Simao Mago - A Saga De Um Mago Moderno

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Marcos Staub

Simão Mago A saga de um mago moderno

Gráfica e Editora 3 de Maio Ltda. Blumenau, 2018

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por qualquer meio, sem autorização prévia do(a) autor(a) por escrito. Esta obra foi impressa com recursos próprios do autor. Depósito legal na Biblioteca Nacional, conforme Leis N. 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

Ilustrações: Juliano Amorim ( Jub Lee) Revisão: Ines Staub Araldi Autor: Marcos Antonio Staub Contatos do Autor: [email protected]

S798s

Staub, Marcos. Simão Mago : a saga de um mago moderno / Marcos Staub. – Blumenau : 3 de Maio, 2018. 94 p. : il.

ISBN: 978-85-5573-184-6 1. Magia – Feitiçaria. 2. Esoterismo. 3. Alquimia. 4. Maçonaria – Simbologia. I. Título. DD 22 – 133.43 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Sandra Cristina da Silva, Msc. – CRB 14/945

Impresso no Brasil

Dedicatória A minha esposa, leal companheira, e a todos que buscam fazer o bem.

Sumário Capítulo l - Quem Sou Eu?

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Capítulo II - A Bruxa

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Capítulo III - Salvator Mundi

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Capítulo IV - A Feiticeira de Évora — Poderosa Bruxa

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Capítulo V - Iniciação a Magia Negra

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Capítulo VI - Tentação de Simão

53

Capítulo VII - Mago Adormecido

61

Capítulo VIII - O Mago Visita o Passado

69

Capítulo IV - Iniciação a Maçonaria

79

Capítulo X - O Simbolismo Maçonico

85

Capítulo l

Quem Sou Eu?

Todo aquele que não é iniciado, em vão pretende conhecer os mistérios ocultos. O Livro Egípcio Dos Mortos.

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S

ou conhecido na comunidade esotérica como Simão Mago. Isso implica que sou sucessor de Simão Mago, contemporâneo de Cristo. E é com essa identidade que vou revelar aos Amentibus (não iniciados) como conheci a Magia. Sou um filho de uma família de sete irmãos e sete irmãs. Nasci em 1972 aos 29 dias do mês 05. Aos sete anos, acidentalmente, fui apresentado aos mistérios da magia1. Era um menino franzino, magérrimo. Costelas aparecendo, joelhos nodosos, braços finos, cabeça grande, argúcia descomunal... E a curiosidade de um menino. A casa era grande, porém módica para acomodar sete irmãos e sete irmãs, o pai e a mãe. Havia quartos com uma ou duas camas grandes nas quais dormiam dois ou três meninos e outros em que dormiam em cada cama duas ou três meninas. À mesa do jantar podiam sentar-se até dez pessoas. Desta forma, as crianças mais novas não se sentavam à mesa. Os serviços domésticos ficavam sob a responsabilidade da mãe que os revezava com as filhas. A comida frugal, embora suficiente, nem sempre era apetitosa. Já os serviços da fazenda eram atribuídos aos meninos, sob o comando intransigente do pai. Consistiam basicamente em arar, enxadar, sulcar, semear e colher dos mais diversos tipos de plantação, grãos e sementes, hortaliças e frutas; além de tutelar animais de lactação, ovos e carnes. A rotina era, por vezes, extenuante. Demasiado pesada para um menino fisicamente fraco. As roupas eram costuradas à máquina pela mãe, em moldes lineares que não se ajustavam aos contornos do corpo. Pareciam ter sido feitas para o homem de lata, do Mágico de Oz. E eram confeccionadas

1 Numerologia: 5- A estrela de cinco pontas, o pentágono, simboliza os quatro membros do homem mais a cabeça. É o homem perfeito com as cinco qualidades (bondade, justiça, amor, sabedoria e verdade), Deus manifestado no Ser. 7- É o número da perfeição, integra os dois mundos e é considerado símbolo da totalidade do Universo em transformação..9- Tem um significado extremamente poderoso. Ele reforça o triplo poder do número 3 e, logo, das tríades sagradas (Pai, Filho e Espírito Santo. Simão Mago ou Simão, o Mago é um personagem bíblico com quem o apóstolo Pedro travou polémica em Samaria (Atos 8:9-24). Além do livro bíblico dos Atos dos Apóstolos, o personagem é referido em outras obras ligadas ao gnosticismo.

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em série, com a mesma fazenda para meninos e meninas, de modo que eu recebi uma camisa com a mesma estampa do vestido de minha irmãzinha. Uma estampa floral de violetas em uma camisa reta, abotoada na frente e com um pequeno bolso no lado esquerdo do peito, tal qual o estereotipo de um turista americano. E minha irmãzinha um vestido reto, com alças largas nos ombros, elástico no peito pregas na saia e zíper nas costas. Ela, linda como um anjo. Eu, um palhaço. Aos domingos íamos à missa. Era um cortejo próprio, por assim dizer. O pai, desnorteado, perguntando para a mãe onde estava o seu chapéu de feltro. A mãe, aturdida, verificando se as meninas estavam penteadas e os meninos de sapatos limpos e calças abotoadas. Calças e sapatos pretos, camisa branca, chapéu de feltro, o hinário em um folhetim de papel jornal intitulado “O Domingo“ em mãos e revestido da autoridade de pai, bradava: “Vamos que a missa já vai começar e o ministro não pode esperar!” A missa era um evento singular que misturava a angústia vergonhosa da humilhação à qual eu era submetido pelos meninos mais velhos que motejavam dos trajes “feitos a mão”, os calçados por vezes remendados e costurados “a mão e com linha de pesca”, e o frenesi sacrilíaco evocado pelos cânticos e aleluias. O Pai era baixo tenor no coral e invocava anjos e santos lindamente. Também fazia a leitura dos salmos. Sentado com as outras crianças no altar, eu era arrebatado pela devoção católica. Meu santo herói era São Miguel Arcanjo. E o que fez São Miguel? Expulsou o demônio do paraíso. Eu queria ser São Miguel e merecer o favor do altíssimo. Privar da glória fulgurante e resplandecente de beatitude e onipotência de Deus. Também queria ser São Gerônimo, o doutor da igreja que decifrou as línguas pagãs e, por inspiração divina, nos deu a Vulgata latina. A palavra de Deus materializada em latim. A Bíblia Sagrada. Como ele, queria granjear a admiração dos fiéis da igreja de Roma, por todo o mundo civilizado. Na pequena igreja, toda de madeira rústica, o Ministro execrara Martin Luther, o demônio alemão que deturpara e profanara a sagrada Bíblia em proveito próprio. Para desmoralizar a igreja de Roma, se casara com uma virgem de apenas dezesseis anos, dizia o pregador. O que interessava a Luther era viver em pecado e desfrutar da gula e da ganância por mera ambição e perversidade, continuava. Doutor Lutero dividiu

a igreja, dizia o ministro. Santos e demônios se enfrentavam na pregação dominical, e o resultado das batalhas celestiais demonstravam quem era digno do paraíso e quem teria o inferno como destino. Eu seria também um soldado de Cristo! O arrebatamento só era interrompido pela menina levada e impudica que sentava ao meu lado e fazia questão de se recostar em meu ombro e, desavergonhadamente, me abraçar. Era uma tez alvíssima, de lindos cabelos louros cacheados e ímpetos imoderados que me faziam corar. A escola, esse sim era o ambiente em que me sentia bem. A professora me dera um livro: “Rosinha, Minha Canoa”. Era a estória de um jatobá, que de semente se tornou árvore, de árvore se tornou uma canoa para um indiozinho em sua melhor fase da vida, e depois terminou como coxo servindo de alimentador para os animais. Esse foi o meu primeiro livro. Aos sete anos era fluente em leitura. Minha querida professora, que dava conta de quatro séries em uma única sala, separadas apenas em fileiras, se virava como podia ministrando conteúdos diferentes para cada série e procurando manter a atenção de todos. Para minha satisfação pessoal, a professora me recrutou como monitor de leitura. E eu ajudava aos deficitários da mesma série e até mesmo das séries superiores, o que me enchia de orgulho e satisfação. O terror era o recreio, cuja brincadeira predominante era o abominável futebol. As pernas esqueléticas, os pés calejados e os calçados depauperados não favoreciam o esporte. A pressão dos outros meninos para que eu participasse do jogo era constante e constrangedora, ao ponto de eu preferir ficar em sala para evitar o assédio. O que me levava à introspecção e ao estudo, ao invés dos folguedos da meninice. Exceto pela companhia de alguma menina que, curiosa, pretendia saber o que tanto eu lia. Ou então algum menino que por estar machucado era impedido da brincadeira. Nos poucos momentos de liberdade entre as obrigações domésticas e a escola, as brincadeiras eram as mais criativas. Minha espada era um sarrafo de madeira lisa e pontiaguda, com uma guarda em cruz como uma espada Templária. Duas talas de madeira engrossavam o cabo e uma tampinha de garrafa afixada com uma cruz desenhada a prego conferia ao brinquedo um ar medieval. O cavalo era uma ossada do crânio seco de uma mula, que por muitos anos servira à família no serviço pesa-

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do do campo, encravado em um cabo de vassoura. Na outra ponta duas rodas feitas de tampas de latas de tinta tendo como eixo um prego. Tiras de couro eram os arreios. O plástico colorido nas cavidades oculares da caveira tornava a montaria ainda mais ameaçadora. Uma capa feita de uma saca de feijão cobria os ombros e arrastava pelo chão. O capacete era uma cabaça cortada cuidadosamente e polida com esmero. Um furo no topo e amarrado a um nó por dentro, pendia para fora um punhado de fios de barbante. Eu era São Miguel e lutava com o demônio. Eu era Hercules e lutava para provar meu valor e expiar minhas fraquezas humanas, provar ser herói e tornar-me um deus. Eu era Aquiles e lutava porque havia nascido para lutar. Eu era Ulisses, porque era inteligente, perspicaz, destemido, patriota. E nada podia me deter. Nem mesmo os deuses! Eu podia ser quem eu quisesse. Já conhecia a magia e não tinha consciência disso. Possuía poderes ilimitados. Podia assumir diversas formas. Podia viver aventuras mágicas e extraordinárias. Nada estava além do alcance da mente, pois o universo é mental. Tudo que existe, existiu ou existirá é um produto da mente. Foi pensado, foi sonhado ou imaginado por uma Mente Criativa. Basta sobre mim, Simão Mago menino! A consciência de minha identidade esotérica sopesada pela existência terrena de meu antecessor, Simão Mago, rival de Cristo, estigmatizada pela igreja com a pecha do pecado, condenado por Dante ao lugar reservado no inferno para aqueles que podem mentalizar, criar e ser quem eles quiserem. Simonia é o pecado daqueles que ousam ser a imagem e semelhança de Deus.

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Capítulo II

A Bruxa

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ra um domingo á tarde. Uma daquelas tardes macilentas de outono em que se ouvia o grasnar das aves e as folhas que caiam copiosas das árvores secas... Meu irmãozinho mais novo e eu haveríamos de averiguar um boato que corria acerca de nossa vizinha. Era uma casa de madeira, sem pintura com uma varanda portentosa e uma balaustrada de madeira torneada. Belíssima. Porém, simples e austera. Sem pintura. Janelas grandes com venezianas de madeira abriam-se em linha, três à frente e três a trás da casa. Sem pintura. As paredes externas, envelhecidas, estampavam o acinzentado antigo das madeiras secas. E as velhas telhas portuguesas adornavam o telhado. A fundação sobre toras de madeira fincadas no solo suspendiam a casa a quase dois metros no fundo, e ao nível da rua à frente. O porão aberto para os fundos da casa era ladeado por paredes da mesma madeira antiga e tinha um ar sombrio e misterioso. Teias de aranha pendiam de cima, donde se viam as vigas do assoalho de madeira da casa. O quintal era florido e varrido diariamente com vassoura de piaçava. Era de chão batido, quase lustroso. Caminhos ladeados por flores, rosas, jasmins, antúrios e gramíneas cuidadosamente cultivadas, levavam à casinha. Uma latrina que ficava há poucos passos da casa e era edificada igualmente em madeira, cujas tabuas largas abrigavam um fosso no qual jaziam os excrementos. Era, todavia, ladeada por flores e levava até ela um trilho de pedras cuidadosamente assentadas e pintadas de branco. Por certo para guiar o caminho em caso de uma necessidade noturna.

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Nossa casa divisava com a casa da vizinha. Os terrenos eram separados por uma cerca de arame farpado, reforçada com uma cerca baixa de tabuas estreitas cuidadosamente fincadas lado a lado, para manter cercadas pequenas aves de criação, como as irritantes galinhas de angola, patos, gansos e galinhas comuns. Havia ainda uma barreira de capim limão plantada junto à cerca. Nada disso podia nos impedir de xeretar. Uma estreita passagem, por baixo da cerca e entre o capim limão, de onde foram removidas algumas estacas de madeira da cerca, foi por onde fizemos caminho. Tratava-se de uma antiga trilha de passagem, que usávamos costumeiramente para ir até os vizinhos. Na casa funcionava um bar, ou taverna, ou comércio de secos e molhados como meu pai dizia. Comprávamos lá alguns mantimentos e eventualmente um garrafão de cachaça encomendado pelo pai. Um fumo de corda ou um punhado de balas. Morava lá um senhor grisalho que porfiava a enorme barba, debruçado no peitoril da janela que se abria para a rua. E dona Clarice. Ela era sua cunhada, a qual após a morte da irmã passou a tomar conta do cunhado. O senhor de barba branca que lembrava a barba de São Pedro, o apóstolo, o príncipe da Igreja. O sujeito era uma alma caridosa e bondosa, a quem todos demonstravam respeito e consideração. Estava caquético e reumático. Era tísico e franzino. A barba parecia pesar-lhe no rosto. Movia-se empurrando uma cadeira pela casa e pelo bar. Exibia caroços nos membros das diversas fraturas que sofrera a cada queda que tivera. Fumava charutos de fumo de corda embrulhados em palha e bebia aguardente enquanto tomava chimarrão e escarrava desgraçadamente uma gosma esverdeada para fora da janela, tal qual ectoplasma, ou algum rejeito radioativo. Muito simpático e amigável, a todos cumprimentava. Sua figura messiânica era vista diariamente pelos passantes e era sinal de boa sorte. Dona Clarice era uma mulher balzaquiana por volta de 35 anos. Figura altiva e elegante, de postura ereta e firme. Vestia-se elegantemente, de maneira simples, mas vistosa. Saias até os joelhos, justas e discretas. Sapatos pretos, baixos e afivelados no peito do pé, geralmente sem meias. Blusas de mangas curtas ajustadas ao corpo. Os cabelos, os trazia bem penteados, presos por grampos ou laços de fitas. Era sempre vista com bacias de roupas para coarar, baldes de água fresca que trazia do poço e colocava na varanda, cestas de frutas que colhia no quintal e,

ás vezes, furtivamente, remexendo um pequeno caldeirão de ferro que estava pendurado sobre uma fogueira que ela alimentava constantemente, no quintal, nos fundos da casa. O plano era simples. Iríamos nos esgueirar pela estreita trilha, para espiar o que acontecia no quintal da casa vizinha. Seria ela uma bruxa? O chão batido, o capim limão, o arame farpado e o rastejar sorrateiro por entre as folhas secas caídas da plantação de aipim. O barulho era preocupante. O estalar das folhas poderia nos denunciar. Eu rastejava adiante, meu irmãozinho logo atrás. Dona Clarice era uma carola devota. Sempre assídua na igreja. Celibatária, não tinha marido, não tinha namorado e não dava confiança aos intentos de homem nenhum. Eu costumava reparar em sua feição beatifica e quase que podia notar uma aura de santidade. Rezava fervorosamente e cantava os hinos à glória de nosso Senhor do altíssimo firmamento bem como dos anjos e santos. Santa Ana era sua santa protetora, a mãe da Virgem Maria, a mãe de Deus. A ela, Dona Clarice, recorriam os enfermos e aflitos, pois de todos ela cuidava. Uma oração, uma invocação, uma conjuração ou uma expulsão de maus espíritos. Ninguém o faria melhor. A ninguém mais se confiava o alento ao terror noturno dos assombrados pelo mal, ou as enfermidades graves e leves, ou a bênção das gestantes e dos nascituros. Era ela quem fazia a ponte entre a Virgem Santa e nós degredados filhos de Eva que suplicamos gemendo e chorando no vale da morte, pela salvação divina. Rastejamos lenta e silenciosamente até a borda da casa, donde se via a varanda e a balaustrada. Não havia ninguém. Nem o senhor grisalho, caquético de barbas brancas, nem a vizinha. Coração acelerado, o medo de sermos flagrados em atitude suspeitíssima. As respirações ofegantes e o tremor constante. Vamos desistir? Não. Havemos de descobrir! A curiosidade nos impelia a continuar. Escondidos atrás da casinha, a latrina, ao longe, víamos o porão da casa. Era um lugar lúgubre e misterioso. De onde estávamos, podíamos ver as muitas ferramentas de entalhar como cinzéis e malhos, as ferramentas de aplainar madeiras, serras de mão, martelos, facas e facões, além de ganchos e lanças forjados em vergalhões de aço. E muitas madeiras. Havia também, empilhadas ao largo, centenas de garrafas, a maioria vazias, de aguardente e cerveja. Também uma geladeira antiga da Figidaire, com uma espessa porta que

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se abria e fechava empunhando uma alça de fechadura que se levantava ao abrir e se baixava ao fechar. Dizia-se que, ao fechar, a pressão externa era tanta que nem um halterofilista poderia abri-la imediatamente. Sobre a geladeira, uma caixa de madeira com refrigerantes da Pepsi - Cola. Ao lado, algumas mais de Fanta laranja e Fanta uva, minhas preferidas. Tínhamos que chegar lá. Havia também uma serra elétrica de mesa, com muita serragem em volta. As irritantes galinhas de angola passavam em bando, cacarejando a plenos pulmões. Devíamos deixá-las se afastar. Elas poderiam denunciar nossa presença. Estávamos tão perto. Após tudo se aquietar, e um silêncio sepulcral apoderar-se da atmosfera de perigo, é que logramos alcançar o porão sem sermos vistos. Ficamos tentados a apanhar os refrigerantes e, ao nos aproximarmos silenciosamente, notamos uma caixa de bolachas de mel. Concordamos imediatamente que iríamos pegar um refrigerante e uma bolacha para cada um de nós, apenas. Nesse ínterim um gemido assustador se fez ouvir, provavelmente do interior da casa. Era um gemer de agonia, de dor e de aflição, seguido de passos apressados que pareciam vir-lhe ao socorro. O trepidar do assoalho da casa denunciava a movimentação que ocorria e parecia descrever a cena: Dona Clarice atendendo o velho cunhado acamado, com dor, em agonia. Quem sabe acordado por um pesadelo horrível. Pegamos os refrigerantes e as bolachas e corremos o mais depressa possível para nos ocultarmos por entre a plantação de aipim que ocupava maior parte do terreno. Coração a saltar pela boca, respiração ofegante, medo desolador. Ocultos na plantação, com os produtos de nosso furto nas mãos trêmulas de medo e de remorso, espreitávamos se algo haveria de acontecer. Longo tempo se passou sem que nada houvesse. Bebemos os refrigerantes, comemos as bolachas e riamos secretamente, até que uma chuva repentina desabou. Corremos para nos abrigar em uma manjedoura que ficava a poucos passos e dava uma visão ainda mais privilegiada do porão do lado oeste. Um raio, ao longe, clareou o céu nublado e enegrecido, seguido de um trovão. Neste instante, quase que simultaneamente, nós o vimos. O caldeirão! Era um caldeirão de ferro, pequeno, negro como a noite, suspenso sobre um fogão improvisado de duas fileiras de tijolos unidos por argamassa, em duas estacas de ferro com encaixe nas pontas, como palmas de mãos pequenas a suspender um eixo que perpassava a alça de transporte

do caldeirão. Não havia fogo. Havia, porém, um feixe de lenha preparado. A visão era reveladora. Ela era uma bruxa! O olhar de meu irmãozinho e o silencio cúmplice falava por nós dois. A perplexidade da terrível descoberta. O que faríamos? Revelar o segredo seria como confessar o furto, a invasão. Éramos medo, angústia e desalento naquele momento. Outro raio, e outra visão reveladora. Alguém se aproximava. Era Dona Clarice que vinha para o porão. Estava envolta em uma capa de chuva e usava um velho chapéu de palha. O rosto mal se via, ocultado pela gola da capa que encontrava com a aba do chapéu. Era ela. Os sapatos pretos, os tornozelos de marfim. Trazia uma bolsa de couro de onde tirou um pote, um livro de capa preta e um maço de ervas. Aproximou-se do caldeirão e espreitou se havia alguém por perto. Desabotoou a capa e ajoelhou-se para acender o fogo. Tirou o chapéu de palha molhado e o sacudiu. Abanou o fogo que lambia o caldeirão por baixo, as labaredas dançando ao ritmo das golfadas de ar de um lado para outro. Raios seguidos de trovões iluminavam a figura sombria envolta na capa molhada, que abanava o chapéu em largas braçadas dançando ao ritmo da tempestade. O clarão do fogo e dos relâmpagos revelava nitidamente a sua figura. Cantava, ou balbuciava orações? Não se ouvia. Subitamente ela soltou o cabelo e com um movimento de cabeça o jogou para trás e abriu a capa. Estava nua. Jamais a vira daquele jeito, com seus cabelos negros e volumosos soltos, tão pouco nua! Remexia o caldeirão com uma colher de madeira e acrescentava, aos poucos, o ramalhete de ervas, enquanto orava, ou cantava. Fazia invocações de santos ou demônios? Imobilizados pelo terror e perplexidade, assistíamos a tudo sem movermos um músculo sequer, sem pronunciar palavra, nem mesmo um suspiro de pavor. O ritual macabro parecia não ter fim. Dona Clarice, agora com os cabelos desgrenhados, a capa entreaberta, feições demoníacas, parecia estar possuída por um espírito do mal. Remexia o caldeirão e abanava o fogo. E cantava. Parecia retirar algo da bolsa que trouxera. Despejou dentro do caldeirão o conteúdo de um frasco pequeno, que parecia conter um pó amarelado como Cury, ou enxofre. Derramou ainda um liquido de um segundo frasco. Mexeu. E uma reação aconteceu. O caldeirão transbordou uma espuma densa e um fumo espesso se ergueu. Era assombroso e fascinante ao mesmo tempo. A fumaça era amarelada e assumia contornos da silhueta de um anjo. Meu irmão e eu nos olha-

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mos estupefatos. Era a imagem do Arcanjo Uriel2. Quando dei por mim, me encontrava sozinho na manjedoura. Meu irmão havia sumido. Também dona Clarice. E a chuva havia cessado. Debaixo do caldeirão o fogo se extinguiu, assim como o medo e o horror que havia presenciado. Havia desmaiado e, meu irmão, sem saber o que fazer, fugira apavorado. Aparentemente sem ser notado.

Capítulo III - Salvator Mundi

2 Arcanjo Uriel- No Apocalipse de Pedro aparece como o Anjo do Arrependimento e tão desprovido de piedade quanto qualquer demónio. Em Vida de Adão e Eva Uriel é representado como o espírito (um dos querubins) referido no terceiro capítulo do Génesis. É também identificado com um dos anjos que deram sepultura a Adão e a Abel no Paraíso.

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vizinho que morava em frente à nossa casa, ao custo de atravessar a rua, era um homem bondoso e trabalhador. Era simpático e amigável com as crianças da vizinhança. O que não se podia dizer de “Aristocrata”, o terrível velho bode ranzinza que não tolerava a criançada que se amontoava no quintal para apanhar as deliciosas guabirobas-do-campo que caiam copiosas na primavera. A guabiroba3 é uma fruta amarela saborosa que, quando madura, tem pouco tempo para ser aproveitada porque passa do ponto, como as jabuticabas. A árvore tinha quinze metros ou mais, e nós nos poupávamos de escalar seus galhos, pois os frutos maduros caiam em grande quantidade. Além disso, seu tronco era liso e soltava cascas, o que dificultava a escalada. Um olho no Aristocrata e outro nas frutas, eu catava guabirobas pelo chão quando um pequeno ramo me foi jogado na cabeça por meu irmão mais velho, único de nós capaz de escalar a árvore desprovida de saliências. Um calafrio percorreu-me a espinha. O olhar do bode, curiosamente imóvel, cruzou com o meu. Por um instante que pareceu a eternidade, pensei ter visto o semblante de Dona Clarice nas feições do animal. Um pensamento sombrio me ocorreu. Seria Dona Clarice uma bruxa? Não podia ser! Afinal, ela nos curava. Com seu conhecimento em botânica, sempre recomendava as guabirobas a quem tinha diarreia, disenteria, escorbuto e até febre. Atormentava-me a mente o pensamento de que aquela mulher caridosa pudesse ser uma bruxa. Ao contrário da grande maioria dos adultos, Dona Clarice sempre conversava comigo, olho no olho. Ela havia me explicado que a guabirobeira-do-campo era uma planta extraordinária. Que poderia resistir a mais severa estiagem e que não precisava de abelhas e pássaros para polinizá-la, que era hermafrodita (tem os dois sexos na mesma flor) e autofértil (ocorre a fecundação do órgão feminino pelo pólen da mesma flor ou planta). Próximo à frondosa guabirobeira, havia também um velho moi-

3 Guabiroba vem do tupi guarani e significa “fruto da casca amarga” característica bem notória para qualquer pessoa que mastigar a casca desse fruto.

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nho para a moagem de grãos, que transformava milho e trigo em farinha. Além disso, restava como abrigo em fugas emergenciais do terrível Aristocrata, o bode. Dizia-se que tinha este nome porque parecia um aristocrata, de cavanhaque e postura altiva. Peito e cabeça empinados para o alto, postura que lhe conferia certa imponência e autoridade sobre o quintal da casa. Havia algo de maligno naquele bode, além das perseguições ás crianças. Parecia espreitar escondido como que a espera de alguém para dar de cabeçadas. Também parecia escolher suas vítimas. Notei um padrão para os ataques. Preferia as meninas ou os meninos mais fracos e que mais o temiam. Maldito bode! Era atraído para as crianças assim como as crianças à ele. Enfrentar o bode era uma demonstração de coragem para os meninos, assim como salvar as meninas dos ataques rendia aos corajosos grande prestígio, o que fazia aumentar a ira do animal. Havia um cadafalso em forma de uma enorme prancha de madeira que dava acesso ao moinho, apoiada sobre um barranco, de cuja queda resultariam certamente graves fraturas a quem porventura escorregasse. Eu morria de medo na travessia. interior O interior do moinho era um mundo estranho a explorar. Complexas engrenagens, ferramentas diversas, bicicletas empoeiradas, sacas de trigo e milho e um emaranhado complexo de polias e correias. Da Vinci não teria engendrado melhor indústria. Subíamos ao último andar, de onde olhávamos para baixo. De lá, o bode não parecia tão ameaçador. Olhava, contudo, para o alto, como se quisesse dizer: Estarei aqui quando descerem! Imaginávamos se a criatura nos invejava ou odiava, ou vice versa. Um paradoxo maquiavélico. Éramos sempre bem-vindos à casa do vizinho, e muito bem tratados. A dona da casa era uma senhora obesa e simpática. Servia bolo e limonada gelada, tortas e geleias, bolachas de forno e sobremesas. A casa era ostentosa, com grandes vitrais, escadarias, floreiras e duas varandas. Colunas coríntias adornavam o pórtico de entrada e o assoalho de madeira era esmeradamente lustroso e bonito. Na sala principal, o magnífico Salvator Mundi4, uma reprodução esplêndida do famoso quadro de Da Vinci decorava a parede principal. O Cristo, o salvador do mundo, com seu olhar de leão, o semblante piedoso parece dizer ao 4 Salvator Mundi é uma pintura de Jesus Cristo como Salvator Mundi (Salvador do Mundo), que foi atribuída por alguns estudiosos como uma obra de autoria de Leonardo da Vinci.

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mundo: “Eu sei que vocês não são perfeitos. Eu lhes guiarei e mostrarei o caminho. Vinde comigo até o pai celestial. A mão direita fazendo um gesto hermético, apontando para o céu. O dedo mindinho e anular suavemente retraídos e os dedos indicador e médio entrelaçados, simbolicamente representando o macro e o microcosmos, recitando lindamente a revelação hermética: “O que está encima é igual ao que está embaixo”. O paradoxo cristão que afirma que somos a imagem e semelhança de Deus, que somos feitos da mesma matéria do Criador. Na mão esquerda sustentando um orbe de cristal. O mundo transparente, sem mácula e sem pecado. A perfeição de Deus. Três pequenos pontos de luz no orbe indicam a Santíssima Trindade. Os três reinos: animal, mineral e vegetal. As três dimensões visíveis: comprimento, altura e largura. As partes que compõe o homem: corpo, mente e espírito. A terra, o sol e a lua e toda a perfeita criação divina que é em número de três, segundo os princípios sagrados do hermetismo. Do peito do Salvador do Mundo emana uma luz. A luz interior, o espírito imortal. O semblante sereno e pacífico do Cristo, filho de Deus que foi iniciado na sabedoria hermética transmitida diretamente pelo grande arquiteto do mundo, Deus, ao seu servo Hermes Trismegistus. O dono da casa estava moribundo. Uma doença incurável o abatera. O amável senhor, querido das crianças, sofria em agonia. Os médicos não o podiam ajudar. Tinha como único alento as infusões de ervas de Dona Clarice que diligentemente o assistia, e milagrosamente as suas febres fazia baixar. Minha mãe era muito amiga da dona da casa e meu pai lhe tinha uma “dívida de gratidão”. O vizinho em tudo ajudara quando da construção de nossa casa. Emprestara ferramentas, mantimentos e auxiliara em tudo o que fora possível. O padre havia sido chamado para dar-lhe a estrema unção dos enfermos e o Aristocrata correra com ele. Teve que ser contido. Berrava e escavava o chão, amarrado a guabirobeira. Talvez fosse por causa da batina. Talvez fosse para, de alguma forma, protestar contra o sacramento que parecia condenar o dono à morte. A notícia da morte do bom vizinho foi aterradora. Nunca vira uma pessoa morta antes. O único contato que tivera com a morte fora a de animais. Alguns de morte natural, como a Mula. Curioso lembrar: A Mula não tinha nome. Todos diziam: “Vai pegar a Mula para o trabalho!” Mula, anda! Outros animais também eram sacrificados, como os porcos que

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eram abatidos gordos e felizes e dos quais tudo se aproveitava. A carne, a gordura, o torresmo, os miúdos. Até a cabeça era assada no forno e servida como uma iguaria com acompanhamentos como pão de milho, milho cozido, arroz e salada. As bochechas eram a melhor parte. No dia do abate fazia-se um churrasco de costelas temperadas na salmoura e alecrim e tomilho frescos. O fígado, os rins e o coração não eram desperdiçados. O mesmo ocorria com os novilhos, as galinhas, os patos, os marrecos e os peixes. É a vida na fazenda. Comer carne implicava em criar o animal, alimentá-lo e cuidar dele. E ter que abatê-lo. A morte humana, contudo, parecia-me mais assustadora. A mãe dizia que ele foi para o céu e que uma novena seria rezada por toda a nossa família. E que deveríamos ir ao velório. Fui com minha mãe, de mãos dadas, coração acelerado. A casa estava aberta aos visitantes pelo lado Sul, longe da vista do bode. A entrada tinha uma pequena varanda e um pórtico módico que dava acesso à sala principal. Ao entrar divisamos o velório. A viúva chorava copiosamente enquanto recebia as condolências. Pelas gordas bochechas rolavam fios de lágrimas. Na mão um lenço, no ombro um chalé preto, sobre a cabeça um véu. Uma fileira de cadeiras acomodava uma dúzia de senhoras que cochichavam de boca ao ouvido e sacudiam as cabeças, lamentando pesarosamente. Na parede, ao alto, como que pairando sobre a cabeceira do esquife, a imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador do Mundo, cuja mão apontando para o céu parecia mostrar o caminho para aquela pobre alma. No caixão, gélido e pálido, o corpo do homem morto. Mãos cruzadas sobre o peito como quem descansa o descanso eterno e cuja alma já retornara à presença de quem a deu e, junto do criador, aguarda o julgamento final. Não senti ali presença da alma do falecido. Não no corpo lúrido como as estátuas de mármore dos santos da igreja. Mas sim na casa! Na única poltrona vazia em que costumava se sentar, no lamento da viúva, na dor e na saudade dos amigos e parentes. Lá fora o vento uivava e fazia-se ouvir do lado de dentro. O balouçar das nogueiras-de-pecan, o assovio lúgubre cantando a nênia das folhas secas da morte. Um arrepio percorreu-me a espinha. Um calafrio tenebroso apossou-se de mim. Um suor repentino na fronte e nas mãos. O prelúdio macabro da aparição de algum fantasma, haveria de ser. Podia sentir uma presença maligna. Um leve odor de enxofre pairava no ar e uma sombra disforme crescia na parede e se projetava sobre o esquife,

como a presença de satanás a reclamar aquela pobre alma. O pavor se materializou quando a maçaneta girou lentamente e os olhares se voltaram para a porta. As conversas cessaram. As bocas pararam de mastigar e ninguém poderia ser mais silencioso e imóvel que o defunto. A porta se abre e uma rajada de vento lança de uma só vez um punhado de folhas para dentro. E eis que surge uma silhueta iluminada pelas costas e sombreada no rosto. Com um gesto, afasta do rosto o véu e, atrás de si, a porta fecha-se imediatamente. Era ela. Dona Clarice, a bruxa. Com um aceno de cabeça cumprimenta as pessoas, a mim também. Eu desviei o olhar. E se ela viesse a ter comigo? Estaria perdido. Agarrado à perna da mãe, tremendo, me urinei. E, mortificado de vergonha, chorei. A mãe gentilmente me consolou e colocou-me no colo. De canto do olho espiava a bruxa que se aproximou do corpo, tirou da bolsa um livro de capa preta, tomou uma cruz de madeira e proferiu a seguinte oração5:

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“Eis a Cruz do Senhor! Ausentai-vos, inimigos da natureza humana! Eu vos esconjuro, em nome de Jesus, Maria, José, Jesus de Nazaré, Rei dos judeus. Eis aqui a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Fugi, partes inimigas. Venceu o leão da tribo de Judá e a raça de Davi. Aleluia! Aleluia! Aleluia! Exaltado seja o Senhor. Nos abençoe, nos guarde e nos mostre a sua divina face, se vire para nós com o seu divino rosto e se compadeça de nós. O rei Davi veio em paz assim como Jesus se fez homem e habitou entre nós, e nasceu da Santa Maria Virgem pela sua bendita misericórdia. Santos Apóstolos, bem-aventurados do Senhor! Rogai ao Senhor que me valha a mim, Clarice, para que eu possa destruir tudo quanto tenho feito. 5 Oração baseada no livro de São Cirpriano - O legitimo Capa Preta

São João, S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas! Eu vos rogo que vos digneis a livrar-nos e conservar-nos livres de todos os acontecimentos dos demônios. Tudo esperamos de quem vive e reina com o Pai e Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos, Amém. A bênção de Deus Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo desçam sobre nós e nos abençoe continuamente. Jesus! Jesus! A vossa paz e a vossa virtude e Paixão, o sinal da Cruz, a inteireza da Bem Aventurada Maria Virgem, a bênção dos santos escolhidos de Deus, o título de Salvador nosso, na cruz, Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus, seja triunfável hoje e todos os dias entre os meus inimigos visíveis e invisíveis, contra todos os perigos da nossa vida e do nosso corpo, e em todo o tempo e lugar. Eu terei o sumo gosto e alegria em Deus meu Salvador. Jesus! Jesus! Jesus! Sede por nós, Jesus! Jesus! Criador e compreendedor; Jesus do universo porá os maus sobre o inferno e impedirá que o demônio atormente jamais as suas criaturas. Jesus, Filho de Maria, Salvador do mundo, pelos merecimentos da Bem Aventurada Maria Virgem e dos Santos Apóstolos, mártires e confessores, pois o Senhor seja contigo, para que te defenda e esteja dentro de ti, para que te conserve e te conduza e acompanhe e guarde e esteja sobre ti, para que te abençoe, o qual vive e reina em perfeita unidade com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém. A bênção de Deus, Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, desça sobre nós e permaneça continuamente. Virgem Santíssima Nossa Senhora do Amparo! Eu, a maior das pecadoras, vos peço que rogueis a vosso amado Filho que quebre todas as forças aos demônios, para que jamais possam atormentar esta criatura. “Dou fim a esta santa oração e darão fim às moléstias nesta casa pela bichação dos espíritos malignos.”

Aliviado de um pesadelo diurno, minha mãe me levou pela mão para fora do velório, ao que dei graças ao altíssimo e N.S.J.C pela proteção contra o mal. Teria ela, a bruxa, combatido com o mal e salvado aquela alma? Não sabia ao certo. Porém, uma paz celestial se fez notar no ambiente ao término da estranha oração. Ganhando a rua, divisei ao longe a figura do bode de baixo da guabirobeira-do-campo. Deitado sobre as patas dianteiras, parecia ajoelhado, prostrado, cabeça baixa, como que copiando a dor dos vizinhos e familiares pela morte do dono.

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Capítulo IV

A Feiticeira de Évora — Poderosa Bruxa

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A

os 18 anos alistei-me no exército. Iria servir a pátria amada. Longos anos se passaram desde os eventos anteriormente narrados. Às vezes os creio fantasias pueris, principalmente acerca da bruxa6. Contudo, algumas lembranças povoavam minha mente como uma crença arraigada, fanatismo. Visitava meus pais nos finais de semanada de folga do serviço militar, sempre que podia. Vestia o fardamento militar com orgulho e galhardia, e fervorosa devoção à pátria. A vida na caserna era tranquila e rotineira, exceto pelos treinamentos militares. O campo de tiro, a sobrevivência na selva, as trilhas e os exercícios físicos. O prosaísmo elementar das faxinas. Sobre Dona Clarice, chegavam a mim as histórias de como ela havia livrado meu pai do terrível vício do álcool e do tabagismo. Eram contadas por minha mãe, que não aguentava mais ver meu pai cambaleando, ébrio, perdido em altas horas na saturnal dos bares e tavernas, escravo da bebida. Meu pai, desejando mudar de vida implorou por ajuda. E ela atendeu. E o fez milagrosamente. De uma só vez, livrou-o do vício do álcool e do tabagismo. Minha mãe contou que o pai vomitava após a ingestão da poção que Dona Clarice lhe ministrara, e que em poucas semanas a simples ideia de fumar ou beber lhe causava náuseas. Meu pai, um novo homem, livre do vício, tornou-se ministro da igreja e um exemplo para a família e toda a sociedade, contava a mãe orgulhosa e agradecida. Passei a me interessar por assuntos esotéricos. Salomão o rei sábio e pacifico. E seus poderes metafísicos de controlar espíritos. Hermes Trismegisto7, a magia antiga dos Caldeus, os Essênios e a iniciação de 6A Bruxa de Évora foi uma bruxa centenária que viveu na região portuguesa de Évora, guardava os segredos de todos os feitiços do oriente, de onde vieram os 3 Magos que Deus convidou para abençoar o nascimento de Jesus. (FARELLI, 2006 – p 33). Todavia, a moura pagã era, ao mesmo tempo, devota cristã: ...a velha bruxa já tinha feito a peregrinação a Santiago de Compostela [tradição cristã]... Já tinha ido à Sé de Braga, muitas vezes, pagar promessas... (Idem) ...E, ainda: ...a bruxa de Évora não era uma herética. Era uma mulher que conhecia as rezas (Ibid., p 41). 7 Hermes Trismegisto (em latim: Hermes Trismegistus; (o três vezes grande”) era um legislador egípcio, pastor e filósofo, que viveu na região de Ninus por volta de 1.330 a.C. ou antes desse período; a estimativa é de 1.500 a.C a 2.500 a.C. Teve sua contribuição registrada através de trinta e seis livros sobre teologia e filosofia, além de seis sobre medicina, todos perdidos ou destruídos após invasões ao Egito. O estudo sobre sua filosofia é denominado hemetismo.

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Jesus Cristo, Cipriano, Nicolas Flamel8, Alquimia, A Cabala9, Numerologia e tudo relacionado aos magos antigos e modernos, famosos ou anônimos. Tudo me interessava. E o estudo era favorecido pelo ócio no quartel. Certa vez, enquanto aguardava pelo ônibus cuja parada ficava exatamente em frente ao bar no qual Dona Clarice morava - e eu sabia que vê-la ou ser visto por ela era uma questão de tempo - ela apareceu. Com um sorriso amável, me cumprimentou e eu a cumprimentei também. Não sentia medo, mas simpatia e gratidão por ter salvado do vício o meu pai. Iniciou-se uma conversa amigável e ela me perguntava sobre a vida, a carreira militar e se havia conhecido uma garota. A tudo respondia serenamente, até que ela me perguntou se por assuntos esotéricos eu me interessara, ao que respondi que sim. E ela então me disse que sabia que há quase dez anos meu irmão e eu a vimos preparando uma poção. Ignorando o meu espanto, ela perguntou se meu irmão havia ficado tão impressionado quanto eu. Eu jamais havia comentado com meu irmão, ou ele comigo, ou com mais ninguém. Seu segredo estava guardado. Antes de partir, Dona Clarice falou que havia algo que ela queria me dar de presente, e que guardava por todos esses anos. Pediu ainda que viesse visitá-la sozinho, e com tempo disponível para uma longa e boa conversa. Despedi-me com um aceno ao embarcar no ônibus, com angustia e aflição. A curiosidade me consumia. Nos dias seguintes a fantasia turbava-me a mente e uma ideia fixa como um câncer se apoderou de mim: queria ela fazer de mim um bruxo e me dar seus poderes? Ou algum amuleto mágico? Ai de mim, meu Deus! De volta à caserna e a rotina da formação para o hasteamento da Bandeira Nacional, com pompa e circunstância devidas, para a manutenção das armas, testes de aptidão física, serviço de guarda, a faxina e noites mal dormidas. Aos pesadelos noturnos, suor e calafrios. Uma noi8Nicolas Flamel (Pontoise, 1330 - Paris, 22 de março de 1418) foi um escrivão, copista e vendedor de livros de sucesso francês que ganhou fama de alquimista após seus supostos trabalhos de criação da pedra filosofal. Casado com Dame Pernelle Flamel, segundo a lenda teria fabricado a pedra filosofal, o elixir da longa vida e realizado a transmutação de metais em ouro por meio de um livro misterioso.

te, ardendo em febre eu rezava fervorosamente por são Miguel Arcanjo. Pedia que me livrasse do demônio. Não sei se delirei ou sonhei. Mas vivi intensamente, o que relato a seguir10:

Tomado de um poder sobrenatural, capaz de subverter as leis da natureza e controlar o tempo, sentia um desejo insaciável. Estava no Século III e eu era o poderoso Mago feiticeiro Cipriano. Desejava o amor de uma menina de nome Adelaide. Fui pedi-la a seus pais, mas em vão, porque estes não deram consentimento. Desesperado com a negativa dos pais da jovem, enfureci-me me de tal maneira contra eles que mandei o Homúnculo, meu diabinho, que trazia sempre na algibeira, destruir sem mais perda de tempo as casas e todos os bens dos pais de Adelaide. As minhas ordens foram de imediato executadas. Logo que Adelaide viu os seus haveres destruídos, dirigiu-se a mim e me insultou: — Homem, que mal te fez meu pai para que procedesses para com ele com tanta maldade? — Não vês, Adelaide, que te amo tanto que nada vejo, senão o lugar onde moras? Disse então Adelaide: — Se for verdade o que me dizes, faze de conta que de hoje em diante sou tua escrava, mas não tua mulher, pois não sou digna de ser desposada por ti. — Por que razão tu dizes que não és digna de ser minha esposa? Esclareceu Adelaide: — Sendo tu um santo, como vou ser tua mulher, se sou a maior pecadora do mundo? Voltando-se para Adelaide, respondi:

9 Cabala substantivo feminino 1. FILOSOFIA•RELIGIĀO - sistema filosófico-religioso judaico de origem medieval (sXII-XIII), mas que integra elementos que remontam ao início da era cristã [Compreende preceitos práticos, especulações de natureza mística, esotérica e taumatúrgica; afirma que o universo é uma emanação divina, tendo grande importância a interpretação e deciframento dos textos bíblicos (Antigo Testamento).].

10 Parafrase de uma das aventuras de São Cipriano antes da conversão – São Cipriano – O Legítimo Capa Preta.

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— Menina, pois se tu adoras tanto a Deus, e ainda assim dizes que és a maior pecadora do mundo, que Deus vingativo tu admiras? Ouvindo estas palavras, Adelaide ficou como pasmada e duvidando do que tinha ouvido, disse consigo mesma: “Que Deus será o que adora este homem? Porventura haverá outro Deus, sem ser o meu? Não é possível!” Tomou coragem e disse: — Homem, obrigo-te, da parte de Deus, a quem adoro, que me digas que Deus estranho é esse que tu adoras e que te obriga a renegar o meu! - O Deus que adoro é Lúcifer dos infernos! Ouvindo isto, Adelaide benzeu-se três vezes e falou: — Esconjuro-te e obrigo-te da parte de Deus, a quem adoro, a que me restituas os meus haveres, tal e qual eles estavam. Obrigado pela força de Deus Onipotente, restitui os bens aos pais de Adelaide e, no fim de tudo isso, retirei-me sem gozar o amor de da bela jovem. Lúcifer aparecendo falou neste tom: — Meu amigo Cipriano, não estejas sempre a incomodar-me. Já te ensinei todos os feitiços e toda a arte mágica. Já tens todo o poder que eu tenho. Porém, como teu amigo que sempre fui, sou e serei, vou dar-te um conselho para gozares o amor de Adelaide. — Tu, meu amigo, a quem amo de todo o coração, corpo e alma, dize o que tenho de fazer neste caso. — Pega na tua garrafa mágica, mete a tua fava na boca e torna-te invisível. Agora mesmo vai à casa de Adelaide. Logo que chegares lá, deita um pouco de azeite da tua garrafa em uma das luzes que vires. Tanto Adelaide como seus pais se assustarão e tu, Cipriano, aproveita essa ocasião para gozar o amor de Adelaide.

Mordi as favas mágicas e de seu veio enegrecido escorreu uma seiva amarga como fel. Imediatamente senti o corpo todo formigar e os olhos arderem terrivelmente. Uma visão incrível do mundo invisível se descortinou e meu corpo parecias esvanecer como uma desmolecularização, e fragmentar em um milhão de partículas. Decorridos cinco minutos, já tinha feito amor com Adelaide. Estavam satisfeitos meus lúbricos desejos.”

Acordei atordoado, mas decidido. Iria ter com Dona Clarice e acabar com essa expectativa delirante. O pesadelo terrível, poderia significar parte com o demônio? Cipriano11, não convertido, e suas artes maléficas. Qual a relação de tudo isso com Dona Clarice? Teria ela me induzido a essa visão demoníaca por algum feitiço ou encantamento? Naquela Sexta feira mal pude conter a ansiedade de ver terminar o expediente militar. Pensava em ir para a casa da mãe e conversar com Dona Clarice no sábado, mas mudei de ideia durante a viagem. Iria assim que lá chegasse. Ao desembarcar do ônibus, tomei a direção da casa. Era por volta de oito horas da noite, de uma noite de verão. A lua cheia iluminava o céu estrelado como a celebrar com júbilo o esplendor da criação divina. “A bruxa” recebeu-me na porta. Estava como em minhas reminiscências do passado, quase nada envelhecera. Simpática, convidou-me a entrar. Passando pela cozinha onde em um fogão de lenha crepitavam as labaredas amarelas de fogo aquecendo uma ou duas panelas, uma chaleira e um bule de chá, conduziu-me ao salão do bar que estava vazio. Cadeiras empilhadas, um gato preto passou me por entre as pernas. Ao passar pelo corredor, através da porta semiaberta, vi o velho cunhado de dona Clarice. Parecia entorpecido, catatônico e imóvel, com olhar perdido para o infinito, como que enfeitiçado. Minha anfitriã moveu uma cadeira e deu-me a para sentar. Tomou outra para si e perguntou-me se estava confortável. Foi direto ao assun11 São Cipriano era filho de pais pagãos muito ricos. Nasceu em 250. na Antioquia, região situada entre a Síria e Arábia, pertencente ao governo da Fenícia. Desde a infância, Cipriano foi induzido aos estudos da feitiçaria e das ciências ocultas como a alquimia, astrologia, adivinhação e as diversas modalidades de magia.

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to: “queres saber sobre magia?”. De modo automático, quase letárgico acenei que sim. Revelei sobre o estranho sonho que tivera com o poderoso bruxo Cipriano. Expliquei que no sonho sentia como se fosse eu. O poder, a força e a liberdade que senti. Era estranho, porém irresistível. O que havia comigo que me possibilitava presenciar, sentir e sonhar o que ninguém mais a minha volta podia? Dona Clarice disse-me, de modo sereno e direto, que tinha uma suspeita e que se eu concordasse poderíamos confirmar. Dizia achar ter sido eu Cipriano ou Simão Mago em outra vida. Ou os dois, não sabia ao certo. - Querido leitor. Até esse ponto não me identifiquei com meu nome cristão, não por medo ou vergonha, mas por cautela. Por prevenção contra o fanatismo e a ignorância. E não o farei, ao menos até contar a minha história. Para esclarecer de vez nossas dúvidas, faríamos uma sessão de regressão por indução hipnótica. Para tanto, Dona Clarice pediu-me que tirasse os coturnos e colocasse os pés em uma bacia de água. Deu-me para segurar um pequeno cristal e começou a induzir a hipnose, proferindo palavras de calmaria e conforto, cantando suavemente. A voz melodiosa parecia uma canção antiga de ninar, acalmando meus pensamentos e reduzindo-me a pulsação. O cristal parecia esvanecer em minhas mãos, enquanto o pensamento viajava de volta no tempo, induzido segura e constantemente por Dona Clarice. O corpo mole, as mãos relaxadas, não sei se ouvi ou imaginei, o cristal estatelar-se num abismo profundo. Vozes alteradas me fizeram abrir os olhos. Estou no século III, a caminhar soberbo e desdenhoso pelas ruas de um pobre vilarejo. Sou Cipriano de Antióquia e todos se curvam às minhas vontades. Eis que um tumulto se forma em frente a um templo. Abro caminho entre os gentios com um sopro, e com meu cajado arrombo a porta. Eis o que vejo: um pregador arrebatando a multidão. Digo em voz alta12:

— Que pregação está fazendo aquele impostor? Um dos ouvintes me disse: — É Gregório. — Ai, ai, que tolice! Que Deus adora este judeu? Em vez de estardes a escutar esse impostor, melhor fora que estivésseis em vossas casas, ocupando-vos em vossos serviços. S. Gregório, que observou a conversa, sorriu e continuou sua retórica. Quando acabou de falar, S. Gregório foi ao meu encontro e disse: — Homem falto de fé e de temor a Deus, não acabas com essa vida de pecado? — Ai, com a vida de pecado! — falei às gargalhadas. — Sim, com a vida de pecado — afirmou S. Gregório. — Tu, Cipriano, andas iludido com essa arte do demônio, e não a queres deixar! — Diga-me, amigo Gregório, que Deus é o dos cristãos que são tantas as maravilhas que tenho ouvido contar? — O Deus que tu adoras é Lúcifer. Aquele que eu adoro é o Deus todo poderoso, que criou o céu e a terra e tudo mais que o sol domina — respondeu S. Gregório. Retruquei logo, com um semblante cheio de indignação: — Pois se tu, Gregório, adoras um Deus mais poderoso do que o meu, defende-te lá com ele das minhas astúcias. Se tu saíres vitorioso, acreditarei no teu Deus. Porém, se eu for vencedor, serás vitima nesse mesmo instante.

12 Parafrase do enfrentamento de São Gregório por São Cipriano – São Cipriano – O legitimo Capa Preta.

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S. Gregório treme e disse para consigo, em pensamento, porém balbuciando: “Se Deus me desampara, que será de mim! Maldita seja a hora em que vim encontrar-me com Cipriano. Meu Deus, meu Deus, se agora não me valeis, que será de mim?” Indignado com S. Gregório pelas súplicas que estava fazendo, gritei em alta voz por todos os demônios do inferno e, em poucos instantes eram tantos, que cobriam a região a uma distância de um quarto de légua enquadrado. S. Gregório levantou os olhos ao céu e bradou em voz alta: —Jesus! Jesus! Sede comigo neste momento de aflição! Instantaneamente se ouviu um forte trovão, que fez com que se abrissem as portas do inferno. E, imediatamente, todos os demônios se precipitaram nas profundezas do medonho abismo. Ante a surpresa do acontecido, tão lívido de espanto, cai por terra e assim estive prostrado durante quanto tempo não sei. No fim de alguns minutos sentiu Gregório um grande tremor de terra, que o fez admirar. Era Lúcifer, saindo da terra, com um caixão de fogo e quatro leões carregando-o. A vista deste espetáculo, ficou S. Gregório estupefato. Porém, com a ajuda do Senhor, animou-se a dizer a Lúcifer: — Eu te esconjuro, maldito, da parte de Deus! Dize o que queres aqui? — Venho buscar Cipriano, respondeu Lúcifer. — Porventura, maldito, tens poder de te apossares das criaturas viventes? Respondeu Lúcifer: — Eu me aposso de Cipriano, que já morreu. Ele é meu em corpo e alma, assim o temos ajustado. Ouvindo o que disse Lúcifer, S. Gregório orou ao Senhor e falou: — Eu te esconjuro para as profundas do inferno, que Cipriano não morreu! S. Gregório tocou nos meus ombros e disse: “Levanta-te, Cipriano!” Levantei-me logo e falou Gregório:

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— Ainda não te arrependes, Cipriano, dessa vida de pecado? É preciso que um homem seja muito malvado, vendo a mão de Deus a querer salvá-lo e continuar no caminho da perdição! Respondi: — E tu, Gregório, não sabes que eu pertenço a Lúcifer, porque tomei pacto com ele? Por isso não posso entrar no céu onde entram só os justos e aqueles que não seguem o caminho do inferno! Retira-te então da minha frente. Do contrário, usarei dos meus poderes e das minhas artes diabólicas. S. Gregório irou-se contra mim e falou palavras mui severas: — Homem indigno, retira-te da minha presença! Do contrário usarei também dos meus meios. A estas palavras, fiquei possesso. De repente se cobriu o céu de nuvens, turbaram-se os ares, tremeu a terra e sobre o solo caíram grandes raios, parecendo que o mundo estava se incendiando. Porém, Gregório, em nome de Jesus, pisava e destruía as minhas astúcias. Vendo o que acontecia, injuriei Lúcifer, o qual apareceu e disse: — Amigo meu, que queres tu de mim, que estás tão irado contra o teu senhor? Respondi: — Tu, Demônio, que poder tens, que não podemos destruir Gregório? A estas palavras, acudiu Demônio dizendo-me assim: — Não sabes que Gregório me garantiu que se eu não questionasse com ele, daqui a um ano me daria a sua alma? Por isso, amigo Cipriano, não me apraz combatê-lo desta forma. Retira-te, e deixa Gregório. Meti as favas na boca. Ao morder, sorvi a seiva negra e amarga e retirei-me para a cidade onde morava.

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Desperto do transe hipnótico, trêmulo e aturdido, disse à Dona Clarice tudo o que passara. No século Terceiro eu era o poderoso Mago Cipriano de Antióquia, não convertido, e enfrentava São Gregório, o Santo Papa da Santa Igreja. Blasfêmia! Experimentara um poder jamais visto. Uma força sinistra, um desejo insatisfeito, uma sede eterna. O que haveria de ser? Dona Clarice pediu que me acalmasse, que ela tudo me explicaria em tempo e que voltasse ao transe para uma nova experiência. Que ficasse tranquilo. Que me levaria para o século I Depois de Cristo. Dos santos apóstolos, na Samaria. E assim o fez13.

No exato instante em que minha consciência permitiu a percepção do universo ao meu redor, estava eu na cidade de Samaria. Investido de um poder sobrenatural, podia ver ao longe e sentir a presença de um Espírito Santo. Tinha que ver o que era. Estava um apóstolo de Jesus de Nazaré que lhes pregava. Seu nome era Filipe e as multidões prestavam atenção ao que ele dizia. Expulsava-lhes os espíritos imundos, que saíam de muitos que os possuíam. E muitos paralíticos e coxos eram curados. Havia enorme alegria na beatitude daquele homem santo. Também eu me encontrava cercado pela multidão. Atendia pelo nome de Simão Mago, e a mim recorriam muitos necessitados de graças. Com meus poderes e a grande virtude de Deus, curava-lhes as doenças, dava-lhes conforto para suas almas e os entretinha. Eles ficavam encantados com minhas aparições e voos sobre suas cabeças estupefatas de admiração, porque queria Deus assim. Não podiam compreender a essência da Gnose, pois eram escravos da própria idolatria e fanatismo. 13 Este trecho é uma paráfrase bíblica. Sua versão oficial pode ser encontrada em (Atos 8:9-24)

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Mas, como cressem em Filipe que lhes pregava acerca do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo, se batizavam, tanto homens como mulheres. E prometeu-me também o Reino de Deus aquele homem iluminado. Eu o segui, pois dele emanava o Espírito Santo. E fui também batizado. Os apóstolos, pois, que estavam em Jerusalém, ouvindo que Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João. Os quais, tendo descido, oraram por eles para que recebessem o Espírito Santo. (Porque sobre nenhum deles tinha ainda descido; mas somente eram batizados em nome do Senhor Jesus.) Então, lhes impuseram as mãos, e receberam o Espírito Santo. E eu, Simão, vendo que pela imposição das mãos dos apóstolos era dado o Espírito Santo, lhes ofereci muito dinheiro, dizendo: -Dai-me também a mim esse poder, para que aquele sobre quem eu puser as mãos receba o Espírito Santo. Mas disse-me Pedro: -O teu dinheiro esteja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro. Tu não tens parte nem sorte nesta palavra, porque o teu coração não é reto diante de Deus. Arrepende-te, pois, dessa tua iniquidade e ora a Deus, para que porventura te seja perdoado o pensamento do teu coração; pois vejo que estás em fel de amargura e em laço de iniquidade. Respondendo, porém, eu disse: - Orai vós por mim ao Senhor, para que nada do que dissestes venha sobre mim.

A voz suave de dona Clarice me fez lembrar de onde estava. O corpo entorpecido se recusava a obedecer aos meus comandos. Pela janela entreaberta a brisa noturna soprava, trazendo consigo o piar lúgubre de um corvo. Fiz um esforço para sentar-me ereto. Só então percebi

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que dona Clarice segurava-me as mãos, sacudindo levemente meus braços. Mal me recompus, coloquei-a a par de tudo que havia presenciado. Sem demonstrar espanto, ela estabeleceu ligação entre meu pesadelo, a primeira regressão hipnótica e esta última. - Em outra vida você foi Simão, discípulo de São João Batista. Teve por companheira Helena, a reencarnação da bela Helena de Tróia. Foi proclamador da Gnose, o conhecimento científico, filosófico e religioso do mundo antigo. Demonstrou ser o conhecimento a única forma de ascender a Deus, pois o Deus Supremo criou o mundo da matéria e colocou a centelha divina no ser humano. Esta centelha pode ser liberada através da Gnose, Conhecimento. E por fazer demonstrações públicas de levitação, foste muito combatido pelos apóstolos de Cristo. Foi o que me dissera Dona Clarice. Afirmou também que Cipriano era reencarnação de Simão Mago, e eu, nesta vida, a reencarnação de Cipriano. A noite passava. Lá fora passeavam as aves noturnas. Uma coruja piava ao longe. As revelações, como torrentes de uma enxurrada, inundavam-me a mente. Desejava saber tudo sobre Simão Mago e porque era incompreendido pela igreja de Cristo. Todo seu poder era usado para o bem e a tarefa de sua existência era compartilhar com os gentios. Graças a ele, a sabedoria Gnóstica que espalhou no mundo antigo, chegando até a Pérsia, indo até à China, e ao Iraque. Não tinha Jesus por inimigo, pois Jesus era a encarnação do Supremo Arquiteto dos mundos para trazer a gnōsis para a terra. O Criador ou Demiurgo ensina que o conhecimento não é apenas o meio de salvação, é a única e real salvação. - Mas e a senhora? Como pode saber de tudo isso? E porque está me ajudando? - Eu sou a reencarnação da feiticeira de Évora, a bruxa de Évora! Exclamou. Conhecedor dos mistérios da magia, eu soube no mesmo instante que dona Clarice se referia à grande feiticeira de Évora, uma bruxa que convivia pacificamente com os Mouros em uma pequena aldeia Portuguesa na região de Évora e de quem Cipriano aprendeu as artes místicas. Superstição? Sabemos apenas, como Shakespeare, “não creio em bruxas, mas que elas existem, lá isto existem...”

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Capítulo V

Iniciação a Magia Negra

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ra quase meia noite. A conversa com Dona Clarice fluía qual o rio santo e a magia fecunda quais as margens do Nilo. Ela me fez compreender que, para um perfeito entendimento das forças esotéricas, eu deveria ser iniciado e um ritual teria início. E ela mesma o conduziria. Devo confessar que estar na presença de uma bruxa só não era mais aterrorizante do que as incríveis revelações que me foram feitas. Porém, de um modo estranho e sinistro, não estava apavorado. Sua voz serena e firme conduzia o ritual e eu sentia que poderia interromper e fugir. Se quisesse! Um grande círculo foi traçado no assoalho de madeira, com um pentagrama em seu interior. Dona Clarice, que preferia ser chamada sacerdotisa, pediu-me que fosse a outro quarto e que me banhasse na água quente em uma velha banheira. Deu-me para vestir uma túnica branca que chamava “Dalmática”, como a que usavam os sacerdotes e os legisladores Romanos. Fez ela exatamente o mesmo, depois de mim. Ao retornarmos, estava tudo preparado. A sacerdotisa entrou no grande círculo mágico sozinha, deixando a mim, o noviço, do lado de fora. Retraçou o círculo usando seu athame (espada ritual) e deixando uma entrada. A seguir, aproximando-se da entrada, ergueu seu Athame em arco e completou o círculo. Serpenteou em torno do círculo três vezes, na direção dos ponteiros do relógio, com um passo de dança chamando os Poderosos do LESTE, SUL OESTE e NORTE, para se apresentar. Então, dançando em torno várias vezes, em silêncio, clama: “Eko, Eko, Azarak, Eko, Zomelak. Bagabi Lacha bachabe Lamac Lacha achababe Karrellyos. Lamac Lamac Bachlyas Cabahagy sabalyos Baryolos Lagoz atha cabyo las Samahac atha famo las Hurrahya.” A sacerdotisa deixou o círculo mágico por meio da porta e se aproximou, dizendo:

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- Como não há aqui outro irmão, devo ser sua madrinha, além de sacerdotisa. É o momento de lhe dar um aviso. Se você ainda mantiver a mesma opinião responda com estas palavras: - Amor Perfeito e Confiança Perfeita. A sacerdotisa encostou a ponta do Athame no meu peito, dizendo as palavras: - O tu, que estás no limiar, entre o mundo dos prazeres do homem e os domínios do terror do senhor do mal, tens a coragem de fazer esta prova? Por que em verdade eu digo que seria melhor lançar-se contra a minha faca e morrer miseravelmente do que aventurar-se com medo no coração. Respondi com a convicção da vívida experiência. Após o sonho e a regressão, tive a certeza de que o ritual era inevitável. E ela continua: - Tenho duas senhas: Amor Perfeito e Confiança Perfeita. Agora, deixando cair a ponta do Athame, diz: - Todos os que trazem estas palavras são duplamente bem-vindos. Então, passando por trás de mim, vendou meus olhos, juntou as mãos para trás, com o próprio braço esquerdo em volta da cintura e, puxando o braço direto em volta do pescoço e meus lábios para os dela, disse: - Dou-lhe a terceira senha: Um beijo! Senti um bafejo morno e úmido. E uma substância intoxicante invadiu meus pulmões, causando uma sensação de enorme poder e lucidez mental. Empurrando-me através da entrada para o grande círculo, encostou-se peito com peito, joelho com joelho, pé com pé. Ela fechou a entrada atrás de si, riscando com o

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Athame três vezes. O fechamento de todos os círculos. Senti algo quase inexplicável, como se fosse invulnerável, todo-poderoso ou imortal. Agora me conduziu para o altar do Sul, dizendo: - Agora é a prova. Tomou um pedaço pequeno de corda do altar, amarrou no meu tornozelo direito, deixando uma ponta livre, dizendo: - Pés nem amarrados, nem livres. A seguir, com uma corda grande, também no altar, amarrou minhas mãos firmemente às costas, passando pelo pescoço. Assim, os braços formavam um triângulo, deixando a ponta da corda pendurada em um cabo virado para frente. Com a ponta em sua mão esquerda e o Athame na outra, fui conduzido na direção do movimento dos ponteiros do relógio em volta do círculo para leste, onde se deu com o Athame, proclamando: - Preste atenção, Ó espírito das trevas (disse meu nome cristão), adequadamente preparado, devidamente recomendado, será feito sacerdote e feiticeiro. Conduzindo-me agora uma volta em direção Sul, Oeste e Norte, onde foram feitas proclamações semelhantes. Então, abraçou-me com seu braço esquerdo, o Athame ereto na mão direita, fazendo-me perambular em volta do círculo três vezes, com um passo meio correndo, meio dançando. Obrigou-me a parar do lado sul do altar, deu onze pancadas num sino e ajoelhou-se aos meus pés, dizendo: - Em outras religiões o postulante ajoelha, enquanto o sacerdote clama o supremo poder. Mas na Magia Negra somos ensinados a ser humildes Então disse: - Abençoados sejam seus pés que te trouxeram por estes caminhos. (Beijou-me os pés) - Abençoados sejam seus joelhos que se ajoelharão ante o altar o sagrado. (Beijou-me os joelhos) - Abençoado seja seu ventre, sem o qual não existiríamos.

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(Beijou-me o ventre) - Abençoado seja seu peito, formado de beleza e força. (Beijou-me o peito) - Abençoados sejam seus lábios, que repetiram os nomes sagrados. (Beijou-me os lábios) A seguir, me ajoelhei ante o altar e fui amarrado pela corda que formava um anel, de modo que fiquei inclinado para frente. Meus tornozelos foram amarrados. Então, a sacerdotisa bateu o sino três vezes, dizendo: - Estás pronto a jurar que serás fiel à arte satânica para sempre? Respondi: - Sim. A sacerdotisa bateu o sino sete vezes e disse: - Primeiro deve ser purificado. Tomando um açoite do altar bateu-me nas costas, primeiro três, sete, nove e então vinte e um golpes ao todo, dizendo ao fim das pancadas: - Estás sempre pronto a proteger, ajudar e defender seus irmãos da Arte Negra? Respondi: - Sim. Sacerdotisa: - Então, repita depois de mim: - Eu (meu nome cristão) na presença do maligno, faço de livre vontade o mais solene juramento de que manterei para sempre e nunca revelarei os segredos da Arte, exceto a uma pessoa de confiança, especialmente preparada, dentro do círculo como estou agora, e que jamais negarei os segredos a outra pessoa, se um irmão ou irmão da mesma seita de Satã responder por ele. Tudo isto eu juro e que minhas armas se voltem contra mim se eu quebrar este juramento solene.

Tiradas as cordas dos seus pés, a venda removida, mas ainda com as mãos atadas, ajoelhando-se em frente a mim, disse: - Por este meio eu te consagro com óleo. Tocou-me o ventre, o mamilo esquerdo, o direito e o ventre de novo. Formava-se um triângulo. - Por este meio te consagro com o vinho. Desta vez tocou com o vinho o ventre, então o mamilo direito e o esquerdo e o ventre outra vez. Novamente se formava um triângulo. - Por este meio te consagro com meus lábios. Tocando com os lábios os mesmos pontos anteriormente citados, e na mesma direção, ela completou mais uma vez o sinal triangular. Levantou-se e libertou finalmente as minhas mãos. Continuava: - Agora te presenteio com os instrumentos de trabalho de um feiticeiro. Ela apanhou a espada do altar e, movendo-a para tocar meu ombro esquerdo, disse: - Primeiro a espada mágica. Tal qual o Athame, esta será usada para formar os círculos mágicos, dominando, subjugando e punindo todos os espíritos rebeldes e demônios. Com isto em tuas mãos, és o chefe do círculo mágico. Beijou-me e disse: - A seguir, apresento o Athame. Esta é a verdadeira arma do feiticeiro. Tem todos os poderes da espada mágica. Beijou-me de novo: - Agora apresento a faca de cabo branco. E usada para formar todos os instrumentos usados na Arte. Pode ser usada apropriadamente dentro do círculo mágico. Beija-o me ainda uma vez e disse: - Agora apresento o incensório. Isto é para encorajar e dar boas-vindas a todos os espíritos. Um beijo a mais.

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“Segue-se o açoite, que é um símbolo de poder e dominação, é também para causar sofrimento e purificação, por isto está escrito: ‘Para aprender deves sofrer e ser purificado”. - Desejas sofrer para aprender? Respondo: - Sim. Mais um beijo. - Agora e finalmente, apresento as cordas usadas para amarrar e reforçar sua vontade. São também necessárias ao juramento. Beijou-me outra vez, dizendo: - Saúdo-te em nome de Satã, recém-formado sacerdote e feiticeiro. Ambos perambulamos pelo círculo e ela proclamou aos quatro cantos: -Ouça, maligno, (meu nome cristão, recém-formado sacerdote ou neófito), foste consagrado sacerdote e feiticeiro14.

Capítulo VI

Tentação de Simão

Era o fim da cerimônia e eu fora devidamente transformado em um sacerdote do culto. É costume que o noviço ou neófito tenha relações sexuais com a sacerdotisa que o iniciou. Porém Dona Clarice consagrou sua pureza e castidade ao Supremo e não era conveniente fazê-lo. Advirto! Esta cerimônia só pode ser efetuada por um sacerdote ou sacerdotisa, e o candidato deve estar devidamente recomendado e preparado no interior do círculo. Realizá-la em outras circunstâncias é arriscar-se a ser lançado as mais negras profundezas do inferno. Senti uma forte conexão com meu passado, como que incorporando um conhecimento antigo e poderoso. Algo como deve sentir um filho bastardo quando é reconhecido pelo pai. 14 Ritual baseado no Livro de São Cipriano – O Legítimo Capa Preta.

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ntediado da rotina da caserna e antevendo um futuro limitado, determinado pelo rigor hierárquico, decidi deixar o quartel. Dei baixa do serviço militar contrariando meu pai e meu irmão, que era sargento, e que fazia muito gosto que seguisse carreira. Iria para a capital, Florianópolis. Alguém poderia imaginar que algo teria a ver com as superstições, crendices e estórias de Sabás das feiticeiras, que supostamente ocorriam no Sul Da Ilha de Florianópolis, a Ilha da Magia, mas o objetivo era ir em busca de melhores condições de vida e estudos. Partia somente com o dinheiro da passagem e o endereço de um irmão que trabalhava em um famoso restaurante da capital e que me arrumara um emprego como garçom em um quiosque, na linda e maravilhosa praia de Canasvieiras. Estava muito feliz trabalhando em um quiosque de praia onde aprendi a cozinhar e a preparar bebidas e lanches. Cozinhava moquecas de peixe, camarões preparados de todas as formas, caldeiradas de frutos do mar, lanches e porções de batatas fritas, calabresas com cebolas, anéis de lulas, marisco, bolinhos de siri e tantas outras coisas. E a vida era bela e tranquila. Ao final de tarde fechávamos o quiosque, e eu ficava sozinho a admirar o imenso oceano. Às vezes nadava até uma embarcação que costumava ficar atracada a menos de cem metros da praia. Era um mundo novo que se descortinava para mim. Outras vezes aventurava um passeio ao centro de Canasvieiras para vislumbrar as vitrines das lojas e o movimento dos restaurantes abarrotado de turistas. Não possuía bens materiais, nem dinheiro. Tudo que tinha cabia em uma mochila: um par de tênis e um par de sapatos, algumas camisetas, duas calças jeans, uma bermuda, um par de chinelos, material de higiene e claro, as “ferramentas de trabalho de um feiticeiro”. Acho que acreditava ser aquilo tudo tolice de uma senhora solitária, paranoica e delirante. Contudo, tinha por ela muita consideração e respeito. Tudo ia bem até que o português para quem eu trabalhava no quiosque resolveu contratar um ajudante. Um moleque, de nome Jean, eu acho. Malandro, possuía a ardileza das ruas de São Paulo, de onde viera, e dormia no quiosque comigo, cada qual em um colchonete estendido no chão entre as geladeiras e fogões. Passou a me incentivar a

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consumir as bebidas que ali se encontravam e a fazer refeições não autorizadas pelo proprietário, durante a noite. Comíamos camarões fritos, ostras e mariscos. Preparávamos lanches fartos e tomávamos sorvetes. Certa noite, após nos fartarmos da melhor comida e bebida, dormimos. Ao acordar, pela manhã, percebi que Jean não estava e que minha mochila havia sido revirada. Receei por meus pertences, mas nada havia sumido. Exceto um punhado de dólares que havia trocado com os “gringos” que frequentavam o quiosque e com os quais pretendia fazer uma reserva para uma emergência. Era tudo o que possuía e a temporada de verão estava chegando ao fim. Iria ficar sem emprego e sem dinheiro. O que seria de mim? A temporada de verão acabou e meus serviços no quiosque não eram mais necessários. Fui passar uns dias no sitio do tio de um amigo de meu irmão, enquanto procurava por emprego. Perambulando pelo centro de Florianópolis procurava trabalho em bares e restaurantes. Nada! Dias se passavam sem que minha sorte mudasse. Procurei a Legião da Boa Vontade em busca de ajuda, ou até mesmo uma passagem de volta para o interior, para casa de meus pais. Procurei políticos na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina e não obtive resultado. Era quase meio dia e me encontrava desalentado em frente à Catedral Metropolitana. Entrei, mergulhei a ponta dos dedos na água benta, prostrei-me de joelhos e rezei: Ó Virgem dos céus sagrados, Mãe do Nosso Redentor, Que entre as mulheres tens a palma, Traze alegria à minha alma, Que geme cheia de dor. E vem depor nos meus lábios Palavras de puro amor, Em nome do Deus dos Mundos E também do Filho Amado, Onde existe o sumo bem. Sê para sempre louvada Nesta hora bendita — AMÉM.

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Era meio dia. Voltaria a procurar em outros lugares. Fui a Lanchonete Caiçara. Não havia vagas. Ficava em longas filas, preenchia fichas de emprego e deixava currículo. Cansado, desiludido, pensei em invocar os poderes da bruxa, pois que todos que suplicavam junto à Bruxa de Èvora alcançaram grandes fortunas. Porém, morreram desgraçadamente. Meu objetivo não era a fortuna, mas alcançar a palma da glória por obras meritórias. Peguei um “latão” que era como os nativos (manezinhos) chamavam o ônibus circular e fui a uma das praias mais Setentrionais da Ilha da Magia, praia do Santinho. Caminhava pela praia deixando para trás a impressão das pisadas na areia. Aproximava-se a segunda hora mágica: Eram Três da tarde. De joelhos na areia fria rezei:

Santíssima Trindade me acompanhe Em toda a vida na Terra, Sempre me guarde do mal, De mim tenha piedade. Pai Eterno, me ajude, Filho a bênção me lance, Espirito Santo me alcance, Proteção, honra e virtude, Em vez do mal, faça-se em mim, Santíssima Trindade me ilumine e acompanhe nesta hora e sempre — AMÉM. Por horas vaguei descalço, mochila nas costas, pés na areia, o pensamento no altíssimo. Sabia que para aprender precisava sofrer, precisava superar as concupiscências para me conectar com o Todo, expandir a mente. A ganância, o fanatismo e a ambição não eram inimigos fáceis de serem combatidos. A terceira hora sagrada se aproximava. Eram seis horas, empunhei o Athame e o elevei ao altíssimo com o braço esticado o mais alto que podia, em pé com os pés banhados pelo oceano azul, a mão esquerda

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ligando o ínfimo universo abaixo, ao altíssimo e diviníssimo firmamento pelo sagrado sinal hermético (o que está encima é igual ao que está embaixo) rezei:

Nesta hora de grande vibração, Quando os pássaros cantam, procurando os ninhos, Quando os trabalhadores deixam o arado e os campos E o homem da cidade volta também para casa, Minha Mãe, SUBLIME MISTÉRIO, Sê a minha Medianeira; Sê a minha Esperança, E mostra-me o caminho da Verdade, Maria, SUBLIME MISTÉRIO, Ajuda-me a ser bom, Protege-me na hora das aflições, da rotina, das lutas, Pela força da TRINDADE, Ó Mãe, Maria Medianeira.

Todas as maravilhas da criação divina eu contemplei. O imenso Oceano, as ondas do mar, as areias, o pôr do sol. Infinita beatitude contemplativa tomou conta de mim e os inimigos da virtude aos pouco se desapegavam do meu ser. Eu estava em paz. Foi quase como uma miragem espelhada sobre as ondas que eu o vi. Ao longe, como uma sombra refletida, divisei a figura do Aristocrata. Uma lufada gélida de vento marinho arrepiou meu corpo, seguida do odor inconfundível de enxofre. Um calafrio seguido da percepção de uma presença maligna. Eis que me aparece Satanás e, sem cerimônia, caminhava ao meu lado. - Sabeis quem eu sou, Mago Simão? – Inquiriu como quem sabia a resposta. - Por certo que sei. Sois Satanás. Conheço-te! Há muito que vagas pelo tempo admoestando as almas e tentando os homens.

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- Sabeis que sendo um sacerdote do meu culto podeis invocar meus poderes para resolver os vossos problemas? Perdeis vosso tempo buscando a perfeição. - Pobre Satanás! Andas pelas trevas metido com seus bruxedos e artimanhas. Conheço tuas artes e delas posso usufruir. Porém não o farei em prejuízo do Altíssimo, se isto a alguém for prejudicar, especialmente se esse alguém for eu. Não farei poções nem atentarei contra a vontade de um irmão ou irmã forçando sobre este ou esta minha vontade. Se é o que desejas de mim, perdes o teu tempo, Satanás. - Mago Simão! Venho como seu senhor e amigo. Amo-te como te amei por muitos séculos, através do tempo e das vidas passadas. Seu Deus lhe faltou na Samaria quando Pedro o humilhou em praça pública. A igreja de seu Deus obliterou Simão Mago das escrituras. E ainda assim o adoras? Eu, seu senhor e amigo, nunca faltei a Cipriano que me traiu e se converteu a Deus. Podemos reparar essas grandes injustiças e restabelecer o seu grande nome, Simão. - Não Satanás! Respondi sem hesitação. Sem esboçar reação pela minha recusa, Satanás apenas me disse que queria dar-me presentes em nome das reminiscências de nosso passado, e que sendo um alto sacerdote do culto eu não poderia me negar a recebê-los. - Pois bem - disse eu - O que queres me dar Satanás? Disse ele: - Este óleo mágico e estas favas, que na verdade pertenceram a Cipriano e lhe estão sendo restituídas por testamento, que trago aqui assinado. Desenrolou um pergaminho em lã de carneiro escrito em sangue: Satanás, Imperador do Inferno, guarde estas poções que me custaram a alma e entregue ao meu sucessor. Eis meu testamento e minha vontade. Assina: Cipriano de Antióquia.

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A estranha herança, legado do meu passado, era composta de um frasco de óleo mágico feito da alma de animais diversos, cozidos vivos em um ritual perverso feito por Cipriano com a presença de Satanás, cuja fórmula exata não ensinarei neste livro, e de alguns maços de favas mágicas feitas em ritual de Magia Negra, as quais tinham sido enterradas junto com um gato morto e regadas à meia noite até que tivessem brotado novas e frescas, para serem cortadas pelas raízes na primeira lua cheia seguinte ao seu nascimento. A noite passava, nesta vigília. Conversava com Satanás. Não o temia, nem adorava. Era indiferente a ele. Conhecia suas artimanhas e ele certamente conhecia minhas fraquezas. O fanatismo estava vencido. A ganância, a ambição e a ignorância porfiavam sorrateiro combate e eu, pobre criatura mortal, ambicionava vencer os inimigos imateriais, para vencer no mundo físico. Durante a conversa, o maligno tentou me convencer uma ou duas vezes de meter uma fava na boca e desaparecer para onde eu quisesse. Preferia sofrer e aprender. Caminhamos e falamos. Imaginamos e engenhamos juntos fantasiosas realidades paralelas, supondo que a humanidade evoluísse. Dormi na areia e, ao acordar meu companheiro havia sumido. Sacudi a areia da praia e sai caminhando novamente. Encontrei o tio do amigo de meu irmão, que sabia que eu procurava por emprego e ele me disse: - O Iate Clube na Lagoa Da Conceição está contratando auxiliar de cozinheiro.

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Capítulo VII

Mago Adormecido

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ncontrei trabalho no Iate Clube como auxiliar de cozinheiro e estava muito feliz, pois tinha novamente emprego e uma cama para dormir no alojamento dos funcionários. Trabalhava na cozinha, lavava louças, fazia faxina e ia ao CEASA, uma espécie de feira de frutas, legumes e temperos, com o gerente do restaurante, para escolher os melhores produtos para a cozinha. Aprendi a dirigir uma VW Kombi e a cozinhar para grandes eventos. Com o tempo, e por mérito de meu esforço, passei a ser o Gerente de Compras para o restaurante. Também ganhei uma bolsa de estudos, destinada aos melhores funcionários do ano. Frequentei o curso de Gerencia de Alimentos e Bebidas do SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Alguns anos depois trabalhei para o Hotel Costa Do Mar no Santinho como Gerente de restaurante. Além disso estudava Inglês duas vezes por semana e em todas as noites e folgas, sozinho. Já tinha apartamento alugado e possuía uma moto nova e potente. Há esse tempo havia deixado de lado o interesse pelas coisas ocultas. Em minha mente, como que trancadas a sete chaves, as lembranças da infância e da adolescência. Sabia que para Deus onipotente o tempo, o passar dos anos, era irrelevante. Assim como para Satanás. Por isso preferia deixar esses assuntos adormecidos. Também as ferramentas do culto em um baú jaziam, empoeiradas, debaixo de um armário. Deixei o emprego e decidi estudar Inglês na Inglaterra. O menino tísico da roça iria para o velho mundo estudar a língua universal dos homens, a língua inglesa. A emoção era indescritível. Embarquei em Florianópolis em um voo curto até São Paulo. A sensação tão humana, frágil e pequena, deslumbrava-me a mente. Viajar em uma aeronave feita por engenharia humana era quase uma demonstração inequívoca do poder divino. De São Paulo fiz conexão em Paris, em Airbus A-350 da Air-France, na classe executiva. Tive a companhia de uma jovem que se vestia toda de preto, com piercings, tatuagens e um lindo cabelo vermelho

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fogo. Usava jeans rasgado, coturnos militares e anéis diversos nos dedos. Era francesa, mas falava inglês. Conversamos durante o longo voo de doze horas. Bebemos vinho e comemos o “pulet pané”, que era frango empanado. Porém, dito em francês, soava como alta gastronomia. Como o vinho fluía das garrafas, assim fluía a conversa. A moça me dizia que era “gótica” e que cultuava as forças das trevas, que ouvia heavy metal e lia Lord Byron. Suas influências ocultistas, segundo ela. Há muito que não me divertia tanto dando vazão àquela criatura ingênua e pálida que flertava com o oculto. Disse-lhe que estava indo para Inglaterra e lhe perguntei se conhecia Mr. Crowley. Respondeu que sim, a música de Ozzy Osbourne. Sim, ela a conhecia. Insisti educadamente e disse que me referia a Aleister Crowley, o mago filósofo fundador do Thelema, grão mestre da Ordem hermética Aurora Dourada. Notei que seu interesse pelas ciências ocultas não passava de estética e modismo, que arranhava apenas a superfície e que certamente cairia desmaiada se soubesse que na verdade viajava ao lado de Simão Mago. No Aeroporto de Paris-Charles de Gaulle, nos despedimos. Fui interpelado pela polícia local e pediram-me para acompanhá-los. Solicitaram meu passaporte, revistaram minha mala, pediram para tirar os sapatos e perfuraram as solas. Fizeram-me mil perguntas. Ainda não satisfeitos, me solicitaram fazer exames de raio x e de urina. Pediram para me despir e revistaram minhas roupas. Depois de quatro longas horas me liberaram. Confesso que me senti ultrajado e com vontade de vingar-me daquela gente. Mas lembrei-me das escrituras sagradas e exercitei, com muita dificuldade, a tolerância, o perdoar. Mais uma perna até Londres. Quarenta minutos. Porém, com fuso horário, chegaria no mesmo horário da partida no Aeroporto de Londres-Heathrow. Fiquei hospedado em uma casa de família inglesa como parte de programa de imersão na língua e cultura daquele país. Frequentei um curso livre de inglês como língua estrangeira da Cambridge University e ao final obtive um certificado de proficiência chamado First Certificate of Cambridge. A experiência toda foi fantástica. O breackfast com Sausage and potato, o almoço ou melhor, o “lunch” de fish-and-chips ou pork-and-chips, ou sausage-and-chips, não parecia ser enjoativo, embora pouco variado. A cultura, a educação, a história eram fascinantes para mim. A convivência com Mr and Mrs Phelps era “polite”, educada, mas não calorosa. Assim como o frio na Inglaterra eram as pessoas. Educa-

das, porém frias e apáticas. Visitei museus em Londres e arredores e, é claro, o famoso e antigo templo e oráculo de Stonehenge. Quase podia imaginar os Saxões ancestrais contemplarem o último pôr do sol do último dia do inverno alinhado ao círculo formado pelas Hangging Stones. Lamentei profundamente o desprezo que a humanidade tem por sua história. Ao retornar para o Brasil passei a ensinar a língua inglesa a pilotos e comissários de bordo. E a todo o pessoal da indústria da aviação. O curso foi crescendo. Então fundei uma escola livre de idiomas, chamada The Way. Ensinava inglês e empregava professores de Espanhol e Frances. Ensinei inglês a centenas, talvez milhares de pessoas que hoje estão nas mais diversas profissões espalhadas pelo Brasil e o mundo. Também entrei para a Universidade Federal de Santa Catarina para o curso de Inglês e Literaturas de Língua Inglesa. Período particularmente interessante em que tomei conhecimento de Lord Byron, Edgar Allan Poe, William Shakespeare, Jane Austen e tantos que escreveram lindamente a literatura. Li Dante e sua belíssima poesia dogmática, Virgílio e outros tantos imortais. Queria ser como Dante que deixou um legado cruel, porém com significação profunda ao descrever vividamente sua viagem espiritual ao inferno, ao purgatório e ao paraíso para expiar seus pecados e merecer o favor do Altíssimo e o amor eterno da beatíssima Beatriz. Queria ser como Goethe que poetizou lindamente em sua obra prima, O Fausto, as vantagens e desvantagens de se fazer um pacto com o demônio. Queria deixar meu legado. Queria ser imortal. Longos anos de uma vida ordinária levei assim, anonimamente, aproveitando a vida e os prazeres mundanos. Meu amado filho nasceu na virada deste século, a quem apenas consagrei o místico número sete e cuidei para que cultivasse elevada auto estima. Meu amadinho, é como ainda o chamo. Desde menino sempre cuidei para que soubesse que era muito amado e querido e que sempre poderia contar com seu pai. Nenhuma magia foi usada, nenhuma poção, nem unguentos nem feitiços, nem bruxedos, nem coisa alguma de outro mundo. Apenas o amor incondicional de pai, o batismo pela Santa Igreja Católica e a comunhão com os santos e mártires da Santa Igreja. E cresceu lindo, forte e saudável. E com a belíssima capacidade humana de criar, de perdoar e de amar. Cansado desta vida corriqueira de ensinar idiomas, larguei tudo

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e fiz um novo começo. Fui trabalhar em um banco de investimentos e descontos e depois em outro, e em outro. Fiz carreira como bancário. Ascendi ao cargo de Gerente Regional de um importante banco com sede em Londres. Conheci o Canadá em um intercâmbio profissional e fiz lá muitos amigos, dentre os quais o velho Ron que era Ministro da Igreja Anglicana canadense, Presidente do clube de Rotary e Venerável Mestre da Grande loja maçônica. Todo isso aos oitenta e três anos de idade; o que me impressionou bastante. Ron era Egiptólogo de profissão e era ainda requisitado para muitas palestras. Em seu porão guardava muitos utensílios curiosos, dentre eles uma gaita de fole escocesa e muitos quadros e porcelanas decoravam as paredes. O anfitrião jamais me recomendara não xeretar em seus pertences e a curiosidade me impeliu a verificar o que mais havia lá. Em uma pilha de documentos antigos encontrei o que parecia ser uma certidão de nascimento em nome de Aurélio Filipe, datado de 1493 e registrado na Suíça. Em um baú de madeira muito antigo encontrei uma foto de um monumento em que havia uma epigrama. Olhei sob a lupa e se lia: “A Magia é uma Grande Sabedoria Oculta – A Razão é uma Grande Loucura Pública”. Paracelso – Áustria (1493-1541). A lupa caiu-me das mãos trêmulas e espatifou-se no chão. Ron seria o poderoso Alquimista conhecido pelos Amentibus como Paracelso? É claro que como mago eu conhecia o grande Paracelso15, também conhecido na comunidade esotérica como Teofrasto Bombast. Apesar de ser muito poderoso, ele desprezava o mundo do poder, dos dogmas e dos valores estabelecidos. Morreu misteriosamente na Áustria e sua tumba foi encontrada vazia anos depois. Ainda movido pela curiosidade fui ter com Ron que negou tudo e disse que eram documentos históricos raríssimos. Que eu não deveria mexer. Disse a ele que eu mesmo tinha consciência de ter sido Simão Mago em outra vida e que estava convencido de que ele, Ron, era ninguém menos que Nicolas Flamel que viveu até 1418, pouco tempo em termos esotéricos, antes do nascimento de Teofrasto Bombast. E o que havia sido feito de Dame Perrenele Flamel, sua esposa e companheira? Os olhos marejados do velho Ron eram resposta bastante para minhas 15 Paracelso, pseudônimo de Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, (Einsiedeln, 17 de dezembro de 1493 — Salzburgo, 24 de setembro de 1541) foi um médico, alquimista, físico, astrólogo e ocultista[1] suíço-alemão.[2] A ele também é creditado a criação do nome do elemento zinco, chamando-o de zincum.

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perguntas. O famoso elixir do alquimista não conseguira, contudo, salvar da morte sua fiel companheira. Por isso tornou-se um viajante solitário e nômade. Ron confessou a mim, Simão Mago, que esta seria sua última existência terrena e que por isso vivia intensamente. Quanto ao que os Amentibus chamam pedra filosofal, perguntei indiscreto, porém temeroso. - Deve estar acabando. - Respondeu Ron, mostrando uma velha garrafa comum, onde se lia em relevo:” Parfum Botique Paris”. Olhei e inclinei cuidadosamente a garrafa. Um liquido espesso como mel, vagarosamente, deslizou do fundo da garrafa. Mal podia conter o êxtase da descoberta. Admirado, olhei para meu anfitrião que disse: -Tome Simão. Faça bom uso. Antes que o leitor possa se indagar por que eu, diante de Nicolas Flamel, não indaguei sobre a transmutação de metais para fabricação de ouro, eu o digo: Pelo óbvio. O próprio Flamel deixou a fórmula em testamento para o sobrinho. E, de heranças malditas, eu entendo melhor. Voltei ao Brasil com as inestimáveis lições apreendidas com Ron, no Canadá, e com o preciosíssimo elixir. Estava mesmo decidido a levar uma vida pacata. Porém, com a vida humana vêm as concupiscências, os vícios, as fraquezas comuns aos mortais. A competição no mundo corporativo, por ascensão e carreira, traz consigo a inveja e o despeito, a ganância e a ambição. As chantagens e o assédio eram comuns, assim como a deslealdade com os colegas. Remoendo esses sentimentos mundanos é que tomei em mãos, para ler, o mais divino dos poetas: Dante Alighieri, A Divina Comedia. E me senti fatidicamente como Dante, aos trinta e cinco anos, tendo me desviado do caminho reto. E no meio da selva escura e selvagem divisei uma besta, como se lê nos primeiros versos de Inferno Canto I: “Nel mezzo del cammin di mostra vita (Ao caminhar de nossa vida) Mi ritrovai per uma selva oscura, (fui me encontrar em uma selva escura) Ché la diritta via era smarrita.” (estava a reta minha via perdida)

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A ganância, o fanatismo e a superstição, como as três feras de Dante, fustigavam-me o gênio e turbavam-me as virtudes, tendo cedido aos vícios e a iniquidade, a besta assim avançava:

“ Questi parea ache contra me venisse (que parecia que contra mim viesse) Com la test’alta e com rabbiosa fame, (com a fronte erguida e fome raivosa) Si che parea ache l’acre ne tremesse. (parecendo que o próprio ar a temesse)

Capítulo VIII

O Mago Visita o Passado

Ed uma lupa, che di tute brame (e de uma loba de cobiça ansiosa) Sembiava carca ne la sua magreza, (em sua torpe magreza carregada) E molte genti fé giá viver grame”. (que a muita gente a vida fez penosa)

Não obtive, no entanto, como Dante, o auxílio da razão personificada em Virgílio para socorrer-me neste momento de fraqueza humana. Tudo parecia desmoronar. O casamento fracassou, os estudos dizimaram á parcas e superficiais leituras de literaturas fáceis, a faculdade interrompida, os amigos se afastaram. Dor e tristeza profunda se instalaram e me abateram o ânimo. Uma briga familiar foi a gota d’água para desencadear um amargor profundo e desalentador. Sai sem rumo, não sem antes arrancar do soturno sótão a maleta contendo as ferramentas, favas e poções. Meti as favas secas na boca e transportei-me para a praia onde há muitos anos me encontrava em semelhante aflição.

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oderia nestas horas, diante de tamanha aflição, meter as favas na boca e me transportar no espaço e tempo para remover as aflições, ou consertar os malfeitos. Mas não seria assim que iria reescrever minha história. Poderia usar a garrafa de óleos dos animais que morreram por Cipriano e criar uma ilusão, ou seduzir uma bela donzela, ou morder as favas e fazer-me invisível. Esta última ideia era a mais tentadora. Queria fazer-me invisível. A última companhia que pretendia era a de Satanás. Por isso, preveni-me de sua visita benzendo-me três vezes com o Sinal da Cruz. Aproximava-se a hora perigosa, mais uma vez rezei: Nesta hora perigosa, Ó Anjo de minha guarda, Gênio Protetor que me acompanha, Me livre das visões Do mal, sonho aterrador, Com Deus eu me deito, Com Deus me levanto, Com a graça de Deus E do ESPÍRITO SANTO — AMÉM.16 Era meia noite. A realidade tornou-se insuportável. Tomei as favas na boca e visitei meu passado. Das tentações, a menos perigosa. Transportei-me no tempo, pra quando era menino, na casa de meus pais. Visitava em espírito, cada uma de minhas lembranças, mesmo aquelas que feneceram na memória, no tempo de minhas travessuras do passado. Eis a primeira estória: Meu irmão mais velho criava coelhos. Um deles, o mais belo

16 Orações baseadas no Livro de São Cipriano

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de todos, tinha olhos vermelhos e um pelo sedoso e branquinho. Era o mais amado. Andava solto pelo gramado, corria e saltitava. Era arisco. Não se deixava pegar e tocar. Mas eu o queria para mim. Secretamente o invejava e queria tê-lo. Queria ser o seu dono. Certa manhã o belo coelho estava ditoso comendo a relva macia e verde e eu o via ao longe. Sabia que não podia pegá-lo. Com o estilingue lançava pedras em sua direção, em princípio sem querer acertá-lo. As pedras caiam-lhe ora a esquerda, ora a direita, ora por sobre as orelhas. Até que uma pedra certeira atingiu-o na cabeça e ele caiu desfalecido. Estava morto. Perplexo diante do que fizera, coração sobressaltado, medo e o terror de ser descoberto e compaixão pela pobre criatura misturavam-se, formando um frenesi febril em minha mente, que maquinava uma solução. Tinha que ocultar o cadáver. Era isso. O que seria uma mentira se comparada ao assassinato? Despojei a carcaça em uma vala rasa no mato e tratei de me acalmar e engenhar uma resposta, caso alguém me perguntasse se o havia visto. Diria que a última vez que o vi estava a comer a relva e que talvez pudesse ter fugido. A dor do remorso só não era mais penosa que a de ver o sofrimento de um irmão sem poder ajudá-lo. Seria essa talvez a primeira vez que eu via sofrer um irmão sem nada fazer para serenar a dor. Mas, não seria a última. Outra vez, em meu passado, brincava com minha irmãzinha e meu irmãozinho. Voávamos imaginariamente em tapetes mágicos sobre as campinas, sobre as relvas e as brancas nuvens. Íamos para Arábia e para Constantinopla, aos templos dos Sultões e Marajás, onde compartilhávamos com os monarcas de grandiosos banquetes. A todos os nossos desejos, limitados apenas pela imaginação, atendia-os o gênio da lâmpada. Minha irmãzinha era linda. Graciosa como uma princesa. E eu sempre me soube desengonçado. Maldosamente, por inveja ou por ciúmes, coloquei um punhado de urtigas dentro do vestido de seu vestido. Agi traiçoeiramente, iludindo-a de que a venenosa erva era necessária para realização de uma magia. Não seria essa a única vez que utilizava de um ardil para iludir uma irmã ou irmão. Com o poder das favas de Cipriano o tempo e o espaço curvavam se ante a minha vontade e, como expectador de minha realidade passada, como se fosse um filme, eu espiava. Mais uma vez meu irmãozinho e eu iríamos aprontar. Havia uma

casa abandonada na vizinhança e uma ideia perversa me ocorreu. Como quase todos, adultos e crianças, eram supersticiosos e temerosos das coisas ocultas, assombraríamos a casa. Estava decido e nós sabíamos como iríamos fazê-lo. Tomamos o crânio da mula no cabo da vassoura e preenchemos as cavidades oculares com tocos de velas. Arrancamos-lhe os arreios e as rodas de lata e fincamos o cabo de vassoura no chão em frente à casa, cabeça voltada para a rua. Acendemos as velas e desenhamos uma larga cruz em giz na porta. De longe jogamos pedras na casa, para provocar o latido dos cachorros na vizinhança, e para que alguém desejoso de descobrir o motivo do alarido avistasse o preparo macabro. Não demorou para que um vizinho iluminasse com a lanterna os estranhos pequenos fachos de luz que se viam ao longe como que pairando no ar. Eram as velas dentro da caveira. A visão aterradora provocou tamanho frenesi que os adultos trancaram portas e janelas, as crianças lançavam-se para fora pelas portas e janelas dos fundos da casa e gritos de horror ecoavam na noite escura. Corremos para resgatar a mula fantasma antes que pudéssemos ser vistos. Eufóricos e assustados com a peça que pregamos, voltamos secretamente para nossas camas, comemorando o sucesso triunfante de nosso plano. Essa travessura rendeu uma lenda de assombração contada por muitos e muitos anos. Outra lembrança que esta viagem ao passado vivificou em minha mente foi um incidente terrível. Este fora involuntário e me mortificou por muitos anos. Estávamos eu e um dos meus irmãos no pasto com uma parelha de bois a puxar o arado. Os bois estavam terrivelmente indolentes e pareciam não querer cooperar com o trabalho. O açoite quebrou, as rédeas não funcionavam e eles simplesmente não queriam obedecer. Tomado de uma fúria incontrolável e armado com uma foice muitíssimo afiada avancei para a parelha de bois com a intenção de golpear de prancha no lombo do Cigano, um velho e querido boi pardo que estava conosco há anos, na lida do campo. Golpeei com força e a foice escorregou, ferindo o pobre animal profundamente no dorso. O sangue começou a jorrar de um ferimento profundo, de pelo menos dez centímetros. Nada podia estancar a hemorragia. Levamos o Cigano para casa e tentamos de tudo: Borra de café, banha de porco, panos e estopas. O animal agonizando e eu sentindo um terrível remorso. E foi assim noite

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adentro. Eu sendo acusado e repreendido severamente por meus pais e irmãos, não conseguia dormir. Visitava o agonizante Cigano de meia em meia hora e no mais profundo desespero e devoção rezei:

Deus misericordioso, Deus clemente, Deus que segundo a grandeza de vossa infinita misericórdia perdoai os pecados deste espírito que tem dor de os haver cometido, e lhe dai literal absolvição das culpas e ofensas passadas; ponde os olhos da vossa piedade neste vosso servo que anda neste mundo a penar; abri-lhe, Senhor, as portas do céu, ouvi-o propicio e concedei-lhe o perdão de todos os seus pecados, pois de todo o coração vo-lo pede por meio de sua humilde confissão: Curai esta pobre criatura. Isto vos peço em nome do Pai, do Filho e do espírito Santo. Amém. No dia seguinte, antes de nascer o sol, fui ver como estava o Cigano. Encontrei o pobre animal mergulhado em uma poça de sangue em agonia, muito fraco e abatido, porém a hemorragia havia cessado. Ainda estava vivo. Eufórico e esperançoso, corri para pegar um balde de leite fresco, recém-ordenhado da vaca. Misturei ao farelo de milho que ele adorava e o alimentei. Para minha felicidade ele aceitou o alimento, aos poucos, e se recuperou gradativamente. Minha tarefa nos próximos meses foi de cuidar e alimentá-lo bem. Minhas preces haviam sido atendidas. Visitando meu passado, voltei fortalecido. Ciente das fraquezas humanas, compreendi a insignificância de meus atos. Mastigando as salientes favas regressei de minha viagem. De volta à praia do Santinho, física e espiritualmente, contemplei o oceano e suas ondas que quebravam na praia, o céu estrelado, as constelações e as galáxias. Como era perfeita a criação de Deus. Nesta viagem aprendi que a Deus nada é impossível. Tudo é possível para aquele que tem seu poder. O poder da mentalização e o poder da criação. A este é permitido acessar a inteligência universal e suplantar as fraquezas humanas, que são muitas. E evoluir. Estava decidido. Faria um novo

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começo. Não sem antes corrigir uma injustiça da natureza, mais precisamente da genética familiar de minha linhagem: A calvície. Era tudo o que eu queria naquele momento. Usar do óleo mágico da garrafa de Cipriano para evitar que meus cabelos caíssem e assim o fiz. Besuntei meu cabelo com o poderoso óleo e conjurei o feitiço com uma poderosa oração. E, como último ato de feitiçaria, herança de Cipriano, tomei as favas na boca e me transportei para a praia de Canasvieiras. Estava feliz, pois havia me mudado para uma charmosa pousada à beira-mar. Lamentava apenas a separação de meu filho. Doía muito a saudade, mas era necessário iniciar uma nova fase da vida. Haveria de conhecer a minha futura esposa e refazer o meu lar. O que não demorou muito. Encontrei minha alma gêmea. Fiel e amantíssima companheira que me deu, além de amor e carinho, um lar e muito apoio para prosseguir na vida mortal e imperfeita, porém bela e surpreendente, que passamos a compartilhar desde então. Casado e feliz decidi recomeçar. Mudei-me para a bela e formosa cidade de Blumenau e empreendi em um novo negócio. Como empresário, poderia talvez deixar um legado e quem sabe eternizar o meu nome por feitos, tais quais aos dos homens comuns, sem magia, nem bruxedos. Talvez apenas utilizando os recursos da Alta Magia, a magia da mentalização, da criação. Sem a necessidade de firmar pacto com satanás. A Magia Hermética que está ao alcance de todos, interposta por apenas uma única barreira: a do fanatismo e da ambição, que eu haveria de transpor com muita humildade, estudo e dedicação. Estava eu certa vez em meu escritório, sozinho, analisando planilhas com os dados do meu negócio e eis que aparece um senhor com semblante bondoso, muito educado. Perguntou se poderia ter uma conversa comigo. Ao que respondi que sim, tomado pela curiosidade. Ele se apresentou dizendo que era o administrador do staff do condomínio onde minha empresa estava estabelecida e notava minha simplicidade e atenção, cumprimentando educadamente a todos, desde as faxineiras e faxineiros até os diretores do condomínio empresarial. Disse-me que havia chegado a ele histórias de que eu havia me interessado pela tragédia ocorrida com o neto, ainda bebê, de uma das faxineiras que havia morrido queimado em um terrível incêndio na humilde casa de madeira em que moravam pai, mãe e o bebê. Não poderia ter agido de

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maneira diversa, se não providenciar o funeral, a reconstrução da casa e a restituição dos bens àquela pobre família, já que palavras não poderiam confortar a dor da terrível perda. O homem disse pertencer a uma organização milenar de cunho filosófico e filantrópico e que tinha por objetivo o aperfeiçoamento da humanidade por meio do aperfeiçoamento do homem, ajudando o a lapidar-se moral e intelectualmente e a edificar o seu templo interior em base sólida: conhecimento e espiritualidade. - Meu senhor – respondi - Sou católico e fui batizado na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na ressurreição da carne e na vida eterna. Não tenho interesse em mudar de religião. Se for isso perde o seu tempo meu bom senhor. Já tenho firmado na fé católica minha religião. Serenamente o homem me disse: - Não se trata de religião. Todas as religiões, nós as respeitamos. Temos como pré-requisito para admissão em nossos arcanos, ser livre e de boa reputação, acreditar em um ser superior, o criador de todos os mundos: o Grande Arquiteto do Universo. O convite é para que junte a nós na ordem de pedreiros livres e aceitos, a Maçonaria Universal. Considerei que fazer parte de uma organização milenar filosófica e filantrópica que cultiva e difunde entre seus membros todo o conhecimento filosófico, esotérico e cientifico de todos os tempos, poderia ser o elemento que faltava em minha biografia humana. E talvez minha mais significativa contribuição para esta existência terrena. - Aceito. - Disse ao bom homem, que sorriu e se despediu com um aperto de mãos. – Nós entraremos em contato. Falou e saiu.

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Capítulo IV

Iniciação a Maçonaria

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lguns dias depois o homem apareceu com um formulário de admissão, que preenchi e assinei. O mesmo seria proposto à loja maçônica a qual ele pertencia e, se aceito, seria conduzida uma investigação sobre a minha vida pregressa, feitas sindicâncias sobre minha vida familiar e social. Então, se minha esposa desse a permissão, eu seria admitido no quadro como aprendiz. O que achei particularmente interessante, pois no culto satânico o noviço é iniciado à mestre e tem seus poderes plenos conferidos na iniciação. Dois longos anos se passaram desde a proposta de admissão. Segundo meu padrinho, investigações internas corriam sobre meu passado. Cheguei a suspeitar que pudessem ter descoberto a minha relação com a Bruxa ou ainda que em seus quadros eles tivessem alguém que como eu podia transitar acidentalmente ou intencionalmente entre as dimensões invisíveis. Nunca havia me perguntado se havia outros magos, não por arrogância ou prepotência, mas por puro desinteresse. E também por admirar secretamente estes que os magos chamam Amentibus, os não iniciados. Aqueles que vivem sua vida, dádiva divina, neste plano e somente neste plano, tentando evoluir e se aperfeiçoar para, quem sabe, alcançar a palma da glória e merecer o prêmio de ascender a Deus, criador do céu e da terra e de todas as coisas nela viventes. Quando já não acreditava que fosse possível, o padrinho veio ter comigo e trazer a boa nova: fora admitido! Após ser submetido à escrutínio secreto entre os irmãos da ordem, fora aprovado “limpo e puro”, por unanimidade. Então minha iniciação dependeria apenas das sindicâncias sobre minha vida social, familiar e a aprovação de minha esposa. As sindicâncias correram e uma entrevista comigo e com minha esposa foi marcada. A ela foi exposto um breve resumo da finalidade da ordem e do motivo da minha admissão, ao que ela respondeu e eu jamais esquecerei: - Meu marido é um homem bom. Se for possível que se torne melhor eu não sei. Mas confio em seu discernimento e ele deve fazer o que o seu coração mandar.

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Principiei meu ingresso na maçonaria pelo coração. Por acreditar em uma instituição que tem por natureza o aperfeiçoamento moral e intelectual para a evolução do homem e da sociedade. Os valores em que mais acredito e cuja posse confere ao seu depositário poderes que excedem em muito aos da Magia Negra, da Alta Magia ou da Bruxaria. Pois nada esta acima da perfeição. A perfeição está em Deus. A iniciação fora marcada e na semana que há antecedeu o tempo foi dedicado à preparação. Com tarefas como ler versículos bíblicos, estudar sobre a maçonaria, fazer caridade, perdoar alguém e comprar itens inusitados como: uma régua de vinte e quatro polegadas, um esquadro e um compasso, uma trolha e um prumo, um maço e um cinzel, um nível e uma prancheta e diversos instrumentos de traçar e edificar. Se fosse edificar um templo, as ferramentas, já as tinha. No dia da iniciação deveria estar preparado às seis horas da manhã. Vestido em terno preto, camisa branca e gravata preta. Deveria também levar um saco de milho em grãos. Um carro preto com três homens vestidos de ternos pretos encapuzados me apanhou em frente a minha casa, na hora marcada, e me levou para a igreja Nossa Senhora Aparecida. Era para rezar e meditar. Pensar sobre a vida mundana que levara até aquele momento e aguardar novas instruções. Comparado aos horrores que presenciara até então a cena não poderia me assustar mais. Na capela da igreja, sozinho, lembrei-me da infância, da vida familiar, dos sonhos e esperanças, das tentativas de levar uma vida normal e digna, dos percalços da vida e da sorte. De como era maravilhoso poder escolher meu destino, experimentar coisas novas e viver novas aventuras. Mudar meu destino quantas vezes fosse necessário, de acordo com a grande dádiva de Deus: o livre arbítrio. Ao meu lado aproximou-se uma pessoa e cochichou secretamente em meu ouvido: - O sol alcançou o Zênite. A hora em que começam os aprendizes de maçons os seus trabalhos. É meio dia. É mais que hora. Desejais prosseguir? Confiais na maçonaria e em seus futuros irmãos? - Sim, respondi. - Então permita que te coloque esta venda nos olhos. Vendado, me conduziu para o interior de um carro que arrancou em alta velocidade. Em um carro em movimento, ao som de música gregoriana, fui instruído a contar os grãos de milho que seriam destinados á alimentar o bode, diziam. Lembrei-me do bode Aristocrata e pensei no

porquê de esta belíssima criatura de Deus estar fadada a ser relacionada com o mal. Deveria ter algo a ver com o bode expiatório que era apartado do rebanho e deixado só, para crescer selvagem na natureza, como parte das cerimônias Hebraicas do Yom Kippur, ou o dia da expiação, como descrito em Levítico 1-2. Ou então, talvez, estivesse associado à figura de Baphomet. Uma figura panteística que era um deus pagão da fertilidade, associado à força criativa da reprodução, representado com uma cabeça de carneiro ou de bode. Um símbolo comum de procriação e fecundidade, comumente associado à figura de Satanás. Crendice e fanatismo associavam e, incrivelmente em nosso tempo, por ignorância, ainda há pessoas que associam o bode, essa maravilhosa criatura divina, ao mal.

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Fig. Baphomet. Conduzido em trevas para um lugar que diziam ser um templo, fui confortavelmente sentado em uma antessala ou átrio. Ainda vendado, fui preparado para a cerimônia. Despojado de metais e posses mate-

riais. Peito esquerdo, o lado do coração, nu. Os pés descalços, um laço corrediço em volta do pescoço donde pendia uma corda, era conduzido para a porta do templo. Pobre e desprovido de vaidades, com um punhal apontado para o coração aguardando pela aprovação do Venerável Mestre e dos irmãos para adentrar ao templo. Uma vez admitido, a coragem, a determinação e a confiança no irmão que me conduzia foram testados, seguidos de um juramento solene de fidelidade e segredo sobre os sinais e palavras de passe e tudo que se passava no interior de um templo durante as sessões maçônicas. Tendo sido feito maçom, aprendi os segredos da maçonaria, suas lendas e mitos, e ascendi aos graus de Companheiro Maçom e de Mestre Maçom. Posteriormente ascendi aos diversos Graus da Perfeição que alcançam o Grau 33. Aprendi que a maçonaria guarda a tradição dos estudos sobre a numerologia, a astrologia, esoterismo, história, artes e ciências. Um interesse que está se perdendo na sociedade moderna. Milhares de anos da evolução da humanidade preservados através de alegorias e símbolos, lendas e mitos. A instituição sobreviveu ao tempo, às diversas crises e aos regimes de governo. Às guerras e ao fanatismo. À ignorância, que tem por missão combater. Porque é democrática, aceita em seus quadros a todos, dentro de certos pré-requisitos já mencionados, indiscriminadamente, independentemente de raça, credo ou condição social.

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Capítulo X

O Simbolismo Maçonico

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maçonaria é uma sociedade secreta e filosófica, filantrópica, iniciática e progressista. De caráter universal, seus membros cultivam o aclassisismo, e a fraternidade, norteados pelos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. É, portanto, uma sociedade fraternal e seus membros tratam-se mutuamente por irmãos. Admite homens livres e de bons costumes, sem distinção de raça, religião ou posição social, com o firme propósito de ir em busca da perfeição, cavando masmorras aos vícios e erguendo templos ás virtudes. Organizada em ritos e potencias, subdividida em graus simbólicos e filosóficos, a maçonaria preserva uma tradição simbólica como base do seu método educativo. Explicarei a seguir o significado dos principais símbolos maçônicos.

O esquadro e o Compasso

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O  Esquadro é um instrumento de desenho utilizado em obras civis e que também pode ser usado para fazer linhas retas verticais com precisão para 90°. Simbolicamente, demonstra retidão e também a ação do Homem sobre a matéria e da ação do Homem sobre si mesmo. Significa que a conduta deve ser guiada pela linha reta. Emite a ideia inflexível da imparcialidade e precisão de caráter. Simboliza a moralidade, retidão e as coisas concretas.

Deus.

A Letra G A letra G significa a Gênese, Gnose, ou seja: A criação, o gênio,

A joia do Venerável de Honra. O Compasso é um instrumento de desenho que faz arcos de circunferência e também serve para tomar e transferir medidas. É o símbolo do espírito, do pensamento nas diversas formas de raciocínio, e também do relativo. O símbolo mais básico alcançado pelo compasso é o circulo com um ponto no centro, símbolo do Sol. Juntos, formam o símbolo mais característico da maçonaria. Representam que a ordem é pautada pela filosofia sobre os itens dos pedreiros e antigos construtores. Nenhuma loja funciona sem o Esquadro e Compasso a mostra sobre o Livro da Lei, aberto. Por isso é um símbolo tão emblemático da maçonaria. O esquadro e o Compasso simbolizam também a materialidade do homem e sua espiritualidade. E seu significado pode variar conforme a disposição das hastes do compasso. Com as hastes sobre o esquadro representa a prevalência do espírito sobre a matéria. Condição somente alcançada no grau de Mestre maçom.

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O Avental O maçom recebe o avental na iniciação, sendo peça obrigatória na vestimenta maçônica. É proibida a permanência em loja sem estar de avental. É o símbolo do trabalho maçônico. O avental é branco com a aba levantada para os aprendizes e branco com a aba abaixada para companheiros, branco orlado de vermelho ou azul celeste (de acordo com a Potência da loja simbólica ou com o Rito praticado), É, geralmente, composto por um retângulo a que se sobrepõe uma abeta triangular.

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Utensílios de Pedreiro

Um malho egípcio de madeira datado de meados de 1550-1070 A.C.

O Maço ou Malhete e o Cinzel O Maço (maço, malhete ou martelo) e o Cinzel são duas ferramentas utilizadas por profissionais que trabalham em pedra, madeira e diversos outros materiais até os dias de hoje. O maço pode ser feito de diferentes materiais como ferro, madeira ou borracha. Diferem um pouco entre alguns tipos, mas na maçonaria levam consigo o mesmo sentido de força de vontade, da força em si e da iniciativa. O cinzel é feito de ferro endurecido, ou aço, podendo ter vários tipos, a depender da necessidade. Pode ter a cabeça pontiaguda, arredondada achatada e outros modelos mais. Numa extremidade toca a pedra (ou outro material) e na extremidade oposta é atingido pelo malho por isso indica passividade.

A  trolha, ou colher de pedreiro, é o símbolo da benevolência e  tolerância. É utilizada para estender a  argamassa  e cobrir todas as irregularidades. Faz parecer o edifício como formado por um único bloco. Com isso, a trolha pode ser considerada como um emblema de tolerância e de indulgência. A trolha é o símbolo do amor fraternal que sugere a união de todos os maçons, como único cimento que cobre toda a edificação do templo. Passar a trolha significa esquecer as injúrias ou as injustiças, perdoar um agravo, dissimular um ressentimento e desculpar uma falta. Na maçonaria operativa, o aprendiz ocupava-se do preparo dos materiais brutos, pelo que necessitava unicamente do malho e do cinzel. Estes materiais passavam depois às mãos dos companheiros ou operários que os colocavam convenientemente, servindo-se do prumo, do nível e do esquadro. Por último, o mestre verificava a exatidão com que foi feito o trabalho, dando a última demão e estendendo com a trolha o cimento que une definitivamente todos os materiais. Por isso, considera-se que a trolha é um instrumento do mestre maçom. Em certas lojas inglesas, porém, a trolha é a ferramenta de trabalho do mestre instalado (que foi Venerável Mestre). V.I.T.R.I.O.L VITRIOL ou V.I.T.R.I.O.L. é a sigla da expressão, do latim “Visita Interiorem Terrae, Rectificando, Invenies Occultum Lapidem”, que quer dizer: Visita o Centro da Terra, Retificando-te, encontrarás a Pedra Oculta.  WikipediaHYPERLINK “https://pt.wikipedia.org/wiki/ Vitriol”.

A Trolha , ou colher de Pedreiro

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O  pão e a água simbolizam simplicidade e humildade. Alguns cristãos  jejuam  a pão e água, indicação da própria  Santa Maria, pela tradição católica. Ao mesmo tempo em que é símbolo de humildade, é símbolo de força o suficiente que o ser humano precisa. A água é símbolo de vida e de pureza, indispensável para qualquer tipo de vida, além de limpar e purificar. O  enxofre, o sal  e o  mercúrio  também estão presentes na sala. Estes elementos tomam o sentido  alquímico, referindo-se às  leis herméticas e a criação da Pedra Filosofal. O enxofre também simboliza o masculino, mercúrio o feminino e o sal é elemento neutro e de ligação entre os dois anteriores. Diferentemente o mercúrio é representado pela figura do  galo, animal que representa o alvorecer e de vigilância. Também usado no topo das torres de igrejas, a figura do galo representa a vontade de agir logo cedo e também o anúncio que trás o nascer do Sol. Estes três elementos indicam que o iniciado precisará passar por uma  transmutação  alquímica, a mudança de um metal pobre para o metal valioso. Os símbolos fúnebres representam a finitude e a morte. Os ossos, esqueletos, foice e ampulheta, são alguns deles. Tanto para lembrar ao iniciado que ele é finito quando para lembrar também que ele morreu para o mundo profano (termo maçônico para o mundo fora da maçonaria). Os ossos indicam a finitude e igualdade na morte. A foice é o símbolo da própria  morte e a  ampulheta  representa a marcação de pequenos intervalos de tempo, como a própria vida. Os três símbolos são bastante recorrente na arte fúnebre cristã e na decoração de cemitér ios, túmulos e mausoléus. O Bode

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O bode não é um símbolo maçônico. Alguns maçons acreditam que são como bodes, pois podem guardar segredos. Muitos são discretos e até circunspectos. A maçonaria, assim como a Magia, permite ao iniciado que assuma um nome simbólico. O meu nome simbólico é Simão Mago. Na senda maçônica de aperfeiçoamento moral e intelectual, lapidando a pedra bruta e erigindo templos ás virtudes, desenvolvi em alto grau a solidariedade e a fibra moral. Encontrei na ordem milenar um porto seguro, onde há liberdade para falar de magia, esoterismo, filosofias, alquimia e fé, sem ser fervido em óleo como meu antecessor Cipriano, ou ser obliterado e apagado da história como Simão Mago, ou torturado e obrigado a desmentir as verdades invisíveis aos olhos dos Amentibus como Galileu Galilei ou Giordano Bruno. Nos altos graus da perfeição ou graus filosóficos encontrei ainda mais ciência, filosofia e valores éticos e morais. Sentia-me como Bayard, “o cavaleiro sem mácula e sem medo”, (le Chevalier sans peur et sans reproche) ou “le bom Chevalier” como preferia ser tratado. O bom cavaleiro. Neste espírito havia decidido que me bastava o conhecimento esotérico e cientifico e que não mais faria uso das favas, do óleo de Cipriano ou do elixir de Flamel. Viajaria a Florianópolis e destruiria os itens de Magia e os despojaria em uma fenda íngreme, tão íngreme e profunda como uma que existe apenas na ilha do Campeche. Estava decidido. Com o pretexto de uma viagem de negócios, dirigi pela sinuosa BR 470 antes, do nascer do sol, com os itens acondicionados em uma bolsa de viagem comum. Durante o caminho pensava e rezava ao N.S.J.C para iluminar a minha mente, se era esta a coisa certa a se fazer. Repentinamente, em uma curva, uma figura familiar de minha infância se materializou no asfalto á frente. Era o bode Aristocrata, que empinando as patas dianteiras, baliu assustadoramente. O balido assombroso ecoou em minha mente como um pesadelo noturno da infância, como nas muitas noites em que o Aristocrata assombrava minhas noites infantis. Com um reflexo involuntário, acionei os freios e meu corpo foi arremessado e chicoteado à frente, quando as rodas travaram subitamente respondendo ao moderno sistema de freios. Perdi o controle do veículo devido a uma falha na pista. Um desnível no asfalto fez capotar o carro. Como se estivesse em uma centrífuga, vi o mundo girar, em câmera lenta. E uma segunda visão divisei, ao longe, iluminada pelos faróis. Era Dona

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Clarice, a Bruxa de Évora que, desta vez, pairava na noite escura sentada sobre uma vassoura. Ela sobrevoou o veículo que despencava em uma ribanceira, rodopiando terrivelmente. Uma luz divina clareou a escuridão tenebrosa e uma mão salvadora foi estendida através do para-brisa que se espatifou durante a capotagem. Era ela que viera me salvar. Acordei no hospital, um pouco atordoado e entorpecido, de certo por efeito de alguma medicação. Exceto por alguns ferimentos leves, estava bem. Eis que Dona Clarice se materializou bem na minha frente e com a voz terna e maternal me confortou dizendo: - Simão. Nada do que te aconteceu, pedistes ao Supremo Arquiteto do Universo que é Deus, ou a Satanás. Não carregues a culpa por aquilo que te foi presenteado. Sois parte da maravilhosa criação de Deus e com o propósito de evoluir e fazer evoluir os que não veem por si, e que não creem sem ver, e que, mesmo vendo, duvidam. Sua missão é compartilhar seu conhecimento e instruir a humanidade pelo exemplo. Seus pertences, sua herança e seus presentes estão guardados em seu nome, em um cofre, protegidos por um segredo. E o segredo é a idade somada das vidas do Alquimista Flamel. E desapareceu, sem mais explicações. Depois da partida da bruxa, pensei: Qual seria a idade de Ron? Estaria vivo ainda? Jamais retornou minhas tentativas de contato. De qualquer forma, seria fácil descobrir, mas nunca fui bom de cálculos matemáticos e não me preocuparia com isso neste momento. Pensei em escrever um livro contando minha história e assim o fiz. Sou Marcos Staub, professor e estudioso da filosofia hermética, Alquimia, Magia... E esta é minha história! FIM.

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