ou não, quando os pacientes persistem com suas queixas clínicas, especialmente sintomas vagos e inespecíficos. 2. Onipotência hipertrofiada, ou seja, a tendência de o médico fazer tudo para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, sendo, portanto, facilmente lu­ dibriado por aqueles que abusam de benzodiazepínicos. 3. Fobia de confrontaçãot ocorrendo principalmente quando o médico se de­ para com situações clínicas caracterizadas pelo confronto interpessoal7. O uso prolongado de altas doses de benzodiazepínicos por períodos além de seis semanas leva ao desenvolvimento de tolerância, síndrome de abstinência e, conse­ qüentemente, dependência. O risco é maior quando se empregam benzodiazepíni­ cos de meia-vida curta (midazolam, lorazepam e alprazolam)7. Segundo limites im­ postos pela Food and DrugAdministration (FDA), a prescrição de doses acima de 4 mg/dia de alprazolam ou 40mg/dia de diazepam é um procedimento de risco para o desenvolvimento de dependência de benzodiazepínicos. As doses diárias conside­ radas seguras e com baixo risco compreendem: lorazepam, 5mg/dia; 2 alprazolam, 2mg/dia; clonazepam, 4mg/dia; diazepam, 20mg/dia e oxazepam, 60mg/dia. Exis­ tem três padrões de uso de benzodiazepínicos que podem predispor ao desenvolvi­ mento da dependência de benzodiazepínicos: uso de uma só vez de altas doses; uso de altas doses várias vezes ao longo do dia e uso sob a forma de binges7.

Características Clínicas O abuso de benzodiazepínicos em idosos está relacionado com situações de automedicação com o objetivo de aliviar sintomas depressivos e ansiosos. Cerca de 20% dos idosos, principalmente do sexo feminino, evoluem com sintomas ansio­ sos. A síndrome de dependência pode se desenvolver em 4 semanas de uso contí­ nuo. Em idosos, os benzodiazepínicos induzem diminuição da atenção, prejuízo da coordenação visomotora e alterações da consolidação da memória. As quedas e fra­ turas estão associadas ao uso de benzodiazepínicos, em virtude dos efeitos dos ansiolíticos sobre os componentes que regulam o equilíbrio e a postura. O delirium induzido pela síndrome de abstinência é uma complicação comum em pacientes hospitalizados. Nessas situações, a prescrição dos benzodiazepínicos é interrompida de forma súbita pela equipe médica.

Tratamento Os idosos com síndromes geriátricas em uso prolongado e indevido de medi­ camentos controlados com potencial de abuso (por exemplo, benzodiazepínicos)

Dependência Química no Idoso ■

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devem ser submetidos a uma tentativa de abstinência e informados dos riscos de dependência e dos efeitos adversos a longo prazo, juntamente com medidas al­ ternativas para controlar os sintomas. O paciente deve ser submetido, primeiro, à desintoxicação seguida de reabilitação (por exemplo, grupos de auto-ajuda, inter­ venções breves)1,2. Algumas medidas preventivas a serem adotadas para diminuir o abuso de benzodiazepínicos entre os idosos incluem: 1. Tratar a síndrome clínica para a qual o benzodiazepínico foi indicado. 2 . Excluir abuso de outras drogas subjacentes à condição médica ou psiquiátrica

antes de prescrever algum benzodiazepínico. 3 . Reconsiderar o diagnóstico nos casos de resposta terapêutica insignificante,

intermédio do registro por meio no prontuário médico, do diagnóstico clí­ nico, das indicações clínicas e a evolução do tratamento. 4. Monitoramento do uso abusivo de benzodiazepínicos, por meio da reavaliação anual dos pacientes que recebem regularmente drogas psicoativas, para de­ tectar efeitos colaterais e uso crescente ou indevido e do envio de cartas com recomendações para redução ou interrupção de medicamentos, especial­ mente aos pacientes que tinham recebido, pelo menos, uma receita de ben­ zodiazepínicos nos últimos 6 meses. 5. Associar intervenções psicossociais antes de prescrever benzodiazepínicos para o tratamento de estados ansiosos ou insônia. 6. Evitar a prescrição excessiva de benzodiazepínicos nos seguintes casos: quei­ xas clínicas vagas e inespecíficas2’7'8. T a b a g is m o n o I d o s o Aproximadamente 15% dos idosos são tabagistas. Contudo, a quantidade de ni­ cotina consumida é menor em relação aos grupos etários mais jovens1, em virtude da tendência de diminuir o padrão de consumo ao longo dos anos9. As principais inter­ venções para o tratamento de idosos dependentes de nicotina consistem em aumen­ tar o desejo de interromper o consumo de nicotina, com técnicas motivacionais. Essa intervenção pode ser feita pelo médico, que atua na rede primária de saúde, por meio de aconselhamentos breves. Estima-se que tal procedimento possa ter 9% de êxito na manutenção da abstinência a longo prazo. A prescrição de métodos de reposição de nicotina pode facilitar a adesão dos pacientes. A eficácia terapêutica dessas interven­ ções varia entre 30 e 40%. Atualmente, estão disponíveis intervenções farmacológicas como agentes anti- craving, como a bupropiona e a nortriptilina1.

R e f e r ê n c ia s B ib lio g r á f ic a s 1. CASTRO, L.A., LARANJEIRA, R. Abuso de drogas no idoso. In: FORLENZA, O.V., CARAMELLI, P. - Neuropsiquiatria Geriátrica. São Paulo: Atheneu, 2000. 2. REID, M.C., ANDERSON, P.A. Abuso de drogas na população geriátrica. In: SAMET, J.H., O'CONNOR, P.G., STEIN, M.D. Clínicas Médicas da América do Norte: abuso de álcool e de outras drogas. Rio de Janeiro: Interlivros, 1997. 3. HIRATA, E.S. Abuso e dependência do álcool em idosos. In: FORLENZA, O.V., CARAMELLI, P. - Neuropsiquiatria Geriátrica. São Paulo: Atheneu, 2000.

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4. RIGLER, S.L. - Alcoholism in the elderly. A Fam Physician, 61:1710-1716, 2000. 5. SCHONFELD, L., DUPREE, L.W. - Treatment approaches for older problem drinkers. internationai Journai o f Addictions. 30:1819-1842, 1995. 6. FINLAYSON, R.E., DAVIS, L.J. - Prescription drug dependence in the elderly population: demographic and clinical features of 100 patients. Mayo Clinic Proc, 69:1137, 1994. 7. CASTRO, L.A., LARANJEIRA, R. - Potencial de abuso de benzodiazepínicos. In: Bernik, M.A. - Benzodiazepínicos: quatro décadas de experiência. São Paulo: Edusp, 1999. 8. CORMACK, M.A., SWEENEY, K.G., HUGHES-JONES, H. et al. - Evaluation of an easy, cost-effective strategy for cutting benzodiazepine use in general practice. BrJ Gen Pract 44:5, 1994. 9. MARQUES, A.C.PR., CAMPANA, A., GIGLIOTTI, A., LOURENÇO, M.T.C., FERREIRA, M.P., LARANJEIRA, R. - Consenso sobre o tratamento da dependência de nicotina. Revista Bra­ sileira Psiquiatria. 23(4):200-214, 2001.

C A P ÍT U L O

Sexualidade e Disfunções Sexuais Masculinas na Dependência Química C a r o lin a F

e r n a n d es

N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

Muitos usuários de substâncias psicoativas apresentam algum tipo de disfunção sexual. Em muitos casos, os depen­ dentes omitem este dado, principalmente por ser um fator que evidencia e ameaça a masculinidade e virilidade do homem, influenciando sua forma de atuar no mundo. Isto porque a imagem que o indivíduo tem de seu corpo é atribuída às regras que a sociedade impõe, de acordo com o perfil idealizado, que inclui aparência física, sentimentos, atitudes e valores para ser aceito no ambiente em que está inserido. Assim, a masculini­ dade tem para o homem a significação de papéis que ele de­ sempenha para se sentir inserido em sua identidade masculina; quando não consegue desempenhá-los a contento, se perce­ be fora desta identidade, ou seja, o homem, ao se deparar com problemas relacionados à sua sexualidade, apresenta um com­ prometimento, sentindo-se incapacitado de suas funções, ge­ rando intensos conflitos e desequilíbrio psíquico. Quando o indivíduo utiliza substâncias químicas, pode, em muitas ocasiões, ter como única preocupação o prazer do uso. Desta forma, não consegue manter adequadamente sua roti­ na (trabalho, família, ambiente social), iniciando um processo de diferenças entre o casal que culmina na observação dos defeitos, das atitudes negativas e dos erros cometidos na rela­ ção. Conseqüentemente, ocorre um afastamento das pessoas e hábitos rotineiros, que se segue de sentimentos de menos

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valia, frustração, fracasso, uma vez que os objetivos e metas se tornam diferentes; isso pode desencadear uma disfunção sexual, como, por exemplo, a dificuldade de ereção no homem, que está intimamente ligada ao poder, ao controle e à aceitação. Desta forma, o indivíduo apresenta insegurança, incompreensão, frustração, falsos conceitos, mitos e medo da perda do controle, pois não entende o que está ocorrendo consigo mesmo, gerando uma série de fantasias sobre sua sexualidade, sobre ser homem, tendo receio de ser rejeitado em sua relação e até mesmo no mundo que o rodeia (social, cultural e econômico). Portanto, quando ocorre algu­ ma disfunção sexual, esta pode gerar no homem intenso sentimento de humilha­ ção e desespero, pois há intenso temor da perda de sua sexualidade. Kaplan1menciona que podem ocorrer fatores intrapessoais que bloqueiam a relação sexual satisfatória, como medo do orgasmo, do fracasso, de um descon­ trole, de rejeição, inferiorização, repressão na infância, medo de intimidade, igno­ rância sobre sexualidade, experiências sexuais traumáticas, violações sexuais, necessidade intensa de proporcionar satisfação ao parceiro, formação de crenças e valores relacionados à religiosidade. A autora cita, ainda, fatores interpessoais, que podem bloquear uma relação sexual satisfatória, como falta de confiança, sabotagens sexuais, rejeição ao parceiro, luta pelo poder, falta de intimidade. Para abordar as disfunções sexuais em conjunto com a dependência química, faz-se necessário entender um pouco sobre o ciclo de respostas sexuais e os tipos de disfunções sexuais masculinas. Durante a relação sexual, podemos observar um ciclo de resposta sexual pro­ posto por Kaplan2por meio de um conceito trifásico para a resposta sexual huma­ na, que é dividida em desejo, excitação e orgasmo, fases que se relacionam.

1. D esejo Nesta fase, as fantasias e a motivação com estímulos visuais, sensoriais, físicos e psicológicos irão proporcionar uma excitação e, como conseqüência, se iniciará o desejo de ter uma relação sexual. Segundo Kaplan1, o desejo sexual ocorre quando se encontra alguém que se ama, em virtude de uma sensibilização por meio do cheiro, da visão e do toque que o parceiro apresenta. Silva3refere que “uma deficiência de testosterona ou uma alteração no equilí­ brio dos neurotransmissores, de dopaminérgico para serotonina, pode induzir à diminuição do desejo sexual. Assim também ocorre quando percebemos repulsa do parceiro, perigo externo iminente, raiva e/ou ansiedade”.

2. E x c it a ç ã o No homem, ocorre a transformação do pênis, que passa de flácido e pequeno para rígido e maior, obtendo-se a ereção por meio da maior irrigação de sangue nos vasos sangüíneos (que é regulado pelos reflexos do sistema nervoso autôno­ mo). Também neste momento ocorre aumento da glande, o escroto se dilata, a bolsa escrotal aumenta de tamanho e se torna mais lisa, os testículos aumentam e os cordões espermáticos se encurtam.

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3. O rgasm o É considerado o momento em que o prazer é mais intenso no ato sexual; ocor­ re por pouco tempo, com contrações musculares que desencadeiam uma descarga do acúmulo das tensões sexuais anteriores. Podem ser observados nesta fase, se­ gundo Abdo4, “ereção e turgidez do mamilo, aumento das aréolas, rubor, miotonia generalizada, hiperventilação, aumento da freqüência cardíaca, pressão arterial e da temperatura, sudorese, aumento das secreções, perspiração da palma das mãos e da planta dos pés, alterações da pupila e ereção pilosa” Kaplan2comenta que o homem é refratário a outra excitação sexual logo após o orgasmo, pois é necessário um tempo para seu organismo se estabilizar novamente e então reiniciar o coito (com exceção de indivíduos muito jovens que conseguem iniciar uma segunda ejaculação sem perder a ereção) que, de acordo com o envelhe­ cimento, é maior. A mulher obtém orgasmo de forma variável em relação ao número, ao tempo e à intensidade, assim como também isso varia de mulher para mulher. É importante ressaltar que muitas modificações que ocorrem nos órgãos ge­ nitais durante a relação sexual têm o intuito de auxiliar na reprodução, uma vez que o sêmen tem maior facilidade de se locomover no canal genital feminino com todas as alterações naturais que ocorrem no momento do ato sexual. Após o coito, o corpo começa a voltar ao normal, uma vez que a atividade sexual chegou ao término; geralmente, depois de no máximo 20 ou 30 minutos, os corpos masculino e feminino já voltaram ao normal. Durante as fases descritas, pode ocorrer algum tipo de alteração orgânica ou psicológica no indivíduo, provocando uma disfunção sexual. A disfunção é carac­ terizada por uma alteração na resposta sexual ou no momento da relação sexual, promovendo, no indivíduo, uma alteração no coito e/ou ao gozar o prazer. Segundo o DSM-IV5, as disfunções podem ser divididas em tipos: • Ao longo da vida ou primária: o problema sexual ocorre desde o início da atividade sexual. • Adquirida ou secundária: ocorre após a iniciação sexual, ou seja, após um período de funcionamento normal. Além dos tipos de disfunções sexuais, o DSM-IV5classifica subtipos para men­ cionar o contexto em que ocorrem: • Generalizado: quando a disfunção ocorre independentemente de estímu­ los, parceiros ou situações. • Situacional: quando a disfunção ocorre apenas em determinadas situações, com alguns parceiros ou algumas estimulações. Para indicar fatores etiológicos associados à disfunção sexual, o DSM-IV5men­ ciona a necessidade de se utilizarem os seguintes critérios: • Disfunção decorrente de fatores psicológicos: quando há relação significativa de fatores psicológicos com o início, a permanência e a gravidade da disfunção sexual.

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• Disfunção decorrente de fatores combinados: quando ocorre importante as­ sociação de fatores psicológicos (início, gravidade e permanência da disfunção) com uma condição médica ou quando o uso de uma substância contribui para a disfunção.

T ipos

de

D isfu n çõ es S exu a is M a sc u lin a s

Transtorno do Desejo Sexual Hipoativo Segundo o DSM-IV5 o transtorno do desejo sexual hipoativo ou transtorno do desejo sexual inibido (DSI) é caracterizado quando há ausência de desejos e fan­ tasias sexuais, o que pode surgir desde as primeiras relações sexuais (do tipo ao longo da vida, como já foi mencionado) ou pode ocorrer algum tempo após a ini­ ciação sexual (do tipo adquirido). A disfunção pode ser desencadeada também por fatores psicológicos, os quais apresentam grande importância no início, no meio ou na manutenção da disfunção; não se observam condições médicas que provoquem a etiologia da disfunção. Pode, ainda, ser desencadeada por fatores combinados, ou seja, os fatores psi­ cológicos desempenham início, meio ou manutenção da disfunção associada a uma condição médica ou ao uso de substâncias (exemplo: droga de abuso, remé­ dios anti-hipertensivos) que contribuem para a disfunção. Este transtorno ocorre na fase de apetite sexual, e muitos pacientes referem intenso sofrimento em razão das dificuldades em manter relacionamentos sexuais. Outros fatores também podem desencadear este transtorno, como temores e tabus relacionados à sexualidade, diminuição de auto-estima, indução da disfun­ ção por substâncias psicoativas, estresse, ansiedade ou depressão. Ele pode ain­ da, ser indicativo de uma relação desgastada, rotineira, com pouco prazer no momento do ato sexual. Observa-se que o transtorno do desejo sexual pode ocor­ rer associado a outra disfunção.

Transtorno de Aversão Sexual O DSM-IV5 refere que o transtorno de aversão sexual caracteriza-se como a aversão ou evitação do contato sexual, provocando ansiedade, medo ou repulsa em realizar atos sexuais (em alguns casos, aversão a beijos e toques), gerando in­ tenso sofrimento. Pode ser do tipo ao longo da vida ou adquirido, decorrente de fatores psicológicos ou de fatores combinados, como já citado. Também pode ser desencadeado num contexto generalizado (quando ocorre com todos os tipos de estimulação, parceiros ou situações) ou em um contexto situacional (quando ocorre apenas em algumas situações, com certos parceiros e certas estimulações).

Transtorno Erétil Masculino O transtorno erétil masculino (conhecido como impotência) é a incapacidade persistente de obter ou manter uma ereção eficaz até o término da relação sexual.

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A disfunção erétil masculina9 é “caracterizada por inibições persistentes e recor­ rentes da fase de excitação sexual do ciclo de resposta sexual humana” que po­ dem iniciar de forma primária ou secundária, em um contexto generalizado ou situacionaly em virtude de fatores psicológicos ou combinados. É importante que se realize uma boa anamnese para verificar a causa da im­ potência e descobrir se ela é primária (do tipo ao longo da vida) ou secundária (do tipo adquirido), além de haver necessidade de investigação sobre a possibi­ lidade de uma impotência orgânica ou psicológica. Um exemplo da grande pos­ sibilidade de o paciente não apresentar uma disfunção orgânica é quando o homem apresenta ereções matinais, ereções espontâneas ou ereções associadas com a masturbação.

Transtorno Orgásmico Masculino É a demora ou ausência de orgasmo durante a relação sexual ou no momento de excitação, apesar da possibilidade de o indivíduo conseguir ejacular por masturbação manual ou oral da parceira. Alguns homens conseguem ejacular após estimulação não-coital prolongada e intensa. O Compêndio de Psiquiatria7refere que “no transtorno orgásmico masculino, o homem obtém a ejaculação durante o coito com muita dificuldade, se conse­ gue”. Pode iniciar do tipo ao longo da vida ou adquirido, num contexto generalizado ou situacional, em decorrência de fatores psicológicos ou combinados. Oliveira6 esclarece que a ejaculação inibida “é uma forma específica de dis­ função sexual masculina, que pode ser considerada tanto de caráter primário quan­ to secundário”.

Ejaculação Precoce Ejaculação precoce é aquela que ocorre com uma mínima estimulação antes, durante ou após a penetração e antes da vontade do homem. Nesta disfunção, o indivíduo percebe que a ejaculação está se aproximandos, porém, tem a sensação da impossibilidade de controlá-lo de maneira voluntária. É importante realizar uma boa anamnese (ver modelo de inventário no Apên­ dice II, que pode ser utilizado nas avaliações de disfunções sexuais masculinas), pois o homem pode ter iniciado sua vida sexual com pressa, preocupado com a chegada de alguém ou com a possibilidade de descoberta do ato sexual, desenca­ deando um modelo de aprendizagem que proporciona esta disfunção, em cujo tratamento é necessário promover um reaprendizado. Outro aspecto importante que interfere na ejaculação precoce é a ansieda­ de, sempre permeada pela insegurança e pela necessidade de obter o perfeccionismo. Após várias tentativas em vão de controlar a ejaculação, isso se torna frustante, provocando a sensação de fracasso e fortalecendo o pensamen­ to: “Eu não vou conseguir controlar a ejaculação de novo”. É necessária, neste momento, a utilização de técnicas de foco sensorial para iniciar novamente o processo de auto-afirmação e reaprendizagem. Outro fator que pode ser predis-

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ponente é o receio de uma gravidez indesejada. Pode iniciar do tipo ao longo da vida ou adquirido, num contexto generalizado ou situacional, em decorrência de fatores psicológicos ou com binados.

T ipos de D isfunções que P odem A presentar a D ependência Q uím ica co m o um dos F atores P redisponentes A influência do consumo de substâncias psicoativas sobre a disfunção sexual acar­ reta diferentes tipos de interferência no organismo do indivíduo, ou seja, pode diminuir ou aumentar o interesse por sexo ou trazer um problema de ereção ou de ejaculação.

Efeitos do Álcool na Sexualidade Masculina O álcool é uma substância lícita e muito utilizada em nossa sociedade, sendo sinônimo, em muitas ocasiões, de status; também pode ser uma forma de o ho­ mem se inserir no meio em que vive, como já foi comentado. Pode ser utilizado apenas socialmente (em festas e ocasiões especiais), abusivamente ou levar à de­ pendência. Porém, seu uso crônico pode desencadear conseqüências orgânicas graves, acometendo, inclusive, a resposta sexual. Trata-se de uma substância depressora do sistema nervoso central que, em altas doses, deprime a atividade cortical e prejudica as funções cognitivas, pois, apesar de desenvolver a sensação de desibinição e diminuição da an­ siedade, pode alterar o desempenho sexual, por mais que exista desejo. Para se iniciar um tratamento para a disfunção sexual, é necessário que o indiví­ duo entre em um processo de abstinência ou reduza sensivelmente o consu­ mo diário de álcool. Segundo a Sociedade Brasileira de Urologia8, “o consumo excessivo de ál­ cool leva o indivíduo a problemas de ereção por neuropatia periférica e devido a sua ação central”.

Efeitos da Cocaína na Sexualidade A cocaína é um estimulante do sistema nervoso central e um anestésico local, que produz maior excitação sexual na fase inicial de abuso, ou seja, quando, de iní­ cio, se a utiliza esporadicamente. O uso crônico, porém, pode desencadear perda de libido e impotência, em decorrência de lesão direta da musculatura lisa dos corpos cavernosos; além disso há possibilidade de ocorrer priapismo (ereção por um longo período, de horas a dias; na maioria dos casos é necessário auxílio médico para a resolução da enfermidade, até mesmo uma intervenção cirúrgica, que pode resul­ tar em impotência permanente como seqüela da anormalidade) após a utilização de cocaína. Kaplan2 afirma que “a cocaína proporciona prazer e excitação fora do co­ mum quando o indivíduo está sob o efeito da substância, tendo maior estímulo

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erótico e até mesmo no ato sexual, apresentando aumento temporário da libido e da capacidade sexual, principalmente quando se utiliza a injeção intravenosa”.

Efeitos dos Opiáceos na Sexualidade Masculina Os opiáceos são originários da papoula e é deles que se obtém a heroína que, quando utilizada de forma crônica, pode ocasionar diminuição da libido e disfunção erétil. A heroína e a metadona, quando causam dependência no indivíduo, diminuem o desejo sexual, uma vez que a principal preocupação é conseguir a droga, ou seja, a busca por dinheiro para manutenção de seu vício é vista em primeiro pla­ no, para, posteriormente, o usuário preocupar-se com a sexualidade. Além da diminuição de libido, foi constatado, em uma pesquisa6, que também ocorrem impotência e ejaculação retardada. É importante mencionar, ainda, que muitas mulheres recorrem à prostituição para manter o uso da droga.

O Que a Maconha Pode Provocar na Sexualidade Masculina? A maconha, quando combinada com os efeitos desibinitórios do álcool, pode liberar o comportamento sexual inibido, apresentando efeitos sobre os níveis de testosterona. Quando o uso é crônico, também pode desencadear espermatogênese inibida e disfunção erétil. Pelo fato de a maconha ser uma droga provocadora de sugestionabilidade, podem ocorrer alterações na percepção de sensações táteis e temporais que não correspondem à realidade, podendo propiciar ao usuá­ rio a sensação de melhora sexual, apesar de, na maioria das vezes, o desempenho sexual estar inalterado ou prejudicado.

Efeitos da Anfetamina na Sexualidade Masculina Segundo Kaplan2, “a anfetamina pode desencadear (em doses elevadas) uma intensificação do interesse sexual, aumentando a confiança em si próprio, não conseguindo funcionar sexualmente sem a droga após adquirirem o vício da mesma. Os indivíduos que fazem uso crônico de anfetamina experienciam a diminuição do interesse e da capacidade sexual”.

Efeitos do Tabaco na Sexualidade Masculina A Sociedade Brasileira de Urologia8refere que o tabagismo “pode desencadear o desenvolvimento de arteriosclerose, que ocorre por múltiplos fatores, tais como: lesão direta da íntima do vaso e diminuição das taxas de HDL-C. Também ocorre vasoconstrição periférica por inalação do tabaco e pela própria nicotina, quando administrada via endovenosa, inibindo o mecanismo erétil”.

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Algumas Medicações Que Podem Desencadear Disfunções Sexuais É importante ressaltar que alguns medicamentos da família dos antidepressivos podem desencadear problemas de ereção e outros antidepressivos podem pro­ vocar retardo da ejaculação. Abdo4menciona o “uso de medicações de ação anti-androgênica, diuréticos, antidepressivos e tranqüilizantes como fatores de predisponência para a disfunção sexual, quando utilizados cronicamente”. Kaplan2refere que “drogas anticolinérgicas (utilizadas para tratamento de úl­ cera péptica, glaucoma, distúrbios oftalmológicos) inibem a ação da acetilcolina sobre as estruturas inervadas pelos nervos parassimpáticos pós-ganglionares, podendo, assim, causar impotência, porque a ereção é uma resposta parassimpática autônoma e não afetam a libido”. A mesma autora menciona que drogas anti-adrenérgicas (utilizadas em trata­ mentos de hipertensão e distúrbios vasculares periféricos) podem causar proble­ mas ejaculatórios pelo fato de agirem nos nervos adrenérgicos autônomos, além de poderem ocasionar impotência e diminuição da libido. A progesterona e o estrógeno (utilizado em tratamento profilático de câncer de próstata e em pós-operatório geniturinário) podem inibir o desejo sexual. As drogas antipsicóticas, como o Haldol®, reduzem a libido e desencadeiam ejaculação retardada

C om o A bordar

a

S e x u a lid a d e

e as

D isfu n çõ es S exu a is

Em geral, o paciente procura auxílio para sua disfunção sexual quando perce­ be que algo está errado, solicitando ajuda a fim de obter solução para seu proble­ ma; porém, quando os usuários de alguma dependência química procuram um tratamento específico em dependência química, estão voltados primeiramente para a cura do problema de drogadição/alcoolismo. Neste momento, o distúrbio sexual é secundário para eles. Além da influência que as drogas exercem na disfunção sexual, podemos ob­ servar alguns fatores que estão presentes no casal que apresenta esse tipo de dis­ função e que também merecem atenção neste momento do tratamento: • • • • •

Relacionamento conjugal problemático. Problemas de comunicação na relação. Preocupação com avaliação do parceiro. Presença de medos relativos ao desempenho. Menor liberdade de expressão sexual.

A sexualidade deve ser abordada de forma natural e espontânea quando um cliente solicita um tratamento para resolver sua disfunção, pois, em virtude dos preconceitos que a cultura reforça no homem - de que precisa ter iniciativa e po­ der de decisão como prova de sua masculinidade e virilidade -, este, em geral, apresenta dificuldade em demonstrar seu problema, pois tem medo de que as pessoas ao redor o descubram ou do sentimento de fracasso.

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Espera-se um trabalho que envolva sexualidade e dependência química, de modo a proporcionar maiores chances de o cliente apresentar melhora clínica. Não é rara a omissão inicial de problemas com a sexualidade, pois é extrema­ mente difícil buscar auxílio no campo social, já que, ao procurar ajuda externa, o cliente irá demonstrar sua fragilidade, o que afetará sua imagem de força e de auto-suficiência. Ao se trabalhar com disfunções sexuais, é importante realizar uma investiga­ ção de como está a relação do casal, pois o tratamento é mais eficaz quando há participação ativa da parceira no processo terapêutico. Parte-se do pressuposto de que a disfunção seja um problema do casal, sendo necessária a participação de ambos no tratamento. A teoria mais indicada para este tipo de disfunção é a cognitivo-compor­ tamental, que irá modificar as crenças desadaptadas do paciente e, por meio de técnicas comportamentais, proporcionará uma reaprendizagem ao paciente. O terapeuta utiliza técnicas que estimulem a erotização do casal com o in­ tuito de fortalecer fantasias. No início, as técnicas precisam deixar de focar a área genital, utilizando-se apenas de carícias; posteriormente, devem focar a in­ trodução de técnicas que envolvam a genitália. Algumas técnicas utilizadas ao longo do tratamento são as focalizações sensoriais I e II, que são solicitadas por meio de tarefas de casa (ver Apêndice I). Muitas vezes, a disfunção pode estar relacionada com o receio de provocar uma gravidez ou, ainda, com uma sensação inconsciente de culpa por acreditar que sexo é proibido e que, uma vez realizado, se torna um pecado, podendo de­ sencadear perda de interesse pela parceira e, como conseqüência, dificuldades no tocante à intimidade e ao relacionamento do casal. Kaplan1menciona que existem estados psicofisiológicos que podem promo­ ver disfunção sexual, referindo-se à depressão (quando o indivíduo apresenta-se deprimido, não tem vontade ou muito desejo de realizar atos sexuais), a fadiga, nível baixo de androgênio, tensão, problemas hepáticos, diabetes ou outras doen­ ças endócrinas, como hipo ou hipertireoidismo, acromegalia, hipotestosteronismo, doença debilitante não-específica, medicação estrogênica e parassimpaticolítica, doenças neurológicas, como escleroses múltiplas, doença de Parkinson, doenças que afetam o sistema nervoso, sífilis, fimose, priapismo, herpes, cirrose, insuficiência renal crônica, insuficiência respiratória, insuficiência cardíaca, intervenções cirúrgicas, como prostatectomia radical, radioterapia, le­ sões da medula espinal, hipertensão arterial e distúrbios hormonais. Para a verificação de que não existe uma causa orgânica, é importante realizar uma avaliação urológica. Um fator que indica se o problema é orgânico ou psicogênico é a qualidade seletiva de sintomas, que é sustentada na anamnese quando o indivíduo é ques­ tionado a respeito de conseguir obter desejo, ereção ou ejaculação pela manipu­ lação oral ou manual, apesar de não apresentar eficácia sexual no momento da relação sexual completa. Hoje, ainda há um tabu inicial quanto ao homem (minoria) se referir a uma disfunção sexual diante de profissional mulher, seja por vergonha, por precon­ ceito ou outro fator; porém, quando o psicoterapeuta se torna acessível, o clien­ te passa a não se incomodar com a questão de o profissional ser mulher ou

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homem, preocupando-se apenas com seu tratamento e com a expectativa de melhora clínica. Em outras situações, é o próprio profissional que coloca como empecilho a questão de trabalhar a sexualidade com pacientes do sexo oposto. Contudo, não podemos nos esquecer de que um profissional da saúde precisa estar num aten­ dimento não como um ser do sexo feminino ou do sexo masculino, mas como um agente que procura tratar, desmistificar fantasias e orientar sem preconceitos. Observa-se que, até hoje, há poucos trabalhos sobre dependência química e disfunções sexuais, sendo necessário maior investimento na área. Este é um pro­ blema que afeta nossos clientes com muita freqüência. Em diversas ocasiões, eles não concretizam um tratamento pela falta de oportunidade, pois ainda não exis­ tem muitos profissionais na área de dependência química que trabalhem com as disfunções, que talvez devam ser vistas com maior atenção.

R e f e r ê n c ia s B ib lio g r á f ic a s 1. KAPLAN, H. S. Transtorno do Desejo Sexual. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. 2. KAPLAN, H. S. A Nova Terapia do Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. 3. RODRIGUES JR., O. M., MONESI, A. A., FAVORÊTO, A . V. Clínica e aspectos psicossociais. Rev. Terap. Sexual, 1(2):75-87, 1999. 4. ABDO, C. H. N. Sexualidade Humana e Seus Transtornos. São Paulo: Lemos Editorial, 2000. 5. DSM-IV - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Trad. Dayse Batista. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. 6. OLIVEIRA, S. R. C. A Sexualidade e o Homem. São Paulo: Lemos Editorial, 2000. 7. KAPLAN, H. I., SADOCK, B. J., GREBB, J. A. Compêndio de Psiquiatria: ciências do compor­ tamento e psiquiatria clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 8. SOCIEDADE BRASILEIRA DE UROLOGIA. I Consenso Brasileiro de Disfunção Sexual. São Paulo: B. G. Cultural, 1998. 9. RODRIGUES JR., O. M. Aprimorando a Saúde Sexuai. São Paulo: Summus, 2001. 10. RODRIGUES JR., O. M., MONESI, A. A., FAVORÊTO, A . V. Clínica e aspectos psicossociais. Rev. Terap. Sexual, 1(2):57-60, 1999.

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A pên dice I

Focalização Sensorial É importante que essa técnica seja utilizada com o casal, ou seja, que ela seja explicada para ambos ao mesmo tempo, com o intuito de evitar falhas de comuni­ cação. É importante ressaltar aos cônjuges que será necessário que eles se organi­ zem de modo a reservar, no mínimo, 1 hora para a realização da tarefa. Rodrigues Jr.9 ressalta que, num primeiro momento, solicita-se ao casal que faça (no mínimo 3 vezes por semana) carícias e massagens frontal e dorsalmente costas, com intuito de obter maior conhecimento das sensações prazerosas e não prazerosas de cada um. Deve-se, porém, evitar o toque nas zonas erógenas (clitóris, mamas, pênis). Ambos precisam fazer e receber as massagens. O profissional pode demonstrar diferentes tipos de massagem e produtos que podem ser utilizados (cremes, óleos e talcos) para que o casal possa vivenciar di­ versas formas da técnica, promovendo, inclusive, diminuição da ansiedade. Em um segundo momento, solicita-se ao casal que utilize a mesma técnica, porém incluindo as zonas erógenas. Após este primeiro período do tratamento, como tarefa de casa, proibe-se o coito (no caso de ejaculação precoce), devendo haver masturbação; o paciente irá tentar controlar a ejaculação observando o momento em que irá ejacular. Ao per­ ceber que o momento da ejaculação está chegando, deve-se utilizar a técnica de compressão: parceira aperta, com o polegar, a coroa da glande e permanece com os dedos indicador e médio abaixo da coroa por 3 a 4 segundos ou até diminuir a vontade de ejacular. Após este primeiro controle, inicia-se novamente a masturbação e o cliente é orientado a ejacular a partir da quarta tentativa. Posteriormente, o cliente irá realizar o mesmo procedimento, porém, com um lubrificante, pois terá uma sensação parecida com a da lubrificação vaginal. Após todas estas etapas terem sido concluídas com sucesso, ocorre a penetra­ ção, momento no qual é necessário que a mulher permaneça sobre o homem ou de lado, porém, sem estímulo de movimentos por alguns minutos; depois, se po­ dem iniciar movimentos leves. O homem, ao sentir que irá ejacular, deverá retirar o pênis e, após manter controle, solicitar à parceira que permaneça na mesma posição anterior para realizar a penetração novamente. Esta atividade deve ser realizada até que o indivíduo possa aprender a ter maior controle ejaculatório. O último passo é manter este procedimento, porém, com movimentos mais rápidos no momento da relação sexual. Paralelamente, trabalha-se com o paciente suas habilidades, o treinamento assertivo, desenvolvendo com ele seu lado racional e a capacidade de dizer não para determinadas coisas que não tem vontade de realizar. Rodrigues Jr.9 refere que o “treino afirmativo é uma técnica de descondicionamento de respostas de ansiedade relacionadas a situações sociais vividas pelo cliente". O mesmo autor relata que “o treino afirmativo é utilizado para ade­ quar a expressão de emoções sem a manifestação da ansiedade” Utiliza-se, tam­ bém, como forma de tratamento, a dessensibilização sistemática, com o intuito de recondicionar um comportamento, eliminando medos, fobias e ansiedade.

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A

pên dice

II

Este inventário foi elaborado por Oswaldo M. Rodrigues Jr., diretor do Instituto de Sexualidade Humana3. É extremamente importante que se obtenha a informa­ ções seguintes para melhor desenvolvimento do processo terapêutico.

INVENTÁRIO DE SEXUALIDADE MASCULINA FORMA E.P. -II Instruções para Responder Está-lhe sendo entregue um questionário e uma folha de respostas. Este ques­ tionário visa aumentar a compreensão de seus problemas, auxiliando no diagnós­ tico correto; portanto, responda com sinceridade e com empenho próprio. Todas as suas respostas serão confidenciais, não sendo reveladas a outras pessoas, so­ mente tendo acesso a elas os profissionais envolvidos no seu diagnóstico. Este questionário contém, basicamente, perguntas sobre sua vida sexual, de­ senvolvimento e maturação. As respostas às questões devem ser escritas em folha à parte: sua folha de respostas. Primeiramente, descreva o motivo que o trouxe à procura de tratamento, con­ te quando e como iniciou o seu problema, diga as possíveis causas que você ima­ gina ou sabe e demais fatos que nos ajudarão a tratá-lo. Coloque na folha de respostas o número da pergunta e a letra compatível com sua vida e experiência pessoal. Nas questões em que houver mais de uma resposta que lhe sirva, coloque as letras na ordem de importância que lhes dê. Procure colocar a resposta que mais se aproximar de sua vivência. Caso não seja possível ou queira complementar a resposta, descreva a situação específica por extenso no verso (atrás) da folha de respostas. Se lhe faltar espaço para escre­ ver, peça outra folha. Escreva o quanto quiser. Se houver observações para com­ plementar a resposta, anote no verso da folha o número da questão e a resposta complementar. Neste caso, procure expressar o que você sente a respeito do que está contando e acrescente as seguintes informações (que são muito importan­ tes): datas, nomes e lugares. Em caso de dúvida, pergunte. Não deixe perguntas em branco ou incomple­ tas. Lembre-se: com isso, você será o maior beneficiado. 1. Você era uma criança curiosa em relação a sexo? E atualmente? a. Fui e sou uma pessoa curiosa! b. Fui, mas não sou mais curioso. c. Eu não fui, mas hoje sou curioso. d. Não era curioso, mas fiquei curioso com o aparecimento do problema; tenho lido muito o que aparece nos jornais e revistas. e. Nunca fui muito curioso e continuo não tendo curiosidade em rela­ ção a sexo. 2. Com que idade você obteve as primeiras informações sobre sexo? (Escreva na folha de respostas)

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3. Com quem você obteve as primeiras informações sexuais? a. Com meu pai. b. Com minha mãe. c. Com tias, tios e outros parentes mais velhos. d. Com um(a) professor(a) na escola. e. Com amigos da mesma idade. f. Com indivíduos mais velhos. g. Em livros. h. Em revistas de mulheres nuas. i. Por intermédio de programas de televisão, j. Não tive fonte específica; aprendi sozinho. 4. São muito comuns, na infância e na adolescência, os jogos sexuais e as brin­ cadeiras como “troca-troca”, masturbação mútua ou em grupo. E você, teve essas experiências? a. Participei e considerei natural e normal. b. Participei e considero as fontes de meus problemas e conflitos sexuais. c. Não pratiquei por medo. d. Não tive curiosidade. e. Não me lembro se pratiquei alguma brincadeira. 5. Quando começou a se masturbar? Que idade tinha? O que significou para você? Foi positivo ou negativo? 6. Quando começou a se masturbar (punheta), qual era a freqüência com que o fazia? (Quantas vezes?) a. Nunca. b. Muito raramente. c. Às vezes (uma vez por mês). d. 2 ou 3 vezes ao mês. e. 1 ou 2 vezes na semana. f. 3 a 5 vezes na semana. g. Diariamente. h. Mais de uma vez por dia. 7. Como você aprendeu a se masturbar? a. Sozinho. b. Um amigo mostrou. c. Por meio de revistas e filmes. d. De outra forma. (Como?) 8. Onde você se masturbava, geralmente? a. No quarto. b. No banheiro. c. Outros locais. (Onde?) 9. Quando você se masturbava: a. Tinha medo de ser surpreendido (flagrado, pego) por alguém? b. Já foi surpreendido (flagrado, pego) por alguém? (Quem?) c. Gostava de se masturbar na presença de outra pessoa. d. Tinha pressa em ejacular. e. Participava de competições para ver quem gozava mais rápido.

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f. Adiava a ejaculação sempre que queria. g. Nunca tentou adiar ou segurar a ejaculação. h. Às vezes conseguia segurar o gozo. i. Nunca se masturbou (nunca bateu punheta). Quando você consegue(ia) adiar ou segurar o gozo (ejaculação): a. Achava mais excitante. b. Tinha mais prazer. c. Isto dava dores no “saco”. d. Não fazia diferença. e. Nunca tentou segurar. f. Quando conseguia segurar, se sentia frustrado, cortava o prazer. g. Nunca se masturbou. Quando você se masturbava, parava um pouco antes de ejacular (gozar) para sentir um pouco mais de prazer? a. Sim e isso dá mais prazer. b. Sim, mas não me sinto bem e evito fazê-lo. c. Não, somente paro para poder controlar e segurar mais tempo. d. Eu já tentei e nunca consegui segurar nem a masturbação. e. Nunca tentei segurar. f. Nunca me masturbei. Atualmente você se masturba? a. Nunca me masturbei (nunca bati punheta). b. Parei de me masturbar. (Com que idade?) c. Masturbo-me muito raramente. d. Às vezes (uma vez por mês). e. 2 ou 3 vezes ao mês. f. 1 ou 2 vezes por semana. g. 3 a 5 vezes por semana. h. Todos os dias. Quando você se masturba (faz com a mão): a. Acho que é bom, mas não o devia fazer. b. É bom, mas é pecado. c. Sinto-me culpado. d. É bom e não tenho sentimento de culpa. e. Não me masturbo porque é pecado. f. Não me masturbo porque sou casado e não preciso mais disso. g. Não me masturbo mais, porém, em virtude do problema sexual, experi­ mentei ultimamente. (Explique como foi, se teve ereção e ejaculação, se gostou e se pretende fazer novamente). O que você acha de seu pênis? a. Feio. b. Pequeno demais. c. Grande demais. d. Bonito. e. Faz-me sentir homem. f. Fico com vergonha dele. g. Procuro não pensar sobre ele.

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15. Com relação a namoradas: a. Nunca tive namoradas. b. Casei-me com a minha primeira e única namorada. c. Sempre foi muito difícil arranjar namoradas. d. Eu tinha dificuldades em arrumar namoradas. e. Sempre foi fácil arrumar namoradas. 16. Quantos anos você tinha quando teve a primeira relação sexual ? 17. Com quem foi sua primeira relação sexual? a. Com minha esposa. b. Com minha namorada. c. Com uma amiga. d. Com uma empregada. e. Com uma prostituta. f. Foi uma relação homossexual. (Com quem foi? Dê detalhes) g. Não me lembro. h. Ainda não tive nenhuma relação sexual completa. 18. Como você se sentiu após a primeira relação sexual? a. Foi terrível. b. Foi má. c. Indiferente. d. Foi bom. e. Foi muito bom, senti-me realizado. f. Senti-me confuso. g. Não me lembro. h. Ainda não tive nenhuma relação sexual completa. 19. Em que local ocorreu sua primeira relação sexual? a. Na zona. b. No carro. c. Em minha casa. d. Na casa de outra pessoa. e. Na rua. f. Num motel/hotel. g. Em outro local. (Onde?) 20. Você se preocupa com a possibilidade de sua parceira ficar grávida? a. Sempre. b. Freqüentemente. c. Às vezes, depende. (Do quê?) d. Nunca. e. Depende da parceira. f. Não me preocupo por causa da infertilidade. (Explique por que vocês não podem ter filhos) g. Não tenho parceira fixa. h. Só tenho relações com prostitutas. 21. Você já teve alguma doença sexualmente transmissível (doenças venéreas e outras contraídas por meio do relacionamento sexual)? a. Nunca tive nenhuma DST. b. Sífilis, cancro duro.

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c. Gonorréia, blenorragia. d. Cancro mole. e. Linfogranuloma venéreo. f. Uretrite. g. Chato. h. Verruga venérea, condiloma acuminado, crista de galo. i. Tive, mas não sei o nome. (Como era a doença, o que sentiu e teve?) j. Sou HlV-soropositivo. k. Herpes. Como você se sente nu, quando está sozinho? a. Sinto-me, na maioria das vezes, estimulado sexualmente. b. Sinto-me à vontade; gosto até de andar sem roupa dentro de casa. c. Não tenho dado atenção à minha nudez, é-me indiferente. d. Não gosto de olhar para o meu corpo, procuro logo colocar roupas. e. Evito ficar nu. Como você se sente nu junto a outra pessoa? a. Quando é do mesmo sexo, sinto-me mal; é desconfortável. b. Quando é do mesmo sexo, é indiferente; não me faz mal. c. Quando é do mesmo sexo, sinto-me estimulado, às vezes, com fantasias. d. Quando é do outro sexo, sinto-me ansioso; é desconfortável. e. Quando é do outro sexo, é indiferente; não me faz mal. f. Quando é do outro sexo, sinto-me estimulado sexualmente. Sobre homossexuais: a. Tenho curiosidade a respeito de homossexuais. b. Tenho fantasias sexuais com homens. c. Tenho fantasias a respeito de homossexuais femininos (lésbicas). d. Nem quero ouvir falar a respeito disso; isso é muito pernicioso, nocivo. e. Eu não tenho fantasias homossexuais. f. Eu já tive fantasias homossexuais; hoje não tenho mais. g. Sou homossexual e acho isso natural. (Desde quando e como você se sente?) h. Sou homossexual e me envergonho disso. (Desde quando e como você se sente?) i. Eu não tenho fantasias homossexuais, mas tenho preocupações a respeito, j. Tenho medo de me tornar homossexual um dia. k. Tenho sentimentos por pessoas do meu sexo. 1. Tenho pensamentos homossexuais. m. Tenho curiosidade ou desejo por travestis ou transexuais. (Já teve expe­ riências ou planeja ter?) n. Outra situação. (Qual?) Atualmente, como é o seu desejo sexual (tesão) em relação à sua parceira? a. Intenso. b. Variável, depende. (De quê?) c. Diminuiu. (Quando ocorreu e por quais razões?) d. Ausente; não tenho vontade de ter relações sexuais com ela. (Por quê?) e. Eu não tenho parceira fixa.

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26. Quanto a outras mulheres, como está o seu desejo sexual, o seu interesse em ter relações sexuais? a. Intenso. b. Variável, depende. (De quê?) c. Diminuiu. (Desde quando e por quê?) d. Ausente; não tenho vontade de ter relações sexuais com elas. (Por quê?) 27. Como você se sente sexualmente em relação à sua parceira? a. Eu não tenho parceira fixa. (Escreva, na folha de respostas, sobre outras parceiras, amigas, vizinhas) b. Eu não estou satisfeito. (Por quê?) c. Sinto-me satisfeito sexualmente com minha parceira. d. Minha parceira não gosta de sexo e eu tenho que procurar fora. 28. Sua parceira tem alguma dificuldade ou problema sexual? a. Ela é fria, não se excita, não fica molhada. b. Ela não tem vontade de ter sexo, evita o ato sexual. c. Ela não tem tanta vontade de ter sexo da mesma forma que eu tenho; nem sempre ela quer ter sexo. d. Ela não tem orgasmo, não goza. e. Ela tem dificuldade (demora muito) para ter orgasmo, para gozar. f. Avagina dela fica fechada toda vez que tento penetrar, então, não conse­ guimos ter relação; se tento, ela sente muita dor. g. Ela sente dores com o ato sexual. h. Acho que ela tem algum problema, mas não consigo explicar o que é. i. Não sei se ela tem algum problema sexual, j. Minha parceira não tem problemas sexuais, k. Eu não tenho parceira fixa. 29. De que maneira a sua parceira reage ao seu problema sexual? a. Ela desconhece o meu problema; não sabe. b. Ela se ressente, fica muito chateada, mas continua junto comigo. c. A reação dela é negativa. d. Acho que ela quer se separar de mim. e. Minha parceira é compreensiva e não me aborrece por causa do meu problema sexual. f. Minha parceira é compreensiva e procura me ajudar. g. Eu não tenho parceira fixa, então, as mulheres com quem me relaciono não sabem sobre o meu problema. 30. Você acha que sua parceira tem alguma responsabilidade pelo seu problema? a. Acho que ela é responsável. (Como?) b. Talvez ela tenha alguma responsabilidade, mas eu não sei dizer. c. Ainda não tive relação sexual, então, não sei dizer. d. Minha parceira não é responsável pelo meu problema. 31. Quando foi a sua última relação sexual satisfatória? (Com quem foi?) a. Há mais ou menos 1 semana. b. Há menos de 15 dias. c. Há menos de 1 mês. d. Há menos de 6 meses.

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■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

e. Há menos de 1 ano. f. Há menos de 2 anos. g. Há menos de 5 anos. h. Há mais de 5 anos. i. Não me lembro. j. Eu nunca tive uma relação sexual satisfatória, k. Eu ainda não tive nenhuma relação sexual. Quando você está tendo ou vai ter uma relação sexual, fica nervoso, ansioso ou preocupado? a. Fico nervoso sempre. b. Fico nervoso, dependendo da parceira. (Qual parceira?) c. Sim, mas somente se estiver em algum lugar que comprometa ou em que tenha que ser rápido, em razão das circunstâncias. d. Eu tenho medo de não conseguir, de fracassar. e. Fico nervoso porque fico excitado demais. f. Fico preocupado diante da possibilidade de engravidá-la. g. Não fico nervoso, nem preocupado. Quem tem a iniciativa de começar o ato sexual? a. Eu sempre começo e é assim que acho que tem de ser. b. Eu sempre começo, mas acho que não deveria ser sempre assim. c. Minha(s) parceira(s) é que sempre começa(m) o ato e gosto disso. d. Minha(s) parceira(s) é que sempre começa(m) o ato e acho que não de­ veria ser assim. e. Depende de quem tem mais vontade. f. Comigo acontece diferente. (Como?) Como você se sente quando sua parceira estimula seu pênis com a mão ou com a boca? a. Eu gosto. b. Não gosto. c. Nunca aconteceu, mas não gostaria que acontecesse. d. Nunca aconteceu, mas eu gostaria que acontecesse. e. Não é próprio que seja assim. f. Gozo mais rápido com sexo oral. Na relação sexual, em sua opnião, vocês têm tantas preliminares quanto gostaria? a. Sim, acho o suficiente. b. Não. Gostaria que tivesse mais carícias, é muito pouco e rápido. c. Minha parceira não permite que tenhamos mais carícias. d. Acho que não é necessário; gosto de ir direto ao assunto. A ejaculação, para você, marca o fim do ato sexual? a. Sim, pois é o que se procura no sexo. b. Não, o contato dos corpos após o gozo é muito importante. c. Nem sempre; às vezes, eu mantenho a ereção após o gozo e quero conti­ nuar a relação. d. Acho que não, pois eu continuo, muitas vezes, querendo mais; parece que ficou faltando algo.

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37. O que você acha que tem interferido na sua vida sexual, impedindo-a de ser satisfatória? a. O trabalho; tenho trabalhado demais. b. O cansaço, tenho me sentido muito cansado ultimamente. c. Doença. (Qual e por que você acha isso?) d. A preocupação com o ato sexual; às vezes, acho que não vou conseguir. e. O desinteresse pela minha parceira; não tenho vontade de ter sexo. f. A minha parceira; não nos entendemos mais. g. O problema de minha parceira. (Qual é o problema?) h. Acho que deve ter alguma coisa, mas eu não sei dizer. i. Não creio que deva haver alguma coisa que esteja interferindo no meu relacionamento sexual. j. Algum problema emocional, psicológico. 38. Em relação à ereção (dureza, rigidez do pinto): a. Eu nunca tive ereção alguma. b. Eu nunca tive ereção plena, sempre foram ereções parciais, meias-ereções que não possibilitavam a penetração. c. Atualmente, eu não consigo obter ereção alguma, mas não era assim antes. d. Atualmente, tenho muita dificuldade em obter ereção, mas às vezes eu consigo. e. Eu tenho ereção, mas não mantenho o pênis duro para penetrar. f. Eu tenho ereção, mas não consigo terminar a relação. g. Eu obtenho e mantenho a ereção até a ejaculação, não tenho problemas de potência, de ereção. h. Minha ereção desaparece muito rápido após o gozo. 39. Em relação à sua ejaculação (gozo): a. Eu não ejaculo durante a relação. (Explique) b. Eu ejaculo antes da penetração. c. Eu ejaculo após a penetração, mas com poucos movimentos (gozo rápido). d. Sempre ejaculo antes de minha parceira ter orgasmo (prazer). e. Eu ejaculo sem ter ereção. f. Minha ejaculação é normal; demoro o suficiente para minha parceira ter orgasmo. g. Eu tenho ejaculação seca - não sai esperma, ejaculo para dentro da bexi­ ga. (Se fez cirurgia de próstata, explique e escreva em que ano foi) h. Eu não consigo ejacular; demoro muito e, às vezes, até desisto. 40. Você faz uso de drogas? (Se já fez, diga a época e quanto tempo durou o uso) a. Bebidas. b. Cigarro. c. Maconha. d. Haxixe. e. Cocaína. f. Heroína. g- Crack. h. Ecstasy.

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■ Bases Teóricas Relacionadas à Clínica e ao Tratamento da Dependência Química

i. j. k. 1. m. n.

Tranqüilizantes, soníferos, Ansiolíticos. Antidepressivos. Outros. (Quais?) Nunca utilizei essas drogas. Já usei, mas não uso mais. (Quando começou e quando parou e quais as razões para a utilização da droga?) 0. Bebo socialmente. (Quantas vezes na semana e quanto bebe?) 41. O que você já fez para tentar resolver o seu problema sexual? a. Procurei um clínico geral. b. Procurei um neurologista. c. Procurei um urologista. d. Procurei um psicólogo /psiquiatra. e. Procurei um endocrinologista. f. Fiz psicanálise. g. Fiz psicoterapia. h. Fiz terapia sexual. 1. Procurei um farmacêutico, j. Procurei um centro espírita. k. Procurei solução com umbanda e candomblé. 1. Usei remédios caseiros. (Quais e quais eram os componentes?) m. Eu ainda não havia procurado nenhuma forma de solucionar o meu problema. 42. Você se encaixa em alguma destas situações? a. Problemas nervosos. (Como é este nervosismo?) b. Sou muito preocupado com a vida. (Dê um exemplo) c. Tenho períodos de muita tristeza. (Quando foi a última vez e quanto tem­ po durou?) d. Tenho outros problemas. (Que problemas?) 43. Escreva como você gostaria que fosse a sua vida sexual (desejo sexual, de­ sempenho na relação sexual, com que pessoas, freqüência, que tipos de ati­ vidades sexuais você deseja ter). Seja específico e direto. Obrigado.

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA - COMPLEMENTAÇÂO DE ENTREVISTA Inventário de Sexualidade Masculina, Forma EP-II Folha de Respostas Nome:______________________________________________ Idade:________ Data de nascimento:___ /___ /____ Escolaridade:______________________________________________________ Profissão:_________________________________________________________ Religião:_______________________________ Pratica? Sim () Não () Estado civil:______________ Nome do cônjuge:______________ Idade:____ Filhos? Quantos?_____________ Idades e sexos:_________________________ Escreva nesta folha as suas respostas ao questionário que lhe foi entregue. Sinta-se à vontade para escrever outras coisas que achar conveniente. Utilize o verso da folha para fazer suas observações; use outras folhas, se precisar. Primeiro, descreva com suas palavras o motivo que o fez buscar tratamento. Conte como começou o problema e indique o que, na sua opnião, o provocou. Junto ao número, escreva a letra que corresponde à sua resposta.

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Usualmente, ainda se solicitam informações sobre a doença do cliente (início, dura­ ção, características), se há antecedentes psiquiátricos dele e na família, história profissio­ nal, como está a qualidade devida (lazer, expectativa devida) e o que espera do tratamento.

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III

Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas Frente ao Consumo de Substâncias Psicoativas

C A P ÍT U L O

Redução de Danos - Uma Alternativapara Lidar com o Consumo de Substâncias Psicoativas A n drezza F

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N e l ia n a B u z i F

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In tr o d u ç ã o Este capítulo tem como objetivo apresentar um modelo alternativo e inovador para a abordagem de dependentes químicos, consistindo em um conjunto de medidas de saúde pública voltadas a minimizar as conseqüências adversas do uso de drogas, denominado Redução de Danos (RD). O princípio j fundamental dessa abordagem é o respeito e a liberdade de es- J colha dos usuários que, por vezes, não conseguem ou não que- I rem parar de utilizar substâncias psicoativas e, por isso, o intuito j é reduzir ou minimizar riscos decorrentes do consumo. A Redução de Danos é um movimento internacional que surgiu em resposta à crescente crise daAIDS na década de 19801 quando muitos países reconheceram a necessidade de desen­ volver estratégias mais práticas e adaptativas para reduzir o risco de transmissão do HIV entre usuários de drogas injetáveis. Programas inovadores de saúde pública começaram a ser implantados na Europa (principalmente nos Países Baixos e Reino Unido) e na Austrália, que incluíam troca de seringas e prescrição médica de substâncias adictivas. Esses programas estimularam ainda mais o desenvolvimento deste modelo, co­ nhecido no Reino Unido como “minimização de danos”2; des­ de então, houve um interesse mundial nessa abordagem. Para melhor ilustrar tal prática, o objetivo deste capítulo é apresentar inicialmente o modelo adotado em países pio­ neiros; em seguida, as especificidades da filosofia; como pode ser aplicada no tratamento da dependência de cada droga e, por fim, sua aplicabilidade no Brasil.

4 2 2 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

Modelos Pioneiros Modelo Holandês Na Holanda, país com pouco mais de 15 milhões de habitantes, no final da década de 1960, época marcada pelos protestos estudantis e juvenis, houve um importante aumento dos problemas com drogas e, em 1972, a heroína tomou-se amplamente disponível nos países baixos. A reação inicial das autoridades nacio­ nais e locais foi tratar o fenômeno como algo indesejável, com adoção de uma política judicial repressiva e incremento de tratamentos com base na abstinência, como ainda acontece em muitos países3. No entanto, em resposta ao crescente aumento de problemas relacionados ao uso de drogas, começaram a ser instituí­ das mudanças radicais na política. Atualmente, Amsterdã é uma cidade que carrega a fama de ser extremamente liberal no que se refere ao uso de drogas e ao sexo. As chamadas cafeterias vendem maconha e haxixe para consumo no próprio local ou para o cliente levar para casa. Em outras regiões, prostitutas são vistas nas ruas abordando clientes; os preços pelos serviços sexuais são fixos, o uso de preservativos é obrigatório e policiais oferecem proteção tanto para as prostitutas quanto para seus clientes. Em outra região, encontra-se a “camioneta de metadona”, uma caminhonete que presta ser­ viços aos usuários de drogas fornecendo metadona, preservativos e seringas hipodérmicas em troca das agulhas usadas. Por trás desse aparente liberalismo está a nova política implementada. As ações rumo à nova abordagem começaram a ser colocadas em prática com o decreto que reconhecia que as premissas básicas da política de drogas deveriam ser congruentes à extensão dos riscos envolvidos no uso, o que levou à adoção da Lei do Ópio em 1976. Esta lei fazia distinção entre drogas de risco inaceitável (heroína, anfetaminas e LSD) e drogas de menor risco (maconha e haxixe)4, a fim de separar os mercados onde as drogas pesadas e leves circula­ vam. Dessa forma, os consumidores de maconha e haxixe não estariam expos­ tos aos traficantes, uma vez que poderiam adquirir a droga em locais mais seguros, como as cafeterias20. O governo holandês, diante da dificuldade de eliminar o comportamento adictivo, optou pela redução de danos e começou a incentivar, cada vez mais, for­ mas de auxílio visando ao bem-estar físico e social dos viciados e a ajudá-los a atuar socialmente. Foi detectado que a efetividade da nova abordagem se relacionava a serviços de baixa exigência e auxílio acessível; então, o fornecimento de metadona prescrita, apoio material e reabilitação social começou a acontecer em ruas, hospi­ tais, prisões e centros de livre circulação para prostitutas5. Essa abordagem humanista e pragmática teve participação direta dos usuários e, em 1980, foi fundada, em Roterdã, uma espécie de sindicato para usuários de drogas pesadas, a Junkiebond, com o objetivo de zelar pelos seus interesses e com­ bater a deterioração dos mesmos. O trabalho envolvia consultas com funcionários do governo em relação a diversas questões da vida2. Com o aumento da AIDS e do risco de infecção pelas agulhas compartilhadas, em 1984 foi desenvolvido o primeiro programa de troca de seringas em Amsterdã,

Redução de Danos - Uma Alternativa para Lidar com o Consumo de... ■ 4 2 3

pelo qual o Serviço Municipal de Saúde forneceria agulhas e seringas descartáveis ao Junkiebond em troca da coleta das agulhas usadas. A iniciativa foi um sucesso, o número de agulhas trocadas cresceu de 100 mil, em 1985, para 720 mil, em 19886. Em 1985, ocorreu outra revisão da política de drogas voltada para as necessi­ dades dos usuários e foi estruturada a “normalização” do problema das drogas no país, com o intuito de evitar a estigmatização dos usuários e de separar os merca­ dos de drogas perigosas dos de drogas menos perigosas7. A partir dessas iniciativas, os programas de baixa exigência, com base nos princípios da Redução de Danos, que não exigem comprometimento com a abs­ tinência e, sim, disponibilidade e o início de um movimento em direção a redu­ zir os danos associados ao uso de drogas, aumentaram consideravelmente nos últimos 20 anos. A descriminalização do uso da maconha e do haxixe não levou ao aumento do consumo e apresentou êxito. Em 1985, o Ministério da Previdência Social, Saúde e Assuntos Culturais da Holanda afirmou que, em 1976,3% dos jovens entre 15 e 16 anos e 10% entre 17 e 18 anos haviam feito uso de haxixe ou maconha e, em 1985 os números baixaram para 2 e 6%, respectivamente. Vale ressaltar que as abordagens inovadoras parecem ter êxito na Holanda, mas a aplicação desse modelo de política de drogas em outros países é uma ques­ tão difícil, devido às diferenças culturais8, mas pode servir como exemplo, consi­ derando-se as adaptações necessárias. Contudo, a Holanda foi alvo de muitas críticas, principalmente dos Esta­ dos Unidos e países europeus com políticas mais proibitivas, como a França e a Suécia. As mudanças foram promissoras, mas o país também encontrou pro­ blemas, como por exemplo o contrabando de drogas lá adquiridas para reven­ da em outros países. Para combater tal problema, a quantidade máxima de maconha e haxixe adquirida nas cafeterias diminuiu de 30 para 5 gramas e o cultivo em grande escala foi proibido, sendo permitidos no máximo 10 pés de maconha para uso pessoal.

Modelo do Reino Unido O Reino Unido foi pioneiro no enfoque de “medicalização”, no qual depen­ dentes passaram a receber prescrições de drogas como heroína ou cocaína para manutenção a fim de reduzir os danos do uso e ajudá-los a levar uma vida mais proveitosa9. Tal política foi desaprovada durante alguns anos e, mesmo assim, con­ tinuou sendo praticada pelo Departamento de Saúde de Merseyside, atendendo à população de Liverpool10. Nesse modelo, os dependentes dispõem de grande variedade de serviços como a troca de seringas e educação na comunidade, prescrição de drogas, serviços de aconselhamento de emprego e moradia. Os farmacêuticos preparam cigarros nos quais drogas como heroína e metadona são injetadas e oferecem ampolas de for­ ma líquida ou em aerossol11 para os usuários. Todo inscrito no serviço tem a oportunidade de receber tratamento para dependência; no entanto, apenas 10% deles têm interesse por algum tratamento cuja meta seja a abstinência.

4 2 4 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

Nestes casos, adota-se a política de redução de danos para minimizar os perigos para o usuário e para a sociedade2. Este trabalho do Reino Unido tem a função de aliviar os sintomas de abstinên­ cia, atrair o usuário de drogas ao programa, estimular a retenção e prevenir o aban­ dono do tratamento; promover mudanças por intermédio de meta a curto prazo e prescrever drogas como estado final para aqueles que não estão dispostos ou são incapazes de alcançar a abstinência12. A polícia é ativamente implicada neste modelo: policiais participam de comi­ tês de aconselhamento do departamento de saúde, encaminham infratores deti­ dos a tratamento e oferecem apoio público para programas de troca de agulhas. Existe também a “política de advertência”, na qual infratores primários não são fichados na polícia e, sim, orientados sobre serviços de tratamento e informados de que, se forem cadastrados, passarão a ter o direito legal de portar drogas para consumo pessoal. Todavia, ao serem surpreendidos novamente por um policial fora dessas condições, serão processados. Com a implantação do programa, as estatísticas da região mostraram diminuição das taxas de criminalidade e infec­ ção por HIV2. Além da “medicalização”, o Reino Unido possui um programa de prescrição de heroína injetável para dependentes de opiáceos, por médicos que possuem licença especial. A prática de “medicalização” de drogas no país foi controversa, mas com a crise da AIDS houve um crescimento dos programas de troca de seringas e agu­ lhas para minimizar os danos13; em contrapartida, não houve o mesmo desenvol­ vimento no que diz respeito a drogas não injetáveis.

Redução de Danos em Outros Países Europeus Muitos países europeus não concordam com a política de redução de danos e com a legalização de drogas. A França e a Suíça são mais enfáticas na rejeição. Em compensação, algumas cidades européias formam uma aliança para promover práticas de redução de danos para usuários de alto risco2. O programa de Frankfurt, na Alemanha, tornou-se um modelo de redução de danos para as grandes cidades européias. O modelo dispõe de camionetas móveis para provisão de aconselhamento e troca de seringas, de acesso à troca de serin­ gas em farmácias urbanas, programas de baixa exigência para fornecimento de metadona, abrigos para pernoite para dependentes carentes de moradia, quatro centros de urgência para tratamento médico e salas de assistência à saúde, onde usuários podem injetar drogas. Um estudo mostrou efeitos positivos desse pro­ grama, principalmente a queda de mortes por overdose, que passou de 140, em 1991 para 22, em 199414. O Canadá também possui um modelo de redução de danos que ressalta a dimi­ nuição das conseqüências negativas do uso de drogas e o estabelecimento de uma hierarquia de metas. A prática visa ao uso de drogas injetáveis com programas de trocas de seringas e manutenção com metadona, prevenção de problemas com ál­ cool, por meio de programas de consumo moderado e educação para a saúde2.

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A RD na educação fundamenta-se no humanitarismo, no pragmatismo e numa abordagem científica de saúde pública. Seus princípios são: o uso de drogas está associado a benefícios e riscos; o consumo de substâncias não pode ser comple­ tamente eliminado, mas seus riscos podem ser reduzidos e muitos jovens supe­ ram o uso. A abordagem envolve diálogo e enfatiza o apoio de parceiros e companheiros. Focaliza informações sobre drogas, leis e direitos legais, como con­ duzir riscos e obter ajuda; ajuda os jovens a desenvolver habilidades na avaliação, no julgamento, na comunicação, na afirmação, na resolução de conflitos, na to­ mada de decisões e no uso seguro2. A Austrália também defende os programas de redução de danos na educação. No entanto, os australianos acreditam que há pouco resultado na perspectiva que enfatiza apenas o “NÃO às drogas”, pois acham que essa abordagem ignora aque­ les que já fazem uso; seu objetivo não é eliminar o uso, mas sim reduzir os danos. Segundo o governo australiano, uma sociedade livre de drogas não é uma meta atingível. Na atual política de drogas do país, o tabaco e o álcool estão incluídos, em decorrência dessas duas substâncias serem responsáveis pela maioria dos da­ nos relacionados a drogas2.

Princípios Básicos da Redução de Danos Para melhor compreensão do modelo, se faz necessário entender os princípios postulados por ele. Marllat2, autor partidário da RD em seu livro “Redução de Da­ nos, estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco”, postula cinco princípios básicos apresentados a seguir: 1. A RD é uma alternativa de saúde pública para os modelos moral, criminal e de doença: o modelo de redução de danos desvia a atenção do uso de drogas em si, para suas conseqüências e efeitos prejudiciais, que são avaliados em ter­ mos de ser prejudiciais ou favoráveis ao usuário e à sociedade como um todo. Diferentemente do modelo moral, que categoriza o comportamento como moralmente certo ou errado, encara o uso de drogas como ruim, ilegal e de­ fende a redução da oferta por proibição e punição. Difere também do modelo de doença, que considera a dependência uma patologia biológica, promove a redução da demanda como meta primordial da prevenção e a abstinência como única meta aceitável de tratamento. A redução de danos oferece várias opções de políticas e procedimentos que visam reduzir as conseqüências ne­ gativas da adicção, assim como aceita que muitas pessoas usem drogas e concomitantemente apresentem outros comportamentos de alto risco que devam ser levados em consideração e acredita não existir quase nenhuma chance de uma sociedade se tornar realmente livre das drogas. 2. A RD reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos: tanto o modelo moral quanto o de doença insistem na abstinência absoluta. Isso caracteriza uma abordagem de “alta exigên­ cia”, que muitas vezes se torna um obstáculo para aqueles que procuram ajuda15. A redução de danos estimula os indivíduos com comportamento

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excessivo ou de alto risco a reduzirem as conseqüências prejudiciais de seu comportamento gradualmente e a abstinência é vista como meta final. 3. A RD surgiu principalmente como uma abordagem “de baixo para cima", com base na defesa do dependente, em vez de uma política “de cima para baixo” promovida pelos formuladores de políticas de drogas: muitos programas de redução de danos surgiram de intervenções de saúde pública com base co­ munitária que apóiam usuários de substâncias e suas comunidades na re­ dução de demos relacionados às drogas. A defesa dos dependentes químicos levou ao desenvolvimento de estratégias inovadoras, tais como a troca de seringas. Esses avanços desenvolveram-se "de baixo para cima”, ou seja, de iniciativas locais de base comunitária. Apesar do êxito, essas abordagens foram denegridas e criticadas em âmbito federal. 4. Acesso a serviços de baixa exigência como uma alternativa para abordagens tradicionais de alta exigência: como já dito, a redução de danos não preconiza a abstinência para que os indivíduos tenham mais facilidade em se envolver e começar o tratamento. Os programas de baixa exigência fazem parceria com a população-alvo para o desenvolvimento de novos programas, redu­ zem o estigma associado ao abuso de substâncias e práticas sexuais de ris­ co e oferecem um enfoque integrador e normalizado de comportamentos de alto risco, definindo-os como respostas mal adaptadas no enfrentamento de problemas. Com isso, visa promover o desenvolvimento de mecanismos de enfrentamento mais adaptativos, bem como mecanismos de apoio social. 5. A RD baseia-se nos princípios do Pragmatismo Empático versus Idealismo Moralista: diante dos comportamentos prejudiciais, o pragmatismo empático busca o que pode ser feito para reduzir o dano e o sofrimento tanto para o indivíduo quanto para a sociedade: não pergunta se o comportamento é certo ou errado, bom ou ruim, doentio ou saudável. Sua preocupação é dirigida para o manejo das questões cotidianas e das práticas reais e sua validade é avaliada por resultados práticos. Essa abordagem estruturada na aceitação e na empatia apresenta semelhanças com outras filosofias e escolas de terapia; adota uma postura humanitária para lidar com o sofrimento humano seme­ lhante à da psicologia humanista de Cari Rogers, no que diz respeito a uma abordagem centrada no cliente. Tal abordagem prioriza as necessidades do cliente no desenvolvimento de programas e serviços. Assemelha-se também à teoria de Abraham Maslow, quanto à hierarquia de necessidades huma­ nas, na qual não se trabalham as necessidades mais elevadas do indivíduo até que as básicas sejam atendidas. Ainda é compatível com a teoria da apren­ dizagem na psicologia e com sua aplicação em termos de terapias cognitivas e comportamentais.

Redução de Danos e Políticas Públicas A prática de redução de danos está intrinsecamente ligada às políticas públi­ cas dos locais em que são praticadas.

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Nos EUA, por exemplo, o objetivo é eliminar o uso de drogas por completo. Então, a política de controle de drogas tem sido caracterizada, principalmente, pela proibição, com abordagens de tolerância zero que estigmatiza, marginaliza e, muitas vezes, criminaliza de modo direto os usuários de drogas2. Os americanos, sobretudo os jovens, apresentam índices preocupantes de uso e abuso de substâncias. Frente a tal situação, os profissionais de saúde pública assumiram a liderança na promoção de redução de danos como alternativa para as abordagens políticas tradicionais. No entanto, a redução no uso continuou sendo a meta primordial da política de controle de drogas norte-americana e o progra­ ma enfatiza a redução da demanda, acreditando ser esta a estratégia mais efetiva da redução de danos e que menores danos ocorrem à medida que as drogas não sejam absolutamente usadas2. Em 1997, houve uma tentativa de diminuição das barreiras de entrada nos programas de tratamento para reduzir os problemas sociais e de saúde; porém, apenas esse procedimento não basta, pois no contexto da política muitos conti­ nuam distantes do tratamento - grande parte dos indivíduos com problemas com drogas são incapazes de se manter sóbrios - e as opções de tratamento continua­ ram vendo a abstinência total como único resultado aceitável. Conseqüentemente, os centros de tratamento acabam rejeitando os clientes que não conseguem parar de usar drogas, bem como aqueles que voltam a usá-las depois de um período de abstinência, ou seja, o tratamento continua sendo de alta exigência, porque as barreiras legais advindas das políticas proibitivas de controle de drogas continuam existindo2. Por outro lado, os partidários da redução de danos reconhecem a futilidade de tentar eliminar o uso de drogas por completo e se concentram na identificação da melhor forma de minimizar os danos decorrentes do uso, supondo que certas subs­ tâncias psicoativas são relativamente seguras; que as decisões de usar drogas não são imorais; e que os usuários não são criminosos de má índole, mas sim, indiví­ duos com hábitos mal adaptados que precisam de tratamento2. Com o exemplo dos EUA nota-se que as abordagens de redução de danos vão além das iniciativas para diminuir a prevalência do uso de substâncias, pelo reco­ nhecimento de que alguns indivíduos inevitavelmente serão incapazes, ou não estarão dispostos, de reduzir seus níveis de uso de drogas. Conclui-se, então, que se as estratégias de prevenção e tratamento com base na abstinência não apre­ sentam êxito com o subgrupo da população que não consegue se manter absti­ nente, estratégias de redução de danos inovadoras, como troca de seringas, substituição de substâncias e mudança de via de administração podem ser em­ pregadas para minimizar os efeitos adversos do uso2. Outra questão importante a ser esclarecida é que, diferentemente do que mui­ tos críticos desse modelo alegam, redução de danos não é legalização de drogas. Na “medicalização” as drogas seriam legalizadas, mas só estariam disponíveis para usuários dependentes com prescrição de um médico e as sanções de justiça cri­ minal continuariam sendo empregadas contra aqueles que comprassem ou ven­ dem drogas fora dos canais oficiais. Em outra classe de opções de política, conhecida como “descriminalização”, a posse, o uso e a distribuição de substâncias psicoativas continuariam sendo expressamente proibidas pela autoridade de lei

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(as drogas continuariam sendo ilegais), mas as penalidades pela violação seriam reduzidas, eliminadas ou cumpridas de modo seletivo, sob a condição de que a quantidade de droga estivesse abaixo de determinado nível considerado como apenas para uso pessoal16. Quando as penalidades criminais por violação das leis de drogas são oficial­ mente reduzidas ou eliminadas por meio de ação legislativa, a política é chamada de “descriminalização simples71ou “descriminalização de jure”17. Quando as pena­ lidades criminais continuam nos livros, mas os órgãos de cumprimento de leis têm considerável liberdade para decidir se irão cumpri-las ou não (particularmente as penas que se aplicam a substâncias consideradas menos aditivas ou ofensivas), a política é denominada “descriminalização de facto”1. Os holandeses adotaram esta opção política e a utilizaram na tentativa de “normalizar” os usuários de dro­ gas sem oficialmente aprovar o uso delas. Portanto, a normalização refere-se a uma política de descriminalização de facto1. Em graus variados, as intervenções de redução de danos são compatíveis com todas as opções de políticas de drogas, inclusive com a proibição. Por exemplo, sob uma política de “medicalização”, os dependentes poderiam reduzir o risco de infecção e de overdose pelo acesso a seringas esterilizadas e usar drogas de quali­ dade e pureza conhecidas. Além disso, a “medicalização” colocaria os dependen­ tes em contato com recursos de saúde e sociais que, de outra forma, poderiam não utilizar2. De modo geral, quanto mais distante da proibição total, mais fácil é imple­ mentar estratégias que visem reduzir os danos relacionados às drogas.

Redução de Danos para Problemas Associados ao Álcool O excesso do uso de bebidas alcoólicas tem sido associado a uma variedade de conseqüências prejudiciais como acidentes de trânsito e morte, comportamento sexual não seguro, suicídio, violência doméstica, crime, bem como doenças hepá­ ticas, pancreatite, complicações cardiovasculares, certos tipos de câncer, compli­ cações endócrinas e neurológicas, entre outras. Em 1990, nos EUA, os gastos diretos e indiretos estimados em decorrência do álcool totalizaram 99 bilhões de dólares. Diante dessa situação, quaisquer intervenções que ajudem a minimizar o quadro deveriam ser consideradas de grande valia2. A filosofia da RD desenvolvida a partir da preocupação com os usuários de drogas ilícitas também é aplicável a problemas com álcool18. Os danos podem ser reduzidos com o ensino de habilidades, modificação do ambiente e promoção de políticas para reduzir os riscos da bebida. Embora essa abordagem relacionada ao álcool tenha sido identificada com o beber controlado, a redução de danos para os problemas com álcool não se limita às abordagens clínicas ou programas de treinamento de automanejo; mudanças no ambiente físico e social também po­ dem ser implementadas19junto com mudanças nas políticas públicas que visem a minimizar os danos18. Mesmo quando a abstinência é a meta do tratamento de dependência de ál­ cool, a redução de danos pode ser aplicada para reduzir a freqüência ou a intensi­ dade das recaídas; os programas de prevenção de recaída incluem procedimentos

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de prevenção terciária para reduzir as conseqüências prejudiciais20. A redução de danos também pode ser utilizada como prevenção secundária de problemas com álcool por meio de metas de moderação. A RD estimula uma abordagem de diminuição gradativa para reduzir as con­ seqüências prejudiciais do álcool ou das drogas. Quando o dano é reduzido pro­ gressivamente, os usuários podem ser incentivados a atingir submetas rumo à moderação ou à abstinência2. Os modelos de doença e moral vêem os acoólicos como impotentes para con­ trolar seu consumo e consideram a abstinência total o único meio de recupera­ ção. A RD, em contraste com tais crenças, oferece um modelo alternativo por meio de evidências de que o mau uso do álcool representa uma escala contínua de pro­ blemas, e não um estado doentio dicotômico21 e procura facilitar o movimento ao longo de um continuum de conseqüências do uso de álcool, indo das mais às menos negativas. A abstinência pode ser considerada como um ponto de segu­ rança de danos mínimos, mas qualquer movimento em direção à redução de danos tem apoio20. Uma das maiores vantagens desta inovadora abordagem é seu potencial para au­ mentar a participação nos serviços de tratamento e prevenção15. Há evidências de que a maioria dos acoólicos nunca fez contato com qualquer tipo de programa de auto-ajuda ou tratamento22. Esses indivíduos nunca tratados podem conhecer o que os programas tradicionais oferecem e não se identificar com a filosofia de alta exigência e, pela falta de outras opções, ficarem sem motivação para fazer mudanças no hábito de beber. A possibilidade de uma variedade de serviços propostos pela redução de danos - incluindo moderação como alternativa - pode fazer com que mais pessoas procu­ rem ajuda. Uma variedade de modalidades e metas de tratamento pode aumentar a motivação para mudar o hábito de beber em bebedores em estágio de pré-contemplação ou contemplação de mudança23. 0 Canadá, a Austrália e a Europa oferecem programas de tratamento de “beber controlado” que acabam atraindo clientes que não se interessam por programas fundamentados na abstinência24. Marllat e cols.2fizeram uma revisão nas pesquisas de tratamento com consu­ mo controlado e treinamento em moderação com dependentes de álcool e apre­ sentaram quatro conclusões principais: 1. Mesmo em programas de tratamento orientados à abstinência, alguns clien­ tes optam e atingem metas de moderação: os dados sugerem que muitos pa­ cientes não conseguem atingir abstinência contínua e nem moderação após um tratamento com base na abstinência. 2. Mesmo quando treinados a beber controladamente, muitos dependentes de álcool optam pela abstinência. Com o tempo, as taxas de abstinência (com­ paradas com o "beber controlado”) tendem a aumentar 3. O oferecimento de metas opcionais tende a resultar em m aior retenção no tra­ tamento e recrutamento de uma faixa mais am pla de consumidores proble­ m áticos, sem au m en tar o risco de recaída p ara estados de consum o descontrolado de álcool 4. As características do cliente, a escolha de metas e a severidade da dependên­ cia podem estar relacionadas com o resultado do tratamento (abstinência,

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entre outras complicações mais sérias como dificuldade em respirar. Nos casos em que o paciente está motivado a manter a abstinência, essa medicação é uma boa opção, desde que a dose diária seja monitorada em conjunto com o trata­ mento psicossocial2. O naltrexona (ReVia) também tem sido usado para tratamento de problemas com álcool e as pesquisas sugerem que ele pode reduzir a fissura e o prazer ou reforço positivo do álcool, além de aumentar o senso de autocontrole ao beber. Ele reduz a gravidade e a freqüência de episódios de consumo, mas não aumenta as taxas de abstinência a longo prazo, o que torna seu uso uma estratégia viável de redução de danos2. O acamprosato também é um medicamento que ajuda a reduzir o consumo de álcool, propiciando maior quantidade de dias de abstinência; também se su­ geriu que ele pode diminuir o desejo de álcool25. Foi demonstrado que esse me­ dicamento não reduz a intensidade dos episódios de consumo, que parece reduzir a freqüência de consumo e aumentar a abstinência geral, por isso pode ser a opção mais indicada para indivíduos que desejam se abster, ao passo que naltrexona pode ser mais adequado para aqueles que desejam mo­ derar o consumo2. O uso de ansiolíticos, especificamente a buspirona ou de algum inibidor de recaptação de serotonina seletivo para tratar dependentes ou abusadores de álcool que apresentam ansiedade ou transtornos depressivos, é compatível com uma abordagem de redução de danos, pois se a medicação e/ou terapia pode reduzir os sintomas de depressão ou ansiedade, isso pode ser suficiente para reduzir o uso de álcool a níveis não problemáticos2.

Políticas de Redução de Danos Relacionadas ao Álcool Cada vez é maior a atenção para a implementação de políticas que se mos­ trem efetivas na redução de danos relacionada ao álcool. Essas políticas ten­ dem a se concentrar na restrição de acesso ao álcool ou punir legalmente comportamentos prejudiciais específicos, procurando diminuir o consumo perigoso2. São elas: • Idade legal m ínim a para beber, nos EUA, esta política determina 21 anos como idade mínima para beber. Isso resulta em menor consumo do que resultaria uma idade mínima mais precoce, como no Brasil, que é 18 anos e em menor consumo após tal idade, além de ter sido associada a meno­ res níveis de ferimentos não fatais em acidentes de trânsito associados ao álcool26. • Legislação por dirigir embriagado: procura impedir que os indivíduos diri­ jam depois de beber; inclui limites de álcool no sangue acima dos quais se considera que o motorista está alcoolizado; leis administrativas de suspen­ são de carteira; leis de tolerância zero, tornando criminoso o fato de dirigir depois de beber; sentenças de prisão obrigatória por dirigir alcoolizado. Esta política vincula-se à queda do número de mortes em acidentes de trânsito ligados ao álcool2. De acordo com o Novo Código de Trânsito Brasileiro, o

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• •

indivíduo que apresentar 0,6g de álcool por litro de sangue ou mais estará proibido de dirigir e o uso do bafômetro passou a ser obrigatório em casos de suspeita de embriaguez. Dirigir embriagado é considerado pena gravíssima, acarretando perda de 7 pontos na carteira do motorista, multa e podendo resultar em pena de prisão. Leis de responsabilização dos provedores de bebidas alcoólicas: proíbem que se sirva álcool a indivíduos alcoolizados e menores. Pesquisas sugerem que a maior fiscalização das leis de responsabilização de quem serve ál­ cool resulta em maior obediência a essas leis, o que corresponde à redu­ ção de danos relacionados ao álcool27. Restrições às vendas e aos vendedores de bebidas: por exemplo, restringir o horário de funcionamento de bares, o número de revendedores em uma área particular e os tipos de estabelecimento que podem vender bebidas alcoólicas2. Tributação e aumento de preço: aumentar os preços pode ser um meio de diminuir o consumo e os danos relacionados a ele, principalmente em usuários menores2. Controle local e intervenção comunitária: a intervenção comunitária é um meio de aumentar a consciência e o cumprimento das leis que regularizam a responsabilidade dos provedores, como a idade mínima legal para beber e o ato de dirigir alcoolizado, bem como uso de medidas de controle local como zoneamento de leis e permissões para uso condicional, para contro­ lar a disponibilidade de álcool sem recorrer à assistência de órgãos de con­ trole de bebidas alcoólicas2.

Mudanças ambientais também podem ajudar a reduzir os riscos associados à bebida, como tentativas de tomar bares, automóveis e estradas mais seguros, estra­ tégias para evitar o dirigir embriagado, programas de fornecimento de transporte gratuito para clientes alcoolizados e programas de designação do motorista2. Na Escócia, por exemplo, ocorreram mudanças nos copos, objetivando redu­ zir os ferimentos em caso de brigas nos bares: os copos se esmigalham, em vez de se estilhaçarem em cacos afiados28.

Redução de Danos no Uso de Cigarros e Nicotina O uso do tabaco e da nicotina apresenta muitas implicações para a saúde. A nicotina, por sua vez, é uma substância altamente adictiva, porém diferente da maioria das outras drogas de abuso: seus efeitos são sutis, não provoca importan­ tes mudanças de comportamento, não causa “blecautes” ou perda de memória e não faz com que, sob seus efeitos, os fumantes apresentem sinais de prejuízo físico ou emocional29. Seus danos incidem sobre os próprios usuários e aparecem sob forma de privações econômicas decorrentes do tratamento de doenças e de dimi­ nuição do tempo de vida2. Contudo, não é apenas a nicotina presente nos cigarros que causa problemas; muitas doenças que acometem fumantes são provocadas pelo alcatrão, pelo mo­ nóxido de carbono e por outras substâncias presentes nos cigarros2.

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Em relação à RD, qualquer estratégia que reduza o uso, como prevenção e abstinência, são válidas e, como já mencionado, tende a oferecer condições mais criativas, com base na crença de que muitos indivíduos irão continuar usando a substância e, para melhorar a saúde e o bem destes, são necessárias iniciati­ vas políticas ou comportamentais. Embora as estratégias de redução de danos aplicadas ao uso de nicotina não tenham recebido muita atenção de pesquisas, existem quatro áreas gerais de mu­ dança potencial, estabelecidas por Marllat2: 1. Limitação da oferta: a restrição do acesso aos produtos com nicotina parece ser um modo regularmente produtivo de reduzir o tabagismo; logo, restrin­ gir a disponibilidade física do produto e aumentar o preço dos cigarros destacam-se por reduzir o consumo; seus efeitos atingem fumantes ativos e parecem ser maiores entre fumantes mais jovens (faixa etária de prevalência do uso). Estudos mostram que, quando as leis referentes à venda de produ­ tos do tabaco a menores são cumpridas, as vendas podem ser reduzidas con­ sideravelmente, diminuindo a prevalência do tabagismo entre adolescentes. O uso de nicotina também pode ser afetado reduzindo-se situações e ambien­ tes nos quais fumar é aceitável. Atualmente, é comum não ser permitido fu­ mar em locais de trabalho, ambientes públicos fechados e em alguns estabelecimentos comerciais. As práticas publicitárias da indústria de taba­ co têm sido bastante criticadas e existe significativa preocupação quanto às campanhas de marketing direcionadas a adolescentes, por constituírem a maior parte dos novos consumidores2. No Brasil, a propaganda de cigarros é permitida em rádio e televisão no horário compreendido entre 21 e 6 horas; propagandas e embalagens devem apresentar advertência falada ou escrita a respeito dos malefícios do fumo. Vale ressaltar que dificultar acesso e dis­ ponibilidade dos produtos do tabaco, limitar a publicidade e afastar as crian­ ças de seu foco, assim como aumentar os preços e restringir a disponibilidade física, provavelmente resulte na diminuição do tabagismo e, portanto, na promoção de saúde pública30. 2. Mudar a natureza dos produtos que contêm nicotina: a redução de alcatrão e nicotina do cigarro tem sido praticada há alguns anos, porém não existem dados mostrando que fumantes de marcas com baixos teores tenham me­ nor risco de adoecer31. Além disso, cigarros de baixos teores de nicotina e alcatrão não são aceitos por grande parte dos fumantes. Existe também a prática de manter a nicotina e reduzir o alcatrão; se os níveis de alcatrão forem reduzidos, talvez haja benefícios à saúde pública. Esta abordagem é compatível com a filosofia de redução de danos, na medida em que a de­ pendência não seria o foco e, sim, a minimização dos danos associados, mas isso nunca foi avaliado cientificamente31. Os efeitos a longo prazo do consu­ mo controlado e a mudança de marca precisam ser avaliados, porque po­ dem resultar algumas mudanças dessas estratégias, mas os benefícios potenciais à saúde são quase totalmente descartados2. 3. Mudar as práticas do uso para reduzir danos: para muitos fumantes, a meta mais acessível é reduzir o uso; no entanto, não existem evidências que cor­ roborem um nível seguro de uso do tabaco29. A quantidade de tabaco consu-

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mida está relacionada com a quantidade de problemas associados e taba­ gismo é perigoso, mas reduzir o uso pode gerar alguns benefícios. Interven­ ções de tabagismo controlado foram testadas e apresentaram êxito, porém enfrentaram muitas críticas, como a idéia de que os benefícios à saúde po­ deriam ser muito pequenos, que seria difícil manter a redução da taxa de nicotina e, principalmente, que os indivíduos que tentariam controlar o con­ sumo pudessem tender a não tentar parar de fumar no futuro. 4. Reposição de nicotina: parece ser a estratégia mais compatível com a redu­ ção de danos, apesar de ter sido estudada de maneira limitada. Os desagra­ dáveis sintomas da abstinência representam um obstáculo à tentativa de parar de fumar. Entretanto, a reposição de nicotina permite ao fumante mudar o hábito com poucos ou nenhum sintoma de abstinência. A nicotina utilizada sob cuidados clínicos apresenta poucos riscos e pode ser retirada completamente, extinguindo o hábito de fumar. Foram desenvolvidas di­ versas técnicas de reposição de nicotina. A mais antiga é a goma de nicotina, que pode ser adquirida em qualquer farmácia e apresenta melhores resulta­ dos quando associada a algum tipo de programa de tratamento. Existem tam­ bém os transdérmicos, o inalador de nicotina, o aerossol nasal e as pastilhas de nicotina, alternativas promissoras e compatíveis com as ações redutoras de danos; estas últimas não são encontradas no Brasil2. Com certeza, parar de fumar é a estratégia mais efetiva de todas. No entan­ to, não se conhece em que grau os programas de redução de danos podem ser integrados às iniciativas para fazer com que as pessoas parem de fumar. Há muito o que conhecer e estudar sobre a aplicação dos princípios de redução de danos ao fumo e uso de tabaco em geral. As intervenções motivacionais parecem ser mais apropriadas àqueles que não estão dispostos à abstinência e as intervenções breves e de auto-ajuda fazem mais sentido para os menos de­ pendentes, sem comorbidades. A redução de danos pode ser abordada como uma estratégia adicional2.

Redução de Danos para Uso e Abuso de Substâncias Ilícitas Os danos associados a drogas ilícitas que podem ser minimizados manifestam-se em vários aspectos: pessoal, incluindo riscos à saúde, financeiros, legais; diminuição da eficiência em diversas áreas, como profissional e familiar; conflitos interpessoais, tráfico e crimes cometidos a fim de obter drogas, o que diminui a segurança da comunidade2. Muitas vezes, os principais riscos para um indivíduo estão mais ligados aos meios pelos quais a substância é consumida ou administrada que aos seus efeitos farmacológicos. Certas vias de administração podem ser fisiologicamente mais perigosas e mudar a forma de consumo pode reduzir riscos à saúde, quando a abstinência não é um resultado imediatamente alcançado.

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A substituição de substância por outra menos nociva ou, pelo menos, em forma menos potente, é outra alternativa, pois permite que se reduza o potencial de dependência e riscos associados.Um indivíduo que apresente graves sinto­ mas de abstinência pode utilizar uma substância menos perigosa e com menos potencial adicto para substituir a droga de escolha, como, por exemplo, substi­ tuir a heroína pela metadona. Porém nem todo dano é eliminado, uma vez que podem ocorrer riscos associados à substância alternativa, mas para indivíduos com dificuldade de levar a vida sem drogas, abordagens intermediárias como esta podem ser praticadas2.

Opiáceos Dentre os opiáceos estão heroína, morfina, ópio; metadona; analgésicos, como oxicodona (Percodan), cloridrato de meperidina (Demerol), cloridrato de hidromorfina (Dilaudid) e codeína, além de drogas produzidas em laboratório, como o fentanil. A dependência de opiáceos é menos comum do que a de outros tipos de dro­ gas, mas os efeitos são generalizados. Além dos efeitos nocivos da droga incidirem sobre os dependentes e suas famílias, a dependência afeta a sociedade pelos atos criminosos cometidos pelos usuários com o intuito de conseguir dinheiro para adquirir a droga. A metadona é um opiáceo de ação mais prolongada, com curva mais lenta e suave do efeito psicoativo; sua meia-vida é mais longa, permitindo que depen­ dentes a administrem com menos freqüência. É um opiáceo sintético que previne sintomas de fissura e abstinência de opiáceos, bloqueia os efeitos eufóricos de outros opiáceos, criando tolerância cruzada. A metadona quase sempre é admi­ nistrada por via oral. Ela é menos tóxica que a maioria dos opiáceos e os usuários sentem menos euforia e comprometimento, o que lhes possibilita prosseguir com suas metas de vida2. No início da década de 1970, com o crescente problema com drogas em diversos países, programas com metadona começaram a ser utilizados, o que durou pouco tempo pelas dificuldades encontradas na ocasião. No entanto, anos depois, quando o uso de drogas injetáveis foi reconhecido como impor­ tante via de transmissão de HIV e hepatite, o uso da metadona voltou a ser empregado e a metadona tem sido utilizada quase no mundo todo, para trata­ mento da dependência de opiáceos, atuando na redução da criminalidade, na melhoria da saúde física e psicológica dos dependentes e no desenvolvimento de estilos de vida mais produtivos2. Contudo, tal prática gera polêmicas. Algumas comunidades não querem os programas por perto com receio de “vadiagem” por parte dos usuários; existe o receio de substituição de dependência; pessoas em tratamento com a subs­ tância queixam-se de problemas de identidade por não serem consideradas nem viciadas nem "caretas”; as propriedades farmacológicas dessa droga não alteram o desejo por outras drogas; alguns dependentes de opiáceos evitam o

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uso de metadona por medo de efeitos colaterais negativos, outros alegam que sua retirada pode ser mais demorada e desconfortável que sua retirada. Embo­ ra as qualidades eufóricas da substância sejam bem menores do que as da he­ roína, algumas pessoas receiam que os indivíduos mantidos com metadona possam não ser capazes de cumprir suas funções profissionais ou dirigir em rodovias* Certas polêmicas referem-se a falhas genuínas, mas outras se devem à falta de informação. Por ser administrada oralmente, a metadona diminui os riscos à saúde como transmissão de HIV, hepatite B, endocardite, infecções da pele, deterioração de veias e abscessos. Os riscos de HIV por comportamento sexual também são me­ nores e os participantes HIV com manutenção de metadona demoram mais tem­ po para ser atingidos pelas doenças associadas à AIDS32. Mulheres grávidas apresentam menores riscos para os fetos33. Os bebês de mães mantidas com metadona têm menos peso ao nascer, mas não anormalidade notável de desenvolvimento2. Os programas de manutenção de metadona variam muito no mundo intei­ ro. Ela pode ser fornecida por hospitais, instituições para tratamento de drogas, médicos particulares e clínicas de metadona independentes. As unidades po­ dem se lucrativas, sem fins lucrativos e operadas pelo Estado. Na maioria dos países europeus e na Austrália, o fornecimento está ligado aos programas de saúde pública. As diferenças de fornecimento influenciam as taxas de retenção e êxito dos dependentes. Vale ressaltar que, no Brasil, a heroína ainda é muito pouco utilizada, segundo o Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas realizado pela Secretaria Nacional Anti-Drogas34: o uso foi de 0,1%, cerca de dez vezes menos que nos EUA (1,2%). Por tal motivo, não temos este tipo de prática característica dos países citados, mas vários fatores podem estar contribuindo para que a he­ roína seja a próxima droga a produzir danos sociais em nosso país. Existe uma tendência à expansão da droga além dos mercados tradicionais europeus, norteamericanos e asiáticos; evidências indicam que se começou a plantar ópio em vários países andinos e, provavelmente, a mesma rota de distribuição da cocaí­ na será empregada para a heroína; portanto, há muitas chances de se estender para o mercado brasileiro35. Em São Paulo, há muito tempo se sabia que uma parte da comunidade orien­ tal que habita a região central da cidade consumia heroína, embora fosse um con­ sumo localizado e somente de indivíduos dessa comunidade. Outros eventuais consumidores de heroína que chegavam aos serviços de usuários de drogas ou aos consultórios particulares haviam ido para a Europa ou EUA e ficado depen­ dentes da substância nesses locais mas, em 1997, foi identificado o primeiro caso de dependência de heroína na cidade: a pessoa não fazia parte da comunidade oriental, nunca havia saído do país e buscou ajuda profissional num serviço pú­ blico. Se casos como este continuarem surgindo em nosso país, pode-se estar dian­ te de uma nova onda de uso de drogas com conseqüências imprevisíveis para a saúde pública35. Um programa ideal recomendado por Marlatt2, com base em pesquisas35, para resultar em máxima redução de danos deve:

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• Promover um ambiente que favoreça a baixa rotatividade de pessoal. • Disponibilizar o tratamento a indivíduos dependentes de opiáceos que ainda não conseguem alcançar a abstinência. • Expandir a disponibilidade de serviços pelo fornecimento de metadona em unidades móveis ou consultórios médicos. • Quando não existirem vagas para tratamento, garantir admissão rápida e serviços provisórios, em vez de colocar as pessoas em listas de espera. • Permitir que o tratamento seja longo ou tenha duração indefinida. • Utilizar contratos de contingência e incentivos na forma de doses para le­ var para casa e vales. • Oferecer (mas não exigir) aconselhamento e treinamento vocacional e in­ centivar vigorosamente o aconselhamento para participantes com trans­ tornos mentais. • Utilizar, ao máximo, as informações dos participantes nas operações e polí­ ticas do programa. A manutenção de metadona é o tratamento mais bem estudado e de melhor êxito para dependência de opiáceos, porém existem outras substâncias utilizadas para tal como o 1-alfa-acetilmetadol (LAAM), a buprenorflna, a prescrição da pró­ pria heroína e a ibogaína2. A prescrição de heroína pode ser uma alternativa para dependentes de opiá­ ceos ficarem longe das ruas e das drogas ilícitas. A meta básica é prevenir as inje­ ções, mas como alguns indivíduos apresentam preferência por essavia, pelo menos podem utilizá-la num consultório médico, com seringa limpa e permissão. As dro­ gas também podem ser adquiridas em forma de cigarros e na forma oral: fumar a heroína em vez de injetá-la provoca menos riscos para a saúde. Assim, mudar a via de administração pode reduzir alguns riscos, como envolvimento em crimes e graves danos à saúde, como HIV.

Cocaína A cocaína pode ser usada por via nasal ou intravenosa e fumada. Ofree-basing é um método de rápida administração sem injeções intravenosas, pelo qual a co­ caína é fumada, tendo os adulterantes sido removidos por fervura com álcali ou éter. O crack, também fumado, é produzido misturando-se o pó da cocaína (cloridado de cocaína) com amónia ou água e bicarbonato de sódio, aquecendose a mistura para remover o cloridado, resultando em pequenas pedras que quei­ mam facilmente a temperaturas moderadas36. É o modo mais rápido de levar cocaína ao cérebro e os efeitos são sentidos em menos de 10 segundos, provocan­ do grande potencial de abuso. O uso de cocaína acarreta conseqüências negativas cardiovasculares, respira­ tórias, psiquiátricas e relacionadas ao Hiy neurotoxicidade e efeitos pré-natais. O tratamento ideal é empregar farmacoterapia combinada com terapia psico­ lógica e comportamental apropriadas37. Diversas terapias comportamentais fo­ ram desenvolvidas para o tratamento da dependência de cocaína, como prevenção

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de recaída, terapia neurocomportamental, manejo comunitário de reforço/con­ tingência, terapia cognitiva, exposição a estímulos e tratamento ambulatorial; to­ das apresentam a abstinência como meta2. Marllat e cols.2indicam algumas implicações para uma abordagem de redu­ ção de danos: • Levar em consideração a escala contínua do uso prejudicial no tratamento e pesquisa, que vai do uso experimental ao uso compulsivo. Além disso, mui­ tos indivíduos usam outras drogas e uma abordagem de redução de danos tende a procurar diminuir o uso conjunto de outras substâncias. • Aumentar a probabilidade de manutenção do sucesso terapêutico: os ser­ viços de tratamento não podem se restringir ao abuso de substâncias, mas sim englobar serviços psicossociais, tais como psicoterapia, terapia fami­ liar e orientação profissional e precisam ter duração suficiente para redu­ zir o risco de recaídas e melhorar a capacidade de os clientes funcionarem na sociedade38. • Fazer com que o acesso aos serviços seja tão fácil quanto o acesso às drogas.

Maconha Amaconha, assim como as outras substâncias de sua classe - haxixe e sensimila - são as drogas ilícitas mais usadas nos EUA39 e apresentam conseqüências negati­ vas aos usuários quanto à saúde, a questões psicológicas e sociais. No Brasil, o Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas realizado pela Secretaria Nacional Anti-Drogas (SENAD)34 identificou que o uso de maconha na vida aparece em primeiro lugar entre as drogas ilícitas: 6,9% dos entrevistados já a utilizaram. Comparando-se esse resultado a outros estudos, pode-se verificar que ele é bem menor do que em países como EUA (34,2%), Reino Unido (25,0%), Dinamarca (24,3%), Espanha (22,2%) e Chile (16,6%). Porém, su­ perior à Bélgica (5,8%) e à Colômbia (5,4%). O IV Levantamento Sobre o Uso de Drogas Entre Estudantes de l 9 e 2- Graus em 10 Capitais Brasileiras, realizado em 199734, identificou que a maconha está entre as seis drogas mais utilizadas pelos estudantes; que houve um crescimento de uso na vida estatisticamente significante. A comparação dos quatro estudos realizados mostra ter havido aumento no uso freqüente da droga. O tratamento para dependência dessa substância para os usuários que se en­ volvem em problemas interpessoais, ocupacionais e legais consideráveis deve ter a abstinência como meta. Uma abordagem de RD no manejo dos danos associa­ dos à maconha irá educar os usuários sobre os riscos potenciais num contexto de responsabilidade individual pelas decisões de uso2.

Alucinógenos As estratégias de redução de danos restringem-se ao uso de LSD (dietilamida de ácido lisérgico), agente psicodélico de uso mais comum e de peiote (mescalina) tradicionalmente empregado em cerimônias religiosas e espirituais2.

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As vias de administração de LSD incluem engolir, fumar, cheirar, injetar e ins­ tilação conjuntival de LSD líquido. As doses variam de 25 a 500mg e a droga tem meia-vida de 8 a 12 horas. A longo prazo, o uso pode provocar sintomas psicóticos prolongados, depres­ são, flashbacks, exacerbação de doenças mentais preexistentes ou o diagnóstico raro de “transtorno perceptivo alucinatório persistente” do DSM-IV2. Abordagens de redução de danos abrangem ampla educação sobre os efeitos dos alucinógenos - tanto os benefícios quanto os perigos do uso, salientando os fatores de risco para experiências alucinatórias desagradáveis, os efeitos psicoló­ gicos e fisiológicos, as descobertas das pesquisas e o encaminhamento a trata­ mento e grupos de apoio, pois se acredita que, se os usuários forem informados, os danos poderão ser evitados2. O peiote, cujo principal componente ativo é a mescalina, pode ser fumado, bebido ou administrado por via retal; considera-se sua meia-vida como 12 a 14 horas e tem o mecanismo de ação e efeitos semelhantes aos do LSD41. A intoxi­ cação pode causar mudanças na percepção, no pensamento, na emoção, no es­ tado vigil e na auto-imagem. O usuário geralmente mantém a capacidade de compreensão, e os sentidos permanecem inalterados durante a experiência. O “barato” atinge pico durante 4 a 6 horas, depois diminui. Os danos associados ao seu uso também diminuem com a divulgação de informações sobre os efei­ tos fisiológicos e psicológicos2. No Brasil, no ritual de algumas seitas religiosas como a União do Vegetal (UDV) e Santo Daime, utiliza-se um chá preparado com as plantas Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, que contêm potentes alucinógenos em sua composição: harmina, harmalina, tetra-hidro-harmalina e N,N-dimetiltriptamina (DMT). Os efeitos ini­ ciais pela ingestão são caracterizados por vertigens, náuseas, vômitos intensos, diarréia, palpitação, taquicardia, tremores, midríase, euforia e excitação agressi­ va. Os principais efeitos alucinógenos são alucinações visuais de animais, comu­ nicação com divindades ou demônios, vôo alugares distantes, dentre outros; esses efeitos tóxicos costumam ser subestimados e atribuídos ao processo de purifica­ ção da alma, pregado pelas seitas42. O uso de plantas em seitas religiosas é fundamentado em direito constitucio­ nal de liberdade de culto e religião e não há restrições sob o aspecto forense. Diante de tal problemática, fazem-se necessários o desenvolvimento de estudos referen­ tes às substâncias e a divulgação de informações sobre seu potencial tóxico, bem como seus efeitos fisiológicos, psicológicos e riscos associados ao uso42.

Drogas de Prescrição As drogas de prescrição geralmente são usadas com êxito no tratamento de saú­ de física e mental e apresentam benefícios terapêuticos comprovados. Entretanto, algumas pessoas empregam tais medicamentos por seus efeitos agradáveis e limi­ tar o acesso para o uso indevido é uma importante questão de saúde pública. As drogas de prescrição com propriedades psicoativas mal utilizadas incluem analgésicos, tranqüilizantes, estimulantes e sedativos.

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O abuso pode ser diminuído por intermédio de melhores práticas de prescri­ ção, facilidade de obediência ao tratamento, melhor relação entre médicos e pa­ cientes e orientação a médica sobre as conseqüências negativas do uso indevido do medicamento de forma objetiva e não punitiva2.

Anfetaminas e Drogas Relacionadas As anfetaminas e metanfetaminas, drogas produzidas em laboratório de ma­ nipulação (designers drugs) e esteróides não foram tão bem estudadas pela pers­ pectiva de redução de danos. Anfetamina e metanfetamina estimulam o sistema nervoso central com pro­ priedades psicoativas semelhantes às da cocaína, são mais baratas que esta e mais acessíveis aos jovens. No Brasil, o uso recreacional da metilenodioximetanfetamina (MDMA), uma versão quimicamente alterada das anfetaminas popularmente chamada de ecstasy (êxtase), tem sido identificado em vários pacientes que buscam tratamento para dependência de drogas nas clínicas de São Paulo. Embora a MDMA não seja uma droga nova, a maioria dos profissionais da saúde não tem conhecimento de seus efeitos físicos e psíquicos e das possíveis complicações decorrentes. Em termos de classificação, a droga estaria entre as anfetaminas alucinógenas, ainda que nas doses costumeiramente empregadas não produza alucinações43. No início do século XX, a MDMA foi sintetizada como um moderador de ape­ tite. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a substância passou a ter desta­ que na mídia pelo fato de alguns psicoterapeutas a considerarem útil no processo psicoterapêutico. No mesmo período foi divulgado que a MDMA estimularia as relações interpessoais, facilitaria a comunicação e a intimidade, aumentaria a autoestima e melhoraria o humor; com essas características hipotéticas, a droga co­ meçou a ser usada principalmente em locais onde música e dança se associam e passou a ser retratada, pela mídia, como a “droga do amor”43. A substância apresenta efeitos físicos e psicoativos; os efeitos estimulantes são notados depois de 20 a 60 minutos com pequena ingestão da droga (75 a lOOmg). Foram identificadas muitas complicações clínicas e psiquiátricas decorrentes do uso, potencialmente fatais, destacando-se a hipertermia e a hepatotoxidade43. Além dos riscos fisiológicos concretos da substância, as drogas manipuladas apresentam riscos relacionados ao próprio desenvolvimento, por se tratarem de experimentos químicos descontrolados. Dosagem e efeitos colaterais são imprevisíveis; portanto, os usuários devem ser advertidos sobre os riscos do con­ sumo de uma substância quimicamente modificada. Essas substâncias podem ser utilizadas por via oral ou injetável, por isso ten­ do alto risco de contaminação por HIV Para os usuários, talvez seja necessário enfatizar os efeitos prejudiciais da via intravenosa e incentivar a mudança para vias mais seguras2.

Anabolizantes Existem usos médicos legítimos para os anabolizantes, mas eles são muito empregados nos esportes, pelo potencial de aumento da força muscular, altera-

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Em nosso meio, foi necessário um grande esforço pessoal e institucional junto a organismos internacionais e nacionais, nas esferas federal, estadual e munici­ pal, universidades, organizações não-governamentais e serviços para aceitação e consolidação da RD, por não ter sido adequadamente entendida no âmbito legal e da opinião pública, chocando-se com o desconhecimento - ou negação - do problema, os precondeitos e a lei45. Fóruns, congressos, seminários e debates sobre o assunto, dirigidos às mais diferentes populações e instituições, foram e são fundamentais para dar visibilidade ao problema, à divulgação da estratégia e à obtenção de parcerias de trabalho. A experiência internacional tem demonstrado que os investimentos em pro­ gramas de redução de danos resultam em elevada relação custo/benefício, por reduzirem os gastos com assistência médico-hospitalar e farmacêutica em decor­ rência da prevenção de casos de AIDS e hepatite. No caso brasileiro, a avaliação de 12 Programas de Redução de Danos, em exe­ cução no período de 1996 a 1999, estimou que o custo médio anual de cada um desses projetos correspondia ao custo anual do tratamento de quatro casos de AIDS e que a prevenção de um único caso de AIDS, em cada grupo de 45 UDI assistidos por um Programa de Redução de Danos, já representava uma economia significativa, por ter custo inferior ao do gasto médio com assistência médica e farmacêutica de um infectado ou doente de AIDS45.

C onsiderações Finais Embora os tratamentos para dependência química tenham sido aprimorados e diversificados, a maioria deles continua tendo base na abstinência, fazendo com que aqueles que não querem ou não são capazes de deixar o uso acabem abando­ nando os serviços. Frente a esta situação e às conseqüências negativas do uso de drogas para os próprios usuários, familiares, amigos e para a sociedade, uma meta de RD de uso controlado ou moderado pode ser possível para esse subgrupo, mas não apropriada para todos os casos. Algumas pessoas podem ter um histórico tão problemático com o uso de uma substância particular, que evitar qualquer uso de substâncias pode ser a melhor opção para elas. Além disso, para certas substân­ cias (exemplo: crack) está claro que qualquer uso pode ser tanto perigoso quanto ilegal. Dependendo do histórico de problemas do indivíduo e dos danos inerentes a uma determinada substância, a redução no uso pode representar um resultado favorável, ou a moderação pode ser vista como um passo intermediário para a abstinência, o resultado mais valorizado do programa de RD, pois a abstinência elimina o risco de danos2.

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C A P ÍT U L O

Conceitos Básicos em Prevenção ao Abuso de Alcool e Outras Drogas C e l in a A n d r a d e P e r e ir a S e l m a B o r d in N e lia n a B u z i F

ig l ie

Existem algumas definições para prevenção que variam de acordo com as diferentes áreas de atuação onde preten­ demos trabalhar. Os principais significados semânticos para o termo prevenção, segundo o Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, são os seguintes: “1. Disposição ou preparo antecipado e preventivo. 2. Modo de ver antecipado; premeditação. 3. Opinião ou sentimento de atração ou de repulsa, sem base racional. 4. Precaução, cautela.” A partir desta definição mais ampla, os profissionais envolvidos com saúde (médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, fonoaudiólogos, etc.) definem prevenção como uma ação que oferece à comunidade a oportunidade de evitar o surgimento de problemas de saúde. Desta ma­ neira, a prevenção irá antecipar ações que fortaleçam o in­ divíduo para o enfrentamento de eventuais obstáculos que possam provocar danos à sua saúde. Como exemplo prático podemos citar as campanhas para evitar a proliferação da dengue, da AIDS e de tantas outras doenças cujo meio de contaminação pode ser con-

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trolado. No caso da dengue, as campanhas preventivas procuram evitar a prolife­ ração do mosquito transmissor da doença e, para isso, a população é instruída a combater seus focos. Mesmo as pessoas que não foram infectadas recebem ins­ truções de profissionais de saúde para eliminar o mosquito e os focos da doença, retardando e evitando o aparecimento de novos casos.

P rincipais M odelos OIOM (Institute of Medicine, EUA) propôs uma nova classificação para preven­ ção por meio de um relatório publicado em 1994, cujo sistema se baseia no modelo proposto por Qordon1. Para este autor, os cuidados preventivos podem ser dividi­ dos em três tipos, formando um continuum: prevenção, tratamento e manutenção. A categoria da prevenção subdivide-se em prevenção universal, seletiva e indicada. O sistema de classificação do IOM diferencia os programas de prevenção de acordo com a possibilidade de cada pessoa estar mais ou menos inserida em gru­ pos de alto risco para o uso de substâncias. Os fatores de risco são determinados pela associação de algumas características pessoais ou atributos do indivíduo, gru­ po ou meio ambiente e da crescente probabilidade da ocorrência de um transtor­ no ou doença em algum momento da sua vida6. Os fatores de proteção reforçam a determinação em negar ou evitar o uso nocivo de substâncias e podem inibir com­ portamentos autodestrutivos e situações que perpetuem o uso de drogas. As estratégias de prevenção universal são dirigidas à população em geral (co­ munidade local, nacional, escolar, etc.) e fornecem mensagens e programas cujo objetivo é prevenir ou retardar o uso nocivo de álcool, tabaco e outras drogas. As estratégias da prevenção seletiva dirigem-se aos subgrupos que constituem a po­ pulação de risco de uso de drogas - por exemplo, filhos de alcoolistas, escolas com altos índices de evasão, crianças em conflito com a lei. As estratégias da prevenção indicada são criadas para prevenir o início do uso nocivo de substâncias em indi‘ víduos que não são dependentes, mas mostram indicativos iniciais perigosos, como, por exemplo, insucesso escolar, comportamento delinqüente e consumo de álcool, tabaco ou outras drogas ilegais. Estes três tipos de prevenção têm como objetivos reduzir o espaço de tempo do desenvolvimento dos sinais iniciais do uso nocivo de substâncias e interromper a gravidade e a intensidade de progres­ são do uso nocivo de substâncias.

P revenção U niversal Dirige-se a toda a população e tem como objetivo atrasar ou prevenir a ocor­ rência de prejuízos à saúde, independentemente de o público-alvo apresentar ou não os sintomas que se pretende evitar ou retardar. Este tipo de prevenção está presente nas campanhas divulgadas na mídia pelos órgãos de saúde para evitar o aumento das epidemias. Para que a campanha seja mais efetiva é comum divulgála com auxílio de vários meios de comunicação: mídia impressa, rádio, televisão, manuais distribuídos nos postos de saúde, nas escolas, etc. A equipe de trabalho que participa desta campanha não precisa ser especialista em saúde, mas, sim,

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receber treinamento adequado. É fácil entender que esse tipo de prevenção será relativamente barato, se considerarmos seu amplo espectro de atuação. Por outro lado, como seu público-alvo não é bem definido, as campanhas de prevenção universal devem ser bastante amplas, abarcar a maior quantidade de variáveis possíveis da vida das pessoas e ser claras, de fácil compreensão, ter ampla divul­ gação e ser acessíveis a um grande número de pessoas.

Principais Características dos Programas de Prevenção Universal Os programas de prevenção universal possuem alguns pontos-chave em co­ mum, relacionados a seguir: • Não se limitam a fatores de risco individuais e são normalmente desenha­ dos para obter uma ampla audiência e atingir a população inteira. • Têm como objetivo a prevenção ou o retardamento do uso nocivo de subs­ tâncias psicoativas. • Os participantes não são selecionados para participar do programa. • Envolvem menor número de profissionais e menos tempo de desenvolvimento. • Os profissionais que compõem a equipe podem ser de diversas áreas, como professores ou conselheiros escolares que tenham sido treinados para a aplicação e desenvolvimento do programa. • Os custos por pessoa são menores do que nos programas de prevenção se­ letiva ou indicada, pois são estendidos a um público-alvo mais amplo.

P revenção S eletiva A prevenção seletiva dirige-se a subgrupos da população em geral, considerados sob maior risco. Procura descobrir os fatores que podem influenciar o desenvolvi­ mento de comportamentos prejudiciais à saúde para combatê-los. O público-alvo deste tipo de campanha é previamente selecionado de acordo com sua vulnerabili­ dade e, por isso, todos os que participam deste modelo de prevenção são conside­ rados "em risco”.Aequipe precisa ser habilidosa e especializada na área da prevenção. O custo por pessoa é mais caro que na prevenção universal, pois atinge uma quan­ tidade menor de pessoas, que requerem tratamento mais intensivo e cuidadoso.

Principais Características dos Programas de Prevenção Seletiva • Trabalham com subgrupos da população geral considerados em situação de risco quanto ao uso nocivo de substâncias. • Têm como objetivo a prevenção ou o retardamento do uso nocivo de subs­ tâncias psicoativas.

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• Os receptores da prevenção seletiva são recrutados para participar do pro­ grama de prevenção em virtude do perfil de risco do grupo. • O grau de vulnerabilidade ou risco pessoal dos membros do subgrupo-alvo normalmente não é o alvo principal da prevenção, cuja preocupação pri­ mária se relaciona apenas à identificação de subgrupos de risco. • O conhecimento de fatores de risco específicos dentro do público-alvo permite aos criadores do programa estabelecer objetivos compatíveis para reduzi-los. • São extensos e requerem mais tempo e esforço dos participantes do que o programa universal. • Necessitam de profissionais mais experientes e capacitados, que acabam tendo que abordar problemas relacionados à adolescência, aos familiares e à comunidade em situação de risco para o uso nocivo de drogas. • Seu custo individual é mais alto do que o do programa universal. As atividades dos programas estão normalmente mais envolvidas no dia-adia dos participantes e procuram trabalhar, de forma específica, suas habilidades sociais e de comunicação, fortalecendo, assim, seus recursos individuais para re­ sistir ao uso de drogas.

P r ev en çã o I n d ic a d a A prevenção indicada dirige-se a indivíduos que já apresentam sinais nega­ tivos em relação à saúde e tem como objetivo deter o progresso desses malefícios e solucionar sua causa, quando possível. Aborda os fatores de risco individuais e os problemas de comportamento. O paciente deve ser cuidadosamente avalia­ do e, seu tratamento, orientado a partir dos riscos individuais aos quais ele pos­ sa estar submetido. A equipe precisa ser bem qualificada e especializada em tratamento, pois lidará com questões extremas, podendo, em última análise, representar a última porta para a recuperação daquela pessoa. A prevenção indicada é bem mais cara que as demais, pois requer atenção individual.

Principais Características dos Programas de Prevenção Indicada • Público-alvo limitado a indivíduos que apresentam sinais iniciais de uso nocivo de substâncias e/ou comportamentos problemáticos relacionados (fatores de risco). • Procuram parar a progressão do uso nocivo de substâncias e outros trans­ tornos associados. • Os indivíduos são selecionados para esse tipo de prevenção. • Uma avaliação precisa do risco individual e dos problemas relacionados ao uso de drogas é essencial para o bom desenvolvimento destes programas. • São extensos e, muitas vezes, intensivos e necessitam de mais esforços dos participantes do que os programas seletivos ou universais.

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• Requerem, muitas vezes, a mudança de comportamento dos participantes para atingir seu objetivo. • Profissionais altamente qualificados, com treinamento clínico em acon­ selhamento e outras habilidades de intervenção, são indispensáveis para esse trabalho. • O custo dos programas por pessoa é muito maior do que o dos programas universais ou seletivos.

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Os programas de prevenção são organizados de acordo com o maior ou me­ nor risco da população-alvo para o uso de substâncias. A determinação de um grupo de alto risco se baseia na combinação dos fatores de proteção e dos fatores de risco, associados ao uso de substâncias psicoativas. Um fator de risco pode ser determinado pela associação de algumas características pessoais ou atributos de uma pessoa, grupo ou da comunidade à qual pertence e da crescente probabili­ dade da ocorrência de um transtorno ou doença em algum momento da sua vida. Os fatores de proteção protegem as pessoas, reforçando sua determinação em negar ou evitar o abuso de substâncias, inibindo comportamentos autodestrutivos e situações que perpetuem o uso de drogas. Nas escolas, normalmente são desenvolvidos programas de prevenção que incluem treinamento de professores, oficinas com os jovens e desenvolvimento de habilidades. Os programas de prevenção podem trabalhar, então, com agentes multiplicadores, orientando educadores para que sejam capazes de lidar melhor com os alunos que possam estar envolvidos com drogas. Existem, nas escolas, três linhas de atuação principais, a partir das quais os programas de prevenção são desenvolvidos: 1. Aumento do controle social. 2. Oferecimento de alternativas. 3. Educação. Essa última linha de atuação pode ser dividida, por sua vez, nos seguintes modelos: a. b. c. d. e. f.

Modelo do princípio moral. Modelo do amedrontamento. Modelo do conhecimento científico. Modelo da educação afetiva. Modelo do estilo de vida saudável. Modelo da pressão positiva do grupo.

A eficiência de cada um destes modelos depende de fatores como o públicoalvo a ser trabalhado, o envolvimento da escola e da família e os fatores de ordem econômica dos jovens a serem beneficiados. Por isso, é muito difícil defender um destes modelos sem considerar tais características.

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Aumento do Controle Social Esta linha parte do pressuposto defendido por Robert Du Pont3 de que o au­ mento do uso de drogas entre os jovens advém da recente e rápida diminuição do controle social exercido pelos adultos sobre o comportamento de tais jovens. Para o autor, a busca impulsiva e desenfreada pelo prazer, que determina o aumento da procura por drogas, não tem tido “punição” suficiente. A sociedade deveria aumentar o controle sobre os indivíduos e ser menos tolerante em relação ao uso de drogas, garantindo, assim, seu não-crescimento. Em termos de gerenciamento das escolas, esse tipo de proposta defende uma educação mais controlada e busca estabelecer regras e limites rígidos, relevando a “opinião” dos jovens. Em relação ao uso de drogas, o controle social prevê a proi­ bição e a extrema fiscalização do uso nas escolas, assim como o controle sobre quaisquer comportamentos considerados inadequados neste ambiente. Apesar das controvérsias que envolvem esse tipo de abordagem, tão limitador da autono­ mia das pessoas ele é muito usado nos EUA.

Oferecimento de Alternativas Esta linha de prevenção parte do pressuposto de que o abuso de substâncias psicoativas tem origem em problemas e tensões sociais enfrentados pelos jovens que recorrem à droga como escape das frustrações e pressões da vida. Os profis­ sionais envolvidos neste tipo de abordagem procurarão intervir nas condições sociais desfavoráveis que levariam ao uso de drogas. Existem, obviamente, vários fatores sobre os quais não podemos interferir, como desemprego, sistema educa­ cional inadequado e distante da realidade dos jovens, etc. No entanto, os profis­ sionais de saúde envolvidos na proposta de oferecimento de alternativas podem investir em: • Alternativas culturais, esportivas ou de lazer, nas escolas ou na comunidade. • Formação de grupos de jovens para discussão de problemas. • Formação de grupos de jovens envolvidos com os problemas escolares.

Educação Como dissemos, existem seis principais modelos de educação preventiva em relação ao abuso de drogas: • Modelo do princípio moral: relaciona o uso de drogas à condenação moral e ética. Está associado, geralmente, a grupos religiosos ou movimentos polí­ ticos. Atualmente, sua utilidade e pertinência têm sido negadas por profis­ sionais da área, havendo estudos que concluem serem contraproducentes, na maioria dos casos4. • Modelo do amedrontamento: prevê a utilização de fatos amedrontadores envolvendo o uso de drogas, como, por exemplo, as várias campanhas de

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prevenção universal divulgadas pela mídia, que expõem somente os aspec­ tos negativos da droga. O uso deste modelo é bastante questionável e tem trazido resultados muito decepcionantes. Segundo Negrete5, a tendência de os jovens se sentirem atraídos por comportamentos que envolvam o de­ safio ao perigo provavelmente explicaria o insucesso do modelo. Além dis­ so, a falta de credibilidade deste modelo também colaboraria para seu resultado indesejado: vários jovens, ao experimentar os efeitos provocados pelas drogas, verificam que essas informações “amedrontadoras” não cor­ respondem àquilo que sentem. Tais informações são confirmadas apenas nos casos de dependência crônica. Modelo do conhecimento científico: este modelo foi criado como resposta ao modelo anterior e propõe o fornecimento de informações legítimas, de modo imparcial e científico, sobre as drogas. O pressuposto era que, bem informados, os jovens poderiam tomar decisões racionais e bem fundamen­ tadas sobre elas. Infelizmente, os resultados obtidos com este modelo fo­ ram bastante desanimadores, pois, apesar da informação correta, o consumo de drogas pelos jovens não diminuiu. Isso parece ocorrer pelo fato de as informações imparciais sobre as drogas influírem de duas maneiras na vida do jovem: 1. para os que já fazem uso, elas oferecem maior conhecimento formal, o que não significa mudança de atitude ou comportamento; 2. para os que não usam por temerem seus efeitos, o conteúdo dessas informações pode servir para diminuir o medo e a tensão, possibilitando uma mudança de atitude e comportamento favorável ao uso de drogas. Modelo da educação afetiva: este modelo busca modificar fatores pessoais como auto-estima, habilidades de comunicação, de enfrentamento, e so­ ciais, bem como trabalhar seus recursos para negar o uso de drogas. A droga não é tratada como questão central, é apenas um dos temas destes progra­ mas, cuja eficácia é bastante questionada, já que não existem muitos estudos que a confirmem. Muitos trabalhos relatam um impacto positivo sobre as deficiências pessoais dos alunos, mas, infelizmente, não se verifica a dimi­ nuição do uso de drogas67. Outro ponto relevante diz respeito à dificuldade de aplicação desta estratégia nas escolas. Este tipo de instituição é extrema­ mente conservador e tem muito pouca tolerância à mudança58. Para que o trabalho seja bem-sucedido, os professores precisam passar por um intenso treinamento e estar dispostos a estabelecer uma dinâmica diferente na sala de aula e na escola. Modelo do estilo de vida saudável: este modelo valoriza o estilo de vida sau­ dável, em que o não-uso de drogas entra como um dos fatores que garan­ tem a boa saúde do jovem. Desta maneira, são trabalhados aspectos saudáveis de suas vidas, como alimentação balanceada, controle de peso, do colesterol e da pressão arterial, prática de esporte e outros aspectos que possam garantir uma vida saudável. Na França, esta proposta tem sido tra­ balhada em sala de aula, onde se discutem vários problemas advindos da vida moderna e estratégias para superá-los9. Modelo da pressão positiva de grupo: este modelo se baseia na “força do grupo”, identificado como forte fator de risco para o uso de drogas. Este

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mesmo fenômeno pode, por outro lado, ser utilizado de maneira pre­ ventiva. Líderes jovens, treinados, podem exercer “pressão” benéfica so­ bre seus colegas no que diz respeito a atitudes saudáveis de afastamento das drogas.

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Os fatores de risco e de proteção se relacionam positiva ou negativamente com o envolvimento ou não de uma pessoa com o uso de drogas. Fatores de risco são características variáveis ou eventos que, se presentes em um indivíduo, fazem com que ele tenha mais probabilidade de desenvolver o uso de drogas. Fatores de pro­ teção são aqueles que aumentam a resistência ou fazem com que o envolvimento do indivíduo com o uso de substâncias seja menos provável. Existem vários fatores de risco para o uso de drogas; cada um representa um desafio ao desenvolvimento psicológico e social do indivíduo, causando um im­ pacto diferente em cada fase do desenvolvimento. 1. Fatores de risco individuais e interpessoais: baixa auto-estima, genética, bus­ ca de sensações, agressividade, problemas de comportamento, excesso de timidez, rebeldia, alienação, fracasso escolar, pouco comprometimento es­ colar, etc. 2. Fatores de risco relacionados ao grupo: proximidade com indivíduos que usam álcool e outras drogas; amizade com crianças rejeitadas; ligação com jovens que se envolvem em atividades delinqüentes; pressão de amigos para o uso de substâncias, etc. 3. Fatores de risco ligados à fam ília: pais dependentes; permissividade dos pais em relação ao uso de álcool, tabaco e outras drogas; falta de disciplina dos pais; padrões de comunicação negativos; conflitos na família; estresse ou disfunção causados por trauma de morte; divórcio; prisão dos pais; baixa renda; ausência de suporte para lidar com problemas familiares; rejeição familiar; falta de acompanhamento de adultos em relação às atividades das crianças; falta de rituais familiares (como férias da família). 4. Fatores de risco ligados à escola: falta de suporte para valores e atitudes positivos; disfunção escolar; altas taxas de uso nocivo de substâncias; bai­ xa auto-estima de estudantes e professores; ambiente escolar pouco encorajador para a abstinência; falta de envolvimento entre professores e alunos; falta de envolvimento da escola com o processo de aprendiza­ do dos alunos; fracasso escolar; falta de oportunidades de envolvimento e recompensa (como regras e normas injustas e pouco claras em relação à proibição ao uso de drogas). 5. Fatores de risco ligados à comunidade: altas taxas de criminalidade; alta den­ sidade populacional; deterioração física; alta disponibilidade de drogas; va­ lores e atitudes comunitários ambivalentes ou que favoreçam o uso de drogas; disfunção da comunidade; falta de instituições comunitárias atuan­ tes; falta de envolvimento na comunidade; falta de oportunidades para o envolvimento de jovens em atividades positivas; altas taxas de uso nocivo

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de substâncias; pobreza e falta de oportunidades de emprego; facilidade na obtenção de álcool ou drogas e falta de mobilidade e suporte social. É importante notarmos que os fatores de proteção não são o oposto dos de risco. Eles variam ao longo do processo de desenvolvimento, podendo ser, de acor­ do com um momento específico, mais ou menos relevantes. Listamos a seguir os principais fatores de proteção: 1. Fortes laços com a família. 2. Pais presentes, que acompanham a vida dos filhos, oferecendo a eles regras claras de educação. 3. Sucesso escolar. 4. Fortes laços com instituições sociais como a família, a escola e organizações religiosas. 5. Adoção de normas convencionais claras e únicas sobre o uso de drogas. Parece existir também um outro tipo de característica que protege as pessoas em relação ao uso de drogas. Algumas delas, apesar de estarem expostas a diver­ sos fatores de risco e terem poucos ou nenhum fator de proteção, não desenvol­ vem problemas com substâncias. Uma espécie de componente de personalidade garante seu não-envolvimento com atividades ilícitas, violência ou problemas comportamentais. A essa característica deu-se o nome de resiliência. Essas pes­ soas seriam protegidas por maior resiliência. A partir do conhecimento dos fatores que podem proteger ou expor as pes­ soas diante do que se pretende prevenir, podemos desenhar os programas de prevenção de modo a reforçar alguns aspectos de sua vida (fatores de proteção) e a combater outros (fatores de risco) que possam ser prejudiciais. Pode-se no­ tar que esses fatores se relacionam a diferentes aspectos da vida de uma pessoa: relacionamento familiar, relacionamento entre amigos, ambiente escolar e am­ biente comunitário. Estes aspectos são chamados de domínios pelos profissio­ nais de prevenção. Quanto mais domínios da vida da pessoa um programa de prevenção conseguir abarcar, mais completo e efetivo ele será. A seguir, são apre­ sentados alguns exemplos para compreendermos melhor a importância de cada um deles na vida das pessoas.

Relacionamento Familiar Os programas de prevenção podem fortalecer os fatores de proteção entre crianças pequenas, ensinando aos pais habilidades para melhorar a comuni­ cação e a disciplina, bem como a aplicar leis e regras consistentes e outras ha­ bilidades necessárias para tornar o ambiente familiar o mais acolhedor possível. Pesquisas também mostraram que os pais devem ter maior participação na vida dos filhos, como, por exemplo, falar com eles sobre drogas, acompanhar suas atividades, conhecer seus amigos e compreender seus problemas e suas preocupações.

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Relacionamento entre Colegas Os programas de prevenção devem focalizar o relacionamento de cada um com seus amigos, desenvolvendo competência social e habilidades que promo­ vam melhora no relacionamento, na capacidade de comunicação, e na recusa diante da oferta de drogas.

Ambiente Escolar Os programas de prevenção também têm como objetivos o desempenho aca­ dêmico, o estreitamento dos laços entre a escola e o aluno, proporcionar maior identidade e capacidade de realização e reduzir o abandono escolar. A maior par­ te dos programas inclui a valorização dos relacionamentos entre os colegas (como já descrito) e da educação. Pesquisas mostram que a criança tende a evitar o uso de drogas quando conhece seus efeitos negativos (físicos, psicológicos e sociais) e percebe a desaprovação do uso de drogas de seus colegas e da família.

Ambiente Comunitário Os programas de prevenção na comunidade trabalham com organizações cívicas, religiosas e governamentais. Seus objetivos devem incluir a criação de novas leis ou melhoria das que já existem, além de restrições de propaganda e segurança nas zonas escolares, de forma a garantir um ambiente limpo, seguro e livre de drogas.

P revenção a o A buso de Á lcool e O utras D rogas nas E mpresas Os programas de prevenção nas empresas ainda são poucos. É preciso que os empresários se convençam de que prevenir e tratar problemas relacionados ao abuso de álcool e outras drogas diminuem os custos e melhoram a produtividade. Um estudo conduzido pelos National Institute on Drug Abuse (NIDA) e National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) estimou o custo econômico do abuso de substâncias em US$ 246 bilhões, no ano de 1992. Dos prejuízos rela­ cionados ao álcool, a perda de produtividade contou com dois terços dos prejuí­ zos relacionados às drogas; o crime contribuiu com mais da metade10. O absenteísmo (principalmente por atestados médicos), os acidentes, a queda de produtividade e a sobrecarga do sistema de saúde guardam relação direta com o con­ sumo de álcool e com a diminuição da qualidade de vida do trabalhador. O absenteísmo, com faltas justificadas por atestado médico ou não justificadas, é maior em casos de indivíduos com problemas de alcoolismo. Em razão dos efeitos depres­ sores do álcool no sistema nervoso central, têm sido atribuídos aos alcoolistas índices de acidentes no trabalho até três vezes maiores do que os atribuídos aos não-alcoolistas, principalmente no início da tarde. AViação Ouro e Prata, do Rio Grande do Sul, en­ controu forte relação entre exames de alcoolemia positivos (feitos com “bafômetro” em motoristas de ônibus de passageiros) e acidentes de grande monta e danos pessoais11.

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A prevenção ao abuso de substâncias e os programas de intervenção breve demonstraram efeitos positivos no ambiente de trabalho, como redução do uso, aumento da “moral”, da freqüência, da produtividade e da coesão da empresa e da comunidade10. Na experiência brasileira, a Reduc/Petrobras relata que dependen­ tes de álcool e outras drogas faltavam 162 dias por ano com atestado médico antes do tratamento, contra 89 dias por ano após 18 meses de tratamento (redução de 45,1%). A Companhia Minuana de Alimentos (RS) estudou um grupo de 16 alcoolistas 1 ano antes e 1 ano depois do tratamento, e observou que as faltas pas­ saram de 126 para 42 dias por ano (redução de 64%). AViação Ouro e Prata (RS) adotou, em 1990, o sistema de exame de alcoolemia em motoristas e houve redu­ ção a quase zero desse tipo de acidente com o passar dos anos, o que coincidiu com igual redução do número de exames positivos. A Reduc/Petrobras detectou redução de 80% nos acidentes causados por alcoolistas dentro e fora da empresa após o tratamento11. Em 1988, o Congresso americano aprovou o Ato Anti-Abuso de Drogas, abran­ gendo também as empresas. A lei diz que as empresas que quiserem ter contra­ tos de negócios superiores a 25 mil dólares com o governo federal precisam comprovar que mantêm um ambiente livre de drogas, ou seja, que proíbem seus funcionários de tomar parte na produção, distribuição, posse ou uso de subs­ tâncias controladas no local de trabalho6. Com isso, muitos empregadores se motivaram a iniciar e a manter programas modelados com base nos cinco ele­ mentos descritos: • • • • •

Desenvolvimento de uma política escrita abrangente. Treinamento de supervisores. Educação dos empregados. Disponibilidade de programas de assistência. Identificação de usuários de drogas ilícitas, incluindo testagem monitorada de forma controlada e cuidadosa.

No Brasil, os programas seguiram uma trajetória diferente daquela dos ameri­ canos, dos quais a maioria foi copiada. Podemos distinguir três momentos11: • No primeiro, os programas seguiram o modelo conceituai de doença e até hoje são os mais utilizados. São programas implantados na empresa, pelo serviço social ou de medicina, com treinamento de chefias paia identificação do empregado com problemas, confronto e encaminha­ mento para tratamento em clínicas especializadas, seguindo o modelo dos 12 Passos. • De 1985 para cá, alguns programas tentaram ampliar seus objetivos, tratan­ do a dependência química junto a outras prioridades da saúde dos traba­ lhadores, seguindo orientação da Organização Mundial da Saúde. Esse momento coincidiu com maior penetração, no meio técnico, do conceito de síndrome de dependência alcoólica, em detrimento do conceito de doença. Até 1990, nenhum trabalho havia sido publicado e os resultados quanto ao benefício dos programas não convenciam.

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• O terceiro período, a partir de 1992, coincidiu com a reestruturação adminis­ trativa das empresas, com programas de qualidade total que pregavam a me­ lhoria de vida em todos os níveis de cargos. A perspectiva passou a ser de atingir metas anteriormente difíceis de alcançar, como programas de pre­ venção primária, indivíduos com uso abusivo ainda sem dependência, de­ pendentes leves e moderados. Por outro lado, o temor é de que profissionais responsáveis pela implantação desses métodos, geralmente da área admi­ nistrativa, não tenham a qualificação necessária ou não tenham interesse.

Projetos de Prevenção em Empresas A resistência à implantação de programas de prevenção ainda é muito gran­ de, uma vez que a informação a respeito dos problemas e custos derivados do uso de substâncias ainda é muito limitada na população. De maneira geral, a iniciativa costuma vir, na hierarquia, de baixo para cima e diretores e empresários precisam ser convencidos sobre a utilidade dos programas. De qualquer forma, alguns cuidados devem ser tomados na elaboração de um projeto de prevenção empresarial11: • O projeto deve conter a política da empresa, especificando todas as procedên­ cias para identificar, diagnosticar e encaminhar os funcionários com proble­ mas para tratamento adequado, não penalizando aqueles que procurarem ajuda. • Utilização de instrumentos éticos de triagem e diagnóstico, preservando o anonimato e reservando a aplicação de testes de detecção de uso de álcool e outras drogas somente a áreas de risco e com conhecimento prévio dos objetivos e de conseqüências do exame pelo empregado. • Objetivos claros quanto às metas de recuperação. • Inclusão de todos os funcionários, independentemente do cargo que ocupem. • Escolha de um coordenador habilitado. • Programas de treinamento contínuo de chefes e supervisores. • Elaboração de programas de educação continuada, voltados à prevenção de problemas de saúde e melhoria da qualidade de vida. • Escolha de serviços de tratamento ambulatorial e hospitalar na comunidade, de forma a atender a multiplicidade de problemas. • Assessoria constante com supervisores externos para que o programa não sofra distorções e se atualize ao longo dos anos.

Treinamento de Chefes e Supervisores Os chefes e supervisores têm papel fundamental nos programas de prevenção e deles depende seu sucesso ou fracasso. Os novos modelos de administração focados em qualidade total (inclusive de vida) fornecem a implantação desses programas. Os assuntos relacionados à dependência e ao abuso de drogas aca­ bam participando de temas relativos à saúde global, diminuindo o estigma comumente associado à questão.

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Pode ser difícil, para as chefias, identificar um funcionário que está tendo pro­ blemas com álcool ou outras drogas. O treinamento desses líderes deve focar-se na facilitação da identificação de alterações negativas de comportamento ao lon­ go do tempo. “Como era e como está sendo o desempenho desse profissional?” é a pergunta que leva a uma indicação da existência de problemas. As alterações de comportamento afetam basicamente três áreas, cujas mu­ danças mencionadas a seguir podem indicar que algo errado esteja acontecendo11,12: • Compromisso com o trabalho: atrasos, faltas, queda na produtividade e na qualidade do trabalho, mentiras, solicitações constantes de adiantamento salarial, etc. • Mudanças psicológicas: há muitas delas que podem ocorrer com uma pes­ soa com problemas com substâncias. As mais comuns são apatia (não se importar com nada), capacidade de julgamento pobre ou questionável, de­ pressão, redução da energia, perda do interesse pela aparência, nervosis­ mo, ansiedade, irritabilidade, pensamentos paranóides, etc. • Mudanças nos relacionamentos: mudança no estilo de vida (voltar para casa tarde, relacionamentos extraconjugais, dívidas), contato social res­ trito às ocasiões em que o uso de substâncias está disponível, hálito al­ coólico, mudança dos amigos, fala excessiva (no caso de estimulantes), ressaca, isolamento, roubo, queixas sobre a família, a esposa, os filhos, os colegas e a própria empresa, queixas de familiares e colegas a respeito do funcionário, etc. Apesar da importância de se reconhecerem os problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, muitos chefes e supervisores continuam não percebendo os sinais de que algo está errado com seus funcionários, provavelmente em virtu­ de de algum dos fatores descritos1213a seguir: • Por uma combinação de crenças, atitudes e comportamentos que nos im­ pede de reconhecer os problemas ou por se responsabilizar por fazer algo (“Não é minha tarefa me envolver com problemas pessoais”, “Ela é esperta, nunca se envolveria com drogas”, “Ele não é do tipo que se envolveria com drogas”). Quando isso acontece, os supervisores acabam minimizando ou negando a existência de problemas. • Falta de prontidão para confrontar um empregado com problemas. Alguns supervisores se sentem à vontade para identificar problemas de desempe­ nho. Sabem o que procurar e como registrar suas preocupações. Outros não se sentem assim. Uma das melhores maneiras de facilitar uma intervenção efetiva é levar o supervisor a compreender qual é o seu papel: sua responsa­ bilidade de encorajar e monitorar o desempenho no trabalho. Se existe des­ confiança quanto ao uso de álcool ou drogas, todas as tentativas de intervenção devem se basear no desempenho do funcionário. Isso permite manter a meta clara e empregar outros recursos para determinar a exten­ são do problema, utilizando-se de profissionais qualificados para esta in­ vestigação.

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• Ausência de políticas claras. Chefes e supervisores que têm de lidar com es­ ses problemas, o fazem com mais facilidade quando a empresa tem políti­ cas claras e específicas. Infelizmente, muitas organizações são demasiado pequenas ou simplesmente não percebem a necessidade de desenvolver protocolos apropriados e isso é um problema tanto para o empregado quan­ to para o empregador. Nesses casos, convém que o supervisor discuta suas preocupações com alguém da área de Recursos Humanos (se houver) ou com algum líder ou gerente. Também convém descobrir como outros su­ pervisores têm lidado com a questão; • Cultura da empresa. A cultura de uma empresa se expressa por meio de pen­ samentos, atitudes e comportamentos. A maioria das empresas não permi­ te o consumo de bebidas alcoólicas durante o dia. Outras, porém, não têm objeções à ingestão de vinho no almoço. Algumas reuniões podem ser regadas a bebidas. De qualquer forma, é importante para o supervisor identi­ ficar qual é a cultura da empresa em relação ao uso de álcool e outras drogas.

Perfil do Coordenador Em geral, os coordenadores desses programas são assistentes sociais, psicólo­ gos ou médicos do trabalho, com pouco ou nenhum treinamento específico na área, que atendem praticamente toda a demanda de problemas, relacionados ou não à dependência. A coordenação de programas de prevenção requer uma atua­ ção mais ampla para enfrentar os múltiplos papéis que desempenharão como assessoria, encaminhamento para recursos; contato constante com o empregado, suporte quanto ao desempenho, detecção de problemas, proteção quanto ao emprego, relatórios de resultados, contato com supervisores externos e integra­ ção entre empregados, administradores, sindicatos e o setor de saúde11. O grupo de trabalho deve ser pequeno, 4 a 8 pessoas que representem as áreas significativas da empresa e um representante do sindicato da categoria dos em­ pregados, para haver respaldo total ao projeto a ser aprovado pela diretoria. A maioria das empresas, atualmente, conduz pesquisas entre os funcionários da empresa com a finalidade de estudar seu perfil, necessidades, relacionamento com colegas e chefias, prevalência de doenças clínicas, psiquiátricas e de consumo de substâncias psicoativas, incluindo o teste CAGE para detecção de prováveis casos de alcoolismo. Além disso, essa conduta possibilita a mensuração do impacto das ações do programa ao longo do tempo. A supervisão deverá ser feita por um espe­ cialista em dependência química com visão administrativa. O fenômeno é muito complexo e envolve muitos fatores; a não-utilização de técnicos com experiência clínica nessa área pode ser um erro fatal para o programa11.

Recursos de Tratamento Disponíveis Uma vez identificado o problema, é preciso saber o que fazer com ele. Por isso, é imprescindível o criterioso levantamento dos recursos de tratamento disponí­ veis. O ideal é poder contar com tratamento ambulatorial que utilize técnicas de

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aconselhamento breve, com ênfase em motivação e prevenção de recaída (indivi­ dual ou grupai); orientação e terapia familiar; grupos de auto-ajuda (A.A., N.A., etc.) e internação para desintoxicação ou tratamento de complicações psiquiátri­ cas ou clínicas. Devem-se evitar os grupos de auto-ajuda ou atendimento individual dentro da própria empresa, para preservar o anonimato, diminuir as resistências ao tra­ tamento e evitar tirar o trabalhador das suas atividades no horário de trabalho.

R e f e r ê n c ia s B ib lio g r á f ic a s 1. GORDON, R. An operational classification of disease prevention. In: STEINBERG, J. A., SILVERMAN, M. M. (eds.). Preventing Mental Disorders. Rockville, MD: U.S. Department of Health and Human Services, 1987. p. 20-26. 2. BERMAN, A. L., JOBES, D. A. Adolescent suicide: assessment and intervention. Washing­ ton, DC: American Psychological Association, 1991. 3. DU PONT, R. Prevention of adolescent chemical dependency. Pediat Clin. N. Am ., 34(2):495505, 1987. 4. HERREL, I. C., HERREL, J. M. Prevención del Abuso de Drogas: conceptos y estrategias. Washington, DC: Organização Panamericana da Saúde/Oficina Regional da Organização Mundial da Saúde, 1985. 5. NEGRETE, J. C. Primary Prevention o f Alcohol Abuse: Latin American Perspective. Brown University Center for Latin American Studies, 1985. (Contribuição ao seminário Alcohol Use in Latin America: Cultural Realities and Policy Implications). 6. BLIZARD, R. A., TEAGUE, R. W. Alternatives to drug use: an alternative approach to drug education. Intern. J. A d d ict, 76(2):371-375, 1981. 7. MCALISTER, A. e cols. Pilot study of smoking, alcohol, and drug abuse prevention. Am. J. Pub. Health, 70(7):719-721, 1980. 8. VUYLSTEEK, K. Health Education:smoking, alcoholism, drugs. Copenhagen: Regional Office for EuropeA/Vorld Health Organization, 1979. 9. OLIEVENSTEIN, C. Estratégias para a Prevenção: métodos de educação, investigação e avaliação. São Paulo, 1988. (Dados fornecidos oralmente em palestra). 10. GALVIN, D. M. Workplace manage care -collaboration for substance abuse prevention. J. Behav. Health Serv. Res.f 27(2): 125-130, 2000. 11. CAMPANA, A. A. M. Álcool em empresas. In: RAMOS, S. P., BERTOLOTE, J. M. e cols. Alcoolismo Hoje. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Cap. 16, p. 223-240. 12. PETERSON, L. Toward a Drug Free Workplace: the role o f managers and supervisors. Minneapolis, EUA: Johnson Institute Hazelden Foundation, 1989. 19p. 13. PAPATOLA, K. U. How to identify employees in trouble with alcohol or other drugs. 2. ed. Minneapolis, EUA: Johnson Institute Hazelden Foundation, 1998. 19p.

C A P ÍT U L O

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química M a r c e l o R ib eir o N e l ia n a B u z i F

ig l ie

R o n a ld o L a r a n jeir a

Estrutural: Enquadre Terapêutico

I n tr o d u çã o O tratamento da dependência química é um assunto relativamente novo. Há menos de dois séculos, os bêba­ dos do Reino Unido eram expostos em praça pública e seu nome era colocado nos principais jornais da cidade. O objetivo disso era punir com a execração todo aquele que excedesse os padrões aceitos para o consumo de ál­ cool1. Apenas os casos mais avançados, marcados por inúmeras complicações físicas e psíquicas, eram inter­ nados em grandes hospitais psiquiátricos2. Predomina­ va, nesse período, o modelo moral de tratamento: o consumo excessivo de álcool e de outras drogas era, aci­ ma de tudo, uma escolha pessoal (intencional) e, por isso, passível de punição1.

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Durante o século XX, o consumo de substâncias psicoativas foi estudado exaus­ tivamente e suas nuanças foram compreendidas sob a óptica científica. Deixou de ser visto como um desvio de caráter para ganhar características de doença3. Essa mudança paulatina de mentalidade também repercutiu nas estratégias de tratamen­ to: se há uma doença, deve haver um tratamento específico para ela. O surgimento dos Alcoólicos Anônimos (AA), durante os anos 1930 representou a primeira pro­ posta de tratamento ambulatorial para os dependentes1. Outros esforços implementados foram as comunidades terapêuticas, espaços geralmente rurais, que visavam (além da abstinência) à reeducação dos hábitos morais e sociais do indiví­ duo dependente. As abordagens, no entanto, eram duras e se baseavam no con­ fronto e na humilhação1. A segunda metade do século XX viu nascerem os modelos de tratamento con­ temporâneos. Para isso, contribui a nova concepção de dependência química: uma doença de natureza biológica, psicológica e social3. Como qualquer entidade nosológica, possuía sinais e sintomas clínicos universais e específicos. Por outro lado, cada dependente tinha níveis de gravidade distintos dentro das idiossincrasias de seu contexto sociocultural4. Isso trouxe, mais uma vez, a necessidade de novos modelos de tratamento. Ao entender o consumo de álcool e drogas como um padrão de comporta­ mento cuja gravidade variava ao longo de um continuum, surgiu a necessida­ de de se organizarem serviços que atendessem aos usuários em seus diferentes estágios5. Um usuário de álcool, empregado e dentro de uma união estável, demanda um tratamento diferente de um segundo, com os mesmos critérios diagnósticos, mas desempregado e sem apoio familiar. Um usuário de cocaína que consegue restringir seu consumo ao final do dia difere daquele que a utili­ za sem nenhum critério. Há uma diferença marcante no controle que ambos exercem sobre o consumo, por mais que os sinais de fissura sejam iguais nos dois casos. O novo conceito de dependência também passou a atribuir pesos seme­ lhantes para os critérios biológicos, psicológicos e sociais que compunham o quadro diagnóstico da dependência química4. A internação era o recurso terapêutico mais utilizado, porque o objetivo primordial era a busca da absti­ nência completa6. A partir dessa nova concepção, no entanto, passou-se a pen­ sar além: o tratamento da dependência química carecia de abordagens capazes de motivar os indivíduos a ampliarem novamente seu repertório social, a bus­ carem novas maneiras de relacionamento com seu ambiente e novas habilida­ des sociais para lidar com o cotidiano, enfim, a construção de um novo estilo de vida5. Desse modo, novas dimensões de tratamento foram desenvolvidas e indicadas, de acordo com a gravidade dos sintomas e do contexto social dos indivíduos7. Desde então, serviços de atendimento foram sendo criados ou adaptados para o tratamento da dependência química: ambulatórios, centros de convivência, in­ ternações breves e longas, hospitais-dia, moradias assistidas, acompanhamento terapêutico, agentes multiplicadores, entre outros. Para ampliar ainda mais a ma­ lha de atendimento a esses usuários, nasceu a necessidade de sensibilizar a rede primária de atendimento para fazer o diagnóstico precoce e motivar os usuários

4 6 2 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

para o tratamento8. Abordagens como a política de redução de danos surgiram com a finalidade de prevenir conseqüências danosas à saúde do usuário, tais como as doenças sexualmente transmissíveis (DST) e a AIDS, sem necessariamente in­ terferir na oferta ou na demanda9. Desse modo, a organização de um serviço é uma tarefa complexa, envolven­ do inúmeras variáveis. Um serviço de atendimento precisa saber que linha se­ guirá e que população-alvo estará disposta a assistir, levando em conta os critérios de gravidade e o contexto sociocultural que circunda essa população10. Oferecer uma oficina de violino clássico para uma população que aprecia rap pode se constituir em um tremendo fracasso. É necessário, também, planejar o futuro do serviço, monitorar sua implementação e avaliar seus resultados de modo cons­ tante e sistemático11. Visando ao levantamento de subsídios para a organização de serviços, o obje­ tivo da primeira parte deste capítulo (Estrutural: Enquadre Terapêutico) é apre­ sentar os principais tipos e modelos de atendimento, posicionando-os dentro da rede de atendimento disponível; os componentes fundamentais de um ser­ viço, o quadro de profissionais e a população-alvo serão abordados, com enfoque final na preocupação com a adesão dos pacientes ao modelo propos­ to. A partir desta exposição estrutural, a segunda parte (Dinâmico: Planeja­ mento e Avaliação) tratará do planejamento e da avaliação do atendimento, das estruturas dinâmicas capazes de nortear estratégias de implementação bemsucedidas e gestão do serviço.

A

m bientes de

T ratam en to

O ambiente, juntamente com a composição da equipe profissional e o tipo de tratamento, constitui o enquadre terapêutico10, ou seja, a organização interna do serviço. Esta estrutura (institucional, profissional e teórico-prática) determina o jeito de ser, a “cara” do programa de atendimento. Há uma possibilidade ilimitada de modelos de tratamento8,10. No entanto, há ambientes de tratamento “mais famosos”, tradicionais e conhecidos do gran­ de público. Cada um deles possui vantagens e desvantagens na prestação de auxílio ao dependente químico12. Não há um serviço melhor que o outro, mas, sim, pacientes mais indicados para cada serviço1. A compreensão e o entendi­ mento das possibilidades e limitações de cada ambiente de tratamento auxiliam o processo de adequação de um serviço às necessidades da comunidade à qual presta assistência12. O momento do tratamento também influencia a escolha do serviço8. Usuários de cocaína com sintomas agudos de abstinência podem requerer um ambiente ambulatorial não intensivo, intensivo, hospital-dia ou até internação para desintoxicação. Três semanas depois, porém, os sintomas de abstinência já não são mais o problema preponderante, e abordagens menos intensivas e comunitá­ rias poderão ser instituídas. Por isso, é preciso reconhecer o serviço mais indicado para aquele momento e saber combiná-lo com outros ambientes nos quais se dará a seqüência do tratamento10.

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■ 4 6 3

Em seu livro O Tratamento do Alcoolismo, Edwards12elencou nove ambientes de tratamento (Quadro 30.1), que serão discutidos a seguir. O hospital-dia e a moradia assistida também foram incluídos nessa lista. As comunidades terapêu­ ticas serão discutidas na seção seguinte.

Rede Primária de Atendimento à Saúde A rede primária de atendimento à saúde vem sendo cada vez mais valorizada como uma maneira eficiente de tratar indivíduos com problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas8. Alguns fatores contribuíram para a emergência des­ se fenômeno. A popularização do consumo de substâncias psicoativas aumentou a demanda por tratamento, dificilmente suprida apenas pelos centros especiali­ zados5. Não existe um usuário típico, caricaturesco e facilmente detectável13. Este, por sua vez, procura mais freqüentemente o tratamento clínico do que o especializa­ do14. Há um continuum de gravidade entre os usuários de álcool e drogas, e, quanto menor a gravidade (diagnóstico precoce), melhor a chance de sucesso do trata­ mento15. Além disso, as intervenções breves são efetivas na motivação destes indivíduos para a mudança16. Todas essas evidências contribuíram para transformar a rede primária em um importante centro diagnóstico, motivador e terapêutico para os dependen­ tes químicos9. Os casos de menor complexidade podem ser tratados por médi­ cos generalistas capacitados para a aplicação de intervenções breves17e para o manejo medicamentoso disponível para essa classe de pacientes8. No entanto, é importante que a unidade básica de saúde seja apoiada por um ambulatório especializado13. O Brasil ainda não conta com o apoio da rede primária. Os médicos têm facili­ dade para identificar e abordar as complicações clínicas decorrentes do consumo

Q uadro

30.1 - Ambientes de Tratamento46



Rede primária de atendimento à saúde



Unidades comunitárias de álcool e drogas



Unidade ambulatorial especializada



Comunidades terapêuticas



Grupos de auto-ajuda



Hospitais gerais



Hospital-dia



Moradia assistida



Hospitais psiquiátricos



Sistema judiciário



Empresas

4 6 4 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

de substâncias psicoativas18, mas estão poucos sensibilizados para o diagnóstico e o manejo do uso nocivo e da dependência química19. Recentemente, a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) lançaram a primeira diretriz nacional para a abordagem, o diag­ nóstico e o tratamento da dependência química, totalmente voltada ao médico generalista20. A publicação encontra-se disponível on-line20. É preciso maior em­ penho das autoridades da área de saúde pública (em todos os níveis) para que os médicos ligados ao atendimento primário possam ser devidamente capacitados para essa tarefa.

Unidades Comunitárias de Álcool e Drogas As unidades comunitárias de álcool e drogas surgiram como alternativa ao tratamento hospitalar (estigmatizador) e às clínicas especializadas (geralmente pouco disponíveis e distantes da maioria dos pacientes)12. Tais unidades procu­ ram oferecer mais opções de serviços e estar em maior contato com a comunida­ de21. Tal proximidade facilita o acesso do paciente ao tratamento (remoção de barreiras) e permite aos profissionais realizar visitas domiciliares, aproximando ainda mais o tratamento da realidade do paciente12. Isso proporciona um trata­ mento mais específico e adaptado, englobando recursos terapêuticos que vão desde a intervenção breve (usuários com poucos problemas) até intervenções mais com­ plexas (usuários com muitos problemas)21. As unidades comunitárias estão mais próximas das redes primárias e de saú­ de mental locais. Por isso, conhecem bem os recursos que ambas disponibilizam e têm acesso facilitado aos seus profissionais12. Os agentes capacitados nessas uni­ dades são provenientes da própria comunidade, conhecem a realidade da região, estão mais acessíveis aos moradores locais e têm maior liberdade para abordar aqueles que apresentam algum problema relacionado ao consumo de álcool e drogas21. Tornam-se, assim, grandes fomentadores do diagnóstico precoce e da motivação para a mudança entre seus pares21. A experiência brasileira deste modelo de atendimento é a Unidade Comu­ nitária de Álcool e Drogas do Jardim Ângela, fundada em 1998, a partir de uma parceria entre líderes comunitários locais (Sociedade Santos Mártires) e a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD - UNIFESP) e financia­ da, em 1999, pelo Governo do Estado de São Paulo22. 0 serviço tem como obje­ tivos a promoção de ações preventivas, o tratamento dos usuários de álcool, tabaco e drogas e a diminuição do número de internações prolongadas entre estes pacientes22. As especializações do modelo com finalidade de ampliar e adequar o trata­ mento às necessidades comunitárias repercutiram na criação, em 1999, do Pro­ jeto de Reinserção do Adolescente ao Convívio Familiar e Comunitário (RAC)22; do Clube Terapêutico do Adolescente, no mesmo ano22, programa de lazer rea­ lizado em espaços públicos e do Centro Utilitário de Intervenção e Apoio aos Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA) em 200023, com o intuito de insti­

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■

465

tuir um espaço de interação, informação e apoio psicológico e social para crianças e adolescentes cujos pais têm problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas.

Unidade Ambulatorial Especializada A unidade ambulatorial especializada é um centro de tratamento multidisciplinar composto por médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeuta^cupacionais e educadores. Todos esses profissionais estão capacita­ dos para ò diagnóstico e o manejo dos casos difíceis, bem como familiarizados com as abordagens mais especializadas para a dependência química, dentro de suas respectivas áreas de atuação12. Esses serviços funcionam como referência para as unidades primárias de saúde, hospitais gerais e psiquiátricos e também podem estar preparados para a promoção de atividades de pesquisa, ensino, capacitação e prevenção12. Desse modo, constituem não apenas um referencial terapêutico, mas tam­ bém teórico. O Brasil possui ambulatórios especializados para o tratamento da depen­ dência química há quase duas décadas24,25. A maior parte destes é considerada centros de excelência26 e desenvolve linhas de pesquisa que demonstram grande afinidade com as principais tendências ligadas à prevenção e ao tratamento da dependência química2728. No entanto, boa parte destes centros permanece liga­ da às instituições universitárias, restrita aos grandes centros urbanos e voltada à pesquisa. Além disso, a crescente demanda impõe a criação de novas alternati­ vas de tratamento21. Recentemente, o Ministério da Saúde normatizou as diretrizes para a cria­ ção e o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPS - AD)29. Segundo esta portaria, o CAPS é um serviço de atenção ambulatorial diária totalmente voltado ao atendimento de pacientes com trans­ tornos decorrentes do uso e da dependência de substâncias psicoativas. Além de ser uma unidade terapêutica especializada, também é responsável pelo gerenciamento da demanda e da rede de instituições de atenção a usuários de álcool e drogas de sua região. Ele está incumbido, ainda, da supervisão e da capacitação das equipes de atenção básica, serviços e programas de saúde men­ tal locais. Os CAPS possuem equipe multidisciplinar e opções diversificadas de serviços, que combinam aspectos terapêuticos do ambulatório, exclusivamente dedicado ao atendimento clínico e das unidades comunitárias ou hospitais-dia (Quadro 30.2).

Hospital Geral Conforme a rede primária de atendimento, o hospital geral também é um espaço destinado à motivação para o tratamento de indivíduos que o procu­ ram em virtude de complicações físicas relacionadas ao consumo de álcool,

466

30.2

-

Estrutura dos Centros de Atenção Psicossocial

Características

-

Álcool e Drogas (CAPS - AD)29

Atividades Assistenciais



Serviço ambulatorial de atenção diária



Acompanhamento intensivo, semiintensivo e não-intensivo



Funcionamento das 8 às 18h, com um terceiro turno opcional até às 21 h

Atendimento em grupos (psicoterapia, suporte,...)



Oficinas terapêuticas



Visitas e atendimentos domiciliares



Atendimento à família



Atividades comunitárias



Os pacientes assistidos em um turno (4 horas) receberão uma refeição diária; os assistidos em dois turnos (8 horas) receberão duas refeições diárias



Atendimento de desintoxicação







Dois a quatro leitos para desintoxicação e repouso Organizador da demanda e da rede de instituições de atenção a usuários de ál­ cool e drogas



Regulador da porta de entrada da rede assistencial local



Supervisor de serviços de atenção a usuários de drogas



Supervisor e capacitador das equipes de atenção básica, serviços e programas de saúde mental local



Atendimento individual (clínico, psico­ lógico,...)

Equipe Técnica •

1 médico psiquiatra



1 enfermeiro com formação em saúde mental



1 médico clínico



4 profissionais de nível superior entre as seguintes categorias profissionais: psicólogo, assistente social, enfermeiro, terapeuta ocupacional, pedagogo ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico



6 profissionais de nível médio: técnico e/ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão

■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas...

Q uadro

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■ 4 6 7

tabaco e outras drogas13. Mais uma vez, sensibilizar o corpo clínico para o diag­ nóstico, as ações motivadoras e o manejo dos casos menos graves, bem como o corpo de enfermagem para o aconselhamento destes pacientes é uma im­ portante ação de saúde pública, ainda carente no Brasil20. A diretriz nacional para a abordagem, o diagnóstico e o tratamento da dependência química (AMB - CREMESP)20, voltada ao médico generalista, também possui grande aplica­ bilidade nesse ambiente. As salas de emergência com freqüência recebem pacientes acometidos pela síndrome de abstinência do álcool e delirium tremens*0. Outras situações possí­ veis nesse ambiente são os indivíduos admitidos em decorrência de acidentes automobilísticos ou de trabalho após o consumo de álcool e outras drogas31, qua­ dros ansiosos agudos32, anginas e infartos decorrentes do uso de estimulantes33 e outras mais. Ao final, esses pacientes devem receber alta com aconselhamento ou motivação para a busca de um tratamento18. No Brasil, as enfermarias de desintoxicação para álcool e drogas vêm sendo organizadas dentro dos hospitais gerais. O termo desintoxicação é definido como um tratamento para a dependência química, cuja intenção é remover seus efeitos fisiológicos (sintomas de abstinência)13. A Clínica de Desintoxicação em Álcool e Drogas do Hospital Geral de Taipas (São Paulo) é uma das pioneiras nesse tipo de atendimento34. A internação e a permanência são estritamente voluntárias. O tempo de internação acompanha o período de maior intensidade dos sintomas: duas semanas, em média. Durante esse período, os pacientes podem receber, além do tratamento farmacológico, atendimento psicoterapêutico individual e em grupo, além de terapia ocupacional. A intenção é sensibilizar os pacientes para os problemas ocasionados pela dependência e motivá-los para a manu­ tenção do tratamento em um ambiente ambulatorial ou em regime de internação prolongada.

Moradia Assistida e Albergue Comum A m oradia assistida é uma opção de ambiente terapêutico bastante utiliza­ da em vários países35. A falta de uma residência representa um sério empeci­ lho à reintegração social de qualquer indivíduo. Desse modo, sua função precípua é proporcionar um ambiente estável e protegido para dependentes em recuperação36. Com a garantia de um teto, o paciente pode se dedicar com mais tranqüilidade à procura de um emprego, ao retorno aos estudos ou à cria­ ção de seus filhos37. Além disso, o convívio dentro do programa estimula e pro­ move a interação com outros moradores, o gerenciamento do tempo e do dinheiro, a aquisição de novas responsabilidades (consigo e com outrem) e o estabelecimento de prioridades e objetivos realistas36-37. A moradia assistida nada ou pouco interfere na circulação diária do dependente. Ela funciona como um albergue, porém, com uma estrutura de hotelaria bem mais adequada e in­ dividualizada35. Algumas contam, inclusive, com quartos individuais e banhei­ ros privativos.

4 6 8 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

Alguns serviços oferecem ambas as abordagens36. O sem-teto pode buscar o albergue independentemente de sua vontade de se tratar. Pode permanecer no local durante a noite, alimentar-se, cuidar de sua higiene pessoal e partir pela ma­ nhã. Caso queira participar do tratamento, torna-se elegível para a moradia assis­ tida36. Além disso, há evidências de que o albergue também pode ser um local viável para intervenções terapêuticas breves38. O Brasil possui uma estrutura precária de albergues. Todos, porém, con­ tam com assistentes sociais, que poderiam ser capacitadas para o manejo ini­ cial dos sem-teto dependentes químicos. No entanto, falta o modelo de moradia assistida, talvez a melhor opção de tratamento para a população sem-teto. Uma das poucas experiências nacionais está em São Paulo, integrada à Unidade Co­ munitária de Álcool e Drogas - Jardim Ângela39. Em dois anos (1999-2001), o serviço atendeu cerca de 130 pacientes, em sua maioria, solteiros ou separa­ dos, desempregados e usuários de álcool há mais de 15 anos. A moradia assis­ tida é uma opção barata, melhor do ponto de vista técnico e oferece maior dignidade aos dependentes de álcool e drogas quando comparada ao hospital psiquiátrico39.

Hospital Psiquiátrico O hospital psiquiátrico pode ser um espaço para o tratamento da dependên­ cia química por vários motivos. Em primeiro lugar, as enfermarias especializadas e estruturadas exclusivamente para o tratamento das dependências químicas são raras, inclusive no Brasil21. As poucas existentes, que têm como base princi­ palmente a internação voluntária, não possuem uma equipe organizada (espe­ cialmente em termos de segurança) para lidar com pacientes com comorbidades graves, tais como quadros esquizofreniformes, depressão maior e transtornos bipolares34. Nesses casos, complicações como ímpetos agressivos e tentativas de suicídio requerem um ambiente de cuidados mais intensivos e seguros12. Eis uma indicação precisa de internação para dependentes químicos em hospi­ tais psiquiátricos. O manejo exclusivo dos quadros de abstinência nesses ambientes pode se tor­ nar inadequado se a equipe estiver mais voltada para outras formas de casos agu­ dos ou não tiver uma experiência mínima nessa área12.

Hospital-dia O hospital-dia é um ambiente tradicionalmente utilizado para o trata­ mento da dependência química. Existem incontáveis possibilidades de abor­ dagem dentro de um hospital-dia40. Ela pode ser intensiva (freqüência diária e integral), intermediária (algumas vezes por semana, integral ou parcial) ou “quase ambulatorial” (com visitas semanais por meio período). Pode haver, ainda, adequações para populações especiais, tais como casos agudos (ma­ nejo da abstinência), adolescentes e mulheres, pacientes com comorbidades

4 7 0 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

tais brasileiras, no Distrito Federal e na maior parte das cidades47,48. 0 histórico do A.A. e as linhas mestras de sua metodologia serão descritos na seção Comunida­ des Terapêuticas, no tópico Origens.

Sistema Judiciário Há um grande número de situações que envolvem o consumo de álcool e drogas identificadas como contravenções penais12. Entre essas situações, es­ tão os atos de beber e dirigir, os crimes de natureza aquisitiva, isto é, aqueles que visam angariar fundos para o consumo de drogas, o porte de drogas ilíci­ tas e muitas outras. Em situações como essas, o juiz pode decidir enviar o condenado para tratamento. Tal determinação judicial pode acontecer en­ quanto o indivíduo está sob custódia ou como forma de pena alternativa à de detenção. A grande questão da atualidade compreendendo os órgãos de políticas pú­ blicas e o Poder Judiciário de vários países do mundo são as Drug Courts (Cortes de Drogas), conhecidas no Brasil como Justiça Terapêutica. O Movimento das Cortes de Drogas (Drug Courts Moviment) se originou nos Estados Unidos, mais especificamente no Estado da Flórida, na segunda metade dos anos 198049. A chegada do crack aos Estados Unidos e o endurecimento do esforço repressivo do governo (que aumentou as penas para a posse e o tráfico) causaram um in­ fluxo de novos casos que o Poder Judiciário não conseguia mais suportar. Além disso, muitos casos considerados de menor gravidade acabavam expostos precocemente ao ambiente dos presídios, comprometendo, assim, a sua posterior reinserção social. Para esses casos, tais como porte ou furtos de natureza aquisitiva (sem o uso da violência), foi idealizado, na Flórida, um programa de reabilitação judicialmente supervisionado que combinava tratamento, relaxamento das sanções penais e incentivos processuais aos que decidissem dele participar49. Areprodução do modelo em outros Estados da federação fez com que o governo norte-americano criasse, em 1995, o Gabinete do Programa de Cortes de Drogas (DrugCourts Program Office), com o intuito de financiar, capacitar e oferecer diretrizes ao movimento. Atualmente, centenas de cidades norte-americanas possuem programas de Drug Courts. Em 1997, o Programa de Cortes de Drogas idealizou os “dez componentes-chave da Corte de Drogas” (Quadro 30.3) para servirem como ponto de referência para to­ das as cortes de drogas do país49. O modelo das cortes de drogas vem sendo adotado, ou pelo menos analisado, por outros países50. A primeira experiência brasileira ocorreu no dia 30 de abril de 2002, na cidade do Recife51e posteriormente nos Estados do Rio Grande do Sul52e do Rio de Janeiro. No Brasil, a Justiça Terapêutica é definida como uma “proposta em que a legis­ lação seja cumprida harmonicamente com medidas sociais e tratamento para as pessoas que praticam crimes nos quais o componente drogas, no sentido amplo, esteja presente de alguma maneira. Ela se justifica por ser uma possibilidade de

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■ 471

Q u a d r o 3 0 .3 - Os 10 Componentes-chave das Cortes de Drogas Norte-

americanas49 1. As cortes de drogas integram os serviços de tratamento de álcool e drogas ao sistema judiciário 2. Utilizando uma abordagem não punitiva, a promotoria e a defesa fomentam seguran­ ça pública, ao mesmo tempo em que protegem os participantes de acordo com os seus direitos processuais 3. Os participantes elegíveis são identificados precocemente e logo colocados em progra­ mas de cortes de drogas 4. As cortes de drogas provêm acesso a programas contínuos de tratamento e reabilita­ ção para dependência de álcool e drogas 5. A abstinência é monitorada freqüentemente por testes de álcool e outras drogas 6. Uma estratégia coordenada administra as respostas das cortes de drogas à cooperação dos participantes com o programa 7. A interação cotidiana entre o juiz e cada participante do programa é essencial 8. Monitoramento e avaliação para mensurar o êxito dos objetivos propostos e a efetividade do programa instituído 9. A educação interdisciplinar continuada promove planejamentos, implementações e operações de cortes de drogas efetivas 10. Forjar parcerias entre cortes de drogas, agências públicas e organizações da comunidade gera-suporte local e fortalece o programa de cortes de drogas

tratamento capaz de modificar comportamentos delituosos para comportamen­ tos socialmente adequados e uma abordagem não-estigmatizante”52. Ainda não há estudos nacionais acerca do tema. Como em qualquer lugar do mundo, o modelo das cortes de drogas tam­ bém sofre críticas. Entre elas, a de colocar “na mesma vala” dependentes e usuários ocasionais53. Com quase 15 anos de funcionamento nos Estados Unidos, ainda não foram conduzidos estudos definitivos quanto à eficácia das cortes de droga e faltam estudos de seguimento mais prolongado50. Além disso, a importação de modelos de prevenção e tratamento deve sempre res­ peitar as singularidades locais5, e, mesmo que se mostrem altamente pro­ missores no início (em razão do pouco tempo de avaliação), podem se configurar, após avaliações mais profundas, em flagrantes fracassos e des­ perdício de dinheiro público54. Outro ambiente ligado ao sistema judiciário são as prisões. Apreensões de drogas dentro destes ambientes são comumente notificadas. Além disso, o álcool, substância considerada ilegal nas prisões, é fermentado e destilado artesanalmente a partir do milho com açúcar e cascas de frutas como melão, mamão, laranja ou maçã. Tal “beberagem” é conhecida como maria-louccfi5. 0 tratamento e a prevenção ao uso de drogas nesses ambientes ficam a cargo de esforços vo­ luntários, geralmente partidos dos A.A. e N.A. ou de grupos religiosos que atuam no local12.

4 7 2 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

Empresas O local de trabalho também pode se transformar em um “serviço de preven­ ção e tratamento”12. Atualmente, muitas empresas possuem programas de pre­ venção para combater o uso indevido de álcool e drogas e apóiam (em vez de demitir ou estigmatizar) aqueles que necessitam de tratamento, dentro do maior sigilo possível. Um programa de álcool e drogas voltado para o ambiente de trabalho deve contemplar a prevenção primária (não-usuários), secundária (uso abusivo) e terciária (dependência)56. Isso se dá por meio de estratégias combinadas, que in­ cluem abordagens educativas (palestras, folhetos, mídia interna), comportamentais (ambientes livres de cigarro) e interativas (encontros, passeios e celebrações). A mensagem deve ser simples, objetiva, com linguagem e layout capazes de atin­ gir diferentes grupos dentro da empresa. Quanto mais o programa privilegiar a promoção da qualidade de vida (escapando de colocações maniqueístas e mora­ listas), em ambientes que promovam a integração, melhores serão os resultados56. A direção da empresa deve estar comprometida com o programa e uma de suas equipes deve garantir a manutenção do programa após o treinamento57.

C o m u n id a d es T era pêu tica s - U m A m biente de T ratam en to C o m u m , M a s P o u co E stu d a d o n o B ra sil Apesar de ser um dos ambientes de tratamento mais conhecidos do público brasileiro, há pouca informação nacional disponível acerca das comunidades te­ rapêuticas. Em conseqüência, essa estrutura de tratamento será especialmente enfatizada nesta parte do capítulo.

Origens As comunidades terapêuticas surgiram das observações clínicas de Maxwell Jones (1953)58. Psiquiatra do exército inglês, Jones começou a desenvolver esse modelo para soldados com traumas decorrentes da II Guerra Mundial. Com esse propósito, organizou um serviço de internação com base em abordagens educativas, encenações dramáticas e discussões, dentro de um ambiente pauta­ do pelas normas de convivência em grupo. Posteriormente, ampliou seu modelo para outras patologias crônicas. Jones considerava que seus pacientes “represen­ tavam o ‘fracasso' na sociedade; eles advinham primordialmente de famílias desestruturadas e eram desempregados; inevitavelmente, desenvolveram atitu­ des anti-sociais na tentativa de se defenderem daquilo que lhes parecia ser um ambiente hostil”59. Para estes, a construção de padrões de relacionamento nunca adquiridos durante a vida só seria estimulada dentro de um ambiente grupai seguro e terapêutico. Durante os anos 1950, ganharam grande notoriedade como uma alternativa para o tratamento psiquiátrico manicomial. As comunidades terapêuticas ex­ clusivamente desenhadas para o tratamento da dependência de álcool e drogas

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começaram a surgir durante os anos 1960. Dois modelos de tratamento influencia­ ram ativamente essas primeiras comunidades: o Modelo de Minnesota e o Mode­ lo Synanon60. O modelo de tratamento preconizado pelo A.A. apareceu em 1935. Ele fora criado por Bill Wilson, então dependente de álcool e pelo médico Robert Smith. Juntos, iniciaram um processo de recuperação que tinha como base a ajuda mú­ tua. Essa união resultou na criação da Alcoholics Foundation (1938) e na publica­ ção do livro AlcoholicsAnonymous (1939), um guia para a sobriedade, fundamentado na prática dos 12 Passos1. A essência do A.A. é o modelo espiritual: o alcoolismo é entendido como uma condição na qual o indivíduo se tom a incapaz de superar-se por si só. A esperança de mudança consiste em entregar a vida a uma força supe­ rior e, a partir daí, segui-la rumo à recuperação46. Wilson e Smith acreditavam em alguns preceitos fundamentais à recuperação: 1. praticar os 12 Passos; 2. confiar em um poder divino superior; 3. dividir experiências, forças e esperanças; 4. manterse ativo; 5. um dia após o outro pelo resto de nossas vidas (“Só por hoje não bebi”) e 6. um aperto de mão, um sorriso e um abraço são sempre possíveis1. A popularidade do método de tratamento proposto pelo A.A. fez com que este chegasse às clínicas de tratamento. Essa versão institucional do A.A. ficou conhe­ cida como Modelo de Minnesota?6. Geralmente, o tratamento começa em regime fechado e isolado, podendo durar de 28 dias a vários meses. Nessa fase, há um programa intensivo de terapia de grupo, palestras, leituras e reuniões do A.A. O tratamento internado é sucedido por reuniões em salas de A.A. ou N.A. A equipe é composta por antigos usuários que completaram os 12 Passos com sucesso e pas­ saram a colaborar para a recuperação de outros46. Esse modelo influenciou e até hoje influencia boa parte das comunidades terapêuticas em todo o mundo, espe­ cialmente nos Estados Unidos e no Brasil. O Modelo Synanon de recuperação para dependentes químicos foi uma das grandes controvérsias terapêuticas dentro da história dos tratamentos destinados à dependência química. Ele fora criado em 1958, pelo americano Charles Dederich61. Os referenciais teóricos deste novo método iam de Platão a Freud, pas­ sando por Buda, Emerson e São Tomás de Aquino. De formação leiga, Dederich não propunha apenas um modelo comunitário, mas, sim, um novo lar, uma nova e definitiva sociedade para todos os dependentes de substâncias psicoativas e suas famílias que decidissem acompanhá-lo voluntariamente61. Tais dependentes eram, em sua maioria, indivíduos com antecedentes de crimes, aprisionamentos e fa­ lhas na tentativa de abandonar o consumo de drogas pelos métodos tradicionais61. O método Synanon se baseava (em parte) na ajuda mútua por meio da troca de experiências acerca da abstinência e da recuperação62. Influenciado pelo modelo de ajuda mútua do A.A., diferia deste em pontos fundamentais: enquanto o A.A. partia da entrega e da confiança em uma força superior, o Synanon acreditava na autoconfiança como preceito essencial: “Chega um momento da vida em que se conclui que a inveja é ignorância e a imitação, suicídio; a partir desse momento, é preciso se aceitar, por bem ou por mal”61. Para Dederich, o desenvolvimento huma­ no passava pelas fases de aquisição (infância), compartilhamento (adolescência) e doação (idade adulta). O dependente, ao contrário, recebeu muito, não comparti­ lhou o suficiente e se doou pouco. Tal comportamento desviado só poderia ser cor­ rigido por novas formas de convívio e métodos terapêuticos62.

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O aconselhamento confrontativo, um dos pilares do modelo Synanon, ficou conhecido como terapia do ataque?0,62. Dederich acreditava que o ataque verbal era a melhor forma de “demolir as muralhas erguidas” pelo dependente ao longo de sua vida, que o impediam de qualquer contato real e positivo com o meio ambiente. Ahumilhação e a atribuição de culpa eram recursos usualmente utilizados, em meio a um ambiente grupai marcado pela vociferação e intimidação62. O trabalho também era um pilar fundamental do Synanon, tanto para a recupe­ ração e a reintegração, como para determinar a colocação dos indivíduos dentro da sociedade comunitária instituída62. Assim, os recém-chegados ficavam encarrega­ dos das atividades braçais mais grosseiras e subservientes, tais como a limpeza do lixo e dos banheiros, enquanto os que progrediam iam recebendo incumbências mais complexas e administrativas63. Cabia também aos mais novos a arrecadação de donativos, por exemplo, por meio da venda de canetas e outros pequenos objetos64. Apesar da ampla oposição dos profissionais ligados aos modelos tradicionais de tratamento, o Synanon gozou de grande prestígio dentro da sociedade norteamericana dos anos 196061. Doações milionárias, filmes hollywoodianos, apoios de intelectuais, palestras em igrejas, escolas e universidades trouxeram grande noto­ riedade ao modelo e seu idealizador. A partir dos anos 1970, no entanto, Dederich decidiu transformar o Synanon em religião, centralizada na obediência total à sua figura. Vasectomias e trocas de casais entre alguns seguidores (por ordem do líder espiritual), além de acusações de maus-tratos e atentados, foram aos poucos jogan­ do no ostracismo o “legado dederichniano” do Synanon63. O modelo Synanon, no entanto, não desapareceu por completo e parte de seus preceitos ainda é utilizada como método de prevenção nas escolas e como recurso terapêutico63.

Evolução Desprestigiadas desde o final dos anos 1970, as comunidades terapêuticas vol­ taram a chamar a atenção no final dos anos 198065. Muitas comunidades terapêuti­ cas para dependência química, nascidas desde essa época, assumiram perfis que as tornaram diferentes de suas predecessoras66. Antes utilizadas preponderantemente por métodos de tratamento com base no confronto e desprovidas de profissionais especializados, as comunidades terapêuticas passaram a servir também para abor­ dagens com base na psicanálise e nas terapias existencial e cognitivocomportamental67. Muitas comunidades passaram a ter profissionais especializados, entre eles médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Novas técnicas, tais como o aprendizado social e o treinamento de habilidades foram instituídas em alguns lugares68. Houve, igualmente, maior inves­ tigação científica acerca de sua eficácia, dos pacientes mais indicados para esse am­ biente de tratamento, do papel dos profissionais envolvidos, entre outras coisas.

Conceito Atual A Associação Nacional de Comunidades Terapêuticas dos Estados Unidos define esse ambiente de tratamento como “um tratamento comunitário alta-

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mente estruturado que emprega sanções e penalidades, privilégios e prestígios determinados pela comunidade como parte de um processo de recuperação. As comunidades terapêuticas fomentam o crescimento pessoal por meio da mu­ dança de comportamentos e atitudes individuais. Essa mudança está ambientada em uma comunidade de residentes e profissionais que trabalham juntos para ajudar a si mesmos e aos outros, tendo como foco a integração individual dentro da comunidade”69. A abordagem comunitária como instrumento primário e facilitador do cresci­ mento e da mudança individual é o ponto de distinção entre as comunidades te­ rapêuticas e outras formas de ambiente de tratamento70. Existem quatro dimensões comportamentais visadas para que o indivíduo opere a ressocialização terapeuticamente objetivada70: 1. desenvolvimento individual marcado pela aquisição de atitudes mais maduras e melhores habilidades para lidar com a emoção e a cons­ trução da identidade; 2. mudança de aspectos subjetivos do comportamento, rela­ cionada às experiências e percepções do indivíduo quanto às circunstâncias externas que fomentam o consumo de drogas, as motivações internas para a mu­ dança, a prontidão para o tratamento, a identificação com o método terapêutico e a percepção crítica da mudança obtida ao longo do processo; 3. incorporação de princípios comportamentais e sociais, tais como a auto-eficácia, o entendimento do papel social e da necessidade de se colocar no lugar do outro; e 4. integração social possível apenas se pautada pela cooperação, pela conformidade e pelo com­ prometimento.

Estrutura do Tratamento A forma assumida por uma comunidade terapêutica reflete a filosofia subja­ cente da organização que a fundou12. Algumas comunidades são notadamente marcadas pela hierarquização de funções e comandos, por técnicas de auto-ajuda e terapia comportamental, enquanto outras propõem uma estrutura “mais demo­ crática”, com cursos profissionalizantes e abordagens psicanalíticas71. Há, tam­ bém, as comunidades cuja proposta de recuperação se baseia em alguma filosofia religiosa, combinada às vezes, em diferentes proporções, com o Modelo de Minnesota71. Outras são especializadas em determinado tipo de dependência ou dirigidas a grupos específicos de usuários, tais como mulheres72e adolescentes73. No entanto, independentemente da linha adotada e do nível de especialização do atendimento, a grande maioria delas tem por objetivo a abstinência completa de qualquer tipo de substâncicf870’74. Não existe uma estrutura padrão, tampouco um cronograma básico de funcio­ namento. Há, sim, diversos componentes fundamentais, que são combinados den­ tro das necessidades de cada comunidade68. 0 tempo de permanência pode ir de semanas a meses. Há evidências sugestivas de que o tempo de tratamento deva ser maior para indivíduos com comorbidades e padrões graves de consumo, mas essa opinião não é consensual75. As atividades desenvolvidas também pos­ suem grande variabilidade, estruturadas em níveis de complexidade igualmente distintos. Algumas estão centradas quase exclusivamente nos 12 Passos e ati­ vidades laborais, enquanto outras oferecem grupos nas mais variadas linhas,

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terapia ocupacional, atividades vocacionais e atendimento médico e psicológico individuais70. Atividades capazes de melhorar a adesão ao tratamento já foram alvo de pesquisas científicas76. Freqüentemente, a equipe das comunidades terapêuticas é formada por exusuários de álcool e drogas bem-sucedidos no processo de recuperação12. No en­ tanto, as comunidades terapêuticas podem contar, em graus variados, com o auxílio de outros profissionais: desde a colaboração de psicólogos e médicos voluntários sem especialização em dependência química, passando pela associação entre pro­ fissionais especializados e ex-usuários e equipes exclusivamente compostas por profissionais da área67'6871. O papel dos ex-usuários, batizados pela literatura como “profissionais da expe­ riência”, é pouco estudado. Apesar de alguns estudos descreverem essa abordagem para a eficácia entre abordagens especializadas e não-especializadas77,78, acreditase, por outro lado, que existem situações mais e menos indicadas para a atuação deste tipo de profissional79. Desenvolveram-se instrumentos para medir as con­ cepções e o modus operandidos conselheiros ex-usuários80. A capacitação desses profissionais pode melhoraj^íqualidade de seu desempenho e é sempre desejável12.

População-Alvo Não há um consenso acerca da população de dependentes mais indicada para o tratamento em comunidades terapêuticas; como qualquer modelo, ele não está indicado para todo e qualquer indivíduo81. A abordagem deve respeitar as carac­ terísticas sociodemográficas e o padrão de consumo de cada um82. Os pacientes que geralmente procuram esse ambiente de tratamento apresentam problemas sociais, educacionais, vocacionais, comunitários e familiares relacionados ao con­ sumo de substâncias psicoativas de maior gravidade83. Entre estes, há maior prevalência de consumo de múltiplas substâncias, envolvimento com o sistema judicial, suporte social precário e transtornos mentais associados (depressão, an­ siedade, transtornos de personalidade anti-social e borderline)8im.

Eficácia do Tratamento Apesar da organização idiossincrática das comunidades terapêuticas12, os es­ tudos demonstram que estas são mais eficazes no tratamento da dependência química, quando comparadas à ausência de qualquer tratamento8485. Quando comparadas a outros ambientes de tratamento, os resultados são controversos, mas a maioria não identifica diferenças de eficácia entre esses86,87. Sua estrutura de funcionamento, intensiva, fechada, parcialmente isolada do meio externo, hierarquizada e focalizada nas regras do convívio comunitário as fazem parecer indicadas para a população que de fato as procura habitual­ mente. No entanto, de modo semelhante aos outros ambientes de tratamento, \casos mais graves, como os de usuários de drogas injetáveis, pacientes com tnúltiplos parceiros sexuais, poliusuários e pacientes sem motivação para o tra­ tamento, são os que possuem os maiores índices de abandono88. A permanência

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desses indivíduos (mais graves), porém, está relacionada à melhora dos padrões de consumo, dos sintomas psiquiátricos e da reintegração social, se comparados aos que abandonam precocemente o tratamento75,82'86.

Comunidades Terapêuticas no Brasil As comunidades terapêuticas, coloquialmente conhecidas por “fazendas” ou “sítios” são ambientes terapêuticos bastante recorrentes no meio brasileiro. No entanto, os estudos acerca do tema são praticamente nulos na literatura científica nacional, restritos a relatos da experiência de profissionais envolvidos em tais ambientes89-91. Os modelos terapêuticos utilizados nessas comunidades habitualmente se baseiam no Modelo de Minnesota, em preceitos religiosos ou em uma combina­ ção de ambos. Muitas comunidades são administradas por equipes de dependen­ tes em recuperação que concluíram, com sucesso, o programa terapêutico. As comunidades terapêuticas de orientação católica e evangélica são bastante co­ muns e participam ativamente do tratamento dos dependentes de álcool e drogas e da capacitação de indivíduos interessados em participar desse tipo de tratamento

comunitário. A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), fundada em 1990, possui cerca de uma centena de filiadas. Há, ainda, um número equivalente de outras comunidades não-filiadas à FEBRACT, mas que possuem registro junto aos conselhos estaduais de entorpecentes92. Muitas comunidades terapêuticas brasileiras têm alto grau de organização e complexidade: programas de perma­ nência, atividades estruturadas e profissionais especializados89,90,93. Gozam, assim, de grande prestígio e confiabilidade de outros profissionais da área e do público que as utiliza. Por outro lado, existem outras comunidades funcionando precariamente, sem infra-estrutura e equipe pouco capacitada para lidar com os pacientes interna­ dos. Não há estudos relacionados a esse tema, tampouco um indicador público acerca da quantidade e da qualidade das comunidades. Talvez a ausência de tra­ tamentos públicos de qualidade, a inexistência de diretrizes, a fiscalização precá­ ria e a concepção geral pró-internação tenham contribuído para o surgimento desenfreado e desestruturado desses serviços. Outro fator a ser considerado é o modelo moral de ataque excessivamente hierarquizado que outrora prevaleceu nesse ambiente. De acordo com esse modelo, o dependente precisava sentir na carne as conseqüências de seus atos. Desse modo, ambientes precários, reclusões descabidas, punições e trabalhos propostos como forma de submissão ao trata­ mento podem ser resquícios de um tempo que não foi totalmente extirpado de algumas comunidades brasileiras. Tal situação acaba contribuindo para tornar esse importante instrumento de tratamento alvo de incertezas, ainda que não passem de meras exceções à regra. Ultimamente, com a finalidade de sanar tais desvios, as comunidades tera­ pêuticas passaram a merecer atenção governamental. Em esforço conjunto, a Se­ cretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) elaboraram normas mínimas de funcionamento para este tipo de esta­

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belecimento terapêutico94. Anova resolução da ANVISA trata de questões tais como autorização para funcionamento e fiscalização, normas para o manejo medicamentoso dentro destes serviços e critérios de elegibilidade para a interna­ ção (devem ser essencialmente voluntárias). Procurou, também, apresentar crité­ rios de gravidade acerca da síndrome de dependência, de suas complicações biológicas, psíquicas, sociais, familiares e legais. A internação deve ser isenta de restrições que se fundamentem em critérios reli­ giosos, partindo sempre da vontade do paciente, respeitando seu direito ao sigilo e podendo ser interrompida por este a qualquer momento. A internação é contra-indicada para pacientes com complicações biológicas e psicológicas consideradas graves conforme os critérios elaborados. O paciente e seu responsável devem saber, de ante­ mão, seus direitos e deveres, bem como as regras de funcionamento da instituição. Há exigências mínimas quanto à estrutura de hotelaria, incluindo recomendações quanto à alimentação oferecida. Ficam proibidas quaisquer medidas punitivas e o prontuário passa a ser um instrumento de registro obrigatório dentro dessas instituições. O serviço de atendimento deve deixar claras suas rotinas de avaliação médica (incluindo exames laboratoriais) e psicológica, assim como seu cotidiano terapêu­ tico (horários de acordar, das refeições e de dormir, tipos de grupo oferecidos, ativi­ dades físicas, atendimentos individuais). A equipe não médica mínima para atender até 30 pacientes deve incluir um profissional da área da saúde ou serviço social es­ pecializado (responsável pelo programa terapêutico), um coordenador administra­ tivo e três agentes comunitários capacitados. Aresolução apresenta, ainda, critérios detalhados sobre a estrutura física necessária e as rotinas de fiscalização, passo im­ portante para a regulamentação e a valorização desse ambiente terapêutico no Brasil.

N íveis

de

A ten d im en to

Em muitos países, os diversos ambientes de atendimento para dependência química são divididos em modalidades, distribuídas ao longo de um continuum de cuidados95(Quadro 30.4). O Brasil, infelizmente, ainda não possui uma legisla­ ção normalizadora dos níveis de atendimento, tampouco do papel de cada profis­ sional da saúde no tratamento das dependências químicas, apesar de problemas acerca do tema já terem sido identificados por diversos estudos nacionais21. Tal carência dificulta o encaminhamento racional daqueles que procuram auxílio es­ pecializado, sobrecarregando setores que deveriam se responsabilizar apenas por uma parte do tratamento21. Ainda assim, faz parte da organização de um serviço determinar, mesmo que grosseiramente, seu ponto de inserção dentro da rede de tratamento disponível em determinada região (Fig, 30.1). Muitas vezes, por competição entre linhas e modelos terapêuticos, por ingenuidade ou por arrogância, alguns serviços se acham plenamente capazes de responder a todas as necessidades de seus pacien­ tes apenas utilizando seu cabedal teórico e suas técnicas terapêuticas1. Perde-se, assim, um importante referencial: algumas técnicas e serviços são mais ou menos efetivos de acordo com o estágio em que se encontra o dependente. Além disso, não existe um serviço melhor que o outro, mas pacientes que respondem melhor a um tipo de tratamento do que ao outro.

30.4 - Modalidades de Tratamento na Cidade de Chicago (Illinois - EUA)95.

Nivel

Categoria

Descrição

Intervenção precoce

Um serviço organizado, destinado a uma grande variedade de ambientes. Voltado a todos os indiví­ duos (adultos ou adolescentes) com alto risco para o desenvolvimento de problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas

1

Ambulatório

Tratamento ambulatorial constituído por serviços de aconselhamento personalizados para adultos e adolescentes. Embora a freqüência e a intensidade desta modalidade de tratamento dependam das necessidades do paciente, o tempo de permanência médio semanal no serviço é inferior a 9 horas

2

Ambulatório intensivo ou hospitalização parcial

Tratamento ambulatória! constituído por serviços de aconselhamento personalizados para adultos adolescentes. Assim como no nível 1, as necessidades do paciente determinam a freqüência e a in­ tensidade dos serviços, que, em média, são superiores a 9 horas semanais

3

Internação

Tratamento para indivíduos (adultos e adolescentes) com problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas em regime de internação

4

Internação intensiva

Tratamento para indivíduos (adultos e ad&sce-Rtes) com problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas em regime de internação, cujos problemas biológicos, emocionais e comportamentais são suficientementes graves para requerer atendimento médico e de enfermagem nas primeiras 24 horas. Esse nível de atendimento inclui serviços de aconselhamento, treinamento vocacional, escola de pais, visitas domiciliares e grupos de 12 Passos

Observação: Qualquer nível de atendimento pode contar com outros suportes terapêuticos, tais como moradias assitidas e casas de recupe­ ração, para aqueles que necessitem de suporte adicional para manter a abstinência ou que não possuam moradias adequadas.

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Fonte: Office of Substance Abuse Policy (Chicago-!!). Directory of licenced substance abuse treatment programs in Chicago. Chicago: OSAP, 2002 .

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Q uadro

4 8 0 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas...

Figura 30.1 - Ambientes de tratamento posicionados de acordo com o nível de atenção à saúde ao qual estão destinados.

Todo serviço deve procurar o seu lugar para apoiar com mais eficácia o paciente que o procura. Isso vai além da determinação do papel e do posicionamento do serviço: é necessário, também, se conectar aos demais serviços disponíveis para formar redes de apoio mútuo. Isso reforça e amplia as estratégias de tratamento do serviço e possibilita o encaminhamento daqueles que já concluíram o tratamento proposto, mas ainda necessitam de outras abordagens.

P apéis P ro fissio n ais Existe um grande número de profissionais diretamente envolvidos no tra­ tamento da dependência química. Cada ambiente (e a complexidade de sua organização) requer um tipo de equipe12. Um hospital-dia é ambiente obriga­ toriamente multidisciplinar, enquanto uma comunidade terapêutica pode funcionar com apenas um profissional de saúde especializado, integrado a um grupo de ex-usuários. Independentemente da complexidade de cada serviço, é necessário que os pacientes tenham acesso a todos os profissionais necessá­ rios. Mais uma vez, além de conhecer seus limites e sua posição em nível de atendimento, um serviço também deve estar integrado à totalidade da rede de atendimento, a fim de potencializar ou suprir pontos não cobertos por seu tratamento.

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Médico O médico desempenha diferentes papéis dentro da rede de atendimento ao dependente químico, de acordo com o seu grau de especialização. Ao médico generalista, tanto da rede primária quanto do hospital geral, cabem o diagnóstico precoce, o tratamento das complicações clínicas relacionadas ao consumo de dro­ gas, o manejo dos casos mais leves e o encaminhamento dos casos mais graves8,13. Ao médico especialista cabe o tratamento dos casos mais graves e das comorbidades, especialmente dos pontos de vista clínico e farmacoterápico, dentro do ambiente de tratamento que julgar mais adequado1213.

Psicólogo O psicólogo não especializado pode atuar nos diversos níveis de tratamento para a dependência química8. Na rede primária, no hospital geral, no ambiente de trabalho e na escola, ele pode colaborar para o estabelecimento do diagnóstico precoce, prover apoio inicial aos dependentes e motivação para o tratamento es­ pecializado. O psicólogo especialista possui conhecimento teórico e técnico para a atuação dentro de grupos, atendimento individual e coordenação de equipes de tra­ tamento13,25'27. O neuropsicólogo complementa o trabalho de equipe a partir de suas avaliações diagnosticas acerca dos danos cerebrais primários ou secundários ao consumo de drogas12.

Enfermeiro O enfermeiro está cada vez mais presente e atuante na área da dependência química. Desse modo, vem abandonado seu papel estritamente assistencial de outrora para assumir o comando de abordagens terapêuticas específicas. O enfer­ meiro não especialistapode contribuir para o diagnóstico precoce, aconselhamento e motivação para o tratamento dentro da rede primária e dos hospitais-gerais12. 0 enfermeiro especialista é capaz de realizar triagem, aconselhamento, abordagem grupai (educativos e de orientação) e participar ativamente dos procedimentos de tratamento, como a desintoxicação ambulatorial96. A desintoxicação ambulatorial por enfermeiros é um procedimento altamente estruturado97. Ela foi introduzida no Reino Unido durante os anos 198098 e já é realizada em outros países98,99 , inclusive no Brasil100. A desintoxicação alcoólica é uma das portas de entrada para o paciente no programa de tratamento. A ade­ são à terapia de desintoxicação realizada por enfermeiros é de mais de 70% dos pacientes100. Inclui o manejo medicamentoso prescrito pelo médico (benzodiazepínicos), orientações acerca da síndrome de abstinência e acom­ panhamento intensivo (diário)100. O tratamento ambulatorial realizado por enfermeiros, muito mais que oferecer uma forma alternativa de abordagem terapêutica, amplia o campo de atuação do especialista em saúde mental, ofere­ cendo, a baixos custos social e assistencial, uma proposta de tratamento indivi­ dualizado, objetivo, seguro e eficaz100.

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Assistente Social Cada vez mais, o assistente social ocupa posições-chave dentro do tratamento da dependência química. Freqüentemente caricaturado como o encarregado da distribuição dos passes de ônibus e da cesta básica, sua atuação contemporânea vem suplantando em muito tal concepção. O assistente social não especializado, que atua na rede primária, em hospitais-gerais e empresas pode ser capacitado para o diagnóstico, a motivação e o encaminhamento do dependente12. Já o as­ sistente social especialista está particularmente envolvido em equipes nas quais há questões relacionadas à infância e à família12. Além de coordenar as respon­ sabilidades e os recursos sociais destinados aos dependentes químicos, em alguns países, o assistente social é responsável pelo gerenciamento dos recursos de aten­ ção comunitários, bem como pela coordenação de equipes especializadas de prevenção e atendimento101.

Terapeuta Ocupacional O terapeuta ocupacional é um componente fundamental da equipe multidisciplinar voltada para o tratamento da dependência química102. Ele ajuda o depen­ dente a aprender ou a reaprender comportamentos necessários para seu cotidiano e convívio social12. Além das atividades materiais de terapia ocupacional, este pro­ fissional auxilia os dependentes na estruturação do seu dia-a-dia, além de propi­ ciar e apoiar oportunidades de contatos ressocializadores102. Por isso, é fundamental para ampliar o repertório social do dependente, estreitado e empo­ brecido pelos anos dedicados exclusivamente ao consumo de substâncias psicoativas. Desse modo, as atividades de terapia ocupacional não devem ser vis­ tas como aquelas destinadas a “preencher o tempo" do paciente: mais do que a atividade em si, há um propósito terapêutico ensejado, capaz de suscitar impor­ tantes habilidades sociais, melhorando o repertório desses indivíduos12.

Acompanhante Terapêutico A proposta inicial para essa classe de profissionais, oriunda dos movimentos antimanicomiaís dos anos 1950 e 1960, era auxiliar nos tratamentos psiquiátricos em curso, especialmente em suas fases agudas. Outrora denominados auxiliares psiquiátricos, atendentes terapêuticos ou amigos qualiflcadosf a importância de sua atuação no manejo desses casos os transformou em uma nova opção terapêu­ tica para os pacientes com transtornos psiquiátricos, agora sob o nome de acom ­ panhantes terapêuticos103. O acompanhamento terapêutico é uma “clínica em ato”104, ambientalizada em qualquer espaço, seja ele público ou privado. Talvez seja a única atividade tera­ pêutica que aconteça em locais escolhidos pelo paciente a partir de seus próprios referenciais105.0 acompanhante terapêutico é um profissional em movimento, cuja direção e sentido são determinados pela relação terapêutica estabelecida entre este e o seu paciente106. Tal movimento pelos espaços coletivos, supervisionado

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pelo acompanhante terapêutico, objetiva despertar no paciente experiências se­ guras capazes de ampliar e facilitar o manejo do seu contexto social105. Desse modo, cabe ao acompanhante terapêutico promover ações capazes de ampliar repertó­ rios, tanto internos quanto externos. Quando a atuação do acompanhante terapêutico é aplicada à dependência química, apesar da ausência de estudos, sua função pode ser adequada para o manejo de situações agudas (sintomas de abstinência), para auxiliar in loco a re­ solução de conflitos familiares e dificuldades sociais, bem como para favorecer, na prática, o processo de aquisição de novos espaços de convívio social. Além dis­ so, ele passa a ser representante e porta-voz da equipe terapêutica dentro do am­ biente de convívio do dependente.

Agentes Comunitários de Saúde O agente comunitário de saúde é um indivíduo capaz de exercer liderança na comunidade na qual reside e com a qual está culturalmente ligado107. Dependendo de sua capacitação e nível de formação, pode atuar como palestrante, cuidador ou auxiliar as atividades de promoção da saúde e serviço social. Independentemente da profundidade de sua capacitação, todo agente comunitário de saúde deve ser capaz de detectar indivíduos com comportamentos de alto risco e prover-lhes aconselhamento básico e intervenções breves108. Seus ambientes de trabalho são amplos: escolas, residências, espaços públi­ cos, prisões, além de outros. Por ser membro da comunidade, seu acesso aos indi­ víduos é privilegiado. Muitas vezes, ele funciona como referência para o paciente, fazendo visitas domiciliares, dando aconselhamento, facilitando atitudes pragmá­ ticas, motivando a permanência do indivíduo no tratamento12. Desse modo, suas funções mesclam, de alguma forma, componentes do assistente social e do acom­ panhante terapêutico. Como esse último, promove um elo de ligação entre a insti­ tuição de tratamento e o meio de convívio do paciente, além de estar mais próximo da realidade do paciente.

Redutor de Danos Segundo o Ministério da Saúde e a Coordenação Nacional DST e AIDS109, em algumas situações, a ação de um agente de saúde está voltada para a difusão de informações preventivas e focalizada na melhora da qualidade de vida, sem ne­ cessariamente interferir na demanda. É o caso do redutor de danos, tem ação co­ munitária, porém, dirigida a populações especiais, tais como os usuários de drogas injetáveis (UDI). Habitualmente, tais populações são de difícil acesso, tendo em vista o preconceito e a falta de serviços atraentes. Desse modo, o redutor de danos “abre caminhos” pelos grupos de convívio dos usuários até alcançá-los diretamente. Essa classe de indivíduos pode ser composta por usuários de drogas injetá­ veis, ex-usuários de drogas e profissionais de saúde109. Há vantagens e desvanta­ gens em cada uma das categoriais. Os usuários e ex- usuários de drogas injetáveis conhecem os locais de uso, circulam pelos locais de uso com naturalidade e se

4 8 4 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

comunicam com maior facilidade. No entanto, recaídas e/ou o consumo de dro­ gas durante o trabalho de redução de danos, pendências judiciais, o envolvimento com o tráfico e roubos freqüentemente os afastam de suas atividades. Já a ação do profissional de saúde tem a vantagem do conhecimento técnico acerca das dro­ gas, das formas de assepsia, bem como do elo que possui com os sistemas de tra­ tamento. Por outro lado, sua aceitação entre os UDI é limitada, se comparada aos outros dois grupos.

Conselheiros Ex-usuários Estes conselheiros são ex-usuários de álcool e drogas bem-sucedidos em seu processo de recuperação12 que se dedicam ao aconselhamento de dependentes químicos em tratamento. Seus ambientes terapêuticos mais habituais são os gru­ pos de auto-ajuda e as comunidades terapêuticas e os métodos mais utilizados são os 12 Passos e o Modelo de Minnesota46. Atuam também em atividades pre­ ventivas, visitando e levando seu conhecimento a escolas, empresas e presídios. A proposta destes conselheiros, consoante com o 12- passo, é transmitir aos dependentes que os procuram a mensagem dos 12 Passos. O tratamento executa­ do por esses profissionais pode ser tão eficaz quanto qualquer outro77. Acredita-se, de maneira não consensual, que há situações nas quais a atuação do conselheiro é mais ou menos indicada79. A ação do conselheiro pode encontrar, em alguns pacientes, maior receptividade e permeabilidade aos relatos de vida e às soluções encontradas por estes para lidar com a dependência. Por outro lado, a falta de conhecimento técnico pode colocá-los em situações de conflito, competição ou identificação excessiva com os pacientes, trazendo prejuízo ao manejo adequado do caso46. Prover capacitação a esses profissionais poderá combinar o conhecimento teórico-técnico com os insights de sua experiência pessoal, colaborando, assim, para a qualidade de sua abordagem com os dependentes80.

T ipo

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T ratam en to

A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD) descrevem quatro aspectos funda­ mentais para caracterizar um tipo de tratamento: 1. caráter da intervenção; 2. es­ tratégia terapêutica; 3. metas terapêuticas; e 4. filosofia do tratamento10.

Caráter da Intervenção Essa categoria determina qual o tipo de intervenção mais prevalente dentro de um serviço de atendimento. Ela pode ser restrita ao dependente ou incorporar seus grupos de convívio. A intervenção biofísica utiliza procedimentos físicos e não-farmacológicos. É o caso de abordagens como a acupuntura, as massagens e a eletroconvulsoterapia (ECT). Nenhuma intervenção biofísica é utilizada como abordagem primordial

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dentro do tratamento das dependências químicas. A intervenção farmacológica utiliza psicofármacos para o alívio da fissura, como método aversivo, e no trata­ mento das comorbidades relacionadas ao uso indevido de substâncias psicoativas. As enfermarias de desintoxicação e os tratamentos de reposição de metadona são espaços onde a farmacoterapia é fundamental. A intervenção psi­ cológica se dá por intervenções psicoterapêuticas individuais, em grupo ou por acompanhamento terapêutico. A intervenção social visa à modificação do con­ texto social do usuário. As unidades comunitárias de álcool e drogas, as ações de redução de danos e as abordagens sistêmicas são alguns exemplos. Na prática, os serviços oferecem intervenções com binadas, que mesclam os enfoques ante­ riores em diferentes proporções.

Estratégias Terapêuticas As estratégias terapêuticas se organizam a partir da combinação simultânea ou consecutiva de três componentes: 1. tratamento profissional especializado (am­ bulatórios, enfermarias de desintoxicação); 2. estruturas de apoio não-profissional (oficinas, centros culturais); e 3. atividades não oficiais de ajuda mútua ou auto-ajuda (12 Passos).

Metas Terapêuticas As metas terapêuticas se referem ao propósito maior que o tratamento preten­ de alcançar. Serviços determinados a tratar a dependência e suas comorbidades a partir da abstinência completa promovem redução da demanda. Já aqueles mais interessados em atuar sobre os fatores estimuladores ou mantenedores do consu­ mo fazem redução da oferta. Por fim, os serviços interessados em modificar as con­ seqüências do consumo, sem necessariamente influir sobre a demanda, fazem redução de danos. Uma combinação das três abordagens é sempre possível.

Filosofia do Tratamento A filosofia do tratamento se refere aos aspectos ideológicos e teóricos que estruturam seu programa. Desse modo, o tratamento de orientação moral apre­ senta o consumo de drogas como pecaminoso e propõe a culpa como elemento reabilitador. As abordagens de orientação espiritual, como o Modelo de Minnesota, enfatizam a transcendência da existência humana, a espiritualidade e a religiosidade como alternativas terapêuticas. O modelo de orientação bioló­ gica considera a dependência resultante de alterações nos sistemas de neurotransmissão cerebral, cuja origem pode ser também genética. As abordagens de orientação psicológica definem a dependência como o resultado de determinantes psicogênicas, como a expressão de conflitos ou disfunções emo­ cionais. O modelo de orientação sociocultural entende a dependência como re­ flexo de uma alteração no processo de socialização dos sujeitos. A combinação

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dos três últimos fatores (orientação multifatorial) é bastante comum entre os modelos contemporâneos de dependência química. Conforme o exposto, os tipos de tratamento permitem a aplicação de qual­ quer linha de abordagem. A definição do tipo de tratamento de um serviço tem caráter meramente estrutural. Por isso, tal definição deve fazer parte da organi­ zação de qualquer serviço. Ela demonstra maturidade da equipe, confere serie­ dade aos procedimentos e permite avaliações mais objetivas acerca dos resultados obtidos.

C o m po n en tes

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O National Institute on Drug Abuse (NIDA)110 considera que qualquer en­ quadre terapêutico proposto deve contemplar ao menos 13 itens e propiciar ao paciente que o procura uma infra-estrutura capaz de atender às suas ne­ cessidades e remover barreiras que dificultem sua adesão à proposta terapêu­ tica (Fig. 30.2).

Individualização da Abordagem Não existe uma forma de tratamento adequada para toda e qualquer pes­ soa. Desse modo, a abordagem proposta deve contemplar ao máximo as ne­ cessidades de cada indivíduo, para que este volte a funcionar produtivamente na família, no trabalho e na sociedade. Ela deve ser adequada para idade, sexo, etnia e cultura.

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Figura 30.2 - Os melhores programas de tratamento provêm uma combinação de terapias e outros serviços para satisfazer às necessidades do paciente. Fonte: NIDA 114 (Modificado pelo autor).

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Disponibilidade de Acesso A motivação dos dependentes para a mudança passa por fases. Por isso, é im­ portante aproveitar a oportunidade quando estes se mostram preparados para ingressar em um tratamento. Os serviços, assim, devem remover todas as barrei­ ras que dificultem o acesso, tais como filas, distância e transporte. ^

Multidisciplinaridade Não há efetividade se o serviço enfoca apenas o consumo de drogas de seus pacientes. A abordagem deve dirigir-se, também, a qualquer outro tipo de proble­ ma médico, sociológico, social, vocacional ou legal.

Plano de Tratamento Maleável O paciente pode requerer combinações de serviços e componentes de trata­ mento que variam durante o curso do processo terapêutico. Uma abordagem inicial focalizada na aquisição da abstinência, no manejo da fissura e no trata­ mento de complicações clínicas pode evoluir para outra, marcadamente psicoterápica, com intervenções familiares e vocacionais. Por isso, toda aborda­ gem deve ser discutida e modificada pela equipe multidisciplinar responsável, sempre que necessário.

Tempo de Permanência Mínimo A duração apropriada do tratamento depende dos problemas e das necessi­ dades de cada indivíduo. As pesquisas indicam que a melhora começa a ser senti­ da após três meses de tratamento. Quando se ultrapassa essa marca, o indivíduo pode ter recuperação acelerada. Já que muitas pessoas deixam o tratamento pre­ maturamente, os serviços devem incluir estratégias que favoreçam a adesão.

Psicoterapia Individual e em Grupo Durante a terapia (individual ou em grupo), os pacientes se motivam para a mu­ dança, aprendem a evitar a recaída e desenvolvem habilidades que contribuem para sua reintegração social e a resolução de seus problemas pessoais. Trata-se, assim, de um instrumento fundamental dentro de qualquer modelo de serviço proposto.

Farmacoterapia Muitos pacientes se beneficiam do tratamento medicamentoso, em especial para o manejo da fissura, como terapia de substituição e tratamento das comorbidades. No primeiro caso, se enquadra a utilização de naltrexona ou

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acamprosato, entre os dependentes de álcool e de bupropiona e nortriptilina, en­ tre os dependentes de nicotina. A metadona é mundialmente utilizada como terapia de substituição de opiáceos, como a heroína e a meperidina (Dolantina®). O trata­ mento das comorbidades segue o protocolo medicamentoso indicado para o trans­ torno psiquiátrico associado.

Tratamento Integrado da Comorbidade Sempre que houver uma comorbidade associada ao quadro de dependência química, o serviço deverá oferecer um tratamento psiquiátrico simultâneo para ambos os diagnósticos.

Desintoxicação Apenas como Estratégia Inicial A desintoxicação e o manejo médico dos sintomas agudos da síndrome de absti­ nência, apesar de fundamentais e insubstituíveis, são apenas uma estratégia inicial. Para muitos pacientes, estimulam a adesão e o sucesso do tratamento. No entanto, tais procedimentos, quando isolados, não proporcionam ao paciente uma abstinên­ cia duradoura.

Tratamentos Voluntário e Involuntário O sucesso de qualquer tratamento depende da motivação para a mudança e da capacidade da equipe em suscitá-la no paciente. Aqueles que chegam para tra­ tamento em virtude de pressões familiares, do ambiente de trabalho ou por deter­ minação judicial podem ser motivados e apresentar êxito no tratamento.

Monitoramento do Consumo Monitorar o consumo de drogas durante o tratamento é fundamental, uma vez que a recaída é um fator de risco importante para o abandono do processo terapêutico. O NIDA sugere os exames de urina como método de monitoramento efetivo. No entanto, há outros marcadores de grande (ou maior) valia para monitorar a abstinência: observar mudanças de comportamento, ligar para o pa­ ciente após falta à consulta e averiguar com os familiares o sucesso do paciente na implementação das metas estabelecidas durante o atendimento.

DST-AIDS O tratamento também deve abordar com eficiência e propriedade os compor­ tamentos de alto risco, oferecendo abordagens preventivas (orientações), diag­ nosticas (exames para hepatites, HIV, tuberculose, DST) e encaminhamentos para serviços especializados no tratamento dessas patologias.

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Tratamento a Longo Prazo Assim como qualquer outra enfermidade crônica, todo tratamento está sujeito à reincidência. Os pacientes usuários de álcool, nicotina e outras drogas estão su­ jeitos a recaídas e a múltiplos retornos ao tratamento até atingirem um padrão estável de abstinência. Desse modo, devem ser orientados acerca da longa dura­ ção do tratamento, mesmo que o serviço que o atender naquele momento seja responsável por apenas uma das etapas.

POPULAÇÃO-ALVO DO SERVIÇO Apesar de ser clara a necessidade de individualizar toda e qualquer aborda­ gem terapêutica instituída, alguns serviços sentem a necessidade de uma “individualização prévia” para o atendimento de populações especiais. Isso deve ser sempre considerado quando se planeja organizar um serviço, não importando o ambiente de tratamento escolhido. A adaptação de um serviço a determinadas populações específicas é plenamente contemplada, aceita e recomendada pela literatura especializada111112. Existem inúmeros exemplos, com possibilidades quase infinitas de combinação e identificação de subgrupos dentro das popula­ ções especiais conhecidas. Mulheres dependentes de álcool obtêm maior êxito quando o tratamento es­ pecializado acontece em centros que respondam às várias dimensões de sua pro­ blemática, incluindo creches para deixarem os filhos durante o atendimento, abordagens voltadas ao preconceito que recai sobre a condição feminina e aten­ ção às repercussões ginecológicas e endocrinológicas da dependência do álcool113. Equipes multidisciplinares femininas aumentam as chances de adesão dessa po­ pulação ao tratamento114. Boa parte das mulheres dependentes químicas vive em situação de violência doméstica114. 0 risco para consumo de álcool e tranqüilizan­ tes aumenta secundariamente à presença de transtornos psiquiátricos (em espe­ cial a depressão)115. Os serviços voltados aos adolescentes devem envolvê-los na elaboração dos programas e valorizar a transmissão de suas experiências, sejam eles usuários ou não116. Adolescentes dependentes químicos necessitam de abordagens adequa­ das para sua faixa etária, tais como encenações do cotidiano, jogos, exercícios dra­ máticos, oficinas, excursões, enfim, atividades recreativas com mensagens sérias, visando à mudança e à aquisição de novos comportamentos e habilidades que os auxiliem na resolução de problemas pessoais116. O paciente idoso necessita de abordagens marcadas pela calma na explicação dos procedimentos e um ritmo especial para negociar os passos do tratamento. Qualquer interferência abrupta e desajeitada é recebida com irritação e não resulta em nenhum ganho terapêutico117. O tipo de droga utilizada e a gravidade dos pacientes atendidos também po­ dem suscitar a necessidade de serviços especiais. Usuários de cocaína parecem se beneficiar mais de abordagens ambulatoriais intensivas118. Um serviço voltado para usuários de drogas injetáveis (UDI) deve enfatizar, mais do que qualquer outro, a prevenção das DST-AIDS, sendo a redução de danos a abordagem mais indicada e

4 9 0 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

bem-sucedida entre esses usuários109. Ambulatório ou enfermaria de desin­ toxicação que se proponha a atender dependentes com transtornos psiquiátricos graves associados (depressão, esquizofrenia, pacientes com atitudes suicidas) ou custodiados à mercê de condenação penal (presos, menores infratores) requer um apoio logístico mais intensivo, tanto no número e na qualificação dos profissio­ nais de saúde, quanto em termos de segurança119120. Mesmo que o serviço estruturado não se dedique, a priori, a um perfil estrito de pacientes, certamente a população que buscar seu auxílio terá suas particula­ ridades. Além disso, o tipo de substância consumida e a gravidade de seus pa­ drões de consumo variam ao longo do tempo. Desse modo, é inviável a organização de um serviço sem que se conheça minimamente quem o poderá procurar e a quem será capaz de atender.

A

d esã o

Um aspecto que merece destaque na organização de um serviço para depen­ dência química é a preocupação com a adesão. Vários dos itens citados ao longo do texto, tais como personalização da abordagem, melhoria do suporte social (albergagem, transporte, orientação familiar), disponibilidade ao primeiro acesso e escolha de um nível de atendimento consoante com a gravidade da dependên­ cia visam aumentar as chances de adesão dos pacientes ao serviço. Apesar dos progressos no tocante à diversificação dos ambientes e das linhas de atendimento, o sucesso dos tratamentos instituídos ainda é tímido121. O índice de abandono ao tratamento é extremamente alto. Entre os usuários de cocaína122, acredita-se que mais da metade dos pacientes marque a primei­ ra consulta e não compareça a ela. Outro terço assiste a uma ou duas sessões e não volta mais. Isso significa que é muito grande a chance de um serviço per­ der até dois terços de seus pacientes usuários de cocaína em menos de um mês. A dificuldade em chegar ao tratamento, por exemplo, em virtude da fila de espera é a maior responsável pelas desistências antes da primeira consul­ ta122. A adesão à primeira consulta chega a 60% quando ela é marcada para o dia seguinte, caindo para 30% quando o intervalo é de uma semana. Quando esses pacientes são reagendados por iniciativa do serviço, o índice de comparecimento aumenta para 46%. Desse modo, vê-se que os serviços que adotam uma postura ativa diante da abstenção de seus pacientes apresentam melhores índices de adesão ao tratamento. Existem evidências sugestivas de que o abandono aumenta conforme dimi­ nui a gravidade do quadro123. Apesar de a melhora inicial aumentar o risco de saí­ da precoce do atendimento, outras situações como recaídas, falta de apoio social, comorbidade e doença mental na família, também contribuem para o abandonoi24,i25 Aqueles que desistem do tratamento (mesmo após a melhora inicial) retomam com maior freqüência ao consumo e apresentam mais complicações sociais do que os que permanecem126. Geralmente, a melhora proporcionada pelo tratamento começa a ficar mais nítida para o paciente e seus familiares apenas após o terceiro mês. No entanto, os maiores índices de abandono acontecem justamente nesse período. Desse modo,

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o desenvolvimento de estratégias para aumentar a adesão dos pacientes nesse período é fundamental para que o tratamento atinja o maior número possível de indivíduos. Isso inclui abordagens que respeitem o estágio motivacional dos indi­ víduos, bem como uma postura ativa do serviço para remover barreiras à sua che­ gada ao serviço (fila de espera, transporte, poucas opções de métodos terapêuticos) e diante de abstenções dos pacientes.

C o n clu sã o O intuito desta parte do capítulo foi apresentar ao leitor os componentes ne­ cessários para a construção de um enquadre terapêutico adequado, bem posicionado na estrutura global de atendimento e interessado na qualidade do atendimento e na adesão de seus pacientes ao tratamento. Um programa de tra­ tamento não necessita possuir todos os recursos terapêuticos recomendados, des­ de que saiba o limite do seu alcance terapêutico e se complemente com outros serviços, dentro de uma rede local de atenção. No Brasil, boa parte dos serviços é organizada única e exclusivamente a partir do empenho e da experiência de seus profissionais. Isso origina serviços com po­ tencial de atendimento limitado e desvinculado das necessidades locais. O co­ nhecimento acerca da estrutura mínima de um serviço orienta e refina a prestação de serviços, além de situar interna e externamente os papéis profissionais e institucionais de atendimento. De posse da estrutura física, teórica e prática da organização do serviço, a linha dinâmica da implantação de um programa tera­ pêutico (planejamento e avaliação) será o objeto da próxima parte.

Dinâmico: Planejamento e Avaliação

I n tr o d u ç ã o Esta parte do capítulo não pretende ser uma diretriz, tampouco um manual capaz de esgotar o assunto sobre pla­ nejamento e avaliação de serviços. Seu objetivo é apenas alertar o leitor para a complexidade do planejamento de um serviço, esteja este ainda no papel ou em pleno funciona­ mento. As informações aqui expostas são praticamente uma colagem de orientações e normas obtidas em outras fontes. Este texto prima pela sistematização de idéias capazes de proporcionar ações de implementação e gerenciamento bem-sucedidas na organização de um serviço para depen­ dentes químicos. Desse modo, sua leitura implicará, neces­ sariamente, no aprofundamento do tema em outras leituras ou na busca de cursos relacionados ao tema. Apesar de complexas, as ações de planejamento e avalia­ ção de um serviço não são mais difíceis, árduas ou dispendiosas do que seriam as ações realizadas “naturalmente”: o caminho percorrido durante o planejamento é o mesmo percorrido du­ rante qualquer ação de implantação de serviços. Diferentemen­ te, o planejamento ocorre de maneira sistematizada, valorizando as potencialidades do grupo, se aproveitando das oportunidades oferecidas pelo meio, corrigindo pontos fracos do serviço e respondendo às ameaças ambientais, dentro de uma ação integrada, marcada pelo trabalho de equipe. Tomouse, por isso, uma ferramenta fundamental para o sucesso de qualquer empreendimento terapêutico.

M o tivo s Qualquer ação de planejamento deve levar em con­ sideração quatro aspectos primordiais: existe um públi-

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co-alvo inserido num contexto social (os dependentes químicos e seu grupo de convívio), uma entidade que lhes presta atendimento (o serviço a ser or­ ganizado), que possui recursos (sede própria, programas de atendimento, fi­ nanciamentos, uma rede de apoio) e pessoas capacitadas para tal127. Um projeto de atuação sempre deve considerar esses quatro elementos. Desse modo, é preciso conjugar ações de qualidade com as reais necessidades do público atendido. As variações sociodemográfícas e dos padrões de consumo, as diferentes po­ pulações de usuários nos serviços de tratamento e a necessidade de se obter res­ postas satisfatórias tornam necessária a criação de padrões de planejamento e avaliação do serviço, com o intuito de detectar precocemente erros, acertos e ten­ dências, para, assim, efetivar as modificações necessárias128. Além disso, os novos conceitos de dependência química e as demandas sociais por esse tipo de atendi­ mento exercem novas pressões sobre os serviços j á existentes, ameaçando sua via­ bilidade futura5. Por isso, além de conhecer o formato do serviço desejado, seu nível de atendi­ mento, a população-alvo escolhida e a equipe profissional, é necessário planejar, monitorar e avaliar as ações de atendimento propostas. Isso possibilita conhecer em profundidade os problemas que se apresentam e permite o desenho e a im­ plementação de ações ajustadas à realidade social128.

P la n eja m en to O planejamento é uma etapa essencial no processo de organização de qual­ quer serviço. Planejar é uma tentativa de antever o futuro. Isso significa pensar no serviço para o ano que vem, para os próximos dez anos, para as próximas gerações de profissionais que assumirão o atendimento e nos destinos da socie­ dade que o circunda. Existem diversos princípios e diretrizes (Quadro 30.5) en­ volvidos nesse processo que precisam ser profundamente discutidos pela equipe de profissionais129.

Q uadro 3 0 .5 - Princípios e Diretrizes do Processo de Planejamento1 •

Pensar no futuro da organização e da sociedade a curto, médio e longo prazos



Definir o caminho a ser tomado para implementar e executar as ações



Estabelecer os limites: o que é exeqüível e o que está além das capacidades do serviço



Diminuir as incertezas acerca do futuro do serviço



Promover o senso de responsabilidade em todos os membros da equipe



Investigar profundamente a questão para a qual o serviço está destinado



Não subestimar as ameaças externas ao funcionamento do serviço



Fomentar ações integradas



Criar ações que reflitam a vontade, os ideais e os sentimentos de toda a equipe

4 9 4 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

O planejamento está destinado ao desenvolvimento do conteúdo do ser­ viço, dos processos de implantação e gestão, bem como ao estabelecimento das normas de interação entre os membros da equipe e entre estes e o público-alvo130. Tudo isso visa a um só objetivo: promover um atendimento de qua­ lidade para aqueles que buscam os serviços para dependência química. A Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD) e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS)11 sugerem que algumas infor­ mações fiquem bem claras no momento de planejar (ou avaliar) um serviço (Quadro 30.6). Entre elas, estão as necessidades do serviço, a distribuição lo­ cal de serviços relacionados, os recursos humanos (capacitação) e materiais de que serviço dispõe, o modelo de atendimento e como ele é coordenado e administrado. Esses assuntos precisam ser discutidos exaustivamente, ponto a ponto, até que todos tenham bem claro o que desejam. Só assim a equipe terá opiniões comuns, divergências clarificadas e uma noção viva da realidade que a ro­ deia. Desse modo, haverá um ambiente propício para a tomada das melho­ res decisões.

Processo de Planejamento O processo de planejamento segue algumas diretrizes básicas para que sua execução seja realizada de maneira sistemática (Quadro 30.7)130. A equi­ pe deve estar consciente da necessidade de atravessar todas estas etapas sem pressa, de maneira descentralizada, ouvindo a todos, distribuindo responsa­ bilidades e integrando continuamente as experiências adquiridas e as reali­ zações implementadas. Não se trata de um organograma que precisa ser seguido rigidamente, mas, sim, de fases que exigem determinadas ações para que as necessidades daquele momento sejam atendidas de modo adequado e consciente130.

Q uadro 3 0 .6 - Informações Necessárias para um Bom Planejamento3 •

Situação atual da problemática relacionada ao consumo de drogas no nível do serviço



Necessidades do serviço



Demandas por tratamento, os serviços já existentes e sua distribuição local



Disponibilidade de recursos humanos e materiais



Composição da equipe que promove o tratamento



Custo das intervenções



Modelo das intervenções escolhidas pela equipe



Possibilidades de capacitação dos recursos humanos



Desenvolvimento de atividades de investigação, coordenação e administração



Conhecimento das vantagens do tratamento

Q uadro 30.7 -

Etapas do Processo de Planejamento1 Ações

Objetivos

Organização Como será o planejamento?

• • • • •

Formar equipes de discussão Checar as motivações individuais Estabelecer o tempo de elaboração Definir o papel de cada um no processo Ser ousado e realista nas ações propostas

Inocular responsabilidade em todos os envolvidos no processo de planejamento

Orientação Qual é a situação real?

• • • • •

Examinar situações em detalhe Formular os problemas e procurar suas causas Ouvir as idéias e informações de todos Verificar se houve entendimento comum Trazer experiências de fora

Direcionamento 0 que vamos ser ou mudar?

• • • • • • • •

Fazer perguntas sem resposta rápida Reconhecer que nenhuma resposta satisfaz ainda Estabelecer critério e referenciais comuns Discutir com base em evidências e argumentos Ordenar, sintetizar, resumir Registrar, colocar no papel Esclarecer dúvidas, produzir senso comum Focar o essencial e manter os pés no chão

Plano de Ação 0 que vamos fazer?

• Ouvir quem está na prática (leigos e especialistas) • Ouvir quem não está na rotina • Quantificar prazos, quantidades e valores

Trazer clareza para as questões que envolvem a organização do serviço

Dar confiança à iniciativa

Comprometer a equipe com o processo de planejamento

• Nomear responsáveis • Estimar custos • Sintetizar no papel Avaliação Quais as correções?

Ter informações disponíveis Reuniões freqüentes com a equipe Focar com perguntas Abertura de opinião a todos Pensar novas formas de fazer Examinar causas e conseqüências

Consciência e aprendizado

■ 495

• • • • • •

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química

Etapa

4 9 6 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

Um bom planejamento começa com o diagnóstico adequado da situação social, cultural e econômica, bem como da disposição que cada membro da equi­ pe tem para enfrentá-la. Qual é o tipo de problema relacionado à dependência química que aflige determinada região? Há uma população especialmente atin­ gida? Quais são os dados sociodemográficos gerais e específicos? Qual o tipo de droga e a via de administração mais utilizados? Qual modelo de atendimento atenderia tais necessidades da melhor maneira? Há outros serviços com os quais se possa contar e apoiar mutuamente? O que os membros da equipe pensam da dependência química? Qual a formação de cada um? Há necessidade de mais capacitação? Essas são apenas algumas das muitas perguntas a serem respondi­ das na fase inicial128130. Um componente importante das etapas de organização, direcionamento e plano de ação é a avaliação das tentativas que estão sendo ou já foram implementadas na área da dependência química, dentro do modelo de atendimento que se quer cons­ truir. Isso evita um esforço desnecessário e infrutífero. Para tanto, é necessário buscar, na literatura, experiências bem-sucedidas de atendimento (com base em evidências científicas), consultar especialistas, visitar serviços semelhantes, fre­ qüentar encontros entre profissionais da área130.

Projeto de Planejamento O esforço quanto ao planejamento deve se converter em um projetof docu­ mento que é a concretização de um compromisso e a linha mestra para as ações que serão tomadas daí em diante. O projeto de planejamento é apresentado den­ tro de um formato, para que as proposições sejam colocadas de maneira clara e lógica para qualquer leitor (Quadro 30.8)127. Os cinco primeiros itens (m issão, visão, vocação, valores e princípios e es­ tratégias) permitem saber exatamente como o serviço pensa o mundo e se define nele, qual sua opinião sobre a questão das drogas e quais são suas capacidades para lidar com o problema. Isso deixa muito claro o foco de atua­ ção, ou seja, que áreas, atividades, programas, regiões, público-alvo e parcei­ ros serão contemplados pelo projeto. Todos esses itens devem ser expostos de maneira clara e sucinta. A prática parte dos objetivos, que são quantificados e previstos pelas metas e detalhados pelas ações, atividades e cronograma. O custo da empreitada deve ser estabelecido para que a equipe saiba quanto já tem e quanto deverá captar para a implantação do projeto.

A v a lia ç ã o A avaliação é parte constituinte (e indissociável) do planejamento. Ela é a res­ ponsável pelo dinamismo que toda proposta de tratamento deve possuir. Sem a avaliação, o serviço estará à mercê das mudanças sociais e da persistência de er­ ros que o expõem constantemente ao desgaste e ao anacronismo. Além disso, o

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■ 4 9 7

Q u adro 30,8 - Conteúdos de um Projeto de Planejamento1 Missão

A missão sintetiza a razão da existência de um serviço. 0 que diz deve estar presente em todas as ações implementadas, nas atitudes da equipe, no papel que cada um desempenha. É o grande norte. Suas proposições devem ser estáveis, essenciais e duradouras

Visão

Se a missão prima por ser duradoura, a visão de mundo se caracteriza por esforço da instituição em acompanhar os desenvolvimentos e desafios que a sociedade lhe impõe. Por isso, deve ser avaliada e criticada constantemente

Vocação

Se a missão é o que a organização faz e se compromete a fazer, vocação é o que a organização é capaz de fazer. Por exemplo, minha missão pode ser divulgar conhecimento acerca de métodos preventivos sobre DST-AIDS e, minha vocação, divulgar tais conhecimentos pela Internet (pois ainda careço de recursos para fazê-lo impresso ou pela televisão)

Valores e Princípios

Em linhas gerais, tudo aquilo em que os membros do serviço acreditam e que valorizam. Isso engloba desde os temas mais gerais (por exemplo, as linhas de orientação teóricas, religiosas, etc.), passando pela necessidade de assegurar ao ser humano um tratamento digno e igualitário e chegando à visão da equipe sobre a questão das drogas nos dias de hoje

Estratégias

Aqui deve ficar claro que o serviço sabe os caminhos para atingir seus objetivos. Essa seção é reservada para a exposição das restrições e possibilidades internas e externas à execução do projeto. A estratégia deve ser consistente com a visão a longo prazo desenvolvida para suas ações. Ela deve ser flexível, ou seja, pode ser melhorada e corrigida a todo instante, sempre que necessário. Devem ser apresentadas estratégias a curto e longo prazos. Para deixar claro que a instituição sabe o que está fazendo, devem-se listar os pontos fortes e fracos da instituição e as ameaças e oportunidades externas

Objetivos

Devem ser genéricos e contemplar também as ações que a equipe implementará para solucionar os pontos fracos do serviço e as ameaças externas ao seu sucesso

Metas

A meta é quantificável, mensurável e concreta. Ela deve ser clara e descrever tudo o se pretende realizar em um dado período. Assim, se o objetivo do serviço é atender dependentes químicos em ambiente ambulatorial, a meta poderá ser atender, durante o ano, 50 pacientes e seus familiares mensalmente, por meio desintoxicação (se necessária), atendimento semanal em grupo, grupo familiar e individual (psicológico e clínico)

Ações, Atividades e Cronogramas Custos

Devem detalhar minuciosamente a rotina do serviço, incluindo os tipos de atendimento, horários, profissionais envolvidos, pontos de apoio e tudo o que estiver relacionado ao seu funcionamento. Relacionar as necessidades do projeto de forma detalhada, inclusive com orçamentos

4 9 8 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

crescimento do serviço já é, per se, uma nova realidade. Ela precisa ser entendida por toda a equipe para que as adaptações possam favorecer a todos. Por exemplo, o aumento do número de profissionais e dos turnos de atendimento pode dificul­ tar o encontro diário entre eles e a presença simultânea às reuniões de equipe. Desse modo, novas formas de comunicação precisarão ser desenvolvidas (grupos de e-mail, boletins informativos, etc.) e a dinâmica das reuniões terá de ser altera­ da (reuniões semanais de pequena equipe e uma geral, mensal ou bimestral). Outro foco importante da avaliação é a alocação de recursos. O serviço necessita saber qual é o seu caixa, seu fluxo de entrada e de saída, como deve aplicá-lo, os resulta­ dos de tal investimento e como captar mais128. A avaliação do serviço é a melhor forma de gerar integração, aumentar o aporte financeiro, otimizar os serviços oferecidos e detectar ameaças e falhas. No entanto, a própria avaliação pode se constituir na ruína do serviço, quando executada ou tomada de maneira errônea (Quadro 30.9)130. Avaliar não significa questionar ou julgar o trabalho alheio, mas, sim, o momento de corrigir os im­ previstos, os detalhes e as conseqüências negativas que não puderam ser antevistas durante o processo de planejamento.

Instrumentos de Avaliação Um serviço não requer apenas avaliação. Planejar e organizar um serviço de dependência química, conforme exposto, requer um esforço considerável para que os diversos componentes se encaixem harmoniosamente. Tais compo­ nentes necessitarão de uma avaliação isolada, que será revista posteriormente, dentro das reuniões de equipe11. Esses dados, tais como as características sociodemográficas da população atendida, os recursos internos e externos dispo­ níveis, as situações específicas de tratamento, as modalidades de atendimento, a aplicação dos recursos e o nível do tratamento oferecido, são coletados durante o processo de planejamento. Uma estratégia efetiva para tornar o processo de avaliação impessoal é a uti­ lização de instrumentos de avaliação. Há diversos instrumentos padronizados disponíveis na literatura para as mais diversas áreas: diagnóstico clínico, situa­ ção familiar, evolução da gravidade dos sintomas, satisfação do cliente, custos. Há algumas vantagens na utilização de instrumentos de avaliação cientificamente validados: eles são objetivos e focalizados; levam em consideração todos os fatores envolvidos e se preocupam com aqueles que poderiam falsear o resulta­ do final; já estão elaborados, poupando tempo para a equipe; são neutros, isto é, não foram elaboradas por ninguém da equipe e permitem comparação com re­ sultados obtidos por outros serviços. No entanto, há algumas desvantagens: muitas escalas necessitam de treinamento antes da sua aplicação, nem sempre estes instrumentos se encaixam nas necessidades de avaliação do serviço e algu­ mas são extensas em demasia. A equipe também poderá estabelecer e padronizar seus critérios de avaliação a partir de questionários estruturados. A desvantagem desse método é que, apesar de permitir comparações ao longo do tempo, não produz resultados cientifica­ mente comprovados e tais resultados não podem ser comparados com os obtidos

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por outros serviços. De qualquer forma, é importante que haja ao menos algum instrumento de avaliação. Em ambos os casos, a equipe deve decidir o tipo de escala ou elaborar um questionário, conjuntamente. O Programa sobre Abuso de Substâncias Psicoativas (Organização Mundial da Saúde) desenvolveu uma escala para a avaliação de serviços que engloba desde a normatização do acesso dos pacientes ao serviço até o enquadre terapêutico (am­ biente, equipe e tipo de tratamento), passando pelo direito dos pacientes e pelas normas de funcionamento físico (higiene e saúde ambiental)131.

Níveis de Avaliação A maioria dos profissionais de saúde mental está habituada a um tipo de avalia­ ção: a discussão de caso. Apesar de não ser esta a função explícita da discussão, ao submeter um caso à opinião de outros membros da equipe o profissional avalia o andamento de seu trabalho, ouve considerações, identifica os pontos fortes e fracos de sua intervenção e aprende, visando, em última instância, à melhora de seu pacien­ te. Geralmente, o clima é de respeito e a opinião de terceiros não é recebida como uma crítica, mas como um sinal de apoio à abordagem terapêutica em curso. A dis­ cussão de caso é um bom modelo para o entendimento do espírito da avaliação. Esse espírito pode ser aplicado em diversos níveis128. Pode ser utilizado na avaliação da p rop osta de tratam en to aplicada dentro de um grupo psicoterápico isoladamente ou do trabalho realizado por toda a equipe. O serviço, como um todo, pode ter um instrumento de avaliação geral para medir, por exemplo, a adesão, a melhora clínica ou a qualidade de vida. Há, ainda, possibilidade de realizar avaliações mais amplas, como dos serviços gerenciados por uma agência ou de um sistem a de saúde (público ou priva­ do), responsável por várias agências.

Pontos Fundamentais Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS)10, existem pontos fun­ damentais que não podem ser esquecidos durante o desenvolvimento de um pro­ grama de avaliação. Tais aspectos precisam ser investigados e integrados. O objetivo destas avaliações é o fornecimento de subsídios para a etapa seguinte, fechando, assim, um ciclo iniciado pelo processo de planejamento128. É como se o planeja­ mento começasse novamente, com a diferença de agora possuir dados objetivos acerca dos resultados (pontos fortes e fracos) obtidos após sua implementação. A cada ciclo, o processo se clarifica, se fortalece e as ações se tornam mais econômi­ cas e adequadamente focalizadas.

D ia g n ó stico S itu a c io n a l O diagnóstico situacional habitualmente é realizado por centros especia­ lizados em pesquisa epidemiológica. No Brasil, o Centro de Informações so­

5 0 0 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

bre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) é o responsável pelos levantamentos de melhor qualidade e al­ cance epidemiológico132. O CEBRID já realizou quatro levantamentos entre estudantes de dez capitais brasileiras (1987-1997), quatro com meninos em situação de rua de cinco capitais (1987-1997), um levantamento domiciliar nas 24 maiores cidades do Estado de São Paulo (1999) e um levantamento domiciliar nacional (2001). A síntese de todos eles está disponível on-line132. A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) disponibiliza informações epidemiológicas on-line a partir do Observatório Brasileiro de Informações so­ bre Drogas (OBID)133. Qualquer processo de avaliação começa pelo diagnóstico situacional, tanto do serviço quanto do ambiente, seja ele micro (a comunidade, a cidade) ou macro (o Estado, o país, o mundo)11. Essa fase faz parte das etapas de organi­ zação, direcionamento do processo de planejamento (Quadro 30.9) 13°. Isso in­ clui as necessidades locais da população atendida. Por exemplo, uma região em que os índices de dependência de álcool na mulher são elevados justifica a criação de um ambulatório específico para ela. No entanto, a garantia da ade­ são necessitará de equipamentos especiais dentro da infra-estrutura da uni­ dade, tais como locais para deixar os filhos durante as consultas e atividades, atendimento ginecológico e endocrinológico e orientação sobre métodos contraceptivos. Desse modo, tão importante quanto as tendências epide­ miológicas nacionais, estaduais e municipais são as estatísticas do próprio ser­ viço (Quadro 30.10)10. Ao longo das avaliações, tornam-se claros o perfil sociodemográfico da­ queles que procuram o serviço e os recursos disponíveis para a atenção na comunidade, tanto gerais quanto especializados. Além disso, tais estatísticas podem detectar aumento precoce de alguma demanda, abandono excessi­ vo dentro de um grupo especial de pacientes ou associação recorrente de um complicador social entre os pacientes locais, que dificulta o sucesso das abordagens. Todos esses dados ajudarão na elaboração de um modelo ideal de atenção que contemple as necessidades da comunidade local (dentro dos limites de funcionamento do serviço) sem repetir modelos de atendimento que já existi­ ram sem sucesso ou que estiverem presentes naquela região.

Q uadro 30.9 - Erros Típicos d a Etapa d e Avaliação1 • • • • • • •

Dedicação excessiva ou escassa ao processo de avaliação Olhar polarizado: avaliação exclusiva do bom ou do ruim Confundir avaliação com crítica Mexer só no trabalho alheio Evitar os assuntos delicados Criação de um ambiente eminentemente punitivo Misturar questões de poder com questões de aprendizagem

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■ 501

Q uadro 3 0 .1 0 - Pontos Importantes para o Diagnóstico Situacional do Serviço

de Tratamento3 Perfil Sociodemográfico

Naturalidade, procedência, idade, sexo, etnia, estado civil, nível de escolaridade, vínculo empregatício, religião

Perfil do Consumo

Tipo de substância, padrão de consumo, populações especiais de usuários (usuários de drogas injetáveis, mulheres dependentes de álcool, adolescentes, grávidas, meninos em situação de rua, quadros de intoxicação aguda, etc.)

Avaliação Integral

Avaliação física (clínica e exames complementares), psiquiátrica e social, diagnóstico de entrada e plano de atendimento instituído

Avaliação Diagnóstica CID-10 ~ OMS

Intoxicação aguda, uso nocivo, síndrome de dependência, síndrome de abstinência, comorbidade física e/ou psiquiátrica, incapacidades crônicas

Motivação

Voluntária, por pressão familiar, recomendação médica, ordem judicial, outras

Acessibilidade

Conveniência geográfica para o paciente, custos com transporte, tempo de espera para a primeira consulta

Perfil Social Local

Situação econômica da região, aceitação e valorização do tratamento pela comunidade, compromisso da comunidade com as atividades terapêuticas, composição da rede de serviços públicos e privados para dependência química, demanda e necessidades locais de tratamento

O r g a n iza ç ã o

do

S erviço

Uma proposta de tratamento se inicia com a marcação da consulta, feita pes­ soalmente ou por telefone. A partir daí, há uma série de componentes inclusos, geralmente integrados, que determinarão os perfis terapêutico e institucional da organização. Todos estes precisam ser constantemente avaliados. O enquadre terapêutico proposto é um desses componentes. É preciso avaliar se o caráter da intervenção (farmacoterápico, psicoterápico, social), a estratégia terapêutica (linhas psicológicas de abordagem, 12 Passos, estruturas de apoio), as metas terapêuticas (redução da demanda, das causas sociais do consumo, de da­ nos) e a filo so fia do tratam ento (moral, espiritual, biológica, psicológica, sociocultural ou integrativa) foram bem implantados e, em caso positivo, resulta­ ram em ações efetivas. A avaliação da efetividade de um serviço visa conhecer os resultados das in­ tervenções. Por que o ambulatório intensivo foi efetivo para os dependentes de cocaína e não para os de álcool? Por que as mulheres entre 30 e 40 anos aderiram mais ao tratamento do que aquelas com menos de 30? Oferecer terapia ocupacional para indivíduos do ambulatório de álcool foi melhor do que oferecer apenas o atendimento ambulatorial padrão? O desemprego e a violência doméstica influen-

5 0 2 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

ciaram o sucesso do tratamento? São essas algumas das perguntas que podem ser respondidas nessa fase. A avaliação de efetividade, realizada com base em critérios científicos, é um procedimento complexo que requer estudos sistematizados, com grupos-controle para comparações e amostras escolhidas ao acaso (randomizadas)10. Por isso, é difícil de ser implementado em serviços que não tenham profissionais altamente capacitados (centros de excelência). No entanto, é sempre possível balizar a efetividade de um serviço sem pretensões acadêmicas e científicas, le­ vando em consideração alguns padrões indicadores de efetividade, tais como adesão, melhora dos padrões de consumo, do nível de emprego, entre outros (Quadro 30.I I ) 10. Um aspecto importante é a satisfação do cliente com o trata­ mento oferecido. Ele ajuda o serviço a investir em abordagens que se mostraram efetivas e contam com a simpatia do paciente e a repensar outras, que carecem de maior aceitação128. Há alguns critérios que podem ser seguidos para valorizar a análise de efetividade, por mais que se dêem fora dos parâmetros estritamente científicos (Quadro 30.12)128. Sobre isso, vale ressaltar a importância de determinar a adesão e comparar os resultados do tratamento entre os que abandonaram e os que permaneceram em tratamento. Por exemplo, um serviço pode demonstrar que 90% dos pacientes que concluíram seu tratamento estão abstinentes e melhora­ ram significativamente seu desempenho social. No entanto, estes representam ape­ nas 5% do total de pacientes que iniciaram o tratamento, significando que, no total, o serviço funcionou apenas para 4,5% dos dependentes que o procuraram.

Q uadro 3 0 .1 1 -

Pontos Importantes para Avaliar a Efetividade do Serviço de

Tratamento3 Adesão

Verificar a adesão ao tratamento, considerando aqueles que marcaram a primeira consulta mas não compareceram, que abandonaram após 30, 90 e 180 dias e os que completaram 1 ano de atendimento

Padrões de Consumo

Avaliar a melhora dos padrões de consumo entre os pacientes que participaram do tratamento, em comparação com os dados coletados na admissão

Qualidade de Vida

Avaliar a melhora dos indicadores sociais (emprego, relacionamentos sociais) entre os pacientes que participaram do tratamento e das comorbidades físicas e psiquiátricas entre aqueles que participaram do tratamento, em comparação com os dados coletados na admissão

Direitos dos Pacientes

Os serviços estão de acordo com as leis que normatizam seu funcionamento ou protegem populações especiais, como os adolescentes e deficientes físicos?

Satisfação do Cliente

O serviço atinge os objetivos propostos e as expectativas do paciente? Utilizar instrumentos que possam ser preenchidos reservadamente pelo paciente (nominados ou anônimos)

Organização de Serviços de Tratamento para a Dependência Química ■ 50 3

30.12 - Cuidados Necessários na Avaliação da Efetividade do Serviço de Tratamento2

Q uadro

• • • •

A avaliação de efetividade não deve ser feita pelo mesmo profissional que conduziu a intervenção A admissão é o tempo da primeira avaliação, seguida por outras, 6, 12, 18 ou 24 meses depois (preferencialmente mais de uma vez) Todos os pacientes em tratamento devem ser avaliados Pelo menos 70 a 80% dos pacientes que abandonaram devem ser contatados e entre­ vistados, para fins de comparação com os que permaneceram. Caso isso não seja possí­ vel, os dados sociodemográficos obtidos na admissão devem ser comparados

Será preciso comparar os dados entre aqueles que permaneceram e os que aban­ donaram para, por exemplo, identificar barreiras à adesão e buscar novas estraté­ gias motivadoras.

A valiação Econômica A avaliação econômica compara todos os custos efetuados pelo serviço num dado período10. Eles podem estar direta ou indiretamente relacionados ao serviço em questão. Além de verificar o modo como os recursos foram alocados, deve-se considerar o impacto de tais investimentos para a melhora dos indivíduos e dos problemas que tais disfunções causavam na comunidade local128. Existem quatro componentes básicos dessa avaliação10. A avaliação de custobeneficio compara todos os custos e benefícios proporcionados pelo tratamento e verifica quais seriam os custos sociais caso o tratamento não existisse. Não há ra­ zão para manter serviços incapazes de reduzir os custos sociais relacionados à patologia que tratam, tampouco se o custo do tratamento suplanta o naturalmente gerado pela doença. Para que o critério macrossocial não seja o único parâmetro, foi criada a avaliação de custo-utilidade, que leva em conta os benefícios ao indi­ víduo quanto à duração do efeito do tratamento e da qualidade de vida. Portanto, não adianta reduzir custos sociais se a abordagem não proporciona benefícios individuais ao paciente. O custo-eflcácia avalia se as intervenções propostas pelo serviço, além de beneficiarem a sociedade e o indivíduo, atingem exatamente aquilo que se propôs a fazer, de modo quantificável e significativo (não adianta melhorar por três meses 10% daqueles que procuraram atendimento). Por fim, a compensa­ ção do custo compara o custo do tratamento com o impacto sobre outras institui­ ções de saúde mental e sistemas de atendimento. No entanto, tais critérios de avaliação são complexos e, por isso, habitualmente realizados apenas por centros de excelência em pesquisa. Os serviços podem aplicá-los de maneira simplificada, observando se os investimentos em suas mo­ dalidades de atendimento foram realmente efetivos, se há abordagens bem-suce­ didas que necessitam de ampliação, se realmente é necessário continuar investindo naquelas subutilizadas, se computadores melhorariam a qualidade do atendimento pelas secretárias, e assim por diante.

5 0 4 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

C onclusão Os processos de planejamento e avaliação constituem a etapa dinâmica da organização de um serviço. Nesse momento, os diversos componentes do serviço são dispostos e integrados de maneira sistematizada. Qualquer tentativa de orga­ nizar um programa terapêutico engendra, ainda que intuitivamente, noções de planejamento e avaliação: faz parte do raciocínio lógico se preocupar com o futu­ ro, excluir o acidente, o imprevisto, o erro. O planejamento e a avaliação sistema­ tizados visam justamente à ampliação de potencialidades intrínsecas de qualquer empreendedor. Uma tentativa consciente de antever problemas e produzir sub­ sídios capazes de aumentar a harmonia entre os componentes, potencializar a efetividade do atendimento e garantir sustentabilidade econômica ao serviço, beneficiando diretamente o público atendido. Trata-se de uma nova postura (próativa), voltada para a detecção precoce de tendências, a fim de mais bem aprovei­ tar suas conseqüências positivas e prevenir as negativas, ao contrário da postura vigente em muitos serviços (reativa), que coloca a ação após a chegada de tais conseqüências.

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C A P ÍT U L O

Políticas Públicas para o Alcool M arcos R omano R o n a ld o L a r a n jeir a

D a d o s H istó rico s Os problemas associados ao consumo de álcool nem sempre foram os mesmos e nem sempre tiveram a mesma dimensão, pois a relação do homem com a bebida vem mu­ dando, principalmente nos últimos séculos. Toma-se fácil perceber isso por uma breve retrospectiva histórica. Nunca houve um período de “temperança” absoluta, mas até o final do século XVII o consumo de álcool, apesar de generalizado, era visto como uma atividade social. As ci­ dades e vilarejos eram aglomerações urbanas bem menores do que as que hoje conhecemos; tinham estrutura e organi­ zação social mais simples e, por isso mesmo, menos proble­ mas. Ainda não havia a indústria da bebida, que era mais consumida na forma de vinhos e cervejas, geralmente de produção caseira. Apesar da pouca legislação existente, ha­ via fatores sociais e econômicos suficientes para controlar a embriaguez em larga escala. Os casos de embriaguez eram ocasionais, como sempre haviam sido na história da huma­ nidade. O uso “inadequado” da bebida, a embriaguez, era visto como sendo não um problema da bebida, mas do in­ divíduo: um defeito moral, de caráter, o levava àquilo e con­ tra tais casos se levantavam os pregadores religiosos. Mas a bebida ainda era vista como “um néctar divino” pela maio­ ria das pessoas1. Nos séculos XVIII e XIX, ocorre uma mudança radical e abrupta: os casos de embriaguez se generalizam em es­ cala nunca vista antes; a relação do homem com a bebida havia saído fora do controle, devido ao surgimento de uma série de fatores que alteraram o equilíbrio anterior. A dis-

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ponibilidade de bebidas de elevado teor alcoólico a um preço bastante acessí­ vel, o aumento da demanda proporcionado pelas novas massas de pobres tra­ balhadores urbanos e, a partir do século XIX, o florescimento de uma indústria capaz de fazer marketing junto às massas e lobby junto ao governo moldaram as mudanças dos próximos séculos. Os velhos controles sociais foram se en­ fraquecendo, à medida que as pessoas migravam de seus antigos vilarejos para as periferias e favelas dos emergentes centros urbanos. As principais bebidas consumidas não eram mais cervejas e vinhos, mas destilados de alto teor al­ coólico. Nessa época, houve uma mudança na conceituação do problema: o álcool sozinho (mais do que o caráter do bebedor) tornou-se o foco das preo­ cupações. A preocupação com o álcool em si alterou os pontos de vista sobre as conseqüências do consumo: em vez de enxergar a embriaguez como um hábito pessoal inoportuno, o bebedor excessivo passou a ser visto como al­ guém dominado e transformado por um corpo estranho, por uma substância “alienígena”. Afinal, pessoas decentes podiam ser transformadas, pela bebida, em seres dissolutos, violentos ou degenerados. Tal contexto social levou ao surgimento das sociedades de temperança nos EUA, que viam a venda de álcool como uma ameaça pública1. Nas primeiras décadas do século XX, o alcoolismo ganha o status de doença, fornecido pela classe médica e pela associação dos Alcoólicos Anônimos. Nesta concepção, tanto o bebedor como o fornecedor de bebidas foram destituídos de responsabilidade moral. Os problemas associados ao álcool que mereciam preocupação eram aque­ les relacionados ao colapso moral do bebedor crônico. Esses problemas eram vistos como não decorrentes de uma fraqueza moral do bebedor nem do po­ der adictivo do álcool em si, mas de alguma “química” pouco compreendida que ocorria entre a substância e certos bebedores. O álcool é inócuo para a maioria das pessoas, mas uma minoria não pode usá-lo sem sucumbir ao al­ coolismo - uma doença para a qual não se espera cura além da completa abs­ tinência. O problema é que tal concepção permite apenas “tratar” daqueles que são dependentes do álcool, deixando-se de lado a vasta maioria que bebe e que, conforme se verá, também apresenta diversos problemas relacionados ao consumo de álcool. Programas de tratamento e de recuperação não constituem estratégias de pre­ venção a longo prazo, pois, mesmo se tais programas fossem eficazes, o sistema social continuaria produzindo novos casos e os problemas relacionados ao con­ sumo de álcool continuariam a ocorrer.

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A partir da última década do século XX, o consumo de álcool começa a ser visto como uma questão de saúde pública, devido à extensão dos danos que acar­ reta, constituindo uma seria ameaça à segurança pública (danos à família, violên­ cia e crime e segurança no trânsito, por exemplo). Políticas do álcool passam, então, a ser vistas como algo que diz respeito a todos os cidadãos cuja segurança possa estar em risco2.

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Também a partir da última década, diversos estudos vêm demonstrando que é possível combater tais problemas por intermédio de políticas públicas adequa­ das2. Estudos realizados em diferentes países revelam uma série de abordagens efetivas, mesmo considerando diferenças culturais3.

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As políticas públicas em relação ao álcool geralmente partem de uma concep­ ção equivocada, fruto da concepção de alcoolismo do século anterior, que não encontra fundamento epidemiológico: a de que efeitos adversos do consumo de álcool afetam apenas a pequena minoria da população que bebe de maneira par­ ticularmente pesada. Esta minoria é vista como uma população à parte, em rela­ ção àqueles que não bebem pesadamente. Também existe uma tendência de focalizar apenas os problemas crônicos causados pelo consumo de álcool, negli­ genciando suas conseqüências adversas agudas4. Na verdade, há um amplo espectro de problemas vinculados ao consumo de álcool que vão muito além do conceito m édico restrito de alcoolism o. Pro­ blemas podem surgir a partir de um único episódio de ingestão alcoólica ou de uma repetida ingestão pesada. Podem ser de natureza física, psicológica ou social. Exemplos de problemas agudos de natureza física: danos e ferimentos acidentais, danos resultantes de agressões, complicações médicas agudas; exemplos de problemas agudos de natureza psicológica: prejuízo do controle emocional, suicídio e tentativas de suicídio; exemplos de problemas agudos de natureza social: problemas ocupacionais (absenteísmo, acidentes de trabalho, diminuição da produtividade), crimes, violência urbana, violência doméstica, beber e dirigir4. Além disso, é necessário dizer que problemas ligados ao consumo de álcool não atingem apenas o bebedor, mas também outras pessoas e a sociedade como um todo: o cônjuge e os filhos são afetados por traumas físicos e psicológicos, bem como nas suas necessidades educacionais, sociais e financeiras; vítimas do beber e dirigir, de crimes violentos ou de agressões relacionadas ao consumo do álcool; custos sociais, como perda produtiva, serviços de saúde, seguros, aplica­ ção das leis, etc4. É preciso ser dito, ainda, que além das causas individuais há causas sociais de problemas relacionados ao consumo de álcool. Extensivas pesquisas demons­ tram que, quanto mais elevado o consumo médio do álcool numa população, maior a incidência de problemas associados. Isso vale para quase todos os tipos de problemas ligados ao álcool - por exemplo, infrações de trânsito ao dirigir alcoolizado, violência doméstica, agressões, crimes, mortalidade devida à cirrose hepática. O contrário também é verdadeiro, ou seja, se o consumo global de álcool se reduz em uma comunidade, o nível de problemas associados tende a se redu­ zir na mesma proporção. Esse fato deu origem ao que se chama de “paradoxo da prevenção”, porque, paradoxalmente, as medidas preventivas destinadas a re­ duzir tais problemas têm de ser dirigidas a toda a população de bebedores, não apenas aos bebedores pesados5.

5 1 6 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

A lte rn a tiv a s de Prevenção

Risco Individual e Risco Coletivo Em uma abordagem tradicional de prevenção, identificam-se quais os indiví­ duos que se encontram sob risco de desenvolver o que se quer prevenir e o traba­ lho de prevenção direciona-se a eles. Por exemplo, o uso de álcool por adolescentes de uma escola de ensino médio pode ser abordado por estratégias que visem au­ mentar habilidades dos pré-adolescentes em resistir à pressão dos colegas para beber e a desenvolver atividades após a escola, além de programas educacionais fundamentados na escola e na família. Mas, neste modelo, os membros da comu­ nidade que não se encontram sob risco não são atingidos. As vendas de álcool no varejo e as oportunidades sociais para consumo de álcool para os adolescentes também são ignoradas nesse modelo6. Quando se trata de problemas referentes ao consumo de álcool em uma co­ munidade, tal abordagem mostra-se insuficiente. Por exemplo, bebedores pesa­ dos de álcool têm os maiores índices de risco individual para uma série de problemas; têm maior probabilidade de provocar um acidente automobilístico quando bebem e dirigem. No entanto, coletivamente, eles não são o maior grupo sob risco, pois constituem uma parcela pequena demais que contribui apenas mo­ destamente para os problemas relacionados ao consumo de álcool numa comu­ nidade. Bebedores pouco freqüentes ou moderados contribuem para um número maior de problemas relacionados ao consumo de álcool, como acidentes auto­ mobilísticos, do que os bebedores pesados. Adolescentes em particular contribu­ em para um número desproporcionalmente grande de problemas relacionados ao consumo de álcool, como acidentes automobilísticos, pois têm menor expe­ riência do que bebedores pesados (que podem passar a vida sem se envolver em um acidente) por dirigir alcoolizados e são mais vulneráveis aos efeitos do álcool, podendo apresentar prejuízos físicos e cognitivos mesmo com pequenas concen­ trações sangüíneas da substância6. O risco coletivo pode ser reduzido através de intervenções nos processos que contribuem para os problemas relacionados ao consumo de álcool. Estratégias de prevenção focadas na comunidade como um todo podem ser potencialmente mais efetivas do que aquelas focadas em indivíduos específicos sob risco6.

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As políticas do álcool usualmente são concebidas em nível nacional ou esta­ dual, mas existem diversas alternativas de políticas do álcool que podem ser de­ senvolvidas em nível local7. A comunidade é a nova fronteira para a prevenção de problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas. Iniciativas de prevenção em nível local sugerem que estratégias preventivas eficazes devem ser bem diferentes de políticas estaduais ou nacionais e requerem uma perspectiva única6. Existem diversos estudos realizados em diferentes países (Austrália, Nova Zelândia, Canadá, EUA, Reino Unido, etc.) sobre ação em nível local. Holder recomenda duas abordagens distintas combinadas: a abordagem edu-

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cacional, que visa a mudanças no comportamento por meio de mudanças no co­ nhecimento e nas atitudes e a abordagem ambiental, que objetiva mudar com­ portamentos alterando os sistemas social e econômico de uma comunidade8. Esta é a perspectiva sistêmica de abordagem de problemas relacionados ao consumo de álcool, nos quais o alvo da prevenção é visto como um produto ou resultado de um sistema complexo. O consumo de álcool é parte da rotina da vida em comunidade e deve ser con­ siderado no contexto da comunidade, que é um sistema dinâmico e autoadaptativo6. Uma perspectiva sistêmica sugere a necessidade de se combinar mudanças no comportamento e nas decisões de um indivíduo com mudanças ambientais, no sistema comunitário, de caráter social e econômico6. Para se promover mudanças no sistema comunitário ou nos ambientes social, econômico e físico, tornam-se necessárias políticas públicas. Tais políticas pro­ movem mudanças estruturais no ambiente onde usualmente se bebe; em contra­ partida, mudanças no ambiente provocam mudanças no comportamento relacionado ao consumo de álcool6. As leis federais e estaduais geralmente estabelecem as bases para políticas lo­ cais. Políticas locais costumam objetivar a implementação e o cumprimento dessas leis já existentes, tais como: idade mínima para consumo de álcool, nível sangüíneo máximo de álcool para dirigir, restrições às propagandas, responsabilidade civil do proprietário de um estabelecimento de venda de álcool no varejo, etc. Um exemplo de política local possível é a fiscalização e penalização do beber e dirigir; tal política pode poupar as vidas de diversas pessoas em uma comunida­ de, principalmente dos mais jovens. Outro exemplo é o treinamento dos atendentes dos pontos de venda de álcool (bares, restaurantes), para evitarem vender bebi­ das a adolescentes e a clientes já intoxicados. É importante notar que políticas que envolvam mudanças em leis e regula­ mentos ou enfatizem a aplicação de leis já existentes tendem a ser mais eficazes e custam muito menos para o poder público do que os programas de prevenção tradicionais (tratamento ou educação, por exemplo), que requerem investimento a longo prazo em pessoas, materiais e métodos6.

M o d elo S istêm ico

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O modelo de perspectiva social sistêmica concebido por Harold Holder9 nos permite compreender todas as forças que interagem, influenciando o con­ sumo de álcool numa determinada comunidade. Para Holder, o sistema co­ munitário do álcool divide-se em diversos subsistemas que interagem e são agrupamentos naturais de fatores e variáveis que as pesquisas mostraram ser importantes na compreensão do uso do álcool e dos problemas associados. Para planejar prevenção efetiva dos problemas relacionados ao álcool, devem-se considerar as interações entre esses subsistemas. O consumo do álcool é o subsistema mais importante, central; ele afeta outros subsistemas e é afetado por eles. A Figura 31.1 ajuda a compreender melhor a interação entre os subsistemas.

5 1 8 ■ Noções Gerais de Prevenção, Organização de Serviços e Políticas Públicas.

Limites à disponibilidade

REGULAÇÃO E CONTROLE FORMAIS

VENDAS (VAREJO)

Demanda

Disponibilidade Pressão social por leise fiscalização

CONSUMO

Consumo atual NORMAS SOCIAIS

Padrões de consumo

Aceitação social dos níveis de consumo Padrões de consumo

Pressão social por fiscalização e sanções

CONSEQÜÊNCIAS ECONÔMICAS, SOCIAIS E DE SAÚDE

Dirigir alcoolizado

Demanda por serviços comunitários

Figura 32.1 - Modelo de perspectiva social sistêmica concebido por Harold Holder.

Subsistema do Consumo: Uso do Álcool como Parte da Rotina da Vida Social Este é o subsistema-chave. Padrões de consumo de álcool mudam com o tempo e os efeitos das diferenças de idade e de gênero devem ser considerados. Os padrões de consumo para cada grupo etário e sexo podem ser subdivididos de acordo com a média diária de consumo e a distribuição da quantidade de doses consumida por evento, que são influenciados por fatores como renda, preço do álcool, disponibilidade, aceitação social ou normas sociais acerca do consumo e regulações formais do álcool, como a idade mínima para se beber. Quando esses fatores mudam, o efeito em cadeia das mudanças determina um novo valor para a média de consumo diária, resultando em mudança no padrão para cada idade e sexo e para a comunidade como um todo9.

Subsistema do Varejo: Disponibilidade do Álcool O álcool, como qualquer produto comercial, está disponível para os consumi­ dores em pontos de venda do varejo, que podem ser licenciados (como lojas, bares,

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restaurantes) ou não (casas, estabelecimentos clandestinos, vendedores ambulan­ tes, vendedores de beira de estrada, etc.). Os estabelecimentos podem ter licença para a venda de álcool a ser consumido no próprio estabelecimento (bares, restau­ rantes) ou para ser consumido fora dali (supermercados, lojas de conveniência, lo­ jas especializadas, etc.). A quantidade e o tipo dos estabelecimentos licenciados para vender álcool em uma comunidade são afetados pelo tamanho da população, con­ sumo per capita e fatores econômicos (renda média da população)9.

Subsistema de Controle e Regulação Formais: Leis, Administração e Fiscalização Este subsistema reflete leis e controles governamentais que regulam a venda de álcool no varejo. Por exemplo, restrições podem ser colocadas no número de novas licenças de um determinado tipo, ou nos dias e horas permitidos para a venda, como um meio de conter a disponibilidade de álcool. A força das leis e regulações é afetada pelas fiscalizações e pela severidade das punições para as violações9.

Subsistema de Normas Sociais: Valores da Comunidade e Influências Sociais que Afetam o Consumo Este subsistema reflete os valores da sociedade acerca do álcool e influencia os níveis de consumo por meio de reforçadores positivos ou negativos. "Reforço positivo” descreve o fenômeno pelo qual o aumento no consumo de álcool ao longo do tempo está associado com o aumento da aceitação do consumo de álcool. “Reforço negativo” descreve o fenômeno pelo qual o aumento do consumo resulta em aumento dos pro­ blemas relacionados e, conseqüentemente, em diminuição da aceitação social9.

Subsistema das Sanções Legais: Usos Proibidos do Álcool Este subsistema organiza-se para reforçar as leis contra o uso do álcool em de­ terminadas situações e contextos. Isso pode incluir dirigir alcoolizado, intoxicação pública, posse de álcool, beber antes da idade mínima ou beber em lugares especí­ ficos (praças e parques públicos, estádios, auditórios, determinadas festas, etc.)9.

Subsistema das Conseqüências Econômicas, Sociais e de Saúde: Identificação dos Problemas e Respostas Organizadas pela Comunidade As conseqüências do beber estão relacionadas neste subsistema. Mortalidade e morbidade ligadas ao álcool refletem os riscos à saúde associados ao uso de

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álcool; tais riscos variam em razão da idade, sexo e grupo de consumo. Aumento da mortalidade/morbidade relacionadas ao álcool pode estimular mudança da aceitação social e, conseqüentemente, mudança da regulação formal com o obje­ tivo de reduzir o consumo ou comportamentos associados aos problemas causa­ dos pelo álcool. Este subsistema também responde à demanda por serviços sociais e de saúde para problemas referentes ao uso de álcool. Este aspecto do subsistema está ligado com as informações acerca do número de pacientes, de serviços para tratamento, custos desses serviços, tamanho das listas de espera, e tempo médio do tratamento9.

Interações Entre os Subsistemas Conhecendo-se as interações possíveis entre esses diversos subsistemas, é possível planejar intervenções que possam, direta ou indiretamente, agir no subsistema de consumo. Por exemplo: diminuindo o nível de aceitação social do consumo de álcool, provavelmente surgiria uma pressão social por regulação go­ vernamental mais rigorosa da venda de álcool no varejo, restringindo a disponibi­ lidade de álcool e, por conseqüência, o seu consumo. Outro exemplo: certos padrões de uso do álcool podem provocar conseqüências sociais que suscitem pressão social a favor de certas políticas de sanções legais, como a proibição de dirigir alcoolizado.

E xem plo s

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P o lítica s L o ca is

Exemplos de políticas públicas que podem ser implementadas na comunidade são detalhados a seguir.

Regulamentação do Mercado Varejista Com base nas experiências de outros países, sabe-se que a melhor forma de regulamentar o mercado varejista é criar um sistema de licenças para venda de álcool no varejo, de forma que somente quem possuir a licença poderá vender bebidas alcoólicas; o proprietário de um ponto de venda que descumprisse a le­ gislação perderia sua licença. Como não se tem uma política de licença para a venda de álcool, qualquer pessoa pode abrir um bar e vender álcool. Esse fato tem mudado a paisagem e a cultura urbana brasileira. Está-se acostumado a ter ba­ res espalhados por todas as ruas das cidades, como se isso sempre tivesse existido e fosse normal. A anormalidade chega a ponto de tragédia nas periferias das grandes cidades, onde a falta de opção de lazer transformou os bares em únicos locais de encontro e socialização da população masculina, muito contribuindo para o aumento da violência. A anomalia chega a tal ponto que qualquer pessoa pode produzir e vender álcool sem grandes preocupações. As leis são poucas e não são cumpridas10.

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Um dos motivos de se criar um sistema de licenças para vender bebidas alcoólicas é controlar esse mercado mas, além disso, deveria servir para cap­ tar recursos para compensar a sociedade do dano social causado. Portanto, dever-se ia pensar em uma forma adequada para gerenciar os recursos capta­ dos. O dinheiro arrecadado por esse sistema deveria ser reservado para um fundo regional financiar ações de prevenção e tratamento dos problemas ori­ ginados pelo álcool e outras drogas. Há uma grande escassez de dinheiro para financiar esse tipo de ações. Mesmo com a regionalização das ações de saúde pelo SUS, poucos recursos estão sendo alocados para o tratamento do alcoo­ lismo e praticamente nenhum recurso para a prevenção do uso de álcool e dro­ gas pelos jovens. Essa seria uma boa fonte de recursos permanente para reverter tal problema social10. O primeiro passo é convencer a população que implementar esse tipo de sis­ tema de licenças é: 1. correto do ponto de vista técnico, pois é uma recomendação da própria Organização Mundial de Saúde; 2. teria um impacto grande e rápido no sentido de diminuir uma grande parte dos problemas relacionados com o ál­ cool; 3. criaria recursos para financiar programas de prevenção dos problemas do álcool e outras drogas para os jovens. O segundo passo é convencer os políticos de que um tipo de ação como essa é: 1. politicamente adequada, pois é do interesse público; 2. tem apoio popular; 3. possível de ser implementada nos municípios. O terceiro passo será proteger essas idéias da oposição da indústria de bebidas e dos donos de bares e restaurantes. Nenhuma atividade econômica gosta da idéia de controle dos seus lucros e fará todo o lobby possível para evitar que esse tipo de medida seja implementado. A compensação social pelo dano ambiental que o álcool produz só será uma realidade quando se convencer a sociedade e o mundo político de que controlar esse produto é uma garantia de que o bem comum deve prevalecer sobre o da indústria10.

Mobilização da Comunidade As teorias da comunicação há muito tempo reconheceram os limites da mídia em alterar diretamente comportamentos. Contudo, os meios de comunicação de massa desempenham um papel fundamental no desenvolvimento da opinião pública. Sabe-se que a mídia tem um papel importante na composição de um programa sobre qualquer assunto, seja para as pessoas que organizam políticas, seja para o público, não necessariamente dizendo às pessoas como pensar, mas sim sobre o que pensar3. A cobertura de notícias pode estimular discussões sobre determinada questão e legitimar opções políticas. Ou seja, a opinião pública é importante no estabelecimento e na manutenção de políticas públicas. A per­ cepção das pessoas sobre matérias de interesse é consideravelmente influencia­ da pela cobertura da mídia. Leis, políticas, programas e alocação de recursos em geral são estruturados na importância que determinados temas ou problemas têm para o público14. Sally Casswell, em um importante ensaio comunitário15desenvolvido em seis cidades da Nova Zelândia, na década de 1980, revela a importância do uso da mí-

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dia como sustentação a políticas públicas em relação ao álcool, ao mesmo tempo em que mostra que o uso da mídia sozinha, sem as outras políticas, praticamente não provocou alterações no consumo e nos problemas relacionados ao álcool nas cidades em que apenas tal estratégia foi adotada. Para a mobilização da sociedade da forma necessária, podem ser utilizadas campanhas publicitárias e campanhas educativas. Mas não bastam. Estudos já mostram que tal iniciativa, quando realizada isoladamente, não é efetiva em re­ duzir danos associados ao consumo do álcool3,9. Comunicação pela mídia local é mais efetiva quando se dá por um veículo de alta exposição e elevada credibilidade do que por meio da mídia governamental ou de anúncios publici­ tários (matéria paga). A melhor maneira de mobilizar a sociedade para um pro­ jeto de intervenção como esse são instrumentos como o “marketing social” ou “media ad v ocac/’514.

M arketing

Social

Visa propiciar sustentação para mudanças de comportamento em relação ao consumo de álcool, bem como para as políticas públicas a serem adotadas14.

" M edia Advocacy"

(Defesa e Promoção)

Trata-se do uso estratégico da mídia a fim de alavancar iniciativas de políticas públicas ou sociais16. Ao contrário de campanhas de informação pública, especificamente desenha­ das, tais instrumentos trabalham diretamente com a mídia local para aumentar a atenção dirigida a um problema específico de saúde pública e possíveis soluções para ele. Isso é alcançado primariamente fornecendo dados locais em suporte a matérias de interesse jornalístico ou criando eventos que a mídia local pode co­ brir. Além disso, editoriais podem ser estimulados. A mídia local pode ser utiliza­ da para captar a atenção para um problema específico, para realçar a importância de uma ou mais políticas específicas desenhadas para reduzir o problema, para pressionar os políticos que podem executar determinada política ou alterar polí­ tica já existente. Ao contrário da educação em saúde ou outros usos da comunica­ ção pública, o apoio da m ídia geralmente não é usado apenas para mudar comportamentos individuais de forma direta. Entretanto, indivíduos podem mu­ dar seu comportamento como resultado de novas informações adquiridas por atenção da mídia a problemas relacionados ao consumo de álcool, como beber e dirigir, por exemplo14. Variáveis que influenciam significativamente a agenda política são a conscien­ tização, o apoio e a pressão da comunidade. Mesmo que os tomadores de deci­ sões locais não apoiem ou não se interessem por determinado assunto, o apoio da m ídia efetivo pode mudar as prioridades locais se o tomador de decisões reco­ nhecer a importância que a comunidade conferir a um problema específico e à política preventiva associada. Em resumo, a pressão da comunidade afeta a tomada

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de decisões e essa pressão é causada por objetivos políticos claramente estabele­ cidos, aumento da conscientização social e apoio ativo da comunidade aos obje­ tivos políticos14. O marketing social é realizado para atrair a atenção da mídia para determina­ do assunto por intermédio de atividades locais, eventos, acontecimentos outros que a mídia possa cobrir. Isso pode incluir o fornecimento de dados acerca dos problemas que se quer destacar, ou das possíveis soluções que se deseja ganhem relevância. A idéia também é aumentar a cobertura que a mídia tradicionalmente dá a essa temática e direcionar a cobertura para os objetivos propostos. Tais intervenções podem, portanto, influenciar a atmosfera social quanto ao uso do álcool em termos de níveis de consumo e prejuízos relacionados e de fato­ res considerados capazes de agir sobre essas questões. Mudar o clima social pode, por sua vez, mudar a aceitabilidade e a implementação de políticas públicas co­ nhecidas por reduzir os prejuízos relacionados ao álcool5.

Políticas de Redução do Acesso ao Álcool O acesso ao álcool pode ser regulado de várias formas. Uma das mais efica­ zes é o preço. Em diferentes países ao longo da história, e em comparações de diferentes países em qualquer momento determinado, demonstrou-se que re­ duzir o preço real do álcool tende a aumentar o seu consumo global numa po­ pulação. Da mesma forma, as medidas que tornam o álcool mais acessível por meio da redução de restrições ao seu fornecimento também tendem a aumen­ tar o consumo. Assim, as maiores influências sobre o consumo per capita numa população incluem fatores que podem ser manipulados politicamente - taxa­ ção, leis de licenciamento e acordos comerciais. A manipulação dessas influên­ cias pode ter um impacto imenso sobre o nível de consumo de álcool de uma população417. Um grande número de estudos sobre os efeitos de mudanças de preço no con­ sumo tem sido conduzido em diversos países: Austrália, Bélgica, Canadá, Dina­ marca, Alemanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Quênia, Holanda, Noruega, Portugal, Espanha, Suécia, Reino Unido e EUA. Alguns estudos observaram os efei­ tos diretos da mudança de preço nos níveis de dano4. As principais conclusões são417: • O álcool se comporta como outros produtos: se o preço aumenta, o consu­ mo cai e se o preço cai, o consumo aumenta. • Bebedores pesados e até mesmo dependentes são influenciados tanto quan­ to ou mais que os bebedores leves por mudanças de preço, contrariando o que usualmente se diz sobre altos preços penalizarem apenas bebedores moderados e terem pouco ou nenhum efeito sobre bebedores pesados ou problemáticos. O impacto de mudanças de preço em bebedores pesados é claramente visto nos seguintes exemplos:

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• Na Dinamarca, durante a Primeira Guerra, devido ao racionamento de co­ mida, o preço da aquavit aumentou mais de 10 vezes e o preço da cerveja dobrou. Em dois anos, o consumo per capita de álcool caiu 75%, casos de delirium tremens caíram para 1/13 e mortes por alcoolismo crônico caíram para um sexto do índice anterior4. • Em um estudo de “happy hours'": períodos de preços reduzidos em bares e restaurantes, enquanto todos os bebedores bebem mais quando as bebidas são mais baratas, os bebedores pesados aumentam seu consumo propor­ cionalmente mais do que os bebedores leves, ou seja, são mais sensíveis à redução de preços4. • Um estudo americano sobre os efeitos da variação de preços decorrente de mudanças nas taxas do álcool indicou que taxas elevados resultavam em menor mortalidade por cirrose e menores índices de acidentes auto­ mobilísticos fatais4. A idéia de que a taxação do álcool é irrelevante para a saúde pública é comprovadamente insustentável. A evidência é clara: outras variáveis man­ tendo-se inalteradas, o consumo de álcool por uma população será, em grau significativo, influenciado pelo preço. Além disso, dado que tanto o bebedor leve quanto o pesado são influenciados, alterações no preço provavelmente sejam traduzidas em mudanças na prevalência de problemas relacionados ao álcool4.

Outras formas de regulação do acesso Disponibilidade Facilidade do acesso aumenta o consumo e os danos, enquanto restrições ao acesso podem limitar o consumo e os danos. Um amplo espectro de pesquisas apoia esta conclusão. O acesso pode ser dificultado por diminuição de pontos de venda, restrições de zoneamento, restrições do acesso de adolescentes aos pontos de venda, etc.

Densidade dos Pontos de Venda Estudos na Finlândia, no Reino Unido e nos EUA mostram que uma alta densidade de pontos de venda em certa localidade aumenta significativamente as vendas de *álcool. Diversos estudos demonstram haver relação entre densi­ dade dos pontos de venda e problemas relacionados ao consumo do álcool, como violência, por exemplo4,11. Pode-se regular a densidade dos pontos de venda por meio de leis específicas de zoneamento urbano18 e pela imple­ mentação do sistema de licenças, que desestimula alguns pontos de venda; a redução da densidade dos pontos de venda provoca diminuição da concor­ rência que, como efeito indireto, resulta em aumento dos preços nos estabe­ lecimentos restantes; esse aumento dos preços também contribui para a

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diminuição do consumo12. Em recente estudo realizado no Jardim Ângela, uma região densamente povoada de São Paulo, onde existem altos níveis de priva­ ção social e de violência, Laranjeira e Hinkly encontraram a mais alta densidade de pontos de venda de álcool já relatada na literatura12.

Horários e Dias de Funcionamento Muitos estudos sobre mudanças nos horários de funcionamento e nos dias de venda mostraram aumento do consumo associado a horário mais amplo e redução do consumo com horário mais reduzido. Após a experiência de fe­ char as lojas de bebidas aos sábados, na Suécia, houve redução de 10% no número de prisões por embriaguez. Achados similares ocorreram na Norue­ ga e na Finlândia4. Tanto os horários quanto os dias de funcionamento po­ dem ser regulados pelo sistema de licenças: por exemplo, o custo da licença pode ser um para os pontos que vendem álcool apenas nos fins de semana e outro para os que vendem álcool todos os dias; o custo pode ser um para os estabelecimentos que só funcionam durante o dia e outro para os que fun­ cionam também à noite17. Um exemplo local bastante encorajador vem da cidade de Diadema, na gran­ de São Paulo: mais de 85% dos 1.200 bares da cidade estão obedecendo à lei que determina o fechamento entre 23 e 6 horas, que entrou em vigor no dia 15 de ju­ nho de 2002, depois de se constatar que 60% dos homicídios ocorriam das 22 às 4 horas, no interior ou na saída dos bares. A média de 26 homicídios por mês caiu para 7, segundo a Coordenadoria de Defesa Social de Diadema.

Políticas de Redução de Problemas Específicos Idade Mínima para Beber Redução da idade mínima para se beber resulta em maior índice de aci­ dentes automobilísticos no grupo etário afetado pela alteração, enquanto au­ mento da idade mínima reduz tais acidentes. Os EUA encontraram 28% de redução dos acidentes fatais após aumentar em um ano a idade mínima para se beber4.

Beber e Dirigir Muitos dos problemas mais graves, e também mais freqüentes, relacio­ nados ao uso do álcool decorrem de dirigir alcoolizado: atropelamentos e acidentes automobilísticos em geral têm estreita relação com o consumo de álcool. A lei que proíbe dirigir alcoolizado já existe, mas devido à ausência de fiscalização sistemática torna-se ineficaz, como tantas outras. Para se fazer cumprir a lei é necessária uma polícia treinada e equipada com instrumen­ tos capazes de verificar in loco se o motorista apresenta teor alcoólico acima dos níveis permitidos pelo Código Nacional de Trânsito; operações de fisca­

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lização (blitze) devem ser implementadas de forma sistemática, principal­ mente no período noturno.

A Questão de Servir Bebidas com Responsabilidade Treinamento de quem Serve a Bebida O treinamento em servir com responsabilidade tem se mostrado eficaz em reduzir os danos causados pelo álcool entre clientes que costumam sair alcooli­ zados dos estabelecimentos. Uma pesquisa conduzida em Oregon (1994) revelou uma redução estatistica­ mente significante nos acidentes automobilísticos após 55% dos que servem be­ bidas terem sido treinados4.

Responsabilidade Civil do Proprietário A responsabilidade civil dos estabelecimentos que vendem bebidas a clientes alcoolizados está estabelecida em diversos países. É usada como uma reparação legal ao individuo cuja intoxicação tenha resultado em perda ou dano pessoal. Começa a ser utilizada como uma política para encorajar práticas seguras de se servir bebidas e para prevenir que se dirija embriagado17.

C o n clu sõ es A falta de controle do álcool tem produzido um custo social enorme para o país. Cerca de 15% da população adulta masculina bebe de forma abusiva. Essa população vive com uma família que acaba sofrendo de várias formas: cerca de 20% das moradias estão tendo ou já tiveram algum tipo de problema relaciona­ do ao uso do álcool. Uma parte significativa das crianças abandonadas tem no álcool a causa da desorganização familiar. Metade dos acidentes automobilísti­ cos fatais é devida ao abuso de álcool. Mais da metade dos homicídios está asso­ ciada ao consumo de álcool. Do ponto de vista da saúde, 20% das internações em clínica geral e 50% das internações masculinas psiquiátricas se devem ao álcool. A sociedade brasileira está pagando um alto preço pela falta de proteção em relação ao álcool10. Além disso, pesquisas têm demonstrado que quando se reduz o consumo glo­ bal de álcool em uma população, não apenas os bebedores moderados (ou “so­ ciais”, ou que têm um padrão “normal” de consumo de álcool) são atingidos, mas os bebedores pesados e os bebedores problemáticos também são sensíveis a essa redução de consumo3. Tais fatos - o primeiro, quanto mais elevado o consumo médio numa popula­ ção, maior a incidência de problemas relacionados ao álcool e o segundo, que os bebedores pesados também são sensíveis a medidas de redução global de consu­ mo - conferem legitimidade a políticas que vise reduzir globalmente o consumo de álcool numa sociedade.

Políticas Públicas para o Álcool ■ 5 2 7

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