O Albatroz - Jose Geraldo Vieira

  • Uploaded by: Vinicius Luiz de Souza
  • 0
  • 0
  • February 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View O Albatroz - Jose Geraldo Vieira as PDF for free.

More details

  • Words: 61,018
  • Pages: 180
Loading documents preview...
José Geraldo Vieira

O ALBATROZ Editora Descaminhos São Paulo 2014

Copyright ©2014 by José Geraldo Vieira Vieira, José Geraldo O Albatroz São Paulo, Editora Descaminhos, 2014 Capa Marcio Scavone Edição André Caramuru Aubert Prefácio Alfredo Bosi Produção editorial Clélia Aubert Revisão Douglas Batalha Leda Botton Todos os direitos reservados à Editora Descaminhos São Paulo – SP, Brasil Telefone: 55 11 3062 9057 E-mail: [email protected]

Sumário     JOSÉ GERALDO VIEIRA   PRIMEIRA PARTE     I     BARCOS DE PAPEL     II     O JAZIGO INÚTIL     III     AMOR E LITURGIA     IV     O PRIMEIRO SARCÓFAGO INÚTIL     V     IDÍLIO NA CHÁCARA     VI     O SEGUNDO SARCÓFAGO INÚTIL     VII     O ANJO DE FRA ANGÉLICO     VIII     IDÍLIO NAS LARANJEIRAS     IX     O TERCEIRO SARCÓFAGO INÚTIL   SEGUNDA PARTE     X     O PARQUE E AS ESTÁTUAS     XI     “LA BELLE, SI TU VOULAIS...”     XII     A SANÇÃO     XIII     O ALBATROZ     XIV     “... O MAR, SEMPRE RECOMEÇADO”     XVI     O INFANTE     XVI     AMARRANDO O DRAGÃO POR MIL ANOS     XVII     VIGÍLIA NO PROMONTÓRIO     XVIII     O QUARTO SARCÓFAGO INÚTIL

JOSÉ GERALDO VIEIRA

Alfredo Bosi[1]

No romancista de A Quadragésima Porta sentimos o homem fascinado pela atmosfera da cidade grande enquanto lugar geométrico das angústias e das experiências intelectuais mais re nadas da civilização contemporânea. A sua visão do mundo cou marcada pelos ritmos de uma Paris mítica visitada antes e depois da Primeira Guerra: centro nervoso da arte, encruzilhada de todas as poéticas, de todas as ideologias. Algo daquela febre do último Decadentismo europeu aquece os ambientes e aciona as personagens do narrador que, sem dúvida, foi a voz “diferente” no coro do romance brasileiro das décadas de 30 e 40. E, na verdade, os livros de José Geraldo Vieira são os mais cosmopolitas que já se escreveram em língua portuguesa. Prosa cortada por transcrições de anúncios luminosos, por nomes de artigos franceses e  ingleses e por um sem-número de neologismos, citações eruditas e referências técnicas, ela é uma lente de aumento da linguagem do burguês culto e so sticado que respira ondas contínuas e crescentes de informação. Mas o seu re namento vai mais fundo e chega mais longe enquanto molda criaturas extremamente instáveis e nervosas, incapazes de situar e de resolver os seus con itos fora do quadros culturais da literatura e da arte, sua segunda e de nitiva natureza. A herança de Belle Époque, do art nouveau, é sensível na construção de sua obra; mas seria precipitado classi car de “mundano” um romance como A Ladeira da Memória, onde há lugar para vigorosos lances existenciais. A posição de José Geraldo Vieira em nossa literatura é, assim, marginal. Sem dúvida, é mais fácil opô-lo aos regionalistas que situá-lo paci camente entre os intimistas como Lúcio Cardoso e Cornélio Penna. Porque há nele, além de “tomadas” introspectivas, uma ambição, nem sempre realizada, mas aguilhoante, de revolucionar a estrutura do gênero romance entre nós, e fazê-la surpreendente como um painel entre

impressionista e cubista. Para tanto, joga com os planos da realidade presente e do passado e arma símbolos que os uni quem. O Albatroz foi, nesse particular, a sua experiência narrativa mais feliz, enquanto logrou xar uma constante psicológica (a dor causada pela perda de seres amados) através de uma complexa história de gerações. Em outro romance, centrado intencionalmente na estrutura, A Túnica e os Dados, a inovação faz-se na esfera da sincronia: no breve corte de tempo de uma Semana Santa, transcorrida numa cidade do interior, na capital paulista e em Santos, justapõem-se os dramas de vários gurantes e, a certa altura, a coexistência é xada gra camente pela divisão vertical da página em duas colunas nas quais se narram, paralelamente, os sonhos de duas personagens. Já o ponto alto de Terreno Baldio foi atingido pela xação de Paris ocupada pelos nazistas e vista pelo ângulo de um par amoroso de psicologia tipicamente moderna, citadina e culta até à so sticação. En m, em Paralelo 16: Brasília, o narrador apanha um momento áureo da vida nacional: o tempo de euforia que envolveu a fundação da nova capital. A linguagem carrega-se aí daquele jargão burocrático, eivado de siglas, que parece ser uma das fatalidades da era tecnocrática. O que, somado ao léxico internacional do autor, vem con rmar o caráter  moderno e “metropolitano” da sua cção. Radicalizando as próprias qualidades de atento observador, José Geraldo Vieira tende a construir um romance substantivamente cheio, não raro em prejuízo da nitidez dos caracteres e da trama. Pode-se dizer que esse traço vem ao encontro da prosa vanguardeira, como o nouveau roman, nominal, descritivo, antipsicológico; o que não lavra, por força, um tento estético, sobretudo quando a tendência atua à revelia do equilíbrio interno da estrutura ccional. [1]  

Alfredo Bosi é professor emérito de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo

(USP), membro da Academia Brasileira de Letras e coordenador do Conselho da Cátedra LéviStrauss, mantida pelo convênio entre o Instituto de Estudos Avançados e o Collège de France. Sua consagrada obra História Concisa da Literatura Brasileira, publicada pela primeira vez em 1970 pela Editora Cultrix, apresenta este texto, gentilmente cedido para esta edição.

PRIMEIRA PARTE “Não procurar deixar de sofrer ou sofrer menos; e sim, não ser alterado pelo sofrimento.” Simone Weil

I BARCOS DE PAPEL

INDISCUTIVELMENTE aquele telegrama — chegado horas depois da comunicação o cial — conquanto fosse mera insistência num pedido antigo, tomou em tal conjuntura caráter lúgubre. Sobrevindo em circunstância tão dramática, se tornou irônico sem querer, como tudo quanto é ignorância cândida coincidindo com uma desgraça aguda. Aliás, essas coisas não são raras; dir-se-ia que acontecem nessas ocasiões para que seu contraste vinque a realidade não admitida por inteiro. Tanto que, logo que o texto foi lido, o despacho assumiu um comportamento discreto, como um realejo mudo no pórtico dum teatro onde ressoasse uma sinfonia. Quando a Constança bateu na porta do quarto e disse que se tratava dum telegrama cujo recibo o Alberto já assinara, dona Virgínia respondeu que o jogasse por baixo da porta. De quem seria essa primeira prova de solidariedade humana a propósito duma situação perplexa e acabrunhadora? Leu. Não tinha relação nenhuma com o fato. Tocou a campainha e abriu a porta preferindo que Maurício, ao perceber sua sombra cortando a claridade, atendesse em lugar da Constança. Como esperasse algum tempo, resolveu recuar para dentro de seus aposentos. E, pelos ruídos que só muito depois ouviu nos degraus, cou alguns segundos sem saber quem estaria subindo. Quando numa casa sucedem estados angustiantes até os passos se modi cam. Um lar em ritmo normal se rege por múltiplas leis de continuidade; o mínimo acidente, porém — sem falar nos máximos — altera tudo, inclusive o próprio ar, que logo modi ca o som da pêndula que até então subdividia o tempo com a sua equanimidade neutra. Não. Não era a criada.

— Bom dia, Maurício. Ele não respondeu nem olhou. Apenas cou diante da irmã reconhecendo, com a abstração que o enleava, a inutilidade redundante de quaisquer comentários. Parado no último degrau, mais parecia, assim grisalho e respeitável, um lacaio tradicional do que um irmão solícito e compreensivo. É que deduzira que o chamado da campainha devia referir-se a providências inerentes a certo caso; e como notara que Constança descera para o parque, resolveu atender. — Maurício, vou pedir-lhe um favor. Diga à Constança, ao Alberto e à Luzia que, caso chegue alguma coisa, telegrama ou carta, entreguem a você. Que não venham me avisar. E, principalmente, que não atendam ao telefone. Eu e você nos encarregaremos disso. Se os rapazes aparecerem, como é provável, que quem à vontade, porém. Maurício, em resposta, nem pestanejou. E assim que a mana se retraiu para os seus cômodos, ele desceu; mas antes de atravessar o vestíbulo, escutou uma recomendação que ela achou melhor acrescentar com voz um pouco mais alta: — Maurício!... É claro, vá abrindo o que chegar, carta, telegrama. E receba quem aparecer. Ele limpou a garganta e, achando-se rente à mesa, tirou de dentro da bandeja um antigo programa do Hamlet, deixando lugar disponível para a correspondência. Dirigiu-se depois à saleta de almoço onde já estava quando a criada subira com o telegrama. Tornou a sentar-se no lugar de sempre, com o folheto de teatro na mão. A janela emoldurava três cores densas: do mar, do céu e da Ilha do Meio. Arrancou a capa do libreto e pôs-se a dobrá-la tão distraidamente que a Luzia, ao entrar, notou que o mano da patroa, um sexagenário solteirão, fazia um barquinho de papel. — Está chorando por causa de seu Fernando, professor Maurício?... Ele largou o barco de papel, passou a mão nas pálpebras, percebeu que Luzia tinha razão. Achou, contudo, que devia explicar melhor, não para ela e sim para si próprio. — Estou pensando no jazigo inútil... — Credo! — retrucou ela. Não se referia a essa ponderação que não compreendeu absolutamente. Referia-se ao que logo esclareceu correndo para a copa. — Esqueci a manteigueira e o pão.

Não tardou a voltar. Esperou um pouco e, movida pela curiosidade do telegrama de que lhe tinham falado a Constança e o Alberto, lançou uma consideração estratégica: — Coitado de seu Fernando. Mas... Deus é grande! — Luzia! Chame o Alberto e a Constança. Quase de chofre apareceram os três, cando a olhar para o barco de papel. — Não entreguem cartas nem telegramas a dona Virgínia. Deixem na bandeja da sala. E não atendam ao telefone. Se os rapazes aparecerem, que quem à vontade... por aí. Outra vez sozinho, o velho lente aposentado tomou uns goles de café, logo afastou a xícara, cou olhando para o mar. E em dado instante quase sorriu, não para vencer e recalcar as lágrimas, mas por pensar que qualquer pessoa, vendo-o com um barquinho de papel, o julgaria algum velho caduco. Barcos de papel... Desde quando não os fazia?... Contudo, havia muito tempo, zera tantos que até enjoara. Obrigavam-no a isso os caprichos autoritários do cunhado Artur e do sobrinho Carlos; o primeiro, seu colega na Marinha; o segundo, seu discípulo em São Clemente. Mas, quando?... Quase quarenta anos antes! Quando os três, durante as férias, em janeiro de 1906, levavam vida anfíbia na chácara à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Sim, ele, como teórico, se vira obrigado a contribuir com material para as reconstituições que o cunhado e o sobrinho (pai e lho) faziam da batalha de Porto Artur. Por que a de Porto Artur e não, por exemplo, a de Lepanto? Porque o cunhado se chamava Artur e achava lógico que tal batalha, longínqua em distância mas recentíssima no tempo, devesse ser mais didática. E como se negar Maurício a tais exigências se o cunhado, já o cial, era ao lado do lho uma criança perfeita e declarava que tais exercícios (de naumaquia, segundo Carlos) auxiliavam simultaneamente o professor, o o cial e o aluno, sendo portanto uma disciplina e um recreio?! A velha chácara rente à Lagoa Rodrigo de Freitas. Aquele mês de janeiro de 1906. Férias autênticas... Tal noção se acentuava mais à hora do almoço... Ele e a mana Virgínia sorriam vendo Artur e Carlos se entregarem como sempre a reptos interessantíssimos. Quanto aos temas, tratava

Maurício de ensiná-los na véspera ao sobrinho para que este desse quinaus no pai. E, servindo-os, Virgínia dizia: — Mas, pelo amor de Deus, comam! A criadagem tem tanto que fazer! Já passa de meio-dia. E o Artur, bonito, galhardo, de farda branca, a fazer perguntas com ar provocante ao lho que o olhava com a benevolência da vitória prevista. Coisas assim: — Nauta! Que é? — Ora, papai! Navegador, marinheiro, em termo poético. E agora quem vai perguntar sou eu. Náutilo, que é? — Náutilo? Bem... náutilo... — Não sabe. Diga logo que não sabe. — Não sei, uma ova! Mais respeito, hein? Pai e lho riam, atiravam um no outro miolo de pão, desa avam-se, ngindo ameaças de luta corporal; mas a verdade é que náutilo... O próprio Carlos já esquecera; teve que tirar do bolsinho das calças um papelucho que leu entre gargalhadas. — “Cefalópodo que tem a concha em espiral.” E Nausífanes, que é? — Vá plantar batatas com suas perguntas de algibeira. O assunto tem que ser só de coisas marítimas. E como o lho, candidato a ginasiano, explicasse que Nausífanes foi um lósofo grego do III século, o pai exigiu, entrando com jogo livre, que o lho desse pelo menos seis sentidos diferentes da palavra “nave”. — Seis sentidos da palavra nave, contando com o sentido daquilo que é mesmo? Pois escute; lá vai... Navio, um. Parte do templo entre o átrio e o santuário, dois. Nome duma comuna na Itália, três. Nome dum escritor italiano, quatro. Nome de dois teólogos belgas, seis. — Você não podia saber isso tudo! Ainda nem é primeiranista de ginásio, como é que sabe? É malandragem de seu tio Maurício. Fingia engal nhar-se com o cunhado e o lho. E Virgínia observavalhes: — Tenham juízo. Não sei qual é mais criança. E enternecia-se com o lho. Com onze anos só, e a responder coisas que ela ignorava. Como eram interessantes pai e lho, assim alegres e íntimos! E respondia alto: “Até logo!” aos três que iam para o porão estudar o remate interminável da miniatura de galeota que estavam fazendo. Ouvia

o ruído do trabalho lá embaixo (transformavam o porão em carpintaria, dique e estaleiro), vozes e risadas. — Nautical Almanac, que é? Lá isso Carlos não sabia, perguntava afoito, interessadíssimo. E o pai respondia: — É esta droga em que estou sentado enquanto acabo este mastro. Daí a pouco o lho desembaraçava com as mãos e com os ombros o volume do Almirantado inglês que servia de banco para o pai, punha-se a folhear aquela sistemática de mares, navios, portos e ordenações, muito embevecido. Ele, Maurício, lá fora no mundo era o cial de marinha e professor de Geogra a e História Universal em São Clemente, no colégio Santo Inácio; mas ali no porão, cunhado e sobrinho lhe davam títulos honorí cos sobre excelentes, dizendo, a torto e a direito: — Seu nautódico, passe o martelo. Seu Nausífanes, onde está a cola? Seu náufrago, passe o nautômetro (a régua). Só mesmo rindo, já que a vida era dura e não se sabia do dia de amanhã. De tarde, quando o sol ia descambando por trás dos Dois Irmãos na ponta da Praia de Fora, os três, depois do chá e de nova empreitada de engenharia naval construindo o “Kuimbaé”, iam para o fundo do quintal que dava para a Lagoa. E acolá, debaixo das amendoeiras e das pitangueiras ou em cima do pontão particular oscilando sobre a vasa, reproduziam as peripécias da campanha de Mukden. — Vamos para Liao-Tung! Maurício. Traga papel para as esquadras! O terreno enorme, da cozinha até à Lagoa, passava a ser Liao-Tung, entre a Manchúria e a Coreia. A água era a baía de Pe-tchi-Li. Os caminhos, desde a varanda e o porão, eram a estrada mandarim e a via férrea de Porto Artur a Karbina... por hipótese, é claro. — Carlos! Enquanto seu tio nos mostra suas habilitações naviformes com números antigos do Jornal do Comércio e de O Malho, deixando de ser navarca para ser Pedro de Medina e Pedro Nunes, você vá desembuchando nomes de tudo quanto é qualidade antiga e eterna de embarcações. E Carlos, glorioso, empolgado, a dizer, como numa poesia: — Trirremes, galeras, galeaças, caravelas, galeões, urcas, brigues, fragatas, escunas, corvetas... — Palavras, coisas, cujas signi cações aprendia

com o tio Maurício, enquanto o pai, de serviço a bordo, cava ausente de casa dias seguidos. Como Carlos gostava daqueles nomes! Achava-os formidáveis, sonoros, catava-os em dicionários ilustrados. E não raro aumentava a lista, com outra série: — Patachos, sumacas, taforeias. Acabadas as tarefas do colégio, zás! haja desenhar cartogra as. Oceanos, mares, golfos, estreitos, deixando continentes, penínsulas e istmos apenas esboçados como coisas vagas e desdenháveis. Se o pai sempre dissera em garoto — “Quero ser o cial de Marinha!”, ele, Carlos, o lho, o mais que a tal respeito elucidara após insistências fora um desejo estapafúrdio (com oito anos) que zera mãe, pai e tio rirem muito: “Quero ser escafandrista...” Enquanto as unidades se iam escalonando em cima do pontão como elementos graciosos para uma regata, Artur abria (refestelado numa cadeira preguiçosa, de bordo) alguns números de L’Illustration, de 1905, do ano anterior, e estudava mapas e fotogra as das operações russo-japonesas no Extremo Oriente. Isso posto, a luta começava. Primeiro uma alegoria dual: Artur fardado, com trinta anos. E Carlos, metido num quimono materno com a cara lambuzada de zarcão para car bem nipônico, com onze anos incompletos. Artur de farda imaculada e sapatos brancos. Carlos, com a vestimenta extravagante, de pés no chão. E travavam jocosa luta corporal, pai e lho, com muita cópia de cócegas e risadas, Artur sendo sucessiva e instantaneamente Kuropatkine, Bilderling, Mitchenko, Liniévitch e Stackelberg, além de Makharof e Withe. E Carlos sendo, enquanto isso, alternadamente, Kuroki, Nogui, Kawamura e Togo. — Eu sou adido e observador europeu — dizia Maurício, instigando, apesar da suposição de neutralidade. Acabada a alegoria, vinham fases de batalhas navais, para o que Maurício já cortara muito papel de jornal e revista, fazendo minúsculas esquadras. E estas agora, postas na água, rente ao pontão e atiçadas por clamores (inclusive da molecada dum terreno baldio), levavam golpes violentos com bambus que espadanavam água e lama pelo teatro das operações. Ora, certa tarde... Sim, certa tarde, estando a maré muito alta, pai e lho, enquanto atiçavam e manobravam as esquadras que oscilavam ao vento e que logo passaram a naufragar maciçamente sob o efeito de

pontapés, varadas e apupos, no auge do entusiasmo se atiraram ou caíram sem querer na vasa por entre os barcos de papel que espoucavam feito peixes voadores. A luta foi até ao m com a delidade histórica que convinha, porque Artur, no papel desesperado de Withe, naufragou com a nau capitânea... ou melhor, a coisa ia cando séria, pois Carlos, no vigor da refrega, pulou em cima dos ombros do pai, e os dois sumiram na água da Lagoa. Maurício assustou-se, tirou os sapatos, jogou longe o paletó, mergulhou, cou preso naquele espadanar de cetáceos, engoliu muita água, bracejou e, por m, para vergonha de todos, a molecada do Jardim Botânico — a habitual assistência — foi que desatolou os três da vasa. Quando, com as sombras do crepúsculo, chegaram à copa, ofegantes, molhados como pintos, com toneladas de lama nos cabelos e nas roupas, Virgínia levou um susto tremendo e quase perdeu os sentidos depois de atirar-se aos braços ora do marido ora do lho, cando também toda suja e molhada. Após cálices de vinho do Porto, descomposturas e vexames, Artur foi para o banheiro assoviando La Donna é móbile; Carlos foi para o tanque do porão berrando: “Patachos! Sumacas!! Taforeias!!!”; e Maurício se esgueirou para o chuveiro da criadagem, muito desapontado. Uma hora depois, vestidos, penteados, afoitos, esperavam Virgínia, sentados já em seus lugares à mesa do jantar. Mas a criada veio dizer por duas vezes, rindo, que a patroa respondera “que se servissem”... Por m, cada qual foi instar com ela, do lado de fora do quarto, no corredor: — Virgínia, que é isso? Ficou zangada? Por causa duma brincadeira? — Tome juízo. Nem parece que deu a volta ao mundo... — Virgínia, seu marido e seu lho estão com fome... — Muito bonito! Um guarda-marinha, um professor do Santo Inácio... Pois que jantem sozinhos. — Mamãe! Ó mamãe? Como é? — Entenda-se com seu pai e com seu tio. Não me dou com escafandristas. Esmurraram a porta, cantaram com as gargantas erguidas para a bandeira do portal, zeram tal estardalhaço descendo pelo corrimão da escada, que ela pôs de lado a birra, saiu do quarto, veio para a sala, sentou-se à cabeceira, serviu-os, muito séria, mas não jantou.

— Não posso. Não insistam. Fiquei nervosa. Não façam mais isso. Só assim, por instâncias superiores (de que o mundo tem tido tanta falta), foi que acabaram as reconstituições apócrifas da campanha de Mukden. E Maurício deixou de fazer barcos de papel. Quem salvou a situação enfarruscada daquela noite na sala e na varanda do casarão do Jardim Botânico — pois os três, Artur, Maurício e Carlos estavam desmoralizados perante a molecada do Largo dos Leões e o silêncio amuado de Virgínia — foi o casal Peixoto, a visita mais habitual. A custo se desenrolou uma conversa muito desenxabida. O Peixoto ofereceu cigarros a Artur. — Uma nova marca. Ótimos. “Douradinhos”, e a Maurício, dizendo: — Central. A Tabacaria Londres. Comprei-os na primeira loja que se abriu na Avenida. Aceitando, Maurício considerou em tom de comentário vago: — Fui ontem ao edifício das Docas de Santos. Formidável. Mas lá de cima, duma das sacadas, tive impressão de avenida muito desolada ainda. Árvores pequenas. Pouco trânsito. Calçadas vazias... Ao que o Peixoto retrucou: — Mudará... Congestionar-se-á... Ainda há de se parecer com um dos boulevards do velho Haussmann. E dona Clotilde, voltando-se para Virgínia, informou, solícita e entusiasmada: — A seção da Gazeta, o Binóculo, já está promovendo corsos às quartas-feiras, — De fato — aparteou o Peixoto. — Eu até tenho dito à Clotilde: “Vai, criatura. Para que te comprei a caleça que foi do Guerra Duval? Para que trouxeste toilettes da Rue Castiglione?” Mas, como sempre, embora o Peixoto dissesse no decorrer da conversa que esperava na próxima viagem embarcar no Cais do Porto, diretamente da doca para o navio da Mala Real, pois já estava farto das alvarengas do Cais Pharoux, os assuntos se nacionalizaram logo. Como de hábito, sobre Osvaldo Cruz, o prefeito Passos, o engenheiro Bicalho... Na manhã seguinte, Virgínia, Carlos e Maurício viram Artur pela última vez quando ele, acabadas as férias, voltou para o serviço.

II O JAZIGO INÚTIL

O jazigo inútil... LUZIA, a cozinheira, não entendeu aquela expressão do professor Maurício. Mas ele sabia bem o sentido profundo da sua referência aparentemente vaga. E, mais do que ele, a sentia em sua veracidade cruel a mana Virgínia. Treze anos antes do último fato narrado no capítulo anterior — e mero aspecto da vida feliz levada na chácara do Jardim Botânico — o coronel Aleixo, sogro de Virgínia, certa manhã convidara Maurício, que então dispunha de tempo pois abandonara a Politécnica e cursava a Escola Naval, para acompanhá-lo até à o cina dum marmorista italiano na rua da Matriz, em Botafogo. — Pode parecer uma ideia extemporânea e um convite despropositado; mas quero que dê sua opinião sobre o jazigo perpétuo que mandei fazer sem a aquiescência de minha mulher. Resolvi empregar nisso o dinheiro do material de demolição dum prédio. Quando entraram na o cina em cuja porta principal se vendiam ores, pois o cemitério de São João Batista era ali perto, lhes veio ao encontro o velho Tronchi, encordoado de pele e músculos como um galo de briga (mas comparável em sua feiura esquelética a uma estátua móvel de São Jerônimo). Foi logo dizendo para o coronel enquanto com um gesto mostrava o jazigo: — Oblatis, Domine, placare muneribus. Ao que o coronel, conspícuo latinista, respondeu: — Presta, quaesimus, ut quod temporaliter gerimus, aeternis gaudiis consequamur. Maurício achou aqueles dois interlocutores extravagantes, o coronel de cartola, sobrecasaca e barba Souvarov, o escultor de melenas revoltas,

calças de veludo e avental inteiriço, dois excelentes gurões contracenando para uma plateia invisível de fantasmas. O coronel Aleixo traduziu logo o diálogo: — Não se assuste. Sei que sabe muito bem matemáticas e ciências, mas provavelmente desdenha o latim. Tronchi atirou-me com esta: “Aplacaivos, Senhor, com as dádivas que vos oferecemos”. E eu pespeguei-lhe: “Esperemos que o combinado cá na terra nos proporcione conforto eterno”. Traduzido, não era tão estrambótico. Tronchi inseriu-se no meio dos dois como uma dobradiça de porta dupla, levou-os por entre uma exposição de cruzes, anjos e vasos de mármore, e mostrou com gesto declamatório o mausoléu. O coronel Aleixo assim que viu cou rubro, deu um safanão simétrico nas abas da sobrecasaca e recuou, enfurecido. — Não foi isso que lhe encomendei. Exigi e expliquei muito bem que fazia questão duma pirâmide. Não aceito! Inde ro! Não serve! Não pago! Mas o Tronchi, sem levar nenhum susto, explicou que tinha sido ordem categórica de dona Maria-Amélia. — Minha mulher não tem nada que ver com isto! Já que não permite que eu me intrometa nas coisas deste mundo, que não se imiscua nas do outro! Demais a mais, como foi que ela adivinhou? — Disse-me, coronel, que descobriu os esboços e desenhos no seu bolso; veio imediatamente me procurar, ordenou modi cações e decretou segredo! Declarou que numa pirâmide abafava. Que ela não era a rainha Karomama nem o senhor o faraó Amenó s IV. Trouxe-me depois um álbum do cemitério monumental de Gênova, escolheu uma graciosa composição circular. — Não concordo, absolutamente! Encomendei uma pirâmide por sua síntese de incomparável sabedoria. Então você não sabe que a estrutura da pirâmide está regulada por seu triângulo vetor? Tronchi abaixou os olhos como um péssimo aluno de geometria, deixou que o coronel falasse da divina proporção representada pelo símbolo da letra grega phi; depois criou coragem e ponderou: — Mas, coronel, não z o jazigo que Dona Maria-Amélia escolheu! Um artista da minha responsabilidade não se sujeitaria, mesmo estando no exílio em situação precária por motivos losó cos, não se sujeitaria, digo, a fazer um monumento de gosto burguês copiado dum catálogo. Este

sarcófago que lhe estou mostrando vai dirimir uma possível desavença doméstica e é a cópia exata da tumba do principal discípulo de Arquimedes em Siracusa, minha terra natal. Sua senhora me disse peremptoriamente: “Seu Tronchi, embirro com a pirâmide de Quéops. Se Aleixo fosse solteiro admito que quisesse descansar onde muito bem lhe desse na veneta. Mas com a família, não! Não estou para que no dia de Finados, cada ano, zombem do meu mausoléu, futuramente”. Vai então, coronel Aleixo, conciliei as coisas. Agora, indago com o coração na boca: Recusa-se a aceitar um mausoléu que é a reprodução conscienciosa da tumba grega do principal discípulo de Arquimedes? Dum monumento que é uma joia de Siracusa? Uma con uência de harmonias? O vão sublime do silêncio! A quietude magní ca onde a própria eternidade se contempla? Veja! Observe! Que paz... Que serenidade... Que vitória merecida contra o tempo! Que vaso de imanência!... — Seu Tronchi, olhe-me bem. Isso é mesmo dum discípulo de Arquimedes? — Palavra, coronel! Vou mostrar-lhe postais. Tem a reprodução no livro de Vasari!... — Bem. De fato, não mereço a pirâmide. E muito menos a merece a Maria-Amélia. Não sou Amenó s IV e ela está longe de ser a rainha Karomama. A pirâmide cará para depois de outras desencarnações... Tirou e repôs a cartola, encheu um cheque ali mesmo em cima do balcão que rescendia a goivos, enquanto Maurício dava uma olhadela aos anjos e às cruzes por mais que o estatuário procurasse demovê-lo confessando: — Robaccia! (Coisa ordinária.) O coronel, agitando o cheque para que este secasse, entregou-o a Tronchi, ordenou a compra do mármore e o início dos trabalhos, co ou o queixo deixado livre pela barba Souvarov, deu um repelão na aba da sobrecasaca, foi até à porta da rua, chamou com um gesto a vitória cujo cocheiro também encartolado tratou logo de obedecer. Depois de olhar de relance a quantia declarada no cheque, o Tronchi se desfez em amabilidades. — Para que essa pressa, coronel Aleixo? Se há um caso em que o pagamento e a realização devam ser adiados é este, non é vero?

— Concordo com o reparo — observou o coronel instalando-se na carruagem logo seguido por Maurício. — Mas, atendamos ao que São Paulo disse aos coríntios: “Omnes quidem resurgemus sed non omnes immutabimur”. A vitória seguiu para o Jardim Botânico onde o coronel, a esposa, a nora e a lha mais o Maurício almoçaram. — Onde esteve, Aleixo? Demorou tanto... — disse à certa altura dona Maria-Amélia. — No Ministério da Guerra! Dizendo umas verdades nas bochechas do marechal Bittencourt. Fiz-lhe ver que há responsáveis e instigadores subreptícios da resistência de Canudos... Sim, os monarquistas! Perfeitamente. Esse café vem ou não vem? Depois do almoço o coronel desceu para a cidade com o Maurício, tendo desde o Largo dos Leões até à Lapa pespegado no irmão da nora, durante o trajeto do bonde, uma aula quanto às vantagens do Withworth 32 sobre a bateria Krupp, uma catilinária contra Moreira César e um panegírico ao coronel Tamarindo, assuntos estes que entrecortava com pormenores arquitetônicos, sociais e políticos de fatos e coisas antiquíssimas, sempre que o bonde passava diante ou perto dalgum ponto de referência que o in amasse. Como sempre, muito loquaz e redundante. — Como é, Maurício! Já esteve alguma vez em Copacabana, rapaz? Já estou beirando os cinquenta anos, mas ainda hei de ensinar-lhe um caminho formidável para o lado de lá. Não pela Ladeira do Leme, o caminho que Maria Graham descobriu; e nem pelo túnel aberto por meu parente Coelho Cintra no Morro de Vila Rica, prolongamento do Morro da Saudade. Sei um trecho, contornando Sacopenapã que, embora seja longo, é admirável como vista e passeio até se chegar à Praia de Fora. Mas se o Governo quiser abrir mesmo uma passagem inteligente para Copacabana, sabe o que ele deve fazer, rapaz? É varar o Morro da Babilônia. E, mais adiante: — Mas ao Jardim Botânico você já tem ido, não? Merece a pena. Sim, merece a pena. O antigo Horto Real é qualquer coisa de extraordinário. Dizer-se que aquilo começou nos terrenos da fábrica de pólvora do Marquês de Sabará! E começou com quê, aquele mundo quase fronteiro à minha casa? Com uns pés de cravo-da-índia, de pimenta-do-reino, de cana de Caiena, de noz-moscada... Depois, em 1809 recebeu a palmeira imperial...

Até chá eles plantaram, Maurício. Não entro lá faz muito tempo. Decerto por morar quase defronte. Mas sempre tenho uma reação. O velho Horto Real, ou o Real Jardim Botânico, foi o primeiro trecho do Brasil que se desnacionalizou; nada tem de nosso, a não ser alguma coisinha da Amazônia. Foi por isso que, antes de decepcionar a mim, decepcionou a Maria Graham, a Ribeyrolles e a Gardner. No meu entender o único elemento bem brasileiro que existiu ali dentro foi frei Leandro do Sacramento. Mas, merece a pena ir. Merece. Ou então, mais adiante: — Cá estamos diante do Palacete Abrantes com a sua capelinha à Nossa Senhora da Piedade. O Calmon melhorou-o muito. O Calmon é um gentleman. Este palácio só teve um interesse igual ao de hoje no tempo de Carlota Joaquina; mas decaiu quando o habitou o Barão do Catete que depois foi Visconde de Silva. E mais adiante: — Este, sim; este o Governo fez muito bem de comprar. Está em obras. Foi um grande sujeito o Antônio Clemente Pinto. Se foi! Deixou a nossa gente de boca aberta. E não menos formidáveis e aluados foram os herdeiros dele. O Antoninho, Barão, Visconde e Conde de São Clemente! E o Bernardo, Barão, Visconde e Conde de Nova Friburgo. A seguir, mostrando o palácio que um tal Martins Cornélio comprara ao Ribeiro da Silva: — Veja que beleza! É pena estar tão rente à rua! Consta que acabou de ser doado à Misericórdia. Mas, espere, que já lhe mostro o palácio do Visconde de Meriti. Aqui, meu caro, houve sangue nobre! O palacete Bahia tem estirpe. Vem dos Lopes Pereira e dos Abrantes. Mas, bonito, monumental mesmo, com ar de qualquer coisa europeia, é o palácio Itamarati que o Governo comprou ao Francisco José da Rocha. Aquilo sim! Pouco depois, antes do Passeio Público, o coronel Aleixo deu uma risada, bateu no joelho de Maurício e exclamou: — Não há coisa pior no mundo do que o erudito. Vê essa demolição? Parece que o Governo vai levantar aqui na Praia da Lapa um prédio reunindo o Instituto Histórico e Geográ co Brasileiro, a Academia de Letras que falam em fundar, a Academia Nacional de Medicina e a Ordem dos Advogados. Foi o que me disse o Paranhos... E me contou que embora a planta ainda não esteja pronta (os estupores ao menos zessem uma cópia

do Instituto de França!), o Ramiz Galvão já anda a estudar nomes para o prédio. É claro que está emaranhado em raízes e desinências gregas, pensando (isto vai por conta do Paranhos), em absurdos como estes: Polilógio, Panetásio, Logossinédrio!... ah! ah! ah! Esses sujeitos são fósseis, Maurício! Fósseis, digo-lhe eu! Ainda ria quando saltou do bonde e foi tomar um tílburi no Largo da Carioca a m de seguir para o Quartel General. Mas a verdade é que naquela tarde não andou pelo centro, como de hábito, e apareceu em casa relativamente cedo. É que de repente, na cidade, se lembrou duma coisa: o número de sarcófagos dentro do mausoléu. Subiu pois mais cedo só para interpelar o Tronchi, que se assustou ao vê-lo. — Mostre-me outra vez essa joça! Quero ver lá dentro. Não vi, esta manhã. Então o Tronchi se aproximou da enorme maqueta de gesso e a descobriu como quem destampa um açucareiro. Ladeando uma espécie de complúvio se viam duas ordens de sarcófagos; quatro de cada lado. Os da esquerda, delicados; os da direita, pesados. E o Tronchi explicou, especi cando: — Para homens, os da direita. Para mulheres, os da esquerda. — Não serve! Isso de “para cavalheiros” e “para senhoras” está parecendo coisa sanitária, seu Tronchi! Quero casais juntos. E, antes de mais nada: só oito? Não acha pouco? — Bem, com licença; vamos por partes; primeiro: com que então o coronel quer homens e mulheres juntos? — Lógico. Se em vida há eventuais separações, que pelo menos na morte quem lado a lado. — Bem. É fácil. Ó Zoroastro, ajude aqui. E o Tronchi e o servente, bufando e se sujando de gesso, puseram na ordem desejada pelo coronel os oito sarcófagos. Dois casais dum lado, dois casais do outro. — Agora, a outra questão... — Exatamente! Por que só oito? — perguntou o coronel. — Bem. Quatro gerações, quatro casais, em teoria. Segundo a frase bíblica: “E que possais ver os lhos dos vossos lhos até à terceira e à quarta geração...”

parar.

— É pouco! Tenho lho. Breve vou ter neto. Vai ser um nunca mais

— Bem. Sempre haverá espaço para mais. Tiram-se os ossos anteriores, substituem-se pelos corpos dos pósteros... Isto, coronel, é um jazigo, uma coisa limitada e não... um cemitério! O cemitério é em redor, non é vero? — perguntou o Tronchi com certa desenvoltura de quem não crê que além de quatro gerações perdurem os vínculos. — Está bem. Está bem. Concordo. Toque esse negócio! Quero ser patriarca! *** Que pessoa mais formidável o coronel Aleixo! Quando cursava em garoto a seção de internato do Colégio Pedro II que no seu tempo funcionava em São Francisco Xavier, na Chácara da Mata, já sobressaía tanto pela inteligência como pela índole pirracenta. Em rapaz, ao tempo em que cursava a Escola Militar quando esta funcionava simultaneamente com a Escola Central no edifício da Politécnica, vestia garbosamente sua farda dando a impressão arrogante do capitão de Bérgamo da tela de Moroni. Conquanto se dedicasse com aplicação vivaz às matemáticas e às ciências, não se aplicava menos dedicadamente à vida noturna, frequentando-a com o arrojo do seu temperamento. Fora assíduo espectador (e expectador) do Eldorado e do Alcazar, passando as horas restantes de cada noite no Renaissance ou nos Frères Provenceaux entre música, mulheres e champanha. Quando a mesada cava curta, tolerava, nos dias de folga, as refeições e o bock do Stadt Coblenz ou as iscas e o vinho verde do Labarthe. Mas nos primeiros dias de cada mês pagava rega-bofes que principiavam no Hotel d’Europe, à rua do Carmo, e se prolongavam até ao Palácio de Cristal e ao Hotel Ravot. De tarde fazia ponto na Deroche a namorar moças casadoiras, ou ia para o Café de Londres discutir política e contar anedotas. Isso não impedia que as velhas casas hospitaleiras dos bairros o convidassem para ajantarados aos domingos em Santa Teresa, Engenho Novo ou Andaraí Pequeno. Já maduro, ainda falava com saudades veementes dos serões do casal Haritoff, das festas nas casas do Barão do Alegrete, do Visconde de Tocantins, da Baronesa de Sorocaba, dos Condes

da Estrela, onde chefes sisudos de famílias provectas se lembravam dele e de seus triunfos em noites de gala no Recreio dos Militares e no Casino Fluminense. Foi assistindo a concertos no Club Beethoven, na rua da Glória, que conheceu Maria-Amélia, sua futura esposa, e venceu espetacularmente o efeito romântico que lhe acabava de causar Luís Moreau Gottschalk, o compositor e diretor de orquestra que num curto semestre empolgara plateias e arrebatara corações. (Maria-Amélia, por causa dessa recordação amarga para Aleixo Cintra, fora por este proibida de nas horas e horas em que tocava piano no casarão do Jardim Botânico incluir a Marcha Triunfal inspirada ao mesmo Gottschalk por acordes do Hino Nacional...). Verdade é que para vencer o futuro sogro, cidadão rigoroso, Aleixo Cintra estudou e realizou diversos processos convincentes de comportamento exemplar e hábitos edi cantes. Entre os quais, certos domingos, embora tendo perdido bons dinheiros no prado do Jockey Club e depois, à noite (quando acabava o noivado na sala de visitas) tomar às pressas um cab para a Travessa do Senado — apelidada Travessa da Pouca Vergonha — para dormir com a Alice Morena, não refugar em vestir a opa de irmão da Confraria da Cruz dos Militares e pegar nas varas do pálio. A idade, porém, e por que não dizer, Comte e in uências do Templo da Humanidade, depois dos trinta e cinco anos o modi caram em tudo, passando a aplicar sua índole e sua facúndia em setores extramundanos. Assim, já então professor do Colégio Militar, acabou cando com o apelido de major Phi ou de Professor Quéops, porque nas aulas, no recreio, na congregação, no Café Amorim, na Confeitaria Castelões na porta do Laemmert, nos grupos do Largo do Carceler, fardado ou à paisana (mas sempre com botinas de elástico e co ando a barba Souvarov) explicava de modo muito sui generis o lema “Ordem e Progresso”, começando mais ou menos desta forma: — Os indivíduos cultos conhecem desde a mais remota antiguidade a proporção que rege as harmonias dos cinco poliedros regulares, e o desenvolvimento sem m das formas recíprocas (isocaedro e dodecaedro) em formas alternadas, convexas e estreladas, cada vez mais amplas, envolvendo todas as anteriores. Ora, meus amigos, o princípio que rege a disposição dos cinco poliedros regulares e seu desenvolvimento é uma proporção. E a média da extrema razão, denominada em arte “divina proporção” ou “corte de ouro”, é representada pelo símbolo da letra phi.

Este, o exórdio. A peroração era o lançamento da ideia do CPEI, ou Congresso Permanente da Economia Internacional, não em Paris ou em Haia, mas sim em área junto à pirâmide de Quéops, área essa que deveria ser doada para aí se construir o centro regulador da Economia Mundial. — Por que motivo perto da pirâmide de Quéops? Por que, senhores, inclusive você aí, Mourão, que está rindo por ser imbecil? Porque a Ordem que assegura o Progresso, a Ordem que organiza, o princípio dominante da Natureza, a proporção  =  , a divina proporção que a ciência focaliza quando procura sintetizar leis nas análises procedidas nas estruturas da Natureza, é a mesma Ordem que preside à Harmonia das dimensões da pirâmide de Quéops — o monumento mais antigo da nossa Civilização. Perfeitamente! E isso porque esse monumento, seu Mourão, inaugura de modo espetacular a era da Arquitetônica! E não a inaugura (está percebendo bem?) como uma insigni cância destinada a evoluir paulatinamente através dos séculos. Absolutamente! Inaugura-a então como, seu Mourão? Dando ao futuro uma lição de incomparável Sabedoria! E, por quê? Porque a estrutura toda da pirâmide está regulada, senhores, por seu triângulo vetor! Ao que o Mourão, redator do Jornal do Comércio e seu companheiro, retrucava, já que dispunha da intimidade que os pobres alunos do Colégio Militar não tinham: — Aleixo amigo, mau, mau!... Veja lá! Pelo menos não debata muito essa ideia em aulas e em rodas militares, do contrário mandam uma junta examiná-lo e o reformam. — Pois que me reformem! Que me prejudiquem! Que me vilipendiem! Isso já não se deu com Sócrates? Com Galileu? Com Harvey? Com Servet? Conforme ia dizendo, os cinco poliedros regulares... O Governo não lhe deu ajuda de custas para ir tratar em pessoa junto às sumidades das Ciências Sociais, economistas, lósofos, professores da Sorbonne, membros do Instituto, etc., da questão da área junto à pirâmide de Quéops para a sede permanente do CPEI. Não se dignaram responder-lhe às cartas e aos esquemas Renouvier, Arréat, Globot e outros. Instou. Não foi reformado. Pelo contrário. As autoridades do país resolveram aproveitá-lo para certa missão de responsabilidade, já que sua tática euclidiana convenceu a nal gurões do Quartel General — conforme adiante se verá.

III AMOR E LITURGIA

NUMA certa quinta-feira longínqua de 1894, Aleixo Cintra, nesse tempo ainda major, ao sair do Colégio Militar, após uma aula mirabolante, subiu até ao Portão Vermelho e virou para o Andaraí Pequeno, pois resolvera aproveitar a tarde para rever uma a lhada no Colégio dos Santos Anjos. Não porque fosse assim tão meticuloso nos deveres afetivos; é que tinha que jantar na chácara do Militão, ali no bairro, e precisava fazer tempo. Ora, Virgínia, órfã de mãe, era aluna dos Santos Anjos e estranhou muito ser chamada ao parlatório porque o pai, médico, estava em Paris aperfeiçoando os estudos no Necker e na Salpêtrière; ainda na véspera recebera dele um postal. Que visita poderia ser, já que não tinha ninguém no Rio? Gente de Minas? Parentes?! Passou diante da capela, fez a genu exão ao Santíssímo, atravessou a secretaria, abriu a porta e se viu diante dum homenzarrão de barba, cartola e sobrecasaca. Bem, devia ser o pai dalguma colega sua. Decerto da Cacilda, lha dum parlamentar. Ou da Lúcia, lha dum ex-ministro. Examinou a varanda e a esplanada, desceu até à ladeira, voltou, não viu mais ninguém. Ou seria a irmã diretora que desejava combinar com ela e algumas outras os números de declamação e teatro da festinha de m de ano, conforme já conversara com as devidas reservas no recreio? Sempre, durante quatro anos seguidos, aquela mania de armar palco no pátio e de levar dois meses ensaiando. E ela nem sempre era escolhida para papéis edi cantes. Ainda no ano passado, ao invés de tocar piano a quatro mãos com a Lálá Carreiro, bem que teria preferido recitar trechos do teatro clássico francês. Mas a irmã superiora dissera com ar categórico: — Não senhora. Nada disso. Deus nos livre! — Por quê, Madre Catarina? — Nada que agite a alma...

Mas agora ou Madre Catarina a deixava recitar aquele pedaço ou se recusaria a tocar piano, dizendo: “Papai não quer. Disse que co afetada!” Deixou o jardim, e ao voltar para entender-se com a irmã da portaria, esta redarguiu: — É aquele senhor ali. Com licença, o senhor não mandou chamar a Virgínia? — Exatamente, irmã. Minha a lhada Virgínia. — Virgínia de quê? — Espere um pouco... Virgínia... Virgínia... O sobrenome não me ocorre. É uma órfã minha a lhada. O pai, antiga ordenança, o Pulquério... — Ahn! A Virgínia, da rouparia. Houve um engano. Vou mandar chamá-la. Um momento. Virgínia, pode voltar para a aula. Não é com você. O major percebeu que tinha havido um equívoco e disse: — Chamaram-na? Bem. Por engano, não pode ter sido. Não há enganos. Tudo segue leis que não raro cam latentes. Da outra vez virei com meu lho guarda-marinha, que está dando a volta ao mundo. Ambos estão em ponto para casamento!... A freira e Virgínia recuaram esgueirando-se, verrumadas pelo olhar cintilante daquele senhor que dava repelões na aba de seda da sobrecasaca. *** E tais leis deviam existir mesmo, conquanto latentes, visto como bem menos dum ano depois Virgínia, já tendo terminado o curso, se achava no Hotel White com o pai, lá perto das furnas da Tijuca e, certa manhã radiosa, ao entrar correndo do jardim para a sala, resvalou num hóspede opulento que jogava bilhar com um moço fardado. O coronel Aleixo voltou-se, abraçou-a com estouvamento, deu-lhe passagem, porque era a vez do lho jogar. Virgínia, reconhecendo-o, embora ele estivesse em mangas de camisa e com o colete entreaberto, resolveu perguntar: — Como vai a sua a lhada minha xará? — Hein? Como? A Virgínia? Conhece-a? Você quem é? — Eu sou aquela aluna dos Santos Anjos, a outra Virgínia que chamaram ao parlatório por engano.

— Ahn! Dê-me um abraço. Não garanti que não há acasos nem enganos? E vou cumprir minha promessa. Cá está meu lho. Artur, eis um partidão. Escute, Virgínia, você não tem sentado sempre à mesa do Gama, o assistente do Barão de Pedro Afonso? Ah! É lha dele, do Gama?... Artur, melhor ainda! Eis um partidão. Mais bonita, é impossível! E contou logo ao lho, em meia dúzia de palavras, como conhecera aquela moça. E Virgínia viu um rapaz de menos de vinte anos per lar-se, esticando para um lado o taco, depois cumprimentá-la enquanto o pai dizia: — Virgínia Gama e o guarda-marinha Artur Cintra. — Já depois do almoço o coronel Aleixo travou uma briga ideológica com o doutor Gama. Era um dos seus modos de fazer camaradagem. Assim, após algumas frases sobre Paris, a ciência, etc., o coronel lhe perguntou: — ... E que notícias me dá de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux, prezado doutor? — Bem, se não me falha a memória, Comte morreu em 1857, portanto, há trinta e oito anos... — Ora, doutor Gama, não tome as perguntas em sentido literal, pelo amor de Deus! Re ro-me ao halo... à doutrina, à lição permanente de harmonia. Compreende? — Compreendo! O senhor é positivista, não? E do exército, não? Pois consinta que lhe declare que perante Augusto Comte co do lado de Littré, para não dizer de Saint-Simon. Dou apreço muito relativo a Comte, cuja in uência no Brasil é paradoxal. Faz nossos militares estudarem loso a do bom comportamento em lugar de estudarem balística. Claro que com tais rompantes recíprocos caram amigos desde aquela temporada em diante. Se as manhãs às vezes tinham certa névoa, as tardes eram límpidas e belas não só nos terrenos do Hotel White com admiráveis recantos sombreados por guarajubas, aroeiras e araribás, como nas encostas e vales que ambos, Artur e Virgínia, percorriam a pé ou de carro até ao crepúsculo, indo visitar locais românticos e admirar vistas surpreendentes: o Excelsior, a gruta de Paulo e Virgínia, as Furnas, a fonte Pirauí, a Mesa do Imperador, a Vista Chinesa, a Cascatinha. E se Virgínia durante o percurso interrompia as tentativas de idílio de Artur perguntando o nome de certas árvores, ele, além de explicar que eram caneleiras, cedros, angelins, imbus e ipês, dizia que na

sua chácara no Jardim Botânico, perto da Lagoa, as quaresmas, as cássias e as buganvílias tapavam da rua para dentro a vista da casa; e que se o jardim em redor do prédio tinha manacás, hibiscos, crótons e agapantos em profusão, já a chácara propriamente dita era um pomar selvagem cheio de pés de cambucá, abio, grumixama, goiaba, caju, pitanga, araçá, manga, sapoti, fruta-pão, jaca e cajá. Árvores enormes, matriarcais. Sem contar as amendoeiras junto à lagoa. Que no jardim, dos lados do casarão, havia caramanchéis de tanta sombra e perfume que pareciam grutas para aparições de santas, ou nichos para estátuas... E pequenos lagos arti ciais, de cimento, para onde a água escorria cantando e fazendo tremer avencas e begônias, por entre arestas reluzentes de miríades de cacos de ladrilhos, vidros, conchas e seixos embutidos. E tudo isso por entre muros em cujos portões pinhas e hipogrifos de louça já tinham a pátina do tempo. Mas, perguntava Artur, que lhe adiantava tudo aquilo se nos poucos dias que saía da Escola Naval a mãe enchia a casa de velhotas tagarelas e o pai o chamava a todo instante para discutir teorias esdrúxulas? Ah! Estava muito isolado, lá no Jardim Botânico... Foi um grande mês decisivo aquele no Hotel White; Virgínia sempre muito animada por dona Maria-Amélia e pelo Coronel Aleixo que não raro a acompanhavam com o lho até à Biquinha do Monteiro descendo o Caminho da Fazenda, ou então indo até à Ermida Carvalhais. Sentia-se já envolta pelo amor de Artur que naqueles trinta dias lhe mostrou tudo quanto foi encantamento de paisagem e de vista, de horas e de passeios, de relações e de conhecimentos, ora merendando na varanda do conselheiro Mayrink, ora tomando chá no pavilhão da chácara do Cochrane, muitas vezes cando embevecidos no sossego bucólico e edênico do Açude da Solidão e, muitas tardes a o, contemplando em doce enlevo os vales do Andaraí e do Engenho Novo, a baixada de Jacarepaguá; ou então, da Mesa do Imperador, deixando que Artur lhe mostrasse rente à Lagoa Rodrigo de Freitas certo ponto invisível dizendo: “É lá que eu moro... sozinho com meus pais... Mas ele é um lósofo meio patusco... e mamãe só recebe visita de matronas...” Assim, depois de serões no Club Beethoven (onde foram com a prima Judite, pois para Dona Maria-Amélia e para o coronel tal local poderia trazer evocações irritantes sobre o Gottschalk), de chás cerimoniosos no Cailteau após compras no Grão Turco e na Notre Dame, de dois bailes, um

em O Recreio dos Militares e outro na rua do Passeio no Club dos Diários, certa noite o coronel Aleixo, vestido como um diplomata vienense, e Artur todo garboso como o Achille do quadro de Degas, compareceram à residência do doutor Gama no Cosme Velho, perto da Bica da Rainha, para o pedido o cial. A seguir, a lufa-lufa de enxoval, proclamas, noivado assíduo, idas alternadas às Laranjeiras e ao Jardim Botânico, passeios românticos. Ah! Petrópolis; saindo de barca da Prainha, contemplando a Guanabara até Mauá. As ilhas. A serra dos Órgãos. O trem por entre orestas e precipícios. A caleça por entre bastidores de hortênsias. Os passeios a cavalo nas manhãs brumosas... *** “— Que o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e Jacó, esteja convosco e derrame sobre vós as suas bênçãos a m de que possais ver os lhos dos vossos lhos até à terceira e à quarta geração e, em seguida, gozeis pra sempre da vida eterna, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo Deus, vive e reina com o Padre e o Espírito Santo por todos os séculos dos séculos. Amém.” (— Perfeitamente! — disse consigo o coronel. — Isso já previ, tanto que mandei fazer um mausoléu para ir engavetando um exemplar de cada sexo, de cada geração...) Sim. O coronel só se emocionou depois da cerimônia, porque durante a mesma o seu espírito crítico entrava em debate com as palavras do Padre Severino, que logo resolveu amenizar tudo com algumas noções interessantes de Teologia Escolástica e Liturgia. — No paganismo a mulher era considerada coisa; na sociedade mundana, indivíduo; mas a Igreja a julga pessoa. Pre ro pois empregar neste ato a palavra “matrimonium” em lugar de “maritagium”, porque “matrimonium” vem de “Matris munus”, isto é, quer dizer ofício, dever de mãe. Ora, o coronel era pelo patriarcado, e nunca pelo matriarcado. Começou por isso a medir sua irritação pelo compasso acelerado dum dos pés batendo sobre o tapete. Então o o ciante considerou que a fundação dum lar cristão constituía um acontecimento público atingindo toda a

comunidade cristã; e levou-os de chofre para o ano de 1216 quando o Concílio de Latrão prescreveu os banhos que, com o Concílio de Trento, passaram a ser exigidos por força de lei. Já antes, porém, o Papa Inocêncio III em carta ao bispo de Beauvais... (— Minucioso esse Padre Severino, hein? — pensou consigo o coronel, dando um puxão na aba da sobrecasaca.) — A Igreja antigamente conservava um tempo em que não era lícito contrair-se casamento, tendo o Concílio de Trento, por exemplo, declarado ilícitas as solenidades nupciais, isto é, a pompa externa bem como a missa nupcial. Isso, desde o primeiro domingo do advento até à Epifania, e desde a quarta-feira de cinzas até ao domingo in albis, por serem de penitência tais períodos. Mas atualmente só se proíbe a bênção solene desde o primeiro domingo do Advento até ao Natal inclusive e de quarta-feira de cinzas até à Páscoa inclusive — exceto se houver dispensa do Ordinário. Vendo as sobrancelhas cerradas do coronel Aleixo, que ele sabia que era positivista, o Padre Severino continuou, tando o majestoso antagonista: — Louvado seja Deus, não se trata aqui dum casamento misto, isto é, entre católico e acatólico... ou herege... ou cismático... ou hebreu... ou pagão. O coronel Aleixo aguentou o olhar exorcizador do o ciante que prosseguia: — Sim, pois do contrário seria preciso seguir as instruções 1061 e 1063 do Códex. Não vos casaria diante dum altar, dum cruci xo, ou duma imagem. Eu próprio não usaria sobrepeliz nem estola; não empregaria água benta nem daria as bênçãos. Assim como Israel devia, sob pena de perder a proteção divina, evitar toda relação de intimidade com os povos pagãos de modo a não se deixar arrastar à idolatria, da mesma forma a Igreja procura impedir os casamentos mistos por causa das consequências fatais que deles resultam em prejuízo da parte católica. O coronel fungou alto e o Padre Severino volveu o olhar para os noivos. — Sabeis o que representam o véu e a grinalda? As mulheres gregas usavam o peplo, com o qual velavam a face. Rinaldi diz que em Esparta as mulheres solteiras andavam de rosto descoberto para encontrar esposo e que as casadas se velavam para não se mostrar agradáveis a outrem. Decerto já ouvistes falar no que fez Caio Sulpício Gallo, em Roma...

Não, o coronel deu a entender com a sionomia atenta que não, que nunca ouvira falar. Mas o Padre Severino passou adiante: — Em Roma as jovens usavam o ammeum nuptiale, que as cobria como uma nuvem etérea. Pois a Igreja, por seu Sacramentário Leoniano do século VII, no formulário da missa de casamento, intitula a função: “Incipit velatio nuptialis”. Nos tempos romanos e durante parte da Idade Média desdobrava-se o véu sobre os neoesposos ajoelhados diante do altar. Duas ou quatro pessoas, clérigos ou leigos, o sustentavam. Os noivos também usavam grinalda. São João Crisóstomo nos refere esse hábito como bem antigo até. E o Papa Nicolau em sua resposta aos búlgaros disse que os neoesposos devem sair da igreja levando sobre as cabeças coroas em forma de torres. No Oriente e na Rússia elas são de prata ou de ouro. Signi cam a dignidade a que os nubentes são elevados pelo sacramento. As freiras e as monjas, por exemplo, trazem permanentemente o véu para que se lembrem da promessa de amor exclusivo a Jesus. Os ritos são muito belos, e não apenas poéticos para os que os satisfazem. A junção das mãos é antiquíssima; Tertuliano já fala nisso. Signi ca que duas vidas se harmonizam num acordo relembrando em gesto simbólico o que se lê no Livro de Tobias: “E Raquel, tomando a mão de sua lha Sara, colocou-a sobre a mão de Tobias”, dizendo o que vem no versículo VII. Quanto à aliança, primitivamente era de ferro. O primeiro exemplo do uso de aliança se encontra no casamento de Judite, lha de Carlos o Calvo com o rei Edilfulv e celebrado por Hincmaro, arcebispo de Reims. O anel deve car num dedo da mão esquerda porque só compete aos bispos e aos abades o uso do anel pastoral na mão direita. E o anel nupcial é usado no quarto dedo por causa duma suposição anatômica medieval a rmando que o quarto dedo esquerdo se acha ligado diretamente ao coração por uma veia especial... Vena amoris... O coronel bocejou ostensivamente. — Quanto às preces, não são meras formalidades litúrgicas aparentes. São garantias. Basta prestar atenção nas palavras: “Con rma hoc, Deus”. Ou nestas outras: “Salvos fac servos tuos”. Ou ainda nestas: “Mitte eis, Domine, auxilium de santo”. Estas palavras e essas cerimônias trazem consigo a carga solene da tradição de onze séculos. Atravessaram os tempos de São Leão I, de São Gregório o Grande, e de Alcuíno. A missa que vos vou dedicar é anterior a São Pio V. O salmo 127 que se canta no Introito até ao Communio

celebra com todo o simbolismo bíblico a grandeza do lar cristão. A epístola de São Paulo aos Efésíos trata dos deveres do matrimônio. “Sacramentum hoc magnum est.” Ao almoço, uma hora depois na chácara do Jardim Botânico, o Padre Severino confessou ao coronel Rogério que respeitava a ética de Comte embora a achasse dita em terminologia do boticário Homais, de Flaubert... Quase foi descomposto pelo coronel, a quem conseguiu aplacar contando o que sucedera na casa de Caio Sulpício Gallo: — Repudiou a esposa porque esta saíra de casa sem véu. — Pois então, Padre Severino, esse seu cliente não era Caio Sulpício Gallo... Era Peru! *** Lua de mel no Internacional, num recanto umbroso de Santa Teresa, já quase no Silvestre. Evidentemente, por ocasião de estados beatí cos de alma e líricos do corpo, aquela nesga de mata no pendor do vale só podia ser comparada a um ninho de cloro la e celulose, em pleno recesso de troncos, guaimbés e tajás, ramagens, perfumes, águas, pássaros, insetos e brilação de atmosfera. Certas tardes, sempre que Artur era obrigado a ir à cidade, Virgínia vinha esperá-lo na estaçãozinha de madeira do Cosme-Velho, e juntos faziam depois o percurso de quase três quilômetros, sentados num dos bancos do trem que subia em rampas e curvas através da oresta. E, de mãos dadas, contemplavam águas murmurejantes, encostas, abismos, vãos de pontes, surpresas minerais cobertas de musgo, gigantes de lei com guirlandas de parasitas, borboletas multicores, tudo num cenário gradativo e vagaroso de apogeus tropicais. — Você gosta do mar... Mas eu gosto da oresta. Veja, espie quanta beleza! Colorida e estática, a oresta os deixava passar, e os deixou ir embora para o casarão do Jardim Botânico onde dona Maria-Amélia, ao recebê-los na varanda que agapantos e gloxínias emolduravam, logo disse: — Agora, Virgínia, tome conta desta casa que precisadinha está de quem embeleze velharias...

IV O PRIMEIRO SARCÓFAGO INÚTIL

CHÁCARA antiga de arrabalde limitado à direita pela muralha de granito e oresta da vertente marítima da Carioca, e à esquerda pela margem ao mesmo tempo bárbara e romântica da Lagoa Rodrigo de Freitas. Residência possuindo todas as características do solar do segundo Império onde o Tempo substitui pela vetustez pacata o fastígio já perempto. Lar tradicional, hospitaleiro como todas as mansões, jamais pretendera, porém, apesar das proporções dos aposentos e do terreno, imitar sequer em sua vida social o ritmo legendário de solares como os de José Aguiar de Macedo, Antônio Clemente Pinto, Francisco José da Rocha, Manuel Lopes Pereira Bahia, Jerônimo de Mesquita, Rodrigues Monteiro e Vieira Braga, por exemplo. Não porque Maria-Amélia e Aleixo Cintra não fossem de proveniência talvez mais pura e de prosápia decerto mais briosa do que os barões de Bela Vista, os condes de Nova Friburgo, os barões de Itamarati, os viscondes de Meriti, os barões de Mesquita, os condes de Estrela e os viscondes de Piratinim. Mas a vida dera muitas voltas, não se poderia mesmo jogar a culpa sobre o Encilhamento já que muitos anos antes só restava ao casal a residência em Jardim Botânico, um terreno (cuja casa mandara demolir) na Praia de Fora, e o soldo militar. O pecúlio herdado por Maria-Amélia mal dera para a última viagem a Paris e isso mesmo só se contando as despesas discretas duma estada embevecida, já que a viagem fora bem antes das pantomimas de Dubereau, dos cancã no Folies-Marigny e no Moulin Rouge, e portanto quando ainda não havia nenhum music-hall avec promenoir para as precursoras de Jeanne Avril, os mestres de Édouard Dujardin... e as curiosidades do Aleixo Cintra. Tal residência, ali pouco depois do Largo dos Leões, incutia naquele m de século uma tranquilidade comparável à que pode proporcionar um ser de muita experiência capacitado para oferecer conselho e refrigério. O

gradil sobre baldrame de alvenaria bem como o portão precisavam de pintura, mas as trepadeiras fartas tornavam o jardim indevassável. O muro da frente, com cento e vinte metros dum lado e oitenta do outro, tinha com intervalos vários lances de madressilva. A balaustrada da varanda sustentava guras de bronze com lanternas nas mãos ladeando os três portais, e a fachada se expandia com oito janelas de cada lado. Dentro, dando para a frente, três salões, a sala de visitas, o saguão e a biblioteca. Para o corredor dando para a sala de jantar e largo que nem uma galeria, desembocavam oito quartos. Aos fundos, dum lado a copa e do outro os banheiros. Por m, a cozinha ampla. Uma segunda varanda, do lado sul da sala de jantar, dava para o jardim. Uma terceira, rente à copa, abria-se para a chácara. O jardim na frente e dos lados tinha três alamedas; a do centro, curta e cimentada, indo ter aos degraus nobres, apresentava além dos jasmineiros velhos, margens de canteiros com hortênsias e manacás. A da esquerda, entrada para carruagens que paravam junto à escada da sala de jantar, era um toldo de amendoeiras. A terceira, indo ter à chácara propriamente dita, era constituída por velhas mangueiras, a que se seguiam as jabuticabeiras. Entre essas alamedas e entre a rua e a casa, o parque estava um pouco inculto, apenas continuando viçosas as espirradeiras e as cássias, já que as roseiras nodosas se esgalhavam por entre crótons e hibiscos, e o gramado, com seus centros de ores e tajás, bem que precisava de trato mais constante. Depois da cachoeira e dos cômodos da criadagem, começava a chácara que se estendia até à Lagoa como um autêntico pomar desenvolto e bravo. E ao fundo da terceira alameda, em pleno reino de pitangueiras e amendoeiras, galpões continham trastes e cacarecos com lugar, porém, para um barco e uma o cina náutica e apetrechos de pesca. Disso tudo Virgínia foi tomando conta gradualmente, primeiro acompanhada pelas explicações redundantes e eufóricas do sogro; depois, passando horas nos caramanchões e nas redes com Artur; e, por m, sozinha ou com dona Maria-Amélia, já que o coronel Aleixo e o tenente Cintra caíram de chofre na vida ativa de suas carreiras. Cintra ia para bordo, ausentava-se durante dias ou semanas, fazia viagens, irrompia como por acaso, tornando ansiosa a vida de Virgínia. Ainda bem que havia a sala de visitas com o piano, as estantes de música, os álbuns de fotogra as e de

postais, as almofadas e os biombos, o bric-à-brac e os espelhos. Ainda bem que havia a biblioteca onde, ao lado de volumes técnicos do coronel, renques e renques de livros de ciências sociais, coleções losó cas, manuais militares e um mundo de revistas de economia, moral, mecânica e história, ela pôde descobrir alguns outros volumes — romances e poesias — que separou cuidadosamente para as temporadas de solidão, livros que pareciam estar ali incógnitos à sua espera e que depois a acompanharam pela vida inteira como um capricho; não eram muitos, comparados com os que havia nas estantes do doutor Gama. *** O coronel reverteu a uma unidade em São Cristóvão depois duma despedida ao corpo discente e docente do Colégio Militar onde pela última vez explanou a sua teoria sobre os isocaedros; e trabalhava agora afogado até à papada e à barba numa farda insigne, rodeado duma o cialidade garbosa que o respeitava e atendia não obstante as divagações in amadas e novas cartas a Poincaré e Dromard a respeito daquela tal ideia... Mas logo esqueceu essa predestinação sempre adiada e, mesmo em casa, às refeições, irradiava por todos os poros comentários fogosos aos esquemas de Rocroi e Gravelotte. Artur e dona Maria-Amélia cedo se inteiraram da nova criatura que viera morar sob aquele mesmo teto. Com dezessete anos incompletos, Virgínia logo lhes deu a certeza de ter uma índole especialíssima feita de critério e ternura. Mas sua delicadeza de alma, longe de ser submissão, era sensibilidade contida. Manifestava quase um desdobramento de personalidade, pois se era solícita e prestimosa com todos, desde a cozinha até à sala de visitas providenciando o currículo doméstico e social, sempre que Artur estava a bordo na Guanabara ou em viagem, ela se isolava na biblioteca ou no quarto, num caramanchão ou no fundo da chácara, às voltas com leituras que nada tinham de fúteis. Sua bondade plácida não criticava nem mesmo intimamente os rompantes do temperamento ora patético e ora grotesco do sogro, nem analisava com evidência imediata os despautérios ingênuos da sogra quanto a chapéus, vestidos, passeios, teatros, opiniões e comentários.

Artur não a decepcionou quando a vida real e cotidiana o apresentou, não mais como o noivo do Hotel White e do Internacional, e sim como um espécime normal e radioso de rapaz. Viu nele sempre um caráter cuja marca mais espontânea era a alegria. Um júbilo permanente perante tudo. E isso se manifestava nas risadas que dava ao ouvir o pai em pleno serão com burgueses ensaiar conversas alcandoradas sobre o método positivo e a ciência econômica; nos abraços com que amarfanhava os vestidos algo esdrúxulos da mãe; na maneira quase de adolescente com que andava às correrias pelas salas e jardins brincando com a esposa, mostrando-lhe fotogra as incríveis de parentes anacrônicos; no arrebatamento com que ngia jogá-la dentro da cascata de cimento ou nas águas da Lagoa; nos convites súbitos a passeios até à Praia de Fora, nos sustos que lhe pregava com suas chegadas repentinas; nas conversas deliciosas com que transformava as horas em otimismo; nos debiques com que rodeava pessoas das relações da mãe, nos apelidos que punha nos amigos do pai; na escolha admirável que fazia de assuntos quando estavam a sós, ele e a esposa; en m, na vibração fascinante da sua mocidade usufruindo de modo total a existência. Virgínia já dera à luz Carlos quando o coronel Aleixo (depois de no seu quartel, nas salas do Ministério da Guerra e nos conciliábulos de Estado Maior fazer sempre revisão crítica no histórico e na realidade das expedições a Canudos — cujas notícias pessimistas ou otimistas o irritavam até quase à apoplexia) — foi mandado pelo Governo à testa dum regimento, servir junto ao general de brigada Artur Costa no teatro de operações. Partiu com tropas, mapas e projetos bebidos em Kromayer e Bressonnet, conceitos e determinações colhidos em Bonnal, e por longo tempo não remeteu notícias pessoais à família, por mais que as redações dos jornais e os grupos da rua do Ouvidor burburinhassem de boatos. Após informes indiretos colhidos no Campo de Sant’Ana, inclusive quanto à chegada, saúde e ação do coronel, veio sua carta — a primeira e única. “Artur, “Escrevo-te não duma barraca de campanha no Alto da Favela, mas duma choça na estrada do Canabrava, sobre uma tábua atravessada diante de mim. Lá fora está a minha ordenança de olho vivo e de

Comblain preparada, não vá (aqui tudo é possível porque tudo é empírico) surgir algum êmulo do Tranca-Pés ou do Raimundo Boca Torta com um facão-jacaré ou com uma lazzarina para me dar cabo do canastro. É que vim para cá com espírito positivo (inclusive quanto às precauções), e não afoitamente como o Nunes Tamarindo ou o Quirino Vilarim, pois isto aqui é Canudos e não, como decerto eles pensavam, um campo de Vernéville onde as tropas se deslocariam segundo lances de xadrez. Esta vai mesmo a lápis cuja ponta z com uma parnaíba. Por enquanto mando um relato às pressas do que tem sucedido, porque conto narrar-te durante noites seguidas no Jardim Botânico o que vem sendo esta expedição e o que foram as outras, já que aí nos ministérios, no Palácio e na rua do Ouvidor ignoram o que isto foi e está acabando de ser. Sim, está acabando de ser porque vamos arrasar tudo, pois que não temos meios de desviar o Vasa-Barris para dentro deste monturo. E, se não o zemos ontem é porque estamos à espera hoje de que um tal Bentinho e um tal Barnabé nos tragam, conforme prometeram, os únicos prisioneiros que ‘vamos fazer’, isto é, umas trezentas mulheres e crianças. “A função está no m. Pudera! Somos aqui uns cinco mil homens, sem contar os que estão de reserva na estrada de Monte-Santo. Sim, rapaz, onze batalhões. Tropas do Pará, do Amazonas e de São Paulo, sem contar a polícia deste Estado. O assalto vai ser iniciado por duas brigadas, com o Dantas Barreto e o César Sampaio. Pretendo escrever-te a próxima carta já de dentro do arraial. Diga a Maria-Amélia e a Virgínia que não se a ijam. Estou no meu elemento. Esta frase pode parecer ambígua. Quero dizer ‘em operações’ e também no meu elemento quanto à terra, aos homens, às disparidades humanas e sociais... en m, fenômenos e estados de coisas, sobre que, se tivesse tempo, ainda escreveria um livro amargo. Espero que algum gênio ainda anônimo venha a fazer isso um dia para conhecimento de nossas lazeiras. As de cá e as daí... Como vai o garoto? Um abraço de teu pai que se recomenda a todos.” Lá esteve o coronel Aleixo Cintra, tratando desde o início de reduzir a região a triângulos concêntricos, assim, de fora para dentro: litoral, São Francisco e uma reta de Cachoeira a Boa Vista. Depois: Canabrava, Cocorobó e Calumbi. E, no centro: Favela, Vaza-Barris e Várzea da Ema.

Lá esteve, bravo e indômito, retido por ordens superiores em Trabubu donde a brigada Carlos Teles mandou a cavalaria explorar o terreno pelo anco esquerdo. Na hora em que o alferes Wanderley morria, quarenta e oito horas depois da ordem do dia “Camaradas, amanhã nos abraçaremos em Canudos”, o coronel Aleixo recebia um tiro no pé, coisa com que pouco se importou contanto que disso não adviesse erisipela, conforme disse ao ver os orifícios de entrada e saída do projétil. Mancando, com o pé enrolado num sistema de curativo que mais parecia um ferro de engomar, o coronel reassumiu o comando da sua gente no dia 30 de setembro, quatro dias depois daquela carta. O 49.º, o 39.º e o 29.º estacaram por causa das descargas vindas do estuário. Por m as duas brigadas se fracionaram, ao toque de cornetas, inserindo-se pelas ruelas e por entre o casario. O 5.º, da Bahia, investiu de baioneta calada. Aleixo viu o major Queirós e o coronel Caldas baquearem naquele dédalo de senzalas. O 7.º hasteou numa parede o pavilhão nacional, mas não tardou que nova reação paroxística sacudisse o reduto, e Aleixo, ofegante, suarento, cambaio, teve que fazer sua tropa voltar para as trincheiras, concordando com os três generais que haviam antes descido quase até à latada. O comando geral mandou trazer do acampamento bombas de dinamite. E assim as paredes das igrejas tombaram, a argila seca de Canudos se fragmentou em estilhaços, enquanto as explosões sacudiam o arraial cujos escombros caram fumegando ao sol e às estrelas até à noite de 2 de outubro. Nos dias 3 e 4 as ruínas foram submetidas a uma autópsia macroscópica, e só no dia 5 se descobriu dentro duma choça esmolambada a cova com o corpo do Conselheiro. Estava envolto numa esteira velha, reduzido mais a despojo de faquir do que de profeta. O coronel Aleixo se recusou a redigir a ata de veri cação de identidade, dizendo peremptoriamente: — Como, se não sei se essa múmia aí, enrolada em brim e terra, é mesmo Antônio Vicente Mendes Maciel?! *** Após trinta e quatro dias de viagens de regresso do sertão para a cidade do Salvador, o coronel Aleixo já estava com o pé cicatrizado de todo;

a verdade é que, ao descer na Estação da Calçada, já não trazia tão incubado aquilo que, dias e dias antes em Queimadas, Alagoinhas e Pojuca, se manifestava em calafrios, febre alta, dores na coluna e enxaqueca, e que ele sintetizava com o nome de lumbago. Aquartelou a sua gente no Forte de São Pedro e no Forte de Barbalho, cou hospedado em casa de amigos na rua da Mangueira, mas já então se portou de modo bem diferente do entusiasmo galhardo daquela outra estada quando se transferira de bordo do “Espírito Santo” para o mesmo solar. É que logo naquela tarde notou diante do espelho que estava com o rosto e parte do corpo cheios de manchas e botões vermelhos. Assim, desta vez já não alvoroçou com sua facúndia singular os amigos de meses antes, o Pethion de Villar, o Aloísio de Carvalho e o jovem Francisco Mangabeira; e nem viu direito, tanta era a febre, o farol da Barra e a ilha Itaparica, quando o navio partiu para a viagem de quatro dias rumo ao Rio de Janeiro, pois aquilo que julgara uma erupção qualquer apanhada em Monte Santo ou Serrinha, era... ele agora bem o sabia o quê! Mandou chamar o comandante, na manhã seguinte, disse-lhe através da escotilha: — Mande lacrar este camarote. Estou com varíola. Examinado por dois médicos, na presença de o ciais, ele próprio com os óculos encarapitados na ponta do nariz e de espelho na mão a veri car as pústulas, algumas já virando abscessos, cou evidente e explícito que sim, que era varíola. Na manhã do outro dia já estava com oalmia, e delirava horas a o, supondo-se na latada a interrogar um prisioneiro. — Vamos! Confesse onde está o Conselheiro! E ele próprio imitava a voz do cafuz: — O nosso Conselheiro partiu pro céu, seu doutor general! Morreu duma caminheira. — Ahnnn! Danou-se com a disenteria? Pois eu também me vou danar. Estou com ela, com a boa, com a varíola negra. Artur, não traga aqui a Virgínia! Chiu!... Não contem nada à Maria-Amélia, hein? Examinava, com os olhos parecendo duas conchas entreabertas, o camarote, os o ciais amigos, enxotava-os, cava a ouvir o rã-rã das máquinas. — Esta é muito boa! Esta é de primeira! Mandar o Tronchi me fazer um jazigo! Boa, hein? Sim, como pilhéria, é ótima! Um jazigo! Não. Não há

fugir. Somos parte inerente à formação concêntrica dos elementos. A natureza toda segue o método análogo à evolução dos poliedros regulares. Claro, que não há fugir, senhores... Um mausoléu. E, ainda por cima, de Siracusa. Tronchi!!! Não te disse que me zesses uma pirâmide? Ah! Ah! Ah! Um jazigo perpétuo! Perpétuo, como? Perpétuo é o mar! O mar!... Conquanto tivesse apenas cinquenta e poucos anos, a barba, a albuminúria e a endocardite, sorrateiramente, sem demora, logo o transformaram aos olhos do comandante e da o cialidade — que se arriscavam todos a visitá-lo — num ancião lutando com a morte. Numa dessas visitas, ao anoitecer do segundo dia, pediu ao comandante e ao médico uma folha de papel. E depois lhes leu o que escrevera: “Declaro que exijo, caso venha a morrer antes de chegar ao Rio, que atirem meu corpo ao mar. Bem sei que tenho um jazigo no cemitério de São João Batista. Foi a única tolice grave que cometi em toda a minha vida. Faço esta exigência em pleno e perfeito uso de minhas faculdades mentais.” Perguntou o dia, escreveu a data e assinou. Durante a noite, conquanto seu corpo não parecesse uma chaga ainda, todavia o coração estava em pandarecos (conforme ele diria, se ainda estivesse loquaz...); e o coronel resfolegava cavernosamente, como a imitar o difícil rãtrã das máquinas do navio lá no porão. A sua ordenança, que não arredava os pés da porta do camarote (não podendo car lá dentro porque era escorraçada ora com brandura ora com um berro), de madrugada, vendo-o estertorar, lhe pôs nas mãos frouxas um rosário que adquirira na feira de Alagoinhas e foi chamar um dos médicos e a o cialidade. O coronel, hirto, guedelhudo, parecia um rei esculpido em sombras e volumes do lado de fora dum jazigo... E Cipriano, a ordenança, disse ao major Moura, muitas horas depois, entre Ilhéus e Vitória: — Louvado seja Nosso Sinhô qui o coroné num teve a sorte dos que caro na Lagoa do Cipó. O mar, pelo menos é bem mais grande! O fato de Tronchi já haver terminado o mausoléu, nada adiantou. Mesmo porque estava escrito que aqueles oito sarcófagos jamais teriam ocupantes.

V IDÍLIO NA CHÁCARA

O CASARÃO pareceu enorme quando Carlos principiou a engatinhar. Sua curiosidade viva ante a série de cômodos era tanta que aprendeu a andar mais cedo do que se esperava, tendo até ensaiado uma carreira vacilante dos braços da ama para os joelhos da avó Maria-Amélia quando esta, certa manhã, desceu com di culdade os degraus da varanda para um carro que a deveria levar para junto do longínquo esposo. Pobre Maria-Amélia! Mudara muito desde a morte do coronel. Qualquer coisa maligna na vesícula biliar a fez ir emagrecendo a olhos vistos a ponto da roupa de luto não lhe servir, obrigando-a a pôr de lado os crepes e viver con nada no último quarto que dava para o pomar. O Daniel de Almeida operou-a a conselho do doutor Gama, no Hospital dos Ingleses ali na rua da Passagem, donde de fato ela se passou para as regiões que o marido já andava a identi car. O outro avô, o doutor Gama, pôs-se a frequentar mais assiduamente a casa. E o tempo a operar seus prodígios de aparente rotina: fazendo um bebê vestido de malhas e roliço como um esquimauzinho, aparecer em casa, daí a muitíssimos dias, vestido de marinheiro, querendo contar à mãe que tio Maurício o levara a ver o... Bem, ninguém entendia aquelas reticências saltando dos olhos eloquentes e cando áfonas nos beiços ensalivados. Mas o tio explicava: — Levei-o ao cais Pharoux, mostrei-lhe o Atlantique enquanto esperávamos juntos com a multidão o herói do dia, Santos Dumont. Conhecem o Atlantique... o transatlântico que da outra vez trouxe as portas de bronze da Candelária. — Mas você esteve no cais Pharoux com o sol que fez hoje! Pronto! É por isso que Carlinhos está todo vermelho... Decerto é febre...

E o tempo ironizando tudo, fazendo um garotinho vestido à marinheira mas que ainda não andava direito e que só falava cinco palavras, daí a períodos (que relembrados depois pareciam momentos e séculos) aparecer em casa, já de calças curtas, cabelos de pajem, tagarela como um napolitano, a contar as proezas a que assistira com o tio Maurício. E este mais uma vez a ter que explicar num m de tarde de domingo plácido que levara o sobrinho ao Casino por causa dos números do malabarista Yamagato, do ciclista Rabbow e dos palhaços e Kiehinger... E Carlinhos a dizer que sim, a desvirtuar de modo incrível aqueles nomes, a querer imitar as acrobacias e as cambalhotas. Assim, quando o pai estava de viagem pelo litoral rumo ao Norte ou por entre as vagas ao largo do Paranaguá, tio Maurício o levou várias vezes ao São Pedro onde a Companhia Imperial Japonesa exibia a Viagem Fantástica à Lua. Com a mãe, saía pouco; preferia o tio Maurício que não o levava, como a tia Judite, àquelas bobagens de batalha de ores no Campo de Sant’Ana com distribuição de prêmio às carruagens, às canoas e às bicicletas de ornamentação mais interessante. Não que a tia tivesse culpa; esta era das amigas que instavam. Sua grande impressão foi certa surpresa: a primeira ta cinematográ ca aparecida. Sim, levaram-no à Maison Moderne ver a Gata Borrelheira, do Pathé Frères. Que coisa fantástica! Na varanda, o pai atanazava o tio Maurício para este explicar à mana como era o cake-walk. E o mano Maurício, de óculos, com ar de seminarista comportado, a dançar afoitamente a ponto de cair em cima da tina de tinhorões. Não faltou mesmo a in uência do carnaval. Não no centro, na rua do Ouvidor nem na dos Latoeiros ou na da Vala; mas em casa mesmo, com “estalos fulminantes”, seringas e limões de cheiro, o Carlinhos e a criadagem rmes, horas e horas no gradil, do lado de dentro, enquanto operários da fábrica e malandros dos morros vinham pela rua abaixo, no cordão “Os Vulcanos da Gávea”, com estandartes. Um índio a apitar e dançar na frente, enquanto o burro-doutor, a caveira, o Pai João, o Rajá e as baianas des lavam cantando em grupo. Um morcego negrejante, com um pires, pedia moedas de cobre e tostões para a cachaça. Certas noites esperavam, pai e mãe, que Carlos dormisse; e então se esgueiravam pela escada dos fundos e iam à cidade assistir a coisas insossas

ou não, já que fazia calor. Toda gente tendo assistido, a nal sempre valia a pena. E assim viram A Capital Federal, no Recreio, com Medina de Sousa e o Brandão; o Tim-tim por tim-tim, as peças de Cinira Polônio, no Lucinda, e até mesmo uma opereta de Artur Azevedo e a ópera Saldunes no Lírico. Nas manhãs seguintes o lho ouvia os comentários à mesa e abria escarcéu. Então os pais, muito líricos naquele ambiente umbroso da chácara depois do ajantarado, faziam o tio Maurício de bobo; e ele lá ia acompanhar o sobrinho em interminável viagem de bonde, por um domingo cáustico e monótono, até ao Salão Paris na rua do Ouvidor. Ainda bem que a imaginação do tio e do sobrinho obrigava a diálogos práticos diante daquelas imagens do Panteon Ceroplástico, de Pascoal Segreto. E já foi sem licença de Virgínia que ele levou o sobrinho ao Rocio para assistir à ta A Vida de Jesus. — Não disse que não o levasse! — reclamava ela dias depois, ao jantar. — Agora anda com os moleques aí pelo quintal, só quer ser Caifaz, Herodes e Pilatos... *** O que hoje se lê sob a rubrica exígua e lacônica de Efemérides, palavra já de si tão desbotada como uma data num daguerreótipo, foi coisa a que marido e mulher assistiram, leram ou ouviram falar nas respectivas ocasiões. Por exemplo, esparsamente: A inauguração da exposição de Visconti na Pinacoteca da Escola de Belas-Artes. As novas instalações da livraria Garnier na rua do Ouvidor. A inauguração do Club Militar na rua Uruguaiana. Uma soprano brasileira no Apolo cantando no Rigoletto o papel de Gilda. As amigas de alta esfera, de Botafogo, de Santa Teresa, instando para que assistissem à estreia de Antoine no Lírico com Blanchette. — Moramos tão longe. A Lagoa é no m do mundo! — Mandamos o carro buscá-los, ora! O carro... Não um landau, uma vitória. Uma sege vulgar; mas um automóvel Pic-Pic. O pasmo de Carlinhos... O chauffeur vestido como um habitante de Marte, com óculos, luvas, capotão, perneiras. Como passa o tempo para as mães! Como os lhos o devoram como um bolo de quermesse! Maria-Amélia estava enterrada no Caju, no

cemitério da Ordem Terceira do Carmo; não quisera (conforme tanto explicou dias antes de ser operada) car sozinha como a rainha Karomama no mausoléu do Tronchi! O avô Aleixo, no fundo do mar; lá onde algum rio da Bahia entorna bem longe, como imensa cornucópia pardacenta, suas águas grossas de minérios... Enquanto isso, Carlinhos aprendendo com a molecada da rua (embora preso no jardim e o portão sempre com cadeado) expressões como esta: — Ó ferro, ó aço... Talvez te escreva com tinta roxa... O tempo. Esse sorvo aspirando tudo para a sua entranha... Artur vendo Virgínia ao seu lado dizer coisas tão sensatas sobre certas telas da exposição de Vítor Meirelles. Depois, aquela temporada em Petrópolis, no verão onde, apesar do sossego, das hortênsias e das caleças, com tanto corso, tanta paisagem e tanto passeio, a ideia snob das Lima e Melo (Artur apelidara-os de Lima e Melancia) levarem Virgínia ao concerto de Chia telli no Clube dos Diários; A primeira desavença... Artur querendo car no hotel à vontade, lendo Eça de Queiroz, e Virgínia obrigando-o a vestir-se direito para ouvir concerto de violino com técnica de rabeca de cigano... O tempo, sorvo de bochechas invisíveis aspirando tudo... Pois não parecia ainda ontem o centenário de Caxias? A parada? Carlinhos no palanque, todo compenetrado entre as fardas e cartolas, sombrinhas e leques, procurando discernir o pai quando passaram as tropas da Marinha. E também as visitas. Ah! Se eram esquisitos aqueles retratos do álbum encadernado de dona Maria-Amélia, já agora por sua vez a rememoração das sionomias e dos vestidos, dos coletes devant-droit, das gargantilhas, das saias, das blusas, das botinas de abotoar de lado, das sombrinhas multicores, dos fraques, das bengalas, das correntes de relógio, dos chapéus Chile e coco, dos coletes trespassados, dos punhos e dos colarinhos rijos de goma, dos al netes de gravata, das bolsas, dos grampos pontudos prendendo abas de chapéus em penteados de topetes cibelinos, as mitaines, os lorgnons, os monóculos, de toda aquela gente que no decorrer de tantos anos frequentou com regular assiduidade a casa do Jardim Botânico devia causar espécie, fazer a orar um sorriso nem sempre de ironia, mas muita vez de saudade complacente. Que falta não fazia o coronel Aleixo para excomungar o prefeito Passos por derrubar aquele centro onde na mocidade pompeara com sua

farda de bilontra... Ou talvez o elogiasse, quem sabe, se viesse a ver como as ruas Assembleia, Carioca, Frei Caneca, Uruguaiana, 13 de Maio, Marechal Floriano mudaram o aspecto da cidade, arejando-a com rasgões retos. Decerto elogiaria a Avenida Central, aquela “artéria” da Prainha ao Boqueirão, agora com os nomes bem menos provincianos de Praça Mauá e Monroe. Haveria de gostar de percorrer no automóvel das Lima Castro o trecho da Avenida Beira-Mar, onde outrora a Praia da Lapa, o Roussel e o Flamengo eram terra suja lambida pelas ressacas. O que é certo, quanto a isso nem se discute, é que levantaria “catilinárias” (para empregar expressões muito dele) contra Osvaldo Cruz e o chefe do doutor Gama, o velho Afonso, e prosélitos, por causa da vacina obrigatória! E quem sabe se não arruinaria a sua carreira (coitado! Canudos acaso não lha arruinou junto com a vida?) cando do lado de Lauro Sodré e Barbosa Lima, talvez até alterando o m daquela sortida da Escola Militar, impedindo a debandada na rua da Passagem! Demolições. Alterações. Carlinhos estudando em casa, no enorme porão. Professores: a mãe e tio Maurício. Mania de ser escafandrista... Sabia todos os nomes dos navios da nossa esquadra, dos transatlânticos da Mala Real, dos paquetes de Lloyd e da Costeira, e já conhecia pelo radiador a marca dos poucos automóveis que via. — Aquela é uma Renault. Mas aquele ali é um Benz. E a terminologia náutica que tio Maurício lhe ensinava! Era de pasmar. Decididamente quando crescesse pregaria um quinau no avô Gama que o engabelava com coisas para obter do neto a garantia de preferir a medicina ao exército. Agora, nos domingos, os três andavam construindo uma galeota no porão. Artur trouxera da cidade, do Freitas Couto, uma caixa de ferramentas. Tio Maurício escolhera as madeiras na rua Frei Caneca. Para o nome foi preciso uma reunião com dicionários de tupiguarani. Por m foi escolhido: “Kuimbaé”. O lho tratava o pai por tu numa época em que se dizia: “Sim, senhor, papai”. Lutavam corporalmente, numa época em que os lhos não se sentavam à mesa senão depois dos pais. E andavam inventando estratagemas para se pregarem mutuamente peças que redundavam em surpresas alternadas.

Dir-se-ia que o lho herdara o ar folgazão e espontâneo do pai e não a serenidade quase circunspecta da mãe. Como trindade humana, naquela casa viviam na harmonia mais absoluta que é possível. Artur nada tinha das birras e pirraças do coronel Aleixo, e muito menos de suas extravagâncias cienti cistas. Era humano, perfeito, simples, sensível, sem tendências para a introspecção, mas tendo senso intuitivo para aprender tudo, até mesmo aquele mistério de classe intelectual da mulher que vivia lendo coisas de que ele jamais ouvira falar. Sim, Virgínia deixara de lado o piano, quase não pagava visitas, tratando porém as que lhe eram feitas com tamanho “charme” individual que as amigas voltavam e não exigiam retribuição. Em música, tinha preferências e intolerâncias. Nas palavras usava e procurava entendimento e compreensão, mas o que dizia a certas amigas íntimas, raras, não era o mesmo que dizia às outras vulgares e insípidas. Seus comentários sobre Schumann e Brahms não podiam ser baralhados; eram especí cos, só serviam para cada qual, sem confusão nem analogia, pois exprimiam sentido de conhecimento e de essência. Suas opiniões sobre romances não englobavam elogios genéricos, mas iam fundo na índole da obra e na técnica do autor... Suas análises em exposições não se contentavam com um silencioso perpassar elegante e suave. Comentava, discutia, comparava. Não era, como no caso da maioria das amigas e conhecidas, a dona de casa que discorre a fundo sobre modas e cozinha, gurinos e guloseimas, doenças e parentescos, notícias de falecimentos e de crimes... Não. Com aquela serenidade tão sua, a que a voz inesquecível de timbre próprio dava uma personalidade de criatura feita para encantar e tolerar, criava um halo de admiração e nunca de inveja, pois seus temas não eram o próximo, e sim fatos, no mais das vezes fatos imponderáveis, estados de alma, delicadezas de sensibilidade, percepções excepcionais, modos e ângulos muito particulares de acentuar e iluminar o que a outros passava despercebido. — Virgínia, que livro devo levar para bordo, lha? — indagava Artur, não para que ela lhe escolhesse o volume e sim para que notasse quanto ele já se interessava por coisas a que antes não dava apreço. — Este está bem? — Como se chama? Ah! “Génie et Talent”, de Max Nordau. Tradução. Para que levar isso para bordo? Gênio e talento você já tem. Leve alguma coisa em que aplicá-los. — Servem estes dois volumes de “A Guerra e a Paz”?

— Para ler a bordo? Entre conversas, responsabilidades, distrações? Depende... Você vai fazer a circum-navegação do Globo ou vai mesmo só até Vitória? Leve isto, então. Stevenson. Assim, sem o marido perceber uma intenção didática — e que de fato não existia — o foi enfronhando em toda uma literatura universal, antiga ou recente, a respeito do mar. Poesias, contos, novelas, romances, relatos de viagens, que ela própria ia comprar quando de passagem para o Parc Royal ou a Notre Dame; ou então marcava encontro no Briguiet e ambos (na verdade ela) escolhiam qualquer volume adequado. Disso resultou uma distração eventual para Artur e uma curiosidade ávida de Carlos, já então às voltas com terminologia náutica. Uma das salas de frente do porão habitável estava arrumada desde o tempo de Maria-Amélia com recordações do Brasil e do mundo trazidas pelo lho e pelo marido durante anos, de diversos países e Estados. Tal sala se chamava o Consistório e dum lado havia imagens de santos velhos e quebrados da Bahia; opas de procissão em Minas; pequenas telas de Paquetá, do Castagnetto; pilões do tempo da Colônia e do Primeiro Império; oratórios do Maranhão com incríveis ex-votos; peças de tecidos e cerâmica do Nordeste; cestos e redes do São Francisco; lembranças do Araguaia; esculturas do Alto Solimões; apetrechos de macumbas do Recôncavo; cerâmica indígena do Pará; amostras de madeira do Espírito Santo; diversas pilhas de revistas. Essa banda era de objetos adquiridos ou con scados pelo então capitão e major Aleixo quando os acasos administrativos o tinham feito dar com os costados por aí além; o doutor Gama, por exemplo, no começo do noivado da lha até tinha medo do habitual convite do coronel quando lhe dizia: — Bem, doutor Gama, não adianta azucrinar-se com os surtos da bubônica; que é isso para quem já vem dando cabo da febre amarela e da varíola? Vamos para o consistório lá embaixo ver umas coisinhas de antropologia, pré-história e etnogra a... Do outro lado havia recordações que Artur trouxera da sua viagem de circum-navegação, meses antes de conhecer Virgínia. Álbuns e caixas com postais de tudo quanto era porto de passagem, e miudezas compradas nos cais respectivos. O pai, voltando-se para essa banda, costumava dizer ao doutor Gama:

— Isto aqui é a salada do Artur. Bugigangas da Patagônia, do Pací co, do Índico e do Mediterrâneo. Frioleiras... Agora, porém, na mesa do centro já estava o “Kuimbaé”, feito nos estaleiros de Sacopenapã, e o porão era local de palestras. Depois que Maurício veio morar com eles, aquilo deixou as características de “Sapucaia” (conforme dizia Artur referindo-se aos cômodos atulhados de cacarecos) e passou a ser a “cellula mater” (conforme diria o coronel se ainda fosse vivo). Numa rede do porão, ou junto à cascata dos tinhorões no jardim, Virgínia foi aos poucos interessando Artur naquilo que ele, o cial da marinha, homem do mar e do convés, ainda não percebera no oceano e nos tombadilhos — intuição. Começou com poesia. Lia-lhe por exemplo “O Homem e o Mar”. E rematava olhando-o muito, perguntando ou acentuando: — Está ouvindo? “Homme libre, toujours tu chériras la mer!” — Depois o abraçava, ponderando: — “La mer est ton miroir” — Fitava-o bem nos olhos, a rmava: — “... Et ton esprit n’est pas un gouffre moins amer”. Lia-lhe trechos de Chaucer, do “Madeleine”; de “A Rainha das Fadas”, de Spencer; de “O Náufrago”, de Falconer; do “Royal George”, de Cowper; da “Rainha Mah”, de Shelley. Quando Artur teve que viajar, logo depois de promovido a capitão de corveta, Virgínia lhe pôs na mala, sem dizer nada, uma edição pequenina de “Os Lusíadas”. Certa noite de verão no Jardim Botânico, Virgínia, depois de tocar um bom trecho de Peer Gynt, o trouxe para a varanda e lhe recitou de cor em francês, numa pronúncia grandiosa, cheia de mistérios guturais esquisitos, uma poesia que o intrigou por ser um pouco inacessível mas, talvez por isso mesmo, provocadora de arrebatamentos. — Como se chama isso? De quem é? — Um beijo, para perdoar tal pergunta. É dum adolescente prodígio. — Belga? — Outro beijo para perdoar esse disparate. Deu informes estranhos sobre o autor. Tornou a recitar o poema. E então Artur, além do conceito especial que tinha de Virgínia, a viu naquela noite dum modo diferente, com a sionomia abrasada, a voz quente, o gesto solene e, principalmente, com um tal fulgor nos olhos que até parecia con rmar aquele verso que mais o impressionou: — “J’ai vu le soleil bas taché d’horreurs mystiques...”

VI O SEGUNDO SARCÓFAGO INÚTIL

ARTUR sentado no peitoril largo da janela gradeada do porão e Maurício atirado na rede, discutiam. O assunto era avaliar quem tinha sido maior: Saldanha da Gama ou Custódio José de Melo. Mas cada qual persistia em sua teima, e de nada adiantavam as comprovações que um atirava sobre o outro. — Foi agraciado com a Legião de Honra! — Isso não interessa. — Foi formidável na barra de Camamu por ocasião do naufrágio do Oregon. Pintou o diabo em Curupaiti, Humaitá e Timbó. Trouxe da Europa o Purus. Foi adido às legações de Londres, Viena e Berlim. Formou muito guarda-marinha em instrução pela costa do Brasil a bordo da corveta Niterói. Assistiu à construção do Aquidabã no estrangeiro e o trouxe. Comandou o Guanabara, o Barroso e o Riachuelo. Foi ministro da Marinha. Não teve medo das caretas de Floriano. Tomou Santa Catarina e o Rio Grande do Sul. — Mas se entregou às autoridades argentinas. — E o Governo não o anistiou? E não o elogiou pelos trabalhos que escreveu sobre torpedos? E Carlinhos entre os dois, atiçando-os: — Isca! Isca! — Bem. E o Saldanha? Outro espírito! Outra bravura! — dizia Maurício. — Vida muito mais interessante. — Que nada! Só porque foi seu parente? — Se o Melo andou pela Europa e frequentou cortes, meu tio-avô Luís Filipe antes de mais nada era lho de dom José que andou pela Inglaterra, pela França e pela Bélgica como camarista da princesa dona Maria da Glória!...

— Ora! Camarista! O Melo foi adido de legações, se é que temos que começar por aí. — Então vamos para o currículo. Quando da colisão do Santo Antônio e do Jequitaia, ele fez muito mais do que o Melo quando o Oregon afundou. Em Curupaiti e em Angostura mostrou o que é braço. Brilhou em Viena d’Áustria na Exposição Internacional. Comandou a corveta Parnaíba e o encouraçado Riachuelo. Brilhou nas exposições de Filadél a e de Buenos Aires. — Ora. Comissões. Mamatas... — E a atuação que teve no congresso reunido em Washington! E é mamata ir parar na China? Elaborar a reforma da Escola? O sistema de defesa do Rio de Janeiro? Ir ao Extremo-Oriente, depois de diretor do Corpo de Marinheiros e da nossa Escola? Comandar o Barroso? — Para acabar se homiziando na Mindello!...? — Homiziando-se? Foi brigar ao lado dos gaúchos! Isso sim! Deu muita bordoada nas tropas do Azambuja e do Francisco Pereira! Morreu em Artigas, lutando. Ora, pergunto, quem teve carreira mais briosa? E Carlos a atiçá-los: — Isca! Isca!! — Cala a boca, menino, vá estudar. Falar nisso, Maurício, como vai o Carlos em Santo Inácio? — Comportamento, 5. Religião, 4. Estudos, 10. Mas há ainda outro aspecto a não esquecer em meu tio-avô. O lado intelectual e técnico. Quer ver? Está aqui nas suas barbas. — Voltou-se para uma das estantes, apontou para um setor, pulou da rede, começou a retirar brochuras e volumes encadernados enquanto dizia alto os títulos: — “Os Torpedos na Guerra do Paraguai.” Isso, rapaz, em 1873. “Marinhas Militares do Mundo.” “O canhão, o aríete e o torpedo.” E estas separatas aqui da Revista do Instituto Politécnico Brasileiro, dos Anais do Imperial Observatório do Rio de Janeiro e da Revista Marítima Brasileira. — Natural. Parente de você. Eu, todavia, não me gabo das obras cientí cas de meu pai. Veja ali os saldos das edições. Pilhas e pilhas. Trabalhos sobre Geometria Analítica, Magnetometria, Resistência de Materiais, Tática e Estratégia de Costa... sem contar aquela coisa sobre os isocaedros...

E sorriu, com saudades do pai, acrescentando enquanto pulava do peitoril para o assoalho: — E que previsão a dele! Lembra-se daquela carta que mandou de Canudos? “Espero que algum gênio ainda anônimo venha a fazer isso um dia para conhecimento de nossas lazeiras. As de cá e as daí...” Que previsão! Que pressentimento! Pois não saiu Os Sertões? Foi trabalhar com o lho nos mastros da “Kuimbaé”, enquanto Maurício, subindo até à biblioteca, pegou na edição que o Laemmert zera da obra de Euclides da Cunha, quatro anos antes; desceu com o livro, escarrapachou-se na rede, cou a ler até de tarde quando Artur e o lho, como o porão já estivesse um tanto escuro, resolveram ir para as famosas reconstituições da campanha de Mukden. Carlos descalçou os sapatos, embrulhou-se num quimono, foi para o espelho tatuar a cara de “nipônico”. Depois, pai e lho chamaram Maurício a quem Carlos acabou de convencer entregando-lhe uma tesoura e uma pilha de jornais. Até que Maurício cortasse as folhas e zesse uns quarenta barcos de papel, Artur, refestelado numa preguiçosa, folheava uma revista francesa com mapas e fotogra as da batalha de Porto Artur, e Carlos dava saltos mortais nas pranchas do pontão, provando que não se esquecera das longínquas proezas de e Kiehinger. Virgínia, que estivera com a tarde tomada por uma visita, depois de acompanhá-la ao portão subiu e foi para o quarto contar os dois tabuleiros de roupa lavada que ali estavam havia dois dias à espera de confronto com o sol. Já escurecera quase de vez quando ela, depois de arrumar-se para o jantar, ao descer com a toalha que pretendia deixar na copa, deu com uma cena repentina. Três indivíduos saídos do fundo do mar e irreconhecíveis por causa do lodo, molhados que nem frangos, tiritando que nem molas e rindo como personagens de ta cômica do Gaumont, entravam na copa... E, assim que a viram, recuaram. Saídos dalgum poço? Loucos? Irresponsáveis? Ou, algum desastre? Não estariam feridos? O pontão teria afundado? Correu para Artur, abraçou-o por entre perguntas, correu para o lho, e, ante a explicação apalermada: “Caímos na Lagoa...”, franziu o rosto, meneou a cabeça e, toda suja dos abraços, só soube dizer, ainda não refeita do susto: — Mas, pelo amor de Deus, quando é que vocês criam juízo?!

Eles fugiram em diagonais, um para o banheiro, outro para o tanque e o terceiro para o chuveiro da criadagem. Ela foi para o quarto, mudou o vestido, limpou o rosto, lavou as mãos, fechou-se, cou na cama a ofegar. Que susto! Cuidava ver três loucos... três náufragos... três fantasmas. Daí a uma hora, se tanto, chamavam-na, batiam na porta, riam, cantavam, desciam e subiam como espinoteados a escada que dava para o porão. — Virgínia, que é isso? Ficou zangada? Por causa duma brincadeira? É verdade o que a criada disse: que jantemos sozinhos? — Tome juízo! Nem parece que vai ser promovido a capitão de corveta. Por muito menos tem gente posta a ferros na Ilha das Cobras. Depois de risadas abafadas no corredor, a voz de Maurício: — Virgínia! Seu marido e seu lho estão com fome... — Muito bonito! Um ex-guarda-marinha... com distinção em Mecânica Racional... Um professor do Santo Inácio... Pois que jantem sozinhos. Estou com enxaqueca. — Mamãe! Ó mamãe? Como é? — Entenda-se com seu pai e com seu tio. Não me dou com escafandristas. E eles a insistirem através de todos os processos convincentes, moderados, excepcionais, paroxísticos e histriônicos. Cantos, uivos, berros, choros, pios, e até murros na porta. En m, tal foi o estardalhaço que ela se levantou, ajeitou o cabelo, pôs de lado a birra, saiu do quarto, foi recebida com abraços e beijos, hosanas e guinchos, e a trouxeram para a sala numa cadeirinha feita de braços trançados. Sentou-se à cabeceira, serviu-os muito séria, mas não jantou. — Não posso. Não insistam. Fiquei nervosa. Não façam mais isso. *** Às 10 horas da noite, depois que as visitas se retiraram, Maurício foi para o Café Lamas ver se recebia os cobres de aulas particulares dum paraense cujo pai bebia champanha e mandava lavar a roupa de linho na Ilha da Madeira, mas não remetia a mesada para o lho desde que descobrira que este a perdia no High Life. Carlos foi dormir cansado de tanta estrepolia, e Virgínia e Artur caram na sala de jantar. Ela, no canapé

debaixo dum espelho de Murano; ele triturando com as unhas, conforme o hábito, as rosas do vaso que ornava o centro da mesa. Primeiro, um silêncio prolongado. Depois Artur achou uma boa política lembrar que tinha de sair cedo no dia seguinte. — Amanhã, começo vida nova. — Já é tempo. — Oh! Filha!? Então digo que amanhã vou para bordo, demoro, não sei quanto tempo carei em Jacuecanga, e você... me diz que não é sem tempo!? — Não é isso. Você sabe muito bem que não é isso. Estou de acordo é em outro assunto bem diverso. Você não disse que amanhã começa vida nova? Já é tempo. Não é mais o guarda-marinha de 1894, recém-chegado duma circum-navegação. Não é mais o hóspede prazenteiro do Hotel White nem o noivo solícito do Internacional. Agora é o chefe de família desta casa. Lembre-se que seus pais morreram, que você já tem um lho com dez anos e tanto. Sem contar que está prestes a ser capitão de corveta. — Acha errado eu ser alegre, folgazão, brincar com meu lho, com você, com seu irmão? — Nada disso. Acho errado é um o cial de marinha de longo curso se atolar numa lagoa... Mais nada. — Ah! Bem. Então está tudo esclarecido. Um beijo! Um pouco de piano...? — Não. — Então... aqueles versos do outro dia. Se bem me lembra, há neles umas coisas similares com o que vi hoje debaixo da água. — Como assim? Não vejo a menor analogia. — Recite e lhe mostrarei. Quando chegou no trecho “Et, dès lors, je me suis baigné dans le poème De la mer infusé d’astres et lactescente”, Artur fez um gesto e disse: — É nesse pedaço. Ela sorriu e continuou a recitar, enquanto Artur desfolhava rosas e as macerava. E a voz, ora límpida ora gutural, dizia: “J’ai vu fermenter les marais, énormes nasses Òu pourrit dans les joncs tout un Léviathan...” Depois foram passear pelo jardim, abraçados. Os jasmineiros e as “damas-da-noite” enchiam o jardim de olores densos e vagarosos como névoas.

*** No dia seguinte, depois que acompanhou Artur até ao portão enquanto Carlos e Maurício tomavam o café que haviam interrompido para abraçar o pai e cunhado, Virgínia voltou à sala de jantar, apanhou as pétalas maceradas pelos dedos do marido, desceu até o “consistório”, pôs em ordem aquela espécie de Feira da Ladra, onde como num belchior havia de tudo. Nem viu quando Carlos e Maurício saíram para São Clemente. Antes do almoço dera instruções ao jardineiro. De vez em quando vinha ver se este as entendera e as estava seguindo à risca. Sim, aquele jardim precisava duma reforma em regra. Podar agora não era tempo; mas, desbastar, cortar a grama, replantar, isso era mais do que necessário. Quanto à chácara, aos fundos, parecia uma selva. No dia seguinte o biscateiro ainda estava a braços com o lixo que jogava na Lagoa, enquanto pretos do morro carregavam troncos e galhos para lenha. No terceiro dia, porém, Virgínia teve vontade de tocar piano. Levou horas nisso, escrupulosamente, começando com uma série de escalas cromáticas para desentorpecer os dedos. Mas o piano estava desa nado. Maurício foi para a cidade no quarto dia com um recado para o a nador. Apareceu uma alemã sardenta, quase sinistra, como uma ave pernalta; experimentou as notas, deu apertões dentro do bojo, cando a escutar com a cabeça de lado; e tossia, aos repelões. Mas no quinto dia, quando bem cedo se sentou ao piano para ver se tocaria menos mal a Apassionata, bateram no portão cuja campainha badalou umas quatro vezes. Pela vidraça da porta, cujo brise-bise puxou, reconheceu o capitão de mar e guerra Toledo. Mandou logo a criada abrir e o recebeu na escada dizendo: — Artur? Não está, comandante! Foi para bordo há cinco dias... O capitão de mar e guerra Toledo cou assim sem jeito, olhou-a, co ou o queixo e disse: — Está bem. E o comandante Mesquita, que cou de vir aqui? Já chegou? — O comandante Mesquita. Não? Por quê?

— ... Combinou estar aqui... — Tirou o relógio, viu as horas, aceitou o convite para entrar. — Mas, não faça cerimônia. Se como no mês passado quer tirar apontamentos sobre Legislação Naval e Convenções Marítimas Internacionais, não faça cerimônia. Enquanto o comandante Mesquita não chega... Bem sei que é o único volume de meu tio-avô Saldanha da Gama... mas isso não quer dizer que, caso queiram, não o levem para o Ministério... Assim não terão tanto trabalho. Nisto a sineta do portão badalou e alguém entrou. Ouviram passos no cimento e na escada, foram ao encontro do comandante Mesquita que, muito compenetrado, de farda, os cumprimentou. Ligeiramente quanto ao colega, de modo esquisito quanto à Virgínia. E enquanto esta atendia à criada que ao varrer o jardim acabara de apanhar o jornal jogado como sempre na grama pelo jornaleiro, o capitão de corveta fez que não, que ainda não, para o comandante Mesquita. Virgínia depois de pegar o jornal voltou-se, sorriu-lhes, indicando a entrada. E enquanto os dois muito esquisitos e cerimoniosos limpavam os pés no capacho, ela correu os olhos pelos títulos do jornal. Ambos ainda viram aquele corpo, do busto para cima tapado pelas folhas abertas, oscilar antes de cair na varanda, pesadamente. Apanharam-na, chamaram pelo nome de Carlos, e o capitão de mar e guerra Toledo entrou com o corpo de Virgínia atravessado nos braços, foi assim até à sala de jantar, à copa, quando a cozinheira e a copeira, vindo do jardim, deram com aquela cena. Deposta no seu quarto, parecia morta. Não tardou que surgisse o dr. Gama que, entrando, explicou que saíra cedo para a clínica e levara cinco horas com o jornal dobrado no fundo do tílburi, sem a menor descon ança do assunto que o dito jornal tratava em letras berrantes. Bem que estranhara certos ajuntamentos nas bancas dos jornaleiros... Um cliente é que lhe contara o que tinha acontecido... Enquanto o dr. Gama e uma vizinha prestavam o necessário socorro a Virgínia, chegaram a esposa e a cunhada do comandante Mesquita, que do carro que parou junto à escada da sala de jantar logo entraram para a sala onde o o cial contava à criadagem o que acontecera. Quase na hora em que as duas senhoras entraram para o quarto, embarafustaram pela casa adentro Carlos e Maurício. (Souberam do caso no bonde, pelos brados dos moleques

e pelos títulos dos jornais.) Carlos atirou-se para o quarto da mãe, empurrando toda gente, e caiu de joelhos ao lado da cama que era, com aquela criatura prostrada ali, uma prancha de naufrágio. *** Naquela noite de 21 de janeiro, Artur subia uma das escadas de ferro do Aquidabã, vendo na sua frente, no lance em caracol, o capitão Uchoa cujo busto já atingia o tombadilho. Mas de repente tropeçou no colega porque este, virando-se, desceu um degrau e lhe pediu fogo, aproximando o rosto com o cigarro intato na boca. Sorriam aquelas duas sionomias bem próximas, iluminadas simetricamente pelo diminuto círculo de fogo, quando a atmosfera se expandiu obliquamente, um fulgor se abriu na noite e ambos subiram em jato paralelo como rolhas de garrafas de champanha no centro exato dum estampido sobre o qual se abateu depois, mole como fuligem, um pasmo de sucessivos ecos. *** A explosão do Aquidabã na baía de Jacuecanga era o assunto da cidade inteira. A população seguia com interesse as minúcias das reportagens, enquanto o inquérito não esclarecesse melhor as circunstâncias da catástrofe. Em casa de Virgínia, assim como em muitos outros lares, parentes, amigos e companheiros das vítimas, formavam grupos acabrunhados. Ali no casarão do Jardim Botânico, as salas estavam cheias de antigas relações do coronel Aleixo, de colegas de Artur e Maurício, de amigos e parentes do dr. Gama. Mas Carlos acabara se refugiando no porão onde, sentado diante da fragata “Kuimbaé”, olhava por entre lágrimas e pensamentos a galeota armada pelo pai. E, sem querer, obedecendo a um delírio saturante, os lábios do garoto diziam baixo, como numa oração: — ... Trirremes, galeras, galeões... Urcas, brigues, escunas... — E depois dum silêncio, o automatismo voltava à boca úmida e crispada: — Patachos, sumacas, taforeias... Lá em cima, no quarto, com as duas mãos presas em mãos amigas (a da vizinha e da senhora do comandante Mesquita que estavam sentadas de

cada lado da cama) Virgínia parecia uma cruci cada, com o madeiro ainda por soerguer. Era como se o seu martírio tivesse começado, apenas. Aquela boca ainda sentiria o gosto amargo do fel. Aquele coração seria lanceado. Lançariam ainda sortes sobre o que lhe restasse.

VII O ANJO DE FRA ANGÉLICO

APESAR do estado em que Carlos lhe chegou à casa na barata Opel dum colega, atulhada de mais outros, Virgínia sentiu grande alívio, a nal. E enquanto ele a rir contava cenas ferozes e violentas do trote no Realengo, ela agradecia a Deus o fato de o lho haver escolhido a carreira do Exército, já que o avô Gama não o convencera a matricular-se no pardieiro da Praia de Santa Luzia. Para a Marinha não queria que o lho entrasse. Não por causa das considerações nervosas e alarmantes da tia Judite, citando a revolta da Ilha das Cobras e dos marinheiros da esquadra em 1910. Era que o mar, assim tamanho, a angustiava. Chegara ao ponto de car com verdadeira fobia, tendo proibido que o lho, quando ginasiano, zesse parte de qualquer clube de regatas, frequentasse banhos de mar ou fosse a piqueniques em Paquetá ou no Saco de São Francisco. — Bem sei que é mania. Mas, pelo amor de Deus! Não quero, pronto! Há tantos outros lugares! A Cascatinha, Paineiras... Se Carlos devia a tio Maurício e ao Colégio Santo lnácio a forma notável com que tirara diploma de bacharel em ciências e letras em 1912 e a relativa facilidade com que no ano seguinte afrontara exames e provas para ser aceito na Escola Militar, não devia menos a Virgínia o aperfeiçoamento de caráter e as vantagens de disciplina e critério que desde logo o habilitaram a distinguir-se entre a juventude da sua geração. Virgínia jamais se conformara com a morte do marido. Continuava a reagir contra a traição que os havia despojado da condição lírica ao tempo em que, inexperientes, mal começavam a embelezar a existência. Artur não pudera sequer dizer ao mundo ao que viera. Em rapaz não se preparara para uma luta e sim para uma usufruição; sua mocidade não chegara a ser uma investida programada, pois apenas tivera tempo de comparticipar duma quermesse, dum passeio e duma regata — que era como ele considerava o

amor, a existência e a pro ssão. Com sua índole alegre e espontânea fora colhido à falsa fé pelo destino; e isso logo no primeiro óbice que o esperou na noite não como tropeço mas como explosão. Num convés de plataforma sobre o trópico fora expulso como fração dum todo, antes que o pusessem de sobreaviso contra o panteísmo e a técnica. Já o lho, porém, estava advertido constantemente, desde pequeno, pela vigilância materna. Assim, ao preço alto daquele tributo e sob a guarda quase mitológica dum pessimismo consciente, Carlos em 1913 não tinha nada do garoto de fundo de chácara de 1906. O exemplo radioso do pai já não o incitava mais; agora era a circunspeção serena da mãe a ensinar-lhe que não aceitasse lances de acaso da vida e sim de nisse seu temperamento através duma opção. Durante os estudos e as tarefas, ela assistia à estruturação daquele caráter, enervava-o com a vontade e a sanção para que não sucedessse o inesperado desagregá-lo anarquicamente — como sucedera ao corpo do pai. Em 1906, Virgínia pensara em mudar de bairro. Mas o velho Gama resolveu morar com a lha e o neto porque a necessidade de obras e reparos, os atrasos de imposto e o tamanho do casarão di cultavam a eventual ideia de alugá-lo a algum bom inquilino. Consequentemente, tendo cedido a residência do Cosme Velho para a irmã Judite e como isso em nada o prejudicasse, pois já não clinicava passando o mais do tempo a realizar sua obra sobre Feijó, o marquês do Paraná, o marquês de Olinda, Saraiva, Sinimbu e outros estadistas, logo se aclimatou em harmonia dócil com os lhos e o neto ali no Jardim Botânico. Maurício, mais moço seis anos do que a irmã, passou desde logo a ser uma espécie de preceptor do sobrinho, e em pouco o porão mereceu o apelido genérico de “Universidade”, e a chácara o de seu respectivo “campus”. Isso não impedia que professor e aluno fossem duas vezes por semana ao centro da cidade, instalados num bonde elétrico do Jardim Botânico, saltassem na Galeria Cruzeiro e não mais no Largo da Carioca e assistissem a algum programa cinematográ co no Parisiense, a algum concerto no salão nobre da Associação dos Empregados no Comércio ou mesmo a qualquer conferência no último andar do Jornal do Comércio. Ou que discutissem política acompanhando com alvoroço, por exemplo, a campanha eleitoral para a Presidência, não raro atiçando o velho Gama, um civilista enragé. Passavam pela Garnier a m de adquirir livros encomendados por Virgínia,

davam a volta clássica pelo triângulo avenida Central, rua do Ouvidor e rua Gonçalves Dias, entravam na Colombo ou na Lallet. Maurício envergava fraques espessos, calça listrada, polainas, chapéu-coco, e exibia sua coleção de bengalas, al netes de gravata, colarinhos duros de brilho impoluto, e coletes vistosos de traspasse. Com o aparecimento de cinemas luxuosos, postavam-se na sala de espera do Odeon ou do Palais, ouvindo a orquestra que dividia o salão em 1.ª e 2.ª classes a 1.000 réis e a 500 réis, empolgavam-se com a Lídia Quaranta e a Bertini, repetiam o Quo Vadis?, apaixonavam-se pela Borelli. Certas noites de sábado iam ao Municipal ouvir ópera lá da torrinha, e depois ceavam “média” no Lamas. Os domingos em casa giravam em torno de gurões que iam visitar o velho Gama; e os assuntos eram variadíssimos. A Duse em Rosmersholm; a Després em Fedra; a Lorenzo em Gioconda. Mas também havia debates sobre Pinheiro Machado e o Morro da Graça, o barão do Rio Branco e o almirante Alexandrino. Pouco depois, Carlos travou conhecimento com a vida noturna, pois o primo Eusébio, lho de tia Judite, tinha uma Delaunay e os levava ao Frontão e à Mère Louise, assim como aos cafés da Lapa. Rio antigo, das conversas sobre literatura e política nas mesinhas boêmias dos caldos de cana da Galeria Cruzeiro citando os parnasianos, as visitas de Ferri e Blasco Ibañez, o salão da Escola de Belas-Artes, as caricaturas do Raul e do Calixto. Ou na porta da Garnier, conhecendo grupos solenes nas cadeiras ao pé da caixa, ou vendo passar o Barreto, o Hasslocher, o Mariano, metidos aquele em escarpins macios e fraque branco, o segundo em atlético jaquetão, o último com costeletas de toureador ególatra. Ou a trindade Bevilacqua fuçando vitrinas. Ou o João do Rio ao lado do Roberto Gomes, um espesso e rotundo, o outro diáfano e lívido. E também a gura do Rui saltando duma sege na esquina e indo a pé até ao Briguiet. E tomaram parte em dois ou três carnavais, rodando em corso vagaroso desde a Praça Mauá até à Glória, ou esperando numa esquina (onde a carro tomara lugar desde de manhã) a passagem dos préstitos. Rio antigo do compositor Nazaré, de fraque, sorumbático, tocando piano na sala de espera do Avenida; das matinês no Trianon; do teatro Fênix, sempre fechado, nos fundos do imponente PalaceHotel; diante deste, o estacionamento dos automóveis marca Pope, de descarga aberta, nos quais

turistas iam até Copacabana e o Alto da Boa Vista. Rio antigo do Teatro São José lançando a gíria; dos belchiores da rua da Carioca; do mercado de ores perto do Parc Royal; das missas de sétimo dia na igreja de São Francisco; do aglomeramento de sumidades aposentadas diante do Club de Engenharia; dos ajuntamentos defronte das entradas da Colombo; dos funcionários públicos de Lima Barreto; dos pregões de loterias; dos camelots na esquina da rua dos Ourives perto do Barateiro; das casas de penhores ao lado da Politécnica e do Gabinete Português de Leitura; dos passeios no Flamengo; das pensões do Catete; do tempo em que terrenos de areia em Copacabana custavam muito menos do que um lote baldio na Tijuca; dos pontos de bondes na Praça Quinze, no Largo do Rocio e no Largo de São Francisco; Rio antigo hoje, mas naquele tempo moderno quando o Passos era tido como o nosso Haussmann, pois já não se tomava um bote no cais Pharoux para se ir a bordo dum navio e sim, com sol tropical, se viam transatlânticos atracados no cais do porto rente a armazéns seriados. Rio ainda dos carros enfeitados e alegres dos romeiros da Penha; das construções de mestres de obras nos bairros residenciais; dos coretos com bandas nas noites domingueiras; dos namoros em gradis; dos guardas-noturnos desengonçados; dos comícios retóricos; das passeatas de estudantes; da vida noturna na Lapa; das paradas e das procissões; dos carros particulares da burguesia com motoristas fardados; das velhas Benz e Mercedes da Garagem Batista levando famílias pacatas a Jacarepaguá e ao Leme... Mas depois que o neto se matriculou no Realengo, o doutor Gama aconselhou Virgínia a largar o casarão tão precisado de obras e onde as despesas não conseguiam mais um padrão de conforto. Decidira também fazer outra viagem à Europa; e convidou a lha a acompanhá-lo, estipulando que Maurício e Carlos cariam tomando conta da residência do Cosme Velho, donde a mana Judite se mudara de nitivamente. Assim, quando pai e lha embarcaram no Avon, já um indivíduo endinheirado da Estrada Dona Castorina alugara a chácara. Um ano e pouco, depois, passando por lá no carro do primo Eusébio — que entrara para a Faculdade de Medicina — Carlos foi encontrar o antigo solar do avô transformado num pardieiro com todas as características de promiscuidade das chamadas “cabeças de porco”. O gradil da frente, além de todo enferrujado, tinha vãos abertos. As duas abas do portão monumental haviam sido vendidas, de modo que a antiga alameda central

passara a ser uma espécie de beco, porque de cada lado se erguiam duas armações de madeira onde se vendiam mudas de plantas em tinas. Os antigos canteiros eram terra batida. Os gramados laterais, cheios de tiririca e capim, mamona e urtiga, serviam de coradouro a lavadeiras que alugavam cômodos no porão. As cascatas arti ciais, outrora cheias de avencas tremulantes sob letes de água que gotejavam das penhas esverdeadas de limo, estavam agora secas e encoscoradas de poeira, parecendo furnas em cujos relevos exteriores uma gataria incrível dormia enrodilhada como bichos dispostos num ex-presépio. Nas janelas da frente havia cordas estendidas, gaiolas dependuradas, travesseiros e roupas de crianças. Onde antes fora o saguão, se via a o cina dum sapateiro. Onde fora a sala de visitas, tabiques formavam quatro cômodos. Na antiga sala de escritório outros tabiques deixavam ver manequins, cabides, oratórios, violões, folhinhas e móveis. O porão habitável transformara-se numa série de compartimentos superlotados onde a miséria e a proliferação se patenteavam no número de crianças e cachorros discerníveis. Os antigos cômodos para criadagem lá fora pareciam ter virado senzala. — Se mamãe visse isto caria aborrecida. Não só por este português estar explorando tanta gente (deve tirar aqui umas vinte vezes o aluguel que paga), como pela interpretação especialíssima que deu ao contrato que assinou. *** Carlos recebeu da França — após os cartões indispensáveis da Ilha da Madeira — várias cartas documentadas com aspectos de avenidas e boulevards, monumentos e museus. E descrições de passeios. Meses depois as notícias vinham em postais de São Rafael, Cannes, Nice, Mônaco, Menton, Bordighera e Ventimiglia. Apenas uma carta de San Remo; uma carta serena demonstrando amenidade. Mas as grandes cartas maternas começaram em Florença. As apreciações, os comentários, o entusiasmo, os pormenores, evidenciavam que aquela alma plácida e recôndita se alvoroçara em misticismo e em estética, visto como inteligência e perspicácia atiladas estavam a serviço

duma sensibilidade muito na que ali encontrara perspectiva para seu pendor artístico. Ah! Que cartas brilhantes e sensíveis! Carlos lia, mostrava a Maurício, entusiasmavam-se os dois ante aqueles trechos empolgantes e bem pessoais, com a in uência bené ca e admirável que tal estada estava exercendo em Virgínia. Depois de reler muito tantas páginas de contemplação que a mãe conseguia transmitir, Carlos passava em revista cautelosamente a pilha de postais mostrando o Palazzo Vecchio, a Piazza della Signoria, a Loggia dei Lanzi, o Bargello, a casa dos Alighieri, o Palazzo Strozzi, a igreja de São Lourenço, a de Santa Cruz, o santuário de Santa Maria Novella, as pontes sobre o Arno, o Piazzale Michelangelo, São Miniato, as termas etruscas, o claustro do convento no alto de Fiésole. Mas havia agora nessas cartas um aspecto que Carlos por falta de idade ainda não pressentira: a eleição duma alma para os arroubos místicos tanto quanto para os deslumbramentos plásticos. Resultou desse novo ângulo que a alma de sua mãe lhe mostrou, haver Carlos incidentemente passado algumas tardes na Biblioteca Nacional folheando e se detendo num ou noutro trecho de obras ilustradas sobre arte antiga, medieval e renascentista, coisa que de certa forma o habilitou, por alto, a comparticipar do estado de graça e de enlevo materno. O que, aliás, se deu quando chegaram inefáveis epístolas de Arezzo, a respeito de Piero della Francesca; de Perúsia, a propósito do semblante severo e orgulhoso da cidade no topo da montanha; de Assis, com transbordamentos patéticos diante de Giotto, Cimabue e Lorenzetti; diante de Santa Clara em corpo no relicário e em alma dourada na pintura de Simone Martini; da basílica e do Sacro Convento; dos campos e colinas da Umbria; das igrejas de Santo Apolinário e São Vital, em Ravena, como um verdadeiro transporte de pasmo ante os mosaicos não só desses templos como os do mausoléu de Galla Placídia. Ainda assim, tinha que recorrer a tio Maurício que lhe fazia preleções mais sobre Teodósia e Justiniano do que sobre a arte bizantina. Depois, cartas de Rímini (por causa disso tio Maurício leu uns trechos de Dante referentes a Paolo e Francesca) de Ferrara; por m, antes do regresso a Paris pela Suíça, uma formidável carta de Veneza, escrita do Albergo Cavalletto, velho de sete séculos, atrás da Praça São Marcos. E uma fotogra a entre pombos diante da Basílica, outra numa gôndola saltando no

cais particular da antiga residência do doge Orseolo. E um cinzeiro de cristal de Murano... *** In uência talvez daquele anjo músico de Fra Beato Angélico mandado de Florença, Carlos certa tarde, ao passar diante do Instituto de Música se enterneceu por uma criaturinha de ar inefável que saíra do vestíbulo e estava parada esperando condução ali na esquina. Que bonde iria tomar? Águas Férreas. Acompanhou-a sentado no banco de trás, vendo apenas a caixa do violino emergir rente àquele ombro, e os cabelos louros esvoaçarem sob a boina. Ela só saltou bem depois da fábrica de tecidos, para lá do bairro de Laranjeiras, no recanto mais ameno do Cosme Velho, após a estação dos bondes para Paineiras e Corcovado. Entre muros aparando lances da oresta fresca, havia um sobrado, depois de muitas casas e jardins burgueses. A menina abriu um portão cuja campainha suspensa badalou pastoralmente. Descobriu que três vezes por semana, àquela mesma hora, a aluna do Instituto saía da aula e tomava o bonde. Deu em acompanhá-la incógnito, sem ousar tá-la de frente, sem coragem de sorrir, de dizer palavra, ignorando se ela notava ou percebia que era acompanhada. Duas semanas depois deu em adotar o estratagema de passar rente à casa quase todas as noites, en ando postais de Florença, Veneza, Assis, Nice, Paris (vistas de paisagens e reproduções de obras de arte) na caixa do correio existente do lado de dentro do gradil da vivenda sossegada. Vigiava a casa de longe, passava transido de emoção pela calçada, não ousava quase erguer os olhos, familiarizava-se apenas com as roseiras dos canteiros. Transposto o primeiro acanhamento, nem assim conseguia surpreender qualquer manifestação de vida lá dentro. Não sairia aos domingos para a missa? Não iria tarde alguma a qualquer cinema? Não daria passeios nem mesmo ali pela Ladeira do Ascurra? Pôs-se de sentinela. Nada. Acabou-se a coleção de postais. Ainda havia, porém, um fator que talvez preponderasse vantajosamente: a farda da Escola Militar; passou a sentar-se no mesmo banco do bonde. Mas na Glória ou no Largo do Machado, algum sujeito ignaro se sentava no vão entre ambos...

E Carlos imaginava como seria a sua voz, que gestos faria conversando... Nem disso se pôde certi car, porque ela viajava sempre sozinha, não saía nunca do Instituto num bando de colegas. No Realengo, não sentia saudades da mãe nem do avô, apesar da ausência que durou dez meses; é que a correspondência era uente e constante. Contudo, sentia saudades daquele ser etéreo, quase teórico, romantizado pelos cabelos louros e pela caixa de violino. Tanto, que aos sábados se despejava do trem da Central, baldeava depressa de bonde na Lapa, arrumava-se assim que chegava ao Cosme Velho, ia namorar por hipótese junto a um lampião, hipnotizando o sobradinho do arrabalde sereno. Quantas noites, depois de semanas no Realengo, semanas cheias de exercícios, marchas, aulas de trigonometria, mecânica, terrenos em vertente e em contravertente, grupamento horizontal, curvas de densidade, dispersão e rasância, Carlos não passou para cima e para baixo diante da vivenda fechada, fumando seus primeiros cigarros! Nos domingos valia-se da amizade estouvada do primo Eusébio, lho de tia Judite; apoderava-se da barata Delaunay, percorria nos dois sentidos, de descarga aberta, aquele trecho de curva e de subida, sem que ocasião alguma surgisse à janela a criatura loura, de expressão quieta, sem vibratilidade. E aquele violino, para que era? Pois não o ouvia nunca! Tocaria os exercícios de manhã?... Passou certa manhã. Jardim plácido, com caramanchão aos fundos e estufa e árvores na aba da encosta. Nisto, o violino... um trecho da Berceuse, do Jocelyn... *** Mas eis que coisas mais gerais e mais veementes surgiram com um crime na remota Sérvia... Ameaça de guerra. Ultimato. Telegramas. Nervosismo. Ainda bem que o avô e a mãe chegaram pelo Astúrias. Con agração europeia! Opiniões ponderadas do velho Gama. Emoção atenta de Virgínia. Conversas agradáveis às refeições, contando coisas de França e de Itália. O Eusébio passou a in uir com sua força de boêmio. O grande incentivo foi decerto o automóvel. Passeios vagarosos junto às calçadas do

lado par do Flamengo cheias de bandos de moças e raparigas, estudantes e namoradas, com bancos e palmeiras, gradis e canteiros. Do outro lado, o mar, a barra... Passeios em velocidade até ao Leme, e ao longo da Avenida Atlântica que orlava o areial de Copacabana com uma faixa de asfalto junto a terrenos baldios, muros, residências apalacetadas, prédios de mau gosto, edifícios tipo Biarritz ou Cannes, diante dum mar aconcavado em jade e alabastro. Discussões até altas horas na Brahma ou na Americana, ali debaixo do Hotel Avenida, na Galeria Cruzeiro, por entre a música das orquestras vienenses e os ruídos dos bondes. A batalha do Marne. A atitude da Itália. A senilidade de Francisco José. A juventude do príncipe de Gales. Ou, na rua do Passeio, na rua Chile, ou então na Lapa, o conhecimento equívoco de clubes e botequins onde uma vida noturna se arrastava até de madrugada. Carlos esqueceu a violinista incógnita, agitou-se com as peripécias preocupadoras do con ito mundial, até que, quando a guerra passou a ser paradoxalmente estática nas trincheiras, ele a procurou conhecer em livros como Le Feu e Les Croix des Bois.

VIII IDÍLIO NAS LARANJEIRAS

CARLOS sobressaía no Realengo passando com destaque por todos os trâmites desde 1913; sentara praça por seis meses, revelara aptidão para o serviço; tinha conduta irrepreensível; possuía invulgar robustez física; fazia ótimos exames; estava tirando um curso brilhante das artes da guerra. Em breve, passou para a Escola de Aplicação de Infantaria e Cavalaria, sendo reconhecido aspirante a o cial da arma a que se habilitara. Gradualmente se foi adaptando à vida militar dos Cintras mas com o espírito e o temperamento dos Gamas, isto é, com um pendor intelectual nada brilhante como efeito mas muito profundo como pertinácia e disciplina. De fato, neto e avô se davam bem ali no Cosme Velho por causa da identidade de propensões, não obstante certas visitas de indivíduos conspícuos que vinham só para conversar sobre Frei Gaspar da Madre de Deus ou Frei Vicente do Salvador (a Brasiliana do velho Gama foi formidável). Carlos e Eusébio Lobo logo se caceteavam e iam embora com o carro assim que principiavam as divagações sobre etnologia e linguística dos tupinambás ou dos tamoios, as evocações dos grandes vultos do Primeiro ou do Segundo Reinado, as críticas à falta de ensino agrícola, de incentivos à organização de pesquisas agronômicas, as considerações sobre cooperativismo, à análise da crise das lavouras da cana, da borracha, do café, etc. No temperamento é que ele era mais um Gama do que um Cintra. Se Artur captava da vida, da natureza, do lar, da carreira, elementos de entusiasmo, tendo sido um sensorial, já o lho, depois de órfão se adaptara, sério e descon ado, aos ciclos de instrução humanística e técnica. Seu feitio taciturno, tão oposto ao que seria de esperar da in uência que o pai exercera em sua meninice no Jardim Botânico, em tudo e por tudo se exteriorizava na absorção das coisas através do descortino e da sanção. Desde cedo mostrava um critério sistemático para as obrigações morais, e a sua juventude se

caracterizava por uma certa soma de virtudes complexas que tinham o vinco duma análise adstringente, espécie de elemento dialético e lógico com que sabia diferenciar categorias. Dir-se-ia que, sob a in uência do avô Gama, nascia nele a curiosidade pelas coisas da pátria, seus fundamentos, suas raízes, suas características; que sob a in uência da mãe, seu caráter buscava discernir o melhor acesso à superação; e que sob a in uência da lembrança do m do pai, suas defesas instintivas e potenciais o aparelhavam para realizações que não colimavam a usufruição da existência mas sim uma programação quase urgente a cumprir. Quando o Governo resolveu mandar uma Missão Médica ao teatro das operações de guerra na Europa, tia Judite se mexeu afoitamente nos ministérios, na Câmara e no Senado, até arrancar a nomeação do lho Eusébio, não admitindo nem de longe a hipótese dum civil ou militar cá destas bandas poder vir a ser vítima da hecatombe. Verdade era que o avô deixara os ossos e os óculos em Lomas Valentina. Ora, mas nem se sabia ao certo o nome desse avô, Rodolfo ou Pisistrato, com cavanhaque e tudo, e em cujo retrato desbotado estava escrito atrás, apenas, com um carimbo: “Fotogra a Campinense, de Henrique Rosén, 50, rua Direita. Campinas. Guardam-se chapas para reproduções”. Verdade era que o coronel Aleixo morrera na campanha de Canudos... mas de varíola, e não era um parente! Verdade era que o lho dele, marido de Virgínia, morrera num navio de guerra... mas em consequência duma explosão. Assim, a barata Delaunay cou encostada na Garagem Batista perto da Praça Saenz Peña, e o Eusébio partiu com a missão médica, pois tinha sido assistente do Álvaro Ramos na Enfermaria 24 da Santa Casa e pelo menos aprendera (além do curso noturno pela Lapa e pelas pensões do Roussell) a lavar úlceras de perna desinfetando-as com permanganato e mudando a gaze. Mandou fotogra as de Paris diante da Torre Eiffel e do Arco do Triunfo. Tia Judite, fez promessas ao Bom Jesus de Pirapora e à Nossa Senhora de Aparecida, até que, atendida e oportunamente avisada, foi esperar o lho, que desembarcou com astenia e sotaque francês. ***

A gripe de 18. Que calamidade brusca, soturna, num país de tanto sol! Vindo do Realengo onde já servia como tenente, Carlos via os subúrbios brilando ao sol, os poucos trens vazios, as estações desertas, as ruas com aspectos lúgubres de enterros. Encontrou a cidade fechada como num feriado compulsório. Parecia uma metrópole em véspera de invasão, esvaziada, esquisita, com o comércio sem funcionar, com las esquálidas nas portas das farmácias. Uma desolação sinistra. Em casa, naquele bairro que lembrava assim agora um latifúndio abandonado, encontrou a mãe dando colheradas de poção à tia Judite e à criadagem, fazendo canja e mingaus, tomando nota de temperaturas, agitando o termômetro, atendendo aos chamados pelo telefone. O velho Gama voltou a clinicar desde o Cosme Velho até à rua Ipiranga e aos altos da rua Alice, perto do túnel do Rio Comprido; a lha quase não o via, pois saía de manhã, ignorava quando voltaria. Ao chegar já achava uma lista de chamados e telefonemas. Bom doutor Gama! Um caráter, um coração e uma cultura! Quando clinicava, jamais teve tempo para frequentar uma estação hidromineral, um pouso de férias; as duas viagens à Europa signi cavam escrúpulo de quem queria manter-se em dia com a ciência. Depois que resolveu dedicar-se à sua obra sobre grandes vultos da nacionalidade, levava horas e horas escrevendo de noite; e muitas vezes almoçava às carreiras para ir consultar documentos no Arquivo Nacional, conversar com o amigo Capistrano ou o inimigo João Ribeiro. Quando a lha enviuvou, não teve dúvidas em deixar seu conforto tradicional do Cosme Velho para ir fazer-lhe companhia numa chácara decrépita. Em Paris esforçava-se por facilitar-lhe passeios, visitas, teatros, museus, não obstante os seus horários de hospitais e cursos. Pois bem, a gripe zombou de seus esforços já experimentados nas campanhas contra a varíola, a bubônica e a febre amarela, roubou-lhe muitos clientes, fê-lo subir ladeiras, descer grotões, esbofar-se em morros, pagar remédios a famílias de casas de cômodos e estalagens. E, por m, o pegou também. De fato, certa noite voltou esquisito, mal-humorado, com calafrios, deitou-se, quis mas não pôde atender a dois chamados, pois o coração e as pernas não ajudavam. Certa manhã não se levantou. Ficou assim quatro dias e três noites, prostrado, muito ofegante, a ito por voltar à clínica. E morreu de colapso, meio para fora da cama, embora a lha, o lho e o neto tivessem cado à sua cabeceira até às duas da madrugada, sem

intuição sequer da gravidade do caso, mesmo porque o dr. Romero ao sair às onze horas a ançara que aquela era a marcha normal... Quase vinte e quatro horas depois, quando Botafogo e Laranjeiras sem nenhum trânsito eram um hospital marasmado disposto em alvéolos a domicílio, Carlos e Maurício desceram as ruas das Laranjeiras e Guanabara e rumaram para São João Batista, sentados na boleia duma vitória ao lado do cocheiro. Atrás, atravessado sobre o capacho, e ultrapassando os dois degrauzinhos, se via um caixão de pinho (conseguido com muito empenho) contendo o corpo insigne e brosado do dr. Gama. Virgínia, com as lágrimas distendidas em orações, não o pôde acompanhar porque a tia Judite parecia que ia morrer também, assim como a cozinheira e a copeira, as três quase subindo pelas paredes do quarto dos fundos, como três loucas... *** Menos dum ano depois, em pleno curso de trâmites testamentários, com a aura da vitória resplendendo utópica pelo mundo através de congressos e delegações, com tia Judite não podendo sequer manifestar direito seu desgosto pela morte do irmão porque o Eusébio, além de gastos e cabeçadas incríveis teimando em se casar com uma empregadinha francesa da casa As Bichas Monstro, e, com essa história de campanha eleitoral, querendo candidatar-se a vereador, tendo até assinado letras e achacado parentes de Minas (tudo isso por causa do Governo o haver desmobilizado menosprezando um cirurgião com prática de hospital de sangue... o Maurício respondendo que a prática do Eusébio devia ser do Rat Mort e da Abbaye na Praça Pigalle...), se deu na vida de Carlos uma transformação que alterou também a de Virgínia. Foi nomeado para servir como adido da delegação brasileira ao Congresso da Paz, ulteriormente sendo aproveitado ainda por algum tempo entre os nossos elementos na Liga das Nações. Devia-se isso à in uência de amigos do dr. Gama no Itamarati que assim o homenageavam postumamente, já que nem ao seu enterro tinham ido devido às circunstâncias calamitosas da ocasião. A primeira notícia que ambos receberam em Paris foi de tia Judite contando que a Saúde Pública havia condenado o casarão do Jardim Botânico, obrigando o inquilino responsável ou o proprietário a fazer tais e

tais obras. (Enumerava-as.) Informava que seu Almeida passava propina nos scais e contemporizava, não obstante os termos categóricos do contrato e o estado incrível a que estava reduzida a casa. Em pós-escrito, queixava-se das disparidades da sorte, pois se Carlos estava agora em Saint-Germain-enLaye, o coitado do Eusébio resolvera clinicar na Alta Mogiana, com um contrato miserável numa fazenda... E perguntava se era verdade mesmo que não ia haver mais guerra por causa da Liga das Nações, e se os exércitos e as marinhas doravante passariam a meras forças morais garantindo pactos e pesando em orçamentos...? Virgínia acompanhava o lho por toda parte e escusado é especi car as vantagens que sua companhia lhe acarretava em Versalhes, Paris, Londres, Spa, San Remo, Rapalo e Genebra. Acompanhou-o até mesmo à Alta Silésia, quando foi preciso estudar o dissídio na região reclamada por alemães e poloneses. Ele lucrou de todos os modos. Primeiro, porque se viu a braços com responsabilidades referentes à esfera muitas vezes além de suas atribuições. Segundo, porque assim inaugurou sua mocidade com obrigações de relevo, aconselhado sempre pelo critério materno que lhe lembrava a atuação de dois outros Gamas, o almirante legendário, em Filadél a, Buenos Aires, Washington e Pequim; e Dom José, pai daquele, e que tão bem desempenhou missões na Inglaterra, na França e na Bélgica, tendo mesmo sido ministro em Viena... Se o lho lucrou com estadas tão marcantes em ocasiões assim excepcionais, cando apto a desempenhar funções com certo brilho, e voltando da Europa com um equilíbrio absoluto em tão pouca idade, Virgínia encontrou lá ensejos e mais ensejos que além de lenitivo para seu luto contribuíram em muito para aperfeiçoar-lhe a personalidade e o espírito. E isso porque a frequência a hotéis, legações, embaixadas, congressos, e as recepções e viagens a desembaraçaram, tornando-se uma perfeita dama quanto ao critério social e uma grande presença quanto às virtudes que aprimorou. Não que o ambiente lhas aprimorasse, mas sim seu descortino nato. Além disso, se fartou de percorrer museus, travou muitas relações, conheceu rodas de interesse mundano e intelectual, leu muito, esteve sempre atenta às coisas do espírito. ***

Ao regressar e dar conta ao Itamarati e ao Ministério da Guerra em relatórios percucientes das atribuições que lhe competiam, Carlos encontrou porém no exército e na imprensa uma atmosfera exacerbada. Ao desembarcar, vindo da Conferência de Gênova presidida por Facta, se viu compelido a rmar um critério exato sobre as contendas político-militares, pois uma semana antes tinha havido o desfecho da revolta do Forte de Copacabana. Emocionou-se sobremaneira com os fatos, mesmo porque tinha amigos de sua geração ligados aos acontecimentos mais agudos. Emocionou-se e interessou-se. Esqueceu o romantismo pragmático de Genebra, voltou a aprofundar-se nos problemas nacionais, procurando alhear-se de in uências e místicas debatidas em jornais. E o primeiro passo que deu para racionalizar-se deveras no ambiente e na tradição foi, curiosamente, procurar notícias referentes àquele seu primeiro sentimento espontâneo de amor. Certo dia, por um in uxo qualquer, subiu até às imediações da antiga vivenda das roseiras. Não contava absolutamente recuperar o tempo lírico perdido. Era apenas uma procura de sossego, como se subisse a Paineiras para ver uma sombra de árvore densa ou ouvir um murmúrio de águas entre lajes sombreadas. Contudo... Contudo viu, na tarde serena, que dum poste (não o em que parava de longe, mas num outro mais para diante e do outro lado) saía um o de telefone que entrava por um canto da esquadria da última janela, aquela donde na última vez provinham os sons da Berceuse do Jocelyn, de Godard. Na manhã seguinte, um domingo, quando Virgínia foi à missa, Carlos pediu informação do número do aparelho da rua tal número tanto... Escreveu a lápis. Ligou. Atendeu uma voz meiga. — Como vai de violino? — Bem. Tenho tocado muito. Quem fala? — Aquela pessoa que há muito tempo a acompanhava desde a saída do Instituto de Música até aqui ao Cosme Velho... Que depunha postais na caixa do correio... — Nisto parou. E se não fosse ela? Se a resposta quanto ao violino representasse uma brincadeira? — Eu ainda os tenho. Estão guardados comigo. Tão bonitos... Aquele claustro do convento de São Francisco... Aquele angelo musicante de Fra Angélico... — Aquele anjo é você...

— Acha? Por quê? — Porque parece. — Por que telefonou? — Passei, vi o o do telefone... resolvi saber notícias. Então tem tocado muito? — Agora toco quatro horas todas as manhãs. — Escute: essas janelas não se abrem nunca? Isso aí é convento? — Pra que abrir? Posso ver por trás das persianas e do caramanchão... Mas, onde esteve? Continua no Exército? — Estive na Europa. Adido às delegações da Conferência da Paz, e da Liga das Nações. — Por que não mandou postais de lá? — Tenho uma porção. Posso entregar? Mas, pessoalmente. Na caixa, não ponho mais. — Pode entregar, sim. — Quando? — Quando quiser. — Onde? — Ora! Onde! Aqui em casa. — Veja lá! Olhe que eu vou. — Pode vir. — Onde me espera? Escondida atrás do caramanchão ou da persiana? — Não tem mais caramanchão. — E a sua gente? Quantas pessoas vivem fechadas nessa casa? — Só eu, papai e mamãe, como sempre. — Como é que durante aqueles dois anos nunca vi ninguém? — Porque papai trabalhava na Baixada e saía muito cedo. E mamãe era professora da Escola Normal e seguia para o Estácio antes das oito. — Provavelmente foi por isso que nunca os vi. — Decerto. Então esteve na Europa...? Desde aquele tempo? — Não. Depois da guerra. — Esquisito. Não é o cial do Exército? — Sou. Por quê? — Nada. Estranhei... — Mas fui tratar da paz. — Ah! Então está bem. Chegou agora?

— Ainda não faz um mês. Uma semana depois da revolta do Forte de Copacabana. — Então não é um dos dezoito? — Infelizmente não. Escute! Falando sério: onde me espera? — Aqui na sala. — Bato ou sacudo o portão para que aquela sineta enorme badale! — Não tem mais sineta. Agora é um simples botão do lado. — Mas... não vai avisar seus pais, antes? — Mamãe já sabe do seu aparecimento. — Como assim? Pois se ela nem me conhece! — Conhece, sim. Ontem quando nós duas descíamos da estufa que temos aqui no morro, eu o reconheci parado na calçada de lá. Olhei bem, certi quei-me, subi correndo pela escada dos fundos, fui espiá-lo por detrás da persiana. Mamãe chegou, eu mostrei. — E ela, que disse? — “Emília, ele deve gostar muito de você. Reaparecer assim de repente, depois de levar sumido tanto tempo? Quem sabe se esteve no interior ou mesmo na guerra?” — E que foi que você respondeu, Emília? Bonito nome... — Gosta? Respondi: “Eu sabia que ele voltaria, mamãe”. — Sabia como? — O violino me dizia. *** A Emília que lhe apareceu na noite seguinte — ele telefonou dez minutos antes, da esquina, não obstante um tímido telefonema de manhã — mudara muito e não mudara nada. A meiguice de criatura quase sem feminilidade, entre anjo e adolescente, não obstante já ter quase vinte e dois anos. Mudara no sentido de haver crescido e possuir mais desenvoltura; e não mudara porque tinha o mesmo semblante de porcelana, os mesmos cabelos dourados, os mesmíssimos olhos dum azul in nito. O engenheiro Nunes, que Carlos supunha dever ser algum casmurrão lendo jornais numa cadeira de balanço, era pessoa de muita operosidade. Andara drenando rios do fundo da Guanabara e na bacia de Jacarepaguá, tais como o Sarapuí e o Pontal. Tinha planos especiais para a drenagem das

margens do Pavuna. Arrependia-se profundamente segundo explicou depois da conversa cerimoniosa, dos seus erros de mocidade enchendo a Praia Vermelha de monstrengos arquitetônicos para a Exposição Universal de 1908; como penitência, porém, o Governo lhe dera ultimamente encargos ainda piores nos pavilhões da Exposição de 1922 ali no aterro diante do Calabouço. Andava interessado em edifícios do gênero do Hotel Glória, grandes prédios de apartamentos, coisa praticamente desconhecida no Rio. Dona Laurinda, professora da Escola Normal, demonstrou pela conversa ter mais experiência burocrática do que didática, trabalhava na secretaria e queixava-se de entraves que impediam a aplicação de métodos mais funcionais. Carlos procurou desembaraçar-se do enleio natural contando peripécias de sua estada na Europa como adjunto às missões do Governo. Mas o fato de haver explicado essa circunstância, à guisa de credenciais, ainda o inibiu mais. Mesmo porque teve que atender quase simultaneamente à curiosidade dos dois ancos, porque se dona Laurinda se interessava por Versalhes e a pompa e a emoção do Congresso da Paz, o doutor Nunes queria informes sobre Genebra e o Covenant da Liga das Nações. Carlos mal conseguiu mencionar os problemas debatidos nas comissões técnicas e fazer uma súmula de suas atribuições secundárias. Dona Laurinda entusiasmava-se: — Então viu Wilson? Lloyd George? — De longe... — Mas viu Poincaré, Barthou, Briand... — Sim. De fato. — Clemenceau? — Também. Evidentemente ela esperava pormenores, impressões, comentários. Carlos não tinha a desenvoltura do avô nem do pai para satisfazer com brilho àquela curiosidade. Era lacônico e sucinto como o velho Gama. Noites de Cosme Velho! Primeiro, sob a guarda solene de dona Laurinda, que de vez em quando queria uma minúcia sobre uma questão internacional já fora do cartaz: Fiúme, Silésia. Depois, sob a guarda pachorrenta do doutor Nunes que, parado diante da porta, equilibrando a cinza do charuto, ouvia a lha tocar violino depois de muito instada.

Emília não tinha virtuosismo enérgico, mas demonstrava sensibilidade intuitiva para interpretar principalmente os românticos. Noites e manhãs em Cosme Velho, mãe e lho consultando-se quanto a essa terceira criatura que parecia dever entrar na existência deles. A seguir, a apresentação de Emília, sua presença, um domingo, outro... uma tarde, uma noite... A impressão magní ca de Virgínia que simpatizou tanto com a futura nora que o enxoval redundou num desa o de prodigalidades entre as duas famílias. Por m, meses depois, certa tarde, quando mãe e lho chegaram com tia Judite e o Maurício e o Eusébio — que viera de propósito da Alta Mogiana onde criara juízo — já a outra casa do Cosme Velho estava repleta de altos funcionários da Prefeitura, de muita o cialidade e de alguns médicos, os convidados dos Nunes, dos Cintras e dos Gamas. O Eusébio, metido num fraque feito na Casa Garcia e com um espetacular plastrão, não só os conduziu na sua Hudson, como acabou ajudando a criadagem da Colombo. Após as duas cerimônias, a civil e a religiosa, um companheiro do doutor Nunes desde as “epopeias” do Caçambi e do Pavuna e o êxito recente dos pavilhões da Exposição, fez um discurso na hora da champanha, indo depois os noivos tirar retrato na saleta de música. Salas e corredores repletos de professores, chefes de seção, rapazes fardados, moças deslumbrantes, médicos de ar acessível, damas vistosas e crianças estouvadas. O sobrado, antes tão esquivo, fulgurava agora de opiniões, ores, joias, plumas e elogios. Duas leiras de carros lá fora tornavam menos recôndita a rua em rampa e em curva. Virgínia, à saída dos noivos, ouviu uma senhora das relações da família Cintra dizer a dona Laurinda: — É sim. Com três asas. Uma, de mansidão. Outra, de beleza. A terceira, aquele violino que ainda a torna mais extraterrena. De fato. Mansidão, beleza e espiritualidade. Virgínia, que na Europa sempre vira o lho cerimonioso mas atento às moças durante as recepções, cuidando-o interessado por uma belga em Spa e por uma genovesa em Rapallo, não estranhava absolutamente que ele, tendo tido tantas oportunidades, logo ao regressar decidisse absorver-se pelo mistério da vizinha reclusa. E que nas mansões do Surrey, nos castelos de Ilha de França, nos hotéis das encostas de Villeneuve, nos jardins encantados da Riviera, jamais vira um tom louro de cabelos e um azul in nito de olhos

comparáveis aos de Emília e concorrendo para a impressão de beleza e de mansuetude será ca existente no semblante aporcelanado, no sorriso meigo e na voz cândida. O Casal voltou ao Cosme Velho para um estágio apenas de duas semanas porque Carlos, segundo já soubera e comunicara, foi promovido e esperava apenas a transferência para Lorena. *** Durante meses, dona Laurinda ao receber cartas telefonava para Virgínia que logo as permutava com as que recebera por sua vez. Quanto aos retratos mandados, não levantavam desavenças porque eram iguais os remetidos para as duas residências. No ano seguinte o casal voltou ao Rio, de licença, conforme avisos e informações, cujo tema pressuroso era a promessa dum neto e cuja consequência imediata fora um novo desa o para este outro enxoval menos dispendioso porém mais alvoroçante. Após consultas médicas e provas de laboratório, o estratagema foi tirar às sortes em qual das duas casas aguardar o nascituro, pois o médico especi cou determinada data não muito vaga. Mas, certa noite Virgínia, atendendo ao telefone, é chamada à pressa e acode um tanto apreensiva. Ao chegar vê uma ambulância parada no portão. Que signi cava aquilo, se uma hora antes chegara à casa deixando todos bem? Sim, todos; só Emília com uma indisposição lânguida... Quarenta minutos depois Emília é levada para a Casa de Saúde Pedro Ernesto, com uma espécie de contrações epileptiformes caracterizando uma autointoxicação. Ah! Que alvoroço incrível! Ao cabo de duas noites e um dia, atacada de eclampsia, muito violácea, lustrosa, inchada, com ar de monstro marinho jogado à praia, Emília morre, com um grande pasmo de interrogação na sionomia. Quando foi embora de vez para aquele reino de que até então tinha sido uma simples exilada, não parecia mais, apesar do vestido branco, um anjo franzino. Agora, assim loura e clara, crescida e rude, era uma espécie de valquíria afogada... Em dado momento na capela mortuária, uma senhora das relações da família Nunes explicava ao respectivo esposo formalizado: — Pelo que o médico disse, isso é muito raro nas estatísticas...

— Raro o quê? Morre-se de qualquer jeito. Basta estar vivo. — Não é isso. O extraordinário é a criança ter escapado. Contudo Virgínia, em lágrimas, assim que o lho sentou ao seu lado no carro quando o cortejo se pôs em movimento, teve a intuição de que o perdera de vez. Durante o percurso, conquanto estivesse com a mão na dela, Carlos, marasmado e abstrato, parecia inteirar-se do modo de arranjar um passaporte para onde Emília tornara a ocultar-se. Algumas semanas depois de viver sentado junto da mãe com a cabeça naquele ombro que era a sua última laje de refrigério e sombra, preparou suas coisas para regressar a Lorena. Virgínia e Laurinda dividiram entre si a roupa de Emília; Laurinda guardou a parte que lhe coube numa arca; Virgínia, num oratório. Carlos apartou aqueles livros que levara e trouxera. Não queria saber mais dos volumes. Não tinham sentido nenhum. Emília os lera, logo não podia mais vê-los. Jogou-os para dentro da fragata “Kuimbaé”, aquela miniatura dum metro feita quase dezoito anos antes pelo pai, por ele e por tio Maurício. O pai... Ah! Esse fora alegre, radiante, até mesmo na morte, subindo para o mistério como uma rolha de champanha. Olhou para a pequena fragata com aquele lastro trágico a bordo, limpou demoradamente a boca amarga, fechou a mala.

IX O TERCEIRO SARCÓFAGO INÚTIL

AS PRIMEIRAS cartas e os raros telefonemas interurbanos logo convenceram Virgínia que Carlos deixara o lho no colo da avó, o enxoval da esposa na arca e no oratório, os livros de juventude como lastro no “Kuimbaé” — tudo como uma carga consignada a um trapiche de recordações lacradas — e vivia agora em Lorena a envenenar-se com doses duma loso a amarga. No último telefonema, por exemplo, pedia que lhe remetesse três livros. Um de Nietzsche, outro de Lubbock e outro de Queyrat. — Para que queres tu isso? Estão velhos, com as folhas soltas, cheios de anotações amalucadas de teu avô! — Mande assim mesmo... E Carlos respondia com monossílabos às interrogações sobre a saúde e a alma; perguntava apenas o essencial sobre o lho Fernando. Se antes já mudara tanto desde a morte do pai, agora deixara de vez quaisquer laivos fortuitos de alegria. Era lacônico e reservado, desdenhava manifestações extremadas de amor lial ou paterno. Em noivo e como esposo jamais tivera um lirismo exuberante; seus sentimentos antes de mais nada se revestiam duma dignidade tácita. Pobre Carlos! A antiga criança radiosa das tardes à beira da Lagoa era agora um moço taciturno, acabrunhado inexoravelmente. Na última conversa pelo telefone Virgínia consultou-o de modo insistente e mesmo autoritário sobre uma combinação sempre adiada: ela e o neto viverem com ele. Ao voltar para Lorena Carlos dissera que isso seria resolvido em cartas e telefonemas assim que se de nisse sua situação, mesmo porque precisava fazer o curso do Estado-Maior. Mas a verdade é que evitava falar no assunto. Virgínia declarou então que ia arrumar as suas coisas e as do neto e que embarcaria naquela semana com uma excelente ama de con ança.

— Não, não, não! — Carlos! Em lugar dessas encomendas de livros soturnos trata de resolver o que é essencial. — Fernando acha-se em ótimas mãos; logo, não podia estar melhor. Quanto a mim, não sei se resolvo fazer o curso do Estado-Maior. Penso mais em arranjar transferência para uma guarnição longínqua, de fronteira. Mãe, onde é que acaba o desespero e começa a resignação?... — Por que uma fronteira distante, e não perto de tua mãe e de teu lho? Lembra-te daquele trecho de Homero em Ulisses: “Conservo tições sob a cinza anegrada dentro mesmo do meu campo, para que não suceda ter que ir buscar noutra parte a semente do fogo”. Carlos, não te acompanhei à Europa? Que signi ca então não estarmos juntos aqui na pátria? Isso tem sentido? Escuta: hoje é dia 1.º de julho. Vou dispor as coisas, arranjar quem tome conta da casa e embarco sábado! — Não, não, não! Irei buscar a senhora e Fernando, caso veri que a impossibilidade de fazer o curso. Preciso arranjar casa em condições, aqui. Telefono-lhe uma noite dessas. Adeus. Cinco dias depois, estando Virgínia no quarto do neto, com a ama, eis que Maurício (que nunca aparecia em casa àquelas horas) irrompe, entra pelo quarto adentro e diz de chofre: — Veja o que está em todos os jornais! Na cidade inteira não se fala em outra coisa. Não sabe? Revolução em São Paulo che ada pelo general Isidoro. Telefonei para aqui diversas vezes, estava sempre em comunicação! Virgínia entregou o netinho à ama, foi com Maurício para a sala de jantar, leu A Noite bem aberta sobre a mesa, depois O Globo. Ficou profundamente a ita, telefonou para duas ou três casas de famílias de o ciais amigos de Carlos, mas só obteve informes demasiado sucintos. Pediu uma ligação interurbana para Lorena. Foi-lhe dito que estavam canceladas as ligações. Insistiu à noite. Foi informada de que o tronco continuava interrompido. Na manhã seguinte atende pressurosa ao telefone. Chamado de Minas. Era tia Judite, nervosa, dizendo que o Eusébio chegara fugido da Alta Mogiana por ser “bernardista”... Isso chocou Virgínia, criou a suposição de que o movimento deveria alastrar-se; só então se deu conta de que subconscientemente aceitava a hipótese de que Carlos houvesse aderido. Tia Judite fazia votos para que Carlos tivesse juízo!

Dias e noites de intensa agitação e angústia. Virgínia ora sozinha, fazendo cálculos, ora trocando impressões e comentários com Maurício, dona Laurinda, o dr. Nunes, sobre o que publicavam os jornais censurados. Saiu diversas vezes e fez determinadas visitas sensatas a ver se colhia informes seguros sobre o paradeiro e a atitude do lho. Por m, resolveu providenciar um salvo-conduto para Lorena. Não através da Polícia diretamente, mas indo ao Quartel-General, explicando a conhecidos de Carlos o seu intento. Encontrou óbices explanados com evasivas. Estava decidida a deixar Fernando com dona Laurinda. Acabou tendo a comunicação (desagradável para quem lha deu e angustiosa para ela) de que Carlos aderira antes mesmo do dia do movimento, tendo nas vésperas seguido para a cidade de São Paulo, onde estava em ação. Virgínia retirou-se sem que o tenente-coronel sequer se levantasse para acompanhá-la até ao corredor... Escusado dizer que esperou todos aqueles dias uma carta ou alguma visita secreta por incumbência do lho. Em dada manhã os jornais publicaram que, devido à atitude do Governo e o início de bombardeio coercitivo da capital bandeirante, os revoltosos a haviam abandonado. As edições da tarde contavam que eles se tinham dirigido para Bauru. Virgínia leu isso com o neto no colo e o apertou não por especial emoção advinda dessa notícia em si; mas porque de súbito se lhe apresentou o passado, o presente e até mesmo o futuro; e porque viu e sentiu que era necessário livrar e defender Fernando duma espécie de força aspiradora e redemoinhante que, por alguma lei de constância, parecia escolher e destinar os varões da família para sacrifícios trágicos, elegendo-a sinistramente como testemunha dos períodos rítmicos dessa condição. Que destino seu era esse? *** Assim, durante seis anos, tempo esse lento como a traslação dum século, e todo ele estruturado em ânsia e angústia, não especi cado em informes, pelo contrário constituído só de dúvidas e apreensões, áreas opacas de mistério e perplexidade, sem fórmulas nem métodos possíveis de comunicação, obtendo de longe em longe apenas certezas sumárias e rudes

que no mais das vezes só lhe chegavam através de lenda difusa embora expressassem verdade categórica — e por isso a deixando mais zonza do que a negação empastada e lúgubre de qualquer notícia — Virgínia foi sofrendo os juros compostos da adversidade que em dois lances, (a morte do marido e o desaparecimento da nora) já transformara sua vida numa angústia trágica. Maurício insinuava-se em labirintos de informações desencontradas à cata duma notícia recente e concreta. Os pais de Emília rodeavam Virgínia de atenções solícitas. Mas Virgínia perseguia o lho com mais ardor e com a mesma di culdade do que as tropas legalistas. Ela e o Governo lhe iam no encalço, mas Carlos se livrara não em fugas e desistências, mas pela tática do movimento. Deixara o mar, a costa, que nada tinham que lhe dar, antes lhe haviam roubado tudo, despojando-o até mesmo daquele alforje de recordações (o casarão do Jardim Botânico, as risadas e abraços do pai, os carinhos e conselhos da mãe, os cenários e deslumbramentos do Surrey, da Ilha de França, da chã de Villeneuve, dos jardins da Riviera, a placidez de Cosme Velho, o sortilégio beatí co do “angelo musicante”, o cabelo revolto do pimpolho) e acreditava agora, fanaticamente, só na terra, homiziando-se nela, exilando-se na aura da ilegalidade, largando a pátria periférica para se apoderar, sentir, percorrer, ser dono da topogra a inconsútil dum chão sempre ao seu dispor. Bauru. A primeira sensação dum malogro provisório. Necessidade dum reajustamento. A primeira veri cação de que não existia homogeneidade de ideias. (Ou de ideais?) Que havia duas opções sempre em tudo... A errada e a certa. A dos outros, a o cial. E a de alguns e dele. A seguir, as barrancas do Paraná. A pátria com suas vísceras de cenário estático e dinâmico; mas a pátria reservada em potencial. Que eram ali naquelas paragens os seus companheiros e ele? Glóbulos sanguíneos, quase uma trombose no vaso popliteu da pátria? A marcha para Iguaçu. A realidade e a mística, o ímpeto e a estratégia, o cálculo e a pertinácia, para a formação dum campo magnético, para um enrolamento de primário e secundário como nas bobinas de alta indução. O malogro de Catanduvas, depois de sete meses de lutas e marchas até Campos do Mourão... Agora, um roteiro de formigas sobre manchas de umidade grumosa, mas que macroscopicamente, em escala real de quilômetros, paralelos e longitudes, não eram manchas em zarcão e cloro la, mas sim Mato Grosso,

Goiás, Bahia, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, outra vez Bahia, Minas, Goiás, Mato Grosso. *** Virgínia fora despojada do lho no sentido de não o ter mais ali junto de si nem de Fernando. Passara a ser paradoxalmente irreal e ausente porque, posto em termos de lho e de pai, se tornara um mito; porque, posto em termos de soldado e o cial, não estava em nenhum quadro da legalidade, mas fazia parte dum grupamento tático, alhures. Como lho e pai se desagregara do lar, e como soldado e o cial saíra dos quartéis, mas se tornara difuso, legendarizado, núcleo de boatos e constas onde os episódios se iam deformando em mística. Dera para estudar sociologia, marxismo, optara pela Esquerda, vivia nos subterrâneos da clandestinidade. Mesmo ausente, não cara reduzido a esquema de lembranças, porque o anuviava a apoteose, esse consenso brusco, imediato de louvor, essa teoria amorfa de apreciação transubstanciando realidades e fatos. Virgínia olhava para o mapa do percurso, e seu dedo traçava uma linha de roteiro. Mas naqueles seis anos aquela linha do mapa sempre se aproximava cada vez mais, como um o que gradualmente viesse invadindo e transpassando seus olhos qual diâmetro de quilômetros trazendo em sua superfície rios, serras, chapadões, orestas, cansaços, noites, dias, percursos, vigílias, desesperos, obstinações. E durante aqueles seis anos ela arrancava para estudo e avaliação os componentes dessa linha tornada agora horizonte total. Rios. (Manhã fria junto à corredeira; uma escolta espera junto à fogueira de hipotéticas barcas trazendo munições, víveres e remédios.) Serras. (Relevos dum dorso eriçado de matas e pedras e que lá de cima patenteiam vastidões.) Chapadões. (Noção de perspectiva inexistente, já que tudo assim ao sol é um êxtase de eterno primeiro plano.) Florestas. (A abertura de picadas de cem, duzentos quilômetros de recesso da selva interposta entre eles e o objetivo a empolgar.) Cansaços. (Molambos humanos, ora mansos, ora brutais, formando trânsitos enviesados e já agora ralos nos crepúsculos constritores ou nas madrugadas em expansão.)

Noites. (A presença do pensamento e da saudade, do desânimo e do cálculo, dos sons e da treva, do inseto e da fera, da ferida e da cicatriz, da inanidade das coisas e da ronda milenar da fome, da doença e do ideal.) Dias. (Soma das veracidades e das surpresas, das contingências e das determinações, dos malogros e dos exemplos, das vitórias e dos desvios, das esperas e das ações, dos embates e dos sóis.) Percursos. (Apa. Rio Pardo, Anápolis, São Romão, Picos, Crateús, Boqueirão, Piancó, Umburana, Tabuleiro, Tucanos, Ouricuri, Jurumenha, Olhos d’Água, Planaltina, Campo Formoso, Córrego de Estrela, Pilões, Colônia do Sangradouro, Rio das Mortes, Rio Manso, Pantanal...) Vigílias. (A recordação de casa. Duma rua de Paris ou de Gênova. Duma estátua, dum cipreste. Do jardim do Cosme Velho. Da capela mortuária da Casa de Saúde. Daquela frase materna sobre as brasas enterradas...) Desesperos. (Aquela manhã no colégio... A saída da aula. Os jornaleiros bradando a explosão do Aquidabã. Aquela tarde em que fechara o caixão onde não mais anjo franzino, louro e azul, mas valquíria violácea, inchada, disforme, Emília jazia, depois de ter dado à luz Fernando... Que criança era essa, que destino, que força trazia para assim, ao irromper, quebrar os portais do sacrário?) Obstinações. (Sim. Seis anos de teima, não por orgulho, nem por insensível disposição de pertinácias vãs... mas por alguma coisa que era mensagem e ação, escondendo sob a cinza os tições no campo para que houvesse sempre, aqui e acolá, sementes de fogo.) *** Agora, no estrangeiro, estava ali naquele café, depois de outra temporada em Gaiba. Durava dois anos já o autêntico exílio. E o ex-colega de Santo Inácio, um piloto do Lloyd, que já servira duas vezes de estafeta depois que Carlos fora localizado, ouvia com atenção, decorando e taquigrafando as recomendações de Carlos. Que Maurício não viesse. Que não lhe remetessem roupas nem dinheiro. Que estava estudando propostas de próceres da Aliança, tendo até por causa disso estado em Montevidéu. Que assim que decidisse seguir telegrafaria em código comercial para essa rma de café por atacado da rua

São Bento dando a cotação (a data). Que Maurício ou a mãe fosse já a São Paulo pôr-se em contato com Fulano e Beltrano. Sete dias depois Anselmo, o piloto do Lloyd, chegava ao Rio, ia a Cosme Velho, expunha tudo. A emoção de Virgínia, como vinte e dois dias antes. As perguntas. O entusiasmo lacrimoso. O longo texto taquigrafado (mas sem a menor referência aos projetos, por precaução). Os informes verbais referentes à Revolução. Sim, os políticos se interessavam pela rapaziada da Coluna. Esta se oferecia como um grupo técnico e experimentado, mas exigia sinceridade na doutrina que a Aliança pregava, e compromissos de sua aplicação. — Como está ele? E Anselmo a contar, minuciosamente, pormenor a pormenor, diante daquele semblante atento: — Carlos esfregou a ponta do cigarro na beirada do pires, tou-me, sorriu. Depois se recostou para trás, passou as mãos pelos cabelos, começou a dizer, como se pensasse alto: “Eles vão fazer a Revolução. E têm vindo procurar-nos trazendo documentação e credenciais, porque sabem que não podemos acreditar num conglomerado heterogêneo de pro ssionais da política. A alguns pergunto se já leram Marx, Engels, Fourier. E a um membro proeminente do governo gaúcho, que me disse que iriam dos Pampas ao Rio em tempo normal de transporte de tropas por via férrea, respondi que estava bem, sempre era melhor porque eu, por exemplo, para chegar não a uma capital de funcionários, mas à orla do Planalto Central, levara algum tempinho para transpor com a minha gente a serra do Rio Bonito tendo sido obrigado a vadear Correntes, o Verdinho, o Meia Ponte, a uentes do Paraná. Que isso de rios por aquelas bandas era uma praga, pois ainda tive que atravessar o rio Maranhão, o Descoberto e o Urucaia, o Peruaçu e o Carinhanha, esbarrando porém logo a seguir na serra de São Domingos... Para quê? Porque era preciso ir enterrando tições no campo, debaixo da cinza, para haver sementes de fogo por aí além. Então o gaúcho sacou e apertou o isqueiro, ofereceu-se para reacender o meu cigarro apagado!” ***

Dias depois, o guarda-livros da rma atacadista da rua São Bento veio entregar o telegrama cifrado. Ainda bem que Maurício já chegara de São Paulo trazendo a certeza de que a articulação do movimento oferecia bases sólidas. E lá partiu Maurício de novo para Santos agora, a m de esperar Carlos num avião... Sempre a ilegalidade. Ainda a ilegalidade. A condição do passaporte falso, da entrada secreta, do esconderijo predeterminado. Ainda no mês passado Virgínia fora a Olaria, de táxi, para encontrarse com o tenente França, comparticipante da Coluna, que estava no Rio escondido, estabelecendo ligações. Fora para quê, se não atuava em nada, aguardava apenas o lho? Para receber aquela primeira carta depois de seis anos. De regresso, tirou de dentro do oratório o enxoval de Emília, que arrumou nas gavetas e armários do antigo quarto do casal. Disse a Fernando que papai ia chegar. Fernando exigiu de dentro da fragata “Kuimbaé” aquele volume ilustrado da Saga de Frithof, porque tinha guras de heróis. Fernando! Moreno como o pai e com os olhos azuis da mãe! Tinha seis anos, já lia quase tudo. Quis ler inclusive a carta do pai, escrita a máquina. Corria pela casa, arrastava-se por baixo das mesas e do piano, galgava a serra do Lajeado. Quis vestir calças compridas, para esperar o pai. Sim, este chegaria. Mas, segredo, hein? Tanto que o cadeado passou a aprisionar o portão, e ele próprio foi submetido a censura rigorosa pela Idalina, a ama seca. Os coleguinhas de brinquedos foram barrados no gradil. O acesso à casa dos avós (mais adiante, onde a rua começa a subir e a fazer curva) foi impedido por contingências de severa scalização. Compreendeu. Não abriu o bico. Só se referia ao pai deitado na cama, de noite, quando a casa já estava fechada e apagada. — Quando é que ele chega? — sussurrava. — Qualquer dia... — Vem a cavalo? Fardado? Com barba? — Trate de dormir. Ah! Carlos ia chegar. Aleixo e Artur colhidos pelo mar, lá estavam nesse mar por onde ela, Virgínia, passara quatro vezes, e ele, Carlos, duas vezes. Que é o mar, com relação à pátria? Que são as águas paradoxalmente chamadas de territoriais? A terra, sim, era a pátria. O sogro e o marido

tinham sido vítimas da traição desse mar aí. Mas o lho, apreendera estoicamente a ciência e o engenho da superação. Se durante aqueles seis anos alguns companheiros seus estavam usufruindo vida anônima e normal em deveres de rotina, àquela hora da noite talvez nalgum cinema, passeio, visita, distribuídos ao léu de injunções medíocres, o lho chegaria não para a apoteose, mas se esgueirando ainda pelo último bastidor, depois de ter sido fragmento de mercúrio se arrebentando pelo sertão, fulgurando ao rés dos rios, cintilando através do quadriculado dos Estados, bolha metálica derramada. Também não aceitara a mística de mártir con nado em Fernando de Noronha, em Dois Rios ou na Detenção, atento talvez a anistias acenadas ou se sujeitando à vida civil, provisória ou amorfa. Virgínia compreendia dum certo modo que a vida de Carlos correspondia a uma espécie de fusão da própria vida com a do pai que não tivera tempo de realizar-se. Seu empreendimento era pessoal no ímpeto e tinha também algo da preocupação deixada como herança. Carlos desempenhava a missão de duas gerações. Virgínia depois da última notícia do malogro de 24, suportou e compreendeu por intuição aquela ausência cada vez mais distante e lendária do lho, e jamais o esperou como um foragido noturno, porque acreditava numa outra chegada longínqua mas propícia. E desde o desfecho de Catanduvas, se desinteressou de vez de tudo que não fosse a sua única atribuição permanente: criar Fernando, e acompanhar o lho. O dr. Nunes, já não mais um alto funcionário da Prefeitura, mas engenheiro dinâmico absorto em construções de alta monta pelo centro da cidade e em Copacabana, cujas sionomias meãs estava modi cando, naquele intervalo de seis anos, desde a morte da lha, recebeu e cumpriu as procurações recebidas de dona Virgínia. Esta, presa em casa pelos encargos de avó e pelo desinteresse total duma vida que não fosse a que dedicava a educar o neto e digni car o lho, nem tempo tinha de sair. As poucas vezes que foi ao centro para assinar coisas em tabelião, entrar nalgum Banco ou repartição pública, estranhava as modi cações do trajeto e do centro da cidade, desde as novas linhas de ônibus, pois havia agora o bairro da Cinelândia com arranha-céus e a Esplanada do Castelo. Esta já se ia con gurando num aspecto inédito atrás da Policlínica, do Jockey Club, da Escola de Belas-Artes e da Biblioteca Nacional, havendo ruas e avenidas com nomes inteiramente novos. Aquele

trecho do aterro e grande parte diante do Monroe e do Passeio Público se modi caram; os lances de ajardinamento tinham alterado o trecho de outrora. Quanto a Copacabana, o dr. Nunes insistia sempre sobre as transformações desde o Leme até Ipanema, fazia-lhe ver que o imenso terreno deixado na antiga Praia de Fora pelo coronel Aleixo valia agora uma fortuna. Assim, sua ideia era derrubar as casas existentes na avenida Atlântica e na rua Nossa Senhora de Copacabana (e que junto com o pardieiro de Jardim Botânico constituíam a renda módica de dona Virgínia) e levantar ali dois arranha-céus. Não, não se incomodasse nem se a igisse! Não seria preciso fazer empréstimo na Caixa Econômica nem hipotecar o terreno. Com as abas que venderia, pois o lote era enorme, dando para quatro ruas, ergueria dois blocos de apartamentos. Quanto à chácara do Jardim Botânico, abriria ruas, venderia lotes e ainda caria com espaço para um arranha-céu... Os tempos estavam mudados. Agora ele não trabalhava mais na Baixada. Pois o próprio sertão não fora lancetado de Sul a Norte pela Coluna, com o genro entre seus desbravadores? Outros tempos! De fato, com a vinda de Carlos que chegaria incógnito a Santos num avião, outros tempos iam começar. Para ela. Para a família. Para a política. Para a pátria. Dizia “pátria” sem atitudes de arrebatamento dum “porqueme-ufanismo” retórico, sem tolerar sequer a conceituação do sublime teórico. Isso era para antologias. A pátria real, o chão, o povo; disso tinha agora uma noção vera, estruturada em dialética. Mas naquela cruz onde se viu pregada em 1906, onde em 1924 foi posta em pé, desequilibrada no baque abrupto do penúltimo ato da sua paixão, viu agora, depois da esponja de fel, do golpe lateral, chegar a hora sexta da consumação. *** Aquele mar! Esse mar aí, devia ou não odiá-lo?! Oceano maldito, que tragava os varões da família! Aleixo atirado como lingueta de chumbo lá ao largo da Bahia. Artur estilhaçado em jato sem que os escafandristas lhe achassem sequer as postas na vasa de Jacuecanga. E agora, depois da ânsia da espera, da contagem das horas, do cálculo da chegada do lho, da imaginação radiante do primeiro encontro,

do primeiro abraço, depois da estranheza do telefonema de São Paulo tardando horas e horas, ah!... Sim. Essas coisas estão escritas, predeterminadas. A isso se chama o Fado. A isso se chama a Tragédia. Dor, é isso só. Desgraça, luto, hecatombe, catástrofe são fórmulas verbais para dizer isso de fora. Porque o que isso é, o que foi, o que vinha sendo na sua alma, no seu corpo, ela não diria a ninguém por mero recato. Só diria uma noite longínqua a Fernando, se esse, crescendo, viesse a merecer essa explicação. Sim, ali estava, de braços abertos para trás, hirta, parada, diante de Maurício e do Anselmo. Uma de suas mãos agarrava um jornal amarfanhado, enquanto por sua alma, por seu corpo abaixo, passava aquele peso dum avião querendo amerissar nas águas e na noite da sua desdita... Enquanto na noite e nas águas da sua desdita surgia um homem corroído pelo mistério, vindo de longe, duma toca, duma furna, querendo e precisando atirar-se na amplidão noturna e in nita da sua mágoa, e nadar, dar braçadas, bater com os pés em hélice, agarrar-se ao penhasco do coração, atingir o litoral do carinho materno, resfolegar, estirar-se, dormir, banhado por espumas de beijos... Aquela vastidão noturna e in nita era um horizonte de rajadas frias, de ventos empastados; e aquelas águas grossas eram gelo dúctil, gelatina de tragédias, coágulos de desvalimento... E o homem que, com o cinturão amarrado nas ilhargas, vira o avião hesitar e pousar de leve, aquele corpo que se desprendera, que aparecera na asa sondando a direção da praia, esperando a vaga propícia, que sabia que naquele mar estava o avô e estava o pai, ampliou o peito, esticou o queixo, ondulou o ombro e se jogou no mar, com brio, com esperança, com o rumo certo, depois do noviciado de seis anos! Mas seu corpo sofre a câimbra da hora densa, absorve a densidade polar daquele reino, sofre as leis de morgadio que o chamam a contas. E já não é o nadador, agora é o náufrago. Homologa-se ao abismo de que é o centro ao rés das águas, distende-se, utua, ca à mercê das vagas e só afunda depois que um sol baixo, manchado de horrores místicos, o identi ca...

SEGUNDA PARTE “A certa altura da desgraça não se é mais capaz de suportar que ela continue, nem que se cesse.” Simone Weil

X O PARQUE E AS ESTÁTUAS

O PORTÃO estava aberto, de modo que o automóvel parou a alguns metros e o casal — que sempre se interessara por aquela residência — saltou, deu alguns passos e tocou a campainha. Um parque, soerguendo-se adiante num promontório cuja casa tinha uma vista estupenda, e descendo em rampa impressionantemente bela até à praia particular. Ninguém atendeu. Tornaram a tocar a campainha, entraram, detiveram-se contemplando oito estátuas de tamanho natural que contornavam a rampa na parte onde árvores interrompiam a uniformidade do gramado. Representariam o quê? A mulher considerou que devia ser qualquer coisa simbólica. O homem disse que não. E como a paisagem atraísse e empolgasse, prosseguiram até à casa, esperaram um pouco e, não resistindo à tentação, chegaram à amurada. Que beleza! A cornija extensa da Avenida Niemeyer à esquerda, ao longe. Depois aquele trecho do Golf Club até à vegetação, entremostrando os telhados baixos, de São Conrado. À direita, a orla dourada e verde até ao Joá, o resto da paisagem como que rodando em blocos violáceos em torno do eixo da Gávea. Unindo tudo isso, a serra, o oceano e a luz. Voltaram e bateram diante da fachada. Por m, resolveram descer o primeiro lance, porque descobriram lá embaixo a sala principal; tinha até uma parede de vidro. Residência moderna, feita talvez por algum discípulo de Max Bill. Antes da praia se erguia um pavilhão onde brilhavam um automóvel e uma lancha. Assim que a senhora chegou rente ao andar inferior chamou o marido com gesto insistente; e caram ambos observando uma série de coisas estranhas naquele estúdio envidraçado a que a vegetação dava um ar de aquário. Mas eis que um indivíduo barbudo e esquisito se levantou lá dentro e puxou a cortina inteiriça, tapando tudo.

Aquela noção de felicidade alheia vedada fez o casal retirar-se. Marido e mulher afastaram-se, subiram desapontados a rampa, e já estavam em cima, perto das estátuas e se dirigiam para o portão quando apareceu um criado. E a senhora, ao menos para especi car o motivo da entrada e da curiosidade, perguntou se os proprietários, acaso não venderiam aquela residência. E o marido esclareceu melhor: — Tudo. Casa e terreno. A praia também. Conforme está. O criado, o jardineiro Inácio, fez que não com a cabeça. E como havia uma respeitabilidade irônica naquela negativa (ele meneava o queixo dum lado para outro em arcos de cento e oitenta graus) o casal saiu para a estrada, logo recuando porém para um lado. É que dava a volta, para entrar, um carro de corridas guiado por um rapaz com roupa de polo, botas, calções, colete e sweater, tendo ao lado uma senhora grisalha. E o casal ainda recuou mais porque, com as rédeas presas no carro, vinham atrás, garbosamente galopando, dois cavalos com as respectivas selas vazias. A Alfa deteve-se. A senhora grisalha saltou, e o carro, descendo a rampa, foi parar lá embaixo, dentro do galpão. Da estrada, o casal espiava por uma fresta da sebe. E o homem disse à mulher depois, já no automóvel, ao engrenar em direção ao Leblon: — Estamos perdendo tempo. Não vendem! *** Quando Virgínia enviuvou em 1906, ela e o lho caram proprietários da chácara do Jardim Botânico e do terreno (o areal!...) de Copacabana que o coronel Aleixo adquirira ao tempo em que, atravessando Sacopenapã, se chegava a um litoral chamado a Praia de Fora. Em 1912, antes portanto de embarcar para a Europa, quando já morava no Cosme Velho e a chácara do Jardim Botânico virava casa de cômodos, consentiu que o pai, o dr. Gama, mandasse fazer uma casa na frente do terreno de Copacabana. Sua renda, portanto, eram aqueles dois aluguéis. Seus bens: um solar desmantelado, uma casa art nouveau feita por um mestre de obras. Com a morte do pai, em 1918, herdou a casa do Cosme Velho e um depósito bancário que aplicou construindo outra casa para renda nos fundos do vasto terreno à beira-mar; sim, do lado onde passava bonde, na Rua Nossa Senhora de Copacabana.

Tempos depois da morte de Emília, quando Carlos se metera na revolução permanente, o dr. Nunes, engenheiro, conseguiu despejar o inquilino ctício que explorava o casarão do Jardim Botânico. E, tempos depois da morte do genro em 1930, botou o pardieiro abaixo, abriu quatro ruas e passou a vender lotes. Simultaneamente, munido sempre de procuração de Virgínia — que não queria saber de nada, tal o estado em que andava sua alma — vendeu os lados direito e esquerdo do terreno de Copacabana, deixando a frente e os fundos. Assim, em 1936, com a importância total das vendas dos lotes das quatro ruas abertas entre a Lagoa e a rua Jardim Botânico — onde já se erguiam vivendas admiráveis — e dos dois ancos do terreno de Copacabana, passou a construir metodicamente um arranha-céu de catorze andares na Avenida Atlântica. Deixou, todavia, o prédio antigo, com enorme quintal, alugado na Rua Nossa Senhora de Copacabana a uma casa de móveis e a uma mercearia e, em cima, a um dentista e a uma pensão. Só dois anos depois derrubou esse sobrado e levantou um arranha-céu de doze andares, com uma galeria embaixo. Distribuiu os andares em apartamentos, e destinou o rés do chão para um cinema e um banco, segundo já previra na planta e na construção. E tratou de acelerar as obras dum conjunto de apartamentos, em três blocos sucessivos, com dois pátios, na frente (poupada para tal m) do velho terreno de Jardim Botânico. A casa do Cosme Velho cava de reserva. Não conseguiu uma só vez que Virgínia durante a primeira construção se abalasse para ir ver as obras. Só quando o último prédio já estava em meio, foi que ela subiu no elevador de obras por entre andaimes, e isso mesmo para atender aos rogos do neto Fernando. E dali, em automóvel, é que foi conhecer por dentro, direito, os dois blocos de Copacabana por onde passara meia dúzia de vezes muito de relance. Mas, quando começou a guerra, já morava na Ponta do Marisco havia dois anos. A residência funcional aderida no promontório e rodeada pelo parque panteísta não era projeto de Max Bill, ou discípulos. Foi desenho e realização do dr. Nunes, avô de Fernando e pai de Emília; desde 1932 andava com a sua tabuleta de engenheiro construtor em muitos andaimes da zona bancária, das avenidas novas da Esplanada e das ruas internas de Copacabana. O funcionário público que com trinta e poucos anos drenava o Pontal e o Pavuna, agora estava no seu elemento vocacional. Penitenciava-se

perante a cidade dos monstrengos que se vira obrigado a erguer nos recintos das exposições de 1908 e 1922. Evidentemente, estando “com a mão na massa”, o dr. Nunes haveria de querer que terrenos do neto servissem para demonstrar a capacidade urbanística e arquitetônica do avô. E assim, por via indireta, ocasional mesmo, Virgínia, enclausurada no Cosme Velho, se vira ironicamente rica quando, alheada de tudo, só pensava em desviar o neto do signo fatídico dos antepassados. E agora, nessa manhã de domingo, Fernando (ao vir do polo) a pegara na porta da igrejinha de São Conrado. Mas como havia de supor isso aquele casal? O que marido e mulher viram foi um rapaz e uma dama chegando do Golf Club. *** Quando o pai morreu num desastre de avião no estuário do Prata, Fernando já lia e escrevia regularmente. Não tardou que Maurício, aposentado, passasse a ser seu preceptor, logo averiguando a vivacidade do sobrinho e aluno que tão pequeno se interessava pela Revolução Constitucionalista e, já rapazola, discutia com os vizinhos Mílton e Lauro o golpe de Estado de 37, debicando muito o primo Eusébio, deputado pela Alta Mogiana, que perdera a cadeira. Aos quinze anos achava-se capacitado para cursar qualquer Faculdade; contudo, a avó, que sempre o trouxera na mais ampla liberdade dentro da casa do Cosme Velho, mas com cadeado passado no portão e idas à cidade só na companhia de tio Maurício, mal consentindo em amizades escolhidas (apenas o Júlio, o Lauro e o Mílton, de boas famílias da vizinhança), o fechara quando adolescente ali naquele parque à beira-mar, como se pretendesse fazer dele um príncipe de promontório num regime de Côte d’Azur. É que Virgínia se convencera de que deveria viver junto do mar já que o sogro, o marido e o lho estavam mortos no Atlântico; e decidira criar o neto numa espécie de extraterritorialidade que o livrasse do contato com a adversidade. A primitiva ideia fora educá-lo imunizando-o, de modo a realizar-se numa esfera excepcional de valor humano. Fernando sabia como uma espécie de saga doméstica, o m do bisavô Aleixo, do bisavô Gama, a morte do avô na explosão do Aquidabã, a marcha da Coluna revolucionária pelo Brasil, a morte do pai nas águas do Prata, e que sua avó

Virgínia, perdidas todas as amarras com a felicidade, se valia dele e o poupava como única esperança. As antigas camaradagens foram trazidas ali para dentro como cobaias de experiência. Lauro, estudante e literato, trazia as contribuições do mundo, era uma espécie de locutor e comentarista. Mílton, médico recémformado, o mais velho do grupo, signi cava a vocação cientí ca, e seu último projeto era a fundação dum Banco de Sangue, já dispondo de sede e de doadores classi cados. Júlio, o antigo caçador bisonho de borboletas na Ladeira do Ascurra e no Silvestre, era o artista aloucado. Chegara duma segunda viagem à Europa em 1938 (a primeira tendo sido feita na adolescência), e usava agora uma barba à Marcel Gimond, seu professor de escultura. Submetera-se a curso intensivo com Bourdelle e Maillol, os críticos duma primeira exposição viram nele in uências de Hans Arni, e aquelas três estátuas do parque bem como as outras e as telas que o casal visitante entreviu pelo vidro eram produção sua. Prezava Virgínia e Fernando a ponto de instalar ali entre o parque e a praia o seu estúdio; quase não saía, a não ser para percorrer as matas do maciço Carioca e os litorais da Gávea e da Barra da Tijuca a m de escolher blocos de pedra e fazê-las transportar para o atelier; alimentava também, nediamente, uma esquizofrenia diagnosticada numa clínica suíça, bem caracterizada pela barba, pela cabeleira, pelos silêncios, pelos passeios rudes, pelo comportamento e pela arte; e, principalmente, pela sujeição a Virgínia e a Fernando, e pelo desdém a Mílton e a Lauro. A consequência da primeira viagem à Europa, fora Júlio submeter-se à natureza e às suas forças; plasmava uma série de formas que tinham correlações de pesos e planos imitando exotismos de pedras, troncos e metais; vivia folheando revistas de arte a ver o que faziam Moore, Adams e Gonzalez: procuras de analogias poéticas com o reino vegetal e mineral. Regressando da segunda viagem, moço feito, com aquela barba em voga em Saint-Germain-des-Prés, vinha desapontado com a sua primitiva arte, pois aquilo que cuidara essencial vira exposto feito adorno nas vitrinas de Colette Alendy. Esqueceu pois Tajiri e Righetti, até mesmo Beothy e Lardera, compenetrando-se de quanta razão tinha a sensata e lúcida Virgínia. De fato; já naquele tempo ela lhe dissera: — Que mania é essa? A natureza já fez isso nos rios e nas praias, nas orestas e nas grutas. Para que enrolou tanto assim em espirais esta barra

dum quarto de polegada? Quis fazer uma bobina, sem perceber? Isso as usinas já fazem. Neste caso, se quer ir às madres, escolha coisas mais antigas: os mitos! Aconteceu que Fernando, com uma inteligência aguda e uma cultura invulgar para a sua idade, desabrochou ali como uma força dionisíaca igual à do avô Artur, e aquele regime quase insular acabou redundando em coisa muito outra do que Virgínia se propusera obter. Na verdade ela fora para aquele promontório a m de velar as memórias principalmente do pai, do sogro, do marido e do lho e vigiar a mocidade do neto, receosa de que o destino o escolhesse também para um m abrupto. Mas a desenvoltura da personalidade vivaz e excepcional de Fernando transformou aquela clausura num reino ór co, e o que antes fora escolhido como promontório de santuário e colônia de afastamento passou a ser para Fernando mirante e quermesse. Evidentemente Virgínia jamais lhe dissera que o estava apartando, sonegando; muito menos lhe deu as razões da existência de nitiva ali naquele recanto; procurara por outros processos in ltrar-lhe subconscientemente a percepção dum comportamento que, se parecia panteístico, era na verdade nostálgico e complexo. Ela, a avó recalcada, escolhera aquele ermo; mas o avô Nunes, dinâmico, o transformara num páramo. Assim, o eleito e prisioneiro se sentiu entre a adolescência e a mocidade, numa aura onde o mar e a terra, a inteligência e a sensibilidade acentuavam lances das vidas supostas de Orestes e Hipólito, Zagreu e Dionísio. Dessa forma, ele passou também a dominar Júlio, como dominava Lauro e Mílton. Lauro era seu informante da rotina. Mílton era a sua enciclopédia; Júlio passou a ser seu artesão. *** Naquela manhã, ao saltar da Alfa Romeo, assim que o Alberto segurou as rédeas dos animais e os desajaezou (mesmo porque a falta de gasolina e as manhas do gasogênio tinham transformado obrigatoriamente o antigo motorista em cocheiro também), tão logo Fernando saiu do lavabo em calção de banho, já Lauro o imitava pulando para o dorso dos alazões. E enquanto ambos metiam os cavalos nas vagas, Lauro informava que aquele

cachorro do Laval fora nomeado chefe do governo de Vichy — fato esse que fazia a Nanny andar chorando — que os ingleses tinham desembarcado em Madagáscar, mas que... Corregidor caíra, o mesmo estando para se dar de certo com Sebastopol. Mas passou baixo um avião, espantando os animais, e os dois, como as rãs da fábula, se atiraram n’água. Os alazões voltaram simetricamente para os respectivos boxes, e os dois amigos acabaram daí a dez minutos surgindo no estúdio. Mílton, atrás do balcãozinho do bar cravado de conchas, seixos e raízes, com uma atenção técnica de laboratório, disse: — Desta vez não estou fazendo um Frisco ou um Between the sheets. Prove! Beba! Fiz a fórmula do Inositol que age no crescimento dos camundongos e do fermento. Para o Lauro adotei a fórmula do ácido pantotético, que bene cia os frangos! Diante duma leira de vidrinhos de nanquim de todas as cores Júlio, debruçado numa prancha enviesada, fazia composições abstratas lá num ângulo todo rodeado de samambaias gigantescas, enquanto imitava o vozeirão do Robson cantando Wagon Wheels. Ah! Os tempos diferem e com eles as gerações e as coisas. Fernando, escarrapachado ali na rede, não poderia ter uma ideia sequer do que fora o porão do solar do Jardim Botânico, porque o estúdio, apesar de conter junto do bar as antigas peças das coleções antropológicas, etnográ cas e folclóricas do porão ao tempo do bisavô, do avô e do pai — a galeota “Kuimbaé”, imagens quebradas de santos do Recôncavo, opas de Vila Rica, oratórios do Maranhão, ex-votos de São Francisco, guras de proas, pilhas e mais pilhas de revistas — dispunha de doze metros ladeados por uma parede inteiriça de vidro com fórmulas plásticas da vida pela qual devia optar. Sim, a inércia da existência autêntica a que o obrigara a avó, não obstante o dinheiro, automóveis, lancha, avião, biblioteca, roupas e a natureza. Assim, a mentalidade de Fernando, criado e educado em moldes especiais, reagira re examente contra a clausura e a extraterritorialidade, optara pela condição humana; mas aceitava o paradigma dos mitos. A nal, mitos eram todos os seus. A avó, con nada ali, sofrendo o sortilégio dum campo imantado de saudades, não era ao mesmo tempo Andrômaca, Hécuba, Electra e Cassandra, as estátuas femininas em simetria com as

estátuas masculinas do parque? Pois Fernando não se vinha habituando à arte de aplicar aos seus e a si as alegorias? Não só porque tio Maurício o enfronhara em autores gregos, como também porque a avó Virgínia, tendo falhado em sua autoridade e em seus desígnios, arranjara um estratagema para mantê-lo de alcateia. Qual o estratagema? Obrigar Júlio a deixar a escultura da primeira fase, fazer-se estatuário, conformar antropologicamente os mitos. E tão bem se houve a avó Virgínia, que ele, Fernando, passou a interessar-se, a discutir com Júlio, a posar para esculturas, a não aceitar quaisquer soluções plásticas, a insistir até as peças de pedra constituírem deveras signi cados nítidos. Estes tinham que corresponder portanto a estados de alma, de paixão, de virtude. Corporizar reações à contingência humana. Expor aspectos das injunções do Fado. Assim, enquanto Mílton, aboletado no beliche da lancha “Ibonocori” estudava, procurando descobrir um meio de evitar que o oxigênio do ar destruísse o ácido ascórbico existente na laranja, no limão e na pimenta, por exemplo; enquanto Mauro deitado na grama, de short Scoops, munido de óculos Ray-Ban, ouvia o Inácio, aparando as aglaias, lhe contar suas “memórias” dos tempos em que fora baleiro de bonde no Matoso, engraxate de porta de tabelião na Rua do Rosário, porteiro do consultório do dr. Gama, jardineiro da casa do Cosme Velho, vigia das obras do dr. Nunes, descrevendo como os fatos mais belos a que assistira na sua vida, o enterro do barão do Rio Branco, a vitória dos Tenentes do Diabo na terça-feira gorda do carnaval de 1912, a “função” do Circo Sarrasani e a chegada do “Jaú”; Júlio e Fernando, no galpão envidraçado, levavam horas discutindo as interpretações de Miguel Ângelo, Ticiano, Rubens e Moreau, quanto ao tema Prometeu. E era o fascínio do tema, ou talvez a alegoria do mesmo, que ao entardecer (quando Mílton e Maurício exaltavam a genialidade do coronel Aleixo, pois que tantos anos depois de sua morte a ciência veri cava que o hexágono é o meio mais simples de indicar o grupo benzeno de seis carbonos e os hidrogênios ligados a ele) os levava a encher garrafas térmicas, dispostos os dois a passar a noite no alto da pedra da Gávea. Lá iam, Fernando e Júlio, estrada acima; depois se metiam pelo mato, escalavam a Pedra Bonita, passavam para o outro bloco violáceo empolgando-o por

entre a chaminé adequada, grimpavam pelas arestas. Por m, batidos de vento, se estiravam no centro do crepúsculo. Lá, a setecentos e cinquenta metros, o adolescente olímpico e o escultor hirsuto aguardavam a noite, dominavam a orla apagada da cidade em blackout, o tabuleiro fosforescente dos subúrbios, e acabavam dormindo ao relento, traspassados de e úvios, naquela cúspide rodeada de constelações. Ou sumiam uma semana, a bordo da lancha, iam até Cabo Frio pescar no mar alto espécimes de “olho de boi” ou de “agulhões de vela”, para o que dispunham de todos os apetrechos.

XI “LA BELLE, SI TU VOULAIS...”

FERNANDO, dirigindo a “Ibonocori” em alta velocidade e entrando na Guanabara como uma traça descrevendo uma curva na superfície dum espelho, dizia a Nanny sentada ao seu lado com os cabelos ao vento: — Visto vovó Virgínia não me deixar ser coisa alguma, avanço ao léu do acaso a ver se as escoltas do destino me perseguem por eu estar infringindo dispositivos. Por exemplo: esta baía tem para vingar-se da minha autossu ciência 55 metros de profundidade aqui na barra. Achando pouco, geralmente entro por aqui no Culver, a mil metros. Mas, Nanny, não receie nada. A natureza só se vinga dos desacatos rasteiros. O trapezista é respeitado por dispor de espaço; já o mineiro, abrindo um veio estreito, de repente irrita a terra que com um solavanco de grisu o encrava no xisto betuminoso. Também não estou escandalizando a paisagem. Aqui nesta lancha estou apenas fazendo com amor e devotamento o que mal pôde fazer Cardim. Se você, por exemplo, por ouvir falar e para ser-me agradável, disser que isto é mais bonito do que a enseada de Nápoles, o Bósforo, a baía de Sidney, o porto de Bombaim, a angra de Trincomalee, a foz do Forth etc. está bem. Nisso estará procurando desfazer a injustiça de Gobineau, seu patrício remoto. Mas eu estou apenas amando o pedaço mais belo do mundo, contemplando-o nas manhãs límpidas. Logo não escandalizo a paisagem como qualquer anglo-saxão que ancora em La Condamine apenas para opor à beleza dos Alpes Marítimos o escárnio da sua riqueza. Logo, isto posto, com licença! Tome conta da direção!! E já na enseada, do lado da Urca, cou em pé, deu um pulo de rã, atirou-se nas águas. Nanny, acostumada às facécias panteístas de Fernando, apenas se pôs a rodeá-lo em ampla circunferência, depois desligou o motor e esperou que ele subisse pela ré, todo lustroso de água e sol. — Vamos voltar para Copacabana.

Manhã radiosa. O maciço da Carioca era um esplendor de tons violáceos nas penhas e de tons esmeraldinos nas orestas. A areia formava uma orla em hemiciclo onde, como numa composição de De Staël, os arranha-céus pareciam sínteses cúbicas. Mas, aproximando mais a “Ibonocori” da praia, os postos balneários com enxames de gente davam a impressão dum feriado periódico sob revérberos. A proa reluzente abria a epiderme de alabastro enrugando-a em duas bainhas de jade. Pormenores de vida, automóveis, toldos, janelas, varandas, grupos humanos ondulavam na orla híbrida. À esquerda, rematando tudo geometricamente, o horizonte tenso como um limite de líquido rente à porcelana do céu. No Posto 5 a “Ibonocori”, dirigida por Nanny, aproou para duas guras de celulose que acenavam e que acabaram por jogar-se na água. Dentro em pouco escalavam seu bordo, Lauro, sardento e ofegante, e Júlio, barbudo e esquelético. Instalaram-se na popa, e a lancha, em elegante curva, se afastou rumo ao Forte, passou ao largo do Arpoador, tirou uma reta para os Dois Irmãos, tornou-se mínima e volúvel debaixo da cornija da Avenida Niemeyer, e daí a algum tempo parava junto à praia particular na Ponta do Marisco. Lauro e Júlio desceram, como exploradores cautelosos, informaram-se com o motorista Alberto e o jardineiro Inácio, zeram acenos para a lancha, foram ajudar a puxá-la entre os rolos de vagas; e, por m, Nanny desceu incógnita naqueles domínios que lhe eram vedados. Sim, a avó Virgínia tinha ido passar o dia em Cosme Velho, com os Nunes. O carro do engenheiro viera buscá-la. A Constança e a Luzia, mais o lho, estavam de folga. Com que então era esse o parque! E Nanny, tirando os óculos azuis, calçando os sapatos Patakwa de feltro, subindo pela areia dourada, integrando-se no primeiro cenário de penhascos e troncos, olhava para o parque, para a reserva orestal, a casa, o promontório, com uma atenção nervosa, andando vagarosamente. No pavilhão, se abeirou do bar onde o Mílton logo caprichou um coquetel sob aqueles despojos de etnogra a que pareciam estampas para uma edição numerada. Depois, quis ver o estúdio. Com que então era ali que Júlio, obedecendo a Dona Virgínia, compunha em blocos os símbolos dos mitos, transformando-os em homens e mulheres!

— Sim, laboratório! — explicou-lhe Fernando. — Isso tudo que aí está, essas estátuas solenes, quase sinistras, são meus preceptores de disponibilidade! Veja as caras! De fato os rostos eram de Fernando. E Nanny ouvia com atenção submissa as preleções rápidas de Júlio sobre aquelas alegorias. Saíram, começando a subir a rampa. Detiveram-se diante das estátuas que Nanny já sabia o que signi cavam. Examinou os rostos. Eram diferentes em idade, mas os mesmos. Sabia que uns, os de mulheres, eram variantes sionômicas de dona Virgínia; e os outros variantes da sionomia de Fernando. Ali no recanto em rampa perdiam seu sentido mítico, eram espécimes de beleza neutra. Mas, examinadas de frente, a pequena distância, tinham majestade e de nição sobre-humana. Subiram mais. Ladearam o corpo da residência, que Nanny apenas examinou da porta de cristal, como quem olha para uma joia superposta por uma redoma; foram para a amurada. Com que então era dali que a avó Virgínia velava o mar alto, as ilhas rudes, a serra violácea, o litoral agreste... Almoçaram lá embaixo, no estúdio, servidos pelo Alberto. Disseminaram-se pelas redes, na hora antipática do sol a pino. Nanny observava as plantas, o jardim em declive, as estátuas, as paredes, o trecho intato de mata. Ouvia Fernando contar como a avó Virgínia comprara aquele barranco de pedra e mato despencado sobre o mar; como o avô Nunes o transformara num jardim de Nice ou Menton; como aquele recanto, destinado a retiro e fortim, sonegando-o do mundo como uma gruta, perdera qualquer aspecto de tabernáculo soturno, era hoje admirável residência tropical. Mas, o que Fernando ignorava era que aquilo na verdade era a estufa, o viveiro onde a avó, sem saber, o estava criando para, quando chegasse ao ponto desejado pelos fados, estes mandarem as escoltas buscá-lo, assim nédio e votivo, para o altar... Era signo e herança. Os exemplos retrospectivos estavam no destino dos antepassados mortos no Atlântico. De início, ela o criara incógnito, sob cadeado, lá na aba de mato do Cosme Velho. Depois, querendo estar simbolicamente perto dos seus, se transferira para junto do mar onde, dali daquela atalaia, cumpria o voto de nunca se separar dos desaparecidos. E

erguera sebes e muros; criara postos legendários, os grandes mitos, como sentinelas rente à estrada, para guardarem o neto... Ele, porém, com a alegria panteística do avô, transformara aquela beira de esconderijo numa encosta olímpica, procurava com a sua alegria exorcizar a avó, livrá-la da aura nostálgica, reinseri-la na paisagem natural. *** Fernando mandou que Inácio guardasse a “Ibonocori” na garagem, despediu-se de Lauro e Júlio, subiu de carro para a estrada, com Nanny. Mas, lá em cima, ela pediu que parasse um pouco, saltou, apoiou-se à sebe, esteve longo tempo examinando, triste e humilhada, aquela vivenda... Voltou para o carro, com os olhos cheios de lágrimas. Fernando compreendeu, disse, disfarçando a intenção: — Contei tudo, sim, todo o nosso caso, a tio Maurício. Quem você é, donde veio, o que representa na minha vida, as circunstâncias que a retêm aqui, além da aparentemente principal, que é a guerra. E sei que tio Maurício contou à avó Virgínia, tendo ela se informado através de perguntas que evidenciaram simpatia. — Se você fala assim para tirar qualquer tristeza ou mágoa produzida por esta visita clandestina, obrigada. De fato quei triste vendo isso aí embaixo. Levo comigo a impressão da avó Virgínia em seus vários aspectos: antes e depois do destino a a igir. Tão bonita aos dezessete anos, mas já triste, por intuição. E agora, ainda bonita principalmente porque soube fazer da sua desgraça um recato de dignidade. Assim, já não mentirei dizendo a você que estava com os olhos cheios de água porque isso aí embaixo me fez recordar o Cap Ferrat. Eu nasci em Villefranche, na beira não do mar, mas duma ribeira. Sou triste de nascença, talvez por isso. O mar, para quem nasce junto dele, lava e leva as tristezas da nossa condição. Mas as ribeiras que descem das montanhas, são como lágrimas descendo por um rosto, marcam os poros por onde passam... Para onde vamos? Para o Joá? Não. Não gosto de lá aos domingos. — Então vamos para Jacarepaguá, jogar golfe. — Não. Acho estúpido. Gramar-se uma encosta, perfurá-la in nitesimalmente e levar horas a dar lambadas numa bola para que ela, assustada como um coelhinho, se esconda em buracos, acho ingenuidade de

anedota anglo-saxã. É como num grande cenário ao ar livre, se deixar que funcione uma troupe de fantoches. Vamos para a rua Tonelero ouvir música. Os domingos me entristecem porque vejo como as pessoas procuram em vão esquecer o ritmo inexorável das semanas... Você e o Júlio têm dormido na Pedra Bonita e na Gávea? Preciso ir dormir lá outra vez... Gosto da montanha onde uma pessoa se integra às matas, às cachoeiras, aos bichos, aos insetos. Por exemplo, na Mantiqueira, lembra-se? A barraca. Os vales. Os cumes. Os horizontes ondulantes. — Podemos ir de novo. Sozinhos. *** No apartamento da rua Tonelero, abriram o pequenino bar e ligaram a vitrola. Nanny preparou um Dubonnet com gelo moído, pôs a girar uns discos de canções suas, de modo que os dois, estirados no divã, bebericavam e ouviam. — Quando me ouço cantando o repertório da Boyer, da Chanterelle ou da Lamy, não as imito. Sinto-me eu própria, bem verídica, diferente do que sou aparentemente, na realidade... — Como assim? — Porque me sinto instrumento, veio de coisas inefáveis, antigas e eternas. A doçura feminina, que existe nas baladas antigas, não se polui, antes se clari ca como essas águas que quanto mais se despenham mais são cristalinas. — Desligue a vitrola e cante você em pessoa. — Não. Quero deixar de existir, de transmitir; quero surpreender, analisar apenas a minha voz, sem mim. Faça o mesmo. Eu estou aqui, como sou. E ambos, daqui, como somos, ou melhor, conforme nos sentimos hoje, conforme a semana e o domingo nos deixaram, ouvimos aquilo que em mim está acima e fora das semanas e dos domingos, que é minha voz só, viva e sem mais nada, instrumento tão sincero de minha interpretação que o que eu canto não é absolutamente uma canção popular do Del nado, uma composição de Lenoir ou uma berceuse de Godard, mas sim a verdade do meu coração... a minha ternura. — Godard!... Minha mãe tocava trechos de Godard no violino. — Esses seus olhos azuis são dela, não?

— Nanny, outro Dubonnet! Não é paradoxal se sentir saudades de quem nunca conhecemos? Não tenho a mínima memória de meu pai. Minha mãe morreu ao me dar à luz. Pois bem, essa voz aí, a voz de você, ou o estilo da música, não sei... tudo isso ligado com o que tenho ouvido vovó Virgínia contar, me causou agora uma saudade lancinante de minha mãe e de meu pai... Nanny, desligue essa vitrola. E bebia, mastigava o gelo moído, convidava-a para sair. Lá caram na pérgola em redor da piscina do Palace, bebericando mais, conversando esses assuntos que são como teias envolvendo duas pessoas. Nanny falava-lhe de Villefranche, do Mediterrâneo, das pedras da ribeira, das ores da Côte d’Azur, da felicidade que parece se exilar naquela orla entre os Alpes e o mar, tal qual em ponto pequeno a avó Virgínia quis fazer ali na Gávea. Falava da tia Geneviève que alugava a casa a pensionistas que vinham da Itália, da França, da Inglaterra... Ah! A tia Geneviève! Os hotéis de Cap Ferrat viviam cheios, e todas as manhãs chegavam casais de automóvel, querendo o sossego daquele remanso. As duas arrumavam os quartos, serviam a mesa, não tinham um momento de folga. Um dia chegou um senhor com uma capa de três palas, barbicha, óculos, uma pasta. Era compositor. Viveu acolá dois anos, orquestrando composições próprias. Servia-se de Nanny para aferir resultados, já que ela aprendera música em Marselha. E instigara tia Geneviève, de modo que dentro dum ano estava Nanny cantando em Nice e em San Remo, fazendo contratos. Depois, um homem. As decepções, Paris. O mundo do disco. Do rádio. Das excursões. A guerra. O Fernando. — Tio Maurício falou à avó Virgínia sobre mim... O quê? — Falou bem de você. — Mas tive que ir incógnita, ver o promontório... — É que a avó Virgínia ainda não ouviu sua voz. Aqueles discos, inclusive “La Belle, si tu voulais...” só os tocamos embaixo, no estúdio. Mas, escute, hoje vou levar aquele outro, de Godard. A música que mamãe tocava... Jantaram no grill room do Palace, num ambiente cosmopolita. Foram a um cinema ver um lme dirigido por Duvivier. Assistiram-no de mãos dadas, como noivos.

Ao retirar-se para casa, deixando Nanny na rua Tonelero e cando de voltar às onze horas, Fernando lhe disse: — O disco...! Assim. Há que armar uns alçapões ao destino. Ou ele chega abruptamente em disfarce de escolta e nos leva para seus campos de concentração, ou nós lhe armamos uns ardis para que adie ou acelere seus embustes. *** Voltou às onze horas, assoviou lá de baixo, perto da árvore de sempre, subiu, contou logo, radiante: — Quando a avó Virgínia chegou do Cosme Velho eu, assim que vi o carro entrar, pus o disco na vitrola. Fui aguardá-la, beijei-a, trouxe-a para dentro. Sentou-se, dizendo: “Cansei-me... Este pleonasmo da velhice...” Entortou a cabeça, a ouvir com atenção, pediu-me que repetisse, cou escutando com um sorriso complacente, depois disse: “A voz, não sei de quem é. O violino que a acompanha me faz lembrar o de sua mãe. Pobre violino, quieto, mudo, desde tantos anos, no seu estojo de camurça aí na biblioteca!” Ergueu-se, tirou o chapéu e as luvas, pegou no disco, aproximou-o da luz do abajur, quis ler, mas a vista cansada não a ajudava. Então li pronunciando bem o nome de você. — E então? — Então ela comentou, antes de subir: “A Berceuse, de Godard... Fernando, essa música é o que hoje em dia se chama um pre xo lírico para certos anúncios de rádio. Mas, quando seu pai se apaixonou por sua mãe no Cosme Velho, durante meses e meses esta música foi a única e estrita comunicação de seus sentimentos recíprocos”. Aproximou o disco do rosto, como quem quer desvendar um círculo de treva, repetiu seu nome. Ora, para mim isso foi mais do que uma concessão. Deixei o disco lá na vitrola. Nisto o telefone tocou. Era Lauro: — Tudo azul? — Sim. — Pode-se ir até aí beber e ouvir uns discos? O pessoal de sempre. — Venham. Assoviem embaixo para eu descer e abrir a porta do prédio.

Daí a meia hora o apartamento parecia mesmo um atelier, pois, o Júlio com sua barbinha em lete tipo Gimond, desenhava os grupos sentados no divã, nas poltronas e no chão, sobre almofadas, enquanto Lauro tocava piano e Mílton servia bebidas feitas por ele. O Telmo dançava entre a sacada e portal, com uma garota queimadíssima do Posto 5, campeã de natação de Copacabana. Fernando e um convidado anônimo, universitário, debatiam a Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, a Terceira Reunião dos Chanceleres, a hipótese do Brasil romper suas relações com a Alemanha, o Japão e a Itália. Por m, como obrigassem o Lauro a largar o piano, começou a audição dos discos de Nanny. Era interessante vê-la sentada no divã, de pernas cruzadas, ouvindo a própria voz enquanto bebia Málaga e acariciava a cabeça de Fernando que, livre já da dialética do universitário, prestava atenção naquelas palavras cálidas. O serão prolongou-se, como sempre, até de madrugada. O Telmo, em estado de choque, reclinado no ombro da nadadora, ouvia com um feitio patusco o visitante anônimo pespegar-lhe a doutrina de Unamuno sobre a loso a vitalista. Lauro, em estado de coma, depois de beber doses e mais doses de uísque e de emendar cigarros intatos em pontas quase extintas, repetia, já como ventríloquo, os textos fanhosos e guturais de cada disco. Os cinzeiros, repletos, as garrafas sempre em nível decrescente, o Mílton a mudar os discos, Nanny a enternecer-se com a própria voz que corporizava visões de Paris... tudo isso obrigou Júlio a evocar com traços dignos de Dignimont e Oberlé, as fachadas de La Rotonde, de Le Dôme, de La Source e de Les Deux Magots. Acabou mesmo fazendo um croqui de Lauro bêbado e despenteado. O desenho, mostrado de mão em mão, teve o elogio do visitante anônimo que disse: — Nem Bécan, pintando Dullin, faria coisa melhor. Levou uma vaia, o que o fez car mais à vontade e aceitar uma dose de gin. Já a aurora se anunciava quando o bando saiu em dois grupos, deixando no tapete, perto do rodapé, um monte de discos fora dos respectivos envelopes, vários copos no peitoril da sacada e uma atmosfera densa de tabaco e álcool. Fernando deixou que Nanny guardasse os discos, mas não consentiu que lavasse os copos nem recolhesse as garrafas. Contudo, a ajudou a embrulhar em vários pedaços de jornais as quantidades

absurdas de pontas de cigarros que enchiam cinzeiros e pires. Os dois ouviram o ruído dos baques sucessivos na sarjeta. Na manhã seguinte, ao sair relativamente cedo da rua Tonelero, deixou Nanny imersa em profundo sono, abraçada ao travesseiro. E embaixo, na Rua Barata Ribeiro, ao adquirir os jornais, leu os títulos imensos: O Brasil rompe relações com o Eixo. Tais noitadas também se faziam e continuaram a ser feitas lá no estúdio, na Gávea, mas sem a presença de Nanny. Lauro, ao piano, e Mílton no bar, se encarregavam de dar movimentação às horas. Mas as conversas eram difusas, variadas, abrangiam não somente relatos da guerra como também coisas que perduram apesar dos políticos e dos generais. Sim, o grupo era perspicaz, nada frívolo, abordando questões as mais interessantes em quaisquer domínios. Certa manhã, contudo, ao vir da casa de Nanny (isso meses e meses depois da cena que exempli cou um aspecto noturno da rua Tonelero) quando Fernando ia entrar em casa, na Gávea, lá estava a escolta do destino, na estrada, perto do portão. Sim. Dois indivíduos fardados, vendo o automóvel imbicar para o parque, se aproximaram fazendo sinal e, com uma saudação discreta, um deles indagou se se tratava de Fernando Gama e Cintra. Ante a resposta positiva lhe foi feita entrega dum envelope de ofício do Ministério da Guerra. — Tem resposta? — Não senhor. Sempre às ordens. Deixou o carro na entrada do galpão, para o Alberto ou o Inácio o lavarem, subiu a rampa lendo o conteúdo daquele ofício cheio de carimbos. — Ahn! Ahn! Convocação. Tenho que me apresentar ao CA e, depois, ao JMS. Ahn! Ahn! Dobrou tudo, en ou no bolso, e já ia entrando no vestíbulo quando parou: — A Berceuse... O disco de Nanny! Sentada numa poltrona, a avó submetia aquela voz a um teste de sinceridade. Como não conviesse apresentar-se assim, chegando da rua àquelas horas, sinal de que dormira fora, recuou, desceu, foi preparar-se para uma desculpa. Qual? O melhor era inspirar-se nadando. Foi o que fez.

XII A SANÇÃO

21-IX-43 — Djalma chamou-me para fora do vagão; fomos para a plataforma onde ele me disse encolhendo um ombro e ajeitando os cabelos: — Desta vez, rapaz, nós dois estamos tralhados; vamos para o beleléu. Pega isto aqui, guarda bem escondido, depois lê, decora, rasga em pedacinhos e joga na linha. É uma cópia datilografada, que o Meireles me passou em segredo, da Portaria Ministerial no 47-44. Tirou-a do Boletim Reservado. Repara só na data: 13 de agosto, rapaz! Não te digo mais nada... A organização inclui o Regimento Sampaio, o nosso, rapaz! 4-X-43 — Depois de passar uma hora em “decúbito de gangorra”, segundo sua própria expressão, o Meireles saiu da cadeira do dentista que lhe obturou sete dentes, veio para o nosso grupo, bateu no peito fazendo estrépito, exclamou: — Peito bom, queixada boa, lá isso eu tenho. Mas, que sabemos nós de guerra moderna? Não conheço o fuzil Garand, não sei como é o morteiro de 60 mm, não faço a menor ideia da metralhadora leve ponto trinta, do canhão anticarro de 59 mm, do obus 105, da bazooca. Não pesco nada de radiofonia nem de radiotelegra a; para mim isso de minas, manipuladores de compressor de ar e mortelete mecânico, é grego! — Não se preocupe — advertiu-o o Djalma. — Nós somos da Infantaria; esse negócio de que você está falando é e não é conosco. Isso tudo é mais lá com o Grupo de Obuses Auto-Rebocado, com a Artilharia de Dorso, com a Pesada Curta, com a tropa de Transmissões. — Está certo, Gostosão! Mas nem mesmo essa gente de São Cristóvão, de Campinho, de Quitaúna, do Grupo Escola, entende de guerra moderna! Acho que nem a roupa que usamos serve para lá. Nem o calçado. — Temos ou não temos o corpo? Pois chega, ora esta! A instrução não tem sido dura? O treinamento não tem sido de cansar? Ou você acha que é

sopa fazer trinta quilômetros a pé duas vezes por semana? Aqui o Fernando que aparentemente está na boa vida, comparado conosco, não leva até altas horas traduzindo do inglês, com outros, uma porção de manuais de adestramento? 23-III-44 — Hoje depois do des le vou contar tudo à avó Virgínia. Na noite de Natal não tive coragem. Ela está com 64 anos... E quando contarei a Nanny?... 26-III-44 — Anteontem voltamos a pé para a Vila Militar, depois daquelas horas de des le pelo centro. Fiquei tão cansado que não tive ânimo para ver a avó Virgínia. Mudei a roupa na casa do Lauro. Fugi para os braços de Nanny, que me preparou um banho bem quente. Depois, quando lhe ia contar minha partida próxima, dormi de cansaço... Ajoelhada no tapete, aos pés da cama, Nanny fazia massagens nos meus pés inchados, dizendo: “— Mon pauvre albatros...” 25-V-44 — Ontem, mais um aniversário de Tuiuti, novo des le pela cidade. Desta vez a v.ª DIE se apresentou em moldes norte-americanos, caracteristicamente motorizada. Já não somos mais aqueles convocados bisonhos que numa das Companhias do Regimento Sampaio envergonhavam a unidade de escol parecendo baratas tontas, nas sessões de ordem unida, nas aulas de adestramento e instrução especializada e, conforme a expressão do sargento Elias, no “estouro da boiada” durante as marchas de treinamento. Agora, o nosso complexo de inferioridade de paisanos já está quase desrecalcado. Hoje, apesar do cansaço que é de supor que exista depois dum des le, surgiu uma novidade. Sim, pensamos até que estávamos num estúdio cinematográ co. Começou o “faz de conta” de embarque e desembarque. Coisa complicada. Apresentação e exame de placas de identidade; exibição das chas de saúde. Pior do que veri cação de passaportes numa fronteira. Depois, haja subir para invisíveis portalós galgando escadas de acesso a bordo; uma vez lá em cima, toca a descer pelas redes do suposto tombadilho. 29-V-44 — A avó Virgínia, quando cheguei com a farda antiga, me fez tanta festa que me vieram lágrimas aos olhos. Disse-me que parecia ter adivinhado que eu ia aparecer pois ordenara um esplêndido jantar. Referiu-se despreocupadamente à parada do dia 24 e perguntou se sempre era verdade mesmo que um destacamento nacional ia para os campos de batalha. Saberia eu dizer-lhe para onde? Para a África? Seria um efetivo grande ou, como na

guerra passada, uma coisa quase simbólica? Sim, na guerra de 14 acabáramos mandando a missão médica. Lembrou-se e acrescentou: — “Isto é, quanto à nossa Marinha, não foi nada simbólico. Há que ser justo.” — Achava que uma resolução dessa natureza, uma vez tomada, devia objetivar-se em proporções reais. Só havia um problema, uma questão difícil e complexa: se se devia ou não tomar parte ativa na guerra. — Sim, pois as vantagens da paz são muitas. Contudo... E ponderou que, já que estava decidido, então se remetesse um efetivo grande. Pedia perdão a Deus por estar dizendo coisas assim, naquela sua idade. Imaginava que muitas mães, se a escutassem, decerto a amaldiçoariam. — Não opino se se deve mandar ou não. Aos muitos motivos que tenho para julgar que sim, se antepõem outros tantos. Consciência e lógica inibem-se neste caso, que não é particular, mas universal. Contudo, já que está resolvido, que não seja uma presença meramente simbólica só tendo de grande as despesas. Argumentei que seria um efetivo e ciente. Diversas remessas, com certeza. — Ah! Já não posso dizer que seja apenas simbólica a nossa coparticipação. Bem, mudando de assunto: por que é que tem aparecido tão raramente? Quase não telefona mais... Às vezes telefona para cá uma voz estrangeira, de sotaque francês, creio eu, perguntando se você está. Amores, ou algum amor? Um só é sempre muito maior do que vários conjuntos ou simultâneos, não? Respondi tangencialmente: que não aparecia por excesso de serviço. — Já não está usufruindo as regalias de tradutor de manuais de adestramento? Antes de minha resposta ela se ergueu e acendeu a luz. Sentou diante de mim, observou-me. Fitamo-nos por alguns segundos; eu, sorrindo, ela séria e atenta. Considerou: — Então, excesso de serviço?... Mas o trabalho impede que de vez em quando converse comigo pelo telefone? — Adestramento contínuo... Concentração... — Pior do que a minha, que é de espírito?! — Quero dizer: concentração da Primeira Divisão de Infantaria Expedicionária. Já estamos concentrados em Grupamentos Táticos. — Desde quando? — perguntou ela, sem entender.

— Praticamente, desde janeiro. — Deste ano, não? Estranhei a pergunta. — Concentração desde janeiro de 1944, Fernando... E eu? Desde janeiro de 1906, aprendendo a lutar contra o destino dos meus! A lutar em vão! Por que não me contou que foi convocado para essa tal Primeira Divisão de Infantaria Expedicionária? Por quê?! Apanhado de supetão, redargui, zonzo: — ... Convocado para esse m, como? Fui convocado para o Exército, por causa da idade... — Fernando, não se faça de desentendido. E não disfarce nem me engane. Achava então que era difícil me contar? Estudou, tentou, não teve coragem, sumiu... Por que se ausentar antes da ausência real e forçosa? Não é pior? Não é um contrassenso? E por que sumiu também de Copacabana? Essa criatura telefona duas, três vezes, certas noites. E até altas horas. — Vou dizer que não telefone mais. — Não continue a disfarçar! Não responda assim! Bem sabe que não me estou queixando de telefonemas. Estou apenas comprovando sua ausência de locais, ausência essa que tem dado decerto margens a apreensões de natureza muito diversa. Eu, porém, já sei de tudo, sem indagar nada. Não tive a mínima descon ança esta noite. De repente, tando-o, foi como se seus olhos me rogassem: “Disfarce, nja por enquanto que não entendeu, ajude-me, coitado, que tenho perdido horas estudando a melhor maneira de contar”. Eu sei há alguns minutos. Você sabe há alguns meses... Não compreende que eu já o podia ter ajudado? Não compreende que me desfalcou, sumindo? Receio, cautela, medo de causar-me sofrimento? A mim?! Quem mais habituada a sofrer? Não os percalços da rotina, os desgostos domésticos, as di culdades mesquinhas, as intrigas das relações... Nada disso. Tal miséria me foi poupada. Mas, algo diferente, as tragédias de vários atos. A Constança apareceu na porta, cumprimentou-me risonha, disse que o jantar estava servido. Erguemo-nos, fomos para a outra sala. — Sente-se, Fernando. Está muito bem. Com que então a nossa coparticipação não será simbólica... — E, sentando-se com altiva majestade, para disfarçar o golpe que mais uma vez recebera do destino: — Contou a Maurício?... — Não, senhora.

— Não, mesmo? — Ele soube não sei como e então me perguntou; neguei. Não adiantou. Disse que tinha certeza e que no dia seguinte me levaria provas. Realmente. Telefonou-me de manhã para o quartel perguntando quando era a minha saída. Expliquei que naquela tarde e marquei a hora. Já o encontrei na porta do quartel com vovô Nunes... — Ah!... Então todos já sabem, menos eu. Está bem. Adiante. — E tio Maurício me disse: “Fernando, seu Regimento vai partir breve!... Como é que você faz uma coisa dessas, mantém sigilo, não conta sequer a mim? Ou aqui a seu avô? Como vai ser quando sua avó Virgínia souber?!...” Mas vovô Nunes disse: “Isso se arranja! Isso se arranja... Não está certo. É apoio e sustentáculo duma avó. Isso se arranja...” — Fernando, ligue já para casa de seu avô! Preciso falar com ele! Quando foi isso? Ele cou de providenciar? Você consentiu? Maurício combinou? Proíbo terminantemente! Ligue para casa de seu avô, vamos! Obedeci, aparvalhado. — Boa noite, vovô. Bem, obrigado. Saí hoje, volto amanhã. Ainda passo por aí. Escute, vovó quer falar com o senhor. Um momento. — Boa noite. Como vai? E Laurinda? Está bem? Ouça. Eu sei do caso de Fernando. Espero que vocês aí aceitem tudo com a mesma força de ânimo com que eu aceito. E consideraria um agravo à memória de meu marido e de meu lho qualquer tentativa visando a não partida dele. Eu sei. Eu sei bem. Lógico que não se trataria de recursos ilícitos. Mesmo assim não consinto, taxativamente. Bem, então obrigada. Lembranças a Laurinda. Quando aparecem? Espero. Sentamo-nos de novo à mesa. A avó Virgínia serviu a sopa, que tomamos em silêncio. Quanto ao mais do jantar, quase o deixamos intato. Ela ainda comeu uma fruta. E eu, queijo e goiabada, como quando criança, no Cosme Velho; tão desapontado, tão infantilmente... Mas tomamos café, com dignidade sobranceira, descendo para o estúdio cuja cortina a Constança ampliara de ponta a ponta antes de acender o lustre. Sentados diante das estátuas e de costas para as telas, conversamos. Falei-lhe da organização do l.º Esquadrão de Embarque. Não só quanto às tropas como sobre a Companhia de Manutenção, a de Intendência e de Transmissões, o batalhão de Saúde, os altos elementos da Justiça Militar, os capelães, os contadores, os pagadores, os correspondentes de jornais, etc. Dei-

lhe conta dos exercícios de embarque e desembarque em trens e em navios, da obediência rija às diretivas e regulamentos, da necessidade da partida ser feita em sigilo absoluto. Ela não fez o mínimo comentário. Em seguida, com a sua clarividência experimentada pela vida, começou a dar-me conselhos. Depois disso, que durou mais de meia hora, entrou a fazer considerações gerais. Que era a História Universal, agora ironicamente chamada História da Civilização, a não ser relato saturante de guerras? Em todos os períodos. A bem dizer, em todas as gerações. Disse das esperanças utópicas depois da paz de 19, do que presenciara quando papai era adido militar à nossa delegação em Versalhes e Genebra... Coitado! Um tenentezinho cheio de alamares fazendo séquito a gurões com pastas, panças e calvas... Ainda bem que em 1924 largara protocolos e se lançara num apostolado laico, dando seu exemplo de bom entendedor de dialética! Aí parou um pouco, emocionada, cruzou os pés, juntou as mãos ao colo, e evocou tudo quanto ainda ontem, e na manhã de hoje, ouvira pelo rádio a respeito do mundo. Lamentou viver para assistir a mais esta hecatombe. Lamentou que eu não tivesse morrido com mamãe naquele mistério contra a maternidade e a criação que é a eclampsia. Pediu perdão a Deus por estar proferindo uma blasfêmia. Disse-me que esquecesse essa sua frase. Falou de meu avô e de meu pai como personagens que o destino elegera para contracenarem com ela numa tragédia tão além da capacidade humana de sofrimento que acabara compreendendo, a nal, por que motivo Ésquilo e Sófocles tinham procurado personagens quase mitológicos. Levantou-se, andou pela sala, parando diante de cada estátua; e por m disse: — Comprei este pedaço de terra por parecer comigo: uma montanha desbrugada sobre o mar. Veio teu avô materno e fez deste promontório e desta rampa um jardim do Mediterrâneo. Ainda assim, considerei isto um mirante sobre esse túmulo imenso dos meus! E considerei isto uma clausura me isolando do mundo e, principalmente, isolando você, Fernando, da rota das desgraças. Aqui pretendi fazer um reinozinho menor do que um burgo místico na Úmbria, onde pudesse poupar meu neto das escoltas do destino; onde pudesse sonegá-lo da época; onde ele estivesse fechado enquanto uivasse a insânia lá fora. Quis fazer de você, Fernando, o Poupado, ao menos. Mas todo o meu empenho foi inútil. A solidão, na verdade, tem sido apenas minha. —

Sorriu com ar resignado, apontou para fora e para longe, para o mar e para o horizonte — duas cores superpostas, bem densas. — Ouve este mar, Fernando? Está ouvindo este mar? Devo odiá-lo? Ou não? Nele foi despejado como lingueta de chumbo o cadáver de seu bisavô. Nele se abateu em estilhaços seu avô. De encontro a ele caiu como um meteoro seu pai, o exilado. Nele, agora, vai você para a guerra. Aqueles que me foram arrancados como pedaços da alma e da carne, parecem, assim mortos, mais presentes do que nunca, porque nessas águas estão como o sal. Odiei o mar quando quei viúva; execrei-o desde que perdi meu lho. Onde estarão eles? A Eternidade, essa, não vejo nem localizo. O mar é isso aí. Então vim para junto dele, como vigia, como sentinela se rendendo a si própria. Que tenho sido eu nesta minha prolongada existência senão uma carpideira? Aqui tenho que perdurar, mordendo as pedras que as lembranças me atiram. Sentou-se, disse baixo, como a pensar alto: — Interessante. Lembro-me agora, olhando para aquilo ali. Uma tarde, em Paris, descendo do Boulevard Saint-Germain para o Sena, passei por lojas de arte, entrei numa delas por causa duma caixa. Exatamente aquele portacigarros. — Levantou-se. Pegou a caixa, disse alto, como a ler. — Hécuba, de Préault. — Virou a caixa. — Hécuba, de Bramer. — Rodou-a ainda: — Hécuba, de Blondel. — Revirou-a ao contrário: — Hécuba, de Dorlling. Voltou para a cadeira. — Não se diga que romantizo a minha tragédia. Que me apego a imagens como outros poderão apegar-se a santos. Não é isso. Por que motivo comprei eu essa caixa acolá? Decerto para compenetrar-me um dia de que me assemelho a Hécuba. Ergueu-se, tocou a campainha, disse a Constança que fechasse o estúdio, subiu comigo para o promontório, sentou-se no banco que marginava a amurada em curva; e falou, como se eu já estivesse no mar: — Fernando, copartícipe de todos os horrores, pois é de nossa família o vezo do contato com a tragédia. Reservei-o sem querer para cordeiro de holocausto. Aqui co à espera do seu retorno. Volte com a paz, faça como soldado o que o meu pobre lho não pôde fazer como tenentezinho adido a delegações e congressos. Volte noivo da paz, a qualquer preço, que bem caro o entrego ao sacrifício. E é impossível que, após os outros, desta vez não irrompa o anjo que se interpôs entre Abraão e Isaac. — Abraçou-me e comentou: —

Para os críticos, estas imagens são literárias. Para nós que as sentimos são verdadeiras. Ficamos ali quietos diante do oceano para cuja percepção as estrelas eram vãs. Mas nossos ouvidos captavam seu mistério familiar.

XIII O ALBATROZ

1-VI-44 — Lembro-me do restante que se passou naquela grande noite. Ao lado da avó Virgínia, sentindo a extraordinária criatura que ela era, procurei evocar meu pai e minha mãe que eu só conhecia de retratos. Mamãe sempre me pareceu um ser abstrato, o anjo de três asas. Jamais a consegui englobar no mundo, no tempo. Seus olhos azuis, seus cabelos louros, sua tez de porcelana, me parecem coisa inexistente na Criação. Contentava-me em julgá-la de fato o “angelo musicante” de Fra Angélico. Muita vez, na biblioteca, examinei aquele violino que suas mãos pegavam. Como seria a sua voz? Como seriam as suas carícias? Considero que não tomei o seu leite, que não recebi os seus beijos, que não me sentei sobre seus joelhos, que não lhe enlacei o pescoço, que não me ensinou a rezar. E resulta disso uma condição de desmemoriado, como se fosse impossível. Quanto a meu pai, sempre me pareceu um ser concreto, real, de caminhante percorrendo o chão da pátria a pé, identi cando-se com ela, como um ciclope. Quando lhe examino os retratos, de homem de botas, barbudo, com a túnica mal-abotoada no peito, não o vejo como guerreiro e sim como um lenhador cuja gruta fosse o mapa. Ei-lo sentado, como no Canto IX da Odisseia, como se viesse de apascentar um rebanho e de depor um grande feixe no chão. Tornou-se lendário, mas para mim é real, é paradigma. Minha avó tirou-me destes pensamentos, perguntando-me de súbito: — Quem é essa criatura que lhe telefona, que entrou na sua vida e que o chama de Albatroz? Maurício me contou. Por que lhe pôs esse apelido? — No carnaval passado, ao sairmos do Iate Clube, atravessamos ali diante do antigo Hospício para tomar a barata do outro lado. Eu trazia no ombro uma vela enrolada, além dum encerado debaixo do braço; este se desenrolou, principiando a atrapalhar meus passos. Eu tropeçava, sungava, procurava dar um jeito. De repente, apareceu vindo da rua da Passagem ou do

Túnel um bloco carnavalesco só de mascarados representando bichos: jacaré, peru, elefante, pato, burro, etc. Então Claire... — Não foi esse nome que Maurício me disse... — ... então Nanny, ao ver aqueles homens fantasiados de bichos, riu e disse que eu também parecia um bicho. O albatroz. Porque andava sem jeito no chão... as asas me atrapalhavam... — Ah! Isso não tem relação com o préstito carnavalesco! Tem relação com o poema de Baudelaire!... — Isto é... eu, com a vela enrolada no ombro e o encerado debaixo do braço querendo andar, tropeçava nele; e ela parou e disse a rir: “A peine les ont-ils déposés sur les planches, que ces rois de l’azur, maladroits et honteux, laissent piteusement leurs grandes ailes blanches comme des avirons trainer à coté d’eux”. Puxou-me, arremedou-me, sacudiu-me, judiou de mim, e como eu casse mais desajeitado porque o boné também queria cair, ela continuou: “L’un agace son bec avec un brûle-gueule, l’autre mime, en boitant, l’in rme qui volait!” Ora, avó Virgínia, como brincadeira tinha nexo. De mais a mais, ela sempre achou que eu, fora do automóvel, do Culver, do iate, recordava logo a expressão exata dos outros versos: “Ce voyageur, ailé, comme il est gauche et veule! Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!” Ela acha que eu, “exilé sur le sol au milieu des huées, mes ailes de géant m’empêchent de marcher”: — Essa criatura conhece Baudelaire? Quem é ela, a nal? — Foi cantora de rádio. Veio da França em fevereiro de 39, contratada; não pôde voltar (por causa da guerra) quando acabou a temporada no Rio, em São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires. Mora num apartamentozinho mobiliado na rua Tonelero. — ... Com telefone. — Telefone já tinha no apartamento, sim senhora. Os móveis também. — Não é isso que estou indagando. Pergunto que espécie de mulher é. — Tem vários discos gravados. Baladas francesas antigas, canções... — Vive sozinha...? — Sim, senhora. — Deu-lhe esse nome de Albatroz por meiguice ou, como está parecendo, por que é uma espécie de Cassandra?... Sim, a que foi célebre por sua beleza e arte de predizer o futuro? Acaso essa criatura quis ver em você o malogrado, o que tropeça? Quero saber, Fernando, porque eu posso simpatizar com ela, ou implicar.

— Pergunte a impressão de tio Maurício. Ele está bem a par de tudo. — A par de tudo o quê?... Conhece-a? Tem ido lá? — Não. Não é isso. Eu tenho sido franco com tio Maurício. Tenho-lhe exposto este... meu caso. — Não quero saber desse apelido. Acho pessimista. Você foi criado por mim em franca liberação de complexos. Não como albatroz atraído ao convés de qualquer equipagem. Lembre-se disso, principalmente agora. Ficou calada algum tempo. Depois disse: — Vai ser correto com essa criatura, não é? Contar-lhe tudo? Providenciar dignamente a respeito de... Escute: ainda vai esta noite para a Vila Militar? — Estou de folga até amanhã às duas horas. Preciso levar roupa. — Aqui está ventando. Vamos para dentro. Mas me deixou na sala, subiu para o seu quarto, dizendo que já voltava. Demorou mais dum quarto de hora. E eu com tentação de sair, lembrando-me de Nanny. Voltou, sentou-se sorrindo, e dizendo: — Esta carteira de couro, que parece tão nova, adquirimo-la, eu e seu pai, na Rue Saint Honoré. Está novinha em folha. Veja como dispus as coisas: nesta divisão, retratos essenciais; de sua mãe, de seu pai, meus, de Artur, daqui do parque, etc... Deste outro lado um postal de Pádua, reproduzindo “O Lavapés”, de Giotto. Nesta divisãozinha para selos e estampilhas um cheque que acabei de encher; receba amanhã na agência de Copacabana, antes de voltar para o acantonamento. O Fernando está portanto com a papelada em dia. Identidade, passaporte e licença da avó Virgínia. Sim... o que me magoou naqueles tempos foi Artur e Carlos terem ido embora sem um aviso. Sorriu, com os olhos cheios de lágrimas. — Se quiser sair, Fernando, não faça cerimônia. Você está de folga, então só por 24 horas? Almoça aqui amanhã ou em Cosme Velho? Aqui? Está bem. Toque aquela campainha. Assim. Obrigada. — E para a Constança que apareceu: — Amanhã, almoço às onze horas em ponto. Agora ali no salão cuja grande porta de vidro tinha uma das folhas bem inserida no metal corrediço deixando aberto o vão retangular, ouvíamos o oceano em coro recatado e, dentro desse coro, uma variação na de tons do parque: o arfar dos insetos nos gramados e nas moitas. Entrava um perfume de mato e um hálito de penhas. Estirei-me no canapé, apoiando a cabeça no colo da avó Virgínia.

— Assim. Está cansado de tantas manobras e marchas. Descanse. Dividamos a atenção: eu escuto o mar; você escuta os grilos. Lembra-se daquela aia medieval que eu ngia ser quando você era pequeno, lá no Cosme Velho? Naquele tempo eu cantava “cantigas de amigo”. Não tinha voz de velha; não parecia avó. Só a alma já era triste. Ah! Fernando, embalei-o com toadas de inexorável solidão. “Chegou a tanto meu mal Que nam sey estar sem ele...” Não eram cantigas de embalo; eram solilóquios. Você cochilava, acordava, ouvia, passava a mão nos meus olhos para veri car se eu estava chorando; então eu disfarçava, cantando: “E nesta vyda mortal Nam ha hy prazer que dure Nem menos tamanho mal Que por tempo nam se cure...” E todavia você não saiu um ser soturno. Só eu continuei carpideira, “As voltas com meu tormento, A minha ração de bem. Já que com quê me contento Não se contenta ninguém...” Fernando! Escreva-me do mar, de terra, do acampamento, da trincheira: Sempre! Tenha misericórdia da minha solidão. Os grilos calaram-se, numa vigilância brusca. De fato: passos... — Deve ser Maurício. Era ele, sim. Sem soerguer a cabeça de cima do colo da avó Virgínia, lhe sorri fazendo um gesto preguiçoso com a mão. — Olá! Bravos! Boa noite, Virgínia. Como vai, Fernando? Então, de folga... ou já foi dispensado de vez e voltou à vida civil com o seu certi cadozinho?

Redargui, ajeitando-me no canapé, sentindo as mãos da avó Virgínia em meus cabelos: — Que nada! Vou mas é para a guerra. Vovó já sabe e esteve aqui a dar-me conselhos. Não foi, vovó? Tio Maurício retrucou, aliviado: — Você vai mas é para a parada da vitória. A guerra está a terminar. Ergui a cabeça, o busto, sentei-me. Expliquei, endireitando-me, que contara tudo a vovó. Fiquei de pé e discursei, declarando que se nesta vida mortal não há prazer que dure, também em verdade não há nenhum mal que com o tempo não se cure. — E agora, que me diz, tio Maurício, se ceássemos, hein? — Ótima ideia, caso concorde a nossa Virgínia. Voltou-me o apetite; e tamanho, que me tornei loquaz. E enquanto a avó ia à cozinha, voltava, parava na copa, abria a geladeira, reaparecia, dispunha os pratos, dei uma aula a tio Maurício sobre escola de pelotão, mexendo e deslocando copos e talheres, arredando o guardanapo, pondo uma colher aqui, a argola acolá, arremedando o sargento instrutor. Falei sobre tudo! Organização de pelotão, formações e dispositivos, prática de movimentos e mudanças de frente, mecanismos da execução de fogo, substituição e função de comandos, ordem unida, velocidade de marcha, deveres dos graduados durante o embarque e desembarque. — Está bem. Está bem, mas vá comendo. Como os pratos eram diversos e havia intervalos, com idas e vindas de vovó, tive tempo para mostrar vasta sabença quanto ao pelotão quando do estacionamento; quando na segurança, em marcha; quando na defensiva, na aproximação, no contato, no ataque, no terreno conquistado. E enquanto esperava depois o café, falei dos elementos relativos ao tiro, ângulo de transporte, ângulo de nível, ângulo de queda, alcance, zona rasada, zona batida, altura de garantia, altura de segurança, rendimento, efeito útil, ceifa horizontal, ceifa vertical, amarração de tiro... *** À meia-noite estávamos deitados já, cada qual em seu aposento. Não havia luzes na casa, mas eu não conseguia dormir. Não propriamente, por causa do que se passara ali desde as sete e pouco. Pensava em Nanny, sentia

tentação irreprimível de ir vê-la. Como desculpa para sair, mesmo às escondidas, me lembrava da concessão de vovó às nove horas: “Se você quiser sair, Fernando, não faça cerimônia”. À meia-noite me vesti no escuro, abri a janela, pulei devagar o peitoril, agarrei nos sapatos que antes pusera sobre ele, atravessei o parque, saí por um vão da sebe à esquerda, para não fazer barulho com o portão. Limpei os pés, iniciei uma rápida e ofegante marcha até São Conrado. Foi um custo para arranjar carro. Por m, vendo que um casal saía do bar e tomava um Studebaker munido de gasogênio, sem a menor cerimônia perguntei se poderiam deixar-me em Ipanema ou mesmo em Copacabana, caso fossem para aquelas bandas. O homem pronti cou-se logo, ofereceu-me um cigarro, fez a mulher sentar-se ao seu lado junto da direção. Golf Club, Represa do Tatu, Gávea Pequena, Gruta da Imprensa, Leblon, Ipanema. Tudo em blackout. Nanny custou a atender ao toque da campainha, mas daí a pouco se atirava ao meu pescoço, quase me as xiando. Acendeu a luz, repuxou ainda mais a cortina que estava expandida como um velário de palco durante um intervalo, repreendeu-me por não telefonar durante cinco dias, estranhou que ao menos hoje, antes de vir, não houvesse telefonado. Sua voz cálida, com algumas sílabas fanhosas e com admirável timbre de contralto tinha, falando a minha língua, um sotaque inesquecível, de encanto quase severo. — Nanny, tirei esta noite para pôr as coisas em pratos limpos. Venho da casa de minha avó e... Sem o menor pressentimento, ela atalhou: — Achas que faço mal em telefonar para lá, às vezes? Mas, não aguento. Compreendes... — Vovó me disse que uma criatura estrangeira tem telefonado até mesmo fora de horas normais... — E cou zangada, aborrecida? — Não. Só não quer que me chames de Albatroz. Acha que é um apelido crítico, signi cando um malogro. En m, acha que... — Tua avó sabe que eu te chamo de Albatroz? Sabe que eu existo? Não quer esse apelido? Tão bonito! — Bonito, nada! Depreciativo. — Como, depreciativo? Albatroz...?! — Exatamente. Julga que com essa história estás querendo ser como certa mulher simbólica, da mitologia, que lançava vaticínios.

Ficou pensativa, a ita. — Como assim? Por quê? — Mas, conforme eu ia dizendo e me interrompeste, tirei esta noite para pôr tudo em pratos limpos. Já contei a vovó, ela se resignou. — Perdão, um momento. Mulher vaticinadora? Eu? Como aquelas tais representadas pelas estátuas do parque?... — Mais ou menos. — Ora essa! Essa tua avó, francamente! — E se ela se resignou, tu também tens que... Escuta, Nanny, eu vou para a guerra. O meu regimento vai partir. Pronto. Eu já disse, tu já estás ciente. O governo resolveu e eu embarco por estes dias... Que reação! Chorou, zangou, descompôs-me por haver guardado segredo, abraçou-me, queixou-se do Estado Novo, dos Aliados, dos nazistas, dos fascistas, de Churchill, de Roosevelt, de Mílton, de Júlio, de Lauro, escondendo por m os soluços no meu peito, com os cabelos castanhos roçando o meu queixo. — Tu sabias e me escondeste! Isso não se faz! Foi uma crueldade. Não mereço isso! Devias ter sido sincero comigo. Não foste gentil. — Juro-te que não sabia. — Mentes. Impossível. O governo não pode tratar vós outros como des outils. E então a dignidade humana, isso não conta entre vós outros, aqui? — Estás pensando que vou morrer, Nanny?!... — Não é isso. Estou chorando porque vais para longe de mim, vais esquecer-me, não voltarás tão cedo. Que é que tens que ver com aqueles malucos de lá? Que é que vai ser de mim? — Ora! Vamos sair. Passear. Não adianta carmos aqui com tudo fechado. Aceitou a sugestão. Vestiu depressa o tailleur, mudou de sapatos, pôs a boina de veludo verde, entornou perfume em si e em mim, beijou-me, foi para o espelho acabar de arranjar-se. Seguimos a pé para o Cassino Copacabana, assistimos a alguns lances, sentamo-nos perto da escadaria, pedimos champanha e cigarros Abdulla, bebemos e fumamos, folheando revistas onde havia anúncios policromos, desenhos humorísticos de Dedini, contos de guerra por Freeman; e conversamos, até que aquele cascatear de chas e a melopeia dos crupiês nos tentaram difusamente.

Dirigimo-nos os dois para junto duma das mesas de bacará. Tudo repleto. Atirei uma nota de mil cruzeiros no meio do triângulo. Um levantino carteava; uma mulher de monóculo recebia as cartas. O crupiê trocava por uma cha violácea o meu dinheiro, que logo virou duas chas. O homem carteava de novo; um velhote calvo virou oito, impassivelmente; o muçulmano virou nove. Outros contendores insistiram lá com ele, não porque tivessem doestos a ajustar e sim porque eram jogadores. Quando o cigarro Abdulla começou a queimar-me os dedos, alguns sujeitos supuseram que aquelas oito, dezesseis, trinta e duas e por m sessenta e quatro chas não tinham dono. E um crupiê olhava para o outro com sinais semafóricos nas sobrancelhas cínicas; então pedimos a um deles que nos passasse com a pá aquelas madrepérolas. À vista disso, o libanês deu  suíte e o scal trocou sessenta chas retangulares, que pareciam uma maqueta de pagode anamita, em seis chões azuis de dez mil cruzeiros cada um, cando o lote, com as outras restantes quatro chas de mil, como um esboço de manobras num tabuleiro de EstadoMaior. A pá, em movimento adequado, as equilibrou donairosamente e as veio depor diante dum grã- no que recuou, transido, para facilitar o gesto trêmulo com que as apanhei e en ei nos dois bolsos do casaco de camurça. Ante a expectativa solene, atirei uma de mil para os crupiês, gesto este que ergueu na mesa um brado estridente e solene: “Mil cruzeiros para a caixa dos empregados. Obrigado!”, ao que outras vozes acolitaram, solícitas e pro ssionais: “Obrigado!” Fomos logo receber na caixa, voltamos para a nossa mesa junto à escadaria de mármore, pedimos mais champanha, outras duas caixas de Abdulla. Nanny não dizia nada, fumando com languidez, com ar misto de cafard e de tendresse. Às duas e meia nos retiramos por entre zumbaias dum garção e dum gerente e a sofreguidão dum sujeito que levara a hipnotizar-me durante meia hora lá da mesa próxima, ngindo folhear números do LIFE. Na escadaria o tal sujeito disse com voz patética que acabara de perder todo o dinheiro dum desfalque, perguntou gaguejando se eu não poderia fazer a caridade de ceder-lhe duzentos cruzeiros até amanhã... Já na calçada, acedi, dizendo-lhe com voz tonitruante que tomasse juízo; Cassandra vaticinou-lhe processo, condenação, Caiena, a Ilha do Diabo, se continuasse naquele abismo. Voltamos vagarosamente para o apartamento da rua Tonelero. ... Mas foi só no elevador que Nanny disse:

— Põe a mão aqui no meu coração para ver como ainda bate forte. Cuidei que tinhas perdido de início, que aquela porção de chas fosse do turco. — Só acendeu a luz para entrarmos, apagou-a logo, foi escancarar a janela, arrancou o tailleur, descalçou-se roçando um sapato no outro, subiu para o divã, chamou-me. Estirei-me ao seu lado, expliquei que às quatro horas desceria porque tinha que estar na Vila Militar às cinco, sem falta. Menti assim, porque precisava voltar para casa. — Já te despediste de tua avó? — Sim. Quando vim para cá depois da meia-noite. — Escuta, Fernando. Eu não te chamava de Albatroz em sentido pejorativo, não, querido. — Eu sei, lha. — Era um modo de dizer que tu estás tão alto que as coisas do mundo, cá embaixo, te atrapalhavam... — Eu sei. Entendo, lha. — Mas tua avó... — Ora! Entende mais do que nós dois. O receio dela é que exatamente agora, na guerra, eu me atrapalhe deveras tropeçando numa realidade medonha... No íntimo, a avó Virgínia reconhece que me criou muito feito albatroz, nas alturas, e que, de repente... Sim, ela tomou isso como um aviso teu. — Fernando! — Que é, lha? Vira o rosto para cá! — ... Vou telefonar para tua avó pedindo perdão. Posso? Deixas? — Ela vai responder, decerto, que já agora não cabe a ela ou a ti senão a esperança de que eu trate de anular o poema de Baudelaire. — Et tu vas essayer de faire ça, chéri? — Mais évidemment! Escuta: dentro duma hora tenho que partir de nitivamente, de modo que... Vira o rosto para cá. — E tirei dos dois bolsos as duas camadas de notas. Ante sua sionomia perplexa e mesmo humilhada, sorri, disfarçando, e ajuntei as duas importâncias numa só, que en ei no bolso de trás, das calças. — Vem mais para cá. Tira os sapatos. Assim. Agora o outro pé. Espera que eu tiro. Arranca esse casaco de camurça. Está tão quente!... E, sussurrando: — Chéri, vamos para a cama? Sei lá quando te verei!

— Vamos. Mas preciso sair cedo. Escuta, amanhã mando tio Maurício vir falar contigo. Olha, tudo quanto precisares pede a ele. Seus soluços abafados me enviavam beijos quentes nas pálpebras e na boca, nas mãos e na alma. Só eu sei (e talvez ela, também) como me retirei dali. E quanto nos custou nos separarmos diante do elevador cuja porta entreaberta de nia um cubículo de sentenciado. Mas após vinte minutos telefonei para Nanny. Vali-me dum açougue onde uma velhota protestou pensando que eu me estava antepondo ao direito duma la de quarenta pessoas estremunhadas. Aconselhei-lhe um regime vegetariano, entrei e disquei para o apartamento da rua Tonelero. A mesma voz de desespero pastoso atendeu agradecendo logo, certa de que se tratava dum ímpeto de saudade imediata. Disse-lhe: — Escuta. Presta bem atenção. Procura no divã, debaixo das almofadas, uma coisa que deixei de propósito. — E desliguei. Ó madrugada de nítidos pensamentos, durante aquele percurso tão cheio da minha juventude e mocidade! Saltei do táxi, entrei como um ladrão. Inclusive no modo de pular a janela e na maneira de contar as três notas de mil cruzeiros que me restavam.

XIV “... O MAR, SEMPRE RECOMEÇADO” 5-VI-44 — Na manhã de sábado, o major Aurélio, que sempre me tratara com a maior deferência, mandou chamar-me. — Sente-se, Fernando. Precisamos conversar, visto ter acabado o primeiro período de instrução da l.ª DIE. Aqui a sua cha diz, entre outras coisas, que você é órfão de pai e mãe. Diga-me: é verdade que tem avó paterna viva? Viúva duma das vítimas do sinistro do Aquidabã? — É verdade, sim, major. Ela está com 64 anos. — Mas, Fernando, nós não sabíamos! Neste caso a sua situação muda muito de gura. — E como veio a saber, major? Acaso porque minha avó recebe uma pensão do Governo? — Nisto me lembrei de Maurício e de vovô Nunes, estudei a sionomia do major Aurélio, e acrescentei: — Ou os senhores receberam alguma comunicação ou alguma visita? Tenho, por exemplo, um tio-avô, lente reformado da Escola Naval... mas se ele procurou as autoridades para dar quaisquer esclarecimentos que modi quem ou que tenham tido o intuito de modi car a minha situação aqui o fez por expressa vontade, sem conhecimento nem anuência minha... E, muito menos, posso a rmar, de minha avó. — Bem, Fernando. Não é necessário informá-lo de que maneira soubemos que você era o arrimo e o sustentáculo duma senhora de idade, sua avó, dona Virgínia Gama e Cintra. A verdade é que a sua situação muda muito de gura não devido a qualquer visita ou solicitação que acaso nos tenha sido feita ou dirigida, (e nem você nos iria insultar com tal insinuação), e sim, Fernando, porque seja qual tenha sido a maneira do esclarecimento — está previsto em lei. Basta, portanto, que nos ajude a solucionar trazendo-nos do cartório documentação a respeito. — Lamento não poder atendê-lo, major. — Atender-me, não! Atender aos seus interesses. — Perdão. Seja! Mas ao vir fazer o serviço militar eu trouxe uma papelada que me foi exigida logo no primeiro dia da minha convocação. E as autoridades estavam a par do meu nome, do meu endereço, dos meus

antecedentes, en m da minha existência, já que no ano exato me convocaram... — Perfeitamente. Estive examinando ontem esses seus papéis. Neles não constam maiores detalhes a não ser data e local do nascimento e nomes dos pais com a palavra “falecidos” entre parêntesis; mais nada. Ora, para o caso se faz necessário uma certidão onde conste também (e isso deve constar no cartório) os nomes dos avós com a especi cação de que... — Bem, que minha avó paterna está viva, isso é fácil de provar. Mas que eu seja órfão de pai é di cílimo, pois meu pai sumiu num desastre lendário de avião em viagem clandestina do Rio da Prata para o Brasil e nem os destroços se acharam. Meu pai vinha incógnito, era um revolucionário. Outra coisa: dizer-se que sou arrimo e sustentáculo de minha avó até parece piada. Não tenho pro ssão, vivo da mesada que ela me dá, e é fácil veri car-se pelo imposto de renda que ela paga qual deva ser o montante dessa mesma renda. É proprietária de três arranha-céus... — Fernando, consinta que lhe esclareça que arrimo, ou sustentáculo, principalmente quanto a uma pessoa idosa, não quer apenas signi car a ajuda ou o sustento material. Ora muito bem. Isto posto, basta que você que doravante ao nosso dispor com a sua carteira de reservista. — Major: que conforto imprescindível de presença precisa uma criatura da têmpera de minha avó já que, não necessitando do meu arrimo nem do meu sustentáculo material, tendo cado órfã de mãe bem cedo, perdido o sogro na campanha de Canudos, o marido na explosão do Aquidabã, o pai durante a gripe de 18, e o lho nos pródromos da Revolução de 30, a vida inteira tem dado provas duma resistência moral extraordinária!? Ainda recentemente me interpelou, ressentida, por eu lhe esconder que era expedicionário. É que nunca entrava em casa com a farda da FEB, e sim com a antiga ou em trajes civis que trocava no meu apartamento. — Mas sua avó sabe, então? — Adivinhou. Já sabe. Aconselhou-me. Deu-me esta carteira com umas lembranças. De mais a mais, major, não posso aceitar a minha exclusão. Que diriam meus companheiros do Regimento Sampaio? — Escute, Fernando: permite que eu fale com sua avó? — Lógico. Mas o senhor consente num reparo? Trata-se de uma grande criatura, e abordar-se um tal assunto perante ela... não sei... Decerto se melindraria. Ou, no mínimo lhe diria o que eu aqui já lhe estou dizendo.

Dito e feito. Quatro dias depois o major Aurélio mandou-me chamar de novo e disse logo, abrindo as mãos com ênfase: — Pois é, Fernando. Sua avó é uma formidável mulher, um grande espírito! Recebeu-me de tal modo, conversou com tamanho critério sobre a guerra, ponderou coisas com tal acuidade e lucidez que eu apenas pude dizer que fora consultá-la sobre a hipótese da sua partida. A resposta imediata que deu e as considerações que explanou, me deixaram sem jeito! E agora qualquer atitude ou decisão nossa seria um achincalhe às virtudes dessa matrona. Desculpe o termo; não acho outro. Matrona. Assim pois, com uma tal avó, com esse passado na sua família, você, com a soma de cultura que tem, está mais apto de certa forma a receber com mais serenidade do que muitos dos seus colegas a sua convocação para a 1.ª DIE. A seguir me perguntou se eu aceitaria bem uma certa sugestão. Ser transferido do Regimento Sampaio para o 6.º, como adido, explicando que, por eu falar bem o inglês, o francês e o italiano, a minha transferência facilitaria ligações do Comando com a o cialidade do transporte que algum dia nos levasse. Sim. No 1.º havia vários rapazes que podiam fazer a função de intérpretes, ao passo que no 6.º havia só quatro e esses mesmos... Anuí, re examente deduzindo logo, cá comigo, que decerto o 6.º partiria antes do 1.º. *** 5-VII-44 — Acertei, apesar dos estratagemas de despistamento. Na madrugada de 29 os Grupamentos 1 e 3 invadiram composições vazias e rumaram creio que para Santa Cruz e o Recreio dos Bandeirantes. E um terço do nosso rumou depois para Nova Iguaçu para onde, conforme diziam, já partira a primeira leva na madrugada de 28 e deveria partir a restante na madrugada de 30. Mas apesar dos vagões rodarem em escuridão absoluta e de janelas fechadas, logo começaram a correr expressões como estas: “boi na linha” e “roupa na corda”. Houve alvoroço, nervosismo, piadas, à medida que as estações por onde passávamos iam sendo reconhecidas. Não tardei a averiguar que estávamos indo para a Marítima. Quando começamos a descer no cais do porto, o local se achava ermo e tétrico, limitado à direita, além do armazém geral, por um costado de navio negrejante cujo número, 112, tinha um re exo baço.

Conformei-me com a realidade aguda e inexorável. Sim, preferível à noite e sem multidão nem ores ou aplausos. E quando começou o embarque era como se eu não coparticipasse dele, estando apenas presenciando um desses instantâneos do Serviço de Sinaleiros que os nossos cinemas exibiam antes da ta principal. Passei a sentir-me peça movediça, retrátil ou expansível, dum mecanismo que tinha que se ajustar ao interior duma determinada base não para agir e sim para car em inércia e em potencial. A vida civil anulou-se. Ficou a vida vegetativa, essa mesma reagindo ante os compartimentos estanques, a qualidade das refeições, o ar con nado, a treva, o cheiro de tinta e de óleo, aqueles ruídos de mercadoria consignada. Mas logo veio uma fórmula de resignação muito genérica e quase propiciatória. Uma espécie de paradoxo otimista. É que os fatos imediatos referentes à minha pessoa estavam demonstrando a nal de contas que eu pertencia a um sistema universal de organização ora centrípeta, ora centrífuga, e que portanto minha individualidade, embora correspondendo a um número (conforme tudo quanto é elemento de quantidade e de problema) sofria in uências e também in uenciava os fenômenos mundiais. Por exemplo: aquele navio, que a nal de contas não era um transatlântico de recreio, mas uma espécie de arca sumária atulhadíssima; a cidade embuçada à esquerda; a guerra me aguardando a milhares de milhas; a possibilidade de morrer; a lembrança de cenas cinematográ cas da vida na frente de batalha; os primeiros contatos com um mundo de horrores — eram pensamentos que punham meu espírito em rotação centrípeta, fazendo-me con uir para o recesso mais nuclear da angústia; ao passo que a compreensão de que eu não nascera para usufruir a vida enquanto outros se expunham; a vontade teórica e ética de liquidar com a barafunda do mundo e cooperar (como simples parcela, mas en m cooperar) para uma solução de emergência a que decerto se seguiria uma solução coerente com a razão; o conceito de que ia viver uma fase de exceção e que disso me adviria uma experiência rente ao absurdo e ao anômalo; a curiosidade precavida mas insopitável de abeirar-me duma condição patética e infernal; a resignação disfarçada em plenitude; o perigo admitido e por isso mesmo atuando como tentação — eram pensamentos que punham meu espírito em rotação centrífuga fazendo-me expandir para a distância, o tempo, o espaço e a responsabilidade.

Tais estados de espírito se alternavam, ou então cavam adiados por horas, já que necessidades de acomodação e adaptação me anulavam a disponibilidade, agregando minha pessoa a dispositivos e regulamentos. E também a emoções coletivas e individuais, como quando se deu o inevitável e o General W. A. Mann demandou a barra às seis horas da manhã do dia 2 de julho. Para onde? Ia com carta de prego? Principalmente quando saímos e aproamos para o norte, assim que vi a pedra da Gávea e procurei localizar nossa casa, senti tal emoção que tive que contrair os maxilares, pensando na pertinácia com que o destino maltratava minha avó. Pareceu-me rever com nitidez fugaz a casa, o jardim, o parque, a mata, a praia, estar perto de pormenores como o piano, as estantes, a escada, a balaustrada, as estátuas, sentir nitidamente a presença da avó Virgínia, surpreender sua existência reclusa, ouvi-la chamar-se de Hécuba. 10-VII-44 — Um sujeito canta alto no banheiro ao lado; resfolega, bufa. E ao sair enxugando as têmporas dá de chofre comigo e diz: — Quase esvaziei o oceano em cima da minha “inconformidade!” Então, seu tradutor das dúzias, íamos fazer manobras na Restinga de Marambaia, hein? É o Djalma. E esta é a sua frase de reação quase todos os dias, repetindo com sarcasmo explosivo o que eu lhe dissera ao sairmos do vagão para o cais na noite do embarque. 16-VII-44 — Há três dias que estamos no Mediterrâneo. Vamos para onde? Já sabemos. As estações de rádio ianques e inglesas irradiaram trasanteontem, às vinte e duas horas, que o Contingente Expedicionário Brasileiro se dirigia para Nápoles. Antes, no Atlântico, ignorávamos nosso destino, fazíamos palpites: Orã? Marselha? Gênova?... Sicília?! O Cláudio corrigia sempre: “De qualquer forma, vou consignado ao Folies Bergère, em Paris”. E eu, que sentia? Não há diferenças sensíveis, talvez, entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Contudo, desde Gibraltar, penhasco arrogante, desde Ceuta, entrevista na síntese duma outra rocha abrupta, desde Tânger misteriosa, e Biserta apenas adivinhada e pressentida, minha impressão, não obstante os discursos do Comandante Maguire e do general Mascarenhas, era de que se estava dando o contrário. Isto é, saímos dum lago incomensurável num navio que era simultaneamente o de Núñez de Balboa, o de Jean Cabot e o de Chancellor, ou que então também tanto se podia chamar Marigold, Pelican ou

Jonas e, em lugar de irmos em demanda de terras descritas no Inventio Fortunae e alcançadas mediante o indispensável Almagesta, entrávamos numa espécie de orla prévia de redemoinhos fatídicos cujos centros fossem Cila e Caríbdis. Pelo menos os recifes que víamos e as comparações nefelibatas do Djalma me obrigavam a fabricar tais analogias, quando mais não fosse para disfarçar a emoção angustiosa. Em que estava eu transformado, desde o dia em que fui me apresentar ao CA, à minha circunscrição militar? A la interminável duma mocidade que eu não conhecia lá estava pela calçada, serpenteando docilmente ao longo de mais de três quarteirões, ao sol, conversando, descansando, fumando... Dir-seia a imediação duma fábrica onde candidatos a serviço esperassem ser atendidos. Mas não; era qualquer coisa maior, bem real, desde os pormenores duma promiscuidade de condições que era preciso sublimar e reduzir a um quociente. Cada qual representava a mesma geração para a pátria e para o tempo. O pobre e o esfarrapado; o ignorante e o desnutrido; o rico e o operário; o estudante e o funcionário. E, a nal, que diferença havia nos corpos e nas almas? Lá no JMS as radiogra as mostravam os mesmos pulmões expandidos, a mesma gota cardíaca suspensa como pêndula de sangue, o mesmo diafragma separando vísceras. A percussão dava os mesmos tons claros e densos; a auscultação, os mesmos sons enérgicos e vibrantes, ou compassados e rítmicos. Só as mãos escreviam melhor ou pior, certo ou errado. E os lábios liam melhor ou pior, certo ou errado. Noções cívicas, qualidades ou defeitos, senso da nova responsabilidade, descortino da vida civil, curiosidade, compreensão... bem, lá isso naquela nossa idade estava em função e dependência de muita coisa a mais ou a menos. De certa forma, a pátria nos recebia dos lares conforme estes podiam nos remeter segundo suas conjunturas sociais. Se estas não eram iguais, se não tinham um padrão uniforme, se a culpa disso era ou não dos indivíduos, dos lares, do Estado, da condição humana, geográ ca, histórica, econômica, etc., que podíamos nós saber, ali ao sol naquela calçada numa idade de cinema, futebol, namoro, em que só alguns estavam aptos a cursar uma escola superior? Nossa aptidão dizia respeito apenas à condição física. Havia muito tempo para o resto, a começar ali na caserna onde o preparo múltiplo abarcaria uma propedêutica para a vida. Luta pela existência, sim. A começar pela capacitação contra os embustes da arte da morte.

Mesmo quanto a isso, os meus companheiros teriam as mesmas vantagens que eu, que logo daí a dias adquiri livros militares de Colin, Barbeyrac, Laffargue, ierry e Bouron? As mesmas vantagens que eu, que fora propositadamente criado por minha avó longe da situação-limite para que não se repetisse comigo o que sucedera a meu bisavô, a meu avô e a meu pai? Sim, que a vida, o tempo, as místicas, eram inimigos coordenados, falsos, bem depreendíamos no afã com que procuravam fazer que nos defendêssemos não pelo empirismo re exo, e sim pelo que durante meses levamos aprendendo na teoria e prática da escola de pelotão. Que o espírito, por sua vez, adotasse e absorvesse tais advertências e ensinamentos para aplicá-los durante a existência, essa guerra dos Trinta Anos de cada indivíduo consigo mesmo, com a vida bem mais do que com a morte. Eventualmente porém, ali agora prestes a desembarcar, éramos uma só mocidade, sofrivelmente adestrada contra a arte da morte, já que tal arte não seguia mais os trâmites expostos em tratadistas de teor clássico e ortodoxo, mas sim os estratagemas desleais duma estratégia e duma tática que deixavam a batalha de Gravelotte como ingênuas peripécias de xadrez, conforme diria meu bisavô Aleixo. E mesmo essa consciência da vastidão do con ito, as diversas frentes, a impossibilidade absoluta dum desfecho único determinar a queda do arcabouço todo, a lentidão difusa da invasão, tudo isso não passa de problemas que para os poucos que os compreendiam só signi cavam quanto o indivíduo era parcela in nitesimal dum problema com feição de charada. O Fontoura achava que o fato dalguns chefes terem feito estágios em unidades e campos de treinamento nos Estados Unidos, de muitos membros do nosso Estado-Maior ainda recentemente terem estado em comitiva na África do Norte e na Itália, e de lá haver permanecido um “grupo de observadores”, para ele, Fontoura, tinha o mesmo valor que um grupo de jogadores ter visitado uma equipe em derrota num campeonato de rugby; e assim chegava ao paradoxo de que mais valera contratar-se prisioneiros que vomitassem os planos e táticas de seus Estados-Maiores... Eu próprio não abrangia dum só golpe a visão global dos fatos, meus catorze dias a bordo do General W. A. Mann tendo sido catorze estados de alma diferentes. Assim é que, quando nos afastamos do Cabo Frio, e apenas nos seguiam os destróieres, mais coparticipantes técnicos da nossa sorte até quase as

Canárias do que alegorias pátrias, se as conversas, os comentários, os aspectos, os exercícios, o estridular enérgico dos disparos antiaéreos, as náuseas e enjoos de alguns, as piadas e a gíria de muitos, tiravam à viagem o cunho duma aproximação metódica para a guerra, ainda assim essa sentença pairava no ar, curtia seu hálito morno nos alojamentos, transformava a saudade difusa em apreensão renitente. E então os trechos de diálogos eram como frestas fugazes, esguichos experimentais de manômetros. Lembro-me que tencionava ler muito a bordo, isolar-me, escrever poemas, car senhor do histórico pormenorizado das diversas campanhas, tirar ilações, balancear probabilidades, decifrar incógnitas, transformar minha expectativa em noção real de gradações, valendo-me não já de compêndios do coronel Araripe, do major Pavel, mas de hipóteses relativas à minha área de atuação na linha de frente. Sem querer recordava passagens de Barbusse ou de Remarque, e sempre com a esperança numa novidade de rádio, uma notícia súbita de rendição geral, de vitória fulminante. Mas a verdade é que a disposição sistemática de atividades mentais me foi faltando, sempre sendo adiada ou jamais encontrando ensejo adequado, já que éramos cinco mil pessoas e eu sofria dum modo ou de outro in uências descentralizadoras que me punham à mercê de regulamentos, episódios de rotina, sobressaltos teóricos, contingências vulgares, anedotas, boatos, divagações, peripécias, explosões de gíria, principalmente. Isto então, a gíria, se me apresentou como uma habilidade tática e subconsciente para dissociar atmosferas tensas. Quanto à minha vida interior, bem disfarçada reconditamente, essa passou catorze dias em exercícios de re exos condicionados, como se eu, à força de considerações minhas ou impregnado por fatos sucessivos da viagem, aos poucos me despojasse irremediavelmente de atributos individuais, descrendo ao mesmo tempo de transferências e abnegações, não conseguindo superar nada, visto como meu rebaixamento de logaritmo a parcela inibia qualquer esforço de sublimação. Por consequência, a viagem e a distância cada vez me afastavam não da pátria e da família, mas de mim mesmo, e eu me despedia de mim próprio, dissociado em dois. Um que criticava e analisava, e outro que sentia e se diluía; despedia-me do que tinha sido, sem conseguir supor ou imaginar sequer o que iria ser, já que me ia tornando peça ín ma dum compound. Sim, era o albatroz de Baudelaire e de Melville, descido no convés.

Então, quando ainda queria lutar e debater-me para subir, procurava, por artifícios que o ambiente di cultava, homiziar-me em casa da avó Virgínia, estirar-me no sofá, apoiar a cabeça em seu colo, ouvir aquelas cantigas remotas, adormecer... Ou então, subir ao apartamentozinho de Nanny, e por maldade dissociá-la também; isto é, pô-la deitada ali ao meu lado, bem silenciosa, enquanto ao mesmo tempo a sua voz gravada num disco, e tão parecida com a de Chanterelle, cantava “La Belle, si tu voulais”, acolá no prato giratório da vitrola... Hécuba e Cassandra! Sorrio sempre que me lembro dos apelidos trágicos destas duas criaturas nascidas para a afeição absoluta e integral. Que estará fazendo a estas horas minha avó Virgínia? Conversará com tio Maurício esperando a hora dos comunicados da BBC? Lerá algum livro? Re etirá muito, na circunspeção de sua reserva de alma, lá em cima no promontório perto do Joá, vigiando o oceano? Odiará aquele mar que lhe roubou o sogro, o marido e o lho e que me distanciou dela? Já terá mesmo feito as pazes de nitivas com o mar, como quando me ouviu declamar certa noite de perdão genérico para com o oceano, a “Ode Marítima”? Penso no seu destino de testemunha na carne e na alma das tragédias do marido e do lho, já agora decerto querendo sublimar e transferir sua aversão pelo oceano só porque sabe que o neto está nele, que vou nele, que nele existo, que ele me está poupando vagarosamente do contato com a terra onde, aí sim, só há vicissitudes e calamidades. “O mar... Este mar... Devo odiá-lo, ou não?” Saberá que estou no Mediterrâneo? Sim, estou no Mediterrâneo. Já não mais entre vagas de espuma insofridas, entre lâminas do Atlântico, mas no Mediterrâneo, que tanto povoou a minha imaginação... Onde está o intolerável Djalma!? Tomara que não apareça aqui nesta amurada onde penso. Seria horrível se nesta hora de meditação, ele surgisse boiando no ar como um anúncio do Michelin, com o salva-vidas herniando das axilas. *** Que nuvem longínqua acolá ao rés do oriente se levanta agora como um fuso perpendicular? Será a imagem de Ateneia? Para que desvão afastado, mas rico e opimo, estilhaçada em arquipélagos, está a Grécia? Se eu me atirar nestas ondas não surgirá a ninfa Leucoteia para salvar não ao náufrago mas

ao desertor? Onde a nal essa Itália avançando como uma deiscência paroxística? Ah! Não a bota calçando os Apeninos, mas anco de terra que atrai quase todos nós, cinco mil soldados, para a amurada de cá. Tão tarde vim para a tua história, ó Mediterrâneo! Tão tarde até mesmo para mim, ó ex-Fernando! Quisera desembocar em ti naquele primeiro barco uvial, dois mil e oitocentos anos antes de Cristo, saindo do Nilo lodoso, para ir buscar cedro na Assíria. Quisera atravessar-te com os fenícios. Quisera estar no primitivo centro simbólico, em Creta, bem antes do tempo de Homero, quando os gregos ainda eram rudes arqueanos. Aqui estou milênios depois, despido de minha serenidade de contemplação, pois vou em trânsito forçado, eu, um adolescente anônimo... Sim, um anônimo agora, quando bem antes, no ginásio, te percorri de margem a margem, e fui sucessivamente Ambron de Mileto, Ulisses de Ítaca, e simultaneamente Agamenon, Ajax, Antíloco e Telêmaco! Onde estás tu, adivinho Dodona, oráculo insigne, para dizeres o que vai ser de mim? E onde estás tu, Crônida, para relatares a minha avó o que foi de mim?... Sim, aqui estou nesta amurada. Eu, com um número de expedicionário. Na verdade não um civil curioso, mas vestido de guerra, realizando a meu modo truculento, o antigo sonho de ser Alcebíades e Péricles, Platão e Aristóteles, Heródoto e Plutarco. Não, não vim ver a Acrópole, as raparigas de Erecteion, os frisos do Partenon, a enseada de Salamina. Não duraram para que eu lhes visse as cãs, aqueles conhecidos de meu bisavô Aleixo: Ésquilo e Eurípedes setuagenários; Aristófanes e Sófocles nonagenários. Também esta atmosfera que meus pulmões respiram em haustos já não traz os cinco elementos que eu cuidava eternos: a saúde, a paz, a glória, a beleza e a cultura. Decerto vou ver Roma atravessando-a de noite num caminhão. Itália, trago aqui comigo as cartas que minha avó escreveu de teu solo para meu pai em 1913. São oito. Duas de Florença. Uma de Arezzo. Uma de Perúsia. Uma de Assis. Uma de Ravena. Uma de Rimini e a última do Hotel Cavalletto em Veneza. Como se vê, não era dada glória de ti, que a interessava. Era Orcagna, e Miguel Ângelo; era Piero della Francesca: era Urbano da Cortona; era São Francisco, e Giotto; eram os mosaicos de San Vitale e de Galla Placídia; era Tintoretto, e Veronese. Isso, verei eu? Verá isso o mundo porque contribuí para salvar o que ela especi cou como valores?

Talvez, talvez, já que não sou bárbaro te invadindo periodicamente, mas sim, na minha mocidade quase mística, um provável guarda postado junto do Campo Santo de Pisa, ou uma sentinela passeando rente à balaustrada onde o Davi por sobre o Arno olha para Florença lá do alto do Piazzale. Ah! Passou por ti, Mediterrâneo, antes de mim, tanta unidade humana, que me vendo neste convés já nada sei de cronologia nem de história, confundo-me com os emigrantes e imigrantes que fastos e leis jogaram pelas abas dos mapas que te limitam e pormenorizam. Estes vultos divididos em dois hemisférios humanos pelos salva-vidas são agora para mim apenas bonecos simulando para os cálculos e divagações deste delírio: godos, vândalos, francos, germanos, hunos, longobardos, árabes e não sei mais quê. Ó minha avó Virgínia, se algum dia leres estas linhas não penses que teu neto as escreveu na enfermaria do General W. A. Mann. Isto tudo me veio aqui em cima no tombadilho, ao avistar terras de Itália... E ainda bem que o entusiasmo de bordo me alvoroça também, e rente a esta amurada vejo aproximar-se o cais de Nápoles exatamente quando eu pensava em Ticiano e em Casanova, em Napoleão e em Nélson, em Byron e em Shelley, em Mazzini e em Cavour, nos Dardanelos e em Suez, em Lesseps e em Disraeli, em Venízelos e em Kemal Paxá! Arre! Chegamos... Não sou mais o aluno de História da Civilização de meu tio-avô Maurício. Não me lembrei sequer da pirâmide de Quéops, de meu bisavô Aleixo! Agora que quero ver Nápoles, o porto atulhado de navios cujas proas parecem guelras de carcaças; agora que os armazéns e o casario em hemiciclo parecem e são uma ruína ainda sangrando e fumegando; agora que a multidão nos espera para mendigar; agora que já sobem a bordo vários gurões autênticos e não os do meu devaneio, enquanto uma guarda de honra presta continência; agora que ressoam os alto-falantes e estou formado, que sou um simples ponto de con guração geométrica no tombadilho; agora que já não sou mais nem submúltiplo de ninguém e sim eu, com todas as veras da minha curiosidade realística — me vou dando conta de toda essa realidade que aí está parada diante de mim: séculos de glória e de degradação.

XVI O INFANTE

30-IX-44 — Assim que desembarcamos fomos acantonar na cratera dum antigo vulcão. Como não sorrir, portanto, na partida para Litória, quando o Djalma exclamou voltado para a invisível cratera: “Também eu quisera já estar extinto!” Estranho e funambulesco esse Djalma! Ainda em Nápoles, enquanto nos recebiam com as formalidades de estilo, ele deu uma palmada nas costas do 4654, que olhava embevecido para a cidade, e lhe bradou: — Ver Nápoles, e depois morrer! O 4654 encolheu o ombro e sorriu com seu feitio bondoso, e lá foi conosco para Agnaro. Todavia, assim que ele, depois, se aboletou num dos caminhões norte-americanos em Litória rumo a Tarquinia, a Morte começou a descer incógnita do alto da Linha Gótica... Não sei o que o 4654 pensou quando seguia conosco pela pista lúgubre da linha eletri cada cujos trilhos retorcidos pareciam oferecer um percurso de pesadelo aos nossos pensamentos. Não sei o que ele pensou pondo os olhos cândidos nas locomotivas desventradas, no concreto explodido, nos postes carbonizados, nos rombos abertos por pressões fulminantes, nas estações centrais reduzidas a pátios desolados como telas de De Chirico. Acho que estranhava aquele aspecto de ruína. Creio que sua mãe no Brasil lhe explicara de outra forma as ruínas da Via Ápia ou da Via Panônia. Mas o que os norte-americanos lhe exibiram como ruínas em Minturno e em Fórmio, por exemplo, nada tinha dos desmoronamentos advindos dos séculos. Não era a senilidade mutilada das cidades macróbias, não! Era a síntese lívida do anátema: “Nem pedra sobre pedra!” Era a Antiguidade triturada pela técnica. Pois bem. Dias depois, o 4654 morreu ao tomar banho na praia decrépita de Civitavècchia. A Morte, deixando tudo mais, por um desses

caprichos de megera, desceu incógnita lá do alto da Linha Gótica para afogá-lo em condições de rotina civil... Já depois, em Vada, o Djalma me saturava fazendo trocadilhos de péssimo gosto, ngindo agarrar-me e aconselhando: “Não se evada! Não se evada!” Todavia, quando mais tarde tomou parte nos exercícios reais em Riparbella, os mugidos tonitruantes da artilharia do 2.º R. A. Au. Reb. o zeram evadir-se para os páramos da loucura. Fui dos que o levaram a custo para o hospital norte-americano de Neuro Convalescence. Em agosto, a primeira grande marcha que efetuamos me pareceu inverossímil, porque nos ordenaram que seguíssemos para o Tirreno. Além disso o aspecto da costa me deu a impressão nefelibata (e até então não encontrada nem mesmo em certa literatura e nem em telas de imaginação) da luta da terra com as ondas (e não o contrário, como seria de supor!). Se diante de Nápoles vimos um naufrágio inerte de proas, chaminés e mastros se liquefazendo ao sabor das ondas plácidas, memória bem recente da invasão, aqui neste litoral vimos a terra organizada em resistência, resolvida deveras a opor-se ao mar e ao que do mar viesse. Boiando depois diante de tal an teatro, contemplei durante mais dum quarto de hora a quantidade absurda e fantástica de rolos de arame, cavalos de frisa, fortins costeiros e embasamentos para canhões. Estava eu no Tirreno diante do anco da Itália, ou scalizava como sentinela avançada a integridade dos penhascos da Inglaterra obturados de metal e pólvora? Em Vada estivemos num interregno meio pagão, pois o acampamento viveu sempre enguirlandado de parreiras. Dir-se-ia que de fato, para não se ver a verdade medonha, só mesmo o recurso re exo da embriaguez. Assim, a primeira sensação vibrátil de guerra e a primeira ânsia de vitória rápida passaram por nós como um frisson na madrugada do dia da invasão do sul da França. Formações e mais formações de fortalezas voadoras não cessavam de cruzar o céu, como peças desmontadas de arsenais se deslocando no ar com o respectivo leque de planadores. Nanny decerto leu nos jornais e ouviu no rádio as notícias de que os vilarejos que bordejam Cap Ferrat, e mesmo Nice, Menton, etc., caíram... Cuidar-me-á, decerto, entre as tropas da libertação. (Já tenho duas cartas dela mandadas ainda para a Vila Militar. Li-as armado até aos dentes, pois já começou a distribuição de bazoocas, metralhadoras e fuzis Spring eld).

A rapaziada ianque nos deu aulas de montagem, desmontagem e utilização do armamento. Adestro-me visando um pillbox em plena praia, depois que adquiri golpe de vista e mão mais certeira no estande de Palazzi, na Rota 1. Vou mandar para Nanny (para vovó, não, caria nervosa) um instantâneo meu cavalgando um 88. Já somos parte integrante do V Exército. No dia das comemorações de Caxias, o Primeiro Escalão Brasileiro foi convidado a unir-se às glórias e tarefas da gente de Mark Clark, que pessoalmente nos dirigiu a palavra lembrando que estava próximo o primeiro aniversário do desembarque em Salerno e Anzio. Depois da visita desse cabo de guerra e das cerimônias empolgantes, começou o adestramento rijo. Assim pudemos diferenciar o que seja parada, des le, e o que signi ca a arte e a pro ssão do soldado, sentindo que ia começar a coparticipação verídica. De fato. Os estágios principiaram. Muita gente graduada foi para Caserta. Tivemos dez horas de exercícios durante o dia; e às vezes mais três horas de noite. A impressão deste teste da Vada prenunciou que estávamos quase maduros para a linha de frente. Após exercícios reais com emprego espetacular de munição, houve conciliábulo entre os graúdos do IV Corpo e a nossa alta o cialidade, em Staffoli. Fui designado para intérprete quanto a assuntos de mera técnica rotineira; mas quando chegou a discussão da parte tática, pachorrentamente agradeceram meus préstimos e me despediram, tomando o meu lugar eventual não qualquer Mestre Pracinha, mas o major Walters. 31-X-44 — Antes, tive tempo de escrever a vovó cartas de duplo aspecto. Reais e sinceras quanto às impressões emotivas do Mediterrâneo e dos trajetos desde Bagnoli até aqui. E períodos de despistamento quanto às impressões dos primeiros contatos com a guerra propriamente. Declarei-lhe minha certeza de que em breve, com a paz e as primeiras soluções da vitória, irei percorrer aquele périplo que ela expôs a meu pai em cartas de 1913 desde a Riviera até Florença, desde Arezzo até Assis, desde Ravena até Veneza. E para desmanchar qualquer atmosfera não disfarçada de todo, lhe mandei também as minhas impressões sobre o “Buldogue”. Sim. Vi-o de perto, atarracado, brusco, pertinaz e onímodo, com seu charuto espesso. Winston Churchill. Não perde tempo. Esteve no sul da França assistindo ao avanço do VII Exército.

Não lhe contei, contudo, por exemplo, que no dia 11 durante os exercícios reais se deu a explosão duma mina ferindo diversos rapazes da 6.ª companhia. Vendo como cou e como morreu o Gonçalves, senti a verdade daquela expressão de Habacuc: “Tendes os olhos puros demais para ver o mal e enxergar a iniquidade”. Realmente. A mocidade é pura demais, ainda, apesar de tudo, para afazer-se a isto. Existe nela assim jungida à guerra, qualquer coisa de Prometeu e de Hipólito cujos suplícios se correspondem em face do bem e do mal. A mocidade está ainda próxima de Deus, que é a criação, e longe do demônio, que é a destruição. E a dor física (ou a deformação) signi ca um sacrilégio à harmonia da ordem criada. Ver um corpo humano estilhaçado é como ver um templo caído. Ver sangue banhando a morte duma criatura, ver seus recessos expostos, é assistir à conspurcação eucarística. Assim, a providência imediata é inventar para uso provisório e urgente a assimilação do absurdo, e criar uma loso a sumária. O mundo e a realidade estão limitados a Isto Aqui, para nós. E deixa de existir o tempo, cando só uma relação de espaço entre a expectativa e o pânico. Se um pracinha morreu por não saber nadar direito no Tirreno, se o Oliveira perdeu o pé num regato e se afogou, isso é ainda a vida em liberdade, foi ainda um desejo de união com a natureza, como a folha nova que o vento atira nas águas e que desce fundindo-se à correnteza. Mas se o Assunção, com esse nome tão acima das contingências, e o Gonçalves morrem esquartejados por explosões, parece então que não é só a guerra que é horrenda, e sim o fato da ciência se vender ao sofrimento afoito do sobrenatural. Vender-se às cegas, sendo instrumento afoito de subserviência. O caso, por exemplo, do jeep que estraçalhou o Francisco que ia distraído por uma estrada. Só a mocidade pode pensar que uma estrada em tempo anormal seja platibanda para paisagens e não pista para escalar o Tempo através dos sucessivos Limites... O interessante é que estamos fazendo estágios em dois Regimentos norte-americanos cujos nomes completam a noção genérica desta limitação. Um se chama Red Bull e o outro se chama Blue Clover. Touro Vermelho. Trevo Azul. Perfeitamente. Neste setor de guerra breve veremos que a guerra é isso, de fato. Um touro vermelho que marra investindo pelos corredores lôbregos do labirinto de Minos, certo de que hão de querer aplacá-lo oferecendo-lhe molhos de trevos...

Este mês fomos fazer por conta própria nosso primeiro teste de capacitação. Somos um núcleo independente, o “Destacamento da FEB”. Mexemo-nos nacionalmente, temos uma cidade nossa, espécie de distrito de além-mar, Ospedaleto, entramos como formigas ou coelhos no que todavia eles chamam fox holes ali em Filettole, diante duma “terra de ninguém”. Quatro dias depois éramos libertadores rodeados pela criançada de Bozano e Massarosa. Ainda bem. Sempre serviu como reestruturação psicológica para o Djalma, que voltou do Neuro Convelescence. Mas não tardou que, como cunha cravada entre a Task Force 45 e a Primeira Divisão Blindada, víssemos e sentíssemos a guerra, o que seja bombardeio de artilharia. A voz da guerra. A sua retórica. Não existe silêncio. Existe esse ressoo fulminante, duma arrogância que convence e humilha. E, saindo desse mugido cavo, como quatro coelhos, os quatro primeiros prisioneiros alemães. Prisioneiros, ou desertores? Quatro fomes. Quatro pânicos. Quatro misérias. Ou quatro disfarces? Foram os quatro ratos que emergiram de Camaiore, do molhe sinistro daquele porto de lampejos fulminantes se re etindo em Monte Prano. A Companhia de Petrechos Pesados do 2.º Batalhão e a 9.ª Companhia receberam estilhaços de granadas. Os morteiros mataram os nossos primeiros colegas da FEB. Dias depois os telefonistas Morais e Lopes sumiram, até que, vindo lá do impossível retorno surgiu o Lopes, meio apupado por si próprio... Bem. Já estávamos sendo veteranos. Já havia feitos. A lenda já sublimava em transferência otimista o primeiro rescaldo. Ghirlando, Pifer e Marochi, jazeis enterrados por primeiro na terra, cuja existência no mundo talvez ignorásseis até outubro de 1944. Lívidos corpos entreabertos, vós me fazeis considerar: qual a diferença entre os mortos e as sementes? E tu, João Lopes, não te desvencilhaste do destino? Não sei o que pensa o nosso PC Avançado, de Quiesa, antes de transferir-se para Ponte a Moriano. Sei que se recebeu a visita do Ministro da Guerra em Bologna; que se perdeu uma patrulha dias depois; e que uma lista enorme de cidades e aldeias, desde Massarosa até Ghivizzano, caiu em nosso poder. A isso, em San Rossore e em Quiesa chamam “progressão à Linha Gótica”, ou, “primeira missão do Destacamento FEB”, ou ainda: OGO n.º 12 referente à rocada para o Vale do Sérchio.

Seja como for, os correspondentes de guerra hão de ter sabido intercalar títulos e subtítulos, com fartas descrições e abundantes pormenores. Foi através deles, por exemplo, que obtive informes sobre o cenário diante do qual alinhavei estas notas ainda no tempo em que as nossas patrulhas (cordões) afundavam na “terra de ninguém”. Assim, metido no meu fox hole, longe estava de supor que no an teatro misterioso estacionava a cavaleiro de nossas posições a 42.ª DI Alemã, ao passo que os nossos II e III Escalões, quase onze mil soldados, treinavam já em San Rossore. Não como nós em Bagnoli, Tarquinia e Vada, mas numa quinta real, acampados em alamedas, à espera de realizar deveras o período de Instrução da Diretiva Geral n.º 7, em Filettole. Em compensação, os correspondentes de jornais souberam por nós o que foi a impressão de atravessar campos minados, o fogo que suportou a 9.ª Companhia, as peripécias heroicas da Patrulha Tenente Cabral, a maneira pela qual morreu o Aguiar unido à sua metralhadora. Este mês de outubro acabou de modo agourento. Já estávamos no redemoinho mesmo. Digam-nos a 2.ª, a 3.ª e a 7.ª companhias, por exemplo. E em seu último dia conhecemos a derrota. Ainda bem que foi um revés local. Desde o dia 17 a cobra estava fumando o cialmente em pleno corpo do Exército Provisional, e progredíramos cerca de quarenta quilômetros. Vou reingressar no Regimento Sampaio, de que fui até aqui uma representação avançada. Deixo o 6.º Regimento que não precisa de mim. Ele, na Conferência do Passo della Futa, às 2 horas da tarde de 29 de outubro, pela boca já não digo do Comandante da 12.ª DIE, mas dos fatos, e pelas comprovações de Brayner e de Walters, tinha em seu ativo e passivo de campanha: quarenta quilômetros de progressão, duzentos e tantos prisioneiros, trezentas baixas, e uma experiência dura desse embate no Vale do Sérchio. 1-XI-44 — E eu, que foi feito de mim nesse período? E o que será de mim, doravante? Não morri, pois morreram por mim 13 elementos da FEB até agora. Não fui ferido. Isso coube a 87 companheiros meus. Não fui herói, não fui nada. Cheguei até diante da Garfagnana. Agora parece que vou para o Vale do Reno. Deduzo, porque consta que o Quartel-General Avançado da 1.ª DIE (isto é, o que antes operou no Vale do Sérchio como Destacamento da FEB e acrescido agora decerto dos II e III Escalões) já se transladou para a Emília, instalando-se em Porretta Terme. Não sei se conhecerei a região imensa de

Emília. Talvez não. Da mesma forma que não cheguei a conhecer Emília minha mãe, morta ao dar-me à luz. Ou talvez o destino me leve a fazer essa transferência e eu conheça deveras o chão, o corpo de Emília, cujos olhos azuis são Ravena e Rímini, cujo coração é Ferrara e cujo cérebro é Bolonha. Tomara que eu vá para Emília e que lá de alcateia e de atalaia, como a avó Virgínia cou diante do mar onde estão meu bisavô, meu avô e meu pai. Para alguma coisa fui criado. Mas recebi uma educação que em face da rotina e do cotidiano me deixa como aquele albatroz de Baudelaire e de Melville, a que se referiu Nanny. Meu tio-avô Maurício me educou para exceção e modelo, como logaritmo. Minha avó Virgínia reage pelo fato de viver como testemunha de tragédias sucessivas não só da família como do mundo e do século. Assim pois, apavorada com a marca do que seria o meu signo, andou a querer subtrair-me dos nodos dum horóscopo fatal (não que seja dada a astrologia, creio mesmo que ignore o que isso seja, ou desdenhe in limine), criando-me e educando-me acima e fora do mundo, como uma abstração. Isso, nada tinha de egoísmo; antes, era defesa, pois procurava tornar-me estanque à desgraça. Mas a minha convocação para o exército, a veri cação de que eu, não obstante tudo, existia em contingência de unidade social, a despertou do primeiro equívoco. E então a avó Virgínia percebeu com grande pasmo que sua missão fora educar-me à parte, como reserva para holocausto, como o cordeiro ritual! Sentindo, coitada, que viver era cruci cação a que nem escapara o Deus feito homem, de nada valendo como no caso de seu esposo o estado dionisíaco, nem no caso do lho o estado dialético, resolvera insular-me da desgraça. Resultado: cá estou, na Itália... Avó Virgínia. Em vão o tio Maurício quis fazer de mim um logaritmo humano. Impossível, bem sei. Mas ainda assim eu seria uma experiência em função das realidades. Isto é, saberia haver-me em face do leão de Nemeia, da hidra de Lerna, do monstro da Arcádia, do javali de Erimanto, lavaria os estábulos de Aúgias, lutaria contra as aves de Estinfales, o touro de Creta, o jumento de Diômedes, os bois de Gérion, e desceria sem complexos ao Inferno. Assim, fui tudo no conceito da avó Virgínia, que sem querer me transformou sucessivamente em várias reservas humanas. Agora aqui estou nesta rocada para o Vale do Reno, um infante numerado e extraído do

Depósito de Pessoal, que é a mocidade desta época, para aquele ciclo de guerras que banham a humanidade como marés periódicas. Não sei se me insurja contra meu destino diante de 232.ª DI alemã ou se me resigne a sentir-me reencarnação do eterno Infante. Fecho os olhos e não me vejo em ação, mas sim um múltiplo dos mortos de todas as guerras. E vejo minha avó Virgínia transformada em Malamatênia, a Carpideira. Revestido de amianto e de estupor, estou morto na grande noite atônita. Meus olhos que ninguém fechou são duas lentes gelatinosas registrando a cena onde há milênios me repito. Sou sempre o mesmo, o último e o primeiro. Assim que cresço e co moço, morro. Há quantos séculos, Malamatênia, ó mãe, ó viúva, ó esposa, ó noiva, ó lha, tens chorado com timbre lancinante as minhas várias mortes sucessivas! Tu, gárgula de prantos e clamores, dos telhados da Eurásia e do gerúndio, despejando lamentos sobre mim! Ah! Continua o ciclo reversível: chegas depressa, com teu xale negro, o queixo ensalivado, as sobrancelhas altas de cinza, as unhas encardidas de lava, e ululas, desgrenhada, os teus mirólogos de pitonisa e bruxa, carpindo a eterna vítima das guerras. Vi-te a primeira vez quando eu, cadáver atirado na beira da caverna junto ao burgo lacustre, compreendi, no silêncio anterior às explosões, que tu eras a mãe, a irmã e a noiva... E milênios depois te vejo agora rente aos destroços dum quadrimotor. Nas noites ocas das derrotas lúgubres, vendo-me morto embaixo da carreta, perto da tenda, ao lado da cisterna, na paisagem da antiguidade anônima, zeste de teu colo catafalco chorando a minha condição primeira de pastor, artesão, oleiro e escriba. Diante de multidões e propileus, ao cheiro de resinas e de incensos, nas praças de arquipélagos históricos ou nas clareiras lívidas das tribos, proferiste lamentações rouquenhas em sânscrito, canará e telugu, em iambo, em elegia e em latim bárbaro. Andei com Menelau e já morri nas ilhas todas que há no mar Egeu. E vi anões com crânios de rabichos te rodearem brandindo archotes rubros lá no feudo mongol, em Cublai Cã, muito depois das minhas outras mortes nos tempos de Horemheb e Hamurabi.

Cada vez que tombei no monte Halac, em Goshen, Jericó, Zama, Farsala, os mágicos me deram vida nova para morrer de novo em Azincourt, Verdun, Madri, Narvik e Stalingrado. Pois este é o ciclo eterno e reversível: sempre que cresço e co moço, morro. Eu quero arar os campos para o trigo, quero vigiar rebanhos nas encostas, cantar nos estaleiros e altos fornos. Mas me arrancam das aulas e dos teares e me jogam no lodo das trincheiras. Não adianta chorar, Malamatênia! Corta as entranhas, para que eu não nasça!

XVI AMARRANDO O DRAGÃO POR MIL ANOS

4-XI-44 — O Bráulio Moreira já a bordo do General W. A. Mann armara uns rolos; e, se é violento e impulsivo, nem sempre guarda isso para as escaladas das diversas cotas; de modo que tem tido seus aborrecimentos com a Polícia Militar e uma vez recebeu mesmo ordem de prisão. Mas, desde o sábado passado tinha sido quase impossível tolerá-lo, porque quis engal nharse com o sargento Silva e convidou o aspirante Costa para uma conversinha particular, de homem para homem, por exemplo não ali, por causa dos regulamentos, mas em Pisa ou Florença, ou mesmo em Lucca. E tudo isso porque sua fama de valentão sofreu muito no sábado. Como? É que, tendo sido parte duma patrulha que foi acometida inesperadamente por um pelotão alemão (do 25 RI que domina Castelnuovo), desceu em tal disparada, tomado de pânico, que entrou no PC do seu batalhão numa carreira louca, tendo derrubado até um posto de rádio da Cia. de Obuses que estava transmitindo um programa. Entrou desabaladamente, como um touro marrando. Os companheiros do “cordão” chegaram quarenta minutos mais tarde, com um ferido, e faltando dois. O cabo informou que se tratava dum golpe de mão de gente do 25 RI. O Bráulio Moreira reti cou que vira um batalhão inteiro descendo para a transversal rodoviária de Roncato, e que viera avisar... Tomadas as medidas, lançadas outras patrulhas, estas voltaram trazendo os dois extraviados que por sua vez deram razão ao cabo: tratava-se duma patrulha alemã. Quanto ao susto de Bráulio Moreira achavam que fora causado por um “sopro” que o projetara longe. Sim, tinha passado uma granada de grosso calibre que, arrebentando, produzira um jato de ar... Risadas! E o Bráulio Moreira, zonzo, a re etir... Mas com as piadas (aliás não era qualquer um que fazia piadas com o gaúcho), do sábado para ontem, ele cou fulo. E, se explicava que vira um batalhão descendo para a ferrovia, caíam na risada o Jerônimo e o Monteiro; como eram amigos dele, e

fortes como ele, resolviam o caso com empurrões; mas com os remoques do sargento Silva e a descompostura do aspirante Costa não se conformava, reagia, fumando, desa ando-os... até que ontem... Sim, ontem fui com ele e mais outros, de madrugada, substituir uma patrulha que regressava. Era preciso veri car se na platibanda dum morro havia forças ou se se tratava de mero ninho de metralhadora dominando a cota. Saímos às duas da madrugada, devendo regressar às quatro, pois a distância não era grande, apenas o acesso sendo íngreme. Escuridão total. Seguimos espaçadamente em la, galgamos, demos a volta, a m de surpreender pelo outro lado do espigão. O Peixoto resvalou, caiu, foi um custo descobrirmos em que ponto da ribeira poderia estar ferido. Mas soubera cair, deslizando. Assim que, às três e dez, nos abeiramos da casamata, por detrás, uns gigantes louros calaram as baionetas, acenderam um re etor e, após luta corporal, tiros de armas automáticas e barafunda incrível, eu, o Soares, o Sousa e o Pinhal saímos a correr que nem o Bráulio naquela outra vez, porque uma metralhadora cacarejava lugubremente com sua língua de fogo, caçandonos em rotação sistemática... Na cota, junto à margem da ribeira, no lugar onde caíra o Peixoto, esperamos. Como uma fúria, desceu com ressoo cavo de botas, um. Outro. Mais outro. Só faltavam três: o aspirante Costa, o sargento Silva e o Bráulio Moreira. Esperamos. Nisto a tal metralhadora, decerto tendo limpado a platibanda lá em cima, virou na nossa direção e haja matracar-nos... Nova corrida desabalada, a esmo, com as sapatorras ressoando no chão como pilões... Paramos na ribeira, bebemos água, lavamos a cara, ofegando. Ficamos ali a arquejar. Puxa vida!... Agora, um silêncio. Que fazer? Voltar para junto dos nossos com a falta de três e sem poder informar nada, o que tinha sido feito deles, se se tratava dum simples abrigo...? Às quatro horas, tempo marcado para o regresso, decidimos recolher. Mas, e os três? Aconselhei, sem muito entusiasmo, que voltássemos até às imediações, ao menos para, mediante a resistência que nos oferecessem, deduzir alguma coisa. O Peixoto na frente. Uns vinte metros atrás, eu. E assim por diante, cautelosamente. O essencial era depreender o que teria acontecido ao Moreira, ao Costa e ao Silva. Assim, chegamos perto, ouvimos vozes do Moreira, nitidamente. Chamei-o, baixo, alto, de perto, rente já à seteira. O projetor se acendeu e se apagou. Num vislumbre, vi o Moreira senhor da situação, e três corpos encapotados de bruços no solo. Mas até chegarmos lá já

eram cinco e vinte. Clareava quando começamos a descer. E já era manhã quando entramos no PC do nosso batalhão. O Peixoto arcado sob uma metralhadora com os respectivos quatro canos sobressalentes. Pudera! Tinha uma força de estivador. O sargento Silva com um saco contendo não sei quantas granadas. O aspirante Costa vergado sob o peso duma caixa de munição pontiaguda para fuzis. Eu com um saco de máscaras contra gases. O Soares com oito foguetes sinalizadores. O Pinhal com três bocais para lançamento de granadas. E o Bráulio Moreira com o único alemão vivo dos quatro que lá estavam havia duas semanas neutralizando uma cota. Entrou no PC com o alemão arrastado pela gola, jogou-o com um munhecaço em cima do posto de escuta da Cia. de Obuses... 7-XI-44 — Dirigindo o jeep “Quebra-Galho”, fui ao PC em Le Corti, com mais três companheiros, levar uma papelada. Os companheiros caram, outros os substituíram, e toquei para Livorno onde entregamos outra pasta na Pagadoria Fixa da nossa Seção de Base. Atulhamos o jeep com sacas do Correio Regulador, tocamos para Pisa. A turma cantava sambas porque ia descansar em Florença. Larguei-a no Depósito de Pessoal do 11 RI, aproveitei a ausência do meu chefe, que estava em Viareggio, para ir ver os estragos do Camposanto. Foi então que vim a conhecer o Tancredo, do Pelotão de Sepultamento. Tratei de rodeá-lo de gentilezas, por causa das dúvidas. E, sentados, num café ali ao lado do Duomo, conversamos até o tenente Faria chegar de Viareggio. O Tancredo pediu-me o postal reproduzindo o mural de Orcagna (que os bombardeios dani caram), olhou bem para os três esquifes diante dos quais uma comitiva apertava o nariz por causa do fétido, virou o vermute, pediu outro, recostou-se para trás, disse: — Fique descansado que não o deixarei chegar ao estado de qualquer desses três defuntos aí. Assim que falta gente numa patrulha vou e, “embalado” com os padioleiros, fuço daqui, dali, trago os corpos ainda quentinhos. Que diabo! Por enquanto não temos tido tanto azar assim. Faltam aquele tenente e aquele aspirante da refrega de 31. Também o sargento. Não quiseram que eu me arriscasse. Tolice! Com um homem como o capitão Coutinho, não se tem medo de ir buscar os companheiros extraviados. — Você o que era lá no Brasil, Tancredo? — Baiano, cabeça-chata, vendendo em São Paulo a Lei do Inquilinato na esquina da rua 15 com a Praça da Sé. Aqui é melhor.

— Como assim? — Lá não sei que caminho tomaria... Aqui faço o bem. Comovo-me, capricho no trabalho. Parece que na Bahia andei treinando para isto aqui. — Como? Foi coveiro em Salvador? — Não, doutorzinho. Cantava “enigmas” na feira de Nazaré. Quer ouvir uns e adivinhá-los? Então me abasteça com outro vermute. E o Tancredo, numa roda de cinco, no canto do café, diante da praça lúgubre ao crepúsculo, começou a perguntar-nos numa toada baixa, arregalando os olhos, esperando a resposta: “— Nasce no mato E no mato se cria; Quando sai de casa É choro em demasia.” Que é, seus moços? Vamos, puxem pelo bestunto! Que é, seu doutorzinho? A resposta está no ar! Pau de rede de defunto, gente! E durante meia hora o Tancredo expôs o seu repertório, por entre risadas e discussões, atuando de mesa em mesa. O Varela perguntou-lhe: — Diga-me uma coisa: você pronuncia tudo tão bem, sem gramática errada...? — Ora, rapaz, eu fui camelô! Como se há de embasbacar gente nas esquinas para vender coisas rematadas, não falando direito? Então, onde é que vamos brigar agora, meninada? Como é doutorzinho? Vai passar uns dias lá em Florença ou volta para Porretta Terme? — Agora estou no Regimento Sampaio. — Chi! Então saiu duma alhada e vai meter-se noutra, hein? Fique descansado que aqui o Varela o irá buscar de padiola se o doutorzinho demorar nalguma patrulha. E eu, já sabe, pode contar, que capricharei. — Não está muito certo este negócio aqui — reclamou o Varela. — O Costa veio conosco, arranjou meios e modos de passar para o Serviço Especial. Para todos os efeitos nós dois lá do Meyer estamos aqui na guerra. Só que eu já comi fogo em Pescaglia juntando feridos debaixo de morteiros e passei susto que Deus me livre em Fornaci, tendo até trazido por engano um defunto alemão dos quatro que caíram lá... Ao passo que o Costa, que trabalhava na

Assistência do Meyer como eu, há dois meses vive muito lampeiro em Florença. Um dia entro no Albergo Nazionale, perto da Estação, quem me atende na portaria, todo formalizado? O Costa! De noite ainda me estragou um namoro na porta do clube dos O ciais, em Lungarno, quando eu e uma garota que trabalha em Fiésole ouvíamos uns sambas do tempo do onça. Contou a ela que eu era do Pelotão de Sepultamento. Esse está marcado! Se um dia dou com ele estirado, digo-lhe: “Vai aguentando por aí, que tenho que tratar doutros, primeiro”. Outra vez fui procurar o Norberto, levar uns versos do Vicente para o “Cruzeiro do Sul”; pronto, lá estava bancando o tipógrafo o Costa! Outra vez vejo chegar um jeep com pacotes do “Zé Carioca”; quem fazia a distribuição? O Costa! Pergunto: está direito? Lá para o pessoal do Meyer nós dois representamos a Capital dos subúrbios na FEB. Mas se eu arranjo uma folga e cretinamente penso que me vou distrair, dançar com as pequenas em Lucca, levo mais chumbo do que se estivesse ainda na Garfagnana! É como o Asdrúbal, que cou em Nápoles, servindo de bedel na Justiça Militar. E o Amâncio, então! Esse não é mais companheiro de violão como no tempo de bordo: agora é da Polícia Militar. Fiscaliza o trânsito, sim senhores! Fiscal de trânsito. Dei com ele todo per lado em Montemagno, na estrada de Lucca-Camaiore... mas é claro, depois que já tinha caído Monte Prano! Não pude resistir! Saltei, dei-lhe uma cabeçada no estômago. Para quê? Danei-me todo! Prendeu-me, assoviou, só me soltaram na Ponte Carioca, depois que lhe pedi desculpas. Todos riram. Então o Terêncio disse, acendendo um “destronca-peito”: — Isso não é nada. E o Gomes da Pagadoria Fixa! Esse é autoridade mesmo, trata a gente como se fosse Rothschild. Secamente, altivamente. Tenho vontade de fazer-lhe cócegas. — Como é, Noraldino, conta aquela anedota do inglês artilheiro! — Ahn. — E o Noraldino a contar uma das suas patuscas anedotas, em gíria. E outra. Mais outra. Uma in nidade delas. Mas chegou o tenente Faria, tive que tocar para a guerra. A Torre Inclinada lá cou com o Vital e o Cláudio, alegrotes, a quererem ampará-la. No percurso, o Noraldino ainda contou algumas facécias. O tenente Faria achava graça. Mas do grotesco para o trágico pouco falta! A noite ia em meio, e eu no escuro procurava guiar cautelosamente. O Noraldino ainda contava anedotas quando parei em Fattoria para reabastecer o jeep. Havia formalidades a preencher, soubemos que o pessoal da

Manutenção acabara de fechar o posto por falta de essência e lubri cante que já estava aguardando de San Rossore. Fomos parar num bailarico cujos sons de harmônica nos chegavam duma casa hermeticamente fechada. Pares dançavam numa sala. Partigiani e brasileiros, com moças da região. Um verdadeiro esperanto funcionava como entendimento para bebidas, cantos e namoros. Dançava tudo. Até as candeias dependuradas no teto fumarento. Um tenor estentórico não pôde cantar sua mandolinata porque os pracinhas não deixavam. Mas o Adroaldo, o locutor, comentarista e tradutor de notícias captadas no rádio da Companhia de Obuses, enquanto o Astrogildo sozinho manobrava uma bateria de jazz, se pôs a cantar coisas do Noel Rosa, imitando Mário Reis, com perfeição. Foi um sucesso! Depois o Assunção fez um número imitando Mussolini na sacada do Palácio Venezia e uma algaravia imitando Hitler, com o competente bigode e os respectivos socos. E fez tão bem que um dos ouvintes, o cabo Aristeu, um chocado de guerra que saíra dum hospital de restauração psicológica, teve um acesso, danou-se a quebrar tudo quanto era garrafa, e mandar diretos nos queixos dos partigiani, a virar cadeiras, balcão, lâmpadas e harmônicas. Aquilo, no escuro, era grotesco, em meio à gritaria das mulheres e os baques no chão e nas paredes dos partigiani acuados. Resultado: de manhãzinha, já com o “Quebra-Galhos” abastecido, fui levar o Aristeu, um estudante de loso a barbado como um Rasputin e forte como um mujique, até ao hospital de triagem de Pisa. O Noraldino e um tal Garcia procuravam imobilizá-lo, enquanto eu descia em velocidade tal que quase, numa curva, nos aconteceu cair num grotão onde uma ribeira só nos apresentava penhas e lajes! Enquanto isso, ora caindo para um lado do jeep, ora para o outro, o Aristeu, agarrado pelos pulsos, debatendo-se, clamava: — “Vi um anjo em pé no sol! Vi a Besta, os reis da terra e seus exércitos reunidos... Vi um anjo descendo do céu, tendo a chave do abismo e uma grande cadeia na mão. E ele se apoderou de Satanás e o amarrou por mil anos!” — Está bem. Então vai ser ótimo! — redarguia-lhe o Noraldino. — Por que esse escarcéu, então! Mil anos de paz, menino, que mais quer você? Quieto aí. E eu me lembrava de novo da expressão de Habacuc, mas sem delirar como o bom do Aristeu: “Tendes os olhos puros demais para ver o mal e enxergar a iniquidade”. Como é que se joga a mocidade neste absurdo? Como

não hão de estar repletos os grupos suplementares do Serviço de Saúde em suas seções de restauração psicológica, se só o troar da artilharia já basta para desequilibrar um cérebro? Entregamos o Aristeu a braços que não o afastarão da hecatombe, mas que lhe toni carão os nervos para voltar ao teatro da catástrofe. É o que esperam estes acidentados que vejo na enfermaria com aparelhos de gesso. Foi o que me declarou aquele médico ianque, que sabia bem curar estados histéricos, ansiosos, fóbicos, convulsivos, neurastênicos, debelar com arte mágica as organo-neuroses e as neuroses traumáticas. É o que espera aquele indivíduo que tem sobre si, como um helicóptero, uma engrenagem de os, pás, roldanas e carretilhas, com algarismos escritos embaixo dizendo em que data, já submetido a massagens e exercícios, poderá voltar. Sim, somos poucos, só três Escalões, só quinze mil homens; os outros, que serão talvez uns dez mil e que chegarão para o inverno, ainda terão que se adestrar. Ainda bem que a ciência colabora. Seu intuito precípuo, sabe-se, é realizar, através de investigações, meios e modos de estabelecer o bem-estar da humanidade e o convívio fraternal dos povos. Venda à prestação de geladeiras, rádios, automóveis, pois não é o mesmo? O Mílton, lá no Rio, não sabe de cor os milagres da química expostos por William Haynes? O Lauro não sabe o romance da aviação, a conquista dos ares muito bem catalogada por um tal Karlson? Não existe alhures um sujeito com o nome de Paul de Kruif que em brochuras de 15 por 22 nos ensina a ler no ônibus “O Combate pela Vida”, “A Luta contra a Morte”, “Os Vencedores da Fome”? Bem. Vou voltar num jeep para a frente de batalha já numa outra província italiana. Os sucessos do Vale do Sérchio me conferem o título de “veterano”. E enquanto subo e desço montanhas vendo ruínas recentes, algum estudante bem-comportado se vai inteirando lá no Brasil, de coisas assim: Explosivos na Guerra e na Paz. O Combustível do Futuro. O Mundo das Matérias Plásticas. Borracha de Laboratório. A Era dos Eletrônicos. A Usina Atômica. O Motor a Turbojato. O Betratônio. Minha avó Virgínia, que já sofreu no sangue, na carne, na alma e no espírito, ensaiou apartar-me, procurou criar-me numa extraterritorialidade, pois sabia que não só os políticos totalitários e conservadores, os EstadosMaiores e as místicas, estavam tornando isto um matadouro da mocidade, mas também os laboratórios de pesquisas. Hoje já não se morre, se estoura! Bem, pois lá vou eu para o estouro!

Se a minha geração servir para liquidar um estado de coisas, bem. De fato o que está aí não pode continuar. E está acabando uma experiência de guignol maciço. De modo que aqui vou eu no jeep para fazer qualquer coisa in nitesimal em bem do mundo. Se os “tais” carem amarrados por mil anos, como acredita o Aristeu, ainda bem. É verdade que o Almeida, por exemplo, colono na Alta Paulista, veio para a guerra, e o japonês para quem ele trabalhava colhendo algodão continua indo em Marília à sessão de cinema das sete às nove horas para ver como estão as coisas nas Ilhas Salomão... É verdade que o Ludovico deixou a fábrica dum fascista em Santo André e sabe de cor os lucros, não confessados por inteiro, do último balanço... Que reação tola é essa tua, Fernando? A nal não terás sorte bonita como Psichari? Como Péguy? Ou mais ainda, como Apollinaire? Olha, rapaz, que poderias estar num campo de concentração... Ou vogando desde dias num barco de borracha no Pací co. Ou acuado entre lordes e condessas sardentas num subterrâneo da Crommwel Street. Ou ouvindo Jaspers provar que o desespero é uma crise através da qual o homem pode alcançar também a sua “existência autêntica”. Pois então! A nal, estiveste em Florença, percorreste santuários, embasbacado para tetos e retábulos, cúpulas e mausoléus, adquiriste mesmo uns postais de obras-primas da Renascença que estudaste com atenção e prazer, talvez acabes indo até Ravena onde pegarás no chão pantanoso alguns pedacinhos de mosaico de Santo Apolinário ou de São Vital. Quem sabe se ao vir a paz não terás um estágio fácil em Assis?... Não lá dentro das duas igrejas; não junto ao poço de Santa Clara. Mas ali fora, na relva, para que sejas perdoado. Talvez voltes ao Brasil e, no fundo de tua consciência, lá no recesso mais duro, embora chegues com a falta duma perna (para que há muletas, matérias plásticas? Hoje se faz o diabo com o alumínio!), tenhas certeza de que cooperaste para amarrar o inimigo por mil anos. Então, embora tua avó Virgínia ao beijar-te no rosto disfarce para não sentires o seu horror ante tua plástica de maxilar, lhe poderás mostrar, sorrindo um sorriso deformado por cicatriz, que lhe trouxeste um presente. Qual? Qualquer coisa. Por exemplo, encravada num anel de ferro, uma lasquinha de pintura de Stefano di Giovanni. Sim: São Francisco, a Caridade, a Pobreza e a Humildade. Mas Fernando, isso já não está aqui nestas bandas. Já foi faz muito para o Museu Condé, em Chantilly.

Com a breca! O quê, então? Destino, espera um pouco. Deixa que eu mande num envelope, para minha avó Virgínia, um pouco de terra de Siena. Deixa que eu receba de minha avó Virgínia um pouco de terra do quintal da nossa antiga residência no Jardim Botânico...

XVII VIGÍLIA NO PROMONTÓRIO

NO FIM do ano, aquela comunicação do Ministério da Guerra (levada pessoalmente pelo major Aurélio): Fernando sumira!... Virgínia recolheu-se aos seus aposentos. Não que se isolasse pois eles davam sobre o oceano e essa era a vastidão de que ela precisava para esperar, con ante, a alvissareira notícia (já que a guerra devia estar no m) do encontro de Fernando como prisioneiro. Conforme prometera, o major Aurélio voltou seis dias depois, avisando antes por telefone, para entregar-lhe um mapa pormenorizado da região Monte Castello — Castelnuovo, com anotação das variantes desde 29 de novembro até 12 de dezembro. E assegurou sua esperança de poder em breve vir trazer uma comunicação da descoberta do paradeiro de Fernando. Assim, munida dum informe topográ co, Virgínia de certo modo entendia os dizeres referentes à ação de 12 de dezembro. Dessa forma compreendia melhor certos fatos e dispositivos cuja terminologia antes a confundia. Sabia que as expressões V Exército e IV Corpo do Exército signi cavam não coisas distintas ou congêneres mas sim um todo e um determinado pormenor deste todo. Que o V Exército (cujo comandante era o general Mark Clark) era parte do XV Grupo dos Exércitos Aliados (comandado pelo marechal Sir Alexander), a outra parte sendo o VIII Exército Britânico. Que o dito V Exército contava três Corpos de Exército, o II e o IV comandados pelos majores generais Keys e Crittenberger, e o XII, comandado pelo tenente-general Simpson. Que a Divisão Brasileira que fazia parte por sua vez do IV Corpo do Exército, estava então enquadrada entre a 6.ª Divisão Sul-Africana e a Task Force 45 na presente área. Mas tais especi cações, bem como a compreensão de que o Monte Castello constituía uma espécie de garupa do maciço Della Torraccia —

signi cando um baluarte mais agressivo do que só defensivo tendo a seu dispor quase sem misericórdia longo trecho da estrada 64 — acabaram criando no espírito de Virgínia a quase certeza de que o neto morrera. A palavra desaparecimento era a bem dizer um eufemismo caridoso. O major Aurélio explicara: Fernando partira no General W. A. Mann como estagiário ou melhor, adido do 6.º Regimento por necessidade de intérpretes a bordo; mas, bem depois da ação no Vale do Sérchio, isto é, quando da entrada da sua primitiva unidade — o Regimento Sampaio — no campo de operações, volvera à sua Companhia. Assim, achava-se em combate na investida de 12 de dezembro. E o major deu mesmo informe de natureza um tanto secreta, quanto a pormenores extraídos não só do Quartel-General. Isto é, que o comando do IV Exército cometera à 1.ª DIE a missão de capturar o maciço noroeste de Monte Belvedere inclusive Monte Castello para desafogar a situação crítica da estrada 64. Que a nossa 1.ª DIE se articulava numa frente de quase quinze quilômetros em zigue-zagues, devido aos acidentes locais e contava com elementos ianques também na primeira fase da investida, isto é, a 29 de novembro. Que nos baluartes a cavaleiro do maciço se encontravam vários regimentos de infantaria alemã, tais como o 1643, o 1644 e o 1645, en m tropas veteranas e de escol da 232.ª Divisão de Infantaria. Que o primeiro ataque frustrado não constituíra propriamente uma derrota, devendo a di culdade máxima ser atribuída ao estado do terreno escarpado que as chuvas de dias antes haviam tornado escorregadio. Ainda por cima a escalada para a ação se efetuara à noite, em marcha de vinte quilômetros, que todavia tinha exigido quase oito horas de escalada. Não, derrota, não. A artilharia do general Cordeiro de Faria atuara de modo categórico e sistemático, operando em conjunto e colaborando com diversos batalhões, principalmente o do major Uzeda e o do major Cândido. Mas que este último se vira na contingência de recuar por causa das perdas e utuações do primeiro, submetido a implacável bombardeio. Derrota não, pois não utilizáramos o batalhão do major Silvino nem a reserva do 6.º; leis comezinhas de tática obrigaram ao reajustamento do dispositivo. Mas... E Virgínia escutava com o maior empenho. Mas, (e isso era segredo que ele con ava a uma senhora de 65 anos, só por achar que lhe devia uma explicação moral) que a decisão obstinada do

V Exército de retomar a ofensiva antes do rigor do inverno, obrigou nossas forças a reconsiderar a responsabilidade con ada. Assim, no dia 10, a ordem n.º 11 de Operações, não obstante os últimos temporais que reduziam o retículo de acesso a um lamaçal, e não obstante o índice de visibilidade reduzido quase a teto zero (se assim se podia dizer) impossibilitarem os disparos certeiros da Artilharia de apoio, determinara que os batalhões do major Franklin e do Major Syseno investissem com meia hora de intervalo entre um e outro, devendo pois atingir os objetivos ao raiar da manhã de 12. O III batalhão alcançou Le Roncole e Guanella (o major mostrava no mapa) na hora aprazada, não conseguindo porém o II Batalhão chegar a não ser com certo atraso, quando uma indiscrição incompreensível da artilharia norte-americana (apesar do sigilo combinado), isto é, seu repentino martelamento de Monte Belvedere, já alertara de modo enérgico o inimigo. Assim, duas companhias foram recebidas com tiros de morteiro, sendo obrigadas a colar-se no chão onde fogos de ancos de metralhadoras cimentadas nas bases de Abetaia as castigaram duramente. Devido a isso fora posta em ação uma reserva. Desta forma, enquanto parte dum batalhão era massacrado de chofre pelas descargas ininterruptas de Abetaia, ali mesmo em Guanella e La Ca, o batalhão que chegara mais cedo ainda pôde transpor a barragem, procurando apoderar-se do paredão. Alguns dos seus elementos chegaram mesmo rente ao terrapleno e, ou foram mortos, ou aprisionados. Os mortos parece que foram trazidos todos. Parece... Para cúmulo de ironia da sorte, o nosso Ministro da Aeronáutica estava nesse dia no Q.G. Avançado de Porretta Terme, junto com o general Crittenberger. — A ele, minha senhora, devo as minúcias de tal ação, minúcias estas que pouca gente, mesmo no Quartel-General, talvez saiba ao certo. Seu neto Fernando foi dos que não voltaram. Sem ele se desfalcou o I Batalhão do 1.º Regimento de Infantaria dum de seus valores mais especí cos. Contemos que com a tomada de Monte Castello (acrescentou abaixando a voz) depois das agruras deste inverno e com maior número de efetivos em frente tão ampla e acidentada, tenhamos esclarecimentos sobre o paradeiro de Fernando... Mas não lhe disse que o número de baixas na primeira semana do mês de dezembro fora de 84 mortos, 267 feridos, 146 acidentados e 22 extraviados...

*** Duas vezes por semana Virgínia telefonava para o Quartel-General a m de saber do major Aurélio se chegara alguma notícia. Ele respondia com muita solicitude que... não, por enquanto, mas que con asse. Jurava quase que Fernando caíra prisioneiro; prometia aparecer em breve. E de fato uma tarde apareceu, mas para dar informes que a bem dizer não interessavam quanto a fator otimista, pois que se as tropas aliadas representavam um total de 26 divisões na Itália, as inimigas ainda eram de 22, e comandadas por uma raposa como o general von Vietinghoff. Mas havia uma notícia tática de grande importância, talvez decisiva no setor em interesse: o breve emprego da 10.ª Divisão de Montanha. Decerto tomaria de roldão o triângulo Belvedere — Gorgolesco — Della Torraccia. Outra novidade: A nossa aviação aniquilara a resistência inimiga em Mazzancana. En m: os companheiros de Fernando — sim, a gente intrépida do 1.º Regimento e a gente brava do II — iam em breve tomar Monte Castello. Lá isso ele vaticinou certo. Pois daí a dias os jornais e o rádio deram a queda de Monte Castello. 21 de fevereiro de 1945. Virgínia ouviu pelo rádio, Constança atreveu-se a subir e a car ouvindo também, já que pela primeira vez a porta cou aberta. E depois chegou o mano Maurício, com os jornais; e os três não saíram de perto do aparelho. A operação de Monte Castello, narrada com a secura duma notícia telegrá ca, não obstante o brio do locutor e as manchettes enormes dos vespertinos, tinha grá ca e acusticamente um sentido de regozijo para a nação toda, mas não desafogava a ânsia de Virgínia. No dia 23 telefonou para o Quartel-General como quem telefona para a portaria duma Casa de Saúde. Sim, pois então, caíra Monte Castello! Ele não previra, não garantira? Pormenores estariam a chegar. Dona Virgínia seria das primeiras pessoas a receber minúcias e oxalá... alvissareiras, pois então! Dois dias depois, não do Quartel-General, mas de sua própria residência, o prestimoso major Aurélio telefonou e deu uma série de notícias consoladoras. Que a investida assumira caráter de tal importância que no PC brasileiro de Gadelle o nosso chefe recebera as visitas dos tenentesgenerais Mac Narvey, Mark Clark e Lucian Truscott; isto é, em suma, do chefe das Unidades ianques em Operações no Mediterrâneo, do comandante

do XV grupo de exércitos e do comandante do V Exército. Mais, ainda: do major-general Nélson, do major-general Cannon, do major-general Crittenberger, isto é, do chefe do EM do general Mac Narvey, do chefe da 15.ª Força Aérea, do comandante do IV Corpo de Exército. Bem como do reputado correspondente de guerra Lawrence Taylor... Sim, isso signi cava alguma coisa, apesar da ironia de tantos nomes menos o do quase anônimo pracinha Cintra... Signi cava que aquele setor não cara abandonado sobre a neve e que os extraviados da peleja de 12 de dezembro haveriam, de qualquer modo, de ter seu paradeiro conhecido e determinado depois das operações de limpeza, interrogatório de prisioneiros, etc. Se Fernando estivesse nalgum campo de concentração para lá do Pó ou dos Alpes, en m na Itália ou na Alemanha, mesmo enquanto não fosse libertado, alguma notícia positiva se teria. *** Mas um dia chegou por via aérea o Diário de Fernando; um diário desde os tempos em que estivera como convocado no Regimento Sampaio. Desde o tempo em que lhe escondera que fora discriminado para a FEB. Desde os seus estados de alma íntimos até à partida. Desde a invocação ao Mediterrâneo até à chegada a Nápoles, a estada em plena cratera entupida do Astrônia, alimentando-se de ração tipo C e bivacando ao relento na paisagem neutra de Bagnoli. Uma espécie de diário irregular onde os informes locais e técnicos se alternavam com divagações líricas, saudades densas, entusiasmos breves, ânsias de superação, relatos de batalhas, a estreia e o batismo de fogo no Vale do Sérchio, depois das peripécias em Tarquinia e em Vada, a transferência para o vale do Reno. Virgínia leu tudo dum só folego; depois releu gradualmente, inteirando-se bem. E emprestou a Maurício, exigindo porém que não levasse lá para baixo. E telefonou para os três amigos mais íntimos de Fernando, tomada agora duma nova esperança, quase da certeza de que ele estava prisioneiro. Marcou encontro com os três companheiros do neto, e acolá na sala, com os três sentados no sofá como assistência ávida e atenta, fez um deles ler alto aquelas páginas, sorrindo, comovendo-se, empolgando-se. Depois desceu com eles para o parque, acompanhou-os até à praia, falou, falou, rememorou-lhes as vindas aos cômodos de Fernando, os alegres

domingos e feriados ali na areia e nos penhascos, os exercícios de natação, as vezes em que Fernando no avião Culver passava rente da pérgola, acenando, com um estridor de besouro, depois sumia bem alto lá para a Gávea, indo para os campos de Sernambetiba, ou até as ilhas, depois voltava e evoluía sobre a ponta do Marisco... Ou quando na lancha “Ibonocori” vinha lá da Urca, beirava Copacabana e Ipanema, o Leblon e Niemeyer, tirava uma reta para a ilha das Palmas, de lá aproava para a Ilha do Meio e por m surgia entre bigodes de espuma diante do promontório para nalmente descer na praia particular (ali onde estavam agora) e subia com os amigos, cheios todos de fome, como canibais, berrando para a Luzia, chamando a Constança, exigindo o almoço!... Convidou-os para o jantar, o primeiro que tomava ali embaixo na sala desde a comunicação ambígua. Que hora de trégua, cada qual a recordar um fato típico de Fernando! Lauro sabia dessa história de Albatroz, mas o chamava ainda e sempre de Logaritmo, servindo-se da expressão do velho Maurício. À saída dos amigos de Fernando, Virgínia pediu a Mílton que casse, porque desejava encarregá-lo duma certa missão... como mais velho que era. Os outros foram embora arranjar transporte em São Conrado e Mílton cou na biblioteca onde dona Virgínia, sentando-se, lhe disse: — Mílton, diga-me qual é o seu pressentimento a respeito de Fernando... Acha que ele caiu prisioneiro? — Menos que isso. Deve estar talvez homiziado nalguma casa aí nessas paragens que vejo no mapa do vale do Reno. Em La Serra ou Caselina... — Absolutamente. Trata-se duma região provavelmente abandonada pelos habitantes. Demais a mais, La Serra e Caselina distam muito do ponto onde ele sumiu. O meu Fernando chegou ao topo de Monte Castello. Pergunto-lhe apenas isto: acha que ele morreu ou que caiu prisioneiro? — Pelo que tenho ouvido falar, o serviço de padioleiros da FEB é feito com muito critério e escrúpulo. O Pelotão tem sempre recolhido todos os corpos, tanto assim que em Monte Prano, em Pruno e na cota 540, em setembro do ano passado, não cou para trás um só ferido ou um só morto... o mesmo se podendo dizer, como me a ançou o major Aurélio, quanto ao primeiro revés nacional no m de outubro em Albiano e Los Rios. Até então só houve 13 mortos, tendo caído prisioneiros alguns, conforme se

soube. Dona Virgínia compreende, eu me tenho informado ativamente. Ora, como nós temos feito prisioneiros (por exemplo, no Vale do Sérchio zemos duzentos e tantos), natural é que os nazistas façam também... — Então, Mílton, você acha que Fernando está prisioneiro... Não seria possível por intermédio diplomático... por exemplo, através da Suíça, de Portugal... se fazer uma investigação nesse sentido? — Vou cogitar disso, dona Virgínia. Ignoro a modalidade, mas vou informar-me direito. — Faça-me esse favor. Outra coisa: tenho receio que o Lauro procure aquela criatura, a Claire, sim... a Nanny, e lance alarma no espírito da moça. Minha consciência até me punge às vezes, desde que ele partiu, de não lhe remeter informes sobre Fernando. Recebi cartas dele de Nápoles, de Agnaro (que creio que ainda é em Nápoles ou imediações), de Litória, de Tarquinia, depois algumas de Vada, uma de Caserta, outra do período de estágio não sei onde que ele fez na Divisão Blue Clover. Vejamos se me lembro. Espere... No 442.º RI da 34.ª DI... Não, não. Minto! No 349.º RI da 88.ª DI. A última correspondência me veio através dos costumeiros elos desde a linha de batalha até à retaguarda, pelo Serviço Postal da FEB. Mas as últimas cartas vinham com carimbo da Estação Reguladora e com visto da Seção Postal da 1.ª DIE, mas sem a localidade de partida. Creio que de Lama di Sotto, dedução que faço pela data, 31 de outubro. Você sabe, sou estrategista a distância, cá ao meu modo. Bem, mas como ia falando, se recebo... se recebi cartas, natural é que essa criatura também tenha recebido... Ainda assim, meus escrúpulos ultimamente, com o comunicado que recebi do desaparecimento de Fernando, se têm agravado, porque a nal de contas co, além das apreensões que me amarguram, com pena dessa moça... Eu soube incidentalmente, primeiro por Maurício, depois pelo próprio Fernando, da existência desse caso na vida de meu neto e aqui nesta sala, quando ele me confessou que ia partir, indaguei coisas... dei mesmo ensejo a que ele me esclarecesse quanto a qualquer responsabilidade ou compromisso com Nanny... Sei que ele a deixou bem, na questão material. Mas, é claro que essa mulher merece e é digna, seja como for, dum conforto moral... digamos espiritual... Fiz-lhe ver que, se tinha na consciência algum problema sério com referência a ela, agisse decisivamente de modo a car sem nenhum...

digamos... complexo... Ele entendeu o que eu quis dizer. Mas, dizia eu, não vale a pena sobressaltar essa criatura. Você conhece-a? — Conheço, sim senhora. — O Lauro também, não é? — Sim. Nós três. Ela tem recebido cartas, telegramas. A última carta foi, conforme o carimbo do envelope, da localidade de Crociale... — De Crociale? Então é relativamente recente. Deve ser de inícios de novembro. — Sim, senhora. Parece que é de começos de novembro. — Como está essa criatura? Quem é, a nal? Que espécie de alma, de sensibilidade? E, como vida, como origem, como sentimento...? Que idade tem?... — Dona Virgínia, ela me dá a impressão duma dessas criaturas que tem as qualidades típicas da mulher francesa. Experiência humana, intuição, apego. Creio que adora Fernando. Vive em casa, só sai para algum cinema, para a praia, isso mesmo comigo ou o Lauro, e lá uma vez ou outra vamos os três a algum restaurante, a algum bar... onde o assunto é Fernando... Deve ter uns vinte e oito anos. — Diga-me com franqueza: ela merece meu neto? Como caráter? Como alma? — Em tudo e por tudo. Dedicação. Inteligência. Comportamento. Delicadeza de alma... — Ele... vivia com ela?! — Bem, isso... — Diga! Não é curiosidade minha. A vida é a vida. Eu não posso desinteressar-me por essa criatura! Entende, não? Mílton cou a olhar para o chão, e dona Virgínia compreendeu. — Está bem. Não se deve a igir essa moça. Faça ver isso aos demais amigos de Fernando, que a conhecem também. Esperemos uma notícia certa, de nitiva. Ela não tem pressentimento nenhum? Vocês não aludiram a nada? — Absolutamente. — Pode-se contar com a discrição do Lauro? Acho-o precipitado... — Esteja tranquila, dona Virgínia. Mas, a nal Fernando está desaparecido, extraviado... Caso chegue algum informe ruim... que acha a senhora que devamos fazer, nós, os amigos de Fernando e Nanny?

— Que é que devem fazer? Deixar tudo a meu cargo.

XVIII O QUARTO SARCÓFAGO INÚTIL

ÀS ONZE horas da noite, o telefone tocou. Virgínia atendeu. Uma voz disse, com a delicadeza esquisita de quem procura com impossível neutralidade transmitir um recado. — É dona Virgínia? Fala aqui a esposa do major Aurélio. Meu marido pede licença para ser atendido agora. — Pois não. — Está bem. — E a pessoa desligou. Muito sobressaltada, Virgínia foi bater no quarto de Maurício e, não se contendo, depois de dizer que espécie de telefonema recebera, resolveu ligar para a casa do major. Mas ninguém atendeu, por mais que ela insistisse diversas vezes. Maurício veio fazer-lhe companhia. Como notasse o nervosismo da irmã, opinou: — Decerto quer dar informes recebidos. Tem-se mostrado tão solícito e prestativo! Contudo, ele próprio começou a car angustiado. Como não se sentissem bem ali na sala, saíram para o parque, pondose ambos a rondar as sebes de aglaias e as imediações do portão, muito atentos aos poucos carros que passavam. Logo se a zeram à treva, discernindo até as estátuas. Pareceu-lhes que o mar, lançando vagas cheias de estrondo, os apupava; resolveram pois voltar para dentro, cada vez se sentindo mais a itos, embora disfarçassem. E era como se a noite aos poucos fosse cando diferente, estática, colaborando para aquele estado de apreensões. Por m, cada qual lutando com seus pensamentos, ouviram nitidamente um carro parar na estrada e, dentro de instantes, viram dois vultos se dirigindo para a escada. A verdade é que os dois irmãos não se levantaram para recebê-los. Maurício, por atarantamento. Virgínia, porque de chofre lhe vieram duas reminiscências

lancinantes: uma, a chegada de dois o ciais de Marinha certa manhã de janeiro de 1906 para comunicar o sinistro do Aquidabã; outra, a entrada de Maurício e de Anselmo, em maio de 1930, em noite assim, para participar a queda de determinado avião no estuário do Prata. Os dois vultos de niram-se: eram o major Aurélio e o engenheiro Nunes, que entraram e cumprimentaram com automatismo hirto e, ante um gesto de Maurício, se sentaram. O primeiro a falar foi o pai de Emília. — Vim acompanhar o major Aurélio. Telefonou-me por volta das dez horas pedindo para eu passar em sua casa. E combinamos que sua senhora telefonasse para aqui avisando que... En m, trata-se duma triste missão. — Voltou-se para o major, como a dar-lhe a palavra; e este disse, com os olhos voltados para o chão: — Infelizmente, recebemos comunicação o cial — e Deus sabe quanto me custa vir transmiti-la a meus bondosos amigos — de que o expedicionário Fernando Gama e Cintra, do Regimento Sampaio, na ação de 12 de dezembro, quando o I Batalhão do I Regimento chegou perto de Monte Castello, conseguiu com mais alguns companheiros atingir o topo do baluarte inimigo, sendo metralhado e morto. Só agora, muito recentemente, isto é, no dia 23 de fevereiro, dois dias depois da tomada desse reduto por nossas forças, é que o corpo foi encontrado e identi cado pelos padioleiros Tancredo e Varela. — Ergueu os olhos para Virgínia, cou tão zonzo que, sem querer, alvarmente, como quem após uma descarga já de si fatal ainda se alvoroça e dá o último tiro, isolado e redundante, acrescentou: — Esteve insepulto mais de mês... — Logo se arrependeu deste pormenor lúgubre em meio àquele marasmado silêncio, que procurou fugir de condição tão chocante e ajuntou outro pormenor, este agora meramente protocolar: — Foi condecorado postumamente com a Medalha de Guerra, a Medalha de Campanha, a Cruz de Combate de 1.ª Classe... e isso não obstante as demoras que decorrem da de ciência de legislação a respeito, a ponto de quase lhe ter sido conferido antes a Silver Star Medal. — Calou-se, com as mãos nos joelhos. Depois, perplexo, com a sionomia alterada, olhando muito para o jardim, como se sentisse falta de ar, e fazendo menção de sair, explicou: — Vou até ao carro buscar minha mulher e dona Laurinda. Não tiveram coragem de entrar conosco... Saiu para a noite, cheio de angústia, quase cambaleando.

Quando voltou, após dois minutos, com a própria esposa e a avó materna de Fernando, deu com Virgínia sentada entre o engenheiro Nunes e Maurício. Ela estava com a cabeça apoiada no espaldar do sofá, a efígie deformada por uma dignidade trágica, só tendo de condição humana as lágrimas que lhe corriam pelo rosto abaixo. Pobre Virgínia! Sentia em todo o seu ser o que já experimentara em 1906, 1918, 1923 e 1930... Com a morte do neto, tornava a chorar as mortes do marido, do pai, da nora e do lho. As duas mulheres pararam, sem ânimo para nada. Não disseram palavra, não a abraçaram; apenas se ampararam uma à outra, diante daquela criatura que quis levantar-se com as mãos viradas para cima como para aguardar o peso amorfo e tisnado do corpo de Artur... como se tasse a noite preparando-se para suportar o choque dum avião cuja frente fosse o peito de Carlos de braços abertos segurando as tochas de dois motores... como se fosse dar um passo para inclinar-se sobre os despojos insepultos do neto... E, de fato, se levantou, apoiada pelos dois homens que a ladeavam. Estes caram em pé, enquanto ela deu uns passos para a escada interior, que conduzia aos seus aposentos. Então as outras duas mulheres subiram com ela, arrimando-a. Ao invés de entrar em seu quarto, se encaminhou para a amurada, olhou a treva reboante, sentou-se naquela atalaia e cou vendo na tela in nita as cenas superpostas de seus sofrimentos máximos. Quando não pôde mais, baixou a cabeça entre os braços e chorou convulsivamente. Poder chorar é uma espécie de misericórdia concedida. Não adianta nada. Só cria uma solidão maior, total, onde o ser se esconde dos testemunhos. Enquanto isso os três homens andavam lá fora, pelo parque escuro, e conversavam compungidamente. Maurício referiu-se ao Diário que chegara dias antes por via aérea. E o major, cada vez mais sem jeito, se apegava a qualquer pretexto para esquecer a acabrunhadora situação em que se sentia pessimamente: — Ah! Nosso serviço de Tarefas da Retaguarda já se está aperfeiçoando. Aliás, é intento do Governo consultar sempre os interesses dos membros da FEB e de suas respectivas famílias. Pensa-se em organizar o mais breve possível um conjunto de repartições subordinadas ao Inspetor Geral do I Escalão. O professor não faz ideia do que seja o montante de incumbências da retaguarda. Estabelecer ligação perfeita e uente com Caserta ou Livorno. Com Pisa, Florença e Nápoles. Com a MTOUSA. Com

a AFHQ. Com o PBS. Daqui, só nos lembramos da frente de batalha. É natural. Entende-se. Mas, num caso destes, por exemplo, já agora a família se desliga daquilo lá e passa a ansiar logo pelas coisas do expedicionário, como lembranças queridas; espera com a ição cartas dalgum companheiro relatando minúcias. Faz-se mister organizar deveras quanto antes em moldes perfeitos e rápidos o OND onde os problemas da retaguarda não quem congestionados. Do contrário, como se manter ligação direta e pronta com o Medical Center, com os hospitais norte-americanos, com o departamento de Neuro Convalescence, com a General Station, com o Evacuation Hospital, com os acantonamentos de trânsito, com os transportes aéreos e marítimos, com a armazenagem de material a remeter para a frente, com o serviço postal? O engenheiro Nunes ouvia aquela lenga-lenga, mas se preocupava com Virgínia e Laurinda, queria subir, não tinha coragem. E o tempo passava. Em dado instante Maurício se lembrou de telefonar para Lauro, Júlio e Mílton, os amigos de infância e juventude de Fernando. E, enquanto foi tratar disso, o engenheiro Nunes cou ouvindo o major emitir opiniões sobre os últimos êxitos espetaculares dos Aliados. A queda de Monte Castello, facilitando o acesso para Bolonha. A ofensiva de Youkov, os progressos na Galícia e na Ucrânia. O efeito da libertação de Novgorod e de Narva. A invasão da França. O assalto às Filipinas. Quando os rapazes chegaram, não tiveram coragem de subir; permaneceram no estúdio e nos aposentos de Fernando, como se o velassem. O major Aurélio cou com eles, a explicar o que sabia. Maurício e o engenheiro Nunes subiram para perto de Virgínia, depois se instalaram na sala. A criadagem, reunida na copa, cochichava e chorava. Amanhecia com um livor violáceo na serra e com tonalidades de nata no mar quando o major e a esposa se retiraram. Agora, os rapazes conversavam a respeito de Nanny que se achava num ponto qualquer de Itatiaia, havia já duas semanas, em companhia duma amiga. Não seria bom se aconselharem com o velho Maurício? Os avós maternos de Fernando faziam companhia a Virgínia, enquanto Lauro e Mílton telefonavam para outros amigos, artistas, universitários, poetas, companheiros do Iate Clube, relações de Copacabana,

contemporâneos da Vila Militar, jornalistas. Não tardou que alguns deles fossem aparecendo. *** Após o atarantamento daqueles dias e daquelas noites, os rapazes começaram a misturar o drama de Virgínia com o de Nanny. Compreendendo isso, Maurício reuniu-os no estúdio (de cuja ampla janela viam Virgínia sentada junto à amurada do promontório vigiando o mar) e lhes disse: — Em meio à sua desdita, ela tem sempre perguntado por Nanny. Que é que podemos fazer? Lauro explicou: — Tenho ido de manhã e de noite ao apartamento da rua Tonelero. Nanny ainda não voltou. Fiz tudo para descobrir se estará nalgum hotel ou fazenda. Mandei o Telmo, trasanteontem a Resende e Itatiaia. Telefonou-me de lá duas vezes, sem ter conseguido localizá-la. No edifício de apartamentos e na roda restrita de relações tanto dela como da amiga só sabem que foram para a Mantiqueira. Nisto a Constança veio avisar que estavam chamando ao telefone um dos moços. Lauro foi atender. Voltou e disse: — É o Telmo, avisando que ela chegou. — Com ele? — Não. Ele chegou ontem à noite. Mas agora de manhã, ao ver as janelas abertas no apartamento, entrou e perguntou ao porteiro; este respondeu que ela acabara de chegar, e que até lhe ajudara a subir a mala. — Esse Telmo... e o porteiro sabem dalguma coisa? Isto é... — Não. Não sabem de nada. — Bem. Mílton, você aí, vá telefonar para Nanny. Arranje um meio de dizer-lhe que venha até aqui, imediatamente. Você, não Lauro. Sua voz poderia traí-lo. Os quatro foram para a extensão telefônica e Mílton fez a ligação. — Alô! Quem fala? Nanny...? Quando chegou? Então isso se faz, não deixar endereço com ninguém?! Onde? Num acampamento nas Agulhas Negras? Com este tempo? Escute! Gostou? Distraiu-se? Nervosa?... Por quê? Ahn. Pois não tem sucedido receber três e quatro cartas juntas depois dum

grande intervalo? Quem? Dona Virgínia? Vai bem. Tem perguntado sempre por você. Tem, sim. Foi ela, justamente, quem me disse para telefonar-lhe. Chegou um registrado de Fernando, uma espécie de Diário abrangendo todo esse tempo; coisa muito interessante. Dona Virgínia quer que você venha buscar para ler. Sim, tem manifestado desejo de conhecê-la. Quando? Está muito cansada da viagem? Pode ser agora. A manhã está bonita. Ouça: dona Virgínia está aqui ao meu lado dizendo para você vir já. Como? A selva a barbarizou? Isso é galicismo, menina. Qual cabeleireiro e manicura coisa nenhuma! Venha assim mesmo. Que ideia postiça quer dar de si a dona Virgínia? Está bem. Tome um carro que eu peço licença para pagar. Como? Está rica? Ótimo, então. Eu a espero no portão. Você conhece isto aqui! Trouxe tantas vezes o Fernando! Sentaram-se no parque, entre as aglaias. Maurício perguntou onde estava o Júlio. Mílton respondeu: — Saiu de manhã para a Barra da Tijuca. Anda esquisitíssimo, estes dias. Levou o jardineiro. Decerto aparecem na caleça transportando alguma pedra enorme ou algum tronco descomunal. Lauro, nervoso, se levantou. — Não co aqui. Não tenho coragem de assistir à entrada de Nanny. Que é que se vai dizer a ela, meu Deus? — Nada. Temos que não lhe dar a entender coisa nenhuma e levá-la até dona Virgínia e fazer as apresentações. O resto... — Vou lá para baixo me esconder na “Ibonocori”. Não tenho coragem. Que coisa medonha! Como é que essas duas criaturas vão suportar este encontro? Como é que dona Virgínia vai explicar o que sucedeu? Vou lá para baixo. Aqui, não co. E desceu a rampa, chorando. Maurício e Mílton caram ainda algum tempo no bosque, vigiando de longe o portão, até que acharam melhor ir falar com Virgínia, lá no promontório. Entraram e subiram. Lauro não suportou a solidão lá embaixo. O estúdio, o galpão, os automóveis, a lancha, as estátuas, evocavam de tal maneira a lembrança de Fernando, que chorando ainda, voltou, subindo vagarosamente a rampa. E estava já perto da entrada lajeada quando, ao tirar do rosto o lenço com que limpara as lágrimas, deu de frente com Nanny que entrava com ar

cerimonioso e atento. Logo procurou endireitar a sionomia, dizer mesmo qualquer coisa, mas sentiu os lábios se crisparem e novo pranto, incontido e convulso, o acometeu outra vez. Nanny apertou um pouco as pálpebras, examinou-o de relance e, ante a atitude vacilante, perguntou: — Que é? Que foi que aconteceu? Efeito daquela presença luminosa logo se turvando, ou consequência daquela voz meio nasal, de timbre singular, Lauro deu uns passos e, abraçando-a, escondeu o rosto em seu ombro, soluçando. Então Nanny procurou afastá-lo, tou-lhe a deformação em esgar, recuou, fugiu para o portão, saiu a correr para a estrada. A uns cinquenta metros, Lauro a alcançou. — Largue-me! Deixe-me!... — debatia-se Nanny. A bolsa lhe caiu no chão. Abaixou-se para apanhá-la e, quando se ergueu, seu rosto cou rente ao de Lauro que, vencido, fora de si, disse: — Nanny! O nosso Fernando... — Não me diga nada! Não fale! Pelo amor de Deus, não fale! E eis que os dois caram imóveis, paralisados na estrada, junto ao barranco, vendo chegar a caleça velha onde Júlio, com sua barba de louco, agitava as rédeas do alto da boleia, enquanto no assento de trás o Inácio segurava uma enorme raiz que parecia um monstro opaco em forma de imenso tubérculo. Lá da boleia, Júlio reconheceu Nanny; puxou as rédeas, ergueu-se, parou a caleça, disse qualquer coisa a Inácio. A caleça sumiu, descendo a rampa em direção ao galpão; e Júlio surgiu, por encanto, junto de Lauro e Nanny. Não disse nada. Apenas a abraçou e a levou vagarosamente para dentro. No meio do parque os dois, seguidos por Lauro, encontraram Maurício e Mílton. Nanny chorava com os punhos em cima das pálpebras, andando às cegas. Emocionadíssimos, os demais viram aquele jovem barbudo e aquela criatura em prantos passar em direção à varanda. E os dois subiram. E entraram. Bem devagar. Já da porta os demais, se aglomerando, os viram subir a escada interna. Em cima, uma porta à direita: os aposentos de Virgínia; e uma porta à esquerda: a entrada para o promontório. A atmosfera límpida parecia, vista através de lágrimas, uma superfície de vidro recebendo na sua candura, como uma decalcomania, o céu, o mar, as ilhas, a praia, os penhascos... Nanny olhou para tamanha vastidão e logo tornou a esconder o rosto porque do terraço veio para ela, na pura atitude lancinante de Hécuba, uma

criatura cuja dignidade trágica lhe deu calafrios. Quando essa mulher parou, com o semblante emoldurado por cabelos grisalhos, as mãos leais estendidas, Nanny se ajoelhou, escondeu o rosto naquela roupa preta e pôde dizer por entre soluços: — Não fale nada... Duas mãos a soergueram por baixo dos braços. O busto de Nanny ascendeu como um caramujo dúctil que saísse um pouco da concha; agora os dois semblantes, bem próximos um do outro, se olhavam com nitidez vagarosa, desde os cabelos até à alma recôndita, depois se abraçaram. Quando os demais chegaram até à porta, sofreram a in uência da vastidão que se abria diante deles. Um oceano verde e azul arfava, sem contudo modi car um milímetro a linha inexorável do horizonte. Avançando sobre esse oceano como um balcão shakespeariano, aquela cúspide com sua amurada negrejante. E em pé, juntas, de costas para a terra, as duas criaturas das quais a mais alta, a mais velha, a mais sofrida, dizia à outra: — Esse mar! Esse mar aí... Devo odiá-lo...? E ambas olhavam para o oceano, abraçadas. Só quando Nanny sentiu que na porta, atrás, os rapazes, Maurício e a criadagem espiavam transidos de emoção, foi que se soltou de Virgínia, empurrou Mílton e correu, descendo a escada, transpondo o vestíbulo e o parque. Lá junto à rampa encontrou Lauro com as mãos nos cabelos, indo e vindo, em desespero. E os dois desceram para o estúdio onde caram acuados diante das estátuas. *** Só uma hora depois foi que o velho Maurício conseguiu ser ouvido com relativa docilidade. Expôs-lhe tudo com lentidão persuasiva, em ordem de entendimento gradual. Satisfez-lhe as perguntas graves e lacônicas. Relatou-lhe que tinham con ado que se tratasse apenas dum extravio, contou os termos do primeiro e do segundo comunicado; pormenorizou as condições em que Fernando havia morrido a 12 de dezembro do ano passado. Depois lhe disse que, se ela quisesse, a criada Constança podia ir fazer-lhe companhia por algum tempo na rua Tonelero; mas a aconselhava que aceitasse o convite de Virgínia (e lhe parecia a melhor solução) vindo

morar nos aposentos de Fernando, com absoluta liberdade de decidir quanto ao futuro. Ela repelia tudo, meneando a cabeça. — Quero voltar para a França... Quero ir viver com minha tia Geneviève. — Está bem, Nanny. Tão logo a guerra acabe. — A Riviera já foi libertada. Assim que houver navio. Leve-me ao consulado. — E depois pediu que a acompanhasse até ao apartamento, a m de pensar... Maurício mandou telefonar para o Leblon, pedindo um carro. Daí a quarenta minutos levou-a para a rua Tonelero. Lá, chegando à janela, chamou-o, disse, apontando para baixo: — Ele parava o carro embaixo daquela árvore. Assobiava, eu surgia. Atravessava a rua rindo e fazendo sinais. Eu ia esperá-lo junto à porta do elevador... Atirou-se sobre o divã, ali cou de bruços mais de hora a soluçar tanto que aquelas estranhas sílabas amorfas cortavam o coração de Maurício à medida que recordações pungentes iam iluminando seu rosto voltado para o retrato de Fernando, ali entre porcelanas e coleções de campainhas. Era como se estas perdessem seus tons e timbres metálicos, tornadas carne e bra, submersas em pranto. E Maurício apertava os lábios, contraía os maxilares, cerrava as pálpebras, sem que nada disso adiantasse. Cada soluço rouco batia em determinada porta que logo solícita, obediente e automática, se escancarava para a passagem de rajadas visuais e acústicas. Assim, enquanto Nanny se desesperava na treva dum túnel de desvalimento, Maurício se via atrás de extensa perspectiva para onde se abriam portas lançando golfadas de cenas e de diálogos, onde ele via e ouvia: Artur e Virgínia balançando Carlinhos numa espécie de trapézio na chácara do Jardim Botânico; Emília com o rosto apoiado no violino do qual seus cabelos louros pareceriam in nitas cordas de sons arquiangélicos; Carlos, barbudo e severo, no primeiro plano dum painel ecológico; Fernando a cavalo, jogando polo, a dupla imagem parecendo um centauro; Virgínia, com os cabelos grisalhos ao vento, apoiada sobre a bossagem do promontório à espera de que o horizonte túrgido lhe devolvesse seus mortos, enquanto suas próprias lágrimas, como resinas da serra, a ligavam ao oceano...

Depois, o raciocínio lógico, sem romantismo nem apoteose: a mera recordação quase cronológica dos fatos medonhos vindo em sentido contrário, crescendo, como ondas de encontro a uma rocha. Depois a realidade neutra da sala, da hora, daquela mulher deitada de bruços, como se tudo, exausto da crispação, aturasse a trégua do marasmo. Maurício desceu, foi chamar o zelador, voltou contando-lhe o que acontecera. O bom homem escutava-o, lívido, exclamando: — Mas, é impossível! É impossível!... Sem nenhuma combinação prévia, levados os três por uma coerência de silêncio lúcido, abriram a mala-armário, de cabina, e outra menor, começaram a enchê-las de roupas, vestidos, sapatos, livros, quadros, discos, bric-à-brac, e tudo quanto se achava à mão. Como ainda restassem para fora mais de dois terços de coisas, o zelador resolveu ir buscar um caixote. De fato, daí a um quarto de hora voltou, achando os dois arrumando as duas malas em mútua compreensão. Ao crepúsculo, Maurício e Nanny seguiram de carro para a Gávea, só com a mala menor, enquanto o zelador cou dando marteladas no caixote fechando-o com pancadas que eram como símbolos dum m. Lá dentro, mudas, as campainhas recolhiam em seus bojos as camadas ocas dos tempos como asas aquecendo pintainhos. Depois, dum lado a serra; do outro lado o mar; mas tudo em declive, se esbarrondando... Um portão. Riscos verticais de troncos. Um chão em duas rampas; uma subindo para o promontório e a casa; outra descendo para o estúdio, os cômodos de Fernando e a praia. O carro entrou, virou para a esquerda, desceu a rampa e por m parou. Júlio, magro e esquálido na noite difusa, abriu a portinhola. Como um vestíbulo não dando para nada e sim apenas para as alegorias, o estúdio, com a comprida parede de cristal de doze metros, com as duas cortinas superpostas, uma de seda cor de cíclame, outra de veludo “mordoré”, lá estava apenas com a presença das estátuas. No centro, junto à parede, a mesa enorme, vazia. A mesa para uma criatura apoiar os braços, a cabeça, pensar e compreender. Daí a uma hora, os rapazes rodearam Constança que saía de lá com a bandeja. — Sempre comeu alguma coisa. Estivemos as duas arrumando gavetas e armários.

Maurício, assim que a Luzia desceu dos aposentos de Virgínia com os pratos intatos, resolveu subir para lá; na saleta das estantes os dois conversaram por muito tempo. Quando ele desceu, os rapazes estavam distribuídos da seguinte maneira: Mílton ajeitava o dial do aparelho de rádio para ouvir a BBC, lá no bar do galpão onde entre tufos a “Ibonocori” parecia encalhada de vez; Lauro passeava por entre as aglaias, sozinho; Júlio, sentado diante do estúdio, num dos degraus, fumava cachimbo. Maurício entrou. Constança, ao fundo, sentada, era a solicitude em fase de acanhamento. Nanny com os braços estendidos sobre a mesa, a cabeça inclinada para um dos ombros, volvia o olhar duma para outra estátua, percorrendo-as com pensamentos vagarosos. A porta aberta à direita mostrava a biblioteca de Fernando e da qual só se via um trecho do piano de cauda. E a porta esquerda, também aberta, mostrava o quarto dele, com a cama arrumada, da qual só se via um daqueles quatro cantos de que falava a balada “La Belle, si tu voulais...” — Nanny, experimente por uns dias. Se se der bem, que. Se sentir o menor constrangimento, volte para a rua Tonelero. Quando a guerra acabar, e as notícias neste sentido são alvissareiras, você, se quiser, irá para Villefranche. Mas também pode car aqui, como em sua casa. — Quero voltar para junto de tia Geneviève... — Está bem. A Virgínia aqui, vigiando o Atlântico. Você lá, vigiando o Mediterrâneo. *** Ah! Que meses de expectativa febricitante, aqueles de março e abril! Mílton, com os nervos crispados, atento sempre aos locutores de rádio que condimentavam rações paroxísticas. Notícias dardejadas como projeções convergentes de relâmpagos. Os títulos vindo como tabuletas sucessivas: “Guderian fraqueja ante os embates de Koniev”. “Rundstedt vacila aos golpes de Eisenhower.” “Já passou o perigo da ofensiva nas Ardenas.” “Caiu Dantzig!” “Acaba de cair Viena!” “Tomadas Gdynia e Lübeck!” “Os Aliados transpõem o Reno e o Oder!” “Pétain regressa à França para, junto com Laval, sofrer o julgamento e a execração!” Meses incríveis, de sínteses fulminantes. Roosevelt morre! E Mílton revê aqueles olhos rodeados de sombra, aquele capote civil jogado sobre os

ombros, aquela sionomia de cardíaco, dos últimos instantâneos de cinemas... Mussolini é justiçado, exposto em praça pública, dependurado nos varais dum posto de gasolina, como um javali num açougue. Aquela mandíbula proconsular, aqueles ombros com alamares... Ó comédia incoercível!... E Lauro escuta as notícias, lê os telegramas, rói as unhas, enquanto Júlio, de cachimbo, estirado na grama do parque, parece ver cenas do Apocalipse. Hitler mata-se no subterrâneo da Chancelaria do Reich. Ah! Que série de absurdos inéditos ainda nesse começo de maio! Como tantos milhões de ouvintes e leitores, Mílton, Lauro e Maurício, permanecem de ouvidos e olhos ávidos às fulgurações das Agências e das manchettes, enquanto locutores e linotipistas descarregam toneladas de emoções maciças que, todavia, causam alívio sinistro. Natural pois que, nessa tarde da primeira semana de mês tão denso, Maurício se lembrasse de responder aquele telegrama de meses antes (a que se refere o primeiro período do princípio deste livro) e que por coincidência chegara horas depois da notícia do desaparecimento de Fernando na linha de frente. Ia ele, Maurício, pelo centro da cidade, andando meio apalermado por entre a multidão das calçadas, sem querer se deixando guiar por lembranças alternadas. Por exemplo: aquele mausoléu da família Cintra, encomendado pelo velho Aleixo. Os jazigos vazios. Ou melhor, os sarcófagos inúteis de quatro gerações. O velho Aleixo e dona Maria-Amélia; ele, no fundo do mar, entre Ilhéus e Vitória, ela não querendo ser a rainha Karomama, tendo rogado tenazmente que a enterrassem no antigo carneiro do cemitério da Ordem Terceira do Carmo. Artur, atolado entre a Ilha Grande e Angra dos Reis; Virgínia viva, reservada para os testemunhos severos. Carlos a redemoinhar talvez como irmã na orla cisplatina; Emília deposta como anjo de Fra Angélico no mausoléu onde mais tarde dormiriam também o velho Nunes e dona Laurinda. Fernando, levado para Pistoia, a ara, o tabernáculo distante mas sempre em hipóstase com a pátria... De fato, os jazigos inúteis, vazios. E eis que Maurício se viu na rua México, atento a um número que consultou no seu canhenho. Esplanada do Castelo. Era ali o edifício. Aquele, o número. Entrou num dos três elevadores que o levou ao oitavo andar. Salas

833, 835. Na porta de vaivém, o nome duma rma editora. A secretária atendeu-o, foi avisar o diretor-presidente. Bem. O senhor Cerqueira pediulhe que se sentasse, pôs-se às suas ordens. Maurício apresentou-se: tio-avô de Fernando Gama e Cintra. Pediu desculpas por somente agora vir responder ao telegrama de meados de dezembro. — Sensibilizou-nos muito seu telegrama solicitando à minha irmã Virgínia que instasse com o neto, com Fernando, para mandar correspondência referente à campanha na Itália. Honrou-nos muito sua promessa de publicar numa cadeia de jornais do Brasil e, depois, num livro cuja edição teria grande tiragem. Mas, não foi possível. Não é possível. — Que pena! Ora, o Fernando! Um valor desses teimando em ser escritor bissexto! Contava tanto com ele! Telegrafei, escrevi! Lembrei-me até de remeter à família um despacho para que me ajudasse nesse sentido patriótico. Também, já agora, dada a saturação dos leitores com a avalancha de notícias sensacionais como a morte de Mussolini, de Hitler, quase não adianta mais. Fernando onde está? Em Placência? Podia ao menos mandarme relatos da rendição da Itália Setentrional. Quem sabe? — É impossível. Fernando morreu em dezembro do ano passado. Quando seu telegrama chegou, senhor Cerqueira, ele tinha morrido três ou quatro dias antes. Mas só soubemos direito em ns de fevereiro. Lamento ter adiado tanto a resposta ao seu amável convite. Muito boa tarde! — Então, pêsames à família, hein! Por aqui. Tenha a bondade. Calculo só o desgosto. Faço ideia. Um rapagão. Prometia tanto! Meus respeitos. Minhas condolências. O botão de baixo. Este, de cima, é para chamar o elevador a m de subir para os outros andares. Temos ainda oito depois deste. Exatamente. Sempre às ordens. Maurício entrou num café, pediu água mineral, cou a ler a última edição dos vespertinos. Depois, certo sobressalto coletivo na rua, e que se estendeu ao recinto, o fez pagar e sair. Mas logo reparou que nas arcadas o aspecto indicava uma agitação esquisita. Rumou para o ponto de ônibus ali perto do edifício Nilomex, percebeu ajuntamentos que se exacerbavam com os brados de jornaleiros e o estridor fanhoso de alto-falantes. Notou ainda que lá para adiante, já na avenida Rio Branco, entre a Casa Carvalho e A Exposição, uma onda humana de regozijo enchia aquele trecho; era mesmo mais densa diante da Galeria Cruzeiro. Em pouco se sentiu aspirado para o redemoinho, resistiu, abrigou-se numa casa de artigos de ótica, avaliando e

adivinhando. Agitação política, não era; tinha mais o aspecto de des le improvisado, de manifestação súbita. Só podia ser uma coisa, já que não se tratava de carnaval. Trechos de conversas con rmaram sua asserção íntima. A guerra tinha acabado. E agora, disposto a averiguar, deu de chofre com o maior aglomerado de gente que seus olhos já haviam visto. Aos empurrões e revoluteios, perdido em uxos e re uxos que tornavam a rua um cachoeirar de vozes saindo de massas compactas tomadas de júbilo insofrido, a nal se desviou para orla ainda febricitante e conseguiu lugar num autolotação até ao Leblon. Teve que se instalar num ônibus rudimentar e foi nesse calhambeque que chegou a São Conrado. Gramou o resto do trajeto a pé, num estado de alma incrível. Em casa, já sabiam. O rádio estava ligado alto no vestíbulo. Além de Lauro e Mílton, a criadagem ouvia, com alvoroço. A boa Laurinda, nos aposentos de Nanny, escutava também, diante do aparelho que, no centro da mesa, destilava comunicados. O jantar foi esquecido. O desafogo nutria; ou melhor, desintoxicava. Maurício subiu para ver Virgínia. Achou-a ajoelhada num genu exório diante de três cruci xos mutilados. As imagens não tinham braços e um dos Cristos até estava sem cruz e seu corpo de mar m parecia suspenso na parede. Pobre Virgínia! Desistira das analogias mitológicas?... Abraçou-a. Ela aceitou aquele sentimento, mas continuou em seu transe. Então Maurício desceu, atravessou o parque, foi para o estúdio. Assim que o viu, Nanny correu para ele, abraçou-o e disse entre lágrimas: — Não quero mais ir embora! Não quero ir para a França. Nunca mais quero sair daqui! Não me enxotem, tenham misericórdia de mim... Subiram a rampa, abraçados, transpuseram o vestíbulo, subiram a escada interior. A aragem que vinha do lado esquerdo explicava que a porta de vidro que dava para o promontório estava aberta. Terminara imprevistamente o blackout, pois naquele instante irrompia a noite e no litoral inteiro, desde o Joá até à curva mais distante da Gávea Pequena e da Avenida Niemeyer, havia iluminação, ora esparsa ora em guirlanda. Logo descobriram Virgínia sentada rente à amurada, com os braços sobre a pedra, o rosto pousado nas mãos, os cabelos grisalhos ao vento. Invisível, o mar expandia e retraía sua in nitude, segundo o ritmo da lamentação com que provocava Virgínia como um coro. Nanny sentiu-se transida ao ver aquela mulher que contemplava o oceano que lhe roubara

tudo, que não lhe devolvia nada. Maurício forçou-a a dar mais alguns passos. Agora as duas sentadas na escuridão, sofreavam soluços para que não tivessem nada do aspecto lancinante das carpideiras. — Ficarão ali sempre, de atalaia, vigiando — disse o velho Nunes a Maurício. E, ao ouvir o pranto de ambas, acrescentou: — Não são duas guras mitológicas, não. São duas mulheres, mesmo. E o que as põe perplexas e desatinadas é a veri cação de que o amor não pôde salvar as gerações que este século imolou. Os dois desceram para o estúdio, onde encontraram Júlio hirsuto e guedelhudo entre dois projetores, observando a raiz secular que trouxera da mata. A certa distância das estátuas, o imenso tubérculo pardacento parecia uma ave morta, devolvida pelas ondas. Inerte, num litoral. Um albatroz, talvez.

Related Documents


More Documents from ""