Apostilas Olavo De Carvalho

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A metafísica e os fundamentos da objetualidade Rascunho para comentário em classe. Olavo de Carvalho Se Kant afirma que a ciência metafísica é impossível por lhe faltar um objeto representável na intuição, é porque não meditou com suficiente profundidade a noção mesma de ―objeto‖. A intuição de qualquer objeto é intuição de uma forma finita, cujas fronteiras com os outros objetos nos revelam imediatamente os limites do seu conjunto de possibilidades de ação e paixão. Olhando um gato, sabemos por intuição que ele não pode voar. Se à intuição faltasse por completo essa informação, seria uma falsa intuição ou a intuição de uma aparência genérica de gato que não é realmente um gato. Olhando um quadrado, sabemos instantaneamente que não pode ser dividido em dois quadrados por um único segmento de reta e que cortado na diagonal exata produzirá dois triângulos isósceles. Saber isso de imediato é ter a intuição do quadrado. A simples notação passiva da forma quadrada, esvaziada de qualquer das propriedades inerentes a essa forma, não é ainda uma intuição: é pura sensação, matéria de uma intuição possível que se realizará no preciso momento em que o quadrado comece a mostrar algo de sua constituição interna. A intuição não é portanto apenas a apreensão de uma forma estática, mas a intelecção de um sistema finito de possibilidades, a apreensão, por mais geral e vaga que seja de início, da fórmula algorítmica de um conjunto unitário e organizado de potências, cuja forma integral perfaz exatamente a identidade e a unidade do objeto de intuição. Ora, esse conjunto é intuído simultaneamente em duas claves: positiva e negativa. Positiva, pela afirmação das potências -- ou pelo menos de algumas delas -- que se revelam na forma do objeto. Negativa, pelos limites que distinguem essas potências de outras potências circundantes ou possíveis, ausentes no objeto, precisamente como no caso do gato que é percebido instantaneamente como bicho caminhante e não voador. Dito de outro modo: a forma é percebida de maneira instantânea e inseparável como conjunto articulado de possibilidades e de impossibilidades. Essa instantaneidade mesma, inerente à natureza do ato intuitivo, torna impossível, no caso, a distinção kantiana entre o que é dado no objeto e o que é (segundo Kant) projetado nele pelas estruturas a priori do nosso modo de percepção ou da nossa razão. Estas estruturas, sendo gerais e universais, idênticas em todos os homens, não poderiam magicamente adaptar-se às formas dadas individualizadamente no objeto se este mesmo não as amoldasse a si por força da sua constituição intrínseca. Supor o contrário seria admitir que o objeto é pura matéria sem limites formais próprios, sendo seus únicos limites projetados nele pelo observador. Não haveria portanto outra maneira de distinguir entre os vários objetos senão pelas projeções que o sujeito do conhecimento, no uso da sua liberdade, houvesse por bem lançar sobre este ou sobre aquele, nada o impedindo, em princípio, de projetar sobre o gato a forma de um triângulo ou sobre o triângulo a de uma galinha. Isso tornaria impossível não só a percepção como, mais ainda, qualquer adaptação prática do observador às circunstâncias do meio material. É

pois forçoso admitir que os limites do objeto -- sua forma, enfim -- vêm manifestados de maneira evidente na sua simples presença. Ora, esses limites, como vimos, são um sistema organizado de possibilidades e impossibilidades. Possibilidade e impossibilidade (assim como a articulação entre ambas) não são portanto formas a priori projetadas sobre um objeto, mas são dados constitutivos da sua presença mesma. Intuir um objeto é inteligir instantaneamente na sua forma uma articulação determinada de possibilidades e impossibilidades. Mas, ao mesmo tempo, nem a possibilidade, nem a impossibilidade, nem a sua articulação são, em si, objetos de percepção sensível. Se não são puras formas projetadas, também não nos são dadas como objetos. São dadas ―no‖ objeto, mas não como objetos. A solução deste aparente enigma é que elas são a forma mesma da objetualidade. Ser objeto -- real ou imaginário -- é ter o poder de apresentar-se como sistema articulado de possibilidades e impossibilidades condensadas numa forma instantaneamente apreensível por intuição. Nesse sentido, Kant tinha razão ao dizer que os objetos ―tradicionais‖ da metafísica -daquilo que ele entendia como metafísica a partir do que aprendera dela em Descartes, Spinoza, Leibniz e Wolff --, isto é, Deus, a liberdade, a imortalidade, etc., não são objetos de experiência. Mas a metafísica, antes de ser o estudo de qualquer desses objetos em particular, é o estudo da possibilidade e da impossibilidade tomadas em seu sentido mais amplo e universal. Os termos mesmos com que se discorre a respeito dos temas metafísicos convencionais -- onipotência, infinitude, absolutidade, etc. -- não têm sentido nenhum exceto quando definidos em termos de possibilidade e impossibilidade. Ora, a possibilidade e a impossibilidade, não sendo em si mesmas dados de experiência, são dadas na experiência e nenhuma experiência se dá sem elas. Não sendo objetos, são constituintes essenciais da objetualidade, no plano ontológico, assim como da objetividade, no plano do conhecimento. Não sendo em si mesmas objetos de intuição, não podem ser separadas materialmente da intuição porque intuição nada mais é que apreensão instantânea de uma determinada articulação de possibilidade e impossibilidade na forma de uma determinada presença objetiva. Logo, nenhum impedimento há de que se constituam como objetos de conhecimento científico pelos mesmíssimos métodos com que se constituem os objetos de qualquer ciência, isto é, por separação abstrativa a partir dos dados da experiência. A metafísica é a ciência da objetualidade enquanto tal, isto é, o fundamento da possibilidade mesma da constituição de qualquer conhecimento objetivo. Há evidentemente um saber metafísico espontâneo embutido na delimitação do objeto de qualquer ciência, e sem esse saber nenhuma ciência seria possível. Não seria possível delimitar objetos -- seja os da ciência, seja os de qualquer outra atividade cognitiva ou prática -- sem a aptidão de captar as formas-limites nos dados da experiência, e essa aptidão é precisamente o talento metafísico inerente à inteligência humana em geral. O homem é o único animal

que faz ciência porque é o único animal metafísico: o único animal capaz de objetividade, isto é, de apreensão da objetualidade nos objetos. Não vale nada contra essas constatações o argumento possível de que a possibilidade e a impossibilidade são apenas formas lógicas gerais, sem substantividade concreta. Ao contrário, é só na substantividade concreta que elas aparecem, e o seu aparecimento, como vimos, é ele próprio a substantividade concreta, a única substantividade concreta dos objetos de experiência, que sem ela não poderiam ser intuídos, isto é, apreendidos como presenças substantivas, e sim somente como formas vazias. A noção mesma de possibilidade e impossibilidade compreendida como pura forma lógica, fora da realidade da experiência, é apenas uma das possibilidades que apreendemos instantaneamente na articulação concreta de possibilidade e impossibilidade que se apresenta na experiência. Dessa articulação, separamos abstrativamente as notas que a tornam real e, conservando em nossa mente o puro conceito abstrato de possibilidade e impossibilidade, passamos a tratá-lo em separado, como puro ente de razão. Essa separação abstrativa seria obviamente impossível sem a prévia apreensão de qualquer articulação concreta de possibilidade e impossibilidade num caso determinado e, portanto, depende dela não só logicamente como ontologicamente, de nada valendo o artifício de jogar contra a experiência algo que só se pode obter, por abstração, dessa experiência mesma. O próprio Kant, ao pretender reduzir a possibilidade e a impossibilidade a categorias lógicas independentes da experiência, não pôde conceber uma experiência que fosse independente delas, o que marca todo o abismo de diferença que há entre uma distinção mental e uma distinção real-real, no sentido dos escolásticos. Possibilidade e impossibilidade podem ser concebidas ―independentemente‖ da experiência precisamente porque, como condições fundantes da objetualidade, transcendem toda experiência em particular e todo objeto em particular. Mas, por isso mesmo, o objeto considerado ―fora‖ ou ―independentemente‖ delas não é nem sequer pura matéria informe e genérica. É apenas uma suposição quimérica: o objeto sem objetualidade. Não há pois como escapar. A metafísica é não apenas possível mas absolutamente necessária, no mínimo como fundamento -- implícito ou explícito -- da possibilidade das ciências. 14 de julho de 2002 Kant e o primado do problema crítico1

Se o primado da dúvida metódica é apenas o primado de um equívoco verbal, então fica sob suspeita, igualmente, o primado kantiano do problema crítico. Pois, se o conhecimento humano deve prestar reverência preliminar ante a consciência de seus limites, por que não deveria também submeter-se à exigência de uma justificação preliminar a pretensão de conhecer esses limites?

A motivação imediata que levou Kant a investigar os limites do conhecimento humano foi o estado de profunda irritação em que o deixaram os relatos de Emmanuel Swedenborg sobre visões do céu e do inferno. Os únicos trechos da obra kantiana onde sentimos que a habitual frieza analítica do autor cede lugar a um tom de sarcasmo e de polêmica apaixonada, são aqueles em que Kant procura rebaixar os depoimentos do místico sueco a alucinações de uma mentalidade doente. O escrito Sonhos de um visionáriomarca justamente a passagem da fase pré-crítica à maturidade do pensamento kantiano. É manifesto que a filosofia crítica tem menos o objetivo de dar um fundamento ao conhecimento científico do que simplesmente de explicitar os fundamentos dados por pressupostos, ao mesmo tempo que nega qualquer fundamento científico aos conhecimentos de ordem mística e metafísica, reduzindo portanto a religião a um conjunto de mandamentos morais sem qualquer respaldo cognitivo. Mas o curioso é que o filósofo crítico, tão cioso de não se deixar enganar por pressupostos dogmáticos, dá por pressuposta não somente a validade da ciência física, como também a aptidão da razão para conhecer seus próprios limites. Para além do campo dos juízos a priori e da experiência sensível, estende-se apenas, segundo ele, o domínio do incognoscível: pensável, admite Kant, mas incognoscível. No entanto, como se poderia determinar os limites do cognoscível sem algo conhecer do suposto incognoscível cuja borda externa coincide precisamente com esses limites? Se a razão conhece os limites do sensível e, ao mesmo tempo, estatui os seus próprios limites, como poderia ela determinar, igualmente, os limites do terceiro campo, especificamente diferente, que é o da experiência racionalizada, ou ciência, se, conforme diz o próprio Kant, é só a imaginação que conecta o racional e o sensível? Para ser coerente, Kant deveria ter dito que não há limites para a ciência, exceto os da imaginação. Pois, na medida em que opere balizada pela razão e pela experiência sensível, a imaginação, na perspectiva kantiana, não nos dará somente pensamento, mas conhecimento, de pleno direito. E, se é assim, por que rejeitar dogmaticamente a possibilidade de, partindo do sensível, escalar imaginariamente os graus do supra-sensível? Nada, no kantismo, prova que isto seja impossível ou sequer difícil. Os limites de uma determinada capacidade só podem ser de duas ordens: intrínsecos e extrínsecos. Os limites intrínsecos são aqueles que podem ser conhecidos a priori e analiticamente, por dedução a partir do seu conceito. Ora, segundo Kant, nenhuma dedução a priori pode emigrar, sem mais, para o domínio dos fatos, de vez que o conhecimento deste domínio só tem validade quando é indutivo e fundado na experiência. Logo, os limites intrínsecos do conhecimento humano, caso conhecidos, seriam puramente formais e não se aplicariam ao conhecimento de nenhum objeto real e determinado. Seriam, por assim dizer, limites vazios, hipotéticos, que na prática não limitariam nada. Quanto aos limites extrínsecos, só podem ser determinados indutivamente, a partir dos vários conhecimentos efetivos concernentes às várias espécies de objetos; e pelo fato mesmo de serem extrínsecos não poderiam jamais ser necessários e incondicionais, mas somente acidentais e contingentes. Procurando determinar a priori os limites reais do conhecimento humano, o que é impossível segundo o próprio kantismo, ou provar por indução de fatos contingentes

que esses limites são necessários e incondicionais, a proposta da filosofia crítica é, para dizer o mínimo, uma falácia em toda a linha. O primeiro e o mais básico dos limites assinalados por Kant é que o campo da experiência está circunscrito pelas duas formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo. Mas aquilo que está num lugar determinado está também, a fortiori, no infinito supra-espacial; e aquilo que ocorre num instante determinado acontece também, a fortiori, dentro da eternidade — duas necessidades a priori das mais óbvias que, por si, dariam por terra com os famosos limites que a filosofia crítica procurava estabelecer2. Mais falaciosa ainda é a refutação kantiana do argumento de Sto. Anselmo. Sto. Anselmo diz que a existência de Deus é auto-evidente por mera análise, de vez que o Ser infinito e necessário não poderia ser privado da existência, sendo toda privação uma limitação, contraditória portanto com a infinitude, e a possibilidade mesma de uma limitação sendo uma contingência, contraditória com a necessidade. Kant objeta que os juízos analíticos têm validade puramente racional e não se aplicam aos seres do domínio real, que só podem ser conhecidos por experiência: existir é existir "fora" do pensamento, e portanto a existência nunca pode ser deduzida do mero conceito. Kant dá por pressuposto, nessa objeção, que nossa mente pode criar como mera hipótese o conceito de um ser absolutamente necessário, ou seja, que este conceito pode ser um mero "conteúdo" do pensamento. Ou seja: o conceito do ser necessário seria apenas hipoteticamente necessário. Só que, para esse conceito ser apenas e exclusivamente uma criação da nossa mente, sem qualquer realidade objetiva, ele teria de ser necessariamente hipotético, ou seja, teria de excluir totalmente a possibilidade de ser mais que mera hipótese. Ora, esta exclusão é autocontraditória. Nenhuma lógica do mundo pode determinar que uma necessidade hipotética seja necessariamente hipotética, pois isto seria o mesmo que negar-lhe, de antemão, todo caráter necessário, afirmado ao mesmo tempo no seu mero conceito. Podemos, é claro, imaginar uma necessidade falsa, mas ao dizermos que é falsa dizemos que não é necessidade de maneira alguma. Uma necessidade hipotética ou é uma necessidade ainda não provada, mas que, se provada, se mostrará necessária, ou é uma necessidade falsa: o que é logicamente impossível é conceber que uma necessidade hipotética seja hipotéticanecessariamente, que não possa ser verdadeira de maneira alguma, pois isto seria negar sua condição de hipótese e colocar, em seu lugar, o juízo categórico que afirma sua falsidade. O Ser infinito e necessário não pode, portanto, ser concebido como um mero "conteúdo da nossa mente". Na verdade, concebê-lo assim, dando conteúdo lógico positivo a um conceito autocontraditório, é muito mais difícil do que conhecer algo, positivamente, sobre o Ser absoluto. É mais fácil conhecer Deus do que o "necessário necessariamente hipotético". Por outro lado, se a existência real do ser necessário não pode ser deduzida analiticamente do conceito da sua necessidade, se a necessidade exclui a contingência (e portanto a possibilidade de inexistir) e se o real fenomênico está forçosamente submetido às categorias lógicas, então é claro que, para falar na terminologia kantiana, o argumento ontológico é um juízo sintético a priori, e não um juízo puramente analítico: a existência real do ser necessário não está contida em sua mera definição, mas, a priori, sabemos que é exigida por ela, a título de propriedade, exatamente como

acontece nos juízos geométricos mencionados por Kant. Mais que logicamente certo, o argumento ontológico é auto-evidente. Denomino auto-evidente o juízo que não pode ter uma contraditória unívoca, ou seja, cuja contraditória não é sequer formulável sem o vício redibitório da ambigüidade. Que eu saiba, esta característica dos juízos auto-evidentes não tinha sido ressaltada até agora3. No caso, qual a contraditória do juízo "O ser necessário existe necessariamente"? É "O ser necessário inexiste necessariamente" ou "A existência do ser necessário não é necessária"? Impossível decidir. A contraditória do argumento de Sto. Anselmo é informulável. Rejeitar portanto esse argumento é abdicar do senso mesmo da unidade do discurso, é cair na linguagem dupla que terminará por nos levar aonde chegou Kant. Porém a raiz de todas essas absurdidades está precisamente na fé dogmática que Kant, imitando Descartes, coloca no poder humano de duvidar. Pois como podemos, de fato, duvidar de nossa possibilidade de conhecer o absoluto? Se nada, radicalmente nada sabemos do absoluto, não podemos sequer formular nossa dúvida quanto à possibilidade de conhecê-lo. Daí a necessidade de ter um ponto de apoio no absoluto para formular a dúvida; mas como, ao mesmo tempo, Kant já tomou essa dúvida como um ponto de partida infalível e não pode abdicar dela de maneira alguma, só lhe resta procurar esse ponto de apoio nos limites mesmos do conhecimento, elevados assim a absolutos e incondicionados, por um giro lógico dos mais singulares. Assim, nada podemos saber do absoluto, exceto que ele está "para lá" dos limites do nosso conhecimento, limites estes que, não sendo determinados pelo absoluto (do qual nada sabemos) nem sendo realidades contingentes e revogáveis (de vez que são provados por mera análise, sendo por isto válidos a priori), passam eles mesmos a ser o próprio absoluto! Pois, se o pensamento nada pode deduzir a respeito do que está fora dele, como pode então conhecer os seus "limites", a não ser que estes sejam necessários a priori? Sendo necessários a priori, são incondicionais; mas são também totais, abarcando o conhecimento humano como um todo e não somente em algumas partes e aspectos: e o todo incondicional é evidentemente absoluto. Logo, a prova de que não podemos conhecer o absoluto sustenta-se no conhecimento que temos do absoluto, com o nome mudado para "limites do conhecimento". Se isto não fosse atentar iconoclasticamente contra um ídolo da modernidade, eu diria que o único comentário que merece essa tese da filosofia kantiana é que se trata de coisa pueril. Do ponto de vista teológico, a entronização dos limites do conhecimento como o novo absoluto em lugar do velho Deus tem uma conseqüência das mais nítidas: o absoluto passa a ser definido como o não-humano, o humano como não-absoluto. Este abismo é, por sua vez, absoluto: Deus é tudo quanto está fora dos limites do humano, humano é tudo o que está fora e aquém do reino divino. Ou seja: a exclusão do humano do reino divino torna-se ela mesma um absoluto. Que Kant pretenda em seguida resgatar à força de razão prática e fé pietista a ligação entre homem e Deus, após ter demonstrado que ela é absolutamente impossível, só mostra que ele não tinha muita consciência do que fazia. Pois, se a exclusão do homem do reino divino é uma necessidade absoluta, nem mesmo a graça de um Deus onipotente poderia revogá-la. Na verdade, não pode haver limites necessários ao conhecimento humano, sendo a condição humana definida precisamente pela contingência e pela liberdade. Todos os

limites ao conhecimento humano têm de ser contingentes, e é precisamente isto o que possibilita, de um lado, as diferenças de capacidade cognitiva entre indivíduos e, de outro, o progresso do conhecimento. A tentativa de fundamentar a priori os limites do conhecimento humano é autocontraditória e absurda na base, reduzindo-se portanto a filosofia crítica a uma pretensão insensata, ao "sonho de um visionário", que imagina poder puxar-se pelos cabelos para fora da água como o Barão de Münchausen e contemplar de dentro os seus próprios limites externos, como aquelas escadas de Escher cujo topo emenda com o primeiro degrau. Mais ingênua, portanto, do que a confiança dogmática do racionalismo clássico no poder cognoscitivo da razão, mais visionária que a pretensão dos místicos a um conhecimento experimental de Deus, é a confiança no poder humano de por em dúvida aqueles princípios que fundam a possibilidade mesma da dúvida. Mais ingênuo que qualquer dogmatismo é o princípio mesmo da filosofia crítica, que pretende estatuir dedutivamente limites contingentes e indutivamente limites necessários. Mais ingênuos do que nossos antepassados, que acreditavam na revelação e na razão, somos nós, que acreditamos em Descartes e em Kant, supondo que a negatividade do seu ponto de partida seja prova de modéstia metodológica, quando ela oculta, na verdade, a mais sobre-humana das pretensões: a pretensão de estabelecer limites absolutos ao conhecimento humano. Pretensão superior à do próprio Deus, que não cercou de grades o fruto proibido, mas o deixou ao alcance da curiosidade de Eva. Apêndice Certas filosofias ignoram suas implicações práticas mais óbvias e por isto desencadeiam efeitos históricos inversos aos pretendidos pelo seus autores, os quais, se os vissem, não poderiam senão tentar jogar sobre a incompreensão de devotos discípulos a culpa que legitimamente deve ser imputada à sua própria e indesculpável imprevidência. Kant procura subjugar a filosofia à fé cristã, obtendo como resultado descristianizar a filosofia e tirar o vigor filosófico do cristianismo. É, tal como Descartes, um carola que fortalece o ateísmo imaginando defender a religião. Ele realiza uma torção do olhar filosófico, desviando-o do objeto dado para as estruturas cognitivas do sujeito. Estas passam a ser não somente o único território seguro, mas o único objeto digno de interesse. Paralelamente, toda universalidade deixa de ser universalidade objetiva, para se tornar mera uniformidade das estruturas cognitivas da espécie humana, isto é, subjetividade coletiva ou, como veio a ser chamada, intersubjetividade. As categorias já não sendo modos de existência do ser, mas modos de cognição nossos, qualquer discurso que façamos já não versa senão sobre nós mesmos, e o objeto permanece eternamente separado de nós na redoma da incognoscível "coisa-em-si". Não há saída para fora da prisão do mental senão pelo imperativo categórico que nos ordena crer em Deus; mas, como temos de crer n‘Ele sem podermos jamais saber se Ele existe, toda tentativa de fundamentar racionalmente a fé não passará jamais de um jogo de palavras. Restaria explicar enfim por que esse Deus, no qual temos de crer e do qual

temos de julgar que é bom por imperativo categórico, nos impõe categoricamente uma determinada fé e o uso da razão, ao mesmo tempo que nos proíbe usar a razão para provar a veracidade da fé. A filosofia de Kant é uma cisão esquizofrênica: reúne lado a lado, sem intercomunicação possível, um fideísmo obediencialista e um cientificismo pré-positivista. Ora, entre uma religião irracional e autoritária e a negação de todo conhecimento supra-sensível, qualquer pessoa sensata optaria por esta última, e foi precisamente o que aconteceu: Kant gerou o positivismo, que gerou o materialismo generalizado. Só um ingênuo não preveria esta conseqüência, e foi precisamente por prevê-la que os filósofos escolásticos insistiram em conciliar razão e fé, em vez de justapô-las mecanicamente e sem ligação interna como faz Kant. Kant representa um retrocesso da consciência cristã, que por meio dele recai em dilacerantes contradições já superadas pela escolástica — uma escolástica que Kant desconhecia quase por completo, já que sua única fonte sobre o assunto eram os manuais de Wolff. Para piorar ainda mais as coisas, as formas a priori da subjetividade, que a Crítica descreve, são universais e necessárias, isto é, abrangem todo e qualquer sujeito cognoscente possível. Não há como excluir disto o próprio Deus, se é que Deus pensa e conhece humanamente, o que a Igreja diz ser justamente o negócio da Segunda Pessoa da Trindade. E aí temos a suprema extravagância do kantismo: nada podendo saber de Deus, ignoramos se Ele pensa, mas, ao mesmo tempo, já sabemos tudo a respeito de como Ele pensa — uma conclusão que Kant não afirma, porque nem sequer a percebe, mas que está implicada logicamente, e sem escapatória, em tudo quanto ele afirma. Em verdade vos digo: parece brincadeira. Um kantiano roxo pode objetar que conhecer o pensamento humano de Jesus não é conhecer absolutamente nada de Seu pensamento divino — objeção desastrosa, que resultaria em cavar dentro do próprio Cristo o abismo entre homem e Deus que Kant já cavou na alma de todos nós, abismo sobre o qual o Cristo é precisamente a ponte. Algo me diz que, quando Jesus advertiu "Quem não junta comigo, separa", o piedoso sábio trapalhão de Koenigsberg talvez não estivesse de todo ausente de Suas cogitações.

NOTAS Aulas do Seminário de Filosofia, fevereiro de 1996. Voltar Para completar, a experiência sensível não é só delimitada pelo espaço e pelo tempo, mas também pela quantidade. Mas, como demonstrou Benedetto Croce (Estetica come Szienza dell‘Espressione e Linguistica Generale, Bari, Laterza, 11ª ed., 1965, I:I) podemos perceber espaço independentemente de tempo, tempo independentemente de espaço e quantidade independentemente de uma e outra coisa. Ademais, não poderíamos perceber quantidade sem que tivéssemos também, como bem viu Croce, a percepção da individualidade singular, na sua inespacialidade e intemporalidade. Assim, portanto, não há motivo para que o ser necessário não possa ser percebido com os sentidos, sendo, por definição, impossível que o ser necessário estivesse forçosamente excluído de qualquer possibilidade de manifestação fenomênica. Voltar

Explico mais detalhadamente esse conceito no meu Breve Tratado de Metafísica Dogmática, Rio, Seminário de Filosofia, 1996 (apostila).

Da contemplação Transcrição de três aulas gravadas, corrigida pelo autor.

amorosa

Et voici que l‘amour nous confond à l‘objet même de ces mots, Et mots pour nous ils ne sont plus, n‘étant plus signes ni parures, Mais la chose même qu‘ils figurent et la chose même qu‘ils paraient. (Saint-John Perse, Amers, Mer de Baal, 4).

1. Da Contemplação Amorosa1 A mais remota inspiração intelectual de meu trabalho sobre Aristóteles vem talvez de minha reação a algumas leituras, entre as quais a da Defense of Poetry de Shelley, a daIntroduction à la Métaphysique de Bergson, a do Nouvel Esprit Scientifique de Bachelard e a da Estetica come Scienza dell‘Espressione e Linguistica Generale de Benedetto Croce — tudo isto mais de vinte anos atrás. Esses autores, por diferentes que fossem entre si, tinham em comum a crença num dualismo insuperável que cindiria a inteligência humana em funções opostas e estanques. Por uma inclinação pessoal, pertenço à raça daqueles que buscam em tudo a unidade e a conciliação. Considero Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz e Schelling os mais eminentes representantes dessa raça na cultura do Ocidente. No Oriente, Shânkara e Ibn ‗Arabi. É verdade que a existência humana sobre a Terra é luta, divisão, precariedade, carência, incompletude. Mas fazer da mutilação um princípio metafísico absoluto, ou mesmo uma característica estrutural e imutável da essência humana sempre me pareceu um abuso, uma projeção universalizante de experiências contingentes, ou, pelo menos, é fazer do estado humano médio a régua máxima da perfeição concebível. É a covardia, é a depressão que leva um homem a culpar o universal, fundando sua derrota num princípio metafísico que é apenas a ampliação paranóica da sua própria divisão interior. Quem cede a essa tentação torna-se em breve incapaz de conceber a idéia mesma de universalidade, que casa inseparavelmente a unidade e a infinitude. O universal está, por definição, acima de todas as culpas, porque está acima de todas as divisões. De outro lado, o esforço de justificar o universal tomou com freqüência o sentido de um racionalismo, buscando demonstrar a racionalidade do real tomado como um todo. Ora, racionalidade, se bem compreendida, não é outra coisa senão proporcionalidade e harmonia (ratio = proportio); e um todo não pode ser dito harmônico e proporcional senão de uma destas duas maneiras: ou em relação a um outro todo, ou na conformação

de suas partes constituintes. O universal caía fora da possibilidade de ser captado por uma ou outra dessas categorias, na medida em que, por um lado, era único e sem segundo, e, de outro lado, sua unidade transcendia a de uma mera relação entre partes. Deste modo, atribuir ao universal quer a racionalidade, quer a irracionalidade, me parecia um abuso tão grande quanto o de negar o universal mediante um dualismo irrecorrível. Desde muito cedo, portanto, se desenvolveu em mim a convicção de que a unidade do universal é metafisicamente necessária e de que, por outro lado, ela não cabe nos nossos conceitos correntes de razão e irrazão. A contínua meditação do problema tomou logo em mim a seguinte forma: o universal, que se impõe como evidência, não pode no entanto ser conceituado. Invertia-se assim a fórmula de Kant, segundo o qual as realidades metafísicas só podem ser pensadas, mas não conhecidas: o universal pode serconhecido, mas não pode ser pensado. (Por esta e outras razões, Kant sempre me pareceu apenas um genial trapalhão.) Aqueles a quem essa conclusão pareça heterodoxa e paradoxal esquecem que poder ser conhecido sem poder ser pensado é a característica mais primária e evidente de todas as coisas reais, a começar por nós mesmos. Conheço-me a mim mesmo por direta evidência que me faz autor de meus atos, sujeito de meus estados interiores, objeto das ações alheias, etc. Sempre que me apreendo intuitivamente, me apreendo como unidade. Mesmo para sentir-me dividido tenho de me apreender como unidade, caso contrário me identificaria com um dos lados e esqueceria o outro, não sentindo a divisão (é o caso das personalidades múltiplas). Conheço-me, portanto, como unidade. No entanto, toda tentativa de me pensar como tal, de produzir um conceito, uma noção ou um símbolo que me abarque e me apresente a mim mesmo como unidade fracassa rotundamente: produzo aspectos, perfis, sinais, e isto é tudo. Na melhor das hipóteses, crio um símbolo que, sem me abarcar efetivamente, indica intencionalmente a minha unidade (como por exemplo a sucessão de episódios de uma narrativa indica intencionalmente a unidade de um personagem, sem realizá-la de fato). Conheço-me como todo,penso-me por partes. Mas, nessa distinção, "pensar" não designa só o raciocínio discursivo, mas todas as demais funções cognitivas: a imaginação, a memória, o sentimento. Nenhuma delas pode abarcar aquele todo que, não obstante, conheço perfeitamente bem e que sou eu mesmo. Do mesmo modo, conheço perfeitamente bem minha mãe, a mulher a quem amo, os filhos que gerei, os meus amigos. Conheço-os e reconheço-os imediatamente como totalidades insubstituíveis sempre que se apresentam. A passagem do tempo, as mudanças de aparência, a queda dos cabelos, o emagrecimento, a doença, a velhice, em nada afetam esse reconhecimento: cada um desses seres é sempre o mesmo e não será jamais um outro. No entanto, se procuro pensá-loscomo conceitos, imaginá-los, recordá-los ou senti-los, já não tenho diante de mim senão um sinal ou símbolo, uma fatia ou fragmento que só pode significar o todo na medida em que de antemão eu conheça esse todo e tenha portanto a aptidão dereconhecê-lo por um indício. Cada ser

humano pode ser conhecido como um todo, mas só pode ser pensado (imaginado, recordado, sentido) por partes sucessivas, cuja soma jamais o completa. O universal, nesse sentido, não é mais nem menos misterioso do que a substância singular a que chamamos "pessoa humana": cognoscível como todo, impensável exceto em partes e signos. Ora, pensar (ou imaginar, ou recordar, ou sentir) é produzir em nós, voluntária ou involuntariamente, um signo, uma "figura" para representar algo que ela indica e que a transcende.2 O pensar (sempre no sentido abrangente do termo) é necessariamente precário e subentende uma faculdade cognitiva superior, capaz de reconhecer no todo o objeto que ele indica por partes. Qual a natureza dessa faculdade superior? O objeto que não pode ser pensado, que transcende a representação subjetiva e jamais nela se esgota é algo que, radicalmente, não depende de nós, não está à nossa mercê, não é invenção nossa e só pode portanto ser aceito, recebido. Aceitá-lo, recebê-lo, é respeitar sua integridade, nada projetar nele, nada acrescentar nem tirar. Implica, portanto, nada menos que o seguinte: desejar que ele seja o que é, não desejar que seja outra coisa. Esta plena aceitação respeitosa, porém, não pode ser somente passiva, sob pena de deixar amortecer o interesse que temos no objeto e, portanto, de fazê-lo desaparecer do nosso círculo de consciência. Tem de ser, ao contrário, uma aceitação desejosa: ela é um desejo ativo de que o objeto seja o que é, permaneça o que é, exista de per si e persista existindo. Ela não se constitui portanto somente de respeito (de re spicere = olhar e voltar a olhar). Ela é, plenamente, contemplação amorosa. O objeto se oferece a mim como todo no instante e na medida em que o aceito como objeto de contemplação amorosa e, expelindo de mim toda tentativa de pensá-lo, de abarcá-lo conceptualmente, imaginativamente ou sentimentalmente, deixo e quero que ele exista por si diante de mim, eternamente transcendente à minha subjetividade, eternamente independente de tudo quanto eu faça ou pense ou sinta. A contemplação é o esplendor do objeto ante o olhar da humildade que o deseja como tal e que se recusa a alterá-lo no que quer que seja.

Aí, porém, entra a objeção kantiana: só conhecemos os objetos como objetos de nossa representação, e não em si mesmos. Esta objeção sempre me pareceu tautológica, pois resulta em dizer que só ouvimos o que nosso ouvido ouve, só vemos o que nossos olhos vêem, etc. Mas é preciso passar por ela. Todo objeto é, de fato, objeto de representação — mesmo os sentidos só nos dão esquemas representativos, não objetos "em si". Porém, aí é que está: uma vez chegado ao nosso conhecimento um objeto — por intermédio da nossa representação —, temos duas alternativas: ou pensá-lo, isto é, fazer dele um signo ou conceito que entrará no rio dos nossos pensamentos para aí ser comparado, transformado, refutado, etc., ou, ao contrário, esperar para conhecê-lo mais e mais, isto

é, esperar e desejar que ele nos entregue mais e mais de si mesmo. Qualquer de nossas faculdades representativas pode, a cada instante, submeter-se à sua própria mecânica interna ou ao objeto que se lhe oferece, pode recuar para contemplar-se a si mesma ou continuar a fitar o objeto. À primeira alternativa denominoreflexão (subentendendo que há também uma reflexão imaginativa, sentimental, etc.). À segunda denominocontemplação. Quando persistimos na atitude contemplativa, a faculdade, o canal representativo se torna cada vez mais dócil, mais transparente, até que, chegado um determinado limite, se manifesta com perfeita clareza a diferença entre o que é projeção e o que é pura recepção: mesmo admitindo-se que não atinjo, como diz Kant, o "objeto em si mesmo", – coisa que de fato não admito, mas que não cabe discutir aqui3 –, capto ao menos a distinção entre o que ele me dá por si mesmo e o que eu, de minha parte, projeto nele. Trata-se evidentemente de um exercício de autoconsciência, onde, na medida mesma em que conscientizo minha própria ação projetiva, consigo distinguir o projetado e o recebido, e atino, enfim, com o objeto como tal, e já não como simples representação (e muito menos projeção) minha. O erro de Kant foi aí o de confundir a percepção vulgar, que é ferozmente projetiva, com a contemplação amorosa, autoconsciente, que termina pelo reconhecimento evidente e apodíctico, da objetividade como tal. A diferença decisiva é a que existe em projetar um desejo subjetivo, alheio ao conteúdo oferecido pelo objeto, ou projetar amorosamente o desejo do objeto como tal. A contemplação amorosa é, portanto, passiva em relação ao objeto, ativa e crítica em relação ao sujeito. É dominar-se para não interferir, para não macular o objeto. (Há evidentemente algum parentesco entre o que denomino contemplação amorosa e a redução fenomenológica husserliana. A diferença aparecerá com plena clareza mais adiante.) A contemplação amorosa sempre parte de um objeto da representação (ou mesmo de um objeto de pensamento), para chegar ao ponto em que o objeto fala por si, transcendendo o canal representativo (ou conceptual) que não funcionou senão como o comutador que aciona um mecanismo que em seguida escapa ao seu controle. Ora, a única diferença que existe, nesse sentido, entre as substâncias corporais e o universal é a do canal pelo qual tomamos notícia inicial da sua presença: os sentidos, no primeiro caso, o pensamento abstrato, no segundo. Os sentidos nos dão, por exemplo, notícia de uma presença humana (a qual em seguida podemos pensar ou contemplar). O pensamento não "capta" o universal, mas nos dá notícia dele através da contradição lógica a que chegamos na tentativa de negá-lo. Esta contradição, que reflete a necessidade metafísica do universal, pode, em seguida, ser simplesmente pensada ou então contemplada. Neste último caso, a necessidade do universal passa a ser aceita, desejada, amada, até que se nos apresente como algo que nos abarca, nos modela, nos estatui e nos conserva na existência e no próprio ato de meditá-la. Não existe hiato, neste sentido, entre o conhecimento filosófico de Deus, a experiência mística de Deus e o puro e simples amor a Deus, mas a perfeita continuidade de uma intensificação contemplativa. O Deus dos filósofos, se fosse apenas dos filósofos, não seria Deus, mas

apenas o conceito de Deus, captado e logo em seguida imediatamente pensado, isto é, mutilado, esquecido e negado. O Deus dos filósofos ou é objeto de contemplação amorosa — aceitação, fé, desejo — e é portanto o mesmo Deus de todo o mundo, ou então é apenas um Deus pensado, um simulacro de Deus, e portanto não é o Deus dos filósofos, mas apenas o Diabo puro e simples. Eis o que Sto. Tomás percebeu com perfeita clareza e o que Pascal não quis perceber, movido pela soberba dos humildes e por aquela trágica divisão interior do pensador matemático que, tendo abusado da razão, busca um refúgio no sentimento, sem perceber que transita apenas entre o mental e o mental e que o verdadeiro objeto de sua busca está para além dessa vulgar disputa entre faculdades humanas4.

12 de janeiro de 1995.

2. Conhecimento e realidade Foi por meio dessas considerações que cheguei à conclusão da total inanidade das disputas em torno da pergunta: o pensamento capta ou não a realidade? O pensamento jamais capta realidade nenhuma, nem é essa a sua função. O pensamento refere-se à realidade de uma maneira exclusivamente intencional, mediante signos, cujas combinações não expressam o real, mas o possível. O realcomo tal é conhecido única e exclusivamente pela contemplação amorosa; o pensamento (sempre em sentido lato) conhece-o somente enquanto objeto de significação intencional. Mas o real que nos chega, e que pode ser conhecido pela contemplação amorosa, constitui-se apenas do universal intensivo (não extensivo) e dos seres singulares que, em quantidade finita (e quer isoladamente, quer em grupos, conjuntos, ordens, hierarquias etc.), ingressam no círculo da nossa experiência. Mesmo supondo-se que estendêssemos a contemplação amorosa a todos eles, e que chegássemos assim a conhecer uma fatia imensa do real, ainda haveria lacunas infindáveis. O conhecimento que temos sobre o universal intensivo e sobre os seres singulares, todo somado, está muito longe de igualar-se ao universal extensivo. Esse hiato é que é preenchido pelo pensamento, ou melhor, pelo mental em geral (que inclui imaginação, sentimento etc.). Pensar, imaginar, etc., é apenas um esforço de saltar ou preencher o hiato entre o mundo conhecido (universal intensivo + seres singulares) e o universal extensivo. O objeto próprio do mental é o "irreal" possível — em todas as gradações da possibilidade, incluindo a necessidade ou certeza lógica5 — e não o real. O mental dá-nos a estrutura das relações possíveis dentro da qual podemos conceber aquilo que não conhecemos, mas que preenche o intervalo entre o conhecido e o universal extensivo. O conhecimento que temos desse intervalo é necessariamente potencial; por definição, ele jamais se atualiza por completo. Por que não pode atualizar-se? Porque isto seria substituir o todo universal real por um todo universal mental, que absorveria em si o real, o que é obviamente um contra-senso. Os famosos "limites do conhecimento humano" são apenas, enfim, os limites do mental. A contemplação amorosa, em si, não é nem limitada nem ilimitada, pois, só conhecendo

os seres (o universal inclusive) na totalidade singular de cada um, não soma nem diminui. É necessário distinguir agora radicalmente a contemplação amorosa da redução fenomenológica, após ter reconhecido o seu parentesco. Esta visa a captar "essências", aquela capta a unidade indissolúvel de essência e existência, a que chamamos "ente singular". Se captamos a singularidade de um ente, captamos, no mesmo ato, sua essência, mas não como unidade lógica separada, e sim como identidade de uma presença que revela imediatamente o que é6. Dito de outro modo, captamos imediatamente gênero, espécie e singularidade num todo indissolúvel: apreender "este lápis" não é apreender "lápis" em geral nem "este objeto" de essência indeterminada, nem é captar um número indeterminado de membros da espécie "lápis"; é captar um determinado membro de uma determinada espécie e é captá-lo como existente aqui e agora. Contemplação amorosa e redução fenomenológica se parecem entre si por serem modos de conhecimento contemplativos, descritivos e não analíticos. Mas a redução fenomenológica dirige-se à essência como coisa distinta da existência, portanto a um "irreal", ao passo que a contemplação amorosa dirige-se ao real como tal, isto é, à existência de uma essência num ser determinado e presente. A teoria da contemplação amorosa está para a fenomenologia de Husserl assim como o aristotelismo está para o platonismo, mutatis mutandis: os "entes" da minha teoria estão para as "essências" de Husserl exatamente como a "substância" aristotélica está para as "Idéias" platônicas. O apelo de Husserl — "Rumo às coisas mesmas!", Zu den Sachen selbst — não pode ser atendido plenamente pela fenomenologia mesma porque ela não visa a coisas reais, e sim a essências separadas. A tentativa posterior de Husserl de reintegrar na sua visão filosófica as coisas reais — pela teoria do Lebenswelt — foi tardia e ficou só no programa. É esse programa que, a meu modo, procuro realizar, sendo fiel ao mestre na medida mesma em que me afasto de seu método sem me afastar de seus ideais, de seus valores, de seus conceitos básicos e de seus critérios de aferição. A teoria do Lebenswelt é a mais meritória tentativa de reintegrar na filosofia o conhecimento pré-filosófico, como raiz filosoficamente válida (ou validada pela reflexão) do conhecimento filosófico mesmo. Meu esforço é no sentido de dar um passo além, discernindo a metodologia implícita do conhecimento pré-filosófico, à qual chamo contemplação amorosa. Por desconhecê-la, os filósofos — com raras exceções — têm substituído o mundo pensado ao mundo dado, ou, como resumiu o poeta Bruno Tolentino, o "mundo como idéia" ao "mundo como tal"7. Enquanto continuar nesse rumo, a filosofia não terá como escapar à falsa disputa entre os que querem abarcar o mundo com o pensamento e os que negam ao pensamento todo alcance exceto o de uma ficção convencional. Os primeiros caem nas decepções periódicas do racionalismo e acabam no ceticismo. Os segundos, não crendo em conhecimento teorético puro, apelam à dialética da ação e, para transformar o mundo, acabam criando uma ideologia totalitária que, tudo explicando, termina num neo-racionalismo absoluto. Esses erros são complementares e giram em círculo, um produzindo o outro.

Mas a teoria da contemplação amorosa requeria, como complemento, uma teoria do discurso, pelas razões seguintes: Se a contemplação amorosa ou conhecimento pré-filosófico (intensificado ou não pela reflexão filosófica) nos dá o conhecimento da totalidade, isto é, da unidade como tal, o mental nos dá o conhecimento das várias formas de proporcionalidade e harmonia, isto é, das formas indiretas da unidade; formas estas indefinidamente variadas e complexas, tanto quanto o número das espécies e dos entes possíveis. Neste sentido é que digo que todas as faculdades cognitivas — raciocínio, imaginação, sentimento, etc. — são racionais8: todas fundam-se em princípios de equivalência, proporcionalidade e harmonia, que traduzem em modalidade por assim dizer "quantitativa" a identidade e a unidade. Colocadas as bases metafísicas na teoria da unidade metafísica (que adaptei de Ibn ‗Arabi); estabelecido o método cognitivo (na minha teoria da contemplação amorosa); estabelecido o fundamento absoluto da objetividade do conhecimento (na Teoria da Tripla Intuição9); extraídos daí os princípios de uma psicologia do conhecimento (na Tripla Intuição e em O Caráter como Forma Pura da Personalidade10), aplicada em seguida para fins polêmicos na minha defesa incondicional da substancialidade da alma-consciência individual (no meu trabalho em preparação A Alienação da Consciência e no final de A Nova Era e a Revolução Cultural11), julguei que, para dar maior consistência ao conjunto, devia investigar em seguida os princípios do conhecimento indireto, ou discursivo, sobre os quais já esboçara alguma coisa no capítulo "A dialética simbólica" do livro Astros e Símbolos12 e nos meus trabalhos de teoria e crítica literária13. Nisto, como em tudo o mais, ative-me fielmente à minha regra pessoal de nunca inventar uma teoria nova quando houvesse alguma teoria antiga que, quer inalterada quer submetida a adaptações, pudesse dar conta do recado. Ora, a Teoria dos Quatro Discursos é apenas o reconhecimento de que os princípios gerais do conhecimento discursivo, que eu buscava, já estavam em Aristóteles, pelo menos de maneira implícita; de modo que, em vez de reinventar a roda, simplesmente inventei a calota, isto é, uma nova apresentação e revestimento de uma idéia de Aristóteles, reintegrando em seguida quase intacta essa parte do aristotelismo na filosofia que eu mesmo estava desenvolvendo, e cuja motivação inicial não estava em nada de aristotélico, mas sim no meu intuito de responder ao dualismo de Shelley, Bergson, Bachelard e Croce e de desenvolver a teoria do Lebenswelt husserliano para revalorizar o conhecimento pré-filosófico. Todo esse trabalho de construção teórica positiva foi entremeado não só de aplicações pedagógicas (no curso do Instituto de Artes Liberais), mas também de esforços críticos e polêmicos complementares: contra a dissolução da teoria na prática (O Jardim das Aflições14); contra a dissolução da filosofia na ideologia (A Nova Era e a Revolução Cultural); contra o pensamento coletivista que prostitui a consciência individual à pretensa autoridade do número (O Imbecil Coletivo15), etc. Como o público até agora só conhece a parte polêmica do meu trabalho (pois a parte teórica, em forma de rascunhos,

apostilas e edições privadas, quase confidenciais, não está pronta para publicação decente), o resultado é que este pacífico servidor da unidade e da conciliação está se tornando conhecido como um hidrófobo terrorista intelectual, o que não deixa de ser divertido16.

14 de janeiro de 1995.

3. Aplicações em Filosofia Moral Das duas teorias que criei no campo da gnoseologia — a tripla intuição e a contemplação amorosa —, extraí umas quantas aplicações de ordem moral, que foram expostas ao público no meu curso de Ética proferido em 1994 na Casa de Cultura Laura Alvim, todo gravado em fita e depois transcrito em apostilas. A filosofia moral, ou ética, deve para mim tomar o seguinte rumo: I. Distinguir entre os códigos morais historicamente vigentes em diversas épocas e sociedades e a moral essencial, universal, que se obtém por simples redução fenomenológica. Aqueles compõem-se de normas, no sentido de Kelsen, e esta compõese de princípios. A discussão filosófica da moral deve ater-se ao campo dos princípios. Assim, o relativismo antropológico, sociológico e histórico pode conciliar-se com o dogmatismo dos princípios. Estes tornam-se conhecidos do investigador por abstração, mas em si não são abstratos: são o conteúdo concreto, o sentido efetivo por trás das normas historicamente vigentes. Estas é que, expressando de maneira indireta e às vezes simbólica o conteúdo dos princípios, são abstratas em relação a eles. II. Os princípios universais assim encontrados devem obedecer aos seguintes quesitos: a. Têm de ser identicamente os mesmos em todas as morais historicamente vigentes. b. Tem de estar subentendidos, como pressupostos lógicos, na aplicação prática dessas normas, em todos os casos historicamente considerados. Dentre os princípios assim encontrados, destaca-se o daresponsabilidade. Não há nenhum sistema moral no mundo que, por trás de suas regras, não tenha um de seus fundamentos na idéia de que: 1º, a responsabilidade por determinados fatos tem de ser imputada necessariamente a seus autores; 2º, esses autores são sempre seres particulares e concretos,substâncias no sentido aristotélico, e jamais, em caso algum, coletivos abstratos ou meros "universais"; 3º, existe continuidade substancial entre o ser que foi autor do ato e aquele a que posteriormente se atribui a responsabilidade por esse ato.

As morais históricas divergem enormemente quanto às categorias de seres a que se devem aplicar esses princípios. Algumas sociedades incluem entre os seres moral e juridicamente imputáveis os demônios, as forças da natureza, até mesmo os animais (até o séc. XVIII persistiu no Ocidente o hábito de punir com a excomunhão os porcos que invadissem plantações). O que é comum a todas é a crença no princípio da responsabilidade, na substancialidade do ente responsável e na continuidade substancial desse ente no trânsito entre ato e imputação. III. Uma vez demonstrado esse ponto, a tarefa seguinte da filosofia moral é fundamentar racionalmente os princípios assim encontrados, ou seja, fundar a sua universalidade extensiva numa universalidade lógica, ou necessidade metafísica. Aí é que entra a contribuição gnoseológica. Tendo demonstrado, pela Tripla Intuição, o fundamento absoluto da objetividade cognitiva, e pela Contemplação Amorosa a natureza do conhecimento objetivo, fundo-me em ambas para demonstrar a relação entre conhecimento e responsabilidade. Aí verifica-se que determinadas sociedades antigas ou primitivas podem ter "errado" na aplicação do princípio de responsabilidade a determinados entes não providos de autoconsciência, — como aliás erramos nisto com freqüência ainda hoje, e não sabemos por exemplo fixar adequadamente as fronteiras da responsabilidade no caso das chamadaspersonalidades psicopáticas ou da indução hipnótica —, mas que a aplicação errônea não desmente a veracidade intrínseca do princípio. Na tripla intuição, demonstro que o fundamento da objetividade cognitiva reside num nexo indissolúvel entre sujeito, objeto e ato cognitivo, e que essa relação se dá de maneira exemplar, arquetípica mesmo, na percepção da luz, onde a luz é a um tempo objeto e condição da percepção, não podendo estes aspectos ser separados senão por meradistinção mental (no sentido escolástico) posterior. Do mesmo modo, e simultaneamente, pelo lado do sujeito, a sensibilidade à luz é objeto e condição da percepção, em modo inseparável. Daí que a luz, tradicional símbolo do ato cognitivo, seja algo mais do que mero símbolo: ela é o fundamento corporal, existencial, do nexo sujeito-predicado, e o "apoio sensível" sobre o qual se erige toda a lógica humana. Dessa teoria decorre que o indivíduo humano só se conscientiza como sujeito cognitivo no ato mesmo em que se conscientiza como objeto que sofre a ação de uma fonte de luz. Os dois aspectos são inseparáveis, o que prova a falácia de todo idealismo subjetivo, assim como de todo dualismo sujeito-objeto. O mundo físico, com sua luz "corpórea", é a morada mesma do Espírito. Ou, como disse Paul Éluard, há outros mundos, mas estão neste. Em oposição, assim, ao "materialismo espiritual" que critico asperamente em O Jardim das Aflições, estabeleço um "espiritualismo material": o "materialismo" de um mundo feito de Espírito, transparência, inteligibilidade.

Recorro em seguida a um outro fundamento gnoseológico: a teoria da autoconsciência. Conforme demonstrei em O Jardim das Aflições, a autoconsciência nem é mera introjeção de papéis sociais, como pretendem certas correntes antropológicas, nem é um atributo substancialmente associado de uma vez para sempre à condição biológica humana: é uma possibilidade lógica, ou, se quiserem, uma potência no sentido aristotélico, que passa ao ato no instante em que o ser humano admite o princípio da responsabilidade, ou autoria de seus atos, no sentido de admitir que este seu corpo de agora é "o mesmo" que instantes atrás fez tal ou qual coisa. Dito de outro modo, o princípio de responsabilidade é ao mesmo tempo cognitivo e moral. Ele é o fundamento da autoconsciência individual, assim como é o fundamento das morais históricas: nele se reencontram a descrição fenomenológica da consciência individual e a unidade subjacente das morais históricas. Dessas constatações extraio uma série de sugestões metodológicas para o estudo de questões morais concretas, seja do ponto de vista ético-normativo, seja do ponto de vista histórico, sociológico, etc. Eis aí, barbaramente reduzido, o que expliquei no meu curso de Ética. Meu amigo Bruno Tolentino censura-me por deixar todas essas idéias em estado de rascunho — ou, pior ainda, de gravação em fita — em vez de lhes dar uma divulgação decente em forma de livro. Mas a filosofia, quando o é de verdade, não reside nos textos, nas "obras" filosóficas, e sim no filosofema, no conteúdo essencial de uma conexão de pensamentos, intuições e outros atos cognitivos que forma o mundo e o estilo próprios de um determinado filósofo. É isto o que nos permite distinguir entre "as obras de Aristóteles" e "a filosofia de Aristóteles". (Esta distinção é impossível em literatura: em que consiste a poesia de Shakespeare senão nos textos de Shakespeare?) Há filósofos sem obra — a começar do pai de todos nós: Sócrates —; há filósofos cujo pensamento nos chega por obras escritas por testemunhas ou por ajudantes (não conheceríamos o pensamento de Husserl sem a redação de Fink). Mas não há filósofo sem filosofema — e aquele que publique dezenas ou centenas de livros eruditíssimos, com opiniões de estilo filosófico sobre assuntos filosóficos, não se torna por isto um filósofo17. A filosofia de um filósofo não está em seus textos, mas num certo modo de ver as coisas, que é transportável para fora deles e participável por quem quer que, saltando sobre os textos, faça seu esse modo de ver, integrando-o no seu próprio. Podese, assim, ser aristotélico ou hegeliano de pleno direito sem sacrifício da originalidade e independentemente da grandeza ou pequenez do talento próprio, mas não se pode ser shakespeareano ou cervantino senão por imitação inferior. Como é assombroso o mistério das vocações, que uma pseudociência animalesca reduz a uma questão de pontos num teste de QI...18 Quando decidi devotar minha vida ao serviço desta dama, formosa entre todas, que os antigos denominaram Afeição à Sabedoria, e que não é no fundo senão a figura jovem e incompleta daquela que no seu esplendor maduro será a Sabedoria mesma; nesse instante, digo, tomei consciência de que deveria, por muitos e longos anos, refrear e

sacrificar meu fortíssimo impetus scribendi em favor do impetus cognoscendi(e mesmo do impetus agendi, de vez que a filosofia inclui como componente essencial a vocação pedagógica). Mais ainda: dialética e dialógica por essência e não por acidente, a Filosofia move-se incessantemente em direção à Sabedoria, e por isto só pode viver bem em estado de rascunho19. Não é coincidência que a mais impressionante das obras filosóficas, a de Aristóteles, não nos tenha chegado senão nesse estado de incompletude e provisoriedade20. O texto filosófico jamais terá a perfeição formal e diamantina do poema, pois a perfeição que a filosofia busca é por excelência interior e muda, impressiva, por assim dizer, e não expressivacomo a beleza artística.

25 de janeiro de 1995.

NOTAS Rascunho para uso em classe no Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades (Instituto de Artes Liberais). Proibida a reprodução por quaisquer meios. Voltar Engana-se redondamente quem imagine que o sentimento, ao contrário das faculdades representativas, nos dá o objeto mesmo na sua imediatidade. O sentimento é apenas a reação parcial e momentânea do nosso ser a um aspecto determinado do objeto que a nós se apresenta no momento. Por exemplo, a mesma mulher que neste momento me desperta atração e deleite sensual pode, num outro momento, despertar-me saudade, melancolia, raiva, ciúme, etc. Cada um desses sentimentos é apenas um signo, dentro de mim, da totalidade vivente que ela é fora e independente de mim, e que reconheço instantaneamente como tal para além e por cima dos sentimentos transitórios que me desperte. O "sentimento" é também representação, e não apresentação. A expressão "conhecível como todo, impensável como todo" pode portanto ser substituída, sem erro, por "conhecível como todo, insensível como todo" (ou "somente sensível por partes e aspectos"). Voltar V. "Kant e o primado do problema crítico". Voltar O tipo do "matemático arrependido" que cai no irracionalismo acreditando aproximar-se de Deus quando se aproxima apenas de um outro lado de si mesmo se tornaria dominante, no século XX, entre os cientistas com preocupações filosóficas. O livro de Ernesto Sábato, Homens e Engrenagens,é a súmula da experiência interior dessas pessoas, buscadoras sinceras, sem dúvida, mas que não sabem que Deus não faz distinção de talentos individuais e que a contemplação amorosa está acima da razão e da irrazão, do pensar e do sentir, etc. Voltar

Distinção importantíssima: a certeza lógica, mesmo absoluta e imediatamente fundada no princípio de identidade, só nos dá a conhecer a necessidade — teórica — de algo; mas não nos dá esse algo como objeto de experiência. Portanto, quando digo que o pensar só conhece o possível, a expressão "possível" tem aqui um sentido mais amplo do que na Teoria dos Quatro Discursos, e designa, em conjunto, os quatro graus ali considerados. Conhecer pelo pensamento é conhecer (no sentido daquela teoria) a possibilidade, a verossimilhança, a probabilidade ou a necessidade de algo, e não esse algo como tal. Esta distinção aplica-se a todo o mental — imaginação, sentimento, conjetura, etc. Todas estas funções são "discursivas" exatamente como o raciocínio. Quem não capte este ponto arriscará confundir minha concepção com a de Bergson, por exemplo, ou com a de Husserl. Voltar Sobre o conhecimento imediato da essência na presença, v. meu trabalho horrivelmente escrito mas, creio eu, correto nas idéias, Universalidade e Abstração (São Paulo, Speculum, 1983). Voltar A poesia de Tolentino — quer ele tenha premeditado isto ou não — é um esforço heróico e vitorioso para descer do pseudo-céu das essências "rumo às coisas mesmas", entre as quais e só entre as quais se encontra o caminho do verdadeiro céu. Ela atende, tanto quanto meu trabalho, ao apelo do último Husserl, e restaura, numa cultura fatigada de platonismos, o valor do mundo real, do mundo da Encarnação, cuja recusa tenaz, ainda que inspirada em motivos supostamente edificantes, é a essência mesma do diabolismo. Sua Katharina aceita o Cristo na mesma medida em que vai admitindo a realidade patente de impulsos e desejos banais, na medida em que contempla amorosamente objetos e seres do ambiente em torno, um relógio, um lagarto, uma folha, criaturas desconhecidas no reino das essências, mas, com pleno direito, habitantes do Lebenswelt; e quanto mais se detém na contemplação e aceitação deste mundo, mais se eleva em direção ao eterno.Voltar Meu conceito dessas faculdades — inspirado em Dante Alighieri, no simbolismo das Artes Liberais e na psicologia espiritual de Ibn 'Arabi — está no livro Da Tripla Intuição (apostila do IAL). Voltar Apostila do Instituto de Artes Liberais. Trabalho inédito em livro. Voltar Rio, Astroscientia Editora, 1993. Voltar Rio, IAL & Stella Caymmi, 2ª ed., 1994. Voltar São Paulo, Nova Stella, 1985. Voltar O Crime da Madre Agnes ou A Confusão entre Espiritualidade e Psiquismo(São Paulo, Speculum, 1983); Símbolos e Mitos no Filme "O Silêncio dos Inocentes" (Rio, Stella Caymmi, 1993); Os Gêneros Literários. Seus Fundamentos Metafísicos (Rio, Stella Caymmi, 1994) e A Vingança de Liberty Valance. John Ford e a "Morte do Western" (em preparação). Voltar

O Jardim das Aflições. Epicuro e a Revolução Gnóstica. A sair ainda em 1995 por Stella Caymmi Editora. Voltar O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais Brasileiras, a sair proximamente por Stella Caymmi Editora. Reúne artigos publicados no Jornal do Brasil, naTribuna da Imprensa e na revista Imprensa, bem como alguns inéditos.Voltar Meu trabalho incluiu também algumas investigações no campo da Religião Comparada (O Profeta da Paz. Estudos sobre a Interpretação Simbólica da Vida do Profeta Mohammed/Maomé, obra inédita, premiada na Arábia Saudita), e do simbolismo astrológico e alquímico (Astrologia e Religião, São Paulo, Nova Stella, 1986; Alquimia Natural e Espiritual, apostila), bem como no da psicologia (O Conceito de Psique, apostila). Esses trabalhos não são marginais em relação ao meu esforço filosófico, mas representam uma etapa de preparação e treino. Voltar O abuso do termo tornou-se, no Brasil, regra geral. Voltar Os norte-americanos têm-nos enviado lixo mental em tais quantidades — o feminismo, a filosofia da História de Paul Kennedy, o relativismo absoluto de Richard Rorty, a campanha pela liberalização da cocaína e concomitante repressão ao fumo, a negritude anti-semita, o anti-anti-semitismo paranóico, a defesa da eutanásia, a Curva de Bell, etc. etc. —, que julgo da máxima urgência uma ruptura de relações culturais com os EUA até que o grande irmão do Norte recupere o juízo. Voltar A vida presente como rascunho do ser é, aliás, um dos temas constantes da obra do próprio Tolentino. Voltar Em contrapartida, sempre me pareceu uma singular inconsistência que o filósofo do fluxo vital, que o inimigo declarado de toda clausura racional, Henri Bergson, poucos anos antes de sua morte declarasse oficialmente encerrado o seu labor filosófico, dizendo que seu pensamento estava expresso de maneira acabada e definitiva nas suas obras publicadas. Voltar

O abandono Aula do curso Introdução à de setembro de 1987. Reproduzida sem alterações.

dos Vida

ideais Intelectual,

Quando as palavras saem da moda, as coisas que elas designam ficam boiando no abismo dos mistérios sem nome; e como tudo o que é misterioso e inexprimível oprime e atemoriza o coração humano com uma sensação de cerceamento e impotência, é natural que a atenção acabe por se desviar desses tópicos nebulosos e constrangedores. Pois o que desaparece do vocabulário logo acaba por desaparecer da consciência: o que

não tem nome não é pensável, o que não é pensável não existe — tal é a metafísica dos avestruzes. Só que a coisa desprovida do direito à existência continua a existir numa espécie de extramundo, inominada e inominável, tanto mais ativa quanto mais secreta, tanto mais temível quanto mais envolta nas pompas tenebrosas do nada. A restrição do vocabulário povoa o mundo de temores e presságios. Desprovido da capacidade de nomear, eis o homem devolvido a todos os terrores que ele imaginava primitivos, mas que são uma pura criação da mais avançada e requintada decadência: o barbarismo artificial. Se a coisa desprovida de nome é, por acaso, alguma realidade espiritual elevada, um valor excelso ou aspiração suprema da alma — uma dessas coisas essenciais que se pode expulsar da consciência, mas não da existência —, é natural que sua reencarnação obscura assuma, mais ainda, as feições do terrível, do informe, do monstruoso. É algo assim que acontece com aquela coisa designada pela palavra "ideal" — uma palavra obviamente fora de moda, cujo significado perde realidade com a rapidez com que perde sangue um decapitado. Denomina-se "ideal" a síntese em que se fundem, numa só forma e numa só energia, a idéia do sentido da vida e a do preço de sua realização: diz-se que um homem tem um ideal quando ele sabe em qual direção tem de ir para tornar-se aquilo que almeja, e quando está firmemente decidido a ir nessa direção. Complexo de impulso e de esquema, o ideal atrai como um imã e coordena como um eixo. Pela unidade de sua forma, convoca o sinergismo da vontade: a concorrência de todas as forças para a consecução da meta. Pelo seu caráter de síntese projetada para o futuro, ergue-se como um tribunal soberano e neutro para a arbitragem de todos os conflitos do presente, que ali se resolvem e superam de modo que mesmo as tendências mais antagônicas da alma possam convergir num só ímpeto ascensional. O ideal é, por isto, condição indispensável para a coesão da personalidade, que sem ele se dispersa em aspirações fortuitas e esforços estéreis. Miragem e emblema, sua visão nos dinamiza, nos eleva e enobrece, e é sempre a lembrança do seu apelo que nos reergue após cada erro e cada desengano. O ideal é semente de juventude e revivescência. Tem um poder coordenante voltado para o futuro, um poder curativo voltado sobre o passado. É ainda pela força do ideal que o homem transcende o sono entorpecido da subjetividade intra-orgânica, das falsas idéias e aspirações que não são senão a secreção passiva da fisiologia, para despertar a um mundo de realidades objetivas que a inteligência discerne e que a consciência moral obriga a reconhecer; é assim que a alma se liberta do poço escuro da individualidade estanque, para elevar-se ao mundo maior da sociedade, da cultura, da vida moral, ao sentimento do universo e ao desejo de Deus. Sem a síntese, que o ideal opera, entre o impulso de universalidade e os interesses do organismo psicofísico, não haveria meio de fazer um homem sacrificar-se, impor-se

restrições, contrariar desejos e reprimir temores, em prol de algum valor moral, social ou religioso, para alcançar sua plena estatura humana e tornar-se, talvez, maior do que ele mesmo. Mas o desejo, que move a alma, não pode ser despertado por uma simples idéia abstrata, por verdadeira que seja; ele necessita de imagens plásticas, sensíveis, que lhe dêem como que uma presença antecipada do seu objetivo. Também não se move, exceto no homem grosseiro, ao simples apelo de uma imagem atrativa; mas aguarda que a inteligência examine e aprove o objeto como desejável e bom. Não basta que a meta seja verdadeira; é preciso que seja bela. Mas não basta que seja bela; é preciso que seja verdadeira e justa. É a síntese desta tripla exigência, intelectual, estética e moral, que se denomina "ideal". Ele concilia, no homem, o desejo de auto-afirmação, de autodefesa, de permanência, com o impulso de crescimento, de doação e de superação de si. Ele dá uma significação universal às tendências individuais, e põe estas a serviço daquela. Spencer falava dos sentimentos "ego-altruístas", intermediários entre o egoísmo e o altruísmo; neles, uma satisfação dada a si mesmo é, indireta porém voluntariamente, ocasião de benefício para os outros. O ideal extrai grande parte do seu dinamismo dessa pulsação ego-altruísta, em que a felicidade de um homem se identifica com o bem dos demais1. O ideal é como o fogo em que se transfunde, no forno alquímico da alma, o egoísmo em altruísmo, a paixão reflexa em ação refletida. Mas não é só por isto que o ideal dá força, equilíbrio e consistência à personalidade. A escola junguiana tinha razão ao ver no ideal do eu uma instância superior, capaz de absorver e neutralizar os conflitos entre o id e o superego, entre as pulsões primárias do organismo psicofísico e o esquema de proibições e deveres introjetado inconscientemente pelo hábito imposto, automatizado depois numa constelação de rotinas impeditivas. De fato, quanto mais elevado, nítido, intenso e querido é um ideal, mais o homem é capaz de, em favor dele ele, se impor sacrifícios inteligentemente, contornando as exigências do id; porém, na mesma medida, o ideal o capacita a contrariar, se preciso, as imposições de uma moralidade meramente exterior e convencional, a reformar e elevar seu padrão de valores, a superar a obediência servil a exigências repressivas irracionais. Destituído do ideal, no entanto, o homem abandonase à luta cega entre a paixão egoísta e o temor da represália do superego2. Embora nascida na nossa consciência subjetiva, a imagem de perfeição expressa no ideal aponta para uma qualidade objetiva: pelo ideal, as qualidades latentes do homem tendem a orientar-se para fora e transformar-se em atos e obras no mundo. O ideal é o caminho pelo qual as aspirações individuais de felicidade distribuem-se nos sulcos já abertos da realidade exterior, saem da redoma do sonho e ganham um corpo no cenário maior dos fatos e das coisas. Sem um ideal definido, todas as melhores aspirações não passam de sonhos, porque não há um dever moral imanente a exigir que se amoldem à realidade, que se limitem em extensão para realizar-se em intensidade. Só o homem idealista é realista; os demais são sonhadores ou cínicos. Não tendo uma medida do que as coisas deveriam ser, vêem-nas melhores ou piores do que são. Ademais, para que as qualidades latentes possam se manifestar, é necessário um esforço constante numa direção definida; sem ideal, o esforço gasta-se em gestos reativos,

momentâneos e sem proveito. O ideal é a bússola que assinala para a alma uma direção firme e constante por entre as incertezas. Por isto, o sentimento de insatisfação, de vazio e de tédio que experimentamos quando traímos ou esquecemos o ideal é o sinal de alarma que nos permite corrigir o rumo e reencontrar o sentido da vida. Se o sentido é aquilo a que se orienta a nossa vida e a que ela tende com todas as suas forças, então, deve estar colocado num outro tempo ou num outro espaço que não os do presente e do imediato num futuro ou num plano mais abrangente de realidade. O ideal é a presença deste futuro no presente, deste outro espaço no aqui e no agora. Uma presença incompleta e, por isto, dinâmica e tensional. Por ela, medimos nossa aproximação ou afastamento do sentido da vida. O ideal é a medida efetiva do tempo existencial, o padrão de intensidade e profundidade da significação dos momentos. Sem ideal, os instantes e os lugares se homogeneizam na massa do indiferente, após a breve excitação casual que os torna interessantes. O ideal é a coluna mestra e a força da personalidade. Traí-lo ou esquecê-lo é entregar-se, de ossos quebrados, nas mãos da contingência e do absurdo. Quando, porém, a traição é demasiado grave, extensa, profunda, o sinal de alarma já não soa mais: o clamor da consciência moral imanente tornou-se tão penoso que a alma o reprime, lacrando-o sob a tampa do subconsciente, ao mesmo tempo em que procura inventar toda sorte de razões, de pretextos factícios e ocasionais, para justificar o malestar e o tédio, ou encontra um bode expiatório sobre o qual despejar seu rancor de si mesma. A repressão da consciência moral, como demonstrou Igor Caruso3, está na base de muitos distúrbios neuróticos. A neurose apóia-se num complexo jogo de racionalizações e compensações que falseia completamente a posição existencial do indivíduo, como uma bússola viciada. E, já que a consciência, por definição, é coesão — com +scientia = reunião da ciência4 —, e uma lei constitutiva impede que suas partes funcionem separadas, logo o escotoma defensivo se alastra para outros campos e acaba por obliterar toda a visão, mesmo em áreas que nada têm a ver diretamente com o conflito que lhe deu origem. O empenho de conservar então um mínimo indispensável de realismo, necessário à vida social e prática, é obstaculizado pelo esforço de não enxergar uma determinada área, circunscrita como tabu; o curto-circuito daí resultante produz considerável perda de energias, enfraquecendo a capacidade intelectual e decisória. A vítima torna-se cada vez mais inepta para o ato de humildade que lhe devolveria o ideal perdido e o sentido da vida ( ser humilde não é outra coisa senão aceitar a realidade; como diz Schuon, "ser objetivo é morrer um pouco" ). Na psicologia e psicoterapia de Paul Diel5, a divindade é a imagem ideal que orienta todos os esforços para a auto-realização das qualidades superiores do homem. Pouco importa que, teologicamente, ela seja muito mais do que isto, pois, para o indivíduo, a divindade real e objetiva só é acessível através da sua imagem pessoal de Deus, e é justamente esta é a base da qual tem de partir todo ensino religioso que não seja mera lavagem cerebral. Psicologicamente, porém, o interesse maior não reside na veracidade teológica da imagem, porém na sua ação catalizadora sobre a massa das forças psíquicas. Encarado psicologicamente ou teologicamente, o ideal de perfeição humana

sugerida pela imagem do divino é a meta obrigatória e universal da existência humana sobre a terra, e a perda deste ideal é, segundo Diel, a causa das neuroses. O ideal da perfeição pode ser corrompido ou desviado, basicamente, de duas maneiras. Diel chama-as exaltação imaginativa ebanalização. São processos opostos, sucessivos e complementares. A exaltação imaginativa é um estado em que a mente, embevecida com o seu ideal, se identifica mais ou menos inconscientemente com ele e atribui a si as perfeições que a ele pertencem, como se já as tivesse realizado. Para Diel, o símbolo por excelência da exaltação imaginativa é o vôo de Ícaro. As asas de cera representam a força da imaginação, que só pode elevar aos ares um corpo imaginário. O exaltado toma o potencial por atual, imaginando possuir as perfeições a que aspira. Por isto mesmo, sua alma experimenta, como num choque de retorno, um sentimento de estranheza e de impotência perante o mundo, que não cede, como ele esperava, aos seus encantos ou poderes. Acuado pelas exigências da realidade, ele exacerba ainda mais sua adoração de si mesmo diante de um mundo que ele julga vil, mesquinho e incompreensivo, quando na verdade é ele mesmo quem não compreende o mundo e, por não compreendê-lo, está impotente para agir nele. É a síndrome do "jovem incompreendido", que, pela simples razão de ter aspirações elevadas — ou que lhe pareçam elevadas — já se sente ipso facto superior ao seu ambiente e, portanto, limitado ou coagido pela mesquinhez real ou aparente dos pais, da escola, da sociedade, do emprego, etc6. Nem sempre ele declara seu sentimento em voz alta; uma vaga intuição do caráter doentio do seu estado pode envolver este sentimento numa complexa rede de disfarces, atenuações e racionalizações muito difícil de deslindar. Também é certo que seu diagnóstico depreciativo sobre o mundo em torno pode ser, em si mesmo, objetivamente verdadeiro, sendo falso apenas o lugar e a função que ocupa na sua alma, já que a degradação do mundo lhe aparece, por vezes ao menos, como uma espécie de contraprova de suas próprias qualidades excelsas7. Não raro o doente alia-se a outros jovens imbuídos do mesmo sentimento, em busca de apoio e confirmação de suas queixas contra o mundo. A comunidade de sentimentos e a repetição das queixas, criando uma atmosfera de comprovação intersubjetiva, parece dar consistência real ao diagnóstico distorcido e subjetivista que cada um dos membros do grupo faz quanto ao estado do mundo, legitimando seu discurso contra a mediocridade e grosseria das pessoas "de fora". "Estar dentro" do grupo é então sinal de uma espécie de eleição, a prova de uma qualidade excelsa e incomunicável. O sentimento de ter acesso a algo misterioso, profundo, especial, pode exacerbar a exaltação imaginativa ao ponto de provocar uma verdadeira ruptura com a realidade ambiente, incapacitando o indivíduo para o cumprimento dos deveres sociais mais elementares8. Quando a exaltação imaginativa chega a efeitos tão profundos, é que o doente já se encontrava à beira de um colapso intelectual e social, contra o qual provavelmente terá sido advertido pelos pais, por amigos, ou por uma infinidade de sinais diretos e indiretos. Estes sinais, por sua vez, aguçam a sensação de estar afundando no completo isolamento e na impotência; e o pressentimento de abandono, às vezes mesmo de loucura e morte,

contrasta tão dolorosamente com os primeiros vôos de exaltação imaginativa, que o doente é então tentado a buscar às pressas, como tábua de salvação, algum tipo de reintegração forçada no mundo que desprezava9. Como, porém, isto implicaria a humilhação de voltar atrás nas críticas e a renúncia à independência afetada, a mente só consegue a reintegração forçada mediante o artifício de operar uma inversão de valores: ao invés de abandonar somente a atitude de auto-exaltação, passando a uma postura de humildade perante o ideal, ela vai, ao contrário, desidentificar-se do ideal para poder abandoná-lo sem perder o sentimento de sua própria superioridade. Conserva, assim, sua auto-exaltação, mas sob uma forma destituída de conteúdo pretensamente idealístico, e revestida, agora, de uma pose de "realismo" terra-a-terra, e não raro de maquiavelismo, carreirismo profissional, cinismo, materialismo, etc. É a esta atitude que Diel denominabanalização. A inversão banalizante só pode ocorrer mediante uma mutação súbita, longamente preparada no subconsciente. O processo é bem conhecido e foi descrito por Pavlov, muito antes de Diel, no que toca às suas bases neurofisiológicas. O acúmulo de contradições necessário para sustentar uma posição existencial artificiosa e falsa leva à proliferação de tensões contraditórias e produz situações novas, incompreensíveis, que ultrapassam a capacidade de resposta racional e as habilidades de adaptação do organismo. Quebram-se, assim, inúmeras cadeias de reflexos condicionados que constituíam a base subconsciente do comportamento, e o homem se vê num estado de indeslindável confusão. A inversão súbita de valores pode então sobrevir, porque, segundo demonstrou Pavlov, a "inibição prolongada dos reflexos adquiridos suscita angústia intolerável, da qual o sujeito se livra mediante reações opostas às suas condutas habituais. Um cão, por exemplo, se apegará ao funcionário do laboratório, que detestava, e tentará atacar o dono, de quem gostava"10. As tensões provenientes de vários lados, impondo ao cérebro "provas intoleráveis", produz então uma inibição protetora que "desorganiza os reflexos adquiridos, destrói as suas camadas mais recentes e determina, no sujeito, o abandono de suas crenças"11. O conhecimento técnico deste mecanismo permitiu a sua utilização sistemática nos processos de lavagem cerebral e "reforma da opinião", nos campos de prisioneiros da China e da União Soviética12. Porém, o mesmo fenômeno, atenuado ou disfarçado, observa-se disseminado na vida social contemporânea, graças ao abuso das pressões psíquicas da propaganda, da persuasão subliminar, dos exercícios psíquicos, das experiências psudomísticas. Sabe-se hoje que esta mutação pode afetar não somente este ou aquele grupo de crenças e atitudes, mas a personalidade total; o crescimento assombroso da incidência destes fenômenos, nos Estados Unidos, levou alguns psicoterapeutas a falar de uma "epidemia de mutações súbitas de personalidade", que constitui talvez o mais grave capítulo de psicopatologia social conhecido na história do Ocidente13. A facilidade com que este processo se desencadeia, mesmo fora do cenário das seitas pseudomísticas e de toda experimentação de "poderes" psíquicos, pode ser explicada pelo fato de que, "quando o cérebro é submetido a tensões ainda mais fortes, a fase de inibição cerebral pode ser sucedida por uma fase paradoxal. Nesta, estímulos fracos e

antes ineficientes podem causar respostas mais acentuadas do que estímulos mais fortes"14. ISto significa que basta uma fase de acúmulo tensional para que o processo de inversão possa seguir atuando no subconsciente, movido doravante por estímulos insignificantes e ocasionais. Então, "no terceiro estágio da inibição protetora, a fase ultraparadoxal, as respostas e o comportamento positivos começam, de repente, a se transformar em negativos, e os negativos em positivos"15. As mudanças de opinião nesta fase, e as justificativas aparentemente lógicas que o doente oferece a si mesmo e aos outros, não são senão o disfarce exterior de um processo que tem suas raízes numa sobrecarga de estimulação neuronal; são um "vestido de idéias" em torno de motivos reflexos, que permanecem subconscientes. Na banalização, o indivíduo amortece então sua sensibilidade para todas as deficiências, injustiças e feiúras que, no seu tempo de idealismo exaltado, lhe pareciam revoltantes e intoleráveis. É que antes ele via as feiúras somente no mundo exterior e, como não as enxergava em si mesmo, as condenava "desde cima". Agora, ele as admite dentro de si; porém, como são suas e se identifica com elas, ele as defende como sinais de superioridade; não raro afeta uma atitude de soberano desprezo por aqueles nos quais se mantém viva a antiga sensibilidade moral; e, acusando-os de rancorosos, frustrados ou coisa assim, ele se compraz no seu novo estado de "homem ajustado" e — no seu entender — adulto. A banalização consiste neste nivelamento-por-baixo do sentimento moral e estético. Ela permite que o indivíduo adote, como normais e indiferentes, atitudes e opiniões que antes lhe pareciam imorais e desprezíveis. Não raro a mutação apaga blocos inteiros da memória, de modo que o indivíduo, para sustentar com alguma coerência o seu novo padrão de comportamento, chega a negar os fatos mais óbvios e patentes que presenciou. George Orwell, no seu romance 1984, descreve um caso em que, passando por este gênero de mutação, as testemunhas mesmas da inocência de um acusado depõem pela sua condenação. A mutação pode resultar então em total atomização do comportamento e acarretar, com a perda da integridade psíquica, a dissolução dos padrões morais mais elementares, produzindo o cinismo, a amoralidade, o descaramento, aliados, às vezes, a boas doses de autopiedade. Analisando os conceitos de Diel com os critérios de Caruso16, vemos que a neurose do idealista exaltado tem sua origem na soberba, pois o ego, ao identificar-se com a imagem do ideal, atribui a si mesmo, atual e efetivamente, qualidades que só lhe pertencem de modo virtual e por espelhismo. É uma forma de autolatria. Quando os teólogos dizem que a soberba é a raiz de todos os pecados, é isto o que eles têm em vista: o idealista exaltado corrompe o bem na sua própria raiz, corrompe-o na medida em que tem por ele um amor egoísta. Sto. Agostinho diz que "todos os vícios se apegam ao mal, para que se realize; só a soberba se apega ao bem, para que pereça". A passagem da exaltação à banalização perfaz então a mudança, acarretando uma inversão total de valores, instalando o mal no lugar do bem. Na exaltação, os valores reais ainda são afirmados, apenas como uma localização falseada; na banalização, a negação dos valores é afirmada ela mesma como valor. A banalização é o momento mais grave do processo corruptivo. É claro que a alma doente só consegue operar esta transformação

na medida em que não conscientiza todos os passos do processo e todas as implicações de seus atos e decisões, mas se enreda numa trama de racionalizações e sofismas, destinada a erguer ante seus próprios olhos um simulacro verossímil de inocência, no instante mesmo em que, traindo a vocação humana, trai o sentido da vida17. É interessante observar que, quando o doente vai da exaltação à banalização, ele passa a representar perante si mesmo o papel de homem realista e "maduro", revestida de pose de segurança afetada, destinada a reforçá-lo no novo papel. Daí que ele seja o último a perceber que a sua aparente superação da revolta juvenil vem acompanhada, não de um acréscimo de equilíbrio e força, porém de um decréscimo das capacidades intelectuais e de uma degenerescência nervosa similar à que se vê na involução senil. De fato, uma das conquistas que assinalam uma evolução objetiva do homem na entrada da adolescência é a passagem dos sentimentos puramente egoístas e orgânicos às tendências ideais ou suprapessoais: nesta fase, "o indivíduo experimenta um sentimento de imperfeição, de insuficiência, trata de sair de si, de dar-se"18. A evolução da vida afetiva "segue a ordem que vai do simples ao complexo: necessidades, inclinações egoístas, inclinações ego-altruístas, inclinações altruístas, inclinações ideais"19. Porém, em certas enfermidades da evolução lenta, como a paralisia geral dos sifilíticos e também da degenerescência senil, observa-se um movimento inverso. Escreve Ribot : "A lei de dissolução consiste numa regressão contínua que desce do superior ao inferior, do complexo ao simples"20. "Em alguns enfermos — assinala Challaye — pode-se comprovar a desaparição momentânea das tendências ideais, altruístas, e mesmo ego-altruístas. Isto é comprovado sobretudo na maioria dos anciãos ( fora do caso, é claro, dos seres superiores, nos quais esta degenerescência sentimental pode não se produzir ). Sua vida afetiva se restringe cada vez mais. Os sentimentos impessoais são os primeiros que desaparecem. Logo em seguida, as diversas formas da simpatia; e as necessidades ( econômicas, orgânicas, etc. ) são as que subsistem por mais tempo. O ancião começa a preocupar-se menos com a ciência e a arte... torna-se menos generoso... as emoções que persistem maior tempo estão ligadas à conservação pessoal, à cólera e ao medo. Enfim, o ancião pode já não ter nada mais que necessidades ; ele recai no estado do menino pequeno"21. No homem banalizado, a nova sensibilidade que ele desenvolve pelo seu interesse material imediato, aliada ao temor da perda e ao crescente desinteresse pelos ideais, atestam, fora de toda dúvida, que aquilo que lhe parece ou que ele tenta fazer parecer uma superação é na verdade uma queda, uma degenerescência que se estende, até mesmo, ao domínio corporal. Do ponto de vista causal, entram em jogo, no processo de banalização, fatores endógenos e exógenos. Os endógenos — aqueles que já estão dados na alma do indivíduo no instante em que o processo se instala — são os fatores clássicos levados em conta pela análise psicológica corrente: tendências hereditárias, defeitos constitucionais, traumas de infância, falhas da educação, etc. De um lado, estes fatores

não exercem senão um papel predisponente, que em nada pesa se não é valorizado pela interferência dos fatores exógenos; de outro lado, eles são bem conhecidos na literatura psicológica. Os fatores exógenos consistem, essencialmente, nos estímulos com que a sociedade em torno favorece ou desfavorece a manutenção dos ideais e a realização humana. Uma sociedade voltada para a busca de um ideal religioso, moral ou cultural universal, e dotada dos instrumentos educacionais capazes de viabilizar a realização humana de seus membros, produz, certamente, uma esplêndida floração de individualidades vigorosas e ricas que, por sua vez, contribuem para o progresso e o brilho da sociedade. A história atesta períodos assim brilhantes, como por exemplo, a Grécia de Péricles, a renascença escolástica dos séculos XII e XIII, a Idade de Ouro espanhola, a era elisabetana na Inglaterra, o Califado do Ocidente sob Harum-al-Raschid, e muitos outros. Em escala menor, pode haver curtos períodos de vigor moral e cultural mesmo em países pobres e isolados. O que quer que pensemos do conteúdo das idéias dominantes nestes períodos, o que importa é que neles o desenvolvimento da personalidade é realmente favorecido. Nem sempre esses períodos coincidem com épocas de riqueza e progresso material; o que os caracteriza não é a riqueza, mas o fato de que neles as tarefas econômicas são inseridas e transfiguradas no quadro maior dos fins e valores éticos ou religiosos que orientam a vida social como um todo. Quando, ao contrário, a sociedade perde de vista os valores e princípios universais e se emaranha na busca obsessiva de soluções para problemas econômicos imediatos, estes parecem não somente multiplicar-se no campo dos fatos, mas invadir as almas dos indivíduos, ocupando todo o espaço que poderia ser dedicado aos valores ideais. Automaticamente, os indivíduos refluem as suas energias para a busca de interesses que são conflitantes com os de outros indivíduos e grupos — com os quais somente os valores ideais poderiam estabelecer uma base de colaboração — e a sociedade se dispersa numa atomização que pode beirar a anarquia, a guerra de todos contra todos, a deslealdade generalizada. É evidente que, neste caso, os instrumentos para a realização da vocação humana simplesmente desaparecem do cenário social, com o que justamente as pessoas de maior sensibilidade ética, não encontrando vias de realização, passam a constituir uma horda de fracassados e desajustados. É nessa horda que os falsos ideais, criados de improviso para atender a interesses de grupos ou organizações, encontram seus mais fervorosos recrutas, oferecendo-lhes uma miragem de valores e uma falsa promessa de ajustamento social e de participação. A situação torna-se ainda mais grave em Estados totalitários ou pré-totalitários, quando a mobilização de massas inteiras da população para colaborar na "solução" de problemas econômicos recorre ao expediente de tentar sintetizar, em proveito dos fins do Estado ou das forças políticas que o disputam, as duas correntes de força tendentes à exaltação imaginativa e à banalização. As tendências idealísticas são canalizadas em movimentos de massa — seja de caráter abertamente político, seja pseudomístico ou pseudocultural —, ao mesmo tempo que as promessas de sucesso na vida social e

profissional postas em circulação pelos planejadores da operação garantem um eficaz retorno das tendências de banalização em proveito dos mesmos objetivos. Isto se observou não somente nos Estados descaradamente totalitários, como a URSS e a Alemanha nazista, mas também em todo o mundo Ocidental. As ligações, hoje em dia patentes, entre certas seitas pseudomísticas e organizações multinacionais mostra que a sociedade moderna tem um de seus principais esteios numa complexa máquina de "reciclagem" do idealismo juvenil, que esta máquina primeiro perverte pelo incentivo à exaltação ( mediante lisonjas às aspirações artísticas, políticas e espirituais mais descabidas ) e depois reverte no sentido de um enquadramento social banalizado. O caso mais eloquente é o do jovem filho de banqueiro que abandona a mediocridade do materialismo familiar para ingressar no "ensinamento espiritual" de Rajneesh, e depois é reenquadrado "por baixo" ao ser mobilizado para trabalhar na gigantesca empresa de limpeza de sedes de bancos, de propriedade do mesmo Rajneesh. O número destes mecanismos circulares em operação na nossa sociedade é muito elevado. Eles operam de maneira ubíqua e sorrateira, primeiro excitando, lisonjeando, pervertendo, depois desviando, reciclando e reaproveitando para seus próprios fins todos os ideais juvenis, mesmo os que lhes são mais hostis em aparência. É evidente que, nestas circunstâncias, um simulacro de auto-realização tende a oferecer uma falsa alternativa de solução para o conflito entre as tendências de exaltação e banalização. A alma, colocada sob a pressão esmagadora e multilateral das forças que, pela lisonja ou pela acusação, pelas promessas ou ameaças, a comprimem e a dilatam, ora para a exaltação imaginativa, ora para o ajustamento banalizado, pode agarrar-se a este simulacro, com toda a fúria e o desespero de um náufrago. Numa sociedade empobrecida, fortemente empenhada em reduzir à proletarização a totalidade dos seus membros e na qual, ademais, todos os instrumentos de defesa espiritual e religiosa foram substituídos pelas multinacionais da pseudomística e todos os instrumentos de defesa cultural pelo vozerio onipresente e obsedante das comunicações de massa, nesta sociedade, o drama acima descrito atinge um máximo de intensidade que deixa entrever nada menos que um desenlace trágico, com a desumanização brutal da população e a redução da vida social a um jogo cego de interesses mesquinhos em disputa, ocultamente orquestrado e dirigido, desde o topo, por um sinistro grupo de planejadores sociais. Por todos os meios, esta sociedade espremerá como entre os dois dentes de um alicate todos os talentos e ideais nascentes, até esmagá-los e subjugá-los à bestialidade dominante. No entanto, apesar das pressões maciças e de todos os atrativos corruptores, a inteligência humana, por sua natureza mesma, continua essencialmente livre e capaz de objetividade e universalidade. E se é fato que "chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente, pelo centro de sua existência, ao Senhor de toda Verdade"22, não é menos verdade que está somente nas mãos de cada qual dizer a este mundo sedutor e ameaçador: Latrare potest, mordere non potest, nisi volentem: "Podes latir, mas não podes morder, a não ser que eu

o deseje". Mesmo as pressões mais formidáveis que o universo concentracionário impõe à alma humana, na mais temível das tiranias já conhecidas, não eximem o homem de sua responsabilidade individual. Todos aqueles em quem ainda reste um grão de consciência das metas reais e superiores da existência humana têm o dever imediato e indeclinável de estudar, conhecer e desmascarar os mecanismos do processo corruptor aqui descrito, para escapar aos falsos conflitos em que ele nos joga e às falsas alternativas que ele nos oferece.

NOTAS F. Challaye, La Evolución, la Espiritualización y la Socialización de las Tendencias, em G. Dumas, Nuevo Tratado de Psicología, trad. Alfredo D. Calcagno, Buenos Aires, Kapelusz, 1956, tomo VI. Cap. III, p. 76. — Voltar Sobre a importância psicopedagógica do ideal, v. L. Riboulet, Rumo à Cultura, trad. Maurice Teisseire e Antonio Fraga, Porto Alegre, Globo, 2a. ed., 1960, Cap. I. Voltar Igor A. Caruso, Análisis Psíquico y Sintesis Existencial, trad. Pedro Meseguer, S.J., Barcelona, Herder, 1954, Cap. II. Voltar Cf. Maurice Pradines, Traité de Psychologie Générale, 3e. éd., Paris, P.U.F., 1948, t.I, I-1. Voltar Paul Diel, La Divinité. Étude Psychanalytique, Paris, P.U.F., 1950, e sobretudo Le Symbolisme dans la Mythologie Grecque, Paris, Payot, 1966.Voltar Não é preciso dizer que esse sentimento é fartamente explorado pelos aproveitadores de toda sorte: o desejo de aprovação torna o jovem particularmente vulnerável à lisonja, e a adulação hipócrita da revolta juvenil é hoje um dos pilares da política e do comércio. Voltar É interessante comparar isto com o tema da "revolta degradada contra um mundo degradado", assinalado por Lukács e Goldmann no romance do século XIX, onde aparece toda uma galeria de jovens exaltados, como Raskolnikoff ( Crime e Castigo ), Julien Sorel ( O Vermelho e o Negro ), Lucien de Rubembré ( Ilusões Perdidas ). V., a respeito, Lucien Goldmann,Pour une Sociologie du Roman, Paris, Gallimard, 1964. Voltar Muito do atrativo da escola Gurdjieff, neste sentido, reside no ambiente de "secretude quase beatífica" em que se envolvem os ensinamentos do mestre, como bem assinalou Whitall N. Perry ( Gurdjieff in the Light of Tradition, Bedfont, Perennial Books, 1978 ). As escolas gurdjieffianas e afins têm toda uma requintada tecnologia para esta finalidade. Voltar

Do mesmo modo, várias seitas pseudomísticas, como veremos adiante, têm meios de canalizar em proveito próprio estes impulsos de rejeição do idealismo. Voltar V. Olivier Reboul, A Doutrinação, trad. rev. Heitor Ferreira da Costa, São Paulo, Nacional, 1980, p.88. Voltar William Sargant, apud Reboul, loc. cit.. Voltar Id. ibid. Voltar V. Flo Conway and Jim Siegelman, Snapping — America's Epidemic of Sudden Personality Changes, New York, Delta Book, 1979, principalmente caps. 1, 9, 10, 11 e 12. Voltar William Sargant, A Possessão da Mente. Uma Fisiologia da Possessão, do Misticismo e da Cura pela Fé, trad. Klaus Scheel, Rio, Imago, 1975, p. 25.Voltar Id. ibid. Voltar Caruso, loc. cit. Voltar Uso a expressão "sentido da vida" não num sentido vago e poético, mas na acepção rigorosa que lhe dá Viktor Frankl em The Will to Meaning, New York, New American Library, 1970. Voltar Challaye, op. cit., p. 77. Voltar Théodule Ribot, Psychologie des Sentiments, cit. em Challaye, op. cit., p. 78.Voltar Ribot, loc. cit. Voltar Challaye, loc. cit. Voltar J.c., "Quelques remarques sur l'oeuvre de René Guénon", em Études Traditionnelles, 52e. Année, 1951, ns. 293-294-295, p. 307. Voltar

Pensamento e atualidade de PRIMEIRA Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro

Augusto

Aristóteles AULA

de: Madeira Madeira

1a parte

Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não só nos textos de Aristóteles como nos dos autores de estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar II. O das a Aristóteles.

esquema-padrão introduções

Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo. Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem filológica que dá a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de dois mil anos: 1) Obras e doutrinas lógicas. 2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia, Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como uma sua parte ou extensão. 3) Tratado de Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e Filosofia Primeira. 4) Ética e Política. 5) Poética e Retórica. Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por Andrônico de Rodes. Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só para todas as reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia aristotélica. Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo, 2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se tornar verdades inabaláveis.

A atividade individual.

filosofia, consciência

da

À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não tem valor nenhum. Se há alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem, pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor. Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta também é uma elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos crentes. Subentende-se que o dogma — católico, judeu, mussulmano etc. — é entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma interpretação consensual do sentido das Escrituras. Sócrates da ante o consenso social

e

o consciência

protesto individual

Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais, admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima expressão da cultura do tempo — aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam ingressar na carreira política. A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo público, não

participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro — este é Sócrates. Na juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não só questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase famosa "Só sei que nada sei" é irônico — significa que, se ele nada sabe, os outros sabem menos ainda. Duas de às nossas crenças.

dar

maneiras coerência

A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas, também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa autoimagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças. A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída.. De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia, um peixeelétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer, intrinsecamente absurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma desordem teorética. Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem já se submeteu a algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa vontade no sentido de dar um

simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-engano coletivo é mais eficiente do que o individual. Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos excomunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados, giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma. É justamente face a esse consenso coletivo — que pode ser político, religioso, ideológico, moral etc. — que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada por Sócrates. Este movimento inicial do qual nasce a filosofia é repetido de tempos em tempos, onde quer que surja uma nova filosofia vigorosa e digna de atenção. Cada novo filósofo que seja digno do nome se defronta inicialmente com uma perplexidade que nasce da constatação da incoerência do consenso. Ele vivencia esta insegurança de perceber que talvez todos estejam enganados, e ele também junto com todos. Novamente faz a experiência de saber que não sabe, face a um consenso social que finge que sabe. Entende-se aqui que este consenso não abrange literalmente todos os membros da coletividade, mas apenas a intelectualidade, isto é, aqueles que representam publicamente o papel de porta-vozes do consenso. Isto quer dizer que nem sempre há um acordo explícito entre o consenso —- a ideologia reinante —- e a vida social, as leis e instituições, as formas de organização da economia, etc. As épocas em que existe esse acordo são épocas de conservadorismo, de tradicionalismo; inversamente, as épocas de conflito entre o consenso ideológico e a esfera da vida prática são épocas de renovação, ou de revolução. A renovação do consenso , e a luta para mudar a sociedade em nome do novo consenso, fazem parte da história ideológica da sociedade, e, não devem ser confundidos com o movimento da consciência individual que reage ao consenso para buscar a verdade. O consenso, de fato, é menos limitante e escravizador para a consciência individual nas épocas de tradicionalismo do que nas de renovação, porque o

consenso tradicional se apresenta declaradamente como uma força conservadora, fácil de identificar e criticar, ao passo que o consenso renovador ou revolucionário funciona como um Ersatz, um sucedâneo do autêntico pensamento filosófico, oferecendo aos homens, em lugar da vida intelectual, as modas intelectuais que os desviam de todo esforço pessoal. Nossa época é tão canalha que não apenas confunde maliciosamente a busca da verdade com o esforço de renovação social, fazendo da adesão a certas modas políticas aconditio sine qua non da vida intelectual, mas houve até mesmo um sujeito tido como filósofo, Antonio Gramsci, que chegou a propor formalmente a redução de toda vida intelectual à moda intelectual, à produção coletiva da ideologia revolucionária. Cada época da história tem um corpo de crenças que é admitido pela classe letrada, tal como ela aparece na ocasião. Na Idade Média, essa classe é constituída fundamentalmente de clérigos. Hoje em dia, é a chamada comunidade acadêmica, o pessoal das ciências, somado à turma das comunicações: imprensa, TV, movimento editorial. A comunidade tem sempre um corpo de crenças que não é discutido e que serve como padrão de julgamento das novas idéias que surjam. A filosofia aparece no instante em que algum indivíduo percebe, nesse corpo de crenças, uma incoerência profunda e se sente inseguro e na necessidade de reconstruir aquilo em novas bases. Esta é uma atividade perene do espírito humano, não pára nunca. A filosofia só parará quando chegarmos a um corpo de crenças absolutamente certo a respeito de tudo o que existe. Como isto é evidentemente utópico, só Deus podendo realizar algo assim, continuaremos sempre formando novos corpos de crenças, que terão novos pontos de incoerência que necessitarão de um exame filosófico. Isto quer dizer que o movimento filosófico é inicialmente um movimento crítico, o movimento de uma crítica que deverá servir de base a uma reconstrução de novas crenças. Quando um filósofo faz isto com sucesso, os novos parâmetros que ele estabelece duram algum tempo, mas perdendo o seu teor crítico e tendendo a cristalizar-se em pensamento rotineiro, em mera ideologia. Até que, com o crescimento da humanidade, a ampliação do círculo de informações, as crenças começam a entrar novamente em contradição, e surge a necessidade de uma nova filosofia. Isto quer dizer que, embora a filosofia seja uma atividade interminável, ela não é ininterrupta, mas intermitente. A filosofia aparece e desaparece de tempos em tempos. Raridade das autênticas

filosofias

Se procurarmos na História, veremos que o número de filosofias verdadeiramente criadoras é relativamente pequeno. Colocaremos, evidentemente, o aristotelismo entre elas. Podemos considerar que este movimento que vai de Sócrates até Aristóteles, passando por Platão, é como se fosse uma curva única, o desenvolvimento de uma filosofia única, que se fecha, por assim dizer em Aristóteles e consegue durar um certo tempo. Eu colocaria como outros marcos na história do pensamento, depois de Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Leibniz, Schelling e Edmund Husserl, fundador da

fenomenologia. Se fosse necessário resumir toda a história da filosofia em poucos nomes, eu destacaria estes, onde todos os problemas discutidos por todos os demais estão embutidos. Cada um desses teve uma sombra, ou complementar oposto, cujo contraste ajuda a compreendê-los: o trio Sócrates-Platão-Aristóteles tem Agostinho; Tomás tem Duns Scott; Leibniz tem Kant; Schelling tem Hegel e Husserl tem Heidegger. Nos intervalos entre eles entram os estóicos, Descartes, Locke, Wronski, e isto é rigorosamente tudo: o repertório essencial das idéias. O resto é comentário ( descontando, é claro, as idéias que vêm desde fora da filosofia, por exemplo da tradição religiosa, do pensamento político, da ciência, etc. ). Isto quer dizer, também, que a filosofia não surge a qualquer momento. Nas horas em que as crenças coletivas estão funcionando perfeitamente bem e onde as contradições internas que possam existir nelas estão ainda latentes e não chegam a causar perplexidade, — nestas horas a filosofia decai, torna-se, por assim dizer, desnecessária. É o que acontece, por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã, quando o surgimento de um novo tipo de crença, o Cristianismo, bastou para atender às necessidades intelectuais das pessoas durante alguns séculos. Com o tempo, o próprio Cristianismo começa a perceber suas deficiências internas —- sobretudo lacunas e contradições na interpretação das Escrituras —- e começa a tentar completá-las. Daí surge um movimento filosófico dentro do Cristianismo. A e coletivo.

o

filosofia pensamento

Sendo então a filosofia um movimento essencialmente crítico, que nasce da perplexidade, e sendo um movimento que parte de uma consciência individual, poderíamos perguntar: Seria possível uma filosofia coletiva? A resposta é decididamentenão. Porque a filosofia parte da tentativa de unificar a totalidade da experiência humana, e isto só pode ser feito dentro do indivíduo que tem em si, juntas e coesas, todas as dimensões da vida humana e que é capaz de imediatamente confrontar, por exemplo, suas idéias com sua conduta — sua conduta com suas crenças estabelecidas — estas com seus sentimentos — estes com suas sensações corporais etc. etc. Ou seja, o movimento de que parte a filosofia supõe que exista, dentro de você, a possibilidade de unificar perante umaconsciência o conjunto das informações acessíveis naquele momento a um ser humano. Não haveria tempo de fazer isto coletivamente. Embora o diálogo, a troca de idéias, possam ser importantes na filosofia, a título de estímulo, de critério de verificação e de correção, o movimento decisivo se dá sempre no âmbito de um só indivíduo. Um dos motivos disto é que a filosofia é coerenciação, é unificação, e só o indivíduo tem em si uma unidade real, a unidade de um organismo vivente, ao passo que toda coletividade é um aglomerado de parcelas bastante separáveis, e algumas delas incomunicáveis. "Consciência coletiva" é uma força de expressão, e não o nome de um ente real. A tendência a hipostasiar a sociedade, a nação, a classe, etc., fazendo delas entes quase que fisicamente reais, nos torna cegos para a

importância decisiva da consciência individual, e acabamos esperando passivamente que a "consciência coletiva" faça o serviço em nosso lugar. A como e meio social.

filosofia instituição

Aí temos um outro problema. A filosofia não é só o nome de uma prática intelectual como esta que estou descrevendo, mas é também o nome de uma disciplina escolar, acadêmica, que se registra em textos que vão sendo acumulados, formando uma vasta bibliografia, que por sua vez vai necessitando de uma tradição de interpretação e de um conjuntto de esquemas de transmissão daquilo às novas gerações. Isto faz com que a filosofia também se torne, com o tempo, uma atividade coletiva. As formas socialmente consolidadas dessa atividade influem, então, sobre o próprio conteúdo do pensamento filosófico. Por exemplo, numa faculdade de filosofia hoje, você vai ver a elaboração de uma espécie de pensamento coletivo. Penetrar no universo desta filosofia universitária é mais ou menos como penetrar em qualquer outro meio social: partido político, igreja, grupo de psicoterapia. Logo se vê que as pessoas que estão ali dentro têm certos hábitos mentais, certas reações reflexas, modos de falar, cacoetes que marcam aquela comunidade, distinguindo os de dentro e os de fora. Assim também o meio filosófico universitário. O leigo que vem de fora vai gastar bons anos de sua vida somente para adquirir este conjunto de reações que fará com que ele se sinta um membro da comunidade, e ao fazer isto estará crente de estar aprendendo filosofia, quando está apenas assimilando a casca sociológica necessária a que a filosofia como prática social continue existindo. E o que isto tudo tem a ver com filosofia? Rigorosamente nada, porque embora a filosofia sempre necessite de algum veículo social para existir, a história prova que ela não depende de nenhum deles, que tanto se faz boa e má filosofia numa hierarquia de clérigos como num grupo informal de amigos, numa organização acadêmica como numa sociedade esotérica, e que, enfim, o dinamismo da filosofia independe da sua forma social de organizar-se. É por influência dessa base social de atuação que se formarão estilos coletivos de pensamento, que aprisionarão as mentes individuais dentro de certos esquemas de que não poderão livrar-se nunca, porque o que deveria livrá-los disto é exatamente a filosofia, ou seja, a reflexão pessoal, a que o império dos meios sobre os fins os impede de chegar. Se a reflexão pessoal é desde o início canalizada por um conjunto de reações mentais quase inconscientes, que equalizam o indivíduo com os demais membros da comunidade, então a reflexão pessoal fica impossibilitada. Por exemplo: saiu recentemente um livro cujo autor é Paulo Arantes, sobre o Departamento de Filosofia da USP. O livro chama-se Um Departamento Francês de Ultramar — título de assombrosa exatidão. Ele mostra que cinco décadas de reflexão filosófica na USP na verdade foram um eco de um conjunto de cacoetes mentais aprendidos com os primeiros professores que por ali passaram, todos de origem francesa. Alguns, aliás, excelentes filósofos, como Etienne Souriau, homem de primeira grandeza. Mas não interessa que o mestre seja grande. Interessa é que na hora em que o ensino se organiza coletivamente, se

institucionaliza através de institutos, faculdades etc., corre-se o grande risco de fazer com que o ingresso nesse meio requeira um investimento psicológico demasiado grande, tão grande ou maior do que o necessário para chegar à filosofia mesma. Não é fácil você se integrar num novo meio. Quando este meio é, por sua vez, mais ou menos internacional e a convivência não é direta, é feita mais através de papéis que se trocam —- de artigos de um que são lidos por outro, que escreveu um livro que é lido pelo primeiro —-, a absorção dos cacoetes é mais difícil, porque se trata de cacoetes, por assim dizer, abstratos, e a aquisição disto é muito mais trabalhosa para a psique humana do que a cópia direta do que é visto. Mas evidentemente tudo isto não tem rigorosamente nada a ver com filosofia, assim como a embalagem de pizza não tem nada a ver com pizza. E Sócrates, quando filosofava, a quem podia copiar? Em que meio ele estava procurando integrar-se? Que hábitos mentais ou cacoetes verbais ele estava procurando aprender para parecer filósofo? Ele simplesmente fazia o melhor que podia, usando a sua cabeça para refletir sobre certos assuntos. Isto não o tornava um indivíduo mais aceitável em determinado meio, e é por isto mesmo que ele podia filosofar livremente. A partir do momento em que se forma um ensino mais ou menos regular de filosofia — o que acontece nessa época, na Academia Platônica e depois no chamado Liceu de Aristóteles (que na realidade veremos que não existiu efetivamente como entidade autônoma, sendo apenas um novo setor da Academia, dirigido por Aristóteles após a morte de Platão) —-, a filosofia começa a constituir um meio social, e surgem as invejas, as fofocas, a competição mesquinha, etc. Toda uma gordura mental que cerca a carne e o sangue da filosofia, e que passa por filosofia. Estes aspectos geralmente são desdenhados, mas eles nos dão o tom do pensamento do nosso tempo, onde a organização acadêmica da atividade filosófica chegou a um máximo de abrangência, eficácia e poder. Essa organização constitui uma máquina, estreitamente ligada ao meio editorial, que às vezes promove a filosofia, às vezes a sufoca. Em todo caso, a competição no meio profissional não é propícia ao desenvolvimento da filosofia, pois o decisivo nela não são as qualidades que fazem um filósofo, e sim as que fazem um hábil manejador social. Dois jornalistas que fizeram um estudo a respeito do meio acadêmico e editorial parisiense disseram que a organização moderna da vida intelectual criou um novo tipo de intelectual, o intelocrata. É o sujeito que tem poder ou influência sobre o meio acadêmico, a imprensa cultural, a indústria editorial, e que funciona como um guarda de trânsito, abrindo ou fechando o caminho às novas ambições. O intelocrata pode ser também um intelectual de valor, mas isto não é necessário para o exercício da função, que é de natureza política sobretudo. Nesse meio, os melhores saem quase sempre perdendo, pois dedicam suas energias à filosofia em detrimento da carreira. Raymond Aron diz, por exemplo, que no seu tempo só havia dois legítimos espíritos superiores entre os universitários franceses: Alexandre Kojève e Éric Weil. Mas o prestígio deles não se compara ao de um Sartre, de um Merleau-Ponty, ou mesmo ao de cabeças-de-toucinho como Althusser ou Bernard-Henry Lévy. Se isto se passa assim num país de tradição filosófica como a França, imagine então no Brasil.

A de ambiente mental grego.

Aristóteles

Retórica no

A influência do meio social imediato no destino das filosofias é importante para compreendermos o lugar de Aristóteles no ambiente grego. Veremos que no destino do aristotelismo pesaram muito esses fatores que mencionei. Quando Aristóteles entrou para a Academia Platônica, com dezoito anos de idade, logo se destacou como um dos melhores alunos e foi incumbido de dar uma parte das aulas, o curso de Retórica. Este sucesso inicial foi recebido como um insulto pessoal por muitos dos seus colegas. Mais ainda; sendo a Retórica — curso que ele dava — a ciência teorética que investiga a arte da persuasão, ele logo dominou esta ciência, muito disseminada na época, e foi um dos primeiros a fazer dela uma especulação teórica. Porque a Retórica até então era apenas transmitida como técnica, como prática, e alguns levavam a vida inteira para dominar esta arte, que era a chave das ambições políticas. Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular teoricamente. Isto consiste em perguntar: "Por que o argumento persuasivo é persuasivo?" e mesmo: "Por que um argumento logicamente fraco ou absurdo convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?" Aristóteles começa sua carreira examinando a Retórica, exatamente como Sócrates havia feito. Sócrates via que os oradores, políticos, conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas perfeitamente absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na juventude, um primeiro passo além. Começa a investigar as causas dessa persuasividade, e formula a ciência da Retórica como uma verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro de Retórica de Aristóteles é um dos grandes livros livros de Psicologia que a humanidade conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por outro, algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade, Aristóteles não apenas sabia produzir argumentos persuasivos, mas também conhecia os princípios teóricos em que se baseava a persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e poucos anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade. Aristóteles sintetizou na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que mais tarde seriam denominados retor e retórico: o praticante da arte, o homem que escreve ou fala bem, e o cientista que estuda e formula a teoria da Retórica. Seus escritos de juventude, literários e retóricos na maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o maior retor e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos de elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de certas réplicas de Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade que se formou em torno dele desde muito cedo, e não consigo conceber que esta hostilidade não tenha pesado em alguma coisa entre as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de Aristóteles.

Personalidades de Platão O Deus de Aristóteles.

e

Aristóteles.

Por outro lado, Aristóteles não tinha ambições políticas, ao contrário de Platão. Este sempre tentou interferir na política, tentou reformar o mundo, inspirou revoluções e golpes de Estado, e na sua famosa Carta Sétima declara que a obra de sua vida seria uma reforma política da Grécia. Mas Aristóteles era um temperamento completamente diferente. Aliás, esta confrontação de temperamentos é uma das coisas mais esclarecedoras quanto a todo o rumo posterior do pensamento ocidental. Porque, como disse um grande historiador da Filosofia, Arthur Lovejoy, "toda a história do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a Platão e Aristóteles". Sendo assim, desde que o nosso pensamento é sustentado por estas duas grandes colunas, confrontá-los é uma das principais ocupações da mente ocidental há dois mil anos. Nesta confrontação, os traços de personalidade são muitíssimo importantes. Duas personalidades de imensa envergadura que marcarão não apenas dois estilos de pensar, mas dois estilos de ser. Nesta confrontação, vemos que Aristóteles difere de Platão e se aproxima muito de Sócrates, pela sua total falta de ambição de interferir na ordem das coisas deste mundo, e pela sua total dedicação ao saber enquanto tal. Para Aristóteles, não havia ocupação mais digna do homem do que buscar conhecer, buscar compreender. Ele colocava esta atividade teorética —- a palavra "teorético" vem do verbo theorein, que quer dizer olhar, ver, contemplar — tão acima das outras que, no entender dele, era a única atividade do próprio Deus. O Deus aristotélico é um Deus cuja atividade é inteiramente de ordem teorética. Deus olha, vê, contempla, compreende, e nós vivemos dentro desta atmosfera intelectual divina, somos pensamentos divinos, de algum modo. Deus age, mas na forma da pura contemplação, e portanto, a ação de Deus tem aquela rapidez, aquela instantaneidade própria da inteligência — o ato de intelecção é instantâneo, e assim também os atos divinos, pois não supõem a mediação de um instrumento. Posição Aristóteles. do meio ateniense.

social

de Hostilidade

Prosseguindo na confrontação, vamos ver que Platão era um filho da nobreza grega, um homem que desde a juventude foi cercado de admiração, não só por sua origem — família riquíssima — mas também pela beleza pessoal. Era um homem grande, atlético, rico, bonito, cheio de ambições. Aristóteles, ao contrário, era de origem estrangeira. A cidade de Estagira, onde nasceu, era uma colônia macedônica. Ele chega a Atenas, por volta dos dezoito anos, depois da morte dos pais. Herdou certa quantidade de dinheiro que lhe permitiu ser independente, sem chegar a ser um milionário. Tinha dinheiro para se sustentar sem precisar trabalhar, podendo se dedicar totalmente ao estudo. Entra na Academia ainda aos dezoito anos e por volta dos 23, 24 já é um sucesso lá dentro. Mas em primeiro lugar, num meio aristocrático o dinheiro, por si, não dá ingresso nas classes superiores. Para piorar, Aristóteles era um estrangeiro. Fica difícil imaginar, num país

como o Brasil onde o estrangeiro é tratado como príncipe e o compatriota como um cachorro, a intensidade, a força do preconceito grego contra o estrangeiro. Este, em Atenas não tinha direito a nada. Estava pior do que um turco em Berlim. O simples fato de poder estar ali já era considerado um grandissíssimo favor; mas o estrangeiro não votava, não participava da política, não tinha direito a nada. Além disso, Aristóteles não era membro da nobreza, mas apenas descendente de uma família de médicos. Seu pai tinha sido médico do rei Felipe da Macedônia e se dizia que sua família descendia do próprio deus Esculápio, ou Asclépio — o deus grego fundador da medicina — pelo fato de terem tido muitos médicos no correr de gerações; mas todas as famílias de médicos alegavam a mesma coisa. Os médicos tinham posição de certo prestígio, mas não se comparavam à classe dominante. Eram apenas servidores de luxo. Aristóteles, então, do ponto de vista do meio ateniense, era um homem de origem plebéia, estrangeira, e que tinha entre suas características pessoais um senso de humor particularmente ácido, sarcástico. Também não tinha a beleza física —- era de baixa estatura, magro, e embora andasse muito elegantemente vestido jamais seria confundido com um membro da jeunesse dorée ateniense. Este estrangeiro incômodo, muito jovem se torna o dominador da ciência da retórica e é nomeado para dar os cursos na Academia. As na Lugar da Retórica.

Artes Academia

Liberais platônica.

Nesse tempo o ensino já tinha começado grosso modo a se organizar segundo uma fórmula que duraria mais de mil anos, onde as matérias introdutórias consistiam no Trivium e noQuadrivium (conjunto de três disciplinas que lidam com a linguagem — - gramática, lógica ou dialética e retórica —-; e de quatro que lidam com números —aritmética, geometria, música e astrologia ou astronomia). As matérias elementares eram estas. Quando Aristóteles é nomeado professor de retórica, a importância deste fato não deve ser hipertrofiada, já que a retórica é apenas uma das ciências elementares. O domínio destas sete disciplinas foi considerado desde a fundação da Academia de Platão até quase o ano de 1500, isto é, por quase dois mil anos, como condição básica para o ingresso nos estudos filosóficos. Na Idade Média européia, o sistema adquirirá uma grande estabilidade. Os estudos começavam na adolescência, pelo Trivium e Quadrivium, que duravam mais ou menos dez anos de aprendizado, depois o sujeito entrava numa das três faculdades — Direito, Medicina ou Filosofia. Nesta, o tempo de aprendizado até o aluno chegar a um estado comparável ao que hoje se chama professor pleno era de aproximadamente vinte e cinco anos —- o tempo que um professor universitário brasileiro leva para chegar à aposentadoria. Esse sistema começa a se formalizar no tempo de Platão, e não vejo a menor chance de um sujeito entender a filosofia antiga e medieval se não partir de um estudo das Artes Liberais —Trivium e Quadrivium —-, que, constituindo a base do ensino, expressavam o fundo comum da cosmovisão mais claramente do que as formas superiores de atividade intelectual. Também não se pode esquecer que, nesse panorama, as sete disciplinas não tinham individualmente os significados que têm hoje, mas eram carregadas de nexos

simbólicos e mitológicos que dão o seu verdadeiro sentido na cultura antiga. Por isto é que simplesmente não posso levar a sério um historiador de filosofia antiga ou medieval que, por exemplo, não conheça a fundo o simbolismo astrológico, que constituía então como que uma chave da cosmovisão. E não se trata só de conhecê-lo desde fora, porque o autêntico simbolismo, como a autêntica poesia, não se rende a um estudo meramente exterior, mas requer uma compreensão personalizada. Os melhores historiadores da filosofia antiga e medieval costumam ser, por isto, aqueles que também têm interesses religiosos e estéticos, que facilitam a penetração naquele universo. Dentro da Academia, a retórica não estava entre as disciplinas mais nobres, pois cedia lugar às disciplinas filosóficas propriamente ditas. Aliás, considerando-se que a filosofia nasce de um movimento de oposição aos sofistas —- professores de retórica —-, esta tendia a ser, dentro da Academia, um pouco desprezada. Ela é a arte de persuadir, não a de encontrar a verdade; o que torna o argumento persuasivo não é ele ser verídico, mas é ele encontrar uma ressonância no público. A ressonância ou persuasividade do argumento depende exclusivamente de fatores psicológicos e sociológicos que predispõem o público a aceitá-lo, e depende também de que o retórico conheça minuciosamente esta predisposição e saiba usá-la. A persuasão retórica nada tem a ver com a veracidade. Mas Aristóteles não se limita a dominar a retórica, e faz as primeiras especulações científicas a respeito. A especulação científica sobre uma técnica é ao mesmo tempo uma defesa contra esta técnica. Uma coisa é dominar uma técnica. Outra é ter a noção teorética de como ela funciona, de por que funciona. Com isto você fica sabendo também quais são os limites da técnica. Esta especulação que Aristóteles começa muito cedo e que o leva depois a constituir o primeiro tratado científico de retórica, o torna também um grande retor, um escritor elegante e persuasivo. Isto estabelece uma distinção que será mais tarde consagrada. Retor é aquele que domina a técnica da retórica, que sabe fazer um discurso e ser persuasivo. Retórico é aquele que estuda cientificamente a técnica do retor, podendo ele próprio ser um retor ou não. Mas é evidente que o estudo teorético desta técnica e a sua aplicação têm resultados completamente diferentes. Seria mais ou menos como dominar, hoje em dia, a arte da propaganda e fazer um estudo científico de por quê a propaganda penetra e é aceita nas consciências. Evidentemente o estudo teorético levaria a ver esta técnica "pelas costas" e a compreendê-la melhor do que o mero praticante, e a saber também, portanto, neutralizá-la. Suponho que, na linha de uma investigação iniciada por Sócrates, o próprio Platão tenha determinado a Aristóteles o estudo científico dos procedimentos retóricos, de modo a completar a superação da retórica na dialética, dando uma forma acabada ao que Sócrates tinha feito informalmente. De modo que há, na Academia, um esforço de dar mais rigor à demonstração, a ir da persuasão à certeza apodíctica, e, neste movimento, Aristóteles representará o ponto culminante. Platão ante ateniense.

e a

opinião

Aristóteles pública

Como resultado, então, em parte por seu sucesso, em parte por esta orientação que está imprimindo a seus estudos, em parte por ser um estrangeiro metido onde não devia, e ainda por motivo de intrigas e invejas entre os discípulos de Platão, Aristóteles viverá maus bocados em Atenas. Platão também enfrentou dificuldades, mas no Exterior, onde se meteu em conspirações, sendo preso, vendido como escravo e resgatado por seus discípulos. Mas em Atenas ele sempre gozou de grande prestígio e, ao morrer, era como que um herói nacional, uma celebridade cercada de honras, e que praticamente não tinha inimigos. Aristóteles, ao contrário, enfrenta inimizades, oposição, desde o início de sua vida, jamais chega a formar um círculo de discípulos capaz de prosseguir sua obra num sentido fiel ao seu intuito e digno do seu nível, exceto um único, que é Teofrasto. Nunca encontra em Atenas senão um ambiente de relativa hostilidade, morre no exílio e nunca encontra uma repercussão pública muito grande. Claro que ele não dava importância, a isto pelo seu próprio temperamento, alheio à atividade política. O ideal dele seria viver relativamente isolado, podendo prosseguir seus estudos sem ter que se defrontar com a política do dia. No entanto, os conflitos políticos o perseguem ao longo de toda a sua vida. Principalmente porquê, originário de uma colônia macedônica, sendo filho do médico do rei da Macedônia e tendo-se tornado preceptor de Alexandre, filho de Felipe, imperador macedônico, quando se instala mais tarde uma guerra entre Atenas e a Macedônia, Aristóteles, embora já não tivesse nenhuma ligação com a Macedônia há algum tempo, fica evidentemente numa posição suspeita; é perseguido e tem de fugir para o exílio. De modo que não foi uma vida fácil, e um elemento constante desta vida é o contraste entre o interesse puramente intelectual deste homem e a hostilidade política e social que o cerca durante mais ou menos toda a vida, e contra a qual ele não deixa uma única palavra de lamentação ou de recriminação. Não porque fosse insensível às injustiças, já que muitas vezes protestou contra perseguições sofridas por amigos seus. as talvez ele fosse muito discreto para lamentar em público suas desventuras pessoais. A de totalidade e organicidade.

intuição

básica Aristóteles:

O espírito mais reflexivo e científico de Aristóteles faz com que ele imprima ao seu ensinamento, desde o início, um sentido de pesquisa que torna o seu Liceu um depósito de conhecimentos sobre todas as disciplinas possíveis e imagináveis e o torna o primeiro centro organizado de pesquisa que conhecemos na história do ocidente. Após ter sido preceptor de Alexandre, Aristóteles recebe dele um dinheiro considerável, que lhe permite contratar um exército de pessoas para que viajem e tragam para ele as informações de que necessita: sobre geografia, geologia, vida dos animais, política e leis dos demais países, etc. etc.. Nesse sentido, Aristóteles pôde materializar o intuito que é central em toda a sua obra — o de organizar o conhecimento e fazer com que o conjunto das ciências se torne um sistema das ciências. Busca, assim, desde o princípio, um padrão de coerência na organização dos conhecimentos, infinitamente mais rigoroso do que o que tinha sido exigido por Platão. Quando estudamos a obra de Platão, vemos que tudo que ele escreveu vem de inspirações que teve na juventude e

que lhe foram, por assim dizer, inoculadas por Sócrates bem pela herança pitagórica. A intuição básica de Platão, como a de Sócrates e dos pitagóricos, é a do contraste entre dois tipos de objeto do conhecimento: 1) os objetos dos sentidos que estão em permanente mutação e se fazem e desfazem diante de nós, dia a dia, como de resto, nós mesmos mudamos, nos fazemos e desfazemos, nosso corpo cresce, muda, envelhece e morre; 2) os objetos da geometria, das matemáticas, que tinham a característica da perenidade, estabilidade, constância, obediência à regularidade de leis que determinam implacavelmente, e imutavelmente, as duas relações. Uma vez estabelecida uma relação matemática, constataram esses filósofos, ela se reproduzia infinitamente sem que nada pudesse alterá-la ou abalá-la. Este contraste, uma da primeiras noções transmitidas por Sócrates, desperta em Platão a noção de que o mundo físico estaria envolvido numa rede de leis e proporções matemáticas que constituiriam o verdadeiro segredo da realidade, a estrutura invisível, mas rígida, do inconstante mundo visível. Esta é a intuição básica em Platão. As relações matemáticas constituem a parte superior do que ele chama de mundo das idéias. Esta idéia platônica penetrará tão fundo na consciência humana que dois mil anos depois, quando surgia a física moderna — Newton, Galileu, Descartes, Kepler — é novamente a mesma idéia de encontrar o fundo matemático no qual se apóia a realidade sensível que inspirará os cientistas. Por mais rico que seja o universo platônico, vemos que todo ele não passa de uma vasta especulação em torno desta idéia que é, no fundo, de origem pitagórica: de que os números e relações matemáticas são a verdadeira essência da realidade. De que o mundo, tal como se apresenta a nós, é de certo modo ilusório ou falso — não totalmente, mas apenas uma expressão parcial de um segredo que, na sua essência, é matemático. Toda a obra de Platão é uma construção feita em torno desta idéia básica. A obra de Aristóteles obedece desde o início a outro intuito. Ele percebe que não é possível existirem apenas dois mundos — um mais ou menos ilusório, e outro um pouco mais real — mas que existem muitas faixas de realidade, formando um tecido enormemente complexo mas dotado, sempre, de unidade e coesão. E será esta complexidade do real, ao mesmo tempo múltiplo nos seus nos seus planos, aspectos, níveis etc. e constituindo um todo coeso, será esta idéia da unidade na variedade que orientará todos os esforços de Aristóteles desde o início. Daí sua idéia de um sistema do conhecimento. O conhecimento tem de ser um sistema, ou até, mais propriamente um organismo. Um organismo é um conjunto de órgãos diferentes entre si mas que são todos coordenados para uma certa função. Separados desta função do organismo total, não fazem sentido algum. Também Aristóteles concebe a idéia de que esta totalidade orgânica, que é o mundo, deveria por outro lado ser refletida no sistema das ciências, de modo que o conhecimento formasse uma unidade que, como um organismo vivente, pode crescer e transformar-se sem perder sua unidade. E com isto, inventa outra idéia que penetrará muito fundo na mente humana — talvez mais que a idéia dos padrões matemáticos de Platão — que é o que podemos chamar de evolução orgânica, complementar à de totalidade orgânica. Tão fundo como a idéia platônica penetrou no setor da astronomia e da física, a idéia de Aristóteles penetrará fundo nas ciências da natureza terrestre, na biologia, na História, na Estética e mais tarde no que hoje

chamamos de ciências humanas ou ciências sociais. Praticamente todos os esforços das ciências humanas, desde que existem, é no sentido de conseguirem se organizar como totalidade orgânica, mais ou menos no sentido em que Aristóteles organizou o conjunto das ciências no seu tempo. A idéia platônica dos padrões matemáticos rende o seu máximo, alcança o seu pleno rendimento na física clássica e na nova astronomia de Kepler. Kepler, Galileu, Newton representam o auge da matematização da realidade. Mas a idéia aristotélica da totalidade orgânica, se bem que exerça grande influência, até hoje ainda não rendeu todos os seus frutos. Hoje em dia, o holismo é uma nova tentativa de organizar o sistema das ciências segundo a idéia da totalidade orgânica. Esta idéia não está realizada ainda. Por isto este curso se chama "Pensamento e Atualidade de Aristóteles". Quando vemos hoje um esforço gigantesco no sentido de emendar as ciências humanas com as naturais, como se vê, por exemplo, na obra deste grande antropólogo Edgar Morin, todo o esforço dele e de toda a corrente que representa não é nada mais que a tentativa de devolver ao sistema das ciências aquela organicidade sistêmica que Aristóteles tinha lhes imprimido no começo, e que para nós se perdeu de crise em crise. Sendo assim, vemos que a obra de Aristóteles ainda está rendendo frutos e este é o motivo principal por que temos de estudá-la. Praticamente tudo o que está acontecendo no mundo das ciências hoje só pode ser compreendido como eco distante desta inspiração aristotélica do sistema das ciências, de dar às ciências uma organicidadeenciclopédica ( kyklos = círculo, que representa totalidade, epaidos = educação, cultura, formação da mente humana ), todas concorrendo para um mesmo fim, como ocorre com os órgãos do nosso corpo. Mas tudo isso não quer dizer que o legado aristotélico seja por toda parte bem recebido com afetuosa gratidão. Esse legado parece que não pode ser adquirido senão através do conflito —- dialeticamente, no sentido hegeliano do termo. Do mesmo modo que Aristóteles foi muito combatido em vida, vamos ver que uma discussão com Aristóteles, muitas vezes amarga e cheia de recriminações tem acompanhado a história do pensamento ocidental há dois mil anos. Mas nem todas as discussões foram construtivas. As tentativas de destruir Aristóteles, de suprimir o seu legado da memória humana também foram muitas, ao longo da história. Aí já não se trata da legítima contestação científica, que Aristóteles apreciava tanto que fez dela uma técnica ( a dialética ), e sim de manifestações de ódio irracional à inteligência mesma. Mas quando crêem tê-lo matado de um lado, ele ressurge de outro. De certo modo, Aristóteles tem constituído para a civilização ocidental um fantasma, como o de Merlin, "um sonho para alguns e um pesadelo para outros" , do qual ninguém se livra completamente e que, mais dia menos dia, cruzará o caminho de quem busca a verdade, para ajudá-lo mas também para testá-lo. Daí o sentimento ambíguo, de amor-ódio, que ele inspira a muitos. Na verdade, isso não acontece só no Ocidente, mas também no Oriente. No mundo islâmico há escolas de espiritualidade que vêem Aristóteles como um profeta, um enviado de Deus, e outras que o consideram um tentador diabólico. A Igreja ortodoxa russa chegou a proibir a sua leitura, enquanto Sto. Tomás o considerava o príncipe dos filósofos. Após dois mil anos, é melhor tentar achar com ele um modus vivendi. Para mim, a questão está resolvida: considero-o o melhor dos

mestres, o mais honesto, o mais sincero, o mais sensato, o mais humano, inclusive em seus defeitos mais óbvios.

Pensamento e atualidade de PRIMEIRA Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro

Augusto

Aristóteles AULA

de: Madeira Madeira

2a parte

Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre nossos motivos para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado neste curso. Mas antes devo responder à pergunta que um aluno me fez no intervalo, a respeito da natureza matemática dos arquétipos platônicos, questão que é importante para o que estudaremos mais tarde, porque veremos que uma das principais modificações introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou desmatematizar, a teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico menos uma estrutura formalmente pura do que um método para o conhecimento da realidade efetiva. A explicação da natureza matemática do "mundo das Idéias" encontra-se sobretudo no Timeu, um dos livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O ensinamento de Platão se dividia em duas partes, escrita e oral. O escrito era usado como instrumento de divulgação, sendo o melhor de sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase dois mil anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da filosofia e só muito recentemente, com os progressos da documentação, é que foi possível esboçar uma reconstituição do que teria sido o ensinamento oral de Platão. Reconstituição feita a partir dos testemunhos e depoimentos deixados, e mediante comparação desses materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso ao longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No século XX, quando o sistema internacional de documentação chegou a uma perfeição quase luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição, empreendida sobretudo por um grande historiador da filosofia italiano chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um filósofo brasileiro chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma reconstituição, não por meios históricofilológicos como Reale, mas sim por meios puramente filosóficos e especulativos, e

seus resultados foram singularmente idênticos aos de Reale, só que apresentadosquinze anos antes! Mário Ferreira é o único grande filósofo que este país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros, mas infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um misto de ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de Mário Ferreira como os de Reale permitem colocar Platão, com bastante segurança, como herdeiro da escola pitagórica. Em suma, a famosa doutrina das idéias somente se esclarece se entendermos que, para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira instância, que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois, mas três planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo das idéias, e, terceiro, o mundo das leis ou princípios ( relações matemáticas, basicamente, mas no sentido não-quantitativo das matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de Platão é bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do livro de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na revistaSíntese, de Belo Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de Platão e Aristóteles evoluíram muito no século XX. Os estudiosos recentes que deram contribuições substantivas são em grande número. Mas isto nos leva de volta à questão do método. Progressos e progressos história e filologia.

da da

compreensão incompreensão:

À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos, sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem cronológica da produção dos

escritos é importante para a compreensão da obra. Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido como Metafísica resulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste sentido. À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-los. A historicismo e desistoricismo.

incompreensão

histórica:

Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos dificulta a compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas, lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir afilosofia da história ( séculos XVIII e XIX ), que propõe uma visão global do desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos seguintes ( XIX e XX ) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que, por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como algo que está "situado no seu tempo" e que já não nos diz nada exceto como documento histórico. Como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os gregos, na situação grega, e não

para nós. Esta perspectiva é denominadahistoricista. Situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas preocupações das nossas: os antigos ficam presos no "seu tempo" e nós no "nosso tempo", como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes entre si. A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente —- como uma espécie de dogma no qual acreditamos sem exame —- acredita que situar as coisas na sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora, na medida em que você situa os fatos e as idéias num tempo histórico, você também os relativiza, os torna relativos a esse tempo, e atenua ou diminui a importância, a significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão historicista torna-se, por isto, uma verdadeiradescompreensão, um afastamento artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os enterra no "seu tempo", deixando-nos fechados na atualidade do presente como numa redoma de sombras. Este é um problema de método da maior importância para o que vamos ver depois. Faça um modelo em miniatura e imagine que todas as idéias e sentimentos que você teve ao longo de sua vida você referisse exclusivamente e absolutamente à etapa da sua vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou importância na sua vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que surgem na infância, você os referisse inteiramente à situação de infância, e os explicasse exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que você foi estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que você tem só seria válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo nossa autobiografia, estudando-a "cientificamente", referimos estas idéias exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente. Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres —- ou, pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias na sua perspectiva histórica, por um lado, é

compreendê-las em função do momento, mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que possam ter neste momento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de "desistoricismo", que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande poeta do Romantismo francês, segundo a qual "uma grande vida é um sonho de infância realizado na idade madura". Sim, se o homem maduro já não recorda os seus sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem, então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas, sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe perguntaram para quem escrevia, respondeu: "Para o menino que fui." O menino é o juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das expectativas e sonhos de antes. Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir. Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir isso, devemos

desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e, invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado. Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido —- não temporal, mas espacial —-, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de viajar e se instalar em tudo que é lugar exótico do mundo. Os ingleses vão desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender os outros povos nos seus próprios termos. O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no "seu tempo" e fazer uma coleção de "idéias-tempo", cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e "relativizadas". Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista, mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do presente continuam a medida de todas as coisas. Se achamos que para ter uma descrição objetiva de uma outra cultura precisamos olhar com uma espécie de dupla via, do nosso ponto de vista e do ponto de vista dela, é evidente que o julgamento de uma outra época implica também esta dupla via. Não olhar apenas o lugar que Platão e Aristóteles ocupam dentro de uma evolução cultural que chegou até nós, mas inverter esta evolução e perguntar o que Platão e Aristóteles diriam vendo o ponto a que chegamos. Esta é uma exigênciasine qua non do método científico. A esta fase, os estudos sobre a antiguidade ainda não chegaram. Anuncio isto como ideal futuro. Por enquanto, a quase totalidade dos livros conseguiu apenas reconstituir o mundo grego, situando-o na perspectiva do seu tempo. Mas na mesma

medida em que se aperfeiçoa esta visão histórica, esse mundo grego vai-se tornando distante e diferente do nosso, e com isto ele perde gravidade, presença, realidade. É o mesmo que dizer: "Que importância tem a opinião sobre você de um sujeito que mora longe, que você nunca encontrou, e ademais já morreu há muito tempo?" Agora, se o fantasma deste sujeito ressurgir e começar a julgar os seus atos neste momento, ele ganha atualidade, adquire gravidade. As outras culturas — culturas indígenas, por exemplo — ganharam da antropologia este privilégio de poderem julgar a nossa cultura. As consequências práticas disto foram imensas, como se vê pelo crescimento do movimento indigenista e pela incorporação de valores indígenas na cultura atual. Por que este privilégio deveria ser concedido apenas no sentido geográfico, e não no sentido histórico? É simples: por que então certas idéias e valores que decretamos "ultrapassados" mostrariam todo o seu vigor, todo o esplendor da sua juventude imperecível, e cobrariam de nós um dever de perfeição a que o historicismo nos ajuda a fugir. O método filológico da compreensão dos textos só se tornará completo e perfeito quando à perspectiva historicista acrescentarmos este giro desistoricista. Ou seja, quando o afunilamento que remete o passado para longe for invertido e colocarmos diante de nós esses antigos, como nossos juízes. Esta será nossa preocupação permanente neste curso. Não entender somente Aristóteles como um fenômeno que aconteceu há 2.400 anos, mas olhar a nós mesmos como um fenômeno que aconteceu 2.400 anos depois de Aristóteles.Como poderíamos reviver a perspectiva dos antigos e torná-los nossos juízes? É muito simples. Pela mesma maneira pela qual você julga sua vida de adulto em função dos seus projetos de criança e adolescente. Você revivifica estes projetos, estes sonhos e pergunta: o que a criança que fui diria de mim hoje? E é somente a partir daí que você pode saber se sua vida foi um fracasso ou um sucesso. Temos de verificar esta perspectiva dos antigos e perguntar: Naquele tempo, o que eles esperavam que acontecesse, ou o que desejavam que acontecesse no futuro? Quais eram os sonhos, projetos, ambições e valores que eles projetavam nas gerações futuras? Que é que eles esperavam da sua posteridade que somos nós? Se sabemos, graças à filologia, à interpretação dos textos e ao historicismo, julgar nossos antepassados, podemos, graças a um esforço de imaginação fundado no mesmo historicismo, tornar atuais novamente as expectativas que os antigos fariam sobre seus descendentes, que somos nós. Como julgaria do aristotelismo?

a

nossa

Aristóteles visão

Às vezes penso que se Aristóteles visse que, 2.400 anos depois dele, ainda estamos lutando para ver se conseguimos organizar as ciências num sistema orgânico, que ainda estamos discutindo "holismo", ele acharia que somos muito lerdos e atrasados. Ele diria: "Por que se afastaram tanto desta idéia para ter de voltar a discuti-la 2400 anos depois?" Aristóteles provavelmente apreciaria muito as obras de Edgar Morin, mas estranharia

que tivessem sido escritas só no século XX, e não no II ou III. Aristóteles provavelmente julgaria que o progresso na história das idéias é muito tortuoso, muito lento e muito problemático. Também creio que ele ficaria muito surpreso com a maior parte dos debates que surgiram em torno dele ao longo da História. Ele diria talvez: "Nenhum desses que vocês estão discutindo sou eu. Todos estes Aristóteles que vocês discutiram são sua própria invenção, uma sucessão de Aristóteles imaginários, uns diferentes dos outros, nos quais uns projetam o seu herói e outros o seu antagonista. Uns o divinizam e outros o diabolizam. E ficam lutando com estas sombras. Mas eu não tenho rigorosamente nada a ver com isto. Não sou nem cristão nem anticristão, nem racionalista nem empirista, nem materialista nem idealista, não sou nem um pré-Hegel nem um neoPlatão, nem um anti-isto nem um pró-aquilo, e nada tenho contra nem a favor dos partidos que surgiram depois de mim. Sou apenas um homem de ciência buscando compreender o real e esperando que meus sucessores façam o mesmo com igual empenho." Por isto mesmo, concebi este curso e achei que, para chegarmos ao Aristóteles real, de carne e osso, para presentificá-lo de alguma maneira, temos de partir do exame dos Aristóteles imaginários. Algumas das próximas aulas analisarão as "imagens de Aristóteles". Imagens não são Aristóteles, mas o que cada época pensou que Aristóteles fosse, e as discussões que estabeleceu com este estereótipo, o qual coincide em parte com o Aristóteles real, mas em parte se afasta dele. Hoje podemos ter toda esta perspectiva graças à imensa documentação acumulada, graças aos prodígios da ciência histórica e filológica que nos coloca à disposição um imenso material (ver Documentos Auxiliares II ). Nosso estudo vai começar como uma investigação dos equívocos humanos. No mundo da filosofia e da ciência também impera, muitas vezes a fantasia, a ignorância, a imaginação projetiva, e isto nos obriga a começar o nosso estudo aristotélico com uma espécie de psicanálise das imagens de Aristóteles. Só isto nos dará uma idéia aproximada das relações que temos e das que podemos ter com ele hoje. Na medida em que Platão e Aristóteles formam uma espécie de paternidade da civilização ocidental, é natural ainda que esta civilização faça sobre eles todas as projeções edípicas a que a neurose tem direito. Muitas vezes, na luta pela autoafirmação, o homem acredita dever exorcizar a imagem paterna que no seu entender limita, restringe etc. etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo se envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim, e você tem de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo os seus valores positivos e perdoando, com bondade, os negativos. No entanto, nossa civilização ocidental prosseguiu neste conflito edípico com Platão e Aristóteles, e principalmente com Aristóteles, até pelo menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me parece que hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva. Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto permanente —- ou cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios:

Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em certas circunstâncias ainda são —- como dois verdadeiros demônios. Sua leitura é considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A Igreja Russa surge no século VIII; são doze séculos de preconceitos. No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que consideram Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como anjos do Senhor — algo assim como uma dupla de Hermes Trimegistos, descidos ao mundo para trazer uma revelação. Uma outra corrente os olha mais ou menos como a Igreja Russa. No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles foram do mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo identificaram a filosofia grega como a "sabedoria mundana" de que fala a Bíblia. Os mais moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram a filosofia como uma introdução ao cristianismo, mas nada além disto. Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da edição dos textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a difundir, com mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a respeito de Aristóteles, baseadas apenas nos escritos publicados em vida do autor e de natureza puramente literária. Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram do Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por intermédio de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem imaginar com quantos erros, saltos e interpolações ). Divulgados em tradução latina, os escritos de Aristóteles causaram escândalo, porque pareciam contrariar de frente os dogmas cristãos. Muitas teses de Aristóteles foram formalmente condenadas pelos concílios, antes mesmo que alguém se desse o trabalho de procurar assegurar-se do sentido dos textos. Foi só com Sto. Alberto e Sto. Tomás, já no século XII, que a Igreja, muito cautelosamente, se reconciliou com Aristóteles. É um casamento que vem durando quase oito séculos, com alguns percalços. Esta reconciliação, longe de ser aceita unanimemente logo após formalizada, continuou sendo combatida e discutida dentro da própria Igreja até o século XIX. Hoje em dia todos sabem que Sto. Tomás de Aquino é um discípulo e um seguidor cristão de Aristóteles. Todos vêem o império que Santo Tomás de Aquino exerce sobre o pensamento cristão e imaginam ingenuamente que as coisas sempre foram assim. Mas a posição de que Santo Tomás de Aquino desfruta hoje dentro da Igreja só foi estabelecida no século XIX, meia dúzia de séculos depois de sua morte. Mesmo assim, muitos somente o aceitaram porque o Papa mandou. O famoso aristotélico-tomismo só existe no mundo como posição estabelecida a partir do século XIX, depois de uma bula de Leão XIII, o qual era pessoalmente um filósofo aristotélico e seguidor de Tomás, resultando que a mera obediência a esse Papa acabou virando uma escola filosófica sob o nome de aristotélico-tomismo, nome que o próprio Tomás sem dúvida acharia um tanto cômico.

Outra imagem de Aristóteles é aquela que se formou com os debates do Renascimento em torno da astronomia. Aristóteles formulou, na física, os rudimentos de uma astronomia onde as órbitas dos planetas seriam circulares. Esta imagem foi refutada pelos cálculos de Kepler, e chegou-se à conclusão de que a física de Aristóteles, neste ponto, estava errada. A partir daí, Aristóteles virou um símbolo de todo o saber medieval, que alguns autores nesta época pretendiam derrubar, na ilusão de que um tiro em Aristóteles acertaria na cabeça da Igreja Católica, sem que jamais lhes tivesse ocorrido que a Igreja vivera perfeitamente bem sem Aristóteles durante doze séculos. Pode-se ler em quase todos os livros de história da ciência — livros populares — a idéia de que Aristóteles imperou sobre a ciência medieval e foi derrubado na Renascença. Esta sentença é uma idéia de senso comum, hoje repetida a torto e a direito. É uma idéia totalmente errada. Em primeiro lugar, Aristóteles começa a conquistar algum lugarzinho na ciência medieval somente a partir de Sto. Tomás de Aquino, já na última fase da Idade Média, e mesmo assim não obteve uma repercussão e aceitação imediatas, tanto que várias de suas teses foram também impugnadas por concílios, na época. Depois se retirou a impugnação. De outro lado, existe um fenômeno muito esquisito que é o de que um dos livros de Aristóteles — a Poética — fica desaparecido desde o século I até o século XVI, e quando é reencontrado, traduzido e comentado, serve de molde à criação de tudo o que hoje chamamos estética do classicismo, da qual são amostras o teatro francês de Racine, Corneille e Voltaire. A poética de Aristóteles começa a exercer um império absoluto sobre o gosto literário do mundo moderno, justamente no mesmo instante em que a física aristotélica estava sendo rejeitada. E os escritores e poetas, a partir da Renascença, seguiram Aristóteles com mais subserviência do que todos os físicos medievais. A idéia de que Aristóteles imperou na Idade Média e de que nos livramos dele na Renascença é verdadeira, portanto, só se for olhada do ponto de vista da história de uma ciência em particular, que é a astronomia. Do ponto de vista da história literária, é exatamente o contrário. Como se vê, as generalizações que dividem a história em etapas são muito falhas. Nos séculos XIX e XX surge um novo debate aristotélico, desta vez no campo da biologia, em torno da idéia de uma causa final (finalidade do mundo). Segundo Aristóteles, os fenômenos biológicos, além de serem suscitados por causas eficientes que os provocam, também obedecem a um sentido finalístico, a um senso de propósito fundado na unidade cósmica. Há cem anos prossegue um debate dentro da biologia em torno deste ponto. O livro de Jacques Monod, por exemplo, O Acaso e a Necessidade, é uma vasta discussão com Aristóteles. Cada nova descoberta importante, cada nova escola filosófica, logo cria uma discussão com Aristóteles, desde o exclusivo ponto de vista dessa descoberta em particular, como se o ponto que é central para seus autores fosse central também para Aristóteles e como se o pensamento deste pudesse ser reconstruído tomando esse ponto como base. Assim, pró ou contra, novas imagens de Aristóteles foram produzidas desde o ponto de vista da evolução biológica ( para saber se Aristóteles era darwinista ou não ), do marxismo ( para alguns marxistas, Aristóteles é um precursor do materialismo, para outros é um

idealista incurável ), da nova lógica matemática ( para decidir se Aristóteles adiantou ou atrasou o descobrimento dela ), e assim por diante. Isto é para vocês terem uma idéia de como estes temas aristotélicos —- deformados o quanto sejam pela parcialidade dos interesses que levam a buscá-los em cada caso —- voltam obsessivamente e de certo modo são a gasolina que vem movendo a máquina das idéias há dois mil anos. O que vamos fazer, então, é passar em revista primeiro estes vários Aristóteles, ou pedaços de Aristóteles, contra e a favor dos quais surgiram debates, para ver se por trás deles encontramos um Aristóteles real e inteiro. É evidente que se os debates em torno de um filósofo, durante um certo tempo, se concentram num determinado ponto, este ponto passa a ser considerado o centro do seu pensamento. Isto pode se prolongar por dois, três, quatro séculos. Por exemplo, quando os cristãos lêem Aristóteles pela primeira vez e vêem que ele afirma que o mundo é eterno, ficam escandalizados, porque na perspectiva cristã Deus criou o mundo numa certa data. Antes o mundo não existia, e depois do "Fiat Lux" passou a existir. Aristóteles dizia que o mundo sempre existiu, o que produziu séculos de encrenca no mundo cristão. Resultado: todos esses cristãos, desde os primeiros até o tempo de Sto. Tomás de Aquino —- dez séculos —- constroem a sua interpretação de Aristóteles, pró ou contra, tomando como ponto de partida este ponto de discordância. Todas as demais teses de Aristóteles ficam referidas a esta, como as consequências são derivadas da causa, e o resultado é que as teses mais importantes de Aristóteles ficam jogadas para a periferia, obscurecidas pelo debate da eternidade do mundo. Mais tarde, quando, num contexto completamente diferente, surge a discussão em torno da circularidade das órbitas planetárias, a Renascença constrói sua imagem de Aristóteles tomando como centro este ponto que estava em debate. Isto é tão absurdo como tentar construir o retrato do indivíduo tomando como centro as objeções que outros tiveram contra ele, por exemplo o trocador do ônibus que ele pagou com uma nota alta, o bedel que ralhou quando ele chegou atrasado para a aula, o motorista cujo caminho ele fechou num cruzamento, etc. Nunca se chega a nada — a não ser uma coleção de retratos que têm como centro de perspectiva não o personagem, mas o interesse acidental que este ou aquele aspecto dele suscitou para este ou aquele indivíduo. A história das imagens de Aristóteles, ou de Platão, e de muitos outros filósofos é assim: você vem andando por um caminho e tropeça com um filosofo; ou adere a ele ou se opõe a ele em algum ponto, e o conjunto de imagens que você forma dele é construído não a partir dele, mas a partir do seu calo que ele pisou acidentalmente. É inevitável que seja assim —- o que não quer dizer que seja justo. É inevitável que o conhecimento do filósofo comece assim, ao sabor dos encontros e desencontros acidentais. Mas algum dia é necessário fazer uma revisão do todo e tentar fazer justiça, adotando um ponto de vista que abarque, transcenda e unifique todas estas perspectivas parciais, acidentais e desencontradas. É mais ou menos esta a ambição deste curso. Limitações perspectiva sobre Aristóteles.

da

minha pessoal

Este curso transmite o resultado de uma convivência de mais ou menos quinze anos com Aristóteles. Tenho de reconhecer que também eu me defrontei com ele movido por algum interesse pessoal meu que talvez não tivesse nada de aristotélico, e comecei a reconstruí-lo desde aquilo que ele representou para mim. A diferença é que estou perfeitamente consciente de ter feito isto e estou consciente de que a minha perspectiva sobre Aristóteles é acidental. E sobretudo estou consciente de que, se tenho uma visão dele, ele também tem o direito de ter uma visão de mim. Isto quer dizer que toda a vez que eu examinar uma idéia dele e tentar expô-la, tenho de procurar ver a coisa dos dois pontos de vista. Tenho de estar consciente de por que esta idéia me chamou a atenção, de qual o momento da minha vida intelectual em que aquilo entrou nas minhas cogitações. Mas também tenho a obrigação de tentar olhar com olhos de Aristóteles, o qual pode eventualmente me dizer: "Esta pergunta que você lançou a meu respeito é absolutamente irrelevante, não interessa para a interpretação do meu pensamento." Só olhando por este duplo lado podemos ter, não digo uma certeza, mas uma probabilidade de alcançar, se não uma visão científica objetiva e certeira, pelo menos uma opinião justa e razoável. No dia-a-dia, julgamos as pessoas das maneiras mais apressadas e levianas. Porém, uma figura como esta que influenciou a humanidade inteira durante 2400 anos, e que continua sendo discutida até hoje, merece um esforço de objetividade. O estudo das obras de um filósofo —- que não é filosofia ainda, é filologia, é estudo de textos, é uma preparação filológica à filosofia — deixa para nós um resíduo que é de alto valor. Consiste na consciência das dificuldades que temos para entender o que uma outra pessoa pensa, e que não é maior no caso de Aristóteles do que no caso do nosso vizinho, da nossa empregada, dos nossos parentes e amigos. O sentido de uma frase isolada, no instante em que foi dita, é uma coisa. Entender o que esta frase significa no contexto da vida de quem a disse, e com o valor e a intenção precisos com que a disse, é outra muito diferente. A filologia é a compreensão dos textos. Os textos são expressões privilegiadas da mente humana. A filologia é, neste sentido, o estudo do ser humano, a disciplina que nos habilita à compreensão de outros seres humanos. E por isso foi considerada sempre a rainha das humanidades. Um escritor medieval, Marciano Capella, fez dela a esposa do deus Mercúrio, o deus dos intercâmbios, do encontro, da conversação e do entendimento. Humanidades é o estudo que faz você situar-se dentro da espécie humana, compreender-se como membro da espécie a que pertence. Ensinando você a entender que não é melhor que nenhum dos outros, que seu pensamento é pelo menos tão obscuro e errado como o dos outros, e que somente um longo trabalho de compreensão pode colocá-lo em condição de discutir a validade ou não das idéias de um outro, a filologia é um treino de paciência e tolerância, no sentido em que diz Spinoza: "Não rir, não chorar, nem condenar — mas compreender." Ainda uma palavra, sobre objetividade e neutralidade A idéia de que a compreensão científica deve ser neutra pode ser compreendida em dois sentidos. Estar neutro pode querer dizer não estar interessado num ou noutro dos lados que o desenlace de uma

questão pode tomar. Mas também pode significar a ausência de amor, de paixão pela verdade, a crença errônea de que se pode compreender a realidade sem amá-la, e como que por um olhar distante e blasé. Mas o juiz justo, se é neutro ante os interesses da partes, não é neutro ante o processo. Ele deve ter a paixão de encontrar a solução correta. É somente esta paixão de encontrar a verdade que nos poderá por na pista para um dia podermos ter a certeza de haver inteligido razoavelmente alguma coisa, tanto quanto o melhor da tradição milenar de ciência e filosofia que nos antecedeu poderia esperar de nós.

Antes de encerrar, eu gostaria de dar algumas explicações sobre a lista de nomes no Documento Auxiliar II: Marcos na História dos Estudos Aristotélicos. Com base nesta lista é que obteremos uma idéia sobre os progressos e retrocessos que a compreensão de Aristóteles foi tendo na história do pensamento. Dos autores aqui citados temos basicamente três tipos de estudiosos, que abordam o tema aristotélico desde três perspectivas e com três interesses diferentes. O filósofo que expõe, comenta e discute os textos de Aristóteles, desde o ponto de vista da sua importância propriamente filosófica. No século II, há, por exemplo, Alexandre de Afrodísia, que produziu um comentário de Aristóteles que vale até hoje. Com o mesmo interesse filosófico são redigidos os comentários de Sto. Tomás de Aquino. O filólogo, às vezes misto de historiador da filosofia; um sujeito que, sem ter a ambição pessoal de fazer uma filosofia própria ou de fazer avançar a filosofia, põe em ação um conjunto de recursos científicos que lhe permite estabelecer comparações históricas, avaliar o peso de cada palavra, reconstituir o texto na sua materialidade e no seu sentido. No século XX, um dos grandes exemplos é Werner Jaeger, homem a quem devemos um esplêndido trabalho de reconstituição biográfica da evolução do pensamento de Aristóteles. Com isso Jaeger mostrou que em nem todas as suas idéias Aristóteles acreditou ao mesmo tempo. Ou seja, que nem tudo o que está escrito nos seus textos pode ser exposto todo numa lousa como se fosse um sistema coerente e chapado, mas que algumas das idéias que estão nesses textos foram pensadas e depois abandonadas, refutadas pelo próprio Aristóteles. O filólogo faz o trabalho mais humilde e apagado, mas sem ele jamais poderíamos chegar à compreensão dos textos antigos. O sujeito que não é nem um filósofo expondo idéias de Aristóteles, nem um filólogo que procura aprofundar o conhecimento científico dos textos — mas apenas um filósofo que está desenvolvendo as suas próprias idéias e que acidentalmente esbarra em Aristóteles e, em função da sua filosofia pessoal, se posiciona, a favor ou contra. Como exemplo cito aqui John Locke, famoso chefe da escola empirista inglesa. Ele não discute propriamente Aristóteles, mas, desenvolvendo a sua própria filosofia, reforça certos aspectos da filosofia aristotélica e enfraquece outros, disso resultando que as gerações seguintes passam a ler Aristóteles de uma nova maneira, isto é, à luz das idéias do pensador mais recente. Na época de Locke surge o grande debate da filosofia entre

racionalistas e empiristas. Para a escola racionalista (Spinoza), a razão, o puro raciocínio é a principal fonte do conhecimento, e a experiência real pouco nos revela sobre a realidade das coisas. Para a escola empirista, exatamente o contrário: a principal fonte de conhecimento é a experiência e os padrões racionais com que julgamos a experiência são, eles mesmos, produtos da experiência. Estas duas escolas, que dominam o debate filosófico durante dois séculos, como se verá em qualquer livro de História da filosofia, são como duas metades de uma laranja aristotélica, porque Aristóteles era as duas coisas ao mesmo tempo — empirista e racionalista. Só que, a partir dessa época, a laranja é partida, e os dois lados que em Aristóteles estavam tão bem sintetizados se separam de maneira antagônica. Tanto racionalismo quanto empirismo são filhotes de Aristóteles, mas filhotes hostis entre si, repetindo um Leitmotiv da história humana, o motivo dos gêmeos inimigos, como Esaú e Jacó. Estudando a filosofia deste período de John Locke e Spinoza, século XVII, não na perspectiva geral da história mas na perspectiva dos estudos aristotélicos, entendemos que esta bipartição entre racionalismo e empirismo determinou uma mudança na visão que a cultura européia tinha de Aristóteles. Dentro desta categoria dos que fizeram de temas aristotélicos um aproveitamento próprio dentro de seus objetivos filosóficos pessoais, é bom destacar uma subespécie: O sujeito que pega alguma idéia aristotélica, citando ou não a origem, e a aplica a um setor determinado do conhecimento, no qual essa idéia se torna dominante. Por exemplo, quando, na entrada da Idade Moderna, alguns juristas procuravam separar os domínios do Direito e da Religião, era natural que buscassem em Aristóteles os fundamentos da idéia de direito natural. Só por este fenômeno, representado por exemplo por Hugo Grotius, vocês vêm como é errada a visão que identifica aristotelismo com Idade Média: a importância da contribuição de Aristóteles para o pensamento medieval não é maior nem menor do que a que ele deu às novas idéias científicas, jurídicas, estéticas, criadas a partir do Renascimento. Há, enfim, um Aristóteles para cada gosto, e, querendo ou não, ele tem dado e tirado reforço a praticamente todas as escolas de pensamento há vinte e tantos séculos. Para encerrar, espero que vocês tenham compreendido que este curso não será somente uma introdução ao pensamento de Aristóteles, mas também aos estudos aristotélicos, seja do ponto de vista filosófico, seja histórico-filológico. Espero que este curso abra para vocês um leque de caminhos para esses estudos.

Pensamento e atualidade de SEGUNDA Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição Heloísa

Aristóteles AULA

de: Madeira

João e Kátia Torres Ribeiro

Carlos

Madeira

1a parte

NB - As explicações introdutórias sobre o historicismo, um tanto repetitivas, acabaram tomando toda a primeira metade de aula em razão de perguntas dos alunos. Como o intuito destas apostilas é documentar o mais fielmente possível a exposição oral, julguei melhor conservar toda a transcrição dessa parte, que numa versão em livro seria drasticamente abreviada. O leitor que preferir saltá-la poderá ir direto para o parágrafo "Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles", sem prejuízo da compreensão do argumento central. – O. C. A multiplicidade de visões a respeito de Aristóteles é causada pelo fato de que cada estudioso toma como centro da sua reexposição ou reconstrução do pensamento de Aristóteles os pontos que lhe parecem mais importantes, sem perguntar se o próprio Aristóteles concordaria. Às vezes duas interpretações opostas são coincidentes no sentido de que, opondo-se sobre um mesmo tópico, ambas fazem dele o ponto de partida para suas respectivas reconstruções. Para exemplificar isto, podemos partir de dois pólos extremos, das duas interpretações mais antagônicas. Estas são, de um lado, o trabalho de Franz Brentano, da metade do século passado; do outro, o trabalho de Werner Jaeger. Brentano é o protótipo dos que procuram tomar a filosofia aristotélica como um sistema perfeito e acabado, como um todo fechado, quase numa visão estruturalista. Jaeger é um filólogo do século XX, que reconstruiu através dos textos o que teria sido a evolução biográfica do pensamento de Aristóteles. Ora, entre um pensamento que se surge como um sistema perfeito e acabado e um pensamento que evolui no tempo, através da luta do filósofo consigo mesmo, dificilmente podemos ter uma conciliação perfeita. Vai ter de haver uma arbitragem entre as duas visões. A mim me parece que as duas interpretações antagônicas são igualmente possíveis e úteis. Não precisamos optar entre elas e também me parece que é um pouco nonsense este debate que por quase cem anos ocupou os estudos aristotélicos, para saber se a filosofia de Aristóteles é um sistema ou algo que evoluiu no tempo. Certamente ela é as duas coisas. Então usaremos uma dessas interpretações como antídoto da outra, e vice-versa. Em seguida, esbocei os princípios do método que aqui será usado. O primeiro aspecto deste seria tentar conciliar todas as perspectivas opostas possíveis a respeito de Aristóteles. Pegá-las todas como exemplos de visões possíveis e tentar chegar a uma síntese em que nada de substancial se perca. Em segundo lugar, teríamos de compensar a relativização historicista. O que vem a ser isto? É o seguinte: no momento em que estamos vivendo, as posições que tomamos, as opiniões que temos, nos parecem decisivas para os fins da vida real. Quando passa muito tempo e aquelas questões já não são mais atuais, as tomadas de posição começam a ser relativizadas: eram tomadas em

termos absolutos, agora são tomadas em termos relativos à situação de dentro da qual surgiram, e referidas a um momento que já passou. Não somente as opiniões são relativizadas, mas as próprias questões a que elas respondem também. Por exemplo, se você tomar um conflito histórico entre católicos e protestantes tal como aparecia quatro séculos atrás, verá que hoje pode nos parecer que as tomadas de posição que para aquelas pessoas eram fundamentais e absolutas para nós são meramente secundárias e relativas. A questão, para nós, já não é optar entre catolicismo e protestantismo, mas compreender por que aquelas pessoas tinham de fazer essa opção. A questão tornou-se para nós, por assim dizer, metalinguística: questionamos a questão, em vez de tentar resolvê-la. Outro exemplo: durante cem anos assistimos a um conflito entre capitalismo e comunismo, e, na hora em que um deles praticamente se dissolve, parece que a questão também se dissolve, e já nos parece distante e inverossímil que ela tenha parecido tão urgente, tão vital a milhões de pessoas. No confronto com o comunismo, quanta tinta não rolou, quantas palavras não foram proferidas, quantas posições não foram tomadas em milhares de setores derivados, em função deste conflito básico que determinava o enfoque principal? Não só era preciso optar entre capitalismo e comunismo, como esta opção determinava as soluções que dávamos a questões de ordem ética, estética, prática, etc. Num transcurso de dez anos, a questão já não parece essencial. Para que nós entendamos que as pessoas tenham podido discutir, emocionarse, matar e morrer por essa questão, temos de referi-la à situação da qual nasceu. Com isto, tudo fica relativizado. Relativizado quer dizer referido ou condicionado a uma situação. Estas tomadas de posição que para aqueles indivíduos eram tão importantes, para nós só existem relativamente a uma situação que não existe mais. Ora, se adotamos só e exclusivamente esse enfoque para as questões da filosofia, estas se tornam também meros dilemas vividos por homens do passado, e não são mais questões vivas para nós. É por isto que, ao menos em história da filosofia, o historicismo tem graves inconvenientes. O historicismo é uma filosofia que, pretendendo tudo explicar pela história, torna irrelevantes todas as questões fundamentais. Pois, se todas as questões só têm importância quando referidas a uma determinada situação no tempo, então as atuais também não terão importância daqui a algum tempo. Para o historicismo, todas as questões e todos os conhecimentos são gêneros perecíveis. É verdade que o interesse pelas questões e a forma de concebê-las muda com o tempo, mas não se pode elevar a critério teorético esse simples fato consumado. De um ponto de vista teorético, duas questões, uma colocada por um pensador do séc. V a. C., outra colocada por nós hoje, podem ser rigorosamente a mesma, se as essências designadas por seus conceitos forem as mesmas, pouco importando a passagem do tempo e as diferentes maneiras de "sentir" a questão nas duas épocas: a demonstração do teorema de Pitágoras é a mesma para Pitágoras e para nós. A abolição da esfera teorética e sua absorção na esfera do fato consumado são os erros do historicismo. É em razão destes erros que o historicismo desvia o eixo das questões, dos objetos sobre que elas versam para as motivações psicológicas, ideológicas, etc., que levaram os homens a se interessar por elas, e isto produz às vezes confusões temíveis. Se você pegar duas teorias científicas opostas, por exemplo, no famoso debate em que se envolveu Pasteur a propósito da geração espontânea -- como surgiam os microorganismos? -- , verá que, segundo uma teoria

vigente na época, apareciam sozinhos, brotavam do nada. Pasteur dizia que não, que tinha de haver determinadas condições prévias para que eles pudessem surgir. Esta questão hoje para nós está resolvida. Ora, quando Pasteur e seus adversários tomavam posição, faziam-no em função do problema dos microorganismos, e não em função do problema de como interpretar sua época histórica. Como para nós o problema dos microorganismos está resolvido, e só nos resta compreender a época histórica de Pasteur, de certa forma invertemos a questão e a colocamos de cabeça para baixo. O que era importante para os personagens não é mais importante para nós. As idéias em jogo, para nós, só têm importância como expressões de um determinado momento histórico, e não em si mesmas. Ora, se levarmos esta posição às últimas consequências, todas as doutrinas científicas, inclusive matemáticas, nunca mais dirão respeito à realidade objetiva que elas estão discutindo, e serão apenas expressões das idéias que as pessoas tiveram num certo momento. No entanto, está claro que a demonstração que Pasteur fez da inexistência da geração espontânea continua teoreticamente válida hoje exatamente como no momento em que ele a apresentou pela primeira vez, e sobre a veracidade teorética -- ou falsidade teorética -- de uma demonstração a passagem do tempo não exerce a mais mínima influência. É esta intemporalidade das verdades teoréticas que o historicismo faz perder de vista, como se uma conta de 2 + 2 = 4 devesse ter diferentes resultados em distintas épocas históricas. Se você pegar a geometria de Euclides, do ponto de vista historicista não interessa saber se ela está certa ou errada, mas só a correspondência entre aquela geometria e as demais idéias vigentes naquele tempo. O resultado é que o historicismo acaba por abolir todas as ciências, menos a história, ou pelo menos por submeter todos os critérios científicos de veracidade à veracidade histórica. Por exemplo, as doutrinas filosóficas, doutrinas sobre a física, sobre as ciências da natureza, sobre as fórmulas matemáticas - são todas relativizadas, referidas a momentos no tempo. Mas acontece que doutrinas matemáticas não dizem respeito à história, e sim a entidades matemáticas. Doutrinas físicas também não dizem respeito à história, mas ao mundo físico. Se nós, estudando doutrinas físicas do passado, as encararmos apenas como expressões do momento histórico, nunca podemos esquecer que aqueles que as emitiram não tinham esta perspectiva, não as olharam por aí. Para um físico do século XVI, as idéias dele não são sobre a história do século XVI, são sobre a natureza. O historicismo levado às últimas consequências esvazia as questões de modo que não faça mais sentido discutir se suas respostas estão certas ou erradas. Se um diz que a Terra é plana e outro que a Terra é esférica, naturalmente os dois pretendem ter razão, e certamente um deles tem, ou ambos têm, ou nenhum tem, objetivamente falando. No entanto, ambas as respostas provêm de um determinado quadro histórico, o que prova que o ponto de vista histórico não pode arbitrar esta questão. Do ponto de vista historicista interessa apenas que numa certa época havia um ambiente propício a que se pensasse que a Terra era plana, e que noutra época as condições inclinaram o homem a pensar outra coisa. Conhecer essas condições em ambos os casos não nos dirá se a Terra é plana ou esférica.

Para você entender isto mais concretamente, examine com os olhos de hoje as questões que foram problema para você dez ou quinze anos atrás, e veja como essas questões se tornaram indiretas e metalinguísticas. Se a moça vai casar com um sujeito, e chega alguém e diz: "Não case com este sujeito, ele é um vigarista, estelionatário, um Anão do Orçamento, etc.", ela chora, se sente muito mal, e tem de tomar uma posição. Ou aceita a denúncia, ou a rejeita. Naquele momento, tudo que lhe interessa é saber se aquela denúncia é verdadeira ou falsa, objetivamente falando. Mas vamos supor que na semana seguinte ela conhece outro sujeito mais interessante, casa com ele e esquece o primeiro. Aí aquela questão não interessa mais. Quanto mais tempo passe, menos interessará saber se o sujeito era estelionatário ou não, mas a moça pode ainda parar e pensar: "Por que naquela época eu sofri tanto com aquela questão?" Ela vai ter de explicar o interesse que teve por este problema em função do seu estado psicológico na época. Isto é que se chama relativizar historicamente. A questão perde a sua importância objetiva, é esvaziada e absorvida numa outra questão que já não diz respeito ao seu conteúdo objetivo, mas aos motivos subjetivos do seu surgimento. Então, do ponto de vista do historicismo, não interessa saber se a Terra é esférica ou plana, interessa saber por que, numa certa época, as condições culturais, psicológicas etc. levaram as pessoas a pensar que era plana, e em outra época que era esférica. Isto equivale a uma espécie de negação implícita de todas as formas de conhecimento que não sejam históricas. Uma tribo de índios pensa que fazendo determinada dança vai cair chuva. Numa outra época e noutro lugar, acha-se que a chuva cai por motivos completamente diferentes, de ordem eletromagnética. Historicamente, não interessa saber quem tem razão. Interessa só saber qual o elo de coerência entre estes dois pensamentos e os seus respectivos ambientes culturais. Ora, a dança da chuva tem raízes histórico-culturais tanto quanto as têm a explicação eletromagnética. Se conhecermos extensivamente essas condições para ambos os casos, ainda assim não saberemos por que cai a chuva. O ciência e o historicismo

advento

da histórica

O historicismo é uma maneira de ver que foi inoculada na mente ocidental no século passado, desde que se formou a ciência da história. A formação da ciência histórica a partir dos séculos XVIII e XIX, com Giambattista Vico, Edward Gibbon, Ranke, Savigny e outros gênios imensos, é uma das grandes conquistas da humanidade. Mas deixou um efeito colateral: o historicismo. A história como empirismo, como técnica prática, já era conhecida desde a antiguidade. Mas como ciência, tal como a conhecemos hoje, começa a ser formulada nos fins do século XVIIII e começo do XIX. É um progresso imenso do conhecimento humano. A partir daí, você vai adquirindo uma perspectiva temporal mais ou menos correta do que se passou antes. Começa-se a ter preocupação com a exatidão da reconstituição dos fatos, através de uma quantidade de técnicas de pesquisa histórica: crítica dos textos, dos testemunhos, epigrafia, numismática etc. – uma quantidade de técnicas de investigação histórica que se

aprimoram muito neste começo do século passado e montam este monumento que é a ciência histórica de hoje - uma ciência de enorme precisão, quase uma ciência exata. Mas junto com a formação dessa ciência vem o efeito colateral. Quando uma ciência faz sucesso, os outros ramos do saber querem imitá-la. Os modos de pensar que são característicos da ciência histórica acabam então contaminando todas as outras ciências e também a filosofia. Como acontecera antes com a física. Na Renascença, o sucesso de Newton, Galileu etc. contaminava todo mundo, todos começaram a pensar em termos físicos, levando os modelos da física para todos os setores do conhecimento. No século XX, todos pensam informaticamente. O sucesso, primeiro, da lógica matemática, e, depois, da informática, que é filhote dela, faz os modelos lógico-matemáticos e informáticos serem adotados para todos os fins e em todas as ciências: há modelos informáticos em biologia, em neurologia, em economia, em antropologia. No momento eles parecem ter uma força explicativa muito grande, parecem nos dar a visão da realidade mesma, mas no futuro eles também serão relativizados. Os modelos sempre ajudam em alguma coisa, mas criam o perigo do que chamo ilusão retroativa. O processo é este: Um indivíduo inventa uma máquina destinada a imitar alguns processos do cérebro humano. Esta máquina chama-se computador, e funciona. Retroativamente, começa-se a explicar o cérebro humano como se ele fosse uma imitação do computador, e não o computador uma imitação de cérebro. Isto aconteceu na Renascença com o aperfeiçoamento da arte da relojoaria. O relógio de bolso foi inventado pelos beneditinos na Idade Média. Na Renascença, começaram a vender relógio de bolso para todo mundo. Logo em seguida, começa-se a explicar o funcionamento do corpo humano como se ele fosse um mecanismo de relógio. O homem inventa um modelo imitado a partir de alguma função dele mesmo, e em seguida ele se explica a si mesmo por esta função, e a função pelo modelo que a imita. Um caso de aprendiz de feiticeiro. Fica fascinado pelo que ele mesmo inventou e acha que aquilo tem um poder explicativo, que o rabo é capaz de abanar o cachorro. Não podemos esquecer que todos os equipamentos e todas as ciências são invenções do homem. E como disse o Cristo: "O homem não foi feito para o sábado, e sim o sábado para o homem". A ciência também foi feita pelo homem para o homem e ele tem o direito de usar dela como bem entenda, e nunca pode esquecer que uma ciência é um conjunto de procedimentos que ele mesmo inventou para conhecer algo, e que poderão ser substituídos por outros amanhã ou depois se houver uma maneira melhor de conhecer aquilo. Portanto, não existe a ciência que possa ser modelo universalmente válido para as outras, nem modelo que possa explicar a coisa pela qual se modela. Métodos que foram inventados para estudar História, se aplicados para estudar outro assunto, podem render alguma coisa, mas nunca tão bem como para estudar a própria História. Mas ao longo dos tempos o que vemos é que toda ciência que faz sucesso imprime o seu modelo a todo o universo cultural. O historicismo é um filhote da ciência histórica. Ora, a ciência histórica não estuda a natureza ou os objetos matemáticos. Ela só estuda os atos e pensamentos humanos no decorrer do tempo. Se você tomar por exemplo o teorema de Pitágoras, verá que, por um lado ele expressa um conjunto de relações que se dão dentro de uma determinada figura geométrica - o triângulo

retângulo --, mas por outro lado, é um pensamento que um certo sujeito teve num certo momento da história. No historicismo, o primeiro aspecto, que chamamos objetivo, a relação entre os vários aspectos do objeto ao qual ele se refere (a relação entre os catetos e a hipotenusa), é comido pelo aspecto subjetivo ou histórico. Ao historiador pouco lhe interessa saber se a soma dos quadrados dos catetos dá o quadrado da hipotenusa ou o triplo do quadrado da hipotenusa. O que interessa é que num certo ambiente mental surgiu certo pensamento na cabeça de um tal Pitágoras ou de um grupo de pessoas em torno dele. O historicismo surge primeiro discretamente e depois vai penetrando e solapando todos os setores do conhecimento até chegar a um doidão chamado Antonio Gramsci, teórico do Partido Comunista, que inventou o "historicismo absoluto". Isto significa que todas as ciências, todos os conhecimentos são apenas expressões de momentos históricos e a única coisa que realmente vale é a história. Ele chega a abolir a noção de verdade objetiva. Não se pode dizer que 2+2=4; e sim que em tal época, em tal sociedade se pensou que era 4 porque isto era bom para a sociedade naquele momento. Gramsci é tido em alta conta por muitos. Mas quando você entra num esquema de pensamento como o de Gramsci, acaba não entendendo mais coisa nenhuma, e quanto menos você entende, mais misterioso e profundo ele parece, e quanto mais burro o discípulo fica, maior lhe parece o guru. É uma espécie de anti-educação. A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a compreender o pensamento do mestre às vezes melhor do que ele mesmo tinha compreendido, para que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo de algum modo. Tudo que o homem faz é incompleto. Os homens morrem e por isto em suas obras fica faltando um pedaço, ou há contradições não resolvidas, etc. Então é preciso que a geração seguinte prossiga o trabalho, resolva as contradições, ou mesmo, se for o caso, reforme tudo. Ora, para prosseguir ou reformar o trabalho de alguém, é preciso compreendê-lo a fundo, e compreender para além dele, se possível. Mas hoje em dia há certas doutrinas filosóficas, ou melhor, ideológicas que não se destinam propriamente a ser compreendidas. Destinam-se a obscurecer as inteligências e a substituir a intelecção pessoal e direta por um sentimento de pertinência a um grupo ou partido ou igreja que é, ele sim, o sujeito coletivo encarregado de ter as intelecções. Assim, cada membro se dispensa de buscar a compreensão pessoal e as provas, seguro de que nos escalões superiores há sempre alguém que sabe o que ele não sabe. Antonio Gramsci é um protótipo do sujeito que não escreve para ser compreendido, mas para ser obedecido por quem não compreende. Aliás ele próprio também não se entendia, porque em seu pensamento não há propriamente o que entender, do ponto de vista teorético, mas somente o que obedecer. O historicismo absoluto é a absolutização do tempo. Ora, o tempo é uma relação entre momentos. Então, o historicismo absoluto é a absolutização do relativo, ou a relatividade absoluta, ou a relativa absolutidade. E o que quer dizer isto? É uma proposta que não pode ser compreendida. Se os elementos da relação nada são em si mesmos e considerados fora da relação, então é a relação que os constitui, mas como poderia uma relação entre nada e nada produzir alguma coisa? Gramsci, como

muitos outros marxistas, confunde relação e totalidade. Dissolve as substâncias individuais numa rede de relações que é tomada, em si e por si, como a verdadeira realidade, como se uma relação considerada independentemente de seus elementos não fosse apenas uma abstração lógica. A "História" é assim divinizada como única realidade, como se toda história não fosse história de alguém, como se uma história pudesse ser sujeito de si mesma. Mas o gramscismo já é o historicismo febril. É claro que o historicismo não é todo loucura. É um dos grandes movimentos de idéias do Ocidente moderno, uma coisa digna de todo respeito. Porém tem seus limites. Só serve para você entender história, saber por que os homens pensaram isto ou aquilo em determinado momento, mas não para entender os objetos a respeito de que eles pensaram. Senão, seria admitir que a história comeu todas as demais ciências. Ela passa a ser física, fisiologia, matemática - tudo, enfim: uma única superciência que abole todas as demais. Mas, se a história tem a pretensão de ser a ciência universal e come todas as outras, cada ciência vizinha pode ter a mesma pretensão. Que campos na realidade estão dentro de quais, quais estão contíguos, quais hierarquizados - isto é problema grave, não pode ser resolvido na base de uma ciência comer outras. Se o historiador acha que a ciência dele é suprema, o físico tem o mesmo direito de achar que o fundamento de tudo está na física, e que a história não é senão uma pseudociência. Chega um terceiro e diz: "Não é nada disto, é tudo um problema de linguística. Porque para falar de física e de história vocês usam signos". Aí pega as leis da gramática e mostra que todas as proposições da física e da história não passam de arranjos gramaticais e semânticos - e é uma verdade, tanto quanto é verdade que as leis da física são acontecimentos históricos e que os acontecimentos históricos se desenrolam num mundo regido pelas leis da física. Estes são os vários imperialismos das várias ciências, cada um querendo comer o outro. Assim como há o historicismo, temos o fisicismo, o linguisticismo, o matematicismo etc etc. Cada uma destas hipóteses faz sucesso porque obtém alguns resultados bons - mas depois começa a ampliar desmesuradamente seu campo de aplicação até virar uma metafísica, ou pseudometafísica. É claro, no entanto, que nenhuma ciência em particular pode, por si, fundamentar uma metafísica. Imaginem então o que o historicismo não faz com alguém que morreu há mais de dois mil anos. Se ele relativiza até o que está acontecendo hoje, imagine o que se passou tanto tempo atrás. Você pega tudo que o sujeito falou, coloca numa distância formidável, refere tudo ao meio histórico-social, psicológico etc., e reduz todo o pensamento dele a um acontecimento histórico que se deu numa outra cultura, num outro tempo, com outros interesses, e que afinal de contas não é verdadeiro nem falso porque naquele tempo os padrões de veracidade e falsidade eram outros que não os de hoje, isto torna impossível discutir se afinal de contas Aristóteles ou Platão ou outro qualquer tinha razão naquilo que afirmava. Porém um pensamento que já não podemos julgar verdadeiro ou falso não tem mais importância efetiva, é apenas uma curiosidade histórica, uma peça de museu tornada inútil e incompreensível. O historicismo pode, por essa via, chegar a nivelar descobertas valiosas e bobagens puras, achatando a ambas como "fatos históricos". Aristóteles, por exemplo, foi quem inventou a lógica tal como a

concebemos. Ele inventou quase todas as ciências que conhecemos - a história da filosofia, a biologia, a fisiologia, a anatomia; toda a nossa nomenclatura de ciência é uma criação de Aristóteles. Este mesmo sujeito que fez tudo isto, num dado momento declara que a mulher tem mais dentes que o homem. Um sujeito desta envergadura falando uma asneira destas! Pois, do ponto de vista historicista absoluto, vale a mesma coisa a contagem aristotélica dos dentes e o conjunto da ciência aristotélica, já que foi o mesmo Aristóteles que produziu ambas as coisas, no mesmo ambiente histórico e sob a ação das mesmas causas históricas. É claro que você pode explicar o surgimento da geometria na Grécia em função das condições culturais ambientes. Mas isto explica a origem da geometria, não seu valor cognitivo. Este só pode ser avaliado por meios geométricos, não históricos. Como faço para saber se o teorema de Pitágoras está certo? Estudo a origem histórica do teorema de Pitágoras ou a demonstração geométrica desse teorema? Saber quais as condições em que foi gerada a idéia nada me diz sobre se ela é verdadeira ou falsa. As idéias falsas têm uma origem histórica, tal como a têm as verdadeiras. No dia em que Aristóteles atinou com a estrutura do silogismo - o raciocínio em três etapas, em que dadas duas premissas, tira-se uma conclusão - devia haver alguma condição externa, psicológica que o predispunha a isto. E no dia em que contou errado os dentes da sua mulher, também. Teve causa a primeira como a teve a segunda coisa. Historicamente dá na mesma explicar a asneira ou a grande descoberta. Há um grande repertório destas asneiras. Sto. Anselmo diz que, plantando-se um escorpião, nasce uma vaca. Santo Anselmo é um dos grandes gênios da filosofia, e fala uma coisa destas! Há para isto alguma causa histórica e biográfica, como as há para os sutis argumentos metafísicos que o mesmo Anselmo produziu num momento de mais lucidez. O ponto de vista histórico só diz o que as pessoas fizeram, porque fizeram e com que fins. Não diz se as ações e as idéias são sensatas ou insensatas, se estão certas ou erradas. Outros sociologismo e antropologismo

preconceitos:

Do mesmo modo, mais tarde, quando se desenvolvem as ciências sociais, sociologia e antropologia, também surge um imperialismo destas. Você refere tudo ao quadro social, às famosas classes sociais, proletariado, burguesia etc. Dá para você pegar todo o conjunto do saber de um determinado momento e referi-lo à estrutura de classes, encontrar as analogias entre ele e a ideologia da classe dominante. Assim. tomando meras analogias estruturais como se fossem nexos de causa e efeito, você pode "provar" que existe uma biologia burguesa, uma física burguesa, como existe uma biologia proletária, uma fisiologia proletária e assim por diante. Desde que usado com modéstia e articulado com outros critérios, o critério das classes sociais pode ser esclarecedor, até certo ponto. Certas maneiras típicas de montar o universo da ciência de fato parecem estar associadas a determinadas classes sociais. Vemos por exemplo que existe uma filosofia medieval, feita praticamente por membros

do clero (os universitários faziam parte do clero, a universidade era uma casta letrada separada do restante da sociedade), e isto produz um tipo de ciência. Mais tarde, começa a surgir um outro tipo de intelectual que já não está na universidade, o intelectual palaciano, da aristocracia, não mais do clero. Existe uma diferença de conteúdo entre a ciência de uns e outros, assim como uma diferença de estrutura global e de perspectiva. Portanto a hipótese das classes sociais não é um absurdo. Mas ela está evidentemente limitada por duas coisas: 1. As classes sociais não são o único fator que conta. Há, por exemplo, o fator nacional. Só um cego não percebe que, se há um saber burguês ou proletário ou clerical, há também um saber germânico, ou francês ou anglo-saxônico. 2. Saber se determinada descoberta científica é fruto da ciência clerical, aristocrática, burguesa ou proletária não me diz se essa descoberta é verdadeira ou falsa. Julgar a veracidade dos conhecimentos em função de sua origem social é cúmulo do sociologismo. Este sociologismo chegou a produzir alguns fenômenos grotescos no século XX. Na União Soviética a genética de Mendel até a década de 40 era proibida por ser genética burguesa. Havia um geneticista marxista chamado Lissenko, cujas teorias foram endossadas pelo Estado soviético a título de genética proletária. Lamentavelmente, neste caso, como aliás em tantos outros, a burguesia é que tinha razão. E hoje em dia ninguém mais fala em Lissenko, a não ser como exemplo do mal que o pensamento ideológico pode fazer à ciência. Tudo isto vem de que novas ciências que surgem e alcançam algum sucesso moldam a cabeça de todo mundo. O historicismo se torna tanto mais poderoso quanto mais distante no tempo está seu objeto. É mais fácil você ver uma idéia emitida 2.400 anos atrás como expressão de uma sociedade longínqua do que você se situar dentro dessa idéia para saber se é verdadeira ou falsa. Vamos supor que uma tribo pratica a dança da chuva. É mais fácil explicar a dança da chuva em função dos costumes e outras instituições dessa tribo que aprender a fazer a dança da chuva para ver se funciona. Depois que você explicou tudo aquilo antropologicamente, e reduziu tudo a uma projeção das instituições sociais sobre a visão da natureza, que aconteceria se se comprovasse que o raio da dança funciona mesmo? Então você já não precisaria explicar a dança em função do corpo de crenças daquela tribo, porque o que é verdadeiro o é para qualquer um, e evidentemente a eficácia da dança sobre a natureza deveria ser explicada por fatores físicos (ainda que de física mágica) e não por fatores sociológicos. Quando se estuda a Inquisição, há a história das bruxas que eram queimadas. Os inquisidores mandavam matar as bruxas porque estavam persuadidos de que a bruxaria funcionava, desencadeava efeitos físicos, podia matar pessoas ou destruir colheiras. Quem praticava bruxaria contra alguém era portanto homicida tanto quanto quem lhe desse facadas no estômago. Então chega o sociólogo, o antropólogo ou historiador e explica: são "crenças da época". Acreditamos portanto que todo o fenômeno da bruxaria e da sua perseguição pode ser compreendido dentro do campo sociológico, ou

antropológico, como mero fenômeno humano e subjetivo. Mas depois chega outro sujeito e estuda o problema da bruxaria por um outro ponto de vista, o da fisiologia. W. B. Cannon ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia com o estudo Mudanças Corporais no Medo, na Dor e na Raiva. Estudando o fenômeno da bruxaria com base nas descobertas fisiológicas de Cannon, Claude Lévi-Strauss mostrou como é realmente possível matar uma pessoa por meio de bruxaria. Então vemos que a prática da bruxaria não pode ser explicada somente pelas crenças ou ideologias de uma sociedade ou época, pois há nesse fenômeno uma objetividade física que é a mesma para todas as sociedades ou épocas. Aquilo que a história ou a antropologia relativizou, é reabsolutizado, revalidado pela fisiologia. A vacina contra tudo isto é entender que todas as ciências são legítimas no seu próprio campo e alguma coisa delas se pode aproveitar no campo vizinho, mas nunca tudo. Quanto mais distante no tempo e quanto mais estranha é a cultura de onde vem uma idéia, mais fácil é relativizá-la ou historicizá-a, justamente porque o sentido objetivo dessa idéia nos escapa; e, neste sentido, historicizar ou sociologizar essa idéia é apenas uma forma científica de ignorância. Danos que trouxe compreensão de Aristóteles

o à

historicismo nossa

O pobre Aristóteles, colocado 2.400 anos atrás, imaginem a desgraça historicista que fizeram com ele! Tanto que há quase duzentos anos no Ocidente moderno ninguém mais discute se esta ou aquela tese aristotélica é verdadeira ou falsa, sensata ou absurda. Só se discute a "interpretação histórica" de Aristóteles. E particularmente se discute se o sistema aristotélico é um todo fechado ou se, ao conrário, o pensamento de Aristóteles evoluiu no tempo. Enquanto isto, não se discute se o próprio conteúdo do pensamento de Aristóteles é verdadeiro ou falso. Estão trocando o estudo da filosofia de Aristóteles pelo da história da filosofia de Aristóteles. Todo estudo de filosofia do século XVIII para trás, em qualquer faculdade de filosofia deste país, é feito quase que exclusivamente pelo lado historicista. Todos os pensamentos perderam a atualidade e você só os estuda como expressões da sua época. Mas vale a pena você estudar os pensamentos que outros tiveram durante séculos para depois não saber se tais pensamentos são verdadeiros ou falsos? É claro que o estudo histórico tem sentido mas não tem sentido abolir todas as outras perspectivas em nome da perspectiva histórica, porque isto é afinal absolutizar o historicismo e esquecer que ele também é um produto histórico, relativo portanto. Jean Jacques Rousseau fez a teoria do bom selvagem: "O homem no estado de natureza era bom; veio a sociedade e o corrompeu." Podemos estudar isto do ponto de vista interno para saber se esta doutrina é verdadeira ou falsa, ou podemos estudá-la historicamente. Por que, nas condições da França de então ocorreu esta idéia na cabeça de Rousseau? Resposta: porque as pessoas viviam levando índios, inclusive do Brasil, para mostrar na França, e surgiu uma atmosfera simpática em relação aos índios. Fazia

um ou dois séculos que havia um crescente afluxo de índios para a Europa e Rousseau naturalmente viu um destes índios numa feira, ouviu o falatório e naturalmente lhe ocorreu a idéia. Então, você explica o surgimento da idéia em função do ambiente. Agora digam: a teoria de Rousseau é verdadeira ou falsa? Saber que Rousseau teve essa idéia quando viu um índio na exposição ajuda a julgar a veracidade da idéia? Se você se acostuma a estudar tudo do ponto de vista histórico, fica sabendo por que fulano pensou isto ou por que surgiu tal ou qual idéia, mas desenvolve uma atitude leviana em que não se interessa mais por saber se as idéias são verdadeiras ou falsas. Este é um dos principais motivos da fraqueza do ensino de filosofia neste país. As pessoas "curtem" as filosofias do passado esteticamente, preferindo umas, rejeitando outras, mas sem colocá-las jamais seriamente em exame quanto à sua veracidade. A filosofia aí tende a tornar-se um deleite mental, ou um depósito de argumentos para uso das ideologias, uma técnica retórica, deixando de ser um saber propriamente dito a respeito do real. A crença de que as idéias mesmas mudam de época para época é totalmente falsa. Há idéias que não mudam nunca, nem mesmo nas esferas mais relativas da vida. A esfera mais relativa é a esfera moral. As idéias morais variam, sim. Mas mostrem-me uma comunidade que tivesse entre seus valores e princípios a sua própria extinção ou a prática sistemática do assassinato, ou em que fosse proibida a procriação - isto não existe. Esses são princípios imutáveis, cósmicos, ou metafísicos, ou biológicos, como queiram, mas não são culturais. Não sendo culturais, não podem mudar com as mudanças de cultura. Mostrem uma comunidade onde fosse proibida toda e qualquer forma de comércio. Ou toda e qualquer forma de propriedade. Portanto, estas coisas correspondem a princípios imutáveis. Agora, se você investiga as formas de casamento, há mil e uma, conforme as culturas. Mas há alguma cultura onde não exista casamento de espécie alguma? Casamento, comércio, preservação da vida são princípios universais que nunca foram mudados em parte alguma e que, enquanto gêneros, não têm história, embora haja história das suas espécies. Assim como as relações entre o quadrado dos catetos e o quadrado da hipotenusa também não têm história. Tem história a descoberta desta idéia, mas não a idéia mesma. Não sei se esses princípios invariantes são leis naturais ou leis metafísicas - não caberia especular isto agora. Por enquanto tudo isto está dentro da discussão do método da história da filosofia. Vamos fazer o estudo histórico da filosofia de Aristóteles e para isto temos o o dever de fazer uma série de discussões metodológicas preliminares, deixando tudo bem esclarecido. Como parte deste método, digo que nem tudo dá para entender historicamente, que há pensamentos de Aristóteles que não podemos entender em função de sua época e nem da personalidade de Aristóteles e que só entenderemos se olharmos firmemente para seus objetos, situando-nos desde dentro dessas idéias e perguntando: isto é verdadeiro ou falso? Temos de nos colocar dentro do ponto de vista não somente da história, mas

da ciência à qual essa idéia pertence. O historicismo é um dos pais do relativismo generalizado que hoje impera. As pessoas estão seguras de que todas as idéias sempre mudaram e de que nunca houve idéia permanente ao longo de toda a história, e isto é completamente falso. Mas hoje passa como se fosse um verdadeiro dogma. Não interessa agora a discussão sobre o fundamento destes princípios imutáveis, se é ontológico, se é natural, - mas que eles existem, isto é óbvio. Konrad Lorenz diz que a perda da capacidade de perceber princípios universais é um sinal de decadência biológica, de degenerescência da espécie. Existem muitas outras leis e outros fenômenos cuja universalidade às vezes nos espanta. Por exemplo: em quase todas as línguas do mundo a palavra pai e a palavra mãe têm as mesmas raízes. A letra M em mãe é universal. Em pai, BPV ou F, que são variantes do mesmo som. Se tudo é produto da história, da mudança cultural, como se explica essa universalidade? Mostre uma língua que não tenha as categorias de verbo e substantivo. Ou que não tenha sujeito e objeto. Não existe, é impossível. Todas as línguas têm uma história mas nem tudo nas línguas tem história. O historicismo é um movimento recente. Historicamente, o que tem duzentos anos é recente. Importante é que ele é vigente ainda, e determina a maneira de as pessoas pensarem. As pessoas acreditam naquilo como se fosse a realidade mesma e, pior, como se todo mundo sempre tivesse pensado assim. Tudo o que a gente não sabe de onde surgiu nos parece a realidade mesma. O valor dogmático do historicismo provém de que ele esquece que ele mesmo é uma moda histórica. O nos aristotélicos. Sua origem.

exagero

historicista estudos

Por outro lado, não podemos esquecer que, nos estudos sobre Aristóteles, o historicismo surge em reação a uma espécie de exagero contrário - o exagero sistematista. Aconteceu o seguinte: Aristóteles escreveu basicamente três tipos de escritos; os que se destinavam à publicação, dos quais se tiravam várias cópias; os escritos que eram apostilas e anotações de aulas, destinados aos alunos; e alguns escritos que eram para seu próprio uso. Destes três tipos, só o segundo sobreviveu - as anotações de aula. Os outros dois tipos, pessoais e publicados, desapareceram. Isto quer dizer que aproximadamente uns cinquenta anos depois da morte de Aristóteles os livros publicados dele já estavam começando a desaparecer; mais tarde não sobrou nada. No começo da era cristã, séculos I, II, só tinham sobrado os tratados, os textos científicos que eram usados em aula. Ora, a evolução que o pensamento de Aristóteles vai sofrendo ao longo do tempo se manifestaria sobretudo na diferença entre os rascunhos da maturidade e os escritos publicados, obras da juventude. Destas só sobraram fragmentos e citações. Ora, se desapareceram os escritos da juventude, você não tem mais traços de uma evolução, só aparece o produto final. Então, tem-se a impressão de que Aristóteles nasceu com sua filosofia pronta e acabada. O sistema está pronto e não se compõe de partes que se vão dialeticamente formando ao longo do

tempo; compõe-se não de partes sucessivas, como numa história, mas de partes simultâneas como num organismo. Toda a interpretação medieval de Aristóteles é feita exclusivamente em cima dos tratados e é uma interpretação organicista, vê o pensamento de Aristóteles como se fosse um organismo completo. Foi só depois, com a redescoberta de fragmentos de escritos de juventude e com a reconstituição a partir destas citações que foi possível ver que Aristóteles nem sempre tinha pensado assim. E daí surge a idéia historicista, que por sua vez tende a se absolutizar e a negar qualquer caráter orgânico e sistêmico ao pensamento de Aristóteles, subdividindo-o em "fases" que são como que várias filosofias diferentes. O confronto das duas maneiras de pensar se dá sobretudo nos dois últimos séculos. Com as primeiras conquistas da ciência histórica nascente, naturalmente aparece uma interpretação historicista de Aristóteles contra a qual reage Franz Brentano. Este produz aos 24 anos de idade - caso de precocidade raríssimo em filosofia - a melhor exposição da organicidade, da unidade do pensamento de Aristóteles no livro Da Significação do Ser em Aristóteles, que se torna o texto clássico desta interpretação. No nosso século, na década de 20, aparece a obra de Werner Jaeger que representa a outra corrente, ou seja o historicismo. Estamos cercando Aristóteles por fora - até agora nada falei doconteúdo do pensamento de Aristóteles. Estamos falando primeiro do que os outros pensaram que ele era. Por isso digo que é um personagem múltiplo e ao longo da história foram sendo criados novos Aristóteles, de acordo com interesses de época. Para corrigir este desvio historicista, temos de fazer um recuo em sentido contrário ao que faz o historicismo. Este faz com que as idéias, referidas aos seus momentos no tempo, recuem e fiquem distantes de nós, percam a atualidade. Teríamos de fazer o contrário, revigorar sua atualidade, olhando-as não como idéias surgidas num determinado momento no tempo, mas como idéias que fossem válidas para nós agora. Ou seja, não basta perguntar o que nós hoje pensamos do que Aristóteles pensou há 2400 anos atrás, mas também o que Aristóteles pensaria de nós hoje. E esta opção não é impossível. Aristóteles era gente, pertencia à mesma espécie biológica que nós, não podia ser tão radicalmente diferente de nós e não tem sentido fazer que o distanciamento temporal de dois seres se sobreponha à sua identidade de espécie. Ou seja, entre um boi antigo e um boi moderno pode haver muitas diferenças. Um pode ter mais proteínas, ser mais cuidado, de uma raça que se formou depois - mas no fundo é tudo boi. Aristóteles é gente como nós esta é a primeira exigência do nosso método. Em segundo lugar, Aristóteles, como qualquer ser humano, vivia no tempo e sabia que ia morrer e que depois disto ia continuar a existir gente neste planeta. Portanto, como todo ser humano, ele deveria ter alguma expectativa sobre o que deveria acontecer depois. Se prolongarmos, ampliarmos esta expectativa por 2400 anos, obteremos o julgamento que Aristóteles faria de nós, assim como podemos nos julgar partindo das expectativas que tínhamos quando crianças ou adolescentes. Este método de fazer com que o julgamento seja de dupla via é o único que pode pode dar equilíbrio e senso de justiça às nossas conclusões. Se absolutizamos um ponto de vista, o do "nosso" tempo, relativizando todos os outros

tempos - o que estamos fazendo? Criamos uma espécie de cronocentrismo. Fala-se muito em etnocentrismo, mas pior é o cronocentrismo - achar que o nosso tempo é soberano, como se antes dele não houvesse existido outros e como se ele não estivesse destinado a passar também. Não basta ver as outra épocas com o olho da nossa, temos de ver a nossa com os olhos das outras, senão ficamos cegos, perdemos o fio da continuidade da existência humana. Para fazer estas duas operações é que fiz a lista dos estudos aristotélicos. Vamos estudar brevemente, antes de entrar no conteúdo do pensamento de Aristóteles, a evolução do que pensaram sobre ele ao longo do tempo, examinar por onde o olharam, que questões se levantaram, o que pareceu importante e desimportante, essencial ou acidental na sua obra em cada época. Como o remontaram ou dsmontaram e que soluções deram aos pontos obscuros da sua doutrina. A variação aí é tão grande que podemos ir não só da escola sistematista para a historicista, mas podemos levantar ainda um outro contraste. Durante muito tempo o pensamento de Aristóteles pareceu o sistema mais completo que existia. Hoje em dia a tese dominante é a de Pierre Aubenque, que diz: "O pensamento de Aristóteles é incompleto e incompletável". Como viemos parar longe de Brentano! Afinal, o pensamento de Aristóteles é um organismo que se formou e evoluiu no tempo ou é uma estrutura firme e acabada desde o princípio? É um sistema completo e fechado ou é o esboço de um plano que não chegou a se realizar? É um sistema completo ou um projeto incompletável? No confronto entre sistematistas e historicistas, completistas e incompletistas, a impressão que fica é que é impossível entender Aristóteles. As pessoas o entendem das maneiras mais diversas. Um lê: "Aristóteles diz que isto é quadrado". E outro: "Ele assegura que é redondo." E um terceiro: "Ele diz que é um triângulo." Isto é para dar uma idéia de como achar a verdade pode ser difícil.

Pensamento e atualidade de SEGUNDA Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro

2a parte

Carlos

Aristóteles AULA

de: Madeira Madeira

Aristóteles não na Grécia

aconteceu

Vamos começar por ver a imagem de Aristóteles no tempo dele mesmo. Quase todo o seu trabalho foi desenvolvido ou na Academia ou na escola que ele fundou num lugar chamado Liceu, nome que depois se torna a designação de escola mesma. Somente uma parte das idéias dele circulou fora da Academia e do Liceu. Na Academia ele dava cursos de retórica e chegou a ser famoso nesse campo durante algum tempo. Mais tarde, funda uma nova escola de retórica, ainda antes de fundar o Liceu. (ver Cronologia, em Documentos Auxiliares I). Aristóteles permaneceu vinte anos na Academia, dos dezenove aos 38, quando se dirige a este lugar chamado Atarna, governado por um amigo seu chamado Hermias, com cuja sobrinha ou irmã - não se sabe ao certo -, chamada Pítias, virá a se casar. O ensino propriamente dito começa aos 49 anos. Isto dá o que pensar. Decorreram trinta anos de estudos e preparações antes de ele fundar sua própria escola. Dentro da Academia, ele se incumbia de algumas matérias, mas menores - retórica e dialética. Depois funda uma escola, mas ainda de retórica, não uma escola filosófica. Portanto, Aristóteles sentiu-se firme para fazer a transmissão sistemática de suas idéias só trinta anos depois de ter começado seu aprendizado filosófico. Esta duração permanecerá como uma instituição até a Renascença. Um professor universitário, na Idade Média começava a ensinar mais ou menos aos 49 ou cinqüenta anos. O período de formação era de trinta anos. Não só o trabalho filosófico de Aristóteles teve pouca difusão, ao contrário de suas obras literárias ou retóricas, mas também Aristóteles, ao contrário de Platão, teve muito azar com os discípulos. Nunca teve discípulos à sua altura. A Academia platônica continua atuando séculos além da morte do mestre, até depois da era cristã, quando surge o neoplatonismo. O Liceu morre praticamente com Aristóteles. Continua existindo institucionalmente, a escola funciona por mais dez ou quinze gerações de diretores que se chamavam escoliarcas, porém nenhum deles tinha o menor talento para manter o nível de ensino e de pesquisa do mestre. Além do fato de Aristóteles ser estrangeiro, é preciso levar em conta que ele teve algumas atitudes consideradas desagradáveis por seus colegas. Ele é rodeado desde o início por uma hostilidade que se expressa seja através do silêncio, seja através do ataque direto, seja através da calúnia e da intriga. Estas vêm sobretudo com a escola epicúrea. Epicuro era um contemporâneo de Aristóteles e hoje, pela reconstituição dos textos, vemos que da obra aristotélica só conhecia a parte publicada, não filosófica. Todas as opiniões que Epicuro emite sobre Aristóteles não são, pois, sobre o Aristóteles que conhecemos. Vemos Epicuro discutindo certas idéias aristotélicas que nós não conhecemos pelos textos. Que Aristóteles era este que Epicuro discutia? Era o platônico. Os primeiros escritos de Aristóteles, literários, eram pura divulgação da Academia. Neles exortava as pessoas ao estudo da filosofia e louvava a atividade da Academia platônica. Ou seja, o Aristóteles

dos contemporâneos era um platônico que, sendo professor de retórica, tendia a assumir na defesa da escola uma atitude polêmica e um pouco incômoda. O aristotelismo como movimento filosófico é tardio. Começa a se formar timidamente nos séculos III e IV da era cristã, isto é, sete séculos depois da morte de Aristóteles (já tive aliás um arranca-rabo com um cretino da SBPC que afirmava que nesses séculos ninguém tinha lido nada de Aristóteles, quando ele é que não tinha lido nada) . É um fenômmeno mais ou menos como o que ocorreu com Leibniz, filósofo do século XVIII cuja obra só começa a se tornar mesmo conhecida a partir do século XX. Ele também tinha escritos de ordem mais popular e outros mais técnicos. Na sua época foram publicados os primeiros, formou-se uma imagem de um determinado Leibniz, justamente o que é caricaturado por Voltaire no personagem do Dr. Pangloss, em "Candide". Quando Leibniz já estava mais ou menos esquecido e enterrado sob a figura do Dr. Pangloss, abrem-se as gavetas e começam a surgir manuscritos. Esta descoberta propicia uma série de avanços sobretudo na filosofia da matemática, na metodologia da física etc. Leibniz provoca uma revolução dois séculos depois de falecido. Com Aristóteles esta revolução póstuma não acontece antes de sete séculos. Aí está a primeira retificação que devemos fazer da sua imagem histórica. Aristóteles não é um fenômeno grego. Na Grécia não aconteceu nenhum Aristóteles. Aconteceu um fato insignificante: havia uma escola de retórica chefiada por um estrangeiro meio incômodo que fazia propaganda do guru dele, Platão, e que acabou indo embora da cidade. Isto é praticamente o que se sabia de Aristóteles na Grécia nos séculos que se seguiram à sua morte. Se compararmos a influência decisiva de Aristóteles na civilização cristã da Idade Média até hoje com aquela que ele exerceu na Grécia, não é errado concluir que, na Grécia, praticamente não existiu nenhum Aristóteles, e um aristotelismo não existiu de maneira alguma. Se hoje podemos dizer como Émile Boutroux (autor da pequena biografia que anexamos aos textos deste curso) que Aristóteles é a máxima expressão do gênio grego, seremos obrigados a concluir que o gênio grego, desconhecendo Aristóteles, se desconheceu a si mesmo. Aristóteles não é propriamente uma expressão do gênio grego, é uma semente do gênio grego que não frutificou na Grécia. Aristóteles não faz parte da autoconsciência grega. Faz parte do subconsciente grego. Era uma riqueza latente que foi desconhecida na própria Grécia e desenterrada depois, já na Idade Média, primeiro no mundo islâmico, depois na Europa. Este detalhe é de uma importância extraordinária e ninguém leva isso em conta. Todo mundo imagina Platão e Aristóteles como sendo as colunas mestras da civilização grega. Ora, Aristóteles na civilização grega não desempenhou função alguma. Não serviu para nada. Começou a servir muito tempo depois numa outra civilização, ou antes, em duas outras civilizações que ele fecundou com a herança do seu gênio e que aproveitaram essa contribuição cada qual segundo sua inclinação peculiar, gerando dois aristotelismos (e dois anti-aristotelismos) bem diferentes entre si. Se você disser que o platonismo foi um pilar na civilização grega nos seus últimos quatro séculos, isto é verdade. Mas o aristotelismo não. Só funcionou ali

como uma pequena extensão da escola platônica, sem projeção própria e quase sem fisionomia própria. O de Aristóteles

legado confusões

grego sobre

Isto é origem de muitas confusões. Porque, quando um filósofo é muito lido, muito discutido por pessoas inteligentes e discípulos hábeis, em vida, ele tem ocasião de se explicar muito bem sobre pontos obscuros. Como aconteceu com Platão. Já nas primeiras obras de Aristóteles vemos certas objeções que ele tinha à famosa teoria das idéias de Platão. E no último livro de Platão - o diálogo Das Leis, que não é bem um diálogo mas um tratado - já existe um princípio de reformulação da teoria das idéias, que Platão faz levando em conta as objeções de Aristóteles. Portanto podemos entender que o pensamento platônico, recebido e trabalhado por um discípulo particularmente brilhante, pôde se reformar e ser melhorado em vida do próprio mestre. Isto se deu tardiamente, pois Platão tinha mais de 80 anos quando escreveu as Leis, motivo pelo qual é um livro que já não tem o brilho literário e teatral das primeiras obras, mas é algo seco, árido e muitíssimo profundo. É o livro mais importante de Platão, a meu ver. A República foi escrita quando ele tinha cinqüenta e poucos anos e é uma exposição provisória. É no livro das Leis que vemos a potência do platonismo como filosofia capaz de evoluir e ir-se completando. Ora, esta potência surge justamente porque Platão mais jovem tinha encontrado um discípulo capaz de discutir as idéias e apontar as partes faltantes e eventualmente as contradições, de modo a estimular a continuação da investigação. Isto nunca aconteceu com Aristóteles. Podemos dizer que suas idéias não foram discutidas, pelo menos com profundidade, nem mesmo dentro do Liceu. Dentre seus discípulos, o mais inteligente e brilhante parecia ser Teofrasto, que escreveu uma exposição da Metafísica de Aristóteles que mostra um suficiente domínio do assunto. Escreveu também um livro que depois ficou clássico, Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos humanos, que poderia ser considerado parte da retórica, que é uma psicologia da comunicação entre grupos e tipos sociais. Porém quando dizemos que o melhor dos discípulos, o mais inteligente, não fez mais que uma reexposição e não um aprofundamento, temos de entender que entre os discípulos de Aristóteles não havia um pensador mais enérgico, mais criador. Aristóteles não teve esta sorte de encontrar discípulos capazes de ter uma reação criativa ao pensamento dele, pois a recepção passiva é apenas o começo de um aprendizado. Um aprofundamento sugere uma discussão de modo que aquele estilo de pensar permaneça em movimento e possa ser prosseguido dialeticamente, como fez Aristóteles com Platão. Resultado: morto Aristóteles e morto Teofrasto, o Liceu afunda. Os escritos internos do Liceu que eram os mais interessantes e que são os que hoje conhecemos desaparecem inteiramente de circulação e os escritos populares continuam ainda a ser lidos, mas acabam desaparecendo também.

No século I a.C. ocorre uma reversão. Os escritos populares estavam quase totalmente desaparecidos, e ressurgem as apostilas e escritos internos do Liceu que são então editados por Andrônico de Rodes. Existe toda uma história mirabolante segundo a qual quando houve a perseguição aos aliados macedônicos entre os quais estava Aristóteles (Atenas estava em guerra com a Macedônia), uma coleção completa dos seus escritos teria sido escondida numa caverna onde permaneceu por três séculos, tendo sido depois levada a Roma, onde alguém começou a fazer uma edição. Mas tendo morrido este editor, a edição ficou para depois e no fim é Andrônico de Rodes - que era o décimo diretor do Liceu depois de Aristóteles - quem retoma os escritos e forma uma edição de conjunto. É claro que Aristóteles só poderia exercer uma influência no mundo a partir de uma edição dos textos. Mas isto também demorou algum tempo. Neste período, a escola epicurista, mesmo depois da morte de Epicuro, continuava crescendo e fazendo muitos discípulos. Esta não é bem uma escola filosófica, é um sistema de disciplinas psicológicas baseado nos seguintes princípios: nós vamos mesmo morrer, não existe nada após a morte, nada a esperar, os deuses também são materiais, eles também morrem; então o máximo que podemos fazer é nos fechar na escola filosófica e ficar meditando de modo a apagar os momentos maus e lembrar só os bons, e, se não houver momentos bons, você os inventa. Era uma técnica de evasão, uma espécie de cocaína filosófica. Ademais a escola epicúrea não fazia nenhuma exigência para a admissão dos alunos, aceitava qualquer um. Havia de tudo: ricaços, senhoras da sociedade, prostitutas, qualquer um. A escola prometia um alívio às pessoas. Mas no fundo ela confessa seu caráter mórbido porque o que é chamado de meditação filosófica é exclusivamente a tal história de apagar os momentos maus e se concentrar nos bons. Quando você é obrigado a viver de imaginação é porque está tudo perdido mesmo. Mas o fato é que uma oferta de alívio, falsa ou verdadeira, sempre faz sucesso. Com este sucesso, o velho desentendimento entre a escola epicúrea e a platônica, da qual Aristóteles era um portavoz, fez com que a difamação contra a sua pessoa - não contra as idéias - prosseguisse até dentro da era cristã. Uma coisa que nos surpreende até hoje é a capacidade de produção escrita dos autores antigos e medievais, realmente assombrosa. O próprio Aristóteles, se considerarmos que o que temos é aproximadamente um terço do que ele produziu - e a sua não foi uma vida longa -, seu volume de escrita é monstruoso. Por esta situação toda, vê-se que esta obra está mais sujeita a más interpretações que a uma interpretação correta. Antes de ela ser publicada, já havia equívocos circulando, porque as pessoas já tinham uma imagem de Aristóteles feita a partir dos escritos literários, que mostravam idéias da Academia platônica. Idéias que ele veio depois a retificar ou abandonar. Quando os textos aparecem à luz, já é tarde: a confusão está formada, os equívocos estão consolidados. A primeira desgraça que acontece com a filosofia de Aristóteles é que um de seus principais continuadores - Estratão de Lampsaco, um escoliarca, e que funciona durante algum tempo como porta-voz do Liceu aristotélico, já apresenta uma filosofia aristotélica alterada tal como ele a compreendia. Segundo ele, era uma filosofia

empirista (aquela na qual somente a experiência que entra pelos cinco sentidos é fonte de conhecimento). Estratão, neste sentido, pode ser dito fundador do empirismo, que mais tarde será uma escola, em 1600. A filosofia de Aristóteles, portanto, já apareceu cortada pela metade. Aristóteles, fundador do holismo. Uma das características principais de Aristóteles é o desejo de organicidade, de totalidade sistêmica; o demasiado abstrato é para ele meia verdade. A realidade aparece para ele sempre como um todo coeso e organizado e que existe no tempo - exatamente como o corpo humano. Aristóteles não apenas era médico de formação, mas pertencia a uma família de médicos, dez gerações de médicos. Consta que quando pequeno já estudava anatomia, com o pai. A visão constante do corpo humano no aspecto anatômico e fisiológico vai desenvolvendo nele muito profundamente esta distinção entre o vivo e o não vivo. No fundo, o corpo do ser vivente é para Aristóteles o supremo modelo da realidade. Este é um aspecto que parece não ter sido suficientemente ressaltado pelos intérpretes até hoje. O que hoje chamamos de holismo foi inventado por Aristóteles. É a busca de uma visão da realidade que corresponda às características de um organismo total e vivente. O holismo se opõe ao mecanicismo, que vê a realidade como uma organização do tipo mecânico, ao dualismo, que divide o real em dois setores separados (a divisão, para o organismo, é a morte), ao transcendentalismo, que é um dualismo hierárquico, e a toda forma de redutivismo, que é a explicação da realidade com base no predomínio exclusivo de um só de seus elementos ou fatores. Não espanta que a rejeição da física aristotélica tenha produzido, no Renascimento, o advento do reino do mecanicismo, com Newton e Descartes. A característica da organização mecânica é a completa separação entre as partes, de maneira que, em princípio, qualquer uma delas pode ser trocada por uma outra similar. No organismo isto não é possível. No corpo humano algumas partes podem ser trocadas, mas outras não. Podemos supor um transplante de coração, mas como seria um transplante de cabeça? Resultaria não em curar uma pessoa, mas em transformá-la em outra. Uma vez feito o transplante, o indivíduo poderia com igual razão dizer: "Fiz a cirurgia e estou curado" e "Fiz a cirurgia e estou morto". O tipo de sistema que chamamos orgânico tem uma espécie de coesão por afinidade ou familiaridade entre as partes. A teoria e a da princípios básicos do método.

das potência

e

do

distinções ato,

O organismo não é totalmente separável em partes, embora suas partes sejam distinguíveis. A teoria das distinções, que é um legado importantíssimo de Aristóteles que será aprofundado pelos escolásticos, é um resultado direto do treinamento médico e da experiência biológica do mestre.

Estudando anatomia, aprende-se a distinguir rigorosamente todos os órgãos e partes do corpo, e a ver que, por um lado, eles são efetivamente distintos, com formas e funções diferentes que não são trocáveis (o cérebro não poderia fazer o trabalho do pulmão, e assim por diante),e, por outro lado, não são separáveis. Esta é a característica fundamental do que denominamos organismo: unidade na distinção. A constatação deste traço do organismo vivente deixa um profundo impacto na mente de Aristóteles que, em todas as questões que tratar, mesmo fora do âmbito fisiológico ou biológico, procurará sempre este tipo de conexão distintiva entre as partes. Procurará distinguir as partes com a máxima clareza possível e captar o princípio de coesão que dá unidade ao fenômeno e que permite que ele exista. Daí também vai sair o conceito de evolução orgânica, pelo qual a forma de um ser já não é apenas o seu esquema estático, mas é a fórmula das transformações que ele sofrerá no tempo. Quando você nasce, seu corpo não tem só uma forma determinada, com um peso determinado, uma figura determinada, mas tem a fórmula de um crescimento, mediante o qual ele poderá absorver elementos de fora que serão integrados dentro de seu organismo e que, aumentando o seu tamanho, farão com que ele sofra transformações nas quais no entanto ele não perderá sua forma e sua identidade, mas ao contrário, a manifestará. Aristóteles chama isso de passagem da potência (virtualidade, potencialidade) ao ato (efetividade, atualidade, manifestação). Esta é uma das idéias mais profundas de toda a história humana e é de fato, se não a principal idéia do método em Aristóteles, uma das primeiras que lhe ocorrem, creio eu, por causa dos estudos de fisiologia. A evolução orgânica é para Aristóteles um princípio explicativo, mas não apenas uma regra do método. Ela é um fato real da natureza, não um preceito metodológico. Em Aristóteles, como não poderia deixar de ser, há distinção mas não separação entre o método e o conteúdo efetivo do conhecimento: assim, os fatos da biologia são eles mesmos expressões da totalidade, da evolução orgânica ou passagem da potência ao ato, da distinção-união entre matéria e forma, ao mesmo tempo que estes princípios são também regras do método que vai estudar esses mesmos fatos. Assim também as leis da lógica aristotélica não serão puras leis formais do pensamento, mas uma expressão das leis ontológicas que governam a realidade mesma, sem deixarem de ser também leis formais do pensamento. O forma do redutivismo

essencialismo, platônica

Uma das principais intuições de Aristóteles é esta da unidade vivente do real. Vida e unidade são conceitos básicos para a compreensão da filosofia de Aristóteles. Por causa deste traço organicista e sistêmico, que é ao mesmo tempo uma propensão do seu estilo intelectual e um traço da sua personalidade, ele revelará uma extrema ojeriza a tudo o que se chama abstratismo (conceber por pura lógica o conceito de alguma coisa, e em seguida tratar este conceito como se fosse ele mesmo uma coisa real). O abstratismo consiste em tomar meras distinções lógicas como se fossem separações reais. Por exemplo, de tudo aquilo que compõe um ser real, abstraímos, separamos pelo intelecto

um determinado traço de fato distinguível. Olhando vocês aqui posso distinguir entre a sua forma e a sua cor - elas não são a mesma coisa. Posso compreender que uma pessoa que está aqui pode ir à praia amanhã e voltar com outra cor sem que isto tenha alterado a sua forma. Ou a pessoa pode emagrecer ou engordar sem perder a cor. Se estes dois aspectos têm histórias distintas, eles são distintos em si mesmos. Porém, posso tomar uma destas características e perguntar qual é mais importante, qual a mais básica entre as duas. Posso chegar à conclusão de que a cor é simplesmente um efeito da forma. Assim, peguei uma das qualidades e a transformei numa qualidade básica da qual a outra é apenas um fenômeno secundário. Aí tomei a forma e a cor como efetivamente separadas. É precisamente esta separação abstrativa que constituía a causa dos exageros da escola platônica. Sócrates já havia distinguido nos entes dois aspectos: seu conceito - ou essência -- e a sua existência. Se fazemos um conceito de cachorro, este é aplicável a todos os cachorros da existência, mas o conceito permanece o mesmo, enquanto os cachorros nascem, crescem e morrem. E a escola platônica optou pela hipótese de que o aspecto conceitual das coisas - o aspecto que se referia à semelhança entre o indivíduo e os outros da mesma espécie - era o básico da realidade, e de que a diferença de indivíduo para indivíduo e os vários traços adquiridos no decorrer da existência eram apenas um véu de aparências. Resultado: o mundo da experiência, tal como aparece para nós, seria apenas uma tela que mostra as aparências de um processo que no fundo somente se refere aos conceitos das espécies. Se você pegar o conceito de cachorro, por exemplo, verá que ele já implica os limites daquilo que pode vir a acontecer a um cachorro. O conceito de cachorro não permite que o cachorro voe - portanto, o cachorro não vai voar. Mas não há nada que contradiga, no conceito de cachorro, que ele seja branco ou marrom. Portanto o conceito aparece como um quadro dentro do qual estão todas as possibilidades que o ser pode manifestar no decurso da existência. O conceito se refere à essência, àquilo que os entes são, independentemente de existirem ou não. Cachorro é cachorro antes de existir, quando existe e depois que parou de existir. Um cachorro morto não se transforma em outra coisa. É um cachorro. Desta constatação, porém, a escola platônica conclui que o aspecto existencial é secundário e que o principal é o aspecto essencial que se expressa no conceito. Este tipo de separação que hierarquiza a realidade e tampa uma parte dela, sob o pretexto de que é a manifestação de uma outra esfera mais profunda, é o que desagrada a Aristóteles. Porque , como fisiologista, médico de uma família de médicos, está acostumado a observar o corpo dos seres viventes e a idéia de que a realidade possa ser constituída de dois estratos mais ou menos separados não lhe agrada de maneira alguma, porque ele nunca viu nada na esfera dos seres vivos que seja composto de dois pedaços. Tudo tem unidade, organicidade. Uma das primeiras preocupações de Aristóteles é ver se consegue restaurar o sentido da ligação entre estas duas faixas da realidade que o platonismo havia separado. Ele percebe, e admite com os platônicos, que existem o aspecto existencial e o conceptual. Mas qual o nexo entre um e outro? Por exemplo, se sabemos qual é a essência da espécie "cachorro", isto não nos explica porque existem cachorros. Compreendemos que

se não existisse absolutamente nada no mundo, as essências continuariam as mesmas, porque seriam, como mais tarde diria Leibniz, esquemas de possibilidades, e estes esquemas permaneceriam logicamente distintos. Se não existissem cachorros nem camelos, ainda assim cada uma destas espécies corresponderia a um determinado esquema de possibilidades que lhe é próprio e não se confunde com outros de maneira alguma. Podemos aqui e agora inventar os conceitos de espécies que não existem mas que sejam logicamente distintas. Aristóteles percebe que a grande operação da escola platônica, que é a de subir da existência dos seres múltiplos até o conceito das suas espécies tinha resolvido o problema pela metade. Quando, porém, partindo da multiplicidade dos seres, eu apreendo por abstração a comunidade de traços que perfila estes seres em várias espécies distintas, só fiz um saber do tipo classificatório. Ora, saber classificar os entes é uma coisa, saber explica-los é outra muito diferente. Aristóteles percebia - não sei se ele fez esta imagem , mas a mim me ocorre - que o platonismo é uma espécie de anatomia do mundo, que separava o mundo nos seus pedaços , mas faltava a fisiologia. O platonismo tinha distinguido os órgãos ou estratos exatamente como numa dissecação você vai separando tecidos. Platão, basicamente , tinha separado o mundo em três grandes estratos - mundo sensível, mundo das idéias e o terceiro estrato supremo dos princípios ou leis. Tudo isto - dizia Aristóteles - existe inegavelmente , mas entre ter classificado a hierarquia e saber como funciona existe a mesma distância que há entre anatomia e fisiologia. A ciência da anatomia desenvolveuse muitíssimo cedo na história do mundo e a fisiologia muito mais tarde . Uma coisa é dividir algo em pedaços, outra saber como funciona. Quem quer que tenha tentado consertar um carro perceberá que isto é assim mesmo na esfera mecânica. Desmontar o carro e classificá-lo peça por peça é relativamente fácil. Mas remonta-lo e fazê-lo funcionar de novo é outra coisa. O platonismo era uma anatomia abstrata do mundo. Aristóteles, que tinha uma formação pessoal totalmente diferente da dos outros membros da Academia platônica, os quais eram todos, por suas origens, matemáticos e geômetras, enquanto ele era médico e fisiologista, percebe que o platonismo tinha seguido um modo de pensar típico do geômetra ou do matemático , que é o de formar os conceitos separados e encadeá-los numa ordem lógica. E percebeu claramente que isto não basta, que além de expor a hierarquia lógica do mundo, é preciso explicar como as coisas vêm à existência, como o mundo funciona efetivamente. Desta visão cosmológica do platonismo decorre uma gnoseologia ou teoria do conhecimento. A gnoseologia platônica , vendo que existem dois estratos separados, um, o da experiência, outro, o estrato essencial ou conceptual, e não conseguindo estabelecer nenhuma passagem entre eles, só podia explicar o conhecimento pelo famoso expediente da recordação ou rememoração (anamnesis). A pergunta é a seguinte: Se estes estratos estão rigidamente separados, como é possível o conhecimento? Se vivemos num mundo de aparências ilusórias, que aparecem e desaparecem no tempo , mas por outro lado a nossa mente é capaz de, partindo das aparências ilusórias, chegar até o conceito, que é a imagem estável e permanente da

verdadeira realidade, parece que esta nossa habilidade é contraditória com o próprio conteúdo da teoria. Se estamos vivendo no mundo das aparências, como a partir delas chegamos às essências? A aparência só nos revela a aparência. Se captamos algo por trás dela não pode ser pelos mesmos meios através dos quais nós captamos a aparência. Portanto, o fato mesmo de que nós consigamos fazer conceitos das coisas é um mistério inexplicável desde o ponto de vista platônico. Platão propõe então a teoria da recordação, a anamnese. Diz ele que antes de nascermos, nossas almas já existem no mundo eterno das idéias, onde vemos os conceitos puros ou as essências de todas as coisas. Daí, quando entramos no fio do tempo, passando a existir neste mundo de aparências , esquecemos uma boa parte mas um pouquinho sobra. Então, um acaso feliz ou um interrogatório bem conduzido, como numa espécie de psicanálise, pode nos fazer recordar este conhecimento que jaz no fundo de nós. Ora, se é assim e já está lá desde que nascemos, a experiência real não é muito útil. Só serve para suscitar em nós o desejo de conhecer os conceitos puros. Por isto, Platão é chamado um racionalista (o fundamental do conhecimento sendo obtido pela razão e não pela experiência). Em Platão, a percepção real, que nos entrega somente aparências, só serve para despertar o apetite do conhecimento, mas o fundamental deste é obtido por um modo puramente intelectual ou racional, que é o interrogatório ou a discussão dialética que vai fazendo você recordar as idéias centrais. Platão expõe por um lado esta cosmologia onde o mundo é feito de estratos totalmente separados e por outro, a gnoseologia do tipo racionalista, onde a experiência não desempenha nenhum papel. Perante a gnoseologia de Platão, Aristóteles fará a mesma objeção que fez à cosmologia. Dirá que não é possível que estas duas formas de conhecimento - a que obtenho pelos sentidos e a que obtenho pela razão - estejam completamente separadas. Porque vejo que o indivíduo que apreende os dados dos sentidos é o mesmo que intelige pela razão os conceitos puros. Vejo claramente que existe uma caminhada, uma ascensão contínua e gradativa, desde a experiência até o conceito, não um salto absoluto como no caso platônico. Tanto que vai ser difícil encontrar (esta é uma observação fundamental de Aristóteles) algum dado dos sentidos que esteja completamente livre de interferências da razão. Sempre existe um princípio de organização racional até na percepção sensível. Por outro lado, vai ser muito difícil achar algum conceito racional totalmente puro, que não deva nada à experiência. Se nunca tivéssemos visto um cavalo, de onde iríamos extrair o conceito de cavalo? Aristóteles vê que entre o conhecimento por experiência e o conhecimento pela razão, entre o conhecimento do mundo das aparências e o do mundo das essências, não existe um salto, nem mesmo um salto retroativo como pretendia o platonismo, mas existe uma ascensão progressiva e muito problemática. Às vezes conseguimos obter os conceitos puros, às vezes não. Se fosse tão natural saltarmos da experiência para os conceitos, seria muitíssimo fácil apreender em quaisquer fenômenos as devidas separações e classificações de gêneros e espécies e freqüentemente isto é muito difícil. Aristóteles sabe disso porque ele tentava classificar os animais, enquanto na escola platônica só se classificavam idéias puras ou idéias geométricas. Aristóteles punha a mão na massa, e via que classificar fenômenos reais (por exemplo, as famílias de espécies animais) não era o mesmo que classificar

conceitos puros ou geométricos. Hoje sabemos que os elefantes são parentes dos cavalos, que formam uma mesma família; logicamente pertencem à mesma espécie. Mas como por métodos platônicos ou dialéticos se chegaria a uma coisa dessas? Portanto, as distinções de gêneros, espécies e as classificações dos seres não podem ser feitas exclusivamente por método lógico. Têm de ter base na experiência e na separação e classificação das próprias aparências, antes de partir para a classificação dos conceitos. Tudo isto, que é uma descoberta de Aristóteles, se torna a base do método científico para sempre. Muitas coisas que foram matéria de discussão filosófica 2400 anos atrás, hoje são matéria de pesquisa experimental. A inseparabilidade do sensível e do racional, afirmada por Aristóteles, foi inteiramente demonstrada por Jean Piaget na esfera experimental. Piaget demonstra por meios experimentais que não existe sensação pura, na qual não entre um elemento organizativo prévio. A sensação totalmente informe não seria notada por nós. A sensação pura não poderia ser distinguida de outra sensação, não poderia ser sentida; se ela é distinguida, é porquê já existe um princípio de classificação e organização imanente. Mas a organização não é sensitiva, é racional. A idéia de sensação pura hoje em dia é considerada uma quimera e a idéia da pura razão igualmente. Podemos conceber estas coisas, mas apenas como possibilidades lógicas, não como coisas reais. O organismo humano é um organismo, portanto organizado. Já recebe as sensações ordenadas segundo a forma do corpo e isto é um princípio da razão, já que, diz Aristóteles, a alma é a forma do corpo e a alma do homem é intrinsecamente racional. Você tem sensações visuais e auditivas distintas, não vê os sons nem ouve as cores. Este é um princípio de distinção inerente à própria forma do corpo. Toda sensação já é classificatória. Sentir uma coisa já é distingui-la das outras. Portanto, o aspecto sensível e o racional não são separáveis realmente, são apenas distinguíveis. A chave da teoria do conhecimento aristotélica é a seguinte: distinto é uma coisa e separado é outra. A audição é distinta da visão, mas não posso ouvir às segundas quartas e sábados e ver às terças, quintas e sextas. Elas não são separáveis realmente. Do mesmo modo, o aspecto racional, organizativo, não é separável da experiência sensível que nos dá a matéria do conhecimento. Isto significa que a distinção entre o experimental e o racional é uma distinção mental, apenas uma distinção e não uma separação, -- uma crítica fundamental à gnoseologia platônica, que trata como separação o que é apenas distinção. São dois modos de ver. Como nome e sobrenome. Você tanto pode ser encarado como indivíduo, como pode sê-lo como membro da família. Dois aspectos distintos, mas inseparáveis. Ou a distinção entre camelo e fisiologia do camelo. Um não é o outro - mas existe algum camelo sem fisiologia do camelo, ou fisiologia de camelo sem camelo? A distinção entre o racional e o experimental é uma distinção de nomes -- ou de pontosde-vista -- e não de coisas reais. A distinção entre distinção e separação é outra

conquista imorredoura de Aristóteles. Muitos debates hoje entre o que é holista ou cientificista seriam resolvidos na hora mediante a simples aplicação desta distinção. Outra questão: entre conhecimento sensível e conhecimento racional, qual a ordem dos fatores, qual é primeiro e qual é segundo? Aristóteles responderá que vamos dos sentidos para o pensamento. Porém este sentir é puro, sem qualquer contaminação do pensamento? A resposta é não. Para que o sentir fizesse pensar seria necessário que houvesse um elemento de pensamento dentro dele. Senão, teríamos o milagre de uma coisa que não existe mais produzindo outra que não existe ainda. Para que a experiência sensível possa gerar um raciocínio, é preciso que haja dentro dela uma semente de raciocínio. É mais ou menos o que vai dizer 2400 anos depois o Piaget. É claro que o sentir e o pensar representam etapas do conhecimento, e não formas de conhecimento radicalmente distintas. Se você tem de um lado o sentir, do outro o pensar - o que diz Aristóteles? Não é uma distinção de lados, mas de etapas. É como a distinção que existe entre uma criança e um adulto. O adulto que você será, a forma do adulto, já não está na criança? E este adulto que está aí, não é aquela mesma criança? É uma distinção mais nominal entre etapas que uma distinção entre seres separados ou aspectos separados e simultâneos. É este senso da organicidade que é a coisa central para compreender o pensamento de Aristóteles, e talvez a maior contribuição dele. Isto corresponde, de fato, ao modo de sentir quotidiano, do senso comum. O sujeito são pensa de maneira orgânica. Todo mundo pensa organicamente em todas as questões reais da vida. Platão foi chamado "o divino Platão", uma espécie de profeta ou anjo, alguém que tem uma visão do outro mundo. A coisa mais característica de Aristóteles é sua profunda e total humanidade - pensar tudo na escala do ser humano realmente existente. Dessa diferença decorre uma diferença moral profunda. A moral platônica é moral de perfeições celestes. A moral aristotélica é uma tentativa de melhorar o homem aos poucos, partindo de suas limitações e aceitando-as, em vez de condená-las em nome de um padrão moral abstrato. Não há fundamental contradição entre as duas morais, no entanto. Poderíamos comparar as relações entre platonismo e aristotelismo à trindade cristã: existe um Deus Pai incognoscível, inatingível, mas é preciso existir o Deus que desce até você e vem viver o destino humano na sua plenitude. Entre os dois, você tem o Espírito Santo que é a relação de amor. O eterno e o temporal, o divino e o humano estão unidos por uma aliança indissolúvel. Jogar um destes aspectos contra o outro é ir contra o ser humano. Não podemos jogar platonismo contra aristotelismo, que na esfera filosófica correspondem a estes dois aspectos. Ir por um destes caminhos ou pelo outro é quase uma questão de temperamento, mas um deles não nega o outro, na medida em que o prolonga e o realiza. Todas as críticas de Aristóteles ao platonismo só visam a trazê-lo do céu para a Terra, para realizá-lo. Aristóteles poderia dizer de Platão o mesmo que Cristo disse do Velho Testamento: "Não vim revogá-lo, vim realizá-lo." A ordem de realização de uma coisa é o inverso da sua ordem de concepção - outra descoberta aristotélica. Para conceber o

plano de uma casa, você concebe a casa no todo e depois no detalhe. E para construir? Pedaço por pedaço até chegar ao todo. A ordem do conhecer e a ordem do ser são inversas e complementares. Portanto, a realização do platonismo é a inversão das suas prioridades teóricas.

Pensamento e atualidade de TERCEIRA Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro

Augusto

Aristóteles AULA

de: Madeira Madeira

1a parte

O pensamento de Aristóteles surge dentro de certo desenvolvimento em três etapas do que chamamos a Filosofia do Conceito - aquela que busca um objeto estável, algo que possa ser objeto de conhecimento, e o encontra, com Sócrates, no elemento conceptual da realidade. Elemento conceptual é a parte ou aspecto dos entes que, podendo ser resumido, encaixado dentro de uma forma mental fixa, revela o que estes entes são em essência, independentemente das variações ou transformações que possam sofrer no curso de sua existência. Por exemplo, um animal qualquer, leão, cavalo, burro, por um lado tem este aspecto essencial que faz com que possamos designá-lo sempre pelo mesmo nome referindo-nos à mesma espécie; por outro lado, é evidente que não há dois cavalos iguais, dois leões iguais. Também é evidente que o cavalo não permanece o mesmo desde que nasce até que morre. E que todo o processo de geração, existência, corrupção e morte não afeta a essência ou elemento conceptual destes entes. O leão morto não passa a ser outra coisa;é um leão, essencialmente o mesmo, porém privado de existência. Distinguindo entre o que seria o aspecto essencial e o aspecto acidental ou transitório das coisas, o método de Sócrates propunha que a mente humana se preocupasse principalmente do elemento conceptual, sendo que o outro aspecto não seria propriamente matéria de conhecimento, mas apenas de sensação e opinião. Em seguida, com Platão, vemos que este elemento conceptual, já recortado, separado por Sócrates, adquire uma espécie de autonomia no sentido ontológico. Em Sócrates, a divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício

através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade, digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório. Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são.. Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas. O caso mais recente é o do marxismo. Marx diz que devemos olhar a constituição da sociedade em primeiro lugar por sua infra-estrutura econômica e depois, em função dela, descrever os outros estratos da sociedade - leis, política, costumes, valores, artes etc. Em primeiro lugar, isto é um preceito metodológico e como tal obviamente funciona. Porém, tem isto também um alcance ontológico? Será a sociedade objetivamenteconstituída assim? Uma base econômica sobre a qual e e função da qual se vão criando outros estratos? Marx não deixa isto muito claro. Ele diz apenas que em última instância o fator econômico é decisivo, dando a entender que outros fatores podem ser decisivos em instâncias não últimas. Como ele não diz em parte alguma o que entende por última instância e onde termina a instância penúltima, o mais prudente é interpretar o seu preceito em sentido apenas metodológico. Porém, a tradição marxista começou a tratar esta hierarquia metodológica como se fosse um preceito ontológico. Como se a sociedade fosse construída realmente de baixo para cima, a partir de um embasamento econômico que determinaria todo o resto. E hoje esta idéia, como preceito ontológico, entrou tão fundo na cabeça das pessoas que praticamente todo mundo pensa assim, mesmo quem não gosta do marxismo... O que seria um mero preceito metodológico ou no máximo uma hipótese ontológica acaba virando uma convicção das massas que acreditam que isto tenha um fundamento científico. Também na antropologia, a idéia de que o antropólogo, quando examina diferentes culturas, deve evitar fazer uma hierarquia valorativa, como se uma cultura fosse melhor do que a outra, é um preceito metodológico. Depois, quase que implicitamente, tornouse uma regra ontológica que diz que "não existemdiferenças de valor entre as culturas ou os costumes". Um costume como a antropofagia, por exemplo, deve ser considerado tão bom - ou tão ruim - como o da adoção dos órfãos. Sempre que passamos do preceito metodológico para o ontológico existe no mínimo uma imprudência muito grande. Na passagem do socratismo para o platonismo parece ter havido isto e não sei nem se o próprio Platão e os que o cercavam se deram conta desta escorregadela, pela qual foram do metodológico ao ontológico.

E preciso cuidado para saber quando alguém está falando sobre a constituição da realidade ou sobre a melhor maneira de examiná-la. Dizer que um método é mais conveniente do que o outro nada pressupõe a respeito da realidade. O fato de que convenha examinar algo por certo lado não quer dizer que este lado seja objetivamente o mais importante. Distinção a e a ordem do conhecer

ordem

do

entre ser

Aristóteles esclareceu isto perfeitamente com a distinção daordem do ser e da ordem do conhecer. Quando o arquiteto concebe uma casa, ele concebe o todo, o esquema geral; mas na ora de construir tem de seguir a ordem exatamente inversa, tijolo por tijolo. Quando você vê a casa, novamente o que vê é o todo; mas quando vai percorrê-la tem de ir parte por parte. Há uma série de inversões da hierarquia. Do mesmo modo, o primeiro que conhecemos nos seres é o seu aspecto exterior e manifesto, mas é claro que este aspecto é o último na sequência de constituição desses seres. Um preceito metodológico refere-se à ordem do conhecer, que nem sempre reflete a hierarquia real do ser. Quando você conhece uma pessoa, a primeira coisa que vê é a aparência física. Mas como esta pode ser reveladora, se ela é própria apenas daquele momento? Você conhece alguém de quarenta anos, está vendo a aparência desta idade, não sabe tudo o que aconteceu antes. A ordem do conhecer nem sempre vem na hierarquia certa do ser. Um método é apenas um caminho para chegar a alguma coisa. Ora, descrever o caminho pelo qual você chega de São Paulo ao Rio de Janeiro não é falar nada sobre o Rio. A partir de uma descrição da Via Dutra você nada fica sabendo sobre a cidade do Rio. Evolução do de Sócrates a Platão.

da

filosofia conceito:

Se procurarmos em tudo aquilo que está documentado como dito por Sócrates - as falas a ele atribuídas - algo de uma ontologia, não o encontramos de maneira nenhuma. Só encontramos preceitos de lógica, de ética e de metodologia. Quando o Sócrates que aparece nos Diálogos de Platão começa a dar a preceitos de Sócrates valor ontológico, aí podemos dizer que quem está falando é Platão. Ele transformou uma sugestão metodológica numa doutrina formal sobre a constituição do real. Em vez de dizer que é mais fácil examinar os seres pelo seu aspeto conceptual ou lógico do que pelo simples aspecto sensível, ele diz que o aspecto conceptual ou lógico é a verdadeira realidade, e que o aspecto sensível, ou existencial, é aparência, é um véu. Com isto, uma separação meramente mental que nós fazemos - a separação entre o ser e o seu conceito - é hipostasiada, personificada, materializada numa divisão real do

mundo em dois estratos. Como se o mundo único da nossa experiência, aquele sobre o qual investigamos, já não fosse bastante complicado, você cria dois mundos. A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte, chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é, ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos, longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica, que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador, tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza, são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos, porque ele não tem poder sobre ela. A partir da hora em que consegue organizar o pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza só é visível depois que você está a uma boa distância dela. Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo, não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é para os cientistas e pesquisadores do mundo. Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar

com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o superego ( anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade; superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna ), no sentido de obter autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa a sonhar com figurar geométricas. O geometrismo expressa um princípio de reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego. O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc. Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em geral por figuras e relações de tipo geométrico. Veremos isto às portas da Renascença, época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio geométrico é um desejo de ordenação. Do mesmo modo, a queda do marxismo após a revelação dos crimes de Stalin por Kruschev precipitou a intelectualidade européia numa crise de consciência para a qual encontrou alívio aderindo ao estruturalismo de Cl. Lévi-Strauss, uma espécie de geometrismo antropológico que, inspirado no rigorismo linguístico de Saussure, reflui do devir histórico para a busca das estruturas permanentes. Ora, só procuramos ordenar o que está desordenado. Quando você está se sentindo perfeitamente bem na confusão e na variedade do mundo externo, não quer organizá-lo de maneira alguma. A distinção que faz o Worringer entre a arte primitiva ou geometrizante e a arte clássica de tendências mais naturalísticas é a distinção que existe entre o homem que teme o cosmos e o que se sente bem nele. Mas este sente-se bem porque está um pouco fora dele, protegido por uma camada -- Lévi-Strauss dizia "almofada" --que é a própria civilização. A época de Platão era uma época de caos moral muito grande. Platão tinha o impulso de reformar, reordenar o mundo todo; tinha um projeto político para o mundo inteiro,

principalmente para Atenas. Na famosa Carta VII ele explica que o grande objetivo de sua vida tinha sido reformar politicamente a Grécia. Platão não era só um filósofo, era um homem público, um homem de ação. Vemos na biografia de Platão que este impulso reformador e reordenador se defronta com uma série impressionante de fracassos, num dos quais ele tenta dar seu apoio a um golpe de Estado que teria sido dado por um discípulo seu numa cidade vizinha; tinha ele a idéia de, a partir desta cidade, reordenar a Grécia, voltando vitorioso para Atenas, como fez depois Mohammed ( Maomé ) - saiu, reformou a cidade vizinha e voltou à sua, para reformá-la nos moldes da primeira. Platão faz uma espécie de Hégira - mas não dá certo. O golpe de Estado é reprimido, Platão é preso e vendido como escravo na feira, sendo recomprado por seus discípulos. Sócrates não teve nenhum intuito de agir politicamente, a sua é um tipo de filosofia muito mais pura que a de Platão, mistura de filósofo e estadista -- reformador, político, moralista, profeta. Saindo desta e de outras experiências do mesmo teor, ele inicia, na maturidade, quando começa a se tornar independente do mundo socrático para criar seu próprio mundo filosófico, uma transição marcada por um abstratismo, uma geometrização e uma absolutização da divisão do mundo em dois estratos. Em parte, essa mudança na orientação da filosofia de Platão acontece por força destas experiências que mostram ao filósofo o caráter rebelde do caos do mundo, que não se curva tão facilmente aos nossos impulsos reformadores. Aí ele sente que antes de reformar o mundo é preciso fazer uma espécie de interiorização, uma reforma do mundo interior, uma reordenação conceptual para mais tarde tentar com base nela reorganizar o mundo. O empreendimento não foi totalmente fracassado porque toda a proposta pedagógica que Platão oferece para a reforma do mundo acaba sendo adotada, letra por letra, pelo clero católico. Se observarem o que é a educação de um padre na igreja e perguntarem de onde a Igreja tirou isto, esta idéia de uma preparação interior até que o sujeito esteja pronto para atuar no mundo, nada encontrarão nos Evangelhos ou no Antigo Testamento. Não há fontes cristãs deste modelo: sua fonte é o velho Platão. Na famosa República Platônica, a chefia é conferida aos filósofos mais profundos; a filosofia deles é uniforme, todos pensam igual, numa espécie de clero filosófico. Esta proposta não foi adotada na política mundial, mas o foi na organização da Igreja. Neste sentido, a proposta platônica perdeu a batalha na Grécia mas venceu em uma outra parte do mundo, justamente a parte que continha em si as mais promissoras sementes de futuro, as sementes da civilização européia que, sem sombra de dúvida, é obra da Igreja. Organicismo versus geometrismo Em contraste com isto, vemos que Aristóteles, pertencente a uma família de médicos e tendo, muito provavelmente estudado anatomia desde pequeno, não tendo nenhum talento especial para matemáticas, e ao contrário, manifestando certa birra com elas, e especialmente com o matematismo, se mostra um homem muito mais inclinado a conceber a idéia deforma não segundo um modelo geométrico, mas segundo o modelo do corpo vivente, seja do ser humano ou do animal. Daí parte uma série de tendências

características do pensamento aristotélico. Aristóteles é o inventor da biologia e podemos tomar a sua filosofia como protótipo do pensamento biológico - o que toma o ser vivente como modelo do real. Ora, o ser vivente não é encontrado num outro mundo, através de um pensamento conceptual, mas sim neste mesmo e com os dois olhos da cara. É possível vê-lo, tocá-lo, cheirá-lo, examiná-lo, observá-lo no seu surgimento, no deu desenvolvimento, na sua plenitude, declínio e morte. A primeira coisa que se observa num organismo é a inseparabilidade que existe entre a unidade e a variedade que o compõe. O organismo tem a característica de morrer se for cortado pelo meio. Se perder a unidade, já não existe mais. Por outro lado, é uma unidade composta de uma diversidade, de uma diversificação muito grande de órgãos por isso mesmo se chama organismo (conjunto harmônico de órgãos que funcionam para um mesmo fim). Se você observar os vários órgãos que compõem qualquer corpo vivente, vai ver que não há nenhuma maneira de explicar a coordenação entre eles, senão em vista dos fins a que este organismo visa. Os vários órgãos são tão diferentes entre si que somente funcionam de maneira coordenada se o organismo todo tender a um determinado fim. Quanto mais dirigido a um fim claro e definido está o organismo, mais harmoniosamente funcionam os seus vários órgãos. Por isto, a ginástica ou qualquer disciplina funcionam, porque acostumam todos os órgãos a agirem de uma maneira sincrônica e harmônica, em vez de se dispersarem. Esta harmonia é a própria integridade do corpo humano. Quando os órgãos se rebelam uns contra os outros é a doença, e em seguida a morte. Quando o organismo morre, ele se decompõe, suas partes mínimas separam-se e adquirem vida autônoma. Perde a coesão, a harmonia, s subordinação e coordenação entre as partes. Tudo isto são observações que devem ter ocorrido a Aristóteles muito precocemente, muito antes de que ele as formulasse filosoficamente. O corpo humano tem ainda a característica de ser marcadamente hierárquico. No organismo, nem todos os órgãos têm a mesma importância vital. Temos partes do corpo humano que nós mesmos incessantemente cortamos e jogamos fora: cabelos, unhas. Outras que expelimos constantemente. Outras que são substituídas: hoje sabemos que todas as células são trocadas de tempos em tempos. Naquele tempo não se sabia, mas era fácil ter uma certa antevisão disto. Temos órgãos que não podem ser eliminados, pelo menos no todo, sem um grave prejuízo para o corpo. Se nos cortam uma perna, continuamos vivendo, embora de maneira deficiente. E outros que não podem ser cortados, nem mesmo tocados - se você for acertado ali está morto. Sabemos que podemos viver sem uma parte do cérebro, mas não sem cérebro nenhum. Mas não podemos viver sem metade do coração, ou sem ossos. Esta gradação hierárquica de importância vital é outra característica do organismo. Então, temos: 1º) Unidade na variedade. 2º) Identidade entre a coesão e a existência real (a coesão é a própria possibilidade de existência). 3º) Caráter hierárquico.

Unidade diversificada, coordenação e subordinação são as carecterísticas mais evidentes do ser biológico.

Pensamento e atualidade de TERCEIRA Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro

Augusto

Aristóteles AULA

de: Madeira Madeira

2a parte

A do é vivente, é zoon.

vida, real.

plenitude Deus

Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança, são estes os traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de realidade, ou seja, ele procurará ver em tudo que existe, a sua unidade na variedade, a sua coesão e a sua hierarquia. O que é a mesmíssima coisa que encarar o real todo como se fosse um gigantesco modelo orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as matemáticas. Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito difícil de captar, porque está em constante transformação. Seus elementos individuais não têm estabilidade suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se torne falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos entes sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao que Aristóteles objetava que, se os entes matemáticos tinham a estabilidade, isto não bastava para lhes dar a plenitude da existência. Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais grave de todos os defeitos - não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles, evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto apenas está num lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar, age, produz efeitos sobre os outros seres. Esta é uma forma de existência mais intensa, mais plena e mais rica. Dizia Aristóteles: vemos de um lado entes que são vivos, mas impermanentes, e de outro lado, temos entes permanentes, mas que não são vivos nem plenamente reais; sabemos que estes dois tipos de seres existem - sensíveis e matemáticos -- , submetidos a leis que têm uma consistência própria e que não podemos mudar. Mas se estas duas

formas de seres, reconhecidamente existentes são, cada uma delas, deficientes de um modo oposto, talvez haja alguma forma de existência que tenha as qualidades destas duas e esteja isenta de seus defeitos. Tenha a permanência do objeto matemático e seja viva e agente como os seres vivos. Este é o conceito aristotélico de Deus. Este Deus que ele só conhece como hipótese demonstrável por vias indiretas, do qual não tem experiência ou conhecimento direto, somente Ele atende ao requisito de ser perfeitamente real. Perfeitamente real seria aquilo que tivesse a forma mais intensa e rica de existência e ao mesmo tempo não fosse perecível, sujeito a acidentes. Só conhecemos isto como suposição que fazemos logicamente, não conhecemos por experiência, nunca ninguém viu Deus. Ele não se deixa apreender inteiramente pelos nossos órgãos dos sentidos. Por outro lado, também não se deixa apreender inteiramente pelos nossos cálculos e raciocínios lógico-matemáticos. Por um paradoxo, este Ser inapreensível se impõe a nós como o que seria o modelo da realidade plenamente real. Este vai ser o princípio fundamental da metafísica de Aristóteles. Este Deus seria o estrato superior da realidade. No entanto, este estrato não está separado do mundo sensível, como o mundo divino de Platão, mas está misteriosamente imbricado no real, ou antes, o real está imerso nele como dirá mais tarde S. Paulo Apóstolo: "Nele nos movemos, vivemos e somos". A das em Aristóteles

importância distinções

Aristóteles admite uma complexa hierarquia do real; primeiro, não é composta de dois estratos, mas de uma infinidade. Em segundo lugar, o organismo é superior aos órgãos, mas, em relação aos órgãos, onde está o organismo? Não está em nenhum órgão. A relação complexa entre o todo e as partes que o compõem é uma outra característica do pensamento aristotélico. Daí a enorme preocupação de Aristóteles de estabelecer a relação entre unir e distinguir. A realidade é sempre é sempre composta de elementos distintos ou distinguíveis, porém nem sempre separáveis. Do socratismo e do platonismo, com sua visão mais ou menos esquemática do mundo até esta rede de distinções enormemente sutis e trabalhosas há um salto, um aprofundamento monstruoso. Quando entramos no mundo aristotélico, subitamente entramos no nosso mundo. Estas distinções, cuidados etc. ainda fazem parte do mundo científico em que vivemos hoje. Ninguém se aventura a uma investigação científica sobre o que quer que seja se já não tiver todo um sistema de uniões e distinções mais ou menos estabelecido, um quadro conceptual dentro do qual os vários aspectos da realidade aparecem nas suas relações mais ou menos verdadeiras, que a investigação confirmará ou desmentirá. Aí também há uma grande diferença entre toda a filosofia anterior e Aristóteles. Desde que surgem os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, até Platão, a principal ocupação deles consiste em dizer alguma coisa sobre a realidade, isto é, emitir uma doutrina sobre a constituição do mundo. Em segundo lugar, têm a preocupação de

distinguir no mundo, radicalmente, o que é essencial do que é acidental, e portanto em dizer logo o segredo fundamental das coisas. Toda a filosofia pré-socrática se caracteriza pelo fato de que a cada filósofo corresponde uma fórmula que ele emitiu sobre o que é o mundo em essência. Um diz que é água, outro os quatro elementos, outro o ápeiron ou indefinido, e assim por diante. Resumem numa fórmula a constituição do real, e arquitetam todo um mundo de pensamentos para sustentar esta tese. Aristóteles não faz nada disto, não tem nenhuma doutrina sobre a constituição última do mundo. Ao contrário, ele se preocupa em conceber estratégias e métodos que permitam progressivamente ir descobrindo alguma coisa. Ele inventou o que hoje chamamos ciência. A atitude científica é aquela que se abstém da proclamação dogmática de uma verdade, mas pretende encontrar uma verdade fundamental, provada em todas as suas etapas e que uma vez demonstrada, se torne universalmente obrigatória para todos os seres pensantes. Por um Teofrasto e Estratão.

que

não aristotelismo

existiu grego.

Com este salto deixamos para trás a etapa dos gurus, dos quais Platão teria sido o último (guru é o sujeito que detém o segredo da verdade, e o enuncia em duas ou três fórmulas potentes, como aforismos ou sentenças proféticas). Platão, embora já seja um grande filósofo no sentido posterior, é o último guru da antiguidade grega. Ele entra na história mais ou menos como uma espécie de detentor de um segredo último, que ele enuncia em algumas fórmulas como que reveladas. De Platão para Aristóteles temos um salto imenso, no sentido da conquista do juízo crítico e da autoconsciência da limitação humana. Comparado com Sócrates e Platão, para não falar dos antecedentes, Aristóteles é de uma atualidade chocante. E, sendo assim, começamos a entender porque não existiu um aristotelismo no mundo grego. A filosofia aristotélica tinha propostas que estavam muito além e muito acima das exigências momentâneas da mente grega. Por isto mesmo, embora o Liceu Aristotélico tenha continuado a existir, o aristotelismo desaparece de dentro do próprio Liceu e ele só tem propriamente um discípulo que podemos dizer que é aristotélico - Teofrasto. Este é apenas doze anos mais novo que Aristóteles, da mesma geração. Produz duas obras importantes uma Metafísica ( apresentação da metafísica aristotélica ) e outro livro chamado Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos, que conserva o vigor e atualidade até hoje, principalmente através da tradução e complementação que lhe deu La Rochefoucauld. Teofrasto é o único discípulo que captou algo de Aristóteles e pode ser dito aristotélico. O seguinte escoliarca do Liceu - Estratão de Lampsaco - já não é aristotélico de forma alguma, embora imagine que o seja. Acredita estar sendo fiel ao mestre no instante em que expõe doutrinas que são já lhe são radicalmente contráras. Estratão interpreta Aristóteles num sentido empirista, isto é, declara que todo o conhecimento vem exclusivamente pela experiência sensível. Mas Aristóteles não é nem empirista nem racionalista, e acho mesmo que ele não veria nenhum sentido nesta oposição. Segundo

ele, o inteligível não está separado da realidade empírica, oculto num céu onde só possa ser alcançado pela razão pura; está antes imbricado no tecido mesmo da experiência, de onde é preciso desembrulhá-lo pelos esforços conjugados da análise metafísica e da pesquisa experimental. A experiência, para Aristóteles, não é concebível fora dos quadros lógicos que, por sua vez, se fundam na intuição intelectual dos primeiros princípios, os quais não poderiam ser obtidos da experiência ( por mera indução quantitativa ) mas também não poderiam chegar ao nosso conhecimento sem ela. Estratão esmaga logo toda esta sutil combinação, reduzindo a filosofia de Aristóteles a um empirismo, um erro tremendo que, quase dois mil anos mais tarde, será causa de outro erro complementar e oposto, que é o de tomar Aristóteles por um racionalista hostil à investigação experimental. ( Não há filósofo em torno do qual se tenham acumulado tantas imagens equivocadas, e é por isto que, neste curso, adoto esta abordagem indireta, de ir cercando Aristóteles através dos Aristóteles imaginários concebidos pelos que o comentaram, defenderam e atacaram. ) Assim o aristotelismo vai desaparecendo. Mesmo a edição dos textos de Aristóteles no século I a.C. (272 anos depois de sua morte), não suscita o nascimento de nenhuma escola aristotélica. Enquanto isto, a Academia platônica continua existindo e continua produzindo grandes nomes. As obras de Aristóteles passam a ser lidas por membros da Academia platônica e os primeiros grandes comentaristas de Aristóteles na Antiguidade -- Alexandre de Afrodísia, Porfírio e Siriano - são todos neoplatônicos, não são aristotélicos. Desde o último aristotélico - Teofrasto ( 372 a.C. ) até o primeiro aristotélico em sentido pleno que surge na história - Avicena ( 980 d.C. ), no mundo islâmico - passaram-se 1.400 anos! Este fato não tem sido enfatizado e sublinhado como o estou fazendo neste momento. Não existiu nenhum aristotelismo no mundo, depois da morte de Aristóteles, até decorridos 1.400 anos, a duração de uma civilização. Não de um país, ou de uma escola filosófica, ou de um regime político - é a duração de uma civilização inteira, um ciclo inteiro de transformações. O mundo islâmico, hoje, ainda não tem 1400 anos de idade. Se se observar o que ele é hoje, comparado a seus dias de glória, pode-se afirmar que é uma civilização já em decadência. Em 1.400 anos dá tempo de nascer, crescer, florescer, decair e morrer uma civilização. Portanto, afirmo taxativamente: Aristóteles não fez parte do mundo grego. Foi uma semente grega que ficou guardada num vidrinho para florescer somente dentro do que chamamos civilização europeia. Aristóteles é um filósofo europeu e não grego. Isto não é estranho. Diz Goethe: "O ente que realiza perfeitamente a qualidade que define uma espécie já não pertence a esta espécie". Já está em outro plano. Assim como o homem cujas qualidades e virtudes realizem o que existe de melhor no ser humano já nos aparece como sobre-humano, com algo de angélico. Como Santo Tomás de Aquino - o "Doutor Angélico". Ou um tipo como São Francisco de Assis, com qualidades que são humanas, mas realizadas de maneira tão integral que você vê que de certo modo passou para uma outra espécie.

Émile Boutroux na sua pequena biografia de Aristóteles diz que este não é só um indivíduo, mas é a consumação, a perfeição de todo o gênio da civilização grega. É verdade isto. Mas esta perfeição, esta consumação aparecem como o fruto de uma árvore, que já não faz mais parte dela, que vai ser destacado e vai ser a semente de outra árvore. O fruto perfeito, por sua vez só age - e esta ação é a própria realidade - numa outra árvore que provém dele. Este hiato de 1.400 anos entre a produção das obras de Aristóteles e o surgimento de um aristotelismo no mundo está na própria natureza do aristotelismo que, representando o suprassumo do legado grego, não poderia fazer parte da civilização grega. Assim como a herança deixada por um milionário não faz parte da fortuna dele, pois só é herança depois que ele morre. A herança necessariamente pertence a um outro. Ora, ainda assim, esta herança não é apropriada de repente e toda de uma vez. A Europa toma posse do pensamento aristotélico, mas não é uma posse integral. Uma posse no sentido imobiliário, em que se tem a escritura definitiva. A tomada de posse do aristotelismo pela civilização ocidental é um processo que começa a partir desta época, entre os anos 1000 e 1300, que é justamente o que chamamos período de formação do pensamento escolástico, e que na verdade não alcançou sua plenitude até hoje. O último grande escolástico citado na nossa lista é Duns Scot, nascido em 1266, que já não era propriamente um escolástico. Entre sua morte e o nascimento do sujeito que foi a grande expressão do aristotelismo renascentista - Pietro Pomponazzi - decorrem 200 anos: tempo da história inteira do Brasil como nação. A é de previsões errôneas

História feita

Nosso senso do tempo tem de sofrer alguns reajustes para estudarmos a história das idéias, onde as coisas transcorrem com uma lentidão terrível. Dizia Homero: "Os moinhos dos deuses moem lentamente". São eles que produzem a farinha para o pão da história humana. As decisões dos deuses são tomadas lentamente, lentamente entram em vigor e produzem consequências que se desenrolam ao longo dos milênios. Para acompanhá-las temos de entrar numa espécie de câmara lenta. Nosso Congresso toma "decisões históricas" toda semana, mas é claro que esta impressão é baseada numa imagem falsa do que seja História. Não cabe ao próprio personagem da cena dizer qual a importância que suas ações de hoje vão ter no futuro. Estas "decisões históricas" são todas irrelevantes. Mas Weber diz que, com os eventos que parecem importantes no momento, costumam acontecer duas coisas - a primeira é que esses acontecimentos se fundem na massa acinzentada do historicamente indiferente; a segunda hipótese, é que o sentido dos eventos acaba sendo tão alterado que vira às vezes o seu contrário. Weber também diz, em outro lugar, que a História é o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações. Os políticos que tomam decisões segundo uma interpretação simplista e esquemática do momento, caindo no engodo da retórica, arriscam-se a que suas decisões tenham efeitos

inversos aos desejados. Quando Luiz XVI manda convocar os Estados Gerais, é para dar um fim ao clima de insatisfação. Ou quando o Czar da Rússia liberta os escravos, é para eliminar uma situação de insatisfação causada pela injustiça. Como resultado, Luiz XVI é guilhotinado e o Czar morre na explosão de uma bomba. Aqueles atos que, no entender dos personagens ( e segundo a retórica dos intelectuais do momento ), levariam à restauração do seu poder, causam em vez disto a sua extinção. É difícil o caso de um evento histórico que tenha efetivamente o sentido que seu personagem desejou ver nele. Como os mil anos do Reich, que se esgotaram em doze. Aquilo que parecia ser a culminação de um movimento nazifascista foi na verdade o seu fim. Imaginem se os autores da Revolução, ao guilhotinarem metade da França, soubessem que o resultado de tudo aquilo seria um império, um imperador que restauraria tudo e criaria uma nova dinastia, que depois cairia para dar lugar à volta da velha dinastia, e que em 1848 seria preciso fazer uma segunda revolução para morrer um bocado de gente novamente e que só por volta de 1870 haveria paz liberdade e prosperidade? Robespierre acreditaria nisso? Acreditaria que viria a entrar para a História como o protótipo do tirano sanguinário, em vez de como um libertador do povo? O sentido do evento histórico é sutil, é melhor consultar os deuses e tentar ver as coisas a uma distância muito grande. Para isto, precisamos ter aquela neutralidade compassiva que nos permita querer ver o sentido das coisas como ele realmente é e não como o desejamos. Mas se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho, desejo evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver as coisas de uma certa maneira. Não que todo militante seja um sonhador. Há muitos que são realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é impossível que o militante não veja a situação em termos de vitória ou derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras contradições, alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas. Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles pensava dele, veremos que estavam todos enganados. E o próprio Aristóteles só não se enganou nisso porque não fez a menor previsão sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra coisa que nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma orientação que pudesse de certo modo permitir a continuação do seu trabalho, como tinha feito Platão. Na Academia havia uma série de valores, de critérios tão bem estabelecidos que era só continuar como o mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas Aristóteles não fez nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se fazem hoje - o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação de Aristóteles com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal - um trabalho coletivo, com centenas de pessoas contratadas graças a Alexandre para trazer informação para o Liceu. Como este trabalho imenso é deixado, quando ele morre - pelo menos ao que se sabe - sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando Aristóteles morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente encerrado; nos seus dois últimos anos de vida, ele estava no exílio e provavelmente prevendo que ia morrer, pois já partira doente, e sem comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo lugar, ele não era um reformador do mundo.

Não fazia planos para a vida alheia, que são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que pode, e deixou os discípulos à vontade para fazerem o que quisessem. Em terceiro lugar, duvido que o próprio Aristóteles tivesse uma visão muito exata da revolução que havia começado. Não poderia, a não ser que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua obra: o destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir tudo, todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois, tudo em torno vai acabar; esta polis, este regime; a Grécia será dominada pelos romanos; em seguida, vai erguer-se no mundo oriental um povo, o povo judeu, e do meio dele aparecerá um tal de Jesus Cristo que vai fundar uma nova religião sem importância, mas que trezentos anos depois vai dominar tudo isto; então vai aparecer algo chamado Igreja, que reconstruirá o mundo em novas bases; depois disto, mais a Oriente ainda, vai aparecer outro maluco, chamado Maomé, que vai trazer outra religião que dominará as Arábias e o Iran. Por lá é que vão ser reencontrados os manuscritos gregos, que serão passados para o árabe, depois para o latim, e isto vai cair nas mãos de um tal de Sto. Alberto Magno, que transmitirá a coisa a seu aluno Tomás de Aquino, o qual fará um estardalhaço a respeito - e então, finalmente, todo mundo vai ser aristotélico durante quatrocentos anos. Que história mirabolante! Poderia Aristóteles imaginar, mesmo de longe, esse destino póstumo das suas obras? Isto é absolutamente impossível. Portanto, Aristóteles não tinha a mais mínima idéia do que viria a acontecer. Causas do após a morte do mestre.

do

desaparecimento aristotelismo

As visões iniciais que temos de um assunto às vezes determinam todo o restante das relações que teremos com ele. Por isso achei muito importante corrigir e explicar esta noção de Aristóteles como fenômeno grego. Pode ser grego nas suas causas, mas não nos seus efeitos. Na aula passada mencionei que entre outras causas desta evolução anormal do aristotelismo, houve o fato de Aristóteles ter sido exilado em circunstâncias um pouco suspeitas por causa de suas ligações com Alexandre, o Grande. Relações que estavam estremecidas porque, numa crise política, Alexandre tinha mandado matar um sobrinho de Aristóteles, motivo pelo qual, apesar da amizade, todas as relações cessaram. Não chegaram a entrar em hostilidade mas não se procuraram mais para evitar de ter de acertar este ponto doloroso. Apesar deste distanciamento, quando surge uma guerra contra a Macedônia, todos os que tinham relações com o governo macedônico tornaram-se automaticamente suspeitos e Aristóteles teve de fugir. Não há indício do que aconteceu no Liceu em seguida, mas podemos supor que quem é amigo de suspeito, suspeito é. Portanto, deve ter havido uma correria geral para apagar indícios de relações com Aristóteles. Imagino que os textos dele foram-se tornando raros exatamente por isso. A história dos textos escondidos na caverna pode ser fictícia, mas a lenda deve ter sido inventada para explicar algo que aconteceu efetivamente. O fato é que os manuscritos sumiram e só dois séculos e meio depois reaparece a coleção nas mãos de Andrônico de Rodes. Mas não podemos explicar de maneira alguma pelo sumiço dos

manuscritos a ausência de um aristotelismo grego. Primeiro porque não é possível que tenham sumido todos os manuscritos; segundo porque o Liceu continua funcionando. Acho que havia mesmo uma incompatibilidade da mente grega para absorver esta nova atitude intelectual, tão isenta daquele fundo profético-religioso que o grego estava acostumado a encontrar nos seus pensadores. Sobretudo nos séculos seguintes, a crise político-social da Grécia, inclusive com a extinção da chamada democracia grega e sua substituição por governos ditatoriais, vai fazendo com que os indivíduos, já não podendo participar da política, se sintam isolados e percam o sentido de participação na história e comecem a se preocupar cada vez mais com problemas de ordem psicológica e particular. Daí o sucesso das novas escolas filosóficas, das chamadas neo-socráticas -cínicos, megáricos --, dos estóicos e sobretudo dos epicuristas, porque estes todos transferiam o eixo das preocupações filosóficas desde as grandes questões teoréticas para problemas psicológicos. Tirando o estoicismo, não são propriamente escolas filosóficas, são como se fossem terapias tentando oferecer um alívio mais ou menos fictício, postiço, para os sofrimentos humanos, mediante disciplinas mentais. A proposta epicúrea, por exemplo, é nitidamente de nunca pensar na realidade, mas concentrar-se na recordação dos momentos agradáveis e só pensar neles, como se o presente não estivesse acontecendo. Tudo isto acompanhado de uma retirada da vida civil, para você se fechar dentro de uma espécie de ashram. O famoso "Jardim de Epicuro" é umashram, para onde as pessoas iam para não sair mais, e onde ficavam curtindo as coisas simples da vida: comer, dormir, conversar com os amigos, só falar de assuntos agradáveis e nunca tocar nos males do presente. Uma espécie de sistematização da evasão. Como chamar a isto de filosofia? Não só o epicurismo como outras escolas deste tipo é o que estava em demanda - era o que as pessoas queriam, pois buscavam alívio urgentemente. Quem está em busca de alívio não está em busca do conhecimento da realidade. O conhecimento é um encargo, uma responsabilidade a carregar e supõe um certo equilíbrio das faculdades, que as pessoas não estavam absolutamente em condições de oferecer. Então, o aristotelismo desaparece não só por causa do fator material, da ausência dos textos, mas também por um fator psicológico- histórico, que o tornava desnecessário, do ponto de vista grego, naquele momento. A de Aristóteles como sua cosmologia

é

gnoseologia organicista

Voltando às características básicas do pensamento aristotélico, que foram perdidas na geração seguinte do Liceu, vemos que desta visão inicial do real como organismo e como hierarquia, Aristóteles tira uma conclusão que é das mais importantes até hoje. A de que se a realidade que se oferece a nós tem uma forma de existência que se assemelha à do organismo - isto é, de ser uma unidade múltipla, vivente, temporal - o conhecimento humano devia ser exatamente a mesma coisa.Ou seja, não somente o ser tem esta forma orgânica de existência - a unidade de uma diversidade imersa no tempo e num processo evolutivo --, mas o conhecimento humano também deve ser uma

unidade muito complexa de elementos diversos, coeridos sob uma forma orgânica, e existentes no tempo através de uma sucessão de transformações. Além do mais, tal como o organismo humano é uma coleção, uma unidade composta de estratos hierárquicos diferenciados, o conhecimento também deve ter vários estratos diferenciados que vão emergindo uns dos outros e que estão intrinsecamente ligados uns aos outros, de maneira a poderem ser distinguidos, mas não separados. Estes estratos, tal como a própria hierarquia dos seres viventes, se dispunham desde aquilo que é mais simples e pouco coeso até aquilo que é mais complexo e mais coeso. As formas de vida mais simples que conhecemos, as mais elementares, têm uma coesão muito deficiente. Por exemplo, uma ameba pode ser cortada ao meio e resiste a esta divisão. Se você cotuca uma ameba, ela se move, tem notícia de que algo de ruim se aproxima, e foge da agressão. Mas se você a cortar ao meio, diante do fato consumado, cada parte vai para um lado e trata de viver separadamente. Se uma minhoca é partida ao meio, as duas partes continuam se agitando. Têm uma forma de unidade deficiente. Conforme os animais vão manifestando funções mais diferenciadas, mais abrangentes e superiores, ao mesmo tempo a coesão destes animais é maior. Se você corta um pedaço de uma planta, ela pode continuar vivendo. O pedaço cortado pode morrer, mas o resto continua vivendo. Um animal já não pode ser seccionado da mesma maneira. E o princípio da coesão vai-se tornando mais firmemente uno para proporcionar uma abrangência maior das funções. Nesta escala, onde à maior complexidade corresponde uma unidade mais coesa, o homem estava evidentemente colocado no topo. O homem é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o mais coeso dos seres terrestres.Aristóteles via o processo do conhecimento exatamente nos mesmos termos em que via esta escala dos seres viventes, da qual mais tarde sairá, por uma aplicação óbvia de um preceito aristotélico, a teoria da evolução. Esta, pois, se encontra pressuposta nesta escala dos seres viventes proposta por ele. É só temporalizar -- coisa que Aristóteles também não falou, mas é uma decorrência óbvia de sua filosofia --, e você terá aí um esboço da teoria da evolução. Darwin reconhecia sua imensa dívida para com Aristóleles, e dizia: "Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles." A esta unidade diversa da visão do real corresponde então a unidade diversa como visão do processo cognitivo. l. A sensação. -- O conhecimento começa para Aristóteles com as simples percepções sensíveis. Estas são pequenas alterações que um organismo sofre devido à entrada de uma informação que vem do exterior. Nem todos os seres têm a capacidade de receber estas informações. Os minerais, por exemplo, não a têm. Esta capacidade já marca a diferença entre seres mais simples e mais complexos. 2. A memória. -- Porém, diz Aristóteles, entre os seres capazes de receber informações sensíveis, há alguns capazes de retê-las, e outros não. Por exemplo, a ameba não tem memória, mas o mosquito já tem. Então, a memória significa a capacidade de você repetir a mesma informação na ausência do estímulo. Ou seja, se na primeira vez o

estímulo veio de fora do organismo, da segunda vez o organismo mesmo o produz, de maneira atenuada. Entre os animais que não têm memória e os que têm existe um salto de complexidade e qualidade, similar àquele que existe entre os seres que não têm percepções sensíveis e aqueles que as têm. Já temos um duplo salto: os insensíveis e os sensíveis, e dentre estes, os que são dotados de memória. 3. A experiência. -- Dentre os seres dotados de memória, alguns são capazes do conhecimento por experiência. O que é isto? É um princípio de generalização em que, de várias experiências iguais, você conclui uma regra mais ou menos comum. Vemos que um gato tem memória. Você o vê repetir certos circuitos de ações; porém ele não tem a mesma capacidade de aprender por experiência que tem um cachorro. Quem já tentou ensinar aos dois, verá que no caso do gato isto é quase impossível. O gato não consegue generalizar - fazer dos casos individuais uma regra -- com a mesma facilidade do cachorro. E dentre os animais dotados de experiência, o que a tem em maior grau é o homem. Resumindo os vários saltos até agora: insensível ® sensível ® memória ® experiência. 4. A técnica. -- Porém, a experiência e o conhecimento por experiência se dão exclusivamente dentro de um organismo individual. Eu tenho as minhas sensações, tenho a memória e, a partir desta, concebo a minha experiência e crio uma série de circuitos repetíveis que me permitem reagir de maneira similar em situações similares. No entanto, o homem tem algo mais do que isto. Ele não apenas tem a experiência, mas ele pode resumi-la e transmiti-la a quem não a teve. Isto já é o que se chama técnica. Bismarck diz que só os imbecis aprendem com a experiência. "Eu aprendo com a experiência alheia". Técnica é exatamente isto: um conjunto de preceitos que permite aprender com a experiência alheia e transmiti-la a outros, sem que você tenha de passar por ela. É obviamente isto que já caracteriza o homem. Depois da experiência, vem então a técnica que é experiência condensada, resumida e distribuída socialmente. O indivíduo que pode aprender pela técnica tem um salto de velocidade e eficácia imenso em relação àquele que só tem a experiência. Com a técnica, começa o mundo da cultura e começa o mundo propriamente humano. 5. A ciência. -- Depois da técnica, ainda há mais um salto. A técnica é apenas uma codificação das experiências repetidas. Além disso, temos uma forma mais condensada, mais eficiente e mais profunda de conhecimento. É o que Aristóteles chamaepistemê, que traduzimos normalmente por "ciência". É onde não somente se conhece e sistematiza o circuito das experiências repetíveis, mas se encontram os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Desde o conhecimento pelos sentidos até a epistemê, no topo da pirâmide, existe um processo de simplificação e coerenciação cada vez mais abrangente. Ou seja: as experiências sensíveis são muitas, mas nos dão relativamente pouco conhecimento útil; a memória já resume isto e repete umas quantas informações significativas; destas, a experiência abole as repetições e conserva apenas os esquemas úteis; estes, na técnica, são simplificados e codificados de maneira a poder ser transmitidos, o que aumenta barbaramente a eficácia da ação humana. Finalmente,

na episteme ou ciência, dois ou três princípios científicos que sejam encontrados permitem abarcar uma multidão de conhecimentos organizada, coesa e eficientemente. De modo que o conhecimento se escalona numa pirâmide cujos vários estratos são inseparáveis. Se saltar um, não tem o seguinte. Não se pode dizer: "Este conhecimento aqui é superior, podemos abandonar o inferior". Não - ele é superior porque tem inferior por baixo. O tijolo de cima cai, se você tirar o tijolo de baixo. Esta hierarquia tem um sentido orgânico insecável.Os vários estratos são logicamente distinguíveis, mas não são realmente separáveis. 6. A sabedoria. -- A escalada poderia parar por aí, e já teríamos dado conta da inteireza da esfera cognitiva no homem em geral. No entanto, Aristóteles admite que o homem ainda possa subir mais um degrau, elevando-se do conhecimento dos princípios que estruturam o mundo da experiência ao conhecimento dos princípios universais, princípios de todos os princípios. A isto corresponde um novo "órgão cognitivo", o núus, "espírito", órgão da sabedoria. Porém, Aristóteles insiste que a sabedoria é própria somente de Deus, e que para o homem ela é antes um ideal realizado de maneira precária e parcial do que uma posse efetiva. Por isto, ele hesitará muitas vezes ao assinalar uma denominação para a ciência correspondente a este estrato. A denominação "metafísica" é de Andrônico de Rodes, e embora ela seja adequada sob muitos pontos de vista, Aristóteles não usa esse nome em parte alguma. Às vezes ele usa "filosofia primeira", às vezes "teologia", e às vezes -olhem que coisa significativa -- "a ciência que buscamos". Que buscamos, precisamente, porque não a possuímos. Por isto, no esquema da escala do conhecimento segundo Aristóteles, é justo incluir ou excluir o sexto estrato, a sabedoria, porque ela pertence à estrutura do homem como um ideal, mas não lhe pertence como posse efetiva.

Pensamento QUARTA AULA

e

Atualidade

de

Aristóteles

5 de abril de 1994

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro.

1a parte

Carlos

de: Madeira, Madeira

A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade - a esta idéia voltaremos muitas vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a partir dela, que me parece a chave da obra. O item que se segue - a estrutura da obra de Aristóteles segundo a tradição - nos dá a divisão que vamos usar como ponto de partida hipotético. Não quer dizer que eu aceite esta divisão e que ache que a organização a ser compreendida na obra de Aristóteles seja exatamente esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto de referência desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem na primeira aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim iremos estruturando este tema em torno de alguns pólos de atração aos quais retornaremos de tempos em tempos. A questão da intuição básica é um deles, a da estrutura da obra é outro. O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes, fez um divisão de suas obras partindo da idéia de que ela deveria acompanhar rigorosamente as divisões que Aristóteles estabelecia no sistema das ciências, de modo que a divisão em volumes seria um reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos, jamais foi alterada. A crítica principal que se pode fazer a ela é que a divisão do sistema das ciências é sempre do tipo ideal. Quando você estrutura o sistema das ciências, está definindo como esta divisão deveria ser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal. Enquanto isto, a divisão dos textos em volumes é uma divisão real e acidental. Porque, uma vez definido o sistema das ciências, primeiro: daí não decorre que o sujeito deva escrever um livro sobre cada ciência que ele tenha citado na divisão; segundo: mesmo que idealmente o indivíduo queira escrever um volume para cada ciência, não está dito que ele vá conseguir fazê-lo. Pode, por exemplo, morrer antes. Ou seja, divisão de textos é uma divisão de objetos, enquanto divisão do sistema das ciências é uma divisão de conceitos. Nem sempre uma coisa terá de acompanhar a outra. No conjunto da história da filosofia é raro que um filósofo escreva um volume para cada ciência de acordo com a divisão exata que ele fez dos vários assuntos. Um exemplo disto seria Kant. Ele divide os assuntos e escreve um volume para cada um. Outro exemplo, os escolásticos. Depois que a Escolástica foi-se consolidando - não ainda em Santo Tomás de Aquino -, firmou-se com ela uma divisão ideal das ciências que por sua vez se projetou numa divisão em volumes. Na obra do cardeal Mercier, por exemplo, há um rigoroso paralelismo entre as divisões do sistema e a repartição dos volumes, mas acho que esse paralelismo só pode se realizar perfeitamente em obras que expõem uma filosofia velha e consagrada, não naquelas que expõem a doutrina que o filósofo está criando naquele mesmo momento. A filosofia em estado nascente tem geralmente uma exposição improvisada e assimétrica. O neotomismo é por isto mais organizado, editorialmente, do que o tomismo. Se você tomar os escolásticos menores, sobretudo os mais recentes, por exemplo, Maritain ou

André Marc, verá que eles fazem um volume de lógica, um de psicologia, um de metafísica, acompanhando a divisão das ciências. Nesta divisão feita por Andrônico, não fica muito claro se ele está falando de idealidades ou de realidades, de conceitos ou de textos efetivamente existentes. O pior de tudo é que, se só havia sobrado, com as perdas, um terço da obra aristotélica, como este terço poderia acompanhar a divisão global do sistema das ciências? Mesmo que Aristóteles tivesse escrito os volumes rigorosamente de acordo com as divisões do sistema, se dois terços da sua obra foram perdidos seria muito pouco provável que sobrasse exatamente um pouco de texto para cada divisão, sem deixar nenhuma em branco. A divisão de Andrônico é a seguinte: primeiro, haveria um setor consagrado ao método de todas as ciências; é isto que Aristóteles chama de Organon, que quer dizer "instrumento". Aí estão os modos de esquematizar o pensamento que são comuns a todas as ciências, a todos os setores do conhecimento, os tratados de lógica, em suma, os tratados que se referem aos discursos de modo geral. Para se orientar no mundo de Aristóteles, há uma série de nomes que é preciso decorar, assim como nomes de ruas, para você saber aonde está entrando.

As o série "Lógica"

primeiro

livro

Categorias: da

A primeira obra do Organon chama-se "As Categorias".Categorias são as formas básicas sob as quais a realidade chega até nós. Você percebe alguma coisa e esta coisa que você percebe é ou um ente real - como por exemplo percebo vocês neste momento , ou então é uma qualidade - quando você percebe que está com calor; ou é uma relação entre as duas coisas - quando digo que a caneta está em cima da mesa; ou é uma ação que está sendo praticada por algum ente - o cachorro mordeu o menino. Todas as coisas que posso perceber no mundo estão colocadas numa destas categorias. Elas são a divisão máxima da realidade. E seriam, equivalentemente, os vários tipos de conceitos possíveis. Voltando à frase "o cachorro mordeu o menino"- pergunto: mas isso é real? Sim. A ação do cachorro morder o menino é real, mas uma ação pressupõe um sujeito que a pratique. No entanto o sujeito não pressupunha esta ação. O cachorro poderia ser perfeitamente real sem morder menino algum. Para que ele mordesse o menino seria preciso que ele já fosse real antes disto e que o menino também o fosse. Entendemos assim que a realidade da ação não é do mesmo tipo que a realidade do ente, daquilo que Aristóteles denominasubstância. No entanto, ela é real e não poderíamos reduzir a realidade da ação à do sujeito. Não basta que o cachorro exista para que ele morda. Entendemos que

a ação tem um tipo de realidade própria que não se reduz à realidade do sujeito, embora não exista sem ela. Estas várias modalidades de realidade é que são as categorias. Isto do ponto de vista ontológico. Do ponto de vista lógico, dizemos que elas são as espécies de conceitos que existem. Ou seja, conforme as várias espécies de realidade, teremos outros tantos tipos de conceitos. As Categorias são o primeiro livro da lógica.

Os definição, propriedade e acidente

predicáveis: gênero,

O livro trata também de uma outra distinção. Quando faço uma afirmação qualquer a respeito de um ente, ela pode referir-se àquilo que o ente é essencialmente; a algo que ele fez acidentalmente, ou seja, que não faz parte da definição dele; e pode referir-se a algo que não é nem parte de sua essência, nem acidente. Se digo: "O homem é um animal racional" - estou dando uma definição do homem. Porém se digo: "O homem é capaz de aprender aritmética" - isto não faz parte da definição, mas decorre dela logicamente. A isto chamamos propriedade, aquilo que é próprio do ente. Agora, se digo: "Fulano aprendeu aritmética" isto é um acidente, porque não é necessário que ele aprenda aritmética de fato. Toda e qualquer sentença que você diga a respeito de qualquer coisa vai cair numa destas modalidades. Ou vai estar dando a definição do ser, ou vai estar dizendo um acidente ou uma propriedade dele, ou ainda pode estar dizendo o gênero a que ele pertence. Por exemplo: "o cachorro é um animal" não é uma definição de cachorro, nem um acidente nem uma propriedade. Digo apenas o gênero. A definição se faz indicando o gênero a que um ente pertence e qual a diferença que ele tem em relação aos outros do mesmo gênero. Vocês podem testar isto com quaisquer pensamentos e quaisquer frases. Isto continua sendo rigorosamente assim. Esta divisão em quatro é a dos predicáveis. Por que este nome? Predicar quer dizer atribuir alguma coisa a algum ente. Tudo o que se afirma é uma predicação, é atribuir um predicado a um sujeito. Tudo o que se fala pode ser colocado ou na tábua das categorias ou na tábua dos quatro predicáveis. Quanto às categorias o próprio Aristóteles mostra dúvida quanto ao seu número. Numa lista dá sete, e outra dá oito, em outra dez. Isto significa que esta parte da teoria não está pronta. Quanto às sete categorias básicas não parece haver dúvida, porque ele as repete sempre. Além disso verifiquei que este número é o mesmo em todos os sistemas de categorias conhecidas nas outras lógicas do mundo (chinesa, hindu etc.).

Quando existe uma coincidência muito grande entre indivíduos de muitas civilizações sem contato entre si e com milênios de distância, muito provavelmente estes indivíduos estão captando estruturas básicas do pensamento humano ou da realidade mesma. Então podemos fechar negócio em torno das seguintes categorias: 1- substância, 2quantidade, 3- qualidade, 4- relação, 5- ação, 6- paixão, 7- espaço/tempo. O segundo livro da série da lógica chama-se "Da Interpretação" ( Peri Hermeneias ). Quando Dante fala: "No meio do caminho desta vida, eu me encontrei por um selva escura, onde a correta via era perdida", classifique isto nas categorias, se puder: de que Dante está falando? De um acidente, teoricamente. Nem todo mundo se encontra, em determinada etapa da vida, perdido em uma selva escura. Porém, num outro sentido,podemos dizer: isto é uma imagem de um processo essencial à vida humana, segundo Dante. A vida humana é perder-se do caminho reto, porque vivemos no tempo, entre os acidentes, e perdemos o sentido da nossa caminhada. E isto é um processo essencial à vida humana. Se é essencial, como pode ser um acidente? Vemos que antes de classificar pelos predicáveis e pelas categorias é necessário interpretar a sentença. Conforme o sentido, a mesma sentença poderá equivaler a uma definição, a uma propriedade, um acontecimento etc. Não podemos identificar a sentença gramaticalmente considerada, materialmente falada, com a proposição lógica correspondente. Por exemplo, se se trata de uma obra poética, a mesma sentença equivale a quatro, cinco, dez proposições lógicas. A interpretação correta da frase e de seu desdobramento nas proposições ou juízos lógicos formais é uma operação preliminar. É por isso que a gramática não funciona nem funcionaria jamais. Na gramática, o cachorro, por exemplo, é substantivo, mas o azul também é substantivo, embora às vezes também seja adjetivo. Ou seja, estes conceitos lógicos das categorias não correspondem rigorosamente aos conceitos gramaticais que depois foram forjados com base neles. Houve alguns espertinhos, a começar por um dos fundadores da lógica matemática - Rudolph Carnap - que dizem que as categorias de Aristóteles são apenas uma extrapolação das categorias gramaticais. Ele as teria tomado, dando-lhes um sentido lógico. Isto é pura ignorância, pois ninguém havia pensado em categorias gramaticais até então, não existia nenhuma gramática da língua grega e as primeiras especulações gramaticais dos gregos são do século I a.C., e baseadas em Aristóteles. Carnap pertence à escola neopositivista. Para os neopositivistas, as categorias aristotélicas seriam apenas tipos de palavras, quando o que se deu foi o contrário: a gramática é que surge com base na lógica de Aristóteles. Surge, e já faz uma confusão medonha, porque evidentemente os tipos de palavras não correspondem a estes tipos de conceitos. Porque as palavras são apenas signos que indicam sons que por sua vez indica idéias. São representações indiretas de conceitos. A uma mesma palavra podem corresponder três, quatro, dez conceitos diferentes. É evidente que se temos sete tipos de conceitos, não vamos poder ter sete tipos de palavras. Assim como a um mesmo ser correspondem incontáveis maneiras de representá-lo. Você pode ser representado pelo seu nome, ou por uma fotografia ( num outro sentido da palavra representar ), e ainda

em outro sentido, por um procurador, ou por um objeto de sua propriedade ( marcando um lugar etc. ). Entre o conceito e a palavra a relação é esta. Nossos educadores, o Ministério da Educação, acham que o ensino do pensamento, o ensinar a raciocinar - incumbe aos professores de português. Ao ensinar a redigir, estariam ensinando a pensar. E é evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra. Isto é admitir que ninguém pensa nada antes da escrever a primeira palavra. Existe um hiato de pelo menos sete anos entre aprender a pensar e aprender a escrever. E segundo lugar, os processos que estruturam a gramática não são processos lógicos. Uma gramática se forma por usos e acidentes. Se as pessoas decidem chamar gato de abóbora, ao fim de umas duas ou três gerações o gato fica abóbora definitivamente. A gramática se faz empiricamente, isto é, ao sabor de fatos reais. E esperar que ela tenha uma estrutura lógica é como esperar que os resultados da loteria esportiva funcionem com um rigoroso padrão lógico repetitivo. As estruturas da gramática não são lógicas - são estruturas de sons e grafismos que são sedimentadas pelo uso, uso este que está submetido a milhões de influências casuais. Por exemplo, antes e depois do sujeito comprar televisão, sua linguagem não será a mesma. Se dois povos entram em contato mais estreito, o povo mais forte, mais antigo, mais civilizado, exercerá sobre o outro uma influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que está comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo normal, mas no exportar estruturas de frases: estamos falando português com estrutura de frase inglesa. Isto é muito comum em jornais, televisão etc. Os brasileiros também começam a dar um valor semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao valor semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a estrutura mental de um povo sendo implantada sobre outro. O resultado disto será maior ou menor conforme o apego maior ou menor que cada população tenha aos seus costumes linguísticos anteriores. É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não obedece a uma regra lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da gramática consiste e descrever o estado da língua e cada momento, mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão de ordem estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma decisão estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela é errada em função de determinado padrão que num certo momento foi adotado, às vezes por uma conveniência sociológica, ou política. Quando uma província é mais adiantada do que as outras, a linguagem dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se, como aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado como língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade um dos dialetos, que se tornou dominante. Então o italiano aprende em casa o seu próprio dialeto e na escola o toscano. É um processo de unificação da língua. Isto não quer dizer que a língua toscana seja em si melhor do que as outras. Os processos de uniformização da língua obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é a da Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em matéria gramatical, mas não podemos questionar o seu poder, e a gramática não é feita pela autoridade, ela é feita pelo poder. Quem fala mais alto acaba sendo imitado.

A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente lógicos leva a perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe entre sujeito lógico e sujeito gramatical. Se digo: "João matou Pedro", o sujeito é João. Agora digo: "Pedro foi morto por João". O sujeito gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto é para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também deve dar para entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem de ensinar a pensar é o professor de português. Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder aplicar estes conceitos à classificação dos demais conceitos, é necessário que a frase seja interpretada e que da sentença gramatical considerada nós retiremos os juízos ou proposições formais. Se pegamos esta primeira sentença daDivina Comédia, ela é uma sentença só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas proposições formais, que estão materialmente todas na mesma frase. Jamais confundir a sentença real com as proposições formais. A sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas proposições formais. É disto que trata o livro da interpretação. A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria do destino humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser analisadas separadamente. É próprio da linguagem poética corresponder a várias proposições formais possíveis e é por isso mesmo que ela é sintética. Se desmembrássemos, para cada sentença, uma proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora, nem a língua corrente do dia-a-dia. nem a língua literária, nem a de comunicação social ou jornalística ou da televisão - nada disto é linguagem logicalizada. Tudo isto é linguagem ambígua. A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico dado a esta linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer, porque quer fazer sentenças que contenham o máximo de proposições formais possíveis. O máximo de sentidos no mínimo de palavras - isto é a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por escolha; ela não consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por deficiência - mas há ambiguidade nos dois casos. A terceira obra de lógica seria os "Tópicos", que tratam da ciência da dialética, que leva este nome por tratar da confrontação de dois discursos simultâneos (dois ou mais). Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar onde não temos premissas firmes, ou seja, onde não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base para raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles Darwin estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um determinado bicho e quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter primeiro de situa-lo num certo momento, depois da espécie que o antecedeu e antes da que o sucedeu. Para isto você precisa ter a noção pronta da escala. Se você não tem a escala pronta ao menos como hipótese, não pode situar o bicho. É evidente que Charles Darwin não encontrou a doutrina da evolução pronta. Ele encontrava fatos biológicos, mas na hora de compreendê-los, lhe faltavam os princípios explicativos e mesmo os princípios classificatórios pelos quais pudesse situar cada fato. Então, como raciocinar? Tinha de fazer várias hipóteses. Por exemplo, você faz duas

hipóteses a respeito do mesmo fato - encontra um determinado bicho e diz: "Isto aqui parece ser parente da lagartixa, mas por outro lado parece ser parente do hipopótamo". É difícil ter acontecido isto a qualquer esqueleto real, mas suponhamos que você tivesse estas duas hipóteses. Quando Darwin associou o elefante ao cavalo, como o fez? À luz das aparências, não seria mais lógico procurar um parentesco com o rinoceronte, com alguma coisa mais parecida fisicamente? Por que ele achou o parentesco com o cavalo? Porque não usou o critério de aparência macroscópica, mas o da conformação dos ossos. Talvez, se tivesse encontrado outro critério, teria feito outras associações. Pela estrutura dos ossos, viu que se tratava de espécies contíguas ou parentes. Para cada um destes casos, ele tinha várias hipóteses possíveis. Ora, duas hipóteses contrárias se sustentam em duas séries contrárias de razões. Há argumentos a favor desta, que formam uma linha de raciocínio, e argumentos em favor daquela, que formam outra linha de raciocínio. Esta comparação é que se chama dialética. Quando você não tem princípios para explicar o caso determinado que você está averiguando, só lhe resta procurar estes princípios. E como encontrá-los? Seguindo as várias linhas de hipóteses contrárias, ao mesmo tempo. Não pode ser uma depois da outra. Porque cada hipótese é validada pelo confronto com a sua contrária. Entre duas hipóteses, uma parece mais válida. Então a que sobrou você compara com uma terceira e assim por diante. Por isso se chama dialética, porque é sempre uma operação dupla. A arte da dialética serve, segundo Aristóteles, para três coisas: 1) Para investigações nas quais não existam ainda princípios científicos assentados. 2) Para o treinamento da mente. A dialética servirá ao longo de mais de mil anos como a prática escolar central do aprendizado de filosofia. Porque é pela dialética que aprendemos a confrontar as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam até que uma delas saia vencendo. A importância escolar disto é incalculável. Se houvesse um treino dialético hoje em dia, a maior parte das idéias que estão em curso público desapareceriam, porque não suportam o mais leve exame dialético. Sustentam-se exclusivamente em argumentos retóricos. A argumentação retórica é baseada na verossimilhança, na impressão de veracidade. Quando discutimos retoricamente, temos uma crença e produzimos verossimilhança para sustentar esta crença. Produzimos exemplos em profusão. O exemplo é o tipo mais característico de argumento retórico. Exemplo não prova nada, mas dá verossimilhança; faz parecer verídico, dá vida ao assunto. Quando argumentamos mediante exemplos, estamos tentando tornar nosso raciocínio verossímil para quem nos ouve, tentando fazê-lo ver as coisas como as vemos. Se soubermos produzir exemplos vívidos, interessantes, o sujeito acaba vendo as coisas como queremos. Mas isto só serve para persuadi-lo, não serve para testar a veracidade do argumento. Então, como já foi explicado, a dialética serve para fazer uma triagem dos argumentos retóricos. Você confronta os vários "prós" e "contras" e desenvolve cada um de acordo com a melhor argumentação lógica possível, dando igual chance a todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no fim. Ou seja, na dialética você faz uma

arbitragem, não toma partido. O argumento retórico é um advogado defendendo uma causa. O dialético é um juiz julgando a causa. Se houvesse este treinamento nas escolas de filosofia, política, ciências sociais etc, 99% das crenças iriam embora, porque elas não suportam o exame dialético. Nele devemos conferir igual chance aos dois argumentos. Se isto não é possível, entendemos também que não é possível uma decisão correta do assunto e que esta irá para o lado volitivo ou irracional. Se isto fosse levado em consideração não teríamos discussões como o confronto entre o capitalismo e o socialismo. O homem que defende o capitalismo, refere-se ao capitalismo como existe historicamente. O que defende o socialismo não se refere a nenhum socialismo histórico, que tenha acontecido em algum lugar, mas a um vago ideal futuro. Ora, o capitalismo também tem ideais - mas a discussão retórica compara os ideais de um com a realidade de outro, em vez de comparar ideais com ideais, realidades com realidades. Então é evidente que esta questão não pode ser resolvida. Se você compara os ideais de um com as realidades do outro, a discussão está viciada. Se você compara as suas qualidades com os meus defeitos, você sai ganhando automaticamente. Por outro lado, os defensores do socialismo - todos, sem exceção - hoje em dia já não podem fazer assim, porque temos uma experiência socialista de cem anos no mundo. Mas dizem que não é representativo, porque não corresponde ao seu ideal... Isto é o mesmo que julgar um indivíduo levando em conta somente os atos que correspondem aos seus ideais, e considerando como falsos todos aqueles que estão abaixo do ideal. Vejo que um sujeito é um bêbado, ms como tem o ideal de deixar de beber, tenho de apagar a realidade da sua bebedeira, e encará-lo como se ele não bebesse. Isto é o tipo da discussão viciada. Tenho um belíssimo livro que se chama Ideals and Realities of Islam, escrito por um homem por quem tenho o máximo respeito, Seyed Hossein Nasr, onde ele confronta civilizações tradicionais, particularmente a islâmica, com a moderna sociedade industrial, e chega à conclusão que a sociedade industrial é um horror e que as civilizações tradicionais é que são bonitas. Só que ele faz isto: compara os ideais islâmicos com as realidades do Ocidente, e nunca o contrário. O que é representativo do ocidente? A crise ecológica, esta sujeira toda, a alienação do trabalho. O que é característico do Islã? Os ideais maravilhosos que estão no Corão. Esta comparação não é possível, está viciada. Teria de comparar bens com bens e males com males; ideais com ideais e realidades com realidades. Isto é uma regra dialética elementar. Quando você faz isto, é obrigado a engolir muitas coisas que retoricamente não desejaria. Toda esta revisão de ideais socialistas que existe hoje começou com a queda do muro de Berlim - ex post facto. Também fui socialista aos 20 anos, mas mudei sozinho muito antes que caísse o muro - por exame, confrontando. Levou quinze anos este processo; eu sei o trabalho que me deu. E as pessoas hoje mudam do dia para a noite, com a maior facilidade. Isto indica que não querem chegar a uma conclusão real. A solução não é fácil, do tipo pró ou contra. A dialética tem, então, entre outros usos, esta utilidade de formar a mente para o exame objetivo das questões.

3) A terceira utilidade assinalada por Aristóteles é a utilidade científica. Quando você está discutindo um assunto cujos princípios você desconhece, tem de remontar das questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O confronto crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que num certo momento você tem uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que governam aquele assunto. Pode ser uma falsa intuição. Porém é claro que onde você não conhece os princípios, não tem as premissas, você não pode fazer um raciocínio inteiramente lógico. Vai partir do que? Todo raciocínio lógico parte de uma premissa. Se não tem premissa você tem de fazer uma espécie de raciocínio lógico ao contrário, das consequências para as premissas possíveis - sem esquecer que as mesmas consequências podem derivar de vinte premissas diferentes e até contrárias. Então os processos de exame dialético podem ser infinitamente complicados e estão todos descritos com bastante sutileza não só no livro dos Tópicos mas também em todos os tratados de dialética que depois foram escritos, desde então até a Idade Média e depois. Este é um material pelo qual a maior parte dos filósofos modernos não tem o menor interesse. Vimos então os três usos da dialética: 1º) Para discussões onde você pretende alcançar um resultado meramente provável (uma retórica aperfeiçoada). 2º) Para utilização escolar - treinamento da mente. 3º) Uso científico - princípio de investigação científica. Guardem isto porque mais tarde é a esta sentença de Aristóteles, de que "a dialética é o meio de encontrar os princípios" que vamos recorrer para propor uma remontagem da nossa visão do sistema aristotélico, onde se coloca a dialética como a ciência principal.

As Analíticas e do silogismo

a

teoria

Depois do livro dos Tópicos, vêm dois livros que se chamam asAnalíticas e tratam do raciocínio lógico - o sistema dos silogismos. Silogismo é uma sequência de três proposições, onde das duas primeiras decorre necessariamente a terceira. Existem várias maneiras de montar um silogismo, algumas válidas, outras não. Aristóteles distingue 64 caminhos pelos quais o raciocínio silogístico pode chegar a uma conclusão. As premissas, por sua vez, segundo ele se dividem em dois tipos: universais ou gerais e particulares. Universais são as que se referem a toda uma espécie de seres; particulares, as que se referem a um em particular. No famoso exemplo - Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal - a primeira premissa é universal ( Todo homem... ) e a segunda particular.

Conforme o jogo de premissas universais e particulares, você terá conclusões que serão válidas para um indivíduo em particular ou para vários. No exemplo citado a conclusão se refere especificamente a Sócrates - a um indivíduo em particular e não a todos. Seguindo o jogo de premissas universais e particulares, temos um ciclo de 64 etapas possíveis - exatamente a estrutura do I Ching. O conceito de universal-particular em grande parte coincide com o conceito de Yang-Yin, respectivamente. Se você pegar os silogismos válidos e os inválidos e fizer um raciocínio completo, terá 64 etapas, das quais somente dezoito são efetivas, probantes, as outras não. Por exemplo: Algum homem é careca, Sócrates é um homem. Posso concluir queSócrates é careca? Não. Mas posso fazer o silogismo. Tem uma estrutura silogística, porém não é válido. Se você pegar cada etapa do raciocínio, pode tomar como nova premissa uma conclusão para um segundo raciocínio, desde que a some com uma outra premissa.

A = Premissa universal

D = Nova sentença ( premissa universal ou particular )

B = Premissa particular

E = Conclusão.

C = Conclusão particular, premissa ( particular ) do novo silogismo

Rodando com todas as combinações possíveis, você verá que algumas são válidas, outras não. E a totalidade destes arranjos dá 64. A combinação é entre as palavras todos e algum; conformetodos ou algum estejam na 1ª, ou na 2ª premissa ou na conclusão, você terá 64 combinações. Existe uma clara analogia aí, porque o yang evidentemente se refere sempre ao universal e o yin ao particular, -- o grande e o pequeno. Isto é bastante claro. O yin é um princípio de particularização, de segmentação, por isso mesmo é representado por um

traço dividido ( — — ). A divisão, a distinção entre os seres é um princípio yin; a unidade do universo é um princípio yang. É o contrário do que diz o Fithjof Capra. Para ele, o yang representa a razão que é analítica e divide, e o yin representa a intuição que unifica. Mas se é assim, por que o chinês representou o yang com um traço contínuo ( —— ) e o yin com um traço dividido ( — — )? É porque o chinês não tinha lido o Capra... Como se divide o I Ching? Não é um jogo de 3 e 2? Aqui também temos um jogo de 3 e 2. São três sentenças e duas possibilidades ( todos e algum - universal e particular). Se você tiver paciência, vai combinando e vai chegar nos 64. A silogística é um jogo exclusivamente matemático. Na verdade, um joguinho para crianças. É algo que qualquer pessoa aprende com a maior facilidade, é algo totalmente mecanizado, que é possível ensinar a um computador mediante um circuito em que você tem um jogo de 2 e 3 igualzinho. Isto seria a Analítica. Aristóteles nunca usou a palavra "lógica", que será mais tarde inventada pelos estóicos. Ele chama-aAnalítica ou ciência demonstrativa. Esta é a ciência que, partindo de uma premissa admitida como certa, chegará a um resultado que terá de ser admitido como certo, queiram ou não queiram, exatamente como na aritmética elementar. Se você tem a premissa certa, chegar à conclusão certa é mera questão de ajeitar formalmente o raciocínio correto. Um computador faz isto. Dada a premissa, se você der a conclusão errada, ele corrige, porque é mero ajuste formal. Este é o raciocínio mais certo que existe, uma vez que você tenha a premissa certa. O problema é este: onde encontrar as premissas? Se tudo fosse uma questão de raciocinar logicamente, já estava tudo resolvido há muito tempo. Porém, é claro que a lógica não pode encontrar premissas, e sem premissas nada se pode fazer. Para encontrar a premissa certa, é preciso partir de um grande número delas - meramente prováveis, premissas hipotéticas. Portanto, a coisa decisiva passa a ser a dialética.

Pensamento QUARTA AULA

e

Atualidade

de

Aristóteles

5 de abril de 1994

Transcrição Heloísa João e Kátia Torres Ribeiro.

2a parte

Carlos

de: Madeira, Madeira

O nas de Aristóteles

mito

da

lógica interpretações

É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um enorme equívoco na interpretação de Aristóteles ao longo de muitos séculos. Porque sempre se considerou que a dialética, sendo uma ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à lógica, que tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador da filosofia grega Solmsen - que é um dos grandes responsáveis pela consolidação desta interpretação. Segundo ele, a analíticaanula a tópica (dialética). Como numa evolução, Aristóteles teria vindo por um caminho e chegado a um fim - primeiro foi professor de retórica; depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica. Solmsen partiu também da premissa de que a ordem temporal deve representar uma ordem hierárquica. Aristóteles teria concedido atenção, no fim, à coisa mais importante, num sentido evolutivo. Ao que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco - não chegou a dez livros. Era um judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu da Alemanha para a França, adotou a língua francesa e nunca mais escreveu uma única palavra em alemão. Para o meu gosto, é o maior filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal. Diz ele: "Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles nunca fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?" Nenhum livro de Aristóteles é escrito logicamente, todos dialeticamente. Se Aristóteles descobriu uma coisa tão importante assim, por que nunca a usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por que continua usando a imperfeita até morrer? Um exemplo de demonstração lógica se encontra na Ética de Spinoza - assenta as premissas e vai tirando conclusões, como numa demonstração matemática. Outro é o livro de Wittgenstein. Tractatus Logico- Philosophicus - coloca as premissas, axiomas, e continua em linha reta a dedução lógica. Aristóteles nunca faz isto, em momento algum. Ora, tendo descoberto uma técnica mais profunda, mais exata que a anterior, como iria ele resistir à tentação de usar a nova? Hoje em dia, qualquer garoto que aprenda um programa de computador mais sofisticado que o anterior, vai logo testar o novo. E Aristóteles nunca usou a nova técnica em nenhum dos textos conhecidos. Acontece, que dos textos conhecidos, acredita-se que temos - neste um terço que sobrou de sua obra - aproximadamente setenta por cento das obras filosóficas importantes de Aristóteles. Existem sérias razões filológicas para crer que, das obras filosoficamente decisivas, sobrou quase tudo. Pode ter faltado uma coisinha ou outra. De tudo o que se encontrou de Aristóteles depois de Andrônico, nada se achou que pudesse mudar gravemente as bases conhecidas do sistema aristotélico. Até no século passado se encontrou um novo texto. Uma obra conhecida como "A constituição de Atenas", hoje

incluída nas obras completas. Isto foi achado em 1890. É importante porque é de Aristóteles; mas trata só da constituição de Atenas, não é nada decisivo filosoficamente. Claro que se você achar uma receita de cozinha assinada "Aristóteles", é um documento histórico, mas não vai abalar a interpretação do sistema. Historicamente importante é uma coisa, filosoficamente importante é outra. Não riam quando falo de receitas de cozinha, porque Aristóteles escreveu até um "Tratado de Economia Doméstica" - não há assunto que esteja para ele fora do mundo do conhecimento. Então, os livros de lógica abarcaram as categorias, a interpretação, os tópicos, as duas analíticas. Existe um outro livrinho que se chama Das Refutações Sofísticas, que pode ser considerado ou como livro independente ou como capítulo final dos Tópicos. É mais fácil incluí-lo aí - menos um nome para decorar. É uma aplicação dos critérios dialéticos à refutação de determinadas argumentações sofísticas - ouerísticas. Erístico é um argumento que você lança para fins de combate. Não é argumento sério, a ele você recorre no calor da polêmica, só para criar dificuldades para o adversário. Uma discussão política na maior parte dos casos não chega a ser retórica, é apenas erística.

As Física e Metafísica

obras

teoréticas:

Depois das obras lógicas, vem a série das ciências teoréticas (aquelas cuja finalidade é tratar do real e dizer alguma coisa a seu respeito). A obra teorética esgota sua finalidade quando consegue pronunciar uma proposição ou juízo no sentido de que algo é alguma coisa ou é outra coisa. Responde à pergunta "o que é?" A lógica não pode responder a esta pergunta de jeito nenhum. Ela não trata de nada, não tem assunto. Mostra apenas os esquemas de pensamento possíveis. A série das obras lógicas pega o conjunto de tipos esquemáticos de raciocínios que fazemos sobre a realidade e os considera independentemente da realidade a respeito da qual eles versam. Portanto, a lógica só existe como ciência distinta por uma distinção mental, não real. Vamos pegar uma ciência real qualquer - a física, por exemplo. Física para Aristóteles é a ciência da natureza e trata de algo real - o cosmos existente, que chega a nós através dos sentidos. Em seguida, você vê como raciocinamos - ou deveríamos raciocinar - a respeito da natureza, e isola o raciocínio de seu assunto. Ora, este isolamento só é feito por um truque mental, não real. Portanto, a lógica não tem um objeto real, tem apenas um objeto formal, definido idealmente. E isto é que a diferencia da ciência teorética. Ela não é uma ciência teorética porque theoréin quer dizer olhar, contemplar. A lógica não tem um objeto para o qual possa olhar. Seu objeto é totalmente inventado. A separação entre o raciocínio e seu conteúdo é, por sua vez, uma distinção simplesmente lógica, não uma distinção real.

Seguem-se os tratados de física. Tal como Aristóteles e o mundo grego a entendem, a física é o mundo dos fenômenos - o mundo que se apresenta diante de nós, considerado na sua totalidade. O sentido moderno da palavra "física" é muito mais restrito. Aquilo que hoje chamaríamos de biologia, e também a química se tivesse ocorrido uma química a Aristóteles, entrariam nos tratados de física. A física se divide basicamente em duas partes: primeiro, aquilo que se refere aos processos cósmicos; segundo, o que se refere aos seres vivos. Mais tarde, receberam os nomes de cosmologia e biologia, respectivamente. A biologia, por sua vez, não se destaca do que hoje chamamos psicologia. Aristóteles jamais conceberia um estudo da psique que não tivesse uma raiz no corpo vivente. A alma é para ele como se fosse um aperfeiçoamento, um escalão superior da vida e não um fenômeno distinto. Vamos ver que esta inseparabilidade dos fenômenos psíquicos e orgânicos é uma das intuições centrais de Aristóteles, e que o tornará um filósofo particularmente apto a ser aceito no mundo cristão, porque o cristianismo é a religião da encarnação, da união inseparável entre alma e corpo. Em seguida, deveriam vir os objetos matemáticos. E aí vemos que a divisão das ciências feita por Andrônico não coincide inteiramente com a divisão dos textos. Aristóteles não escreveu uma linha sobre matemática. E na divisão das ciências, a ordem seria esta: em primeiro lugar, os objetos físicos; em segundo, os matemáticos; em terceiro, a metafísica. Aqui precisamos fazer um parêntese no seguinte sentido: quando dizemos que um objeto é um "objeto da natureza", nós o estamos distinguindo de outros objetos possíveis. Entendemos que um triângulo não existe na natureza. E também entendemos que um tatu não existe matematicamente. Porém, a diferença entre o triângulo e o tatu é uma diferença de plano ou modo de existência. Porque na verdade os dois são existentes, os dois são reais. Mas estes objetos - o tatu e o triângulo - do ponto de vista de Aristóteles, são ambos abstratos, embora sejam reais. Abstratos porque o geométrico e o biológico são aspectos da realidade; aspectos que, na verdade, coexistem, mas que nós separamos por maior facilidade de examiná-los. Quando dizemos que 2 + 2 = 4, isto é um fato bruto, ao qual porém só chegamos através de raciocínio. Mas também entendemos que não fomos nós que fizemos dar 4, entendemos que este resultado nos é imposto pela estrutura mesma dos números. Entendemos que as propriedades das figuras geométricas também nos são impostas. Entendemos que se dividirmos um quadrado pela diagonal, vamos encontrar dois triângulos isósceles e quantas vezes fizermos esta operação, encontraremos o mesmo resultado. Isto nos é imposto de maneira dura e implacável. Esta resistência, esta consistência própria dos objetos matemáticos faz com que não somente Aristóteles, mas os gregos em geral os consideremreais. No entanto, o tipo de realidade deles não é o mesmo que tem um tatu. O tatu pode ser visto - ele nos é imposto aos sentidos. A divisão do quadrado em dois triângulos isósceles não nos é imposta aos sentidos, mas tão logo raciocinamos, percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos é

imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e suas propriedades existem efetivamente, são relações perfeitamente reais. Tatus e elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos outros, é porque, além de sabermos que são reais, introduzimos uma divisão na realidade, de acordo com um interesse que é nosso. Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros como não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua realidade, mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no "natural" e no "não natural". É por isso que Aristóteles os considera abstratos. Só são percebidos como distintos mediante uma abstração mental que separa o natural do não natural, embora ambos sejam igualmente reais. O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que eu vejo com os olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando morrer não vai existir mais. Então ele é menos real que os números. O que eles são não diz respeito à sua maior ou menor realidade. Ambos são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide. Um é real de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos, não podemos graduar a realidade em função deles. Representam distinções dentro da mesma realidade. Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas distinções é que pode ser considerada concreta e real objetivamente. E isto é que é o conceito de Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade enquanto tal. Para entender mais claramente isto, você pode imaginar o "tatu voador". Ele não faz parte da realidade. E a conta 2 + 2 = 5 também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução animal tivesse tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador, ou talvez o tatu pudesse falar sânscrito - nada impede. A impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser que existam tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme "Guerra nas Estrelas" há um tatu filósofo - o guru do Luke Skywalker. Estas coisas não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2 + 2 dêem 5. O tatu filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos se revoltam. Mas somente os sentidos - a inteligência não. Ela admite esta hipótese, embora como remotíssima. Agora, existe a hipótese remotíssima de que 2 + 2 dê 5? Existe a hipótese de que em algum outro planeta 2 + 2 possam dar 5? Existe a hipótese de que em outro universo 2 + 2 dê 5? É inconcebível e seria auto-contraditório. Então você entende que há gradações de impossibilidade. O estudo do real só se esclarece quando se confronta o real com o irreal, e você vê estas distintas gradações de irrealidade. Este estudo faz parte de alguma ciência? Não, nenhuma ciência pode estudar isto, porque toda ciência já subentende estas distinções. Então Aristóteles se viu na contingência de ter de inventar outra ciência. Todas as ciências se fundavam em distinções deste tipo - real, irreal, possível, contingente, necessário. Todas elas se baseavam nisto e estas distinções não eram estudadas por ciência alguma. Este estudo das condições que definem o real, que o delimitam, que o separam do irreal, e também o possível do impossível, é o que se chama ontologia ou metafísica, ou filosofia primeira, ou como Aristóteles também a

chamava, teologia. Por um curioso paradoxo, somente o objeto da metafísica é perfeitamente concreto, pois o real como tal não pode ser abstrato. Neste sentido é que triângulos e tatus são abstratos, em face da realidade como tal, do ser como tal.

As práticas e técnicas

ciências

Em seguida vinham as ciências práticas que dizem respeito à ação humana, ou mais genericamente, à conduta humana, que Aristóteles dividia em duas partes: conduta do indivíduo enquanto tal e a conduta dele enquanto membro de uma sociedade em particular. Esta a distinção entre a ética (ou moral) e a política. Entre as ciências práticas Aristóteles inclui a economia, seja doméstica, seja política: a economia do cidadão e a da polis. E finalmente as ciências que chamaríamos artísticas ou técnicas ou poéticas ou poiêticas. Estas estudam, não a conduta humana, mas o meio de produzir alguma coisa, algum objeto. Para entender a diferença entre ciências práticas e ciências poiêticas, é preciso entender a diferença entre ação imanente e ação transitiva. A primeira é a que esgota sua finalidade no próprio sujeito que faz a ação; a segunda, a que se define pelo resultado que ela produz num objeto. Por exemplo, respirar é típica ação imanente, quem respira é você mesmo e quem sofre o efeito da respiração é você mesmo. Pintar é uma ação transitiva. Se a pintura se esgotasse no gesto do pintor, independentemente do quadro, não a poderíamos chamar pintura de maneira alguma. Toda produção, todas as artes produtivas, pertencem à ação transitiva. Nesta última divisão, Andrônico colocou a Poética, que ensina a fazer obras literárias e a Retórica, que ensina a fazer discursos para o foro, os tribunais, as assembléias populares. O discurso, peça escrita, é um objeto, embora um pouco abstrato. Ao passo que a conduta pessoal ou política não é uma coisa, mas uma ação. As ciências práticas visam à ação humana e as ciências poéticas visam ao objeto da produção humana. Esta divisão das obras está rigorosamente de acordo com a divisão das ciências feita por Aristóteles, com um senão que é aquele das matemáticas. Falta um tratado consagrado às matemáticas - coisa que Aristóteles não fez em parte por ojeriza pessoal: ele devia estar farto de vinte anos de estudos matemáticos na Academia. Na Academia só se falava em matemática, e o que irritava muito a Aristóteles era a tendência platônica de tirar conclusões filosóficas direto da matemática. As pessoas na Academia achavam que triângulos existiam como tatus... Aristóteles tem uma mente muito concretista, orgânica. A materialização de conceitos abstratos é muito irritante para ele.

Introdução ao de Tertuliano

texto

A propósito do texto que vamos ler na próxima aula: Tertuliano é um dos apologetas cristãos. Temos aqui mais uma imagem do que pensaram sobre Aristóteles. O ano é 213. O texto está no livro de Tertuliano, De Anima. Não fala de Aristóteles em parte alguma. Dificilmente encontraremos alguma menção exclusiva a Aristóteles em todos os primeiros padres apologistas cristãos. Não houve uma discussão com Aristóteles, houve com a Academia platônica, o que incluía Aristóteles. Nos escritos dos apologetas, praticamente todos os filósofos eram englobados neste conceito, com exceção dos que pertencessem declaradamente a uma escola adversária. Como este não é o caso de Aristóteles, ele fica englobado dentro da Academia. E o curioso é que as objeções lançadas por Tertuliano contra a Academia são objeções aristotélicas, que Aristóteles poderia subscrever em gênero, número e grau. O texto é do ano 200 - seiscentos anos depois de Aristóteles e 263 anos após a edição dos textos por Andrônico. E o autor do texto, discutindo com a Academia e lançando contra ela objeções de conteúdo aristotélico, não tem disto a menor suspeita e imagina estar discutindo com a Academia como um todo. Isto prova que nos primeiros anos do mundo europeu e no final da civilização grega, a Aristóteles se aplica a famosa frase de Stanislaw Ponte Preta: "Sua ausência preencheu uma lacuna". É uma ausência tão notável que ocupa um espaço. Uma espécie de Aristóteles está subentendido, pairando no ar. Não houve uma consciência de que havia uma obra aristotélica e que seria necessário se posicionar perante ela. Tanto que este indivíduo, discutindo com a Academia, se dirige coletivamente aos seus membros, sem ter a menor idéia de que um deles, Aristóteles, já havia dito coisas do mesmo teor. Também selecionei este texto porque ele mostra uma espécie de sentido da organicidade, da integridade do real, que é profundamente aristotélica. Só que Tertuliano não conhecia Aristóteles ou, se conhecia, não lhe tinha dado importância. Então, de onde tirou este espírito da organicidade do real? Ele obtém isto de uma inspiração cristã. O cristianismo inaugura uma nova forma de abordagem do real, que enfatiza também este sentido da organicidade, costurando os dois mundos que o platonismo havia separado, na pessoa do Cristo. O cristianismo não deve nada a Aristóteles, vem de uma fonte completamente diferente - a fonte judaica. Mas como o cristianismo tem esta idéia da Encarnação, isto é, de que Deus nasceu como gente, já não é possível considerar que existem dois mundos, um profano, aqui, outro, divino, lá; ou um semi-real, aqui, outro real lá para cima. Se este aqui é irreal, dizer que Deus virou homem é o mesmo que dizer que Deus sumiu, entrou na ilusão. Se existe uma gradação de setores da realidade ou de planos da realidade, nenhum deles pode ser considerado mais real do que o outro. É o que mais tarde estará no verso de um poeta do século XX, aliás ateu e comunista, Paul Éluard: "Há outros mundos, mas estão neste". É tudo um mundo só. Este senso profundo da unidade do real está de fato subentendido, mas muito ocultamente e em germe, no próprio platonismo. Este só pode ter validade se a distinção

dos dois mundos emana de uma unidade prévia; se a distinção for absolutizada, vira demência. O senso da unidade e organicidade do real é a inspiração aristotélica mais característica e ela aparece neste Tertuliano que pega este mesmo senso, não de fonte aristotélica, mas de uma fonte judaico-cristã. Pergunta: -- Mas o cristianismo não enfatiza a separação entre mente e corpo? Pelo menos é o que todo mundo diz. -- O cristianismo é uma das doutrinas a respeito das quais circulam mais mentiras. O combate ao cristianismo no Ocidente foi muito intenso, é muito intenso ainda. Como acontece com quaisquer tradições espirituais, em volta das quais sempre existem incontáveis grupos interessados não em discutir as doutrinas cara-a-cara, mas em deformá-las, para lhes atribuir absurdos. No cristianismo a doutrina da separação entre corpo e alma é anátema. Esta separação que os inimigos atuais do cristianismo lhe atribuem foi proposta por inimigos antigos, e o cristianismo paga assim pelo mal que lhe fizeram. Um dos grandes segredos da história do Ocidente é a gnose. Quem entender isto, entenderá em conseqüência tanta, tanta coisa! Entre os vários inimigos do cristianismo, desde o começo, há um setor chamado gnose. Ela defende uma série de doutrinas que, quando expostas à luz do dia, se mostram realmente escandalosas. Em parte sabendo disto, ela mesma atribui suas doutrinas ao adversário. Estudando a evolução da doutrina cristã, você verá que ela é realmente muito diferente nos textos, nas falas dos papas, em toda a realidade na evolução do dogma, e na versão que dela os intelectuais anticristãos apresentam ao público. Esta separação de alma e corpo é anátema. Tertuliano é uma das primeiras grandes expressões de doutrina cristã, e ele se bate precisamente por este ponto. Do mesmo modo que existe uma história de dois mil anos da Igreja, existe uma história de dois mil anos da gnose. A Igreja é uma entidade única, cuja história se acompanha facilmente graças aos textos básicos reunidos numa coleção chamada "Patrística". A grega tem mais ou menos 400 volumes e a latina 300, de mil páginas cada uma, está tudo lá documentado. Quem quer saber qual é a doutrina da Igreja vai lá e lê. Como ninguém o faz, pode-se atribuir qualquer coisa ao cristianismo. O cristianismo não é uma religião feita para ser compreendida por pessoas de baixa qualificação intelectual. É difícil. Então, é muito fácil entendê-lo pela versão popular inventada por intelectuais anticristãos e combatê-lo por aí mesmo. Quantos teóricos não falam que o cristianismo separa a alma do corpo, quando na verdade é o contrário. Isto é o mesmo que atribuir ao cristianismo a idéia de que Deus não existe. As pessoas formam uma idéia do cristianismo a partir do que é divulgado por nãocristãos. Para saber o que é uma religião, deve-se perguntar a quem a conhece e a pratica, não ao seu adversário. Para saber sobre o judaísmo pergunta-se a um rabino, não a um nazista. Do mesmo modo, para saber o que é o comunismo não vou perguntar à CIA, tenho de ler Marx, Lênin etc. Só o cristianismo é que não merece este privilégio.

As pessoas divulgam o cristianismo já propositadamente distorcido e tornado absurdo para ser mais fácil combatê-lo. As grandes obras de doutrina cristã ninguém lê. Qualquer idéia tem o direito de ser defendida por ela mesma. Não se concede este privilégio ao cristianismo. As pessoas não têm idéia do que é a guerra pró e contra o cristianismo há dois mil anos. É uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, não se pode identificar o cristianismo com a horda de padres e pastores que podem falar o que lhes dá na cabeça. O que a Igreja em si pensa está nas sentenças dos papas e nos chamados "doutores da Igreja", um grupo seleto dentre os santos, cuja fala foi incorporada como parte do dogma - como por exemplo Sto Tomás de Aquino, Sta. Teresa de Ávila ou Sto. Afonso de Ligório. Não é o que qualquer pensador cristão fala que vale. Somente aquilo é pensamento da Igreja. Agora, um certo estado de espírito difuso que as pessoas chamam de cristianismo nada tem a ver com isto. Aristóteles foi incorporado mais tarde ao cristianismo por Sto. Tomás de Aquino precisamente por aqui; este era o ponto de união: a unidade entre corpo e alma. Não havia uma contradição muito profunda entre o aristotelismo e o dogma cristão da encarnação. Ao passo que no platonismo essa conciliação já ficava mais difícil, o que não quer dizer que seja impossível. Onde aparece uma tradição espiritual, uma revelação, uma eclosão de inteligência, surge necessariamente em seguida uma sombra e às vezes esta sombra tenta agir por conta própria, como se o rabo abanasse o cachorro. Do mesmo modo que existe um esforço humano em direção à verdade, existe um esforço no sentido contrário, no sentido do erro. A paixão pelo erro é incoercível, e certas pessoas, quando ouvem falar a verdade, isto lhes provoca raiva. Por exemplo, na Índia você tem o hinduísmo, a tradição vedântica, uma coisa maravilhosa - só que lá está cheio também de Rajneeshs, sociedades teosóficas etc, etc. - são parasitas. Do mesmo modo, você tem a Escola Platônica, um florescimento de inteligência, e logo em seguida, epicurismo, socráticos menores, um monte de parasitas que não entendem aquilo por falta de qualificação intelectual; então pegam um pedacinho da doutrina e o deformam. Isto é uma tendência humana - o homem é um bicho fraco e tende incoercivelmente ao erro. Do mesmo modo, em relação ao cristianismo. É mais fácil inventar um cristianismo do que procurar o que realmente existe. Por exemplo, para falar de repressão sexual - "esta nossa velha desconhecida" - e provar que o cristianismo só tem repressão sexual, essa dona Marilena Chauí pega a estátua de Santa Teresa, por Bernini, e mostra que o êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, tem a fisionomia de um orgasmo corporal; de onde ela conclui que os êxtases místicos de Santa Teresa eram meros orgasmos disfarçados por muita repressão. Ora, em primeiro lugar, Bernini, que fez a estátua, nunca viu Santa Teresa. Em segundo lugar, como seria possível representar materialmente um êxtase espiritual senão sob a feição de um orgasmo físico? Agora, dona Marilena começa por atribuir à santa as características da estátua - o que é inteiramente absurdo. No século passado, um grande historiador - Michelet - pegou um quadro de Franz Hals e descreveu a psicologia do personagem -- René Descartes -- pelo

quadro -, só que que Hals nunca tinha visto Descartes mais gordo. O caso ficou célebre como rateada de um grande historiador. Dona Marilena faz a mesma coisa, só que movida por uma intenção de "desmascarar", e na verdade ela só se desmascara a si mesma. A necessidade que certas pessoas têm de depreciar os que lhes são espiritualmente superiores é o que se chama inveja espiritual, e é um dos sentimentos mais baixos que podem existir. Há pessoas que não gostam de Cristianismo porque um padre as suspendeu da aula ou lhes botou medo da masturbação. E fica aquela raiva de padre, que depois, travestindo-se de filosofia, é projetada sobre dois mil anos de Cristianismo. Mas não é filosofia, é rancor pessoal mesquinho. É querer medir a civilização com o tamanho das suas dorezinhas pessoais. Não se pode fazer isto. E condenar o Cristianismo é praticamente condenar a humanidade. Condenar qualquer destas grandes tradições - Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo - é condenar a humanidade. É preciso confiar um pouco no bom senso da espécie humana. Muitas religiões nos parecem esquisitas quando vistas de fora, mas na realidade somos nós que não as estamos entendendo. O sujeito diz: "Olha, o cristianismo condenou o corpo humano". Se fizeram isto, são uns animais. Mas vamos ver se fizeram mesmo. Não, não faziam; mas seu adversário, a escola gnóstica, fazia. Baseados no preceito de que o mundo foi criado não por Deus, mas por um deus rebelde que violando instruções do Todo Poderoso criou o mundo, que é portanto necessariamente mau, os gnósticos concluiam que a nós cabe destruir esse mundo mau. Para isto existem dois meios - ou pelo ascetismo total, ou pela gandaia cósmica. Existem vários evangelhos gnósticos. A escola tem uma característica. Não há uma palavra que ela use que não tenha sentido ambíguo. Por exemplo - a curtição do "todo". Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no "todo". Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica. Porque no organismo humano, na vida biológica, na vida real, não existe separação absoluta nem indistinção absoluta. Tudo funciona harmoniosamente segundo um jogo de todo e parte, no qual os dois são inseparáveis. E é este o sentido profundo do aristotelismo. E é o que lhe permitirá mais tarde ser harmonizado com o Cristianismo, como poderia ser harmonizado com o hinduísmo, ou o judaísmo ou qualquer das grandes tradições, porque isto é a linha mestra do pensamento humano, que no fundo é o nosso senso-comum, o senso do homem são. Quando você faz a idealização do "todo cósmico", da integração na consciência cósmica - isto só serve para o indivíduo perder o senso da sua distinção, da sua limitação. Se por outro lado você enfatiza a total separação - coloca um Deus inatingível, numa esfera tão remota que não dá para saber o que é -, isto também deixa você meio maluco. O esforço das grandes tradições é para manter o verdadeiro equilíbrio orgânico, o verdadeiro equilíbrio ecológico da alma. E esta é a grande contribuição aristotélica. Este texto de Tertuliano documenta isto que a maioria das pessoas ignora: que a unidade indissolúvel de corpo e alma é um dogma cristão. E o que quer que sirva ou para cortar esta distinção ou para empastelar uma coisa na outra, não é cristão. Nem judaico ou

islâmico. É gnostico. Estas questões são muito graves. Mas quando se estuda filosofia é para estudar questões graves, atuais e urgentes, não uma coisa remota e boba que aconteceu na Grécia. É para estudar as coisas mais fundamentais da nossa decisão nesta vida. Aqui e agora. Importa muito para a condução da nossa vida termos uma idéia exata do que é dimensão corporal, espiritual, anímica no homem. O unir e o distinguir são as operações fundamentais da razão humana. O isolar e o empastelar são as duas operações fundamentais da ignorância, a qual também é organizada e sistêmica a seu modo. Existem sistemas inteiros que são feitos só para isto. O epicurismo, por exemplo, é um sistema premeditado de confusões, não é um mero engano acidental. O engano, a partir de certo ponto, se torna maldade. Do mesmo modo que existe gente se empenhando há milênios para que a humanidade se coloque numa direção luminosa, inteligível, equilibrada, tem gente fazendo força no sentido contrário. Existem representantes das duas coisas. Estamos num momento dificílimo. O papa há dias falou: "Parece que junto com a nossa civilização está-se desenvolvendo uma civilização do Anticristo". Agora é que ele descobriu? Isto já está aí há uns cinquenta anos. Mas os papas têm isto, sempre falam as coisas muito tarde. A Igreja Católica tem um aspecto paquidérmico. Leva tempo para se mexer, e por isto mesmo os inimigos acabam com ela. Mas todas as grandes religiões têm isto. São lentas. "Os moinhos dos deuses moem lentamente..." E o nosso grande poeta Murilo Mendes fala das "lentas sandálias do bem" e das "velozes hélices do mal"... Comentários a Seminário de Filosofia, 9 de janeiro de 1994

Simone

Weil

A linguagem da mística recorre com freqüência aos paradoxos, que não podem expressar verdade alguma exceto metaforicamente, o que vale dizer: ambiguamente. E quantas vezes, ao longo da História, o amor a Deus não tem se pervertido num amor à ambigüidade, numa rejeição das verdades mais patentes, num rebuscamento de contradições artificiais e desnecessárias! Que esta sofística piedosa tenha o alto propósito de indispor o descrente contra sua própria razão para atraí-lo aos braços da fé, ninguém nega. Que, porém, ela arrisque ter os resultados mais decepcionantes, entre os quais o de confundir o pregador mesmo, é também um fato, ainda que quase nunca reconhecido. Que, enfim, ela possa servir ao demônio tanto quanto pretende servir a Deus, eis aí o que soará como um escândalo, mas que a história do pensamento Ocidental confirma em toda a linha, e que aliás já fora anunciado por Jesus, ao advertir: "Seja o vosso discurso: sim, sim; não, não — o mais é conversa do maligno." Todos os desvarios da dialética hegeliana, marxista e nietzscheana foram assim prefigurados pela teologia apofática1. Deus, afirma a Bíblia, confunde a sabedoria dos sábios. Mas será lícito que os sábios se ponham a confundir-se a si mesmos, a pretexto de arrebatamento religioso?

Não bastam, para deslumbrar-nos, os mistérios supremos cuja solução Deus guarda para si? Será preciso semear de paradoxos artificiosos o caminho dos homens sobre a Terra? E que valeriam os mistérios supremos, se não tivessem solução nem mesmo para Deus? Os mistérios valem pelo Sentido, não pela misteriosidade. Eis aí o véu sutilíssimo que separa a mística da mistificação. E todo escrito místico, por natureza, contém sementes de mistificação — os de Simone Weil como qualquer outro. Cabe ao comentário filosófico separar o joio do trigo. Nas páginas que seguem, vou citando e comentando, sem um plano prévio, as passagens de escritos místicos de Simone Weil onde essa separação é necessária. Começo pelo trecho que diz: O bem é impossível. — Mas o homem tem sempre a imaginação à sua disposição para ocultar de si essa impossibilidade do bem em cada caso particular (basta, para cada caso particular que não nos esmague, velar uma parte do mal e acrescentar um bem fictício — e alguns podem fazê-lo, mesmo se eles mesmos são esmagados) e, no mesmo ato, para ocultar de si "quanto a essência do necessário difere da do bem" e impedir-se de verdadeiramente encontrar Deus, que não é outra coisa senão o bem mesmo, o qual não se encontra em parte alguma neste mundo2. Se não existe um bem em nenhum caso particular, e se de outro lado Deus é "o bem mesmo", isto é, o bem essencial, então todos os bens particulares são ilusórios e o único bem autêntico é o universal. Mas este universal, se não se encarna em nenhum bem particular, é mera forma conceptual vazia. Ou existe algum bem neste mundo, ainda que parcial e provisório, ou Deus é uma Idéia platônica. Simone confunde o parcial com o ilusório, o impermanente com o irreal, o temporal com o nada. Ou faz que confunde, para confundir o descrente, e acaba por se confundir a si mesma.

O desejo é impossível; ele destrói seu objeto. Nem os amantes podem ser um, nem Narciso ser dois. Don Juan, Narciso. Porque desejar alguma coisa é impossível, é preciso desejar o nada3. Dizer que os amantes buscam a unidade é mera figura de linguagem, que só pode ser levada ao pé da letra por alguém totalmente alheio à experiência do amor carnal. O amante deseja dar-se à amada ao mesmo tempo que a recebe; não desaparecer nela enquanto ela desaparece nele. O amor carnal não é extinção, mas conservação, revigoramento: conservação da espécie, revigoramento do indivíduo e dos laços conjugais. Nem Don Juan nem Narciso têm a menor idéia do que seja o amor carnal. Nem Simone.

A desaparição mútua é precisamente a definição do desejo perverso, isento da mínima parcela de generosidade e sentimento de proteção4.

Nossa vida é impossibilidade, absurdidade. Cada coisa que queremos é contraditória com as condições ou as conseqüências que lhe estão ligadas, cada afirmação que colocamos implica a afirmação contrária, todos os nossos sentimentos estão mesclados a seus contrários. É que somos contradição, sendo criaturas, sendo Deus e infinitamente outros que Deus5. A resposta é, naturalmente: sim e não. Se nossa vida é impossibilidade, absurdidade, segue-se, pelo princípio de que cada afirmação implica a afirmação contrária, a conclusão de que por isso mesmo nossa vida é possibilidade, sentido. A realidade é que passamos constantemente do sentimento de absurdidade ao sentimento de propósito e sentido, e esta oscilação mesma não pode ser compreendida como absurdidade, sob pena de não podermos mais conceber a idéia de sentido nem mesmo na acepção platônica de uma aspiração extramundana. "Sentido" e "absurdo", tomados como expressões de conceitos abstratos universais, são termos contraditórios. Mas, quando aplicados a qualquer conteúdo concreto — mesmo à expressão da totalidade da nossa experiência vivida —, tornam-se apenas contrários, o que permite dialetizá-los como o faz Simone. Apenas, a conclusão desta dialética — conclusão que Simone rejeita, com plena inconseqüência — é que toda coisa tem dois lados, um sensato, outro absurdo, e que a olhamos por um ou por outro conforme uma inclinação passageira nossa. Não havendo um conceito-síntese entre sensato e absurdo, então somos levados à seguinte alternativa: se procuramos resolver a questão pelo lado ontológico e universal, os conceitos voltam a ser contraditórios e, neste caso, somos obrigados a resolver o absurdo no sensato ou a proclamar a absurdidade da questão mesma; se, porém, pretendemos permanecer no plano da expressão de sentimentos pessoais, podemos, conforme a inclinação do momento, proclamar que tudo é absurdo, mas estaremos apenas universalizando arbitrariamente uma impressão que será fatalmente passageira e será seguida por sua contrária. O Sentido, enfim, é uma necessidade absoluta, e a existência mesma do sentimento de absurdidade é a sua maior prova.

Só a contradição fornece a prova de que não somos tudo. A contradição é nossa miséria, e o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade. Pois nossa miséria, não a fabricamos. Ela é verdadeira. Eis por que é preciso adorá-la. Todo o resto é imaginário6.

Se a primeira dessas sentenças parecia resolver a questão colocada no parágrafo anterior, a segunda põe tudo a perder novamente ao absolutizar a impressão passageira de absurdidade, impressão que, como vimos, só é tornada possível pela sua alternância com a impressão contrária, e que, enfim, somente nesta se resolve. Se o sentimento de nossa miséria é o sentimento da realidade, de toda a realidade, e se tudo o mais é imaginário, então também Deus é imaginário.

A impossibilidade é a porta para o sobrenatural. Não se pode senão bater. É um outro quem abre7. Só há dois tipos de impossibilidade: impossibilidade lógica, ou absoluta; e impossibilidade física, ou relativa. O sobrenatural não viola os limites da impossibilidade absoluta, os limites da identidade, pois é ele mesmo a Identidade, isto é, a absoluta possibilidade (é neste sentido que Sto. Tomás diz que Deus não pode revogar a lógica de Aristóteles). Quanto à impossibilidade física, só a conhecemos de maneiras parciais e transitórias, simbólicas, na verdade; não podemos experimentá-la extensivamente e só a vivenciamos em pura imaginação. Logo, só há duas maneiras de atingir o limite da impossibilidade: ou nos chocamos realmente contra umaimpossibilidade particular e contingente (o paralítico, por exemplo, que tenta mover-se), ou concebemos imaginativamente uma impossibilidade geral e universal. Em qual dessas duas portas é preciso bater? Se é nesta, então Deus é a solução imaginária a um problema imaginário. Se é naquela, então o fato de alguém abrir a porta é realmente um milagre, a dissolução sobrenatural de uma impossibilidade física determinada. Se é assim, somente um milagre no sentido físico do termo — uma superação de limites físicos naturalmente intransponíveis — pode nos abrir a porta que leva a Deus; e, se assim é, o chamado "milagre da fé" é apenas uma metáfora, um modo de dizer, pois é a superação subjetiva de um obstáculo imaginário e não há milagre real em mudar simplesmente de idéia. De outro lado, Cristo condena com veemência aquele que exige milagres. Logo, não é possível, ou pelo menos é fundamentalmente anticristão, que o confronto com a impossibilidade seja a única porta para o sobrenatural.

É preciso tocar a impossibilidade para sair do sonho. Não há impossibilidade em sonho8. Novamente, a primeira sentença enuncia uma verdade psicológica de experiência corrente, para, na segunda, saltarmos para uma generalização falsa. É verdade que o senso da impossibilidade falta em certas pessoas que vivem em sonho, e que a admissão da impossibilidade pode libertá-las do sonho.

Mas há sonhos que expressam diretamente nosso sentimento de impossibilidade, como por exemplo quando uma distância se multiplica à medida que corremos para alcançála. Não se trata aí de mera impotência ocasional, mas de uma viva experiência de impossibilidade física. O que falta no sonho não é o sentimento de impossibilidade, mas a avaliação das gradações e transições entre o possível e o impossível; é o senso da probabilidade, ou plausibilidade, ou razoabilidade. Inversa e complementarmente, o sentimento de impossibilidade geral, quando vivido em vigília, é apenas um sonho, um sonho mau do qual procuramos sair mediante o apelo a um sonho bom chamado Deus. Novamente, a solução imaginária de um problema imaginário. Os depressivos vivem num perpétuo sonho de impossibilidade, e nem por isto são mais realistas do que os maníacos e os visionários. Extinguir o senso da plausibilidade para levar o homem ao desespero e em seguida oferecer-lhe a saída de emergência denominada "fé" pode ser um expediente retórico piedoso, mas filosoficamente é inadmissível; ademais, é um artifício gurdjieffiano: chegar à verdade através da mentira, como se isto fosse possível, como se a verdade assim encontrada não estivesse viciada pela origem espúria. Os pregadores católicos abusam desse expediente, sem notar que corrompem a fé.Bilinguis maledictus, afinal de contas. Da minha parte, prefiro o mandamento corânico: Chegarás à verdade através da verdade.

"Nosso Pai, que está nos céus." Há nisto uma espécie de humor. É vosso pai, mas tentai um pouco ir buscá-lo lá em cima! Somos tão exatamente incapazes de decolar quanto um verme da terra. E como, da Sua parte, viria Ele até nós sem descer? Não há maneira nenhuma de representar uma relação entre Deus e o homem que não seja tão ininteligível quanto a Encarnação. A Encarnação faz esplender essa ininteligibilidade. Ela é a maneira mais concreta de pensar esse descenso impossível.9 É uma ofensa à dignidade da inteligência humana que um pensador cristão nos peça para acreditar na Encarnação comofato, ao mesmo tempo que nos proíbe de aceitá-la comopossibilidade. O real é, por definição, possível. A Encarnação é possível, uma vez que aconteceu. Mas, mesmo que não tivesse acontecido, não teria cabimento negar sua possibilidade teórica, e isto por duas razões esmagadoras: primeiro, ela é exigida pelo conceito mesmo de Onipotência; segundo, ela é anunciada pelo Antigo Testamento. A Encarnação compreendida — ou mal compreendida — comofato impossível é a negação do mundo criado, e não sua perfeição. Se jogamos o fato da Encarnação contra o senso da possibilidade lógica, destruímos, no ato, toda metafísica cristã e, de quebra, toda semente de uma cosmologia cristã. Da noção verdadeira de um Deus supracósmico, passamos à de um Deus anticósmico, um monstro absurdo a espumar de ódio contra a obra de suas mãos e a proclamar-se tanto mais infalível quanto mais peca

contra si mesmo. Há uma semente de diabolismo num supracosmismo levado às últimas conseqüências — e a Encarnação é ela mesma a resposta cabal de Deus a toda revolta anticósmica10. A Encarnação não somente é possível, como é possíveleminenter: ela é a condição de possibilidade mesma da existência cósmica. Se Deus não pode ser homem, simplesmente não pode haver homens. A analogia com a mais vulgar experiência humana basta para ilustrá-lo: que é que impede um autor de fazer-se personagem entre os personagens que cria? "En la tarde del 5 de enero, de pie en el umbral del café de Guido e Junín, Bruno vio venir a Sabato..."11 O sentimento de implausibilidade que o ateu experimenta ante a idéia de Encarnação é tomado por Simone como expressão plena e final da concepção humana do cosmos, numa ampliação universalizante de impressões passageiras, tão típica aliás do modus eloquendi francês em geral. E de um simples modo oblíquo de falar tiram-se, muito francesamente, as mais portentosas conseqüências filosóficas... Não vejo o menor sentido em confundir o sublime com o impossível, a não ser a título de figura de linguagem. Imagens do sublime que para o ateu representam impossibilidades são, aliás, freqüentes na simbólica religiosa em geral. Não é menos implausível para o ateu no meio cristão a idéia de Encarnação — no seu duplo aspecto de parto virginal e de nascimento do homem-deus — do que, no mundo islâmico, a possibilidade de um analfabeto escrever o mais belo dos livros e de este livro ter-lhe sido ditado por Deus. Mas, para quem tem um pingo de senso metafísico, nenhuma dessas coisas tem de ser impossível para ser sublime, nem tem de ser absurda para ser verdadeira.

Roma, é o grande animal ateu, materialista, que não adora senão a si. Israel, é o grande animal religioso. Nem um nem o outro são amáveis. O grande animal é sempre repugnante.12 O Ocidente cristão é o grande animal que se faz de crucificado e tomba com todo o peso da sua cruz salvadora sobre os ombros de povos que não pediram para ser salvos de nada exceto do invasor cristão. O cristianismo sempre culpa as demais religiões pelos males das civilizações nãocristãs, mas joga seus próprios males na conta dos resíduos pré-cristãos ou anticristãos da civilização do Ocidente. Se os muçulmanos cortam as mãos dos ladrões, é porque sua religião é bárbara e cruel. Se Afonso de Albuquerque corta orelhas e narizes de persas inofensivos, é porque não é suficientemente cristão ainda que seja o braço armado da Igreja. A Inquisição é um desvio acidental, mas a queima da biblioteca de Alexandria manifesta a essência do Islam.

É sempre assim no pensamento coletivista, sempre falso ainda quando fundado em verdades reveladas. Cito meu próprioDiário: "Princípios auto-evidentes para o estudo comparativo das religiões: "1. Comparar ideais com ideais, fatos com fatos. O sectário, em vez disto, compara os ideais de sua religião com os fatos históricos da outra, o que vale dizer: a essência de minha religião está nas suas intenções elevadas, e os erros cometidos em seu nome são acidentes humanos que não a comprometem; a essência da outra religião está nos erros cometidos em seu nome, e seus elevados ideais são apenas um disfarce ideológico. "É assim que as violências cometidas pela Igreja são absolvidas como acidentes irrelevantes, e as praticadas pelos muçulmanos tornaram-se expressão direta da natureza sanguinária da fé islâmica. Do mesmo modo, S. H. Nasr, em Ideals and Realities of Islam, não compara o mundo tradicional islâmico à civilização moderna, mas os sublimes ideais do primeiro à deprimente realidade histórica da segunda. "2. Pelos frutos os conhecereis. Sociologicamente, pelo menos, importa menos o dogma explicito e genérico do que sua interpretação prática pelos grupos que, na História, representam essa religião em cada fase. Por exemplo, no início do século XIX, um homem podia ser aceito como bom católico sem que demonstrasse qualquer amor ao próximo; mas não o seria sem demonstrar, ao menos em palavras, fidelidade à monarquia e ódio à Revolução. O catolicismo dessa fase consiste em reacionarismo principalmente. Do mesmo modo, pode-se ser um bom "irmão muçulmano" sem aceitar — a exemplo do Profeta — os cristãos como irmãos de crença; mas não se pode sê-lo sem ódio ao "grande Satã" norte-americano."13

Para respeitar por exemplo as pátrias estrangeiras, é preciso fazer da própria pátria, não um ídolo, mas uma escala em direção a Deus.14 O mesmo princípio vale para as religiões e civilizações: se não respeito as religiões estrangeiras tanto quanto a minha, é porque faço da minha um ídolo em vez de uma escala em direção a Deus15. A religião torna-se um fim em si, com seus ritos, suas pompas, sua retórica mística adornada de paradoxos rutilantes, e já não aceita Deus quando entra pela porta da inteligência metafísica, sem licença eclesiástica, ou simplesmente pela porta das outras religiões. Mas "aquilo que fizerdes ao menor destes, a Mim o fizestes".

Tudo o que é apreendido pelas faculdades naturais é hipotético. Só o amor sobrenatural põe.16

Logo, o sentimento de absurdidade é meramente hipotético, e o amor sobrenatural o resolve pela restauração do Sentido. Mas trata-se aí do amor sobrenatural que Deus tem por nós, e não do que nós temos por ele, e muito menos daquele que toma a forma específica da fé cristã — pois Deus deu o entendimento intuitivo do Sentido a todos os homens, pela ação do Espírito Santo, e não só aos cristãos. Do contrário, todos, menos os cristãos, naufragariam na absurdidade até a chegada do primeiro pregador cristão. O amor aos paradoxos é uma forma de idolatria bem querida dos místicos. Em nome do amor a Deus, eles se persuadem de não entender aquilo que entendem perfeitamente bem, para poderem deleitar-se no sentimento de absurdo e desfrutarem de um alívio factício adornado do prestígio de um milagre da fé.

Não é o erro que constitui o pecado mortal, mas o grau de luz que está na alma quando o erro, qualquer que seja, é cometido.17 Sim, porém mais perigosa que o pecado mortal não será a tentação de livrar-nos da luz para evitar que o pecado se torne mortal? Da minha parte, prefiro um milhão de pecados mortais ao pecado contra o Espírito; em caso de não poder sem grave dilaceração interior vencer uma tentação vulgar, prefiro pecar conscientemente, e arrepender-me conscientemente, do que reprimir a consciência moral para poder pecar com inocência — aquele tipo de inocência perversa que, como bem viu Igor Caruso, está na origem das neuroses e psicoses (índices, neste sentido, de ruptura com o Espírito). E se a humanidade, por dois milênios, ouviu graves advertências contra o pecado mortal, sem receber uma quota nem de longe equivalente de ensinamentos quanto ao pecado contra o Espírito, não será quase inevitável que a rejeição da luz acabe prevalecendo? Tome-se, por exemplo, o falso testemunho. Não será melhor perante Deus uma pessoa mentir conscientemente, perfidamente, maquiavelicamente para prejudicar a um inimigo do que, para o mesmo fim, corromper e obscurecer a própria consciência até o ponto de persuadir-se de que diz a verdade? A neurose resultante — a atmosfera de fraude e autoengano que pervade então toda a personalidade — é apenas o índice superficial de um profundo ódio ao Espírito. Talvez Simone vivesse numa época em que os pecados mortais vulgares — roubo, adultério — ainda fossem mais generalizados do que a rejeição do Espírito, hoje o mandamento número um da vida em sociedade. O irracionalismo arrebatado de alguns místicos cristãos (mas também muçulmanos, segundo observei) acaba por nos abrir a via abissal de uma mística sem sabedoria.

9 jan. 98

NOTAS Cf. Leszek Kolakowski, Las Principales Corrientes del Marxismo. Su Nacimiento, Desarrollo y Disolución, trad. Jorge Vigil, Madrid, Alianza, 1976-78, vol. I, pp. 1987. Voltar La Pésanteur et la Grâce, avec une introduction par Gustave Thibon, Paris, Plon, 1948, p. 111. — Todas as citações remetidas apenas a um número de página, sem indicação de título, são extraídas deste livro. Todas as citações em itálico e em parágrafo estreito são de Simone Weil, deste livro ou de outro, que se indicará na ocasião. Id., ibid. Voltar Se, como diz Sto. Tomás, "o amor é o desejo de eternidade do ser amado", então não se trata de extinção mútua, e sim de mútua salvação. Talvez seja mais fácil compreender isto desde o ponto de vista islâmico, onde o ato sexual aparece como um sacramento e não como o mero exercício de um direito outorgado por um sacramento prévio (tanto que no Islam não existe noção de "casamento religioso"). Esta concepção não é aliás estranha de todo ao cristianismo, onde os nubentes, e não o sacerdote, são os oficiantes do sacramento do matrimônio. A rigor, qualquer par de homem e mulher que, no intuito de união indissolúvel, se entregue ao ato do amor deve ser considerado casado, segundo a interpretação mais profunda do dogma. Apenas, a contingência histórica desviou o foco da questão, fazendo com que a idéia de matrimônio se associasse cada vez mais a um ritual público e cada vez menos à efetiva união carnal — com o que se perdeu todo senso primordial da relação homem-mulher e o casamento se tornou uma espécie de salvo-conduto para a prática do mal menor. Voltar Id., p. 112. Voltar Id., ibid. Voltar Id., ibid. Voltar Id., ibid. Voltar Id., pp. 112-113. Voltar O desaparecimento das ciências cosmológicas — alquimia, astrologia — do panorama da civilização cristã foi um dos efeitos mais devastadores do supracosmismo, que parece ter-se entronizado na mentalidade católica após o concílio de Trento e os abusos da Inquisição. Esse desaparecimento, por sua vez, ocasionou a proliferação de doutrinas cosmológicas materialistas que vêm preencher a seu modo o hiato aberto pela omissão católica e terminam por expulsar da alma humana toda concepção de Deus (v., a respeito, o esplêndido livro de Seyyed Hossein Nasr, Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man, London, Allen & Unwin, 1976, trad. brasileira de Raul Bezerra Pedreira Filho, O Homem e a Natureza, Rio, Zahar, 1977). A Igreja tem no seu passivo o pecado de haver colocado entre o homem e Deus, em vez do cosmos, um abismo, um

nada devorador; e ainda agrava essa culpa ao buscar um "diálogo" com as doutrinas materialistas, em vez de restaurar simplesmente a cosmologia cristã. E é evidente que esta cosmologia tem de tomar como fundamento absoluto e apodíctico a possibilidade da Encarnação. É verdade que o pressuposto contrário, o da impossibilidade, tem um efeito retórico mais contundente; mas vale a pena destruir toda a civilização cristã para depois buscar em figuras de retórica um abrigo contra o avanço da civilização anticristã? Voltar Ernesto Sabato, Abbadon el Exterminador, Buenos Aires, Sudamericana, 7ª ed., 1977. p. 11. Voltar P. 185. Voltar Seminarium. Páginas de um Diário Filosófico (inédito). Entrada de 10 de dezembro de 1991. Voltar P. 168. Voltar E poucos povos caíram na adoração da religião como fim em si como caíram os cristãos, a ponto de sobrepor a letra do dogma às evidências mais óbvias, como por exemplo faz Simone ao pedir que aceitemos a Encarnação como fato ao mesmo tempo que a negamos como possibilidade. Voltar P. 38. Voltar P. 142. Voltar

Quem come quem Texto original. Distribuído aos alunos do Seminário de Filosofia em 12 jun. 1999.

A luta pela "identidade nacional" na cultura brasileira tem sido uma longa comédia de erros. Enquanto nossos vizinhos buscavam sabiamente fortalecer os laços que os uniam à cultura hispânica de origem, lutávamos obsessivamente para cortar toda nossa raiz lusitana. Se é verdade que "pelos frutos os conhecereis", está na hora de admitir que apostamos no cavalo errado. De um lado, há perfeita continuidade de Perez Galdós a Jorge Luís Borges, de Unamuno a Octavio Paz, enquanto entre nossos literatos (para não falar de estudantes de letras) não se encontrará um só que, lendo Camilo Castelo Branco, não esgasgue a cada linha, intimidado por um vocabulário que com apenas um século de idade se tornou impenetrável mistério antediluviano. De outro lado, o idioma espanhol se afirma poderosamente como língua de cultura mundial, enquanto o português vai perdendo terreno aqui dentro mesmo, acossado pelo barbarismo

midiático, manietado pelos fiscais politicamente corretos, açoitado pelos feitores da incorreção obrigatória. Um efeito cíclico da nossa obsessão identitária é que, quanto mais nos afastamos da nossa raiz autêntica lusitana, mais temos de tomar emprestada a seiva alheia, seja francesa ou americana, e mais a nossa sonhada autenticidade se torna uma caricatura do estrangeiro. E o motivo disto é bem evidente: recusando-nos a desenvolver formas e estilos a partir de uma tradição lingüística própria, não nos resta alternativa senão rebaixar-nos a fornecedores de matéria-prima. Já no Romantismo, nós entrávamos com os papagaios e os coqueiros, Chateaubriand com a fórmula literária. Ora, em literatura, a forma é tudo: cor local, temas, cenários e documentarismo lingüístico contribuem menos para definir a nacionalidade de uma obra do que o faz a forma interna, esta sim, inconfundivelmente americana ou russa, inglesa ou lusa. A narrativa ágil e quase jornalística dos romances de Hemingway é sempre americana, quer a história se passe em Paris ou se adorne de acento espanhol. Imitada em francês, em malaio ou em urdu, permanece americana, pela força da matriz lingüistica onde foi gerada como solução americana para problemas expressivos americanos. Mais nos valeria, pois, ter desenvolvido a novela camiliana, mesmo que fosse em histórias passadas na África ou no planeta Marte, do que adaptar os temas nacionais ao modelo proustiano ou ao realismo socialista, ainda que temperados de gíria baiana ou mineira. O primado da forma, a sujeição da matéria, são leis inescapáveis, em literatura como em tudo o mais: "Quando o coelho come alface, é a alface que vira coelho, não o coelho que vira alface", resume Jean Piaget. Cobras e índios no molde literário de Apollinare não são cultura brasileira: são o delírio de um turista francês, intoxicado de cauim. O segredo da brasilidade autêntica do teatro de Ariano Suassuna não está nos temas, comuns a tantas obras epidermicamente nacionalistas, nem na imitação da linguagem popular, obrigação dogmática que se tornou cacoete: está em que a fórmula estrutural de suas peças não se inspirou em Sartre ou Brecht, e sim nos autos medievais lusitanos. Suassuna não é brasileiro porque come coco, mas porque digere a fruta local no estômago da tradição lusa. A forma é tudo. E um candomblé na Sorbonne não é sincretismo brasileiro: é a antropologia francesa engolindo o Brasil. Mais fez pela brasilidade do romance um Machado de Assis, criando com assunto urbano e em português castiço a fórmula inédita das Memórias Póstumas (não há por que exgerar a influência de Sterne), do que dezenas de imitadores de Zola narrando histórias de escravos com sintaxe de cangaceiro. Uma nova fórmula vale mil assuntos. Ser brasileiro, para um romancista, é integrar a experiência — local ou mundial, pouco importa — numa chave intelectual e estética criada por nós segundo as nossas necessidades, e não integrar materiais locais e trejeitos lingüísticos regionais numa tradição narrativa francesa ou inglesa. É uma simples questão de quem come quem. O protesto de Evaldo Cabral de Melo, de que só povos complexados se preocupam com a própria identidade, pode ser aceito como um exagero corretivo, mas continua exagero. A obsessão germanizante de um povo em luta com o complexo de inferioridade gerou Hermann e Dorothea e a filosofia de Fichte, Schelling e Hegel. E a afirmação

xenófoba do russismo contra a hegemonia franco-germânica produziu Dostoiévski, Soloviev e Lossky. Abençoada neurose! Nosso erro não está em buscar uma identidade. Está em três fontes de engano, nas quais bebemos compulsivamente há mais de um século. Primeira: revoltamo-nos sempre contra o dominador errado. Escravos da Inglaterra, continuávamos a nos bater contra o extinto domínio português. Intoxicados de francesismo, esforçávamo-nos por expelir de nosso ventre os últimos resíduos da herança portuguesa. E hoje, paralisados sob as patas do império mundial anglófono, encenamos ainda um ridículo Ersatz de rebeldia, não anti-anglo-saxônica e sim antilusitana, jogando bombas ideológicas contra a "língua dos dominadores", como se o FMI fosse presidido por Cândido de Figueiredo e a Gramática Metódica de Napoleão Mendes de Almeida fosse a Carta da ONU. Vista sob esse prisma, nossa pretensa busca de independência não é senão afetação e disfarce para encobrir nosso compulsivo puxa-saquismo, nossa incoercível devoção ao poder mais forte, nossa renitente hipnose de botocudos ante os prestígios internacionais do momento. A segunda coisa: acreditamos demais na mágica besta do popular, do local, do costumeiro e corriqueiro. Achamos que falando de coisinhas do nosso dia a dia e imitando a fala do povo seremos nacionais, quando a força da criação nacional não está na sua matéria, muito menos no populismo do seu estilo, e sim na originalidade das soluções estéticas e intelectuais que, uma vez bem sucedidas, se transformam em soluções e modelos para outros escritores de outras nações. Dostoiévski não representa o gênio russo porque fala da Rússia ou porque imita a fala dos russos, mas porque inventou, desde a Rússia, um sistema de enfoques narrativos que desde então se tornou necessário para todos nós, seja para falarmos da Rússia, seja de nós mesmos. A originalidade de uma literatura nacional é enfim uma só e mesma coisa que a originalidade criativa de seus escritores, a qual por sua vez não é senão a capacidade de dar respostas sérias a ansiedades autênticas. E, quando isto falta, não há documentarismo, populismo ou automacaquice lingüística que o substitua. A terceira fonte de engano é a perpétua confusão que fazemos entre o universal e o atual. Achamos que, para integrar-nos na cultura mundial, temos de acompanhar o debate que se desenrola entre os povos mais ricos e supostamente mais cultos. Nunca nos ocorre a hipótese de que, no curso desse debate, esses povos possam ter perdido o fio da sua própria tradição cultural, de que possam estar reduzidos à mais profunda incompreensão de si mesmos, de que possam estar mergulhados numa inconsciência que só um maluco suicida desejaria imitar. Tomamos sempre os povos importantes de hoje como se fossem os únicos intérpretes autorizados da tradição ocidental (para não dizer mundial), e nos recusamos a lançar um olhar direto e sem fiscais sobre um passado que eles mesmos, tantas vezes, confessam já não compreender mais. Quem nos garante que, examinando por nossa conta a antigüidade greco-romana, a cristandade medieval, a remota herança dos povos orientais, não seremos capazes de descobrir aí certos tesouros que foram esquecidos pelo establishmentcultural euro-ianque ou que mesmo escaparam completamente ao seu horizonte de visão? Quem, que autoridade, que dogma inabalável

nos reduz à condição de herdeiros indiretos que só podem ler Marco Aurélio com os olhos de Renan, Parmênides com os de Heidegger ou Aristóteles com os de Jaeger? Quem nos arrebata o privilégio de desfrutar diretamente de uma herança que não pertence só aos povos ricos e que os povos ricos tantas vezes desprezaram, traíram, aviltaram e perderam? Quem nos assegura que a linha de evolução intelectual da Europa moderna foi a única ou a melhor possível que poderia ter-se desenvolvido a partir do legado medieval e antigo? Por que embarcar na paralisante suposição apriorística de que não podemos descobrir aí novos e inéditos desenvolvimentos? Por que fazer da história intelectual européia o modelo paradigmático e inescapável da sucessão dos tempos? Por que repetir, como um disco rachado, que as coisas não poderiam ter sido de outro modo e recusar-nos a experimentar outros modos possíveis? Por que não podemos escandalizar e chacoalhar a empáfia dos usurpadores, lendo Heidegger através de Parmênides, Nietzsche através de Sócrates, a modernidade através da Idade Média? Por que não podemos, em vez de medir o passado com a régua dos senhores do dia, julgar os senhores do dia à luz das sementes cujo máximo e perfeito desenvolvimento eles, sem a mínima prova, asseguram representar? Por que não nos atravemos a provar que as antigas sementes, plantadas em terra nova, podem dar melhores e mais doces frutos do que as ideologias européias, o comunismo, o fascismo, duas guerras mundiais e a presente degradação intelectual do mundo? Não fomos só nós que caímos na esparrela de abdicar de uma herança que nos pertence. Os portugueses, inferiorizados por não acompanhar pari passu o pensamento moderno, acabaram se esquecendo daqueles fantásticos filósofos de Coimbra, mestres de Leibniz, que em pleno século XVI já pensavam em economia de mercado e física probabilística, saltando três séculos sobre a ilusão mecanicista cujo prestígio, tão invejado pelos ìluministas lusos, só fez atrasar o desenvolvimento das ciências e inspirar, na política, os frutos mais letais do estatismo centralizador. Até hoje Portugal, como um príncipe bêbado que se imaginasse mendigo, atribui suas desventuras ao fato de não ter tido seu Voltaire ou seu Rousseau, quando seu único erro foi o de esquecer-se de si, o de não conseguir olhar seu próprio passado senão no espelho enganoso da modernidade alheia. Por ironia, justamente nisso continuamos imitando servilmente Portugal. Iludidos pelo dogma de que o presente abrange todo o passado — quando por definição nenhum conjunto de fatos esgota o possível —, recusamo-nos a receber o legado das grandes épocas e continuamos mendigando às portas da mediocridade européia (e americana) atual. Barramos assim nosso acesso a uma verdadeira universalidade e continuamos nos agitando em vão na falsa alternativa cíclica do estrangeirismo e do localismo, ora em formato puro, ora ressurgida sob o disfarce do elitismo e do populismo. Reincide no engano —só para dar um exemplo recente — o livro de Marcos Bagno, Preconceito Lingüístico. O Que É, Como Se Faz (1), ao assumir a defesa do mais entrópicolaissez-faire gramatical contra toda tentativa de conservar a unidade da norma culta, abominada como mecanismo de exclusão social e opressão dos pobrezinhos. Adornando de terminologia técnica uma argumentação que no fundo não passa do habitual apelo ao ressentimento populista contra os adeptos do purismo

vernáculo, supostamente também senhores do capital — ai, meu Sacconi! —, o autor nem de longe dá sinal de perceber que, afrouxada a norma portuguesa, o que haverá de predominar não será o democratismo igualitarista das falas populares, autoneutralizantes por sua multiplicidade mesma, e sim a influência ordenadora da norma angloamericana, ocupando substitutivamente — e usurpatoriamente — o lugar da regra vernácula. Isso aliás já vem acontecendo, como se vê pela alarmante disseminação do uso de palavras portuguesas montadas segundo uma sintaxe inglesa — "amanhã estarei indo viajar" —, o que já não é mais a corriqueira assimilação de vocábulos estrangeiros e sim precisamente o contrário de uma assimilação: é uma adaptação do material nacional à forma dominante estrangeira, é ser assimilado, é fazer o papel da alface na fisiologia do coelho. Toda cultura nacional é um vasto sistema de incorporações, no qual manifestações isoladas e locais vão se integrando numa unidade superior, e isto acontece com a língua tanto quanto com as idéias. Se, no topo, esse movimento não encontra um critério de unidade que lhe seja próprio, ele logo se amolda a um de fora, preferindo antes ser assimilado do que voltar à dispersão de onde partiu. Se o prof. Bagno fosse um agente consciente do imperialismo, pretendendo dissolver a nossa unidade lingüistica para lhe sobrepor a americana, seu livro seria obra de inteligência, mista de maquiavelismo. Mas não: ele é apenas mais um esquerdista doido, desses que, ansiosos para expressar sua miúda revolta imediatista e cega, não sabem a quem servem em última instância e aliás não querem nem saber: falam o que lhes dá na telha e, de tempos em tempos, constatam, mais revoltados ainda, que tudo deu errado e seu mundo caiu. Para cúmulo de inconsciência, o prof. Bagno, citando indevidamente Aristóteles, proclama que sua obra é política, quando a política para o Estagirita é o cuidado do bem comum, isto é, a vigilância sobre os rumos da sociedade como um todo, e nunca a adesão parcialista a exigências de grupos ou classes, defendidas como se valessem por si e sem o mínimo exame das conseqüências que seu atendimento possa produzir sobre o corpo da sociedade integral. Para os meninos da Febem ou para o lavrador de Ponta Grossa, pode ser bom ou pelo menos cômodo, a curto prazo, que os deixem escrever como falam, sem subjugá-los à uniformidade da norma. Subjetivamente, eles talvez se sintam, assim, menos excluídos. Mas, objetivamente, aí sim é que estarão excluídos, aprisionados na sua particularidade e sem acesso à conversação das classes cultas. Tudo depende de saber se preferimos enfraquecê-los pela lisonja ou fortalecê-los pela disciplina. Há nisso uma escolha moral que os amigos do povo preferem não enxergar. E se, levando as opiniões do prof. Bagno às últimas conseqüências, as próprias classes cultas desistirem da norma unitária e, para não passar por preconceituosas ante o olhar malicioso dos ressentidos, adotarem como obrigatória a entropia populista, então das duas uma: ou a entropia arrastará na sua voragem o pouco de possibilidade de diálogo racional que ainda resta neste país, ou então uma norma substitutiva acabará por se impor, e ela certamente virá da rede das telecomunicações, cujo idioma e padrão é o inglês. Qualquer das duas coisas será indiscutivelmente boa, mas para os Estados Unidos. E, se me perguntarem se o que é bom para os Estados Unidos não é bom para o Brasil, direi, de novo, que é uma simples questão de quem come quem. (2)

NOTAS (1) São Paulo, Loyola, 1999. (2) Erros idênticos aos do Prof. Bagno já podiam ser encontrados, com um ano de antecedência, em Por Que (Não) Ensinar Gramática na Escola, de Sírio Possenti, professor da Unicamp (Campinas, Mercado de Letras, 2ª impressão, 1998. As idéias de Bagnos e Possentis vêm fazendo as cabeças — isto é desfazendo os cérebros — da maioria dos estudantes de Letras neste país.

Descartes e a psicologia da Colóquio Descartes da Academia Brasileira de Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 9 de maio de 1996

La verdad y sigue aunque se piense al revés.

es

lo siendo

que

dúvida1 Filosofia

es verdad

ANTONIO MACHADO

Descartes assegura-nos que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do mundo exterior à descoberta docogito não é apenas um modelo lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, uma narrativa de pensamentos pensados. Mas terá sido boa a sua auto-observação? Podemos dar por suposta a fidedignidade do seu relato? Mais ainda, podemos dar por suposta a universalidade paradigmática dessa seqüência de pensamentos, admitindo que se dará de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se disponha a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças? Será possível a um homem realizar experiência similar, ou, ao contrário, foi Descartes quem experimentou de fato coisa totalmente outra, deixando-se enganar e tomando por descrição o que é pura invenção? Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Que é possível, a rigor, colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o "mundo" a uma hipótese evanescente, é também certo. Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegura-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso

duvidar de que a penso. A autoconfiança na solidez metafísica do ego pensante surge como poderosa compensação psicológica para a perda da confiança na realidade do "mundo". Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que antecedem o estado de dúvida, Descartes é estranhamente evasivo quanto ao estado de dúvida mesmo. Na verdade, ele não o descreve: afirma-o, apenas, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe. Façamos nós o que não fez Descartes. Tentemos refrear o automatismo do impulso conseqüencialista, e detenhamo-nos por um momento na descrição do estado de dúvida. Em que consiste esse estado? Em primeiro lugar, não é um estado — uma posição estática em que um homem possa permanecer inalteradamente, como permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. É uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-se num dos termos da alternativa sem que o outro venha disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita de sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e "estar". Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e,precisamente nesse instante, não está em dúvida — está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-la. E, no instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, e luta para se estabelecer como afirmação ou negação; mas fracassa, e é só neste fracasso que consiste precisamente, a dúvida. Segue-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como "estado" e permaneça. Ao tomar a dúvida como um "estado", omitindo que se trata de uma alternância entre dois momentos antagônicos, Descartes a coisifica e a toma como uma certeza: "Não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido", frase que Descartes toma como expressão da mais patente obviedade, manifesta no entanto um contra-senso lógico e uma impossibilidade psicológica. Mais certo é: ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar2. O que leva Descartes ao erro é o fato de que confunde a dúvida com a negação, mais propriamente com a negação hipotética. Posso efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la — hipoteticamente, é claro — até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso "duvidar" do meu saber sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente, na medida em que só assim

poderei intercalar às suas afirmações sucessivas as sucessivas negações, e a estas as afirmações, cujo círculo vicioso constitui a dúvida. Colocado nesses termos, o cogito cartesiano se reduz apenas a uma nova e aliás bastante nebulosa enunciação do antigo argumento de Sócrates contra o céptico, de que não se pode negar sem afirmar a negação, sem afirmar portanto alguma coisa. Mas, vistas as coisas assim, a bem pouco se reduz a descoberta cartesiana: longe de ter instaurado um novo fundamento, crítico ou negativo, para o mundo do saber, ela não fez senão demonstrar novamente, pelas vias tortuosas de uma falsa autodescrição psicológica, o primado lógico da afirmação sobre a negação. Só que o reconhecimento deste primado é, no mesmo ato, a negação da dúvida como ato fundante. A descoberta de Descartes é uma não-descoberta, é a descoberta da impossibilidade de descobrir o que quer que seja por uma via em cuja definição mesma está contida uma autocontradição intolerável3. Mas, com isto, demonstrei apenas que a dúvida, como tal, não pode servir de fundamento crítico; não expus ainda os fundamentos que, por sua vez, possibilitam a dúvida. E este é o ponto decisivo, pois, se há um algo "por trás" da dúvida, é este algo, e não a dúvida, que constitui o ponto de apoio firme que Descartes buscava, e que acreditou ingenuamente ter encontrado na constatação da dúvida. Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza negativa ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva, na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de ansiedade, de esperança, de curiosidade, etc., não coincide com um juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis — pelo menos dois — e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. O homem portanto nunca "está" em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser vivência presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta certeza puramente retrospectiva e narrativa: "Não consegui, até agora, estabilizar-me na negação ou na afirmação." Existe, portanto, não só distinção lógica como também separação de fato entre a dúvida enquanto vivência presente e a dúvida enquanto objeto de recordação e reflexão — e é esta que é certa e indubitável,4 não aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É somente esta reflexão que, dando um nome à alternância vivenciada, confere artificialmente a unidade de um "estado" ao que é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais, dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida

em mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível. Para piorar ainda mais as coisas, na afirmação reflexiva da realidade da dúvida estão pressupostas duas crenças: a crença na continuidade da consciência entre a dúvida e a reflexão, e o conhecimento da distinção entre verdade e falsidade. 1º Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é "o mesmo" que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é sujeito de dois atos distintos — distintos logicamente e distintos no tempo — , donde se conclui que é esse eu é logicamente e temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado, acabaria por se reduzir a mera sucessão de negações e afirmações irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito esquizofrenicamente plural, destituído do império de si e dissolvido no fluxo atomístico dos seus estados. Para poder ser objeto de reflexão, a dúvida recebe a artificial unidade de um nome; e se logo em seguida a mente se esquece de que essa unidade é um mero ente de razão e a toma como unidade substancial, então se trata de um desses casos de auto-hipnose reflexiva em que o nome produz magicamente, a posteriori, a realidade do seu objeto. 2º Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e venho entre sucessivas afirmações e negações),depois reflito que duvidei (isto é, unifico sob o nome "dúvida" essa multiplicidade de vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da dúvida, é aquela continuidade no tempo, que se denomina memória e recordação: a memória, estando pressuposta na reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder fundar a nossa confiança na memória, é a dúvida que depende dela para ter um fundamento lógico e para tornar-se possível no campo dos fatos psicológicos. Mas, se a dúvida depende da garantia que lhe é dada pelo eu e pela memória, então ela não tem nenhum poder fundante. É coisa fundada, é certeza secundária e derivada, é obra de um agente mais profundo e mais inquestionável. 3º Porém, a dúvida subentende algo mais. Como é possível duvidar? A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como obra do sujeito mesmo, como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça portanto como sujeito não apenas de dois atos, como acabamos de ver, mas detrês: o ato de duvidar, o ato de refletir a

dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar. A imaginação é, somando-se à continuidade do eu e à memória, um terceiro requisito e um terceiro fundamento da possibilidade da dúvida. 4º Mas, se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe, não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho. Logo, está aí pressuposta a consciência da diferença entre o objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do objetivo e na subjetividade do subjetivo. 5º Mais ainda: se o sujeito confundisse esses dois domínios, acreditando que supôs o percebido e percebeu o suposto, teria perdido a continuidade da consciência e da memória, que é, como vimos, condição de possibilidade da dúvida. Logo, a dúvida sobre a realidade do mundo não pode se apresentar como simples escolha entre duas possibilidades de valor igual e idêntica origem, mas sempre como escolha entre um dado e um suposto, entre o recebido e o inventado. 5º Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta invenção é formal e temporalmente distinta do ato de perceber, bem como do conteúdo percebido. A dúvida é uma suposição de que um mundo inventado é mais válido que o mundo recebido, suposição que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro, concedemos nossos aplausos ao ator precisamente porque sabemos que ele não é o personagem. 6º Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se fundasse, a seu turno, na consciência da diferença entre pensar e ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada, de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta, como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. Eis aí outro motivo pelo qual a dúvida, sendo dúbia por sua natureza mesma,

não poderia instalar-se senão pondo-se também a si mesma em dúvida, isto é, sabendose fundada numa suposição e num fingimento voluntário. Eis também por que a dúvida é tão rara e dificultosa: ela implica um movimento que se desmente a si mesmo, que coloca em questão as condições mesmas que o possibilitam5. 7º Finalmente, a dúvida só é possível quando se sabe que algo, seja no percebido, seja no suposto, é insatisfatório, que não atende a um requisito fundamental de veracidade. Mas como poderia o sujeito dubitante exigir veracidade de suas suposições ou percepções se não tivesse nenhuma idéia a respeito da veracidade? Esta exigência seria inconcebível sem uma idéia da verdade, ainda que como mero objeto imaginário de desejo. O desejo de fundamento pressupõe no sujeito ao menos a possibilidade de imaginar que seus conhecimentos possam ser mais seguros do que realmente ele sente que o são num dado momento, ou seja, a verdade como ideal e a opção pela verdade. Mas, ao mesmo tempo, vimos que o sujeito não conhecia esta verdade somente como ideal abstrato, mas já tinha idéia de pelo menos uma diferença efetiva entre verdade e falsidade: a diferença entre o dado e o suposto, acompanhada da consciência verdadeira de que o suposto não foi dado, nem dado o suposto. A dúvida ergue-se, assim, sobre todo um edifício de dados e pressupostos: longe de ser logicamente primeira, ela é um produto requintado e elaboradíssimo de uma máquina de saber. Longe de ter um poder fundante, ela não é senão uma manifestação mais ou menos acidental e secundária de um sistema de certezas. Só que, se assim é, se o primado da dúvida metódica é apenas o primado de um equívoco, então ficam sob suspeita, igualmente, o primado kantiano do problema crítico, o dogma positivista da impossibilidade de obter certezas metafísicas válidas, e muitas outras crenças que o homem de hoje toma, mesmo a contragosto, como verdades óbvias e patentes. Mas isto já é matéria para outras comunicações, que serão apresentadas em outras oportunidades. Muito obrigado.

NOTAS Primeira parte — resumida — do texto "Duvidar da Dúvida e Criticar o Criticismo: Preliminares de um Retorno à Metafísica Dogmática", distribuído aos alunos do Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades em março de 1996. Voltar Ao dizer "sucessão e coexistência", pareço estar pronunciando um monumental contrasenso. Mas o sim e o não que compõem a dúvida são coexistentes sob um aspecto, sucessivos por outro. Coexistentes logicamente como termos de uma contradição, são sucessivos psicologicamente, isto é, entram no palco da consciência de modo cíclico, rotativo: um entra, o outro sai, como o dia e a noite, que coexistem no céu e se sucedem num ponto da terra. Voltar

Uma primeira versão desta análise da dúvida cartesiana encontra-se em meu livreto Universalidade e Abstração e Outros Estudos (São Paulo, Speculum, 1983), sob o título "O cogito cartesiano à luz da psicologia espiritual". Voltar "Certo e indubitável" ou "incerto e duvidoso" são predicados que não se aplicam ao fato como tal, mas aos juízos que fazemos a respeito dele. Voltar Ela é uma torção do aparato mental humano, um gesto doloroso que se auto-suprime, e que raros homens têm condição de suportar por muito tempo sem grave risco para sua integridade psicológica. A possibilidade de assumir esse risco e vencê-lo repousa na existência de um corpo de crenças tão arraigado, tão sólido, que o homem possa se dar o luxo de sair dele numa viagem mental, seguro de reencontrá-lo na volta. Essa possibilidade, por sua vez, só se cumpre nas sociedades e nas culturas urbanas altamente diferenciadas e estáveis, que dão ao indivíduo pensante o espaço para inocentes vôos de imaginação que em nada afetarão sua conduta de cidadão ou de súdito honrado e cumpridor de seus deveres; que lhe dão, mais ainda, espaço livre para pensar uma coisa e fazer outra, para cultivar aquela hipocrisia defensiva que é notoriamente ausente entre os primitivos, e que, para o mal e para o bem, é uma sólida proteção da consciência individual contra a tirania do discurso coletivo. Daí a coexistência pacífica entre a audácia revolucionária da dúvida cartesiana e o conservadorismo da "moral provisória" que a possibilita. Voltar

Ser e Seminário de Filosofia, Rio de Janeiro, 11 de junho de 1997

conhecer

Gravação transcrita por Fernando Manso; editada por Alessandra Bonrruquer.

§ 1. A fenomenologia em geral O ceticismo nasce da fragmentação da mente. É a postura do covarde ou do preguiçoso que, por não querer fazer o esforço de saber, tenta provar que é impossível saber. Com esse objetivo, a mente cética produz impasses de difícil refutação, não tanto pelos esquemas argumentativos que os suportam, mas principalmente pelo estado de ânimo de desconfiança que os produz. A desconfiança suscita objeções e mais objeções, e quando todas foram respondidas, sua insegurança não se aplaca e ela continua a apresentar novas objeções, sem se dar conta de que são apenas variações das já respondidas. A discussão com o cético não tem fim — não por causa da força de seus argumentos, que em si são fracos, mas por causa do medo abissal que os produz, e que não pode ser curado mediante argumentos.

No entanto, enfrentar as objeções céticas é o começo do aprendizado filosófico. A capacidade humana de formular dúvidas é inesgotável, assim como a capacidade de aprofundar, enriquecer e tirar conseqüências do que sabe. O caminho da dúvida, entretanto, é mais fácil, porque mecânico e automático: basta deixar a mente pensar sozinha que a dúvida se autopropaga como se fosse um vírus - daí o prestígio barato do ceticismo e do relativismo. Já a certeza e a evidência não se autopropagam, não podem ser obtidas a contragosto. Exigem atenção. Exigem a convergência de várias faculdades intelectuais em torno de um objeto, o que requer esforço. A fenomenologia de Husserl é uma tentativa de dar fundamentos apodíticos ao conhecimento. A fenomenologia não se interessa por argumentos, mas sim pela descrição precisa de fenômenos, do que aparece, do que acontece ante a consciência cognoscitiva. Por exemplo, como descrever este gato? Como é que você, ao vê-lo, sabe que é um gato? O que se passa precisamente neste ato de conhecimento? O que é que está subentendido nesse reconhecimento, pelo qual podemos dar a um fenômeno particular o nome de uma essência geral? O que se passa precisamente quando se formula um juízo, quando se diz que isto é aquilo, que a "é" b? A fenomenologia só se ocupa das essências, entendidas como o objeto do ato de conhecimento. A fenomenologia trata da descrição de fenômenos, entendidos como atos de conhecimento, no sentido puramente cognitivo e não psicológico. As descrições que se utilizam de recursos psicológicos deixam de fora o objeto do conhecimento, ou o admitem como pressuposto. A imensa complicação das exposições fenomenológicas vem da dificuldade de se descrever os fenômenos em si mesmos, tais como aparecem, independentemente de explicações psicológicas do ato de conhecimento. Por exemplo, o que é uma dúvida? A resposta provavelmente descreverá o estado psicológico de dúvida, e não aquilo que faz com que a dúvida seja dúvida em vez de certeza, probabilidade ou conjetura. Na verdade, qualquer explicação de um estado psicológico pressupõe saber do que está se falando, isto é, pressupõe o conhecimento das essências do que se fala. A explicação psicológica é, neste sentido, segunda ou derivada, e não primeira e fundamental como a descrição fenomenológica. Que é um juízo de identidade? Que é quantidade? ou melhor, quando você pensa quantidade, "em quê" está pensando? Não "como" está pensando, mas "em quê" está pensando? Qual o conteúdo intencional a que se refere o pensamento? Onde está a "redondidade" do redondo? Que é círculo? Há uma definição geométrica de círculo, mas esta definição é apenas uma convenção que nomeia um conceito intuitivo prévio. Qual é o conteúdo deste conceito intuitivo de circularidade no qual se baseia a definição geométrica? Dito de outra forma, a fenomenologia se ocupa da pergunta: "o que é?", quid est?, independentemente de saber se o objeto que se investiga "existe" ou "não existe". Essa pergunta é decisiva em todo o processo filosófico. A experiência da fenomenologia mostra que muitas vezes se discute por séculos um assunto sem se perguntar "o que é".

Cabe assinalar que a filosofia começou com essa pergunta. Era a pergunta de Sócrates. Por exemplo, o que é a justiça? Sócrates criou o que entendemos hoje por definição. Passados no entanto 2500 anos, a fenomenologia verifica que a definição no sentido socrático-lógico não é suficiente, pois se baseia num conteúdo intuitivo prévio, que precisa ser descrito tal como se apresenta, antes que se possa formalizar o esquema verbal que o define. A definição no sentido socrático - gênero próximo e diferença específica - delimita uma intuição prévia, marcando seus limites no quadro geral da classificação dos gêneros e espécies, mas não descreve plenamente o conteúdo da intuição pelo qual o conhecemos. Platão e Aristóteles aperfeiçoam a definição, mas apenas no sentido técnico. Platão introduz o método da divisão. Aristóteles transforma a conceituação na demonstração, na prova. No entanto, esses métodos não resolvem a questão do conteúdo intuitivo prévio. Qual é o conteúdo intuitivo no qual se baseou a definição, a divisão, a conceituação, etc.? Ou, mais simplesmente: de que estamos falando? Sob certo aspecto, a fenomenologia dá um passo "para trás", ao exigir muito mais rigor e riqueza nos conteúdos, no sentido de preencher os conceitos com conteúdos intuitivos. A crítica que se pode fazer da fenomenologia é que ela se apresenta como uma coleção de monografias de conceitos isolados. Por exemplo, Max Scheler trata da inveja, do rancor, etc. Mas não chega a constituir uma filosofia, no sentido sistemático. Por outro lado, acostumando-se a descrever meticulosamente o que está implícito nos atos cognitivos, a discussão filosófica tem um aprofundamento extraordinário, como pode se depreender, por exemplo, da Fenomenologia da Consciência de Tempo Imanente de Husserl. A maior parte das pessoas ignora isso e não imagina a importância dessa riqueza descritiva. Imaginam que descrição é assunto da arte e se enganam, pois a arte só produz análogos. A arte apenas refere, alude. Por exemplo, em toda a literatura universal não há nenhuma descrição de um estado psicológico humano, mas apenas referências analógicas a tal ou qual estado, não em si mesmo, mas tal como foi vivenciado por tal ou qual personagem em particular, sem levar em conta que o mesmo estado, exatamente o mesmo, poderia se apresentar num outro personagem sob vestes analógicas diferentes, sem deixar de ser "o mesmo". O ciúme de Otelo não é igual, artisticamente, ao do Paulo Honório em S. Bernardo, de Graciliano Ramos. Qual é, então, o esquema invariante que permite reconhecermos, por trás das diferenças entre suas respectivas simbolizações literárias, o mesmo estado? Colocado de outra forma, a fenomenologia se ocupa em abrir o ato intuitivo e mostrar o que há dentro dele, ou, de outra forma ainda, em descrever o conteúdo da intuição e não apenas se referir simbolicamente a ele. Para tanto, a fenomenologia usa a linguagem de forma diferente das formas quotidianas, científicas, literárias ou filosóficas. Mas é um uso que pretende desdobrar as implicações lógico-racionais de um conteúdo que, no entanto, na prática é captado de maneira intuitiva e imediata. Ou seja, é a tomada de consciência do que se passa no ato cognitivo. Neste sentido, a fenomenologia é uma

auto-reflexão e um autoconhecimento. É o autoconhecimento da consciência, enquanto capacidade cognitiva. É saber o que é saber, saber o que se passa, efetivamente, no ato de intuição. Que isso tem um tremendo poder curativo é algo que os psiquiatras e terapeutas perceberam há tempos, daí a quantidade de terapias baseadas na fenomenologia. O tema tem outros desdobramentos. Por exemplo, o que se passa precisamente na percepção sensível? O que significa "ver"? Agora, estou vendo um isqueiro. Mas no mesmo ato há também o reconhecimento da forma de uma essência, e portanto não se trata de um ato puramente visual. Como é que no mesmo ato se vê e se reconhece, sem ser necessário pensar para isso? Em que consiste este re-conhecimento, que está mais ou menos subentendido em todo ato de conhecimento? Husserl diz que a atitude do fenomenólogo é diferente da atitude natural, a qual acumula atos cognitivos sem se ocupar com os mesmos nem com a consciência, mas apenas com os conceitos dos objetos intuídos. Esse retorno à consciênciamarca a atitude fenomenológica. Por exemplo, o que se passa no reconhecimento do sentido de uma palavra? E quando são palavras de outro idioma? E quando são apenas aglomerados de sons que não são palavras? Como é que as reconhecemos de forma imediata? Raramente paramos para examinar estes atos e descrever "o que" nos apresentam. Uma coisa é realizá-los, outra conhecê-los. Husserl diz que a fenomenologia descreve o modo de apresentação dos objetos. Por exemplo, um hipopótamo e uma crise econômica se apresentam a mim de formas diferentes. Em que consiste precisamente esta diferença? Mais ainda, a crise econômica é um mero ente de razão ( com fundamentum in re ), mas não do tipo de um dragão alado; logo, também há uma diferença entre os modos de apresentação destes dois objetos. Colecionando todos os modos de apresentação que existem para o ser humano, chegaremos aos vários tipos de seres ( ou essências ) que podem se apresentar, e temos então uma ontologia geral subdividida em ontologias regionais. A ontologia tem de ser bem ampla e bem amarrada em todos os seus pontos para poder abarcar todas as chaves que se intercalam entre um hipopótamo e uma crise econômica.

§ 2. A coisa-em-si kantiana Quando não se têm os modos de apresentação bem classificados, os modos podem ser trocados acidentalmente. Imagine alguém falar do hipopótamo como se fosse uma realidade do mesmo tipo de uma crise econômica. É de uma confusão dessa ordem que vai surgir a famosa coisa-em-si kantiana, que é a coisa "independente do conhecimento que temos dela". É a coisa "fora" do sujeito, de todo sujeito cognoscente possível. Para a fenomenologia isto é uma bobagem: supor que a verdade de uma coisa apresentada é uma outra coisa que jamais pode se apresentar. Ora, se ela jamais pode se apresentar ela não existe para ninguém, não afeta ninguém e não age. E como pode ser que essa parte

que não afeta nem age seja mais real que a parte que afeta e age? Está aí uma forte objeção à coisa-em-si kantiana, baseada na consciência do modo de apresentação. Segundo Kant, a coisa-em-si é o segredo que está dentro da coisa, que é a coisa na sua consistência interna, independentemente do nosso conhecimento. Ou seja, é a coisa na sua pura objetividade, desligada de qualquer subjetividade. Ora, essa noção é inconsistente e autocontraditória. Coisa é aquilo que tem a capacidade de ser fenômeno; se não a tem, não pode se mostrar de maneira alguma para ninguém, e não pode, portanto, transmitir nenhuma informação de si a qualquer outro ser. É uma coisa absolutamente irrelacionada e irrelacionável. Quantos seres poderiam atender a esse requisito? Só o nada. Logo, a noção de coisa-em-si corresponde exatamente ao nada. Nenhum ser atende ao requisito da coisa-em-si, porque sendo ela o totalmente irrelacionado, só pode existir como suposição negativa. Tão logo se lhe atribua alguma característica real, a coisa deixa de ser a coisa-em-si e passa a ser algo para algum outro. Mas esta capacidade de existir para o outro é a existência mesma. O que existe é aquilo que tem alguma relação com outras coisas que existem e o totalmente irrelacionado só pode não existir, ou existir como conceito vazio, ou seja, nada. Não faz sentido, portanto, dizer que a coisa-em-si é mais real do que o fenômeno. Cabe observar que quando Kant enuncia o conceito da coisa-em-si, ele parece fazer algum sentido porque expressa uma impressão subjetiva que temos, de que conhecer efetivamente as coisas seria conhecê-las "por dentro". Agora, supor que o gato por dentro seja mais gato que o gato por fora não faz sentido. Virar o gato pelo avesso esclareceria alguma coisa sobre ele? A fenomenologia se pauta pelo respeito ao modo de apresentação das coisas. Em vez de suposições, as coisas são tomadas como estão. O que interessa não é o "gato-em-si", mas a presença do gato, aquilo que aparece e que se faz reconhecer como gato. Esta é a essência do gato. Esse é o em-si do gato, que consiste em aparecer como gato para quem seja capaz de percebê-lo como gato. Uma pedra, por exemplo, não reconheceria o gato. Mas faz parte da essência do gato não ter a capacidade de notificar a pedra de que é um gato. Assim como faz parte da essência da pedra não ter a capacidade de reconhecer um gato. Ou seja, os modos da apresentação coincidem com os modos de ser das coisas. O que significa que não existe nada cujo modo de apresentação seja falso, ou que seja apenas uma aparência com relação à essência, porque o modo de apresentação é a própria essência. Não sei se Husserl, ao dizer isso, tinha idéia de que fazia eco a Plotino, mas Plotino diz taxativamente que a essência de um ente, em vez de ser um misterioso x oculto no fundo dela, é o seu aspecto mais evidente, porque é a forma manifestada. Kant diz que só percebemos através das formas a priori, que são independentes e prévias à experiência, como por exemplo as formas a priori da sensibilidade: espaço e tempo. Ou seja, tudo o que se percebe se dá dentro do quadro das formas a priori do sujeito. Kant pára por aí. Mas e o objeto, para se mostrar? Não precisa deste ou de

algum outro quadro? Hartmann, fenomenologista, diz que existem também as formas a priori da apresentação do objeto. Imagine se não fosse assim. Então o tempo e o lugar em que eu vejo esta pedra seriam formas subjetivas minhas. Fora isso existiria uma "pedra-em-si" que não está em tempo algum e em lugar algum, e que necessita do espaço e do tempo apenas para se mostrar a mim, e não para existir. Bella roba! Uma pedra intemporal e inespacial que se temporaliza e espacializa só para mim. Ora, então não é pedra! Porque a verdadeira pedra é aquela que está no tempo e no espaço, para que eu a perceba no tempo e no espaço. Portanto o em-si da pedra é exatamente essa capacidade de se apresentar a mim desta maneira. Logo, o que chamei de fenômeno é, na verdade, aessência da pedra, ou seja, a coisa aparentemente mais superficial é a mais profunda. A capacidade máxima da pedra é de apresentar-se como pedra a quem seja capaz de apreendê-la como pedra. Mas Kant diz que do mundo exterior só recebemos informações caóticas, que ordenamos nas formas do espaço e tempo. Ele está supondo, então, que podemos receber dados de uma pedra caótica para depois lhe dar uma unidade projetiva no espaço e no tempo. Mais uma vez, enganou-se. Não é o sujeito que ordena. A pedra se apresenta na forma de pedra, que inclui sua própria ordenação no tempo e no espaço. Não fosse assim, não seria uma pedra. A "pedra-em-si", sem as formas de apresentação, é inconcebível como pedra. Pode ser uma idéia pura platônica, um pensamento de Deus, mas não uma pedra. A pedra tem um em-si que independe do sujeito, que é exatamente a sua capacidade de apresentar-se como pedra, capacidade que o sujeito não poderia dar a ela. Depende do sujeito a capacidade de percebê-la, mas a visibilidade da pedra está nela, e não no sujeito. Se estivesse no sujeito, ele é que seria pedra, com visibilidade de pedra. Um sujeito cego não anula esta visibilidade: é importante que não se confundam as formas a priori do sujeito com as formas do objeto. As formas do sujeito não determinam as formas do objeto. Além disso, é uma bobagem dizer que os dados se apresentam soltos, isolados, e que nós é que os sintetizamos. Hume, por exemplo, pretendia que, ao ver uma bola de bilhar bater em outra e causar seu movimento, vemos apenas o movimento da primeira seguido do movimento da segunda, e que sintetizamos os dois mediante a idéia de causa. Bobagem. Vemos um fenômeno único, coeso, e em seguida o decompomos em duas fases. Entre o movimento da primeira bola e o da segunda não há um intervalo: somos nós que, por abstração mental, separamos dois movimentos que na verdade se apresentaram unidos. A noção de causa não é "projetada" pela mente sobre os objetos para colar partes separadas. É obtida por separação, por abstração, por análise daquilo que se apresentou junto e coeso. Os dados vêm juntos, nós é que os separamos — exatamente ao contrário do que diz Hume, endossado por Kant. A fenomenologia, em vez de perguntar, como Kant, se o conhecimento é possível, pergunta antes o que é o conhecimento, o que é o ato de conhecer, o que se passa precisamente quando se conhece alguma coisa. Estas perguntas, uma vez colocadas, já resolvem muitos dos problemas levantados pelos filósofos críticos e céticos.

§ 3. A identidade de ser e conhecer Ao lado e sobre isso, eu acrescento a seguinte perspectiva, que é um dos pontos essenciais da doutrina metafísica que defendo: não faz sentido definir o conhecimento como uma relação entre o sujeito e o objeto, uma vez que isto pressuponha a existência do sujeito e do objeto fora e independentemente da potência do conhecer. Ora, é exatamente esta potência de conhecer e de ser conhecido que define sujeito e objeto. Portanto, a realidade em si não é nem objetiva, nem subjetiva, porque ser realidade é ter a capacidade de se desdobrar nesses dois aspectos. O conhecer, como potência, é prévio ao sujeito e ao objeto. Ser realidade é ter a capacidade de se apresentar a alguém, o qual também tem de ser real. Portanto, essa dicotomia sujeito-objeto faz parte da estrutura da realidade. Só é real aquilo que admite esta distinção. Deus, por exemplo. Deus conhece a si mesmo. Mas há, obviamente, uma distinção entre o que é conhecido e o que conhece, ainda que esta distinção seja só relacional. Uma coisa é Ele ser, outra coisa é Ele conhecer-se. Estes atos são formalmente distintos, embora não sejam distintos no tempo nem no conteúdo. Se não houvesse a possibilidade de distinguir entre esses dois aspectos — ser e conhecer —, não haveria sentido em dizer que Deus se conhece. Mas, por outro lado, esta distinção também é conhecida, e faz portanto parte do ser, e portanto é real. Só pode ser conhecido o que é real, sob algum aspecto, e só pode ser real aquilo que pode ser conhecido. Suponhamos algo que não pode ser conhecido de maneira alguma, essencialmente. Ora, se não pode ser conhecido de maneira alguma então este algo não se relaciona com nenhum outro ser. Não transmite informação a nenhum outro ser. Existir é transmitir informação, logo esse algo não existe. Esta informação pode ser transmitida do ser para ele mesmo, como por exemplo aquilo que cada um sabe a seu próprio respeito. A essência do ser, então, consiste em conhecer-se, logo não há distinção entre o ser e o conhecer, mas apenas uma distinção relacional: são dois aspectos do ser. E essa distinção só existe do ponto de vista subjetivo humano. O ser, verdadeiro, real, consiste em conhecer-se. Mas se é verdadeiro é porque é conhecido, e se é conhecido é porque é verdadeiro. Isto se aplica tanto a mim quanto à coisa da qual estou falando. Se não sou real, não posso conhecer. E se a coisa da qual estou falando também não é real, ela não pode ser conhecida. Ora, de onde tirei essas distinções? Do próprio conceito de conhecer. Logo, o conhecer é prévio a tudo isto. O conhecer é receber informação, o ser conhecido é emitir informação. Esta capacidade de receber e emitir informação é simultânea. Só o que emite informação pode receber informação. Emitir informação é relacionar-se de algum modo com outro ser, da mesma forma que receber informação também é relacionar-se de algum modo com outro ser. A capacidade de emitir e e a de receber informação não se separam, apenas se distinguem. Não pode existir uma sem a outra.

O tempo todo se verifica esta identidade do ser e do conhecer. Já a distinção sujeitoobjeto é meramente funcional, descritiva. Num determinado ato de conhecimento, um dos entes atua como receptor de informação e o outro com emissor. Mas o que é receptor é emissor também, e vice-versa. Uma pedra, por exemplo, recebe várias informações: lei da gravidade, pressão atmosférica, e as informações químicas e cristalográficas que a compõem. Ela apenas não as recebe conscientemente, o que significa que essas informações estão na pedra como elementos constitutivos do seu modo de apresentar-se, não do seu modo de conhecer. Ou seja, o conhecer é uma relação de troca de informações. Há, no entanto, uma diferença para o caso humano. Nós humanos podemos refletir sobre a informação recebida, ou seja, não apenas recebemos a informação como também sabemos que a recebemos. Logo, além do conhecimento que recebemos da pedra, recebemos também um conhecimento a nosso respeito, que é o conhecimento de que recebemos o conhecimento da pedra. Este segundo momento, que existe apenas para os humanos, constitui a diferença humana. Uma pedra, por exemplo, recebe informação de fora, mas não de si própria. Há conhecimento nela, mas ela não emite informação para si própria, ou seja, ela está imune a si mesma. Ela não pode ser afetada por ela mesma, não pode fazer nada para si. Ela é inerme com relação a si. Logo, há uma limitação em seu modo de ser, que corresponde a uma limitação em seu modo de conhecer. A pedra existe deficientemente porque conhece deficientemente. Do mesmo modo, a existência do ser humano se mostra mais rica, mais plena, mais verdadeira na exata medida em que mais conhece. O ser humano de pouca consciência existe de maneira tênue e fantasmal, afeta pouco o mundo circundante e age pouco sobre si mesmo. Já os que conhecem muito, como por exemplo Aristóteles, Platão, LaoTse, são mais reais, porque conhecem mais, e em conseqüência atuam sobre uma esfera maior durante mais tempo. Os fenomenologistas estavam nesta pista. Não sei por que, não chegaram a estas conclusões metafísicas. O próprio Husserl, após passar a vida desenvolvendo o método, se dirige a uma filosofia da consciência que é uma espécie de idealismo filosófico. No entanto, esta não é a única direção possível a partir da filosofia. Isto é afirmado taxativamente por Roman Ingarden, o grande discípulo polonês de Husserl. Eu próprio teria preferido dar esse passo: existe uma forma de realidade que abrange sujeito e objeto, que se chama conhecer, e esta forma é coextensiva ao ser, ou seja, a distinção entre o sujeito e o objeto é superada no ato de conhecer. O conhecer não é somente uma relação entre um sujeito dado e pronto e um objeto dado e pronto. A potência de conhecer está na natureza do sujeito assim como a potência de ser conhecido está na natureza do objeto, porém não há o sujeito puro nem o objeto puro, que são meras suposições e conceitos funcionais. Dito de outra forma, os conceitos de sujeito puro, que só conheceria e nunca seria conhecido, e de objeto puro, que só seria conhecido e nunca conheceria, são negações

da realidade. São obtidos por negação das condições que permitem que a realidade seja realidade. A verdadeira realidade é o conhecer, nunca um puro sujeito ou um puro objeto. Sujeito e objeto são decorrentes do conhecer, fundados no conhecer. Então o conhecer é o próprio ser, que tem a capacidade de ser sujeito e objeto ao mesmo tempo. Mas, se a realidade consiste fundamentalmente no ato de conhecer, precisamos cortar do verbo conhecer todo seu aspecto subjetivo. O conhecer não é algo que se passa no sujeito, apenas. O conhecer se passa no sujeito e no objeto ao mesmo tempo; o objeto não é fisicamente alterado pelo ato, mas ele participa do processo. Se o conhecer, entendido como relação, como unidade dual de sujeito e objeto, é a própria natureza do ser, então essa mesma dualidade una tem de existir no próprio ser; e de fato existe, como aspectos de relações que ele pode ter consigo mesmo. Se assim é, então a gradação do ser é a mesma gradação do conhecer. Ser mais ou menos é conhecer mais ou menos. Na verdade, a pedra conhece algo de mim. Eu passo alguma informação a ela. No momento em que a vejo, passo a ela um recibo da sua visibilidade, atualizo sua potência de ser vista, respondo a uma informação que ela me transmite. Só que ela não pode repetir essa informação para si e aprofundá-la, então ela tem pouca informação a meu respeito, assim como tem pouca informação a respeito dela mesma. Ela faz mais parte do meu mundo do que eu faço parte do mundo dela, embora eu a afete. Neste sentido, ela é menos real do que eu. E pelo fato de ser menos real, ela tem algo de fantasmagórico. Quem quer que já tenha ficado sozinho e quieto por muito tempo entre objetos inertes compreende o que estou dizendo. Essa impressão pode facilmente ser apreendida quando se está sozinho no meio de objetos inertes. Usualmente, quem se encontra nesta situação tende a criar um diálogo interno, ou fica com uma certa impressão de irrealidade, porque as coisas em sua presença são passivas. Elas não existem com a intensidade das coisas verdadeiramente reais. Elas são deficientes. Podemos concluir daí que o que chamamos de alma ou de espírito é a verdadeira substância da realidade. O espírito é o próprio conhecer. A verdadeira natureza da realidade é de ordem espiritual, cognitiva. Se se compreende o que estou dizendo, compreende-se também que isto nada tem a ver com idealismo filosófico, seja idealismo subjetivo, seja idealismo objetivo. A distinção de idealismo e materialismo é posterior e derivada logicamente em relação a esta minha doutrina, que tanto pode ser usada para fundamentar um quanto o outro, dependendo de julgarmos que o ato espiritual, cognitivo, é material ou imaterial - duas hipóteses que, para mim, não têm a menor importância, aliás nem têm muito sentido. Todo o universo é um imenso intercâmbio de informações, que circulam e que vão infinitamente além da própria presença espacial dos objetos. Uma pedra, por exemplo, é tudo o que ela já sofreu, é a sua história. Não uma história projetada, mas a história que está nela. Só que para ela, subjetivamente, esta história só existe como resíduo físico, como marcas, pois ela não tem reflexão sobre este passado. Embora traga nela a

informação, para ela subjetivamente esta informação não existe, não obstante exista em seu "corpo", digamos, para ser vista por outros seres. Ora, nós trazemos todas essas marcas, só que não apenas para mostrar a outros seres, mas para nós mesmos. Somos, portanto, duplamente reais: para os outros e para nós mesmos. A pedra não, só é real para os outros. Neste sentido, ela é menos real. Ela acumula informação que circula do mundo para ela e dela para o mundo, mas não dela para ela, sendo que esta última, a informação de si para si, é a que dá a dimensão de interioridade ou consciência. Basta essa constatação para verificar o quanto é estúpida qualquer tentativa de negar a consciência. Consciência é a simples transmissão interna de informações, transmissão que se realiza da periferia para o centro, do inferior para o superior, das partes para o todo. Minha definição de consciência não tem nada a ver com a distinção entre mente e corpo, que é a base de infinitas confusões das quais um Richard Rorty, por exemplo, se aproveita para negá-la. Ora, se a verdadeira presença dos objetos consiste em emitir e receber informação, então aquele que acumula mais informação emitida, recebida e processada de si para si é mais real. Tem uma dose maior de realidade porque tem uma dose maior de circulação de informações, mais contato entre as partes e o todo, entre centro e periferia. Neste sentido, este desenvolvimento a partir da herança fenomenológica seria, se fosse preciso nomeá-lo com nomes de categorias tradicionais que a ele não se aplicam bem, um verdadeiro "idealismo materialista". Na verdade, as próprias noções de matéria e mente ficam subordinadas a essa noção de emitir e receber informação. Qual seria o maximamente real? Aquele que emitisse e recebesse toda informação. Este seria o universo considerado como um em-si, não apenas como um objeto - o universo que me inclui e dentro do qual eu exerço minha consciência. Logo, esta minha consciência é um atributo deste mesmo universo, a minha e todas as outras consciências particulares, das quais o universo toma consciência em si mesmo, através dessas mesmas consciências particulares que, estando nele, são dele. Ou seja, toda consciência humana é consciência que o universo tem de si mesmo - apenas restando saber se elas são recolhidas num centro, se somos nós mesmos o centro ou se o universo é apenas coisa, com um para-si tênue ou inexistente - um caso que não precisamos resolver aqui de imediato. Nossa consciência seria a dose de consciência que existe nesta parte do universo, sem contar que podem existir outras. Logo, o universo considerado, não como presença física atual, mas como toda a massa de informação, é a máxima realidade, desde que esse universo tenha um centro capaz de tornar essa massa um para-si — ainda que esse centro sejamos nós mesmos. E Deus? Se imaginarmos um Deus transcendente ao universo, um Deus que não fosse o próprio Universo, mas que estivesse fora dele, estaria Ele fora necessariamente e sempre, ou seria um aspecto transcendente do próprio Universo? Ora, é claro que Ele é um aspecto do Universo que não pode se reduzir a nenhuma de suas partes e que é de certa forma transcendente a si mesmo, porque inclui toda a possibilidade ainda não

realizada no universo físico. Essa possibilidade existe, e ela tem de se autoconhecer. Imagine se assim não fosse: a possibilidade transcendente que desconhece a si mesma e que só nós, seres humanos, conhecemos. Um materialista compreenderia assim. Mas se só nós a conhecemos ela é conhecida, ainda que apenas em nós. Teríamos então o conhecimento desta possibilidade, sem a possibilidade de realizá-la. O Universo teria a possibilidade e não poderia conhecê-la, havendo dentro dele quem a conhecesse sem ter a possibilidade de realizá-la. Se entendemos que essa omnipossibilidade inclui as possibilidades de consciência, entendemos também que essa hipótese materialista é absurda. Logo, é claro que o Universo se conhece. A parte dele que se conhece mas que não está realizada ainda, e que talvez não se realize nunca, nós chamamos de aspectos transcendentes de Deus. Para ser transcendente, não é preciso ser transcendentea tudo. Se existe consciência dentro do Universo, existe consciência noUniverso. Fatalmente, esta consciência transcende todas as consciências particulares que estão lá dentro, porque senão haveria apenas consciências particulares e não sua conexão, e não obstante elas estão conectadas realmente, pelo fato de estarem no mesmo lugar, ter a mesma história, etc. Assim sendo, não podemos admitir que exista alguma conexão central real dentro do universo que não seja autoconhecida também, embora não por esta ou aquela consciência particular. Daí se conclui a necessidade absoluta de uma consciência não apenas cósmica, mas supracósmica, porque se fosse apenas cósmica estaria limitada àquilo que o universo já é e não teria nenhuma possibilidade acima de si. O universo não teria a capacidade de superar-se, coisa que sabemos que ele tem: geração de novas estrelas, galáxias, etc. Ou seja, a necessidade de uma consciência supracósmica e de um poder supracósmico de realizá-la é absoluta. A existência de Deus é uma evidência para quem encara a coisa da maneira certa, é absolutamente necessária e é absolutamente inconcebível que seja de outra maneira. Cada frase que se pronuncia, cada sentença de qualquer ciência exige isto. As pessoas não percebem essa necessidade porque não relacionam uma coisa com outra, ou porque têm a ingênua pretensão de que sua ciência vai encontrar o mistério do universo que seja desconhecido pelo próprio universo. Ora, quando você começou a formar sua ciência, você já está dando por subentendido que a explicação do universo está no universo, e não apenas dentro do departamento onde o cientista trabalha, magicamente isolado do universo. A própria possibilidade de fazermos ciência está dentro do universo. Ninguém sai do Universo para fazer ciência ou o que quer que seja. Essas idéias confusas vêm de uma noção equivocada de objetividade, que a entende como se colocar fora do problema, quando a verdadeira objetividade consiste em saber onde precisamente se está, dentro do problema. Do contrário, seria como se Hamlet, para conhecer o rei ou Ofélia, precisasse sair da peça. A objetividade consiste na descrição exata das posições recíprocas, e não em sair de todas as posições e observar como se estivesse de fora.

Estando de fora, sem nenhuma relação com o objeto observado, não há sequer como observá-lo. A idéia do "puro observador" é uma autocontradição, porque sem relação não há conhecimento. O conhecimento é a relação, e esta relação, entendida não como junção posterior de termos já dados, mas como reciprocidade necessária de termos coexistentes, é a estrutura mesma do ser, que consiste em autoconsciência e nada mais, independentemente de questões inócuas como a de saber se é material ou mental. Eis os princípios da metafísica que defendo.

Apostilas do Seminário de Filosofia - 12

Notas sobre Simbolismo e Realidade

Estas notas serviram de base para as aulas do Seminário de Filosofia de janeiro de 1998, onde receberam extensos desenvolvimentos orais. — O. de C.

1. O simbolismo natural

Há três métodos de uso corrente para a explicação do símbolo: 1º O método etnológico, que o refere às intenções e valores de uma cultura em particular ou de várias delas comparativamente. 2º O método psicológico, que os refere às estruturas mais ou menos permanentes da psique humana. 3º O método esotérico (às vezes chamado também tradicional, no sentido estrito que René Guénon confere ao termo), que refere o símbolo a uma intencionalidade suprahumana. Esses três métodos são redutivistas: os dois primeiros, ostensivamente; o terceiro, veladamente. Reduzem o símbolo a um véu, a um disfarce: de normas culturais implícitas, no primeiro; de anseios ou temores inconscientes, no segundo; no terceiro, de realidades metafísicas. Nenhum dos três, portanto, nos responde à pergunta: Que é o símbolo? Fingindo respondê-la, substituem-na pela pergunta:De quê o símbolo é símbolo? E, tendo-nos dito o simbolizado, pretendem que aceitemos isso como conceito de símbolo — como

um homem que, interrogado sobre o que são as palavras, respondesse indicando as coisas que elas nomeiam. Esses três métodos desviam a nossa atenção do fenômeno "símbolo" enquanto tal e a dirigem às causas reais ou supostas da produção do símbolo, escorregando do quê para o porquê —o expediente clássico de quem não sabe de quê está falando. Isto não quer dizer, evidentemente, que tudo o que essas teorias tenham a dizer sobre as causas do símbolo seja despropositado ou falso; quer dizer apenas que é destituído de fundamento suficiente e que este fundamento só poderia ser encontrado justamente na investigação que essas teorias eludem e pretendem substituir, que é a investigação do quid — a primeira de todas as investigações, se não na ordem do tempo, ao menos na ordem da prioridade lógica. Dito de outro modo, esses três métodos tomam por implícito que uma interpretação de símbolos, desde que se feche num sistema mais ou menos completo, coerente e fundamentado, já é, por si, uma elucidação suficiente quanto à natureza do símbolo — confusão idêntica à de quem tomasse a interpretação exaustiva de uma obra poética — ou mesmo de várias — como resposta suficiente à questão: Que é a poesia?Ora, pode ocorrer, por desgraça, justamente o contrário: que a elucidação da natureza da poesia acabe por impugnar todas essas interpretações, por exaustivas e coerentes que sejam, e por mais amparadas que estejam em conhecimentos científicos, revelando nelas algo assim como uma paralaxe, um desvio do eixo de atenção em relação ao centro de interesse do objeto, uma concentração das questões em objetos parecidos, associados ou circunvizinhos, uma metabasis eis allo genoscomo tão freqüentemente sucede nas investigações científicas não suficientemente ancoradas numa consciência críticofilosófica das complexidades e peculiaridades do objeto que se pretende investigar. A estratégia que proponho para a abordagem do símbolo adotará como ponto de partida metodológico a seguinte regra:todo empenho sistemático de interpretação de símbolos deve ser posto entre parênteses como meramente hipotético, até que se alcance uma elucidação suficiente da natureza do símbolo. Esta elucidação, por sua vez, deve ser independente de qualquer chave ou sistema interpretativo ou explicativo-causal previamente dado, por elegante, completo ou prestigioso que seja. Como objeto inicial da investigação, não admitirei nada mais senão o fato bruto de que existem palavras, grafismos, objetos, entes enfim, aos quais os homens atribuem um tipo especial de significação que denominam "simbólica", diferente de uma outra que denominam "não simbólica". Este é um fato de ordem histórica e cultural. A crença nele subentendida refere-se a uma dualidade de modos de significação. Nossa primeira tarefa será simplesmente verificar se essa dualidade é possível e, se possível, em que pode ela consistir.

2. A perspectiva rotatória

1. Cada termo significa uma constelação de intenções atualizáveis. No curso habitual do pensamento, essas intenções permanecem latentes e em germe, como que comprimidas no invólucro do termo. Não as atualizamos senão quando temos algum motivo especial para fazê-lo. Uma pergunta, uma dúvida, podem convidar-nos ou obrigar-nos a desdobrar as significações que supomos carregar em algum canto obscuro do nosso "interior". Então às vezes verificamos que elas não estão lá; foram-se, ou então a enumeração não vem tão completa quanto esperávamos. 2. Esse caráter meramente potencial da intenção significante revela-nos que, na comunicação habitual, as funções expressiva e comunicativa da linguagem ( K. Bühler ) prevalecem amplamente sobre a função denominativa, com a qual contamos, apenas, como com uma reserva bancária sobre a qual passamos cheque após cheque sem verificar o saldo. 3. A filosofia analítica pretende suplantar as "imprecisões" da linguagem corrente, explicitando até o extremo limite as intenções e significados latentes e submetendo-os à crítica filosófica. Mas uma certa latência e imprecisão não são inerentes à natureza mesma do pensamento, da percepção e do próprio ser das coisas? Uma explicitação plena de todos os significados só é realizável sob a forma de um sistema ideal de conceitos e juízos, que por sua vez não se atualizará na consciência todo de uma vez, mas parte por parte, enquanto as demais partes permanecem latentes no fundo. Ou seja, a consciência que temos desse sistema terá ela mesma a estrutura de perspectivas rotatórias que observamos na vida psíquica corrente e na comunicação habitual: um conceito vem para a frente, enquanto os outros vão para o fundo, desaparecem como conteúdos atuais da consciência para se tornarem esquemas compactos de conteúdos meramente atualizáveis. 4. Uma cadeia lógica não é, assim, mais conhecível de instantâneo e no todo do que uma casa ou uma paisagem. Temos de percorrê-la, e quando no fim cremos conhecê-la "no todo", o que sobrou em nossas mãos não é mais que um esquema simplificado, ou seja, uma potência de reatualizar no tempo a cadeia percorrida. "Conhecer" um raciocínio é poder reproduzi-lo na seqüência, não é reproduzi-lo no todo e com todos os detalhes num instante sem duração. 5. Forçosamente, cada passo que é atualizado na consciência implica a virtualização dos outros, seu recuo para o depósito do meramente atualizável. 6. É isto o que quero dizer com "perspectiva rotatória". É a estrutura do ato mesmo de conhecimento, seja do conhecimento pelos sentidos, seja do mero pensamento. 7. É, por outro lado, a estrutura mesma da fenomenalidade como tal: nenhum objeto, nenhum ser, pode se apresentar a um determinado sujeito cognoscente na totalidade instantânea dos seus aspectos. É ilusão pensar que o objeto meramente ideal pode fazêlo. O conceito mesmo de "quadrado" só se apresenta a mim no resumo compacto de um

termo, e não no desdobramento completo das propriedades que inclui. Tanto o pensamento abstrato quanto a percepção sensível têm a estrutura de uma perspectiva rotatória: o sujeito cognoscente circunda o objeto tanto quanto circunda o conceito, e o faz precisamente porque seu foco de atenção é circundado pelas latências de inumeráveis objetos, conceitos e signos.

3. Dado, sentido e unidade (I)

A percepção do mundo como amontoado ou coleção de "coisas" ou meros "dados" sem uma conexão espiritual última pressupõe um observador destituído, por seu lado, de sua própria conexão espiritual, do elo interior entre sensação e significado, consciência e ação, antes e depois; um observador estúpido, em estado de divisão hipnótica e quase paralisia catatônica. É curioso, ou mais propriamente absurdo, que o "mundo" fragmentário captado por essa percepção deficiente seja tomado como norma da "realidade" e medida de aferição da validade da conexão interior que apreendemos no universo. A percepção efetiva do real exige, na mais alta medida, as supremas faculdades de síntese, que nos revelam, para lá mesmo da própria unidade física do mundo, a unidade de um "sentido" do mundo para o qual convergem todos os atos conscientes de um homem no mundo, até os mais mínimos. O kantismo e outras escolas que tomam como "realidade" os puros dados sensíveis e reduzem toda síntese a uma contribuição subjetiva que a mente faz ao mundo ignoram que um mundo sem unidade não poderia ser "dado" a nenhum sujeito, para que o ordenasse segundo suas categorias a priori, porque toda ordenação pressupõe a unidade consciente do sujeito e esta unidade só se realiza, precisamente, nos instantes de coesão ótima em que o mundo lhe aparece como uno, não como um amontoado fragmentário de sensações. A fragmentação do mundo em "dados" supostamente pré-categoriais só se obtém por dois meios: pelos estados patológicos de divisão do eu ou por esforço pessoal de abstração imaginativa; no primeiro caso, o sujeito está separado de si funcionalmente; no segundo, hipoteticamente e, em suma, fingidamente. Os "dados" não são prévios à síntese significativa; obtêm-se, ao contrário, por divisão abstrativa desta última, seja como resíduos de uma sonolência alucinatória, seja como meras formas fantasiosas de um mundo construído pela imaginação. Os famosos "dados" são em suma construídos, e a unidade espiritual última do mundo, em vez de construída, é dada. Por isto fracassam todas as tentativas de construí-la (ou mesmo de reconstruí-la) por meio de criações mentais, seja na arte, seja na ciência, seja na metafísica. A verdadeira metafísica não constrói um mundo, não é metafísica construtiva; é fundamentação discursiva da unidade do mundo espontaneamente percebida. Daí também o fracasso de toda tentativa de "expressar" o sentido último; ele é o pressuposto de toda expressão; é o supremamente percebido, jamais construído; e, fatalmente, só expressamos o que nossa mente constrói. É uma ilusão deduzir, da inexpressabilidade do sentido, sua inapreensibilidade. Ele é inepressável justamente por ser apreensível eminenter, por ser

"o" aprensível como tal, enquanto todos os demais apreensíveis só são apreensíveis nele e por ele, sendo por isto expressáveis. Por não fazer parte nem do mundo pragmático que construímos com nossas ações, nem do mundo imaginativo que construímos com nossa arte, nossa ciência, etc., ele acaba por parecer, à reflexão filosófica de primeira instância (reflexão sobre a cultura, sobre o mundo construído pelo homem), como um "x" remoto e distante, ao qual só poderíamos chegar no termo de uma caminhada que começa no "dado" sensível. Mas é uma ilusão de ótica, que inverte a ordem do real; ao sentido não se chega, pois ele é o pressuposto da própria percepção e, mais ainda, da caminhada reflexiva. O objetivo desta não é atingir o sentido, mas recuperar, no nível discursivo (portanto intersubjetivo), a certeza inicial e intuitiva do sentido. O objetivo é tornar patrimônio comum essa certeza inicial e fundamental que o homem só possui enquanto individualidade vivente, não enquanto ser social falante, plural na variedade de seus papéis e idiomas. No curso dessa recuperação, muitos desastres acontecem, que separam o homem da recordação do sentido e o levam a imaginar, seja que pode construir um sentido a partir dos dados, seja que pode encontrar um sentido partindo de dados sem sentido, seja que pode provar a inexistência do sentido ou a separação abissal entre o dado e o sentido, seja que não necessita de um sentido e pode viver entre puros dados. Tal é o panorama da história da filosofia. As presentes considerações vão um pouco além do que habitualmente se chama "realismo". O realismo afirma somente a realidade do mundo. Elas afirmam que a realidade do mundo é um dado, e que também o são, inseparavelmente dela, a unidade espiritual e o sentido do mundo. Realidade, mundo e sentido não podem ser construídos, seja pelo filósofo, seja pela cultura; só podem, por isto, ser percebidos intuitivamente, subentendendo que a intuição pressupõe um sujeito cognoscente dotado de unidade autoconsciente ótima no momento do ato intuitivo. Todo o trabalho da filosofia - e da cultura - é registrar o mundo intuído e defendê-lo, mediante a faculdade discursiva, da dissolução. E quem o ameaça de dissolução é a própria faculdade discursiva, constitutivamente dupla e auto-antagônica - dialética, em suma - ; dupla pela duplicidade de suas operações (significatio e suplentia), dupla pela duplicidade de suas funções (pensar e comunicar).

4. Dado, sentido e unidade (II)

A percepção imediata do sentido e da unidade do mundo, a que me refiro, é simplesmente o saber imediato que temos acerca do que estamos fazendo nele naquele preciso momento, e de aonde pretendemos chegar em seguida, e de aonde pretendemos que vão dar, no fim, todas as nossas ações. Sem esse pressentimento, seríamos incapazes de dar o próximo passo. Seria tolice imaginar que um homem dá seu próximo passo independentemente de qualquer consideração do que vem depois - um próximo

passo isolado, atomístico. O "viver cada momento" é apenas uma figura literária. Aquele que diz "viver o momento" o faz sobre o pano de fundo de toda uma concepção do universo, a qual inclui, forçosamente, uma expectativa de continuidade. Tanto que, se fosse informado de sua morte iminente, seu momento seguinte seria bem diferente daquele que experimentaria se lhe dissessem, ao contrário, que a dama de seus desejos o espera no quarto ao lado. A expectativa de uma continuidade que se prolonga para além da morte, seja na forma de uma vida celeste, seja sob a forma da simples permanência temporal do mundo após nossa saída dele, seja sob qualquer outra forma que se imagine, é umaconditio sine qua non do agir humano, e está subentendida mesmo nas nossas ações mais mínimas e corriqueiras. Mas essa diversidade de imaginações e suposições traduz apenas a variedade de reações individuais a uma experiência que é única e a mesma em todos os seres humanos: a experiência do movimento geral do cosmos, que vai para alguma direção e nos leva. Essa experiência pode ser vivenciada de maneira consciente, com mais probabilidade, na infância, mas em geral ela se torna inconsciente pelo fato mesmo de ser a mais constante e ininterrupta experiência humana, fundamento e condição de toda e qualquer experiência em particular.

5. Unidade e unidades

Mas, se a unidade do mundo é dada e a unidade de cada ente conhecido é apenas potencial, atualizada parcialmente e passo a passo pela perspectiva rotatória, uma conclusão se segue imediatamente: cada ente conhecido só é uno e só é ente a título de imago mundi. Da unidade total extraem sua unidade as unidades parciais.

25/12/97

Apostilas do Seminário de Filosofia - 13

Meu filme predileto

Aurora, de cinema e metafísica

F.

W.

Murnau

(1927):

Aula do Seminário de Filosofia (30 jan. 1997). Gravação transcrita por Marcelo Tomasco Albuquerque e editada por Alessandra Bonrruquer.

F. W. Murnau

Murnau filmando

Murnau (esq.) aviador na I Guerra

Cenas de Aurora

Aurora, de F. W. Murnau (Sunrise, 1927), baseado no romance de Herrman Suderman, Viagem a Tilsit, é para mim o melhor filme do mundo. Quando se vê que o grande Eisenstein nada mais fazia senão juntar imagens com tanto esforço para produzir, por associação, alguma patriotada a serviço da propaganda comunista, aí é que a arte de Murnau nos surpreende por sua capacidade de conduzir, através do jogo de imagens, a algo que está acima de toda imagem e mesmo acima de nossa capacidade de expressão em palavras. A trama se desenvolve em três níveis: o personagem (o ser humano), a natureza e o sobrenatural, tudo perfeitamente encaixado e sem nenhum apelo a uma linguagem indireta ou "hermética", no sentido de obscura, embora haja ali grandes doses de hermetismo no sentido de alquimia espiritual. O tema de Aurora é o jogo entre as decisões humanas, as forças da natureza e a misteriosa providência que tudo ordena sem alterar a ordem aparente das coisas, sem produzir acontecimentos de ordem ostensivamente sobrenatural, e jogando apenas com os elementos naturais. O filme começa com dois amantes — um fazendeiro de Tilsit e uma turista — tomando a decisão mais arbitrária que se possa imaginar, uma decisão que não é fundada em coisa nenhuma: fugir, sendo preciso, para isso, matar a mulher do fazendeiro. Essa decisão brota de uma paixão momentânea, uma extravagância fundada num mero desejo, que não corresponde ao sentido de vida nem da mulher (a moça que quer fugir com o fazendeiro), nem do fazendeiro e não está encaixada logicamente no quadro normal de possibilidades de suas vidas. A possibilidade normal seria tudo não passar de um episódio fortuito, algo como um namoro de férias - o que realmente a coisa era no fundo. Na hora em que eles decidem transformar este namoro de férias numa união

duradoura sacramentada pelo homicídio, então Murnau começa a colocar um outro enredo em cima do enredo inicial. Se a vida do personagem antes do caso amoroso tinha uma certa solidez, ele mesmo não estava consciente disso, ou então teria rejeitado taxativamente a proposta da amante. Mas ele a aceita. E se deixa sair da lógica de sua vida para entrar nas névoas do imaginário. Não por coincidência, a cena em que eles se encontram para tramar o homicídio se dá num lamaçal e entre névoas. Ele atravessa uma bruma, como quem vai sair do plano real para ingressar no plano imaginário, onde vai encontrar sua espectadora.

O resumo do filme é o progressivo retorno desse mundo mítico à realidade que o personagem havia abandonado. Após aquele breve instante em que ele prefere o imaginário ao real, por todo o resto do tempo o que vemos são as operações do destino para devolvê-lo à vida real. Mas esse retorno não é fácil. No primeiro instante, a reação do fazendeiro é simplesmente de ordem sentimental, o sentimento de pena pela esposa que ele não amava, e arrependimento. Mas esse arrependimento não é ainda uma conquista sua, pois ele se dá de maneira passiva e na esfera do imediato. O retorno à realidade terá de passar pela reconstrução de todos os elementos que foram compondo a sua vida. Quando, após a tentativa de homicídio falhada, ele acompanha a esposa até a cidade, ela ainda está muito triste e ele tenta recomeçar o diálogo com ela – afinal, ele tinha se tornado um estranho. Ele tenta retomar a condição de marido, como quem diz: "Eu não sou um assassino, eu não sou um estranho", mas ele, de fato, não é mais o mesmo. Ele terá de reencontrar sua velha identidade, e evidentemente isso não é tão fácil. Temos então duas cenas decisivas: aquela em que na casa de chá ele oferece um bolinho a ela, e ela acaba não aceitando; e a cena do casamento a que eles assistem na igreja. Nesse casamento, novamente não por coincidência, os convidados estão à porta, esperando a saída dos noivos, e quem sai são eles, que vieram andando na frente dos noivos e nem percebem o que se passa em volta. Na igreja, ele toma novamente consciência do sentido do casamento, ou seja, do que ele tinha ido fazer ali, de por que é que ele estava ao lado daquela mulher que até poucas horas atrás já nada significava para ele. De certo modo, ele tem aí uma recapitulação de toda a sua existência. No instante em que ele desiste de matar a esposa, ele já havia se arrependido por dentro, mas isso não era exatamente um arrependimento, no sentido cristão. Era remorso. Que é

remorso? Um sentimento de culpa desesperador. O arrependimento é um sentimento de culpa acompanhado de alívio, de esperança de poder resgatar de algum modo o que foi perdido. O homem só passa por isso na igreja: neste momento, ele troca o remorso pelo arrependimento. Mas aí a trama ainda não complicou. É preciso que ele confirme esta intenção. Ele precisa adquirir certeza absoluta de sua identidade recuperada. No instante em que aceitou matar, ele jogou fora toda a sua vida, ele agiu como se fosse um outro. Um outro que teria uma outra vida, num outro lugar, com outra mulher. Na cena em que a amante fala da vida na cidade e ele se vê dançando nas boates, ele imagina para si uma outra biografia, que começaria miraculosamente do nada. Após ter construído toda uma vida como homem do campo, ele repentinamente se vê em outra cena, e para vivê-la realmente ele precisaria ter tido toda uma outra vida, precisaria trabalhar em outra coisa, ter nascido em outro lugar. O apelo dessa vida imaginária o entorpece de tal maneira que ele perde sua identidade: ele não está mais conectado nem com a esposa, nem com a profissão, nem com o ambiente material, com nada. Ele está desligado do sentido da vida, e por isto esta vida lhe parece vazia e tediosa — é a vaidade psicológica, que projeta na vida em torno a miséria interior do homem incapaz de assumir seu dever vital. O restante do filme vai encaixá-lo de volta, primeiro, em sua vida; segundo, em seu casamento; terceiro, no lugar onde ele construiu a sua vida, para de certo modo devolvêlo ao sentido da vida que ele tinha abandonado momentaneamente por um sonho maluco. E como se dará isso? Ele será obrigado, pelo desenrolar dos acontecimentos, a apostar de novo, repetidamente, no valor de tudo aquilo que tinha desprezado, e terá de apostar cada vez mais alto. Ele reconquista por um esforço de vontade consciente tudo o que havia abandonado por vaidade. Ele começa por pedir perdão; depois oferece o bolinho; em seguida, na igreja, tem um segundo arrependimento e faz como que um voto; tira então uma fotografia, que é como uma fotografia de casamento; e por fim vai para um parque de diversões, que seria o equivalente da viagem durante uma lua-de-mel. Com tudo isso, ele recuperou sua identidade de casado, mas não recuperou ainda o sentido da sua vida. Para isto ele precisará ainda apostar mais um pouco. E a aposta será uma segunda tentação, que já não vem por meio humano, mas por meio dos elementos da natureza, quase que propositadamente mobilizados para esse fim, que executam a intenção dele, isto é, afogam realmente a mulher que ele antes tinha tentado afogar. Veja; aquilo que ele sonhou, já não é mais ele que está executando, é um poder imensamente maior que o dele, ou seja, ele pediu e o céu executou. Nesta hora, ele tem de fazer a aposta decisiva para salvar aquela mulher que ele quisera matar. Enquanto vai retornando para casa, dá-se a tempestade, e nesse retorno é que se dá também o retorno dele à plena posse do sentido da sua vida. Ele vai dizendo uma série de "sins" a tudo aquilo a que antes tinha dito "não". Mas quem se opõe a esse sim, quem é o tentador que lhe oferece novamente o não? Agora já não é o demônio: é o próprio

Deus, para saber se ele quer mesmo. O filme é teologicamente exato ao mostrar que o diabo age dominando a imaginação, a fantasia e os desejos, enquanto Deus age através dos acontecimentos reais, do reino da natureza transformado em mensageiro do sobrenatural. O personagem será então obrigado a reafirmar com muito mais força sua adesão a todos os valores que havia desprezado. E terá agora de arriscar a sua própria vida para defendê-los e, mais ainda, arriscar de certo modo a própria salvação de sua alma; pois não pode evitar o sentimento de revolta contra os céus quando pensa que a mulher morreu, e ele se sente preso numa armadilha terrível montada pelo diabo, que executou o pedido do qual ele já tinha desistido. Ele tem de reafirmar e apostar tudo de novo, desta vez lutando contra todas as probabilidades aparentes. Aurora, na verdade, transcorre para trás. A mudança do fazendeiro para a cidade, planejada no começo, não se realiza, e tudo o que é importante acontece no retorno da cidade para o campo, onde ele vai novamente botar os pés no chão. O filme tem algo de "romance de formação" (Bildungsroman), gênero tipicamente alemão, que tem como conclusão a formação da personalidade humana, onde o indivíduo, através de seus erros, se transforma num homem de verdade. Um exemplo é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister; Herman Hesse também fez isso em O Lobo da Estepe e em Demian. São romances cuja única conclusão é o crescimento humano em direção à maturidade. Mas esse crescimento é sempre uma diminuição, é sempre o indivíduo voltando à terra, depois de haver sonhado alguma maluquice e viajado por um céu de mentira. É uma apologia caracteristicamente germânica do "pão-pão, queijo-queijo" como valor supremo da existência. A idéia, portanto, é de que o sentido da existência está colocado na própria existência: ela tem sentido em si mesma, e não num outro mundo colocado acima deste, como o mundo imaginário que a amante oferece ao personagem, e que é mais ou menos como o mundo da falsa vocação teatral de Wilhelm Meister. Meister tem o sonho de ser ator, mas ele não serve para ser ator, ele não é um ator, ele é um burguês no fim das contas, e sua descoberta de que é um burguês de classe média alta, um sólido burguês, é a verdadeira educação dele. A vida cotidiana do burguês, na medida em que é real, e pelo simples fato de ser real, tem em si uma força mágica superior a toda imaginação, porque não é constituída de imagens, tem uma tridimensionalidade que a fantasia não tem. O imaginário como alternativa oferecida pelo tentador diabólico é um mundo bidimensional, um mundo só de imagens, imagens no meio da névoa. A cena em que o fazendeiro e a amante conversam no pântano remete à carta 18 do Tarô, que é A Lua: o homem de um lado, a mulher de outro, como o cão e o lobo; a água em baixo e a lua no meio, formando um losango. Esse "mundo da lua" é o mundo dos reflexos na água, onde as coisas não acontecem verdadeiramente, apenas parece que vão acontecer. A imagem pode ser encantadora, mas ela não tem a tridimensionalidade, a profundidade da vida real. É no retorno à terra que o homem encontra o verdadeiro céu, o sentido da vida.

Ora, a coisa mais espantosa desta vida real é justamente que nela as coisas não chegam a ter uma explicação final, ao passo que o mundo imaginário é facilmente compreensível e explicável, pelo simples fato de que foi você mesmo que o imaginou. Na hora em que o personagem imagina uma outra vida na cidade, tudo para ele faz sentido, porque é ele mesmo quem quer que as coisas sejam assim ou assado. Aí a relação causa e efeito é perfeitamente nítida, ao passo que, no retorno à vida real, o jogo de causa e efeito é infinitamente mais complicado, mais sutil, e nunca se pode dizer que isto aconteceu por causa disto ou daquilo exclusivamente; há sempre um tecido, um emaranhado de causas, e nunca se consegue assinalar uma linha causal única. Então, por que a tempestade acontece justamente no momento em que ele estava voltando? Ela poderia acontecer em qualquer outro momento. Não há no filme a menor insinuação mágica a respeito disso. Não foi um anjo quem fez cair a tempestade, mas, se ela não acontecesse, certamente a resolução do sentido da vida desse indivíduo tomaria uma outra direção. As causas naturais interferem e não se sabe nunca se existe nelas um propósito ou não. Não se pode dizer propriamente: "Deus fez cair a tempestade para tal ou qual finalidade ", porque Deus não aparece no filme, só a tempestade. Cada um está livre para interpretar isso como uma intencionalidade divina ou como uma casualidade, mas nos dois casos este fato entra como elemento componente de um sentido geral. Quando cai a tempestade e a mulher se afoga, nada no filme nos permite interpretar que foi Deus que a fez cair propositadamente para ensinar algo ao personagem. Deus não aparece, não há a menor insinuação de um sentido religioso evidente envolvido no caso. Nós simplesmente vemos a tempestade, vemos o que aconteceu. Não podemos dizer que foi uma causa divina, ou uma causa natural fortuita, mas em qualquer dos casos esse acontecimento se encaixa não na ordem das causas, mas na ordem do sentido, e e força causal divina não aparece como causa eficiente e sim só como causa final, que age através da combinação natural das causas eficientes. Qualquer que seja a causa, para o personagem, aquele acontecimento tem um sentido muito nítido, não subjetivamente, mas objetivamente, dentro da vida real dele. E que sentido é esse? O da intenção maligna da qual ele já havia desistido, e que é realizada justamente no instante em que ele a tinha renegado e em que ele a temia. Os seus pensamentos viram ações no exato instante em que ele não os aceita mais. Este sentido não é subjetivo, não é o personagem quem interpreta as coisas assim: elas simplesmente são assim, em si mesmas e objetivamente. Sem precisar recorrer à idéia de uma providência que propositadamente está "fazendo acontecer" isto ou aquilo - e esta é uma das coisas mais bonitas do filme o evento tem um sentido objetivo, e este sentido, por meios puramente naturais, vai na direção indicada pela intencionalidade divina, que é a reconquista do sentido da vida. É uma espécie de ironia da natureza, e por momentos o personagem se sente vítima desta ironia. Ela pode ser premeditada ou fortuita, isso não a torna menos irônica. Para ele, naquela hora, pouco interessa se foi o diabo que fez chover, para prejudicá-lo, ou se a natureza inocentemente e quase que mecanicamente produziu a chuva. A tempestade é irônica nos dois casos, e em ambos os casos faz sentido.

Há aí uma distinção muito nítida entre o a ordem das causas e a ordem do sentido. Só que esse sentido não é subjetivo, não é apenas humano, é um sentido real; dentro do contexto dos acontecimentos, a tempestade tem uma significação nítida, é uma ironia cruel da natureza, pouco importando se foi intencional ou não. Na verdade, se não foi intencional é até mais cruel, porque então o destino do personagem parece mais absurdo ainda. De repente, ele cai totalmente dentro do absurdo que ele mesmo havia premeditado. Se houve intencionalidade por trás dos fatos, foi uma intencionalidade pedagógica, e se não houve, foi uma coincidência irônica. Essa ironia já aparece no episódio do cachorro. Por que o cachorro, na hora que eles vão sair de barco, sai latindo atrás da dona? É porque ele anteviu que ia acontecer uma desgraça? Ou é simplesmente porque ele quer ir atrás da dona? O filme nada diz a esse respeito. Você está livre para interpretar como quiser. Mas como quer que se interprete a causa que fez o cachorro se mover, o que importa não é a causa, mas o sentido que esse episódio acaba tendo no conjunto. Por quê? Porque, ao retornar para deixar o cachorro em casa, o homem poderia ter desistido da viagem e do plano assassino. O cachorro aparece ou como uma casualidade ou como uma intencionalidade, que poderia ter salvado a mulher antecipadamente e bloqueado o curso posterior dos acontecimentos. Poderia, mas falhou. O cachorro não teve força suficiente, é um elemento natural demasiado isolado e fraco para por si determinar o rumo dos acontecimentos. O cachorro, pura sanidade natural, é impotente para deter o mal; para isso será preciso a mobilização de todos os elementos da natureza — a tempestade. Mas em todos os instantes o que se vê é que, não importando a causa, o sentido é nítido. E esse sentido não é subjetivo. De fato, a ação do cachorro naquele momento poderia ter impedido a desgraça. Quase impediu. E esta é outra característica desse filme: o tempo todo você tenta prever o que vai acontecer em seguida, e essa previsão toma o aspecto de um voto de fé: você deseja que as coisas tomem um certo rumo, você torce pára que isso aconteça — e, nunca acontecendo o que você deseja, no fim o resultado é, pelos meios mais impremeditados e surpreendentes, exatamente aquele que você desejava. Na hora em que você sabe que o sujeito vai tomar o barco para matar aquela inocente mulherzinha, você deseja que ele não faça isto. E na hora em que o cachorro começa a latir e vai atrás, o cachorro está realizando de certa maneira o seu desejo, mas ele falha. Nesta cena, todo mundo vacila: você, o cachorro, o personagem, a mulher – ela também não sabe direito o que vai acontecer. Ela também está numa interrogação. Todos esses elementos, todos esses fatos têm sempre um sentido muito nítido, sempre referido ao antecedente e ao conseqüente. Em nenhum momento você depende da interpretação subjetiva que os personagens fazem. A partir de elementos psicológicos simples, cria-se esta história profundamente enigmática na qual todos os elementos concorrem, afinal de contas, para uma tomada de consciência e para que o personagem retome posse da sua vida. Está subentendido no filme inteiro que tudo está concorrendo para um sentido final. Mas se isto ocorre conforme uma premeditação ou não, esta é uma questão deixada em suspenso. Faz parte da realidade da vida você não saber quais são os elementos que determinaram seu

destino. Mas também faz parte da vida você poder compreender o sentido do que está acontecendo. Eu não sei quem foi que fez chover, nem com qual intenção fez chover, eu sei que para a ordem constitutiva da minha vida, neste momento, a chuva tem um sentido muito nítido. E o sentido, o que é? É a obrigatoriedade moral de uma ação, que por sua vez faça sentido dentro do caminhar da minha vida e dentro de minha própria identidade. Sendo eu quem sou, vivendo do jeito que vivo, tenho a obrigação de fazer isto assim e assado, pois só assim minha vida fará sentido. Viktor Frankl daria pulos de entusiasmo se visse este filme. A interpretação metafísica fica condicionada a uma interpretação ética, que a precede de certo modo. Pouco importando se existe uma providência por trás de tudo ou não, o sentido dos fatos se impõe na medida em que impõe a obrigação de agir de uma determinada maneira, porque é a única que faz sentido. O problema da providência está colocado não na esfera causal, mas na esfera do sentido, pouco importando se essa providência age através de causas naturais ou sobrenaturais. A chuva pode ser uma mera coincidência. Veja-se isto do ponto de vista de Deus. Se já estivesse predeterminado por leis naturais que iria chover naquele determinado instante, Deus certamente sabia disso, e não precisaria mandar uma chuva especialmente para que as coisas se resolvessem desta ou daquela maneira. A simples somatória de causas naturais e humanas é suficiente para criar um sentido. A providência está aí para quê, então? Para criar e manter o sentido. A providência, sendo sobrenatural, não precisa no entanto recorrer a meios sobrenaturais. Do simples jogo das causas naturais e humanas em número indefinido, haverá um resultado x. Não era necessário uma premeditação para aquele caso específico: estava já tudo ordenado, de tal modo que o homem, que é um ser pensante e que tende sempre a criar uma unidade de sentido em sua vida, aproveitaria, para realizar esse sentido, os acontecimentos quaisquer que fossem. Desta maneira, o próprio caráter fortuito dos acontecimentos é de certo modo superado. São fortuitos quanto à sua causalidade eficiente, isto é, àquilo que os desencadeou, mas não quanto à sua causa final. Ou seja: um monte de causas eficientes dispersas de modo fortuito podem concorrer a uma causa final de natureza fundamentalmente boa. Este é um elemento da filosofia de Leibniz (Princípio do Bem Maior). Não sei se Murnau pensou em Leibniz nessa hora, mas para ser leibniziano não é preciso ter lido Leibniz: é uma questão de personalidade e de afinidade espiritual espontânea. Em todo caso, não é inútil lembrar que, antes de se dedicar ao cinema, Murnau estudou filosofia e teologia. Num outro filme dele, Tabu, há uma mensagem de sentido aparentemente contrário: a causalidade humana e natural concorrendo para um desenlace trágico. Isso também pode acontecer. De qualquer modo, se tudo termina em comédia (quando tudo termina bem é comédia, por mais que a gente sofra) ou em tragédia é coisa que não é decidida na ordem das causas eficientes, mas na ordem da causa final, e com isso escapamos da famosa polêmica entre determinismo e livre-arbítrio.

As duas coisas de certo modo se exigem mutuamente; não há como conceber uma sem a outra. Existe determinismo na medida em que certas causas desencadeadas vão fatalmente produzir certos resultados. Podemos tomar as causas naturais que aparecem neste filme, como o comportamento do cachorro e a tempestade, como simples resultados de leis naturais. Há processos naturais que explicam esses fatos. Pode estar tudo predeterminado na ordem das causas eficientes, mas nada pode estar predeterminado com relação ao fim, à finalidade. Não haveria nenhum sentido em criar um ser capaz de escolher, capaz de agir, capaz de ter culpa inclusive, se a finalidade de vida dele já estivesse dada infalivelmente de antemão. Isso seria umnonsense: não é necessário um ator consciente para desempenhar um papel mecânico; não seria preciso um ser tão inteligente quanto o homem para desempenhar esse papel. Portanto, existe uma certa margem de manobra dentro mesmo do determinismo da natureza. O sentido da vida existe, mas sua realização pelo homem é eminentemente falível. Podemos dizer que o cachorro "não teria" outra alternativa senão ir atrás da dona, porque esse é seu instinto, e a chuva também não teria outra alternativa senão cair naquele preciso momento. O homem é que tem a alternativa de entender ou não entender o que está se passando e de dirigir a vida dele num sentido que esteja harmonizado com quadro natural, com o seu dever e o sentido da sua vida. Para realizar o sentido de sua vida, ele precisa compreender o que se passa em torno, e compreender em quê essas coisas o influenciam. Os fatos (como por exemplo a amante, que não existia na vida do personagem e que chega de férias a um determinado local num determinado momento, ou seja, faz uma intervenção) vão se sucedendo e vêm do ambiente em torno. O indivíduo mesmo é que entende ou não entende. E para não entender, basta ele se desligar por um momento deste tecido denso da causalidade e entrar num outro mundo onde ele próprio é a única causa; que é o mundo imaginário, um mundo inteiramente lógico e nítido, onde ele inventa as causas e os efeitos se seguem da maneira mais lógica possível. É a lógica do plano criminoso proposto pela visitante: nós matamos a sua mulher e vamos para a cidade, e você vai morar lá comigo e vamos dançar naquela boate onde sempre vou, etc., etc., etc. Tudo isso é muito lógico, de maneira linear. Mas, no retorno à vida real, as causalidades não são mais lineares, mas concomitantes e em número inabarcável. A conexão entre elas pode ser percebida ou não, porque o indivíduo mesmo é um elo de muitas cadeias causais cruzadas. Uma coisa é acontecer uma chuva e outra coisa é acontecer a chuva na hora em que você está ali. Mesmo do ponto de vista puramente natural, do ponto de vista físico, não é a mesma coisa chover sobre um terreno onde não há nenhum ser vivo, sobre um terreno onde há plantas, sobre um terreno onde há bichos e sobre um terreno onde há gente. As conseqüências da chuva fatalmente serão diferentes nesses vários casos. No caso aqui presente, chove na hora em que está ali exatamente aquele cidadão, portanto essa chuva já não é igual para todos, ela tem significados diferentes.

Ele poderia não ter compreendido a situação. Poderia ficar tão idiotizado pela morte da mulher que não sentisse sequer a ironia da situação, não tirasse a lição moral nela implícita. Ele consente em tirar esta lição porque continua dialogando moralmente com a natureza, perguntando: "O que você quer de mim?", ou seja: confiando no sentido da vida mesmo quando este sentido se tornou invisível por efeito dos erros que ele próprio cometeu. Ora, a natureza nunca responde totalmente, mas é o ser humano que completa as suas respostas. E na medida em que responde, responde assumindo o sentido e as implicações todas, as implicações reais que aquilo tem. Ou então fantasiando em cima, inventando, fugindo do dever e do sentido da vida. Quando vemos que tudo isso foi dito só com imagens mudas, notamos que este filme é realmente uma obra-prima assombrosa. No sentido de jogar com um monte de causas para provocar um efeito final, existe uma analogia entre Aurora e A Tempestade de Shakespeare, mas a diferença é que nesta há um agente regendo as causas, que é o mago Próspero, enquanto que aqui, não. Aqui não aparece mago nenhum, você sequer sabe quem está dirigindo a cena ou mesmo se ela está sendo dirigida. O que você sabe é que ela faz um sentido tremendo. Perguntar se isso foi premeditado ou não, neste caso, é inteiramente ocioso, porque a pergunta não é essa. A pergunta não é quem está dirigindo e com que propósito, a pergunta é: O queprecisamente está acontecendo? É uma chuva como qualquer outra? Não. É a chuva que acontece neste momento e mata a mulher que o sujeito queria matar meia hora atrás. O momento em que isso acontece não é indiferente. A vida real é justamenteessa densidade na qual todos os fatores são absolutamente inseparáveis, e a única coisa que está realmente em jogo é se você vai aceitar essa densidade ou se vai fugir para um outro mundo, plano e sem gravidade, o mundo da fantasia subjetiva. É justamente esse drama que dá ao filme todo seu valor e seu impacto. A história que o personagem havia inventado ele próprio entendia perfeitamente, mas, e esta outra história que de fato lhe acontece? São tantos os fatores em jogo, que ele não poderia ter uma explicação completa. Para entender tudo o que aconteceu, ele precisaria ser Deus. Imagine o número de causas que teriam de ser investigadas para se saber por que houve toda essa convergência de acontecimentos. Isso nunca ninguém terá. Em nenhum momento haverá uma explicação completa de tudo que aconteceu. No entanto, longe de compreender isso no sentido vulgar das "limitações do conhecimento humano", temos aí uma indicação preciosa sobre a natureza mesma da realidade: a realidade só é real quando, nela, o conjunto finito dos elementos conhecidos, e que em si mesmos podem não fazer sentido, é abarcado por um infinito que, incognoscível em si mesmo, dá a unidade e o sentido do quadro finito. Sempre que o finito se fecha em si mesmo, pretendendo ser auto-explicativo, estamos no reino da fantasia lógica otimista e prometéica. E sempre que o finito se dissolve num infinito sem sentido, estamos no reino da fantasia macabra. É na articulação sensata do finito no infinito que se encontra o conhecimento da realidade. O sentido da vida do personagem não apenas não é subjetivo: ele é, por assim dizer, um sentido histórico. O personagem é este homem e não outro, ele teve esta vida e não

outra, enfim ele não está livre para sentir o que quiser na hora em que quiser. Ele vai sentir de acordo com o que aconteceu antes e de acordo com o que ele pretende que aconteça depois. Justamente na hora em que o indivíduo voltava para casa, esperando retornar à sua paz doméstica depois de tudo aquilo que viveu, depois da tentação e do remorso, nesse instante incide a chuva e ela tem esse sentido porque se encaixa na seqüênciadesse antes e desse depois, e não porque o indivíduo "sentiu" isto ou aquilo. Na verdade, ele poderia não sentir, ele poderia ficar idiotizado. Muitas pessoas, diante de um sofrimento desse tipo, na hora em que a vida realiza sua fantasia macabra, enlouquecem e não querem pensar mais. Aí elas perdem a percepção do sentido do que está acontecendo, mas esse sentido continua presente e pode ser reconhecido por quem, de fora, observe o que se passa. O preço do sentido da vida é entender o que está acontecendo, por mais que doa. Mas entender sempre apenas do ponto de vista humano e sem ter a explicação global. Ora, isso é muito importante para o estudante de filosofia, pelo seguinte: em qualquer investigação do tipo metafísico que se faça, a tendência humana é sempre voar direto para o problema da providência, do determinismo, da intencionalidade divina, tratando desses temas de uma maneira genérica e abstrata, sem ter este arraigamento prévio do sentido da vida pessoal, o qual é, evidentemente, o único intermediário pelo qual se poderia chegar à compreensão da intencionalidade divina. Se você não compreende sequer o que os acontecimentos representam dentro do enredo da suavida, como é que você vai entender as intenções do Escritor que produziu a obra? Se você não entende nem a história, como é que você vai entender a psicologia do Autor? É ridículo que pessoas de alma tosca, incapazes de apreender e assumir responsavelmente o sentido de suas próprias vidas, se metam a opinar sobre questões filosóficas simplesmente porque leram Kant ou Heidegger. Primum vivere deinde philosophari tem precisamente este sentido: o verdadeiro filósoso é filósofo na vida real e não apenas um estudioso que fala sobre filosofia. Por isso mesmo é que a investigação metafísica nunca pode ser uma mera investigação abstrata no sentido científico e impessoal, ela sempre vai implicar uma responsabilidade pessoal. E a pergunta que se coloca é a seguinte: você aceita compreender o que está se passando na sua vida? E em que medida você vai agüentar? Oitenta por cento dos filósofos a quem você fizesse essa pergunta correriam de medo, porque há certas coisas que são terríveis de entender, sobretudo as conseqüências do que cada um fez na vida. Construa a hipótese de que exista um Deus, de que Ele conhece seus pensamentos e de que Ele pode, como neste caso, tornar realidade os seus piores pensamentos. Você deseja conhecer esse Deus? A maioria das pessoas, aí, já não vai querer mais. É melhor não saber. Surge aqui a famosa emoção da "máquina do mundo" do Carlos Drummond de Andrade, quando o indivíduo, após ter investigado e perguntado a vida inteira, na hora em que o Universo vai finalmente se abrir e mostrar tudo, ele diz: — "Não quero mais saber".

"como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face que vou pelos caminhos demostrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo, baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho. A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera seguia vagaroso, de mãos pensas." (Trechos de "A máquina do mundo" - Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma) O acesso ao conhecimento de ordem metafísica tem de passar primeiro por um conhecimento de ordem moral e ética que não consiste em "seguir" uma moral ou uma ética já dada e pronta, mas, ao contrário, em de fato desejar compreender a própria vida e realizar o seu sentido, assumindo o dever com todas as forças, porque é na vida real que se vai encontrar o elo entre o natural e o sobrenatural. E onde mais poderia agir o tal sobrenatural, se não fosse no real, neste mundo histórico e humano onde vivemos? A natureza já está dada, é um fato que está diante nós. Ela já está resolvida, se não de maneira eterna, pelo menos de maneira habitual; embora haja um coeficiente de indeterminismo na natureza, pelo menos no plano macroscópico, no plano da natureza visível, as coisas funcionam segundo uma certa regularidade na qual você não interfere. A interferência do homem nos processos naturais é mínima. Pois bem, onde mais você vai interferir? No sobrenatural? Não, o sobrenatural é Deus, é onipotente, você não pode mexer lá. Então, você não pode mexer, na verdade, nem na natureza e nem no sobrenatural. Você está colocado, por assim dizer, na natureza, mas um pouquinho acima dela, na medida em que pode enxergar a natureza como um todo e perguntar

sobre alguma coisa que está para além dela, mas aonde você não pode chegar. Então, onde você está? Exatamente entre um e outro. Entre um conjunto que você enxerga mas não entende e outro que, se conhecer, vai entender, mas não conhece. A natureza é visível e cognoscível, está diante de nós, mas nós não a entendemos, porque não parece ter intencionalidade. Às vezes parece que, outras vezes parece que não, então você não sabe. Como é que vamos saber? Bom, precisamos interrogar o que está além da natureza, aquilo que está acima dela e que a determina. Em suma, precisamos conversar com o Autor da história. Se você conhecesse o Autor da história, tudo estaria explicado; mas você não O conhece. Aquilo que você conhece, você não entende e aquilo que você entende, não conhece. Deus é perfeitamente compreensível; na hora em que você começa a pensar em Deus, você vê que tudo faz um sentido tremendo, mas nós não O vemos, não O escutamos e não O conhecemos. E tudo aquilo que vemos, escutamos e conhecemos nem sempre faz sentido. Você tem o fato em baixo e o sentido em cima. Você desejaria subir para este sentido. Mas onde está o elo? Em você, porque você também existe materialmente, ou seja, você é objeto de conhecimento seu, você conhece o seu próprio corpo, a sua própria vida, exatamente como você conhece a natureza. E qual é o sentido da sua vida? Você tem a realidade da sua vida, mas qual é o sentido dela? Com relação a você mesmo, você também está dividido. Você conhece a realidade da sua existência, mas não o sentido dela. O sentido, é claro, faz sentido, mas você não o conhece. E a vida você conhece, mas não sabe se faz sentido. Então, você é esse elo, porque a cada instante você pode ligar a esfera dos fatos com a esfera do sentido. Como é que você faz isso? Compreendendo o sentido que os fatos impõem, não abstratamente e em si mesmos, mas com relação à sua vida histórica. Só na medida em que vai aceitando compreender esse sentido que está na sua própria vida, você tem ao mesmo tempo a abertura para aquele laço maior que há entre o natural e o sobrenatural. A relação que existe entre a sua vida e o sentido da sua vida é a mesma que existe entre a natureza e Deus. Sendo você o único elo, há algo que tem de se resolver na sua esfera e na sua escala antes de você poder fazer a sério qualquer indagação de ordem metafísica. Ora, quando entendemos isso, cada um de nós pode também colocar a seguinte pergunta: Quais os fatos que foram determinantes do meu destino? E, se você começa a contar sua história direitinho, verá que houve fatos que determinaram o seu destino real, sem que você opinasse a respeito, sem que fosse consultado e às vezes sem que sequer os percebesse. Na vida dos outros a gente percebe isso muito bem; na nossa, é preciso um esforço. Por exemplo, você monta um armazém. Depois de uma crise econômica no Zâmbia, que muda o comércio internacional de um produto, seu armazém afunda. Você não precisa conhecer essa crise econômica toda, você não precisa saber onde ela começou e você não precisa saber o tamanho dela. Você sabe apenas que seu armazém afundou. Agora, eu pergunto a você: você quer ver o tamanho do inimigo que liquidou seu armazém? Quer ver o tamanho do elefante que pisou em cima de você, ou não?Quer conhecer realmente o que determina sua vida? Note que não estamos falando de causas

sobrenaturais, estamos falando de causas sócio-econômicas. Nesse momento, a maior parte das pessoas baixa os olhos como o personagem da "Máquina do Mundo". Não quer ver, e não querendo, volta à condição de animalzinho — o bichinho vivente cuja vida não tem sentido, cuja vida não precisa ter sentido, e que só espera morrer o mais rápido possível. A partir desse momento, mesmo o esforço que o sujeito faça para atender aos seus impulsos vitais, seus desejos, estará atendendo apenas a um instinto de morte. Qual é o resultado final da vida biológica? A morte. É o único resultado a que a vida biológica pode levar. Portanto, na hora em que você limita sua vida ao biológico, por encantadora que ela ainda possa parecer, você sabe que está indo apenas na direção da morte e de mais nada. A renúncia ao sentido leva embora consigo a própria vida. Conhecer o sentido da vida pressupõe conhecer o sentido das coisas que vão acontecendo enquanto ela se passa. Mas a apreensão desse sentido às vezes implica o conhecimento de forças terríveis, forças de escala histórica, social, planetária ou supraplanetária. Suponha, por exemplo, que os planetas exerçam alguma influência sobre a sua vida. Suponha que um planeta se deslocando em sua órbita planetária possa causar um efeito na sua vida. Como é que você vai dialogar com um monstro desse tamanho? A maior parte das pessoas não deseja, por medo, levantar os olhos para ver o que determina a sua vida. Mas a aquisição do sentido da vida pressupõe a aquisição do sentido do cenário cósmico em que você está; não em si mesmo, como se faz ecologicamente, mas como cenário da peça que é a sua vida. Partindo do ponto onde você está, a consciência pode ir se alargando em círculos concêntricos cada vez maiores, para compreender gradativamente o conjunto de fatores que determinam objetivamente a sua existência. E à medida que esta consciência se amplia, mais nítido se torna o dever pessoal que dá sentido à sua vida. E aí você não busca mais proteção na inconsciência covarde (fingida no começo, mas que com o tempo se torna inconsciência mesmo), e sim no dever, que lhe infunde coragem cada vez maior. Acontece que, quando alguém faz isso, vê que é quase um milagre tomar alguma decisão em meio a todos esse fatores enormemente poderosos. Nessa hora, o indivíduo é obrigado a enxergar a realidade mais brutal da vida humana: a fragilidade do poder individual. A expansão da consciência pressupõe uma retração das pretensões e uma perda do egocentrismo, e neste ponto a maior parte das pessoas volta atrás. Para não perder aquele falso senso inicial de segurança, aquela ilusão de que ele próprio é o centro do mundo, de que ele próprio decide livremente sua vida, o sujeito fecha os olhos ante a máquina do mundo, baixa a cabeça, e daí para diante é igual a um carneiro, ou um porco, ou um ganso; mas um carneiro, um porco ou um ganso que continua com a ilusão de que é uma grande coisa. Nesse sentido específico, o personagem do filme aceita o mais plenamente possível a condição humana. Ele entende e assume o que se passa. Ele entende que sua vida é determinada por um diálogo, um confronto, com forças infinitamente poderosas, forças que podem inclusive fazer com ele uma piada sinistra. Aliás, o título do filme,Aurora, nascer do sol, tem um motivo bastante óbvio. O personagem do filme é o verdadeiro twice born, o renascido em Deus, o renascido no reino do Espírito.

É óbvio que há fatores que ele pode ignorar, mas que jamais o ignoram. Nós podemos ignorar os fenômenos cósmicos, ou históricos, mas eles nos atingem; nós não sabemos deles, mas eles sabem de nós. Como um judeu na Alemanha nazista: ele podia ignorar o Führer, mas o Führer não o ignorava. Como um cristão na URSS: ele pode ignorar Stálin, mas Stálin o conhece muito bem. Em certo momento, esse cenário assume de fato uma configuração sinistra. E você agüenta enxergá-la? Você quer saber, ou não? Nesta passagem é que se decide se o homem vai ser digno da condição humana ou se ele vai se imputar aquela autocastração espiritual, que é a pior perda por que um sujeito pode passar, e que nenhuma reparação material pode compensar. O homem que desistiu de saber pelo quê são determinadas sua vida, sua biografia, desistiu dessa vida e dessa biografia. Ele já não lhe dá mais valor, jogou-a no lixo. Agora, no máximo, ele está reduzido a uma criança que, ignorando tudo em volta, pede milagres ou amaldiçoa o destino, a socieadde, o próprio Deus; Deste ponto em diante, só um milagre, mesmo. Mas o pedir milagre é uma coisa amaldiçoada pelo próprio Cristo. "Maldita a geração humana que pede prodígios". E como é que o sujeito vai obter prodígios se não quer sequer olhar para a natureza em torno, olhar para o mundo real onde esses prodígios se sucedem a todo instante? Aqui é preciso citar uma frase do velho Gurdjieff (não gosto dele, mas ele tem uns achados verbais incríveis), que diz que a maior parte das preces consiste em pedir que dois mais dois dêem cinco. O indivíduo não sabe exatamente o que pedir. Ora, se ele não olha nem a realidade em torno, ele não sabe onde está, portanto também não sabe o que quer. Vai pedir uma coisa qualquer, uma bobagem. Ao fazer isso, está recusando o dom do Espírito, está cometendo o pecado primeiro: "Eu não quero ser um ser individual consciente e responsável, eu quero ser um bichinho que não sabe de nada, quero permanecer no estado de inocência animal." Ele quer pecar contra o Espírito e ainda quer que Deus faça um milagre? Todos os pecados são perdoados, menos esse. É por isso que vejo uma blasfêmia profunda na apologia vulgar da "vida simples", das "pessoas simples". Esse é um aspecto que nunca foi muito bem estudado. A autêntica simplicidade evangélica consiste justamente em pedir pouco, em não precisar de muito, e não em levar a vida de um bichinho que ignora o mundo que o cerca. Este ignorar é recusar o dom do Espírito, e este é o pecado que não é perdoado nem nesta vida nem na outra, o pior dos pecados. Tudo é perdoado menos o pecado contra o Espírito Santo. Qual é este pecado? A ignorância voluntária — e ainda há quem chame isso de "simplicidade evangélica". A falta de interrogação sobre o sentido da vida, a depreciação desta busca ou sua redução a uma curiosidade acadêmica, como se algo desligado do eixo da vida, isto é o desprezo pelo Espírito. Se o sujeito faz isso e depois vai ler a Bíblia, vai rezar, ele está perdendo tempo. É uma besteira: ele já informou a Deus que não quer nada com Ele. Essa desespiritualização é a total absorção do indivíduo nas tarefas de subsistência, incluindo as tarefas de prazer, que também são para subsistência. Você precisa de uma certa quota de prazer sexual, gastronômico, etc., simplesmente para sobreviver, assim

como, para sobreviver, precisa de uma certa dose de esforço dolorido. Enquanto o indivíduo está limitado a essas duas coisas, ele optou pela vida natural, não quer saber do sobrenatural. Se ele quiser saber do sobrenatural, terá de passar por essa interface, que é o sentido da vida dele mesmo. Para você saber o sentido de uma coisa, primeiro precisa saber que coisa é esta. "Que é que eu sou?", "Onde é que eu estou?", "Que é que eu estou fazendo aqui?", "Que é que está me acontecendo?" e "Em que rumo está indo o curso da minha vida?" Por exemplo: Você deseja realmente saber todos os impulsos hereditários malignos que herdou de seus antepassados? Assassinos, estupradores, traficantes, contrabandistas, proxenetas, dedos-duros — quer? Quer ver tudo isto? A isto Dante chama descida aos infernos: reconhecer as possibilidades inferiores que ainda estão em você. Você querver isto? Não, não quero. diz a maioria. Então, se não quer, não adianta ir rezar, porque a função do Espírito Santo é revelar precisamente isso para você. Pelo olharfirme e inteligente é que você supera todo o mal que há em você: se você é capaz de saber, de olhar, você já está acima do seu próprio mal interior; agora, se você não quer ver, você ainda está em baixo. Não temos medo daquilo que nos é inferior. Só quando você quer ver esse conjunto é que, pelo simples fato de ser vistas, essas possibilidades então são queimadas, passam a fazer parte do seu mundo cognitivo e você de certo modo já está colocado acima delas. Então, se formos pensar a ferro e fogo, a idéia que se tem hoje da preocupação "realista" com o cotidiano repetível é uma fuga do Espírito, uma sucessão de analgésicos. Quando acontece uma grande desgraça, o indivíduo se pergunta "por que isso aconteceu a mim?". Boa pergunta, mas antes de perguntar pela desgraça, já devia ter perguntado uma série de outras coisas. Não, ele deixa para fazer perguntas só quando acontece a desgraça. Ora, a desgraça pode ser complicada, e ele talvez não a entenda. A situação do personagem do filme é uma situação evidentemente ideal, portanto artisticamente simplificada. É o indivíduo que nunca tinha pensado em nadae repentinamente tem de entender tudo. E ele entende. Ora, ele entende porque é um filme, é um esquema simplificado, simbólico, da vida. Na verdade, se o indivíduo passar a vida toda ignorando solenemente tudo o que se passa, quando ocorrer a desgraça ele também não vai entender, vai ficar ainda mais burro do que estava antes. Não acredito que deixar tudo para o último minuto possa adiantar, exceto no filme. No filme, há um idiota jogado de repente numa situação trágica, onde ele tem de entender tudo e realmente entende, e, na hora em que entende, sua compreensão tem uma função catártica. Na hora em que toma consciência do que aconteceu, ele descarrega o mal que havia na situação e esse mal instantaneamente se converte em bem e sua esposa é resgatada. Eu não nego que possa haver, neste sentido, uma atuação mágica do ser humano sobre o cenário histórico e até mesmo o cósmico, na medida em que entende o mal e, entendendo, o expressa e sublima de alguma maneira, exatamente como dizia Thomas Mann, que algumas previsões a gente faz justamente para que não aconteçam.

Mas, e se ninguém quer ver o mal? Aí vai acontecer mesmo. Se você não quer ver, você deixa tudo atuando na esfera da mecanicidade, das causas que já estão atuando independentemente de você e que vão chegar fatalmente às suas finalidades. Se você percebe e absorve este impacto, é possível que a sua tomada de consciência tenha uma função catártica capaz de beneficiar muitos seres humanos em torno. É por isso que em geral profetas e grandes místicos são pessoas que tendem a ser mais tristes do que alegres, porque sabem o que está se passando. Podem antever certos resultados que os outros não antevêem e já sabem o que vai dar errado. Maomé olhava para um sujeito e sabia que o sujeito já estava no inferno, sabia que não podia fazer nada por ele, então chorava. Mas esta é uma última instância. Não é preciso antever o sujeito no inferno, mas um sujeito na câmara de gás ou num pelotão de fuzilamento é impossível que não haja ninguém capaz de antever. Entretanto, nas situações em que esse mal se aproxima, muitos esperam para tomar consciência no último momento. Toda tragédia tem esse elemento: ver ou não querer ver. Na tragédia antiga, esse não ver não envolve culpa. A tragédia antiga parte do princípio de que existe uma certa limitação da inteligência humana. É um caso extremo, onde, mesmo agindo no melhor de suas capacidades, o homem não conseguiria entender, então ele se torna uma vítima inocente do jogo cósmico. Na esfera cristã, já não se admite isso e sempre há um sentido culposo, e por isso mesmo o gênero trágico não floresce muito aqui. No mundo cristão, o que não quis ver tem culpa. Sempre há uma margem de manobra: as coisas poderiam ser de outra maneira. Pode haver um desenlace horrível, mas não trágico, porque não fatal. Foi uma escolha errada. De maneira aparentemente paradoxal, a culpa restaura a liberdade, porque ao assumir a culpa o sujeito vence, de certo modo, o destino fatal. As pessoas que hoje falam levianamente contra o senso cristão da culpa não entendem ou fingem não entender que a única alternativa a isso é o retorno à fatalidade trágica grega onde o inocente é sempre condenado. Os inimigos do sentimento de culpa são inimigos da liberdade. Mas há maneiras distintas de entender, por exemplo, a história de Adão. Adão erra por fatalidade, ou tinha margem de manobra? Ele podia enxergar o que estava acontecendo ou foi uma pobre vítima dos acontecimentos? A interpretação muçulmana diz que foi um simples lapso intelectual, por isso não aceitam o pecado original: ali onde Adão errou qualquer um erraria. Mas é preciso compreender que a perspectiva islâmica, nesse caso, está referida à espécie humana e não ao indivíduo. No plano das ações individuais existe culpa, sim. O que o islamismo professa no fundo é apenas que o pecado de Adão foi de ordem cognitiva, e não propriamente moral. Epílogo em junho de 1997 A gravação desta aula termina assim, abruptamente. Mas lembro que encerrei dizendo que Aurora, obra de um cineasta que foi um profundo estudioso da filosofia, da religião, do simbolismo e do esoterismo, era um cume de realização artística que o

cinema nunca havia ultrapassado, precisamente porque nele as imagens condensavam diretamente e sem qualquer linguagem enigmática os problemas mais altos da metafísica do destino e da providência, com uma sutileza digna de Sto. Agostinho e Leibniz. Continuo dizendo isto e Friedrich Wilhelm Murnau continua sendo para mim o maior diretor de cinema de todos os tempos, até prova em contrário.

Apostilas do Seminário de Filosofia - 14

A unidade de sujeito e Resumo do argumento fundamental contra o subjetivismo moderno

objeto

Seminário de Filosofia, 15 de julho de 1999.

O ciclo filosófico moderno começa com o giro de atenção que Descartes imprime ao pensamento, desviando-o da certeza "ingênua" do mundo exterior para o terreno supostamente firme do cogito. Daí por diante, o sujeito, considerado enquanto alma solitária que dialoga consigo mesma num ambiente vazio de seres e coisas, será tomado como o ponto arquimédico de toda meditação filosófica. O sujeito solitário está aí ligado diretamente à universalidade de Deus, e, garantido por esta, pode extrair de si mesmo, por dedução, a ciência inteira de Deus, do cosmos e dele próprio. É o que fará Spinoza, levando às últimas conseqüências o dedutivismo solitário e o desprezo pela experiência do mundo exterior. É verdade que, em reação a esse extremismo solipsístico, surge na Inglaterra a escola dita empirista, que, de Locke a Hume, não admitirá outro ponto de apoio senão as sensações, consideradas atomísticamente, de cuja somatória indutiva (o único procedimento admitido) não se poderá obter a certeza de verdades universais ou mesmo a da unidade do próprio eu pensante. Aparentemente, esta escola rejeita o primado do eu e nos coloca, portanto, fora do domínio cartesiano. Mas isto é uma impressão falsa. Na verdade, o empirismo não enfoca os objetos do mundo exterior senão como ocasião das sensações; e como as sensações se dão no sujeito, isso resulta em nunca encarar esses objetos diretamente, senão sempre pelo viés do sujeito. O subjetivismo é a marca de toda a filosofia dita moderna, pouco diferindo nisto as duas escolas rivais, racionalista e empirista. Tanto assim é que a confluência final dessas duas escolas, realizada na filosofia crítica de Kant, resulta em fazer do sujeito, por intermédio das formas a priori, o molde e razão

da própria unidade do mundo. O objeto enquanto tal recua para a distância inatingível da "coisa-em-si", definida, por sua vez, como aquilo que o objeto é independentemente do que o sujeito sabe dele, isto é, definida, ainda uma vez, pela sua dependência (ainda que negativa) do sujeito. A prioridade do sujeito em relação ao objeto é, pois, a constante inabalável do ciclo filosófico moderno. Se quisermos portanto ir um passo além, só nos restam dois caminhos. O primeiro é negar o sujeito mesmo, esfarelando até mesmo a unidade puramente subjetiva que nos foi legada por Kant. Este é o caminho seguido pela psicanálise, pela filosofia analítica, pelo desconstrucionismo. O segundo caminho é restaurar o estatuto ontológico do objeto. Husserl tentou este caminho, mas, ainda prisioneiro do cartesianismo, voltou a tomar como ponto de partida a consciência solipsística e nunca mais pôde se livrar das conseqüências inapelavelmente idealistas a que este enfoque conduz. O caminho para a restauração do objeto deve, no meu entender, tomar uma direção radicalmente diversa. Esse caminho consiste em negar desde logo a prioridade gnoseológica do sujeito mediante a simples constatação de queele não poderia ser sujeito se não fosse também objeto. Para prosseguirmos nesta linha de considerações é necessário no entanto definir desde logo o que se entende por sujeito e por objeto, e as definições que proponho são as mais simples que se pode imaginar: sujeito (do conhecimento) é o que recebe informações, objeto é aquilo que as emite, ao menos no entender do sujeito. Assim definidos os termos, compreendemos de imediato que o sujeito, consideradoapenas e estritamente enquanto sujeito, distinto e separado de todo objeto, nada poderia saber, pois não teria nem a si próprio como objeto do seu conhecimento. O ego cogitans cartesiano não pode ser, pois, puro sujeito, na medida em que algo sabe de si e tem portanto a si próprio como objeto. De modo mais geral, nenhum puro sujeito é concebível, pois este somente receberia informações sem emiti-las nunca, e portanto nada poderia saber a respeito do que quer que fosse, nem mesmo a respeito de si próprio, e, no instante mesmo em que se definisse como puro sujeito cognoscente estaria afirmando eo ipso que nada conhece, não podendo, pois, ser sujeito cognoscente. De outro lado, e complementarmente, é inconcebível o puro objeto, que apenas emitisse informações sem receber nenhuma, pois isto equivaleria a um puro agir sem qualquerfeed back, o que é contraditório com a noção mesma de continuidade da ação no tempo e só poderia cumprir-se na hipótese, intrinsecamente absurda, de uma ação sem duração. Ora, se o sujeito cognoscente não pode ser o que é sem ser também objeto, e se de outro lado o objeto não pode ser um radical não-sujeito, a conclusão fatal é que a condição de sujeito e a de objeto se exigem reciprocamente e não se separam senão in verbis. Na melhor das hipóteses, sujeito e objeto são nomes de funções que, porém, para ser

exercidas, se requerem mutuamente não só no sujeito como também no objeto, possuindo cada um deles ambas as funções e só podendo ser sujeito e objeto um para o outro porque cada um deles é em si ambas as coisas. Até o momento, todas as tentativas de reunir sujeito e objeto — como por exemplo no realismo escolástico ou na fenomenologia — tentaram fazê-lo na relação entre um sujeito dado e um objeto dado. Mas é evidente que esta união não se poderia realizar no plano da mera relação se já não estivesse dada na constituição mesma do sujeito (que é inseparavelmente objeto), bem como na do objeto (que é inseparavelmente sujeito). Ora, toda dúvida cética com relação ao conhecimento humano surge precisamente da hipótese de um hiato entre sujeito e objeto, hipótese que, não podendo ser provada, não pode também ser contestada a partir do momento em que, no estudo dessa relação, se tome por ponto de partida o sujeito cognoscente em estado puro (solipsístico) e se tomem os termos da relação como se fossem, um, o puro sujeito cognoscente, o outro, o puro objeto conhecido. Não há aqui como saltar o abismo entre a representação, que estará sempre e fatalmente no sujeito, e o objeto representado que estará sempre e por hipótese fora dele. Mas, se compreendemos que a união de sujeito e objeto não deve ser buscada na relação e sim, antes dela, na constituição de cada um deles — ou seja, nas constituições respectivas de dois entes que são, cada um por si, inseparavelmente sujeitos e objetos — , então compreendemos também que uma união que está na constituição mesma de um ente não pode ser desfeita pela simples relação que ele contraia com um outro ente; e que, ao contrário, esta relação não pode fazer senão manifestar, pela reciprocidade das informações emitidas e recebidas, a união indissolúvel de sujeito e objeto, agora considerada não em cada um desses entes tomado separadamente, mas na inter-relação do subjetivo-objetivo de um com o subjetivo-objetivo de outro. Esta relação é o que denominamos conhecimento, e ela é essencialmente união de sujeito e objeto, não cabendo operar sobre ela a disjunção céptica senão in verbis. Eis aí, de um relance, toda dúvida céptica reduzida a mero jogo de palavras. De quebra, eis aí derrubadas para sempre as muralhas da prisão subjetivista e, junto com elas, as colunas do palácio kantiano. Que aqueles que têm olhos para ver consigam perceber as tremendas conseqüências filosóficas dessas constações, e que compreendam residir aí o verdadeiro princípio de toda ciência.

16/07/99

Apostilas do Seminário de Filosofia - 15

Inteligência e Duas aulas do Seminário de Filosofia, Curitiba, agosto de 1994

verdade

Transcrição de Luciane Amato, não revista pelo autor.

1. Definição Inteligência, no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação visual, a aptidão musical ou qualquer outro tipo de habilidade em especial. Quer dizer, da maneira mais geral e abrangente, a capacidade de apreender a verdade. A inteligência não consiste nem mesmo em pensar. Quando pensamos, mas o nosso pensamento não capta propriamente o que é verdade naquilo que pensa, então o que está em ação nesse pensar não é propriamente a inteligência, no rigor do termo, mas apenas o desejo frustrado de inteligir ou mesmo o puro automatismo de um pensar ininteligente. O pensar e o inteligir são atividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes você pensa, pensa, e não intelige nada, e outras vezes intelige sem ter pensado, numa súbita fulguração intuitiva. A inteligência é um órgão — digamos assim: um órgão — que só serve para isto: captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo — ou intuitivo — instantâneo, no qual você capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção. Outras vezes há uma longa preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e no fim você não capta coisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza. A inteligência está na realização da finalidade, e não na natureza dos meios empregados. E se a finalidade dos meios de conhecimento é conhecer, e se o conhecimento só é conhecimento em sentido pleno se conhece a verdade, então a definição de inteligência é:a potência de conhecer a verdade por qualquer meio que seja. O conceito da verdade, e as discussões todas que suscita, podem ficar para outra ocasião. Por enquanto, e tomando provisoriamente a palavra "verdade" em seu sentido vulgar de coincidência entre fato e idéia, bastam estas distinções elementares para nos levarem a perceber o quanto é errônea a direção tomada pela atual teoria das "inteligências múltiplas", que dissolve a noção mesma de inteligência numa coleção de habilidades — que vão desde o raciocínio matemático até a destreza física e o traquejo social —, sem notar que todas estas capacidades e outras quantas similares são meios e que a inteligência não é um meio, mas o ato mesmo, o resultado a que tendem esses meios e para o qual nenhum deles é por si — nem a soma deles todos é por si —

condição suficiente. A teoria das inteligências múltiplas surgiu como uma reação contra a teoria do QI, que por sua vez identificava a inteligência, exclusivamente, com a habilidade verbal, matemática e imaginativo-espacial. Mas é um caso típico de substituição de uma falsidade por outra. Sejam poucas ou muitas as habilidades com que se identifica a inteligência, o erro é o mesmo: confundir a inteligência com os instrumentos de que se serve. Essa confusão acontece porque a maior parte das pessoas se conhece muito mal, mesmo nas coisas práticas e nos aspectos mais óbvios da vida. Quanto maior não seria sua dificuldade de captar a diferença sutil entre os atos representativos e a inteligência! Vendo sempre a inteligência atuar através do pensamento, da memória, da imaginação, do sentimento, confundem portanto o canal com aquilo que por ele passa, o veículo com o passageiro, e tomam por "inteligência" os meros atos mentais. Esse equívoco acabou por ser oficializado e legitimado pela educação. De modo geral, todas as formas de ensino visam a incrementar as habilidades em que a inteligência se apóia, como a memória, a imaginação, o raciocínio etc., e não dão a menor importância a inteligência enquanto tal. O fato é que a entrada em cena dessas outras faculdades não acarreta necessariamente a da inteligência. Podemos desenvolver bastante o raciocínio verbal, ou a imaginação visual, ou a memória, ou a aptidão artística, sem que haja efetivamente uma inteligência dirigindo os seus passos — a prova é que várias dessas aptidões são mais desenvolvidas em certos retardados mentais do que no comum das pessoas. Aliás, se é através do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos. Do mesmo modo, às vezes a imaginação nos leva à compreensão real de alguma coisa, mas às vezes nos leva para longe da verdade. O desenvolvimento destas faculdades, imaginação, memória, raciocínio etc., não implica portanto necessariamente o da inteligência; também é verdade o vice-versa: que a inteligência é independente desses outros processos, que lhe servem de canais, instrumentos e ocasiões e nada mais. Mas o vice-versa não deve ser tomado em sentido rigoroso, pois uma inteligência resolutamente decidida a descobrir a verdade sobre alguma coisa acaba em geral encontrando os canais mentais pelos quais chegar ao seu objetivo, ou seja, ela desenvolve as "faculdades" de que necessita. Sem excluir portanto que haja casos de inteligências mesmo superiores mas carentes de meios ou canais específicos de atuação, digo que são exceções e raridades que antes confirmam a regra: o desenvolvimento dos meios não implica o da inteligência, o da inteligência leva quase que necessariamente à conquista dos meios. Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, também entendemos que o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente desenvolvidas, embora tudo isto haja efetivamente no ser humano. Pois pensar, um macaco também pensa: ele completa um silogismo e até encadeia silogismos num raciocínio relativamente perfeito. Imaginação, até um gato possui: os gatos sonham. Por este caminho não encontraremos a diferença específica humana, aquilo que nos torna homens em vez de bichos. E, se é importante arraigar o homem no

reino animal, para não fazer dele um ser angélico sem pés no solo, também é importante saber distingui-lo de uma tartaruga ou de um molusco por alguma diferença que não seja meramente quantitativa e acidental. O que nos torna humanos é o fato de que tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos, recordamos, somos capazes de vê-lo como um conjunto e, com relação a este conjunto, podemos dizer um sim ou um não, podemos dizer: "É verdadeiro", ou: "É falso". Somos capazes de julgar a veracidade ou falsidade detudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer. Mas, dirá o velho Pilatos em nós, quid est Veritas? Cada um de nós é um juiz romano, corrompido até a medula, a fazer de conta que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. A verdade da qual alegas nada saber, infausto Pôncio, a verdade é o quid — esse mesmo quid que, se desconhecesses, não poderias usar como medida de aferição para o termo "verdade". Se pergunto quê é alguma coisa, se ignoro mesmo o que é alguma coisa, é porque a coisa que se me oferece nesse instante não cumpre, não atende perfeitamente a condição exigida na palavra quê — aquela consistência, aquela coesão do estar, do agir e do padecer, aquela patência e sobretudo aquela fatalidade, aquele não-ser-de-outro-modo, aquela impositiva ausência de perguntas — e da capacidade de fazer perguntas — que me sobrevém quando sei o quê. Ecce veritas. É o que basta por enquanto, sem prejuízo de posteriores discussões e aprofundamentos.

2. Não existe inteligência artificial

Hoje em dia, quando se fala de "inteligência artificial", mais certo seria dizer pensamento artificial, ou talvez imaginaçãoartificial, porque uma determinada sequência de pensamentos, um conjunto de operações da mente, pode ser imitado de várias maneiras. Um conjunto é imitado, por exemplo, na escrita. A escrita é uma imitação gráfica de sons, que por sua vez imitam idéias, que por sua vez imitam formas, funções e relações de coisas. A escrita foi a primeira forma de pensamento artificial. Toda e qualquer forma de registro que o homem use já é um tipo de pensamento artificial, uma vez que implica um código de conversões e permutações, e neste sentido um programa de computador não é muito diferente, por exemplo, de uma regra de jogo: como no jogo de xadrez, onde se concebe uma sequência de operações com muitas alternativas, cristalizadas num determinado esquema que pode ser imitado, repetido ou variado segundo um algoritmo básico. Existem muitas formas de pensamento artificial, ou de imaginação artificial. Porém a inteligência, propriamente dita, não tem como ser artificial. O pensamento artificial é essencialmente uma imitação de atos de pensamento segundo a fórmula das suas sequências e combinações. Do mesmo modo podemos imitar a imaginação e a memória, se em vez de utilizar uma correspondência biunívoca entre signo e significado recorrermos a uma rede de correspondências analógicas. Dá na mesma: em ambos os casos, trata-se de imitar um algoritmo, a fórmula de uma

sequência ou rede de combinações, que por sua vez imitam as operações reais da mente. Acontece que a inteligência não é uma "operação da mente"; ela é o nome que damos a uma determinadaqualidade do resultado dessas operações, pouco importando qual a faculdade que as realizou ou qual o código empregado. É legítimo dizer que um indivíduo inteligiu alguma coisa somente quando ele captou a verdade dessa coisa, seja pelo raciocínio, seja pela imaginação ou seja lá pelo caminho que for. Até mesmo o sentimento intelige, quando ama o que é verdadeiramente amável e odeia o que é verdadeiramente odioso: há uma inteligência do sentimento, como há uma burrice do sentimento. A inteligência não reside na mente, mas num certo tipo de relação entre o ato mental e o seu objeto, relação que denominamos "veracidade" do conteúdo desse ato mental ( notem bem: veracidade do conteúdo, e não do ato mesmo ). Aqui alguém poderia objetar que, quando um ato de pensamento artificial chega a um resultado verdadeiro, por exemplo quando um computador nos assegura que 2 + 2 = 4, este é um ato de inteligência, uma vez que nos dá uma verdade. A diferença, aqui, é a seguinte: o computador nãointelige que 2 + 2 = 4, mas apenas realiza as operações que dão por resultado 4, segundo um programa ou algoritmo pré-estabelecido. Se ele for programado segundo a regra de que 2 + 2 = 5, ele não somente dará sempre este resultado, mas ainda o generalizará para todos os casos similares, segundo a regra 2a + 2a = 5a. A inteligência não consiste somente em atinar com um resultado verdadeiro, mas em admitir esse resultado como verdadeiro. Que significa "admitir"? Significa, primeiro, estar livre para preferir um resultado falso ( um computador pode ser programado para preferir os resultados falsos num certo número de ocasiões, mas sempre segundo um padrão pré-estabelecido ). Significa, em segundo lugar, crer nesse resultado, isto é, assumir uma responsabilidade pessoal pela afirmação dele e pelas consequências que dele derivem. A inteligência, neste sentido, só é admissível em seres livres e responsáveis, e o primeiro ser livre e responsável que conhecemos na escala dos viventes é o homem: nenhum ser abaixo dele possui inteligência, e se há seres superiores ao homem é um problema que não nos interessa no momento e cuja solução não interferiria no que estamos examinando aqui.A inteligência é a relação que se estabelece entre o homem e a verdade, uma relação que só o homem tem com a verdade, e que só tem no momento em que intelige e admite a verdade, já que ele pode tornar-se ininteligente no instante seguinte, quando a esquece ou renega. Neste sentido, o resultado da conta de 2 + 2 que aparece na tela do computador é uma verdade, mas uma verdade que estáno objeto e não ainda na inteligência; essa verdade está na tela como a verdadeira estrutura mineralógica de uma pedra está na pedra ou como a verdadeira fisiologia do animal está no animal: são verdades latentes, que jazem na obscuridade do mundo objetivo aguardando o instante em que se atualizarão na inteligência humana. Do mesmo modo, podemos pensar uma idéia verdadeira sem nos darmos conta de que é verdadeira; neste caso, a verdade está no pensamento como a verdade da pedra está na pedra: o ato de inteligência só se cumpre no instante em que percebemos e admitimos essa verdade como verdade. A inteligência é, neste sentido, mais "interior" a nós do que o pensamento. O pensamento, para nós, pode ser objeto. A

inteligência, não. O ato de reflexão pelo qual retornamos a um pensamento para examiná-lo ou julgá-lo é um outro pensamento, de conteúdo diferente do primeiro. Mas a recordação de um ato de inteligência é o mesmíssimo ato de inteligência, reforçado e revivificado, numa nova afirmação de si mesmo. Não posso recordar o conteúdo de um ato de intelecção sem inteligir novamente os mesmosconteúdos, quase sempre com redobrada força de evidência. Se definirmos o pensamento artificial como a imitação, por sinais eletrônicos, de certos atos de pensamento, entenderemos que o pensamento artificial é pensamento, que a imitação de pensamento é pensamento, pois pensar, afinal, é apenas usar sinais ou signos para representar certos dados internos ou externos. Mas a imitação de inteligência não é inteligência, de vez que só há inteligência no ato real pelo qual um ente humano real apreende realmente uma verdade no instante em que a apreende; na imitação teríamos somente um sujeito hipotético apreendendo hipoteticamente uma hipotética verdade, cuja veracidade ele não pode afirmar senão hipoteticamente. Tudo isto seria apenas pensamento, não inteligência. A inteligência somente se exerce perante uma situação real, concreta: o inteligir é concentrar o foco da atenção numa evidência presente. Não se confunde com o meramente pensar uma verdade, pois consiste em captar a verdade desse pensamento; nem se confunde com o perceber uma cor, uma forma, pois consiste em apreender a veracidade dessa cor ou dessa forma; nem com o recordar ou imaginar uma figura, pois consiste em assumir a veracidade dessa recordação ou imaginação. Por isto não é possível imitar um ato de inteligência, pois sua imitação não poderia ser outra coisa senão a cópia do pensamento, ou da recordação, ou da imagem que lhe serviu de canal; mas, se esta cópia fosse acompanhada da captação de sua veracidade, não seria uma cópia, e sim o ato mesmo, revivido em modo pleno; e, se desacompanhado dessa captação, seria cópia do pensamento ou da imaginação apenas, e não do ato de inteligência. E esse pensamento ou essa imaginação, se verdadeiros em seu conteúdo, teriam apenas a verdade de um objeto, a verdade latente de uma pedra ou de um cálculo exibido na tela do computador, aguardando ser iluminada pelo ato de inteligência que a transformaria em verdade atual, efetiva, conhecida. Um computador só pode julgar veracidade ou falsidade dentro de certos parâmetros que já estejam no programa dele, ou seja, falsidade ou veracidade relativas a um código dado de antemão, código esse que pode ser inteiramente convencional. Isto é, ele não julga a veracidade, mas apenas a logicidade das conclusões, sem poder por si mesmo estabelecer premissas ou princípios. Ora, a logicidade, a rigor, nada tem a ver com a veracidade, pois é apenas uma relação entre proposições, e não a relação entre uma proposição e a experiência real. Quando digo experiência real, não me refiro apenas à experiência cotidiana dos cinco sentidos, mas ao campo total da experiência humana, onde a experiência científica feita através de aparelhos e submetida a medições rigorosas se encaixa apenas como uma modalidade entre uma infinidade de outras. A inteligência, quando julga veracidade ou falsidade, pode fazê-lo em termos absolutos e incondicionais, independentemente dos parâmetros usados e da referência a um ou outro

campo determinado da experiência; e é justamente este conhecimento incondicional da verdade incondicional que pode fundar em seguida os parâmetros da condicionalidade ou relatividade, assim como legitimar filosoficamente as divisões de campos de experiência, como por exemplo na delimitação das esferas das várias ciências.

3. Evidência e certeza O termo "intuição" designa em filosofia um conhecimento direto, uma intelecção maximamente evidente ( o que não significa que deva ser confundida com o sentimento subjetivo de certeza ). Exemplo de um ato de inteligência intuitiva: o fato de você estar aqui neste momento é uma certeza absoluta e incondicional, o que não quer dizer que você não possa duvidar dela, que você não possa até mesmo, por um jogo engenhoso de imaginação, ter o sentimento da certeza de estar em outro lugar; significa apenas que você só duvidará dela e só acreditará estar em outro lugar se você sentir o seu campo de experiência como dividido em blocos estanques, se você perder o senso da unidade do campo da experiência, o que só acontece na fantasia, no estado hipnótico ou na esquizofrenia. Quando sua inteligência admite que você está aqui, você está admitindo como verdadeira uma determinada interpretação que você faz do conjunto das informações que você tem neste momento, mas não só a respeito deste momento e sim a respeito do encaixe entre ele e os momentos que o antecederam e os que se seguirão. Você sabe que está aqui não só por causa das informações sensíveis que recebe a respeito do ambiente, informações auditivas, tácteis, etc., mas também porque você sabe que estas informações são coerentes com um passado ( você se lembra de ter vindo até aqui ), são coerentes com um projeto de futuro, ou seja, com uma idéia que você tem a respeito do propósito com que veio aqui; e tudo isto forma um sistema tão coeso, tão inseparável, que a respeito deste conjunto você pronuncia o julgamento de que isto é verdade: Você sabe que você está aqui. No entanto, não seria impensável que, estando aqui, você imaginasse estar em outro lugar, e que até mesmo se persuadisse e, um tanto auto-hipnoticamente, "sentisse" que está num outro lugar. Tudo isto pode ser produzido; porém, se o senso da unidade do campo da sua experiência ainda funciona, algo lhe dirá: isto é falso. Por que? Porque as informações que dizem que você está aqui vêm todas juntas; ao passo que as que você está produzindo para dizer que está em outro lugar vêm por partes. Examine. O quê imaginou você a respeito do outro lugar onde supõe estar? o som? o visual? Um ou outro? Certamente não foram os dois exatamente no mesmo tempo e em proporção coerente. O motivo, o antecedente temporal da sua presença ali, eram-lhe tão claros quanto as sensações visuais ou auditivas? Não: mas as informações que você recebe aqui sobre sua presença vêm todas coladas umas às outras. Você não pega primeiro o visual, depois o auditivo, depois o táctil, ou seja, você não compõe este ambiente, ele lhe vem todo junto; e, embora você, por abstração, possa momentaneamente prestar atenção mais a um aspecto que a outro, você sabe e se recorda de que os aspectos preteridos estão aí presentes e podem ser atualizados na percepção a qualquer momento, sem um trabalho interior de construção voluntária ( que

você lhe seria obrigatório de modo a completar a imagem do outro lugar suposto, onde supostamente estaria ou se sentisse estar enquanto está de fato aqui ). Esta certeza que você tem de estar aqui é o que se chamaevidência. Uma evidência é um conhecimento inegável, e até de certo modo indestrutível, porque, se você dissesse que não está aqui, a quem você o diria? A quem está lá, ou a quem está aqui? O ato mesmo de você dizer que não está aqui subentende que está. Existe, em certos pensamentos que temos, esse caráter de veracidade, mas não sabemos definir bem em quê ele consiste; sabemos apenas que conferimos esta veracidade a alguns pensamentos e que a negamos a outros. Por exemplo, aqui negamos veracidade ao pensamento de que não estamos aqui. É a esta faculdade — a que diz "sim" ou "não" aos pensamentos, imaginações e sentimentos, que os julga como totalidade e diz "é verdadeiro" ou é "é falso" — que chamamos de inteligência.

4. Inteligência e vontade A inteligência, em suma, é o senso da verdade, e uma inteligência apta, hábil ou forte é uma inteligência que está acostumada a discernir a verdade e a falsidade em todas as circunstâncias da vida, a aceitar a verdade e permanecer nela. Com isto quero dizer que a inteligência não se esgota no mero aspecto cognitivo: se a potência de conhecer a verdade constitui a semente da inteligência, esta semente só floresce por iniciativa da vontade, e também pela vontade ela enfraquece e morre. Vontade significa o exercício da liberdade. Quando você capta que algo é verdadeiro, significa que vocêaceitou que aquilo é verdadeiro, e quando você capta que é falso, significa que você o rejeitou. Ora, quem aceita ou rejeita não é uma faculdade em particular, mas é você inteiro, num ato de vontade livre. Isto significa que a inteligência é indissoluvelmente a síntese de uma aptidão cognitiva e de uma vontade de conhecer. Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de, antes de mais nada, acostumar o aluno a desejar a verdade em todas as circunstâncias e não fugir dela. Portanto o exercício da inteligência possui necessariamente um lado ético, moral. Platão dizia: "Verdade conhecida é verdade obedecida." Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva, nada impediria que ela fosse exercida igualmente bem pelos bons e pelos maus, pelos sinceros e pelos fingidos, pelos honestos e pelos safados. Na realidade as coisas não se passam assim, e a desonestidade interior produz necessariamente o enfraquecimento da inteligência, que acaba sendo substituída por uma espécie de astúcia, de maldade engenhosa. A astúcia não consiste em captar a verdade, mas em captar — sem dúvida com veracidade — qual a mentira mais eficiente em cada ocasião. O astucioso é eficaz, mas está condenado a falhar ante situações das quais não possa se safar mediante algum subterfúgio, que exijam um confronto com a verdade. A conexão entre a inteligência e a bondade é reconhecida por todos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação,

do lado do objeto, entre a verdade e o bem. Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligência uma faculdade "neutra", capaz de funcionar tão bem nos bons quanto nos maus como a respiração ou a digestão, é um mundo francamente mau, que se orgulha da sua maldade como de uma conquista da ciência, pela qual ele se eleva acima das civilizações do passado. Mauriac notava, "nos seres decaídos, essa destreza para embelezar sua decadência. É a derradeira enfermidade a que o homem pode chegar: quando sua sujeira o deslumbra como um diamante". A conexão a que me refiro surge com peculiar clareza quando examinamos os seguintes fatos. Com frequência nossas ações não são acompanhadas de palavras que as expliquem, nem mesmo interiormente; ou seja, somos capazes de agir de determinadas maneiras, explicando esses atos de maneiras exatamente inversas, precisamente porque as motivações verdadeiras, permanecendo inexpressas e mudas, se furtam ao julgamento consciente. Isso faz com que, pelo menos subconscientemente, alimentemos um discurso duplo. A partir do momento em que você admite que uma coisa é verdadeira, mas procede, mesmo em segredo, mesmo interiormente, como se ela não o fosse, está mantendo um discurso duplo: num plano afirma uma coisa, e noutro afirma outra coisa. A verdade tem poucas oportunidades de surgir para nós com toda a clareza, e a mente humana funciona de uma forma que, quando você nega uma determinada informação, o subconsciente suprime todas as informações análogas, de modo que, quando você diz para si mesmo uma determinada mentira que lhe é conveniente, por motivos práticos ou psicológicos, ou para se preservar de sentimentos desagradáveis, no mesmo instante em que você suprime esta informação você suprime uma série de outras que lhe seriam úteis e que você não tencionava suprimir. Por isto a mentira interior é sempre danosa à inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão e substituí-lo por um sistema completo de erros e mentiras.Quando nos habituamos a suprimir a verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e atos, esta supressão nunca fica só naquele setor onde mexemos, mas se alastra para outros territórios em volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, nos tornamos incapazes para inteligir muitas outras também. A defesa contra verdades incômodas se transforma também numa defesa contra a verdade em geral, contra todas as verdades. Mais tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência. Noto em muitos intelectuais de hoje uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando desejam aceitá-la, tem de metê-la num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades auxiliares, numa inútil excrescência ornamental, tal como os seios que crescem em algumas mulheres após a menopausa. Muitas dessas inteligências lesadas alcançam sucesso nas profissões intelectuais.

5. Pequenas e grandes verdades

Quando se fala em público a palavra "verdade", no ambiente cínico de hoje em dia, logo aparece algum espertinho repetindo a pergunta de Pôncio Pilatos e desfiando ante nós, como se fossem a maior novidade, os velhos argumentos céticos, cuja refutação é classicamente o primeiro grau do aprendizado filosófico. Muitas dessas pessoas têm da palavra "verdade" uma noção um tanto posada, teatral, empostada e romantizada. Só estão dispostas a admitir que o homem pode conhecer a verdade caso alguém lhes mostre a verdade total, universal e completa a respeito das questões mais difíceis, e, como ninguém satisfaz a esta exigência, elas concluem, com o ceticismo clássico, que toda verdade é incognoscível. Mas esse tipo de exigência não expressa uma busca sincera da verdade. A busca sincera vai das verdades humildes e corriqueiras às verdades supremas, aceitando aquelas como caminho para estas, sem exigir desde logo, despoticamente, as respostas finais a todas as perguntas. Um exemplo de verdade humilde, porém segura, firme, da qual você pode partir como um modelo para avaliar outras possíveis verdades, é dado por aquilo que você sabe — e que somente você sabe — a respeito da sua própria história, sobretudo da história interior de seus sentimentos, motivações, desejos, etc. Se houvesse um ensinamento voltado ao desenvolvimento da inteligência, ele teria de começar por propor ao aluno, ao estudante, principiante ou postulante, uma espécie de revisão das suas memórias, ou seja, contar sua história direito (analogamente ao que se faz em psicanálise). Tudo o que é verdadeiro tem um caráter de coesão, pois uma informação verdadeira não pode ser artificialmente isolada de uma outra informação que também seja verdadeira e que tenha com ela uma relação de causa e efeito, de contiguidade, de semelhança e diferença, de complementaridade, etc.; então isto quer dizer que se você admite um A e um B, você vai ter de admitir um C, D, E, F, etc. A verdade tem sempre um caráter sistêmico, orgânico, razão pela qual sua captação pela inteligência pessoal requer uma abertura da personalidade, uma predisposição a aceitar todas as verdades que como tal se revelem, sem nenhuma seleção prévia de verdades convenientes. 6. Demissão dos intelectuais O que aconteceria se, numa determinada sociedade, existisse um grande número de pessoas capazes de julgar por si mesmas e de perceber a verdade, não sobre todos os pontos, mas sobre os pontos de maior interesse para a sociedade, ou sobre os que são mais urgentes? Haveria mais sensatez, os debates levariam a conclusões mais justas, as decisões teriam um sentido mais realista. Agora, numa sociedade onde todos estão se persuadindo uns aos outros de coisas de que eles mesmos não estão persuadidos, onde todos estão procurando se enganar, ou onde todos estão procurando ajuda dos outros para se enganar mais facilmente a si mesmos, todas as discussões versam sobre fantasmas, as decisões se esvanecem em meros sonhos, as frustrações levam o povo a um estado de exasperação do qual ele procura fugir mediante novas fantasias, e assim por diante. Isto acontece no campo religioso, político, moral, econômico e até no campo científico. Podemos partir para uma outra definicão, e dizer que um país tem uma

cultura própria quando ele tem um número suficiente de pessoas capazes de perceber a verdade por si mesmas, e que não precisam ser persuadidas por ninguém. Estas pessoas funcionam como uma espécie de fiscais da inteligência coletiva. Em nosso país o número de pessoas assim é escandalosamente reduzido. As pessoas encarregadas de perceber a verdade por si mesmas devem ter uma inteligência treinada para isto, devem ter uma inteligência dócil à verdade e ser as primeiras a perceber e compreender o que se passa. Isto é que constitui uma inteligência nacional, uma intelectualidade nacional. A intelectualidade autêntica não é constituída necessariamente pelas pessoas que exercem profissões ligadas à cultura ou à inteligência, mas sim pelas pessoas que, exercendo ou não essas profissões, realizam as ações correspondentes a elas. Não é preciso ir muito longe para dizer que a sorte global de um país depende de que haja uma camada de pessoas assim, para poder, nos momentos de dificuldade, dar esta contribuição modesta que é simplesmente dizer a verdade. No Brasil temos um número assombroso de pessoas que trabalham em atividades culturais, escritores, professores, artistas, em geral subvencionados pelo governo, mas que nem de longe pensam em cumprir as obrigações elementares da vida intelectual; tudo o que fazem é apoiar-se uns aos outros num discurso coletivo, reafirmar as mesmas crenças de origem puramente egoista e subjetivista, expressar desejos e preconceitos coletivos e pessoais, promover a moda. Essas pessoas vivem reclamando de que neste país há poucas verbas para a cultura. Mas, para fazer isso que elas chamam de cultura, já recebem muito mais dinheiro do que merecem. Os cineastas, diretores de teatro, etc., constituem uma casta privilegiada, que é estipendiada pelo governo para exibir em público emoções baratas, afetar indignação e posar como "pessoas maravilhosas" em apartamentos da av. Vieira Souto. É claro que os povos sempre têm a liberdade de escolher entre a verdade e a mentira, e mesmo sabendo da verdade eles podem novamente se enganar a si mesmos; porém a possibilidade de que se enganem é muito maior quando ninguém lhes diz a verdade jamais. O que acontece quando pessoas que exercem profissões intelectuais ou culturais somente as exercem no sentido de fazer delas um instrumento de apoio para sua própria mentira interior, ou seja, exercem esses trabalhos no sentido puramente oratório ou retórico de induzir o povo a erros e ilusões? Afirmo, peremptoriamente, que este é o caso da intelectualidade brasileira, que na sua quase totalidade se utiliza de profissões culturais para fazer com que povo e a opinião brasileira a sirvam, confirmando suas crenças, das quais ela não tem certeza pessoal alguma, e para as quais justamente por isso procura angariar um apoio coletivo. Existem setores onde é possível uma insegurança muito vasta e a livre troca de opiniões de valor simliar, mas em outros setores não. Porém o fato é que quando a intelectualidade como um todo se coloca perante o público numa atitude de persuasão lisonjeira, então a vida intelectual está sendo prostituída, e quando ela é prostituída, pergunto: como podemos desejar mais ética, mais honestidade, na política ou nos negócios, se amplas faixas de população atuante não têm a menor noção do que é verdadeiro ou falso? Como é que a intelectualidade pode ao mesmo tempo pregar um relativismo dissolvente, onde os critérios do verdadeiro e do falso se diluem a ponto de se tornarem indistinguíveis, e ao

mesmo tempo exigir que os políticos sejam honestos e digam a verdade ao povo? As pessoas, nessa situação, não poderiam ser honestas nem mesmo que quisessem, porque não sabem o que é certo, não têm consciência moral, são grosseiras e insensíveis do ponto de vista moral. Então não resta dúvida de que a corrupção da sociedade começa com a corrupção da camada intelectual, não com a corrupção dos negócios ou da política: ao contrário, existem países onde os homens ricos e poderosos são muito corruptos e ainda assim o país funciona direito; existem países onde os políticos são corruptos e no entanto o país não se engana grosseiramente na solução de seus próprios problemas. Mas num país onde a camada intelectual, que é a camada encarregada profissionalmente de examinar a verdade e de dizê-la, começa a se enganar a si mesma, então não vai adiantar absolutamente nada que todos os políticos sejam honestos. Se do ponto de vista de utilidade para o indivíduo o objetivo deste curso é o desenvolvimento da sua inteligência, do ponto de vista social, cultural, o objetivo do curso é fornecer gente para uma futura elite intelectual verdadeira.O que é uma elite intelectual? É gente tão treinada para perceber a verdade quanto um boxeador está treinado para lutar e um soldado para fazer a guerra. Neste sentido, todas as nações que obtiveram um lugar de grandeza na história tiveram uma elite assim, formada muito antes de que o país alcançasse qualquer projeção econômica, política, militar, etc. Pois não é possível resolver os problemas primeiro e se tornar inteligente depois.Em todo debate sobre problemas nacionais que atualmente está em curso só há uma coisa que todos estão esquecendo: Quem vai resolver estes problemas? Quem vai examinálos? Quem tem a capacidade de examiná-los com efetiva inteligência?Se estas pessoas não existem, então o problema inicial é formá-las. O objetivo prioritário deste curso é exatamente isto, se não formar, pelo menos contribuir para formar, amanhã ou depois, ao longo de talvez vinte ou trinta anos, uma verdadeira elite intelectual.

7. "Opinião própria" e "julgamento autônomo" Vistos os objetivos do curso, é preciso, com relação ao indivíduo, não somente desenvolver a inteligência, mas fazer com que ela se torne a espinha dorsal do comportamento desse indivíduo, ou seja, que ele leve uma vida dirigida pela inteligência. Com isto ele se tornará finalmente autônomo e confiável em seus julgamentos, dentro da medida possível ao ser humano.Uma distinção importante é a que existe entre julgamento próprio, ou seja, você ser capaz de pensar por si mesmo, e o que é apenas uma opinião própria. Hoje em dia todo mundo faz questão de ter uma opinião própria, mas isso não é o mesmo que pensar por si mesmo. Pensar por si mesmo não é apenas você ter uma expressão, uma opinião que expresse a sua preferência, o seu gosto ( aliás geralmente muito menos pessoal do que se proclama ) ou a sua individualidade, mas é você ser capaz de, sozinho e sem ajuda, examinar uma questão e chegar a uma conclusão verdadeira ou suficiente sobre ela, e que, longe de buscar ser diferente da opinião alheia, coincida mais ou menos com as opiniões de outras pessoas que por si mesmas examinaram o assunto, de modo que cada um, examinando por si e

sem nenhuma coerção externa, chegue mais ou menos às mesmas conclusões. Pensar por si mesmo é ser capaz de alcançar a verdade sozinho, e não de inventar apenas uma mentira personalizada. Aliás uma das condições para o desenvolvimento da inteligência é você não fazer questão de ter uma opinião própria, ou seja, você não fazer questão de que sua opinião seja diferente da das outras pessoas, ao contrário, apenas fazer questão de examinar as coisas por si mesmo, sem precisar de muletas, sem precisar da aprovação da maioria ou de quem quer que seja, para no final chegar a uma conclusão, de maneira que você expresse menos uma concordância ou discordância natural, mas que a concordância ou discordância seja produzida por um exame refletido do assunto. Ser capaz de examinar por si próprio é mais importante do que ter uma opinião diferente da dos outros.

8. O estado de dúvida O desenvolvimento da inteligência exige ainda uma outra coisa, que é a tolerância para com o estado de dúvida, que é um estado psicológico que se define por duas afirmações contraditórias e simultâneas de credibilidade aparentemente igual. Ou seja, ao examinar uma questão, dizer um sim e um não com igual convicção, isto é, acreditar tanto numa hipótese como na hipótese contrária, ter iguais razões a favor e contra. Na quase totalidade dos assuntos com os quais lidamos, não há tempo e não há condição prática de sair do estado de dúvida. O indivíduo que ou não tem vocação para a vida da inteligência ou se desviou dela por um motivo qualquer, sente como muito urgente sair do estado de dúvida; ele precisa ter uma opinião de qualquer jeito, precisa se pronunciar, precisachegar a um sim ou um não, e esta necessidade é vivida como mais urgente do que a de conhecer a verdade. Neste caso a inteligência não se desenvolve, pois ela é substituída pela simples busca de segurança, já que a dúvida é um estado de insegurança. Se queremos desenvolver a inteligência, temos de fazer uma escolha: a de preferir antes permanecer em dúvida do que ter uma pseudocerteza. É óbvio que a certeza é preferível à dúvida, mas ela só é preferível realmente quando é uma certeza autêntica, e não uma simples preferência individual. Então uma outra exigência para o desenvolvimento da vida intelectual é uma espécie de voto de pobreza em matéria de opiniões, um voto de ter opinião sobre muito pouca coisa e se reservar para opinar sobre coisas em que você teve efetivamente tempo de pensar, e no resto você consentir em permanecer em dúvida, até mesmo, se for preciso pelo resto de sua vida. Uma certeza firme é preferível a um milhão de dúvidas mas, lamentavelmente, se quisermos desenvolver a inteligência teremos de tolerar o estado de dúvida, o estado de incerteza, por mais tempo do que as pessoas geralmente toleram. Além de fazer este voto de pobreza em matéria de opinião, é necessário ainda um outro tipo de voto de pobreza que é a renúncia à busca de apoio, ou seja, você não acreditar que o número das pessoas que o apoiam representa um argumento efetivo em favor da veracidade do que você está dizendo. Em todas as questões mais difíceis a maioria geralmente está errada, ou seja,

em geral o consenso mais imediato é feito em torno de algum erro. Por que? Já dizia Sto. Tomás de Aquino: A verdade é filha do tempo. A verdade geralmente demora para aparecer. Se for preciso, se for absolutamente preciso buscar apoio numa opinião majoritária, então é preferível escorar-se nas opiniões que a humanidade conservou intactas ao longo dos tempos, que resistiram incólumes às mudanças e aos desgastes do tempo, do que naquelas que simplesmente formam a voz majoritária do nosso tempo, e que correm o grave risco de tornar-se minoritárias amanhã ou depois. Dito de outro modo: se algum valor tem a opinião da maioria, não é a da maioria momentânea, da maioria mercadológica, fugaz e inconstante, mas sim a da maioria humana, da maioria da espécie humana em todas as épocas e lugares: quod semper, quod ubique, quod ab omnibus credita est, "aquilo em que todos, em toda parte, sempre acreditaram". Ainda com relação à formação de uma elite intelectual, não é preciso dizer que não é absolutamente necessário que os membros de uma elite deste tipo tenham opinões concordantes, aliás se tiverem opiniões discordantes talvez até seja melhor em determinadas circunstâncias. Mas existem alguns pontos com os quais é preciso estar de acordo, no que se refere, em primeiro lugar, ao valor da inteligência, ao valor da verdade, e à possibilidade do ser humano descobrir a verdade. A fé no poder de alcançar a verdade é a condição inicial de qualquer investigação filosófica, dizia Hegel. Se não acreditarmos na possibilidade de alcançar a verdade não faremos esforços para buscá-la. É preciso se persuadir de que é possível descobrir a verdade, mas nem sempre a verdade final, nem sempre a verdade absoluta, e sobretudo nem sempre a verdade sobre todas as coisas. Em muitas coisas é possível alcançar uma verdade final absoluta, em muito mais coisas do que se costuma imaginar, porém em muito menos do que nós desejaríamos. Na maior parte dos casos teremos de nos contentar com uma certeza probabilística, e às vezes apenas com uma verossimilhança, e às vezes com muito menos do que isto, e talvez nos contentarmos com uma dúvida que nos acompanhará ao túmulo.Porém, na mesma medida em que o indivíduo confia na inteligência humana em geral, ele deve desconfiar da sua própria opinião, o que é um pouco o contrário da atitude que se dissemina hoje em dia, onde as pessoas dizem não acreditar em verdades absolutas mas acreditam com fé absoluta naquelas verdades relativas que lhes agradam: há aí uma mistura repugnante de relativismo intelectual com um dogmatismo emocional fanático. Ainda que reconheçamos a dificuldade de alcançar a verdade com relação à quase totalidade dos assuntos, temos de admitir que, pelo menos com relação a algumas coisas modestas, podemos verificar a possibilidade humana de alcançar a verdade, desde o momento em que cultivamos a noção da evidência e, sobretudo, cultivamos a norma de jamais negar que sabemos aquilo que efetivamente sabemos.

9. A autoconsciência, terra natal da verdade É importante aprender a admitir aquilo que você sabe que é verdadeiro. Ainda que sejam verdades insignificantes, você meditar sobre o óbvio é talvez a melhor maneira de se habituar à verdade e perder o medo dela e a desconfiança injusta quanto ao poder da

inteligência. Por exemplo, ainda que quase todos os conhecimentos que existam sejam relativos ou duvidosos, você sabe que não pode duvidar seriamente de que está aqui neste momento; você pode fazer de conta que não está, mas não pode duvidar efetivamente. Se existem tantos conhecimentos óbvios sobre coisas insignificantes, imaginem aonde poderíamos chegar se alcançássemos evidências deste tipo com relação a coisas verdadeiramente importantes! O senso da verdade se desenvolve a partir do próprio senso da evidência, e o senso da evidência tem a sua raiz naquilo que você já sabe e sabe que sabe. Quando você sabe realmente uma coisa, automaticamente sabe que sabe, e se você sabe que sabe, você sabe que sabe que sabe. Isto quer dizer que qualquer conhecimento efetivo implica também a consciência deste conhecimento e a plena admissão da sua veracidade.A inteligência tem, portanto, também um aspecto volitivo, inseparavemente ligado ao aspecto cognitivo. Por onde começa o treinamento da consciência para admitir a verdade? O primeiro grau no aprendizado da verdade consiste em você aprender a reconhecer aquelas verdades que só você sabe e que ninguém, fora você, pode confirmar ou negar. Por exemplo, só você conhece suas intenções, só você conhece os atos que praticou em segredo, só você conhece os sentimentos que não confessou. Você, nesses casos, é a única testemunha, e é aí que você vai conhecer a diferença radical e intransponível entre verdade e falsidade. As pessoas que vivem negando a existência de verdades não conhecem essa experiência, nunca deram senão falso testemunho de si mesmas ante o tribunal da consciência, mentem para si mesmas e por isto sentem que tudo no mundo é mentira. Hegel dizia: a autoconsciência é a terra natal da verdade. E Giambattista Vico observava que só conhecemos perfeitamente bem aquilo que nós mesmos fizemos: conhecer perfeitamente bem a natureza só Deus conhece, pois Ele a fez. Porém nossos próprios atos somente nós mesmos podemos conhecer, assim como nossos pensamentos e nossos estados interiores. Não há ali ninguém que possa nos fiscalizar, não há ninguém que possa nos defender de nós mesmos.

10. Os graus de certeza Se quisermos desenvolver o senso da certeza temos portanto de nos perguntar exatamente sobre aquelas coisas que só nós sabemos e que ninguém pode saber melhor do que nós mesmos. Estas vão dar o modelo para todas as outras certezas. O aprendizado de qualquer saber é perfeitamente inútil se não houver a consciência reflexiva, que consiste na frase: Eu sei que sei, ou então na sua oposta complementar, que é Eu sei que não sei. Mesmo em assuntos duvidosos, com um pouquinho de reflexão você pode demarcar o limite entre o conhecimento possível e o impossível. Bastaria que conseguíssemos captar ograu de certeza ou de dúvida que existe em cada conhecimento já possuído.Existem quatro graus de certeza possíveis: 1. certeza;

2. probabilidade; 3 verossimilhança; 4. conjeturação do possível. Certeza é por exemplo esta que diz "Eu estou aqui agora" ou "Eu sou eu mesmo e não outro". Que é uma opinião provável? É uma opinião onde você pode só ter uma certeza evidente ( apodítica ) com relação a um grau de probabilidade determinado ou determinável. Em outros casos você não pode nem ter isso, você só pode ter uma probabilidade indeterminada, isto é, verossímil, não uma probabilidade rigorosa. E, finalmente, em alguns casos só podemos ter conjeturas, como por exemplo perguntar se há vida inteligente em outros planetas. Alguns dirão que sim, outros que não, e aqueles que dizem sim têm tanta razão quanto aqueles que dizem não. Aí conhecemos somente uma possibilidade genérica, impossível de graduar probabilisticamente. Eis aqui uma boa maneira de você fazer uma faxina no seu universo intelectual, para recomeçar em boa ordem. Trata-se de fazer a si mesmo as seguintes perguntas: Do conjunto de coisas que você já estudou, quais são aquelas que você conhece com certeza absoluta? Quais as que conhece comoprobabilidade razoável? Quais as que conhece como conjetura verossímil? Quais as que conhece como mera possibilidade? Em suma: quanto vale cada um dos conhecimentos que você tem? Eis uma verdade amarga: se, a respeito de um assunto, você crê possuir certo conhecimento mas não sabe se esse conhecimento é certo, verossímil, provável ou conjectural, você não sabe absolutamente nada sobre o assunto. A avaliação dos conhecimentos faz parte do próprio conhecimento. Se não existe uma avaliação clara dos conhecimentos já adquiridos, você não sabe a distinção entre o que sabe e o que não sabe, e isto é o mesmo que não saber nada. Seria o caso de perguntar: O que adianta uma educação que lhe ensina um monte de coisas, mas que não o ensina a avaliar e julgar o que aprende? Não existe nenhuma diferença entre você saber alguma coisa e você conseguir separar nela o verdadeiro do falso, pois saber é saber distinguir o verdadeiro do falso, é isto e nada mais além disto. Se você aplicasse esta grade de distinções a tudo o que já leu ou estudou, se classificasse por ela todas as suas opiniões, imagine a montanha de conhecimentos verídicos que você teria no fim. Formar convicção é formar graus de convicção. Exemplo: Você sabe que Deus existe com a mesma certeza com que você sabe que você existe?Se Deus existe, Ele é bom: isto é óbvio. Seria bom que Deus existisse: isto também é óbvio. Agora, entre pensar seria bom que Deus existisse e pensar que Deus existe efetivamente há uma distância muito grande. Então, por exemplo, se tenho uma discussão com uma pessoa e penso que eu estou certo e ela errada, o que estou querendo dizer? Estou querendo dizer: Seria

bom que eu estivesse certo e ela estivesse errada, ou melhor, seria bom para mim. Agora, entre pensar que seria bom que eu estivesse certo e estar absolutamente certo de fato, a distância também é enorme. Então, lamentavelmente, não podemos estar tão certos em tantas coisas como geralmente fingimos que estamos. Só que se você extirpar de seu universo de crenças um monte de falsas certezas, vai ver que no fim sobram algumas certezas inabaláveis, e estas valem muito. Mas se você desejar preservar todas as suas convicções igualmente, no mesmo plano, sem escalaridade crítica, no fim vão estar todas misturadas, você não vai ter certeza legítima de nenhuma, e vai acabar duvidando até de que dois mais dois são quatro, de que você está aqui neste momento e até de que você existe. A falsa certeza é a mãe da dúvida patológica. Muitas vezes o que acontece é que o indivíduo acaba tendo certeza absoluta de coisas inteiramente conjeturais, e tendo dúvidas sobre coisa óbvias e inegáveis, porque não sabe equacionar as suas certezas e suas dúvidas conforme a segurança maior ou menor do conhecimento em si. É claro que existem coisas sobre as quais gostaríamos de ter certeza. Você não gostaria de ter certeza, por exemplo, da imortalidade da alma? Muitas vezes precisamos de um conhecimento, e este conhecimento se furta, se nega. Mas outras vezes há conhecimentos de que você crê não precisar e eles vêm acompanhados de certeza absoluta: então por que você não os aceita? Um conhecimento aparentemente inútil, mas certo, é menos prejudicial do que um conhecimento aparentemente útil, mas falso. Se aprendermos a avaliar os graus de certeza não conforme simplesmente o nosso desejo, mas conforme à coisa mesma, conforme o assunto mesmo admita maior ou menor certeza, teremos feito da nossa mente um instrumento dócil aos graus de certeza oferecidos pela própria realidade. Isso inclusive pouparia um trabalho enorme. Pouparia o trabalho de você ter de argumentar em favor de coisas que são óbvias e que não precisam de argumento nenhum para sustentá-las, bem como pouparia o trabalho de argumentar em favor do indefensável, do arbitrário, do nonsense. Este senso de docilidade à verdade apreendida pela própria consciência é transmitido aos alunos deste curso como uma prática, não apenas como uma lição de casa para se fazer de hoje para amanhã, mas como uma prática para o resto da vida. Dado qualquer conhecimento, o aluno é convidado incessantemente a fazer as quatro perguntas decisivas: Isto éverídico? É provável? É verossímil? É possível?O critério dos graus de certeza é usado o tempo todo neste curso; é a primeira lição e também a última. E a primeira coisa que deve ser revista com este critério é qualquer assunto que você já tenha estudado formalmente. Somente com esta revisão você já vai ver que a massa de conhecimentos, de informações adquiridas, começa a adquirir forma orgânica, inteligível, e você pela primeira vez tem uma idéia clara da cultura que possui e da que lhe falta: quando o universo dos seus conhecimentos adquire uma forma, você adquire consciência reflexiva do que sabe e do que não sabe.

11. A topografia da ignorância

O desenvolvimento da consciência reflexiva pode ser exemplificado na seguinte prática que dou aos alunos deste curso: O tempo todo estamos adquirindo informações que nos vêm através dos cinco sentidos, da leitura, do ouvir-dizer, etc., porém a algumas delas prestamos atenção e damos um valor, e a outras não. Então pergunto eu: para onde você olha sempre, para onde olha com frequência, para onde olha de vez em quando e para onde não olha jamais? É justamente a consciência desta seleção que lhe dará a topografia do mundo, do seu mundo. Nenhum mundo pessoal coincide extensivamente, quantitativamente, com o mundo objetivo. Mas um mundo pessoal íntegro, dotado de unidade como um organismo vivente, já se parece com o mundo objetivo precisamente por essa unidade orgânica e, essencialmente ao menos, é um adequado mapa do mundo, ao passo que o mundo interior quebradiço, fragmentário e mecânico não se parece com nada senão com ele mesmo, com as fantasias de criação humana. A diferença não está na quantidade de informações, mas justamente em sua topografia. A topografia autoconsciente produz um sentido de perfil, de clareza das coisas. É exatamente isto que a consciência reflexiva fará com seus conhecimentos. A partir da hora em que você sabe que sabe, você efetivamente sabe. E saber que sabe é também saber quando não sabe.A proclamação genérica e vaga de ignorância é apenas uma vaidade intertida, mas o repertório organizado e crítico da nossa ignorância é um conhecimento, um conhecimento efetivo e importantíssimo. O desenho da ignorância, o perfil da ignorância, é um primeiro saber. E este perfil da ignorância se faz exatamente aplicando a grade dos graus de certeza. Se você consegue mapear, de um lado, a sua ignorância, e de outro, o valor possível de seus conhecimentos adquiridos, você terá inaugurado as bases de uma vida intelectual brilhante. Percebe agora qual a diferença entre um ensino voltado às faculdades cognitivas ( memória, imaginação, raciocínio etc. ) e um ensino voltado à inteligência? O que interessa aqui não é tanto o conhecimento, mas a consciência do conhecimento. Consciência, cum + scientia, é isto: saber que sabe o que sabe. Uma consciência desperta não torna somente mais claros os conhecimentos que você já tem, mas o deixa preparado e como que potencializado para a aquisição de novos conhecimentos com muito mais aproveitamento do que antes; e então, para você poder dominar todo um novo setor da ciência, da história, da arte, às vezes não precisará nada mais do que ter ajuda para chegar aos primeiros princípios daquela área, o resto você descobrirá sozinho, porque terá conquistado o senso, o "faro" da unidade do conhecimento, e aprenderá muitas coisas de uma maneira mais ou menos sintética e simultânea, onde antes precisava de explicações detalhadas, repetições, exercícios, etc. É claro que essa maior integração da consciência, com o consequente aumento da capacidade de aprendizado, não se dá só na área dos estudos formais, mas em todas as áreas da vida, que aos poucos irão revelando suas interconexões. O benefício que isto

traz não é só de ordem intelectual, mas se estende a toda a psique, a toda a personalidade. Partindo do princípio de que todo mundo já sabe alguma coisa — sabe por viver, sabe porque tem memória, porque assistiu a acontecimentos, porque leu algum livro, porque ouviu falar, porque viu televisão, porque leu jornal, e enfim alguma coisa sempre se sabe —, então resta transformar esse saber em autoconsciência. Se o saber efetivo, se a inteligência se identifica fundamentalmente com a autoconsciência, o saber que você possui só se tornará um saber inteligente se for um saber autoconsciente, ou seja, se você passar todo este saber na peneira das seguintes perguntas: 1. Até que ponto sei isto realmente? 2. Quanto vale este conhecimento? 3. O que faltaria para que ele fosse completo? Ou seja, começar fazendo uma revisão das coisas que você acredita que sabe. Vale ressaltar que estes conhecimentos não se referem apenas às coisas estudadas formalmente através de canais oficiais de educação, mas sobretudo àqueles estudos, experiências e pensamentos que sedimentaram em você determinadas convicções.Outro ponto importante a ressaltar é o fato de que quando você dedica, por obrigação profissional ou escolar não assumida interiormente mas somente imposta de fora, uma atenção maior a tópicos que não lhe interessam profundamente, e não chega a desenvolver um interesse autêntico, mas trata do assunto com uma atenção periférica e como que ligada no piloto automático, você prejudica sua inteligência e se afasta quase que necessariamente da verdade. Porque, se a inteligência é capacidade de captar a verdade e de captá-la numa situação verdadeira, o simples fato de você dedicar ao assunto uma atenção falsa já é um impedimento ao conhecimento da verdade, é um vício que não o ajuda em nada a desenvolver a inteligência.Só podemos usar a inteligência com cem por cento da sua força onde houver cem por cento de interesse, e infelizmente o interesse não depende inteiramente de nós, porque o interesse que temos por este ou aquele problema pode provir de uma situação externa, de uma casualidade, de uma contingência, de um temor, de um desejo fortuito, e assim por diante. Isto quer dizer também que o processo do desenvolvimento da inteligência não pode seguir um programa predeterminado como no estudo de uma disciplina em particular. Ele tem de ir e vir, mais ou menos ao sabor do fluxo dos interesses reais do momento e da possibilidade de desenvolver novos interesses.

O problema da verdade e a verdade do problema Seminário de Filosofia, 20 de maio de 1999

Olavo de Carvalho

I. O QUESTIONAMENTO RADICAL § 1. DA FRIVOLIDADE SATISFEITA Quid est veritas? Esta é a mais séria e a mais frívola das questões. Depende, evidentemente, da intenção de quem pergunta. Uns admitem que o sentido e o valor da vida humana dependem da existência de alguma verdade eminentemente certa e confiável, que possa servir de medida de aferição da validade de nossos pensamentos. Outros acham que a vida pode perfeitamente ir em frente sem verdade nenhuma e sem fundamento nenhum. Entre estes estava, decerto, o velho Pilatos. Ao exclamar — "Que é a verdade?" —, ele não estava fazendo propriamente uma pergunta, mas expressando, com um dar de ombros, sua pouca disposição de fazer a sério essa pergunta. A perspectiva de não existir nenhuma verdade, que levaria ao desespero aqueles que julgam que a vida precisa dela para se justificar, era para Pilatos um alívio e um consolo — a garantia de poder continuar vivendo sem preocupações. Alguns apostam na existência da verdade e cherchent en gémissant. Outros voltam-lhe as costas e lavam as mãos1. A fórmula verbal com que se exprimem é a mesma: Quid est veritas? Mas na diferença de suas nuanças reside toda a distância do trágico ao cômico. A escola frívola, ou cômica, é amplamente dominante hoje em dia, seja nas universidades, seja na cultura em geral. Mesmo aqueles que procuram crer numa verdade efetiva cercam-na de toda sorte de limites e obstáculos, por exemplo reduzindoa ao tipo de verdade parcial e provisória que nos é dado por algumas ciências experimentais. Outros apegam-se à fé, dizendo que a verdade existe, mas está acima de nossa compreensão. Em qualquer debate sobre o problema da verdade, em nossos dias, o programa consiste quase que invariavelmente em desfiar de novo e de novo as observações que os filósofos, de Pirro a Richard Rorty, fizeram sobre os limites do conhecimento humano. Esses limites, vistos em conjunto, armam uma formidável montanha de obstáculos a qualquer pretensão de conhecer a verdade. E essa montanha é crescente, com um pico que se afasta mais e mais à medida que a escalamos. Por exemplo, desde as objeções simplórias da escola pirrônica contra a validade do conhecimento pelos sentidos até as construções enormemente complexas com que a psicanálise nega a prioridade da consciência ou Gramsci reduz toda verdade à expressão das ideologias que se sucedem através da História, muito evoluiu a máquina de injetar desânimo no buscador da verdade. Não é de espantar que muitos dos construtores dessa máquina, quando lhe acrescentam uma nova peça, em vez de lamentar o acréscimo da impotência humana tragam nos lábios um sorriso semelhante ao de Pilatos. A inexistência da verdade, ou a impossibilidade de conhecê-la, é para eles um reconforto. Veremos adiante quais são as razões mais profundas dessa estranha satisfação.

§ 2. DEFINIÇÃO PROVISÓRIA DA VERDADE Por enquanto, vamos deixar essas criaturas de lado e colocar, por nossa conta, a questão da verdade. Como não sabemos ainda se a verdade existe nem o que ela afirma, temos de apelar a uma definição formal provisória, que possibilite dar início à investigação sem nada prejulgar quanto ao seu desenlace. Essa definição provisória, para atender a esse requisito, tem de expressar o mero significado intencional do termo, tal como aparece mesmo na boca daqueles que negam a existência de qualquer verdade, de vez que para negar a existência de algo é preciso compreender o significado do termo que o designa. Digo, pois, que a verdade, aquela verdade que ainda não sabemos se existe ou não, aquela verdade cuja existência e consistência serão o objeto da nossa investigação como o foram de tantas investigações que nos precederam, é o fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. Se dizemos, por exemplo, que o único fundamento da validade dos nossos juízos é sua utilidade, negamos a existência de um fundamento cognitivo, ou seja, negamos a existência da verdade mediante a negação de um dos elementos que compõem a sua definição. O mesmo acontece de dizemos que todos os juízos válidos têm fundamento na fé. Se afirmamos, porém, que não há juízos válidos de espécie alguma, então negamos a existência de qualquer fundamento, cognitivo ou não. Se afirmamos que os juízos só são válidos para determinado tempo e lugar, negamos que o fundamento seja permanente. Se afirmamos que os juízos só são válidos subjetivamente para aquele que os profere, negamos que o fundamento seja universal. Se dizemos que o fundamento da validade dos juízos é apenas lógico-formal, sem qualquer alcance sobre os objetos reais mencionados no juízo, negamos que esse fundamento tenha significado cognitivo. Todas essas negações da verdade pressupõem a definição da verdade comofundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. Do mesmo modo, se dissermos que existe a verdade, que ela é conhecível, que com base nela podemos construir um conjunto de conhecimentos válidos, nada teremos acrescentado ou retirado dessa definição, mas teremos apenas afirmado que o objeto nela definido existe. Nossa definição provisória, sendo portanto compatível com as duas correntes de opinião maximamente opostas que disputam em torno da questão, é um terreno superior e neutro desde o qual a investigação pode ser iniciada sem preconceitos e com toda a honestidade e rigor.

§ 3. É POSSÍVEL O QUESTIONAMENTO RADICAL DA VERDADE? Partimos, assim, de um consenso. O passo seguinte da investigação consiste em perguntar se a verdade, assim definida, pode ou não ser objeto de questionamento radical. Com a expressão questionamento radical quero dizer aquele tipo de questionamento que, admitindo ex hypothesi a inexistência do seu objeto, — como por exemplo tantas vezes se fez com a existência de Deus, das idéias inatas ou do mundo

exterior — termina por concluir, seja em favor dessa mesma inexistência, seja da existência. O questionador radical de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior pode questioná-los porque se coloca, desde o início, fora do terreno divino, inatista ou mundano, ou seja, ele raciocina como se Deus ou as idéias inatas ou o mundo não existissem. Conforme o desenrolar de sua investigação, ele chegará ou à conclusão de que sua premissa é absurda, o que o levará portanto a admitir a existência daquilo cuja inexistência havia postulado, ou, inversamente, à conclusão de que a premissa se sustenta perfeitamente bem e de que aquilo que foi suposto inexistente realmente inexiste. O mais clássico exemplo de emprego desse método é o de Descartes. Ele pressupõe a inexistência do mundo exterior, dos dados dos sentidos, do seu próprio corpo, etc., etc., e continua raciocinando nessa linha até encontrar um limite — o cogito ergo sum — que o obriga a recuar e a admitir a existência de tudo quando havia inicialmente negado. O questionamento radical é o mais duro teste a que a filosofia pode submeter qualquer idéia ou ente que se pretenda existente. O que devemos perguntar, portanto, logo após termos obtido a definição formal da verdade, é se a verdade assim definida pode ser objeto de questionamento radical. A resposta, que a muitos talvez pareça surpreendente, é um taxativo não. A verdade não pode ser objeto de questionamento radical. Nenhuma investigação sobre a verdade, por mais radical que se pretenda, pode dar por pressuposta a inexistência de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos e continuar a raciocinar de maneira consistente com essa premissa até chegar a algum resultado, positivo ou negativo. E não pode por uma razão muito simples: a afirmação da inexistência absoluta de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos constituiria, ela própria, o fundamento cognitivo permanente e universal dos juízos subseqüentes feitos na mesma linha de investigação. A investigação estaria paralisada tão logo formulada. Examinemos brevemente algumas das estratégias clássicas de negação da verdade a que o questionador pudesse recorrer para escapar desse cul-de-sac. Tentemos, por exemplo, a estratégia pragmatista. Ela afirma que a validade dos juízos repousa na sua utilidade prática, que portanto o fundamento dessa validade não é cognitivo. Se disséssemos que a inexistência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não é ela própria um fundamento cognitivo universal e permanente, mas apenas um fundamento prático, das duas uma: ou esse fundamento prático teria de ser por sua vez universal e permanente, ou seria apenas parcial e provisório. Na primeira hipótese, teríamos dois problemas: de um lado, cairíamos no paradoxo de uma utilidade universal, ou seja, de algo que poderia utilmente servir a todos os fins

práticos, mesmo os mais contraditórios. Seria o meio universal de todos os fins ou, mais claramente ainda, a panacéia universal. De outro lado, teríamos de perguntar se a crença nesta panacéia teria por sua vez um fundamento cognitivo ou se ela seria apenas uma utilidade prática, e assim por diante infinitamente. Na segunda hipótese — isto é, na hipótese de o questionador admitir que a afirmação da inexistência da verdade é apenas um fundamento parcial e provisório para a validade dos juízos subseqüentes —, então, evidentemente, restaria sempre, inabalável, a possibilidade de que fora do terreno assim delimitado pudessem subsistir outros fundamentos cognitivos universais e permanentes para validar uma infinidade de outros juízos, e a investigação poderia prosseguir indefinidamente, saltando de fundamento provisório a fundamento provisório, sem jamais poder chegar a fundamentar-se no seu próprio pressuposto, isto é, na radical inexistência da verdade. Tentemos uma segunda estratégia, a do relativismo subjetivista. Este proclama, com Protágoras, que "o homem é a medida de todas as coisas", o que se interpreta correntemente no sentido de que "cada cabeça, uma sentença", ou seja, de que o que é verdade é verdade apenas desde o ponto de vista daquele que a pensa, podendo ser falsidade desde o ponto de vista de todos os demais. Pode essa afirmação constituir a base de um questionamento radical da verdade, de tal modo que a negação da existência de qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não se torne ela mesma o fundamento cognitivo universal e permanente em que se apóia a validade dos juízos subseqüentes na mesma linha de investigação? Dito de outro modo, e mais simples: pode o relativismo negar a existência de juízos válidos para todos os homens sem que essa negação se torne ela mesma um juízo válido para todos os homens? Para fazê-lo, ele teria de negar a universalidade dessa negação, o que resultaria em admitir a existência de algum ou de alguns ou de uma infinidade de juízos válidos para todos os homens. Assim o relativismo estaria ele próprio relativizado e acabaria se resumindo numa platitude sem qualquer significado filosófico, isto é, na afirmação de que alguns juízos não são válidos para todos os homens, o que implica a possibilidade de que outros juízos talvez o sejam. Não, o relativismo subjetivista não pode realizar um questionamento radical da verdade, tanto quanto não o podia o pragmatismo. Poderá fazê-lo, então, o historicismo? Este declara que toda verdade é apenas a expressão de uma cosmovisão temporalmente localizada e limitada. Os homens pensam isto ou aquilo não porque aquilo ou isto se imponha como verdade universalmente e permanentemente obrigatória, mas apenas porque se impõe num lugar e por um período limitados. Ao proclamar esses limites, pode o historicismo impedir que a afirmação desses limites se torne ela própria o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos? Para tanto, seria necessário admitir que pode haver algum fundamento que negue essa afirmação; mas, se esse fundamento existe, então existe alguma verdade cuja validade é ilimitada no tempo e no espaço, alguma verdade cuja validade escapa ao condicionamento histórico — e o historicismo estaria reduzido à miserável constatação de que alguns fundamentos de validade são condicionados historicamente, outros não, sem poder sequer aplicar esta distinção aos casos concretos

sem afirmar no mesmo ato a invalidade do princípio historicista tomado como regra universal2. Pouparei ao leitor a enumeração de todos os subterfúgios possíveis e sua detalhada impugnação. Ele mesmo pode realizá-los, a título de exercício, se assim o desejar. Sugiro mesmo que o faça. E tantas vezes quantas venha a fazê-lo terminará sempre voltando ao mesmo ponto: não é possível negar a existência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, sob qualquer pretexto que seja, sem que essa negação, junto com o seu respectivo pretexto, tenha de se afirmar ela própria como o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, paralisando assim a negação seguinte pela qual deveria prosseguir, se pudesse, a investigação. A verdade tal como a definimos não pode, em suma, ser objeto de questionamento radical. Nem o pode a possibilidade de conhecê-la. Negado que seja possível conhecer qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, ou esta impossibilidade mesma se tornaria tal fundamento, afirmando no mesmo ato sua própria falta de qualquer fundamento, ou então, para não assumir esse papel vexaminoso, teria de se limitar a afirmar que alguns juízos não têm fundamento e outros provavelmente têm, afirmação que está ao alcance de qualquer garoto de escola. Não podendo atingir o alvo colimado, o inimigo da verdade está portanto condenado a roê-la pelas beiradas, eternamente, sem jamais chegar ao centro vital daquilo que desejaria destruir. Ele ora negará uma verdade, ora outra, ora sob um pretexto, ora sob outro, variando as estratégias e as direções do ataque, mas não poderá nunca se livrar do seu destino: cada negação de uma verdade será a afirmação de outra, e tanto aquela negação quanto esta afirmação resultarão sempre na afirmação da verdade como tal, isto é, da existência efetiva de algum fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos. Isso explica, ao mesmo tempo, a proliferação contínua, ilimitada e irrefreável das negações da verdade, e a sua completa impossibilidade de varrer da face da Terra a crença na existência da verdade, a crença na possibilidade de conhecer a verdade, a crença na posse atual e plena de alguma verdade capaz de dar fundamento universal e permanente à validade dos juízos. Por isso o número e a variedade dos ataques à verdade, de Pirro a Richard Rorty, superam amplamente o número e variedade das defesas que se apresentam formalmente como tais: é que eles próprios, ainda que a contragosto de seus autores, acabam sempre constituindo defesas e louvores da verdade, não só poupando trabalho ao apologista, mas vivificando eles próprios aquilo que desejariam sepultar e honrando aquilo que desejariam humilhar. Essa é também a razão por que o principiante, impressionado pela variedade e contínua retomada dos ataques à verdade que se observa na história da filosofia — em velocidade notavelmente crescente nos dias de hoje —, adere logo ao ceticismo para não se sentir membro de uma minoria isolada e enfraquecida, mas, prosseguindo seus estudos e superando a primeira impressão fundada apenas na quantidade aparente, não consegue

manter essa posição e acaba percebendo que a força não reside no número dos que negam, por mais impressionante que pareça, e sim na qualidade dos happy fewque serenamente afirmam a verdade.

II. A VERDADE NÃO É UMA PROPRIEDADE DOS JUÍZOS § 1. VERDADE E VERIDICIDADE A impossibilidade do questionamento radical, que constatamos no capítulo anterior, leva à conclusão de que a verdade só pode ser atacada em partes, mas que cada negação da parte reafirma a validade do todo. Dito de outro modo: o que se pode questionar são verdades. "A" verdade não pode ser questionada e de fato nunca o foi, exceto em palavras, isto é, mediante um fingimento de negação que resulta em última instância ser uma afirmação. Mas isso leva-nos um passo adiante na investigação. Uma tradição venerável, iniciada por Aristóteles, afirma que a verdade está nos juízos, que ela é uma propriedade dos juízos. Alguns juízos "possuem" a verdade, outros não. Chamamos, aos primeiros, juízos verdadeiros, aos segundos, juízos falsos. O conjunto dos juízos verdadeiros é portanto um subconjunto do conjunto dos juízos possíveis. Os juízos possíveis, por sua vez, são um subconjunto do conjunto dos atos cognitivos humanos, estes são um subconjunto do conjunto dos atos mentais, estes um subconjunto do conjunto dos atos humanos, e assim por diante. O território da verdade é, assim, uma pequena área recortada dentro do vasto mundo de pensamentos, atos e seres. Será isso realmente possível? Como poderia a verdade ser ao mesmo tempo o fundamento da validade de todos os juízos e uma propriedade de alguns deles em particular? Não há nisto uma gritante contradição ou, ao menos, um problema? Para equacioná-lo e resolvê-lo é preciso convencionar aqui uma distinção entre verdade e veridicidade. Verdade é o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos. Veridicidade é uma qualidade que se observa em alguns juízos, segundo a qual sua validade tem um fundamento cognitivo universal e permanente. Uma vez compreendido isto, salta aos olhos que a verdade é uma condição fundante da veridicidade, e não ao contrário. Se não existisse um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, nenhum juízo poderia ter um fundamento cognitivo universal e permanente. Se, porém, um juízo em particular possui esse fundamento, nada no mundo pode determinar que somente ele o possua, isto é, que a existência do fundamento dependa da existência desse juízo em particular. Já esse juízo em particular não poderia existir e ser verídico se não existisse verdade alguma. A verdade é, pois, anterior, logicamente, à veridicidade e constitui o seu fundamento. Mas, sendo fundamento da veridicidade, a verdade é também fundamento da inveridicidade, porque os juízos falsos só são falsos na medida em que possam ser

impugnados veridicamente, seja pela sua simples negação — verídica ela própria —, seja pela afirmação do juízo verídico contrário. Sendo o fundamento não só da veridicidade dos juízos verdadeiros, mas também da inveridicidade dos juízos falsos, se a veridicidade só está presente nos juízos verdadeiros, e não pode estar presente nos juízos falsos, a verdade, por sua vez, tem de estar presente em ambos, como fundamento da veracidade dos primeiros e da inveridicidade dos segundos. O território da verdade, pois, não é idêntico ao conjunto dos juízos verdadeiros possíveis, mas abrange este e o dos possíveis juízos falsos.

§ 2. O FUNDAMENTO DE TODOS OS JUÍZOS É UM JUÍZO? A verdade, fundamento de todos os juízos, tem de ser necessariamente um juízo? Somente um juízo pode ser fundamento de um juízo? A resposta é sim e não. Sim, se por fundamento entendemos, restritiva e convencionalmente, a premissa em que se funda a prova do juízo. Mas a premissa afirma algo a respeito de algo, e este algo, por sua vez, não é juízo e sim objeto dele. Digo, por exemplo, que as tartarugas têm cascas. Fundamento esse juízo nas definições de tartaruga e de casca, que são juízos, mas fundamento estas definições na observação — que não é juízo — de tartarugas e cascas, que também não são juízos. Não deve esta observação ser também verdadeira, captando traços verdadeiramente presentes em objetos verdadeiros? Ou apelarei ao subterfúgio de que a observação tem de ser somente exata, não se aplicando a ela o conceito de "verdadeiro"? Mas quê quer dizer "exato", no caso, senão aquilo que nada me informa além ou aquém do que foi verdadeiramente observado naquilo que um objeto verdadeiramente mostrava? E, ademais, trata-se de uma exatidão autêntica ou apenas de um simulacro dela? Não há escapatória: ou há verdade na observação mesma, ou ela não pode ser exata, nem correta, nem adequada, nem suficiente, nem ter qualquer outra qualidade que a recomende exceto se essa qualidade for, por seu lado, verdadeira. Assim, o fundamento da veridicidade de um juízo não está somente na veridicidade dos juízos que lhe servem de premissas, mas também — no caso dos juízos concernentes a objetos de experiência — na verdade dos dados de onde extraí essas premissas e na verdade do que deles sei por experiência. Ademais, se o fundamento dos juízos tivesse de ser ele próprio sempre um juízo, o fundamento primeiro de todos os juízos seria ele próprio um juízo destituído de qualquer fundamento. Aristóteles, levado a este beco sem saída, afirmou que o conhecimento dos primeiros princípios é imediato e intuitivo. Mas com isto quis dizer apenas que esses princípios não tinham prova, não que fossem desprovidos de fundamentos. O princípio de identidade, por exemplo, assim expresso no juízo A = A, não tem atrás de si nenhum juízo que possa servir de premissa à sua demonstração, mas tem um fundamento objetivo na identidade ontológica de cada ser consigo próprio, a qual não é juízo. Ora, o que pode ser conhecido intuitivamente é esta identidade ontológica, e não o juízo A = A que apenas o manifesta. A intuição do primeiro princípio lógico não se dá sob a forma de um juízo, mas de uma evidência imediata que,

por si, não é juízo. Não pode haver juízo sem signos que transformem essa evidência imediata num verbum mentis, num assentimento consciente, que, sem ser ainda uma proposição, uma afirmação em palavras, já não é mais a pura e simples intuição e sim um reflexo mental dela e, portanto, um ato cognitivo derivado e segundo, não primeiro. Desse modo, se o território das premissas lógicas tem início nos juízos que afirmam os primeiros princípios, esse território nem de longe abrange todo o campo dos fundamentos cognitivos, que se estende, ao contrário, para dentro do domínio da percepção intuitiva, seja dos objetos de experiência, seja dos primeiros princípios. Com isso, fica evidente a falsidade da imagem na qual a verdade é uma pequena zona recortada na vastidão do território dos juízos possíveis. Os juízos todos, verdadeiros e falsos, é que são um modesto recorte no imenso território da verdade.

III. ONDE ESTÁ A VERDADE? § 1. A VERDADE COMO DOMÍNIO Com isso, somos levados a compreender que a verdade, sendo o critério de validade dos juízos, não pode nem ser uma propriedade imanente dos próprios juízos, nem ser algo de totalmente externo aos juízos que, de fora, os julgasse; pois este julgamento seria por sua vez juízo. Se digo que a galinha botou um ovo, onde pode estar a verdade deste juízo? No próprio juízo, independentemente da galinha, ou na galinha, independentemente do juízo? A absurdidade da primeira hipótese levou Spinoza a proclamar a inanidade dos juízos de experiência, que nunca são válidos ou inválidos em si mesmos e sempre dependem de algo externo: um juízo verdadeiro, para ele, teria de ser verdadeiro em si, independentemente do que quer que fosse, como por exemplo a = a independe do que sejaa e de qualquer outra verificação externa. Mas a identidade dea com a também não está só no juízo que a afirma, e sim na consistência de a, seja ele o que for. Não há juízo puramente lógico, que possa ser verdadeiro ou falso em si e sem referência a algo que é aquilo do qual o juízo fala. Mesmo um juízo que falasse apenas de si mesmo desdobra-se no juízo que afirma e no juízo do qual algo se afirma, e este certamente não é aquele. Dizer que um juízo é verdadeiro em si mesmo não pode significar total alheamento do mundo, que está suposto na possibilidade mesma de se enunciar um juízo. A fuga para o domínio da identidade formal não resolve absolutamente o problema. Diremos então, com uma velha tradição, que a verdade está na relação entre juízo e coisa? Ora, esta relação é por sua vez afirmada num juízo, que por sua vez deve ter uma relação com seu objeto (a relação afirmada), e assim por diante infinitamente. A outra hipótese, de que a verdade do juízo a galinha botou um ovo está na galinha independentemente do juízo, nos levaria a dificuldades igualmente intransponíveis. Resultaria em dizer que a verdade do juízo independe de que esse juízo seja emitido, ou seja, que uma vez que a galinha tenha botado um ovo o juízo que o afirma é verdadeiro ainda que, como juízo, não exista. Edmund Husserl subscreveria isso sem pestanejar: a

verdade do juízo é uma questão de lógica pura, que nada tem a ver com a questão meramente empírica de um determinado juízo ser afirmado um dia por alguém. A confusão entre a esfera da verdade dos juízos e a esfera da produção psicológica deles fez de fato muito mal à filosofia, e Husserl desfez essa confusão definitivamente. Mas se a galinha botou um ovo e ninguém afirmou nada a respeito, a verdade no caso não está no juízo e sim no fato. O juízo que não foi emitido ainda não pode ser verdadeiro ou falso, pode apenas ter as condições para sê-lo; se é verdade que a galinha botou um ovo, o juízo que o afirma será verdadeiro se formulado, ao passo que a verdade do fato já está dada com o aparecimento do ovo. Mas, se a verdade do juízo a galinha botou um ovo não está nem no juízo independentemente da galinha, nem na galinha independentemente do juízo, nem na relação entre galinha e juízo, onde raios pode ela estar? Ora, acabamos de ver que, independentemente dos juízos que os afirmam, os objetos intencionados nos juízos também podem ser verdadeiros ou falsos, independentemente dos juízos que venham a ser emitidos a respeito. A galinha botou um ovo opõe-se a a galinha não botou um ovo, independentemente de que alguém o diga ou não diga. Existe contradição e identidade no real, independentemente e antes de que um juízo afirme ou negue o que quer que seja a respeito dele. Ou, o que dá na mesma: a verdade existe na realidade e não só nos juízos, ou então não poderia existir nos juízos de maneira alguma. Há verdade no fato de que a galinha botou um ovo, há verdade no juízo que o afirma e há verdade, ainda, na relação entre juízo e fato bem como no juízo que afirma a relação entre juízo e fato: a verdade não pode então estar no fato, nem no juízo nem na relação, mas tem de estar nos três. Mais ainda, se está nos três, tem de estar também em algo mais, a não ser que admitamos que um único fato, o juízo que o afirma e a relação que os une possam, juntos, ser verdadeiros na hipótese de tudo o mais ser falso. Mas este "tudo o mais", que não está contido nem no fato nem no juízo nem na relação, inclui necessariamente a própria existência de fatos, bem como os princípios lógicos subentendidos no juízo e na relação. Se não há fatos nem princípios lógicos, inutilmente as galinhas botarão ovos no domínio do não-fato e inutilmente se buscará uma relação entre fato e juízo no domínio do ilogismo. Logo, a verdade de um só fato, de um só juízo e de sua relação subentende a existência da verdade como domínio que transcende e abrange a um tempo fatos, juízos e relações. Procurar a verdade no fato, no juízo ou na relação é como procurar o espaço nos corpos, nas suas medidas e na distância de um a outro; assim como o espaço não está nos corpos, nem nas medidas nem nas distâncias, mas corpos, medidas e distâncias estão no espaço, assim também a verdade não está no fato, nem no juízo, nem na relação, mas todos estão na verdade ou não estão em parte alguma, e mesmo este "não estar", se algo significa e não é apenas um flatus vocis, tem de estar na verdade. A verdade não é uma propriedade dos fatos, dos juízos ou das relações: ela é o domínio dentro do qual se dão fatos, juízos e relações.

§ 2. A VERDADE É UMA FORMA "A PRIORI" DO CONHECIMENTO? A tentação kantiana é aqui praticamente incontornável. Condição de possibilidade de fatos, juízos e relações, a verdade é efetivamente uma condição a priori. Mas condição a priorida existência dessas três coisas ou apenas do seuconhecimento? Resolve-se este problema de maneira simples e brutal: se dizemos que a verdade é uma forma a priori do conhecimento e pretendemos que isto seja verdadeiro, então o conhecimento tem de estar na verdade e não a verdade no conhecimento, pois o a priori não poderia ser imanente àquilo que ele próprio determina. Para ser condição a priori do conhecimento, a verdade tem de ser necessariamente condição a priori de algo mais, que por sua vez não é conhecimento e sim objeto dele. O conhecimento, como os fatos, juízos e relações, está dentro do domínio da verdade, e isto independentemente de considerarmos o conhecimento tão-somente no seu conteúdo eidético ou como fato: a verdade do conhecido, a verdade do cognoscente e a verdade do conhecer são aspectos da verdade, e não a verdade aspecto de um deles. Não há enfim escapatória kantiana. Ou o conhecimento está na verdade ou não está em parte alguma.

NOTAS Há também aqueles que crêem na existência da verdade e estão seguros de possui-la sem qualquer esforço investigativo. Mas estes estão fora do debate filosófico e não nos interessam. Voltar Ainda sobre o historicismo: "[...] A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas, lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir a filosofia da história (séculos XVIII e XIX), que propõe uma visão global do desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos seguintes (XIX e XX) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que, por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como algo que

está situado no seu tempo e que já não nos diz nada exceto como documento histórico; como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominada historicista, situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas preocupações das nossas: os antigos ficam presos no seu tempo e nós nonosso tempo, como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes entre si. "A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente - como uma espécie de dogma no qual acreditamos sem exame - acredita que situar as coisas na sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora, na medida em que situamos os fatos e as idéias num tempo histórico, também os relativizamos, os tornamos relativos a esse tempo, e atenuamos ou diminuimos a importância, a significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os enterra no "seu tempo", deixando-nos fechados na atualidade do presente como numa redoma de sombras. "Este é um problema de método da maior importância [...]. Façamos, por exemplo, um modelo em miniatura e imaginemos que todas as idéias e sentimentos que tivemos ao longo de nossa vida, nos referíssemos exclusivamente e absolutamente à etapa da nossa vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou importância na nossa vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que surgem na infância, nós os referíssemos inteiramente à situação de infância, e os explicássemos exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que fomos estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que temos só seria válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo nossa autobiografia, estudando-a cientificamente, referimos estas idéias exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente. Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres - ou, pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias na sua perspectiva histórica, por um lado, é

compreendê-las em função do momento, mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que possam ter neste momento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de desistoricismo, que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande poeta do Romantismo francês, segundo a qual 'uma grande vida é um sonho de infância realizado na idade madura'. Sim, se o homem maduro já não recorda os seus sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem, então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas, sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe perguntaram para quem escrevia, respondeu: 'Para o menino que fui'. O menino é o juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das expectativas e sonhos de antes. "Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir. "Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e, invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado. "Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido - não

temporal, mas espacial -, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de viajar e se instalar em todos os lugares exóticos do mundo; e eles vão desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender os outros povos nos seus próprios termos. "O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no seu tempo e fazer uma coleção de idéias-tempo, cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e relativizadas. Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista, mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do presente continuam a medida de todas as coisas. [...]". (Ibidem, p. 22-23).Voltar

Apostilas do Seminário de Filosofia - 16

Conhecimento (Ser e conhecer - 2)

e

presença

Se denominarmos "conhecimento" apenas o conjunto de dados e relações que um homem carrega consigo e tem à sua pronta disposição num dado momento da sua

existência, o conhecimento será não apenas drasticamente limitado, mas informe e flutuante. Por isto incluímos nessa noção o conjunto mais amplo das informações registradas e disseminadas no seu meio social, sem as quais ele pouco poderia fazer por seus próprios recursos. Mas esse conjunto de registros, por sua vez, subentende a existência do meio físico, isto é, não somente dos materiais onde se imprimem esses registros, mas também do mundo de "objetos" a que eles se referem e com os quais se relacionam de algum modo. A noção de "conhecimento" como conteúdo da memória e da consciência humanas torna-se totalmente inviável se não admitirmos que o conhecimento, sob a forma de registro, existe também fora delas. Mais ainda, não podemos admitir que existam somente os registros feitos pelo homem, já que todo material que possa servir de tábua onde se inscrevam esses registros só pode se prestar a esse papel precisamente porque, na sua natureza e na sua forma intrínseca, ele traz os seus registros próprios, adequados a esse fim: não se escreve na água nem se produz uma nota musical soprando sobre uma rocha compacta. Registro é todo traço que especifica e singulariza um ente qualquer. Todo ente traz em si uma multidão de registros, alguns inerentes à forma da sua espécie, como por exemplo a composição química e mineralógica de uma pedra ou a fisiologia de um gato, outros decorrentes de sua interação com o ambiente em torno — como por exemplo as marcas da erosão na pedra ou o estado de saúde do gato considerado num momento qualquer da sua existência individual. Entre estes últimos, destacam-se os registros que nele foram impressos pelos seres humanos com a finalidade de torná-lo um suporte físico dos atos de reconhecimento e memória. A pedra esculpida traz em si os dados de sua composição físico-química e mineralógica, aos quais se superpõem as marcas da erosão e os sinais do trabalho do escultor. Ao contemplar a escultura, o espectador presta atenção consciente apenas às qualidades estéticas da forma esculpida e à aparência visível imediata da pedra que lhes serve de suporte, geralmente sem atentar para a composição íntima, física, química e mineralógica, a qual, no entanto, determina a aptidão da pedra para servir de suporte às qualidades que lhe são subseqüentemente superpostas, seja pela natureza, seja pelo escultor. Até que ponto essas qualidades íntimas da pedra são "indiferentes" ao efeito estético obtido? A resposta depende unicamente da amplitude da concepção do escultor, que tanto pode ter desejado imprimir uma forma significativa a um material qualquer, pronto a fazer o mesmo sobre um outro material se este estivesse à sua disposição, mas pode também ter desejado estabelecer uma ponte entre as qualidades da própria pedra e as da forma impressa. Quem leia o famoso parágrafo de Goethe sobre o granito terá uma idéia de quanto uma pedra, por si, pode sugerir determinadas qualidades esculturais e arquitetônicas. É só por uma comodidade prática que estabelecemos um limite entre as qualidades da forma intencional e as do próprio suporte, fisicamente considerado. Tudo são registros, e a amplitude maior ou menor do nosso horizonte de atenção só modifica a visão que temos de um determinado ente, e não o conjunto objetivo dos registros que estão nele.

Cada um de nós, enquanto existente, traz em si uma multidão de registros, aos quais se acrescentam os resultantes da interação com o meio e os auto-adquiridos (hábitos, por exemplo, ou a história dos nossos atos voluntários). Nessa multidão, onde começa o puro "conhecer" e onde termina o puro "ser"? Basta formularmos esta pergunta para nos darmos conta, de chofre, de que essa fronteira não existe. O puro "ser" só pode ser definido como o registro que está presente mas é desconhecido. Mas um traço meu qualquer que me seja desconhecido não o é mais, nem menos, do que um livro que esteja na minha biblioteca há anos sem que eu o tenha lido. Quando digo portanto que o livro "é conhecimento" e o traço desconhecido do meu ser é "pura existência", é apenas porque os registros que constam do livro foram postos lá por um ser humano, o qual a fortiori os conhecia, ao passo que os registros desconhecidos do meu corpo nunca foram — ao menos assim me parece — conhecidos por ninguém. Mas esta distinção é bem ilusória, ao menos quando tomada ao pé da letra. No livro há decerto muitas qualidades objetivamente presentes que podem ter escapado a todos os seus leitores e mesmo ao próprio autor. Elas serão então "conhecimento" ou "puro ser"? No primeiro caso, terei de admitir um "conhecimento desconhecido", no segundo terei de negar que os registros escritos sejam conhecimento. Por outro lado, até que ponto posso declarar que o traço desconhecido presente no meu corpo não é de modo algum conhecimento? Qualquer que seja a informação contida nesse "x", ela não pode ser absolutamente contraditória com o meu corpo considerado enquanto sistema e organismo, pois é parte dele e se integra, de algum modo, no seu funcionamento, sendo portanto um complemento "inconsciente" das partes dele que operam "conscientemente". Esse "x", portanto, além de estar bem integrado num sistema do qual amplas parcelas são conhecidas, está aí à minha disposição para ser conhecido de um momento para outro, assim como o livro que, na estante, espera que eu o leia. O corpo é registro, o livro é registro, os entes todos à minha volta são registros: transitam incessantemente do ser ao conhecer, do conhecer ao ser, de tal modo que a distinção destes dois momentos é antes ocasional e funcional do que outra coisa. Por isto mesmo a sensação tem sido o pons asinorum de todas as teorias do conhecimento, que, não sendo teorias do ser e sim do conhecer apenas, têm de encontrar um momento, uma passagem, um salto onde o ser se transmute em conhecer, e realmente jamais conseguem fazê-lo, pela simples razão de que esse salto é apenas uma mudança de ponto de vista e o ser não poderia transmutar-se em conhecer se já não fosse, em si e por si, o conhecer, apenas visto pelo avesso: nada poderia ser objeto de conhecimento se não contivesse registros, e nada pode conter registro sem ser, já, conhecimento "em potência". Mas que esta potência passe ao ato num momento determinado, desde o ponto de vista de um determinado sujeito cognoscente, não quer dizer que este seja o único ou o primeiro a efetivá-la: o registro que me é desconhecido e que agora se torna conhecido já pode ter sido transmitido a milhares de outros entes — humanos ou não — que entraram em contato com o portador desse registro ontem ou um milhão de anos atrás. Não, o "puro ser" não existe: todo ser é conhecido, pois algo de seus registros foi transmitido a outros seres.

Há, portanto, uma forma de conhecer que consiste, simplesmente, em ser. É ser portador de registros e, de algum modo, receptor deles (só não sendo receptor o ente impossível que em nada se relacionasse consigo mesmo e fosse constituído de pura auto-ausência1). A essa forma de conhecer que consiste em ser, denomino, sumariamente, presença. A presença é o fundamento de todas as demais modalidades de conhecimento. Todas as práticas de concentração, meditação, recolhimento, etc., criadas pelos homens espirituais de todas as épocas têm como finalidade primeira alcançar e conservar o senso da presença. O senso da presença é a plena assunção de um ente por si mesmo, na totalidade dos seus registros e na sua modalidade específica e particular de existência. Peço a fineza de não confundir o senso da presença com algum tipo de "conhecimento inconsciente", "instinto", "mistério indizível" e coisas tais, já que as distinções entre consciente e inconsciente, instintivo e aprendido, dizível e indizível, etc., só se aplicam a formas derivadas e secundárias de conhecimento, que constituem o orbe daquilo que a rigor se denomina "a mente". As distinções internas do mental não se aplicam ao senso da presença pela simples razão de que este abrange o mental como um conjunto de registros entre outros conjuntos de registros que compõem a nossa presença. O senso da presença é o ponto de interseção onde todos esses pares de opostos se reúnem e de onde partem para constituir as várias modalidades do conhecimento mental. Ele não poderia, portanto, caber nas categorias que estas determinam.

27/09/99

NOTAS Neste sentido — e não no de Hegel — o puro ser é idêntico ao puro nada, pois a expressão puro ser designa aí o desconhecido absolutamente incognoscível; incognoscível até para si mesmo. Voltar

Apostilas do Seminário de Filosofia - 17

Humanismo e Seminário de Filosofia, 23 de novembro de 1999

totalitarismo

Ou há uma realidade absoluta e eterna acessível ainda que parcialmente ao indivíduo humano, ou não há. Na primeira hipótese, todo vislumbre dela que tenha sido experimentado, ainda que fugazmente, tem uma importância universal objetiva como realização das supremas possibilidades humanas, mesmo que essa experiência tenha acontecido a um indivíduo solitário e desconhecido, e mesmo que dela nada tenha se registrado para a "posteridade" e integrado no legado "cultural". Tal é o caso dos "santos anônimos", como oswally'ullahi ("amigos de Deus") do islamismo, referidos, ao lado dos homens espirituais famosos e em escala de valor não inferior ao deles, por todas as tradições religiosas e sapienciais. A História da sabedoria, aí, não passa do registro de uns quantos exemplos notáveis, escolhidos ao sabor da acidentalidade que os tornou famosos. A fama e o conseqüente registro histórico não significa nem que esses casos sejam os mais elevados no que diz respeito à qualidade e quantidade dos conhecimentos obtidos, nem que entre eles, tomados em conjunto na sua sucessão histórica, exista a unidade identificável de um processo, de vez que, como Deus protege da notoriedade muitos dos que Lhe são próximos, muitos elos decisivos dessa cadeia, se é que ela existe, têm de permanecer desconhecidos da "cultura" humana e da história. Na Bíblia, por exemplo, a figura misteriosa, evanescente e perfeitamente a-histórica de Melquisedec, da qual pouco se sabe além de que é o nome do fundador da ordem sacerdotal em que se insere o próprio Cristo, não é menos decisiva, espiritualmente, do que um personagem da relevância pública e histórica de Moisés. A história, aí, não é senão o mostruário mais ou menos casual e fragmentário de uma unidade transcendente, a qual só se realiza numa meta-história que permanece acessível - paradoxalmente, para o gosto moderno - a indivíduos sem importância histórica nenhuma. Praticamente todas as civilizações conhecidas assentaram-se nessa hipótese. Na outra hipótese, não há unidade transcendente alguma, nem meta-história, nem vislumbres esparsos dessa suprema realidade. Só resta então duas alternativas: ou cada indivíduo isolado se perde e se anula na sua subjetividade empírica fatalmente cega, ou os homens se reúnem para construir, pela redução de seus discursos individuais à unidade de uma doutrina ou ao menos de um diálogo racionalmente formulável, o único tipo de universalidade doravante possível, a universalidade de uma linguagem válida para todos os membros da espécie. Seria um exagero dizer, como René Guénon, que "a civilização ocidental moderna" apostou maciçamente nesta segunda hipótese, sendo o único exemplo conhecido disso. Pois, de um lado, dentro dessa mesma civilização subsistem poderosos núcleos de resistência fortemente apegados à aposta na meta-história, núcleos sem cuja presença a história moderna seria totalmente inconcebível (como o prova aliás a própria influência de René Guénon, que nem por discreta é menos decisiva, do que, se fosse preciso demonstrá-lo, seria exemplo bastante a prodigiosa expansão do esoterismo islâmico entre as elites dominantes européias).

No entanto é fato que em nenhuma outra civilização conhecida a pretensão de suprimir a meta-história e de construir uma universalidade ao nível da pura história foi tão destacada como no Ocidente moderno. Por isto, ainda que parcial, problemática e rodeada de resistências que crescem em vez de diminuir, a mencionada aposta pode legitimamente ser encarada como o principal traço diferenciador dessa civilização. Por sua eliminação dos fatores sobre-humanos e sua ênfase no papel exclusivo da humanidade na criação do novo padrão de universalidade, esse traço recebeu o nome de humanismo. Entre as conseqüências que essa aposta atrai inevitavelmente, há uma que tem passado despercebida àqueles que a defendem. É que ela, para se manter, deve substituir ao mero dogmatismo autoritário das antigas tradições a nova forma de tirania muito mais abrangente e cerrada que, por não deixar nada da conduta humana mesmo íntima e secreta escapar ao seu controle, se denominou, com muita propriedade,totalitarismo. As relações de implicação recíproca de humanismo e totalitarismo são o tabu em que se assenta, como sobre a conspiração para ocultar um crime originário, a parte mais pública e hegemônica da cultura moderna. Dois fatores contribuem para manter intocado esse tabu. De um lado, o prestígio mesmo, quase mágico, da palavra "humanismo". Originariamente designando apenas a aposta na autonomia da humanidade em relação a todo sobre-humano, o termo humanismo, tardiamente, veio a ser usado para designar, na retórica e na propaganda política, a defesa dos seres humanos contra as tiranias desumanas, obscurecendo assim aos olhos da multidão o fato historicamente inegável de que nenhuma das grandes tiranias modernas se assentou na devoção ao supra-humano, mas, ao contrário, todas elas nasceram da adesão professa ao humanismo, da aposta no universal histórico. De outro lado, toda a história moderna se desenrola ao fio das lutas entre duas facções dos construtores do universal histórico: os adeptos da doutrina universalmente válida e os adeptos do diálogo em aberto (por exemplo, os marxistas e os liberais; ou os nazistas e os socialdemocratas). Como cabe aos primeiros representar a opção totalitária ostensiva, a periódica vantagem a favor dos segundos e a hegemonia que desfrutam ao longo do tempo dão a impressão de que o ciclo moderno vai na direção da vitória sobre o totalitarismo e de que portanto este não pertence à natureza mesma desse ciclo e só pode ser explicado como "resíduo" de eras passadas. Assim, a invenção tipicamente moderna do totalitarismo vai sendo cada vez mais atribuída a épocas que o desconheceram por completo e que não poderiam sequer imaginá-lo, ao mesmo tempo que o totalitarismo mais expansivo pode perpassar de cabo a rabo todo o ciclo moderno sem jamais ser percebido como fenômeno caracteristicamente dele e só dele, que é o que de fato ele é. Embora só a modernidade tenha conhecido regimes totalitários, a imagem dela permanece limpa de todo contágio com a horrenda figura do totalitarismo na medida mesma em que as épocas que não o conheceram são sacrificadas como bodes expiatórios no altar da auto-lisonja moderna.

No entanto, a perpetuidade ao menos cíclica do totalitarismo - e da luta contra ele por parte dos adeptos do diálogo - na época moderna, bem como a ausência de ambos esses fenômenos em outras épocas, sugere, por si, mais que a conveniência, a imperiosa obrigatoriedade lógica e moral de não caracterizar a época moderna por um desses traços apenas - e muito menos pelo mais bonito deles tomado isoladamente - e sim pela coexistência de ambos. É errado, pois, associar o tempo do humanismo apenas com a defesa da liberdade e do diálogo, pois o totalitarismo está presente nele com a mesma constância da ideologia dialogal e o singulariza tanto quanto ela. O totalitarismo não é a sombra de épocas passadas que obscurece as luzes da civilização humanista: é a sombra da própria civilização humanista, com que ela obscurece injustamente a nossa visão das épocas passadas. Porém, há mais quatro itens que devem ser levados em consideração nesse exame impiedoso da era moderna. Primeiro, se o totalitarismo está associado ao humanismo ao menos tanto quanto o está a ideologia dialogal, a revelação desse fato suprimiria no mesmo instante boa parte do prestígio dessa ideologia que, não podendo subsistir sem a sombra que por contraste a faz parecer luminosa, se dissiparia instantaneamente na hipótese de ausência dele. Eis aí por que a queda do Muro de Berlim não inaugurou no mundo a anunciada era de liberdade, mas um estado crônico de intervenção policial. Em segundo lugar, se o totalitarismo não pode ser separado da época humanista e se esta só consegue afirmar sua superioridade sobre as épocas passadas projetando sobre elas a sua própria sombra de modo a fazê-las parecer totalitárias, cabe perguntar se também esta projeção e esta mentira histórica não estão na própria natureza da era humanista e se esta poderia subsistir um só instante se tal mentira fosse universalmente revelada como tal. Em terceiro lugar, é preciso perguntar-nos, com toda a firmeza requerida para isso, se a ideologia dialogal, com todos os seus encantos, é efetivamente algo mais do que pura ideologia, no sentido depreciativo de Ideenkleid, "vestido de idéias" com que o humanismo encobre sua face totalitária, e se, considerada na densa realidade concreta de sua cumplicidade congênita com o totalitarismo, essa ideologia não se desfaria em miserável pó de palavras. Em quarto e último lugar, restaria examinar se o próprio diálogo, nas condições concretas em que se exerce e não no seu mero conceito abstrato idealizado, não consegue se instalar e manter apenas por meios discretamente totalitários, pronto a convertê-los em totalitarismo ostensivo ao menor sinal de perigo para os fundamentos da sua existência, isto é, ao menor sinal de desmascaramento do pacto humanista entre totalitarismo e diálogo. Se as doutrinas da liberdade política, da democracia e do diálogo não puderem subsistir a esse exame, é porque não têm substância nenhuma fora desse pacto.

Apostilas do Seminário de Filosofia - 18

O Anti-Gramsci ~ 1 Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético

Nota Prévia No Jornal da Tarde de 8 de dezembro de 1999, prometi aos leitores fazer um comentário extensivo dos escritos de Antônio Gramsci, publicando-o à medida que fossem saindo os volumes da edição nova e completa anunciada pela Record. Como, porém, o organizador da coleção é o mesmo da velha (publicada pela Civilização Brasileira a partir de 1967) e no tocante aos livros que já saíram nesta última não é provável que se façam grandes alterações nos textos, não há necessidade de esperar que saia o primeiro volume para iniciar a redação dos comentários, que posso muito bem ir fazendo com base na edição antiga, pronto a corrigir algum detalhe se mais tarde se revelar que o texto da Record traz novidades. O método a seguir será o comentário linear, tão meticuloso quanto possível, recapitulado, de tempos em tempos, sob a forma de sínteses parciais, até o amargo fim. Como ninguém duvida de que, do ponto de vista das bases gnoseológicas do seu sistema, o escrito mais decisivo de Antonio Gramsci é Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, e como este foi aliás o primeiro deles a ser publicado no Brasil (sob o título Concepção Dialética da História, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio, Civilização Brasileira, 1967, várias reedições)1, é por aí mesmo que vou começar. Como estes comentários irão sendo divulgados pela internet à medida que se componham, e como é provável que os leitores lhes interponham de tempos em tempos perguntas e objeções, vou-me permitir interromper quando necessário o curso da exposição central para fornecer as respostas cabíveis - o que dará a este escrito o estilo movimentado de uma exposição em classe. Já que muitos leitores vinham me pedindo algo como um curso de filosofia online, eis aqui a oportunidade de atender à sua demanda, e de fazê-lo de uma forma que será praticamente idêntica à de meus cursos "ao vivo", nos quais, exatamente como aqui, prefiro, à exposição tratadística e sistemática, para a qual não tenho o menor talento, a abordagem dialética e crítica ao fio dos comentários a algum texto amado ou execrado. (Amado ou execrado, sim, porque, quando não resulta de um preconceito e sim das conclusões de um longo exame, a firme adesão ou repulsa moral, longe de obscurecer a visão objetiva das coisas, é a condição mesma da confiabilidade do conhecimento, se

por conhecimento se entende não a simples visão, mas a visão com forma, medida e senso das proporções.) Ademais, a discussão de Gramsci nos dará, de passagem, a ocasião de tocar em todos ou quase todos os pontos essenciais da problemática filosófica, de modo que estas lições perfarão, no fim das contas, um curso de introdução à filosofia com todas - ou quase todas - as exigências de praxe. Olavo de Carvalho 10/12/99

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ Parte I. Il Materialismo di Benedetto Croce

~ Storico

Comentários e la

a Filosofia

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Lição 1. - Introdução. - De como a filosofia parece fácil aos olhos de quem não sabe (ou finge não saber) o que ela é.

§ 1. Minha atitude pessoal perante o objeto destas lições

"Gramsci inspira respeito até mesmo aos seus mais encarniçados adversários", afirmam Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder na nota introdutória à sua edição de Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce (A Concepção Dialética da História, Rio, Civilização Brasileira, 6ª ed., 1986), a primeira obra de Gramsci publicada no Brasil. Há de fato um certo tipo de liberal progressista que tem, pelos intelectuais comunistas bem falantes, até mais que respeito: tem uma atração mórbida bastante masoquista. Dostoiévski retratou definitivamente o tipo em Os Demônios no personagem de Verkhovenski Sênior, o devoto da liberdade, da fraternidade e da igualdade, fazendo dele, simbolicamente, o pai carnal do cruel revolucionário que, para fomentar a revolta popular, não hesita em atear fogo a um bairro pobre da cidade. Mas Verkhovenski, no final do romance, percebendo na desgraça do povo a conseqüência lógica da aplicação de seus lindos ideais abstratos, tem ao menos a dignidade de ficar louco, e na sua loucura, como um novo Lear, admitir por fim a verdade longamente escamoteada.

Como à maioria dos idealistas falta completamente a lucidez que in extremis assume a responsabilidade pelas conseqüências imprevistas de suas palavras, não é de estranhar que mesmo entre seus adversários Gramsci "inspire respeito". Quanto a mim, digo o seguinte: se há algo que Gramsci não me inspira de maneira alguma, é respeito. Pode me inspirar espanto, repugnância, piedade, até mesmo hilaridade, embora seja pecado rir da desgraça alheia. Respeito, não. A falsidade da doutrina gramsciana não nasce de simples erros ou preconceitos parciais sobre um fundo de autêntico espírito filosófico e amor à verdade. Ela decorre de um desvio fatal do espírito, de uma opção tenaz pelo engano, que vicia todo o conjunto do seu pensamento. Enquanto a maioria dos filósofos vislumbra alguma verdade essencial e depois tira dela algumas conseqüências inaceitáveis, Gramsci se compromete desde o início com um erro essencial que contamina e deforma com uma perspectiva falsa até mesmo as inúmeras verdades de detalhe que ele apreende sobre mil e um assuntos. Em psicopatologia, esse fenômeno chama-se delírio de interpretação: por mais informações verdadeiras que entrem no quadro, a falsidade da perspectiva as deforma de tal modo que, no fim, nada se salva. Se Gramsci fosse louco - e às vezes,cum grano salis, digo que é -, sua doença se deixaria facilmente identificar como delírio de interpretação, mais ou menos como no caso de Rousseau, mentiroso patológico que tinha o dom de se persuadir das próprias mentiras até torná-las verossímeis aos olhos do leitor. Mas Gramsci não era um doente da alma, como o pauvre Jean-Jacques. Era simplesmente um homem hostil à verdade onde quer que ela aparecesse e sob qualquer forma que se apresentasse. Era um espírito comprometido de maneira essencial e visceral com a paixão - talvez a mais violenta e arrebatadora de quantas existem - de trocar o verdadeiro pelo verossímil, de preferir ao autêntico o simulacro, até o ponto de fazer da simulação e da pantomima o princípio mesmo da História e do mundo. Por isto as explicações psicopatológicas falham, irremediavelmente, no seu caso. É preciso subir às alturas da teologia para dar conta de fenômeno tão espantoso. Jesus dizia: "Vós sois deuses", enquanto a serpente, no Paraíso, prometia: "Sereis como deuses." A doutrina de Antonio Gramsci advoga a universal e irrecorrível substituição da verdade por algo como a verdade. Essa conduta assinala precisamente aquilo que, na teologia cristã como na islâmica, é o pecado contra o Espírito Santo, o obstinado e consciente desprezo da verdade - o único pecado que a Graça não pode perdoar, nem neste mundo nem no outro. Tamanho delito não se pode imputar nem mesmo a Karl Marx ou a Lênin, talvez nem sequer a Josef Stálin. No Juízo Final, Jesus terá um olhar de misericórdia mesmo para os tiranos e genocidas. Mas àqueles que conscientemente desprezaram a verdade, Ele dirá apenas: "Não vos conheço." "Respeito" vem de re-spicere, que sugere a idéia de olhar o mesmo objeto duas vezes e reconhecê-lo. Aquele a quem nem o próprio Deus reconhece não pode, por definição, ser objeto de respeito, exceto se por "respeito" se entende o impulso servil que leva as almas débeis, como a de Verkhovenski, a se prosternar ante os que mentem com força. É algo como a "síndrome de Estocolmo" ou a atração ex post facto da estuprada pelo estuprador.

Nada atesta com mais evidência a fragilidade da maior parte dos ideólogos democráticos do que o fato de que tantos deles, mesmo abominando a doutrina de Gramsci, cedam à tentação de "respeitar" o seu autor. Que, ao longo dos comentários que vou tecer sobre a doutrina de Gramsci, Deus me preserve desse pecado.

§ 2. Filósofos e filósofos

Começo pelo começo. O começo, o primeiro parágrafo de Gramsci que apareceu em português, é tão significativo que a edição hagiográfica do suplemento Mais! da Folha de São Paulo dedicado a Antonio Gramsci (21 de novembro de 1999) o escolheu, muito bem, como amostra característica do pensamento do fundador do Partido Comunista Italiano. Esse parágrafo contém, a um tempo, a concepção gramsciana da filosofia, a noção essencial de "senso comum" e a declaração de objetivos de todo o esforço intelectual de Antonio Gramsci. Analisando-o entramos portanto, desde logo, no centro do problema ou, melhor dizendo, na toca do dragão: "É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são "filósofos", definindo os limites e as características desta "filosofia espontânea", peculiar a "todo o mundo", isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por "folclore". Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente - já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na "linguagem", está contida uma determinada concepção do mundo -, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível "pensar" sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, "participar" de uma concepção do mundo "imposta" mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na "atividade intelectual" do vigário ou do velho patriarca, cuja "sabedoria" dita leis, na

mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?" 2 Nesse trecho célebre, Gramsci dá uma exibição de incultura filosófica, incompreensão do assunto e solipsismo adolescente ansioso de fazer das suas próprias limitações pessoais a medida máxima do universo filosófico. Ele aí busca persuadir-nos de que a prática da filosofia é coisa fácil porque, entre a filosofia espontânea do homem comum e a filosofia dos filósofos não há diferença essencial e qualitativa, mas apenas acidental e quantitativa: a filosofia dos filósofos é o mesmo sistema de crenças dos homens comuns, apenas dotado de mais coerência, mais homogeneidade, maislógica. Gramsci não concebe aí senão dois tipos de "filósofos": o profissional especializado e o "homem comum" - aquele que filosofa ex officio e aquele que filosofa sem saber que o faz. Para perceber o quanto essa distinção é periférica e postiça, basta notar que o príncipe mesmo dos filósofos, Sócrates, não se enquadra em nenhuma dessas categorias, como também aí não cabem Tales e Heráclito, Epicteto e Agostinho e uma infinidade de outros. Não são profissionais especializados nem filosofantes inconscientes. A quem quer que examine uma amostragem significativa dos filósofos de todas as épocas, uma coisa que salta aos olhos é a absoluta impossibilidade de localizá-los numa categoria social determinada. A filosofia parece ser compatível com todas as posições de classe, com todas as condições profissionais e econômicas. Sócrates era um empreiteiro aposentado, Platão um aristocrata, Aristóteles um filho de funcionário público, Epicteto um escravo. Descartes era militar, Bacon juiz de direito, Espinosa técnico em fabricação de lentes, Leibniz diplomata, Vico mestre-escola, Marx jornalista e, last not least, Gramsci operário e depois agitador profissional. Filósofos profissionais universitários só predominam em curtos períodos, como na escolástica, no idealismo alemão e, em geral, na Europa moderna depois da reforma do ensino por Victor Cousin. Os filósofos ex professo não sociologicamente.

são,

em

suma,

uma

categoria

identificável

A idéia de que os filósofos sejam uma categoria profissional à parte é apenas uma crença popular moderna e bem artificial. Gramsci acredita, porém, que, contestando-a, eliminará toda distinção essencial entre filosofia e crença popular. Ora, essa distinção existia e era bem conhecida muito antes que a mencionada crença aparecesse e se tornasse "senso comum" no século XIX, após a reforma de Victor Cousin que fez da filosofia a profissão universitária que hoje conhecemos. Há um

perfeito non sequitur, que Gramsci nem de longe percebe, entre a contestação da crença e a negação da distinção essencial. Ele crê ingenuamente poder deduzir uma coisa da outra (porque imagina que, discutindo com o senso comum do seu tempo, está discutindo com toda a tradição filosófica3). Mas, se os filósofos não se distinguem dos não-filósofos sociologicamente, que é que os distingue então? É manifestamente uma diferença de atitude subjetiva: é, precisamente, o fato de que filosofam de maneira consciente e voluntária, pouco importando que o façam no quadro de uma atividade profissional ou nos lazeres de uma vida de "cidadãos comuns". Se no entender de Gramsci todos os homens filosofam inconscientemente, e alguns conscientemente, o fato de que ele designe os primeiros como "filósofos", entre eloqüentes aspas, significa que ele próprio reconhece que só são filósofossecundum quid, isto é, sob certo aspecto, e não filósofos em toda a extensão do termo. Eles só filosofam de maneira passiva, imitativa e mecânica, "participando de uma concepção do mundo 'imposta' pelo ambiente exterior". Ora, a filosofia é precisamente a atividade que reage criticamente a essa concepção e, por um esforço voluntário de giro da atenção, problematiza justamente aquilo que a concepção 'imposta' toma implicitamente, ou mesmo inconscientemente, por líquido e certo. Chamar "filosofia" a essas duas atitudes é, propositadamente, confundir filosofia e cosmovisão. Cosmovisão é precisamente o sistema - por mais anárquico e incoerente de crenças, hábitos e reações embutido, como frisa o próprio Gramsci, na linguagem, no "senso comum"4 e na "religião popular". Uma cosmovisão, ainda que implícita e inconsciente, todo mundo tem. A filosofia começa quando o homem reflete criticamente sobre sua própria cosmovisão, coisa que seria impossível fazer de maneira inconsciente. Que a passagem de crença passiva à de reflexão crítica seja coisa fácil, eis o que é desmentido, desde logo, pela escassez de filósofos na massa dos homens comuns, e, enfim, pela própria índole da atitude filosófica, que uma vez adotada isola um homem de seus semelhantes ao ponto de fazer dele um tipo estranho e muitas vezes socialmente inassimilável. A atitude filosófica e a do "senso comum" diferem sob vários aspectos, mesmo quando têm diante do foco da consciência os mesmíssimos assuntos. A tradição filosófica sempre enxergou a essência da filosofia precisamente na sua distinção da simples cosmovisão, distinção que corresponde, mutatis mutandis, à do individual e do coletivo5, à da contemplação e da ação6, à da atitude "natural" e da "reflexiva"7, etc. São tantas as diferenças que, ao longo dos tempos, os filósofos se exercitaram em destacar ora uma, ora outra, sem que entre essas várias abordagens exista contradição, senão complementaridade. O próprio Karl Marx, ao afirmar que "os filósofos, até agora, se limitaram a interpretar o mundo, mas o que interessa é transformá-lo", estabeleceu uma linha demarcatória que coincide com a da tradição, apenas fazendo um apelo a que seus leitores ultrapassassem o círculo da filosofia para

entrar no território mais vasto da ação histórica. Gramsci, ao contrário, enfatiza a continuidade e identidade de filosofia e cosmovisão, dissolvendo nesta a especificidade da atitude filosófica. Ele chega mesmo a afirmar, mais adiante, que, "entre os filósofos profissionais ou 'técnicos' e os outros homens não existe diferença 'qualitativa', mas apenas 'quantitativa'". E, embora admita que "neste caso, 'quantidade' tem um significado bastante particular, que não pode ser confundido com soma aritmética, porque indica maior ou menor 'homogeneidade', 'coerência', 'logicidade', etc., isto é, quantidade de elementos qualitativos"8, de pouco vale esta ressalva, na medida em que os elementos qualitativos citados se reduzem às qualidades puramente formais - e até matematizáveis - do raciocínio filosófico: homogeneidade, coerência, logicidade, etc. A filosofia reduz-se, enfim, à mera formalização lógica da cosmovisão recebida. E também de nada adianta a ressalva de que o filósofo não exerce essa atividade formalizadora somente sobre a sua própria cosmovisão e sim sobre "toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular"9. Pois, na medida mesma em que estas estratificações estão consolidadas, elas constituem parte integrante da cosmovisão pessoal e são formalizadas, portanto, junto com ela. Que a "filosofia" assim compreendida nada tenha de difícil, que possa ser praticada por qualquer um e mesmo por um computador, é coisa que se pode facilmente admitir. Mas essa concepção, se em si mesma é simplória e pueril, reduzindo o filósofo a um técnico em formalizar as opiniões recebidas, por outro lado não tem a mínima correspondência com os fatos conhecidos da história da filosofia, ao longo da qual nenhum, absolutamente nenhum filósofo - exceto o próprio Gramsci, que só é filósofo num sentido metafórico e elástico do termo - jamais se limitou a uma brincadeira mecânica e estúpida de formalizar a vox populi. Bem ao contrário, a maioria deles se notabilizou por rejeitar criticamente a massa de opiniões recebidas e por especular em novas direções, não raro chegando a conclusões que, por inauditas e heterodoxas, mal chegavam a ser compreendidas pelos seus contemporâneos, e que, se acaso vieram a tornar-se depois voz corrente e integrar-se no "senso comum", só o fizeram num prazo bem longo e após enfrentar as mais prodigiosas resistências. O exemplo talvez mais característico é Aristóteles, cujo pensamento, notoriamente incompreendido até pelos seus discípulos mais próximos, sobreviveu apenas em forma fragmentária, até ser completamente obscurecido, só vindo a ressurgir, para então sim tornar-se voz corrente (e isto somente na classe letrada), uma vez decorridos treze ou catorze séculos da morte de seu criador. Longe de "formalizar o senso comum do seu tempo", Aristóteles é expelido do discurso dominante da sua época e antecipa o senso comum de uma época futura, da qual não podia ter a menor idéia no instante em que criava a sua filosofia. Não por coincidência, no sistema aristotélico a formalização e coerenciação das crenças correntes10, longe de constituir a essência da atividade filosófica, é apenas a condição prévia da verdadeira investigação: uma vez bem arranjado o conjunto das opiniões vigentes, o exame crítico delas deverá operar o salto qualitativo que, da discussão de doutrinas, passará à intuição da essência do objeto mesmo. Este momento fundamental

da passagem das palavras às coisas é totalmente ignorado por Gramsci, e é precisamente ela que assinala, em Aristóteles, a diferença entre a filosofia, investigação rigorosa, e o mero confronto de opiniões.11 Outro exemplo de como a atividade do filósofo transcende infinitamente a coerenciação do senso comum nos é dado por Leibniz, que em plena época de mecanicismo hegemônico cria as bases de uma física indeterminista que passou totalmente despercebida aos seus contemporâneos e se tornou "senso comum" entre os cientistas dois séculos depois. Os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente. Nada, absolutamente nada, nem um único fato ou exemplo na história da filosofia confirma a definição gramsciana de filosofia, a qual no entanto ele não apresenta como proposta pessoal e inédita mas como expressão da realidade histórica da ocupação dos filósofos o que evidencia, de um lado, uma prodigiosa incultura filosófica e, de outro, como seqüela dessa deficiência, uma afoiteza provinciana ou adolescente de fazer de si próprio, projetivamente, o paradigma de toda interpretação global da história da filosofia. Com isto, já percebemos, desde a entrada, o tipo de terreno de pensamento em que nos movemos: estamos em pleno terreno da projeção ampliada e paranóica de uma idiossincrasia pessoal sobre o conjunto de uma história antes imaginada que conhecida. Qualquer leitor que, somente por essa constatação, já não perceba estar lidando com o pensamento canhestro e informe de um parvenu estranho a toda reflexão filosófica, dá sinal de estar, ele próprio, bem mal equipado para a filosofia. Que um pensamento desse nível chegue a ser levado a sério e mesmo glorificado por uma boa fatia do mundo universitário, eis um fenômeno que assinala um alarmante obscurecimento coletivo da inteligência humana, um fenômeno que, se vier a se generalizar para além da quota de estupidez média admissível entre as massas de estudantes e bacharéis, não será excessivo qualificar de apocalíptico.

§ 3. A disputa filosófica entre o homem-massa e o homem-massa

Mas Gramsci vai um pouco mais longe no seu empenho de fazer da sua própria estatura de anão a medida máxima de aferição das intenções filosóficas alheias. Ele proclama que: Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homensmassa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de

uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um "conhece-te a ti mesmo" como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise."12 Nada mais óbvio: se todos os homens são filósofos e os filósofos ex professo só se distinguem deles pelo grau maior de coerência e logicidade com que crêem exatamente nas mesmas coisas que eles, então entre o filósofo com aspas e o filósofo sem aspas não há outra diferença senão aquela que existe entre o conformista incoerente e o conformista coerente, entre o homem-massa espontâneo e confuso e o homem-massa assumido e formalizado. Novamente, a idéia em si é estúpida e sem o mínimo respaldo histórico que se poderia exigir de uma generalização tão ambiciosa. Se o homem não tem opção senão escolher entre um conformismo desagregado e ocasional e um conformismo consciente e sistemático, toda nova filosofia que apareça não pode ser senão a sistematização de um conformismo já dado, latente, em sua pureza, no seio dos conformismos confusos que perfazem o "senso comum" do seu ambiente. Cada novo sistema filosófico, assim, em vez de se opor ao conformismo estabelecido, não faz senão aderir a um conformismo prévio, que ele apenas apresenta em forma mais depurada e límpida. Isto resulta em afirmar que Sócrates não declarou nada que fosse formalmente contrário às crenças coletivas daqueles que o condenaram à morte, mas apenas deu coerência e homogeneidade àquilo em que todos já acreditavam. Seria positivamente uma lástima que um tão fiel sacerdote da crença estabelecida fosse condenado à morte por mero engano, só porque os juizes não tiveram a esperteza de notar que concordavam com tudo quanto ele dizia. Mais lamentável ainda foi que, tão hábeis em reconhecer o sentido unânime de suas próprias crenças consensuais quando se expressavam na algaravia coletiva sob forma multívoca, "ocasional e desagregada", não soubessem reconhecê-las quando, pela boca de Sócrates, se apresentaram em linguagem mais lógica, mais coerente e mais homogênea. Nem Gramsci, nem o consenso mundial dos gramscistas reunidos poderá jamais nos explicar como um tal abismo de incompreensão pode se abrir entre um homem-massa que crê numa coisa e outro homem-massa que, além de acreditar piamente na mesmíssima coisa, ainda a explica ao primeiro em linguagem clara, didática e coerente.

Porém o mais lindo nessa história toda é que o senso comum, ao mesmo tempo que oferece resistência às inovações introduzidas pelo filósofo individual, desempenha também a função de sujeito ativo e criador que antecede as descobertas do filósofo. Mas se o senso comum é ao mesmo tempo o baluarte do conformismo e a mola-mestra da renovação filosófica, acumulando os dois papéis principais na trama do processo histórico, para que raios seria necessário um filósofo para depurá-lo se esta depuração será sempre subseqüente às mudanças fundamentais? Se o senso comum era um resíduopassivo precisamente por ser inconsciente, e se por isto necessitava do filósofo para trazê-lo à luz da consciência, como pode agora tornar-se por si próprio o fator ativo, quando só na consciência do filósofo ele adquire a forma e o sentido unitários necessários à passagem da passividade à atividade? A indistinção canhestra de inconsciente-passivo e consciente-ativo é aí manifesta, e ela basta para dar a este ponto da doutrina gramsciana aquela característico estofo de confusão impenetrável que só aos olhos do principiante ingênuo pode passar por sinal de pensamento profundo. Que toda a doutrina gramsciana é uma bobagem grosseira, indigna de atenção filosófica séria, eis algo que, se já não se tornou evidente a algum leitor mediante este breve exame de um parágrafo fundamental de Antonio Gramsci, arrisca não se tornar claro nunca mais, porque nenhum acúmulo de provas poderá jamais dar inteligência filosófica a uma mente inepta. Em todo caso, vale a pena prosseguir acumulando provas até o limite do intolerável, porque o culto gramsciano não nasce de uma privação de inteligência, e sim de uma perversidade da vontade - e, ao contrário da inteligência rombuda, à qual a própria força probante dos argumentos mais perturba que esclarece, impelindo-a cada vez mais para longe da verdade e para dentro da sua própria confusão, a vontade doentia, esta sim, quando coexiste com uma inteligência sã, não tem forças para negá-la indefinidamente e mais dia menos dia acaba cedendo ao peso das evidências, ainda que a contragosto.

10/12/1999 Segunda

parte

NOTAS Todas as citações de Gramsci nesta parte, exceto indicação expressa em contrário, são extraídas desta obra e edição. Voltar A Concepção Dialética da História, pp. 11-12. A continuação imediata deste parágrafo, também reproduzida na Folha, será dada e comentada mais adiante. Voltar Ele é levado a esse erro grosseiro justamente por um preceito da sua própria doutrina, segundo o qual o "senso comum" contém um depósito de todas as filosofias de eras

passadas. Ora, a experiência moderna mostra que o "senso comum" - no sentido específico que Gramsci dá a este termo - é bem mais vulnerável à ação consciente de propagandistas e manipuladores do que à influência residual das tradições. A própria eficácia publicitária do gramscismo é uma prova disso. Além do mais, os elementos da tradição, mesmo quando não sejam totalmente esquecidos (o que necessariamente acontece quando se rompe a cadeia de transmissão) podem sobreviver no senso comum sob forma desfigurada e caricatural. Voltar Discutirei este conceito mais adiante. Voltar Por exemplo, Vladimir Soloviev: "A filosofia, em sua qualidade de conhecimento reflexivo, é sempre obra da razão pessoal. Ao contrário, nas outras esferas da atividade humana geral, a razão individual, a pessoa isolada desempenham um papel antes passivo: é a espécie que age; uma atividade impessoal aí se manifesta, similar à do formigueiro ou da colméia. É indubitável, com efeito, que os elementos essenciais da vida do homem (língua, mitologia, formas primitivas da sociedade) são, na sua formação, totalmente independentes da vontade consciente das pessoas isoladas. No ponto em que está a ciência atual, está fora de dúvida que a língua ou o Estado não foram inventados por pessoas isoladas, tanto quando a organização da colméia, por exemplo, não foi inventada por abelhas isoladas. Quanto à religião, no sentido próprio (não a mitologia), ela também não pode ser inventada: nela também a pessoa isolada desempenha, como tal, um papel antes passivo, em primeiro lugar na medida em que uma revelação exterior, independente do homem, é reconhecida como fonte objetiva da religião, e em seguida na medida em que o fundamento subjetivo da religião é a crença das massas populares, determinada pela tradição comum e não pelas investigações da razão pessoal." (Crise de la Philosophie Occidentale[1874], trad. Maxime Herman, Paris, Aubier, 1947.) Voltar Aristóteles. Voltar Husserl. Voltar P. 34. Voltar P. 12. Voltar E mesmo assim não de toda a vox populi, e sim somente das opiniões dos sábios, isto é, daqueles que dedicaram ao assunto uma atenção consciente e que por isto já não expressam simplesmente a voz corrente e sim uma depuração dela. Voltar Veremos adiante que em Gramsci o objeto, a realidade investigada, desaparece completamente do horizonte de visão, transformando a filosofia num mero conflito de opiniões que se reduzem, por fim, a interesses de classes - não lhe interessando nem sequer demonstrar que esta redução, considerada enquanto conteúdo da sua doutrina, é por sua vez verdadeira e corresponde aos fatos; ao contrário, ele a toma por pressuposto e, em última análise, como decisão da vontade. Voltar

P. 12. Na sentença final a ed. citada traz "esse inventário", que o texto daFolha mudou, inexplicavalmente, para "essa análise". Voltar

Apostilas do Seminário de Filosofia - 19

O Anti-Gramsci ~ 2 Introdução à Filosofia pelo Método Crítico-Dialético

§ 4. A resposta infalível a uma pergunta postiça

Logo a seguir, Gramsci afirma: Nota IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas "originais"; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, "socializá-las" por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato "filosófico" bem mais importante e "original" do que a descoberta, por parte de um "gênio filosófico", de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais1. "Ideologia" é um tipo de discurso que, em defesa de valores arbitrários e no mais das vezes implícitos e não declarados, enfatiza determinados aspectos da realidade que sirvam de suporte retórico para esses valores, ocultando ou minimizando os aspectos contrários, por mais evidentes ou importantes que sejam e por mais improvável que seja escaparem à atenção de qualquer observador isento. Ideologia é seletividade deformante da realidade conhecida, em vista de um interesse político. Nesse sentido, o discurso ideológico não é nunca "dialético", por mais que se pavoneie de sê-lo, pois foge ao confronto dos contrários. O confronto faria automaticamente vir à luz os pressupostos implícitos no discurso, atenuando, relativizando ou eventualmente impugnando aquilo que ele deseja afirmar. Por isto mesmo é evitado. Para evitá-lo, recorre-se à argumentação por topoi ou lugares-comuns, que, dando uma aparência de obviedade imediata a um determinado juízo de valor, subtrai à atenção do ouvinte as bases da pergunta a que essa afirmação responde e portanto sonega-lhe a possibilidade de questionar a formulação mesma dessa pergunta, sua adequação ao problema de que se trata, sua relevância maior ou menor em comparação com outras abordagens possíveis do mesmo tema, etc. Tudo isto, como que por milagre, desaparece do

horizonte de consciência do ouvinte ou leitor, sobrando somente a imagem hipnótica da pergunta isolada e da resposta infalível.2 O parágrafo que acabo de citar é um exemplo perfeito de discurso ideológico, marcado pela ênfase unilateral que escamoteia à atenção do leitor as mais óbvias comparações sugeridas pela apresentação mesma do assunto. Esse parágrafo coloca-nos diante de uma oposição entre a verdade conhecida solitariamente por um pensador isolado e a verdade colocada a serviço da ação coletiva, e afirma, resolutamente, que esta é melhor e mais importante. À primeira vista, é uma afirmação óbvia de simples senso comum. O remédio para uma doença grave, por exemplo, vale menos quando só um homem o conhece do que quando posto a serviço de muitos. É um topos ou lugar-comum: o bem de muitos é melhor que o bem de poucos ou de um só. Assim, colocada a pergunta: "Que é que vale mais - a descoberta individual ou sua difusão entre muitos?", a mente entorpecida opta automaticamente por esta última, sem questionar se a pergunta mesma faz sentido.3 No caso, o questionamento, que na mente filosoficamente treinada emergiria de maneira quase espontânea à simples leitura desse parágrafo, poderia assumir a seguinte forma: Que sentido faz equacionar o problema sob a forma dessa oposição, se nunca ou quase nunca um descobridor tende a guardar sua descoberta para si, mas quase que necessariamente o impulso da descoberta vem junto com o impulso da difusão? A oposição colocada é natural, necessária, sugerida pela natureza mesma dos fatos ou, ao contrário, é uma abordagem postiça, arbitrária e puramente inventada com o propósito de impingir um certo juízo de valor mediante o truque de apresentá-lo como resposta a uma pergunta postiça especialmente planejada para esse fim? A resposta a este questionamento indicará se estamos diante de um exame filosófico sério ou de um joguinho retórico. Mas o questionamento pode ir um pouco mais fundo e perguntar: Que razões filosoficamente válidas haveria para montar uma oposição entre a verdade solitariamente conhecida e a ação coletiva, se esta última não tem conexão lógica com a veracidade ou falsidade das idéias que a inspiram, e se em suma, como o demonstra abundantemente a História, considerados enquanto meios de "conduzir uma multidão de homens a pensar coerentemente e de maneira unitária", a mentira ou o erro funcionam tão bem quanto a verdade? Basta fazer esse breve questionamento para perceber que a oposição entre a verdade solitária e a verdade que beneficia as massas não é de maneira alguma um problema sério sugerido pela experiência histórica, mas, bem ao contrário, é apenas uma hipótese abstrata e arbitrária cuja discussão, se pode servir para exercícios de retórica escolar, em nada nos fará avançar no conhecimento da realidade.

Em terceiro lugar, para qualquer cérebro treinado em lógica, não há nenhum sentido em fazer uma comparação de valorentre uma coisa e aquilo que é condição de possibilidade dessa coisa. A descoberta individual - de uma verdade, de um remédio, de um equipamento - é condição de possibilidade prévia à difusão dessa descoberta, assim como ter nascido é condição de possibilidade para que um sujeito continue vivo aos trinta anos. A pergunta subentendida na abordagem de Gramsci é pueril, artificial e fingida como o seria uma redação escolar com o tema: "O que é melhor: ter nascido ou chegar vivo aos trinta anos de idade?" Em nenhum momento de sua extensa obra4 Antonio Gramsci sobe acima desse nível ginasiano de abordagem dos problemas.

§ 5. Ordem intelectual e religião

"A filosofia é coisa que nem o senso comum podem ser."5

uma nem

ordem a

intelectual, religião

Esta sentença já mostra o quanto Gramsci está disposto a falar da religião sem ter dela o menor conhecimento. Toda religião é necessariamente uma ordem intelectual - embora não seja somente isso -, e é a capacidade de ser elaborada progressivamente nos amplos sistemas racionais da teologia dedutiva que diferencia, precisamente, uma religião de uma pseudo-religião6. Mais ainda: somente dentro do corpo das religiões pode surgir e desenvolver-se a vida intelectual em sentido eminente, que supõe o predomínio do pneuma sobre a psyche e a bios, inalcançável - exceto por milagre -- sem o suporte ritual e simbólico das práticas religiosas. Pela própria incapacidade de perceber a independência eidética do plano espiritual em relação ao psíquico e mesmo ao biológico - pois só a um psychicos bem prisioneiro de seus estados subjetivos ocorreria a idéia de fazer uma comparação de valor, no mesmo plano, entre uma verdade teorética e sua aplicação prática --, Gramsci não poderia jamais conceber o que é uma religião. Por isto mesmo, limita-se a considerá-la somente enquanto "elemento do senso comum desagregado"7, sem notar que não está falando de uma religião e sim do resíduo sociológico de uma religião extinta que se tornou metafórica. Não que ele ignore, por completo, que há alguma diferença entre a religião e sua expressão sociológica ou, como ele diz, política. Mais adiante ele nos dará um sinal de que sabe que essa diferença existe - e a prova inequívoca de que radicalmente não sabe em que ela consiste.

Por enquanto, limitemo-nos a observar o seguinte. Ele diz que a filosofia é uma ordem intelectual precisamente em contradistinção à religião, que não o é. Mas a verdade é precisamente o contrário. A religião, para existir, tem de ser não apenas uma ordem intelectual completa e racionalmente coerente em todos os seus pontos - e a simples existência de um direito canônico já o demonstra desde logo --, mas também essa ordem tem de ser indefinidamente abrangente, isto é, capaz de ampliar-se num número ilimitado de desenvolvimentos lógicos que em nada desmintam os seus princípios ou dogmas fundamentais. A religião é não apenas uma ordem intelectual, mas uma ordem sistêmica, e esta ordem sistêmica deve abranger - ou pelo menos não contradizer - todas as experiências e conhecimentos possíveis em todas as direções, motivo pelo qual o trabalho de tirar conseqüências lógicas do dogma e de coerenciar com ele as novas descobertas e experiências humanas é, em todas as religiões, um trabalho contínuo e sem fim. Mais ainda, essa ordem, na medida em que se expande logicamente em todas as direções sem contradição com os dogmas centrais, pode-se dizer que já está dada sinteticamente nesses dogmas, os quais contêm a semente de todos os seus desenvolvimentos possíveis. A menor ruptura ou incoerência nesse sistema constituirá, precisamente, o que se chama um cisma. Em contraposição com isso, nenhuma filosofia pode se gabar de possuir a priori, como a religião, um conjunto de princípios tão abrangentes e tão universalmente válidos que deles tudo se possa deduzir ou tudo se possa harmonizar logicamente com eles indefinidamente até o fim dos tempos. Na medida mesma em que o conhecimento filosófico é de natureza crítica, ele não pode ter a pretensão de constituir um sistema ao mesmo tempo fechado e passível de desenvolvimentos infinitos. Por isto mesmo, os filósofos têm dedicado os seus esforços mais a descobrir e equacionar problemas do que a encontrar soluções definitivas. E, com mais forte razão ainda, aí se impõe a conclusão de que, se a religião é necessariamente uma ordem intelectual e uma ordem completa ou ao menos idealmente completa, toda filosofia é apenas um esforço crítico em direção a uma ordem possível que não se atinge e não se completa nunca. A insistência obsessiva de Gramsci no caráter organizado, sistêmico e unitário das filosofias não prova outra coisa senão a sua pouca prática nos estudos filosóficos, pois, na maior parte das filosofias a unidade sistêmica não passa de um vago ideal orientador jamais realizado (e às vezes abandonado por completo, como no caso das filosofias ditas, como a de Nietzsche, "problemáticas" por oposição a "sistêmicas"), sem que elas deixem de ser filosofias por isto. Mais ainda, como o demonstrou Vladimir Soloviev, todas as filosofias contêm necessariamente em si alguns pontos de incoerência, dos quais nasce precisamente a possibilidade de que sejam contestadas, corrigidas ou modificadas pelas filosofias subseqüentes. Uma filosofia não se torna menos valiosa por conter incoerências internas, e é mesmo um dever do próprio filósofo, quando as percebe, assinalar sua presença, como o fez por exemplo Aristóteles, ao dar sinal de que notava, sem poder resolvê-la, uma incoerência básica do seu próprio sistema (no entanto um dos mais coerentes já surgidos) ao proclamar que só existe conhecimento científico

do geral e que só o singular é real, sem consentir em tirar disto a conclusão de que o conhecimento é falso ou inadequado. Já uma religião, se lhe aparecesse no corpo, à vista de todos, um rombo desse tamanho, já não seria uma religião e simduas religiões, ou, melhor ainda, uma guerra de religiões. A idéia de que a coerência unitária é uma característica essencial da filosofia, bem como a de que uma religião não é e não pode ser uma ordem intelectual reflete apenas a imaginação pueril de um palpiteiro inculto que, por falta de informação histórica válida, toma como certezas científicas os lugares-comuns do meio em que vive.

13/12/99

NOTAS A Concepção Dialética da História, pp. 13-14. Voltar Em comparação com isto, o exame filosófico caracteriza-se precisamente por explicitar ou por deixar subentendidas ao alcance do bom entendedor outras abordagens possíveis, respondendo a todas elas ao mesmo tempo, seja de maneira explícita e analítica, seja implícita e sintética. Voltar Em contraposição a isto, a primeira preocupação do autêntico filósofo na exposição de suas idéias é a de provar que as perguntas que formula são fundamentais, que seu modo de abordar o assunto é melhor do que outros modos já tentados, etc. Ele pode fazer isto de maneira explícita ou implícita, mas, qualquer que seja o caso, a parte mais significativa do esforço filosófico é sempre a de equacionar corretamente as perguntas, nunca a de sair respondendo, de cara, a perguntas que não foram, elas mesmas, objeto de qualquer exame crítico. Voltar Refiro-me somente aos livros que li: a Concepção Dialética da História;Maquiavel, a Política e o Estado Moderno; Literatura e Vida Nacional; Os Intelectuais e a Organização da Cultura; e Cartas do Cárcere - todos publicados pela Civilização Brasileira sob a orientação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Na época em que li essas porcarias, as edições originais italianas eram muito caras e privei-me da sua leitura confiado na afirmação dos próprios editores de que esses cinco eram os livros principais - não sendo portanto de prever que pudesse encontrar nos outros alguma revelação assombrosa capaz de mudar de alto a baixo a compreensão do pensamento de Gramsci que por eles se podia obter. Se a edição completa trouxer surpresa nesse sentido, seus editores, sendo os mesmos da velha, terão a obrigação de declarar que, ao posar pela primeira vez perante os leitores como especialistas em Gramsci, não tinham sequer aprendido a discernir, na massa dos seus textos, o

importante e o desimportante. Para a felicidade deles, não creio que isso possa acontecer, pois tão extensos são os livros mencionados, que dificilmente, no que sobra por editar em português, seu conteúdo essencial poderá vir a ser desmentido. Voltar P. 14. Voltar Não será demais observar que praticamente todos os instrumentos de análise lógica existentes, fora os inventados por Aristóteles e os acrescentados 2.400 anos depois dele pela moderna lógica matemática, foram desenvolvidos por religiosos para fins de exposição e discussão doutrinal. As contribuições infinitamente ricas das lógicas hindu, taoista, budista, islâmica, judaica e escolástica ao desenvolvimento da teoria da prova e da argumentação seriam uma imensa gratuidade histórica absolutamente inexplicável se a religião não fosse uma "ordem intelectual". Voltar Id. Voltar

Apostilas do Seminário de Filosofia - 20

Kant e a mediação entre espaço e tempo Anotação para desenvolvimento (Continuação do tema "Ser e Conhecer")

oral

em

classe

Este assunto será tema da próxima aula do Seminário de Filosofia em São Paulo e no Rio (fevereiro de 2000). Divulgo aqui este rascunho para que os alunos possam estudálo com antecedência. -- O. de C.

Kant diz que o espaço não pode ser percebido empiricamente porque o simples ato de situarmos alguma coisa "fora" de nós já pressupõe a representação do espaço. O espaço não é portanto uma propriedade das coisas, mas uma forma sobreposta às coisas pela minha intuição delas. Mas aí o espaço está identificado com o "fora", com a exterioridade, e não posso, só com base na pura representação da exterioridade, dizer que algo está fora de mim: esta afirmação é claramente a de uma relação entre o fora e o dentro, e pressupõe portanto a representação de ambos. Só que o "dentro", para Kant, é o puramente temporal e inespacial: o espaço é a forma a priori da exterioridade como o tempo é a da interioridade. Ora, se só possuo uma representação espacial do fora, enquanto do dentro tenho somente uma temporal, não posso, rigorosamente, dizer que nada em particular

está fora de mim, porque a existência espacial em geral já consiste em estar fora. Dizer que algo está fora é, então, apenas dizer que não tem uma existência puramente temporal, mas que além de existir no tempo tem alguma outra determinação especificamente diferente. Em que consiste essa determinação? Parece impossível defini-la exceto negativamente, isto é, dizendo que na coisa percebida fora há um algo que não é tempo. A pura existência temporal, inespacial, -- que Kant identifica com a interioridade -apresenta similar dificuldade. Se tentamos dizer em que consiste, temos de nos contentar com excluir o espaço, e aí se torna impossível distinguir entre a inespacialidade e a simples inexistência. Essas dificuldades provêm da identificação entre "espaço" e "fora", entre "tempo" e "dentro". Sem admitirmos um "espaço interior" e um "tempo exterior", não temos como dizer que alguma coisa está fora de nós, porque isto resulta em excluí-la do tempo, nem dentro, porque resulta em excluí-la do espaço, suprimindo em ambos os casos sua existência empírica, que segundo Kant consiste precisamente em estar no tempo e/ou no espaço. Sem a mediação entre espaço e tempo, nenhuma percepção é possível. Mais ainda, essa mediação não pode ser puramente racional, mas tem de estar imbricada na estrutura mesma da percepção, porque caso contrário o ato de situar algo dentro ou fora seria a conclusão de um raciocínio e não um ato de percepção, que é precisamente o que Kant diz que ele é. No entanto, o conceito dessa mediação é incompatível com a redução kantiana do espaço e do tempo a formas a priori da sensibilidade projetadas sobre as coisas; porque a exclusão mútua do dentro e do fora constitui, para Kant, a estrutura mesma do ato de percepção: se houvesse um território intermediário entre tempo e espaço, esse território seria ele próprio a suprema forma a priori da sensibilidade, abrangendo e distinguindo espaço e tempo. Mas não há em Kant menção a esse terceiro fator: além do espaço e do tempo, há só as categorias da razão. Ora, esse fator mediador é absolutamente necessário, e a partir do momento em que o admitimos já não podemos aceitar a doutrina de que espaço e tempo são formas projetadas, pela simples razão de que o "dentro" e o "fora", portanto o espaço e o tempo, perderam seu caráter absoluto de categorias e, tornando-se relativos a um terceiro fator, se contaminaram perigosamente de um componente empírico. Ou é impossível distinguir dentro e fora, ou essa distinção tem algo de empírico e portanto espaço e tempo não são formas a priori. O terceiro fator, que nos tira desse imbroglio, é, este sim, uma forma a priori da sensibilidade, e se chama existência(subentendendo-se: "existência versus inexistência"). Só se pode perceber como existente o que tem existência, e ter existência é estar inseparavelmente — embora sob aspectos distintos — no espaço e no tempo. Do mesmo modo, o inexistente é percebido como ausente do espaço e do tempo, e esta ausência ajuda a compor o quadro onde estão presentes as

coisas presentes. O que quero dizer com "sob aspectos distintos" é que aquilo que é inespacial em essência e no seu puro conceito tem de se tornar espacial existencialmente esecundum quid para poder ser percebido, como por exemplo a tristeza ou a alegria que "em si" são pura temporalidade inespacial mas só podem ser vivenciadas em algum lugar do espaço (interno e externo), pela simples razão de que não vivenciamos empiricamente conceitos e essências puras, mas coisas e estados que existem no espaço e no tempo. Mutatis mutandis, o intemporal "em si" tem de se temporalizar existencialmente para existir ante a percepção. Mas o mediador, para operar essas chaves da percepção, tem de ser supra-espacial e supratemporal. A forma a priori que denomino existência tem portanto dentro de si o quadro inteiro das distinções: temporal-inespacial, temporal-espacial, espacialatemporal e espacial-temporal. Se não o tivesse, não poderia projetá-las sobre os dados da experiência. Mas, para que o tenha, é preciso que ela própria não dependa dessas distinções, e sim se estruture internamente segundo uma distinção muito mais abrangente, que é a do real e do irreal, o primeiro constituindo-se da dupla de polos temporal-espacial(isto é, a essência temporal que se espacializa existencialmente) e espacial-temporal (a essência espacial que se temporaliza existencialmente) e o segundo da duplaespacial-atemporal e temporal-inespacial, ambos constituídos de essências puras não existencializáveis, ou meras possibilidades. Por isto defino a metafísica como ciência da possibilidade (e impossibilidade) universal, isto é, como quadro delimitador não só do conhecimento mas do real mesmo. (1) Neste sentido, a estrutura da percepção já tem uma estrutura dedicidamente metafísica. Kant admitiu o par existência-inexistência apenas como categoria da razão, mas obviamente ele está embutido já na estrutura mesma da percepção, na medida em que todo perceber tem uma natureza escalar e contrastante e consiste em notar não só as presenças, mas as ausências que lhes servem de pano-de-fundo. Os próprios juízos de existência seriam impossíveis se não houvesse, com anterioridade lógica se não cronológica, a percepção de existência, a qual por sua vez não pode ser concebida senão como oposto complementar da percepção de inexistência. O ver alguma coisa não pode ser concebido senão como não ver alguma outra coisa — por exemplo, o oco da sua ausência — no lugar dela. Tempo e espaço são formas da existência, bem como — negativamente — da inexistência. Quando, através de sua manifestação espacial, percebo algo que em si não é espacial, como por exemplo uma melodia, o que estou percebendo é uma existência parcial e deficiente: a melodia não existe como substância no sentido físico do termo, mas como efeito da ação de determinados corpos — os instrumentos de música, por exemplo, ou os órgãos da fonação humana. Percebo, no mesmo instante, que essa melodia tem uma estrutura matemática, a qual por sua vez é independente do tempo e do espaço, e que neste sentido tem uma existência ainda mais deficiente, como mera potência que é. Se eu não pudesse perceber essas formas deficientes, também não poderia perceber as eficientes ou plenas que lhes fazem contraste e que são perceptíveis justamente por esse contraste.

Existência-inexistência é, pois, forma a priori da sensibilidade e não somente da razão. Já o tempo e o espaço não podem ser formas a priori, mas apenas o resultado da diversificação da experiência quando esta é enfocada sob a categoria existênciainexistência, donde resulta a percepção diferenciada do espacial-temporal, do espacialintemporal, etc. De outro lado, existência-inexistência não poderia ser uma forma a priori da sensibilidade se não fosse também uma forma a priori dos dados sensíveis em si mesmos, de vez que o mais simples ato de percepção depende de certas qualidades que têm de se apresentar nos objetos mesmos e sem as quais não poderíamos percebê-los. Existência-inexistência é ao mesmo tempo categoria gnoseológica e ontológica: é a forma da percepção dos objetos no espaço e no tempo e inseparavelmente a forma da presença desses objetos no espaço e no tempo.

17/02/00

Nota (1) V. a apostila Breve Tratado de Metafísica Dogmática (aulas de 1991) logo mais nesta homepage.

Apostilas do Seminário de Filosofia - 21

Poesia e filosofia

Excerto do § 1 do Prólogo da obra em preparação, O Olho do Sol: Ensaio sobre a Inteligência. Como certas discussões havidas em classe na última rodada do Seminário de Filosofia mencionassem este texto, do qual a maioria dos alunos não possuia cópia, decidi colocá-lo aqui à disposição de todos os visitantes desta homepage. O Olho do Sol é um calhamaço, a esta altura com seiscentas páginas e ainda bem longe de sua conclusão, onde reúno, ordeno e explico melhor (espero) as coisas que vim lecionando nos últimos anos sobre teoria do conhecimento. -- O. de C.

Habituado a expor minhas idéias oralmente, retomando-as e redesenhando-as desde ângulos diversos conforme as exigências dos tempos e das circunstâncias, dando-lhes

assim a vida que os conceitos só adquirem quando encarnados nas formas das situações concretas, sinto-me inibido e atemorizado ante a perspectiva de fixá-las em livro, onde já não poderão mover-se e terão de estar, imobilizadas e solenes como pássaros de bronze na forma acidental do instante em que as atinja, em pleno vôo, o disparo fatídico de um ponto final — o equivalente ortográfico de um buraco de bala no meio da testa. Pouco platônico em temperamento e convicções, compartilhei sempre da desconfiança do mestre ante a filosofia escrita. Não que me creia portador de verdades sublimes e voláteis, rebeldes à fixação, intransponíveis ao papel. É que o esforço de transpor ao escrito uma intuição filosófica repõe sempre em pauta a questão das relações entre poesia e filosofia, e esta questão não é das mais cômodas. Uma opinião corrente diz que a poesia transmite as impressões na sua imediatez, enquanto a filosofia opera sobre elas uma reflexão; uma estaria para a outra como o direto está para o indireto, como a experiência viva está para a opinião posteriormente elaborada, como a imagem vista com os olhos está para o reflexo num espelho mental. Isso para mim é rematada bobagem, inconseqüente verbalização de uma impossibilidade pura e simples. Sem poder justificar-se, explica-se, em parte, como manifestação da simpatia maior que o povo sente pelo poeta, companheiro que o ajuda a exprimir suas impressões numa linguagem que, se não é a sua própria, é embelezamento dela e sua musicalização; e como expressão da estranheza popular ante o filósofo, tipo exótico e distante, que fala em código, e que não pode abandonar completamente sua criptografia para tentar ser comunicativo sem fazer-se um pouco — ou muito — poeta, voltando as costas perigosamente às duras regras da sua confraria, ou então, mais perigosamente ainda, sem fazer-se retórico, orador e homem político. Na verdade, a quota de atividade reflexiva que se requer não é menor em poesia do que em filosofia, pela simples razão de que o verso não é a experiência, mas a expressão verbal dela, obediente, como toda expressão, a um código de conversões; e o código não se compõe de fatos e dados — a carne da experiência —, mas de rimas e métricas e regras de gramática e estilos epocais e usos semânticos consagrados e compromissos de escola e mil e uma outras exigências que se arraigam na convenção, na ciência e no hábito, não diretamente nos fatos. Estas exigências são o molde em que se recorta a vestimenta que vai recobrir e tornar socialmente reconhecível e moeda corrente a experiência, intransmissível na nudez direta da sua carne, que é uma e a mesma que a carne do corpo, impenetrável a outro corpo. Que sem molde não há comunicação, que a adaptação ao molde é a parte racional e reflexiva da criação literária, ninguém duvida. Que os moldes esgotam sua possibilidade de conter novas experiências e têm de ser renovados de tempos em tempos, a história das revoluções formais em literatura o confirma. Que, a cada nova revolução, a ampliação da faixa do dizível se faz ao preço de uma perda temporária da comunicabilidade até que o novo molde se consagre no uso comum, é coisa que a prática demonstra. O que não se percebe com igual freqüência é que as coisas se passam de maneira exatamente igual em filosofia, onde as novas intuições devem se adaptar aos

processos consagrados de formalização e demonstração, ou então inventar novos; que esta parte raciocinante e reflexiva, que o leigo toma como se fosse a essência mesma da filosofia, não é senão a sua vestimenta decente e o preço de sua conservação como atividade socialmente viável; e que o molde da vestimenta, exatamente como as convenções de escola em poesia, podem em certos momentos oprimir e sufocar a intuição filosófica e até mesmo, com a arrogância do ignorante togado, dá-la por inexistente ou extrafilosófica. O ponto de partida para a resolução do problema das relações entre poesia e filosofia está na seguinte observação, que é de senso comum: a participação do povo nas impressões do poeta, ou de qualquer outro artista, não é direta e física: é imaginativa. Não nos apaixonamos por Beatriz, que nunca vimos, mas por seu análogo que o poeta imaginou em palavras; nem padecemos na carne os horrores da Casa dos Mortos, mas apenas, na mente, o pesadelo que seu relato verbal nos sugere; pesadelo que, como tal, é mais tolerável que qualquer sofrimento físico — motivo pelo qual fugimos dos horrores do cárcere, mas buscamos a leitura que os evoca e transfigura. Não faríamos isto se fossem ambos uma só e mesma coisa, ou mais ou menos a mesma coisa, hipótese doida que está implícita na opinião corrente mencionada acima. O poeta, o que faz é produzir, da experiência interna ou externa, um análogo moldado, com maior ou menor felicidade, pelo cruzamento de uma dupla exigência: a máxima comunicabilidade no vocabulário geral, a máxima fidelidade — ou, o que dá na mesma, infidelidade genial e enriquecedora — às convenções e tradições de ofício. Digo isso com duas ressalvas. Primeira. Vocabulário geral não quer dizer, necessariamente, o vocabulário de uso corrente, pois o poeta pode usar termos raros; quer dizer apenas um vocabulário não especializado e não fixado em acepções-padrão; pois descobrir novas acepções pela combinação das palavras pode ser, embora nem sempre o seja, um dos requisitos incontornáveis para a comunicação de certas imaginações. Segunda. Na maior parte dos casos, e quando não se pervertem em modismos ou tradicionalismos idolátricos, as regras -- sempre in fieri -- da comunidade de ofício visam justamente a exigir a máxima comunicabilidade no uso do vocabulário geral, mesmo eruditíssimo. Feitas essas duas ressalvas, a comunicabilidade máxima da experiência imaginativa no vocabulário geral é, a rigor, a definição mesma da poesia, ao menos no que tem de representativo e referido à transmissão de um conhecimento. O poeta, em suma, cria, através da força analogante das imagens e dos símbolos, uma área de experiência imaginativa comum, onde os indivíduos e mesmo as épocas podem se encontrar, vencendo no imaginário as barreiras que separam fisicamente suas respectivas vivências reais. Assim fazendo, ele não apenas se comunica, mas intercomunica os outros homens. Daí a missão curativa, mágica e apaziguadora, que faz

da poesia um dos pilares em que se assenta a possibilidade mesma da civilização: ela liberta os homens da noite animal, do terror primitivo que isola e paralisa. Ela reúne os membros da tribo em torno do fogo aconchegante e os faz participar de um universo comum que transcende as barreiras dos corpos e do tempo. Ela apazigua, reanima e torna possível, aos que eram animais assustados, pensar e agir. Que faz, em contrapartida, o filósofo? A primeira coisa que faz é voltar as costas à comunidade, para ir perguntar, à experiência, não o que ela pode dizer ao mesmo tempo a todos os homens reunidos em torno da fogueira, mas sim apenas aquilo que ela deve acabar por dizer, se tudo der certo, àqueles poucos que continuarem a contemplá-la detidamente até que ela se abra e mostre seu conteúdo inteligível. Seu diálogo não é com a tribo. É com o ser. Por isso mesmo, enquanto a História registra desde o início dos tempos a função de alto prestígio público que os poetas exerceram como magos, hierofantes, profetas, sacerdotes e guias de povos, os primeiros filósofos já surgiram na condição de esquisitões mais ou menos incompreensíveis ao vulgo, de aristocratas que se isolavam numa solidão altaneira, como Heráclito, ou, como Sócrates, de rebeldes que entravam em conflito aberto com as crenças populares. A pergunta filosófica por excelência é Quid?, "Quê?". Que é o homem? Que é a morte? Que é o bem? Que é a felicidade? A "reflexão" não entra aí em dose maior ou menor que na poesia, ou melhor, a presença do elemento reflexivo numa e noutra é igualmente acidental e instrumental. Não há reflexão que nos possa dizer o que é uma coisa. As essências, ou qüididades, revelam-se no ato intuitivo que contempla a presença de um objeto, cujo conteúdo noético o filósofo não faz senão reproduzir com a máxima fidelidade e exatidão possíveis. Sua atividade é, tanto quanto a do poeta, um traslado da experiência, interior ou exterior. Todo juízo definitório, quando seu objeto é um ente e não uma simples possibilidade lógica inventada — e às vezes mesmo neste caso — é sempre a pura formalização lógica de um conteúdo intuído, que a memória fixa e o discurso interior descreve. E a formalização lógica é, como bem viu Etienne Souriau, nada mais que estilização do discurso interior, do verbum mentis, tal como as artes do poeta são a estilização da linguagem corrente. É só numa fase posterior, quando se defronta na polis com os retóricos e sofistas, portadores de um falso conhecimento, que a filosofia se torna dialética e, por meio dela, reflexão e diálogo; mas diálogo que visa a restaurar apenas, por cima da rede das ilusões do discurso corrente, a intuição primeira das essências auto-evidentes. E tanto quanto não pode revelar essências, a reflexão — exceto na acepção de rememoração descritiva — não pode levar ao conhecimento dos princípios e axiomas. Aristóteles define a dialética precisamente como o confronto das hipóteses contraditórias que, remontando através de exclusões e negações, leva a uma súbita percepção intuitiva dos princípios subjacentes às várias opiniões em disputa. A dialética é um encaminhamento e aquecimento da inteligência para o despertar da intuição.

Em seguida, trata-se de descrever o mais precisamente possível essa intuição, atendendo, de um lado, à realidade dos dados e, de outro, às convenções de vocabulário e às exigências técnicas da exposição lógica ou dialética, consagradas pelo uso na comunidade de ofício. Essa atividade é, em tudo e por tudo, similar à do poeta. Mas então qual a diferença? A diferença é que o poeta tem de transformar o intuído, o mais imediatamente possível, em moeda corrente; tem de lançar desde logo o conteúdo noético de uma experiência que pode ser fortemente individual, na água corrente do vocabulário comum, para fazer dela uma posse de todos os homens na linguagem do seu tempo e do seu meio. A experiência, para ele, é o momento fraco e provisório de uma atividade cujo momento forte e definitivo é a forma concreta da obra pronta. Ele não pode deter-se indefinidamente na crítica e repetição de sua experiência, para obter mais clareza, para integrá-la mais profundamente na estrutura do seu ser pessoal, para distingui-la nas adjacentes e circunvizinhas, para fazer dela, progressivamente, parte de experiências cada vez mais amplas, para adquirir sobre ela a certeza de que ela não revelou só um aspecto passageiro e acidental mas a natureza mesma do seu ser — atos que são, precisamente, as ocupações precípuas do filósofo. Pois, se ele se detiver para enriquecer a tal ponto sua experiência interior, já não poderá mais elaborá-la no vocabulário comum para torná-la imediatamente transmissível a todos os homens; será obrigado a registrá-la, se sobrar tempo, em abreviaturas criptográficas que ou o aprisionarão na total incomunicabilidade, ou então terão de conformar-se aos modos de criptografia mais ou menos padronizados da confraria dos contempladores renitentes, isto é, dos filósofos; e terá se tornado um filósofo ele mesmo. Perdendo em expressividade e comunicabilidade, terá ganho em riqueza interior dos registros que porém só poderão ser transmitidos a quem refaça o mesmo itinerário interior que é o treinamento e faina essencial dos filósofos, happy few por fatalidade constitutiva e não por acidente. Por isso, dizer de uma poesia que é obra só para poetas e técnicos em poesia é apontar um vício redibitório, uma falha intolerável; já a filosofia é, em princípio, coisa para filósofos, e só raramente para o povo inteiro — exceto quando à vocação do filósofo se soma a do artista, ou do pedagogo, ou do orador e homem político, o que certamente é acidental e não exigível. Por isso é que Aristóteles, elíptico, abstruso e enigmático em seu modo de expressão, continua a ser maior filósofo que o cristalino Descartes ou o elegantíssimo Bergson. A comunicação, a forma concreta da obra escrita, é em filosofia o momento acidental e menor de uma atividade que consiste, fundamentalmente, em conhecer e não em transmitir. Sendo registro e expressão de intuições profundas e valiosas, tanto a poesia quanto a filosofia têm algo a ver com a sabedoria. Mas vai aí a diferença freqüentemente intransponível que medeia entre o registro exato e a comunicação eficiente. O primeiro

pode ser pessoal e incomunicável, ou comunicável só a quem possua a chave dos códigos e a recordação de similar experiência interior. Já uma expressão que não expressa, uma comunicação que não comunica, não é absolutamente nada. A diferença, aí, é de direção. Na poesia, a sabedoria dirige-se aos homens, dizendo-lhes o quanto é possível dizer a ouvintes mesmo passivos, mal dispostos a um esforço pessoal e que nem de longe pensariam em tornar-se eles mesmos poetas ou conhecedores profundos dos mistérios do ofício. É sabedoria que, corporificada em símbolos, se dirige menos à mente corrompida dos homens, do que ao seu corpo, através da magia dos sons e das formas visíveis. Daí que ela possa agir mesmo sobre os homens que não a compreendem bem. Porque ela é corpo e obedece ao conselho do poeta: deixa o teu corpo entender-se porque os corpos se entendem, mas as almas não.

com

outro

corpo,

A poesia é assim a sabedoria que bate à porta dos homens, e os obriga a assimilar até mesmo algo do que não desejariam compreender, passando por cima de suas mentes indiferentes e dialogando diretamente com o ouvido, com o olho, com os batimentos do coração, com os pés que, involuntariamente, marcam o compasso da música. A filosofia, em contrapartida, não busca ninguém. Ela é, por essência, a busca de uma sabedoria que se furta, que exige, e que cobra do recém-chegado um preço alto. Mas cobra-o em troca de uma revelação que já não será mais alusiva e simbólica como na poesia, mas literal e direta. Tão literal e direta que, dela, o filósofo não poderá comunicar senão uma parte pequena, e às vezes nada. Se a filosofia é o amor à sabedoria, ocupação de amantes dispostos a pagar com a vida o preço da sua conquista, a poesia é, em contrapartida, o amor que a sabedoria tem até mesmo pelos homens que não a amam, e que, desatentos e dispersos, não podem escapar de receber ao menos um pouco dela, forçados a isto pelo corpo, que não escapa ao fascínio da harmonia e do ritmo. A filosofia é a busca da sabedoria, a poesia é a sabedoria em busca dos homens. Isto é tudo, e não há mais diferença alguma. São como as duas colunas do templo, o Rigor e a Misericórdia — aquilo que a sabedoria exige, aquilo que a sabedoria concede. Por esta razão não podem nem se desentender de todo, nem identificar-se por completo. Nem pode a filosofia deixar de ser uma poesia que se recolheu ao estado de experiência interior, nem pode a poesia deixar de ser uma filosofia in nuce. Pela mesma razão a filosofia, ao contrário da poesia, não está nunca totalmente na obra, e sim metade no filósofo mesmo: o portador do saber é o homem, não o livro. O livro, o tratado, a aula, nunca é senão a condensação do saber nuns quantos princípios gerais e sua exemplificação numas quantas amostras; e o saber, o verdadeiro saber, se abriga naquele núcleo vivo de inteligência que permanece no fundo da alma do autor após encerrado o livro, e que saberá dar a esses princípios outras e ilimitadas encarnações e

aplicações diversas, imprevisíveis, surpreendentes ou mesmo paradoxais, conforme a variedade inabarcável das situações da existência. Só em Sto. Tomás residiu a sabedoria de Sto. Tomás. Nós outros não podemos ser senão tomistas, o que é um Sto. Tomás fixado e diminuído, compactado por desidratação. Não nego totalmente, no entanto, a possibilidade de colocar em livro o essencial do que um homem sabe e vê. Apenas julgo que não se pode despejar inteiramente o conteúdo dessa visão pessoal em teses explícitas, porque as teses são apenas o resíduo cristalizado de uma decantação interior que, longe de constituir a mera preparação para o advento das teses, constitui antes o exercício mesmo da filosofia. Ora, esse exercício, que se dá no tempo e que tem por sujeito um indivíduo humano real -- ainda que possuindo por outro lado o alcance universal de um símbolo -- , não é representável senão sob forma artística. O filósofo, se pretende ser compreendido, deve portanto levar ao papel não somente o conteúdo explícito das teses a que chegou, guarnecidas ou não de demonstrações extensivas e exemplos, mas também algo da atmosfera interior em que nasceram e se desenvolveram; atmosfera esta que não pode se reconstituir senão por meio da narração, do drama e da poesia. Mas não se trata, por outro lado, de escrever romances, dramas ou poemas que traduzam alegoricamente nossas idéias — pois a arte literária, por si, não pode escapar a seu compromisso com a linguagem metafórica e declarar explicitamente as teses filosóficas a que adere, declaração que tornaria um adorno supérfluo a narrativa ou poema que a acompanha, rodeia ou antecede. Muito menos teria cabimento argumentar literariamente, substituindo à força das demonstrações o encanto das imagens, sugerindo em vez de afirmar, seduzindo em vez de provar. O livro filosófico, em suma, tem de possuir a um tempo, articuladas e distintas numa límpida harmonia, a nitidez e a demonstrabilidade da tese científica, a sugestividade envolvente da obra poética, sem cair nem no esquematismo impessoal da primeira, nem na névoa plurissensa da segunda. Espremida entre estas exigências contrárias, a redação de um livro de filosofia — pelo menos a quem esteja consciente delas — pode apresentar dificuldades temíveis, motivo pelo qual tenho preferido antes falar do que escrever, embora o exercício da escrita não me seja nem um pouco repelente. Sublinha ainda mais esta preferência o fato de que o professor entre seus alunos tem ali a atmosfera presente e viva, sem precisar imitá-la por artifício verbal. É praticamente impossível, aliás, que a produção escrita de um filósofo, caso deseje atender aos requisitos do bom estilo, acompanhe a rigor a evolução de sua doutrina e de seu ensinamento. Aos poetas, aos romancistas, acontece esgotarem na obra escrita o melhor de sua inspiração; acontece mesmo ultrapassarem, no tanto que escrevem, os limites dela, e começarem a se repetir, a patinar em falso, a rebuscar o efeito numa ânsia estéril e vã. O essencial do artista vai em um ou dois livros; o resto de sua obra escrita é desnível, é queda. Isto é assim porque a inspiração poética é essencialmente a de um acordo feliz entre a intenção projetada e a forma verbal concreta; e se este acordo só se realiza em certos momentos, o restante da obra escrita é esboço ou comentário, não obra. Já a inspiração filosófica é, em essência, a de uma forma eidética não associada intrinsecamente a nenhuma expressão verbal determinada. Intrinsecamente, digo eu:

acidentalmente essa associação pode existir, pode ocorrer que determinadas seções de sua filosofia ocorram a um filósofo já incorporadas numa expressão verbal feliz, ou mesmo genial e excelsa; porém estas não têm de ser necessariamente as partes melhores nem as mais importantes da sua filosofia. Em nenhum momento o gênio verbal de Platão alcança o esplendor do Fedro; porém, quê valem as concepções filosóficas do Fedro comparadas à profundidade insondável, à altitude quase divina de certos trechos das Leisou do Timeu, no entanto dificilmente notáveis na expressão literária? E mesmo quando a forma verbal é perfeita e encarna a idéia sem excedê-la nem deixar nada faltando, isto não resulta necessariamente em beleza literária, em fluidez da leitura, em clareza plástica da expressão. A mais perfeita obra-prima de análise filosófica dos últimos três séculos é provavelmente De l‘Habitude, de Félix Ravaisson: trinta páginas que vão subindo da biologia à psicologia, da psicologia à teoria do conhecimento e à metafísica sem um salto, sem uma falha, sem uma vacilação. No entanto, são tantas ali as inarmonias sonoras, as frases tortuosas, que, por critérios estritamente literários, o texto passaria por obscuro e mal feito; e sua perfeição consiste em que qualquer tentativa de retocá-lo literariamente resultaria em confundir as conexões de conceitos, em rebaixar o nível de abstração, em diminuir o valor da prova. O único filósofo, em toda a história do pensamento, que declarou ter exaurido na obra escrita o quanto queria dizer foi Henri Bergson; e é uma obra maravilhosamente escrita, límpida e musical em tudo. Mas é que o universo filosófico de Bergson é reconhecidamente pobre, unitemático — um tema com certo número de variações, que o autor teve a sabedoria de parar quando iam atingindo o ponto de saturação. Coisa semelhante diga-se de Croce. Ademais, a limpidez literária, em Bergson (não em Croce), é conseguida às vezes à custa de uma nebulosidade conceptual, que se denuncia quando o leitor, varando a cortina verbal, acossa o filósofo em demanda de suas provas derradeiras. Leibniz é, de modo geral, um prosador sóbrio e elegante, mesmo nos rascunhos. Mas a quase universal má interpretação de suas idéias deveu-se ao fato de que se tornaram conhecidas principalmente através de suas obras melhor escritas — a Teodicéia e os Novos Ensaios sobre o Conhecimento —, sem exame das páginas menos artísticas doDiscurso de Metafísica, da Monadologia e dos inúmerosOpúsculos e Cartas, onde o filósofo, dirigindo-se a um círculo eleito de sábios, se permitia aquela brevidade que Horácio dizia ser oposta à clareza. Quem escreve mais forte e eloqüente que Nietzsche? No entanto o melhor de seus intérpretes, Eugen Fink, tentando reduzir seus textos à expressão coerente de um sistema, encontrou neles não um, mas cinco sistemas filosóficos mutuamente contraditórios. E quem foi mais confundido e mal interpretado que o maior prosador espanhol desde Cervantes? José Ortega y Gasset, um homem a quem as palavras obedeciam como recrutas ao capitão, um artista capaz de dar às idéias mais abstratas uma clareza plástica que quase as faz saltar da página para incorporar-se em massas tridimensionais que agem e falam, um pedagogo nato para quem la claridad es la cortesía del filósofo — esse é no entanto o pensador que menos encontrou leitores compreensivos. Resvalavam pelo declive lustroso de suas metáforas, queixava-se ele, e iam parar longe do seu pensamento. Finalmente, é preciso considerar que, dos três paisfundadores da filosofia Ocidental, Sócrates, Platão e Aristóteles, o primeiro não escreveu nada e, quanto aos outros dois, de um se conhecem somente os escritos

literariamente acabados, faltando as aulas e cursos; e do outro só as aulas e cursos, sem os escritos publicados em vida do autor. Esta dupla e inversa lacuna tem, como a abstinência autoral de Sócrates, o valor de um símbolo: as relações entre filosofia e expressão literária serão eternamente ambíguas; jamais a clareza da intuição filosófica coincidirá plena ou permanentemente com a nitidez da sua materialização verbal; e só por uma exceção notável os melhores momentos do filósofo coincidirão em superposição perfeita com os melhores momentos do autor. Daí que, na obra de um filósofo, dificilmente haja textos menores, merecidamente ditos tais, dispensáveis no todo para o conhecimento de sua doutrina, como na obra dos poetas, ao contrário, há sempre dois ou três cumes que brilham sozinhos sem qualquer amparo em textos secundários, e que brilhariam talvez mais se o restante da sua obra escrita se perdesse. Pois algo não se perdeu de The Waste Land quando se publicaram seus rascunhos com os trechos cortados pela mão de Pound? Quanto mais claro e fulgurante, no conjunto, não se tornou no entanto o pensamento de Aristóteles quando se redescobriu em 1548 sua Poética desaparecida por quase dois milênios? E quanto não se mostrou mais consistente e firme o edifício do platonismo quando revisto à luz da reconstituição do ensinamento oral do mestre, empreendido mediante cotejo de depoimentos pelo historiador Giovanni Reale? A obra de um poeta são seus poemas; principalmente seus poemas melhores. A obra de um filósofo não são seus escritos. Eles são apenas testemunho, sinal. A obra está no que se chama o filosofema, o sistema ideal de intuições e pensamentos que se oculta por trás dos textos, sistema que os textos refletem de maneira irregular e desigual, por vezes com partes faltantes, e que só pode ser contemplado por quem o reconstitua. Uma obra poética, para ser compreendida, basta que seja lida, bem lida. Ela posa inteira diante do leitor, pronta para ser contemplada em sua forma que, se é artística, é irretocável. Já uma obra filosófica tem de ser inteiramente reconstruída; executada, a bem dizer, como se executa uma composição musical com base na partitura, pois os escritos filosóficos não passam disto: partituras para executantes; e, ao executar, o artista elabora, retoca, altera e reconstrói -- só então a obra aparece. Para servir de base a esta reconstrução, valem tanto os trechos que o filósofo tenha deixado prontos e elaborados em seus últimos detalhes, quanto aqueles que tenham ficado no esboço, no plano ou na mera manifestação de intenções. O conjunto desses materiais permanecerá sempre incompleto, sempre retocável, estará sempre aquém do filosofema, que é interior em sua origem e interior na sua reconstituição final. Uma das conseqüências práticas disto é que no estudo dos filósofos os escritos menores, cartas, rascunhos, entrevistas, transcrições de aulas, mostrem um interesse que vai muito além daquele estritamente biográfico que escritos semelhantes têm para o estudo dos poetas e romancistas. É que são parte intrínseca da obra, e não, como no caso destes, apenas preparação e ensaio da obra possível. Em decorrência, também não é importante que o filósofo deixe escritas de próprio punho suas idéias ou que elas venham num estilo literário pessoal e próprio. Sócrates só é conhecido pelo que seus discípulos anotaram do que falou. A Estética e as Lições sobre a História da Filosofia de Hegel

são quase que por inteiro anotações de alunos. E como conheceríamos mal o pensamento de Husserl se não fosse por obras comoExperiência e Juízo, inteiramente redigida por seu discípulo Fink em linguagem pessoal e característica! Qualquer texto, escrito por quem quer que seja, que um filósofo aprove como expressão adequada de seu pensamento — ou que, mesmo sem essa aprovação explícita, possa ter o valor de um testemunho fidedigno — deve ser considerado parte integrante de sua Obra, na medida em que ajudam a perfazer o filosofema em que ela consiste essencialmente. Mas o filosofema, por sua vez, não se perfaz somente num sistema ideal de teses abstratas, e sim também nas atitudes pessoais concretas com que o filósofo lhes deu interpretação vivente ante as situações da existência: a altivez de Sócrates ante a morte é a exemplificação concreta da moral socrática, que entenderíamos diversamente, de maneira mais figurada e menos estrita, caso seu autor houvesse mostrado fraqueza ante os carrascos. Estamos aqui, novamente, nos antípodas da história literária, onde os detalhes biográficos devem ser abstraídos para dar lugar a uma interpretação direta dos textos. É que é diverso o nível de responsabilidade que o artista e o filósofo ( ou o místico, ou o homem de ciência ) devem ter ante o que escrevem. Um poeta ou romancista, por definição, não tem de acreditar no que escreve, exceto no instante em que escreve. Findo o êxtase criador, bem pode tomar tudo aquilo por uma alucinação, um jogo, um minuto de prazer desligado da corrente da vida, e ir cuidar da "vida real" enquanto continua recebendo os aplausos e os proventos do momento que passou. Por isto é que damos ainda atenção à poesia de Rimbaud, mesmo sabendo que ele a renegou para tornar-se contrabandista de armas, atividade das mais úteis e práticas no reino deste mundo. Mas o que seria do místico que, passado o arrebatamento da visão de Deus, negasse a sua fé, ou do filósofo que, dissipado o instante da intuição da verdade, não tratasse de lhe ser fiel em seus atos e palavras subseqüentes? Não seriam tais atitudes imediatamente alegadas pelos adversários da sua religião ou da sua filosofia como provas implícitas da falsidade destas? Seriam, no mínimo, traições. Num filósofo ou num místico, escandaliza-nos até mesmo um pequeno deslize de conduta, um ligeiro desvio em relação à sua moral explícita, um momento de distração que o afaste da verdade proclamada. Mais ainda: o fato do desvio, devidamente encaixado pelos pósteros na seqüência evolutiva da biografia interior do filósofo, será usado como base para reinterpretações inteiras de seu pensamento: há um Heidegger anterior e um posterior à revelação de seu namoro nazista, como há um Sartre anterior e um posterior a seus vexames de maio de 68, um Lukács anterior e um posterior às genuflexões ante Stalin. Isso não quer dizer, é claro, que o filósofo tenha de brilhar na perfeição de uma coerência moral em bloco e sem pecado. Não. Ele pode pecar. Mas não deve mentir, racionalizando a posteriori seus pecados para encaixá-los à força na coerência do sistema, nem entorpecer-se no abandono do seu dever de integridade, procedendo como um poeta que pode escrever uma coisa num dia e no dia seguinte esquecê-la por completo como se tivesse amanhecido outro. A filosofia não é a elaboração de uma obra, mas a criação incessante de uma consciência, que, como o próprio nome diz –

cum + scientia – consiste em saber que sabe, e saber que sabe que sabe, e, enfim, carregar a sua cruz. Também não quer dizer que a biografia possa ou deva ser a chave principal que nos abra a compreensão do pensamento de um filósofo. Ao contrário: onde quer que as lições orais ou escritas que nos legou o filósofo não bastem para evidenciar por si a unidade do intuito central que move o seu pensamento, é certamente porque essa unidade não existe, porque estamos diante dos rastros informes de um pensamento que se busca e não se encontra. E será vão empreendimento tentar encontrar, na biografia, a unidade que as palavras não revelam. Porque, se não se explicitou em palavras, o intuito não chegou a ser pensado em palavras, mas apenas talvez confusamente pressentido fragmentariamente em momentos esparsos, sem tomar forma na autoconsciência. Essa unidade que permanecesse meramente potencial seria uma filosofia em potência; mas uma filosofia em potência não é uma filosofia, pela simples razão de que a potência, não possuindo ainda a forma que a convertesse em ato, conservaria em si, como tudo o que é apenas germe e promessa, a possibilidade de desenvolver-se em direções múltiplas e contraditórias, ou seja, de gerar filosofias diversas e antagônicas. Mais ainda, a unidade vagamente pressentida, se não pôde se manifestar na forma do conceito, permaneceu condensada em símbolo. Matriz de filosofias possíveis, não é filosofia nenhuma. É, no pleno sentido da palavra, poesia. E a poesia, por mais que possa influenciar e inspirar os filósofos, não faz parte do projeto filosófico originário, que inclui por essência o intuito de explicitar o símbolo e operar, entre as possíveis intelecções que gere, a triagem do verdadeiro e do falso; entrando portanto a poesia na história da filosofia apenas como fator externo e eventual matéria da obra filosófica, matéria sem forma filosófica, sendo certo e verdadeiro que a essência está na forma e que tudo -- desde a experiência mística e as ciências até a simples experiência da vida -- pode servir de matéria à forma que, elevando-o ao nível do conceito explicitado e autoconsciente, fará dele filosofia e não outra coisa. É sumamente grave, portanto, que, não se encontrando na obra de um Nietzsche outra unidade senão biográfica e psicológica, se continue a tomá-lo como filósofo em vez de admitir que é poeta e nada mais, isto é, homem que não pretende que se tome em sentido unívoco suas palavras, pela simples razão de que ele próprio não sabe, e admite que não sabe, em qual dos múltiplos sentidos unívocos possíveis elas poderiam ser verdadeiras, e em quais falsas. É verdade que o próprio Nietzsche, aqui e ali, insiste na unidade de filosofia e biografia, mas o faz antevendo que ele próprio não poderá ser compreendido senão pela biografia, o que resulta em admitir o caráter simbólico, alusivo e plurissenso de suas próprias palavras e sua incapacidade de explicitá-las para julgá-las filosoficamente. Não é portanto em sentido nietzscheano que deve ser entendido meu apelo à unidade de filosofia e biografia; pois, no sentido em que a entendo, a compreensão biográfica permanece elemento auxiliar e somente isto, na medida em que a síntese superior em que consiste a filosofia expressa é elemento de biografia espiritual que não se poderia em hipótese alguma reduzir, como o propõe Nietzsche, à biografia empírica e psicológica. O que digo é que o texto filosófico é necessariamente incompleto,

necessitando sempre um pouco ser complementado pelos elementos biográficos, e não que a unidade e a chave de uma filosofia se encontrem sempre e só na psicologia de um indivíduo, o que seria mergulhar toda compreensão filosófica num radical imanentismo psicológico, omitindo o compromisso de universalidade que está na raiz mesma do filosofar e escondendo embaixo do tapete o fato de que quaisquer conceitos psicológicos, inclusive aqueles de que se serve Nietzsche, participam desse compromisso e se comeriam a si mesmos pelo rabo, perdendo toda validade e força explicativa, na hora em que se reduzissem a meras expressões das psiques individuais que os criaram. Quanto à poesia, o que digo para diferenciá-la da filosofia é que, de todas as atividades criadoras do espírito, a artística e literária é a que exige menos compromisso pessoal com o seu conteúdo: o que a arte exige do artista é a devoção à obra, para criá-la; não a fidelidade a ela, depois de pronta. Daí que os sins e os nãos sucessivos numa obra poética ( e na vida do poeta ) não a invalidem, na medida em que às vezes podem dar até força à sugestividade e fecundidade do símbolo. Que se diria, em comparação, do cientista que, apresentada sua descoberta, tratasse de ignorá-la e de não responder por ela na seqüência de seus trabalhos? Ou do filósofo que, publicada sua teoria do conhecimento, nos desse em seguida uma metafísica totalmente desligada dela, e esperasse com isto obter aplausos por sua fecundidade criadora? Não: a relação do artista com a obra pronta é de total independência; a do filósofo, do cientista, do teólogo e do místico, é de responsabilidade e continuidade. O artista, ao publicar suas criações, liberta-se delas. O homem de pensamento carrega-as como a cruz do seu destino: seja para defendê-las, seja para renegá-las, terá de tê-las sempre ante os olhos, para firmar no passado os atos do presente. A vida infame de um poeta é resgatada por seus escritos; os atos infames de um filósofo são a condenação de sua obra escrita. E bem longe do meu pensamento andará o leitor que compreenda tudo isto como um simples apelo moralístico à coerência entre atos e obras; pois não digo que essa coerência deva existir, mas que ela existe necessariamente, para o bem ou para o mal, e que por isto os atos de um filósofo devem ser incorporados à sua filosofia como interpretações operantes que o pensador deu ao seu próprio pensamento ao traduzi-los da generalidade das idéias para a particularidade das situações; que, portanto, em filosofia os estudos biográficos não são externos e supervenientes como em literatura, mas parte integrante, ainda que auxiliar, da compreensão do filosofema; a vida do filósofo está para sua filosofia como a jurisprudência está para os códigos. A razão profunda disso encontra-se na natureza mesma da filosofia, que, como ensinava o insigne Igino Petrone, "è una visione del mondo in termini d‘intelligibilità ed è fondazione della possibilità dell‘esperienza. È, quindi, di sua natura, una sintesi espirituale dell‘esperienza, una ideale composizione e deduzione della medesima, una intuizione della natura intima delle cose e delle relazioni, ossia del loro nascimento ideale dalla virtù operosa dello spirito, una illuminazione impressa e derivata sui prodotti della consapevolezza dello spirito produttore, un ritorno dello spirito sulla sua interiorità produttiva". (1)

Sendo o locus por antonomásia do reencontro entre experiência e autoconsciência, como poderia a filosofia excluir de si os atos do filósofo, precisamente aqueles que emanam do espírito mesmo que os julga filosoficamente chamando-os de volta a si? Unificação interior da experiência, a filosofia nada exclui; e, não podendo dizer tudo, muito deixa subentendido o filósofo em suas atitudes humanas, legíveis a quem as saiba ler. Por isso é que um verdadeiro ensino da filosofia só existe onde exista um filósofo vivo, surpreendido pelos discípulos no ato mesmo de criar sua filosofia. O filósofo in fieri é o verdadeiro portador da filosofia: os textos são apenas a prova de que uma filosofia aconteceu. O filósofo que apenas escrevesse, sem exercer um magistério direto, seria um personagem misterioso, enigmático, cujo pensamento permaneceria para sempre matéria de dúvida e reconstituição conjetural. Temos a certeza de compreender Platão em certos trechos porque sabemos como os ouviu de viva voz um Aristóteles, e conferimos nossa interpretação pela sua. Já num Descartes ou num Bacon, tão mais próximos de nós historicamente, descobrimos mil e uma ambigüidades que teriam certamente se dissipado se seus textos, em vez de irem direto para o público anônimo, primeiro fossem lidos e discutidos num círculo de discípulos; e se não fossem as Objeções e Respostasem que Descartes discute com seus correspondentes -substitutos ad hoc dos discípulos em classe --, provavelmente pouco entenderíamos do cartesianismo. Ainda na mesma ordem de considerações, digo que, se os mais claros e menos ambíguos dentre os escritos filosóficos são os dos escolásticos, é porque são textos de ensino, que refletem na sua estrutura mesma o dia-a-dia do professor em classe. Mas, no modo de refleti-lo, vão muito além das virtudes do didatismo, da clareza e da ordenação lógica que esplendem à sua superfície. São, na sua estrutura profunda — estritamente homóloga, como bem o viu Erwin Panofsky, à das catedrais cuja arquitetura se cifrava nos seus mesmíssimos princípios organizadores — a imitação artística de uma imago mundi, na qual o esforço dialético do filósofo ( refletido por sua vez no diálogo em classe ) reproduzia, na intimidade microcósmica da consciência humana, o processo mesmo de ramificação da natureza desde os princípios supremos e simples até a complexidade sinfônica da manifestação física na sua inteireza; imago mundi, portanto, na qual o pensar e o existir, o ser e o devir, a consciência e o mundo, a linguagem e a natureza, ainda se encontravam unidos por um laço amoroso que a modernidade veio a romper, para lhe substituir, de um lado, o formalismo sufocante de um raciocínio inteiramente separado da experiência, de outro, a imagem mortuária de uma natureza totalmente objetivada, seja como ancilla tecnologiæ, seja como artigo de consumo para as classes médias ascendentes ávidas de signos convencionais de beleza. Daí vêm, ao mesmo tempo, a transparência que apresentam aos olhos de quem se transporte e se identifique em espírito à vivência religiosa e metafísica que os inspirou, e a opacidade de pedra com que resistem ao leitor que, vindo de fora, os tente julgar desde logo com olhos estranhos e imbuído de um falso sentimento de superioridade de sua própria época em relação àquela em que foram escritos; opacidade que se adensa mais ainda à medida que esse leitor, avançando passo a passo na decifração analítica dos seus pormenores

silogísticos, vai se perdendo mais e mais na complexidade de uma selva cujo contorno global por fim lhe escapa inexoravelmente. Prodígios de clarificação, tornaram-se um muro de opacidades; dons da graça iluminante, tornaram-se maldição obscurecedora. E quando me pergunto o porquê do ódio que voltaram contra esses textos tantos filósofos modernos que não os conheceram senão muito superficialmente ou de segunda mão, não encontro outra resposta senão o tenebroso sentimento de exclusão eterna que a alma obscurecida do renegado experimenta ante tudo o que é do espírito e da luz. Mas, se a luz que esplende nesses textos é da mesma natureza daquela que se filtra pelos vitrais das igrejas, é graças à unidade que a síntese gótico-escolástica conseguiu criar entre a imaginação, o sentimento e a e clarificação racional — unidade que se fundava por sua vez na coesão do edifício social da Europa medieval, ao mesmo tempo que constituía um dos fundamentos dele. Cada frase dos escritos escolásticos reflete esse contexto e apóia-se na complexa rede de pressupostos implícitos que ele contém, a começar pela fé cristã incorporada nos costumes de uma vida social amplamente ritualizada. É isto o que explica o poder da sua concisão, que para o leitor de hoje os torna obscuros e enigmáticos. Similar contexto falta totalmente nos dias de hoje, quando a cultura se fragmenta a olhos vistos e novos contextos imaginários e semânticos se formam e desfazem a cada dia, cristalizações provisórias que simulam por algum tempo uma comunidade de signos e sentimentos numa classe social, num grupo profissional, numa região determinada, para logo dissolver-se, como os que os antecederam, num oceano de ruidosa incomunicabilidade. Daí a necessidade, em que se encontra o homem que pretenda explicar-se a rigor, de refazer artificialmente o contexto, o ambiente humano e lingüistico, como o professor de um imaginário liceu erguido sobre areia movediça, o qual tivesse de ser reconstruído a cada novo período letivo. Daí as longas introduções de que faço preceder os meus livros, introduções que, aceitando o risco calculado de parecerem cair no confessionalismo mais direto, dão ao leitor uma idéia do preciso ponto do desenvolvimento ( ou, se preferirem, retrocesso ) intelectual e anímico do autor em que lhe surgiram tais ou quais perguntas, nunca como curiosidades de acadêmico, já que ele nem sequer faz parte desta profissão aliás distinta e nobre, mas sim como perturbadoras dúvidas pessoais. Sim, jamais escrevi sobre o que não me doesse, nem sobre o que doesse somente a mim. Com a exceção das mensagens divinas, de que não sou portador eleito, são as dores do mundo, na medida em que participamos delas com a inteireza de nossa alma, que constituem a única matéria digna do ofício de escrever e falar em público. ..............................................................................................[Continua] Nota (1) Igino Petrone, Il Diritto nel Mondo dello Spirito. Saggio Filosofico, Milano, Libreria Editrice Milanese, 1910, p., 3: "A filosofia é visão do mundo em termos de inteligibilidade e é fundação da possibilidade da experiência. É, portanto, por sua natureza, uma síntese espiritual da experiência, uma ideal composição e dedução da mesma, uma intuição da natureza íntima das coisas e das relações, ou seja, do seu

nascimento ideal desde a virtude operosa do espírito, uma iluminação impressa e derivada sobre os produtos do autoconsciência do espírito produtor, um retorno do espírito sobre a sua interioridade produtiva."

Apostilas do Seminário de Filosofia - 22

Debates e provas Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

Raciocinar sem pressupostos é impossível, mas reduzi-los ao mínimo é, para o filósofo, uma obrigação. E mesmo esse mínimo, em algum ponto da viagem, terá de se tornar objeto de exame, retroativamente, para que daí saiam glorificados como princípios ou rebaixados à condição de hipóteses provisórias que, tendo uma vez servido de motor de arranque, podem ser desligadas quando o barco já está em movimento. De tal modo a redução dos pressupostos é atividade essencial e característica da filosofia, que o alto coeficiente de espírito filosófico presente numa discussão pode ser medido pela míngua de postulados admitidos em comum pelas partes em disputa, e o baixo pela abundância deles. Enquanto numa discussão vulgar os contendores apelam de improviso a mil e um postulados colhidos do senso comum, das opiniões do auditório ou de seus respectivos campos especializados de estudo, dois filósofos em confronto não admitirão discutir – se o fizerem filosoficamente – senão com base nuns poucos postulados admitidos explicitamente desde o início, à luz dos quais tudo o mais que o debatedor vulgar poderia dar por pressuposto se torne passível de exame e arbitragem. A redução significa, pois, esclarecimento. Não pode haver clareza, nem portanto argumentação racionalmente probante, onde as bases da prova se encontrem dispersas numa multiplicidade difusa de fontes e autoridades, aguardando que a destreza do orador ou um feliz acaso vão buscá-las no calor do debate para extrair delas algum efeito surpreendente para confundir o adversário. Do voto de pobreza em matéria de pressupostos decorre outra característica essencial do debate filosófico: sua soberania ante os saberes particulares. Enquanto no debate vulgar a superior dotação de conhecimentos especializados confere ao debatedor uma indiscutível vantagem sobre seu concorrente, no confronto filosófico essa superioridade é de pouca valia, porque esses conhecimentos, a não ser na hipótese de serem de antemão postulados como válidos por ambas as partes (o que supõe que ambas os dominem por igual), só terão força probante se puderem ser dedutivamente legitimados

desde os princípios admitidos em comum e, em vista disso, não estão numa posição mais privilegiada que a de qualquer outra alegação possível. Do mesmo modo, as opiniões e sentimentos habituais do auditório, tão úteis para o debatedor cuja vitória dependa de aprovação do público, de nada servem em filosofia exceto se, à luz dos princípios admitidos, puderem se demonstrar válidos. O estreitamento da base de pressupostos é condição sine qua non da validade da prova obtida – donde se conclui que perante as exigências superiores da filosofia, quase todos os debates intelectuais, seja nas questões públicas, seja no campo das ciências especializadas, não são senão exercicios de virtuosismo persuasório mais ou menos levianos e de resultados bastante duvidosos, a não ser no caso de se curvarem a essas exigências e se tornarem autênticos debates filosóficos. Dito de outro modo, para o filósofo, só o debate filosófico em sentido estrito tem valor probante, e o tem justamente em razão da redução e explicitação dos pressupostos. Todos os demais debates não provam nada, por mais honestos que pareçam desde o ponto de vista das platéias ou por mais científicos que os julgue a opinião especializada. Um filósofo não deve, pois, levar muito a sério esses debates. Se deles participar, estará obrigado, seja a admitir o caráter pessoal e até certo ponto arbitrário das opiniões que defenda, seja a buscar para elas um fundamento filosóficamente válido, o qual, porém, nas condições concretas do debate vulgar, deverá ser conservado num discreto segundo plano ou reservado para exposição sistemática em outra ocasião, cedendo o lugar, no calor da hora, a outro tipo de argumentos, mais ou menos improvisados e de menor validade filosófica. O que importa nessas horas para a preservação da integridade filosófica é que ele os apresente de modo a que permitam a qualquer momento sua conversão, mediante simples descompactação analítica, em provas filosoficamente válidas. Digo "descompactação" por um motivo muito simples: é necessário que na conversão do discurso retórico para o dialético e deste para o analítico o conteúdo dos argumentos permaneça substancialmente o mesmo. Nas discussões correntes, mesmo entre intelectuais, em geral não é possível ir além da argumentação retórica, ou prova por verossimilhança. Essa limitação provém seja da falta de espaço, nos jornais e revistas, seja da pouca disposição do público para acompanhar até o fim alguma demonstração mais "técnica" do que quer que seja. Para o debatedor que possui o conhecimento da prova cabal, é extremamente constrangedor ter de limitar-se a umas indicações gerais dela, as quais podem não soar mais convincentes do que qualquer improviso retórico leviano que o adversário lhes oponha. Mas essas indicações gerais, se forem realmente um resumo de demonstrações rigorosas, deixam ao menos ao debatedor a boa consciência de que essas demonstrações podem ser oferecidas noutra ocasião, tão logo o adversário, caso seja honesto, consinta em passar do mero confronto momentâneo ao teste aprofundado da verdade e do erro.

É nessa passagem que se verifica a diferença crucial entre dois tipos de argumentação retórica: aquela que é retórica apenas em função das limitações externas do debate, e aquela que é retórica por essência e fatalidade, por não poder ser outra coisa e por não poder valer senão retoricamente, isto é, como aparência persuasiva para um auditório determinado. A diferença vem da ambigüidade mesma do verossímil. Verossímil é parecer verdade. Mas há um parecer que é umaparecer e um parecer que é simular: há uma verossimilhança que é face externa da verdade profunda e uma verossimilhança que se finge de verdade, que usurpa o lugar da verdade e recebe as honras devidas à verdade. Essa diferença aparece justamente na descompactação dos argumentos. O argumento retórico por excelência é oentimema, o silogismo com premissa não declarada. O entimema abrevia o discurso e lhe confere a pungência das afirmações breves, o fulgor das frases de efeito. Quando desdobramos analiticamente os entimemas, descobrimos suas premissas e as premissas destas premissas. Aí alguns entimemas revelam ser apenas a compactação de longas cadeias de provas perfeitamente razoáveis ou mesmo absolutamente inatacáveis, ao passo que outros se denunciam como puras maquiagens destinadas a disfarçar a falta de provas ou mesmo a completa falsidade das alegações. Retoricamente, ambos valiam o mesmo, pareciam igualmente persuasivos. Descompactados, um é alguma coisa, o outro não é coisa nenhuma. Ao analisar-se, submeteram-se à prova dialética, isto é, ao confronto interno de seus contrários. Um saiu ileso, reforçado mesmo. O outro desmembrou-se em fragmentos inconexos e já não pode ser remendado. Há, pois, dois tipos de argumentação retórica: a retórica dialetizável e a não dialetizável. A primeira resiste à exposição de seus mecanismos internos, a segunda não. Muitas vezes a diferença aparece nitidamente já na simples exposição retórica, quando a compactação dos silogismos em entimemas é feita de tal modo que o leitor avisado apreenda instantaneamente a demonstração subentendida. Quando essa operação é bem sucedida, a argumentação obtém o máximo de força probante enxertado no máximo de compactação persuasória. O filósofo que entre numa discussão corrente deve tomar o cuidado de não empregar argumentos retóricos pela sua pura força retórica, mas de usar somente daqueles que levem dentro de si, ocultas e compactadas, as mais rigorosas provas analíticas, resistentes a duros testes dialéticos. Se assim ele não vencer a discussão logo na primeira oportunidade, terá ao menos a certeza de poder levar a discussão mais adiante, subindo a níveis mais complexos e exigentes de demonstração, enquanto seu adversário, tão logo o combate saia do terreno do mero confronto de aparências, não terá remédio senão calar-se e desistir.

Olavo de Carvalho

16/04/00

Apostilas do Seminário de Filosofia - 23

Identidade e Univocidade Rascunho para uma aula do Seminário de Filosofia

Este rascunho faz parte da obra em preparo, O Olho do Sol, onde compõe, na massa das 700 páginas redigidas até agora, a primeira seção do capítulo "Da metafísica dogmática à metafísica crítica – e vice-versa". Será usado brevemente como base para a exposição oral no Seminário de Filosofia e por isto é divulgado aqui para notificação dos alunos. – O. de C.

1. Definições

1. Metafísica é a ciência das necessidades supremas que abarcam e subordinam todas as outras. 2. Necessidade (de nec cedo = não ceder) é ter de ser, não poder não ser. Necessidade é impossibilidade do contrário. 3. Metafísica crítica é a parte dessa ciência que aborda os problemas e as dificuldades que se apresentam ao investigador na busca das necessidades supremas. 4. Metafísica dogmática é a discriminação e afirmação das necessidades supremas, bem como o desdobramento de suas consequências imediatas para os diversos setores do conhecimento humano. 5. Incumbe à metafísica o estudo da possibilidade como tal e da impossibilidade como tal, bem como das diversas gradações e modos da possibilidade, que encaradas quantitativamente se chamarão probabilidades.

2. Axiomas

1. Proposição auto-evidente é aquela cuja contraditória não pode ser formulada numa proposição logicamente unívoca. 2. As proposições metafísicas puras, isto é, aquelas que expressam necessidades supremas, devem ser todas auto-evidentes. 3. Toda prova funda-se em princípios auto-evidentes. 4. Um princípio é auto-evidente ou não é. Não se pode simplesmente "tomar como" auto-evidente um princípio que não o seja. Dito de outro modo: não pode haver princípio hipoteticamente auto-evidente (embora possa, naturalmente, haver princípios hipoteticamente verdadeiros). 5. As condições psicológicas que permitem captar a evidência de um princípio podem variar de homem para homem, portanto o sentimento de certeza nada tem a ver com a auto-evidência.

3. Primeiro enunciado do princípio metafísico supremo, ou Princípio da Integridade.

1. Todo sujeito de uma proposição, na medida em que possa ser também sujeito de uma ação ou objeto de uma ação realizada por outro sujeito também capaz de ser objeto de ação, é um. Os sujeitos ditos meramente lógico-formais, ou ideais, não são objetos de ação, nem mesmo da "ação" de ser pensados; pois o que se pensa é o seu conceito apenas, ou o termo que o designa, e não o objeto como tal. Sujeito impossível é aquele cuja definição implica sua inexistência, não apenas de maneira lógica, mas auto-evidente; isto é, um sujeito é impossível quando a afirmação de sua existência não pode ser logicamente unívoca. 2. Logo, todo sujeito é íntegro, e tudo quanto se oponha real ou hipoteticamente à sua integridade exige, real ou hipoteticamente, a sua supressão. 3. A supressão tem duas formas: 1ª negação, 2ª, redução. 4. A negação pode ser terminante ou condicional. Negação terminante é aquela que priva o sujeito, real ou hipoteticamente, da possibilidade de ser sujeito de ação ou paixão. Negação condicional é aquela que, real ou hipoteticamente, priva o ser de ser sujeito de algumas ações ou paixões (determinadas ou indeterminadas). 5. A redução tem duas formas: 1ª redução a seus elementos, ou redução analítica; 2ª, redução a outro sujeito, ou redução sintética.

6. Sujeito absolutamente necessário é aquele cuja definição mesma exclua, de maneira auto-evidente, sua redução analítica ou sintética. Dito de outro modo: é aquele cuja redução analítica ou sintética não possa ser enunciada numa proposição logicamente unívoca.

4. Das proposições auto-evidentes

1. O princípio de identidade A = A é auto-evidente, não porque tal nos pareça ou porque tenhamos um sentimento de certeza de que é auto-evidente, mas porque sua contraditória, A A, tem duplo sentido: se A A, o sujeito da proposição não é igual ao seu predicado, mas, sendo a proposição reversível — o predicado tornando-se sujeito, e o sujeito predicado —, temos então dois sujeitos diferentes, que são ambos sujeitos da mesma proposição: A1 A2. Logo, a sentença A A não é unívoca e não pode ser unívoca, donde se patenteia que A = A é auto-evidente. 2. A objeção tola de que essa demonstração por sua vez dá por pressuposto o princípio de identidade cai ante a verificação de que a objeção também o dá por pressuposto. O propósito aliás não é aqui "demonstrar" o princípio de identidade mas sim demonstrar a impossibilidade de sua negação unívoca. Se na antiga lógica se dizia que uma proposição auto-evidente nem requer nem admite provas, era isto o que no fundo se queria dizer, sem chegar a dizê-lo, talvez por não havê-lo percebido claramente: Não há nada a objetar ao princípio de identidade, a não ser proposições de duplo sentido, isto é, sem sentido. 3. Portanto, se não há demonstração lógica de um princípio auto-evidente, há, sim, da impossibilidade da sua contraditória. Isto aplica-se a todos os princípios lógicos e metafísicos.

5. Que o Princípio da Integridade é auto-evidente

1. Ação é mudança de estado no tempo e/ou no espaço. 2. Adoto provisoriamente a definição do tempo como forma das sucessões e do espaço como forma da simultaneidade, a que voltarei mais adiante. 3. Estado é etapa de mudança. 4. Só há três tipos de mudança: a mudança de estado ou as duas reduções. 5. A mudança de estado subentende a permanência do sujeito.

6. A redução analítica subentende que as partes pertencem a um mesmo sujeito. 7. A redução sintética real subentende que aquele em que o sujeito foi absorvido não fosse ele. 8. A redução sintética hipotética ou subentende a possibilidade da redução sintética real ou é impossível. 9. Logo, todo sujeito que é objeto de ação (isto é, sujeito de paixão) é um e o mesmo, não muitos ou outro. 10. A ação consiste em mudar um outro ou mudar-se a si mesmo, ou ainda em mudar ao outro mudando-se também a si mesmo. 11. As três hipóteses subentendem a unidade e mesmidade do sujeito, conforme já demonstrado nos itens de 1 a 9. Se o sujeito que muda o outro não muda de estado, fica o mesmo. Se muda de estado, é o mesmo em outro estado. Logo, o sujeito de qualquer ação é um e o mesmo. 12. Estas proposições são não apenas logicamente certas mas auto-evidentes: suas contraditórias não são unívocas. Vejamos: A1 muda para o estado A2. Se o sujeito no estado A2não é o mesmo A do estado anterior, então não foi A1 o sujeito de mudança; se, inversamente, o estado A2 não se refere ao mesmo sujeito A, então A2 não é predicado da proposição referente à mudança de A1. É impossível decidir se a negação da continuidade de A de A1 para A2 diz que não houve a mudança ou que o sujeito foi outro. A negação é portanto ambígua, ou equívoca. Não tem sentido. Logo, a unidade do sujeito da mudança (sujeito da ação ou da paixão) é auto-evidente.

6. Que não há auto-evidência hipotética

1. Para que uma evidência fosse hipotética, seria necessário que sua contraditória pudesse ser admitida como hipotética também. 2. Mas a contraditória de uma evidência é ambígua, logo sua formulação não conteria somente a negação da evidência e sim também sua afirmação. 3. Logo, a evidência não pode ser hipotética. Ou uma proposição é evidente, ou não é. O critério da impossibilidade da contraditória unívoca resolverá todas as dúvidas que se apresentarem.

7. Que o auto-evidente é necessariamente verdadeiro

1. Não podendo ser hipoteticamente verdadeiro, o auto-evidente só pode ser taxativamente verdadeiro. 2. Não tem sentido formular uma sentença como "x é hipoteticamente taxativamente verdadeiro", que recairia nas objeções do item 2 do § 6. 3. Logo, não há alternativa senão aceitar a verdade da evidência. 4. A mente, no entanto, pode-se recusar a fazê-lo. Por que o homem pode recusar a evidência? Porque ele pode se recusar a inteligir. Porque o exercício da inteligência, no homem, é livre e não necessário, já que, se fosse necessário, o homem inteligiria tudo necessariamente, coisa que se vê, por experiência, que não acontece, mas que a definição mesma do homem, adiante, nos esclarecerá em seu sentido metafísico mais profundo. 5. A recusa da evidência pode ter significado moral e psicológico, mas intelectualmente nada significa e cai fora da esfera de interesse da metafísica.

8. Outro exemplo de proposição auto-evidente

1. "Eu estou aqui": Esta proposição é auto-evidente sempre que proferida por um sujeito a respeito de si mesmo, não é tautológica e é unívoca. 2. Sua contraditória, "Eu não estou aqui" significa "Não sou eu quem está aqui", ou "Este lugar não é aqui"? Sendo impossível decidir, a proposição é ambígua, e portanto "Eu estou aqui" é auto-evidente.

9. Que a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente e necessariamente verdadeira

1. Um ser absolutamente necessário existe necessariamente, diz a prova de Sto. Anselmo. 2. A objeção de Kant é que o ser assim definido é definido por nós, portanto sua exitência é hipotética, fundando-se na suposição — feita por nós — de que o ser nela definido é absolutamente necessário. 2. A contraditória é "Um ser absolutamente necessário não existe necessariamente" ou "Um ser absolutamente necessario necessariamente inexiste?" Sendo impossível decidir, é proposição equívoca e não tem sentido. 3. Logo, a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente.

4. Não havendo auto-evidência hipotética (7:1-5), a prova de Sto. Anselmo é necessariamente verdadeira.

10. Que não existem auto-evidências lógicas puramente formais, isto é, que não sejam também ontológicas

1. Verdade puramente formal é aquela que se verifica necessariamente no campo das relações lógicas, não porém necessariamente no campo da experiência. É, portanto, uma proposição hipotética. 2. Não existindo auto-evidências hipotéticas, nenhuma proposição auto-evidente é puramente formal.

11. O domínio da Lógica

1. Toda proposição lógica funda-se em última análise em princípios auto-evidentes. Por que então o domínio do lógico não coincide inteiramente com o do verdadeiro? É porque o conjunto das consequências logicamente necessárias, podendo partir de qualquer premissa e não de premissas auto-evidentes, não é auto-evidente, apenas logicamente consistente. 2. Identifica-se, portanto, com a extensão do quenecessariamente possível, não necessariamente verdadeiro. Ou seja: é impossível que uma consequência lógica deduzida de princípios auto-evidentes seja impossível, mas nem todo o possível é necessário. 3. A lógica distingue-se pois da metafísica na medida em que esta afirma positivamente o necessário, ao passo que aquela apenas afirma apenas a possibilidade necessária. 4. A possibilidade necessária funda-se no necessário enquanto tal e não é um domínio independente, de vez que o "necessário hipotético" só existe a título de hipótese impossível. Ora, a lógica sem fundamento metafísico só poderia fundar-se no necessário hipotético e, portanto, ela própria só existe como hipótese impossível. A fragmentação das lógicas modernas deve-se precisamente à impossibilidade de reduzir as hipóteses impossíveis à unidade do necessário.

[Continua]

Apêndice: uma discussão no Fórum Sapientia

Reproduzo a seguir uma mensagem enviada ao fórum desta homepage pelo participante que adotou o pseudônimo de Villiers de L‘Isle-Adam e a resposta que lhe dei. Essa mensagem foi que motivou a publicação do texto acima nesta homepage e a decisão de expor o assunto na próxima aula doSeminário de Filosofia. - O. de C.

Mensagem de Villiers

Prezados amigos,

Tenciono discutir, no presente tópico, algumas questões relativas ao célebre 'princípio da não-contradição' formulado por Aristóteles; para tanto, pretendo expor à consideração dos senhores um artigo sobre o supracitado tema, de lavra do notável lógico, matemático e filósofo polonês Jan Lukasiewicz (1878-1956), um dos expoentes, ao lado de Kazimierz Twardowski (1866-1938) e Stanislaw Lesniewski (1886-1939), da renomada escola de lógica que se formou nas universidades de Lvov e Varsóvia. O estudo de Lukasiewicz, "O Zasadzie Sprecznosci u Arystotelesa: Studium Krytyczne", foi publicado originalmente 1910, podendo, no entanto, ser encontrado no número XXIV da Review of Metaphysics, traduzido por Michael V. Wedin sob o título "On the Principle of Contradiction in Aristotle: A Critical Study". Aristóteles, no Livro IV da Metafísica, apresenta o princípio da não-contradição de três maneiras distintas, que serão denominadas por Lukasiewicz como formulações 'ontológica', 'lógica' e 'psicológica'. O esforço analítico do lógico polonês, todavia, irá se concentrar sobretudo nas formulações ontológica e lógica. Para o Estagirita, elas são equivalentes, tendo-se em mente que uma proposição, para ser verdadeira, deve estar conforme à realidade objetiva. As formulações ontológica e lógica seriam, portanto, verdadeiras pela circunstância de o mundo ser, metafisicamente, tal como é. Devemos ainda ressaltar que o princípio da não-contradição é, na perspectiva de Aristóteles, uma lei final, indemonstrável. Exigir uma demonstração, uma fundamentação última do 'princípio', seria incidir num retrocesso que não poderia deixar de ser infinito, incidir numa exigência que, pela própria natureza da questão em pauta, não poderia ser satisfeita. E, se existe algo que pode ser conhecido sem provas, que haveria de mais ajustado a essa espécie de conhecimento do que a lei da não-contradição, um princípio do qual é impossível duvidar ao pensarmos?

Com o propósito, todavia, de evidenciar a necessidade do princípio da não-contradição, o Estagirita propõe uma série de argumentos que, refutando a possibilidade da contradição na ordem do Discurso, procuram justificar o princípio. Lukasiewicz denomina tais argumentos como "demonstrações elênticas e apagógicas", muito embora Aristóteles, deve-se sublinhar, jamais tenha pensado neste conjunto de deduções em termos de demonstrações 'positivas' do princípio. Parece evidente, a meu juízo, que o objetivo da estratégia de Aristóteles é o de comprovar que, admitindo-se a contradição, destrói-se o Discurso, rompe-se a possibilidade de comunicação racional, uma vez que os símbolos deixam de atuar como símbolos, não mais podendo refletir a Realidade no Discurso. Além disso, Aristóteles procura evidenciar, especialmente nas demonstrações apagógicas, as conseqüências absurdas a que somos levados quando negamos o princípio da não-contradição. Não sendo razoável, e nem tampouco desejável, reproduzir aqui todos os passos da minuciosa análise de Lukasiewicz, gostaria de examinar, no entanto, as considerações mais relevantes que o lógico polonês extraiu de seu percurso argumentativo. Em primeiro lugar, Lukasiewicz constata que o princípio da não-contradição não pode ser demonstrado com base em sua evidência; com efeito, a 'evidência' em si mesma não constitui critério seguro de verdade. Também resultaria inconseqüente, por outro lado, a tentativa de se derivar o Princípio a partir de nossa estrutura psíquica, uma vez que leis psicológicas apenas são suscetíveis de comprovação através do método experimental, e este não nos autoriza sequer a formular a Lei da não-contradição como princípio válido em primeira aproximação. Uma terceira possibilidade seria, então, procurar deduzir o Princípio da definição de 'negação' ou de 'falsidade'. Se "A não é B" exprime, por exemplo, simplesmente a falsidade de "A é B", para natural concluir que essa definição acarreta o Princípio. Contudo, nos diz Lukasiewicz, isto não ocorre na realidade: mesmo que aceitemos como correta a definição precedente de falsidade, nada impede que as proposições "A é B" e "A não é B" sejam ambas verdadeiras; apenas se impõe, como conseqüência, que a proposição "A é B" é simultaneamente falsa e verdadeira. A Lei da não-contradição envolve a noção de conjunção, e não decorre unicamente da definição de falsidade (ou negação). O lógico polonês nos chama a atenção para outra definição de 'verdade' e 'falsidade' que, de uma certa maneira, parece ser mais fecunda que a tradicional: a proposição "A é B" é verdadeira se corresponde a algo objetivo; falsa, em caso contrário. Similarmente, "A não é B" é uma proposição verdadeira se representa vínculo objetivo; falsa, caso tal fato não se dê. Levando-se em consideração tais critérios, nada impede 'a priori' que as proposições "A é B" e "A não é B" sejam ambas verdadeiras, desde que representem situações objetivas. Lukasiewicz também observa que qualquer defesa do princípio da não-contradição deve, necessariamente, levar em conta o fato de que existem 'objetos contraditórios', como, por exemplo, o Círculo Quadrado de Meinong. Para tais objetos, claro está que o Princípio não é válido. Obviamente o lógico polonês não pressupõe que Aristóteles pudesse ter trabalhado com base em tais considerações, que fazem parte de um acervo de estudos que começou a se desenvolver apenas a partir de meados do século XIX, no

esteio do florescimento da lógica simbólica. Entretanto, isso não nos impede de salientar a relevância intrínseca da observação de Lukasiewicz: a existência de 'objetos contraditórios' foi confirmada pelos desdobramentos recentes da lógica, particularmente pela Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Podemos hoje atestar a existência de teorias lógico-matemáticas onde aparecem objetos contraditórios e que, por conseguinte, derrogam o princípio da não-contradição. Tendo em vista tais perspectivas, o Princípio não se mostra tão absoluto e intocável quanto poderia parecer à primeira vista. Aliás, Lukasiewicz afirma que, mesmo para Aristóteles, o princípio da nãocontradição não poderia ser uma lei suprema, ao menos na acepção de que constitui pressuposição necessária de todos os demais axiomas lógicos. Citando célebre passagem de Aristóteles nos Analíticos Posteriores (An. Post. A, 11, 77a 10-22), o lógico polonês assevera que o seguinte silogismo seria válido, de acordo com os postulados do Estagirita: B é A (e também C, que é não-C, é _________________________

não B

é e

não-A) não-B

C é A (e não é também não-A) O silogismo anterior é, portanto, válido, embora a lei da não-contradição seja violada. Meus parcos conhecimentos de silogística não me permitem verificar se, de facto, o silogismo proposto por Lukasiewicz é válido ou não no quadro da lógica aristotélica; no entanto, se o lógico polonês estiver correto, será imperativo aceitarmos a existência de leis válidas de raciocínio que independem do princípio da não-contradição. A questão central a que agora chegamos pode ser apresentada da seguinte forma: existem 'objetos' em relação aos quais estamos certos da vigência do princípio da nãocontradição? Em sua análise, Lukasiewicz irá destinguir três tipos de objetos: 1) os objetos reais; 2) as "abstrações construtivas", livres criações do intelecto, como, por exemplo, os objetos da matemática clássica; 3) as "abstrações reconstrutivas", que são conceitos elaborados para representar coisas reais. No tocante às abstrações construtivas, paradoxos como o que Bertrand Russell (18721970) descobriu em 1901, ao considerar a questão do Conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo, indicam que, na maioria dos casos, jamais teremos certeza de que não irão violar o princípio da não-contradição. No que concerne às abstrações reconstrutivas, que bem espelham o realidade objetiva, e aos objetos reais, eles parecem estar protegidos da contradição. Com efeito, parece haver certeza de que não existem contradições diretamente perceptíveis na Realidade, pois as negações correlacionadas a juízos de percepção não são elas mesmas perceptíveis, pelo menos em nossa experiência cotidiana. No atual estágio de nosso conhecimento, temos a tendência a admitir como correta a constatação de qualquer contradição 'real' só pode ser 'mediata', resultado de inferências. Por outro lado, no entanto, não podemos esquecer o fato de que, desde os primórdios da filosofia, é recorrente a tese de que o 'movimento' e a 'mudança' necessariamente envolvem contradições (a este respeito, podem ser

mencionadas as aporias de Zenão de Eléia). Muito embora essas dificuldades lógicas tenham sido sempre eludidas por meio de esquemas teóricos, posto que decorrem de inferências, não parece haver nenhum prova definitiva de que não existam contradições no 'mundo' objetivo. Portanto, não existe, também, qualquer prova positiva e inequívoca de que o princípio da não-contradição possui plena vigência em relação aos objetos reais e abstrações reconstrutivas. Contudo, na medida em que podemos verificar que o Princípio é 'útil', devemos encará-lo apenas como suposição ou hipótese que norteia e confere forma à indagação científica, regulamentando certas teorizações do Real. Para Lukasiewicz, pois, o princípio da não-contradição carece de qualquer dignidade lógica a priori; possui, não obstante, um valor ético e 'prático' sumamente importante. Como enfatiza o lógico polonês, se não aceitássemos a validade do Princípio para as atividades 'práticas', estaríamos sujeitos a toda sorte de problemas. Assim sendo, para a vida ordinária (atividades comunicativas, sociais, etc.), como Aristóteles já havia assinalado, o princípio da não-contradição constitui pressuposto fundamental. Todavia, é necessário sublinhar que imprescindibilidade prático-ética do Princípio é matéria totalmente distinta de sua validez lógico-teórica. A conclusão de Lukasiewicz a este respeito não deixa de ser assaz perturbadora: a necessidade de se reconhecer como 'válida' a lei da não-contradição é tão somente um sintoma da imperfeição ética e intelectual do Homem. O lógico polonês sustenta que Aristóteles percebeu a importância prático-ética do princípio da não-contradição, mesmo que tal constatação não tenha sido claramente formulada em sua obra. Numa época em que o declínio político da Grécia já era patente, o Estagirita tornou-se o fundador e principal promotor de um trabalho filosófico-científico sistemático e de grande rigor. É muito provável que o filósofo grego, especula Lukasiewicz, encarasse todo esse esforço intelectual como um instrumento poderoso para a futura grandeza de sua nação. A negação do Princípio, por conseguinte, deixaria livre o caminho para toda a sorte de falsidades e incertezas, abalando as então frágeis estruturas da investigação científica. Por esse motivo, observa o lógico polonês, Aristóteles voltou-se contra os oponentes do Princípio de modo fervoroso, com uma veemência de linguagem pouco habitual em sua obra. Numa analogia singular, Lukasiewicz nos diz que o filósofo grego combatia pelo princípio da não-contradição como se duelasse por bens pessoais. Concluindo seu artigo, Lukasiewicz argumenta que Aristóteles, talvez justamente por ter percebido a fraqueza e a inconsistência de seus postulados, mas tendo plena consciência da importância 'prática' que ela envolvia, acabou por estabelecer o princípio da não-contradição como fronteira última que não poderia ser ultrapassada por um discurso racional. Encerrando está já demasiado longa mensagem, devo dizer que, na qualidade de mero principiante no estudo de Aristóteles, não possuo os predicados necessários para asseverar a pertinência das posições de Jan Lukasiewicz a respeito da lógica aristotélica; se não posso afiançar, no entanto, a veracidade de suas críticas, gostaria de louvar, em primeiro lugar, a invulgar sutileza conceitual da engenharia analítica desenvolvida pela lógico polonês, bem como a criatividade e ousadia de suas proposições. Gostaria de ter

a oportunidade de discutir estas idéias com estudiosos abalizados de Aristóteles, e gostaria, sobretudo, de saber como o professor Olavo de Carvalho, sendo um profundo conhecedor da filosofia aristotélica, avaliaria o pensamento de Lukasiewicz.

Cordialmente, Villiers de L'Isle-Adam

Resposta de Olavo de Carvalho

Prezado amigo,

Você e os demais participantes estão elevando este fórum ao nível do mais importante debate cultural brasileiro dos últimos anos, talvez o único importante, se por esta palavra se entende aquilo que toca em problemas essenciais e não aquilo que é tocado pelas graças da mídia iletrada. Quanto às suas observações, não tenho em mãos no momento o famoso estudo de Lukasiewicz, nem posso dar a resposta extensiva que elas merecem. O que posso dizer por enquanto é que: O princípio de identidade é de ordem metafísica e sua contestação, para valer, tem de ser metafisicamente válida. A de Lukasiewicz não é nem pretende ser. Ela pretende apenas demonstrar que na lógica construtivista podemos lidar com objetos contraditórios (coisa que Aristóteles não apenas não contesta, mas afirma resolutamente), e obviamente todos os objetos dessa lógica existem apenas como definições hipotéticas e não têm o mínimo alcance metafísico. A possibilidade de construir raciocínios contraditórios é a base mesma da dialética de Aristóteles, mas Aristóteles jamais cairia na esparrela de confundir a ratio arguendi com a ratio essendi. Quando Lukasiewicz afirma que "existem" objetos contraditórios, a palavra "existência" é aí usada para designar a mera possibilidade de uma coisa ser logicamente construída. É um erro tão primário que não mereceria atenção, se não fosse pela elegante linguagem lógica que o encobre. Toda a argumentação de Lukasiewicz destinada a impugnar o princípio de identidade subentende a identidade das proposições e conceitos que a expressam. Este é o típico caso de uma regra geral que tenho adotado como critério para o exame crítico de teorias filosóficas: quando o fato mesmo de uma teoria ser enunciada desmente o conteúdo dessa teoria, a teoria pode ser descartada como simples caso de confusão mental.

Quando Lukasiewicz afirma que as proposições "A é B" e "A não é B" podem coexistir logicamente, ele não apenas não distingue entre coexistência "in re" e "in verbis" (distinção que está fora do alcance do puro construtivismo), como também subententende como constantes e idênticas a si mesmas as definições de A e de B, pois, se lhes aplicasse o mesmo princípio da coexistência dos contraditórios que acaba de afirmar, não teria duas e sim quatro definições, e assim por diante indefinidamente, o que mostra que sua pretensa contestação do princípio de identidade dá por pressuposta a validade desse mesmo princípio, apenas mostrando que sua negação é pensável, porém pensável, precisamente, como autocontradição que se automultiplica indefinidamente. Toda essa confusão nasce do mau hábito de cortar as ligações da lógica com a ontologia, obtendo uma lógica de pura invenção construtivista da qual se tiram, em seguida conclusões que pretendem ser ontologicamente válidas, introduzindo subrepticiamente no discurso termos como "existência". Tudo isso é de uma burrice sem par, aliada a uma formidável malícia. Dizer, por exemplo, que a noção de identidade envolve a noção de conjunção, é coisa válida em pura lógica construtivista, mas não em metafísica. Na identidade de um ser consigo mesmo não há conjunção nenhuma. A conjunção entra em jogo apenas na construção da proposição lógica que traduz essa identidade para o microcosmo verbal. Atribuir, retroativamente, à identidade do ser as qualidades formais da proposição que o designa é o mesmo que pentear, em vez dos próprios cabelos, a sua imagem no espelho. É verdade que Lukasiewicz admite a distinção entre validade lógica e ontológica, mas, na medida em que ele admite também uma lógica não-ontológica que ao mesmo tempo possa servir de critério de veracidade nas ciências, essa admissão fica sem efeito, de modo que ele pode continuar a tirar impunemente conclusões ontológicas de puros formalismos construtivos. Enfim, é uma confusão dos diabos. Os demais esclarecimentos que posso dar a respeito estão no texto sobre "Identidade e univocidade" – trecho do meu livro em preparo "O Olho do Sol" - que eu pretendia divulgar mais tarde, mas que esta discussão me sugere ser oportuno descarregar na minha homepage agora mesmo.

Um abração do Olavo de Carvalho

Apostilas do Seminário de Filosofia - 24

Lógica e consciência Nota para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

A coesão de raciocínio lógico ou é a suprema expressão da continuidade de consciência de uma personalidade bem integrada ou é um formalismo aprendido, oco e sem vida. Dessa diferença depende a eficácia ou ineficácia do discurso lógico em "apreender a realidade". Mas, para complicar as coisas, essa não é uma diferença que ressalte das simples qualidades formais do discurso, as quais podem ser as mesmas num caso e no outro. Para apreendê-la, é necessário uma recapitulação não só dos atos intuitivos pelos quais a mente apreendeu os objetos dos conceitos correspondentes, mas também daqueles pelos quais a unidade dos nexos lógicos entre esses conceitos se tornou visível como unidade entre os objetos e suas propriedades reveladas à intuição; e é necessário que esta dupla recapitulação mesma não se esgote na pura análise, mas reconquiste a unidade do ato intuitivo único correspondente à apreensão da tripla unidade do discurso, do objeto e da estrutura discursiva imanente ao objeto. Como a maior parte das pessoas não é capaz de fazer nada disso, o discurso lógico lhes parece mero formalismo precisamente porque o seu discurso lógico é mero formalismo; e, de certo modo, a construção desse formalismo já lhes é tão dificultosa que lhes parece inconcebível que alguém consiga efetuar análoga construção não com meros signos, mas com percepções e coisas. Tal operação lhes parece tão impossível como alterar um objeto real mediante simples modificações no seu desenho rabiscado num papel. No entanto, é nessa aparente "mágica" que reside o poder do pensamento eficaz, que essas pessoas contemplam sem compreender e sem mesmo chegar a admitir que exista, e para cujos efeitos visíveis têm de encontrar então algum tipo de explicação realmente mágica e irracional. Nesse tipo de mentalidade, que pode se considerar dominante entre os autodenominados "homens comuns" -- um título que lhes parece credor de honras especiais --, a "impressão de realidade" se esfuma e se desfaz à medida que eles se afastam das percepções imediatas e dos sentimentos mais intensos e se aventuram nos domínios do pensamento abstrato. A abstração, neles, é efetiva separação, e não aquela simples duplicação dos níveis de atenção que para o filósofo experimentado é operação corriqueira. A causa dessa dificuldade reside, segundo me parece, num insuficiente domínio da imaginação, a função mediadora que permite ir e vir entre as representações sensíveis e os conceitos abstratos. A diferença entre a mente apta e a inapta para a filosofia reside sobretudo em que a primeira possui um mundo imaginário mais organizado e integrado – mais estetizado, de certa maneira. Através dos graus sucessivos de formalização estética, a mente transita mais facilmente da experiência direta à reflexão verbal e viceversa, enquanto a imaginação desordenada bloqueia a passagem mediante a interposição de uma massa de imagens disformes e inconexas, carregadas de apelos inconciliáveis.

Mas, por caridade, não confundam essa qualidade imaginativa com alguma espécie de talento artístico, "criatividade" ou coisa assim. Aquilo a que estou me referindo nada tem a ver com a criação de produtos artísticos, pois não é uma estetização de determinadas formas em particular, com a finalidade de transformá-las em obras, em quadros, em poemas e em músicas, mas sim uma estetização global do campo de experiência individual tomado como um todo e, portanto, não objetivável artisticamente já que toda objetivação pressupõe o estreitamento do campo de atenção até o limite da singularidade de um só objeto. A reflexão filosófica exige, assim, uma expécie de apreensão estética da vida mesma, e ela começa, precisamente, no ponto em que essa apreensão, ao defrontar-se com aquilo que na realidade é absolutamente inestetizável, encontra o seu próprio limite e requer a entrada em cena de uma superior estratégia cognitiva. O uso do termo "estético" também não deve induzir ao erro de supor que se trate de uma apreensão meramente contemplativa, objetivante e "desinteressada", pois ela inclui necessariamente a autoconsciência do sujeito enquanto inseparavelmente cognoscente, agente e paciente no drama universal aí apreendido. Talvez coubesse falar em "sentimento do mundo", se a palavra sentimento não tivesse conotações tão mesquinhas hoje em dia. Admito que o conceito que estou procurando expressar, embora claro no seu conteúdo próprio e interno, não é nítido o bastante, isto é, suficientemente distinto de outros conceitos em torno, e por isto ainda é preciso recorrer a imagens e símiles para sua exposição, provisória portanto, mas suficiente para o momento. Enfim, sem uma certa integração estética da visão pessoal do mundo, o acesso à filosofia está bloqueado. Mas, como a imaginação é diretamente condicionada pelos sentimentos e desejos, uma certa limpidez psíquica – ao mesmo tempo uma consciência clara dos próprios sentimentos e desejos e um senso aguçado da responsabilidade pessoal de harmonizá-los numa totalidade pessoal capaz de projetar-se numa ação coerente sobre o exterior e compor ao longo do tempo uma "unidade biográfica" – é a condição moral sine qua non do aprendizado filosófico. A filosofia não é para as almas toscas, mal arranjadas, provisórias e meio submergidas no "inconsciente". A filosofia pressupõe a maturidade, num sentido muito mais exigente do que a mera adaptação ao entorno imediato que esse termo usualmente designa. A filosofia responde a perguntas que só o indivíduo amadurecido pode fazer a si mesmo e, nesse sentido, ela, radicalmente, não é coisa para crianças, seja no sentido etário do termo, seja no sentido daquele resíduo de puerilismo que parece irremovível da alma da quase totalidade dos nossos contemporâneos.

Olavo de Carvalho 10/05/00

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Ser e Conhecer – 3 Tema para uma das próximas aulas do Seminário de Filosofia

§ 1. Definição da Filosofia. -- Filosofia é busca da unidade do saber na unidade da autconsciência e vice-versa. § 2. Composição do saber. -- O saber compõe-se de: informações dos sentidos internos e externos: estruturas inatas diretamente condicionadas pela forma do corpo humano; registros organizados na memória; estruturas simbólicas transmissíveis. § 3. Divisões do saber. O conhecimento. – I. O saber divide-se em: Memória pessoal. Experiência pessoal, isto é, memória assumida e personalizada. Estruturas simbólicas assimiladas. Estruturas simbólicas produzidas. II. Estas duas últimas constituem o campo do conhecimento propriamente dito. Elas absorvem as anteriores e as subentendem. § 4. A experiência da unidade. O corpo. Autodomínio e domínio. -- I. A unidade funcional do corpo humano é o primeiro modelo do tipo de unidade cujo análogo mais tarde se buscará na esfera do saber. Ela assume a forma concreta de um sistema vivente de órgãos subordinados à vontade individual. Ferimentos, doenças, dores, mutilações, enfraquecimento assinalam rupturas parciais dessa unidade. Ter um corpo capaz de realizar, dentro dos seus limites próprios, a nossa vontade individual, é a primeira condição doautodomínio. O autodomínio é a primeira condição da ação no mundo. No curso da ação no mundo, o corpo encontra limites externos, que, através de aprendizado e adaptações, busca transcender. O conjunto dos limites transcendidos forma o seudomínio. O domínio pode estreitar-se por efeito de fatores externos sem que por isto se estreite o autodomínio, mas toda limitação do autodomínio produz o estreitamento do domínio.

II. A unidade do saber é um autodomínio estendido às estruturas simbólicas assimiladas e personalizadas. § 5. Ego. – Ego é a experiência pessoal condensada na forma de uma identidade corporal constante no tempo. É experiência pessoal sistêmica. § 6. Autoconsciência. -- É o autodomínio no nível do ego. Você tem consciência de algo quando tem em seu poder não somente (a) uma informação, mas também (b) a informação de que tem essa informação e (c) a informação de que essa informação é sua, isto é, de que ela agora faz parte integrantedo sistema do seu ego. A fórmula para a é: Sei. Para b é: Sei que sei. A fórmula para c, isto é, a fórmula da autoconsciência, é Sei que sei que sei. § 7. Ego e autoconsciência. Consciência autoral. Ego e poder do Ego. -- I. A existência do ego supõe a coincidência espaçotemporal da identidade corporal com o sujeito da experiência pessoal, ou, dito de outro modo, a identificação do sujeito objetivo com o sujeito subjetivo da experiência pessoal. Esta identificação, a que doravante chemarei consciência autoral, não é automática, pois só pode se realizar na autoconsciência, a qual, sendo um autodomínio, um poder, só existe mediante o exercício (embora possa se conservar por algum tempo enquanto mera potência). Observa-se, em certos estados patológicos e hipnóticos, a ruptura da consciência autoral (fragmentação do ego). Esta ruptura permanece como possibilidade mesmo quando não se realiza. Assim, pois, a consciência autoral é contingente e não necessária. Nada, absolutamente nada no mundo natural pode obrigar um indivíduo a ter consciência autoral, e, em contrapartida, nada no mundo natural pode abolir a conexão objetiva que faz de um indivíduo o autor dos seus atos (internos e externos), o sujeito de sua experiência pessoal. É o mesmo que dizer: você é você e não pode deixar de ser você, mas que ninguém pode obrigá-lo a admitir isso, exceto você mesmo. (A possibilidade da coerção sobrenatural será discutida bem mais adiante e pode ser deixada de lado neste ponto.) II. O conhecimento pressupõe a experiência pessoal, a experiência pessoal pressupõe a consciência autoral, a consciência autoral é livremente assumida por um sujeito que, não obstante, se não a assumir, não deixará de ser objetivamente autor de seus atos. Não se pode portanto dizer que o Ego se constitui a si mesmo, porque ele já recebe seu fundamento da unidade corporal objetiva e do fato bruto da autoria objetiva. Apenas, esse fundamento objetivo não pode terminar de constituí-lo sem a anuência dele. Esta anuência é só subjetiva, pois objetivamente ele continua autor de seus atos mesmo sem ela. Mas, pela anuência, o Ego, já existente, se assume a si mesmo como autoconsciência, e é isto que o constitui como poder. O Ego sem poder do Ego é o Ego vazio e inoperante que se observa naqueles estados que a psiquiatria denomina, hiperbolicamente, "perda da identidade". § 8. Consciência autoral e unidade da experiência pessoal. – A experiência pessoal só pode ter unidade quando tem como centro a consciência autoral, que distingue o fazer e o padecer, isto é, o sujeito como autor de seus atos e como receptor de atos seus e

alheios. Por outro lado, é evidente que a unidade da experiência pessoal está subentendida em toda aquisição, conservação e transformação de conhecimentos. § 9. O sujeito como objeto. Atos imanentes e transitivos. – Nenhum sujeito, enquanto sujeito autoconsciente, pode ser autor de atos (externos ou internos), sem ser, ipso facto, receptor deles. Todo ato tem um feedback, condição de seu registro memorativo e, portanto, de sua continuidade autoral no tempo. Estar consciente de si enquanto autor de atos é estar consciente de si enquanto receptor deles. A noção aristotélica de atos imanentes etransitivos adquire aqui uma nova nuance: o ato é imanente quando o autor é autor e receptor sob o mesmo aspecto; é transitivo quando o autor é autor sob um aspecto e receptor sob um outro aspecto. Por exemplo, se massageio meus próprios músculos, recebo a ação sob o mesmo aspecto em que a emiti, isto é, aplico e recebo a massagem. Mas, se chuto um gato, não recebo meu próprio chute, e sim apenas a informação de que chutei o gato. Todos os atos transitivos são portanto imanentes (sob outro aspecto), mas nem todos os atos imanentes são transitivos (sob qualquer aspecto). § 10. Inseparabilidade de autoconsciência, imanência e transitividade. – Estar autoconsciente ao praticar um ato inclui a distinção exata e instantânea entre o que ele tem de imanente e de transitivo, no sentido acima. Se não sei se agi só sobre mim mesmo, sobre um outro ou sobre ambos, e sob quais aspectos, então não sei se agi de maneira alguma. § 11. Transcendência da autoconsciência. -- A autoconsciência inclui portanto constitutivamente sujeito, objeto e sua reunião-distinção no ato. Uma autoconsciência solipsística não é autoconsciência de maneira alguma, exceto metonimicamente (tem algumas das propriedades ou partes da consciência sem chegar a ser autoconsciência). No sujeito, a autoconsciência é, já na sua constituição mesma, um transcender-se. A autoconsciência solipsística (cartesiana) só pode ser construída ex post facto como hipótese lógica (por abstração e supressão voluntária de dados da memória), jamais ser objeto de experiência. É mais ou menos como um homem normal imaginar-se autista – coisa que um autista não pode fazer. § 12. Transitividade, imanência e retenção. Ego e "mundo". -- Se a autoconsciência é, ipso facto, consciência da dosagem de transitividade e imanência do ato praticado, ela o é igualmente, mutatis mutandis, no ato padecido: estar autoconsciente enquanto receptor de um ato é distinguir, nessa recepção, aquilo que é puramente transitivo (isto é, aquilo que me vem de um não-eu) e aquilo que, nela, é imanência minha, por exemplo sob a forma de retenção, no tempo, de uma informação já completada. Por exemplo, acabo de receber um pontapé. O pontapé já terminou, no tempo, mas continuo sentindo a dor que ele provocou: esta dor, que prolonga em meu corpo o ato alheio já terminado, é parte dele na medida em que vem dele como efeito, mas ela, agora, só existe em mim e não nele. Sem esta retenção, nenhum ser pode ser autoconscientemente receptor de nada. Mas também não o pode se a retenção é mera retenção de sensações ou imagens, se ela não contém em si a exata distinção do que me veio como transitividade pura e do que entra nela como imanência minha. Não há portanto

autoconsciência sem a consciência do não eu-como agente. Não apenas não existe autoconsciência solipsística, mas não existe a autoconsciência num mundo de puros objetos, num mundo sem outros sujeitos. A existência de sujeitos agentes fora do eu, assim como o pleno reconhecimento dela pelo eu, são elementos constitutivos da autoconsciência mesma. Por isto o eu, quando nega os outros agentes ou os reduz a meros objetos, não cessa de existir, mas cessa de ser um poder, retorna ao estado de pura potencialidade vazia. O Ego só existe como poder num mundo de agentes, num mundo de sujeitos. O "mundo", portanto, não vem ao Ego desde fora, como um simples "dado", mas já se impõe desde dentro, como condição da possibilidade mesma do Ego como poder. E não cabe em gnoseologia discutir o Ego-sem-poder, pois este não é sujeito de conhecimento e aliás só existe como possibilidade teórica e construção lógica hipotética, cuja simples formulação já prova, no ato, sua própria irrealidade, exatamente como no caso do "imaginar-se autista". Por desgraça, o Ego que foi objeto central de atenção durante todo o período que vai de Descartes á fenomenologia de Husserl foi o ego sem poder, ao qual se atribuiu, como hipótese mágica, o dom de conhecer, daí resultando uma infinidade de problemas insolúveis e, na verdade, perfeitamente insensatos. 10/07/00

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Ser e Conhecer – IV UniverCidade, Rio de Janeiro, 14 de Setembro de 2000 Aula gravada. Transcrição de Alexandre Bastos

A idéia que inspira esta série de aulas é da total redução da gnoseologia à ontologia. Trata-se de eliminar o preliminar crítico, a crença de que primeiro é necessário criar uma teoria do conhecimento para depois, com base nela, chegar, se possível, a uma ontologia. Mas essa é apenas uma das idéias, a outra é eliminar a dualidade do racional e do intuitivo, reduzindo tudo ao intuitivo. Se tivesse tido a oportunidade de expor isso ordenadamente nestas aulas, em vez de abordar as partes do assunto um tanto a esmo e ao sabor da ocasião, como o fiz, eu partiria do rastreamento histórico das origens da questão do conhecimento no mundo moderno, da origem do primado do sujeito. Primeiro, mostraria como o subjetivismo de origem cartesiana está presente em todas as escolas, inclusive as mais antagônicas a qualquer idealismo, pois até escolas materialistas, como o marxismo, aceitam implicitamente a prioridade do sujeito: a

diferença, no marximo, é que é um sujeito coletivo. Mostaria que todos esses três séculos decorridos desde Descartes estão contaminados com o primado do sujeito. Tendo verificado em seguida a total inviabilidade do projeto cartesiano, também colocaríamos entre parênteses toda a questão da fenomenologia, que não é senão um meio de tentar realizar o projeto cartesiano com mais fundamento — o próprio Husserl, em seu livro Meditações Cartesianas, diz inspirar-se em Descartes, e declara que só quer aprofundar o cartesianismo até um nível a que o próprio Descartes não chegou. É claro que nesse empreendimento chega Husserl a várias conclusões que podemos aproveitar, mas eu gostaria até de saltar essa preliminar fenomenológica, se possível também neutralizando-a, pois ela ainda está dentro da idéia do "preliminar kantiano", e a minha idéia é eliminar completamente os preliminares, mostrando que são projetos inviáveis. E, para isso, é necessário voltar ao já exposto na aula "O problema da verdade e a verdade do problema": tantas vezes quantas seja formulada essa questão, tantas vezes sua investigação será bloqueada por contradições internas da formulação mesma. Então, é preciso retomar o próprio Descartes, e aí entra, propriamente, minha crítica do Descartes: a idéia mesma de colocar entre parenteses o objeto do conhecimento, e ficar só com o sujeito, também é impossível: há um curto-circuito desde o início, e chega a ser espantoso que ninguém tenha mexido nesse problema antes. Ora, sujeito e objeto são um modelo, uma distribuição de papéis, e ambos não são senão funções desempenhadas por determinados elementos, nenhum dos quais corresponde inteiramente à função respectiva: não é concebível nem o puro objeto nem o puro sujeito. Assim, segue-se que o que existem são situações onde um elemento desempenha tal papel, e o outro o outro papel — mas essa situação é que é o decisivo, pois tanto podemos chamá-la de conhecer como de existir, já que não há nenhum motivo para dizer que o aspecto cognitivo predomina sobre o aspecto existêncial, se existir é, simplesmente, transmitir e receber informações. Historicamente, as primeiras análises do fenômeno do conhecimento atacaram diretamente o ato de conhecimento sem perguntar se esse ato não seria espécie de algum gênero. Na verdade, o conhecimento é espécie do gênero relação — é uma relação entre dois entes. Se isso tivesse sido levado em conta, teria resolvido muitas questões relativas ao problema do conhecimento: todas e quaisquer relações que existem entre quaisquer seres são transmissões de informações, não há uma sequer que seja outra coisa. Portanto, essa modalidade de relação chamada ―conhecimento‖ é apenas uma modalidade, entre milhares de outras, de transmissão de informações (é claro que com suas características diferenciais específicas). Agora, se o próprio existir é transmitir e receber informações, então não existe um estudo do conhecimento que possa colocar o existir entre parênteses, caso contrário teríamos o caso de uma espécie que coloca entre parenteses o próprio gênero ao qual pertence. Assim, só é possível estudar o conhecimento como modalidade da relação, ou seja, como algo que acontece àquilo que existe; ou, dito de outro modo, estudá-lo como maneira de existir. Mas essa não é uma maneira qualquer entre outras, e sim a maneira essencial — não é concebível nenhuma, nenhuma forma de existência que não seja, em essência, recepção e transmissão de

informações. O tempo todo algo é transmitido e algo é recebido: se bloquearmos toda a entrada ou saída de informações não teremos mais um ente existente, mas apenas o conceito abstrato de uma espécie. Podemos conceber, por exemplo, uma figura geométrica: Qual a modalidade de existência de uma figura geométrica? Ora, ela só existe idealmente como conceito de espécie: Que é um quadrado senão o conceito de quadrado? Ele não é outra coisa senão seu próprio conceito, ele possui mera existência ideal e lógica, existe como possibilidade de relação matemática e só. Ou seja, não existe de maneira alguma: ele faz parte do possível, não do real. Isso não quer dizer que uma figura geométrica não transmita informação; mas ela transmite sempre a mesma, a informação essencial. Que é que o quadrado nos transmite senão o conceito de quadrado? É essa a definição do inexistir real: o que existe apenas como possibilidade lógica transmite uma única informação, que diz que o ente é aquilo que ele é. Quando lidamos com pura definições, no reino puramente lógico, os entes não têm senão existência puramente lógica, e não nos passam outra informação senão o conteúdo de seu próprio conceito. Mas existir realmente é transmitir algo mais que seu próprio conceito: é transmitir propriedades, acidentes etc. E por isso mesmo essa dimensão acidental passa a ser essencial para a existência. Aí temos a idéia, esboçada no meu livreto sobre Aristóteles, do acidente metafisicamente necessário. Algumas aspectos das coisas são acidentais, mas, sem eles, esses entes não poderiam existir. Esses acidentes, portanto, só são acidentais do ponto de vista lógico: para a existência, são essenciais. A estatura do homem é acidental, perfeitamente, mas não é acidental, para a existência, que ele tenha estatura, pois não pode haver um homem sem uma precisa estatura. Portanto, com esse enfoque, todos os problemas metafísicos e gnoseológicos acabam por tomar outra face, mediante essa simples observação de que as questões fundamentais levantadas sobre esses assuntos não são abordadas e de que, sem elas, todas as teorias do conhecimento são projetos simplesmente inviáveis. Todos são assim, todos prometeram o que não podem fazer: o projeto cartesiano da fundamentação do conhecimento objetivo a partir do sujeito não vai dar em nada; o projeto kantiano da crítica da razão tampouco: o que se cria é um curto-circuito que não permite fazer progredir o conhecimento. Como conseqüência, como não há progresso, não há possibilidade de acumulação de conhecimentos, essa impossibilidade passou a ser vista, por filósofos da tradição kantiana, como um dos traços essenciais da filosofia. Eu mesmo já vi introduções à filosofia que diziam o seguinte: existem conhecimentos que progridem, como a ciência, e outros que não progridem, como a filosofia. É o caso de dizer que filosofia não é conhecimento de maneira alguma, como dizia Jean Piaget: filosofia, para ele, não é conhecimento, é uma coordenação de valores. Mas, como se pode coordenar algum conhecimento se a própria regra coordenante não é conhecimento? É o mesmo que ter uma regra do jogo sem nenhum conhecimento do jogo. Ora, se a filosofia não é conhecimento ela não é absolutamente nada. Wittgenstein dizia: filosofia não é conhecimento, mas uma atividade. Certo, mas atividade de quê? De conhecer, naturalmente. Isso tudo são subterfúgios: ou a filosofia é uma ciência, ou não é nada. E se é uma ciência, tem de ser possível colocar as questões, investigá-las e chegar a alguma solução. Mas desde Descartes e Kant todas as questões filosóficas não

têm mais solução — todo o ciclo moderno é abortado pela sucessiva formulação de projetos impossíveis. Que é o projeto de Nietzche? É a transvaloração de todos os valores. Eu digo: pode parar, isso não é possível, pois, se você derrubar todos os valores, no fim sobra você, e você passa a ser o valor. Mas você não tem mais fundamento do que os valores que derrubou, você também é apenas fingimento e autoengano, você é um pobretão sofredor que se faz de Anticristo para se consolar da sua miséria. Então, tudo começa com uma proposta muito arrojada e termina mal: é assim com o projeto cartesiano, com o kantiano, com o marxista, com o de Nietzche. O projeto de Wittgenstein, por exemplo, termina mal duas vezes: o primeiro projeto, o da linguagem absolutamente desprovida de ambiguidades, desprovida de qualquer elemento intuitivo, não dá em nada e então Wittgenstein passa para o segundo projeto, o da crítica da linguagem comum. Ora, só há uma forma de fazer a crítica da linguagem: a partir de algo que não é linguagem, como os dados dos sentidos, por exemplo. Ora, não é possível uma linguagem absolutamente coerente, em todos os passos, pois, se assim o fosse, dispensaria os fatos: ou seja, seria totalmente coerente na medida em que não falasse de coisa nenhuma. E de fato é aí onde chega Wittgenstein: por um lado temos uma linguagem totalmente coerente e formalizada, mas sem conteúdo algum; por outro lado há um conteúdo anárquico, atomístico, sem qualquer elo interior, que ele chama de ―fatos‖. É claro que isso é um projeto abortado. No fundo toda essa aparente modéstia metodológica da filosofia moderna — todas começam com autocríticas da capa humana — termina numa pretensão desmedida: pois seus projetos ultrapassam a capacidade humana. Mais ainda: todos esses projetos não se justificam. Por que fazer a crítica da razão pura? Por que fundamentar o conhecimento no sujeito?Por que transvalorar todos os valores? Por que transformar o mundo em vez de tentar conhecê-lo. Não há razão suficiente para nada disso. Quando digo que determinados projetos filosóficos são inviáveis, é porque levantam perguntas sem sentido. Por exemplo, fundamentar o conhecimento objetivo a partir do sujeito considerado isoladamente é uma impossibilidade: se alegam ter abstraído todas as coisas, e ter apenas sobrado o sujeito, como produzir o objeto a partir do sujeito? Descartes vai buscar um mediador em Deus, mas, se é necessário apelar a Deus, é porque é necessário um milagre: a filosofia de Descartes é tão inviável que, para realizála, é preciso um milagre. Esses projetos filosóficos são todos abortivos por sua excessiva pretensão. O filósofo cai nessa pretensão ao tentar achar o fundamento absoluto de um objeto cuja presença ele suprime na mesma hora. Qual a possibilidade de conhecer um objeto que não está lá? Nesse sentido, toda a filosofia moderna é louca, a começar por Descartes. Ela cai na famosa definição de Borges: metafísica é um cego, num quarto escuro, procurando um gato preto... que não está lá. Vejam que mesmo o projeto de Popper é inviável: ao dizer que as teorias ciêntificas válidas são aquelas que ainda não foram impugnadas, ele concede a toda teoria

científica uma espécie de licença para o erro infinito. Se não temos um método positivo de afirmação da verdade, então não há nenhuma possibilidade de, de antemão, impugnar outras possibilidades de contestação que possam surgir. Assim, qualquer teoria está aberta a uma crítica infinita, e entramos no reino da total insegurança, onde conhecer e não-conhecer passam a ser a mesma coisa. Assim, pelo método popperiano, caímos no total irracionalismo, no convencionalismo científico, onde o único recurso que nos sobre é o apelo à autoridade científica — ―tem de ser assim porque o consenso diz que é‖. Também é evidente que, não havendo confirmação positiva da verdade, é puro eufemismo dizer que na passagem de uma teoria impugnada a outra ainda não impugnada há um ―progresso‖. Não existe ―progresso‖ ao longo de uma linha infinita, onde a idéia mesma de movimento é anulada por hipótese. Ou há um padrão de perfeição, ainda que meramente ideal, ou então é impossível distinguir processo, retrocesso e estagnação. Mas, existe algo em comum entre todos esses projetos, que os condene à inviabilidade desde o começo? Existe, sim: é a proposta de que o projeto filosófico tenha de engolir o mundo, e não ser apenas uma parte dele: no fundo o que todos querem é encontrar a fundamentação filosófica do mundo, mas se a primeira coisa que fazem é suprimir o mundo, como será possível fundamentá-lo? É possível, certamente, fundamentar o mundo, mas para isso, em primeiro lugar, é preciso aceitar o mundo. É preciso reconhecer que a filosofia é apenas uma das muitas coisas que o homem faz no mundo, que a filosofia é uma resposta a uma situação que já está dada, e que ela só responde às perguntas que foram colocadas naquele momento e naquele lugar. Ou seja, ela pode remeter a uma ordem de conhecimentos e princípios universais, mas nunca vai expressar aqueles princípios na totalidade — a função da filosofia não pode ser essa. Isso não quer dizer, no entanto, que a filosofia tenha de se contentar com o parcial e fragmentário. Quer dizer apenas que ela tem de ter a consciência de participar do todo em vez da pretensão de ―abarcã-lo‖. A consciência de participação é uma forma de conhecimento tão exata quanto a utópica visão desde fora, com a vantagem de ser viável. Se a função da filosofia é uma função reflexiva e crítica, de certo modo, o trabalho dela é remeter a certos princípios que já são conhecidos por participação: podem ser difíceis de exprimir, podem variar na expressão de tempos em tempos, mas a filosofia não tem de se preocupar com dar-lhes uma formulação uniforme e universalmente aceita precisamente porque o trabalho dela não é abarcá-los dentro de si, mas lembrá-los, tornar possível a sua reconquista na consciência de homens reais que em seguida terão todo o direito de os formular como desejem. A filosofia é uma correção de trajeto: ela não vai traçar o trajeto, pois este já está dado: esse trajeto é o mundo. Quando a mente humana começa a fantasias muito, e sair da realidade, a escapar da consciência viva dos princípios, a filosofia corrigem a rota, e isto é tudo. A filosofia não visa a dizer qual o sistema do mundo, pois o sistema do mundo já existe e está no próprio mundo. Se não partirmos disso, nunca iremos encontrá-lo: o mundo é sistema, e o código do sistema está no próprio mundo. Nós, como participantes dessa realidade, temos esse código em nós, e o conhecemos na medida do papel que nesse todo desempenhamos: não mais que isso. Assim, todos os códigos que compõem uma

tartaruga estão na tartaruga, senão ela não poderia ser tartaruga. Todos os códigos que compõem cada ente estão refletidos em todos os demais entes, mas refletidos de maneira inversa: por exemplo, na tartaruga estão refletidos todos os códigos que a diferenciam de um gato — se faltar um só, a tartaruga estará imperfeita, será indistinta de um gato. Se tomarmos dois entes, todas as diferenças que os separam estão registradas nos dois -- não podem estar registradas num só --, mas de maneiras diferentes e multiplamente complementares. Então, o sistema do mundo está refletido no mundo e em nós também: de maneira direita na nossa constituição enquanto homens, de maneira indireta na nossa diferença em relação a todos os demais homens e a todos os demais seres e coisas, inclusive o todo universal. Essa lei imanente, que tem de existir absolutamente, é o que chamamos sabedoria. É a sabedoria que está no próprio ser, na realidade mesma, e que pode estar presente também no homem segundo uma modalidade especificamente humana. E o que é filosofia? É o amor à sabedoria. É a reconquista de um conhecimento desse sistema universal, que está dado o tempo todo, e que conhecemos reduzidamente mas suficientemente. Então, é um conhecer que é um ser. O ser humano tem em si todas as determinações que o fazem humano, que o fazem ser fulano ou ciclano individualmente e que o fazem existir, ser real num universo real. Não é possível que ele abarque em toda sua mente subjetiva todos elementos dessa constituição, pois, se abarcasse, não abarcaria não só conceitualmente mas existencialmente: seria necessário produzir um novo homem que contivesse o primeiro, o que não é possível. Portanto aquilo que você tem em você como ser, quando rebate no plano do seu conhecer subjetivo, rebate de maneira reduzida. Mas, em compensação, você conhece a constituição de muitos outros seres. Esse conhecimento, não é necessário registrá-lo porque o próprio real é o registro deles, e essa realidade, de certo modo, não é opaca, é translúcida: você pode sempre voltar à leitura dos mesmos registros. Não é necessário saber tudo, pois o universo sabe tudo e ele está permanentemente à nossa disposição. Ele é a nossa memória, a nossa biblioteca, o nosso saber. Ele, e não o nosso cérebro. E qual o papel da filosofia? É restaurar no ser humano a confiança e a capacidade da leitura dos registros no ser: no momento em que o ser deixa de ser opaco para alguém, está cumprida ali a função da filosofia. Agora, é necessário fazer a transcrição do ser? Ora, se é transcrição é parcial, ela não é o próprio ser. E é feita apenas para responder apenas às perguntas determinadasque alguém fez. Assim, a função da filosofia não é fazer a doutrina universal, mas remeter-nos à própria realidade, que já é a sua própria doutrina, a doutrina do ser que transluz no corpo do próprio ser. A função da filosofia é corretiva e, por isso, a maior parte da atividade filosófica é reflexiva e crítica. Nesse sentido é que não acredito em ―progresso infinito do conhecimento‖, mas sim em conhecimento infinito. O ser que se dá a conhecer é infinito e se dá a conhecer infinitamente. O real é infinito, é inteligível, e é inteligível infinitamente: no momento em que compreendemos isso, estamos curados: terminou a missão da filosofia, e, então começa a sabedoria: Que é sabedoria? É o conhecimento, e, se o é, não pode ser uma doutrina, mas a própria modalidade da nossa existência.Onde está a sabedoria? Está no homem sábio, não no que ele disse, pois o que ele disse pode não ser compreensível para todos. Há sabedoria nos provérbios de Salomão? Sim, mas apenas se a compreendermos, caso contrário não há nenhuma: o

que há, isso sim, é o testemunho da sabedoria. E onde está a sabedoria de Salomão? Está em Salomão, e, se a compreendermos, ela já não será mais sabedoria de Salomão, e sim nossa. Daí podemos entender que a finalidade da filosofia é fazer sábios: é despertar a possibilidade da sabedoria, que não é senão a inteligibilidade direta do real. Existem obstáculos para atingi-la: obstáculos de ordem moral, fisiológica, cultural. Esses últimos obstáculos, criados pela própria atividade de busca do conhecimento, são os que a filosofia pode remover. Por isso, se a sociedade não chegar ao ponto de criar confusão na esfera cultural, não há necessidade de filosofia. Não se pode transmitir a sabedoria porque a sabedoria é o real, não o que pensamos ou dizemos a respeito dele. Caímos hoje numa série de ambiguidades por estarmos acostumados a entender sabedoria como conteúdo de consciência, não como algo que está no ser, no real. Onde está a ciência da mineralogia? Está nos livros de mineralogia? Não: ela está nos minerais. Se assim não fosse, ela não poderia estar também nos livros de mineralogia. Os livros são apenas registros que criam um intermediário humano entre nós e o mineral, de modo que não é necessário recapitular todas as observações anteriores para chegarmos até o mineral. Se ao estudarmos um tratado de mineralogia conhecermos apenas o que nele está escrito, sem referência aos minerais enquanto coisas reais, então não sabemos nada. O real propriamente dito é registro infinito de conhecimento, essencialmente translucidez, acidentemente obscuridade, pelo jogo dos reflexos devido a uma ocasional posição impropícia que assumimos para enfocá-lo – aí é necessário mudar de posição. Ora, mas se tomarmos todas as possíveis dificuldades de foco, e, com elas, tentarmos formar um sistema, formaremos o mundo das sombras, o sistema da ignorância. É a isso que a filosofia acadêmica francesa tem se dedicado nos últimos trinta anos. Ora, é necessário eliminar essa idéia de que conhecimento só existe na mente humana, e entendermos que conhecimento é uma relação ativa existente entre o ente e o restante do real, o qual é conhecimento, ainda que sob a forma potencial. Tome a própria idéia de observação: para entender a vida dos tigres, nós os observamos. Ora, se nenhum conhecimento sobre tigres transparecesse na conduta dos tigres, de que adiantaria observá-los? Se o conhecimento existisse apenas na mente humana, ao observarmos o tigre não conheceríamos o tigre, mas apenas a nós mesmos, a nossos pensamentos -- e cairíamos no curto-circuito kantiano: estamos observando apenas fenômenos que não são senão projetados por nossa forma cognitiva, portanto não estamos vendo um tigre, mas estamos vendo a nós mesmos e chamando de tigres os nossos esquemas lógicos e formas de percepção. Muito bem, mas aí o tigre come o filósofo kantiano, e que é que havemos de dizer? Que foram as formas a priorique comeram? Ora, o tigre que nos ataca é o mesmo que antes conhecíamos; ou seja, o objeto que conhecemos é o mesmocom que nos relacionamos fisicamente e praticamente. Conhecimento e ato de conhecer são certamente distintos. O real é registro infinto de conhecimentos. Existe, entretanto, o ato de conhecimento, que apenas ocorre nos atos individuais concretos. E mesmo assim, quando estes ocorrem, ocorre duplamente, não apenas no sujeito: os escolásticos dizem que ao conhecermos algo, esse objeto não é

alterado pelo fato de nós o conhecermos. Mas isso não é totalmente exato: aquilo que conhecemos está transmitindo informação a seu respeito naquele mesmo momento, e ser conhecido por um outro é alterar-se, sim. Não é alterar-se internamente, mas alterar sua relação com o mundo em torno. Imagine o primeiro homem que descobriu o diamante. Naquele mesmo instante não apenas o homem transformou-se, mas também transformou a relação do diamante com o homem, ou seja, daí por diante tudo foi diferente não só para os homens mas também para os diamantes. Tornar-se conhecido é ser alterado, não internamente, é claro, mas relacionalmente. Foi porque os diamantes se tornaram conhecido que os homens começaram a escavar para procurar diamantes. No mínimo, cada coisa conhecida abre uma nova possibilidade de ação sobre ela: a partir daquele momento, elapode sofrer um tipo de ação que antes não podia. Dizer que o objeto não foi alterado em nada é o mesmo que dizer que, para o objeto, ser conhecido ou não ser é o mesmo: ora, mas não me é possível comer um frango se nunca o conheci. Ser conhecido abre, para o objeto, a possibilidade de uma novapaixão, de sofre um novo tipo de ação –- isso muda o destino dele, o lugar dele na ordem cósmica. É uma mudança objetiva. Se entendermos que o real é registro de conhecimento, poderemos compreender o porquê do símbolismo do ―grande livro da natureza‖: o que é ele senão o símbolo da inteligibilidade do real? E o homem tem, dentre os seres do mundo físico, o privilégio de poder conhecer teoricamente todas as relações entre todos os seres que estejam a seu alcance. Isto é, o homem é o local onde esta inteligibilidade da natureza se realiza sob a forma de linguagem, mas não podemos esquecer que esta é apenas uma relação entre milhares de outras possíveis. Por isso a filosofia tem sempre de ser sistêmica, tem de ter um centro e não pode ser arbitrária, mas não pode ser ―sistemática‖. Sistêmico é aquilo que tem um centro e se desenvolve de forma mais ou menos orgânica a partir desse centro, sistemático é aquilo que procura conscientemente abranger e conter nos seus próprios limites o todo. É perda de tempo tentar uma filosofia sistemática: é o mesmo que tentar recriar o universo. Mas ela tem de ser sistêmica no sentido em que se refere ao sistema do universo, não perde de vista a sistematicidade do próprio real. Ela não é um amontoado de observações anárquicas, mas tampouco se constitui da construção sistemática de um todo abrangente. Quando desenhamos uma árvore, tentamos desenhá-la de todos os ângulos possíveis? Não, o que tentamos fazer é um retrato parcial referido ao todo e ao sistema, um retrato parcial que esboce, signifique ou aponte para essa totalidade -- quanto mais simples for o desenho e quanto mais claramente apontar para o centro do sistema, melhor. Então, a finalidade da filosofia é devolver o indivíduo a esta posição de observador central, na qual o conteúdo sapiencial da própria realidade se mostra para ele. E quando ela se mostra? Quando ele quer: o universo responde quando perguntamos. Se for possível recuperar essa posição, está realizada a função da filosofia. Aí começa a sabedoria propriamente dita.

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Ser e Conhecer - Introdução geral - § 1. Formulação do problema Aula do Seminário de Filosofia, São Paulo, 10 de março de 2001

Toda a tradição moderna em filosofia toma como fundamento e ponto de partida o reconhecimento dos limites da consciência cognitiva individual. É verdade que ela começa com a tentativa cartesiana de romper esses limites pela afirmação da certeza absoluta que o eu pensante tem de si mesmo enquanto pensante. Mas também é verdade que essa afirmação permanece subordinada ao reconhecimento daqueles limites, e isto sob três aspectos: (1) eles são o dado inicial do qual ela será apenas a conclusão parcial que não chega a impugnar a validade da dúvida baseada neles; (2) ocogito que se afirma tem a impotência congênita do eu solipsista, que não pode escapar de seus próprios limites senão pelo apelo a "Deus" - um Deus que, não tendo aí nenhuma função orgânica, não sendo nem mesmo o fundamento do eu como o era no cogito agostiniano, entra no sistema como puro agregado externo e expediente lógico in extremis, para salvar a construção vacilante; (3) impotente para lançar uma ponte para o mundo exterior, o cogito cartesiano não o é menos para lançá-la entre ele próprio enquanto pensante e... enquanto existente. Quando Péguy, num texto célebre, festeja Descartes como "ce chevalier qui partit d'un si bon pas", ele expressa da maneira mais eloqüente o fato de que a tradição moderna valorizou em Descartes antes o seu ponto de partida (a dúvida) do que o seu ponto de chegada (a certeza do cogito). Mas isto é o mesmo que celebrar o fracasso do empreendimento cartesiano, louvando apenas as intenções que o inspiraram e que ele terminou por frustrar. Certeza vazia, incapaz de fundar a ciência, o cogito cartesiano deixou menos marcas na origem da tradição moderna do que as deixou o método mesmo da dúvida, a idéia de repor tudo em questão e, como se diria depois, "raciocinar sem pressupostos". Essa idéia, que pervade todo o ciclo moderno em filosofia, expressa, no mínimo, o sentimento dos limites da consciência individual, sentimento que constitui assim o terreno psicológico sobre o qual floresce o pensamento moderno. A variedade de suas expressões não deve nos fazer perder de vista a unidade desse sentimento básico. É preciso enxergá-lo não só nas suas manifestações diretas e patentes, como também nas indiretas e esquivas: não só no ceticismo de Hume ou na crítica kantiana, mas também nas tentativas de transferir para a alçada de algum outro sujeito - seja ele o Espírito objetivo, a volonté génerale, o Volkgeist, a consciência de classe, o Id, o inconsciente coletivo, as estruturas da linguagem, o consenso da comunidade científica, o gênio da espécie - a responsabilidade pela garantia da veracidade e eficácia do conhecimento. A simples enumeração casual de algumas dessas tentativas já evidencia que a afirmação dos limites ou da impotência cognitiva da

consciência individual, quando não é princípio claramente afirmado, é pressuposto implícito; e, quando não ocupa o centro do sistema, circunscreve e delimita o seu horizonte. Por trás da variedade e discordância das escolas, delineia-se assim um fundo de unanimidade - a unidade negativa daquilo que, para simplificar (e por outros motivos que se tornarão claros mais adiante), denominarei negação da consciência. O que é curioso nesse fenômeno não é apenas a sua generalidade, sua quase onipresença no panorama heterogêneo do pensamento moderno; é que essa quase onipresença tenha sido apenas displicentemente reconhecida, como se se tratasse de obviedade sem maior importância, indigna de atrair qualquer curiosidade especial ou de suscitar ao menos a pergunta: Por que? Sim, tudo aquilo que embora reconhecido não se afirma de maneira clara e explícita continua oculto entre névoas, protegido de todo olhar iluminante capaz de ressaltar o que nele há de estranho, de portentoso, de supremamente incomum e problemático. De repente, a pergunta que não se fez pode se revelar como a mais relevante de todas. E a pergunta, no caso, é: como foi possível que toda uma tradição filosófica de quatro séculos, digamos mesmo toda uma civilização, tomasse como fundamento óbvio e inquestionável do conhecimento as limitações e deficiências do poder cognitivo da consciência individual, e raciocinasse sempre a partir delas, sem que, precisamente, essas limitações mesmas viessem jamais a ser questionadas e sem que jamais à negação se opusesse qualquer tentativa de afirmação? Como foi possível que uma pretensão cognitiva tivesse tantos impugnadores, sem que houvesse defensores? Pois mesmo aqueles que, nesse período, afirmam resolutamente o poder do conhecimento, como Spinoza ou Hegel, celebram apenas a virtude cognitiva da razão, considerada de maneira universal e abstrata, e não da consciência individual concreta, cujos limites e cuja fragilidade eram assim implicitamente afirmados na medida mesma e no momento mesmo em que, enaltecendo "a razão", se dava por pressuposto que era mediante sua absorção nela e sua conversão despersonalizante em faculdade abstrata que a consciência individual concreta poderia ter a esperança de conhecer o que quer que fosse. Ora, se cada um desses filósofos era apenas indivíduo humano concreto, sem poder alegar-se a priori detentor de meios de conhecimento superiores aos da individualidade humana, a pergunta é: desde onde eles impugnam a eficácia desses meios, os únicos de que dispõem? Se o filósofo moderno não pudesse colocar-se, de algum modo, numa posição superior à da sua mera individualidade empírica, sua negação do poder cognitivo desta última equivaleria apenas à autoparalisação de uma consciência individual e à imediata

desmobilização de todo esforço filosófico. Em vez disso, vemos o movimento filosófico alimentar-se dessa negação, progredir graças a ela, revigorar-se nela. À negação da consciência individual parece corresponder, ipso facto, a afirmação de um poder cognitivo supra-individual que o filósofo incorpora e personifica a partir do instante mesmo da negação e por mérito dela. Que poder seria esse? Quais as suas possibilidades e limites? Que títulos justificam a pretensão filosófica de representá-lo? E, sobretudo: seria ele efetivamente uma instância superior à consciência individual ou apenas a parte superior da própria consciência individual, separada das partes inferiores e hipostasiada como entidade independente?

Apostilas do Seminário de Filosofia - 28

Notas para a Introdução à História Essencial da Filosofia – I

Pretendendo retomar no Seminário de Filosofia alguns temas do curso História Essencial da Filosofia, que lecionei no Rio de Janeiro em 1993 e 1994, reproduzo aqui um parágrafo da Introdução que estou preparando para a edição desse curso em livro, parágrafo que será objeto de comentários na próxima aula do Seminário em São Paulo e no Rio. - O. de C.

A noção de sabedoria abrange, numa síntese inseparável, ciência, essência, consciência e existência. O sábio não apenas possui o conhecimento do essencial, mas reconhece nele a essência da sua autoconsciência e o manifesta na sua existência enquanto forma humana do essencial. Uma existência na qual se torna visível a autoconsciência do essencial é, sob todos os títulos, uma imago Dei. Mas isto só pode ser plenamente reconhecido por quem seja também sábio ou por aqueles que, não o sendo, se coloquem na perspectiva adequada para enxergar a sabedoria em vista de realizá-la no futuro. São estes os que se denominam ―filósofos‖. Platão dizia-os ―amantes de espetáculos‖. Nem todo aquele que pode apreciar a prática de um esporte ou de uma arte está em condições de praticá-los pessoalmente. Mas a apreciação é condição indispensável para a prática futura. Aquilo que você não pode sequer ver, você não pode possuir e muito menos incorporar em você como qualidade pessoal. Filosofia é visibilidade de uma sabedoria a realizar. O fato de que, ao longo da história, os elementos dessa síntese tenham se separado ao ponto de hoje ser difícil concebê-los juntos na identidade de um homem não

modifica em nada a definição originária da filosofia, mas sugere apenas que o nome filosofia foi sendo atribuído a coisas que ficam muito aquém das ambições dos primeiros filósofos. A ciência e a essência, por exemplo, entraram em antagonismo desde que Kant proclamou a impossibilidade de conhecer o que quer que seja para além dos fenômenos ou aparências. Ciência e consciência também já não parecem ter nada a ver uma com a outra desde que se admitiu a noção de ciência como um conjunto de registros padronizados que podem ser adquiridos mediante puro adestramento de aptidões cognitivas isoladas, sem qualquer comprometimento da personalidade total. Isto produz como seqüela a ruptura de ciência e existência: a ciência torna-se o desempenho de um papel social nas horas de expediente, sem relação com a vida íntima da autoconsciência. E assim por diante. Da filosofia antiga e medieval para a moderna e pós-moderna, isto é, na passagem da filosofia como antevisão da sabedoria para o conceito atual da filosofia como profissão e disciplina acadêmica, houve portanto uma troca da figura centrípeta, onde os quatro elementos convergiam na direção da sabedoria:

pela figura centrífuga, onde os quatro elementos se afastam uns dos outros e se negam reciprocamente.

Admite-se como coisa líquida e certa, hoje em dia, que essa mudança se explica e se justifica pelo progresso da inteligência crítica, que desmantelou as antigas pretensões do saber unificado e habituou as pessoas a buscar conhecimentos mais modestos e mais seguros em campos mais limitados do conhecimento. Mas, se um juízo qualquer não pode se alegar verdadeiro pelo simples fato de ser ambicioso, não se tornará mais verdadeiro pelo simples fato de ser modesto. Ademais, os elementos separados que resultam do afastamento centrífugo nunca se tornam completamente independentes, pois o quadro unificado que lhes dá sentido permanece como plano de referência no fundo, apenas reduzido a um esquema normativo ―ideal‖ e ―irreal‖ que, se não pode ser dispensado de todo, nem por isto é reconhecido como conhecimento efetivo. Este não é o menor dos paradoxos da moderna ciência acadêmica, onde o esquema normativo sobre o qual se erguem os critérios de validade do conhecimento não é considerado ele próprio um conhecimento, muito menos um conhecimento válido. De outro lado, uma evolução histórica não é, por si, prova da validade dos resultados a que conduziu. Que as coisas tenham tomado determinado rumo não significa que esse fosse o único ou o melhor rumo possível, se bem que o ensino

universitário, ao mesmo tempo que professa aceitar a irredutibilidade kantiana do valor ao fato, deduz dessa mera sucessão de fatos um juízo de valor segundo o qual as vias de conhecimento que foram abandonadas no curso do tempo devem ser condenadas como inferiores, superadas ou mesmo pecaminosas. Da nossa parte, vamos aqui ignorar solenemente esse preconceito, pois o que nos interessa não é aquilo em que a filosofia se tornou historicamente, no curso de uma evolução a que só um injustificável pressuposto metafísico poderia dar o caráter de coisa necessária e insuperável, e sim o que a filosofia tem de ser necessariamente, como essência supratemporal, para poder sofrer essa evolução ou qualquer outra evolução temporal concebível. Pois, das duas uma: ou aquilo em que a filosofia se tornou conserva algo do que ela era originariamente, e neste caso há uma essência que transcende e abrange essas duas formas temporais; ou as múltiplas coisas que hoje se denominam ―filosofia‖ já nada têm a ver com a filosofia antiga e portanto a evolução que levou desta àquelas deve ser considerada uma simples sucessão empírica de fatos sem conhexão lógica íntima, e cujo conhecimento pouco ou nada nos revelará sobre o que é a filosofia, cabendo inclusive dissolver este conceito numa multidão de coisas díspares. Mas, neste último caso, não se vê como meros fatos intelectuais inconexos poderiam se erguer como critérios de valor para julgar e impugnar a filosofia antiga, mesmo em nome de uma suposta noção de ―progresso‖, que, nessas condições, perderia todo conteúdo conceptual identificável. Portanto, ou o estado atual da filosofia é apenas o resultado de uma evolução lógica (se bem que não necessariamente a melhor ou a única possível) do próprio conceito originário de filosofia, nada significando sem referência a este, ou então ele não tem nada a ver exceto empiricamente com a filosofia antiga e não pode servir de base para julgá-la. Em qualquer dos dois casos, o primado da essência da filosofia sobre suas manifestações temporais é resolutamente afirmado, ainda que inconscientemente ou a contragosto. Para esclarecer essa essência, temos de partir da sua concepção originária como visibilidade da sabedoria ou contemplação da imago Dei.

Apostilas do Seminário de Filosofia – 29

Que é o direito? Olavo de Seminário de Filosofia, 22 de setembro de 1998.

Carvalho

Esta aula faz parte da série Ser e Poder: Os Problemas Fundamentais da Filosofia Política, que, lecionada entre 1997 e 1998 no Rio e em São Paulo, foi transcrita das fitas gravadas e está desde então sendo preparada para publicação em livro, aos

trancos e barrancos, nos intervalos de uma carreira que, porca miséria!, não se assemelha em nada à imagem do pacato estudioso entre seus livros, imagem que é precisamente a daquilo que eu sonhava ser quando crescesse e ainda, aos 54 anos, continuo sonhando.Ser e Poder constitui-se de dois blocos de investigações complementares: o primeiro consagrado à elucidação da essência e das formas do poder – a meu ver o conceito nuclear da filosofia política –; o segundo à aplicação dos resultados do primeiro para a solução de várias questões derivadas, que tomam sempre a forma da pergunta filosófica por excelência: Quid est?, ―Que é?‖ – ―Que é o dinheiro?‖, ―Que é a polícia?‖, ―Que é um banco?‖, ―Que é o crime?‖, ao longo das quais vou elucidando cada um dos conceitos que, de maneira assimbrosamente confusa e enganosa, se usam diariamente nas discussões políticas em toda parte. Alguns desses estudos serão estampados nesta homepageantes da publicação em livro, que se anuncia para data incerta e não sabida. A presente lição, sem mencionar o filósofo John Rawls, mostra por que é inviável sua concepção de que o sistema democrático pode ser construído inteirinho em cima do conceito de ―igualdade‖. Das análises aqui apresentadas, o leitor concluirá facilmente que a igualdade jurídica, política ou social não pode ser concebida senão como a resultante acidental e aproximativa da atuação das várias forças que compõem o ―sistema‖. Nem é preciso dizer que a redação deste capítulo é provisória e que, até à publicação em livro, deverá sofrer acréscimos e correções. Eu gostaria de que esse livro estivesse pronto faz tempo, pois creio que ele seria de grande utilidade para trazer um pouco de ordem e racionalidade às discussões políticas correntes, nas quais predominam cada vez mais o nonsense, a fantasia mórbida e a linguagem dupla dos manipuladores e demagogos, prenunciando aquele completo obscurecimento das inteligências que antecede as grandes crises revolucionárias. Chamado a outras tarefas mais urgentes, de ordem jornalística e pedagógica, que as condições políticas do momento impõem como deveres indeclináveis, não abandonei este trabalho, mas tive de passá-lo para a marcha lenta. Outro tanto aconteceu com Ser e Conhecer, cujos rascunhos já alcançam 700 páginas e aguardam, em estado de mixórdia, que o autor tenha tempo de os corrigir. Alguns de meus amigos dizem que sacrificar assim a obra maior em favor de urgências do dia é um pecado contra a santidade da vocação. Mas o contrário seria um pecado contra a caridade. Afinal, como dizia Yeats, há momentos em que o escritor tem de escolher entre buscar a perfeição da vida ou a da obra: se escolha a da obra, faz um pacto com o diabo. Felizmente, há também ocasiões em que essa oposição dilacerante se resolve no acordo feliz de vocação e circunstância (para usar os termos de Julián Marías). Vivo na esperança de que uma dessas ocasiões se apresente logo. – O. de C.

Se o poder, como se viu na Primeira Aula, é possibilidade concreta de ação, que pode ser o direito senão a garantia que alguém, de fora, oferece ao exercício de um poder? ―Tenho o direito‖ de expressar minha opinião quando alguém me dá ou ao

menos me promete as garantias necessárias a que eu possa expressá-la. Suprimir essas garantias é cercear o direito à livre expressão, o que mostra que a distinção corrente entre direitos e garantias é apenas um formalismo elegante destinado a ilustrar o fato de que nem todo direito que se proclama é direito efetivo. Direito e garantia não são espécies realmente distintas, mas uma só espécie acompanhada de dois acidentes: quando a garantia é ainda uma promessa, um compromisso, um dever assumido, ela se chama ―direito‖; passa a assumir o nome de garantia propriamente dita quando essa promessa se invista dos meios concretos de ser cumprida. A noção de ―direito‖ não tem nenhuma substancialidade exceto como promessa de garantia, a garantia nada significa se não é garantia de cumprir um compromisso anteriormente firmado. Por isso, o legislador que baixe uma lei que não tem meios de ser cumprida já a revoga no ato mesmo de assiná-la: ad impossibilia nemo tenetur. O direito é, pois, uma espécie de garantia – de garantia do exercício de um poder – e nada mais. No entanto, a recíproca não é verdadeira: nem toda garantia é um direito. Suponham que eu abandone estes afazeres filosóficos e me torne assaltante de bancos. Enquanto, armado de gazua, arrebento e esvazio o cofre, meu comparsa, equipado de metralhadora, me garantirá a possibilidade de fazê-lo, mantendo os guardas à distância: isto não fará dele um guardião de meus direitos. Para distinguir o direito das demais espécies de garantias, é preciso destacar nele mais estes dois caracteres: areciprocidade e a socialidade. Uma garantia é um direito quando é recíproca (no sentido jurídico) e quando compromete, ao menos em princípio, toda uma sociedade, não apenas indivíduos ou grupos isolados. A reciprocidade jurídica, como já explicou Miguel Reale ([1]) consiste em que ao direito de um corresponde uma obrigação para outro. Veremos adiante o que é propriamente obrigação. Por enquanto tome-se essa palavra no sentido corrente e considere-se a seguinte obviedade: só cabe dizer que uma criança tem direito ao alimento se alguém, ao mesmo tempo, tem a obrigação de alimentá-la. Um direito só existe quando existe e é claramente indicado o titular da obrigação correspondente. Se este não existe ou é nebulosamente definido, o direito se torna uma garantia que ninguém garante e é mero flatus vocis. Sendo o direito, enfim, a garantia do exercício de um poder, e não podendo um poder ser garantido senão por outro poder mais forte, independente dele e a ele preexistente, o titular da obrigação tem de possuir necessariamente algum poder que o titular do direito, por si, não possui. Mas como o exercício do poder necessário a garantir o exercício do direito alheio deve ser ele também um direito, este deve ser por sua vez garantido por outro poder, e assim por diante, o que resultaria num recuo ad infinitum e tornaria impossível a vigência de qualquer direito se aí não interviesse, precisamente, uma segunda e mais sutil acepção da reciprocidade jurídica, que pode enunciar-se assim: para que exista direito é necessário que, se não sempre, ao menos em certos casos, o titular de um direito seja também titular da obrigação de garantir

por sua vez a alguém o exercício do poder necessário a lhe garantir esse direito. Assim, por exemplo, a massa dos cidadãos tem o direito à proteção policial somente na medida em que tenha também algumas obrigações que garantam à autoridade policial o exercício de suas funções, como por exemplo a obrigação de pagar os impostos com que será sustentada a corporação dos policiais. À reciprocidade do primeiro tipo chamarei direta; à do segundo, indireta. A reciprocidade jurídica direta existe somente entre os titulares tomados dois a dois: dois indivíduos, dois grupos, duas empresas, um comprador e um vendedor, pai e filho, etc. A reciprocidade indireta, pela sua própria natureza, só se realiza através da complexa rede de obrigações e direitos que constitui a totalidade do sistema jurídico vigente numa dada sociedade. Isto constitui precisamente o segundo caráter específico do direito, que é a sua socialidade: não há direito fora do sistema jurídico em que se expressa a totalidade das garantias e obrigações vigentes numa dada sociedade. Não há direito isolado, solto no ar, fora da sustentação do sistema. ([2]) A reciprocidade direta equivale estruturalmente a uma simples proporção matemática: a/b = x/y, quer dizer: a tem o direito b na exata medida em que x tenha a obrigação y. A fórmula da reciprocidade direta é portanto a perfeita equivalência, ou igualdade quantitativa, de um direito e de uma obrigação, sem sobras nem faltas: os filhos sob a guarda da mãe divorciada têm direito a uma pensão alimentícia de xreais na medida exata em que o pai divorciado tem a obrigação de lhes pagar a mesmíssima quantia, nem mais nem menos. Nos casos em que o direito em questão não possa ser expresso quantitativamente, o problema do juiz – o problema da justiça – será encontrar a mais perfeita equivalência possível entre valores qualitativos. Mas, seja pelo cálculo exato das quantidades, seja pelo equilíbrio ideal das qualidades, a reciprocidade direta se resume sempre e somente na equivalência, ou seja, na idéia de igualdade quantitativa e de nivelamento das diferenças. Nada disso ocorre ou pode ocorrer na reciprocidade indireta, onde só por uma raríssima exceção o direito garantido pode equivaler, quantitativamente, à obrigação que o titular desse direito tem para com a autoridade que o garante. Só para dar um exemplo estridente: se, dos impostos totais que o Estado recolhe de um cidadão, digamos, mil reais num ano, somente a décima parte – cem reais – vai para a manutenção dos serviço público de assistência médica, isto não quer dizer que esse cidadão deva ter direito a somente cem reais de assistência médica por ano. Se a reciprocidade direta consiste em equivalência e nivelamento, a indireta, ao contrário, consiste precisamente em diferenças e desníveis que não podem ser compensados um a um e que, à medida que se sobe de plano a plano na ordem da complexidade e abrangência das relações sociais, vão aumentando conforme as quantidades cada vez maiores de poder necessárias a dar garantias aos direitos de grupos cada vez maiores de pessoas, de modo que só se pode reencontrar algum tipo de unidade, equivalência ou proporção no nível último, isto é, no nível do sistema total, da vida jurídica de toda a sociedade.

É evidente, também, que a reciprocidade direta, abrangendo seus titulares dois a dois, não existe fora da indireta, ou seja, fora do sistema. A reciprocidade direta é direito abstrato ou potencial, que só se adquire existência concreta na vida do sistema total. Por outro lado, a rede das reciprocidades indiretas de nada valeria se não pudesse assegurar entre os membros da sociedade o predomínio do direito nas suas relações de reciprocidade direta, isto é, o reino da equivalência. Aí, porém, surge um problema. Como garantia é exercício efetivo do poder do homem poderoso para assegurar a um menos poderoso a possibilidade de exercício do poder que lhe cabe, não apenas o sistema jurídico total é hierárquico em si, no sentido lógico de um sistema dedutivo que desce das normas fundamentais às normas derivadas (na acepção de Kelsen), mas, como prática e realidade ele só existe enquanto aspecto e expressão do sistema total de poderes, sendo portanto duplamente hierárquico. Hierarquia é subordinação do múltiplo ao uno. Enquanto realidade agente, imbricada no sistema total de poderes, o sistema jurídico é unificação hierárquica de múltiplos estratos de obrigações e garantias, umas subordinadas às outras conforme sua maior ou menor importância para o funcionamento do sistema como um todo. Nesse sentido, a regra máxima do sistema é a sua própria soberania: não há direito acima do sistema total de direitos e garantias, ou, em outras palavras, nenhum direito isolado ou nenhum grupo de direitos isolados pode prevalecer sobre o sistema total que os garante a todos. Mas, se a rede de reciprocidades indiretas que constitui o sistema total é governada pelo princípio de subordinação e unidade vertical, e se cada direito garantido pela reciprocidade direta é regido pelo princípio de equivalência ou nivelamento, a contradição entre o direito como sistema total e o direito como norma das relações de reciprocidade direta só poderá ser eliminada numa sociedade que logre produzir a perfeita identidade entre a hierarquia vertical de poder e a igualdade entre os indivíduos. Isso é, no entanto, impossível não apenas na prática, mas até mesmo em teoria, de vez que, o direito sendo a possibilidade do exercício de um poder, a perfeita igualdade de direitos exigiria uma distribuição igualitária das possibilidades de exercício do poder, o que contradiz a idéia mesma da estrutura hierárquica necessária à manutenção do sistema e das garantias. Donde se conclui que o princípio da igualdade perante a lei, se tomado em sentido literal, plano e atomístico, considerando apenas os indivíduos como entidades numericamente distintas e qualitativamente idênticas,contradiz a idéia mesma de lei como obrigatoriedade concreta de respeitar os direitos. Nenhuma sociedade existente escapou dessa contradição, nem lhe escapará qualquer sociedade que porventura venha a existir.

A contradição entre o direito como sistema e o direito como norma das relações entre indivíduos não tem solução lógica, nem deve ter, porque ela é constitutiva da própria vida social, onde cada indivíduo é ao mesmo tempo totalidade e parte em dois diferentes planos, sem poder reduzi-los a um só, o que implicaria a perfeita e impossível identidade da sua individualidade corporal com o seu lugar e função na sociedade, ou, em outras palavras, a identidade final de natureza e sociedade. A justiça como ideal social consiste portanto apenas em reduzir essa contradição ao mínimo tolerável, e não em buscar extirpá-la. Não é totalmente exato dizer que a justiça humana é imperfeita, pois não há imperfeição em uma coisa ser o que é, e a justiça humana tem a perfeição do arranjo provisório e da arte, indefinidamente variável e jamais esgotada, e não a da norma ideal eterna que ela, de algum modo imita e na qual se inspira. Toda tentativa de aproximar a justiça humana da perfeição ideal tem resultado e resultará necessariamente, seja em demolir o sistema de garantias em nome da igualdade abstrata, seja em suprimir as garantias em nome da preservação do sistema, seja numa alternância dessas desses dois males. Entre outras conclusões práticas que se pode turar disso está a seguinte: a vida da democracia não depende da realização máxima da justiça em sentido abstrato, mas do equilíbrio dinâmico e tensional entre o ideal de justiça e as exigências concretas do sistema que torna possível buscar a justiça.

Notas

[1] Lições Preliminares de Direito. [2] Que não se entenda isto, por favor, como uma proclamação em prol da exclusiva existência do direito positivo, com exclusão portanto da hipótese do direito natural. A questão direito positivo x direito natural nada tem a ver com o tópico em discussão aqui, e na verdade a idéia de direito natural só é possível caso a natureza mesma seja enfocada como um sistema jurídico – o que basta para mostrar que a prioridade do sistema sobre cada direito isolado vale mesmo na hipótese do direito natural.

Seminário de Filosofia: texto para as aulas de janeiro de 2002

A transfiguração fenomenológica Raymond Abellio

Este texto será usado nas aulas de janeiro de 2002, no Rio (dias 9 e 10), em São Paulo (dia 12) e em Curitiba (dias 25 e 26), como material de análise e ponto de partida para investigações sobre três assuntos interligados: a natureza da especulação fenomenológica; teoria do conhecimento e gnosticismo; filosofia e mística. Peço aos alunos que o imprimam e o tragam consigo nas aulas. Fiz esta tradução e coloco-a aqui somente para facilitar a distribuição deste material entre os alunos do Seminário, ficando portanto proibida sua reprodução para quaisquer outros fins. -- O. de C.

Quando, na atitude natural que é a de todos os seres "normais" existentes, "vejo" uma casa, minha percepção é espontânea, e é essa casa que vejo -- não a minha percepção dela. Por outro lado, se minha atitude é "transcendental", então é minha percepção mesma que é percebida. Mas esta percepção de uma percepção altera completamente minha abordagem primitiva. O estado de experiência atual de alguma coisa, não complicado de início, perde sua espontaneidade pelo fato mesmo de que a nova contemplação tem por objeto algo que originariamente era um estado, não um objeto, e de que os elementos que compõem minha percepção não incluem somente aqueles pertencentes à casa "enquanto tal", mas aqueles pertencentes à percepção mesma, considerada enquanto um fluxo atualmente vivenciado. E um traço essencialmente importante dessa "alteração" é que a concomitante visão que tive, nesse estado bi-reflexivo, da casa que era o meu "motivo" original, longe de ser perdida, deslocada ou nublada pela interposição dessa "minha" segunda percepção entre eu e a "sua" percepção original, é, paradoxalmente, intensificada, tornando-se mais clara, mais "atual" e carregada de mais realidade objetiva do que antes. Confrontamo-nos aqui com um fato do qual não se pode dar conta por pura análise especulativa: isto é, a transfiguração da coisa quando conscientemente experienciada, sua transformação numa "supercoisa", sua passagem de ser algo "sobre o qual se conhece" para ser algo que "é conhecido". Este fato é insuficientemente apreciado, embora seja o mais notável em todo o campo da experimentação fenomenológica. Todas as dificuldades que encontramos na fenomenologia corrente e, de fato, em todas as teorias clássicas do conhecimento, nascem do fato de que consideram a dualidade consciência-conhecimento suficiente e apta para absorver a totalidade da experiência; ao passo que só a tríade conhecimento-conhecimento-ciência pode fornecer o genuíno fundamento para a fenomenologia. Decerto, nada pode tornar essa transfiguração patente exceto a direta e pessoal experiência do próprio fenomenologista. Mas ninguém pode pretender ter compreendido a verdadeira fenomenologia transcendental a não ser que tenha tido essa experiência e sido "iluminado" em resultado dela. Ninguém, nem o mais sutil dos dialéticos ou o mais astuto lógico, que não tenha feito essa experiëncia e não tenha portanto visto coisas-portrás-de-coisas, pode fazer senão falar sobre a fenomenologia; não pode participar

ativamente de nenhuma experiência fenomenológica. Vejamos um exemplo mais preciso: Até onde posso recordar, sempre fui capaz de reconhecer as cores azul, vermelha e amarela. Meu olho as via, e eu tinha um conhecimento latente delas. Certamente "meu olho" não fazia perguntas a respeito delas: como poderia fazê-lo? A função dele é ver -não ver-se a si mesmo no ato de ver. Mas meu cérebro mesmo estava como que adormecido: ele não era em nenhum sentido o "olho do olho", mas meramente um prolongamento desse órgão. E portanto eu dizia simplesmente, quase sem pensar: isso é um belo vermelho -- ou um azul apagado -- ou um verde brilhante. Um dia, anos atrás, quando caminhava entre os vinhedos do Cantão de Vaud, olhando o Lago de Genebra, tive a mais extraordinária experiência. O declive do outro lado, o azul do lago, o violeta das montanhas da Savóia, e à distância as geleiras cintilantes do Grand Comblin -- tudo isso eu tinha visto uma centena de vezes. Então eu soube que nunca tinha olhado para eles. E, no entanto, eu vivera ali por três meses. É verdade que, desde o começo, essa paisagem tinha me afetado profundamente. Mas tinha apenas produzido em mim um vago sentimento de exaltação. Sem dúvida o "eu" do filósofo é mais forte do que qualquer paisagem. A pungente sensação de beleza que experimentamos é apenas o "eu" medindo a infinita distância que nos separa da beleza, e daí obtendo forças. Mas, naquele dia, repentinamente, eu soube que era eu que estava criando aquela paisagem e que sem mim ela não existiria: "Sou eu que vos vejo e que me vejo a ver-vos e, ao fazer isso, vos crio." Este grito do coração é o grito do Demiurgo ao criar o "seu" mundo. Não é apenas a suspensão do "velho" mundo, mas a projeção de um mundo "novo". E, naquele instante, de fato, o mundo foi re-criado. Eu nunca tinha visto cores tais. Elas eram milhares de vezes mais vívidas, mais delicadamente nuançadas, mais "vivas". Eu soube que acabava de adquirir um sentido das cores -- que eu estava vendo a cor pela primeira vez, e que até então eu nunca tinha realmente visto um quadro ou penetrado o mundo da pintura. Mas eu soube também que por esse despertar da consciência, a percepção de minha percepção, eu detinha a chave daquele mundo de transfiguração que não é um misterioso submundo, mas o verdadeiro mundo do qual estamos banidos pela nossa ignorância. Isso não tem nada a ver com a atenção. A transfiguração é completa. A atenção nunca é. A transfiguração conhece-se a si mesma em sua suficiência positiva. A atenção almeja atingir algum dia essa suficiência. Não se pode dizer, é claro, que a atentividade é vazia. Ao contrário, ela anseia pela plenitude. Mas este anseio não é realização. Quando voltei ao vilarejo, encontrei pessoas que estavam muito "atentas" a seu trabalho; no entanto, para mim, pareciam estar caminhando adormecidas.

Cahiers du Cercle d‘Etudes Metaphysiques, 1954.

Apostilas do Seminário de Filosofia - 31

Fato concreto e depuração abstrativa Olavo 20 de fevereiro de 2002

de

Carvalho

Nenhum acontecimento, por mínimo que seja, pode se produzir sem que um número indefinido de acidentes faça convergir para o preciso momento e o preciso lugar em que ele se manifesta as inumeráveis linhas de causas e condições que sustentam sua manifestação. O acontecimento assim considerado denomina-se fato concreto. Concreto vem de cum+crescior, designando o crescimento concomitante e convergente desses vários fatores causais. Graças à superposição dos fatores acidentais, todo fato concreto pode ter, para seus atores e espectadores, uma multiplicidade de sentidos, que se organizam em várias articulações hierárquicas conforme o ponto de vista, defini do por sua vez por um determinado interesse cognitivo. Os vários interesses cognitivos, porém, podem ser por sua vez articulados hierarquicamente, segundo critérios de valor. O que tem valor para o personagem envolvido não é necessariamente o que tem valor para o cientista, etc. O ponto de vista dá busca do conhecimento verdadeiro e apodíctico é somente um desses critérios, mas obviamente ele é o único que tem abrangência e fundamento bastante para poder julgar os outros. Nenhuma ciência estuda fatos concretos. Toda ciência pressupõe um ponto de vista e um recorte abstrativo preliminar. O fato concreto só pode ser objeto de narrativa, devendo esta ser completa no que diz respeito aos detalhes sucessivos e simultâneos, mas plurissensa o bastante para evocar a multiplicidade das causas, acidentes e pontos de vista, que só um posterior exame abstrativo tratará de isolar e estudar um a um. Uma das tarefas essenciais da filosofia é preparar o fato concreto para exame científico, discernindo nele os vários pontos de vista possíveis e julgando-os segundo sua maior ou menor validade em função dos diversos interesses cognitivos. Sem essa depuração, sugestões mais ou menos implícitas na narrativa se filtrarão subrepticiamente para dentro enfoque científico adotado, maculando a pureza de linhas do objeto abstrato e invalidando as conclusões obtidas de seu estudo. Toda narrativa de fato concreto é ―poética‖, no sentido de operar nele um primeiro recorte que não é definido por nenhum interesse cognitivo posterior mas segundo o

próprio impacto imediato do acontecimento, considerado enquanto massa de informações e reações vivenciada como experiência humana real. Nenhum fato concreto seria estudado se não representasse também um problema, e nenhum problema chegaria a ser estudado cientificamente se não fosse também, de algum modo, um problema para a existência humana concreta. A discussão de um problema segundo o interesse cognitivo da existência humana concreta e imediata dos personagens mais ou menos diretamente envolvidos é discussão retórica, pois nela predomina o desejo de fazer prevalecer algum ponto de vista definido por interesses individuais das partes em disputa. Quando algum interesse desse tipo logo prevalece sobre os demais, o fato cessa de ser problema para a comunidade envolvida, consolidando-se em torno dele uma crença coletiva considerada suficientemente adequada para o posicionamento prático de todas as pessoas em torno do assunto. As crenças, por sua vez, são também fatos concretos, podendo por isto mesmo tornar-se problemas, isto é, problemas ―de segundo grau‖, já não diretamente comprometidos com a existência concreta, problemas para o filósofo. Seja em torno das crenças, seja dos fatos mesmos, pode acumular-se uma massa de opiniões ao menos aparentemente incompatíveis, derivadas do exame do fato desde interesses cognitivos diversos e não articulados uns com os outros. Quando a acumulação dessa massa atinge o ponto crítico, isto é, quando as diversas crenças se tornaram fatos e a acumulação desses fatos toma a forma de um conflito geral, a necessidade de articular racionalmente os diversos pontos de vista (e respectivos interesses cognitivos), para transcendê-los num ponto de vista abrangente capaz de dar conta de todos e arbitrá-los, este é precisamente o momento da entrada em cena do filósofo. O filósofo procede ao exame dialético da massa de opiniões, mas não o faz com propósito puramente dialético (impugnar racionalmente esta ou aquela opinião), mas com o propósito de fazer dela, meduante sucessivas depurações dialéticas das crenças envolvidas, um objeto possível de demonstração científica. Assim, evidentemente, o estudo científico de qualquer fato passa necessariamente pelas etapas dos quatro discursos de Aristóteles, seja na mente de um só investigador que as percorra todas, seja ao longo de uma ―tradição‖ de discussões que começa com as narrativas e, mediante sucessivas depurações e estreitamentos dos pontos de vista considerados, termina em conclusões científicas com pretensões de validade demonstrativa. *** A filosofia -- unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa -- não poderia, portanto, surgir como ambição e projeto antes da ―descoberta do espírito‖ assinalada por Bruno Snell (dependente por sua vez da dissolução de um universo mitopoético na proliferação dos discursos retóricos). Esta grande ascensão a um ponto

de vista superior, definido por um interesse cognitivo superior -- o interesse do indivíduo humano considerado enquanto capaz de conhecimento universalmente válido -- , foi evidentemente um ―salto civilizacional‖, abrindo à humanidade européia novas possibilidades não só de concepção e cognição, mas de organização social e política fundada no reconhecimento da (potencial) autonomia cognitiva do indivíduo maduro em face da opinião socialmente vigente. Muitos sofrimentos e perplexidades registrados na História ocidental desde então derivam de um só problema: todos os indivíduos humanos são virtualmente capazes de autonomia cognitiva, não sendo possível determinar de antemão quais realizarão ou não essa possibilidade; de outro lado, é incontestável que pouquíssimos a realizam (e seu número não parece crescer proporcionalmente, tanto quanto se esperava, com a expansão do acesso aos meios de ensino). Intermináveis discussões de princípios e conflitos de facto em torno do ―governo dos sábios‖, do ―governo dos poucos‖, do ―governo dos muitos‖ ou do ―governo do povo pelo povo para o povo‖ derivam dessa contradição originária, aparentemente insolúvel. As castas não são mais que a distinção de tipos humanos conforme sua participação maior ou menor na realização dessa possibilidade. A não ser na remotíssima e utópica possibilidade de saber de antemão quais indivíduos se tornarão sábios (hipótese que nem mesmo o rigidíssimo sistema hindu de legitimação oficial das castas ousou subscrever integralmente), a distribuição de facto das castas numa dada sociedade pode ser considerada, sem erro, um dado empírico bruto, que pode ser descrito mas não ―explicado‖ causalmente. Por isto ela é a base extra-social, ou pré-social, de toda ciência social. Por baixo de qualquer sistema político ou estrutura social de classes, há sempre um sistema de castas, reconhecido ou não. As várias possibilidades de articulação entre o sistema de castas existente de facto e o sistema de classes e poderes legitimamente constituído são a base de toda tipologia das estruturas sociais que se pretenda cientificamente válida, isto é, fundada em fatores últimos que transcendem a explicação sociológica.

Apostilas do Seminário de Filosofia

Consciência e (Descartes e a psicologia da dúvida – Parte II)

estranhamento

Olavo de Carvalho Esta aula de 1998, transcrita por Fernando Manso e revista por Luciane Amato (responsável também pelas notas assinaladas N. R.), já deveria constar desta página faz muito tempo, pois a considero essencial para a compreensão do meu modo de enfocar a filosofia moderna. Simplemente esqueci de enviá-la ao webmaster. Continuação de Descartes e a psicologia da dúvida , ela passa da análise lógica da estrutura da dúvida metódica à análise existencial da dúvida metódica como

experiência vivida, levando, passo a passo, a conclusões surpreendentes, mas, creio eu, exatas. É claro que ainda pretendo dar-lhe uma redação final, com correções, mas a transcrição não pode mais ficar fora do alcance dos meus alunos e dos demais visitantes desta homepage. - O. de C. 1. Revisão do itinerário Examinei na parte anterior o passo inicial da filosofia de René Descartes, a dúvida metódica, que muitos, entre os quais Husserl, consideram também o passo inicial de toda a filosofia moderna. É ele que inaugura realmente um estilo de enfoque filosófico que se tornou dominante do século XVII até hoje. (1) Esse estilo é marcado pela idéia da dúvida preliminar, de que nenhuma verdade será aceita sem que haja razões suficientes para aceitá-la. Dessa proposta nasce toda uma linhagem de pensadores cujo último e mais ilustre representante será Edmund Husserl, o qual, numa série de conferências feitas no Collège de France, que depois receberam o título de Meditações Cartesianas, afirmou explicitamente que a dúvida metódica é o começo obrigatório de toda e qualquer filosofia. O primado da dúvida é tido assim como uma coisa tão óbvia, que não é nem preciso declará-lo: praticamente a filosofia moderna está identificada com o exercício preliminar da dúvida metódica, ou com aquilo que Mário Ferreira dos Santos chamava a suspicácia preliminar, uma atitude de suspeita perante quaisquer afirmativas que tenham pretensão à verdade. Na seqüência de pensamentos que resume sob o títuloMeditationes de Prima Philosophia, René Descartes começa, como todo mundo sabe, por rejeitar todas aquelas verdades costumeiras que lhe tinham ensinado desde a infância, nas quais ele não visse um fundamento suficiente. Ele notava, por exemplo, que os cinco sentidos, nos quais geralmente acreditamos, não são fundamentos de si mesmos, quer dizer, não trazem consigo a prova das informações que nos dão. Ele usa, para impugnar a confiabilidade dos sentidos, uma série de argumentos que, na verdade, não são dele, que são bem antigos, que são da escola pirrônica, e que consistem em alegar os enganos costumeiros dos sentidos -- a famosa história do pau que, posto na água, parece quebrado, ou o efeito da perspectiva que dá a ilusão de que as coisas mais distantes são menores do que as que estão perto. São esses erros ou enganos comuns dos sentidos que nos mostram, então, que os sentidos podem ser uma fonte de conhecimento, mas não uma fonte segura. Ademais, existe o fato de que durante o sonho também temos sensações e nem sempre temos a prova de que o sonho é apenas sonho. Se não temos a prova de que o sonho é sonho também não temos a prova de que a vigília seja vigília, e assim por diante. Em seguida, Descartes faz a crítica da memória, dizendo que esta também falha, e o que ele faz com a memória faz também com a imaginação e, enfim, com todos os seus pensamentos habituais e as com as crenças do senso comum. Descartes vai derrubando tudo isso, sempre em busca de qual seria o ponto arquimédico, o ponto seguro que poderia servir de fundamento à construção de um

sistema válido de filosofia. Não importando agora quais tenham sido as conclusões a que ele chegou, é esse movimento de negação inicial que é considerado por Husserl o paradigma do movimento filosófico como tal. O que fiz no § 1 foi examinar o ato da dúvida metódica, porque Descartes descreve apenas as conclusões a que foi chegando no exercício da dúvida metódica, mas não faz em nenhum momento a descrição do próprio estado de dúvida. Se é para fazermos um exame radical do assunto, então, não podemos saltar essa etapa: temos de nos perguntar o que acontece, efetivamente, quando estamos em dúvida. Que é estar em dúvida, concretamente falando? A definição de dúvida todo o mundo conhece, mas só o suficiente para reconhecê-la quando aparece no exercício real do pensamento, não o bastante para descrevê-la em sua estrutura interna. Então, é esta pergunta que me faço: qual é a estrutura ontológica, a estrutura real do ato de duvidar? Vimos em primeiro lugar que a própria conclusão que René Descartes vai extrair desta parte do exame -que, enquanto estamos duvidando, não podemos duvidar de que duvidamos, e que, portanto, o próprio ato da dúvida seria a primeira certeza filosófica inabalável --, também não é inabalável, porque, se a dúvida é uma alternância entre duas convicções contrárias, ela não apenas admite a dúvida a respeito de si mesma, mas a exige, quer dizer: não podemos ter propriamente a ―certeza‖ de que estamos em dúvida. Por que? Porque estar em dúvida é oscilar entre duas certezas. Se no momento em que pensamos uma das alternativas, não temos nem uma certeza aparente dela, e ao instalar-nos na outra também não temos essa certeza, então não estamos em dúvida, porque já negamos as duas. Então, no momento em que uma das alternativas é pensada, ela não é pensada como dúvida, mas como uma certeza temporária, que em seguida é destruída pelo confronto com a hipótese contrária. Portanto, a dúvida não é um estado, a dúvida é a impossibilidade de permanecer num estado e por isto mesmo ela tem um caráter proliferante que se alastra sobre si mesma. No fim das contas, não é possível alguém duvidar sem duvidar de que duvida, porque, se a certeza fosse excluída do horizonte, não existira mais dúvida, existiria simplesmente a negação. (2) Em seguida, examinei os outros componentes da dúvida, no seguinte sentido: Quais são as condições reais necessárias para que o indivíduo esteja em dúvida, no sentido cartesiano da coisa? Quais são as crenças que estão pressupostas no próprio ato de duvidar? Este exame, então, é um exame da estrutura lógica da dúvida, que vou completar, neste § 2, com o exame da estrutura existencial da dúvida. Um tempo considerável foi necessário para que eu saltasse do primeiro exame ao segundo; porque estas questões são realmente complicadas. O exame da estrutura lógica da dúvida mostrava quais são os pressupostos lógicos sem os quais a própria dúvida não é possível (refiro-me à dúvida cartesiana, à dúvida radical, é claro, não à dúvida vulgar). Um deles é a própria continuidade do eu entre a pergunta e a resposta. René Descartes diz que o famoso ―penso, logo existo‖ não é um raciocínio, mas um ato intuitivo. Quando ele afirma: "Eu não posso duvidar de que duvido no momento em que estou duvidando", diz ele que isto não é uma conclusão lógica, mas um ato intuitivo, uma percepção instantânea. Porém, essa percepção, ainda que seja

instantânea, se refere ao mesmo eu que estava duvidando antes. Portanto, existe aí uma continuidade do eu no tempo que transcorre entre essas duas vivências: o estado de dúvida e a certeza intuitiva da dúvida. Não que esta já não esteja contida potencialmente no primeiro estado, mas o fato é que ela só se atualiza na consciência após o recuo reflexivo, o giro da atenção que se desvia do objeto inicial da dúvida para a dúvida mesma enquanto estado. Mas, de modo mais geral, toda dúvida, na sua própria estrutura lógica, pressupõe a continuidade do eu entre a primeira alternativa alternativa pensada e a segunda alternativa que a desmente. Por exemplo, tomemos uma dúvida teológica elementar: nada se cria do nada, no entanto Deus criou o mundo do nada. Todo o mundo sabe que nada se cria do nada, mas, pelo que está escrito na Bíblia, Deus criou o mundo do nada. Então, os teólogos têm de se arranjar com esse problema e discutiram isso durante séculos. Ora, se tenho uma dúvida a respeito é porque vejo aí uma contradição, e se vejo a contradição é porque vi duas hipóteses contrárias, e eu permaneci o mesmo enquanto via a primeira e enquanto via a segunda. Portanto, a continuidade do eu é um pressuposto da dúvida: não é possível ter uma dúvida sem afirmar, no mesmo ato, a continuidade do eu. Outro pressuposto da dúvida é a identidade do objeto a respeito do qual tenho a dúvida, porque se digo uma coisa a respeito do objeto A e a coisa contrária a respeito do objeto B, elas não se contradizem necessariamente e o confronto das duas afirmações não tem por que suscitar dúvida. Só dois predicados contrários domesmo sujeito podem contradizer-se. Se me dizem que José é gordo, mas Antônio é magro, isso não é contradição, porém, se dizem que José é gordo e magro, então entro em dúvida. Além disso, a própria estrutura do raciocínio lógico também está pressuposta na dúvida. Se não existe princípio de identidade, não tenho como formar a dúvida. Também está pressuposta na dúvida a continuidade da língua na qual ela se transmite. Não poderíamos arquitetar esse raciocínio todo sem o auxílio da língua, e essa língua, evidentemente, sei que não a estou inventando no momento em que estou formulando a dúvida, sei que estou usando regras de gramática que existem de antemão e que, se eu não as tivesse recebido, também não poderia produzi-las na hora. Em suma, por baixo do ato da dúvida, teoricamente uma dúvida radical que coloca tudo em dúvida, existe uma montanha de certezas, portanto essa dúvida não é radical coisíssima nenhuma, é apenas um fingimento de dúvida radical. Se a dúvida metódica não é uma dúvida radical, mas já um produto ou uma dedução de uma série de certezas anteriores, conclui-se que também está errada a regra de Kant de que o problema crítico do conhecimento é o primeiro problema, na ordem dos fundamentos da filosofia. Nunca podemos começar com a crítica do conhecimento; a crítica do conhecimento pode acontecer, sim, mas ela não pode ser o primeiro capítulo jamais, porque para poder fazê-la é preciso dar por subentendida não apenas a existência do conhecimento que será objeto de crítica (coisa que o próprio Kant reconhece), mas uma série de certezas nas quais se apóia o próprio exercício da crítica.

2. Passagem a um novo enfoque Partindo disso e aprofundando gradualmente a questão, vamos nos perguntar, agora, já não quais são as pré-condições lógicas do exercício da dúvida ou da crítica, mas quais são as pré-condiçõesreais, existenciais, ou, dito de outro modo, como é possível, na prática, estar em dúvida radical. Como é que vem a existir esse estado de dúvida e como é possível que um homem, ou dois, ou três, ou quatro tenham não apenas o estado de dúvida, mas o estado de dúvida radical? Como é possível duvidar de tudo? De onde vem a possibilidade real da dúvida geral cartesiana? Vamos partir de uma observação banal: mesmo que não possamos duvidar de tudo num sentido cartesiano, podemos duvidar de muita coisa. Ainda que seja incompleto no seu conteúdo e ainda que não se realize plenamente, o estado de dúvida é um fato. Temos de reconhecer que ele existe, e também que a dúvida metódica existe: estão aí três séculos de exercício dela para provar isso. Então, a nossa pergunta é: Como pôde vir a existir? Como essa criatura chamada homem pôde colocar "todo" o mundo entre parênteses, se ela nunca esteve fora do mundo? Não temos realmente a experiência de ficar ―fora‖ dos nossos sentidos, das nossas memórias e imaginações, muito menos dos nossos próprios pensamentos -- simplesmente não temos essa experiência. Se não temos essa experiência, de onde obtivemos a possibilidade de concebê-la e de tentar colocar-nos neste estado, mesmo que não consigamos? Neste sentido, é claro que nenhum outro animal, além do homem, experimenta esse estado. Você pode ver que, às vezes, um animal pode ficar num estado de perplexidade entre duas alternativas, mas você nunca verá um animal paralisar totalmente as suas decisões até resolver uma dúvida cartesiana. Muito mais interessante do que o velho problema de como podemos ter a certeza do mundo exterior é o problema de como podemos chegar a duvidar dele, se nunca tivemos a experiência de estar fora dele por um instante sequer. De onde vem essa capacidade humana de negar, ao mesmo tempo, a experiência, o hábito, o senso comum e a certeza moral? Pois o mais estranho no solipsismo experimental de René Descartes é precisamente que o filósofo consiga entrar nele a despeito de saber que, mesmo durante esse período de radical isolamento, necessitará de uma "moral provisória" para se arranjar de um modo ou de outro naquele mesmo mundo exterior que, enquanto isso, ele está negando. Descartes, querendo colocar em dúvida todos os seus conhecimentos, mas sabendo que enquanto isso vai continuar vivendo, conversando com as pessoas, tomando decisões, pagando suas dívidas etc., pergunta-se: Como vou orientar-me no mundo enquanto estou em dúvida com relação a tudo? Então, ele concebe os princípios do que ele chama uma "moral provisória", que é a moral que ele vai seguir sem questioná-la e sem afirmar que é verdadeira ou é falsa, durante o período em que estiver realizando esse experimento interior. Ora, o simples fato de concebermos uma moral provisória nos informa que sabemos que estamos no mundo, mesmo durante o período em que estamos duvidando de que estamos nele. Mas, se sabemos disto, como é que conseguimos conceber a hipótese de

estar fora dele? Esta, no fundo, é a pergunta: como? Porque o fato é que o conseguimos, ainda que imperfeitamente. O conhecimento começa com o estranhamento. O primeiro passo da investigação filosófica é colocar-nos num estado no qual possamos perceber a estranheza de alguma coisa. Normalmente não percebemos essa estranheza porque não prestamos atenção, mas, quando prestamos atenção, a estranheza aparece. Quando estamos lendo René Descartes, passamos direto por esta parte e não nos lembramos de nos perguntar: Mas como ele conseguiu fazer isto? O fato é que ele conseguiu, pois está nos contando que conseguiu. E é verdade que eu também consigo. Mas como isso é possível? Quase tudo o que os filósofos descobriram ao longo dos milênios foi estranhando coisas que o hábito nos faz esquecer que são estranhas. Então, para estranhar, temos de nos colocar mentalmente "fora" daquilo e olhá-lo como se fôssemos um turista de outro planeta, ou pelo menos de outro país. Assim, após três séculos de dúvida metódica, nos acostumamos com ela, mas lembrem-se de que os primeiros que leram as Meditationes devem ter achado tudo muito esquisito. Nós já esquecemos que é esquisito; então, vamo-nos colocar de novo naquela posição de estranheza e nos perguntar: Como é possível a dúvida cartesiana? Ora, existem duas maneiras de nos livrarmos de uma esquisitice: a primeira é habituando-nos com ela acabando por esquecê-la; a segunda é tentando explicá-la. Só que, tentando explicá-la, o risco que corremos é o de que ela acabe parecendo mais esquisita ainda. Normalmente, perante as coisas esquisitas, primeiro nos assustamos e depois tratamos de nos habituar com elas e não fazer mais perguntas. Esta é a atitude prática mais viável, mas em filosofia ela não é legítima; ao contrário, temos de buscar esse estranhamento porque, se não, as perguntas filosóficas desaparecem. Então perguntemos: Como foi possível Descartes pensar isso? Como é possível cavar tamanho abismo entre o que se sabe e o que se pensa? Notem bem que, durante todo o exercício da dúvida metódica, Descartes sabe que está realmente pensando; ele coloca entre parênteses não o pensar, mas o saber. Ele está pensando, mas aquilo que ele sabe é duvidoso, portanto, ele não assume o que sabe, ele assume apenas que está pensando. Ora, como é que podemos fazer isso? Notem bem que um bicho não pode fazer isso: tudo em que um bicho pensa, ele acredita; ele não pode pensar uma coisa no mesmo instante em que ele não acredita nela. Um computador também não pode fazer isso, toda a informação que o computador nos passa é porque ele "acredita" nela. Então, a dúvida cartesiana é um estado muito peculiar e podemos dizer que este estado é exclusivamente humano. Talvez pudéssemos até dizer que o homem é o animal que pode tentar fazer a dúvida cartesiana. Os animais não podem, os anjos não podem e Deus também não pode. Então, é por isso que a dúvida metódica é importante, ou seja, porque ela é um estado que é caracteristicamente humano, mas que não deixa de ser esquisito por isto. Essa capacidade de negar mentalmente sem negar existencialmente é uma das propriedades mais estranhas do bicho-homem. Ela é mais enigmática, decerto, do que a nossa certeza do mundo exterior, a cuja explicação e fundamentação se dedicaram, no entanto, muito mais horas e livros.

O fato de acreditarmos que o mundo existe já suscitou a atitude de estranhamento da parte de muitos filósofos. Muitos constataram que acreditamos, de fato, que estamos no mundo, que esse mundo é real etc., e se perguntaram: Como é possível? O que eles não se perguntaram foi o contrário: Como é possível duvidar? Esta investigação é feita aqui, creio que pela primeira vez: qual é o fundamento real da possibilidade da dúvida? 3. A condição de possibilidade da dúvida cartesiana: o dinamismo antivital. Já demonstrei que a dúvida cartesiana não pode se levantar senão sobre todo um edifício de certezas; que ela não é, portanto, umcomeço, como por longo tempo se pretendeu, mas uma simples etapa dialética no movimento de uma máquina de certezas. A dúvida metódica, afirmei, não é senão negação hipotética de algo que no mesmo instante se afirma categoricamente. Não obstante, essa dúvida é um fato. Aconteceu a Descartes, e pode acontecer a qualquer um de nós vivenciá-la ao menos por alguns instantes. Pouco importa que ela traga em si sua própria negação. Se Descartes se enganou ao descrever seu estado como "certeza da dúvida"; se não pode haver certeza do estado de dúvida precisamente porque este não é senão oscilação entre duas certezas que se contradizem e é portanto negação de si mesma, tudo isso não impede que esse estado, ainda que tenhamos de lhe dar uma definição diversa daquela que recebeu de Descartes, efetivamente exista de algum modo como experiência. É a possibilidade lógica e existencial dessa experiência que constitui um problema. Podemos duvidar de tudo -- mas como, raios me partam, podemos duvidar de tudo? Essa possibilidade supõe, no ser humano, uma capacidade de cortar ao menos por instantes os laços entre a faculdade pensante e a existência pessoal concreta, vivente, da qual essa faculdade não é senão manifestação e função. Por um lado, sabemos que estamos vivos, que estamos no mundo, que estamos nos relacionando com pessoas, que comemos, que dormimos, que trabalhamos etc., e é exatamente porque fazemos tudo isso que podemos pensar. Se não estivéssemos vivos, não pensaríamos. Todos sabemos disso, e então, podemos dizer que o pensamento é o exercício de uma faculdade vital, que ele supõe, portanto, a vida. Como é que, sendo um exercício da faculdade vital, sendo uma espécie de manifestação da vida, ele pode, ao mesmo tempo, negar a vida ainda que hipoteticamente? Não é estranho? Tão antinatural é essa operação, de tal modo ela se opõe a todo o potente dinamismo psicofísico que deseja viver e que ademais tem de estar vivo para realizá-la, que temos de admitir que ela não se realizaria sem que esse dinamismo pudesse ser "suspenso" -na esfera mental, é claro – pela ação de um dinamismo contrário de poder equivalente, embora certamente de operação descontínua e não contínua como a dele. Tudo o que fazemos, pensamos, rememoramos etc. é, certamente, uma expressão do nosso impulso de viver, ou seja, temos um impulso de viver, e ele se manifesta em muitos atos, alguns externos, outros internos. É isso o que eu chamo dinamismo, quer

dizer, existe uma força, existe um impulso, que nos impele a fazer essas coisas. Ora, o ato de colocar tudo em dúvida contraria de tal modo este impulso vital, que não conseguiríamos realizá-lo a não ser que nos apoiássemos num impulso igual e contrário, não permanente (porque senão ficaríamos definitivamente paralisados) mas temporário. Isso quer dizer que o impulso vital pode ser detido por instantes. Se ele pode ser detido, é por uma força capaz de detê-lo. Que força é essa? Se alguém chamado René Descartes consegue colocar todo o saber e todas as funções vitais entre parênteses, quer dizer que o pensamento dele nesse momento tem uma motivação que não é a mesma que o faz pensar, sonhar, sentir, viver etc.. É uma "outra" motivação diferente e que se opõe a tudo isso, e essa motivação tem de ser muito forte. Com isso a nossa pergunta inicial: Como é possível o ato da dúvida?, se converte numa outra pergunta. Essa mutação das perguntas é um dos elementos fundamentais do método e da técnica filosóficas: a conversão da pergunta numa outra pergunta mais explícita, mais detalhada e mais fácil de ser examinada. A segunda forma que a nossa pergunta assume é a seguinte: Por que um sujeito chega a querer duvidar de tudo?Tínhamos uma pergunta mais genérica: Como é possível o ato da dúvida? -pergunta que pode ser colocada em nível antropológico, em nível histórico etc. -- e em seguida a convertemos nesta outra pergunta que pertence mais à ordem psicológica. Para responder a esta pergunta não temos de examinar senão a mente de um só indivíduo. Não que ele vá responder em nome de todos, mas, se chegarmos a entender por que um indivíduo chegou a querer duvidar a esse ponto, teremos pelo menos uma pista sobre por que outros indivíduos podem ter feito coisa semelhante. De onde tiramos, do nosso ser vivente, a força para realizar a torção da nossa consciência da atitude de crença natural para a de negação cartesiana ou a suspensão husserliana? Notem bem que Husserl vai tornar a dúvida cartesiana um processo muito mais preciso, muito mais detalhado. Comparar a dúvida cartesiana com a suspensão, como a chama Husserl -- a epokhé, com a qual ele coloca tudo entre parênteses -- é mais ou menos como comparar um relógio de areia com um relógio suíço a quartzo: a máquina se tornou muito mais precisa, mas a função continua exatamente a mesma. Essa análise realizada aqui valeria tanto para Husserl quanto para Descartes. Husserl chegava a dizer que o que ele chama de atitude fenomenológica é não só diferente, mas é radicalmente oposta à atitude natural. A atitude natural é crer no que se pensa, crer no que se sente, crer no que se imagina. Crer ou descrer: ou afirmamos, ou negamos, mas em ambos os casos cremos: cremos na afirmação ou na negação. Ora, a atitude fenomenológica não afirma nem nega, ela simplesmente descreve o que está se passando diante da nossa consciência, ou seja, o próprio conteúdo intencional do ato cognitivo é observado por nós, sem que o afirmemos ou neguemos. Não se tratando sequer de ―introspecção‖, porque o que observamos no processo cognitivo pela técnica fenomenológica não são os atos reais de pensamento, não se trata de uma observação psicológica, o que observamos aí é simplesmente o fenômeno enquanto dado presente à consciência, sem afirmar que ele seja verdadeiro ou falso, real ou irreal. É claro que esta mesma atitude

pode ser adotada para se estudar o próprio processo cognitivo, considerado enquanto fenômeno presente à consciência. Também neste caso não é uma observação pessoal, mas transcendental. Essa atitude é de fato muito esquisita e Husserl dizia que ela é tão antinatural que tem de ser treinada: o fenomenólogo precisa passar por um treinamento especial da consciência. Um dos discípulos de Husserl, Raymundo Abéllio, dizia que a fenomenologia era uma escola ascética, uma escola iniciática. Por quê? Porque o treinamento necessário para o discípulo colocar-se na atitude fenomenológica é um autodomínio do espírito. Neste exercício de autodomínio no qual nos desidentificamos das sensações naturais, da memória etc., e adquirimos a posição de observador fenomenológico, de certo modo, nos colocamos ―acima‖ de nós mesmos. Começamos a pensar num outro estrato, num outro andar, num outro nível, que é o nível de validade universal, e aí estamos instalados em pleno eutranscendental. Abellio comparava isso a um processo iniciático, com toda a razão. Mas, seja difícil ou seja fácil, seja toscamente como fez René Descartes ou mais elaboradamente como Husserl, o problema é o mesmo: De onde nos vem a força para fazer isso? Esta força certamente não pode ser o simples impulso vital, pois este nos impeliria a fazer exatamente o contrário do que faz o fenomenólogo. 4. Uma falsa explicação: o desejo de conhecimento Diante dessas aventuras do espírito, empreendidas por criaturas ousadas como René Descartes e Edmund Husserl, recorremos, para explicá-las, ao desejo de conhecimento. Ao colocarmos a pergunta:Como é possível que um sujeito queira colocar-se numa atitude tão difícil, tão antinatural e, no final das contas, tão dolorosa? Por que ele faz isso?, podemos apelar à resposta que está mais à mão: Ele faz isso por ―desejo de conhecimento‖. É esta a primeira resposta que nos ocorre. Diremos, então, que o desejo de conhecimento não é uma função do simples impulso vital genérico; é um desejo específico do ser humano. O que nos faz ter desejo de conhecimento não é, de fato, o puro desejo de viver; mesmo porque, para obter conhecimento podemos sacrificar muito do nosso ser psicofísico, da nossa vida. Quando vemos, por exemplo, um asceta budista privando-se de comida e de sono para obter conhecimento, dizemos que isto é um impulso de conhecimento, mas não um impulso vital: é um impulso diferente do impulso vital. A primeira hipótese, então, seria esta: René Descartes ou Edmund Husserl conseguem colocar-se no estado de dúvida radical por desejo de conhecimento. E damo-nos por satisfeitos, como se tivéssemos encontrado um princípio explicativo terminal e autoevidente. "Todos os homens, por natureza, desejam conhecer": é a primeira frase da Metafísica de Aristóteles. E ele dá como prova disto o prazer que temos no exercício dos sentidos, mesmo quando eles não têm finalidade utilitária, mesmo quando eles não estão atendendo a interesses imediatos do nosso organismo. Assim, se esse desejo de conhecer está na natureza humana, nada mais natural do que realizá-lo, mesmo que isso custe sacrifícios ou perda para o nosso organismo vital.

Se Husserl e Descartes agem segundo essa natureza, não há pois nisso, aparentemente, nada de estranho. Então, damos a questão por resolvida, só que não resolvemos nada, pelo seguinte motivo:o simples desejo natural não pode, por si, atirar o homem a uma experiência antinatural. Notem bem que, se o desejo de conhecer é natural no homem tanto quanto o desejo de viver, o desejo de comer etc., o fato é que, sendo eles desejos diferentes, podem entrar em choque uns com os outros, e teremos de escolher, por exemplo, entre continuar fazendo os exercícios ascéticos ou parar para comer. Podemos ter essa dúvida. Mas no caso de René Descartes existe algo mais que o desejo de conhecer. Isto se torna óbvio quando formulamos a questão da seguinte maneira: O simples desejo de conhecer pode nos levar a negar todos os nossos conhecimentos? O próprio Aristóteles não foi tão longe. Ele, que dizia que o conhecer começa com o estranhamento, investigou o mundo e a alma, mas nunca estranhou, ao ponto de se atirar em ousados experimentos interiores para investigá-lo, que a alma pudesse conhecer o mundo. Portanto, uma coisa é o estranhamento aristotélico, outro o estranhamento cartesiano. Aquele nos leva a fazer as perguntas:Como é possível?, Por que isto acontece?, O que é tal coisa?Quando estranhamos algo e isto suscita uma pergunta, qual é o ato seguinte? Buscar a resposta, evidentemente. Mas nada disso, por si, poderia nos levar à dúvida metódica, à dúvida geral e radical sobre todos os conhecimentos. Ao contrário, o impulso aristotélico do conhecimento nos leva naturalmente a restringir a pergunta àquele aspecto que estamos investigando no momento. Não vamos fazer todas as perguntas ao mesmo tempo, senão ficamos paralisados. Então, se estamos investigando, por exemplo, a fisiologia do coelho, não vamos, ao mesmo tempo, fazer uma pergunta sobre a estrutura do Estado. Podemos tratar de uma e de outra, mas não misturá-las. Portanto, existe em toda a busca do conhecimento um princípio de rendimento que faz com que encaminhemos a pergunta da melhor maneira possível. Nada disto nos impeliria à dúvida total. Entendemos então que mesmo o desejo do conhecimento, por mais profundo, mais dominante e mais radical que fosse, não explicaria a vontade de dúvida total. Mais ainda, colocar ―tudo‖ em dúvida para encontrar o princípio fundador de tudo subentende uma crença de que o princípio possa ser encontrado fora desse ―tudo‖ – uma idéia que jamais ocorreu a Aristóteles e que, realmente, é antinatural. A curiosidade natural busca a explicação de uma coisa dentro dessa coisa ou em alguma outra coisa em torno. A idéia de afastar-se de tudo para conhecer a explicação de tudo jamais ocorreria a um homem por simples impulso natural. Se o desejo de conhecer é natural, ele expressa a própria natureza do homem, e não teria cabimento que a natureza despertasse no homem um desejo impossível e antinatural. Então, quando em nós o desejo de conhecimento se opõe ao desejo de viver, os dois desejos são naturais. É natural que o homem queira comer e é natural que ele deixe de

comer para fazer exercícios ascéticos e adquirir conhecimento. Trata-se de um conflito que se dá dentro da natureza, mas ainda aí estamos muito longe do impulso que pode nos levar a negar todos os conhecimentos que temos. 5. É natural saber geralmente a verdade ou é natural geralmente errar? Se a filosofia moderna começa precisamente com a investigação daquilo que Aristóteles supusera desnecessário investigar, então é patente que aquilo que pareceu natural a Aristóteles já não parece natural aos primeiros filósofos modernos. Eles começam por estranhar aquilo em que Aristóteles, o filósofo do estranhamento, não vira nada de estranho. Aristóteles faz muitas investigações e se coloca em posição de estranhamento perante muitas coisas, mas não perante tudo ao mesmo tempo. Portanto, Aristóteles admitiu que algum conhecimento nós sempre temos, que algum conhecimento é válido e, indo mais fundo ainda, ele diz que é mais natural o homem pensar a verdade do que pensar a falsidade. Ele diz quegeralmente sabemos a verdade, embora errando de vez em quando. Ora, se René Descartes chega a colocar tudo em dúvida, é porque ele está pensando exatamente o contrário: que geralmente erramos e de vez em quando acertamos. E como René Descartes inaugura todo o ciclo filosófico moderno, então, entendemos que para todos os filósofos modernos o errar começou a parecer mais natural do que o acertar. Isto é uma grande mudança. Se propuséssemos a Aristóteles o método da dúvida metódica, ele nos chamaria de loucos, porque, para ele, todo conhecimento se baseia em algum outro conhecimento. Sempre soubemos algumacoisa, e é dela que vamos partir para saber mais: transitamos do conhecido ao desconhecido, para que o desconhecido se torne conhecido. E Aristóteles ainda diria que se suprimíssemos tudo o que conhecemos, a inteligência estaria paralisada. O método da dúvida metódica pareceria a Aristóteles radicalmente esquisito e inaceitável. No entanto, ele nos parece tão aceitável e tão óbvio, que alguns dos maiores filósofos e talvez o maior do século XX, que foi Husserl, diz que ele é o começo paradigmático e obrigatório de toda filosofia. Isso significa que, para a filosofia moderna, o conhecimento, longe de ser natural como para Aristóteles, é quase uma exceção, é quase uma anormalidade ou mesmo uma impossibilidade. O que provocou toda essa mudança? É preciso que se compreenda o abismo de diferença que existe aqui. Nunca vi isto colocado assim em parte alguma, e creio também que ao longo dos tempos nenhum outro ser humano estranhou mais a dúvida metódica do que eu, porque estou com esse problema na cabeça há trinta anos. A primeira vez que li René Descartes já me surgiu a pergunta:Como isto é possível?, porque, à medida que eu ia lendo, eu via que pensava mais ou menos a mesma coisa que Descartes. Mas só que, ao mesmo tempo, eu tinha a sensação de estar andando sem os pés, e me perguntava: Como é que eu estou conseguindo fazer isto? Ora, como é possível, à mente que conhece, estranhar-se enquanto conhece?

Sempre podemos estranhar a nossa mente. Todos já tivemos a experiência de nos passarem pela mente umas idéias esquisitas. Você acorda, por exemplo, com o seu filhinho chorando às três horas da madrugada e você tem vontade de jogá-lo pela janela. É uma idéia esquisita, não é? Não há limites para as esquisitices que podem passar pela nossa cabeça. Ora, isto nós podemos fazer, podemos estranhar-nos de nós mesmos, estranhar a nossa própria mente e estranhar o nosso próprio "eu" sob várias circunstâncias. Porém, aqui no caso, o que é que René Descartes está querendo? Está querendo um conhecimento. Então, ele está se estranhando, não enquanto sujeito de atos esquisitos ou de pensamentosesquisitos, ele está se estranhando enquanto sujeito do próprio ato de conhecer, que é precisamente o ato que ele está realizando naquele mesmo momento. Há aqui um enigma e é por isso que pergunto: como é que o sujeito que conhece pode estranhar-seenquanto cognoscente? Não enquanto esquisito, não enquanto autor de atos estranhos realizados num momento passado ou de pensamentos estranhos pensados numa outra ocasião, mas enquanto alguém que está realizando o próprio ato que lhe parece esquisito e que só se percebe como esquisito por meio desse mesmo ato. Vamos apelar ao método filosófico da conversão da pergunta. Não podendo responder a essa pergunta diretamente, vamos fazer a conversão da pergunta, exatamente como fazemos em álgebra, quando, por exemplo, o professor nos dá uma equação enorme e vamos transformando-a em outras mais simples ou vamos tratando dela por partes. Chegamos aqui, então, ao estranhamento do estranhamento. Consequentemente, temos de nos perguntar agora: o que é propriamente ―estranhar‖? 6. Fenomenologia do estranhamento (1) Precauções de método Num curso de filosofia que pretenda ser efetivamente um curso de filosofia e não somente um curso sobre filosofia, não é importante só o conteúdo do que o professor está transmitindo, mas o exercício do caminho que ele está trilhando, o seu modus operandi. No fundo, isto é até mais importante do que o assunto. E como itens básicos desse modus operandi que estou adotando aqui temos, primeiro, a idéia de perguntar: Que é?, Quid est? Esta é a pergunta filosófica fundamental. E, segundo, ao perguntar: Que é?, nunca nos contentarmos com uma definição nominal. A definição nominal declara apenas o que queremos dizer com determinada palavra, e não é isto o que estamos procurando. Temos de tornar presente mentalmente (3) a própria coisa da qual estamos falando e temos de ver aquilo que, de certo modo, ela nos impõe como sua natureza, aquilo que ela própria nos apresenta como sua identidade, seu quid, seu modo próprio de ser e de mostrar-se. Ora, as palavras estão à nossa disposição, elas são instrumentos para manifestarmos o que queremos. Nós as usamos como instrumentos de nossa auto-expressão, mas as coisas não são bem assim. As coisas nos resistem mais que as palavras, e é justamente nesta resistência que elas nos mostram que são alguma coisa em si mesmas e por si mesmas, independentemente do que projetemos sobre elas do nosso próprio estado interior. (4) Então, é justamente esta resistência das coisas que o filósofo procura, porque sabe que ela é preciosa, ela é o aspecto das coisas que transcende a nossa subjetividade. Mas ―coisas‖, aí, não significa apenas os entes materiais, e sim também os fatos e situações, tudo enfim o que é ―real‖, inclusive na

nossa experiência interior considerada como realidade factual, como fato psíquico. Quando pergunto: o que é estranhar?, posso definir a palavra―estranhar‖ como quiser, mas isso não me dirá o que acontece realmente quando se estranha alguma coisa, o que é realmente estranhar. Para saber o que é estranhar, terei de traduzir num conteúdo verbal as experiências internas do ato de estranhamento, com as quais eu não me preocupei no momento mesmo em que estranhava. Por exemplo, alguém que conheço aparece de repente pintado de verde, naturalmente eu o estranho; mas, justamente por isso, não estranho que eu estranhe. Então, nessa hora, eu não vou perguntar-me: ―O que é estranhar?‖, ―O que se passa na minha mente na hora em que eu estranho?‖. Estranhar o estranhamento não coincide no tempo, em geral, com o ato de estranhar. Se estranho realmente alguma coisa, é porque ela me parece estranha e, por isto mesmo, não vejo nada de estranho em estranhá-la. Assim, perguntar ―Que é o estranhamento?‖ exige algo mais do que o estranhamento natural, exige uma espécie de estranhamento de segundo grau, um estranhamento do estranhamento. Quando perguntamos: ―Que é?‖, Quid est?, devemos, com efeito, tornar presente isto que perguntamos, seja um objeto físico, seja um estado interior etc.. Mas esse tornar presente não é um reviver no sentido direto. Para eu investigar o que é tristeza não preciso ficar triste, mas preciso que a tristeza me esteja presente de algum modo; eu preciso ter a recordação eficaz e suficientemente completa da tristeza para que eu possa dizer o que ela é. Então, aí não estou triste, mas a minha tristeza está presente. Isso significa que já não vou estar muito alegre, mas também não estou triste. Poderia perguntar-me, por exemplo, o que é o medo. Ora, só podemos perguntar o que é o medo num momento em que não estamos com medo, evidentemente; porque se na hora do medo conseguíssemos nos distanciar intelectualmente do medo ao ponto de estranhá-lo e perguntar ―Que é o medo?‖, o medo se dissolveria como vivência direta para reaparecer como objeto de reflexão. Entre estarmos vivendo uma certa experiência e estarmos filosofando sobre ela, existe uma diferença e existe uma afinidade. A diferença é que não estamos revivendo existencialmente aquele estado e a afinidade é que esse estado tem de estar presente, tão presente quanto se estivéssemos vivenciando-o, mas de uma forma diferente daquela pela qual ele se apresenta na vivência direta. Na vivência direta o estado, de certo modo, nos possui e nos envolve, ao passo que na reflexão ele está ―diante‖ de nós e só muito parcialmente nos deixamos envolver por ele e identificar com ele. A diferença, que aliás é simples, vem de que, além de esse estado estar presente, existe um outro estado que também está presente, que é o estado de pergunta, o qual não estava presente no momento em que vivíamos esta situação em sentido existencial. Então, se pergunto: ―Que é o medo?‖, o medo tem de estar tão presente quanto na hora em que eu o sinto, só que agora ele está, de certo modo, neutralizado, porque está presente também uma curiosidade que o neutraliza ou pelo menos o abranda. É esta coexistência entre a curiosidade e um determinado estado interior que me permite perguntar sobre ele. Mas, se nos contentamos com a definição de uma palavra ou com a primeira resposta que apareça, movidos por um impulso espontâneo de auto-expressão e comunicação, então não permitimos que este objeto esteja novamente presente: o que está presente é o nosso impulso de falar, de comunicar-nos, e este impulso encobre o objeto do qual queríamos falar, desviando o foco da nossa

atenção para a comunicação-expressão. É um mecanismo dispersante. Para superá-lo, é preciso chamar o objeto de volta e de volta, quantas vezes for necessário, até termos a certeza de que ele, e não o nosso impulso de expressão-comunicação, se tornou o foco da nossa atenção. Essa operação toda supõe paciência, honestidade e muita curiosidade. Quando você não está muito empenhado em saber, não leva essa operação até o fim, e então diz algo que não expressa o objeto, mas apenas você mesmo. Bem, convertemos nossa questão de ―Como é possível o ato da dúvida?‖, em ―O que motivou o ato da dúvida?‖ ou, ―Por que o sujeito quis ficar em dúvida?‖. Em seguida a convertemos numa questão mais precisa ainda: ―Como é possível estranharmos, não um estado qualquer nosso, mas aquele mesmo estado presente que é o ato de conhecer?‖ Como a mente cognoscente se estranha enquanto cognoscente? E por fim convertemos essa pergunta numa outra mais geral, cuja investigação deve preceder a das outras perguntas: ―Que é estranhar?‖ 7. Fenomenologia do estranhamento (2) Estranhar e assumir Estranhar algo é desidentificar-se dele, é olhá-lo desde uma distância desde a qual esse algo aparece injustificado, desprovido de fundamento, absurdo; ou seja, o estranhar é um não assumiralgo. Estranhar é o contrário de assumir. Assumimos algo -- um encargo, um dever, uma idéia, um amor, uma pessoa -- quando o damos por tão justificado, por tão fundamentado, por tão dotado de uma razão absoluta de ser, que por essa razão arriscamos nosso bem-estar e nossa vida. Como pode a mente que conhece, no instante em que conhece, recusar-se a assumir que conhece? A questão agora ficou mais precisa ainda: conheço, mas não assumo que conheço -- isto é a dúvida cartesiana. Então, deixo de ser o sujeito executivo do ato de conhecer e me coloco fora do campo de minha própria ação, dizendo: "Conheço, mas não sou bem eu que conheço." Não sei se este é um problema psicológico, não estou tentando catalogá-lo como um problema psicológico ou antropológico etc., estou tentando descrever o que se passa. Ora, como é que podemos não assumir exatamente aquilo que estamos fazendo naquele mesmo instante e pelos mesmos meios com que nos recusamos a assumi-lo? É pensando que conhecemos, é pensando que assumimos ou não assumimos. Então, pelo mesmo meio – o pensar – é que vamos fazer a desidentificação entre o sujeito que conhece e o sujeito que pensa. Neste ponto, deparamo-nos com uma dificuldade das mais temíveis: se me desidentifico daquele que em mim conhece, se me separo do meu eu cognoscente, onde é que precisamente "estou" neste instante? Quem, em mim, fala e pensa, se não é o eu cognoscente? Dito de outro modo, se me coloco fora daquela área que para mim é iluminada, e se o faço precisamente com o propósito de enxergar a luz mesma que vem de mim e não os objetos que ela ilumina, mas ao mesmo tempo recuso assumir que essa

luz é luz e que ela é minha, tenho então de olhar desde as trevas. Torno-me inconsciente para examinar a consciência, como um homem que arrancasse os olhos para os examinar. Mas, ao mesmo tempo, como o foco iluminante do que conheço é a própria atenção que projeto sobre os objetos, isto é, como o eu cognoscente se desloca comigo para onde quer que eu vá, tenho apenas a ilusão de entrar nas trevas para ver a luz, porque de fato levei a luz comigo e a projeto sobre aquela outra luz que sou eu mesmo. O eu reflexivo, duplamente cognoscente, ilumina o eu meramente cognoscente e, ao mesmo tempo, o objeto deste. Se sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei: as trevas resolvem-se num jogo de luzes e espelhos. (5) O resultado parece esplêndido, ao menos do ponto de vista estético: a tentativa de estranhamento resultou numa aproximação, a desidentificação numa identificação intensificada. Esta é a questão: aqui está o objeto do conhecimento, aqui está o eu que conhece, mas eu me desidentifico e me coloco fora da relação entre eles. Ora, existem duas maneiras de se fazer isto. Uma delas pode ser formulada assim: aqui está o objeto do conhecimento, ali está o sujeito que conhece, e dentro ou acima de mim existe um terceiro que diz: ―Eu sei que conheço, eu tomo consciência de que conheço.‖ Ora, se diante de mim está o objeto e o ato de conhecer está em mim, a consciência de que conheço não pode estar somente em mim; ela está em mim, mas de certo modo ela me transcende porque me mostra as relações que tenho com um objeto que não sou eu. Esta é a primeira maneira de refletir sobre o ato de conhecimento. Então, aqui, não é que eu que me desidentifique de mim; eu subo um grau acima de mim mesmo e olho o que estou fazendo, desde um plano mais elevado. Logo,eu sei, e sei que sei. É claro que a função saber é, em si, mais elementar do que o saber que sabe, porque esta abarca a primeira. Porém, não é disto que se trata no estranhamento cartesiano: este não olha o ato do conhecer de um ponto de vista mais elevado, mas ele se coloca "fora" do ato de conhecer; ele não assume o conhecimento. A primeira operação que descrevi, que é esta reflexão que nos leva à conclusão de que sabemos que sabemos, longe de ela se desidentificar do ato de conhecimento, ela o aprofunda. Ela tanto se identifica com este ato, que ela diz não apenas: sei, mas também: sei que sei; ou seja, assume o conhecimento duplamente. Não estamos aí apenas vivenciando o ato, mas, por assim dizer, estamos assinando embaixo dele, passando recibo dele, reconhecendo-o. Ora, o estranhamento cartesiano não é isto, é exatamente o contrário. Ele também se coloca "fora" do ato de conhecimento; só que esse fora não é um acima, é um "fora" em sentido literal. Ele não assume o ato de conhecimento, ele o desassume, ele o rejeita. Como é possível isto? Por enquanto não temos nenhuma solução. Até o momento só temos problemas. Conseguimos converter um problema noutro problema, noutro e noutro e estamos no meio da elaboração da equação. Pode ser que o método cartesiano não funcione, porque se eu me coloco fora do conhecimento, então vou tirar conclusões que não serão válidas, porque vou poder continuar gerando a mesma dúvida eternamente. Mas, e se o método cartesiano funcionar? Então, certamente não será assim, porque deste colocar-se fora do

conhecimento, deste desassumir o conhecimento, será possível tirar conclusões positivamente válidas. Essa era a esperança de Descartes. Senão, ele não teria adotado esse método. E o fato é que ele tira algumas conclusões. Eu até concordo com a observação de que eles não podem ser válidas, de que o método cartesiano não funciona, acho que de fato é assim e que no final se demonstrará que é mais ou menos assim. Porém, por enquanto ainda não estamos julgando o método cartesiano. (Aliás, um outro detalhe da formação para o exercício do método filosófico é que de nada adianta chegar a uma conclusão que é certa, mas da qual não se possuem efetivamente todos os detalhes da sua demonstração. Todo o esforço filosófico é o esforço de sair do reino dos meros termos e conceitos e chegar ao conhecimento das coisas mesmas. Não basta, por exemplo, termos um conceito de árvore para conhecermos uma árvore. Assim, operando com conceitos, tiramos conclusões muito facilmente, mas isto até um computador faz. Fazendo isso deslizamos em cima das coisas e vamos direto para as conclusões, jump to conclusions, dizem os americanos. Mas é melhor não chegar a conclusão nenhuma do que pular direto para ela, pois, se este é o procedimento normal da vida prática -- porque nesta você tem de tomar decisões, as quais não podem ser justificadas em todos os pontos, por uma questão de tempo --, já no esforço de conhecimento teorético, ao contrário, não adianta termos a conclusão, o que precisamos é da completa justificação da conclusão. Por isso mesmo é que, evidentemente, a investigação filosófica progride muito mais lentamente do que qualquer outro esforço cognitivo humano. Qualquer empreendimento pode ser muito mais rápido e eficiente do que a investigação filosófica, porque esta vai esbarrar a todo momento em novas perguntas, e novas, e novas, e novas, até termos a certeza de que o que estamos dizendo reflete, não apenas um jogo de conceitos em nossa mente, não apenas um arranjo inteligente de convenções científicas, mas a exigência interna da própria realidade. Por isso é preciso ter calma e paciência.) No presente momento, quando estamos examinando a dúvida cartesiana, estamos, de certo modo, colocando-nos no estado da dúvida cartesiana e ao mesmo tempo examinando-a. Ora, se chego a uma conclusão, o que foi que fiz? Saí fora da dúvida e o meu objeto de reflexão (a dúvida mesma) foi embora. Essa é a tendência natural do pensamento humano: mudar de assunto o mais rápido possível. E isto logicamente funciona na vida prática, por exemplo, se estamos guiando um carro, há um número de dados e de informações que vêm de fora e temos de saltar de um ao outro rapidamente, porque se ficarmos pensando no carro que cruzou a rua lá adiante, vem um outro e colide com o nosso. O procedimento de investigação, seja em ciências, seja em filosofia, é exatamente o contrário. E nas artes acontece a mesma coisa, a minúcia aí tem a mesma importância, porque na arte a meticulosidade em cada detalhe e na relação de cada detalhe com o conjunto é também o segredo do sucesso. (6) Esse é o segredo em filosofia, em ciências ou em artes, é a mesma coisa. Na vida prática -- considerando a vida prática já não num sentido imediato e físico, mas naquela parte de vida prática que implica um comando e um planejamento, ou seja, no mundo estratégico ou empresarial, por exemplo --, também é a mesma coisa. Napoleão dizia que era preciso ter o melhor plano de batalha e, ao mesmo tempo, pensar em cada parafuso de cada canhão, senão

alguma coisa falharia. Aqui também é a mesma coisa, vale a pena gastar tempo, porque quando abandonarmos esse problema e passarmos para outro, o primeiro terá sido liquidado definitivamente. 8. Reflexão completa e dúvida cartesiana Qual é, então, a dificuldade do estranhar que se conhece, na hora em que se conhece? A dificuldade é precisamente que não estamos aqui fazendo uma reflexão comum. A reflexão comum seria composta de objeto, sujeito, ato, consciência do ato e consciência da validade do ato. O meu falecido mestre, o Prof. Stanislaw Ladusãns, chamava a isso a reflexão completa, e este é o fundamento, por assim dizer, da credibilidade do conhecimento, ou seja, a reflexão completa refaz tudo, e eu acrescento que, enquanto fazemos isto não estamos nos desidentificando do conhecimento, mas, ao contrário, o estamos assumindo cada vez mais. Porém, o estranhamento cartesiano não é isto; ele desassume o conhecimento. Parece impossível, e no entanto, fazemos isso, Descartes fez isso e nós também podemos fazer isso. Parece, então, que a coisa ficou mais esquisita ainda. Na reflexão comum, ou na reflexão completa, o que acontece? Se tomamos o ato de conhecimento como aquele ato pelo qual a atenção ilumina um determinado objeto, então, olho para este objeto e, de certo modo, a atenção o destaca dos outros e o ilumina. Na reflexão, o que faço? Além de manter este objeto aqui iluminado, eu ainda ilumino o cenário, mas eu não apaguei a luz que nos ilumina a todos: a mim, ao objeto e ao cenário. Mas, se euestranho o ato, se me coloco fora dele, se não o assumo, eu não estou iluminando o ato, estou negando-o. Eu o nego e o olho ao mesmo tempo. Então, de onde eu o olho? Eu me coloquei fora da zona iluminada e o estou olhando desde as trevas. Mas acontece que, como o fator iluminante era eu mesmo, como era a minha própria atenção que iluminava o objeto, como é que posso retirar-me para as trevas e continuar ao mesmo tempo vendo o objeto e o ato? Sempre que eu for para as trevas e eu prestar atenção ao que eu fiz, estarei reiluminando tudo novamente. Mas se eu ilumino de novo, então digo: eu sei que sei, o que significa que volto à reflexão comum e não fa;o dúvida cartesiana nenhuma. Parece que não existe escapatória disso, ou seja, eu não posso prestar atenção numa coisa e dizer que não a estou vendo, pelo menos não ao mesmo tempo. E, no entanto, é isto o que faz a dúvida metódica; ela, de fato, acontece, e ela, de fato, é impossível. Então, se ela era esquisita, agora ela ficou diabolicamenteesquisita. Então, voltamos à reflexão completa do Pe. Ladusãns. Ora, mas com isso provamos que a dúvida cartesiana é impossível e não obstante ela aconteceu. Parece que temos um problema terrificante na mão, ele já era complicado e no começo da nossa investigação a dúvida cartesiana parecia esquisita, mas agora ela parece impossível. "Se sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei", era a fórmula imortal do Pe. Ladusãns, a fórmula do conhecimento reflexivo. Só que, a cada vez que eu fizer novamente essa reflexão, terei reafirmado todo o trajeto. Segundo a técnica que me foi ensinada pelo Padre Ladusãns, que foi um discípulo de Husserl, a reflexão reafirma o

ato de conhecimento e o aprofunda, mas se o reafirma, então, não pode haver desidentificação dele por um instante sequer, ao contrário: agarramo-nos a ele. É como se você estivesse apaixonado e pensando em casar; aí você experimenta desidentificar-se mentalmente da sua noiva para ver se sem ela não estaria melhor. Mas no instante em que pensa isto, já sente tristeza. Então acaba casando. No amor, este último capítulo é evitável. Você pode, no último instante, desistir, mas aqui não é bem isso o que acontece; aqui, tentamos pular fora, mas, quanto mais pulamos fora, mais estamos dentro. Mas, se é assim, como é que acontece a tal da dúvida cartesiana, que é a desidentificação? Isso quer dizer que a dúvida cartesiana tem uma estrutura impossível, apesar de ela acontecer. Mas isto, de fato, só complica o nosso problema: tentamos desidentificar-nos do nosso eu cognoscente, mas, de fato, não pudemos fazer isso. "Ser homem é conhecer": tentamos deixar de sê-lo por um instante, mas foi em vão. Mais compulsiva que a natureza má, que nos impele de vez em quando a repetir os mesmos erros, parece ser a natureza boa, que nos devolve insistentemente o poder do qual abdicamos. Ou seja, tentamos pular fora da verdade e não conseguimos. Queríamos ser esquisitos, mas não conseguimos tornar-nos senão o bom e velho homem natural de Aristóteles, cuja natureza era conhecer. Entre o homem natural e o homem filosófico que reflete não há uma diferença de natureza, há uma diferença apenas de intensidade. O homem natural é aquele que conhece, o homem filosófico é aquele que, através da reflexão, reconhece que conhece. Mas, se é assim, por que foi que quisemos entrar nessa experiência falhada? E de onde, pelo amor de Deus, de onde tiramos a hipótese de ir para as trevas para enxergar a luz, se nada, nem na nossa experiência natural, nem nas doutrinas dos antigos filósofos, deixava entrever essa possibilidade que por fim constatamos mesmo não existir? Por que quisemos tentar isso? Para arriscar-se nessa experiência, insisto, é preciso uma força -- a força de opor-se à natureza, de rejeitar os seus dons, ainda que para ter de curvar-se a ela no fim e recebêlos todos de volta. Por que e com que força os filósofos modernos, a começar por Descartes, julgaram poder, mediante uma operação tão manifestamente condenada a se suprimir a si mesma, encontrar um fundamento mais sólido para o conhecimento humano? A dúvida suprime-se a si mesma porque se transforma em reflexão completa. Mas se é assim, por que é que quisemos a dúvida? Não poderíamos simplesmente ter feito a reflexão completa? Por que Descartes não fez simplesmente isso, como o velho Aristóteles fazia? Existe aí a interferência de um outro elemento, totalmente estranho, parece, ao impulso natural de conhecer. É claro que às vezes a natureza se contraria a si mesma, porque ela tem impulsos contraditórios, mas ela se contraria a si mesma dentro da naturalidade dos dois impulsos: temos o impulso da raiva, mas temos o da piedade

também. Porém, neste caso estamos falando de um impulso que não apenas não é natural, mas que não pode ser atendido por modos naturais. O desejo de conhecer, já vimos, não explica isso, porque o natural não explica o antinatural. Temos de buscar a explicação, parece, nesse anti. Que é que, no homem, se opõe à natureza, ao desejo de conhecer? Aqui está o ponto crucial de toda esta trajetória: este estranhamento total não pode ser realizado apenas por desejo de conhecer, porque o desejo de conhecer impele à reflexão natural e não à negação total. No entanto, a negação total existe, e precisa apoiar-se numa força suficiente para deter a natureza. Ora, se se trata de uma detenção, ou de uma desidentificação do ato de conhecer, e se isso não pode ser explicado pela própria dinâmica do ato de conhecer, então, é porque ele é um impulso oposto ao ato de conhecer. Assim como na vida pode haver um desejo de viver e um desejo de morrer, também existe um desejo de conhecer e um desejo de não conhecer. Esta é a primeira conclusão positiva a que chegamos. Deve haver um outro impulso, que não tem nada que ver com o desejo de conhecer, no qual se apóia a possibilidade da dúvida metódica. 9. O mergulho no fundo do poço Se acompanharmos o raciocínio inteiro de Descartes, veremos que ele chega a uma determinada certeza, que é a certeza do eu pensante: "se eu estou duvidando, duvidar é pensar, e se eu estou pensando, eu não posso na mesma hora duvidar que penso". Isso para ele é a primeira certeza. No § I, demonstrei que isto também não é uma certeza, mas Descartes achou que era. A primeira certeza positiva a que ele chega é a do eu pensante. Haveria uma diferença entre esse raciocínio de Descartes e o de Husserl? Não. Husserl só o aprofunda, ele torna isso mais preciso, e mais trágico no fim das contas. O filósofo polonês Kolakowski demonstra eficazmente que o método husserliano, por maravilhoso que seja, não responde à pergunta que coloca. (7) Vamos observar a mesma coisa agora já em Descartes, porque, uma vez colocada a dúvida metódica, e feito todo o exame, ele chega a um primeiro resultado positivo, que é a existência do eu -- uma certeza absolutamente inabalável para Descartes --, porém, como poderíamos deduzir desta única certeza os demais conhecimentos que, não obstante, sabemos que são certos, como os conhecimentos científicos, matemáticos etc.? Resposta: não podemos. O eu solipsista, por definição, não tem pontes para fora de si mesmo. Descartes entrou na dúvida metódica dizendo que seu objetivo era reconstruir o mundo das ciências, o mundo do saber, em bases mais sólidas. Ora, a primeira base que ele encontra é a certeza do eu. Só que essa certeza não é suficiente para deduzir daí o mundo, a ciência física, a história, etc. Chegamos à certeza do eu e vemos que só há esta certeza, mais nada. Não há mais ciência. Só há a certeza do eu. Então, esse resultado não contenta Descartes. Como é que ele sai disso? Ele apela para Deus dizendo: "Ora, eu tenho a idéia de vários conhecimentos; conheço geometria, conheço história, conheço religião, conheço a existência do mundo, tenho informações que me chegam pelos sentidos, conheço mais isso, mais aquilo etc.. Quem colocou todas essas informações em mim não fui eu mesmo, foi alguém de fora. Foi Deus. Ora, Deus não

iria enganar-me dessa maneira, seria uma covardia e Deus não iria fazer isso comigo. Portanto, como Deus é bom, concluímos que todos esses conhecimentos devem ser válidos." Ora, isto significa que ele adotou um método para dar um fundamento mais sólido aos conhecimentos e que, no momento decisivo, ele acabou achando um fundamento que não tem nada a ver com o método, um fundamento completamente diferente daquele que foi prometido no início. Isso significa que alguma coisa do método ele obteve, mas não obteve o que queria. Obteve infinitamente menos. E para sair da armadilha que ele próprio montou ele teve de apelar não apenas a um conhecimento comum, mas à fé religiosa. Ora, para quem começou duvidando de tudo e afirmando o primado absoluto da razão e da dúvida, isso é um anticlímax. Descartes, armado de confiança na razão humana, chega ao fundo do poço e pede socorro a Deus. Então, algo falhou. Esse algo nos mostra que efetivamente o método da dúvida cartesiana não tem saída para fora da dúvida, e que a reconstrução cartesiana do conhecimento, que é a segunda parte do método, o famoso racionalismo cartesiano fundador de ciências, não tem nada a ver com a primeira, com a dúvida metódica. A segunda parte tem um fundamento que se chama Deus, o qual não tinha entrado na história até então. Ora, pelo resultado a que ele levou, que é um resultado negativo, entendemos que esse método fica ainda mais esquisito. Ele é antinatural, não tem nada a ver com a reflexão sobre o conhecimento, não pode ser explicado pelo desejo de conhecimento e, pior ainda, não funciona. Então, por que o sujeito quis entrar nisso? Mais ainda, se fosse só ele que entrou, poderíamos saltar fora da questão, alegando: ―É um maluco.‖ Mas não foi só ele. Foi todo o ciclo da filosofia moderna, culminando em Husserl. Ora, se o método tem todos esses defeitos – se ele é antinatural, não é uma reflexão, dói e não funciona --, e se, no entanto, não apenas quase todos os filósofos o adotaram mas um deles chegou a dizer que ele é o começo obrigatório de toda a filosofia, temos, então, agora não apenas um problema filosófico mas um problema histórico dos mais graves; um problema que compromete toda a civilização moderna. Entre Descartes e Husserl houve muitas tentativas filosóficas de sair da armadilha montada pela dúvida metódica sem apelar a Deus. Devia haver um meio racional e científico de se sair disso, acreditava-se. Todas essas tentativas falharam e, finalmente, também a de Husserl. Eu tenho uma grande admiração por Husserl, que era um grande filósofo e um homem honestíssimo – mas o fato é que depois de cinqüenta anos de esforço de Edmund Husserl, Kolakowski em oitenta páginas acaba com tudo e diz: "Não funciona". Não funciona pela mesma razão pela qual, em Descartes, já não funcionava. Quer dizer: em ambos os casos o sujeito monta a armadilha, entra dentro dela, joga a chave fora e depois pede socorro: "Deus, tire-me daqui". Que a humanidade inteira pudesse ter entrado nisso, que alguns dos melhores cérebros da humanidade – e pessoas inteiramente honestas, porque Husserl é o supra-sumo da integridade intelectual – entrassem nisso nos parece agora muito mais esquisito ainda.

Então, temos de retomar a investigação do ―Como é possível?‖ Só que, neste momento, temos plena consciência do beco sem saída que é o método cartesiano. Como foi possível entrarmos nesse buraco? E já vimos que não pode ter sido um impulso natural. Então, analisemos um pouco como é que funciona o impulso natural para ver os elementos contraditórios que possam existir nele e que possam servir de porta de entrada para algo que é anti-natural. Vamos partir de um exemplo mais simples. Um lobo alimenta-se de carne. É natural, então, que procure um bicho para comer -- uma ovelha, um coelho ou coisa assim. Alimentar-se desses bichos, compor com as proteínas deles seu sangue e seus músculos, crescer e mover-se às custas deles está na natureza do lobo. Não é, portanto, natural que ele deixe de comer esses bichos. Mas, se for privado desse tipo de alimentos, ele perde energia, passa a economizar movimentos e por fim definha e morre. Imaginem que pegamos um lobo, o prendemos numa jaula e só lhe damos bananas para comer. Mesmo que ele aceite esse humilhação de viver de bananas, ele vai definhar. Por natureza, por si mesmo ele jamais deixará de comer outros bichos para preferir bananas. Lobo vegetariano não existe, mas se por algum fator alheio à sua natureza ele ficar privado desses alimentos, de onde virá o decreto de que em tais circunstâncias ele deve definhar e morrer? Virá da sua natureza mesma, que não suporta a vida senão em condições que sejam propícias ao exercício dos dons naturais do lobo. Então, a natureza do lobo contém não apenas o mandamento referente às coisas que ele vai fazer, mas já contém esse programa alternativoque decretará o seu definhamento e a sua morte no caso de essa mesma natureza ser contrariada. Isso faz parte da própria natureza, quer dizer, a natureza tem não só o decreto positivo, mas o negativo também. Nesse sentido, a patologia está prevista na fisiologia, quer dizer: o órgão funciona de tal ou qual maneira, mas, se ele for agredido, ele funcionará de outra maneira. A natureza prescreve não apenas o que um animal vai fazer em vida, mas em quais condições ele estará condenado a morrer. Não digo que em tais condições o lobo "quererá" morrer, a não ser que o verbo querer, aqui, tenha um sentido diverso daquele que tinha quando o lobo "queria" comer uma ovelha ou, cheio de carne de ovelha na barriga, "queria" brincar com os outros membros da alcatéia para expelir a energia sobrante. Nós privamos o lobo da sua comida específica e aí ele começa a definhar e dizemos que ele "quer morrer". Porém, o verbo querer aqui tem um sentido diferente. Não é que ele "queira" morrer no mesmo sentido em que ele "queria" comer um coelho. É um querer diferente, é um querer negativo, que Miguel de Unamuno chamava, para contrastar comvoluntad, de noluntad. O certo é que, passado um certo limite de privação, o lobo "não quererá" mais viver, ou "se deixará" morrer. Esse querer negativo recebe, entre os humanos, o nome de má vontade. Má vontade é não querer fazer algo que seria bom fazer. Se as circunstâncias nos impedem repetidamente de realizar nossa vontade positiva, acabamos por desenvolver uma vontade ao contrário, uma má vontade. Vingamo-nos em nós mesmos de um mal que nos foi infligido de fora. Num filme de Woody Allen (Um Assaltante Bem Trapalhão) havia um menino todo franzino e azarado, que usava óculos. Quando ele ia para a escola, os outros pegavam os

óculos dele e quebravam. Até que um dia ele está indo para a escola, vem aquele bando de garotos para quebrar os óculos dele e – o que é que ele faz? Ele mesmo tira os óculos e quebra. Ou seja, ele já entrou nesse ciclo negativo. Isto nos acontece: é um masoquismo preventivo. É como, por exemplo, aquela menina que teve um namorado, o namorado a largou, e então ela diz: "Agora eu não namoro mais ninguém." O que é que é isto? É a má vontade, a inversão do querer, que está prevista, como programa alternativo, na própria estrutura do querer. De modo análogo, o organismo do lobo, privado daquilo que lhe dava vontade de viver, entra numa espécie de má vontade e conspira contra si mesmo para morrer. No fim já será inútil oferecer-lhe um coelho, uma ovelha. Ele já não quer mais comer, ele está marcado com o signo da morte e o curso do seu destino já não pode mais ser mudado. Ora, esta inversão do impulso natural nas situações em que ele já não pode se manifestar é tão "natural" quanto o impulso mesmo. Suponhamos que um lobo jovem e bem alimentado pudesse imaginar, com anos de antecedência, essa temível situação. Um pouco da sua morte já entraria antecipadamente no seu horizonte de experiência vital. E, se ele imaginasse que num futuro próximo, por uma razão qualquer, a privação de alimento seria fatal e inelutável, ele começaria a definhar nesse mesmo instante, de medo, preocupação e tristeza. Algo desse sofrimento futuro já se tornaria presente em imaginação. Ora, quantas vezes nós mesmos – todos temos essa experiência – nos privamos de algo por medo de fracassar ou por medo de perder coisas que nunca tivemos? Ou seja, entramos nessa atitude não somente por experiências dolorosas que tivemos, mas por experiências possíveis que não tivemos, mas que prevemos pela imaginação. Isso o lobo não faz. Mas, se ele fizesse, a idéia de ter de comer só bananas começaria a matá-lo nesse mesmo instante. Felizmente, os lobos só se preocupam com a alimentação diária e não cogitam de problemas a longo prazo. O homem, ao contrário, é inclinado a esse tipo de cogitações, e por isto mesmo se distingue por sua capacidade de sofrer, em imaginação, males que ainda não se apresentaram e talvez não se apresentem nunca. É coisa de experiência comum o fato de termos, às vezes, a antevisão de um mal possível que nos abate mais do que esse próprio mal realizado. Ora, se é natural no homem desejar conhecer, é também natural que, privado da possibilidade de conhecer, ele sofra. A mais elementar forma de conhecimento é a estimulação sensorial. Experimentos científicos recentes demonstraram que a privação de estímulos sensoriais externos leva um homem ao desespero ao fim de umas poucas horas. Podemos suportar a privação de alimento por mais ou menos quarenta dias, a privação de sono por quatro dias, mas não podemos ficar sem estimulação sensorial por um dia sequer. 10. Solução do enigma Isto quer dizer que, no caso do método de Descartes, estamos falando de um experimento de privação feito imaginariamente. Que é a dúvida metódica? É um

experimento de privação vivido imaginariamente. Privação de quê? Não podemos dizer que é privação de conhecimento, porque o ato de conhecimento está lá, mas privação do reconhecimento desse conhecimento, privação da identidade entre o eu pensante e o eu cognoscente. É como se eu estivesse me olhando conhecer, mas este que olha não reconhece aquilo que esse mesmo eu conhece na mesma hora. Ora, que não existe situação de sofrimento intelectual mais intenso do que essa. Porque eu me olho a mim mesmo, mas eu não sou eu mesmo. Podemos chamar isso de esquizofrenia? Não, porque o esquizofrênico, na hora em que está pensando, se identifica com aquilo que ele está pensando. Depois ele imagina que se transformou em outro, é claro, e diz: "Não fui eu." Mas na hora do ato de conhecimento, ele não estranha esse ato de conhecimento ao ponto de dizer que não é ele. Ele pode fazer isso logo depois, mas na hora, não. Ora, e se eu estivesse olhando a minha própria consciência e ao mesmo tempo não tivesse consciência dos conteúdos que essa mesma consciência está conscientizando naquele mesmo momento? Essa situação não é humanamente vivível. Ela é apenas imaginável... e temível, mesmo sendo apenas imaginável. Essa experiência, na verdade, é o que no plano imaginário mais se aproxima daquilo que em teologia se chama "a morte da alma". Isso não é um experimento de ignorância, de ignorância comum, não é um experimento de privação de certos conhecimentos, mas um experimento de privação de identidade com o eu que conhece. Esta alma existe, esta consciência existe, mas ela já não é mais sua. Não encontramos isto em parte alguma da experiência humana. Portanto, não pode ser por ter vivido essa experiência humana que Descartes tenta imaginá-la -- porque ela não é vivível, só é imaginável. E ela tem um nome em teologia, o que significa que é um experimento que não se refere a este mundo, mas que se refere ao inferno. O psicótico ou o esquizofrênico experimenta isso, de certo modo, ao dizer: "Eu não sou eu, eu não estou aqui, eu sou um outro"? Sim, ele pode dizer isso, mas não pode realizá-lo conscientemente. Ele diz isto, mas não está efetivamente vivenciando-o, isto é um detalhe fundamental, porque a identidade física dele torna impossível essa vivência como vivência real. Então, dizemos que, na hora em que ele está dizendo isso, ele não se lembra dele mesmo; ele não é ele mesmo, mas ele é aquele que está falando. No caso de Descartes, não. É no mesmo ato que a consciência se afirma e se nega: "Eu não sou este que está dizendo isto, e também não sou um terceiro." Isto não é um experimento psicológico. Psicologicamente isto não existe, nem na esquizofrenia. É o experimento imaginário de uma situação humanamente impossível. Ora, o método da dúvida metódica é um método para se precaver contra algo, que Descartes diz ser o erro, a possibilidade do erro, mas vemos que ele se está precavendo contra algo muito mais grave do que o erro; e está se precavendo pelo famoso método da autovacina: ele quer inocular-se um pouco desse estado para homeopaticamente neutralizá-lo. Mas de onde ele tirou o temor da possibilidade desse estado? Da experiência humana cognitiva comum não foi, pois nela esse estado não existe. Ele só é mencionado em teologia, em religião, é somente aí que Descartes pode ter ouvido falar disto, e em nenhum outro lugar. Portanto, o método cartesiano é uma tentativa desesperada de o sujeito se precaver contra a "morte da alma" mediante uma morte imaginária que imaginariamente neutralize essa possibilidade.

Neste momento, a questão parece ter ficado mais compreensível. Descartes antevia esse estado infernal e tenta defender-se dele por meios humanos, através do uso da reflexão. Não consegue, porque ou ele cai na reflexão completa ou volta para a dúvida paralisante. Então, o que é que ele faz? Quem é que nos tira do inferno? Deus. Ele apela a Deus. Então, era um problema teológico e teve uma solução teológica. Não é um problema filosófico e não tem solução filosófica. Se tentarmos equacionar isso em termos psicológicos, chegamos a contradições incríveis. Psicologicamente, é uma contradição, é uma absurdidade, algo que não acontece no mundo real. É algo que só pode ser imaginado numa situação extrema e não-humana a qual chamamos de situação infernal. E por isto mesmo é que se chama a morte da alma. Ora, precisemos mais um pouco o que seria essa morte da alma. O cristianismo não é muito explícito quanto a isto, e nem nos fornece muitas imagens a respeito. Mas nas doutrinas hindus e em algumas ocidentais muito antigas encontramos a idéia da metempsicose. Que é metempsicose? O sujeito morre e reencarna num outro tipo de ser, reencarna como lagartixa, como barata, como hipopótamo. Mas evidentemente nem todos os hipopótamos, lagartixas e mosquitos são reencarnações de pessoas. Existem mosquitos normais, que nasceram como mosquitos, e há outros que não são apenas mosquitos, mas são ex-pessoas. Ora, isto evidentemente é uma imagem, é uma metáfora para designar um estado inferior. Inferior, ínfero ou infernal é a mesma coisa, quer dizer, há um rebaixamento do estatuto ontológico do ser, ele émenos existente do que ele era antes. É por isso que isto não pode ser explicado psicologicamente porque, psicologicamente não temos o dom de inexistir ou de existir menos. Qualquer coisa que se passe em nossa psique pressupõe nossa existência tal e como ela está aqui agora, e até para ficarmos malucos, ou esquizofrênicos, precisamos existir e estar aqui. Mas aqui se trata não de um estado psicológico, e sim de um estado ontológico no qual nossa existência diminui, no qual ela é menos intensa, no qual existimos menos, no qual nos tornamos duvidosos, evanescentes. Então, o sujeito que se reencarnou como mosquito não é propriamente real enquanto mosquito, porque algo de homem ele ainda tem, que sobrou da existência anterior. Ora, o que é que ele tem de homem? Ele tem todas as diferenças entre mosquito e homem. Foi isto que sobrou nele de homem. Sua hominidade residual consiste em tudo o que separa o mosquito do homem. Tudo o que um homem pode fazer e que um mosquito não pode fazer ele conserva-se nele como informação de carência, e é por isso que a condição de mosquito é uma condenação para ele. Ele não tem somente as potências do mosquito, tem todas as impotências que o separam do poder humano. Essa descrição é uma figura de linguagem, uma imagem, evidentemente, uma imagem até contraditória, mas é difícil conceber um sofrimento maior do que esse. Em Dante, na porta do inferno, há um demônio que tem linguagem mas não sabe falar em língua humana. Podemos imaginar isso de outras maneiras, por exemplo, podermos entender tudo o que estão dizendo, mas não podermos responder, entendemos a língua

que os outros falam, mas tudo o que falarmos eles não entenderão. É uma imagem do inferno, e esta imagem é a de uma separação inconcebível. Na religião grega não havia Céu, todo mundo ia para o inferno. Só os heróis viravam semi-deuses e subiam ao céu; eram pessoas especiais. Mas geralmente as pessoas iam para o inferno. Nesse inferno havia uma forma de existência diminuída, uma existência fantasmática, de sombra. (8) Podemos imaginar a morte da alma sob milhões de formas; todas essas imagens são falhas. O que elas têm em comum é que elas descrevem uma coisa que é humanamente irrealizável, impossível nesta vida e terrivelmente má. Então, entendemos que o problema sobre o qual René Descartes se debruçava, no fim das contas, poderia equacionar-se assim: "Como eu posso, por meios racionais e humanos, sem a ajuda de Deus ou da religião, precaver-me contra a morte da alma?" É este o verdadeiro problema de Descartes. E é por isso que o método falha, porque isso não é um problema filosófico, isso é um problema real, é um problema concreto, o que é o mesmo que dizer: um problema teológico – pois a religião não se constitui de conceitos e doutrinas, mas de realidades. Não há solução da dúvida metódica porque ela coloca um problema religioso e tenta resolvê-lo por meios puramente filosóficos; coloca um problema existencial, real, e tenta resolvê-lo por meios puramente conceptuais. Assim, a solução da nossa pergunta mostra que a dúvida metódica é possível porque é possível conceber a morte da alma, mas ao mesmo tempo a dúvida metódica não pode funcionar como método filosófico porque não existe nenhum esquema pensante que possa prevenir a morte da alma, que possa defender-nos da morte da alma. Tem de haver, para isso, um algo a mais, porque a morte da alma é um fator extra-humano, (9) e, então, o ser humano evidentemente não vai poder abarcá-la com os seus instrumentos, e quem quer que entre nisso, ou vai cair na mão do diabo ou vai pedir socorro a Deus. Os que dizem que não fazem isto, como Husserl, no fundo estão se enganando a si mesmos. E este foi o grande drama de Edmund Husserl, porque ele tentou até o fim. Ele acreditava que a ciência, o saber, tinha um elemento interno sacro. Talvez até tenha, só que, então, não é o saber humano, é o saber divino que tem de ser colocado em nós como sabedoria infusa. E o método fenomenológico talvez possa produzir um acesso a esse conhecimento, mas enquanto método ascético, não apenas enquanto modelo conceptual. Ele pode nos defender, talvez, contra a morte da alma, porque, sendo um método ascético, ele nos fortalece espiritualmente. Mas esta defesa só pode se dar pela sua forma, não pelo seu conteúdo; o conteúdo filosófico não interessa. Se métodos ascéticos funcionam, isso acontece por motivos teológicos que não nos interessa investigar agora. Mas eles só podem funcionar se considerados enquanto métodos ascéticos, não enquanto puros métodos filosóficos. E se podem funcionar enquanto métodos ascéticos, então, a questão de funcionar ou não vai depender de potências supra-humanas as quais não controlamos. Porque nenhum método ascético do mundo tem funcionamento garantido, não podemos dizer que existe aqui ou ali uma

fórmula infalível pela qual, por exemplo, você chama os anjos e eles são obrigados a vir. Isso não existe. Pode chamá-los, fazer tudo direitinho, e chega na hora o anjo diz: "Não, não vou". Por quê? Porque existe o livre arbítrio de Deus, ora! Então, se Descartes cria a dúvida metódica, não é só para fundamentar o conhecimento científico, mas ele o faz na esperança de defender a alma humana, por meios filosóficos, contra a morte da alma e, portanto, contra o demônio. E ele fracassa exatamente porque a luta aí é desproporcional. Agora, aqui é que temos de nos perguntar: "Mas como que, durante três séculos, a filosofia insiste neste mesmo caminho, que é tão obviamente inviável?" Ela insiste, primeiro, porque ninguém percebeu que é um problema teológico, segundo, porque se alguém percebeu que é um problema teológico, ainda assim tinha a tentação de que, por meios racionais e humanos, pudesse dominar a situação, pudesse provar de certo modo que, sem a ajuda de Deus, poderia ser mais poderoso do que o demônio. Mas se entramos nesse esquema de disputar poder com o demônio e no mesmo instante o meio que usamos consiste em nos entregarmos ao demônio -- ou seja, eu me exponho à morte da alma para provar que o demônio não me mata --, aí já entramos numa armadilha sem saída, porque a única saída é aquela que Descartes encontrou: Deus. Não deixa de ser interessante saber que Edmund Husserl, embora jamais falasse sobre isso, era um homem crente, era um judeu convertido ao protestantismo, rezava todo dia, lia a Bíblia, e é por isso que ele agüentava essa brincadeira fenomenológica. Se não, não teria agüentado. Descartes também era crente, era um carola, e é por isso mesmo que agüentou brincar de dúvida metódica sem ficar maluco. Por quê? Porque ele talvez soubesse que no fundo sempre restava um Deus ao qual ele poderia pedir socorro no momento decisivo, e deste Deus ele nunca duvidou um só instante. Ou seja, o ciclo moderno, tão aparentemente irreligioso, todo ele se fundamenta num problema teológico que só encontra solução teológica, e todo ele se constrói por um método lógico que, excluída a referência a Deus, se torna ilógico no mesmo instante. Esta análise, pelo que sei, nunca foi feita antes. E depois de tudo explicado, é o caso de perguntarmos: "Mas como não perceberam antes?" Se tivessem percebido já teriam parado com essa brincadeira antes, e entenderiam que a dúvida metódica não é o caminho da filosofia racional. O caminho é o contrário. O caminho é o da reflexão completa, que não nega o conhecimento – nem hipoteticamente –, mas o reafirma. É aquele que aprofunda o conhecimento, assumindo que tem conhecimento: Eu sei, e eu sei que sei; e se eu sei que sei, eu sei que sei que sei; e assim sucessivamente. A cada nova conjunção que que pusermos aqui, estaremos assumindo mais ainda o conhecimento. Este é o método que denomino: "Método da crença metódica"; ou seja, trata-se de acreditar naquilo que sabemos, partindo de coisas simples que sabemos, como por exemplo: eu sei que eu estou aqui, eu sei que eu vim aqui por um motivo, eu sei que eu estou falando português, eu sei que foi alguém que me ensinou português etc. E assim chegamos a descobertas fantásticas. Por exemplo (e isto foi Eugen Rosenstock quem ressaltou), eu sei que eu tenho um eu. Mas como é que eu sei que eu tenho um eu? Antes de eu me chamar a mim mesmo de "eu", alguém me chamou por algum nome.

Então, de certo modo esse eu só despertou em mim na hora em que me chamaram. Se ninguém fala comigo, esse eu vai ficar lá guardado, e eu nunca vou saber que o tenho. Portanto, seria um eu em potência apenas. Então, longe de o eu poder ser o fundamento do conhecimento, ele, pelo simples fato de poder pronunciar-se, exige um outro. Geralmente é nossa mãe a primeira pessoa que fala conosco, isto também nos indica que o nome pessoal pelo qual nos chamam é um dos fundamentos da nossa condição humana, e que o simples fato de termos um nome, de sermos chamados por ele, nos abre possibilidades que estão infinitamente acima das possibilidades naturais. Porque somos um eu e porque temos um nome, podemos ter história, podemos ter linguagem, podemos ampliar nosso círculo de concepção infinitamente além da duração da nossa vida biológica e infinitamente além do espaço físico que ocupamos. Por isso o nome é uma coisa sagrada, por isso há o batismo, e por isso dar um nome é uma coisa séria. E é por isso também que o nome pode ser uma profecia, e vemos tantas e tantas vezes pessoas terem um destino que é o seu nome. Mas só percebemos isso na hora em que o sujeito morre, vemos a sua vida inteira e dizemos: "A vida dele foi exatamente o seu nome".Nomen est omen, ―nome é profecia‖. Um dia fazemos essa experiência. Como é que isso acontece? Isso acontece porque lhe foi dado um nome, e esse nome, de certo modo, é uma definição do que esperam dele, esse nome é uma cobrança. E é por causa desse nome que temos um eu; então, ter um eu é uma honra insigne, é o que dizia Buda: "Um nascimento humano é uma grande honra.‖ Você poderia ter nascido como mosquito, como barata, como lagartixa, como pedra, mas nasceu como humano; então, tem direito a um nome e tem direito a um destino, tem direito a um futuro. E tem até direito a questionar tudo isso. A conclusão final disto tudo é que o problema central do cartesianismo é um problema teológico que se ignora a si mesmo. Não pode ter solução pelo método cartesiano porque, por definição, um problema teológico que se refere a um destino post mortem deste indivíduo concreto em particular não pode ter solução filosófica geral, e quem quer que se coloque este problema do fundamento absoluto do conhecimento, ou vai ter de procurar esse fundamento na intensificação do conhecimento ou, então, se for procurá-lo na negação e na dúvida metódica, vai chegar a um ponto em que vai ter de desistir e pedir socorro a Deus. Com isto encerramos o nosso estudo do cartesianismo. Na história da filosofia há muitos filósofos que escaparam desse problema, como, por exemplo, Hegel, que instintivamente percebeu que a dúvida metódica era um buraco sem fundo e fugiu dela. Mas isto também quer dizer que ele não entendeu o problema, ele só viu a encrenca de longe e não quis saber dela. Ora, mas isso também não é legítimo, porque quando Hegel começa a pensar já havia dois séculos de cartesianismo nas suas costas, então não é legítimo ele simplesmente desprezar o problema. Não se pode superar um filósofo ignorando o que ele disse, é preciso enfrentar-nos com ele de algum modo. E Hegel simplesmente diz que vai mudar de assunto, e muda. O que é que acontece com ele? O principal seguidor dele, que é Marx, muda de assunto de novo! Hegel diz: "Aqui vamos descrever toda a dialética com a qual o espírito se transforma em realidade histórica

etc." Isso é verdadeiro ou falso? Marx diz: "Não interessa, o que interessa aplicar esse esquema à luta de classes e fazer a revolução socialista." E a partir daí só se estudou Hegel nessa perspectiva. Assim, tudo o que Hegel disse foi anulado pelo simples fato de ele ter anulado a filosofia que recebeu como legado das gerações anteriores. Não há começo novo em filosofia, não há começo novo em nada, ninguém começa nada do zero. Será que a mesma crítica não poderia ser feita a Descartes? Certamente. Ninguém consegue começar a vida do zero. Começo do zero, apago tudo, ou seja, já não sou responsável pelo meu passado, os atos cometidos não vão desencadear nenhuma conssqüência, não tenho mais credores, ninguém espera mais nada de mim -- ora, isso não existe! A verdadeira coragem não é recomeçar a vida do zero, isto é uma fuga, é uma covardia; começar tudo do zero significa que não estamos agüentando a situação e fugimos, mas, na verdade, esses problemas todos continuam pesando sobre o nosso destino. Então, começa uma falsa biografia. A verdadeira coragem está em assumir tudo, e periodicamente reconquistar nosso passado, dizendo que ele foi nosso mesmo: "Fi-lo porque qui-lo" -- para usar noutro contexto o solecismo humoristicamente atribuído ao ex-presidente Jânio Quadros -- é a base da moral e do autoconhecimento. 1. A rejeição generalizada da ―filosofia da consciência‖ não deve nos iludir. Uma rejeição não é necessariamente uma superação, e entre a tradição que vai de Descartes a Husserl e os desenvolvimentos posteriores de uma filosofia supostamente livre da ―prisão da consciência‖, o que se observa é uma assustadora queda de nível. A ―filosofia da consciência‖ tem de ser superada, sim, mas ainda não o foi, e este livro pretende indicar precisamente o único caminho possível de uma superação efetiva, não limitada a protestos e declarações de intenções. 2. Há um aspecto que não examinei ali, mas que tem sua importância. A pura e simples suspensão do juízo não pode ser identificada com a dúvida: ela é antes uma superação psicológica da dúvida mediante um distanciamento da pergunta. 3. Neste sentido: [...] Pelo el hombre vive de verdades; admitir cualquier verdad, por relativa que sea, es reconocer que Intellectus aedequatio rei; la mera afirmación ‗esto es esto‘, ya presupone el principio de la unidad de conocimineto y ser [...]. BURCKHARDT, Titus. Ciencia moderna y sabiduría tradicional. Madrid : Taurus, 1979, p. 102. (N.R.) 4. É claro que as palavras também nos resistem, mas sua resistência é mais sutil e só a sensibilidade literária treinada a percebe. Não seria errado dizer que a capacidade literária consiste, em última análise, em consciência das dificuldades que a linguagem opõe ao nosso intuito de usá-la para a auto-expressão, a descrição do mundo exterior e a ação sobre os demais seres humanos. Para o escritor, sua língua de expressão é um ente real, dotado de identidade e quase que de vontade própria, com o qual ele tem de entrar em acordo para que consinta em servi-lo. A língua, para o escritor, é uma realidade objetiva, distinta e às vezes hostil em relação aos estados interiores que ele quer expressar com ela, ao passo que no não-escritor, em geral (e ressalvadas as exceções

pessoais e profissionais), língua e estados interiores se confundem numa mescla nebulosa. 5. Não apelemos preguiçosamente, neste ponto, ao "eu transcendental" de que falariam Kant e Husserl. Primeiro, porque ele é apenas o ponto de observação mais privilegiado e mais poderosamente iluminante para o qual me retirei, sem sabê-lo, no instante em que imaginava recuar para as trevas. Segundo, porque a mesma operação que se fez com o eu cognoscente natural se pode repetir com o eu transcendental — e depois com quantos eus transcendentais se suponha existirem por cima dele —, sempre com o mesmo resultado. (N.A.) 6. Nas artes, há o exemplo do maestro romeno Celibidache, que foi o maior maestro do mundo. Escutar algo regido por ele dá-nos a impressão de que faltavam notas em todas as outras execuções. Celibidache, nos ensaios, estudava nota por nota e fazia com que seus músicos as tocassem inúmeras vezes, para se certificar de que estas notas estavam exatamente no lugar certo com a tonalidade certa. Foi alguém que, com toda essa meticulosidade, nunca quis ser famoso no show business, e que nunca permitiu que vendessem suas gravações, as quais eram feitas somente para fins de orientação dos alunos. (N.A.) 7. Leszek Kolakowski, Husserl et la Recherche de la Certitude, trad, Philibert Secretan, Lausanne, l‘Âge d‘Homme, 1991. 8. Comentando a Ilíada, quando o eídolon de Pátroclo, aparece em sonhos a Aquiles, e se esvai como vapor quando este último tenta abraçá-lo, Junito de Souza BRANDÃO, explica que: "[...] no Hades, a psiqué, o eidolon, é uma sombra, uma imagem pálida e inconsistente, abúlica, destituída de entendimento, sem prêmio nem castigo [...]". (Mitologia grega. 1996, v. 1, p. 146). (N.R.) 9. Sobre o mesmo assunto, em outro lugar, o autor comenta: "[...] A doutrina cristã diz que não podemos dizer que o inferno é somente um estado, é preciso aceitar que o inferno é uma região, um lugar. Mas em que sentido seria um lugar? É um lugar deste mundo? Não pode ser, pois quando se fala deste mundo, se está falando na Terra, um lugar do universo. Então, é um legar onde você não está de qualquer maneira, mas, sim em determinado estado. Se é um lugar, não pode ser no sentido espacial-terrestre. É um lugar em outro sentido, e se é um estado não é um estado no sentido terrestre, é um estado do qual não se pode sair. "Então, você foi remetido para o estado das possibilidades impossíveis e só pode existir como nostalgia de uma possibilidade perdida. Este é o maior sofrimento das almas do inferno, porque elas não mais verão a Deus. Acabou. Você se lembra do tempo em que podia ver, então, se lembra do tempo em que, sofrendo, tinha a esperança. Agora, você não tem mais a esperança, nem a recordação da esperança, mas tem uma ausência onde houve esperança, onde houve algo que você não lembra mais o que é, que se chama esperança. É uma dor infinita, algo que acontece fora da temporalidade, ou seja, você está no eternamente impossível. "Por isso se diz que 'o inferno é pior que o nada', pois se fosse o nada, não aconteceria

nada, mas acontece alguma coisa. No inferno, você quer ir para o nada, porque isso seria melhor. No inferno você quer morrer, no entanto, como é que uma possibilidade negativa pode morrer? Não pode. Essa possibilidade negativa é infra-existencial, de certa maneira [...]". (CARVALHO, Olavo de. Aulas referentes ao cap. V do livro Ancients beliefs and modern superstitions de Martin Lings. IAL, abr. 1999). (N.R.)

Idealidade e objeto Tema para desenvolvimento em classe no Seminário de Filosofia Olavo de Carvalho

A quase totalidade das pessoas que conheço – inclusive intelectuais de ofício – não tem a menor noção da diferença entre compreender uma idéia e compreender o seu enunciado verbal. Compreender um enunciado é saber a quais significados intencionais as palavras de uma sentença se referem e qual a relação lógica traduzida pelas relações gramaticais que a compõem. Compreender uma idéia é refazer os atos cognitivos que a produziram, tendo por ponto de orientação e comparação o seu mesmo objeto. Isso quer dizer que a compreensão nunca é um processo puramente imanente, que não há compreensão sem algum recurso à experiência e à memória da experiência. O que pode causar alguma confusão, aí, é que às vezes o objeto da idéia é, por sua vez, puramente ideal, e então o processo mesmo da compreensão parece esgotar-se em puro jogo formal, sem experiência nenhuma. Essa aparência é enganosa. O fato de um objeto ser puramente ideal não impede que o acesso mental a ele seja uma experiência real em sentido estrito, um fato psicológico tão real, tão ―material‖, quanto a percepção sensível de uma vaca ou de um muro. O puro jogo formal, a pura combinatória lógica de objetos ideais, caracteriza-se justamente por ser independente do processo psicológico real que lhe serve de suporte. Dois mais dois são quatro independentemente de você pensar isso com a imagem de quatro pauzinhos, quatro bolinhas ou quatro sinais algébricos. Já a compreensão de uma idéia não pode nunca ser um puro jogo formal, pois consiste essencialmente de um ato psíquico determinado, que é o de conceber essa idéia o mais exatamente possível, operação que pode falhar precisamente porque nela a separação entre o conteúdo eidético e os sinais não é tão nítida quanto numa operação meramente formal e, ademais, essa separação só pode ser realizada satisfatoriamente depois de compreendida a idéia (o que aliás vale até mesmo para o exemplo das bolinhas e pauzinhos, se a conta de dois mais dois é para você uma novidade). A mistura do elemento psicológico ao algoritmo lógico das operações é um traço distintivo no confronto entre experiência e formalismo. Este último pode ser reproduzido perfeitamente por um computador; aquela, só imperfeitamente e através de analogias impróprias.

Mas a diferença vai mais longe ainda que a simples ausência ou presença do elemento psicológico material. O que diferencia maximamente da experiência o jogo mental é que este obedece apenas ao movimento interno da sua própria regra combinatória imanente, sem que esse movimento seja travado ou limitado pelas exigências vindas ―de fora‖, isto é, do objeto. O jogo mental por excelência é o sonho, onde a mente está livre para modificar o objeto ou substituí-lo por mero associacionismo. A dedução lógica, considerada em si mesma e formalmente, é também um jogo mental, pois se nele a mente não está totalmente livre para mover-se na direção que deseje, o que a limita não é nenhum objeto, mas as simples regras internas da dedução. Toda dedução, porém, baseia-se em conceitos previamente definidos, que ela própria não pode produzir. Os conceitos, nesse sentido, já são um tanto ―externos‖ ao jogo mental -- a esse jogo mental particular que está sendo jogado nessa dedução em particular. Por isso, a dedução considerada materialmente, isto é, limitada pela estrutura lógica e ontológica dos objetos definidos, já não pode ser puro jogo mental, mera criação imanente da psique, mas sim a subordinação do jogo psíquico a uma exigência que o transcende, formulada pela definição dos conceitos. A simples referência intencional aos conceitos, ou a recordação deles no curso da dedução, é um ato psíquico que tem um componente experiencial e não se esgota em pura combinatória formal. Os próprios conceitos, por sua vez, podem, durante a dedução, ser considerados tão somente na sua intencionalidade lógico-verbal ou na sua referência a um objeto real. A dedução puramente formal opera somente com conceitos lógico-verbais, presumindo que as propriedades deles deduzidas se reencontrarão tais e quais nos objetos correspondentes, ou então se desinteressando totalmente destes últimos e contentandose com a mera decomposição lógico-analítica dos conceitos enquanto tais. Ora, quando os conceitos têm uma referência necessária a objetos que sejam externos à regra da dedução, é necessário que durante a dedução estes estejam presentes à consciência, em si mesmos, como dados de experiência, e não somente através de seu suplente, isto é, o conceito. Caso se trate de objetos ideais, ou constructos mentais, eles devem ser continuamente reapresentados à consciência -- ou reconstruídos --, numa operação concomitante com a dedução enquanto tal, de modo que as propriedades deduzidas da definição apareçam, no mesmo instante, como notas reconhecíveis no próprio objeto por intuição imediata. Num caso como no outro, a dedução, ou decomposição lógica do conceito em suas propriedades, é então uma concomitância (ou tradução) lógico-verbal da decomposição intuitiva do próprio objeto, considerado nos aspectos de sua estrutura real que correspondam à estrutura lógica das propriedades implícitas no seu conceito. 21/12/03

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