Ebook_crise Do Capitalismo Global No Mundo E No Brasil

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  • Words: 69,017
  • Pages: 310
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Crise do capitalismo global no mundo e no Brasil Organizadores:

Francisco Luiz Corsi José Marangoni Camargo Agnaldo dos Santos Rosângela Lima Vieira Autores:

Reinaldo A. Carcanholo Gustavo E. Santillán Francisco L. Corsi Rosângela L. Vieira Mirian C. Lourenção Simonetti Adriane de Sousa Camargo José M. Camargo Agnaldo dos Santos Noemina Ramos Vieira Newton Ferreira da Silva Cláudio Rodrigues da Silva Diego Marques Pereira dos Anjos Yuri Rodrigues da Cunha

Projeto Editorial Praxis

Crise do capitalismo global no mundo e no Brasil Francisco Luiz Corsi José Marangoni Camargo Agnaldo dos Santos Rosângela Lima Vieira

Projeto Editorial Praxis

1ª edição 2013 Bauru, SP

Coordenador do Projeto Editorial Praxis Prof. Dr. Giovanni Alves Conselho Editorial Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO Prof. Dr. Jorge Machado – USP Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

S2373c

Santos, Agnaldo dos Crise do capitalismo global no mundo e no Brasil / Agnaldo dos Santos, Francisco Luiz Corsi, José Marangoni Camargo e Rosângela Lima Vieira. - - Bauru, SP: Canal6, 2013. 310 p. ; 21 cm. (Projeto Editorial Praxis) ISBN 978-85-7917-247-2 1. Economia. 2. Crise Econômica Mundial. 3. Crise Financeira Mundial. I. Santos, Agnaldo dos. II. Corsi, Francisco Luiz. III. Camargo, José Marangoni. IV. Vieira, Rosângela Lima V. Título. CDD: 338 Copyright© Canal 6, 2013

Sumário

Apresentação....................................................................... 9 Capítulo 1

Sobre a atual fase do capitalismo — Reinaldo A. Carcanholo............................................... 19 Capítulo 2

Cuatro años de crisis, 2008-2012. Aportes para un análisis comprensivo de la coyuntura global — Gustavo E. Santillán..................................................... 31 Capítulo 3

A crise do capitalismo global em perspectiva histórica — Francisco Luiz Corsi........................................................51 Capítulo 4

Crise atual: observações a partir da Economia Política dos Sistemas-Mundo — Rosângela de Lima Vieira........ 71

Capítulo 5

Desafio das Ruas às Instituições Representativas — Jair Pinheiro.................................................................. 87 Capítulo 6

Crises e Resistências: os desafios e possibilidades da Via Campesina — Mirian Claudia Lourenção Simonetti e Adriane de Sousa Camargo..........................119 Capítulo 7

Crise Econômica Mundial e os Impactos sobre a Economia Brasileira — José Marangoni Camargo........ 139 Capítulo 8

Breves Considerações sobre o Perfil das Atividades de Ciência e Tecnologia no Brasil e o Paradigma da Colaboração no Contexto da Crise Econômica Mundial — Agnaldo dos Santos..................................... 167 Capítulo 9

América latina, globalização e espaços de resistência: o caso dos índios Guarani-Kaiowa no Brasil — Noemia Ramos Vieira................................................ 187 Capítulo 10

Capitalismo: da instabilidade crônica à fragilidade estrutural sistêmica — Newton Ferreira da Silva......... 213

Capítulo 11

Crise Econômica, Fluxos Migratórios Internacionais, Governabilidade e Educação: Uma Análise a partir de Documentos e Organismos Internacionais — Cláudio Rodrigues da Silva........................................ 225 Capítulo 12

Acumulação capitalista no regime de acumulação flexível ­— Diego Marques Pereira dos Anjos................. 247 Capítulo 13

Reestruturação dos serviços: a expansão da terceirização — Yuri Rodrigues da Cunha.................... 273

Apresentação

O

XII Fórum de Análise de Conjuntura “Crise do capitalismo global no mundo e no Brasil”, organizado pelo grupo de Pesquisa Estudos da Globalização, dedicou-se, como nas últimas versões, à discussão de um ponto candente da conjuntura internacional, a crise que assola o sistema capitalista desde 2008, a mais severa desde a depressão da década de 1930. A crise atual, que tudo indica ser mais uma crise estrutural do capitalismo, como nas vezes anteriores, tenderá abrir uma fase de mudanças e reestruturação do conjunto do sistema de longo alcance para as classes sociais, para a luta de classes, para as economias nacionais e para a divisão internacional do trabalho, o que impacta não só o centro, mas também a periferia do capitalismo global. Esta edição do Fórum de Conjuntura dedicou-se à discussão dos desdobramentos desses processos, sobretudo para o Brasil. A fase que se abre será decisiva para os caminhos da sociedade e da economia brasileira. A crise e estagnação das economias centrais e suas repercussões pode aprofundar a

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tendência de ascensão do leste asiático como novo centro dinâmico do capitalismo global. A China parece estar criando sua própria periferia fornecedora de bens primários e manufaturados de baixo valor agregado intensivos em recursos naturais. O Brasil e a maior parte do resto da América Latina parecem ser candidatos a integrar essa periferia. A reprimarização das exportações, o baixo dinamismo do setor industrial e a quebra de cadeias produtivas são indícios dessa tendência. Contudo, a trajetória da economia brasileira não está decidida e resultará não apenas do desfecho desses processos que estão reestruturando o capitalismo global, mas também dos resultados das lutas de classe na sociedade brasileira, o que torna a reflexão dessas questões, alvos do presente volume, muito oportunas. A partir dessa perspectiva o XII Fórum de Análise de Conjuntura dividiu-se em dois blocos. Um primeiro bloco, composto de uma palestra e duas mesas-redondas, discutiu as raízes históricas, a natureza e os desdobramentos da crise atual, particularmente para a América Latina. Um segundo bloco dedicou-se à reflexão dos impactos econômicos e sociais da crise no Brasil. Especial atenção foi dada aos movimentos sociais e às questões relativas à reprimarização da pauta de exportações e do desenvolvimento tecnológico. O Fórum também contou com contribuições feitas na forma de comunicações, que expressaram o resultado parcial de pesquisas em curso levadas a cabo por alunos de mestrado e doutorado da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) acerca dessa temática. O livro, seguindo a organização do evento, está dividido em três partes. A primeira contempla os capítulos que abor-

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dam questões de ordem teórica e discutem a crise a partir de uma perspectiva do conjunto do sistema e de mais longo prazo. A segunda parte abarca os capítulos que discutem os impactos econômicos, sociais e políticos da crise no Brasil. A terceira reúne as comunicações apresentadas no evento. Prestamos nossa homenagem a Reinaldo Carcanholo, por suas importantes contribuições na análise do capitalismo global. O primeiro capítulo, de sua autoria, intitulado “Sobre a atual etapa do capitalismo”, trata de uma discussão teórica acerca do capitalismo contemporâneo, o qual considera caracterizado, sobretudo, pela especulação e pela existência de um capital parasitário. Essas características seriam o que distingue a etapa atual das anteriores. Para discutir sua tese retoma o debate sobre questões polêmicas no interior do marxismo, a saber: a natureza do capital fictício, o debate sobre a questão do trabalho produtivo X trabalho improdutivo e o problema da lei tendencial de queda da taxa de lucros. Busca mostrar a existência de lucros fictícios, que decorreria de mecanismos endógenos à especulação. Ressalta também os mecanismos relacionados aos gastos militares e ao incremento da dívida pública como base importante da expansão da especulação e do capital fictício. A causa das crises não se encontraria no subconsumo, como acredita parte da literatura, estaria sim vinculada a queda tendencial dos lucros, mitigada pela valorização fictícia. O texto aponta a necessidade urgente do aprofundamento da discussão sobre esses temas, pois a discussão continuaria em aberto. No segundo capítulo, Gustavo Santillán, no texto “Cuatro años de crise, 2008-2012: aportes para un análisis comprensivo de la conyuntura global”, desenvolve o argumento

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segundo o qual a crise financeira de 2008 é apenas superfície de uma crise econômica mais abrangente, desenvolvida nas últimas décadas, e que a necessidade de expansão geográfica dos mercados rumos à novas fronteiras de acumulação é que explica a dinâmica financeira atual. As dificuldades de projetos alternativos advêm do fato da desestruturação da classe operária europeia e da incipiente organização dos trabalhadores na região asiática, exigindo esforços interpretativos para localizar as novas fontes de contestação ao capital. O capítulo “A crise do capitulo global em perspectiva histórica”, escrito por Francisco Luiz Corsi, discute a origem da crise aberta com a falência do banco norte-americano Lehman Brothers, em 2008, que atingiu o conjunto da economia mundial e abriu a crise mais profunda desde a grande depressão da década de 1930. Esta crise só pode ser compreendida a partir dos desdobramentos da reestruturação do capitalismo iniciada na década de 1970 como resposta às crises de superprodução, do sistema monetário internacional e de hegemonia dos EUA no período. A hegemonia do capital financeiro, a desregulamentação das economias nacionais, a reestruturação produtiva e a reconfiguração espacial da acumulação de capital, com a constituição do Leste Asiático como centro dinâmico da acumulação, são as principais características da nova fase do capitalismo. Apesar das crises serem inerentes a própria lógica da acumulação, na mundialização do capital aprofundou-se a instabilidade do sistema, que passou a conviver com crises em períodos cada vez mais curtos. A razão principal desse comportamento estaria na dominação do capital financeiro, cuja hegemonia parece estar em questão na atual crise.

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O texto “Crise atual: observações a partir da Economia Política dos Sistemas-Mundo”, de Rosângela de Lima Vieira, tem por objetivo comparar alguns aspectos da transição hegemônica britânica para a norte-americana com a atual crise do capitalismo. A expansão financeira que precedeu a crise atual é um dos elementos em comum entre os períodos históricos comparados. A autora desenvolve sua análise a partir da abordagem da Economia Política dos Sistemas-Mundo, utilizando sobretudo a obra de Giovanni Arrighi, como fundamento. Observa as dificuldades de estudos sobre o tempo presente; em certa medida, superáveis com a utilização do método comparativo. Tal metodologia torna-se mais relevante ainda quando o fenômeno histórico estudado se trata de um processo histórico de longa duração e com mudanças muito lentas. O artigo “Desafio das ruas às instituições representativas” de Jair Pinheiro apresenta um estudo dos movimentos sociais ‘Occupy Wall Street’ e ‘Indignados’ na perspectiva de contribuir para a análise política da conjuntura de crise econômica. Apesar das heterogeneidades e singularidades dos movimentos, Pinheiro constata três elementos comuns entre eles: reivindicam medidas conflitantes com as políticas neoliberais; denunciam a democracia representativa como uma fraude; e preconizam a democracia direta. Este último remete o autor a observar a ausência de um conceito sistemático e alternativo de democracia direta como um limite para esses movimentos. O capítulo “Crises e resistências: os desafios e possibilidades da via campesina”, de Mirian Lourenção Simonetti e Adriane Camargo analisa os movimentos de resistência

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ao processo de globalização e de integração da economia mundial. Entre as novas forças sociais que se articularam em um plano internacional, em contraposição ao processo de reprodução ampliada do capital, e as suas consequências, as autoras enfatizam o papel da Via Campesina. Esta surge como uma organização de camponeses e indígenas de diferentes lugares do mundo, se tornando um dos principais atores no questionamento da atual ordem econômica mundial e de suas instituições mais representativas tais como o FMI, o Banco Mundial, OMC. As autoras também evidenciam a crítica das ações de grandes empresas transnacionais e outros agentes econômicos e financeiros que atuam no domínio das atividades agrícolas. O capítulo de José Marangoni Camargo, “Crise econômica mundial e os impactos sobre a economia brasileira” discute os efeitos da crise econômica e financeira global, em curso desde 2008, sobre a nossa economia. Esta crise tem atingido especialmente o centro do sistema capitalista, particularmente os Estados Unidos, o Japão e com mais intensidade, as nações do bloco da União Européia. Por outro lado, os países que preservaram os seus sistemas financeiros da lógica neoliberal de desregulamentação tem tido um desempenho econômico mais satisfatório, como Índia e China. O Brasil, apesar de não ter tido um ritmo de crescimento que acompanhasse estes dois países, teve ao longo dos anos 2000 uma expansão econômica superior ao das duas décadas anteriores, com reflexos sobre o mercado de trabalho e a renda. Observou-se uma melhoria nas condições de trabalho, com declínio do desemprego e da informalidade, assim como uma melhoria discreta da distribuição de renda

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nesse período. Por outro lado, há indicadores preocupantes, agudizados pela crise econômica mundial. Há uma tendência de desindustrialização do país, com perda de competitividade da indústria nacional, particularmente dos ramos mais intensivos em tecnologia e com maior valor agregado. Além disso, a dependência externa crescente dos mercados de commodities e uma deterioração das contas externas do país, com um crescente déficit em conta corrente, aumenta a dependência do país dos capitais externos e traz novamente o espectro da vulnerabilidade externa. A contribuição de Agnaldo dos Santos, no texto “Breves considerações sobre o perfil das atividades de ciência e tecnologia e o paradigma da colaboração no contexto da crise econômica mundial”, vai no sentido de apontar como o desenvolvimento das atividades de C&T no Brasil continua subordinado à inserção do país na divisão internacional do trabalho. Considerando que a crise de 2008 aprofunda ainda mais o deslocamento das atividades produtivas e do fluxo financeiro que se inciou no final do século XX, o texto sugere que o país possui uma janela de oportunidade nos projetos abertos de inovação e no paradigma da colaboração, para superar os limites ainda hoje presentes na academia e na indústria nacionais. O texto de Noemia Ramos Vieira “América Latina, globalização e espaços de resistência: o caso dos índios Guarani-Kaiowa no Brasil” analisa especificamente a conjuntura da desterritorialização desses indígenas do Mato Grosso do Sul frente à invasão da agricultura capitalista. E de forma mais ampla a pesquisadora avalia o papel do Estado brasileiro frente ao processo de ocupação das terras, já que histori-

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camente se observa o constante procedimento de ocupação de acordo com os interesses do capital, mutilando culturas e povos que estejam bloqueando-o. Apesar de legislação, inclusive a Constituição Federal, e criação de órgãos estatais para e na defesa dos povos indígenas, o que ainda ocorre mais uma vez é a expropriação dos ‘donos desta terra’. O artigo de Newton Ferreira da Silva, “Da instabilidade crônica à fragilidade estrutural sistêmica” indica, em forma de ensaio, como a dinâmica da economia capitalista é marcada pela existência de crises permanentes, valendo-se não só da análise clássica marxista como também das contribuições de F. Chesnais. As novas formas de acumulação, pautadas pelo mercado financeiro, desestruturaram o formato desenvolvido no pós-guerra e conduzem à regressão social e permanente instabilidade. Neste capítulo, intitulado “Crise econômica, fluxos migratórios internacionais, governabilidade e educação: uma análise a partir de documentos de organismos internacionais”, Cláudio Rodrigues da Silva discute, com base em documentos de organismos internacionais como o Banco Mundial e a UNESCO, as possíveis ligações entre políticas educacionais e fluxos migratórios internacionais em um contexto de crise econômica mundial e reestruturação produtiva. O autor critica as reformas educacionais preconizadas pelos organismos internacionais, voltadas fundamentalmente para a preparação dos indivíduos para o mercado de trabalho, em função das mudanças do sistema produtivo, como mecanismos de crescimento econômico e redução da pobreza. Cláudio Rodrigues questiona também a cultura da paz promovida por estas instituições, no sentido de fornecer

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conhecimentos e capacitação profissional, inclusive para a força de trabalho migrante, ou seja, uma mão-de-obra adaptável, sem uma preocupação em desenvolver uma consciência crítica dos trabalhadores. O capítulo de Diego Pereira dos Anjos, “Acumulação capitalista no regime de acumulação flexível”, trata da ascensão no Capitalismo nos últimos 40 anos do Regime de Acumulação Flexível, como mecanismo para contornar a tendência de queda secular da taxa de lucro. Com base na análise clássica de Marx e também da contribuição de outros analistas, sobretudo de David Harvey, o autor analisa as novas formas de acumulação do capital, centrada nas transformações técnicas e organizacionais implantadas a partir dos anos 70, com destaque para o Toyotismo. Estes novos métodos possibilitaram na visão do autor, intensificar a exploração do trabalho, através da combinação da extração da mais-valia absoluta (aumento das jornadas de trabalho e precarização das condições e das relações de trabalho) e relativa (novas formas organizacionais e de gestão da produção), como meios para fazer frente à tendência de declínio da taxa de lucro e possibilitar a continuidade do processo de acumulação de capital. O capítulo “Reestruturação dos serviços: a expansão da terceirização”, de Yuri R. da Cunha, discute-se a expansão da terceirização na economia partir da crise e reestruturação do capitalismo no último quarto do século XX. Segundo o autor, diante da crise estrutural dos anos 70, o capitalismo passou por um momento de reestruturação produtiva, pautado por novos processos organizacionais, redundando, entre outros aspectos, no aprofundamento das formas de

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contratação terceirizadas. Dessa maneira, o objetivo do texto consiste em apontar a partir da reestruturação produtiva como a contratação terceirizada se disseminou pelo sistema. Especial atenção é dispensada as formas que esse processo assumiu no Brasil com o avanço das políticas neoliberais. O capítulo também indica que com o avanço da terceirização observa-se tendência a superexploração do trabalho. O conjunto de textos expõe vários prismas da crise global do capitalismo. Esta vem se desenhando há décadas e sua face mais nítida localizada, atualmente na Europa, não imuniza o Brasil. Consideramos que há aqui, portanto, uma contribuição para análises do tempo vivido. Os organizadores.

Capítulo 1

Sobre a atual fase do capitalismo Reinaldo A. Carcanholo1

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endo como perspectiva teórica uma particular interpretação sobre o que chamamos de teoria dialética do valor, nossa preocupação tem sido avançar no estudo da atual etapa capitalista, caracterizada por nós como especulativa e parasitária. Trata-se de entender as características específicas e concretas dessa etapa, em contraposição às determinações mais gerais do regime capitalista de produção.1 Estudos mais ou menos recentes de vários autores, mas especialmente os de François Chesnais, constituíram o ponto de partida para o início de nossas reflexões sobre o tema. Esses autores, uns mais outros menos, tiveram ou têm como base a teoria econômica marxista. Nosso esforço tem sido o de submeter esses estudos a uma reflexão crítica tendo por base a teoria dialética do valor, aprofundando o estudo dos descobrimentos teóricos de Marx sobre o capitalismo e, a partir disso, entender o que há de específico na atualidade. 1

Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Política Social da UFES e tutor do Programa PET-Economia - UFES - SESU.

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Sobre a atual fase do capitalismo

Trata-se de um esforço eminentemente teórico que leva em consideração as determinações concretas do momento. Nossa primeira tarefa foi o estudo da categoria de capital fictício, procurando aprofundar o desenvolvido por Marx no livro terceiro d´O Capital. Como se sabe, os textos que compõem esse livro constituem o resultado de estudos preliminares e não totalmente estruturados pelo autor, rascunhos de pesquisa, reunidos para efeitos de publicação de acordo com o critério de Engels. O capital fictício aparece ali de maneira mais ou menos dispersa e fragmentária e sem um aprofundamento maior. Além disso, na época de Marx essa categoria não chegou a apresentar, nem de longe, a relevância que chegaria a ter nos nossos dias. Nosso esforço nos permitiu, entre outras coisas, identificar dois tipos totalmente diferentes de capital fictício. Aquele do tipo 2, que não possui por detrás nenhum correspondente substantivo, nenhum átomo de riqueza real; e o do tipo 1, que aparece na sociedade como uma duplicação (triplicação ou quadruplicação etc.) de riqueza realmente existente. Essa distinção é importante pelas diferentes implicações de cada um deles e, até mesmo, pela substancial diferença em sua origem. Ao mesmo tempo, permitiu a descrição resumida da dialética dessa categoria. O capital fictício é, na verdade, real do ponto de vista do ato individual e isolado (isto é, do ponto de vista da aparência), real no dia a dia do mercado. Por outro lado, ele é fictício e real, ao mesmo tempo, do ponto de vista da totalidade do sistema e de sua reprodução. Fictício por não contribuir em nada para a produção da mais valia (pelo menos o seu tipo 2) e por sua magnitude global não corresponder a nenhum átomo

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de riqueza substantiva olhada no conjunto da sociedade. No entanto, ao mesmo tempo, ele (mesmo do ponto de vista global e da reprodução, que nos permite entender a essência do sistema) é real, na medida em que lhe é reconhecida a capacidade de exigir remuneração. Identificamos, também, a categoria de lucro fictício como gênese fundamental das massas adicionais de capital fictício do tipo 2 que são gerados pelo sistema. Tal categoria não aparece nos textos de Marx, mas uma análise mais aprofundada deles nos permitiu descobri-la. Na época do autor, tal categoria obviamente não apresentava maior relevância e, provavelmente por isso, não encontrou de sua parte suspeita de sua existência. Sem ferir as determinações da teoria marxista do valor, o lucro fictício surge como algo que não tem origem na mais valia e, além disso, apresenta-se como importante fator contrariante da tendência decrescente da taxa de lucro durante certo tempo. Na etapa atual do capitalismo, iniciada nos fins dos anos 70, começos dos 80, observa-se que o grande capital dirigiu sua acumulação preferencialmente à especulação e não à produção, ampliando desmedidamente a massa existente, no sistema, de capital fictício. Ele passa de existir, como sempre existiu até então, de aspecto dominado a dominante na unidade contraditória denominada capital (capital industrial / capital fictício). Essa mudança teve e tem enormes implicações e significa, na verdade, uma alteração na sua própria natureza e, por isso, passamos a chamá-lo capital especulativo e parasitário. Como esse capital ganha dimensões elevadas e não contribui em nada para a produção de riqueza real, identificamos que a etapa capitalista, que adota seu

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nome, apresenta como contradição principal (à diferença da contradição essencial do sistema que é a que há entre capital e trabalho) a que existe entre produção e apropriação de mais-trabalho, de mais valia. Um dos fatores determinantes da explosão no surgimento de capital fictício está constituído pelos gastos militares no mundo, especialmente nos países mais ricos, ao lado do crescimento da dívida pública dos diferentes estados. Os investimentos na indústria militar, inclusive o investimento produtivo, ao resultarem em gastos que incrementam a dívida pública criam, na verdade, lucros fictícios que se transformam necessariamente em novo capital fictício de tipo 2. Assim, nesse caso, investimentos produtivos convertem-se em investimentos de capital fictício. Na formação deste último contribui também de maneira decisiva a valorização especulativa de diferentes tipos de ativos, sejam reais ou fiduciários. Esse esforço de pesquisa realizado nos obrigou a enfrentar ou aprofundar alguns temas teóricos indispensáveis. Entre eles estão a) o conceito de trabalho produtivo, b) a lei da tendência decrescente da taxa de lucro e o papel do crédito (especialmente do imobiliário) de maior risco na constituição dos lucros fictícios e de capital fictício. Outro tema relevante a ser estudado e que é importante para as atuais características do capitalismo contemporâneo é o da obsolescência programada dos produtos “duráveis” destinados ao consumo, tema sobre o qual, até agora, não chegamos a dedicar nenhum esforço. Além de tudo, embora não seja objeto preferencial nosso, são importantes as pesquisas sobre indicadores empíricos para pelo menos alguns aspectos do problema: a) os gastos

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militares das maiores potencias do planeta, b) a evolução da dívida pública de diferentes estados, c) a trajetória da taxa de lucro (especialmente dos grandes conglomerados) em diferentes países, diferenciando-se o que é realmente lucro operacional daquele resultante de operações especulativas, d) as transferências de riqueza financeira de pequenos aplicadores para os grandes especuladores, e) a evolução da composição orgânica, em particular do valor dos elementos do capital constante, em diferentes países, f) a evolução da obsolescência programada dos produtos duráveis de consumo, g) as transferências de valor excedente do terceiro mundo para as potencias imperialistas. É certo que estudos já publicados de vários autores enfocam tais aspectos, mas pesquisas mais detalhadas e aprofundadas seriam relevantes.

Sobre o trabalho produtivo / improdutivo O tema do trabalho produtivo/improdutivo é fundamental dentro de nossa interpretação sobre a atual etapa capitalista, uma vez que identificamos que a contradição principal dela é a que existe entre produção e apropriação de riqueza excedente, do mais-trabalho. Muitas questões são significativas dentro desse tema. A pergunta fundamental que com ele se pretende responder é: quem produz valor e mais valia? No entanto, outras também aparecem como relevantes. Como é possível que tenha havido crescimento da massa de mais valia produzida, e em que medida ocorreu esse crescimento, se houve uma significativa migração do trabalho do

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setor industrial para o de serviços? Quais são as atividades em que se pode considerar existir trabalho improdutivo? É produtivo ou não aquele trabalho destinado à produção militar? O trabalho produtivo perde seu caráter se destinado diretamente a atividades ou ao consumo improdutivos (por exemplo, a publicidade)? Obviamente, devido ao nosso ponto de partida teórico, a idéia de que a riqueza tem origem distinta do trabalho, na tecnologia ou na informação, por exemplo, está completamente fora de discussão. Apesar disso, as razões pelas quais, na aparência, isso surge de maneira indiscutível aos olhos dos agentes, e também dos analistas, é sim um aspecto que deve nos preocupar. A expansão do capital e dos lucros fictícios sem dúvida aprofundou a ilusão de que o capital é capaz por si mesmo (ou pelo domínio da tecnologia ou da informação) de produzir sua remuneração e se fortalece a idéia de que, por isso, ele possui uma propriedade mágica. O pensamento neoclássico já desde o final do século XIX deu um elegante nome a essa magia: produtividade marginal do capital. Hoje, não totalmente satisfeitos com isso, alguns transferem o mágico do capital para a informação, mas o resultado é similar. A verdade é que a temática do trabalho produtivo/improdutivo é muito controversa. Opiniões muito dissímeis existem, mesmo entre aqueles que explicitamente aderem ao pensamento de Marx. Poderíamos pensar que ele mesmo, Marx, seja o grande responsável pela existência dessas posições tão diferentes, uma vez que não chegou a abordar o assunto de maneira totalmente sistemática, por tê-lo tratado em diferentes partes de sua obra e por não ter deixado claro o

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nível de abstração e outros aspectos metodológicos em cada momento de sua reflexão sobre o assunto. Na verdade, porém, a maior responsabilidade é nossa mesmo, ao não sermos capazes de compreender adequadamente o método utilizado por ele, método esse indispensável para entender satisfatoriamente categorias, conceitos e leis da sociedade capitalista. Algo avançamos no estudo dessa temática e nossa conclusão geral pode ser considerada de alguma ousadia, uma vez que ampliamos, em muito, os limites para além do que a quase totalidade dos autores consideram produtivo. Podemos adiantar aqui alguns elementos de nossas conclusões. Fica explicito em Marx, em mais de uma oportunidade, que para ser produtivo o trabalho deve produzir mais valia. Isso significa que ele necessariamente deve ser trabalho assalariado. Em nossa opinião, essa idéia responde a um nível de abstração muito elevado. Para análises concretas propomos a substituição dessa compreensão pela de que para ser produtivo o trabalho deve produzir excedente-valor ou mais-trabalho apropriável pelo capital em forma de lucro. Isso significa que ampliamos o conceito de produtivo para trabalhadores não assalariados. O próprio Marx foi que nos induziu a essa conclusão quando, nas Teorias da Mais Valia, ao referir-se ao trabalho dos camponeses e artesãos afirma claramente que ele não é nem produtivo, nem improdutivo. Sua conclusão deriva do fato de que, ao desenvolver a categoria de trabalho produtivo, sua análise se mantém em um nível elevado de abstração, para o qual o capitalismo não possui relações produtivas que não sejam as rigorosamente salariais. Além disso, outras de nossas conclusões, essas não tão polêmicas: a) uma grande parte dos serviços devem ser con-

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siderados produtivos, b) não é a profissão ou a ocupação que deve ser considerada produtiva ou improdutiva, mas, dentro delas, cada tarefa, de maneira que o trabalho de um mesmo individuo em parte pode ser improdutivo e em parte não; c) não importa se o destino do produto é ou não o consumo improdutivo (propaganda, gasto militares); d) o trabalho doméstico, remunerado ou não, em parte deve ser considerado produtivo (esta sim está entre as idéias quase nunca aceitas pelos diferentes autores).

Sobre a lei da tendência decrescente da taxa de lucro Sem dúvida, a lei da tendência decrescente da taxa de lucro é outro tema de muita divergência dentro do pensamento marxista e de muita relevância para nossa interpretação da atual etapa do capitalismo. Necessita-se avançar ainda mais nessa questão. Deixando de lado aquelas críticas que, para negar a existência da tendência, abandonam a teoria marxista do valor, em qualquer de suas dimensões2, nosso estudo chegou a considerar diferentes visões sobre o assunto. Além de todas as divergências, o fato é que os estudos empíricos sobre o assunto são inconclusivos. Eles padecem da dificuldade de traduzir conceitos abstratos, como o da taxa geral de lucro, para indicadores empíricos. Sem dúvida, os aspectos mais relevantes na discussão marxista sobre a tendência se referem aos seus fatores con2

Essas críticas são pouco significativas por se tratarem de críticas externas.

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trariantes. Entre eles, dois se destacam: a elevação da taxa de exploração e a redução do valor dos elementos materiais do capital constante. Sua importância deriva do fato de que o mesmo processo que resulta no crescimento da composição técnica do capital é o que os determina. Já estudamos esses dois aspectos. Nossa conclusão é de que, no primeiro caso, o fator atenua a tendência quando situado em níveis inferiores e que, quando cresce, passa a ter efeito cada vez menos significativo sobre a taxa de lucro. Quanto ao segundo fator, a desvalorização do capital constante, ao representar desvalorização do capital pré-existente e isso, a depreciação do patrimônio da empresa, ao significar um lançamento contábil de dedução da magnitude do lucro empresarial, não chega a atuar como fator atenuante, juntamente ao contrário. Claro que essa conclusão também é muito controversa. É necessário avançar no estudo dessa temática em vários sentidos e não só no que se refere aos demais fatores contrariantes. Um aspecto importante a ser estudado é sobre os mecanismos que impedem que a tendência tenha como resultado um longo processo, progressivo, permanente e inexorável de queda da taxa geral de lucro de maneira a reduzir necessariamente inclusive a rentabilidade dos grandes conglomerados. Obviamente essa idéia de inexorabilidade do processo que concluiria com a derrocada automática e final do capitalismo há muito que foi abandonada pelo pensamento marxista, pelo menos é o que acreditamos. Constituem as crises o mecanismo de impedir esse processo progressivo e inexorável? É o único ou o principal mecanismo? A desvalorização do capital fixo preexistente, devido ao aumento da produtividade no setor 1 da economia

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tem papel importante na recomposição conjuntural ou estrutural da taxa de lucro? Que importância representa, para a problemática, a transferência de valor e de excedente-valor (mais-trabalho) dos pequenos para os grandes capitais? De certa maneira, a teoria das crises está intimamente relacionada com a discussão da tendência decrescente da taxa geral de lucro. Apesar de ser tema amplamente discutido na bibliografia marxista, na nossa opinião falta ainda muito por avançar. Não nos satisfaz completamente as explicações disponíveis. Em particular, sobre o tema das crises, uma perspectiva cuja crítica deve ser aprofundada é a do subconsumo. Uma visão superficial e fácil leva algumas vezes o observador a pensar que a reduzida capacidade de consumo das massas é a grande dificuldade do sistema e que o leva a crises. Essa visão facilmente pode implicar perspectivas reformistas perigosas. Por isso, a crítica substantiva ao subconsumismo é necessária e, além disso, textos didaticamente competentes são indispensáveis para desmistificar a visão ingênua que tende a existir sobre o assunto.

Referências CARCANHOLO R.. “A categoria marxista de trabalho produtivo”. In: XII Encontro Nacional de Economia Política, 2007, São Paulo. Anais do SEP. http://carcanholo.com.br/temasMarx.html. . y SABADINI, M. S. “Capital ficticio y ganancias ficticias”. In: Herramienta, Buenos Aires, nº 37, pp. 59-79, 2008. http://carcanholo.com.br/temasMarx.html.

Sobre a atual fase do capitalismo

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CHESNAIS, F.; DUMÉNILl, G; LÉVY, D. y WALLERSTEIN, I. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo e Campinas, Editora Xamã e Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp, 2003. . “La prééminence de la finance au sein du ‘capital en general’, le capital fictice y le mouvement conteporaine de mondialization du capital”, In: Bunhoff, S. et all. La Finance Capitaliste. Paris: Presse Universitaires de France, 2006. . “El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera”. In Herramienta, Buenos Aires, nº 37, 2008. www.herramienta.com.ar, acceso en 25/10/2010.

Capítulo 2

Cuatro años de crisis, 2008-2012. Aportes para un análisis comprensivo de la coyuntura global Gustavo E. Santillán1

E

l trabajo que presentamos propone una mirada comprensiva de la crisis global desatada a fines de 2008, destacando su continuidad hasta el presente. Como correlato de esta perspectiva, se sostiene el carácter económico de la crisis, por sobre sus manifestaciones en la esfera financiera. Asimismo, y sin desmedro de esta posición, se intentará destacar las particularidades distintivas del momento actual (2012) de la crisis, y su impacto diferencial regional, pues buena parte de los márgenes de las expresiones de resistencia y alternativas al actual escenario dependen de estas particularidades. En este sentido, el trabajo cierra con una discusión acerca de las virtualidades de la resistencia al capitalismo global en su actual fase de desarrollo.1

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Professor da Universidade Nacional de Córdoba (UNC)/CIECS-CONICET.

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Crisis financiera, crisis económica El origen coyuntural de la crisis en 2008, se manifestó en la caída de las cotizaciones de las hipotecas subprime en los Estados Unidos, que se tradujo en la quiebra, primero, de las entidades hipotecarias Fannie Mae y Freddie Mac y, luego, en la bancarrota del banco de inversiones Lehman Brothers. Este fue el capítulo final del traslado de la crisis a la economía “real,” puesto que forzó al gobierno estadounidense a presentar el programa de rescate de entidades financieras más grande de su historia. La crisis se tradujo rápidamente de la cotización de las hipotecas al sistema financiero en general, por una serie de dos razones. En primer lugar, porque las instituciones ofrecieron productos financieros con escasas garantías y altísimas tasas a las familias para la adquisición de viviendas, que aquéllas consumían con fruición, en un periodo de auge del mercado inmobiliario. En segundo término, porque estos productos eran recombinados y colocados a fondos de inversión y pensión, en los cuales los consumidores también fungían como cotizantes o tenedores, elevándose luego de manera ficticia en el mercado la cotización de estos productos, sostenidos por las operaciones de compra de las empresas, que a su vez sostenían con estas operaciones sus valores bursátiles, realimentando el círculo. La raíz de estas operaciones reside en el seno de la empresa, ya que el sistema financiero dicta actualmente las modalidades de operación y gestión empresaria. El crecimiento de este sector, y el endurecimiento de la competencia en mercados con una demanda deprimida, ha determinado que

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en la actualidad las empresas se evalúen en relación a indicadores financieros de referencia, estipulados en el orden de un 15% anual. Toda empresa que no se adecúe a estos estándares, estaría dejando de “crear valor” en la jerga gerencial en vigencia, y estando sujeta a castigos en los mercados sobre el valor de sus acciones. Este es el trasfondo estructural de las operaciones riesgosas y semifraudulentas que vincularon a unidades productivas, fondos de inversión, bancos y agencias de calificación de riesgos, e hicieron crisis a mediados de 2008. La participación de los consumidores y trabajadores en estas operaciones, y en las estructuras accionarias de las empresas en las economías centrales (Wal-Mart es el ejemplo que se presenta usualmente como paradigma) ha sido cada vez mayor, lo que complementa hasta cierto punto (en periodos de auge) la depresión de los salarios, y que ha llevado recientemente a Michel Aglietta a hablar de un nuevo “capitalismo accionarial.” Por detrás de estas manifestaciones, sin embargo, se encuentran dimensiones que remiten a un plazo aún más largo; concretamente, a la ruptura del pacto socioeconómico característico de los “Treinta Gloriosos” años del capitalismo, 1945-1975. En este sentido, la crisis actual no deja de inscribirse como fenómeno particular de la crisis estructural del capitalismo, desatada entre 1968 y 1973. Estas dimensiones remiten no sólo a la esfera productiva de la economía, sino a las relaciones sociales, y a las formas concretas que estas relaciones han revestido históricamente. Concretamente, el rendimiento inusitadamente alto de la economía capitalista en los países centrales se debió históricamente (amén de a las relaciones geopolíticas entre el

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centro y la periferia, a las que volveremos en lo sucesivo) a un crecimiento simultáneo de salarios, beneficios y productividad, sobre la base de una nueva norma de producción y consumo.2 Ello implicaba un pacto social entre el capital y el trabajo, cuyas bases fundamentales fueron socavadas durante la década del ’70. Las razones de esta ruptura han sido analizadas en tres series de argumentos: en primer lugar, se ha insistido en el incremento en la composición orgánica del capital como invariante a la sucesión de regímenes de acumulación, y expresada bajo el fordismo en la creciente socialización de los medios de producción que entrañaban la producción serializada y la expansión de los servicios colectivos (Estado). Así, la crisis de la economía capitalista es intrínseca crisis del Estado de Bienestar. La expansión de la demanda agregada, bien que fundamental en la explicación del fordismo y los Treinta Gloriosos, no ocurrió en desmedro del desenvolvimiento de la contradicción fundamental del capitalismo, entre socialización de la producción y apropiación individual de los medios de producción. Antes bien, la exacerbó.3 Un correlato de esta posición, ha sido sin embargo la identificación de un nuevo régimen de acumulación emergente a partir de los ’70, a partir del cual el consumo individual canalizado a través de la esfera financiera, “cerraría” el exceso sistémico de oferta y, en segundo término, la mercantilización de los servicios colectivos (a través de fondos de pen2

Cf. Aglietta, 1979.

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Exponentes de esta posición son los trabajos de Ernest Mandel, recuperados por el primer trabajo de Aglietta mencionado anteriormente.

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sión, compañías aseguradoras, etc.), resolverían en favor del capital la expansión de su composición orgánica, conteniéndola a partir de la expansión del sistema financiero.4 En segundo término, las explicaciones “socialdemócratas”5 de la crisis insisten en los desbordes del nivel de los salarios, por encima de la productividad del trabajo y el beneficio, detectados por primera vez en 1968, 6en lo que resulta una coincidencia con las explicaciones neoclásicas. Esta fue una constatación no solamente intelectual, puesto que se manifestó empíricamente en un desborde recurrente de las bases sindicales a las direcciones del movimiento obrero en los países centrales (Francia, Suecia, por ejemplo) y en estallidos insurreccionales en los países periféricos, que tuvieron como raíz explicativa, al margen de las reivindicaciones democráticas y de liberación nacional, no tanto la pauperización de las condiciones de trabajo y su remuneración, sino muy por el contrario, el avance progresivo de los niveles salariales en 4

Cf. Santillán, 2009.

5

Se usa este término a modo indicativo, amén de las trayectorias individuales de sus exponentes (coincidentes en algún caso), por las implicancias de estas posturas intelectuales, convergentes no obstante con la evolución de las posturas regulacionistas mencionadas en primer término. De todos modos, los límites político-intelectuales en este debate resultan difusos, pues buena parte del pensamiento trotskista europeo comparte (desde que Aglietta aceptó originariamente las tesis de Mandel) algunas implicancias políticas de la supuesta “socialdemocracia.” Aquí no enfatizaremos estas coincidencias, preocupándonos en tanto por clasificar las corrientes argumentales de explicación de la crisis. cf. Santillán, Gustavo, op. cit., para una discusión de esta relación teórico-política.

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Cf. Maddison, 2010; Hobsbawm, 1997; Paramio, 1987.

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algunos sectores, y la solidificación de las bases en los lugares de trabajo. De todos modos, tanto los ajustes salariales y la flexibilización del trabajo que siguieron al desencadenamiento de la crisis, como las deslocalizaciones empresariales al Tercer Mundo, fueron encuadradas por la socialdemocracia como respuestas automáticas del régimen de producción a las nuevas e insostenibles condiciones y, por ende, en algunos casos saludadas también como emergentes del nuevo régimen de acumulación que habría de instaurar nuevas condiciones laborales, que revertirían tanto la desvalorización secular del trabajo, como la masificación del individuo en términos sociales.7 La financiarización de la economía, en tanto, epifenómeno de estas formas productivas y de la “globalización” como fenómeno sociopolítico, requiere en esta perspectiva simplemente su adecuada regulación, que se ha planteado en términos políticos que rozan las peticiones éticas. Políticamente, estas posiciones significan para la izquierda encarar estrategias de “flexibilidad ofensiva,” reclamando la democratización de las relaciones laborales en el ámbito de la empresa como contrapartida a las nuevas condiciones, y la adopción de políticas centradas en el electorado en tanto ciudadano antes que actor social de clase.8

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Concretamente, Coriat, 1992.

8

Esta agenda fue sintetizada en el Programa 2000 del Partido Socialista Obrero Español (PSOE, 1988) que concretara la agenda gubernamental del partido electo por primera vez en la transición en 1982; la Tercera Vía británica fue meramente la proyección de esta agenda como sombra, mucho más gravosa para la economía de las Islas y para la izquierda europea en general. De allí en adelante, sin embargo, sus principales

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Sin embargo, estas posiciones tienen el valor de desplazar la explicación de la crisis de la contradicción social fundamental (producción/apropiación) hacia la acumulación de fuerzas por parte de la clase trabajadora organizada, que demandó la ruptura del pacto social por parte de las clases dominantes; precisamente, esta ruptura implica la impotencia de la economía capitalista en su centro, en mercados saturados y condiciones endurecidas de competencia. La salida de estas condiciones fue, pues, política antes que económica. Este es el aspecto que ilustra finalmente una tercera serie de argumentos, concretamente (desde posiciones políticas también diversas) los trabajos de Giovanni Arrighi y François Chesnais,9 que señalan la centralidad de la financiarización no sólo como fenómeno económico, sino como “golpe de Estado” financiero, en respuesta a la tenaza que ahogaba a la burguesía de los países imperialistas, constituida por la clase trabajadora organizada por un lado, y los movimientos de liberación nacional por el otro.10 Por otro lado, las clases dominantes pudieron poner de rodillas a sus trabajadores en el centro, arrojando la deslocalización empresaria en la mesa de negociaciones. Ambos fenómenos están relacionados, por cuanto el otro elemento necesario para voceros no han dejado de rizar este rizo, claro que mayoritariamente en el vacío de la oposición desde 2008. 9

Arrighi, 1994. Un análisis de las tesis de Chesnais en Santillán, Gustavo, op. cit.

10 El paradigma de este modelo de tasas altas fue la economía política de la Administración Clinton, entre 1992 y 2001, periodo que los liberales confunden con la consolidación de una nueva forma de “crear valor” en la esfera de la producción.

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dar salida a la crisis por elevación de los costos laborales fue el avance del capital sobre los mercados periféricos recién conquistados y abiertos a la subsunción real del trabajo, concretamente, el Este Asiático a partir de 1971.11 Esto implicó el disparo del desempleo en el centro, y la represión generalizada ejercida por los gendarmes neoliberales de Reagan y Thatcher. En segundo lugar, la suba en las tasas de interés globales fue un recurso a mano del gobierno estadounidense para revertir la relación geopolítica de fuerzas en su favor a partir de 1979; de allí en adelante, esta medida antes que las innovaciones tecnológicas (a pesar de Chesnais, inclusive) o los ajustes a los mercados flexibles, fue el condicionante fundamental de las nuevas formas de gestión empresaria y el “riesgo moral” de los nuevos gerentes.

2008 - 2011 El relato convencional al estallar la crisis, a finales de 2008, pudo establecerse a partir de la irresponsabilidad de banqueros y empresarios, tal como lo hemos establecido de manera preliminar en nuestra primera sección. Así, una de las primeras conclusiones a extraer fue la recomendación de generar mecanismos de regulación adecuados a escala global y multila11 Este espacio pudo ser abierto a la expansión del capital a partir de una decisión geopolítica, el acercamiento sinonorteamericano de 1971-1979, que encadenó a China al espacio productivo del Este Asiático consolidado por los Estados Unidos en su “cinturón de seguridad” de la posguerra, en plena guerra fría, abriendo por primera vez el mercado de trabajo chino a los movimientos globales de capital.

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teral, que se pudieron plantear bajo la forma de a) La llamada tasa Tobin sobre los movimientos de capital, relanzada tras la crisis rusa de 1999 y declarada en su necesidad por la Unión Europea en repetidas oportunidades, aunque nunca implementada de hecho, b) La necesidad de castigar judicialmente las operaciones fraudulentas en los mercados financieros, c) Ligada a este punto, la sanción de operaciones internas desarrolladas por los gerentes sobre la base del control de información privilegiada, y el coto a las remuneraciones gerenciales, objetivos también declarados y no implementados. Sin embargo, en la nacionalización de General Motors decidida por el gobierno Obama entrante, y en la centralización y salvataje de las instituciones financieras llevada a cabo también en los Estados Unidos, podemos encontrar los antecedentes de la ruptura de este argumento, dado que, a diferencia de las medidas enunciadas y no aplicadas reseñadas en primer término, las disposiciones efectivamente adoptadas implicaron en realidad la socialización de las pérdidas en los mercados financieros. A diferencia de lo sucedido en la Unión Europea, el gobierno norteamericano llevó adelante una centralización de las actividades económicas y un papel mucho más activo en la estimulación de la demanda interna. Adicionalmente, la evidencia de la recuperación china sobre la base de la aplicación de un paquete anticrisis de perfiles claramente keynesianos, centrado en la obra pública de infraestructura y en el incentivo al consumo, comenzaron a plantear con más claridad la responsabilidad gubernamental en la salida de la crisis. De este modo, la problemática y el debate político se desplazaron de la regulación de los mercados, al papel directo de los gobiernos.

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En la Unión Europea, en tanto, otra manifestación de las novedades acaecidas en 2011 ha sido su expresión en la crisis de la deuda griega declarada a mediados de 2010 y antecedente directo del recrudecimiento de la crisis en 2011, puso de manifiesto la funcionalidad de la reproducción de las condiciones bajo la economía del Euro a las necesidades de la economía alemana. Si bien este periodo, y el proceso de ajustes y negociaciones entre Grecia y la UE, fueron presentados como producto de las preocupaciones del gobierno alemán ante el evitual default de los bonos griegos (de los que Alemania es uno de sus principales tenedores), en la práctica los sucesivos ajustes solicitados han sido la garantía de la continuidad de una economía deprimida, en la que la única ganadora es la industria de exportación germana, en el contexto de una demanda interna sumamente debilitada. En segundo lugar, la crisis española: si bien se ha presentado como completamente identificada al estallido de su burbuja inmobiliaria, no es menos cierto (y es cada vez más aparente a su población) que esto ha sido el resultado de la apuesta política a una economía de servicios financieros y turísticos como promotora del crecimiento,12 en la “división europea” del trabajo. Aún en su periodo de auge, esto implicó crecimiento económico sin desarrollo industrial. La Zona del Euro, como sostendremos, no es tal, sino una región que ha reproducido las diferencias estructurales entre su centro en el Norte y su periferia en el Sur, preexistentes a la apertura democrática y la liberalización de España, Grecia y Portugal.

12 Amén de la explotación neocolonial de sus excolonias americanas.

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Estos rasgos diferenciales de la crisis en 2011 respecto a 2008 no significan una reorientación drástica de las respuestas de política económica en los países centrales, puesto que, en primer lugar, las respuestas ensayadas por el gobierno de los EEUU remontan a 2008. En segundo lugar, a diferencia de este país, las recetas europeas de austeridad se han mantenido entre 2008 y 2011, puesto que éstas son funcionales al control politico de una economía (Alemania) sobre las restantes en la Zona. Sin embargo, este fenómeno ha mostrado con mayor claridad que, en realidad, lo que se está produciendo es una carrera proteccionista bajo la fachada de una moneda única en la Zona Euro, donde en realidad coexisten dos condiciones de la moneda única: promotor de las exportaciones alemanas, y cepo para la recuperación en el Sur. Así, la moneda europea compite en realidad en términos más o menos exitosos con la débil divisa americana (cuyo carácter de equivalente global sin respaldo permite su administración), con una Libra fuerte (que ha redundado en una inédita debilidad de la industria británica, en favor del sostén del Reino como centro financiero global) y un yuan también inéditamente fuerte; China parece seguir apostando a la internacionalización de su economía,13 sin dejar de mostrar por otro lado la irreductibilidad de su modelo económico a los análisis convencionales. Por un lado, el yuan muestra una constante e ininterrumpida valorización desde 1978 acompañando el crecimiento del Producto, de aproximadamente 8,48 por dólar a los 6,23 actuales. En 13 Las recientes insinuaciones del nuevo liderazgo de Xi Jinping así lo parecen indicar.

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segundo término, estas características se cruzan paradójicamente con presiones inflacionarias internas, redoblando la apuesta del gobierno por la prudencia en la regulación económica. China ejerció un liderazgo “responsable” en 1998 tras la Crisis Asiática, absorbiendo con su divisa la carrera devaluatoria previa de las economías del área, y lo sigue ejerciendo en su papel de tenedor de bonos norteamericanos y en las discusiones del G2, a pesar de las (ficticias) disputas retóricas en cada ronda de negociación, y en las (reales y concretas) disputas en el terreno militar y geopolítico con los EEUU en el Pacífico. Hemos realizado este recorrido de los últimos dos años para mostrar no una readecuación real del Estado o la emergencia de una nueva modalidad de regulación económica (a pesar de que, en algunos aspectos y regiones, existe un replanteo de estas modalidades), sino cómo a ojos de la ciudadanía, se establece una funcionalidad cada vez más directa entre la crisis como fenómeno “económico” y el papel del Estado como responsable por su resolución. En dos sentidos: en primer lugar, en la asunción de un rol de agente de redistribución de recursos en favor del capital financiero y, en segundo término, en su carácter de Estado nacional frente a otras economías, rompiendo el mito de la conformación de mercados globales de factores. Así, la responsabilidad por la emergencia y resolución de la crisis no puede achacarse ya a entidades fantasmáticas e inidentificables, a un centro que no es tal (parafraseando las esotéricas elucubraciones de Toni Negri a principios de siglo), sino a entidades políticas concretas. Ello ha redundado en una politización sin precedentes de la crisis, que abre paso al necesario examen

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de las posibilidades de resistencia existentes en el seno de la “sociedad civil”.14

Análisis social de las Resistencias Debemos forzosamente analizar este apartado en términos regionales, lo cual depende de una de las exigencias teóricas fundamentales para un examen general de la crisis: el abordaje regional de su impacto, cuestión a la que hemos aludido en este capítulo, y que postuláramos oportunamente en otros trabajos, como premisa de una reconstrucción crítica del materialismo histórico.15 Al respecto, se establece una primera división entre el Sur y el Norte, en función del impacto regional diferencial no ya de la crisis de 2008-2011, sino de las reestructuraciones radicales producidas en las últimas cuatro décadas. En primer lugar, la empresarial redundó en las economías centrales, como señaláramos, no sólo en la destrucción de puestos de trabajo y en la reducción de la dimensión relativa de la clase trabajadora (todo lo cual impactó en un debilitamiento de sus formas tradicionales de organización) sino en la conformación de 14

Precisaremos regionalmente este concepto en nuestra siguiente sección.

15 Cf. Santillán, Gustavo, op. cir.; señalábamos allí “la necesidad de articulación de un materialismo histórico verdaderamente radical, crítico, que constituye una teoría general de la sociedad, con teorías de alcance intermedio y análisis empíricos (coyunturales y regionales) que permitan enriquecer nuestra interpretación de la realidad. Evitaríamos así tanto el armonicismo y el funcionalismo teórico, como las visiones catastrofistas y apocalípticas del capitalismo.”

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un perfil del trabajo diferente, centrado en la movilidad del empleo y en su sobrecalificación, en la polivalencia y la flexibilidad de sus condiciones. Esto sólo se puede relacionar con la permanencia de las casas matrices y centros de I+D de las transnacionales en sus países de origen, que conformó al núcleo de la clase obrera con las características reseñadas. Esto confirmó las previsiones de Coriat para estas regiones, sólo al precio de su coexistencia con un desempleo estructural que se hizo más patente (en términos de su protagonismo social y “político,” bajo la forma de episodios insurreccionales, apatía, abstención y escepticismo generalizados, y escora ideológica hacia la extrema derecha) en la última década, generalmente radicado en las periferias residenciales de las grandes metrópolis. Allí, la clase trabajadora coexiste con una periferia de trabajadores migrantes, rasgo también estructural del capitalismo europeo16 (y también norteamericano, con otras características). Lo significativo de esta triple división alude a las posibilidades concretas de resistencia a la crisis actual, dado que en general se ha responsabilizado a los trabajadores residentes desempleados (típicamente mayores, en una media superior a los 50 años de edad) por su discurso xenófobo, por el desplazamiento de la responsabilidad de la situación socioeconómica y política hacia un Otro construido a partir de la inmigración, y por su manipulación por élites de extrema derecha que harían temer la regresión general del proyecto europeo. En realidad, lo que existe es una incomprensión del núcleo de trabajadores más jóvenes y calificados, también amenazados por el desempleo en la crisis coyuntural reciente 16 Cf. Meillassoux, 1987.

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(novedad que altera el panorama de las décadas de los ’80 y ’90) hacia esta situación, al plantear sus reivindicaciones en términos exclusivamente ciudadanos, y eludiendo su identidad como trabajadores (todo lo cual, sin embargo, remite a características sociológicas concretas). También como hemos señalado, esto ha sido en parte producto de la reorientación de la agenda ideológica de las élites políticas de la izquierda europea, en los veinte años precedentes. De allí también, y a partir de la modificación de las características del trabajo como relación social en los países europeos, que la falta de articulación de las demandas de los jóvenes “indignados” o antisistema en un sujeto colectivo capaz de incidir en el sistema político, marque tanto las posibilidades como las limitaciones de la resistencia a la crisis en Europa. A diferencia notable del ejemplo griego, donde las características históricas de los partidos populares y la larga tradición de luchas democráticas, amén de la situación geopolítica de la Península durante la Guerra Fría, marcan una articulación más clara entre partidos populares y movimientos sociales. En los Estados Unidos, en tanto, antes que la flexibilidad de las condiciones del trabajo y la destrucción de empleo en las cuatro décadas previas (fenómenos también registrados, con índices de desempleo históricamente menores sin embargo) la financiarización de la economía resulta el dato más interesante por su impacto en la cultura política, al promover la identificación del trabajador norteamericano como consumidor antes que como agente de producción (a través de su papel como tenedor de acciones y bonos, y su cotización en los sistemas privados de pensión y seguro médico), reforzando una tradición ideológica secularmente centrada en el individualismo. Sin

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embargo, el papel del complejo militar – industrial en el desarrollo económico, y la vinculación del Partido Demócrata con los sindicatos industriales, lazo nunca roto del todo a pesar de la crisis, ha redundado en la regulación exitosa del proceso de contracción del crecimiento y en su morigeración por parte de las clases dominantes y el bipartidismo tradicional. En el Sur, en tanto, se ha asistido a lo largo de cuatro décadas al crecimiento absoluto y relativo de la clase trabajadora en términos de su peso demográfico en la estructura social, contracara de su reducción en el centro y función de la expansión real del capital hacia la periferia, tal como establecimos en nuestra primera sección. Sin embargo, este proceso no estuvo exento de particularidades. En primer lugar, que ello ha implicado también una migración constante de sus integrantes como periferia de la clase trabajadora en los países centrales. En segundo término, que buena parte de esta clase trabajadora está aún constituida por migrantes de primera o segunda generación desde las áreas rurales (siendo China e India los ejemplos paradigmáticos de este fenómeno), integrándose típicamente como periferia de trabajadores en las ciudades, y diferenciándose en términos sociológicos, etarios y de identidad respecto al núcleo de trabajadores mayores y estables.17 En tercer lugar, volvemos a enfatizar que la contracara de la crisis global ha sido el desplazamiento del capital hacia la periferia, por razones tanto económicas como geopolíticas. En lo referente a los “nuevos territorios” incor17

Para China existe una abundante literatura sobre este fenómeno, y sobre las características de la protesta obrera y la acción colectiva sobre la base de la formación de una conciencia obrera. Entre ella, Cai, 2006; Hurst, 2009; Lee, 2007; O’ Brien, 2008.

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porados al capital, entonces, el resultado de la crisis ha sido de manera contradictoria la redinamización de la economía y de las relaciones monetarias y salariales, lo cual hace que el crecimiento de las clases trabajadoras se desarrolle en el contexto de un capitalismo sumamente dinámico. De allí la ampliación de los margenes del sistema político en la regulación de las contradicciones sociales. Finalmente, y en relación a este punto, el proceso de urbanización e industrialización en estas regiones aún está en curso, por lo cual las perspectivas de posicionamiento de los sectores populares en relación a la constitución de movimientos sociales y su vinculación con el sistema político, aún se encuentran abiertas. Una situación intermedia entre estos dos polos “típicos” está constituida por la actualidad latinoamericana, donde elementos “viejos” y “nuevos” se combinan, donde el impacto de la crisis de los últimos cuatro años en el crecimiento económico ha sido a la vez mayor que en la periferia asiática y menor que en el centro, y donde sus gobiernos se encuentran actualmente en una encrucijada, entre el ajuste fiscal y su fidelidad a las demandas de los sectores populares que, sólida e históricamente constituidos como movimientos sociales, los auparon hacia triunfos electorales y procesos de reformas inéditos en la región durante la última década.

Conclusiones Podemos sintetizar lo expuesto hasta aquí en los siguientes ítems:

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1. Hemos establecido el carácter económico de la crisis, antes que su apariencia financiera. 2. Hemos remontado este carácter a movimientos estructurales de cuatro décadas. 3. Hemos señalado que el factor explicativo por excelencia de estos movimientos ha sido el desplazamiento del capital hacia su periferia, fenómeno tanto económico como político. 4. Hemos sostenido que la financiarización de la economía (y su crisis) está subordinada a este desplazamiento. De aquí se desprende que la persistencia de una periferia sumamente dinámica aún en el contexto de la crisis puede hipostasiar sus límites todavía por un par de décadas más, hasta la finalización de los procesos de urbanización en el Este Asiático. 5. El carácter diferencial de la crisis de 2008-2011, y la agudización de este carácter a partir de 2011, es una evidente politización de la crisis en el centro de la economía mundial capitalista. Esto abre posibilidades ciertas de resistencia. 6. Sin embargo, los límites de esta resistencia están dados por la fragmentación y reducción absoluta y relativa de la clase trabajadora en los países centrales. Sostenemos asimismo que la tradición ideológicopolítica reciente de la izquierda europea ha minado seriamente las posibilidades de construir alternativas políticas viables para los sectores populares, de por sí ya golpeados por cuatro décadas de desestructuración social.

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7. De esta perspectiva se desprende que sigue siendo necesaria una correlación positiva entre actores colectivos organizados y direcciones políticas populares, como prerrequisito de la construcción de proyectos progresistas de transformación. 8. Estos proyectos están sin embargo ausentes en el polo dinámico del Este Asiático, por las características aún no maduradas de sus procesos de industrialización. En síntesis, podemos aventurar con algún grado de sustento la reproducción futura de la crisis, habiendo señalado no obstante algunos horizontes políticos de acción, que deberán madurar en el mediano plazo.

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Capítulo 3

A crise do capitalismo global em perspectiva histórica Francisco Luiz Corsi1

Introdução1

A

atual crise que assola o capitalismo global desde 2008 parece estar longe de ser superada. Seus desdobramentos são muitos desiguais, o que reafirma a tendência de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Os EUA, o Japão e, particularmente, a zona do Euro sofrem agudamente ainda hoje com a crise. Enquanto alguns países asiáticos, apesar de apresentar uma desaceleração, tem conseguido manter seu ritmo de crescimento econômico em patamares bastante razoáveis. Não é possível prever se esse crescimento terá fôlego suficiente para sustentar e até recuperar a economia mundial, pois as economias da região são bastante dependentes das exportações. Além do mais a continuidade de altas taxas de acumulação de capital na região e a fraca demanda efetiva dos países desenvolvidos podem agravar o processo de sobreacumulação de capital, que está

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Professor de Economia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP.

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na raiz dos problemas de exacerbação da instabilidade sistêmica que o capitalismo vive desde os anos 1980, quando se firmou a hegemonia do capital financeiro. A substantiva elevação do consumo interno da China, que poderia representar uma saída, não ocorrerá em curto espaço de tempo e talvez não seja um processo nada tranquilo. A própria desaceleração da economia chinesa tende afetar negativamente parte da periferia que cada vez mais passou a gravitar ao seu redor em decorrência de sua crescente demanda por matérias primas e outros insumos. O problema central em curto prazo parece ser o excesso de capital fictício, que está sufocando a economia mundial. A destruição de mais de 30 trilhões de dólares em valores de ações, títulos, bônus etc. desde o início da crise não resolveu o problema. Segundo D. Harvey (2011), existem circulando na economia mundial cerca de 600 trilhões de dólares na forma de capital fictício para um PIB global de 50 trilhões. Esse capital sustentou-se e avolumou-se a partir de sucessivas bolhas especulativas das últimas três décadas. A formação de bolhas especulativas tem sido fundamental para a valorização desse capital e, portanto, para sua existência. Essas bolhas também têm profundos efeitos sobre a acumulação de capital. O capitalismo global tem sido sustentado simultaneamente pela crescente especulação financeira e pela formação de uma nova fronteira de acumulação no Leste asiático, que surgiu da reconfiguração espacial do sistema capitalista. Esses processos são intimamente articulados e contraditórios. Resultaram da reestruturação do capitalismo como resposta à crise estrutural dos anos 1970, marcada pela sobreacumulação, pela falência do sistema monetário

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internacional, pela rebeldia do trabalho e pela crise energética, que sinalizou para o crescente problema ecológico decorrente de um modo de produção cuja meta é a valorização perpetua do capital. O objeto do presente capítulo, que tem um caráter de notas, é realizar uma breve reflexão acerca dessas questões a partir de uma perspectiva histórica.

A crise estrutural e a reestruturação da economia mundial: o capitalismo global A crise década de 1970 marcou o fim dos chamados “30 anos gloriosos” do capitalismo e deu início a uma fase de baixo, porém desigual, crescimento que se estendeu pelas duas décadas seguintes (HOBSBAWM, 1995; CHESNAIS, 1996). A crise estrutural decorreu da sobreposição de varias crises, quais sejam: crise de superprodução, crise do sistema financeiro internacional estabelecido em Bretton Woods, crise energética, crise do padrão tecnológico, crise do fordismo e crise de hegemonia dos EUA. Esses processos históricos estavam entrelaçados. Em um contexto de acirramento da luta de classes, no centro e na periferia profundas transformações sociais pareciam possíveis à época (MANDEL, 1990; HARVEY, 1992; BRENNER, 2003). Entretanto, como resposta a crise estrutural e a ameaça de revolução social, as grandes corporações, os grandes bancos, os fundos de investimento e os governos dos países centrais imprimiram uma estratégia visando à reestruturação do sistema. No centro, iniciou-se um processo de desmonte

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do Estado de Bem-estar Social, redirecionaram-se os gastos públicos para sustentar a valorização do capital financeiro, sobretudo por meio da ampliação da dívida pública. Paralelamente, verifica-se sob a égide de políticas neoliberais o aprofundamento da abertura das economias nacionais. De particular importância foi a desregulamentação financeira. Este processo foi fundamental para o florescimento do capital financeiro, que vinha retomando espaços desde a década de 1960, depois de enfrentar profundo retrocesso decorrente da Grande Depressão dos anos 1930. Com a abertura das economias nacionais este capital ganhou enorme mobilidade, o que contribuiu para exacerbar a instabilidade sistêmica. A redução ou a total supressão dos controles de capital fragilizou boa parte dos Estados nacionais, que perderam espaços para adotarem políticas voltadas para o pleno emprego ou políticas desenvolvimentistas como no caso da periferia. Muitas economias ficaram a mercê dos movimentos especulativos, como ficou demonstrado nas sucessivas crises a partir dos anos 1990, em especial na periferia, mas também no centro, como nos dias de hoje (HARVEY, 1992, 2008, 2011; CHESNAIS, 1996, 2005). Outra frente de luta do capital foi a ofensiva contra a classe trabalhadora, que se deu por meio da reestruturação produtiva a partir da adoção da chamada acumulação flexível, que aprofundou a precarização do trabalho. Tão importante quanto ela foi a recomposição do exército industrial de reserva em escala mundial pela internacionalização da produção e pela forte emigração em direção as regiões desenvolvidas. Esses processos ao incorporarem milhões de trabalhadores da Ásia e da Europa Oriental mal renu-

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merados e relativamente qualificados à economia mundial fragmentaram os interesses da classe trabalhadora e contribuíram para discipliná-la para o capital. Sem duvida que a reestruturação produtiva só foi possível em um contexto de mudança da correlação de forças favoravelmente aos capitalistas, marcado pela elevação do desemprego, pela crise dos partidos de esquerda e sindicatos, pela fragmentação da classe trabalhadora, pelo fracasso do reformismo, pela desilusão com o socialismo e pelo desmoronamento da URSS (HARVEY, 1992; HOBSBAWM 1995). No bojo desses processos verificou-se a realocação espacial da acumulação em âmbito mundial, originando uma tendência a desindustrialização das regiões centrais do capitalismo. Vários seguimentos produtivos foram deslocados para a periferia, em especial para o Leste asiático, onde força de trabalho barata, qualificada e disciplinada, associada a subsídios, câmbio desvalorizado e a uma legislação no mínimo permissiva no que diz respeito à proteção ambiental propiciavam enorme rentabilidade para o capital. Este processo foi responsável, em parte, para assegurar um ritmo elevado de acumulação na região, enquanto o centro do sistema crescia a taxas muito baixas e vastas áreas da periferia, como América Latina e África, passaram por duas décadas de crise e instabilidade social e econômica. Formou-se um paulatinamente uma nova fronteira de acumulação de capital, que ganharia peso crescente na economia mundial, sendo hoje a principal fonte de seu dinamismo (BASUALDO e ARCEO, 2006; CORSI, 2011). Observa-se crescente fluxo de capitais e tecnologia para o Leste asiático. Neste processo cabe destacar o papel do ca-

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pital japonês, que em virtude da valorização do iene a partir de 1985 deslocou parte de suas empresas para outros países da região com o fito de garantir sua participação no mercado mundial diante da renovada concorrência norte-americana. Esses fluxos não se constituem apenas de investimento externo direto, são também formados por capitais especulativos. A Ásia também se integrou a economia mundial como espaço de valorização fictícia de capital, como ficaria evidente na crise de 1997 (MEDEIROS, 2006, 2010). Essa expansão só foi possível graças à abertura comercial e financeira das economias nacionais, a diminuição dos preços de transportes e o desenvolvimento das comunicações. Essas transformações possibilitaram as matrizes das empresas transnacionais coordenar e controlar processos globais de produção e distribuição, cujas fases encontram-se espalhadas geograficamente. Essas empresas por meio de variados contratos e subcontratos com empresas em rede disseminaram processos produtivos pelo mundo (ARCEO e BASUALDO, 2006). Por outro lado, o rápido crescimento dos países asiáticos incrementa a concorrência e a superacumulação de capital, apesar da enorme queima de capitais verificada nas crises. Entretanto, a dinâmica das economias do Leste asiático não pode ser explicada apenas pelas transformações em curso na divisão internacional do trabalho decorrentes das reações a crise estrutural da década de 1970. Também é fundamental levar em consideração os processos sociopolíticos internos às economias asiáticas, em particular a adoção de projetos nacionais de desenvolvimento voltados para as exportações. Essa estratégia de desenvolvimento inspirada no modelo ja-

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ponês, mas que adquiriu inúmeras peculiaridades nacionais, possibilitou a esses países se inserirem de forma dinâmica na economia mundial. O peso do crescimento acelerado do Leste Asiático, sobretudo o da China, cuja revolução revelou-se como uma revolução fundamentalmente nacional, ficaria evidente a partir de 2003, quando a economia mundial retomaria um vigoroso crescimento. No entanto, vastas áreas da periferia, como a América Latina, viveram momentos de grande instabilidade e crise econômica e social, apresentando uma inserção passiva na economia mundial, sobretudo a partir da crise das dívidas externas, que foram importantes para colocar em xeque as estratégias desenvolvimentistas (GONÇALVES, 2002; AMSDEN, 2009; CORSI, 2011). A reestruturação capitalista decorreu, em boa medida, de decisões políticas voltadas para recuperar a rentabilidade, disciplinar a classe trabalhadora e recompor a hegemonia norte-americana. A própria abertura dos EUA em direção a China representou uma tentativa de recuperar espaço na Ásia depois da derrota no Vietnã e deter o aparente avanço soviético. Isto, porém, não significa que as forças que desencadearam a reestruturação capitalista detêm o controle do processo histórico, pois os resultados, muitas vezes, foram inesperados (FIORI, 1999).

A dinâmica do capitalismo global: instabilidade e crise O ritmo lento da acumulação de capital no centro do sistema, em parte decorrência das dificuldades em competir

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com as áreas mais dinâmicas, estimulou ainda mais o crescente inchaço da esfera financeira, que já vinha crescendo de forma acelerada desde meados da década de 1970, sobretudo devido à inundação de liquidez após a 1º crise do petróleo. A existência de capital supérfluo, que encontra dificuldade de valorizar-se na produção, gera um excesso de capital na forma dinheiro que busca valorizar-se com base na especulação com títulos, moedas, ações e commodities. Parte do exponencial crescimento da valorização fictícia de capital também se deveu a reaplicação dos ganhos especulativos na própria especulação. Dessa forma, existe um mecanismo endógeno de crescimento que realimenta o processo de valorização fictícia do capital (CARCANHOLO e SABADINI, 2011). Quando o capital fictício se desloca muito das condições reais de valorização mais cedo ou mais tarde esse capital tem que ser desvalorizado para recompor as próprias condições de valorização, abrindo a possibilidade da ocorrência de crises. (CHESNAIS, 1996, 2005). Apesar da recuperação das taxas de lucro a partir da década de 1990, não se observa uma retomada vigorosa dos investimentos na maior parte do centro do sistema, o que indica dificuldade crônica de valorização do capital nesse espaço de acumulação. A retomada dos investimentos no início dos anos 1990 em algumas regiões, devido em especial ao incremento da concorrência intercapitalista, sustentou a acumulação, mas ampliou a capacidade excedente em escala global, sendo uma das causas principais da crise asiática de 19972 . 2

Não é possível no escopo do presente capítulo aprofundar a discussão a respeito da crise asiática. Entre outros, ver: Krugman, (1999) e Brenner (2003).

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De acordo com Chesnais (2005), o capital financeiro absorve capitais da esfera produtiva para aplicá-los na especulação. Isto dificulta a retomada mais intensa dos investimentos. Estaria aí a principal razão do lento crescimento dos países centrais. Para este autor, os lucros não acumulados das empresas transnacionais, as rendas da terra e as derivadas da exploração de recursos naturais, os juros provenientes do pagamento das dívidas externas dos países em desenvolvimento e as poupanças centralizadas pelos fundos de pensão e pelos fundos mútuos alimentam continuamente a esfera financeira, que se expande também em virtude da continua reaplicação dos capitais valorizados na esfera financeira na própria na especulação. O resultado é a expansão permanente dos mercados financeiros e o predomínio dessa fração do capital sobre as demais. De acordo com Chesnais (2005), por meio do controle acionário, crescentes setores da burguesia tendem a se tornar rentistas, passando a impor às empresas e aos assalariados a lógica do capital financeiro, baseada em elevada remuneração, obtida em espaços de tempo muito curtos. Isto diminui a capacidade das empresas financiarem os investimentos a partir de lucros retidos e inviabiliza os projetos que não asseguram as taxas esperadas pelos acionistas. O crescimento modesto dos investimentos e a tendência à queda dos salários, que não acompanham os ganhos de produtividade, seriam as causas centrais do baixo crescimento econômico mundial entre fins da década de 1970 e 2003 (CHESNAIS, 2005, p. 50-58). O baixo crescimento no centro do sistema associado a abundância de capital induziu o incremento dos fluxos de capital para a periferia, o que contribuiu para criar as condi-

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ções para as crises do México, da Ásia, da Rússia, do Brasil e da Argentina em um contexto de abertura das economias e de adoção de políticas econômicas inspiradas no chamado Consenso de Washington. O caso da crise asiática é emblemático. O crescente fluxo de capitais contribuiu para sustentar tanto elevadas taxas de acumulação quanto bolhas especulativas na região. O inchaço do capital fictício e a intensa acumulação na Ásia são processos entrelaçados. Isto ficou bastante evidente na crise asiática de 1997 e no período de ascensão da economia mundial entre 2003-2007. A grande expansão da economia regional não se sustentava apenas em altas taxas de investimento, mas também na desenfreada especulação com títulos, imóveis e ações, alimentada por caudaloso fluxo externo de capitais. A própria recuperação da crise de 1997 não pode ser entendida senão a partir do incremento das exportações asiáticas para os EUA, que viviam um momento de auge baseado nos investimentos relacionados à chamada nova economia, no aumento do consumo decorrente do crescente endividamento das famílias e na frenética especulação com ações das empresas de alta tecnologia. Esta especulação com ações era responsável, em parte, pela manutenção elevados investimentos à medida que permitia a capitalização das empresas e pela elevação do consumo devido ao efeito riqueza. Concomitantemente, o ajuste imposto pelo FMI e pelos países centrais aos países asiáticos, como já tinha ocorrido na América Latina e voltaria a ocorrer nas crises do Brasil e da Argentina, pautou-se pela preservação dos interesses do capital financeiro global, sendo que as populações asiáticas tiveram que arcar com o ônus dos ajustes recessivos (BRENNER, 2006).

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A recuperação asiática a partir sobretudo dos estímulos advindos das crescentes exportações para os EUA indicam a forte articulação entre as economias dessa região e a norte-americana. Como assinalou Belluzzo (2005), observa-se uma simbiose entre as economias asiáticas e a dos EUA. Para este autor, os EUA só puderam aumentar sistematicamente esses déficits porque o resto do mundo, em especial os países asiáticos, está disposto a financiá-los. Esses países fazem isso na defesa de seus próprios interesses, à medida que eles dependem das exportações para o mercado norte-americano, embora essa dependência tenha caído na última década em virtude da crescente importância do mercado regional asiático, que gravita em torno da China. Esses países também adotam essa política por falta de outra opção par manter suas reservas em outra forma que não em ativos em dólar. Essa política também contribui para manter suas moedas desvalorizadas, o que é de grande importância em um contexto de acirrada concorrência (BELLUZZO, 2005; BRENNER, 2006). Esta forma de financiar os déficits dos EUA permite sustentar o excesso de consumo dos norte-americanos e estabilizar a economia, possibilitando a adoção por de políticas expansionistas, que contribuem para impulsionar a economia norte-americana e, por conseguinte, a própria economia mundial, pois esta continua dependente, em parte, dos déficits orçamentários e dos déficits comerciais norte-americanos. As bases dessa relação são frágeis, à medida que o setor industrial norte-americano é solapado (BELLUZZO, 2005; BRENNER, 2006). Na fase de expansão 2003-2007, o peso da demanda e dos déficits norte-americanos para o bom desempenho da

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economia mundial foi de grande importância. A economia dos EUA nesse período se sustentava, sobretudo, na bolha especulativa com imóveis e no efeito riqueza decorrente dessa bolha, que foi um dos fatores da ampliação do consumo. Também se sustentava no crescente gasto militar e nos crescentes déficits públicos. Cabe mencionar que o setor da construção possui enorme efeito de encadeamento, estimulando uma série de outros setores. É verdade que nesta fase, também foi de grande importância o bom desempenho da economia chinesa, que estimulou vastas áreas da periferia, mas também ajudou a inflar a especulação com commodities. Não custa lembrar que o elevado crescimento chinês também se vinculava as suas crescentes exportações, mas também passou a depender cada vez mais do crescimento de seu mercado interno. Ao mesmo tempo em que a retomada geral da acumulação de capital expandia o excesso de capacidade produtiva em escala global, crescia em ritmo acelerado a especulação, sobretudo a vinculada à expansão imobiliária norte-americana, que acabou enredando o conjunto do sistema financeiro global, dada a intensa interligação dos mercados financeiros. Dessa maneira, se preparou o terreno para nova crise. A crise atual, que teve início em 2008 com a falência do Banco Lehman Brothers3, mas cujos indícios datavam de no

3

O efeito da falência foi devastador, pois evidenciou a situação generalizada de insolvência do sistema financeiro nos EUA e na Europa. Situação que ainda não foi totalmente superada. As recentes dificuldades enfrentadas pelos bancos espanhóis são ilustrativas. A quebra do Lehman Brothers desencadeou uma onda de pânico.

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mínimo 2006 (BRENNER, 2006; HARVEY, 2011)4 , tinha no excesso de capital fictício, como ocorreu nas crises que varreram a economia mundial na década de 1990, uma de suas principais causas. A fase expansiva foi inflada pela especulação centrada nos EUA, mas que devido às profundas interligações do sistema financeiro assumiu dimensões globais. Em 2008, o volume de empréstimos imobiliários era da ordem de 12 trilhões de dólares. Parte desse montante era constituída de títulos de solvência duvidosa, representados pelos títulos subprime (BORÇA JR. e TORRES FILHO, 2008). Para reduzir os riscos, os bancos e as instituições de crédito imobiliário norte-americanas securitizaram esses títulos. Eles foram tomados como base para o lançamento de derivativos, que foram vendidos para outros bancos e para os fundos de investimentos pelo mundo todo. Muitas dessas instituições utilizaram esses títulos como garantia de empréstimos, que serviam para alavancar aplicações em mercados de ações, moedas e títulos. Dessa forma, formou-se uma 4

Segundo Harvey (2011, p. 9), problemas com financiamento imobiliário podiam ser observados desde o final dos anos 1990. Mas nada foi feito para enfrentar a situação, que seria agravada com a elevação dos juros para deter pressões inflacionárias em 2006. O problema ganharia dramaticidade em 2007, quando 2 milhões de pessoas perderam suas casas. Neste contexto, a oferta de imóveis aumentou pela retração da demanda e pela recolocação no mercado das casas retomadas pelos bancos a partir da avalanche de execuções hipotecárias. A construção civil praticamente foi paralisada e o preço dos imóveis começou a despencar. Um dos resultados desse processo foi a crescente deterioração das instituições financiadoras e dos títulos baseados direta ou indiretamente nessas operações de financiamento, que acabou afetando o conjunto do sistema financeiro.

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uma cadeia de especulação com base em papéis insolventes. Somaram-se a esse processo as bolhas imobiliárias na Espanha e na Irlanda. Isto abria a possibilidade de colapso de todo o sistema financeiro global. (Belluzzo, 2009; CHESNAIS, 2005; CORSI, 2009; Harvey, 2011). O estouro da bolha jogou a economia em profunda recessão, que só não foi mais grave graças à pronta ação de socorro do capital pelos Estados, sobretudo dos países mais desenvolvidos, que fizeram de tudo para estancar a crise de liquidez do sistema. Esta postura evitou, provavelmente, uma depressão das mesmas proporções a da ocorrida na década de 1930. Os bancos centrais dos países desenvolvidos passaram a garantir os depósitos até certo limite e injetaram bilhões de dólares para combater o colapso da liquidez na economia mundial (BELLUZZO, 2009; HARVEY, 2011). Os valores dos papéis despencaram, o que representou uma desvalorização maciça de capital fictício. Mas isso não esvaziou a crise, apesar da queima de trilhões de dólares. O risco de colapso do setor financeiro nos países era palpável nos primeiros meses da crise. A crise de liquidez acabou gerando uma crise na economia real, com redução da produção e do emprego em escala mundial. A crise evidenciou mais uma vez a incapacidade dos mercados regularem a economia de forma eficiente. Governos liberais ante a gravidade da situação, contrariando o próprio discurso, foram obrigados a intervir na economia de maneira abrangente, estatizaram parte do sistema financeiro, adotaram medidas protecionistas, salvaram empresas em estado falimentar etc. As instituições internacionais, como o FMI e o Banco Mundial foram incapazes de uma ação eficaz para deter a

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crise. A fraqueza desses organismos para regular a economia mundial ficou evidente. Coube aos Estados nacionais o papel decisivo no enfretamento da crise. O grau de deterioração da economia só não foi mais grave graças também ao desempenho das economias em desenvolvimento, apesar delas também terem sofrido com a crise. A crise que parecia ter amainado a partir do segundo semestre de 2009, voltou com força no início do ano seguinte. Já em novembro de 2009, veio à tona a delicada situação fiscal e das contas externas da Grécia.5 A Grécia tinha graves problemas de financiamento de sua dívida e de suas contas externas, apresentando elevada dependência dos fluxos externos de capital. O problema se agravou com a crescente deterioração da situação de Portugal, Irlanda, Espanha e da Itália. A segunda onda da crise levou ao aprofundamento da crise na Europa, com repercussão deletéria para conjunto da economia mundial. Os países que compõem a zona do euro, mas sobretudo desses países, não resistiram à pressão do capital financeiro e adotaram rígidas políticas de estabilização na esperança de deter a crise. Não por acaso suas economias continuam em recessão. A crise trouxe à tona as fragilidades do euro. A política recessiva agravou a situação das contas públicas, que já não eram boas em virtude dos fortes desequilíbrios estruturais. Depois de salvar o capital financeiro do colapso, os Estados passaram a enfrentar fuga de capitais e dificuldades crescentes para rolar suas dívidas públicas. Ao invés de 5

A dívida pública grega equivalia à época a 115,1% do PIB e o déficit fiscal 13,6%. O déficit em conta corrente era de 11,2% do PIB (FORMENTO e MERINO, 2011).

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tomarem atitudes para reanimar e regular a economia, adotaram políticas mais austeras, indicando um elevado grau de comprometimento com os interesses financeiros (FORMENTO e MERINO, 2011)6. Entretanto, a estratégia baseada na austeridade tem jogado nas contas dos trabalhadores o ônus dos ajustes para superar a crise, pois implica no incremento do desemprego, na redução dos salários, na precarização das condições de trabalho, na redução dos gastos sociais e na queda das 6

O comprometimento dos bancos franceses, alemães, holandeses e ingleses com os países em crise era e é ainda elevado. Portanto, tornou-se vital para esses interesses evitar o colapso e para eles isso significa garantir redução do déficit público e estabilização das contas externas dos países em crise por meio de políticas econômicas recessivas, pois consideram que só reduzindo as relações dívida/PIB e dívida/exportações conseguiram garantir os fluxos e pagamentos.Esta política recessiva e austera visa garantir o pagamento das dívidas por meio do aumento da poupança interna e de ajuda financeira. Seus defensores avaliam que garantir a capacidade de pagamento dos países em crise trará de volta a confiança do capital financeiro e, dessa forma, os juros cairiam e os fluxos de capitais seriam retomados, melhorando as condições de financiamento das dívidas. Com o incremento da poupança e a volta dos fluxos de capital, estes países teriam melhores condições para retomar os investimentos, aumentar a produtividade do trabalho, ampliar a produção, elevar as exportações em um contexto de redução dos salários graças á própria crise e ao corte de direitos sociais. Dessa forma, seria possível enfrentar os problemas de fundo da unidade monetária, em particular os diferenciais de custo e de produtividade. Aprofundar esse caminho exigiria maior controle das políticas econômicas nacionais pela União Européia. Isto implicaria na redução da autonomia dos países membros, sobretudo no que diz respeito à política fiscal (FORMENTO e MERINO, 2011).

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aposentadorias. Os problemas dessa saída não são poucos. A política recessiva reduz a arrecadação pública, o que dificulta de maneira crescente o pagamento das dívidas, criando uma situação insustentável. Também não está claro como estes países recuperarão os investimentos necessários para reduzir os diferenciais de produtividade em um ambiente recessivo. Não parece plausível esperar que apenas a redução de custos e salários pelas reformas serão suficientes para enfrentar a questão da competitividade. Ademais, o incremento da produtividade é um processo que exige largo prazo para ocorrer (FORMENTO e MERINO, 2011). A segunda onda da crise ainda não se esgotou. As economias periféricas, em especial as da Ásia, não tem conseguido reanimar o conjunto da economia mundial. Do ponto de vista do capital financeiro, uma saída seria articular a formação de novas bolhas especulativas, que sustentem a enorme massa de capitais fictícios. Contudo, a crise atual parece colocar em questão o padrão de valorização baseado, sobretudo, em sucessivas bolhas especulativas. A solução também não se encontra em uma maior regulação dos mercados, que é necessária, mas não suficiente para superar as dificuldades. No início da crise, veio à tona a discussão da premente necessidade do retorno da regulação dos mercados e do sistema bancário, como se o problema da crise se reduzisse a essa questão. Porém, a contundente oposição do capital financeiro bloqueou até o momento iniciativas nesse sentido (CINTRA e PRATES, 2011). O neoliberalismo parece enfrentar uma severa crise, mas resiste, em parte pela debilidade das forças populares. Contudo, a crise não pode ser reduzida a um problema de falta de regulação dos mercados, mas decorre

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de profundas contradições do modo de produção capitalista, cuja expressão maior é o excesso de capital fictício.

Considerações finais Enfim, a dominância do capital financeiro gerou uma dinâmica econômica instável, baseada em bolhas especulativas. A formação e o estouro de bolhas especulativas têm caracterizado o padrão de acumulação do capitalismo globalizado. Os ciclos da economia mundial estão relacionados às bolhas especulativas (Brenner, 2003 e 2006), como ficou evidente nas crises que assolaram a periferia na década de 1990 e o centro do sistema a partir da crise na Nasdq (2001) e finalmente da crise da bolha imobiliária 2007. A crise faz parte da própria dinâmica da acumulação de capital. Não existe capitalismo sem crises periódicas. As crises são as formas pelas quais o sistema resolve momentaneamente as suas contradições para recolocá-las mais adiante em um patamar superior. Os conflitos de classe, na tentativa de resolução dessas contradições, levam o sistema a reestrutura-se, criando as condições para uma nova fase de expansão.

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Capítulo 4

Crise atual: observações a partir da Economia Política dos Sistemas-Mundo Rosângela de Lima Vieira1

A

presentamos1 a seguir o desenvolvimento da análise apresentada inicialmente no XII Fórum de Conjuntura, “Crise do capitalismo global no mundo e no Brasil”2 . A mesa “A Crise em perspectiva Histórica”, propôs uma reflexão do conturbado tempo presente a partir da história. Diante desse desafio, construímos um percurso comparativo de alguns aspectos da transição hegemônica britânica para a norte-americana com a atual crise do capitalismo. Espera-se que assim possamos encontrar algumas balizas que contribuam para um exame mais aguçado da atual crise do capitalismo. A exposição foi elaborada a partir da perspectiva da abordagem da Economia Política dos Sistemas-Mundo, constituída a partir da tríade: Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. E desse, sobretudo a partir 1

Doutora em História com Pós-doutorado em Economia. Docente do DCPE – FFC/UNESP – câmpus de Marília-SP.

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Realizado de 29 a 31 de outubro de 2012. FFC/UNESP – câmpus de Marília-SP.

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de sua obra “O longo século XX”. O percurso aqui desenvolvido está dividido em três sessões: o conceito de Ciclo Sistêmico de Acumulação, a transição do CSA Britânico para o Norte Americano, e a fase atual.

O conceito de CSA Os Ciclos Sistêmicos de Acumulação, segundo Arrighi, são unidades de análise mais ‘manejáveis’ construídas a partir da idéia braudeliana de capitalismo como um processo histórico de longa duração e enquanto o terceiro andar da economia 3. Os ciclos sistêmicos de acumulação derivam diretamente da idéia braudeliana do capitalismo como a camada superior “não especializada” da hierarquia do mundo do comércio. Nessa camada superior é que se fazem os “lucros em larga escala”. Nela, os lucros não são grandes apenas porque a camada capitalista “monopolize” as atividades econômicas mais lucrativas; mais importante ainda é o fato de que a camada capitalista tem a flexibilidade necessária para deslocar continuamente seus 3

Para Fernand Braudel a economia se apresenta historicamente em três níveis: o primeiro andar, a economia das trocas simples; o segundo andar, a economia de mercado; e o terceiro nível, o capitalismo. Este último caracterizado por um vasto conjunto de estratégias na busca do maior lucro possível, o que inclui a fuga da ‘lei de mercado’ da oferta e procura.

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investimentos das atividades econômicas que estejam enfrentando uma redução dos lucros para as que não se encontrem nessa situação. (ARRIGHI, 1996, p. 8) Arrighi também esclarece que ao decompor esses cinco longos séculos em quatro CSAs: Genova, Holanda, Grã Bretanha e Estados Unidos – refere-se “ao sistema como um todo, e não a seus componentes”. E também explica que concentrar-se “nas estratégias e estruturas dos agentes governamentais e empresariais genoveses, holandeses, britânicos e norte-americanos deve-se exclusivamente à posição central que ocupam, de forma sucessiva” (Ibid., p. XI). Ou seja, a economia capitalista é mais ampla tanto geograficamente, quanto no que se refere a seus agentes. E, embora a ênfase apresente os centros hegemônicos de cada CSA, os modelos econômicos capitaneados por cada um deles tendencialmente espacializaram-se. Segundo Arrighi, o principal objetivo do conceito de ciclos sistêmicos é descrever e elucidar a formação, consolidação e desintegração dos sucessivos regimes pelos quais a economia capitalista mundial se expandiu, desde seu embrião subsistêmico do fim da Idade Média até sua dimensão global da atualidade. (Ibid., p. 10). Nessa perspectiva, outra característica do capitalismo consiste na flexibilidade e liberdade de escolha do capital, que o leva a um movimento de incremento na produção ou

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na financeirização de acordo com as taxas de lucro. Isso explica por que quando a “expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo, à sua forma monetária.” O que indica essa expansão financeira? “um sintoma da maturidade de determinado desenvolvimento capitalista”. (Ibid., p. 5) Essa tendência evidencia-se desde a Itália do século XV, quando a oligarquia capitalista genovesa passou das mercadorias para a atividade bancária, e na segunda metade do século XVI, quando os nobili vecchi genoveses, fornecedores oficiais de empréstimos ao rei da Espanha, retiraram-se gradualmente do comércio. Seguindo os holandeses, essa tendência foi reproduzida pelos ingleses no fim do século XIX e início do século XX, quando o fim da ‘fantástica aventura industrial’ criou um excesso de capital monetário. E depois da igualmente fantástica aventura do chamado fordismo-keynesianismo, o capital dos Estados Unidos tomou um rumo semelhante nas décadas de 1970 e 1980. (Ibid., p. 5) A observação de expansões materiais seguidas de expansões financeiras reiteradas vezes levou à concepção dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação. Também se deve destacar que os ciclos sistêmicos de acumulação consecutivos superpõem-se parcialmente. Quando o ‘antigo’ ciclo entra na fase financeira – ou seja, as taxas de lucratividade pendem para

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os negócios financeiros – o que causa um deslocamento dos investimentos de capitais para esse setor; um ‘novo’ ciclo começa se desenhar a partir de uma expansão material – o que pode ser por causa de novos produtos, por exemplo –, e que lentamente começa a atrair investimentos. (Ibid., p. 6). Os quatro ciclos citados são apresentados por Arrighi em um gráfico4 , demonstrando visualmente essa sucessão e a superposição parcial dos ciclos sistêmicos de acumulação, quando ocorre a expansão financeira do ‘antigo’ CSA, há concomitância com a expansão material do ‘novo’ CSA. Os estudos das transições dos ciclos sistêmicos não apenas revelam a histórica econômica passada, mas subsidiam uma compreensão mais ampla presente. Especificamente, as características da passagem do CSA britânico para o norte americano, apresentadas por Arrighi, oferecem elementos comparativos para a análise da atual conjuntura.

Transição do CSA Britânico para o Norte Americano O CSA Britânico O Modelo britânico, chamado por John Gallagher e Ronald Robinson de ‘imperialismo de livre comércio’, ou “um sistema mundial de governo que se expandiu e suplantou o Sistema de Vestfália.” (Ibid. p. 53). Foi uma centralização sem precedentes do poder mundial nas mãos de um único Estado, o Reino Unido. 4

Cf. Arrighi, p. 219.

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Por outro lado, o imperialismo de livre comércio estabeleceu o princípio de que as leis que vigoravam dentro e entre as nações estavam sujeitas à autoridade superior do ‘mercado mundial’ regido por ‘leis próprias’. Esse poder foi resultante da adoção unilateral de uma prática e uma ideologia de livre comércio pelo Reino Unido. Ainda combinando a expansão territorial ultramarina com o desenvolvimento de uma indústria de bens de capital no país, essa política tornou-se um poderoso instrumento de governo de toda a economia mundial. Ao abrirem seu mercado interno, os governantes britânicos criaram redes mundiais que dependiam da expansão da riqueza e poder do Reino Unido, e de fidelidade a ela. Assim, pode-se dizer que o capitalismo mundial, sob a égide britânica, foi ao mesmo tempo um império mundial e uma economia mundial. Isso se perpetuou da segunda metade do século XVIII até o fim do século XIX e início do XX, quando forma-se a conjuntura de crise do CSA britânico. O Reino Unido exerceu as funções de governo mundial até o fim do século XIX. De 1870 em diante, começou a perder o controle e a Alemanha e os EUA iniciam sua ascensão na economia mundial. Os desafios alemão e norte-americano ao poderio mundial britânico fortaleceram-se mutuamente, comprometeram a capacidade da Grã-Bretanha de governar o sistema interestatal e acabaram levando a uma nova luta pela supremacia mundial, com uma violência e morbidez sem precedentes. (Ibid., p. 59).

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Os EUA estavam numa posição muito melhor do que a Alemanha. Suas dimensões continentais, insularidade e dotação extremamente favorável de recursos naturais, bem como a política sistematicamente seguida por seu governo, de manter as portas do mercado interno fechadas aos produtos estrangeiros, mas abertas ao capital, à mão de obra e à iniciativa do exterior, transformaram o país no maior beneficiário do imperialismo britânico de livre comércio5. Além disso, tanto a primeira como a segunda guerra mundial aceleraram o processo de hegemonia dos EUA. A partir de 1915, a demanda britânica de armamentos e máquinas somente pode ser atendida pelos EUA, o que deu a este direitos sobre as receitas e ativos britânicos. A expansão material norte-americana, iniciada por volta de 1870, é concomitante à expansão financeira britânica e com a ‘Grande Depressão’ (1873-1896). Como todos os séculos anteriores, o longo século XX compõe-se de três seguimentos distintos. O primeiro começa na década de 1870 e se estende até 1930, isto é, desde a crise a sinalizadora até a crise terminal do regime britânico de acumulação. O segundo vai da crise terminal do regime britânico até a crise sinalizadora do regime norte-americano – uma crise que podemos situar por volta de 1970. E o terceiro e último segmento vai de 1970 até a

5

Cf. Arrighi, 1996, p. 61.

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crise terminal do regime norte-americano.”6 (Ibid., p. 220-1).

O CSA norte americano Com o fim da segunda guerra os EUA haviam acumulado imensos créditos7, que lhe davam o “monopólio da liquidez mundial”. E mais, com o fim da guerra, já estavam estabelecidos os principais contornos desse novo sistema mundial: em Bretton Woods foram estabelecidas as bases do novo sistema monetário internacional; em Hiroshima e Nagasaki, novos meios de violência; e com a Carta das Nações Unidas as novas normas e regras de legitimação.8 O modelo norte americano é assim caracterizado: o livre comércio ideologizado e praticado pelo governo dos Estados Unidos, em todo o período de seu predomínio hegemônico, tem sido, antes, uma estratégia de negociação intergovernamental – bilateral e multilateral – sobre a liberalização do comércio, visando basicamente abrir as portas das outras na-

6

Arrighi distingue dois tipos de crise: a sinalizadora e a terminal. A primeira indica uma tendência dentro do ciclo, a segunda leva a uma transformação mais profunda no sistema, o que inclui a troca do centro hegemônico.

7

Cf. Arrighi, 1996, p. 278-9.

8

Cf. Arrighi, 1996, p. 278 a 284.

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ções aos produtos e às empresas norte-americanos. (Ibid., p. 71) E “com isso, atingiu-se um grau muito mais amplo de livre comércio multilateral sob a hegemonia norte-americana, comparado ao da britânica.” (Ibid., p. 72). E o ‘livre comércio’ garantiu privilégios aos EUA, uma vez que sendo mais produtivo e competitivo conquistou todos os mercados que lhes interessaram. Outra característica do modelo norte americano: as empresas multinacionais. Enquanto as Companhias de Comércio e Navegação dos séculos anteriores eram instrumentos altamente maleáveis da expansão do Estado, “as empresas multinacionais do século XX não o são. Longe de serem tais instrumentos à disposição do poder estatal, estas empresas cedo transformaram-se no limite mais fundamental desse poder.” (Ibid., p. 317) Elas não se situam acima dos interesses estatais, deslocam-se na direção da melhor lucratividade, independentes das necessidades nacionais.

A crise atual Segundo Arrighi, no decorrer de um Ciclo Sistêmico de Acumulação, há crises sinalizadoras e terminais. Como se viu em citação anterior, a cronologia do CSA norte-americano identifica a década de 1970 como sua crise sinalizadora. Ele se refere à expansão financeira dos anos 70 e 80 do século passado, que tal como vem ocorrendo desde o século XIV, sucede

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como reação característica do capital à intensificação das pressões competitivas que decorrem, invariavelmente, de todas as grandes expansões do comércio e produção mundiais. A escala, o âmbito e a sofisticação técnica da atual expansão financeira são, é claro, muito maiores que os das expansões anteriores. (Ibid., p. 309). Expansões financeiras, como se viu anteriormente coincidem com a crise terminal do CSA vigente e com a expansão material de um novo ciclo de acumulação. Da década de 70 em diante, houve várias crises, que têm desestabilizado a hegemonia norte-americana. E segundo Arrighi, a arrancada financeira da economia mundial se constitui-se “num aspecto integrante e precoce dessa crise.” (Ibid., p. 310), ou seja, demonstra a tendência de uma crise terminal prematura do CSA norte-americano. A financeirização exacerbada criou dificuldades e as alternativas de solução concorreram para novos problemas. Por exemplo, a flexibilização das taxas de câmbio, permitiu certa expansão do capital norte americano, além de livrá-los das restrições do balanço de pagamentos (inerente às taxas fixas de câmbio). Todavia, para se protegerem das variações decorrentes da flexibilização, “as empresas não tinham alternativa senão recorrer à maior diversificação geopolítica de suas operações.” Ou seja, elas se tornaram ainda mais multinacionais. E, além disso, para maior proteção a curto prazo, elas aumentaram ao mesmo tempo sua participação nas tran-

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sações financeiras9. Isso provocou uma cisão mais pontual, uma dissociação mesmo, dos interesses do capital e do estado. O primeiro desviando-se para países mais rentáveis, possível pela “completa liberalização dos empréstimos e investimentos privados norte-americanos no exterior, reforçaram as tendências que impulsionavam o crescimento explosivo dos mercados monetários offshore”. Contraditoriamente, o Estado norte-americano minado tentou “incitar o capital a manter em andamento a expansão material da economia mundial capitalista centrada nos Estados Unidos” (Ibid., p. 324) Decorrente desse processo há nitidamente uma “redução da defasagem no grau de industrialização entre os países de alta renda, por um lado, e os de renda baixa e média, por outro...” (Ibid., p. 347). O que pode ser interpretado como uma expansão material preponderantemente, mas não exclusivamente, asiático10. Em outras palavras: “um regime de acumulação emergente. Como todos os regimes emergentes que acabaram gerando uma nova expansão material da economia mundial capitalista, este último também é um subproduto do regime anterior.” (Ibid., p. 362). Ou seja, das contradições capitalistas do CSA vigente surgem iniciativas de investimento em outros setores e/ou regiões que modelam um novo regime de acumulação, dada a lucratividade advinda da expansão material impulsionada pelo ‘freio’ existente no regime em declínio. Pode-se destacar que “o principal aspecto estrutural do regime emergente ainda é o abastecimento de mercados ri9

Cf. Arrighi, 1996, p. 321.

10 Cf. Arrighi, 1996, p. 351.

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cos com produtos que incorporam a mão-de-obra barata dos países pobres.” (Ibid., p. 363). Tal aspecto mantém o padrão de consumo da sociedade norte-americana, porém não é reproduzido nas regiões emergentes, mantendo, portanto, um grau de subordinação e interdependência entre elas. Nitidamente, tratam-se de relações de mão dupla. O regime ‘antigo’ sustenta-se pelo sucesso do novo padrão de produção emergente; este por sua vez é bem sucedido na medida em que os EUA permanecem na condição de consumidor exemplar. A obra o “O longo século XX” é de 1994; logo, as crises surgidas nesse atual século11 não estão analisadas. E elas ao se somarem podem estar indicando a passagem da fase de crise sinalizadora para a crise terminal do atual CSA. Giovanni Arrighi (falecido em 2009) deu continuidade à análise da conjuntura até o início desse século. Em conjunto com Beverly Silver produziu o texto intitulado “O fim do longo século XX”, inédito até recentemente. Nele, Arrighi e Silver refletem sobre a possível transição hegemônica. Uma importante anomalia da presente transição é a bifurcação sem precedentes na localização geográfica dos poderes financeiro e militar. As corporações multinacionais estadunidenses têm investido maciçamente na China, repetindo o padrão histórico observado por Marx em que os centros em declínio transferem capital 11 A crise mais aguda, conhecida como ‘bolha imobiliária’ de 2008/09, deflagrada nos EUA, tem de fato desencadeado uma crise mais alargada geográfica e economicamente. O que pode ser observado cotidianamente nos jornais.

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excedente para os centros em ascensão. Contudo, em uma ruptura importante com padrões do passado, o fluxo líquido do capital excedente, desde o início da expansão financeira liderada pelos Estados Unidos, tem sido do centro econômico em ascensão para o centro econômico em declínio, mais notoriamente na forma de compras maciças de bônus do Tesouro Americano realizadas pelo Leste Asiático, primeiro pelo Japão e depois pela China. Da mesma forma que nas transições hegemônicas do passado, o hegemon em declínio (os Estados Unidos) se transformou de maior nação credora em maior nação devedora. Essa transformação, no caso dos Estados Unidos, aconteceu em escala e velocidade sem precedentes. (VIEIRA et alli, 2012, p. 91) O que se assemelha ao processo de transição da hegemnia britânica e a ascensão dos EUA como vimos anteriormente. Por outro lado há a hegemonia miltar norte-americana. Ainda assim, os recursos militares de relevância global estão concentrados esmagadoramente nas mãos dos Estados Unidos. Não há sinais críveis de que os estados em ascensão econômica, incluindo a China, tenham a intenção de desafiar diretamente o poder militar dos Estados Unidos. Porém, ainda sem um desafio direto, os Estados Unidos não

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mais possuem os recursos financeiros necessários para dar suporte ao seu aparato militar no mundo (e agora conseguem fazer isso somente entrando numa dívida externa cada vez mais profunda). Além disso, como ficou claro no fracasso do projeto da administração Bush para um Novo Século Americano, a projeção do poder militar não tem sido particularmente efetiva em submeter o mundo à vontade dos Estados Unidos nem no combate à escalada de crises políticas e sociais no nível do sistema.” (Ibid., p. 91-2) Os autores advertem, porém, como já mencionamos, as expansões materiais sistêmicas anteriores somente deslancharam quando a potência econômica em ascensão foi capaz de se tornar hegemônica, no sentido Gramsciano da palavra. Isto é, conduzir o mundo à criação de arranjos institucionais globais (financeiros, geopolíticos e sociais) capazes de providenciar a segurança necessária para uma expansão material ampla. (Ibid., p. 94) A transição será diferente dessa vez? Obviamente estamos tendo uma oportunidade ímpar na história: observar, analisar e discutir uma possível transição hegemônica para outra, no ‘calor’ dos acontecimen-

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tos. Talvez em nenhuma outra época as pessoas tenham tido uma oportunidade similar, devido ao aparato teórico e metodológico que possuímos para pensar a história econômica. No entanto, o nível de complexidade em refletir sobre o tempo presente é muito alto. Buscar semelhanças e diferenças em processos análogos, para daí objetivamente contribuir para um exame da realidade vivida, constitui-se o valor do método comparativo. Assim a partir da análise dos Ciclos Sistêmicos de Acumulação, e principalmente de elementos da transição precedentes, talvez possamos contribuir com elementos para maior clareza da contemporânea crise que tanto nos incomoda. Dentre esses elementos merecem destaque o fato de a crise econômica de 2008-9 estar se propagando por diferentes países e perdurando até este momento, o que pode indicar se tratar de uma crise terminal do CSA e não apenas uma do tipo sinalizadora. De fato, o aspecto geográfico é um elemento considerável – a crise nascida nos EUA propagou-se por vários países, com destaque para a zona do Euro; e a duração dessa turbulência também chama a atenção dos analistas – são, nesse momento, quase 5 anos. O período que precedeu a atual crise foi de inigualável expansão financeira e as últimas décadas foram acompanhadas de uma expansão material, localizada fora do centro, com preponderância da Ásia. Primeiro o Japão, depois os ‘Tigres Asiáticos’ e atualmente a China. Têm-se, então, indícios de uma transição hegemônica, lembrando que na concepção de Arrighi expansão financeira associada à uma material delineia crise e transição hegemônica.

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Contudo, segundo ele, a constituição de um novo centro hegemônico e consequentemente de um novo Ciclo Sistêmico de Acumulação está condicionado à possibilidade de outro sujeito histórico assumir plenamente a função de hegemon. Apontar seguramente esta ascensão parece ainda impossível, no momento em que estamos observando. Entretanto, a percepção do processo histórico – como testemunhas oculares que somos –, não pode olvidar a longevidade e lentidão em que foram construídas as hegemonias precedentes. Assim, a lição de que os processos históricos dessa magnitude são de longa duração com mudanças muito lentas, constituindo novas estruturas a partir daquelas existentes, não deve ser abandonada em nossas análises da conjuntura atual. Além disso, nossa condição de sujeitos da história nos impele a uma postura otimista de podermos contribuir para o que está a ser construído seja, não apenas um novo modelo econômico, mas que seja um modelo mais justo, equânime e inclusivo. O que induz a uma responsabilidade inigualável historicamente.

Referências ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder, e as origens de nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996. VIEIRA P. A., VIEIRA, R. e FILOMENO, F. O Brasil e o Capitalismo Histórico: passado e presente na Análise de Sistemas-Mundo. São Paulo: Editora Cultura Acadêmica, 2012.

Capítulo 5

Desafio das Ruas às Instituições Representativas Jair Pinheiro1

Introdução

A

crise econômica que eclodiu em 2008 e parece não ter data para acabar também tem a sua versão política que, no entanto, não é percebida como crise (ou simplesmente não é reportada assim), talvez porque os movimentos que têm desafiado as instituições políticas representativas, na Europa e nos Estados Unidos, apresentem certa diversidade de perspectiva quanto ao desafio que eles mesmos representam.1 Como é comum aos movimentos, tanto no movimento Occupy Wall Street como nos Indignados, há uma grande variedade de opiniões e ideologias que disputam espaço de influência, além do fato de que a mídia seleciona tais opiniões e ideologias para apresentar ao público, conforme sua pauta. A diversidade interna ao movimento e a seleção da mídia, asso1

Doutor em Ciência Política, professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/ campus de Marília.

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ciadas contribuem para uma certa diluição do desafio às instituições representativas, uma certa redução do seu papel contestador aos termos nos quais essas instituições estão alicerçadas. Assinale-se que os rótulos Occupy Wall Street e Indignados, como os primeiros manifestantes se autodenominaram em suas aparições públicas iniciais – em Nova York e Madrid, respectivamente – se tornaram abrigo para diversos grupos espalhados pelos dois países, inclusive estimulados pelos primeiros, que passaram a se mobilizar e reproduzir formas de organização, bandeiras e gritos de protestos, com variações locais. Eles serão referidos aqui nessa generalidade, mas, sem dúvida, um exame das especificidades poderá identificar tendências distintas da que apresento. Não é ocioso destacar que a sustentação de um desafio surgido durante um ciclo de protestos, para jogar com as palavras, desafia os atores do protesto. Este desafio aos atores do protesto consiste em duas partes complementares: 1) manter a mobilização da sua base social ou algum tipo de organização capaz de acioná-la em momentos de necessidade e 2) uma presença no debate público capaz de sustentar, no médio ou longo prazo, o desafio às autoridades e/ou àqueles responsabilizados pela queixa do movimento. Se, por um lado, a falta de organização e a ausência do debate público representam o fim ou a desmobilização do movimento, por outro, não é incomum que a existência de ambas represente o desaparecimento ou a atenuação do desafio que o movimento representou inicialmente, na medida em que a manutenção de uma estrutura organizativa representa algum grau de institucionalização, ou seja, um certo comprometimento com a legalidade (que estabelece limites

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para desafiar a autoridade) e a inserção no circuito econômico, dominado pelo grande capital, o que limita severamente a sobrevivência material das organizações contestadoras. Por outro lado, uma vez satisfeita essas duas condições (organização e presença no debate público), a continuidade do desafio passa a depender da capacidade do movimento de exigir respostas diferentes daquelas que as autoridades tendem a dar aos problemas, o que implica ações diretas e práticas discursivas desafiadoras e, estas, por sua vez, os conectam à luta ideológica, aspecto nem sempre admitido pelos movimentos. Este breve ensaio examinará na primeira seção o conteúdo (exigências) do desafio representado pelos movimentos Occupy Wall Street e Indignados, ambos surgidos no contexto da crise de 2008. Na segunda seção, desenvolvo uma análise teórica, em certa medida prospectiva, da natureza (ideologia) deste desafio, apontando algumas possibilidades de desenvolvimento de tais movimentos.

A percepção da crise e o conteúdo do desafio As crises do capitalismo não são raios em céu azul, tampouco efeitos da ganância e da corrupção – embora não sejam causas, conferem certa configuração político-ideológica às crises –, mas resultados de causas sistêmicas. Marx (1988, v. IV, caps. XIII, XIV e XV) descreveu a crise2 como efeito 2

Para uma análise da crise de 2008 sob vários aspectos, veja-se dossiê “A crise atual do capitalismo” em Crítica Marxista, n.º 29, Fundação Editora Unesp, 2009.

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do decréscimo proporcional do capital variável em relação ao capital constante (fixo e circulante), resultando na lei da queda tendencial da taxa de lucro. Todavia, essa causa sistêmica se manifesta de diferentes maneiras segundo as características particulares de cada caso; referindo-se à atual crise, que teve seu epicentro no setor imobiliário fortemente financeirizado dos EUA, Pinto assinala (...) que a crise de uma economia financeirizada se manifesta, quase imediatamente, pela redução do valor dos ativos financeiros não por ter “origem” no setor financeiro, mas por ser esta a forma de riqueza a ser desvalorizada. (...). A contração no estoque de riqueza necessária para restabelecer uma taxa de lucro em níveis aceitáveis – (...) – só pode se processar pela desvalorização desses títulos. Uma ilustração desse fenômeno é o contraste entre a soma dos valores das ações cotadas nas principais bolsas em operação no fim de 2007 (US$ 60,8 trilhões) e no fim de 2008 (US$ 32,5 trilhões); volatilizaram-se pouco mais de US$ 28,3 trilhões no espaço de doze meses (46,5%). (2009, p. 37/8).3

3

World Federation of Exchanges. Annual Repport and Statiscs, 2009; em HTTP://www.world-exchanges.org/files/statiscs/excel/EQUITY108.xls. Acesso em: 23 jun. 2009. (N.A.)

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Em razão do impacto da crise sobre o sistema financeiro devido à queda dos preços dos imóveis, tornados ativos financeiros pelo mecanismo da hipoteca, após um breve período de hesitação, O establishment mundial se debateu entre uma extensa nacionalização do sistema bancário para tentar manter em pé a atividade econômica semiparalisada ou seu resgate formal mediante uma injeção monumental de dinheiro e subsídios que evitasse um colapso terminal. O montante de recursos utilizados para este fim se estima na magnitude equivalente à totalidade de produção anual dos EUA, da ordem de 15 trilhões de dólares, uma quarta parte aproximadamente do produto bruto mundial, uma quantidade sem precedente na história do capitalismo. (RIEZNIK, 2012, p. 9/10) Lideranças políticas, empresariais e a imprensa repercutiram este fato como um problema de regulação4 e, a partir daí, o debate sobre as medidas anticrises passou a ser retra4

“Líderes empresariais alertaram os governos ocidentais nesta quarta-feira de que sanções severas sobre a indústria financeira podem dificultar a recuperação da pior recessão desde os anos 1930. A resposta preocupada aos planos do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de taxar e restringir grandes bancos e à ofensiva da Grã-Bretanha sobre pagamentos de banqueiros, se deu no encontro de cerca de 2.500 líderes empresariais e autoridades econômicas no Fórum Econômico Mundial, em Davos.”, em

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tado em termos dicotômicos: austeridade versus crescimento, supondo-se (e induzindo à suposição) de que a causa imediata (opções de agentes públicos e privados) da crise fosse explicação suficiente, subtraindo-se, assim, ao debate sobre sua causa sistêmica (necessária) (Grespan, 2009). Não me estenderei nesta questão porque não é meu propósito tratar dos aspectos econômicos da crise, mas das suas repercussões políticas manifestas pelos dois movimentos aqui referidos. Na verdade, essa dicotomia é a cobertura midiática para o mal-estar manifesto nas ruas contra àquelas medidas, tomadas por um governo considerado ilegítimo justamente por causa delas. Tanto num lado como no outro do Atlântico, a acusação de ilegitmidade do governo está assentada na percepção de captura dele pelas grandes corporações (os bancos à frente); captura apontada como causa da crise. O Occupy Wall Street se pronuncia como um (...) movimento que está lutando contra o poder corrosivo das maiores corporações multinacionais e bancárias sobre o processo democrático e o papel de Wall Street na geração de um colapso econômico que causou a maior recessão em gerações. O movimento é inspirado pelas revoltas no Egito e na Tunísia e visa a lutar contra os 1% mais rico do povo que está escrevendo as regras de uma

27 de janeiro de 2010. Folha de São Paulo, disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u685381.shtml. Acesso em 03/01/13.

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economia global injusta que está privando-nos de futuro.5 Com pequena variação de enfoque, a Coordinadora 25s informa: Rodeamos el Congreso después de más de un año de intensas movilizaciones en todos los sectores sociales  y  tras  comprobar  que no puede haber democracia cuando las instituciones que dicen representarla  se mueven por  intereses que no son los de la mayoría. Porque no tenemos nada que hablar con un poder que ha demostrado sistemáticamente ser ciego, sordo y mudo a justas  y concretas  demandas de igualdad y justicia social.  Lo rodeamos para rescatar  a  la política  de  un régimen  económico insostenible y depredador: el sistema capitalista.6 (Grifos no original) Daí por que a demanda genérica e, às vezes, confusa, por novas formas democráticas que arrancariam a política 5 Boletim eletrônico About, disponível em: http://occupywallst.org/ about/. Acesso em 12/04/12. (As citações em outro idioma foram traduzidas pelo autor). 6

Boletim eletrônico La democracia está secuestrada, disponível em: http://madrilonia.org/2012/09/la-democracia-esta-secuestrada-el-25s-vamos-a-rescatarla/ – Acesso em 22/10/12.

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das mãos de poucos. Voltarei à questão da democracia na próxima seção. Por ora, importa examinar dois documentos que, por seu conteúdo geral, denúncia e chamado à mobilização, podem ser tomados como “programas” dos movimentos, e confrontá-los com as causas da crise a fim de delinear a percepção que os movimentos têm dela, o que exige duas longas citações. Primeiro, a Declaração da Ocupação da Cidade de Nova York: Quando nos reunimos em solidariedade para expressar um sentimento de injustiça de massa, não devemos perder de vista o que nos uniu. Comunicamos, assim, que todas as pessoas injustiçadas pelas forças corporativas do mundo possam saber que somos seus aliados. Como um povo, unido, reconhecemos a realidade: que o futuro da raça humana exige a cooperação dos seus membros, nosso sistema deve proteger nossos direitos e, contra a corrupção deste sistema, cabe aos indivíduos proteger seus próprios direitos e os de seus vizinhos; que um governo democrático tira seu poder do povo, mas as corporações não buscam o consenso para extrair riqueza do povo e da terra, e que nenhuma verdadeira democracia é alcançável quando o processo é determinado pelo poder econômico. Dirigimo-nos a você, neste momento, quando as corporações que põem o lucro acima do

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povo, o interesse próprio acima da justiça e a opressão acima da igualdade, domina nossos governos. Reunimo-nos pacificamente em assembleia, como é nosso direito, para tornar conhecidos estes fatos. • Tomaram nossas casas através de um processo ilegal, apesar de não ter uma hipoteca original. • Tiraram as garantias dos contribuintes com impunidade e continuam a dar bônus exorbitantes a executivos. • Perpetuaram a desigualdade e a discriminação de idade, de cor da pele, de sexo, de identidade de gênero e de orientação sexual no local de trabalho. • Envenenaram a comida pela negligência e arruinaram o sistema agrário através da monopolização. • Aproveitaram-se da tortura, do confinamento e tratamento cruel de muitos animais e ocultaram essas práticas. • Continuamente buscaram despojar os empregados do direito de negociar melhores salários e condições de trabalho mais seguras. • Tornaram os estudantes reféns de dívidas educacionais de dezenas de milhares de dólares, que é um direito humano em si.

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• Terceirizaram continuamente o trabalho e usaram isto como alavanca para cortar salários e assistência média dos trabalhadores. • Influenciaram a justiça para alcançar os mesmos direitos enquanto pessoas, sem culpa ou responsabilidade. • Gastaram milhões de dólares com equipes legais que procuram maneiras de liberá-los de contratos referentes a seguro de saúde. • Venderam nossa privacidade como mercadoria. • Usaram as forças policiais e militares para impedir a liberdade de imprensa. • Deliberadamente diminuíram o recall de produtos defeituosos, arriscando vidas na busca de lucro. • Determinam a política econômica, apesar dos fracassos catastróficos suas políticas produziram e continuam a produzir. • Doaram grandes somas em direito a políticos que são responsáveis pela regulação deles. • Continuam a bloquear formas alternativas de energia para nos manter dependentes do petróleo.

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• Continuam a bloquear formas genéricas de medicina que poderiam salvar vidas ou fornecer alívio a fim de proteger os investimentos que já se tornaram lucro substancial. • Propositadamente, esconderam derramamento de petróleo, acidentes, contabilidades defeituosas e ingredientes inertes na busca de lucro. • Propositadamente mantêm as pessoas mal informadas e temerosas através do seu controle da mídia. • Aceitaram contratos privados para assassinar prisioneiros, mesmo quando apresentados com sérias dúvidas quanto às suas culpas. • Perpetuaram o colonialismo interno e externo. • Participaram da tortura e assassinato de civis inocentes no exterior. • Continuam a criar armas de destruição em massa a fim de firmar contratos governamentais. Ao povo do mundo, nós, Assembleia Geral da Cidade de Nova York, ocupando Wall Street na Liberty Square, o exortamos à afirmação do seu poder. Exercite seu direito a reunir-se pacificamente, ocupe os espaços públicos, crie um pro-

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cesso de discussão dos problemas que enfrentamos e gere soluções acessíveis a todos. A todas as comunidades que se ponham em ação e formem grupos no espírito da democracia direta, oferecemos apoio, documentação e todos os recursos à nossa disposição. Junte-se a nós e torne sua voz ouvida!7 Apesar da linguagem combativa, a apresentação dos fatos que o movimento visa a tornar conhecidos, através da Declaração, coloca acento na ação dos agentes, principalmente as corporações, sem mencionar ou aludir às causas sistêmicas da crise. A ausência destas causas, associada à forma descritiva da apresentação, sugere que tudo se passaria de outra maneira se as decisões fossem tomadas por outros agentes (os 99%) e sob a forma de “democracia direta”, uma democracia não determinada pelo poder econômico. Agora, passemos às 10 Medidas para Salir de la Estafa Capitalista: 1. Paralización del pago de la deuda pública hasta realizar una auditoría en la que se dirima qué partidas son legítimas y qué partidas deben ser consideradas ilegítimas por haber sido contraídas para favorecer intereses pri-

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Este documento foi aceito pela assembleia geral da cidade de Nova York em 29/09/11. Disponível em: http://www.nycga.net/resources/documents/ declaration/. Acesso em 12/12/12.

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vados, y que por tanto no han de ser pagadas por la población. 2. Establecimiento de un régimen contributivo equitativo donde todos paguen en función de sus beneficios. 3. Persecución del fraude fiscal y las inflaciones insolidarias por evasión de capitales, así como la opacidad de las fugas hacia paraísos fiscales. 4. Estricto control limitativo de sueldos a políticos, asesores y directivos de empresas que se hayan beneficiado de ayudas estatales o deban depender del control de los contribuyentes. 5. Cumplimiento de la laicidad y aconfesionalidad del Estado, respetando una separación real entre éste y la religión, determinando la financiación de los cultos por medio de la contribución de sus afines y estableciendo un régimen contributivo e impositivo igual que al resto de colectivos. 6. Auditoría de los beneficios y negocios de la jefatura de Estado, como a las cuentas de la Casa Real. 7. Asegurar la independencia judicial, para un libre juzgamiento de corruptos en igualdad de condiciones con el resto de ciudadanos, embargando los bienes de estafadores y defraudadores como compensación a lo robado, im-

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poniendo de forma fehaciente las penas que deriven de dichos actos. 8. Priorizar el rescate de familias y pequeñas empresas, respetando a rajatabla el fundamental e inalienable derecho a una vivienda digna. No financiar a empresas o bancos en quiebra salvo bajo un estricto modo de control que asegure su devolución, con una intervención del Estado en sus consejos de administración proporcional al dinero prestado. 9. Defender la soberanía política y económica ante cualquier organismo internacional, ya sea la Comunidad Europea o el Fondo Monetario. Garantizar dicha soberanía y la participación de igual a igual, tomando siempre las decisiones a ejecutar en beneficio de la población, legitimándose mediante consultas populares o procesos de democratización real como el proceso constituyente. 10. Establecer un amplio consenso para buscar el sistema productivo más lógico y beneficioso para la mayoría, generando un reparto de la riqueza equitativo y ético, promoviendo los instrumentos de desarrollo tecnológico y medioambiental que garanticen la supervivencia de todos los seres vivos en general, en igualdad y armonía. Esperamos que éstas medidas sean apoyadas y asumidas por cualquier corriente, co-

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alición u organización política que tenga la voluntad, firmeza y valentía de defender los intereses de los más débiles, garantizando así el cumplimiento de la equidad, la justicia, la libertad y la igualdad, requisitos indispensables para construir un mundo más justo para todos y todas8. Outras propostas, bastante aparentadas, são apresentadas pela seção DRY – Democracia Real Ya: 1. Eliminación de los privilegios de la clase política, 2. Contra el desempleo; 3. Derecho a la vivienda, 4. Servicios públicos de calidad; 5. Control de las entidades bancarias; 6. Fiscalidad; 7. Libertades ciudadanas y democracia participativa; 8. Reducción del gasto militar. No caso dos Indignados (Plataforma en pie!), que também adota uma linguagem combativa, dá-se ênfase às medidas para escapar da fraude (estafa) capitalista e se menciona o Estado, mas não a causa sistêmica da crise. A rigor, as dez medidas não são incompatíveis com o capitalismo, embora sejam com as políticas neoliberais que vêm sendo implementadas. Ou seja, também os Indignados percebem a crise como resultante da ação dos agentes, mas enfatizando o Estado. Esta percepção da crise é determinante para caracterizar o desafio que os movimentos representam, na medida em que ela orienta as ações deles, por isso passo a examinar a dimensão política da crise. 8

Disponível em: http://plataformaenpie.wordpress.com/2012/10/29/10-medidas-para-salir-de-la-estafa-capitalistas/. Acesso em 30/10/12.

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Crise, democracia e Estado Se a política é feita também de palavras, cacofonia é a figura que melhor retrata o discurso entorno dos movimentos e no interior deles, tanto por haver inúmeras visões sobre os rumos que eles devem seguir como porque o conjunto de exigências (demandas ou propostas) alternativas às medidas do governo que eles apresentam, dificilmente forma um conjunto sistemático. Acrescente-se que esta cacofonia também é estimulada pela identidade que os movimentos assumem. No caso do Occupy Wall Street, eles se apresentam como “The one thing we all have in common is that We Are The 99% that will no longer tolerate the greed and corruption of the 1%.9”, já os Indignados se apresentam de modo quase anárquico: “Unos nos consideramos más progresistas, otros más conservadores. Unos creyentes, otros no. Unos tenemos ideologías bien definidas, otros nos consideramos apolíticos… Pero todos estamos preocupados e indignados por el panorama político, económico y social que vemos a nuestro alrededor.” Todavia, apesar da cacofonia e da heterogeneidade identitária características desses movimentos, seus boletins eletrônicos apontam causas comuns para a mobilização, fazem a mesma crítica às instituições políticas e preconizam a mesma solução: democracia direta que, no caso dos Indignados, passou a ser chamada de democracia real e deu origem à orga-

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“A única coisa que temos em comum é que somos os 99% que não tolerarão mais a ganância e a corrupção do 1%”. Disponível em: http:// occupywallst.org/. Acesso em 30/11/11.

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nização de diversos grupos pelo país identificados pela sigla DRY – Democracia Real Ya – seguida do nome da localidade. Por isso, além da apreciação que fiz dos documentos desses dois movimentos, defenderei nesta seção a tese de que eles contêm três tipos de desafio aos governos dos seus países: 1) reivindicam medidas conflitantes com as políticas neoliberais; 2) denunciam a democracia representativa como uma fraude (captura da democracia pelo poder econômico) e 3), por conseguinte, preconizam a democracia direta. Quanto ao primeiro, no caso da Declaração da Ocupação da Cidade de Nova York, não há reivindicações explícitas, mas a forma de denúncia tem como pano de fundo uma condição de bem-estar social que foi solapada e/ou impedida pelas ações denunciadas; no documento 10 Medidas para Salir de La Estafa Capitalista, a relação entre denúncia e reivindicação se inverte. Ambos os documentos aludem, de forma implícita ou explícita, ao sistema tributário e às políticas redistributivas e, da mesma forma, tomam tais políticas como bandeira de luta, o que se opõe claramente às políticas neoliberais caracterizadas por políticas sociais focalizadas, políticas econômicas monetaristas e desregulamentação do mercado de trabalho. Quanto a este último aspecto, Jessop identifica nos países desenvolvidos uma tendência de substituição do welfare state keynesiano de base nacional pelo que denominou regime de workfare pósnacional schumpeteriano (SWPR) que (...) considerando sua função (do Estado – JP) distintiva em assegurar as condições para a problemática reprodução da força de traba-

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lho como mercadoria fictícia, o SWPR pode ser descrito (sem dúvida, infelizmente e com o risco de mal-entendido) como um regime de workfare na medida em que subordina a política social às demandas da política econômica. Incluída sob esta última rubrica estão a promoção da empregabilidade e da flexibilidade do mercado de trabalho, o desenvolvimento de uma nova globalização baseada na economia do conhecimento e de uma competitividade estrutural e/ou sistêmica. (2005, p. 250/1) As medidas10 propostas pelos Indignados e/ou denunciadas pelo Occupy Wall Street, à exceção de umas poucas, têm como causa direta ou indireta esta mudança no regime de trabalho e no padrão de políticas sociais, e, pela mesma razão, elas também têm um sentido geral de defesa das políticas de bem-estar, ainda que estas tenham adquirido diferentes formatos nos Estados Unidos e nos países que compõem a União Europeia. Jessop (op. cit.) define quatro padrões de políticas de bem-estar: liberal, social-democrá10 Destaque-se, a este respeito: “Continuamente buscaram despojar os empregados do direito de negociar melhores salários e condições de trabalho mais seguras.” e “Priorizar el rescate de familias y pequeñas empresas, respetando a rajatabla el fundamental e inalienable derecho a una vivienda digna. No financiar a empresas o bancos en quiebra salvo bajo un estricto modo de control que asegure su devolución, con una intervención del Estado en sus consejos de administración proporcional al dinero prestado.”

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tico, corporativo e o modelo do sul-europeu que, apesar das diferenças entre eles quanto ao setor econômico dominante e aos arranjos político-institucionais correspondentes, todos têm em comum políticas sociais de apoio à reprodução social dos direitos de cidadania, cujo solapamento é o núcleo das críticas dos movimentos e, cuja recuperação, núcleo das reivindicações. Com relação ao segundo desafio, em contraste com o otimismo que reina na academia quanto às potencialidades da democracia representativa, as denúncias de ambos os movimentos implodem a ideia de representação como forma democrática. Aliás, a este respeito, merece registro que tanto a imprensa alternativa como a comercial e a literatura não especializada, em menor escala, também a especializada, têm divulgado dados que confirmam as denúncias desses movimentos: a captura da representação política pelo poder econômico11 (Freeland, 2012). Ou seja, há um certo atraso na academia quanto à pesquisa sobre o fenômeno, devido, em grande parte, à suposição de que “no hay democracia que no sea liberal” (Touraine apud Mires, 2001), o que trava a pesquisa crítica na medida em que o pensamento está impedido de conceber alternativa, ainda que apenas como recurso heurístico. Em ambos os movimentos, a denúncia de captura das instituições políticas pelo poder econômico aparece estreitamente vinculada ao terceiro desafio: a proposição da democracia direta como alternativa à representativa. O Occupy 11 Veja-se Dowbor, Ladislau, Por que o poder econômico compra eleições, disponível em: http://ponto.outraspalavras.net/2012/10/11/eleicoes/. Acesso em 11/10/12.

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Wall Street adotou como divisa a expressão “Somos os 99%”, o que é ao mesmo tempo um traço identitário e uma denúncia e, a isto, juntou reivindicação material e política no seu chamado à mobilização: Occupy Wall Street é um movimento popular forte que começou em 17 de setembro de 2011 na Liberty Square, no distrito financeiro de Manhattan, e se espalhou por mais de 100 cidades nos EUA, além de ações em mais de 1.500 cidades pelo globo. O movimento está lutando contra o poder corrosivo das maiores corporações multinacionais e bancárias sobre o processo democrático e o papel de Wall Street na geração de um colapso econômico que causou a maior recessão em gerações.12 E complementa: É a partir destes fundamentos proclamados que dizemos a todos os americanos e ao mundo: basta! Quantas crises mais? Somos os 99% e nos mobilizamos para reclamar nosso futuro hipotecado. Através de um processo democrático direto, nos reunimos como indi12 Disponível em: http://occupywallst.org/about/.Acesso em 12/04/12. O leitor notará nesta e na citação seguinte repetição de termos, quando não de frases inteiras, de notas anteriores, o que atende à necessidade de clareza do texto.

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víduos, além de elaborado estes princípios de solidariedade, que são pontos de unidade que incluem, mas não se limitam a: engajamento em democracia participativa, transparente e direta; exercício de responsabilidade individual e coletiva (...).13 (Grifo no original) Com alguma variação de linguagem, mais diretamente política, os Indignados também juntam denúncia e proposição de alternativa: El  próximo  25 de  septiembre rodearemos el Congreso de los Diputados para rescatarlo de un secuestro que ha convertido a esta institución en un órgano superfluo. Un secuestro de la soberanía  popular  llevado a cabo por  la Troika y  los mercados  financieros y ejecutado con el consentimiento y la colaboración de la mayoría de los partidos políticos. Partidos que han traicionado sus programas electorales, a sus votantes y a la ciudadanía en general  incumpliendo promesas  y  contribuyendo  al  empobrecimiento progresivo de la población. (…). Porque creemos que el tiempo de las decisiones tomadas por unos pocos ha terminado; porque, frente a quienes quieren dejarnos sin futu13 Principles of Solidarity, disponível em: http://www.nycga.net/resources/ documents/principles-of-solidarity/. Acesso em 12/12/2012.

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ro,  tenemos los medios y la inteligencia colectiva para decidir y construir la sociedad que queremos;  porque no necesitamos  falsos  intermediarios, sino recursos y herramientas colectivas  que fomenten activamente la participación política de todas las personas en los asuntos comunes.14 Entretanto, este fenômeno de captura das instituições políticas pelo poder econômico não é novo nem contingente, razão pela qual ele aparece com tanta frequência no debate político, embora negligenciado no teórico. Ao analisar as estratégias adotadas pelos governos do final do século XIX e início do século XX com vistas a neutralizar a “política da democracia”, Hobsbawm observa que “Havia ainda muitas partes da Europa e das Américas – especialmente Itália e América Latina – locais onde caciques ou patrões, pessoas poderosas e influentes localmente, poderiam “fornecer” blocos de votos de sua clientela a quem melhor pagasse ou a patrões ainda mais importantes.” (2007, p. 139). Por certo o aperfeiçoamento institucional do Estado capitalista – ministério público com funções definidas constitucionalmente e órgãos de controle fiscal, entre outros – levou à transformação e sofisticação do fenômeno, mas não ao seu desaparecimento. A corrupção, que aparece nas denúncias dos dois movimentos, é apenas o elemento mais visível dessa captura da 14 La Democracia Está Secuestrada, disponível em: http://madrilonia. org/2012/09/la-democracia-esta-secuestrada-el-25s-vamos-a-rescatarla/. Acesso em 22/10/12.

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representação política pelo poder econômico. Mais importante do que a corrupção, para a análise crítica, é que essa captura nada mais é que efeito da relação necessária entre o tipo de Estado (capitalista) e as relações sociais de produção capitalistas (SAES, 1998 e PINHEIRO, 2012). Para entender essa relação e o seu efeito de captura das instituições políticas pelo poder econômico é preciso, antes de mais nada, afastar da análise o conceito de Estado democrático de direito, base de qualquer variante do Estado de bem-estar e cuja premissa ideológica, herdada do século XVIII, é a de que o Estado é a institucionalização da relação entre indivíduos dotados de direitos naturais que se associam num Estado civil por um ato de vontade. Esta ideologia15 tem alcance prático e funcionalidade técnico-administrativa, mas está longe de poder explicar a relação necessária entre tipo de Estado e relações sociais de produção e, por conseguinte, os seus efeitos. Marx, ao contrário, parte da premissa histórico-social (empírica, portanto) de que uma comunidade econômica é uma comunidade natural que produz em sociedade, conforme relações sociais determinadas, e se destaca da natureza, sem dela se descolar, na medida em que desenvolve suas forças produtivas. Por isso, A forma econômica específica em que se suga mais-trabalho não pago dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta surge diretamente 15 Utilizo o conceito de ideologia na tripla acepção de visão social de mundo, sistema de normas, crenças e valores (de que é exemplo o direito) e processo social de interpelação.

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da própria produção e, por sua vez, retroage de forma determinante sobre ela. Mas nisso é que se baseia toda a estrutura da entidade comunitária autônoma, oriunda das próprias relações de produção e, com isso, ao mesmo tempo sua estrutura política peculiar. É sempre na relação direta dos proprietários das condições de produção com os produtores diretos – relação da qual cada forma sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho, e portanto a sua força produtiva social – que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda construção social e, por conseguinte, da forma política das relações de soberania e dependência, em suma, de cada forma específica de Estado. (MARX, 1988, vol. V, cap. XLVII, p. 235). Assim, o Estado é uma estrutura jurídico-política (se se quiser, um aparato institucional) que institucionaliza essas relações sociais de produção que, no caso do modo social de produção capitalista, adquirem a forma de uma relação jurídica igualitária entre desiguais (os proprietários dos meios de produção e os de força de trabalho), o mesmo direito que consagra a propriedade privada dos meios de produção e regula a esfera política como uma democracia de proprietários, o que dá lugar a uma relação de heteronomia material – dissimulada pela autonomia jurídica – entre os proprietários dos meios de produção e os de força de trabalho.

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Como é de interesse geral da comunidade econômica a produção e a reprodução dos meios de produção, bem como a alocação do excedente, este interesse geral acaba subordinado aos interesses particulares dos proprietários dos meios de produção. As formas institucionais dessa subordinação (suas causas imediatas, portanto) variam muito, entre as quais, pode-se citar: a legislação sobre financiamento eleitoral, sobre contratos públicos, a organização do aparelho de Estado (estrutura técnico-administrativa, distribuição de competências etc.) e as formas de intervenção do Estado na economia, o que ele sempre faz, não por um ato de vontade do governo em exercício, mas como efeito de uma causa estrutural precisa, como assinalado acima: o Estado é a institucionalização das relações sociais de produção. Essa intervenção, contudo, não ocorre num terreno plano onde todas as frações do capital teriam por referência essa causa estrutural, mas segundo a composição do bloco no poder e suas contradições internas; por isso, essa variação é determinada segundo a história de cada país, a dominância maior ou menor do modo de produção capitalista sobre modos pré-capitalistas numa dada formação social, a classe ou fração hegemônica no bloco no poder, o lugar de cada fração burguesa neste bloco, o grau de polarização entre o bloco no poder e as classes dominadas etc. Portanto, as formas institucionais particulares características de cada Estado constitui uma arranjo jurídico-político que nada mais é que a expressão de uma correlação de forças no interior do bloco no poder e, entre este, e as classes dominadas. Assim, a captura das instituições políticas pelo poder econômico varia de acordo com essas formas institu-

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cionais (desenho institucional, na terminologia neoinstitucionalista). Como agentes públicos e privados agem no interior dessas formas institucionais, tendo-as por referência, tanto a crise econômica como a política se manifestam como efeitos das ações desses agentes. No entanto, as denúncias dos movimentos de sequestro da democracia aludem a causas imediatas, tais como: corrupção, legislação eleitoral, interesses particulares dos políticos etc., mas não à causa estrutural mencionada no parágrafo anterior, o que limita o alcance do desafio que tais movimentos representam. Este desafio dos movimentos às instituições representativas é a manifestação mais visível de uma crise de hegemonia, não me refiro à que se manifesta no interior do bloco no poder16, que leva, “por um lado, a uma ruptura do laço representante-representado entre as classes e frações de classe no interior do bloco no poder, e por outro atinge os partidos políticos, mas também alguns outros aparelhos do Estado que os representam.” (POULANTZAS, 1977, p. 25). Trata-se de uma crise de hegemonia com características distintas porque relativa à capacidade do Estado de organizar e fazer “(...) funcionar um certo jogo (variável) de compromissos provisórios entre o bloco no poder e certas classes dominadas (...)” (id., p. 26). Primeiro, ela não se manifesta 16 A crise atual apresenta elementos de conformidade com as formulações de Poulantzas, como, por exemplo, antagonismo entre esfera central e local do Estado; mas também de distinções, como estabilidade dos centros decisórios e do sistema partidário, certo compromisso senão do conjunto das frações burguesas, pelo menos das que integram o capital monopolista, com políticas econômicas monetaristas. O exame desta questão merece um exame detido e escapa ao escopo do presente artigo.

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no interior do bloco no poder e, a partir daí se estende para a relação deste com as classes dominadas; ao contrário, esta relação é o lócus da sua manifestação, mas o bloco no poder continua coeso e capaz de aprovar e executar as políticas de Estado de interesse do capital monopolista, “ele mesmo constituído de frações, “(pois o capital monopolista não é uma entidade integrada, mas designa um processo contraditório e desigual de “fusão” entre diversas frações do capital), fracionamentos duplicados se levamos em conta as coordenadas atuais da internacionalização do capital” (Id., p. 21). Segunda, para além da sua dimensão econômica, sem dúvida a mais debatida pela literatura especializada e pela imprensa, as mobilizações populares mundo afora e, em particular, os casos referidos aqui, colocam em evidência a dimensão ideológica da presente crise; todavia, essa crise ideológica não se caracteriza pela descrença popular na ideologia dominante (o direito), ao contrário, nunca se acreditou tanto no direito como forma de regulação dos conflitos de interesses. A razão dessa crise ideológica está na dificuldade de produzir consenso em torno das políticas de Estado baseadas na articulação do discurso jurídico dos direitos individuais com o discurso econômico da austeridade. Paradoxalmente, e por não tomar como referência a causa sistêmica da crise, os movimentos formulam reivindicações cujo horizonte não ultrapassa o capitalismo, muitas vezes citado negativamente em seus boletins, como pode ser exemplificado pelas bandeiras: 1. En lugar de rescatar a los banqueros construyamos y apoyemos una banca ética, no

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corrupta ni basada en la especulación, que responda a las necesidades de la población. 2. Cuando se recorta en Educación y Sanidad se ataca al bienestar de todas las personas. Los recortes son actos criminales, absolutamente evitables. La educación y la sanidad son una inversión, no un gasto. 3. Reconocer que la riqueza se produce de manera cooperativa y que es necesario repartirla de forma justa es la clave para construir otro modelo productivo. 4. Es necesario exigir el fin de los abusos de la especulación inmobiliaria y que el acceso a la vivienda constituya un derecho independientemente de la condición económica de las personas. 5. Articular una política de transparencia con el uso de herramientas prácticas de participación y cooperación en red, significa reinventar la democracia.17 Essas bandeiras, fortemente apoiadas em noções morais como banca ética e forma justa, embora não apontem a causa sistêmica da crise do capitalismo, ainda que manifeste indignação contra seus efeitos, ilustra a crise ideológica referida. Para a realização dessas bandeiras, preconiza-se parti17 Plan de Rescate Ciudadano. Disponível em: http://www.planderescateciudadano.net/. Acesso em 10/10/12.

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cipação, cooperação e reinvenção da democracia, concebida como uma organização horizontal (...) um tipo de organização social que implica igualdade entre todos os participantes num grupo ou sociedade. Não há hierarquia, é o contrário de uma organização vertical na qual algumas pessoas tomam decisões e outras obedecem. O método utilizado para a tomada de decisões num grupo ou sociedade horizontalmente organizados é através de assembleia. O que é uma assembleia? É uma reunião localizada onde as pessoas que têm objetivos comuns podem se encontrar em igualdade de condições. A assembleia pode ser para: informação (...), reflexão (...), decisão (...).18 Essas definições colocam em perspectiva a necessidade de superação das instituições representativas, isto é, sua substituição por outras, fundadas em princípios distintos; mas, e é o mínimo que se pode dizer a este respeito, são vagas e imprecisas quando aplicadas a uma formação social. Dessa maneira, convivem de modo tenso e contraditório na retórica dos movimentos elementos de duas formas democráticas, assim como a prática de democracia direta interna 18 Quick guide on group dynamics in people’s assemblies, documento aprovado como sugestão pela Assembleia Puerta Del Sol, com vistas a orientar a organização interna do movimento. Disponível em: http:// takethesquare.net/wpcontent/uploads/2011/07/Quickguidetodynamicsofpeoplesassemblies_13_6_2011.pdf. Acesso em 12/04/12.

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aos movimentos é contraditória com as instituições que desafiam, mas tal desafio tem alcance limitado. Em outro lugar, quando tratei especificamente do Occupy Wall Street (PINHEIRO, 2012), argumentei que a possibilidade daquele movimento dar efetividade à sua retórica de transformação está interditada pelo fato de adotar em sua crítica do capitalismo as mesmas categorias de análise que se utiliza para a gestão do capital. No caso aqui tratado, também a possibilidade da denúncia de captura da democracia representativa pelo poder econômico avançar para a efetivação de alguma forma de democracia direta depende da adoção de uma concepção sistemática desta forma alternativa (além de mobilização política efetiva, claro), o que implica projetar novas relações sociais de produção, uma vez que não se pode perder de vista a relação necessária entre tais relações e o tipo de Estado. A ausência de um conceito sistemático e alternativo de democracia é também o limite do desafio representado pelos movimentos. Certamente há muita controvérsia sobre se é viável ou não uma democracia19 segundo tal conceito, entretanto, o exame da história da democracia representativa revela que os liberais do século XIX também não apostavam na factibilidade dela (Losurdo, 2004), tal como veio a se configurar, foram as lutas populares, movimento operário à frente, que a impulsionaram contra a descrença daqueles.

19 Para um debate que retoma a tradição da democracia conselhista do movimento operário do começo do século XX, à luz de novas problemáticas, veja-se Martorano, Luciano. Conselhos e democracia: em busca da socialização e da participação. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

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Capítulo 6

Crises e Resistências: os desafios e possibilidades da Via Campesina Mirian Claudia Lourenção Simonetti1 Adriane de Sousa Camargo2

O

processo de globalização,1que2integrou a produção e a economia mundial numa escala sem precedentes, não se produziu sem resistências, sem encontrar oposição de vários setores da sociedade. Simultaneamente ao processo de reprodução ampliada do capital, e as suas consequências, novas forças sociais foram se constituindo e articulações cada vez mais amplas e diversas foram se formando até se configurarem em organizações internacionais. No plano da agricultura, a maior organização que se constituiu foi a  Via Campesina, como 1

Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília. Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Coordena o Centro de Pesquisa e Estudos Agrários e Ambientais (CPEA) da UNESP/ Marília. Bolsista Produtividade 2 CNPq.

2

Discente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Centro de Pesquisas e Estudos Agrários e Ambientais (CPEA) da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

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expressão da emergência organizativa dos camponeses e indígenas de diferentes lugares do mundo. Desde então, a Via Campesina se tornou um dos principais atores no questionamento da atual ordem econômica mundial e das suas instituições mais representativas tais como o FMI, o Banco Mundial, OMC, bem como na crítica das ações grandes empresas transnacionais e outros agentes econômicos e financeiros que atuam no domínio das atividades agrícolas. Esse processo se intensificou nas últimas três décadas no Brasil, e em diferentes países do mundo, promovendo mudanças significativas na agricultura camponesa e uma ampliação das monoculturas ligadas ao agronegócio de exportação. Como resultado, verifica-se uma enorme concentração de terras para poucos proprietários, a destruição das florestas nativas e a migração de camponeses para as cidades. As consequências ecológicas desse processo são bem conhecidas: a destruição das florestas destrói a biodiversidade, os mananciais, os rios e as comunidades camponesas. Esse processo vincula-se ao avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais na agricultura e no sistema alimentar dos países. Esse avanço envolve desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos até a compra dos produtos, bem como seu processamento, transporte, distribuição e venda ao consumidor. Cada vez mais a produção, distribuição, circulação e consumo dos produtos agrícolas estão centralizados em um número reduzido de empresas. A consequência disso é que os alimentos deixam de ser um direito e tornam-se cada vez mais mercadorias. Verifica-se também uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais. O processo de reprodução ampliada do ca-

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pital lança as grandes empresas numa guerra de privatização que as leva a expulsar camponeses, comunidades indígenas, privatizando suas terras, territórios, florestas, biodiversidade, água e minérios. O cultivo de agrocombustíveis (cana-de-açúcar) em grandes monoculturas industriais também é razão dessa expulsão, amparada em argumentos sobre crise energética e climática. A realidade por trás destas últimas facetas da crise tem a ver com a atual matriz de transporte de longa distância dos bens, e individualizado em automóveis. Esse fenômeno vincula-se ao contexto da globalização neoliberal que é “caracterizada por uma concentração cada vez maior das riquezas e do poder na ordem territorial e, certamente, pelo aumento da degradação ambiental” (PENNAFORTE, 2001, p. 09). Tal fenômeno corresponde a um novo regime de acumulação do capital, que aprofunda a desigualdade da distribuição das riquezas entre países ricos e países pobres e a desigualdade social em seus âmbitos nacionais. Nesse contexto, a agricultura, em diferentes países, assumiu novas funções diferentes daquelas que desempenhou no período anterior, caracterizada pela substituição de importações e industrialização. Nota-se um aumento da produção agrícola no período neoliberal, mas uma produção centrada em alguns produtos e em algumas regiões do continente, controlada principalmente por grandes estruturas econômicas e orientada para o mercado internacional. Esse modelo de desenvolvimento agrícola leva a concentração de terras, o aumento da pobreza rural e a diminuição do emprego no campo. À politica de globalização neoliberal é preciso opor uma política de resistência ao di-

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ktat dos que repetem incessantemente que não há alternativa. O capitalismo, o neoliberalismo, a globalização predadora não são o fim da história. Nem o único caminho da história. (NUNES, 2005, p. 92). Nesse sentido, diante do aprofundamento do processo da globalização neoliberal, e de suas consequências danosas, o campesinato vem buscando se organizar por meio da ação coletiva e a buscar seus direitos e suas demandas. No que concerne às questões da agricultura, são muitos os movimentos sociais organizados, mas, para efeito desse texto, destacamos as ações da Via Campesina, tanto pela sua articulação, como pela amplitude de sua intervenção na sociedade contemporânea. Seus integrantes a consideram como um movimento social internacional que coordena organizações camponesas, pequenos e médios produtores, organizações rurais de mulheres, comunidades indígenas, organizações de Sem Terra, organizações da Juventude rural, trabalhadores agrícolas migrantes, dentre outros de diferentes países e continentes (VIA CAMPESINA, 2011). A Via Campesina surge em 1992, em Manágua (Nicarágua), durante o Congresso da Unión Nacional de Agricultores y Granaderos (UNAG) como uma rede transnacional de movimentos sociais rurais. Em 1993, na cidade Mons na Bélgica, realiza a Primeira Conferência Internacional da Via Campesina, momento em que foram decididas as metas, as formas de atuação do movimento, bem como a sua institucionalização formal. Possui uma trajetória de 20 anos completados em 2013.

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Desde a sua formação, a Via Campesina age como um articulador de interesses dos camponeses no cenário mundial. Atualmente, abrange 150 organizações, que representa aproximadamente 200 milhões de camponeses e indígenas, localizadas em 70 países da África, Ásia, Europa, e América. Em seus documentos, considera-se um movimento autônomo, plural e multicultural, sem filiação partidária. Além disso, se propõe a defender os interesses dos seus membros buscando atuar através da influência nos grandes centros de poder para interferir na formulação e promoção de políticas agrícolas que afetam, direta ou indiretamente, seus membros. Atualmente é o principal interlocutor dos camponeses junto a diferentes organizações internacionais, dentre elas a Food and Agriculture Organization (FAO). (LA VIA CAMPESINA, 2011). Entre as atuações da Via Campesina ainda no início de sua formação, destaca-se seu posicionamento na Assembléia Global sobre Segurança Alimentar, que ocorreu em 1996 em Quebéc, realizada pela FAO, momento em que a organização assumiu uma posição significativa como ator transnacional. Também, no mesmo ano, participou da Cúpula Mundial da Alimentação, demonstrando seu posicionamento político. A Via Campesina foi um ator político ativo e visível na Cúpula Mundial da Alimentação (CMA), realizada em Roma, convocada pela FAO.  Seus membros desafiaram a FAO a reconhecer a sua legitimidade como representantes dos camponeses e pequenos agricultores em um dos

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maiores movimentos agrícolas do mundo e pediu para ser concedido o estatuto de representante oficial da CMA. (DESMARAIS, 2007, p. 08)3. Porém, para que esse posicionamento fosse possível, seu principal objetivo, durante o primeiro ano de existência da Via Campesina, foi estreitar e fortalecer as relações entre os movimentos sociais rurais locais. Segundo Desmarais, claramente, a Via Campesina está preenchendo um vazio importante. Sua existência é a evidência de novas estruturas de ação coletiva no campo; suas estratégias desafiam modelos tradicionais de organização no setor rural, e da magnitude de sua presença internacional – sua natureza dinâmica, a diversidade cultural e a distribuição geográfica ampla – fala a suas potencialidades transformadoras. (DESMARAIS, 2007, p. 09)4. 3

The Vía Campesina was an active and visible political actor at the World Food Summit (WFS), held in Rome and convened by FAO. Its members challenged the FAO to recognize their legitimacy as representatives of peasants and small farmers in the one of the largest farm movements in the world and requested to be given official delegate status at the WFS. (DESMARAIS, 2007, p. 08, tradução nossa).

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Clearly, La Vía Campesina is filling important void. Its very existence is evidence of new structures of collective action in the countryside; its strategies defy traditional patterns of organizing in the rural sector; and

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A organização não possui sede fixa e sua estrutura se compõe de grupos e movimentos sociais, localizados em diferentes países. O órgão mais importante da Via Campesina é o Comitê Coordenador Internacional (CCI), que é composto por representantes de todas as regiões5 em que ela se apresenta, e o Secretariado Operacional Internacional (SOI), que é responsável pela coordenação do CCI; sendo eles definidos durante suas Conferências Internacionais. Cada uma das regiões possui dois representantes, um homem e uma mulher, o que revela a preocupação da rede com a equidade de gênero em sua representação. Os dezesseis membros da Comissão de Coordenação Internacional – com dois representantes (um homem e uma mulher) de cada uma das suas oito regiões – é o elo mais importante entre as várias organizações camponesas. Fora da Conferência Internacional, o CCI é uma equipe chave de tomada de decisão e de coordenação do corpo da Via Campesina. Todas as decisões importantes são tomadas em consulta com os seus dezesseis membros. Sobre questões-chave do processo de consulta, essa questão vai além da autoridade do CCI, uma vez que cada coordenador regional the sheer magnitude of its international presence – its dynamic nature, cultural diversity, and wide geographical distribution – speaks to its transformatory potential. (DESMARAIS, 2007, p. 09, tradução nossa). 5

São oito regiões, a saber: África, América do Norte, América do Sul, leste e sudeste da Ásia, Sul da Ásia, América Central, Cuba e Caribe, e Europa.

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deve refletir as necessidades, preocupações e decisões das organizações dentro de sua região. É somente através de uma comunicação ampliada e de consulta que os coordenadores regionais ganham autoridade para apresentar posições e resoluções para o CCI. Para as organizações da Via Campesina, as regiões são os principais pontos de intersecção entre as comunidades e lutas nacionais e internacionais. (DESMARAIS, 2007, p. 30)6. Cabe destacar que a transnacionalização de movimentos sociais abarca as relações sociais originadas das tensões existentes entre o local e o global, formadas entre agentes coletivos além dos limites territoriais dos países, que em graus variáveis de institucionalização, congregam membros dos mais variados países, possibilitando uma atuação mais efetiva em busca de seus interesses. 6

The sixteen-member International Co-ordinating Commission – with two representatives (one man and one woman) from each of its eight regions – is the most important link among the various peasant organizations. Outside of the International Conference, the ICC is the key decision-making and co-ordinating body of the Vía Campesina. All major decisions are made in consultation with its sixteen members. On key issues the consultation process goes beyond the ICC, because each regional co-ordinator must reflect the needs, concerns, and decisions of the organizations within his or her region. It is only through extended communication and consultation that the regional co-ordinators gain a regional mandate to present positions and resolutions to the ICC. For Vía Campesina organizations, the regions are the key points of intersection between communities and national and international struggles. (DESMARAIS, 2007, p. 30, tradução nossa).

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Assim sendo, ao se tornarem movimentos transnacionais, os movimentos sociais nacionais, regionais e locais aumentam sua escala geográfica de abrangência. No caso da Via Campesina, a organização possibilita que os grupos sociais com atuação local encontrem espaço para atuarem em escala global. Nesse ambiente, onde são reunidos inúmeros movimentos sociais que possuem as mesmas reivindicações, a organização torna seus membros mais fortes no que tange ao poder de pressão que passam a exercer perante os atores internacionais. Essa organanização atua como um movimento coletivo internacional que coordena organizações camponesas, pequenos e médios produtores, organizações rurais de mulheres, comunidades indígenas, organizações de Sem Terra, organizações da Juventude rural e trabalhadores agrícolas migrantes. A vinculação ao movimento internacional permite a participação dos movimentos sociais a exemplo do Movimento dos Sem Terra, no Brasil, nas ações e debates sobre as questões mais amplas que afetam o campesinato e comunidades indígenas, em diferentes lugares do mundo. Em contrapartida, permite a Via Campesina intervenções locais, regionais, cujas intensas variações determinam a imbricação do local e global. O lugar se recria a partir da articulação do movimento local ao mundial. As lutas se definem em cada lugar segundo as formas e os ritmos próprios dos movimentos sociais e das ações políticas criadas pelos sujeitos a partir de suas realidades e demandas. A Via Campesina é um movimento social em construção, cujas diretrizes se estabelecem a partir dos encontros realizados nas suas conferências a cada 04 anos. Nesse sentido, ve-

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rificamos nas declarações das conferências internacionais da Via Campesina que temáticas trabalhadas pelo movimento são diretamente ligadas à questão da soberania alimentar. Desde a Declaração de Mons (VIA CAMPESINA, 1993), fruto da I Conferência Internacional da Via Campesina que ocorreu em 1993, o movimento já a apresentava como uma de suas principais demandas a luta pela soberania alimentar. Consta nesse documento que é “direito de todo país de definir sua própria política agrícola de acordo com seus interesses nacionais e em concertação com as organizações campesinas e indígenas, garantindo sua real participação” (VIA CAMPESINA, 1993)7, indicativo do que podemos chamar de “estado embrionário” das discussões que culminariam com a apresentação do conceito de soberania alimentar em sua segunda conferência internacional (VIA CAMPESINA, 1996). Dentre as diversas temáticas discutidas nessa primeira conferência, destacamos a crítica à agricultura neoliberal, que, segundo o movimento, permite a coexistência da fome com o superávit agrícola, paradoxo diretamente ligado às políticas promovidas por organizações internacionais, como a OMC e a FAO. Destacamos também a preocupação com a questão ambiental, expressa em uma agricultura ecologicamente sustentável, e o reconhecimento da portabilidade do conhecimento tradicional, ligado ao direito da permanência das populações camponesas, indígenas, no campo e no reconhecimento de sua importância social na definição e imple7

“The right of every country to define its own agricultural policy according to the nation’s interest and in concertation with the peasant and indigenous organizations, guaranteeing their real participation.” (VIA CAMPESINA, 1993, tradução nossa).

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mentação do desenvolvimento, principalmente o rural (VIA CAMPESINA, 1993). Os demais temas que aparecem nessa declaração são: pobreza e êxodo rural, fome, repressão, acesso à terra e mecanismos de compliance, este último versando sobre a estruturação do movimento. Na II Conferência Internacional da Via Campesina, que ocorreu em Tlaxcala/México, em 1996, foi publicizada pelo movimento a Declaração de Tlaxcala. Nesse documento são reafirmados os temas trabalhados na primeira conferência, com a inserção das questões relacionadas aos recursos fitogenéticos e da questão de gênero. (VIA CAMPESINA, 1996). A Via Campesina considera que a “Conferência em Tlaxcala [...] é um enorme e importante passo em direção à justiça, à equidade e à liberdade para os que vivem e trabalham no campo” (VIA CAMPESINA, 1996)8. Nessa declaração, percebe-se que foram estruturados os primeiros eixos de trabalho, eixos esses que estão presentes nas conferências posteriores e que são responsáveis pelas diretrizes do movimento e de sua atuação até o momento. Tais eixos, presentes na Tabela 1, foram divididos em estratégias estruturais, referentes à própria estruturação da Via Campesina enquanto movimento, visto que a organização ainda se estruturava naquele momento, e em estratégias propositivas, que estabelecem os meios de sua atuação no cenário internacional, de modo a facilitar sua distinção. Na Tabela 2, encontram-se as estratégias delineadas na Conferência de Maputo, última conferência internacional realizada pela Via Campesina, o 8

“[...] Conferencia em Tlaxcala [...] es um enorme e importante passo em dirección a la justicia, la equidad y la libertad para los que viven y trabajan em el campo” (VIA CAMPESINA, 1996, tradução nossa).

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que permite a visualização do aprofundamento e atualização dos temas e das propostas do movimento. Tabela 1: Estratégias apresentadas na II Conferência Internacional da Via Campesina em Tlaxcala. Estratégias da Via Campesina Articular e fortalecer organizações regionais. Construir relações de solidariedade entre as organizações membros da Via Campesina. Estratégias estruturais

Promover o trabalho organizacional através de redes entre as mulheres da Via Campesina e suas organizações. Construir secretarias operativas à nível regional. Fomentar mecanismos de comunicação interna e externa. Promover o trabalho organizacional através de redes entre os diferentes setores da produção regional e entre as regiões. Introduzir os objetivos da Via Campesina nos debates das organizações internacionais. Desenvolver respostas regionais apropriados para acordos comerciais bilaterais e regionais.

Estratégias propositivas

Promover iniciativas que contribuam para o desenvolvimento do comércio justo com a concorrência direta dos produtores e consumidores, com uma campanha internacional antidumping. Instigar uma “rede de solidariedade e de resposta” contra os atos de violência contra os camponeses e agricultores, ampliando o movimento com a participação de diversas partes interessadas. Luta contra a privatização do patenteamento genético, através da criação de bancos de sementes para os agricultores, propondo iniciativas legais para garantir o patrimônio genético e elaborando relatórios sobre os perigos da bioprospecção.

Fonte: VIA CAMPESINA, 1996. Elaborado pelas autoras.

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Tabela 2: Temas e propostas da Via Campesina presentes na Carta de Maputo. Carta de Maputo Temas

Propostas

Soberania alimentar

Renacionalização e retirada do capital especulativo da produção dos alimentos.“A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é a solução para a crise.”

Crises energéticas e climáticas

“Disseminação de um sistema alimentar local, que não se baseia na agricultura industrial nem no transporte a longa distância, eliminaria até 40% das emissões de gases de efeito estufa.”

Reforma Agrária

“A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena.”

Agricultura camponesa sustentável

“Somente a produção camponesa agroecológica pode desvincular o preço dos alimentos do preço do petróleo, recuperar os solos degradados pela agricultura industrial e produzir alimentos saudáveis e próximos para nossas comunidades.”

Violência contra a mulher

“O fim de todos os tipos de violência para com as mulheres, seja ela, física, social ou outras.”

Semente e água

“A semente e a água são as verdadeiras fontes da vida, e são patrimônios dos povos. Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de sementes transgênicas ou de tecnologia terminator.”

Criminalização de movimentos sociais

A “Declaração dos Direitos dos Camponeses e Camponesas na ONU, proposta pela Via Campesina, será um instrumento estratégico no sistema legal internacional para fortalecer nossa posição e nossos direitos como camponeses e camponesas.”

Juventude do campo

“É necessário abrir, cada vez mais, espaços em nossos movimentos para incorporara força e a criatividade da juventude camponesa, com sua luta para construir seu futuro no campo.”

Alimentação

“Nós produzimos e defendemos os alimentos de todos e todas.”

Fonte: VIA CAMPESINA, 2008. Elaborado pelas autoras.

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Verificamos que as estratégias propositivas presentes na Declaração de Tlaxcala (VIA CAMPESINA, 1996) são mais elaboradas na Carta de Maputo (VIA CAMPESINA, 2008) e traduzidas nos temas de discussão e de articulação do movimento na atualidade. Com a inserção, discussão e elaboração do conceito de soberania alimentar pela Via Campesina, verifica-se que a consciência da interdependência das questões pelo movimento fez com que esse se tornasse um conceito guarda-chuva, em que vai sendo construído e novos elementos vão se incorporando a ele. Tal processo é resultante da própria proposta do conceito, que é o de construir um novo modelo alimentar, que rompa definitivamente com o modelo neoliberal. Nesse sentido, todos os eixos de atuação pela Via Campesina, já arrolados anteriormente, são consubstanciados pelo conceito de soberania alimentar, na medida em que esta não existe na ausência ou na deficiência de qualquer um deles. A isso se soma a questão cultural, do respeito e reconhecimento da portabilidade do conhecimento tradicional, questões essas que dão unidade ao movimento. Nas demais conferências internacionais, verifica-se a retomada das questões elencadas na segunda conferência, o que demonstra que a Via Campesina tem focado sua atuação em torno dos eixos estratégicos definidos na Declaração de Tlaxcala (VIA CAMPESINA, 1996). Na III, IV e V Conferência Internacional da Via Campesina, ocorridas em Bangalore (2000), São Paulo (2004) e Maputo (2008), respectivamente, esses eixos são desenvolvidos e atualizados na medida em que o processo de luta vai ocorrendo.

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Cabe ressaltar que todos eles são compreendidos como condições necessárias para o estabelecimento da soberania alimentar. A pobreza e o êxodo rural aparecem como uma situação de deterioração total do mundo rural. Essa deterioração é “expressa através do aprofundamento da pobreza em todo o planeta e o êxodo em massa do campo, o que está elevando os níveis de desemprego globais e urbanização de grandes populações rurais” (VIA CAMPESINA, 1993)9. Segundo a Via Campesina, O sistema econômico neoliberal prevalente em todo o mundo tem sido a principal causa do empobrecimento dos pequenos agricultores, em geral, a população rural. Ele é responsável pelo aumento da destruição da natureza, terra, água, plantas, animais e recursos naturais, colocando todos esses recursos, sob a égide de sistemas centralizados de produção, fornecimento e distribuição de produtos agrícolas no âmbito da um sistema para um mercado global (VIA CAMPESINA, 1996)10. 9

“[...] expressed by deepening poverty across the whole planet and the massive exodus from the countryside, which is raising global unemployment levels and urbanising huge rural populations” (VIA CAMPESINA, 1993, tradução nossa).

10 “El sistema económico neoliberal prevalente a nivel mundial, ha sido la causa principal del empobrecimiento de los agricultores pequeños y, en general, de la gente del campo. Es responsable del incremento en la destrucción de la naturaleza, la tierra, el agua, las plantas, los animales y los recursos naturales, poniendo todos estos recursos bajo la égida de

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Nesse sentido, a Via Campesina tem afirmado que a permanência da agricultura camponesa é fundamental para a eliminação da pobreza, da fome, do desemprego e da marginalização. Nós acreditamos que a agricultura é parte essencial da soberania alimentar e soberania alimentar é um processo essencial para a existência da agricultura camponesa. (VIA CAMPESINA, 2004)11. Através da leitura das posições da Via Campesina, expressas nas declarações das conferências internacionais do movimento, verifica-se que este se manteve ativo em suas demandas e proposições frente à crise que se apresenta no plano internacional e em relação a sua oposição ao modelo neoliberal. Em que pese atuar sempre em re-ação às ações das empresas e instituições vinculadas aos interesses do capital, a Via Campesina vem se projetando nos fóruns mundiais e tem se revelado como um ator relevante que objetiva uma sistemas centralizados de producción, abasto y distribución de productos agrícolas en el marco de un sistema orientado a un mercado global.” (VIA CAMPESINA, 1996, tradução nossa). 11 “[...] que la permanencia de la agricultura campesina es fundamental para la eliminación de la pobreza, el hambre, el desempleo y la marginación. Estamos convencidos que la agricultura campesina es pieza fundamental de la soberanía alimentaria, y la soberanía alimentaria es un proceso imprescindible para la existencia de la agricultura campesina..” (VIA CAMPESINA, 2004, tradução nossa).

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ampla transformação social, visando a equidade e a justiça social. Para tanto, vem construindo junto aos movimentos sociais o conceito de “Soberania Alimentar”, em que a união do conceito de biodiversidade à valorização da cultura camponesa opera como uma das principais estratégias utilizadas para projetarem-se na luta contra os grandes oligopólios vinculados produção alimentícia. Verifica-se que a Via Campesina construiu, ao longo desses últimos vinte anos, uma organização influente e ativa, que atua na defesa dos seus membros e se opõe à nova ordem global. De fato, atua como um amplo movimento social, cujas ações coletivas viabilizam a organização dos camponeses e dos povos originários na demanda por seus direitos. A Via Campesina age por meio de redes sociais locais, regionais, nacionais e internacionais e utilizam-se das novas tecnologias de comunicação e informação. Suas ações vão desde a formulação de propostas e de denúncia, até às ações diretas, tais como mobilizações, grandes marchas, concentrações e demais enfrentamentos contra os poderes contituídos a nivel local ou global. Essas ações indicam a importância da articulação desses movimentos sociais na sociedade contemporânea. Com seus fluxos e refluxos são um campo de força social e político e suas ações impulsionam mudanças sociais diversas. Uma das questões fundamentais desse movimento é a crítica que ele faz a cultura do lucro, da mercantilização e privatização da vida e as suas conseqüências para o meio ambiente e o desrespeito aos direito humanos. Em oposição, defendem que ela deva ser substituída pela cultura da ética, do direito à vida, e do respeito aos direitos fundamentais.

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Capítulo 7

Crise Econômica Mundial e os Impactos sobre a Economia Brasileira José Marangoni Camargo1

Introdução1

A

s crises econômicas e financeiras têm sido cada vez mais frequentes na atual etapa do Capitalismo, sobretudo a partir do início dos anos 70. A crise econômica mundial em curso desde 2008 que se diferencia em relação às anteriores é que esta surge e atinge especialmente o centro do sistema capitalista, os chamados países centrais ou desenvolvidos, particularmente os Estados Unidos, o Japão e com mais intensidade, as nações do bloco da União Européia, naquilo que Krugmam (2011) tem chamado de pequena depressão. Segundo Harvey (2011: p. 13), o FMI estimava que mais de 50 trilhões de dólares de ativos tinham desaparecido em 2009. 1

Doutor em Ciências Econômicas pela Unicamp e Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

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Desde então, assiste-se a uma lenta agonia das economias centrais, com uma recessão que vêm se prolongando na órbita do Euro, com taxas negativas de crescimento econômico ainda em 2012, que se reflete em um brutal aumento das taxas de desemprego e uma pálida recuperação das economias americana e japonesa2. Por outro lado, como enfatiza o autor, os efeitos da crise têm sido espacialmente desiguais. Os países que preservaram os seus sistemas financeiros da lógica neoliberal de desregulamentação, sem permitir que se integrassem totalmente ao sistema financeiro internacional, tem tido um desempenho econômico mais satisfatório, como Índia e China. Em países como o Brasil, em que o sistema financeiro também é mais regulado e não totalmente integrado à rede global, e a ausência de bolhas especulativas em determinados mercados como o imobiliário, os efeitos da crise econômica mundial se fizeram sentir, mas em uma magnitude menor do que nos países centrais (Gráfico 1).

2

Sobre os efeitos da crise econômica e a explosão das dívidas públicas dos países da União Européia, ver Chesnais, F., “As Dívidas Ilegítimas”, Temas e Debates, 2012.

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Gráfico 1: Crescimento do PIB no período de 2007-2011.

Fonte: FMI e Bradesco.

Desempenho da economia brasileira no período recente Entre 2007 e 2011, a economia brasileira cresceu em média 4,3% ao ano, desempenho este que foi um pouco superior ao da América Latina, enquanto os países centrais apresentaram uma taxa de expansão de apenas 0,5% ao ano neste período. Em 2009, ano em que os efeitos da crise econômica mundial se fizeram sentir com mais força, o Brasil teve uma queda do PIB de 0,3%, enquanto os países desenvolvidos tiveram um desempenho bem mais negativo. A economia americana sofreu um declínio de 2,6% neste ano, o Japão, -6% e a União Européia, -3,5%. Em síntese, a economia brasileira teve um comportamento que pode ser considerado satisfatório em uma conjuntura internacional desfavorá-

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vel. Por outro lado, a expansão do PIB do Brasil ficou muito aquém ao das principais economias emergentes, como a China e a Índia. Ainda assim, a evolução da economia brasileira na última década foi bem superior ao verificado nos dois decênios anteriores. Na primeira década deste milênio, o crescimento do PIB foi de 3,5% ao ano em média, o dobro do verificado na década de 80 e 50% superior ao dos anos 80. Gráfico 2: PIB brasileiro no período de 1981-2012: Variação anual (A) e da média decenal (B). A

B

Fonte: IBGE.

Esse desempenho da economia brasileira no período recente possibilitou a melhoria de alguns indicadores socioeconômicos, como o comportamento do mercado de trabalho, que continuou a apresentar uma evolução mais favorável. As taxas de desemprego das Regiões Metropolitanas, medidas pelo IBGE, tiveram uma nítida tendência de declínio a partir de 2004, que caiu de 11,49 % da PEA neste

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ano para 5,97% em 2011 (Gráfico 3). Mesmo em 2009, ano em que o PIB sofreu uma redução, os níveis de desemprego apresentaram pouca alteração (7,91% em 2008 para 8,09% em 2009). O grau de formalização da força de trabalho, ou seja, o percentual das ocupações com carteira de trabalho assinada, também se recuperou no período, mesmo em 2009, aumentando sua participação na ocupação total. Entre 2003 e 2011, foram criados mais de 15 milhões de empregos formais, reduzindo o grau de informalidade do mercado de trabalho, ao contrário do verificado na década de 90, quando cresceu significativamente a precarização das condições de trabalho, através do aumento das ocupações por conta própria ou sem registro. No caso das áreas metropolitanas, o emprego formal passa a representar 61,2% do total das ocupações, contra 53,4% em 2006. Gráfico 3: Taxa de desemprego – Áreas metropolitanas no período 2004-2011.

Fonte: IBGE.

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Além da tendência de um maior grau de formalização das relações de trabalho, observa-se também uma recuperação dos salários reais a partir de 2003. No entanto, é preciso olhar estes dados sobre o mercado de trabalho com cuidado, na medida em que a maior formalização do emprego e o crescimento dos salários reais na realidade implicam apenas um retorno aos patamares existentes em meados dos anos 90. Além disso, os novos postos de trabalho com carteira são empregos com baixa remuneração. Mais de 90% das novas vagas formais oferecidas no período são de até dois salários mínimos e mais de 80% dos ocupados recebem rendimentos de até três salários mínimos. De qualquer forma, o quadro no Brasil nesta primeira década do século, contando com um cenário externo mais favorável até 2008 e mesmo depois da eclosão da crise econômica e financeira mundial neste ano, que nos afetou com menos intensidade que nos países centrais, possibilitou taxas de crescimento médias superiores às duas décadas anteriores, com efeitos positivos sobre o mercado de trabalho. Internamente, a formulação de um conjunto de políticas sociais, como a recomposição do valor real do salário mínimo e a concessão da bolsa família possibilitaram também um crescimento da renda dos segmentos mais baixos e uma pequena desconcentração da renda, revertendo uma tendência de aumento da desigualdade observada desde os anos 60. No caso do salário mínimo, o poder de compra real em 2011 mais do que dobrou em relação a 1995, quando ele atingiu o seu patamar mais baixo historicamente, desde que foi criado em 1940 (Gráfico 4). Essa recuperação do valor real do salário mínimo tem um forte impacto sobre a renda, na medida em que, segundo o DIEESE, mais de 50 milhões de

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pessoas são beneficiadas pelos seus reajustes, incluindo 19 milhões de aposentados e pensionistas que ganham em torno deste piso. Ainda assim, é preciso lembrar que o seu valor ainda está distante do patamar de 1940 e apesar dos contínuos aumentos reais nos últimos anos, o seu valor ainda representa apenas a metade do verificado em fins dos anos 50, quando atingiu o seu maior patamar em termos reais. Os programas de transferência de renda como a expansão da bolsa família, que alcança 13,5 milhões de famílias atendidas em 2011, e beneficia em torno de 40 milhões de pessoas, em que pese os baixos valores pagos, também garantiu um acréscimo de renda para os segmentos mais pobres. Gráfico 4: Evolução do salário mínimo real de 1986 – 2012 (em Reais de Janeiro/2010).

Fonte: DIEESE.

Essa conjugação de fatores possibilitou uma pequena melhoria no quadro distributivo, mesmo depois da crise, como se pode verificar pela evolução do índice de Gini para o pe-

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ríodo entre 1960 e 2010 (Gráfico 5). Observa-se que depois de uma contínua elevação do indicador de distribuição de renda, atingindo o auge da desigualdade em 1990, há uma diminuição do índice a partir desse período, possibilitando em 2010 voltar aos níveis do início dos anos 60. No entanto, deve-se levar em conta que este índice capta com mais acuidade as diferentes modalidades de renda do trabalho, do que as rendas provenientes da propriedade. Além disso, apesar dos avanços na arena distributiva, o país ainda continua a ser um dos mais desiguais do mundo, e o acesso a serviços públicos de saúde, educação, saneamento básico, terra, habitação e transporte público, que são indicadores importantes das condições de vida, continua ainda muito precário e desigual. Gráfico 5: Evolução do Índice de Gini – Brasil 1960-2010.

Fonte: IBGE.

Do ponto de vista macroeconômico, a redução da taxa de juros básica, a mais baixa nos últimos trinta anos, e a expansão

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do crédito, especialmente para os financiamentos imobiliários e para a compra de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos, possibilitaram amenizar os efeitos da crise econômica mundial sobre a economia brasileira. A relação crédito/PIB passou de 24,6% em 2002 para 49,1% em 2011, refletindo a expansão do consumo e do nível de endividamento das famílias. A evolução da formação bruta de capital se elevou de 16% do PIB entre 1999/2003 para 19,3 em 2011/12, sinalizando um aumento na taxa de investimento da economia (BORGES, 2013). No entanto, o crescimento da economia apoiada na expansão do consumo e do maior endividamento das famílias apresenta limites e é necessário elevar o nível de investimento para algo em torno de 22% do PIB e de produtividade da economia brasileira para garantir um processo de crescimento auto-sustentável em um período mais longo de tempo. Para tanto, é fundamental, além de manter a taxa de juros em um patamar que estimule os novos investimentos na economia, também estabelecer uma taxa de câmbio mais favorável para a produção interna como um dos mecanismos essenciais para aumentar a competitividade frente aos produtos importados, sobretudo no caso dos bens industriais. O estabelecimento de políticas econômicas que visem aumentar a competitividade da produção doméstica, como uma política monetária mais branda, e uma taxa de câmbio mais desvalorizada enfrentam, no entanto, resistências de determinados segmentos da sociedade, como os grandes bancos e setores rentistas, com forte apoio da mídia. Estes alegam que essas políticas são insustentáveis porque trará pressões inflacionárias que tornará necessária aumentar novamente a taxa de juros básica da economia, como já vem ocorrendo nos últimos meses.

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No entanto, apesar das taxas de inflação nos últimos anos estarem “acima da meta” estabelecida pelo banco Central, os problemas centrais da economia brasileira, a meu ver, são de outra natureza. Se observarmos o comportamento da inflação em uma trajetória mais de longo prazo, podemos constatar que os índices de inflação oficial, medidos pelo IPCA do IBGE, apresentam uma tendência de relativa estabilidade nos últimos anos. Além disso, no caso do Brasil, há uma nítida queda da dívida pública em relação ao PIB desde 2003, ao contrário do que tem se verificado nos países centrais, especialmente depois de 2008. A dívida líquida pública, que representava 60,4% do PIB em 2003, se reduz para 36,1% do PIB em 2011, o que enfraquece os argumentos de que o Estado gasta muito e se apropria de recursos do setor privado e causa tensões inflacionárias adicionais (Gráfico 6). Gráfico 6: Relação Dívida Líquida Pública/PIB – Brasil 2001-2011.

Fonte: BCB.

Por outro lado, há duas questões que são extremamente importantes e que se agravaram a partir da crise econômica

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de 2008. A primeira, que tem sido objeto de crescente debate, polêmico e controverso, trata-se do processo de desindustrialização em curso e da tendência de reprimarização da economia brasileira, no sentido de uma especialização regressiva, não só no Brasil, mas na América Latina como um todo. Pode-se observar pelos dados do gráfico 7 que o setor secundário manteve a sua participação no PIB desde o final dos anos 90 (em torno de 27% do total), chegando mesmo a aumentar a sua participação em 2004. Mas quando se analisa especificamente a participação da indústria de transformação, é clara a diminuição do seu peso no PIB a partir de 2004, queda esta que se acelera de 2008 em diante (queda de 18,7% em 1995 para 14,6% em 2011). A indústria como um todo mantém a sua participação, principalmente em função do crescimento da indústria extrativa mineral, graças sobretudo ao aumento da produção interna de petróleo e a expansão do segmento da construção civil, puxado pelo crescimento do crédito imobiliário. Gráfico 7: Participação do Setor Secundário e da Indústria de Transformação no PIB – 1995-2011.

Fonte: IBGE.

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Na realidade, desde a abertura comercial no início dos anos 90 e a implementação do Plano Real em 1994 discute-se se a economia brasileira tem apresentado ou não uma tendência de desindustrialização precoce e uma especialização regressiva, que se reflete também em uma pauta de exportações progressivamente centrada em commodities agrícolas e minerais. A política macroeconômica desde 1999 tem priorizado na maior parte deste período o controle da inflação, sendo a taxa de juros o mecanismo adotado para alcançar esta meta, a geração de superávits fiscais e a taxa de câmbio flutuante. A combinação destas políticas, junto com a abertura comercial que a antecede tem ocasionado uma entrada maciça de dólares, em grande medida de caráter especulativo, e uma valorização cambial, com impactos sobre a economia brasileira e a estrutura industrial. Como aponta Almeida (2008), a valorização cambial tem efeitos contraditórios sobre a economia brasileira, particularmente sobre o setor industrial. Se de um lado, as importações de bens de capital e matérias-primas ficam mais baratas, reduzindo os custos de produção e possibilitando a modernização de vários segmentos produtivos, por outro levam a um desadensamento de algumas cadeias produtivas. A conjunção de uma rápida abertura econômica e a valorização do Real tem afetado de forma diferenciada os vários segmentos da indústria brasileira. Segundo Paulino (2011), frente à concorrência externa, parte da indústria regrediu, como o ramo eletroeletrônico, enquanto que os segmentos que estavam relativamente inseridos em cadeias produtivas mundiais e que se reestruturaram como as indústrias automobilística e aeronáutica conseguiram manter seu espaço,

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inclusive porque passaram a utilizar crescentemente insumos e componentes importados, a preços mais baixos. Outros ramos, por outro lado, como o de mineração e agroindustrial, foram favorecidos por uma conjuntura externa favorável de elevação das cotações das commodities no mercado internacional a partir de 2002. Os efeitos desse ciclo de alta dos preços das commodities agrícolas e minerais, puxado especialmente pela demanda chinesa e a consequente valorização cambial decorrente desse processo sobre a estrutura produtiva do país são controversos. Para alguns autores como Bresser Pereira, citado por Paulino (2011), o grande afluxo de divisas decorrentes do aumento das exportações de recursos naturais leva tanto a uma valorização da moeda nacional como a uma perda de competitividade das demais manufaturas, sobretudo dos bens de maior conteúdo tecnológico. A continuidade dessa tendência por um período mais prolongado poderia ocasionar uma desindustrialização mais acelerada e uma dependência externa crescente do país dos produtos básicos e de menor valor agregado, como soja, minério de ferro e outras commodities agrícolas e minerais. Posições semelhantes são defendidas pelo IEDI (2011) e por Almeida (2008), sendo que este alerta para o risco de uma rápida reversão desse ciclo de alta de preços internacionais, ocasionando sérios problemas nas contas externas do país, assim como por ter adotado uma postura que representou a ausência de políticas coordenadas para conter os efeitos disruptivos da valorização cambial. Nessa mesma linha de argumentação, vários autores enfatizam que a indústria de transformação continua a ser o setor mais dinâmico da economia, ao gerar efeitos de encadea-

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mento para trás e para frente nas cadeias produtivas e ser o setor mais importante do ponto de vista da geração e difusão do progresso técnico, portanto, pelos ganhos mais expressivos de produtividade. O peso crescente dos produtos de baixo valor agregado na pauta de exportações do país e o desaparecimento de elos das cadeias produtivas substituídos pelas importações seriam um indicador do processo de desindustrialização em curso no país (Costa e Gonçalves, 2012; Torres e Silva, 2012). Para Morceiro, Gomes e Magacho (2012), apesar de não poder afirmar que esteja ocorrendo um processo de desindustrialização generalizada da economia brasileira, há evidências de que um número expressivo de segmentos industriais está promovendo um processo absoluto ou relativo de substituição da produção local por bens importados, especialmente nos produtos de maior conteúdo tecnológico, na medida em que uma parte expressiva do crescimento da demanda interna “vazou” para o exterior. Para De Negri e Alvarenga (2011), a primarização da pauta de exportações brasileira resultou não apenas de um desempenho extremamente favorável das exportações de commodities, mas também da perda de competitividade do país em outros produtos, especialmente os mais intensivos em tecnologia, onde a valorização cambial teve um papel crucial. No entanto, para os autores ainda é prematuro afirmar que esteja em curso um processo de desindustrialização da economia brasileira, mas uma tendência de maior participação dos setores tradicionais na estrutura produtiva, dependendo da magnitude e da duração dos efeitos do cenário externo sobre esta estrutura. Segundo estes, a previsão é de que este ciclo de valorização das commodities não deve se

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esgotar no curto prazo, dado um desequilíbrio na oferta e demanda mundial de alimentos, especialmente pelo duradouro e elevado crescimento da economia chinesa, grande demandante destes produtos no mercado internacional. Posição análoga também é a de Paulino (2011), enfatizando que a perda de competitividade de setores mais dinâmicos da economia brasileira não significa necessariamente um processo inexorável de desindustrialização. No entanto, alerta que esta menor competitividade deve-se não apenas ao câmbio defasado, como também a outros problemas estruturais como a deficiente infraestrutura, especialmente a de transportes, a elevada carga tributária, a ausência de uma política nacional de inovação, entre outros pontos de estrangulamento da economia brasileira. Para Furtado (2008), também o crescimento da demanda chinesa deverá manter os preços relativos favoráveis aos produtos primários por um longo tempo, o que poderia acarretar, em função de uma renda extraordinária de caráter duradouro, um processo semelhante à “doença holandesa”. Mas para o autor, alguns destes efeitos ocorrerão em uma proporção muito mais limitada em economias como a brasileira, marcada por um elevado grau de integração interindustrial e cadeias industriais diversificadas. Se de um lado, há uma tendência da economia brasileira ser menos autossuficiente e diversificada e uma maior dependência das exportações nas áreas primárias, a forte demanda da China por matérias primas e produtos com forte intensidade em recursos naturais oferece janelas de oportunidades para promover transformações qualitativas da estrutura econômica do país. Através da formulação de políticas, programas e

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instrumentos que sejam capazes de desenvolver novas tecnologias e soluções inovadoras, poderá reforçar a competitividade das cadeias exportadoras e que possuem um forte grau de integração e capacidade de irradiação para outros setores internos e que possam evitar uma especialização excessiva e empobrecedora da estrutura econômica brasileira. É o que defendem também De Negri e Alvarenga (2011), ao afirmar que o bom desempenho dos setores tradicionais podem fomentar setores que contenham maior grau tecnológico, como por exemplo, a produção de bens de capital agrícolas, a indústria química e a de petróleo, através da formulação de políticas industrial e de inovação. Para Além et al. (2011), a forte expansão das vendas brasileiras de commodities nos últimos anos, especialmente para a Ásia, não representa necessariamente uma tendência de reprimarização de sua pauta de exportações. Os autores se baseiam em trabalho realizado por Abdon et al., que adotando o modelo desenvolvido por Hidalgo e Hausmann, utilizam estatísticas de exportação de 124 países para o período 2001-2007 e chegam a conclusão de que nesse ranking de países, o Brasil encontrava-se na 30ª colocação, uma posição intermediária quando considerada uma medida de complexidade de sua pauta de exportação. O grau de complexidade da pauta é dado pela existência de capacitações específicas necessárias que um determinado país possui e que tende a se refletir em uma pauta mais diversificada de exportação ou capacitações exclusivas, quando um número reduzido de países participa do comércio internacional, o que requer em geral um domínio de inovações e processos por poucas empresas.

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Mendonça de Barros (2008) entende que, apesar dos desafios ainda a serem enfrentados, o conjunto de reformas implantadas a partir de 1994 na economia brasileira e as mudanças ocorridas na economia mundial, com o desenvolvimento de um novo polo dinâmico representado pela China, possibilitaram um ciclo de crescimento econômico mais sustentável no Brasil no início deste século. A incorporação da China à economia de mercado e a sua gigantesca população provocou uma mudança nos preços relativos mais favoráveis às commodities e que tendem a perdurar por um longo período de tempo, fortalecendo as contas externas brasileiras, na medida em que possibilitou a geração de saldos comerciais elevadíssimos a partir de 2004. Para o autor, o fortalecimento das contas externas do país, apesar dos riscos da “doença holandesa”, criou as condições para a estabilização monetária como também reencontrar o caminho do crescimento econômico sustentado, via expansão do consumo, do crédito e do investimento. O crescimento mais expressivo da economia e da demanda interna na última década, combinado a uma valorização da taxa de câmbio, por outro lado acentuou o desequilíbrio comercial nos setores industriais de maior valor agregado e intensidade tecnológica, segundo Almeida (2008). A balança comercial da indústria de transformação, depois de registrar um superávit externo desde 2002 e atingir o maior saldo em 2005, quando o Brasil registrou superávit de US$ 31,1 bilhões, passa a apresentar resultados menos expressivos a partir de 2006 e se torna negativa em 2008. Este déficit alcança um patamar recorde de US$ 50,6 bilhões em 2012, depois de um saldo negativo de US$

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48,7 bilhões no ano anterior (IEDI, 2013). A balança comercial como um todo apresentou em 2012 ainda um superávit de US$ 19,4 bilhões, o menor desde 2003, graças ao saldo positivo de outros produtos, como os agrícolas e minerais, que usam intensivamente recursos naturais e em que o país possui grandes vantagens comparativas na produção e que registraram expressivas elevações de preços. Os segmentos industriais de média e alta intensidade tecnológicas apesar de apresentarem historicamente déficits comerciais, registraram um saldo negativo sem precedentes em 2012, de quase de US$ 84 bilhões, enquanto que em 2011 este resultado tinha sido negativo em US$ 82 bilhões. Entre os produtos considerados de alta intensidade tecnológica, contribuíram para este déficit sobretudo aparelhos e componentes eletrônicos, de informática e instrumentos médico-hospitalares e de precisão e produtos da indústria farmacêutica, com um saldo negativo de mais de US$ 25 bilhões em 2012. No caso dos bens de alta tecnologia, somente a indústria aeronáutica e espacial obteve superávit, de US$ 765 milhões neste ano. Para os bens de média-alta tecnologia, o maior déficit foi verificado em produtos químicos, seguido pelo segmento de máquinas e equipamentos mecânicos e de Máquinas elétricas, Surpreende também o elevado déficit em material de transporte, superior a US$ 5 bilhões, afetado principalmente pelo resultado negativo da indústria automobilística. Além disso, o grupo das atividades classificadas como de média-baixa intensidade tecnológica passou a partir de 2010 a registrar déficits, que em 2012 foi de -US$ 7,8 bilhões,

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afetado especialmente pelo comportamento negativo dos combustíveis e produtos de petróleo (Tabela 1). Tabela 1: Balança Comercial – Indústria de Transformação - 2010/2012. (em US$ bilhões). SEGMENTOS

2010

2012

Alta Intensidade Tecnológica

- 26,2 bilhões

- 29,3 bilhões

Média-Alta Intensidade Tecnológica

- 39,3 bilhões

- 51,6 bilhões

Média-Baixa Intensidade Tecnológica

- 8,2 bilhões

- 7,8 bilhões

Baixa Intensidade Tecnológica

38,9 bilhões

38,2 bilhões

Total

- 34,8 bilhões

- 50,6 bilhões

Fonte: IEDI.

É no segmento de bens de baixa tecnologia que o país apresentou resultados mais expressivos neste ano, com um superávit de US$ 40,9 bilhões, obtido particularmente em função do desempenho das indústrias de alimentos, bebidas e fumo, com um saldo positivo de US$ 38,2 bilhões. As atividades da indústria madeireira, de papel e celulose e impressão gráfica, por sua vez, registraram um superávit de US$ 6,0 bilhões em 2012. Por outro lado, dois segmentos considerados de baixa tecnologia têm sofrido mais intensamente os efeitos do câmbio apreciado e da concorrência externa, principalmente dos produtos chineses, representados pela

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indústria de brinquedos e o conjunto das indústrias têxtil, de vestuário, couro e calçados (IEDI, 2013). Este quadro acima aponta claramente para uma perda de ritmo e de competitividade dos segmentos mais dinâmicos e intensivos em tecnologia da indústria brasileira. Apesar de o Brasil aumentar seu market share no comércio mundial de bens, de 0,88% do total em 2000 para 1,26% em 2009, este resultado deve-se fundamentalmente a evolução das exportações de commodities, no qual o Brasil passou a representar 4,66% das exportações mundiais, contra uma participação de 2,77% em 2000. Por outro lado, neste período, o Brasil reduziu a sua fatia nas exportações de alta intensidade tecnológica, em que representava 0,52% do comércio mundial em 2000, e que passou a 0,49% em 2009. Isso fica evidente também quando se analisa a participação das commodities no total das vendas externas do país. A participação destes produtos nas exportações brasileiras, que oscilavam em torno de 40% do total desde os anos 90, alcançou 51% do total em 2010 (DE NEGRI e ALVARENGA, 2011). Segundo os autores, essa tendência de primarização das exportações brasileiras se acentuou com a crise, que se refletiu em um forte recuo do comércio mundial em 2009, puxado pelo comportamento negativo dos países centrais e com a continuidade do crescimento da economia chinesa, com uma presença cada vez maior nas importações de matérias-primas. Desde 2009, a China se tornou a principal parceira comercial do Brasil, ultrapassando os EUA como o principal destino das exportações brasileiras. As vendas externas do país para a China passaram de US$ 16,4 bilhões em 2008 (8,3% do total das exportações brasileiras) para US$ 30 bi-

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lhões em 2010 (14,9% do total). Ademais, aumentou a participação brasileira no total das compras externas chinesas, de 0,5% do total em 2000 para 2% atualmente. No entanto, 80% do que o Brasil vende para a China são commodities, especialmente soja e o minério de ferro. Em 2000, o Brasil respondia por 2,5% das importações chinesas de commodities, alcançando mais de 8% em 2009 (DE NEGRI e ALVARENGA, 2011). De fato, a análise mais desagregada da pauta de exportações do Brasil aponta uma dependência crescente dos produtos intensivos em recursos naturais e de trabalho, notadamente os bens das cadeias agroindustriais. São produtos onde o país tem vantagens competitivas, que somada a uma trajetória de elevação de preços das commodities agrícolas a partir de 2002, possibilitaram um aumento da participação brasileira no comércio mundial de produtos agroindustriais, que passa a representar 6,9% do total mundial em 2006, contra uma participação de apenas 3,9% em 2000. As exportações agroindustriais em valor cresceram mais 25% em 2012 em relação a 2010 e mais do que quadruplicaram entre 2000 e 2012, representando 41% do total das exportações do país neste último ano. O crescimento expressivo das exportações brasileiras de produtos agroindustriais a partir de 2003, e uma expansão em um ritmo muito menor das importações, possibilitaram a geração de saldos comerciais crescentes da balança dos produtos da agroindústria. O superávit do setor passou de US$ 12 bilhões em 2000 para mais de US$ 40 bilhões a partir de 2006, chegando em 2012 a mais de US$ 68 bilhões (apesar do expressivo crescimento das importações de produtos agroindustriais nos últimos

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anos), o que representou mais que o triplo do saldo comercial total do Brasil registrado em 2012. O Brasil em 2009 já era o segundo maior exportador mundial de produtos agroindustriais e o principal fornecedor internacional de açúcar, café, suco de laranja, álcool e carne bovina e de frango e ocupava a segunda posição no complexo da soja, terceiro em milho e quarto em carne suína. Além de ter uma pauta de exportações diversificada, o país deve aumentar ainda mais a sua participação no comércio mundial destes produtos, dadas a existência de terras disponíveis e a elevada competitividade de grande parte de suas cadeias agroindustriais. Apesar da grande expansão das vendas externas de produtos agroindustriais brasileiros no período 2000-2012, quando se analisa pela ótica de agregação de valor, constata-se que há um peso crescente dos bens de menor valor agregado. Os produtos básicos responderam por quase 60% do valor das exportações brasileiras de produtos agroindustriais em 2012 (58,76%), enquanto que os produtos industrializados, constituídos pelos manufaturados e semimanufaturados, representaram 41,24% do total, o que configura uma pauta mais centrada em bens com um nível menor de elaboração. Uma segunda questão que tem se agravado no período recente refere-se ao aumento da vulnerabilidade das contas externas do país, com uma deterioração da balança de pagamentos, por conta de um expressivo crescimento do déficit da balança de conta corrente, especialmente dos serviços (Tabela 2). Tradicionalmente deficitária, a balança de rendas e serviços tem apresentado saldos fortemente negativos e crescentes nos últimos anos, principalmente por conta da elevação de remessa de lucros das filiais das multinacionais para as suas

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matrizes, em um contexto de elevadas dificuldades atravessadas por estas empresas a partir da crise econômica em curso desde 2008. Destacam-se também os crescentes déficits na rubrica viagens internacionais, superando US$ 15 bilhões em 2012. Em ambos os casos, a valorização cambial tem sido um forte indutor no crescimento do déficit na conta de serviços, assim como na redução do saldo da balança comercial no período mais recente. A soma do déficit em conta corrente com as amortizações dos empréstimos externos alcançou em 2012 um total de mais de US$ 90 bilhões, em grande parte coberto pela entrada de capitais externos na forma de investimentos diretos externos (IDE), mas que podem agravar a remessa de lucros e dividendos no futuro. Adicionalmente, a valorização do câmbio e a elevada remuneração dos títulos públicos, já que a taxa de juros básica quase sempre esteve em um elevado patamar no período analisado, também tem atraído capitais especulativos de curto prazo. Estes contribuem para fechar as contas da balança de pagamentos, mas por tratar-se de capitais extremamente voláteis, tendem a regressar rapidamente aos seus países de origem em um contexto de maior instabilidade econômica. Tabela 2: Balança de Pagamentos do Brasil - 1994-2012. (em US$ milhões) Transações Correntes A. Comercial Exportações Importações B. Serviços Juros Líquidos Lucros e Dividendos

1994

1998

2002

2004

2007

2009

2012

10.440 43.545 33.105 -14.717 -6.338

-6.474 51.120 57.594 -28.915 -11.948

13.126 60.361 47.235 -23.273 -13.130

33.666 96.445 62.809 -25.197 -14.300

40.028 160.649 120.621 -42.597 -7.255

25.347 152.995 127.647 -52.944 -9.069

19.415 242.580 223.164 -76.492 -11.847

-2.483

-7.181

-5.162

-7.338 -22.435 -25.218 -24.112

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Transações Correntes Viagens Internac. Demais Serviços C. Transf. Unilaterais Saldo Transações correntes Investimentos diretos

1994

1998

2002

2004

2007

2009

-1.181

-4.146

-398

351

-3.258

-5.594 -15.588

-4.715 -5.640

-4.583

-3.910

-9.649 -13.063 -24.645

2.588

2.390

3.268

4.029

-1.689 -33.611 -7.757

11.738

1.461

-24.334 -54.230

18.166

18.166

36.033

1972

1.778

25.893

16.566

3.263

2012

2.846

68.093

Fonte: BCB.

O resultado deste crescente déficit em conta corrente da balança de pagamentos brasileira (que passa a representar quase 3% do PIB em 2012), é um aumento da necessidade de capitais internacionais para fechar as contas externas, aumentando a vulnerabilidade externa. Ao mesmo tempo, a dívida externa do país, que chegou inclusive a cair entre 1999 a 2006, volta a crescer de forma acelerada nos últimos anos, o que também implica em maiores despesas representada pelos custos de amortização do principal e dos juros dos empréstimos contraídos externamente (Tabela 3). Tabela 3. Dívida Externa Brasileira. (em US$ milhões) Ano

Dívida Total

Médio e Longo Prazo

Curto Prazo

1980

64.245

53.848

10.397

1990

123.439

96.546

26.893

1994 1997

148.295 199.998

119.668 163.283

28.627 36.715

Empréstimos Intercompanhias

Dívida Total + Empréstimos Intercompanhias

Crise Econômica Mundial e os Impactos sobre a Economia Brasileira

Ano

Dívida Total

Médio e Longo Prazo

Curto Prazo

1999

241.200

212.600

28.600

2004 2006 2011 2012

201.374 172.589 298.204 312.898

182.630 152.266 258.055 280.316

18.744 20.323 40.143 32.583

| 163

Empréstimos Intercompanhias

Dívida Total + Empréstimos Intercompanhias

18.808 26.783 105.913 115.502

220.182 199.372 404.117 428.400

Fonte: BCB.

A dívida externa brasileira aumentou 60% depois da crise financeira de 2008 e quase dobrou desde 2006, principalmente via endividamento das empresas. A dívida total em relação ao PIB, em torno de 14% no final de 2012, ainda é relativamente baixa comparativamente a outros países, e o nível de reservas internacionais, de US$ 378 bilhões, em fins deste ano, permitem afirmar que os riscos são menores do que os enfrentados no final da década de 90. Mas em um cenário externo marcado pela instabilidade e turbulência e com o acirramento da concorrência, com dificuldades crescentes para exportar principalmente produtos industriais de maior valor agregado e conteúdo tecnológico, aumentamos a dependência das exportações de commodities. Estas, por sua vez, dependem muito da demanda chinesa e em um contexto de continuidade da crise nos países centrais e um menor ritmo de expansão da economia da China, o longo ciclo de aumento de preços das commodities pode ter chegado ao fim, o que nos torna mais vulneráveis do ponto de vista das contas externas. Em síntese, ao longo dos últimos anos, diversos indicadores socioeconômicos do Brasil apresentaram uma evolução favorável, como uma pequena melhora no quadro

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distributivo, com redução do desemprego, recuperação dos salários e diminuição da desigualdade de renda, favorecida adicionalmente pelo conjunto de políticas sociais como a bolsa família e a recomposição do salário-mínimo. Do ponto de vista macroeconômico, também alguns indicadores apresentaram avanços, como a redução da dívida líquida pública, uma razoável estabilidade dos patamares inflacionários e uma taxa de crescimento econômico mais substancial que nas duas décadas anteriores. No entanto, apesar dos avanços, é preocupante a perda de competitividade de determinados segmentos da economia brasileira, sobretudo os ramos mais avançados da indústria, com riscos crescentes de desindustrialização, regressão produtiva e uma reprimarização da pauta de exportações do país. Ademais, em um cenário externo pouco promissor, aumentaram os riscos de uma crescente vulnerabilidade externa do país.

Referências ALÉM, Ana Cláudia et al. Sinopse internacional, n.15. Rio de Janeiro, BNDES, 2010. ALMEIDA, Júlio Sérgio Gomes de. A contradição do ciclo de commodities. São Paulo, Novos estudos (81), CEBRAP, 2008. BORGES, Bráulio. Anular efeito de preços muda debate sobre modelo de crescimento. São Paulo, Folha de São Paulo, 21013. CARNEIRO, Ricardo. Commodities, choques externos e crescimento: reflexões sobre a América Latina. Santiago do Chile, CEPAL, Série Macroeconomía del Desarrolo, n. 117, 2.

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Capítulo 8

Breves Considerações sobre o Perfil das Atividades de Ciência e Tecnologia no Brasil e o Paradigma da Colaboração no Contexto da Crise Econômica Mundial Agnaldo dos Santos1

O

crescimento1econômico do Brasil no início do século XXI e sua ascensão ao bloco dos países que estão reconduzindo a dinâmica econômica após a unipolaridade estadunidense estimulam nos meios acadêmicos e na grande mídia um debate cujo tema surgiu em diversos momentos do século passado: os necessários investimentos em educação, ciência e tecnologia, como conditio sine qua non para a sustentação do projeto de emancipação do subdesenvolvimento. Um tema é sempre lembrado quando se procura explicar a ainda baixa capacidade do Brasil em promover inovação tecnológica: a assim chamada “gestão ineficiente” da burocracia estatal (incluindo aí os centros públicos universitário e de pesquisa) e aquilo que ganhou a fama de “Custo Brasil”, em especial os custos relacionados à remuneração do trabalho. Antes de aceitar essa premissa, de inequívoco recorte liberal, manda o bom senso que se verifique o

1

Doutor em Sociologia e professor de Economia Política na Unesp de Marília (Departamento de Ciências Políticas e Econômicas).

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 reves Considerações sobre o Perfil das Atividades de Ciência e Tecnologia no B Brasil e o Paradigma da Colaboração no Contexto da Crise Econômica Mundial

perfil das empresas do segmento identificado como de alta tecnologia e, a partir daí, encontrar as potencialidades e os desafios nele presentes. Mas só isso não basta. A quem interessa as escolhas tecnológicas engendradas no segmento? Existem alternativas a elas? E como essas escolhas foram afetadas pelos (ou potencializaram os) impactos da crise econômica iniciada em 2008? Esta exposição pretende tão somente apontar algumas dessas características entre as empresas de biotecnologia e alguns “caminhos das pedras” para uma investigação bem mais substancial, evidentemente fora do escopo do presente texto.

Visão panorâmica das empresas de tecnologia no Brasil Comparando com os países centrais de desenvolvimento capitalista, nossa política de Ciência e Tecnologia (doravante C&T) é bem recente, o que não significa que isso seja a explicação para os modestos investimentos feitos nas últimas décadas, como demonstra por exemplo o caso sul-coreano2. Ainda que experiências pioneiras tenham despontado desde o século XIX, foi somente a partir da segunda metade do século passado que começou a se estruturar efetivamen2

Cf. o artigo “O papel da política científica e tecnológica no desenvolvimento industrial da Coreia do Sul”, de Won-Young Lee (KIM e NELSON, 2005; ver também EVANS, 2004). A estruturação de uma burocracia efetivamente meritocrática e o estabelecimento de metas para o desenvolvimento tecnológico (imitação/internalização/criação) são comuns tanto ao caso japonês pós-guerra quanto aos casos sul-coreano e chinês.

 Breves Considerações sobre o Perfil das Atividades de Ciência e Tecnologia no Brasil e o Paradigma da Colaboração no Contexto da Crise Econômica Mundial

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te instituições articuladas por políticas públicas destinadas ao desenvolvimento científico e tecnológico. De acordo com Motoyama (2004), a criação de universidades e institutos públicos, além de agências de fomento à pesquisa, entre os anos 1950-1970, viabilizaram a constituição de uma efetiva comunidade acadêmica no Brasil. É bem verdade que nesse período diferentes forças políticas orientaram as políticas de C&T, sendo nada desprezível as consequências da ditadura militar entre essa comunidade, mas de fato foi nesse período que importantes instituições de pesquisa e empresas públicas (Petrobras, Embraer, Embratel, Unicamp etc.) passaram a ganhar notoriedade3. A estruturação dessa política de C&T revelou uma marca que seguiria então a área: a forte presença estatal. O grosso do investimento é feito pelo Estado de forma direta ou indireta, como por exemplo concedendo vantagens fiscais à empresas comprometidas com inovação tecnológica. Dados do Ministério do Ciência, Tecnologia e Inovação mostram que o conjunto dos investimentos (tanto público quanto privado) evoluiu de R$ 15 bilhões em 2000 para quase R$ 61 bilhões em 2010, ainda que isso tenha significado uma evolução do percentual comparativo com o PIB de 1,3% em 2000 para 1,65% em 20104.

3

A título de comparação, enquanto o Governo Médici investiu US$ 62 milhões na área, o Governo Geisel investiu US$ 98 milhões, valores que vão retroagir para US$ 34 milhões mais de uma década depois, no Governo Collor (MOTOYAMA, 2004, pp. 337-338).

4

Disponível em Acessado em 28/10/2012.

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Dispêndio nacional em ciências e tecnologia (C&T) em valores correntes, em relação ao total e em relação ao produto interno bruto (PIB), Por setor institucional, 2000-2010. Público PIB em miAno lhões de R$ correntes Federais Estaduais

2000 1.179.482,0 5.795,4

Empresariais Total

2.854,3 8.649,7

Outras Empresas empresas privadas e estatais e estatais federais

% em relação ao PIB Total

Total

Públi- EmpreTotal cos sariais

5.455,6

1.183,2

6.638,8 15.288,5 0,73

0,56

1,30

2008 3.032.203,0 15.974,5 7.138,0 23.112,5 15.827,0

5.158,6

20.985,6 44.098,1 0,76

0,69

1,45

2010 3.770.084,9 22.577,0 10.201,8 32.778,7 20.407,7

7.713,0

28.120,7 60.899,5 0,87

0,75

1,62

Para formar um quadro comparativo, o percentual dos investimentos de C&T na América Latina saiu de 0,55% para 0, 69% no período 1999-2009, enquanto nos países da OCDE a mudança foi de 2,16% para 2,4%; o Brasil participa com 60% dos investimentos feitos no conjunto da América Latina5. E parte substancial é de origem estatal. Um bom exemplo para mensurar o quanto as empresas estão dispostas a investir em inovação pode ser constatada no relatório da pesquisa A Indústria de biociências no Brasil – caminhos para o desenvolvimento6, elaborado pela empresa PwC Brasil e pela BioMinas, organização das empresas de biotecnologia e biociências de Minas Gerais, responsável entre outras atividades pelo assessoramento e a incubação de empresas desse segmento. Um aspecto importante da pesquisa é que ela foi realizada junto aos gestores dessas empresas, refletindo sua visão quanto às expectativas e quanto aos problemas identificados. Das 103 empresas que 5

Disponível em . Acessado em 05/11/2012.

6

Disponível em . Acessado em em 14/09/2011.

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responderam ao seu questionário (de um conjunto de 143 empresas identificadas pela BioMinas), 69% apontaram que os recursos para pesquisas são diretamente públicos ou de fundações privadas não reembolsáveis. Como fonte complementar, 58% afirmaram usar recursos próprios, 39% usaram fontes públicas ou privadas reembolsáveis (p.e., empréstimos), 19% buscaram investidores privados e 11% parceiros corporativos (BIOMINAS, 2011, p. 18). Estamos falando de um ramo de atividade cujos pesquisadores são reconhecidos internacionalmente, e cujos debates sobre a pertinência dos organismos geneticamente modificados (OGM) apontavam a necessidade de aproveitar as vantagens comparativas da biomassa do território nacional. Mesmo nessa área, que tais debates sugeriam ser uma enorme área para investimentos e lucros, a presença estatal nos investimentos é incontestável. A questão é: por que parte expressiva do setor empresarial brasileiro não mostra seu “lado animal” schumpeteriano e aloca recursos em seus departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento? Em geral, um dos “culpados” por esse comportamento empresarial tímido é o alto risco envolvido em tais investimentos, em particular a necessidade em utilizar os mecanismos de proteção à propriedade intelectual. Desde o início das pesquisas até a liberação comercial de um produto (no caso em tela, farmacêutico ou alimentar), o normal é um período estimado de 10 a 20 anos para as empresas começarem a ter retorno econômico7. E, mesmo que a pesquisa tenha esse “final feliz”, os custos ao longo do 7

“Um medicamento típico atualmente leva de dez a quinze anos para ser desenvolvido e consome me média US$ 800 milhões” (TAPSCOTT e WILLIAMS, 2007, p. 211).

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período são elevadíssimos, entre outras coisas porque desde os anos 1980 (e, em especial, após o Tratado TRIPS da OMC de 1995, que regulou as transações envolvendo propriedade intelectual) as grandes science life companies garantiram patentes preventivas de fragmentos de material genético, o que torna os custos de licenciamento de uma empresa para outra estratosféricos. Não restam dúvidas quanto à capacidade da comunidade científica e tecnológica brasileira8, mas o dilema que se apresenta é: como desenvolver inovação nesse terreno hostil aos iniciantes players? A pesquisa BioMinas demonstrou que alguns gestores empresariais (mesmo sendo apenas 11% da amostra) afirmaram utilizar de estratégias de colaboração corporativa. Seria essa uma alternativa para as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento das instituições brasileiras? Mas uma questão anterior se apresenta: por que empresas investem em inovação? O que as estimula?

Inovar para que? Pela literatura de inspiração schumpeteriana (evolucionista ou neoevolucionista), as empresas inovam porque buscam atingir um diferencial competitivo nos mercados em que atuam, com produtos que possam lhes dar uma vantagem concorrencial. O conjunto de técnicas e descobertas científicas dos inovadores pressionam os demais a fazer o 8

Um dos casos mais famosos e estudados na área da biotecnologia é o do Projeto Genoma Fapesp, que adotou uma engenhosa estrutura de pesquisa em rede e descentralizada. Cf. SANTOS, 2011.

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mesmo, criando uma espiral que leva a um leque de novos produtos e possibilidades ao consumidor final de ter acesso a eles, com preços mais atrativos. Como fica facilmente perceptível, essa perspectiva indica uma “destruição criativa”, onde firmas são fechadas e setores desaparecem, ainda que criando outras oportunidades de negócios e de trabalho (SCHUMPETER, 2003). É bom pontuar que, na teoria neoclássica, as inovações são fruto de fatores exógenos às empresas, são bens públicos “não-rivais” gerados na sociedade e que as empresas tomarão de forma mais ou menos paritária; as inovações não são fruto de decisões dos atores econômicos, pois isso contraria a tese de equilibro típica dessa abordagem (BEZZERRA, 2010, p. 20). De fato, a guerra que testemunhamos hoje entre empresas do porte da Apple, Google, Amazon e Microsoft é tomada como um exemplo preciso desse movimento de pressão sobre as firmas, em que poucos ao final sobreviverão como players dotados de fôlego nesse mercado altamente competitivo, cuja principal arma usada contra os adversários é o conjunto de patentes requeridas para inviabilizar os negócios dos demais9. No contexto brasileiro, alguns autores sugerem que o padrão vigente de autarquização da economia brasileira entre as décadas de 1940 e 1980 teria levado os empresários nacionais a um relativo “comodismo’ ante a elaboração de produtos e processos, pois nesse período as taxas de retorno das empresas seriam garantidas por um complexo de fatores (a criação da CLT, a auto-construção habitacional, 9

“A épica batalha pelo reino da internet”, suplemento da Economist. Carta Capital, 12 de dezembro de 2012, nº 727.

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a informalidade etc, como principais elementos da contenção dos custos com o trabalho10). As mudanças ocorridas desde meados dos anos 1990 teriam forçado as empresas a uma forte reestruturação interna e a buscar a internacionalização por meio da inovação em produtos e processos, ainda que de forma inconclusa (ARBIX, 2007, pp. 110-111) O exemplo do Vale do Silício é sempre lembrado como modelo a ser seguido não apenas pelo tamanho de suas empresas, mas também pelo seu meio ambiente institucional – start-ups ao lado dos grandes conglomerados, cercados por universidades de renome, que abrigam milhares de cientistas e técnicos. Alguns entusiastas gostam de comparar regiões como Campinas, São José dos Campos ou Recife como candidatas a novos “vales do sicílico”, mas nesse caso as comparações tendem a botar panos frios em tais pretensões. Tomando os dados apresentados pelo professor Renato Dagnino na mesa “Ciência e Tecnologia na América Latina”, realizada na USP11 em 2012, temos que o Brasil formou no período 2006-2008 noventa mil mestres e doutores nas chamadas hard sciences, no entanto apenas 68 deles (ou 0,07% do total) foram contratados pela iniciativa privada nesse período; o índice médio de contratação desses profissionais nos EUA é de 70%. Ainda conforme o pesquisador, 76% das empresas consideradas no país como “inovadoras” lançam 10 Sobre essa crítica ao empresariado brasileiro, um dos livros mais significativos continua a ser o Crítica à Razão Dualista (OLIVEIRA, 2003). 11

Seminário Internacional A Esquerda na América Latina – História, Presente, Perspectivas. A cobertura dessa mesa foi feita pela Agência Carta Maior: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_ id=20889.

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produtos já existentes no mercado. Um dado que expressa a opção das empresas brasileiras é que ao longo da década passada os investimentos públicos com C&T aumentaram de modo expressivo, ao passo que as inversões do setor privado caíram 11% entre 2000 e 2005. Sua hipótese é a de que as empresas brasileiras não querem disputar mercados com os grandes trusts internacionais, deixando a eles o papel de promotores da inovação, certos que estão sobre as vantagens comparativas dos países na divisão internacional do trabalho. Isso seria agravado pelo comportamento da comunidade científica brasileira, que paradoxalmente teria mais influência que seus pares do Norte na elaboração e execução das políticas de C&T, mas por outro lado seriam guiados por convicções neopositivistas e deterministas sobre o papel da ciência na sociedade, criando um fosso entre esse campo (no sentido bourdieuniano) e os demais setores da sociedade (DAGNINO, 2007, p. 46). Então, o dilema que se apresenta à realidade brasileira é: inovar para quê? Os gestores da política de C&T – em sua imensa maioria, cientistas e tecnólogos – aventam sempre a necessidade de aproximação entre a universidade e as empresas, mas essas não demonstram na prática (apenas no discurso) qualquer intenção de investir em inovação e, consequentemente, contratar pessoal capacitado a essa tarefa12. 12 O setor tradicionalmente receptor de recursos públicos é o da indústria automobilística, que ainda mantêm postura tímida em termos de inovação e adaptação à realidade brasileira, na qual a transferência de tecnologia e a instalação de centros de pesquisa no território nacional ainda não passam de promessas. O regime automotivo adotado em 2013 pelo governo federal encontra um terreno onde a margem de

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Isso indica que, pelos mecanismos convencionais, as atividades envolvendo pesquisa e desenvolvimento em inovação não irão florescer espontaneamente. Ainda segundo os dados de Dagnino (2007, p. 48), 20% da atividade industrial nos EUA está concentrada em segmentos baseados em alta tecnologia, enquanto no Brasil esse índice é próximo a 0%; dificilmente sairá das empresas aqui instaladas iniciativas de pesquisa e desenvolvimento em inovação. Mesmo considerando que os investimentos estrangeiros diretos (o tipo de investimento que não está diretamente vinculado à ciranda financeira especulativa) tenham caído no país após a crise de 2008, de US$ 33 bi em 2007 para US$ 30 bi em 2009, é interessante notar que desse montante o segmento relacionado à indústria farmacêutica viu um acréscimo nesse mesmo período no Brasil, de US$ 164 mi para US$ 349 mi13. As características do país, com uma enorme biodiversidade e pessoal capacitado formando em centros de excelência acadêmica, tendem a colocá-lo no centro dos interesses empresariais e da comunidade de pesquisadores. Mas o caminho mais promissor para os pesquisadores nacionais talvez seja aquele das redes descentralizadas, utilizando mecanismos abertos de colaboração, como veremos em seguida. Mas certamente investir em modelos abertos de inovação junto a essas empresas apenas reforçaria o padrão lucro das montadoras aqui instaladas é de 10%, ante a média mundial de 5%. Cf. “O motor do incentivo”, por Samantha Maia. Carta Capital, 16/01/2013, nº 731. 13 Segundo dados do Banco Central. http://www.bcb.gov.br/rex/ied/port/ ingressos/htms/index3.asp?idpai=INVEDIR. Acessado em 14/01/2013.

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existente no país, onde o grosso dos empreendimentos são tocados pelo setor público. Apenas para ilustrar, no período 2003-2007 (portanto, antes do contexto da crise internacional) o governo federal usou instrumentos financeiros de incentivo à inovação para apoiar empresas com perfil exportador (29 mil, em um universo aferido de 2 milhões e 200 mil empresas), mas foi demandada em média por apenas 3 mil delas por ano (IPEA, 2010, p. 55). Quando olhamos para o comportamento empresarial ante a chamada “Lei do Bem”, formulada para dar incentivos fiscais às empresas orientadas à inovação, vemos que no período 2006-2008 um total de 441 delas havia procurado usá-la, mas apenas 12% de tais empresas eram responsáveis por 93% do montante de custeios em Pesquisa e Desenvolvimento registrados no programa (id., p. 57). Esses números parecem dar razão aos argumentos do professor Dagnino: a empresa nacional não quer orientar seus recursos em inovação, ficando à margem das políticas de C&T. Se cabe ao setor público não só arcar com os investimentos mas também com os empreendimentos relacionados à C&T, então devemos questionar quais devem ser os interesses que guiam essa política no Brasil.

A questão da colaboração Ainda que não seja estranho à comunidade científica desde seu nascedouro até a poucas décadas atrás, o princípio da colaboração entre pares vem aparecendo no meio empresarial como uma alternativa engenhosa ante aos elevados

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custos com pesquisa e desenvolvimento em C&T. A crescente especialização das diferentes disciplinas científicas e tecnológicas impede que um indivíduo ou mesmo um grupo isolado de pesquisadores possa ter a primazia nas descobertas ou nos inventos, ainda mais quando consideramos o problema da propriedade intelectual, em especial o instrumento da patente14. Mesmo considerando que a prática de pesquisa e desenvolvimento em inovação exija no atual contexto essa defesa da propriedade intelectual, ela vem cada vez mais sendo objeto de reflexão por parte de filósofos, economistas e sociólogos. Uma das vertentes desse tipo de reflexão é o Movimento Anti-Utilitarista em Ciências Sociais (formando em francês a sigla MAUSS – Mouvement anti-utilitariste dans les sciences sociales), que procura resgatar o conceito de dádiva do sociólogo francês Marcel Mauss para criticar a premissa ideológica da troca mercantil como elemento ontológico (LEVÉSQUE, 2009). Os indivíduos e as instituições podem estabelecer relações que não são pautadas apenas pelo troca monetária, mas “submergir” em complexas relações de reciprocidade, mesmo que elas não descartem também a troca mercantil-monetária em algum momento. Abrir bancos de dados e torná-los públicos, estabelecendo relações pré-competitivas, é um bom exemplo de um padrão de comportamento dessa natureza. Uma “economia dos pre14 “Cerca de 20% do genoma humano já eram de propriedade privada, inclusive os genes da hepatite C e do diabetes. Os proprietários dessas patentes agora influenciam quem faz as pesquisas e seus custos, desempenhando um papel desproporcional no que diz respeito ao volume geral e direcionamento das pesquisas nessa área” (TAPSCOTT e WILLIANS, 2007, p. 204).

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sentes” exige, tal qual nas culturas indígenas estudadas por Mauss, que a dádiva não fique retida em um único lugar, mas que ela circule, o que significa que aquilo que um indivíduo acessou deve ser repassado a outros (ANDERSON, 2009, p. 18915). A reputação, o aprendizado e a ampliação do leque de contatos seriam, por si só, recompensas para os atores dessa forma de troca. Empresas como a farmacêutica Glaxo Welcome (agora Glaxo-SmithKline), Volkswagen e outras estão adotando plataformas abertas de desenvolvimento pré-competitivo, no sentido de “manter open source” algumas descobertas para os quais ainda não se sabe quais aplicações comerciais poderiam representar (SANTOS, 2011). O próprio relatório da BioMinas supracitado tece diversas considerações sobre essa modalidade de pesquisa e desenvolvimento, além de consórcios de desenvolvimento competitivo (onde as informações circulam livres, mas cada empresa fica livre para tomá-las para criar seus próprios produtos16). Isso é possível porque as empresas de “ciências da vida”, incluindo as grandes farmacêuticas, perceberam que as sequências de genes de um organismo são dados e não produtos finais, portanto esses dados podem ser totalmente disponibilizados em bancos públicos (ou plataformas abertas), onde di15 Vale notar que tanto Chris Anderson como Don Tascott & Anthony Williams, autores utilizados ao longo desse texto, procuram apontar para o que consideram um “novo capitalismo”, sem questionar em nenhum momento se ele passa por uma crise estrutural ou se ele deve ser superado por outras formas de sociabilidade. De todo modo, os exemplos que eles utilizam são úteis para ilustrar nossa argumentação. 16 Biominas, 2011, pp. 46-55.

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versos pesquisadores de instituições públicas e privadas podem acessá-los e descobrir suas conexões com a dinâmica de um determinado organismo. Dessa percepção surgiram duas importantes iniciativas, no final do século passado: a Merck Gene Index (um banco de dados público criado pela empresa Merck e a Universidade de Washington) e o SNP Consortium, joint-venture de onze empresas farmacêuticas para disponibilizar um banco de dados sobre marcadores químicos de genes, que podem facilitar a elaboração de medicamentos “individualizados” (Tapscott e Williams, 2007; Santos, 2011). Se levamos isso em conta, então pesquisadores de instituições públicas como Embrapa e Fiocruz podem se valer de associações com empresas e universidades para ampliar o escopo de suas pesquisas. Uma política de C&T que atenda aos interesses do conjunto da população exigirá de fato não só medidas articuladas entre os diferentes níveis de governo como também um modus operandi original, pautado na colaboração tanto de atores do mainstream acadêmico quanto das experiências de pequenas instituições públicas e privadas, incluindo os movimentos sociais. E o Brasil reúne amplas condições para explorar essa alternativa. Já tivemos uma experiência no final dos século passado, com o Projeto Genoma Fapesp brasileiro e o Projeto Genoma Humano, um consórcio internacional do qual pesquisadores do Brasil também participaram (SANTOS, 2011). Nos dois casos, diversos centros de pesquisa interligados e trabalhando de forma colaborativa para sequenciar o genoma de um fitopatógeno e o da espécie humana, ambos bem sucedidos. Como apontei em estudo anterior (id., ibid.), o desenvolvimento de inovações em biotecnologia

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nas plataformas abertas é ainda modesto, mas tende a seguir dinâmicas similares à que vemos no mundo da tecnologia digital. Os modelos de negócios de empresas como os da Google ou da Amazon, que estão longe de serem contra o establishment, faturam alto tornando seus produtos abertos para pessoas em qualquer lugar do mundo os aperfeiçoarem (TAPSCOTT e WILLIANS, 2007; ANDERSON, 2009). De fato, não será das empresas e instituições tradicionais com sede ou presença no Brasil que se deve esperar empreendimentos de forma aberta, pelo motivos citados acima. As experiências do Porto Digital no Recife17, dos Pontos de Cultura18 espalhados pelo país e das start-ups geradas em simbiose com universidades como no caso de Campinas19 indicam caminhos alternativos ao da propriedade intelec-

17 Polo de desenvolvimento de softwares e de “economia criativa” (games, música, multimídia) e incubadora de empresas do ramo, numa parceria entre poder público, indústria e universidades. Cf. <www. portodigital.org>. 18 Projetos financiados e apoiados pelo Ministério da Cultura desde 2004, implementados por instituições públicas e ONGs, que procuram organizar ações de impacto sócio-culturas nas comunidades em que estão instalados. Cf.. 19 Empresas constituídas após a experiência do Projeto Genoma Fapesp, como a Allelix e a Canaviallis, possuem sede em um condomínio industrial em Campinas chamado TechnoPark, próximo à Unicamp, contando ainda com empresas de nanotecnologia como a Nanocore e de eletrônica como a chinesa Huawei. Cf. <www.technopark.com.br/>.

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tual tradicional, que vimos exige imensos recursos para seu desenvolvimento e manutenção20.

Pensando o devir A imprensa noticiou que a Embrapa vem estreitando laços de parceria com empresas multinacionais do segmento de sementes e defensivos agrícolas, via captação de recursos e licenciamento de produtos patenteados pelas science life companies21. Da perspectiva daqueles que compreendem ser o agronegócio o motor da economia brasileira, maximizando essa vantagem comparativa do país frente ao mercado mundial, parece fazer todo o sentido usar as tecnologias já disponíveis para adaptá-las às condições do solo e do clima nativos. A Allelyx, empresa de biotecnologia engendrada na experiência do Projeto Genoma Fapesp e uma das mais bem-sucedida do setor, foi vendida à Monsanto, gigante multinacional, com muito debate à época se era ético usar dinheiro

20 De todo modo, há um debate entre os especialistas em direito de propriedade intelectual sobre como é possível utilizar os próprios instrumentos tradicionais – patente ou copyright – para proteger dados e plataformas abertas. Nesse casos, eles seriam acionados quando algum ator econômico tentasse revindicar a propriedade do material em circulação, de modo a mantê-lo aberto. O maior exemplo são os creative commons no campo da criação artística. Cf. LESSIG (2005) e BENKLER (2007). 21 “Embrapa busca parceria com o setor privado”, por Genilson Cezar. Valor Econômico. 14/05/2012.

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público para criar um ativo vendável22. Mas serão esses os únicos caminhos possíveis para a expertise e os recursos da biomassa de nosso país? A necessidade de usar conhecimentos tradicionais para as práticas de bioprospecção indicam que a natureza determinista e unidirecional das tecnociências pode ser questionada, e que a utilização de saberes ancestrais e populares podem ser muito bem articulados em experiências de tecnologia social23. Pelo que foi brevemente exposto aqui, a crise econômica instaurada desde 2008 não é necessariamente o principal desafio à política de C&T, ainda que a economia internacional não possa ser vista como um mero conjunto de autarquias nacionais justapostas – o sistema como tal parece estar diante de contradições cada vez mais difíceis de serem superadas. Mas, como falamos de processos sociais que levam anos ou décadas até atingirem determinada configuração, é possível que os países com as características do Brasil – e que não são muitos no presente momento – podem aproveitar a janela de oportunidade que se apresenta com o rearranjo forçado após o crash de 2008. Será preciso que os gestores atuais e futuros da política de C&T tenham a cla22 “Ministro critica venda de Alellyx e Canavialis para a Monsanto”, por Herton Escobar. O Estado de São Paulo. Disponível em . Acessado em 28/10/2012. 23 Experiências articuladas a partir de políticas públicas que abordem a relação ciência-tecnologia-sociedade, buscando maior coerência com a realidade brasileira. Os exemplos dos Pontos de Cultura e de economia solidária são algumas dessas experiências. Cf. TECNOLOGIA SOCIAL (2004).

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reza das transformações em curso, e que consigam romper com a ilusão do determinismo científico e da subserviência da ciência e da tecnologia frente à onipresença dos mecanismos mercantis. Se é verdade que muitos ainda tentam ser replicantes de Steve Jobs (nem tanto por suas atribuídas características de genialidade e mais pela fortuna que construiu) nos laboratórios científicos e centros tecnológicos, uma parte expressiva começa a perceber que as recompensas para a inovação podem ir bem além daquelas de caráter monetário, como as clássicas reflexões maussianas acerca da dádiva bem apontaram.

Referências ANDERSON, Chris. Free – o futuro dos preços. Rio de Janeiro, Elsevier, 2009. ARBIX, Glauco. Inovar ou Inovar – a indústria brasileira entre o passado e o futuro. São Paulo, Editora Papagaio, 2007. BENKLER, Yochai. “A economia política dos commons’. In: SILVEIRA, Sérgio Amadeu (org). A comunicação digital e a construção dos commons: redes virais, espectro aberto e as novas possibilidades de regulação. São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2007. BEZZERA, Carolina Marchiori. Inovações tecnológicas e a complexidade do sistema econômico. São Paulo, Cultura Acadêmica, 2010. BIOMINAS Brasil e PwC Brasil. A Indústria de Biociências Nacional – caminhos para o crescimento. Belo Horizonte, 2011. DAGNINO, Renato. Ciência e Tecnologia no Brasil – o processo decisório e a comunidade de pesquisa. Campinas, Editora da Unicamp, 2007.

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EVANS, Peter. Autonomia e Parceria – Estados e transformação industrial. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004. IPEA. Brasil em Desenvolvimento – planejamento e políticas públicas: sumário analítico. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília, 2010. KIM, Linsu, NELSON, Richard R. Tecnologia, Aprendizado e Inovação – as experiências das economias de industrialização recente. Campinas, Editora da Unicamp, 2005. LESSIG, Lawrence. Cultura livre – como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade. São Paulo, Trama, 2005. LEVÉSQUE, Benoît. “A contribuição da Nova Sociologia Econômica para repensar a economia no sentido do desenvolvimento sustentável”. In: MARTES, Ana Cristina Braga (org.). Redes e Sociologia Econômica. São Carlos, Editora UFSCar, 2009. MOTOYAMA, Shozo (org). Prelúdio para uma história – Ciência e Tecnologia no Brasil. São Paulo, Edusp, 2004. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista – o ornitorrinco. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003. SANTOS, Agnaldo dos. Entre o Cercamento e a Dávida – inovação, cooperação e e abordagem aberta em biotecnologia. São Paulo, Blucher Acadêmico, 2011. SCHUMPETER, Joseph A. “A instabilidade do capitalismo”. In: CARNEIRO, Ricardo (org.). Os Clássicos da Economia. São Paulo, Editora Ática, 2003, pp. 68-96. TAPSCOTT, Don, WILLIAMS, Anthony. Wikinomics – como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2007. TECNOLOGIA Social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundação Banco do Brasil, 2004.

Capítulo 9

América latina, globalização e espaços de resistência: o caso dos índios Guarani-Kaiowa no Brasil Noemia Ramos Vieira1

É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Constituição Federal do Brasil, Art. 231 §, 5º.

N

a América Latina há algumas décadas tem sido bastante recorrente a emergência de tensões territoriais as quais têm sido traduzidas em muitos movimentos de resistência. Um caso bastante noticiado nos últimos meses e que tem mobilizado diversos setores sociais é o do movimento de resistência indígena Guarany-Kaiowa no Brasil. Estes povos, que historicamente tem a tradição de povos produtores de alimentos, hoje se encontram em estado

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de extrema pobreza pelo fato de que, ao longo da história, foram sendo expropriados de suas terras. Estas que aos poucos foram se tornando reduto da monocultura da cana-de-açúcar e da soja na região as quais são culturas da agenda de exportação do governo brasileiro. Atualmente estão resistindo a uma ordem de despejo emitida pela justiça federal que os obriga a sair da fazenda onde estão acampados. A ocupação da referida fazendo é parte de um movimento reivindicatório dos Guarani/Kaiowa iniciado início na década de 1980. Desde então estes lutam pela demarcação de suas terras as quais, desde fins do século XIX e início do século XX, vêm sendo invadidas e ocupadas por latifundiários e colonos a partir de projetos oficiais de colonização do território brasileiro. Hoje o que se presencia é o confinamento destes em reservas criadas pelo governo sob a orientação do, hoje extinto, Serviço de Proteção ao Índio – SPI. O confinamento a eles imposto em áreas restritas e que não permitem mais a possibilidade da prática de uma agricultura itinerante, aliado à superpopulação, provocaram grave comprometimento dos recursos naturais. Geraram um desequilíbrio nas relações entre o mundo dos homens e a natureza. (COLMAN & BRAND, 2008: 164) A partir da ordem de despejo emitida, no mês de setembro do ano de 2012 pela justiça federal, os indígenas têm ameaçado cometer suicídio coletivo se a referida ordem se



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cumprir. A Carta apresentada abaixo, em sua íntegra, dá a dimensão real desta situação: Nós, (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS. Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-Ms é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente

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e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo  isso  para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de



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despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos. Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS. Atenciosamente, Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay1 1

Carta publicada no site da Comissão Pastoral da Terra no dia 23 de outubro de 2012: http://www.cptnacional.org.br/index.php/

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O que se presencia é uma tensão existente entre os povos indígenas e o Estado brasileiro como representante legítimo dos proprietários das fazendas existentes onde antes existiam as aldeias destes povos. Trata-se de tensões existentes entre duas territorialidades bem definidas: a territorialidade indígena e a territorialidade da agricultura capitalista monocultora em que a primeira se vê subjugada pela segunda. Este fato fica evidente nas palavras do indigenista Egon Heck em entrevista à Revista IHU On-Line. De um lado, se tem um dos estados de economia mais florescentes do País, baseado na monocultura de milho, na criação de gado e, agora, na monocultura da cana-de-açúcar entrando com muita força. E, por outro lado, muitas populações expulsas do campo, dentre elas principalmente as indígenas. Essas são as mais afetadas, pelo fato de suas terras se situarem, em geral, nas áreas mais férteis que são as de mata Atlântica, no extremo sul do estado, as terras Guarani-Kaiowá.2

noticias/13-geral/1293-carta-da-comunidade-guarani-kaiowa-de-pyelito-kue-mbarakay-iguatemi-ms-para-o-governo-e-justica-do-brasil acesso em 02/02/2013. 2

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content &view=article&id=4768&secao=408: Revista IHU On Line: acesso em 02/02/2013.



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Segundo o indigenista a arbitrariedade da situação é tamanha que o gado dispõem de 3 a 5 hectares de terra por cabeça, enquanto os índios Guarani-Kaiowá não chegam a ocupar um hectare por índio. Estas reflexões iniciais conduzem aos seguintes questionamentos: quais as determinações históricas e sociais estão envolvidas nesta problemática? Como o conhecimento geográfico pode contribuir para desvendar algumas destas determinações? Desta feita a partir de um olhar geográfico o presente texto tem como proposição apresentar reflexões que contribuam para o desvendamento de algumas das determinantes desta problemática sócio espacial existente no território brasileiro. Para tanto serão utilizadas como referencial teórico as reflexões impressas em obras de geógrafos como Haesbaert (2007), Castro (2010), Santos (2001), Santos (2007) e Santos& Rigotto (2010). Além do aporte teórico da ciência geográfica buscou-se apoio em obras de antropólogos e indigenistas. Tais obras foram Colman & Brand (2008), Brant (2004), Grubits & Freire (2011) e Ribeiro (1996). É sabido que desde o processo de colonização americana os povos indígenas têm sido expropriados dos seus territórios e, consequentemente exterminados. Isto se deve ao processo de territorialização da sociedade capitalista em que normas de regulação territorial vêm sendo impostas arbitrariamente a esses povos sem considerar os seus direitos e sua identidade territorial. Este processo tem ocorrido tanto a partir da violência física quanto da violência simbólica. A problemática territorial vivida pelos Guarani-Kaiowá é mais um destes casos.

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Apesar do processo de expropriação territorial vivido por estes povos ter iniciado com o processo de colonização do Brasil, o seu acirramento se deu a partir do contato destes com os povos não indígenas atraídos para a região pelo processo de colonização oficial do território brasileiro. O antropólogo Antônio Brand (2004) em um histórico sobre a luta desses povos pela posse da terra dá uma ideia de quão amplo era o território ocupado por estes povos antes da chegada da população não indígena. Segundo este autor os Guarani-Kaiowá [...] ocupavam um amplo território situado entre o rio Apa, Serra de Maracaju, os rios Brilhante, Ivinhema, Paraná, Iguatemi e a fronteira com o Paraguai. Agrupavam-se, nesse território, especialmente em áreas de mata, ao longo dos córregos e rios, em pequenos núcleos populacionais, integrados por uma, duas ou mais famílias, que mantinham entre si inúmeras relações de casamento, tendo à frente os chefes de família mais velhos, denominados de tekoaruvicha (chefes de aldeia) ou iianderu (nosso pai) (...). Esses núcleos familiares eram relativamente autônomos (...). (BRAND, 2014: 138-139) Para Brand mesmo com a chegada das primeiras frentes não indígenas no território a partir da década de 18803 as 3

Povos que chegaram à região após a guerra do Paraguai junto com a instalação da Companhia Matte Larangeira para a colheita nos ervais e



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terras dos Guarani-kaiowá não se viram tão ameaçadas tendo em vista que estes viviam nas regiões de densa mata. Foi a partir do ano de 1915 com o processo oficial de colonização do território brasileiro que a situação destes povos, no que diz respeito à posse da terra, começa a se complicar. Estes povos passaram a ser confinados em pequenas extensões de terra – as reservas indígenas – sem que se considerasse, na sua implementação, os padrões indígenas de relacionamento com o território e seus recursos naturais e, principalmente, a sua organização social. Entre os anos de 1915 e 1928, o Governo Federal, objetivando confinar os diversos núcleos populacionais dispersos em amplo território ao sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul, demarcou sob a orientação do Serviço de Proteção aos Índios-SPI oito pequenas extensões de terra – as reservas – para usufruto destes povos. Para Brand o mais grave deste processo é que estas reservas [...] constituíram importante estratégia governamental de liberação de terras para a colonização e consequente submissão da população indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos naturais por frentes não-indígenas. (2004: 138) Além de que neste processo ignoraram-se, os padrões indígenas de relacionamento com o território e seus recursos naturais e, principalmente, a sua organização social. também os que vieram com as primeiras fazendas de gado no final do século XIX e início do século XX.

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Segundo Brand desde então o processo de ocupação dos territórios indígenas por povos não indígenas se intensificou. Em 1943, o então Presidente da República, Getúlio Vargas, criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados cujo objetivo era possibilitar o acesso a terra para milhares de famílias de colonos, migrantes de outras regiões do país. O que provocou de imediato, problemas diversos e graves, pois questionou a presença indígena e impôs a sua transferência para outros espaços. (Idem, Ibidem) A partir da década de 1950, especialmente, acentua-se a instalação de empreendimentos agropecuários nos demais espaços ocupados pelos Guarani-Kaiowá, ampliando o processo de desmatamento do território. Parte significativa das aldeias é destruída e a partir deste período, acentuando-se o processo de confinamento nas reservas. Grande parte dos indígenas se viram obrigada a trabalhar como mão de obra tendo em vista a desestruturação do seu modo de vida. (Idem, ibidem) A partir da década de 1970 os problemas vividos pelos Guarani-Kaiowá se intensificaram. Com a introdução da cultura da soja aliada à ampla mecanização da atividade agrícola, houve a dispensa de grande parte da mão-de-obra indígena. Além de que, a degradação do ambiente, a partir do desmatamento e da poluição dos rios, provocou o fim das aldeias. Neste processo grande parte dos indígenas se refugiou nos fundos das fazendas instaladas onde, até pouco tempo atrás, existiam suas aldeias. Posteriormente à instalação da monocultura da soja foi introduzida na região a monocultura da cana-de-açúcar e com elas as Usinas de Álcool nas quais os indígenas, hoje,



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têm encontrado sua única forma de sobrevivência: a maior parte da massa trabalhadora das Usinas de álcool é constituída de indígenas do grupo Guarani-Kaiowá. (Idem, Ibidem) Brand dá a noção das consequências desta politica de povoamento implantada pelo governo brasileiro desde sempre: O comprometimento dos recursos naturais, resultante da perda da terra, retirou as condições necessárias para a sua economia, impondo aos homens indígenas o assalariamento. Provocou a rápida passagem de alternativas variadas de subsistência – agricultura, caça, pesca e coleta – para uma única alternativa, a agricultura e esta apoiada em poucas variedades de cultivares e, mais recentemente, o assalariamento em usinas de Álcool. No entanto, mais do que as alternativas econômicas, comprometeu de forma crescente a autonomia interna desses povos por reduzir suas possibilidades de decisão sobre essas questões, deixando cada vez um espaço mais reduzido para a negociação a partir de suas alternativas histórico-culturais. (BRAND, 2004: 140-141) O que pode se concluir é que deste jogo de força entre as duas formas de gestão territorial4 o resultado foi a terri4

De um lado o modelo de desenvolvimento territorial que prioriza o mercado a qualquer custo e, de outro, o modelo que considera não só as

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torialização, a passos largos, da lavoura monocultora capitalista e a desterritorialização da agricultura indígena, uma vez que, segundo Brand (2004), hoje os espaços reservados aos indígenas se encontram sobrepostos e geograficamente confinados, misturados e sem condições de manter sua organização, assentada em unidades familiares autônomas, com seus líderes que zelavam pela harmonia interna. [...] o desafio maior decorrente do processo de perda territorial refere-se às dificuldades em adequar a sua organização social a essa nova situação marcada pela superpopulação, sobreposição de famílias extensas e pelas transformações de ordem econômica [...] (BRAND, 2004: 141). Com base nas reflexões de Haesbaert (2007) pode-se dizer que estes povos vem vivendo historicamente um processo de desterritorialização como precarização territorial. Para este autor este processo ocorre não só quando um povo se vê separado de sua terra que é vista como espaço físico, material e como meio de produção (solos férteis, florestas, ricas em produtos extrativos), mas também quando se vê separado de seu espaço simbólico e cultural. Mesmo exercendo o domínio sobre um determinado espaço, podem faltar ao grupo indígepotencialidades econômicas, mas também as especificidades socioculturais do território.



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na de referência territoriais de sua cultura, o próprio “imaginário geográfico” condensado simbolicamente em determinadas parcelas de espaço (um rio, uma cachoeira, um trecho de florestas – espaços de deuses ou do espirito de seus ancestrais). (HAESBAERT, 2007: 67) Isto porque “território para o índio, é ao mesmo tempo um espaço de reprodução física de subsistência material, e um espaço carregado de referências simbólicas, veículos de manutenção de sua identidade cultural”. (idem, ibidem: 67). Para o autor o que se presencia é uma dinâmica de precarização socioespacial que conduz à formação dos “aglomerados humanos de exclusão, o exemplo mais estrito de desterritorialização”. (Idem, Ibidem, p. 68) Haesbaert caracteriza o processo de precarização socioespacial e a consequente formação dos aglomerados humanos de exclusão como uma dinâmica dominante da sociedade capitalista globalizada. Para este autor [...] na sociedade contemporânea, com toda sua diversificação, não resta dúvida que o processo de exclusão, ou melhor, de precarização socioespacial, promovido por um sistema econômico altamente concentrador é o principal responsável pela desterritorialização. (Idem Ibidem, p. 68). Estas reflexões contribuem para a compreensão do caráter nocivo da politica de confinamento dos indígenas em

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reservas as quais são territórios totalmente alheios as especificidades socioculturais destes povos. Refletir sobre a natureza das políticas de confinamento dos Guarani-Kaiowá talvez ajude a entender outro problema que atinge esta etnia: o alto índice de suicídios entre jovens. O número de suicídios entre estes povos é um é um dado bastante preocupante. Os resultados obtidos em pesquisa mostram que “ocorreram 410 suicídios nessa nação de 2000 a agosto de 2008. As tentativas de suicídio não consumadas, porém, não foram registradas. A maioria dos suicidas são homens, 65% na faixa etária de 15 a 29 anos, e o método mais frequente é o enforcamento”. (GRUBITS & FREIRE, 2011: 504) Na busca dos fatores causais destes índices as autoras apontam como um dos principais “o processo de confinamento compulsório ao qual o grupo vem sendo submetido, com superpopulação das aldeias, imposição de crenças, valores e lideranças estranhos a sua cultura”. E reforçam: [...] a proximidade com a sociedade capitalista e a delimitação territorial das reservas implicaram o abandono da vida nômade ou impediram o deslocamento dos grupos, e, em consequência, a poluição do meio ambiente onde estão localizados, provocando doenças que muitas vezes podem levá-los à morte. Outra questão relevante é a imposição de novas religiões, que fazem-nos (sic) perder seus referenciais, desorganizando-os social e culturalmente até levá-los a conflitos e desajustes – em ambas as sociedades – que



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os empurram à adoção de vícios como o do alcoolismo e o da prostituição. Além disso, a imposição da própria cultura não índia, com veiculação de costumes alheios aos seus, quer na maneira de se vestir e de se comportar, quer na própria concepção de trabalho, com o objetivo de educá-los, levam-nos ao risco de uma desagregação. (GRUBITS & FREIRE: 507-508) Como se vê o desvendamento das determinações envolvidas na problemática sócio-espacial em questão passa necessariamente pela análise do contexto histórico e social em que ela se encontra, qual seja o da sociedade capitalista globalizada. Não que as contradições deste tipo de sociedade só existam neste período histórico de seu desenvolvimento, mas sim que no atual momento estas contradições se fazem mais perversas e devastadoras. É a partir de 1980 com a intensificação do processo de globalização e os arranjos realizados pelas politicas neoliberais que se ampliou o numero de conflitos ligado ao território. Isto porque no processo de Divisão Internacional do Trabalho em que os espaços nacionais, que a princípio são constituídos por uma diversidade de territorialidades, passam a ser regulados e normatizados segundo um único objetivo: a territorialização do dinheiro global. Este processo altera o conteúdo do território nacional e o fragmenta como um todo o que promove danos na identidade dos povos. Assim os conflitos que surgem são nada mais do que movimentos de resistência ao rolo compressor que tem sido

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este processo que desconsidera as múltiplas territorialidades existentes no território nacional. As reflexões de Milton Santos são bastante pertinentes para a compreensão desta realidade. No mundo da globalização, o espaço geográfico ganha novos contornos, novas características, novas definições. E também, uma nova importância, porque a eficácia das ações está estreitamente relacionada com sua localização. Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto para os outros. (SANTOS, 2001, p. 79) Segundo Santos (2001) nestes melhores pedaços do território o comando de tudo se dá a partir do dinheiro global. Um dinheiro despótico que se tornou uma abstração, um equivalente universal e ganhou uma existência autônoma em relação ao resto da economia tendo em a sua fluidez, sua invisibilidade. Em reflexões mais rcegnes sobre esta temática Santos pontua: Nunca na história do homem houve um tirano tão duro, tão implacável quando esse dinheiro global; é esse dinheiro global fluído, invisível, abstrato, mas também despótico, que tem um papel na produção da história, impondo caminhos às nações. (SANTOS, 2007: 17)



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Para Santos a tirania do dinheiro global se materializa na medida em que suas lógicas impõem-se àquelas da vida socioeconômica e política dos países, forçando mimetismos, adaptações rendições aos países. Trata-se de um processo de autonomização do dinheiro global em que este se torna o principal regedor do território, tanto o território nacional como suas frações. É a partir destas reflexões que deve ser compreendida a questão territorial vivida pelos Guarani-Kaiowá. As terras mais férteis e com maior ocorrência dos recursos naturais, que eram de propriedade do Guarani-Kaiowá, foram as “escolhidas” pelo dinheiro global para sua territorialização ficando para estes povos o confinamento em reservas delimitadas arbitrariamente pelo Estado. Santos aponta que a lógica do dinheiro global a qual se transforma em imposição aos territórios ocorre segundo duas vertentes: “uma é a do dinheiro das empresas que, responsáveis por um setor da produção, são, também, agentes financeiros, mobilizados em função da sobrevivência e da expansão da firma em particular” e a outra se dá a partir da política dos “governos financeiros globais, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, bancos travestidos em regionais como o BID. É por intermédio deles que as finanças se dão como inteligência geral”. (2001: 100) Neste processo o Estado tem tido papel relevante, pois na maioria das vezes a partir de políticas desenvolvimentistas, este negligencia o seu papel social promovendo a regulação e a normatização do território tendo em vista apenas o interesse dos condutores da globalização. Segundo Santos (2001) nesse processo o Estado se omite quanto ao interesse

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das populações e se torna a cada dia mais presente ao serviço da economia dominante. De tal forma o Estado passa a ter menos recursos para tudo o que é social, Um dos exemplos deste fato apontado por Milton Santos se refere à onda de privatizações ocorrida em vários países capitalistas. Para Santos as privatizações representam uma das formas mais eficazes que o capital, em parceria com o Estado, encontrou para territorializar-se. Para este autor “as privatizações são a mostra de que o capital se tornou devorante, guloso ao extremo, exigindo sempre mais, querendo tudo”. (idem, ibidem. p. 66). Assim na medida em que o governo da nação se solidariza com os desígnios do dinheiro global levantam-se problemas cruciais para estados e municípios. Isto porque a instalação do capital globalizado supõe que o território se adapte às suas necessidades e a sua fluidez, o que leva o Estado investir pesadamente para alterar a geografia das regiões escolhidas. Sobre esta parceria entre estado e desenvolvimento capitalista Castro se manifesta da seguinte forma: São as intervenções do governo que produzem efeitos duradouros sobre a vantagem competitiva das nações quando direcionadas para melhorar a competitividade sistêmica, na medida em que criam um ambiente mais favorável para a operação das empresas: melhoria na infra-estrutura social e econômica, qualificação dos recursos humanos, sistemas de financiamento e tributário, estabilidade politica. Portanto, embora o capital esteja li-



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vre para voar, é o estado que fornece as condições para o seu pouso. Revalorizando o território para manter antigos investimentos ou para atrair novos. (CASTRO, 2010: 238) Este processo, de acordo com Santos (2001) leva a uma fragmentação generalizada do território nacional e a uma perda de sua identidade uma vez que o movimento geral da sociedade planetária se choca com o movimento particular de cada fração, regional ou local da sociedade nacional. Cada fragmento do território nacional, de forma brusca e, também, rapidamente perde uma parcela maior ou menor de sua identidade, em favor de formas de regulação estranhas ao sentido da vida. [...] a presença das empresas globais no território é um fator de desorganização, de desagregação, já que elas impõem cegamente uma multidão de nexos que são do interesse próprio e, quanto ao resto do ambiente-e nexos que refletem as sua necessidades individualistas, particularistas. (...) A finança tornada internacional como norma contaria as estruturas vigentes e impõe outras. (SANTOS, 2007: 20-21) Esta fragmentação dos territórios expropria as coletividades do comando dos seus destinos, enquanto os novos atores também não dispõem de instrumentos de regulação que interessam à sociedade em seu conjunto. O interesse

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destes está unicamente em firmar parceria com o Estado para que surjam normas de regulação que resultem em um arranjo do territorial nacional favorável aos seus interesses. Afinal “é Estado Nacional que, afinal regula o mundo financeiro e constrói infra-estrutura, atribuindo, assim, a grandes empresas escolhidas a condição de sua viabilidade” (SANTOS, 2001: 77) Neste processo a territorialidade do que é coletivo se vê subjugada aos interesses do dinheiro global, uma vez que o Estado, contraditoriamente ao seu papel, se coloca à disposição e em função deste que por intermédio da ação das empresas globais que se instalam nos lugares, imponde-lhes comportamentos compatíveis com seus interesses. Nesse sentido, cada empresa [...] utiliza o território em função dos seus fins próprios e exclusivamente em função desses fins. As empresas apenas têm olhos para os seus próprios objetivos e são cegas para tudo o mais. Desse modo, quando mais racionais forem as regras de sua ação individual tanto menos tais regras serão respeitosas do entorno econômico, social, político, cultural, moral ou geográfico, funcionando, as mais das vezes, como um elemento de perturbação e mesmo de desordem. Neste movimento, tudo o que existia anteriormente à instalação dessas empresas hegemônicas é convidado a adaptar-se às suas formas de ser e de agir, mesmo que provoque, no entorno preexisten-



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te, grandes distorções, inclusive a quebra da solidariedade social. (SANTOS, 2001: 85) Estas ações, segundo o autor, produz uma verdadeira alienação do território à qual corresponde a outras formas de alienação na medida em que os fragmentos resultantes do processo articulam-se externamente segundo “lógicas duplamente estranhas: por sua sede distante, longínqua quanto ao espaço da ação, e pela sua inconformidade com o sentido preexistente da vida na área em que se instala” (SANTOS, 2001: 86-87). Para exemplificar processo de fragmentação em um território. Santos lança mão do exemplo da agricultura moderna, a qual ele dá o nome de agricultura científica globalizada. Esta tem se instalado nos países avançados e nas áreas mais desenvolvidas de países como o Brasil. Segundo ele este tipo de agricultura é responsável por mudanças profundas quanto à produção agrícola e quanto à vida de relações. Isto porque a produção agrícola passa a ter uma referência planetária e, por isso, ela recebe as mesmas leis que regem os outros aspectos da produção econômica. Nas áreas onde a agricultura científica globalizada se instala Verifica-se uma importante demanda de bens científicos (sementes, inseticidas, fertilizantes, corretivos) e, também, de assistência técnica. Os produtos são escolhidos segundo uma base mercantil, o que também implica uma estrita obediência aos mandamentos científicos e técnicos, São essas condições que

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regem os processos de plantação, colheita armazenamento, empacotamento, transportes e comercialização, levando a introdução, aprofundamento e difusão de processos de racionalização que se contagiam mutuamente, propondo a instalação de sistemismos. Que atravessam o território e a sociedade levando, com as racionalização das práticas, a uma certa homogeneização (SANTOS, 2001: 89). Estas ponderações de Santos são bastante pertinentes para a análise da realidade vivida pelos Guarani-Kaoiwá no Estado do Mato Grosso do Sul. O que se verifica é que o território destes povos tem sido historicamente usurpado pela territorialização deste tipo de agricultura – popularmente conhecida com agronegócio – em que uma agricultura de subsistência carregada de simbolismos identitários da cultura indígena foi substituída pela agricultura comercial sintonizada com a demanda global. Quando se analisa o tipo de cultura que vem se desenvolvendo nas áreas onde antes existiam as aldeias dos Guarani-Kaiowá as quais hoje estão sendo reivindicadas por estes, constata-se que entre estas estão duas das principais culturas da pauta de exportação brasileira, qual seja a soja e a cana-de-açúcar. Isto fica claro nas palavras do Antropólogo Antônio Brand em entrevista à Revista IHU On-Line: [...] o assédio às terras ocupadas por povos indígenas sempre foi enorme. Terras rema-



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nescentes e ricas foram alvo de mineradoras, depois de fazendeiros para a expansão do agronegócio – soja, arroz, cana-de-açúcar, eucalipto – e da pecuária. Por fim, também de obras de infra-estrutura – como estradas ou hidrovias – e de produção de etanol, com enormes impactos ambientais e sociais. Não raro essa dinâmica exploratória contam (sic) com recursos públicos provenientes do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) 5.6 Neste contexto a instalação de uma agricultura científica globalizada em lugares cujos valores econômicos e culturais são específicos e tradicionais o que se tem é uma desagregação sócio econômica do lugar em todas as suas dimensões. É o que tem ocorrido com a comunidade Guarani-Kaiowá e com outras populações indígenas, camponesas e quilombolas. Para estes povos a terra não é vista como uma mercadoria ou um bem para negócio, mas como a origem da vida, depositária dos ancestrais, raiz da constituição das tribos e 5

PAC – Plano de Aceleração do Crescimento: é um plano lançado pelo governo Lula em 2007 que objetiva estimular o crescimento da economia brasileira, através do investimento em obras de infraestrutura (portos, rodovias, aeroportos, redes de esgoto, geração de energia, hidrovias, ferrovias, etc). O capital utilizado no PAC é originário de recursos da União, de capitais de investimentos de empresas estatais e investimentos privados com estímulos de investimentos públicos e parcerias.

6

Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option =com_content&view=article&id=3249&secao=331. Acesso em 30/01/2013

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suas tradições. Obviamente, uma visão absolutamente oposta à lógica do capitalismo e da propriedade privada. Neste sentido a reflexão sobre a problemática vivenciada pelos Guarani-Kaiowá remete a pensar sobre o projeto de desenvolvimento econômico que vem sendo adotado historicamente pelo Estado brasileiro e sobre o seu posicionamento diante dos postulados ideológicos da finança internacional e os interesses concretos das sociedades nacionais. As reflexões impressas neste texto buscaram chamar a atenção para o grave problema vivido pela comunidade Guarani-Kaiowá no Brasil e também para desnudar a participação do Estado brasileiro neste caso. Este historicamente tem se posicionado claramente como aliado do dinheiro global à medida que tem garantido oficialmente o uso do território nacional pela agricultura cientifica e globalizada e também negligenciado o seu papel de defensor do bem estar social. Que estas reflexões possam contribuir para engrossar o debate sobre a urgência de construção de um Estado comprometido com um projeto nacional.

Referências BRAND. Antônio. Os complexos caminhos da luta pela terra entre os Kaiowá e Guarani no MS. Tellus. Ano 4, n. 6, p. 137-150, abr. 2004. CASTRO. Iná. E. Geografia e Política: Território, escalas de ação e instituições. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. COLMAN. Rosa Maria S.; BRAND. Antônio Considerações sobre Território para os Kaiowá e Guarani Tellus. Ano 8, n. 15, p. 153-174, jul./ dez. 2008.



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GRUBITS, Sonia; FREIRE, Heloisa Bruna Grubits and NORIEGA, José Angel Vera. Suicídios de jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicol. cienc. prof. [online]. 2011, vol. 31, n. 3, pp. 504-517. ISSN 1414-9893. HAESBAERT, Rogerio. Concepções de territórios para entender a desterritorialização. In: SANTOS, M .et ali. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. pp 42-71. RIBEIRO, D. Os índios e a civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SANTOS, Alexandre Lima; RIGOTTO, Raquel Maria. Território e Territorialização: incorporando as relações produção, trabalho, ambiente e saúde na atenção básica à saúde. Trab. educ. saúde [online]. 2010, vol. 8, n. 3, pp. 387-406. ISSN 1981-7746. SANTOS. Milton. Por uma outra globalização: do pensamento crítico à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001. SANTOS, M. O dinheiro e o território. In: SANTOS, M. et ali. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. pp 13-21.

Capítulo 10

Capitalismo: da instabilidade crônica à fragilidade estrutural sistêmica Newton Ferreira da Silva1

I

nstabilidade1 e imprevisibilidade são características imanentes ao sistema capitalista desde o seu advento e consolidação. Não obstante, tais qualidades nunca antes na história desse modo de produção se deslindaram de maneira tão intensa e extensa concomitantemente como nos últimos 40 anos – a tal ponto de, segundo François Chesnais, estarmos vivendo atualmente uma situação de aguda fragilidade sistêmica determinada, mormente, por um novo regime de acumulação dentro do capitalismo. A acumulação capitalista, hoje guiada e comandada pelos interesses da esfera financeira vinculados, basicamente, apenas à remuneração do capital portador de juros no prazo mais curto possível, criou uma conjuntura econômica onde a outrora anarquia desse modo de produção manifesta-se com uma profundidade que tornam cada vez mais débeis as estruturas sobre as quais se assentam a valorização do capital em nossa sociedade.

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Aluno do curso de doutorado em Ciências Sociais da UNESP/Marília e bolsista CAPES.

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Ao partir da lógica da propriedade privada dos meios de produção para garantir a sua reprodução social, os seres humanos engendraram a criação de um sistema econômico em que as decisões referentes a tão importante matéria passaram a ser da alçada de alguns poucos investidores proprietários de capital interessados na sua valorização. Atada às idiossincrasias e individualidades desses diversos capitalistas que compõem o famigerado mercado, a realidade social que se pôde engendrar daí proveniente sempre possuiu a imprevisibilidade e a instabilidade entre seus traços mais marcantes. A despeito das motivações e estudos racionais que tentavam achar a melhor maneira de valorizar o capital acumulado, era a partir da iniciativa especulativa e intimista do ímpar empresário que se descortinava a complexa teia das relações de produção que conformaram as distintas sociedades de cada período da história burguesa. Desse modo, o sistema capitalista é, de fato e desde o seu advento, o sistema da variabilidade, da inconstância e da volubilidade. A anarquia da produção, marca indelével desse sistema, sintetiza uma organização social que busca apenas a valorização e a acumulação de capital independentemente das necessidades e dos anseios dos diversos membros que fazem parte dela. A reprodução social dos indivíduos se dá mediante uma atividade produtiva de cunho social e alienado somada a uma apropriação privada dos valores criados, que é possibilitada, justamente, pela propriedade particular dos meios de produção que possibilitam a execução daquela atividade produtiva. A configuração de um sistema social e econômico alicerçado nesse primeiro, único e último objetivo da produção (a acumulação de montantes cada vez

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maiores de capital), que é propiciado pela autonomia decisória e pela liberdade do proprietário capitalista, determina a ascensão de uma realidade em que crises de superprodução / subconsumo acontecem com uma frequência regular e característica de um ciclo econômico marcado pelas fases de prosperidade, estagnação, recessão, depressão e retomada. O regime de acumulação acima mencionado dominava o modo de produção capitalista até meados da década de 1980, quando o sistema financeiro – apesar de já mundializado e hipertrofiado – ainda não havia conseguido colocar-se à frente da reprodução ampliada do capital. Embora obliterado e sofrendo a concorrência das cada vez mais poderosas finanças, o capital industrial, responsável, em grande medida, pela valorização real e objetiva do valor, continuava ordenando os movimentos do capital em sua incessante e infindável busca por acumulação. Chesnais, em artigo de 1995, apontava nessa direção, mas já indicava igualmente o advento de um novo regime mundial de acumulação – que, num futuro próximo, consolidaria a posição de comando da esfera financeira na economia mundial. Afirmou Chesnais que as prioridades desse incipiente regime mundial de acumulação eram determinadas pelo “capital privado altamente concentrado – do capital aplicado na produção de bens e serviços, mas também, de forma crescente, do capital financeiro centralizado, mantendo-se sob a forma de dinheiro e obtendo rendimento como tal.” (1995, p. 1) Em texto posterior, o economista francês reconheceria que naqueles últimos anos do século XX o capital financeiro já havia alcançado o status de dinamizador e definidor maior das diretrizes econômicas que seriam colocadas em

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prática para garantir a valorização (mesmo que fictícia) do capital. Ao dominar a movimentação do capital em sua totalidade, as finanças, graças à imposição de seu novo modo de acumulação global, transformaram a qualidade do caráter instável e imprevisível típico do sistema capitalista ao tornar interdependentes um número cada vez maior de agentes econômicos num novo e muito mais alto patamar de montante de recursos e de sua respectiva mobilidade. A instabilidade crônica e imanente do capitalismo tornou-se hoje, graças à nova dimensão e complexidade do sistema financeiro, a fragilidade que passou a ser parte estruturante do modo de produção capitalista. A respeito desse fato, Chesnais (1999b, p. 282) sentenciou: Devido à densidade e à complexidade das cadeias de dívidas e créditos, assim como ao enredo dos ativos e passivos dos bancos e das instituições financeiras, a falência de uma instituição financeira importante é um passo que pode (diferente da falência de uma empresa, mesmo importante do setor industrial), arrastar consigo o edifício inteiro, destruir uma grande parte do setor financeiro como tal. Tamanha fragilidade se evidencia e se propaga, mutatis mutandis, por todas as esferas de reprodução social do capital, atingindo desde o grande investidor e os operadores das bolsas ao redor do mundo até o trabalhador informal e o desempregado. Estes últimos, na maior parte das vezes, tendo que arcar com os prejuízos eventualmente sofridos nas crises

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por aqueles que veem a economia como um grande cassino para especulação e apostas que objetivam tão-somente a valorização parasitária e fictícia do capital que nominalmente possuem. O fato de grande parte dos ativos financeiros estarem representando um capital fictício (isto é, que se valorizou de maneira fictícia, sem a contrapartida na chamada economia real) leva a resolução desse tipo de crise a um outro nível, muito mais profundo em sua complexidade. No caso da “recessão financeira”, os fatos ocorrem de forma muito menos fácil. Porque é exposta subitamente a supervalorização grosseira (que pode muitas vezes ser também fraudulenta) de ativos financeiros que têm, independentemente da própria sobreavaliação, a característica de serem frequentemente ativos financeiros representativos de um capital fictício. Nesse caso, o processo de financiamento é infinitamente mais complexo, devido a um conjunto de razões políticas, sociais e econômicas (CHESNAIS, 1999b, p. 281). A hipertrofia das finanças, evidenciada pelo salto da relação entre riqueza financeira e PIB de 1,2 em 1980 para 4,0 em 2007 e pela multiplicação em 14 vezes do valor dos ativos financeiros mundiais entre 1980 e 2006 (enquanto o PIB cresceu apenas 5 vezes no mesmo intervalo), foi a base para o estabelecimento da nova e frágil estrutura de acumulação capitalista reinante nos últimos anos. Nesse contexto, o capitalismo passou a ser gerido e organizado a partir das

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premissas e das sempre prementes necessidades do setor financeiro. Na linha de frente da acumulação de capital, as finanças passaram a determinar diretamente uma série de transformações à esfera industrial da reprodução e valorização capitalistas. Às finanças, atualmente, não é mais desejado o investimento “imobilizado”, que não tenha grande flexibilidade e alta mobilidade, pois, cada vez mais, a lógica da rentabilidade no curtíssimo prazo enseja um panorama onde se deve incorrer nos menores “custos de oportunidade” possíveis – não se pode perder nenhum grande negócio, principalmente se este for mais lucrativo e rentável do que os agentes do mercado possuem em sua carteira naquele instante. A esse respeito Chesnais asseverou: Efetivamente, a esfera financeira representa a ponta-de-lança do movimento de mundialização da economia; é nessa esfera que as operações do capital envolvem os montantes mais elevados; é aí que sua mobilidade é maior... (1999a, p. 11, itálicos meus). Ainda: (...) as instituições lidam com massas financeiras gigantescas, procurando se valorizarpor meio de formas e critérios puramente financeiros. Essas massas buscam maior rentabilidade e, também, máxima mobilidade e flexibilidade, sem ter nenhumaobrigação a não ser crescer/valorizar-se (1995, p. 19).

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A dimensão alcançada por essa complexa massa financeira e sua parcial autonomização social jamais significou um descolamento das finanças da economia real, ou seja, da economia onde se produz, inequivocamente, os bens e serviços portadores de valor intrínseco. Na verdade, e em proporções cada vez maiores, a ingerência e a influência do capital financeiro sobre o capital que produz valor torna-se uma realidade inescapável. É cada vez mais óbvio o fato de que através das punções feitas diretamente da mais-valia criada no setor industrial, da apropriação da renda dos trabalhadores mediante recebimento de dividendos oriundos de títulos da dívida pública ou então das crises que se formam nas bolsas e mercados financeiros de todo o mundo e se alastram para os setores produtivos, a hegemonia das finanças hoje se tornou completa e irrestrita. Chesnais e Paulani assim sentenciaram: A esfera financeira e a esfera produtiva não são dois mundos separados. Sua interdependência é total, quer se trate dos mecanismos de transferência de riqueza e de recursos em proveito da primeira, quer dos elementos de instabilidade endêmica própria da valorização de volumes gigantescos de capital... (CHESNAIS, 1995, p. 20). Nesse capitalismo dominado pela riqueza financeira, é sua lógica que tange o processo de criação de renda real. Assim muitas das transformações pelas quais vem passando a esfera produtiva, seja no que diz respeito

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às relações entre trabalho e capital (flexibilização, precarização, perda de direitos do trabalho etc.), seja no que concerne ao processo produtivo propriamente dito (toyotização, costumeirização, just in time etc.), seja ainda em termos de organização dos setores (centralização de capitais, deslocalizações produtivas etc.) foram respostas aos imperativos ditados pela lógica financeira à qual a produção da riqueza real deve responder (PAULANI, 2011, p. 67). A explosão no tamanho e das possibilidades de negócios iniciados e descortinados na esfera financeira juntamente à instabilidade sistêmica propiciou a criação de artifícios (inovações financeiras) que tinham o objetivo de proteger o patrimônio dos investidores e garantir a sua posição. No entanto, o aumento do número de derivativos financeiros daí resultante proporcionou, irônica e tragicamente, um aumento ainda maior da vulnerabilidade do sistema onde os diversos operadores financeiros realizam a valorização (quase sempre fictícia) dos papéis que têm em mãos. A fragilidade sistêmica agora avultada daí decorrente reforça o poder do chamado “mercado” – que nada mais é do que a representação simbólica e, por que não, mística – de um grupo de investidores que buscam obter rendimentos que ampliem, mesmo que apenas nominalmente, o capital que possuem (em forma de dinheiro ou de títulos das mais variadas espécies). Isto posto, toda a economia mundial deve se ordenar subjugada às decisões e humores

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dessa instituição internacionalizada. O futuro do sistema econômico e o respectivo desdobramento do que nele ocorre nas demais esferas sociais passam a ser determinados por alguns administradores de fundos de investimento que têm objetivos totalmente particulares e alheios às questões de talhe coletivo e mundial – o que não impede esses agentes de orquestrarem, mesmo que de maneira anárquica e não linear, o funcionamento da economia em todo o globo. A ausência de instituições supranacionais que poderiam tentar regular e controlar a movimentação desses capitais ajuda a consolidar esse domínio financeiro ao deixar a economia mundial aberta para a ação de especuladores em busca de imediata valorização da sua carteira. (...) esse todo “mundializado” é marcado por uma carência de instâncias de supervisão e controle (...) o efetivo contexto dessa integração decorre, de forma concreta, das decisões tomadas e das operações efetuadas pelos gestores das carteiras mais importantes e mais internacionalizadas. Não é irrelevante a “personificação” (antropomorfismo) dos mercados. (...) são os operadores que delimitam os traços da mundialização financeira e que decidem quais os agentes econômicos, de quais países e para quais tipos de transação, que participarão desta (CHESNAIS, 1999a, p. 12-13). Vivemos hoje uma realidade comandada pelos proprietários do capital vinculado às finanças, todo-poderosos

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sem responsabilidade e cujas sensações, aspirações e abstrações desenham a estratégia do capitalismo global. Ancorado nos seus comportamentos imprevisíveis – e muitas vezes irracionais e ilógicos – o sistema econômico passa a ter um funcionamento esquizofrênico e irregular (o que explica o porquê da não adequação da teoria dos ciclos econômicos a esse novo regime de acumulação capitalista). Dado o volume de recursos envolvidos nas negociatas, a completa desregulamentação e liberalização financeiras e a velocidade de movimentação do capital possibilitada em grande medida pelo avanço tecnológico concernente às telecomunicações, chega-se a uma situação de impermanência e intermitência sociais solidificadas numa errante e débil estrutura econômica. Assim como quando dependia da autonomia dos proprietários de capital, porém em dimensões sem precedentes, toda a sociedade é, atualmente, refém da subjetividade de milhares de especuladores e suas abstrações. O seu nervosismo, ansiedade e mimetismo, que refletem a sua sabida condição de portador de capitais de valorização fictícia, espalham-se por todo o tecido social de maneira direta e indireta. Essa postura dos agentes explica o modo como as crises financeiras se disseminam rapidamente por todas as bolsas de valores do planeta. Sobre os receios do mercado e seus mecanismos de defesa / espraiamento das crises, Chesnais afirmou: As quedas mais ou menos espetaculares das cotações, que acontecem em todos os mercados acionários mundiais, cada vez que Wall Street se enfraquece ou estremece, não refle-

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tem tanto uma interligação direta das praças, e sim, mais, o mimetismo das reações dos investidores. Esse contágio de uma praça financeira a outra expressa a resposta extremamente nervosa dos detentores de títulos, pois são bem conhecidos, quando não o seu caráter fictício, pelo menos os níveis totalmente irreais de capitalização, anunciando crashes de maior ou menor gravidade (1999a, p. 29-30). O advento e a consolidação dessa situação privilegiada dos credores consubstanciou, ao nosso ver, essa dinâmica social e econômica amplamente fragilizada em todos os seus setores. A anarquia da produção, subsumida nas intempéries sistemáticas do capital financeiro, definitivamente agravou-se fazendo a vulnerabilidade do sistema capitalista chegar a magnitudes nunca antes observadas na história desse modo de produção.

Referências CHESNAIS, F. A globalização e o curso do capitalismo de fim de século. In: Economia e Sociedade. Revista do Instituto de Economia da Unicamp. nº 5, dez 1995. CHESNAIS, F. (org.) A Mundialização Financeira – gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1999a. Prefácio e Introdução Geral. CHESNAIS, F. Mundialização Financeira e Vulnerabilidade sistêmica. In: CHESNAIS, F. (org.) A Mundialização Financeira – gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1999b.

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PAULANI, L. A Autonomização das Formas Verdadeiramente Sociais na Teoria de Marx: Comentários sobre o Dinheiro no Capitalismo Contemporâneo. Revista Economia. Janeiro/Abril 2011.

Capítulo 11

Crise Econômica, Fluxos Migratórios Internacionais, Governabilidade e Educação: Uma Análise a partir de Documentos e Organismos Internacionais Cláudio Rodrigues da Silva1

Introdução1

E

ste texto é resultado do recorte da parte específica sobre possíveis implicações entre políticas internacionais de educação com os fluxos migratórios internacionais e decorre de trabalho de conclusão de curso (SILVA, 2011). O estudo teve como objetivo geral verificar o significado do conceito de gestão democrática na escola, bem como possíveis implicações para além do âmbito escolar propriamente dito, em especial seu vínculo com a democracia representativa e a governabilidade. Como objetivos específicos, compreender as relações e o desenvolvimento do conceito de gestão democrática constante nos documentos e diretrizes de agências internacionais, em especial do Banco Mundial2, bem como ambiguidades, 1

Aluno do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília.

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Doravante apresentado também como BM ou Banco.

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contradições e possíveis implicações, favoráveis ou contrárias aos interesses das classes populares. Ainda entre os objetivos específicos está a análise do modelo de organização e gestão da escola enquanto currículo oculto3, da gestão democrática, da democracia representativa e da educação. Trata-se de estudo documental e bibliográfico, sendo entendidos por documentos os materiais em sua íntegra e sem interpretações e, por bibliografia, textos escritos a partir de documentos, inclusive (SALOMON, 1999). Foram analisados alguns documentos do Banco Mundial (1986; 1995; 1996), o Relatório4 para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI5 (COMISSÃO, 1998), também conhecido como Relatório Delors ou pelo título sob o qual foi publicado, com a chancela do Ministério da Educação, no Brasil, qual seja, Educação um tesouro a descobrir, e o Relatório da CIA: como será o mundo em 2020 (CIA, 2006), com vistas a estabelecer relações entre esses documentos, identificar os pontos de confluência e tentar entender se e como a gestão democrática, enquanto currículo oculto, na escola estatal pública, pode ou não se adequar a essa política de participação popular e quais as possíveis implicações com a questão da governabilidade.

3 Por currículo oculto são entendidos os elementos educativos presentes nas relações sociais de organizações, cujos objetivos e desdobramentos não necessariamente são objetos de reflexão intencional e consciente pelos que as vivenciam (DAL RI; VIEITEZ, 2008). 4

Apresentado neste texto como Relatório.

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Citada neste texto como Comissão.

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Pressupostos, contexto e difusão das propostas da Comissão e do Banco Mundial As propostas de reformas educacionais do Banco, na década de 1990 principalmente, ocorrem em um momento de alterações no sistema produtivo, o que, por sua vez, tem implicações com a divisão internacional da produção e, por conseguinte, com o mercado de trabalho. Essas mudanças são imbricadas com questões relacionadas aos sistemas de governo, portanto, com a governança e com a governabilidade. Segundo o BM, “Durante el decenio de 1980 se produjeron grandes cambios en los mercados de trabajo, comezando por la invención de la tendencia a la disminución de las recompensas a la educación superior que existía en el decenio de 1970 en las economías de mercado avanzadas.” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 27), o que, para o Banco, justifica a mudança do nível prioritário de educação. As diversas reformas educacionais decorrem especialmente de mudanças ocorridas no sistema produtivo, que passou a exigir outro perfil da força de trabalho, uma vez que “La menor demanda de destreza manual, fuerza física y capacidad técnica tradicional por parte de los empleadores ha provocado un aumento de la demanda de trabajadores con educación [...]” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 28), e “Las tareas relacionadas con el trabajo se están haciendo más abstractas y más distanciadas de los procesos físicos de la producción, que requieren cada vez menos participación manual.” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 27). Assim,

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La educación es crucial para el crecimiento económico y la reducción de la pobreza. La evolución de las tecnologías y las reformas económicas están provocando cambios extraordinarios en la estructura de las economías, las industrias y los mercados de trabajo de todo el mundo. [...] Esas circunstancias han determinado dos prioridades fundamentales para la educación: éste debe atender a la creciente demanda por parte de las economías de trabajadores adaptables capaces de adquirir sin dificuldad nuevos conocimientos y debe contribuir a la constante expansión del saber. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 1) A função dos sistemas educativos neste contexto, segundo o BM, é a formação de força de trabalho adaptável, o que pode ter sérios desdobramentos para a sociabilidade. Isso acarreta alterações significativas inclusive sobre o processo de escolarização, em todos os níveis, já que a formação pragmática, voltada exclusivamente para o mercado de trabalho, faz com que os conhecimentos ou informações tenham obsolescência programada, assim como as tecnologias e mercadorias, o que resulta, numa versão mercantilista, no aprendizado para a vida toda. Estos cambios tienen dos consecuencias importantes para los sistemas de educación. En primer lugar, la educación debe estar concebida para satisfacer la creciente demanda de

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trabajadores adaptables, capaces de adquirir fácilmente nuevos conocimientos, en lugar de trabajadores con un conjunto fijo de conocimientos técnicos que utilizan durante toda su vida activa. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 27) Para a Comissão (1998, p. 101), “A educação ao longo de toda a vida baseia-se em quatro pilares: aprender conhecer, aprender fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser.”. Esses pilares perpassam práticas e discursos de expressiva parcela da docência e, atualmente, em decorrência de contribuições teóricas de outros autores, já foram acrescidos de outros. Com “aprender a conhecer”, pretende-se, entre outros, “[…] que cada um aprenda a compreender o mundo que o rodeia, pelo menos na medida em que isso lhe é necessário para viver dignamente, para desenvolver as suas capacidades profissionais, para comunicar.” (COMISSÃO, 1998, p. 91). É fundamental questionar esse compreender proposto pela Comissão, uma vez que a compreensão pode ser tanto com o objetivo de intervenção e mudança da realidade social, quanto de compreensão pela compreensão em si mesma, isto é, no sentido de aceitação e resignação diante dos fatos, independentemente de suas causas ou consequências. Se existe alguém que explora e alguém que é explorado, alguém que oprime e alguém que é oprimido, deve-se compreender e aceitar a situação? Isso parece estar subjacente à proposta da Comissão. Entretanto, como ressalta Cardoso (2000), tolerância tem seus limites. Trata-se de uma espécie de cultura da paz, muito em voga na atualidade, nas campanhas promovidas por orga-

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nizações governamentais ou não governamentais, inclusive nas escolas, cultura essa que aponta mais para uma espécie de pax romana, uma paz decorrente da aceitação ou resignação das condições impostas. Quanto ao “aprender a fazer”, “Aprender a conhecer e aprender a fazer são, em larga medida, indissociáveis. Mas a segunda aprendizagem está mais estreitamente ligada à questão da formação profissional [...].” (COMISSÃO, 1998, p. 93). Esse pilar talvez tenha imbricações com a predominância da prática em detrimento da teoria, bem como do desprezo pelo estudo dos fundamentos teóricos, em especial na formação de professores, como se a prática por si só fosse suficiente e se a prática, de uma ou outra forma, não implicasse ou então estivesse totalmente isenta de qualquer teoria. Há que se considerar que, em última instância, pode estar escamoteado nesse aprender a fazer, a apologia e a legitimação da divisão social hierárquica vertical do trabalho, onde uma minoria concebe (pensa/manda), e a grande maioria executa (não pensa/obedece). O “aprender a viver juntos” ou “aprender a viver com os outros”, decorre do fato de que “Existe uma questão em comum aos países desenvolvidos e em desenvolvimento: como aprender a comportar-se, eficazmente, numa situação de incerteza, como participar da criação do futuro?” (COMISSÃO, 1998, p. 96). Novamente dá margem a questionamentos sobre a finalidade dessa compreensão proposta pela Comissão. A finalidade parece ser compreender para aprender a viver juntos, a conviver, porém, sem questionar as relações vigentes. Ou seja, a compreensão pela compreensão. Compreende-se, por

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exemplo, que há alguém que oprime, que há alguns que são oprimidos e se aceita essa relação, sem questionamentos? Em outras palavras, “Aprender a viver juntos desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos – no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz.” (COMISSÃO, 1998, p. 102). Segundo a Comissão (1998, p. 96), “Sem dúvida, esta aprendizagem representa, hoje em dia, um dos maiores desafios da educação.”. Por outro lado, identificar implicações teórico-práticas subjacentes a essas propostas e estabelecer relações entre políticas macroeconômicas e as instâncias meso e micro talvez represente – ou seja – um dos maiores desafios para profissionais da educação que tenham em tela mudanças do modelo de sociabilidade. Em relação ao “aprender a ser”, segundo a Comissão (1998, p. 102), não se pode “[...] negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.” Isso remete à questão do currículo oculto, que não se restringe ao plano consciente e conceitual, mas, principalmente ao âmbito atitudinal.

Oferta e demanda de força de trabalho e migrações internacionais As reestruturações no sistema produtivo e seus desdobramentos, em especial a divisão internacional da produção e as mudanças no mercado de trabalho, que demanda um

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novo perfil de força de trabalho, bem como nos regimes políticos/sistemas de governos, concomitantes às significativas alterações demográficas em curso, especialmente nos países centrais europeus, que integram o denominado Grupo dos Oito (G-8), requerem medidas em relação às migrações, sejam estas legais ou não, haja vista a tendência de crescimento dos fluxos migratórios de pessoas de diferentes nacionalidades, em especial dos países periféricos para os países centrais, seja, em tese, por iniciativa própria, isto é, em busca de condições menos precárias de vida ou sobrevivência – guerras, questões ambientais, econômicas, entre outras –, seja por necessidade ou conveniência das corporações transnacionais ou dos países centrais. Las enormes transformaciones producidas recientemente en los mercados de trabajo por las reformas económicas, la integración de la economía mundial, los avances tecnológicos (especialmente en la tecnología de la información) y las migraciones tienen importantes consecuencias para la educación. (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 27) Existe uma preocupação enfática do Banco em relação aos fluxos migratórios. Há diversas causas para as migrações, porém, na maioria das vezes, decorrência da busca de melhores condições de vida ou mesmo de sobrevivência, ou seja, são fluxos migratórios, a rigor, não espontâneos. As migrações decorrentes de guerras e conflitos políticos ou religiosos têm aumentado significativamente e inco-

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modado governos de alguns países (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 133), em especial os dos países centrais, já que “Cada vez mais, os migrantes são originários de países pobres [...]” (COMISSÃO, 1998, p. 42). Vale ressaltar que os fluxos migratórios que vêm ocorrendo no mundo podem ser considerados “[...] um autêntico êxodo dos países do Sul para o Norte, ou dos países pobres para a Europa, considerada por alguns como a terra prometida, graças às imagens que transmitem os meios de comunicação social.” (PEREZ SERRANO, 2002, p. 21). Ou seja, seria a própria propaganda ideológica surtindo efeitos, para além e inversamente aos intencionados. Segundo a Comissão (1998, p. 42), “Assistiu-se, então, a um claro aumento da mobilidade da mão-de-obra, apesar da importância assumida pelo Estado-Nação, acompanhada por um reforço das medidas de controle das migrações.” Cada vez mais, os fluxos migratórios têm origem nos países periféricos, com destino aos países centrais. Além disso, aumenta o número de refugiados de conflitos regionais (COMISSÃO, 1998, p. 42). Se, por um lado, fluxos migratórios são necessários e, em certa medida, convenientes para os países centrais, por outro lado, existem riscos de tensões sociais e conflitos das mais variadas ordens, em especial étnicos e religiosos, segundo o Banco (1996) e a Comissão (1998), que podem levar a conflitos entre populações nacionais e as migrantes e consequentes atitudes xenófobas de uma ou ambas as partes. A Europa, principalmente, tem sido palco emblemático de conflitos políticos, sociais e econômicos – com ampla repercussão em diferentes veículos de comunicação – envolvendo

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migrantes (do próprio continente europeu ou não) ou descendentes desses. As configurações demográficas dos países centrais, em especial os da Europa, cujas populações estão envelhecendo e reduzindo, aliadas ao fato de que há serviços que as populações nacionais dos países centrais não querem fazer, bem como a necessidade ou conveniência de contratação de serviços prestados por estrangeiros, fazem com que os fluxos de migrantes – legais ou não – aumentem significativamente. Segundo a Comissão (1998, p. 36), “Nos países industrializados, ao contrário, o crescimento demográfico ou enfraqueceu ou estagnou totalmente, e a taxa de fecundidade é igual ou inferior aos valores mínimos necessários para ir substituindo as gerações.”. Para a CIA (2006, p. 146-147), A migração tem o potencial de ajudar a resolver o problema do declínio da população economicamente ativa na Europa e, em grau menor, na Rússia e no Japão; provavelmente, os movimentos migratórios se tornarão uma característica importante do mundo de 2020, mesmo que muitos dos migrantes não tenham status legal. Os países que os receberão enfrentarão o desafio de integrar esses novos imigrantes de maneira a minimizar os conflitos sociais em potencial. Ainda conforme a CIA (2006, p. 220),

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Os imigrantes latino-americanos estão atuando como força estabilizadora nos EUA. Eles são uma importante parte da mão-de-obra norte-americana, e os dólares que remetem aos seus países, bem como as percepções de um governo democrático e da iniciativa individual, terão um impacto positivo na América Latina. “A história apresenta períodos em que as migrações serviram de importante válvula de segurança econômica e social, permitindo que a mão-de-obra se deslocasse para onde fazia mais falta.” (COMISSÃO, 1998, p. 42). Entretanto, diferentemente de outros momentos, a conjuntura atual não é de todo favorável às migrações, pois, “Ao contrário dos anos sessenta, este segundo crescimento dá-se num contexto de aumento de desemprego, que fomenta tensões sociais e alimenta a xenofobia – tanto nos Estados Unidos como na Europa.” (COMISSÃO, 1998, p. 43). Fluxos migratórios causam transtornos diversos principalmente aos governantes, pois, na maioria das vezes, os migrantes são colocados em condições de vida degradante, sem os direitos mínimos assegurados aos cidadãos natos, o que, não raramente, resulta em tensões sociais ou, no mínimo, representa sérios riscos de conflitos por melhoria, equiparação de diferentes direitos, colocando em risco a governabilidade. Nos países centrais, a xenofobia pode colocar em risco patrimônios público-estatais, as propriedades privadas, assim como a vida de seus cidadãos. Nos países periféricos, a

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xenofobia pode colocar em risco as propriedades de empresas e de cidadãos de países centrais. Em nossas pesquisas, muitos especialistas estrangeiros observaram que, enquanto a opinião pública em seus países concorda com os benefícios materiais da globalização, ao mesmo tempo se opõe à perceptível ‘americanização’ que os cidadãos vêem como uma ameaça aos seus valores culturais e religiosos. A associação da globalização a valores norte-americanos tem alimentado o antiamericanismo em algumas partes do mundo. (CIA, 2006, p. 106) Em qualquer desses casos, as tensões decorrentes da xenofobia geram instabilidade e insegurança política e social, afetando a economia, afugentando o capital internacional e colocando em risco a governabilidade. Se em outras épocas, além de a força de trabalho migrante ser bem-vinda em determinadas circunstâncias, existiam dificuldades de locomoção, atualmente, além de os migrantes representarem, em sua maioria, ônus e riscos sociais, existem fatores que potencializam as migrações, inclusive porque “[...] o custo das viagens e as dificuldades de deslocação constituíam, geralmente, sérios problemas, até que, já no século XX, se ultrapassou uma etapa fundamental, com a baixa do custo dos transportes.” (COMISSÃO, 1998, p. 42). Considerando-se a tendência de aumento das migrações – legais ou não –, os riscos de conflitos potencializam-se.

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Com o aumento da migração em diversas partes do mundo – do norte da África e Oriente Médio para a Europa, da América Latina e Caribe para os EUA e do Sudeste Asiático para as regiões do norte – mais países se tornarão multiétnicos e multirreligiosos, tendo, assim, de enfrentar o desafio de integrar os imigrantes nas suas sociedades, ao mesmo tempo em que terão de respeitar suas identidades étnicas e religiosas. (CIA, 2006, p. 164) Há ainda a agravante de que os conflitos locais podem tomar proporções regionais ou globais, o que implica medidas corretivas, preventivas e preditivas (BANCO MUNDIAL, 1996; CIA, 2006) e, conforme a Comissão (1998, p. 36), Esta expansão da humanidade, num momento histórico em que a tecnologia encurta o tempo e o espaço, relaciona-se de modo cada vez mais estreito os diferentes aspectos da atividade mundial, o que confere, sem que necessariamente demos por isso, uma dimensão planetária a certas decisões. Nunca antes suas conseqüências, boas ou más, atingiram um tão grande número de indivíduos. Em momentos de crises, em especial as econômicas, as tendências de adesão às ideologias e prática de atos xenófobos ou nacionalistas extremistas, bem como de adesão a ideologias fascistas acirram-se (BRENER, 1994; CANO, 2007;

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FROMM, 1970), com desdobramentos e intensidades muitas vezes imprevisíveis, como foi, por exemplo, o caso da II Guerra Mundial e outros tantos episódios que vêm ocorrendo em diversas partes do mundo e que, de alguma forma, acabam colocando em tela a questão da xenofobia, seja em relação a povos de outros países, seja em relação a diferentes etnias que convivem dentro de um mesmo país. Há que se considerar ainda o fato de que As populações cada vez mais velhas e o encolhimento da população economicamente ativa terão um grande impacto no continente, criando um sério desafio econômico e político que pode, porém, ser resolvido. A taxa total de fertilidade da Europa é de 1,4 – bem inferior à renovação populacional de 2,1. Nos próximos 14 anos, as economias da Europa Ocidental precisarão recrutar vários milhões de profissionais para preencher as vagas deixadas pelos trabalhadores que se aposentarão nesse período. Ou os países europeus adaptam sua população economicamente ativa, reformam sua previdência social, sistemas de educação e de tributação e acomodam uma crescente população imigrante (principalmente de países muçulmanos), ou enfrentarão um período de encolhimento econômico que pode ameaçar o enorme sucesso conquistado com o advento da UE. (CIA, 2006, p. 145-146)

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“Também hoje em dia, entre os expatriados, cresce o número de trabalhadores altamente qualificados.” (COMISSÃO, 1998, p. 42). Por isso o caráter estratégico da divisão internacional da educação imposta pelo Banco aos países periféricos. Ao fazer com que estes priorizem o Ensino Fundamental, pode-se, em termos, fazer com que a força de trabalho migrante seja qualificada conforme a divisão internacional da produção, de forma a evitar que migrantes oriundos de países periféricos coloquem em risco a reserva de mercado previamente delineada pelos países centrais. Para o globalismo neoliberal tudo – coisas, corpos e mentes – deve se submeter à lógica e ao poder da oligarquia financeira mundializada. Esse projeto baseia-se numa transformação profunda no seio do processo de acumulação do capital promovida pela chamada revolução técnico-científica em andamento, que amplia sobremaneira a produtividade do trabalho empregado na produção, gerando um setor de trabalhadores dotados de conhecimento científico. Na verdade, a própria produção do conhecimento científico e tecnológico torna-se capaz de gerar essa riqueza chamada conhecimento e de acumular capital – um desdobramento que poderia ser chamado de capital cognitivo. (DEL ROIO, 2002, p. 12) Os quatro pilares têm, assim, uma função estratégica para a tentativa de padronizar a educação de todos os paí-

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ses do mundo, de tal forma que, tanto pela via do currículo formal quanto pelo currículo oculto, sejam ensinados os mesmos valores e atitudes condizentes com o perfil de força de trabalho demandado pelo sistema produtivo e com a concepção de democracia hegemônica, o que, teoricamente, pode fazer com que todas as populações aprendam a conhecer, aprendam a fazer, aprendam a viver juntas, enfim, aprendam a ser, conforme o atual modelo de sociabilidade. A formação de força de trabalho tem implicações que extrapolam a esfera do sistema produtivo propriamente dito. Mesmo o modelo político estando em função do modelo econômico, aquele é apresentado às populações como se fosse o determinante do modelo de relações sociais. Para que as reformas educacionais ocorram em conformidade com o sistema produtivo, são necessárias mudanças inclusive nos sistemas de governo/regimes políticos, pois “[...] para cosechar los beneficios de las inversiones en educación es preciso ampliar las posibilidades de aprendizaje productivo mediante innovaciones técnicas y cambios en los regimenes políticos y de mercado.” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 28). A análise, tanto da história geral, quanto da história da educação (ENGUITA, 1989; LUZURIAGA, 1959; MANACORDA, 1992; REIS FILHO, 1981; SOUZA, 1998; 2009), demonstra que a educação reflete, em última instância, o contexto sócio-político-econômico e evidencia que sempre que ocorrem trocas de equipes de governo e, especialmente, quando há mudanças de sistemas de governo/regimes políticos, como, por exemplo, o golpe civil-militar no Brasil, um dos primeiros setores a serem adequados é a educação, até

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porque, segundo Cury (1997), a educação é uma espécie de caixa de ressonância da sociedade. Portanto, se considerada a análise da história geral e também a da educação, pode-se inferir que as reformas educacionais do BM não fogem à tendência histórica, isso é, trata-se de um processo necessário para adequar a educação, de modo a propiciar uma formação condizente com os atuais padrões de sociabilidade e em conformidade com a divisão internacional da produção e, portanto, do trabalho, num momento histórico em que, segundo Mészáros (2002, p. 21), “não apenas o capitalismo”, mas “todas as formas do sistema do capital” vivem uma “época de crise histórica sem precedentes”.

Considerações finais Apesar de abordada predominantemente numa perspectiva específica, a questão das migrações internacionais pode e deve ser analisada a partir de múltiplos prismas. Atribuir toda a centralidade a aspectos econômicos ou a aspectos culturais é desconsiderar outros fatores também importantes e, principalmente, a história. Da mesma forma, atribuir à escola a responsabilidade pela cultura da paz é uma abordagem reducionista, recorrentes em certos documentos de alguns organismos internacionais, que apresentam a educação escolar como a solução para todos os problemas sociais, inclusive para o baixo crescimento econômico, desemprego e conflitos violentos os mais diversos. Sabe-se que a escola é apenas uma das muitas instituições sociais, portanto, não está imune nem acima das

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questões que afligem a sociedade como um todo. O próprio Banco reconhece, porém, raríssimas vezes ressalta isso, entretanto, não o faz com a mesma ênfase com que apresenta a educação escolar como uma espécie de panaceia. Importante questionar a viabilidade ou pertinência de se imputar a responsabilidade pela cultura da paz unicamente ou em grande parte à educação escolar, pois isso parece paradoxal, já que esta instituição sequer consegue cumprir a contento suas funções mais elementares e consideradas suas especialidade e prerrogativa. Além disso, cada vez mais diversas formas de violências têm permeado recorrentemente ambientes e cotidianos escolares. Os recentes conflitos – e seus desdobramentos – envolvendo migrantes e/ou seus descendentes na Europa demonstram a complexidade da questão das migrações internacionais, cujos estudos parecem exigir abordagens multi ou interdisciplinares para que se possa ter uma compreensão à altura, com vistas a subsidiar posicionamentos e intervenções adequadas. No Brasil, resguardadas as devidas especificidades, há fluxos migratórios nos dois sentidos, ou seja, tanto de brasileiros que deixam o país, quanto de pessoas de outras nacionalidades, que vêm em busca principalmente de melhores condições de vida. Em um contexto de recorrentes discursos em defesa da convivência na diversidade, do respeito às diferenças e da cultura da paz, porém de práticas cada vez mais intolerantes6, quando o outro, o diferente, é considerado o problema, 6

Como exemplo, pode-se citar a situação de migrantes (e de seus descendentes) nordestinos, principalmente, em determinadas regiões do Estado de São Paulo.

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há que se conceber e adotar medidas preventivas com vistas aos atuais e novos desafios e demandas decorrentes de fluxos migratórios internacionais, inclusive7, que, como ressaltado, em tempos de graves crises econômicas, em especial quando se verificam altos índices de desemprego, podem ser móbeis ou pretextos para atos de preconceitos e discriminações que podem redundar inclusive em conflitos violentos ou agressões contra determinadas populações ou seus segmentos. A escola é uma instituição que demanda atenção especial, pois, além da atribuição da função educativa, em tese, nela se encontram – ou se encontrariam – pessoas das mais variadas culturas e originárias dos mais variados locais, inclusive de outros países, já que, pela legislação (BRASIL, 1988; 1990; 1996), o Ensino Fundamental é obrigatório para pessoas na faixa etária prevista, além de ser considerado direito público subjetivo. Interlocuções entre pesquisadores das questões relacionadas a migrações e à Educação, entre outras áreas e subáreas do conhecimento, podem resultar em algum avanço no sentido de troca de informações e conhecimentos que extrapolam as respectivas áreas ou objetos de estudos e, por isso, inclusive, também fogem à alçada de compreensão de determinados profissionais. Ampliar os conhecimentos sobre essas questões pode ajudar inclusive a evitar ou ao menos reduzir incidência de atos de xenofobia e outros preconceitos e discriminações. É sabida a histórica função atribuída 7

O Município de São Paulo pode ser citado como exemplo de fluxos migratórios de pessoas procedentes de outros países, em especial da América Latina. Recentemente, na Região Norte do país, também chamou a atenção o caso de haitianos que migraram para o Brasil.

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e desempenhada pela escola no sentido de criar identidades nacionais e representações acerca de outros povos ou nações. Portanto, quando se questiona as políticas de cultura da paz de organismos internacionais, não se está fazendo apologia à guerra ou à violência. Trata-se de questionar os pressupostos e objetivos subjacentes a essa concepção de cultura da paz, bem como questionar o porquê e a quem interessam as guerras e confrontos que, historicamente, são responsáveis por grande parte inúmeras mortes e fluxos migratórios involuntários de pessoas. Além disso, a rigor, guerra e paz não decididas no âmbito da educação escolar ou da escola.

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Capítulo 12

Acumulação capitalista no regime de acumulação flexível Diego Marques Pereira dos Anjos1

Introdução1

C

omeçamos nosso debate com uma observação que parece óbvia mas ao mesmo tempo as pessoas que a debatem dão pouco importância disso: o conteúdo dos debates, das discussões, enfim das ideias mesmas, são perpassados por interesses, valores, objetivos e numa discussão sobre crise no capitalismo essa característica das ideias se torna mais clara e visível, ao invés de se ocupar com os personagens da novela, com o drama da vida nos jornais, ou com os pequenos prazeres da vida cotidiana debatem os efeitos da desindustrialização, aumento da pobreza, financeirização da economia, etc. E assim, observamos que por um lado debatem os economistas e as respectivas instituições e organismos financeiros, e por outro sindicatos, movimentos sociais e uma intelectualidade em maior ou menor grau envolvida 1

Aluno do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília.

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com a militância. E conforme os fatos parecem corresponder às interpretações engajadas se intensifica a discussão e novas interpretações são produzidas. Nesse sentido, não só as opções e alternativas escolhidas revelam claramente interesses de classe como tendem a radicalizar o seu conteúdo. Já que as classes dominantes possuem seu referencial na ciência da economia podemos nos apropriar de autores que demonstraram o caráter contraditório da sociedade capitalista, sobretudo, no que se refere à sua razão de ser, que é acumular capitais ao infinito, mesmo contra o universo social e natural ao seu redor, apontando os limites da acumulação de capital. Karl Marx é claramente quem mais contribuiu com esse objetivo, ao evidenciar que espontaneamente à reprodução capitalista se desenvolvem processos sociais e sujeitos que travam a reprodução capitalista tendendo a se intensificar e constituir uma ruptura com a reprodução e acumulação de capital.

Criação e destruição do valor na sociedade capitalista Marx nos responde no que consiste o capitalismo, sua especificidade histórica, o motivo da sociedade sob seu poder ser chamada de sociedade capitalista, e não sociedade trabalhista, por exemplo. O que define o capitalismo? Para Marx o “processo de produção capitalista é essencialmente ao mesmo tempo processo de acumulação”, a organização das relações sociais de produção gira em torno da aquisição de algo a mais de que o capitalista não dispõe, mas de que

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necessita sua conversão em taxa de lucro para efetivamente colocar em prática o movimento de produção. Isto significa também a produção de uma diversidade de contradições que têm fundamento no próprio processo produtivo e no produto desse processo enquanto as mercadorias por elas mesmas, nem por seu valor de uso nem por seu consumo pessoal, não são o objetivo, mas o que dela se pode extrair, um mais-valor. O que não descarta, ao contrário, gera a situação em que a produção pode ser levada ao infinito, sem mais considerações a não ser o “lucro crescente e contínuo que constitui a lei básica do modo de produção capitalista”2 sociedade histórica diferente dos outros modos de produção não se apropria da produção social somente para usofruto das classes dominantes, mas visando a própria intensificação da exploração que está na base da produção social e da apropriação individual (LUXEMBURGO, 1988). Marx começa sua exposição com a mercadoria: no capitalismo a riqueza aparece como uma imensa coleção de mercadorias e sua forma mais elementar, mas logo Marx descobre todas as determinações que atuam em sua constituição (valor de uso, valor de troca, alienação, fetichismo) e define o valor da mercadoria através do quantum de trabalho socialmente necessário para ser produzida3; a análise do processo produtivo da mercadoria a situa no intermédio entre a soma de dinheiro inicial e uma soma de valor maior ao se realizar a venda da mercadoria num mercado consumidor, tal como antes apontamos a mercadoria não é o objetivo em si, está 2

Luxemburg, 1988, p. 104.

3

O capital, livro 1, 1996, p. 169.

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excluída do ponto de partida e de chegada do processo de acumulação capitalista. A mercadoria somente pode ser a forma mais elementar na sociedade capitalista na medida em que contém propriedades maiores do que aparenta ter, por um lado, na produção capitalista gera-se uma soma de mais valor, que por sua vez se realiza no processo de circulação do capital4. A relação social fundamental que a mercadoria esconde, para Marx, é a própria relação social fundamental da sociedade capitalista, a divisão entre capitalistas e trabalhadores, entre o proprietário das condições de trabalho e o trabalhador como mero possuidor de força de trabalho, condição outra fundamental das condições de trabalho, isto é, a posse dos meios de produção determina o único sujeito ativo da produção capitalista, ao iniciar e findar do processo de produção de mercadorias todas as suas partes, produtos e produtores, são igualadas sob o domínio capitalista5. Na sociedade capitalista, a mercadoria é o produto palpável do processo de trabalho, o resultado da mediação dos homens entre si e com a natureza. O processo de trabalho na sociedade capitalista requer o adiantamento das condições de trabalho, que é comandada pelo capitalista em posse de determinado capital global adiantado, reunindo meios de produção, materiais de trabalhos, matérias primas, instalações, etc. (capital constante) mais a posse por um determinado tempo de uma massa de força de trabalho (capital variável). Essas duas partes constituintes do valor da mercadoria embora só atuam em relação uma com a outra são 4

Livro 3, tomo 1, p. 33.

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de natureza diversa e expressam potencialidades diversas, enquanto a mera posse dos meios de produção não garante o poder absoluto dos capitalistas, por sua vez a libertação e socialização desses meios de produção da vida expressam a superação do novo elemento que o capitalista se apropria na produção da mercadoria, justamente o mais-valor. O processo de produção é algo concreto, mas se abstraímos seus momentos e partes constituintes chegamos ao valor da mercadoria: a soma do capital constante com o capital variável (capital social global) acrescido de uma porção de mais-valor. Uma parte da mercadoria trata-se tão somente de reposição de valor, dos gastos na produção, portanto, de preço de custo; enquanto a outra parte da mercadoria constitui-se como um novo valor, isto resulta da dupla condição da força de trabalho, que submetida à forma mercadoria é disposta pelos capitalistas como parte do adiantamento do capital, contando como valor gasto, entretanto, no processo de produção em funcionamento concreto entra “a própria força de trabalho viva, formadora de valor”6. Isto significa que por um lado o agrupamento das diferentes partes de valor da mercadoria que só repõe o valor de capital dispendido expresse o caráter específico da produção capitalista; mas que por outro lado, o capital despendido “nada tem a ver com a constituição de valor da mercadoria ou com o processo de valorização”, o capitalismo não parece, mas se apoia numa força cujo poder lhe é centenas de vezes maior, a produção capitalista de mercadorias produz também a falsa aparência dos preços de custos como uma categoria da própria produ6

Livro 3, tomo 1, p. 25.

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ção de valor, “o custo capitalista com a mercadoria mede-se no dispêndio em capital, o verdadeiro custo da mercadoria no dispêndio em trabalho” (Livro 3, p. 24). Dessa forma, “O lucro capitalista provém de que ele tem algo para vender que não pagou” 7. Duas medidas diferentes da mesma grandeza são constituídas, uma superficialmente, enquanto a outra parte é ocultada: de um lado, a taxa de lucro medida em relação ao mais-valor sobre o capital global, e do outro a taxa de mais-valia medida somente em relação com a parte variável do capital adiantado. Porque ocorre esta diferenciação? Na medida em que o capital constante somente tem a capacidade de repassar seu valor aos produtos, a verdadeira valorização ocorre com o capital variável; contudo, mantendo-se a quantidade mobilizada de trabalhadores devido aos métodos peculiares da produção capitalista é processada e consumida uma massa sempre crescente de meios de trabalho, maquinaria, matérias-primas e auxiliares, portanto, um volume de capital constante sempre crescente. Neste ponto chegamos no avesso do processo de acumulação, portanto de valorização do capital, no seu verdadeiro caráter contraditório. O valor da mercadoria é dado pela soma de capital constante, capital variável e mais-valor, abstraído o mais-valor, os outros elementos constituintes da mercadoria são mera reposição dos capitais adiantados. O desenvolvimento da força produtiva social do trabalho significa que numa mesma quantidade de tempo e com a mesma quantidade mobilizada de força de trabalho é colocada em movimento uma 7

Capital, livro 3, tomo 1, p. 34.

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quantidade maior de maquinaria e capital fixo (matérias-primas e auxiliares) resultando em um número crescente de produtos do trabalho, com menor valor, na medida em que se utilizam de menos trabalho num determinado período de tempo. Decorre que, o que seria o constante desenvolvimento da acumulação capitalista é também e ao mesmo tempo um processo de limitação da acumulação de capitais: a cada nova rodada do processo de valorização entra uma soma menor de trabalho na produção das mercadorias ao tempo em que aumenta a parte gasta em meios de produção, matérias-primas, produzindo uma “composição orgânica crescentemente superior do capital global”8; como decorre uma diminuição relativa da força de trabalho, decresce a taxa de mais-valia e em relação com o capital global, que por sua vez expressam a taxa de lucro, produz necessariamente a tendência progressiva, embora não absoluta, de queda da taxa geral de lucro. Para Marx trata-se de uma “expressão peculiar” do desenvolvimento progressivo da força produtiva social de trabalho no modo de produção capitalista, em que a expansão concreta da produção de mercadorias produz a realidade crescente de afastamento do objetivo maior da produção capitalista, a valorização e acumulação de capitais; no cerne da acumulação capitalista, na sua forma de valorização, está a “necessidade óbvia” que a taxa média geral de mais-valia se expresse numa taxa geral de lucro em queda. Para manter a taxa de lucro da circulação anterior do capital se faz necessário o aumento do capital global em 8

Capital, livro 3, tomo1, p. 164.

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igual medida que a taxa decrescente de lucro, e para aumentar a acumulação precisa o capitalista adiantar porção ainda maior de capital global, e também de forma mais rápida que a taxa decrescente de lucro; o contínuo crescimento do capital constante, em relação ao decréscimo da parte de capital variável, com o qual por sua vez aumenta a produtividade e, por tanto, a massa de lucro, é também o desenvolvimento da progressiva tendência da queda da taxa de lucro, tomando as mercadorias individuais em relação com a produção global. A contradição está em que “ao decréscimo relativo do capital variável e do lucro corresponde um aumento absoluto de ambos”9, sendo contornada com o aumento da massa de lucro10. Finalizando nossa exposição inicial a respeito do desenvolvimento e das barreiras imanentes à produção capitalista sinalizamos que para Marx a tendência declinante da taxa de lucro tende a ser contornada pela ação consciente e organizada da classe capitalista que dispondo de seus meios materiais atua fomentando “causas contrárias” que tentam reverter a queda da taxa de lucro, e que explicam o não aprofundamento da tendência de queda, mas sim o seu lento declínio. Marx aponta que as principais causas contrariantes são: I) elevação do grau de exploração do trabalho; II) compressão dos salários abaixo do 9

Capital, livro 3, tomo 1, p. 171.

10 Queda da taxa de lucro acompanhada de aumento na massa de lucro se obtém com aumento relativo das massas de lucro contidas nas mercadorias e realizadas mediante a venda.

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seu valor; III) elementos que a comportam diminuem de valor; IV) superpopulação relativa; V) comércio exterior11

Formas histórico-concretas de criação e destruição do valor na sociedade capitalista Toda essa organização das relações de produção capitalistas só se põe em movimento enquanto relações de classe, todos os conceitos usados (trabalho, mais-valor, capital) só tem validade enquanto expressam a ação de sujeitos históricos e concretos envolvidos na reprodução da sociedade capitalista. Tanto a lei da acumulação e valorização do capital quanto a tendência de queda da taxa de lucro média que lhe seguem são as expressões do auge do domínio da classe capitalista, enquanto a ação sindical, greves, manifestações de rua, ocupações de fábricas e outros locais de produção expressam o início do desenvolvimento da ação dos trabalhadores e que ao mesmo tempo fortalece a tendência de queda da taxa de lucros, obrigando aos capitalistas colocarem em movimento novas estratégias de aumento da extração de mais-valor. Todo esse movimento tende a sair das relações de produção e avançar para esfera do estado onde é regulamentado os interesses da classe capitalista. A “lei de duas caras” da acumulação capitalista juntamente com o ascenso da luta de classes criam as condições 11

Capital Vol. 3 178 em diante.

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sociais necessárias para transformações que afetam o movimento da sociedade capitalista, tendendo para transformações a fim de manter a reprodução da sociedade capitalista, ou em situações radicalizadas a potencialização de emergir um novo modo de produção. Caso não ocorra a ruptura total com as relações sociais dominantes ocorre uma reorganização de determinadas esferas das relações sociais para que se mantenha a reprodução da ordem capitalista. A Escola Regulacionista Francesa12 (Aglietta, Lipietz, Boyer, outros) desenvolveu inúmeros conceitos visando a expressar os modos de desenvolvimento por quais passaram a sociedade capitalista, partiremos aqui de suas contribuições acerca dos regimes de acumulação visando estabelecer as especificidades históricas da acumulação capitalista. Nosso objetivo aqui não é o de reconstituir a história dos regimes de acumulação, mas a partir de seus apontamentos sobre as formas históricas de acumulação do capital tão-somente analisar a nova forma de acumulação capitalista que emerge nos últimos 40 anos, desde meados da década de 1970, que vamos denominar de regime de acumulação flexível (HARVEY, 1988). A estabilização histórica das contradições entre acumulação capitalista e a tendência à queda da taxa de lucro foi alcançada provisoriamente, e somente nos países centrais da acumulação capitalista, com o regime de acumulação

12 Ver Regulación y crisis del capitalismo, Michel Aglietta, México: Siglo Veintiuno Editores, 5º Edición, 1991; e A relação salarial fordista, Walter Arno Pichler, Porto Alegre: Ensaios FEE, pgs. 97-129, 1988.

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fordista13. Não podemos abstrair que tais condições somente foram possíveis com a transnacionalização de capitais, que possibilitaram a inserção de uma infinidade de países na condição de capitalismo subordinado, cuja intensificação da exploração resultou em importantes transferências de capital para os principais países imperialistas. Devido aos limites desse trabalho, focalizar na acumulação flexível que marca a atualidade da sociedade capitalista, não poderemos entrar nos pormenores da acumulação fordista, sobretudo no que se refere às transformações na esfera do estado com a emergência do estado de bem-estar social que se caracterizou, sobretudo, pela tentativa de integrar a classe operária nas instituições capitalistas, subordinando os sindicatos à regulamentação estatal14 e inserindo os indivíduos trabalhadores no mercado de consumo,15 juntamente com políticas de assistência e seguridade social; nem tampouco à dinâmica das relações internacionais, que se caracterizou pelas transferência de capitais para os países de capitalismo subordinado, onde havia intensificação da exploração do trabalho, retornando para os países de capitalismo central sob a forma de lucros e dividendos (TRAGTEMBERG; VIANA, 2009) e através da troca desigual (VIANA, 2000)16. 13 Para uma análise das crises capitalistas anteriores ao regime de acumulação fordista veja Tragtemberg, Maurício. O capitalismo no século XX. São Paulo: Editora da Unesp, 2009. 14 PICHLER, 1988, p. 125\9. 15 PICLHER, 1988; VIANA, 2008. 16 Para uma discussão sobre fordismo periférico na perspectiva da “abordagem da regulação” ver Luiz Augusto Estrella Faria. Capitalismo, pe-

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O que Harvey chamou de acumulação fordista teve como fundamento o estabelecimento de reposicionamentos e de compromissos17 dos principais atores envolvidos no desenvolvimento capitalista: “o trabalho organizado, o grande capital corporativo e a nação-Estado” (HARVEY, 1988, p. 125). Em linhas gerais, o desenvolvimento capitalista foi conseguido através do que Harvey define como a “racionalidade corporativa burocrática”18 que gerenciando cientificamente o processo de forte centralização do capital tornou possível um crescimento sustentável do capital fixo aumentando a produtividade sob as condições que possibilitaram a elevação do padrão de vida da população por meio do aumento real dos salários (HARVEY, 1998; PICHLER, 1988; C&C, 201219). Na verdade, o aumento da produção de bens de consumo (carros, eletrodomésticos, construção, etc.) ajudou na contenção da queda da taxa de lucro, o que permitiu pela primeira vez na história do capitalismo um paralelismo entre produção e salários20, que por sua vez reforçou a ampliação do mercado para escoar os bens industriais. A padronização da produção em massa (HARVEY, 1998, p. 131) riferia e dependência: a crise do fordismo lá e cá. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 237-263, 1997. 17 Pichler (1988) vai falar como esse compromisso foi feito através da destruição do modo de vida dos trabalhadores e de sua individualização, processo intensificado pela relação salarial fordista. 18 Ibidem, p. 129. 19 Veja-se o site http://www.capitalism-and-crisis.info que expõe os resultados de pesquisa do professor francês Marcel Roelandts da Université Libre de Bruxelles (ULB). 20 C&C, 2012.

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reflete a incorporação dos meios de consumo pelas massas trabalhadoras nos países de capitalismo central21. Limitados são os que pretenderam a reprodução perpétua dessa forma de acumulação e não viram nela uma historicidade ainda mais curta e volátil que a do modo de produção capitalista como um todo, e ainda mais limitados os que pretendem tal retorno a “era de ouro”. De acordo com a produtividade da indústria capitalista cada mercadoria deve conter menos trabalho que a produção anterior, embora possa aumentar a massa de trabalhadores mobilizados na produção, o que por sua vez pode gerar o aumento da soma global do capital (constante e variável) na produção, revelando, novamente, a emergência da tendência à queda da taxa de lucro. Pouco efeito parece ter a distância que separa Marx do período da acumulação fordista, aproximadamente 70 anos, quando destacamos sua análise da essência histórica da produção e acumulação capitalista. Para Marx: “A taxa de lucro poderia até mesmo subir se à elevação da taxa de mais-valia estivesse ligada uma diminuição significativa de valor dos elementos do capital constante, e nomeadamente do fixo. Mas na realidade, a taxa de lucro, como já se viu, irá cair a longo prazo (...) Tudo depende de quão grande é a soma global do capital que participa de sua produção” (Livro 3, p. 175). 21 Granou in Viana Universo psíquico e reprodução do capital: ensaios freudo-marxistas, p. 28.

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A acumulação fordista não pôde escapar da lei tendencial de queda da taxa de lucro e abriu espaço histórico para a efetivação necessária de novas formas de manter a reprodução capitalista através de uma ofensiva da classe capitalista sobre a forma de organização do trabalho que por tanto tempo lhe possibilitou lucros tão poucas vezes alcançados. Marx analisa que entre as “tendências contrariantes” à tendência declinante da taxa de lucro, possui papel fundamental a “elevação do grau de exploração do trabalho”, tanto por meio da intensificação do processo de trabalho quanto pela extensão da jornada de trabalho. Intensificação do trabalho significa que num determinado período de tempo se objetiva “transformar o máximo possível de dada massa de trabalho em mais-valia” e em relação ao capital adiantado empregar o “mínimo possível de trabalho”22, objetivo este alcançado através da renovação do capital constante (novas máquinas, mais instalações, energias mais produtivas) em relação à estagnação de sua parte variável. Marx situa os procedimentos que aumentam a extração de mais-valia relativa como “tendências conflitantes” na medida em que, acarretam aumento da taxa de mais-valia, mas que implicam queda na massa de mais-valia, pois a massa de mais-valia é medida multiplicando a taxa de mais-valia pelo número de trabalhadores que estão ocupados (MARX, 1983, p. 178) enquanto que a taxa de mais-valia somente se mede sobre o capital variável (Ibidem, p. 179). Isto significa que há elevação do grau de exploração do trabalho ao mesmo tempo em que se impossibilita que com o mesmo capital se explore 22 Capital, livro 3, p. 178.

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tanto trabalho quanto antes. Contudo, Marx, destaca dois momentos de intensificação do trabalho que são excessões ao processo de desvalorização da mercadoria, ou de redução do tempo de trabalho vivo, estes momentos correspondem à “velocidade acelerada da maquinaria” que se desenvolve mas sem alterar o preço do trabalho que ela mobiliza, e à “melhoria dos métodos” quando sobe a massa de produtos em relação à força de trabalho utilizada 23, apontamentos estes que nos são fundamentais para compreender a intensificação do processo de trabalho na acumulação flexível. Quanto ao prolongamento da jornada de trabalho, que Marx considera como invenção da indústria moderna, permite aumentar a massa de mais-trabalho apropriada sem que se altere a relação entre a força de trabalho empregada e o capital constante posto em movimento, quando não diminui relativamente a quantidade de capital constante mobilizada (Ibidem, p. 177). Daí que aumenta o seu uso recorrente, embora muitas vezes disfarçada sob atividades diferentes. Trata-se então de analisarmos a nova forma de socialização da classe trabalhadora, como as grandes massas de indivíduos, que não têm nada mais a vender que a não ser a si mesmo, são inseridas como trabalhadores numa sociedade em que tudo o que existe está reificado na forma da mercadoria. Dejours fala em processo de dessocialização (1999), enquanto que Laura Soares fala em “reintegração social” (2002). Demonstraremos agora a criação das condições sociais necessárias para a emergência do tortuoso destino das massas trabalhadoras na forma flexível de se acumular capital. 23

Capital, livro 3 p. 177\8.

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As partes que compõem o valor da mercadoria (capital constante e capital variável), sofrem elevação de seu custo, juntamente com o não-crescimento do mercado consumidor no ritmo necessário para a circulação e acumulação crescentes de capital. Soma-se a essa situação a ocorrência da contestação dos vários movimentos da classe trabalhadora e de outros grupos oprimidos, mas conquanto a classe detentora dos meios de produção e das instituições reguladoras da reprodução da sociedade capitalista, sobretudo o estado, mantiver o domínio das condições de produção terá essa classe o poder e a capacidade de definir a forma de organização da sociedade. A superação da crise veio como uma ofensiva da classe capitalista sobre a organização e sobre as condições materiais de trabalho, que resultaram na organização flexível do trabalho.

Intensificação da exploração do trabalho no regime de acumulação flexível: junção de mais-valia absoluta e mais-valia relativa. Thomas Gounet em sintético artigo intitulado “El toyotismo o el incremento de la explotación” (2013) demonstra que com a crise de 1973 ocorreu que as empresas dos países de capitalismo avançado situadas no Ocidente passaram a correr atrás do novo segredo de produção da empresa Toyota, no Japão, para alcançar níveis elevadíssimos de produtividade com a contenção dos custos da força de trabalho, e mesmo com a redução do trabalho imobilizado na produção.

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Segundo Gounet as multinacionais ocidentais perceberam que a empresa Toyota estava baseada em um outro sistema de produção sob o qual conseguiam elevado “incremento de la explotación de los trabajadores” (GOUNET, 2013, p. 8) o que estava lhe conferindo posição de liderança no mercado mundial de automóveis, isto por meio de inovações tecnológicas e organizacionais no processo de trabalho, ou da elevação da velocidade acelerada da maquinaria e\ou nos métodos organizacionais como diria Marx. Listamos abaixo as principais características da produção toytista levantadas por Gounet e percebemos como estas vão ao encontro do apontamento de Marx em aumentar a extração de mais-valia sem aumentar a massa de trabalhadores: a) a utomação: máquinas capacitadas a pararem a produção caso ocorra algum incidente, seu funcionamento dispensa vigilância constante por parte do operário, liberando-o para manipular várias máquinas simultaneamente, importante instrumento para elevação da produtividade; b) s istema just in time: se baseia na diminuição dos estoques, manipulando a quantidade de matérias-primas e auxiliares no momento exato da produção, gestão inversa da produção fordista, primeiro se vende um produto logo depois é produzido, tendo em conta a quantidade exata de componentes necessários para cada etapa da produção. Em outras palavras, com o fim dos estoques a demanda (mercado) fixa a quantidade e as características do produto, resultando em diminuição da inversão de capital e maior racionalização do processo de trabalho;

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c) trabalho em grupo ou team work: permite a racionalização do trabalho a partir do tempo coletivo para a realização de determinada etapa do trabalho, expande o tempo de produção para além da atividade individual, diminuindo o tempo de trabalho racionalizando o trabalho em equipe; d) “management-by-stress”: gestão por estímulos, interioriza no trabalho em grupo as pressões da produção; e) f leixibilidade do trabalho: operários têm que se adaptar às variações da produção que ocorrem com as variações do mercado, podendo trabalhar mais em determinadas épocas ou serem dispensados em momentos de contração das vendas. Esse movimento resulta em instabilidade nos rendimentos do trabalhador, trabalho e salário variável, ainda mais, variações na produção exigem trabalhador polivalente, trabalhando em vários postos de trabalho, inclusive em instalações diferentes; f) p irâmide de subcontratação: empresa Toyota concentra sua produção em montagem e fabricação de peças fundamentais como o motor, o restante dos produtos é feito por empresas subcontratadas, o que permite reduzir drasticamente os custos de produção, se aproveitando dos salários mais baixos e das maiores jornadas de trabalho nas empresas subcontratadas, que estão ordenadas segundo a escala dos produtos e serviços que prestam à montadora central, direta ou indiretamente, quanto mais baixa a posição da empresa subcontratada, maior precarização do trabalho; g) gestão participativa: resulta de contenção dos sindicatos, da implementação do controle de qualidade que

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envolve os trabalhadores na melhoria da qualidade da produção e por fim sistema de ascenção no interior da empresa, onde o trabalhador entra como temporário, ascende ao emprego por tempo indeterminado, alguns são nomeados chefes de grupos e finalmente quadros de gerência da produção, desenvolver o padrão de operários como pequenos gerentes, responsável pelo bom andamento da produção e por atingir as metas de produção. A gestão participativa procede de um movimento de fasciscitização das relações sociais no interior da empresa, processo de transformação da consciência do trabalhador o torna solidário ao patrão e insensível aos outros trabalhadores, ao seu igual; h) incremento da exploração: para o aumento do ritmo de trabalho, dois importantes instrumentos são o trabalho em equipe (team work) e a subcontratação: primeiro permite aumento do controle da direção sobre o processo concreto de produção efetuado pelos trabalhadores, aumento máximo do tempo de trabalho; e a subcontratação que permite os empregadores se aproveitarem de piores condições de trabalho, que incluem salários mais baixos, maior jornada de trabalho, menor proteção social do trabalho, incrementar a flexibilidade, ameaças de piores condições de trabalho, segmentar a classe trabalhadora, individualizar o operário em sua condição específica dentro da rede da empresa. Antunes no esclarece que essa nova forma de produção transforma as relações sociais de produção, possibilitando a emergência da unificação histórica das duas formas de extra-

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ção de mais-valia: por um lado intensifica-se o processo de trabalho através da manipulação simultânea de várias máquinas e do aumento da velocidade da cadeia produtiva com o sistema de luzes (kanban), isto é, eleva-se a extração de mais-valia relativa; e por outro lado, a aplicação de movimentos de extração de mais-valia absoluta como através do aumento da jornada de trabalho semanal de 48 para 52 horas, expansão do trabalho em meio-período, divisão sexual do trabalho que reduz custos com força de trabalho em determinados setores da classe trabalhadora, e o aumento da utilização da força de trabalho imigrante (ANTUNES, 2002, p. 33-34). A mágica da produtividade toyotista é desvendada quando se descobre que além da extensão e intensificação do processo de trabalho o aumento da produtividade é obtido através da diminuição do número de trabalhadores qualificados no interior da empresa com correspondente aumento da precarização (hora-extra, terceirizados, subcontratados, trabalho temporário) fora da empresa, na medida em que 75% da produção que se encontra descentralizada, o que se traduz na pouca concentração de funcionários dentro da empresa sede (Ibidem, p. 32). Nesse sentido, concordamos com Antunes para quem a expansão da produção Toyotista se tornou viável quando esta se mostrou a única opção possível para superar a crise de acumulação que os países de capitalismo avançado vinham passando com a intensificação dos limites e contradições da acumulação fordista; assim, a superação veio com a “via japonesa de consolidação do capitalismo industrial” através da incorporação de “um inovado e altamente integrado sistema de organização da produção” (SAYER apud ANTUNES, 2002, p. 31)

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Esse movimento foi maior principalmente nos países de capitalismo desenvolvido, onde é elevadíssima a concentração de capitais como nos EUA, Alemanha, Suéca, norte da Itália e aos poucos foi se generalizando para os países periféricos. Seguindo as análises de Bolthanski e Chiapelo sobre a realidade do sistema produtivo francês dispomos de um amplo quadro de transformações na organização do trabalho que ocorreram através das inovações da reestruturação produtiva posterior à década de 1970. A nova realidade de organização da produção está fundamentada na acumulação flexível de capital, que impõe a organização flexível do trabalho: Eixo da nova redistribuição FLEXIBILIDADE: interna: transformação da organização do trabalho em rede, objetivo é desenvolver polivalência, autocontrole, e autonomia do trabalho; externa: subcontratação, mão de obra maleável, empregos precários, temporários, trabalho autônomo, tempo parcial, horários variáveis (CHIAPELLO & BOLTHANSKI, 2009, p. 240). Para os autores o objetivo maior das inovações era o de eliminar todas as barreiras à acumulação de capital, o que no caso da organização do trabalho se obtém ao diminuir custos com a força de trabalho, jogando para cima dos trabalhadores individualizados todo o ônus da reprodução da força de trabalho. A flexibilização externa referida por Bolthanski e Chiapello referem-se às regulamentações, sobre-

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tudo as estabelecidas pelo estado, sobre a força de trabalho e sobre o mercado de trabalho; nesse sentido, juntamente à flexibilização da organização do trabalho foi necessária à flexibilização das normas que regulamentam a mobilização de trabalho, que para os autores se expressa no novo contrato comercial entre prestadores de serviço, substituindo o contrato de trabalho (CHIAPELO & BOLTHANSKI, 2009). Vasapollo descobre nas alterações na legislação italiana, no ano de 1997, e no projeto conhecido como “Pacto para a Itália”, a intenção de criar as condições sociais para a flexibilização ao introduzir novas formas de contratação como o trabalho temporário, estágios de aprendizado, trabalho em meio período, trabalhos socialmente úteis, formação profissional (VASAPOLLO, 2006, p. 46\7) institucionalizando o que o autor chama de formas de trabalho atípico, que são pessoas inseridas no mercado de trabalho por meio de bolsas de estudo e aprendizado, planos de recolocação profissional, contrato temporário de idosos, trabalhos socialmente úteis, contratos atípicos na administração pública. Para Vasapollo a nova legislação é a responsável por desestruturar a antiga organização do trabalho, na medida em que seus resultados contribuem com a globalização neoliberal e internacionalização dos processos produtivos (Ibidem, p. 52), o que a nova legislação consegue ao institucionalizar a intensificação da exploração do trabalho, não questionar a elevação dos acidentes e trabalho e as enfermidades, e compactuando com aumento da pobreza de sua própria força de trabalho. Esta nova forma de organização do trabalho intensifica a tendência existente na sociedade capitalista de ampliar o

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tempo de sobre-trabalho, o tempo a mais sobre a jornada de trabalho necessária para a reprodução da força de trabalho. Este tempo a mais, como vimos, pode ser aumentado tanto absolutamente ao estender a jornada total de trabalho, quanto relativamente, ao ser intensificado o tempo de trabalho excedente. Como diversos estudiosos vêm ressaltando, a luta de classes gira em torno do tempo de trabalho, os capitalistas tentando aumentá-la, enquanto os trabalhadores procuram no imediato diminuir o tempo de sobre-trabalho juntamente com aumento dos salários (MESZAROS, 2002; ANTUNES, 2002; VIANA, 2009; MANDEL, 1990). A organização do trabalho na acumulação flexível intensifica a utilização de instrumentos tecnológicos e organizacionais na tentativa de aumentar a extração de mais-trabalho, e ao conseguir elevar o grau de exploração empreende o que Mandel chamou de “agressão massiva” do capital contra o trabalho como necessária para superar a crise instaurada em meados dos anos 70, por meio de uma “ofensiva de austeridade” (MANDEL, 1990, p. 230) contra os custos da força de trabalho. As novas máquinas, ferramentas, instalações, enfim a parte constante do capital, passam por outro processo de renovação, que foi chamada de “Terceira revolução industrial” (SOARES, 2002) através da generalização da informacionalização da produção e da automatização auto-regulável prescritas no modelo inglês e norte-americano (CHESNAIS, 1996); bem como da introdução da microeletrônica (ANTUNES, 2006); da telemática e o surgimento da empresa em rede (ALVES, 2013). Podemos entender esses novos instrumentos como uma revolução nas forças produtivas da sociedade ca-

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pitalista, ao garantir um salto qualitativo nas estratégias de aumento da extração de sobre-trabalho, sendo complementados com as transformações nos métodos de organização (just-in-time, kan-ban, etc) que reconfigura as relações sociais de produção intensificando a disciplina do trabalho, a gerência, o controle e a maior subordinação dos trabalhadores. A organização flexível do trabalho vai configurando-se como a maximização do grau de exploração do trabalho, intensificar o trabalho o quanto o trabalhador aguentar, com a correspondente diminuição do tempo disponível, na medida em que tempo de trabalho necessário avança sobre as capacidades produtivas úteis, essa parte da vida humana é negada enquanto dela o capital não pode extrair lucros.

Conclusões A característica maior do atual processo de acumulação capitalista é a intensificação da exploração do trabalho, a partir da junção da extração de mais-valia absoluta e relativa, possibilitada graças às transformações técnicas e organizacionais que revolucionaram o processo de constituição do valor na sociedade capitalista. Essa nova situação histórica resulta de transformações sociais, na medida que as relações (oposição) de classe reforçam a tendência de declínio da taxa de lucro, o que foi possível mediante uma drástica ofensiva das classes dominantes (burguesia, burocracia e demais classes auxiliares) sobre a classe trabalhadora.

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Capítulo 13

Reestruturação dos serviços: a expansão da terceirização1 Yuri Rodrigues da Cunha2

Introdução12

A

s transformações econômicas que ocorreram no último quarto do século XX alteraram as bases quais assentavam as políticas de caráter keynesiano, marcando uma virada para as políticas econômicas neoliberais, que pareciam relegadas a um plano secundário3 desde a crise de 1929 e principal1

Comunicação apresentada no XII Fórum de Conjuntura – FFC, UNESP, Marília (2012). Este trabalho é o desenrolar da pesquisa de Iniciação Científica financiada pela FAPESP,

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Graduação em História (2009) e Ciências Sociais (2012), mestrando em Ciências Sociais - Cultura e Política do Mundo do Trabalho, Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marília.

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Segundo Milton Friedman, “aqueles [...] que se mostravam profundamente preocupados com a ameaça à liberdade e à prosperidade, representada pelo crescimento da ingerência governamental e pelo triunfo das ideias keynesianas e do Estado próspero, formavam uma pequena mas aguerrida minoria, considerada excêntrica pela grande maioria dos nossos colegas intelectuais” (FRIEDMAN, 1985, p. 5).

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mente graças ao boom econômico da chamada “era do ouro” do capitalismo, caracterizado pelo apogeu do fordismo. Para compreendermos de forma bem sintética as bases dos “trinta anos gloriosos” devemos levar em consideração três fatores essenciais: os efeitos das guerras mundiais, as mudanças no padrão monetário internacional e as alterações da divisão internacional do trabalho (BELLUZO, 2009). Esse período – fim da década de 40 até meados dos anos 70 – é marcado por um lado, pelo crescimento da economia capitalista, nos países centrais, assim como em parte da periferia, mas por outro lado o ápice da expansão da economia capitalista no período de “boom” fornece as bases para a crise estrutural da década de 70. A maioria das economias capitalistas avançadas experimentou índices historicamente inéditos de crescimento de investimento, produção, produtividade e salários, junto com um baixo índice de desemprego e apenas breves e moderadas recessões. Mas durante o longo declínio que se seguiu entre o início da década de 1970 e meados dos anos 1990, o crescimento do investimento despencou, acarretando um reduzidíssimo aumento da produtividade, um crescimento mais lento (se não um declínio absoluto) dos salários, um nível de desemprego de época de depressão e uma sucessão de recessões e crises financeiras como não se viam desde a década de 1930 (BRENNER, 2003, p. 45)

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A expansão do capitalismo no pós-guerra nos países centrais se deu com estável crescimento econômico, acompanhado pela elevação dos padrões de vida4, pela tendência de crisesmais amenas, e pela ameaça remota de guerras intercapitalistas (HARVEY, 2003). Na prática podemos afirmar que, esse período de expansão do capitalismo se deu sobre as bases de uma espécie de livre comércio5 e movimento de capital, com moedas estáveis graças à esmagadora dominação econômica dos EUA e do padrão dólar, que funcionou como estabilizador da economia mundial6, até a quebra do sistema em fins da década de 1960 (HOBSBAWM, 2010). 4

“O que proporcionou a expansão econômica sem precedentes do período pós-guerra foi a capacidade das economias capitalistas avançadas de realizarem e sustentarem altas taxas de lucro. As altas taxas de lucro mostraram-se fundamentais acima de tudo porque possibilitaram a essas economias gerarem superávits relativamente grandes por meio da utilização de quantidades ficas de instalações e equipamentos. Os constantes grandes superávits possibilitaram a essas economias manterem altos índices de investimento e, por conseguinte rápido crescimento da produtividade, permitindo por sua vez a acomodação de um rápido crescimento dos salários reais sem ameaçar os lucros.” (BRENNER, 2003, p. 47)

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A preocupação dos Estados Unidos ao fim da II Guerra era que sua economia pudesse enfrentar uma carência de mercados, sendo assim, o projeto de reorganização da economia mundial se pautava com base no livre comércio buscando os mercados externos. Se pensarmos ainda que a indústria europeia estava praticamente destruída por causa da Guerra e a indústria norte-americana estava intacta, não é difícil imaginar a razão pela defesa do livre comércio no acordo de Bretton Woods.

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O acordo de Bretton Woods assinado em 1944 tinha como objetivo planejar a estabilização da economia internacional e das moedas nacionais prejudicadas pela Segunda Guerra Mundial. As bases do acordo

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A economia mundial, portanto, crescia a uma taxa explosiva. Na década de 1960, era claro que jamais houvera algo assim. A produção mundial de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970, e, o que é ainda mais impressionante, o comércio mundial de produtos manufaturados aumentou dez vezes. [...] a produção agrícola mundial também disparou, embora não espetacularmente. E o fez não tanto com o cultivo de novas terras, mas elevando sua produtividade. (HOBSBAWM 2010, p. 257). Com a total recuperação das economias europeias (sobretudo Alemanha) e japonesa em grande parte financiada pela exportação de capitais norte-americanos, uma nova configuração da divisão internacional do trabalho começou a solapar a antiga. Isto porque, as reconstruções dos parques industriais, tanto alemão quanto japonês, se deram sob uma base de maior produtividade do trabalho e com novos paradigmas organizacionais – em comparação com a indústria norte-americana. Com o crescimento dessas duas econodefiniram o dólar como a moeda-reserva mundial lastreada no ouro, vinculando com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária dos Estados Unidos. Além do mais, as bases do acordo de Bretton Woods foram firmadas com base no livre comércio e livre circulação de capitais. Porém esse acordo encontrou alguns limites tendo em vista que as economias locais – como, por exemplo, o Japão e a Alemanha – mantiveram o controle de capitais, não converteram suas moedas e mantiveram certo controle sobre o comércio em seus países.

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mias, assim como o aumento da produtividade do trabalho, o fluxo de capitais se expandiu7, inclusive chegando aos países periféricos8 da América Latina. Como Alemanha e Japão combinavam técnicas mais avançadas com salários mais baixos reduziam assim custos em suas produções, aumentando a produtividade do trabalho. Com o custo mais baixo da produção, essa mercadoria se tornava mais competitiva ganhando assim cada vez maiores fatias do mercado internacional que anteriormente pertenciam aos Estados Unidos, resultando por um lado, em um inchaço cada vez maior de mercadorias circulando nos mercados consumidores, e por outro, redução do poder de competitividade dos produtores americanos que se encontravam amarrados a custos inflexíveis por se acharem atravancados por instalações e equipamentos – capital fixo – que incorporavam métodos de produção que se tornavam relativamente altos (BRENNER, 2003). 7

De acordo com Hobsbawm, “o mundo desenvolvido passou a exportar um pouco mais de suas manufaturas para o resto do mundo, porém – mais significativamente – o Terceiro Mundo passou a exportar manufaturas para os países industriais desenvolvidos em escala substancial” (HOBSBAWM, 2003, p. 274). Esse processo só é possível pois a produção nos países periféricos tem custos mais baixos, sobretudo no que diz respeito ao trabalho, desta forma a produtividade do trabalho era ainda maior, o que fazia com que os produtos manufaturados desses países pudessem ser exportados para os países industrializados do centro dinâmico do capitalismo global.

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Aqui se trata de um fluxo seletivo, não são todos os países periféricos que são alvos das exportações de capitais, principalmente alemão. Os principais países beneficiados na América Latina são Brasil, México, Argentina.

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O resultado geral foi que, enquanto os fabricantes das economias de desenvolvimento mais tardio do Japão, da Alemanha e da Europa ocidental conseguiram manter as suas taxas de lucro dados os custos e preços mais baixos de suas produções, os fabricantes dos Estados Unidos foram incapazes de evitar taxas de retorno reduzidas. O resultado inexorável dói uma taxa de lucro agregada em declínio no setor manufatureiro internacional, que expressava um excesso de capacidade e de produção em todo o sistema. (BRENNER, p. 57). Essa ascensão dos “parceiros/competidores” fez com que os Estados Unidos começassem a sentir efeitos negativos sobre sua economia, como por exemplo, o saldo negativo em sua balança de pagamentos a partir da década de 70. Esse déficit na balança de pagamentos era coberto pelo governo americano que emitiam cada vez mais dólares na economia. Entretanto, essa emissão de moedas acabava gerando outro problema, pois, desde o acordo de Bretton Woods o dólar era lastreado em ouro, se mantendo como uma moeda padrão.

O boom da crise: os anos 70 a crise estrutural A partir da década de 1970, o capitalismo entrou numa fase de relativa estagnação econômica, caracterizada por baixas taxas de crescimento, queda dos investimentos e es-

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tagnação de amplas regiões da periferia, esta crise que foi determinada por múltiplos fatores, tem como um dos principais os motivos aspectos econômicos (CORSI, 2003; 2009). Com a emissão cada vez maior de dólares, a pressão sobre essa moeda intensificou cada vez mais, fazendo com que o governo suspendesse a conversibilidade do dólar a uma taxa fixa com o ouro9. “Os Estados Unidos não foram capazes de sustentar a posição do dólar como moeda padrão, na medida em que uma oferta “excessiva” de dólares brotava do desequilíbrio crescente do balanço de pagamentos” (BELLUZO, 2009, p. 53). Essa crise no sistema monetário internacional, no qual a posição do dólar como moeda chave na economia internacional, por estar lastreada no ouro, ao sofrer constantes pressões, redundou no fim do acordo de Bretton Woods. Além da crise do padrão dólar-ouro, outro elemento central para a “crise estrutural” de 70 foi a constante queda da taxa de lucro, indicado por um excesso da capacidade produtiva, somado a uma tendência mais favorável ao trabalho na correlação Capital x Trabalho que refletia nas políticas de “pleno-emprego”, assim como a intensificação da competiti-

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Os Estados Unidos criaram por meio de seus déficits de balanço de pagamentos, que passaram a englobar também a conta corrente no início dos anos 70, um montante de dólares em circulação no sistema internacional que era considerado excessivo pelos seus parceiros, isto é, por emitir a moeda reserva, os Estados Unidos tinham o privilégio do financiamento automático dos seus déficits externos. Todavia, os demais parceiros, que acumulavam esses dólares nas suas reservas internacionais, passaram a questionar crescentemente o valor ou a paridade dessa moeda. (CARNEIRO, 2002, p. 51).

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vidade internacional, bem como nos sinais de esgotamento do padrão de acumulação pautado pelo “fordismo”. Segundo Mandel (1990), esta crise, é uma crise de superprodução10, resultado da queda tendencial da taxa média de lucros e crescimento regular da capacidade ociosa de produção da indústria11, resultando na sobreacumulação e centralização de capitais. Somado a isso, durante a década de 70, evidenciou-se um relativo esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção (ANTUNES, 2010), que se agravava com a retração do consumo, aliada a queda dos investimentos e da taxa de lucro, gerando o início de um desemprego estrutural. A relativa estagnação econômica, somada ao crescente índice de desemprego, afetou também as políticas de caráter keynesianas do Estado do Bem Estar Social, que se agravava a cada nova medida que os governos12 tomavam na tentativa 10 De acordo com Brenner, o capitalismo teria mergulhado em uma crise de superprodução desde os anos de 1970, que teria se tornado crônica, a medida que a produção industrial em escala mundial cresce, primeiro com a alta produtividade do trabalho na Alemanha e Japão, que combinavam altas tecnologias com salários relativamente baixos, posteriormente, com nichos de produção da periferia que exportavam cada vez mais para o mercado mundial. (BRENNER, 2003) 11 Mesmo Mandel (1990) considerando como uma crise clássica de superprodução, isto não significa que não tenha particularidades específicas frutos do processo histórico, tais como o processo inflacionário por um lado, e por outro, pontos de estrangulamento coincidindo pela superabundância geral de mercadorias. 12 Sobretudo o governo dos Estados Unidos, de acordo com Brenner (2003) o governo perseguiu, sem entraves, políticas monetárias expansionistas

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de estancar a crise econômica, acarretando uma maior crise fiscal e numa ofensiva dos defensores do neoliberalismo. Outro elemento que ganha em importância neste período, é o crescimento e hipertrofia da esfera financeira13, que começou a ter uma autonomia relativa a partir da década de 50 nos Estados Unidos e 60 na Europa, tornando-se hegemônica a partir dos anos 80, quando as taxas de crescimento dos ativos financeiros crescem a taxas mais altas do que o PIB. (CHESNAIS, 1996; 2005) Todos estes fatores elencados contribuíram, em maior ou menor grau, para a derrubada das bases sob as quais se assentavam a economia capitalista da “era de ouro”. Dado a profundidade da crise que se delineava ao longo da década de 70, ocorrendo de maneira generalizada14 nos países capitalistas, a necessidade da resposta por parte do capie políticas keynesianas de déficits orçamentários visando, de uma só vez, estimular o crescimento doméstico, desvalorizar o dólar para ajudar na competitividade do setor manufatureiro e depreciar as reservas de dólares mantidos no exterior. Estas medidas eram adotadas na ânsia de tentar recuperar da constante queda da taxa de lucros, e aumentar a capacidade de consumo que decaía. 13 Um fator importante para compreender a hipertrofia financeira, foram os chamados petrodólares, ou seja, as divisas provenientes da exportação de petróleo, que foi a origem de uma liquidez no mercado internacional, bem como uma nova fase de internacionalização da economia. 14

A sincronização internacional dos movimentos conjunturais nos principais países imperialistas amplificou o movimento de retração da atividade econômica (MANDEL, 1990), mas isso não significa que esta crise atinge todos os países de maneira uniforme, tendo nítidas diferenças entre os países centrais e periféricos.

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tal deveria ser da mesma magnitude, uma ofensiva ampla e profunda, que poderiam ser capazes de refrear o avanço das ondas de contestações sociais que emergiam em várias partes do mundo15. Porém, a partir de 1973, com o primeiro choque do petróleo, detonando todos estes fatores que desencadearam a chamada “crise estrutural”, marcando o início da virada “neoliberal”16, atingindo tanto os países do centro nevrálgico capitalista, quanto a periferia. A partir deste momento, inicia-se uma nova ofensiva do capital, caracterizada por uma busca desenfreada à retomada das taxas de crescimento do período anterior.

15 Na Europa havia um avanço das forças de esquerda, no seio dos Estados Unidos as contestações sociais aumentavam, criando uma nova cultura anticapitalista, dando margem para o surgimento de movimentos sociais com pautas específicas, que lutavam pelos interesses das minorias, assim como em grande parte dos países da periferia, um movimento nacionalista ganhava cada vez mais corpo, somando-se ainda a uma possibilidade real de uma revolução socialista, principalmente após a consolidação da Revolução Cubana, 16 Definir o início do “neoliberalismo” pode ser uma tarefa ingrata, dado as matizes regionais que esse processo desenvolve-se, porém, alguns momentos são importantes para o fortalecimento político do neoliberalismo, como a experiência chilena após o golpe militar de Pinochet, onde os “Chicago boys” assessoraram de perto as políticas econômicas de “reconstrução” chilena (HARVEY, 2008). Após a “experiência” chilena, no ano de 1979 se consolidam as políticas neoliberais com as eleições de Thatcher e Reagan, na Inglaterra e Estados unidos respectivamente.

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Reestruturação Produtiva e dos Serviços Diante da crise que se mostrava cada vez mais aguda, não houve uma destruição do excesso de capitais, como comunmente ocorre no capitalismo, segundo Corsi (2003), o que recompôs as condições de retomada do crescimento, foi a recomposição da taxa de exploração, e assim a rentabilidade, desta maneira a reestruturação produtiva bem como a desregulamentação do mercado de trabalho são, aspectos dessa ofensiva dos capitais contra os trabalhadores. Segundo Antunes (2010), em meio a crise capitalista, ocorria uma interação de vários elementos constitutivos, nos quais impossibilitavam a permanência do ciclo expansionista do capital que vigorava desde o pós-guerra, isto porque, além do esgotamento econômico do clico de acumulação, as lutas de classes ocorridas ao final dos anos 60 e início dos 70 solapavam pela base o domínio do capital e afloravam as possibilidades de uma hegemonia oriunda do mundo do trabalho. A confluência e as múltiplas determinações de reciprocidade entre estes dois elementos centrais (o estancamento econômico e a intensificação das lutas de classe) tiveram, portanto, papel central na crise dos fins dos anos 60 e início dos 70 (ANTUNES, 2010, p. 44). Como resposta a sua própria crise, iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e

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político, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, a desregulamentação (em diversas frentes, tal como do trabalho e do setor financeiro), bem como o movimento chamado de “mundialização de capitais” 17. A ofensiva do capital nesse momento de reestruturação produtiva envolve um sistema de inovações tecnológico-organizacionais no campo da produção, como por exemplo, a robótica e a automação eletrônica; as novas modalidades de gestão da produção, oriundos do toyotismo, além de reengenharias e o “downsizing”. Além disso, é um importante componente da de reestruturação produtiva, as descentralizações produtivas, como realocações industriais e terceirização, instaurando uma busca incessante por condições cada vez mais flexíveis18 (ALVES, 2010). 17 “A reestruturação do capitalismo nos países desenvolvidos baseou-se no desmonte do Estado de Bem-Estar Social e na desregulamentação e na abertura financeira e comercial das economias nacionais.” (CORSI, 2009, p. 23) 18 “A nova organização capitalista do trabalho é caracterizada cada vez mais pela precariedade, pela flexibilização e desregulamentação, de maneira sem precedentes para os assalariados.” (VASAPOLLO, 2006, p. 45). Ainda segundo o mesmo autor, a flexibilização deve ser entendida como: “liberdade da empresa para despedir parte de seus empregados, sem penalidades, quando a produção e as vendas diminuem; liberdade da empresa para reduzir ou aumentar o horário de trabalho, repetidamente e sem aviso prévio, quando a produção necessite; faculdade da empresa de pagar salários reais mais baixos do que a paridade de trabalho, seja para solucionar negociações salariais, seja para poder participar de uma concorrência internacional; possibilidade de a empresa subdividir a jornada de trabalho em dia e semana de sua conveniência, mudando os horários e as características do trabalho por turno, por es-

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A reestruturação pode ser sintetizada pela busca de uma “acumulação flexível”, entendida como o combate a rigidez19 do padrão taylorista/fordista/keynesiano, que de acordo com Harvey (2003), era incapaz de conter as contradições do capitalismo. A acumulação flexível [...] é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente in-

cala, tempo parcial, horário flexível; liberdade para destinar parte de sua atividade a empresas externas; possibilidade de contratar trabalhadores em regime de trabalho temporário, de fazer contratos por tempo parcial, de um técnico assumir um trabalho por tempo determinado, subcontratado, entre outras figuras emergentes do trabalho atípico, diminuindo o pessoal efetivo a índices inferiores a 20% do total da empresa. (VASAPOLLO, 2006, p. 45-46). 19 Rigidez dos investimentos de capital fixo em larga escala e longo prazo em sistema de produção em massa, impedindo a flexibilidade de planejamento. Havia problema na rigidez nos mercados, na alocação de contratos de trabalho, e na ânsia de superar esses problemas, aprofundaram o poder dos trabalhadores, que redundaram no aprofundamento das greves. Rigidez dos compromissos do Estado, se intensificando à medida que se exigia novos programas de assistências. (HARVEY, 2003).

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tensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (HARVEY, 2003, p. 140). A busca por esse novo padrão de acumulação flexível, gerou uma reorganização do processo de trabalho, pela introdução de novas tecnologias poupadoras de mão de obra, desregulamentação do mercado de trabalho e pela precarização do emprego (CORSI, 2009). Na busca de recuperar a lucratividade por meio de custos menores os grandes oligopólios, em um contexto de acirrada concorrência e de abertura das economias nacionais, buscaram novos espaços de acumulação, onde a classe trabalhadora fosse mais disciplinada e os salários baixos. (CORSI, 2009, p. 24). Uma das medidas mais eficazes de disciplinamento da classe trabalhadora foi a introdução de novos paradigmas organizacionais, como, por exemplo, o toyotismo, que caracteriza-se por uma busca da maior produtividade do trabalho, pautado por uma maior flexibilidade do trabalhador. O capital deflagrou, então, várias transformações no próprio processo produtivo, por meio da constituição das formas de acumulação flexível, do downsizing, das formas de gestão organizacional, do avanço tecnológico, dos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, em que se destaca prin-

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cipalmente o “toyotismo” ou o modelo japonês. Essas transformações, decorrentes da própria concorrência intercapitalista, e, por outro lado, da própria necessidade de controlar as lutas sociais oriundas do trabalho, acabaram por suscitar a resposta do capital a sua crise estrutural. (ANTUNES, 2010, p. 49-50) Foi a partir dos anos 80, durante o movimento de reestruturação produtiva, que o toyotismo se consolida como o momento predominante, na fase de mundialização do capital, segundo Alves (2000), a partir deste momento que o toyotismo assume a “posição de objetivação universal da categoria da flexibilidade, tornando-se valor universal para o capital em processo” (ALVES, 2010, p. 29). No que se refere ao método de gestão, o princípio da flexibilidade se apoia na noção de Just-in-time, que em última instancia significa a economia de todos os elementos de produção e a eliminação de todos os desperdícios, de todas as sobras e de todos os tempos mortos no interior da jornada de trabalho, significando uma busca permanente por eficiência e redução de custos através de uma racionalização do trabalho. Além disso, outra técnica é o controle de qualidade total, técnica no qual, responsabiliza o próprio trabalhador pela qualidade do serviço realizado, retirando de cena a figura do gerente taylorista da produção. Durante esta fase de reestruturação, há cada vez mais, conforme aponta Chesnais (1996), uma imbricação entre as dimensões produtivas e financeiras, tornando-se parte do funcionamento cotidiano da nova etapa da mundialização

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do capital, mas a partir dos anos 90, há um aumento na importância das operações puramente financeiras. Desta maneira, “a esfera financeira é um dos campos de valorização do capital, que deve regar lucros como em qualquer outro setor.” (CHESNAIS, 1996, p. 240-241). Em meio a esse processo de crescimento da esfera financeira, as medidas de liberalização e de desregulamentação tomadas em fins dos anos 70 e início dos anos 80, marcou o nascimento do sistema de finança mundializado (CHESNAIS, 2005). Neste novo processo de mundialização, desencadeando-se, uma nova onda de centralização de capitais, apresentado “sob a forma de uma crescente dispersão espacial das funções produtivas e terceirização das funções acessórias ao processo produtivo acompanhadas de violenta concentração das decisões” (BELLUZZO, 2009, p. 57). Diante das transformações financeiras que acirram a concorrência interempresarial, e modificam diretamente a direção e a natureza dos investimentos, os Estados nacionais buscam se aproveitar dessa nova fase econômica. Os governos de todas as economias capitalistas avançadas buscaram facilitar o ingresso em atividades financeiras e pavimentar o caminho para retornos mais altos. Para fazê-lo, não só iniciaram uma guerra permanente contra a inflação como também encetaram um processo abrangente de desregulamentação financeira (BRENNER, 2003, p. 86-87).

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Porém não foi só a desregulamentação financeira que os Estados intentaram, buscou também uma desregulamentação das leis trabalhistas a fim de atrais maiores investimentos, acatando cada vez mais os ideais neoliberais. No sistema neoliberal, o Estado passou a ser o principal agente que desestruturou a regulação e a gestão da força de trabalho, através de legislações e reformas trabalhistas, promovidos com a desregulamentação e flexibilização (VALENCIA, 2009), isto porque, no sistema neoliberal, a função do Estado é de garantir o bom funcionamento do mercado. Essas reformas liberalizantes, empreendidas pelos Estados nacionais, trataram de mobilizar recursos políticos e financeiros dos Estados para fortalecer os respectivos sistemas empresarias envolvidos na concorrência global, isto significa que o “o Estado não saiu de cena, apenas mudou de agenda” (BELLUZZO, 2009, p. 302). Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar padrões de governança agressivamente competitivos. Entre outros procedimentos, as empresas subordinaram seu desempenho econômico à “criação de valor” na esfera financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. [...] os acionistas exercitaram um individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custo. (BELLUZZO, 2009, p. 303).

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Aconteceu que, com a globalização neoliberal, gerou-se uma individualização das relações trabalhistas, promovendo a intensificação do ritmo de trabalho por um lado, ao mesmo tempo em que novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações em suas relações com os empregados e terceirizados. (BELLUZZO, 2009). Neste contexto, a reestruturação produtiva permitiu recuperar a rentabilidade do capital ao combinar fatores tecnológicos e organizacionais, assim como na reorganização e reconversão de setores industriais que se caracterizam pela realização de grandes investimentos em setores de ponta, ao mesmo tempo em que combinam técnicas de subcontratação, criando uma rede interempresarial. Concomitante a isso, ocorre há uma guinada da economia para o setor de serviços, e crescia mais na medida em que os salários podiam ser mantidos baixos (BRENNER, 2003). Desta maneira, os investimentos internacionais passam a predominar em detrimento do comércio exterior, moldando desta maneira, as estruturas que predominam a produção e no intercambio de bens e serviços. (CHESNAIS, 1996). Neste sentido, a internacionalização dos serviços tem a ver também com grupos industriais, que na ânsia de manter sua ascendência sobre certas atividades importantes de serviços, complementando cada vez mais as operações centrais das empresas, combinando assim as práticas de gestão empresarial oriunda da reestruturação produtiva. “Esse crescimento foi especialmente espetacular nos serviços financeiros, seguros e serviços imobiliários, bem como na grande distribuição concentrada” (CHESNAIS, 1996, p. 185).

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Os investimentos internacionais nos serviços concentram-se na natureza particular das prestações vendidas, bem como no caráter intrinsecamente imperfeito dos mercados. O papel desempenhado pelas relações de proximidade e contato direto com os clientes, na comercialização dos serviços confere aos investimentos, uma posição privilegiada na conquista e ocupação dos mercados. Para a conquista destes novos mercados e polos de acumulação, era necessário que o movimento de liberalização e desregulamentação estoura-se os limites das legislações nacionais, desta maneira conclui Chesnais (1996). Visto sob o ângulo das necessidades do capital concentrado, o duplo movimento de desregulamentação e da privatização dos serviços públicos constitui uma exigência que as novas tecnologias vieram a atender sob medidas. Atualmente, é no movimento de transferência, para a esfera mercantil, de atividades que até então eram estritamente reguladas ou administradas pelo Estado, que o movimento de mundialização do capital encontra suas maiores oportunidades de investir. A desregulamentação dos serviços financeiros num primeiro tempo; depois, nos anos 80, o início da desregulamentação e privatização dos grandes serviços públicos representam a única “nova fronteira” aberta para os Investimentos Externos Diretos. (CHESNAIS, 1996, p. 186).

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Neste sentido que o serviço nas empresas é a atividade de coerção é mais forte, neste sentido, os serviços se definem como produto de um processo interativo entre quem oferece e quem procuram, personalizando e adaptando-se as exigências dos clientes. Segundo Antunes (2010), durante este período ocorre uma expansão dos assalariados médios e de serviços, que incorporam parte do contingente oriundos do processo de reestruturação produtiva industrial e também da desindustrialização. Porém, essa incorporação vem carregada consigo de uma completa subordinação ao capital, sendo um mecanismo de reintrodução de formas mais pretéritas de trabalho20, que o capitalismo na era da mundialização está recuperando em larga escala, tais como a terceirização.

Definindo as Formas de Contratação Terceirizada Apesar de não ser um fenômeno relativamente novo, não há um consenso sobre o surgimento e o conceito “terceirização”. De acordo com Druck (1999), as transformações que ocorreram na busca pela flexibilização da produção, leva a um processo crescente de descentralização das empresas, através da externalização das atividades, assumindo diversas formas como, contrato domiciliar, empresas fornecedoras de componentes, contratos de serviços de terceiros e contratos de empresa cuja mão de obra, realiza parte da 20 Neste sentido, o trabalho por peça no qual falava Marx em O Capital é retomado nesta nova fase, bem como o trabalho domiciliar.

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atividade produtiva ou serviço, no interior da planta da contratante. (DRUCK, 1999). Assim, com estas transformações a terceirização ganha um papel central no capitalismo flexível. Destarte, a terceirização pode ser entendida como uma prática que se torna central a partir das práticas toyotistas, pois, as empresas toyotistas possuem uma estrutura muito horizontalizada, sendo que as empresas são responsáveis por 25% da produção somente, priorizando o que é central em sua especialidade no processo produtivo, transferindo a terceiros grande parte do que antes era produzido dentro do seu espaço produtivo. Assim a terceirização é ampliada no processo produtivo chamado de toyotista (ANTUNES, 2008). Conforme aponta Druck existem elementos centrais que são presentes na conceituação sobre a terceirização, “como a ideia de transferência ou de repasse a outro, a um terceiro, assim como a referência à necessária flexibilidade como alternativa para redução dos custos e para atender a ‘urgência produtiva’” (DRUCK e THÉBAUD-MONY, 2007, p. 26). Outras definições de terceirização são encontradas na literatura brasileira destacando os seguintes elementos: “transferência de atividades a terceiros, especialização, atividade-fim, parceria, foco na atividade principal”. (CARELLI apud DRUCK e THÉBAUD-MONY, 2007, p. 27). É importante salientar que a palavra “terceirização” é uma criação brasileira, publicada pela primeira vez na revista Exame na segunda quinzena de janeiro de 1991 (JORGE, 2011). Assim, apesar da subcontratação (aqui entendida como terceirização) ser um fenômeno mundial ganha contornos e características nacionais.

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Segundo o Dieese a terceirização é “o processo pelo qual uma empresa deixa de executar uma ou mais atividades realizadas por trabalhadores diretamente contratados e as transfere para outra empresa” (DIEESE, 2007, p. 5). Ainda segundo a mesma pesquisa do Dieese, a terceirização se realiza de duas maneiras não excludentes, primeiramente a empresa deixa de produzir bens ou serviços utilizados em sua produção e passa a comprá-los de outra. E a segunda maneira é a contratação de uma ou mais empresas para executar tarefas dentro da empresa contratante, como, por exemplo, o setor de limpeza (DIEESE, 2007). A busca pela flexibilização da produção e do trabalho tem levado a um processo crescente de descentralização das empresas, através da externalização de atividades. Esta externalização assume várias formas: contratos de trabalho domiciliar, contrato de empresas fornecedoras de componentes, contratos de serviços de terceiros (empresas ou indivíduos) e contratos de empresa cuja mão-de-obra realiza a atividade produtiva ou serviço na planta da contratante. (DRUCK, 1999, p. 126). Para Pochmann “a terceirização difundiu-se como elemento de modernização nas estratégias das empresas, especialmente nas de grande porte, voltadas à maximização da produtividade e da eficiência econômica no uso dos recursos produtivos” (POCHMANN, 2007, p. 1). Assim, o discurso hegemônico no meio empresarial com relação a terceirização passa ser a com-

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petitividade/rentabilidade, com a necessidade de inserção em uma nova ordem econômica mundializada, e a superação das crises econômicas. Esse discurso tem seu ponto inicial, quase como uma palavra de ordem no início da década de 90, na era da “qualidade total”, e da empresa enxuta e flexível. A terceirização pode ser considerada como um fenômeno que se generalizou para quase todas as atividades e de tipos de trabalho dentro das indústrias, no comércio, serviços, no setor público e privado. Mas para além da própria forma de reorganização da produção, a terceirização só é possível pelo fato de vir juntamente com diversas formas de (des)regulamentação da legislação trabalhista. Desta forma: Caracteriza-se como um fenômeno novo porque passa a ocupar um lugar central nas chamadas novas formas de gestão e organização do trabalho inspiradas no “modelo japonês” (toyotismo) e implementadas no bojo da reestruturação produtiva como resposta a crise do fordismo em âmbito mundial, desde as duas últimas décadas do século passado. (DRUCK e THÉBAUD-MONY, 2007, p. 28) Segundo Jorge (2011), a terceirização, enquanto um discurso hegemônico no meio empresarial tem como ponto central a busca por rentabilidade/competitividade, passando a se preocupar fundamentalmente em sua “atividade principal”, passando a transferir a terceiros a responsabilidade sobre as “atividades meio”.

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Portanto como apontam Druck e Franco, Dentre as diversas definições de terceirização – cujos principais aportes vêm das áreas de administração, economia e sociologia [...] há elementos comuns nos conceitos utilizados, como a ideia de um ‘repasse’, de ‘transferência’, de ‘especialização’ e de ‘flexibilização’ (DRUCK & FRANCO, 2008, p. 84). Existem dois tipos de terceirização comumente utilizada, o primeiro tipo se refere a “atividades externas” ou “secundárias” ao processo produtivo, também definido como “terceirização-base”. Este concentra-se na dita atividade-meio do circuito de produção de bens e serviços. Segundo Pochmann (2007, 2008), a empresa que oferece a atividade-meio, geralmente não é parceira da empresa contratante, mantendo um contrato formal geralmente de longo prazo, já que, atendem a atividades importantes, porém “não essenciais” ao funcionamento do conjunto da cadeia de produção. Dentre essas atividades encontram-se, tarefas de segurança, transporte, limpeza e conservação, manutenção, etc. Já o segundo tipo, refere-se as “atividades internas” ou “primárias” ao processo produtivo. Chamado também por “superterceirização da mão de obra” (POCHMANN, 2007, 2008), ou seja, na “superterceirização”, as principais atividades constituem o núcleo da cadeia produtiva, atendendo a tarefas e funções de produção, vendas, logística, organização, supervisão, gerência, etc.

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Desta maneira, pode-se apontar que a terceirização pode atingir todos os estágios do processo produtivo, garantindo uma rede de contratação e subcontratação, semelhante ao regime toyotista, conforme já apontamos acima. Essas iniciativas não deixaram de provocar mudanças organizacionais e de gestão de trabalho. Entre elas, ganharam maior dimensão os movimentos vinculados a subcontratação e terceirização de mão de obra, à desverticalização das empresas, à focalização da produção, entre outros, que ficaram responsáveis pela ampliação da externalização de partes do processo produtivo (POCHMANN, 2008, p. 51). Assim, em meio ao complexo de reestruturação produtiva, que dentre outros, permitiu a expansão das novas técnicas organizacionais, bem como a expansão do setor de serviços e a terceirização, é possível apontar agora a maneira como a terceirização passou a ser adotada no Brasil principalmente ao longo da década de 90.

Reestruturação dos Serviços e Avanço da Terceirização: a década de 90 no Brasil As transformações das relações de trabalho pelo qual passou o Brasil nas últimas décadas, caracterizado pela flexibilização do trabalho nas relações de emprego alterou

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profundamente as relações de emprego, sobretudo a partir da década de 90 (KREIN, 2007). Soma-se a isso um acirramento de crise econômica, abertura comercial e financeira, reestruturação e reformas do Estado, reestruturação produtiva e neoliberalismo. Nos anos 90 de acordo com Krein (2007) “inicia-se um período de hegemonia das teses flexibilizadoras e, nos primeiros anos do século XXI, essa hegemonia perdura.” (Idem, p. 25). Assim, podemos ver que a principal forma de flexibilização da contratação se dá por meio das formas terceirizadas de contratação21. O movimento de terceirização ganha força no Brasil durante a década de 90 em meio ao complexo movimento de reestruturação produtiva, avançando rapidamente após a implantação do Plano Real, encontrando elementos associativos a semi-estagnação da economia nacional, baixos investimentos, diminuta incorporação de novas tecnologias, abertura comercial e financeira e desregulamentação da competição intercapitalista. Assim, o movimento de terceirização da força de trabalho, impõe uma nova dinâmica no interior do mercado de trabalho brasileiro. Desde 1990, com o abandono do projeto de industrialização nacional, o regime e as formas de contratação de trabalho sofreram importantes modificações, que atenderam, em grande medida, ao movimento de acirramento da competição intercapitalista. Desta maneira, a abertura comercial e financeira impôs generalizadamente 21 É possível afirmar conforme o autor “que a terceirização se constitui na principal forma de flexibilização da contratação, a partir dos anos 90, no Brasil” (Idem, p. 188).

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ao setor produtivo a flexibilização dos contratos de trabalho, uma vez que as empresas adotaram novos procedimentos de desverticalização das atividades anteriormente concentrada na grande empresa (POCHMANN, 2008). Frente às incertezas do ambiente macroeconômico prisioneiro do reduzido ritmo de expansão da produção, ganhou importância a terceirização no emprego da mão-de-obra no Brasil. Associada à vigência de políticas de desregulamentação do mercado de trabalho, a terceirização se mostrou fortemente redutora dos custos de trabalho (diminuição sociais e trabalhistas). (POCHMANN, 2008, p. 17). A terceirização no Brasil se desenvolve de forma desigual. A concentração maior se dá principalmente nos Estados da região Sudeste não por acaso, é a região considerada mais dinâmica e avançada economicamente, seguida da região Sul, conforme mostra o gráfico abaixo. Segundo Pochmann em uma pesquisa encomendada pelo SINDEEPRES, intitulada de “Modalidade Empresarial na Terceirização da Mão de Obra” lançada no ano de 2011, apontou a variação das empresas terceirizadas nas cinco regiões brasileiras22. 22 Os próximos dados e gráficos que se seguem foram extraídos da pesquisa realizada por Pochmann, a pedido do Sindicato dos empregados m empresas de prestação de serviços a terceiros. Todas as pesquisas estão disponíveis no site: www.sindeepres.org.br. Devido ausência de dados

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Gráfico 1: Evolução das Empresas de Terceirização segundo as regiões.

Fonte: POCHMANN, SINDEEPRES, 2011a.

Se for analisada somente a Região Sudeste, discriminando cada Estado, é possível ver que, a variação é muito grande de um Estado para outro, conforme mostra o gráfico abaixo:

do ano corrente, utilizamos como base para nossa discussão os dados apresentados nas pesquisas publicadas no ano de 2011.

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Gráfico 2: Evolução das Empresas de Terceirização no Sudeste.

Fonte: POCHMANN, SINDEEPRES, 2011a.

Conforme sugere mostra o gráfico, mesmo a região Sudeste sendo a principal região, em concentração de empresas terceirizadas, o Estado de São Paulo lidera a estatística, com uma grande diferença com relação aos demais Estados. O salto se dá, sobretudo, após 1995, em meio a um processo de proliferação da reestruturação produtiva, bem como a expansão de um “toyotismo sistêmico”, gerando cada vez mais, um esquema de rede de empresas nas quais se especializam em sua atividade principal. É importante notar que esse crescente número de empresas terceirizadas, se dá principalmente com o crescimento de serviços auxiliares de atividades econômicas, responsáveis por 49,5% do total de empresas terceirizadas seguido pelo setor de serviço de limpeza e conservação, com 7,1%. Os gráficos que se seguem são de dados de empresas terceirizadas somente do Estado de São Paulo.

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Gráfico 3: Evolução das Empresas de Terceirização por setor de atividade.

Fonte: POCHAMNN, SINDEEPRES, 2011a.

Além disso, o crescimento se deu em grande parte por conta do aumento do número de empresas sem empregados. Segundo reportagem publicada no jornal eletrônico, Folha. com, na seção de classificados, no dia 08/08/2011, intitulada de “Terceirização move setor de limpeza”23, o setor de limpeza é o grande responsável pelo crescimento do setor, que no ano de 2010 faturou cerca de 15,2 bilhões. Ainda segundo a matéria publicada, os principais fatores que impulsionam o crescimento do negócio são: expansão do setor e da terceirização; baixo investimento inicial; processo pouco burocráti23 Matéria disponível em: http://www.folha.com.br/ne955560. Acesso em: 17/03/2012.

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co para a abertura do empreendimento; o fato da limpeza ser um serviço cuja demanda é contínua; a abertura do negócio pode ser feita com apenas um funcionário. O que chama a atenção nessa reportagem é o alto valor que o setor faturou, porém, será que esse faturamento implica em melhorias nas condições dos trabalhadores terceirizados? Seja em ganho real de salário, seja no combate a precarização dessa forma de trabalho? Como é possível ver no gráfico que se segue, o número de empresas terceirizadas sem empregados cresceu a partir do ano de 1994, refletindo inclusive no baixo rendimento inicial e na possibilidade de abrir o negócio com um funcionário. Gráfico 4: Evolução das empresas de terceirização sem empregados.

Fonte: POCHMANN, SINDEEPRES, 2011.

Portanto, é possível identificar no caso brasileiro, que as formas de contratação terceirizada passam a ser amplamente utilizadas no contexto de reestruturação produtiva, pelo qual o país passa ao longo da década de 90. Assim como um desejo de disciplinar a classe trabalhadora, a terceirização é visto como uma forma racional para redução de custo empresarial, em meio a um processo de aberturas comerciais e

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financeiras numa economia mundializada, desta maneira, a convergência desses movimentos resulta na ampliação das formas de contratação terceirizadas.

Conclusão: Superexploração e Intensificação do Trabalho Frente ao que foi exposto até aqui, é possível notar que a expansão da terceirização está intimamente ligada ao processo de reestruturação produtiva, conforme se intentou mostrar ao longo deste trabalho. Como os resultados das crises não são determinadas de antemão, já que, as ordens resultantes serão produtos das lutas entre as classes envolvidas, é possível analisar, em uma perspectiva histórica que, após a “crise estrutural”, a correlação de forças tendeu a ser mais favorável aos capitalistas, que conseguiram não só reestruturar a produção, como também, fragmentar ainda mais a já fragmentada classe trabalhadora através da consolidação das formas de contratação terceirizadas. Desta maneira, a mudança na organização do capital, acompanhada pela ofensiva sobre o trabalho, permitiu aos capitalistas saírem da crise dos anos 70. Sob as bases postuladas pela mundialização do capital para a recuperação da economia capitalista, segundo Valencia (2009), homogeneizou-se a tendência a superexploração do trabalho. A correlação entre modernização tecnológica e produtiva, por um lado, e incremente da exploração do trabalho, por outro, explica os fenômenos da recente fase de acumulação capitalista, que tem como características o

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desemprego, o subemprego, a precarização do trabalho a exclusão social, bem como o aprofundamento das formas de contratação terceirizadas, e a extensão da pobreza nos países centrais e periféricos da economia capitalista. (VALENCIA, 2009). Assim, as condições dos mercados de trabalho mudaram com a aplicação das políticas de ajustes neoliberais, aliada a reestruturação ocorrida a partir da década de 80, tendo como premissa uma reforma trabalhista, sobrepujando as possibilidades de resistência operária classista, de tal maneira que, no capitalismo mundializado e neoliberal, há uma clara associação e colaboração dos governos e classes burguesas. A atual fase da economia mundial no seu estágio de globalização-mundialização do capital está transformando este mapa internacional das nações que correspondem à divisão internacional do trabalho e à distribuição do capital. Tal processo beneficia a estratégia empresarial transnacional, global, da tríade hegemônica, ao depositar o peso da crise histórico dos impérios sobre os trabalhadores e povos oprimidos. [...] Além disso, debilita e desarticula os sistemas produtivos pela ação corrosiva da crise capitalista, de desestabilização política, da desindustrialização [...] ao mesmo tempo em que reforça a dependência comercial, científico-tecnológica e financeira. (VALENCIA, 2009, p. 58).

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Portanto, a superexploração do trabalho converte-se na peça chave dos novos sistemas de organização do trabalho, se projetando na economia internacional através da homogeneização dos processos tecnológicos, da crise, da automatização flexível, das inovações tecnológicas, da flexibilidade do trabalho (terceirização) e das recorrentes crises financeiras.

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