Er Aula 01

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Espiritualidade do Rosário – Aula 1 Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor.

Antes de falarmos dos mistérios do Rosário, a primeira coisa a fazermos é tentar entender esse tipo de oração. É um tipo de oração em que repetimos várias orações numa forma esquemática e repetitiva. Eu acho que já explicamos bastante o porquê de repetirmos as mesmas orações. O primeiro motivo é que não são quaisquer orações que vamos repetir. Nós não repetimos as nossas orações pessoais todos os dias ou dez vezes no mesmo dia. Quando tem um pedido, você o faz para Deus. Passado um tempo, você sabe que Ele já ouviu o seu pedido e já avaliou o quanto ele é importante para você, então você não vai continuar repetindo. Mas o Rosário, assim como o Saltério, é um tipo de oração repetitiva que temos de repetir no curso de toda a nossa vida. Isso quer dizer que não é qualquer oração. Todas as orações repetidas ali são reveladas, todas saem das Sagradas Escrituras. Então, primeiramente, elas são palavras de Deus, e nós as repetimos porque temos de assimilá-las. Em certo sentido, elas contêm o molde daquilo que somos. Já explicamos que o uso da linguagem é uma espécie de resumo da identidade humana, porque assim como nós a fala tem um aspecto corporal. Há o som que produzimos, uma postura, uma atitude corporal e um tempo que é despendido ao falarmos. Então o nosso corpo está na nossa fala. Também a fala tem significado, então a inteligência está envolvida quando falamos. Nós fazemos isso livremente: falar é escolher palavras para expressar pensamentos, então ela sempre é livre. Falamos que as pessoas têm direito à livre expressão porque a expressão só é expressão se for livre. Quando o outro escolhe palavras para você, querendo expressar pensamentos que não são seus, é evidentemente que você não está falando nada. O som está sendo produzido, mas não é você quem está falando, porque ali não são os seus pensamentos e palavras. Esta é a idéia da oração repetitiva: as palavras dali têm um conteúdo indefinidamente maior do que eu. Nada do que compreendemos muito bem merece ser repetido indefinidamente. Por exemplo, não tem sentido uma pessoa ficar repetindo a palavra “sapato”, porque ela já entendeu que sapato é sapato na primeira vez. Mas quando se trata das Sagradas Escrituras, existem passagens que são como chaves para a compreensão do que é o ser humano, de todo o potencial que existe em nós e do que é Deus. Então, por um lado, se trata do seguinte: queremos assimilar uma palavra divina, e o conteúdo da palavra divina é o próprio Deus. Portanto, podemos nos lembrar disso inúmeras vezes, mas sempre vai ter alguma coisa para descobrir ali. Por outro lado, o conteúdo da vida não somente é indefinido como ela própria é um processo de crescimento — viver é estar o tempo todo num processo direcionado de transformação. Podemos considerar os ciclos da natureza sem a vida, abstraindo-a. Em todo o sistema solar, sabemos da existência de vida somente na Terra, então imaginemos que nela não há vida. O universo continua sendo um processo contínuo de transformações e mudanças; os planetas continuam girando em torno do Sol; continua existindo calor e frieza, de modo que os dias esquentam e as noites esfriam; os asteróides continuam caindo nos lugares; os processos físicos e químicos continuam acontecendo. Tudo isso é uma mudança incessante, e essa mudança segue regras fechadas. Com

“regras fechadas” eu quero dizer o seguinte: até onde se sabe, os processos químicos que são possíveis hoje são os mesmos que eram possíveis há bilhões de anos, e são os mesmos que continuarão sendo possíveis daqui a outros bilhões de anos. Mas existe a possibilidade de eles variarem. Se isso acontecer, não vamos pensar que o universo virou um processo aberto de transformações. É mais natural pensarmos que existe alguma lei natural ainda desconhecida por nós, que muda a possibilidade de mudanças físicas e químicas. Ou seja, ao considerarmos o universo nos esquecendo da vida que há nele, vamos perceber como está no Eclesiastes: “Não há nada de novo sob o Sol”. Tudo é uma repetição constante de ciclos. Essa expressão é análoga à idéia budista do Samsara, uma série incessante de ciclos de criação e destruição, geração e corrupção das coisas. Uma coisa aparece e depois desaparece, então outra coisa igual aparece para em seguida desaparecer, e assim por diante. Essas coisas realmente são iguais e equivalentes. Por exemplo, há bilhões de anos surgiu determinada galáxia, mas em outro momento ela deve desaparecer, para surgir outra com as mesmas propriedades físicas e químicas no seu lugar. Isso é um equivalente real. Mas se acrescentarmos a esta equação a vida consciente — os animais e os seres humanos —, a equivalência começa a desaparecer, porque nos animais e no ser humano existe um elemento chamado “consciência”. Através dela percebe-se o mundo. Embora outra pessoa também o perceba, o testemunho a partir do ponto de vista dela não substitui o seu testemunho. Isso é bastante evidente na nossa interação com as outras pessoas. Se você sai para comprar uma coisa e não tem idéia do quanto essa coisa normalmente custa, de qual é o melhor preço que se pode obter agora, você não vai simplesmente acreditar na primeira pessoa que aparecer. Ao chegar à primeira loja, o sujeito te dá um preço e você pensa que aquilo pode estar muito caro ou que este é o melhor preço possível, mas você não sabe. Na sua consciência pode haver razões para você confiar no testemunho dessa pessoa. Por exemplo, você já conhece e faz negócio com ele há bastante tempo, e por isso acredita que esteja te dando um preço razoável. Ou seja, a consciência que ele tem não substitui a sua. É por isso que é muito estranho e artificial para nós mesmos dizermos que a história humana é só uma repetição. É claro que existe alguma analogia entre todas as biografias humanas. Muito provavelmente os problemas que você enfrenta, as dificuldades que encontra e as alegrias que tem na vida são semelhantes às experiências pelas quais as outras pessoas passaram. A vida delas é semelhante à sua e à minha. Porém, ainda que sejam semelhantes, essas vidas não têm o meu testemunho. Eu não as vivi, e nelas nada percebi, vi ou senti. [0:10] Por outro lado, quando uma estrela desaparece e outra aparece no seu lugar, se tiver propriedades físicas e químicas semelhantes às da anterior ela será um equivalente exato, de modo que nada foi completamente perdido. Aquela estrela pode ser reproduzida igualmente, você não. Quando você morrer, um testemunho terá desaparecido do mundo. E ao desaparecer ele não pode ser recuperado. Tudo o que teríamos dele seria a lembrança de outras pessoas a seu respeito, o testemunho delas sobre algumas coisas que você fazia, pensava ou sentia, algum registro de coisas que você tenha escrito ou gravado e os efeitos das suas ações. Por ter uma consciência, o seu testemunho é único, e a partir dela você tem propósitos e objetivos. Por isso, as mudanças na sua vida não são apenas uma sucessão de transformações análogas que podem ser repetidas. A sua consciência está presente no mundo dentro de um ciclo natural, que vai desde a sua concepção até a sua morte. Então o seu organismo serve de suporte para essa consciência num único ciclo. Depois disso, ele não serve mais para você estar aqui e testemunhar o mundo. É natural perguntar-se: “o que eu ganho com esta vida?” Quando deixar de existir, um sistema solar não irá se perguntar o que terá ganhado com isso. É apenas uma estrutura material que deixou de existir, e pelas leis da natureza essa estrutura pode tornar a existir de maneira perfeitamente análoga. Em certo sentido, um sistema solar idêntico ao que existia previamente é o mesmo sistema solar ressurgido em outro lugar, porque ele não tem um testemunho e uma vida interior que deveriam estar em continuidade com ele, enquanto que os seres humanos são diferentes. Às vezes

eles nascem simultaneamente ou com um período de diferença muito pequeno, no caso de gêmeos. Por mais que sejam muito parecidos, a consciência deles é única em cada um. O testemunho que cada um têm da realidade é totalmente único. Isso quer dizer que, quando percebemos que testemunhamos o mundo, queremos encontrar um propósito para isso, queremos chegar a um ponto. Ninguém quer terminar a sua vida e dizer para si mesmo: “a minha vida foi apenas uma série de dias e noites”. Não, queremos obter algum resultado. Como o que faz alguém único é a sua consciência, o seu testemunho da realidade, o único resultado significativo que se pode obter é o que está na sua consciência. Por exemplo, você pode falar que enriqueceu as nações, criou uma família maravilhosa e educou bem os filhos, de modo que eles se tornaram ótimos seres humanos, mas qualquer coisa que você tenha feito e que subsiste principalmente fora de você mesmo pode não te ser tão significativo, ainda que possa ser muito significativo para o mundo. Então não se trata do valor disso para o mundo, para a sociedade, para a história ou para os outros seres humanos, porque isso pode não te ser tão significativo quanto o que fica dentro de você mesmo, mas do resultado obtido na parte do seu ser que é única, a consciência. As suas boas realizações no mundo lhe são boas porque você as testemunha como boas. A necessidade de progresso ou obtenção de um resultado já aparece nos vegetais. Nas Sagradas Escrituras, muitas vezes eles são usados como símbolo disso. Um vegetal é como um pré-animal, porque ele já é vivo. O que diferencia a vida das outras transformações é justamente isto: ela tem um propósito. A vida não avança do igual para o igual, mas do menos para o mais; de uma semente para uma árvore que gera centenas de sementes. Então no vegetal a vida já é um processo de avançar do menos para o mais. Shakespeare dizia: “Ripeness is all”. Ripeness quer dizer a maturidade do fruto, a sua plenitude. O fruto maduro é algo que está perfeito e pleno, e a diferença entre ele e o fruto verde é tanto visual quanto gustativa. Há uma diferença de aparência entre o fruto verde e o maduro, assim como há uma diferença de gosto: os frutos maduros tendem a ser agradáveis ao paladar, enquanto que os verdes tendem a ser desagradáveis. O fruto geralmente é saboroso para os animais que o consomem; atraente, pela sua cor que se destaca daquele oceano verde; fértil, uma vez que contém as sementes de onde vão nascer outras árvores e outros frutos. Ele é um símbolo da plenitude da vida. No começo do Gênesis, está escrito que haviam dois frutos no Paraíso que se destacavam dos demais. Apesar dos outros frutos, dois deles eram principais: um era da Árvore do Conhecimento, o outro da Árvore da Vida. Se o fruto representa a perfeição, consumação ou plenitude de alguma coisa, então o fruto da árvore da vida representava a plenitude da vida enquanto tal. Caso alguém comesse aquele fruto, se tornaria imortal. Todo fruto dá algum tipo de vida, porque alimenta. O fruto da Árvore da Vida representava o fruto dos frutos, ele era o mais excelente. Se alguém o obtivesse, a sua vida seria imortal. O que é a plenitude da vida humana? É a capacidade de testemunhar Deus e reconhecê-Lo tal como Ele é. Notem que a plenitude da vida humana não é [0:20] o ato de testemunhar Deus, mas a plena disposição para isso. Deus colocou Adão no Éden e não lhe deu o fruto da Árvore da Vida. Ele o mostrou e disse: “continua aí, daqui a pouco você vai ter este aqui”. Deus não lhe deu a plenitude espiritual, não deu o conhecimento de Si mesmo, mas deu uma situação ideal para obtê-la. A situação de Adão era a seguinte. Ele tinha uma existência materialmente perfeita e também um corpo perfeito. Assim, ele não teria doenças, não sofreria o envelhecimento e nem a morte. Também, não haveriam sofrimentos excessivos. Nós tendemos a conceber o Éden de modo que todas as sensações ali eram agradáveis, mas os autores o descrevem de maneira diferente. Uns dizem que as sensações não eram todas agradáveis. Haviam algumas que eram desagradáveis, mas elas não o eram a ponto de perturbar e ferir Adão. Adão também tinha a experiência do agradável e do desagradável, mas numa medida moderada que não o feria. Ao ser expulso do Paraíso, uma das

suas punições é que o mundo em que ele vive vai passar feri-lo. Ele vai encontrar espinhos que o cortarão, e o fruto vai ser difícil de obter. A sua existência era livre do sofrimento numa medida intolerável, mas a nossa existência não é livre desse sofrimento. Podemos sentir dor e tristeza para além do que somos capazes de suportar, envelhecemos, ficamos doentes e morremos. A morte é a indicação mais clara de que existe algo errado com a existência terrestre. Ela é imperfeita e uma hora vai acabar. Como não basta ter uma existência perfeita, outra coisa que Adão tinha era uma inteligência limpa. Ele era capaz de captar aquele ambiente da maneira mais clara possível. Se Adão tivesse apenas uma existência perfeita, muitas vezes veria como boa uma coisa que é má e veria como má uma coisa que é boa, então se confundiria. A nossa inteligência é bastante limitada, muitas vezes nós interpretamos mal os fatos e situações. Mais ainda: não bastava que a sua existência e a sua inteligência fossem ideais, era preciso que a sua vontade também fosse plena e perfeita. Às vezes, a situação nos é favorável e discernimos o melhor curso de ação, mas temos preguiça, medo ou irritação, e a nossa vontade não é capaz de imperar completamente, então somos submergidos no conflito passional que há dentro de nós. A nossa vontade não é forte o bastante. Muitas vezes na vida dizemos: “eu sei que devia ter feito aquilo e sei que devia ter feito naquela hora, mas não aguentei e não consegui”. A vontade que foi fraca, não foi uma falha da inteligência. Você tinha entendido o que era melhor fazer, mas a vontade não conseguiu imperar sobre a alma. A vida sempre persegue um ideal. Ela tenta chegar a um ponto que deve ser melhor do que o ponto de partida. Para o ser humano, o ponto de chegada ideal é mais ou menos aquilo que no Gênesis foi o ponto de partida: ter a maior inteligência possível sobre a situação, a condição física mais favorável e o máximo domínio da vontade. Qual é a melhor vida natural possível? Eu não me refiro aqui ao Paraíso, porque o Paraíso, Céu ou visão beatífica é o meta-propósito da vida humana. Se tivermos a máxima inteligência, liberdade e domínio da vontade, e também a melhor circunstância física, qual é a melhor coisa que pode nos acontecer? Qual é o nosso melhor destino possível? É encontrarmos Deus, Deus gostar de nós e nós gostarmos d’Ele. Mas esse resultado está muito mais fora de nós do que em nós mesmos. Deus pode não nos prometer que teremos o Céu, mas pode nos prometer que viveremos indefinidamente. Essa era a condição de Adão, ele tinha todo o tempo do mundo para resolver os seus problemas, porque não iria morrer, ficar velho e nem doente. Deus deixou a sua inteligência limpa, de modo que ele tinha a maior capacidade intelectual possível, então ele não podia se enganar ou confundir facilmente. Também, ele tinha muito domínio da vontade. Tudo isso por si só já é um objeto de aspiração, mas não quer dizer que vamos ganhar o Céu ou a visão beatífica. E se não tivermos o Éden, também não é garantido que veremos Deus. Então queremos o Éden e pedimos por ele, porque isso já melhora muito a nossa vida. O Céu é uma participação nossa na vida divina, por isso é um meta-propósito da vida humana. Quer dizer que ele é a última coisa que falta para alguém que já tem uma vida humana perfeita. Se já tivéssemos uma vida humana perfeita, a que poderíamos aspirar? A Deus. Usaríamos todos os instrumentos disponíveis para chegarmos a Deus. Porém, somos menos do que Deus e Ele não é o efeito natural de uma vida. Não existe nenhum ser — seja natural, como os vegetais e animais, incluindo os seres humanos, seja sobrenatural, como os anjos — cuja vida, ao ser desenvolvida ao máximo, tenha Deus como resultado. É por isso que toda a tradição cristã diz que a salvação e a visão de Deus são uma graça que não pode resultar nem mesmo de um esforço perfeito. O que pode resultar do esforço é a nossa vida se aproximar da vida que Adão tinha no Éden, o que já é uma tremenda vantagem, uma vez que a sua vida corpórea era melhor. [0:30] É bem evidente que os santos toleravam o sofrimento muito melhor do que os outros. Imaginem uma medida: para além disso o sofrimento nos é intolerável, mas para o santo a medida é maior. Por

essa medida ser maior, a vida do santo é melhor do que a nossa. Não é que aconteçam menos coisas sofríveis para ele, mas as coisas que nos costumam ser intoleráveis, para o santo estão dentro da medida tolerável de sofrimento. Diante delas ele diria: “a vida é assim mesmo, seguimos vivendo”. Na Terra e no Éden o ser humano vai experimentar o prazer e o sofrimento, o que o encaminha para um crescimento no entendimento. Crescer em entendimento é algo muito importante para o ser humano, assim como crescer na força de vontade e tornar-se mais livre. Todos os pais sabem disso, por isso não se pode falar “sim” para uma criança em tudo, porque senão estariam educando-a mal, não estariam a prepará-la para se tornar um bom ser humano, estariam atrofiando a capacidade da paciência. A capacidade de suportar as dificuldades é muito importante. Em certo sentido, podemos dizer que há um elemento de impaciência no pecado de Adão e Eva. Quando a serpente diz “se comerem deste fruto, vocês serão como Deus”, significa que eles vão participar da vida divina, mas em momento algum Deus prometeu que eles chegariam a isso. Eles tinham convivência com Deus no Paraíso, se fossem pacientes poderiam persuadi-Lo a lhes dar a participação na vida divina, poderiam convencê-Lo, negociar com Ele. Ele os criou e colocou ali, então em alguma medida devia gostar deles. Era preciso ter paciência. Porém, eles não sabiam quando Deus lhes daria isso e se daria. Também, eles não tinham cara para pedir, eles tinham vergonha. Isso é uma coisa que as pessoas de hoje não pensam, mas que é muito evidente na tradição bíblica: teríamos vergonha diante de Deus; há muitas coisas que queremos pedir a Ele, mas nos sentiríamos envergonhados demais e não conseguiríamos sequer pedir. Se sentimos isso diante de uma pessoa importante, imaginem diante de Deus. Nos sentiríamos oprimidos pela nossa própria vergonha. Certamente Adão imaginou que ser como Deus era uma coisa muito boa, mas ele pediria isso? Não, porque tinha vergonha. Daria trabalho pedir para Deus, então cabe tentar criar uma situação que o ajude a superar essa vergonha, fazer alguma coisa que talvez agrade a Deus, que é se desenvolver. Ele vai tirar o máximo de proveito da sua inteligência, da sua vontade e dessa existência. Ele mesmo tem de se tornar um fruto maduro e perfeito para ter alguma cara de chegar para Deus e pedir: “me dê aquilo que eu sei que não mereço e que tem um valor acima do que eu sou”. O desejo de corresponder é evidente. Quem tem criança sabe que as crianças não têm a cara de pau de pedir aos pais tudo o que elas querem, a menos que sejam muito novinhas. Eu me lembro de quando éramos crianças, queríamos dinheiro para ir ao cinema e pedíamos à nossa mãe para fazer um café, então o levávamos para o nosso pai. Quando ele já estava tomando o café, pedíamos o dinheiro. Nós costumamos fazer alguma coisa cujo valor sabemos não equivalente, que pode não garantir que teremos aquilo que queremos obter, mas isso é uma propiciação. A única coisa que tinha para Adão aspirar era a idéia de ser como Deus., porque ele não tinha nenhum dos problemas que temos na vida. Mas nós temos um monte de problemas — problemas econômicos, problemas com as outras pessoas, problemas dos nossos defeitos etc. —, e a superação de cada um deles é um pequeno propósito que nos move. Amanhã não será igual a hoje, porque amanhã talvez tenhamos vencido esse problema. A vida não é uma sucessão vazia de dias, porque estamos superando problemas e dificuldades. Para Adão, todos esses problemas já estavam resolvidos, então ele tinha de achar outro propósito para a sua existência. O único que restava era Deus. Adão não conhecia por dentro a vida divina, uma vez que a visse somente de fora, mas conhecia Deus muito melhor do que os seres humanos de hoje, conforme diz o versículo: “ele ouvia os passos de Deus caminhando no jardim”. É como acontece entre nós e as outras pessoas: eu conheço alguém de fora, por isso não sei como é estar na sua pele, eu não sei o que é a sua vida interior. Como é ser a outra pessoa? Isso é algo difícil de saber. Precisamos fazer um esforço imaginativo, mesmo que se trate de seres da mesma espécie que nós. A maior causa de ruína dos matrimônios é que os homens não têm a menor idéia do que é ser mulher e as mulheres não têm a menor idéia do que é ser homem. Ninguém nunca se viu na outra

pele. Ainda que até isso seja colocado em dúvida, hoje em dia, é óbvio que numa ambiência normal todo o mundo sabe perfeitamente o que é um homem e o que é uma mulher. A visão é mais do que suficiente para nos dizer, com exceção de um ou dois casos. Outro dia eu estava vendo o vídeo de um rapaz inglês, bem novinho, e cheguei à conclusão de havia 60% de chance que fosse um rapaz, porque a voz era muito fina, o seu cabelo era bastante comprido e ele usava roupas largas, de modo que não era possível ver a forma do corpo. De vez em quando aparecem casos em que não temos certeza. Mesmo em casos assim, a idéia do masculino e do feminino não está confusa na nossa cabeça, porque sabemos de fora quais são as diferenças — ainda não é conhecê-las de dentro. Como isso modifica [00:40] o testemunho que temos da realidade? Podemos pensar em casos onde a diferença é maior. Por mais que a diferença entre homens e mulheres seja grande, ainda são criaturas da mesma espécie. Você pode tentar entender o seu cachorro. É fácil saber o que ele faz e quais são as coisas que o alegram, bem como as que o entristecem. Porém, imaginar os movimentos psicológicos interiores segundo os quais certas coisas o agradam ou desagradam é algo mais complicado. A idéia de ser como Deus era tentadora porque Adão se perguntava: “Como é estar lá dentro? Como Deus é interiormente? Como Ele pensa e de onde Ele tirou a idéia de criar o mundo e as pessoas? Por que existem pessoas boas e pessoas más?” Tudo isso são atos de liberdade. O único jeito de entendê-los é conhecer a “psicologia” de Deus e viver as mesmas inclinações d’Ele, é conhecê-Lo de dentro, é ser Ele — pelo menos um pouquinho. A aspiração das pessoas perfeitas é conhecer Deus. Para isso é preciso ser maximamente perfeito. Se em certo sentido era algo impossível para Adão, então é completamente impossível para nós. Após a Queda, o primeiro problema do homem é a falta de tempo para pensar nas questões fundamentais da vida humana, compreendê-las e agir de maneira reta. Não há como esperar por essa compreensão para depois começarmos a agir no mundo. O ser humano tem apenas sessenta ou setenta anos de vida adulta. Na infância, ele desenvolve as habilidades para ser adulto. Depois disso, sobram sessenta ou setenta anos para se tornar um ser humano perfeito, com uma vida perfeita e excelente. É muito pouco tempo, por isso a tarefa tem de ser simplificada por alguém que já teve o seu domínio completo e que possa resumi-la em instruções muito simplificadas, para obtermos o domínio mínimo e indispensável para essa perfeição. Este mínimo indispensável não é algo que estamos sentindo agora. Por exemplo, quem está ouvindo a aula deve pensar: “Talvez este realmente seja o primeiro propósito da vida humana e o mais natural, ter a possibilidade de usar uma inteligência perfeita, uma vontade perfeita e uma existência perfeita”. Primeiro é preciso alcançar o máximo dessa possibilidade, e depois, tendo essas ferramentas, direcionar tudo ao máximo objetivo possível da vida humana: participar da vida divina. Isso é um grãozinho microscópico dessa vida. Ter o conceito correto e a idéia de qual é o propósito da vida já é o primeiro passo na direção de alcançar este propósito. Podemos ter uma grande amostra disso numa experiência mística, mas ela por si não muda o curso de uma vida. Uma experiência mística cria um efeito profundo que vai se estender para o resto da vida, mas pode não ser suficiente. O ser humano tem setenta anos de vida adulta, e mais importante do que obter uma grande experiência agora é obter os meios para o resto da existência — a existência depois da morte —, para que nela estejamos efetivamente livres para alcançar a perfeição e o meta-propósito, que são a participação na vida divina. A religião é basicamente isso. Ela não é um negócio que serve necessariamente para obtermos esse efeito agora. O primeiro objetivo dela é garanti-lo para nós indefinidamente, é abrir essa porta. Aluno: Nesse sentido, a religião existe para criar uma inércia interior? Luiz Gonzaga: Exatamente. Vamos imaginar esta inércia no seguinte sentido: se os destinos depois da morte fossem lugares no cosmos e a diferenciação entre eles fosse espacial, a religião não

serviria para chegarmos ao lugar favorável, mas para nos colocar em direção a ele, ou pelo menos numa direção semelhante, para não desmontarmos na hora em que Deus nos empurrar subitamente ao lugar favorável depois da morte. É como correr com um automóvel e bater na parede. As forças físicas querem empurrar o motorista em outra direção e ele vai ser esmigalhado no processo. Em certo sentido é a mesma coisa. Como a vida tem uma direção, que é um propósito espiritual, temos de estar mais ou menos nesta direção, porque no curso da vida estamos acumulando velocidade em certa direção. Todos os dias procuramos uma direção e aceleramos a nossa vida. Se a direção for muito errada, a morte será como bater numa parede de concreto. Mas se estivermos numa direção certa ou pelo menos razoavelmente certa, a morte será apenas um súbito impulso que confirma essa direção. Ainda sentiremos um tanto, mas como já estávamos indo por ali mesmo, não é nada de estranho. Esse é o primeiro propósito da religião. O segundo propósito é abrir a possibilidade para um súbito desenvolvimento nessa direção, em qualquer momento da biografia terrestre. Essa é a diferença de uma pessoa que pratica a religião de forma perseverante — oração, jejum e esmola — e cumpre os mandamentos. Ela decide praticar porque quer estar numa direção adequada ou pelo menos que não seja completamente inadequada para o final. Porém, outra pessoa pode se esforçar na criação de oportunidades que a levem para um súbito avanço na sua prática da religião. [0:50] É que nem dois sujeitos que trabalham no mesmo emprego, um sendo um bom funcionário, ciente das suas tarefas e deveres, cumprindo-os escrupulosamente, enquanto que o outro, fazendo a mesma coisa, sempre procura oportunidades de promoção. Este não irá se preocupar apenas em realizar as suas tarefas escrupulosamente, mostrando ser um bom funcionário, mas também em mostrar ser um funcionário excepcional, de modo que entregar a ele somente aquelas tarefas seria um desperdício. Então ele vai fazer hora extra, vai se oferecer para fazer outras coisas, vai perguntar sobre o trabalho e vai mostrar o serviço ao chefe, tentando criar outras oportunidades de trabalho. Ele tem um pouco de pressa e quer avançar. Não apenas avançar, mas sentir claramente que tem o compromisso. Essas são duas maneiras de praticar a religião e as duas são perfeitamente válidas. É crucial, uma questão de vida ou morte. Uma depende de uma disposição psicológica, de o sujeito pensar: “eu quero um pouco disso antes”. Num certo sentido, a pessoa está tentada pelo bem. O que ela pode fazer nessa condição? O sujeito que quer uma promoção não pode ser muito diferente do outro, que prefere ficar estável ali. Primeiro ele tem de fazer exatamente as mesmas coisas, para depois fazer algumas coisas a mais. Mas não muito a mais — não há tanto tempo para isso. Ele já trabalha durante nove horas. Talvez possa fazer duas horas a mais. Porém, é mais importante tentar cobrir as fissuras das nove horas. Na verdade, nessas nove horas é como se ele não estivesse fazendo nada, como se estivesse apenas no piloto automático. Ele assimilou facilmente as tarefas, tendo apenas de repetí-las. A prática leva à perfeição e também ao hábito. O rosário, como método de oração, pode ser feito das duas maneiras. O sujeito vai fazer isso todos os dias, com isso gerando um impulso em direção ao Céu. Oração, jejum e esmola são coisas que realmente geram um impulso em direção ao Céu. O que eu quero dizer com “impulso em direção ao Céu”? Fazendo esse esforço continuamente, a pessoa irá chegar. O Céu é uma graça e o que podemos fazer é estarmos prontos e bem dispostos para recebê-la. Isso gerar um impulso em direção ao Céu significa isso criar uma disposição favorável para receber o Céu. Essa disposição favorável não é a causa, mas é indispensável. Porque, se alguém odeia uma coisa boa, de que adianta outra pessoa lhe dar aquilo? Ele não terá nenhum benefício. Se a pessoa odeia a vida divina, de que irá adiantar alguém oferecê-la a ela? Ela perderá o Céu. Quando o Céu começar a se aproximar, ela irá odiá-lo, irá querer se afastar e irá para o Inferno. É justamente por isso que vamos para o Inferno, já que Deus oferece a mesma coisa para todo o mundo. O Juízo é Deus dar muito mais oportunidade para argumentar, e com isso criar uma disposição para ir ao Céu. A condenação é uma questão de Deus dar uma coisa e o sujeito dizer: “Eu odeio isso e não quero, de jeito

nenhum”. Então Ele lhe dará outra coisa, não tão boa quanto aquela, porque ele não tem aquela disposição. A prática regular da religião é a criação de uma disposição. Aluno: Eu vou tentar fazer uma analogia. No ambiente corporativo, nós sempre falamos em “se preparar para as oportunidades”. Então o sujeito estuda, faz cursos e se prepara, para um dia, quando aparecer a oportunidade, ele estar preparado para ela. Luiz Gonzaga: Exatamente. Aluno: Essa questão indispensável, de que você falou, é criar essa preparação? Luiz Gonzaga: Exatamente, é criar essa preparação. Aluno: Você falou sobre quem está mais acomodado, na vida espiritual, e sobre quem quer mais do que aquilo. Essa “ambição espiritual” tem alguma relação com a nossa ambição plana? Ela vem do mesmo lugar? Luiz Gonzaga: Sim, ela é da mesma natureza. É por isso que existe esse impulso de ambição, no ser humano. Aluno: Às vezes, uma pessoa muito ambiciosa, porque a oportunidade não aparece, se torna uma pessoa frustrada. Ela se prepara, mas nunca tem uma oportunidade. Então uma hora ela deixa aquilo de lado. Luiz Gonzaga: Isso acontece quando a ambição da pessoa se volta exclusivamente para bens que são inferiores a ela mesma. Estamos usando a palavra “ambição”, mas São Bento usava “cobiça”. Ele dizia: “enchei-vos de cobiça espiritual”. Cobiça, ganância e ambição são a mesma coisa. Essas inclinações devem ser moderadas, em relação aos objetos materiais e benefícios da vida temporal, porque esses benefícios são menores do que nós mesmos. Caso se encha demais com esse desejo em relação aos bens temporais, das duas, uma. (1) Você vai se tornar uma pessoa amarga, porque não obteve tais bens. Ao não obtê-los, tem a sensação de ter fracassado, o que o faz se sentir desqualificado, mas você não quer se sentir assim. (2) Ao mesmo tempo, há alguma coisa na sua alma que testemunha: “você não é menos do que os outros porque não obteve isso”. Nessa parte da sua alma há um senso de valores humanos, a partir do qual você sabe que no todo isso não desqualifica um ser humano. Então há dois sentimentos profundos em conflito, e isso é prejudicial. Por outro lado, se você tem essa ambição excessiva em relação aos bens materiais e os obtém, novamente haverá dois sentimentos conflitantes: (1) “Eu sou um sucesso. Eu queria, por isso tentei, lutei e conquistei. Eu sou o bonzão.” (2) Mas ao fruir da coisa obtida você sente vazio. Ela não te dá toda a satisfação que você quer. Isso é o mais [1:00] comum. Outro dia eu li uma pesquisa sobre pessoas que subitamente ganharam grandes somas de dinheiro na loteria e a pesquisa mostrou o seguinte: demora no máximo um ano para elas voltarem ao mesmo grau de insatisfação com a vida. É claro que, na hora em que ganhou, ela está muito satisfeita com a vida, mas ao passar um ano fruindo daquilo, ela nota que é muito menos do que o esperado. Eu sei que para todas as pessoas que não ganharam na loteria isso é inacreditável, porque as suas imaginações dizem que isso não é possível e elas devem estar fazendo alguma coisa errada com o dinheiro que estão fruindo. É verdade que muitas delas fazem coisas erradas com o dinheiro e acabam perdendo tudo em alguns anos. Mas elas, em grande parte, perdem o dinheiro porque se decepcionaram com ele, passando então a “destratá-lo”. Essas pessoas perdem a satisfação muito antes de perderem o dinheiro, isso é elementar.

Podemos perguntar: “como é possível que as pessoas ricas estejam infelizes?”. É perfeitamente possível que elas estejam infelizes, porque tendo obtido aquilo ela se sente bem, mas ao tentar fruir do objeto ela sente muito pouca satisfação. É que nem quando ganhamos uma competição e recebemos um troféu ou medalha, mas depois de anos, ao olhar para o troféu ou medalha, aquilo por si não dá satisfação, ainda que possa trazer uma memória legal. É bem diferente do cara que está ganhando agora. Em termos de felicidade, a memória sempre é ambígua. Por um lado, a memória de termos conquistado aquilo pode nos trazer felicidade, mas por outro lado pode trazer tristeza — “agora eu não posso ganhar mais, isso já passou, é um tempo perdido”. Qualquer conquista temporal tem essa caraterística. É por isso que os santos sempre dizem que a nossa ambição, cobiça e ganância devem ser moderadas, para não perdermos a satisfação que o objeto pode realmente oferecer. A ambição excessiva sempre será prejudicial, se não for medida de acordo com a régua que diz qual é o seu valor relativo. É preciso que essa medida relativa esteja na nossa consciência e que a gente module a nossa ambição de acordo com isso, senão ficaremos infelizes com ela ou não a obteremos. A atribuição supersticiosa de valor a uma coisa que não tem valor é a fórmula garantida para a infelicidade. Se não obtivermos a coisa, sofreremos mais do que o sujeito que tinha e não fruiu corretamente; se obtivermos também vamos sofrer, porque por um lado haverá uma marca de vitória na nossa personalidade, e por outro lado sentiremos essa vitória como um vazio, porque o prêmio não valia tanto assim. O conflito entre os dois lados da alma é uma das grandes causas de infelicidade. Há uma passagem em que Cristo fala que temos de ser inocentes como pombas, mas prudentes como serpentes. A alma tem dois lados: um lado que é como pomba e outro que é como serpente, e é preciso desenvolver ao máximo os dois lados. Não podemos ser só pomba ou só cobra, temos de ser uma pomba perfeita e uma cobra perfeita, ao mesmo tempo. Há outra passagem em que Ele diz que o nosso olho e todo o nosso corpo estão limpos. É possível relacionar uma passagem com a outra, no seguinte sentido. “Limpo”, do modo que Ele usou, significa uma coisa que tem dois lados, mas que está dobrada, e não separada. Imagine que você tem dois olhos espirituais para ver o mundo: um olho de pomba e um olho de cobra. Então você tem um olho bonzinho, que vê tudo com inocência (você não julga o próximo e sempre espera o melhor da situação), mas tem outro que te diz que nada é assim (isso é um mato terrível, cheio de feras tentando me comer e eu precisa ser esperto, desconfiar de tudo). De fato, em alguns momentos vemos as coisas de um modo, e em outros vemos de outro modo. De acordo com a nossa disposição psicológica, podemos ter mais facilidade para ver com um ou outro olho. Cristo diz que não adianta ser cego de um olho, não vai funcionar. Você tem de ver com os dois olhos, mas também alinhá-los ao mesmo objeto. Você tem de focar os dois, para conhecer a sua situação como de fato é. Estávamos falando de ambição. Em relação aos bens espirituais, que são superiores a nós mesmos, é preciso termos uma ambição excessiva. E se não os obtivermos? E se passarem anos — hoje em dia ninguém dedica anos a nada, então podem ser meses — em que rezamos o rosário e meditamos os mistérios, mas nada acontecer? Então temos de nos lembrar: não podemos parar de realizar as tarefas. Mesmo não obtendo a promoção, ao estarmos estáveis ali não podemos parar de realizar as tarefas. Caso contrário, conseguiremos apenas perder o emprego. Apesar disso, agora devemos desenvolver a ambição espiritual ao máximo, mesmo sabendo que por um tempo não ganharemos nada. Devemos ter a consciência de que devemos continuar trabalhando. Se pararmos, não apenas não vamos subir para onde queremos, mas vamos descer para baixo de onde estávamos no começo. Não se pode dizer que na ambição espiritual não há nenhum perigo, porque tudo que é bom é perigoso. [1:10] Os seus pais podem ter te criado, mas também são a coisa mais perigosa do universo, porque, se resolverem te destruir, já era. Provavelmente, na sociedade inteira, eles são as únicas pessoas que podem arranjar um jeito de te destruir sem serem descobertos. Então tudo o que é bom

é perigoso, inclusive a ambição espiritual. Mas ela em si não é má. Suponhamos que um sujeito está praticando a religião direitinho há mais de dois anos e diz: “eu estou enjoado somente de praticar e quero avançar, quero subir, quero uma promoção, então agora eu vou me dedicar mais, meditar e prestar atenção”. No mundo de hoje, passar mais de dois meses se dedicando à ambição espiritual já é excessivo. Nesse tempo, as pessoas já chegam ao limite da sua paciência. É diferente de Santo Antão, que ficou dezenove anos no deserto. Isso já não é mais uma ambição, já não se fazem mais pessoas como antigamente. Então depois desse tempo ele ficou totalmente desanimado — “Não fiquei santo, nenhum anjo apareceu para mim, não tive sonhos proféticos e não fiz nenhum milagrezinho. Não aconteceu nada, eu só gastei energia”. Porém, já faziam dois anos que ele estava praticando a religião, e isso é um ponto importante. Quando digo que ele ficou praticando a religião por dois anos, eu quero dizer “praticar de verdade”, e não apenas que ele tinha uma denominação religiosa. Eu estou falando da religião do mesmo como Cristo se referia. Oração, jejum e esmola, conforme Ele e os santos ensinaram. Ontem eu estava vendo no site do Padre Paulo Ricardo um sermão do Bento XVI em que ele lembrava que agora, no começo da quaresma, há três práticas penitenciais que são privilegiadas pela tradição cristã, que são oração, jejum e esmola. Ele também lembrava que o jejum da quaresma ainda é uma disciplina, está na lei da Igreja e não caiu. Há disciplinas que mudam com o tempo, mas essa não. Se alguém não estiver praticando, tem de ter consciência de que não está fazendo uma coisa que é ordenada. Ele pode ter feito isso durante dois anos e tentado avançar ao longo de dois meses, mas no fim desanimou. Eu digo que quando a vida apertar para esse sujeito, ele vai voltar à prática da religião, apesar de tê-la abandonado, porque dois anos foram suficientes para ele adquirir o senso da religião e a diferença entre ter e não ter religião. Eu vou dizer qual é a diferença. Praticar a religião é diferente de dizer que é católico, ortodoxo, evangélico, muçulmano ou judeu, que acredita em certas coisas e não em outras, mas não fazer nada. Isso não é ter religião, mas já é bom, porque se a pessoa tem pelo menos isso, toda semana ela é lembrada do que é ter religião. Ao ir à missa, ela ouve o sermão e a leitura, então tem uma oportunidade de começar a ter religião. Por isso não se deve criticar a pessoa que faz isso. Ela está abrindo a porta para uma oportunidade regular. Eu não posso garantir que isso a pôs no trilho da salvação, não sabemos se ela está ou não no trilho da salvação, porque não foi assim que os santos e os profetas ensinaram. Eles disseram que a pessoa que pratica as penitências está no trilho. Estando ali uma vez por semana e ouvindo aquelas palavras, talvez ele seja comparado. Cristo dizia: “todo aquele que ouve estas palavras e não as cumpre será comparado a um homem estúpido que construiu a sua casa na areia, mas os que ouvem essas palavras e cumprem oração, jejum e esmola serão comparados a um homem sábio que construiu a sua casa na rocha”. Essa é a posição do Evangelho. Se a pessoa tiver praticado a religião durante dois anos ela voltará, porque adquiriu o sabor da religião. Em toda pessoa normal, boa e sã, as suas idéias são melhores do que ela. Viver é ter um propósito de vida, numa pessoa normal esses propósitos são melhores do que ela é agora. Um cristão sempre tem propósitos melhores do que ele mesmo. O seu propósito é se tornar uma imitação de Cristo e dos santos, porque ele pensa: “todos esses caras são melhores do que eu”. A santidade é uma idéia na sua mente, e não um fato da sua vida, e essa idéia é melhor do que ele. Idéias são boas, porque diferenciam o bem do mal — “isso é alimento e aquilo é veneno, isso é um jardim e aquilo é um quintal largado” —, mas elas não são suficientes, porque sempre indicam algo que ainda não temos. Se tiver boas idéias sobre a vida, um dia você pode acordar, olhar para elas e dizer: “que bom”. Mas em outros dias, não. É como se não fosse você que está aí. “Vamos ser honestos: você não é assim. Talvez não haja a menor chance de você estar ali.” Pensar isto é igual comer um fruto, [1:20] as palavras são alimentos. Aquilo com que concordamos são alimentos que comemos, enquanto que aquilo de que discordamos são coisas que rejeitamos.

Num certo dia, podemos dizer a nós mesmos: “Você é um miserável, a sua vida é ruim e você não vai chegar a este estado. Você não vai ficar santo. Eu nem sei se Deus gosta de você e nem sei se você vai ser salvo.” Um dia acordaremos com esse pensamento e em parte concordaremos com ele, até S. Francisco era assim. Então não ache que tem esse pensamento por ser um canalha. De vez em quando, São Francisco pensava exatamente o mesmo, assim como Santo Antão, S. Pedro e S. João. Todo o mundo é assim. Eles acordavam, olhavam aquilo e sentiam que era uma verdade objetiva. Quando sentimos que uma coisa é objetivamente verdade, concordamos com a palavra que aparece na nossa mente, e quando concordamos é como se a estivéssemos comendo. Isso é aceitá-la. Então sentimos o gosto dela. Tudo isso é um processo espiritual. Caso se observem nitidamente, vocês verão que é assim. Com anos e anos de prática da religião, a pessoa vai sentir um gosto mais ou menos bom, ao comer a palavra. Ela pode pensar: “Eu sou um miserável, mas a minha vida não é tão ruim”. O gosto que ela sente não é tão ruim, porque é o gosto de quem está fazendo alguma coisa, de quem está tendo algum progresso. É assim que temos de avaliar a nossa vida. Ao concordar com o juízo que fazemos dela, qual é gosto que sentimos? Se for uma pessoa que já não tinha e nem fazia nada em relação a isso, ela vai sentir um gosto de fruta verde. Vocês já comeram fruta verde? É um aperto! Ao julgar a si mesma e à sua vida, se está progredindo espiritualmente ou não, se vai ou não conseguir o que quer, uma pessoa que já possui certa prática da religião pode experimentar e sentir um gosto ruim sobre a sua vida, mas ela também sente que tem uma coisa boa acontecendo. O que a sua inteligência está discernindo é que, apesar da sua vida ser ruim, tem um elemento dela que é bom. Ela passou dois anos praticando a religião e, saboreando isso, houve dias em que ela pensou: “Não sei, acho que você não vai conseguir; acho que Deus não está te ouvindo; acho que você não vale para isso.” Houve dias em que ela experimentava um juízo assim, concordava e o engolia, mas ela continuou fazendo, porque havia um gosto bom que já era suficiente. Ao experimentá-lo, ela vai voltar. Caso largue tudo e fique sem religião alguma, a mesma voz vai retornar e dizer: “A sua vida é uma droga, você não vale nada”. E então ela vai sentir um gosto pior do que aquele que sentia quando ainda praticava a religião. É um processo de avaliação, que não é plenamente consciente e discursivo na nossa mente. É igual quando comemos alguma coisa. Nem todo o mundo é um esteta que saboreia a carne e diz que ela tem certos tons, vem de um animal criado em determinada condição e há tais ou quais temperinhos. Nem todos somos estetas, hedonistas ou epicuristas. Porém, o que fazemos com a nossa inteligência é a mesma coisa. Assim como o paladar, ela é um modo de percepção. Por isso que o processo é exatamente o mesmo. Aluna: Se o caminho inicial de Jesus é uma descida à humanidade, uma vida sofrida é um caminho de proximidade com Deus? Passando por isso, estaríamos mais aptos a usufruir de uma vida mais fluida, de modo que se abrisse de forma consciente a porta do livre arbítrio e co-criação? Luiz Gonzaga: Uma vida sofrida é um julgamento. Ela funciona como um teste. O sofrimento tem como característica fazer algumas pessoas saírem melhores; e outras, piores. Viktor Frankl conta que é exatamente isso que acontecia na ambiência de puro sofrimento dos campos de concentração. Existe uma analogia real entre o sofrimento e o julgamento de Deus, lembrando que o julgamento não é uma sentença. Quando falamos de juízo, não devemos pensar que o sofrimento é uma sentença divina, como na teologia da prosperidade: se Deus nos manda uma doença, é porque Ele não gosta de nós e está nos punindo; mas caso nos dê saúde, significa que Ele gosta de nós e está nos recompensando. Na verdade, não há uma punição ou sentença. O sofrimento não é uma sentença, mas um teste. Ele é um julgamento: “Vejamos se você consegue sacar o que há de melhor em si ou se acaba cedendo ao pior”. Isso é um fato concreto. Eu não digo isso por questão de fé, é uma questão de observarmos que às vezes saímos melhores ou piores do sofrimento.

Podemos perceber tanto na nossa vida quanto na dos outros. A história de Jó é a maior evidência de que o sofrimento não é uma sentença. Os seus amigos disseram que ele devia ter feito algo errado e por isso Deus o estava punindo, mas ele respondeu que não havia feito nada e Deus continuava com ele, que aquilo era uma sentença, um julgamento para separar o joio do trigo. O sofrimento é uma presença divina, mas Deus nos aparece como o juiz e soberano que vai separar na nossa alma os melhores e os piores elementos, de modo a escolhermos. Nesse sentido, o sofrimento nos oferece uma oportunidade de progresso espiritual. Não vemos nenhum santo falando que se deve fugir de todos os sofrimentos porque eles são terríveis. O sofrimento não é uma sentença divina de punição e nem um acaso do destino, que surge como um infortúnio do qual devemos fugir. É evidente que se fosse um mero infortúnio deveríamos fugir de todo sofrimento, já que ele simplesmente seria um elemento de caos do universo. No mesmo sentido em que, ao descobrir que uma coisa é veneno, você evidentemente não vai tomar. Porém, o sofrimento não é assim. É por isso que não devemos fugir dele. Os sofrimentos são testes. Mais ainda: há duas coisas importantes que podem vir deles. A primeira é a paciência, é preciso tolerar a dificuldade. Mas também precisamos do senso de economia divina. Se economizamos hoje, amanhã temos algo melhor. [1:30] O futuro pode ser melhor pelo sacrifício de agora. Usando o sofrimento de hoje, aprendemos uma lição. Quando a vida se tornar mais complicada, já teremos mais discernimento. Os santos nunca falaram às pessoas para que fugissem dos sofrimentos. Por outro lado, nenhum deles falou que o sofrimento, por si próprio, vai nos trazer um crescimento espiritual. Não, ele é um juízo, um teste em que as pessoas podem subir ou descer. O sofrimento é espiritualmente perigoso, porque as pessoas podem tanto melhorar quanto piorar. Aluno: Assim como o sofrimento, o prazer também é perigoso. O que dizer sobre rezar o Santo Rosário enquanto caminho? É errado? É pecado? É incorreto? O melhor jeito seria ajoelhado mesmo? Luiz Gonzaga: Ao dar os mandamentos para Moisés, o que Deus ordena que ele fale ao povo? Que eles devem meditar sobre os mandamentos, sejam deitados ou em pé, caminhando, e assim por diante. Aliás, isso é uma coisa que Ele menciona de forma especifica. Você deve rezar em todas as ocasiões, andando da sua casa para o trabalho, ou para o templo e outros lugares. Não se sinta acanhado, de maneira nenhuma. Quando rezar em casa ou na Igreja, você deve acrescentar à sua oração uma postura corporal adequada. Então você reza ajoelhado. Pode ser sentado, se for mais velho e sentir dor nos joelhos. Você pode fazer a oração sentado, mas o ideal é ajoelhado ou em pé. A disciplina corrente no tempo de Santo Alberto Magno era assim, ele rezava em pé e se prostrava diante do ícone a cada Ave Maria. É preciso entender que você não está a caminho de um bordel. Se bem que mesmo se estiver é bom rezar o terço. É mais favorável do que não rezar. Não tem problema, quando sair você reza outro. Mas de modo geral você não está indo fazer uma coisa imoral, está a caminho do trabalho, do super-mercado, de casa ou do dentista. Você tem um objetivo para alcançar, e esse objetivo é bom. O lugar a ser alcançado representa Deus diante de você, ele é um benefício que Deus te concedeu no mundo. Você tem a sua casa, que é um lugar onde pode descansar, por isso ela é um presente de Deus. E quando está longe, ela é uma referência para você. Então você não deve se sentir acanhado, de maneira alguma. Para o progresso espiritual, as três formas de penitência devem penetrar toda a sua vida e reverberar em todos os atos. Isso vai criar uma consciência contínua da presença de Deus, por isso elas são os principais instrumentos para a santificação. Então não se preocupe, você deve fazer o tempo todo. Aluno: Agora o senhor falou do bordel. Tem algum limite moral sobre onde podemos ou não rezar? Em algum caso pode ser sacrilégio? Eu me lembro de uma aula do Padre Paulo Ricardo em

que ele falava especificamente do problema da masturbação. Ele dizia: “reze antes e depois de se masturbar”. Luiz Gonzaga: Exatamente. Isso é perfeitamente correto. Por que a pessoa deve rezar antes e depois? Na maior parte das vezes em que pecamos fazemos de conta que Deus não está vendo. Se houvesse ao nosso lado uma pessoa que consideramos santa ou o próprio Deus, não faríamos aquilo na sua frente, então ao pecar abstraímos a presença de Deus. Para uma pessoa que tem o hábito da oração, é fácil ver que é como se ela tivesse de desligar, como um interruptor de lâmpada, e fazer de conta que ninguém está vendo. Ela tem de fazer isso. O primeiro efeito que se tem ao rezar antes e depois é que o pecado vai diminuir. Ele será cometido com menos frequência, porque em algumas vezes o sujeito vai sentir vergonha demais. Segundo, ele perceberá mais nitidamente que para fazer aquilo tem de apagar uma coisa dentro de si. Essa transição será mais clara, como há menos tempo entre o momento em que estava rezando e o que está pecando. Será muito claro que esse desligar tem de acontecer neste tempo. A terceira coisa é que mais tarde isso realmente pode gerar escrúpulos nele. Ao fazer aquilo uma vez, depois duas e até dez vezes, ele pode achar que está acumulando uma maldição de Deus e pensar: “talvez Deus me odeie por estar fazendo isso”. Mas ele não deve parar de rezar, Deus não vai odiá-lo por rezar, mas pelo que faz entre uma oração e outra. Será como uma simulação do juízo divino. Pode ser que ele não consiga parar com aquilo. Ele não sabe se é um pecado do qual vai conseguir se livrar. Talvez seja um hábito tão enraizado que ele já não saiba mais quais são os mecanismos que o geram. Pode ser que espiritualmente ele seja como aquele mendigo bebum para o qual acabou de dar uma esmola, irrecuperável. Então ele precisa mais ainda dessas orações. Apesar da disposição para esses pecados, sobretudo os corporais, ele deve rezar antes e depois. Isso é importante, porque uma hora ele irá morrer e depois da morte esses pecados não poderão mais ser cometidos. Não haverá mãos e nem corpo para isso, acabou. Não importa que aquilo seja um hábito profundamente enraizado: se acabarem as oportunidades de fazer e a [1:40] coisa for abandonada por tempo suficiente, o hábito será desenraizado. Saiba que essa recomendação não foi inventada na cabeça do Padre Paulo Ricardo, ela está na tradição. Os santos sempre insistiram que devemos parar de fazer, mas se não conseguirmos devemos fazer outra coisa com mais frequência do que o pecado. Oprima o tempo de pecado e o cerque de tempos em que faz coisas boas. Se for um pecado corporal, é difícil saber em que grau ele está enraizado e você não sabe se vai conseguir se livrar dele. Imagine que não consiga. No inferno não há como fazer essas coisas: você não terá mãos ou prostitutas para te servir. É preciso lembrar que este pecado está destinado a morrer. É diferente da soberba e da inveja. Caso tenha morrido com estes em dose excessiva, eles só vão aumentar. A coisa vai ficar pior, porque você só sentiria mais raiva ainda. Imagine: uma pessoa maravilhosa como você não tem mais corpo e nem as coisas boas do mundo. Mas os pecados de natureza corporal são diferentes, eles vão desaparecer. Mesmo para o sujeito que vai para o inferno, que tinha o hábito de se masturbar, de frequentar prostitutas, que era o cara mais guloso e epicurista do mundo. Depois de alguns milhares de anos ali, os pecados vão desaparecer e não vai sobrar nem a memória deles. Se eles desaparecem até no inferno, com muito mais naturalidade vão desaparecer no purgatório. Vamos lembrar da escada do purgatório: os pecados corporais ficam lá em baixo, por isso são os primeiros a desaparecer no purgatório. Deus conhece o ser humano melhor do que eles próprios, por isso ordenou a prática de oração, jejum e esmola, não oração, celibato e esmola. O celibato também é uma mortificação corporal, mas Cristo falou de oração, jejum e esmola porque é esperto e sabe que algumas pessoas não resistiriam a essa inclinação. Se elas não vão resistir, então Ele não quis fazer dessa disciplina o principal meio dos seres humanos escaparem do inferno, porque aí eles não escapariam mesmo.

Então é preciso rezar antes e depois, lamentar-se caso não consiga e eliminar o tempo de pecado envolvendo-o com orações. Notar que por um tempo você desligou a consciência de Deus e pecou, depois fazer outra oração pelo arrependimento. Deus sabe que não somos constantes, isso não é surpresa para Ele. Eu já contei em aula aquela história de um ladrão hindu que ficou santo. Ele era membro de uma quadrilha que entrava nas casas quando elas estavam vazias e roubava todas as coisas. Certa vez um amigo dele foi pego e isso imprimiu na sua imaginação a possibilidade de ele também ser pego. Em vez de parar com aquilo, ele rezava para Deus pedindo que não fosse pego pela polícia. O sujeito foi se acostumando a falar muito sinceramente com Deus enquanto cometia os piores atos da sua vida e essa familiaridade com Deus o levou a pensar nas pessoas que roubava: “E essas pessoas? Isso era delas, e se elas precisarem?” A familiaridade que ele passou a ter com Deus o levou a perceber as vítimas dos assaltos como seres humanos que também rezavam para Deus. Então ele se afastou do crime e decidiu levar uma vida de saniaze, renunciando ao mundo, até que se tornou santo. No Cristianismo há histórias análogas. O conselho do padre Paulo Ricardo vem da tradição, por isso é importante segui-lo. A frequência com que o pecado acontece vai diminuir e depois de alguns meses, com alguma habilidade e ajuda de bons conselhos, vai passar. Mesmo que não passe de jeito nenhum, se você estiver fazendo as orações e praticando a religião, Deus vai te dar um impulso ao purgatório, já que esse tipo de pecado desaparece naturalmente, uma vez que você não tem mais organismo. Aluno: Sobre o Samsara, que vimos no começo da aula: qual é este processo que a oração repetitiva desencadeia na nossa alma e proporciona a nossa salvação, o que nos tiraria desse ciclo de nascimento e morte? Luiz Gonzaga: É justamente isso que o Samsara representa. O mundo natural é feito de ciclos incessantes, que se repetem continuamente. Tudo volta para o mesmo ponto de partida. A idéia da oração repetitiva é criar pontos em que podemos escapar do ciclo. É como uma coisa que está girando — por exemplo, a funda de Davi. Você gira a pedra para depois lançá-la. A repetição das orações serve para criar um impulso que vai te lançar em certa direção. Aluno: O sofrimento não seria parte do pagamento desta dívida que contraímos pela Queda? Luiz Gonzaga: O sofrimento em si não é o pagamento da dívida, mas a forma como você o aceita e passa por ele, assim como a pessoa que você se torna ao vivê-lo, é um pagamento real. Graças àquele sofrimento, você pode se erguer e se tornar uma pessoa melhor, [1:50] e isso é um pagamento da dívida para Deus. Eu vou explicar para vocês: o que paga a dívida que temos com Deus é a prática de oração, jejum e esmola. Isso foi estabelecido por Ele. Com sofrimento ou sem sofrimento, seja a sua vida maravilhosa ou horrível, a nossa moeda de pagamento são as obras de piedade. Os santos disseram que essas coisas têm de ser feitas por todo o mundo: o sujeito que sofre, o que não sofre, o mendigo, o rei, e assim por diante. Esse é o pagamento real da dívida. É evidente que podemos usar os sofrimentos e alegrias como instrumentos para o nosso desenvolvimento espiritual, e isso pode ser um pagamento da dívida. Mais do que apenas um pagamento, seriam instrumentos para nos aperfeiçoarmos. Em momentos assim, podemos lançar a pedra na direção certa. As práticas de disciplina espiritual têm dois lados: às vezes você lança a pedra e acerta no alvo, o que faz com que tenha uma experiência espiritual e alcance uma proximidade com Deus — uma consolação, como diz Santa Teresa; por outro lado, pelo fato de fazermos regularmente, às vezes isso vai se voltar para a nossa vida como um padrão estabelecido

pela prática espiritual e iluminar a situação, dizendo como devemos agir ou dando uma fortaleza para agirmos. Nós não percebemos, mas o mundo espiritual e o corporal são análogos um ao outro. Nessa analogia existe uma reflexão inversa, é como uma imagem de espelho que de certa forma aparece invertida. Por exemplo, o sabor dos alimentos é mais evidente do que o valor nutricional deles. Ao comer uma fruta, não sabemos objetivamente o quanto aquilo nos alimentou, mas sabemos se era gostoso ou não. O alimento espiritual é diferente: na disciplina do jejum estamos nos alimentando de algo, mas o seu sabor é misterioso. Nós sentimos o sabor real da vida, e essa é uma das razões por que existem situações difíceis. Este sabor é ruim quando nos comparamos de maneira desfavorável aos nossos ideais, quando dizemos: “Você é um cara ruim, um pecador, a sua vida é miserável e isso é uma desgraça. Você não vai conseguir se tornar santo e nem progredir.” Esse julgamento não é algo que estamos projetando, mas uma coisa que em certo dia realmente sentimos. O sabor que sentimos da nossa vida não vem do pensamento, mas de uma resposta interior a como sentimos ela. Mesmo pensando isso, por que surge dentro de nós um sabor que não é tão ruim? Um exemplo mais terreno é quando conversamos com uma pessoa de direita e outra de esquerda. Qual é a diferença entre elas? É a forma como saboreiam as suas vidas. As duas enfrentam dificuldades, mas a primeira acredita na liberdade, na responsabilidade e no trabalho. Quando pensa que a sua vida é ruim, a pessoa de direita sente o sabor do que está fazendo e percebe que aquilo tem um gosto bom, porque está se esforçando no trabalho. Ela sabe que não tem o melhor trabalho do mundo, mas está ganhando algo e pode usar aquilo como quiser, já que é seu. Ela pode usar para aprender coisas novas. O valor da vida não é uma idéia, mas algo que a pessoa sente com relação ao que está fazendo. Por outro lado, o esquerdista fala que todos somos vítimas da sociedade e ninguém é capaz de nada. Ao acordar num certo dia, ele sente que a sua vida é ruim. Ele prova somente frutos verdes no que faz, e este sabor o deixa com raiva do mundo e das outras pessoas. Ele sente raiva por atribuir o sabor à situação medida segundo as suas idéias. A outra pessoa sabe que está fazendo algo bom da vida. Ela tem responsabilidades, cuida dos filhos e trabalha. Ela sente um sabor bom porque não está fazendo algo ruim. Ela sabe que não é santa, mas está fazendo uma coisa boa. Com S. Francisco acontecia a mesma coisa. Às vezes ele pensava que era um pecador maligno. Certa vez ele correu pela cidade punindo a si mesmo e dizendo: “Vejam o grande pecador! Eu estava pensando num frango na hora da oração!” Ele não estava triste com a própria vida, mas estava se julgando a partir de uma medida melhor do que si próprio. Ao engolir esse julgamento, ele sentia que estava fazendo algo interessante com a própria vida. Isso não o levava a parar com tudo e pensar que a sua vida não valia nada, que nunca alcançaria aquele ideal, porque a vida dele tinha um sabor bom. Quando uma pessoa é julgada pela própria consciência, ao fazer uma coisa boa, ela sofre o efeito de aquilo motivá-la para a frente. É a isso que Cristo está se referindo, quando diz: “a quem tem mais, lhe será dado; e a quem tem pouco, lhe será tirado”. Ela pode decidir buscar a santidade, ficar dois ou três anos praticando a religião direito, mas depois desanimar. Eu acho muito difícil ela parar com a prática da religião, mas se parar vai ser temporário. Na hora em que o juízo da sua consciência vier de novo, ela vai perceber que conforme não faz aquelas coisas o gosto que sente é pior do que o gosto que sentia quando praticava a religião. É o gosto de algo mais verde e menos maduro. Esse é o sabor da nossa própria subjetividade, o gosto do nosso valor. Se o sujeito for julgado pelas suas idéias, e ele de fato será, o julgamento pela sua consciência vai revelar um gosto ruim, e isso vai estraçalhar a sua vida. É possível perder [2:00] todo o senso de bem e mal, e isso é o que vemos acontecer com um sujeito que vira militante de esquerda. O problema dele não está somente no plano espiritual: o mesmo erro

foi cometido no plano material, e esse é um grau mais avançado desta doença. Num primeiro momento, as pessoas são afetadas apenas espiritualmente, sem que aquilo afete a sua relação com o mundo corporal. Então elas sabem que o jardim é bom e o mato é ruim. Que o jardim depende de alguém para cultivá-lo. Por isso as pessoas cultivam, daí o quintal que antes era mato passa a ser um pouco mais jardim. Ainda não é um jardim maravilhoso, mas já é um jardim. A pessoa percebe esta criação, e também que aquilo veio dela. Ao ver o quintal, ela pode pensar que ainda não é o jardim ideal, mas o gosto que virá de dentro será melhor do que o gosto que sentia quando não cultivava nada, e isso é um impulso na direção certa. A ambição espiritual pode ser perigosa, mas é mais perigosa ainda para quem nunca teve a prática da religião. O sujeito se converte e na semana seguinte já pensa em ficar santo. Não, meu filho. Pare de pensar em santidade. Pare com esta ilusão e comece a praticar consistentemente as disciplinas, aí você verá os frutos. Na hora em que a sua consciência te julgar, você vai sentir o gosto do fruto da sua vida, ele é a base da sua esperança. Você vai pensar: “se até eu consegui isso, ruim como sou, é possível Deus me santificar.” É por isso que o Cristo diz que nem sempre percebemos de qual árvore veio cada fruto. Ele também diz que julgamos pelo fruto, e não pela árvore. A sua disciplina de oração é a árvore do seu trabalho espiritual, os frutos dela serão saboreados na hora em que for julgado pela sua consciência, que dirá que você não é santo, mas sim mau e pecador. As idéias na sua consciência são binárias: ou é isso ou é aquilo, ou está bom ou está ruim. Ela pode dizer que está ruim, mas você vai perceber que não é tão ruim. Digamos que você seja pobre. Você pode pensar que seria muito legal se fosse rico, enquanto que é muito ruim ser pobre. Mas virá um gosto de dentro de você, que diz: “Não é tão ruim, porque você não está desesperado e está fazendo alguma coisa que gera alguma prosperidade para si mesmo.” Nessa hora você vai sentir este gosto e perceber para onde a sua alma realmente está se inclinando, graças ao sabor desses frutos. As suas idéias dizem apenas para onde você deve se inclinar. Caso elas te julguem de forma negativa, você vai sentir o gosto correspondente dentro de si e ele vai te impulsionar para uma boa direção. Em geral, esse gosto deriva de um esforço consistente para ir em determinada direção. É por isso que a disciplina espiritual é importante. A pessoa deve saber diferenciar. Talvez ela não sinta o gosto das coisas espirituais na hora em que faz as suas práticas, mas ao julgar a própria vida ela sente espontaneamente. Quando o gosto bom vier, a pessoa vai saber que veio de um fruto bom. Se o fruto é bom, a árvore é boa, portanto as práticas também são boas. Não há outra medida. Ao julgar como se sente nas orações, a pessoa vai notar que às vezes se sente de uma forma, mas às vezes se sente de outra completamente diferente. Por isso ela tem de lembrar que o sabor do fruto será bom se ele vier de uma árvore boa, de modo que se trata de uma boa prática. Não há outra medida. Julgar como se sente ao rezar não vai dar indicação alguma, mas julgar a própria vida vai mostrar que você está fazendo um bem, que embora não seja excelente já te põe na direção certa. Num certo sentido, o normal é que as pessoas sejam materialmente conservadoras. Elas sentem isso com relação à vida corporal. O que as pessoas estão fazendo melhora a vida delas e as coloca numa direção melhor, embora não seja ainda o resultado que desejam obter, e elas já saboreiam isso. O propósito das disciplinas é nos dar gradativamente uma inteligência perfeita, uma vontade perfeita e uma existência perfeita. É nos ajudar na recuperação disso. Nós não percebemos essa recuperação na prática de oração, jejum e esmola, do mesmo modo que não sentimos gosto de maçã ao morder a casca de uma macieira. Você pode comer da macieira quantos pedaços quiser, seja das folhas, galhos ou raiz, mas não vai sentir gosto de maçã madura. O tronco da macieira não é a maçã: é a sua causa, e não o efeito. Eu não conheço pessoa alguma que tenha praticado a religião de forma consistente por dois anos e não tenha percebido diferença no gosto que sente da própria vida. Quem o fizer vai notar que

passou a ter mais discernimento e liberdade, que suporta melhor o sofrimento e usufrui melhor da alegria, já que desenvolveu uma inteligência, vontade e existência um pouco mais perfeitas. Inúmeras pessoas não seriam capazes de explicar que sentem isso, mas elas sentem. Eu realmente não conheço ninguém, mas conheço muitas pessoas [2:10] que toda semana vão à Igreja e não possuem isso. Às vezes elas rezam, mas não jejuam ou não dão esmola. Ou seja, elas inventaram uma religião deficiente e capenga, fazem do próprio jeito. Isso não é suficiente, porque as práticas de oração, jejum e esmola possuem funções individuais na própria estrutura do ser humano. Cada uma corresponde a uma necessidade intrínseca da perfeição. Já explicamos que as três práticas existem por causa de três problemas que o ser humano deve enfrentar pelo fato de ser imortal. Elas são preparações que refinam no ser humano estes três atributos, o tornando mais capaz de uma inteligência, vontade e existência perfeitas. Embora cada mistério tenha valor em si mesmo, os três conjuntos de mistérios do Rosário também se referem a isso, em termos contemplativos. Os mistérios gozosos nos dão um critério perfeito de como devemos julgar a nossa própria vida, o que nos dá um discernimento de como são as pessoas boas e as pessoas ruins. Então eles servem para refinar a inteligência. Os mistérios dolorosos se referem ao desenvolvimento de uma vontade perfeita. Por fim, os mistérios gloriosos são uma fruição da existência perfeita. Evidentemente eles precisam vir por último, porque sem uma inteligência perfeita e uma vontade perfeita não podemos fruir de uma existência perfeita, mesmo se a tivermos. É como as pessoas de hoje, que estão num mundo que nunca foi materialmente tão próspero e vivem reclamando. Ninguém foi tão mimado quanto as pessoas de hoje. É justamente por isso que o elemento existencial só pode ser fruído por quem tem uma boa inteligência e uma boa vontade. Se não entender as coisas, você vai receber algo bom e pensar que é ruim, ou então pensar que aquilo é do seu direito por ser o seu padrão. Hoje as pessoas acreditam que tudo aquilo que é bom é do direito delas. Se recebermos a existência perfeita primeiro, vamos considerar óbvio o que acharmos de bom ali, já que pensaríamos que temos direito àquilo sem merecer, e também acharíamos que algumas coisas são ruins por falta de discernimento, outras não íamos saber usar pela ausência de uma vontade reta e perfeita. Então é evidente que em primeiro lugar é preciso corrigir a inteligência e retificar a vontade de acordo com ela, para depois participar de uma existência perfeita. Os mistérios gloriosos representam justamente a participação sobrenatural naquilo que já era a nossa herança natural, mas que perdemos na Queda. Por ser uma oração, o Rosário corresponde a uma das formas de penitência. O principal atributo da oração é nos tornar conscientes da presença de Deus. Se além das respectivas consciências individuais Deus é testemunha de cada vida, então a minha possui duas testemunhas, de modo que é preciso verificar o meu testemunho à luz deste outro. Notem que nós sempre estamos narrando as nossas vidas para nós mesmos, e muitas vezes essa narrativa acaba substituindo a vida em si. Por exemplo, pode haver alguém que faz coisas que me atrapalham e geram problemas para mim. Na minha narrativa, eu serei o herói e o outro será o vilão. Talvez eu não seja um herói, mas apenas uma vítima; de todo modo, o outro continua sendo um vilão. Às vezes as narrativas são verdadeiras, às vezes são falsas. Por exemplo, muitas vezes uma pessoa nos faz uma coisa que acreditamos ser ruim, mas que no fim é algo bom para nos ajudar. Na sua infância, os seus pais te corrigem e você não gosta, mas aquilo acaba sendo importante. Isso acontece diversas vezes na vida. Um dos valores da oração é nos abrir para o testemunho de Deus. Todos os dias eu conto a minha vida para mim mesmo de um jeito, mas Deus está contando de outro, porque Ele também é testemunha da minha vida e os dois testemunhos são diferentes. A primeira coisa importante é que na narrativa contada por Deus você não é o herói, mas apenas um personagem secundário. Deus é o personagem principal, porque Ele está contando as coisas como realmente são. Na melhor das hipóteses, você é só um aliado ou inimigo — você só pode ser o Robin ou o Coringa, mas nunca o Batman. Ao falar todos os dias com Deus e se colocar sob a presença Dele, você vai se lembrar que somente Ele testemunha a sua vida como ela realmente é. A lembrança disso é muito importante.

No ICLS, há uma palestra do Pe. Jorge sobre a liturgia e a importância da memória, todos deveriam ouví-la. O Cristo diz numa passagem crucial do Evangelho, ao revelar a Santa Ceia: “Fazei isto em memória de mim”. No Gênesis, há outra passagem que diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. E outra: “Macho e fêmea os criou”. Em hebraico, o equivalente à palavra “macho” é “zakar”, cuja raiz é a mesma de “Zacarias” e também de “zeker”, que significa “memória”. A importância disso está no fato de que as coisas espirituais são diferentes das materiais. Se eu me lembrar da árvore frutífera que tinha no jardim quando eu era criança, os seus frutos não virão a mim. Ou aquela árvore não existe mais, ou ela está longe daqui. A existência da árvore é uma composição de matéria e forma, enquanto que a lembrança que eu posso ter dela se refere apenas às suas características formais. Isto não torna presente na minha vida uma árvore materialmente perfeita. [2:20] Por outro lado, Deus é um ente espiritual. Ele não é uma composição de matéria e forma. Isso quer dizer o seguinte: quando nos lembrarmos de Deus, Ele se torna presente para nós. Podemos não perceber esta presença, mas ela estará efetivamente ali. Deus se lembra de nós, ao nos lembrarmos d’Ele. Isso é explicado de forma muito detalhada e sutil por Santo Agostinho, que dá todo o fundamento metafísico e ontológico de como a coisa funciona. Mais ainda: quando Deus se lembra de nós, recebemos alguma parte do conhecimento que Ele tem a nosso respeito. A cada vez que rezamos algo da narrativa que fazemos das nossas vidas, a narrativa se clareia e se retifica com a narrativa feita por Deus. Ao falar do ser humano, é interessante Deus nomear o macho de ”zakar”. Ele está dizendo que há dois princípios de vida humana, um ativo e outro passivo. O princípio ativo se chama “zakar”, que significa “memória”. Na Bíblia, vemos que a história do povo eleito é uma história em que as pessoas se afastam de Deus e sofrem com isso, daí elas começam a se lembrar de Deus e Ele também se lembra delas no seu exílio. Isso modifica as suas vidas, porque essa lembrança retifica as narrativas delas. Notem que o povo de Israel teve de criar uma justificativa para o desvio, contando a história de um jeito que lhe parecia melhor. É sempre assim: nós contamos a nossa história de uma maneira que nos favorece e sofremos com isso, daí nos lembramos de Deus, retificamos a nossa narrativa e percebemos que nos desviamos. A lembrança de Deus retifica imediatamente a nossa narrativa, pelo fato de Deus também se lembrar de nós e de participarmos dessa lembrança. Através dela, Deus vê aonde estamos, e nós também, porque temos uma participação na consciência d’Ele — Deus é um ente espiritual, assim como a inteligência humana. Quando um ente espiritual conhece o outro, ele está no outro. O mesmo não acontece para os entes materiais. Por exemplo, ao lembrar de uma macieira eu não terei maçã alguma, porque este processo intelectual não me traz a matéria da macieira, que é uma composição de matéria e forma. Porém, Deus não é uma composição de matéria e forma; Ele é puro espírito e em espírito e verdade Ele quer ser adorado. Quando estivermos rezando os mistérios do rosário, vamos nos lembrar de Deus tal como Ele é; contar a nós mesmos uma história, que é um episódio da Revelação. Com essa lembrança, estaremos nos lembrado de como Deus é. De uma maneira que não é perfeitamente adequada, porque não entendemos completamente tais mistérios e palavras, mas que já é suficientemente adequada. Já a entendemos o bastante para preferirmos rezar assim, em vez de qualquer outro jeito que dê na telha. Isso já é algum reconhecimento. Deus se lembra de nós, quando nos lembramos d’Ele. Mas isso não quer dizer que antes Ele tivesse esquecido. A Sua lembrança é a projeção do conhecimento que Ele tem a nosso respeito. É como o que foi relatado na Bíblia: Deus se lembrou do povo de Israel e o tornou mais consciente de si mesmo, o que fez com que se convertesse e se decidisse a modificar a própria vontade. Assim, Deus liberta o povo de Israel do sofrimento e faz com que a sua existência melhore — ela se torna mais

perfeita. Este é o processo pelo qual Deus nos livra do sofrimento e que é indicado na sequência tripla de mistérios do Rosário Aluno: Articulando os quatro temperamentos com os dois tipos de funcionários que o senhor mencionou — o ambicioso e o acomodado —, percebemos que há uma tendência dos temperamentos frios se identificarem com o segundo, em maior ou menor medida. A ambição e a vontade que é necessária para uma pessoa fleumática ou melancólica se realizar tende a ser muito pequena. Quais são os riscos que as pessoas com estes perfis estão mais predispostas a correr e como elas podem superar essa deficiência, do mesmo modo que as pessoas que têm uma continuidade? Luiz Gonzaga: Isso não é verdade. Os temperamentos não são medidas de ambição, mas as formas que ela toma. Se você for ambicioso, aquilo que faz para obter o objeto da sua ambição vai depender das ferramentas que possui. Por exemplo, suponhamos que você trabalha numa empresa, executa várias tarefas e possui determinados talentos. Tudo vai depender de como você executa as tarefas e se manifesta excelência nelas — se for ambicioso, você terá de manifestar excelência. [2:30] A diferença entre os temperamentos aparece no fato de que certas tarefas são fáceis para um e difíceis para o outro, e não no quanto de ambição que possuem. Por exemplo, algumas tarefas exigem uma atitude ou energia melancólica, de modo que dêem mais trabalho para um colérico ou fleumático manifestar excelência. A ambição é análoga ao fogo, queremos alcançar algo. Porém, este é um vício de raciocínio do tipo analógico, que se faz na astrologia. O sujeito embaralha duas coisas que simplesmente são análogas — “se a pessoa é de terra e a ambição é de fogo, então o melancólico não é ambicioso”. Não é isso, apenas são fogos de espécies diferentes. O fogo do colérico é uma coisa e o do melancólico é outra. Ambos estão em planos diferentes da psicologia humana. Mas os melancólicos ambiciosos geralmente são mais bem-sucedidos do que os coléricos ambiciosos, porque costumam fazer com mais competência. Aluno: A compreensão do que é simbolizado por cada mistério nas suas múltiplas possibilidades e contextos pode nos ajudar nas intenções que temos ao rezá-los? Luiz Gonzaga: Pode. Eles têm em comum o seguinte: todos são instrumentos que Deus usa para se apresentar à nossa memória. Há coisas que temos de lembrar e saber a respeito d’Ele. Porém, cada mistério nos apresenta uma característica diferente de Deus e uma característica diferente do ser humano. Em traços bastante gerais, os mistérios gozosos se referem aos tipos de discernimento que precisamos ter sobre a vida; os dolorosos se referem aos tipos de força que temos de adquirir, que são graus de liberdade da nossa vontade (evidentemente a morte é o máximo: aquilo que somos capazes de manter mesmo diante da morte é aquilo que mais queremos, é o nosso prêmio mais valioso); e os gloriosos se referem à participação de uma existência perfeita. É claro que meditar cada mistério com a intenção correspondente é algo favorável. Porém, há duas intenções principais que devemos ter: (1) é como um emprego; não interessa se você está se sentindo bem ou se está se sentindo mal, se está acreditando ou não — apenas faça, não tem discussão; (2) é um momento de lembrança de Deus, onde sabemos que Ele está testemunhando a nossa vida e vendo o que acontece; mesmo que não tenhamos qualquer intenção em particular, ao menos queremos que Ele veja como estamos, porque Deus nos vê de maneira diferenciada, através da Sua onisciência, de modo a sermos iluminados por esta visão. Essas intenções são as mais importantes, elas devem vir em primeiro lugar. Aluno: É sincero ter argumentos suficientes para Deus atender às nossas intenções? Existe alguma diferença em atribuir certas intenções a tais ou quais mistérios e atribuí-las aleatoriamente?

Luiz Gonzaga: É preciso entender o seguinte: se a intenção for pura, Deus irá atender. Santo Agostinho diz que a intenção pura é simples e reta. Ela tem de ter essas duas características. Simplicidade é um elemento volitivo. Então não pode haver malícia nas nossas intenções, para que elas sejam puras. Por isso, a intenção simples é o contrário da intenção maliciosa. Mas também é preciso retidão, a simplicidade não basta para a intenção ser pura. E retidão é um elemento intelectivo. Então é preciso que não haja ignorância. Não adianta intencionarmos sem malícia algo que é ruim: se Deus nos atender, acontecerá algo ruim conosco. É preciso que a intenção seja simples e reta. Santo Agostinho é peremptório: se a intenção for simples e reta, a oração será atendida. Acabou. Ele garante que se a oração não for atendida é porque faltou simplicidade ou retidão. É por isso que ele fala que devemos ser muito pacientes com relação aos pedidos de ordem contingente. Por exemplo, quando pedimos a Deus por dinheiro, amigos ou uma esposa doce. O que é de ordem contingente pode ser favorável ou desfavorável para nós, e isso depende de contextos que desconhecemos. É por isso que muitas vezes fazemos pedidos dessa natureza e Deus não atende. Faltou retidão. Santo Agostinho fala de retidão não no sentido moral, mas no sentido intelectivo. O contrário de uma intenção reta é uma intenção ignorante. É quando não sabemos objetivamente o que estamos pedindo, além do efeito real que isso teria nas nossas vidas. Deus ama a realidade. Se o efeito real do pedido for ruim para nós, é obvio que Ele não vai atender. Por outro lado, pode ser que estamos pedindo uma coisa objetivamente boa para alimentar uma intenção ruim — subjetivamente ruim —, daí vem a malícia e Ele não atende, por não querer alimentar a malícia em nós. Então a intenção faz toda a diferença. Santo Agostinho dizia que toda a diferença é determinada pela intenção. Mas vamos definir claramente o que é uma intenção pura, porque as pessoas normalmente pensam que uma boa intenção é apenas uma intenção que aparentemente não tem malícia. Alguém pode dizer que não vê uma raiz de malícia no pedido que faz. Mas talvez ela não se conheça tão bem assim. Quantas vezes não acontece de queremos uma coisa, achando na maior inocência que realmente a desejamos? Os nossos amigos dizem que não devemos querer aquilo, que não vêem nada de crescer em nós se a obtivermos. Eles estão enxergando uma maldade que nós mesmos não vemos. Então existe em nós uma tendência de falar que a intenção é boa se aparentemente ela não tiver malícia. Mas, para uma intenção ser realmente boa, ela tem de ser completamente sem malícia. Isso é muito difícil de acontecer. Fazer a Deus um pedido que não tenha nenhum elemento de malícia é dificílimo. Ter a intenção reta é igualmente difícil. De onde Deus tira [2:40] esse julgamento? É simples: a existência é fruto de Deus, de modo que Ele decide a respeito de quais coisas existirão. Então a existência perfeita é criação Dele. Para recebermos uma existência perfeita, é necessário termos uma vontade perfeita e uma inteligência perfeita. Caso contrário, não poderíamos usufruir dela. A retidão é necessária para uma inteligência perfeita, não podemos ter ignorância a respeito do que é bom ou mau para nós mesmos. E para termos uma vontade perfeita, não podemos ter malícia. Este é o princípio de toda intenção pura, sendo que toda oração com intenção pura é atendida. É um consenso. A intenção pura é mais difícil de obter do que geralmente se pensa. Nós achamos que a maior parte das nossas intenções é boa, porque tendemos a olhá-las com o olhinho de pomba e olhar as dos outros, do mesmo modo que a situação do mundo, com o olhinho de cobra. Então temos a tendência de olhar para nós mesmos somente com o olho de pomba — “eu sou um cara tão bonzinho, tão legal, tão bom” —, nós não tendemos a olhar para as nossas intenções como os dois olhos alinhados num foco.

Aluno: O senhor pode comentar sobre o método ortodoxo de rezar o Rosário? Me parece que seria em latim, contemplando três ícones. E quanto à meditação em si? Os hesicastas dizem que não devemos utilizar a imaginação. Qual é a prática ideal desta oração, principalmente no que se refere à contemplação dos mistérios, de modo que a mente não fuja para outros assuntos? Luiz Gonzaga: Existem várias maneiras tradicionais de rezar o Rosário. A mais tradicional que aprendi foi utilizando um ícone da Santíssima Virgem Maria com o menino Jesus, ou da Sagrada Face do Cristo, ou do Pantocrator. Coloca-se o ícone na direção leste. Se ela não estiver disponível, pode colocar na direção norte. Caso a direção norte também não esteja, põe na direção oeste. Mas se a direção oeste também não estiver, fica na direção sul. Primeiro eu aprendi que as pessoas rezavam sentadas, sendo que uma delas fazia metade da oração e as outras terminavam o restante. Porém, a forma mais monástica que eu já vi foi com as pessoas rezando em pé, dois terços do ícone acima da linha dos olhos e um terço abaixo, de modo que para olhar o ícone seria necessário erguer um pouco os olhos. A cada Ave Maria devemos nos prostrar, e para fazer a meditação do mistério podemos nos sentar ou ajoelhar, como for mais adequado. Na recitação do Glória, nos inclinamos. Ao sair do ambiente, não se pode simplesmente virar as costas ao ícone. Devemos fazer um pedido especial ou agradecer a esta presença, para daí nos retirarmos. É claro que há outras maneiras de fazer. Em alguns mosteiros, é comum ter uma imagem com as imagens dos mistérios em torno dela. Mas a que eu mais conheço é esta em que se tem um ícone principal, que é o da Santíssima Virgem Maria com o Cristo ou somente o Cristo. Essas são as imagens que eu já vi serem utilizadas, mas imagino que se possa utilizar outras. A forma mais tradicional que eu já vi, que possui uma prática bem consistente, é esta em que a pessoa se ajoelha ou se senta para meditar um mistério, levanta para rezar o Pai Nosso, faz uma prostração, reza uma Ave Maria, seguida por outra prostração, daí se inclina no Glória e depois senta novamente para outro mistério. Antigamente, as pessoas rezavam um hino mariano ao final, conforme o tempo litúrgico. O Salve Regina é o hino mais comum por corresponder ao tempo comum, que é o mais longo do tempo litúrgico. Mas não há problema em fazer somente o Salve Regina. Este é o hino mariano padrão, que se faz em pé. [2:50] Aqui temos o método principal. Quanto ao uso da imaginação, é preciso entender que os apóstolos e os santos padres eram semitas. No começo da sua história, o Cristianismo foi crescendo em dois grupos de pessoas: (I) os gregos e romanos; (II) os povos de ascendência semita, que eram os sírios, egípcios e árabes. Quanto mais os grupos éticos se diferenciavam, mas as práticas espirituais iam se diferenciando também — cada povo tem de usar aquilo que possui. Há um mestre budista do séc. XX chamado Suzuki, que diz numa passagem que os gregos eram o povo menos imaginativo que já tinha visto, apesar de serem muito inteligentes, e os contrasta com os indianos, dizendo serem os mais imaginativos que já viu. Na mente dos indianos, tudo é fantástico. Basta olharmos para a arte dos gregos e romanos e percebemos que eles não eram muito imaginativos. Apesar de termos herdado deles muitas coisas boas, todos os grandes estilos de arte vieram de outros povos do ocidente: os judeus, os egípcios, os celtas, os germânicos, e assim por diante. Se você disser para um grego ou romano que ele tem de praticar através de um método mais direto, cujo principal instrumento é a imaginação, ferrou. Todo o mundo de lá vai para o inferno e ninguém vai ficar santo, porque é algo que eles não têm. Por outro lado, os semitas sempre foram um povo com bastante imaginação. Mas é uma imaginação muito lasciva e sensorial. É por isso que eles dizem que não devemos fazer imagens. Para eles, as imagens nos tornariam idólatras e tudo acabaria virando orgia. Se fizermos imagens, tudo vira barroco. Então um método que lança mão da imaginação também não é favorável a eles. Já os povos célticos e germânicos tinham uma imaginação muito viva e pura, era um jeito diferente de ser.

Essa é a tintura do Cristianismo Ocidental. Os povos sempre estiveram em contato uns com os outros, graças às entradas e estruturas dos mosteiros. Os monges italianos sempre visitavam os ingleses, os monges franceses sempre visitavam os alemães, e assim por diante. Então sempre havia bastante interação. O uso da imaginação depende da nossa capacidade de fazê-lo bem, se temos bastante imaginação e se ela é suficientemente limpa e estável. Eu entendo perfeitamente quando um ortodoxo diz que não se deve usar a imaginação. A Ortodoxia teve origem na Grécia e foi se estendendo pela Europa Oriental. Não é que os povos de lá fossem mais pagãos do que os povos da Europa Oriental, a questão é que o paganismo deles era mais hardcore. Era algo que ficava entre as mitologias da Europa Ocidental e a pura macumba. Então se tratava de um negócio mais carregado e sangrento. E a imaginação deles era moldada por isso. Por outro lado, os celtas e germânicos tinham uma tradição iconoclasta que era contrária à representação de figuras divinas, era uma idolatria diferente que não estava alimentada pela imaginação. Os santos que chegavam àqueles povos convertiam as pessoas e diziam: “não imagine nada, porque em cinco minutos a sua imaginação vai se torcer para uma direção errada”. Como falamos, o homem é memória: aquilo que ele produz na imaginação é o que vai se tornar espiritualmente presente. Apesar da memória espiritual ter este efeito, nós temos uma visão muito cartesiana da realidade: “só porque eu imaginei uma coisa torta, ela me foi atraída?” Sim, no mundo existem coisas que são puramente espirituais, e essas coisas lançam a sua atividade sobre nós, quando pensamos nelas. Por causa disso, a imaginação é bastante perigosa. Nós criamos imagens que mudam e evocam outras, que facilmente podem ser imagens tortas. Isso é um fato no ser humano. Por exemplo, eu me lembro de uma época em que eu tinha vários amigos que frequentemente rezavam o terço. Havia uma devoção da qual eu gostava muito, que era a novena da Rosa Mística. Aquela imagem era muito bonita e legal. Quando eu perguntei por que haviam três rosas de cores diferentes, me trouxeram a foto de uma escultura da Rosa Mística, era linda. Era uma imagem alemã, a cara de uma amiga minha. A imagem era realmente bonita, mas eu sempre fui uma pessoa com a imaginação sensível, até em exagero, e demorou mais ou menos seis meses para eu olhar uma imagem da Santíssima Virgem Maria e não pensar na minha amiga. [3:00] Para piorar, ela também chamava Maria. Se eu tivesse pensamentos relativamente indecentes em relação a ela, seria um pecado. Outro pecado diferente seria se eu estivesse rezando e misturasse as duas pessoas. E esse é um perigo da imaginação, porque ela mistura as coisas. Ela não é como o pensamento, onde os conceitos são limitados e separados. Na imaginação, as substâncias são plásticas e mudam de forma antes de percebermos. É nesse sentido que os Santos Padres e os ortodoxos são desfavoráveis ao uso da imaginação. Porém, os povos do norte da Europa Ocidental tinham uma imaginação mais limpa e vinham de uma ambiência com um paganismo muito diferente do paganismo greco-romano. Primeiro, devemos nos lembrar que eles eram incivilizados e não viviam em cidades grandes. Não é que eles fossem selvagens, primitivos e inferiores, mas eles viviam basicamente em aldeias com casas de madeira e tinham muito contato com a natureza. Uma das vantagens disto é que a imaginação fica mais limpa. O material de onde se cria as imagens vem mais das árvores, rios e pedras, do céu e o pôr do sol, em vez dos corpos e ações humanas. Então é mais fácil o sujeito usar a imaginação de maneira favorável, já que a imaginação, ao se desfazer, volta naturalmente a um padrão que é o próprio cenário. Eles tendiam a favorecer a imaginação nas suas práticas espirituais. Por exemplo, o método espiritual da Santa Tereza era justamente imaginar as pessoas e o Cristo naquele cenário, até ter aquilo que ela denominava bom pensamento, daí fazer a oração. Se tivermos uma boa intuição, uma consolação ou uma boa disposição em relação a Deus e às coisas do Céu, então esquecemos o que imaginamos e fazemos a oração. O método dela era basicamente imaginativo e funcionava, já que ela virou a Santa Tereza. Então algum valor esse negócio deve ter. Por isso é bem difícil dizer

se devemos ou não devemos usar a imaginação. Com relação aos mistérios do Rosário, geralmente eu uso a imaginação tentando recriar o cenário. Mas eu vou falar a verdade para vocês: eu costumo evitar ver coisas que sujem a minha imaginação. Por exemplo, eu vejo muito poucos filmes. Eu sei que as pessoas assistem a qualquer coisa e ouvem qualquer tipo de música, mas isso está moldando a imaginação delas. A imaginação é muito sensível, é muito fácil destemperarmos uma coisa por ela. Por exemplo, eu não vejo filmes que mostrem a face do Cristo. Eu olho o Santo Sudário e as imagens tradicionais da Sagrada Face, todos os dias e regularmente. Quando é um fulano maquiado de Cristo, eu não quero ver para que aquilo não entre na minha imaginação. Eu quero ver os rostos de pessoas que são o Cristo, então procuro os santos que possuem fotos. Alguns são recentes e têm fotos. É ótimo termos fotos da Santa Gema e do Pe. Pio. Eles são o Cristo, é o Cristo que vive neles. Então a vida que aquela imagem nos transmite é a vida do Cristo. Por outro lado, o ator do filme provavelmente tem uma vida horrível. A vida que há naquela pessoa deve ser desgraçada, já que a maior parte dos atores são pessoas inferiores. Talvez seja um bom ator, que representa bem determinado tipo humano, de modo que isso acabe predominando sobre a vida que ele tem e a minha imaginação consiga acreditar que aquele não é o fulano de tal, mas o Hamlet. Porém, eu nunca conseguiria acreditar que é Jesus Cristo. Caso acredite, vai ser ruim, porque ele não é o Cristo. A imaginação é plástica por natureza. É muito difícil mantê-la limpa, por isso temos de favorecê-la. É verdade que Santa Tereza usava a imaginação, mas ela nunca viu um homem pelado. Nesse contexto, é fácil aproveitar a imaginação. Em parte, esses avisos contra a imaginação possuem algo de razoável, porque a nossa imaginação hoje é altamente poluída. As coisas que temos ali não são do tipo que queremos trazer à mente na hora de rezar. Em primeiro lugar, é bom ter um ícone do Cristo ou da Santíssima Virgem Maria e focar a atenção na imagem. Você olha e tenta imaginar como eles se sentiram naqueles eventos. Então vai ter a narrativa do evento, [3:10] que são os mistérios, e a imagem da pessoa que o testemunhou. E você deve pensar nessa pessoa, o que aconteceu com ela ao ver isso. Em segundo lugar, é preciso saber que se você não está vendo a luz divina ao imaginar, então não é isso. É importante saber que não é Deus que você está vendo, com o impulso que deu; você ainda não conseguiu lançar a pedra, mas amanhã vai tentar de novo — e assim por diante, até visualizar. É bom e favorável pensarmos em termos de narrativa. Como aquela pessoa se sentiu naquele evento? Por que ela reagiu daquele modo e não de outro? E também saber que a Santíssima Virgem Maria e o Cristo eram pessoas que tinham discernimento de Deus. É preciso lembrar que a Santíssima Virgem Maria não tinha o pecado original e estava na mesma condição de Adão. Ela tinha um discernimento perfeito e uma vontade perfeita. Então não adianta imaginar que um anjo apareceu para nós e disse que somos escolhidos para uma missão de Deus. É diferente. Se o anjo aparecesse para uma pessoa com inteligência e vontade perfeitas, como essa pessoa iria encarar? Que efeitos isso teria? Qual seria o preço da situação para ela? Que novidades aquilo traria? O ícone existe justamente para cristalizar a nossa imaginação, quando pensarmos nisso. Ele não vai mudar de forma. Se a nossa imaginação começa a andar para o outro lado, olhamos para o ícone e ela volta para lá. Por isso é bom usarmos o mesmo ícone muitas vezes: a imagem ficará impregnada na memória. Santa Tereza também dizia isso. Em seu método, ela ensinava às monjas que deviam ter uma pequena imagem do Cristo guardada no hábito e olhá-la no curso do dia para pensar naquela Pessoa. A imagem sempre faz a imaginação voltar. Entendam que essas instruções estritas sobre o uso da imaginação em parte tinham razões étnicas,

as pessoas daqueles povos sentiam as coisas de tal ou qual maneira. E em parte porque a imaginação humana se corrompe facilmente. Então nós podemos usar a imaginação, mas o fazemos moderadamente e com o uso de uma imagem que nos faz voltar e pensar sobre o que aconteceu com a pessoa que está representada. Também ter sempre o critério: se não somos transportados subitamente à visão divina, então o que realmente aconteceu não foi isso que imaginamos. Aquela pessoa tinha um discernimento perfeito da realidade, e os momentos que compõem os mistérios foram destacados porque indicam não somente isso, mas também que esta perfeição da inteligência e da vontade foram satisfeitas pelo encontro com Deus, que se manifestou. Por um lado, os mistérios do Rosário são indicações das perfeições do ser humano, que se encontram nestas três categorias mais largas: conhecimento, vontade e existência. Por outro lado, eles mostram que quando uma pessoa tem essas três características ela se encontra com Deus e participa da vida divina. Então cada mistério está falando sobre perfeição da vida humana e algo sobre a vida divina. Se na oração você não percebe isso claramente, de modo a se transformar, a meditação foi imperfeita e incompleta. Ela é como uma pedra que giramos para lançar. Estamos sempre nos exercitando para girá-la, o braço fica mais forte e o olho mais preciso. Cada um de nós tem de ver por si mesmo o quanto a imaginação está favorecendo ou desfavorecendo a meditação. Se ela estiver misturando a meditação com outros pensamentos e imagens, você olha para o ícone e pensa: “esta pessoa está na minha frente”. Isso é muito importante. Imagine que você é um vidente e na sua frente está a Santíssima Virgem Maria com o menino Jesus ou o próprio Cristo. Eles estão presentes como testemunhas do que você está fazendo e te conhecem como pessoa, eles estão vendo a sua existência. E para ver a existência deles você usa os mistérios. Como é o existir da Santíssima Virgem Maria ou do Jesus Cristo? Ao fazermos isso, eles vêm até nós e isso se reverte em conhecimento que temos de nós mesmos. Então nós pensamos neles como se realmente estivessem presentes, tentando imaginar o que se passava nas suas almas quando aqueles eventos aconteceram, até termos o que Santa Tereza chamava de bom pensamento. Um bom pensamento é um pensamento que gera calor ou frieza. Quando começamos a rezar, estamos numa temperatura morna e temos de gerar calor ou frieza. Estamos entre Deus e o mundo: “eu quero a salvação, mas estou atarefado com outras coisas da vida”. Está escrito no Apocalipse: “o morno não serve para Deus, mas o quente e o frio servem”. E um bom pensamento é frio por causa do seu testemunho de que você não vale nada. Há pouco estava fazendo o contrário de rezar. Então é preciso frieza e indiferença para continuar rezando: você sente vergonha e humilhação, você tem pouca esperança por ver que não vale nada. Porém, Deus vai te salvar se você esquecer de como você é. Isso se chama frieza, é uma indiferença a si mesmo. Mas também pode ser um pensamento quente, de como Deus é bom, de como essa oportunidade é maravilhosa [3:20] ou de como Ele te ama por você ter recebido uma graça pela esmola que deu uma hora antes. Algo na meditação do mistério te levou a um pensamento de calor, que atrai a Deus na medida em que o faz pensar n’Ele. Então você tem de fazer isso até gerar um bom pensamento e oferecê-lo a Deus. É preciso gerar frieza ou calor e sair do morno. Se for frio ou quente, Deus disse que vai gostar. Ele já nos avisou que aceitaria esse pensamento. Então nós vamos oferecê-lo nas nossas palavras e receber algo em troca. Estamos falando em morno, frio e quente em termos de como fazer o Rosário enquanto método espiritual. Nós só avançamos com frieza ou calor. Para sermos salvos temos de ser constantes. Ninguém estará morno em toda vez que rezar. Se você estiver rezando todos os dias, terá pensamentos frios e quentes de forma espontânea. Não há como estar sempre morno porque estará perseverando. Vai haver dias em que você não quer fazer aquilo, mas tem de fazer. Aqui você já está no frio e pode fazer esta oferenda, porque foi indiferente ao que você mesmo quer. A frieza nos separa de nós mesmos, ela é algo que nos tira dos nossos gostos e nos coloca diante de Deus, se tivermos uma disciplina constante. Pelo menos um terço das suas orações será feita com frieza, mas ela é agradável a Deus. Inevitavelmente também haverá dias em que você se sente muito contente e

morre de vontade de agradecer a Deus, o que é uma oferenda de calor. Vai ser de um jeito ou de outro. Se você quer avançar, então precisa fazer a meditação até criar um pensamento quente ou frio e oferecê-lo: “Deus, isso é o que eu tenho hoje”. E Ele irá aceitar. Na carta VII do Apocalipse, Ele diz que vai bater na porta de quem fizer isso: “Aquele que abrir, eu cearei com ele e ele ceará comigo. Nós partilharemos do mesmo alimento e da mesma vida.” Quando oferecemos esses pensamentos frios ou quentes a Deus, Ele bate nas portas das nossas almas e as cerca de oportunidades para deixarmos Ele entrar e o conhecermos intimamente. Isso pode acontecer em outros momentos da vida, além da oração. Mas elas criam essas oportunidades. Isso é metade da técnica espiritual. Os santos diriam o seguinte: uma coisa é criarmos a boa oração, outra coisa é sermos como uma aranha espiritual. As nossas vidas têm de ser como teias, e nós sentamos ali no meio para observar quando a presa — Deus — cai ali. A boa oração é a que oferece pensamentos frios ou quentes, e isso atrai Deus. Ele tem amor por essas qualidades. Então Ele cai na teia, sendo que a aranha é muito sensível a qualquer coisa que caia ali. Isso faz com que nós O encontremos em ocasiões da nossa vida, de modo a tê-Lo e participarmos da Sua vida. E a técnica para isso é oferecermos pensamentos frios e quentes. Podemos meditar os mistérios usando ou não usando a imaginação, fazendo com que tenha uma estrutura narrativa, pensando nas circunstâncias da vida, em como foi o dia ou no que temos para oferecer no momento. Tudo isso são instrumentos para alcançarmos o ponto em que temos uma oferenda fria ou quente. E se estivermos fazendo o esforço de meditar os mistérios, inevitavelmente chegaremos a isso. Haverá dias em que você não vai enxergar nada e não vai entender o mistério, mesmo que acredite que há um motivo ali. Nessa hora, vai vir uma coisa em você, dizendo: “este não é o método”. Quando isso acontece, geralmente as pessoas param de fazer a oração ou tentam fazê-la de um jeito diferente, em vez de perceberem que é o momento de fazer uma oferenda de frieza. É preciso entender que os momentos de calor são para expulsar as coisas ruins que há na alma. O fogo é algo que expulsa, enquanto que a frieza é algo que faz as coisas boas entrarem ali. A dialética do número 4, segundo o Mário Ferreira dos Santos, é análoga ao esquema da dialética budista de compensações. Ao constatarmos uma deficiência espiritual que temos — “eu não vejo nada do mistério, eu vejo somente que sou um miserável, eu devo estar fazendo tudo errado” —, nós oferecemos a Deus uma oração. Isso cria em nós um espaço para algo bom entrar nas nossas almas, por mais que pensemos que isso acontece somente quando temos um bom sentimento, uma devoção ou uma consolação. Santa Tereza tinha uma linguagem própria bem técnica. Ela dizia que o bom pensamento não é necessariamente uma consolação: os bons pensamentos podem ser consoladores ou desoladores. Então ela não estava falando sobre tudo ser gostoso. As pessoas pensam que ter uma consolação é ter uma coisa boa, mas ela é boa por tirar coisas ruins. A desolação, que é o pensamento frio, é boa por criar um espaço dentro de nós. [3:30] É como se o pensamento frio nos furasse, e este furo fosse uma abertura para Deus. O seu objetivo é conhecer Deus e se tornar um ser humano perfeito. Um meio de nos aproximarmos disso é a oração, na qual temos de usar o que estiver no nosso escopo naquele momento. Como método, geramos um bom pensamento, que é um pensamento frio ou quente, e ele se mantém na memória enquanto olhamos a imagem e ela testemunha o pensamento que oferecemos. Porém, não é somente um pensamento que estamos oferecendo. Às vezes a pessoa reza ocasionalmente, mas a oração é sempre morna. Então ela nunca está oferecendo nada, mas apenas pedindo. Só que alguma coisa tem de subir de nós para Deus, é preciso fazermos uma oferenda. Algo tem de se tornar presente em nós, para que Deus aceite e coloque em Si mesmo — e Ele aceita só comida quente ou fria, não morna.

Ou estamos fazendo um julgamento contra nós mesmos e vamos fazer a oração (apesar de sermos quem somos), ou sentimos gratidão e admiração por Deus, e assim por diante. Esses são os dois tipos de pensamento que propiciam o favor divino, que é o de Ele bater na nossa porta. Mas antes de dizer que bateria na porta, Ele disse que virá como um ladrão e que não saberemos quando. Ele vai passar diante de nós, mas nós não o veremos, não iremos adquirir conhecimento e nem progredir na vida espiritual. Então será como uma rasteira. Ele estava dizendo que se fizermos como ensinou, Ele vai bater na porta e dar um pressentimento de quando se aproximar das nossas vidas, para ficarmos atentos às graças que recebemos, observarmos a Sua presença e conhecê-lo melhor. Sem um método de oração, jejum e esmola, Deus irá passar nas nossas vidas como um ladrão, e não saberemos quando Ele isso acontecer, pois o ladrão tenta se esconder deliberadamente. Então Ele está dizendo que vai passar, mas vai tomar todo o cuidado para não ser visto — e Deus deve ser razoavelmente competente, de modo que não o veremos se Ele não quiser. Por outro lado, uma pessoa que bate na porta quer que os outros saibam que ela chegou e quer que se preparem para isso. Se Deus bater nas nossas portas, teremos a oportunidade de interagir com Ele livremente e conscientemente. A interação com Deus é o progresso espiritual. Aluno: O que significa estar espiritualmente irrecuperável? Luiz Gonzaga: Com isso, eu quis dizer o seguinte: você não sabe quais são os pecados dos quais conseguirá se livrar e muito provavelmente vai morrer com algum pecado habitual. Não significa necessariamente que morrerá no ato do pecado ou com algum pecado sem confissão — um pecado atual. Porém, muito provavelmente morrerá com algum hábito ruim. Não há como garantirmos para nós mesmos que vamos limpar todos os nossos pecados e que na hora não teremos mais nenhum hábito pecaminoso ou vício. Aqui eu uso “vício” no sentido teológico técnico, de modo que fumar não é um vício. Talvez até seja ruim para você, mas Deus não vai impedi-lo de entrar no Céu por causa disso. Não existe um mandamento assim, esse não é um dos critérios de Deus. Então não há como ter certeza de que você vai conseguir. Nem S. Francisco tinha certeza: ele via tendências ruins em si mesmo e não sabia se conseguiria se livrar daquilo antes de morrer, por mais que estivesse tentando. Na hora da sua morte, podem haver elementos da personalidade que são espiritualmente irrecuperáveis. Não é que você inteiro seja irrecuperável. Se fosse, iria para o inferno e acabou. Se você todo não presta, então não vai dar. Mas por mais que haja elementos parciais irrecuperáveis, você não é irrecuperável como um todo. Jesus diz: “Se a tua mão direita te leva a pecar, arranque ela. É melhor ir sem ela para o Paraíso do que tê-la e ser condenado ao inferno.” Ele quis dizer que não precisamos ser integralmente perfeitos para sermos salvos. Ou seja, não precisamos ter as duas mãos, é possível ir maneta: se alguém não tinha determinada virtude, ao menos arrancou a possibilidade de ter o pecado contrário. E ainda é possível sermos salvos com uma perfeição parcial. O Céu não prometido somente aos perfeitos, mas a todos os iniciados. Segundo os Santos Padres, há o iniciante, o avançado e o perfeito. O Céu também é para as pessoas que já fazem parte do negócio, que têm religião e a praticam direitinho. É claro que será preciso que passem por um processo de purificação, porque há elementos [3:40] da personalidade que são imperfeitos e não foram corrigidos. Mas também há elementos que foram corrompidos de maneira irremediável. São coisas possivelmente boas aos seres humanos, mas que ficaram de um modo que nos levaria a fazer o mal. E não há como termos plena consciência de quais são esses elementos. Porém, podemos ter certeza de que são parciais. Por exemplo, se um sujeito tem o pecado da masturbação, ele reza antes e depois. Entre um ato ruim, há dois atos bons. Então é garantido que isso é só um elemento parcial da personalidade, e não ela inteira.

Aluno: Qual é a periodicidade mínima para rezar o santo terço? Há horas mais propícias, que otimizem os efeitos da oração? Ao longo do dia, quais orações curtas devemos fazer e quais são os seus respectivos horários, de modo a usufruirmos das eventuais portas espirituais? Luiz Gonzaga: Eu não tenho autoridade espiritual para dizer qual é o mínimo. Se eu não me engano, houve uma aparição em que a Santíssima Virgem Maria disse que o mínimo, indispensável e saudável é quatro horas por dia de oração. Eu te digo que é melhor fazer cinco minutos do que não fazer nada. Mas não pense no mínimo que precisa para sair da miséria. Não é bom pensar nesses termos. Pense do seguinte modo: “como eu posso ganhar algum dinheiro agora?”. Você precisa começar a fazer. Depois disso, qual é o mínimo? Quando estiver com medo de que não vai conseguir fazer, faça uma dezena pela manhã e outra pela noite. Assim não há desculpa para falar que não dá. Não quem não possa fazer assim. Pode ser alguém que está na UTI com câncer avançado e sente muita dor, de modo que só consiga gemer — o que é uma exceção. Num caso assim, o máximo que se pode fazer é direcionar o gemido a Deus. Porém, se você está saudável ou tem no máximo uma gripe, uma dor nas costas, e diz que não consegue fazer uma dezena pela manhã e outra pela noite, então está de vagabundagem. Você não quer nada. Vá para o inferno e não me amole. É melhor fazer um terço por dia, e você verá o que é mais fácil: se é fazê-lo no começo ou no fim do dia. Mas não muito no fim, porque você estará com sono. A última meia hora do dia não é a mais favorável para fazer o terço. Você teria muito sono durante a oração. É muito comum sentir sono durante a oração, mas fazer na hora em que tende a estar com mais sono é pior. Há mais causas para não fazer direito. Então faça no começo ou no fim do dia. Quando já estiver fazendo o terço no começo ou no fim do dia, no outro momento você também faz uma dezena. Um terço e uma dezena já é um estágio mais avançado. Depois de um tempo, você tenta fazer um Rosário por dia. Idealmente, o melhor é dividi-lo em três partes ao longo do dia. Isso vai te dar uma consciência constante de Deus. Se você já faz o Rosário todo pela manhã, então faça também uma dezena nos outros períodos. Mas o ideal é rezar os mistérios gozosos pela manhã, os mistérios dolorosos pela tarde e os mistérios gloriosos no fim do dia. É uma boa distribuição. Os melhores horários são os estão favorecidos na Escritura: seis da manhã, nove da manhã, meiodia, três da tarde e seis da tarde. Cada um desses horários é marcado por algum evento sagrado. Mas em princípio você pode articular o melhor para você de forma concreta. Depois que a oração tiver se tornado um hábito, você pode reorganizá-lo de modo a bater com os horários marcados por momentos sagrados. Aluno: No tempo de Santo Alberto Magno, a Ave Maria era só a saudação angélica e a saudação de Santa Isabel. É melhor rezar só com essas saudações ou com a segunda parte também? Luiz Gonzaga: Todo o mundo que eu conheci e que me ensinou algo da vida espiritual fazia da forma completa. Mas eu também conheci pessoas que ao longo do dia rezavam só a saudação, por ser mais breve e poder gerar um bom pensamento. Lembre-se do seguinte: durante o dia, você pode ter pensamentos frios ou quentes e oferecê-los a Deus em ato de oração, então se faz de uma forma mais breve. Também pode ser a oração de Jesus, assim como um verso dos Salmos. Os Salmos são muito bons, porque ao conhecê-los bem você verá que os seus pensamentos frios ou quentes são expressos de maneira muito rica e precisa em determinado verso. Eles são uma forma perfeita de expressar pensamentos frios ou quentes. Os salmos nunca são mornos. [3:50] A familiaridade com os salmos é boa para isso. No curso do dia, é favorável usar uma fórmula abreviada. Eu não estou dizendo que não se pode fazer o Rosário. Eu não conheço ninguém que tenha falado que não podemos fazer, que seria prejudicial e que causaria um efeito espiritual maligno. O que eu

quero dizer é que há muitas coisas na vida espiritual que aprendemos com explicações e outras que aprendemos ao ver os melhores fazendo. Nós não os questionamos quando vemos, porque eles entendem melhor. Eles não são o próprio Deus, mas são pessoas que se acostumaram a reconhecer a batida de Deus na porta. Se perguntarmos a elas como reconhecem a batida, elas não vão saber explicar. Muito do que elas fazem veio de um reconhecimento auditivo, e não de uma explicação. Então não há um fim para escrever livros, como diz a própria Bíblia. A mais importante na vida não é saber tudo: o Dom da Inteligência — que nos permite ver as coisas tais como são — não é o estágio mais elevado, mas sim a Sabedoria. É quando não sabemos qual é a verdade, mas preferimos a coisa que de fato é a verdade. Essas pessoas nunca pensaram em muito do que fazem, mas elas reconhecem o som da batida de Deus no que estão fazendo. Quando abrem a porta para saber quem está do outro lado, elas não descobrem quem era porque não abriram a tempo. Deus bate na porta e sai muito rápido. Porém, elas estão desenvolvendo esse senso de pressentimento. Ninguém me falou que é desfavorável fazer na forma abreviada, mas todos faziam na forma completa. Aluno: Conversamos com o Gustavo Abadie e o Jorge Miguel sobre a exclusividade das devoções marianas entre alguns homens, sem que eles tivessem nenhuma devoção masculina ou seguissem exemplos. E também sobre o comportamento efeminado do clero. Não que a devoção mariana cause isso, mas não parece estar faltando devoção aos santos de virtude e força masculina? Luiz Gonzaga: Eu vou falar uma coisa: devoção mariana não tem nenhum efeito colateral. Devoções a quaisquer outros santos podem ter efeitos colaterais, mas a devoção mariana, não. A primeira coisa que falta aos caras é o jejum. Não se vê ninguém falar em fazer um jejum mais pesado. O fato é que se tiver uma vida muito macia, o sujeito boioliza. Então a abstinência viriliza os homens, mais do que a devoção mariana. É extremamente importante fazer listas e lembrar dos santos guerreiros e santos reis, cuja profissão era matar, porque a tendência hoje é entrar na religião e virar pombinha. Essa é a grande deficiência. O negócio é ser pombinha com Deus e cobrinha com o mundo, ter um equilíbrio. Mas o sujeito se sente insincero ao fazer isso e não quer virar cobra na Igreja, por isso vira pombinha. É um conflito cognitivo: ele não entende que não é saudável para o homem ser pombinha na igreja e no mundo. Porém, é preciso olhar para tudo o que fazemos com os dois olhos. Se você estiver fazendo uma coisa boa, toda retificação necessária será subjetiva. Ela vai se dar no seu aparato interior, na sua alma, e não na ação em si. Isso se faz quando vemos e julgamos as coisas claramente. Acontece que quando o sujeito vai rezar, ele acredita que deve pensar em pombinhas, que o fardo é leve e o jugo suave, e assim por diante. Se estiver fazendo isso, você está cometendo um erro, porque não está vendo Jesus Cristo com os dois olhos. O alinhamento dos dois olhos é necessário para o entendimento de qualquer coisa, porque nenhuma das representações por si é adequada: elas são representações bidimensionais, daí a analogia com os dois olhos corporais. Cada olho nos dá uma imagem chapada, mas os dois combinados criam um senso da terceira dimensão. O mesmo acontece com a inteligência: devemos pensar como pomba e como cobra, e depois combinar os dois numa imagem só. A partir disso, começamos a enxergar as coisas como elas são. A devoção mariana em si é uma ação boa, de modo que quaisquer efeitos ruins que estiverem surgindo não são reflexo da devoção, mas de disposições da sua própria alma. Ou você está com os dois olhos fechados, ou está vesgo. É disso que vem a deficiência. Eu vou dar um exemplo: o sujeito vai à liturgia e vê um sacrilégio, mas em vez de sair e procurar outra igreja, ele fica pensando sobre o preceito dito pelo padre ou em qualquer outra coisa. Ele está olhando somente com o olho de pomba, porque está com medinho. [4:00] Se visse com o olho de cobra, ele saberia que a liturgia tem veneno e não comeria — a cobra não é idiota —, ele teria examinado as condições do sacrilégio e confiado no seu juízo sobre a lei, pois a estudou e está seguro. Ninguém trata o dinheiro dessa forma, com medinho. Imagine se para tudo o que se faz as pessoas tivessem medo de perdê-

lo. Elas enterrariam o dinheiro no quintal, de modo que ele desvalorizasse. É melhor procurar aonde investi-lo de maneira a ter mais benefícios do que perdas. É preciso olhar como cobra, porque você quer ganhar alguma coisa e comer algo do mundo. Você tem de encarar a religião do mesmo modo. Suponhamos que antes você era uma pessoa má e para levar vantagem olhava o mundo somente como cobra, mas depois de um tempo foi se retificando, começou a ir à igreja e pensar na religião com o olho de pomba. Essa compensação funciona por um tempo. Objetivamente, ter religião é melhor do que ter um emprego. Por isso a sua vida passa a ser objetivamente melhor quando você entra numa religião, mas ela seria pior se você tivesse somente o emprego — não que ele seja algo ruim em si, mas é um bem menor. Então a sua consciência passa a te acusar de que deveria ter mais religião e menos coisas deste mundo, de que precisa se dedicar mais ao outro mundo do que a este. Em termos subjetivos, isso se traduz do seguinte modo: “você tem de ser mais pomba e menos cobra”. É uma confusão dos diabos. Você sacrifica a cobra e favor da pomba. O que deveria fazer é pegar um pouco de energia da cobra e aplicar na religião, para praticá-la direito. Quando você fizer isso e se tornar prudente como serpente na prática da religião, a sua inocência de pomba se espalhará naturalmente sobre as atividades do mundo, e então você se tornará mais nobre. Em vez de ser um sujeito que briga só por vantagem, você será um guerreiro que entra nas batalhas certas, e isso aumenta a sua dignidade. É preciso entendermos que a pomba é passiva e a cobra é ativa. A pomba é presa e a cobra é predador. Então o olho de pomba é de presa e o olho de cobra é de predador. É preciso que tenhamos os dois, porque, enquanto animais, nós somos tanto presas quanto predadores. Este é um fato sobre a espécie humana. Porém, acima disso cada um de nós é um juiz capaz de avaliar o que é melhor ou pior, e isso nos diferencia dos animais. É possível trocarmos de papel, conforme o nosso julgamento sobre o melhor. Resumindo: cognitivamente nós somos capazes de combinar a visão de mundo da presa com a visão de mundo do predador. Isso nos dá uma visão análoga à visão de Deus, que não é presa e nem predador, mas simplesmente Deus. O que eu mais vejo afeminar os homens é a falta de critérios rigorosos na prática da religião, fazendo-se dela somente um elemento de passividade social. O sujeito faz o que o padre mandou e que a comunidade acha bonito, mas essa passividade é o fator que mais o prejudica. Também, ele sente culpa por não ser assim no mundo e reforça a atitude. Porém, não é preciso fazer o olho de pomba se desenvolver, essa parte cresce sozinha. É preciso aplicar o olho de serpente na prática da religião, para você perceber se está fazendo as coisas corretamente. Não se trata de fazer o que o padre ou o fulano disseram. Faça o seu esforço. Se não fizer, é claro que não terá o elemento combativo. Combater é fazer força. Outro dia eu estava lendo um texto de um preparador físico, e ele dizia que fazer guerra é levantar peso. No campo de batalha, é preciso fazer força. Se o sujeito não fizer força para discernir o que tem de fazer na religião e o que precisa decidir, ele ficará afeminado na sua prática. Isso não acontece por causa da devoção mariana, pois a Santíssima Virgem Maria está na epítome da perfeição espiritual, de modo que tanto o aspecto masculino (recordação de Deus) quanto o feminino (esvaziamento de si mesma) da sua personalidade são plenos. É por isso que tanto na Igreja Católica Romana quanto na Igreja Ortodoxa ninguém pensa nela como irmã. É possível pensar na Santa Tereza desse modo, mas na Santíssima Virgem Maria, não. Nós pensamos nela somente como mãe. Ao pensarmos numa criatura como pai ou mãe, a sua identidade sexual é apagada. Ela é vista como um ser humano superior. É muito bom lembrar das biografias dos reis e guerreiros santos, mas não somente deles. Eu gostaria que vocês também lembrassem de outro tipo de santo. Muitas vezes, os santos eram perseguidos por bispos e até papas por dizerem certas coisas. Mas depois de cinquenta anos eles tinham de proclamar como dogma o que o santo disse. Ele defendeu sozinho o que era correto. Por exemplo, Santo Antão era contra os arianos, mas os bispos, [4:10] padres e fiéis pregavam o arianismo. A defesa solitária da verdade é muito importante, por isso devemos nos lembrar dos

santos que eram assim. Quem estava se opondo a Santo Antão não eram os infiéis, idólatras ou maometanos, mas os bispos e o Papa — um papa ruim que dizia besteiras. Vocês precisam defender a verdade, independentemente do que os outros estiverem falando. Hoje em dia essa virilidade é facilmente esquecida. O mundo está cheio de bons padres. Por que Deus não deixa que as pessoas os encontrem? Porque essas pessoas estão querendo muletas, e não bons padres para ajudá-las. Elas querem não ter a necessidade de julgar mais nada, então não seria bom. Lembremos que Deus disse que viria nos visitar como um ladrão. Está cheio de bons padres por aí, mas as pessoas não encontram. Quando elas têm a idéia de ir à igreja, só tem o padre ruim. Foi Deus quem escolheu este padre ruim, para que pessoa tomasse vergonha na cara e começasse a fazer as coisas corretamente. Daí quando ela vira as costas o padre bom aparece de novo. Aluno: Pode falar sobre a regra de São Pacômio? Luiz Gonzaga: Eu li sobre a regra de S. Pacômio há muitos anos e não me lembro agora. A minha regra favorita sempre foi a de S. Bento, que em parte foi inspirada pela regra de S. Pacômio, em parte por uma regra monástica anônima, conhecida como “regra do mestre”. Como eu sou nascido e criado no ocidente, a maior parte dos monges que eu conheci eram beneditinos, e não pacomitas. Então eu tenho pouca familiaridade com essa regra. Mas existem muitas analogias da regra de S. Pacômio com a regra de S. Bento, embora eu não possa dizer muitas coisas. Há partes da regra de S. Bento que literalmente foram retiradas da outra regra. Aluno: E se essas práticas forem feitas de maneira imperfeita? Por exemplo, uma oração distraída, um jejum confundido com dieta ou uma esmola insuficiente e egoísta. O sabor que teremos será confuso por conta disso? Trata-se de algo mais próximo do católico entediado que só vai à missa ou seria melhor não fazer nada? Luiz Gonzaga: Essa pergunta pressupõe que as suas disposições ou inclinações são estáticas. Mas se elas fossem estáticas, você seria um doente mental. Um dia você vai fazer o jejum como se fosse uma dieta para emagrecer, mas não será sempre. Isso não acontecerá regularmente, porque as suas disposições são dinâmicas. O palco da sua psique está sempre girando. É por isso que no Evangelho está dito que quem perseverar até o fim será salvo. Isso se refere à constância e à disciplina. Como se trata de algo bom que você está fazendo, é muito raro que se fixe e predomine algo ruim ali. Até pode acontecer, porque ninguém está garantido. Pode ser que você seja o pior dos fariseus e arrume uma maneira de falsear todas as práticas. Mas mesmo o fariseu pode cair do cavalo e encontrar Deus. É muito difícil falsear tudo se elas forem feitas por tempo e quantidade suficientes. Aqui entra o elemento de que a prática leva à perfeição. Como dissemos, são coisas boas. Se fossem coisas ruins, não teria como sabermos no que daria. Mas como elas são objetivamente boas, cedo ou tarde as suas intenções vão se alinhar com a bondade intrínseca do ato. Ele é favorável por si mesmo. Notem que não há uma quantidade indefinida e complexa de práticas. Elas são poucas — oração, jejum e esmola —, de modo que se pode praticá-las frequentemente e nelas nos “viciarmos”. Isso é mais possível de acontecer num bom ambiente. Por exemplo, na Espanha do séc. XVI todo o mundo fazia a prática das penitências. As pessoas olhariam feio para quem fizesse. Aquilo era algo que já tinha se tornado público e todos sabiam que todo o mundo fazia, mas não por terem visto os outros fazendo, e sim pelo padre ter dito a todos eles. Numa ambiência como esta, daria facilmente para esquematizarmos um jeito de praticar. Porém, estamos no Brasil do séc. XXI, onde ninguém faz nada a não ser carnaval. Quando começa a fazer oração, jejum e esmola regularmente, você já está nadando contra a corrente. Isso é algo que te faz

empreender mais força e lembrar-se do porquê de estar fazendo tanta força, senão pararia de fazer. Eu acho que é mais provável a pessoa parar do que viciar na prática. Mas pode acontecer de ela passar três anos fazendo as práticas de forma consistente e acreditar que o Céu é para ela. De fato, é [4:20] Tenha um certo grau de segurança, mas não uma segurança total: compare o que você está fazendo com o que os santos fizeram — talvez você não esteja tão garantido assim. É preciso termos idéias corretas, elas são as nossas diretrizes. Se a nossa idéia de boa vida fosse somente fazer oração, jejum e esmola, seria muito fácil preencher a medida. Daria para fazê-lo com apenas três anos de prática. Mas nós devemos entender que somente Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Virgem Maria e os santos tinham vidas realmente boas. Nós devemos ter um alvo adequado. Lembrem-se de que o nosso alvo de vida tem de ser melhor do que nós mesmos. Ele precisa ser perfeito e excelente, caso contrário não seremos saudáveis. Não é saudável para o ser humano ter um alvo que é facilmente alcançável. Na melhor das hipóteses, o sujeito será medíocre. Quando a pessoa vai à igreja, o padre e as pessoas vêem e aplaudem. Mas quando ela está rezando sozinha, ninguém está vendo — somente o ícone. É muito difícil ela rezar todos os dias e nunca pensar no ícone como uma pessoa realmente presente, que vê o que ela está fazendo. Então ela vai se colocar na presença real de alguém. De um jeito meio farisaico, mas se colocou. O ser humano consegue se enfiar em qualquer buraco que acha, por isso eu acho provável acontecer o seguinte: ao encontrar um bom padre e um grupo de pessoas piedosas, o sujeito vai começar a achar que é um cara legal. O Cristo diz que quando recebemos aplausos dos homens por algo que nos faz sentir que somos caras legais, então já recebemos a recompensa. Se este for o principal elemento da nossa devoção, estaremos correndo seriamente o risco de esvaziar o seu conteúdo. Mas se ele vier da consciência solitária, é muito difícil parar. Aluno: Como meditar os mistérios? Eu só consigo prestar atenção nas orações vocais. Quais manuais do Rosário devemos ler? Luiz Gonzaga: Como meditar os mistérios: você tem de pensar no que estas pessoas que estão diante de você pensariam sobre o que estava ocorrendo e qual era o testemunho delas. Se você não estiver vendo Deus, é porque a sua imaginação não chegou ali. Então você tem de fazer até chegar a um bom pensamento, que é um pensamento frio ou quente, e oferecê-lo na oração. Isso é uma boa meditação, qualquer que seja o instrumento utilizado por você. Caso consiga somente de ponta cabeça no yoga, ótima. Talvez seja relendo a passagem do Evangelho correspondente ou a parte da vida de um santo que aborda a mesma questão. Quanto aos manuais, eu nunca li nenhum e nem sei quais são bons. Tudo o que eu aprendi sobre o Rosário veio de pessoas que o praticavam. Aluno: Eu me lembro de ter lido um livro do S. Josemaria Escrivá, onde ele dizia que ao rezar o terço se imaginava como um escravo nas cenas. Luiz Gonzaga: Este é um instrumento para você pensar no que realmente estava acontecendo ali. Eu me lembro de outro, ensinado por um monge: você pode listar todas as pessoas que estavam presentes e tentar se pôr no seu lugar. Isso não somente para os mistérios do Rosário, mas também para a leitura da Bíblia. Você pode se perguntar: “qual destes personagens é mais semelhante a mim?” Ele me disse que se identificava mais com o faraó e se sentia um miserável ao gerar um pensamento frio. Mas este exercício do S. Josemaria Escrivá também é ótimo. Naqueles cenários, certamente existiam vários escravos anônimos que não estão mencionados nas Escrituras. Então você pode se imaginar como um deles enquanto testemunha. Isso é bom para visualizar o cenário como algo real.

Aluno: O senhor falou dos santos que foram perseguidos por pessoas da própria hierarquia da Igreja. Pode dar mais exemplos? O padre Luís falou do padre Pio e do S. João Crisóstomo. Luiz Gonzaga: Santo Atanásio e Santo Antão tinham muitos bispos como inimigos. Eu posso estar enganado, mas acho que não houve nenhum bispo santo que não tivesse um arqui-inimigo que também fosse bispo. [4:30]

Transcrição: Miguel Soriani, Leonardo Yukio Afuso, Fábio Damasceno, Ronaldo Bertoni, Mateus Ecker, Ítalo Santos e Vicente Pessoa. Revisão: Leonardo Yukio Afuso.

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