Abbagnano Dicionário De Filosofia - Ano 2007 - (portugués).pdf

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Dicionário de

Filosofia nano Edição revista e ampliada

NICOLA ABBAGNANO

DICIONÁRIO DE

FILOSOFIA Tradução da 1? edição brasileira coordenada e revista por ALFREDO BOSI Revisão da tradução e tradução dos novos textos IVONE CASTILHO BENEDETTI

Martins Fontes São Paulo 2007

Esta obra fo i publicada originalmente em italiano com o título DIZIONARIO Dl FILOSOFIA por Unione Tipografico-Editrice Torinense - UTET, Turim, 1971. Copyright © 1971, UTET, Turim. Copyright © 1998, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.

2a edição, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1992. 5a edição revista e ampliada

2007

Tradução da I a edição brasileira coordenada e revista por ALFREDO BOSI

Com a colaboração de Maurice Cunio, Antonieta Scartabello, Carla Conti, Rodolfo llari e Sílvia Salvi

Tradução dos novos textos incluídos nesta edição Ivone Castilho Benedetti

Revisão da tradução, confronto com a nova edição italiana Ivone Castilho Benedetti

Preparação do original e coordenação da revisão Vaáim Valentinovitch Nikitin

Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos

Revisões gráficas

Maria Regina Ribeiro Machado Letícia Braun Dinarte Zorzanelli da Silva

Produção gráfica Geraldo Alves

Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Abbagnano, Nicola, 1901-1990. Dicionário de filosofia / Nicola Abbagnano ; tradução da Ia edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Cas­ tilho Benedetti. - 5a ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2007. Título original: Dizionario di filosofia. ISBN 978-85-336-2356-9 1. Filosofia - Dicionários, enciclopédias I. Benedetti, Ivone Castilho. II. Título. 07-1059________________________________________CDD-103 índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Dicionários 103

Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6993 e-mail: [email protected] http://zmvw.martinsjbnteseditora.com.br

PREFACIO

O objetivo deste dicionário é colocar à disposição de todos um repertório das possi­ bilidades de filosofar oferecidas pelos conceitos da linguagem filosófica, que vem se cons­ tituindo desde o tempo da Grécia antiga até nossos dias. O Dicionário mostra como algumas dessas possibilidades foram desenvolvidas e exploradas à exaustão, ao passo que outras foram insuficientemente elaboradas ou deixadas de lado. Ele apresenta, assim, um balanço do trabalho filosófico do ponto de vista de sua fase atual. Em função desse objetivo foi estabelecida a regra fundamental a que obedeceu a formulação dos verbetes: a de especificar as constantes de significado passíveis de serem demonstradas ou documentadas com citações textuais, mesmo que de doutrinas aparente­ mente diferentes. Mas as constantes de significado só podem ser especificadas quando os diferentes significados, compreendidos por um mesmo termo, são claramente reconhecidos e distintos. Essa é a exigência da clareza, considerada fundamental numa obra como esta e que, na verdade, é condição essencial para que a filosofia possa exercer qualquer função de esclarecimento e orientação nos confrontos entre os seres humanos. Numa época em que os conceitos são freqüentemente confusos e equívocos a ponto de se tornarem inutilizáveis, a exigência de uma definição rigorosa dos conceitos e de suas articulações internas adquire importância vital. Espero que o Dicionário que ora apresento ao leitor esteja à altura dessa exigência e contribua para difundi-la, restituindo aos conceitos sua força diretiva e asseguradora. Vejo-me agora na grata obrigação de lembrar aqui as pessoas que me ajudaram na realização deste trabalho. O professor GIULIO PRETI elaborou para mim alguns verbetes de lógica (sendo o principal, justamente, Lógica), todos assinados com as iniciais G. P. Também me ajudou na compilação de alguns outros, que trazem suas iniciais e as minhas. Todos os artigos principais do Dicionário foram discutidos, às vezes longa e minucio­ samente, com um grupo restrito de amigos: NORBERTO BOBBIO, EUGÊNIO GARIN, C. A. Viano, Pietro Rossi, Pietro Chiodi. Outros amigos ajudaram-me a encontrar ou confrontar textos de mais difícil acesso. Foram eles GRAZIELLA VESCOVINI FEDERICI, GRAZIELLA GIORDANO, SÉRGIO RUFFINO. Minha mulher, Marian Taylor, me prestou grande ajuda na correção das provas. A todas essas pessoas dirijo meu cordial agradecimento. Mas o trabalho deste Dicionário não teria sido iniciado nem levado a termo sem a ampla ajuda da grande e benemérita casa editora UTET, que agora a publica. A ela expresso, portanto, minha gratidão. Turim, 11 de outubro de 1960.

NlCOLA ABBAGNANO

VI

PREFÁCIO

NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO ITALIANA Esta segunda edição, inteiramente revista, contém 22 verbetes novos: Artefato; Asserção; Autômato; Casamento; Classe, consciência de, Deus, morte de, Diacrônico, Sincrônico; Doxologia; Ensomatose; Futurologia; Iluminismo; Ocorrência; Performativo; Poiético; Praxiologia;Previsão-, Psicodélico;Recusa,grande, Tábuasdeverdade, Teleonomia;Ler, Tra­ balho. Foram inteiramente refeitos os verbetes: Condicional; Conseqüência; Entimema; Implicação-, Matrizes, método das; Panteísmo; Tecnocracia. Turim, 20 de abril de 1971.

N.A.

OBSERVAÇÕES 1. — O Dicionário contém apenas termos, não nomes próprios. No entanto, contém termos como Platonísmo, Aristotelismo, Criticismo, Idealismo, etc, que se referem à dou­ trina de um filósofo ou de uma escola, ou a aspectos ou linhas comuns a várias doutrinas. Mas esses verbetes limitam-se a expor os pontos principais das doutrinas ou linhas em questão com a maior brevidade possível, dado que as opiniões dos filósofos a que se referem são amplamente citadas em todos os verbetes principais. 2. — Foram incluídos artigos dedicados não apenas às simples disciplinas filosóficas (Metafísica, Ontologia, Gnosiologia, Metodologia, Ética, Estética, etc), mas também a discipli­ nas científicas de caráter ou fundamento teórico (Matemática, Geometria, Economia, Física, Psicologia, etc), em cuja abordagem os verbetes do Dicionário limitam-se a distinguir as diversas fases conceituais pelas quais a disciplina passou ou as diversas linhas que ela oferece como alternativas de pesquisa ou de interpretação. 3. — Para os termos que se referem a conceitos complexos ou problemáticos, ou que tiveram ou têm interpretações diversas, foi adotado o seguinte procedimento: A) Demos de início, quando possível, o significado geral ou generalizado ao qual podem ser reduzidos todos os significados encontráveis, ou a maioria deles; E) distinguimos e agrupamos em poucas categorias estes últimos significados; O cada categoria de significado foi ilustrada com citações de textos. Tivemos o cuidado de fazer com que os significados fundamentais fossem distinguidos e formulados de modo que incluíssem o maior número possível de significados encontráveis. 4. — O Dicionário tem, como qualquer outro Dicionário lingüístico, uma base essen­ cialmente histórica: isso mostra quais foram e quais são os usos de um termo na linguagem filosófica ocidental e também, se for o caso, relaciona-os com seu uso na linguagem comum. As ambigüidades de significado foram cuidadosamente registradas. Quando foi possível fazê-lo sem demasiado arbítrio, indicamos o modo de evitar tais ambigüidades. 5. — Foram utilizadas abreviações para os títulos das obras citadas com maior freqüên­ cia (ver a lista apresentada nas páginas seguintes). Para as obras clássicas, utilizamos os sistemas de citação adotados correntemente pelos estudiosos. Sempre que possível, indica­ mos, das obras citadas, a parte ou volume, o capítulo e o parágrafo, além da página, para tornar a citação independente das diversas edições ou traduções existentes. 6. — Os verbetes assinados pelas iniciais G. P. são da autoria do professor Giulio Preti, da Universidade de Florença.

LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS Aristóteles (384-322 a.C.) An.post. =Analayticaposteriora, ed. Ross, 1949An. pr. = Analyticapriora, ed. Ross, 1949Cat. = Categoriae, ed. Minio-Paluello, 1949. De cael. = De caelo, ed. Allan, 1936. Degen. an. = De generatione animalium, ed. Bekker, 1831. Depart. an. = departibusanimalum, ed. Becker, 1831. El. sof. = De sohphisticis elenchis, ed. Bekker, 1831. Et. eud. = Ethica eudemia, ed. Susemihl, 1879. Et. nic. = Ethicanicomachea, ed. Bywather 1957. Eis. = Physícorum Hhri VIII, ed. Ross, 1950. Met. = Metaphysica, ed. Ross, 1924. Poet. = De artepoética, ed. Bywather, 1953. Pol. = Política, ed. Newman, 1887-1902. Ret. = Rethorica, ed. Bekker, 1831. Top. = Topicorum libri VIII, ed. Bekker, 1831. Arnauld (1612-1694) log. = La logíque ou l'art depenser, 1662, in CEuvresPhüosophiques, 1893. Aulo Géllio (c. 122-c. 180) Noct. Att. = NoctesAttícae, ed. Hertz e Hosius, 1903. Bacon (1561-1626) Nov. Org. = Novum Organum, 1620. Deaugtn. scient. = De augmentis scientiarum, 1623. Bergson (1859-1941) Évol. créatr. = Évolutioncréatrice, 1907, 8a ed., 1911. Deuxsources = Deuxsources de Ia morale et de Ia religion, 1932; trad. it. M. Vinciguerra, Milano, 1947.

Boécio (c. 480 c. 526) Phil. cons. =PhüosophiaeconsolationíslibriV,524. Campanella (1568-1639) Phil. rat. = Philosophia rationalis, 1638. Cícero (106-43 a.C.) Acad. = Academicontm reliquiae cum Lucullo, ed. Plasberg, 1923. De divin. = De divinatione, ed. Plasberg e Ax, 1965. De finibus = De finibus bonorum et malorum, ed. Shiche, 1915. Deleg. = De legibus, ed. Mueller, 1897. De nat. deor. = De natura deorum, ed. Plasberg 1933. De off. = De officis, ed. Atzert, 1932. De rep. = De republica, ed. Castiglioni, 1947. Top. = Tópica, ed. Klotz, 1883. Tusc. = Tusculanae disputationes, ed. Pohlenz, 1938. Descartes (1596-1650) Discours = Discours de Ia mêthode, 1637. Méd. = Méditations touchant Iapremièrephilosophie, 1641. Pass. de Vârne = Passions de Vâme, 1649. Princ.phil. = Principia philosophiae, 1644. Diels (1848-1922) DIELS = Die Fragmente der Vorsokratiker, 5a ed., 1934. A letra A refere-se aos testemu­ nhos, a letra B aos fragmentos; o número é sempre o que foi dado por Diels em sua classificação. Diógenes Laércio (séc. III d.C.) DIOG. L. = Vitae etplacítaphilosophorum, ed. Cobet, 1878.

LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS

DunsScot (1265-1308) Rep. Par. = Reportata Parisiensía, in Opera, ed. Wadding, vol. Xi, 1639Op. Ox. = Opus Oxoniense, nelle Opere, ed. de L. Wadding, vol. V-X. As partes desta obra publicadas sob o título de Ordinatio nos quatro primeiros volumes da Opera omnia, em ed. org. pela Commissione Vaticana em 1950, foram citadas no texto seguido nesta última edição. Fichte (1762-1814) Wissenschaftslehre = Grundlagedergesammten Wissenschaftslehre, 1794, in Werke, org. pelo filho I. H."Fichte, 8 vols., 1845-46. Também as outras obras de Fichte são cita­ das (salvo advertência em contrário) por essa edição ou pela das Machgelassene Werke, org. também pelo filho, 1834-35 (citadas no texto como Werke, IX, X, XI).

Inq. Cone. Underst. = Inquiry Concerning Human Understanding, 1748. Treatise = A Treatise ofHuman Nature, 1738; ed. Selby-Bigge, 1888. Husserl (1859-1938) ldeen, I, II, III = Ideen zu einer reinen Phãnomenologie u ndphãnomenologischen Philosophie, I, II, III, 1950, 1951, 1952. Cart.Med. = Cartesianische Meditationen, 1950. Krisis - Die Krisis der europãischen Wissenschaften unddie transzendentalePhãnomenologie, 1954.

Jaspers (1883-1969) Phil. = Philosophie, 3 vols., 1932; 3a ed., 1956. Kant (1724-1804) Antr.=AnthropologieinpragmatischerHinsicht, 1798. Crít doJUÍZO = Kritik der Urteilskraft, 1790. Ficino (1433-1499) Crít. R. Prática Kritik derpraktischen Vernunft, Theol.Plat.=TheologiaPlatônica,inOpera, 1561. In Conv. Plat. de Am. Comm. = In Convivium Crít.1787. R. Pura = Kritik der reinen Vernunft, Ia PlatonisdeAmore Commentarium, íbidem. ed., 1781; 2a ed., 1787. As citações referemse à 2- ed., salvo indicação em contrário. Fílon (c. 20 a.C.-c. 50 d.C.) Ali. leg. =Allegoria legis, ed. Colson e Whitaker, Met. derSitten = Metaphysik der Sitten, 1797. Prol. = Prolegomena zu einerjeden künftigen 1929-62. Metaphysik, die ais Wissenschaft wird aufHegel (1770-1831) treten kónnen, 1783Ene. = Encyklopãdie derphilosophischen Wis- Religion = Die Religion innerhalb der Grenzen senschaften im Grundrisse, 2- ed., 1827; ed. derblossen Vernunft, 1793. Lasson, 1950. Nas citações desta obra tam­ Às vezes são indicadas entre colchetes as bém foi consultada a versão italiana de B. páginas segundo a edição da Academia Croce, Bari, 1906. Prussiana. Nesse caso, no que diz respeito à Fil. do dir. = Grundlinien der Philosophie des Crítica da Razão Pura, indica-se com A a 1 Rechts, 1821. edição e com B a segunda, Phãnomen. des Geistes = Phãnomenologie des Geistes, 1807. Kierkegaard (1813-1855) Quando não é dada outra indicação, as obras Werke = Gesammelte Werke, trad. ted. E. Hirsch, de Hegel são citadas na edição original: 1957 ss. Werke, VolstãndigeAusgabe, 1832-45. Leibniz (1646-1716) Hobbes (1588-1679) Disc. demét. = Discoursdemétaphysique, 1686, Decorp. = De corpore, 1655. ed. Lestienée, 1929. De bom. = De homine, 1658 Monad. = Monadologie, 1714. Leviath. = Leviathan, 1651. Nouv. ess. = Nouveauxessaissur 1'entendement humain, 1703. Hume (1711-1776) Inq. Cone. Morais = Inquiry Concerning the Théod. = Essais de Théodicée sur Ia bonté de Dieu, Ia liberte de Vhomme et Vorígine du Principies ofMorais, 1752; ed. Greene Grose, mal, 1710. 1879; nova ed., 1912.

LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS

As duas obras precedentes e muitos outros escritos de Leibniz são citados de Opera Phüosophica, ed. Erdmann, 1840. Também são citadas as duas coletâneas: Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, 7 vols., 1849-63; PhilosophischeSchriften, ed. Gerhardt, 7vols., 1875-90. Locke (1632-1704) Saggio = An Essay conceming Human Understanding, 1690; ed. Fraser, 1894; trad. it. C. Pellízzí, Bari, 1951. Lucrécio (c. 96-c. 53 a.C.) Derer. nat. =Dererum natura, ed. Bailey, 1947. MillJ. S. (1806-1873) Logic = System of Logic Ratiocinative and Inductive, 1843. Nicolau de Cusa (1401-1464) De docta ignor. = De docta ignorantia, 1440. Ockham (c. 1280-c. 1349) InSent. = Quaestiones in L Vlibros Sententiarum, 1495. Orígenes (c. 185-c. 253) Deprinc. = De principiis. Injohann. = Lnjobannem. Pascal (1623-1662) Pensées (os números referem-se à ordem da ed. Brunschvicg). P. G. = MIGNE, Patrologia graeca, o primeiro número indica o volume. P. L. = MIGNE, Patrologia latina, o primeiro nú­ mero indica o volume. Pedro Hispano (Papa João XXI, c. 1220-1277) Summ. log. = Summulae logicales, ed. Bonhenski, 1947 Peirce 1839-1914) Coll. Pap, = Collected Papers, vols. I-VI, ed. Hartshorne e Weiss, 1931-35; vols. VII-VIII, ed. Burks, 1958. Platão (c. 427-c. 347 a.C.) Ale, I, II = Alcibiades, I, II.

XI

Ap, = Apologia Socratis. Carm. = Charmides. Conv. = Symposium. Crat. = Cratylus. Crit. = Crito. Critia = Critias. Def. = Definitiones. Ep, = Epistulae. Eutid. = Euthydemus. Eed. = Phaedo. EU. = Philebus. Gorg. = Gorgias. lon. = Lone. Lach. = Laches. Leggi=Leges. Men. = Menon. Parm. = Parmenides. Pol. = Politicus. Prot. = Protagoras. Rep. = Respublica, ed. Chambry, 1932. Sof. = Sophista. Teet. = feaethetus. Tim. = Timaeus. Os textos são citados na edição de Burnet, 1899-1906. Plotino (205-270) Enn. = Enneades, ed. Bréhier, 1924. Santo Agostinho (354-430) De civ. Dei = De civitate Dei. Conf. = Confessionum libriXIII. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) S. Th. = Summa Theologiae, ed. Caramello, Torino, 1950. Contra Gent. = Summa contra Gentiles, Torino, 1938. De ver. = Quaestiones disputatae de veritate, Torino, 1931. Scheler (1874-1928) Formalismus = Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, 1913-16. Sympatbie= Wesen undFormen der Sympathie 1923; trad. franc. Lefebvre, 1928. Schelling (1775-1854) Werke = Sãmmtliche Werke, organizada pelo filho K. F. A. Schelling: I série (obras já edita­ das), 10 vols.; II série (obras inéditas), 4 vols., 1.856 ss.

XII

LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS

Schopenhauer (1788-1860) Die Welt = Die Welt ais Wille und Vorstellung, 1819; 2a ed., 1844; trad. it. P. Savi-Lopez e G. De Lorenzo, Bari, 1914-30. Scotus Erigena (séc. D0 De divis, nat. = De divisione naturae, nella P. L, 122. Sêneca (12 a.C-65 d.C.) Ep. =EpistulaemoralesadLucilium, ed. Beltrami, 1931; trad. it. U. Boella, Torino, 1951. Sexto Empírico (180-220.) Adv. math. = Adversus mathematicos, ed. Mau, 1954. Pirr. hyp. = Pirroneion hypotyposeon libri três, ed. Mutschmann, 1912.

Stobeo (séc. V) Ed. = Eclogaephysicaeetethicae, ed. Wachsmuth e Hense, 1884-1923. Spinoza Et. = Ethica moregeométrico demonstrata, 1677, in Opera, ed. Wachsmuth e Hense, 1884-1923. Telésio (1509-1588) De rer. nat. = De rerum natura iuxta própria principia, I-II, 1565; III-IX, 1586; ed. Spampanato, 1910-23. Wittgenstein (1889-1951) Tractatus= Tractatnslogicophilosophicus, 1922. Wolff (1679-1754) Cosm. = Cosmologia generalis, 1731Log. = Philosophiarationalis, siveLógica, 1728. Ont. = Philosophia prima sive Ontologia, 1729.

Outras abreviaturas não estão registradas acima porque ou são de uso corrente entre os estudiosos, ou são de compreensão imediata, como Ap., para Apêndice; Fil. para Filosofia; Phil. para Philosophie ou Philosophy; Intr. para Introdução; Schol. para scholium; etc.

A A. 1. Foi Aristóteles quem usou pela primei­ § 1). Durante muito tempo essa fórmula expri­ ra vez, particularmente em Analíticos, as pri­ miu o princípio de identidade e, ao mesmo meiras letras maiúsculas do alfabeto, A, B, F, tempo, constituiu um tipo de verdade absoluta­ para indicar os três termos de um silogismo. mente indubitável. Diz Boutroux: "O princípio Todavia, como na sua sintaxe o predicado é de identidade pode ser assim expresso: A é A. posto antes do sujeito (A vnáp%ti tco B, "A é Não digo o Ser, mas simplesmente A, isto é, inerente [ou pertence] a B"), em geral em Ana­ qualquer coisa, absolutamente qualquer, susce­ líticos os sujeitos são B e L. Na Lógica da Idade tível de ser concebida, etc." (De 1'idée de loi Moderna, com o costume de se escrever "A est naturelle, 1895, p. 12). B", A tornou-se normalmente o símbolo do 5. No simbolismo de Lukasiewicz a letra "A" sujeito. é usada como o símbolo da disjunção para a 2. A partir dos tratadistas escolásticos (ao se emprega mais comumente o símbolo que parece, de Introductiones de Guilherme qual "V" (cf. A. CHURCH, Introduction to Mathemade Shyreswood, séc. XIII), a letra A é usada na ticalLogic, nota 91). Lógica formal "aristotélica" como símbolo da ABALIEDADE. V. ASF.IDADE. proposição universal afirmativa (v.), segundo ABDERITISMO (ai. Abderitismus). Assim os conhecidos versos que chegaram até nós em designou a concepção que considera que várias redações. Nas Summulae de Pedro His­ Kant a história não está em progresso nem em re­ pano (ed. Bochenski, 1. 21), lê-se: mas sempre no mesmo estado. Deste A affirmat, negat E, sed universaliter gresso, ponto de vista, a história humana não teria ambae, significado do que a de qualquer espécie I affirmat, negat O, sed particulariter mais animal; seria apenas mais penosa (Se o gênero ambae. esta em constante progresso para o 3. Na lógica modal tradicional, a letra A de­ humano melhor, 1798). signa a proposição modal que consiste na ABDUÇÃO (gr. ànayorfí]; lat. Keductio; in. afirmação do modo e na afirmação da propo­ sição. P. ex.: "É possível que p" onde p é uma Abduction; fr. Abduction; ai. Abduction; it. proposição afirmativa qualquer (ARNAULD, Log., Abduzioné). É um processo de prova indireta, semidemonstrativa (teorizado por Aristóteles II, 8). 4. Na fórmula "A é A" ou "A=A", que come­ em Top, VIII, 5, 159 b 8, e 160 a 11 ss.; An.pr, çou a ser usada com Leibniz como tipo das ver­ II, 25, 69 a 20 ss.), em que a premissa maior é dades idênticas e foi adotada depois por Wolff evidente, porém a menor é só provável ou de e por Kant como expressão do chamado prin­ qualquer forma mais facilmente aceita pelo cípio de identidade (v.), A significa um objeto interlocutor do que a conclusão que se quer ou um conceito qualquer. Fichte dizia: "Todos demonstrar. Embora se trate de um processo concordam que a proposição A é A (assim mais dialético do que apodítico, já fora admiti­ como A=A porque este é o significado da có- do por Platão (cf. Men., 86 ss.) para a matemá­ pula lógica) e, de fato, não é preciso pensar tica, e também será sancionado como um dos muito para reconhecê-la como plenamente cer­ métodos de demonstração matemática por ta e indubitável" (Wissenschaftslehre, 1794, Proclo (In Eucl, 212, 24).

ABERTO

Peirce introduziu o termo abduction (ou retroductíon) para indicar o primeiro momento do processo indutivo, o da escolha de uma hipótese que possa servir para explicar determi­ nados fatos empíricos (Coll. Pap., 2.643). ABERTO (in. Open; fr. Oiwert; it. Aperto). Adjetivo empregado freqüentemente em sen­ tido metafórico na linguagem comum e filo­ sófica para indicar atitudes ou instituições que admitem a possibilidade de participação ou co­ municação ampla ou até mesmo universal. Um "espírito aberto" é um espírito acessível a su­ gestões, conselhos, críticas que lhe vêm dos outros ou da própria situação e que está dis­ posto a levar em conta, isto é, sem preconcei­ tos, tais sugestões. Uma "sociedade aberta" é uma sociedade que possibilita a correção de suas instituições po r vias pacíficas (K. POPPER, The Open Society and it Enemies, Londres, 1945). Bergson deu o nome de sociedade aber­ ta àquela que "abraça a humanidade inteira" (Deuxsources, 1932,1; trad. ital., p. 28). C. Morris falou de um "eu aberto" (The Open Self, 1948), A. Capitini de uma "religião aberta" (Religione aperta, 1955). AB ESSE AD POSSE. É uma das consequentiaeformales (v. CONSEQÜÊNCIA) da Lógica Escolástica; ab esse ad posse valet (tenef) consequentia, ou, com maior rigor, ab Ma de inesse valet(tenet) Ma depossibili; isto é: de "'p' é ver­ dadeira" segue-se que "'p' é possível". G. P. AB INVTDIA. Assim Wolff denomina "as ra­ zões com as quais se provoca ódio contra as opiniões dos outros" (Log, § 1.049). É o assunto preferido pelos "perseguidores", isto é, por aqueles "que, com o pretexto de defender a verdade, procuram levar os adversários ao pe­ rigo de perderem a fama, a fortuna ou a vida" (Ibid., § 1.051). ABISSAL, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, E. ABNEGAÇÃO (gr. à7rápvr|Oiç; lat. Abnegatio-, in. Self-denial; fr. Abnégation; ai. Verleugnung- it. Abnegacione). É a negação de si mesmo e a disposição de pôr-se a serviço dos outros ou de Deus, com o sacrifício dos pró­ prios interesses. Assim é descrita essa noção no Evangelho (Mat., XVI, 24; Luc, IX, 23): "Se al­ guém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz". Essa negação de si mesmo, porém, não é a perda de si mesmo, mas, antes, o reencontro do verdadeiro "si mesmo", como se explica no versículo seguin­ te: "pois quem quiser conservar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por

ABSOLUTISMO

mim, salvá-la-á". Por isso nos Evangelhos, a noção de abnegação não é uma noção de mo­ ral ascética, mas exprime o ato da renovação cristã, pelo qual da negação do homem velho nasce o homem novo ou espiritual. ABSOLUTISMO (in. Absolutisni; fr. Absolutisme, ai. Absolutismus; it. Assolutismo). Termo cunhado na primeira metade do séc. XVIII para indicar toda doutrina que defenda o "poder ab­ soluto" ou a "soberania absoluta" do Estado. No seu sentido político original, esse termo agora designa: le o A. utopista de Platão em Repú­ blica; 2- o A. papal afirmado por Gregório VII e por Bonifácio VIII, que reivindica para o Papa, como representante de Deus sobre a Terra, a plenitudopotestatis, isto é, a soberania absoluta sobre todos os homens, inclusive os príncipes, os reis e o imperador; 3Q o A. monárquico do séc. XVI, cujo defensor é Hobbes; 4B o A. demo­ crático, teorizado por Rousseau no Contrato so­ cial, por Marx e pelos escritores marxistas como "ditadura do proletariado". Todas essas formas do A. defendem igualmente, embora com moti­ vos ou fundamentos vários, a exigência de que o poder estatal seja exercido sem limitações ou restrições. A exigência oposta, própria do libe­ ralismo (v.), é a que prescreve limites e restri­ ções para o poder estatal. No uso filosófico corrente, esse termo não se restringe mais a indicar determinada doutri­ na política, mas estende-se à designação de toda e qualquer pretensão doutrinai ou prática ao absoluto, em qualquer campo que seja con­ siderado. Diz, p. ex., Reiehenbach (The Theory ofProbabílíty, p. 378): "Devemos renunciar a todos os resíduos do A. para compreender o significado da interpretação, em termos de fre­ qüência, de uma asserção de probabilidade em torno de um caso individual. Não há lugar para o A. na teoria das asserções de probabilidade referentes à realidade física. Tais asserções são usadas como regras de conduta, como regras que determinam a conduta mais eficaz em dado estágio do conhecimento. Quem quiser encontrar algo a mais nessas asserções des­ cobrirá no fim que perseguiu uma quimera". O A. filosófico não é tanto de quem fala do Absoluto ou de quem lhe reconhece a existência, mas de quem afirma que o próprio absoluto apoia suas palavras e lhes dá a garantia incondicional de ve­ racidade. Nesse sentido, o protótipo do A. doutrinai é o Idealismo romântico, segundo o qual, na filosofia, não é o filósofo como ho­ mem que se manifesta e fala, mas o próprio

ABSOLUTO

Absoluto que chega à sua consciência e se ma­ nifesta. ABSOLUTO (in. Absolute; fr. Absolu; ai. Absoluto; it. Assoluto). O termo latino absolutas (desligado de, destacado de, isto é, livre de toda relação, independente) provavelmente corresponde ao significado do termo grego kath' auto (ou por si) a propósito do qual diz Aristóteles: "Por si mesmo e enquanto ele mes­ mo ésignificam a mesma coisa; p. ex.: o ponto e a noção de reta pertencem à linha por si por­ que pertencem à linha enquanto linha" (An. post., I, 4, 73 b 30 ss.). Nesse sentido, essa palavra qualificaria uma determinação que per­ tence a uma coisa pela própria substância ou essência da coisa, portanto, intrinsecamente. Esse é um dos dois significados da palavra distinguidos por Kant, o que ele considera mais difundido, mas menos preciso. Nesse sentido, "absolutamente possível" significa possível "em si mesmo" ou "intrinsecamente" possível. Des­ se significado Kant distingue o outro, que con­ sidera preferível, segundo o qual essa palavra significaria "sob qualquer relação"; nesse caso, "absolutamente possível" significaria possível sob todos os aspectos ou sob todas as relações (Crít. R. Pura, Dial. transe, Conceitos da razão pura, seç. II). Esses dois significados se mantêm ainda no uso genérico dessa palavra, mas o segundo prevalece, talvez por ser menos dogmático e não fazer apelo ao misterioso em si ou à natu­ reza intrínseca das coisas. P. ex., dizer "Isto é absolutamente verdadeiro" pode eqüivaler a dizer "Esta proposição contém em si mesma uma garantia de verdade"; rna.s pode também querer dizer "Esta proposição foi amplamente verificada e nada há ainda que possa provar que ela é falsa"; este segundo significado é menos dogmático do que o primeiro. Assim, responder "Absolutamente não" a uma pergunta ou a um pedido significa simplesmente avisar que este "não" está solidamente apoiado por boas razões e será mantido. Esses usos comuns do termo correspondem ao uso filosófico que, genericamente, é o de "sem limites", "sem res­ trições", e portanto "ilimitado" ou "infinito". Muito provavelmente a difusão dessa palavra, que tem início no séc. XVIII (embora tenha sido Nicolau de Cusa que definiu Deus como o A., De docta ignor, II, 9), é devida à lingua­ gem política e a expressões como "poder A.", "monarquia A.", etc, nas quais a palavra signi­ fica claramente "sem restrições" ou "ilimitado".

ABSOLUTO

A grande voga filosófica desse termo devese ao Romantismo. Fichte fala de uma "dedu­ ção A.", de "atividade A.", de "saber A.", de "re­ flexão A.", de "Eu A.", para indicar, com esta última expressão, o Eu infinito, criador do mundo. E na segunda fase de sua filosofia, quando procura interpretar o Eu como Deus, usa a palavra de modo tão abusivo que beira o ridículo: "O A. é absolutamente aquilo que é, repousa sobre si e em si mesmo absolutamen­ te", "Ele é o que é absolutamente porque é por si mesmo... porque junto ao A. não permanece nada de estranho, mas esvai-se tudo o que não é o A." (Wissenschaftslehre, 1801, §§ 5 e 8; Werke, II, pp. 12, 16). A mesma exageração dessa palavra acha-se em Schelling, que, assim como Fichte da segunda maneira, emprega, além disso, o substantivo "A." para designar o princípio infinito da realidade, isto é, Deus. O mesmo uso da palavra reaparece em Hegel, para quem, como para Fichte e Schelling, o A. é, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito da filosofia e, embora definido de várias formas, permanece caracterizado pela sua infinida­ de positiva no sentido de estar além de to­ da realidade finita e de compreender em si toda realidade finita. O princípio formulado na Fenomenologia (Pref.) de que "o A. é essen­ cialmente o resultado" e de que "só no fim está o que é em verdade" leva Hegel a chamar de Espírito A. os graus últimos da realidade, aque­ les em que ela se revela a si mesma como Princípio autoconsciente infinito na religião, na arte e na filosofia. O Romantismo fixou assim o uso dessa palavra tanto como adjetivo quanto como substantivo. Segundo esse uso, a pala­ vra significa "sem restrições", "sem limitações", "sem condições"; e como substantivo significa a Realidade que é desprovida de limites ou condições, a Realidade Suprema, o "Espírito" ou "Deus". Já Leibniz dissera: "O verdadeiro in­ finito, a rigor, nada mais é que o A." (Nouv. ess., II, 17, § 1). E na realidade esse termo pode ser considerado sinônimo de "Infinito" (v.). Em vis­ ta da posição central que a noção de infinito ocupa no Romantismo (v.), entende-se por que esse sinônimo foi acolhido e muito utilizado no período romântico. Na França, essa palavra foi importada por Cousin, cujos vínculos com o Romantismo alemão são conhecidos. Na In­ glaterra, foi introduzida por William Hamilton, cujo primeiro livro foi um estudo sobre a Filo­ sofia de Cousin (1829); e essa noção tornou-se a base das discussões sobre a cognoscibilida-

ABSTRAÇÃO

ABSORÇÃO, LEI DE

de de A., iniciadas por Hamilton e Mansel e continuadas pelo evolucionismo positivista (Spencer, etc), que, assim como esses dois pensadores, afirmou a existência e, ao mesmo tempo, a incognoscibilidade do Absoluto. Na filosofia contemporânea, essa palavra foi am­ plamente usada pela corrente que estava mais estreitamente ligada ao Idealismo romântico, isto é, pelo Idealismo anglo-americano (Green, Bradley, Royce) e italiano (Gentile, Croce), para designar a Consciência infinita ou o Espíri­ to infinito. Essa palavra permanece, portanto, ligada a uma fase determinada do pensamento filosófi­ co, mais precisamente à concepção romântica do Infinito, que compreende e resolve em si toda realidade finita e não é, por isso, limitado ou condicionado por nada, nada tendo fora de si que possa limitá-lo ou condicioná-lo. No seu uso comum, assim como no filosófico, esse termo continua significando o estado daquilo que, a qualquer título, é desprovido de condi­ ções e de limites, ou (como substantivo) aquilo que se realiza a si mesmo de modo necessário e infalível. ABSORÇÃO, LEI DE (in. Lawof absorption; fr. Loi d'absorption; it. Leggi di assorbimento). Com esse nome designam-se na Lógica contemporânea os dois teoremas da álgebra das proposições:

pr\pq = p;

p(.pr\q)=p,

e os dois teoremas correspondentes da álge­ bra das classes:

ax\ab=a;

a (ar\b) = a.

A A. é, nessas expressões, a possibilidade lógica de substituir-sep porpvpq ou porp(/>r) q) nas primeiras expressões; ou a por a r\ ab ou por a(ar\ b) nas segundas expressões. (Cf. CHURCH, Intr. toMathematicalLogic, 15, 8). Fora da linguagem da lógica, essa lei significa que, se um conceito implica outro, ele absorve este outro, no sentido de que a asserção simultânea dos dois eqüivale à asserção do primeiro e pode ser, portanto, substituída pela asserção deste toda vez que ela reapareça. Cf. TAUTOLOGIA. ABSTRAÇÃO (gr. àípccípeaiç; lat. Abstractia, in. Abstraction; fr. Abstraction; ai. Abstraktion;

it. Astrazionè). É a operação mediante a qual alguma coisa é escolhida como objeto de per­ cepção, atenção, observação, consideração, pesquisa, estudo, etc, e isolada de outras coi­ sas com que está em uma relação qualquer. A A. tem dois aspectos: l2 isolar a coisa previa­ mente escolhida das demais com que está rela­ cionada (o abstrair de); 2- assumir como objeto específico de consideração o que foi assim iso­ lado (A. seletiva ou prescindente). Esses dois significados já foram distinguidos por Kant (Logik, § 6), que, porém, pretendia reduzir a A. somente à primeira dessas formas. A A. é inerente a qualquer procedimento cognoscitivo e pode servir para descrever todo processo desse gênero. Com tal finalidade foi utilizada desde a Antigüidade. Aristóteles expli­ ca com a A. a formação das ciências teoréticas, isto é, da matemática, da física e da filosofia pura. "O matemático", diz ele, "despoja as coi­ sas de todas as qualidades sensíveis (peso, le­ veza, dureza, etc.) e as reduz à quantidade descontínua e contínua; o físico prescinde de todas as determinações do ser que não se redu­ zam ao movimento. Analogamente, o filósofo despoja o ser de todas as determinações parti­ culares (quantidade, movimento, etc.) e limitase a considerá-lo só enquanto ser" (Met., XI, 3, 1.061 a 28 ss.). O processo todo do conhecer pode ser, segundo Aristóteles, descrito com a A.: "O conhecimento sensível consiste em assu­ mir as formas sensíveis sem a matéria assim como a cera assume a marca do sinete sem o ferro ou o ouro de que ele é composto" (De an, II, 12, 424 a 18). E o conhecimento intelec­ tual recebe as formas inteligíveis abstraindo-as das formas sensíveis em que estão presentes (ibid., III, 7, 431 ss.). S. Tomás reduz o conheci­ mento intelectual à operação de A.: abstrair a forma da matéria individual e assim extrair o universal do particular, a espécie inteligível das imagens singulares. Assim como podemos con­ siderar a cor de um fruto prescindindo do fruto, sem por isso afirmar que ela existe separada­ mente do fruto, também podemos conhecer as formas ou as espécies universais do homem, do cavalo, da pedra, etc, prescindindo dos princípios individuais a que estão unidas, mas sem afirmar que existem separadamente des­ tes. A A., por isso, não falsifica a realidade, mas só possibilita a consideração separada da for­ ma e, com isso, o conhecimento intelectual hu­

ABSTRAÇÃO

mano (S. Th, I, q. 85, a. 1). Esses conceitos, ou conceitos afins, repetem-se em toda a Escolástica. A Lógica de Port-Royal (I, 4) resumiu muito bem o pensamento da Escolástica e a es­ treita conexão do processo abstrativo com a natureza do homem, dizendo: "A limitação da nossa mente faz que não possamos compreen­ der as coisas compostas senão considerando-as nas suas partes e contemplando as faces diver­ sas com que elas se nos apresentam: isto é o que geralmente se costuma chamar conhecer por A.". Locke foi o primeiro a evidenciar a estreita conexão entre o processo de A. e a função sim­ bólica da linguagem. "Mediante a A.", diz ele, "as idéias extraídas de seres particulares tor­ nam-se representantes gerais de todos os obje­ tos da mesma espécie e os seus nomes tornamse nomes gerais, aplicáveis a tudo o que existe e está conforme com tais idéias abstratas... As­ sim, observando-se hoje no gesso ou na neve a mesma cor que ontem foi observada no leite, considera-se só esse aspecto e faz-se com ele a representação de todas as outras idéias da mes­ ma espécie; e dando-se o nome 'brancura', com este som significa-se a mesma qualidade, onde quer que ela venha a ser imaginada ou encontrada; e assim são compostos os univer­ sais, quer se trate de idéias, quer se trate de termos" (Ensaio, II, 11, § 9). Baseando-se nes­ sas observações de Locke, Berkeley chegou à negação da idéia abstrata e da própria função da abstração. Nega, em outros termos, que o homem possa abstrair a idéia da cor das cores, a idéia do homem dos homens, etc. Não há, de fato, a idéia de um homem que não tenha ne­ nhuma característica particular, assim como não há, na realidade, um homem desse gênero. As idéias gerais não são idéias desprovidas de caráter particular (isto é, "abstratas"), mas idéias particulares assumidas como signos de um gru­ po de outras idéias particulares afins entre si. O triângulo que um geômetra tem em mente para demonstrar um teorema não é um triângulo abstrato, mas um triângulo particular, p. ex., isósceles; mas já que não se faz menção desse caráter particular durante a demonstração, o teorema demonstrado vale para todos os triân­ gulos indistintamente, podendo cada um deles tomar o lugar do que foi considerado (Princ. of Hum. Know., Intr., § 16). Hume repetiu a análi­ se negativa de Berkeley {Treatise, I, 1, 7). Tais

ABSTRAÇÃO

análises, todavia, não negam a A., mas a sua noção psicológica em favor do seu conceito lógico-simbólico. A A. não é o ato pelo qual o es­ pírito pensa certas idéias separadamente de outras; é, antes, a função simbólica de certas representações particulares. Kant, porém, su­ blinha a importância da A. no sentido tradicio­ nal, pondo-a ao lado da atenção como um dos atos ordinários do espírito e sublinhando a sua função de separar uma representação, de que se está consciente, das outras com que ela está ligada na consciência. Embora ele exemplifique de modo curioso a importância desse ato ("Mui­ tos homens são infelizes porque não sabem abstrair". "Um celibatário poderia fazer bom casamento se soubesse abstrair a partir de uma verruga do rosto ou a partir da falta de um dente de sua amada" [Antr., § 31), é claro que o procedimento todo de Kant, que tem por fim isolar (isolieren) os elementos do conhecimento, apriori, ou da atividade humana, em geral, é um procedimento abstrativo. Diz ele, por ex.: "Em uma lógica transcendental, nós isolamos o intelecto (como acima, na Estética transcen­ dental, a sensibilidade) e extraímos de todo o nosso conhecimento só a parte do pensamen­ to que tem origem unicamente no intelecto" (Crít. R. Pura, Div. da Lóg. transcend.). Com Hegel, assiste-se ao estranho fenômeno da supervalorização da A. e da desvalorização do abstrato. Hegel opõe-se à opinião de que abstrair significa somente extrair do concreto, para proveito subjetivo, esta ou aquela nota que constitua o conceito, entre outras que todavia permaneceriam reais e válidas fora do conceito, na própria realidade. "O pensamento abstraente", diz ele, "não pode ser considerado como pôr à parte a matéria sensível que não seria prejudicada por isso em sua realidade; é, antes, superar e reduzir essa matéria, que é sim­ ples fenômeno, ao essencial, que só se ma­ nifesta no conceito" (Wissensch. derLogik, III, Do conceito em geral, trad. it., pp. 24-25). O conceito a que se chega com a A. é, por isso, se­ gundo Hegel, a própria realidade, aliás, a subs­ tância da realidade. Por outro lado, todavia, o abstrato é considerado por Hegel como o que é finito, imediato, não posto em relação com o todo, não resolvido no devir da Idéia, e por isso produto de uma perspectiva provisória e falaz. "O abstrato é o finito, o concreto é a verdade, o objeto infinito" (Phil. derReligion, II, em Werke,

ABSTRAÇÃO

ed. Glockner, XVI, p. 226). "Somente o concreto é o verdadeiro, o abstrato não é o verdadei­ ro" (Geschicbte der Phil, III, em Werke, ed. Glockner, XIX, p. 99). Está claro, todavia, que Hegel entende por abstrato aquilo que comumente se chama concreto — as coisas, os objetos particulares, as realidades singulares oferecidas ou testemunhadas pela experiência — enquanto chama de concreto o que o uso co­ mum e filosófico sempre chamou de abstrato, isto é, o conceito; e chama-o de concreto por­ que este constitui, para ele, a substância mesma da realidade (conforme o seu princípio "Tudo o que é racional é real e tudo o que é real é ra­ cional"). De qualquer forma, essa inversão de significado permitiu que boa parte da filosofia do séc. XIX se pronunciasse a favor do concreto e contra o abstrato, ainda quando o "concreto" de que se tratava era, na realidade, uma simples A. filosófica. Gentile falava, p. ex., de uma "lógi­ ca do abstrato", ou do pensamento pensado, e de uma "lógica do concreto", ou do pensamen­ to pensante (Sistema dilógica, I, 1922, pp. 119 ss.). Croce falava da "concretitude" do conceito como imanência deste nas representações sin­ gulares e da "abstrateza" das noções considera­ das desligadas dos particulares ilógica, A- ed., 1920, p. 28). Bergson contrapôs constantemente o tempo "concreto" da consciência ao tempo "abstrato" da ciência e, de modo geral, o proce­ dimento da ciência que se vale de conceitos ou símbolos, isto é, de "idéias abstratas ou gerais", ao procedimento intuitivo ou simpático da filo­ sofia (cf., p. ex., Lapenséeetlemouvant, 3- ed., 1934, p. 210). Esses temas polêmicos foram bastante freqüentes na filosofia dos primeiros decênios do nosso século. E certamente a polê­ mica contra a A. foi eficaz contra a tendência de entificar os produtos dela, isto é, de considerar como substâncias ou realidades, entidades que não têm outra função senão possibilitar a des­ crição, a classificação e o uso de um complexo de dados. Mas, por outro lado, essa mesma po­ lêmica às vezes fez esquecer a função da A. em todo tipo ou forma de atividade humana, en­ quanto tal atividade só pode operar através de seleções abstrativas. Mach insistiu nessa função da A. nas ciências, afirmando que ela é indis­ pensável para a observação dos fenômenos, para a descoberta, ou para a pesquisa dos prin­ cípios (Erkenntniss undIrrtum, cap. VIII; trad. fr., pp. 146 ss.). A esse propósito foi oportuna­ mente distinguida por Peirce uma dupla função da A.: a de operação seletiva e a que dá ensejo

ABSTRATTVO, CONHECIMENTO

às verdadeiras e próprias entidades abstratas, como p. ex., na matemática. "O fato mais co­ mum da percepção, como, p. ex., 'há luz', impli­ ca A. prescindente ou prescindência. Mas a A. hipostática, que transforma 'há luz' em 'há luz aqui', que é o sentido que dou comumente à palavra A. (desde que prescindência indica a A. prescindente), é um modo especialíssimo do pensamento. Consiste em tomar certo aspecto de um objeto ou de vários objetos percebidos (depois que já foi 'pré-cindido' dos outros as­ pectos de tais objetos) e em exprimi-lo de forma proposicional com um juízo" (Coll. Pap, 4.235; cf. 3.642; 5.304). Essa distinção que já fora ace­ nada por James (Princ. ofPsychol, I. 243) e aceita por Dewey {Logic, cap. 23; trad. it., pp. 603-604) não impede que tanto a prescindência quanto a A. hipostática sejam especificações da função geral seletiva, que tradicionalmente foi indicada pela palavra "abstração". Paul Valéry insistiu poeticamente na importância da A. em todas as constaições humanas, logo também na arte: "Estou dizendo que o homem fabrica por A.; ignorando e esquecendo grande parte das qualidades daquilo que emprega, aplican­ do-se somente a condições claras e distintas que podem, via de regra, ser simultaneamente satisfeitas não por uma, mas por muitas espé­ cies de matérias" (Eupalinos, trad. ital., p. 134). ABSTRACIONISMO (in. Abstractionisni; fr. Abstractionnisme, ai. Abstraktionismus; it. Astrazionismo). Assim William James (The Meaning of Truth, 1909, cap. XIII) denominou o uso ilegítimo da abstração e em particular a tendência a considerar como reais os produtos da abstração. ABSTRATAS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSI­ FICAÇÃO DAS. ABSTRATAS, IDÉIAS. V. ABSTRAÇÃO.

ABSTRATIVO, CONHECIMENTO (lat Cognitioabstractiva-, in. Abstractiveknowledge, fr. Connaissance abstractive, ai. Abstrahierende Erkenntniss; it. Conoscenza astrattiva). Termo que Duns Scot empregou de modo simétrico e oposto ao de conhecimento intuitivo (cognitio intuitiva), para indicar uma das espé­ cies fundamentais do conhecimento: a pri­ meira delas "abstrai de toda existência atual" enquanto a segunda "se refere ao que existe ou ao que está presente em certa existência atual" (Op. Ox., II, d. 3, q. 9, n. 6). A distinção foi aceita por Durand de St. Pourçain (In Sent, Prol, q. 3, F) e por Ockham, que, porém, a reinterpretou a seu modo, entendendo por co­

ABSTRATOR

nhecimento intuitivo aquele mediante o qual se conhece com evidência a realidade ou a irrea­ lidade de uma coisa ou de algum outro atributo empírico da própria coisa; portanto, em geral, "toda noção simples de um termo ou de vários termos de uma coisa ou de várias coisas, em vir­ tude da qual se possa conhecer alguma verdade contingente especialmente em torno do objeto presente" (In Sent., Prol., q. 1, Z.). F. entendeu por conhecimento abstrativo o que prescinde da realidade ou da irrealidade do objeto e é uma espécie de imagem ou cópia do conhecimento intuitivo. Nada se pode conhecer abstrativamente, diz ele, que não tenha sido conhecido intuitivamente, senão até mesmo o cego de nas­ cença poderia conhecer as cores (Ibid, I, d. 3, q. 2, K). Essa doutrina do conhecimento intuitivo é a primeira formulação da noção de experiência no sentido moderno do termo (V. EXPERIÊNCIA). ABSTRATOR V. OPERADOR. ABSTRUSO (lat. Abstrusus [= escondido]; in. Abstruse, fr. Abstrus; ai. Abstrus; it. Astruso). Termo pejorativo para qualificar qualquer no­ ção insólita ou de difícil compreensão; ou, como diz Locke (Ensaio, II, 12, § 8), "distante dos sentidos e de toda operação do nosso espí­ rito". Esse termo é aplicado sobretudo a no­ ções abstratas, mas aplica-se igualmente a noções que se afastem, mais ou menos, do universo comum do discurso. ABSURDO (gr. cetOTiov, aôúvaxov; lat. Absurdum; in. Absurd; fr. Absurde, ai. Absurd; it. Assurdó). Em geral, aquilo que não encontra lugar no sistema de crenças a que se faz refe­ rência ou que se opõe a alguma dessas cren­ ças. Os homens — e, em especial, os filósofos — sempre usaram muito essa palavra para con­ denar, destruir ou pelo menos afastar de si cren­ ças (verdadeiras ou falsas) ou mesmo fatos ou observações perturbadoras, incômodas ou, de qualquer modo, estranhas ou opostas aos sis­ temas de crenças aceitos por eles. Portanto, não é de surpreender que até mesmo experiências ou doutrinas que depois seriam reconhecidas como verdadeiras tenham sido por muito ou pouco tempo definidas como absurdas. P. ex.: os antigos reputavam A. a crença nos antípodas porque, não tendo a noção da relatividade das determinações espaciais, acreditavam que nos antípodas os homens deveriam viver de cabeça para baixo. Nesse sentido, a palavra significa "irracional", isto é, contrário ou estranho àquilo em que se pode crer racionalmente, ou "in­ conveniente", "fora de lugar", etc.

ACADEMIA

Em sentido mais restrito e preciso, essa pa­ lavra significa "impossível" (adynatori) porque contraditório. Nesse sentido, Aristóteles falava de raciocínio por A. ou de redução ao A.: seria um raciocínio que assume como hipótese a proposição contrária à condição que se quer demonstrar e faz ver que de tal hipótese deriva uma proposição contraditória à própria hipóte­ se (An. pr, II, 11-14, 61 ss.). A demonstração por A., acrescenta Aristóteles (ibid, 14, 62 b 27), distingue-se da demonstração ostensiva porque assume aquilo que, com a redução ao erro reconhecido, quer destruir; a demonstra­ ção ostensiva, ao contrário, parte de premissas já admitidas. Leibniz chamou de demonstração apagógica o raciocínio por A. e considerou-o útil ou pelo menos dificilmente eliminável, no domínio da matemática (Nouv. ess, IV, 8, § 2). Kant, que emprega o mesmo nome, justifi­ cou-o nas ciências, mas o excluiu da filosofia. Justificou-o nas ciências porque nestas é im­ possível o modusponens de chegar à verdade de um conhecimento a partir da verdade das suas conseqüências: seria necessário, de fato, conhecer todas as conseqüências possíveis: o que é impossível. Mas, se de uma proposição pode ser extraída ainda que uma só conse­ qüência falsa, a proposição é falsa: por isso o modus tollens dos silogismos conclui ao mes­ mo tempo com rigor e com facilidade. Mas esse modo de raciocinar é isento de perigos só nas ciências em que não se pode trocar objeti­ vo por subjetivo, isto é, nas ciências da nature­ za. Em filosofia, porém, essa troca é possível, isto é, pode acontecer que seja subjetivamente impossível o que não é objetivamente impossí­ vel. Portanto, o raciocínio apagógico não leva a conclusões legítimas (Crít. R. Pura, Disciplina da razão pura, IV). AB UMVERSALI AD PARTICULAREM. É uma das consequentiaeformates (v. CONSEQÜÊN­ CIA) da Lógica escolástica: ab universali adpartícularem, sive índefinitam sive singularem valet (tenef) consequentia; isto é: de "todo A é B" valem as conseqüências "alguns A são B", "A é B", "S (se S é um A) é B". ACADEMIA (gr. 'AKaôtíu.eia; lat. Acade­ mia; in. Academy, fr. Académie, ai. Akademie, it. Accademia). Propriamente a escola funda­ da por Platão no ginásio que tomava o nome do herói Academos e que depois da morte de Platão foi dirigida por Espeusipo (347-339 a.C), por Xenócrates (339-14 a. C.), por Polemon (314-270 a. C.) e por Cratete (270-68 a.C).

ACADEMIA FLORENTINA

Nessa fase, a Academia continuou a especula­ ção platônica, vinculando-a sempre mais estrei­ tamente ao pitagorismo; pertenceram a ela ma­ temáticos e astrônomos, entre os quais o mais famoso foi Eudoxo de Cnido. Com a morte de Cratete, a Academia mudou de orientação com Arcesilau de Pitane (315 ou 314-241 ou 240 a.C), encaminhando-se para um probabilismo que derivava da época em que Platão afirmara, sobre o conhecimento das coisas naturais, que estas, não tendo nenhuma estabilidade e soli­ dez, não podem dar origem a um conhecimen­ to estável e sólido, mas só a um conhecimento provável. De Arcesilau e de seus sucessores (de que não sabemos quase nada) esse ponto de vista estendeu-se a todo o conhecimen­ to humano no período que se chamou de "Academia média". A "nova Academia" começa com Caméades de Cirene (214 ou 212-129 ou 128 a.C); essa orientação de tendência cética e probabilística foi mantida até Fílon de Larissa, que, no século I a.C, iniciou a IV Academia, de orientação eclética, na qual Cícero se inspirou. Mas a Academia Platônica durou ainda por muito tempo e sua orientação também se reno­ vou no sentido religioso-místico, que é próprio do Neoplatonismoiy.). Só em 529 o imperador Justiniano proibiu o ensino da filosofia e con­ fiscou o rico patrimônio da Academia. Damáscio, que a dirigia, refugiou-se na Pérsia com outros companheiros, entre os quais Simplício, autor de um vasto comentário a Aris­ tóteles, mas logo voltaram desiludidos. Foi as­ sim que terminou a tradição independente do pensamento platônico. ACADEMIA FLORENTINA. Foi fundada por iniciativa de Marsílio Ficino e de Cosimo de Mediei e reuniu um círculo de pessoas que viam a possibilidade de renovar o homem e a sua vida religiosa mediante um retorno às doutrinas genuínas do platonismo antigo. Nes­ sas doutrinas, os adeptos do platonismo, espe­ cialmente Ficino (1433-1499) e Cristóvão Landino (que viveu entre 1424 e 1498), viam a síntese de todo o pensamento religioso da An­ tigüidade e, portanto, também do cristianismo e por isso a mais alta e verdadeira religião pos­ sível. A esse retorno ao antigo ligou-se outro aspecto da Academia florentina, o anticurialismo; contra as pretensões de supremacia polí­ tica do papado, a Academia sustentava um re­ torno à idéia imperial de Roma; por isso, De monarchia de Dante (V. RENASCIMENTO) era obje­ to freqüente de comentários e discussões.

AÇÃO

AÇÃO (gr. TipáÇvç; lat. Actio; in. Action; fr. Action; ai. Tat, Handlung; it. Azione). 1. Termo de significado generalíssimo que denota qual­ quer operação, considerada sob o aspecto do termo a partir do qual a operação tem início ou iniciativa. Nesse significado, a extensão do ter­ mo é coberta pela categoria aristotélica do fazer (Tioveív), cujo oposto é a categoria da paixão (v.) ou da afeição (v.). Fala-se, assim, da A. do ácido sobre os metais ou do "princípio de A. e de reação" ou da A. do DDT sobre os insetos; ou então fala-se da A. livre ou voluntária ou res­ ponsável, isto é, própria do homem e qualifica­ da por condições determinadas. Produzir, cau­ sar, agir, criar, destruir, iniciar, continuar,terminar, etc. são significados que inscrevem-se nesse significado genérico de ação. 2. Aristóteles foi o primeiro a tentar destacar desse significado genérico um significado espe­ cífico pelo qual o termo pudesse referir-se so­ mente às operações humanas. Assim, começou excluindo da extensão da palavra as operações que se realizam de modo necessário, isto é, de um modo que não pode ser diferente do que é. Tais operações são objeto das ciências teoréticas, matemática, física e filosofia pura. Essas ciências referem-se a realidades, fatos ou even­ tos que não podem ser diferentes do que são. Fora delas está o domínio do possível, isto é, do que pode ser de um modo ou de outro; mas nem todo o domínio do possível pertence à ação. Dele é preciso, com efeito, distinguir o da produção, que é o domínio das artes e que tem caráter próprio e finalidade nos objetos produ­ zidos (Et. nic, VI, 3-4, 1.149 ss.). S. Tomás distingue A. transitiva (transiens), que passa de quem opera sobre a matéria externa, como queimar, serrar, etc, e A. imanente (immanens), que permanece no próprio agente, como sentir, entender, querer (S. Tb., II, I, q. 3, a 2; q. 111, a. 2). Mas a chamada A. transitiva nada mais é do que o fazer ou produzir, de que fala Aristóteles (ibid., II, I, q. 57, a. 4). Nessas obser­ vações de S. Tomás, assim como nas de Aristóteles, está presente a tendência a reconhe­ cer a superioridade da A. chamada imanente, que se consuma no interior do sujeito operante: A. que, de resto, outra coisa não é senão a ativi­ dade espiritual ou o pensamento ou a vida contemplativa. S. Tomás diz, com efeito, que só a A. imanente é "a perfeição e o ato do agente", enquanto a A. transitiva é a perfeição do termo que sofre a A. {ibid, II, I, q. 3, a 2). Por outro lado, S. Tomás distingue, na A. voluntária, a A.

AÇÃO, FILOSOFIA DA

comandada, que é a ordenada pela vontade, p. ex., caminhar ou falar, e a A. elícita da vontade, que é o próprio querer. O fim último da A. não é o ato elícito da vontade, mas o comandado: já que o primeiro apetecível é o fim a que tende a vontade, não a própria vontade iibid, II, I, q. 1, a. 1 ad 2a). Esses conceitos permaneceram du­ rante muito tempo inalterados e são pressupos­ tos também pela chamada filosofia da A. (v.); esta, se tende a exaltar a A. como um caminho para entrar em comunicação mais direta com a realidade ou o Absoluto, ou na posse mais se­ gura destes, não se preocupa muito em forne­ cer um esquema conceituai da A. que lhe deter­ mine as constantes. Essa tentativa, porém, foi feita por ciências particulares, em vista das suas exigências, especialmente pela sociologia. As­ sim, p. ex., Talcott Parsons determinou o esque­ ma da ação. Esta implicaria: 1Q um agente ou um ator; 2Q um fim ou estado futuro de coisas em relação ao qual se orienta o processo da A.; 3U uma situação inicial que difira em um ou mais importantes aspectos do fim a que tende a A.; 4e certo complexo de relações recíprocas en­ tre os elementos precedentes. "Dentro da área de controle do ator", diz Parsons, "os meios em­ pregados não podem, em geral, ser considera­ dos como escolhidos ao acaso ou dependentes exclusivamente das condições da A., mas de­ vem de algum modo estar sujeitos à influência de determinado fator seletivo independente, cujo conhecimento é necessário à compreensão do andamento concreto da A.". Esse fator é a orientação normativa que, embora possa ser diferentemente orientada, não falta em nenhum tipo de A. efetiva (The Structure of Social Action, 1949, pp. 44-45). Esse esquema analíti­ co proposto por Parsons sem dúvida cor­ responde muito bem às exigências da análise sociológica; mas pode ser assumido também em filosofia como base para a compreensão da A. nos vários campos de que a filosofia se ocu­ pa, isto é, no campo moral, jurídico, políti­ co, etc. AÇÃO, FILOSOFIA DA (in. Philosophy of Action; fr. Phílosophie de Vaction, it. Filosofia delVazioné). Com esse nome indicam-se algu­ mas manifestações da filosofia contemporânea, caracterizadas pela crença de que a A. constitui o caminho mais direto para conhecer o Absolu­ to ou o modo mais seguro de possuí-lo. Tratase de uma filosofia de origem romântica: o moralismo de Fichte fundava-se na superiori­ dade metafísica da A. (V. MORALISMO). O prima­

AÇÃO, FILOSOFIA DA do da razão prática, de que Kant falara, não ti­ nha significado fora do domínio moral; mas com Fichte esse primado significa que só na A. o homem se identifica com o Eu infinito. O símbolo da filosofia da A. pode ser expresso na frase de Fausto, na obra de Goethe, que propunha traduzir In principio erat Verbum do IV Evangelho por "No princípio era a A.". Foi com esses pressupostos românticos que a filosofia da A. se vinculou; na França, através de OUé-Laprune (1830-99) e de Blondel (1861­ 1949), assumiu forma religiosa: para ela a A. é o núcleo essencial do homem e só uma análise da A. pode mostrar as necessidades e as defi­ ciências do homem, assim como sua aspiração ao infinito, que, por sua vez, só pode ser satis­ feita pela A. gratuita e misericordiosa de Deus. A supremacia da A. era transferida por George Sorel (1847-1922) do domínio religioso para o social e político. Aqui a ação se desembaraçava de toda limitação factual ou racional e era re­ conhecida como capaz de criar por si, com o mito, a sua própria justificação (Réflexions sur Ia violence, 1906). A crença de que a A. possa produzir por si só as condições cio seu êxito e por si só justificar-se de modo absoluto, consti­ tui o ativismo (v.) próprio de algumas correntes filosóficas e políticas contemporâneas. Por uma das não raras ironias da história do pensamento, justamente uma das correntes que pertencem à filosofia da A. deveria levar a no­ ção de A. até seus limites máximos e enca­ minhá-la para uma nova fase interpretativa. Essa corrente é o pragmatismo (v.). Se, num pri­ meiro momento, William James declara que a A. é a medida da verdade do conhecer e, por­ tanto, considera-a capaz de justificar propo­ sições morais e religiosas teoricamente in­ justificáveis, as análises empiristas de James e, melhor ainda, as de Dewey deveriam eviden­ ciar o condicionamento da A. por parte das cir­ cunstâncias que a provocam, sua relação com a siaiação que constitui seu estímulo e, daí, os li­ mites da sua eficiência e da sua liberdade. Mas, desse ponto de vista, a A. deixa de estar ligada unicamente ao sujeito e de encontrar unica­ mente nele ou na atividade dele (vontade) o seu princípio. Perde a possibilidade de consu­ mar-se e de exaurir-se no próprio sujeito; e tor­ na-se um comportamento, cuja análise deve prescindir da divisão das faculdades ou dos poderes da alma, enquanto deve ter presente a situação ou o estado de coisas a que deve ade­ quar-se (V. AÇÃO; COMPORTAMENTO).

AÇÃO ELÍCITA e AÇÃO COMANDADA AÇÃO ELÍCITA e AÇÃO COMANDADA (lat. Actus elicitus et actus imperatus). Segundo os Escolásticos, a A. voluntária elícita é a pró­ pria operação da vontade, o querer, enquanto a A. comandada é dirigida, iniciada e controla­ da pela vontade, como, p. ex., caminhar ou falar (S. TOMÁS, S. Th., II, I, q, 1, a, 1). AÇÃO MÍNIMA (in. Least action; fr. Moindre action; ai. Kleinsten Aktion; it. Azione míni­ ma). Princípio de que "a natureza nada faz de inútil" (natura nihilfacitfrustra) e segue o ca­ minho mais curto e econômico. Essa máxima encontra-se em Aristóteles (Dean., III, 12, 434 a 31; Decael, I, 4, 271 a 32; Depart. an., I, 5, 645 a 22), é repetida por S. Tomás (In IIIAn, 14) e retomada nos tempos modernos por Galileu, Fermat, Leibniz, etc. Em 1732, Maupertuis for­ mulava matematicamente esse princípio e o introduzia em mecânica com o nome de "lei de economia da natureza" (LexParsimoniae). Mas também para Maupertuis esse princípio conser­ vava o caráter finalista que convencera Aris­ tóteles a adotá-lo. No Ensaio de cosmologia, Maupertuis escrevia: "É este o princípio, tão sá­ bio, tão digno do Ser supremo: qualquer que seja a mudança que se realize na natureza, a soma de A. despendida nessa mudança é a me­ nor possível". Todavia o princípio não tem, em mecânica, o significado finalista que lhe atribuía Maupertuis. Na reexposição que dele fez Lagrange (Mécanique analytique, II, 3, 6), ficou claro que ele exprime a conservação não só do mínimo como também do máximo de A. e que, além disso, tanto o mínimo quanto o máximo devem ser considerados de modo relativo e não absoluto. Desse ponto de vista, Hamilton gene­ ralizava o princípio na forma de "princípio da A. estacionaria": e, nessa forma, diz somente que, em certas classes de fenômenos naturais, o processo de mudança é tal que qualquer gran­ deza física apropriada é um extremo (isto é, um mínimo ou um máximo, mais freqüentemente um mínimo). Mas a grandeza em questão e o seu mínimo ou máximo são coisas que podem mudar de uma ordem de considerações para outra. Sobre princípio da mínima ação já se falou em psicologia, em estética e até na ética (cf. JAMES, Princ. qfPsychoL, II, pp. 188, 239 ss.; SIMMEL, Einleitung in die Moral Wissenschaft, 1892,1, p. 58). Não deve ser confundido com o princípio metodológico da economia, que não diz respeito à ação da natureza ou de Deus,

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AÇÃO REFLEXA mas à escolha dos conceitos e das hipóteses para a descrição dos fenômenos naturais (v. ECONOMIA). AÇÃO RECÍPROCA. V. RECIPROCIDADE. AÇÃO REFLEXA (in. Reílex action; fr. Ac­ tion réflexe, ai. Reflex Bewegung; it. Azione riflessd). Em geral, uma resposta mecânica (in­ voluntária), uniforme e adaptada, do orga­ nismo a um estímulo externo ou interno ao próprio organismo. Um reflexo é, p. ex., a con­ tração da pupila quando o olho é estimulado pela luz ou a salivação pelo gosto ou pela vista de um alimento. Do reflexo assim entendido deve distinguir-se o arco reflexo, que é o dis­ positivo anatomofisiológico destinado a pôr o reflexo em ação. Tal dispositivo é formado pelo nervo aferente ou centrípeto que sofre o estímulo, pelo nervo eferente ou centrífugo que produz o movimento e por uma conexão entre esses dois nervos, estabelecida nas célu­ las nervosas centrais. A importância filosófica dessa noção, elaborada primeiramente pela fisiologia (séc. XVIII), depois pela psicologia, está no fato de ter sido assumida como esque­ ma explicativo causai da vida psíquica; inicial­ mente, apenas dos mecanismos involuntários (instintos, emoções, etc), depois, também das atividades superiores. Tudo o que, da vida psí­ quica, pode ser reportado à A. reflexa, pode ser explicado causalmente a partir do estímulo físico que põe em movimento o arco reflexo. Em vista de sua uniformidade, essa A. é previ­ sível a partir do estímulo: isso quer dizer que ela é causalmente determinada pelo próprio estímulo. Desse modo, a A. reflexa não é se­ não o mecanismo pelo qual a causalidade psí­ quica se insere na causalidade da natureza, como parte dela. Essas noções foram sendo elaboradas a par­ tir da metade do séc. XIX, isto é, desde que a psicologia se constituiu como ciência experi­ mental (V. PSICOLOGIA). De acordo com a orien­ tação atomista, própria da psicologia durante muito tempo, ela procurou resolver os reflexos complexos em reflexos simples, dependentes de circuitos nervosos elementares. A doutrina dos reflexos condicionados, fundada por Pavlov em bases experimentais (a partir de 1903; cf. os escritos de Pavlov recolhidos no volume / riflessi condizionati, Turim, 1950), obedece à mesma exigência e, aliás, contribuiu para reforçá-la durante algum tempo, fazendo nas­ cer a esperança de que os comportamentos su­

AÇÃO REFLEXA

periores também pudessem ser explicados pela combinação de mecanismos reflexos simples. Um reflexo condicionado é aquele em que a função excitadora do estímulo que habitual­ mente o produz (estímulo incondicionado) é assumida por um estímulo artificial (condicio­ nado) ao qual o primeiro foi de algum modo associado. P. ex., se se apresenta um pedaço de carne a um cão, esse estímulo provoca nele salivação abundante. Se a apresentação do pe­ daço de carne foi muitas vezes associada com outro estímulo artificial (p. ex., o som de uma campainha ou o aparecimento de uma luz), este segundo estímulo acabará por produzir, sozinho, o efeito do primeiro, isto é, a salivação do cão. É claro que a combinação e a so­ breposição dos reflexos condicionados podem explicar numerosos comportamentos que, à primeira vista, não estão ligados a reflexos na­ turais ou absolutos. Mais recentemente, viu-se também no reflexo condicionado a explicação do chamado comportamento simbólico do ho­ mem, isto é, do comportamento dirigido por signos ou símbolos, lingüísticos ou de outra na­ tureza. P. ex., o viajante que encontra na estra­ da um cartaz advertindo que a estrada está in­ terrompida adiante, reage (p. ex., voltando) exatamente como se houvesse visto a interrup­ ção da estrada. Aqui o símbolo (o cartaz) subs­ tituiu, como estímulo artificial, o estímulo natu­ ral (a vista da interrupção). Pavlov e muitos defensores da teoria dos reflexos condiciona­ dos mantiveram-se fiéis ao princípio de que todo reflexo que entra na composição de um reflexo condicionado é um mecanismo simples e infalível, realizado por determinado circuito anatômico. Por isso, a teoria do reflexo condi­ cionado, na forma exposta por Pavlov, inscre­ ve-se nos limites daquilo que hoje se costuma chamar "teoria clássica do ato reflexo", isto é, da interpretação causai da A. reflexa. Todavia, um respeitável complexo de obser­ vações experimentais, feitas pela fisiologia e pela psicologia nos últimos decênios, a partir de 1920, aproximadamente, foi tornando cada vez mais difícil entender a A. reflexa segundo seu esquema clássico. Em primeiro lugar, viuse que a A. dos estímulos complexos não é previsível a partir da A. dos estímulos simples que o compõem, ou seja, os chamados reflexos simples combinam-se de modos imprevisíveis. Em segundo lugar, o próprio conceito de "re­ flexo elementar", isto é, do reflexo que entraria na composição dos reflexos complexos, foi jul­

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gado ilegítimo: e, com efeito, todos os reflexos observáveis são complexos e um reflexo "sim­ ples", isto é, não decomponível, é uma simples conjectura. Em terceiro lugar, as mesmas refle­ xões sobre os reflexos condicionados demons­ tram a irregularidade e a imprevisibilidade de certas respostas: irregularidade e imprevisibilidade que Pavlov explicava com a noção de ini­ bição, que, porém, é somente um nome para indicar o fato de que certa reação, que se espe­ rava, não se verificou (GOLDSTEIN, DerAufbau des Organismus, 1927; MERLEAU-PONTY, Structure du comportement, 1949). Essas e outras or­ dens de observação, apresentadas sobretudo pela psicologia da forma (cf., p. ex., KATZ, Gestaltpsychologie, cap. III), mostram que o re­ flexo não pode ser entendido como uma A. de­ vida a um mecanismo causai. Fala-se de reflexo sempre que se pode determinar, em face de certo estímulo, um campo de reações suficien­ temente uniformes para serem previstas com alto grau de probabilidade. As A. reflexas cons­ tituem, desse ponto de vista, uma classe de rea­ ção, mais precisamente a que se caracteriza pela alta freqüência de uniformidade das pró­ prias reações. Mas com isso a noção de reflexo sai do esquema causai para entrar no esquema geral de condicionamento (V. CONDIÇÃO). ACASO (gr. aÜTÓjiaxov; lat. Casus; in. Chan­ ce, fr. Hasard; ai. Zufall; it. Caso). Podem-se distinguir três conceitos desse termo que se entrecruzaram na história da filosofia. ls o con­ ceito subjetivista, que atribui a imprevisibilidade e a indeterminação do evento casual à ig­ norância ou à confusão do homem. 2a o conceito objetivista, que atribui o evento casual à mistu­ ra e à interseção das causas. 3e a interpretação moderna, segundo a qual o acaso é a insufi­ ciência de probabilidades na previsão. Este úl­ timo conceito é o mais geral e o menos me­ tafísico. ls Aristóteles (Fís., II, 4, 196 b 5) já falava da opinião segundo a qual a sorte seria uma cau­ sa superior e divina, oculta para a inteligên­ cia humana. Os Estóicos equiparavam o A. ao erro ou à ilusão; julgavam que tudo acontece no mundo por absoluta necessidade racional (Plac. philos, I, 29). É claro que quem admite uma necessidade desse gênero e a atribui (como achavam os Estóicos) à divindade imanente no cosmos ou à ordem mecânica do uni­ verso não pode admitir a realidade dos eventos que costumam ser chamados de acidentais ou

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fortuitos e muito menos do acaso como princí­ pio ou categoria de tais eventos; deve ver neles a ação necessária da causa reconhecida em ato no universo, negando como ilusão ou erro o seu caráter casual. É esse o motivo por que Kant, que modela as suas categorias e os seus princípios a priori sobre a física newtoniana, inteiramente fundada no princípio de causali­ dade, nega a existência do A., e faz, aliás, dessa negação um dos princípios a priori do intelec­ to: "A proposição 'nada ocorre por A. (in mun­ do non datur casus)' é uma lei apriori da na­ tureza" (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, Refutação do idealismo). Hegel, que parte do princípio da perfeita racionalidade do real, atri­ bui o A. à natureza, ou melhor, vê na natureza "uma acidentalidade desregulada e desenfrea­ da" (Ene, § 248), mas na medida em que a natu­ reza não está adequada à substância racional do real e, por isso, carece ela própria de reali­ dade. De modo análogo, na filosofia contem­ porânea, Bergson explicou o A. pela troca, me­ ramente subjetiva, entre a ordem mecânica e a ordem vital ou espiritual: "Que a mecânica das causas que fazem a roleta parar sobre o núme­ ro me permita vencer e, por isso, aja como um gênio benéfico para quem os meus interesses tivessem grande importância; ou que a força mecânica do vento arranque uma telha do teto e a arroje sobre a minha cabeça, isto é, que aja como um gênio maléfico que conspirasse con­ tra a minha pessoa; em ambos os A. eu encon­ tro um mecanismo onde eu teria procurado e onde deveria encontrar, ao que parece, uma in­ tenção: é_ isso que se exprime quando se fala de A." (Évol. créatr, 8a ed., 1911, p. 254). 2e Por outro lado, seguncio a interpretação objetivista, o A. não é um fenômeno subjetivo, mas objetivo, e consiste no entrecruzar-se de duas ou mais ordens ou séries diversas de cau­ sas. A mais antiga das interpretações desse tipo é a de Aristóteles. Aristóteles começa notando que o A. não se verifica nem nas coisas que acontecem sempre do mesmo modo, nem nas que acontecem quase sempre do mesmo modo, mas entre as que ocorrem por exceção e sem qualquer uniformidade (Fís., II, 5, 196 b 10 ss.). Desse modo, ele atribui corretamente o A. à esfera do imprevisível, isto é, do que acon­ tece fora do necessário ("o que acontece sem­ pre do mesmo modo") e do uniforme ("o que acontece quase sempre do mesmo modo"). As­ sim sendo, o A. (ou a sorte) é definido por Aristóteles como "uma causa acidental no âm­

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bito das coisas que não acontecem nem de modo absolutamente uniforme nem freqüente e que poderiam acontecer com vistas a uma fi­ nalidade" (ibíd., 197 a 32). Para Aristóteles, a determinação da finalidade é essencial, já que o A. tem ao menos o aspecto ou a aparência da finalidade: como no exemplo de quem vai ao mercado por motivo completamente diferente e ali encontra um devedor que lhe restitui a soma devida. Nesse exemplo chama-se A. (ou sorte) o evento da restituição devido ao encon­ tro que não foi deliberado ou desejado como finalidade, mas que teria podido ser uma finali­ dade: enquanto, na realidade, foi o efeito aci­ dental de causas que agiam com vistas a outras finalidades. A noção de encontro, de enredamento de séries causais para a explicação do A., foi retomada na Idade Moderna por filóso­ fos, matemáticos e economistas, que reconhe­ ceram a importância da noção de probabilida­ de (v.) para a interpretação da realidade em geral. Assim, Cournot definiu o A. como o cará­ ter de um acontecimento "devido à combina­ ção ou ao encontro de fenômenos indepen­ dentes na ordem da causalidade" (Théorie des chances et desprobabilités, 1843, cap. II), no­ ção que se tornou predominante no positi­ vismo, também porque foi aceita por Stuart Mill (Logic, III, 17, § 2): "Um evento que aconteça por A. pode ser mais bem descrito como uma coincidência da qual não temos motivo para in­ ferir uniformidade... Podemos dizer que dois ou mais fenômenos são reunidos ao A. ou que coexistem ou se sucedem por A., no sentido de não serem, de modo algum, vinculados pela causaçâo; que não são nem a causa ou o efeito um do outro, nem efeitos da mesma causa ou de causas entre as quais subsista uma lei de coincidência, nem efeitos da mesma colocação de causas primárias". De modo semelhante, Ardigò (Opere, III, p. 122) relaciona o A. com a pluralidade e o entrelaçamento de séries cau­ sais distintas. Essa noção, todavia, é objetiva só entre certos limites, ou melhor, só na aparên­ cia. Dizer que o A. consiste no encontro de duas séries causais diferentes significa que ele é um acontecimento causalmente determinado como todos os outros, mas só mais difícil de ser previsto porque a sua ocorrência não de­ pende do curso de uma série causai única. Se­ gundo essa noção, a determinação causai do A. é mais complexa, mas não menos necessitante; a imprevisibilidade, característica fundamental do A., deve-se tão-somente a tal complexidade

ACATALEPSIA

e não é de natureza objetiva. Para que seja de natureza objetiva, tal imprevisibilidade deve ser realmente devida a uma indeterminação efetiva inerente ao funcionamento da própria causali­ dade. 3q Essa última alternativa constitui um tercei­ ro conceito do A., conceito que se pode fazer remontar a Hume. Parece que Hume quer re­ duzir o acaso a um fenômeno puramente sub­ jetivo, pois diz: "Embora não haja no mundo al­ guma coisa como o A., a nossa ignorância da causa real de cada acontecimento exerce a mesma influência sobre o intelecto e gera se­ melhante espécie de crença ou de opinião". Mas, na realidade, se não existe "A." como no­ ção ou categoria em si, tampouco existe a "cau­ sa" no sentido necessário e absoluto do termo; existe somente a "probabilidade". E é na proba­ bilidade que está fundado o que chamamos A.: "Parece evidente que, quando a mente procu­ ra prever para descobrir o acontecimento que pode resultar do lançamento do dado, consi­ dera-se o aparecimento de cada lado como igual­ mente provável; e essa é a verdadeira natureza do A.: de igualar inteiramente todos os eventos individuais que compreende" (Inq. Cone. Underst., VI). Essa idéia de Hume deveria revelarse extremamente fecunda na filosofia contem­ porânea. O conceito de que o A. consiste na equivalência de probabilidades que não dão acesso a uma previsão positiva em um sentido ou em outro foi enfatizado por Peirce, que tam­ bém viu sua implicação filosófica fundamental: a eliminação do "necessitarismo", isto é, da doutrina segundo a qual tudo no mundo acon­ tece por necessidade (Chance, Love and Logic, II, 2; trad. it., p. 128 ss.). Desse ponto de vista, o A. torna-se um exemplo particular do juízo de probabilidade, mais precisamente, de que a própria probabilidade não tem relevância sufi­ ciente para permitir prever um evento. Nesse sentido, o A. foi considerado uma espécie de entropia (v.) e o conceito relativo comumente é empregado no campo da informação e da ci­ bernética (v.). ACATALEPSIA (gr. âKaxaAriv|/ía; in. Acatalepsy, fr. Acatalepsie, ai. Akatalepsie, it. Acatalessid). É a negação feita por Pirro e pelos ou­ tros céticos antigos da representação com­ preensiva ((pavTocaíaKaTocÀT|7rTiKri), isto é, do conhecimento que permite compreender e apreender o objeto, que, segundo os Estóicos, era o verdadeiro conhecimento. A acatalepsia é a atitude de quem declara não compreender e,

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portanto, suspende o seu assentimento, isto é, não afirma nem nega (SEXTO EMPÍRTCO, Pirr. hyp, I, 25). ACCEDENTIS FALLACIA. A falácia (v.) já é identificada por Aristóteles (El. sof, 5, 166 b) como derivada da identificação de uma coisa com um seu acidente ou atributo acidental ("Se Corisco é diferente de Sócrates, e Sócrates é ho­ mem, Corisco é diferente de um homem"). Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log, 7, 40 ss. G. P. ACENTO (gr. rcpoouôía; lat. Accentus; in. Accent; fr. Accent; ai. Prosodie, it. Accento). Segundo Aristóteles (Sof. ei, 4, 166 b), seguido pelos lógicos medievais (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 7, 31), da acentuação diferente das palavras pode derivar, em enunciados escri­ tos, uma equivocidade que pode causar paralogismos. G. P. ACIDENTE (gr. cruu.pefkiKÓÇ; lat. Accidens; in. Accident; fr. Accident; ai. Accidenz; it. Accidentè). Podem-se distinguir três significados fundamentais desse termo, quais sejam: Ia uma determinação ou qualidade casual ou fortuita que pode pertencer ou não a deter­ minado sujeito, sendo completamente estranha à essência necessária (ou substância) deste; 2B uma determinação ou qualidade que, em­ bora não pertencendo à essência necessária (ou substância) de determinado sujeito e estan­ do, portanto, fora de sua definição, está vincu­ lada à sua essência e deriva necessariamente da sua definição; 3S uma determinação ou qualidade qualquer de um sujeito, que pertença ou não à sua es­ sência necessária. Os dois primeiros significados do termo fo­ ram elaborados por Aristóteles. "Acidente", diz ele (Top, I, 5, 102 b 3), "não é nem a definição nem o caráter nem o gênero, mas, apesar dis­ so, pertence ao objeto; ou também, é o que pode pertencer e não pertencer a um só e mes­ mo objeto, qualquer que seja ele." Como essa definição exprime a essência necessária de uma realidade, isto é, a substância (v. DEFINI­ ÇÃO) , o acidente está fora da essência necessá­ ria e, portanto, pode pertencer ou não ao ob­ jeto a que se refere. Todavia, o acidente pode ter uma relação mais ou menos estreita com o objeto a que se refere, conforme a causa dessa relação; por isso, Aristóteles distingue dois sig­ nificados, ambos empregados no Organon e A metafísica: 1- o acidente pode ser casual na medida em que a sua causa é indeterminada: p. ex., um músico pode ser branco, mas como

ACIDENTE

isso não acontece por necessidade ou na maior parte dos casos, ser branco, para um músico, será um "acidente". Da mesma forma, para al­ guém que cave um buraco a fim de colocar uma planta, encontrar um tesouro é acidental, já que a encontrar um tesouro não se segue ne­ cessariamente o ato de cavar um buraco, nem acontece habitualmente em semelhante cir­ cunstância. Nesse significado (Mel, V, 30,1.025 a 14), portanto, acidente é tudo o que acontece por acaso, isto é, pela inter-relaçâo e o entrela­ çamento de várias causas, mas sem uma causa determinada que assegure a sua ocorrência constante ou, pelo menos, relativamente fre­ qüente. Mas há também: 2a o acidente não ca­ sual, ou acidente por si, isto é, aquele caráter que, embora não pertença à substância, estan­ do, pois, fora da definição, pertence ao objeto em virtude daquilo que o próprio objeto é. P. ex., ter ângulos internos iguais a dois retos não pertence à essência necessária do triângulo, tal qual é expressa pela definição; por isso, é um acidente. Mas é um acidente que pertence ao triângulo por acaso, isto é, por uma causa indeterminável, mas por causa do próprio triângulo, quer dizer, por aquilo que o triângu­ lo é; e é por isso um acidente eterno (Met., V, 30, 1.025 a 31 ss.). Aristóteles ilustra a diferença do seguinte modo (An.post, 4, 73 b 12 ss.): "Se relampeja enquanto alguém caminha, isso é um acidente, já que o relâmpago não é causa­ do pelo caminhar... Se, porém, um animal morre degolado, em virtude de um ferimento, dire­ mos que ele morreu porque foi degolado, e não que lhe ocorreu, acidentalmente, morrer degolado". Em outros termos, o acidente por si está vinculado causalmente (e não casualmen­ te) às determinações necessárias da substân­ cia, embora não faça parte delas. E embora não haja ciência do acidente casual, porque a ciência é só do que é sempre ou habitualmente (Met., X, 8, 1.065 a 4) e porque ela investiga a causa, ao passo que a causa do acidente é in­ definida (Fís, II, 4, 196 b 28), o acidente por si entra no âmbito da ciência, como é indicado pelo próprio exemplo geométrico de que se valeu Aristóteles em Met., V, 30, e em numero­ sos textos dos Tópicos. Com esse segundo significado aristotélico da palavra pode-se relacionar o terceiro signifi­ cado, segundo o qual ela designa, em geral, as qualidades ou os caracteres de uma realidade (substância) que não podem ficar sem ela, por­ que o seu modo de ser é o de "inerir" (ínesse) à

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ACIDENTE

própria realidade. Talvez esse uso tenha sido iniciado por Porfírio, que define o aci­ dente (Isag., V, 4 a, 24): "O que pode ser gera­ do ou desaparecer sem que o sujeito seja destruído". Essa definição, obviamente, referese à definição aristotélica do acidente como "o que pode pertencer e não pertencer a um só e mesmo objeto". S. Tomás anota corretamente (Met., V, 1.143) que, no segundo dos dois signi­ ficados aristotélicos, o acidente se contrapõe à substância. Em virtude dessa contraposição, o acidente é "o que está em outra coisa" (S. Th., III, q. 77, a. 2 ad le), isto é, em um sujeito ou substrato sem o qual ele, no curso ordinário da natureza (isto é, prescindindo da ordem da gra­ ça que se manifesta no sacramento do altar) não pode subsistir (ibid, III, q. 76, a. 1 ad\-). Nesse significado, em que o acidente se contra­ põe à substância, porquanto o seu modo de ser é inerir (inesse) a algum sujeito, em oposição ao subsistir da substância que não tem neces­ sidade de apoiar-se em outra coisa para existir, o termo acidente torna-se coextensivo ao de qua­ lidade em geral, sem referência a seu caráter casual e gratuito, que Aristóteles tinha ilustra­ do. A terminologia dos escolásticos adere habi­ tualmente a este último significado, que destes passa para os escritores modernos, na medida em que se valem da linguagem escolástica. To­ davia, mais próxima da definição aristotélica que do uso escolástico encontra-se a definição de Stuart Mill, para quem os acidentes são to­ dos os atributos de uma coisa que não estão compreendidos no significado do nome e não têm vínculo necessário com os atributos indivisíveis dessa mesma coisa (Logic, I, 7, § 8). Locke e os empiristas ingleses, o mais das ve­ zes, usam no lugar da palavra acidente, a pa­ lavra qualidade (v.). Mas a sua insistência na inseparabilidade das qualidades em relação à substância, que sem elas se esvai no nada, influi no uso posterior da palavra em questão: uso que tende a reduzir ou a anular a oposição en­ tre acidente e substância e a considerar os aci­ dentes como a própria manifestação da subs­ tância. Na verdade esse uso também pode ser encontrado em Spinoza, se, porém, se admi­ tir que a palavra "modo" que ele emprega é sinônimo de acidente; essa sinonímia parece ser sugerida pela definição que ele dá de "modo" (Et, I, def. 5) como o que está em outra coisa e é concebido por meio dessa outra coisa. De qualquer forma, a mudança de significado é claramente verificável em Kant e Hegel. Kant

ACIDIA

diz (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, Pri­ meira Analogia): "As determinações de uma substância, que não são senão modos especiais do seu existir, chamam-se acidentes. Eles são sempre reais, porque dizem respeito à existên­ cia da substância. Ora, se a esse real que está na substância (p. ex., ao movimento como aciden­ te da matéria) se atribui uma existência especial, essa existência é chamada de inerência, para distingui-la da existência da substância, que se chama subsistência". Essa passagem retoma a terminologia escolástica com um significado to­ talmente diferente, pois os acidentes são consi­ derados "modos especiais de existir" da própria substância. Noção análoga encontra-se em Hegel, que diz (Ene, § 151): "A substância é a totalidade dos acidentes nos quais ela se reve­ la como a absoluta negatividade deles, isto é, como potência absoluta e, ao mesmo tempo, co­ mo a riqueza de cada conteúdo". O que signi­ fica que os acidentes, na sua totalidade, são a revelação ou a própria manifestação da subs­ tância. Fichte exprimira, por outro lado, um conceito análogo, afirmando, na esteira de Kant, que "Nenhuma substância é pensável se­ não com referência a um A. ... Nenhum A. é pensável sem substância" ( Wíssenschaftslehre, 1794, § 4 D, 14). O uso desse termo sofreu, as­ sim, ao longo da sua história, uma evolução pa­ radoxal: começou significando as qualidades ou determinações menos estreitamente ligadas à natureza da realidade, ou até mesmo gratuitas ou fortuitas, e acabou por significar todas as de­ terminações da realidade e, assim, a própria rea­ lidade em sua inteireza. ACÍDIA (lat. Acedia; in. Sloth; fr. Accidie, ai. Acedie, it. Accidia). O tédio ou a náusea no mundo medieval: o torpor ou a inércia em que caíam os monges que se dedicavam à vida contemplativa. Segundo S. Tomás, consiste no "entristecimento do bem divino" e é uma espé­ cie de torpor espiritual que impede de iniciar o bem (S. Th, II, II, q. 35, a. 1). Com o tédio, a acídia tem em comum o estado que a con­ diciona, que não é de necessidade, mas de sa­ tisfação (V. TÉDIO). ACLARAÇÃO (in. Clarification; fr. Éclaircissement; ai. Klàrung, Erhellung; it. Chiarificazioné). No uso filosófico contemporâneo, esse termo tem um significado específico, por­ que não significa genericamente "esclarecimen­ to", mas indica o processo com que se leva à clareza conceituai certo substrato de consciên­ cia ou de experiências vividas. Foi precisamen­

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ACORDO

te nesse sentido que Husserl falou de "método da A. (Klãrung)" (Ideen, I, § 67, 125). Husserl insistiu no fato de que a A. exige que seja leva­ do à evidência o seu substrato (as experiências vividas que a sustentam) de tal modo que "transforme todo elemento morto em vivo, toda confusão em distinção e todo elemento não intuível em intuível" (Jbid., § 125). Por sua vez, Jaspers usou do termo Erhellung para indicar a relação entre existência e razão. A A. é a existência que procura tornar-se evidente para si mesma e assim aclarar-se como razão. "A A. existencial", diz Jaspers, "não é conhecimento da existência, mas recorre às suas possibilida­ des" (Vernunft undExistenz, II, 7). Isto signi­ fica que "a razão não existe como pura razão, mas é o fazer-se da existência possível" (ibid., II, 6); e precisamente este fazer-se é a aclaração. ACONTECIMENTO (gr. crvu.(3epriKÓç; lat. Accidens; in. Occurrence; fr. Événement; ai. Vorfall; it. Accadimentó). Um fato ou um evento que tem certo caráter acidental ou fortuito ou, pelo menos, do qual não se pode excluir esse caráter. A CONTRARIO. Forma de argumentação dialética por analogia: do contrário se conclui o contrário. (Se a A convém um predicado B, a nâo-A é provável que convenha um predicado não-B). G. P. ACORDO (in. Agreement; fr. Convenance; ai. Übereinstímmung; it. Accordó). Essa noção serviu, na Idade Moderna, para definir a natu­ reza do juízo ou da proposição em geral. Diz a Lógica de Port-Royal: "Depois de conceber as coisas através de nossas idéias, comparamos essas idéias entre si; e descobrindo que algu­ mas estão de acordo entre si e outras não, nós as ligamos ou as desligamos, o que se chama afirmar ou negar e, geralmente, julgar" (Log., II, 3). Essa noção foi usada no mesmo sentido por Locke, para definir o conhecimento em geral, entendido como "a percepção do víncu­ lo e do acordo ou desacordo e da oposição entre as nossas idéias, quaisquer que sejam elas" (Ensaio, IV, 1, § 2). Essa noção foi criticada por Leibniz: "O acordo ou o desacordo não é propriamente o que é expresso pela proposi­ ção. Dois ovos estão de acordo e dois inimigos estão em desacordo. Trata-se aqui de um modo de acordo ou de desacordo bastante particular" (Nouv. ess., IV, 5). Spinoza falou de acordo (convenientia) entre a idéia e o seu objeto. "A idéia verdadeira deve convir com o seu ideado; ou seja, o que objetivamente está contido no intelecto deve necessariamente ser dado na na­

ACOSMISMO

tureza" (Et, I, 30). Mas para esse significado, v. VERDADE. ACOSMISMO (in. Acosmism; fr. Acosmisme, ai. Akosmismus; it. Acosmismó). Termo em­ pregado por Hegel (Ene, § 50) para caracte­ rizar a posição de Spinoza, em oposição à acusação de "ateísmo" freqüentemente dirigida a este filósofo. Spinoza, segundo Hegel, não confunde Deus com a natureza e com o mundo finito, considerando o mundo como Deus, mas, antes, nega a realidade do mundo finito afirmando que Deus, e só Deus, é real. Nesse sentido a sua filosofia não é ateísmo, mas acosmismó, e Hegel nota, ironicamente, que a acusação contra Spinoza deriva da ten­ dência a crer que se pode mais facilmente ne­ gar Deus do que negar o mundo. ACRIBIA (gr. cncpípeioc). Exatidão ou preci­ são. No sentido moderno, escrúpulo em seguir as regras metódicas de qualquer pesquisa cien­ tífica. No significado platônico, "o exato em si" (oròrò xaicpipéç) é o justo meio (xò (xéxpiov), isto é, o conveniente, ou o oportuno enquanto ob­ jeto de um dos dois ramos fundamentais da arte da medida, isto é, daquele que propria­ mente interessa à ética e à política. O outro ramo da mesma arte é o que, sendo propria­ mente matemático, concerne ao número, ao comprimento, à altura, etc. (Pol, 284 d-e) ACROAMÂTICO (gr. àKpoa(J.atiKÓç; in. Acroamatic; fr. Acroamatique, ai. Akroamatisch; it. Acroamaticó). Assim foram chama­ dos, por se destinarem a ouvintes, os textos de Aristóteles que constituíam lições por ele mi­ nistradas no Liceu, para distingui-las das des­ tinadas ao público, das quais restam apenas fragmentos. Todas as obras aristotélicas que possuímos são acroamáticas, porque os textos compostos para um público mais vasto, quase todos em forma de diálogo, caíram em desuso quando os textos de lições, levados a Roma por Sila, foram reorganizados e publicados por Andronico de Rodes em meados do séc. I a.C. (V. EXOTÉRICO). ADEQUAÇÃO (lat. Adaequatio; in. Adequation; fr. Adéquation; ai. Übereinstimmung; it. Adequazíoné). Um dos critérios de verdade, mais precisamente aquele pelo qual um conhe­ cimento é verdadeiro se está adequado ao ob­ jeto, isto é, se se assimila e corresponde a ele de tal modo que reproduza, o mais possível, a sua natureza. A definição da verdade como "adequação do intelecto e da coisa" foi dada pela primeira vez pelo filósofo hebraico Isac

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ADEQUAÇÃO

Ben Salomão Israel (que viveu no Egito entre 845 e 940) no seu Liber de definitionibus. Essa definição foi retomada por S. Tomás que lhe deu uma exposição clássica (S. Th, I, 16, 2; Contra Gent., I, 59; Dever., q. 1, a. 1). As coisas naturais, cuja ciência o nosso intelecto recebe, são a medida do intelecto, já que este possui a verdade só na medida em que se conforma às coisas. As próprias coisas são, por sua vez, me­ didas pelo intelecto divino, no qual subsistem suas formas tal como as formas das coisas ar­ tificiais subsistem no intelecto do artífice. Deus, portanto, é a verdade suprema porquanto o seu entendimento é a medida de tudo o que é e de todos os outros entendimentos. A noção de adequação (ou acordo, ou conformidade, ou correspondência) é pressuposta e empre­ gada por muitas filosofias, mais precisamente por todas as que consideram o conhecimento como uma relação de identidade ou semelhan­ ça (v. CONHECIMENTO). Locke afirma que "o nosso conhecimento é real só se há conformi­ dade entre as idéias e a realidade das coisas" (Ensaio, IV, 4, § 3). O próprio Kant declara pressupor "a definição nominal da verdade como acordo do conhecimento com o seu objeto" e propõe-se o problema ulterior do critério "geral e seguro para determinar a verdade de cada conhecimento" (Crít. R. Pura, Lógica transe, Intr., III) e Hegel usa explicitamente a idéia de correspondência (Ene, § 213): "A idéia é a ver­ dade, já que a verdade é a correspondência entre objetividade e o conceito, mas não que coisas externas correspondam às minhas re­ presentações; estas são apenas representações exatas que eu tenho como indivíduo. Na idéia não se trata nem disto, nem de representações, nem de coisas externas". Aqui Hegel faz a dis­ tinção entre a exatidão das representações finitas, próprias do indivíduo, enquanto corres­ pondentes a objetos finitos, e a verdade do conceito infinito, ao qual só pode corresponder a idéia infinita ("O singular por si não cor­ responde ao seu conceito: esta limitação da sua existência constitui a finitude e a ruína do sin­ gular"). Num e noutro caso, o critério é sempre o da correspondência. Na orientação lingüística da filosofia analítica contemporânea mantémse a noção de correspondência como relação de semelhança entre linguagem e realidade. Wittgenstein, p. ex., diz: "A proposição é a ima­ gem (Bild) da realidade... A proposição, se é verdadeira, mostra como estão as coisas" (Tractatus, 4.021, 4.022). A coincidência entre

ADEQUADO

doutrinas tão diferentes sobre essa noção de verdade deve-se à interpretação do conheci­ mento como relação de assimilação (v. CONHE­ CIMENTO; VERDADE). ADEQUADO (lat. Adaequatus; in. Adequate, fr. Adéquat; ai. Adüquat; it. Adeguadd). Nem sempre o significado desse adjetivo está vin­ culado ao significado do substantivo corres­ pondente. Ele pode significar em geral "comensurado a". Nesse sentido dizemos que uma descrição é adequada se não neglicencia ne­ nhum elemento importante da situação des­ crita; ou que um pagamento é adequado se é proporcional à importância da remuneração, etc. Spinoza fez uso constante da noção de idéia adequada, por ele assim definida (Et., II, def. IV): "Entendo por idéia adequada a que, considerada em si, sem relação com o objeto, tem todas as propriedades ou as denomina­ ções intrínsecas da idéia verdadeira. Digo in­ trínsecas para excluir a denominação que é extrínseca, isto é, a correspondência da idéia com o objeto ideado". Aqui, como se vê, a noção de adequado é admitida de modo com­ pletamente independente da noção de ade­ quação (v.). Spinoza nega explicitamente que a idéia verdadeira seja a que corresponde ao próprio objeto porque nesse caso ela se distinguiria da idéia falsa somente pela denomi­ nação extrínseca e não haveria diferença en­ tre idéia verdadeira e idéia falsa quanto à sua realidade e perfeição intrínsecas (Et, II, 43, escol.). AD HOMINEM. Assim foi chamada, na lógi­ ca do séc. XVII, a argumentação dialética que consiste em contrapor ao adversário as con­ seqüências que resultam das teses menos prováveis concedidas ou aprovadas por ele (JUNGIUS, Lógica, 1638, V, 1,8; LOCKE, Ensaio, IV, 17, 21, etc). ADIAFORA(gr. àôtáípopoc; in., fr., ai., Adiaphora; it. Adiaford). Cínicos e estóicos chama­ ram de adiáfora, isto é, indiferentes, todas as coisas que não contribuem nem para a virtude nem para a maldade. P. ex., a riqueza, a saúde podem ser utilizadas tanto para o bem como para o mal; são, portanto, indiferentes para a felicidade dos homens; não porque deixem os homens indiferentes (na realidade, suscitam o seu desejo), mas porque a felicidade consiste somente no comportamento racional, isto é, na virtude (DIÓG. L, VII. 103-104). Os estóicos distinguiam três significados de indiferença. O primeiro indica aquilo pelo que

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ADIVINHAÇÃO

não se sente desejo nem repulsa, como, p. ex., o fato de que os cabelos ou as estrelas sejam em número par. O segundo indica aquilo pelo que se sente excitação ou repulsa, mas não mais por isto do que por aquilo, como no caso de duas moedas idênticas das quais é preciso escolher uma. No terceiro sentido, diz-se que é indiferente "o que não contribui nem para a fe­ licidade nem para a infelicidade, como a saúde e a riqueza ou, em outros termos, aquilo de que se pode fazer bom ou mau uso" (Pirr. hyp., III, 177). Kant usou esse termo para indicar as ações julgadas moralmente indiferentes, isto é, nem boas nem más (Religíon, I, observação e nota relativa) (v. LATITUDINARISMO; RIGORISMO). ADIAFORÍSTICA, CONTROVÉRSIA (in Adiaphoristic controversy, fr. Controverse adiaphoristíque, ai. Adiaphoristen Streit; it. Contro­ vérsia adiaforistica). Controvérsia surgida entre os luteranos a respeito do valor das práticas reli­ giosas (como a Missa, a Extrema-Unção, o Cris­ ma, etc.) que Lutero declarara "indiferentes" para a salvação e que Melâncton aceitara por es­ pírito de conciliação ou de paz. A controvérsia concluiu-se com a "fórmula de concórdia", de 1577-80, que reafirmava o caráter indiferente ou neutro dos ritos e das cerimônias. ADIÇÃO LÓGICA (in. Logical addition; fr. Addítion logique, ai%Logísche Addition, it. Addizione lógica). Na Álgebra da Lógica (v.) dá-se esse nome a operação "a + b", que goza de propriedades formais análogas às da adição arit­ mética (importantíssima a exceção "a + a = a"). Interpretada como operação entre classes ua + b", forma a classe quecontémtodos e só os elementos, comuns e nãocomuns,da classe a e da classe b. Interpretada como operação entre proposições, ua + b" indica sua afirmação disjuntiva ("a ou b"). G. P. A DICTO SECUNDUM QUID AD DICTUM SIMPLICITER. É uma das consequentiae formales(y. CONSEQÜÊNCIA) da Lógica aristotélica escolástica: a dicto seciindum quid ad dictum simpliciter non valet consequentia; isto é, se A é B em relação a alguma coisa, não se segue que A seja B em sentido absoluto (ARISTÓTELES, El. sof, 168 b 11; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7, 46). G. P. AD IGNORANTIAM. Assim Locke chamou o argumento que consiste em exigir que o ad­ versário acolha a prova aduzida ou aduza uma melhor (Ensaio, IV, 17, 20). ADIVINHAÇÃO (gr. (lavxeía; lat. Divinatío; in. Divínation, fr. Divination; ai. Wahr-

ADJETIVO

sagung; it. Divinazioné). Profetização do futu­ ro, com base na ordem necessária do mundo. Era admitida pelos estóicos, sendo, aliás, assu­ mida como prova da existência do destino. Crisipo achava que as profecias dos adivinhos não seriam verdadeiras se as coisas todas não fossem dominadas pelo destino (EUSÉBIO, Praep. Ev., IV, 3, 136). Para Plotino, a A. é possibilitada pela ordem global do universo, graças à qual todas as coisas podem ser consideradas sinais das outras. Os astros, por exemplo, são como cartas escritas nos céus, que, mesmo desempe­ nhando outras funções, têm o papel de indicar o futuro {Enn., II, 3, 7). A A. baseada no determinismo astrológico foi admitida pelos fi­ lósofos árabes, especialmente por Avicena, e destes passou para alguns aristotélicos do Renas­ cimento, como p. ex. Pomponazzi {De incantationibus, 10). ADJETIVO (lat. Adjectivuni; in. Adjective, fr. Adjectif, ai. Eingenschaftswort; it. Aggettivó). Na lógica tradicional, esse nome indica um modo da coisa significada enquanto distinta ou distinguível da própria coisa indicada pelo substantivo (PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.02; ARNAULD, Log., II, 1). Na lingüística moderna, o A. é a classe de palavras definível pela sua fun­ ção de caracterizar a substância e divide-se em descritivo ou limitativo, conforme siga ou pre­ ceda o nome (cf. BLOOMFIELD, Language, 1933, pp. 202 ss.). AD JUDICIUM. Assim chamou Locke a ar­ gumentação que consiste "em usar as provas extraídas de qualquer um dos fundamentos do conhecimento ou da probabilidade". É a única argumentação válida {Ensaio, IV, 17, 22). ADMIRAÇÃO (gr. ©auuáÇeiv; lat. Admiratio; in. Wonder, fr. Admiration; ai. Bewunderung, Staunen; it. Ammirazione). Segundo os antigos, a A. é o princípio da filosofia. Diz Platão: "Essa emoção, essa A. é própria do filó­ sofo; nem tem a filosofia outro princípio além desse; e quem afirmou que íris é filha de Taumas a meu ver não errou na genealogia" {Teet., 11, 155 d). E Aristóteles: "Devido à A. os homens começaram a filosofar e ainda agora fi­ losofam: de início começaram a admirar as coisas que mais facilmente suscitavam dúvida, de­ pois continuaram pouco a pouco a duvidar até das coisas maiores, como, p. ex., das modifica­ ções da lua e do que se refere ao sol, às estre­ las e à geração do universo. Aquele que duvida e admira sabe que ignora; por isso, o filósofo é também amante do mito, pois o mito consiste

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ADMISSÃO

em coisas admiráveis" (Met., I, 2, 982 b 12 ss.). No princípio da Idade Moderna, Descartes ex­ primiu o mesmo conceito: "Quando se nos de­ para algum objeto insólito, que julgamos novo ou diferente do que conhecíamos antes ou su­ púnhamos que fosse, admiramos esse objeto e ficamos surpresos; e como isso ocorre antes que saibamos se o objeto nos será ou não útil, a A. me parece a primeira de todas as paixões; e não tem oposto porque, se o objeto que se apresenta não tem em si nada que nos surpreen­ da, não somos afetados por ele e o considera­ mos sem paixão" (Pass. de Vâme, II, 53). Nesse ponto, a diferença entre Descartes e Spinoza é grande: Spinoza considerou a A. ape­ nas como a imaginação de algo a que a mente permanece atenta por ser algo desprovido de conexão com outras coisas {Et., III, 52 e escol.) e recusou-se a considerá-la como uma emoção primária e fundamental, e muito menos como uma emoção filosófica que esteja na origem da filosofia. A única atitude filosófica, para ele, é o amor intelectual a Deus, a contemplação imperturbável e bem-aventurada da conexão necessária de todas as coisas na Substância Di­ vina. Para Aristóteles e para Descartes, a A. é, ao contrário, a atitude que está na raiz da dú­ vida e da investigação: é tomar consciência de não compreender o que se tem à frente, que, mesmo sendo familiar, sob outros aspectos revela-se, a certa altura, inexplicável e mara­ vilhoso. Kant falava da A. a propósito da fi­ nalidade da natureza, porquanto esta é inex­ plicável com os conceitos do intelecto {Crít. do Juízo, § 62). Por sua vez, Kierkegaard definia a A. como "o sentimento apaixonado pelo devir" e a reputava própria do filósofo que considera o passado, como um sinal da não-necessidade do passado. "Se o filósofo não admira nada (e como poderia, sem contradição, admirar uma construção necessária?), é por isso mesmo es­ tranho à história, já que, onde quer que entre em jogo o devir (que certamente é no passa­ do), a incerteza do que seguramente se trans­ formou (a incerteza do devir) só pode expri­ mir-se por meio dessa emoção necessária ao filósofo e própria dele" {Philosophische Brocken, p. IV, § 4). Whitehead disse: "A filosofia nasce da A." {Nature and Life, 1934, 1). ADMISSÃO (in. Admission; fr. Admission, ai. Aufnahme, it. Admmisione). Uma proposi­ ção alheia, que se assume alheia (porquanto outros já a propuseram ou por ser comumente empregada), com a finalidade de fundamentar

ADOPCIONISMO

nela algum raciocínio ou de fazer, a partir dela, alguma inferência. Ou ainda: o ato de admitir tal proposição. A proposição admitida pode ser considerada verdadeira, falsa, provável ou indi­ ferente; se considerada verdadeira, chama-se axioma; se provável, hipótese, se indiferente, postulado. Mas pode ser admitida só com a fi­ nalidade de ser refutada, mediante redução ao absurdo. A A. distingue-se de assunção (v.) porque aquela diz respeito a uma proposição cuja escolha ou proposta, como base de racio­ cínio, já foi feita por outros. ADOPCIONISMO (in. Adoptionism; fr. Adoptionisme, ai. Adoptionismus; it. Adozionismo). Doutrina segundo a qual Cristo, em sua natu­ reza humana, é considerado Filho de Deus só por adoção. Essa doutrina compareceu várias vezes na história da Igreja. Foi ensinada por Teodoro, bispo de Mopsuéstia, por volta de 400; foi retomada no séc. VIII por alguns bispos espanhóis, combatida por Alcuíno e condenada pelo Concilio de Frankfurt de 794. Essa doutrina implicava a independência da natureza humana em relação a Deus e, daí, o dualismo entre na­ tureza humana e natureza divina: dualismo inadmissível do ponto de vista da dogmática cristã. AD VERECUNDIAM. É assim que Locke denominou a argumentação que consiste "em citar as opiniões de homens que por talento, doutrina, eminência, poder ou algum outro motivo obteve fama e firmaram reputação na estima comum com alguma espécie de auto­ ridade" (Ensaio, IV, 17, 19). É o apelo à autori­ dade. AFASIA (gr. cKfc^tc^ in. Aphasia; fr. Aphasie, ai. Aphasie, it. Afasia). Em sentido filosófi­ co, é a atitude dos céticos na medida em que se abstêm de pronunciar-se, de afirmar ou de negar alguma coisa a respeito de tudo o que é "obscuro", isto é, que não move a sensibilidade de forma a produzir uma modificação que induza necessariamente a assentir. A A. é, assim, a abstenção do juízo vinculada à suspensão do assentimento (v.) (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, I, 20, 192 ss.). AFECÇÃO ou AFEIÇÃO (gr. náGoç; lat. Passio; in. Affection; fr. Affectíon; ai. Affektion; it. Affezíone). Esse termo, que às vezes é usado indiscriminadamente por afeto (v.) e paixão (v.), pode ser distinguido destes, com base no uso predominante na tradição filosófica, pela sua maior extensão e generalidade, porquanto designa todo estado, condição ou qualidade

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AFECÇÃO ou AFEIÇÃO

que consiste em sofrer uma ação ou em ser in­ fluenciado ou modificado por ela. Nesse senti­ do, um afeto (que é uma espécie de emoção [v.]), ou uma paixão, é também uma A., na medida em que implica uma ação sofrida, mas também tem outras características que fazem dele uma espécie particular de afeição. Dize­ mos comumente que um metal é afetado pelo ácido, ou que fulano tem uma afecçâo pulmo­ nar, ao passo que reservamos as palavras "afe­ to" e "paixão" para situações humanas, que apresentam todavia certo grau de passividade por serem estimuladas ou ocasionadas por agentes externos. Nesse sentido generalíssimo, Aristóteles en­ tendeu a palavra 7iá0oç, que considerou como uma das dez categorias e exemplificou com "ser cortado, ser queimado" (Cat., 2 a 3); cha­ mou de afetivas (7icc9rjT.iKca) as qualidades sen­ síveis porque cada uma delas produz uma A. dos sentidos (ibid., 9 b 6). Além disso, ao de­ clarar, no princípio de De anima, o objetivo de sua investigação, Aristóteles entendeu que visa­ va conhecer (além da natureza e da substân­ cia da alma) tudo o que acontece i. alma, isto é, tanto as A. que pareçam suas, quanto as que ela tem em comum com a alma dos animais (Dean., I, 1, 402 a 9). No referido texto a pala­ vra A. (rax0r|) designa o que acontece à alma, isto é, qualquer modificação que ela sofra. O caráter passivo das A. da alma, caráter que pa­ recia ameaçar-lhe a autonomia racional, levou os estóicos a declarar irracionais, logo más, to­ das as emoções (DIÓG. L, VII, 110): donde a conotação moralmente negativa que assumiu a expressão "A. da alma", revelada claramente em expressões como perturbatio animí, ou concitatio animí, usadas por Cícero (Tusc, IV, 6, 11-14) e por Sêneca (Ep., 116), e expressa­ mente consideradas por S. Agostinho (De civ. Dei, IX, 4) como sinônimos de affectio e affectus (emoção). Mas S. Agostinho e, depois dele, os escolásticos mantiveram o ponto de vista aristotélico da neutralidade das A. da alma sob o ponto de vista moral, no sentido de que elas podem ser boas ou más, segundo se­ jam moderadas ou não pela razão; ponto de vista que S. Tomás defendeu referindo-se pre­ cisamente a Aristóteles e a S. Agostinho (S. Th., II, I, q. 24, a. 2). A noção de modificação sofrida, isto é, de qualidade ou condição produzida por uma ação externa, mantém-se constante na tradição filosófica e exprime-se o mais das vezes com a

AFECÇÃO ou AFEIÇÃO

palavra passio, que só na segunda metade do século XVIII assume o seu significado moderno (v. PAIXÃO). Assim, Alberto Magno entende por A. "o efeito e a conseqüência da ação" (S. Th., I, q. 7, a 1). S. Tomás, que dá idêntica defini­ ção (ibid., I, q. 97, a. 2), distingue três significa­ dos do termo: "O primeiro, que é o mais pró­ prio, tem-se quando alguma coisa é afastada daquilo que lhe convém segundo a sua nature­ za ou a sua inclinação própria, como quando a água perde a sua frieza por ação do calor, ou como quando o homem adoece ou se entriste­ ce. O segundo significado, que é menos pró­ prio, tem-se quando se perde uma coisa qual­ quer, seja ela ou não conveniente; e nesse sentido se pode dizer que sofre uma ação (pati) não só quem adoece mas também quem se cura e, em geral, quem quer que seja altera­ do ou mudado. Num terceiro sentido, diz-se quando o que estava em potência recebe aqui­ lo que ele era em potência sem perder nada; em tal sentido, pode-se dizer que tudo o que passa da potência ao ato sofre uma ação mes­ mo quando se aperfeiçoa" (ibid., I, q. 79, a. 2). Cada um desses significados, distinguidos por S. Tomás e compreendidos na noção geral de A., pode ser encontrado no uso ulterior do ter­ mo. Passio animi era a denominação que al­ guns escolásticos (cf. OCKHAM, In Sent., I, d. II, q. 8 C) davam à species intelectiva, isto é, ao universal ou conceito. A passio em geral é defi­ nida por Campanella (Phil. ration. dialectica, I, 6) como "um ato de impotência que consiste em perder a própria entidade — essencial ou acidental, no todo ou em parte — e em receber uma entidade estranha". Descartes deu expres­ são clássica a essa noção em Paixões da alma (I, 1, 1650): "Tudo o que se faz ou que aconte­ ce de novo geralmente é chamado pelos filóso­ fos de afecção, no que se refere ao sujeito a quem acontece, e de ação, no que se refere àquilo que faz acontecer; de tal modo que, em­ bora o agente e o paciente sejam muitas vezes bem diferentes, a ação e a afecção não deixam de ser a mesma coisa com esses dois nomes, devido ao dois sujeitos diferentes aos quais se pode referir". Em sentido análogo, essa palavra é empregada por Spinoza para definir o que ele chama de affectus e que nós chamaríamos de emoções ou sentimentos. As emoções, en­ quanto passiones, isto é, A., constituem a impo­ tência da alma, que as vence transformando-as em idéias claras e distintas. "A emoção, diz Spinoza (Et, V, 3), "que é uma A., cessa de ser

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AFECÇÃO ou AFEIÇÃO uma A. assim que dela formamos idéia clara e distinta". Nesse caso, realmente, essa idéia se distingue só racionalmente da emoção e se re­ fere só à mente; assim, deixa de ser uma A. (ibid, V, 3)- Por isso Deus, que é desprovido de idéias confusas, está isento de A. (ibid, V, 17). No mesmo sentido, exprime-se Leibniz (Monad., § 49): "Atribui-se a ação à mônada na medida em que ela tem percepções distintas, e a A. na medida em que tem percepções confu­ sas". No mesmo sentido exprimem-se Wolff (Ont., § 714) e Crusius (Vernunftwahrheiten, § 66). Kant exprimiu do modo mais claro possível a noção de A. como recepção passiva, em um texto de Antropologia (§ 7): "As representações em relação às quais o espírito se comporta pas­ sivamente, por meio das quais, portanto, o su­ jeito sofre uma A. [Affection] (de si mesmo ou de um objeto), pertencem à sensibilidade; aquelas, porém, que incluem o verdadeiro agir (o pensamento) pertencem ao poder cognoscitivo intelectual. Aquele é também chama­ do poder cognoscitivo inferior e este, poder cognoscitivo superior. Aquele tem o caráter da passividade do sentido interno das sensações, este tem o caráter da espontaneidade da apercepçâo, isto é, da consciência pura do agir que constitui o pensamento; e pertence à lógica (isto é, a um sistema de regras do intelecto) as­ sim como aquele pertence à psicologia (isto é, ao complexo de todos os atos internos subme­ tidos a leis naturais) e fundamenta a experiên­ cia interna". Esses conceitos são fundamentais para toda a Crítica da Razão Pura, especial­ mente para a distinção entre estética e lógica, que repousa no seguinte princípio: "Todas as intuições, por serem sensíveis, repousam em A.; os conceitos, ao contrário, repousam em funções" (Crít. R. Pura, Analítica dos conceitos, I, seção I). Essas observações de Kant estão em polêmica com a tese da escola leibnizianowolffiana, segundo a qual a sensibilidade con­ siste nas representações indistintas e a intelec­ tualidade, nas distintas; o que, segundo notava Kant (Antr, § 7, nota), significa que a sensibi­ lidade consiste numa falta (falta de distinção), enquanto esta é algo de positivo e de indispen­ sável ao conhecimento intelectual. Em conclusão, o termo A., entendido como recepção passiva ou modificação sofrida, não tem necessariamente conotação emotiva; e, embora tenha sido empregado freqüentemente a propósito de emoções e afetos (pelo caráter

AFETIVO

claramente passivo destes), deve considerar-se extensivo a toda determinação, inclusive cognoscitiva, que apresente caráter de passivi­ dade ou que possa de qualquer modo ser con­ siderada uma qualidade ou alteração sofrida. AFETIVO (in. Affective- fr. Affectif, ai. Affektiv-, it. Affettivo). O significado deste ad­ jetivo não se vincula ao da palavra "afeto", já que designa em geral tudo o que se refere à esfera das emoções. "Estado A.", "função A.", "condição A." significam estado, função ou condição de caráter genericamente emotivo e podem refe­ rir-se a qualquer emoção, afeto ou paixão. O mesmo significado genérico tem a expressão "vida A." e a empregada por Heidegger, "situa­ ção A." (Befindlichkeii), para indicar a estrutu­ ra emotiva da existência humana em geral (v. SENTIMENTO). AFETO (lat. Affectus; in. Affection; fr. Affection; ai. Affektion; it. Affettó). Entendem-se com esse termo, no uso comum, as emoções posi­ tivas que se referem a pessoas e que nâo têm o caráter dominante e totalitário da paixão (v.). Enquanto as emoções podem referir-se tanto a pessoas quanto a coisas, fatos ou situações, os A. constituem a classe restrita de emoções que acompanham algumas relações interpessoais (entre pais e filhos, entre amigos, entre paren­ tes), limitando-se à tonalidade indicada pelo adjetivo "afetuoso", e que, por isso, exclui o caráter exclusivista e dominante da paixão. Essa palavra designa o conjunto de atos ou de atitu­ des como a bondade, a benevolência, a inclina­ ção, a devoção, a proteção, o apego, a grati­ dão, a ternura, etc, que, no seu todo, podem ser caracterizados como a situação em que uma pessoa "preocupa-se com" ou "cuida de" ou­ tra pessoa ou em que esta responde, positiva­ mente, aos cuidados ou a preocupação de que foi objeto. O que comumente se chama de "ne­ cessidade de A." é a necessidade de ser com­ preendido, assistido, ajudado nas dificuldades, seguido com olhar benévolo e confiante. Nes­ se sentido, o A. não é senão uma das formas do amor (v.). AFINIDADE (in. Affinity, fr. Affinité, ai. Affinitãt; it. Affinitã). Kant chamou de "lei da A. de todos os conceitos" a regra da razão que prescreve "a passagem contínua de uma espé­ cie à outra por meio do aumento gradual da sua diferença" (Crít. R. Pura, Apêndice à dialética transcendental). Essa lei, que resume em si as outras duas de homogeneidade (v.) e de especificação (v.), constitui, com elas, a deter­

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ÁFRICA

minação daquilo que deve ser o uso regulador das idéias da razão pura. AFIRMAÇÃO (gr. KaxáípocaiÇ; lat. Affirmatio\ in. Affirmation; fr. Affirmation; ai. Bejahung; it. Affermazionê). Termo com o qual se pode designar tanto o ato de afirmar, quanto o conteúdo afirmado, isto é, a proposição afir­ mativa. Por isso, Aristóteles considerou-a uma das duas formas da asserção, mais precisamen­ te a que "une alguma coisa com alguma coisa". (De interpr, 17 a 25). Segundo a mesma teoria aristotélica, ela une dois conceitos em um con­ ceito composto. Substancialmente, a tradição lógica sucessiva conservou essa doutrina e, daí, esse significado do termo A.; só os adeptos da teoria do juízo como assentimento (Rosmini, Fr. Brentano, Husserl) consideram a A. como ato de aceitação de uma representação ou idéia (v. ASSERÇÃO). G. P. AFORISMO (gr. àípoptauóç = determina­ ção, delimitação; in. Aphorism; fr. Apborisme; ai. Aphorismus; it. Aforismã). Proposição que exprime de maneira sucinta uma verdade, uma regra ou uma máxima concernente à vida prá­ tica. Inicialmente, essa palavra foi usada quase exclusivamente para indicar as fórmulas que exprimem, de modo abreviativo e mnemônico, os preceitos da arte médica: p. ex., os A. de Hipócrates. Bacon exprimiu sob a forma de A. as suas observações (contidas no livro I do Novum organum) "sobre a interpretação da na­ tureza e sobre o reino do homem": provavel­ mente para sublinhar o caráter prático e ativo dessas observações enquanto dirigidas a pre­ parar o domínio do homem sobre a natureza. E Schopenhauer chamou de A. sobre a sabedoria de vida (em Parerga und Paralipomena) os seus preceitos para tornar feliz, ou menos infe­ liz, a existência humana, conservando assim na palavra o seu significado de máxima ou regra para dirigir a atividade prática do homem. A FORTIORI. Expressão que não indica um modo específico de argumentar, mas signi­ fica simplesmente "com maior força de razão". Alguns lógicos designam com essa expressão as inferências transitivas do tipo "ximplica y, y implica z, logo x implica z" (cf. STRAWSON, Introduction to Logical Theory, 1952, p. 207). ÁFRICA (in. África-, fr. Afrique, ai. Afrik, it. Africa). Os filósofos procuraram às vezes justi­ ficar "especulativamente", isto é, nos termos da sua filosofia, também a divisão dos continentes, não a considerando causai ou convencional, mas essencial e racional. Assim, Hegel propôs

AGAPISMO

a divisão do velho mundo em três partes, A., Ásia e Europa, que estariam entre si como tese, antítese e síntese. Nessa tríade, a A. represen­ taria o momento em que o espírito não conse­ gue chegar à consciência e o homem permane­ ce embrutecido na passividade e na escravidão (PhilosophiederGeschichte, ed. Lasson, pp. 203 ss.). Analogamente, Gioberti viu na raça africa­ na "a mais degenerada das estirpes humanas" porque "o negro é privação da luz" (Protologia, II, p. 221). AGAPISMO (in. Agapism). Termo empre­ gado por Peirce para designar a "lei do amor evolutivo", em virtude da qual a evolução cós­ mica tenderia a um incremento do amor frater­ no entre os homens (Chance, Love and Logic, pp. 266 ss.). AGATOLOGIA (in. Agathology, fr. Agathologie, ai. Agathologie, it. Agatologid). Nome ra­ ramente usado para a doutrina do bem, como parte da ética (v.). AGENTE (gr. noiriTiKÓÇ; lat. Agens; in. Agent; fr. Agent; ai. Tãtige, it. Agente). Em ge­ ral, o que toma a iniciativa de uma ação ou aquilo de que a ação promana ou deriva, em contraposição a paciente, que é o que sofre a ação. Esses termos são próprios da filosofia escolástica (v. AÇÃO). Para intelecto A., v. INTE­ LECTO. AGNOIOLOGIA (in. Agnoiology). Palavra introduzida por J. F. Ferrier (Institutes of Metaphysics, 1856, p. 48) em correlação com epistemologia (v.), para indicar as duas esferas em que se divide a pesquisa filosófica. A A. é a doutrina da ignorância, assim como a epistemologia é a doutrina do saber. A esfera da ignorância era assim definida em relação com a esfera do saber, com o procedimento que depois também foi seguido por Spencer, para determinar os limites do incognoscível (v.). AGNOSIA (gr. àyvcooía; in. Agnosy, fr. Agnosie, ai. Agnosie, it. Agnosia). Atitude de quem professa nada conhecer, como a de Sócrates, que afirmava só saber que não sabia (PLATÃO, Ap., 21 a), reforçada pelo cético Arcesilau, que dizia não saber nem mesmo isso (CÍCERO, Acad, I, 45). AGNOSTICISMO (in. Agnosticism; fr. Agnosticisme, ai. Agnosticismus; it. Agnosticismó). Esse termo foi criado pelo naturalista inglês Thomas Huxley em 1869 (CollectedEssays, V, pp. 237 ss.) para indicar a atitude de quem se recusa a admitir soluções para os problemas que não podem ser tratados com os métodos

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AGORA

da ciência positiva, sobretudo os problemas metafísicos e religiosos. O próprio Huxley de­ clarou ter cunhado esse termo "como antítese do 'gnóstico' da história da Igreja, que pretendia saber muito sobre coisas que eu ignorava". Esse termo foi retomado por Darwin, que se decla­ rou agnóstico em uma carta de 1879- Desde então o termo foi usado para designar a atitude dos cientistas de orientação positivista em face do Absoluto, do Infinito, de Deus e dos respec­ tivos problemas, atitude essa marcada pela re­ cusa de professar publicamente qualquer opi­ nião sobre tais problemas. Assim, foi chamada da agnóstica a posição de Spencer, que, na primeira parte dos Primeirosprincípios (1862), pretendeu demonstrar a inacessibilidade da realidade última, isto é, da força misteriosa que se manifesta em todos os fenômenos naturais. O fisiólogo alemão Du-Bois Raymond, num texto de 1880, enunciava Os sete enigmas do mundo (origem da matéria e da vida; origem do movimento; surgimento da vida; organiza­ ção finalista da natureza; surgimento da sen­ sibilidade e da consciência; pensamento racio­ nal e origem da linguagem; liberdade do querer), em face dos quais ele achava que o homem estava destinado a pronunciar um ignorabimus, já que a ciência nunca poderá resolvê-los. No mesmo período, essa palavra foi estendida para designar também a doutrina de Kant, porquan­ to esta considere que o númeno, ou a coisa em si, está além dos limites do conhecimento hu­ mano (v. NÚMENO). Mas essa extensão da pala­ vra não pode ser considerada de todo legítima, dada a concepção kantiana de númeno como conceito-limite. É parte integrante da noção de A. a redução do objeto da religião a simples "mistério", em cuja interpretação os símbolos usados são de todo inadequados. AGONÍSTICO (gr. àycúViOTiKÓÇ; in. Agonistic; fr. Agonistiqué). Uma das distinções, referidas por Diógenes Laércio, dos diálogos platônicos. O A. e o exercitativo seriam as duas espécies do diálogo zetético ou inquisitivo-, e o diálogo zetético e o expositivo seriam as duas divisões fundamentais dos diálogos platônicos (DIÓG. L, III, 49). AGORA (gr. xò võV; lat. Nunc, in. Now; fr. Instant; ai. Jetzt; it. Ora). Entende-se por este termo, na linguagem filosófica, o momento presente como limite ou condição do tempo, portanto diferente do instante (v.), que é uma espécie de encontro entre a eternidade e o tem­ po. Segundo Aristóteles, o A. é o presente ins-

AGOSTINISMO ou AUGUSTINISMO tantaneo, sem duração, que serve de limite móvel entre o passado e o futuro (Fís, IV, 11, 219 a 25). Essa noção reaparece com freqüência nas especulações medievais sobre o tempo. Algu­ mas vezes, o A. foi concebido como uma res fluens que logo se corrompe falha, sendo suplantada por outra (cf. PEDRO AURÉOLO, InSent, II, d. 2, q. 1, a. 3). Essa concepção foi combatida por Ockham, que identificou o A. com a posição do móvel cujo movimento é tomado como medida do tempo (Summulae in librospbysicorum, IV, 8). Na filosofia contemporânea, esse termo foi empregado por Husserl para indicar o horizonte temporal da vivência. Como nenhuma expe­ riência pode cessar sem a consciência de cessar ou de ser cessada, essa consciência é um novo instante presente ou agora. "Isto significa que cada A. de uma experiência tem um horizonte de experiências que, também estas, têm a forma originária do A. e, como tais, constituem o ho­ rizonte originário do eu puro, o seu A. de cons­ ciência, abrangente e originário (Ideen, I, § 82). AGOSTINISMO ou AUGUSTINISMO (in Augustínianism; fr. Augustinism; ai. Augustinismus; it. Agostinismo). Entende-se por esse ter­ mo, mais do que a doutrina original de S. Agos­ tinho, o conjunto de caracteres doutrinários que caracterizaram uma das tendências da Fscolãstica (v.), seguida predominantemente pelos douto­ res franciscanos, em oposição à tendência aristotélico-tomista dos doutores dominica­ nos. A fisionomia geral do A. medieval pode ser expressa com os seguintes pontos (cf. MANDONNET, SigerdeBrabant, 2a ed., 1911,1, pp. 55 ss.): a) falta de distinção precisa entre o do­ mínio da filosofia e o da teologia, isto é, entre a ordem das verdades racionais e a das verdades reveladas; b) teoria da iluminação divina, segun­ do a qual a inteligência humana não pode funcio­ nar senão pela ação iluminadora e imediata de Deus e não pode encontrar a certeza do seu co­ nhecimento fora das regras eternas e imutáveis da ciência divina; c) primazia da noção de bem sobre a de verdadeiro e, portanto, da vonta­ de sobre a inteligência, tanto em Deus quanto no homem; d) atribuição de uma realidade po­ sitiva à matéria, ao contrário de Aristóteles, que nela vê pura potencialidade; do que deriva, p. ex., que o corpo humano possui realidade ou atualidade próprias, isto é, uma forma indepen­ dente da alma e que a alma é, portanto, uma forma ulterior que se acrescenta ao composto vivente e animal; daí, a chamada pluralidade das formas substanciais no composto.

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ALEGORIA Essas características aproximam os grandes mestres da Escolástica franciscana como Ale­ xandre de Hales (aprox. 1200), Robert Grossetete, S. Boaventura, Roger Bacon, Duns Scot e muitos outros menores. Algumas dessas ca­ racterísticas também podem ser encontradas em doutrinas filosóficas modernas e contem­ porâneas, às quais chegam através da tradição medieval ou, diretamente, da obra de S. Agos­ tinho. AGREGADO (in. Aggregate, fr. Agrégat; ai. Aggregat;it. Aggregató). Em geral, uma coleção, um aglomerado, um agrupamento, uma soma ou uma quantidade de coisas que, apesar disso, conservam a individualidade. Esse termo é mui­ to usado em matemática e lógica matemática contemporânea (v. CONJUNTO) e, em geral, nas ciências naturais, que o empregam para indicar massas ou agrupamentos de elementos que, apesar de estarem juntos, conservam as pro­ priedades que têm separadamente. AGRESSÃO, INSTINTO DE. V. INSTINTO.

ALEGORIA (gr. àXkrxyopia; lat. Allegoria; in. Allegory, fr. Allégorie, ai. Allegorie, it. Allegoria). No seu primeiro significado específico, essa palavra indica um modo de interpretar as Sa­ gradas Escrituras e de descobrir, além das coi­ sas, dos fatos e das pessoas de que elas tratam, verdades permanentes de natureza religiosa ou moral. A primeira aplicação importante do método alegórico é o comentário ao Gêneses de Fílon de Alexandria (séc. I). Fílon não hesita em contrapor o sentido alegórico ao sentido literal e em qualificar de "tolo" (eür|0r|c;) este último. Eis um exemplo: '"E Deus acabou no sétimo dia as obras que Ele criou' (Gên., II, 2). É absolutamente tolo crer que o mundo nasceu em seis dias ou, em geral, no tempo. Por quê? Porque todo tempo é um conjunto de dias e de noites necessariamente produzidos pelo movi­ mento do sol que vai para cima e para baixo da terra; mas o sol é uma parte do céu, de tal modo que se conclui que o tempo é mais re­ cente do que o mundo" (AH. leg, I, 2). Por sua vez, Orígenes, que é o primeiro autor de um grande sistema de filosofia cristã, distinguia nos textos bíblicos três significados: o somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as três partes do homem: o corpo, a alma e o espírito (Deprinc, IV, 11). Na prática, porém, contrapunha o significado espiritual ou alegórico ao corpóreo ou literal e sacrificava decidida­ mente este último em favor do primeiro, já que só o significado alegórico constitui a verdade

ALEGORIA

racional contida nas Sagradas Escrituras (ibid., IV, 2). Em seguida, tornou-se dominante na Idade Média a distinção de três significados da Escritura (como se encontra, por exemplo, for­ mulada por Hugo de S. Vítor, Descripturis, III): significado literal, significado alegórico e signi­ ficado anagógico. Eis como Dante expõe a doutrina: "As escrituras podem ser entendidas e devem ser expostas sobretudo em quatro sentidos. Um chama-se literale é o que não vai além da própria letra; o outro chama-se alegó­ rico e é o que se esconde sob o manto das fábulas, sendo a verdade oculta sob belas men­ tiras... O terceiro sentido chama-se moral, e é o que os leitores devem atentamente ir desco­ brindo nas escrituras para utilidade sua e de seus discípulos... O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, supra-sentido; e aparece quando se expõe espiritualmente uma escritu­ ra que, embora seja verdadeira também no sen­ tido literal, pelas coisas significadas significa coisas supremas da eterna glória: como se pode ver naquele canto do Profeta que diz que, com a saída do povo de Israel do Egito, a Judéia tornou-se santa e livre. O que, embora seja verdadeiro segundo a letra manifesta, não me­ nos verdadeiro é o que se entende espiritual­ mente, isto é, que na saída da alma do pecado, ela se torna santa e livre em sua potestade" (OBanq., II, 1). Mas entre esses sentidos, como diz o próprio Dante, o fundamental, para o teólogo como para o poeta, é o alegórico. E, de fato, na Idade Média a A. tornou-se o modo de entender a função da arte e, especialmente, da poesia. João de Salisbury dizia que Virgílio, "sob a imagem das fábulas, exprime a verdade de toda a filosofia" e que Dante (Vita nuova, 25) definia assim a tarefa do poeta: "Vergonha seria para aquele que rimasse coisas sob as veste de figura ou de cor retórica, e depois, interrogado, não soubesse desnudar as suas palavras de tal veste, de modo que tivessem real entedimento". No mundo moderno a A. perdeu valor e negou-se que ela possa exprimir a natureza ou a função da poesia. Viu-se nela a aproximação de dois fatos espirituais diferentes, o conceito de um lado, a imagem de outro entre os quais ela estabeleceria uma correlação convencional e arbitrária (Croce); e sobretudo, foi acusada de negligenciar ou impossibilitar a autonomia da linguagem poética, que não teria vida própria porque estaria subordinada às exigências do esquema conceituai a que deveria dar corpo.

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ALEXANDRINISMO

Boa parte da estética moderna declara, por isso, que a A. é fria, pobre e enfadonha; e insiste na interpretação da poesia e, em geral, da arte, com base no símbolo (v.), que pode ser vivo e evocador, porque a imagem simbólica é autônoma e tem interesse em si mesma, isto é, um interesse que não transforma sua referên­ cia convencional em conceito ou doutrina. To­ davia, se levarmos em conta a potencialidade e a vitalidade de certas obras de arte que têm clara estrutura alegórica (p. ex., Divina comé­ dia e muitas pinturas medievais e renascentistas), deveremos dizer que a A. não impossibilita, necessariamente, a autonomia e a leveza da imagem estética e que, em certos casos, mes­ mo a correspondência pontual entre imagem e conceito pode não ser mortificante para a ima­ gem nem lhe tolher a vitalidade artística ou poética. T. S. Eliot fez, justamente a propósito de Dante, uma defesa da A. nesse sentido {The Sacred Wood, 1920, trad. it., pp. 241 ss.). ALETIOLOGIA (ai. Alethiologie). Assim chamou Lambert a segunda das quatro partes do seu Novo organon (1764), mais precisamente a que estuda os elementos simples do conhe­ cimento. É uma espécie de anatomia dos con­ ceitos que tem a finalidade de compreender os conceitos mais simples e indefiníveis. ALEXANDRINISMO (in. Alexandrinism, fr. Alexandrinisme, ai. Alexandrinismus; it. Alessandrinismo). Entende-se por esse termo a cul­ tura alexandrina, isto é, a cultura do período que se seguiu à morte de Alexandre Magno (323 a.C), que unificara o mundo antigo sob o signo da cultura grega centralizando-a no Egi­ to, na nova cidade de Alexandria. A dinastia dos Ptolomeus almejou fazer dessa cidade um grande centro intelectual para o qual confluíssem a cultura grega e a oriental, mediadas e unificadas pela língua que se tornara patrimônio comum dos doutos, o grego. Cientistas e pen­ sadores de todos os países ficavam hospeda­ dos no Museu e tinham à sua disposição um material científico e bibliográfico excepcional para o tempo. Ao Museu foi depois acrescenta­ da a biblioteca, cujo primeiro núcleo, diz-se, foi formado pelas obras de propriedade de Aristó­ teles, e que depois se tornou riquíssima, até compreender 700.000 volumes. A cultura ale­ xandrina é caracterizada pelo divórcio entre ciência e filosofia. Enquanto as pesquisas cien­ tíficas, a determinação dos métodos da ciência e a sistematização dos resultados dão grandes passos nesse período, a filosofia renuncia à ta­

A1EXANDRISMO

refa que constituiu a sua grandeza no período clássico: a de procurar livremente os caminhos e os modos de uma existência propriamente humana. Enrijece-se na pretensão de assegurar ao homem, a todo custo, a paz e a serenidade de espírito, e desse modo torna-se privilégio de uns poucos pensadores que conseguem iso­ lar-se do resto da vida e dos problemas que a dominam, desinteressando-se, portanto, tam­ bém da pesquisa científica. A ciência da era alexandrina conta com grandes matemáticos (Euclides, Arquimedes, Apolônio); astrônomos (Hiparco e Ptolomeu); geógrafos (Eratóstenes); médicos (Galeno). A filosofia apresenta-se di­ vidida em duas grandes escolas: o Epicurismo (v.) e o Estoicismo (v.); e em duas tendências filosóficas sustentadas por escolas diferentes: o Ceticismo (v.) e o Ecletismo (v.). Pode-se dizer que é desse período que provém a noção de filosofia, ainda hoje muitas vezes predominan­ te no senso comum, como atividade consoladora ou tranqüilizante, que impede ao homem imis­ cuir-se nas coisas da vida comum e procura garantir-lhe a imperturbabilidade de espírito. ALEXANDRISMO (in. Alexandrianisni; fr. Alexandrisme, ai. Alexandrismus; it. Alessandrismó). Assim foi chamada, no Renascimento, a doutrina de Alexandre de Afrodísia sobre o intelecto ativo (v.). ALFA-ÔMEGA. Expressão usada no Apocalipse para designar Deus como princípio e fim do mundo (Ap., I, 8; 21, 6; 22, 13; etc). ÁLGEBRA DA LÓGICA (in. Logical álgebra; fr. Algèbre de Ia logique, ai. Álgebra derLogik; it. Álgebra delia lógica). Já Leibniz intuíra a possibilidade de um cálculo literal que tivesse afinidade com a A. comum, em que, definin­ do-se por axiomas (muito semelhantes aos al­ gébricos) certas operações lógicas (adição, sub­ tração, multiplicação, divisão, negação) e certas relações (implicação, identidade) fundamen­ tais, indicadas com símbolos extraídos da ma­ temática, seria possível derivar desses axio­ mas, mediante cálculo, todas as regras da silogística tradicional. Mas (talvez pelo predo­ mínio de fortes preocupações com o conteú­ do de origem filosófica sobre a idéia pura do cálculo) Leibniz não chegara a resultados satisfatórios. Não foram mais felizes as tenta­ tivas de seus continuadores, como Lambert. Somente os lógicos ingleses do séc. XIX con­ seguem fundar uma verdadeira A. O primeiro foi George Boole {Mathematical Analysis of Logic, 1847; Laws of Thougbt, 1854), cujas

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ALGUM

pegadas foram seguidas por Stanley Jevons (PurêLogic, 1864), porj. Venn (Symbolic Logic, 1881) e pelo alemão E. Schrõder (Álgebra der Logík, 1890-1895). A álgebra da lógica geral­ mente é entendida como um cálculo literal bivalente, caracterizado: I- pelo fato de que as equações podem assumir apenas os valores 0 ou 1; 2° pelos axiomas "a + a = a" e "a = a" (com todas as conseqüências que daí deri­ vam); 3fi pela ausência de operações indiretas, como a subtração (não sendo possível equi­ parar a negação"- a" à subtração, não obstante o axioma, já enunciado por Leibniz, "a - a = 0"). Esse cálculo literal em si nada significa,é um mero jogo simbólico (precisamente, uma "A. booliana" entre as muitas possíveis), mas é passível de duas interpretações, que interes­ sam à Lógica. Na primeira, os símbolos a, b, c,... indicam classes; os sinais "+", "." indicam operações entre classes (v. ADIÇÃO; MULTIPLI­ CAÇÃO LÓGICA); a < b interpreta-se como "a classe a está incluída na classe b"; o sinal de negação "- a" ou "a"' indica a classe formada por todos os indivíduos que não pertencem à classe a-, 0 indica a classe vazia; 1 indica a clas­ se total ou universo do discurso (v.). A segun­ da interpretação é, ao contrário, proposicional: os símbolos a, b, c,... indicam proposições; os sinais "+", ".", indicam operações sobre pro­ posições; "a< b" indica implicação ("a impli­ ca £>'); "- a" (ou a') indica a negação da pro­ posição a; finalmente, 0 é interpretado como "falso", 1 é interpretado como "verdadeiro". Des­ se modo, funda-se a interpretação do cálculo lógico-algébrico que vai absorver a silogística tradicional, transformando-a em disciplina formal e dedutiva. Foi ultrapassada pela Lógi­ ca matemática, fundada por Frege e Russell, e, depois, pela Lógica simbólica contemporânea, que absorveu os elementos mais vitais da A. da Lógica. G. P. ALGORITMO (in. Algorism; fr. Algorithme, ai. Algorithmus; it. Algoritmo). Qualquer pro­ cesso de cálculo. Esse termo, derivado do nome do autor árabe de um tratado que introduziu a numeração decimal na Europa do séc. IX, de­ signava a princípio os processos de cálculo aritmético e depois foi generalizado para indi­ car todos os processos de cáclulo. ALGUM (in. Some, fr. Quelque, ai. Einige, it. Qualché). Na Lógica contemporânea, "A." ou "alguns" é um operador de campo, cujo símbolo mais usado é ''(3x)", p. ex., em fórmu­ las como "(3x) . f(x)", que se lê "existe ao menos

ALGUMA COISA

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um x tal que f(x) é verdadeira". Corresponde a uma soma ou a uma disjunção lógica operada no campo de validade do (x), isto é, à disjunção "f(a) ou f(b) ou f(c) ou ...". Onde f(x) for um predicado, essa fórmula eqüivalerá à fórmula costumeira "algum x é f ou ainda "alguns x são /" da Lógica tradicional. Já nos Analíticos de Aristóteles, TÀÇ (habitualmente no dativo xivi na fórmula xò A xivi xw B UTcápAet, "A é ineren­ te a algum B) é usado com esse valor preciso, como sinal da proposição particular afirmati­ va. No latim medieval, introduzindo-se como forma normal de proposição a fórmula "homo currit", o xiç grego, que já em Aristóteles sem­ pre se referia ao sujeito lógico da proposição, é traduzido pelo adjetivo aliquis, concordando gramaticalmente com o sujeito (assim, aliquis homo currit, mas aliqui homines currunt, em­ bora as duas formas, em Lógica, sejam perfei­ tamente sinônimas): daí, o nosso "A." e "al­ guns". Todavia, é na Lógica medieval que se lhe reconhece claramente a função de opera­ dor, isto é, de signo não significante cuja única tarefa é modificar a denotação do termo que funciona como sujeito. G. P. ALGUMA COISA (gr. TÍ; lat. Aliquid; in. Somethíng; fr. Quelque chose; ai. Etwas; it. Qualcosa). Um objeto indeterminado. Diz Wolff: "A. é aquilo a que corresponde determinada noção" (Ont., § 591): o que quer dizer aquilo a que corresponde uma noção que não inclua contradição. Baumgarten vale-se desta última característica para definir A. (Met., § 8). E Kant dizia: "A realidade é A., a negação é nada" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). E Hegel: "O ser determinado, refletido em si neste seu caráter, é o que existe, o A." {Ene, § 90). O conceito é agora de pertinência da lógica (cf. QUANTIFICADOR). ALIENAÇÃO (in. Alienation; fr. Aliénation; ai. Entfremdung; it. Alienazione). Esse termo, que na linguagem comum significa perda de posse, de um afeto ou dos poderes mentais, foi empregado pelos filósofos com certos significa­ dos específicos. 1. Na Idade Média, às vezes foi usado para indicar um grau de ascensão mística em dire­ ção a Deus. Assim, Ricardo de S. Vítor conside­ ra a A. como o terceiro grau da elevação da mente a Deus (depois da dilatação e do solevamentó) e considera que ela consiste no abandono da lembrança de todas as coisas finitas e na transfiguração da mente em um

ALIENAÇÃO

estado que não tem nada mais de humano (De gratia contemplatíonis, V, 2). Nesse sentido, a A. não é senão o êxtase (v.). 2. Esse termo foi empregado por Rousseau para indicar a cessão dos direitos naturais à comunidade, efetuada com o contrato social. "As cláusulas deste contrato reduzem-se a uma só: a A. total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade" (Contrato social, I, 6). 3. Hegel empregou o termo para indicar o alhear-se a consciência de si mesma, pelo qual ela se considera como uma coisa. Este alhearse é uma fase do processo que vai da cons­ ciência à autoconsciência. "A A. da autoconsciência", diz Hegel, "coloca, ela mesma, a coisalidade, pelo que essa A. tem significado não só negativo, mas também positivo, e isto não só para nós ou em si, mas também para a própria autoconsciência. Para esta, o negativo do objeto ou a auto-subtraçâo deste último fem significado positivo, isto é, ela mesma; de fato, nessa A. ela coloca-se a si mesma como objeto ou, por força da inscindível unidade do serpara-si, coloca o objeto como si mesma, enquan­ to, por outro lado, nesse ato está contido o outro momento do qual ela tirou e retomou em si mesma essa A. e objetividade, estando, portanto, no seu ser outra coisa como tal, junto a si mesma. Este é o movimento da consciên­ cia que nesse movimento é a totalidade dos próprios momentos" (Phãnomen. des Geistes, VIII, 1). Esse conceito puramente especulativo foi retomado por Marx nos seus textos juvenis, para descrever a situação do operário no regi­ me capitalista. Segundo Marx, Hegel cometeu o erro de confundir objetivação, que é o processo pelo qual o homem se coisifica, isto é, exprimese ou exterioriza-se na natureza através do tra­ balho, com a A., que é o processo pelo qual o homem se torna alheio a si, a ponto de não se reconhecer. Enquanto a objetivação não é um mal ou uma condenação, por ser o único cami­ nho pelo qual o homem pode realizar a sua unidade com a natureza, a A. é o dano ou a condenação maior da sociedade capitalista. A propriedade privada produz a A. do operário tanto porque cinde a relação deste com o pro­ duto do seu trabalho (que pertence ao capita­ lista), quanto porque o trabalho permanece exterior ao operário, não pertence à sua perso­ nalidade, "logo, no seu trabalho, ele não se afirma, mas se nega, não se sente satisfeito, mas

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infeliz... E somente fora do trabalho sente-se junto de si mesmo, e sente-se fora de si no trabalho". Na sociedade capitalista, o trabalho não é voluntário, mas obrigatório, pois não é satisfação de uma necessidade, mas só um meio de satisfazer outras necessidades. "O trabalho exterior, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação" (Manuscritos econômico-filosóficos, 1844, I, 22). Esse uso do termo tornou-se corrente na cultura contemporânea, não só na descrição do trabalho operário em certas fases da sociedade capitalista, mas também a propó­ sito da relação entre o homem e as coisas na era tecnológica, já que parece que o predomí­ nio da técnica "aliena o homem de si mesmo" no sentido de que tende a fazer dele a engrena­ gem dg uma máquina (v. TÉCNICA). Também sob esse ponto de vista Sartre retornou ao con­ ceito hegeliano da A., entendida como "um ca­ ráter constante da objetivaçào, seja ela qual for": onde se entende por "objetivação" qualquer relação do homem com as coisas e com os outros homens (CritiquedeIa raison dialectique, 1960, p. 285). Marcuse, por sua vez, conside­ rou a A. como a característica do homem e da sociedade "numa só dimensão", ou seja, como a situação na qual não se distingue o dever ser do será, por isso, o pensamento negativo, ou a força crítica da Razão, é esquecida ou calada pela força onipresente da estrutura tecnológi­ ca da sociedade (One DimensionalMan, 1964, p. 12). Na linguagem filosófico-política hoje corren­ te, esse termo tem os significados mais dís­ pares,, dependendo da variedade dos carac­ teres nos quais se insiste para a definição do homem. Se o homem é rkzão autocontemplativa (como pensava Hegel), toda relação sua com um objeto qualquer é A. Se o homem é um ser natural e social (como pensava Marx), A. é re­ fugiar-se na contemplação. Se o homem é ins­ tinto e vontade de viver, A. é qualquer repressão ou diminuição desse instinto e dessa vontade; se o homem é racionalidade operante ou ativa, A. é entregar-se ao instinto. Se o homem é razão (entendida de qualquer modo), A. é refu­ giar-se na fantasia; mas, se é essencialmente imaginação e fantasia, A. é qualquer disciplina racional. Enfim, se o indivíduo humano é uma totalidade auto-suficiente e completa, A. é qual­ quer regra ou norma imposta, de qualquer modo, à sua expressão. A equivocidade do conceito

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de A. depende da problematicidade da noção de homem. ALMA (gr. \|fuAr|; lat. Anima; in. Soul; fr. Ame, ai. Seele, it. Anima). Em geral, o princípio da vida, da sensibilidade e das atividades espiri­ tuais (como quer que sejam entendidas e clas­ sificadas), enquanto constitui uma entidade em si, ou substância. Esta última noção é importante porque o uso da noção de A. está condicionado pelo reconhecimento de que certo conjunto de operações ou de eventos, chamados "psíqui­ cos" ou "espirituais", constituem manifestações de um princípio autônomo, irredutível, pela sua originalidade, a outras realidades, embora em relação com elas. Que a alma seja incorpórea ou tenha a mesma constituição das coisas corpóreas é questão menos importante, já que a solução materialista em geral se fundamenta, assim como a solução oposta, no reconheci­ mento da A. como substância. Nesse significa­ do fundamental, a A. é o mais das vezes con­ siderada como "substância": entendendo-se por esse termo precisamente uma realidade em si, isto é, que existe independentemente das ou­ tras (v. SUBSTÂNCIA). O reconhecimento da realidade-A. parece prover sólido fundamento aos valores vinculados às atividades espirituais hu­ manas, os quais, sem ela, pareceriam suspensos no nada; de modo que a substancialidade da A. é considerada, pela maior parte das teorias fi­ losóficas tradicionais, como uma garantia da estabilidade e da permanência desses valores; garantia que, às vezes, é reforçada pela crença de que a A. é, no mundo, a realidade mais alta ou última, ou, às vezes, o próprio princípio ordenador e governador do mundo. Dadas es­ sas características da noção, a sua história filo­ sófica apresenta-se relativamente monótona, por ser, predominantemente, a reiteração da reali­ dade da A. nos termos dos conceitos que cada filósofo assume para definir a própria realida­ de. Assim, p. ex., a A. é ar para Anaxímenes (Fr. 2, Diels) e para Diógenes de Apolônia (Fr. 5, Diels), que julgam ser o ar o princípio das coi­ sas; é harmonia para os pitagóricos (ARISTÓTE­ LES, Pol., VIII, 5, 1340 b 19), que na harmonia exprimível em números vêem a própria estru­ tura do cosmos; é fogo para Heráclito (Fr. 36, Diels), que vê no fogo o princípio universal; para Demócrito, é formada por átomos redon­ dos, que podem penetrar no corpo com gran­ de rapidez e movê-lo (ARISTÓTELES, Dean., I, 2, 404,1); e assim por diante. Provavelmente Platão só fez exprimir um pensamento implícito nes­

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sas determinações, quando afirmou que a A. se move por si e a definiu com base nessa carac­ terística. "Todo corpo cujo movimento é impri­ mido de fora é inanimado, todo corpo que se move de per si, do seu interior, é animado; e essa é, precisamente, a natureza da A." (Fed., 245 d). A alma é, portanto, a causa da vida (Crat., 399 d) e por isso é imortal, já que a vi­ da constitui a sua própria essência {Fed., 105 d ss.). Com essas determinações, Platão fazia ní­ tida distinção entre a realidade da A., simples, incorpórea, que se move por si, que vive e dá vida, e a realidade corpórea, que tem os caracteres opostos. E essas determinações de­ viam servir de base a todas as considerações filosóficas ulteriores sobre a alma. Entre elas, a de Aristóteles é a mais impor­ tante, pois as determinações que ele atribui ao ser psíquico, nos termos do seu conceito de ser, deveriam permanecer por longo tempo o modelo de boa parte das doutrinas da alma. Segundo Aristóteles, a A. é a substância do corpo. É definida como "o ato final (entelechia) mais importante de um corpo que tem a vida em potência". A A. está para o corpo assim como a visão está para o órgão da visão: é a realização da capacidade própria de um corpo orgânico. Assim como todo instrumento tem sua função, que é o ato ou a atividade do ins­ trumento (como, p. ex., a função do machado é cortar), também o organismo, enquanto instru­ mento, tem a função de viver e de pensar, e o ato dessa função é a A. (Dean., II, 1, 412 a 10). Por isso, a A. não é separável do corpo ou, ao menos, não são separaveis do corpo as partes da A. que são atividades das partes do corpo, já que nada impede que sejam separáveis as par­ tes que não são atividade do corpo (ibid.; 413 a 4 ss.). Com essa restrição, Aristóteles alude à parte intelectiva da A., que ele chama de "um outro gênero de A.", e a considera como a única separável do corpo (ibid, II, 2, 413 b 26). Como ato ou atividade, a A. é forma e como forma é substância, em uma das três determi­ nações da substância, que são: forma, matéria ou o composto de forma e matéria. A maté­ ria é potência, a forma é ato e todo ser animado é composto por essas duas coisas; mas enquanto o corpo não é o ato da A., a A. é a atividade de um corpo determinado, isto é, a realização da potência própria desse corpo: donde se pode dizer que ela não existe nem sem o corpo nem como corpo (ibid, 414 a 11).

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Essas determinações aristotélicas constituí­ ram, por séculos a fio, todo o projeto da "psico­ logia da A.". Consoante os vários interesses (metafísico, moral, religioso) que orientaram os desenvolvimentos dessa psicologia, ao lon­ go de sua história deu-se maior ênfase a uma ou a outra das determinações aristotélicas. Destas, as mais importantes são: que a alma é substân­ cia, isto é, realidade no sentido forte do termo, e princípio independente de operações, isto é, causa. São determinações cuja finalidade é ga­ rantir um sólido sustentáculo para as atividades espirituais, portanto para os valores produzi­ dos por tais atividades. A segunda série de determinações é a da simplicidade e da indi­ visibilidade, cujo objetivo é garantir a impassibilidade da A. em face das mudanças do cor­ po e, através de sua indecomponibilidade, a sua imortalidade. A terceira determinação im­ portante é a sua relação com o corpo, definida por Aristóteles como relação da forma com a matéria, do ato com a potência. A primeira determinação não é negada nem mesmo pelos materialistas. Epicuro, que diz ser a A. compos­ ta por partículas sutis, difundidas por todo o corpo como um sopro quente, crê, todavia, que ela tem a capacidade causativa da sensação, que é preparada pelo corpo — que dela parti­ cipa —, mas que, em certa medida, é indepen­ dente do próprio corpo, pois, quando a A. se separa do corpo, este deixa de ter sensibilidade (Ep. a Herod, 63 ss.). Desse modo, a A. não é simples nem imortal (dissolve-se nas suas par­ tículas com a morte do corpo), mas ainda é uma realidade em si, dotada de capacidade causativa própria, indispensável à vida do cor­ po. De modo análogo, os estóicos julgam que a A. é um sopro congênito; que, como tal, é corpo, pois, se não o fosse, não poderia unirse a ele nem separar-se dele; todavia, pode ser imortal, como é certamente imortal a A. do mundo, de que fazem parte as A. dos seres animados e as dos sábios (DIÓG. L, VII, 156­ 67). Aqui, a corporeidade da A. não a isenta de simplicidade nem de imortalidade; o mesmo se dá com a concepção de Tertuliano, que tam­ bém a considera um sopro, ou flatus, de Deus e, portanto, gerada, corpórea e imortal (De an, 8 ss.). A aceitação quase universal da doutrina aristotélica da A. tem uma exceção em Plotino, que critica tanto a doutrina segundo a qual a A. é corpo quanto a da A. como forma do corpo (Enn, iV, 7, 2 ss.; IV, 7, 8, 5). E o motivo é um

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só: Plotino não acha que a A. tenha ligação alguma com o corpo e a sua única preocupa­ ção é definir a realidade exatamente nos ter­ mos da sua independência em relação ao cor­ po e a todas as determinações corpóreas. Por conseguinte, Plotino acentua os caracteres divinosda A.: sua unidade e indivisibilidade, donde sua ingenerabilidade e incorruptibilidade, que são todos caracteres negativos, assim como, aliás, são negativos os caracteres que Plotino atribui a Deus. Mas qual é a via de acesso à realidade da A. assim entendida? Plotino responde que, para examinar-se a natureza de uma coisa, é preciso considerá-la em sua pureza, pois tudo o que se lhe acrescenta é um obstáculo a seu conhecimento. Daí, para examinar-se o que é a A., é preciso retirar-lhe tudo o que lhe é estranho, isto é, convém olhar para si mesmo e retirar-se na própria interioridade. Desse modo, a noção de consciência, entendida como introspecção ou reflexão sobre si mesmo, ou refle­ xão interior, graças a Plotino, começa a superar a noção de A., já que a própria alma é reduzida ao movimento de introspecção. "Não é saindo da A.", diz Plotino, "que se podem ver a sabe­ doria e a justiça; a A. vê essas coisas em si mesma, na sua reflexão sobre si mesma; no seu estado primeiro, vê-as em si como estátuas cheias da ferrugem do tempo, que ela limpa. É como se o ouro tivesse A. e ficasse livre do lodo que o cobrisse: no início, estaria na ignorância de si mesmo, não se veria como ouro, depois, admi­ raria a si mesmo vendo-se isolado, e não de­ sejaria ter outra beleza estranha, mas seria tan­ to mais forte quanto mais ficasse entregue a si mesmo" (Enn., IV, 7, 10). Essas palavras de Plotino abrem a outra alternativa da doutrina da A., isto é, aquela pela qual acabará sendo suplantada pelo conceito de consciência. Aqui, retirar-se em si mesmo, ficar entregue a si mes­ mo, olhar para a própria interioridade, refletir sobre si são expressões que servem para defi­ nir um tipo de busca que prescinde completa­ mente do corpo e, por isso, também daquilo com que o corpo se põe em relação, isto é, as coisas e os outros homens (íbíd., V, 3, 1-2). Os neoplatônicos e os Pais da igreja orien­ tal repetem as determinações neoplatônicas: a imaterialidade e a unidade da A. são os ca­ racteres fundamentais, atribuídos por Porfírio (STOBEO, Ecl., I, 818) e por Proclo (Inst. theol, 15), assim como por Gregório de Nissa (De an. etresur., pp. 98 ss.). Mas é sobretudo S. Agos­ tinho que recolhe a herança do neoplatonismo

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e a transmite ao mundo cristão, com o reconhe­ cimento da interioridade espiritual como via de acesso privilegiada à realidade própria da alma. Essa via de acesso é a experiência interior, a reflexão sobre a própria interioridade, a "con­ fissão" como reconhecimento da realidade ínti­ ma; em uma palavra, o que na linguagem mo­ derna se chama consciência(v.). Nos Solilóquios (I, 2), S. Agostinho declarava não querer co­ nhecer nada além de "Deus e a A.". Mas, para ele, Deus e a A. não exigem duas indagações paralelas ou de qualquer forma diferentes, já que Deus está na A. e se revela na mais oculta interioridade da própria A. "Não saias de ti, volta-te para ti mesmo, no interior do homem mora a verdade; e, se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo" (De vera rei, § 39). Essa atitude, que domina toda a bus­ ca agostiniana, deveria produzir frutos mais tarde, a começar pela Escolástica tardia, — Mas a Escolástica, em seu conjunto, é dominada pela doutrina aristotélica da A., reproposta quase nos mesmos termos desde Scotus Erigena (De divis. nat, II, 23) até Duns Scot (Op. Ox, IV, 43, q. 2), que se limita a acrescentar que, sendo a A. a forma do corpo, como dizia Aristóteles, não pode subsistir quando o corpo é destruído; logo, a imortalidade é pura matéria de fé. As próprias observações de S. Tomás (5. Th, I, q. 75; Contra Gent., II, 79 ss.) nada acrescentam à doutrina aristotélica da A., salvo a maior insis­ tência na independência desta em relação ao corpo, com o fim de assegurar-lhe a imortalida­ de. A única inovação que a Escolástica agostiniana apresenta em relação a essa teoria, em oposição à orientação aristotelicotomista da mes­ ma Escolástica, diz respeito à relação entre A. e corpo: a admissão de uma forma corporeitatis, que é própria do corpo como tal, anteriormen­ te à sua união com a A., e que o predispõe a tal união. A forma corporeitatis é a realidade que o corpo humano possui, como corpo orgânico, independentemente da sua união com a A. (DUNS SCOT, Op. Ox., IV, 11, q. 3; OCKHAM, Quodl, II, q. 10). Essa admissão vincula-se ao reconheci­ mento de que a matéria, em geral, não é pura potência, mas possui, já como matéria, certa realidade atual que é precisamente a forma corporeitatis (v. AGOSTINISMO). Mas a Escolástica do séc. XIV oferece-nos, com Ockham, uma inovação muito mais ra­ dical: a dúvida apresentada sobre a realidade da A. intelectiva. Diz, com efeito, Ockham (Quodl, I, q. 10) que, se entendermos por A.

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intelectiva "uma forma imaterial e incorruptível que está por inteiro em todo o corpo e por inteiro em cada parte, não se pode conhecer com evidência, nem com a razão nem com a experiência, que tal A. seja forma do corpo e que o entendimento seja próprio de semelhante substância". De fato, as razões que se podem aduzir para a demonstração de tal forma são dúbias; e, quanto à experiência, tudo o que experimentamos são a intelecção, a volição, etc.: operações que podem muito bem ser pró­ prias de uma "forma extensa, generável e corruptível", isto é, do próprio corpo. Por isso, Ockham relega a matérias de fé não só a imor­ talidade da A. (como já havia feito Scot), mas a própria realidade da A. intelectiva como su­ posto sujeito das operações espirituais de que temos experiência. Essa negação baseia-se pre­ cisamente na experiência que se tem dos pró­ prios atos espirituais (intelectivos e volitivos), experiência que, para Ockham, é um conheci­ mento intuitivo e de natureza espiritual {cognitio intuitiva intellectivá), pelo qual estão imedia­ tamente presentes, na sua singularidade e nas suas relações recíprocas, os atos ou as opera­ ções espirituais (In Sent., prol. q. 1; Quodl., I, q. 14; II, 1. 12). — Com essas observações, o conceito de experiência interna, diferente da experiência sensível ou externa, era introduzi­ do na história da filosofia, precisamente quan­ do a realidade a que tal experiência deveria dar acesso, isto é, a realidade da A., era posta em dúvida. Com Descartes, a experiência in­ terna deveria tornar-se o ponto de partida da filosofia moderna. A noção de A. como substância sobrevive à crise do Renascimento. Nem mesmo o materialismo de Telésio e o de Hobbes constituem negações propriamente ditas da substancialidade da alma. Telésio admite uma substância intelectiva, diretamente criada e infundida por Deus no homem, só para explicar a vida reli­ giosa do homem, a sua aspiração ao transcen­ dente (Derer. nat, V, 2); mas o mesmo "espí­ rito animal", de que ele se vale para explicar a sensibilidade, a inteligência e até a vida moral do homem, embora sendo de natureza corpórea e produzido pelo sêmen, é por ele considerado como realidade em si, como "substância" (ibid., V, 10). Quanto a Hobbes, declara ilegítima a transição operada por Descartes da proposição "Sou uma coisa que pensa", que é indubitável, à proposição "Sou uma substância pensante", já que não é necessário que a coisa que pensa

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seja pensamento, mas pode ser o próprio cor­ po (/// Objections, 2). Mas a interpretação ma­ terialista não nega que a alma seja uma "coisa", isto é, uma "realidade". No que diz respeito à noção de alma no mundo moderno, o desenvolvimento decisivo ocorre com Descartes, em cuja doutrina a rea­ firmação da realidade da A. une-se ao reconhe­ cimento de uma via de acesso privilegiada a tal realidade. Essa via de acesso é o pensamento, ou melhor, a consciência (v.). O cogito ergo sum revela de modo evidente, segundo Des­ cartes, a substância pensante, isto é, revela "um ser, cuja existência nos é mais conhecida do que a dos outros seres, de modo que pode servir como princípio para conhecê-los" (Lett. à Clercelier, em (Euvres, IV, 443). Ora, o cogito compreende "tudo o que está em mim e de que sou imediatamente consciente" (IIRép., def. I): isto é, duvidar, compreender, conceber, afir­ mar, negar, querer, não querer, imaginar, sen­ tir, etc. Assim, a consciência é uma via de aces­ so privilegiada — porque tão segura, a ponto de ser absolutamente indubitável — a uma re­ alidade, a substância A., que, por sua vez, tam­ bém é privilegiada porque pode servir como princípio para conhecer as outras realidades. E de fato é a própria consciência, enquanto tes­ temunha do caráter passivo da faculdade sen­ sível, que faz pensar em uma substância ou realidade diferente da A., que aja sobre a A., isto é, em uma substância corpórea ou exten­ sa, certificada pelo princípio da veridicidade divina. Desse modo, Descartes determinou a virada subjetivista na interpretação da A. como substância. Para ele, os atributos da A. conti­ nuam sendo os tradicionais, como simplicidade, indestrutibilidade, unidade, etc. Mas a via de acesso à realidade da A. tem o privilégio de ser a mais certa porque possui a certeza do cogito. Comparada a esta, a certeza das outras coisas, isto é, das substâncias extensas, é secundária e derivada, porque mediada pela consciência. — Ora, essa colocação domina todas as doutrinas modernas. Spinoza e Leibniz traduzem o con­ ceito cartesiano da A. nos termos de seus con­ ceitos de realidade. Para Spinoza, a A. é "a idéia de um corpo singular existente em ato" (Et, II, 11): é a consciência correlativa a um corpo orgânico. Não se pode dizer que a A. seja subs­ tância porque a substância é uma só, Deus. Mas, como idéia, a A. é parte do intelecto infi­ nito de Deus, isto é, uma manifestação neces­ sária da substância divina (ibid, II, 9), portanto

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eterna (ibid., V, 23). Para Leibniz, a A. é uma substância espiritual, uma mônada que, como um espelho, representa em si todo o mundo, mas é em si mesma simples, isto é, sem partes e indecomponível (Monad., §§ 1, 56). Diferente­ mente das outras mônadas, que são os átomos espirituais que compõem todas as coisas do universo (inclusive as corpóreas), a A. é espíri­ to, isto é, razão, porquanto possui as verdades necessárias e pode, assim, elevar-se aos atos reflexivos que constituem os objetos principais dos nossos raciocínios (Théod., pref.; Monad., § 30). Mas trata-se mais de uma diferença de grau do que de qualidade: a A. é somente uma mônada mais ativa e perfeita, na qual as apercepções, isto é, as percepções claras e dis­ tintas, têm mais participação do que as peque­ nas percepções ou percepções obscuras e con­ fusas. A doutrina de Leibniz representa, assim, uma redução ao limite, no sentido espiritualista, do princípio cartesiano que privilegiava a cons­ ciência. A "psicologia racional'' de Wolff, que foi objeto específico da crítica de Kant, não é senão a expressão sistemática da doutrina de Leibniz. A partir de Descartes, o conceito de "cons­ ciência", isto é, de totalidade ou mundo da ex­ periência interna, começa gradualmente a su­ plantar o conceito tradicional de alma. Já Descartes e Leibniz, embora se referindo às determinações tradicionais da A. como substân­ cia, acabam interpretando a seu modo a noção de substância: a realidade que atribuem à A. é a revelada e testemunhada pelos atos, ou pelo ato fundamental da consciência como pensa­ mento, apercepção, etc. Locke, que reputava 'incognoscível" a substância espiritual (assim como, aliás, a material) {Ensaio, II, 23, 30), con­ siderou certo, de modo privilegiado, o co­ nhecimento que o homem tem da própria exis­ tência, atribuindo-o a um "conhecimento intuitivo" que não é senão a consciência dos próprios atos espirituais (ibid, IV, 9, 3). Além disso, Locke identificou na experiência interna, ou reflexão, uma das fontes do conhecimento e entendeu-a como "a percepção das opera­ ções que o nosso espírito realiza em torno das idéias que recebe do exterior". Tais operações são as de percepção, pensamento, dúvida, conhecimento, vontade, etc, isto é, em geral, todos os atos do espírito de que se é conscien­ te. "Essa fonte de idéias", acrescenta Locke, "reside internamente no homem, e embora não seja um sentido, porque nada tem a ver com os

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objetos externos, ainda assim é semelhante a um sentido e pode ser propriamente chamado sentido interno" (ibid, II, I, 4). Com isso, Locke admitiu duas vias de acesso paralelas e inde­ pendentes a duas realidades que se pressupõem independentes e paralelas, isto é, o corpo e a alma.— Hume não pressupôs a distinção des­ sas duas realidades, nem, por conseqüência, admitiu a distinção entre as duas vias de acesso respectivas. A realidade substancial, seja a das coisas materiais, seja a da A. ou do eu, é uma construção fictícia, que parte das relações de semelhança e de causalidade das percepções entre si(Treatise, I, 4, 2 e 6; Inq. Cone. Underst., XII, 1). Todavia os ingredientes elementares de tais construções, ingredientes que são o único dado certo da experiência, são constituídos por impressões e por idéias, isto é, são fornecidos pela experiência interna ou consciência. De tal modo que, enquanto realiza a demolição cética da noção de A. como realidade ou substância, Hume contribui em igual medida para estabele­ cer a supremacia da consciência, cujos dados são reconhecidos como os únicos elementos certos do conhecimento humano. A rivalidade entre as duas noções de A. e de consciência chega ao ponto culminante na crítica de Kant à psicologia racional, isto é, à noção de A. nos seus atributos tradicionais de substancialidade, simplicidade, unidade e possibili­ dade de relações com o corpo (Crít. R. Pura, Dial. transe, Paralogismos da razão pura). A crítica kantiana consiste em dizer que toda a psicologia racional funda-se num "paralogismo", isto é, num erro formal de raciocínio ou num "equívoco", no sentido de assumir como objeto de conhecimento, ao qual é aplicável a categoria de substância, aquele "Eu penso", que é simples "consciência" e que é a condição primeira do próprio uso das categorias. "A uni­ dade da consciência", diz Kant, "que está no fundamento das categorias, aqui é tomada por intuição do sujeito, tomado como objeto, aplicando-se-lhe a categoria de substância." É pre­ ciso observar que a consciência de que Kant está falando é a expressa pela proposição empírica "Eu penso", que contém em si a pro­ posição "Eu existo" (ibid, Refut. do arg. de Mendelssohn, nota), isto é, a consciência da própria existência como determinável por par­ te de um conteúdo empírico dado, ou seja, como "espontaneidade" intelectual que só pode ope­ rar sobre um material fornecido pela experiên­ cia. Portanto, é diferente do conhecimento de si

ALMA

mesmo que, assim como qualquer outro co­ nhecimento, só é possível mediante a aplica­ ção das categorias a um conteúdo empírico e, portanto, é também conhecimento fenomênico (ibid., Analítica dos conceitos, § 25). Assim sen­ do, a crítica kantiana à psicologia racional e ao conceito de A. sobre o qual ela se baseia con­ siste em declarar ilegítima a transformação da consciência em substância e, por isso, em eli­ minar a própria noção de A. como realidade subsistente por si. Essa crítica foi, de certa forma, decisiva na história da filosofia: não que os filósofos te­ nham deixado de falar de algum modo em A., mas o tipo ou espécie de realidade que se atri­ bui à A., a partir de Kant, passa a ser entendida em termos de consciência e, freqüentemente, reduzida à própria consciência. Essa inversão da relação entre A. e consciência, pela qual a consciência, antes via de acesso à realidade-A., transforma-se nessa mesma realidade, é igual­ mente evidente nas duas grandes correntes da filosofia oitocentista, o Idealismo e o Positivismo. Hegel, p. ex., considera a A. como o primeiro grau do desenvolvimento do Espírito, que é a consciência no seu grau mais alto, isto é, Autoconsciência, e a configura como "Espírito subjetivo", isto é, como o espírito em seu as­ pecto de individualidade. Eis como ele descre­ ve o processo do Espírito subjetivo: "Na A., a consciência desperta; a consciência coloca-se como razão que desperta assim que toma ciên­ cia de si; e a razão, por meio de sua atividade, liberta-se fazendo-se objetividade, consciência do seu objeto" {Ene, § 387). O primeiro desses momentos, isto é, o despertar da consciência é a alma. A ela Hegel atribui as características tradicionais (substancialidade, imaterialidade), mas no sentido de que essas características podem dizer respeito à consciência. "A A.", diz ele, "não é imaterial só para si, mas é a imaterialidade universal da natureza, a sua vida ideal simples. Ela é a substância e, portanto, o fundamento absoluto de qualquer particularização e individualização do espírito, de tal modo que o espírito tem na A. toda a matéria da sua determinação e a A. é a idealidade idêntica e prevalente desta. Mas, nessa determinação ain­ da abstrata, a A. é apenas o sonho do espírito, o nous passivo de Aristóteles, que, sob o as­ pecto da possibilidade, é tudo" {ibid., § 389). Em outros termos, dizer que a A. é imaterial significa tão-somente que a matéria não existe porque "a verdade da matéria é o espírito": dizer

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ALMA

que a A. é substância significa unicamente que o espírito é também individualidade, ou seja, consciência individual. As determinações tradi­ cionais são aqui conduzidas para significados diversos, condicionados pela redução da A. à primeira fase do espírito consciente. Por outro lado, e com outro intuito, o Po­ sitivismo efetuava a mesma redução da A. à consciência, retomando e continuando a doutrina do empirismo clássico, especialmente de Hume. O intento, aqui, era preparar e fundar uma "ciên­ cia" dos fatos psíquicos, que tivesse o mesmo rigor das ciências da natureza. Nessa direção, o termo A. já aparece como impróprio e é fre­ qüentemente substituído pelo termo espírito (v.); nesse sentido, Stuart Mill diz, p. ex., que o es­ pírito (mind) é a "série das nossas sensações", tendo, além disso, "uma infinita possibilidade de sentir" (Examination of Hamilton's Philosophy, pp. 242 ss.) ou, mais simplesmente, "aquilo que sente" {Logic, VI, IV, 1). Tornam-se objeto da psicologia os "fenômenos psíquicos" ou "os estados de consciência", que são explicados por meio da associação variada dos seus ele­ mentos mais simples (v. ASSOCIACIONISMO). Essa "psicologia sem alma" dominou os primórdios da psicologia científica e foi a insígnia polêmi­ ca pela eliminação, em seu campo, da noção tradicional da A. como substância. Contudo, esse termo foi e ainda é usado para indicar o conjunto das experiências psí­ quicas enquanto recolhidas em alguma unida­ de. Assim o entendeu Wundt (Logik, II, pp. 245 ss.), que por unidade entendeu a unidade da consciência. E assim o entende também Dewey: "Em conclusão, pode-se afirmar que a palavra A., quando libertada de todos os resíduos do tradicional animismo materialista, denota a qualidade das atividades psicofísicas, organiza­ das em unidade. Alguns corpos têm A. de modo eminente, assim como outros têm, eminente­ mente, fragrância, cor e solidez... Dizer enfati­ camente que uma pessoa tem A., ou uma gran­ de A., não significa pronunciar uma frase aplicável igualmente a todos os seres huma­ nos. Exprime, ao contrário, a convicção de que o homem ou a mulher em questão possui em grau notável as qualidades de participação sen­ sível, rica e coordenada em todas as situações da vida. Assim, as obras de arte, a música, a pintura, a arquitetura têm A., enquanto outras são mortas, mecânicas" (Experience andNature, pp. 293 ss.). Mas a A., nesse sentido, não é mais "um habitante do corpo"; designa um conjunto

ALMA, PARTES DA

de capacidades ou de possibilidades de que cada homem ou cada coisa em particular par­ ticipa em maior ou menor grau. A última crítica à noção de A. é a de Ryle (.Concept ofMind, 1949), que deu à concepção de A. de origem cartesiana o nome de "espectro na máquina". Na realidade, essa noção é muito mais antiga, como se viu, e sua força se deve, mais do que às suas capacidades explicativas, às garantias que fornece ou parece fornecer a determina­ dos valores. Ryle julga que essa noção é fruto de um erro categorial, pelo qual os fatos da vida mental são considerados pertencentes a um tipo ou categoria (ou classe de tipos ou categorias) lógica (ou semântica) diferente daquela a que eles pertencem. Esse erro é seme­ lhante ao de quem, depois de visitar salas, la­ boratórios, bibliotecas, museus, escritórios, etc, que constituem uma Universidade, pergunta o que vem a ser e onde fica a própria Universi­ dade. A Universidade não é uma unidade que se acrescente aos organismos ou aos membros que a constituem, e que possua, portanto, uma realidade à parte de tais organismos ou mem­ bros. Assim também, a A. não tem realidade à parte das manifestações singulares e dos com­ portamentos particulares superiores que essa palavra serve para designar em seu conjunto. Em conclusão, já muito antes dessa última condenação, a noção tradicional de A., como uma espécie de realidade em si, princípio e fundamento dos chamados eventos mentais, fora abandonada e reduzida à noção de enti­ dade funcional ou de uma espécie de coorde­ nação e de síntese entre aqueles eventos. Mas, nesta forma, essa noção remete à de consciên­ cia (v.). ALMA, PARTES DA. V. FACULDADE. ALMA BELA (gr. Kakr\ \|A)Xtí; fr- Belle âme, ai. Schõne Seele, it. Anima belld). Essa expres­ são tem origem mística: Plotino já falava da A. bela, que é a A. que retorna a si mesma ou é ela mesma (Enn., V, 8, 13), recordando talvez a "beleza nas almas" de que Platão falava como forma de beleza superior à beleza do corpo (O Banq., 210 b). Essa expressão reaparece nos místicos espanhóis do século XVI. Expressão equivalente (Beauty of the Hearf) e a mesma expressão (belle âmé) encontram-se, respecti­ vamente, em Shaftesbury e em Nova Heloísa (1761) de Rousseau. Mas no seu significado específico, essa expressão foi usada pela pri­ meira vez por Friedrich von Schiller para indicar o ideal de uma A. não só "virtuosa" (isto é, cuja

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ALMA BELA

vontade é determinada pelo dever), mas tam­ bém "graciosa", no sentido de que nela a sen­ sibilidade concorda espontaneamente com a lei moral. "Chama-se A. bela", diz Schiller, "a alma em que o sentimento moral acabou por assenhorear-se de todas as afeições do homem, a ponto de poder, sem receio, entregar à sensi­ bilidade a direção da vontade, sem nunca cor­ rer o risco de achar-se em desacordo com as decisões desta... Uma A. bela não tem outro mérito que o de existir. Com facilidade, como se o instinto agisse por ela, cumpre os deveres mais penosos pela humanidade e o sacrifício mais heróico, que ela arrebata do instinto natu­ ral, aparece como livre efeito desse mesmo instinto" (Werke, ed Karpeles, XI, 202. Cf. PAREYSON, A estética do idealismo alemão, pp. 239 ss.). Kant não refutou decididamente esse conceito de Schiller e, mesmo atenuando-o, não negou que a virtude pudesse ou devesse concordar com a graça (Religion, I, obs., nota). Aliás, em Antropologia (I, § 67), adotou a ex­ pressão A. bela, entendendo por ela o "ponto central em torno do qual o juízo de gosto reúne todas as suas apreciações do prazer sensível, na medida em que .este pode unificar-se com a liberdade do intelecto". Esse conceito viria a ter grande importância no Romantismo. Hegel re­ tomou-o em Fenomenologia do espírito (VI, C, c): a A. bela é uma consciência que "vive na ânsia de manchar com a ação e com o existir a honestidade do seu interior"; que, não queren­ do renunciar à sua refinada subjetividade, ex­ prime-se somente com palavras e que, se dese­ ja agir, perde-se em absoluta inconsistência. Goethe dedicou à "confissão de uma A. bela" o VI livro das Experiências de Wilhelm Meister e a fazia falar assim; "Não me recordo de nenhu­ ma ordem; nada me aparece com forma de lei; é um impulso que me conduz e me guia sem­ pre retamente; sigo livremente minhas disposi­ ções e sei tão pouco de limitações quanto de arrependimentos". A A. bela é uma das figuras típicas do Romantismo: a encarnação da mo­ ralidade, não como regra ou dever, mas como efusão do coração ou do instinto. Scheler, mes­ mo apercebendo-se do decadentismo dessa noção romântica, considera ainda que "a antiga questão a respeito da relação entre a A. bela, que quer o dever-ser ideal e o realiza não por dever, mas por inclinação, e o comportamento 'pelo dever', a que Kant reduz todo valor mo­ ral, deve ser resolvida no sentido de que a A. bela é não só de igual valor, mas de valor supe­

ALMA DO MUNDO

rior" (Formalísmus, p. 226). Mas, no uso con­ temporâneo, essa expressão assumiu um signi­ ficado irônico e motejador, designando a atitu­ de de quem vive satisfeito com a sua suposta perfeição moral, ignorando ou desconhecendo os problemas efetivos, as dificuldades e as lu­ tas que tornam difícil o exercício da atividade moral eficaz. Essa reviravolta de apreciação devese, provavelmente, a Nietzsche, que, em Genealogía da moral (I, § 10), descreveu os puros de coração, as A. belas que embandeiram poeticamente suas virtudes, como "homens do ressentimento", que estremecem com um es­ pírito subterrâneo de vingança contra aqueles que encarnam a riqueza e o poder da vida (v. RES­ SENTIMENTO). ALMA DO MUNDO (gr. uxyáA.r[_yx>y/l; lat. Anima mundi; in. World-soul; fr. Amedu mon­ de; ai. Weltseele, it. Anima dei mondo). Noção recorrente na cosmologia tradicional, que, fre­ qüentemente, concebe o mundo como "um grande animal", dotado, portanto, de A. pró­ pria. Assim Platão concebeu o mundo em Timeu e imaginou que a A.dele fosse construída e dis­ tribuída geometricamente pelo Demiurgo (Tim., 34 b). — Essa noção foi retomada pelos estóicos, que identificaram Deus com o mundo e conceberam-no como "um animal imortal, ra­ cional, perfeito, inteligente e bem-aventurado" (DIÓG. L, VII, 137). Para Plotino, a A. do mun­ do é a segunda emanação do Uno ou Deus e procede do Intelecto, que é a primeira emana­ ção, assim como este procede do Uno. A A. universal está voltada, de um lado, para o inte­ lecto e, de outro, para as coisas inferiores ou materiais que ela ordena e governa (Enn., V, 1, 2). Na Escolástica, a A. do mundo foi, às vezes, identificada com o Espírito Santo, como em Abelardo (Theol. Christ., I, 17) e em alguns re­ presentantes da Escola de Chartres (Bernardo Silvestre, Teodorico de Chartres). No Renas­ cimento, essa doutrina foi retomada por Giordano Bruno, para quem Deus é o intelecto universal, "que é a primeira e principal faculdade da A. do mundo, e esta é forma universal daquele [do próprio mundo]" {De Ia causa, III); essa doutri­ na foi comumente aceita por todos os que ad­ mitiram a validade da magia, que foram muitos (Cornélio Agripa, Paracelso, Fracastoro, Cardano, Campanella, etc), já que considerada como o fundamento da "simpatia universal" entre as coisas do mundo, que o mago utiliza em seus encantamentos e em suas operações miraculosas. Schelling utilizou o conceito de A. do mundo

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ALTERIDADE

(Sobre a A. do mundo, 1798) para demonstrar a continuidade do mundo orgânico e do mun­ do inorgânico num todo, que é também um organismo vivo, enquanto Hegel negava a "A. mundial", pois considerava que a A. "tem a sua verdade efetiva só como individualidade, sub­ jetividade" (Ene, § 391). Com o predomínio da ciência e da concepção mecânica do mundo, a noção de A. do mundo tornou-se, obviamente, inútil. ALÓGICO (in. Alogical; fr. Alogique, ai. Alogisch; it. Alogico). 1. O mesmo que a-racional (v.). 2. O que não pode ser reduzido a algum tipo particular de racionalidade e de lógica. O substantivo alógica foi empregado nesse senti­ do por Jaspers: "Nesse ponto nasce uma alógica racional (vernunftige Alogik), isto é, o movi­ mento verdadeiro da razão que alcança o seu objetivo só quando quebra a lógica do intelec­ to" (Vernunft undExistem, 1935, IV, 2, trad. it., p. 128). ALOGLOSSIA (fr. Alloglossie). Troca ou con­ fusão no significado das palavras. Esse termo é usado por Leibniz (V. Lettre ã Clarke, § 45). ALTERAÇÃO (gr. àM.oí<úaiç; in. Alteration; fr. Alteration; ai. Alteration; it. Alterazione). Segundo Aristóteles, uma das formas da mu­ dança, mais precisamente aquela conforme à categoria da qualidade, não se entendendo por qualidade a que é essencial a uma substância e se expressa na diferença específica, mas a que uma substância ou realidade recebe ou sofre (Eis, V, 2, 226 a 23 ss.). Em outros termos, a A., para Aristóteles, é a aquisição ou a perda de qualidades acidentais, como, p. ex., estar ora com boa saúde, ora com má saúde (Met., VIII, 1, 1.042 a 36). Esse significado de "mu­ dança qualitativa" permaneceu no uso filosófi­ co da palavra em questão, conquanto nem sem­ pre esse uso tenha ficado dentro dos limites fixados por Aristóteles, que excluía da A. as qualidades essenciais. ALTERIDADE (gr. ÉxepóTT]Ç; lat. Alteritas, Alietas; in. Otberness; fr. Altérité, ai. Anderheit, Anderssein; it. Alterita). Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A A. é um concei­ to mais restrito do que diversidade e mais ex­ tenso do que diferença. A diversidade pode ser também puramente numérica, não assim a A. (cf. ARISTÓTELES, Met, IV, 9,1.018 a 12). Por ou­ tro lado, a diferença implica sempre a determi­ nação da diversidade (v. DIFERENÇA), enquanto a A. não a implica. Aristóteles considerou que

ALTERNAÇÃO

a distinção de um gênero em várias espécies e a diferença dessas espécies na unidade de um gênero implica uma A. inerente ao próprio gênero: isto é, uma A. que diferencia o gênero e o torna intrinsecamente diverso (Met., X, 8, 1.058 a 4 ss.). Do conceito de A. valeu-se Plotino para assinalar a diferença entre a unidade ab­ soluta do primeiro Princípio e o intelecto, que é a sua primeira emanação.- sendo o intelecto ao mesmo tempo pensante e pensado, intelec­ to enquanto pensa, ente enquanto é pensado, é marcado pela A., além de sê-lo pela identida­ de (Enn., V, I, 4). De modo análogo, Hegel utiliza o mesmo conceito para definir a nature­ za com relação à Idéia, que é a totalidade racio­ nal da realidade. A natureza é "a idéia na forma de ser outro (Anderssein)". Desse modo, é a negação de si mesma e é exterior a si mesma: de modo que a exterioridade constitui a deter­ minação fundamental da natureza (Ene, § 247). Mas, de modo mais geral, pode-se dizer que, segundo Hegel, a A. acompanha todo o desen­ volvimento dialético da Idéia, porque é ineren­ te ao momento negativo, intrínseco a esse de­ senvolvimento. De fato, tão logo estejam fora do ser indeterminado, que tem como negação o nada puro, as determinações negativas da Idéia tornam-se, por sua vez, alguma coisa de determinado, isto é, um "ser outro" que não aquilo mesmo que negam. "A negação — não mais como o nada abstrato, mas como um ser determinado e um algo — é somente forma para esse algo, é um ser outro" (Ene, § 91)ALTERNAÇÃO. V. ALTERNATIVA. ALTERNATIVA, PROPOSIÇÃO (in. Alternativeproposition; fr. Proposition alternative, ai. Alternative Proposition; it. Proposizione al­ ternativa). Com esse nome costuma-se indi­ car, propriamente, a proposição molecular disjuntiva "p ou q" ("ao menos p é verdadeiro, portanto se p não é verdadeiro, q é verdadei­ ro"). Mas não raro, em uso não rigoroso, as componentes da disjuntiva molecular são cha­ madas de "alternativas", uma em relação à ou­ tra. Parece que a palavra alternatio, introduzi­ da pelos escritores latinos para indicar a proposição disjuntiva, deriva da linguagem ju­ rídica. G. P. ALTRUÍSMO (in. Altruism; fr. Altruisme, ai. Altruismus-, it. Altruísmo). Esse termo foi criado por Comte, em oposição a egoísmo (v.), para designar a doutrina moral do positivismo. No Catecismopositivsta (1852), Comte enunciou a máxima fundamental do A.: viver para os ou­

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ALTRUÍSMO

tros. Essa máxima, acreditava ele, não contraria indistintamente todos os instintos do homem já que o homem possui, ao lado dos instintos egoístas, instintos simpáticos que a educação positivista pode desenvolver gradualmente, até torná-los predominantes sobre os outros. Com efeito, as relações domésticas e civis tendem a conter os instintos pessoais, quando eles susci­ tam conflitos entre os vários indivíduos, e a promover as inclinações benévolas que se de­ senvolvem espontaneamente em todos os indi­ víduos. Esse termo logo foi aceito por Spencer (Princípios de psicologia, 1870-72), segundo o qual a antítese entre egoísmo e A. estaria des­ tinada a desaparecer com a evolução moral e que haveria cada vez mais coincidência entre a satisfação do indivíduo e o bem-estar e a feli­ cidade do outro (Data ofEthics, % 46). Como se vê, o fundamento da ética altruísta é naturalis­ ta, porque apela para os instintos naturais que levam o indivíduo em direção aos outros e pre­ tende promover o desenvolvimento de tais ins­ tintos. O seu termo polêmico é a ética indivi­ dualista do séc. XVIII, que reivindica os valores e os direitos do indivíduo contra os da socieda­ de, em especial do Estado. Comte, como todo o Romantismo (v.), obedece à exigência opos­ ta, que insiste no valor preeminente da autori­ dade estatal; por isso, sua ética prescreve pura e simplesmente o sacrifício do indivíduo. Não é, portanto, de se estranhar que as doutrinas interessadas na defesa do indivíduo tenham considerado com hostilidade e desprezo a moral do altruísmo. Assim, em Nietzsche, ao identifi­ car-se amor ao próximo com A., este é conde­ nado por Zaratustra. "Vós ides ao próximo fu­ gindo de vós mesmos e quereríeis fazer disso uma virtude; mas eu leio através do vosso A... Não sabeis suportar-vos a vós mesmos e não vos amais o bastante; e eis que quereis sedu­ zir o vosso próximo induzindo-o ao amor e embelezar-vos com o seu amor" (Also sprach Zarathustra, cap. sobre o Amor ao próximo). Em terreno mais objetivo e científico, Scheler (Sympathie, II, cap. I) negou a identificação (pressuposta também por Nietzsche) do A. com o amor. Observou que os atos que se dirigem para os outros enquanto outros nem sempre são, necessariamente, "amor". A inveja, a mal­ dade, a alegria maligna, referem-se igualmente aos outros enquanto outros. Um amor que faz abstração total de si mesmo apóia-se num ódio ainda mais primitivo, isto é, o ódio de si mes­ mo. "Fazer abstração de si, não poder suportar

AMAB1MUS

o colóquio consigo mesmo, são coisas que nada têm a ver com o amor". Na realidade, a máxima do A., "viver para os outros", se tomada literal­ mente, faria de todos os homens meios para um fim que não existe; por isso, é contrária a um dos teoremas mais bem estabelecidos da ética moderna (e da ética em geral), isto é, aquele segundo o qual o homem nunca deve ser considerado um simples meio, mas deve ter sempre, também, valor de fim. AMABIMUS. V. PURPÚREA. AMBIENTE (in. Environment; fr. Milieu; ai. Mittel; it. Ambiente). No significado corrente, um complexo de relações entre mundo natural e ser vivo, que influem na vida e no comporta­ mento do mesmo ser vivo. Nesse sentido, essa palavra (milieu ambiani) foi provavelmente introduzida pelo biólogo Geoffroy St.-Hilaire (Etudes progressives d'un naturaliste, 1835), sendo retomada e empregada por Comte (Cours dephilosophiepositive, liç. 40, § 13 ss.). Obser­ vações sobre a influência das condições físicas, especialmente do clima, sobre a vida dos ani­ mais, em geral, e do homem em particular, e até sobre a vida política do homem, encon­ tram-se freqüentemente nos escritores antigos (cf., p. ex., ARISTÓTELES, Pol, VII, 4, 7), sendo depois repetidas de várias formas. No mundo moderno, deve-se a Montesquieu (Livro XIV de Lesprit des lois, 1648) o princípio, por ele sistematicamente desenvolvido, de que "o ca­ ráter do espírito e as paixões do coração são extremamente diferentes nos diversos climas" e por isso "as leis devem ser relativas à diferen­ ça dessas paixões e à diferença desses ca­ racteres". O positivismo oitocentista atribuiu ao A. físico e biológico valor de causa determinante de todos os fenômenos propriamente huma­ nos, da literatura à política. A obra literária e filosófica de Taine contribuiu para a difusão dessa tese, segundo a qual o ambiente físico, biológico e social determina necessariamente todos os produtos e valores humanos, bastan­ do para explicá-los. Em Filosofia da arte (1865), Taine afirmou que a obra de arte é produto necessário do ambiente e que, por isso, se pode inferir dele não só o desenvolvimento das for­ mas gerais da imaginação humana, como tam­ bém a explicação para as variações de estilos, as diferenças de escolas nacionais, e até mes­ mo os caracteres gerais das obras individuais. No mundo contemporâneo, a noção de A. con­ tinuou sendo fundamental nas ciências biológi­ cas, antropológicas e sociológicas, mas foi se

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AMBIVALÊNCIA

transformando gradualmente, já que a relação entre o A. e o organismo, ou entre o homem e o grupo social deixou de ser entendida segun­ do um esquema mecânico, isto é, como uma relação de determinismo causai absoluto. A ação seletiva que o ser, sobre o qual o A. age, exerce em face do próprio A. foi amplamente subli­ nhada. "O A. de um organismo", disse Goldstein, "não é algo acabado, mas vai-se formando con­ tinuamente, à medida que o organismo vive e age. Poder-se-ia dizer que o A. é extraído do mundo pela existência do organismo, ou, mais objetivamente, que um organismo não pode existir se não conseguir encontrar no mundo, talhar nele, para si, um A. adequado, contanto, naturalmente, que o mundo lhe ofereça essa possibilidade" (Aufbau des Organismus, 1934, p. 58). Analogamente, a propósito do A. histórico-social, Toynbee disse: "O A. total, geográ­ fico e social, em que está compreendido tanto o elemento humano quanto o nâo-humano, não pode ser considerado um fator positivo a partir do qual as civilizações foram geradas. É claro que uma combinação virtualmente idên­ tica dos dois elementos do A. pode originar uma civilização num caso e deixar de originála em outro, sem que seja possível, de nossa parte, explicar essa diferença absoluta em seu surgimento com alguma diferença substancial nas circunstâncias, por mais exatos que te­ nham sido os termos da comparação" (A Study ofHistory, I, p. 269). Isto, obviamente, não sig­ nifica que o A. não aja de nenhum modo sobre a vida e sobre as criações dos homens, mas apenas que é mais condição do que causa. Os filósofos sublinharam esse novo significado de ambiente. Mead disse: "O A. é uma seleção dependente da forma viva" {Phil. oftheAct, p. 164). Por outro lado, Heidegger pretendeu analisar o ser no mundo (que é determinação essencial da existência) como um questiona­ mento e uma discussão da noção de A. que a biologia apenas pressupõe (Sein und Zeit, § 12). AMBIGÜIDADE (in. Ambiguity- fr. Ambiguité. ai. Ambiguitàt; it. Ambiguitã). 1. O mes­ mo que equivocação (v.). 2. Referindo-se a estados de fato ou situa­ ções: possibilidade de interpretações diversas ou presença de alternativas que se excluem. AMBIVALÊNCIA (in. Ambivalence, fr. Ambivalence, ai. Ambivalenz; it. Ambivalenzd). Estado caracterizado pela presença simultânea de valorizações ou de atitudes contrastantes ou

AMERICA

opostas. Esse termo é usado especialmente em psicologia, para indicar certas situações emotivas que implicam amor e ódio, e em geral atitudes opostas em face do mesmo objeto (cf. E. BLEULER, Lehrbuch derPsychiatrie, 2- ed., 1918). AMERICA (in. America; fr. Amérique, ai. Amerika-, it. America). Os filósofos do Roman­ tismo tiveram participação ativa na "disputa no Novo Mundo", que se iniciou em meados do séc. XVIII e pode-se dizer que ainda perdura, a propósito da inferioridade ou superioridade da América. A tese da fragilidade ou da "imatu­ ridade" das Américas nasce com Buffon, que, examinando comparativamente as espécies ani­ mais na A. e na Europa, concluía que na A. "a natureza viva é bem menos ativa, bem menos va­ riada e, pode-se dizer também, bem menos forte" (CEuvres, ed. 1826-28, XV, 429). As teses de Buffon foram polemicamente amplificadas pelo abade De Paw, num texto de 1768, Recherchesphilosophiques sur les Américains. Nas mãos de Hegel, as observações de Buffon e De Paw tornam-se, em conformidade com seu espírito, "determinações absolutas", verda­ des necessariamente deduzidas. A A. é um mundo novo no sentido de ser imaturo e fraco; nele, a fauna é mais débil, mas em compensa­ ção a vegetação é monstruosa. Nela faltam os dois instrumentos de progresso civil, o ferro e o cavalo (Ene, § 339, Zus.). A A. é, portanto, um mundo novo no sentido de ser jovem e imaturo. Até mesmo o mar entre a A. do Sul e a Ásia "manifesta uma imaturidade física quan­ to à sua origem". E, por tudo isso, "a A. sempre se mostrou e mostra-se ainda impotente, tanto do ponto de vista físico quanto do espiritual" (Phil. derGeschichte, ed. Lasson, pp. 122 ss.). É bem verdade que, talvez mesmo por essa ima­ turidade, a A. é "a Terra do futuro, para a qual, em tempos futuros, talvez na luta entre o Norte e o Sul, se voltará o interesse da história univer­ sal". Mas Hegel logo acrescenta: "Como terra do futuro, ela absolutamente não nos diz res­ peito. O filósofo não entende de profecias. Pelo lado da história nós temos mais a ver com o que foi e com o que é, ao passo que na filosofia não nos ocupamos nem do que só foi, nem do que só será, mas do que é e é eternamente: da razão; com o que já temos muito que fazer" (ibid., ed. Lasson, p. 129). Schopenhauer, por sua vez, repetia as observações (se assim se podem chamar) sobre a inferioridade da fauna ameri­ cana e dos indígenas; e acrescia, na linguagem florida das suas invectivas, uma descrição dos

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AMIZADE

Estados Unidos como de um país próspero, mas dominado por um vil utilitarismo e por sua inevitável companheira, a ignorância, que abriu caminho à estúpida beatice anglicana, à tola presunção e à brutal vulgaridade, aliada a uma estulta veneração pelas mulheres (Die Welt, II, 44; Parerga, II, VI § 92). Da mesma tendência denegridora não se exime o outro ramo do Romantismo, o positivismo, que, através de Comte, desvaloriza o alcance da revolução ame­ ricana, vê nos Estados Unidos uma "colônia universal" e considera a sua civilização de todo desprovida de originalidade e uma simples fi­ lial da civilização inglesa (Coursdephil.positive, V, 470-71; VI, 60 n.). Por outro lado, o mesmo Romantismo sugeria a Emerson uma exaltação mística da A., tão fantástica e arbitrária quanto as infamações dos românticos europeus (The American Scholar, 1837; The YoungAmerican, 1844). Já Humboldt notava (Ansichten derNatur, 1807) o caráter arbitrário e fantástico desses comentários que pretendiam ser "científicos" ou "especulativos" e que eram somente dogmatizações de preconceitos. Mas, apesar disso, os elementos da polêmica sobre o Novo Mun­ do permaneceram por longo tempo e talvez ainda hoje permaneçam os mesmos que apon­ tamos (para mais detalhes, cf. A. GERBI, La dis­ puta dei Nuovo Mondo,^Milão-Nápoles, 1955). AMIZADE (gr. (pAjQC; in. Friendship; fr. Amitié, ai. Freundschaft; it. Amicizia). Em ge­ ral, a comunidade de duas ou mais pessoas ligadas por atitudes concordantes e por afetos positivos. Os antigos tiveram da A. um concei­ to muito mais amplo do que o admitido e usa­ do hoje em dia, como se infere da análise que Aristóteles fez dela nos livros VIII e IX da Etica a Nicômaco. Segundo Aristóteles, a amizade é uma virtude ou está estreitamente unida à vir­ tude: de qualquer forma, é o que há de mais necessário à vida, já que os bens que a vida oferece, como riqueza, poder, etc, não podem ser conservados nem usados sem os amigos (VIII, 1, 1.155 a 1). A A. deve ser distinguida das duas coisas com as quais parece ter mais afini­ dade: amor e benevolência. Distingue-se do amor ((píAnenç) porque este é semelhante a uma afeição (v.); a A. a um hábito (v.). De tal modo que o amor também pode dirigir-se a coisas inanimadas, ao passo que corresponder ao amor, que é próprio da A. implica uma escolha que provém de um hábito (VIII, 5, 1.157 b 28). Além disso, o amor é acompanhado por excitação e desejo, que são estranhos à A.; além disso, di­

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ferentemente da A., é provocado pelo prazer causado pela vista da beleza (IX, 5, 1.166 b 30). A A. distingue-se também da benevolência porque esta também pode dirigir-se a desco­ nhecidos e permanecer oculta: o que não acon­ tece com a A. (IX, 5, 1.167 a 10). A A. é, certa­ mente, uma espécie de concórdia, mas uma concórdia que não repousa na identidade de opiniões, mas, assim como a concórdia entre cidades, na harmonia das atitudes práticas, de sorte que, a justo título, chama-se de "A. civil" a concórdia política (IX, 6, 1.167 a 22). A A. é, certamente, uma comunidade no sentido de que o amigo se comporta em relação ao amigo como em relação a si mesmo (IX, 12, 1.171 b 32). Há tantas espécies de amizades quantas são as comunidades, isto é, as partes da socie­ dade civil: entre os navegantes, entre os solda­ dos, entre os que fazem um trabalho qualquer em comum (VIII, 9, 1.159 b 25). Pode haver também A. entre senhor e escravo, se o escravo não for considerado apenas um instrumento animado, mas um homem. Só na tirania há pouca ou nenhuma A., pois nela não há nada em co­ mum entre quem manda e quem obedece, e a A. é tão mais forte quanto mais coisas comuns houver entre iguais (VIII, 11, 1.161, b 5). Há também tantas A. quantas são as formas do amor: entre pai e filho, entre jovem e velho, entre marido e mulher. Esta última é a mais natural e nela se unem a utilidade e o prazer (VIII, 12, 1.161 b 11). Quanto ao fundamento da A., pode ser a utilidade recíproca, o prazer ou o bem, mas é claro que, enquanto a A. fun­ dada na utilidade ou no prazer está destinada a acabar quando o prazer ou a utilidade cessa­ rem, a A. fundada no bem é a mais estável e firme, portanto a verdadeira A. (VIII, 3, 1.156 a 6 ss.). Essa análise de Aristóteles, a mais com­ pleta e bela que em filosofia já se fez sobre o fenômeno A., apóia-se nos seguintes pontos: f a A. é uma comunidade ou participação solidá­ ria de várias pessoas em atitudes, valores ou bens determinados; 2- está ligada ao amor, tem formas semelhantes, mas não se identifica com o amor; 3Q aproxima-se mais da benevolência e, por isso, está vinculada aos afetos positi­ vos, que implicam solicitude, cuidado, pieda­ de, etc. Assim, segundo Aristóteles, a A. é mais ampla do que o amor, que é limitado e condicio­ nado pelo prazer da beleza. E é diferente do amor pelo seu caráter ativo e seletivo, pelo que Aristóteles diz que o amor é uma afeição (Jtá9oç), isto é, uma modificação sofrida, ao passo que a

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A. é um habito (assim como hábito é a virtu­ de), isto é, uma disposição ativa e compromissiva da pessoa. Depois de Aristóteles, a A. foi exal­ tada pelos epicuristas, que nela basearam um dos fundamentos de sua ética e de sua conduta prática. Nessa escola, porém, assume caráter aristocrático; é uma das manifestações da vida do sábio, e não está, como em Aristóteles, vin­ culada às relações humanas como tais. Nos tes­ temunhos epicuristas que nos chegaram, rea­ parecem alguns reparos aristotélicos, como, p. ex., que "A A. nasce do útil, mas é um bem por si. Amigo não é quem procura sempre o útil, nem quem nunca o une à A., pois o primeiro considera a A. como um tráfico de vantagens, e o segundo destrói a esperança confiante de ajuda, que é parte importante da A." (Sent. Vat., 39-24, Bignone). Com o predomínio do Cristianismo, a im­ portância da A. como fenômeno humano pri­ mário declina na literatura filosófica. O concei­ to mais amplo e mais importante passa a ser o do amor, do amor ao próximo, que carece dos caracteres seletivos e específicos que Aris­ tóteles atribuíra à amizade. De fato, "próxi­ mo" é aquele com que deparamos ou que está comumente em relação conosco, seja quem for, amigo ou inimigo. A máxima aristotélica da A., "comportar-se com o amigo como con­ sigo mesmo", ver nele "um outro eu" (Et. nic, IX, 9, 1170 b 5; IX, 12, 1171 b 32), é estendida pelo Cristianismo a todo próximo. AMOR (gr. epcoç àyáiu]; lat. Amor, cantas; in. Love, fr. Amour, ai. Hebe, it. Amore). Os sig­ nificados que este termo apresenta na lingua­ gem comum são múltiplos, díspares e con­ trastantes; igualmente múltiplos, díspares e contrastantes são os que se apresentam na tra­ dição filosófica. Começaremos apontando os usos mais correntes da linguagem comum, para selecioná-los, ordená-los e utilizá-los como cri­ tério de seleção e organização dos usos filosó­ ficos desse termo: a) em primeiro lugar, com a palavra A. designa-se a relação intersexual, quando essa relação é seletiva e eletiva, sendo, por isso, acompanhada por amizade e por afe­ tos positivos (solicitude, ternura, etc). Do A., nesse sentido, distinguem-se freqüentemente as relações sexuais de base puramente sensual, que não se baseiam na escolha pessoal, mas na necessidade anônima e impessoal de relações sexuais. Muitas vezes, porém, a mesma lingua­ gem comum estende também para esse tipo de relações a palavra A., como quando se diz "fa­

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zer amor"; ti) em segundo lugar, a palavra A. designa uma vasta gama de relações inter­ pessoais, como quando se fala do A. entre amigos, entre pais e filhos, entre cidadãos, en­ tre cônjuges; c) em terceiro lugar, fala-se do A. por coisas ou objetos inanimados: p. ex., A. ao dinheiro, a obras de arte, aos livros, etc; d) em quarto lugar, fala-se de A. a objetos ideais: p. ex., A. à justiça, ao bem, à glória, etc; e) em quinto lugar, fala-se de A. às atividades ou for­ mas de vida: A. ao trabalho, à profissão, ao jogo, ao luxo, ao divertimento, etc.;/) em sex­ to lugar, fala-se de A. à comunidade ou a entes coletivos: A. à pátria, ao partido, etc; g) em sétimo lugar, fala-se de A. ao próximo e de A. a Deus. Sem dúvida, alguns desses significados po­ dem ser eliminados por impróprios, já que podem ser expressos e designados mais exata­ mente por outras palavras. Assim: a) a relação intersexual só pode ser chamada de A. quando é de base eletiva e implica o compromisso re­ cíproco. Evitar-se-á, assim, chamar de "A." a relação sexual ocasional ou anônima. No que diz respeito aos usos indicados em c) (isto é, A. a objetos inanimados), está claro que, aí, a pa­ lavra A. está por desejo de posse, quando tal desejo atinge a forma dominante da paixão. E, no que tange aos usos indicados em d) (A. a objetos ideais), está também claro que a pala­ vra "A." está aí a indicar certo compromisso moral, capaz de fixar limites e condições à ati­ vidade do indivíduo. Enfim, no que diz respei­ to a e) (A. a atividades, etc.) a palavra "A." está a indicar certo interesse mais ou menos domi­ nante, isto é, mais ou menos incorporado na personalidade do indivíduo, ou até mesmo uma "paixão". Portanto, pode-se tomar em conside­ ração, como significados próprios e irredutíveis da palavra "A.", as acepções indicadas em (d), (ti), (f), (g). Esses usos revelam de imediato certas afinidades de significado: Ia o A. desig­ na, em todos os casos, um tipo específico de relação humana, caracterizado pela solidarie­ dade e pela concórdia dos indivíduos que dele participam; 2° o desejo, em particular o desejo de posse, não se inclui necessariamente na cons­ tituição do A., pois, se é discutível que se inclua no A. sexual, deve ser totalmente excluído do A. de que se fala em (ti), (/), (g); 3Q o caráter específico da solidariedade e da concórdia, que constituem o A., não pode ser determinado de uma vez por todas, já que é diferente, segundo as formas ou as espécies diversas do A. e impli­

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ca também graus diversos de intimidade, de familiaridade e de emotividade. P. ex., o A. entre homem e mulher, entre pai e filho, entre cidadãos ou entre homens que se considerem como "próximos" tem diferentes bases biológi­ cas, culturais e sociais e não permite a reunião sob o mesmo tipo ou a mesma forma de soli­ dariedade, de concórdia e de co-participação emotiva. Será necessário, portanto, ter em mente essa diversidade ao se considerar o uso que os filósofos fizeram desse termo, já que não raro esse uso é modelado por um ou mais tipos particulares de experiência amorosa. Os gregos viram no A. sobretudo uma força unificadora e harmonizadora, que entenderam baseada no A. sexual, na concórdia política e na amizade. Segundo Aristóteles (Met., I, 4, 984 b 25 ss.), Hesíodo e Parmênides foram os pri­ meiros a sugerir que o A. é a força que move as coisas, que as une e as mantém juntas. Empédocles reconheceu no A. a força que mantém unidos os quatro elementos e, na discórdia, a força que os separa: o reino do A. é o esfero, a fase culminante do ciclo cósmico, na qual to­ dos os elementos estão ligados na mais com­ pleta harmonia. Nesse fase, não há nem sol nem terra nem mar, porque não há nada além de um todo uniforme, uma divindade que frui a sua solidão (Fr. 27, Diels). Platão nos deu o primeiro tratado filosófico do A.: nele foram apresentados e conservados os caracteres do A. sexual; ao mesmo tempo, tais caracteres são generalizados e sublimados. Em primeiro lugar, o A. é falta, insuficiência, necessidade e, ao mes­ mo tempo, desejo de conquistar e de conservar o que não se possui (O Banq., 200 a, ss.). Em segundo lugar, o A. dirige-se para a beleza, que outra coisa não é senão o anúncio e a aparên­ cia do bem, logo, desejo do bem (ibid., 205 e). Em terceiro lugar, o A. é desejo de vencer a morte (como demonstra o instinto de gerar, próprio de todos os animais) e é, portanto, a via pela qual o ser mortal procura salvar-se da mortalidade, não permanecendo sempre o mesmo, como o ser divino, mas deixando após si, em troca do que envelhece e morre, algo de novo que se lhe assemelha (ibid., 208 a, b). Em quarto lugar, Platão distingue tantas formas do A. quantas são as formas do belo, desde a be­ leza sensível até a beleza da sabedoria, que é a mais elevada de todas e cujo A., isto é, a filoso­ fia, é, por isso mesmo, o mais nobre (ibid., 210 a, ss.). Em Fedro, a finalidade é mostrar o cami­ nho pelo qual o A. sensível pode tornar-se amor

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pela sabedoria, isto é, filosofia, e o delírio eró­ tico pode tornar-se uma virtude divina, que afasta dos modos de vida usuais e empenha o homem na difícil procura dialética {Fed., 265 b. ss.). Essa doutrina platônica do A., ao mesmo tempo em que contém os elementos de uma análise positiva do fenômeno, oferece também o modelo de uma metafísica do A., que seria retomada várias vezes na história da filosofia. Aristóteles, ao contrário, detém-se na consi­ deração positiva do amor. Para ele o A. é A. sexual, afeto entre consangüíneos ou entre pessoas de algum modo unidas por uma rela­ ção solidária, ou amizade (v.). Em geral, o A. e o ódio, como todas as outras afeições da alma, não pertencem à alma como tal, mas ao homem enquanto composto de alma e corpo {Dean., I,1, 403 a 3) e, portanto, enfraquecemse com o enfraquecimento da união de alma e corpo {Ibid., I, 4, 408 b 25). Aristóteles também reconhece no A. o fundamento de necessida­ de, imperfeição ou deficiência, em que Platão insistira. A divindade, diz ele, não tem necessi­ dade de amizade, pois é o seu próprio bem para si mesma, enquanto para nós o bem vem do outro {Et. eud., VII, 12, 1.245 b 14). O A. é, portanto, um fenômeno humano e não é de estranhar que Aristóteles não tenha feito ne­ nhum uso dele em sua teologia. Ele é uma afeição, isto é, uma modificação passiva, en­ quanto a amizade é um hábito, uma disposição ativa {Et. nic, VIII, 5, 1.157 b 28). Ao A. unem-se a tensão emotiva e o desejo: ninguém é atingido pelo A. se não foi antes ferido pelo prazer da beleza; mas esse prazer de per si não é ainda A., que só se tem quando se deseja o objeto amado que está ausente e se anseia por ele quando presente {ibid., IX, 5, 1.167 a 5). O A. que está ligado ao prazer pode começar e aca­ bar rapidamente, mas pode também dar lugar à vontade de conviver; neste caso, assume a forma da amizade {Md., VIII, 3, 1.156 b 4). Se a análise aristotélica do A. é desprovida de re­ ferências metafísicas e teológicas, convém re­ cordar que a ordenação finalista do mundo e a teoria do primeiro motor imóvel levam Aristó­ teles a dizer que Deus, como primeiro motor, move as outras coisas "como objeto de A.", isto é, como termo do desejo que as coisas têm de alcançar a perfeição dele {Met., XII, 7, 1.072 b 3). Essas palavras serão muito empregadas pela filosofia medieval. Ao findar da filosofia grega, o neoplatonismo utilizou a noção de A. não para definir a natureza de Deus, mas para indi­

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car uma das fases do caminho que conduz a Deus. O Uno de Plotino não é A., porque é unidade inefável, superior à dualidade do de­ sejo {Enn., VI, 7, 40). Mas o A. é o caminho preparatório que conduz à visão dele, porque o objeto do A., segundo a doutrina de Platão, é o bem, e o Uno é o bem mais alto {ibid, VI, 7, 22). O Uno, portanto, é o verdadeiro termo e o objeto último e ideal de todo A., conquanto não seja através do A. que o homem se une a Ele, mas através da intuição, de uma visão em que o vidente e o visto se fundem e se unificam {ibid,, VI, 9, 11). Com o Cristianismo, a noção de A. sofre uma transformação; de um lado, é entendido como relação ou um tipo de relação que deve esten­ der-se a todo "próximo"; de outro, transformase em um mandamento, que não tem cone­ xões com as situações de fato e que se propõe transformar essas situações e criar uma comu­ nidade que ainda não existe, mas que deverá irmanar todos os homens: o reino de Deus. O A. ao próximo transforma-se no mandamento da não-resistência ao mal (MATEUS, 5, 44), e a parábola do bom Samaritano (LUCAS, 10, 29 ss.) tende a definir a humanidade à qual o A. deve dirigir-se, não no seu sentido composto, mas no seu sentido dividido, como cada pessoa com quem cada um entre em contato; a qual, exa­ tamente como tal, faz apelo à solicitude e ao A. do cristão. Além disso, na concepção cristã, o próprio Deus responde com A. ao A. dos ho­ mens; por isso, seu atributo fundamental é o de "Pai". As Epístolas de S. Paulo, identificando o reino de Deus com a Igreja e considerando a Igreja o "corpo de Cristo", cujos membros são os cristãos {Rom., 12, 5 ss.), fazem do A. (àyá7un), que é o vínculo da comunidade religiosa, a condição da vida cristã. Todos os outros dons do Espírito, a profecia, a ciência, a fé, nada são sem ele. "O A. tudo suporta, em tudo crê, tudo espera, tudo sustenta... Agora há fé, esperança, amor, três coisas; mas o amor é a maior de todas" {Cor., I, 13, 7-13). A elaboração teológi­ ca sofrida pelo Cristianismo no período da Patrística não utilizou, no princípio, a noção de A. Nos grandes sistemas da Patrística oriental (Origenes, Gregório de Nissa), a terceira pes­ soa da Trindade, o Espírito Santo, é entendida como uma potência subordinada e de caráter incerto: daí, também, as freqüentes discussões trinítárías que o concilio de Nícéia (325) não logrou eliminar de todo. Somente por obra de S. Agostinho, com a identificação do Espírito

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Santo ao A. (enquanto Deus Pai é o Ser e Deus Filho é a Verdade), o A. é introduzido explici­ tamente na própria essência divina e torna-se um conceito teológico, além de moral e reli­ gioso. O A. a Deus e o A. ao próximo unem-se em S. Agostinho, quase formando um conceito único. Amar a Deus significa amar o A.; mas, diz Agostinho, "não se pode amar o A. se não se ama quem ama". Não é A. o que não ama ninguém. Por isso, o homem não pode amar a Deus, que é o A., se não amar o outro homem. O A. fraterno entre os homens "não só deriva de Deus, mas é Deus mesmo" (De Trin., VIII, 12): é a revelação de Deus, em um de seus aspectos essenciais, à consciência dos homens. Contudo, em S. Agostinho, a noção de A. ainda é a mesma dos gregos: uma espécie de relação, união ou vínculo que liga um ser ao outro: quase "uma vida que une ou tende a unir dois seres, o amante e o que se ama" (ibid., VIII, 6). Essas idéias de Agostinho são retomadas freqüentemente durante todo o desenvolvimento de uma das principais correntes da Escolástica medieval, o agostinismo (v.): por João Scotus Erigena e João Duns Scot. Scotus Erigena diz: "O A. é a conexão e o vínculo pelo qual todas as coisas são ligadas em amizade inefável e em indissolúvel unidade... Com justiça, diz-se que Deus é A., porque ele é causa de A. e o A. difunde-se através de todas as coisas, reúne-as todas na unidade e as reconduz ao seu inefável ponto de partida: o movimento de A. de toda criatura tem o seu termo em Deus" (De divis. nat, I, 76). E Duns Scot afirma que Deus gera o Verbo conhecendo a Sua própria essência e exala o Espírito Santo amando esta essência. Desse modo, o A. eterno é a origem e a causa de toda comunicação da essência divina e, embora esse ato não seja "natural", porque é um ato de vontade, é todavia necessário (Op. Ox, I, dist. 10, q. 1, ns 2). Comentários análo­ gos reaparecem freqüentemente na corrente mística (v. MISTICISMO), enquanto na corren­ te aristotélica o uso teológico da noção de A. é muito mais restrito, preferindo-se ilustrar a na­ tureza divina com base nos conceitos de ser, substância e causalidade. Contudo, em toda a Escolástica, são repetidas as idéias de Aristóte­ les sobre a amizade, oportunamente modifi­ cadas e adaptadas para caracterizar a natureza do A. cristão (cantas). Assim, S. Tomás afirma que é comum a toda natureza ter certa inclina­ ção, que é o apetite natural ou o A. Essa incli­ nação é diferente nas diferentes naturezas e há,

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portanto, um A. naturale um A. intelectual; o A. natural é também um A. reto, por ser uma inclinação posta por Deus nos seres criados; mas o A. intelectual, que é caridade e virtude, é mais perfeito do que o primeiro; portanto, ao se acrescentar a ele, aperfeiçoa-o, do mesmo modo como a verdade sobrenatural se acres­ centa à verdade natural, sem se lhe opor, e a aperfeiçoa (S. Th, I, q. 60, a. 1). Quanto ao A. intelectual, isto é, à caridade, esta é definida por S. Tomás como "a amizade do homem por Deus", entendendo-se por "amizade", segundo o significado aristotélico, o A. que está unido à benevolência (amorbenevolentiae), istoé, que quer o bem de quem se ama, e não quer sim­ plesmente apropriar-se do bem que está na coisa amada (amor concupiscientiaê), como acontece com quem ama o vinho ou um cava­ lo. Mas a amizade supõe não só a benevolência como também o A. mútuo e, assim, funda-se em certa comunicação, que, no caso da carida­ de, é a do homem com Deus, que nos comu­ nica a Sua bem-aventurança (ibid., II, 2, q. 23, a. 1). Essa comunhão é, segundo S. Tomás, o que há de próprio no A.: este é uma espécie de união ou vínculo (unio vel nexus) de natureza afetiva, semelhante à união substancial porquan­ to quem ama comporta-se em relação ao ama­ do como em relação a si mesmo. Uma união real é também efeito do A., mas trata-se de uma união que não altera nem corrompe aque­ les que se unem, mas se mantém nos limites oportunos e convenientes, fazendo, p. ex. que conversem e dialoguem ou que se unam de outros modos semelhantes (ibid., II, 1, q. 28, a. 1, ad 2). Porquanto "amar" significa querer o bem de alguém, o A. pertence à vontade de Deus e a constitui. Mas o A. de Deus é diferente do amor humano porque, enquanto este últi­ mo não cria a bondade das coisas, mas a en­ contra no objeto pelo qual é suscitado, o A. de Deus infunde e cria a bondade nas próprias coisas (ibid., I, q. 20, a. 2). A especulação teológica sobre o A. retorna no platonismo renascentista, mas este acentua a reciprocidade do A. entre Deus e o homem, consoante a tendência, própria do Renascimento, de insistir no valor e na dignidade do homem como tal. Marsílio Ficino afirma que o A. é o liame do mundo e elimina a indignidade da natureza corpórea, que é resgatada pela solici­ tude de Deus (Theol. plat., XVI, 7). O homem não poderia amar a Deus, se o próprio Deus não o amasse; Deus volve-se para o mundo

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como um livre ato de A., cuida dele e torna-o vivo e ativo. O A. explica a liberdade da ação divina assim como a da ação humana, já que ele é livre e nasce espontaneamente da livre vontade (In Conv. Plat. de Am. Comm., V, 8). As mesmas palavras repetem-se em Diálogos de amor, de Leão Hebreu, que tiveram vastíssima difusão na segunda metade do séc. XVI. Mas também no naturalismo do Renascimento o A. retorna, às vezes, como força metafísica e teo­ lógica. Campanella julga que as três primalidades do ser (isto é, os três princípios constitutivos do mundo) são o Poder, o Saber e o A. (Met., VI, proêmio). O A. pertence a todos os entes porque todos amam o seu ser e desejam conservá-lo (ibid, VI, 10, a. 1). Nas três primalidades, a re­ lação de um ser consigo mesmo precede a sua relação com o outro: só se pode exercer força sobre outro ser na medida em que se a exer­ ce sobre si mesmo; assim, pode-se amar e conhe­ cer o outro ser só na medida em que se conhece e se ama a si mesmo (ibid, II, 5, 1, a. 13). Em todas as coisas finitas as três primalidades mis­ turam-se com os seus contrários: a potência com a impotência, a sapiência com a insipiência, o A. com o ódio. Somente em Deus, que é infi­ nito, elas excluem tais contrários e existem em pureza e em absoluto (ibid, VI, proêmio). Tra­ ta-se, como se vê, de comentários que lembram os de Agostinho. E, na realidade, o uso metafísico e teológico da noção de A. pode ser considera­ do, na tradição filosófica, como uma contribui­ ção do agostinismo, pelo menos até ao Ro­ mantismo, quando essa noção assume sentido panteísta, cujo precedente mais importante é Spinoza. É preciso ter em mente que o uso teo­ lógico da noção de A. implica não só que Deus é objeto de A. (o que não é negado por nenhu­ ma concepção cristã da divindade), mas que Ele próprio ama: o que é algo completamente diferente e que se encontra só no agostinismo, no Romantismo e em algumas concepções que, como a de Feuerbach e do positivismo moder­ no, tendem a identificar Deus com a humani­ dade. Na realidade, o A., no seu conceito clássi­ co, que tem como modelo a experiência humana, tem como condição a falta — e portanto o dese­ jo e a necessidade — daquilo que se ama; dificil­ mente pode ser atribuído a Deus, que, na sua plenitude e infinitude, está isento de qualquer deficiência. A concepção panteísta do A., p. ex., como a de Spinoza, de Schelling e de Hegel, resolve essa dificuldade só quando interpreta o A. como unidade ou consciência da unidade,

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isto é, de um modo que não encontra corres­ pondência em qualquer tipo de experiência amorosa. A unidade, seja ela ou não consciente de si, nada tem a ver com o A. e é, aliás, a negação do A., porque exclui a relação e a comunidade que o constituem em todas as suas manifestações. É bastante óbvio que onde há uma só coisa não há nem quem ame nem quem seja amado. À tradição agostiniana podem-se referir as famosas palavras de Pascal: "O Deus de Abrão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus dos Cristãos, é um Deus de A. e de consolação, é um Deus que enche a alma e o coração daque­ les que Ele possui e lhes faz sentir interiormen­ te a sua própria miséria e a misericórdia infinita d'Ele" (Pensées, 556, Brunschvicg). Mas é duvi­ doso que neste texto ou em outros semelhan­ tes de Pascal se possa ver muito mais do que a noção de que Deus é — em primeiro lugar e sobretudo — objeto de amor. Quanto a Malebranche, afirma que Deus criou o mundo "para proporcionar-Se uma honra digna de Si" (Recherche de Ia vérité, IX) e que o Verbo dis­ se: ''É o meu poder que faz tudo, tanto o bem quanto o mal... por isso, deves amar somente a mim, porque ninguém fora de mim produz em ti os prazeres que experimentas por ocasião do que acontece no teu corpo" (Méditations chrétíennes, XII, 5); palavras que parecem ex­ cluir a doutrina de Deus como A. As apreciações de Descartes sobre o fenô­ meno A., em escala humana, são importantes. "O A.", diz ele, "é uma emoção da alma, produ­ zida pelo movimento dos espíritos vitais que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes." Porquanto é pro­ duzido pelos espíritos, o A., que é uma afeição e depende do corpo, difere do juízo que tam­ bém induz a alma, de sua livre vontade, a unirse às coisas que julga boas (Pass. de 1'âme, II, 79). O A. distingue-se, outrossim, do desejo, que é dirigido para o futuro; permite, porém, que nos consideremos imediatamente unidos com o que amamos "de tal modo que imagina­ mos um todo de que somos só uma parte e do qual a coisa amada é a outra parte" (ibid., 80). Descartes rejeita a distinção medieval entre A. de concupiscência e A. de benevolência por­ que, diz ele, essa distinção concerne aos efeitos do A., mas não à sua essência: na medida em que estamos unidos voluntariamente a algum objeto, qualquer que seja a natureza deste, te­ mos por ele um sentimento de benevolência e este é um dos principais efeitos do A. (ibid.,

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81). Há, todavia, várias espécies de A., relativas aos diferentes objetos que possamos amar: o A. que um homem ambicioso sente pela glória, o pobre pelo dinheiro, o beberrão pelo vinho, um homem brutal por uma mulher que deseje violar, o homem honrado pelo amigo ou pela mulher e um bom pai pelos filhos são espécies diversas e todavia semelhantes de A. As quatro primeiras, porém, são A. só à posse dos objetos para os quais a emoção se dirige e não são A. aos objetos em si mesmos; as outras, no entan­ to, dirigem-se aos próprios objetos e desejam o bem deles (ibid., 82). Desta natureza é também a amizade, que, além do mais, está ligada à estima da pessoa amada; de tal modo que não se pode ter amizade por uma flor, um pássaro, cavalo, mas só pelos homens (ibid., 83). Em geral, quando julgamos o objeto do A. inferior a nós mesmos, sentimos por ele simples afeto (v.); quando o julgamos igual a nós mesmos, sentimos amizade, e quando o julgamos supe­ rior a nós mesmos, sentimos devoção. Desta última, o principal objeto é, naturalmente, Deus, mas pode dirigir-se também à pátria, à cidade e a qualquer homem que julgamos muito supe­ rior a nós mesmos (ibid., 83). Na mesma linha, acha-se a análise de Hume, segundo a qual o A. é uma emoção indefinível, mas cujo mecanis­ mo pode ser compreendido. A sua causa é sem­ pre um ser pensante (não se podem amar ob­ jetos inanimados) e o mecanismo com que essa causa age é constituído por uma dupla cone­ xão: conexão de idéias — entre a idéia de si e a idéia do outro ser pensante — e conexão emotiva entre a emoção do A. e a do orgulho (que é a emoção que nos põe em relação com o nosso eu); ou entre a emoção do ódio e a da humildade (Diss. onthePassions, II, 2). Em geral, os escritores do séc. XVIII insistem na conexão do A. com a benevolência, que é a caracterís­ tica na qual Aristóteles insistira a propósito da amizade. Leibniz exprimiu essa noção do A. da forma mais clara, que deveria ser repetida nu­ merosas vezes na literatura do século: "Quan­ do se ama sinceramente uma pessoa", diz ele (Op. Phil, ed. Erdmann, pp. 789-790), não se procura o próprio proveito nem um prazer desligado do da pessoa amada, mas procura-se o próprio prazer na satisfação e na felicidade dessa pessoa; e se essa felicidade não agradas­ se por si mesma, mas só pela vantagem que dela resultasse para nós, já não se trataria de A. sincero e puro. É preciso, pois, que se sinta imediatamente prazer nessa felicidade e que se

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sinta dor na infelicidade da pessoa amada, pois o que dá prazer imediato, por si mesmo, é tam­ bém desejado por si mesmo como constitutivo (ao menos em parte) do objetivo das nossas intenções e como algo que faz parte da nossa própria felicidade e nos dá satisfação". Segun­ do Leibniz, essa noção de A. elimina a oposição entre duas verdades, isto é, entre a que diz sernos impossível desejar outra coisa que não o nosso próprio bem, e a que diz não haver A. a não ser quando procuramos o bem do objeto amado por si mesmo e não para nossa própria vantagem. Tem também a vantagem, segundo Leibniz, de ser comum ao A. divino e ao A. humano porque exprime todos os tipos de A. "não mercenário", como, por ex., a cantas ou "benevolência universal" (Op.phil., p. 218). Su­ bentende-se que, neste sentido, o A. pode voltar-se só para "o que é capaz de prazer ou de felicidade"; assim, não se pode dizer, a não ser por metáfora, que amamos as coisas ina­ nimadas que nos dão prazer (Nouv. ess, II, 20, 4). Apreciações desse gênero são bastante freqüen­ tes nos escritores do séc. XVIII. Wolff diz que o A. é "a disposição da alma de sentir prazer pela felicidade alheia" (Psichol. empírica, § 633). E Vauvenargues afirma: "O A. é comprazer-se no objeto amado. Amar uma coisa significa comprazer-se em sua posse, em sua graça, em seu crescimento e temer a sua privação, o seu de­ caimento, etc." (De Vesprithumain, § 24). Nenhum dos escritores do séc. XVIII põe em dúvida que o A. se baseia nos sentidos, pelo que se diferencia da amizade. Vauvenargues, por ex., diz: "Na amizade, o espírito é o órgão do sentimento; no A., são os sentidos" (ibid., § 36). E Kant parece admitir esse pressuposto quando distingue o A. baseado nos sentidos, ou "patológico", do A. "prático", isto é, moral, que é imposto pela máxima cristã "Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo". O A. a Deus, como inclinação, diz Kant, é impossível, pois Deus não é um objeto dos sentidos. Outrossim, A. semelhante aos homens é possível, mas não pode ser imposto, porque ninguém tem o poder de amar o outro por preceito. "Amar a Deus", portanto, pode significar tão-somente "cumprir de bom grado os seus mandamentos"; e "amar ao próximo", tão-somente "pôr em prática de bom grado to­ dos os deveres para com ele". Mas, aqui, a ex­ pressão "de bom grado" diz que a máxima cris­ tã só obriga a aspirar a esse A. prático, mas que ele não é atingível pelos seres finitos. Com efei­

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to, seria inútil e absurdo "impor" o que se faz "de bom grado"; por isso, o preceito evangéli­ co apresenta a intenção moral na sua perfeição total "como um ideal de santidade não atingível por nenhuma criatura e que, todavia, é o exemplo de que devemos procurar aproximar-nos pelo progresso ininterrupto, mas infinito" (Crit. R. Pratica, I, I, cap. 3) (v. FANATISMO). A doutrina de Spinoza apresenta dois con­ ceitos de A., dos quais o segundo seria utiliza­ do pelos Românticos. Em primeiro lugar, o A., como qualquer outra emoção (affectus), é uma afecção da alma (passio) e consiste na alegria acompanhada pela idéia de uma causa externa {Et., III, 13 escól.). Nesse sentido, deve-se dizer com mais propriedade que Deus não ama nin­ guém, pois não está sujeito a nenhuma afecção (ibid, V, 17 corol.). Mas existe um "A. intelec­ tual de Deus", que é a visão de todas as coisas na sua ordem necessária, isto é, na medida em que derivam, com eterna necessidade, da pró­ pria essência de Deus (ibid, V, 29 escól.; 32 corol.). Este A. intelectual é o único eterno e é aquele com que Deus ama-se a si mesmo; de tal modo que o A. intelectual da mente para com Deus é parte do A. infinito com que Deus se ama a si mesmo. "Resulta", diz Spinoza, "que Deus, porquanto se ama a si mesmo, ama os homens e, por conseqüência, o A. de Deus aos homens e o A. intelectual da mente a Deus são a mesma coisa" (ibid, V, 36 corol.). Esse A. é aquilo em que consiste a nossa salvação ou bem-aventurança, ou liberdade; e é o que, nos livros sagrados, se chama "glória" (ibid, escól.). Está claro que já não é uma afecção, nem uma emoção no sentido que Spinoza deu a tais ter­ mos, mas é a pura contemplação de Deus, ou melhor, como a mente que contempla Deus não é senão um atributo de Deus, esse A. outra coisa não é senão a contemplação que Deus tem de si, como unidade de si mesmo e do mundo. Aqui, o conceito de A. deixa de referir-se à experiência humana: torna-se o conceito metafísico da unidade de Deus consigo mesmo e com o mundo, logo com todas as manifestações do mundo, inclusive os homens. Esse conceito tornar-se-ia central e domi­ nante no Romantismo (v.) da primeira metade do séc. XIX, que se baseia inteiramente na ten­ tativa de demonstrar a unidade (isto é, a total identidade e intimidade) de finito e Infinito. Schleiermacher faz dessa unidade, enquanto se revela na forma do sentimento, o fundamento da religião; Fichte, Schelling e Hegel fazem da

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mesma unidade — que colocam como princí­ pio da razão — o fundamento da filosofia. Mas foi justamente essa unidade que permitiu aos Românticos elaborar uma teoria do A. pela qual o próprio A., mesmo voltando-se para coisas ou criaturas finitas, vê ou colhe, nelas, as ex­ pressões ou os símbolos do Infinito (isto é, do Absoluto ou de Deus). Pela unidade de finito e Infinito, a aspiração ao Infinito pode ser satis­ feita ainda no mundo finito, p. ex., no A. à mulher. A., poesia, unidade de finito e Infinito e sentimento dessa unidade vêm a ser sinôni­ mos para os românticos. Friedrich Schlegel tal­ vez seja quem melhor expressou esses concei­ tos. "A fonte e a alma de todas as emoções é o A.; e, na poesia romântica, o espírito do A. deve sempre estar presente; invisível e visível... As paixões galantes de que não se pode fugir na poesia moderna, do epigrama à tragédia, são o grau mínimo desse Espírito, ou melhor, confor­ me o caso, a sua letra extrínseca, ou absoluta­ mente nada, ou algo de não amável e despro­ vido de A. Não, o que nos comove nos sons da música é o Sopro divino. Ele não se deixa to­ mar à força nem agarrar mecanicamente, mas deixa-se atrair amoravelmente pela beleza mortal para nela velar-se: também as palavras mágicas da poesia podem ser penetradas e animadas por sua força. Mas, na poesia onde o Sopro não está ou não pode estar em toda parte, ele não está em absoluto. Ele é uma Substância infinita que não anui com pessoas, ocasiões, situações e tendências individuais nem por elas se inte­ ressa: para o verdadeiro poeta, todas essas coi­ sas, mesmo que a sua alma lhes esteja intima­ mente afeta, são apenas o indício do Altíssimo, do Infinito, são o hieróglifo do único e eterno A. e da sagrada plenitude de Vida da natureza plasmadora" (Prosaischenjugendschriften, ed. Minor, II, p. 371). A poesia torna-se, assim, um análogo do A. e o A., como anseio do Infinito, isto é, de Deus, do Universo, do Eterno, pode satisfazer-se e encontrar a paz no finito, nas criaturas do mundo. Em Discípulos de Sais, de Novalis, Jacinto, que partira à procura da deusa velada Isis, acaba encontrando, sob o véu da deusa, Florinha de rosa, isto é, a menina amada que ele abandonara para sair em busca de Sais. O sentimento, em particular o A., revela o últi­ mo mistério do Universo. Hegel exprimiu com as fórmulas mais rigorosas e pregnantes esse conceito de A. Já num texto juvenil de inspira­ ção romântica, cujos pressupostos são justa­ mente Schleiermacher e Schlegel (NOHL, Hegels

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theologischeJugendschr., pp. 379 ss., trad. in DE NEGRI, Princ. diHegel, pp. 18 ss.), o "verda­ deiro A." é identificado com a "verdadeira uni­ ficação", que só ocorre "entre seres vivos que são iguais em poder" e que, em tudo e por tudo, estão vivos um para o outro, isto é, de nenhum lado estão mortos um para o outro. O A. é um sentimento infinito pelo qual "o vivo sente o vivo". Os amantes "são um todo vivo". São reciprocamente indepedentes só na medi­ da em que "podem morrer". O A. é superior a todas as oposições e a todas as multiplicidades. Essas notas românticas voltam nas obras madu­ ras de Hegel. "O A.", diz ele, "exprime em geral a consciência da minha unidade com um outro, de tal modo que eu, para mim, não estou iso­ lado, mas a minha autoconsciência só se afirma como renúncia ao meu ser por si e através do saber-se como unidade de mim com o outro e do outro comigo" (Fil. do dir., § 158, adendo). "A verdadeira essência do A.", diz ainda Hegel em Lições de estética, "consiste em abandonar a consciência de si, em esquecer-se em outro si mesmo e, todavia, em reencontrar-se e possuirse verdadeiramente nesse esquecimento" ( Vorles. überdíeÂsthetik, ed. Glockner, II, p. 149). O A. é "identificação do sujeito com outra pessoa"; é "o sentimento pelo qual dois seres não existem senão em unidade perfeita e põem nessa iden­ tidade toda a sua alma e o mundo inteiro" (ibid., p. 178). "Esta renúncia a si mesmo para identi­ ficar-se com outro, esse abandono no qual o sujeito reencontra, porém, a plenitude do seu ser, constitui o caráter infinito do A." (ibid, p. 179). Desse ponto de vista, Hegel diz também que a morte de Cristo é "o A. mais alto", no sentido de que ela exprime "a identidade do divino e do humano"; e assim é "a intuição da unidade no seu grau absoluto, a mais alta intui­ ção do A." (Phil. derReligion, ed. Glockner, II, p. 304). Essa noção romântica, que vê no A. a totalidade da vida e do universo na forma de um "sentimento infinito" que é fim para si mes­ mo, encontra-se em toda a tradição literária do Romantismo, especialmente na narrativa, a co­ meçar por Lucinda, de Schlegel. Essa noção também impregnou os costumes e a vida dos povos ocidentais até, pode-se dizer, os dias atuais, em que o adjetivo "romântico" ainda parece o mais adequado para definir a natureza dos sen­ timentos exaltados e tendentes a infinitizar-se, em que o aspecto espiritual e o aspecto sensual se complicam e se limitam reciprocamente, dando lugar a vicissitudes interiores, cujas mí­

AMOR nimas nuanças se tem prazer de acompanhar, exagerando-lhes a importância e o valor. Tam­ bém faz parte do A. romântico, na medida em que o seu objeto é o infinito, ou melhor, a infinita unidade e identidade, a insistência no A. como aspiração, desejo ou anseio, que, em vez de achar satisfação no ato sexual, teme ser diminuído ou enfraquecido por esse ato e ten­ de a evitá-lo. A "distância" é considerada pelos Românticos como um meio que favorece os sonhos voluptuosos; por isso, via de regra o A. romântico arrefece em presença do objeto amado. Mas a concepção romântica do A. encontrase também em filosofias e tendências diferen­ tes do Romantismo ou que, pelo menos, não compartilham de todos os seus caracteres. Schopenhauer distingue nitidamente o A. se­ xual (epcoç) e o A. puro (àyáírrj). O A. sexual é simplesmente a emoção de que se serve o "gê­ nio da espécie" para favorecer a obra obscura e problemática da propagação da espécie {Metafísica do A. sexual). Mas o "gênio da es­ pécie" não é senão a cega, maligna e desespe­ rada "vontade de viver", que constitui a subs­ tância do universo, o seu "númeno". O A. sexual não é, portanto, nada mais do que a manifesta­ ção, em forma fenomênica, isto é, sob a apa­ rência da diversidade e da multiplicidade dos seres vivos, da única força que rege o mundo. Quanto ao A. puro, não é senão compaixão, e a compaixão é o conhecimento da dor alheia. Mas a dor alheia é também a dor do mundo, a dor da própria vontade de vida dividida em si mesma e lutando contra si mesma nas suas manifestações fenomênicas: além das quais, o A. como compaixão é a percepção da unidade fundamental (Die Welt, I, § 67). Desse modo, conserva-se na teoria de Schopenhauer a no­ ção romântica do A. como sentimento da uni­ dade cósmica. E permanece também na análise de um discípulo seu, Eduard von Hartmann, que a torna mais explícita, afirmando que o A. é a identificação entre amante e amado, uma espécie de ampliação do egoísmo por meio da absorção de um eu por outro eu, donde o sen­ tido mais profundo do A. consiste em tratar o objeto amado como se fosse, na sua essência, idêntico ao eu que ama. Se essa unidade e iden­ tidade não existissem, afirma Hartmann, o pró­ prio A. seria uma ilusão; mas Hartmann crê que não se trata de uma ilusão, porque a identidade que o A. tem em vista, ou realiza ao menos em parte, é a identidade do Princípio Inconsciente,

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da Força Infinita que rege o mundo (Phãnomenologie des sittliche Betvusstseins, 1879, p- 793). Pode-se dizer, em geral, que todas as teorias que reduzem o A. a uma força única e total, ou segundo as quais, de algum modo, ele deriva de força semelhante, participam, de alguma forma, da noção romântica do A. como unida­ de e identidade. Sob esse aspecto, deve-se re­ conhecer um fundo romântico até na doutrina de Freud, segundo a qual o A. é a especificação e a sublimação de uma força instintiva originá­ ria, que é a libido. A libido não é o impulso sexual específico (isto é, dirigido para o indiví­ duo do outro sexo), mas simplesmente a ten­ dência à produção e à reprodução de sensa­ ções voluptuosas relativas às chamadas "zonas erógenas", que se manifesta desde os primei­ ros instantes da vida humana. O impulso sexual específico é uma formação tardia e complexa, que, por outro lado, nunca se completa, como demonstram as perversões sexuais, tão varia­ das e numerosas. Essas perversões, portanto, segundo Freud, não são desvios de um impulso primitivo normal, mas modos de comportamento que remontam aos primeiros instantes da vida, que escaparam ao desenvolvimento normal e fixaram-se na forma de uma fase primitiva (v. PSICANÁLISE). Da libidodesenvolvem-se, segundo Freud, as formas superiores do A., mediante a inibição e a sublimação. A inibição tem a função de manter a libido nos limites compatí­ veis com a conservação da espécie; dela deri­ vam as emoções morais, em primeiro lugar as da vergonha, do pudor, etc, que tendem a imobilizar e a conter as manifestações da libido. Na inibição da libido e de seus conteúdos objetivos enraízam-se as neuroses. A sublimação, ao contrário, dá-se quando a libido se se­ para do seu conteúdo primitivo, isto é, da sen­ sação voluptuosa e dos objetos que a esta se vinculam, para concentrar-se em outros obje­ tos que serão, desse modo, amados por si mes­ mos, independentemente da sua capacidade de produzir sensações voluptuosas. Na sublimação da libido inibida assentam, segundo Freud, todos os progressos da vida social, a arte, a ciência e a civilização em geral, ao menos na medida em que tais progressos dependem de fatores psíquicos. Para Freud, todas as formas superiores do A. são apenas sublimações da libido inibida. Desse modo, a teoria freudiana do A. parece apresentar ao homem uma única alternativa, entre o primitivismo sexual e o ascetismo total, já que as formas superiores do

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A., e, em geral, da atividade humana, só pode­ riam produzir-se à custa da inibição e da sublimação da libido. Esta alternativa parece falsa na linha dos fatos e muito inquietante do ponto de vista moral. Mas talvez ainda mais grave seja o fato de que a doutrina de Freud não contém nenhum elemento apto a explicar a escolha que está presente em todas as formas do A. e que está totalmente ausente nos comportamentos instintivos, que são cegos e anônimos. Entre­ tanto, o próprio Freud insiste no valor da esco­ lha em sua crítica do A. universal. "Algumas pessoas", diz Freud, "tornam-se independentes da aquiescência dos seus objetos transferindo o valor principal do fato de serem amadas para seu próprio ato de amar; protegem-se da perda do objeto amado dirigindo seu A. não a objetos individuais, mas a todos os homens igualmen­ te, e evitam as incertezas e as desilusões do A. genital desistindo do objetivo sexual deste e transformando o instinto em um impulso de in­ tenção inibida. O estado que elas induzem em si mesmas com esse processo — uma atitude de ternura imutável e não desviável — tem pouca semelhança superficial com as tempestuosas vicissitudes do A. genital, mas deriva deste" (Civilization and its Discontents, p. 69)- As objeções que Freud faz a esse tipo de A. são duas: ele não discrimina seus objetos, o que se resolve em injustiça para com os próprios ob­ jetos; em segundo lugar, nem todos os homens são dignos de A. "Se amo alguém", diz Freud, "ele deve ser digno desse A. de um modo ou de outro-, ou por ser tão semelhante a mim em algum aspecto importante que posso amar-me a mim mesmo nele, ou por ser muito mais perfeito do que eu, de sorte que posso amar nele o meu ideal de mim mesmo, ou por ser filho de meu amigo, com o qual quero compartilhar afetos e dores. Mas, se não há nenhum motivo específico para amá-lo, amá-lo será bastante difícil para mim e será uma injustiça para aque­ les que são dignos do meu A., já que estarei pondo estes últimos no mesmo nível dele. Além disso, o A. que poderei dar-lhe, como cumpri­ mento do preceito de A. universal, será somen­ te uma pequeníssima parte do A. que, por to­ das as leis da razão, estou autorizado a dar a mim mesmo. Em conclusão, o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos é a mais forte defesa contra a agressividade humana e exemplo superlativo da atitude antipsicológica do super-ego cultural. Mas é um mandamento impossível de respeitar: uma inflação tão gran­

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de de A. só poderia diminuir-lhe o valor e não seria um remédio para o mal" (Jbid., pp. 139­ 141). Essas considerações pressupõem, obvia­ mente, que o A. implica uma escolha motivada pelo valor reconhecido no objeto amado ou a ele atribuído; mas justamente esse elemento de escolha não tem lugar na doutrina de Freud, que se funda totalmente no princípio do caráter instintivo da libido, de que deriva todo A. A crítica de Freud ao "A. universal" é impor­ tante, e em alguns aspectos decisiva para a orientação contemporânea em torno do pro­ blema do A. Todavia, Freud dirigiu essa crítica contra um alvo errado, o preceito evangélico do A. ao próximo: o verdadeiro alvo dessa crí­ tica é a noção moderna, de origem positivista, do A. universal. A origem dessa noção pode ser encontrada em Feuerbach, no qual tem estreita conexão com a noção romântica de A., em particular com a de Hegel. Feuerbach parte do pressuposto de que o objeto ao qual um sujeito se refere essencial e necessariamente outro não é senão a natureza objetiva do próprio sujeito e que, portanto, no objeto o homem contem­ pla-se a si mesmo e torna-se consciente de si: a consciência do objeto não é senão a autoconsciência do homem (Wesen des Christentum, 1841; trad. fr., p. 26). Esta é a mesma noção da unidade entre subjetivo e objetivo, entre o eu e o outro, transferida do Infinito (para onde os Românticos a levaram) para o homem, na sua finitude. Não obstante essa transferência, a noção continua a mesma; na verdade, o A. é entendi­ do por Feuerbach, romanticamente, como uni­ dade e identidade: "a unidade de Deus e ho­ mem, de espírito e natureza". O A. "não tem plural". A própria encarnação, para Feuerbach como para Hegel, é somente "o puro, absoluto A., sem acréscimo, sem distinção entre A. divi­ no e humano" (ibid., p. 82). Com base nessa noção, Feuerbach delineou a extensão progres­ siva do A. ao objeto sexual ao A. à criança, ao filho, do filho ao pai, e finalmente à família, ao clã, à tribo, etc, extensão esta que seria devida à multiplicação das ações recíprocas e, por isso, da dependência recíproca das instituições e dos interesses vitais. O último termo dessa exten­ são progressiva seria "a humanidade em seu conjunto", que, como tal, é o objeto mais alto do A. e o ideal moral por excelência. A ética positivista, especialmente com Comte e Spencer, baseou-se no A. estendido a toda a humanida­ de; nele também se baseou a ética do neocriticismo alemão, da forma como se encontra, p. ex., expressa em Cohen.

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Nessas concepções, os termos "humanidade" e "A." passam a ser sinônimos, porque signifi­ cam a unidade dos seres humanos e, às vezes, até mesmo a unidade cósmica segundo o con­ ceito romântico. Desse ponto de vista, as for­ mas do A. sào classificadas conforme a maior ou menor extensão do círculo de objetos a que o A. se estende. Assim o A. à pátria seria inferior ao A. à humanidade; o A. à família, inferior ao A. à pátria; o A. a si mesmo, inferior ao que se sente por um amigo. Scheler mostrou (Nature­ za e forma da simpatia, 1923) o caráter fictício dessa hierarquia que pretende reduzir as varie­ dades autônomas do A. a uma única forma, qtie teria graus diversos segundo a extensão do cír­ culo humano que constitui seu objeto. Suas observações a esse respeito coincidem subs­ tancialmente com as já acenadas por Freud: o valor do A. diminui, não cresce, à medida que o A. se estende a um número maior de objetos: já que, em geral, o A. ao que está próximo tem mais valor do que o A. ao que está distante, pelo menos quando dirigido a um ser vivo; e Nietzsche errou quando contrapôs (em Assim falou Zaratustra) o A. ao distante ao A. ao pró­ ximo. Scheler negou o próprio pressuposto da doutrina do A. universal: a noção romântica do A. como unidade ou identificação. O A. e, em geral, a simpatia em todas as suas formas (v. SIMPATIA) implicam e, ao mesmo tempo, funda­ mentam a diversidade das pessoas. O sentido do A. consiste justamente em não considerar e em não tratar o outro como se fosse idêntico a si. "O A. verdadeiro", diz Scheler (Sympathíe, I, cap. IV, 3), "consiste em compreender sufi­ cientemente uma outra individualidade modalmente diferente da minha, em poder colo­ car-me em seu lugar, mesmo considerando-a diferente de mim e mesmo afirmando, com calor emocional e sem reserva, a sua própria realida­ de e o seu próprio modo de ser." O A. dirigese necessariamente ao núcleo válido das coi­ sas, ao valor, tende a realizar o valor mais elevado possível (e isto já é um valor positivo) ou a suprimir um valor inferior. Pode voltar-se para a natureza, para a pessoa humana e para Deus, naquilo que têm de próprio, isto é, de diferente daquele que ama. Scheler reconhece, com Freud, que "o A. sexual representa um fator primordial e fundamental, no sentido de que a força e a vivacidade de todas as outras variedades de A.vital e de vida instintiva derivam desse A." (ibid., II, cap. VI, § 5). No entanto, não se reduz ao instinto sexual porque implica escolhas, que,

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por princípio, se orientam para as qualidades vitais, que chamamos de mais "nobres". Mas se o A. sexual domina a esfera vital, existem outras formas de A. correspondentes à esfera espiri­ tual e à esfera religiosa; essas formas são varieda­ des qualitativamente diferentes, qualidades pri­ mordiais e irredutíveis umas às outras, que fazem pensar numa pré-formação, na estrutura psí­ quica do homem, das relações elementares que existem entre os homens (ibid.). Entre essas formas não está, porém, o A. à humanidade. A humanidade pode ser amada como indivíduo úni­ co e absoluto somente por Deus; por isso, o chamado A. à humanidade é somente o A. ao homem médio de certa época, isto é, aos valo­ res correntes nessa época, que interessam aos defensores dessa forma de amor. Esta, segun­ do Scheler, outra coisa não é senão ressenti­ mento, ou seja, ódio pelos valores positivos implícitos em "terra natal", "povo", "pátria", "Deus", ódio que, substituindo esses portado­ res de valores especificamente superiores por humanidade, procura iludir-se e iludir os ou­ tros sobre o A. (ibid?). Na filosofia contemporânea, as análises de Scheler são a primeira tentativa de desvincular a noção de A. do ideal romântico da absoluta unidade. Pode-se vislumbrar, todavia, a suges­ tão e a ação desse ideal em duas doutrinas contemporâneas, aparentemente heterogêneas: a doutrina do A. místico de Bergson e a doutri­ na do A. sexual de Sartre. Segundo Bergson, a fórmula do misticismo é esta: "Deus é A. e objeto de A." (Deuxsources, III; trad. it. p. 275). Em­ bora se possa duvidar da exatidão da primeira parte dessa fórmula, porque dificilmente se pode encontrar nos místicos a tese de que Deus ame o homem (o que Deus oferece ao homem que o ama é a salvação, a bem-aventurança e a participação na sua "glória"), o que Bergson pretende dizer é que o arrebatamento místico se realiza como uma unidade entre o homem e Deus. "Não há mais separação completa entre quem ama e quem é amado: Deus está presen­ te e a alegria é sem limites" (ibid, p. 252). Por essa unidade, o A. do homem por Deus é o A. de Deus por todos os homens. "Através de Deus, com Deus, ele ama toda a humanidade com A. divino." Mas esse A. não é a fraternidade do ideal racional nem a intensificação de uma sim­ patia inata do homem pelo homem: é "o pros­ seguimento de um instinto" que está na raiz da sensibilidade e da razão, assim como de todas as outras coisas; e identifica-se com o A. de

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Deus por sua obra, A. que criou todas as coi­ sas e é capaz de revelar, a quem saiba interrogálo, o mistério da criação. A esse A. cabe aperfei­ çoar a criação da espécie humana (ibid., IV, pp. 356-57) e devolver ao universo a sua fun­ ção essencial, que é a de ser "uma máquina destinada a criar deuses". O caráter spinoziano, romântico e panteísta dessas observações é mui­ to evidente e patenteia a noção que pressupõem: a do A. como unidade que é identidade. Se o "amor sagrado" de Bergson é de cunho romântico, não menos romântico é o "amor profano" de Sartre. O pressuposto da análise de Sartre é que o A. é a tentativa ou, mais exa­ tamente, o projeto de realizar a unidade ou a assimilação entre o eu e o outro. Essa exigên­ cia de unidade ou de assimilação é, por parte do eu, a exigência de que ele seja para o outro uma totalidade, um mundo, um fim absoluto. O A. é, fundamentalmente, um querer ser ama­ do; e querer ser amado significa "querer situarse além de todo o sistema de valores posto pelos outros, como condição de toda valoriza­ ção e como fundamento objetivo de todos os valores" (L'être etle néant, p. 436). A vontade de ser amado é, assim, a vontade de valer para o outro como o próprio infinito. "O olhar do outro não me permeia mais de finitude, não imobiliza mais o meu ser naquilo que sou sim­ plesmente; não poderei ser olhado como feio, como pequeno, como vil, porque estes ca­ racteres representam necessariamente uma li­ mitação de fato do meu ser e uma apreensão da minha finitude enquanto finitude" (ibid., p. 437). Mas, para que o outro possa considerarme assim, é preciso que ele possa querer, isto é, que seja livre: por isso, a posse física, a pos­ se do outro como coisa, é, no A., insuficiente e frustrante. É preciso que o outro seja livre para querer amar-me e para ver em mim o infinito. O que quer dizer: é preciso que se mantenha "como pura subjetividade, como o absoluto pelo qual o mundo vem ao ser" (ibid., p. 455). Mas aí estão, precisamente, o conflito e o fracasso inevitáveis do A., pois, por um lado, o outro exige de mim a mesma coisa que eu exijo dele — ser amado e valer para mim como a totali­ dade infinita do mundo — e, por outro, justa­ mente por querer isso, por amar-me, "frustrame radicalmente com o seu próprio A.-, eu exigia que ele assumisse o meu ser como objeto privi­ legiado, mantendo-se como pura subjetividade em relação a mim, mas, desde que me ama, em vez disso reconhece-me como sujeito e

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mergulha na sua objetividade diante da minha subjetividade" (ibid, p. 444). Em outros ter­ mos, cada um, no A., quer ser para o outro o objeto absoluto, o mundo, a totalidade infinita, mas para isso é necessário que o outro perma­ neça subjetividade livre e igualmente absoluta. Mas, como ambos querem exatamente a mes­ ma coisa, o único resultado do A. é um conflito necessário e um fracasso inevitável. Há, toda­ via, outro caminho para realizar a assimilação de um ser com o outro, que é exatamente o contrário do que foi descrito: em vez de proje­ tar absorver o outro conservando-lhe a alteridade, posso projetar fazer-me absorver pelo outro e perder-me na sua subjetividade para desembaraçar-me da minha. Nesse caso, em vez de procurar existir para o outro como objeto-limite, como mundo ou totalidade infinita, procurarei fazer-me tratar como um objeto en­ tre os outros, como um instrumento a ser utili­ zado, em uma palavra, como uma coisa. Terse-á, então, a atitude masoquista. Mas o próprio masoquismo é e deve ser um fracasso, pois, por mais que se queira, nunca se virá a ser um simples instrumento inanimado, uma coisa humilde, ridícula ou obscena; será necessário, precisamente, querer isso, isto é, valer, para essa finalidade, como subjetividade livre {ibid., pp. 346-347). Não há, portanto, salvação no A.: o conflito e o fracasso são-lhe intrinsecamente necessários. Por outro lado, Sartre vê conflito análogo também no simples desejo sexual, cujo "ideal impossível" assim define: "Possuir a transcendência do outro como pura trans­ cendência e no entanto como corpo-, reduzir o outro à sua simples facticidade, pois ele ainda está no meio do meu mundo, mas fazer que essa facticidade seja uma representação per­ pétua da sua transcendência nadificante" (ibid., pp. 463-464). E, como o A. pode tender para o masoquismo como solução ilusória do seu con­ flito, assim também o desejo sexual tende para o sadismo, isto é, para a não-reciprocidade das relações sexuais, para o gozo de ser "potência possessiva e livre em face de uma liberdade aprisionada pela carne" (ibid., p. 469). Não há dúvida de que a análise de Sartre, tão rica de reparos e referências, representa um exame sem preconceitos de certas formas que o A. pode assumir e assume e dos conflitos em que de­ sembocam. Mas trata-se das formas do A. ro­ mântico e das suas degenerações. O A. de que fala Sartre é o projeto da fusão absoluta entre dois infinitos; e dois infinitos só podem ex­

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cluir-se e contradizer-se. Querer ser amado sig­ nifica, para Sartre, querer ser a totalidade do ser, o fundamento dos valores, o todo e o infi­ nito: isto é, o mundo ou Deus mesmo. E o outro, o amado, deveria ser um sujeito igual­ mente absoluto e infinito, capaz de tornar ab­ soluto e infinito quem o ama. São evidentes os pressupostos românticos dessa colocação. A unidade absoluta e infinita que o Romantismo clássico postulava ingenuamente como uma realidade garantida do A. torna-se, em Sartre, um projeto inevitavelmente destinado ao fra­ casso. O Romantismo de Sartre é frustrado e consciente de sua falência. No entanto, está patente na filosofia con­ temporânea a tendência anti-romântica a pri­ var o A. do caráter de infinitude, isto é, da natureza "cósmica" ou "divina", e a circunscrevêlo em limites mais restritos e demarcãveis. Russell evidenciou a fragilidade do A. romântico, que pretende ser a totalidade da vida, mas caminha rapidamente em direção à exaustão e ao malo­ gro. "O A.", disse ele, "é o que dá valor intrín­ seco a um matrimônio e, como a arte e o pen­ samento, é uma das coisas supremas que tornam a vida digna de ser vivida. Mas, embora não haja bom casamento sem A., os melhores casa­ mentos têm um objetivo que vai além do A. O A. recíproco de duas pessoas é demasiado cir­ cunscrito, demasiado separado da comunidade para ser, por si mesmo, o objetivo principal da vida. Não é, em si mesmo, fonte suficiente de atividade, não oferece perspectivas suficientes para constituir uma existência em que se possa encontrar uma satisfação fundamental. Cedo ou tarde, torna-se retrospectivo, é um túmulo de alegrias mortas, não uma fonte de vida nova. Esse mal é inseparável de qualquer finalidade atingível numa única emoção suprema. Os únicos fins adequados são os que têm incidência no futuro, que nunca podem ser plenamente al­ cançados, mas estão em constante 'crescendo' e são infinitos, como a infinitude da busca hu­ mana. Só quando o A. está ligado a algum fim infinito dessa espécie pode ter a seriedade e a profundidade de que é capaz" (Principies of SocialReconstruction, p. 192). Com isto, o A. não é negado, mas reconduzido aos limites que o definem. "O homem", diz ainda Russell, "que nunca viu as coisas belas em companhia da mulher amada não conheceu plenamente o mágico poder que tais coisas possuem. E mais: o A. é capaz de romper o duro cerne do eu, porque é uma espécie de colaboração biológi­

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ca, na qual as emoções de um são necessárias à satisfação dos propósitos instintivos do ou­ tro" (A conquista da felicidade; trad. it., p. 42). Nesse sentido, porém, não requer o sacrifício das pessoas que se amam, mas constitui enri­ quecimento e realização da sua personalidade. Não requer nem mesmo o emudecimento do espírito de ambas as partes, mas, antes, o res­ peito à autonomia recíproca e a fidelidade aos compromissos assumidos. Por isso, é indispen­ sável a realização da igualdade de condição moral e jurídica entre os sexos, bem como a transformação e a liberalização das regras mo­ rais que ora restringem e inibem com dema­ siada rigidez as relações sexuais. Por outro lado, porém, ''a relação sexual sem A. tem valor mí­ nimo e deve ser considerada uma primeira expe­ riência, capaz de dar uma noção aproximada do A." (Marriage and Morais, cap. IX; trad. it. p. 118). Um olhar de conjunto nas teorias menciona­ das mostra a recorrência de duas noções fun­ damentais do A., sendo possível vincular cada uma dessas teorias a uma ou a outra. A primei­ ra é a do A. como relação que não anula a reali­ dade individual e a autonomia dos seres entre os quais se estabelece, mas tende a reforçá-las, por meio de um intercâmbio, controlado emotivamente, de serviços e cuidados de todo tipo, intercâmbio no qual cada um procura o bem do outro como seu próprio. Nesse senti­ do, A. tende à reciprocidade e é sempre recí­ proco na sua forma bem-sucedida, que sempre poderá ser chamada de união (de interesses, de intentos, de propósitos, de necessidades, bem como de emoções correlativas), mas nun­ ca de "unidade", no sentido próprio desse ter­ mo. Nesse sentido, o A. é uma relação finita entre entes finitos, suscetível da maior varie­ dade de modos, em conformidade com a va­ riedade de interesses, propósitos, necessida­ des e relativas funções emotivas, que podem constituir sua base objetiva. "Relação finita" sig­ nifica relação não necessariamente determina­ da por forças inelutáveis, mas condicionada por elementos e situações aptas a explicar suas mo­ dalidades particulares. Significa também rela­ ção sujeita ao êxito como ao malogro e, ainda nos casos mais favoráveis, suscetível de êxitos só parciais e de estabilidade relativa. Nesse caso, obviamente, o A. nunca é "tudo" e não constitui a solução de todos os problemas humanos. Cada tipo ou espécie de A., e, em cada tipo ou espé­ cie, cada caso será delimitado e definido, na

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relação que o constitui, por interesses, necessi­ dades, aspirações, preocupações, etc, cuja comparticipaçào constituirá a base ou o motivo do A. Especificamente, o A. poderá ser definido como o controle emotivo de tais tipos ou modos de comparticipaçào e dos comportamentos correspondentes. O valor desse controle emotivo pode ser evidenciado por algumas observa­ ções. P. ex., a fidelidade no A. não tem valor se não deriva do controle emotivo, mas de uma fria noção de dever; e, por outro lado, certas infidelidades não ofendem necessariamente o A. Nesses limites, em cjue o A. é um fenômeno humano, para cuja descrição termos como "uni­ dade", "todo", "infinito", "absoluto" são desca­ bidos, o A. perde em substância cósmica tanto quanto ganha em importância humana; e o seu significado, objetivamente constatável, para a formação, a conservação e o equilíbrio da per­ sonalidade humana, torna-se fundamental. A noção de A. nesse sentido é a ilustrada por Platão, Aristóteles, S. Tomás, Descartes, Leibniz, Scheler, Russell. A segunda teoria recorrente sobre o A. é a que vê nele uma unidade absoluta ou infinita, ou seja, consciência, desejo ou projeto de tal unidade. Desse ponto de vista, o A. deixa de ser um fenômeno humano para tornar-se um fenômeno cósmico ou, melhor ainda, a nature­ za do Princípio ou da Realidade Suprema. O êxito ou o malogro do A. humano passa a ser indiferente; aliás, o A. humano, como aspira­ ção à identidade absoluta e como tentativa por parte do finito de identificar-se com o Infinito, está previamente condenado ao insucesso e reduzido a uma aspiração unilateral, pela qual a reciprocidade é decepcionante, que se con­ tenta em imaginar a vaga forma de um ideal fugaz. São duas as conseqüências desse con­ ceito de A. A primeira é a infinitizaçâo das vicissitudes amorosas que, consideradas como for­ mas ou manifestações do Infinito, assumem um significado e um alcance desproporcional e grotesco, sem relação com a importância real que têm para a personalidade humana e para as suas relações com os outros. A segunda é que todo tipo ou forma de A. humano destinase ao fracasso; e o próprio êxito de tal A., verificável na reciprocidade, na possibilidade da comparticipação, é assumido como sinal desse fracasso. Essas duas atitudes podem ser facil­ mente encontradas na literatura romântica so­ bre o A. É a noção defendida por Spinoza, Hegel, Feuerbach, Bergson, Sartre.

AMORAL, AMORAUSMO

AMORAL, AMORALISMO (in. Amoral, arnoralism, fr. Amoral, amoralisme, ai. Amoralisch, Amoralísmus; it. Amorale, amoralismó). O ad­ jetivo "A." designa propriamente o que é indi­ ferente às valorizações morais: nesse sentido, um homem A. é um homem sobre cuja condu­ ta os juízos sobre o bem e sobre o mal não têm nenhuma influência e que, por isso, se com­ porta independentemente deles. O termo "amoralismó" designa, porém, uma profissão de amoralidade e, daí, a pretensão de prescin­ dir dos valores da moral corrente e de substi­ tuir esses valores por outros; nesse sentido, foi empregado freqüentemente para designar a atitude de Nietzsche (v. TRANSMUTAÇAO DOS VALORES).

AMOR DE SI (gr. (piAoarria; in. Self-love, fr. Amourdesoi; ai. Eigenliebe, it. Amordisè). Esta expressão não deve ser confundida nem com "amor próprio", que significa vaidade, ou, no melhor dos casos, sentido de altivez ou de or­ gulho, nem com egoísmo (v.). Aristóteles distinguiu a filãucia, que é uma virtude, do ego­ ísmo vulgar de quem ama a si mesmo, querendo atribuir-se a maior parte dos lucros, dos prazeres e das honras. "O filaucioso", disse ele, "é sobretudo aquele que se apropria do belo e do bem, faz deles seus senhores e obedece-lhes em tudo" (Et. nic, IX, 8, 1.168 a, 28). Em outras palavras, quem ama a si mesmo no verdadeiro sentido não pretende a parte maior do prazer, das honras ou do lucro, mas a parte maior do bem e do belo, isto é, o exercício da virtude. Em sentido análogo, S. Tomás afirma que o homem ama a si mesmo quando ama a sua natureza espiritual, não a corpórea, e que em tal sentido deve amar a si mesmo depois de Deus, mas antes de qualquer outro ser; de modo que, por ex., não pode tolerar incorrer em pe­ cado para livrar o próximo do pecado (S. Th, II, II, q. 26, a. 4). Na Idade Moderna, Malebranche (em Première lettre au R. P. Lamié) retomou a distinção entre amor próprio e A. consideran­ do o primeiro como fonte de todos os desregramentos humanos e o segundo, ao contrário, como o princípio de todos os esforços para o cumprimento do dever. Essa distinção foi reto­ mada por Vauvenargues (De 1'esprit humain, 24): "Com o amor de si mesmo pode-se procu­ rar a própria felicidade fora de si. Pode-se amar qualquer coisa fora de si mais do que a própria existência e não se é o único objeto para si mesmo. O amor próprio, ao contrário, subordi­ na tudo às próprias comodidades e ao próprio

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bem-estar, e tem em si mesmo o único objeto e o único fim; de modo que, enquanto as emo­ ções que vêm do A. nos dão às coisas, o amor próprio quer que as coisas se dêem a nós e faz de si mesmo o centro de tudo". Kant, mesmo considerando o amor de si uma espécie de egoísmo (entendido, porém, no sentido mais geral de desejo da felicidade), distinguia-o como benevolência para consigo (ou filãucia) levada ao extremo pela complacência para consigo (ou arrogantía) e considerava-o suscetível de harmonizar-se com a lei moral e tornar-se "amor racional de si" (Crít. R. Pratica, livro I, cap. III, A129). As análises de Scheler insistiram no caráter não-egoístico do A. de si: "Amor orientado para os valores e, por seu intermédio, para os obje­ tos portadores deles, sem preocupar-se em sa­ ber a quem pertencem esses valores, se a 'mim' ou a 'outros' ". (Sympathie, II, cap. 1, § 1) AMOR FATI. Expressão usada por Nietz­ sche como "fórmula para a grandeza do ho­ mem" e que significa: "Não querer nada de diferente do que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo". Essa fórmula exprime a atitude própria do super­ homem e a natureza do "espírito dionisíaco", enquanto aceitação integral e entusiástica da vida em todos os seus aspectos, mesmo nos mais desconcertantes, tristes e cruéis (Ecce Homo, passim; Wille zurMacht, ed. Krõner, I, § 282) (v. DESTINO).

AMOR PRÓPRIO. V. a m o r d e si; e g o ís m o . ANAGÓGICO (gr. àvaycoyiKÓÇ; in. Anagogic; fr. Anagogíque, ai. Anagoge, it. Anagogico). Um dos significados da Escritura (como distinguidos, p. ex., por HUGO DE SÂO VÍTOR, De scripturis, III), mais precisamente o que con­ siste em proceder das coisas visíveis às invisí­ veis e, em geral, das criaturas à sua Causa pri­ meira (v. ALEGORIA). ANAGÓGICO, ARGUM ENTO. V. ABSURDO.

ANÁLISE (gr. àvakvoiq; lat. Analysis; in. Analysis; fr. Analyse, ai. Analyse, it. Analisi). Em geral, a descrição ou a interpretação de uma situação ou de um objeto qualquer nos termos dos elementos mais simples pertencen­ tes à situação ou ao objeto em questão. A fina­ lidade desse processo é resolver a situação ou o objeto nos seus elementos, de modo que um processo analítico é considerado bem-sucedi­ do quando tal resolução é realizada. Esse pro­ cesso foi empregado por Aristóteles na lógica da demonstração (apoditica), com a finalidade

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de resolver a demonstração no silogismo, o silogismo nas figuras, as figuras nas proposi­ ções (An.pr, I, 32, 47 a 10). Na lógica do séc. XVII, a diferença entre A. e síntese começou a ser exposta como a diferença entre dois méto­ dos de ensino. "A ordem didática", dizia Jungius, "pode ser sintética, isto é, compositiva, ou ana­ lítica, isto é, resolutiva". A ordem sintética vai "dos princípios ao principiado, dos constituin­ tes ao constituído, das partes ao todo, do sim­ ples ao composto" e é empregada pelo lógico, pelo gramático, pelo arquiteto e também pelo físico, quando passa das plantas aos animais ou dos seres menos perfeitos aos mais perfeitos. A ordem analítica procede por via oposta e é própria do físico e do ético, na medida em que este último passa, por exemplo, da considera­ ção do fim à consideração da ação honesta (Lógica hamburgensis, 1638, IV, cap. 18). A partir de Descartes, a A. e a síntese deixaram de ser consideradas dois métodos de ensino e passaram a ser dois processos diferentes de demonstração. Diz Descartes: "A maneira de de­ monstrar é dupla: uma demonstra por meio da A. ou resolução, a outra por meio da síntese ou composição. A A. demonstra o verdadeiro ca­ minho pelo qual a coisa foi metodicamente in­ ventada e permite ver como os efeitos depen­ dem da causa... A síntese, ao contrário, como se examinasse as causas a partir de seus efeitos (ainda que a prova que ela contém vá não raro das causas aos efeitos), na verdade demonstra com clareza o que está contido nas suas con­ clusões e utiliza uma longa série de definições, postulados, axiomas, teoremas, problemas" (Rép. auxIIOb.). O próprio Descartes nota que os antigos geômetras utilizaram, de preferência, a síntese (como, de fato, fizeram PAPOS, VII, 1 ss., e PROCLO, Com. ao Ilivro de Eudides, p. 211, Friedlein), enquanto ele preferiu a A., porque esse caminho "parece o mais verdadeiro e o mais adequado ao ensino". Hobbes repetia, subs­ tancialmente, essas considerações (Decorp., VI, § 1-2) e a Lógica de Port-Royal chamava a A. de "método de invenção" e a síntese de "método de composição" ou "método de doutrina" (Log., IV, 2). Esse ponto de vista sancionava a supe­ rioridade do processo analítico na filosofia mo­ derna. Essa superioridade também é pressu­ posta por Leibniz, que define a A. do ponto de vista lógico-lingüístico: "A. é isto: resolva-se qual­ quer termo dado em suas partes formais, isto é, dê-se a sua definição; sejam essas partes, por sua vez, resolvidas em partes, isto é, dê-se a

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definição dos termos da definição, e assim por diante, até as partes simples, ou seja, aos ter­ mos indefiníveis" (De arte combinatoria, Op., ed. Erdmann, p. 23 a-b). Com outras palavras, Newton dizia a mesma coisa: "Pelo caminho da A. podemos ir dos compostos aos ingredientes e dos movimentos às forças que os produzem; e, em geral, dos efeitos às suas causas e das causas particulares às gerais, até que o raciocí­ nio termine nas mais gerais" (Opticks, 1704, III, 1, q. 31; ed. Dover, p. 404). Wolff contrapunha, no mesmo sentido, o método analítico e o método sintético: "Chama-se analítico o méto­ do pelo qual as verdades são dispostas na or­ dem em que foram encontradas ou ao menos em que poderiam ser encontradas. Chama-se sintético o método pelo qual as verdades são dispostas de tal modo que cada uma possa ser mais facilmente entendida e demonstrada a partir da outra" (Log., § 885). Não é diferente o significado que Kant deu à oposição dos dois métodos. Mais particularmente, em De mundi sensibilis atque intellegíbilis forma et ratione, I, § 1, nota, ele distinguiu dois significados de A.: um qualitativo, que é "o regresso a rationato ad rationem", e outro quantitativo (que decla­ ra utilizar), que é "o regresso do todo às suas partes possíveis, mediadas, ou seja, às partes das partes, de tal modo que a A. não é a divi­ são, mas a subdivisão do composto dado". Kant valeu-se desse procedimento em todas as suas obras principais, em cada uma das quais a par­ te positiva fundamental é constituída de uma "Analítica". Segundo Kant, é analítico o proce­ dimento próprio da "lógica geral", porquanto "resolve toda a obra formal do intelecto e da razão nos seus elementos e expõe esses ele­ mentos como princípios de toda valorização lógica de nosso conhecimento" (Crít. R. Pura, Lóg. transe, intr., 3). O mesmo procedimen­ to também é próprio da lógica transcendental, que isola o intelecto, isto é, a parte do conhe­ cimento que tem origem só no intelecto (co­ nhecimento a priori), mais precisamente da Analítica transcental, que é "a resolução de todo o nosso conhecimento a priori nos ele­ mentos do conhecimento puro intelectual". O procedimento analítico também foi usado por Kant em Crítica da Razão Pratica, com o fim de isolar os princípios práticos, isto é, morais; e em Crítica do Juízo, a fim de determinar os fundamentos do juízo estético e do juízo teleológico: trata-se, em todos os casos, de de­ terminar os elementos verdadeiros ou efetivos

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que condicionam essas atividades, em contras­ te com os elementos aparentes ou fictícios (ou "dialéticos"). Naturalmente, o método analítico nada tem a ver com osjuízos analíticos. "O método analítico, enquanto oposto ao sintético, é coisa bem diferente de um complexo de juízos analíticos: quer dizer somente que se parte daquilo que é objeto da questão, como dado, para remontar às condições que o tornam possível" (Prol, § 5, nota). Hegel fixou de modo análogo o caráter fundamental do procedimento analítico quan­ do escreveu: "Mesmo quando o conhecimento analítico procede por relações, que não são ma­ téria exteriormente dada, mas determinações do pensamento, ainda assim continua analíti­ co, porquanto, para ele, essas relações são dados!' (WissenschaftderLogik, III, III, II, A a; trad. it., p. 295). Pode-se afirmar que o reconhecimento de dados é o caráter fundamental do procedi­ mento analítico, o que mais profundamente o distingue do sintético (v. FILOSOFIA). Na filosofia e, em geral, na cultura moderna e contemporânea, a tendência analítica, isto é, a tendência a reconhecer a A. como método de investigação, disseminou-se e mostrou ser muito fértil. Essa tendência coincide substancial­ mente com a tendência empirista (no sentido metodológico do empirismo [v.]) a restringir a investigação aos "fatos observáveis" e às rela­ ções entre tais fatos: tendência que implica, em cada caso, a exigência de indicar o método ou o procedimento mediante o qual o fato pode ser efetivamente observado. Nesse sentido, o procedimento analítico leva à eliminação de realidades ou de conceitos "em si", isto é, ab­ solutos ou independentes de qualquer obser­ vação ou verificação e pressupostos como realidades ou verdades "últimas". Sob esse as­ pecto, a física relativista e a mecânica quântica podem ser consideradas resultados do proces­ so analítico. Quando Einstein observou que, para falar de "fatos simultâneos", é necessário oferecer um método para observar a simultaneidade de tais fatos (dando, assim, a chave da teoria da relatividade), só fez levar a bom ter­ mo a A. da noção de "fatos simultâneos". E, quando Niels Bohr e seus alunos evidenciaram o fato de que toda observação física é acompa­ nhada por um efeito do instrumento observa­ dor sobre o objeto observado, só fizeram levar a bom termo a A. de "observação física"; e dessa análise nasceu toda a mecânica quântica. Analogamente, a renúncia a postular um meio de transmissão não observável dos fenômenos

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electromagnéticos (o chamado "éter") pode ser considerada resultado da consolidação do pro­ cedimento analítico. Em matemática, o mesmo procedimento prevaleceu quando se renunciou a discutir o que são os pontos, as retas, os números, em si, e passou-se à A. das relações intercorrentes entre esses termos e dos postu­ lados que as exprimem. Desse ponto de vista, a A. estendeu-se e consolidou-se em detrimento daquilo que se chama "metafísica", isto é, do domínio das realidades absolutas e das verda­ des necessárias. No campo das ciências histó­ ricas, Dilthey contrapôs ao método metafísico e apriorístico, empregado, p. ex., por Hegel, o método analítico e descritivo próprio da psico­ logia; daí falar-se hoje de "A. histórica", que visa compreender um fato histórico nos seus elementos. Fala-se também de "A. sociológi­ ca", no sentido de um método voltado para a resolução da realidade social nos comporta­ mentos, nas atitudes e nas instituições, que cons­ tituem seus elementos observáveis. No domínio da filosofia contemporânea, a A. assume várias formas, segundo os instru­ mentos com que é feita ou segundo os objetos ou campos de experiência para os quais esteja voltada. Na filosofia de Bergson, a A. tem como alvo a "consciência", isto é, a experiência inte­ rior, e tende a encontrar os dados últimos, isto é, imediatos, de tal experiência. Na filosofia de Dewey, a A. está voltada para a experiência humana em seu caráter total e amorfo e tende a resolvê-la em operações naturais. Na filosofia de Husserl, a A. volta-se para o mundo da cons­ ciência como intencionalidade (v.) e é "análise intencional", direcionada para a determinação das estruturas da consciência e as "formas" es­ senciais dos seus conteúdos objetivos. Na filo­ sofia de Heidegger, a A. está voltada para a existência, isto é, para as situações mais co­ muns e repetíveis em que o homem se encon­ tra no mundo. No empirismo lógico, a A. é A. da linguagem e tende a eliminar as confusões mediante a determinação e a verificação do sig­ nificado ou modo de uso dos signos. Essas ten­ dências analíticas da filosofia contemporânea são mais ou menos opostas à metafísica tradi­ cional e tendem a conferir à pesquisa filosófica um método rigoroso para confirmação e a ve­ rificação de seus resultados. Ao mesmo tempo, todas elas condescendem, em maior ou menor grau, com certas inflexibilidades metafísicas: ao se falar, p. ex., de "dados últimos", como Berg­ son, de "formas ou essências necessárias", como

ANALÍTICA

Husserl, de "estruturas necessárias", como Heidegger, de "proposições atômicas" ou de "fatos atômicos", como o empirismo lógico, etc. Pode-se dizer, contudo, que a tendência das filosofias analíticas e da diretriz analítica das ciências consiste na progressiva eliminação de "pontos finais", isto é, de elementos ou estrutu­ ras que, por sua substancialidade e necessida­ de, bloqueiem o curso ulterior da A. e a imobi­ lizem em resultados assumidos como definitivos e, portanto, subraídos a toda verificação ulterior. Essa tendência visa, portanto, determinar e utilizar técnicas de verificação passíveis de correção ou retificação. Desse ponto de vista, a A. é o equivalente atualizado do empirismo tradicional e a ela se contrapõe a metafísica no sentido clássico do termo, como ciência ou pretensa ciência daquilo que, sendo "necessa­ riamente" e "em si", não tem necessidade de ser analisado, isto é, descrito, interpretado ou compreendido mediante procedimentos veri­ ficáveis. ANALÍTICA (in. Analytics; fr. Analitique, ai. Analitik, it. Analítica). Em geral, uma disciplina ou uma parte de disciplina cujo método fun­ damental é a analise (v.). Aristóteles chamou de A. a parte da lógica que visa resolver qual­ quer raciocínio nas figuras fundamentais do silogismo {Primeiros analíticos) e qualquer prova nos próprios silogismos e nos primeiros princí­ pios, que constituem suas premissas evidentes (Segundos analíticos). Kant chamou de "A. transcendental" a primeira parte da "doutrina dos elementos" na Crítica da Razão Pura e na Crítica da Razão Prática (enquanto a segunda parte é a Dialética), entendendo por A. a deter­ minação das condições a priori do conheci­ mento e da ação moral. A Crítica doJuízo con­ tém, além disso, uma A. do belo, uma A. do sublime e uma A. do juízo teleológico, que determinam as condições apriori: respectiva­ mente, as primeiras duas do juízo estético, a outra do juízo sobre a finalidade da natureza. Heidegger fala de uma "A ontológica do ser", isto é, de uma análise da existência como ser no mundo, como aproximação e preparação à ontologia, isto é, à determinação do significado do ser em geral (Sein und Zeit, § 5). ANALÍTICA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, e.

ANALITICIDADE (in. Analyticity fr. Analyticité, ai. Analytizitãt; it. Analiticitâ). Valida­ de das proposições, que não depende dos fa­ tos. Esse conceito é moderno e nasce com a distinção estabelecida por Hume, entre rela­

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ANALITICIDADE

ções de idéias e coisas de fato, e com a distinção estabelecida por Leibniz, entre verdades de razão e verdades de fato (v. EXPERIÊNCIA; FATO). Foram estabelecidos os seguintes fundamen­ tos da A.: Ia Certa operação do espírito. É o que faz Hume, ao afirmar que as proposições concer­ nentes às idéias "podem ser descobertas com uma simples operação do pensamento" (Inq. Cone. Underst., IV, 1). A característica desta operação é não depender dos fatos, mas tratase de uma característica negativa que pouco diz sobre o fundamento da analiticidade. 2- Certa relação de implicação entre sujeito e predicado. É o que faz Kant, ao definir o juízo analítico como o juízo em que "o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está con­ tido (implicitamente) nesse conceito A' (Crít. R. Pura, intr., IV). Sobre o caráter dessa impli­ cação, porém, nada se diz; e o famoso exem­ plo, aduzido por Kant, da proposição "os cor­ pos são extensos", que seria analítica em face da proposição "os corpos são pesados", que seria sintética, não esclarece por certo esse conceito, já que não se vê por que a extensão deve estar contida implicitamente no conceito de corpo, e não o peso. 3B Tautologia. Nesse sentido, Wittgenstein considerou as proposições analíticas como tautologias. "A tautologia", disse ele, "não tem condições de verdade porque é incondicional­ mente verdadeira" (Tractatus, 4.461). Mas, por outro lado, ela não é uma "representação da realidade" porque "permite todas as situações possíveis" (ibid., 4.462). Essa definição tem grande difusão na filosofia contemporânea. Carnap exprimiu-a dizendo que "um enunciado é cha­ mado analítico quando é uma conseqüência da classe nula de enunciados (e, assim, uma con­ seqüência de cada enunciado)" (Logiscbe Syntax derSprache, § 14). Isso significa que um enun­ ciado é analítico quando a sua negação é con­ traditória: caráter aceito por outros autores para definir a A. e que faz das verdades analíti­ cas "verdades necessárias" (REICHENBACH, The Theory ofProbability, 1949, § 4, p. 20; LEWIS, Analysis of Knowledge and Valuatíon, 1950, p. 89, etc). A verdade analítica da tautologia de­ riva do fato de que ela exaure o nível daspossibilidades e, portanto, é evidente pela simples forma do enunciado. Carnap exprimiu esse caráter com o conceito de "descrição de esta­ do" (State-description), pelo qual se entende "a descrição completa de um possível estado do

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universo dos indivíduos relativamente a todas as propriedades e relações expressas pelos predicados do sistema" (.Meaning andNecessity, § 2). A descrição de estado representa os "mun­ dos possíveis" de Leibniz: um enunciado é ana­ lítico quando é válido para todos os mundos possíveis. Os lógicos, todavia, tendem hoje a fa­ zer a distinção entre verdade lógica e verdade analítica. P. ex., a proposição "nenhum homem não casado é casado" é uma tautologia e, por­ tanto, uma verdade lógica; mas a proposição "nenhum solteiro é casado" não é mais uma tautologia, mas ainda é uma proposição analí­ tica, fundada na sinonímia entre "solteiro" e "não casado". (Cf. QUINE, From a LogicalPoint ofView, 1953, cap. II). 4a Sinonímia. Esta pode ser estabelecida: a) mediante definições, como se costuma fazer na matemática e em todas as linguagens artifi­ ciais; b) mediante o critério da intercambiabi lidade, com que Leibniz define a própria iden­ tidade (v.); nesse caso, chamam-se sinônimos os termos intercambiáveis num mesmo con­ texto, sem que se altere a verdade do próprio contexto; c) mediante regras semânticas, como também ocorre nas linguagens artificiais. É de se notar que a dificuldade de se estabelecer, com esses procedimentos, o significado exato de sinonímia e, portanto, o de A. levou alguns ló­ gicos modernos a negar a existência de distin­ ção nítida entre A. e sinteticidade (MORTONWHITE, The Analytic and the Synthetic. an Untenable Dualism, em SIDNEY HOOK, ed. John Dewey, Nova York, 1950; W. V. O. QUINE, From aLogical PointofVíeiv, Cambridge, 1953, cap. II). ANALOGIA (gr. ávaÀ,OYÍoc; lat. Analogia; in. Analogy, fr. Analogie, ai. Analogie, it. Analo­ gia). Esse termo tem dois significados funda­ mentais: 1Q o sentido próprio e restrito, extraído do uso matemático (equivalente a proporção) de igualdade de relações; 2S o sentido de ex­ tensão provável do conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir entre situações diversas. No primeiro significado, o termo foi empregado por Platão e por Aristóteles e é até hoje empregado pela lógica e pela ciência. No segundo significado, o termo foi e é empregado na filosofia moder­ na e contemporânea. O uso medieval do termo é intermediário, entre um e outro significado. Ia Platão usou esse termo para indicar a igualdade das relações entre as quatro formas — duas a duas — de conhecimento, que distinguiu na República (VII, 14, 534 a 6), ou seja,

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entre a ciência e a dianóia, que pertencem à esfera da inteligência (que tem por objeto o ser), e entre a crença e a conjectura, que per­ tencem à esfera da opinião (que tem por objeto o vir-a-ser). "O ser está para o vir-a-ser", diz Platão, "assim como a inteligência para a opi­ nião; e a inteligência está para a opinião assim como a ciência está para a crença e a dianóia para a conjectura". Aristóteles usa essa palavra no mesmo sentido de igualdade de relações. Assim, ele diz que as coisas em ato não são todas iguais entre si, mas são iguais por A., no sentido que todas têm a mesma relação com os termos que servem, respectivamente, de po­ tências. "Não é necessário", diz Aristóteles, "pedir a definição de tudo, mas observar também a A., isto é, ver que o construir está para a habilida­ de de construir na mesma relação em que o estado de vigília está para o dormir, o ver para o ficar de olhos fechados, a elaboração do material para o próprio material e a coisa for­ mada para a informe" (Met., 9, 6, 1.047 b 35 ss.). Do mesmo modo, Aristóteles afirma que os elementos e os princípios das coisas não são os mesmos, mas só análogos, no sentido de que são as mesmas as relações que têm entre si. P. ex., "no caso da cor, a forma será o bran­ co; a privação, o negro; a matéria, a superfície; no caso da noite e do dia, a forma será a luz, a privação será a escuridão e a matéria será o ar" (ibid., 12, 4, 1.070 b 18). Obviamente, o branco, o negro e a superfície não são, respectivamente, o mesmo que luz, escuridão e ar, mas é idên­ tica a relação entre essas duas tríades de coisas (como entre muitíssimas outras tríades): rela­ ção que é expressa com os princípios de for­ ma, privação e matéria. Nesse sentido, isto é, como igualdade de relações em todos os casos em que se acham realizados, tais princípios são chamados de analógicos. Fora da metafísica, a mais célebre aplicação do conceito de A. é a que, em ética, Aristóteles faz em relação à jus­ tiça distributiva. Esta consiste em dar a cada um segundo os seus méritos e, por isso, é consti­ tuída por uma proporção na qual as recompen­ sas estão entre si assim como os méritos res­ pectivos das pessoas a quem são atribuídos. Trata-se, nota Aristóteles, de uma proporção geométrica não contínua, já que nunca ocorre que a pessoa a quem se atribui alguma coisa e a coisa que se lhe atribui constituam um termo numericamente uno (Et. nic, V, 5, 1.131 a 3DAristóteles depois fez uso freqüente do concei­ to de analogia nos seus livros de história natu­

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ral, dizendo que são análogos os órgãos "que têm a mesma função" (Depart. an, I, 5 645 b 6). Esse conceito deveria revelar-se de funda­ mental importância na biologia do séc. XIX. quando, com Cuvier, serviu de fundamento e de ponto de partida para a anatomia compa­ rada. Nesse significado, sem alusão à noção de probabilidade, mas à de proporção, esse termo é hoje empregado em lógica. As "A. formais" são condicionadas pelo caráter transitivo das rela­ ções cuja igualdade estabelecem. P. ex., diz-se que, se "xê antepassado de y e yé antepassado de z, x c antepassado de z"; ou então: se "xê parte de y e y é parte de z, x é parte de z". A conclusão é exata, mas não o seria se, em lugar das relações "antepassado de" ou "parte de", fossem usadas, p. ex., "pai de", "ama" ou "odeia", etc. Não se pode dizer, com efeito, "x é pai de y eyé pai de z, logo x é pai de z". A A. vale só para as chamadas "relações transitivas", cujo princípio pode ser assim expresso: as asserções de que x está em relação transitiva com y e que y está em relação transitiva com z implicam a asserção de que x está em relação transitiva com z (cf. RUSSELL, Intr. to Math. Philosophy, 1918, cap. VI; STRAWSON, Intr. toLogical Theory, II, 2, 11). O uso do termo no sentido de extensão pro­ vável do conhecimento foi iniciado pela Escolástica, embora tal significado tenha per­ manecido estranho à própria Escolástica. Com efeito, essa palavra teve uso metafísico-teológico para distinguir e, ao mesmo tempo, vincular o ser de Deus e o ser das criaturas, que tinham sido contrapostos pela Escolástica árabe e so­ bretudo por Avicena, respectivamente como o ser necessário, que não pode não ser, e o ser possível, que pode ser e por isso precisa do ser necessário para existir. Assim, Guilherme de Alvérnia diz que o ser das coisas criadas e o ser de Deus não são idênticos nem diferentes, mas análogos: de algum modo se assemelham e se correspondem, sem ter o mesmo significado (De Trin., 7). S. Tomás distingue, com mais pre­ cisão, o ser das criaturas, separável da sua es­ sência e, portanto, criado, do ser de Deus, idên­ tico à essência e, portanto, necessário. Esses dois significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos, nem equívocos, isto é, simplesmente diferentes; são análogos, ou seja, semelhantes, mas de proporções diversas. Só Deus tem o ser por essência; as criaturas o têm por particiação; elas, enquanto são, são semelhantes a Deus,

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que é o primeiro princípio universal do ser, mas Deus não é semelhante a elas: esta relação é a A. (S. Tb, I, q, 4, a. 3). A relação analógica estende-se a todos os predicados atribuídos, ao mesmo tempo, a Deus e às criaturas. P. ex., o termo "sábio", quando se refere ao homem, significa uma perfeição diferente da essência e da existência do homem, ao passo que, quan­ do se refere a Deus, quer dizer uma perfeição idêntica à sua essência e ao seu ser; além disso, quando se refere ao homem, dá a entender o que quer significar, ao passo que, quando se refere a Deus, deixa fora de si a coisa significada, que transcende os limites do entendimento hu­ mano (ibid., I, q. 13, a. 5). O significado dife­ rente que um termo pode assumir segundo a sua atribuição a esta ou àquela realidade foi depois chamado, pelos escolásticos, A. de atri­ buição. Esse tipo de A. verifica-se não só a propósito da atribuição de um mesmo termo a Deus e às criaturas, mas em muitos outros ca­ sos, como p. ex., quando se diz que um medi­ camento saudável e que um animal é saudável, na medida em que o medicamento é a causa da sanidade que está no animal (ibid, I, q. 13, a. 5). A A. deproporcionalidaderefere-se, porém, só à analogicidade de significado entre o seráe Deus e o ser das criaturas, tornando-se tema de discussões polêmicas na Escolástica do séc. XIII e da primeira metade do séc. XIV. A A. de proporcionalidade é freqüentemente atribuída a Aristóteles pelos tomistas (assim como pelo próprio S. Tomás), mas na verdade, ainda que Aristóteles tivesse começado a reconhecer vá­ rios sentidos do ser, fizera-o só para reconduzilos a modos e especificações do único sentido de substância, isto é, do ser enquanto ser, do ser na sua necessidade, que é o objeto da metafísica. Aristóteles, por isso, não distinguia nem podia distinguir o ser de Deus do ser das outras coisas: p. ex., Deus e a mente são substân­ cias precisamente no mesmo sentido (Et. nic, I, 6, 1.096 a 24). O maior crítico e opositor do tomismo neste ponto foi Duns Scot, que, repor­ tando-se exatamente a Aristóteles, considerou que a noção de ser é comum a todas as coisas existentes, logo tanto às criaturas quanto a Deus. Considerou-a, por isso, unívoca pelo motivo fundamental de que, se assim não fora, seria impossível conhecer algo de Deus e determi­ nar qualquer atributo Seu, remontando, por via causai, das criaturas (Op. Ox, I, d. 3, q. 3, n. 9). Desse modo, também restabeleceu a unidade da ciência do ser, isto é, da metafísica — que,

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para o tomismo, dividia-se em ciência do ser criado (metafísica) e em ciência do ser neces­ sário (teologia) — e, portanto, reduziu a teolo­ gia a ciência pratica (isto é, não dirigida para o conhecimento do homem, mas para a sua orien­ tação com vistas à salvação. 2° O segundo significado desse termo, como extensão provável do conhecimento mediante a passagem de uma proposição que exprime certa situação para uma outra proposição que exprime uma situação genericamente seme­ lhante, ou como extenso da validade de uma proposição de certa situação para uma situa­ ção genericamente semelhante, era conheci­ do pelos antigos com o nome de "procedimen­ to por semelhança" (ôtà roxpapoAfjç ou Stà ópiotóxriTOç). Aristóteles diz: "A probabilidade também aparece no procedimento por seme­ lhança quando se diz o contrário do contrário: p. ex., se é preciso fazer o bem aos amigos, pode-se dizer, por semelhança, que é preciso fazer o mal aos inimigos" (Top, I, 10, 104 a 28; cf. El. sof, 173 b 38; 176 a 33, etc.) Esse proce­ dimento, obviamente, nada tem que ver com a A.: a relação é diferente (assim como "fazer o mal" é diferente de "fazer o bem") e entre as duas situações, portanto, não há igualdade de relações, mas só uma semelhança genérica. Aristóteles aconselha a usar esse procedimento para questões polêmicas {Top., VIII, 1, 156 b 25). Euclides de Mégara já havia contestado sua validade lógica. Ele "repudiava o procedimen­ to por semelhança dizendo que ele vale de coisas semelhantes ou de coisas dessemelhantes. Se de coisas semelhantes, é melhor tratar das próprias coisas do que das que lhes são seme­ lhantes; se de coisas dessemelhantes, é inútil a comparação" (DlÓG. L., II, 107) Os epicuristas entendiam que a indução era um raciocínio por analogia e, portanto, defendiam a sua validade subordinadamente ao postulado da uniformi­ dade da natureza. Diz Filodemo: "Quando nós julgamos: 'Já que os homens que estão ao nosso alcance são mortais, todos os homens são mor­ tais', o método analógico só será válido se su­ pusermos que os homems que não estão em condições de se mostrarem a nós são, sob to­ dos os aspectos, semelhantes aos que estão ao nosso alcance, de tal modo que se deve pres­ supor que eles também são mortais. Sem esse pressuposto, o método da A. não é válido" (De signis, II, 25). Na filosofia moderna, a primeira defesa da A. é provavelmente a de Locke, que, no IV livro de Ensaio, inclui a A. entre os graus

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do assentimento; mais precisamente, conside­ ra-a como probabilidade concernente a coisas que transcendem a experiência. A A. é a única ajuda de que dispomos, segundo Locke, para alcançar um conhecimento provável dos "seres materiais finitos fora de nós", dos seres que, de qualquer modo, não nos sejam perceptíveis, ou enfim da maior parte das operações da nature­ za que se escondem da experiência humana direta (Ensaio, IV, 16). Leibniz concordou com Locke, ao ver na A. "a grande regra da proba­ bilidade", na medida em que aquilo que não pode ser comprovado pela experiência pode parecer provável se está mais ou menos de acordo com a verdade estabelecida. Leibniz acrescenta alguns exemplos do uso que os cien­ tistas fizeram da A. e recorda que Huygens, fundando-se precisamente nela, julgou que o estado dos outros planetas é muito semelhante ao da Terra, salvo pela diferença produzida por suas diferentes distâncias do Sol (Nouv. ess, IV, 16, 12). Na realidade, os cientistas dos sécs. XVII e XVIII utilizaram muito a A.; e não foi sem razão que Kant utilizou esse termo para expri­ mir alguns princípios regulativos fundamentais da ciência do seu tempo. Entendeu, em geral, por A. uma forma de prova teorética (v. PROVA) e definiu-a como "a identidade da relação entre princípios e conseqüências (entre causas e efei­ tos) enquanto tem lugar, não obstante, a dife­ rença específica das coisas ou das qualidades em si (quer dizer: consideradas fora daquela relação), que contêm o princípio de conseqüên­ cias semelhantes" (Crít. do Juízo, § 90). Enume­ rou quatro "A. da experiência", enunciando-as do seguinte modo: d) princípio da permanên­ cia da substância, que assim se exprime: "Em toda mudança dos fenômenos a substância per­ manece e a sua quantidade na natureza não aumenta nem diminui"; b) princípio da série temporal segundo a lei da causalidade, que assim se exprime: "Todas as mudanças ocorrem se­ gundo a lei do nexo de causa e efeito"; c) prin­ cípio da simultaneidade segundo a lei da ação recíproca, que assim se exprime: "Todas as substâncias, enquanto podem ser percebidas no espaço como simultâneas, estão entre si em ação recíproca universal". Kant esclareceu do seguinte modo o sentido em que esses princí­ pios são chamados de analogias. Em matemá­ tica, as A. são fórmulas que exprimem a igual­ dade de duas relações quantitativas e são sempre constitutivas, isto é, quando são dados três membros da proporção, é dado também o quarto,

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que, portanto, pode ser construído. Em filoso­ fia, porém, a A. é a igualdade entre duas rela­ ções não quantitativas, mas qualitativas: o que quer dizer que, dados três termos da propor­ ção, o quarto termo não é, por isso, dado, mas só é dada certa relação com eles. Essa relação é uma regra para procurá-lo na experiência e um sinal para descobri-lo. De modo que o princípio da permanência da substância, o prin­ cípio de causalidade e o princípio de reciproci­ dade de ação não fazem parte verdadeiramen­ te da constituição dos objetos de experiência, mas valem somente para descobri-los e para situá-los na ordem universal da natureza. Esses princípios são, é bem verdade, apriori, e por­ tanto certos de forma indubitável, mas, ao mesmo tempo, são desprovidos de evidência intuitiva, ao passo que os "axiomas da intuição" (v. Axio­ MA) e as "antecipações da percepção" (v. ANTE­ CIPAÇÕES) são princípios constitutivos porque ensinam "como os fenômenos, tanto com res­ peito à sua realidade percebida, quanto com respeito à sua intuição, podem ser produzidos segundo as regras de uma síntese matemática" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, III, 3). Como se vê, permanece neste uso kantiano o significa­ do da A. como igualdade entre relações, mas tais relações são ditas "qualitativas" no sentido de que, com elas, não são dados os objetos, mas só as relações que permitem descobri-los e organizá-los em unidades. E, com efeito, os princípios da permanência da substância, de causalidade e de reciprocidade não levam a conhecer nada, mas servem para descobrir os objetos cognoscíveis e organizá-los, segundo os seus nexos, na unidade da experiência. Nes­ se sentido, a A. é um instrumento, aliás, um dos instrumentos fundamentais para estender o conhecimento dos fenômenos naturais, usan­ do como guia as suas conexões determinantes. A lógica e a metodologia da ciência do séc. XIX não confiaram na A., considerando-a, ge­ ralmente, como uma extensão da generaliza­ ção indutiva além dos limites dentro dos quais ela oferece garantia de verdade. Stuart Mill con­ siderou o raciocínio por A. "uma inferência de que o que é verdade em certo caso também é verdade em um caso de algum modo seme­ lhante, mas não exatamente paralelo, isto é, não semelhante em todas as circunstâncias materiais. Um objeto tem a propriedade b; ou­ tro não tem a propriedade b, mas é semelhante ao primeiro em uma propriedade a não ligada a b; a A. levará à conclusão de que esse objeto

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também tem a propriedade b. P. ex., diz-se que os planetas são habitados porque a Terra é habitada". Esse modo de argumentar pode, segundo Stuart Mill, aumentar só em grau não determinável, mas em todo caso muito modes­ to, a probabilidade da conclusão; mas em com­ pensação, pode dar lugar a muitas falácias (Logic, V, 5, 6). Mas a lógica e a metodologia atuais são muito menos céticas em relação à A. talvez porque a remetam ao significado I ", isto é, à igualdade de relações. P. ex., um dos procedimentos ana­ lógicos consiste na criação de símbolos que tenham semelhança maior ou menor com as situações reais, e cujas relações reproduzam as relações inerentes aos elementos de tais situa­ ções. Tais símbolos são, às vezes, modelos mecânicos, quer dizer, desenhos, esquemas ou máquinas que reproduzem as relações existen­ tes entre elementos reais; tais são, p. ex., os modelos do sistema solar, da estrutura do áto­ mo, do sistema nervoso, etc. Outras vezes, tais modelos são obtidos através do chamado pro­ cesso de extrapolação, que consiste em levar ao limite o comportamento de um conjunto de casos ordenados numa. série na qual se supo­ nham eliminadas, gradualmente, as influências perturbadoras. Fala-se, p. ex., em velocidade infinita ou em velocidade zero, ou massas re­ duzidas a um ponto geométrico, em alavancas perfeitas, em gases ideais, etc. Todo modelo é um exemplo de A., no sentido le, por ser pró­ prio de um modelo reproduzir, entre os seus elementos, as mesmas relações dos elementos da situação real. Mas os físicos também falam hoje de A. como de condição ou de elemento integrante das hipóteses e das teorias científi­ cas. Segundo essa orientação, a A. faz parte da constituição de uma hipótese na medida em que "as proposições de uma hipótese devem ser análogas a algumas leis conhecidas": nesse sentido, a A. não é só um auxílio à formulação de uma teoria, mas é parte integrante dela. "Considerar a A. como um auxílio à invenção das teorias é tão absurdo quanto considerar a melodia um auxílio para a composição de uma sonata. Se, para compor música, só fosse ne­ cessário obedecer às leis da harmonia e aos princípios formais de desenvolvimento, todos seríamos grandes compositores; mas é a au­ sência do sentido melódico que nos impede de atingir excelência musical simplesmente com­ prando um manual de música" (N. R. CAMPBELL, Physics; TheElements, 1920, p. 130). A A. cor­

ANALYSIS SITUS

responderia, portanto, em física ao que é o sentido musical em música: garantiria a ade­ quação de uma hipótese científica às uniformidades expressas ou formuladas nas leis. ANALYSIS SITUS. V. TOPO LOGIA. ANAMNESE (gr. àvá|ivr|mç; in. Reminiscense, fr. Réminiscence, ai. Reminiszens; it. Anamnest). O mito da A. é exposto por Platão em Ménon, como antítese e correção do "prin­ cípio erístico" de que não é possível ao homem indagar o que sabe nem o que não sabe, pois seria inútil indagar o que se sabe e impossível indagar quando não se sabe o que indagar. A este discurso, que "pode tornar-nos preguiço­ sos e agrada muito aos fracos", Platão opôs o mito segundo o qual a alma é imortal e, portan­ to, nasce e renasce muitas vezes, de tal modo que viu tudo neste mundo e noutro, pelo que pode, em certas ocasiões, recordar o que sabia antes. "E como toda a natureza é congênere e a alma apreendeu tudo, nada impede que quem se recorde uma só coisa (que é aquilo que se chama de 'aprender') encontre em si todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na bus­ ca, já que buscar e aprender não são mais que reminiscência" (Men, 80 e-81 e). Croce cha­ mou de A. o processo do conhecimento histó­ rico, já que seu sujeito, o Espírito Absoluto, não tem outra coisa a fazer senão recordar ou rememorar aquilo que está nele; e as fontes da história (documentos e ruínas) só têm a função de fazer rememorar. (Teoria e storia delia storiografia, 1917, pp. 12 ss.; La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 6). ANANQUISMO (in. Anankisni). Termo em­ pregado por Peirce para indicar o princípio da necessidade absoluta na evolução do mundo (ChanceLoveandLogic, II, 5; trad. it., p. 201). ANAPODÍTICO (gr. àvocrcóôeiKTOÇ; lat. Indimostrativus; in. Anapodeictic, fr. Anapodictique, ai. Anapodiktisch; it. Anapoditticó). Lite­ ralmente: não demonstrável. Aristóteles assim chamou as premissas primeiras do silogismo que ele dizia também serem imediatas (Et. nic, VI, 12, 1.143 b 12; An.post., I, 2, 72 b 27, etc). Mas a teoria dos raciocínios anapodíticos foi desenvolvida pelos estóicos precisamente por oposição à teoria silogística de Aristóteles. En­ quanto os silogismos ou raciocínios apodítícos extraem uma conclusão não evidente de pre­ missas evidentes, os raciocínios anapodíticos têm uma conclusão evidente e são a base de todos os outros raciocínios que possam ser re­ duzidos a eles (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, II,

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ANARQUISM O

156; cf. CÍCERO, Top., 56-57). Os estóicos enu­ meravam cinco tipos fundamentais de raciocí­ nios anapodíticos e julgavam que a eles pode­ riam ser reduzidos todos os outros raciocínios; daí Sexto Empírico dizer que, afastados esses, toda a dialética cairia por terra. Eis como se exemplificavam esses tipos fundamentais: ls Se é dia, há luz. Mas é dia. Logo há luz. 2- Se é dia, há luz. Mas não há luz. Logo não é dia. 3o Se não é dia, é noite. Mas é dia. Logo não é noite. 4e Ou é dia ou é noite. Mas é dia. Logo não é noite. 5e Ou é dia ou é noite. Mas não é noite. Logo é dia (Pirr. hyp., II, 157-58; DIÓG. L, VII, 80). Adotando esses raciocínios como funda­ mento da dialética, da própria arte de racioci­ nar, os estóicos reduziam ao raciocínio A. hipo­ tético ou disjuntivo, que é sempre de dois termos, qualquer outra espécie de raciocínio, negando implicitamente que tivesse valor autônomo o raciocínio demonstrativo de três termos, isto é, o silogismo aristotélico. Como sinônimo do termo, Leibniz usou assilogístico, para indicar um tipo de raciocínio não silogistico. "É preciso saber", disse ele, "que há conseqüências assilogísticas boas, que não poderiam ser demonstradas a rigor com um silogismo sem trocar um pouco os termos; e essa mesma mudança dos termos faz que a conseqüência seja assilogística". P. ex.: "Jesus Cristo é Deus, logo a mãe de Jesus Cristo é a mãe de Deus"; ou então: "Se Davi é o pai de Salomão, Salomão é filho de Davi" (Nouv. ess., IV, 17, 4). ANARQUISMO (in. Anarchism; fr. Anarchisme, ai. Anarchismus; it. Anarchismo). Doutri­ na segundo a qual o indivíduo é a única reali­ dade, que deve ser absolutamente livre e que qualquer restrição que lhe seja imposta é ilegí­ tima; de onde, a ilegitimidade do Estado. Cos­ tuma-se atribuir a Proudhon (1809-65) o nasci­ mento do A. Sua principal preocupação foi mostrar que a justiça não pode ser imposta ao indivíduo, mas é uma faculdade do eu indivi­ dual que, sem sair do seu foro interior, sente a dignidade da pessoa do próximo como a sua própria e, portanto, adapta-se à realidade cole­ tiva mesmo conservando a sua individualidade (A Justiça na revolução e na Igreja, 1858). Proudhon desejaria que o Estado fosse reduzi­ do à reunião de vários grupos formados, cada um, para o exercício de uma função específica e depois reunidos sob uma lei comum e um interesse idêntico (Justice, I, p. 481). Esse ideal pressupõe a abolição da propriedade privada

ANFIBOLIA

que, num texto célebre (O que é a proprieda­ de?, 1840), ele definia "um furto". No domínio da filosofia, o maior teórico do A. foi Max Stirner (pseudônimo de Kaspar Schmidt, 1806-56), au­ tor de uma obra intitulada O único e a sua propriedade(1845). A tese fundamental de Stirner é que o indivíduo é a única realidade e o único valor, logo é a medida de tudo. Subordiná-lo a Deus, à humanidade, ao Estado, ao espírito, a um ideal qualquer, seja embora o do próprio homem, é impossível, pois o que é diferente do eu individual e se lhe contrapõe, é um fantas­ ma do qual ele acaba escravo. Desse ponto de vista, a única forma de convivência social é a associação desprovida de qualquer hierarquia, da qual o indivíduo participa para multiplicar a sua força, mas que para ele é apenas um meio. Essa forma de associação pode nascer tão-so­ mente da dissolução da sociedade atual, que, para o homem, é o estado de natureza, e pode ser somente o resultado de uma insurreição que consiga abolir todas as constituições esta­ tais. No caráter revolucionário do A. depois insistiram os anarquistas russos, dos quais o maior foi Mikhail Bakunin (1814-96), autor de numerosos livros entre os quais um intitulado Deus e o Estado (1871), em que afirma a neces­ sidade de destruir todas as leis, instituições e crenças existentes. A tese anarquista da contraposição nítida e radical entre todas as ordens políticas e sociais existentes, considera­ das como o próprio mal, e a nova ordem libertária futura, considerada como o bem total, foi reapresentada por G. Landauer (Die Revolution, 1923). (Sobre ele cf. K. MANNHEIM, Ideologia und Utopie, 1929, IV, § 1; trad. it., p. 194 ss.). ANFEBO1IA (gr. à(i(piPoA,ía; lat. Amphibolia, in. Amphiboly, fr. Amphibolie, ai. Amphibolie, it. Anfibolia). Em Aristóteles (El. sof, 4, 166 a), é um dos sofismas in dictione, mais precisa­ mente a falácia (v.) que provém do fato de que uma frase torna-se ambígua pela construção gramatical defeituosa. Mais genericamente, o termo A. foi entendido como uma palavra que significa duas ou mais coisas (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, II, 256). Em Kant, o termo A. é usado na expressão "A. dos conceitos de reflexão" para indicar a confusão entre o uso empíricointelectual e o uso transcendental dos concei­ tos de reflexão como "unidade" e "multiplici­ dade", "matéria", "forma" e semelhantes (Crítica R. Pura, An. dos princ, Apênd.) G. P. ANFEBOLOGIA. V. ANFIBOLIA. ANGÚSTIA (in. Dead; fr. Angoisse, ai. Angst; it. Angoscia). No seu significado filosófico, isto

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ANGUSTIA

é, como atitude do homem em face de sua situação no mundo, esse termo foi introduzido por Kierkegaard em Conceito de angústia (1844). A raiz da A. é a existência como possi­ bilidade (v. EXISTÊNCIA). AO contrário do temor e de outros estados análogos, que sempre se referem a algo determinado, a A. não se refere a nada preciso: é o sentimento puro da possi­ bilidade. O homem no mundo vive de possibi­ lidade, já que a possibilidade é a dimensão do futuro e o homem vive continuamente debru­ çado sobre o futuro. Mas as possibilidades que se apresentam ao homem não têm nenhuma garantia de realização. Só por piedosa ilusão elas se lhe apresentam como possibilidades agradáveis, felizes ou vitoriosas: na realidade, como possibilidades humanas, não oferecem garantia alguma e ocultam sempre a alternati­ va imanente do insucesso, do fracasso e da morte. "No possível tudo é possível", diz Kierkegaard, o que quer dizer que uma possibili­ dade favorável não tem maior segurança do que a possibilidade mais desastrosa e horrível. Logo, o homem que se dá conta disso, reco­ nhece a inutilidade da habilidade e diante de si só tem dois caminhos: o suicídio ou a fé, isto é, o recurso a "Aquele a quem tudo é possível". A A. é, segundo Kierkegaard, parte essencial da espiritualidade própria do homem, de sorte que, se o homem fosse anjo ou animal, não conhe­ ceria a A.: e, como efeito, logra mascará-la ou escondê-la o homem cuja espiritualidade é demasiado débil. Enquanto reflexão sobre a própria condição humana, a espiritualidade do homem está ligada à A., isto é, ao sentimento da ameaça imanente em toda possibilidade humana como tal. — Na filosofia contemporâ­ nea, Heidegger centrou na A. a sua análise exis­ tencial (v. EMOÇÃO). A A. é a situação afetiva fundamental, "que pode manter aberta a contí­ nua e radical ameaça que vem do ser mais pró­ prio e isolado do homem": isto é, a ameaça da morte. Na A., o homem "sente-se em presença do nada, da impossibilidade possível da sua existência". Nesse sentido, a A. constitui essen­ cialmente o que Heidegger chama de "o ser para a morte", isto é, a aceitação da morte como "a possibilidade absolutamente própria, incon­ dicional e insuperável do homem" (Sein und Zeít, § 53). Mas nem por isso a A. é o medo da morte ou dos perigos que podem provocá-la. Diz Heidegger: "O medo tem assento no ente de que se cuida dentro do mundo. A A., po­ rém, brota do próprio Ser-aí. O medo chega

ANGUSTIA

repentino do intramundano. A A. ergue-se do ser-no-mundo enquanto lançado ser-para-amorte" (ibíd., § 68 b). A A. não é nem mesmo o pensamento da morte ou a espera e a prepa­ ração da morte. Viver para a morte, angustiarse, significa compreender a impossibilidade da existência enquanto tal. E compreender tal im­ possibilidade significa compreender que todas as possibilidades da existência, consistentes em antecipações ou projetos que pretendem trans­ cender a realidade de fato, só fazem reincidir na realidade de fato. Por isso, o verdadeiro significado da A. é o destino, isto é, a escolha da situação de fato como herança de que não se pode fugir e o reconhecimento da impossi­ bilidade ou nulidade de qualquer outra esco­ lha que não a aceitação da situação em que já se está. Em outros termos, a A. como compreen­ são existencial possibilita ao homem transfor­ mar a necessidade em virtude: aceitar como um ato de escolha a situação de fato, que é o seu destino e que, sem a A., procuraria inutil­ mente transcender. A coincidência de necessi­ dade de liberdade parece, assim, ser o signifi­ cado da A. heideggeriana (ibid, § 74). Nesse sentido, Heidegger diz que a A. "liberta o ho­ mem das possibilidades nulas e torna-o livre para as autênticas" (ibid., § 68'b). Todavia, não foi só a filosofia existencialista que considerou a A. como revelação emocio­ nal da situação humana no mundo. Uma rica literatura psicológica esclareceu o caráter onipresente da A., que é diferente do medo, do temor e de outros estados emocionais de cará­ ter episódico que se referem a situações particula­ res. A A. parece, ao contrário, um ingrediente constante da situação humana do mundo, seja qual for a explicação dada à sua origem. Freud inicialmente fê-la remontar ao ato do nascimento, isto é, ao ato "em que se acham reunidas todas as sensações penosas, todas as tendências e as sensações corpóreas, cujo conjunto se tornou o protótipo do efeito produzido por um perigo grave" {Einführung in diePsychoanalyse, 1917, III, 25; trad. fr., p. 424). Em seguida, mais gene­ ricamente, considerou a A. como a "reação do Ego ao perigo", ou melhor, "à própria essência do perigo"; essa situação é também definida por Freud como "uma situação de impotência". Diz Freud: "Estou na expectativa de que se verifique uma situação de impotência; ou en­ tão a situação presente me lembra um aconte­ cimento traumático já vivido. Assim, antecipo esse trauma, comporto-me como se já estivesse

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ANJOS

aqui, enquanto houver tempo para afastá-lo. Portanto, a A. é, de um lado, expectativa do trauma e, de outro, uma repetição atenuada deste" (Hemmung, Symptom undAngst, 1926, cap. XI, B; trad. it., p. 106). Por outro lado, o estudo das pessoas nas quais a A. se manifesta nas formas mais acentuadas (p. ex., nas que sofreram lesões cerebrais) levou alguns cientistas (p. ex., GOLDSTEIN, DerAufbaudesOrganismus, 1934) a definir a A. como "a impossibilidade de pôr-se em relação com o mundo" e de "realizar uma tarefa correspondente à essência do orga­ nismo", considerando-a assim como o casolimite das "reações de catástrofe" que acompa­ nham o conflito do organismo com o mundo. ANIMISMO (in. Animism; fr. Animisme, ai. Animismus; it. Animismó). Termo usado por Tylor {Primitive Culture, I, 1934, pp. 428-429) para indicar a crença difundida entre os povos primitivos de que as coisas naturais são todas animadas; daí a tendência a explicar os aconte­ cimentos pela ação de forças ou princípios animados. No A. assim entendido Tylor vê a forma primitiva da metafísica e da religião. Essa doutrina partia do pressuposto de que a pri­ meira e fundamental preocupação do homem primitivo era explicar, de algum modo, os fatos que o circundam. A observação sociológica, porém, demonstrou que isso não é verdade e que o primitivo se interessa antes de mais nada pela caça, pela pesca, pelos eventos e pelas festividades da tribo, e que esses interesses não estão vinculadas ao A., mas à magia (v.). A doutrina segundo a qual foi do comportamen­ to mágico que nasceu a religião e é em torno dele que gira a cultura primitiva foi chamada pré-animismo. (Cf. MArReT, The Threshold of Religion, 1909; G. FRAZER, The Golden Bough, 1911-14; MALINOWSKI, Magic Science and Religion, 1925). A1\JOS (gr. ayyE/loi; lat. Angeli; in. Angels; fr. Anges; ai. Engel; it. Angeli). Foi esse o nome que a teologia cristã deu às "criaturas incorpóreas" que funcionam como intermediárias entre Deus e as criaturas corpõreas, admitidas pelo neoplatonismo (v. DEUS). A fonte da angelologia medieval é o texto do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, Sobre a hierarquia celeste (séc. V). A hierarquia celeste é constituída por nove or­ dens de A. agrupadas em disposições ternárias. A primeira é a dos Serafins, dos Querubins e dos Tronos; a segunda é a das Dominações, das Virtudes e das Potestades; a terceira, a dos Prin­ cipados, dos Arcanjos e dos Anjos. Essa doutri­

ANOETICO

na foi aceita por S. Tomás (S. Tb, I, q. 108, a. 2) e adotada por Dante no Paraíso. ANOETICO (in. Anoetic; fr. Anoétique, ai. Anoetik, it. Anoeticó). Adjetivo que se usa às vezes para designar as funções diferentes do intelecto, p. ex., a sensibilidade, as emoções, etc. ANOMALIA (in. Anomaly, fr. Anomalie, ai. Anomalie, it. Anomalia). Em geral, todo fato ou elemento que se afasta do modelo unifor­ me, constantemente verificado, de certo gêne­ ro de fatos ou elementos: p. ex., um corpo vivo apresenta uma A. se a estrutura de algum ór­ gão seu se distancia da encontrável em corpos do mesmo gênero. Um fato anômalo é um fato que contradiz a previsão provável, fundada em uniformidades recorrentes (v. ANORMALIDADE). ANOMIA (in. Anomy fr. Anomie, ai. Anomie, it. Anomíà).Termo moderno usado sobre­ tudo por sociólogos (p. ex., Durkheim), para indicar a ausência ou a deficiência de organiza­ ção social e, portanto, de regras que assegu­ rem a uniformidade dos acontecimentos sociais. ANORMALIDADE (in. Abnormality fr. Anormalité, ai. Unregelmãssigkeit; it. Anormalitã). O que é contrário a uma norma e, por isso, se subtrai, em certa medida, à função ou ao fim que a norma tende a garantir ou a atingir. Esse termo tem significado diferente de anomalia (v.), já que esta nem sempre constitui uma A. A anomalia é uma variante imprevista, um caso que se afasta da uniformidade reconhecida. Pode ou não ser uma A. P. ex., um órgão anômalo é anormal só quando não é capaz de realizar a função que lhe seria própria. ANTECEDENTE (in. Antecedent; fr. Antécédent-, ai. Antezedens; it. Antecedente). Em Lógica, o primeiro termo de uma conseqüência (v.). G. P. ANTECIPAÇÃO (gr. rcpóA,r|\|nç; lat. Anticipatio; in. Anticipation; fr. Anticipation; ai. Antizipation; it. Anticipazioné). Com esse termo, os lógicos estóicos e epicuristas designavam os conceitos gerais (de gênero e espécie) na me­ dida em que, por meio deles, os dados da ex­ periência eram "antecipados" pela mente (DIÓG. L, VII, 1, 54). Na filosofia moderna, na esteira da polêmica epicurista contra o papel atribuído pelos estóicos às A. no conhecimento, Francis Bacon e outros filósofos usam A. em sentido depreciativo, para indicar uma hipótese gra­ tuita, não confirmada pela experiência (Nov. Org, I, 26). Em Kant, Antízipationem der Wahrnehmung ("A. da percepção") designa o segundo grupo de princípios sintéticos apriori

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ANTIGOS E MODERNOS

do intelecto, dependente da regra apriori, se­ gundo a qual "em todos os fenômenos o real objeto da sensação tem uma qualidade intensi­ va, isto é, um grau" (v. CONCEITO). G. P. ANTEPREDICAMENTAIS (lat. Antepraedicamenta; in. Antepredicament; fr. Anteprédicament; ai. Anteprádicament; it. Antipredicamenti). Na Idade Média, com o nome de A. designava-se a Isagogeàs categorias de Porfírio. Além disso, a mesma palavra também designa­ va, naturalmente, as quinque vocês (ou catego­ rias da Lógica) tratadas na Isagoge. gênero (v.), espécie (v.), diferença (v.), próprio (v.), aci­ dente (v.). Husserl chamou de evidência antepredicativa a evidência com que os objetos se dão, com as várias modalidades de seu ser, no mundo da vida (v.): evidência que serve de fundamento para o juízo predicativo ou apofântico (Erfahrung und Urteil, 1939, intr.). ANTÍFASE (gr. àvTÍcpaoiç). Em Aristóteles (An.post., 72 a 12-14, e passim), significa con­ tradição, isto é, "oposição (entre dois enuncia­ dos) que exclui qualquer caminho intermediá­ rio". Em Aristóteles, também, silogismo por A. é o que conclui com uma contradição; na Lógica estóica, é o raciocínio que conclui com um dile­ ma, como "é dia ou não é dia" (mas, em Aristó­ teles, "se é dia, então não é dia"). G. P. ANTIGOS E MODERNOS (in. Ancients andmoderns, fr. Anciens etmodernes; it. Antichi e moderni). A disputa sobre a superioridade dos A. ou dos modernos nasceu na Itália com Pensiere diversi (1620) de Alessandra Tassoni, desenvolveu-se sobretudo na França e na In­ glaterra e versou substancialmente sobre o con­ ceito da história como progresso. A noção de progresso, aliás, origina-se precisamente dessa polêmica e, em particular, do Diálogo dos mor­ tos (1683) de Fontenelle. Esse conceito, elabo­ rado nessas discussões, fora já expresso por Giordano Bruno com a afirmação de que "so­ mos mais velhos e temos mais idade do que nossos predecessores", porque através do tem­ po o juízo amadurece (Cena delle ceneri, in "Op. It.", 31-32); conceito este que Bacon ex­ primira com ventas filia temporis, extraído de Aulo Gélio (Noct. Att., XII, 11): "A Antigüidade", dizia Bacon, "foi 'antiga' e mais velha em relação a nós, mas em relação ao mundo, nova e mais jovem; e assim como de um ancião podemos esperar muito mais conhecimento das coisas humanas e maior maturidade de juízo do que de um jovem — pela experiência e pelo grande número de coisas que viu, ouviu e pensou —,

ANTI HISTORICISMO

também da nossa época (se tivesse consciência das suas forças e quisesse experimentar e com­ preender) seria justo esperar maiores coisas que dos tempos A., sendo esta para o mundo a maioridade, ajudada e enriquecida por infini­ tos experimentos e observações" (Nov. Org, I, 84). Esse conceito, repetido porFontenelle, cons­ tituiu o primeiro núcleo da noção de progresso (v.). (Sobre a disputa dos A. e dos modernos,cf. RIGAULT, Histoire de Ia querelle des anciens e des modemes, 1856; J. B. BURY, The Ideei of Progress, 1932, cap. IV). ANTI-HISTORICISMO (in. Antihistoricism-, fr. Antihistoricisme, ai. Antihistorismus; it. Antistoricismo). Termo empregado principalmente por Croce para designar o Iluminismo, que, como "racionalismo abstrato", teria considera­ do "a realidade dividida em supra-história e história, num mundo de idéias ou de valores e num mundo inferior que as reflete ou as refle­ tiu até agora de modo fugidio e imperfeito e ao qual convirá uma vez por todas impô-los, fazendo suceder à história imperfeita, ou à his­ tória pura e simples, uma realidade racional perfeita" (Lastoria, p. 51). Desse ponto de vis­ ta, são "anti-históricas" todas as doutrinas que distinguem o que é do que deve ser, isto é, que não admitem a identificação hegeliana entre realidade e racionalidade. — Na verdade, o Iluminismo não é "anti-historicismo", mas "antitradicíonalísmo", pois constituiu a primeira e mais radical condenação da tradição como portadora e garantia de verdade (v. ILUMINISMO; TRADIÇÃO). ANTILOGIA ( gr. ávnÀOYÍa; in. Anttiogy, fr. Antilogie, ai. Antilogie, it. Antilogia). Contra­ dição (v.). Às vezes esse termo eqüivale a dis­ cussão, ou à arte da discussão porque esta con­ siste em contrapor um argumento a outro argumento. Antilôgícos foi o título de uma obra de Protágoras (DrÓG. L, III, 37). ANTILOGISMO (in. Antilogism; fr. Antilogisme, ai. Antilogismus; it. Antilogismo). Ther­ mo cunhado com palavras gregas (àvxí "anti, contra"e /IÓ70Ç, "razão"), introduzido para in­ dicar atitudes filosóficas de hostilidade à razão discursiva. G. P. ANTIMETAFÍSICO (in. Antimetaphisic; fr. Antimétaphysique, ai. Antimetaphysik, it. Antimetafísico). Termo usado pelos modernos para indicar uma atitude ou uma orientação de pen­ samento contrária às afirmações da metafísica clássica e que se recusa a admitir a validade de uma averiguação que ultrapasse os limites da

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ANTINOMIAS

experiência ou que, de algum modo, desem­ boque em afirmações não verificáveis em ter­ mos de experiência (v. METAFÍSICA). Mais espe­ cificamente, a crítica antimetafísica dirige-se (a exemplo de Hume) contra os dois conceitos fundamentais, substância e causa, ou então contra interpretações que possibilitem sua apli­ cação a objetos que transcendam os limites da experiência. ANTINOMIAS (in. Antinomies; fr. Antinomies-, ai. Antinomien; it. Antinomie). Com esse termo ou com o termo paradoxos são chama­ das as contradições propiciadas pelo uso da noção absoluta de todos em matemática e em lógica. Nesse sentido, as A. não eram desco­ nhecidas na Antigüidade, porque fizeram parte dos raciocínios insolúveis ou conversíveis de que se compraziam megáricos e estóicos e que às vezes também foram chamados de dilemas (v. DILEMA). Tais raciocínios são tratados na Escolástica tardia, nas coleções de Insolubilia ou de Obrigatória; o mais famoso é o do men­ tiroso, que Cícero já recordava: "Se dizes que mentes, ou estás dizendo a verdade e então estás mentindo, ou estás dizendo mentira e en­ tão dizes a verdade" (Acad, IV, 29, 96). Esse paradoxo era discutido no séc. XIV por Ockham (Summa log., III, III, 38). Na lógica contempo­ rânea, a primeira contradição desse gênero foi evidenciada por Burali Forti em 1897 e se refe­ ria à série dos números ordinais: se a série de todos os números ordinais tem um número ordinal, que seja p. ex. ü), o) também será um número ordinal, de tal modo que a série de todos os números ordinais terá o número tt> + 1, maior do que co, e co não será o número ordinal de todos os ordinais ("Uma questão sobre os nú­ meros transfinitos", em Rend dei Circolo Ma­ temático di Palermo, 1897). Mas o mais famoso paradoxo, o que chamou mais a atenção, foi o de Russell, referente à classe de todas as clas­ ses que não são membros de si mesmas. Há classes que não são membros de si mesmas, como p. ex. a classe dos homens: esta, não sendo homem, não é membro de si mesma. Há, po­ rém, classes que são membros de si mesmas, como a "classe dos conceitos", que é também um conceito. Ora, a classe de todas as classes que não são membros de si mesmas é ou não é membro de si mesma? Se é, contém um mem­ bro que é membro de si mesmo e, portanto, não é mais a classe de todas as classes que não contêm a si mesmas como membro. Se não, será uma das classes que não contêm a si mes­

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mas como membro e deve, por isso, pertencer à classe de tais classes. Esse paradoxo publi­ cado por Russel em 1902 deu depois lugar à reorganização feita por Whitehead e Russel na lógica matemática (Principia mathematica, 1910-13). Outros paradoxos são os de Kõning (1905), de Richard (1906), de Grelling (1908), de Jourdain (1913); mas, como notou Russell, pode haver um número indefinido de parado­ xos com a mesma característica, a auto-referência ou a reflexividade. Em cada um deles se diz alguma coisa de todos os casos de um dado gênero e, do que se diz, nasce um novo caso que é e não é da mesma espécie daqueles aos quais o todos se refere. Portanto, a solução óbvia das A. é a que apresenta regras capazes de impedir a referência auto-reflexiva de onde nascem as A. Tal é o princípio adotado por Russell: "Tudo o que implica o todo de uma coleção não deve ser termo da coleção", ou inversamente: "Se, admitindo que certa coleção tem um total, ela teria membros definíveis somente em termo daquele total, então a dita coleção não tem to­ tal" (MathematicalLogic asBased on the Theory ofTypes, 1908), em Logic andKnowledge, p. 63). A mesma exigência era apresentada por Poincaré, na forma da exclusão das definições impredicativas (v.), isto é, das definições que implicam um círculo vicioso. Todavia, essa simples exigência negativa, sobre a qual todos os lógicos estão de acordo, não é suficiente porque não fornece um crité­ rio exato para distinguir o uso legítimo do ile­ gítimo da palavra todos. E, sobre qual possa ser esse critério, os lógicos não estão de acor­ do. Contudo, é possível distinguir dois tipos de soluções que podem ser atribuídas, respecti­ vamente, a Russell e a Frege. l9 A primeira solução consiste em distinguir vários graus ou tipos de conceitos e em limitar a predicabilidade de um tipo em relação ao outro. A teoria dos tipos de Russell responde a essa exigência. Segundo essa teoria, devem-se distinguir: conceitos de tipo zero, que são os conceitos individuais, isto é, os nomes pró­ prios; conceitos de tipo um, que são proprie­ dades de indivíduos (p. ex., branco, vermelho, grande, etc); conceitos de tipo dois, que são propriedades de propriedades, e assim por dian­ te. Isso posto, a regra para evitar a A. é a se­ guinte: um conceito nunca pode servir de predicado numa proposição cujo sujeito seja de tipo igual ou maior do que o próprio concei­ to. Essa teoria foi exposta por Russell no apên­ dice de Principies ofMathematics, de 1903.

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Em seguida, nessa teoria dos tipos, o pró­ prio Russell inseriu uma teoria dos graus, dan­ do lugar à chamada teoria ramificada dos ti­ pos, que ele expôs em 1908 (no artigo já citado) e que está na base dos Principia mathematica. Segundo essa teoria, são de grau zero ou ele­ mentares as funções proposícionais (v.) ou predicados que não contêm nenhuma variável aparente (entendendo-se por variável aparen­ te a que se repete numa função independente dela, não no sentido de ter o mesmo valor para cada valor da variável, mas no sentido de que os valores particulares desta não mudam a na­ tureza da função). São de grau um as funções proposícionais apresentadas de uma variável aparente cuja classe de variação é um conjunto de objetos individuais. São de grau dois as apre­ sentadas de uma variável aparente que está no lugar de uma função proposicional de grau um; e assim por diante. Isto posto, estabelece-se a regra segundo a qual não podem ser tratadas no mesmo plano proposições que podem ser extraídas de funções de grau diferente. P. ex., a A. do mentiroso depende do fato de a frase "eu minto" ser interpretada no sentido de "Qual­ quer que seja a minha presente afirmação x, x é uma mentira", e de se identificar essa frase, que chamamos y, com a afirmação x. Mas na realidade y é de grau diferente de x porque x é a variável aparente contida em y-. por isso, não pode ser identificada com y. Em outras palavras, quando se diz "eu minto", não se entende que a própria frase "eu minto" seja uma mentira, mas que é mentira alguma outra frase a que ela se refere. Russell, porém, para tornar possível, em matemática, o tipo de asserção impropriamente expressa com a frase (que dá lugar às A.) "todas as propriedades de x", introduzia o axioma das classes ou axioma de redutibilidade. Dizia: "Seja (p xuma função de qualquer ordem de um argumento x, que pode ser um indivíduo ou uma função de qual­ quer ordem. Se cp é da ordem imediatamente superior a x, escrevemos a função na forma tylx; nesse caso, chamaremos (p de função predicativa. Assim, a função predicativa de um indivíduo é uma função de primeira ordem. Para argumentos de tipo mais alto, as funções predicativas tomam o lugar que as funções de primeira ordem têm em relação aos indivíduos. Concluímos então que toda função é equiva­ lente, para todos os seus valores, a alguma função predicativa do mesmo argumento" (MathematicalLogic, 81-82). Russell acreditava

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ter salvo desse modo o conceito de classe da A. e, ao mesmo tempo, tê-lo tornado ainda utilizá­ vel em sua função fundamental, que seria a de reduzir a ordem das funções proposicionais. Mas esse axioma suscitou muitas críticas, que mostraram especialmente que seu efeito era restaurar a possibilidade das definições impredicativas que a teoria dos graus tendia a eliminar (cf. sobre tais críticas A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 59, n. 588). O mesmo Russell, na introdução à 2- edição de Principia mathematica (1925), recomenda­ va o abandono do axioma da redutibilidade. Ramsey propôs então dividir as A. em duas categorias: as antinomias lógicas (em sentido estrito), que são as exemplificadas pela A. de Russell e que não fazem referência à verdade ou à falsidade das expressões; e as A. sintáti­ cas, exemplificadas pela A. do mentiroso, que nascem da referência semântica e podem, por­ tanto, ser chamadas de semânticas ou epístemológicasiFoundations ofMathematics, 1931). Ramsey observou que as antinomias da segun­ da espécie não comparecem nos sistemas logísticos, mas só nos textos que os acompa­ nham e que, portanto, podem ser desprezadas pela lógica, na medida em que esta tem como objeto a construção de sistemas simbólicos. Quanto às A. lógicas, porém, Ramsey observou que basta a teoria simples dos tipos, cuja regra fundamental Carnap, seguindo a sugestão de Ramsey, assim formulou: "Um predicado per­ tence sempre a um tipo diferente do de seus argumentos (isto é, pertence a um tipo de nível mais alto); por isso, um enunciado nunca pode ter a forma 'F (F)"' (The Logical Syntax of Language, § 60 a). Essa regra basta para evitar as definições impredicativas (y): de modo que a teoria dos tipos simples é hoje a mais comumente aceita pelos lógicos, no que con­ cerne às A. lógicas. 2a A segunda solução fundamental das A. diz respeito às A. sintáticas, isto é, semânticoepistemológicas, que são aquelas nas quais comparecem reiteradamente os conceitos de verdadeiro e falso. Essa solução consiste em considerar essas A. como proposições indecidíveis, isto é, como proposições sobre cuja verdade ou falsidade a estrutura da língua em que são formuladas não permite decidir nem num sentido nem noutro. Mediante a amplia­ ção da língua considerada, tais proposições podem tornar-se suscetíveis de decisão, mas essa ampliação pode dar ensejo a outras propo­ sições indecisas.

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Uma solução desse gênero já fora apresen­ tada por Ockham, quando, na análise do para­ doxo do mentiroso, reconhecera o caráter indecidível dos enunciados auto-reflexivos. As­ sim, dizia Ockham, não é legítimo dizer que A signifique "A significa o falso". Certamente é possível que A signifique o falso, mas justa­ mente porque é possível, e só por isso, A não significa nem o verdadeiro nem o falso (Summa log., III, III, 38). Esse ponto de vista foi consolidado pelo chamado teorema de Gõdel, segundo o qual é impossível provar a não-contradição de um sis­ tema logístico com os meios de expressão con­ tidos no mesmo sistema ("Über formal Unentscheidbare Sãtze der Principia Mathematica und verwandter Systeme", in Monatscb. Math. Phys., 1931) *Isto posto, pode-se entender como nascem A. sintáticas quando os predicados ver­ dadeiro e falso, referentes a uma linguagem determinada S, são usados dentro dessa mesma linguagem. Por outro lado, a contradição pode ser evitada usando-se os predicados "verdadei­ ro (em SÓ" e "falso (em Si)", numa sintaxe de Si não formulada na própria Si, mas em outra linguagem S2 (CARNAP, Logical Syntax of Language, § 60 b). Vale dizer que a afirmação "eu minto" pode ser verdadeira em nível de certa linguagem e falsa em nível de outra lin­ guagem; isto é, ela permanece indecisa enquanto não se determinar o nível da linguagem a que se refere. Soluções substancialmente semelhantes a estas foram propostas por Quine (Mathematical Logic, 1940, cap VII; cf. From a LogicalPointof View, VII, 3) e por Church (Introduction to Mathematical Logic, § 57). ANTINOMIAS KANTIANAS (in. Kantian antinomies; fr. Antinomies kantiennes; ai. Kants Antinomien; it. Antinomie kantiane). A pala­ vra A. significa propriamente "conflito de leis" (QUINTILIANO, Inst. or., VII, 7, 1), mas foi esten­ dida por Kant para indicar o conflito em que a razão se encontra consigo mesma em virtude dos seus próprios procedimentos. Kant falou das A. no campo da cosmologia racional, isto é, da doutrina que tem por objeto a idéia do mundo. Esta idéia, como todas da razão pura (v. IDÉIA), nasce da tentativa — ilegítima, segundo Kant — de aplicar as categorias a si mesmas, isto é, do uso reflexivoâas categorias. A idéia do mundo é, de fato, a "unidade incondicionada das con­ dições objetivas da possibilidade dos objetos em geral". As "condições objetivas, etc." são as categorias e os princípios delas derivados; e a

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unidade é ainda uma categoria. As A. que sur­ gem desse modo são, segundo Kant, naturais ou inevitáveis; naturais porque a idéia de mun­ do que lhes dá origem, embora desprovida de validade empírica e, portanto, cognoscitiva, é formada pela razão com um procedimento natural que consiste em aplicar às categorias as próprias categorias, que só deveriam ser apli­ cadas aos fenômenos; inevitáveis porque, uma vez formada a idéia de mundo como a totalida­ de absoluta, incondicionada, de todos os fenô­ menos e das suas condições, não se pode ab­ solutamente evitar chegar a proposições contraditórias. Kant enumera quatro A. que correspondem aos quatro grupos de catego­ rias: segundo a qualidade, a quantidade, a re­ lação e a modalidade. São elas: 1- Antinomia. Tese. o mundo tem um início no tempo e no espaço, está fechado dentro de limites. Antítese-, o mundo não tem nem início no tempo nem limite no espaço, mas é infinito tanto no tempo quanto no espaço. 2- Antinomia. Tese. toda substância composta consta de partes simples e nada existe além do simples ou do que resulta composto do sim­ ples. Antítese: não existe no mundo coisa algu­ ma composta de parte simples e não existe em lugar algum nada de simples. 3a Antinomia. Tese: a causalidade segundo leis da natureza não é a única causalidade pela qual possam ser explicados os fenômenos do mundo. É necessário admitir, para a explica­ ção destes, também uma causalidade da liber­ dade. Antítese: não há nenhuma liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente segundo as leis da natureza. A- Antinomia. Tese: no mundo há alguma coisa que, como sua parte ou como sua causa, é um ser absolutamente necessário. Antítese: em nenhum lugar existe um ser absolutamen­ te necessário, nem no mundo nem fora do mun­ do, como sua causa. Tanto a tese quanto a antítese de cada uma dessas A. é demonstrável com argumentos logicamente irrepreensíveis: entre uma e outra é, pois, impossível decidir. O conflito, portan­ to, permanece e demonstra a ilegitimidade da noção que lhes deu origem, isto é, da idéia de mundo. Esta, estando além de toda experiência possível, permanece incognoscível e não pode fornecer nenhum critério capaz de decidir por uma ou por outra das teses em conflito. A ile­ gitimidade da noção de mundo é evidenciada pelo fato de a tese das A. apresentar um concei­

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ANTINOMIAS KANTIANAS

to dele demasiado pequeno para o intelecto, ao passo que a antítese apresenta um conceito demasiado grande para o mesmo intelecto. Assim, se o mundo teve princípio, regredindose empiricamente na série dos tempos, seria preciso chegar a um momento em que esse regresso se detém; o que é um conceito de mundo demasiado pequeno para o intelecto. Se, ao contrário, o mundo não teve princípio, o regresso na série do tempo nunca pode esgotar a eternidade; o que é um conceito demasiado grande para o intelecto. O mesmo se diga para a finitude ou a infinitude espacial, para a divisibilidade ou a indivisibilidade, etc. Em todo caso, chega-se a uma noção do mundo que: ou restringe em limites estreitos a possibilidade de o intelecto ir de um termo a outro na série dos eventos, ou estende esses limites a tal ponto que torna insignificante essa mesma possibili­ dade. Logo, a solução da A. só pode consistir em não assumir a idéia do mundo como reali­ dade, mas como uma regra que leva o intelecto a regredir na série dos fenômenos sem nunca poder parar em algo incondicionado (Crítica R. Pura, Antinomias, seção 8). A essas A. da razão pura Kant acrescentou uma A. da razão prática {Crít. R. Prática, I, livro II, cap. II, § 1), que consiste no conflito criado pelo conceito de sumo bem: "Ou o desejo da felicidade deve ser a causa móbil para o máximo de virtude ou o máximo de virtude deve ser a causa eficiente da felicidade"; e uma A. do juízo teleológico {Crít. doJuízo, § 70), que é formada pela tese: "Toda produção das coisas materiais é possível segundo leis puramente mecânicas", pela an­ títese: "Alguns produtos da natureza não são pos­ síveis segundo leis puramente mecânicas". Hegel interpretava as A. kantianas como se Kant tivesse querido retirar a contradição do mundo em si mesmo e atribuí-la à razão. E acrescenta­ va: "É sentir ternura demais pelo mundo querer afastar dele a contradição e transportá-la para o espírito, para a razão, deixando-a aí, sem solu­ ção. Na verdade, é o espírito que tem força suficiente para suportar a contradição, mas é também o espírito que lhe dá solução" (Wiss. derLogik, I, seção II, cap. II, C, nota 2). Na rea­ lidade, o método dialético (v. DIALÉTICA), que é o método próprio da razão, segundo Hegel, pro­ cede exatamente passando da tese à antítese, e, portanto, exige sempre a contradição; mas é uma contradição que sempre se resolve na sín­ tese, por isso nunca é uma antinomia. As A. kantianas foram discutidas e inter­ pretadas de várias maneiras, mas não deram

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ANTROPOLOGIA

origem a estudos aprofundados sobre a sua con­ sistência lógica. Entre os próprios neokantianos, nem todos reconheceram sua validade; Renouvier, p. ex., aceitava sem reservas as teses e rejeita­ va as antíteses, reconhecendo assim a finitude do mundo no espaço e no tempo {Essais de critiquegénérale, I, p. 282). No entanto, o re­ sultado alcançado pela discussão kantiana das antinomias é importante. Consiste em ter pos­ to de lado a idéia tradicional do mundo como totalidade absoluta e em ter ensinado o uso crítico do conceito de mundo (v.). ANTIPERÍSTASE (gr. àvxtTcepíoxoccRÇ; lat. Antiperistasis). Um dos modos tradicionais de explicar o movimento dos projéteis; já que a natureza não permite o vácuo, quando um corpo sai velozmente do lugar em que estava, o ar se precipita para esse lugar e empurra o próprio corpo, que passa assim a outro lugar; e assim por diante, por toda a extensão do movimen­ to. A essa explicação Aristóteles objetava que não se leva em conta o fato de existir um cor­ po que não é movido por outro: o céu (Fís., VIII, 10, 267 a 12). Essa noção foi criticada pelos que elaboraram a teoria do impulso (v.): p. ex., Buridan (Quaest. superphysicam, VIII, q. 12. Cf. ainda BOVILLO, De nihilo, em Opera, 1510, f. 72 v.). ANTÍTESE (gr. àviiGecaç; in. Antithesis; fr. Antithèse, ai. Antithesis; it. Antitesi). 1. Con­ traposição: Aristóteles diz que a contradição é uma A. que não tem termo médio {An.post., I, 2, 72 a 10). 2. Um dos dois termos da contraposição, aquele que se opõe à tese. Nesse sentido, Kant chamou de A. o segundo membro da antinomia (v.) e Hegel chamou de A. o segundo membro do procedimento dialético, mais precisamente "momento dialético" ou "negativo racional". ANTTTEnCA (ai. Antithetik). Kant enten­ deu com esse termo "um conflito de conheci­ mentos aparentemente dogmáticos (thesis cum antithesi), sem que se atribua a nenhum deles um direito predominante ao assentimento". A A. se oporia assim à Tética (v.). Em particular, a A. transcendental é "uma investigação em torno da antinomia da razão pura, as suas cau­ sas e o seu resultado" {Crít. R. Pura, Dialética, livro II, cap. II, secç. II). ANTITIPIA (gr. àvitTorcía; lat. Antitypia, in. Antitypy, it. Antitipia). Termo de origem epicurista (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., 1,21) em­ pregado por Leibniz para indicar o atributo da matéria pelo qual "ela está no espaço" e pelo

qual, portanto, um corpo é impenetrável para o outro (Qp., ed. Erdmann, pp. 463, 691). ANTROPOLOGIA (in. Anthropology, fr. Anthropologie, ai. Anthropologie, it. Antropolo­ gia). Exposição sistemática dos conhecimen­ tos que se têm a respeito do homem. Nesse sentido geral, a A. fez e faz parte da filosofia, mas, como disciplina específica e relativamente autônoma, só nasceu em tempos modernos. Kant distinguiu a A. fisiológica, que seria aquilo que a natureza faz do homem, da A. pragmá­ tica, que seria aquilo que o homem faz como ser livre, ou então o que pode e deve fazer de si mesmo (Antr, pref.). Essa distinção perma­ neceu e hoje se fala de A. física, que conside­ ra o homem do ponto de vista biológico, isto é, em sua estrutura somática, em suas rela­ ções com o ambiente, em suas classificações raciais, etc, e de A. cultural, que considera o homem nas características que derivam das suas relações sociais. A A. física costuma, por sua vez, ser dividida em paleontologia huma­ na e somatologia. A paleontologia humana trata da origem e da evolução da espécie hu­ mana, especialmente a partir do que é revela­ do pelos fósseis. A somatologia trata de todos os aspectos físicos do homem. A arqueologia e a etnologia correspondem, no campo cultu­ ral, às duas ciências precedentes; e a lingüís­ tica tem como objeto não só a análise e a classificação das línguas, mas a compreensão, através das línguas, da psicologia individual e de grupo (cf. R. LINTON, ed., The Science of Man in the World Crisis, 1945, 1952). Segun­ do Lévi-Strauss, a A. distingue-se da sociolo­ gia na medida em que tende a ser uma ciência social do observado, ao passo que a sociolo­ gia tende a ser a ciência social do observador (Anthr. structurale, 1958, cap. XVII). Os filósofos sublinharam muitas vezes a importância da A. como ciência filosófica, isto é, como determinação daquilo que o homem deve ser, em face do que é. Humboldt, p. ex., queria que a A., embora procurasse determinar as condições naturais do homem (temperamento, raça, nacionalidade, etc.) visasse descobrir, atra­ vés dessas condições, o próprio ideal da huma­ nidade, a forma incondicionada à qual nenhum indivíduo está completamente adequado, mas que permanece o objetivo a que todos os in­ divíduos tendem (Schriften, I, pp. 388 ss.). Nesse sentido a A. foi entendida por Scheler (O lugar do homem no cosmos, 1928), que por isso a coloca em situação intermediária entre a ciên­

ANTIPERISTASE

ANTROPOMORFISMO

cia positiva e a metafísica. — Mais especifica­ mente, a tarefa da A. filosófica deveria ser con­ siderar o homem não simplesmente como na­ tureza, como vida, como vontade, como espírito, etc, mas como homem, isto é, relacionar o complexo de condições ou de elementos que o constituem com seu modo de existência espe­ cífico. Tal é a exigência feita, p. ex., por Biswanger (Ausgewühlte Vortráge undAusátze, I, p. 176). Nesse sentido, o Ensaio sobre o ho­ mem (1944) de Cassirer é um estudo de A. filosófica centrado no conceito de homem como animal symbolicum, isto é, como animal que fala e cria o universo simbólico da língua, do mito e da religião. ANTROPOMORFISMO (in. Anthropomorphísni; fr. Anthropomorphisme, ai. Anthropomorphismus; it. Antropomorfismó). Indica-se com este nome a tendência a interpretar todo tipo ou espécie de realidade em termos de comportamento humano ou por semelhança ou analogia com esse comportamento. "Cren­ ças antropomórficas" ou "antropomorfismos" são chamadas, em geral, as interpretações de Deus em termos de conduta humana. Uma crí­ tica desse A. já foi feita por Xenófanes de Colofonte. "Os homens", disse ele, "crêem que os deuses tiveram nascimento e que têm voz e corpo semelhantes aos deles" (Fr. 14, Diels); por isso, os etíopes fazem os seus deuses de nariz chato e negros; os trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos; até os bois, os cavalos, os leões, se pudessem, imaginariam os seus deuses à sua semelhança (Fr. 16, 15). Mas o A. não pertence só ao domínio das crenças religiosas. Toda a ciência moderna foi-se for­ mando através da libertação progressiva do A. e do esforço de não considerar as operações da natureza segundo a sua semelhança com as do homem, mas juxta própria principia. ANTROPOSOFIA (in. Anthroposophy, fr. Anthroposophie, ai. Anthroposophie, it. Antroposofia). Esse termo foi criado porJ. P. V. Troxler, para indicar a doutrina natural do conhecimen­ to humano (Naturlehre der menschlichen Erkenntnis, 1828), e retomado por R. Steiner, quan­ do, em 1913, separou-se do movimento teosófico e quis ressaltar a importância da doutrina a respeito da natura e do destino do homem. Cf. STEINER, DieRãtselderPhilosophie, 2vols., 1924­ 26 (v. TEOSOFIA). APAGÓGICO, RACIOCÍNIO. V. ABDUÇÀO; REDUÇÃO.

APARÊNCIA (gr. xò (paivóu.evov; lat. Apparentia; in. Appearance, fr. Apparence, ai. Ers-

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APARÊNCIA

cheínung; it. Apparenza). Na história da filoso­ fia, esse termo teve dois significados diame­ tralmente opostos. ls ocultação da realidade; 2- manifestação ou revelação da realidade. Con­ forme o 1Q significado, a A. vela ou obscurece a realidade das coisas, de tal modo que esta só pode ser conhecida quando se transpõe a A. e se prescinde dela. Pelo 2a significado, a A. é o que manifesta ou revela a realidade, de tal mo­ do que esta encontra na A. a sua verdade, a sua revelação. Com base no ls significado, conhe­ cer significa libertar-se das A.; pelo 2- significa­ do, conhecer significa confiar na A., deixá-la aparecer. No primeiro caso, a relação entre A. e verdade é de contradição e oposição; no se­ gundo, é de semelhança ou identidade. Essas duas concepções de A. intricaram-se de várias formas na história da filosofia ocidental. De um lado, esta nasceu do esforço de atingir saber mais sólido transpondo os limites das A., isto é, das opiniões, dos sentidos, das crenças popu­ lares ou míticas. De outro, procurou, com igual constância, ter em conta a A. ("salvar os fenô­ menos"), reconhecendo assim que nela se manifesta, em alguma medida, a própria reali­ dade. O contraste entre A. e realidade foi estabe­ lecido pela primeira vez, de modo nítido e in­ cisivo, por Parmênides de Eléia, que contrapôs "a via da verdade e da persuasão", que tem por objeto o ser, a sua unidade, inevitabilidade e necessidade, à "via da opinião", que tem por objeto o não-ser, isto é, o mundo sensível no seu devir. Mas o mundo da opinião e o mundo da A. coincidem, segundo Parmênides: "Tam­ bém isto aprenderás: como, verossimilmente, são as coisas aparentes para quem as examine em tudo e por tudo" (Fr. 1,31, Diels). A mesma coincidência entre A. e opinião, opinião e sen­ sação, é pressuposta por Platão, que interpreta o princípio expresso por Protágoras, da homomensura, como se significasse "tal como as coisas aparecem para mim, tais são para mim" e, por­ tanto, como se identificasse conhecimento e sensação (Teet., 152 a). Por outro lado, o mun­ do da opinião é, segundo a República, o mundo sensível dividido nos seus dois segmentos de sombras e imagens refletidas e de coisas e se­ res vivos (Rep., VI, 510). Segundo Platão, desse mundo das A. sensíveis só se pode ter conhe­ cimento verossímil ou provável, dada a sua natureza incerta e fugaz: conhecimento que não difere em grau, mas em qualidade, do conheci­ mento científico ou racional que tem por obje­

APARÊNCIA

to o ser (Tim., 29). O mesmo Platão, porém, afirmando que o objeto da opinião está para o objeto do conhecimento como a imagem está para o modelo (Rep., VI, 510 a), admitiu uma relação de semelhança ou de correspondência entre A. e realidade. Mas o passo decisivo foi dado por Aristóteles, que reconheceu a neu­ tralidade da A. sensível; esta, tanto como sen­ sação quanto como imagem, pode ser tão ver­ dadeira quanto falsa. Certamente erram os que consideram verdade tudo o que aparece, pois deveriam admitir também a realidade dos so­ nhos; e, quanto ao futuro, não poderiam esta­ belecer nenhuma diferença entre a opinião do perito (p. ex., do médico que faz um prognós­ tico) e a opinião do ignorante (Met., IV, 5, 1.010 b 1 ss.). A A. não contém, portanto, nenhuma garantia de verdade e só o juízo intelectual a respeito dela pode certificá-la ou refutá-la. Mas, por outro lado, ela é o ponto de partida da própria pesquisa científica que, como demons­ tra o que os matemáticos fazem em relação às A. astronômicas, deve partir das A. físicas e, portanto, da observação das coisas vivas e das suas partes para passar depois à consideração das razões e das causas (Depart. an, I, 1, 639 b 7). Em outros termos, a A. é o ponto de partida para a busca da verdade, que, porém, só é reconhecida em sua necessidade mediante o uso dos princípios do intelecto. No último período da filosofia grega, a no­ ção de A. torna-se proeminente. De um lado, os céticos fazem da A. o critério da verdade e da conduta, julgando impossível passar além dela e julgar sobre ela (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 21-24; II, 18-21). Do outro lado, os neoplatônicos são levados a considerar todo o mundo sensível como A., isto é, manifestação do mundo inteligível, e este último como A. ou imagem de Deus: pensamento que será herda­ do por Scotus Erigena: "Tudo o que se entende e se sente nada mais é do que a aparição do aparente, a manifestação do oculto" (De divis. nat, III, 4). Desse ponto de vista, "o mundo é uma teofanía, toda obra da criação manifesta a essência de Deus, que, portanto, se torna aparen­ te e visível nela e por ela" (ibid, I, 10; V, 23). Acompanhando essas duas vias encontra-se o que se poderia chamar de revalorização da A. no mundo moderno. Seguindo a primeira, está o que se poderia chamar de revalorização empirista. Já na Escolástica do séc. XIV, Pedro Aureolo, partindo da negação de qualquer rea­ lidade universal e no intuito de eliminar a species

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como intermediária do conhecimento intelec­ tual, afirmava que "as próprias coisas são vistas pela mente e o que se vê não é urna forma especular qualquer, mas a própria coisa no seu ser-que-aparece (esse apparens) e este ser apa­ rente é o que chamamos do conceito ou repre­ sentação objetiva" (In Sent, I, d. 9, a. 1). A distinção entre o sentido e o intelecto não de­ pende, portanto, da natureza do objeto apreen­ dido, mas do modo de apreender. Ao senticio e à imaginação as coisas aparecem sob as con­ dições da quantidade, ao passo que o intelecto abstrai do que é quantitativo e material (ibid., I, d. 35, a. 1). Mas é só no mundo moderno, a partir do séc. XVII, que a filosofia reconhece explicitamente o caráter real da A. Hobbes tal­ vez seja o primeiro a reconhecer isso de ma­ neira bem clara. "De todos os fenômenos que nos circundam", diz ele, "o mais maravilhoso é justamente o aparecer. É certo que entre os corpos naturais alguns possuem em si os exem­ plares de todas as coisas e outros, de nenhuma. Conseqüentemente, se os fenômenos são os princípios para conhecer as outras coisas, é preciso dizer que a sensação é o principio para conhecer os próprios princípios e que dela deriva toda a ciência. Para indagar as causas da sensa­ ção não se pode, portanto, partir de outro fe­ nômeno que não seja a própria sensação" (De corp., 25, § 1). Assim, Hobbes identifica A. real com sensação e assume-a como ponto de par­ tida para a indagação das coisas não criadas pelo homem (assim como as definições são o ponto de partida para a indagação das coisas criadas pelo homem, isto é, dos entes matemá­ ticos e políticos). Com essas palavras, Hobbes formulava o fundamento do empirismo mo­ derno. Ao mesmo tempo em que ressaltava o caráter relativo e subjetivo das A. sensíveis, as­ sumiu-as como único fundamento do conheci­ mento humano. Locke observa que, se os nos­ sos sentidos fossem modificados e se tornassem mais rápidos e agudos, a A. das coisas mudaria completamente; mas então ela se tornaria in­ compatível com o nosso ser ou pelo menos com as necessidades da nossa vida (Ensaio, II, 23, 12). "A. sensíveis" são as idéias de que fala Berkeley (Principies, 33) e as impressões de que fala Hume (Treatise, II, 5). "Fenômenos ou aparições" são, segundo Leibniz, todos os da­ dos de que dispõe o sujeito pensante; a distin­ ção entre A. reais e A. ilusórias só é feita con­ siderando-se, de um lado, a vivacidade, a multiplicidade e a coerência das próprias A., e,

APARÊNCIA

de outro, a possibilidade de predizer os fe­ nômenos futuros a partir dos fenômenos pas­ sados e presentes (Op, ed. Erdmann, pp. 443-444). Com isso, a A. perdeu o caráter enganoso e abre-se o caminho da distinção kantiana entre a A. (Erscbeinung) e a ilusão (Scbein). As A. são os fenômenos como objetos da intuição sensível e, em geral, da experiência; os fenô­ menos são realidade, aliás as únicas realidades que o homem pode conhecer e de que pode falar. "Eu não digo", afirma Kant, "que os cor­ pos parecem simplesmente seres externos ou que minha alma parece simplesmente dada na minha autoconsciência, quando afirmo que as qualidades do espaço e do tempo — segundo as quais, como condição da sua existência, coloco aqueles e esta — estão no meu modo de intuir e não nesses objetos. Seria um erro meu se transformasse em mera ilusão (Schein) aquilo que devo considerar como fenômeno" (Crít. R. Pura, Estética transcendental, Observações ger., 3). A afirmação: "Os sentidos representam para nós os objetos como aparecem, o intelecto como são" é interpretada por Kant no sentido de que o intelecto representa os objetos na conexão universal dos fenômenos (o que não significa que eles sejam independentes da relação com a experiência possível e, portanto, das "A. sen­ síveis") (ibid., Anal. dos princ, cap. III). Por isso, a A. fenomênica tem esse nome para res­ saltar as suas conexões com as condições sub­ jetivas do conhecer e para distingui-la do hipo­ tético conhecimento numênico, de tal forma que se possa estabelecer com clareza os seus limites (v. FENÔMENO). Por outro lado, a própria negação do caráter ilusório da A. foi utilizada, na filosofia moder­ na, para reafirmar o caráter absoluto do conhe­ cimento humano. Assim, Hegel vê na A. fenomênica a própria essência. A. e essência não se opõem, mas se identificam: a A. é a essência que existe na sua imediação. "Aparecer", diz ele, "é a determinação por meio da qual a es­ sência não é ser, mas essência; e o aparecer desenvolvido é o fenômeno. A essência não está, portanto, atrás ou além do fenômeno; mas, justamente porque a essência é o que existe, a existência é o fenômeno" (Ene, § 131). É ver­ dade que, como determinação "imediata", a A. está destinada, segundo Hegel, a ser absorvida ou superada por outras determinações, refleti­ das ou mediatas, no desenvolvimento dialético da Idéia absoluta; mas também é verdade que

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APARÊNCIA

toda a doutrina de Hegel é sustentada pelo pen­ samento de que não há realidade tão recôndita que, de algum modo, deixe de manifestar-se e aparecer. Na filosofia contemporânea, esse ponto de vista teve a melhor expressão na obra de Heidegger. "Como significado da expressão 'fe­ nômeno' deve-se estabelecer o seguinte: o que se manifesta em si mesmo, o revelado... Defi­ nimos esse manifestar-se como aparecer (Scheineri). Também em grego a expressão phainomenon tem esse significado: o que tem o aspecto de aparente, A. ... Só porque alguma coisa, em virtude do seu sentido, pretende em geral manifestar-se, isto é, ser fenômeno, é possível que ela se manifeste como algo que não é, que tenha o aspecto de... Reservamos para o termo 'fenômeno' o significado positivo e original de 'phainomenon' e distinguimos fenômeno da A., considerando esta última como uma modificação particular de fenômeno" (Sein undZeit, § 7 A). Isto, porém, não quer dizer que a filosofia contemporânea tenha identifica­ do ser com A. Antes, propôs de outra forma o problema de sua relação, passando a conside­ rar essa relação de modo objetivo ou ontológico, isto é, sem referência a qualquer subjetivaçâo idealista. Não é por acaso que a última obra importante em que se debateu de forma tradi­ cional o problema da relação entre A. e realida­ de pertence a um idealista: F. H. Bradley (Apa­ rência e realidade, 1893). Sobretudo por influência da colocação fenomenológica (v. FENOMENOLOGIA), a consideração da relação entre aparecer e ser deixou completamente de ser feita, tanto no que se refere ao dualismo entre esses dois termos quanto no que se refere aos outros dualismos com que em geral era inter­ pretada, como entre sensação e pensamento, entre subjetividade e objetividade, etc. A rela­ ção toda é feita no plano objetivo das experiên­ cias diferentes ou dos graus diferentes de expe­ riências. Um filósofo que baseie suas construções num grupo de experiências ou em dado tipo de realidade, privilegiando-o e considerando-o fun­ damental, é levado a julgar menos reais ou significantes, e de certo modo simplesmente "aparentes", as outras formas de experiência ou os outros tipos de realidade. P. ex., quem privilegia a experiência interior ou consciência é levado a considerar menos significante ou, de certo modo, só "aparente" a experiência exter­ na ou sensível, e vice-versa. Mas em todo caso, mesmo o que se declara aparente é admitido como A. de alguma coisa e, por isso, dotada, já

APATIA

como A., de um grau ou medida de realidade. De modo que a relação entre realidade e A. vem a configurar-se como relação entre reali­ dade e imagem, ou realidade e símbolo e, em todo caso, entre dois graus ou determinações objetivas. APATIA (gr. ànàQzm-, in. Apathy, fr. Apathie, ai. Apathie, it. Apatia). Esse termo significa pro­ priamente insensibilidade, mas no uso filosófi­ co antigo designou o ideal moral dos cínicos e dos estóicos, isto é, a indiferença em relação a todas as emoções, o desprezo por elas: indife­ rença e desprezo alcançados mediante o exer­ cício da virtude. Nesse sentido, para o qual a insensibilidade não é um dom inato e natural, mas um ideal de vida difícil de alcançar, cínicos e estóicos viram na A. a própria felicidade (DiÓG. L, VI, 1, 8-11). Kant viu na A. um ideal nobre, mas acrescentou que a natureza foi sábia quan­ do deu ao homem a simpatia, para guiá-lo pro­ visoriamente — antes que nele a razão alcan­ çasse a maturidade —, como auxílio ou apoio sensível à lei moral e sucedâneo temporário da razão (Antr., § 75). As Idades Moderna e Con­ temporânea, apesar da forte influência que a ética estóica sempre exerceu, não se mostram propensas ao ideal da A., já que são levadas a reconhecer o valor positivo das emoções e a evitar, por isso, a condenação sumária e total destas, que está compreendida na noção de apatia (v. EMOÇÀO). APEIRON (gr. COTEtpov). O infinito ou o indeterminado: segundo Anaximandro de Mileto, o princípio e o elemento primordial das coisas. Não é uma mistura dos vários elementos corpóreos, em que estes estejam compreendi­ dos cada um com as suas qualidades deter­ minadas, mas é matéria em que os elementos ainda não estão distintos e que, por isso, além de in­ finita, é também indefinida e indeterminada (Diels, A, 9). Essa determinação dupla de infinitude no sentido de inexauribilidade e de indeterminação permaneceu por muito tempo ligada ao conceito de infinito (v.). APERCEPÇÃO (in. Apperception; fr. Apperception; ai. Apperzeptíon; it. Appercezione). O significado específico dessa palavra foi esclare­ cido pela primeira vez por Leibniz como cons­ ciência das próprias percepções. Diz Leibniz: "A percepção da luz ou da cor, p. ex., de que temos A. é composta por muitas pequenas per­ cepções de que não temos A.; um ruído que percebemos, mas ao qual não damos atenção, torna-se aperceptível se sofrer um pequeno

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APERCEPÇÃO

aumento" (Nouv. ess, II, 9, 4). Enquanto as per­ cepções pertencem também aos animais e às plantas, a A. é própria do homem porquanto suas percepções são acompanhadas pela "po­ tência de refletir". Todavia, quando ele é redu­ zido ao estado de letargia, a reflexão e a A. cessam (ibid, II, 9, 14). — No mesmo sentido, Wolff definiu a A. como a atividade pela qual percebemo-nos a nós mesmos como sujeitos percipientes e, assim, nos distinguimos da coi­ sa percebida (Log,, § 13). Ora, essa é, para Kant, a A. empírica, que deve ser distinguida da A. pura. Com a primeira, "acompanho com a cons­ ciência cada uma das representações"; com a segunda, "componho-as todas, uma com a ou­ tra, e sou consciente da sua síntese". A A. pura ou "transcendental" é o "eu penso", que "deve poder acompanhar todas as minhas represen­ tações, pois de outro modo seria preciso ima­ ginar em mim alguma coisa que não pudesse ser pensada, o que significa que a representa­ ção seria impossível ou, ao menos para mim, não existiria absolutamente" (Crít. K. Pura, Anal. dos conceitos, § 16). A característica fundamen­ tal da A. pura é a objetividade: ela é o funda­ mento da constituição unitária dos objetos e das relações que estes têm entre si. De fato, a unidade de um objeto singular e dos objetos entre si não é constituída pela relação subjetiva entre as representações, isto é, pela relação que as representações encontram na A. empírica (ou consciência intuitiva), mas pela relação ob­ jetiva cuja possibilidade é a A. pura ou cons­ ciência discursiva (reflexiva). Com efeito, com base na A. empírica só se poderia dizer: "Cada vez que levanto um corpo, sinto a impressão de peso" e, assim, estabelecer uma relação pu­ ramente subjetiva, ainda que constante, entre o soerguimento de um corpo e a impressão de peso (isto é, entre duas representações). Isso não autorizaria a dizer objetivamente: "O cor­ po é pesado". Essa afirmação pode ser enuncia­ da só porque o vínculo entre o corpo e o peso é estabelecido objetivamente pela A. pura {ibid., § 19). Nesse sentido, a A. pura é "o princípio da unidade sintética", que condiciona todas as outras sínteses, isto é, todos os outros conhecimentos, porque todo conhecimento é, segundo Kant, uma síntese entre um dado sensível e uma for­ ma a priori. A A. é o princípio originário do conhecimento na medida em que é a condição do uso empírico das categorias. Kant insistiu no caráter puramente formal da A. pura, enten­ dendo que ela não é uma realidade psicológica

APERCEPÇÃO

ou de outra natureza, mas uma possibilidade, a da unificação da experiência, considerada como "espontaneidade" ou atividade subjetiva, isto é, da inteligência (ibid., § 25). Em outras palavras, ela é só "a consciência pura da atividade que constitui o pensamento" (Antr., § 7). Da inter­ pretação da A. pura, em sentido realista, ou seja, do seu entendimento não como condição ou possibilidade do conhecimento, mas como atividade criadora do próprio conhecimento, Fichte inferiu a noção do eu como Autoconsciência absoluta, criadora do seu mundo, com a qual se inicia o Idealismo romântico (v. IDEALISMO; Eu). Em sentido psicológico-metafísico, o conceito de A. também foi entendido por Maine de Biran, que chamou de "A. interna imediata" a consciência que o eu tem de si mesmo como "causa produtora" no ato de distinguir-se do efeito sensível que a sua ação determina (ÇEuvresinédites, ed. Naville, I, p. 9; III, pp. 409-410). Um novo conceito de A. foi dado por Herbart como fundamento para entender o mecanismo da vida representativa. A A. foi entendida por Herbart como a relação entre massas diferen­ tes de representações, que faz que uma massa se aproprie da outra do mesmo modo como as novas percepções do sentido externo são aco­ lhidas e elaboradas pelas representações ho­ mogêneas mais antigas. Esse fenômeno pelo qual uma massa representativa, chamada de apercipiente, acolhe e assimila em si uma ou mais representações homogêneas, chamadas de aperceptivas, é o fenômeno da A., que Herbart identificou com o sentido interno (Psychol. ais Wissenschaft, II, § 125). Essa noção foi muito usada em psicologia e pedagogia no séc. XIX, sobretudo para esclarecer o fenômeno do apren­ dizado e para identificar as condições psicoló­ gicas que o facilitam. Wundt insistiu no caráter ativo da A. como o ato pelo qual um conteúdo psíquico é levado à compreensão mais clara e falou também de uma ''psicologia da A.", que deveria contrapor-se à psicologia dominante, associacionista, precisamente pelo maior des­ taque dado à atividade diretiva e ordenadora da A. (Physiologísche Psychologie, II, p. 454). Wundt falou também, em Psicologia dospovos, de uma "A. animadora" como de uma função psicológica específica, consistente em crer vi­ vas todas as coisas, função que estaria na base do mito e, portanto, também da religião e da arte. — Esse termo caiu em desuso na filosofia contemporânea.

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APETITE

APETITE (gr. õpeÇlÇ; lat. Appetitio, appetitus; in. Appetíte, fr. Appétit; ai. Begierde, it. Appetizioné). Em geral, o princípio que impele um ser vivo à ação, com vistas à satisfação de uma necessidade ou desejo ou à realização de um fim. Assim Aristóteles entendeu o A., que ele colocou, junto com sentido e com intelecto, entre as partes diretivas da alma (Et. níc, VI, 2, 1.139 a 17). "O que no pensamento", acrescen­ ta ele, "é afirmação e negação, no A. é perse­ guir e evitar". O A. é o princípio de ação último; pois, se é verdade que os móveis da ação pare­ cem dois, o A. e o intelecto prático, é também verdade que este último induz à ação só na medida em que seu princípio é apetecivel (De an, III, 10, 433 a 21). Ao A. pertencem o dese­ jo, a irascibilidade e a vontade (ibid, II, 3, 414 b 2). O A., todavia, às vezes pode ser justo e às vezes não; pode visar ao bem aparente ou ao bem real; portanto, A. diferentes podem ser às vezes contrários, como acontece quando o dese­ jo e a razão se combatem. O A. como princípio de ação pode, portanto, ser controlado pela escolha racional ou pelos sentidos, embora a natureza superior tenda a dominar (De an, III, 10-11, 433 ss.). Com base nessas últimas consi­ derações aristotélicas, os escolásticos distinguiram um apetite sensível e um apetite intelectivo; S. Tomás afirma que são duas potências dife­ rentes da alma, uma passiva e a outra ativa (S. Th, I, q. 80, a. 2). A exemplo de Gregório de Nissa (De hom. opif, 8) e de João Damasceno (Defideorth, II, 12), os escolásticos admitiram também a diferença entre apetite irascível e apetite concupiscível: o concupiscível inclina a perseguir o bem sensível e a evitar o que é sensivelmente nocivo; o irascível é aquilo pelo qual se resiste às ações nocivas e se reage em face a tudo o que é difícil (cf. S. TOMÁS, S. Th., q. I, 81, a. 2). Essas observações permaneceram pratica­ mente inalteradas durante séculos. Hobbes diz que o A. e a fuga diferem do prazer e da dor assim como o futuro difere do presente; são ambos prazer e dor, mas não presentes, porém previstos ou esperados (Dehom., 11,1). Spinoza ligou o A. ao esforço (conatus) da mente em perseverar no próprio ser por prazo infinito: "Esse esforço", diz ele, "chama-se vontade quan­ do se atribui só à mente; chama-se A. quando se refere ao mesmo tempo à mente e ao corpo; o A. é, por isso, a própria essência do homem, de cuja natureza derivam necesariamente as coisas que servem à sua conservação e que,

APOCATASTASE p o rtan to , está d e stin a d o a cu m p rir" (Et, III, 9, escól.). L eibniz viu no A . a ação do p rin cíp io in tern o d a m ô n a d a q u e o p e ra a m u d a n ç a ou a p assag em d e u m a p e rc e p ç ã o a o u tra (Monad., § 15). K ant definiu o A. co m o "a d ete rm in a ç ã o e s p o n tâ n e a da força p ró p ria d e u m sujeito, q u e ac o n te ce p o r m eio d a re p re s e n ta ç ã o d e u m a coisa futura c o n sid e ra d a co m o efeito da força m esm a" (Antr., § 73). O A . co n stitu i, p o r isso, o q ue, na Crítica da Razão Prática, se ch am a "faculdade inferior de desejar", q u e p re s su p õ e sem p re, co m o m o tiv o d e te rm in a n te , u m o bjeto em pírico: d ife re n te m e n te da fa cu ld ad e "su p e­ rior" de d esejar, q u e é d e te rm in a d a p ela sim ­ ples re p re s e n ta ç ã o da lei (Crít. R. Prática, livro I, cap. I, § 3, escól. I). N a filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a , esse term o caiu em d e su so e foi su b stitu íd o p o r outros co m o "tendência" ou "vontade", aos q uais se referem às v e z e s as d e te rm in a ç õ e s q u e a filosofia an tiga atrib u íra ao ap etite. APOCATASTASE (gr. à n o K a x á o T a m ç ; lat. Restituticr, in.Apocatastasis;fr.Apocatastasis, ai. Apokatastasis; it. Apocatastasí). É a teo ria p ró ­ pria d os P ad re s o rien tais: p rev ê a restitu ição final do m u n d o e d e to d o s os sere s n ele c o n ti­ dos à co n d içã o p erfeita e feliz q u e tin h am na origem . T rata-se, p o rta n to , de u m a n o ç ã o d ife­ rente da de m o v im e n to cíclico , p ró p ria dos antigos (p itag ó rico s, A n a x im a n d ro , estó ic o s, e tc ), q ue in te rp reta a v id a do m u n d o co m o a reco rrên cia de u m ciclo se m p re id ên tico , q u e s e re p e te infinitas v e z e s (v. CICLO DO MUNDO). S egundo O ríg e n e s, o m u n d o sen sív el fo rm o use com a q u ed a d as su b stân cias in telectu ais q u e habitavam no m u n d o inteligível, q u e d a d ev id a a u m ato livre d e re b e liã o a D eu s, do q ual participaram to d os os seres supra-sensíveis, com a única e x c eçã o do F ilho de D eu s. D essa q u e d a e d a d e g e n e ra ç ã o q u e se lh e seg u iu , os sere s se reerg u erão e x p ia n d o , co m u m a série de v id as sucessivas, em v ários m u n d o s, seu p ec a d o ini­ cial e serão , p o r fim, re stitu íd o s à sua c o n d içã o prim itiva (Injohann., I, 16, 20). O ríg e n e s a d ­ mite, assim, pluralidade sucessiva de m u nd os, m as corrige o E stoicism o no sen tid o d e q u e esses m undos n ão são re p e tiç ã o u n s d o s o u tro s. A liberd ad e de q u e os h o m e n s são d o ta d o s im p e ­ de essa re p e tição (Contra Cels, IV, 67-68). C o n ­ ceito an álo g o é ex p re sso p o r G reg ó rio d e N issa, que in terp reta a su c e ssã o d o s m u n d o s co m o o teatro da re e d u c a ç ã o p ro g resiv a d o s sere s à condição de b em -a v e n tu ran ça original. G regório afirma d e c id id a m e n te o ca rá ter u n iv ersal da A.:

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APOFÁTICO "Até m esm o o in v en to r do m al (isto é, o d e m ô ­ nio) u n irá su a v o z ao h in o d e g ratid ão ao Sal­ v a d o r" (Dehom. opif, 26). N a id a d e M o d e rn a, d o u trin a an álo g a foi su sten ta d a p o r R en o uv ier em Nova monadologia (1899): re to m a-se aq u i a te se de O ríg e n e s da p lu ra lid a d e d o s m u n d o s su c essiv o s e da p assa g e m de u m m u n d o ao o u tro , d e te rm in a d a p elo u so q u e o h o m e m faz da lib e rd a d e em cad a u m d eles; é co rrig id a só no se n tid o de q u e "o fim alc a n ç a d o to rn a a re u n ir-se co m o p rin cíp io , n ão na in d istin ção d as alm as, m as n a h u m a n id a d e perfeita, q u e é a s o c ie d a d e h u m a n a perfeita". A d o u trin a da A. d istin g u e-se da c o n c e p ç ã o clássica d o s ciclos do m u n d o em d ois p o n to s p rin cip ais: ls os m u n d o s q u e se s u c e d e m n ão são a re p e tiç ã o id ên tica u m do o u tro , p o rq u e atrav és d ele s se realiza p ro g re ssiv a m e n te a re c u p e ra ç ã o do e s ­ ta d o p erfeito original; 2- a su c e ssã o d o s m u n ­ d o s n ão é sem p rin cíp io n em fim, j á q u e c o m e ­ ça co m a q u e d a d as in telig ên cias celestes e te rm in a co m a A. APODÍTICA (lat. Apodictica; ai. Apodiktik, it. Apoditticd). P arte da lógica q ue tem p o r objeto a d e m o n stra ç ã o . E sse n o m e foi u sa d o p o r al­ g u n s ló g ico s do séc. X V II, co m o p. ex. Ju n g iu s. "E ntre as p artes esp eciais da lógica", dizia ele, "p re ce d e p o r d ig n id a d e a q u e tem p o r objeto a v e rd a d e n ec essária , isto é, a v e rd a d e p ro p ria ­ m e n te d ita , e q u e n o s c o n d u z a tra v é s da a p o d ix e , isto é, a d e m o n stra ç ã o à ciência, de m o d o q u e é ju sta m e n te ch a m a d a d e apodítica ou epistemônica" (Lógica hamburgensis, 1638, IV, cap . I, § 1). E sse n o m e d e p o is foi ra ra m en te u sa d o (cf., p . e x ., BOUTERWKK, Ideen zu einer Apodiktik, 1799). APODIXE. V . DEMONSTRAÇÃO.

APOFANSE. V. ENUNCIADO. APOFANTICA (in. Apophantic). T erm o e m ­ p re g a d o p o r H am ilto n p ara in d icar a d o u trin a do ju íz o (Lectures on Logic, I, 1866, p. 225). APOFANTICO (gr. ànoípavTiKÓÇ; in. Apophantic, fr. Apophantique, ai. Apophantisch; it. Apofanticó). D eclarativ o ou revelativ o . A ristó ­ te le s c h a m o u de A . o e n u n c ia d o q u e p o d e ser c o n sid e ra d o v e rd a d e iro ou falso e co n sid e ro u q u e esse tip o de en u n c ia d o é o ú n ico objeto da lógica: da q ual, p o rta n to , são ex clu íd as as o ra­ ções, as o rd en s, e tc , cujo estu d o p erten ce à re ­ tó rica ou à p o é tic a (Deinterpr., 4, 17 a 2). Esse sign ificad o p e rm a n e c e u fixo no u so filosófico. APOFÁTICA, TEOLOGIA. V. TEOLOGIA N E ­ GATIVA. fr.

APOFÁTICO (gr. à7ro
APOLINEO DIONISÍACO

Negativo, isto é, segundo Aristóteles, que "se­ para uma coisa da outra", quer dizer, nega a pertinência de um predicado a um sujeito (An. pr, I, 1,24 a 19). G. P. APOLÍNEO-DIONISÍACO (in. Apolloniandionysian; fr. Apollinien-dionysiaque, ai. Apollinisch-dionysísch; it. Apollineo-dionisiaco). A antítese entre apolíneo e dionisíaco foi expres­ sa por Schelling como a antítese entre a forma e a ordem, de um lado, e o obscuro impulso criador, do outro. Esses dois aspectos devem ser reconhecidos em cada momento poético (PM. der Offenbarung, 24, em Werke, Il, 4, p. 25). Hegel, por sua vez, referia-se a essa antí­ tese: "O verdadeiro é um triunfo báquico, onde não há ninguém que não esteja ébrio; e, como esse momento resolve todos os momentos que tendem a separar-se, ele é também uma trans­ parente e simples tranqüilidade" (Phánomen. desGeistes, intr., III, 2; trad., it. p. 40). Retoma­ da por Richard Wagner (Die Kunst und die Revolution, 1849), essa antítese foi populariza­ da por Nietzsche, que dela se valeu em Nasci­ mento da tragédia (1871), para explicar a arte e a vida da Grécia antiga. O espírito apolíneo domina as artesplásticas, que são harmonia de formas; o espírito dionisíaco domina a música, que é, ao contrário, desprovida de forma por­ que é embriaguez e exaltação entusiástica. Foi só graças ao espírito dionisíaco que os gregos conseguiram suportar a existência. Sob a in­ fluência da verdade contemplada, o homem grego via em toda a parte o aspecto horrível e absurdo da existência: a arte veio em seu so­ corro, transfigurando o horrível e o absurdo em imagens ideais, por meio das quais a vida se tornou aceitável (Geburt der Tragódie, § 7). Essa transfiguração foi realizada pelo espírito dionisíaco, modulado e disciplinado pelo espí­ rito apolíneo, e deu lugar à tragédia e à comé­ dia. Mais tarde, Nietzsche viu no espírito dionisíaco o próprio fundamento da arte en­ quanto "corresponde aos estados de vigor ani­ mal" (WillezurMacht, § 361, ed. Krõner, 802). O estado apolíneo não é senão o resultado extremo da embriaguez dionisíaca, uma espé­ cie de simplificação e concentração da própria embriaguez. O estilo clássico representa esse estado e é a forma mais elevada do sentimento de potência. A exemplo de Nietzsche, Spengler chamou de apolínea "a alma da cultura antiga que escolheu o corpo individual, presente e sensível, como tipo ideal de extensão". Apolíneos são "a estática mecânica, os cultos materiais dos deuses do Olimpo, as cidades gregas politi­

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APORETICA

camente isoladas, a sorte de Édipo e o símbolo fálico" (Untergang des Abendlandes, I, 3, 2, § 6). Essa caracterização, assim como a corres­ pondente do faustismo (v.) é perfeitamente arbitrária e fantástica. APOLOGÉTICA (in. Apologetics; fr. Apologétique, ai. Apologetik, it. Apologeticd). Disci­ plina que tem por objeto a defesa (apologia) de determinado sistema de crenças. Esse ter­ mo se refere, mais freqüentemente, à defesa das crenças religiosas: p. ex., "A. cristã". APOLOGISTAS (in. Apologists; fr. Apologistes; ai. Apologeten, it. Apologisti). Assim se chamam os Padres da Igreja do séc. II, que escreveram em defesa (apologia) do Cristianismo contra os ataques e as perseguições que lhe eram movi­ dos. A primeira apologia de que se tem notícia (mas da qual resta apenas um fragmento) é a defesa apresentada ao imperador Adriano, por volta de 124, por Quadrado, discípulo dos Após­ tolos. O principal dos Padres A. é Justino. Ou­ tros autores de apologias são Taciano, Atenágoras, Teófilo, Hérmias. Com os Padres A. começa a atividade filosófica cristã. A tese co­ mum que defendem é de que o Cristianismo é a única filosofia segura é útil e resultado último a que a razão deve chegar. Os filósofos pagãos conheceram sementes de verdade que não puderam entender plenamente: os Cristãos conhecem a verdade inteira porque Cristo é o logos, isto é, a razão mesma da qual participa todo o gênero humano. A apologética desses Padres constitui, portanto, a primeira tentativa de inserir o Cristianismo na história da filosofia clássica. APONIA (gr. à7tovíoc; in. Aponia-, fr. Aponie, ai. Aponie, it. Aponia). A ausência de dor como prazer estável e, portanto, eticamente aceitá­ vel, na ética de Epicuro (Fr. 2, Usener). APOREMA (gr. òtttópT)j.a; in. Aporem; fr. Aporème, ai. Aporem; it. Aporema). Em Aristó­ teles (Top., VIII, 11, 162 a), é definido como um raciocínio dialético que conclui com uma contradição e que não permite, portanto, esta­ belecer por qual dos dois ramos da própria contradição se deva optar. APORETICA (in. Aporetic; fr. Aporétique, ai. Aporetik, it. Aporetica). Assim Nicolau Hartmann chamou (de aporia = dúvida) o estágio da pes­ quisa filosófica que consiste em pôr em evi­ dência os problemas, isto é, todos os aspectos dos fenômenos que não foram compreendidos e que, por isso, constituem aporias naturais (Systematische Philosophie, § 5).

APORIA

APORIA (gr. àrcopía; in. Aporia; fr. Aporie, ai. Aporie, it. Aporia). Esse termo é usado no sentido de dúvida racional, isto é, de dificul­ dade inerente a um raciocínio, e não no de estado subjetivo de incerteza. É, portanto, a dúvida objetiva, a dificuldade efetiva de um raciocínio ou da conclusão a que leva um racio­ cínio. P. ex., "As A. de Zenão de Eléia sobre o movimento", "As A. do infinito", etc. A POSTERIORI. V A PRIORI.

APREENSÃO (lat. Apprehensio; in. Apprehension; fr. Appréhension; ai. Apprehenzion, it. Appreensíone). Termo introduzido pela Escolástica do séc. XIV para designar o ato com que se apreende ou se toma como objeto um termo qualquer (conceito, proposição ou qualidade sensível), distinguindo-se de assentimento(y~), com que se julga a seu respeito, isto é, afirmase ou nega-se. Ockham diz: "Entre os atos do intelecto, um é o apreensivo, que se refere a tudo o que é promovido pelo ato da potência intelectiva, e o outro pode ser chamado de judicativo, pois com ele o intelecto não somen­ te apreende o objeto, mas também assente nele ou dissente dele" (In Sent., prol., q. 1, 0). O ato apreensivo pode consistir na formação de uma proposição ou no conhecimento de um com­ plexo já formado (Quodl., V, q. 6). Essa palavra também é empregada por Wolff (Log, § 33) e Kant a utilizou na primeira edição da Crítica da Razão Pura (Dedução dos conceitos puros do intelecto), ao falar de uma "síntese da A.", que consistiria em recolher o múltiplo da representa­ ção de tal modo que dele surja "a unidade da in­ tuição". Às vezes, no uso moderno, A. vem contraposto à compreensão como conhecimento primitivo ou simples que não contém nenhuma explicação ou valorização do objeto apreendido. APRENDIZADO ou APRENDIZAGEM (gr Há0T]cn.ç; in. Learning; fr. Apprendre, al. Erlernung; it. Apprendimento). Aquisição de uma técnica qualquer, simbólica, emotiva ou de comportamento, ou seja, mudança nas respos­ tas de um organismo ao ambiente, que melho­ re tais respostas com vistas à conservação e ao desenvolvimento do próprio organismo. Esse é o conceito que a psicologia moderna dá de A., apesar da variedade de teorias que apresen­ ta. Esse conceito, além disso, não é senão a generalização de uma noção antiqüíssima de A., considerado como forma de associação. Foi Platão o primeiro a ilustrar essa noção com sua teoria da anamnese: "Sendo toda a natureza congênita e tendo a alma aprendido tudo, nada

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APRENDIZADO ou APRENDIZAGEM

impede que quem se lembre de uma só coisa — que é o que se chama aprender — encontre em si mesmo todo o resto, se tiver constância e não desistir da procura, porque procurar e apren­ der nada mais são do que reminiscência" (Men., 81 d). O A. é, segundo Platão, devido à asso­ ciação das coisas entre si, pela qual a alma pode, após haver captado uma coisa, captar também a outra que a esta se encontra vinculada. Não foi substancialmente diferente a teoria pro­ posta por Herbart: o A. é apercepção (v.). A apercepção, para Herbart, é o fenômeno pelo qual uma "massa de representações" acolhe em si uma nova representação que pode, de algum modo,ligar-seàquelas (Psychol. aisWissenschaft, 1824, II, 125 ss.). Teoria semelhante foi exposta e ilustrada porWundt (GrundrissderPsychologie, 1896, p. 249 ss.), e de Wundt passou a toda a psicologia psicofísica. Na psicologia contemporânea, o mesmo conceito de A. como associação foi ilustrado e posto em novas bases por Thorndike, que for­ mulou sua doutrina com base na observação de organismos animais, mas cujas conclusões logo foram estendidas ao homem. Segundo Thorndike, o A. é um processo de tentativas e erros (Trial and Error), guiado pela operação de prêmio e punição. As primeiras reações a uma situação problemática são dadas ao acaso. Quando uma dessas reações obtém êxito, é escolhida nas tentativas seguintes, logrando enfim eliminar as outras. Thorndike formulou a chamada lei do efeito, segundo a qual a respos­ ta a um estímulo é reforçada se seguida por um prêmio. Segundo Thorndike, esses dois fatores, a repetição da reação adivinhada e o prêmio, bastam para explicar todos os processos do A. e, portanto, toda a conduta do homem (cf. Animallntelligence. ExperimentalStudíes, 1911; ThePsychologyofWants, Interests andAltitudes, 1935, esp. p. 24). Mais recentemente, as mes­ mas idéias foram generalizadas por Hull, que insistiu nos móveis do A., vendo neles um es­ tado de necessidade. Um estímulo condiciona­ do pode permanecer ligado a uma resposta que o segue só se esta produzir uma diminuição da necessidade (Principies ofBehavior, 1943). Se essa doutrina é ou não suficiente para explicar o A. humano, é coisa em que os psicó­ logos não estão de acordo (cf. a discussão res­ pectiva e m E. R. HILGARD, TheoriesofLearning, 1948). A dúvida diz respeito ao problema de saber se o A. consiste simplesmente em dar respostas adivinhadas ou se também implica a

APRESENTAÇÃO

escolha inteligente de tais respostas com base em determinados porquês. Parece difícil excluir do processo humano do A. as opções inteligen­ tes guiadas pelas relações expressas pelos si­ nais "se", "mas", "como", "apesar de", etc. Desse ponto de vista, o fato de o homem entender a relação entre os sinais e as respostas é um ele­ mento do A. irredutível à pura lei do efeito (cf. M. WERTHEIMER, Productive Thinking, 1945). APRESENTAÇÃO (in. Appresentation; fr. Apprésentation; ai. Darstellung; it. Appresentazione). Termo utilizado por Husserl para designar a experiência indireta que o eu tem dos outros eus. A A. "nos dá o que, nos outros, nos é inacessível no original"; por ela, "uma outra mônada constitui-se em minha". É uma "apercepção por analogia" (Méditations cartésiennes, 1931, §§ 50 ss.). A PRIORI, A POSTERIORI. Com esses dois termos foram designados os elementos das três distinções seguintes: ls a distinção entre a de­ monstração que vai da causa ao efeito e a que vai do efeito à causa; 2a a distinção entre os conhecimentos que podem ser obtidos com a razão pura e os conhecimentos que podem ser obidos com a experiência; 3S a distinção entre tautologias e verdades empíricas. le A primeira distinção, que remonta à Escolástica, liga-se à distinção aristotélica en­ tre "o que é anterior e mais conhecido para nós" e "o que é anterior e mais conhecido por natureza", distinção que Aristóteles assim es­ clarecia: "Dizendo anterior e mais conhecido em relação a nós, pretendo referir-me ao que está mais perto da sensação; dizendo, porém, anterior e mais conhecido absolutamente, pre­ tendo referir-me ao que está mais longe da sensação". E como os objetos mais distantes da sensação são os mais universais, ao passo que os mais próximos dela são os singulares, aquilo que é primeiro absolutamente, ou por natureza, é precisamente o universal {An. post., 1, 2, 72 a 1 ss.). A partir de Alfarabi, a filosofia árabe havia formulado a distinção entre a demonstraçãopropterquide a demonstração quia, que Alberto da Saxônia depois chamou, res­ pectivamente, de demonstrações apriorie de­ monstrações a posteriori. "A demonstração é dupla", diz Alberto; "uma é a que vai das cau­ sas ao efeito e chama-se demonstração apriori, ou demostração propter quid, ou demonstra­ ção perfeita, e dá a conhecer a razão pela qual o efeito existe. A outra é a demostração que vai dos efeitos às causas e chama-se demonstração

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A PRIORI, A POSTERIORI

aposteriori, ou demonstração quia, ou demons­ tração não perfeita, e dá a conhecer as causas pelas quais o efeito existe" (An.post, I, q. 9). Com esse sentido, ambos os termos são usados durante toda a Escolástica e até o séc. XVII, para indicar duas espécies de demonstração. 2° A partir do séc. XVII, por obra de Locke e do empirismo inglês, os dois termos adqui­ rem significado mais geral: a priori passa a designar os conhecimentos que podem ser ob­ tidos mediante o exercício da razão pura e a posteriori, ao contrário, os que podem ser ob­ tidos pela experiência. Hume e Leibniz estão de acordo em contrapor, nesse sentido, apriori e aposteriori. Diz Hume: "Ouso afirmar, como proposição geral que não admite exceção, que o conhecimento da relação de causa e efeito não é, em nenhum caso, alcançado pelo racio­ cínio apriori, mas surge inteiramente da expe­ riência, quando descobrimos que certos obje­ tos particulares estão constantemente unidos a outros" (Inq. Cone. Underst., IV, 1). E Leibniz contrapõe constantemente o "conhecimento a priori' ao "conhecimento por experiência" (Nouv. ess, III, 3, § 15; Monad., % 76) e "a filo­ sofia experimental, que procede aposteriori', à razão pura", que "justifica apriori' (Op, ed. Erdmann, p. 778 b). Wolff exprimia, com sua costumeira clareza, o uso dominante em seu tempo dizendo: "O que aprendemos com a experiência, dizemos conhecer aposteriori; o que sabemos pelo raciocínio dizemos conhe­ cer apriori' (Psychol. emp., §§ 5, 434 ss.). A noção kantiana de a priori, como conhe­ cimento independente da experiência, mas não precedente (no sentido cronológico) à própria experiência, é, sob certo aspecto, a mesma de Leibniz e dos wolffianos. "Existem", dizia Leibniz, "idéias que não nos vêm dos sentidos e que encontramos em nós sem formá-las, ainda que os sentidos nos dêem ocasião de apercebê-las" (Nouv. ess, I, 1, § 1). Kant deu mais rigor a essa noção, distinguindo os conhecimentos apriori puros, que, além de não dependerem absoluta­ mente de nenhuma experiência, são desprovi­ dos de qualquer elemento empírico. P. ex., acrescentava ele, a proposição "Toda mudança tem sua causa" é uma proposição apriori, mas não é pura, porque mudança é um conceito que só pode ser extraído da experiência (Crít. R. Pura, intr., 1). Mas a originalidade da noção kantiana está na função atribuída a a priori, que não constitui um campo ou domínio de conhecimentos à parte, mas a condição de todo

A PRIORI, A POSTERIORI

conhecimento objetivo. A priori é a forma do conhecimento, assim como a postenori é o conteúdo. Em a priori fundam-se os conheci­ mentos da matemática e da física pura; mas o apriori por si mesmo não é conhecimento, mas a função que condiciona universalmente qual­ quer conhecimento, tanto sensível quanto inte­ lectual. Os juízos sintéticos a priori são, com efeito, possíveis, em virtude das formas apriori da sensibilidade e do intelecto. O a priori é, para Kant, o elemento formal, isto é, ao mesmo tempo o que condiciona e fundamenta todos os graus do conhecimento; e não só do conhe­ cimento, já que também no domínio da vonta­ de e do sentimento subsistem elementos apriori, como demonstram a Critica da Razão Prática e a Critica do Juízo. A noção kantiana de a priori foi adotada ou pressuposta por boa par­ te da filosofia moderna. O Idealismo romântico corrigiu-a no sentido de admitir que todo o saber é apriorístico, isto é, inteiramente produ­ zido pela atividade produtiva do Eu. Assim pensaram Fichte e Schelling. Hegel julgava que o pensamento é essencialmente a negação de um existente imediato, logo, de tudo o que é a postenori ou se baseia na experiência. O apriori é, ao contrário, a reflexão e a mediação da imediação, isto é, a universalidade, o "estar o pensamento em si mesmo" (Ene, § 12). Mais freqüentemente, na filosofia moderna, o apriori conserva o significado kantiano. E a tal signifi­ cado se vincula, apesar de todas as diferenças, a noção de apriori material de Husserl. Essa noção está ligada à das ontologias regionais, pois, segundo Husserl, "por conhecimentos sin­ téticos a priori deveriam ser entendidos os axiomas regionais, de tal modo que haveria tantas classes irredutíveis de conhecimentos sin­ téticos apriori, quantas são as regiões" (Jdeen, I, § 16). Ora, regiões do ser são, p. ex., os con­ ceitos de objeto material, consciência, ani­ malidade, sociedade, etc; e os axiomas relati­ vos a cada uma de tais regiões implicam a referência ao seu conteúdo específico e são, por isso, materiais. 3a Na filosofia contemporânea, a existência de um apriorino sentido kantiano ou hegeliano é quase sempre negada. Diz, p. ex., Reichenbach: "Não existe nada de semelhante à auto-evidência sintética; as únicas fontes admissíveis do conhecimento são a percepção sensível e a autoevidência analítica das tautologias" ( The Theory ofProbabílity, p. 372). Às vezes, defendeu-se uma "concepção pragmática" do apriori, pela

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ÁRABE, FILOSOFIA

qual ele consistiria sobretudo nos conceitos definitórios e nas estipulações convencionais de que se vale a ciência (cf. C. I. LEWIS, "A Pragmatic Conception of the 'a priori'", em Readíngs in PhüosophicalAnalysis, 1949, pp. 286 ss.). Mas, o mais das vezes, por apriori entende-se simplesmente o enunciado tautológico ou analítico e por apostenori a verdade empírica (v. ANAUTICIDADE). APROPTOSIA (gr. à7ipO7iTCi>oía). Segundo os estóicos, a liberdade em relação à precipita­ ção, isto é, a capacidade de deter o assenti­ mento ou de negá-lo (DiÓG. L. VII, 1, 46). APROSPTOSIA (gr. cmpocmTCúOía). A liber­ dade do erro (cf. ALESSANDRO DE AFRODISIA, De an, 150, 35). APTIDÃO (in. Aptitude; fr. Aptitude; ai. Eignung; it. Attitudinê). Esse termo indica a presença de determinados caracteres que, em seu conjunto, tornam o indivíduo capaz de re­ alizar determinada tarefa. Na determinação das A. baseia-se a orientação profissional, isto é, a seleção e a preparação do indivíduo para este ou aquele trabalho, em conformidade com as suas habilidades. AQUILES (gr. 'A%iAÀ,eúç; lat. Achilles; in. Achilles; fr. Achillee, ai. Achilleus; it. Achille). Com esse nome indicava-se o segundo dos quatro argumentos de Zenão de Eléia contra o movimento. Aristóteles exprimiu-o assim: "O mais lento na corrida nunca será alcançado pelo mais veloz, pois aquele que persegue deverá começar por alcançar o ponto de que o fugiti­ vo partiu, de tal modo que o mais lento sem­ pre terá vantagem" (Ms, VI, 9, 239 b 14). O pressuposto deste, como dos outros argumen­ tos, é a infinita divisibilidade do espaço. V. DICOTOMIA, FLECHA, ESTÁDIO. ÁRABE, FILOSOFIA (in. Arabicphilosophy, fr. Philosophie árabe, ai. Arabische Philosophie; it. Filosofia araba). Por esse nome entende-se a filosofia dos árabes do séc. VIII ao XII, que tem seus representantes principais em Al Kindi (séc. IX), Alfarabi (séc. IX), Avicena (séc. XI), Al Gazali (séc. XI), Averróis (séc. XII). Assim como a filosofia do mundo cristão na mesma época, a filosofia árabe é uma Escolãstíca (v.), isto é, a utilização da filosofia grega, em espe­ cial a aristotélica, com o fim de entender ou de demonstrar as verdades religiosas do Corâo. A filosofia grega tornou-se conhecida entre os árabes a partir do califado de Haroun-el-Raschid, durante o qual começaram a ser traduzidas para o árabe as obras de Aristóteles e de outros auto­

ÁRABE, FILOSOFIA

res gregos, já traduzidas para o siríaco. Entre as obras que exerceram maior influência no pensamento árabe, além dos textos de Aristó­ teles, houve uma Teologia atribuída a Aristóte­ les, que é uma miscelânea de trechos extraí­ dos das Enneadesáe Plotino, e o Liberdecausis, que é a tradução dos Elementos de teologia de Proclo. Foram também traduzidas para o árabe as obras de Euclides, Ptolomeu e Galeno, os comentários aristotélicos de Alexandre de Afrodisia e alguns Diálogos de Platão. Os fun­ damentos filosóficos que os árabes elabora­ ram e que, de certo modo, representam as ca­ racterísticas da sua filosofia, são os seguintes: Ia A noção de Deus como o "Ser necessá­ rio", isto é, tal que não pode não existir, e do mundo como algo cuja necessidade deriva de Deus. Uma vez produzidos por uma Causa pri­ meira necessária, todos os eventos do mundo são, por sua vez, necessários. Os árabes admi­ tem uma cadeia causai ininterrupta que vai de Deus, como Primeiro Motor, às Inteligências celestes e aos céus e, enfim, aos acontecimen­ tos terrestres e ao homem. Justificam, por isso, a astrologia, explicando suas deficiências pelo imperfeito grau de observação. 2- Doutrina do intelecto agente ou ativo como substância de natureza divina, separada da alma humana; doutrina que Averróis modi­ ficou no sentido de considerar separado do homem e divino também o intelecto passivo ou potencial que Al Kindi e Alfarabi considera­ vam próprio do homem. Ao homem pertence, segundo Averróis, só uma espécie de reprodu­ ção ou de imagem do verdadeiro intelecto. O único intelecto divino multiplica-se nas várias almas humanas como a luz do sol se multiplica distribuindo-se nos vários objetos que ilumina. Essa doutrina, que punha em dúvida a imorta­ lidade da alma humana, na medida em que separava dela e atribuía a Deus a sua parte mais elevada e imaterial, foi chamada de dou­ trina da unidade do intelecto. 3e Tendência própria do aristotelismo e, em particular, de Averróis a pôr a filosofia acima da religião, atribuindo-lhe o fim da contempla­ ção e reservando à religião o domínio da ação. Essa tendência foi interpretada pelos escolásticos latinos como a "doutrina das duas verdades", isto é, da independência entre verdade filosó­ fica e verdade religiosa, que poderiam ser até mesmo contrastantes. Obviamente, esse ponto de vista era a negação da própria Escolástica ocidental, que visava justificar filosoficamente as verdades religiosas.

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ARBÍTRIO

4q Com Al Gazali (séc. XI), a filosofia A. apresenta a reação do espírito religioso contra a filosofia: Al Gazali afirma, contra Alfarabi e Avicena, a liberdade da natureza divina e o caráter arbitrário da criação. À sua obra Des­ truição dos filósofos, Averróis respondeu com Destruição das destruições de Al Gazali. A filosofia A., além de ter importância por si mesma, ao acompanhar o auge do florescimento do império árabe no Mediterrâneo, exerceu notável influência sobre a Escolástica latina. Em primeiro lugar, forneceu a essa Escolástica boa parte de seu material, que lhe chegou através das traduções latinas das traduções árabes das traduções siríacas das obras de autores gregos. Em segundo lugar, ofereceu-lhe um constante ponto de referência polêmico, levando-a a or­ ganizar-se como filosofia da liberdade em face da filosofia da necessidade do mundo muçul­ mano. O próprio aristotelismo, na sua primeira manifestação ao mundo ocidental, foi identifi­ cado com a sua interpretação Á.; e só por obra de Alberto Magno e de S. Tomás foi depois adotado às exigências da Escolástica cristã (v. ESCOLÁSTICA). A-RACIONAL (gr. aÀ,dyoç; lat. Alogus; in. Arational; fr. Alogique-, ai. Alogisch; it. Arazionalé). O que é desprovido de razão ou não se pode exprimir ou explicar racionalmente: o mesmo que irracional. Esse é o uso clássico do termo (PLATÃO, Górg., 501 a; O Banq, 202 a; Teet, 205 e; Sof, 238 c, etc; ARISTÓTELES., Et. nic, X, 2, 1.172 b 10). O termo grego (assim como o latino) serve também para designar as grandezas incomensuráveis que chamamos ir­ racionais (ARISTÓTELES, An.post, I, 10, 76 b 9; EUCLIDES, EL, X, def. 10; etc). O uso moderno tentou, raramente e sem êxito, distinguir A. de irracional. ARBÍTRIO (lat. Arbitriuni; in. Free will; fr. Arbitre, ai. Willkur, it. Arbítrio). O princípio da ação nos animais e no homem. A. é, por isso, termo mais geral do que vontade (v.), que só pode ser atribuída ao homem. Diz Kant "É A. simplesmente animal {arbitriuni bruturrí) o que só pode ser determinado por estímulos sensí­ veis, ou seja, patologicamente. Mas o que é independente de estímulos sensíveis e, portan­ to, pode ser determinado por motivos que não são representados a não ser pela razão, chamase livre A. (arbitriuni liberum) e tudo o que a ele se liga como princípio ou como conseqüên­ cia é chamado prático" (Crít. R. Pura, Doutrina transcendental do método; O cânone da r. pura,

ARCANO

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ARITMÉTICA

seção I). O A. implica, assim, uma possibilida­ de de escolha, que, todavia, ainda não é liber­ dade. Para livre A., v. LIBERDADE.

ou aquilo a que uma função deve ser aplicada para que tenha determinado valor. Essa palavra foi usada pela primeira vez nesse sentido por G.

ARCÔNTICO (ai. Archontisch). Assim Husserl denominou o caráter dominante e unificador de uma experiência vivida, na medida em que normalmente esta não tem apenas um, mas muitos caracteres interligados de maneiras di­ v ersas (Ideen, I, § 117) (v. VIVÊNCIA). ARETOLOGIA (in. Aretology, fr. Arétologie, ai. Arétologie, it. Aretologia). Raramente usa­ do: a doutrina das virtudes. ARGUMENTO (gr. À,óyoç; lat. Argumentam; in. Argument; fr. Argument; ai. Argument; it. Argomento). 1. Num primeiro significado, A. é qualquer razão, prova, demonstração, indício, motivo capaz de captar o assentimento e de induzir à persuasão ou à convicção. A. comuns ou típicos ou esquemas de A. são os lugares (temeu, loci) que constituem o objeto dos Tópi­ cos de Aristóteles. Cícero, com efeito, definia os lugares como as sedes das quais provêm os A., que são "as razões que dão fé de uma coisa duvidosa" (.Top, 2, 7). O significado generalíssimo da palavra A. também é esclarecido pela definição de S. Tomás: "A. é o que conven­ ce (arguif) a mente a assentir em alguma coisa" (De ver, q. 14, a. 2, ob. 14), e pela de Pedro Hispano, que retoma a expressão de Cícero: "A. é uma razão que dá fé de uma coisa duvi­ dosa" (Summ. log., 5.02). No mesmo sentido, essa palavra é usada por Locke na definição da probabilidade, que existe quando "existem A. ou provas capazes de fazer uma proposição passar por verdadeira ou de ser aceita como verdadeira" (Ensaio, IV, 15, 3). E Hume, por sua vez, dividia os A. em demonstrações (pura­ mente conceituais), provas (empíricas) e pro­ babilidades (Inq. Cone. Underst.,Vl, nota). Nesse sentido, A. é qualquer coisa que "dá fé" segun­ do a excelente expressão de Cícero, isto é, que de algum modo produza um grau qualquer de persuasão. 2. No segundo significado entende-se por A. o tema ou o objeto (in. subject-matter, ai. Aufgabe), o assunto de um discurso qualquer, aquilo em torno de que o discurso versa ou pode versar. A esse segundo significado do ter­ mo vincula-se o seu uso em lógica e matemá­ tica para indicar os valores das variáveis inde­ pendentes de uma função. Nesse sentido, A. é o que preenche o espaço vazio de uma função

ARISTOTELISMO (in. Aristotelianism; fr. Aristotélisme, ai. Aristotelismus; it. Aristotelismo). Por esse termo entendem-se alguns fundamen­ tos da doutrina de Aristóteles que passaram à tradição filosófica ou que inspiraram as escolas ou os movimentos que se reportam mais dire­ tamente ao próprio Aristóteles, como a escola peripatética, o A. árabe, o A. cristão medieval, o A. do Renascimento e várias outras tendên­ cias do mundo medieval e moderno. Tais fun­ damentos podem ser resumidos da seguinte forma: 1Q Importância atribuída por Aristóteles à natureza e o valor e a dignidade das indaga­ ções a ela dirigidas. Enquanto Platão pensava que tais indagações só poderiam atingir um grau de probabilidade muito inferior ao conhecimento científico (Tini, 29 c), Aristóteles considerava que nada há na natureza tão insignificante que não valha a pena ser estudado, já que, em to­ dos os casos, o verdadeiro objeto da pesquisa é a substância d as co isas (v. SUBSTÂNCIA). 2e Conceito de metafísica como filosofia pri­ meira e teoria da substância, assim como fun­ damento da enciclopédica completa das ciên­ cias (v. METAFÍSICA). 3e Doutrina das quatro causas (formal, ma­ terial, eficiente, final) doutrina do movimento, como passagem da potência ao ato, que per­ mitiram a interpretação de toda a realidade natural (v. os verbetes correspondentes). 4S Teologia com seu conceito do Primeiro M o to r e do A to P u ro (v. DEUS). 5Q Doutrina da essência substancial ou ne­ cessária como base da teoria do conhecimento e da ló g ica (v. ALMA; ESSÊNCIA; SER). 6S Importância atribuída à lógica, cujo pri­ meiro expositor sistemático é Aristóteles, como instrumento de todo conhecimento científico (v. CONCEITO; LÓGICA; SILOGISMO; TÓPICA; etc). As várias correntes do A. só se reportaram, habitualmente, a alguns desses fundamentos; isso explica por que o A. ora apareceu como metafísica teológica (na Escolástica medieval), ora como naturalismo (no Renascimento), ora como espiritualismo (em algumas interpretações modernas,p. ex., as de Ravaisson e Brentano). ARITMÉTICA (in. Arithmetic; fr. Arithmétique, ai. Arithmetik, it. Aritmética). Teoria ma­

ARCANO. V. ARQUEU. ARCHÉ. V. PRINCÍPIO.

FREGE (Funktion undBegriff 1891) (v. FUNÇÀO). ARISTOCRACIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.

ARQUEOLÓGICA, HISTÓRIA

temática dos números naturais, isto é, dos nú­ meros inteiros positivos. Entendem-se comumente por leis da A. as seguintes proposi­ ções ou regras: l aa + fe = £>+a (lei eomutativa da adição); 2- ab = ba (lei eomutativa da multiplicação); 3a a + (b + c) = (a + b) + c (lei associativa da adição); 4a cájac) = (ab)c (lei associativa da multipli­ cação); 5a a(b + c) = ab + ac (lei distributiva). A formalização da A., isto é, a redução da A. a um sistema lógico fundado em poucos axio­ mas, foi efetuada pela primeira vez por Peano, que se valeu de alguns conceitos de Dedekind. Peano pressupôs como primitivas as noções de zero, de conjunto de números naturais e de sucessão enunciada com a expressão o sucessivo de. Mostrou que todas as proposições da A. podiam derivar dos cinco axiomas seguintes: le 0 é um número natural; 2- se x é um número natural, o número sucessivo também é um número natural; 3e se x e y são números naturais e se o sucessivo de x é idêntico ao sucessivo de y, então x e y são idênticos; 4S se x é um número natural, o número sucessivo de x é diferente de O, 5S se 0 pertence a um conjunto o e s e o sucessivo de um número natural qualquer per­ tence também a esse conjunto, o conjunto dos números naturais é uma parte de a. Com a expressão aritmetízação da mate­ mática entende-se, às vezes, a exigência surgida em meados do séc. XIX, no campo das mate­ máticas, principalmente por obra de Weierstrass, de conferir unidade e rigor lógico à análise matemática, fundando-a numa teoria dos nú­ meros reais. Essa teoria foi depois desenvol­ vida por Cantor (1845-1918) e Dedekind (1831-1916). Cf. as memórias de lógica matemática de Peano, ora coligidas em Opere scelte, Roma, s

1958. Cf. ta m b é m B. RUSSELL, Introduction to Mathematical Philosophy, 1918 (v. MATEMÁTI­ CA; NÚMERO).

ARQUEOLÓGICA, HISTÓRIA (in. Archeological history, fr. Histoire archéologique, ai. Archãologische Geschichte, it. Storia archeologicà). Na segunda das Considerações inatuais (Sobre a utilidade e o inconveniente dos estu­ dos históricospara a vida, 1873), Nietzsche dis­ tingue três espécies de história: "A história per­ tence a quem vive segundo três relações:

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ARQUITETÔNICA

pertence-lhe porque ele é ativo e porque aspi­ ra; porque conserva e venera; porque tem ne­ cessidade de libertação. A essa trindade de re­ lações correspondem três espécies de história, sendo possível distinguir o estudo da histó­ ria do ponto de vista monumental, do ponto de vista arqueológico e do ponto de vista crí­ tico". A história monumental é a que considera os grandes eventos e as grandes manifestações do passado e os projeta como possibilidades para o futuro. A história A. considera, ao contrá­ rio, o que no passado foi a vida de cada dia e nela enraíza a mediocridade do presente. A história crítica serve, porém, para romper com o passa­ do e p ara re n o v ar-se (v. HISTÓRIA).

ARQUÉTIPO (lat. Archetypus; in. Archetype, ai. Archetyp, Urbild; it. Archetipo). Modelo ou o exemplar originário ou original de uma série qualquer. As idéias de Platão foram considera­ das A. enquanto modelos das coisas sensíveis e, mais freqüentemente, as idéias existentes na mente de Deus, como modelos das coisas criadas (PLOTINO, Enn, V, 1, 4; PROCLO, InRep, II, 296). Mas Locke (Ensaio, II, 31, § D empre­ gou a palavra A. para dizer somente modelo: "Chamo adequadas as idéias que representam perfeitamente os A. dos quais a mente supõe que elas tenham sido extraídas, que ela enten­ de sejam representadas por aquelas idéias, e a que ela as refere". A., nesse caso, são as forças naturais, as idéias simples ou as idéias comple­ xas assumidas como modelos para medir a ade­ quação das outras idéias (v. ECTIPO). ARQUEU. Segundo Teofrasto Paracelso, é a força que move os elementos, isto é, o espírito animador da natureza. Como todas as coisas são compostas de três elementos (enxofre, sal, mer­ cúrio), assim todas as forças que as animam são constituídas pelos seus arcanjos, isto é, pela atividade inconsciente do A. (Meteor, pp. 79ss.). ARQUITETÔNICA (gr. àpjdxeiCTOViKri xéAvri; in. Architectonic; fr. Architectonique; ai. Architektonik, it. Architettonicd). Em geral a parte de construir, na medida em que supõe a capacidade de subordinar os meios ao fim e o fim menos importante ao mais importante. Nesse sentido, essa palavra é usada por Aristóteles (Et. nic, I, 1, 1.094 a 26), que fala também (Et. eud, I, 6, 1.217 a) de uma "inteligência A. e prática", isto é, construtiva e operativa. Essa palavra foi usada pela primeira vez como nome de uma disciplina filosófica por Lambert, que a usou como título de uma obra sua (Arquitetônica,

ARQUITETÔNICA, BELEZA

1771) e entendeu-a como "a teoria dos elemen­ tos simples e primitivos no conhecimento filo­ sófico e matemático". Kant retomou essa pala­ vra para indicar "a arte do sistema", ao qual dedicou um capítulo (o III) na segunda parte principal de Crítica da Razão Pura. Como sis­ tema, entendeu "a unidade de conhecimentos múltiplos reunidos sob uma única idéia", isto é, organização finalista que cresce de dentro, como o organismo vivo. Na esteira de Kant, C. S. Peirce fala de arquitetura das teorias científicas e filo­ sóficas cujas regras procura definir {.Chance, Love and Logic, II, 1). ARQUITETÔNICA, BELEZA. V GRAÇA ARQUITETURA. V. ARQUITETÔNICA.

ARREPENDIMENTO (lat. Paenitentia; in. Repentance, fr. Repentir, ai. Reue, it. Pentimento). O angustiante reconhecimento da própria cul­ pa. Esta é a definição em que os filósofos con­ cordam, ainda que a expressem com palavras diferentes (S. TOMÁS, S. Th, III, q. 85, a. 1; D E S­ CARTES, Pass. delâme, III, 191; SPINOZA, Et, III; Definição das paixões, 27; HEGEL, Werke, ed. Glockner, X, p. 372, etc). Os filósofos também estão de acordo em admitir o valor moral do arrependimento. Spinoza, embora julgue que o A. "não é uma virtude, isto é, não deriva da razão" e que, portanto, quem se arrepende é duplamente miserando e impotente (uma vez porque agiu mal e depois porque se aflige com isso), reconhece que aquele que está submeti­ do ao A. pode, todavia, voltar a viver segundo a razão muito mais facilmente do que os outros (Et., IV, 54). Montaigne, que dedicou ao A. um de seus ensaios mais notáveis (Essais, III, 2), observara, porém, que o A. não deve transfor­ mar-se no desejo "de ser outro". "Não cabe propriamente A. pelas coisas que não estão em nosso poder, assim como não cabem as sauda­ des. Imagino infinitas naturezas mais elevadas e mais ponderadas do que a minha; mas com isso não melhoro as minhas faculdades, assim como o meu braço e o meu espírito não ficam mais vigorosos só porque eu os conceba di­ ferentemente do que são'' (ibid., ed. Rat., III, p. 28). Em sentido análogo exprime-se Kierkegaard, que viu no A. o ponto culminante da vida ética e, ao mesmo tempo, o sinal do seu conflito interno. O a. é inerente à escolha que, na vida ética, o homem faz de si msmo. "Escolher a si mesmo é idêntico a arrepender-se de si mes­ mo... Até o místico se arrepende, mas fora de si e não dentro de si; arrepende-se metafisicamen-

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ARTE

te e não eticamente. Arrepender-se esteticamen­ te é repugnante, porque é afetação; arrepen­ der-se metafisicamente é coisa inútil e fora de lugar, pois não foi o indivíduo que criou o mun­ do e não lhe cabe incomodar-se tanto com a vaidade do mundo" (Entweder-Oder, em Werke, II, p. 223; Furcht undZittern, em Werke, III, p. 143). Cf. M. SCHELER, Reue und Wiedergeburt, em Vom Ewigen im Menschen, 4a ed., 1954). ARS MAGNA. V. COMBINATÓRIA, ARTE. ARTE (gr. Téxvr|; lat. Ars; in. Art; fr. Art; ai. Kunst; it. Arte). Em seu significado mais geral, todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer. Era nesse sentido que Platão falava da A. e, por isso, não estabe­ leceu distinção entre A. e ciência. A., para Platão, é a arte do raciocínio (Fed, 90 b), como a pró­ pria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética (Fed., 266 d); A. é a poesia, embora lhe seja indispensável a inspiração delirante (ibid, 245 a); A. é a política e a guerra (Prot., 322 a); A. é a medicina e A. é respeito e justiça, sem os quais os homens não podem viver jun­ tos nas cidades (Ibid., 322 c, d). O domínio global do conhecimento é dividido em duas A., ajudicativa (KpiTtKf ou YVCOCTUKT) e a dispositiva ou imperativa (ÈnixaKiiKtí ou È7riOTaTiKfj), das quais a primeira consiste simplesmente em conhecer e a segunda em dirigir determinada atividade com base no conhecimento (Pol, 260 a, b; 292 c). Desse modo, para Platão a A. com­ preende todas as atividades humanas ordena­ das (inclusive a ciência) e distingue-se, no seu com­ plexo, da natureza (Rep, 381 a). — Aristóteles restringiu notavelmente o conceito de A. Em primeiro lugar, retirou do âmbito da A. a esfera da ciência, que é a do necessário, isto é, do que não pode ser diferente do que é. Em segundo lugar, dividiu o que não pertence à ciência, isto é, o possível (que "pode ser de um modo ou de outro") no que pertence à ação e no que per­ tence à produção. Somente o possível que é objeto de produção é objeto da A. Nesse senti­ do, diz-se que a arquitetura é uma A.; e a A. se define como o hábito, acompanhado pela ra­ zão, de produzir alguma coisa (Et. nic, VI, 3-4). O âmbito da A. vem, assim, a restringir-se mui­ to. São A. a retórica e a poética, mas não é A. a analítica (lógica), cujo objeto é necessário. São A. as manuais ou mecânicas, como é A. a me­ dicina, ao passo que a física ou a matemática não são A. Esse é, pelo menos, o ponto de vista do Aristóteles maduro, já que as páginas com que se abre a Metafísica parecem estabelecer

ARTE

uma distinção puramente de grau entre a A. e a ciência, colocando a A. como intermediária entre a experiência e a ciência. Mesmo aquelas páginas se concluem, porém, com a afirmação de que a sabedoria é antes conhecimento teó­ rico do que A. produtiva (Met., I, 1, 982 a 1 ss.). Essa distinção aristotélica não foi, porém, ado­ tada em todo o seu rigor pelo mundo antigo e medieval. Os estóicos ampliaram de novo a noção de A., afirmando que "a A. é um conjun­ to de compreensôes", entendendo por com­ preensão o assentimento ou uma representa­ ção compreensiva (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., III, 241, Adv. dogm, V, 182); na verdade, essa definição não permite distinguir A. de ciência. E Plotino, que, por sua vez, faz tal distinção porque quer conservar o caráter contemplativo da ciência, distingue as A. com base em sua relação com a natureza. Distingue, portanto, a arquitetura e as A. análogas, cuja finalidade é a fabricação de um objeto, das A. que se limitam a ajudar a natureza, como a medicina e a agri­ cultura, e das A. práticas, como a retórica e a música, que tendem a agir sobre os homens, tornando-os melhores ou piores (Enn., IV, 4, 31). A partir do séc. I foram denominadas "A. liberais" (isto é, dignas do homem livre), em contraste com as A. manuais, nove disciplinas, algumas das quais Aristóteles teria denomina­ do ciências, e não artes. Essas disciplinas foram enumeradas por Varrão: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia, mú­ sica, arquitetura e medicina. Mais tarde, no séc. V, Marciano Capela, em Núpcias de Mercúrio e da filologia, reduzia a sete as A. liberais (gra­ mática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música), eliminando as que lhe pareciam desnecessárias a um ser puramente espiritual (que não tem corpo), isto é, a arqui­ tetura e a medicina, e estabelecendo assim o curriculum de estudos que deveria permane­ cer inalterado por muitos séculos (v. CULTURA). S. Tomás estabelecia a distinção entre A. liberali e A. servili com o fundamento de que as pri­ meiras destinam-se ao trabalho da razão, as segundas "aos trabalhos exercidos com o cor­ po, que são de certo modo servis, porquanto o corpo está submetido servilmente à alma e o homem é livre segundo a alma" (S. Th, II, 1, q. 57, a. 3, ad 3). Contudo, a palavra A. continuou designando, por longo tempo, não só as A. liberais mas também as A. mecânicas, isto é, os ofícios, assim como ocorre ainda hoje, pois entendemos por A. ou artesão um ofício ou

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ARTEFATO

quem o pratica. Kant resumiu as características tradicionais desse conceito ao fazer a distinção entre A. e natureza, de um lado, e entre A. e ciência, do outro; e distinguiu, na própria A., a A. mecânica e a A. estética. Sobre esse último ponto, diz: "Quando, conformando-se ao co­ nhecimento de um objeto possível, a A. cum­ pre somente as operações necessárias para realizá-lo, diz-se que ela é A. mecânica; se, porém, tem por fim imediato o sentimento do prazer, é A. estética. Esta é A. aprazível ou bela A. É aprazível quando sua finalidade é fazer que o prazer acompanhe as representações enquanto simples sensações; é bela quando o seu fim é conjugar o prazer às representações como formas de conhecimento'1 (Crít. doJuízo, § 44). Em outros termos, a bela A. é uma espé­ cie de representação cujo fim está em si mesma e, portanto, proporciona prazer desinteressa­ do, ao passo que as A. aprazíveis visam somen­ te a fruição. A essa concepção de A. remetemse ainda hoje os que vêem nela a libertação das restrições impostas pela tecnocracia (MARCUSE, One Dimensional Man, 1964, pp. 238 ss.), ou pelo menos um meio de corrigi-las, fazendo valer, nesse sistema, a.expressão da personali­ dade individual (GALBRAITH, The New Indus­ trial State, 1967, p. XXX). Embora ainda hoje a palavra A. designe qualquer tipo de atividade ordenada, o uso culto tende a privilegiar o significado de bela A. Dis­ pomos, de fato, de um termo para indicar os procedimentos ordenados (isto é, organizados por regras) de qualquer atividade humana: é a palavra técnica. A técnica, em seu significado mais amplo, designa todos os procedimentos normativos que regulam os comportamentos em todos os campos. Técnica é, por isso, a palavra que dá continuidade ao significado original (platônico) do termo arte. Por outro lado, os problemas relativos às belas A. e a seu objeto específico cabem hoje ao domínio da estética (v.). ARTEFATO (in. Artifact; fr. Artefact; ai. Artefakt; it. Artefattó). Objeto produzido, no todo ou em parte, pela arte ou por qualquer atividade humana, na medida em que se distin­ gue do objeto natural, produzido pelo acaso. Por isso, a presença de A. num estrato geológi­ co normalmente é considerada pelos antropó­ logos como sinal de presença do homem na idade correspondente: a natureza e a comple­ xidade dos A. são formadas como base para distinguir os tipos de cultura a que pertencem.

ARTÍFICE INTERNO

Para ser reconhecido como tal, o A. deve ma­ nifestar a intenção, preexistente à sua constru­ ção, de utilizá-lo com finalidade determinada, ou seja, deve constituir a realização de um pro­ jeto (v.) ARTÍFICE INTERNO. Esse foi o nome que Giordano Bruno deu, em De Ia causa, princi­ pio e uno, ao intelecto universal, que é "facul­ dade e parte potencial íntima mais real e pró­ pria da alma do mundo", porque "forma a matéria e a figura desde dentro". ARVORE DE PORFÍRIO (lat. Arbor Porphyriana; in. Tree of Porphyry, fr. Arbre de Porphyre, ai. Baum desPorphyrius; it. Albero di Porfirio). Célebre esquema ou modelo de defi­ nição por dicotomias sucessivas, que desce do gênero mais geral às espécies ínfimas (substância: corpórea, incorpórea; substância corpórea [cor­ po]: animado, inanimado; corpo animado: sen­ sível, insensível; corpo animado sensível [ani­ mal]: racional, irracional; animal racional: mortal, imortal; animal racional mortal [homem].Sócrates, Platão, etc). Embora tal "árvore" não se encontre propriamente nos manuscritos de Porfirio, foi construída com base no texto porfiriano (Isag, 4, 20) e se acha em todos os tratados medievais de lógica (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 2, 10), de onde passou para os textos modernos de lógica tradicional. ASCESE (gr. âoicr)0iç: in. Ascesis; fr. Ascèse, ai. Askese, it. Ascesí). Essa palavra significa pro­ priamente exercício e, na origem, indicou o treinamento dos atletas e as suas regras de vida. Com os pitagóricos, os cínicos e os estóicos, essa palavra começou a ser aplicada à vida mo­ ral na medida em que a realização da virtude implica limitação dos desejos e renúncia. O sen­ tido de renúncia e de mortificaçâo tornou-se, daí, predominante; na Idade Média, A. signifi­ cou mortificaçâo da carne e purgação dos vín­ culos com o corpo. A revolta contra o ideal ascético iniciou-se no Renascimento, com a revalorização dos aspectos corpóreos e sensí­ veis do homem. Kant considera a moral ascética como "exercício firme, corajoso e destemido da virtude" e a contrapõe à A. monãstica, "que, por temor supersticioso ou por horror hipócri­ ta a si mesma, costuma mortificar e desprezar o próprio corpo", castigando-se, em vez de arre­ pender-se moralmente, isto é, de tomar a reso­ lução de corrigir-se (Met. der Sitten, II, § 53). Schopenhauer deu significado metafísico à A., na qual viu "o horror do homem pelo ser, cuja expressão é seu próprio fenômeno, pela von­

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ASPECTO

tade de viver, pelo cerne e essência de um mundo que se reconhece cheio de dor" (Die Welt, I, § 68), e por isso o único instrumento de libera­ ção de que o homem dispõe. ASCETISMO (in. Asceticism; fr. Ascétísme; ai. Asketismus; it. Ascetismo). A prática da ascese. ASEIDADE ou ASSEIDADE (lat. Aseitas; in. Aseity, fr. Aséité, ai. Aseitãt; it. Aseitã). Qualida­ de ou caráter do ser que tem em si mesmo a causa e o princípio do próprio ser, ou seja, Deus. Abaliedade é a qualidade contrária, isto é, a do ser que tem causa em outro ser. Vocá­ bulos usados na Escolástica tardia. ASNO DE BURIDAN (in. Buridan's Ass; fr. Ane de Buridan; ai. Esel des Buridan; it. Asino di Buridano). Jean Buridan, mestre e reitor da Universidade de Paris na primeira metade do séc. XIV, foi discípulo de Ockham e é impor­ tante por algumas observações que antecipam o princípio de inércia da mecânica moderna (v. IMPULSO). O caso do A., que, posto entre dois feixes iguais de feno, morreria de fome antes de resolver qual dos dois comeria, não se en­ contra em suas obras. Encontram-se nela, po­ rém, suas premissas. Buridan julga que a von­ tade segue, necessariamente, o juízo do intelecto; p. ex., a decisão é pêlo bem maior, se o intelec­ to assim julgar. Mas quando o intelecto julga que dois bens são iguais, a vontade não pode decidir-se nem por um nem pelo outro: a esco­ lha não acontece (In Eth., III, q. 1). Esse é o caso do asno. Mas Buridan julga que o homem pode não morrer de fome como o A., já que pode suspender ou impedir o juízo do intelecto (ibid., III, q. D). A origem do caso (embora não referido ao A.) acha-se em Aristóteles: "Diz-se que quem está muito sedento ou esfaimado, se se acha a igual distância do alimento e da be­ bida, necessariamente fica imóvel onde se acha" (De cael, II, 13, 295 b 33). Nem mesmo Dante refere o caso ao A.: "Que entre dois alimentos, distantes e móveis — de modo que antes se morria de fome — o homem livre levasse um deles à boca" (Par, IV, 1-3). Na realidade, a discussão em torno do caso do A. de Buridan foi peculiar a um período (a última Escolástica) no qual se acentuou o caráter arbitrário da es­ colha voluntária e entendeu-se a liberdade do homem como "arbitrário de indiferença" (v. LIBERDADE). ASPECTO (in. Aspect; fr. Aspect; ai. Aspekt; it. Aspetto). Ponto de vista ou ângulo visual de que pode ser considerado um fato ou uma obser­ vação. Objetivamente, o lado que o fato ou a situação apresenta.

ASPIRAÇÃO

ASPIRAÇÃO (in. Aspiration; fr. Aspiration; ai. Sehnsucht; it. Aspirazione). Atitude que se assume em face do ideal(v.), isto é, em face de uma perfeição em cuja realização não se tem confiança. A A. não é de per si ativa e operante e pode permanecer no estado de veleidade suspirosa. ASSENTIMENTO (gr. o-uyKaxá9eovç; lat. Assensus-, in. Assent; fr. Assentiment; ai. Beifall ou Zustimmung; it. Assensó). Termo correlativo de apreensão (v.), que designa o ato com que se julga do objeto apreendido, isto é, assentese a ele, dissente-se dele ou duvida-se dele. Os primeiros a elaborar a teoria do A. foram os estóicos. O A. é a reação da alma à ação da coisa externa, que lhe é imprimida pela repre­ sentação. "Assim como é necessário que o pra­ to da balança se abaixe quando sobre ele são colocados pesos, também é necessário que a alma adira à evidência" (CÍCERO, Acad, III, 12, 37). Receber a representação é coisa involuntária, já que ver branco depende da cor branca que se tem à frente, e assim por diante. Mas assentir à representação está naquele que acolhe a re­ presentação. O A. é, pois, voluntário. É parte integrante da representação cataléptica (v. CATALÉFTICA, REPRESENTAÇÃO), segundo a qual "onde se tira o A., tira-se também a compreensão" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 397-398). Na filosofia cristã, a noção de A. serviu para defi­ nir a fé. João Damasceno definiu a fé como "A. não acompanhado por indagação" (non inquisitivus assensus, De fide ortb., IV, 12). Referindo-se a esse conceito, S. Tomás define a fé como "pensar com assentimento". Diz: "O intelecto pode aderir a uma coisa de dois mo­ dos. No primeiro modo, porque ,é movido a assentir pelo próprio objeto, porque é conheci­ do por si mesmo, como ocorre com os primei­ ros princípios de que temos inteligência, ou porque é conhecido através de outro, como ocorre com as conclusões de que temos ciên­ cia. No segundo modo, o intelecto adere a al­ guma coisa não porque tenha sido suficiente­ mente movido pelo próprio objeto, mas por escolha voluntária que o inclina mais para um lado do que para outro. Ora, se isso acontecer juntamente com a dúvida e com o temor de que o outro lado seja verdadeiro, ter-se-á a opi­ nião; se acontecer, porém, com certeza e sem aquele temor, ter-se-á a fé" (S. Th, II, 2, q. 1, a. 4). Na última fase da Escolástica, a doutrina do A. foi elaborada por Ockham. Segundo ele, o ato do A. acompanha o ato do aprendizado. "Quem

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ASSERÇÃO

quer que aprenda uma proposição (In Sent., prol., q. 1, 55) assente, dissente ou duvida." A teoria do A. é, substancialmente, a teoria do erro. Segundo Ockham, quando uma proposi­ ção é empírica ou racionalmente evidente, o A. é garantido pela sua evidência, ao passo que, quando falta essa evidência, o A. é mais ou menos voluntário e vê-se diante da possibilida­ de do erro (Md, II. q. 25). Doutrina análoga encontra-se em Descartes. Para julgar, requerse, em primeiro lugar, o intelecto, já que não se pode julgar sobre aquilo de que não se tem apreensão; em segundo lugar, a vontade, pela qual se adere ao que foi percebido (Princ.phü., I, § 34). E na maior amplitude da vontade, isto é, na possibilidade de que o A. também seja dado ao que não é apreendido de modo evi­ dente, baseia-se a possibilidade do erro (ibid, § 35). Locke elabora a doutrina do A. relacio­ nando-a com os graus de probabilidade. "A cren­ ça, A. ou opinião consiste em admitir ou aceitar como verdadeira uma proposição com base em argumentos ou provas que nos convencem sem nos dar conhecimento certo da sua verda­ de" (Ensaio, IV, 15, 3). A própria fé é uma espé­ cie de A., aliás "um A. fundado na razão mais alta" (ibid., 14). De modo semelhante, Rosmini considerou o A. como um ato livre, que se segue ao conhecimento, isto é, à simples apre­ ensão da coisa (Ciência moral, ed. nac. 1941, p. 109). A Gramática do assentimento (1870) de Newmann distinguiu o A. real, destinado às coisas, do A. nocional, destinado às proposi­ ções. O A. nocional é o que se chama de pro­ fissão, opinião, presunção, especulação; o A. real é a crença. O A. nocional a uma proposi­ ção dogmática é um ato teológico; o A. real à mesma proposição é um ato religioso. As duas coisas não se contradizem, mas só o A. real leva ao credo dogmático os sentimentos e as imaginações que condicionam a sua validade religiosa. Essas idéias de Newmann, retomadas e desenvolvidas por Ollé-Laprune e por Blondel, deram à filosofia da ação (v.). ASSERÇÃO (gr. ÒTtcxpccvcnç, A.óyo à7io(pavxiKÓç; lat. Oratioenunciativa; in. Statement; fr. Assertion; ai. Behauptung; it. Asserzione). Frase de sentido completo que afirma ou nega, podendo ser verdadeira ou falsa. Aristóteles distinguiu a A., nesse sentido, da súplica, da ordem, etc, considerando que só ela é objeto da lógica, ao passo que as outras formas de expressão são objeto da retórica ou da poética (De interpr., 417 a 2-9). Disse que a A. é "uma frase que significa que alguma coisa inere ou

ASSILOGÍSTICO

não em alguma coisa, segundo as divisões do tempo" e que a afirmação e a negação são as duas formas fundamentais (ibid, 17 a 23). Boécio traduziu a expressão de Aristóteles por Oratio enunciativa (P.L., 64S, col. 314, 399), conside­ rando-a praticamente equivalente ao enuntiatum dos estóicos. Na realidade, os dois termos são equivalentes, se não forem consideradas as diferenças do contexto em que se encontrem (v. ENUNCIADO; PROPOSIÇÃO).

Na lógica matemática contemporânea, Russell, com base em Frege e acompanhado por muitos outros lógicos, introduziu um símbolo especial ('— '), a ser anteposto ao símbolo da asserção. A lógica terminista medieval julgava, porém, que as expressões "é verdade que 'p'" e 'p' (onde 'p' é sinal de uma proposição) devem ser consideradas sinônimas. Contudo, a A. implica que se acredita ou se assente na proposição (v.) expressa; como tal, às vezes é distinguida de enunciado (v.). Cf. ASSENTIMENTO. ASSILOGÍSTICO. V. ANAPODÍTICO.

ASSUNÇÃO

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G. P.

ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS (in. Association ofideas; fr. Association des idées; ai. Ideenassoziation; it. Associazione delle ideé). Com essa expressão, indica-se a conexão recíproca dos elementos da consciência, conexão pela qual tais elementos, quaisquer que sejam, evocamse uns aos outros, segundo uniformidades ou leis reconhecíveis. A semelhança, a continuida­ de e o contraste constituem as uniformidades ou leis fundamentais da A., que já haviam sido reconhecidas por Platão (Fed, 76 a) e por Aris­ tóteles (De memória et reminiscentia, II, 451 b 18-20). Em seguida, o fenômeno não atraiu mais a atenção dos filósofos até a Idade Moderna. Hobbes, em Leviathan, dedica um capítulo (o III) à A. das imagens, mas foi Locke quem criou a expressão "A. de idéias" e introduziu o fenô­ meno a ela relativo como princípio de explica­ ção da vida da consciência. A importância que a A. adquire em Locke deriva do pressuposto atomístico da sua filosofia: tudo o que a cons­ ciência é, nas suas várias manifestações, é pela combinação variada dos elementos simples fornecidos pela experiência, isto é, das idéias. "Algumas das nossas idéias têm entre si corres­ pondência e conexão natural, e a tarefa e a excelência da nossa razão estão em rastreá-las e mantê-las juntas na união e na correspondên­ cia que se fundam em serem elas naturais. Mas, afora isso, há outra A. de idéias que se deve ao acaso e ao hábito" (Ensaio, II, 33, § 5). A tais combinações acidentais ou habituais de idéias

devem-se alguns fenômenos aberrantes, como a loucura, as simpatias ou antipatias irracionais, as superstições, etc. Mas nas associações natu­ rais baseiam-se todas as operações do espírito humano: o conhecimento nos seus vários graus, a imaginação, a vontade, etc. Para Locke, toda­ via, a A. de idéias assume formas diferentíssimas. Hume reduziu-as a três princípios apenas: a semelhança, a contigüidade no tempo e no espaço e causa e efeito (Inq. Cone. Underst., III). Abandonado em filosofia, depois de Kant, como princípio explicativo de toda a vida espi­ ritual, a A. permaneceu o princípio explicativo da psicologia científica desde a metade do séc. XIX até os princípios deste século. No período contemporâneo a psicologia da forma ou gestaltismo (v.) impugnou o próprio pressuposto atomista em que se fundava a teoria da asso­ ciação. ASSOCIACIONISMO (in. Associationism, fr. Associationnisme, ai. Associazionstheorie, it. Assocíazionísmó). Doutrina filosófica e psicoló­ gica cujo princípio explicativo da vida espiritual é a associação de idéias (v.). O pressuposto do A. é o atomismo psicológico, isto é, a resolução de cada evento psíquico em elementos simples que são as sensações, as impressões, ou, gene­ ricamente, as idéias. O fundador do A. é Hume, mas um de seus maiores divulgadores foi o médico inglês David Hartley (1705-57), segun­ do quem a associação de idéias é, para o ho­ mem, o que a gravitação é para os planetas: a força que determina a organização e o desen­ volvimento do todo. O A. encontrou outras ma­ nifestações importantes na obra de J. Mill (1773­ 1836), que o utilizou na análise dos problemas morais, explicando pela associação entre o prazer próprio e o alheio a transição da condu­ ta egoísta à conduta altruísta, e de Stuart Mill (1806-73), que o utilizou no estudo de proble­ mas morais e lógicos. Mas, depois de Stuart Mill, o A. deixou de ser uma doutrina filosófi­ ca viva e permaneceu tão-somente como hipó­ tese operacional no domínio da psicologia científica, de onde foi excluída só nos últimos decênios por obra da psicologia da forma (v. PSICOLOGIA).

ASSUNÇÃO (gr. Afjl|/ÍÇ; lat. Sumptio; in. Assumption, sumptíon; fr. Assomption; ai. Vordersatz, it. Assunzione). A proposição que se es­ colhe como premissa do raciocínio; ou então o ato de escolher uma proposição com essa fina­ lid ad e (cf. CÍCERO, De divin., II, 53, 108). Mais precisamente, a proposição que se es­ colhe como primeira premissa do silogismo e

ASTROLOGIA

que às vezes é também chamada lema (v.) (cf. HAMILTON, Lectures on Logic, I, p. 283). A A. não implica necessariamente a verdade da premissa que se assume. Pode-se assumir uma proposição verdadeira ou uma hipótese ou ainda uma proposição falsa com o fim de refutá-la. O termo é equivalente a. posição (v.). ASTROLOGIA (gr. àoTpoXoyía; lat. Astrolo­ gia; in. Astrology, fr. Astrologie, ai. Astrologie, it. Astrologia). Crença na influência dos movimen­ tos dos astros sobre o destino dos homens e ciência, ou pretensa ciência fundada nessa crença. A A. liga-se ao nascimento da astrono­ mia no mundo oriental e acompanhou a astro­ nomia na primeira parte da sua história. Segun­ do F. Cumont, foram os caldeus os primeiros a conceber a idéia de uma necessidade inflexível que regula o universo e a substituir por essa idéia a idéia do mundo dirigido por deuses, em conformidade com suas paixões. A idéia lhes foi sugerida pela regularidade dos movimentos dos corpos celestes (CUMONT, OrientalReligions in Roman Paganism, trad. in., p. 179). Essa crença levou a estabelecer uma correspondên­ cia entre o macrocosmo (mundo) e o micro­ cosmo (homem): correspondência pela qual os eventos de um se refletiriam nos eventos do outro e seria possível, a partir do conhecimen­ to dos primeiros, predizer de algum modo os segundos. A A. difundiu-se no Ocidente no período greco-romano. Assim como os antigos caldeus, a filosofia árabe a justificou com base na necessidade universal que une todos os even­ tos do mundo e que, partindo de Deus, como Primeiro Motor, vai até aos eventos humanos. Essa cadeia necessária passa pelos eventos ce­ lestes: os terrestres e os humanos não são de­ terminados diretamente por Deus, mas são determinados por Ele através dos eventos ce­ lestes, isto é, os movimentos dos astros. De modo que tais movimentos são os que determi­ nam imediatamente os eventos do mundo sublunar e, portanto, do mundo humano; o seu conhecimento torna possível a previsão destes últimos. As crenças astrológicas eram comuns na Idade Média, apesar das condenações ecle­ siásticas: o próprio Dante compartilhava delas (Conv., II, 14; Purg., XXX, 109 ss.). No Renas­ cimento, foram defendidas e justificadas por homens como Paracelso, Bruno, Campanella. Este último dedicou uma obra à A., Astrologicorum Libri VII, 1629, e dela se valeu para confirmar seu vaticínio do iminente retorno do mundo à unidade religiosa e política (Atheismus

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ATANATISMO

triumphatus, 1627). Outros filósofos foram hos­ tis à astrologia, embora admitindo a validade da magia. Assim, p. ex., Pico delia Mirandola, que escreveu as Disputationes adversus astrologos, em que acusa a A. de tornar os homens escravos e miseráveis; o mesmo fezJean Baptíste van Helmont, que negou a influência dos astros nos acontecimentos humanos (De vita longa, 15, 12). A A. perdeu fundamento científico com a ciência moderna, que, para afirmar qualquer relação causai, exige que tal relação se verifi­ que de modo uniforme em um número de ca­ sos suficientemente grande. A relação causai entre os movimentos dos astros e os eventos humanos poderia, portanto, ser reconhecida como tal só com base em observações repeti­ das e repetíveis que evidenciassem todos os seus elos intermediários, de tal modo que o seu funcionamento fosse entendido. Nada de se­ melhante se verificou na A., que ainda se ba­ seia em antigos textos e tradições, em simbolis­ mos não passíveis de verificação e em crenças mágicas ou teosóficas. Por outro lado, as cren­ ças astrológicas estão entre as mais difundidas até mesmo no mundo contemporâneo, tão permeado de espírito científico: talvez o espí­ rito contemporâneo encontre nelas uma com­ pensação para a falta de segurança caracterís­ tica da sua situação e, nas predições astrológicas, um meio de delimitar, embora de modo arbi­ trário e fantástico, as previsões em torno de seu destino próximo ou remoto. ASTÚCIA DA RAZÃO (in. Astuteness ofthe rason; fr. Astuce de Ia raison; ai. List der Vernunft; it. Astuzia delia ragione). Esse foi o nome que Hegel deu ao fato de a Idéia Universal fazer que, na história, as paixões dos homens atuem como instrumentos seus, gastando-as e consumindo-as para os próprios fins. "A Idéia paga o tributo da existência e da caducidade não de seu bolso, mas com as paixões dos indi­ víduos. César devia cumprir o que era necessá­ rio para derrubar a liberdade decrépita; a sua pessoa pereceu na luta, mas o que era necessá­ rio ficou: a liberdade segundo a idéia jazia mais profunda do que o acontecer externo" (Phil. der Geschicbte, ed. Lasson, pp. 83-84; trad. it., p. 98). ATANATISMO (in. Athanatism; fr. Athanatisme, ai. Athanatismus; it. Atanatismo). Assim foi chamada por alguns autores do séc. XIX a doutrina da imortalidade da alma.

ATARAXIA

ATARAXIA (gr. àxapaAíoc; in. Ataraxia, fr. Ataraxie, ai. Ataraxie, it. Atarassia). Termo usa­ do primeiramente por Demócrito (Fr. 191), de­ pois pelos epicuristas e pelos estóicos, para designar o ideal da imperturbabilidade ou da serenidade da alma, em decorrência do domí­ nio sobre as paixões ou da extirpação destas (v. APATIA). Analogamente, "o objetivo do ceticis­ mo é a A. nas coisas opináveis e a moderação nas coisas que são por necessidade" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, I, 25). ATEÍSMO (gr. àBeÓT/nç; lat. Atheismus; in. Atheism; fr. Athéisme, ai. Atheismus; it. Ateísmó). É, em geral, a negação da causalidade de Deus. O reconhecimento da existência de Deus pode ser acompanhado pelo ateísmo se não incluir também o reconhecimento da causalidade es­ pecífica de Deus. A primeira análise do A. que a história da filosofia recorda é a de Platão, no X livro das Leis. Platão considera três formas de A.: 1B negação da divindade; 2Q crença de que a divindade existe, mas que não cuida das coi­ sas humanas; 3Ücrença de que a divindade pode tornar-se propícia com doações e oferendas. A primeira forma é o materialismo, que defende que a natureza precede a alma, isto é, que a matéria "dura e mole, pesada e leve" precede "a opinião, a previsão, o intelecto, a arte e a lei". Esse é o erro de todos os filósofos da na­ tureza que consideram a água, o ar e o fogo como princípios da coisas e os chamam "natu­ reza" por entenderem que são a origem delas {Leis, X, 891 c, 892 b). Para refutar o materialismo só resta demonstrar que a alma precede a natureza; e Platão demonstra que o próprio movimento dos corpos celestes pressupõe um Primeiro Motor imaterial (v. DEUS, PROVAS DE). A segunda forma de A., que consiste em julgar que a divindade não se ocupa das coisas huma­ nas, é refutada por Platão com o argumento de que isso eqüivaleria a admitir que a divindade é preguiçosa e indolente, e a considerá-la infe­ rior ao mortal mais comum, que sempre quer aperfeiçoar a sua obra, por menor que seja. Enfim, a maior aberração é a dos maus que crêem poder tornar a divindade propícia com donativos e oferendas. Esses põem a divindade no mesmo nível dos cães que, amansados com presentes, permitem que os rebanhos sejam roubados, e abaixo dos homens comuns, que não traem a justiça aceitando presentes ilicita­ mente oferecidos. Platão é tão severo com essa última forma de A. que, para evitá-la, desejaria impedir qualquer forma de sacrifício privado e

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ATEÍSMO

admitir só os realizados em altares públicos e com ritual estabelecido {Leis, X, 909 d). A análise de Platão eqüivale a dizer que a única forma de A. filosófico é o materialismo naturalista, para o qual o corpo precede a alma; as outras formas são mais preconceitos vulga­ res do que crenças filosóficas (embora a pri­ meira delas, o indiferentismo dos deuses, vies­ se a ser adotada pelos epicuristas). Um olhar para o curso posterior da filosofia ocidental mostra que, ao lado do materialismo, podem ser considerados como formas de A. filosófico o ceticismo, o pessimismo e o panteísmo. ls Na Idade Moderna, a coincidência entre materialismo e A. foi afirmada por Berkeley, que, precisamente por força dessa coincidên­ cia, foi induzido a sustentar a irrealidade da matéria (v. IMATERIALISMO). Se se admitir que a matéria é real, a existência de Deus será inútil, porque a própria matéria vem a ser a causa de todas as coisas e das idéias que estão em nós. A existência da matéria é o principal funda­ mento do A., do fatalismo e da própria idolatria (Princ. ofHum. Knowledge, §§ 92-94). Efetiva­ mente se poderia dizer que um dos fundamen­ tos do A. é a causalidade da matéria e não a sua realidade. O materialismo setecentista de La Mettrie e de Holbach, assim como o oitocentista de L. Buchner, Ernst Heckel e Félix Le Dantec, tem esse fundamento. Deus é eliminado como princípio causai de explicação, porque se ad­ mite a matéria como tal. 2e A segunda forma de A. filosófico é a cé­ tica, cuja primeira manifestação se encontra no neo-acadêmico Carnéades de Cirene (214-129 a.C). Este não só demonstra a debilidade das provas aduzidas sobre a existência da divinda­ de, como também mostra as dificuldades ine­ rentes ao conceito de divindade. P. ex., diz Carnéades: "Se os deuses existem, são vivos; se vivos, sentem... Se sentem, recebem prazer ou dor. E se recebem dor, são passíveis de pertur­ bação e de mudanças para pior; logo são mor­ tais" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math, IX, 139-140). Ponto de vista análogo é o elaborado na Idade Moderna por Hume, em Diálogos sobre a reli­ gião natural. Hume julga impossível uma pro­ va aprioriáã existência de Deus, já que a existên­ cia é sempre matéria de fato. Quanto às provas a posteriori, ele rejeita a validade das provas cosmológicas, considerando ilegítimo pergun­ tar-se a causa de um conjunto de indivíduos. "Se se mostra a causa de cada indivíduo em um conjunto que compreende vinte indivíduos, é

ATEÍSMO

absurdo perguntar depois a causa de todo o conjunto, que já foi dada com as causas parti­ culares. Isto quer dizer que não tem sentido perguntar a causa do mundo na sua totalidade. Valor maior tem a prova físico-teológica, mas esta pode permitir somente remontar a uma causa proporcional ao efeito; e, como o efeito, isto é, o mundo, é imperfeito e finito, a causa deveria ser igualmente imperfeita e finita. Mas se a divindade for considerada imperfeita e finita, não há motivo para considerá-la única. Se uma cidade pode ser construída por muitos homens, por que o universo não poderia ter sido criado por muitas divindades ou demônios"? {Works, II, 1827, p. 413). Por fim, a disputa entre teísmo e A. torna-se uma questão de palavras: "O teísta admite que a inteligência original é muito dife­ rente da razão humana. O ateu admite que o princípio original da ordem tem alguma analo­ gia remota com a própria razão. Quereis então, senhores, ficar discutindo o grau de analogia e entrar numa controvérsia que não admite sig­ nificado preciso nem, portanto, qualquer con­ clusão?" {Ibid., 535.) Esse tipo de ceticismo, porém, não é uma forma de A. professado como muitas vezes ocorre com o materialismo: ten­ de, como se vê, a eliminar a dramaticidade da polêmica sobre o A. e a demonstrar que, afinal, ela é insignificante. 3e A terceira forma de A. é o panteísmo (v.). Também aqui não se trata de um A. professa­ do, mas da acusação freqüentemente feita aos que identificam Deus com o mundo. Durante muito tempo, Spinoza foi acusado de A. por ter dito Deus sive natura; na verdade, como nota­ va Hegel, dever-se-ia falar, com mais exatidão, de acosmismo (v.). Fichte também foi acusado de A. em conseqüência de um artigo publicado em 1798 no Jornal Filosófico delena, "Do fun­ damento da nossa crença no governo divino do mundo", no qual se identificava Deus com a ordem moral do mundo. Por causa da polê­ mica que se seguiu a esse artigo, Fichte foi obrigado a demitir-se da Universidade de Iena. Fichte, como Spinoza, rejeitava a acusação de A.; e como quer que se julgue a questão, é certo que panteísmo não é A. professado. 4S A. professado, em algumas de suas for­ mas, é o pessimismo. A desordem, o mal, a infelicidade do mundo são, segundo Schopenhauer, obstáculos insuperáveis tanto para a afirmação do Deus pessoal, como quer o teísmo, quanto para a identificação do mundo com Deus, feita pelo panteísmo (Selected Essays, trad. in.

ATENÇÃO

Belfort-Bax, p. 71). Teísmo e panteísmo pres­ supõem o otimismo que não só é desmentido pelo fatos, pois vivemos no pior dos mundos possíveis, mas é também pernicioso, porque não faz mais do que atar os homens à impiedosa e cruel vontade de viver (Die Welt, II, cap. 46). Na filosofia contemporânea, a doutrina de Sartre representa um A. pessimista atualizado pelas novas diretrizes da especulação. O fundamen­ to desse pessimismo não são o mal ou a dor como tais, mas a ambigüidade radical, a in­ certeza da existência humana lançada no mun­ do e dependente só da sua liberdade absoluta, que a condena ao fracasso. Segundo Sartre, não há Deus, mas há o ser que projeta ser Deus, isto é, o homem: projeto que é, ao mesmo tempo, ato de liberdade humana e destino que a condena à falência. {Lêtre et le néant, pp. 653 ss.) ATENÇÃO (in. Attention; fr. Attention; ai. Aufmerksamkeit; it. Attenzione). Noção relati­ vamente recente (séc. XVII), com a qual se en­ tende em geral o ato pelo qual o espírito toma posse de forma clara e vivida de um dos seus possíveis objetos, ou a apresentação clara e vivida de um desses possíveis objetos ao espírito. A noção de A. encontra-se em Descartes, que a entende como o ato pelo qual o espírito toma em consideração um único objeto durante al­ gum tempo {Pass. de 1 'âme, I, § 43). Locke cha­ ma de "A." a atenção passiva com que o espí­ rito é atraído por certas idéias, ao passo que chama de "reflexão" a A. ativa pela qual ele escolhe certas idéias como objetos privilegiados {Ensaio, II, I, § 8). Diz ele: "Quando tomamos nota das idéias que se nos apresentam por si e elas são, por assim dizer, registradas na memó­ ria, trata-se da A." {ibid., II, 19, § 1). Leibniz, no entanto, dá sentido ativo à A.: "Damos A. aos objetos que distinguimos e preferimos aos ou­ tros". E como formas da A. enumera a conside­ ração, a contemplação, o estudo, a meditação {Nouv. ess, II, 19, § 1). Ela constitui a passagem das pequenas percepções à apercepção {ibid., pref.). A A. conserva esse mesmo caráter ativo em Wolff {Psycbol. emp, § 237) e em Kant {Antr., I, § 3), que a define como "o esforço de tornarse consciente das próprias representações". A partir da segunda metade do séc. XIX, com o surgimento da psicologia científica, a A., considerada como uma das condições da vida psíquica, é incluída no âmbito dessa ciência. Seu conceito continua sendo o mesmo que fora formulado pelos filósofos; os psicólogos distin­ guem a A. espontânea, passiva ou involuntária,

ATITUDE

em que o objeto se impõe à consciência, e a A. ativa, voluntária ou controlada, em que o sujei­ to escolhe o objeto da sua atenção. A psicolo­ gia contemporânea considera a A. como adap­ tação ativa a uma situação, como orientação seletiva em face dos objetos a serem percebi­ dos (d, p. ex., D. O. HEBB, The Organization ofBehaviour, 1949, p- 4). Com essa noção de A., que se ajusta ao esquema geral predomi­ nante nas ciências antropológicas, segundo o qual toda atividade do homem é a sua resposta a determinado complexo de estímulos (situa­ ções ou problemas), a A. saiu do domínio da pura interioridade e foi reconhecida como uma forma de comportamento (v.). ATITUDE (in. Altitude, fr. Attitude, ai. Einstellung; it. Atteggiamento). Termo amplamente empregado hoje em dia em filosofia, sociologia e psicologia para indicar, em geral, a orienta­ ção seletiva e ativa do homem em face de uma situação ou de um problema qualquer. Dewey considera essa palavra um sinônimo de hábito (v.) e de disposição (v.); em particular, parecelhe que ela designa "um caso especial de pre­ disposição, a disposição que espera prorromper através de uma porta aberta" (Human Nature andConduct, 1922, p. 41). Lewis, analogamente, diz que na A. o que está presente é captado em seu significado prático e antecipatório, como um indício do que está além, no futuro (An Analysis of Knoivledge and Valuation, p. 438). Stevenson utilizou amplamente esse termo para fazer a distinção entre "significado descritivo" e "significado emotivo" das palavras: ter-se-ia o primeiro quando a resposta ao estímulo é um conjunto de processos mentais cognoscitivos e o segundo, quando a resposta ao estímulo é um determinado impulso para a ação. Stevenson chama de A. o impulso para a ação que, não se sabe por que, é qualificada de "emotiva", mas acha difícil demais definir precisamente a A. e, por isso, assume-a no significado mais genéri­ co de disposição para a ação (Ethics andLanguage, 1950, p. 60). Uma delimitação não mais exata de significado, de resto concordante com os comentários acima citados, é dada por Richards, que considera as atitudes como "ati­ vidades imagisticas e incipientes, ou tendên­ cias para a ação" (Princ. ofLiterary Criticism, 1924; 14a. ed., 1955, p. 112). Por outro lado, essa palavra foi usada com o mesmo significado fundamental de disposição por Jaspers, em Psicologia das visões do mundo (1925). "As A. são disposições gerais, suscetí­

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ATIVIDADE

veis, ao menos em parte, de pesquisa objeti­ va, assim como as formas transcendentais no sentido kantiano. São as direções do sujeito e utilizam determinada rede de formas transcen­ dentais" (Psychologie, intr., § 4). Mais preci­ samente, a A. pode ser definida como o projeto de opções porvindouras em face de certo tipo de situação (ou problema), ou como um proje­ to de comportamento que permita efetuar op­ ções de valor constante diante de determinada situação. Nesse caso, dizer, p. ex., que "xtem uma A. contrária ao casamento" quer dizer que x projeta não se casar; por isso, em geral, a A. de x para S é um projeto de x referente ao comportamento que terá em face de situações em que Sé possível (cf. ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, cap. V). ATITUDE NATURAL (ai. Naturlicher Einstellung). Husserl chamou assim a A. que con­ siste em assumir como existente o mundo co­ mum em que vivemos, formado de coisas, bens, valores, ideais, pessoas, etc, tal como se ofere­ ce a nós. A filosofia fenomenológica pretende sair dessa A. por meio da dúvida radical, que consiste em suspender a A. natural, isto é, em obstar a qualquer juízo sobre a existência do mundo e de tudo o que está nele. Só essa nova A. seria o ponto de partida da pesquisa filosó­ fica (Jdeen, I, § 27 ss.). (v. EPOCHÉ; SUSPENSÃO DO ASSENTIMENTO).

ATIVIDADE (in. Activity, fr. Activité, ai. Tatigkeit ou Aktivitãt; it. Attivitã). Esse termo tem dois significados correspondentes aos dois significados da palavra ação. De um lado, é empregado para indicar um complexo mais ou menos homogêneo de ações voluntárias (com referência ao 2Q significado da palavra ação), como quando se diz "xdesenvolveu intensa A. política". De outro, é usado para indicar o modo de ser daquilo que age ou tem em seu poder a ação, como quando se diz "O espírito é ativo no conhecer", para dizer que não é simples­ mente receptivo ou passivo. O contrário de A., nesse segundo sentido, é "passividade", ao passo que o contrário de A. no primeiro sentido é "inércia" ou "inação". O uso filosófico coincide com o uso da lin­ guagem comum e, portanto, também é dúplice. Todavia, sobretudo no uso moderno, prevale­ ce o segundo significado. Malebranche (Recherchedela vérité, II, 7), alguns ideólogos fran­ ceses e Galluppi (Filosofia delia volontà, I, 6, § 60) utilizam o termo A. para designar o modo de agir da vontade; mas, ainda nesse caso, o

ATIVISMO

significado do termo é o segundo, não o pri­ meiro. Quanto a esse segundo significado, podese talvez remontar a Locke, que distingue a "passividade" do espírito, pela qual ele recebe todas as idéias simples, da A. pela qual ele "realiza por conta própria numerosos atos" nos quais "exerce poder sobre as idéias simples" {Ensaio, II, 12, 1). Leibniz (Nouv. ess, II, 21) e Kant usam para esse fim e com o mesmo sig­ nificado a palavra espontaneidade (v.), embo­ ra em Antropologia (I, § 7S) Kant use a palavra "A.": "No que concerne ao estado das repre­ sentações, o meu espírito pode ser ativo, e então demonstra poder (facultas), ou passivo, e então possui sensibilidade {receptivitas). Um conhecimento encerra em si ambas as coisas, e a possibilidade de tê-lo é chamada de poder cognoscitivo da parte mais excelente, isto é, da A. do espírito em ligar as representações ou em separá-las umas das outras". A noção de A., como espontaneidade pura ou absoluta no sentido de poder criativo, está no cerne da filosofia de Fichte. "A A. do eu consiste no ilimitado pôrse", diz Fichte (Wíssenschaftslehre, 1794, II, § 4), e, pondo-se a si mesmo, o eu também põe, ao mesmo tempo, o mundo extenso como seu próprio limite e condição. A partir de Fichte, a filosofia moderna teve como um de seus temas prediletos "a A. criadora do espírito"; em algu­ mas, como o atualismo de Gentile, constitui o tema dominante. É claro que, nessas formas extremas, a noção de atividade perde significa­ do: este deriva da relação com a noção de pas­ sividade, enquanto designa a possibilidade e o poder de ação em face de limites ou condições determinadas, ao passo que, onde a A. é infini­ ta, não subsistem limites ou condições e a dis­ tinção entre A. e passividade não tem sentido. ATTVISMO (in. Activisni; fr. Activisme, ai. Activísmus; it. Attivismd). O significado desse termo deve ser distinguido do de atualismo (v.): este último indica a teoria metafísica se­ gundo a qual a realidade é ato ou atividade, ao passo que o termo em questão indica a atitude (às vezes racionalizada em teoria filosófica) que assume como princípio a subordinação de to­ dos os valores, inclusive a verdade, às exigên­ cias da ação, isto é, ao êxito ou ao sucesso da ação (quase sempre, a ação política). O A. vin­ cula-se, por isso, ao uso deliberado dos mitos (v.), que são construções teoréticas sem ne­ nhuma garantia de verdade e, em alguns casos, decididamente falsas, mas que são, ou se acre­ ditam, aptas a dirigir a ação para o êxito. A.,

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ATO

nesse sentido, é a doutrina de Georges Sorel (Réflexions sur Ia víolence, 1908), para quem uma filosofia social (em particular a que pre­ nuncia a "greve geral") é um mito para unir e inspirar os trabalhadores na sua luta contra a sociedade capitalista. Nesse sentido, foram for­ mas de A. o fascismo, o nazismo e o stalinismo (cf. K. MANNHEIM, Ideologie und Utopie, 1929, III, § 2; trad. it., p. 141). ATLANTIDA (gr. 'AtÀavuíç; in. Atlantis; fr. Atlantide, ai. Atlantis; it. Atlantide). Segundo Timeu, de Platão, um sacerdote da deusa egíp­ cia Sais teria narrado a Sólon a história da ilha Atlântida, situada além das Colunas de Hércules, história que se referia ao período anterior ao dilúvio universal. Nessa ilha havia uma grande monarquia que dominava a Líbia até o Egito e a Europa até a Etrúria. Essa monarquia procu­ rou vencer e sujeitar também a então cidade de Atenas, que, todavia, combateu sozinha e con­ seguiu vencer os invasores, garantindo a liber­ dade de todos os que habitavam aquém das Colunas de Hércules. Mais tarde, a A. afundou no mar e desapareceu, tornando impraticável e inexplorável o mar em que estava situada ( Tim., 24 ss.). A Nova Atlântida é uma obra póstuma de Bacon, publicada em 1627. É a descrição de uma sociedade em que a ciência, posta a servi­ ço das necessidades humanas, descobriu ou vai descobrindo as técnicas para fazer o ho­ mem dominar o universo. A Nova A. é, portan­ to, um paraíso da técnica, onde são íevadas à perfeição as invenções e as descobertas de todo o mundo; tem o aspecto de um enorme labora­ tório experimental, em que os habitantes pro­ curam "estender os confins do império huma­ no a todas as coisas possíveis". Os deuses tutelares da ilha são os grandes inventores de todos os países e as relíquias sagradas são os mode­ los das mais raras e importantes invenções. ATO (gr. èvépTEia, èvxeAiAeia; lat. Actus-, in. Act; fr. Acte, ai. Akte, it. Atto). Esse termo tem dois significados: ls de ação, no sentido restrito e específico desta palavra, como operação que emana do homem ou de um poder específico dele (v. AÇÃO, 2). Dizemos, com efeito, "A. voluntário", "A. responsável" ou "A. do intelec­ to", "A. moral", etc.; mas não dizemos "A. dos ácidos sobre os metais" ou "A. destrutivo do DDT", etc, usando, nesses casos, a palavra "ação"; 2S de realidade que se realizou ou se vai realizando, do ser que alcançou ou está alcan­ çando a sua forma plena e final, em contraposição

ATO

com o que é simplesmente potencial ou possí­ vel. No segundo sentido, essa palavra faz refe­ rência explícita à metafísica de Aristóteles e à sua distinção entre potência e ato. O A. é a própria existência do objeto: está para a potên­ cia "assim como construir está para saber cons­ truir, como estar acordado está para dormir, como olhar está para estar de olhos fechados podendo enxergar, e assim como o objeto ex­ traído da matéria e elaborado à perfeição está para a matéria bruta e para o objeto ainda não acabado" (Mel, IX, 6, 1.048 a 37). Alguns A. são movimentos, outros são ações: são ações os mo­ vimentos que têm fim em si mesmos, p. ex.: ver, entender ou pensar, ao passo que apren­ der, caminhar, construir tem finalidade fora de si mesmos, na coisa que se aprende, no ponto a que se quer chegar, no objeto que se cons­ trói. A ação perfeita, que tem seu fim em si mesma é chamada por Aristóteles A. final ou enteléquiaiy.). Enquanto o movimento é o pro­ cesso que leva gradualmente ao A. o que antes estava em potência, a enteléquia é o termo final (telos) do movimento, a sua perfeita reali­ zação. Como tal é também a realização com­ pleta, portanto, a forma perfeita do que vem a ser, a espécie e a substância. O A. precede a potência tanto em relação ao tempo quanto em relação à substância, pois, embora a semente venha antes da planta, na realidade ela só pode provir de uma planta. Aquilo que no devir é último é, substancialmente, primeiro: a galinha é anterior ao ovo (ibid., IX, 8, 1.049 b 10 ss.). Tais distinções dominaram por muitos séculos o pensamento ocidental e passaram a fazer parte da linguagem comum. S. Tomás repropõe es­ sas distinções com sua costumeira clareza a propó­ sito da diferença entre A. e ação, dizendo: "O A. é duplo, isto é, primeiro e segundo. O A. pri­ meiro é a forma e a integridade da coisa {forma et integritas rei); o A. segundo é a operação (operatio)" (S. Th, I, q. 48, a. 5; Contra Gent., II, 59). Em outros termos, toda realidade como tal é A. e, portanto, a ação também é A.; p. ex., uma operação da vontade ou do intelecto, embora não se trate, nesse caso, de um objeto existente. Na conceção aristotélica, a distinção entre matéria e A. determina a ordenação hierárquica de toda a realidade, que vai de um limite infe­ rior extremo, que é a matéria-prima (v.), pura potencialidade indeterminada, até Deus, que é puro A., sem mescla de potencialidade. Deus é

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ATOMISMO

o Primeiro Motor imóvel dos céus; e, como o movimento dos céus é contínuo, seu motor não só deve ser eternamente ativo, mas deve ser, por natureza, atividade, absolutamente des­ provido de potência. E, como a potência é maté­ ria, ele é também desprovido de matéria, A. puro (Met., XII, 6, 1.071 b 22). A noção de A. puro continuou sendo fundamental para a ela­ boração da idéia de Deus no pensamento oci­ dental. A ela recorrem algumas modernas "filo­ sofias do A.", como a de Gentile, que pretende realizar a rigorosa e total imanência de toda a realidade no sujeito pensante, isto é, no pensa­ mento em ato(Teoria generale dello spirito come attopuro, 1916); ou a de Louis Lavelle (LActe, 1937), na qual Deus é definido como A. parti­ cipante e a existência do homem como A. par­ ticipado. ATO, PSICOLOGIA DO (in. Psychology of the act; fr. Psychologie de Vacte; ai. Akte Psychologie, it. Psicologia delVattó). Psicologia proposta por Franz Brentano em sua obra Psi­ cologia do ponto de vista empírico (1874), vol­ tada para a consideração do A. intencional que apresenta determinado conteúdo, em vez de considerar o próprio conteúdo; p. ex., sentir, imaginar ou querer, em vez das sensações, das imagens ou das coisas desejadas (v. INTENÇÃO). ATO FUNDANTE (ai. Begründender Akt). Expressão usada por Husserl (Jdeen, I, § 7) para indicar o procedimento que serve para garantir a validade de uma ciência. Para o naturalista, o A. fundante é experimentar, que fixa um exis­ tente empírico; para o geômetra, que não estu­ da a realidade, mas possibilidades ideais, o A. fundante é a visão da essência. ATÔMICO (in. Atomic; fr. Atomique, ai. Atomik, it. Atômico). Elementar, não redutível a partes constitutivas mais simples. Fato A.: tra­ duziu-se por essa expressão o que Wittgenstein chamara "estado de coisas" (Sachverbalte), isto é, o fato enquanto elemento último do mundo (Tractatus, 1922, 2). Proposição A.: proposição elementar, isto é, a que "afirma a existência de um fato A." (ibid. ,4,21). Corresponde à propositio categórica da lógica escolástica: é uma propo­ sição imediatamente verdadeira ou falsa (pre­ cisamente como imagem de um fato A.), não decomponivel em outras proposições mais sim­ ples. G. P.-N. A. ATOMISMO (in. Atomism; fr. Atomisme, ai. Atomismus; it. Atomismo). Entendem-se por essa palavra três doutrinas diversas, que têm finali­ dades diferentes: Ia o A. filosófico ou naturalis­

ATOMÍSTICO

mo atomista; 2a a teoria atômica; 3a a concep­ ção atomística da realidade psíquica ou social ou da linguagem. Ia O A. filosófico é o de Demócrito e Leucipo, dos epicuristas e de Gassendi. É uma filoso­ fia da natureza que não tem maiores bases experimentais do que a física aristotélica (v. ÁTOMO). 2- A teoria atômica (in. Atomic theory, fr. Théorie atomique, ai. Atomtheorie, it. Teoria atômica) é a que foi formulada na ciência moderna pela primeira vez por Dalton; expri­ me o modelo que a ciência foi pouco a pouco fazendo do átomo (v.). 3aA concepção atomística (in. Atomistic idea; fr. Idée atomistique, ai. Atomistísches Denken; it. Concezione atomistica) consiste em propor, para explicar a vida da consciência, da socieda­ de ou da linguagem, uma hipótese análoga à do A. filosófico ou da teoria atômica, afirman­ do que a consciência, a sociedade ou a lingua­ gem são constituídas de elementos simples irre­ dutíveis, cujas diferentes combinações explicam todas as suas modalidades. Assim fazem o associacionismo (v.), para a vida da consciên­ cia, e o individualismo (v.), para a vida da sociedade. Fala-se, portanto, de um A. associacionista (p. ex., dele falavam JAMES, Psychology, I, 1890, p. 604, e KATZ, Gestaltpsychologie, cap. I). A expressão "A social" é usada freqüente­ mente para designar as doutrinas individualis­ tas que consideram a sociedade resolúvel intei­ ramente nos indivíduos que a compõem. Finalmente, a expressão "A. lógico" foi empre­ gada por Russell em 1918 para indicar a sua filosofia. "O motivo de dar à minha doutrina o nome de A. lógico é que os átomos aos quais desejo chegar como resíduos últimos da análi­ se são átomos lógicos, e não átomos físicos" ("The Phil. of Logical Atomism", in TheMonist, 1918, agora em Logic andKnowledge, Londres, 1956). Já no livro Método científico em filosofia (1914), falara em "proposição atômica", enten­ dendo a proposição que exprime um fato, isto é, que afirma que uma coisa tem certa qualida­ de ou que certas coisas têm certas relações; e chamara de "atômico" o fato expresso pela pro­ posição atômica. Tais conceitos também cons­ tituem os fundamentos do Tractatus logicophilosophicus (1922) de Wittgenstein. ATOMÍSTICO. V. atomismo. ÁTOMO (gr. âxoAov; in. Atom; fr. Atome, ai. Atom; it. Atomo). A noção de Á. ofereceu à filosofia ocidental uma das mais importantes

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ÁTOMO

alternativas de especulação e de pesquisa. Foi o instrumento principal da explicação mecâni­ ca das coisas e, em geral, do mundo (v. MECA­ NISMO). Leucipo e Demócrito elaboraram a se­ guinte noção do séc. V a.C: o Á. é um elemento corpóreo, invisível pela sua pequenez e não divisível. Os A. diferem só pela forma e pela grandeza; unindo-se e desunindo-se no vácuo, determinam o nascimento e a morte das coisas, e dispondo-se diferentemente determinam a sua diversidade. Aristóteles (Mel, I, 4, 985 b 15 ss.) comparou-os às letras do alfabeto, que diferem entre si pela forma e dão lugar a palavras e a discursos diferentes, dispondo-se e combinan­ do-se diferentemente. As qualidades dos cor­ pos dependem, portanto, da configuração, da ordem ou do movimento dos Á. Por isso, nem todas as qualidades sensíveis são objetivas e pertencem realmente às coisas que as provo­ cam em nós. São objetivas as qualidades pró­ prias dos A.: forma, dureza, número, movimen­ to; mas o frio, o calor, os sabores, as cores, os odores são somente aparências sensíveis, pro­ vocadas por configurações ou combinações especiais de A., mas não pertencentes aos pró­ prios Á. (DEMÓCRITO; Fr. 5, Diels). O movimen­ to dos Á. é determinado por leis imutáveis: "Nada, diz Leucipo (Fr. 2), "ocorre sem razão, mas tudo ocorre por uma razão e por necessidade". O movimento originário dos A., fazendo-os girar e chocar-se em todas as direções, produz um vórtice que leva as partes mais pesadas para o centro e impele as outras para a periferia. Seu peso, que os faz tender para o centro, é, pois, um efeito do seu movimento vorticoso. Desse modo, formam-se infinitos mundos que, inces­ santemente, se geram e se dissolvem. Esses fundamentos, próprios do velho atomismo, permaneceram inalterados nas outras formas de atomismo. A física de Epicuro repre­ senta uma repetição da física de Demócrito: na verdade, não tem muita importância a variante de Epicuro, segundo a qual os Á. caem em linha reta e que se encontram e produzem vór­ tices, quando, sem causa, se desviam da traje­ tória retilínea (CÍCERO, Definibus, I, 18; De nat. deor, I, 69). A noção de Á. não é utilizada durante toda a Idade Média, quando a única teoria aceita é a aristotélica, das quatro causas (v. FÍSICA). NOS primórdios da Idade Moderna, embora essa noção retorne ocasionalmente — p. ex., em Nicolau de Cusa e em Giordano Bruno (Deminimo, I, 2) —, só é utilizada como instrumento de uma teoria sistemática por Pierre

ÁTOMO

Gassendi. Este, porém, admitindo que os Á. são criados por Deus, por Ele dotados de movi­ mento e por Ele guiados e ordenados mediante uma espécie de alma do mundo, retira da física epicurista seu caráter materialista e mecânico, transformando-a em física espiritualista e finalista (Syntagma Philosophiae Epicuri, 1658). Entrementes, Descartes dera ensejo ao mecanicismo não-atomístico e considerara impossível a pró­ pria noção de Á. "Se os átomos existissem, de­ veriam necessariamente ser estendidos e, nes­ se caso, por menores que os imaginássemos, sempre poderíamos dividi-los com o pensamento em duas ou mais partes menores e, assim, con­ siderá-los divisíveis" (Princ. pbil, II, 20). Foi provavelmente baseado nessa consideração que Leibniz aceitou a noção de um Á. não mais físico, mas psíquico, isto é, da mônada (v.). A ciência moderna, embora mecanicista, não se vale, em princípio, do átomo. É verdade que, no final de Optica (1704), Newton aduzia um complexo de razões, isto é, de experiências, para admitir que "todos os corpos são compos­ tos de partículas duras"; e formulava a hipótese de que "Deus, no princípio, tenha dado à ma­ téria a forma de partículas sólidas, dotadas de massa, duras, impenetráveis e móveis, com di­ mensões, configurações, propriedades e pro­ porções com o espaço adequadas a cada fim para o qual as formou" (Optics, III, 1, q. 31); mas é também verdade que essas e semelhantes especulações não pertenciam à ciência, mas à esfera das opiniões particulares do cientista. Na realidade, a hipótese atômica ingressa na ciência só no início do séc. XIX, por meio da química. A lei das proporções múltiplas, for­ mulada por John Dalton, exprimia o fato de que, quando uma substância se combina com quantidades diferentes de outra substância, es­ tas quantidades estão entre si como números simples, isto é, comportam-se como se fossem partes indivisíveis. Mas as partes indivisíveis outra coisa não são senão átomos. Portanto, a hipóte­ se da composição atômica da matéria como explicação da lei das proporções múltiplas era proposta pela primeira vez por Dalton em 1808. Embora suscitasse, imediatamente, uma oposi­ ção acirrada por aparecer como o retorno de uma antiga doutrina metafísica, portanto, como uma invasão do campo da metafísica por parte da ciência, na realidade essa era uma hipótese aventada para explicar um fato bem verificado. E mais do que hipótese, essa noção mostrou-se realidade quando, em 1811, a teoria de Avogadro

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ATO MONOTETICO e POLITETICO

(sobre a uniformidade do número das partícu­ las contidas em dado volume de gás) permitia estabelecer o peso dos A. relativamente ao A. do hidrogênio, assumido como unidade: o que conferia aos A. realidade física (mensurável). A noção de Á. devia sofrer transformação radical a partir da segunda metade do séc. XIX, com o estudo dos fenômenos dos gases rarefeitos e das emanações radioativas. OÁ., indivisível para a química, não era mais indivisível para a física. Por volta de 1904, Thompson concebia o pri­ meiro modelo de Á., imaginando-o constituído por uma pequena bola com carga elétrica po­ sitiva, em cujo interior houvesse certo número de elétrons. Mas algumas experiências de Rutherford demonstravam que a matéria é bem menos compacta do que levaria a supor o modelo atômico de Thompson. Por isso, Rutherford, por volta de 1911, imaginava a estrutura do Á. como um sistema solar em miniatura, consti­ tuído por um núcleo central com carga elétrica positiva (comparável ao Sol) e por vários elé­ trons que giram em torno dele (comparáveis aos planetas). Uma inovação ulterior do mode­ lo do Á. foi feita por Bohr, que, tendo em men­ te a descoberta do quantum de ação, imaginou que o elétron percorre, em torno do núcleo, determinado número de elipses e pode saltar de uma elipse para outra, libertando nesse sal­ to um quantum de energia. A descoberta do princípio de indeterminação (v.) demonstra­ va, porém, que não é possível observar por inteiro a trajetória de um elétron e que, por isso, a própria noção de trajetória não tem sig­ nificado físico (nada que não seja observável ou mensurável tem significado físico). Mas, então, o próprio modelo de Á. de Bohr perdia signi­ ficado físico e deixava de ter a pretensão de ser a imagem exata do Á. A partir de 1927, isto é, da data em que Heisenberg descobriu o prin­ cípio de indeterminação, a ciência praticamen­ te abandonou qualquer tentativa de descrever o Á. ou de defini-lo de um modo qualquer. No estado atual das coisas, o adjetivo "atômico" permanece somente para designar a escala em que certos fenômenos podem ser observados e medidos. ATO MONOTETICO e POLITETICO (ai Monothetischer, PolythetischerAkt; it. Atto monotetico, politeticó). Foram esses os nomes da­ dos por Husserl, respectivamente, à consciên­ cia que se constitui na sua singularidade, transformando os elementos múltiplos em uni­ dade objetiva, e aos mesmos elementos múlti-

ÁTOMO PRIMEVO

pios, ligados sinteticamente na consciência "plu­ ral"^ (Ideen, I, § 119). ÁTOMO PRIMEVO (in. Primeval atom; it. Atomo primevo). Hipótese cosmogônica que apresenta o universo como resultado da desin­ tegração radioativa de um átomo (G. LEMAÍTRE, The Primeval Atom, An Essay on Cosmogony, 1950) (v. COSMOLOGIA).

ATRIBUTTVA, PROPOSIÇÃO (in. Attributiveproposition;fr. Proposition attributive, ai. Attributãre Satz; it. Proposizione attributivá). Pro­ posição que atribui ao sujeito uma qualidade, uma condição, uma atividade ou uma passivi­ dade; p. ex., "A água ferve a 100°C" (B. ERDMAN, Logik, I, §§ 48, 307). ATRIBUTIVA e RETRIBUTTVA, JUSTIÇA (lat. Justitia attributixjustitia expletrix). Grócio distinguiu duas espécies de justiça que cor­ respondem, respectivamente, ao direito imper­ feito e ao direito perfeito. A justiça A., que concerne ao direito imperfeito, consiste em dar a outra pessoa aquilo que ela não tem direito de pretender: portanto, atribui-se alguma coisa que a pessoa antes não possuía. A justiça retributiva concerne ao direito perfeito e consiste em dar ao outro o que este tem o direito de pretender, vale dizer, a devida recompensa (De jure belli acpacis, I, 1, 8). ATRIBUTO (lat. Attributum; in. Attribute, fr. Attribut; ai. Attribut; it. Attributo). O termo la­ tino corresponde, provavelmente, ao que Aris­ tóteles chamava de "acidente por si" (An.post., I, 22, 83 b 19; Mel, V, 30,1.025 a 30): indica um caráter ou uma determinação que, embora não pertença à substância do objeto, como decorre da definição, tem causa nessa substância, (v. ACIDENTE). Na Escolástica, esse termo foi usado quase exclusivamente para indicar os A. de Deus, como bondade, onipotência, justiça, infinitude, etc, que também são chamados nomesâe Deus (cf. S. TOMÁS, S. Th, I, q. 33). Esse uso terminológíco foi modificado por Descartes com a extensão do termo às qualidades permanentes da substância finita. Com efeito, Descartes en­ tende por A. as qualidades que "inerem à subs­ tância". Por isso, "em Deus dizemos que não há propriamente modos ou qualidades, mas so­ mente A., porque nenhuma variação se deve conceber n'Ele. E mesmo nas coisas criadas, o que nelas não se comporta nunca de modo diferente, como a existência e a duração, não deve ser, na coisa que existe e dura, chamada qualidade ou modo, mas A." (Princ. phil, I, § 56). Essa terminologia foi totalmente adotada

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AUMENTO e DIMINUIÇÃO

por Spinoza, com a única correção de que, desde que não existem substâncias finitas, os atribu­ tos podem ser somente de Deus. "Por A., en­ tendo o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela" (Et., I, 4). Deus ou a substância consta de infinitos A., cada um dos quais exprime a sua essência in­ finita e eterna e por isso existe a sua essência infinita e eterna e por isso existe necessaria­ mente (ibid, I, 11)-. de tais A. infinitos, porém, conhecemos só dois, quais sejam, o pensamento e a extensão (ibíd., II, 1-2). Por sua imutabilidade e conexão com a substância divina, os atribu­ tos são, por sua vez, eternos e infinitos e é por seu intermédio que os seres finitos (os modos da substância) se originam de Deus com absoluta necessidade (Jbid., I, 21-23). Na filosofia moderna e contemporânea, a pa­ lavra A. é usada raramente, salvo no seu signifi­ cado lógico-gramatical de predicado. ATUALISMO (in. Actualism; fr. Actualisme, ai. Aktualitátstheorie, it. Attualismo). Toda dou­ trina que reconheça como substância ou princípio do ser um ato ou uma atividade. Toda doutrina desse gênero é uma forma de idealismo, mais precisamente de idealismo romântico. A. é, portanto, a doutrina de Fichte, que reconhece como princípio a atividade do Eu infinito. A. também é a doutrina de Hegel, para quem a Idéia é atualidade perfeita de consciência. Na Itália, o termo A. restringiu-se a indicar o idea­ lismo de Gentile, porquanto reduz toda reali­ dade ao ato do pensamento ou ao "pensamen­ to em ato", ou "pensamento pensante" (Teoria generale dello spirito come atto puro, 1916). Nesse sentido, Gentile falava em "atualidade" ou "atuosidade" do espírito; e do espírito como "autoposição", "autocriação" ou "autóctise". Esse termo deve ser distinguido de ativismo (v.). ATUANTE (ai. Fungieren). Vocábulo usado por Husserl nas últimas obras para indicar o eu, "sujeito transcendental" ou "pólo egológico" que "atua para a constituição do mundo", ou seja, age como princípio constitutivo do "mundo da vida" mesmo antes que a reflexão fenomenológica o reconheça como tal (Krisis, § 54). Nas obras inéditas, fala também, com sentido aná­ logo, de "intencionalidade atuante" (cf. E. FINK, em Revue Internationale de Philosophie, 1939, p. 266; G. BRAND, Weltlch undZeit, 1955, § 6). AUMENTO e DIMINUIÇÃO (gr. aüAnoiç Kori cpOíoiç; lat. Auctio etdiminutio-, in. Increaseand diminution; fr. Augmentatíon etdiminution; ai. Vermehrung und Veringerung; it. Aumento e

AURAVITALIS

diminuzíone). Segundo Aristóteles, uma das quatro espécies de mudança, mais precisamente a mudança segundo a categoria da quantidade, também ela redutível, como todas as demais, à mudança de lugar (Fís, IV, 4, 211 a). AURAVITALIS. Termo empregado porJean Baptiste van Helmont (1577-1644), para indi­ car a força que move, anima e ordena os ele­ mentos corpóreos. AUSÊNCIA. V. NADA. AUTARQUIA ou AUTARCIA (gr. aúxápKeva; in. Selfsujficiency, fr. Autarchie, ai. Autarkie, it. Autarchid). A condição de auto-suficiência do sábio, para quem ser virtuoso basta para ser feliz, segundo os cínicos (DIÓG. L, VII, 11) e os estóicos (Md, VII, 1, 65). AUT AUT. É o título de uma das primeiras obras de Kierkegaard (1843), título que expri­ me a alternativa que se oferece à existência humana, de duas formas de vida, ou, como diz Kierkegaard, de dois "estados fundamentais da vida": a vida estética e a vida moral. Entre esses dois estados, assim como entre eles e o estado religioso, que Kierkegaard analisou em Temor e tremor (1843), não há passagem nem possi­ bilidade de conciliação, mas abismo e salto. Kirkegaard contrapôs o aut aut, isto é, a forma da alternativa, à forma da dialética de Hegel, na qual há sempre conciliação, síntese e harmonia entre os opostos (v. DIALÉTICA). AUTÊNTICO (in. Authentic; fr. Authentique, ai. Authentisch; it. Autentico). Termo emprega­ do por Jaspers (ao lado do termo inautêntico, simétrico e oposto) para indicar o ser que é próprio do homem, em contraposição à perda de si mesmo ou de sua própria natureza, que é a inautenticidade. "O A.", diz Jaspers, "é o mais profundo, em contraposição ao mais superfi­ cial; p. ex., o que toca o fundo de toda existên­ cia psíquica contra o que lhe aflora à epiderme, o que dura contra o que é momentâneo, o que cresceu e se desenvolveu com a própria pes­ soa contra o que a pessoa acolheu ou imitou" (PsychologiederWeltanschauungen, 1925, intr., § 3,1). Heidegger expressou em outros termos a mesma oposição.- "Precisamente porque o Ser-aí (isto é, o homem) é essencialmente a sua possibilidade, esse ente pode, no seu ser, esco­ lher-se e conquistar-se ou perder-se, ou seja, não se conquistar ou conquistar-se só aparen­ temente" (Sein undZeit, \S>21, § 9). A possibi­ lidade própria do Ser-aí é a morte: por isso, "O Ser-aí é autenticamente ele mesmo só no isola­ mento originário da decisão tácita e votada à

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AUTOCONSCIÊNCIA

angústia" (ibid, § 64). Por outro lado, a existên­ cia inautêntica é caracterizada pela tagarelice, pela curiosidade e pelo equívoco, que consti­ tuem o modo de ser cotidiano, impessoal do homem e representam, portanto, uma deca­ dência do ser em relação a si mesmo (ibid., § 38). Deve-se, porém, advertir que a distinção e a oposição entre autenticidade e inautenticidade não implicam nenhuma valorização preferen­ cial. A inautenticidade faz parte da estrutura do ser tanto quanto a autenticidade. "O estado de decadência do Ser-aí não deve ser entendido como uma queda de um 'estado original' mais puro e mais alto. De algo semelhante não só não temos nenhuma experimentação ôntica, como nem mesmo o caminho de uma possível interpretação ontológica" (ibid., § 38). Com sen­ tido análogo ao de Jaspers e de Heidegger, as duas palavras têm sido usadas com freqüência na filosofia contemporânea. AUTISMO (in. Autism; fr. Autisme, ai. Autismus; it. Autismo). Termo criado por Bleuler (Lehrbuch derPsychiatrie, 1923) para indicar a atitude que consiste na absorção do indivíduo em si mesmo, com a conseqüente perda de qualquer interesse pelas coisas e pelos outros. E um egocentrismo (v.) patológico. AUTOCENTRALIDADE (in. Selfcentrality, fr. Autocentralité, ai. Selbstcentralitã; it. Autocentralitã). Expressão empregada por Dilthey em Construção do mundo histórico. "Assim como o indivíduo, cada sistema cultural, cada comuni­ dade tem em si o seu centro. Nele estão ligadas a um todo único a interpretação da realidade, a valorização e a produção dos bens" (Gesam. Schrift., VII, p. 154). A A. das estruturas históri­ cas revela-se eminentemente nas épocas, cada uma das quais é um horizonte fechado, no sen­ tido de que as pessoas que nela vivem têm em comum a medida do seu agir, do seu sentir e do seu entender. AUTOCONSCIÊNCIA (in. Self-consciousness; fr. Autoconscíence, ai. Selbstbewusstsein, it. Autocoscienzd). Esse termo tem significado e his­ tória diferentes de consciência (v.). Na realida­ de, não significa "consciência de si", no sentido de cognição (intuição, percepção, etc.) que o homem tenha de seus atos ou de suas manifes­ tações, percepções, idéias, etc, tampouco sig­ nificando retorno à realidade "interior", de na­ tureza privilegiada; é a consciência que tem de si um Princípio infinito, condição de toda rea­ lidade. Esse termo também nada tem a ver com conhecimento de si (v.), que designa o conhe­

AUTOCONSCIENCIA

cimento mediato que o homem tem de si como de um ente finito entre os outros. Nesse sentido, pode-se dizer que a história desse termo começa com Kant, que o usou como alternativa para o termo consciência (v.). O próprio Kant resumiu, em uma nota da Antro­ pologia (§ 4), a sua doutrina a esse respeito. "Se nós representarmos a ação (espontaneidade) interna pela qual é possível um conceito (um pensamento), isto é, a reflexão, e a sensibilida­ de (receptividade), pela qual é possível uma percepção (perceptid) ou uma intuiçãoempírica., isto é, a apreensão, providas ambas de cons­ ciência, a consciência de si mesmo (apperceptio) poderá ser dividida em consciência da reflexão e em consciência da apreensão. A primeira é consciência do intelecto; a segunda, do sentido interno; aquela é chamada de apercepção pura (e, falsamente, de sentido íntimo) e esta é cha­ mada de apercepção empírica. Em psicologia, indagamo-nos sobre nós mesmos segundo as representações do nosso sentido interno; em lógica, segundo aquilo que a consciência inte­ lectual nos oferece. Assim, o eu nos aparece duplo (o que pode ser contraditório): ls o eu como sujeito do pensamento (na lógica), ao qual se refere a apercepção pura (o eu que só reflete) e do qual nada se pode dizer exceto que é uma representação de todo simples; 2- o eu como objeto da apercepção e, portanto, do sentido interno, que inclui uma multiplicidade de determinações que possibilitam a experiên­ cia interna." A A. não é, portanto, a consciência (empírica de si), mas a consciência puramente lógica que o eu tem de si como sujeito de pen­ samento, na reflexão filosófica. Sobre o eu de que se tem consciência na apercepção pura, Kant falou na primeira edição da Crítica da Razão Pura como "eu estável e permanente que constitui o correlato de todas as nossas representações", ao passo que, na segunda edi­ ção da obra, ele se tornou pura função formal, desprovida de realidade própria, mas ainda condição de todo conhecimento, aliás, "princí­ pio supremo do conhecimento" enquanto pos­ sibilidade da síntese objetiva na qual consiste a inteligência. Precisamente por sua natureza funcional ou formal, o eu puro, ou A. trans­ cendental, não é um eu "infinito" e não tem poder criativo: pode ordenar ou unificar o material, mas esse material deve ser-lhe dado e, portanto, deve ser um material sensível. Fichte transforma esse conceito funcional kantiano em conceito substancial: faz dele um Eu infinito,

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AUTOCONSCIENCIA

absoluto e criador, considerando, portanto, a A. como autoprodução ou autocriação. A A. toma-se, assim, o princípio não só do conheci­ mento, mas da própria realidade; e princípio não no sentido de condição, mas de força ou atividade produtiva. Autoproduzindo-se, o Eu produz, ao mesmo tempo, o não-eu, isto é, o mundo, o objeto, a natureza. Diz Fichte: "Não se pode pensar absolutamente em nada sem pensar ao mesmo tempo no próprio Eu como consciente de si mesmo; não se pode nunca abstrair da própria A." (Wissenschaftslehre, 1794, § 1, 7). Mas tal A. é, na realidade, o princípio criador do mundo: "O Eu de cada um é, ele próprio, a única Substância suprema", diz Fichte criticando Spinoza (Ibid., § 3, D 6); "A essência da filosofia crítica consiste no fato de que um Eu absoluto é colocado como absolutamente incondicionado e não determinável por nada mais alto". Essa noção de A. torna-se o fundamento do Idealismo romântico. Diz Schelling: "A A. da qual nós partimos é ato uno e absoluto; e com esse ato uno é posto não só o próprio Eu com todas as suas determinações, mas também qual­ quer outra coisa que, em geral, é posta no lugar do Eu... O ato da A. é ideal e real ao mesmo tempo e absolutamente. Graças a ele, o que foi posto realmente torna-se também real ideal­ mente e o que se põe idealmente é posto tam­ bém realmente" {System des tmnszendentalen Ideai, 1800. seção III, advertência). Quanto a Hegel, já em Propedêutica filosófica (Doutrina do conceito, § 22), dizia: "Como A. o Eu olha para si mesmo, e a expressão dela na sua pu­ reza é Eu = Eu, ou: Eu sou Eu"; e na Enciclopé­ dia (§ 424): "A verdade da consciência é a A., e esta é o fundamento daquela; de modo que, na existência, a consciência de um outro objeto é A.; eu sei o objeto como meu (ele é minha representação) e, por isso, sei-me a mim mes­ mo nele". Na sua forma mais elevada, a A. é "A. universal", isto é, razão absoluta. "A A., ou seja, a certeza de que suas determinações são tão objetivas — determinações da essência das coisas — quanto seus próprios pensamentos, é a ra­ zão; esta, enquanto tem tal identidade, é não só a substância absoluta, mas também a verdade como saber" {Ene, § 439): isto é, a razão como substância ou realidade última do mundo. A A. como autocriação e, por isso, criação da realidade total, permanece como noção dominante do Idealismo romântico, não só na sua forma clássica (aqui mencionada), mas tam­

AUTOCONSERVAÇÃO

bém nas suas formas recorrentes na filosofia contemporânea, quais sejam, o idealismo anglosaxão e o idealismo italiano (v. IDEALISMO). Fora do Idealismo, essa noção não pode ser utiliza­ da e nem apresenta problemas, já que os pro­ blemas filosóficos, psicológicos e sociológicos inerentes à consciência de si obviamente só surgem quando por tal consciência se enten­ dem situações, condições ou estados de fato limitados e determinaveis, e não uma autocriação absoluta, que é a autocriação do mundo. AUTOCONSERVAÇÃO (lat. Sui conseruatio; in. Self-preservation; fr. Conservation de soi; ai. Selbsterhaltung; it. Autoconservazionê). É o bem supremo a que tendem todos os seres da natu­ reza, segundo Telésio {Derer. nat, IX, 2). Herbart chama A. à reação de um ente à ação de um outro ente: na alma o ato de A. é uma represen­ tação {Allgemeine Metaphysik, 1878, II, § 234). AUTÓCTISE. V. ATUALISMO. AUTODETERMINAÇÃO. V. LIBERDADE. AUTO-EVIDÊNCIA(in. Self-evidence, ai. Selbstevidenz; it. Autoevidenza). Termo empre­ gado às vezes para indicar o cogito cartesiano como evidência ou manifestação imediata do eu à consciência (v.). AUTOLÓGICO, HETEROLÓGICO (in Autological, heterological; fr. Autologique, hétérologique, ai. Autologisch, heterologisch; it. Autologico, eterologicó). A. é o adjetivo que denota uma propriedade que ele mesmo possui: como polissílabo, comum, significante, etc. Heterológico é, ao contrário, o adjetivo que denota uma qualidade que ele não possui: como vivo, inútil, ambíguo, etc. A questão de saber se o adjetivo heterológico é, por sua vez, A. ou heterológico dá origem a uma das antinomias lógicas, que foi exposta por K. Grelling (Bemerkungen zu den Paradoxien von Russell und Burali-Forti, em Abhandlungen der Frieschen Scbule, 1908) (v. ANTINOMIAS). AUTÔMATO (gr. otLJTÓfxctTOV; lat. Automaton; in. Automaton; fr. Automate, it. Automd). O que se move por si, em geral, uma coisa ina­ nimada que se move por si ou, mais especifica­ mente, um aparelho mecânico que realiza al­ gumas das operações consideradas próprias do animal ou do homem. Tem-se notícia de A. fabulosos, construídos pelos antigos. No séc. XVIII, um mecânico fran­ cês construiu um A. que tocava flauta. Samuel Butler, em textos romanceados (Darwin entre as maquinas, 1863; Lucubratio ebria, 1865; Erewhon, 1872), falava de máquinas que tinham

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AUTONOMIA

poderes humanos e entravam em conflito com o homem. O inglês Charles Babbage (1792­ 1871) projetou uma máquina calculadora que, contudo, nunca foi construída. Um A. lógico, ou seja, uma máquina capaz de combinar proposições e delas tirar conclu­ sões, foi construído por Stanley Jevons em 1869. Em 1881, John Venn construiu um diagrama que podia ser empregado para ilustrar as rela­ ções entre os valores de verdade das proposi­ ções. Em 1885, Allan Marquand projetou uma máquina análoga à de Jevons e em 1947, em Harvard, T. A. Kalin e W. Burkhart construíram uma calculadora elétrica para a solução de pro­ blemas elaborados com base na álgebra de Boole, cujo objeto são variáveis que podem assumir só dois valores {verdadeiro ou falso, indicados, respectivamente, com 1 e 0), poden­ do, por isso, ser aplicada em todos os casos em que se tenha escolha entre duas alternativas. A teoria dos A. em sentido moderno, ou seja, das máquinas calculadoras, foi desenvolvida por A. M. Turing em 1936. Em geral, as calculado­ ras executam o programa com base no qual foram projetadas, mas realizam as operações com rapidez e segurança muito maiores do que as do homem. Por isso, essas calculadoras são "poupadoras de tempo". O biólogo inglês R. W. Ashby distinguiu-as dos "amplificadores da in­ teligência", que, em certo grau, têm aquilo que, no homem, se chama de "iniciativa". Entre estes, estão em fase de execução ou de estudo os A. que jogam e os A. que aprendem. Von Neumann também falou de A. que se reproduzem (Theory of Self-Reproducing Automata, 1966). Para as teorias relativas a esses A., ver CIBERNÉTICA. AUTÔNIMO. V. Uso. AUTONOMIA (in. Autonomy, fr. Autonotnie, ai. Autonomie, it. Autonomia). Termo introdu­ zido por Kant para designar a independência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a sua capacidade de deter­ minar-se em conformidade com uma lei pró­ pria, que é a da razão. Kant contrapõe a A. à heteronomia, em que a vontade é determina­ da pelos objetos da faculdade de desejar. Os ideais morais de felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade porque supõem que ela seja determinada pelo desejo de alcançá-los e não por uma lei sua. A independência da vontade em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua legislação própria (como "razão prática") é a liberdade no sentido positivo. "A lei moral

AUTO-OBSERVAÇÃO

não exprime nada mais do que a A. da razão pura prática, isto é, da liberdade" (Crít. R. Pra­ tica, I, § 8). Em virtude de tal A., "todo ser racional deve considerar-se fundador de uma legislação universal" (GrundlegungzurMet. der Sitten, II, B A 77). Esse ficou sendo o conceito clássico da A. Mais genericamente, fala-se hoje, p. ex., de "princípio autônomo" no sentido de um princípio que tenha em si, ou ponha por si mesmo, a sua validade ou a regra da sua ação. AUTO-OBSERVAÇÃO, AUTO-REFLEXÃO, AUTOSCOPIA. V. INTROSPECÇÃO. AUTO-REFERÊNCIAün. Self-reference). Com esse termo, equivalente a reflexividade (v.), em Principia Mathematica (intr., cap. II, p. 64). de Whitehead e Russell, indica-se a carac­ terística comum das antinomias lógicas no sen­ tido de que elas nascem do procedimento pelo qual um conceito ou nome é aplicado a si mesmo (v. ANTINOMIA).

AUTORIDADE (lat. Auctoritas; in. Authority, fr. Autorité, ai. Autoritát; it. Aurotitã). 1. Qual­ quer poder exercido sobre um homem ou gru­ po humano por outro homem ou grupo. Esse termo é generalíssimo e não se refere somente ao poder político. Além de "A. do Estado" exis­ te a "A. dos partidos" ou a "A. da Igreja", bem como a "A. do cientista x" a quem se atribui, p. ex., o predomínio temporário de certa doutri­ na. Em geral, A. é, portanto, qualquer poder de controle das opiniões e dos comportamentos individuais ou coletivos, a quem quer que per­ tença esse poder. O problema filosófico da A. diz respeito à sua justificação, isto é, ao fundamento sobre o qual pode apoiar-se sua validade. Podem-se distin­ guir as seguintes doutrinas fundamentais: Ia o fundamento da A. é a natureza; 2- o fundamento da A. é a divindade; 3a o fundamento da A. são os homens, isto é, o consenso daqueles mesmos sobre os quais ela é exercida. IaA teoria segundo a qual a A. foi estabelecida pela natureza é a aristocrática, comum a Platão e a Aristóteles. Segundo essa teoria, a A. deve pertencer aos melhores e é a natureza quem se incumbe de decidir quem são os melhores. Platão, de fato, divide os homens em duas clas­ ses-, os que são capazes de se tornarem filóso­ fos e os que não o são (Rep., VI, 484 b). Os primeiros são movidos naturalmente por uma tendência irresistível à verdade (ibid., 485 c); os segundos são "naturezas vis e iliberais" que nada têm em comum com a filosofia (ibid., 486 b). A divisão entre os que estão destinados a possuir

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AUTORIDADE

e a exercer a A. e os que estão destinados a submeter-se-lhe é, portanto, feita pela nature­ za; a educação dos filósofos não faz senão sal­ vaguardar e desenvolver o que a natureza dis­ pôs. Essa desigualdade radical dos homens como fundamento natural da A. é também a doutrina de Aristóteles. "A própria natureza ofereceu um critério discriminativo fazendo que dentro de um mesmo gênero de pessoas se estabeleces­ sem as diferenças entre os jovens e os velhos; e, entre estes, a uns incumbe obedecer, a outros mandar..." (Pol., 1.333 a). Mas a diferença entre jovens e velhos é temporária; os jovens ficarão velhos e, por sua vez, comandarão. A diferença substancial e fundamental é entre o pequeno número de cidadãos dotados de virtudes polí­ ticas, sendo, portanto, justo que se alternem no governo, e a maioria dos cidadãos comuns, desprovidos daquelas virtudes e destinados a obedecer (ibid., II, 2, 1.261 a). O teorema fun­ damental dessa concepção de A. é, portanto, a divisão natural dos cidadãos em duas classes, das quais só uma possui como apanágio natu­ ral o direito de exercer a A. Desse ponto de vista, o critério de distinção das duas classes tem pouca importância: o importante é a distin­ ção. Todos os aristocratismos têm em comum esse teorema e essa concepção da autoridade: encontram-se, p. ex., no racismo, bem como em Tõnnies, segundo o qual há três espécies de dignidade ou A.: "A dignidade da idade, a dig­ nidade da força, a dignidade da sabedoria ou do espírito, que se encontram unidas na digni­ dade do pai quando protege, exige e dirige" (Gemeinschaft und Gesellschaft, 1887, I, 5). 2- A segunda teoria fundamental é a de que a A. se baseia na divindade. Essa é a doutrina exposta no capítulo XIII da Epístola aos roma­ nos de S. Paulo: "Toda alma esteja sujeita às potestades superiores, porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso, quem re­ siste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás o seu louvor. Porque ela é ministra de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque ela não traz em vão a espada. Pois é ministra de Deus, vingadora para o cas­ tigo daquele que pratica o mal. Por isso, é ne­ cessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do castigo, mas também por obriga-

AUTORIDADE

çâo de consciência" (Ad rom, XIII, 1-5). Esse documento foi fundamental para a concepção cristã de A., que foi defendida por S. Agostinho (Deciv. Dei, V, 19; cf. V, 21), Isidoro de Sevilha (Sent., III, 48) e Gregório Magno, que insiste no caráter sagrado do poder temporal, a ponto de considerar o soberano como representante de Deus na Terra. Substancialmente, a mesma tese foi adotada por S. Tomás: "De Deus, como do primeiro dominante, deriva todo domínio" (De regimineprincipíum, III, 1). Essa concep­ ção coincide com a primeira num caráter nega­ tivo, isto é, em tornar a A. totalmente indepen­ dente do consenso dos súditos. Mas distingue-se da primeira num caráter fundamental: justifi­ ca toda A. que seja exercida defado. Enquan­ to a primeira não exige que a classe destina­ da a mandar mande sempre de fato (e para Platão, com efeito, a questão não se formula assim), a segunda, ao contrário, implica que toda A. que de fato seja exercida, tendo sido disposta ou estabelecida por Deus, é sempre plenamente legítima. Este é o teorema típico da concepção em tela: teorema que permite reconhecê-la mesmo nas formas mais ou me­ nos conscientemente mistifiçadas. Quando, p. ex., Hegel afirma que o Estado é "a realização da liberdade" ou "o ingresso de Deus no mun­ do" (Fil. dodir, § 258, adendo), estabelece uma coincidência entre aquela que, para ele, é a mais elevada e a realidade histórica do Estado, isto é, justifica qualquer poder de fato, segun­ do a máxima de sua filosofia: "Entender o que é é tarefa da razão, porque o que é é razão" (ibid, pref.). Segundo esse ponto de vista, A. e força coincidem: quem possui força para impor-se não pode deixar de gozar de uma A. válida, já que toda força é desejada por Deus ou é divina. 3a A terceira concepção de A. opõe-se pre­ cisamente a esse teorema. A A. não consiste na posse de uma força, mas no direito de exercêla; tal direito deriva do consenso daqueles so­ bre quem ela é exercida. Essa doutrina nasceu com os estóicos e seu primeiro grande exposi­ tor foi Cícero. Seu pressuposto fundamental é a negação da desigualdade entre os homens. Todos os homens receberam da natureza a ra­ zão, isto é, a verdadeira lei que comanda e proíbe retamente; por isso, todos são livres e iguais por natureza (CÍCERO, De leg, 1,10, 28; 12, 33). Assim sendo, só dos próprios homens, da sua vontade concorde podem originar-se o fun­ damento e o princípio da autoridade. "Quando os

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povos mantêm íntegro o seu direito, nada há de melhor, de mais livre, de mais feliz, uma vez que são senhores das leis, dos juízos, da guerra, da paz, dos tratados, da vida e do patrimônio de cada um" (Resp., I, 32, 48). Cícero achava que só um estado assim pode ser chamado le­ gitimamente de república, isto é, "coisa do povo" (ibid., I, 32, 48). Mas às vezes o reconhecimen­ to de que a fonte da A. está no povo une-se ao reconhecimento do caráter absoluto da própria A. Isso acontece no Digesto, em que Ulpiano diz: "O que agradou ao príncipe tem valor de lei", mas acrescenta imediatamente: "porquan­ to foi com a lei regia, com que se regulamentou o poder dele, que o povo lhe conferiu toda a sua A. e todo o seu poder" (Dig, I, 4, 1). Um dos teoremas típicos desse ponto de vista é o caráter de lei que se reconhece nos costumes: de fato, se as leis não têm outro fundamento senão o juízo do povo, as leis que o próprio povo aprovou, mesmo sem escrever, têm o mesmo valor das que foram escritas (ibid, I, 3, 32). Os grandes juristas do Digesto admitiam, portanto, que a única fonte da A. era o povo romano (R. W.-A. J. CARLYLE, HistoryofMediaeval Political Theory in the West, II, I, 7; trad. it., pp. 369 ss.). Foi essa a forma assumida, na Idade Média, pela doutrina do fundamento humano da autoridade. Diz Dante: "O povo romano, por direito e não por usurpação, assumiu a tarefa do monarca, que se chama império, so­ bre todos os mortais" (DeMon., II, 3). Do mesmo modo, Ockham afirmava que "o império roma­ no foi certamente instituído por Deus, mas atra­ vés dos homens, isto é, por intermédio dos romanos" (Díalogus inter magístrum et discipulum, III, tract. II, lib. I, cap. 27, em GOLDAST, Monarchia, II, p. 899). A própria A. papal, se­ gundo Ockham, é limitada pelas exigências dos direitos e da liberdade daqueles sobre os quais se estende e é, portanto, a A. de um principado ministrativus, não dominativus (De imperatorum etpontificumpotestate, VI). E, à pergun­ ta sobre quais seriam os direitos e as liberdades que a própria A. papal deve respeitar, Ockham responde que são os mesmos que cabem tam­ bém aos infiéis, tanto antes quanto depois da encarnação de Cristo, já que os fiéis não devem nem deverão estar em condições piores do que aquelas em que estiveram os infiéis tanto antes quanto depois da encarnação de Cristo (ibid., K). Marsílio de Pádua afirmava claramente a tese geral implícita em tais idéias. "O legislador, isto é, a primeira e efetiva causa eficiente da lei, é

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o povo ou o conjunto de cidadãos, ou ainda a parte predominante deles, que comanda e de­ cide, por sua escolha ou vontade em assem­ bléia geral e em termos precisos, que certos atos humanos devem ser praticados e outros não, com penalidades ou punições físicas". {.Defensorpacis, I, 12, 3). Nicolau de Cusa afir­ mava, não menos explicitamente, com referên­ cia à A. eclesiástica: "Como todos os homens são naturalmente livres, qualquer A. que afaste os súditos da prática do mal e limite sua liber­ dade com o temor de sanções deriva só da harmonia e do consentimento dos súditos, quer resida na lei escrita, quer na viva, representada por aquele que governa" (De concordantia catholica, II, 14). No mundo moderno, o pre­ domínio do contratualismo (v.) e do jusnaturalismo (v.) determinam o predomínio dessa doutrina. E, embora hoje contratualismo e jusnaturalismo não possam ser invocados como justificações suficientes do Estado (v.) e do di­ reito (y.), a tese da origem humana da A. não é posta em dúvida. A própria doutrina de Kelsen, ao atribuir a A. à ordenação jurídica, não é mais do que uma especificação da tese tradicional. Diz Kelsen: "O indivíduo que é ou tem A. deve ter recebido o direito de promulgar ordens obri­ gatórias, de modo que outros indivíduos sejam obrigados a obedecer. Tal direito ou poder pode ser conferido a um indivíduo somente por uma ordenação normativa. A A. é, portanto, originariamente a característica de um ordenamento normativo" (General Theory ofLaw and State, 1945, II, cap. VI, C, h; trad. it.', p. 389). Mas além desse ponto de vista formal está o problema das formas ou dos modos com que o consenso que funda a A. pode ser exercido ou expresso, além do problema dos limites ou da extensão que ele pode ou deve ter em cada campo. É claro, p. ex., que, em política, a A. deve ter tarefas e extensão maiores do que no campo da pesquisa científica e que, portanto, em política o consenso que a valida deve ter limites e extensão e ser exercido e expresso com formas e características diferentes das as­ sumidas no campo científico. O reconhecimento que exprime aceitação ou consenso está na base de toda A.: as modalidades, as formas e os limites institucionais ou não desse reconheci­ mento podem ser muito diferentes e consti­ tuem problemas fundamentais de política geral e especial. 2. Na filosofia medieval, auctoritas é uma opinião particularmente inspirada pela graça

AXIOCÊNTRICO

divina e, portanto, capaz de guiar e corrigir o trabalho de indagação racional. Auctoritas pode ser a decisão de um concilio, uma máxima bí­ blica, a sententia de um Padre da Igreja. O recurso à A. é uma das características típicas da filosofia escolástica, pois o filósofo, individual­ mente, quer sentir-se sempre apoiado e sus­ tentado pela responsabilidade coletiva da tra­ dição eclesiástica. Não faltaram, porém, nem mesmo na Escolástica, rebeliões contra a A. nesse sentido: como a de Abelardo, que afirmou que a A. só tem valor enquanto a razão estiver ocul­ ta, mas que passa a ser inútil quando a razão tem como verificar por si mesma a verdade (Theol. christ., III, ed. Migne, col. 1.226). A filo­ sofia moderna caracteriza-se pelo abandono do princípio de A., ao menos como princípio ex­ plicitamente assumido para a disciplina e a orien­ tação da pesquisa. De qualquer forma, a A. em filosofia representa a voz da tradição religiosa, moral, política ou mesmo filosófica; e mesmo quando não se apoia na força das instituições políticas que nela se fundam, essa voz age so­ bre a pesquisa filosófica tanto de forma explí­ cita, com o prestígio que confere às teses que apoia, quanto de forma sub-reptícia e disfarçada, impedindo e limitando a indagação e prescre­ vendo ignorância e tabus. AUTO-SUFICIÊNCIA. V. AUTARQUIA. AVERROISMO (in. A verroism, fr. A verroisme, ai. Averroismus; it. Averroismo). Doutrina de Averróis (Ibn-Rosch, 1126-98), como foi enten­ dida e interpretada pelos escolásticos medie­ vais e pelos aristotélicos do Renascimento. Re­ sumia-se nos seguintes fundamentos: ls eternidade e necessidade do mundo: tese con­ trária ao dogma da criação; 2- separação do intelecto ativo e passivo da alma humana e sua atribuição a Deus; essa tese, atribuindo à alma humana só uma espécie de imagem do intelec­ to, despojava-a de sua parte mais alta e imortal; 3e doutrina da dupla verdade, isto é, de uma verdade de razão, que se pode extrair das obras de Aristóteles, o filósofo por excelência, e de uma verdade de fé: ambas podem opor-se. A principal personalidade do A. latino foi Sigiero de Brabante, nascido por volta de 1235 e fale­ cido entre 1281 e 1284. AXIAL, ÉPOCA. V. ÉPOCA. AXIOCÊNTRICO (in. Value-centric). Termo introduzido recentemente na filosofia america­ na para designar a doutrina que afirma a prio­ ridade do valor sobre a realidade, do dever ser sobre o ser, no sentido de que também o juízo

AXIOLOGIA

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existencial implica a distinção de valor entre verdade e falsidade. (Cf. E. G. SPAULDING, The NewRationalism, 1918, pp. 206 ss.; W. M. URBAN, TheIntelligible World, 1929, pp. 61 ss.). AXIOLOGIA (in. Axiology, fr. Axiologie, ai. Axiologie, it. Axiologià). A "teoria dos valores" já fora, há alguns decênios, reconhecida como parte importante da filosofia ou mesmo como a totalidade da filosofia pela chamada "filosofia dos valores" e por tendências congêneres (v. VALOR) quando, no início de nosso século, a expressão "axiologià" começou a ser emprega­ da em seu lugar. Os primeiros textos em que esse termo aparece são: P. LAPIE, Logique de Ia volonté, 1902, p. 385; E. VON HARTMANN, Grundriss der Axiologie, 1908; W. M. URBAN, Valuation, 1909- Esse termo teve grande acei­ tação, ao contrário de timologia, proposto para a mesma ciência (KREIBIG, Psychologische GrundlegungeinesSystemsder Werttheorie, 1902, p. 194). AXIOMA (gr. àAícoJJ.a; lat. Axioma; in. Axiom; fr. Axíome, ai. Axiom; it. Assiomá). Originariamente, essa palavra significava dignidade ou valor (os escolásticos e Viço usavam-na por dignidade) e foi empregada pelos estóicos para indicar o enunciado declarativo que Aristóteles chamava de apofântico (DIÓG. L, VII, 65). Os matemáticos usaram-na para designar os prin­ cípios indemonstráveis, mas evidentes, da sua ciência. Aristóteles fez a primeira análise dessa noção, entendendo por A. "as proposições pri­ meiras de que parte a demonstração" (os cha­ mados A. comuns) e, em cada caso, os "princí­ pios que devem ser necessariamente possuídos por quem queira aprender qualquer coisa" (An. post., I, 10, 76 b 14; I, 2, 72 a 15). Como tal, o A. é completamente diferente da hipótese e do postulado (v.). O princípio de contradição é, ele próprio, um A., aliás, "o princípio de todos os A." (Mel, IV, 3, 1.105 a 20 ss.). Esse signifi­ cado da palavra como princípio que se mostra evidente de imediato, pelos seus próprios ter­ mos, manteve-se constante por toda a Antigüidade e a Idade Moderna. "Os princípios imediatos", diz S. Tomás (In IPost., Lição 5), "não são conhe­ cidos mediante algum termo intermediário, mas por meio do conhecimento dos seus próprios termos. Dado que se saiba o que é o todo e o que é a parte, reconhece-se que 'o todo é maior do que a parte', já que, em todas as proposi­ ções dessa espécie, o predicado está compre­ endido na noção de sujeito". A verdade do A. é, em outros termos, manifestada pela simples

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intuição dos termos que entram na sua com­ posição. Na verdade, o exemplo escolhido por S. Tomás presta-se sobretudo a revelar o cará­ ter fictício da evidência intuitiva de que depen­ deria a validade do axioma. A pouca distância cronológica de S. Tomás, Ockham verificava que o princípio "a parte é maior do que o todo" não vale quando se trata de todos que compre­ endem infinitas partes e que não se pode dizer que no universo inteiro haja mais partes do que numa fava, se numa fava há infinitas partes (Quodl, I, q. 9; Cent. theol., concl. 17, C). Após as pesquisas de Cantor e de Dedekind, sabe­ mos hoje que esse pretenso A. é, simplesmen­ te, a definição dos conjuntos finitos (v. INFINI­ TO). Por muitos séculos procurou-se justificar de um modo ou de outro a validade absoluta dos A., mas essa validade não foi posta em dúvida. Bacon julgava possível obter A. por via de dedução ou de indução (Nov. Org, I, 19), ao passo que Descartes julgava-os verdades eter­ nas, que residem em nossa mente (Princ.phil., I, 49); ambos, porém, acreditaram que eram verdades imutáveis. Locke considerou os A. como proposições, experimentos, experiências imediatas (Ensaio, IV, .7, 3 ss.) e Leibniz, ao contrário, considerou-os princípios inatos na forma de disposições originárias que a expe­ riência torna explícitas (Nouv. ess, I, 1, 5); mas ambos lhes atribuíram o caráter de verdades evidentes. Os empiristas não duvidaram de sua evidência mais do que os racionalistas; Stuart Mill afirma que eles são "verdades experimen­ tais, generalizações da observação" (Logic, II, 5, § b). Para Kant, os A. também são evidentes, mas apriori; define-os como "princípios sintéticos apriori, na medida em que são imediatamente certos". Para Kant, a certeza imediata, isto é, a evidência, é a característica dos A. A matemá­ tica possui A. porque procede mediante a cons­ trução de conceitos. A filosofia, porém, que nào constrói seus conceitos, não possui A. Os próprios A. da intuição, que Kant pôs entre os princípios do intelecto puro, não são realmente A. segundo o próprio Kant, mas simplesmente contêm "o princípio da possibilidade dos A. em geral" (Crít. R. Pura, Doutrina transe, do mét., Disciplina da razão pura, I). Foi no mundo contemporâneo que a noção de A. sofreu a transformação mais radical. A característica que o definia, ou seja, a imediação da sua verdade, a certeza, a evidência, foi nega­ da. Esse resultado deve-se ao desenvolvimento do formalismo matemático e lógico, isto é. à

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obra de Peano, Russell, Frege e Hilbert. Segun­ do o ponto de vista formalista, que é o mais difundido atualmente, os A. da matemática não são nem verdadeiros nem falsos, mas são as­ sumidos por convenção, com base em moti­ vos de oportunidade, como fundamentos ou premissas do discurso matemático (HILBERT, "Axiomatischen Denken", em Math. Annalen, 1918). Desse modo, os A. não se distinguem mais dos postulados e as duas palavras são hoje usadas indiferentemente. A escolha dos A. de certo modo é livre e, nesse sentido, diz-se que os A. são "convencionais" ou "assumidos por convenção". Mas, na realidade, essa escolha é limitada por exigências ou condições precisas que podem ser resumidas do seguinte modo: ls Os A. devem ser coerentes, sob pena de o sistema que deles depende tornar-se contra­ ditório. Sistema contraditório é o que permite a dedução de qualquer coisa e a demonstração de qualquer proposição, bem como a sua ne­ gação. Como a prova da nâo-contradição não pode ser obtida dentro de um sistema (v. AXIOMATICA), é costume lançar mão do sistema da redução a uma teoria anterior, cuja coerên­ cia pareça bem confirmada, como, p. ex., a aritmética clássica ou a geometria euclidiana. Esse procedimento sem dúvida não eqüivale a uma demonstração de não-contradição, mas for­ nece um indício importante. Outro procedimento é a realização, isto é, a referência do sistema a um modelo real, com base no pressuposto de que aquilo que é real deve ser possível, portan­ to não-contraditório. 2Q Um sistema de A. deve ser completo no sentido de que, de duas proposições contradi­ tórias formuladas corretamente nos termos do sistema, uma deve poder ser demonstrada. O que significa que, em presença de uma propo­ sição qualquer do sistema, pode-se sempre demonstrá-la ou refutá-la e, portanto, decidir sobre a sua verdade ou falsidade em relação ao sistema dos postulados. Nesse caso, o sistema chama-se decidível. 3S A terceira característica de um sistema de A. é a sua independência, isto é, a sua irredutibilidade recíproca. Tal condição não é tão indis­ pensável como a da coerência, mas é oportuna para evitar que as proposições primitivas sejam excessivamente numerosas. 4q Enfim, o menor número possível e a sim­ plicidade dos A. são condições desejáveis que conferem elegância lógica a um sistema de axiomas.

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AXIOMAS DA INTUIÇÃO (in. Axioms ofintuition; fr. Axiomes de Vintuition; ai. Axiomen der Anschauung; it. Assiomi delVintuizioné). Kant indicou com essa expressão os princípios sintéticos do intelecto puro que derivam da aplicação das categorias à experiência e que exprimem a possibilidade das proposições da matemática e da física pura. Todos os princí­ pios do intelecto puro têm a função de eliminar o caráter subjetivo da percepção dos fenôme­ nos, reconduzindo essa percepção à conexão necessária dos próprios fenômenos, que é pró­ pria da experiência objetivamente válida. Em particular, os A. da intuição, que correspondem às categorias da quantidade, porque consistem na aplicação dessas categorias, transformam o fato subjetivo de só podermos perceber a quan­ tidade espacial ou temporal (p. ex., uma linha ou um lapso de tempo) percebendo, sucessi­ vamente, as suas partes, no princípio objetiva­ mente válido de que "toda quantidade é com­ posta de partes": nas palavras de Kant, de que "todas as intuições são quantidades extensivas"; e justificam assim a aplicação da matemática ao mundo da experiência (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II). AXIOMÂTICA (in. Axiomatics; fr. Axiomatique, ai. Axiomatik, it. Assiomaticd). A A. pode ser considerada resultado da aritmetização da análise que ocorreu na matemática a partir da segunda metade do séc. XIX, provocada sobretudo por Weierstrass. A primeira tentativa de axiomatização da geometria foi feita por Pasch, em 1882. Para a axiomatização da matemática também contribuíram o formalismo de Peano, Russell, Frege e, especialmente, a obra de Hilbert. Mas a A. não se limita hoje ao domínio da matemática: em física, é estudada como objeti­ vo final ou, pelo menos, como formulação úl­ tima e mais satisfatória; qualquer disciplina que atinja certo grau de rigor tende a assumir a forma axiomática. O significado da A. pode ser resumido brevemente nos pontos seguintes: le Axiomatizar uma teoria significa, em pri­ meiro lugar, considerar, em lugar de objetos ou de classes de objetos providos de caracteres intuitivos, símbolos oportunos, cujas regras de uso sejam fixadas pelas relações enumeradas pelos axiomas. Como tais símbolos são des­ providos de qualquer referência intuitiva, a teoria formal assim obtida é passível de múltiplas in­ terpretações, que se chamam modelos. Mas o modelo, aqui, não é um arquétipo preexistente à teoria, e mesmo a teoria concreta original, que forneceu os dados para o esquema lógico

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da A., não é senão um desses modelos. A ca­ racterística da A. é prestar-se a interpretações ou a realizações diferentes, das quais constitui a estrutura lógica comum. 2 °O método A. é um poderoso instrumento de generalização lógica. Um dos modos de generalização desse método consiste em des­ truir, sucessivamente, alguns axiomas de certa teoria dedutiva, conservando os outros e, as­ sim, construindo teorias cada vez mais abstra­ tas. O sistema gerado pela A. assim restringida é coerente se o sistema inicial o for e constitui uma generalização deste. 3a A A. torna indispensável distinguir três modos pelos quais é possível diferenciar uma teoria dedutiva da outra. Consideremos o caso da geometria euclidiana. Em primeiro lugar, se modificarmos um dos seus postulados, obtere­ mos outras geometrias denominadas próximas ou aparentadas; nesse sentido, fala-se de pluralidade de geometrias. Em segundo lugar, podemos efetuar a reconstrução lógica de qual­ quer uma dessas geometrias de vários modos, isto é, segundo A. diferentes; e essas A. serão equivalentes entre si. Enfim, se escolhermos uma dessas A., na maioria das vezes será pos­ sível encontrar interpretações diferentes para ela: haverá vários modelos dela, que serão cha­ mados isomorfos. Haverá assim: d) uma plu­ ralidade de geometrias; b) uma pluralidade de A. para uma mesma geometria; c) uma plurali­ dade de modelos para uma mesma A. 4e A característica fundamental da A. é a escolha e a clara enunciaçâo das proposições primitivas de uma teoria, isto é, dos axiomas que introduzem os termos indefiníveis e esta­

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belecem as regras de uso indemonstráveis. A escolha das noções primitivas é parte funda­ mental da constituição de uma axiomática. Hoje está claro, porém, que as próprias noções de "primitivo", "indefinível" e "indemonstrável" são relativas, no sentido de que um termo indefinível ou uma proposição indemonstrável, dentro de um sistema, podem ser definíveis ou demonstráveis se as bases do sistema forem modificadas. P. ex., na geometria euclidiana não se pode de­ monstrar o postulado das paralelas, mas se renunciarmos a demonstrar o teorema de que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos, poderemos assumir essa proposi­ ção como um axioma e demonstrar a unicidade da paralela. Além disso, muitas vezes os termos não definidos são implicitamente definidos pelo conjunto dos postulados previamente escolhi­ dos (definição por postulados). Diz-se que a escolha dos postulados é livre, mas na realida­ de deve obedecer a determinadas condições que a limitam notavelmente; para essas condi­ ções, v. AXIOMA. 5QJá se disse (v. AXIOMA) que o limite fun­ damental para a escolha dos axiomas é a sua coerência ou compatibilidade. Todavia, um teorema de Godel (1931) estabeleceu que uma aritmética não contraditória comporta enuncia­ dos não decididos e, entre esses enunciados, está a nâo-contradição do sistema aritmético. Em outros termos, se permanecermos no âm­ bito de um sistema, não será possível estabele­ cer a não-contradiçâo desse mesmo sistema. Esse é um dos limites da A., além dos que foram evidenciados pela corrente intuicionista dos ma­ temáticos (v. MATEMÁTICA).

B B. Na lógica medieval, todos os silogismos indicados por uma palavra mnemônica que comece por B {Baralipton, Baroco, Bocardo) são redutíveis ao primeiro modo da primeira figura {Barbara). (Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.20) BANAUSIA (gr. pavoruaíoc). Essa palavra, que em grego significa arte mecânica ou trabalho manual em geral, implica uma valorização des­ se tipo de atividade como coisa grosseira e vulgar. Heródoto (II, 155 ss.) já observava que tanto os gregos quanto os bárbaros estão de acordo ao considerarem inferiores os cidadãos que apren­ dem um ofício e os seus descendentes, e ao considerarem superiores as pessoas que se mantêm afastadas dos trabalhos manuais e, sobretudo, as que se dedicam à guerra. Xenofonte (Econom., IV, 203), por sua vez, afirma que "as chamadas artes mecânicas trazem em si um estigma social e estão desonrando as nossas cidades". E, em Górgias (512 b), Cálicles diz que, embora o construtor de máquinas bélicas possa ser útil, "desprezá-lo-ás bem como à sua arte, chamá-lo-ás ofensivamente banausos e não desejadas dar tua filha como esposa a seu filho nem desejarias que teu filho se casasse com uma de suas filhas". Aristóteles diz ex­ plicitamente (Pol., III, 4, 1.277 ss.) que o poder senhorial é próprio de quem não sabe fazer as coisas necessárias, mas sabe usá-las melhor do que os que se lhe submetem. O saber fazê-las é próprio dos servos, isto é, "da gente destina­ da a obedecer" e é coisa tão humilde que "não deve ser aprendida nem pelo político nem pelo bom cidadão, a não ser que lhes proporcione uma vantagem pessoal". Essa noção de B., na sociedade antiga, permitia a divisão da pró­ pria sociedade em duas classes: os que extraíam os meios de vida do trabalho manual e eram destinados a obedecer e os que se haviam li­

bertado da escravidão do trabalho manual e eram destinados a mandar. Com algumas exceções, essa concepção du­ rou por toda a Idade Média e foi só com o Renascimento que se começou a introduzir no mundo moderno o conceito de dignidade do trabalho manual (v. TRABALHO). BARALIPTON. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quinto modo da primeira figura do silogismo, mais precisa­ mente o que consiste em duas premissas uni­ versais afirmativas e em uma conclusão parti­ cular afirmativa, como no exemplo: "Todo animal é substância; todo homem é animal; logo, algu­ mas substâncias são homens" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.08). BARBARA. Palavra mnemônica usada pe­ los escolásticos para indicar o primeiro dos nove modos do silogismo de primeira figura, o qual consta de duas premissas universais afirmativas e de uma conclusão também universal afirma­ tiva, como no exemplo: "Todo animal é subs­ tância; todo homem é animal; logo, todo ho­ mem é substância" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.07; Lógica dePort-Royal, III, 5). BARBARI. Palavra mnemônica usada na Ló­ gica de Port-Royal para indicar o quinto modo do silogismo de primeira figura (isto é, o Baralipton), com a modificação de assumir por premissa maior a proposição em que entra o predicado da conclusão. O exemplo é o se­ guinte: "Todos os milagres da natureza são comuns; tudo o que é comum não nos maravi­ lha; logo, há coisas que não nos maravilham, que são milagres da natureza" (ARNAULD, Log., III, 8). BARBÁRIE. Esse foi o nome que Viço deu ao estado primitivo, selvagem, do qual o gêne­ ro humano foi saindo pouco a pouco para che­ gar à ordem do mundo propriamente humano,

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pelo temor à divindade. Deu o nome de "retor­ no da B." à Idade Média. (Scienza nuova, dig­ nidade, 56; Carta a De Angelis, Opere, ed. Utet, p. 159). BAROCO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quarto dos quatro modos do silogismo de segunda figura, mais precisamente o que consiste numa premissa universal afirmativa, numa premissa particu­ lar negativa e numa conclusão particular negati­ va, como no exemplo: "Todo homem é ani­ mal; algumas pedras não são animais; logo, algumas pedras não são homens" (PEDRO HISPANO, Summ. log, 4.11). Dessa palavra teve origem a palavra "barro­ co", usada para designar a forma de arte ou, em geral, o espírito próprio do séc. XVII. "Parece indubitável", disse Croce, "que essa palavra está ligada a um daqueles vocábulos artificialmente compostos e mnemônicos, com que foram de­ signadas as figuras do silogismo na lógica me­ dieval. Entre esses vocábulos (Barbara, Celarent, etc), dois (pelo menos na Itália) chamaram mais a atenção cio que os outros e tornaram-se qua­ se proverbiais: o primeiro, Barbara, por ser o primeiro, e o outro, sabe-se lá por quê, Baroco, que designava o quarto modo da segunda figu­ ra. Digo não sei por quê, por não ser ele mais estranho do que os outros, nem mais estranho o modo de silogismo que indicava: talvez para tanto haja contribuído a aliteração com Barbara" (Storia delVetà barocca in Itália, 1925; 2a ed., 1946, pp. 20-21). Embora essa etimologia tenha sido comumente aceita, na verdade é totalmente desprovida de documentação e os únicos do­ cumentos disponíveis indicam que a palavra barroco derivou de barocchio, que, em Florença, era uma forma de trapaça ou escroqueria. Tal derivação é mencionada em uma carta de Magliabechi, de 1688 (cf. FRANCO VENTURI, "La parola Barocco", em Rivista Storica Italiana, 1959, pp . 128-130). BEATITUDE. V. BEM-AVENTURANÇA.

BEHAVIORISMO (in. Behaviorism; fr. Comportamentisme, ai. Behaviorismus; it. Bebaviorismo, comportamentismo). Corrente da psico­ logia contemporânea que tende a restringir a psicologia ao estudo do comportamento (v.), eliminando qualquer referência à "consciência", ao "espírito" e, em geral, ao que não pode ser observado e descrito em termos objetivos. Pavlov pode ser considerado seu fundador, pois foi o autor da teoria dos reflexos condicionados e o primeiro a fazer pesquisas psicológicas que pres­

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cindiam de qualquer referência ao "estados subjetivos" ou "estados interiores". Em 1903, Pavlov perguntava: "para compreender os no­ vos fenômenos, por acaso deveremos penetrar no ser interior do animal, imaginar ao nosso modo as sensações, os sentimentos e os dese­ jos deles? Para o experimentador científico, pa­ rece-me que a resposta a essa última pergunta só pode ser um não categórico" (Reflexos con­ dicionados, 1950, p. 17). No laboratório de Pavlov (como ele mesmo conta [ibid., p. 1291), foi proibido, até sob pena de multa, o uso de expressões psicológicas como "o cão adivinha­ va, queria, desejava, etc"; e Pavlov não hesi­ tava em definir como "desesperada", do ponto de vista científico, a situação da psicologia como ciência dos estados subjetivos (ibid., p. 97). Todavia, o primeiro a enunciar claramente o programa do B. foi J. B. Watson em um livro intitulado O comportamento — Introdução à psicologia comparada, publicado em 1914. Foi Watson quem deu o nome de B. a essa escola e sua pretensão fundamental era limitar a pes­ quisa psicológica às reações objetivamente observáveis. A força do B. consiste precisa­ mente na exigência metodológica que impôs: não é possível falar cientificamente daquilo que escapa a qualquer possibilidade de observação objetiva e de controle. O B. foi muitas vezes interpretado, pelos que o questionam, como a negação da "consciência", do "espírito" ou dos "estados interiores", etc. Na realidade ele é sim­ plesmente a negação da introspecção como instrumento legítimo de investigação: negação que já fora feita por Comte (v. INTROSPECÇÂO). Além disso, é o reconhecimento deliberado do comportamento como objeto próprio da inda­ gação psicológica. Nas suas primeiras manifes­ tações, o B. estava ligado à corrente mecanicista, para a qual o estímulo externo é a causa do comportamento, no sentido de torná-lo infali­ velmente previsível; o próprio Pavlov ressalta­ va essa infalibilidade (ibid, p. 133). Mas esse pressuposto, de natureza ideológica, hoje foi abandonado pelo B., que permeou profunda­ mente a indagação antropológica moderna (psi­ cologia, sociologia, etc.) (v. PSICOLOGIA). BELO (gr. xò KOCÁÓV lat. Pulchrum; in. Beautiful; fr. Beau; ai. Schõn; it. Bello). A noção de B. coincide com a noção de objeto estético só a partir do séc. XVIII (v. ESTÉTICA); antes da descoberta da noção de gosto, o B. não era mencionado entre os objetos produzíveis e, por isso, a noção correspondente não se incluía

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naquilo que os antigos chamavam de poética, isto é, ciência ou arte da produção. Podem ser distinguidos cinco conceitos fundamentais de B., defendidos e ilustrados tanto dentro quanto fora da estética: le o B. como manifestação do bem; 2S o B. como manifestação do verdadeiro; 3q o B. como simetria; 4q o B. como perfeição sensível; 5Q o B. como perfeição expressiva. 1Q O B. como manifestação do bem é a teo­ ria platônica do belo. Segundo Platão, só à be­ leza, entre todas as substâncias perfeitas, "cou­ be o privilégio de ser a mais evidente e a mais amável" (Fed, 250 e). Por isso, na beleza e no amor que ela suscita, o homem encontra o ponto de partida para a recordação ou a contemplação das substâncias ideais (ibid, 251 a). A repeti­ ção dessa doutrina do B. no neoplatonismo assume caráter teológico ou místico porque o bem ou as essências ideais de que falava Platão são hipostatizadas e unificadas por Plotino no Uno, isto é, em Deus; o^ Uno e Deus são defi­ nidos como "o Bem". "É o Bem", diz Plotino, "que dá beleza a todas as coisas", de modo que o B., em sua pureza, é o próprio bem e todas as outras belezas são adquiridas, mescladas e não primitivas: porque vêm dele (Enn., 1, 6, 7). Essa forma mística ou teológica nem sempre reveste a doutrina do B. como manifestação do bem, mas é óbvio que semelhante doutrina é explícita ou implicitamente pressuposta cada vez que se propõe a função da arte no aperfei­ çoamento moral. 2e A doutrina do B. como manifestação da verdade é própria do Romantismo. "O B.", di­ zia Hegel, "define-se como a aparição sensível da Idéia." Isso significa que beleza e verdade são a mesma coisa e que se distinguem só por­ que, enquanto na verdade a Idéia tem mani­ festação objetiva e universal, no B. ela tem manifestação sensível (Vorlesungen über die Asthetik, ed. Glockner, I, p. 160). Raramente, fora de Hegel, esse ponto de vista foi apresen­ tado com tanta decisão, mas reaparece em quase todas as formas da estética romântica, consti­ tuindo, indubitavelmente, uma definição típica do belo. 3q A doutrina do B. como simetria foi apre­ sentada pela primeira vez por Aristóteles: o B. é constituído pela ordem, pela simetria e por uma grandeza capaz de ser abarcada, em seu conjunto, por um só olhar (Poet., 7, 1.450 b 35 ss.). Essa doutrina foi aceita pelos estóicos, ci­ tados por Cícero: "Assim como no corpo existe uma harmonia de feições bem proporcionadas,

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unida a um belo colorido, que se chama bele­ za, também para a alma a uniformidade e a coerência das opiniões e dos juízos, unida a certa firmeza e imutabilidade, que é conse­ qüência da virtude ou contém a própria essên­ cia da virtude, chama-se beleza" (Tusc, IV, 13, 31). Essa doutrina fixou-se por longo tempo na tradição. Foi adotada pelos escolásticos (p. ex., S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 39, aa. 8) e por muitos escritores e artistas do Renascimento, quando quiseram ilustrar o que procuravam fazer com a sua arte: p. ex., Leonardo em Trattato delia pittura. 4e É com a doutrina do B. como perfeição sensível que nasce a Estética. "Perfeição sen­ sível" significa, por um lado, "representação sensível perfeita" e, por outro, "prazer que acom­ panha a atividade sensível". No primeiro senti­ do, é concebida principalmente pelos analis­ tas alemães e, em particular, por Baumgarten (Aesthetica, 1750, §§ 14-18). No segundo senti­ do, foi utilizada sobretudo pelos analistas ingle­ ses, em primeiro lugar por Hume (Essay Moral andPolitical, 1741) e porBurke (A Philosophical Inquiry into the Origin ofOur Ideas ofthe Su­ blime andBeautiful, 1756), preocupados am­ bos em determinar os caracteres que fazem do prazer sensível aquilo que se costuma chamar de "beleza". Kant unificou essas duas defini­ ções complementares de B. e insistiu naquilo que até hoje é considerado seu caráter funda­ mental, isto é, o desinteresse. Conseqüentemente, definia o B. como "o que agrada universalmente e sem conceitos" (Crít. doJuízo, § 6) e insistia na independência entre prazer do B. e qual­ quer interesse, tanto sensível quanto racional. "Cada um chama de agradável o que o satisfaz; de Belo, o que lhe agrada; de bom o que apre­ cia ou aprova, aquilo a que confere um valor objetivo. O prazer também vale para os animais irracionais; a beleza, só para os homens, em sua qualidade de seres animais mas racionais, e não só por serem racionais, mas por serem, ao mesmo tempo, animais. O bom tem valor para todo ser racional em geral" (Crít. dojuizo, § 5). Kant distinguiu além disso o B. livre (pulchritudo vaga) e o B. aderente (pulchritudo adhaerens). O primeiro não pressupõe um conceito daqui­ lo que o objeto deve ser; p. ex., as flores são belezas naturais livres. O segundo pressupõe esse conceito; p. ex., a beleza de um cavalo, de uma igreja, etc. pressupõe o conceito da fina­ lidade a que tais objetos são destinados (ibid., §16).

BEM

Com a doutrina de Kant, o conceito de B. foi reconhecido numa esfera específica, tornou-se um valor, ou melhor, uma classe de valores, fundamental. Juntamente com o Verdadeiro e com o Bem, entrou na constituição de uma nova espécie de trindade ideal, correspondente às três formas de atividade reconhecidas como próprias do homem: intelecto, sentimento e vontade. Embora essa tripartição tenha sido considerada durante muito tempo como um dado de fato originário, testemunhado pela "consciência" ou pela "experiência interior", na realidade é uma noção historicamente derivada, que, na segunda metade do séc. XVIII, nasceu da inserção da "faculdade do sentimento" entre as outras faculdades (reconhecidas desde o tem­ po de Aristóteles): a teorética e a prática (v. GOSTO; SENTIMENTO). 5q Como perfeição expressiva ou completitude da expressão, o B. é, implícita ou explici­ tamente, definido por todas as teorias que con­ sideram a arte como expressão (v. ESTÉTICA, 3). Croce disse: "Parece-nos lícito e oportuno defi­ nir a beleza como expressão bem-sucedida, ou melhor, como expressão pura e simples, pois a expressão, quando não é bem-sucedida, não é expressão" (Estética, 4a ed., 1912, p. 92). E, conquanto, na obra de Croce, a teoria da arte como expressão se combine ou se confunda com a de arte como conhecimento, a definição de beleza dada por Croce pode ser adotada em qualquer teoria da arte como expressão. BEM (gr. àyaOóv; lat. Bonum; in. Good; fr. Biert; ai. Gut; it. Bene). Em geral, tudo o que possui valor, preço, dignidade, a qualquer títu­ lo. Na verdade, B. é a palavra tradicional para indicar o que, na linguagem moderna, se cha­ ma valor (v.). Um B. é um livro, um cavalo, um alimento, qualquer coisa que se possa vender ou comprar; um B. também é beleza, dignida­ de ou virtude humana, bem como uma ação virtuosa, um comportamento aprovável. Em cor­ respondência com essa extrema variedade de significados, o adjetivo bom tem uma idêntica variedade de aplicações. Podemos falar de "uma boa chave de fenda" ou de "um bom automó­ vel" como também de "uma boa ação" ou de "uma pessoa boa". Dizemos também "um bom prato", para indicar algo que corresponde ao nosso paladar, ou "um bom quadro", para indi­ car um quadro bem-feito. Dessa esfera do significado geral, pela qual a palavra se refere a tudo o que tem um valor qualquer, pode-se recortar a esfera do significado

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BEM

específico, em que a palavra se refere parti­ cularmente ao domínio da moralidade, isto é, dos mores, da conduta, dos comportamentos humanos intersubjetivos, designando, assim, o valor específico de tais comportamentos. Nesse segundo significado, isto é, como B. moral, o B. é objeto da ética e o registro dos seus diferentes significados históricos é encontrado no verbete Etica (v). Por ora, deveremos tratar da noção de B. só no primeiro sentido, isto é, na sua acepção mais geral. Podemos, então, distinguir dois pontos de vista fundamentais, que apre­ sentam intersecção na história da filosofia: ls a teoria metafísica, segundo a qual o B. é a rea­ lidade, mais precisamente a realidade perfeita ou suprema, e é desejado como tal; 2" a teoria subjetivista, segundo a qual o B. é o que é de­ sejado ou o que agrada, e é tal só nesse aspecto. 1Q O modelo de todas as teorias metafísicas é a teoria de Platão, segundo a qual o B. é o que confere verdade aos objetos cognoscíveis, que confere ao homem o poder de conhecêlos, que confere luz e beleza às coisas, etc; em uma palavra, é fonte de todo ser, no homem e fora do homem (Rep., VI, 508 e 509 b). Platão compara o B. ao Sol, que dá aos objetos não só a possibilidade de serem vistos como também a de serem gerados, de crescerem e de nutrirse; e, assim como o Sol que, mesmo sendo a causa dessas coisas, não é nenhuma delas, tam­ bém o B. como fonte da verdade, do belo, da cognoscibilidade, etc. e, em geral, do ser, não é nenhuma dessas coisas e está além delas (ibid., 509 b). Analogamente, Plotino vê no B. a pri­ meira Hipóstase, isto é, a origem da realidade, o próprio Deus, considerando-o como causa, ao mesmo tempo, do ser, da ciência (Enn, VI, 7, 16) e, em geral, de tudo o que é ou vale um título qualquer (ibid, V, 4, 1). Essas noções tornaram-se correntes na filosofia medieval, que identificou, segundo o exemplo neoplatônico, o B. com Deus mesmo, de modo que só pode ser considerado "bom" o que é, de algum modo, semelhante a Deus (S. TOMÁS. S. Th, I. q. 6, a. 4). O teorema característico dessa concepção de B. é o que afirma a identidade do que é B. com o que existe. "Bonum e em-são a mesma coisa na realidade", diz S. Tomás, "embora pos­ sam distinguir-se um do outro racionalmente. O B., com efeito, é o ente como objeto de desejo, o que não é o ente" (S. Th, 1, q. 5, a. 1). Por isso, "todo ente, como ente, é bom" (ibid., I, q. 5, a. 3). De fato, todo ente como tal está em

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ato e enquanto está em ato é perfeito: mas o que é perfeito é também apetecível e é bom. Esse teorema revela a natureza da concepção metafísica do B., cujo princípio é que o B. é apetecível só como realidade perfeita ou per­ feição real. Pode-se, por isso, reconhecer uma teoria metafísica do B. precisamente por essa característica, que subordina a apetecibilidade à realidade e, por fim, considera o próprio B. como a realidade suprema. Assim faz Hegel, p. ex., quando afirma que "a realidade efetiva coincide em si com o B." {PhilosophischePropãdeutik, III, § 83), ou que o B. é "a liberdade realizada, o objetivo final absoluto do mundo" {Fil. do dir., § 129). Todas as formas de idealis­ mo e de espiritualismo constituem outras tan­ tas doutrinas metafísicas do B., já que todas identificam o B. com a realidade e, em última instância, com a realidade suprema; é o que fazem, p. ex., Rosmini, que identifica ser e bem (Principí dela scienza morale, ed. nac, p. 78), e Gentile, que identifica o B. com o espírito em ato: "O B. ou valor moral outra coisa não é senão a realidade espiritual em sua idealidade, como produção de si mesma ou liberdade" {Ló­ gica, 1, p. 110). Algumas filosofias contemporâ­ neas que preferem falar de valor em vez de B., considerando o valor como uma realidade ab­ soluta e última, inscrevem-se na mesma con­ cepção tradicional de bem. 2- Por outro lado, a teoria subjetivista do B. é o inverso simétrico da teoria metafísica. Para ela, o B. não é desejado por ser perfeição e realidade, mas é perfeição e realidade por ser desejado. Ser desejado ou apetecido é o que define o B. Foi assim que Aristóteles o definiu várias vezes {Et. nic, I, 1, 1.094 a 3). Todavia, nesse autor, a doutrina não deixa de ter cone­ xões ou misturas com a doutrina oposta. Quan­ do precisa determinar os critérios de preferên­ cia entre os vários bens, recorre à noção metafísica de perfeição, isto é, à noção que fundamenta a teoria oposta de B. Assim, p. ex., ele diz que o que é B. em absoluto é mais desejável do que aquilo que é um B. para al­ guém, como p. ex. curar-se é preferível a sofrer uma operação cirúrgica; que o que é um B. por natureza (p. ex., a justiça) é preferível ao que é um B. por aquisição (p. ex., o homem justo). Além disso, "mais desejável é o que pertence a um objeto melhor e mais digno, de tal modo que o que pertence à divindade é preferível ao que pertence ao homem, e o que tange à alma é preferível ao que tange ao corpo" {Top, III, 1,

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BEM

116 b 17). Assim, Aristóteles delineia um siste­ ma de preferências que parece orientar-se para o caráter de perfeição que os bens possuem objetivamente e que, portanto, mal se concilia com a definição do B. como objeto de desejo. Essa definição é validada pela primeira vez, em todo o seu rigor, pelos estóicos. Estes consi­ deraram o B. exclusivamente como objeto de escolha obrigatória ou preferencial; portanto, foram também os primeiros a introduzir na éti­ ca a noção de valor{v.). "Assim como é pró­ prio do calor aquecer, e não esfriar, também é próprio do B. ajudar, e não prejudicar", diziam eles (DiÓG. L., VII, 103). B., em sentido absolu­ to, é somente o que se conforma à razão, que tem, por isso, um valor em si; mas são também B., embora de modo subordinado ou mediato, as coisas que fazem apelo à escolha e enquan­ to tais têm valor, como o talento, a arte, a vida, a saúde, a força, a beleza, etc. iibid, 104-5; cf. CÍCERO, Definibus, III, 6, 20). Essa tábua de valores prescindia completamente da perfei­ ção objetiva a que se referiam as tábuas de valores da concepção clássica grega. Obliterada durante toda a Idade Média, a concepção subjetivista de B. volta, no Renas­ cimento, com as alusões à ética do móbil, que se repetem nesse período (v. ÉTICA), mas foi afirmada na sua forma mais nítida por Hobbes. "O homem chama de bom o objeto de seu ape­ tite ou de seu desejo, de mauo objeto de seu ódio ou de sua aversão, de vil o objeto de seu despre­ zo. As palavras 'bom', 'mau', 'vil' são sempre entendidas em relação a quem as emprega, porque nada há de absoluto e simplesmente tal, e não há nenhuma norma comum para o B. e para o mal que derive da natureza das coisas" (Leviath, I, 6). Spinoza aceitou com entusias­ mo esse ponto de vista. "Nós não nos propo­ mos, não queremos, não desejamos, não ansiá­ mos por uma coisa porque a julguemos boa, mas, ao contrário, julgamo-la boa pelo fato de a propormos, querermos, desejarmos e ansiar­ mos" {Et., III, 9, escól.). E, no prefácio ao IV Livro, reitera: "O B. e o mal não indicam nada positivo que esteja nas coisas consideradas em si, mas são nada mais do que modos de pensar ou noções que formamos, ao confrontar as coi­ sas. Realmente, uma mesma coisa pode ser, ao mesmo tempo, boa, má e até indiferente". Por sua vez, Locke afirmou que "chamamos de B. o que é capaz de produzir prazer em nós e de mal o que é capaz de produzir sofrimento" {Ensaio, II, 21, 43); definições que encontram

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concordância em Leibniz: "O B. divide-se em honesto, agradável e útil, mas, no fundo, creio que deve ser agradável por si mesmo ou servir a algo que nos dê sentimento de prazer: o B. é agradável ou útil e mesmo a honestidade con­ siste em um prazer do espírito" (Nouv. ess, II, 20, 2). Kant aceitou essas observações, acres­ centando-lhes um elemento importante, isto é, a exigência de uma referência conceituai. "O B." diz ele, "é o que, por intermédio da razão, agrada pelo seu conceito puro. Dizemos que alguma coisa é boa para (útil) quando ela agra­ da só como um meio; aquela que, ao contrário, agrada por si mesma, dizemos que é boa em si. Em ambas, estão sempre contidos o conceito de finalidade e a relação entre razão e vontade (pelo menos possível); conseqüentemente, o prazer está ligado à existência de um objeto ou de uma ação, vale dizer, a um interesse" (Crít. dojuízo, § 4). A presença do conceito, isto é, do fim a que a coisa tende ou da norma a que deve adequar-se, é o que distingue o bom do agra­ dável. Kant nota que um alimento agradável, para ser considerado "bom", deve agradar tam­ bém à razão, isto é, deve ser considerado bom em relação ao objetivo da nutrição, da saúde física. Todavia, o agradável e o bom estão liga­ dos pelo fato de dependerem ambos do inte­ resse pelo seu objeto; além disso, "o que é B absolutamente sob todos os aspectos, o B. mo­ ral, inclui o mais alto interesse, pois o B. é o objeto da vontade, isto é, de uma faculdade de desejar determinada pela razão. Mas querer alguma coisa e ter prazer por sua existência, isto é, sentir interesse por ela, são a mesma coisa" (íbid, fim). Nesse sentido, o B. é aquilo que se aprecia, que se aprova e a que se atribui "um valor objetivo" (ibid, § 5). Assim, no seio da própria teoria subjetivista, Kant valida a exi­ gência objetivista que constituía a força da teo­ ria metafísica. O B., para Kant, só é B. em re­ lação ao homem, isto é, em face do interesse que o homem tem por sua existência. Mas isso não o torna exclusivamente subjetivo, isto é, não o identifica pura e simplesmente com o prazer porque ao reconhecimento do B. está vinculada a valorização conceituai de sua efi­ ciência em relação a certos fins e é isto que constitui o B. como "um valor objetivo". Depois de Kant, a noção de valor tende a suplantar a de B. nas discussões morais, e pode ser considerada como sucessora do conceito subjetivo de B., dotada que é de suas mesmas conexões sistemáticas. Em seu lugar, porém,

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BEM AVENTURANÇA

renascerá, com forma pouco alterada, a alterna­ tiva entre uma concepção objetivista e uma con­ cepção subjetivista: alternativa que ainda hoje constitui um dos temas fundamentais da dis­ cussão moral (v. VALOR). BEM-AVENTURADA (gr. j.aKapía; lat. Beatitudo; in. Beatitude; fr. Béatitude; ai. Seligheit; it. Beatitudiné). O significado desse termo pode distinguir-se do de felicidade (v.), de que é sinônimo, porque designa um estado de satisfação completa, perfeitamente inde­ pendente das vicissitudes do mundo. Aristóte­ les, que às vezes usa esse termo e o termo felicidade indiferentemente, vincula a B. à con­ templação e comensura-a com o grau da ativi­ dade contemplativa nos vários seres vivos. As­ sim, a vida dos deuses é bem-aventurada porque contemplativa. Aos homens cabe uma espécie de semelhança com essa vida porque se ele­ vam só vez por outra à contemplação; os ani­ mais não são absolutamente bem-aventurados porque carecem de atividade contemplativa (Et. nic, X, 8, 1.178 b 9 ss.). Entre os homens, naturalmente, o sábio é o mais bem-aventura­ do (ibid., I, 11, 1.101 b 24). Na filosofia pósaristotélica e sobretudo na estóica, a B. do sá­ bio tornou-se tema comum de exercício (cf. De vita beata de Sêneca), e no neoplatonismo de Plotino a crítica da felicidade, como é entendi­ da por estóicos e aristotélicos (Enn., I, 4), é acompanhada pelo conceito de que a B. é inati­ va porque indiferente a toda realidade externa. "Os seres bem-aventurados estão imóveis em si e basta-lhes ser o que são: não se arriscam a ocupar-se com nada, pois isso os faria sair do seu estado; mas essa é a felicidade deles, pois, sem agir, realizam grandes coisas e não fazem pouco permanecendo imóveis em si mesmos" (ibid., II, 2,1). A partir do neoplatonismo, podese dizer que o conceito de B. se foi distinguin­ do cada vez mais do de felicidade, ligando-se estreitamente à vida contemplativa, ao aban­ dono da ação e à atitude de reflexão interior e de retorno para si mesmo. A tradição cristã agiu no mesmo sentido, vinculando a B. a uma condição ou estado, tão independente das li­ des mundanas quanto dependente da disposi­ ção interna da alma. A doutrina aristotélica da felicidade, própria da vida contemplativa, ser­ viu de modelo aos escolásticos para a elabora­ ção do conceito de beatitude. S. Tomás diz que a B. é "a última perfeição do homem", isto é, a atividade da sua faculdade mais elevada, o in­ telecto na contemplação da realidade superior,

BEM SUPREMO ou SUMO BEM

isto é, de Deus e dos anjos. "Na vida con­ templativa, o homem comunica-se com as rea­ lidades superiores, ou seja, com Deus e com os anjos, às quais se assemelha também na B." Portanto, o homem só obterá a B. perfeita na vida futura, que será inteiramente contemplativa. Na vida terrena, ele pode obter uma B. imper­ feita, em primeiro lugar por meio da contem­ plação e em segundo lugar por meio da ativi­ dade do intelecto prático que organiza as ações e as paixões humanas, isto é, com a virtude (S. Th, II, I, q. 3, a. 5). Na Idade Moderna, o con­ ceito de B. e o de felicidade foram-se distin­ guindo cada vez mais, referindo-se o primeiro à esfera religiosa e contemplativa e o segundo à esfera moral e prática. Pode-se dizer que o úni­ co filósofo que não une os dois significados por simples confusão é Spinoza, para quem a B. "é a satisfação íntima que nasce da cognição intuitiva de Deus" (Et., IV, ap. 4), identificando-a com a liberdade e com o amor do homem por Deus, que é o mesmo amor com que Deus se ama a si mesmo (ibid., V, 36, escól.). Mas como a intuição de Deus ou o amor por Deus signi­ ficam, para Spinoza, o conhecimento da ordem necessária das coisas do mundo (ibid., V, 31­ 33), o caráter místico-religioso ou contemplativo da B. identifica-se com o caráter mundano e prático da felicidade. O mesmo significado está na obra de Fichte, Introdução à vida bem-aventurada(1806). Aqui a B. é definida, tradicional­ mente, como a união com Deus: mas Fichte preocupa-se em abolir o significado contem­ plativo tradicional, não a considerando resulta­ do de um "sonho devoto", mas da própria mo­ ralidade operante (Werke, V, p. 474). No pensamento moderno, essa noção e as palavras beatitude e beato deixaram de ter um uso propriamente filosófico. Além de ter acep­ ções religiosas pejorativas, é considerada útil por alguns psicólogos, que a empregam para indicar certos estados patológicos de alegria, caracterizados pelo completo esquecimento da realidade(PIE R R E JA N E T , DeVangoisseâlêxtase, III, cap. II). BEM SUPREMO ou SUMO BEM (gr x ày a 8óv; lat. Summum honum; in. Supreme good; fr. Souverain bien; ai. Das hóchste Gut; it. Bene sommó). Noção introduzida por Aristóteles, para indicar o que é desejado por si mesmo e não em vista de outro B. É necessário que haja um B. supremo para evitar o processo ao infinito (Et. nic, I, 2, 1.094 a 18). Para Aristóteles, o B. supremo é a felicidade. Os escolásticos em­

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BIOLOGISMO

pregam essa expressão para indicar Deus mes­ mo (S. TOMÁS, S. Th., I, q. 6, a. 1). Kant conside­ rou o adjetivo "sumo" equívoco, pois ele pode significar tanto supremo (supremum) como per­ feito (consummatum). O B. supremo é a condi­ ção primeira e originária de todo B.: é, por isso, a virtude. Mas o B. perfeito é o que não é parte de um B. maior da mesma espécie; nesse senti­ do, a virtude não pode ser chamada de "B. perfeito", que é a união de virtude e felicidade (Crit. R. Pratica, Dialética, cap. II). BENEVOLÊNCIA. V. BONDADE. BENTHAMISMO. V. UTILITARISMO. BERGSONISMO. V. ESPIRITUALISMO. BERKELIANISMO. V. IMATERIALISMO. BICONDICIONAL (in. Biconditional; fr.

Bíconditionnel; it. Bicondizionale). Por esse nome ou pelo de "equivalência material" en­ tende-se comumente, na lógica contemporâ­ nea, o conectivo "se e somente se", simboliza­ do às vezes com o sinal = (cf. QUINE, Methods ofLogic, § 3). B. eqüivale, obviamente, à con­ junção das duas condicionais: "se p, então d" e "se q, então p". BIOGÉnEtICA, LEI (ai. Biogenetisches Grundgesetz). Foi assim que o biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919) chamou ao pa­ ralelismo entre o desenvolvimento do embrião individual e o desenvolvimento da espécie a que ele pertence. No que tange ao homem, "a ontogênese, ou seja, o desenvolvimento do in­ divíduo, é uma breve e rápida repetição (reca­ pitulação) da filogênese ou evolução da espécie a que ele pertence" (Natürliche Schôpfungsgeschichte, 1868; trad. it., pp. 178-189). BIOLOGISMO (in. Biologism; fr. Biologisme, ai. Biologismus; it. Biologismó). 1. Interpre­ tação do mundo físico ou do mundo humano por analogia com o organism o (v. ORGANICISMO). 2. O mesmo que vitalismo (v.). 3. A metafísica de Hans Driesch (1867-1941), enquanto "filosofia do orgânico". Driesch divi­ de a filosofia em "doutrina da ordem", que tem por objeto todo o mundo inorgânico, e "doutri­ na da vida", que tem por objeto o mundo orgâ­ nico. O pressuposto dessa subdivisão é que o organismo não é redutível às formas ou mani­ festações da ordem inorgânica; ou, em outras palavras, não é uma máquina. O que ele tem a mais em relação à máquina é a enteléquia, concebida por Driesch como uma espécie de mônada no sentido leibniziano, que determina todo o desenvolvimento de um ser vivo. A enteléquia é supra-individual e supra pessoal: o

BIOSFERA

nascimento de um homem é justamente a ma­ nifestação de uma enteléquia, manifestação que termina com a morte. Os indivíduos são, por­ tanto, partes da vida suprapessoal da enteléquia (PhüosophiedesOrganischen, 1908-9; Ordnungslehre, 1925). BIOSFERA (fr. Biosphère). Foi esse o nome dado por Le Roy à vida em sua totalidade, na medida em que está para os indivíduos assim como o pensamento está para as idéias que produz: é a força ou o princípio criador deles (L exigence idéalistique et lefait de 1 'évolution, 1927). Com a aparição do homem na Terra, começa o reino da noosfera, isto é, o reino do progresso espiritual que o homem realiza em todos os campos mediante o poder inventivo do pensamento intuitivo (La pensée intuitíve, 1929-30). BIRANISMO. V. e spir it ü a u sm o . BOA VONTADE. V. VONTADE. BOCARDO. Palavra mnemônica usada pe­ los escolásticos para indicar o quinto dos seis modos do silogismo de terceira figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa particular negativa, uma premissa universal afir­ mativa e uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Alguns homens não são pedras; todo homem é animal; logo, alguns animais não são pedras" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.15). BOM. V. BEM. BOM SENSO (in. Good sense, fr. Bon sens; it Buonsenso). Essa expressão, que não deve ser confundida com senso comum (v.), foi usada por Descartes como sinônimo de razão, na fra­ se que abre o Discurso do método: "A faculdade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, propriamente chamada de B. senso ou razão, é, por natureza, igual em todos os ho­ mens". Hoje, não se poderia mais admitir essa sinonímia. Por um lado, a razão passou cada vez mais a designar técnicas específicas (v. RAZÃO) e, por outro, o B. senso continuou de­ signando certo desequilíbrio e certa modera­ ção no juízo dos problemas comuns da vida e no comportamento cotidiano. Muitas vezes, porém, o que parece extravagante ou parado­ xal para o B. senso tem mais valor do que aquilo que se lhe conforma, porque o B. senso tem como referência apenas o sistema estabelecido de crenças e de opiniões, só podendo julgar a partir dos valores que esse sistema inclui. É muito freqüente que a ciência e a filosofia pres­ cindam do B. senso, ainda que nunca ou quase nunca possam deixar de lado as pequenas ações

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BUDISMO

cotidianas, entre as quais o B. senso estaria em seu elemento. BONDADE (lat. Bonitas; in. Goodness; fr. Bonté, ai. Gütigheit; it. Bontà). Em sentido lato, excelência de um objeto qualquer (coisa ou pessoa). Diz, p. ex., S. Tomás: "A B. que em Deus está de modo simples e uniforme, nas criaturas está de modo múltiplo e dividido" (S. Th, 1, q. 47, a. 1). As discussões dos sécs. XVII e XVIII a propósito da B. de Deus como móvel da criação (cf. LEIBNIZ, Théod, II, §§ 116 ss.) fun­ daram-se num significado mais restrito do ter­ mo, que foi expresso claramente por Baumgarten: "A B. (benignidade) é a determinação da vontade de fazer bem aos outros. O benefício é a ação útil ao outro, sugerida pela B." (Met., § 903). Nesse sentido, a B. identifica-se com o que Aristóteles chamava de benevolência (eirvoíoc) (Et. nic, VIII, 2, 1.155 b 33). Os dois significados desse termo estão vivos no uso comum. BOVARISMO (fr. Bovarisme). Termo deri­ vado do nome da famosa heroína de Flaubert (Madame Bovary, 1857), para indicar a atitude de quem cria para si mesmo uma personalida­ de fictícia e procura viver em conformidade com ela, chocando-se contra a sua própria na­ tureza e contra os fatos. O termo foi criado por Jules de Gaultier (Le bovarisme, 1902). BRAQUILOGIA (gr. PpaxtiÀoyía). No Protágomsde Platão, Sócrates contrapõe a sua exi­ gência de respostas breves e sucintas à tendên­ cia de Protágoras de fazer longos discursos, obviamente porque só através da troca de fra­ ses concisas é possível a discussão em forma de diálogo (Prot., 334 c-335 a). BRUTISMO (fr. Brutismé). Termo empregado por St.-Simon para indicar a concepção mecanicista dos fenômenos; por isso, é equivalen­ te a mecanicismo (v.). BUDISMO (in. Buddhism; fr. Bouddhisme, ai. Buddhismus; it. Buddismo). Doutrina reli­ giosa e filosófica que se originou dos ensina­ mentos de Gautama Buda (563-480 a.C. aprox.) e que foi depois desenvolvida em grande nú­ mero de diferentes tendências na índia, na Chi­ na e no Japão. Os principais textos do B. são os escritos em língua páli, chamados de Tipitaka e divididos em três grupos ou cestos: ls o Suttapitaka, que compreende os Sutra, isto é, discur­ sos ou ensinamentos atribuídos a Buda; 2° o Vinayapitaka, que compreende as regras da disciplina monástica; 3 Abhídhammapitaka, que é o "cesto" da metafísica, isto é, a seção doutrinai da coleção.

BUDISMO O B. é o m aio r e x e m p lo de relig ião p erfeita­ m e n te ateia. Sua d o u trin a fu n d am en tal re su m e se n as quatro verdades nobres: 1- a v id a é dor; 2- a cau sa da d o r é o d esejo ; 3a o b té m -se a c e ssaç ão d a d o r co m a ce ssaç ão do d esejo; 4ex iste u m ca m in h o ó c tu p lo q u e c o n d u z à ce ssa­ ção d a dor. O ca m in h o ó ctu p lo consiste: ls na ju sta v isão ; 2S n a ju sta re so lu çã o ; 3e n a ju sta lin g u ag em ; 4 S na ju sta co n d u ta ; 5" no ju s to v i­ ver; 6Q no ju s to esforço; 7S na ju sta m e n ta lid a ­ de; 8S na ju sta c o n c e n tra ç ã o . S eg u n d o o B ., o h o m e m está sujeito à lei do in c e ssa n te fluir da v id a (dharmà), q u e o leva de d esejo em d esejo , d e d o r em d or, de e n c a rn a ç ã o em e n c a rn a ç ã o . E n q u a n to o h o ­ m em n ão se lib e rta r do d esejo , estará s u b m e ti­ do ao ciclo de re n a sc im e n to s (samsara). A li­ b e rta ç ã o do d esejo , o b tid a p o r m eio d as regras m o rais acim a e d a d iscip lin a ascética (q u e o B. co m p artilh a v a co m o b ra m a n ism o e co m a p rática io g a), o b té m -se so m e n te co m a d isso ­ lu çã o da ilusão p ro d u z id a p elo d esejo (e q u e é o karmd), co m a elim in aç ão do p ró p rio d e ­ sejo e a d estru iç ão do a p e g o à v id a, q u e é o

nirvana.

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BUDISMO A s n u m e ro síssim a s esco las, seitas e te n d ê n ­ cias filosófico-religiosas q u e se o rig in aram do B. co stu m a m ser a g ru p a d a s em d u a s g ran d es ca te g o rias, c h a m a d a s, re sp e c tiv a m e n te , d e pe­ queno veículo (hinayand) e grande veículo imahayana). O p e q u e n o v e íc u lo foi o q u e p e r­ m a n e c e u m ais estrita m en te fiel ao e n sin a m e n to d o s te x to s páli. A salv aç ão está re se rv ad a ao m o n g e, isto é, ao q u e seg uiu a via da m ed itação e alca n ç o u o n irv an a. A s esco las do p e q u e n o v eíc u lo d ifu n d iram -se so b re tu d o n a ín d ia, n a B irm ân ia, n o Sião, no C am boja e no Laos. S e­ g u n d o o g ra n d e v eíc u lo , a salv aç ão p o d e ser o b tid a p o r q u a lq u e r fiel, atrav és da p ie d a d e e d a ca rid a d e p ara co m as o u tra s criatu ras, p elo q u e o n irv an a d eix a de ser lib e rta çã o in d iv idu al p ara to rn ar-se lib e rta çã o do g ê n e ro h u m a n o e, em g eral, do m u n d o . O g ra n d e v eíc u lo d i­ fu n diu-se so b re tu d o n o T ib ete, n a C hina e no Japão. (Cf. DAS GUPTA, A History of índian Philosophy, I, 1922, p p . 78 ss.; G. T u cci, Storia delia filosofia indiana, 1957, p p . 64 ss.; S.

RADHAKRISHNAN, History ofPhilosophy Eastern and Western, I, 1952.)

c C. 1. Na lógica medieval, todos os silogis­ dos ou então, como ocorre mais freqüen­ mos indicados com palavras mnemônicas que temente, os cálculos podem tirar seu nome começam por C são redutíveis ao segundo dos objetos por eles designados, ou seja, a que modo da primeira figura (Celareni) (cf. PEDRO se referem {Introduction to Semantics, 2- ed., HISPANO, Summ. log., 4. 20). 1959, p. 230). Nesse segundo sentido, o C. 2. Na notação de Lukasiewicz, usa-se para in­ proposicional é o estudo formal dos conecdicar o condicional ou a implicação lógica, mais tivos lógicos (v. CONECTTVOS) e os seus teoremas comumente simbolizado por "c" (A. CHURCH, são constituídos pelas fórmulas que podem derivar das fórmulas primitivas com a aplica­ Introduction to Mathematical Logic, ne 91). CALCULO (in. Calculus; fr. Calcul- ai. Be- ção sucessiva das regras primitivas de infe­ rechnung; it. Calcoló). Entende-se hoje por esse rência. O C. funcional, por sua vez, tem como termo qualquer método ou procedimento de­ objeto as funções proposicionais (v. FUNÇÃO) e, dutivo, isto é, que seja capaz de efetuar infe­ além dos conectivos, utiliza o quantificador rências sem recorrer a dados de fato. C. são, p. universal (v. OPERADOR). O C. das classes ou ál­ ex., os procedimentos da matemática e da ló­ gebra das classes trata de classes ou conjuntos gica. Esse significado genérico do termo já fora determinados por funções proposicionais ou proposto por Hobbes, que definia a própria ra­ predicados e dá lugar a fórmulas que são ex­ zão como um cálculo. "A razão, dizia ele, não pressões nas quais se reitera o símbolo = ou * é senão um C, isto é, uma adição ou subtração (desigual). A álgebra das classes é isomórfica das conseqüências dos nomes gerais reuni­ com o C. funcional porque coincide com ele dos para definir e exprimir os nossos pensa­ no seu significado (v. ÁLGEBRA DA LÓGICA). En­ mentos" (Leviath., I, 5). Leibniz chamou de fim, a álgebra das relações é o estudo formal "C. filosófico" a ciência universal ou caracterís­ das relações (v.). tica universal(v.) em que ele via o instrumento CÁLCULO COMBINATÓRIO. V COMBINA da invenção conceituai (Op., ed. Erdmann, pp. TÓRIA, ARTE. 82 ss.). Carnap faz a distinção entre C. e siste­ CÁLCULO HEDONÍSTICO (in. Hedoníc ma semântico, no sentido de que, "enquanto Calculus). Foi esse o nome que Bentham deu os enunciados de um sistema semântico são in­ ao quadro completo dos móveis da ação huma­ terpretados, afirmam alguma coisa e por isso na, que serviriam de guia para qualquer legisla­ são verdadeiros ou falsos, no cálculo os enun­ ção futura. O quadro compreende a determina­ ciados são considerados do ponto de vista pu­ ção da medida da dor e do prazer em geral; em ramente formal". Para sublinhar essa distinção, segundo lugar, uma classificação das várias es­ às vezes os elementos do C. são chamados de de prazer e de dor; em terceiro lugar, fórmulas e os elementos do sistema semântico, pécies uma classificação das diversas sensibilidades de proposições (Foundations ofLogic andMa- dos indivíduos ao prazer e à dor. Pelo primei­ thematics, §9). ro aspecto, o prazer e a dor são considerados Carnap também observou que os cálculos como entidades passíveis de serem pesadas e podem tomar o nome dos sinais ou das ex­ medidas, estando, portanto, sujeitas a um C. ri­ pressões que neles aparecem; nesse sentido, goroso. Esse C. versará sobre a intensidade, a diz-se cálculo dos enunciados ou dos predica­ duração, a certeza, a proximidade, a fecundidade

CALENDES

e a pureza do prazer (Principies ofMoral and Legislation, 1789) (v. DF.ONTOLOGIA). CALENDES. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o sexto modo do silogismo de primeira figura (isto é, Celantes), com a diferença de assumir como pre­ missa maior a proposição em que entra o predicado da conclusão. P. ex.: "Todos os ma­ les da vida são males passageiros; todos os males passageiros não devem ser temidos; logo, nenhum dos males temíveis é um mal desta vida" (ARNAULD, Log, III, 8). CALVO, ARGUMENTO DO. V. MONTÀO, ARGUMENTO DO. CAMESTRES. Palavra mnemônica usada pe­ los escolásticos para indicar o segundo dos quatro modos do silogismo de segunda figura, mais precisamente o que consiste em uma pre­ missa universal afirmativa, uma premissa uni­ versal negativa e uma conclusão universal ne­ gativa, como p. ex.: "Todo homem é animal; nenhuma pedra é animal; logo, nenhuma pedra é homem" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4, 11). CAMPO (in. Field; fr. Champ ai. Feld; it. Campo). Conjunto de condições que possibili­ tam um evento; ou limites de validade ou de aplicabilidade de um instrumento cognoscitivo. Dizia Kant: "Os conceitos têm um C. próprio na medida em que se referem a objetos, prescin­ dindo da possibilidade do conhecimento dos próprios objetos, e o C. é determinado unica­ mente pela relação que o objeto tem com a nossa faculdade de conhecer em geral" (Crít. doJuízo, intr. § 11). Em física, C. significa ''dis­ tribuição contínua de algumas condições pre­ dominantes, através de um contínuo" onde a palavra "condição" indica uma grandeza qual­ quer, que pode variar segundo o problema de que se trata. Quando a condição é adequada­ mente descrita para cada ponto do espaço por um número simples (isto é, por um escalar), tem-se o que se conhece por campo escalar. P. ex., a temperatura é a condição de um C. e por isso a distribuição da temperatura por meio do volume é um exemplo físico de C. escalar (D'ABRO, NewPhysícs, capítulo X). Analoga­ mente, em psicologia, p. ex., na psicologia da forma, onde o conceito foi assim ilustrado: "O que determina a impressão de cor que experi­ mentamos em um ponto circunscrito do C. vi­ sual é o estado excitável global do C. visual; o que determina a impressão de um peso que levantamos não é somente a tensão do grupo

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CANON

muscular imediatamente ligado ao levantamen­ to do peso, mas também o tônus de todo o resto da musculatura" (KATZ, Gestaltpsychologie, 3; trad. it., pp. 29-30). Mais precisa e generica­ mente, K. LEWIN definiu o C, entendido como o "espaço vital" de um organismo, como "a totali­ dade dos eventos possíveis", da qual derivaria o comportamento do próprio organismo (Prin­ cipies ofTopologicalPsychology, 1- ed., 1936, p. 14). Dewey emprega a palavra em sentido ge­ nérico: "É sempre em algum C. que se verifica a observação deste ou daquele objeto. Tal ob­ servação é feita com o fim de descobrir o que aquele C. representa em relação a alguma res­ posta ativa de adaptação com que dar prosse­ guimento a um comportamento" (Logic, Intr., trad. it., p. 111). Essa noção é usada com mais precisão em lógica, entendendo-se por C. de uma relação o conjunto do dominante e do dominante in­ verso da relação; isto é, dos termos que estão em dada relação com este ou aquele termo (dominantes) ou dos termos com que este ou aquele termo se acha em dada relação (domi­ nantes inversos) (v. RELAÇÀO). Esse conceito também foi usado na teoria do significado (cf. A. P. USHENKO, The Field Tbeoty 0/Meaning, 1958) e em lingüística, em que o C. foi enten­ dido como a rede de associações que interli­ gam um termo a muitos outros termos (ULMANN, Semantics, 1962, IX, 1). CANCELAMENTO (ai. Durchstreichung). Em Ideen (I, § 106) Husserl chama de C. a negação de uma crença ou a tomada de posi­ ção contra ela. CANON (gr. ravtòv; in. Canon; fr. Canon; ai. Kanon; it. Cânone). Critério ou regra de escolhas para um campo qualquer de conheci­ mento ou de ação. É provável que esse termo tenha sido introduzido pelo escultor Policleto, que deu esse título a uma obra na qual descre­ via a simetria do corpo e indicava as regras e as proporções que o escultor deve respeitar (40, A, 3 Diels). Epicuro chamou de canônica a ciência do critério; para ele, critério é a sensa­ ção no domínio do conhecimento e o prazer no domínio prático (DIÓG. L., X, 30). Esse termo foi retomado pelos matemáticos do séc. XVIII e Leibniz o emprega para designar "as fórmulas gerais que dão o que se pede" (Mathematische Schriften, VIII, 217), p. ex., a fórmula que dá dois números cuja soma e subtração se conhe­ cem, ou a que dá as raízes de uma equação. Stuart Mill chama de C. as regras que exprimem

CAOS os q uatro m é to d o s d a p e sq u isa e x p erim en ta l, isto é, co n co rd ân cia, diferença, re síd u o s e v aria­ ções co n co m ita n tes (Logic, II, 8, § 1 ss.). K ant en tend e p o r C. o u so leg ítim o de u m a faculda­ de h u m an a em geral; p o r isso, co n sid e ra a ló ­ gica geral co m o u m C. p ara o in te le cto e a razão no q u e ta n g e à form a (já q u e p re sc in d e de q u alq u er c o n te ú d o ); co n sid e ra a analítica tran scen dental co m o "o C. do in te le cto p u ro " e cham a de "C. da ra zã o pura" o co n ju nto de princípios a priori do u so leg ítim o d e certas faculdades co g n o scitiv as em g eral. O n d e n ão é possível o u so leg ítim o de u m a facu ld ad e, não há C; p o r isso, a d ialética tra n sc e n d e n ta l, isto é, o u so esp ecu la tiv o da ra zã o , n ão tem u m C. ou p elo m en o s n ão tem u m C. te o rético , mas p o d e ter a p e n a s u m p ara u so p rático (Crít. R. Pura, D outr. do m é to d o , cap . II). P or o u tro lado, ele fala de C. do ju íz o m oral, assim e x ­ presso: "D eve-se p o d e r q u e re r q u e a m áx im a da nossa ação se to rn e lei u niversal" (Grundlegung zur Met. der Sitten, II). N a filosofia m oderna e n a filosofia c o n te m p o râ n e a , e m ­ prega-se m ais fre q ü e n te m e n te o te rm o critério (v.), N o en ta n to , às v ez es C. ta m b é m é e m p re ­ gado no sen tid o trad icio n al. D ew e y ch am a de C. os p rin cíp io s ló g ico s de id e n tid a d e , co n tra ­ dição e terceiro e x c lu íd o (Logic, cap. XV II). CAOS (gr. %ácoç). P ro p ria m e n te : ab ism o hiante. E stado d e co m p leta d e so rd e m an terio r à formação do m u n d o e a partir do q ual se ini­ cia tal form ação, s e g u n d o os m itó lo g o s. D iz H esíodo: "A ntes de to d o s os sere s h o u v e o C, depois a T erra de larg o seio" (Teog., V , 116). Aristóteles co m b ateu essa n o ção (Fís, IV, 208 b 31 ss.) p o rq u e adm itia a e te rn id a d e do m u n d o . Kant utilizou-a p ara indicar o estad o original da matéria, de q u e os m u n d o s d ep o is se o rig in a­ ram (Allgemeíne Naturgeschichte oder Theorie

des Himmels, 1755, Pref.). CARACTERES (ai. Charakters). Assim Avenarius (Kritik der reinen Erfahrung, 1888-90)

cham ou u m d os d ois fatores de q u e se co m ­ põe o m u nd o da ex p eriên cia, m ais p recisam en te aquele q ue co n siste n as d e te rm in a ç õ e s em o ti­ vas, existenciais, p rátic as e, em g eral, v a lo rativas d os elementos q u e co n stitu em o o u tro fator da p ró p ria ex p eriên cia. A ssim , são C. o prazer, a dor, o ser, a aparên cia, o certo, o in­ certo, e tc , ao p asso q u e as s e n sa ç õ e s (sons, cores, etc.) são elementos. CARACTERISMAS (ai. Charakterismen). Para Kant, são "d esig n açõ es d os c o n c e ito s p o r

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CARÁTER m eio d e sin ais sen sív eis co n co m ita n tes" co m o as p alav ras, os g esto s, os sig n o s alg éb rico s, etc. (Crít. doJuízo, § 59). CARACTERÍSTICA (lat. Characteristicà). Leibniz preferiu d ar o n o m e de C. ou C. universal àq u ilo q u e , a n te rio rm e n te (1666), ch am ara de "arte co m b in ató ria", isto é, "a arte de fo rm ar e de o rd en ar os caracteres de m o d o q u e se refi­ ram ao s p e n sa m e n to s, isto é, d e m o d o q u e te n h a m en tre si a m esm a relação q u e existe e n ­ tre os p ró p rio s p e n sa m e n to s". O s caracteres n ão são s e n ã o sinais escrito s, d e s e n h a d o s ou e s c u lp id o s. O s fu n d a m en to s da arte co m b in ató ria são e x p re sso s p elo p ró p rio L eibniz no livro Fundamenta calculi, ratiocinatoris (Op., ed. E rd m an n , p p . 92 ss.) do seg u in te m o d o : T o d o s os p e n sa m e n to s h u m a n o s p o d e m ser re d u z id o s a p o u c a s n o ç õ e s prim itivas; se tais n o ç õ e s forem e x p re ssa s com cara cte re s, isto é, co m sím b o lo s, é p o ssív el form ar os sím b o lo s d as n o ç õ e s d eriv ad as e, assim , p assar a d ed u zir tu d o o q u e está im p lícito n as n o ç õ e s prim itivas e n as d efiniçõ es. D esse m o d o , será p ossível p ro c e d e r co m certeza m atem ática ta n to à aq u i­ sição d e n o v o s c o n h e c im e n to s q u a n to ao c o n ­ tro le d o s já p o ssu íd o s e ta m b é m será possível d ete rm in a r a n te c ip a d a m e n te q u e ex p eriên cias ou n o v as n o ç õ e s são n ec essária s a u lte rio re s d e se n v o lv im e n to s do c o n h e c im e n to . A C. d e ­ veria, p o rta n to , form ar u m cálcu lo ló g ico , p ro ­ v id o de sím b o lo s e reg ras p ró p rias. K ant co m ­ p arav a a C. u n iv e rsa l de L eibniz ao te so u ro e sc o n d id o d e q u e fala u m a fábula de F edro: os filhos, a q u e m o p ai confiara a ex istên cia do te so u ro n o leito de m o rte , re m e x e m a terra e fertilizam -na, se n d o esse o ú n ico te so u ro q ue e n c o n tra m (Nova dilucidatio princípiorum metaphysicae, 1755, p ro p . II). T o d av ia, a idéia de L eibniz e as v árias te n tativ a s de realizá-la co n stitu em o p re c e d e n te h istó rico im ed iato da m o d e rn a ló g ica sim bó lica. CARACTEROLOGIA (fr. Caractérologie, ai. Charakterologie ou Cbamkterkunde, it. Caratterologia). T erm o q u e en tro u em u so n a s e ­ g u n d a m e ta d e do sé c u lo p a ssa d o p ara in d icar a ciên cia do te m p e ra m e n to ou do caráter. Cf. CARÁTER; ETOLOGIA.

CARÁTER (gr. xapocicníp, n6oç; lat. Character, Character, fr. Caractère, ai. Charakter, it. Caratterè). P ro p riam en te o sinal, ou o co n ju nto

in.

de sinais, q u e d istin g u e u m o bjeto e p erm ite re c o n h e c ê -lo facilm ente en tre os o u tro s. E m particular, o m o d o de ser ou de c o m p o rtar-se h ab itu al e c o n stan te de u m a p esso a , à m ed id a

CARÁTER q u e in d iv idu aliza e d istin g u e a p ró p ria p esso a. N esse se n tid o , d iz e m o s q u e "U m a p esso a tem u m C . b em m arcad o " ou "bem d efinido ", no sen tid o d e q u e o seu m o d o de agir revela o rie n ­ ta çõ es h ab itu ais e co n stan tes. E m sen tid o o p o s ­ to, falam os de "falta de C." ou "C. fraco", "m au C." ou "C. in co n sta n te", c o m p o rta m e n to h a b i­ tu a lm e n te d ev id o m ais a o p ç õ e s ca su ais e ca­ p ric h o sa s do q u e a u m a o rie n ta ç ã o d e te rm in a ­ da e co n stan te. O s an tig o s p o ssu ía m essa n o ç ã o . H eráclito diz q u e o C. (r|8oç, eth o s) de u m h o m e m é o seu d estin o (Fr. 119, D iels). E o aristo télico T eofrasto d e ix o u -n o s, n o te x to in titu lad o Os caracteres, a d escrição de trinta tip o s de C. m o ­ rais (im p o rtu n o , v a id o so , d e sc o n te n te , fanfar­ rão , e tc ) , d escrito s p re c isa m e n te co m b a se em su as m an ifestaçõ es h ab itu ais. E sq uecida d u ra n ­ te a Id a d e M édia, q u a n d o essa p alav ra serviu s o b re tu d o p ara d esig n a r a in d estru tib ilid ad e da o rd en aç ão sacerd otal (S. TOMÁS, S. Th., III, q. 65, a. 1 s s .), essa n o ç ã o foi re to m a d a no séc. XVII p o r L a B ru yère (Les caracteres, 1687) e v olto u a ser u sad a. K ant u tilizo u -a n a ten tativ a de c o n ci­ liar a c a u salid ad e n atu ra l e a c a u salid ad e livre. C ada causa eficiente d ev e ter u m caráter, isto é, "um a lei da sua cau salid ad e, sem a qual n ão s e ­ ria causa". U m o bjeto do m u n d o sen sív el tem , em p rim eiro lugar, u m C. empírico, p elo q ual os seu s atos, co m o fe n ô m en o s, estão v in cu lad o s ca u salm en te aos o u tro s fen ô m en o s, em co n fo r­ m id ad e co m as leis natu rais. M as o m esm o o bje­ to ta m b é m p o d e ter u m C. inteligível, "pelo qual ele é a causa d a q u e le s atos co m o fe n ô m en o s, m as, p o r si m esm o, n ão está sujeito a n en h u m a co n d ição sen sív el e n ão é fe n ô m en o ". S o b re o caráter inteligível p o d e -se d izer "que dá início p o r si m esm o ao s seu s efeito s n o m u n d o , sem q ue a ação co m ec e n e le m esm o "; e co m essa distinção, K ant acredita ter conciliado lib e rd ad e e n atu re za (Crít. R. Pura, A n tin o m ias da ra­ zão p ura, § 3). C om m e n o s m etafísica (e m ais clareza), em Antropologia, ele d istin g u e u m C. físico, q u e é o sinal d istin tiv o do h o m e m co m o ser natural, e u m C. moral, q ue é o sinal do h o ­ m em co m o ser racio n al, p ro v id o de lib e rd ad e. O C. físico d iz "o q u e se p o d e fazer do h o ­ m em ; o C. m oral diz o q u e o h o m e m é cap az de fazer de si m esm o" (Antr, II, a). S c h o p e n h au er u tilizou a d istin ção k an tian a en tre C. em p írico e C. inteligível p ara n e g a r a lib e rd ad e: tu d o o q u e o h o m e m faz seria a m an ifestação de um C. inteligível in ato e im u táv el (Die Welt, I, § 55; Neue Paralipomena, § 220).

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CARÁTER

A d istin çã o k an tia n a de d o is C , u m n a tu ­ ral e im u tável e o u tro m o ral e livre, é to ta lm e n ­ te a b a n d o n a d a n a an tro p o lo g ia c o n te m p o râ ­ n ea , q u e , to d av ia, d á g ra n d e d e s ta q u e à n o ­ çã o d e caráter. M as n a in te rp re ta ç ã o d essa n o ç ã o , p o d e -se d izer q u e a an tro p o lo g ia c o n ­ te m p o râ n e a a ssu m e u m ou o u tro d o s dois co n ce ito s em q u e K ant d istin g u ira essa n o ç ão , isto é, ou en te n d e o C. co m o u m a form ação n atu ral e in ev itáv el q u e o h o m e m traz co n sig o e n ão p o d e m odificar, ou o e n te n d e co m o um a form ação d ev id a às esco lh as do h o m e m e, p o r­ ta n to , livre e m o dificáv el. F arem o s m e n ç ã o a p e n a s a alg u m as d as p rin cip a is p o siç õ e s, q u er n u m sen tid o , q u e r n o o u tro . A teoria d os tipo s p sic o ló g ic o s de J u n g p e rte n c e à p rim eira te n ­ d ên cia p o rq u e c o n sid e ra o C . co m o u m a o rie n ­ tação p red o m in an tem e n te in co n scien te, devida a d isp o siçõ es o rg ân icas ou ao fu n d a m en to in s­ tintivo. O C. d e u m h o m e m é a d ire çã o em q u e o co rre o e n c o n tro en tre esse h o m e m e o m u n ­ d o, ou en tre esse h o m e m e a so c ie d a d e : é o c o m p le x o de atitu d es ou d isp o siç õ e s p ara agir ou reag ir em certa d ireção . O ra, n o e n c o n tro en tre o h o m e m e o m u n d o , são p o ssív e is d u as atitu d es fu n dam en tais: ou o h o m e m p ro cu ra d o m in a r o m u n d o , isto é, os o b jeto s ex te rn o s, assu m in d o u m a atitu d e ativa, positiva, criadora, ou en tã o p ro c u ra sim p le sm e n te d efe n d e r-se d ele, fech an d o -se em si o m ais p o ssível; a p ri­ m eira a titu d e é a extrovertida, q u e p ro d u z ab ertu ra, so c ialid ad e, isto é, freqüência de re la­ çõ es co m os o utro s; a s e g u n d a é a introvertida, q u e in d ica fe ch am e n to , tim id ez e, em to d o caso, relutância em relacio n ar-se com os outros e co m as co isas {Tipospsicológicos, 1913). Essa classificação de J u n g ficou cé le b re e é co m u m e n te e m p re g a d a m esm o sem referên cia às s u a s b a se s te ó ric a s. A m esm a n o ç ã o de C. co m o d a d o irred u tív el, estru tu ra o rig in ária e co n g ê n ita , n ão m odificável p ela s e sco lh as do in d iv íd u o , é c o m p artilh a d a p o r L e S en n e , para q u e m o C. é "o sistem a in v ariáv el das n e c e ssi­ dades que se encontram , p or assim dizer, no li­ m ite en tre o o rg ân ico e o m en tal" (Traité de caractérologie, p. 1). S ó q u e , p ara L e S en n e, o C. n ão co n stitu i a to ta lid ad e do h o m em : é só u m d o s ele m e n to s d a sua p e rso n a lid a d e e esta co m p ree n d e , além do C , ta m b é m elem en to s li­ v re m e n te a d q u irid o s, q u e p o d e m co n trib u ir para especificar o p ró p rio C. em u m sen tid o ou em o u tro . O C. é, p o rta n to , u m lim ite objetivo , in trín seco à p ró p ria p e rso n a lid a d e , d a esco lh a q u e a p e rs o n a lid a d e p o d e fazer liv rem en te de

CARÁTER si m esm a; m as co m o lim ite é algo de co n g ên ito e, em si m esm o , de im u tável. P o rta n to , p ara Le S enne, a d e te rm in a ç ã o d ev id a ao C. n ã o é n ecessitan te, a p e sa r d e o rig in ária e re la tiv a­ m ente im u tável. E m b o ra n esse p o n to L e S en n e se ap o ie n u m fu n d a m en to e sta b e le c id o p o r A dler (de q u e falarem os a d ia n te ), p ara ele a n oção de C , é u m a d e te rm in a ç ã o ou c o m p lex o de d e te rm in a ç õ e s o rig in árias e im odificáveis, isto é, co n tin u a p resa a u m significado q u e n ão distingue C. de temperamento (v.). E sse c o n c e i­ to de C. faz da lib e rd a d e e do d ete rm in ism o na p erso n alid ad e h u m a n a d u as forças d istin tas e recip ro cam en te au tô n o m a s: u m a re sid e n o eu e a outra no C. (ou n o te m p e ra m e n to ), re p ro ­ duzindo, em lin g u a g e m d iferen te, o d u a lism o kantiano de C. inteligível e C. em p írico . A d o u trin a d e A dler, p o rém , fugiu a esse dualism o. P ara A dler, o C. é a m an ifestação objetiva, verificável atrav és da ex p e riê n c ia s o ­ cial, da p ró p ria p e rs o n a lid a d e h u m a n a . N ão só o C. é u m "con ceito social", no sen tid o de q u e só se p o d e falar de C. re fe rin d o -se à c o n e x ã o de u m h o m e m co m o seu am b ie n te , m as ta m ­ bém os traço s ou as d isp o siç õ e s q u e co n sti­ tuem o C. são v erificáv eis a p e n a s so c ialm en te . A s m an ifestaçõ es do C. "são s e m e lh a n te s a um a linha diretiva q u e ad e re ao h o m e m co m o u m esq u e m a e lh e p e rm ite , sem m uita refle­ xão, ex p rim ir a sua p e rso n a lid a d e o rig in al em cada situação" (Menscbenkenntniss, 1926, II, 1; trad. it., p p. 150 ss.). E ssas m an ifestaçõ es n ão exprim em n e n h u m a força ou su b strato in ato, m as são a d q u irid as, ain d a q u e m u ito ced o . S ubstancialm ente, o C. é o m o d o co m o o h o ­ m em tom a p o siç ão d ian te do m u n d o n atu ra l e social; e A dler b aseia sua av aliação em dois pontos d e referên cia: a v o n ta d e de p o d e r e o sentim ento social, q u e, co m su a ação re c íp ro ­ ca, constituiriam os asp ecto s b ásico s do caráter. "Trata-se", d iz ele, "de u m jo g o de forças, cuja forma de m an ifestação ex te rio r caracteriza o que nós ch a m a m o s de C." (Ibid, 1926, II, 1; trad. it., p. 176). S ch eler, p o r sua v ez , faz u m a distinção radical en tre p esso a e C. A p esso a é o sujeito d os atos in te n c io n a is e, p o rta n to , é o correlato de u m m u n d o , m ais p re c isa m e n te do m undo em q u e ela vive. O C, ao co n trá rio , é a constante h ip o tética x q u e se assu m e p ara ex ­ plicar as açõ es p articu lares de u m a p esso a. P o r­ tanto, se u m h o m e m ag e de form a n ão c o rre s­ pondente às d e d u ç õ e s q u e tín h a m o s ex traíd o da im agem h ip o te tic a m e n te assu m id a do seu caráter, d ev em o s estar d isp o sto s a m u d a r essa

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CARDEAIS, VIRTUDES im ag em . M as a p e sso a n ã o p o d e m udar.- p o r­ ta n to , n ão p o d e ser afetada p ela s m u d a n ç a s de C , assim co m o n ã o é afetad a p ela d o e n ç a p sí­ q u ica q u e so m e n te a o cu lta (Formalismus, pp. 501 ss.). E ssa se p a ra ç ã o nítida en tre C. e p e s ­ so a , q u e , em S ch eler, se d e v e ao p rim a d o m etafísico q u e ele atrib u i à p esso a, n ão e n c o n ­ tra eq u iv alê n cia n a an tro p o lo g ia c o n te m p o râ ­ n ea, cujos traço s, m ais co m u n s e im p o rta n tes n o q u e se refere à d o u trin a do C , p o d e m ser assim re c a p itu la d o s: Ia o C . é a m an ifestação objetiva d a p e rso n a lid a d e h u m a n a ou é essa m esm a p e rso n a lid a d e n o seu asp ecto objetivo, da form a co m o é a p re e n d id a p ela ex p eriên cia h u m a n a co m u m ou p e la s té cn ic as d e in v esti­ g a ç ã o d a p e rso n a lid a d e (v. PERSONALIDADE); 2o C. d istin g u e-se do temperamento (v.) p o rq u e n ão é u m d a d o p u ra m e n te o rg ân ico co m o este ú ltim o e p o rq u e n ão é u m e le m e n to im utável e n e c essitan te , m as re su ltad o d as o p ç õ e s feitas p o r u m in d iv íd u o , c o n sistin d o n as co n stan tes o b serv á v e is d as su a s o p ç õ e s; 3Q tais o p ç õ e s n ão são a b so lu ta m e n te livres n em n ec essária s, m as c o n d ic io n a d a s p o r e le m e n to s o rg ân ico s, am b ie n tais, sociais e tc ; e, em su a s co n stan tes o b serv á v e is, d elin e ia m u m projeto de compor­ tamento n o q ual c o in cid e m o C . e a p e rso n a li­ d ad e do h o m e m . CARÁTER POÉTICO (it. Carattere poéti­ co). S eg u n d o V iço, os p rim eiro s h o m e n s c o n c e ­ b e ra m as co isas in icialm en te m e d ia n te "C. fan­ tástico s de su b stân cia s a n im a d a s e m u d as", isto é, ato s ou c o rp o s q u e tiv essem alg u m a relação co m as id éias, e d e p o is co m "C. d iv in o s e h e ­ ró ico s", m ais ta rd e e x p lic a d o s co m p alav ras v u lg ares (Scienza nuova, YlAA, p assim ): nessas lo c u ç õ e s o b v ia m e n te a p alav ra "caráter" está p o r sinal ou sím b o lo . CARDEAIS, VIRTUDES (lat. Cardinales virtudes-, in. Cardinal virtues; fr. Vertues cardinales-, ai. Kardinaltugenden; it. Virtú cardinalt). A ssim fo ram ch a m a d a s p o r Sto. A m b ró sio (Deoff. ministr., I, 34; De Par, III, 18; De sacr, III, 2) as q u a tro v irtu d e s de q u e fala P latão em República e q u e estã o en tre as q ue A ristó te le s c h a m a v a de v irtu d e s m o rais ou éticas, a sab er: p ru d ê n c ia , ju stiça, te m p e ra n ç a e fortaleza. S. T o m ás p ro c u ro u m o strar a o p o r­ tu n id a d e d e sse q u a lifica tiv o , d e m o n s tra n d o q u e só as v irtu d es m o rais p o d e m ser ch am ad as de C. ou p rin cip a is, p o is só elas ex ig em a d isci­ plina d o s d esejo s (rectitudo appetitus), na qual co n siste a v irtu d e perfeita; p o r isso, d ev em ser assim d e n o m in a d a s as v irtu d e s m o rais às q uais

CARIDADE to d as as o u tras se re d u z e m , isto é, as q u a tro acim a referidas (S. Th, II, 1, q. 51) (v. VIRTUDE). CARIDADE (gr. àyá7cr|; lat. Caritas; in. Charity, fr. Charité, ai. Náchstenliehe, it. C «ritã). É a v irtu d e cristã fu n d a m en tal p o rq u e co n siste n a realiza çã o do p re c e ito cristão fun­ d am en tal: "Ama o p ró x im o co m o a ti m esm o ". S. P au lo foi q u e m m ais insistiu n a s u p e rio rid a ­ de da C. em re la ção às o u tra s v irtu d e s cristãs, q u ais sejam a fé e a e sp e ra n ç a . "A C. tu d o su p o rta, em tu d o tem fé, tu d o su sten ta ... A gora ex istem a fé, a e sp e ra n ç a e a C , essa s três coisas; m as a C. é a m aio r de to d as" (Cor, I, 13, 7, 13). Para S. P au lo , a C. é, s u b sta n c ia l­ m e n te , o v ín c u lo q u e m a n té m lig a d o s os m e m b ro s d a c o m u n id a d e cristã e faz d essa c o m u n id a d e o p ró p rio "corpo de C risto". E m seg u id a, a filosofia cristã v iu n a C. so b re tu d o a lig ação en tre o h o m e m e D eu s. S. T o m ás d e ­ fine a C. co m o "a am iza d e co m D eu s" e diz: "Essa so c ie d a d e do h o m e m co m D eu s, q u e é q u a se u m a co n v ersa fam iliar co m E le, co m eç a n a v id a p re s e n te p o r m e io d a g ra ç a e se ap erfeiço a no futuro p o r m eio da glória; u m a e outra são m an tid a s p ela fé e p ela esp era n ç a" (S. Th, II, 1, q. 65, a. 5). S o b re o c o n ce ito do am o r cristão, v. AMOR. N a lin g u ag em co m u m , essa p alav ra às v e z e s é e m p re g a d a n o lu g ar de b en eficên cia, isto é, p ara in d icar a atitu d e de q u e m q u e r o b e m do o u tro e se co m p o rta g e ­ n e ro sa m e n te p ara co m ele. M as a lin g u ag em co m u m ta m b é m c o n h e c e e u sa o significado co rreto d esse te rm o , ao d izer, p. ex., q u e "É preciso u m p o u c o de C." a q u e m ju lg a com d e ­ m asiada sev e rid a d e o seu p ró x im o : n e sse caso , o b v iam en te, C. significa am o r ou c o m p ree n são

(v. AMOR). CARNE (gr. oápÇ ; lat. Caro; in. Flesh; fr. Chair, ai. Fleisch; it. Carne). N a te rm in o lo g ia do Novo Testamento, esp ecialm en te em S. Paulo,

é alg o d ife re n te do c o rp o . A C . ou c a rn a lid a d e é a av e rsã o ou a re sistê n c ia à lei de D eu s, e p o r isso o p e c a d o ou a o rie n ta ç ã o para

o pecado (p. ex., S. PAULO, Ad Rom, VII, 14;

VIII, 3, 8, etc. Cf. BULTMANN, Theologie desN. T, 1948, p. 223). O m esm o se n tid o co n se rv o u -se na lin g u ag em co m u m e n a p re g a ç ã o m oralista. Esse term o foi u sa d o em se n tid o d ife re n te p o r M erleau-P onty (Levisible etVinvisible, 1964), ao falar da "C. do m u n d o " co m o da su b stân cia viva co m u m ao co rp o do h o m e m e às coisas do m u n d o , q u e co n stitu i, ao m esm o te m p o , o objeto e o sujeito d as ex p e riê n c ia s h u m a n a s.

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CASAMENTO

CARTESIANISMO. C o n ju n to d o s fu n d a ­ m en to s tra d ic io n a lm e n te co n sid e ra d o s co m o típ ico s da d o u trin a d e D esca rte s e aos q u ais se faz h a b itu a lm e n te referên cia ta n to no sen tid o de aceitar q u a n to de refutar. P o d em ser re su m i­ d o s do s e g u in te m o d o : 1Q caráter o rig in ário do cogito co m o au to -e v id ê n c ia do sujeito p en sa n te e p rin c íp io de to d a s as o u tra s ev id ên cias; 2° p re se n ç a d as idéias no p e n sa m e n to , co m o ú n i­ cos o b jeto s p assív eis d e c o n h e c im e n to im ed ia­ to; 3Q caráter u n iv e rsa l e a b so lu to da ra zã o q ue, p a rtin d o do cogito e v a le n d o -s e d as id éias, p o d e ch eg ar a d esco b rir to d as as v e rd a d e s p o s­ síveis; 4k fu n ção su b o rd in a d a , em re la ção à ra ­ zã o , d a ex p e riê n c ia (isto é, da o b se rv a ç ã o e do ex p erim en to ), q u e só é útil p ara d ecidir n o s ca­ sos em q u e a razão ap resen ta alternativas eq u i­ v alen tes; 5a d u a lism o d e su b stân cia p e n sa n te e su b stân cia ex ten sa, p elo q ual cad a u m a d elas se c o m p o rta se g u n d o lei p ró p ria: a lib e rd a d e é a lei da su b stân cia esp iritu al; o m ec an ism o é a lei da su b stân cia ex ten sa. E m se n tid o estrito , o C. te v e re p re se n ta n te s na H o lan d a (H en riq u e R égio, 1598-1679; P ierre D aniel H uèt, 1630-1721; G ilberto V oêtius, 1589­ 1676), en tre os P ad res do- O rató rio e os Jan sen istas (A n to in e A rn au ld , 1612-94; P ierre N ico le, 1625-95), atrav és d os q u ais d eu o rig em à ló g ica d e P ort-R oyal, e e n tre os o casio n alistas (A rnold G eu lin g x , 1624-69; N . M a leb ra n c h e , 1638-1715) (v. OCASIONALISMO; ESCOLÁSTTCA). Em se n tid o m ais la to , p o d e m se r c o n sid e ra d a s co m o d ese n v o lv im e n to s do C. da d o u trin a s de S p in o za, de L eibniz e m esm o de L ocke, q ue d ele extraíram um ou o u tro fundam ento. N a fi­ losofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a , p e rm a n e c e ­ ram co m o características do C . so b re tu d o o l s, o 2- e o 4Q fu n d a m en to s. CASAMENTO (gr. yá(J.oç; lat. Matrimonium; in. Marriage, fr. Mariage, ai. Ehe, it. Ma­ trimônio). Q u a lq u e r p ro jeto de v id a em c o ­ m u m en tre p e sso a s de se x o s d iferen tes. Esta é a d efin ição g en era liza d a , q u e leva em co n tra a v a rie d a d e de form as assu m id as p elo C. em g ru ­ p o s so ciais d iferen tes, b em co m o os d iv ersos c o n c e ito s ex iste n tes so b re o assu n to . O s c o n ­ ceito s e x iste n tes p o d e m ser a g ru p a d o s do s e ­ g u in te m o d o : l e) C. co m o in stitu ição natural. Foi co n c e b i­ do d esse m o d o p o r P latão , q u e viu n a "socie­ d ad e co n ju gai o p rin cíp io e a o rig em de to d os os E stados" (Leis, IV, 721 a), e p o r A ristóteles, q u e c o n sid e ro u a fam ília co m o algo "anterior e m ais n ec essário q u e o E stado" (Et. nic, 8, 12,

CASA DOS PLANETAS 1162 a 18 e ss.); c o n tu d o , ta n to P latão q u a n to A ristóteles ac h av am in d isp e n sá v e l q u e o E sta­ do interviesse p ara re g u la m e n ta r as m o d a lid a ­ des do C. N este caso, o fim ex clu siv o do C. é a procriação e a e d u c a ç ã o d a p ro le. 2Q) C. co m o in stitu ição contratual. É d essa forma q ue foi e n te n d id o p e lo d ireito ro m a n o e pelo direito c a n ô n ic o . N esse caso , m esm o c o n ­ siderando q u e seu fim é a p ro c ria ç ã o e a e d u ­ cação d a p ro le, d e ste se d istin g u e a. forma, ou essência, do C , c o n sid e ra d o co m o asso ciação ou co m u n h ão de v id a (consortium omnis vitae, DÓG. XXI, 23, 2), ou e n tã o co m o "algum a c o n ­ ju n ção in d isso lú v el de alm as", co m o diz S. T o ­ m ás (S. Th, III, 1. 29, a. 2), cuja co n d iç ã o in d is­ p en sável é o consentimento, e x p re s s o n as formas esta b e le cid as p ela lei civil ou relig io sa. Kant insistia no asp e c to co n tra tu al do C , defi­ nindo-o co m o "u n ião de d u a s p e sso a s d e sex o diferente para a p o sse re cíp ro c a de su as facul­ dades sex u ais d u ra n te to d a a vida"; c o n sid e ­ rou-o co m o fonte de u m d ireito real, além de p essoal, n o s e n tid o d e q u e ca d a u m a d as duas p esso as é a d q u irid a pela outra co m o c o i­ sa, m as viu na re c ip ro c id a d e d essa aq u isição o resgate da p e rs o n a lid a d e d o s d o is cô n ju g es (Met. derSitten, I, § 24-25). H eg el, ao co n trá ­ rio, insistia n a u n id a d e ético-sen tim en tal do C: ''O C. não é e s se n c ia lm e n te u n iã o m e ra m e n te natural, b estial, n e m p u ro co n tra to civil, m as união m oral do s e n tim e n to , do am o r e d a c o n ­ fiança m ú tu a, q u e tran sform a d u as p e sso a s em um a" (PhilosophíscbePropüdeutik, I, § 51; Ene, §519; Fil. dodir, § 162). 3a) C. co m o in stitu ição social. Esse é o p o n ­ to de vista d o s an tro p ó lo g o s e so c ió lo g o s q u e encontraram n o s d iv erso s g ru p o s h u m a n o s to ­ das as form as p o ssív eis de C: de u m h o m e m e um a m u lh er, de u m h o m e m e v árias m u lh e ­ res, de v ário s h o m e n s e v árias m u lh ere s (cf., p. ex., W . N. STEPHENS, The Family in CrossCultural Perspective, 1963). D esse p o n to de vista, L évi-Strauss c o n sid e ro u as reg ras do C. com o u m a e sp é c ie d e lin g u a g e m , u m tip o de comunicação, m ais e s p e c ific a m e n te a co m u n icação d as m u lh e re s n o se io d e u m grupo (Structures élémentaires de Ia parente, 1949; cf. Anthropologiestructurale, 1958, p p . 69 ss.). CASAS DOS PLANETAS (lat. Domus planetaruní). C. d o s p lan etas é o n o m e q u e os astrólogos (cf. P ic o DEIXA MIRANDOLA, Adv. astrol. divin, V I, III) d ão às d o z e p o siç õ e s em q ue os p la n e ta s se en c o n tra m , s e g u n d o

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CATALÉPTICA, REPRESENTAÇÃO as q u a is e x e rc e m d ife re n te s in flu ê n c ia s s o ­ b re a v id a h u m a n a . CASUALISMO (in. Casualism-, fr. Casualisme, it. Casualismó). D o u trin a s e g u n d o a qual o ac aso n ão é so m e n te e x p re ssã o da ig n o rân ­ cia h u m a n a a re sp e ito d as cau sas d e certos a c o n te c im e n to s, m as u m a co n d iç ã o ou situ a­ ção objetiva d e in d e te rm in a ç ã o n as p ró p rias coisas. P eirce ch am o u essa d o u trin a de tiquismo {Chance, Love and Logic, II, 3; Coll. Pap., 6.47 ss.), d e lú /T l, q u e na re a lid a d e significa sorte. U m C. rad ical é o su s te n ta d o p o r W ittg en stein . "Fora da lógica tu d o é acaso", diz ele (Tractatus, 6.3). D ev e-se le m b rar q u e a ló g ica trata so ­ m e n te de tautologiasiv.), q u e n ad a significam . CASUÍSTICA (in. Casuistry, fr. Casuistique, ai. Kasuistik, it. Casistica). A nálise e classifica­ ção d os "casos de co n sciên cia", isto é, d o s p ro ­ b le m a s q u e n ascem da ap lica çã o das n o rm as m o rais ou relig io sas à v id a h u m a n a . N a A nti­ g ü id a d e , os cínico s e os estó ic o s tiv eram u m a casu ística. H o u v e e há u m a C. cristã, q u e, a p artir de Pascal, m u itas v e z e s foi acu sad a (Provinciales, 1657) de m o ra lid a d e relax ad a e c o ­ m o dista. A ex ig ên cia de u m a C. m o ral foi e n ­ carad a p o r K ant, q u e esclareceu o seu co n ce ito da se g u in te form a: "A ética, p ela am p la m ar­ g em q u e c o n c e d e ao s d e v e re s im p erfeito s, c o n d u z in ev itav elm en te a q u e stõ e s q u e levam o ju íz o a ter de d ec id ir co m o a n o rm a d ev e ser ap lica d a ao s caso s p artic u la re s ou q u e n o rm a p artic u la r (su b o rd in ad a) fo rn ec er p o r sua v ez (d esse m o d o , p o d e m o s s e m p re p e rg u n ta r q ual é o p rin cip io de ap lica çã o d essa s n o rm a s, s e ­ g u n d o os caso s q u e se a p re se n ta m ); e assim , a ética d e se m b o c a n a C ". A C . n ão é ciência n em p arte de ciên cia, p o is n e sse caso seria dogm ática, m as é "um exercício q ue ensina com o a v e rd a d e d ev e serprocurada" (Met. der Sitten, II, Intr., 18, n o ta). CATALÉPTICA, REPRESENTAÇÃO (gr

(pocvTOcaíoc KaTaAji7iTiKr|; lat. Fantasia comprehensiva, ai. Kataleptische Vorstellung, it. Rappresentazione cataletticd). C ritério da v e rd a d e , s e g u n d o os estó ico s, q u e c h a m a ra m de C , ou seja, co m p ree n siv a, a re p re s e n ta ç ã o ev id en te ou q u e to rn a e v id en te o o bjeto q u e a p ro d u z. S eg u n d o u m te ste m u n h o de C ícero (Acad., II, 144), Z en ão atrib u ía o sign ificad o da re p re s e n ­ ta çã o C . à su a c a p a c id a d e de a p re e n d e r ou c o m p re e n d e r o o bjeto : p o r isso, co m p ara v a a m ão ab erta à re p re s e n ta ç ã o p u ra e sim ples; a m ão q u e faz o g esto d e ag arrar, ao a sse n tim e n ­ to; a m ão em pun ho , à com preensão C; as duas

CATARSE

mãos estreitadas, uma sobre a outra, à ciência. Entretanto, segundo Diógenes Laércio (VII, 46) e Sexto Empírico (Adv. math, VII, 28), a repre­ sentação C. é a que provém do real subjacente e é impressa e marcada por ele de tal modo que é conforme com ele. Em outros termos, a repre­ sentação C. é o ato do intelecto que apreende o objeto ou é o ato do objeto que se imprime no intelecto; em ambos os casos, garante a presen­ ça do objeto e a conformidade da representação com ele. Os céticos, de Arcesilau em diante, pu­ seram em dúvida o critério da representação C, negando que se pudesse ter certeza da verdade de uma representação qualquer (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 162-64). CATARSE (gr. KáGapotç). Libertação do que é estranho à essência ou à natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe. Esse termo, de origem médica, significa "purga­ ção". Platão define a C. como "a discriminação que conserva o melhor e rejeita o pior" (Sof, 226 d). E lembra a existência de livros de Mu­ seu e Orfeu, segundo os quais "os adeptos ce­ lebram sacrifícios persuadindo cidadãos e cida­ des inteiras de que existem absolvições e purificações dos atos injustos, por meio de sa­ crifícios e jogos aprazíveis, tanto para os vivos como para os mortos". Empédocles chamou de Purificações (icá0ocp|iot) um dos seus poemas que, precisamente, se inspirava no orfismo. Em Platão, esse termo tem acepção moral e meta­ física. Designa, em primeiro lugar, a libertação em relação aos prazeres (Fed., 67 a, 69 c); em segundo lugar, a libertação da alma em relação ao corpo, no sentido de que a alma se separa ou se retira das atividades físicas e realiza, já em vida, a separação total, que é a morte (Ibíd, 67 c). Plotino insistirá neste último aspecto; para ele a virtude purifica a alma dos desejos e de todas as outras emoções, no sentido de que separa a alma do corpo e faz que a alma se re­ colha em si mesma e se torne impassível (Enn., I, 2, 5). Aristóteles utilizou amplamente esse termo em seu significado médico, nas obras sobre história natural, como purificação ou purgação. Mas foi o primeiro que o usou para designar também um fenômeno estético, qual seja, uma espécie de libertação ou serenidade que a poe­ sia e, em particular, o drama e a música provo­ cam no homem. "A tragédia", disse ele, "é imi­ tação elevada e completa da ação, que tem certa extensão, pela linguagem e diversas espé­ cies de adornos distribuídos em suas várias

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CATÁSTROFE

partes; imitação realizada por atores e não em forma narrativa e que, suscitando o terror e a piedade, chega à purificação de tais afetos" (Poet., 1449 b, 24 ss.). É muito curioso que Aristóteles, apesar de examinar todos os ele­ mentos da tragédia, não se demore na explica­ ção do que é C; isso quer dizer que, aí, utiliza a palavra no sentido geral de serenidade e cal­ ma, embora não de ausência total de emoções; sentido que se coaduna com o que ele diz so­ bre a música, em Política. Nessa obra, observa que algumas pessoas, fortemente abaladas por emoções como piedade, medo e entusiasmo, ao ouvirem cantos sacros que impressionam a alma, "encontram-se nas condições de quem foi curado ou purificado". Todas as outras emoções também podem sofrer "purificação e agradável alívio". E "as músicas mais aptas a produzir purificação transmitem uma alegria inocente aos homens" (Pol., VIII, 7, 1.342 a 17). Das muitas interpre­ tações sobre a C. estética, prevalece a de Goethe (Nachlese zu Aristot. Poetik, 1826), para quem ela consistiria no equilíbrio das emoções que a arte trágica induz no espectador, depois de ter suscitado nele essas mesmas emoções, e por­ tanto, na sensação de serenidade e pacificação que ela proporciona. Se bem que haja algo de semelhante em Aristóteles, é preciso observar que, para ele, o significado da C. estética não é diferente do da C. médica ou moral: uma espé­ cie de tratamento das afecções (físicas ou espi­ rituais) que não as anula mas as reduz a di­ mensões em que são compatíveis com a razão. Na cultura moderna, o termo C. foi usado quase exclusivamente como referência à fun­ ção libertadora da arte. Freud às vezes chamou de C. o processo de sublimação da libido (v. AMOR), pelo qual a libido se separa do seu con­ teúdo primitivo, ou seja, da sensação voluptuo­ sa e dos objetos a ela ligados, para concentrarse em outros objetos que serão amados por si mesmos. Segundo Freud, a esse processo de C. ("sublimação") são devidos todos os progres­ sos da vida social, a arte, a ciência e a civiliza­ ção em geral, pelo menos na medida em que dependem de fatores psíquicos (v. PSICANÁLISE). CATASSILOGISMO (lat. Catasyllogismus). Contrademonstração. Esse termo é empregado por João de Salisbury (Metalogicus, IV, 5) com referência ao verbo contrademonstrar usado por Aristóteles (An. pr., II, 19, 66 a 25). CATÁSTROFE (in. Catastrophe, fr. Catastrophe, ai. Katastrophe, it. Catástrofe). Qual­

CATECISMO

quer teoria que procure explicar o desen­ volvimento de uma realidade mediante re­ viravoltas radicais e totais que ocorreriam pe­ riodicamente. Assim, Cuvier (Discours sur les révolutions du globe, 1812) explicava a extin­ ção das espécies animais fósseis através de C. gerais que, periodicamente, teriam destruído as espécies vivas de cada espécie geológica, per­ mitindo que Deus criasse novas espécies. Em 1833, o geólogo inglês Lyell, em Principies of Geology, propunha a tese, depois universal­ mente aceita, de que o estado atual da Terra não se deve a uma série de C, mas à ação len­ ta, gradual e insensível das causas que agem continuamente sob nossos olhos. No domínio político, a teoria da C. foi adotada por Sorel {RéflexionssurIa violence, 1906), que concebia a passagem do capitalismo para o socialismo como uma C, cuja reviravolta escapa a qual­ quer descrição. É verdade que Sorel acrescen­ ta não ser indispensável que tal C. se realize (não se realizou nem mesmo a que era espera­ da pelos primeiros cristãos), mas basta que ela valha como um "mito". Cf. ATIVISMO; MITO. CATECISMO (in. Catechism, fr. Catéchisme, ai. Katechismus; it. Catechísmo). Kant dividiu o método de questionário (ou erotéticó) em catequético, em que só se recorre à memória de quem é interrogado, e díalogístico ou socrãtico, com que se recorre ao que está con­ tido na razão do interrogado e por isso é pas­ sível de explicitação ou desenvolvimento (Met. derSitten, II, Intr., § 18, nota). Contudo, Kant considera indispensável um C. moral que deve­ ria ter precedido o C. religioso, do qual seria independente (Ibid., § 51). O positivismo oitocentista mostrou certa predileção por C. filosó­ ficos e filosófico-políticos. St. Simon compilou um (C. dos industriais, 1823-24) e Augusto Comte escreveu um que ficou muito famoso (C. positivista, 1852). Isso aconteceu porque o positivismo muitas vezes se apresentou como religião "científica", que deveria suplantar a re­ ligião tradicional. CATEGOREMATICO (lat. Categoremata; in. Categorematic, fr. Catégorématique-, ai. Kategorematisch; it. Categorematicõ). Na gramá­ tica e na lógica medieval são assim chamadas as partes do discurso significantes por si mes­ mas, como o sujeito ou o predicado, enquanto as outras são chamadas de sincategoremãticas (v.). É provável que essa expressão derive da distinção, feita pelos estóicos, entre "discurso perfeito", que tem sentido completo (p. ex.,

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CATEGORIA

"Sócrates escreve"), e discurso imperfeito, que carece de algo (p. ex., "Escreve" que dá origem à pergunta "Quem?") (DIÓG. L, VII, 63). Na for­ ma que depois se tornou lugar-comum na ló­ gica medieval, essa distinção pode ser vista pela primeira vez no tratado anônimo do séc. XII, De generibus et specíebus, editado por Cousin (CEuvres inédites d'Abélard, p. 531). Ela é constantemente repetida na lógica posterior (cf. PEDRO HISPANO, Summ. Log, 1.05). CATEGORIA (gr. KaTriyopía; lat. Praedicamentum; in. Category, fr. Catégorie, ai. Kategorie, it. Categoria). Em geral, qualquer noção que sirva como regra para a investigação ou para a sua expressão lingüística em qualquer campo. Historicamente, o primeiro significado atribuído às C. é realista: elas são consideradas determinações da realidade e, em segundo lu­ gar, noções que servem para indagar e para compreender a própria realidade. Foi essa a concepção de Platão, que as chamou de "gêne­ ros supremos" e enumerou cinco desses gê­ neros, a saber: o ser, o movimento, o repouso, a identidade e a alteridade (5 o/, 254 ss.). Assim como alguns desses gêneros estão interligados e outros não, também as partes do discurso, isto é, as palavras, se interligam, e quando essa mescla corresponde à real, o discurso é verda­ deiro; caso contrário é falso {Ibid, 263 ss.). Essa correspondência entre a realidade e o dis­ curso, através das determinações categoriais, é também a base da teoria da Aristóteles. Este, porém, parte de um ponto de vista lingüístico: as C. são os modos em que o ser se predica das coisas nas proposições, portanto os predicados fundamentais das coisas. Enumera dez categorias, exemplificando como segue: 1Q Substância, p. ex.: homem ou cavalo; 2° Quantidade, p. ex.: dois côvados; 3a Qualida­ de, p. ex.: branco; 4e Relação, p. ex.: maior; 5e Lugar, p. ex.: no liceu; 6a Tempo, p. ex.: on­ tem; 7a Posição, p. ex.: está sentado; 8a Ter, p. ex.: usa sapatos; 92 Agir, p. ex.: cortar; IO2 5bfrer, p. ex.: ser cortado (.Top., I, 9, 103 b 20 ss.; Cat., 1 b 25 ss.). A relação entre as C. e o ser é assim explicada: "Porquanto a predicação afir­ ma às vezes o que uma coisa é, às vezes a sua qualidade, às vezes a sua quantidade, às vezes a sua relação, às vezes aquilo que faz ou o que sofre e às vezes o lugar onde está ou o tempo, segue-se que tudo isso são modos do ser" (Mel, V, 7, 1017 a 23 ss.). Esse conceito de C. como determinação pertencente ao próprio ser e do qual o pensamento deve servir-se para conhe-

CATEGORIA cê-lo e ex p rim i-lo em p ala v ras d u ro u m u ito tem p o ; e p o r m u ito te m p o as esco las filosóficas ou os filósofos só d isc o rd a ra m q u a n to ao n ú ­ m ero ou a d istin ção d as categ o rias. A ssim , os estó ic o s re d u z ira m -n a s a q u a tro : su b stân cia , q u a lid a d e , m o d o d e ser e relação (SIMPLÍCIO, In Cat., f. 16 d). P lotino reto rn o u aos cinco g ê ­ n ero s su p re m o s de P latão (Enn., V I, 1, 25). N a Id a d e M édia, a ú n ica altern ativ a à d o u trin a do fu n d a m en to real d as C. é o seu ca rá ter p u ra ­ m e n te v erb al, d efe n d id o p e lo n o m in a lism o . O ck h am afirm a cla ra m e n te q u e as C. n ão p a s ­ sam de sig n o s d as co isas, sig n o s sim p les com os q u ais p o d e m ser c o n stitu íd o s "com p lexo s" v erd ad eiro s ou falsos (De corpore Christi, 15; In Sent., I, d. 30, q. 2, I). P o rta n to , a d istin ção das C. n ã o im p lica u m a d istin çã o p ara le la en tre os o b jeto s reais, já q u e n em s e m p re a c o n ­ ceito s ou a p ala v ras d istin tas c o rre s p o n d e m co isas distintas. A s C. de su b stân cia , q u a lid a d e e q u a n tid ad e, em b o ra distintas co m o co n ceito s, significam a m esm a coisa (QuodL, V , q. 23). Essa n e g a ç ã o rad ical da re a lid a d e d as C. d eriva d a n e g a ç ã o to tal q u e o n o m in a lism o m e d ie ­ val fazia de q u a lq u e r re a lid a d e u n iv ersal. Esse p o n to de v ista e q ü iv a le a c o n sid e ra r as C. co m o sim p les nomes q u e se referem a classes de objeto s. A d o u trin a d e K ant n ad a tem a v er co m esse n o m in a lism o , e m b o ra ta m b é m n e g u e o re alis­ m o da c o n c e p ç ã o clássica. P ara K ant as C. são os m o d o s p elo s q u ais se m anifesta a ativ id ad e do in telecto , q u e co n siste, esse n cia lm e n te , "em o rd e n a r d iv ersas re p re s e n ta ç õ e s so b u m a re ­ p re se n ta ç ã o co m u m ", isto é, em ju lg ar. Elas são , p o rta n to , as form as do ju íz o , isto é, as form as em q u e o ju íz o se ex p lica, in d e p e n d e n ­ te m e n te do seu c o n te ú d o em p írico . P or isso, as C. p o d e m ser ex traíd a s d as classes do ju íz o , e n u m e ra d a s p ela ló g ica form al. "D esse m o d o ", diz K ant, "surgem tan to s co n ceito s p uros do in­ tele cto , q u e se ap licam a priori ao o b jeto s da in tu iç ão em g eral, q u a n tas eram as funções ló ­ gicas em to d o s os ju íz o s p o ssív e is n o q u a d ro p re c e d e n te (isto é, n a classificação d o s ju íz o s); p o rq u e as c h a m a d a s funções esg o tam c o m p le ­ ta m e n te o in electo e p õ e m à p ro v a o seu p o ­ der" (Crít. R. Pura, A nal. d os c o n ce ito s, § 10). A s C. são os c o n ce ito s p rim itiv os do in telecto p u ro e co n d icio n am to d o o c o n h e c im e n to in te­ lectu al e a p ró p ria ex p eriên cia; m as elas n ão se ap licam às co isas em si, e o c o n h e c im e n to q u e d ela s se v a le (isto é, to d o o c o n h e c im e n ­ to h u m a n o ) n ão p o d e e ste n d e r-se , p o rta n to , a

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CATEGORIA tais "coisas em si" ou "n ú m en o s". A s categ o rias são , to d av ia, co n d iç õ e s da validade objetiva do c o n h e c im e n to , isto é, do ju íz o em q u e o c o n h e c im e n to se co n cretiza. C om efeito, um ju íz o é u m a c o n e x ã o en tre re p re se n ta ç õ e s, m as tal c o n e x ã o n ão é sub jetiv a, lo g o n ã o v a le só p ara o sujeito iso lad o q u e a efetua, m as é feita em co n fo rm id ad e co m u m a categ o ria, isto é, s e g u n d o u m m o d o , u m a regra q u e é igual para to d o s os sujeitos e q u e , p o rta n to , co n fere n e ­ ce ssid a d e e o b jetiv id a d e àq u ilo a q u e se ligou na p e rc e p ç ã o (Prol., § 22). A d o u trin a de K ant so b re as C. p o d e , p o r isso, ser re d u z id a a dois p o n to s fu n d am en tais: 1Q as C. d izem re sp e ito à re la ção sujeito -o b jeto e, p o r isso, n ào se ap li­ cam a u m a ev e n tu a l "coisa em si" q u e esteja fora d essa relação ; 2a as C. co n stitu em as d e ­ te rm in aç õ es d essa relação e são, p o rtan to , v áli­ das p ara q u a lq u e r ser p e n sa n te finito. K ant en u m e ra v a d o ze C , c o rre s p o n d e n te s às d o ze classes d e ju íz o s: I- C. de quantidade, u n id a ­ de, m u ltip licid a d e , to ta lid ad e ; 2- C. de quali­ dade, re a lid a d e , n e g a ç ã o , lim itação; 3a C. de relação-, in erên cia e su b sistê n c ia (su b stân cia e a c id e n te ), ca u sa lid a d e e d e p e n d ê n c ia (causa e efeito), c o m u n h ã o (ação recíproca); A- C. de mo­ dalidade, p o ssib ilid a d e -im p o ssib ilid a d e , existê n c ia -in ex istê n c ia , n e c e ssid a d e -c o n tin g ê n c ia . O c o n c e ito k a n tia n o d as C. c o n tin u o u p re ­ v a le c e n d o n a filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ ­ n ea, se b em q u e m esm o os filósofos m ais es­ trita m e n te k a n tia n o s n ã o te n h a m en tra d o n um ac o rd o so b re o "quadro" d as categorias. E m g e ­ ral, os n eo criticistas p ro c u ra ra m sim plificar e u nificar esse q u a d ro ; R en o uv ier, p. ex., co n si­ d ero u fu n d am en tal a C. relação (já q u e a c o n s­ ciên cia é relação ) e c o n sid e ro u as o u tras (nú­ m e ro , e x te n s ã o , d u ra ç ã o , q u a lid a d e , devir, força, finalidade, p erso n a lid ad e) co m o d eterm i­ n a ç õ e s e esp ecific aç õ e s dela (Essai de critique générale, I, 1854, p p . 86 ss.). E C o h en co n sid e ­ ro u co m o C. fu n d am en tal a do sistema, p or­ q u e a u n id a d e do o b jeto , em q u e se funda a u n id a d e da n atu re za , é u m a u n id a d e sistem áti­ ca (Logik, p. 339). M as, em b o ra n ão te n h a havi­ do filó so fo de in sp iraç ão k an tia n a q u e n ã o te­ n h a d eseja d o criar seu q u a d ro de C , o co n ceito k a n tia n o p e rm a n e c e u in alte rad o p ara to d a a p arcela da filosofia m o d e rn a q u e se in sp ira em K ant. T od av ia, esse c o n ce ito n ão é o ú n ico na filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a . O co n cei­ to trad icio n al de C. co m o "d eterm in a çã o do ser" foi re to m a d o p elo id ea lism o ro m ân tico e, em esp ecial, p o r H eg el. E ste c o n sid e ra as C.

CATEGORIA com o "d eterm in a çõ es do p e n sa m e n to " e atri­ bui a F ichte o m érito de h av er afirm ado a ex i­ gência da sua "d ed u ção ", isto é, da d e m o n s tra ­ ção da sua n e c e ss id a d e {Ene, § 43). M as na verdade, p ara H eg el, as d e te rm in a ç õ e s do p e n ­ sam ento são , sim u lta n e a m e n te , as d e te rm in a ­ ções d a re a lid a d e (pela id e n tid a d e , p o r ele form ulada, entre re a lid a d e e razão) e, h a b i­ tualm ente, ch am a essas d e te rm in a ç õ e s de "m o­ m entos", e n ão de C. A ú n ica C. q u e ele re c o ­ nhece v e rd a d e ira m e n te co m o tal é a p ró p ria realid ad e-p en sam en to , isto é, a a u to c o n sc iê n cia, o eu ou a razão. E m Fenomenologia (I, cap. V , § 2), diz: "O eu é a ú nica esse n cia lid a d e p ura do en te ou a C . simples. A C , q u e de o u tro m odo tinh a o sign ificad o de ser a essen cialidade do en te, esse n c ia lid a d e in d e te rm in a d a do en te em g eral ou do en te co n tra a c o n sc iê n ­ cia, agora é esse n c ia lid a d e ou sim p les u n id a d e do ente, c o n sid e ra d o a p e n a s co m o re alid ad e pensante: ou seja, a C. co n siste no fato de au to consciência e ser sere m a m esm a coisa". Q u e r dizer: a C. n ão d ev e ser c o n sid e ra d a co m o um a determ inação do ser em g eral, m as co m o a consciência e, p o rta n to , a p ró p ria re alid ad e. Essa teoria do eu e da co n sc iên c ia ou do esp íri­ to com o única C. p erm a n e ce u lu g ar-co m u m de todas as form as de id ea lism o ro m â n tic o . S im e­ tricam ente o p o sta à d e H eg el é a d o u trin a de H eidegger, p ara q u e m a C. n ão é a d e te rm in a ­ ção da au to co n sciên cia ou ao eu, m as do ser das coisas. H eid e g g er faz a d istin çã o en tre os existenciais (Existentialen), q u e são as d ete rm i­ nações do ser e da re a lid a d e h u m a n a , do seraí (Dasein), e as o u tras C , q u e são "d eterm i­ nações do ser dos entes n ão conform es ao ser-aí": isto é, d eterm in açõ es do ser d as co isas (Sein undZeit, § 9). N a filosofia c o n te m p o râ n e a , e n c o n tra -s e tanto a reto m ad a da c o n c e p ç ã o clássica e da concepção k an tiana da C , q u a n to n o v a s g e n e ­ ralizações so b re seu significado: le A c o n c e p ­ ção clássica da C. co m o "d eterm in a çã o do ser" é retom ada p o r N . H artm an n , q u e co n sid e ra as C. com o as estru tu ras n ec essária s do ser em si. Tais estruturas p ro d u z e m a estratificaçào do m undo n um a série de planos. E xistem as C. fundam entais, q u e p e rte n c e m a to d o s os p la ­ nos do ser, e q ue são as C. m o dais; há as C. bipolares (q u alidade-q uantid ad e; co n tín u o -d e scontínuo; form a-m atéria, etc.) e, em te rc eiro lu ­ gar, as C. do real, q u e d e te rm in a m os ca ra c­ teres da realidade efetiva e q u e se d iv id em em quatro g rupos, c o rre sp o n d e n te s ao p rin cíp io

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CATEGORIA do v a lo r, ao p rin c íp io d a c re n ç a , ao p rin ­ cípio d a p lan ificação e ao p rin cíp io da d e p e n ­ d ên cia (Aufbau der realen Welt, 1940). 2Q A c o n c e p ç ã o k an tia n a de C. co m o co n d iç ã o do o bjeto e o e n c a m in h a m e n to p ara a c o n c e p ç ã o in stru m e n ta l da C. u n e m -se na d o u trin a de H usserl. P ara ele, a n o ç ã o de C. v in c u la -se à de região antológica e d esig n a o c o n c e ito q u e se r­ v e p ara definir u m a re g ião em g eral ou o q u e en tra n a definição de u m a reg ião p articu lar (p. ex., "a n atu re za física"). O s c o n ce ito s q u e e n ­ tram n a d efinição d e u m a re g ião em g eral — e p o r isso são e m p re g a d o s n o s ax io m as ló g ico s — são ch a m a d o s p o r H usserl de "C. lógicas", ou "C. da região ". S ão os c o n ce ito s d e p ro ­ p rie d a d e , q u a lid ad e , relação d e co isas, relação , co n ju n to , n ú m e ro , etc. T êm afin id ad e com es­ sas ca te g o rias as c h a m a d a s "C. do significado", in eren te s à essê n cia da p ro p o siç ã o . C. ló g icas e C. do significado são analíticas. Já os conceitos q u e e n tram n a co n stitu iç ão d os ax io m as re g io ­ n ais são c h a m a d o s p o r H usserl de C. sintéticas. "Os c o n ce ito s fu n d am en tais sin tético s ou C ", d iz H usserl, "são os co n ce ito s re g io n ais funda­ m en tais (referem -se p o r essê n cia a u m a reg ião d e te rm in a d a e ao s seu s p rin cíp io s sin tético s), d e tal m o d o q u e h á ta n to s g ru p o s d istin to s de C. q u a n tas são as regiões" (Ideen, I, § 16). Para H u sserl, as C. têm s e m p re caráter o bjetivo , já q u e as re g iõ e s o n to ló g ic as, cujos ax io m as ser­ v e m p ara ex p rim ir, são as form as da objetivida­ de: ou da o b jetiv id a d e em g eral ou de u m a o b jetiv id a d e específica. T am b ém ex istem , p o r­ tan to , "C. do substrato" (Ibid., § 14), q u e se d i­ ferenciam d as p re c e d e n te s C. "sintáticas" (isto é, d eriv ad as) p o rq u e se referem a su b strato s in d eriv áv eis, isto é, d e n atu re za co n creta e in d i­ v id u al: a essê n cia m aterial e o "este aqui", q ue, no fundo, é o in d iv ídu o (Ibid, § 16). N essa co n ­ c e p ção h u sserlian a de C , p rev alecem os traços realistas, em b o ra o o bjeto ou as re g iõ e s o n to ló g icas d e q u e H usserl fala ain d a sejam o b je­ tos da in te n c io n a lid a d e da co n sciên cia. 3Q E m alg u m as o u tras c o rre n te s da filosofia c o n te m ­ p o râ n e a , co m o p. ex. n o em p irism o ló g ico , as C. são c o n sid e ra d a s reg ras c o n v e n c io n a is q u e re g e m o u so d os co n ce ito s. A ssim , p. ex., Ryle ch a m a de "tipo ou categ o ria ló g ica de u m c o n ­ ce ito o c o n ju n to d e m o d o s n o s q u a is, p o r c o n v e n ç ã o , é lícito u tilizar o te rm o resp ectiv o " (Concept ofMind, Intr., trad. it., p. 4). Essa é, ce rta m e n te , a n o ç ã o m e n o s d o g m ática e m ais g eral de C. q u e a filosofia p ro p ô s até hoje, m as ain d a c o n tém certo d o g m atism o , p o is lim ita as

CATEGORIAL

C. às já estabelecidas pelo uso lingüístico co­ mum, negando implicitamente a validade de qualquer nova proposta. Contudo, cientistas, fi­ lósofos e pesquisadores em geral sempre exer­ ceram o direito de propor novas C, isto é, novos instrumentos conceituais de investiga­ ção e de expressão lingüística. Donde a neces­ sidade de formular a noção de categoria exata­ mente como a de tal instrumento: noção que, além de tudo, tem a vantagem de caracterizar igualmente bem a função efetiva de todos os conceitos de C. historicamente propostos. CATEGORIAL (in. Categoria!; fr. Catego­ ria! ; ai. Kategorial; it. Categoriale). Que concer­ ne às categorias ou se refere às categorias, por­ tanto diferente de categórico (v.), que significa certa espécie de juízos. Assim, Hartmann deu o nome de "análise C." à análise dos estratos do ser determinados pelas categorias (Der Aujbau der realen Welt, 1940). E fala-se de "erro C." para indicar a troca de uma categoria por outra (p. ex., RYLE, ConceptofMind, I, § 2). CATEGÓRICO (gr. KaTnyopiKÓÇ; in. Categorical; fr. Catégorique, ai. Kategorisch; it. Categórico). Em geral, uma proposição ou um raciocínio não limitado por condições. Come­ çou-se a chamar de C. o silogismo aristotélico (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, II, 163) depois que os estóicos elaboraram a teoria do raciocínio hipotético (v. ANAPODÍTICO). É muito provável que os estóicos considerassem que a teoria aristotélica do silogismo houvesse sido absor­ vida por sua teoria dos raciocínios hipotéticos, assim como consideravam absorvida em sua teoria dos axiomas ou proposições a teoria aristotélica da interpretação (v.). Mas a lógica posterior (especialmente dos aristotélicos) sim­ plesmente acrescentou as determinações estóicas às aristotélicas, falando, assim, de uma proposição C. e de uma proposição hipotéti­ ca, de silogismo C. e de silogismo hipotético. Essa terminologia foi introduzida por Marciano Capela (De nuptiis, § 404 ss.) e por Boécio na tradição latina. Diz Boécio: "Os gregos chamam de proposições C. as que são pronunciadas sem nenhuma condição, ao passo que são con­ dicionais as do tipo 'se é dia, há luz', que os gregos chamam de "hipotéticas". Correspon­ dentemente, o silogismo C. ou "predicativo" é o formado por proposições C, enquanto aquele que consta de proposições hipotéticas é cha­ mado de hipotético, isto é, condicional (Desyll. hipot., I, em P. L. 64, col! 833).

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CAUSALIDADE

Essa terminologia conservou-se durante toda a tradição lógica do ocidente e foi aceita por Kant (Crít. R. Pura, Analítica dos conceitos, § 9), que, por sua vez, ampliou a distinção, apli­ cando-a aos imperativos, isto é, às máximas da vontade. Chamou de C. o imperativo da morali­ dade, que não está sujeita a nenhuma condição e, portanto, tem uma "necessidade incondicionada e verdadeiramente objetiva", valendo, conseqüentemente, para todos os seres racio­ nais, quaisquer que sejam os seus seus desejos (GrundlegungzurMet. derSitten, II) (v. IMPERA­ TIVO). CATENOTEISMO (in. Kathenotheisni). Ter­ mo inventado pelo historiador das religiões Max Müller, para indicar a doutrina de que há um só Deus por sua vez, isto é, o monoteísmo dos Vedas, segundo o qual o mundo é gover­ nado por um único Deus de cada vez, enquan­ to as outras divindades esperam o seu turno. CAUSA EXEMPLAR. A idéia, em Deus, das coisas que ele pretende criar (v. IDÉIA). CAUSA INSTRUMENTAL (lat. Causa instrumentalis). Acréscimo às quatro causas de Aristóteles (v. CAUSALIDADE) feito pelo médico Galeno, que, contudo, admitia a superioridade da C. final sobre todas as outras; designa o que é C. em virtude de alguma outra coisa, como o ar, que pode ser C. do calor porque é aqueci­ do pelo fogo (cf. S. TOMÁS, S. Th, I, q. 45, a 5). CAUSALIDADE (gr. arcíoc, amov; lat. Causality, fr. Causalité, ai. Causalitát; it. Causalitã). Em seu significado mais geral, a conexão entre duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira. Historicamente, essa noção assumiu duas for­ mas fundamentais: Ia A forma de conexão ra­ cional, pela qual a causa é a razão do seu efei­ to e este, por isso, é a dedutível dela. Nessa concepção, a ação da causa é freqüentemente descrita como a de uma força que gera ou produz indefectivelmente o efeito. 2a A forma de uma conexão empírica ou temporal, pela qual o efeito não é dedutível da causa, mas é previ­ sível com base nela pela constância e uniformi­ dade da relação de sucessão. Essa concepção elimina a idéia de força da relação causai. A ambas essas formas são comuns as noções de previsibilidade unívoca, infalível, do efeito a partir da causa e, portanto, também a de neces­ sidade da relação causai. Ia Pode-se dizer que a primeira forma da noção de causa começa com Platão, que con­ sidera a causa como o princípio pelo qual uma

CAUSALIDADE coisa é, ou to rn a-se , o q u e é. N esse s e n tid o , afirma q u e a v e rd a d e ira cau sa de u m a coisa é aquilo q u e , p ara a coisa, é "o m elh o r", isto é, a idéia ou o e sta d o p erfeito da p ró p ria coisa; p. ex., a cau sa do d ois é a d u a lid ad e ; do g ra n d e , a grandeza; do b elo , a b eleza. D e m o d o geral, o bem é a cau sa d aq u ilo q u e ex iste d e b o m nas coisas e d as p ró p ria s co isas (Fed, 97 c ss., espec. 101 c). A o la d o d essa s ca u sas "p rim ei­ ras" ou "divinas", P latão ad m itiu d e p o is as concausas, q u e são as lim ita çõ es e n c o n tra d a s pela obra criadora do d em iu rg o e q u e co n stitu em os elem entos d e n e c e ssid a d e do p ró p rio m u n d o (Tim., 69 a ). M as a p rim eira e v e rd a d e ira a n á ­ lise da n o ç ã o de cau sa e n c o n tra -se em A ris­ tóteles. E ste afirm a, p ela p rim eira v e z (Fís., I, 1, 184 a 10), q u e c o n h e c im e n to e ciên cia c o n ­ sistem em d ar-se co n ta d as ca u sa s e n ad a m ais são além disso. M as, ao m esm o te m p o , nota que, se p erg u n tar a cau sa significa p e rg u n ta r o porquê de u m a coisa, esse p o rq u ê p o d e ser d i­ ferente e há, p o rta n to , v árias e sp é c ie s de ca u ­ sas. N um p rim eiro se n tid o , é cau sa a q u ilo de que u m a coisa é feita e q u e p e rm a n e c e na coisa, co m o , p. ex., o b ro n z e é cau sa da está­ tua e a prata é cau sa da taça. N um s e g u n d o sentido, a causa é a form a ou o m o d e lo , isto é, a essência necessária ou substância (v.) d e um a coisa. N esse s e n tid o , é cau sa do h o m e m a n a ­ tureza racional q u e o define. N um te rc eiro s e n ­ tido, é causa aqu ilo q u e dá início à m u d an ça ou ao repouso: p. ex., o au to r de u m a d e c isã o é a causa dela, o p ai é cau sa do filho e, em g eral, o que p ro d u z a m u d a n ç a é cau sa d a m u d a n ç a. Num q uarto sen tid o , a cau sa é o fim e, p. ex., a saúde é a causa de se p a sse a r (Ibid., II, 3, 194 b 16; Mel, V , 2, 1013 a-b). C ausa m aterial, causa form al, cau sa eficien te e cau sa final são , portanto, to d as as cau sas p o ssív eis, s e g u n d o Aristóteles. T rês te o re m a s fu n d a m e n ta is escla­ recem essa teoria aristo télica da cau sa. São: l9 a co n tem p o ran eid ad e d a cau sa atual e de seu efeito, com o, p. ex., da ação c o n stru to ra do arquiteto e da casa; essa c o n te m p o ra n e id a d e não se verifica na cau sa p o ten cial; 29 a h ierar­ quia das causas, pela qual é p reciso p ro cu rar sem pre a causa m ais alta: p. ex., o h o m e m constrói p o rq u e é co n stru to r, m as é c o n stru to r pela arte de construir; essa arte é p o r isso a causa m ais alta; 3a a h o m o g e n e id a d e da cau sa e do efeito, pela q ual os g ê n e ro s são cau sa d os gêneros, as co isas p artic u la re s d as co isas p a rti­ culares, o escu ltor da estátu a, as co isas atuais

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CAUSALIDADE d as co isas atu ais, as co isas p o ssív e is d as co isas p o ssív e is {Fís., II, 3, 195 b 16 ss.). M as a a d v e rtê n c ia fu n d a m en tal é q u e as q u a tro ca u sas n ão estã o no m esm o p lan o : há u m a cau sa p rim eira e fu n d a m en tal, u m porquê p riv ileg iad o , q u e é d ad o pela essê n cia racio n al da co isa, p ela su b stân cia (Depart. an, I, 1, 639 b 14). A su b stân cia é a essê n cia n ecessária, e te rn a m e n te atual, p rin cíp io d e re a lid a d e , p o r­ ta n to ta m b é m do d ev ir e n q u a n to p a ssa g e m da p o tê n c ia ao ato. D a su b stân cia d e p e n d e a n e ­ c e ssid a d e cau sai. "N as co isas artificiais", diz A ristóteles, "sendo a cau sa essa tal coisa, é p re ­ ciso , n e c e ssa ria m e n te , q u e essas o u tras coisas sejam feitas ou ex istam . A ssim ta m b é m na n a­ tu re za , se o h o m e m é isto, fará estas co isas, e se faz estas co isas, a c o n te c e r-lh e -ã o o utras" (Fís, II, 9, 200 a 35). E m o u tro s te rm o s, a n e ­ c e ssid a d e p ela q u al u m a cau sa q u a lq u e r (das q u e A ristó teles d istin g u e) ag e é a p ró p ria n e ­ c e ssid a d e p ela q ual u m a su b stân cia (p. ex., o h o m e m co m o anim al racional) é o q u e é. A n e ­ cessid ad e cau sai é, p o rtan to , a p ró p ria n ec essi­ d ad e do ser e n q u a n to ser, do ser su b stan cial: a n ecessid ad e pela q ual o q u e é n ão p o d e ser d iferen te do q u e é. A essa n e c e ssid a d e escap a so m e n te o q u e é acidental ou casual (v. ACASO). A d o u trin a de A ristó teles d em o n stra a estrei­ ta c o n e x ã o en tre a n o ç ã o de cau sa e a d e s u b s ­ tância. A cau sa é o p rin c íp io de in telig ib ilid ad e p o rq u e c o m p re e n d e r a cau sa significa c o m ­ p re e n d e r a o rg a n iz a ç ã o in tern a de u m a s u b s ­ tân cia, isto é, a ra zã o p ela q ual u m a su b stân cia q u a lq u e r (p. ex., o h o m e m , D eu s ou a p ed ra) é o q u e é e n ão p o d e ser ou agir d ife re n te m e n ­ te. P. ex., se o h o m e m é "anim al racio n al", o q u e ele é ou faz d e p e n d e d a su a su b stân cia assim definida, q u e o p era co m o força irresistível p ara p ro d u z ir as d e te rm in a ç õ e s do seu ser e do seu agir. O s estó ic o s e n te n d e ra m a cau sa co m o força p ro d u tiv a , isto é, co m o "aquilo p o r cuja ação n asce u m efeito". S eg u n d o Sexto E m pírico (Pirr. hyp, III, 14-15), eles d istin g u iram as cau sas sin éticas, co n c a u sa is e c o o p e ra n te s. A s sinéticas são as ca u sas p ro p ria m e n te d itas q u e , " q u a n d o p re s e n te s , está p re s e n te o efeito ; q u a n d o retirad as ou dim in uídas, retira-se ou d i­ m in u i ta m b é m o efeito". A s concausais são as c a u sas q u e se refo rçam m u tu a m e n te na p ro ­ d u ç ã o d e u m efeito, co m o no caso de d ois b ois q u e p u x a m o arad o . A cooperante é a cau sa q u e p ro d u z u m a p e q u e n a força, em v irtu d e d a q u al o efeito se p ro d u z co m facilid ad e:

CAUSALIDADE

como quando um terceiro vem somar-se a outros dois que carregam um peso com difi­ culdade, ajudando a sustentá-lo. Mas, para os estóicos, a causa por excelência é a sintética e, nesse sentido. Deus é causa e constitui o princípio ativo do mundo (DiÓG. L, VII, 134; SENECA, Ep, 65, 2). A filosofia medieval em pou­ co ou nada inovou o conceito da estrutura causai (porque substancial) do mundo. Sua principal contribuição é a elaboração do conceito de causa primeira, em um sentido diferente do aristotélico, isto é, não como tipo de causa fun­ damental, mas como primeiro elo da cadeia causai. A elaboração desse conceito fora obra da Escolástica árabe e, em particular, de Avicena. Em lugar da estrutura substancial do uni­ verso, cuja C. constituiria a necessidade intrín­ seca, Avícena pòe a ordenação hierárquica das causas, que remontam à Causa Primeira. Diz S. Tomás (S. Th, II, 1, q. 19, a. 4): "Em todas as causas ordenadas, o efeito depende mais da causa primeira do que da causa segunda, por­ que a causa segunda só age em virtude da cau­ sa primeira". O teorema fundamental que rege essa concatenação universal causai e o sevi ca­ ráter hierárquico é o que S. Tomás exprime di­ zendo: "Quanto mais alta é uma causa, tanto mais amplo o seu poder causai" (Ibid, I, q. 65, a. 3): teorema de franca origem neoplatônica, já que os neoplatônicos tinham reconhecido, juntamente com o caráter universal da necessi­ dade causai, a hierarquia das causas a partir da causa primeira (PROCLO, Inst. theol, 11). Um produto dessa doutrina pode ser visto no ocasíonalismo (v.), segundo o qual a única e ver­ dadeira causa é Deus, e as chamadas causas segundas ou finitas são apenas ocasiões de que Deus se serve para realizar os seus decretos (MALEBRANCHE, Recherchede Ia vérité, VI, 2, 3). O conceito aristotélico-árabe de uma ordem necessária no mundo, no qual todos os eventos encontram seu lugar e sua concatenação causai, é defendido, no Renascimento, pelos aristotélicos como pressuposto essencial do seu natu­ ralismo. Assim, Pomponazzi pretende remeter até os acontecimentos mais extraordinários e miraculosos à ordem necessária da natureza e, para isso, utiliza o determinismo astrológico dos árabes (De incantationibus, 10). A no­ ção de uma ordem causai do mundo (às ve­ zes remetida a Deus como primeira causa), se­ gundo o conceito neoplatônico e medieval, forma ainda o pressuposto e o fundamento dos primórdios da organização da ciência, com Co-

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CAUSALIDADE

pérnico, Kepler e Galileu. Essas bases são ex­ pressas em termos mecanicistas por Hobbes e, em termos teológicos, por Spinoza, mas são sempre as mesmas. Hobbes julga que a relação causai se reduz à ação de um corpo sobre o outro e que, portanto, a causa é o que gera ou destrói certo estado de coisas em um corpo (De corp., IX, 1). A causa perfeita, isto é, aquela a que segue infalivelmente o efeito, é o agregado de todos "os acidentes ativos" que existirem: com ela, o efeito já está dado (Ibid., IX, 3). A concantenção dos movimentos constitui a orde­ nação causai do mundo. Por sua vez, Spinoza, ao ver em Deus a única substância, também vê nele a única causa da qual todas as coisas e todos os eventos do mundo (os "modos" da Substância) derivam com necessidade geomé­ trica (Et, I, 29). A necessidade causai que, para Hobbes, é uma concantenação dos movimentos, para Spinoza é uma concatenação de razões, isto é, de verdades que constituem uma cadeia ininterrupta. Além disso, para Hobbes o caráter mecânico da C. não diminui sua natureza racio­ nal, já que, aliás, Hobbes vê no mecanismo a única explicação racional do mundo, no corpo e no movimento os dois únicos princípios de explicação, não reconhecendo outras realida­ des fora deles. Isso acontece porque para ele, assim como para Spinoza, prevalece a identifi­ cação, aceita por Descartes, entre causa e ra­ zão. A causa é o que dã a razão do efeito, de­ monstra ou justifica sua existência ou suas determinações. É assim que Descartes a con­ cebe quando, definindo como analítico o mé­ todo que emprega, afirma que ele "demonstra como os efeitos dependem das causas" (Secondes repouses). Isso significa que a causa é o que permite deduzir o efeito. E o significado daquele "princípio de razão suficiente" formu­ lado por Leibniz como base das verdades de fato é que explicar por meio da causa é "dar a razão" daquilo que existe. "Nada acontece", disse Leibniz (Théod, § 44), "sem que haja uma causa ou pelo menos uma razão determinante, isto é, algo que possa servir para dar a razão a priori de por que algo existe ao invés de não existir e de por que existe desse modo e não de outro". Sem dúvida, esse ponto de vista não constituía uma novidade na história da no­ ção de causa; a preeminência, reconhecida por Aristóteles, da substância como essência racio­ nal (logos) ou forma significava, precisamente, a exigência de que a causa constituísse a razão da coisa ou, em outras palavras, que tornasse

CAUSALIDADE cognoscível apriori, isto é, dedutível, a ex istê n ­ cia e os ca ra cte re s da p ró p ria coisa. Q u a n d o Leibniz diz q u e a n atu re za de u m a "sub stân cia individual" b asta "para c o m p re e n d e r e para perm itir a d e d u ç ã o d e to d o s os p re d ic a d o s do sujeito ao q u al é atrib u íd a" (Discours de métaphysique, § 8), está c o n sid e ra n d o essa n a tu re ­ za com o a razão ou a cau sa d o s ca ra cte re s e da existência da su b stân cia in d iv id u al, q u e p o ­ dem ser c o n h e c id o s apriori, isto é, d e d u z id o s a partir dela. N essas o b serv a çõ es de L eibniz ex ­ prim e-se co m to d a a clareza a ex ig ên cia q u e A ristóteles já h av ia p ro p o sto : de q u e a cau sa, e em p articular a "causa p rim eira" (no se n tid o aristotélico, n ão no m ed iev al), co n stitu a o p rin ­ cípio da d e d u ç ã o d e to d o s os se u s efeitos p o s ­

síveis (v. FUNDAMENTO).

Esse c o n c e ito p e rsiste na filosofia m o d e r­ na, sen d o c o m p a rtilh a d o ta n to p e la s d o u tri­ nas idealistas ou aprioristas quanto pelas doutrinas m aterialistas e m ecan icistas. F ichte identifica a C. com a atividade criativa do eu infinito q u e se explica e se re a liz a s e g u n d o u m a n e c e s s id a ­ de racional absoluta (Wissenscbaftslebre, 1794, § 4, C-D). H egel co n sid era a C. co m o a p ró p ria substância " e n q u a n to re fle tid a em si" (Ene, 5153), isto é, m e rg u lh a d a em su a n e c e ss id a ­ de. "A causa p e rd e -se no seu o u tro , o efeito; a atividade d a s u b stâ n c ia c a u sa i p e rd e -s e no seu operar", diz ele (WissenschaftderLogík, III, 2, 1 B). M as a substância causai é a p ró pria ra­ zão, isto é, a realidade em sua essência d escerrad a. Nessas n otas, a C. é id en tificad a co m a ra cio ­ nalidade substancial do m u n d o ou é co n sid e ra ­ da um a parte, um m o m e n to ou u m a m an ifesta­ ção dessa racion alid ad e. Serve ora p ara definir a natureza da ra c io n a lid a d e , ora p ara ser defi­ nida por ela. H egel, to m a n d o co m o p o n to de partida o étim o da p ala v ra Ursache (cau sa), v ê nela a "coisa o riginária" (Ene, § 153), isto é, a coisa que é a orig em ou o p rin cíp io d as o u tras ou de que as o u tras d eriv am , ou seja, d erivam racionalm ente, de tal m o d o q u e co n stitu em , junto com ela, o sistem a to tal da razão . A qui, o sentido atribuído à C. é o de ra cio n alid ad e p ura e o sentido atrib u íd o à ra c io n a lid a d e é o de dedutibilidade n ecessária. A re la ção ca u sai é uma relação de d e d u ç ã o . D a cau sa d ev e-se poder deduzir o efeito, e se d ed u z efetivam ente. Mais ou m en o s no m esm o p e río d o , os c ien ­ tistas elaboravam , co m b a se na e x p lic aç ão m e ­ cânica do m u n d o , um c o n c e ito de C. a n á lo g o ao de H egel, isto é, co in c id e n te co m ele na sua natureza d e relação de d e d u tib ilid a d e . O astrô ­

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CAUSALIDADE n o m o L ap lace assim ex p rim ia o ideal da ex p li­ ca çã o ca u sai na su a Teoria analítica dasprobabilidades, de 1812. "N ós d e v e m o s c o n sid e ­ rar o e sta d o p re s e n te do u n iv e rso co m o efeito do seu estado anterior e co m o causa do q ue se seg u irá. U m a in telig ên cia q u e , em d a d o in stan ­ te, c o n h e c e ss e to d as as forças d e q u e a n a tu re ­ za é an im ad a e a situ ação resp ectiv a d os seres q u e a c o m p õ e m , se fosse b a sta n te v asta para s u b m e te r esses d a d o s ao cálcu lo , ab arcaria na m esm a fórm ula os m o v im e n to s d o s m aio res c o rp o s do u n iv e rso e os do átim o m ais leve: n ad a seria in ce rto p ara ela e o fu tu ro , assim co m o o p a ssa d o , estaria d ia n te d e se u s olh os". T ais p ala v ras p e rm a n e c e ra m co m o a insígnia da ciên cia do sécu lo X IX e ex p rim em claram en ­ te o estreito n ex o q u e a in terp retação racionalista da C . esta b e le c e u , a p artir de D escartes, en tre a C. e a p rev isão infalível, e en tre a p rev isão infalível e a d e d u ç ã o apriori. E las ex p rim em , de fato, u m ideal d e s a b e r q u e p o ssa p rev er q u a lq u e r a c o n te c im e n to futuro, seja ele p e q u e ­ no ou g ra n d e , d e d u z in d o -o p o r m eio de leis im u táv eis e n ec essária s. A lg un s d e c ê n io s m ais ta rd e , C la u d e B ern ard , em sua Introdução ao estudo da medicina experimental (1865), o b e ­ d e c e n d o ao m esm o id eal, ex cluía a p o ssib ili­ d ad e d e q u e a ciên cia, m esm o n a su a ex ig ên ­ cia radical de crítica, v iesse a duvidar do princípio causai, p o r ele c h a m a d o d e p rin cíp io do d e ­ te rm in ism o ab so lu to . "O p rin cíp io a b so lu to das ciên cias ex p erim en ta is", dizia (Introduction, I, 2, 7), "é u m d e te rm in ism o n ec essário e c o n s ­ cien te n as c o n d iç õ e s d o s fe n ô m en o s. S e o co r­ re u m fe n ô m e n o n atu ra l, seja ele q ual for, um e x p e rim e n ta d o r n u n ca p o d erá ad m itir q u e haja u m a v ariaç ão na ex p re ssã o d esse fe n ô m en o , sem q u e , ao m esm o te m p o , te n h a m so b re v in ­ do co n d iç õ e s n o v as em su a m an ifestação : além d isso , ele tem a certeza a priori de q u e essas v a ria ç õ e s são d e te rm in a d a s p o r re la çõ es rig o ­ ro sa s e m atem áticas. A e x p eriên cia m o stra-n o s so m e n te a form a d o s fe n ô m e n o s, m as a re la­ ção de u m efeito co m u m a cau sa d ete rm in a d a é n ec essária e in d e p e n d e n te d a ex p e riê n c ia , e fo rç o s a m e n te m a te m á tic a e a b so lu ta ". M as, a p e sa r d essa s afirm açõ es tã o d ec id id a s d e um d o s m a io re s c ie n tista s e m e to d o lo g ista s da ciên cia do séc. XIX, a p ró p ria ciên cia seguiu o u tro cu rso , no q u e se refere à e la b o ra ç ã o e ao u so da n o ção de cau salid ad e. O s p ro g resso s do cálcu lo d as p ro b a b ilid a d e s, de alg u m as teorias físicas (e sp e c ia lm e n te a teo ria cinética d os g a­ ses), e d a m ecân ica q u ân tica fo ram d e stin a n d o

CAUSALIDADE u m e sp a ç o cad a v e z m aio r à n o ç ão de p ro b a b i­ lidade; finalm ente, a m ecân ica q uântica te n d e a su b stitu ir a n o ç ã o d e C , q u e p are cia in d isp e n ­ sáv el aos cien tistas e m e to d o lo g ista s do sécu lo p a ssa d o , p ela de p ro b a b ilid a d e . P o d e -se d izer q u e a últim a m an ifestação filosófica da teoria clássica da C. é a d o u trin a de N icolai H artm an n , q ue, em b o ra c o n sid e ran d o a re alid ad e dividida em p la n o s estratificad o s, cad a u m d o s q uais o b e d e ce a u m seu d eterm inism o p ró prio, m o ­ dela cad a tip o ou form a de d ete rm in ism o s o ­ b re a C. n ec essária da física o ito cen tista, e n te n ­ dida, na sua form a m ais rigorosa, co m o n eg aç ão d e q u a lq u e r p o ssib ilid a d e ou lib e rd a d e (Móglichkeit und Wirklichkeit, 1938). 2- A se g u n d a form a q u e a n o ç ã o de C. assu ­ m iu n a h istória é a q u e a re d u z s u b sta n c ia lm e n ­ te à re la ção de p rev isib ilid a d e certa. A s críticas q u e , d e raro em ra ro , a n o ç ão de C. en c o n tro u na filosofia an tiga te n d e m a re d u z ir essa n o ç ão à d e su c e ssã o ou de c o n e x ã o cro n o ló g ica cons­ tante, b a se d e p re v is ib ilid a d e d o s e v e n to s. A ssim , o filósofo árab e A l G azali (séc. X I), no in tu ito d e re se rv a r o p o d e r ca u sa i só p ara D eu s, n e g a n d o -o n as co isas, o b serv o u q u e o v ín cu lo verificável e n tre as co isas é certo n ex o te m p o ra l e q u e , p. ex., d ize m o s q u e a c o m b u s ­ tão é cau sad a p elo fo g o u n ic a m e n te p o rq u e o co rre ju n to co m o fogo (AVERRÓIS, Destructio destructionum, I, d úv . 3)- C om o u tro in tu ito, O ck h am , no séc. XIV, an te cip a v a a crítica de H u m e afirm and o q u e o c o n h e c im e n to d e u m a coisa n ão traz co n sig o , a n e n h u m títu lo , o c o ­ n h e c im e n to d e u m a co isa d ife re n te , de tal m o d o q u e "um a p ro p o siç ã o co m o 'o calo r e s ­ q u e n ta ' de form a alg u m a p o d e ser d e m o n stra ­ da p o r silo g ism o , m as o seu c o n h e c im e n to só p o d e ser o b tid o p o r ex p eriên cia, pois se n ão se e x p e rim e n ta r q u e , em p re se n ç a de calor, s e ­ g u e -se o calo r em u m a outra coisa, n ão se p o d e sa b e r q u e calo r p ro d u z calo r m ais do q u e se sa b e q u e b ran cu ra p ro d u z b ran cu ra" (Summa log., III, 2, 38). A qu i se an te cip a c laram en te o p o n to fu n dam en tal da crítica d e H um e, isto é, a n ã o -d e d u tib ilid a d e do efeito a p artir d a causa. H u m e co m eç a n e g a n d o ju sta m e n te q u e en tre cau sa e efeito haja tal relação . "N ós n o s ilud im o s", d iz H u m e, "cren d o q ue, se fô ssem o s traz id o s d e re p e n te a este m u n d o , p o d e ría m o s im e d iata m en te deduzir q u e u m a b ola de b ilh ar p o d e c o m u n ica r m o v im e n to a u m a outra". M as na re alid ad e, m esm o su p o n d o q u e n asça em m im , p o r acaso , o p e n sa m e n to d e q u e o m o v im e n to da se g u n d a b o la é re su l­

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CAUSALIDADE ta d o do c h o q u e e n tre as d u a s, eu p o d e ria c o n ­ c e b e r a p o ssib ilid a d e de o u tro s m il a c o n te c i­ m e n to s d iferen tes, co m o p. ex. q u e am b as as b o las p e rm a n e c e ss e m p a ra d a s ou q u e a p ri­ m eira v o ltasse p ara trás em lin h a reta ou e sca­ p asse p o r u m d o s lad o s, em u m a d ire çã o q u a l­ q uer. T o d a s essa s su p o s iç õ e s são c o e re n te s e co n ce b ív e is; e a q u ela q u e a ex p e riê n c ia d e ­ m o n stra ser v e rd a d e ira n ão é m ais c o e re n te n em co n ce b ív e l do q u e as o u tras. A co n clu são é: "todos os n o sso s raciocín io s apriori n ão p o ­ d erã o d em o n stra r n e n h u m direito a essa p refe­ rência"; e "seria inútil te n ta r p re d iz e r q u a lq u e r ac o n te c im e n to , ou inferir algu m a cau sa ou efei­ to, sem o aux ílio da o b se rv a ç ã o e da e x p e riê n ­ cia" (Jnq. Cone. Underst., IV, 1). A o b serv ação e a ex p e riê n c ia , p o rém , co m a re p e tiç ã o de cer­ to s a c o n te c im e n to s sim ilares, isto é, co m as u n ifo rm id ad es q u e rev elam , d ão o rig em ao h á­ b ito d e crer q u e tais u n ifo rm id a d e s se verifica­ rão ta m b é m no fu tu ro e q u e , p o rta n to , p o ssi­ b ilitam a p re v isã o so b re a q u al se b aseia a v id a co tid ian a. M as essa p rev isão , s e g u n d o H um e, n ão é ju stificad a p o r n ad a. M esm o d e p o is da ex p e riê n c ia viv id a, a c o n e x ã o e n tre cau sa e efeito co n tin u a arbitrária (já q u e cau sa e efeito co n tin u a m s e n d o d o is ac o n te c im e n to s d istin ­ to s), de tal m o d o q u e co n tin u a se n d o arbitrária a p re v isã o b a se a d a n esse n ex o . "O p ão q u e eu co m ia an te s m e alim entav a; isto é, u m co rp o co m certas q u a lid a d e s sen sív eis era d o ta d o de forças secretas n a q u e le te m p o ; m as e n tã o será lícito concluir q u e u m o u tro p ão d ev e nutrir-m e ta m b é m em o u tro te m p o e q u e q u a lid a d e s se n ­ síveis s e m e lh a n te s d ev am ser s e m p re a c o m p a ­ n h a d a s p o r id ên ticas forças secretas? A c o n se ­ q ü ê n c ia n ão p a re c e a b so lu ta m e n te n ecessária" (Ibid., IV, 2). A co n clu são d e H u m e é q u e a re la ção cau sai é injustificável e q u e a cren ça n ela só p o d e ser ex p lic ad a p elo in stin to , isto é, p ela n ecessid ad e d e v iv er q u e a requ er. Essa análise de H u m e p ro p ô s o p ro b le m a da C. na form a q u e este m an té m ain d a n a filosofia c o n ­ te m p o râ n e a . O critério u sa d o p o r H u m e, para d e m o n stra r a insu ficiên cia da teo ria clássica, é o da prev isib ilidad e. A relação cau sai d ev e tor­ n ar p rev isív el o efeito, m as n e n h u m a d e d u ç ão apriori p o d e to rn a r p rev isív el u m efeito q u a l­ q uer; p o r isso, a d e d u ç ã o é in c a p a z de fu n da­ m e n ta r a re la ção cau sai. A re p e tiç ã o , em piric a m e n te o b se rv á v e l, d e c o n e x ã o e n tre dois ev e n to s é, e n tã o , o ú n ico fu n d a m en to p ara afir­ m ar u m a re la ção cau sai, e o m o d o co m o ela p ossibilita essa asserção é o p ro b le m a q u e hoje

CAUSALIDADE está n a b a se d e to d a s as n o ç õ e s d e C , c o n d i­ cion am en to, in d u ç ão , p ro b a b ilid a d e , etc. K ant acreditou ter re sp o n d id o à d úv id a d e H u m e so ­ bre o v alo r da C. tran sfo rm an d o -a n u m a cate­ goria (v.), isto é, n u m c o n ce ito apriori do in ­ telecto, ap licável a u m c o n te ú d o em p írico e d eterm in ante da c o n e x ã o e da o rd e n a ç ã o o b je­ tiva d esse c o n te ú d o . M as, na v e rd a d e , essa s o ­ lução só p o d ia p o stu lar, em form a de c o n ce ito apriori e, p o rta n to , d e "p rincíp io p u ro do in­ telecto" (a s e g u n d a an alo g ia da e x p e riê n c ia ), a solução do p ro b le m a p ro p o sto p o r H u m e sem abolir su a d ificu ld ad e. Q u a n d o K ant d iz q u e a natureza n u n ca p o d e rá d e sm e n tir o p rin cíp io de cau sa p o rq u e , p ara ser n atu re za , d ev e ser pen sada co m o n atu re za e a ca u sa lid a d e é u m a condição do p e n sa m e n to (Crít. R. Pura, § 26; Prol, § 36), n ão faz s e n ã o d izer q u e a n atu re za , para ser n atu reza, d ev e ser o rg an izad a p elas re ­ lações cau sais, isto é, a p e n a s dá u m a d efinição de natureza q u e já inclui essa relação . P ortanto , a solu ção k an tia n a , e m b o ra o b v ia m e n te s u g e ­ rida p ela ex ig ê n c ia d e salv ar ou g a ra n tir a v alidade da ciên cia n e w to n ia n a fu n d a d a na noção de cau sa, tem caráter de s o lu ç ã o v erb al e de d o g m atism o cam u flad o . P ara e n fraq u e ce r esse d o g m atism o , p o rém , co n trib u íram no séc. XIX, o re c o n h e c im e n to do caráter a n tro p o m ó rfico do c o n ce ito de cau sa e, a p artir do final do séc. XIX, as lim itaçõ es c re sc e n te s q u e o u so desse co n ceito foi en c o n tra n d o no p e n sa m e n to científico. Q u a n to ao p rim e iro p o n to , lim itarnos-em os a citar a o p in iã o de N ietzsch e, p ara quem a n o ç ão de cau sa n ão é s e n ã o a tra n sc ri­ ção sim bólica da v o n ta d e de p o tên cia , isto é, do sen tim e n to in te rn o de força ou de e x p re s ­ são ju b ilo sa. "F isio lo gicam en te", diz N ietzsch e, "a idéia de cau sa é o n o sso s e n tim e n to de p o ­ tência, n aq u ilo q u e se ch am a v o n ta d e ; e a idéia de efeito é o p re c o n c e ito de crer q u e o se n ti­ m ento d e p o tê n c ia seja a p ró p ria p o tê n c ia m otora. A co n d iç ã o q u e ac o m p a n h a u m e v e n ­ to e q u e j á é u m efeito d esse e v e n to é p ro jeta­ da com o 'razão suficiente' deste". N a re alid ad e, para N ietzsch e to d a a c o n c e p ç ã o m ec ân ic a do m u nd o n ão p assa d e lin g u ag em sim b ó lica p ara exprim ir "a lu ta e a v itó ria de certas q u a n ti­ dades de v o n ta d e " (WillezurMacht, ed. 1901, § 296). Essa c o n e x ã o da n o ç ã o d e C. e n q u a n to força p ro d u tiv a co m a e x p eriên cia in tern a do hom em , ou seja, essa tran sc riç ão ou c o n c e p tualização an tro p o m ó rfica, foi su ste n ta d a no séc. XIX p o r n u m e ro so s filósofos, c o n q u a n to criticada e re je ita d a p o r H u m e (Inq. Cone.

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CAUSALIDADE

Underst., VII, 1). P or isso, p ro c u ro u -se "purifi­ car" a n o ç ã o de C. de su as referên cias an tro p o m ó rficas e a ten tativ a m ais im p o rta n te n esse se n tid o foi feita p o r C om te. Ele ach av a q u e a p ró p ria idéia de cau sa co m o força p ro du tiv a ou a g e n te era p ró p ria de u m esta d o u ltra p a ssa d o da ciên cia, isto é, do esta d o m etafísico, e co n si­ d era v a p ró p ria do esta d o p ositivo a n o ç ã o de cau sa co m o "relação in v ariáv el d e su c e ssã o e se m e lh a n ç a en tre os fatos". S eg u n d o C om te, essa n o ção b astav a para to rn ar possível a tarefa essen cial da ciên cia, q u e é a de p rev er os fe n ô ­ m e n o s p ara p o d e r utilizá-los: a relação c o n s­ tan te, u m a v e z re c o n h e c id a e fo rm u lad a em u m a lei, possibilita p rev er u m fen ô m en o q u a n d o se verifica aq u ele ao q ual ele está ligado; e a p rev isão , p o r su a v ez , p ossibilita ag ir so b re os p ró p rio s fe n ô m e n o s (Cours dephil. positive, I, cap. I, § 2). E sse co n ceito da p rev isão co m o ta­ refa fu n d a m en tal da ciên cia, q u e C o m te h au ria em B acon , m as q u e , a p artir d ele p rev aleceu na esp ecificação m o d e rn a, deveria p red o m in ar co m o critério de v a lid a d e e eficácia da ciência, p o rta n to , do alca n c e e do significado do p rin cí­ pio de cau salid ad e. E as n o ç õ e s de C. e de p re­ v isã o fo ram u n id a s p o r C om te e assim p e rm a ­ n e c e ra m d e p o is dela. M ach, q u e p arte d essa co n ju nção en tre as d u as n o çõ es, q u er substituir o co n ce ito trad icio n al de c a u salid ad e p elo c o n ­ ceito m atem á tic o de função, isto é, de "interd e­ p e n d ê n c ia d os fe n ô m e n o s o u, m ais e x a ta m e n ­ te, in te rd e p e n d ê n c ia d o s ca ra cte re s d istin tiv o s d o s fe n ô m en o s" (Analyse der Empfindungen, 9- ed., 1922, p. 74). T o d av ia, n em C om te nem M ach p õ e m em d ú v id a o caráter n ec essitan te da C. e o d ete rm in ism o rig o ro so q u e ela co m ­ p o rta no m u n d o d o s fe n ô m en o s natu rais. Logo, n ão p õ e m em d ú v id a a p rev isib ilid a d e certa e in fa lív e l d o s fa to s n a tu ra is cu jas re la ç õ e s cau sais são co n h e c id a s. Foi só a ciên cia c o n ­ te m p o râ n e a q u e p ô s em d ú v id a essas d u as co i­ sas, p ro v o ca n d o , assim , a crise definitiva da n o ­ ção d e ca u salid ad e. N a se g u n d a m e ta d e do séc. XIX, a fo rm u la­ ção m atem ática da teoria cinética d os g ases, d ev id a a M axw ell e a B o ltzm an n, serv iu para in te rp retar e sta tic am e n te o se g u n d o p rin cíp io da term o d in âm ica, se g u n d o o q ual o calor p assa s o m e n te d e u m c o rp o d e te m p e ra tu ra m ais alta p ara o u tro c o rp o de te m p e ra tu ra m ais b a i­ xa. A teoria cinética in terp retav a esse fato co m o u m caso d e p ro b a b ilid a d e estatística; p ela p ri­ m eira v ez , a n o ç ã o de p ro b a b ilid a d e , q u e até en tã o ficara lim itada ao d o m ín io d a m atem á ti­

CAUSALIDADE ca, era u tilizad a no d o m ín io da física. T o d av ia a teo ria cinética d os g ases n ão re p re se n ta v a ain d a u m a infração ao p rin cíp io de C , p re d o ­ m in an te em to d o o re sta n te da física. Foi só co m o p ro g re sso d a física su b atô m ic a e co m a d e sc o b e rta , d ev id a a H e ise n b e rg , do princí­ pio de indeterminação (1927), q ue o p rin cíp io de C. sofreu u m g o lp e d ecisiv o . A im p o ssib i­ lid ad e, estab elecid a p o r esse p rin cípio, de m edir co m p rec isão u m a g ra n d e z a , sem p rejuízo da p rec isão na m ed id a de u m a o u tra g ra n d e z a coligada, to rn a im possível p red izer com certeza o c o m p o rta m e n to futuro de u m a p artícu la su ­ b atô m ic a e só au to riza p rev isõ e s p ro v á v e is do c o m p o rta m e n to d e tais p artícu las, co m b ase em v erificaçõ es estatísticas. E m co n se q ü ê n c ia d isso , a física te n d e hoje a co n sid e rar as m e s­ m as re la çõ es d e p rev isib ilid a d e no ca m p o dos ob jeto s m a c ro sc ó p ic o s, q u e d eram o rig em ao p rin cíp io d e C , co m o caso s p articu lares de p re ­ v isõ es p ro v áv eis. H eise n b erg escrevia em 1930: "N ossa d escriçã o h ab itu al da n atu re za e, p a rti­ c u la rm e n te, o p e n sa m e n to de u m a C. rig o ro sa n os ev e n to s da n atu re za re p o u sa m na a d m is­ são de q u e é p o ssív el o b serv a r o fe n ô m en o sem in fluenciá-lo de m o d o sen sív el... N a física atôm ica, p o rém , to d a o b se rv a ç ã o g e ra lm e n te está ligada a u m a p ertu rb a çã o finita e, até certo p o n to , in co n tro lá v e l, o q u e era d e e sp e ra r d e s ­ de o p rin cíp io na física d as m e n o re s u n id a d e s ex isten tes. C om o , p o r o u tro la d o , to d a d escri­ ção e sp á c io -te m p o ra l de u m ev e n to físico está ligada a u m a o b serv a çã o do ev e n to , seg u e -se q u e a d escriçã o e sp á c io -te m p o ra l de ev e n to s, p o r u m la d o , e a lei cau sai clássica, p o r o u tro , re p re s e n ta m d o is a s p e c to s c o m p le m e n ta re s , m u tu a m e n te e x c lu d e n te s, d o s ac o n te c im e n to s físico s" (Die physikalischen Prinzipien der Quantumtheorie, IV, § 3). E m 1932, V on N eum an n assim resu m ira a q u e stão : "Em física m a­ cro scó p ica, n ão h á n e n h u m a ex p eriên cia q ue p ro ve o p rin cípio de C , p o rq u e a o rd em causai ap aren te do m u n d o m acro scóp ico n ão tem outra o rig em s e n ã o a lei d o s g ra n d e s n ú m e ro s e isto d e m o d o to ta lm e n te in d e p e n d e n te do fato de os p ro c e sso s ele m e n ta re s (q u e são os v e rd a ­ d eiro s p ro cesso s físicos) seg u irem ou n ão leis de C. ... E só em escala atô m ica, n o s p ro cesso s elem e n tare s, q u e a q u e stã o da C. p o d e re a l­ m en te ser discutida; m as, n essa escala, no e s ­ ta d o atual d e n o sso s c o n h e c im e n to s, tu d o está co n tra ela, p o rq u e a ú n ica teoria form al q u e se ajusta m ais ou m en o s à e x p eriên cia é a m ec â­ nica q u ân tica, e esta está em p le n o conflito

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CAUSA SUI lóg ico co m a C. ... N ão há hoje n en h u m a razão q u e p erm ita afirm ar a ex istên cia da C. na n atu ­ reza e n e n h u m a e x p eriên cia p o d e d a r-n o s a p ro v a dela" (Les fondements mathematiques dela mécaniquequantique, trad. fr., 1947, p p. 143 ss., 223-224, e tc ) . A lg un s a n o s m ais tard e, R ein c h e n b ac h {Theory ofProbability, 1949, p. 10) afirm ou: "O d e se n v o lv im e n to h istórico da física leva ao re su lta d o d e q u e o c o n ce ito de p ro b a b ilid a d e é fu n d a m e n ta l em to d a s as asse rç õ e s so b re a re a lid a d e e q u e, a rigor, n ão é p o ssív e l u m a ú n ica asse rç ão s o b re a re alid a­ d e, cuja v a lid a d e p o ssa ser afirm ada co m algo m ais do q u e p ro b a b ilid a d e ". E sses p ro g resso s da ciên cia to rn aram as in ú teis d isc u ssõ e s dos filósofos so b re o fundam ento, o alcance e os li­ m ites do p rin cíp io de cau sa. E sse p rin cíp io n ão é m ais u sa d o , n em n a su a form a clássica n em n a su a form a m o d e rn a: o c o n ce ito do sa b e r ou d a ciên cia co m o "c o n h ec im en to d as causas" en tro u em crise e foi p raticam en te a b a n d o n a d o p e la p ró p ria ciên cia. V ai-se fo rm a n d o u m a nova te rm in o lo g ia, n a q ual os te rm o s condi­ ção e condicionamento (v.), definíveis p o r m eio d o s p ro c e d im e n to s em u so nas v árias d iscip li­ n as científicas, to m am o lu g ar do v e n e ra n d o e ag o ra inservível c o n ce ito de causa. CAUSA SUI. 1. L ib erd ad e co m o a u to d e te r­ m in ação . N esse se n tid o , essa n o ç ã o re m o n ta a A ristó teles (Et. nic, III, I, 110 a) e foi co n stan ­ te m e n te e m p re g a d a p ara definir a lib e rd ad e

absoluta ou incondicionada (v. LIBERDADE).

2. P lo tin o definira a In te lig ên c ia co m o "obra de su a p ró p ria ativ id ad e" (éocuToü èvépyr|N,a) e n q u a n to "tem o ser de si m esm a e p o r si m es­ m a" (Enn., V I, 8, 16). A trav és do n e o p la to n ism o árab e e e sp e c ia lm e n te d e A vicena, sem co n tar a trad iç ão d a filosofia ju d a ic a , esse co n ­ ceito ch eg a a S p in o za, q u e dá início à sua Etica co m a d efin içã o : "E n ten d o p o r C . de si a q u i­ lo cuja essê n cia im p lica a e x istê n c ia ou aq u ilo cuja n a tu re z a só p o d e ser c o n c e b id a co m o ex isten te" (Et., I, def. 1). T rata-se de u m a das m u itas e x p re ssõ e s da n e c e ssid a d e d a n atu re­ za d iv in a, s e g u n d o o c o n c e ito d e Deus (v.) no n e o p la to n is m o á ra b e . H e g e l re to m o u a ex p re ssã o de S p in o za e ac re sc en to u q u e toda cau sa é "em si e p o r si causa sui", na m edida em q u e se re d u z à C. infinita, q u e é a su b stâ n ­ cia racio n al do m u n d o (Ene, § 153). Isso é o q u e o p ró p rio S p in o za p re te n d ia dizer. Por­ tan to , o u so d essa n o ç ã o p ara d e sig n a r a di­ v in d a d e é m o d e rn o e está v in c u la d o à o rien ­ ta ç ã o p a n te ísta ; ta m b é m p a re c e cla ro pela

CAVERNA, ÍDOLOS DA

(l.c) que C. suié eq u iv a ­ lente a effectus sui. CAVERNA, ÍDOLOS DA. V. ÍDOLOS. CAVERNA, MITO DA. Mito exposto por Platão no livro VII da República, segundo o qual a condição dos homens no mundo é seme­ lhante à de escravos presos numa C, que só conseguem enxergar projetadas no fundo da C. as sombras das coisas e dos seres que estão fora. A filosofia é, em primeiro lugar, a saída da C. e a observação das coisas reais e do princí­ pio da sua vida e da sua cognoscibilidade, isto é, do Sol (o bem [v.]); e, em segundo lugar, o re­ torno à C. e a participação nas obras e nos valo­ res próprios do mundo humano (Rep, 519 c-d). CAVILAÇÃO (lat. Cavillatio; in. Cavil; it. Cavilló). Esse termo foi proposto por Cícero como tradução da palavra grega sophisma, que depois foi traduzida por falácia (v.) {De oral, II, 54, 217; cf. SENECA Bp, 111; QUINIIUANO, Inst. or, IX, 1, 15). Nesse sentido, esse termo ainda foi recordado no séc. XVII (cf. JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, VI, 1, 16). CELANTES. Palavra mnemônica usada pe­ los escolásticos para indicar o sexto modo da primeira figura do silogismo, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal negativa, uma premissa universal afirmativa e uma conclusão universal negativa, como no exemplo: "Nenhum animal é pedra; todo ho­ mem é animal: logo, nenhuma pedra é ho­ observaçao de H egel

mem" (PEDRO HISPANO, Summ. log, 4.08).

CELARENT. Palavra mnemônica usada pe­ los escolásticos para indicar o segundo modo da primeira figura do silogismo, mais precisa­ mente o que consiste em uma proposição uni­ versal negativa, uma proposição universal afir­ mativa e uma conclusão universal negativa, como no exemplo: "Nenhum animal é pedra; todo homem é animal: logo, nenhum homem é pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.07).

CERTEZA (gr. Pepatcoxiíç; lat. Certitudo; in. Certitude, Certainty, fr. Certítude, ai. Gewissheit; it. Certezza). Essa palavra tem dois signi­ ficados fundamentais: ls segurança subjetiva da verdade de um conhecimento; 2Q garantia que um conhecimento oferece da sua verdade. Esses dois significados ainda se mantêm e para eles o inglês tem duas palavras diferentes: certitude, que se refere ao primeiro, e certainty, ao segundo. Os dois significados nem sempre constituem alternativas excludentes, mas freqüentemente são complementares. To­ davia, no pensamento clássico prevalece o se­

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CERTEZA

gundo significado, o objetivo, e a garantia a que se faz alusão é a solidez ou a estabilidade do conhecimento verdadeiro. Segundo esse conceito, que Platão expressou do modo mais claro, a estabilidade do conhecimento depende da estabilidade do seu objeto, de sorte que só podem ser estavelmente conhecidas (isto é, com C.) as coisas estáveis, ao passo que as coi­ sas instáveis, isto é, mutáveis, só podem ser objeto de conhecimento provável (Tira., 29 b-c; Fil, 59 b). Nesse sentido, a C. é apenas um atributo da verdade: é o caráter estável, ou seja, nào sujeito a desmentidos, da própria verdade. No mesmo sentido a C. foi entendida por Aris­ tóteles {Mel, IV, 1008 a 16; 1011 b 13; etc.) e por Sexto Empírico: este último associa a C. à verdade e à ciência (Pirr. hyp, I, 191; II. 214; Adv. math., VII, 151, etc). A noção subjetiva da C. e os problemas a ela inerentes nasceram com a importância atribuí­ da pelo Cristianismo à fé, quando foi reconhe­ cida a possibilidade da segurança subjetiva do saber, nào garantida por um critério objetivo de verdade. Mas, obviamente, o reconhecimento dessa possibilidade não levava a negar, mas a reconhecer a outra possibilidade, de garantia objetiva. Por isso, os dois conceitos de C. são sempre esclarecidos juntos e de modo comple­ mentar, na tradição filosófica. S. Tomás distin­ gue dois modos de considerar a certeza. O pri­ meiro consiste em considerar a causa dela e, sob esse aspecto, a fé é mais certa cio que a sa­ bedoria, do que a ciência e do que o intelecto, porque se fundamenta na verdade divina, ao passo que essas três coisas se baseiam na ra­ zão humana. No segundo modo, a C. pode ser considerada sob o aspecto do objeto (subiectum) e, assim sendo, é mais certo o objeto que mais se adapta ao intelecto humano e é menos certa a fé (S. Th, II, 2, q. 4, a. 8). Obviamente, a C. considerada na sua causa é a C. subjetiva, isto é, a segurança subjetiva da verdade da crença, enquanto a C. considerada no seu objeto é a C. objetiva; e, de fato, S. Tomás atribui a primeira C. à ação da vontade, não à da razão (Ibid., II, 2, q. 2, a. 1, ad 3S). Com Descartes, a filosofia moderna identificou verdade com C: a primei­ ra regra cartesiana, "só aceitar por verdadeiro o que se reconhece evidentemente como tal", estabelece essa identidade, cujo ato ou mani­ festação é o próprio cogito, na medida em que faz da C. que o eu tem da própria existência o próprio princípio da verdade. Essa identidade também é evidente em Locke, que faz a distin­

CERTEZA ção en tre a "C. d a v e rd a d e ", q u e ex iste q u a n d o as p alav ras são u n id a s de tal m o d o q u e re p re ­ se n te m e x a ta m e n te a co n c o rd â n c ia ou a d isco r­ dância d as idéias q u e ex p rim em , e a "C. do c o ­ n h e c im e n to " , q u e co n siste em p ro c u ra r essa co n c o rd â n c ia ou d isc o rd â n cia na p ro p o siç ã o q u e a e x p rim e (Ensaio, IV, 6, 3 ) *Aqui, co m o e le m e n to da v e rd a d e , in clui-se a re la ção co m a ex p re ssã o ling ü ística, m as a C. é id en tificad a co m a v e rd a d e . "C h am am os de co n h e ce r", diz L ocke "o estar certo d a v e rd a d e d e u m a p ro ­ p o sição " (ibid, IV, 6, 3). E sses re p a ro s foram aceito s p o r L eibniz (Nouv. ess, IV, 3), q u e , no e n ta n to , ain d a d istin gu ia da "C. ab so lu ta", q u e p ro v a v e lm e n te c o m p re e n d e as d u as e sp écies de C. re c o n h e c id a s p o r L ocke, a C. moral, à q u a l se p o d e c h e g a r p e la s p ro v a s d a v e rd a ­ de da relig ião (Théod, D isco u rs, § 5). C on tra a id e n tid a d e en tre v e rd a d e iro e ce rto , e s ta b e le ­ cida p o r D e s c a rte s (q u e S p in o z a ratificav a co m o seu te o re m a "q u em te m u m a idéia v e r­ d a d eira s a b e p e lo m esm o de tê-la" (Et., II, 4 3 ), e a n a lo g a m e n te à d istin ç ã o feita p o r L eibniz en tre C. ab so lu ta e C. m oral, erg u e-se a d o u trin a de V iço, q u e faz a d istin ção en tre o v erd ad e iro , identificado co m o fato (p o rq u a n to se p o d e c o n h e c e r de v e rd a d e só o q u e se faz e cuja causa, p o rta n to , se c o n h e c e ), e o certo, fu n d a d o na trad iç ão e na a u to rid a d e e q u e, não se n d o susceptível d e d em o n stra çã o n ecessária, está no nível do provável. "Os h o m e n s q ue n ão sa b e m a v e rd a d e d as co isas esfo rçam -se p o r ater-se ao certo , p o rq u e , se n ão p o d e m satis­ fazer o in telecto co m a ciên cia, p elo m en o s q u e a v o n ta d e re p o u se n a co n sciên cia." (Scienza nuova, 1744, d ig n. 9). S e g u n d o V iço, a filo­ sofia n ão p o d e fu n d ar-se, co m o p re te n d e m os ca rtesian o s, tã o -so m e n te no v e rd a d e iro , m as ta m b é m d ev e utilizar o certo , q u e é co n stitu íd o p elo co n ju n to d o s c o n h e c im e n to s fo rn ec id o s p o r aq u e le s q u e V iço ch am a de "filólogos", isto é, h isto ria d o re s, críticos e g ram á tic o s q u e se o cu p a ra m d os co stu m e s, d as leis e d as lín g u as d o s p o v o s (Ibid., dig. 10). M as, em g eral, a id en tificação en tre C. e v e rd a d e firm o u-se na filosofia m o d e rn a. K ant ch a m o u de C. a cren ça o b jetiv a m en te suficien te, isto é, su ficien tem e n ­ te g ara n tid a co m o v e rd a d e ira (Crít. R. Pura, C an ô n da ra zã o p u ra, seç. 3). D istin g uiu, além d isso , a C . em p írica, q u e p o d e ser o rig in ária, isto é, v in c u la d a à p ró p ria ex p e riê n c ia h istó ri­ ca, ou derivada de u m a ex p e riê n c ia alheia; e a C. racio n al, q u e se d istin g u e da em p írica pela "con sciência da n e c essid ad e" e, p o rta n to , p o d e

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CESARISMO ser c h a m a d a de ap o d ític a (Logik, Intr., § IX) . O p ró p rio H eg el aceito u a id en tificação de C . e c o n h e c im e n to e ilustro u os d o is asp ecto s, s u b ­ je tiv o e o bjetivo , da C. sen sív el da seg u in te m an eira: "Na C. sen sív el, u m m o m e n to é p o sto co m o aq u ilo q u e , sim p les e im e d ia ta m e n te , é, assim co m o a essên cia: esse é o objeto. O o u tro m o m e n to é p o sto co m o o in esse n c ia l e m ed iato, q ue n ão é em si, m as m ed ia n te outra co i­ sa: esse é o eu, u m sa b e r q u e s a b e o o b jeto só p o rq u e o o bjeto é u m s a b e r q u e p o d e ser ou ta m b é m n ão ser" (Phünomen. des Geistes, I, A , I). A n a lo g a m e n te , os d ois sign ificad os foram d istin g u id o s e ac eito s p o r H usserl, q u e c o n ­ sid e ro u o fe n ô m e n o da C. co m o o rig in ário , v in c u la d o à p ró p ria atitu d e da cren ça, e p or isso c h a m o u -o Urdoxa ou Urglaube (Ideen, I, § 104). A ex e m p lo de L eibniz, falo u-se ta m b é m em "C. m oral" (OLLE-LAPRUNE, La certitude momle, 1880), p ara in d icar u m a C. n ão g aran tid a p o r u m critério o bjetivo ou racio n al, co m o é a C. da fé: m as a id en tificação e sta b e le c id a pela filosofia ca rtesian a en tre C. e v e rd a d e n ão foi m ais a b a n d o n a d a . H eid e g g er reafirm o u-a d i­ ze n d o : "A C. se funda na v e rd a d e , ou seja, p e rte n c e n d o -lh e c o o rig in aria m e n te". E disting uiu os d ois sign ificad os q u e c o rre sp o n d e m ao sign ificad o e ao o bjetivo de C : "o estar certo co m o m o d o de ser do ser-aí" (isto é, do h o ­ m em ) e a C . do "ente do q u a l se r-a í está certo ", q u e é d eriv ad a da p rim eira (Sein und Zeit, § 52). CESARE. P alavra m n e m ô n ic a u sa d a p elo s e sco lástico s p ara in d icar o p rim e iro d o s q uatro m o d o s do silo g ism o d e se g u n d a figura, m ais p re c isa m e n te o q u e co n siste em u m a p rem issa u niversal n eg ativa, u m a p rem issa u niversal afir­ m ativ a e u m a co n c lu sã o u n iv e rsa l n eg ativa, co m o no ex e m p lo : "N enh um a p e d ra é anim al; to d o h o m e m é anim al: lo g o, n e n h u m h o m em é p ed ra" (PEDRO HISPANO, Summ. log, 4 .1 1 ). CESARISMO ( ai. Cãsarismus). S peng ler deu esse n o m e à "esp écie de g o v e rn o q u e , ap esar de to d a s as fo rm as de d ireito p ú b lico , ainda está to ta lm e n te d e sp ro v id o de form a na sua n atu re za in tern a. Isso se verifica no fim de cer­ to s p e río d o s, q u a n d o as in stitu iç õ e s políticas fu n d am en tais estão m o rtas, aind a q u e m in u cio ­ sa m e n te c o n se rv a d a s n as su a s ap a rên cias: n es­ ses p e río d o s, n ad a te m sign ificad o, ex ceto o p o d e r p esso al ex ercid o p elo C ésar. É o reto rn o de u m m u n d o , q u e atingiu a sua form a, ao pri­ m itiv o, ao q u e é c o sm ic a m e n te a-histórico" (Der Untergang desAbendlandes, II, 4, 2, § 14).

CEU

CÉU (gr. oúpocvóç; lat. Caelum; in. Heaven; fr. Ciei; ai. Hímmel; it. Cielo). A ristó teles d istin g u e

três significados do term o : le a su b stân cia da cir­ cunferência ex tern a do m u n d o , isto é, o co rp o natural q ue está na ex trem a periferia do u n iv e r­ so: n esse sen tid o , d á-se o n o m e d e C. à reg ião que se acredita ser a sed e da div in dade; 2- o co r­ po que o cu p a o lu g ar m ais p ró x im o da circu n fe­ rência externa do u n iv erso e no q ual se acham a Lua, o Sol e alg u n s astros, d os q u ais de fato dizem os q ue estão "no C "; 3 to d o co rp o q u e é encerrado p ela circu n ferên cia ex tern a, isto é, o próprio m u n d o na sua to ta lid a d e (De cael, I, 9, 278 b 10). Este ú ltim o sign ificad o já fora atrib u í­ do à palavra p o r P latão (Tini, 28 c). A d o u trin a fundam ental de A ristó teles so b re o C. é a da in co rrup tibilid ad e. A ristó teles acred itav a q u e o C. era fo rm ad o p o r u m a su b stân cia d iferen te da das coisas su b lu n a re s, isto é, p elo éter(y.). O éter, q u e se m o v e so m e n te p o r m o v im e n to circular, n ão p o d e sofrer g eração n em co rrup ção . A g eração e a co rru p ç ã o d o s c o rp o s ac o n te c e m pelo altern ar-se d o s d ois m o v im e n to s o p o sto s (do cen tro e p ara o c e n tro ), a q u e estã o sujeitos os elem en to s (água, ar, terra, fogo) q u e co m ­ põem os c o rp o s su b lu n a re s; d e m o d o q u e o C, que se m o v e p o r m o v im e n to circular, q u e n ão tem o p o sto , é in co rru p tív e l e in g en erá v el (De cael, II, 1 ss.). A d o u trin a da in c o rru p tib ilid a d e dos C. d o m in o u to d a a física an tiga e m ed ieval. N a A n tig üidade, talv ez te n h a sido p o sta em d ú ­ vida por T eofrasto (cf. STEINMETZ, DiePhysik des Theophrast, 1964, 158 ss.). N a Id a d e M édia, o prim eiro a p ô-la em d ú v id a é O ck h am , q u e, no séc. XIV, n eg a a d iv ersid ad e en tre a m atéria que co m p õ e os c o rp o s celestes e a m atéria q u e com põe os co rp o s su b lu n a re s e ad m ite co m o única d iferença en tre eles o fato de q u e a m a­ téria dos co rp o s celestes n ão p o d e ser tran sfo r­ m ada pela ação d e n e n h u m a g e n te criad o , m as seria n ecessária, p ara esse fim , a ação d ireta de D eus (In Sent., II, q. 22 B). M as essa crítica de O ckham foi ig n o rad a p o r seu s p ró p rio s se g u i­ dores, se n d o re to m ad a só u m sécu lo d ep o is por N icolau de C usa: este afirm a q u e a g era çã o e a co rru p çã o , v erificad as na T erra, p ro v a v e l­ m ente ta m b é m se verificam n os o u tro s astros, porque n ã o há d iv ersid ad e d e n atu re za en tre estes e a T erra (De docta ignor, II, 12). T o d a ­ via, o fim d essa d o u trin a só foi m a rc a d o p ela crítica feita p o r G alileu em Diálogos sobre os dois sistemas máximos (1632).

CIBERNÉTICA (in. Cybernetics). Essa p a la ­ vra significa p ro p ria m e n te arte do p ilo to , m as

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CIBERNÉTICA foi u sa d a p elo a m e rican o W ie n e r p ara d esig n ar "o estu d o d as c o m u n ic a ç õ e s e, em p articular, d as co m u n ic a ç õ e s q u e ex e rce m co n tro le efeti­ v o , co m v istas à c o n stru ç ã o d as m áq u in as cal­ cu la d o ra s" (C, or Controland Communication in the Animal and theMachíne, 1947). E m s e n ­ tid o m ais geral, a C. é e n te n d id a hoje co m o o estu d o de "todas as m á q u in a s p o ssív eis", in d e ­ p e n d e n te m e n te do fato d e q u e alg u m as d elas te n h a m ou n ão sid o p ro d u z id a s p elo h o m e m ou p ela n atu re za . E, n esse sen tid o , o ferece o e sq u e m a no q ual to d a s as m á q u in a s p o d em ser o rd e n a d a s , re la c io n a d a s e c o m p re e n d i­ d as (cf., p. ex ., W . R oss ASHBY, An Intro­ duction to C, 1957). N o e n ta n to , as m áq u i­ nas de q u e a C. cu id a são os autômatos (v.), ou seja, as q u e são ca p aze s d e re aliza r o p e ra ­ ç õ e s q u e , d u ra n te a e x e c u ç ã o , p o d e m ser corrigidas, d e tal m o d o q u e c u m p ram m elh o r seu objetivo . Essa co rre ç ã o ch a m a -se retroalimentação (feedback). C om o essa é a caracterís­ tica fu n d am en tal d as o p e ra ç õ e s re aliza d a s p elo h o m e m ou p o r q u a lq u e r ser in te lig en te , essas m á q u in a s ta m b é m são ch a m a d as d e inteligen­ tes ou de cérebros eletrônicos, já q u e seu fun­ cio n a m e n to se d ev e às p ro p rie d a d e s físicas do elétro n . O e sq u e m a d esse fu n cio n am en to p o d e ser p e rc e b id o n as o p e ra ç õ e s m ais sim p les fei­ ta p o r u m ser h u m a n o . Se, ao v er u m objeto em certa d ire çã o (ou seja, ao re c e b e r d ele u m a m en sa g e m v isu a l), eu e ste n d o o b raç o para p eg á-lo e erro a d ire çã o ou a distân cia, lo g o a in fo rm ação d esse erro retifica o m o v im e n to de m eu b raç o e p erm ite q u e eu o dirija e x a ta m e n ­ te p ara o objeto: tan to a o p e raç ão q u a n to a co r­ re ç ã o da o p e ra ç ã o , n este caso , são g u iad as p o r mensagens, ou seja, p o r in fo rm açõ es re c e b i­ d as ou tran sm itid as p elo sistem a n erv o so q u e dirige o m o v im e n to do b raç o . P or isso, a teoria da in fo rm ação é p arte in te g ran te da C. o u, de q u a lq u e r m o d o , está estreitam e n te lig ad a a ela. N a C. ta m b é m p o d e m ser d istin g u id o s os s e ­ g u in tes asp ecto s: ls e sq u e m a g eral da in fo rm a­ ção; 2S m ed id a da q u a n tid a d e de in fo rm açõ es; 3S c o n d iç õ e s q u e p o ssib ilitam a in fo rm ação; 4S ob jetiv o s d a in fo rm ação. ls O esq u e m a d e q u a lq u e r in fo rm ação p a­ re ce ser c o n stitu íd o , esse n cia lm e n te , p o r três elem e n to s: a m en sa g e m em itid a, a tran sm issão e a m en sa g e m re ce b id a . M as, na re alid ad e, as co isas são b em m ais co m p lic ad as, p o rq u e a m e n sa g e m em itid a (p. ex., u m a frase p ro n u n ­ ciada em italiano ou o conjunto de p o n to s e li­ n h a s q u e c o n stitu em u m a m en sa g e m telegráfi­

CIBERNÉTICA ca) já é a e x p re ssã o , a tra d u ç ã o ou, co m o ta m ­ b ém se diz, a codificação d aq u ilo q u e q u e m em ite (emissor) p re te n d e transm itir. P or o u tro lad o , a m en sag em re ce b id a d ev e ser e n te n d i­ da, ou seja, re tra d u z id a ou descodifícada, para ser reg istrad a p elo receptor e g u iar sua c o n d u ­ ta. A ssim , a m e n sa g e m telegráfica tran sm itid a p o r m eio da co m u n ic a ç ã o de p o n to s e linh as d ev e ser d esco ficiada ou re tra d u z id a em p a ­ lavras, a frase em italian o d ev e ser e n te n d id a se g u n d o as re g ras e o v o c a b u lá rio d a líng u a italiana, ou a m en sag em n ão dará n en h u m a in­ fo rm ação a q u e m n ão sab e italian o. E m to d as essas p a ssa g e n s, são p o ssív eis e q u ív o c o s, er­ ros d e em issão , d e tran sm issão , de co d ificação e d e d esco d ificação , b em co m o p e rtu rb a ç õ e s v árias, d ev id as à interferência d e ru íd o s ou de o u tro s fato res m ec ân ic o s. 2S Foi esta últim a o b se rv a ç ã o q u e d eu e n s e ­ jo à te o ria m atem ática da in fo rm ação co m um te o rem a p ro p o sto p o r C E . S h a n n o n , em 1948 (cf. SHANNON F. WEAVHR, The Mathematical Theory of Communications, 1949). S h a n n o n o b serv o u q u e u m a m e n sa g e m en v iad a atra­ v és d e u m can al q u a lq u e r sofre d efo rm a çõ es d iv ersas d u ran te a tran sm issão , razão pela qual, ao chegar, u m a parte das inform ações q u e co n ti­ n ha já está p erd id a. E stab eleceu , assim , a a n a ­ logia en tre essa p erd a e a entropia (v.), fu n ção m atem ática q u e, co m b ase no se g u n d o p rin cí­ pio da te rm o d in â m ica , ex p rim e a d e g ra d a ç ã o de en erg ia q u e se verifica em q u a lq u e r tra n s­ fo rm ação do tra b a lh o m ec ân ic o em calor, ao p asso q u e a tran sfo rm açã o inversa (do calor em trab alh o m ecân ico) n u n ca é co m p leta. C om b ase n essa an alo g ia, a quantidade de infor­ mações tran sm itid a p o d e ser calcu lad a co m o entropia negativa, já q u e , na tran sm issão das m e n sag en s, assim co m o na tran sfo rm açã o da en erg ia, a en tro p ia n eg ativ a decresce co n tin u a ­ m en te p o rq u e a positiva (perda de inform ações ou d e g ra d a ç ã o de en erg ia) cresce c o n tin u a ­ m en te. C om b a se n essa an alo g ia, o cálcu lo das p ro b a b ilid a d e s u tilizad o p ela te rm o d in â m ica p o d e ser e m p re g a d o co m o in stru m en to m u ito o p o rtu n o p ara d e te rm in a r as fó rm u las com q u e a m ed id a d a q u a n tid a d e de in fo rm açõ es p o d e ser e x p ressa em cada caso, cujas v aria­ çõ es d e p e n d e m do n ú m e ro e da freq üência d os sím b o lo s u tilizad o s, de sua p o ssib ilid ad e de co m b in aç ão , da interferência d o s fato res de p e rtu rb a ç ã o na tra n sm issã o d o s s ím b o lo s e assim p o r d ian te. N este ú ltim o caso , to m am -se em c o n sid e ra ç ã o os sím b o lo s c h a m a d o s re­

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CIBERNÉTICA

dundantes, cuja fin alid ad e é p rev er e corrigir os erro s da tran sm issão antes que o co rram , de tal m o d o q u e o fu n cio n am en to da tran sm issão seja co rrig id o a n te c ip a d a m e n te pela p rev isão d as p e rtu rb a ç õ e s, co m o p ro c e sso da retro alim en taç ão . D e m o d o g eral, p o d e -se d izer q ue, q u a n to m ais im p ro v áv el é a m en sag em , m aior é a in fo rm ação q u e ela tran sm ite. P or isso, te m -se a q u a n tid a d e m ín im a d e in fo rm ação q u a n d o esta p erm ite a p e n a s u m a esco lh a en tre d u as p o ssib ilid ad es ig u alm e n te p ro v áv eis. Essa q u a n tid a d e m ín im a foi assu m id a co m o unida­ de de m ed id a da in fo rm ação e ch a m a d a de bit (abreviação da ex p ressã o inglesa binary digit = cifra b in aria). 3e O co n ce ito e o cálcu lo d a in fo rm ação situ am -se no d o m ín io da probabilidade (v.). Isso q u e r d izer q u e a in fo rm ação só é p ossível n u m m u n d o q u e n ão é necessariamente o rd e ­ n ad o n em necessariamente d e so rd e n a d o . N um m u n d o n e c e ssa ria m e n te o rd e n a d o , tu d o seria in faliv elm en te p rev isív el e a in fo rm ação seria inútil. N um m u n d o n e c e ssa ria m e n te d e s o rd e ­ n ad o , ou seja, p u ro fruto do acaso , n e n h u m a o rd em seria possível e, p o rta n to , n e n h u m a in­ fo rm a çã o seria tra n sm issív e l. A in fo rm a çã o tran sm ite d ete rm in a d a o rd em de sím b o lo s e a m ed id a da in fo rm ação é a m ed id a d e u m a or­ d em . P o r ex e m p lo , u m a m en sa g e m telegráfica co n siste em certa c o m b in a ç ã o de p o n to s e li­ n h as q u e, para co m u n ica r u m a inform ação, tem u m a o rd em d ete rm in a d a , esco lh id a e n tre as in ú m e ra s o rd en s p o ssib ilitad as p elo alfabeto M orse. A m ed id a de in fo rm ação é d ad a, co m o se viu , pela en tro p ia negativa, ou seja, p o r um a função q u e ex p rim e a d im in u içã o da en tro p ia , q u e é a d e so rd e m (ou seja, a d istrib u içã o casu ­ al) d os e le m e n to s d e u m sistem a q u a lq u e r. P or­ ta n to , as co n d iç õ e s da C , ou seja, do u so te ó ­ rico e p rátic o da teo ria da in fo rm ação , p o d em ser re c a p itu la d a s do seg u in te m o d o : a) A n eg aç ão de q u a lq u e r tip o ou form a de necessidade em to d as as situ aç õ e s em q u e a in fo rm ação tem lugar. b) A n e g a ç ã o d e q u a lq u e r c o n h e c im e n to absoluto, ou seja, total, definitivo e exaustivo; o re c o n h e c im e n to d e q u e o c o n h e c im e n to é um fato ex c ep cio n al e im p ro v áv el. c) O re c o n h e c im e n to do acaso, ou seja, da d istrib u ição d e so rd e n a d a (e q u ip ro v áv el) dos elem en to s (entropia) em to d as as circunstâncias ou situ aç õ e s em q u e o h o m e m ou q u a lq u e r o rg an ism o vivo ou m áq u in a p ossa encontrar-se.

CIBERNÉTICA

d) A p resen ça , em q u a lq u e r situ aç ão , de possibilidades d iv ersas en tre as q u ais é p o ssí­ vel a esco lh a. é) A p o ssib ilid a d e d a escolha de co n stru ir

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m o d e lo s q u e s e le c io n e m as p o s s ib ilid a d e s alternativas, s e g u n d o a o rd em de sua freq ü ê n ­ cia estatística, e, p o r isso, o rie n tar as esco lh as seg uintes. /) A p o ssib ilid a d e d e corrigir, m odificar, g e ­ neralizar ou p articu larizar tais m o d e lo s e criar outros n o v o s, de ac o rd o co m as m ais d iferen ­ tes ex ig ên cias te ó ric as e p ráticas. Essas c o n d içõ es da in fo rm ação (e p o rta n to da C , q u e a u tiliza p ara os m ais d iv erso s o b jeti­ vos) são, im plícitas ou ex p licitam en te, adm itidas por to d o s os cien tistas q u e , em q u a lq u e r cam ­ po, se v ale m d essa discip lina: co n stitu em seu fundam ento filosófico. S ão re su m id a s no s e ­ guinte trec h o de F. C. Frick: "Inform ação e ignorância, esco lh a, p rev isão e in certeza, tu d o isso está in tim a m e n te c o rre la c io n a d o ... N a fronteira en tre o c o n h e c im e n to total e a ig n o ­ rância co m p leta, p are ce in tu itiv am en te ra z o á ­ vel falar de g rau s de in certeza. Q u a n to m ais am pla for a esco lh a, m aio r será o co n ju n to de alternativas q u e se ab re m d ian te de n ós, m ais incertos esta re m o s a re sp e ito d e co m o p ro ­ ceder e m aio r será a n e c e ssid a d e q u e te re m o s de in fo rm açõ es p ara to m a rm o s u m a d ecisão" (Information Theory, em Psychology: A Study ofa Science, 2- ed., S ig m un d K och, 1959, p p. 614-15). 4a O q u a rto asp e c to da C. é co n stitu íd o p e ­ los uso s e o bjetivo s q u e ela p o d e ter n o s m ais diversos cam p o s da ativ id ad e h u m an a: a) E m p rim e iro lugar, a C. é u m p o d e ro so instrum ento p ara ex p lic ar e p rev er fe n ô m en o s. U m de seu s su c esso s m ais clam o ro so s foi visto no cam po da genética (v .), em q u e p ossibilitou explicar a tran sm issão d os ca ra cte re s h e re d itá ­ rios p or m eio d as v árias c o m b in a ç õ e s d o s e le ­ m entos de u m alfabetogenético constituído pelos ácidos d eso x irrib o n u clé ic o s, q u e c o m p õ e m a hélice d u p la do D N A (W atson e C rick, 1953). A teoria da evolução (v.), co m b a se s d arw inianas, co n sid e ra q u e a p ró p ria e v o lu çã o é um processo de v ariaç õ e s aleató rias e de so b re v i­ vência seletiva: d o is co n ce ito s q u e, co m o se viu, são fu n d am en tais na teoria da in fo rm ação. E m psicologia, an tro p o lo g ia e so cio lo g ia, esses conceitos são e m p re g a d o s p ara ex p lic ar q u a l­ quer form a de organização e atu a lm e n te são generalizados n u m a teoria dos sistemas, ap li­

CIBERNÉTICA cável a to d o s esse s ca m p o s (cf., p. ex., W .

BUCKLEY, Sociology andModern Systems Theory, 1967, e relativ a b ib l.). b) E m s e g u n d o lugar, a C. é u tilizad a p ara a

c o n stru ç ã o de m á q u in a s cad a v e z m ais co m ­ p lex as, às q u ais são co n fiad as o p e ra ç õ e s e ta­ refas q u e, até p o u c o te m p o , eram co n sid e ra ­ d as p ró p ria s do h o m e m . S o b re os lim ites e as p o ssib ilid a d e s d essa s m áq u in as, as o p in iõ e s de cien tistas e filósofos são d ísp a res. H á q u em co n sid e re q u e , em futuro m ais ou m en o s p ró ­ x im o , elas p o d e rã o su b stitu ir o h o m e m na so ­ lu ção de to d o s os seu s p ro b lem as, inclusive n as e sco lh as d ecisiv as q u e d izem re sp eito ao fu tu ro ou à so b re v iv ê n c ia do g ê n e ro h u m a n o . O u tro s ex p re ssa m d ú v id as so b re essa p o ssib i­ lid a d e ilim itada, q u e en tre o u tras co isas p are ce ser d esm en tid a p elo te o re m a de G õ d el (v. M A ­ TEMÁTICA), en tre cujas im p licaçõ es está a de que n ão é p ossível co n stru ir u m a m áq u in a q ue re ­ solv a todos os p ro b lem as. A lém disso, insistese na d iferença en tre o h o m e m e a m áq u in a, em vista da p re se n ç a , no h o m e m , do fator consciência (v.). R ay m on d R uyer, p o r ex., afir­ m o u q u e "sem co n sc iên c ia n ão há inform ação" e q u e , p o r isso, se o m u n d o físico e o m u n d o d as m á q u in a s ficassem e n tre g u e s a si m esm o s, "e sp o n ta n e a m e n te tu d o se to rn aria d eso rd e m e essa seria a p ro v a d e q u e n u n c a h o u v e o rd e m v erd a d e ira , o rd em co n siste n te, ou em o u tro s te rm o s, q u e n u n ca h o u v e inform ação"

(La cybemétique et lorigine de 1 'information,

1954). T am b ém são m u ito s os q u e insistem , co m fu n d a m e n to s v ário s (m uitas v ez es de n a­ tu reza m etafísica ou m oral) n a d iferença en tre o h o m e m e a m áq u in a, m as, em g eral, re c o ­ n h e c e -se q u e as m áq u in as têm as m esm as li­ m itaçõ es do h o m e m , ain d a q u e em grau infe­ rior, e q u e se d istin g u e m do h o m e m p ela e n o rm e "c o m p le x id a d e " do c é re b ro h u m a ­ no e p ela ca p a c id a d e q u e tem este ú ltim o de p rev er, em p ro p o rç ã o c o rre s p o n d e n te m e n te m aior, os a c o n te c im e n to s futuros. W ie n e r in­ sistiu na ex ig ên c ia de u m a simbiose en tre o h o m e m e a m áq u in a, p ara a q ual é n ec essário q u e o h o m e m te n h a u m a clara idéia d o s objeti­ vos q u e d ev em ser p re e sta b e le c id o s n a p ro g ra ­ m ação e no u so d as m áq u in as. D e fato, o b e d e ­ c e n d o a u m p ro g ram a, u m a m áq u in a p o d e p ô r em ativ id ad e certas o p e ra ç õ e s q u e , d ian te de c irc u n stâ n c ia s im p re v ista s, p o d e m v o lta r-se co n tra os in te re sses e a p ró p ria v id a do h o ­ m em . W ie n e r o b serv o u q u e m esm o u m a m á­ q u in a q u e p o ssa a p re n d e r e to m ar d ec isõ es

CICLO DO MUNDO

com base em conhecimentos adquiridos não será obrigada a decidir no mesmo sentido que nós, nem a tomar decisões que nos sejam acei­ táveis: "Para quem não tem consciência disso, deixar suas responsabilidades a cargo da má­ quina (que possa ou não aprender) significará confiar suas próprias responsabilidades ao vento e vê-las de volta entre os turbilhões da tempestade" (The Human Use of Human Beings, 1950, cap. XI; cf. também God & Golem, Inc., 1964). Os problemas da C. estão in­ timamente ligados aos problemas da onto­ logia, da gnosiologia e da ética. CICLO DO MUNDO (gr. KÚKÀOç in. Cosmiecycle, fr. Cyclecosmique, ai. KosmicCyklus; it. Ciclo dei mondo). Doutrina segundo a qual o mundo retorna, depois de certo número de anos, ao caos primitivo, do qual sairá de novo para recomeçar seu curso sempre igual. Essa doutrina foi sugerida aos mais antigos filósofos pelos eventos cíclicos constatáveis: a alter­ nância do dia e da noite, das estações, das gerações animais, etc. A noção de C. cósmico encontra-se no orfismo, no pitagorismo, em Anaximandro (Hyp., Refut, omn. haeres, I, 6, I), em Empédocles ( Fr. 17, Diels), em Heráclito (Fr. 5, Diels) e nos estóicos; segundo estes, "quando, em seu desenvolvimento, os astros voltam ao mesmo signo e à latitude e longitude em que cada um estava no princípio, acontece, no C. dos tempos, uma conflagração e uma destruição total; depois, volta-se novamente, desde o começo, à mesma ordem cósmica e de novo, movendo-se igualmente os astros, cada acontecimento ocorrido no C. precedente vol­ ta a repetir-se sem nenhuma diferença. Haverá novamente Sócrates, novamente Platão e nova­ mente cada um dos homens com os mesmos amigos e concidadãos: crer-se-á nas mesmas coisas, os mesmos assuntos serão discutidos e cada cidade, aldeia e campo também retorna­ rão. Esse retorno universal não ocorrerá uma vez só, muitas vezes até o infinito" (NEMÉSIO, De nat. bom, 38). Na filosofia moderna, essa doutrina foi reto­ mada por Nietzsche: para ele o eterno retorno é o sim que o mundo diz a si mesmo, a vonta­ de cósmica de reafirmar-se e de ser ela mesma, portanto, a expressão cósmica daquele espírito dionisíaco, que exata a bendiz a vida. "O mun­ do se afirma por si também na sua uniformida­ de que permanece a mesma no decurso dos anos, bendiz-se por si mesmo, porque é aquilo que deve voltar eternamente, porque é o devir

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CIÊNCIA

que não conhece saciedade, tédio nem fadiga" (WillezurMacht, ed. 1901, § 385). O. Spengler achava que a própria história era uma sucessão de civilizações, que, como organismos vivos, nascem, crescem, declinam e morrem; por isso, todos têm em comum o ritmo do seu C. orgânico (Der Untergang desAbendlandes, I, 1932, pp. 23 ss.). CIÊNCIA (gr. È7tvaTiíj.T|; lat. Scientia; in. Science, fr. Science, ai. Wissenschaft; it. Scienza). Conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida, uma garantia da própria vali­ dade. A limitação expressa pelas palavras "em qualquer forma ou medida" é aqui incluída para tornar a definição aplicável à C. moderna, que não tem pretensões de absoluto. Mas, se­ gundo o conceito tradicional, a C. inclui garan­ tia absoluta de validade, sendo, portanto, como conhecimento, o grau máximo da certeza. O oposto da C. é a opinião (v.), caracterizada pela falta de garantia acerca de sua validade. As diferentes concepções de C. podem ser distinguidas conforme a garantia de validade que se lhes atribui. Essa garantia pode consistir: ls na demonstração; 2° na descrição; 3B na corrigibilidade. ls A doutrina segundo a qual a C. prove a garantia de sua validade demonstrando suas afirmações, isto é, interligando-as num sistema ou num organismo unitário no qual cada uma delas seja necessária e nenhuma possa ser reti­ rada, anexada ou mudada, é o ideal clássico da ciência. Platão comparava a opinião (v.) às es­ tátuas de Dédalo, que estão sempre em atitude de fuga: as opiniões "desertam da alma huma­ na, de modo que não terão grande valor en­ quanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio causai". Mas, "uma vez atadas, tor­ nam-se C. e permanecem fixas. Eis por que a C", conclui Platão, "é mais válida do que a opi­ nião legítima e difere desta pela seus nexos" (Men, 98 a). A doutrina da C. de Aristóteles é muito mais rica e circunstanciada, mas obedece ao mesmo conceito. A C. é "conhecimento de­ monstrativo". Por conhecimento demonstrativo entende-se o conhecimento "da causa de um objeto, isto é, conhece-se por que o objeto não pode ser diferente do que é" (An.pr, I, 2, 71 b 9 ss.). Em conseqüência, o objeto da C. é o ne­ cessário (v.); por isso a C. se distingue da opi­ nião e não coincide com ela; se coincidisse, "estaríamos convencidos de que um mesmo objeto pode comportar-se diferentemente de como se comporta e estaríamos, ao mesmo

CIÊNCIA tem po, co n v e n c id o s d e q u e n ão p o d e c o m p o r­ tar-se d iferen tem en te" (An. post., I, 33, 89 a 38). Por isso, A ristó teles ex clu i q u e p o ssa h a ­ ver C. do n ão n ec essário , ou seja da se n sa ç ã o ijbid, 31, 87 b 27) e do acid en tal (Mel, VI, 2, 1027, 20), ao m esm o te m p o em q u e identifica o co n h e cim en to científico co m o c o n h e c im e n ­ to da essência necessária ou su b stân cia (Ibid., VIII, 6, 1031 b 5). A m ais p erfeita realização desse ideal da C. está em Elementos, de E uclides (séc. III a.C ). Essa o bra, q u e q uis realizar a m atem ática co m o C. p erfeitam e n te d ed u tiv a, sem n en hu m recu rso à experiên cia ou à in d ução , p erm aneceu p o r m u ito s sé c u lo s (e so b certos aspectos p e rm a n e c e até hoje) co m o o p ró p rio m odelo da ciência. A través de Elementos, de E uclides, a c o n c e p ­ ção da C. de P latão e A ristó teles foi tran sm itid a com m ais eficácia do q u e através da d escrição teórica de A ristóteles, da qual os an tig o s n un ca se afastaram. O s estóicos repetiram -na, afirm ando que "a C. é a c o m p re e n sã o se g u ra , certa e im utável fundada na razão" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 151), ou q u e ela "é u m a co m ­ preensão segura ou u m h áb ito im u tável de a c o ­ lher re p resen taçõ es, com b ase na razão" (DIÓG. L, VII, 47). S. T o m ás rep etia as id éias de A ristó­ teles (S. Th, II, 1, q. 57, a. 2) e D u n s Scot ac e n ­ tuava o caráter d em o n strativ o e n ecessário da C, excluindo dela q u a lq u e r c o n h e cim en to d e s ­ provido d esses caracteres, p o rta n to , to d o o d o ­ mínio da fé (Op. Ox., P ro l, q. 1, m . 8). M esm o a última Escolástica, com O ckham , m an tinh a em pé o ideal aristotélico da C. (In Sent., III, q. 8). O su rg im en to d a C. m o d e rn a n ão p ô s em crise esse ideal. D e u m la d o , o n ec essitarism o dos aristotélicos é c o m p a rtilh a d o até p o r seu s adversários; de o u tro , p ersiste a su g e stã o da m atem ática co m o C. p erfeita p ela sua o rg a n iz a ­ ção dem onstrativa; e o p ró p rio G alileu c o lo ca­ v a as "d em o n straçõ es n ecessárias" ao lad o da "experiência sen sa ta" co m o fu n d a m e n to da C. (Opere, V , p. 316). O ideal g e o m é tric o da C. tam bém d o m in a as filosofias de D escartes e Spinoza. D escartes q u e ria o rg an iza r to d o o sa ­ ber h u m an o p elo m o d e lo da aritm ética e da geom etria: as ú n icas C. q u e ele co n sid e rav a "desprovidas de falsid ad e e de in certeza", p o r­ que fundadas in te ira m e n te na d e d u ç ã o (Regulae ad directionem ingenii, II). E S pino za cham ava de C. intuitiva a e x te n sã o do m éto d o geom étrico a to d o o u n iv e rso , e x te n sã o pela qual, "da idéia a d e q u a d a da essê n cia form al de alguns atributos de D eus, p ro ced e -se ao c o n h e ­

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CIÊNCIA c im en to a d e q u a d o d a essê n cia d as coisas" (Et., II, 40, scol. 2Q). K ant ro tu lav a esse v e lh o ideal co m u m n o v o te rm o , sistema (v.). "A u n id a d e sistem ática", dizia ele, "é o q u e an te s de tu d o faz d e u m c o n h e c im e n to co m u m u m a C , isto é, de u m sim p les a g re g a d o , u m sistem a"; e ac re sc en ta v a q u e p o r sistem a é p rec iso e n te n ­ d er "a u n id a d e d e c o n h e c im e n to s m ú ltip lo s re u n id o s so b u m a ú n ica idéia" (Crít.R. Pura, D o u trin a do m é to d o , cap . III; cf. Methaphy-

sische Anfangsgründe der Naturwissenschaft,

P refácio). E sse c o n c e ito da C. co m o sistem a, in tro d u z id o p o r K ant, to rn o u -se lu g ar co m u m da filosofia do séc. X IX e a ele ain d a re co rrem as filosofias de ca rá ter te o ló g ic o ou m etafísico. Isso ac o n te c e u so b re tu d o p o r ter sid o a d o ta d o p elo R o m an tism o , q u e o re p e tiu à sacied ad e. F ichte dizia: "U m a C. d ev e ser u m a u n id a d e , u m to d o ... A s p ro p o rç õ e s iso lad as g era lm e n te n ão são C , m as to rn a m -se C . só no to d o , g ra­ ças a seu lu g ar no to d o , à su a re la ção co m o to d o " (Ueber den Begriff der Wíssenschaftslehre, 1794, § 1). S ch ellin g rep etia: "A dm ite-se, g e ra lm e n te , q u e à filosofia co n v é m u m a for­ m a p ec u liar dela, q u e se ch am a sistem ática. P re s s u p o r tal fo rm a n ã o d e d u z id a c o m p e te a o u tras C. q u e já p re s su p õ e m a C. da C , m as n ão esta, q u e se p ro p õ e p o r o b jeto a p o ssib ili­ d a d e de s e m e lh a n te C." (System des transzendentalen Idealismus, 1800, I, cap . I; trad. it., p. 27). E H eg el afirm ava p e re m p to ria m e n te : "A v e rd a d e ira fo rm a na q u a l a v e rd a d e ex iste só p o d e ser o sistem a científico dela. C o lab o rar p ara q u e a filosofia se a p ro x im e da form a da C. — isto é, da m eta q ue, u m a v ez alcançad a, perm itir-lh e-á a b a n d o n a r o n o m e d e am o r ao sa ­ b er p ara ser v e rd a d e iro sab er — eis o q u e m e p ro p u s" (Phãnomen des Geistes, P refácio, I, 1). F ichte, S ch ellin g e H eg el co n sid e ra v a m q u e o ú n ic o s a b e r sistem á tic o , p o rta n to a ú nica C , era a filosofia. M as, p ara m u ito s filósofos do séc. XIX, o c o n c e ito de sistem a co n tin u o u ca­ ra c te riz a n d o a C. em g eral, p o rta n to ta m b é m a C. da n atu re za . H. C o h en via no sistem a a m ais alta categ o ria da n atu re za e da C. (Logik, 1902, p. 339). H u sserl via o caráter essen cial da C. na "u n id a d e sistem ática" q u e n ela e n c o n tra m os co n h e cim en to s isolados e os seu s fu n dam en to s (Logische Untersuchugen, 1900,1, p. 15); e in d i­ cava no sistem a o p ró p rio ideal da filosofia, se esta q u ise sse o rg an iza r-se co m o "C. rigorosa" (Philosophie ais strenge Wissenschaft, 1910-11; trad. it., p. 5). O ideal de C . co m o sistem a co n ti­ n u o u v iv o ain d a m u ito te m p o d e p o is q u e as C.

CIÊNCIA n a tu ra is d e le se afasta ram e c o m e ç a ra m a p o lem iz ar co n tra "o esp írito d e sistem a". S e hoje é p o ssív el c o n sid e ra r su p e ra d o o ideal clássico de C. co m o sistem a a c a b a d o de v e rd a d e s n ec essária s p o r ev id ên cia ou p o r d e ­ m o n stração , o m esm o n ão se p o d e dizer de to ­ das as su a s características. Q u e a C. seja, ou te n d e a ser, u m sistem a, u m a u n id a d e , u m a to ­ ta lid a d e o rg an iza d a, é p re te n sã o q u e as o u tras c o n c e p ç õ e s da p ró p ria C . ta m b é m têm . O q u e essa p re te n sã o tem , em to d o s os caso s, de v áli­ do é a ex ig ên cia d e q u e as p ro p o siç õ e s q u e co n stitu em o c o rp o lin g ü ístico d e u m a C. s e ­ ja m compatíveis en tre si, isto é, n ão c o n tra d itó ­ rias. Essa ex ig ên cia, sem d ú v id a, é m u ito m e ­ n os rig o ro sa do q u e a q u ela p ara a qual tais p ro p o siç õ e s d ev eriam co n stitu ir u m a u n id a d e ou u m sistem a; aliás, a rigor, é u m a ex ig ên cia to talm en te diferente, pois a n ão -co n trad içâo não im plica, em a b so lu to , a u n id a d e sistem ática. T o d av ia, na lin g u ag em científica ou filosófica co rren te, m uitas v ezes a exig ên cia sistem ática é re d u zid a à d e co m p atib ilid ad e . 2a A c o n c e p ç ã o descritiva da C. c o m eç o u a fo rm ar-se co m B acon , N ew to n e os filósofos ilum inistas. Seu fu n d a m en to é a d istin ção b aco n ian a en tre antecipação e interpretação da natureza: a in terp retação co n siste em "conduzir os h o m e n s d ian te d o s fatos p artic u la re s e das su as o rd en s" (Nov. Org, I, 26, 36). N e w to n e s ­ ta b e le cia o c o n c e ito d escritiv o d a C, co n tra ­ p o n d o o m é to d o da an álise ao m é to d o da sín ­ tese. E ste ú ltim o co n siste "em assu m ir q u e as ca u sa s fo ram d e s c o b e rta s, em p ô -la s co m o p rin cíp io s e em ex p licar os fe n ô m e n o s p artin ­ do de tais p rin c íp io s e c o n sid e ra n d o co m o p ro v a essa ex p licação ". A an álise, ao co n trário , c o n siste "em fazer e x p e rim e n to s e o b s e rv a ­ çõ e s, em d ele s tirar co n c lu sõ e s g erais p o r m eio da in d u ç ão e em n ão adm itir, co n tra as c o n ­ c lu sõ e s, o b je ç õ e s q u e n ão d e riv e m d o s e x ­ p e rim e n to s ou d e o u tra s v e rd a d e s seg u ras" (Opticks, III, 1, q. 31). A filosofia do ilum inism o ex a lto u e difu n diu o id eal científico de N ew to n . "Esse g ra n d e g ên io ", dizia D 'A lem b ert, "viu q u e era te m p o de b a n ir da física as co n jectu ras e as h ip ó te se s v ag as, ou p elo m e ­ n o s d e tê-las a p e n a s p elo q u e v ale m e de s u b ­ m eter essa C. s o m e n te às e x p e riê n c ia s e à g eo m etria" {Discours préliminaire de VEncyclopédie, em Qíuvres, ed. C o n d o rcet, p. 143). A o m esm o te m p o , D 'A lem bert d eclarav a j á ser inútil para a C. e para a filosofia o espírito de sistema. "As ciências to d as, fech ad as, o m áxim o

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CIÊNCIA p o ssív el, n o s fatos e n as c o n se q ü ê n c ia s que d ela s p o d e m ser d e d u z id o s, n ão fazem co n ­ c e ssõ e s à o p in iã o , a n ão ser q u a n d o a isso são o b rig ad as". A C. re d u z -se , assim , à o b serv ação d o s fatos e às in ferên cias ou ao s cálcu lo s fun­ d a d o s n os fatos. O p o sitiv ism o o ito cen tista não fazia m ais do q u e re c o rre r ao m esm o co n ceito de ciên cia. D izia C o m te: "O c a rá te r fu n d a­ m en tal da filosofia p ositiva é c o n sid e ra r to d os os fe n ô m e n o s co m o sujeitos a leis n atu ra is in­ v ariáv eis, cuja d e sc o b e rta p recisa e cuja redu ­ ção ao m e n o r n ú m e ro p o ssív el co n stitu em o o bjetivo de to d o s os n o sso s esforços, ao m es­ m o te m p o em q u e ju lg a m o s a b so lu ta m en te in acessível e sem s e n tid o a b u sca d aq u ilo que se ch am a de cau sas, ta n to p rim eiras com o fi­ nais" (Cours dephil. positive, I, § 4; vol. I, pp. 26-27). M as o p o sitiv ism o ta m b é m insistiu no caráter da C. q u e B aco n já ev id en ciara: o cará­ ter ativo ou o p e ra c io n a l, g raç as ao qual ela p erm ite q u e o h o m e m aja so b re a n atu reza, e a d o m in e através da p rev isão d o s fatos, possibi­ litada p o r leis {Ibid, II, § 2; p. 100). O ideal des­ critivo da C. n ão im plica, p o rta n to , q u e a C. co n siste no e s p e lh a m e n to ou n a rep ro d u ção fotográfica d os fatos. D e u m lado, o caráter an­ te c ip a d o do c o n h e c im e n to científico, graças ao q u al ela se co n cre tiza em p rev isõ e s baseadas em re la çõ es v erificad as e n tre os fatos, elim ina o seu ca rá ter fotográfico: re a lm e n te , n ão se p o d e fotografar o futuro. Por o utro lado, a mesma C. p ositivista ev id en c io u a o rie n taç ão ativa da d escriçã o científica. A s c o n sid e ra ç õ e s de Claud e B ernard a re sp e ito são m u ito im portantes: "A sim p les c o n stata çã o d o s fatos", diz ele, "nun­ ca ch eg ará a co n stitu ir u m a ciência. Podem -se m u ltip licar fatos e o b se rv a ç õ e s, m as isso não levará à c o m p re e n sã o d e n ad a. P ara aprender, é p rec iso , n e c e ssa ria m e n te , ra cio c in ar sobre o q u e se o b se rv o u , c o m p a ra r os fatos e julgá-los co m o u tro s fatos q u e serv em d e co n tro le" (Intr. à 1 'étude de Ia médecine expérimentale, 1865, I, 1, § 4). D esse p o n to de vista, u m a C. de o b se rv a ç ã o será u m a C. q u e racio cin a sob re os fatos da o b serv a çã o natural, isto é, sob re os fa­ to s p u ra e sim p le sm e n te co n statad o s, ao passo q u e u m a C. ex p erim en tal ou de experim ento racio cin ará so b re os fatos o b tid o s nas condi­ çõ e s q u e o e x p e rim e n ta d o r criou e determ i­ n o u {Ibid., 1865, I, 1, § 4). A d o u trin a de M ach s o b re a C. n ão poderia ser c h a m a d a de d escritiv a, se p o r descrição se e n te n d e r a re p ro d u ç ã o fotográfica d o s objetos, m as p o d e ser ch a m a d a de d escritiva no sentido

CIÊNCIA já esclarecido. D iz M ach: "Se ex c lu irm o s aq u ilo que não tem se n tid o p esq u isar, v e re m o s a p a re ­ cer m ais n itid a m en te o q u e p o d e m o s re a lm e n ­ te atingir p o r m eio d e cad a C: to d a s as re la ­ ções e os d iferen tes m o d o s d e re la ção en tre os elem entos" (Erkenntniss und Irrtum, cap . I; trad. fr., p. 25). A in o v ação de M ach co n siste no seu co n ceito d o s elementos, já q u e p ara ele estes são co m u n s ta n to às co isas co m o à c o n s ­ ciência, diferin d o na co n sc iên c ia e na coisa só na m edida em q u e p e rte n ç a m a co n ju n to s d i­ ferentes (Ibid, cap . I; trad. fr., p. 25; cf. Die AnalysederEmpfindungen, 9a ed., 1922, p. 14). A função econômica q u e M ach atrib u iu à C, ou, m ais p re c isa m e n te , ao s c o n ce ito s científi­ cos, não su p rim e p o rta n to o caráter d escritiv o da C , re co n h e cív el na tese de q u e a C. tem p o r objeto as relações en tre os e le m e n to s. J u s ta ­ m ente por co n siderar as re la çõ es en tre os fatos, a C. é um a d escrição ab re v iad o ra e ec o n ô m ic a dos p ró p rio s fatos {Die Mechanik, trad . in., 1902, pp. 481 ss.). D o m esm o m o d o , B erg so n reconhece o ca rá te r c o n v e n c io n a l e e c o n ô ­ mico da C. p e lo fato de q u e ela, q u e tem com o órgão a in telig ên cia, n ão se d eté m nas coisas, m as nas re la ç õ e s e n tre as co isas ou si­ tuações (Evol. créatr.,8- ed., 1911, p p. 161, 356). O ideal descritivo da C. re a p a re c e ta m b é m em escritores recentes. D ew ey afirm a: "C om o na C. os significados são d e te rm in a d o s co m b a se em sua relação recíproca co m o sign ificad os, as re­ lações tornam -se os o bjeto s da in d a g a ç ã o e d i­ minui bastan te a im p o rtâ n c ia d as q u a lid a d e s, que só têm função na m ed id a em q u e ajudem a estabelecer relaçõ es" (Logik, V I, § 6; trad. it., p. 171). O ra, "relações" n ad a m ais são do q u e o outro n o m e de leis, já q u e a lei n ad a m ais é do que a e x p ressã o d e u m a relação : de m o d o que o m esm o co n ce ito da C. p o d e ser e n c o n ­ trado em to d o s os escrito res q u e re c o n h e c e m na form ulação da lei a tarefa da ciên cia. H. Dingler dizia: "A p rin cip al tarefa da C. co n siste em chegar ao m aior n ú m e ro p ossível de leis" (Die Methode derPbysik, 1937, I, § 9). E, m ais recentem ente, R. B. B raith w aite afirm ou: "O conceito fu n dam en tal da C. é o da lei científica e o objetivo fu n dam en tal de u nia C. é e sta b e le ­ cer leis. Para c o m p re e n d e r o m o d o co m o u m a C. opera e o m o do com o qual ela fornece ex p lica­ ções dos fatos q u e investig a, é n ec essário co m ­ preender a n atu re za d as leis científicas e o m odo de estab elecê-las" (Scientific Explanation, C am bridge, 1953, p. 2).

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CIÊNCIA 3e U m a terceira co n ce p ç ão é a q u e reco n h ece, co m o g ara n tia ú n ica d a v a lid a d e da C , a sua au to co rrig ib ilid a d e . T rata-se d e u m a c o n c e p ­ ção d as v a n g u a rd a s m ais críticas ou m en o s d o g m ática s da m eto d o lo g ia c o n te m p o râ n e a e ain d a n ã o a lca n ç o u o d e s e n v o lv im e n to das o u tras d u as c o n c e p ç õ e s acim a; ap e sar disso, é significativa, seja p o r p artir da d esistên cia de q u a lq u e r p re te n sã o à g ara n tia ab so lu ta , seja p o r abrir n o v as p ersp ectiv as ao estu d o analítico d o s in stru m e n to s d e p esq u isa d e q u e as C . d is­ p õ e m . O p re s su p o s to d essa c o n c e p ç ã o é o falibilismo (v.), q u e P eirce atrib u ía a q u a lq u e r c o n h e c im e n to h u m a n o (Coll. Pap, I, 13, 141­ 52). M as essa te se foi e x p re ssa p ela p rim eira v e z p o r M orris R. C oh en: "P o d em o s definir a C. co m o u m Sistema autocorretívo... A C. co n vida à d ú v id a. P o d e d e se n v o lv e r-se ou p ro g red ir n ão só p o rq u e é frag m en tária, m as ta m b é m p o rq u e n e n h u m a p ro p o siç ã o sua é, em si m e s­ m a, ab so lu ta m en te certa, e assim o p ro cesso de co rre ç ã o p o d e atu ar q u a n d o en c o n tra m o s p ro ­ v as m ais a d e q u a d a s . M as é p reciso n o tar q u e a d ú v id a e a co rre ç ã o são co m p atív e is co m os c â n o n e s do m é to d o científico, d e tal m o d o q u e a co rre ç ã o é o seu elo d e c o n tin u id ad e" (Studies in Philosophy and Science, 1949, p. 50). M . B lack, m ais re c e n te m e n te , a d o to u p o n to de vista an álo g o : "O s p rin cíp io s do m é to d o cien ­ tífico d ev em , p o r sua v ez, ser c o n sid e ra d o s p ro ­ v isó rio s e sujeitos a c o rre ç õ e s u lte rio re s, de tal m o d o q u e u m a d efinição de 'm é to d o científi­ co ' seria verificável em q u a lq u e r se n tid o do te rm o " (Problems of Analysis, 1954; p. 23). E m term o s ap a ren te m en te p arado x ais, m as eq u i­ v alen tes, K. P o p p e r afirm ara, em Lógica da des­ coberta científica (1935), q u e o in stru m en tal da C . n ão está v o lta d o para a v erificação , m as p ara a falsificação das p ro p o siç õ e s científicas. "N osso m é to d o d e p esq u isa", dizia ele, "não visa d efe n d e r as n o ssa s antecipações para p ro ­ v ar q u e te m o s razão , m as, ao co n trário , visa d estru í-las. U san d o to d a s as arm as do n o sso arsen al ló g ico , m atem á tic o e técn ico , te n tam o s p ro v a r q u e n o ssas a n te c ip a ç õ e s são falsas, para ap re se n tar, no lu g ar d elas, n o v as a n te c ip a ç õ e s n ão ju stificadas e injustificáveis, n o v o s 'p re c o n ­ ceitos a p re ss a d o s e p re m a tu ro s' co m o e sc a r­ n ecia B acon" {The Logic ofScientific Discovery, 2a ed., 1958, § 85, p. 279). C om isso, P o p p e r p re te n d e u assin alar o a b a n d o n o do ideal clás­ sico da C: "O v e lh o ideal científico da episteme, do c o n h e c im e n to ab so lu ta m e n te certo e d ern o nstrável, rev elo u -se u m m ito. A ex ig ên cia de

CIÊNCIA, TEORIA DA o b je tiv id a d e cien tífica to rn a in e v itá v e l q u e q u a lq u e r asse rç ão científica seja s e m p re p ro ­ visória". O h o m e m n ão p o d e co n h e c e r, m as só conjecturar (Jbid, p p . 278, 280). A firm ar q ue os in stru m en to s d e q u e a C . d isp õ e se d estin am a d e m o n stra r a falsid ad e da C. é u m o u tro m o d o d e ex p rim ir o c o n ce ito da au to co rrib ilid a d e da C : p ro v a r a falsid ad e de u m a asser­ ção significa, d e fato, su b stitu í-la p o r o u tra asse rç ão , cuja falsid ad e ain d a n ão foi p ro v a d a , co rrig in d o p o rta n to a p rim eira. A n o ç ã o da au to co rrig ib ilid a d e sem d ú v id a co n stitu i a g a ­ rantia m e n o s d o g m ática q u e a C, p o d e exigir da sua p ró p ria v alid a d e . P erm ite u m a an álise m e n o s p re c o n c e itu o s a d o s in stru m e n to s de verificação e co n tro le de q u e ca d a C . d isp õ e. CIÊNCIA, TEORIA DA (in. Science of science; fr. Doctrine de Ia science; ai. Wissenschaftslehre, it. Dottrina delia scienza). E x p re s­ são co m a q ual F ichte d esig n o u "a C. d as C. em geral", isto é, a C. q u e e x p õ e de m o d o sistem áti­ co o p rin cíp io fu n d a m en tal em q u e se ap o iam to d as as o u tras ciên cias. "Q u alq u er C. p ossível tem u m p rin cíp io fu n d a m en tal q u e n ela n ão p o d e ser d e m o n stra d o , m as q u e j á d ev e ter sido verificado an tes dela. O ra, o n d e d ev e ser d e ­ m o n stra d o esse p rin cíp io fundam ental? S em d ú ­ v id a na C. q u e d ev e fu n d a m en tar to d a s as C. p o s sív e is" {Über dem Begriff der Wissenschaftslehre, Y79A, § 2; trad. it., p p. 11-12). F ichte identificava a teoria da C. com a filosofia, v e n d o o seu p rin cíp io fu n d a m en tal no Eu. E ssa ex p re ssã o ain d a é u sa d a hoje, q u a se sem p re co m referên cia a F ichte. T o d av ia, B. B o lzan o ad o to u -a co m o títu lo de u m a o bra p ara in d icar a d o u trin a q u e e x p õ e as reg ras de divisão do cam p o em cada C. e de ap re n d iz ad o do p ró p rio sab er (Wissenschaftslehre, 1837, I, § 6; cf. IV, § 392 ss.). M as, p ara a d iscip lina q u e co n sid e ra as fo rm as ou os p ro c e d im e n to s do c o n h e c im e n to científico, têm sid o u sa d a s m ais freq ü en tem en te as p alavras epistemologia (v.) e metodologia (v .). CIÊNCIA NOVA. E x p re ssão co m q u e G. B. V iço d esig n o u a su a p rin cip a l o bra, p u b licad a p ela p rim eira v e z em 1725 e, em n o v as e d i­ çõ es, em 1730 e em 1744. O títu lo co m p leto

Princípios de uma ciência nova acerca da na­ tureza comum das nações e x p ressa a finali­

d ad e da obra. V iço p ro p u n h a -se in stau ra r u m a ciência q u e tivesse co m o tarefa o estu d o das leis p ró p rias d a h istória h u m a n a , do m esm o m o d o co m o a C. n atu ral estu d a as leis do m u n ­

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CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS do n atu ral. V iço q u e r ser o B aco n da história, p ro p o n d o -s e ra strea r sua o rd e m e ex p rim i-la em leis. A s ca ra cte riza çõ es fu n d a m en tais q u e ele dá d a C. n o v a são as se g u in te s (cf. e s p e ­ cialm en te a C. N . de 1744, I, D o m éto d o ): Ia a C. n ov a é u m a "teologia civil e racio n al da p ro v id ê n c ia divina", isto é, a d e m o n stra ç ã o d a o rd e m p ro v id e n c ial q u e se v ai a tu a lizan d o n a so c ie d a d e h u m a n a , à m ed id a q u e o h o m e m se erg u e da sua q u e d a e da su a m iséria p rim iti­ va. V iço o p õ e essa teolog ia civil (= social) à te o ­ logia física d a trad iç ão , q u e d e m o n stra a ação p ro v id e n c ial de D eu s na n atu reza; 2a a C. n ov a é u m a "história d as id éias h u ­ m an as so b re a q u al p a re c e d ev er p ro c e d e r a m etafísica da m e n te h u m a n a ": é a d e te rm in a ­ ção do d e se n v o lv im e n to in telectu al h u m a n o , d e sd e as o rig en s g ro sseiras até a ra cio n alid ad e reflexiva. N esse sen tid o , ta m b é m é u m a "crítica filosófica q u e m o stra a o rig em d as id éias h u m a­ n as e a su a su cessão "; 3a em te rc eiro lugar, a C. n o v a te n d e a d e s ­ crev er " uma história ideal eterna, so b re a qual tran sco rram , no te m p o , as h istó rias de to d as as n aç õ e s, n os seu s su rg im e n to s, p ro g re sso s, esta­ d os, d e c a d ê n c ia s e fins". C om o tal, a C. n ova ta m b é m é u m a C. d o s p rin cíp io s da história u n iv ersal e do d ireito n atu ral u niversal; 4a a C. nova é, além d isso , u m a "filosofia da autoridade', isto é, da tradição, p ois é d a trad i­ ção q u e ex trai as p ro v a s de fato (ou filológicas) q u e c o m p ro v a m a o rd em de su c e ssã o d as id a­ d es da história. S ob re o c o n ce ito de h istória de V iço, v. H IS ­

TÓRIA. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS (in Classification ofscíences; fr. Classification des sciences; ai. Klassifikation der Wissenschafte, it. Classificazione delle scienze). E n q u a n to um a enciclopédia (v.) é a ten tativ a de d ar o q u ad ro

co m p leto de to d a s as d iscip lin as científicas e de fixar de m o d o definitivo as su a s re la ç õ e s de c o o rd en aç ão e su b o rd in a çã o , u m a classificação d as C. tem só o in tu ito m ais m o d e sto de dividir as C. em d ois ou m ais g ru p o s, s e g u n d o a afini­ d ad e d e seu s o bjeto s ou d e se u s in stru m en to s d e p esq u isa. É ó b v io q u e as en c ic lo p é d ia s das C. ta m b é m p o d e m ser c o n sid e ra d a s sim ples classificações, m as alg u m as classificações sim ­ ples, feitas p elo s filósofos do sécu lo XIX, foram m u ito m ais eficazes n esse tra b a lh o científico. A m ais fam osa d e to d a s é a p ro p o sta p o r Am p ère, de C. do espírito, ou noológicas, e C. da n atu reza, ou cosmológicas (Essai sur Iaphilo-

CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS

sophíe des sciences, 1834). Essa classificação foi am p lam en te aceita e, às v e z e s, re e x p re ssa com outros te rm o s, p. ex., co m o d istin çã o e n tre C.

culturais e C. naturais (Du BOIS-REYMOND, Kulturgeschichte und Naturnissenschaften, 1878). P ara a su a difusão a m aio r co n trib u iç ão foi de D ilthey, q u e, em Introdução ãs ciências do espírito (1883), insistiu n a d iferença en tre as ciências q u e v isa m conhecer c a u sa lm e n te o objeto, q ue p erm a n e ce ex tern o, isto é, as C. n a ­ turais, e as q u e , ao c o n trá rio , v isa m com­ preender o objeto (que é o hom em ) e a revivê-lo in trin secam en te, isto é, as C. do esp írito . W ind elband, p o r su a v ez , fazia d istin ção en tre C. nomotéticas, q u e p ro c u ra m d esco b rir leis e d i­ zem re sp eito à n atu re za , e C. idiogrãficas, q ue têm em m ira o in d iv íd u o , em d e te rm in a ç ã o histórica e co m o o b jeto a h istória (Geschichte und Naturwissenschaften, 1894, e d ep o is nos Prãludien). R ickert ex p rim ia a m esm a d iferen ­ ça com m ais felicid ad e afirm an d o q u e as C. da natureza tê m caráter generalizante, ao p asso que as C. do esp írito têm ca rá te r individua-

lizante (Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung, 1896-1902, p p . 236 ss.) (v. HISTORIOGRAFIA).

D e o u tro p o n to d e v ista, C o m te d istin g u ira duas esp écies de C. natu rais: as C. abstratas ou gerais, q u e têm p o r objeto a d esco b e rta d as leis que reg em as d ife re n te s classes de fe n ô m e ­ nos, e as C. concretas, p artic u la re s, descritiv as, que co n sistem n a ap lica çã o d essas leis à h istó ­ ria efetiva d o s d iferentes seres ex iste n tes (Cours dephil. positive, 1830, I, II, § 4). S p e n c e r re to ­ m ava essa d istin ção e, p o r su a v ez , dividia to ­ das as C. em abstratas (lógica form al e m a te ­ m ática), abstrato-concretas (m ecânica, física, quím ica) e concretas (astro n o m ia, m in eralo g ia, geologia, b io lo g ia, p sico lo g ia, socio log ia) (The Classifícation ofthe Sciences, 1864). E W u n d t sim plificava essa classificação, re d u z in d o -a a dois g ru p o s a p e n a s: o d as C. formais (lógica e m atem ática) e o d as C. reais (C. da n atu re za e do esp írito ) (System der Philosophie, 1889). Pouco d iferen te d esta é a classificação triádica de O stw ald em C. form ais, C. físicas e C. b io ló ­ gicas (Gundriss derNaturphilosophie, 1908). A distinção entre C. form ais e C. reais ainda é am ­ plam ente aceita. R. C arn ap a re p ro p ô s co m o fundam ento de q u e as C. form ais só co n teriam asserções an alíticas e as C. reais, ou factuais, conteriam ta m b é m a s se rç õ e s sin té tic a s (em Erkenntniss, 1934, n. 5; ag o ra em Readings in the Philosopby of Science, 1953, p p. 123 ss.).

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CINISMO C o m o n o ta C arn ap , assim in te rp re ta d a , essa classificação d eix a in tacta a u n id a d e d a C , p o is "as C. fo rm ais n ão tê m a b s o lu ta m e n te o b jeto : são sistem a s de asse rç õ e s au x iliares sem o bjeto e sem co n te ú d o " (Ibid, p. 128). E ssas ú ltim as p alav ras de C arn ap ex p licam se te n d o em m e n te q u e hoje n ão se p o d e c o n ­ ferir caráter ab so lu to ou rig o ro so à d istin ção e n tre as v árias C. A s p ala v ras se g u in te s de V on M ises ex p rim e m b em o p o n to de vista m ais co rren te so b re o assu n to : "Q u alq u er d iv isão e su b d iv isã o d as C. tem a p e n a s im p o rtâ n c ia p rá ­ tica e p ro visó ria, n ão é sistem a tic am e n te n e c e s­ sária e definitiva, isto é, d e p e n d e d as situ aç õ e s e x te rn a s em q u e se realiza o tra b a lh o científico e da fase atual de d ese n v o lv im e n to de cada disciplina. O s p ro g resso s m ais decisivos m uitas v e z e s se o rig in aram do esc la re c im e n to d e p ro ­ b le m a s q u e se e n c o n tra m n o s lim ites en tre s e ­ to re s até e n tã o tra ta d o s se p a ra d a m e n te " (KleinesLehrbuch des Positivismus, 1939, V , 7). CIFRA (ai. Chiffre). S eg u n d o J a sp e rs, é "a lin g u ag em da tra n sc e n d ê n c ia ", isto é, o sím b o ­ lo m e d ia n te o q u al o ser tra n sc e n d e n te p o d e estar p re s e n te na ex istên cia h u m a n a sem , co n ­ tu d o , ad q u irir ca ra cte re s o b jetiv o s e sem fazer p a rte da ex istê n c ia sub jetiv a (Phil, III, p. 137). U m a coisa, u m a p esso a, u m a d o u trin a , u m a p o e sia p o d e m v ale r co m o sím b o lo s ou C. da tra n sc e n d ê n c ia ; sím b o lo s e C. são ta m b é m as situações-limite (v.).

CINEMATOGRÁFICO, MECANISMO (fr. Mécanisme cinématographiqué). F oi assim q ue

B ergson d e n o m in o u o p ro c e d im e n to do p e n sa ­ m en to em face do m o v im e n to : o p e n sa m e n to faria "instantân eo s" im óveis do m o v im en to , aos q u a is ac re sc e n ta ria u m m o v im e n to artificial ex te rn o . E sse p ro c e d im e n to seria a b a se da "ilusão m ecan icista" (Evol. créatr., cap . IV). CINISMO (in. Cynicism; fr. Cynisme; ai. Cynismus; it. Filosofia cínica). D o u trin a de u m a d as esco las so cráticas, m ais p re c isa m e n te da q u e foi criada p o r A n tísten es de A ten as (séc. IV a.C.) no G in ásio C in o sarg o s. É p ro v áv el q u e o n o m e da d o u trin a d eriv e do n o m e do G in á­ sio, ou en tã o , co m o d izem o u tro s, do seu ideal de vida n os m o ld es da sim p licid ad e ( e do d e s ­ ca ra m en to ) d a v id a can in a. A te se fu n d a m en tal do cin ism o é q u e o ú n ic o fim do h o m e m é a felicid ad e e a felicid ad e co n siste na v irtu d e. Fora da v irtu d e n ã o ex istem b e n s, de m o d o q u e foi característica d os cínico s o d e sp re z o p ela co m o d id a d e , p elas riq u ez as, p elo s p razeres, b e m co m o o m ais rad ical d e s p re z o p elas

CIRCULO

convenções humanas e, em geral, por tudo o que afasta o homem da simplicidade natural de que os animais dão exemplo. A palavra "cinis­ mo" permaneceu na linguagem comum para designar um certo descaramento. CÍRCULO ( gr. KÚKap, òiákXr\koç, X070Ç; lat. Circulus; in. Circle, fr. Cercle, ai. Zirkelbeweiss; it. Circoló). Segundo Aristóteles a demonstra­ ção em círculo ou recíproca consiste em dedu­ zir da conclusão e de uma das duas premissas de um silogismo (esta última assumida na rela­ ção de predicação inversa) a outra conclusão do próprio silogismo (An. pr, II, 5, 57 b ss.). Aristóteles admite a plena validade desse pro­ cedimento e estabelece seus limites e suas con­ dições a propósito de cada figura do silogismo. Portanto, nada tem a ver com o "C. vicioso" ou "petição de princípio", que ele enumera entre os sofismas extra dictionem (isto é, que não dependem da expressão lingüística) e que con­ siste em assumir como premissa a proposição que se quer provar (El. sof, 5, 167 a 36). Somente os céticos identificaram ambas as coisas e julgaram que todo silogismo não só é um C, ou seja, uma demonstração recíproca, como também é um C. vicioso, uma petição de princípio. Nesse sentido usaram a palavra dialelo e o incluíram entre os tropos, isto é, en­ tre os modos de suspender o juízo. Sexto Em­ pírico atribui este tropo àqueles que ele cha­ ma de "céticos mais recentes", isto é, os seguidores de Agripa: "Existe dialelo quando aquilo que deve ser confirmação da coisa procurada precisa ser encontrado pela coisa pro­ curada" (Pirr. hyp, I, 169; cf. DIÓG. L, IX, 89). Por sua vez, Sexto Empírico acredita que todo silogismo é um dialelo porque nele a premis­ sa maior, p. ex., "Todos os homens são mor­ tais", pressupõe a conclusão "Sócrates é mortal" (Pirr. hyp, II, 195 ss.). Essa crítica negligencia um ponto capital da lógica de Aristóteles, isto é, que as premissas do silogismo não são esta­ belecidas por indução, mas exprimem a causa ou a substância necessária das coisas. P. ex., quando se diz "Todos os homens são mortais", não se exprime a observação de que Fulano, Beltrano e Sicrano são mortais, mas sim um caráter que pertence à substância ou essência necessária do homem e por isso é a causa ou razão de ser da conclusão. Em geral, o C. é considerado sinal da inca­ pacidade de demonstrar. Hegel observou, po­ rém, que "a filosofia forma um C." porque, em

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CIRENAISMO

cada uma de suas partes, deve partir de algo não demonstrado, que é por sua vez o resulta­ do de alguma outra de suas partes (Fil. do dir, § 2, Zusatz). Por sua vez, Rosmini (Lógica, 1854, p. 274 n) falou de um "C. sólido", pelo qual o conhecimento da parte supõe o do todo, e vice-versa. E Gentile, remontando a tais exem­ plos, disse que o dialelo ou C, da forma como Empírico o mostrou no silogismo, é a caracte­ rística própria do "pensamento pensado", isto é, do pensamento como objeto de si mesmo. "Esse dialelo", diz ele, "que foi sempre o pesa­ delo do pensamento, será — aliás é — a morte do pensamento pensante; mas é a vida, a pró­ pria lei fundamental do pensamento pensado, sem o qual é impossível conceber o pensamen­ to pensante" (Log., I, parte II, VI, § 3). CÍRCULO DE VIENA (in. Vienna Circle, fr. Cercle de Vienne, ai. Wiener Kreis, it. Circolodi Vienna). Tem esse nome o grupo de filósofos e cientistas que se reuniu em torno de Moritz Schlick, professor da Universidade de Viena, nos anos que vão de 1929 a 1937; grupo que compreendia, entre outros, Kurt Gõdel, Philip Franc, Friedrich Waissmann. Otto Neurath e Rudolf Carnap. Ao C. de Viena vinculava-se o grupo de Berlim, em torno de Hans Reichenbach e Richard von Mises. A revista Erkenntniss, publicada de 1930 a 1937 e dirigida por Carnap e Reichenbach, foi o órgão desta cor­ rente. Quando o grupo se dissolveu, com o iní­ cio das perseguições raciais (1938), seus mem­ bros foram quase todos para os Estados Unidos, onde continuaram em atividade profícua. Um dos inspiradores do C. de Viena foi Wittgenstein. Para as idéias defendidas pelo C. de Viena, cuja diretriz foi antimetafísica e empirista, v. EMPIRISMO LÓGICO. Para outros dados, v. BARONE, // neopositivísmo lógico, Turim, 1953. CIRENAÍSMO. Filosofia dos cirenaicos, uma das escolas socráticas, mais precisamente a fundada por Aristipo de Cirene (séc. VI a.C), da qual fizeram parte Teodoro, o Ateu, Hegédias, o Advogado da Morte, e outros. O in­ teresse dos cirenaicos, assim como o dos cíni­ cos, era predominantemente moral. Colocavam o critério da verdade na sensação e o critério do bem no prazer. A finalidade do homem é o prazer, não sendo a felicidade mais do que "o sistema dos prazeres" passados, presentes e fu­ turos. A conclusão dessa atitude é o conselho de pensar no dia de hoje, aliás, no instante em que cada um atua ou pensa, dada a incerteza

CIVILIZAÇÃO radical do futuro. H eg ésia s ex traía c o n s e q ü ê n ­ cias p essim istas d esse p o n to de v ista, afirm an ­ do que, p ara o sáb io , a v id a é in d iferen te. Cf. as fontes reco lh id as em G. GIANNANTONI, / Cirenaici, F lo rença, 1958. CIVILIZAÇÃO (in. Civilization; fr. Civilisation; ai. Zivílisation; it. Civiltã). N o u so c o ­ m um , esse te rm o d esig n a as fo rm as m ais elev a­ das d a v id a de u m p o v o , isto é, a relig ião , a arte, a ciência, e tc , c o n sid e ra d a s co m o in d ica­ dores do g rau de fo rm ação h u m a n a ou esp iri­ tual alcan çad a p e lo p o v o . C o m o su b o rd e m , fala-se de "C. da técn ica", em cuja ex p re ssã o a especificação im plica q u e n ão se trata da "C." sem adjetivos. Está claro q u e essa n o ç ã o b a ­ seia-se na p referên cia atrib u íd a a certo s v a lo ­ res. E m p rim eiro lugar, p riv ileg iam -se certas formas de ativ id ad e ou de e x p eriên cia h u m a ­ na; em seg u n d o lugar, privilegiam -se os g ru p o s hum anos n o s q u ais tais fo rm as de e x p eriên cia e de atividade são m ais fav o recid as. A ssim , n ão há dúvida de q u e, do p o n to d e v ista da n o ç ão acima ex p osta, a ú n ica e v e rd a d e ira form a de C. é a do o cid en te cristão , p o is foi só en tre os povos do o c id e n te cristão q u e a re lig iã o , a arte e o "saber d esin teressa d o " da ciência g o z a ­ ram de m aior fa v o re cim en to , co m ex c e ç ã o de períodos re lativ am en te b rev es. O historicism o relativista e, em p articu lar, a obra de S p eng ler ab a laram o co m p le x o de ce r­ tezas em q ue essa n o ç ã o se ap o iav a. S p en g ler, em bora ten h a v isto na civilização a form a m ais elevada e m ad u ra de d e te rm in a d a cu ltura, viu tam bém nela o p rin cíp io do seu fim , e m o stro u que não há u m a cu ltura só, e q u e to d as n a s­ cem, crescem e m o rre m co m o o rg an ism o s v i­ vos. À sua o bra d ev e-se a g e n e ra liz a ç ã o do conceito de cultura e, p o rta n to , ta m b é m de C , que seria d ete rm in a d a fase da p ró p ria cultura. Com isso, a n o ç ã o de C. b a se a d a em d e te r­ minada hierarquia de v alores entrou em crise. C o ­ m eçou-se a u sar a p alavra C. no p lu ral. É o q u e faz, p. ex., T o y n b e e, q u e a c o n tra p ô s a "socie­ dade prim itiva", p ara in d icar as so c ie d a d e s q u e constituíram ou co n stitu em m u n d o s cu lturais relativam ente au tô n o m o s. T o y n b e e e n u m e ra diferenças p u ram en te ex trin se ca s en tre C. e s o ­ ciedade prim itivas. O n ú m e ro d as C. c o n h e c i­ das é p eq u en o ; T o y n b e e en u m e ra 21. O n ú ­ mero de so c ied ad e s prim itiv as c o n h e c id a s é grande; em 1915 L. T. H o b h o u se e o u tro s e n u ­ meraram 650. A s so c ie d a d e s p rim itiv as são re s­ tritas quanto ao n ú m e ro d o s se u s m e m b ro s e à extensão geográfica e têm v id a b rev e, m u itas

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CIVILIZAÇÃO v e z e s v io le n ta m e n te tru n ca d a . A s C , ao co n trá ­ rio, são g ra n d e s e d u ra d o u ra s; p ara resu m ir, as d u as e sp é c ie s estã o e n tre si co m o os elefantes estã o p ara os c o e lh o s (TOYNBEE, Study ofHistory, I, C, III, a). N a realid ad e, a palavra C , assim co m o a p a ­ lavra cu ltu ra, d ev e ser ain d a m ais g en era liza d a em seu sign ificad o; e, assim co m o a cu ltura foi definida co m o u m "sistem a h isto ric a m e n te d e ­ riv a d o de p ro jeto s de v id a ex p lícito s e im p líci­ to s, q u e te n d e m a ser p a rtilh a d o s p o r to d o s os m e m b ro s de u m g ru p o ou p o r a q u e le s e s p e ­ cialm ente qualificados" (R. LiNÍON , TheScience of Man, N ova Y ork, 1952, 7a ed., p. 98), ta m b é m a C. d ev e ser definida co m o o a sp e c to te cn o ló g ico -sim b ólico de d eterm in ad a cultura. N esse sen ­ tid o g e n é ric o , os d ois te rm o s, C . e cu ltura, p o ­ d em se r a p lic a d o s ao s p o v o s e ao s g ru p o s h u m a n o s m ais d ísp ares. A C. constitui, co m o se p o d e dizer, o arsenal, isto é, o co n ju n to dos in stru m e n to s d e q u e u m a cu ltura d isp õ e para c o n se rv ar-se , en fren tar os im p rev isto s de si­ tu a ç õ e s n o v as e p erig o sa s, s u p e ra r a crise, re ­ n ov ar-se e pro gred ir. S e u m a cultura p o d e ser e n te n d id a (se g u n d o o e sq u e m a d e T o y n b ee) co m o a "resposta" d ad a .por u m g ru p o de h o ­ m en s ao "desafio" re p re s e n ta d o p ela s c o n d i­ çõ es da re a lid a d e b io ló g ic a física e social em q u e se en c o n tra m , p o d e -se d izer q u e u m a "C." é o co n ju n to de arm as q u e u m a cu ltura forja p ara en fren ta r o "desafio". E ssas arm as são co n stitu íd as, em p rim eiro lugar, p elas técnicas, d e sd e o m ais sim p les e e le m e n ta r trab alh o m a­ nual até as form as m ais co m p lex as d as ciências e d as artes; e, em s e g u n d o lugar, p ela s formas simbólicas, isto é, p e lo c o n h e c im e n to , p ela arte, p ela m o ra lid a d e , p ela relig ião , p ela filo­ sofia, e tc , q u e c o n d ic io n a m e ao m esm o te m ­ po são c o n d ic io n a d a s p o r essa s técn icas. O e n ­ tre la ç a m e n to e a c o m b in a ç ã o d as té cn ic as e fo rm as sim b ó lica s (ou esp iritu ais) q u e, p o r sua v ez, p o d e m ser c o n sid e ra d a s outras técn icas, con stitu i a b ase d as instituições eco n ô m icas, ju ­ rídicas, p o líticas, relig io sas, e d u c a c io n a is e tc , n as q u ais c o m u m e n te se p en sa q u a n d o se fala de C. N a re a lid a d e , o u so científico (isto é, objetivo e n eu tro ) d essa p alav ra (uso in d isp e n ­ sáv el p ara o e s tu d o e a c o m p re e n sã o de tan tas C. d ísp a re s de q u e te m o s m em ó ria h istórica e d as ta n tas e d iferen tes fases q u e cad a u m a d e ­ las atra v e sso u e atravessa) ex ig e q u e estejam in clu íd as no c o n ce ito d e C . só as características g erais e form ais d o s in stru m en to s q u e ele d e ­ signa, p re sc in d in d o de q u a lq u e r referên cia a

CLAREZA e DISTINÇÃO u m sistem a de v alo re s (com o p o d e ria m ser os da C. cristã ou o c id e n ta l e da C. islâm ica, e tc ). É p reciso, en tão , em p rim eiro lugar, n ão p erd er de vista a eficiência das armas q u e u m a C. p õ e à d isp o siç ã o da cu ltu ra a q u e p e rte n c e , em vista da su a c o n se rv a ç ã o e do seu p ro g re sso . E é claro q u e, em face d as m u d a n ç a s in ce ssan te s nas co n d iç õ e s q u e u m a cu ltura d ev e en fren tar e em face da im p re v isib ilid ad e d essa s m u d a n ­ ças, as possibilidades de sucesso d o s in stru m e n ­ to s técn ic o -sim b ó lic o s, q u e c o n stitu em d e te r­ m in ad a civilização ou u m a de su a s fases, n ão d e p e n d e m da co n fig u ração p articu lar q u e assu ­ m iram n essa fase (ainda q u e essa co n fig u ração te n h a p erm itid o g ra n d e êx ito ), m as sim de sua c a p a c id a d e d e a u to c o rre ç ã o , isto é, da sua ca­ p acid ad e de ad a p ta çã o a circun stân cias sem p re n o v as e v ariáv eis. Isso significa q u e as p o ssib i­ lid ad es de su c esso de tais in stru m en to s d e p e n ­ d em e s se n c ia lm e n te d as re g ras m eto d o ló g icas q u e p re sc re v e m e d irig em su a a d a p ta ç ã o a cir­ cu n stân cia s ou a fatos d iv erso s e d ísp a re s, p er­ m itin d o , cad a v ez, e stru tu rá-lo s de m o d o o p o r­ tu n o em vista de tais circun stân cias ou fatos, de tal form a q u e su a eficácia p e rm a n e ç a e a u ­ m en te. D esse p o n to d e vista, a p re se n ç a ativa e atu an te, em to d o s os ca m p o s, da m eto d o lo g ia da p esq u isa científica — no se n tid o m ais lato,

que inclui a consciência das limitações ou das insuficiências dessa metodologia em cada fase histórica — é o ín d ice o bjetivo q u e m ed e o

grau de C , isto é, o p o d e r do arse n a l d e q u e u m a cu ltura d isp õ e p ara a su a p ró p ria c o n se r­ v aç ão e o seu p ro g re sso (v. CULTURA). CLAREZA e DISTINÇÃO (in. Clearness and distinctness; fr. Clartê et distinction; ai. Klarheit und Deutlichkeit; it. Chiarezza e distinzione). O s dois g rau s da evidência, no sen tid o su b je tiv o em q u e foi e n te n d id a a p artir de D escartes. D iz D escartes: "C ham o de clara a p e rc e p ç ã o p re se n te e m anifesta ao esp írito de q u e m lh e p resta a te n ç ã o , assim co m o d izem o s q u e são claras as co isas q u e te m o s d ia n te do o lh o q u e as olha". C h am a-se, p o rém , distinta a p e rc e p ç ã o q u e, "sen do clara, é tão d eslig ad a e se p a ra d a d e to d a s as o u tras q u e n ão co n tém ab so lu tam en te em si nad a além do q u e é claro" (Princ. phil, I, 45). Essa d istin ção cartesian a n ão é m uito p recisa, ao m en o s no q u e se refere ao co n ce ito de d istin ção; L ocke, q u e a re p ro ­ d u z, n ão a to rn a m ais p re c isa (Ensaio, II, 29, § 4). M as L eibniz to rn o u -a m ais p recisa, ao c o n ­ sid erar clara a n o ç ã o q u e p erm ite d iscern ir a co isa re p re s e n ta d a e obscura a q u e n ão o

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CLASSE1 p erm ite, co m o q u a n d o n os le m b ra m o s de u m a flor ou de u m anim al q u e vim os, m as n ão o su ­ ficien te p ara d istin g u i-lo d o s o u tro s e p ara re c o n h e c ê -lo s. A d istin ção é u m g rau m u ito su p e rio r d e e v id ên c ia e, além do m ais, u m grau q u e p e rte n c e esp ecific am e n te à ev id ên cia ra ­ cion al. C om efeito, u m a n o ç ã o é confusa q u a n ­ do n ão p erm ite q u e se d istin g am su a s n o tas co n stitu tiv as; p. ex., os o d o re s, os s a b o re s, as co res, em b o ra p o ssa m ser cla ra m e n te re c o n h e ­ cido s, n ão p o d e m ser d escrito s e d efinido s com b a se em se u s traç o s co n stitu tiv o s; ta n to é v e r­ d ad e q u e n ão p o d e m o s ex p lic ar o q u e é u m a co r a u m ceg o . A o co n trá rio , as n o ç õ e s distin­ tas são aq u elas p ara cujos traços p o d e m o s ter a d efin ição n o m in al, isto é, a e n u m e ra ç ã o das su a s n o tas su ficien tes. A ssim , o c o n h e c im e n to q u e u m q u ím ico te m do o u ro é d istin to . O c o n h e c im e n to d istin to é in d efinível só q u a n d o v e m an te s, ou seja, n ão é d eriv áv el d o s o u tro s (Op, ed. E rd m an n, p. 79). A d istin ção assim e sta b e le c id a p o r L eibniz é m u ito im p o rta n te p o rq u e é a p ró p ria d istin çã o e n tre o c o n h e c i­ m en to sen sív el e o c o n h e c im e n to racio n al. O co n h e cim en to sen sív el p o d e ch eg ar à C , m as é se m p re confuso; o c o n h e c im e n to racio n al é o c o n h e c im e n to d istin to . A filosofia alem ã, de L eibniz a K ant, co n se rv o u essa d istin ção e o p ró p rio K ant a aceita em b o ra n ão a ju lg u e sufi­ cien te p ara e s ta b e le c e r a d iferen ça en tre o co ­ n h e c im e n to se n sív e l e o c o n h e c im e n to ra ­ cion al. D iz ele: "A c o n sc iên c ia d as p ró p rias re p re s e n ta ç õ e s , q u a n d o b asta p ara diferenciar u m o bjeto d o s o u tro s, ch a m a -se clareza. A q u e­ la p ela q ual se e sclarece a c o m p o siç ã o das re p re s e n ta ç õ e s c h a m a -se distinção. S ó esta ú ltim a p o d e fazer q u e u m a so m a de re p re ­ se n ta ç õ e s se to rn e u m conhecimento no qual seja p en sa d a a o rd em da m u ltiplicidade" (Antr., I, § 6). Essa d o u trin a da diferença en tre C. e distin­ ção co m o g rau s da ev id ên c ia n ão co n se rv o u a m esm a im p o rtâ n c ia na filosofia c o n te m p o râ ­ nea, q u e re to rn o u ao an tigo co n ce ito objetivista da ev id ên cia. T o d av ia H usserl ain d a utiliza o co n ce ito de C. p ara definir a co n sc iên c ia à qual o o bjeto é d a d o "p u ram e n te em si m esm o , exa­ ta m e n te co m o é em si m esm o ... N o caso da p len a o b sc u rid a d e , p ó lo o p o sto d a p len a C , n ad a ch e g o u a ser d a d o , e a co n sc iên c ia é obs­ cura, n ão m ais v id e n te n em o feren te em senti­ do p ró p rio " (Ideen, I, § 67). CLASSE1 (in. Class; fr. Classe, ai. Klasse, it. Classe). E m se n tid o so c io ló g ic o , corresponde

CLASSE1 ao que os an tig o s ch a m a v am de "p arte da ci­ dade" e d esig n a u m g ru p o d e c id a d ã o s d efin i­ do pela n atu re za da fu n ção q u e e x e rc e m na vida social e pela p arcela de v an tag e n s q u e ex ­ traem de tal fu n ção . P latão ad m itia três C , ou m elhor, três p a rte s da su a cid a d e ideal: a d os g o v ern an tes ou filósofos, a d os g u e rre iro s e a dos ag ricu lto res e artífices; confiava à p rim eira a tarefa de d istrib u ir os in d iv íd u o s e n tre as clas­ ses (Rep., III, 412 b ss.). A ristó teles e n u m era oito C : ag ricu lto res, o p e rá rio s m ec ân ic o s, c o ­ m erciantes, serv o s ag ríco las, g u e rre iro s, ju iz e s, ricos e m ag istrad os (Pol, IV, 4 ,1 2 9 0 b 37). M as, levando-se em co n ta o q ue ele diz so b re o tra­ balho m an u al (v. BANAUSIA), p o d e -se afirm ar que, na re a lid a d e , p ara A ristó teles as C. são duas, além da d o s escrav o s, q u e c o n stitu em os "instrum entos anim ados" (v. SERVO E PATRÃO), OU seja: os q u e são fo rçad o s ao tra b a lh o m an u al e os que se libertaram de tal n ec essid ad e. "A m e ­ lhor constituição", diz A ristóteles, "jamais adm iti­ rá no rol d o s c id a d ã o s u m o p e rá rio m ec ân ic o . Mas se este já é cid a d ã o , e n tã o d e v e re m o s atri­ buir as v irtu d e s de cid a d ã o n ão a to d o s in ­ distintam ente, co m o se b astasse a co n d içã o de hom em livre, m as só ao s q u e n ão estã o fo rça­ dos aos trab alh o s n e c e ssá rio s à v id a co tidian a" Ubid, III, 5, 1278 a 8). A n oção de C. ficou m uito acen tu ad a no séc. XVIII, p or o bra da R ev o lu ção F ran cesa e de todo o m o vim en to cultural q u e a p ro m o v eu e a acom panhou. E m filosofia, p o rém , ela só g a ­ nha d estaq u e g raç as a H eg el, q u e co n sid e rav a a divisão d as C. co m o u m aju stam en to n e c e ssá ­ rio da s o c ie d a d e civil, d ev id o a b e n s p riv ad o s, ou seja, ao capital, à a p tid ã o d os in d iv íd u o s que, em p arte, é c o n d ic io n a d a p elo capital, a circunstâncias co n tin g en tes d ev id as à d iv ersid a­ de das d isp o siçõ es e d as n e c e ssid a d e s físicas e espirituais {Fil. do dir, § 200). H egel atribuiu às C. a função m e d ia d o ra en tre o g o v e rn o e o povo; sua d e te rm in a ç ã o ex ig e n elas ta n to o sentido e o se n tim e n to d e E stad o e g o v ern o , quanto o d os in teresses d os g ru p o s p articulares e dos in d iv ídu o s (Jbid, § 302). O c o n ce ito de C , assim ela b o ra d o p o r H eg el, foi u sa d o p o r Marx com o fu n d am en to da sua d o u trin a da luta de classes. N a v e rd a d e , os e c o n o m ista s in g le­ ses M althus e R icardo j á tin h am re c o n h e c id o a possibilidade d e o p o siç õ e s en tre as C , co m o conseqüência do fu n cio n am en to d as leis e c o ­ nôm icas. D esses e c o n o m istas, M arx aceita o conceito do fu n d a m en to e c o n ô m ic o da luta de C. e, de H egel, o caráter n ecessário (isto é, h is­

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CLASSE1 to ric a m e n te n e c e ssá rio , p ara q u a lq u e r so c ie ­ d ad e n ão co m u n ista) d a d iv isão em classes. N u m a carta de 1852, re su m ia seu p e n sa m e n to da se g u in te form a: " ls A ex istên cia d as C . está s im p le sm e n te ligada a d e te rm in a d a s fases h is­ tó ricas do d e se n v o lv im e n to p ro d u tiv o ; 2" a luta de classes c o n d u z in ev itav elm en te à d itad u ra do p ro letariad o ; 3 S essa d ita d u ra n ão co n stitu i s e n ã o a p a ssa g e m p ara a ab o liç ão de to d as as C. e p ara a s o c ie d a d e sem classes" {MarxEngels Correspondence, p. 57). P ara M arx, a C. te m a q u e la e s p é c ie de u n id a d e su b sta n c ia l sólida q u e H eg el atrib u ía ao esp írito d e um p o v o (Volksgeist), isto é, ela age na história co m o u m a u n id a d e e su b o rd in a o in d iv íd u o , q u e co n ta a p e n a s co m o m e m b ro da su a C , da q u al d eriv a m seu s m o d o s de p e n sa r e de v i­ v er, seu s sen tim e n to s e su as ilusões. Essa rig id e z do c o n c e ito de C. foi m an tida p ela id eo lo g ia co m u n ista e, m ais q u e u m c o n ­ ceito científico, é u m in stru m en to de luta política. T rata-se de u m c o n ce ito q u e foi, ele m esm o , c o n d ic io n a d o p o r u m a situ ação histórica p arti­ cular: a fase d e fo rm ação do in d u strialism o , q u e p a re c e d iv id ir a h u m a n id a d e em d u as C. h o stis, e n tre as q u ais o conflito é inevitável: a d o s cap italistas, ou seja, d o s p ro p rie tá rio s dos m eio s de p ro d u ç ã o , e a d o s p ro letário s, o b rig a­ d o s a v e n d e r ao s p rim e iro s su a força de tra b a ­ lh o . A s an á lises c o n te m p o râ n e a s m o straram u m a estru tu ra m ais co m p lex a e elástica da clas­ se. D ah rend o rf, p. ex., definiu as C . co m b ase nas re la ç õ e s de a u to rid a d e e n ão n as de tra b a ­ lho; d esse p o n to d e vista, as C. n ão são nem e x c lu siv a n em p re d o m in a n te m e n te a g ru p a ­ m en to s e c o n ô m ic o s, m as estratificaçôes sociais que, p o r sua vez, p o d e m co n ter u m a p lu ralid ad e de estrato s. "C ada v e z m ais, as re la ç õ e s sociais da in d ústria, in clusiv e os conflitos de trab alh o , d eix am d e d o m in a r a s o c ie d a d e co m o u m to d o , p ara ficarem co n fin ad as na esfera in d ustrial, co m su a s fo rm as e seu s p ro b le m a s. N a so c ie ­ d ad e p ó s-cap italista, in d ú strias e conflitos de tra b a lh o estão in stitu c io n a lm en te iso lad o s, ou seja, co n fin ad o s n o s lim ites d e seu p ró p rio re i­ no e n ão e x e rc e m influência so b re as o u tras esfe ra s d a s o c ie d a d e " (Class and Class ConflictinIndustrialSociety, L ondres, 1959, p. 268). O s o c ió lo g o p o lo n ê s S ta n is la v O s s o w s k i id en tifico u a ex istên cia de estratificaçôes so ­ ciais m esm o n as so c ie d a d e s co m u n ista s c o n ­ te m p o râ n e a s: "E stam os b em d istan te s d as C. c o n c e b id a s co m o g ru p o s q u e n ascem d as o r­ g a n iz a ç õ e s de C. e s p o n ta n e a m e n te criadas. E m

CIASSE2

situações em que as autoridades políticas po­ dem, aberta e efetivamente, mudar a estrutu­ ra de C, em que os privilégios, essencialíssimos para a definição do status social, inclusive no que se refere a uma porcentagem maior da renda nacional, são conferidos por decisão das autoridades políticas, em que grande parte ou mesmo a maioria da população está incluí­ da num tipo de estratificação que pode ser en­ contrado em hierarquias burocráticas, o con­ ceito oitocentista de C. passa a ser mais ou menos anacrônico e os conflitos de C. dão lu­ gar a outras formas de antagonismo social" (Class Structure in the Social Consciousness, Londres, 1963, P- 184). Desse ponto de vista, o conceito de C. não está mais ancorado exclusi­ vamente na propriedade dos meios de produ­ ção e deve rever os elementos fundamentais da complexa organização que pode diferir, como de fato difere, de uma sociedade para outra e de um momento histórico para outro (cf. T. B. BOTTOMORE, ClassesinModernSociety, Londres, 1965). CLASSE2 (in. Class; fr. Classe, ai. Klasse, it. Classe). Embora o conceito de "C." já estivesse presente no pensamento lógico medieval, esse termo só começou a ser usado no séc. XIX, so­ bretudo por obra dos lógicos ingleses, como Hamilton, Jevons, Venn, etc, preocupados com o problema da quantificação da Lógica. Podese definir uma classe enumerando os membros que a compõem (definição extensiva) ou indi­ cando a propriedade comum de todos os seus membros (definição intensiva), como quando se fala do "gênero humano" ou dos "habitan­ tes de Londres". Russell considerou fundamental a definição intensiva porque a extensiva pode ser reduzida a ela, sem que ocorra o inverso. Portanto, reduziu a C. a uma função proposicionaKv.), ou seja, a um predicado ou a um atributo. Nesse sentido, usou o conceito dos Principia Mathematica (cf. também Introduction toMathematicalPhilosophy, 1919, cap. XVII). Quanto às relações entre o conceito de C. e o de conjunto, ver este último termo. CLASSE, CONSCIÊNCIA DE (in Cons­ ciousness of class; fr. Conscience de classe, ai. Klassenbewusstseín; it. Conscienza di classe). Esse foi um conceito em que Hegel insistiu; se­ gundo ele, o fato de um indivíduo pertencer a uma classe é determinado não só pelas circuns­ tâncias objetivas, mas também pela vontade do indivíduo, de tal modo que o fato de per­ tencer a essa classe "pela consciência subjetiva

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CLASSE, CONSCIÊNCIA DE

tem o aspecto de ser obra da própria vontade" (Fil. dodir, § 206). Hegel acrescenta que, para o homem, "ser alguma coisa" significa "perten­ cer a uma classe determinada", porque o ho­ mem sem classe seria um simples indivíduo isolado e não participaria da universalidade real própria da classe. Portanto, para o indiví­ duo, reconhecer-se como pertencente a uma classe não é uma degradação, mas a aquisição de sua "realidade e objetividade ética", ou seja, o reconhecimento da unidade, realizada no in­ divíduo, entre universalidade e particularidade (Jbid, § 207 e Zusatz). Para Marx, esse conceito ti­ nha bem menos importância, já que tudo o que é "consciência" pertence à superestrutura (v.), que é determinada pelas relações de tra­ balho e produção. Contudo, Marx afirmou que, se entre os indivíduos "houver apenas contato local, se a identidade de seus interesses não os levar a criar uma comunidade, uma associação nacional, uma organização política, eles não constituirão uma classe" (Der 18Brumaire des LouisBonaparte, nova ed., 1946, p. 104). Esse conceito foi posto em primeiro plano na in­ terpretação do marxismo feita por Georg Luckács, no livro História e consciência de classe (1922), que atribui à consciência de C. o título de sujeito da história, ou seja, de princípio ou força que faz a história. Segundo Luckács, a consciência de C. autêntica é "a realização ra­ cional e adequada que deve ser adjudicada a uma situação típica, no processo de produção". Por isso, distingue-se da falsa consciência, que é uma reação inadequada a tal situação, que ignora suas contradições. A consciência de C. é o ponto de partida da vocação de uma C. para o domínio, ou seja, para a organização de uma sociedade conforme com os seus interesses (Histoire et conscience de classe, 1960, pp. 72 ss.). A consciência de C. identifica-se com a "compreensão total da história", na qual se fun­ da a possibilidade real de evolução da própria história em direção a uma sociedade nova. Re­ jeitada pelo marxismo oficial, que a acusava de "idealismo", essa doutrina continua sendo discutida pelo pensamento marxista ocidental. Mas com a crise que o conceito de C. sofreu nos estudos sociológicos contemporâneos (v. CLASSE), a consciência de C, considerada como "consciência das contradições entre interesses econômicos e sociais opostos", é entendida apenas como um dos muitos elementos que compõem a noção de C. (cf., p. ex., TOURAINE, La sociétépost-industrielle, 1969).

CLASSE ELEITA CLASSE ELEITA. V. ELITE.

CLÁSSICO (lat. Classicus; in. Classic; fr. Classique, ai. Klassische, it. Clássico). No latim tardio, esse adjetivo designava o que é excelen­ te em sua classe ou o que pertence a uma classe excelente (especialmente à classe mili­ tar). Aulo Gélio (Ato. Att, XIX, 8,15) contrapu­ nha o escritor C. ao escritor "proletário" (proletaríus). Mas a difusão dessa palavra para designar um modo ou estilo excelente — e próprio dos antigos —, na arte e na vida, é de­ vida ao Romantismo, que gostava de definir-se e entender-se sempre em relação ao "classicismo". Segundo Hegel, o caráter clássico é definido como a união total do conteúdo ideal com a forma sensível. O ideal da arte encontra na arte C. a sua realização perfeita: a forma sensível foi transfigurada, subtraída à finitude, e inteiramente conformada à infinitude do Con­ ceito, isto é, do Espírito Autoconsciente. E isso acontece porque, na arte C, a Idéia infinita encontrou a forma ideal em que exprimir-se, isto é, a figura humana. Todavia, o defeito da arte C. é o de ser arte, arte na sua completitude, mas nada mais. Em face dela, a arte românticocristã está em nível superior, pois nela a unida­ de da natureza divina com a natureza humana (isto é, do infinito e do finito) torna-se autoconsciente e, por isso, não se exprime mais de forma externa, mas sua expressão é interio­ rizada e espiritualizada. Na arte romântica, a beleza já não é física e exterior, mas puramente espiritual, porque é a beleza da interioridade como tal, da subjetividade inifinita em si mesma (Vorlesungen über dieAsthetik, ed. Glockner, II, pp. 109 ss.). Dessas idéias de Hegel, repe­ tidas de forma pouco diferente por numerosos escritores do período romântico, nasceu o ideal convencional do classicismo como medida, equi­ líbrio, serenidade e harmonia, contra o qual a distinção de Nietzsche entre espírito apolíneo e espírito dionisíaco (v. APOLÍNEO) representou a primeira reação. Cf. os artigos de Tatarkiewicz e outros na RevueInternationale dePhilosophie, 1958, 1 (n. 43). CLASSIFICAÇÃO (in. Classification; fr. Classification; ai. Klassification, it. Classifícazioné). Operação de repartir um conjunto de objetos (quaisquer que sejam) em classes coor­ denadas ou subordinadas, utilizando critérios oportunamente escolhidos. Como o concei­ to de classe é generalíssimo e compreende todo e qualquer conceito sob o aspecto da exten­ são, a operação de C. é igualmente ge-

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COERÊNCIA

neralíssima e pode compreender qualquer procedimento de divisão, distinção, orde­ nação, coordenação, hierarquização, etc. Por esse caráter generalíssimo que o torna pouco individualizável, já não recebe dos lógicos contemporâneos a atenção que recebia dos ló­ gicos do séc. XIX (cf., p . ex., STUART MILL, Logic, I, 7; IV, 7). CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS. V. C IÊN ­ CIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.

CLASSIFICAÇÃO DOS JUÍZOS. V. Juízos, CLAVIS ÁUREA. Assim se chamou o méto­ do de interpretação das Sagradas Escrituras de­ fendido por Flacius e pelos outros autores das Centúrias de Magdeburgo (1559-73), método que consistia principalmente em explicar cada trecho isolado através sentido total da Escri­ tura. CLAVIS UNIVERSALIS. Esse termo foi usa­ do entre os sécs. XVI e XVII para indicar a técnica de memória e invenção, cujo prece­ dente mais ilustre é a Ars magna de Lúlio, e a sua conseqüência mais importante em Carac­ terística universal de Leibniz (cf. PAOLO ROSSI, Clavis universalis, 196Ò) (v. CARACTERÍSTICA; CLASSIFICAÇÃO DOS.

COMBINATÓRIA, ARTE; MNEMÔNICA). CLINAMEN. V. DECLINAÇÂO.

COERÊNCIA (in. Coherence, fr. Cohérence, ai. 7-,usammenbang, it. Coerenzd). 1. Ordem, co­ nexão, harmonia de um sistema de conhecimen­ to. Nesse sentido, Kant atribuía aos conheci­ mentos a priori a função de dar ordem e C. às representações sensíveis {Crít. R. Pura, Ia ed., Intr., § 1). Nesse sentido, a C. foi assumida por alguns idealistas ingleses como critério da verdade. Segundo Bradley, p. ex., a realidade é uma Consciência absoluta que abarca, na for­ ma de C. harmoniosa, toda a multiplicidade dis­ persa e contraditória da aparência sensível (Appearance andReality, 2- ed., 1902, pp. 143 ss.). A C, nesse sentido, é muito mais do que a simples compatibilidade (v.) entre os elemen­ tos de um sistema: implica, com efeito, não só a ausência de contradição, mas a presença de conexões positivas que estabeleçam harmonia entre os elementos do sistema. Nessa acepção, esse termo não tem significado lógico. 2. O mesmo que compatibilidade. Esse sig­ nificado é assumido com freqüência por esse termo em italiano e francês, já que nessas lín­ guas o termo compatibilidade não se presta a exprimir o caráter do sistema desprovido de

CO-ESPECIE co n tra d içã o , m as d esig n a o caráter de n âo -co n trad iç ão re cíp ro c a d os e n u n c ia d o s. CO-ESPÉCIE (in. Conspecies). T erm o a d o ­ ta d o p o r H am ilto n p ara in d ica r as e sp é c ie s c o o rd e n a d a s do m esm o g ê n e ro , q u e são d ife­ ren tes m as n ão co n tra d itó ria s e, p o rtan to , c o n s­ tituem n o çõ es discretas ou disjuntas, ch am ad as às v e z e s de díspares (v.) (Lectures on Logic, I, p. 209). COEXISTÊNCIA (in. Coexistence, fr. Coexistence, ai. Mitsein ou Mitdasein; it. Coesistenzd). N o existencialism o co n tem p o rân e o , en te n d e -se p o r esse te rm o o m o d o esp ecífico p e lo q ual o h o m em está co m os o u tro s h o m e n s no m u n d o : m o d o q u e é d iferen te d a q u e le p elo qual ele se v ê estar, no m u n d o , co m as o u tras co isas. Esse significado esp ecífico do te rm o d e v e -se a H eid eg g er, q u e d istin g u iu a presença das coisas co m o m eio s ou in stru m en to s u tilizáveis pela c o -p re se n ç a (Mitdasein) ou o ser-co m d os o u ­ tros co m o Eu. A estreita c o n e x ã o da C. co m a ex istência faz q u e n ão p o ssa h av er c o m p re e n ­ são de si sem a c o m p re e n sã o d o s o u tro s. "Na co m p reen são do ser, própria do ser-aí", diz H ei­ d eg g er, "está im plícita a c o m p re e n sã o d o s o u ­ tros, e isso p o rq u e o ser do ser-aí é co existência" (Sein und Zeü, § 26). COGITO. A b rev ia -se n essa p ala v ra a ex ­ p ressão cartesian a "cogito ergosunf (Discours, IV; Méd, II, 6), q u e ex p rim e a a u to -e v id ê n c ia ex istencial do sujeito p e n sa n te , isto é, a c e rte ­ za q u e o sujeito p e n sa n te tem da su a ex istê n ­ cia e n q u a n to tal. T rata-se d e u m a te n d ê n c ia de p en sa m en to q ue re ap arec e várias v ez es na h is­ tória, ainda q u e com fins diversos. S. A gostinho v ale u -se d ele p ara refutar o ceticism o a c a d ê ­ m ico, isto é, p ara d em o n stra r q u e n ão se p o d e p e rm a n e c e r firm e na d ú v id a ou na s u sp e n sã o do assen tim en to . Q u e m d uv id a da v e rd a d e tem certeza de q u e d u v id a, lo g o d e q u e v iv e e p e n ­ sa; p o rtan to , na p ró p ria d úv id a está a certeza q u e a leva à v e rd a d e (Contra Acad, III, 11; De Trin, X , 10; Solií, II, 1). D e S. A g o stin h o , o m esm o tip o de p e n sa m e n to p assa p ara alg u n s esco lástico s; p. ex., em S. T o m ás: "N inguém p o d e p en sa r co m a sse n tim e n to (isto é, crer) q u e n ão é; já q ue, p o rq u a n to p en sa algu m a coisa, p e rc e b e q u e é" (De ver, q. 10, a. 12, ad. 7). N a m esm a ép o ca de D escartes, esse p rin cí­ pio é re to m a d o p o r C am p an ella (Met, I, 2, 1). E m bora esse tipo de p e n sa m en to ten h a servido a fins d iferentes (S. A go stin ho utiliza-o para d e ­ m o n strar a tra n sc e n d ê n c ia da V e rd a d e — q u e é D eus m esm o — e a sua p resença na alm a h u ­

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COGITO m ana; C am p an ella u tiliza-o p ara d e m o n stra r a p rio rid a d e de u m a "noção inata d e si" so b re q u a lq u e r o u tra e sp é c ie d e c o n h e c im e n to ; e D escartes p ara justificar o seu m éto d o da ev id ên ­ cia) e seu significado p reciso seja, p o rtan to , d i­ feren te em u m ou o u tro filósofo, p o u c a s v ez es se d u v id o u de su a v a lid a d e g eral. Para to d a filosofia q u e reco rra à consciência (v.) com o in stru m en to da in d ag aç ão filosófica, o C. dev e m o strar-se in d u b itá v el, p ois na re a lid a d e n ão é s e n ã o a fo rm u la ç ã o do p o s tu la d o m e to d o ­ ló g ico de tal filosofia. M as m esm o as filosofias q u e n ão re c o n h e c e m tal p o stu la d o fazem uso do C. e co n sid eram -n o válido. A ssim fazem , p. ex., L ocke, q u e v ê n ele "o m ais alto g rau de certeza" (Ensaio, IV, 9, 3), e K ant, q u e v ê n ele a p ró p ria apercepção pura (v.) ou co n sciên cia reflex iva. N a filosofia c o n te m p o râ n e a , H usserl assu m e e x p lic ita m e n te o C. co m o p o n to de p artid a da su a filosofia (Ideen, I, § 46; Cart. Med-, § 1) e reco rre a ele co n tin u am en te ao lon­ g o de su a s an álises, c o n sid e ra n d o -o co m o a p ró p ria estru tu ra da e x p e riê n c ia v iv id a (Erlebniss) ou co n sc iên c ia. O p ró p rio H eid eg g er n ão p õ e em d úv id a a v a lid a d e do C , em b o ra re p ro v e em K ant o fato d e, co m ele, ter restrin­ g id o o eu a u m "sujeito ló g ico ", iso lad o , "sujei­ to q u e a c o m p a n h a as re p re s e n ta ç õ e s de um a form a o n to lo g ic am en te de to d o indeterm inada" (Sein und Zeü, § 64). D iante de aceitação tão am pla, as críticas fo­ ram m u ito escassas. P o d e-se p e n sa r na crítica de V iço, m as é fácil de v er q u e ela, na verdade, é u m a crítica do Cogito. V iço n eg a q u e a "cons­ ciência" do p ró p rio ser p o ssa co n stitu ir a sua "ciência", ou p elo m en o s o p rin cíp io d essa ciên­ cia. A ciência, de fato, é co n h e cim en to de causa e o C. cartesian o seria p rin cípio de ciência só no caso de a co n sc iên c ia ser a cau sa d a existência (De antiquissima italorum sapientia, I, 3). Mas com isso V iço n ão neg a q u e o C. constituía uma certeza válida, ap e n a s se p reo cu p a em corrigi-lo afirm an d o q u e D escartes n ão d ev eria ter dito "penso, lo g o e x isto " (Prima risposta ai Giomale dei letterati, § 3). A crítica de K ierk eg aard visa m ais ao a lc a n c e do q u e à v a lid a d e do C. ca rtesian o : "O p rin cíp io de D esca rte s 'penso, lo g o so u ', à lu z da lógica, é u m jo g o de pala­ vras, p ois aq u ele 'sou' outra coisa n ão significa, do p o n to de vista ló g ico , sen ão 'sou pensante' ou 'p en so '" (Diário, V , A, 30). E m outros termos, seg u n d o K ierkegaard, a p ro p o sição cartesiana é p u ra m e n te ta u to ló g ic a, já q u e seu pressuposto

COGITO é a id en tidade da ex istência co m o p en sa m en to . Uma tatulogia, p orém , aind a é u m a p ro p o siç ã o válida. E m 1868, P eirce re sp o n d ia n eg ativ a m en ­ te à p erg u nta "tem os au to co n sciên cia intuitiva?", na qual a p alav ra a u to c o n sc iê n c ia estava p o r co n hecim en to da p ró p ria ex istência. P eirce n ão contestava v a lid a d e do C , m as, co m p ro v as psicológicas e h istó ricas, acred itav a p o d e r c o n ­ cluir q ue "não h á n e c e ss id a d e de su p o r u m a au to co n sciên cia intuitiva, d e sd e q u e a au to consciência p o d e facilm en te ser re su lta d o de inferência" (Coll. Pap, 5.263)- A rigor, n em m e s­ m o essa é u m a crítica ao co g ito . A crítica m ais sim p les e d e c is iv a e s sa n o ç ã o p o d e se r considerada a de N ietzsche: '"P ensa-se, lo g o há algum a coisa q u e p e n sa ': eis a q u e se re d u z a argu m en tação de D escartes. M as isso significa som ente co n sid e rar v erd ad e ira a priori a nossa crença na idéia de su b stân cia . D izer q u e , q u a n ­ do se p en sa , é p rec iso q u e haja alg u m a coisa 'que p en se ' é a p e n a s a fo rm u la çã o do h áb ito gram atical de acrescen tar u m ag e n te à ação. E m resum o, aq u i n ão se faz m ais do q u e fo rm u lar u m p o stu lad o lógico-m etafísico, em v e z de c o n ­ tentar-se em co n statá -lo ... S e re d u z irm o s a p ro ­ posição a isto: 'P en sa-se, lo g o há p en sa m en to s', daí resultará u m a sim p les tautolog ia e a 'realid a­ de do p e n sa m e n to ' n ão é q u e stio n a d a de tal m odo q u e se é le v a d o a re c o n h e c e r a 'a p a rê n ­ cia' do p en sa m en to . M as D escartes q ueria q u e o pensam ento n ão fosse u m a realid ad e ap aren te, mas fosse u m 'em si'" (Wille zur Macht, ed. 1901, § 260). E ssas c o n sid e ra ç õ e s de N ietzsch e constituem u m a crítica ao p rin cíp io do co g ito que m uitos filósofos c o n te m p o râ n e o s ac eita­ riam. C om efeito, C arnap refere-se a ela ex p lici­ tam ente, re p e tin d o -a . "A ex istên cia do eu", diz ele, "não é u m e sta d o de fato p rim itiv o do dado. D o C. n ão resulta o sum; de sou co n sc ien ­ te não se seg u e q u e so u , m as a p e n a s q u e há um a ex p eriên cia co n sc ie n te (Erlebniss). O eu não p erten ce à e x p re ssã o d as e x p eriên cias fun­ dam entais v iv id as, m as co n stitu i-se m ais tard e, essen cialm ente co m o fim de d elim ita r seu âmbito p elo âm b ito do o utro ... E m lugar da ex ­ pressão de D escartes, seria n ec essário co lo car esta outra: 'Esta e x p eriên cia é co n scien te; lo ­ go, há um a ex p eriên cia co n sc ien te '; m as cer­ tam ente isso seria p u ra tautologia" (Derlogische Aufbau derWelt, 1928, § 163). N o e n ta n to essa crítica está lo n g e de ser co m p artilh a d a p elo s próprios em p íristas ló g ico s e A yer, p. ex., reafir­ ma, su b stan cialm en te, a v a lid a d e do p rin cíp io

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ca rtesian o co m o v e rd a d e lógica, m esm o lim i­ ta n d o seu alcan ce. "Se alg u ém p re te n d e s a b e r q u e ex iste ou q u e é co n sc ie n te , su a p re te n sã o d ev e ser v álid a s im p le sm e n te p o rq u e o seu ser válida é u m a co n d içã o do seu ser feita" (Problem of Knowledge, 1956, p. 53). A p o s iç ã o de N ie tzsch e so b re esse p o n to era m ais radical e, p ro v a v e lm e n te , m ais co rreta (v. CONSCIÊNCIA). COINCIDENTIA OPPOSITORUM. Ex p ressã o u sa d a p ela prim eira v e z p o r N icolau de C usa p ara ex p rim ir a tra n sc e n d ê n c ia e a infin itu d e de D eu s, q u e seria a co in cid ê n cia do m áx im o e do m ín im o , do tu d o e do n ad a, do criar e do criad o , da co m p lic a ç ã o e d a ex p li­ cação , n u m se n tid o q u e n ão p o d e ser e n te n d i­ do n em a p re e n d id o p elo h o m e m (De docta ignor, I, 4; De coniecturis, II, 1). N o m esm o sen tid o, essa ex p ressão foi utilizada p o r R euchlin (De arte cabalistica, 1517) e p o r G io rd an o B ru­ n o, q u e co m ela d efine o u n iv e rso , q u e ele id en tifica co m D eu s. O u n iv e rso " c o m p re e n ­ d e to d a s as o p o siç õ e s no seu ser, em u n id a d e e c o n v e n iên cia" (Delia causa [v.]). COISA (T rpáyna; lat. Res; in. Thing; fr. Cbose, ai. Ding; it. Cosa). T an to no d iscu rso co m u m q u a n d o no filosófico, esse te rm o tem d o is sig n ificad o s fu n d a m en tais: ls g e n é ric o , d esig n a n d o q u a lq u e r o bjeto ou te rm o , real ou irreal, m en tal ou físico, e tc , de q u e , d e u m m o d o q u a lq u e r, se p o ssa tratar; 2P esp ecífico , d e n o ta n d o os o b jeto s n atu ra is e n q u a n to tais. le N o p rim e iro sign ificad o, a p alav ra é um d o s te rm o s m ais freq ü e n tes d a lin g u a g e m c o ­ m u m e ta m b é m é a m p la m e n te e m p re g a d a p e ­ lo s filósofos. "C" p o d e ser o te rm o de u m ato d e p e n sa m e n to ou d e c o n h e c im e n to , de im agi­ n aç ão ou d e v o n ta d e , de co n stru ç ão ou de d e s ­ tru ição , etc. P o d e -se falar de u m a C. q u e existe na re a lid a d e co m o ta m b é m de u m a C. q u e está na im ag in ação , no co ra çã o , n o s se n tid o s, etc. A ssim , p o d e -se d izer q u e , n essa a c e p ç ã o , C. significa u m te rm o q u a lq u e r d e u m ato h u m a ­ no q u a lq u e r ou, m ais ex a tam e n te, q u a lq u e r o b ­ je to co m q u e , de q u a lq u e r m o d o , se d ev a tra­ tar. É o significado co n tid o na p alav ra g reg a

pragma. 2- N o seu

sign ificad o m ais restrito , a C. é o objeto natural ta m b é m ch a m a d o de "corpo" ou "sub stân cia co rp ó rea". O u so do te rm o n esse se g u n d o significado é até certo p o n to re ce n te. P o d e talv ez re m o n ta r a D esca rte s, q u e, p o rém , ao la d o d a e x p re ssã o "C. co rp ó rea s" (choses

COISA

corporelles), e m p re g a ta m b é m "C. q u e p en sa" (chose quipense), m o stra n d o , assim , q u e e n ­ te n d e a p alav ra no sign ificad o trad ic io n a l de su b stân cia (Méd., II, passim). L ocke p referiu a

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o m o d o de ser d as C. Isso ta m p o u c o é feito p ela c o n c e p ç ã o de M ach, q u e d efine as C. co m o c o m p le x o s de s e n sa ç õ e s (Analyse der Empfindungen, 9 a ed., 1922, p. 14), ainda q u e as "sensações" de q u e fala M ach n ão sejam d e ­ p alavra "substância" ("As idéias d as sub stân cias te rm in a ç õ e s su b jetiv as, m as ele m e n to s n eu tro s são as co m b in a ç õ e s d e id éias sim p les d as q uais q u e en tram na co m p o siç ão ta n to das C. q u a n to se s u p õ e q u e re p re se n te m C. p articu lares e dis­ da m en te . E sse p o n to de v ista foi re p ro d u z id o tintas, sub sistentes p or si m esm as", Ensaio, II, p o r R ussell, p ara q u e m "um a C. é u m a s e q ü ê n ­ 12, § 6). E só co m B erk eley p o d e -se d izer q u e cia d e te rm in a d a de a p a rên cias, em ligação c o n ­ o te rm o C. te n h a s u p la n ta d o d efin itiv am en te o tín u a u m as co m as o u tras, se g u n d o certas leis term o sub stân cia: "As idéias im p ressas n o s sen ti­ causais'" (Scientific Method in Phil, 1926, IV, d os p elo au to r da n atu reza", diz ele, "são c h a ­ trad. fr., p. 86). m adas C. reais e as suscitad as pela im aginação, A c o n e x ã o do m o d o d e ser d as C. co m a s e n d o m e n o s re g u la re s, v iv id as e c o n stan tes, a ç ão h u m a n a s o b re a q u a l, co m o v e re m o s são m ais p ro p ria m e n te c h a m a d a s idéias ou lo g o , b a se ia -se a n o ç ã o p ositiva d e C , é elu ci­ im a g e n s d as C , q u e elas co p iam ou re p re s e n ­ d ad a p o r B ergson , q u e , no e n ta n to , a u tiliza só tam " {Principies, I, § 33)- A p artir d aí, esse te r­ com o fim de n eg ar a re alid ad e das coisas. "N ão m o C. p asso u a ser b a sta n te freq ü e n te para há C , há so m e n te ações", disse (Evol. créatr., IIin d icar o c o rp o ou o o bjeto n atu ral em geral. ed., 1911, P- 270). A s C. são criaçõ es da in teli­ K ant e s te n d e -o ain d a m ais, d istin g u in d o as gên cia e n q u a n to função prática q u e solidifica o co isas tais co m o a p a re c e m p ara n ós, isto é, d evir, su b stitu in d o p ela esta b ilid ad e fictícia de su b m etid a s às co n d iç õ e s da n ossa se n sib ilid a ­ "C." ou de "estados" a co n tin u id ad e e fluidez da de (e sp aç o e te m p o ), e as C. em g eral, ou C. em si (v.) (Crít. R. Pura, § 8). M as tam b ém fixa o c o n sc iên c ia (Ibid, p p . 269 ss. 296). N essa d o u ­ significado desse termo em seu tratamento s o ­ trina, as C. se reduzem a aç õ e s e a ação a d u ra ç ã o real da co n sciên cia; te m -se, em b o ra b re o e sq u e m a tism o tra n sc e n d e n ta l, o n d e faz co m certa co n sc iên c ia d os p ro b le m a s in eren ­ da co isalid ad e ou re a lid a d e (Sachheit, Realitüt) tes, a co stu m eira re d u ç ã o d a C. a u m esta d o o esq u e m a fu n d a m en tal da categ o ria de q u a li­ sub jetiv o. E o significado d e tal re d u ç ã o da C. d ad e, no sen tid o d e q u e "C. em g eral é o q u e a ele m e n to s sub jetiv o s, ain d a q u e q ualificad os c o rre sp o n d e a u m a se n sa ç ã o em g eral" (Ibid., (sen saçõ es, re p re se n ta ç õ e s, idéias, açõ es, e tc ), E sq u e m atism o d os c o n ce ito s p u ro s). A p artir é sim p le sm e n te isto: q u e n ão ex istem coisas. daí, a h istória da n o ç ão de C. p o d e ser div id ida em d uas co rren te s fu n d a m en tais, se g u n d o se h) C o rren te p ara a q ual o ser da C. tem sign i­ lh e atrib u a ou n eg u e u m sign ificad o esp ecífico . ficado esp ecífico . F oi H usserl q u e m ressalto u P o d em o s, p o rtan to , distinguir: esse sign ificad o, do p o n to d e vista fen o m ed) A co rren te p ara a q ual o ser da C. se re ­ n o ló g ic o , afirm an d o q u e ex iste "um a d iferen ­ ça fu n d a m en tal e n tre o ser co m o ex p eriên cia so lv e no ser em geral. A ssim , p ara o id ealism o viv id a e o ser co m o C." e q u e, p o rta n to , "um a em p írico , p ara o q ual o ser é re p re s e n ta ç ã o ou C. n ão p o d e ser d ad a em n e n h u m a p e rc e p ç ã o idéia, a C. é re p re s e n ta ç ã o ou idéia, ou um p ossível ou outra m o d a lid a d e d e co n sciên cia c o m p lex o de re p re s e n ta ç õ e s ou de idéias. Essa em geral" (Ideen, I, § 42). O m o d o d e ser e sp e ­ d o u trin a, q u e é a de B erkeley , foi re p ro d u z id a cífico da C. co n siste no fato de q u e ela é dada in ú m era s v e z e s na filosofia m o d e rn a e c o n te m ­ em u m n ú m e ro in d efin id o d e ap a riç õ e s, m as p o rân ea. P ara o id ealism o ab so lu to ou ro m â n ti­ p e rm a n e c e transcendente co m o u m a u n id a d e co, para o qual a re a lid a d e é a p ró p ria razão , a q u e está além d essas ap a riç õ e s, e q u e, to davia, C. é u m co n ce ito da razão; e de fato H eg el a se m anifesta em u m n ú c leo de ele m e n to s b em c o n sid e ra co m o u m a ca te g o ria ló g ica (Ene, d e te rm in a d o s, c irc u n d a d o s p o r u m h o rizo n te §§ 125 ss.; WissenschaftderLogik, ed. G lo ck n er, d e o u tro s e le m e n to s m ais in d e te rm in a d o s I, p p. 602 ss.) O significado a u tô n o m o d essa (Ibid, § 44). O ser da C. se co n tra p õ e , assim , ao n o ção n ão é resg atad o pela m odificação da tese das ex p eriên cias v iv id as ou da consciência (v.). do em p irism o clássico, p ro p o sta p o r S tuart Mill. Essa c o n tra p o siç ã o é p re ssu p o sta p o r to d a s as S eg u n d o eles, as C. são "p o ssib ilid ad es de s e n ­ tentativas da filosofia co n te m p o râ n e a de d eter­ saçõ es" (Examination of Hamilton 's Phii, p p. m in ar de m an eira esp ecífica o ser d a coisa. E é 190 s s .), m as isso n ão delim ita esp ecific am e n te

COISA significativo q u e tais te n tativ a s te n h a m p artid o de dois p o n to s de vista in d e p e n d e n te s e a p a ­ rentem ente c o n tra stan te s, o n atu ra lism o in stru ­ m entalista, de u m la d o , e a filosofia ex iste n ­ cialista, de o u tro . M ead m o strou a lig ação en tre a n o ç à o de C. e o "m undo da ação". A s C. se in se re m n um a fase bem d e te rm in a d a d esse m u n d o , isto é, na que se situa en tre o início de u m a ação e a sua consum ação final. E m o u tro s te rm o s, é na fase da manipulação q u e c o m p a re c e ou se co n sti­ tui a C. física, q u e, no e n ta n to , é u n iv e rsa l no sentido de p e rte n c e r à e x p eriên cia de to d o s (Mind, SelfandSociety, p p . 184-85). D ew ey, por sua v ez, m o stro u a estreita c o n e x ã o do m odo de ser d as C. co m a in v estig ação . "As C ", disse ele, "existem co m o o b jeto s p ara n ó s na m edida em q u e te n h a m sid o p re lim in a rm e n te determ inadas co m o re su lta d o s de in v e stig a ­ ções. Q u an d o são u sa d a s na p re p a ra ç ã o de n o ­ vas investigações so b re n o v as situ aç õ e s p ro b le ­ máticas, são c o n h e c id a s co m o o b jeto s só em virtude de in d ag aç õ e s an te rio re s q u e ju stificam a sua assertiv idad e. N a n ov a situ aç ão , os o b je­ tos são m eios para alcançar o c o n h e cim en to de alguma outra C." (Logic, VI; trad. it., p. 175). Dewey afirm ou n itid a m e n te o caráter in stru ­ mental das C. e, em g eral, de to d o s os objetos de c o n h e c im e n to . T a n to as "C. im e d ia ta s" quanto os o bjeto s da ciên cia física "co n stru íd o s por um a o rd e m m a te m á tic o -m e c â n ic a " são "meios para g aran tir ou p ara ev itar d e te rm in a ­ dos objetos im ediato s" (Experience andNature, p. 141). E ssas d e te rm in a ç õ e s de M ead e Dewey são a p re se n ta d a s co m o re su lta d o s de análises em p íricas. H eid e g g er a p re se n ta suas determ inações co m o resu ltad o s de u m a análise existencial: a n o ç ã o de C . é esclarecid a p o r ele com o u m e le m e n to da e x is tê n c ia h u m a n a en q uanto " s e r-n o -m u n d o " . S er no m u n d o significa o cu p a r-se co m alg u m a C. e a C. é sem pre u m in s tru m e n to (Zeug), u m meio para... E nq u an to tal, o m o d o de ser da C. é o da instrumentalidade, e "a in stru m en talid ad e é a determ inação o n to ló g ic o -categ o ria l do en te como ele é em si '. Q u e r dizer: a in stru m en talidade não se ac re sc en ta co m o u m a q u a lid a ­ de secundária ou ex trín seca à re a lid a d e da C, mas a constitui, ê essa m esm a re a lid a d e . O modo de ser da C. é o da in stru m en talid ad e, do ser instrum ento ou in stru m e n to p ara... D esse ponto de vista, "a n atu re za n ã o p o d e ser e n ­ tendida com o sim p les p resen ça , n em m esm o como força natural. A floresta é p la n ta ç ã o , a

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COISA-EM-SI m o n tan h a é p ed reira, a co rren te é força h id ráu li­ ca, o v e n to é v e n to em p o p a. A d esco b e rta do m u n d o a m b ie n te e a d e sc o b e rta d a n atu reza o co rre m ao m esm o te m p o ". P o d e-se c e rta m e n ­ te p ro c u ra r v e r o q u e é a n atu re za , e d eix ar de la d o a in stru m e n ta lid a d e d as C. M as, n esse caso , a n atu re za p e rm a n e c e in co m p ree n sív el "com o o q u e te ce e a c o n te c e , o q u e se p re c ip i­ ta so b re n ós e n os em p o lg a" (Sein undZeit, § 15). S em d ú v id a, H eid e g g er c o n se g u iu d e te r­ m inar, ain d a m elh o r do q u e o in stru m en talism o am e rican o , o m o d o de ser in stru m en ta l das co isas, a categ o ria d a in stru m e n ta lid a d e q u e o define. P or sua v ez , L ew is p ô s em ev id ên c ia as im p licaç õ es ló g icas q u e s e m e lh a n te co n ce ito da C. traz em si. "A tribuir u m a q u a lid a d e o bjeti­ v a a u m a C ", d isse ele, "significa im p licitam ente a p re v isã o de q u e , se eu ag ir de certa m a n e i­ ra, o c o rre rá certa e x p e riê n c ia esp ecifícáv el: se eu m o rd er esta m açã, seu sab o r será d oce; se eu a co m er, será d ig erid a e n ão m e e n v e n e n a ­ rá, etc. E ssas e o u tras ta n tas p ro p o siç õ e s h ip o ­ té tic a s c o n stitu e m o m eu c o n h e c im e n to da m açã q u e te n h o em m ão s" {Mind and lhe World-Order, cap. V , ed. D over, p. 140). A s ex ­ p re s s õ e s da fo rm a Se... e n tã o re fe re m -se a p o ssib ilid a d e s q u e tra n sc e n d e m a e x p e riê n ­ cia atual e q u e são p ró p rias do h o m e m co m o ser ativ o. "O sig n ificad o cio c o n h e c im e n to ", disse aind a Lew is a esse p ro p ó sito , "d ep en d e do sign ificad o de u m a p o ssib ilid a d e q u e n ão é atual. P o ssib ilid ad e e im p o ssib ilid a d e , lo g o n e ­ c e ssid a d e e c o n tin g ê n c ia , c o m p a tib ilid a d e e in c o m p a tib ilid a d e , e v árias o u tras n o ç õ e s fun­ d am en ta is, ex ig em q u e d ev a h av er p ro p o si­ çõ e s 'S e... e n tã o ', cuja v e rd a d e ou falsid ad e é in d e p e n d e n te d a co n d iç ã o afirm ada n a o raç ão a n te c e d e n te " (Ibid, 142 n) (v. IMPLICAÇÃO). O h o riz o n te ló g ico do c o n ce ito d e C , e la b o ra d o pela filosofia c o n te m p o râ n e a , é, p o rtan to , o da p o ssib ilid a d e , e x p re sso p ela s p ro p o siç õ e s c o n ­ d icio n ais. Isso é co n firm ad o p e lo s re su ltad o s d as p e sq u isa s e x p e rim e n ta is re a liz a d a s pela p sico lo g ia tran sa cio n al, q u e levam a v e r na C. certa "classe de p o ssib ilid ad es" q u e co n stitu i u m a p ro g n o se g e n e ra liz a d a , com b ase na e x ­ p eriên cia p assa d a , d o s u so s ou c o m p o rta m e n ­ to s p o ssív e is de u m o b jeto (Explorations in TransactionalPsychology, org. F. P. K ilpatrick, 1961, cap . 21; trad. it., p. 495-96).

COISA-EM-SI (in. Thing in itself, fr. Chose en soi; ai. Ding an sich; it. Cosa in sé). O q u e a

C. é, in d e p e n d e n te m e n te da sua re la ção co m o h o m e m , p ara o q u al é u m o bjeto de c o n h e c i­

COISA-EM-SI m en to . N em a e x p re ssã o , n em a n o ç ã o são p ró p rias e o rig in árias de K ant, co m o co m u m en te se crê, m as re p re s e n ta m "a co n v icç ão d o m in a n te de to d a a filosofia do séc. XVIII" (CASSIRER, Erkenntnissproblem, V II, 3; trad. it., II, p p . 470 ss.). A o rig em d essa n o ç ã o p o d e estar em D escartes, q u e , em Princípios de filosofia (II, 3), assim se ex p rim e: "Será suficien te o b se r­ v ar q u e as p e rc e p ç õ e s d o s se n tid o s referem -se a p e n a s à u n iã o do c o rp o h u m a n o co m o esp íri­ to e q u e , e n q u a n to de o rd in ário n o s m o stram aq u ilo q u e n os p o ssa p reju d icar ou ajud ar nos c o rp o s ex te rn o s, n ão n o s e n sin am a b so lu ta ­ m en te , m as só o ca sio n al e a c id e n ta lm e n te , o q u e tais c o rp o s são em si m esm o s". E ssa d is­ tin ç ão en tre as "C .-em -si m esm as" e as "C. em re la ção a nós", isto é, co m o o b jeto s d e n o ssas facu ld ad es sen sív eis, to rn a -se lu g ar-co m u m na filosofia do Ilu m in ism o . D 'A lem b ert (Elém. de pbil, § 19), C o n d illa c (Logique, 5), B o n n e t (Essai analytique, § 242) re p e te m -n a q u a se co m as m esm as p alav ras, e M a u p ertu is (Lettres, IV) a e x p re s s a em te rm o s ta is q u e S ch o p e n h a u e r te v e a im p re ssão de q u e K ant o p la ­ giara. "D esde q u e estejam o s c o n v e n c id o s", diz M au p ertu is, "de q ue en tre n o ssa s p e rc e p ç õ e s e os o bjeto s e x te rn o s n ão su b siste n e n h u m a sem e lh a n ç a n em n e n h u m a re la ção n ecessária, d e v e re m o s adm itir ta m b é m q u e tais p e rc e p ­ çõ es n ão p assa m de sim p les ap a rên cia. A ex ­ te n sã o , q u e co stu m a m o s co n sid e rar co m o o fu n d a m en to de to d a s as o u tras p ro p rie d a d e s, e q u e p are ce co n stitu ir sua v e rd a d e ín tim a, em si m esm a n ad a m ais é do q u e fe n ô m en o " (Cf.

SCHOPENHAUER, Die Welt, II, p. 57).

N esse p o n to , co m o em m u ito s o u tro s, K ant n ão fez sen ão in sp irar-se na o rie n ta ç ã o geral do Ilu m in ism o . T o d av ia, em su a d o u trin a , c o ­ m o , aliás no Ilu m in ism o , o c o n ce ito de C .-em si n ã o p e rm a n e c e u m sim p le s le m b re te da lim ita çã o do c o n h e c im e n to h u m a n o e u m a ad v ertên cia para afastar o h o m e m das e s p e c u ­ laçõ es m etafísicas. A clara-se, m ais p recisam en te, co m o u m in stru m en to té cn ic o p ara circ u n sc re ­ v er os lim ites do c o n h e c im e n to h u m a n o . D o co m eç o ao fim de Crítica da Razão Pura, K ant re p e te q u e o c o n h e c im e n to h u m a n o é c o n h e c i­ m en to cie fe n ô m en o s, n ão de C .-em -si, já q u e ele n ão se b aseia n a intuição intelectual (para a q ual ter as C. presentes significaria criá-las), m as na intuição sensível, p ara a q u al as coisas são dadas so b certas co n d iç õ e s (e sp aç o e te m ­ p o). D e ac o rd o co m essa diretriz fu n d am en tal, K ant, ap ó s h av er esta b e le cid o a p o ssib ilid ad e

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COISA-EM-SI do c o n c e ito de C .-em -si (ou n ú m e n o ), p assa a d istinguir u m a d ou trina positiva e u m a doutrina n e g ativ a d o s n ú m e n o s. "O c o n c e ito d e u m n ú m e n o , isto é, de u m a C. q u e d ev e ser p en sad a n ão co m o o bjeto d o s se n tid o s, m as co m o coisa-em -si (u n ica m en te p ara o in te le cto p u ro ), n ão é em n ad a co n tra d itó rio , já q u e n ão se p o d e afirm ar q u e a s e n sib ilid a d e seja o ú n ico m o d o d e intuição". Isso p o sto , se e n te n d e rm o s p o r n ú m e n o "o o bjeto d e u m a in tu iç ão n ão sen sív el", isto é, criad o ra ou divina, te re m o s o c o n c e ito de n ú m e n o em se n tid o positivo. M as n a re a lid a d e esse c o n ce ito é v az io , p o rq u e n o s­ so in te le cto n ão p o d e e ste n d e r-se além da ex ­ p eriên cia se n ã o p ro b le m a tic a m e n te , isto é, não co m a in tu ição n em co m o c o n ce ito de u m a in tu iç ão p ossív el. P o rta n to , "o co n ce ito de n ú ­ m ero é só u m c o n c e ito -lim ite (Grezbegriff), p ara circ u n sc re v e r as p re te n sõ e s da sen sib ilid a­ de, p o rta n to d e u so p u ra m e n te n eg ativ o " (Crít. R. Pura, A nalítica d os p rin cíp io s, cap. III). Essa fu n ção p u ra m e n te n eg ativ a da C .-em -si p er­ m a n e c e u co m o u m d o s p rin cíp io s d a d o u trin a k a n tia n a do c o n h e c im e n to , p o rq u e g ara n te, nela, o caráter finito (isto é, não-criativo) do co ­ n h e c im e n to h u m a n o . E n tretan to , a filosofia p ó s-k a n tia n a assinala a rápida d estru ição d esse co n ceito . J á as Cartas sobre a filosofia kantiana (1786-87) de Rein h o ld , q u e faziam u m a ex p o siç ã o do criticism o q u e , d u ra n te m u ito te m p o , serv iu d e m o d e lo p ara a in te rp re ta ç ã o do p ró p rio criticism o, re ­ d u z in d o o fe n ô m e n o a re p re s e n ta ç ã o , to rn a ­ v am d úb ia ou p ro b lem ática a função da C .-em si; d e p o is, esta era e x p lic ita m en te n eg ad a, p or S ch u lze e M aim on , co m b a se em su a incogn o sc ib ilid a d e . M as q u e m co m e ç o u a extrair co n se q ü ê n c ia s d essa n e g a ç ã o foi F ichte: este viu q u e, elim in ad a a co n d içã o lim itativa, co n sti­ tu íd a p ela C .-em -si, o c o n h e c im e n to h u m a n o to rn av a-se cria d o r n ão só da form a, m as tam ­ b ém do c o n te ú d o da re a lid a d e q u e con stitu i seu objeto, tran sfo rm an d o -se n aq u e la "intuição in telectu al" q u e K ant atrib u ía so m e n te a D eus, fa ze n d o do sujeito dela, isto é, do Eu, u m p rin ­ cípio infinito (Wissenschaftslehre, 1794, § 4). E ssas tran sfo rm açõ es m arcam a tra n siç ã o do criticism o, q u e é filosofia de tip o ilum inista, ao romantismo(v.) , q u e é u m a filosofia do infinito. O ro m a n tism o assinalava o c re p ú sc u lo defini­ tivo da d o u trin a d a C .-em -si, q u e fora a insíg­ nia do ilu m in ism o p o rq u e servira p ara ex p ri­ m ir a lim itação fu n d a m en tal do co n h e c im e n to h u m a n o . A n o ç ã o d e incognoscíveliy.), q u e o

COISAL, ENUNCIADO

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positivismo evolucionista às vezes comparou com a C.-em-si, na realidade é completamente diferente. Em primeiro lugar, tem função oposta à da C.-em-si: serve para oferecer à metafísica e à religião um domínio de competência espe­ cífica, em vez de restringir as pretensões do conhecimento científico. Em segundo lugar, o Incognoscível é mais definido positivamente pela esfera de problemas que a ciência não resolve do que negativamente pelos limites intrínsecos da própria ciência. A filosofia con­ temporânea, que restabeleceu e continua resta­ belecendo a doutrina do limite do conhecimen­ to, entende que ele é demarcado pelo alcance dos métodos ou dos critérios que presidem à validade do conhecimento; portanto, já não precisa da iluminista "C.-em-si" para impor mo­ deração às pretensões cognitivas do homem. cOiSAL, ENUNCIADO (in. Thing-sentencé). Na semiótica contemporânea, um enun­ ciado que não designa signos, mas coisas. Língua C: uma língua constituída inteira­ mente de enunciado C. (MORRIS, Foundatíons ofthe Theory ofSigns, 1938, § 5). Predicados C: termos que designam propriedades observá­ veis, isto é, que podem ser determinadas pela observação direta (CARNAP, "Testabílity and Meaning", 1936-37, em Readings in the Phil. ofScience, 1953, pp. 69 ss.). COLETIVISMO (in. Collectivism, fr. Colectivisme, ai. Kollektivismus; it. Collettivismó). 1. Termo criado na segunda metade do séc. XIX para indicar o socialismo não estatista, em opo­ sição ao estatista. Nesse sentido, foram coletivistas o socialismo reformista anterior à guerra e é coletivista o trabalhismo inglês na medida em que deseja uma sociedade sem desequi­ líbrios de classe, portanto coletivizada, mas não controlada pela força por uma elite privilegiada que goze de um nível de vida radicalmente di­ ferente do resto da população. 2. Em sentido mais amplo, entende-se por C. toda doutrina política que se oponha ao in­ dividualismo e que, em particular, defenda a abolição da propriedade privada e a coletivização dos meios de produção. Nesse sentido, são coletivistas tanto o socialismo quanto o co­ munismo em todas as suas formas. COLIGAÇÃO (in. Colligation, fr. Colligation; ai.' Kolliga tion, it. Colligazionê).Operação descritiva citada por Whewell (Novum Organum renovatum, 1840, III, caps. 1 e 4) para ex­ plicar o modo como é possível reunir certo nú­ mero de detalhes em uma só proposição. Stuart

CÔMICO

Mill (Logic, III, 2, 4) retomou essa noção, vincu­ lando-a à de indução. "A asserção de que os planetas se movem em elipse foi um modo de representar fatos observados, portanto uma C; a asserção de que eles são atraídos para o Sol é a asserção de um novo fato, inferido por indução". Essa palavra caiu em desuso na lógi­ ca contemporânea. COMBINATÓRIA, ARTE (lat. Ars combinatorid). Com o nome de ars combinatoria Leibniz designa o projeto, ou melhor, o ideal de uma ciência que, partindo de uma characterísticauniversaUs(v. CARACTERÍSTICA), OU seja, de uma linguagem simbólica que atri­ buísse um sinal a cada idéia primitiva e combinasse de todos os modos possíveis es­ ses sinais primitivos, obtendo assim todas as idéias possíveis. Esse projeto, derivado em parte das idéias expostas por R. Lúlio em Ars magna, já havia seduzido muitos pensadores dos sécs. XVI e XVII (entre outros, Agripa de Nettesheim, A. Kircher, P. Gassendi, G. Dalgarno) e também foi cultivado por continuadores de Leibniz, como Wolff e Lambert. COMEÇO (lat. Inceptio; in. Beginning; fr. Début; ai. Anfang; it. Comínciamentó). Propria­ mente, o início de uma coisa no tempo: que pode coincidir ou não com o princípio (v.) ou com a origem(v.) da própria coisa. Essa distin­ ção é importante em alguns casos: p. ex., se­ gundo S. Tomás, a criação é matéria de fé en­ quanto C. do mundo no tempo, mas não enquanto produção do nada por parte de Deus (S. Th, I, q. 46, a. 2). Hegel afirmou que o C. da filosofia é relativo, no sentido de que o que aparece como C. é, de outro ponto de vista, resultado (Fil. do dir, § 2, Zusatz). De qualquer modo, segundo Hegel, o Absoluto encontra-se mais no resultado do que no C. porque este, "da forma como era expresso antes e agora, é apenas universal", e o universal, nesse senti­ do, é só o abstrato que não pode valer como concretitude e totalidade; p. ex., as palavras "todos os animais", que exprimem o universal de que trata a zoologia, não podem valer como toda a zoologia (Phãnomen, des Geistes, Intr., II, 1). Apesar disso, a filosofia muitas vezes pro­ curou o C. absoluto para fazê-lo coincidir com o seu próprio "princípio", donde a procura do "primeiro princípio" do filosofar. CÔMICO (gr. TEAOÍOV; lat. Comicus; in. Comic, fr. Comique, ai. Komisch; it. Cômico). O que provoca o riso, ou a possibilidade de provocá-lo, através da resolução imprevista de

CÔMICO

uma tensão ou de um conflito. A definição mais antiga do C. é de Aristóteles, que o considerou "algo de errado e feio, que não causa dor nem dano" (Poet, 5,1449 a 32 ss.). O "errado" como caráter do C. significa o caráter imprevisto, por­ que irracional, da solução apresentada pelo C. para um conflito ou uma situação de tensão. Es­ sas idéias permaneceram substancialmente inalteradas na história da filosofia. Hobbes insis­ tiu no caráter inesperado do C. e vinculou-o à consciência da própria superioridade (Dehom., XII, § 7). Kant reduziu o C. à tensão e, portanto, à sua solução inesperada: "Em tudo o que é capaz de provocar uma explosão de riso, deve haver algo de absurdo (em que, portanto, o intelecto por si mesmo não pode achar nenhum prazer). O riso é uma afeição que deriva de uma espera tensa que, de repente, se resolve em nada. É precisamente essa resolução, que por certo nada tem de jubiloso para o intelecto, que alegra indiretamente, por um instante e com muita vivacidade" (Crít. doJuízo, § 54). O Iluminismo viu no C. e no riso que o expri­ me um corretivo contra o fanatismo, conside­ rando-o a manifestação do "bom humor" que Shaftesbury considerava o melhor modo de corrigir o fanatismo (Letteron Enthusiasm, II). Hegel, ao contrário, considerava-o expressão da posse satisfeita da verdade, da segurança que se sente por estar acima das contradições e por não estar numa situação cruel ou infeliz. Em outros termos, identificava-o com a felicidade segura, que pode até suportar o fracasso de seus projetos. E nisso ele o distinguia do sim­ ples risível, em que via "a contradição pela qual a ação se destrói por si e o objetivo se anula realizando-se" ( VorlesungenüberdieAsthetik,ed. Glockner, III, p. 534). Essa noção hegeliana de C, no entanto, é uma idealização romântica do fenômeno, mais do que uma análise objetiva, é a exageraçâo do sentimento de superiorida­ de que Aristóteles já observara no C, quando considerou a comédia como "imitação de ho­ mens ignóbeis" (Poet., 5, 1448, 32). A noção tra­ dicional do C. é reafirmada pela análise de Bergson (Le rire, 1900), que até hoje é conside­ rada a mais rica e precisa. Ele nota que o C. é obtido quando um corpo humano faz pensar em um mecanismo simples, quando o corpo prevalece sobre a alma, quando a forma sobre­ puja a substância e a letra o espírito, ou quan­ do a pessoa dá a impressão de coisa; todos estes são casos em que o C. está na frustração de uma expectativa através de uma solução

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COMPAIXÃO

imprevista ou, como teria dito Aristóteles, er­ rada. O mesmo se pode dizer do C. das situa­ ções ou das expressões, que existe quando uma situação pode ser interpretada de dois modos diferentes ou pela equivocidade das expressões verbais; por isso, é sempre um erro, uma solução irracional dada a uma ex­ pectativa de solução. Bergson também atribui ao C. um poder educativo e corretivo. "O rígi­ do, o já feito, o mecanismo em oposição ao ágil, ao que é perenemente mutável, ao vivo, a distração em oposição à previsão, enfim o automatismo em oposição à atividade livre, eis o que o riso destaca e gostaria de corrigir" (Ibid, cap. II, no fim). COMO SE (ai. Ais ob). Expressão que se repete muitas vezes nas obras de Kant para indicar o caráter hipotético ou simplesmente reguladoras, certas afirmações. P. ex., as coisas-em-si podem ser pensadas por analogia "como se fossem substâncias, causas, etc." {Crít. R. Pura, Dialética, V, d). O imperativo ca­ tegórico manda agir "como se o ser racional fosse um membro legislador no reino dos fins" (Grundlegung zurMet. derSitten, II). Devemos tratar as máximas da liberdade "como se fos­ sem leis da natureza" (Ibid., III). A faculdade do juízo considera os objetos naturais "como se a finalidade da natureza fosse intencional" (Crít. doJuízo, § 68). O como se kantiano não é mera ficção: é simplesmente a interpretação, em ter­ mos de operações ou comportamentos, de pro­ posições cujos sentidos literal e metafísico es­ tão além da refutaçâo e da confirmação, sendo, por isso, inexistentes. Vaihinger, em Filosofia do como se (1911), interpretou-o como ficção; sua tese é que todos os conceitos, categorias, princípios e hipóteses utilizados pelas ciências e pela filosofia são fícções (v.) desprovidas de validade teórica, muitas vezes intimamente con­ traditórias, que são aceitas e mantidas só en­ quanto são úteis. Outro kantiano, Paul Natorp, restringiu o como se ao domínio da arte, que representaria as coisas como se o que é ainda devesse ser, ou como se o que deve ser fosse na realidade (De Relígion ínnerhalb der Grenzen der Humanitãt, 1894). COMPAIXÃO (gr. eÀ£OÇ; lat. Commiseratio; in. Pity, fr. Compassion, ai. Mitleid; it. Compassione). Participação no sofrimento alheio como algo diferente desse mesmo sofrimento. Essa última limitação é importante porque a C. não consiste em sentir o mesmo sofrimento que a provoca. A emoção provocada pela dor de

COMPAIXÃO

outra pessoa pode chamar-se C. só se for um sentimento de solidariedade mais ou menos ativa, mas que nada tem a ver com a identidade de estados emocionais entre quem sente C. e quem é comiserado. Aristóteles definiu a C. como "a dor causada pela visão de algum mal destrutivo ou penoso que atinge alguém que não mereça e que pode vir a atingir-nos ou a alguém que nos seja caro" (Ret, II, 8, 1385 b). Essa definição é repetida quase literalmente por Hobbes (Leviath, I, 6), Descartes (Pass. delâme, III, § 185) e por Spinoza (Et., III, 22 scol.). Segundo Adam Smith, a C. é um caso típico da simpatia que constitui a estrutura de todos os sentimentos morais ( Theory ofMoral Sentíments, III, 1). Para Schopenhauer, a C. é a própria essência do amor e da solidariedade entre os homens, porque amor e solidarieda­ de explicam-se somente a partir do caráter essencialmente doloroso da vida (Die Welt, I, 55 66-67). Em oposição a essa tradição, há uma outra que vê na C. um elemento negativo da vida moral. Essa segunda tradição inicia-se com os estóicos (STOBEO, Ecl, II, 6, 180) e passa por Spinoza. Este considera que "no homem que vive segundo a razão a C. é, por si mesma, ruim e inútil", porque nada mais é que dor; por isso "o homem que vive segundo a razão esfor­ ça-se o máximo possível para não ser tocado pela C", bem como tampouco pelo ódio, pelo riso ou pelo desprezo, porque sabe que tudo deriva da necessidade da natureza divina (Et., IV, 50, corol. scol.). Essa apreciação encontra expressão extrema nas invectivas de Nietzsche contra a C: "Esse instinto depressivo e conta­ gioso debilita os outros instintos que querem conservar e aumentar o valor da vida; é uma espécie de multiplicador e de conservador de todas as misérias, por isso um dos instrumentos principais da decadência do homem" (Anticristo, Ap. 7). O traço comum dessas condena­ ções da C. é considerá-la como miséria ou dor em si mesma; aliás, segundo a expressão de Nietzsche, como algo que conserva ou multipli­ ca a miséria e a dor. Scheler apontou o equívo­ co desse pressuposto que, na verdade, confun­ de a C. (que é simpatia e participação emotiva) como contágio emotivo. Pelo contrário, obser­ va Scheler, "a C. está ausente sempre que hou­ ver contágio do sofrimento, pois então o sofri­ mento não será mais de outro, mas meu, e eu acredito poder subtrair-me a ele evitando o quadro ou o aspecto do sofrimento em geral"

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COMPATIBILIDADE

(Sympathie, cap. II, § 3). Foi justamente essa advertência fundamental que tivemos em mente ao caracterizarmos a C. no princípio desse verbete. COMPARATIVO (in. Comparative, fr. Com­ pare, ai. Vergleichend; it. Comparativo). Os ló­ gicos tradicionais chamam de questão compa­ rativa aquela em que se pergunta se algo é menor ou maior, melhor ou pior, etc, do que outra coisa; p. ex.: "Se a justiça é preferível à força" (JUNGIUS, Lógica, V, 2, 42). A Lógica de Port-Royal denominou C. as proposições que instituem um confronto desse tipo (ARNAULD, Log., II, 10, 3); essa expressão persiste na lógica tradicional (cf. B. ERDMANN, Logik, I, § 40, 229). COMPATIBILIDADE (in. Consistency, fr. Compatibilité; ai. Widersprucbslosigkeít; it. Compatibilitã). Ausência de contradição como condição de validade dos sistemas dedutivos. "Toda verdade", dizia Aristóteles, "deve estar de acordo consigo mesma sob todos os aspec­ tos" (An. pr, I, 32, 47 a 8). Todavia, foi só na matemática moderna, a partir de Hilbert, que a C. interna de um sistema dedutivo passou a ser o único critério de validade do próprio sistema. Segundo esse ponto de vista, diz-se que há C. no sistema em que não há nenhum teorema cuja negação seja um teorema; ou no qual nem todos os enunciados são teoremas. Essa segunda fórmula é ainda mais geral (cf. A. CHURCH, Introductíon to Mathematícal Logic, 1959, § 17). Desse ponto de vista, a demonstração da C. torna-se a própria demonstração da validade de um sistema bem como da existência (v.) das entidades a que ele faz a referência. Segundo Hilbert, a demonstração da C. não deveria fazer referência a um número infinito de proprieda­ des estruturais das fórmulas ou a um número infinito de operações conformes. Nesse senti­ do, a demonstração deveria ser finitista, por­ que só assim seria absoluta. Mas justamente a não-possibilidade da demonstração absoluta da C. dos sistemas dedutivos foi provada pelo teorema de Gõdel (1931). O teorema de Gõdel não exclui que se possa provar a C. de um sis­ tema dedutivo tomado como modelo, mas, por sua vez, a validade do modelo não poderá ser demonstrada. A C. "absoluta" foi, portanto, ex­ pulsa do domínio da matemática pelo teorema de Gõdel, que estabelece, por isso mesmo, os limites do chamado formalismo. Realmente, nenhum sistema formalista pode oferecer a ga­ rantia da sua própria absoluta compatibilidade.

COMPLEMENTARIDADE

Cf. W. V. O. QUINE, Methods o f Logic, 1950; J. LADRIÈRE, Les limitations internes des formalismes, 1957; E. NAGEL—J. R. NEWMANN, GódeVs Proof, 1958 (v. MATEMÁTICA, PROVA). COMPLEMENTARIDADE (in. Complementarity, fr. Complémentarité, ai. Komplementarheit; it. Complementaritã). Com expressão extraída da geometria (chamam-se complementares dois ângulos cuja soma é igual a um ângulo reto) denominam-se complementares dois concei­ tos opostos que se corrigem reciprocamente e se integram na descrição de um fenômeno. As­ sim, p. ex., chamam-se complementares os conceitos de onda e de corpúsculo para a des­ crição dos fenômenos ópticos na moderna mecânica quântica. O princípio de C. formula­ do por Bohr exprime a incompatibilidade da mecânica quântica com a concepção clássica da causalidade (v.). Exprime-se assim: "Uma descrição espãcio-temporal rigorosa e uma se­ qüência causai rigorosa de processos indivi­ duais não podem ser realizadas simultaneamen­ te; ou uma ou outra deve ser sacrificada" (D'ABRO, NewPhysics, p. 951). COMPLEXO (gr. a-uu.7te7tAf7u.evov; lat. Complexum; in. Complex, fr. Complexe, ai. Komplex, it. Complesso). Os estóicos, que introduziram esse termo, entenderam por ele as proposi­ ções compostas, isto é, constituídas ou por uma só proposição tomada duas vezes (p. ex.: "se é dia, é dia"), ou por proposições diferentes uni­ das por um ou mais conectivos (p. ex.: "É dia e há luz", "Se há dia, há luz", etc.) (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 93; DIÓG. L, VII, 72). Na lógi­ ca medieval, esse termo era generalizado e en­ tendeu-se com ele ou um termo composto por palavras diferentes, como "homem branco", "animal racional", etc, ou a proposição simples composta do nome e do verbo (p. ex., "o ho­ mem corre", etc). Nesse caso, o oposto de com­ plexo, indicado pelo termo incomplexum (isto é, "simples") é o termo isolado ou qualquer ter­ mo da proposição, mesmo se composto por dois ou mais termos (como, p. ex., o sujeito "homem branco" na proposição "o homem branco corre") (OCKHAM, Expositio super artem veterem, foi. 40 b). Essas noções repetem-se com poucas diferenças em Vicente de Beauvais (Speculum doctrinale, 4) e em Armando de Beauvoir (De declaratíone difficilíum terminorum, I, 1). Cf TOMÁS, S. Th, II, 2, q, 1, a. 2. COMPLICAÇÃO, EXPLICAÇÃO (lat Complicatió, Explicatió). Termos empregados por Nicolau de Cusa para indicar a relação entre

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COMPOSSIVEL

o ser e as suas manifestações, na medida em que estas estão contidas no ser e o ser se des­ dobra ou se manifesta nelas. Nicolau de Cusa diz que a unidade infinita é "a reunião (complicatió) de todas as coisas", que o movimento é "o desdobramento (explicatió) do repouso" e que Deus "é a reunião (complicatió) e o des­ dobramento (explicatió) de todas as coisas; por ser reunião (complicatió) delas, todas as coisas estão nele ao passo que, por ser o desdobra­ mento (explicatió), ele é em todas as coisas o que elas são" (De docta ignor, II, 3). COMPORTAMENTO (in. Bebavior; fr. Comportement;ai. Verhaltern;it. Comportamen­ to). Toda resposta de um organismo vivo a estímulos, que seja: le objetivamente observável por um meio qualquer; 2° uniforme. O termo C. foi introduzido por Watson por volta de 1914 e hoje é de uso corrente no significado ora exposto. Inicialmente, serviu para dar ên­ fase à exigência de que a psicologia e, em geral, qualquer consideração científica das atividades humanas ou animais assumissem como objeto elementos observáveis objetivamente, isto é, não acessíveis somente à "intuição interna" ou à "consciência". Atualmente; esse termo é de uso geral. Deve ser distinguido: 1Q de ação, porque, ao contrário desta, o C: a) não é uma manifestação de um princípio particular, p. ex., da vontade ou da atividade prática, mas de todo o organismo animal; b~) é constituído uni­ camente por elementos observáveis e passí­ veis de descrição em termos objetivos; c) é uniforme, isto é, constitui a reação habitual e constante do organismo a uma situação deter­ minada; 2a de atitude, que é o C. especifica­ mente humano e inclui, portanto, elementos antecipatórios e normativos (projeto, previsão, escolha etc); 3Q de conduta, à qual pode faltar o caráter de uniformidade. COMPOSIÇÃO (in. Composition; fr. Composüion, ai. Komposition; it. Composizione). Para os lógicos medievais (p. ex., PEDRO HIS­ PANO, Summ. log., 7.25), compositio designa o paralogismo ou falácia (v.) derivada do uso sintático que torne a frase ambígua. É, pois, uma espécie de anfibolia (v.). G. P. COMPOSSIVEL (fr. Compossible, ai. Kompossibel; it. Compossibile). Leibniz designou com esse termo o possível que se coaduna com as condições de existência do universo real, isto é, a possibilidade real. O possível é o que é concebível enquanto desprovido de con­ tradição; o C. é o que pode ser real. "É ver­

COMPREENDER

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dade que o que não é, não foi e não será, não é absolutamente possível, se possível for tomado como compossivel... Pode ser que Deodoro, Abelardo, Wicleff e Hobbes tenham tido essa idéia na cabeça sem esclarecê-la bem" (Op., ed. Erdmann, p. 719). V. POSSÍVEL. COMPREENDER (lat. Intelligere; in. Understanding; fr. Comprendre, ai. Verstehen; it. Comprenderè). A noção do C. como atividade cognoscitiva específica, diferente do conheci­ mento racional e de suas técnicas explicativas, pode ser considerada em duas fases históricas diferentes, a primeira na filosofia medieval ou na escolástica em geral, a segunda na filosofia contemporânea. 1. Toda a Escolástica se funda no problema de "C." a verdade revelada. Mas sobre o valor desse C. os próprios escolásticos não estavam de acordo. Alguns identificaram o C. com o co­ nhecimento racional e com a sua técnica de­ monstrativa e, sob esse aspecto, a compreensibilidade dos dogmas mostrou-se como a possibilidade de demonstrá-los, isto é, de equipará-los a verdades racionais. Anselmo e Abe­ lardo parecem estar de acordo em entender as­ sim o intelligere que julgam indispensável à própria fé. É óbvio que, nesse caso, o intellige­ re vão é absolutamente um C. no sentido espe­ cífico do termo. Uma esfera específica do intelligere como compreender, em sua dife­ rença do conhecimento demonstrativo foi, po­ rém, delineada por S. Tomás na tentativa de determinar o papel da razão em face da fé. Esse papel consiste: ls em demonstrar os preâmbu­ los da fé; 2Sem esclarecer, mediante similitudes, as verdades da fé; 3S em rebater as objeções que se fazem contra tais verdades (In Boet. De Trin, a. 3). Obviamente, a segunda e a terceira parte dessa tarefa, que não são de natureza demonstrativa, constituem a esfera do com­ preender. E com efeito, segundo S. Tomás, as verdades fundamentais de fé, a Trindade, a Encarnação, a Criação, são compreensíveis nes­ se sentido: não são demonstráveis (nesse caso seriam verdades de razão), mas podem ser esclarecidas por meio de analogias e, especial­ mente, sustentadas contra as objeções. Essa po­ sição tomista constitui a melhor e a mais difun­ dida solução do problema do C. que nasceu na Escolástica. Era também defendida no séc. XVIII por Leibníz contra as objeções de Bayle e de Toland. Segundo Leibniz, o dogma é "in­ compreensível" só no sentido de que não se pode demonstrar, mas pode-se dizer que ele

COMPREENDER

concorda com a razão no sentido de !'que se pode mostrar, quando necessário, que não há contradição entre o dogma e a razão, refutando as objeções daqueles que pretendem que o próprio dogma é um absurdo" (Tbéod, § 60). 2. Na filosofia contemporânea, a distinção entre a esfera do C. e a do conhecer racional nasceu da exigência de distinguir o procedi­ mento explicativo das ciências morais ou his­ tóricas do procedimento das ciências naturais. Essa exigência nasceu da dificuldade de aplicar a técnica causai, própria da ciência natural do séc. XIX, ao domínio dos eventos humanos, como são os fatos históricos, e, em geral, ao homem e às relações inter-humanas. Com base nessa técnica, considera-se "racionalmente explicado" aquilo cuja gênese causai necessária pode ser mostrada, isto é, aquilo cuja ocorrên­ cia se pode demonstrar necessária ou infalivel­ mente previsível quando se dá a causa (v.). O caráter necessário da gênese causai, na medida em que se conforma a uma lei imutável, e o ca­ ráter de uniformidade mecânica que os eventos causalmente explicáveis assumem por efeito de tal lei tornam bastante difícil transferir esse tipo de explicação para o mundo do homem, assim como tornam difícil explicar os fatos históricos e, em geral, qualquer fato que consista em uma relação com o homem. A aplicação da técnica causai a tais fatos implicaria a sua redução a ca­ sos de uniformidade mecânica, devidos à ação de leis necessitantes. De tal modo que, quando nos últimos decênios do séc. XIX as ciências históricas, ou, como então se dizia, as "ciên­ cias do espírito", que haviam atingido suficiente solidez metodológica e grande riqueza de resulta­ dos, começaram a propor-se o problema do método e procuraram esclarecê-lo criticamente, surgiu com clareza a exigência de vincular esse método a técnicas e procedimentos diferentes dos usados nas ciências naturais. Nesse senti­ do, o "C." como procedimento próprio das ciências do espírito, foi contraposto ao "expli­ car", baseado na causalidade e próprio das ciências naturais. O primeiro a formular claramente essa dis­ tinção foi Dilthey, em sua Introdução às ciên­ cias do espírito (1883). Dilthey observou que as nossas relações com a realidade humana são de todo diferentes das nossas relações com a natureza. A realidade humana, tal como apa­ rece no mundo histórico-social, é tal que po­ demos compreendê-la de dentro, porque podemos representá-la sobre o fundamento

COMPREENDER d o s n o sso s p ró p rio s esta d o s. A n atu re za , ao co n trário , é m u d a e p e rm a n e c e s e m p re co m o algo d e e x te rn o . P o rta n to , nas ciên cias do e sp í­ rito, q u e têm p o r o bjeto a re a lid a d e h u m a n a , o sujeito n ão se e n c o n tra d ian te de u m a re alid a­ d e estran h a , m as d ian te de si m e sm o , p o rq u e h o m e m é q u e m in d ag a e h o m e m é q u e é in d ag ad o . "O C ", d iz D ilthey, "é a d e sc o b e rta do eu no tu... O sujeito do sa b e r é, aq u i, id ê n ti­ co ao seu o bjeto e este é o m esm o em to d o s os g rau s de su a objetivaçào" (Gesammelte Schriften, V II, p. 191). D esse p o n to de v ista, D ilthey ap o n to u co m o in stru m e n to p ró p rio do C. a Erlebnis, ou experiência vivida ou re v iv e sc en te q u e p erm ite a p re e n d e r a re a lid a d e h istórica na sua in d iv id u a lid ad e viva e n o s se u s caracteres esp ecífico s. D ep o is de D ilthey, na co rren te do h isto ricism o alem ã o q u e co n tin u a a sua o bra, o C. p e rm a n e c e co m o o ó rg ão do c o n h e c im e n to h istó rico e, em g eral, do c o n h e c im e n to in ter­ p esso al, en q u a n to n ão suscetível de ex p licação cau sai. T o d av ia, so b re a p ró p ria n atu re za do C. n ão há aco rd o . R ickert e n te n d e p o r C. o a p re ­ en d e r "o sen tid o de u m o b jeto , isto é, a relação do p ró p rio o b jeto co m u m v a lo r d e te rm in a ­ do" (Die Grenzen dernaturwissenschaftlichen Begriffsbildung, 1896-1902). S im m el co n sid era o C. co m o algo q u e vise a re p ro d u zir a v id a p sí­ q u ica d e u m a o u tra p e rso n a lid a d e e, p o rta n to , co m o o ato de projeção m ed ia n te o qual o sujei­ to c o g n o sc e n te atrib u i u m esta d o re p re se n ta ti­ v o ou volitivo seu a u m a outra p erso n a lid ad e (DieProbleme der Geschíchtsphilosophie, 1892, p. 17). P or su a v ez, M ax W e b e r, em b o ra in sis­ tisse na diferença en tre ex p lic aç ão histórica e ex p lic aç ão cau sai, q u is p re e n c h e r ou d im in u ir o ab ism o q u e se estava fo rm a n d o en tre os dois p ro c e d im e n to s, afirm and o q u e a p ró p ria ex p li­ cação h istórica é cau sai, m as u m a ex p lic aç ão cau sai específica, q u e visa a re c o n h e c e r o n ex o p articu lar e sin g u lar en tre d e te rm in a d o s fe n ô ­ m en o s e n ão a su a d e p e n d ê n c ia de u m a lei u n iv ersal. "N ossa n e c e ss id a d e cau sai", escrev e ele, "p o d e e n c o n tra r na an álise d a atitu d e h u ­ m an a u m a satisfação q u a litativ a m en te d iferen ­ te, q u e im plica, ao m esm o te m p o , u m a e n to ­ n ação q u a litativ a m en te d iferen te do co n ce ito d e ra cio n alid ad e. Para a su a in te rp retaç ão , p o ­ d em o s p ro p o r-n o s, p elo m e n o s co m o fu n d a­ m en to , o o bjetivo , n ão só de to rn a r a atitu d e p e n e trá v e l e p o ssív e l em re la ç ã o ao n o sso sab er n om o ló g ico , co m o ta m b é m d e c o m p re e n ­ dê-la, isto é, d e sc o b rir u m m o tiv o co n c re to q u e p ossa ser revivido in terio rm en te e q u e v e ­

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COMPREENDER rificam os co m u m grau d iferente de precisão, s e g u n d o o m aterial d as fontes" (.Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre, 1951, p. 67). T odavia, o co n ceito de causalidade individual, em q u e W e b e r insistia, é p o u c o sólido, já que a cau sa, e n q u a n to aq u ilo q u e to rn a o efeito infa­ liv e lm en te p rev isív el, tem co m o p ró p rio efeito u m a re la ção n ec essária e co n sta n te , p o r isso e s se n c ia lm e n te u n ifo rm e e u n iv ersal. A exigên­ cia, ap re se n ta d a p o r W eber, de elim in ar ou di­ m in u ir o co n tra ste en tre ex p lic a ç ã o científica e c o m p re e n sã o h istó rica ou in te r-h u m an a, pôde ser satisfeita só d e p o is q u e a p ró p ria ciência a b a n d o n o u o c o n ce ito clássico de causalidade. E n trem e n tes, a ex ig ên cia de u m a técn ica cogn oscitiv a q u e fosse d iferen te da técn ica expli­ cativa e cau sai era freq ü e n tem e n te reconhecida p ela so cio lo g ia. Z n a n íec k i in v o cav a u m "coefi­ c ie n te h u m a n ístico " na p e sq u isa sociológica e re s s a lta v a a im p o rtâ n c ia d a ex p eriên cia v ica rian te co m o fo n te de d a d o s sociológicos (Method of Sociology, 1934, p. 167). Sorokin repu tava inaplicável o m éto d o causai de interpre­ ta çã o d o s fe n ô m e n o s cu ltu rais (Social and Cul­ tural Dynamic, 1937, p. 26). E M aclver, por su a v ez, re c o n h e c ia a in ap lica b ilid ad e da fór­ m ula ca u sai da m ecân ica clássica à conduta h u m a n a (Social Causatíon, 1942, p. 263). O s filósofos, p o r su a v ez , n ão en con tran do lu g ar p ara o C. en tre as ativ id ad es racionais q u e p are ciam m o n o p o liz a d o s p ela s técnicas da ex p licação causai, acab aram v in cu lan d o -o à vida em otiva. A ssim fizeram , p rin cip a lm e n te , Scheler e H eid eg g er, ao s q u ais se d ev em , co n tu d o , as m ais im p o rta n tes d e te rm in a ç õ e s da n o ção do C. Para S cheler, essa n o ç ã o serv e p ara fundar as re la çõ es h u m a n a s — q u e são , de resto , aque­ las p ela s q u ais o eu re c o n h e c e o o u tro eu — , n ão a p artir de u m a in ferência ou da projeção q u e o eu faça d e su a s e x p e riê n c ia s interiores no o u tro , m as a p artir d o s fe n ô m e n o s expres­ sivos. A ssim , S ch eler afirm a q u e "a existência d as e x p e riê n c ia s in te rio re s, d o s sentim entos ín tim o s d o s o u tro s, é-no s re v e la d a p elo s fenô­ m en o s d e e x p re ssã o : ou seja, n ão adquirim os co n sc iên c ia dela em d ec o rrên cia do raciocínio, m as de m o d o im e d iato , atrav és de um a 'per­ c e p ç ã o ' o rig in ária e prim itiva. P erceb em os o p u d o r de alg u ém no seu ru b o r, a alegria no seu riso" (Sympatbie, I, cap. II). P ortanto , não é v e rd a d e q u e c o n h e ç a m o s em p rim eiro lugar o co rp o d o s o u tro s e q u e só a p artir dele infi­ ramos a ex istên cia de o u tro s esp írito s. S ó o m éd ic o e o n atu ralista c o n h e c e m tão-som ente

COMPREENDER o corpo, p o rq u e ab stra em , artificialm en te, os fenôm enos de e x p re ssã o , q u e são a m an ifesta­ ção p rim ária e im ed iata d os o u tro s esp írito s, mas são esse s fe n ô m e n o s q u e estã o na b ase da co m p reen são em otiva. Esta, se g u n d o S cheler, deve ser d istin g u id a da fusão em o tiv a p o rq u e implica a alteridade d o s se n tim e n to s. P. ex., o sofrim ento do m eu p ró x im o e a m in h a c o m ­ preensão sim p ática são d ois fatos d ife re n te s e é ju stam en te essa d iferença q u e e sta b e le c e a possibilidade de c o m p re e n sã o : n ad a tem a v er com ela o fato de eu e o m eu v iz in h o p a d e c e r­ mos o m esm o m al. A s an álises de S ch eler c o n ­ tribuíram para fixar os seg u in tes p on to s: 1Q o C. não im plica a id e n tid a d e das p esso as en tre as quais o co rre a id e n tid a d e d o s e sta d o s de alm a ou dos sen tim e n to s; im p lica, an te s, a alteridade entre as p e sso a s e en tre os seu s re s p e c ­ tivos estados; 2Q a c o m p re e n sã o fu n d a-se na relação simbólica q u e ex iste e n tre as e x p e ­ riências in tern as e a su a ex p re ssã o : re la ç ã o q u e constitui u m a e sp écie de "gram ática u niversal", válida para to d a s as lin g u a g e n s e x p ressiv a s, e que fornece o critério ú ltim o da c o m p re e n sã o inter-hum ana. C om o S ch eler, H eid g g e r v in c u ­ la o fen ô m en o da c o m p re e n sã o s o b re tu d o à esfera em otiva, m as a c re sc en ta à an álise d esse fenôm eno u m a o b serv a çã o de im p o rtân cia fun­ dam ental, lig a n d o -o à n o ç ã o de p o ssib ilid ad e. H eidegger, co m efeito, c o n sid e ra a c o m p re e n ­ são essencial à ex istência h u m a n a (ao ser-ai), já que ela significa q u e a ex istên cia é, e sse n c ia l­ m ente, p o ssib ilid ad e de ser, ex istê n c ia p o s ­ sível. "U sam os fre q ü e n te m e n te a ex p re ssã o 'C. alguma coisa' no se n tid o de 'ser cap az de en c a ­ rar algum a coisa', 'ser cap az d e', 'p o d e r algum a coisa'... N a c o m p re e n sã o , está p o sto , esse n cia l­ m ente, o m o d o de ser do ser-aí e n q u a n to p u ­ der ser. O ser-aí n ão é u m a sim p les p re se n ç a que, ad icio n alm en te, p o ssu a o re q u isito de p o ­ der algo, m as, ao co n trá rio , é p rim a ria m en te u m ser possível". P o rta n to , "a c o m p re e n sã o tem em si a estru tu ra ex isten cial q u e n ó s c h a ­ m am os projeto" (Sein undZeit, § 31). C om o possibilidade e p ro jeto, a ex istê n c ia h u m a n a possui um a tran sp arên cia, a ex istên cia h u m a ­ na possui u m a tran sp arên cia para si m esm a, q ue H eidegger ch am a de visão e q u e é a p rim eira m anifestação d a c o m p re e n sã o . A in tu iç ão e o pensam ento são , p o r sua v ez, d ois d eriv a d o s distantes da p ró p ria c o m p re e n sã o (Ibid., § 31). Está b em claro q u e a referên cia do C. à v id a em ocional, feita p o r S ch eler e H eid e g g er, era motivada p elo fato de a v id a racio n al p are ce r-

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COMPREENSÃO2 lh es o c u p a d a p o r té cn ic as q u e p o u c o ou nad a tin h am q u e v e r co m o c o m p re e n d e r. O s re su l­ ta d o s o b tid o s p o r S ch eler e H eid eg g er, c o n tu ­ d o , são m u ito im p o rta n tes: os p rim eiro s n e g a ti­ v a m e n te , p e rm itin d o su b tra ir o C. à esfera do im e d iato e do in ex p rim ív el, e os s e g u n d o s p o ­ sitiv a m en te, p o rq u e v in cu lam o C . à n o ção de p o ssib ilid ad e. N a an álise de H eid eg g er, o C. n ão só foi g e n e ra liz a d o , p o rq u e se to rn o u ap li­ cável às co isas, além de às p e sso a s, co m o ta m ­ b ém , p o r isso m esm o , d eix o u d e ser a n ta g ô n i­ co ao c o n ce ito d e ex p lic aç ão . C o m p re e n sã o e ex p lic a ç ã o p o d e m ser id en tificad as p ela n o ç ão d e p o ssib ilid a d e e ser e n te n d id a s co m o d ec la­ ra çã o d a "p o ssib ilid ad e d e...", o n d e o q u e ficou p e n d e n te p o d e ser p re e n c h id o , n o s d iv ersos ca m p o s d e in d ag aç ão , p o r d iv ersas esp écies de p ro jeto s e de p rev isõ e s. M as essa a p ro x im a ­ ção en tre ex p lic a ç ã o e c o m p re e n sã o e essa sua u nificação no c o n c e ito de "p o ssib ilid ad e de..." eram s a n c io n a d a s p elo s p ró p rio s p ro g resso s d as ciên cias n atu rais, q u e a b a n d o n a v a m a n o ­ ção clássica d e ca u sa lid a d e e, p o rtan to , se d e s ­ ligavam da técn ica ex p licativ a cau sai. A física relativista e a teo ria q u â n tica d av am o p asso d ecisivo para a elim in ação da an títese en tre ex ­ p licação e c o m p re e n sã o . C om o n ota C arnap, na m ec ân ic a q u â n tica "C. u m a e x p ressã o , um e n u n c ia d o , u m a te o ria significa a capacidade de usá-la p ara a d escriçã o de fatos co n h e cid o s ou p ara a p re v isã o de fatos n o v o s" (Foundations ofLogic andMathematics, 1939, § 25). A "cap acid ad e de" é, p o rtan to , o q u e ex p rim e o sign ificad o da c o m p re e n sã o na p ró p ria física. M as a p o ssib ilid a d e da p rev isão p ro v áv el ta m ­ b ém é tu d o aq u ilo a q u e se re d u z hoje a ex p li­ cação científica (v. EXPLICAÇÃO). D esse m o do , a d iferença rad ical q u e p arecia so lid a m e n te es­ ta b e le c id a pela m eto d o lo g ia científica do séc. XIX, en tre ciên cia do esp írito e ciên cia da n a­ tu reza, acab o u p o r d e sa p a re c e r. O q u e esses d ois g ru p o s d e d iscip lin as p ro c u ra m fazer, em re la ção a se u s re sp ec tiv o s o bjeto s, é no fu n do a m esm a coisa: d e te rm in a r as p o ssib ilid ad es de d escre v e r ou de an te cip a r (projeto, u so , frui­ ção) q u e se u s o b jeto s co m p o rtam .

COMPREENSÃO1 (in. Understanding- fr. Compréhensíon; ai. Verstehen-, it. Comprensione). O ato ou a c a p a c id a d e de compreen­ der (v.). COMPREENSÃO2 (in. Comprehension; fr. Compréhension; ai. Inhalt; it. Comprensione). 1. A lógica de P ort-R oyal in tro d u ziu a d istin ção en tre C. e e x te n sã o do co n ce ito : d istin ção gros-

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COMPROMISSO

50 modo idêntica à que será expressa por Stuart Mill com a díade conotação-denotação ou pela lógica moderna com a díade intensão-extensão. Dizia Arnauld: "Nas idéias universais, é im­ portante distinguir bem duas coisas, a C. e a ex­ tensão. Chamo de C. da idéia os atributos que ela inclui em si e que não podem ser retirados sem destruí-la; assim, a C. da idéia de triângulo contém extensão, figura, três linhas, três ângu­ los e a igualdade desses três ângulos a dois re­ tos, etc. Chamo de extensão da idéia os sujeitos aos quais essa idéia convém que também se chamam inferiores de um termo geral que, em relação a eles, é chamado superior; assim, a idéia do triângulo, em geral, estende-se a todas as diversas espécies dos triângulos" (Log, I, 6). Essa distinção encontrava alguns preceden­ tes na lógica medieval, mas foi expressa de modo aproximado só a partir do séc. XVI (p. ex., por CAJETANUS, In Porphyrii Praed, ed. 1579,1, 2, p. 37; cf. HAMILTON, Lectureson Logic, I, 1866, p. 141). À própria distinção vinculavase a determinação da relação inversa que há entre C. e extensão assim definidas-, à medida que a C. se empobrece, isto é, torna-se mais geral, a extensão se enriquece, isto é, o con­ ceito se aplica a mais coisas; e vice-versa. Es­ sas distinções e observações foram retomadas pela lógica, especialmente alemã, do séc. XIX (cf., p. ex., LOTZE, Logik, 1843, § 15), permane­ ceram constantes e por vezes foram expressas mediante o par sinônimo conotação-denotação, especialmente por escritores ingleses. À parte a tentativa de distinguir C. de conotação (v.) como esfera de todas as notas possíveis, além das expressamente conotadas pela definição, a noção de C. permaneceu constante na lógica do séc. XIX. 2. Às vezes, na lógica contemporânea, a C. é assumida como análoga da denotação ou ex­ tensão, e não da conotação ou intensão. Assim, Lewis define a C. de um termo como "a classifi­ cação de todas as coisas coerentemente pensáveis, às quais o termo se aplique correta­ mente", onde por "coerentemente pensáveis" se entendem todas as coisas cuja asserção da existência não implique, explícita ou implicita­ mente, uma contradição. Nesse significado, o termo se distinguiria de denotação ou extensão porque essa é a classe de todas as coisas reais ou existentes às quais o termo se aplica corre­ tamente. A denotação estaria, portanto, incluí­ da na C; mas não vice-versa. A C. de "qua­ drado" inclui não só os quadrados existentes

(que são denotados), mas todos os quadrados possíveis ou imagináveis, salvo os redondos (Analysis ofKnowledge and Valuation, 1950, pp. 39-41). COMPROMETIMENTO. V. COMPROMISSO. COMPROMISSO (in. Commitment; fr. Engagement; ai. Verbindlíchkeit; it. Impegnó). Es­ colha fundamental que dirija a conduta ou o procedimento de investigação num campo qualquer. Essa noção foi empregada pelos lógi­ cos para indicar a escolha preliminar da espé­ cie de entidade a que se referem os cálculos ló­ gicos, ou seja, das variáveis que se repetem nesses cálculos. Diz Quine: "Comprometemonos com uma ontologia que contém números quando dizemos que há números primos maio­ res que um milhão; comprometemo-nos com uma ontologia que contém centauros quando dizemos que existem centauros; e comprometemo-nos com uma ontologia que contém Pégaso quando dizemos que Pégaso existe" (From a Logical Point of View, I). Mesmo ob­ jetando contra o uso do termo "ontologia", Carnap manteve esse conceito: "A escolha de certa estrutura lingüística e, em particular, a decisão de usar certos tipos de variáveis são decisões práticas tanto quanto a escolha de um instrumento; dependem principalmente dos ob­ jetivos para os quais se pretende usar o instru­ mento — nesse caso, a linguagem — e de suas propriedades" {Meaning andNecessity, § 10). Um compromisso nesse sentido é a base de qualquer determinação do significado de exis­ tência (v.): a diferença entre as várias corren­ tes da matemática (v.) pode ser reduzida à diferença entre os compromissos ontológicos que lhes servem de fundamento. Na filosofia existencialista, esse termo foi usado para indicar o fato de que qualquer esclarecimento que o homem possa obter so­ bre as determinações da existência é um com­ promisso (uma decisão ou uma escolha) com tal determinação. Nesse sentido, Heidegger dis­ se que o ser do homem é aquilo em que o ho­ mem está está sempre envolvido, que está sempre conclamando o homem para uma decisão ou para uma escolha (Sein und Zeit, § 9). Jaspers contrapôs ao "descompromisso" da arte pe­ rante a vida real o compromisso da filosofia, que atua dentro da vida {Phil, I, p. 338). Sartre viu no engajamento o nascimento do projeto fun­ damental que é a expressão da liberdade hu­ mana: "Meu projeto último e inicial é sempre o esboço de uma solução do problema do ser.

COM PREENSÃO2

COMUM, SENSO

Mas essa solução não é primeiro conhecida e depois realizada: nós somos essa solução, fazemo-la existir com o nosso engajamento e só podemos atingi-la vivendo-a" (L'être et le néant, p. 540). COMUM, SENSO. V. SENSO COMUM.

COMUNICAÇÃO (in. Communication; fr. Communícation, ai. Kommunikation; it. Comunícazione). Filósofos e sociólogos utilizam hoje esse termo para designar o caráter especí­ fico das relações humanas que são ou podem ser relações de participação recíproca ou de compreensão. Portanto, esse termo vem a ser sinônimo de "coexistência" ou de "vida com os outros" e indica o conjunto dos modos específi­ cos que a coexistência humana pode assumir, contanto que se trate de modos "humanos", isto é, nos quais reste certa possibilidade de participação e de compreensão. Nesse sentido, a C. nada tem em comum com a coordenação e com a unidade. As peças de uma máquina, observou Dewey, estão estreitamente coorde­ nadas e formam uma unidade, mas não for­ mam uma comunidade. Os homens formam uma comunidade porque se comunicam, isto é, porque podem participar reciprocamente dos seus modos de ser, que assim adquirem novos e imprevisíveis significados. Essa participação diz que uma relação de C. não é um simples contato físico ou um embate de forças. A rela­ ção entre o predador e sua presa, p. ex., não é uma relação de C, ainda que às vezes isso pos­ sa ocorrer entre os homens. A comunicação en­ quanto característica específica das relações hu­ manas delimita a esfera dessas relações àque­ las em que pode estar presente certo grau de livre participação. O destaque do conceito de C. na filosofia contemporânea deve-se: le ao abandono da noção de Autoconsciência infi­ nita, Espírito Absoluto ou Superalma: noção que, implicando a identidade de todos os homens, torna, obviamente, inútil o próprio conceito de C. inter-humana; 2S ao reconhecimento de que as relações inter-humanas implicam a alteridade entre os homens e são relações possí­ veis-, 3e ao reconhecimento de que tais relações não se acrescentam, num segundo momento, à realidade já constituída das pessoas, mas en­ tram a constituí-la como tal. Nesses termos, o conceito de C. faz parte de filosofias díspares. Segundo Heidegger, o conceito de C. deve ser entendido "em sentido ontologicamente lato", isto é, como "C. existen­ cial". "Nessa última constitui-se a articulação do

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COMUNICAÇÃO

ser-com que compreende. Ela realiza a partilha da situação emotiva comum e da compreensão do ser-com. C. não é a transferência de expe­ riências vividas (não importa quais, p. ex., opi­ niões e desejos) do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A co-presença está já essencialmente revelada na situação emotiva comum e na compreensão comum" (Sein und Zeit, § 34). Em outros termos, para Heidegger, C. é já coexistência porque a co-participação emotiva e a compreensão dos homens entre si fazem parte da própria realidade do homem, o ser do ser-aí. Jaspers, que está substancialmente de acordo com Heidegger, a partir daí passa a opor-se às ciências empíricas (psicologia, an­ tropologia, sociologia) que pretendem analisar as relações de comunicação. Segundo Jaspers, o defeito delas é que devem limitar-se à consideração das relações humanas e não das possíveis, ao passo que a C. é, precisamen­ te, possibilidade de relações. Nesse sentido, só pode ser esclarecida pela filosofia (Phil., II, cap. III). Dewey, ao contrário, que comparti­ lha com Heidegger e Jaspers o ponto de vista de que a C. constitui essencialmente a realida­ de humana, considera-a, como uma forma espe­ cial de ação recíproca da natureza e acredita, portanto, que pode e deve ser estudada pela pesquisa empírica (Experience and Nature, cap. V). Se na filosofia oitocentista, com o predomí­ nio das concepções absolutistas (o próprio positivismo falava da Humanidade como de um todo), eliminava-se a noção de C, na fi­ losofia dos sécs. XVII e XVIII essa noção fora ela­ borada, mas para responder a um problema di­ ferente: o da "C. das substâncias", isto é, da substância alma com a substância corpo, e reci­ procamente, problema este nascido com o cartesianismo, que distinguira pela primeira vez, de modo nítido, as duas espécies de subs­ tância. O próprio Descartes admitira como váli­ da a noção corrente de ação recíproca entre as duas substâncias, que, na sua opinião, tocavamse na glândula pineal (Pass. de 1'âme, I, 32). Por outro lado, os ocasionalistas consideraram impossível a ação de uma substância finita so­ bre a outra, porque nenhuma substância finita pode agir, isto é, ser causa; e assim julgaram que Deus mesmo intervém para estabelecer a relação entre a alma e o corpo, entre os vários corpos ou entre as várias almas, aproveitando a ocasião que se oferece com a mudança ocorrida numa substância para produzir mudanças nas

COMUNIDADE

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o u tras su b stân cia s. Era essa a te o ria d as cau sas o ca sio n ais, su ste n ta d a , en tre o u tro s, p o r M aleb ra n c h e (Recherche de Ia vérité, III, II, 3). L eibniz co n sid ero u a prim eira teoria im possível e a se g u n d a , m iraculo sa; e n te n d e u a C. co m o harmonia preestabelecida (v.), e s te n d e n d o -a até e n te n d e r a re la ção en tre to d as as p a rte s do u n iv e rso , isto é, en tre to d a s as m ô n a d a s q u e o co m p õ e m : a h arm o n ia é p re e sta b e le c id a por D eu s de tal m o d o q u e a cad a e sta d o de u m a m ô n a d a c o rre sp o n d e u m esta d o d as o u tras m ôn ad as (Op., ed. G erh a rd t, IV, p p . 500-501). O b v iam en te, a teoria de Leibniz n ào é a so lu ção do p ro b lem a d a C; tem , de re sto , o o bjetivo de to rn ar inútil a p ró pria C , asse g u ra n d o a relação p re o rd e n a d a d as m ô n a d a s en tre si. O p ró p rio L eibniz n ota q u e su a d o u trin a faz da alm a u m a e sp écie de m áq u in a im aterial (Ihid, p. 548). E sse traço rev ela q u a n to essa d o u trin a está d is­ ta n te d a n o ç ã o c o n te m p o râ n e a de C , q u e , co m o d issem o s, n u n ca é au to m ática e n ão p o d e sub sistir en tre os a u tô m a to s ou en tre as p eç as de u m au tô m ato . COMUNIDADE (in. Community, fr. Communauté, ai. Gemeinschaft; it. Comunitã). 1. K ant deu esse n o m e à terceira catego ria da re ­ lação, a da ação recíp ro ca, e ta m b é m à terceira analogia da experiência (ou princípio da C.) as­ sim expressa: "Todas as substâncias, na m edida em q u e p o d em ser p erc eb id as no esp aço co m o sim ultâneas, estão en tre si em ação recíp ro ca u niversal." O b serv a v a a re sp eito : "A p alavra Gemeinschaft tem d u p lo significado, p o d e n d o indicar tanto communio q u a n to commercium. A qui u tilizam os o se g u n d o sen tid o , co m o c o ­ m u n h ão dinâm ica sem a qual n em a co m u n h ão esp acial (communio spatii) p o d eria ser c o n h e ­ cida em p iricam en te" (Crít. R. Pura, A nalítica dos P rincípios, 3a analogia). N essa ap licação, esse term o n ão tev e êxito. 2. C o n tu d o , a p artir do R o m an tism o (esp. S c h le ie rm a c h e r), esse te rm o foi u sa d o p ara in ­ dicar a form a da v id a social ca racterizad a p o r u m v ín cu lo o rg ân ico , intrínseco e perfeito entre os seu s m em b ro s. N esse se n tid o , C. foi co n tra ­ p osta a s o c ie d a d e n u m a o bra d e FERDINANDO TÕNNIES, C. e Sociedade, p u b licad a em 1887. "T udo o q u e é confiança, in tim id ad e e v id a ex ­ c lu s iv a m e n te em c o n ju n to ", d izia T õ n n ie s , "com p reen de-se co m o v id a em co m u n id a d e . A s o c ie d a d e é o q u e é p ú b lico , é o m u n d o ; ao c o n trá rio , e n c o n tra m o -n o s em c o m u n id a d e co m as p esso as q u e n o s são caras d e sd e o nascim en to , ligados a elas no b em e no m al. N a

COMUNISMO so c ie d a d e , e n tra-se co m o em terra estran h a. C ostu m a-se p rev en ir o ad o lesce n te co n tra a m á so c ie d a d e , m as a ex p re ssã o 'm á C so a co m o co n tradição" (Gemeinschaftund Gesellschaft, I, 1). A ssim e x p re sso , esse c o n ce ito in clui ó bv ias c o n o ta ç õ e s d e valor, p ela s q u ais se p resta p o u ­ co ao u so objetivo, p o is p a re c e claro q u e n ão ex iste n e n h u m a C , p u ra e n e n h u m a s o c ie d a d e p u ra, e q u e a n e c e ssid a d e de fazer u m a d istin ­ çã o n esse sen tid o n ão é su g erid a p ela o b se r­ v aç ão , m as p ela asp iração a u m ideal. P ortanto , ao ser u tiliza d o p e lo s so c ió lo g o s p o ste rio re s (en tre os q u ais S im m el, C ooley, W eb er, D urk h eim , e o u tro s), esse sign ificad o foi so fren d o tran sfo rm açõ es, até assu m ir o u so co rren te na so cio lo g ia c o n te m p o râ n e a , de d istin çã o en tre re la çõ es sociais de tip o local e re la çõ es d e tip o cosmopolita, d istin çã o esta p u ra m e n te d escriti­ v a en tre c o m p o rta m e n to s v in c u la d o s à C. re s­ trita em q u e se v iv e e c o m p o rta m e n to s o rie n ­ ta d o s ou a b e rto s p ara u m a s o c ie d a d e m ais am p la (R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, p p. 393 ss.). COMUNISMO (in. Communism- fr. Communisme, ai. Kommunismus; it. Comunismo). Id eo lo g ia p olítica q u e tem co m o p ro g ram a o Manifesto Comunista p u b lic a d o p o r M arx e E ng els em 1847, d e se n v o lv id o n as o b ras de M arx e E ngels, b em co m o de Lênin e Stálin. Tal id e o lo g ia p o d e ser re su m id a n o s s e g u in te s p o n to s fu n d am en tais: Ia a p e rso n a lid a d e h u m a ­ na d e p e n d e da so c ie d a d e h isto ric am en te d ete r­ m in ad a a q u e p e rte n c e , e n ad a é fora e in d e ­ p e n d e n te m e n te d a p ró p ria s o c ie d a d e ; 2Q a estru tu ra d e u m a so c ie d a d e h isto ric am en te d e ­ te rm in ad a d e p e n d e das relaçõ es de p ro d u çã o e de tra b a lh o p ró p ria s d essa so c ie d a d e , q u e d e ­ te rm in a m to d a s as su a s m a n ifestaç õ es: m o ­ ra lid a d e , relig ião , filosofia, e tc , além d as for­ m as de su a o rg a n iz a ç ã o política. E sses dois p o n to s co n stitu em a d o u trin a do materialismo histórico (v.); 3a a luta de classes tem caráter p e rm a n e n te e n e c e ssá rio em to d a e q u a lq u e r s o c ie d a d e cap italista, isto é, em q u a lq u e r so c ie­ d ad e cujos m eios de p ro d u ç ã o sejam p ro p rie d a ­ d e p riv a d a ; 4 S d e p o is de a lc a n ç a r o p o n to m áx im o d e c o n c e n tra ç ã o de riq u e z a em p o u ­ cas m ão s e d e e m p o b re c im e n to e n iv ela m en to d e to d o s os tra b a lh a d o re s, a s o c ie d a d e ca p i­ talista passa, necessária e inevitavelm ente, para a s o c ie d a d e socialista, q u e p o ssu i e ex e rce d ire ­ ta m e n te os m eio s d e p ro d u ç ã o e é, p o r isso, sem classes; 5 S ex iste u m p e río d o de tran sição en tre a s o c ie d a d e cap italista e a s o c ie d a d e c o ­

COMUNS, NOÇÕES

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CONCAUSA

munista, durante o qual o proletariado assumi­ como unidade fileiras de números (como se­ rá o poder e o exercerá, assim como os capita­ riam, p. ex., os inscritos nos quadrados de um listas fizeram, em seu próprio proveito. Esse tabuleiro de xadrez). será o período da ditadura do proletariado. CONAÇÃO (lat. Conatus). Indica-se com esse O C. russo deu destaque sobretudo ao últi­ nome, no Renascimento, a hormé estóica (DIÓG. mo desses aspectos, que, nas obras de Marx e L. VII, 85), isto é, o instinto(yò ou a tendência de Engels, aparecia como secundário. E, dando- todo ser à própria conservação. Esse conceito lhe destaque, transformou-o no sentido de ganhou forma clássica com Spinoza, para quem entender a ditadura do proletariado como dita­ "o esforço de conservar-se é a própria essência dura do partido comunista, confiando ao pró­ da coisa" (Et, IV, 22, cor.). "Recebe o nome de prio partido a função de vanguarda do prole­ vontade quando se refere só à mente; quando se tariado. Desse modo, o partido Atorna-se o refere à mente e ao corpo ao mesmo tempo cha­ instrumento fundamental para a realização da ma-se apetite, que, por isso, é a própria essência sociedade nova e pretende comandar, contro­ do homem" (Ibid, III, 9, scol.). Viço empregava lar e dirigir qualquer ação que tenha essa finali­ essa palavra no mesmo sentido: "A natureza co­ dade. Essa preeminência do partido, já teo­ meçou a existir por um ato de C; em outros rizada por Lênin, foi levada ao extremo por termos, a C. é a natureza (como também diz a Stálin, que afirmou a necessidade da "parti- Escolástica) infieri, prestes a chegar à existên­ darizaçâo" da ciência, da arte, da filosofia e, em cia" (De antiquíssima italorum sapientia, 4, geral, de todas as atividades intelectuais, o que § 1). Hobbes deu um novo conceito desse ter­ significa simplesmente subordinar essas ativi­ mo: entendeu por C. o movimento instantâneo, dades aos interesses do partido, na forma isto é, "o movimento num espaço e num tempo como são interpretadas e impostas por seus menores do que qualquer espaço ou tempo da­ dirigentes. dos" (De corp, 15, § 2). Leibniz, numa primeira fase, entendeu C. no mesmo sentido: "A conação COMUNS, NOÇÕES (gr. KOÍVOU evvoiou; (conatus) está para o movimento como ponto lat. Notiones communes). Os estóicos denomi­ está para o espaço, isto é, como a unidade para o nam com essa expressão os conceitos univer­ é o início ou o fim do movimento" sais ou antecipações (v.) que se formam no ho­ infinito: 1671, Op., ed. Gerhardt, mem naturalmente, isto é, não como produtos (Hypothesisphysicanova, p. 229). Mas, depois, identificou a C. com a da instrução (AÉCIO, Plac, IV, 11). Essa ex­ IV, isto é, com a energia à qual ele redu­ pressão foi utilizada em Elementos, de Euclides, forçaa ativa, própria matéria: "A força ativa, que também para designar os princípios evidentes, que de­ ziu ser chamada simplesmente de força, não pois foram chamados de axiomas (v. AXIOMA). costuma deve ser como a simples potência COMUTATIVO (lat. Commutativus; in. vulgar do concebida aprendizado, isto é, como uma recep­ Commutative, fr. Commutatif, ai. le Auglei- tividade de ação, mas implica conatus, isto é, chend; 2°Kommutatív, it. Commutativo). 1. Os uma tendência à ação, de sorteumque, se não hou­ escolásticos chamaram de C, pela igualdade ver impedimento, o resultado será ação" das coisas trocadas (commutationes), a espécie (Mathematische Schriften, ed. Gerhardt,a VI, p. de justiça que Aristóteles chamava de "correti­ 100). O mesmo conceito acha-se em Wolff (Cosm., va" (xò 5iop0a)TiK0v ôiKortov): ao contrário da justiça distributiva, que dá a cada um segundo % 149) (v. ESFORÇO). seus méritos, serve para equiparar as vantagens CONATURAT IDADE (in. Connaturè). e as desvantagens em todas as relações de Substantivo criado por Spencer por analogia permuta entre os homens, tanto voluntárias com os adjetivos "conato" e "conatural". Se­ quanto involuntárias (Et. nic, V, 4, 1131 b 25) gundo Spencer (Psychology, II, § 289), uma das (v. JUSTIÇA). três idéias (ao lado de coextensão e coexistên­ 2. Denomina-se propriedade C. ou lei C. o cia) implícitas no raciocínio quantitativo, mais axioma (ou postulado) pelo qual x ou y = y ou precisamente a da identidade das coisas quanto x. Essa lei serve de fundamento da soma e da à espécie, ao passo que coextensão significa iden­ multiplicação em aritmética e da teoria dos nú­ tidade na quantidade de espaço ocupada e co­ meros reais. A teoria das matrizes, do inglês existência significa identidade no tempo de apre­ Arthur Cayley (1821-95), foi chamada de álge­ sentação à consciência. bra "não C", e utilizada pela mecânica quânCONCAUSA (gr. owaiTÍa). Platão indicou tica, porque não obedece à lei C. e considera com esse termo a causa natural que concorre

CONCEITO

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co m a cau sa id eal na fo rm ação d as co isas do m u n d o (Tini, 68 e). CONCEITO (gr. Xóyoç, lat. Conceptus; in. Concept; fr. Concept; ai. Begriff, it. Conceito). E m g eral, to d o p ro c e sso q u e to rn e p o ssív el a d escriçã o , a classificação e a p rev isão d o s o b je­ to s co g n o sc ív eis. A ssim e n te n d id o , esse te rm o tem significado g en era líssim o e p o d e incluir q u a lq u e r e sp é c ie d e sinal ou p ro c e d im e n to s e ­ m ân tico , seja q u al for o o b jeto a q u e se refere, ab strato ou c o n cre to , p ró x im o ou d istan te , u n i­ v ersal ou in d iv id u al, etc. P o d e -se ter u m C. de m esa ta n to q u a n to do n ú m e ro 3, d e h o m e m ta n to q u a n to de D eu s, d e g ê n e ro e e sp é c ie (os c h a m a d o s universais [v.]) ta n to q u a n to de u m a re a lid a d e in d iv id u al, co m o p. ex. d e u m p e río ­ do h istórico ou d e u m a in stitu ição h istó rica (o "R enascim en to " ou o "F eud alism o "). E m b o ra o C. seja n o rm a lm e n te in d ic a d o p o r u m n o m e n ão é o n o m e , já q u e d ife re n te s n o m e s p o d e m ex p rim ir o m esm o C. ou d iferen tes co n ce ito s p od em ser indicados, p o r equívoco, p elo m esm o n om e. O C , além disso, não é u m elem en to sim ­ ples ou indivisível, m as p o d e ser co n stitu íd o p o r u m c o n ju n to d e té c n ic a s s im b ó lic a s e x tr e ­ m am en te co m p lex as, co m o é o caso das teorias científicas q u e ta m b é m p o d e m ser ch a m a d as de C. (o C. da rela tiv id ad e, o C. de e v o lu çã o , e tc ). O C. ta m p o u c o se refere n ec essaria m en te a co i­ sas ou fatos reais, já q u e p o d e h av er C. de co isas in ex iste n tes ou p assa d a s, cuja ex istê n ­ cia n ão é verificável n em tem u m se n tid o e s p e ­ cífico. Enfim, o aleg ad o caráter de universali­ dade subjetiva ou v a lid a d e in tersu b jetiv a do C. na re alid ad e é sim p lesm en te a su a comunicabilidade de sig n o lin g ü ístico : a fu n ção p rim eira e fu n d a m en tal do C . é a m esm a da lin g u ag em , isto é, a c o m u n ica ção . A n o ç ã o de C. dá o rig em a d o is p ro b le m a s fu n d am en tais: u m s o b re a natureza do C. e o u tro so b re a função do C. E sses d ois p ro b le ­ m as p o d e m co in cidir, m as n ão co in cid e m n e ­ ce ssariam e n te. A) O p ro b lem a da n atu re za do C. re ce b e u d u as so lu ç õ e s fu n d a m en tais: Ia o C . é a essên­ cia d as co isas, m ais p re c isa m e n te a su a e ssê n ­ cia necessária, p ela q u al n ão p o d e m ser de m o d o d iferen te d a q u ilo q u e são; 2- o C . é um

signo.

P A co n ce p ç ão do C. co m o essência p erten ce ao p e río d o clássico da filosofia g reg a, em q u e o C . é assu m id o co m o o q u e se su b tra i à d i­ v e rs id a d e e à m u d a n ç a de p o n to s de v ista ou

CONCEITO d e o p in iõ e s, p o rq u e se refere às características q u e , s e n d o co n stitu tiv as do p ró p rio o b jeto , n ão são a lte ra d a s p ela m u d a n ç a d e p e rsp ectiv a. N o s p rim ó rd io s da filosofia g reg a, o C. a p a re ­ ceu co m o o te rm o co n clu siv o de u m a in d ag a­ ção , p re sc in d in d o , n a m ed id a do p o ssív el, da m u ta b ilid a d e das a p a rê n c ia s e v isa n d o àq u ilo q u e o o b jeto é "realm en te", isto é, à su a "subs­ tância" ou "essência". P ara os g re g o s, essa b u s ­ ca p a re c e u ser a tarefa p ró p ria do h o m e m e n ­ q u a n to anim al racional, isto é, tarefa p ró pria da razão ; co m efeito, C . e ra z ã o são d esig n a d o s p elo s g reg o s co m o m esm o te rm o , logos. A ris­ tó te le s atrib u i a S ó crates o m érito de h av er d e s­ c o b e rto "o ra cio c ín io in d u tiv o e a d efin ição do u n iv ersal, d u a s co isas q u e se referem ao p rin cí­ p io da ciência" (Mel, XIII, 4 ,1 .0 7 8 b ). E sse m e s­ m o m érito é atrib u íd o a S ócrates p o r X en o fo n te (Mem, IV, 6, 1): S ó c ra tes m o stro u co m o o ra cio c ín io in d u tiv o leva à d efin ição do C ; e o C. ex p rim e a essê n cia ou a n a tu re z a de um a coisa, o q u e a coisa v e rd a d e ira m e n te é. P latão faz do u n iv ersal so c rático a p ró p ria re alid ad e. O b e lo , o b em , o ju s to são substâncias, isto é, re a lid a d e s no se n tid o forte do te rm o , re alid a­ d es ab so lu ta s. P latão em p re g a os m esm o s te r­ m o s (sub stân cia, e sp écie, form a ou sim p les­ m e n te en tes) p ara in d icar as re a lid a d e s ú ltim as co m o "em si m esm as" e co m o são "em nós" (isto é, co m o C ). A m e n te h u m a n a c o n tém "a v e rd a d e d os en tes" (Men, 86 a-b); ela en c o n tra já co m o su a s as substâncias q u e co n stitu em a estru tu ra fu n d a m en tal da re a lid a d e (Fed., 76 d-e). A ristóteles, n esse p o n to , só faz rep ro d u zir e articu lar n u m a d o u trin a b e m m ais co m p lex a o p o n to de vista d e P latão . O C. (logos) é o q ue circ u n sc re v e ou d efine a su b stân cia ou a e ssê n ­ cia n ecessária de u m a coisa (Dean., II, 1, 412 b 16); p o r isso, ele é in d e p e n d e n te do g era r-se e c o rro m p e r-se d as co isas e n ão p o d e ser p ro ­ d u zid o ou d estru íd o p o r tais p ro cesso s (Mel, VII, 15,1.039 b 23). E m o u tro s te rm o s, p ara A ristó te­ les, o C. é id ên tico à su b stân cia , q u e é a estru ­ tu ra n ecessária do ser, aq u ilo p elo q u al to d o ser n ão p o d e ser d iferen te do q u e é (v. SUBS­ TÂNCIA). E ssas d ete rm in a çõ es são típicas da c o n ­ c e p ç ã o do C . co m o essên cia. C om re la ção a elas, o caráter da u n iv e rsa lid a d e a p a re c e co m o s e c u n d á rio e d eriv a d o : p o r u n iv e rsa l, d iz A ris­ tó te le s, e n te n d o "o q u e é in e re n te ao sujeito em q u a lq u e r caso e p o r si, n a m e d id a em q u e u m sujeito é o q u e é" (An. post., I, 4, 73 b 25 ss.). O ra, "o q u e é in e re n te ao sujeito em q u a l­ q u e r caso e p o r si, etc." n ad a m ais é do q u e a

CONCEITO essência n ec essária do p ró p rio sujeito, aq u ilo que ele n ão p o d e n ão ser; de so rte q u e, p ara A ristóteles, a u n iv e rsa lid a d e é a su b sta n c ia lidade ou n e c e ss id a d e do co n ce ito . P or isso, A ristóteles diz q u e p o d e h av er ta m b é m C. de indivíduo (do sínolon, ou co m p o sto de m atéria e form a), m as n ão do in d iv íd u o c o n sid e ra d o em sua m atéria, q u e é in d e te rm in a d a , lo g o indefinível, e q u e , p. ex., o C. d e h o m e m é a alma {Mel, VII, 11, 1.037 a 26); d istin gu e C. co ­ m uns de C. p ró p rio s (Dean., II, 3, 414 b 25) e fala de "C. m ateriais", tais co m o as e m o ç õ e s, que são definidas p o r m eio d o s m o v im e n to s do corpo q u e as su scitam Qbid, I, 1, 403 a 25). N o âm b ito d essa id en tificação do C. co m a essência, n ão co n stitu i in o v a çã o d ecisiva d izer que o C. d eriva d as s e n sa ç õ e s, co m o o faz Epicuro, já q u e essa d e riv a ç ã o , p e lo caráter necessariam ente v erídico das sen saçõ es, g aran te a realidade do C. (DiÓG. L, X , 32). P or o u tro lado, a q u erela m ed ie v a l s o b re os universais (v.) — p or essa p alav ra e n te n d e m -se os C. de gênero e de esp écie — na re alid ad e é a d isp u ta entre as d uas c o n c e p ç õ e s fu n d a m en tais do C: a p latô n ico -aristo télica e a estó ica; o re a lis­ m o rep resen ta a p rim eira d essa s c o n c e p ç õ e s e o nom inalism o, a se g u n d a . N ão cau sa estra­ nheza o fato de q u e a E scolástica, q u e , do p o n ­ to de vista ló g ico e g n o sio ló g ic o , n asceu e desenvolveu-se so b o sig n o do n e o p la to n ism o agostiniano e do aristotelism o, te n h a esco lh id o p re d o m in a n te m e n te a s o lu ç ã o re a lista do problema dos universais, afirm ando a realidade do C. com o elem e n to co n stitu tiv o ou essen cial da própria realid ad e. S. T o m á s diz: "C om o to d o conhecim ento é p erfeito na m ed id a em q u e há sem elhança entre o co n h e c e d o r e o co n h e cid o , é preciso q u e no sen tid o haja a se m e lh a n ç a da coisa sensível q u a n to ao s se u s ac id en te s, m as que no intelecto haja se m e lh a n ç a da coisa e n ­ tendida quanto à sua essência" (Contra Gent, IV, 11). O C. "p en etra no in terio r da coisa" (Ibid, IV, 11), co lh e a essê n cia ou a su b stân cia dela, já que n ão é s e n ã o essa su b stân cia abs­ trata da própria coisa. A través da in terp retação da substância aristo télica, co m o essê n cia n e ­ cessária, D un s Scot reafirm a a m esm a tese: o C. tem por objeto u m a "natureza com um ", q ue é o quod quiderat esse de A ristó teles. Ela "não é tão universal q u a n to o C , n em tão in d iv idu al quanto a coisa, m as está na b a se de u m e de outra"(Oo. O x, II, d. 3, q. 1, n. 7). E sse re alis­ m o não sofre alteraçõ es im p o rta n tes n em m e s­ m o na filosofia m o d e rn a. A id e n tid a d e en tre C.

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CONCEITO e re a lid a d e , ta lv ez p re ssu p o sta p o r D escartes, foi ex plicitada p o r S pinoza: "O círculo existente n a n atu re za e a idéia do círculo ex isten te, q u e ta m b é m está em D eu s, são u m a só e a m esm a coisa, q u e se m an ifesta p o r d iv erso s atrib u to s" (Et, II, 7, sco l.). U m re alism o do C , lim itado to d av ia à re a lid a d e fe n o m ên ic a (q u e é, de re s ­ to , a ú n ica acessível ao h o m e m ), é a p ró p ria d o u trin a de K ant. D e fato, se os C. em p írico s se referem às co isas só m e d ia n te u m a s e n sa ­ ção , os C. p u ro s ou categorias co n stitu em as p ró p rias coisas e n q u a n to p erceb id as, isto é, ap a­ re n te s na ex p eriên cia. O s C. p u ro s ou c a te g o ­ rias são , co m efeito, ao m esm o te m p o , "form as do in telecto " e "co n d ição d o s o bjeto s fen o m ên icos". C o n stitu em os p ró p rio s o b jeto s feno m ên ic o s, isto é, os o b jeto s de to d a ex p eriên cia p o ssív el (Crít. R. Pura, A nalítica d os c o n c e i­ to s, § 10). A d o u trin a fu n d a m en tal do k an tism o é, p re c isa m e n te , o caráter constitutivo d o s C. p u ro s, caráter no q ual se fu n da o p ró p rio ca rá­ te r representativo d os C. em p írico s (ibid., § 16, n o ta). S em d ú v id a, p ara K ant o C. n ã o é to d a a re alid ad e e n ão é criador da realid ad e: constitui a o rd em necessária, p ela q ual a realid ad e se re ­ v ela à in d a g a ç ã o científica co m o su b m e tid a a leis im u táveis. M as ju sta m e n te p o r isso co n sti­ tu i a estru tu ra ó ssea, ou a o ssatu ra n ecessária, da re a lid a d e em p írica, isto é, da ú n ica re alid a­ d e q u e o h o m e m p o d e in d ag ar e co n h e ce r. D esse p o n to d e v ista, to d o o arse n a l do criticism o p a re c e esta r v o lta d o p ara a re ite ra çã o da te se clássica, p latô n ic o -aristo télica , so b re a n a­ tu re za do C : sua id e n tid a d e co m a s u b stâ n ­ cia n ecessária d a re a lid a d e . E essa m esm a tese, sem as lim itaçõ es do fe n o m e n ism o k an tia n o , e n c o n tra -se no Id ea lism o ro m â n tic o , q u e, p o ­ rém , ac en tu a a fu n ção criativa do C . e o id e n ­ tifica co m o P rin cíp io ra cio n al infinito, criad o r e o rg a n iz a d o r da p ró p ria re a lid a d e . É u m lu ­ g a r-co m u m da filosofia h eg elian a q u e o C. n ão é u m a re p re s e n ta ç ã o subjetiva p u ra, m as a p ró ­ p ria essê n cia d as co isas, o seu "em si". "A n a tu ­ reza d a q u ilo q u e é, é ser, no p ró p rio ser, o p ró p rio C.", diz H egel; "e n isso está, em geral, a n e c e ssid a d e lógica" (Phünomen. des Geistes, Pref., § 3). A Id éia ab so lu ta ou infinita, a R azão a u to c o n sc ie n te q u e é a su b stân cia do m u n d o , o u tra coisa n ão é s e n ã o "o C. co m o C." (Ene, § 213). "O C ", d iz ain d a H eg el — "não aq u ilo q u e se co stu m a o u v ir ch a m a r p o r esse n o m e , se n d o a p e n a s u m a d e te rm in a ç ã o in telectu alista ab strata — é u n ic a m e n te o q u e tem re a lid a d e , d e tal m an eira q u e ele m esm o se d ê a re a lid a ­

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de" {Vil. do dir, § 1). Na concepção hegeliana, a estrutura necessária da realidade é devir e pro­ gresso, tendo-se posto como Razão infinita e criadora. Por maior que possa parecer, a distân­ cia entre essa concepção e a clássica não é tão grande, do ponto de vista da teoria do C: para Hegel, assim como para Aristóteles, o C. é a es­ sência necessária da realidade, o que faz que ela não possa ser diferente do que é. Na filosofia contemporânea o idealismo retomou a interpre­ tação hegeliana do C. como realidade necessária ou necessidade real. Croce, p. ex., entende-o como desenvolvimento, devir e sistema, atividade ra­ cional e concreta, espírito ou razão (Lógica come scienzadelconcettopu.ro, 1908). A fenomenologia de Husserl pode ser consi­ derada um retorno à forma clássica assumida pela interpretação do C. em Aristóteles. Husserl integra a polêmica do logicismo moderno con­ tra o psicologismo, que vê no C. uma formaçãopsíquica (v.). Formação psíquica é, p. ex., a representação de número que varia de mo­ mento a momento e de um indivíduo para outro; mas o C. de número é sempre o mesmo, e é uma entidade intemporal. Os C. devem, pois, ser considerados idênticos às essências, sendo melhor falar de essências (que são obje­ tos) do que de C. e, sob o aspecto subjetivo, de "visão das essências", como ato análogo ao perceber sensível (Ideen, I, §§ 22-23). Assim, na última formulação histórica da interpretação do C. como realidade necessária, o próprio ter­ mo C. é abandonado por impróprio, analoga­ mente ao que acontece nos desenvolvimentos da segunda interpretação de conceito. 2a Na segunda interpretação, o C. é um sig­ no do objeto (qualquer que seja) e se acha em relação de significação com ele. Por essa inter­ pretação, encontrada pela primeira vez nos estóicos, a doutrina do C. é uma teoria dos sig­ nos. Não pode haver signo, segundo os estóicos, nem das coisas evidentes nem das absolu­ tamente obscuras; pode haver signo apenas das coisas obscuras de momento e obscuras pela própria natureza. A essas duas espécies de coisas correspondem duas espécies de signos: 1Q os signos rememorativos, que se referem às coisas obscuras de momento; 2- os signos indicativos, que se referem às coisas obscuras por natureza. Tem-se um signo rememorativo, p. ex., quando se diz: "Se há fumaça, há fogo", quando ainda não se vê fogo. Um signo indi­ cativo é, p. ex., um movimento do corpo, que expresse um estado de alma. Por signo enten­

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de-se também "uma proposição que, sendo antecedente em uma conexão verdadeira, é descobridora da conseqüente". Em outros ter­ mos, tem-se um signo quando se tem uma pro­ posição condicional do tipo "Se... então", que satisfaça a duas condições: le deve começar pelo verdadeiro e terminar no verdadeiro, isto é, tanto o antecedente como o conseqüente de­ vem ser verdadeiros; 2Q deve ser descobridora, isto é, deve dizer alguma coisa não imediata­ mente evidente. P. ex., "Se é dia, há luz", dito quando é dia, ainda não é um signo, mas é sig­ no a proposição: "Se esta mulher tem leite, então deu à luz", onde o antecedente é desco­ bridor do conseqüente (Pirr. hyp, II, 97 ss.; Adv. dogm, II, 141 ss.). Essa doutrina estóica dos signos (sobre ela, v. SIGNIFICADO) permane­ ceu como modelo da segunda alternativa fun­ damental que a doutrina do C. encontrou. Trans­ mitida por Boécio à Escolástica latina, sua etapa seguinte é a lógica de Abelardo (século XII), que, acentuando o caráter predicativo do C, negou que ele pudesse ser considerado uma coisa (res) ou um nome (vox) — já que nem a coisa nem o nome (que é também uma coi­ sa) podem ser predicados de outra coisa — e considerou o C. como um sermo (discurso). Diferentemente da vox o sermo implica a refe­ rência semântica a uma realidade significada, referência que a Escolástica posterior chamará de suppositio. A realidade significada não é, segundo Abelardo, nem uma substância univer­ sal nem uma classe de coisas singulares, mas o estado comum no qual convém um grupo de coisas. Nesse sentido, Abelardo diz que "a cau­ sa comum" do universal "homem" é o status de homem que não é nem uma coisa, nem uma substância, mas aquilo em que todos os homens convém enquanto tais (Philosophische Schriften, ed. Geyer, pp. 19-20). Essa doutrina depois foi retomada pela lógica terminista, cuja formulação escolástica está em Summulae logicales de Pedro Hispano (meados do séc. XIII). Nas Summulae, a função desse termo, tanto universal quanto particular, é definida através da noção de suposição (v.), segundo a qual os termos estão no lugar da coisa suposta, de tal sorte que, p. ex., na proposição "o ho­ mem corre", o termo "homem" está por Só­ crates, Platão, etc. (Summ. log., 6.03). A Escolástica do séc. XIV marca o abandono definitivo do formalismo ou realismo que prevalecera em S. Tomás e Duns Scot e um retorno da teoria estóica do conceito. Este é chamado intentio

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animae, co m o q u a lq u e r o u tro ato ou e le m e n ­ to de c o n h e c im e n to (já q u e o c o n h e c im e n to sem pre se refere a alg u m a coisa d ife re n te de si m esm o) e é d efin id o co m o "signo p red icáv el de m uitas co isas". S eg u n d o O ck h am , o C. p o s ­ sui, além d isso , o u tro caráter fu n d am en tal: é u m signo natural. D iz ele: '"O u n iv e rsa l é d u ­ plo. U m é o u n iv e rsa l n atu ral, q u e é u m signo predicãvel de muitas coisas, do m esm o m o d o com o fum aça n a tu ra lm e n te significa fogo, g e ­ m ido do inferno, dor, e riso , alegria interior. Esse u niversal é só u m a in te n ç ã o da alm a, pois nenhum a su b stân cia fora da alm a e n e n h u m acidente fora da alm a é u m u n iv e rsa l se m e ­ lhante... O o u tro é o u n iv e rsa l in stitu íd o arb i­ trariam ente (per voluntaríam institutionem); nesse sen tid o , o n o m e p referid o , ap e sar de ser um a q u alid ad e n u m e ric a m e n te u n a, é u n iv e r­ sal porque é u m sig n o in stitu íd o arb itrariam en te para significar m u itas coisas" (Summ. log., I, 14), A função ló g ica do C. é a da su p o siç ã o , pela qual, em to d o s os co m p le x o s em q u e e n ­ tra, o C. está no lu g ar d as co isas significadas; quanto à re a lid a d e q u e o C. p o ssu i na alm a como intentio animae, O ck h am n ão se m ostra interessado em decidir, p a re c e n d o m ais in clin a­ do à doutrina ex trem a de q u e, na alm a, o C. não tem n e n h u m a re a lid a d e , m as ex iste nela som ente obiective, isto é, a títu lo de re p re s e n ta ­ ção ou de im agem (In Sent, I, d. 2, q. 8 E). A doutrina de O ck h am é típica da p o siç ão em pirista em relação à n atu re za do C, p o siç ão que tem sem p re d ois p o n to s b ásico s: le a n atu ­ reza sígnica do C; 2B a su a co n ex ão causai com as coisas, cujo p ro d u to n a tu ra l seria o h o ­ mem. Essa d o u trin a se e n c o n tra em L ocke (En­ saio, III, 3, §§ 6-9), em B erk e ley (Principies of HumanKnowledge, Intr., §§ 12 ss.) e em H u m e (Treatise, I, 1, 7). H u m e in v oca o h áb ito para explicar a g ên ese p sico ló g ica do C. (Ibid, 1,1, 7); Jam es Mill invoca a lei da a sso c iaç ão p sic o ­ lógica (Analysis of the Phenomena of the HumanMind, 2- ed., 1869,1, p p. 78 ss.), assim como Stuart Mill (Examination ofPhil. of Ha­ milton, p. 393). É próprio do em p irism o assu m ir a ex p lic a ­ ção psicológica da g ê n e s e do C. co m o ju stifi­ cação da sua v alid ad e, ou seja, co n sid e rar d e ­ m onstrada a v alid ad e do C. e a le g itim id a d e do seu uso por h av er d e m o n stra d o o m o d o p elo qual ele se form a no h o m e m p ela ação da a b s ­ tração (com o ju lg av a L ocke) ou da asso ciação psicológica (com o ju lg a v a m os em p iristas da primeira m etade do séc. XIX). M as K ant já in sis­

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CONCEITO tira na d iferença en tre as d uas co isas, d istin ­ g u in d o a "derivação fisiológica" d os C , tentad a p o r L ocke, d a "d ed u çã o " d o s p ró p rio s C , isto é, d a d e m o n stra ç ã o de su a v a lid a d e (Crít. R. Pura, § 13). A d istin çã o en tre v a lid a d e lógica e re a lid a d e p sico ló g ica d o s C. m an té m -se em to ­ d as as esco las do n eo criticism o alem ã o c o n ­ te m p o râ n e o (so b re tu d o na E scola de M arb urg o a q u e p e rte n c e m C o h en , N ato rp e C assirer) e fora reafirm ada co m o in d isp en sáv el às fo rm u ­ la çõ es do p e n sa m e n to m atem á tic o e, em g e ­ ral, do p e n sa m e n to científico p o r B o lzan o na su a Doutrina da ciência (1837). A e lab o raç ão m atem ática da lógica levava a insistir na n atu ­ reza objetiva, n ão psicológica, do C , assim corno na sua n atu re za sim bó lica. E sses d o is asp ecto s do C. são re ssaltad o s p o r F rege. N um te x to de 1890, ele afirm ava q u e "o C. é algo de objetivo, q u e n ão é co n stru íd o p o r nós", e q ue, p ortan to , u m a p ro p o siç ã o co m o "O n ú m e ro 3 é u m n ú ­ m ero p rim o " é "algo c o m p le ta m e n te in d e p e n ­ d e n te d a circ u n stân cia de esta rm o s ac o rd a d o s ou d o rm in d o , d e v iv erm o s ou n ão , algo q ue v ale e v alerá o b jetiv a m en te se m p re , n ão im ­ p o rta n d o se ex istem ou se ex istirão sere s q u e re c o n h e ç a m ou n ão essa v erd ad e " (Über das Trãgheitsgesetz, 1890, em Aritmética e lógica, ed. G ey m o n a t, p p . 211-12). S ob esse asp ecto , F rege definia o C. co m o "o sign ificad o de um p re d ic a d o " (Über Begriff und Gegenstand, 1892, § 2; ed. G eym onat, p. 199) e definia o sig ­ n ifica d o c o m o o o b jeto d e s ig n a d o p e lo s ig ­ n o , d is tin g u in d o o s ig n ific a d o do sentido, q u e de.nota "o m o d o co m o o o bjeto n os é d a ­ do" (ÜberSinn undBedeutung, 1892, § 1, ed. G ey m o n a t, p p . 216 ss.). E ssas o b se rv a ç õ e s de F rege são m u ito im p o rtan tes p o rq u e assinalam o início da reso lu ção , ocorrida em g ran d e parte da filosofia c o n te m p o râ n e a , da n o ç ão de C. na n o ç ã o d e significado. H usserl (q u e, to d av ia, su sten ta v a u m realism o co n ceitu alista) já co n si­ d era v a os C. co m o sign ificad os (Bedeutungen; cf. Ideen, I, § 10). "T erm os ou sign ificad os", é co m o D ew ey d e n o m in a os C , classifican do -o s so b esse títu lo (Logic, cap. X V III). E R. C arnap, no m esm o se n tid o de F rege, id en tifican d o o C. co m o o bjeto , e n te n d ia p o r C. "tudo aq u ilo s o b re o q u e é possível fo rm u lar p ro p o siçõ es" (DerlogischeAufbau der Welt, 1928, § 5). E m 1942, S usan K. L anger reco n h e cia fo rm alm en te a id en tificação o co rrid a en tre C. e significado, m o stra n d o a c o n v e rg ên cia de m u itas co rren te s da filosofia c o n te m p o râ n e a p ara o re c o n h e c i­ m en to do sim bo lism o em ciência, arte, filosofia

CONCEITO e em to d as as form as culturais em geral (Pbilosophy in a New Key, 1942, cap . III). Q u in e in d ico u e x a ta m e n te o p o n to crítico da tra n s­ fo rm ação da n o ç ã o de C. q u a n d o d isse "signifi­ c a d o é aq u ilo q u e a essê n cia se to rn a q u a n d o se div orcia do o bjeto de referên cia e se casa co m a p alavra" (From a LogicalPoint ofView, II, D . D ev e-se notar, co n tu d o , q u e o term o C. ou sig n ificad o re fe re-se co m m ais freq ü ê n c ia a conotação do q u e a d en o taç ão . A ssim , C arnap, nas ú ltim as o b ras, e n te n d e u p o r C. a p ro p rie d a ­ de, o a trib u to ou a fu n ção (Introduction to Semantics, 1942; 2a ed., 1959, § 37). Isso co n sti­ tui u m a ex ceção à term in o lo g ia p ro p o sta p o r Frege, ex ceção esta reco m en d ad a p elo s lógicos

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CONCEITO

p ro c e d im e n to se re p ro d u z q u a n d o , n u m a p ro ­ fissão, d efro n ta m -se fatos q u e n ão o ferecem m ais interesses b io ló gico s im ediatos" (Erkenntniss und Irrtum, 1905, cap . VIII; trad. fr., p. 136). S ob esse asp e c to , os C. são "signos q u e re su m e m e in d icam re a ç õ e s p o ssív e is do o rg a­ n ism o h u m a n o em face d o s fatos" (Mechanik, 1883, p. 510). É esse o ca rá ter en fatizad o p o r alg u n s filósofos p ara n e g a r o ca rá ter te ó ric o d o s C. científicos em p ro l de u m a form a s u p e ­ rior ou p riv ileg iad a d e c o n h e c im e n to . A ssim , ao C. (sim p les e sq u e m a e c o n ô m ic o co m v istas à ação) B erg so n c o n tra p ô s a in tu iç ão (Evol. créatr, 8- ed., 1911, p. 247 ss.). P or esse m o ti­ v o , C roce ch a m o u os C. científicos de pseudoconceitos, re se rv a n d o o n o m e de C. à p ró p ria (cf. A. CHURCH, Introduction to Mathematical R azão {Lógica, cap. II). Logic, § 1, e n. 17). V. SIGNIFICADO. função do C. é organizar os d a­ B) A fu n ç ã o C. p o d e ser c o n c e b id a de d o s3adaA terceira e x p eriên cia de m o d o q u e se e s ta b e le ­ d u as m an eiras fu n d am en tais diferentes, isto é, çam en tre eles c o n e x õ e s d e n atu re za lógica. co m o final e co m o instrumental. F un ção final U m C , so b re tu d o científico, v ia de regra n ão se atribui ao C. a in terp retação co m o essên cia, já lim ita a d e sc re v e r e classificar os d a d o s e m ­ q u e, p o r essa in terp retação , o C. n ão tem outra p írico s, m as p ossibilita a su a in ferência d e d u ti­ função sen ão ex p rim ir ou revelar a sub stân cia v a (DUHEM, La théoriephysique, p p . 163 s s .) . É d as co isas. D esse p o n to d e v ista, a fu n ção p o r esse a sp e c to q u e a fo rm u la çã o c o n ce itu ai identifica-se co m a p ró p ria n atu reza do co n ce i­ d as te o ria s científicas te n d e à ax io m atização : a to. Q u a n d o , p o rém , se ad m ite a teoria sim bólica g e n e ra liz a ç ã o e o rig o r d a a x io m atiz açã o te n ­ do C , a d m ite -s e ipso facto ta m b é m a su a d em a levar ao e x tre m o o ca rá ter lo g ica m en te instrum entalidade; e essa instrum entalidade p o d e o rg an izativ o do c o n ce ito . ser aclarada e d escrita n os seu s m ú ltiplos as­ 4 e A q u arta fu n ção do C , hoje c o n sid e rad a p ectos. O s asp ecto s p rin cip ais são os seg uintes: fu n d a m en tal n as ciên cias físicas, é a p rev isão . lu A p rim eira fu n ção atrib u íd a ao C. é a de c ia m os estó ic o s, o objetivo descrever os o b jeto s da ex p eriên cia p ara p e rm i­ Cdeomu mo jásigren oc ognehrae lm e n te é p re v e r e a d e sig n a ­ tir o seu re c o n h e c im e n to . Era essa a fu n ção ção de antecipação, q u e epicuristas e estóicos da­ principal q u e ep icuristas e estóicos atribuíam às antecipações (ou p ro le p se ). S e g u n d o os ep i- v a m ao C , ex p rim e ju sta m e n te essa função. P o r ela, o C . é u m m eio ou p ro c e d im e n to cu ristas, a a n te c ip a ç ã o é "a c o m p re e n sã o , a a n te c ip a tó rio ou p ro jetan te . P ara D ew ey , a n te ­ o p in ião co rreta, o p e n sa m e n to ou a n o ç ã o u n i­ cipa ou p ro jeta a so lu ç ã o d e u m p ro b le m a e x a ­ v ersal ínsita em n ós co m o m em ó ria d aq u ilo ta m e n te fo rm u la d o {Logic, X X , § 1; trad. it., p. q u e, freq ü e n te m e n te , n os a p a re c e u co m o fora 516; cf. XXIII, § 1; p. 599). Para o utro s, a função de nós" (DiÓG. L, X , 33)- Essa função descritiva a n te c ip a tó ria do C . é o in stru m e n to de q u e a ou re co g itiv a do C. m u itas v e z e s é o m itid a ciên cia se serv e "para p re d iz e r a ex p eriên cia p o r ser a m ais ó bvia. R ec en te m en te, G. B ergfutura à lu z d a ex p e riê n c ia p assa d a " (QUINE, m a n n c h a m o u os C . de p a la v ra s-c a ra c te re s (Character-Words) para in d icar a su a fu n ção From a Logical Point ofView, II, 6). descritiva ou referen cial (Philosopby of Science, A s fu n çõ es de o rg an iza r e p re v e r são e x e r­ 1957, p . 13). c id a s h o je p e lo s tip o s fu n d a m e n ta is d e C. 2- A s e g u n d a fu n ção atrib u íd a ao C. é a científicos, q u e n ão são n em d escritiv o s n em econômica. A essa fu n ção v in cu la-se o caráter classificatórios, ou seja, p e lo s m o d e lo s, p elo s classificador do C. "A v a rie d a d e d as re a ç õ e s C. m atem á tic o s e p ela s c o n stru ç õ e s. O s modelos co n stitu e m sim p lificaçõ es ou b io lo g ic am e n te im p o rta n tes", d isse E. M ach, "é id ea lizaç õ es da ex p e riê n c ia e são o b tid o s le ­ m u ito m en o r do q u e a v a rie d a d e d os o bjeto s ex iste n tes. P o r isso , o h o m e m foi le v a d o a v a n d o ao ex trem o ca ra cte re s ou atrib u to s p ró ­ classificar os fatos n os co n ce ito s. O m esm o p rio s d o s o b jeto s em p írico s. N esse se n tid o , são

CONCEITO-CLASSE m o delo s os C. de v e lo c id a d e in stan tâ n e a, de sistem a iso lad o , de g ases p erfeito s e, em g eral, os m o d e lo s m ec ân ic o s. O s C. matemáticos são sim p le sm e n te o c a ­ siões p ara in tro d u z ir p ro c e d im e n to s esp eciais de cálculo e, n e sse se n tid o , são in stru m en to s de p rev isão . O C. de "onda de p ro b a b ilid a d e " , p erten cen te à m ec ân ic a q u ân tica, é d essa e s p é ­ cie, assim co m o são ta m b é m d essa e sp é c ie os C. de "cam p o ten so rial", "esp aço cu rv o ", etc. Enfim, as construções (v.) são C. de entida­ des q ue n ão são d ad as n a ex p eriên cia, q u e n ão se assem elham n em m esm o com os objetos d a­ dos e cuja ex istência co n siste sim p lesm en te na p ossibilid ad e d e se re m u sa d a s co m o in stru ­ m entos de p rev isão no co n tex to de u m a teoria. São ex em p lo s de co n stru ç õ es os C. de cam p o , de elétron, de éter, etc. (P. W . BRIDGMANN, The Logic of Modem Physics, 1927, cap. II; M . K. MUNITZ, Space Time and Creation, 1957, IV, 2). CONCEITO-CLASSE (in. Class-concept).T er­ m o in tro d u z id o na L ógica p o r R ussell {The Principies ofMathematics): d esig n a o C. m e ­ diante o q ual se d efine u m a classe (v.), ou, mais ex a tam e n te, a fu n ção p ro p o sic io n a l "F" cujas raízes fo rm am a classe, de m o d o q u e seja condição n ec essária e su ficien te p ara q u e um indivíduo a seja u m e le m e n to de u m a classe ("pertença à classe") d efinida m e d ia n te u m a função "F" tal q u e a p ro p o siç ã o "Fa" seja v e rd a ­ deira. G. P. CONCEPÇÃO (in. Conception; fr. Conception, ai. Konzeption; it. Concezioné). Esse te r­ m o designa (assim co m o os c o rre sp o n d e n te s percepção e im aginação) tan to o ato do c o n c e ­ ber quanto o objeto co n ce b id o , m as, preferivel­ mente, o ato de c o n ce b e r e n ão o objeto, p ara o qual deve ser reserv ad o o term o conceito (v.). Hamilton já fazia essa o b serv a çã o {Lectures on Logic, I, p. 41), q u e às v e z e s é re p e tid a na filo­ sofia co n tem p o rân ea: "Tão lo g o u m co n ceito é sim bolizado para n ós, n o ssa im a g in a çã o re v e s ­ te-o de um a C. privada e p esso al, q u e só p o d e ­ mos distinguir p o r u m p ro cesso de ab stração do conceito p úb lico e co m u nicável" (SUSAN K. LANGER Philosophy in aNewKey, cap. III). CONCEPTUAIISMO (in. Conceptualism, fr. Conceptualisme, ai. Conceptualismus; it. Concettualismo). N o m e q u e os h isto ria d o re s oito centistas da filosofia m edieval d eram à co rren te da Escolástica m ed ie v a l q u e os esco lá stico s chamavam de nominalismo (v.); isso p ara fazer a distinção entre o n o m in a lism o e x tre m a d o de Roscelin, para q u e m o c o n c e ito u n iv e rsa l é

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CONCORDÂNCIA, MÉTODO DA u m a sim p les voxou flatus voeis, o n om in alism o d e A b e la rd o , p ara q u e m o p ró p rio u n iv e rsa l é u m d isc u rso {sermó) p red ic áv el d e m u itas co i­ sas, e do n o m in a lism o p o sterio r, q u e se inspira em Abelardo (v._NOMINALISMO; UNIVERSAIS). CONCLUSÃO (lat. Conclusio; in. Conclusion; fr. Conclusion; ai. Schluss; it. Conclusionê). F .nquanto em A p u le io e em B oécio conclusio é o te rm o m e d ia n te o q ual se d esig n a a to ta lid a d e de u m d iscu rso d em o n stra tiv o , nos ló g ico s m ed ie v a is é u sa d o co m o tra d u ç ã o do cruJ.7tépocaJ.a aristo télico e da è7U(popá estó ica, isto é, p ara in d icar a p ro p o siç ã o final do p ró p rio d iscu rso d em o n stra tiv o (cf. PEDRO HIS­ PANO: "Est enim conclusio argumento vel ar­

gumentais approbata propositio"; Summ. log.,

5.02). N a filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a , m an te v e -a o m esm o sen tid o . S ó n o s filósofos alem ã es é q u e Schluss m u itas v e z e s é u sa d o p ara in d icar o silo gism o to d o . G . P. CONCOMITÂNCIA (in. Concomitance, fr. Concomitance, ai. Konkomitanz; it. Concomitanzd). U m d o s q u a tro m é to d o s da p esq u isa e x p e rim e n ta l e n u m e ra d o s p o r S tuart M ill, m ais p re c isa m e n te o d as "variações co n co m ita n tes", ex p re sso p ela se g u in te regra: "Um fe n ô m en o q u e v arie de algu m m o d o to d a v ez q u e o u tro fe n ô m e n o v ariar d e alg u m m o d o p articu lar é a cau sa ou o efeito d esse fe n ô m e n o , ou está v in c u la d o a ele p o r algu m fato d e cau sação " {Logic, III, 8, § 6). M ach re d u z iu a esse m éto d o to d o s os p ro c e d im e n to s da ciên cia. "O m é to ­ do d as v a ria ç õ e s co n siste em estu d a r p ara cad a ele m e n to a v ariaç ão q u e se ach a ligada à v a ria ­ ção de cad a u m d o s o u tro s e le m e n to s. P o u co im p o rta se tais v a ria ç õ e s se p ro d u z a m p o r si ou se nós as p ro vo cam os voluntariam ente; as rela­ çõ e s serão d e sc o b e rta s p ela observação e pela experiência" (Erkenntniss undIrrtum, cap. I; trad. fr., p p. 28-29) (v. CONCORDÂNCIA; DIFERENÇA;

RESÍDUOS). CONCORDÂNCIA, MÉTODO DA (in Method ofagreement; fr. _Méthode de concordance, ai. Methode der Übereinstimmung; it. Mé­ todo delia concordanza). U m d o s q u a tro

m é to d o s da p e sq u isa ex p erim en ta l e n u m e ra ­ d o s p o r S tuart M ill, m ais p re c isa m e n te o e x ­ p resso pela seg u in te regra: "Se dois ou m ais ca­ so s do fe n ô m e n o q u e se está in v estig an d o têm u m a ú n ica circu n stân cia em co m u m , a circ u n s­ tância ú n ica na q ual to d o s os caso s c o n co rd am é a cau sa, ou o efeito, do fe n ô m e n o d ad o" {Logic, III, 8, § 1). U m caso do m é to d o da C. é a co m b in a ç ã o d ele co m o de diferença, re g id o

CONCRECÃO

pela seguinte regra: "Se dois ou mais casos nos quais ocorre o fenômeno têm só uma circuns­ tância em comum, ao passo que dois ou mais casos nos quais ele não ocorre têm em comum apenas a ausência da circunstância, a circuns­ tância única na qual os dois conjuntos de casos diferem é o efeito ou a causa ou uma parte indispensável da causa do fenômeno" (Ibicl., § 4) (v. CONCOMITÂNCIA; DIFERENÇA; RESÍDUOS). CONCRECÃO (in. Concretion). Palavra cunhada por Santayana para indicar o crescimento devido à unificação de muitas coisas. Assim, as C. formadas por associação de semelhança são idéias ou essências ou '"C. de discurso"; ao pas­ so que as C. constituídas pela associação de contigüidade são coisas (Cf. especialmente Reason in Common Sense, 1905, pp. 161 ss.). CONCRESCÊNCIA (in. Concrescencè). Whitehead viu na evolução emergente (ou cria­ dora) um "processo de C." para o qual contri­ buem igualmente o aspecto físico e o aspecto espiritual, indissoluvelmente unidos e ambos ativos (Process andReality, p. 151). CONCRETO (in. Concrete, fr. Concret; ai. Konkrel; it. Concreto). O contrário de abstra­ to (v.). Os filósofos designam habitualmente com o termo elogioso de C. aquilo que se in­ sere em seu critério de realidade. Por isso, nem sempre o C. é o individual, o singular, a coisa ou o ser existente, como se poderia crer e como talvez indique o uso comum do ter­ mo. Para Hegel, o C. é o Universal, a Razão, o Infinito, ao passo que o abstrato é o indi­ víduo, o objeto singular, etc. "O abstrato é o finito, o C. é a Verdade, o Objeto infinito", diz Hegel (Philosophie der Keligion, ed. Glokner, II, p. 226; cf. Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, pp. 52 ss.). Assim, Croce falou de um "universal C." e Gentile, do "pensamento C". Para Bergson, o C. é a duração real, isto é, a vida da consciência em sua imediação. Pode-se dizer que esse termo não tem outra função além de qualificar com apreço a reali­ dade, verdadeira ou suposta, que se deseja privilegiar. CONCUPISCÊNCIA (lat. Concupiscientiain. Concupiscence, fr. Concupiscense, ai. Gelüste, it. Concupiscenza). Segundo S. Tomás (que remete à definição aristotélica do prazer, Ret, I, 11, 1.369 b 33), é o desejo do prazer (delectatio). Pode-se experimentar prazer tanto por um bem espiritual, quanto por um bem sen­ sível; o primeiro pertence só à alma e o segun­ do, à alma e ao corpo juntamente: a C. designa

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CONDIÇÃO

o desejo desta segunda espécie de prazer, isto é, o desejo sensível (S. Th, II, 1, q. 30, a. 1). CONCUPISCÍVEL. Uma das partes da alma, segundo Platão (v. FACULDADE). CONCURSUS DEI. Nos últimos tempos da Escolástica, essa expressão designou a parte devida a Deus na produção e no comporta­ mento das substâncias finitas. A doutrina domi­ nante na Escolástica, exposta por S. Tomás, é de que a causa primeira, isto é, Deus, é mais eficiente do que as causas segundas, cujo po­ der deriva somente dela (S. Th, II, 1, q. 19, a. 4). Mas na última fase da Escolástica, mais pre­ cisamente no início do séc. XIV, procurou-se limitar o alcance da causalidade divina, para evi­ tar que se atribuíssem a Deus as imperfei­ ções e os males do mundo. Assim, Durand de St.-Pourçains e Pedro Auréolo consideravam que o concurso de Deus para com a criatura é apenas geral e mediato; que Deus cria as subs­ tâncias e lhes dá a força de que têm necessida­ de, mas depois as deixa livres e limita-se a conservá-las em seu ser, sem ajudá-las em suas ações. Depois de Descartes, tanto os ocasionalistas quanto Spinoza e Leibniz voltaram à noção tradicional da inteira e- plena causalidade divina no mundo. Leibniz, em particular, reexpôs a seu modo a doutrina do concurso divino, distinguindo, além do concurso extraordinário ou miraculoso, um concurso imediato e um concurso especial: o primeiro consiste no fato de que o efeito não só depende de Deus, mas também que Deus concorre para produzi-lo tanto quanto a causa segunda dele; e o segun­ do dirige-se não só à existência da coisa como também ao seu modo de existir e às suas quali­ dades, já que aquilo que há de perfeito na coi­ sa só pode provir de Deus (Op, ed. Erdmann, p. 653). CONDIÇÃO (in. Condition; fr. Condition; ai. Bedingung; it. Condizione). Em geral, o que torna possível a previsão provável de um evento. Essa noção formou-se na Idade Moderna, ini­ cialmente através da tentativa de isentar a no­ ção de causa das suas implicações antropomórficas, depois pela exigência de isentá-la de seu caráter necessitante. Claude Bernard, que ainda acreditava no caráter necessitante da cau­ sa (v. CAUSALIDADE), dizia: "A obscura noção de causa deve ser confinada à origem das coisas: só tem sentido quando se fala da causa primei­ ra ou da causa final. Na ciência, deve ceder lu­ gar à noção de relação ou de condição" (Leçons sur lesphénomènes de Ia vie, II, pp. 396 ss.).

CONDIÇÃO Por o u tro la d o , S tu art M ill, o b s e rv a n d o q u e a sucessão in v ariáv el em q u e co n siste a ca u sali­ dade ra ra m e n te se e n c o n tra en tre u m c o n se ­ qüente e u m ú n ic o a n te c e d e n te , m as, n a m a io ­ ria das v ez e s, e n tre u m c o n se q ü e n te e a so m a de d iv erso s a n te c e d e n te s , to d o s n e c e ssá rio s "para p ro d u zir o c o n se q ü e n te , isto é, p ara s e ­ rem se g u ra m e n te se g u id o s p o r ele", a c re sc e n ­ tava: "N esses caso s é coisa b a sta n te co m u m pôr em ev id ên cia u m só d os a n te c e d e n te s so b a d en o m in a çã o d e causa, c h a m a n d o os o u tro s apenas de condições (.Logic, III, 10, 3)- A C. s e ­ ria, assim , o q u e n ão b asta, p o r si só, p ara p ro ­ duzir o efeito, ou seja, n ão g aran te a verificação do efeito. Isso c o rre s p o n d e ao u so da p alavra C. na e x p re ssã o conditio sine qua non (de o ri­ gem ju ríd ica), em q u e a C. significa u m a c láu ­ sula ou ressalv a d a q u al d e p e n d e to d a a v a li­ dade do ato ju ríd ico , em b o ra, in d u b itav elm en te, não seja a su a cau sa. P o rtan to , a essa p alavra está v in cu lad o o sign ificad o de u m a lim itação de p ossib ilid ad es, de tal m o d o q u e aq u ilo q u e esteja fora d as p o ssib ilid a d e s assim lim itad as elimine ou to rn e n ão -p o ssív el o objeto c o n d i­ cionado. E m relação a esse significado, essa p a­ lavra é e m p re g a d a p o r K ant. E m bo ra a o b ra de Kant tend a a d efe n d e r o p rin cíp io de ca u salid a­ de necessária co m o form a ou estrutura objetiva da natureza, nela se faz u so freq ü en te da n o ção de C. com u m sign ificad o n ão p e rtin e n te ao de causa, e q ue K ant n ão se d e te v e de p ro p ó sito para elucidar. O u so k an tia n o é in d ica d o p o r expressões co m o as seg u in te s, q u e se e n c o n ­ tram com fre q ü ê n c ia em Crítica da Razão Pura-. "C. da p o ssib ilid a d e d o s fe n ô m en o s", "C. subjetiva da sen sib ilid ad e", "C. form al de to ­ dos os fe n ô m en o s em geral" (o te m p o ), "C. subjetivas do pensar" (as catego rias), "C. apriori pelas quais é possível a ex p eriên cia" (as c a te g o ­ rias), etc. N estas e em e x p re ssõ e s s e m e lh a n ­ tes, o im p o rtante é a c o n e x ã o en tre "C." e "p o s­ sibilidade". À s v ez es K ant diz sim p lesm en te "C"; outras v ezes "C. da p o ssib ilid ad e"; as d u a s ex ­ pressões se eq ü iv alem . Isso significa q u e , s e ­ gundo K ant, dizer q u e "x é a C. de y" ou d izer que 'X torna p o ssív el y" é a m esm a coisa. O que torna p ossível u m a coisa (p. ex., o c o n h e ­ cim ento, a ex p eriên cia ou o fe n ô m en o ) é a C. dessa coisa. N a o bra de K ant, a definição d essa noção, certam en te n u n ca d ad a de form a e x p lí­ cita, m as ta m p o u co a p e n a s im plícita, co n stitu i o ponto decisivo de sua ela b o ra ç ã o filosófica. U m passo u lterio r na m esm a d ire çã o foi d ad o por M ax W eber, em su a b u sca do sign ificad o

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CONDIÇÃO do p rin cíp io de c a u sa lid a d e p ara as ciên cias h istó ricas (1905). E m b o ra W e b e r e m p re g u e de p referência a palavra cau sa e fale de ex p licação cau sai, o q u e ele d iz se refere m ais p rec isa­ m en te à n o ção de C. e serv e para u nir essa n o ­

ção à de "possibilidade objetiva" (v. POSSIBILIDA­

D E ), q u e , s e g u n d o ele, é in d isp e n s á v e l ao c o n h e c im e n to h istó rico . "O ju íz o so b re a p o s ­ sib ilid a d e objetiva", d iz W e b e r, "por essên cia ad m ite g rad aç õ es; é possível re p re se n ta r a rela­ ção ló g ica n e le im plícita co m o au x ílio dos p rin c íp io s u tiliz a d o s n a a n á lise do cá lc u lo das p ro b ab ilid ad es. O s co m p o n en te s causais, a cujo 'p o ssív e l' efeito se refere o ju íz o , p o d em ser co n ce b id o s co m o isolad os em relação a to ­ d as as C. q u e , em g eral, p o d e m ser c o n ce b id a s co m o c o o p e ra n te s co m eles. P o d er-se-ia p er­ g u n ta r en tã o d e q u e m o d o esse c o m p le x o de C., em co n ju nto co m as q u ais os co m p o n e n te s isolados estavam previsivelm ente ap to s a p ro d u ­ zir a c o n s e q ü ê n c ia p o s sív e l, se c o m p o rta em re la ção às o u tras C. em co n ju n to com as q u ais n ão a teriam 'p re v isiv elm en te ' p ro d u z i­ do" (Kritische studien aufdem Gebiet Knlturwissenschaftlichen Logik, 1906; trad . in. em Methodology of Social Science, p p. 181-82). O q u e W e b e r ch a m a aq u i "c o m p o n e n te causai", q u e seria c o n c e itu a lm e n te iso lad o p ara fo rm u ­ lar u m ju íz o de p o ssib ilid a d e objetiva, isto é, u m ju íz o so b re o cu rso q u e os ev e n to s p o d e ­ riam ter to m a d o se a q u e le c o m p o n e n te cau sai tivesse in te rv in d o , n ad a m ais é do q ue u m a C. de possibilidade, no sen tid o k an tiano do te r­ m o . W e b e r ac re sc e n ta : "P o d e m o s e n u n c ia r ju íz o s g e ra lm e n te v álid o s so b re o fato de q u e u m a m an eira de reag ir id ên tica, em certas ca­ racterísticas, p o r p arte d e p esso as q ue en fren ­ tam d e te rm in a d a s situ aç õ e s, é favorecida em g rau m aio r ou m en o r e p o d e m o s estim ar o g rau em q u e certo efeito é fav o recid o p o r cer­ tas C." (Ibid, p. 183)- N essas p alavras ex p rim ese claram en te o co n ce ito da C. co m o lim itação de p o ssib ilid a d e s o bjetivas e, p o rtan to , co m o p rev isib ilid a d e p ro v á v e l do ev en to . O s p ro g re sso s d a física, q u e m arca ram a q u e d a d a n o ç ã o d e cau sa (v . CAUSALIDADE), e x i­ g em a sub stitu ição do d eterm in ism o cau sai clás­ sico p elo d eterm in ism o condicional. N o cam p o b io ló g ico , é fácil o b serv ar q ue só o co n ceito de C. é c a p az de ex p rim ir as re la çõ es fu n cio n ais c o n sid e ra d a s p o r essa ciência: p. ex., en tre estí­ m u lo e re sp o sta , q u e hoje n ão p o d e m ais ser trad u z id a em te rm o s de c a u salid ad e, isto é, de p rev isão infalível, p o d e n d o ser ex p ressa em te r­

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CONDICIONAL

mos de condicionalidade, isto é, de previsão afirmava que a relação é verdadeira quando provável (v. AÇÃO REFLEXA). Além disso, o con­ não começa com o verdadeiro e termina com ceito de C. é muito usado em sociologia, em o falso. A condição apresentada por Diodoro teoria da informação, em cibernética e, em ge­ para a validade do C. era, assim, bem mais ral, na teoria da organização dos sistemas, pois restrita do que a imposta por Fílon, já que, permite conciliar a noção de ordem com certo para este, uma proposição verdadeira provém grau de contingência ou de casualidade nas de qualquer coisa (inclusive do falso). Por exem­ relações entre os elementos que o compõem. plo, a relação, "Se é noite, é dia", visto ser dia, Assim, Wiener escreveu: "Não é possível obter segundo Fílon é verdadeira porque começa pe­ uma idéia significante de organização num lo falso (ou seja, tem antecedente falso) "é mundo em que tudo é necessário e nada é con­ noite", mas acaba com o verdadeiro (ou seja, tingente" (/ am a Mathematician, Nova York, tem o conseqüente verdadeiro) "é dia". Segun­ 1956, p. 322). Nesse aspecto, W. Ross Ashby do Diodoro, porém, é falsa porque admite co­ considerou essencial a idéia de condicionali- meçar pelo verdadeiro, desde que sobrevenha dade, segundo a qual no espaço de possibilida­ a noite, e terminar pelo falso "é dia" (SEXTO des de interação, dado por um conjunto de ele­ Adv. math, VIII, 113, 117; CÍCERO, mentos, cada organização real dos elementos é EMPÍRICO, Acad, IV, 143). Por isso, as interpretações de forçada a algum subconjunto de interações. O Fílon e de Diodoro respectiva­ inverso da organização é a independência dos mente, ao que hojecorrespondem, se chama de implicação elementos (em Principies of Self-Organization, material e implicação formal (v. IMPLICAÇÃO), org. H. von Foerster e G. W. Zopf, Nova York, já que Fílon interpretava o C. "se é dia, há luz" 1962, p. 217). É essencial certo grau de liber­ se dissesse "ou não é dia ou há luz" en­ dade na relação recíproca das partes para qual­ como Diodoro interpretava como se dissesse quer organização ou sistema; e onde não hou­ quanto "agora é dia, portanto deve haver luz", admitin­ vesse escolha entre um conjunto de alternativas do uma conexão causai entre o antecedente e tampouco haveria uma organização qualquer (J. o conseqüente. Na Fílon admitia ROTHSTEIN, Communication, Organization and uma tábua de verdadesrealidade, idênticas à da implica­ Science, 1958, p. 35). Assim, nas disciplinas ção material. O C. é verdadeiro em três casos e mais díspares, o conceito de C. está tomando o falso em um. É verdadeiro se começa com o lugar do conceito de causa. verdadeiro e termina com o verdadeiro: "Se é CONDICIONADO (in. Conditioned; fr. dia, há luz"; é verdadeiro se começa com o Conditionné, ai. Bedingt; it. Condizionatò). falso e termina com o falso: "Se a terra voa, a Aquilo cuja possibilidade depende de outra terra tem asas"; é verdeiro se começa com o coisa. Pavlov deu o nome de reflexo C. ao falso e termina com o verdadeiro: "Se a terra reflexo produzido por um estímulo artificial (v. voa, a terra existe". Só é falso quando começa AÇÃO REFLEXA). com o verdadeiro e termina com o falso: "Se é Na discussão das antinomias da razão pura, dia, é noite", desde que dia. E assim a rela­ Kant (Crít. R. Pura, Dialética transcendental, ção "Se é dia discorro" seja é verdadeira cap. II) usou essa palavra como sinônimo de Fílon, desde que eu discorra, mas falsasegundo segun­ causado. Hamilton (Lectures on Metaphysics, do Diodoro. A doutrina de Fílon foi substancial­ 1859-1860) entendeu por C. o relativo; nesse aceita pelos estóicos (DIOG. L, VII, 73) sentido, disse que "pensar é condicionar" por­ mente e discutida pela lógica medieval (que utilizou a que o que se pensa ou se conhece é aquilo que transcrição feita por Boécio) como doutrina da existe em relação às faculdades humanas, não conseqüência (v.). absolutamente. Mansel atribui o mesmo signifi­ cado a essa palavra (Phil. ofthe Conditioned, Na lógica moderna, essa doutrina foi reto­ 1866). mada por Frege (a partir de Begriffsschrift, CONDICIONAL (in. Conditional; fr. Condi- 1879) e por Peirce a partir de 1885; segundo tionnel; ai. Bedingt; it. Condizionalé). Uma re­ este, a principal vantagem da interpretação de lação entre dois estados de coisas ou duas pro­ Fílon é permitir expressar da mesma forma as posições, indicadas pelos conectivos Se... então. proposições categóricas e as condicionais. Essa relação foi estudada pela primeira vez na Assim, por exemplo, a proposição "Todo ho­ escola de Mégara e interpretada de dois mo­ mem é racional" pode ser expressa do seguinte dos diferentes por Fílon e Diodoro Cronos. Fílon modo: "Para cada objeto x qualquer, é verdade

CONDILLACISMO

que ou x não é um homem o u i é racional" (PEIRCE, Coll. Pap., 3- 439-45). Hoje, o conceito de C. é, na maioria das ve­ zes, considerado equivalente ao de implica­ ção (v.). Contudo, Quine propôs uma distin­ ção oportuna entre os dois conceitos: a implicação deveria ser entendida como rela­ ção entre proposições; o C, como relação en­ tre objetos ou estados de fato. Assim, deverse-ia dizer: "'Se chove' implica que 'a terra se molha'", enquanto o C. seria "Se chove, a terra se molha" (Methods ofLogic, 1952, § 7). CONDILLACISMO. V. SENSISMO.

CONDUTA (in. Conáuct; fr. Conduite, ai. Betragen; it. Condottá). Toda resposta do or­ ganismo vivo a um estímulo que seja objetiva­ mente observável, ainda que não tenha caráter de uniformidade no sentido de que varia ou pode variar diante de determinada situação. Por essa falta de uniformidade, a C. diferenciase do comportamento (v.) e o uso desse termo é útil porque, de outro modo, não se distinguiria do comportamento. CONECTIVOS (in. Connectives; fr. Connectifs; it. Conecttiví). Na lógica contemporânea, esse é o nome dado aos símbolos impróprios (ou sincategoremãticos [v.]) que, combinados com uma ou mais constantes, formam ou pro­ duzem uma nova constante. As constantes ou formas unidas pelos C. chamam-se operandos. Um C. chama-se singular, binário, terciãrio, etc, conforme o número dos seus operandos. Os C. são expressos por e, ou, não, se... então. Emprega-se comumente a justaposição dos operandos para denotar a conjunção: assim "p.q" significa "p e q". Emprega-se o sinal v para denotar a disjunção inclusiva: assim "p v if significa p ou qou ambos". Emprega-se o si­ nal + para denotar a disjunção exclusiva; assim "p+cfsignifica "poup, mas não ambos". Empre­ ga-se o sinal ~ para indicar a negação: assim "~p"significa "nãop". Para o C. se... então, v. CONDICIONAL, IMPLICAÇÃO. AS notações citadas são as mais comuns, mas não as únicas. Para outros sistemas de símbolos, v. as notas ao § 5 de Introduction to Mathematical Logic, 1959, de CHURCH.

CONFIGURACIONISMO (in. ConfiguraHonisni). O mesmo que Gestaltismo (v. PER­

CEPÇÃO; PSICOLOGIA, C). CONFIRMABILIDADE. V. TESTABILIDADE; VERIFICABILIDADE.

CONFISSÃO (lat. Confessio; in. Confession; fr. Confession; ai. Beichte; it. Confessione). Essa

CONGRUÊNCIA

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palavra significa em geral: reconhecer uma coi­ sa pelo que é (corresponde ao significado do verbo grego è^Li/OTEív, usado na tradução grega da Bíblia). É empregada por S. Agostinho tanto para indicar o reconhecimento de Deus como Deus (da verdade como verdade) quanto para indicar o reconhecimento dos próprios pecados enquanto tais. S. Agostinho diz: "Ordenas-me louvar-te e confessar-te" dirigin­ do-se a Deus (Conf, I, 6, 9-10); e diz também: "Há (a casa de minha alma) coisas que ofen­ dem os teus olhos, eu confesso e o sei" (Ibid, I, 5, 6). O significado indicado compreen­ de os dois usos do termo distinguidos pelos estudiosos (cf. M. PELLEGRINO, AS C. deS. Agos­ tinho, Roma, 1956, 9-10). Além disso, permite explicar: ls a composição de Confissões, que só em parte contêm a exposição das vicissitudes biográficas de S. Agostinho, mas que a partir do Livro X são puramente teóricas, isto é, dedi­ cadas ao reconhecimento da Verdade e das dificuldades que se interpõem a esse reconhe­ cimento; 2S a coincidência da atitude de quem se confessa, isto é, reconhece em si mesmo a verdade, com a atitude do retorno para si mes­ mo e do voltar-se para si mesmo, própria da indagação agostiniana e neoplatônica (v. CONS­ CIÊNCIA).

CONFLAGRAÇÃO (gr. EKTiúpodÇ; lat. Conflagrazione; in. Conflagration; fr. Conflagration; ai. Weltbrand; it. Conflagrazione). Segun­ do Heráclito (DlOG. L., IX, 1,8) e os estóicos (STOBEO, Ecl, I, 304), a catástrofe final que fe­ cha um ciclo do mundo com sua destruição total pelo fogo. CONFLITO (in. Conflict; fr. Conflict; ai. Wiederstreit; it. Conflitto). Contradição, oposição ou luta de princípios, propostas ou atitudes. Kant chamou as antinomias (v.) de "C. de teses". Hume falara de um C. entre a razão e o instinto: o instinto que leva a crer, a razão que põe em dúvida aquilo em que se crê ( Treatise, I, Introdução). CONFUSÃO. V. DISTINÇÃO. CONGRUÊNCIA (lat. Congruentia; in. Congruence, fr. Congruence, ai. Ubereinstimmung; it. Congruenza). Adequação. P. ex., "recom­ pensa côngrua", isto é, adequada ao trabalho ou ao mérito. Em geometria, a C. é a coinci­ dência das figuras por sobreposição ao mesmo plano. A definição da C. é fundamental para a escolha da geometria. Reichenbach diz: "A esco­ lha da geometria é arbitrária só enquanto não se especificou a definição de congruência. Uma

CONGRUISMO v e z e s ta b e le c id a tal d efin ição , to rn a -se u m a q u e stã o em p írica o p ro b le m a d e sab er qual g eo m etria se ad a p ta ao e sp a ç o físico" (cf. A. Einstein: Philosopher-Scientist, org. p o r P. A . S ch ilpp , 1949, p. 295). W h ite h e ad g en era lizo u esse co n ceito : "A C ", d isse ele, "é u m ex e m p lo p articu lar do fato fu n d a m en tal do re c o n h e c i­ m en to n a p e rc e p ç ã o . N ós re c o n h e c e m o s: n ão sim p le sm e n te no se n tid o d e c o m p a ra r u m fa­ to r n atu ral o ferecid o p ela m em ó ria co m um fator re v e la d o p ela se n sa ç ã o im ediata, m as no sen tid o d e q u e o re c o n h e c im e n to o co rre no p resen te, sem n en h u m a in terv en ção da m e m ó ­ ria pura" (The Concept of Nature, 1920, cap. VI; trad. it., p. 113). CONGRUÍSMO. É a d o u trin a co n tra -re fo rm ista da g raç a eficaz, isto é, a d e q u a d a ao m érito . CONHECIMENTO (gr. y vw aiç; lat. Cognitio; in. Knowledge, fr. Connaissance, ai. Erkenntniss; it. Conoscenza). E m g eral, u m a técn ica p ara a v erificação de u m o b jeto q u a lq u e r, ou a d isp o n ib ilid ad e ou p o sse de u m a técn ica se m e ­ lh an te. P or técn ica de v erificação d ev e-se e n ­ te n d e r q u a lq u e r p ro ced im e n to q u e possibilite a d escrição , o cálcu lo ou a p rev isão co n tro láv el de u m objeto; e p o r o bjeto d ev e-se e n te n d e r q u a lq u e r e n tid a d e , fato, coisa, re a lid a d e ou p ro p rie d a d e . T écnica, n esse sen tid o , é o u so n o rm al de u m ó rg ão do sen tid o ta n to q u a n to a o p e ra ç ã o co m in stru m e n to s c o m p lic a d o s de cálculo: am b o s os p ro c e d im e n to s p erm item v e ­ rificações co n tro láv eis. N ão se d ev e p resu m ir q u e tais v erificaçõ es sejam infalíveis e e x a u sti­ v as, isto é, q u e su b sista u m a técn ica de verifica­ ção q u e, u m a v e z e m p re g a d a em re la ção a um C. x, to rn e inútil seu e m p re g o u lte rio r em re la­ ção ao m esm o C , sem q u e este p erca algo de sua v alid a d e . A controlabilidade d os p ro c e d i­ m en to s de v erificação , sejam eles g ro sseiro s ou refin ad o s, significa a repetibilidade de suas ap lica çõ es, de m o d o q u e u m "C" p e rm a n e c e co m o tal só e n q u a n to sub sistir a possibilidade da verificação. C o n tu d o , as té cn ic as de v e ri­ ficação p o d em ter os m ais diversos g rau s de efi­ cácia e p o d em , em ú ltim a in stân cia, ter eficácia m ín im a ou nula: n esse caso , p e rd e m , d e p le n o d ireito , a q ualificação de co n h e c im e n to . "O C. d e x " significa u m p ro c e d im e n to c a p az de fo rn ec er alg u m as in fo rm açõ es co n tro láv eis s o ­ b re x, isto é, q u e p erm ita d escre v ê -lo , calculálo ou p rev ê-lo em certo s lim ites. A d isp o n ib ili­ d a d e ou a p o sse de u m a té c n ic a co g n itiv a

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CONHECIMENTO d esig n a a p a rtic ip a ç ã o p esso al d essa técnica. "C o nh eço x" significa (salvo lim itaçõ es) que sou ca p az d e p ô r em p rática p ro ced im e n to s q u e p o ssib ilitem a d escriçã o , o cácu lo ou a p rev isão d e x. P o rta n to o sign ificad o pessoal ou su b jetiv o de C. d ev e ser c o n sid e ra d o se­ cu n d á rio e d eriv ad o : o significado p rim ário é o b jetiv o e im p e sso a l, co m o acim a ex p osto . E sse s ig n ific a d o p rim á rio ta m b é m p erm ite fazer facilm en te a d istin çã o e n tre crença e C: a crença (v.) é o e m p e n h o n a v e rd a d e de u m a n o ç ã o q u a lq u e r a in d a q u e n ão v e­ rificável; o C. é u m p ro c e d im e n to de verifi­ ca çã o ou a p a rtic ip a ç ã o p o ssív el em tal pro­ ce d im en to . C om o p ro c e d im e n to de v erificação , qual­ q u e r o p e ra ç ã o co g n itiv a visa a u m objeto e te n d e a instaurar co m ele u m a relação da qual v e n h a a em erg ir u m a característica efetiva des­ te. P o rta n to , as in te rp re ta ç õ e s do C. q u e foram d ad as ao lo n g o da h istória da filosofia podem ser c o n sid e ra d a s in te rp re ta ç õ e s d essa relação e, co m o tal, re su m ir-se em d u as alternativas fu n dam en tais: 1- essa relação é u m a identidade ou s e m e lh a n ç a (e n te n d e -se p o r sem elhança u m a id e n tid a d e fraca e p arcial) e a operação co g nitiv a é u m p ro c e d im e n to de identificação com o objetivo ou de re p ro d u ç ã o dele; 2a a rela­ ção cognitiva é um a a p re se n taç ão do objeto e a o p e ra ç ã o co g n itiv a é u m p ro c e d im e n to de tra n sc e n d ê n c ia . 1A p rim eira in te rp re ta ç ã o é a m ais com um na filosofia o cid en tal. P od e, p o r sua v ez, ser di­ v id id a em d uas fases diferentes: A) na primeira, a id e n tid a d e ou a se m e lh a n ç a co m o objeto é e n te n d id a co m o id e n tid a d e ou sem elh a n ç a dos e le m e n to s do C. co m os e le m e n to s do objeto: p. ex., d os co n ceito s ou das re p resen ta çõ es com as coisas; B) na se g u n d a fase, a id en tid ad e ou a s e m e lh a n ç a re strin g e -se à ordem d os res­ p ec tiv o s elem e n to s: n esse caso , a o p eração de c o n h e c e r n ão c o n siste em re p ro d u z ir o obje­ to , m as as relações constitutivas do próprio objeto, isto é, a o rd e m d o s e le m e n to s . N a primeira fase, o C. é c o n sid e ra d o imagem ou retratado objeto; na s e g u n d a fase, tem co m o objeto a m esm a re la ção q u e u m m ap a tem com a paisa­ g em q u e re p re se n ta . A) A p rim eira fase co n stitu i a form a como a d o u trin a do C. surg iu no m u n d o antigo, ou seja, co m o id e n tific a ç ã o . O s pré-socráticos ex p rim iram -se co m o p rin cíp io de q u e "o se­ m e lh a n te c o n h e c e o se m e lh a n te ", pelo qual E m p é d o cles afirm ava q u e c o n h e c e m o s a terra

CONHECIMENTO com a terra, a ág u a co m a ág u a, etc. (Fr. 105, Diels). P o d em ser co n sid e rad as v arian tes d esse princípio ta n to a afirm ação de H eráclito, "o q u e se m o ve c o n h e c e o q u e se m ove" (ARISTÓTE­ LES , De an, I, 2, 405 a 27), q u a n to a de A naxág oras, s e g u n d o a q ual "a alm a c o n h e c e o contrário co m o co n trário " (TEOFR., De sens., 27). Esta últim a na re a lid a d e p a re c e alud ir m ais a um a co n d iç ã o do C . — q u e p re s su p õ e a d i­ v ersid ad e co m o dirá A ristó teles (De an, II, J, 417 a 16) — do q u e ao p ró p rio ato co g n itiv o , com o in d ica a ju stifica çã o q u e lh e é d ad a: "o sem elh an te, co m efeito, n ão p o d e sofrer a ação do sem elh a n te". M as foram P latão e A ristó teles que e sta b e le c e ra m em b a se s só lid a s essa in ter­ p retação do c o n h e c im e n to . O e n c o n tro do s e ­ m elhante co m o s e m e lh a n te , a h o m o g e n e id a ­ de, são os c o n c e ito s q u e P latão utiliza para explicar os p ro c e sso s co g n itiv o s (Tím, 45 c, 90 c-d): c o n h e c e r significa to rn a r o p e n sa n te sem elh an te ao p e n sa d o . C o n s e q ü e n te m e n te , os grau s de C. m o d e la m -se s e g u n d o os g rau s do ser: n ào se p o d e c o n h e c e r co m certeza, isto é, com "firm eza" o q u e n ão é firm e, p o rq u e o C. só faz re p ro d u z ir o o bjeto ; p o r isso "o q u e é absolutam ente é ab so lu ta m en te cognoscível, e n ­ quanto o q u e n ão é de n e n h u m m o d o d e n e ­ nhum m o d o é co g n o scív el" (Rep, Al a). D essa m aneira, P latão e s ta b e le c e u a c o rre s p o n d ê n ­ cia entre ser e ciên cia, q u e é o C. v e rd a d e iro ; entre n ão ser e ig n o rân cia; en tre devir, q u e está en tre o ser e o n ão ser, e o p in ião , q u e está entre o C. e a ig n o rân cia. E d istin g u iu os s e ­ guintes g rau s do C: le su p o siç ão ou conjectura, que tem p o r o b jeto so m b ra s e im a g e n s das coisas sen sív eis; 2a a o p in iã o a c re d itad a , m as não verificada, q u e tem p o r o bjeto as co isas naturais, os sere s v iv o s e, em g eral, o m u n d o sensível; 3° ra zã o científica, q u e p ro c e d e p o r via d e h ip ó te se s e te m p o r o b jeto os en te s m a­ tem áticos; 4e in telig ên cia filosófica, q u e p ro c e ­ de d ialeticam en te e tem p o r o b jeto o m u n d o do ser (Ibid., V I, 509-10). C ada um d esse s g rau s de C. é a có p ia ex ata do seu re sp e c tiv o o bjeto : de m odo q ue n ão há dúvida de q ue, p ara Platão, conhecer é e s ta b e le c e r u m a re la ç ã o de id e n ti­ dade com o o b jeto em cad a caso , ou u m a re la­ ção q ue se a p ro x im e o m áx im o p o ssív el da identidade. D e form a aind a m ais rig o ro sa esse ponto de vista era re aliza d o p o r A ristó teles. Segundo ele, o C. em ato é id ên tico ao o bjeto , se se tratar de C. sen sív el; é a p ró p ria form a inteligível (ou su b stân cia ) do o b jeto , se se tra ­ tar de C. in teleg ív el (De an, II, 5, 417 a). E n­

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CONHECIMENTO te n d e -se q u e a facu ld ad e sen sív el e o in telecto p o te n c ia l são sim p les p o ssib ilid a d e s d e c o n h e ­ cer, m as q u a n d o essas p o ssib ilid ad es se re ali­ zam , a p rim eira p ela ação das co isas ex tern as, a s e g u n d a pela aç ão do in telecto ativo, id en ti­ ficam -se co m os re sp e c tiv o s objeto s; p. ex., o u v ir u m so m (sen sa çã o em ato) identifica-se co m o p ró p rio som , assim co m o e n te n d e r um a s u b stân cia id en tifica-se co m a p ró p ria s u b stâ n ­ cia. P o rta n to , A ristó teles p o d e afirm ar, em g e ­ ral, q u e "a ciên cia em ato é id ên tica ao seu o bjeto " (Dean., III, 7, 431 a 1). Essa d o u trin a aristo télica p o d e ser c o n sid e ­ ra d a a fo rm a típ ica da in te rp re ta ç ã o do C. co m o id e n tid a d e co m o o bjeto . C om ex c eçã o d o s estó ic o s, tal in te rp re ta ç ã o d o m in a o cu rso u lterio r da filosofia g rega. P ara E picu ro , o fluxo d o s sim u lac ro s (eidolã) q u e se d estacam das co isas e se im p rim em na alm a serv e p rec isa­ m e n te p ara g ara n tir a se m e lh a n ç a d as im agens com as co isas (Ep. aHerod, 51). E Plotino utiliza o m esm o c o n ce ito p ara esclarece r a n atu reza do co n h e c im e n to . T em -se C . q u a n d o a p arte da alm a co m q u e se c o n h e c e unifica-se com o o bjeto c o n h e c id o e form a u m to d o co m ele. S e a alm a e esse o bjeto p e rm a n e c e m dois, o o b je­ to p e rm a n e c e ex terio r à p ró p ria alm a e o c o ­ n h e c im e n to d ele p e rm a n e c e in o p e ra n te . S ó a u n id a d e d os d ois te rm o s co n stitu i o c o n h e c i­ m en to v e rd a d e iro (Enn, III, 8, 6). N a filosofia cristã, p e rm a n e c e a m esm a in te rp retaç ão , q ue, aliás, serv e de fu n d a m e n to p ara as m ais ca ra c­ terísticas e s p e c u la ç õ e s te o ló g ic as e a n tro p o ló ­ g icas. S eg u n d o S. A g o stin h o , o h o m e m p o d e c o n h e c e r D eu s p o rq u a n to ele m esm o é a im a­ g em de D eus. M em ória, inteligência e v o n tad e, em su a u n id a d e e d istin ção recíp o cra, re p ro d u ­ zem no h o m e m a trin d a d e divina de Ser, V erd a­ de e A m o r (De Trin, X , 18). Essa n o ç ão , com algu m as v ariaçõ es secu n d árias, d o m in o u toda a te o lo g ia m ed ie v a l e ta m b é m foi o fu n d a m en to da a n tro p o lo g ia. M as d ela d erivava u m a c o n se ­ q ü ê n c ia im p o rta n te p elo C. q u e o h o m e m tem das co isas in ferio res a D eus. O re c o n h e c im e n ­ to d a o rig e m d iv in a d o s p o d e re s h u m a n o s (e n q u a n to im a g e n s d os p o d e re s divinos) to r­ na os p o d e re s h u m a n o s re la tiv a m e n te in d e ­ p e n d e n te s d o s o u tro s o b jeto s co g n o scív eis e ac en tu a a im p o rtâ n c ia do sujeito co g n o sc e n te . Para A ristó teles, a facu ld ad e sen sív el e o in ­ te le c to p o te n c ia l n a d a m ais sã o q u e se u s p ró p rio s o b jeto s "em p o tên cia": n ão têm n e ­ n h u m a in d e p e n d ê n c ia em face d esse objeto s. M as S. A go stin ho afirm a, ao co n trário , q u e "todo C. (notitia) d eriv a, ao m esm o te m p o , do cog-

CONHECIMENTO n o scen te e do co n hecido " (Ibid., XIX, 12), p o n d o no m esm o plano o objeto conhecido e o sujeito c o g n o sc e n te co m o c o n d iç ã o do c o n h e c im e n ­ to. S. T o m ás, e m b o ra s a n c io n a n d o ex p lic ita­ m e n te o p rin cíp io de q u e to d o C . o co rre per

assimilationem (Contra Gent, II, 77) ou perunionem (In Sent, I, 3,1) da coisa c o n h e c i­

da e do o b jeto c o g n o sc e n te , afirm a q u e "o o bjeto c o n h e c id o está no c o g n o sc e n te s e g u n ­ do a n atu re za do p ró p rio c o g n o sc e n te " (De ver, q. 2, a. 1; S. Th, I, q. 83, a. 1); e assim no co n h e ce r o p eso do sujeito v em co n trab alan çar o p eso do o b jeto . E sse p o n to de vista leva a a te n u a r a te se aristo télica, s e g u n d o a q ual o C. em ato é o p ró p rio o bjeto . S. T o m ás, c o m e n ta n ­ do a afirm ação aristo télica de q u e "a alm a são to d as as co isas" (De an, III, 8.431 b 20) a a te ­ n ua no sen tid o d e q u e a alm a n ão são as c o i­ sas, m as as espécies d as co isas. M as a e sp écie o u tra coisa n ão é sen ão a form a d as co isas. C , p o rta n to , é ab stra çã o : a form a ab straíd a da m a­ téria in d iv idu al, o u n iv e rsa l ab stra íd o do p a rti­ cular. A ssim , para S. T o m ás, a e sp écie e s ta b e le ­ ce o lim ite da id en tid ad e en tre o co g n o sc en te e o co n h e cid o ; m as o c o n h e c e r p e rm a n e c e co m o id en tid a d e . P or sua v ez, S. B o a v en tu ra, ap e sar de c o n tin u a r fiel ao p rin cíp io a g o stin ian o do lumen directivum q u e o h o m e m h a u re d ire ta­ m en te d e D eu s e do q ual d eriv am certeza e v e rd a d e , ad m ite q u e o m aterial do C. é co n sti­ tu íd o p o r espécies q u e são im ag en s, sim ilitu d es ou "q u a se -p in tu ra s" d as p ró p ria s co isas (In Sent., I, p. 17, a. 1, q. 4). Se, em seu últim o p e ­ río d o , a E scolástica assinala o p re d o m ín io de u m a in te rp re ta ç ã o d iferen te do c o n h e c e r (v. m ais ad ia n te), o R e n ascim en to co n se rv a, em geral, a in terp retação do C. co m o id en tid ad e ou sem elh a n ç a. N icolau de C usa diz ex p lic ita m en ­ te q u e o in telecto n ão e n te n d e se n ão se assi­ m ila ao q u e d ev e e n te n d e r (De mente, 3-; De ludo globi, 1; De venatione sapientiae, 29) e F icin o diz q u e o C. é a u n iã o esp iritu al com algum a form a espiritual (Theol.plat., III, 2). O s n atu ralistas n ão se ex p rim e m de m o d o d iferen ­ te: B ru n o re to m a o p rin cíp io p ré-so crático de q u e to d o se m e lh a n te se c o n h e c e p elo se m e ­ lh an te e C am panella afirm a: "nós co n h e ce m o s o q u e é p o rq u e n o s to rn a m o s s e m e lh a n te s a ele" (Met., I, 4, 1). O p itago rism o d os fu n d ad o res da n ova ciência, L eo nard o, C o p érn ico , K epler, G alilei, tem p ressu p o sto an álog o : o p ro ced im e n to m atem ático da ciência ju stifica-se p o rq u e a p ró ­ pria n atu reza tem estru tu ra m atem ática: no s e n ­ tido de q u e, co m o diz G alilei, os ca racteres em

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CONHECIMENTO q u e está escrito o livro da n atu re za são triân ­ g u lo s, círculos, etc. (Opere, V I, p ág , 232). N a filosofia m o d e rn a , a d o u trin a d e q u e c o ­ n h e c e r é u m a o p e ra ç ã o d e id en tificação assu ­ m e três fo rm as p rin cip a is, se g u n d o se c o n sid e ­ re q u e essa o p e raç ão é realizada m ed iante: d) a criação q u e o sujeito faz do objeto; b) a co n s­ ciência; c) a lin g u ag em . a) O id ealism o ro m ân tico e as su as ram ifica­ çõ es c o n te m p o râ n e a s afirm aram a te se de que c o n h e ce r significa pôr, isto é, p ro d u zir ou criar, o objeto: tese q u e p erm ite re c o n h e c e r no p ró ­ p rio o bjeto a m an ifestaç ão ou a ativ id ad e do sujeito. Essa te se foi afirm ada em p rim e iro lu ­ g ar p o r F ichte. "A re p re se n ta ç ã o em geral", disse ele, "é irre p u ta v e lm e n te u m efeito do N ão -eu. M as no E u n ão p o d e h a v e r a b s o lu ta m e n te n a d a q u e seja u m efeito; p o rq u e o E u é aq u ilo q u e ele se p õ e e n ad a há n ele q u e n ão seja p o sto p o r ele m esm o . P o rta n to , o p ró p rio N ãoeu d ev e ser efeito do Eu, aliás do E u ab so lu to , e assim n ão te m o s u m a ação so b re o E u v in da de fora, m as u m a ação do eu s o b re si m esm o" (Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, 1). D esse p o n to de vista, o N ão-eu, isto é, o objeto, não é se­ n ão o p ró p rio Eu, isto é, o sujeito: a id en tid ad e co m o objeto é, assim , g ara n tid a p ela p ró pria definição de c o n h e c im e n to . Esta, o b v ia m en te, é u m a definição arbitrária q u e n ão tem efeitos so b re o êxito ou o m alog ro d os atos efetivos de C. e n ão serv em , p o r isso, n em p ara dirigir nem para esclarecer esses atos. C o n tu d o , o princípio afirm ado p o r F ichte foi u m d os q u e co n stitu í­ ram os p ilares do m o v im e n to ro m ân tico (v.

ROMANTISMO); e aí tem origem um dos lugares-

c o m u n s m ais p ern ic io so s e e n fa d o n h o s, o do "p o d er criativ o do esp írito ". S ch ellin g só fazia e sc la re c e r seu sig n ificad o q u a n d o afirm ava: "No p ró p rio fato do sa b e r — q u a n d o eu sei — o o bjetivo e o sub jetiv o estã o tã o u n id o s que n ão se p o d e d izer a q u al d o s d ois ca b e a p rio ri­ d ad e. N ão há aí u m p rim e iro e u m seg u n d o : am b o s são c o n te m p o râ n e o s e co n stitu em um to d o ú n ic o (System des transzendentalen Idealismus, Intr., §1). O c o n c e ito do co n h e ce r co m o p ro cesso de unificação d o m in a to d a a fi­ losofia de H egel. A p ro tag o n ista d essa filosofia, a Id éia, é a co n sc iên c ia q u e se realiza, gradual e n e c e ssa ria m e n te , co m o u n id a d e co m o obje­ to. D iz H egel: "A Id éia é, em p rim e iro lugar, u m d o s ex trem o s d e u m silo g ism o , p o rq u an to é o c o n ce ito q u e tem co m o fim, acim a de tudo, a si m esm o co m o re a lid a d e sub jetiv a. O outro ex trem o é o lim ite do subjetivo, o m u n d o obje­

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tivo. O s dois ex trem o s são id ên tico s no ser Idéia. Sua u n id a d e é, em p rim e iro lu g ar, a do conceito, q ue n u m d ele s é so m e n te p o r si e, no outro, so m e n te em si; em s e g u n d o lugar, a realidade é ab strata n u m d eles, ao p asso q u e no outro está em su a ex te rio rid a d e co m p leta. Essa u n id ad e co lo ca-se p o r m eio do co n h ecer" (Wissenchft derLogik, III, cap . II; trad. it., p. 282). A ssim , c o n h e c e r é o p ro c e sso q u e unifi­ ca o m u nd o su b jetiv o co m o m u n d o objetivo, ou m elho r, q u e le v a à c o n s c iê n c ia a u n id a ­ de necessária d e am b o s. T o d a s as fo rm as do idealism o c o n te m p o râ n e o atêm -se a essa d o u ­ trina. C roce a in tro d u z c h a m a n d o o co n ce ito de "concreto": e p o r esse caráter d ev er-se-ia excluir que ele seja "universal e vazio", "univer­ sal e inexistente" e ad m itir q u e ele c o m p re e n ­ de em si "o ato ló g ico u niversal" e o "p en sa­ m ento da re alid ad e", q u e é a p ró p ria re alid ad e (Lógica, 4 ã ed., 1920, p. 29). G en tile afirm ava: "Conhecer é identificar, su p e ra r a alte rid ad e enquanto tal" (Teoria generale dello spirito, 2, 5 4). Por sua v e z B radley, m ais criticam en te, considerava essa id en tificação co m o u m ideallimite irrealizável em n ós, m as re a liz a d o na Consciência ab so lu ta, na q ual C. e ser, v e rd a d e e realidade, co in cid e m (Appearance and Reality, p. 181). b) O esp iritu alism o m o d e rn o , em to d as as suas m an ifestações, c o n sid e ra o c o n h e c e r c o ­ m o um a relação in tern a da consciência co n sigo mesma. Essa in terp retação g aran te a id en tid ad e do conhecer com o o bjeto , já q u e d esse p o n to de vista o o bjeto n ão é s e n ã o a p ró p ria c o n s ­ ciência ou, p elo m e n o s, u m p ro d u to seu ou uma m anifestação sua. S c h o p e n h a u e r assim ex ­ primia essa d o u trina: "N in g uém n u n ca p o d e sair de si para identificar-se im e d iata m en te com coisas d iferentes de si: tu d o a q u ilo de q u e alguém tem C. seg u ro , p o rta n to im ed iato , e n ­ contra-se d en tro da su a co n sciên cia" (Die Welt, II, cap. I). C on sciência, sen tid o ín tim o , in trospecção, intuição são os te rm o s q u e, a p artir do Rom antism o, a filosofia m o d e rn a em p re g a para indicar o C. ca ra cte riza d o pela id e n tid a d e com seu objeto, p o r isso privilegiado na sua certeza. A consideração b ásica é q u e, se o sujeito n ão pode co n h ecer o q u e é d iferen te d ele, o ú n ico C. verdadeiro e o rig in ário é o q u e ele tem de si mesmo. C om b ase n isso , M aine de B iran via no "sentido íntim o" o ú n ic o C. p ossível e in ter­ pretava os seu s te ste m u n h o s co m o v e rd a d e s metafísicas (Essais sur les fondements de Ia psychologie, 1812). O utras v ezes, a consciência,

CONHECIMENTO ta m b é m c h a m a d a d e in tu ição , é in te rp retad a co m o a re v e la ç ã o q u e D eu s faz ao h o m e m de u m atrib u to fu n d a m en tal seu (p. ex., do ser, co m o afirm a ROSMINI, NUOVOsaggio, § 473) ou do seu p ró p rio p ro c e s so criativ o , co m o faz GIOBERTI (Intr. alio studio delia fil, II, p. 183). D e m o d o a n á lo g o , a in tu iç ã o d e q u e fala B ergson "com o v isão direta do espírito p elo es­ pírito" (Lapensée et le mouvant, p. 37) é um p ro c e d im e n to p riv ileg iad o de C , no q ual o ter­ m o o bjetivo é id ên tico a sub jetiv o. E q u a n d o H usserl q u is esclarece r o m o d o de ser p riv ile­ g ia d o da co n sc iên c ia ch a m o u d e "p erce p ç ão im an en te" a p e rc e p ç ã o q u e a co n sc iên c ia tem d as p ró p ria s e x p e riê n c ia s v iv id as: p o rq u e o o b je to d ela p e rte n c e à m e sm a c o rre n te de co n sciên cia a q u e p e rten ce a p e rc e p ç ã o ( Ldeen, I, § 38). C om b a se n isso , H usserl co n sid e ra a p e rc e p ç ã o im a n e n te , isto é, a c o n sc iê n c ia co m o ab so lu ta e n ecessária: nela "não há lugar para d isc o rd â n cia , a p a rên cia, p o ssib ilid ad e de ser o u tra coisa. Ela é u m a esfera de p o siç ão ab soluta" (Lbid, § 46). A ex em p lificaçâo dad a até aq u i p o d e b astar p ara esse p o n to de vista, q u e tem g ra n d e difusão n a filosofia c o n te m p o ­ râ n e a e, ap e sar da v a rie d a d e d as su as e x p re s ­ sõ e s, é m u ito u n ifo rm e. c) P a ra d o x a lm e n te o p o sitiv ism o ló g ico tra n sp o rto u p ara a lin g u ag em , em q u e v ê a o p e ra ç ã o co g nitiv a p ro p ria m e n te dita, a d o u tri­ n a do ca rá te r id en tific ad o r d essa o p e ra ç ã o . W ittg en stein afirm a q u e "a p ro p o siçã o p o d e ser v e rd a d e ira ou falsa e n q u a n to é u m a im agem (Bild) d a re alid ad e" (Tractatus, 4.06). E p ro va q u e a p ro p o siç ã o é u m a im ag em da re alid ad e do seg u in te m o d o : "Só c o n h e c e re i a situ aç ão p o r ela re p re s e n ta d a se c o m p re e n d e r a p ro p o ­ sição. E c o m p re e n d o a p ro p o siç ã o sem q u e o seu se n tid o m e seja ex p lic ad o " (Lbid, 4.021). À prim eira vista, acrescen ta ele, "não parece q u e a p ro p o siç ã o , p. ex. do m o d o co m o está im p ressa no p a p e l, seja u m a im a g e m da reali­ d ad e de q u e trata. M as, à p rim eira v ista, n em a n o ta ç ã o m u sical p a re c e ser im ag em da m úsica, assim co m o n ossa escrita fo n ética (com letras) n ão p a re c e ser a im ag em d e n o ssa líng u a fala­ da. N o e n ta n to , esses sím b o lo s d em o n stra m ser, até no se n tid o co m u m do te rm o , im agens do q u e re p re se n ta m " (Lbid., 4.011). A in sistên ­ cia na n o ç ão da im agem in d ica claram en te q u e W ittg en stein co m p artilh a a v elh a in te rp retaç ão do co n h e ce r co m o o p e raç ão d e identificação. E de fato diz: "D eve h av er algo de id ên tico na im a g e m e no o b jeto re p re s e n ta d o p ara q u e

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aq u ela p o ssa ser a im ag em d este" (Ibid., 2.161). M as esse algo é "a form a de figu ração" (Jbid, 2.17). E a form a d e figu ração é a "p o ssib ilid ad e de q u e as co isas estejam u m a em re la ç ã o à outra assim co m o os ele m e n to s da im a g e m es­ tão en tre si" {Ibid, 2.151). O q u e p a re c e re m e ­ ter à in te rp re ta ç ã o B da re la ç ã o id en tificad o ra. B) A se g u n d a fase da d o u trin a do C. co m o id en tificação n asce co m a filosofia m o d e rn a, m ais p re c isa m e n te co m D esca rte s. O p rin cíp io ca rtesian o de q u e a idéia é o ú n ic o o bjeto im e­ d iato do C , e q u e , p o r isso, a ex istên cia da idéia no p e n sa m e n to n ad a diz so b re a ex istê n ­ cia do o b jeto re p re s e n ta d o , o b v ia m e n te p u n h a em crise a d o u trin a do c o n h e c e r co m o identifi­ cação com o objeto: n esse caso, o objeto é cla­ ra m e n te in alca n ç áv el. D esca rte s co n tin u ara a co n c e b e r a idéia co m o "qu ad ro " ou "im agem " da coisa (Méd., III, m as n ele já a p a re c e a te n ­ d ên cia (cf. Regulae, V ) de v e r no C , m ais do q u e a assim ilação ou a id e n tid a d e da idéia com o objeto c o n h e c id o , a assim ilação e a id en tid a­ d e d a ordem d as id éias co m a ordem d o s o b ­ je to s c o n h e cid o s. M aleb ran ch e, q u e ad m ite q u e o h o m e m v ê d ire ta m e n te em D eu s as idéias d as co isas e, p o r isso, co n sid e ra m u ito p ro b le ­ m ática a re a lid a d e das co isas, ad m ite, to d av ia, essa re a lid a d e co m o fu n d a m en to da o rd e m e da su cessão d as idéias no h om em ; o rd em e su ­ c essão n ão teriam sen tid o , p e n sa ele, se n ão coincidissem co m a o rd em e a su cessão d as co i­ sas a q u e se referem as id éias (Entretien surla métaphysique, I, 6-7). S p in o za, q u e ad m ite três g ê n e ro s de C . (p e rc e p ç ã o sen sív el e im ag in a­ ção; razão co m su as n o ç õ e s c o m u n s e u n iv e r­ sais; a ciência intuitiva), co n sidera q u e só os dois ú ltim o s p e rm ite m d istin gu ir o v e rd a d e iro do falso, p o rq u e tiram a idéia do seu iso lam e n to e a v in cu lam às o u tras idéias, situ a n d o -a na o r­ d em n ec essária q u e é a p ró p ria S u b stân cia d i­ vina (Et., II, 44). L ocke, q u e d efine o C. co m o "a p erc ep çã o do aco rd o e da ligação, ou do d e ­ saco rd o e do c o n tra ste d as id éias en tre si" (En­ saio, IV, 1, 2), ex ig e, p ara q u e ele seja real, q u e "as id éias c o rre sp o n d a m ao s seu s a rq u é ti­ pos" (Ibid, IV, 4, 8) e p o r isso d efin e a v e rd a ­ de co m o "a u n ião ou a se p a ra ç ã o de sig n o s, co n fo rm e as co isas sign ificad as p o r elas c o n ­ co rd em ou d isc o rd e m en tre si" (Ibid., IV, 5,2). L ocke co n sid e ra q u e essa referên cia a o bjeto s reais n ão é in d isp en sáv el ao C. m atem á tic o e ao m oral, m as q u e é in d isp en sáv el ao "C. real", q u e tem p o r o bjeto su b stâ n c ia s (Ibid, IV, 4, 12). Para Leibniz, ao lad o do C. apriori, fu n d a­

CONHECIMENTO do em p rin cíp io s co n stitu tiv o s de in telecto , há u m C . re p re se n ta tiv o q u e co n siste na se m e ­ lh an ça en tre as re p re s e n ta ç õ e s e a coisa (Nouv. ess, IV, 1, 1). M as um e o u tro C. fazem da alm a "um e sp e lh o v iv o e p e rp é tu o do u n iv erso ", p o rq u e am b o s se b aseiam na ligação q u e todas as co isas criad as têm en tre si, d e tal m o d o que "cada su b stâ n c ia s im p le s te m re la ç õ e s que e x p rim e m to d as as o u tras relaçõ es" (Monad., 56). E m to d a s essas o b se rv a ç õ e s, e m b o ra não se n e g u e o caráter d e se m e lh a n ç a ou d e im a­ g em d o s e le m e n to s co g n itiv o s, o C. é e n te n d i­ do p ro p ria m e n te co m o id e n tid a d e co m a or­ dem objetiva. Seu o b jeto é p ro p ria m e n te essa o rd em e o c o n h e c e r é a o p e ra ç ã o q u e te n d e a id en tificar ou a id en tificar-se co m ele, e não co m os elem e n to s sin g u lares en tre os q uais in­ te rc e d e . A p ro p ó sito , a "rev o lu ção co p ern icana" d e K ant n ão co n siste em in o v ar radi­ calm ente esse conceito de C , m as em adm itir que a o rd em objetiva d as co isas tem co m o m o delo as co n d iç õ e s do C , e n ão v ice-v ersa. A s cate­ g o rias são , na v e rd a d e , c o n sid e ra d a s p o r Kant co m o "con ceitos q u e p rescrev em leis apriori ao s fe n ô m e n o s e, p o rta n to , à n atu re za com o c o n ju n to d e to d o s os. fe n ô m e n o s" (Crít. R. Pura, § 26). O s fe n ô m en o s, n ão se n d o "coisas en tre si m esm as", m as "re p re se n ta ç õ e s de coi­ sas", para tan to p recisam , ser p e n sa d o s e, assim, estar su b m e tid o s às co n d iç õ e s do p e n sa m en to q u e são as categ o rias. P ara K ant, a o rd em obje­ tiva da n atu reza, p o rtan to , outra coisa n ão é se­ n ão a o rd em d o s p ro c e d im e n to s fo rm ais do co n h e c e r, na m ed id a em q u e essa o rd em se in co rp o ro u em u m c o n te ú d o objetivo, q u e é o m aterial sen sív el da in tu ição . D esse p o n to de vista, c o n h e c e r n ão é u m a o p e ra ç ã o d e assim i­ lação ou de id en tificação , m as de síntese; e co m o tal d ev e ser co n sid e rad a so b o u tro asp ec­ to, do C. co m o tra n sc e n d ê n c ia . P o d e-se con­ sid e ra r q u e essa fase da d o u trin a do C. co­ m o assim ilação , se g u n d o a q ual o o bjeto da assim ilação é a o rd em , situa-se en tre a prim eira e a se g u n d a in te rp re ta ç ã o p rin cip al do co n h e­ cer, ou seja, en tre a in te rp re ta ç ã o do co n hecer co m o assim ilação e a in te rp re ta ç ã o do co n h e­ cer co m o tran sc en d ê n c ia .

2- P ara a se g u n d a in te rp re ta ç ã o fu n dam en ­ tal, o C. é u m a o p e ra ç ã o de tran scen d ên cia. S eg u n d o essa d o u trin a , c o n h e c e r significa vir à p resen ça do o bjeto , ap o n tá-lo ou, co m o term o p referid o p ela filosofia c o n te m p o râ n e a , trans­ cender em sua d ireção . O C. é e n tã o a o pera­ ção em v irtu d e da q u al o p ró p rio o bjeto está

CONHECIMENTO presente: ou p re se n te , p o r assim dizer, em p e s ­ soa, ou p re se n te em u m sig n o q u e o to rn e rastreável, descritível ou previsível. Essa in terp re­ tação n ão se funda em n e n h u m p ressu p o sto de caráter a s s im ila d o r ou id e n tific a d o r: p ara ela, os p ro c e d im e n to s do c o n h e c e r n ão visam converter-se no p ró p rio o bjeto do co n h e ce r, mas a tornar p resen te esse objeto co m o tal ou a estabelecer as co n d iç õ e s q u e p o ssib ilitam sua presença, isto é, p erm item prevê-la. A p resen ça do objeto ou a p re d iç ã o d essa p re se n ç a c o n s ­ titui a função efetiva do C , s e g u n d o essa in ter­ pretação. É n os estó ic o s q u e essa in te rp re ta ç ã o a p a ­ rece pela p rim eira vez. E les ch a m a v am de ev i­ dentes as co isas q u e "vêm p o r si m esm as ao nosso C." co m o p. ex. ser dia; e c h a m a v am de "obscuras" as co isas q u e co stu m a m e sc a p a r ao C. h um ano . E ntre estas ú ltim as, d istin g u iram as o bscu ras p o r n atu re za , q u e n u n ca se nos tornam ev id en te s, e as o b scu ra s m o m e n ta n e a ­ mente, m as ev id en tes p o r n atu reza (p. ex., a cidade d e A te n a s p a ra q u e m m o ra n e la ). Estas d uas ú ltim as e sp é c ie s d e co isas são co m ­ preendidas p o r m eio d e signos ou sinais: indi­ cativos p ara as co isas o b sc u ra s p o r n atu re za (como, p. ex., o su o r é assu m id o co m o sinal dos p oros invisíveis) e rememoratívos p ara as coisas ev id en te s p o r n atu re za , m as m o m e n ta ­ neam ente o b sc u ra s (assim co m o a fum aça é um sinal d e fogo) (SEXTO EMPÍRICO, Adv. dogm, II, 141; Pirr. hyp, II, 97-102). São re c o n h e c í­ veis, n essa e m p o sta ç ã o , d u a s te se s fu n d a m e n ­ tais: Ia o C. e v id e n te co n siste na p re se n ç a da coisa, pela q ual a coisa "se m anifesta p o r si" ou "se c o m p ree n d e p o r si", isto é, c o m p re e n d e -se com o coisa, p o rta n to co m o d iferen te d a q u e le que a co m p ree n d e ; 2a o C. n ão ev id en te o co rre por m eio de signos ou sinais q u e re m etem à própria coisa sem q u e te n h am q u a lq u e r id en ti­ dade ou se m e lh a n ç a co m ela. Essa d o u trin a d o s estó ic o s ficou esq u e cid a durante m u ito s sécu lo s, n e g lig en c iad a, co m o possibilidade p ela h istória da filosofia. R ea p a­ rece so m e n te na E scolástica do séc. XIV, com os p en sa d o re s q u e criticam a d o u trin a da species com o in term ed iária do c o n h e c im e n to . A specíes, co m o se viu, é u m a te se típica da d o u ­ trina da assim ilação: na v e rd a d e é, ao m esm o tem po, ato do C. e o ato do o bjeto (com o form a ou substância d este últim o). M as D un s Scot distinguiria u m C. "que ab strai da ex istên cia atual da coisa", d an d o -lh e o n o m e de " abstrativo", e u m "C. da coisa e n q u a n to ex iste n te e p re se n te

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CONHECIMENTO em su a ex istên cia atual", d a n d o -lh e o n o m e de intuitivo (Op. Ox., II, d. 3, q. 9, n. 6). O ra, o C. in tu itiv o (q u e, p o r u m la d o , é c o n h e c im e n to sen sív el e, p o r o u tro , é c o n h e c im e n to in te le c­ tual, q u e tem p o r o b jeto a su b stân cia ou n a tu ­ reza co m u m , p. ex., a n atu re za h u m a n a ) n ão te m n e c e ssid a d e d e esp é c ie s, p o rq u e n ele está d ire ta m e n te p re se n te a coisa em p esso a. S ó o C. ab strativ o , isto é, o C. in telectu al do u n iv e r­ sal, tem n e c e ssid a d e d e e sp é c ie s (Ibid., I, d. 3, q. 7, n. 2). É a essa d o u trin a q u e a E scolástica do séc. X V I faz re fe rê n c ia . D u ra n d de St.P o u rç ain s afirm a q u e a e sp écie é inútil p o rq u e o p ró p rio o bjeto está p re s e n te ao se n tid o , e, atrav és do s e n tid o , ta m b é m ao in te le cto (In Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10); p o rta n to , o C. u n iv e r­ sal é so m e n te C. confuso, p ois q u e m tem o C. u n iv e rsa l — p. ex., da ro sa — c o n h e c e confu­ sa m e n te o q u e é in tu íd o d istin ta m e n te p o r q u e m v ê a ro sa q u e lh e está p re se n te (Ibid, IV, d. 49, q. 2, 8). P ara P ed ro A u réo lo , o objeto do C. é a p ró p ria co isa e x te rn a q u e , g raç as ao intelecto, assu m e u m ser intencional ou objeti­ vo q u e n ão é diferente d a realid ad e individual da coisa (In Sent, I, d. 9, a. 1). O ck h am , p o r sua v ez, tran sform a a te o ria sco tista do C. intuitivo em teo ria da e x p eriên cia e afirm a a p resen ça im ed iata da coisa ao C. intuitivo. "Em n en h u m C. in tu itiv o, sen sív el ou in telectivo ", diz ele, "a coisa se co n stitu i em ser in te rm ed iá rio en tre a p ró p ria co isa e o ato d e co n h e ce r; m as a coisa m esm a, im e d iata m en te e sem in term ed iário e n ­ tre ela e o ato, é vista e ap reen d id a" (In Sent, I, d. 27. q. 3, I). O C. in tu itiv o p erfeito, q u e tem p o r o bjeto u m a re a lid a d e atual ou p re se n te , é a ex p e riê n c ia (Ibid, II, q. 15, H ); o im p erfeito , q u e c o n c e rn e a u m o b jeto p a s sa d o , d eriv a s e m p re de u m a ex p e riê n c ia (Ibid, IV, q. 12, Q ). P or su a v ez, o C. ab strativ o , q u e p re sc in ­ d e da re a lid a d e ou d a irrea lid a d e do o bjeto , d eriv a do intuitivo e é u m a intentioou signum. O c k h am re p ro d u z assim a in te rp re ta ç ã o dos estó ico s: q u a n d o a re a lid a d e n ão está p resen te ao C. "em p esso a", an u n c ia -se ou m an ifesta-se no sig n o ou sinal. A v a lid a d e do sig n o c o n ­ ceituai, q u e, ao co n trá rio do ling ü ístico , n ão é arb itrário ou c o n v e n c io n a l, m as n atu ral, p ro ­ v ém do fato de ser p ro d u z id o n a tu ra lm e n te , isto é, ca u sa lm e n te , p elo p ró p rio o bjeto , de tal m o d o q u e su a c a p a c id a d e de representar o objeto n ad a m ais é q u e essa c o n e x ã o cau sai com ele (Quodl, IV, q. 3). P ara ilustrar a função lógica do sig n o , ou sinal, O ck h am utiliza o c o n ­ ceito da supositio, q u e fora e la b o ra d o p ela ló g i­

CONHECIMENTO ca do séc. X III (V. SIGNO, SUPOSIÇÃO). NO séc. X V II, os p o n to s b ásico s d essa d o u trin a foram re p ro d u z id o s p o r H o b b es, p ara q u e m a s e n sa ­ ção , q u e é o fu n d a m e n to d e to d o C , é o m an i­ festar-se da coisa atrav és do m o v im e n to q u e ela im p rim e ao ó rg ão do sen tid o (Leviath., I, 1; De corp, 25 § 2). B erk e ley su b stitu ía a ca u sali­ d ad e d a coisa ex te rn a, à q u al esse s filósofos atribuíam o C , pela ca u salid ad e de D eus: teoria se g u n d o a q ual as co isas c o n h e c id a s são sinais p elo s q u ais D eu s fala ao s s e n tid o s ou à in teli­ g ên cia do h o m e m p ara in stru í-lo s o b re o q u e d ev e fazer (Principies of Knowledge, §§ 108-09) é u m a tran sição teo ló g ica d essa d o u trin a do c o ­ n h e cim e n to . E n trem en tes, co m o cartesian ism o e e sp e c ia lm e n te co m L ocke, iam -se fo rm an d o c o n ce ito s do C. co m o o p e ra ç ã o u nificad ora: u n ificad o ra de idéias, isto é, d e esta d o s in te ­ riores à co n sc iên c ia, m as cuja in terlig ação co r­ re sp o n d e ou d ev e c o rre s p o n d e r à d as co isas (v. I a B). E lim inada p o r B erk eley a su b stân cia m aterial e p o r H u m e to d a e sp é c ie d e su b stâ n ­ cia, a lig ação en tre as id éias v in h a ex a u rir a fu n ção da ativ id ad e co g no scitiv a. A ssim , H u m e co n sid e ra q u e to d a o p e ra ç ã o co g n o scitiv a é u m a o p e ra ç ã o de conexão en tre as idéias; o p e ­ ração de c o n e x ã o é o racio cín io p elo q ual se m ostra a ligação q u e as idéias têm en tre si, in­ d e p e n d e n te m e n te de sua ex istên cia real; o p e ­ ração de c o n e x ã o en tre as id éias é o C. da re alid ad e de fato. N o p rim e iro caso , a c o n ex ão é certa p o rq u e n ão d e p e n d e d e n e n h u m a c o n ­ d ição d e fato; no se g u n d o caso b a se ia -se na relação de cau salid ad e. M as essa m esm a re la­ ção n ão tem o u tro fu n d a m en to além da re p e ­ tição de certa su c essão de aco n tecim en to s e o háb ito q u e essa re p e tiç ã o d e te rm in a no h o ­ m em (Inq. Cone. Underst, IV, 1). Esse c o n ce ito do C. co m o o p e ra ç ã o d e c o ­ n ex ão ou de in terlig ação , q u e n ad a tem a v er com a identificação ou a assim ilação co m o o b ­ je to , é ch a m a d o p o r K ant de o p e ra ç ã o d e sínte­ se. A sín tese é, em g eral, "o ato de re u n ir d ife­ re n te s re p r e s e n ta ç õ e s e c o m p re e n d e r su a m u ltip licid a d e em u m C." (Crít. R. Pura, § 10). M as, p ara K ant, a sín tese co g nitiv a n ão é so ­ m en te u m a o p e ra ç ã o d e lig ação en tre re p re ­ se n ta ç õ e s: é ta m b é m u m a o p e ra ç ã o de ligação d essas re p re s e n ta ç õ e s co m o o b jeto p o r m eio da intu ição . "Se u m C. d ev e ter u m a re alid ad e objetiva", diz K ant, "isto é, referir-se a u m o b ­ je to e n ele ter significado e se n tid o , o o bjeto d ev e p o d e r ser d ad o d e u m m o d o q u a lq u e r. Sem isso, os co n ceito s são v azios e, se com eles

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CONHECIMENTO se p en sa r, esse p e n sa m e n to n ad a conhecerá, m as só estará b rin c a n d o co m as rep resen ta­ çõ es. D ar u m o b jeto — q u e n ão d ev a ser opi­ n a d o in d ire ta m e n te , m as re p re s e n ta d o im edia­ ta m e n te na in tu ição — n ad a m ais é q u e ligar su a re p re s e n ta ç ã o co m a ex p e riê n c ia (seja esta real ou p ossível)" (Jbid, A nalítica d os princí­ p io s, cap . II. seç. II). P en sar u m o bjeto e conhe­ cer u m objeto n ão são , pois, a m esm a coisa. "0 C. c o m p re e n d e dois p o n to s: em p rim eiro lugar, u m c o n ce ito p elo qual u m o bjeto em geral é p e n sa d o (a categ o ria) e, em se g u n d o lugar, a intuição co m q u e ele é d ado" (Jbid., § 22). A in­ tu iç ão tem o p riv ilég io de referir-se im ediata­ m e n te ao o b jeto e de, p o r m eio dela, o objeto ser d a d o (Jbid, § 1). P or isso, n ão há dúvida de q u e a o p e ra ç ã o de c o n h e c e r te n d e a tornar o o bjeto p re s e n te em su a re alid ad e: u m objeto, e n te n d a -se , q u e é fe n ô m e n o , já q u e a "coisa em si", p o r definição, é estran ha a q ualquer re­ lação cognitiva. O co n c e ito de C. — ise n to da limitação relativ ista su g erid a a K ant e a to d a filosofia i ilum inista p ela co lo ca çã o de D escartes e ls> ' ck e — , m as co m o o p e ra ç ã o de referir-se ou re la cio n ar-se co m o o bjeto e, p o rta n to , tam­ b é m co m o p ro c e sso p elo q ual o o bjeto se ofe­ re ce ou se a p re se n ta em p esso a, foi ad o tad o p ela fe n o m e n o lo g ia c o n te m p o râ n e a e pelas su a s d iv ersas c o rren te s. "A cad a ciência", diz H usserl, "co rresp o n d e u m cam p o objetivo com o d o m ín io d as su a s in d ag aç õ e s; a to d o s os seus C , isto é, ao s seu s e n u n c ia d o s co rreto s, corres­ p o n d e m d e te rm in a d a s in tu iç õ e s q u e consti­ tu em o fu n d a m en to d e su a leg itim id ad e, por­ q u a n to n elas os o b jeto s do ca m p o se d ão em p esso a e, ao m e n o s p arc ia lm en te , co m o origi­ n ários" (Idem, I, § 1). A ssim , a ex p eriên cia, que ab ra n g e to d o o C. natural, é u m a o p e raç ão in­ tuitiva atrav és da q ual u m objeto específico, a coisa, é d ad a na sua realid ad e originária. N esse sen tid o , a e x p eriên cia é u m atofundante, não substituível p o r u m sim ples im aginar. P o r outro lad o , o C . g eo m étric o , q u e n ão in v estig a reali­ d a d e s m as p o ssib ilid ad es id eais, tem co m o ato fu n d a n te a v isão da essên cia: essa v isã o , exata­ m e n te co m o a p e rc e p ç ã o em p írica, to rn a atual e ap resen ta u m objeto em pessoa: este, porém , n ão é a coisa da e x p eriên cia, m as a essência (Jbid, § 8). C o n sid era n d o o C. de u m p o n to de vista m ais geral, p o d e -se d izer q u e "toda espé­ cie de ser tem p o r essên cia seu s m o d o s de ciarse e, p o rtan to , seu m éto d o de C ." (Jbid, § 79); e a p e sq u isa fe n o m en o ló g ica é, no p ro jeto de

CONHECIMENTO H usserl, a an álise d esse m o d o s de ser co m o "m odos de d ar-se ". A n a lo g a m e n te , p ara N . H artm ann o c o n h e c im e n to é u m p ro c e sso de tran sc en d ê n c ia cujo te rm o é o ser "em si" {MetaphysikderErkenntnis, 1921, 4a e d , 1949, pp. 43 e ss.). S e g u n d o essa an álise, d eix o u de ter sen tid o co n tra p o r atividade e passividade no co n h ecim en to (c o n trap o siç ão q u e , n ascid a de Kant, fora assu m id a co m o m o tiv o p o lêm ic o pelo R om antism o a p artir F ichte). N ão ca b e mais distin gu ir no c o n h e c im e n to o asp ecto ati­ vo, que K ant ch a m a v a de "e sp o n ta n e id a d e in ­ telectual", do a sp e c to p assiv o , q u e p ara K ant era a sensibilidade. N ão se trata n em m esm o de reduzir to d o o C. à ativ id ad e do eu, co m o fize­ ra Fichte e, co m ele, to d a a filosofia ro m ân tica, que co n sid ero u essa ativ id ad e "infinita", isto é, sem lim ites (e p o r isso criad o ra), e co m o tal a exaltou. H oje, p are ce fictício até m esm o a p e rs ­ pectiva histórica q u e p rev alec eu no R o m an tis­ m o e que o p u n h a a co n c e p ç ã o "clássica" (anti­ g a e m ed iev al), p ara a q u al a o p e ra ç ã o de conhecer seria d o m in a d a p elo objeto d ian te do qual o sujeito é p assiv o , c o n c e p ç ã o m o d e rn a ou rom ântica, p ara a q u al o C. seria ativ id ad e do sujeito e m anifestação de seu p o d e r criador. Trata-se, re a lm e n te , d e u m a p ersp ectiv a típica do R om antism o e de u m a o p o siç ã o teó rica, que serviu a fins p olêm icos. N em a filosofia an ­ tiga nem as m o d e rn a s c o n c e p ç õ e s objetivistas pretendem e sta b e le c e r ou p re s su p õ e m a "p as­ sividade" do sujeito c o g n o sc e n te . A o sujeito cognoscente p erten ce com certeza a iniciativa do conhecer, aliás, é ju sta m e n te essa iniciativa q u e define a sua su b jetiv id ad e. M as isso n ão im p li­ ca nem ativ id ad e n em p a ssiv id ad e no sen tid o estabelecido p o r F ichte. A iniciativa do sujeito visa tornar o objeto p re se n te ou m anifesto, para tornar ev id en te a p ró p ria re a lid a d e , p ara m an i­ festar os fatos. A q u ilo q u e se ch a m a a b re ­ viadam ente c o n h e c e r é u m co n ju n to de o p e ra ­ ções, às v ezes m u ito d iferen tes en tre si, q u e, em cam pos diversos, v isam a fazer em ergir, em suas características p ró p ria s, certo s o b jeto s e s ­ pecíficos. D esse p o n to de vista, o "p ro b lem a do C ", tal co m o se co n fig u ro u na se g u n d a m e ­ tade do séc. XIX, co m o co lo cação ro m ân tica ou polêm ica co n tra ela, co m o p ro b le m a de ativi­ dade ou p assiv id ad e do esp írito ou de sua "ca­ tegoria eterna", q u e seria a ativ id ad e teo rética, é u m p ro b lem a q u e se d esfez so b a ação da fenom enologia, p o r u m lad o , e d a filosofia da ciência e do p rag m atism o , p o r o u tro . N o â m b i­ to da fe n o m en o lo g ia, H eid e g g er fala de u m a

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CONHECIMENTO a n u laç ão do p ro b lem a do co n h e c im e n to . O c o ­ n h e c e r n ão p o d e ser e n te n d id o co m o aq u ilo p elo q u e o ser-aí (isto é, o h o m em ) "vai de dentro p ara fora de su a esfera interior, esfera n a q ual estaria, a n te rio rm e n te , en c ap su la d o : ao co n trá rio , o ser-aí, em co n fo rm id ad e co m seu m o d o de ser fu n d a m en tal, j á está s e m p re fora, ju n to ao en te q u e lh e v e m ao e n c o n tro no m u n d o já d e sc o b e rto " (Sein undZeit, § 13). S e­ g u n d o H eid eg g er, c o n h e c e r é u m m o d o d e ser do ser-n o -m u n d o , isto é, do tran sc en d e r do su ­ je ito p ara o m u n d o . Ele n u n ca é a p e n a s u m v er ou u m c o n tem p la r. D iz H eid eg g er: "O ser no m u n d o , e n q u a n to o cu p a r-se, é to m a d o e o b n u b ila d o p elo m u n d o co m q u e se o cu p a" (Ibid., § 13). O co n h e ce r é, em p rim eiro lugar, a ab sten ­ ção do o cu p ar-se, isto é, d as ativ id ad es co m u n s da via co tid ian a, co m o m an u se ar, co m erciar, etc. Essa a b sten çã o possibilita o sim p les "obser­ v ar, q u e é, de q u a n d o em q u a n d o , o d eter-se ju n to a u m en te , cujo ser é ca ra cte riza d o p elo fato de estar presente, de estar aqui". N essa a b s­ te n ç ão d e to d o co m ércio e utilização, realiza-se a p e rc e p ç ã o d a sim p les p resen ça . O p e rc e b e r c o n cre tiza -se n as fo rm as de in te rp ela r e d iscu ­ tir algo co m o algo. C om b a se n essa in te rp re ta ­ ção , e n te n d id a em sen tid o am p lo , a p e rc e p ­ ção se to rn a d e te rm in a ç ã o . O p e rc e b id o ou o d e te rm in a d o p o d e ser e x p re sso em p ro p o si­ çõ es, b e m co m o m an te r-se e p reserv a r-se n e s ­ sa q u a lid a d e d e p ro p o sto . A re te n ç ã o p e rc e p tiva de u m a p ro p o siç ã o so b re ... já é, em si m esm a, u m a m an eira d e ser no m u n d o e n ão p o d e ser in te rp retad a co m o u m p ro c e sso em v irtu d e do q ual u m sujeito re ce b e ria im agens d e algo, im ag en s q u e seriam , em c o n se q ü ê n ­ cia, e x p e rim e n ta d a s co m o "internas", de tal so r­ te q u e su scitariam o p ro b lem a de su a c o n c o r­ d ân cia com a re a lid a d e "externa" (Ibid., § 13). O "p ro b lem a do C." e o "p ro b lem a da re alid a­ de" (v. REALIDADE), do m o d o fo rm u lad o pela filosofia do séc. XIX, são , p o is, elim in ad o s por H eidegger. T o d as as m an ifestaçõ es ou g rau s do c o n h e c e r (o b se rv a r, p e rc e b e r, d e te rm in a r, in terp retar, discutir, n e g a r e afirm ar) p re ssu ­ p õ e m a re la ção do h o m e m co m o m u n d o e só são p o ssív eis co m b ase n essa relação . Essa co n v icção hoje é c o m p artilh a d a p o r fi­ ló so fo s de p ro c e d ê n c ia d iferen te, ain d a q ue m u ita s v e z e s so b te rm in o lo g ia s d iv ersas. O fu n d a m e n to q u e a su g ere é s e m p re o m esm o: o a b a n d o n o do p ressu p o sto d e q u e os "estados in tern o s" (idéias, re p re s e n ta ç õ e s , etc.) são os o b jeto s p rim ário s de c o n h e c im e n to , e q u e só a

CONHECIMENTO p artir d ele s p o d e m (se é q u e p o d em ) ser inferi­ d o s o b jeto s de o u tra n atu reza. A re n ú n c ia a e sse p re s s u p o s to está e x p líc ita , p. ex ., no p rag m atism o de D ew ey , p ara q u e m o C. é sim ­ p le sm e n te o re su lta d o de u m a o p e ra ç ã o de investigação ou, m ais p recisam en te, é a asserção v álida em q u e tal o p e ra ç ã o d e se m b o c a . D esse p o n to de vista, o o bjeto do C. n ão é u m a e n ­ tid ad e ex tern a a ser alcançad a ou inferida, m as é "o g ru p o de d istin çõ es ou características c o ­ n ex as q u e e m e rg e co m o c o n stitu in te d efinido de u m a situ aç ão reso lv id a e é co n firm ad o na co n tin u a ç ã o da in v estig ação " {Logic, cap. XXV, II; trad. it., p. 666). V isto q u e, fre q ü e n te m e n te , são u sa d o s em certa in v estig aç ão o b jeto s c o n s ­ titu íd o s em in v estig aç õ e s p re c e d e n te s, estes ú ltim o s às v e z e s são e n te n d id o s co m o o bjeto s ex isten tes ou reais, in d e p e n d e n te m e n te d a p ró ­ pria in v estig ação . N a re a lid a d e , são in d e p e n ­ d en tes da in v estig ação em q u e o ra en tram , m as são o b jeto s só em v irtu d e de u m a o u tra in v esti­ g aç ão de q u e resu ltam . N o e n ta n to , se g u n d o D ew ey, esse sim p les eq u ív o c o é a b a se d a c o n ­ ce p ção "rep resen tativa" do co n h e c im e n to . "O ato d e referir-se a u m o bjeto , q u e é u m o bjeto c o n h e c id o só em v irtu d e de o p e ra ç õ e s to ta l­ m en te in d e p e n d e n te s do p ró p rio ato de refe­ rên cia, é c o n sid e ra d o , p ara fins de u m a teoria do C , co m o co n stitu in te p o r si m esm o d e u m caso de C. re p resen ta tiv o " {Logic, p. 667). E ssas id éias in flu en ciaram e c o n tin u a ra m in flu en cian d o p o d e ro s a m e n te a filosofia c o n ­ te m p o râ n e a e são a b ase da d isso lu ção do p ro ­ b lem a do C , q u e é u m a d e su as características. A d isso lu ção d e sse p ro b lem a fav o receu a ló g i­ ca p o r u m lad o , e a m eto d o lo g ia d as ciên cias, p o r o u tro . Esta ú ltim a, e s p e c ia lm e n te , é a h er­ deira c o n te m p o râ n e a de tu d o o q u e ficou de v álid o em p ro b le m a s q u e eram h a b itu a lm e n te trata d o s p ela teoria do c o n h e c im e n to . A c a ra c ­ terística fu n d a m en tal do o b jeto da m eto d o lo g ia das ciên cias hoje é o caráter o p e ra c io n a l e ante cip a tó rio d o s seu s p ro c e d im e n to s. A qui alu ­ d ire m o s às p rim eiras id en tificaçõ es h istóricas d esses cara cte re s, re m e te n d o seu estu d o m ais d e ta lh a d o ao v e rb e te METODOLOGIA. São re c o ­ n h e cid o s pela ciência só na m ed id a em q u e o objetivo fu n d a m en tal d esta n ão é a d escriçã o , m as a p rev isão . E sse objetivo fora atrib u íd o à ciência p o r F. B acon; na filosofia m o d e rn a , é reafirm ado p o r A u g u ste C om te. M as só m ais ta rd e os p ró p rio s cien tistas o re c o n h e c e ra m e o assu m iram ex p lic ita m en te . Isso co m eç o u a o co rre r q u a n d o M ach re to m o u a tese de q u e o

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CONHECIMENTO o bjeto do C . é u m g ru p o de se n sa ç õ e s. "Um a cor", d iz M ach, "é um o bjeto físico e n q u a n to c o n sid e ram o s, p. ex., su a d e p e n d ê n c ia d as fon­ tes de lu z (o u tras co res, calo r, e sp aço , e tc ); m as se a co n sid eram o s em su a d e p e n d ê n c ia da retin a, é u m o b jeto p sic o ló g ic o , u m a sen sa ção . N o s d o is ca m p o s, a d iferença n ão está n a s u b s ­ tância, m as na d ire çã o da in v estig ação " (Ana­ lyse der Empfindungen, 1900; 9 a ed., 1922, p. 14). S ob esse p rism a, n ão são os co rp o s q ue g era m as se n sa ç õ e s, m as são os c o m p le x o s de s e n sa ç õ e s q u e fo rm am os co rp o s; estes n ão são m ais do q u e símbolos p ara in d icar tais co m ­ p lex o s. C om isso, p o d e p are ce r q u e M ach se inclina p ara a teoria re p re se n ta tiv a do c o n h e c i­ m en to . M as, n a re a lid a d e em sua te o ria do c o n ce ito , é claram en te re c o n h e c id o o caráter o p e ra c io n a l do C. O c o n ce ito científico, se g u n ­ do M ach, é u m sig n o q u e re su m e as re aç õ e s p o ssív e is do o rg an ism o h u m a n o a u m c o m p le ­ x o de fatos. U m a lei natural, p. ex., é u m a re s­ trição d as p o ssib ilid a d e s de e x p e c ta ç ã o , isto é, u m a d e te rm in a ç ã o d a p re v isã o (Erkenntníss undIrrtum, 1905, cap. X X III). O s m esm o s c o n ­ ceito s h av iam sid o a p re se n ta d o s p o r H ertz em Princípios da mecânica (1894), em b o ra sem o a b a n d o n o total da c o n c e p ç ã o p ictórica do c o ­ n h e c im e n to . "O p ro b lem a m ais d ireto e, em certo sen tid o , o m ais im p o rta n te q u e o n o sso C. da n atu re za d ev e ca p acita r-n o s a reso lv er", dizia H ertz, "é a an te c ip a ç ã o d o s a c o n te c im e n ­ to s futuros, de tal m o d o q u e p o ssa m o s d isp o r as n o ssa s ativ id ad es p re se n te s de ac o rd o com essa a n te cip a çã o . C om o b a se p ara a so lu ç ão d esse p ro b lem a, u tilizam o s o C. d o s ac o n te ci­ m en to s já o co rrid o s, q u e foi o b tid o p ela o b se r­ v aç ão cau sai e p e lo e x p e rim e n to p re o rd e n a d o . A o fazerm o s in ferências a p artir do p assa d o p ara o fu tu ro a d o ta m o s c o n sta n te m e n te o s e ­ g u in te p ro c e d im e n to : fo rm am o s im ag en s ou sím b o lo s d o s o b jeto s e x te rn o s e a form a q u e d am o s a tais sím b o lo s é tal q u e as c o n se q ü ê n ­ cias n ec essária s da im ag em p e n sa d a são sem ­ p re as im ag en s d as c o n se q ü ê n c ia s na n atu reza das co isas re p re se n ta d a s" (Prinzipien derMechanik, In tr.). O d e se n v o lv im e n to p o ste rio r da ciên cia elim in o u os re síd u o s de c o n c e p ç ã o re ­ p resen ta tiv a q u e ain d a p e rm a n e c ia m n as d o u ­ trin as de M ach e de H ertz. E m 1930, u m dos fu n d ad o res da m ecân ica quântica, D irac, já p o ­ dia afirm ar: "O ú n ico o b jeto da física teó rica é calcular re su ltad o s q u e p o ssa m ser co n fro n ta­ d o s co m e x p e rim e n to s e é a b so lu ta m e n te su ­ pérfluo dar um a d escrição satisfatória de to d o o

CONHECIMENTO, TEORIA DO desenvolvim ento do fen ô m en o " {ThePrincipies of QuantumMechanics, 1930, p. 7). N esse p o n ­ to, a teoria do C. re so lv e u -se c o m p le ta m e n te na m etodologia d as ciências. Isso significa q ue, enquanto o p ro b lem a do co n h e cim en to co m o problem a de u m o bjeto "externo" a ser alcan ça­ do a partir de algu m d ad o "interno" foi d e sa p a ­ recendo, p ro p ô s-se em seu lu g ar o p ro b lem a da validade d os p ro c e d im e n to s efetivos, v o lta­ dos para a verificação e o co n tro le d o s objetos nos diferentes c a m p o s de in v estig ação .

CONHECIMENTO, TEORIA DO (in Epistemology, rar. Gnoseology, fr. Gnoséologie, rar. Epistemologie, ai. Erkenntnistheorie, rar. Gnoséologie, it. Toeria delia conoscenza, gnoseologia [m uito u s a d o ] , epistemologia [m eno s usado]). E m italian o , o te rm o m ais u sa d o é gnoseología. E m alem ão , o te rm o Gnoséologie, cunhado p elo w olffiano B au m garten , tev e p o u ­ co sucesso, ao p asso q u e o te rm o Erkenntnistheorie, e m p re g a d o p elo k a n tia n o R einh old (Versuch einer neuen Theorie des menschlichen Vorstellungsvermôgens, 1789) foi co m u m ente aceito. E m in g lês, o te rm o Epistemology foi in trod uzid o p o r J. F. F errier (Institutes of Metaphysics, 1854) e é o ú n ico e m p re g a d o com um ente; Gnoseology é b em ra ro . E m fran ­ cês, em p re g a -se c o m u m e n te Gnoséologie e, mais raram en te, Epistemologie. T o d o s esse s n o ­ mes têm o m esm o sign ificad o: n ão in d icam , com o m uitas v e z e s se crê in g e n u a m e n te , u m a disciplina filosófica geral, co m o a lógica, a ética ou a estética, m as u m m o d o de trata r u m p ro ­ blem a n ascid o de u m p re s su p o s to filosófico específico, no âm b ito d e d e te rm in a d a co rren te filosófica, q u e é o id ealism o (no sen tid o lu, v. IDEALISMO). O p ro b lem a cujo tra ta m e n to é tem a específico da teoria do C. é a realid ad e d as co i­ sas ou, em geral, do "m u n d o ex te rn o ". A teoria do C. ap ó ia-se em d ois p re ssu p o sto s: Ia o c o ­ nhecim ento é u m a "categoria" do esp írito , u m a "forma" da ativ id ad e h u m a n a ou do "sujeito", que p od e ser in d ag ad a em u n iv ersal e em a b s­ trato, isto é, p re sc in d in d o d o s p ro c e d im e n to s cognoscitivos p artic u la re s de q u e o h o m e m dispõe fora e d en tro da ciência; 2g o objeto im ediato do c o n h e c im e n to é, co m o acred itav a Descartes, a p e n a s a idéia ou a re p re se n ta ç ã o ; e a idéia é u m a e n tid a d e m en tal, exista a p e n a s "dentro" da co n sciên cia ou do sujeito q u e a pensa. T rata-se, p o rta n to , de verificar: ís se a essa idéia c o rre sp o n d e u m a coisa q u a lq u e r, ou entidade "externa", isto é, ex iste n te "fora" da consciência; 2Q no caso de u m a re sp o sta n eg ati­

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CONHECIMENTO DE SI va, existe algum a diferença, e qual, en tre idéias irreais ou fantásticas e id éias reais. E sses são p ro b le m a s já d isc u tid o s p o r B erk eley e re to m a ­ d o s p o r F ichte em Doutrina da ciência (1794), q u e co n stitu em o tem a d o m in a n te de u m a rica literatu ra filosófica, e s p e c ia lm e n te alem ã, da se g u n d a m e ta d e do sécu lo p a ssa d o ao s p rim ei­ ro s d e c ê n io s d este. P or o rig em e fo rm u lação , a teo ria do C. é idealista. M esm o as so lu ç õ e s ch a­ m ad as "realistas" são fo rm as de id ealism o , na m ed id a em q u e as en tid a d e s q u e re c o n h e c e m co m o "reais" são , m u ito fre q ü e n te m e n te , c o n s­ ciências ou co n teú d o s de consciência. A Escola de M arb u rg o (H. C o h en , 1842-1918; P. N atorp, 1854-1924) identificava a teoria do C. co m a ló ­ gica e re d u zia a três as d iscip lin as filosóficas fu n d am en tais: lógica, ética e estética. O Proble­

ma do conhecimento na filosofia e na ciência da época moderna (4 v o ls., 1906-50) de E rnest

C assirer (1874-1945) é a o b ra m ais im p o rta n ­ te d e d ic a d a ao p ro b le m a do c o n h e c im e n to n esse sign ificad o trad icio n al. A te o ria do C . co m eç o u a p e rd e r o p rim a d o e ta m b é m o sign ificad o q u a n d o se co m eç o u a d u v id ar d a v a lid a d e de u m de se u s p re s su p o s ­ to s, isto é, q u e o d ad o . p rim itiv o do c o n h e c i­ m en to e "interior" à co n sc iên c ia ou ao sujeito e q u e , p o rta n to , a co n sc iên c ia ou o sujeito d e ­ v em ir p ara fora de si m esm o s (o q u e, em p rin ­ cípio, é im p o ssível) p ara a p re e n d e r o objeto. K ant, em "R efutação do Id ealism o ", ac re sc en ta­ da à 2a ed., de Crítica da Razão Pura (1787), d e m o n stra ra a su a falta d e fu n d a m e n to . O s an alistas c o n te m p o râ n e o s ta m b é m rejeitam o p rim e iro p re s su p o s to da teo ria do C , isto é, q u e o c o n h e c im e n to é u m a form a ou categ o ria u n iv e rsa l q u e p o d e ser in d a g a d a co m o tal: assu m em co m o o b jeto d e in d ag aç ão os p ro c e ­ d im en to s efetivos ou a lin g u ag em científica, e "c o n h ec im en to " em geral. P o rtan to , a teoria do C. p e rd e u seu sign ificad o na filosofia c o n te m ­ p o râ n e a e foi su b stitu íd a p o r o u tra discip lina, a metodologia (v.), q u e é a an álise d as c o n d i­ çõ e s e d os lim ites de v alid ad e d os p ro ced im e n ­ tos de inv estig ação e d os in stru m en to s ling ü ísti­ cos do sa b e r científico. CONHECIMENTO DE SI. O sab er objetivo, isto é, n ão im ed iato n em p riv ileg iad o , q u e o h o m e m p o d e ad q u irir de si m esm o . E sse te r­ m o tem , p o rta n to , u m sign ificad o d iferen te de autoconsciência(y), q u e é a co n sciên cia a b so ­ luta ou infinita, e ta m b é m de consciência (v.), q u e s e m p re im plica u m a re la ç ã o im ed iata e p riv ileg iad a do h o m e m co n sig o m esm o ; lo g o,

CONJECTURA

um C. direto e infalível, embora incomunicável, de si. É como convite ao C. de si mesmo (e não à consciência) que Platão interpreta o lema socrático "Conhece-te a ti mesmo"; em Carmides, é interpretado como convite a "saber que se sabe", isto é, à determinação e ao inven­ tário do que se sabe. Nós mesmos não nos po­ mos a fazer o que não sabemos, mas procura­ mos as pessoas competentes e nos confiamos a elas; tampouco permitimos que quem depende de nós faça o que não saiba fazer bem e de que não tenha ciência" (Carm, 171 c). Kant afirmou que só podemos conhecer-nos a nós mesmos do mesmo modo como conhecemos as outras coisas, isto é, só como fenômeno; se­ gundo Kant, o C. de si requer, como qualquer outra espécie de C, duas condições, a saber: ls um elemento unificador a priori que, nesse caso, é o eu penso ou apercepção pura (v.); 2um dado empírico múltiplo que é o do sentido interno (Crít. R. Pura, § 2A). Os que negam a realidade da consciência reconhecem que o C. de si não se diversifica por modalidade e cer­ teza do C. dos outros ou das outras coisas (RYLE, Concept ofMind, cap. VI). CONJECTURA (gr. eimoíoc; lat. Conjec­ tura; in. Conjecture, fr. Conjecture, ai. Konjektur, it. Congetturd). Segundo Platão, o menor grau de conhecimento sensível, aquele que tem por objeto as sombras e as imagens das coisas, assim como a opinião, no mesmo grau sensível, tem por objetos as próprias coisas (Rep, VI, 510 a 511 e). Nicolau de Cusa reto­ mou essa palavra para indicar a natureza de todo o conhecimento humano, que, como C, seria um conhecimento por alteridade, isto é, que remete ao que é outro, à verdade como tal, e só por essa razão está em relação com a ver­ dade e dela participa. "A C. é uma asserção po­ sitiva que participa por alteridade da verdade enquanto tal" {De conjecturis, I, 13). CONJUNÇÃO (lat. Conjunctio; in. Conjunction; fr. Conjonction; ai. Konjunktion; it. Congiunzione). Na Lógica escolástica, é uma propositio hypothetica formada de duas catego­ rias unidas pelo sinal "et" {"Sócrates currit et P/ato sede/). Na Lógica contemporânea, é uma proposição molecular formada por duas (ou mais) proposições atômicas, unidas pelo sinal "v" ou "." ("p . q"). Em ambas as Lógicas, a con­ dição necessária e suficiente para a verdade de uma C. é que ambas as proposições compo­ nentes sejam verdadeiras. G. P.

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CONOTAÇÃO

CONJUNTO (in. Set, Aggregate, fr. Ensemble, ai. Menge, it. Insieme). G. Cantor, fundador da teoria do conjunto, definiu o C. como "cole­ ção, em um todo único, de objetos definidos e distintos que se oferecem a nossa intuição ou a nosso pensamento: objetos que são denomina­ dos elementos do C." (Beitráge zur Begründung der Transfinite Mengenlehre, 1895, § 1). Essa noção (já implícita nos trabalhos prece­ dentes de Cantor, a partir de 1878) atribui aos conjuntos as seguintes características: Ia existe C. toda vez que um múltiplo pode ser pensado como uno, isto é, toda vez que um múltiplo pode ser agregado segundo uma regra. 2a O C. é internamente determinado, no sentido de que, em virtude da regra que o constitui e do princípio do terceiro excluído, sempre se pode decidir se um objeto qualquer pertence ou não ao C. 3a O C. é uma multiplicidade coe­ rente no sentido de que seus elementos podem estar juntos (Zusammensein) sem contradição. Nesse sentido, a "totalidade de todos os objetos pensáveis" não é um C, porque contraditória. 4a A existência do C. é objetiva, isto é, indepen­ dente do pensamento ou da língua que o ex­ prime. 5a Como unidade o C. sempre pode constituir o elemento de um outro conjunto. Baseado em tais caracteres, Cantor compa­ rava o C. com a idéia de Platão, que também é a unidade objetiva de uma multiplicidade (v. IDÉIA). Cantor utilizou a teoria dos C. como fundamento do conceito de infinito atual (v. INFINITO); a partir dele, foi adotada como axiomatização da matemática. Enquanto os lógicos em geral não estabele­ ceram diferença entre C. e classe (v.), exceto para ressaltar o caráter abstrato da classe em vista do caráter concreto do C. (como faz, p. ex., QUINE, From a LogicalPointofView, VI, 3), algumas correntes da axiomática moderna (Von Neumann, Gõdel) consideram que o conceito de C. é mais restrito que o de classe, isto é, que existem classes que não são C. Sob esse ponto de vista, enquanto os C. são entidades lógicas bem determinadas, as classes são extensões de predicados, isto é, totalidades abertas que po­ dem ser continuamente enriquecidas por ope­ rações abstrativas efetuadas no mundo dos C. (Cf. BETH, Les fondements logiques des mathématiques, 1955, V.). CONOTAÇÃO (lat. Connotatio; in. Connotatíon; fr. Connotation; it. Connotazioné). O adjetivo connotativus aparece na lógica da Escolástica tardia, a propósito de uma distinção

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CONSCIÊNCIA2

dos nomes em absolutos e conotativos. Segun­ significados propostos para compreensão e do Ockham, são absolutos os nomes que não conotação. significam algo de modo primário e algo de CONSCIÊNCIA1 (in. Awareness; it. Conmodo secundário, como, p. ex., o nome "ani­ sapevolezzà). Em geral, a possibilidade de dar mal". São, porém, conotativos, os nomes que atenção aos próprios modos de ser e às pró­ significam algo de modo primário e algo de prias ações, bem como de exprimi-los com a modo secundário, como, p. ex.: os nomes rela­ linguagem. Essa possibilidade é a única base tivos, pertencentes ao gênero quantidade, e "cTe fato sobre a qual foi edificada a noção filo­ também nomes como "um", "bem", "verdade", sófica de CONSCIÊNCIA2. Platão e Aristóteles, que "intelecto", "potência", etc. (Summalog, 1,10). não tiveram este segundo conceito, conhece­ Essa distinção tornou-se habitual na lógica pos­ ram e descreveram o primeiro. terior. Na Idade Moderna, foi retomada por CONSCIÊNCIA2 (gr. ODveíôricHÇ; lat. ConsJames Mill, em Análise dos fenômenos do es­ cientia;in. Conscioussness=C.teórica, Conscience pírito humano (1829), que usava a palavra = C. moral; fr. Conscience, ai. Bewusst-sein = "conotar" todas as vezes em que o nome que C. teórica, Gewissen = C. moral; it. Coscienzd). indica diretamente uma coisa (que constitui, O uso filosófico desse termo tem pouco ou por isso, o seu significado) também inclui refe­ nada a ver com o significado comum (v. CONSrência a alguma outra coisa. O uso dessa pala­ CIÊNCIA1), de estar ciente dos próprios estados, vra foi radicalmente alterado por Stuart Mill, percepções, idéias, sentimentos, volições, etc, que a empregou para exprimir "o modo pelo quando se diz que um homem "está conscien­ qual um nome concreto geral serve para de­ te" ou "tem C", se não está dormindo, desmaia­ signar os atributos que estão implícitos no seu do, nem afastado, por outros acontecimen­ significado". Conseqüentemente, Mill distinguiu tos, da atenção a seus modos de ser e a suas C. de denotação: "Sempre que os nomes da­ ações. O significado que esse termo tem na dos aos objetos veiculam alguma informação, filosofia moderna e contemporânea, embora isto é, sempre que têm um significado, o signi­ pressuponha genericamente essa acepção co­ ficado não reside naquilo que eles denotam, mum, é muito mais complexo: é o de uma mas naquilo que eles conotam. Os únicos no­ relação da alma consigo mesma, de uma rela­ mes de objetos que não conotam nada são os ção intrínseca ao homem, "interior" ou "espiri­ nomes próprios; estes, a rigor, não têm signifi­ tual", pela qual ele pode conhecer-se de modo cado" {Logic, I, 2, § 5). Nesse sentido, os no­ imediato e privilegiado e por isso julgar-se de mes dos atributos são conotativos, porque a pa­ forma segura e infalível. Trata-se, portanto, de lavra "branco" não denota todos os objetos uma noção em que o aspecto moral— a pos­ brancos, mas conota o atributo da brancura. sibilidade de autojulgar-se — tem conexões Nomes conotativos são também "o primeiro im­ estreitas com o aspecto teórico, a possibilidade perador de Roma" ou "o autor da Ilíada", etc. de conhecer-se de modo direto e infalível. Esse conceito de C. correspondia àquele Mesmo do ponto de vista histórico, os dois que a Lógica de Port-Royal designara com o ter­ aspectos desse significado foram-se determi­ mo compreensão (v.). Ao par compreensão- nando paralelamente. Cristianismo e neoplatoextensão da lógica de Port-Royal corresponde, nismo elaboraram paripassu a noção da rela­ portanto, o par conotação-denotação da Lógica ção puramente privada do homem consigo de Stuart Mill e ao par intensão-extensão (v.) da mesmo, na qual o homem se desliga das coi­ lógica leibniziana e contemporânea. Algumas sas e dos outros e "retorna para si mesmo", vezes, porém, tentou-se distinguir C. de com­ testemunhando de si para si e criando uma preensão, adotando ambos os termos. Assim, J. indagação puramente "interior", na qual possa N. Keynes {FormalLogic, I, 2) e Goblot ( Traité conhecer-se com absoluta verdade e certeza. A delogique, § 72) definiram "C." de forma mais determinação histórica do conceito de C, por­ restrita, como aquilo que está compreendido tanto, é correlativa à de esfera de interioridade, na definição convencional de um termo, e como um campo específico no qual seja possí­ "compreensão" de modo mais amplo, como vel realizar indagações ou buscas que digam compreensão total que inclua todas as determi­ respeito à realidade última do homem e, com nações não excluídas pela própria definição. muita freqüência, ao que nela se revela, ou Tal distinção, porém, não foi seguida, e o ter­ seja, Deus mesmo ou um princípio divino. Por­ mo moderno "intenção" compreende ambos os tanto, o termo C, nesse sentido, significa não

CONSCIÊNCIA2 só a q u a lid a d e d e estar cien te de se u s p ró ­ p rio s c o n te ú d o s p síq u ic o s (p e rc e p ç õ e s ex te r­ n as ou atos au tô n o m o s do espírito, cf. CONSCIÊNCIA1), m as a atitude d e "retorno para si m esm o", de in d a g a ç ã o v o ltad a para a esfera de in terio rid a d e . O u so filosófico da n o ç ã o de C. s u p õ e o re c o n h e c im e n to da re a lid a d e d essa esfera e da sua n atu re za p riv ileg iad a. É só p o r existir u m a esfera de in te rio rid a d e , q u e é u m a re alid a­ de p riv ileg iad a, d e n atu re za su p e rio r ou, de q u a lq u e r form a, acessível ou m ais in d u b itáv el p ara o h o m e m , q u e a C. co n stitu i u m in stru ­ m en to im p o rta n te de c o n h e c im e n to e de o rie n ­ ta çã o prática. O ra, n ão p a re c e q u e a filosofia clássica da G récia te n h a re c o n h e c id o a re a lid a d e p riv ile­ g iad a da in te rio rid a d e esp iritu al. A n o ç ã o q ue, na filosofia de P latão, m ais se ap ro x im a da rela­ ção da alm a co n sig o m esm a é a d efin ição de o p in ião (ou p e n sa m e n to em geral) co m o "diá­ lo g o in terio r da alm a co n sig o m esm a" (Teet., 189 e; Sof., 263 e), m as o m ais n o táv el n essa definição é o fato d e utilizar a lin g u ag em p ara definir o p e n sa m e n to , m ais p re c isa m e n te a lin ­ g u a g e m p ara p e rg u n ta r e re sp o n d e r, isto é, co m o d iálo g o ou co m u n ica ção . P o rtan to , o fato o rig in ário e p riv ileg iad o é a lin g u ag em , n ão a in te rio rid a d e da alm a. A lém d isso , q u a n d o em Filebo, P latão q u e r refutar a tese de q u e o b em co n siste no p razer, a rg u m e n ta n d o q u e isso re ­ duziria a v id a h u m a n a a u m a v id a de m o lu sco fe ch ad o em su a casca, e n u m e ra os elem e n to s ou os asp ecto s da v id a q u e , n esse caso , falta­ riam ao h o m em : lembrança do p ra z e r fruído; opinião verdadeira, q u e é sab er q u e se está se n tin d o p razer; e raciocínio, q u e p erm ite a p rev isão cio p raz er futuro (Fil, 21 c). A ssim , se g u n d o P latão, o q u e co n stitu i aq u ilo q u e c h a ­ m am o s de C . (no sen tid o de c o n h e c im e n to dos n o sso s estad o s) n ad a m ais é q u e le m b ran ça , o p in ião e racio cín io , isto é, o co n ju n to d as ati­ v id ad es co g nitiv as em geral. E é q u a se s u p é r­ fluo o b serv a r q u e, q u a n d o P latão insiste no fato de q u e alg u n s p ro cesso s (em p rim e iro lu ­ g ar o ju íz o , na m ed id a em q u e se v a le do "é" ou do "não é") n ão p o d e m ser a trib u íd o s a o u tro ó rg ão q u e n ão a alm a, q u e in d ag a p o r si só so b re o q u e h á de co m u m n as sen sa çõ es (Teet, 185 e ss.), n ão faz referên cia a u m a e s ­ fera de in te rio rid a d e , m as p re te n d e insistir na in d e p e n d ê n c ia d os p ro cesso s ra cio n ais em re ­ lação ao s d ad o s sen sív eis. "A alm a só, p o r si" é co n tra p o sta à alm a q u e sofre as im p re ssõ e s sen sív eis e d e p e n d e d elas. E m A ristó teles, n ão

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CONSCIÊNCIA2 se e n c o n tra u m a n o ç ã o s e q u e r d e in te rio rid a d e esp iritu al. P or u m la d o , ele atrib u i a C , co m o o estar cien te d as p ró p rias p e rc e p ç õ e s sensív eis, ao s sen tid o s, de tal m o d o q u e, p o r ex., sen tir q u e se v ê p e rte n c e ao se n tid o d a v isão , assim co m o sen tir q u e se o u v e, ao sen tid o da au d i­ ção. N ão é p o ssív el q u e o esta r cô n sc io de v er p e rte n ç a a o u tro se n tid o q u e n ão o d a v isão , já q u e , n esse caso , h av eria u m a série infinita de ó rg ão s sen sív eis: o sen tir q u e se sen te q u e se se n te ... q u e se v ê (Dean, III, 2, 425 b 12). Por o u tro lad o , a n o ç ã o d e "p en sa m en to do p e n sa ­ m en to ", co m q u e ele d efine a v id a de D eus, n ad a tem a v e r co m a in te rio rid a d e da c o n s­ ciên cia: ex p rim e so m e n te a ex ig ên cia de q u e o p e n sa m e n to , q u e , p ara o h o m e m , p o d e ter co m o o b jeto até as p io res co isas, em D eu s só te n h a p o r o bjeto o q u e há de m ais ex c ele n te, isto é, o p ró p rio p e n sa m e n to (Mel, X II, 9, 1074 b 30 e ss.). O re co n h e cim e n to de u m a realid ad e interior p riv ileg iad a só ex iste nas filosofias q u e assu ­ m em co m o tem a a o p o siç ã o e n tre "interioridade" e "exterioridade", ou seja, q ue se cham am a si a tarefa de afastar o h o m e m d as relaçõ es co m as co isas e co m os o u tro s h o m e n s (isto é, co m a n atu re za e co m o m u n d o h istóricosocial) p ara to rn á-lo u m "sábio", p ara q uem essa relação seja indiferente. Isso o co rre na filo­ sofia p ó s-a risto télic a, a p artir do E stoicism o. S ab em o s q ue C risipo já insistia na distinção entre o p e n sa m e n to e a C. (o\)veíÔT|avç) do p e n sa ­ m en to (GALENO, Hipp. et Plat. dogm, V , 215). Essa d istin ção , com a q u al ta m b é m co m eça o u so d a p alav ra C. em se n tid o esp ecífico , p assa a se r lu g a r-c o m u m d a p re g a ç ã o m o ral do E stoicism o e d ep o is se to rn a tem a d o m in a n te e cen tral d a filosofia n eo p latô n ica ; esta acen tu o u a s e p a ra ç ã o en tre o h o m e m e o m u n d o , ela b o ­ ra n d o , p o rta n to , co m o fazia o C ristianism o p a­ ra le la m e n te , a n o ç ão d e te ste m u n h o interior p riv ileg iad o . F ílon u tiliza a n o ç ão de C. (De virtutibus, 124; De special legibus, II, 49) com o m e s m o s e n tid o m o ra l q u e se o b s e rv a em Eclesiastes (10, 20) e n as Epístolas de S ão P au ­ lo (Rom., 2, 15; 13, 15; II Cor, 4, 2; 5, 11). N es­ tas, significa te ste m u n h o m o ral a u tô n o m o , m a­ n ifestação direta da lei ou d e alg u m a v e rd a d e ao h o m e m . M as a e la b o ra ç ã o d ecisiva da n o ­ ção de C. é o b ra de P lo tin o . N ele, ap a re c e cla­ ra m e n te a d iferença e, às v e z e s, a o p o siç ã o en ­ tre o estar cô n scio (v. CONSCIÊNCIA1), co m o certa q u a lid ad e d o s co n teú d o s p síq u ico s, q u e Plotino c h a m a de c o -se n sa ç ã o (cwmaQr\aiç) ou co-

CONSCIÊNCIA2 seq ü ên cia (7tapaK oX oi30Tioiç), e o "reto rn o para si m esm o " ou o "reto rn o p ara a in terio ridade" ou a "reflexão so b re si m esm o ", q u e constituem a C. p ro p ria m e n te dita (Enn, V , 3, 1; IV, 7 ,1 0 ). E m bo ra o m esm o te rm o (oúvecnç) às vezes seja e m p re g a d o p ara as d u a s coisas (Enn, V , 8, 11, 23), P lo tin o d eix a e v id e n te a oposição e n tre os d ois sen tid o s: u m é a p er­ cepção do q u e se se n te ou se faz e o o u tro é o acesso à re a lid a d e in terio r do h o m e m . A firm a que há m u itas ativ id ad es, v isõ e s e aç õ es b e lís ­ sim as q u e n ão são a c o m p a n h a d a s p elo "estar cônscio"; p. ex., q u e m lê n ão está n e c e ssa ria ­ m ente cô n scio de q u e está le n d o , s o b re tu d o se lê com aten çã o ; q u e m ag e co m co ra g e m n ão está cô n scio d e esta r a g in d o c o ra jo sa m e n te en q uanto re aliza a ação ; e assim p o r d ian te. Aliás, esse tipo de consciência p o d e en fraq uecer a atividade q u e a c o m p a n h a : "Por si sós, essas atividades têm m ais p u re z a , m ais força e m ais vida; de tal m o d o q u e é sem esta re m cô n sc io s que aq u eles q u e ch e g a ra m à sa b e d o ria têm um a vida m ais in ten sa, q u e n ão se d isp e rsa em sen sa çõ es, m as re c o lh e -se in te ira m e n te em si m esm a" (Ibid, I, 4, 10). P re cisam e n te esse "recolher-se em si m esm o " é a C. co m o atitu d e ou co n d ição do sáb io q u e p re sc in d e do e x te ­ rior (das co isas e d o s o u tro s h o m e n s) e só olha para o interior. C on tra os estó ic o s q u e a c o n s e ­ lham o re c o lh im e n to em si m esm o s (EPICTETO, Diss., III, 22, 38; I, 4, 18, e tc ) , m as to m am as coisas e x te rio re s c o m o o b je to d e v o n ta d e , Plotino diz q u e , d e p o is de dirigir su a v o n ta d e para si m esm o , o sáb io n ão p o d e b u sc a r a fe­ licidade n as m an ifestaç õ es ex te rio re s n em p ro ­ curar nas co isas ex te rio re s o o bjeto de sua v o n ­ tade {Enn, I, 4, 11). O q u e ele d ev e fazer é "olhar para d en tro ", e o q u e é isso? P lo tin o diz o que é q u a n d o trata da p ro cu ra do B elo in teli­ gível, atrás do q ual está o p ró p rio B em , isto é, Deus. É p reciso "retornar para si m esm o" e to r­ nar-se aq u ilo q u e se q u e r olhar. "Jam ais um olho verá o sol sem to rn ar-se se m e lh a n te ao sol, nem u m a alm a v erá o B elo sem ser bela. Portanto, q u e m q u e r c o n te m p la r D eu s e o B elo deve co m eçar p o r to rn ar-se se m e lh a n te a D eu s e belo" (Ibid., I, 6, 9). N esse caso , a C. id e n ti­ fica-se com a p ró p ria co n d iç ã o do sáb io , "que extrai de si m esm o o q u e rev ela ao s o u tro s e olha para si m esm o , p o is n ão so m e n te te n d e a unificar-se e a isolar-se d as co isas e x te rn a s, com o está v o lta d o p ara si m esm o e en c o n tra em si to d as as coisas"(Ibid., III, 8, 6).

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CONSCIÊNCIA2 Essa atitu d e de au to -a u sc u la ta ç ã o in terio r q u e , p ara a filosofia p ag a, era privilégio do sáb io , na filosofia cristã é acessível a q u a lq u e r h o m e m co m o tal. S. A g o stin h o é q u e m trad u z p ara te rm o s cristão s, isto é, u n iv ersalistas, a atitu d e aristocrática do sábio. O homem espiri­ tual de q u e falava S. P au lo (I Cor, II, 16) é o v e rd a d e iro p ro tag o n ista de sua filosofia, cujo tem a fu n d a m en tal foi e x p re sso p ela s cé le b res palavras: "Não saias de ti, reto rn a para ti m es­ m o , no in terio r do h o m e m h ab ita a v e rd a d e e, se a c h a re s m u táv el a tu a n atu re za , tra n sc e n d e te a ti m esm o " {De vera rei, 39). S. A g o stin h o insiste ju sta m e n te n essa tra n sc e n d ê n c ia , q ue n ão se dirige ao ex terio r (as coisas, os h o m e n s), m as a D eu s e n q u a n to p rin cíp io , n o rm a e m e ­ dida da p ró p ria re a lid a d e íntim a do h om em . D eu s reflete-se no caráter auto-reflexivo da alm a h u m a n a q u e, n as três facu ld ad es — m em ó ria, in telig ên cia e v o n ta d e — reflete a T rin d ad e d ivina. A g o stin h o d iz (De Trin, X , 18): "Lem ­ b ro q u e te n h o m em ó ria, inteligência e v o n tad e; entendo q u e e n te n d o , q u e ro e le m b ro e quero q u e rer, le m b ra r e en te n d e r". D e tal m o d o q u e n ão só a alm a em seu to d o , m as cad a asp ecto ou facu ld ad e da alm a olha p ara si e d efine-se em su a re la ção p u ra m e n te in trín seca co n sig o . "A m e n te n ão c o n h e c e n ad a tão b em q u a n to aq u ilo q u e lh e é m ais acessível (praesto) e nad a está tão p ró x im o da m e n te q u a n to ela de si m esm a" (Ibid., XIV, 7). Este estava d e stin a d o a ser u m d o s te m a s m ais re p e tid o s d a filosofia m ed iev al e m o d e rn a: a certeza de su a p ró p ria ex istên cia q u e a alm a, o p e n sa m e n to , a razão h a u re m na C. de si, d ad a a estru tu ra da C. co m o re la ção in trín seca, d ireta e p riv ileg iad a q u e n ão p o d e ser p e rtu rb a d a , d e stru íd a ou falsificada p o r n ad a. N a Id a d e M édia esse tem a re a p a re c e so b re tu d o n a trad iç ão ag o stin ian a: é re p e tid o p o r S co tu s E rig en a (De dívis. nat., IV, 9), S. A n selm o (Afore., § 33) e o u tro s. C o n tu ­ d o , su a im p o rtâ n c ia é m e n o r na c o rre n te aristo télica, d ad o o seu caráter objetivista. A análise q ue S. T om ás faz do term o C. visa a escla­ re ce r so b re tu d o seu asp ecto m o ral, em relação co m o c o n ce ito d e síndêrese (v.); fora d esse sign ificad o, p ara S. T o m á s a C. é o sim p les "estar cô n scio ". "O n o m e C ", diz ele, "significa a ap lic a ç ã o da ciên cia a alg u m a coisa; daí, conscire é co m o simul scire. Q u a lq u e r ciência p o d e ser ap lica d a a alg u m a coisa, p o r isso a C. n ão indica u m h áb ito ou u m a p o tê n c ia e s p e ­ cial, m as o ato de ap licar u m h áb ito ou u m a n o ç ã o a alg u m ato p articular. O ra, u m a n o ç ão

CONSCIÊNCIA2 p o d e ser ap lica d a a u m ato de d ois m o d o s: em p rim eiro lugar, para co n sid erar se o ato é ou foi e, em se g u n d o lugar, p ara co n sid e rar se o ato é lícito ou n ão o é. N o p rim e iro m o d o , d ize m o s ter C . de u m ato q u a n d o sab em o s q u e esse ato foi ou n ào realizad o ; assim , no u so lin g ü ístico co m u m se diz: 'Eu n ão tin h a C. d esse fato ', no sen tid o de q u e n ão sei se ele a c o n te ce u ou n ão ... N o se g u n d o m o d o , a ciên cia ap lica-se a u m ato p ara dirigi-lo, co m o q u a n d o d izem o s q u e a C. n o s in d uz, n o s o brig a, ou p ara ex a m i­ nar o ato re aliza d o , co m o q u a n d o d ize m o s q u e a C. n os acusa, n os ato rm en ta ao ju lg arm o s q ue o ato re aliza d o d isc o rd a da ciên cia co m a q ual é ex a m in a d o , ou en tã o , q u e a C. n o s d efen d e ou n o s d escu lp a ao ju lg a rm o s q u e a ação se conform a à ciência" {Dever., q. 17, a. 1). O q u e há de n o táv el n essa an álise de S. T o m á s é q u e to d a a n o ç ão de C , tan to no significado teó rico d e p e rc e p ç ã o d e si q u a n to no sign ificad o p rá ti­ co de sin d é rese, ou C. m o ral, re d u z -se q u a n ­ to à a p lic a ç ã o de c o n h e c im e n to s o b jetiv o s ("ciência"). O ca rá ter p riv ileg iad o da re la ção in trín seca da m en te co n sig o m esm a, to d av ia, é re c o n h e c id o p o r S. T o m ás: "N ossa m en te c o ­ n h e c e -se a si m esm a p o r si m esm a e n q u a n to c o n h e c e su a p ró p ria ex istência: co m efeito, e n ­ q u a n to p e rc e b e su a p ró p ria ativ id ad e, p e rc e b e su a p ró p ria ex istência" (Contra Gent, III, 46). E ssa certeza p riv ileg iad a, no en ta n to , lim ita-se ao sim p les fato d a ex istên cia da alm a, ao p asso q ue a alm a n ão tem n e n h u m co n h e cim en to p ri­ v ile g iad o d e si m esm a no q u e se refere à sua essên cia e ao s seu s m o d o s de ser. A re la ç ã o da alm a co n sig o m esm a co m o co n d içã o d a re la ção d a alm a co m as co isas ou, em o u tro s te rm o s, a C. im ed iata de si co m o co n d ição da C. d as o u tras coisas, é d ou trin a d e ­ fendida, n os p rim ó rd io s da Id ad e M o d ern a, p o r T elésio e C am panella. D iz T elésio: "O sen tid o é a percepção d as aç õ es ou d as co isas, d os im ­ p u lso s do ar, ta n to q u a n to d as p ró p rias afei­ çõ es, d as p ró p ria s m o d ific aç õ e s e d o s p ró ­ p rio s m o vim en to s; so b re tu d o d estes. O sen tid o p e rc e b e essas aç õ es só q u a n d o p e rc e b e q u e é in flu en ciad o , m o d ificad o e co m o v id o p o r elas" (Derer. nat, VII, 3). C am p an ella ch am a de "co­ n h e c im e n to in ato de si m esm o " {Mel, VI, 8, a. 1) ou "sapiência inata" (Teol, 1,11, a. 1) o c o n h e­ cim en to originário de si q u e to d as as coisas p o s ­ su em e q u e serv e d e in te rm ed iá rio ou d e co n ­ dição para os co n h e cim en to s q ue ad q u irem das o u tras co isas. M as só com D esca rte s a n o ç ão de C. é esclarecid a co m os ca ra cte re s p elo s

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CONSCIÊNCIA2 q u ais d ev eria ser u n iv e rsa lm e n te aceita na filo­ sofia o cid en ta l. O cogito ergo sum é a au to ev id ên cia ex isten cial do p e n sa m e n to , isto é, a g ara n tia q u e o p e n sa m e n to (com o C.) tem de su a p ró p ria ex istên cia. D iz D escartes: "C om o n o m e d e p e n sa m e n to e n te n d o to d a s as coisas q u e a c o n te c e m em n ós co m C , e n q u a n to te ­ m o s co n sc iên c ia d elas. A ssim n ão só e n te n d e r, q u e re r e im aginar, m as ta m b é m sen tir é o m es­ m o q u e pen sar. P ois se digo: vejo ou ando, logo sou, e p re te n d o falar da v isã o e do a n d a r q ue se faz co m o c o rp o , a co n c lu sã o n ão é a b so ­ lu ta m e n te certa; p o rq u e , co m o m u itas v ezes o co rre nos so n h o s, p o sso ach ar q u e estou v en d o ou a n d a n d o , m as n ão ab ri os o lh o s n em saí do lu g ar e talv ez n em te n h a c o rp o algu m . M as se falo do p ró p rio se n tid o , isto é, da C. de v er ou d e an d ar, a co n c lu sã o é certa p o rq u e e n tã o se refere à m en te , q u e só se n te ou p en sa q u e v ê ou an d a" (Princ. phil, I, 9). A s características fu n d am en tais da d ou trina cartesian a p o d e m ser recap itu lad as do seg u in te m odo: ls a C. n ão é u m e v e n to ou u m g ru p o de e v e n to s p a rti­ cu lares, n em u m a sp e c to p artic u la r ou u m a ati­ v id a d e p artic u la r da alm a, m as é to d a a vida esp iritu al do h o m e m em to d a s as su a s m an i­ festaçõ es, d e sd e sen tir até ra cio c in ar e querer; 22 su a esfera, p o rta n to , é a m esm a do eu co m o sujeito ou su b stân cia p en sa n te; 3e ela é au to evid ên cia existencial do eu ou, se preferir, o eu é, p ara ela, a ev id ên c ia de su a p ró p ria ex istên ­ cia; 4 S a au to -e v id ê n c ia ex isten cial do eu é o m o d e lo e o fu n d a m en to de q u a lq u e r outra ev i­ d ên cia, isto é, de to d o co n h e c im e to v álido ; 5S a a u to -e v id ê n c ia do eu to rn a p ro b le m á tic a q u a lq u e r outra ev id ên cia, ain d a q u e , p o r fim, consiga fundá-la. E sses p o n to s b ásico s serviram co m o p o n to de p artid a p ara a filosofia m o d e r­ na; e, en tre eles, a q u ele q u e , de certo m o do , re su m e to d o s os o u tro s, ou seja, o 2a, d ete rm i­ nou a co rre n te subjetivista d essa filosofia. C on­ tu d o , n ão se d ev e e s q u e c e r q u e a fe cu n d id a d e da filosofia cartesian a n ão co n sistiu ta n to na ú n ica certeza q u e d ava, isto é, no Cogito, m as n as m u itas certezas q u e d estru ía, ou seja, no fato de q u e , do p o n to d e vista do Cogito, m u i­ tas re a lid a d e s até e n tã o n ào d iscu tid as (e a pri­ m eira delas, a do "m u nd o externo") adquiriram caráter p ro b lem ático e d eram início a n o v o s ti­ p o s ou co rren te s de in d a g a ç ã o . D e fato, m es­ m o o co n ce ito d e experiência ela b o ra d o p or L ocke co in cid e grosso modo co m o de C. (U m a v e z q u e to d o h o m e m está cô n sc io de q u e p e n ­ sa e u m a v e z q u e aq u ilo q u e se en c o n tra em

CONSCIÊNCIA2 seu esp írito q u a n d o ele p en sa são as idéias que o o cu p a m n a q u e le m o m en to , n ão h á d ú v i­ da de q u e os h o m e n s tê m m u ita s id éias em seu espírito, e tc " , Ensaio, II, 1, l.) É v erd ad e que L ocke restringe o u so da p alav ra C. à certeza ab so lu ta ue o h o m e m tem de su a p ró p ria ex istên cia Em to d o ato de s e n sa ç ã o , ra cio c ín io e p e n s a ­ m ento, esta m o s c ô n sc io s, d ian te de n ós m e s­ m os, do n o sso ser, e n e sse p o n to n ão d e ix a ­ m os d e h au rir o m ais alto g rau de certeza", Ibid, IV, 9, 3), e q u e a relação en tre a alm a e as suas p ró p ria s o p e ra ç õ e s é o q u e ele ch a m a de "reflexão" (Ibid., II, 1, 4), m as ta m b é m é v e rd a ­ d e q u e o q u e ele ch a m a d e ex p e riê n c ia em g e ­ ral nad a m ais é q u e a C. no se n tid o ca rtesian o , pois a m esm a re la ção co m o o bjeto ex te rn o in ­ clui-se in te ira m en te n a esfera da C , q u e , p o r isso, n ão atin g e n ad a além de "idéias". D essa co lo cação n a sc e o p ro b le m a do IV livro do En­ saio-, ju stificar a "realid ad e" do c o n h e c im e n to d epois de tê-la d efin id o co m o n ad a m ais, n ad a m enos q u e a p e rc e p ç ã o da c o n c o rd â n c ia ou d isco rdân cia en tre as id éias. "É ev id en te ", diz Locke, "que o esp írito n ão c o n h e c e as coisas im ediatam ente, m as só m ed ia n te a in terv en ção das idéias q u e ele te m d elas. P o r isso, n o sso c o n h e cim en to só é real q u a n d o h á conformi­ dade en tre n o ssa s id éias e a re a lid a d e d as co i­ sas. M as q ual será o critério? C om o p o d e rá a m ente, d e sd e q u e n ão p e rc e b e n ad a além de suas p ró p rias idéias, sab er se estas co n c o rd a m com as coisas?" (Ibid., IV, 4, 3). O fato m esm o de esse p ro b lem a se a p re se n ta r (in d e p e n d e n ­ te do m o d o co m o será reso lv id o ) rev ela com toda clareza o fu n d a m e n to co n scien cialista da filosofia de Locke, fu n dam en to para o qual a fi­ losofia n ad a m ais é q u e a an álise da C , n ão p o d en d o ir n e n h u m p a sso além . É ju sta m e n te essa e x p re ssã o q u e H u m e e m p re g a p ara n e ­ gar q u a lq u e r "existên cia ex tern a". D iz H um e: "Com o n ad a está ja m a is p re s e n te na m e n te além das p erc ep çõ es, e co m o as idéias derivam daquilo q u e an te s este v e p re se n te na m en te , conclui-se q u e n o s é im possível re p re se n ta r ou formar a idéia de algo q u e seja esp ecificam ente diferente d as id éias ou d as im p re ssõ e s. N o e n ­ tanto, se fixarm o s o m áx im o p o ssív e l n ossa atenção fora de n ós, se e lev am o s n o ssa im ag i­ nação até os céu s e até os lim ites ex trem o s do u niverso, na v e rd a d e n ão d a re m o s s e q u e r u m passo além de n ó s m e sm o s, n em p o d e re m o s nunca im ag in ar e sp écie alg u m a de ex istên cia que n ão seja a d as p e rc e p ç õ e s q u e se a p re se n ­ tam em n o sso p e q u e n o círculo" (Treatise, I, 2,

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CONSCIÊNCIA2 6). Essa im p o ssib ilid a d e de u ltrap assa r o círcu ­ lo da C. é a p rim eira e m ais im p o rta n te c o n se ­ q ü ê n c ia do u so da n o ç ã o de C. p ara d elim itar a esfera de in v estig ação filosófica. A s co isas n ã o são d iferen tes p ara o racion alism o p ó s-c artesian o . L eibniz faz a d istin ção e n tre a C , q u e ele identifica co m a apercepção (v.), e p erc ep çã o , de q u e se p o d e n ão estar cla­ ra m e n te co n sc ie n te (Monad., % 14); m as co n si­ d era to d a a v id a da m ô n a d a , isto é, da su b stâ n ­ cia esp iritu al, co m o p u ra m e n te in terio r a ela e acessível só a p artir do in terio r. A s m ô n a d a s n ão têm ja n e la s através das q uais possa en trar e sair algo (Ibid., § 7); p o r isso "as m u d a n ç a s n a ­ tu ra is d as m ô n a d a s v êm de u m p rin cíp io in ter­ n o , p o is u m a cau sa ex tern a n ão p o d e ria influir em sua in terio rid ad e" (Ibid., § 11). N a v asta esfera d as p e rc e p ç õ e s da m ô n a d a , a reflexão re co rta a esfera m ais restrita d as apercepções, q u e c o n stitu em o eu. "C om o co n h e c im e n to d as v e rd a d e s n ec e ssá ria s e co m as su as ab stra­ çõ es, so m o s e le v a d o s ao s atos reflex os q u e n o s fazem p e n sa r no q u e se ch am a eu, e a c o n sid e ra r q u e isto ou aq u ilo está em nós; é assim q u e, p e n sa n d o em nós, p en sa m o s no ser, na substância, no simples, no com posto, na im aterialid a d e e em D eu s m esm o , c o n c e b e n d o aq u ilo q u e é lim itad o em n ó s e sem lim ites n ele. E s­ ses atos reflex ivo s fo rn ec em os o b jeto s p rin ci­ p ais d o s n o sso s racio cín io s" (Ibid., § 31). essas p alavras de Leibniz exprim em a tarefa que, a p ar­ tir d ele, to d a a filosofia espiritualista assum iu. K ant d istin g u iu a C. d iscu rsiva e a C. in tu iti­ va, q u e são dois o utro s n o m es para indicar, res­ p e c tiv a m e n te , a a p e rc e p ç ã o p u ra e a ap erce p ção em pírica (v. APERCEPÇÃO). A C. discursiva é "o eu da reflex ão ", q u e n ão co n tém em si n e ­ n h u m m ú ltip lo e é s e m p re o m esm o em to d o s os ju íz o s p o rq u e im plica só o la d o form al da co n sciên cia. A C. intuitiva é, ao co n trário , e x p e ­ riên cia in terio r, q u e in clui o m aterial m ú ltip lo da in tu ição em p írica in terio r (Antr., I, § 7, A n o ­ ta çã o ). M as, e m b o ra C. p u ra ou d iscu rsiva e C. em pírica c o m p ree n d a m tu d o o q u e o h o m e m é ou p o d e atingir, K ant fez o esforço m ais b em s u c e d id o p ara ro m p e r aq u ilo q u e, na filosofia m o d ern a, se p o d e ch am ar de círculo m ágico da C. e p ara ju stificar a re la ção do h o m e m co m o m u n d o . A o b se rv a ç ã o d e q u e "T enho so m e n te C. im ed iata do q u e está em m im , isto é, da m i­ n ha re p re s e n ta ç ã o d as co isas ex tern as" e, p o r­ ta n to , "ainda é p rec iso d e m o n stra r q u e h á ou n ão algo de c o rre s p o n d e n te fora de m im ", K ant re s p o n d e q u e "ter C. de m in h a re p re se n ta ç ã o "

CONSCIÊNCIA2 significa "ter C. em p írica de m in h a ex istên cia", e isso significa "p o d er ser d e te rm in a d o só em relação a alg u m a coisa q u e , m esm o e sta n d o li­ g ad a à m in h a ex istên cia, está fora de m im ". Logo, "a C. de m in h a ex istên cia no te m p o " é a "C. de u m a re la ção co m alg u m a coisa fora de m im " (Crít. R. Pura, Pref. à 2- ed., N ota so b re a refu taçâo do id ealism o ). P arad o x alm en te, em K ant o term o C. indica u m a relação n ão interior ou íntim a no h o m e m , m as en tre o h o m e m e algo d e ex terior. A a p e rc e p ç ã o p u ra ou tra n s­ c e n d e n ta l (o E u p en so ) n ão é s e n ã o a possibili­ dade da relação , co n stitu tiv a da C. em p írica, en tre o eu em p írico e o o bjeto : p o ssib ilid ad e q u e, co m o C , n ad a m ais é q u e a in telig ên cia co m o e s p o n ta n e id a d e (Ibid., § 25, n ota 1). É claro q u e, p ara ser efetiva e o p e ra n te , a relação en tre o eu e o q u e n ão é eu n ão d ev e incidir ex c lu siv am e n te no p ró p rio eu, isto é, n a "C ", p o rq u e n esse caso seria u m a relação in terio r do eu ou da C , e n ão u m a relação com u m a re a lid a d e d iferen te. E m o u tro s te rm o s, p ara q u e su b sista tal re la ção , a C. n ão d ev e ser c o n sid e ra d a co m o u m a re la ção in terio r a si m esm a, co m o um a relação en tre a C. e ela m e s­ m a (ou algu m de seu s fatos, o p e ra ç õ e s ou fei­ ç õ e s), m as co m o u m a re la ç ã o d a C . co m algo q u e n ão é C : se g u n d o a te rm in o lo g ia em u so na filosofia c o n te m p o râ n e a , d ev e ser u m a re la ção de transcendência (v.). T alv ez isso p ossa ser visto, p elo m en o s de m o d o im p líci­ to, na d o u trin a de K ant, m as só se to rn a ex p lí­ cito em alg u m as co rren te s da filosofia c o n te m ­ p orân ea. A filosofia p ó s-k an tian a, esp ecialm en te o Id ealism o ro m ân tico , ce n tra -se na im an ên cia total da re a lid a d e da co n sciên cia. Para H egel, a C. co n stitu i o p o n to de p artid a da filosofia e fo rn ec e-lh e to d o o c o n te ú d o : a tarefa da filo­ sofia é a ela b o ra ç ã o conceituai d esse c o n te ú ­ d o, g raças à q u al esse c o n te ú d o a d q u ire a b s o ­ luta v e rd a d e e re a lid a d e , to rn a-se "Espírito" ou "C onceito". A Fenomenologia do espíritoé, com efeito, o p e rc u rso da C. ao esp írito . "A e x p e ­ riência q u e a C. tem de si n ão p o d e , se g u n d o o co n ceito da p ró p ria ex p eriên cia, c o m p re e n ­ d er em si algo m en o s q u e to d o o sistem a da C , ou seja, o re in o to d o do esp írito ... A rrem ete n d o para sua ex istên cia v erd ad e ira , a C. c h e ­ g ará a u m p o n to em q u e se lib ertará da a p a rê n ­ cia de estar in v alidada p o r algo estran h o , q u e lh e é alheio , p o n to em q u e a a p a rên cia será igual à essên cia (Phánomen. des Geistes, I, Intr., ao final). H egel ce n su ra a filosofia de K ant e a de F ichte p o r te re m p e rm a n e c id o co m o "filoso­

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CONSCIÊNCIA2 fias da C ", p o r n ão terem tran sform ad o a C. em ciência objetiva e ab soluta. "A filosofia k an tiana p o d e ser co n sid e ra d a m ais d e te rm in a n te , por ter c o n c e b id o o esp írito co m o C . e p o r co n ter so m e n te d e te rm in a ç õ e s da fe n o m en o lo g ia, e n ão d a filosofia do esp írito . C o n sid era o eu co m o em re la ç ã o co m alg o q u e está além , alg u m a coisa q u e, em su a d e te rm in a ç ã o ab stra­ ta, ch am a-se co isa-em -si e co n c e b e ta n to a in te­ ligência q u a n to a v o n ta d e s e g u n d o essa fini­ tu d e... P or isso, d ev e ser co n sid e rad a ju sta a in te rp re ta ç ã o q u e R ein h o ld faz d essa filosofia, c o n c e b e n d o -a co m o teoria da C. so b o n o m e de facu ld ad e re p resen ta tiv a. A filosofia fichteana tem o m esm o p o n to de vista e o n âo -eu é d e te rm in a d o só co m o o b jeto do eu , só na consciência. A m bas as filosofias m o stram assim q u e n ão c h e g a ram n em ao c o n ce ito n em ao esp írito , da form a co m o ele é em si e p o r si, m as só ao esp írito co m o ele é em re la ção com outra coisa" (Ene, § 415). H egel q u e r dizer q ue a n o ç ã o de C. im plica a re la ção da C. co m um o bjeto q u e , p elo m en o s à p rim eira vista, n ão é C , m as alg u m a o u tra coisa; e q u e a n o ç ã o de c o n ce ito ou de esp írito (A u to co n sciên cia) eli­ m in a essa alte rid ad e. M as erra ao eq u ip a ra r o p o n to d e vista de K ant ao de F ichte. Para F ichte o n ão -eu in cid e no in terio r do eu, e p o r isso a re la ção co m ele é in trín seca ao eu (isto é, à C ). Para K ant, p orém , a relação se esta b e le ce en tre o eu e algo d iferen te do eu. M as F ichte e H egel têm em co m u m o c o n ce ito da Autoconsciência (v.), isto é, u m P rin cíp io ab so lu to q u e , au to cria n d o -se , cria a p ró p ria re a lid a d e em su a to ­ ta lid a d e . O q u e H eg el e n te n d e p o r esp írito ou co n c e ito é u m a A u to c o n sc iê n c ia infinita d e sse tip o . A C. e a A u to co n sciên cia to rn am -se p ro ta g o ­ nistas de b o a p arte da filosofia do séc. X IX e d o s p rim e iro s d e c ê n io s d e ste sécu lo . A alter­ nativa en tre essas d u a s n o ç õ e s é a q u e existe en tre E sp iritu alism o e Id ea lism o , isto é, en tre a co rren te q u e p ro c u ra e acred ita e n c o n tra r na C , c o n sid e ra d a co m o finita e p ró p ria do h o ­ m em , a m an ifestação , a re v e la çã o ou p elo m e ­ n o s o sinal do Infinito, e a c o rre n te q u e co n si­ d era infinita a C. p o rq u e id ên tica, m ed iata ou im e d iata m en te , ao Infinito. T o d o o m o v im e n to ro m â n tic o da "volta à tra d iç ã o " la n ç a m ão , co m o ú n ic o te x to e fu n d a m en to , da C. co m o m an ifestação ou re v e la çã o im ediata e infalível da V erd ad e ao h om em . M aine de B iran e L am ennais, G allu p p i e C ou sin , M artineau , R osm in i e G ioberti, to d o s co n sid eram a C. co m o p o n to de

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partida e fundamento da filosofia e concebemna como a manifestação e revelação imediata da verdade e da vontade de Deus ao homem. Esse princípio não se altera substancialmente nas várias formas do Espiritualismo contempo­ râneo, podendo, aliás, ser considerado sua de­ finição. Na mais importante dessas formas, a doutrina de Bergson, a C, como atitude de introspecção ou auscultação interior, de busca dos "dados imediatos", é a própria filosofia; e é também a realidade, a única realidade. "Em todo o reino animal", diz Bergson, "a C. mos­ tra-se proporcional à possibilidade de opção de que o ser vivo dispõe. Ela ilumina a zona de virtualidades que circundam o ato: mede o in­ tervalo entre o que se faz e o que se poderia fazer. Olhando-a de fora, poder-se-ia tomá-la por um simples auxiliar da ação, por uma luz que ilumina a ação, centelha fugidia que brota­ ria do atrito entre ação real e ações possíveis. Mas é preciso observar que as coisas se passa­ riam do mesmo modo se a C, em vez de efei­ to, fosse causa" (Evol. créatr, 11a ed., 1911, pp. 194-195). E essa é, na realidade, segundo Bergson, a história verdadeira. "A vida, ou seja, a C. lançada através da matéíra, fixa a atenção em seu próprio movimento ou na matéria que atravessa, orientando-se assim no sentido da intuição ou no sentido da inteligência". Na pri­ meira direção, a C. encontrou-se comprimida por seu invólucro e limitou-se a ir da intuição ao instinto. Na segunda direção, determinandose como inteligência, exterioriza-se de si mes­ ma, mas justamente por se adotar aos objetos externos chega a circular entre eles, a contor­ nar as barreiras que eles lhe opõem e a esten­ der indefinidamente seu domínio. "Uma vez li­ berta, pode dobrar-se sobre si mesma e despertar as virtualidades de intuição que ain­ da dormitam nela" (Ibid, p. 197). A C. é, por­ tanto, o princípio criativo da realidade e ao mesmo tempo manifesta e revela imediatamen­ te essa realidade no interior do homem. Observações desse tipo são tão freqüentes e repetidas na filosofia contemporânea que seria supérfluo reproduzi-las. Interessa aqui fixar as etapas relevantes do desenvolvimento dessa noção; na filosofia contemporânea, a etapa mais importante é constituída pela fenomenologia de Husserl. O ponto de partida e o ponto de chegada dessa fenomenologia são os mesmos do espiritualismo, identíficam-se com a C. tradicionalmente entendida como atitude de auto-auscultação. Husserl parte do cogito

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cartesiano, isto é, da consideração das vivên­ cias (Erlebnissé) "em toda a plenitude concreta com que se apresentam em sua conexão con­ creta — a corrente da C. —, na qual se unifi­ cam graças à sua própria essência" (Ideen, I, § 34). Mas para esclarecer a natureza das vivên­ cias, isto é, da C. em geral, Husserl vale-se da noção de intencionalidade, já utilizada por Brentano para definir o caráter dos fenôme­ nos psíquicos {Psychologie vom empirischen Standpunkt, 1874). A intencionalidade é o refe­ rir-se ou o reportar-se do ato de C. a outra coi­ sa, a alguma coisa que não é o próprio ato de consciência. Para Husserl, essa noção (v. INTENCIONALIDADE) define a própria natureza da C. em geral, que, por isso, é um transcender que constitui uma relação com o objeto "em pes­ soa" e não com uma imagem ou representação dele. Nesse sentido, a relação com o objeto não é "psicológica", não incide no círculo de uma realidade específica, a alma, mas é de natureza lógico-transcendental, é uma possibilidade que define o modo de ser da consciência. A C. nes­ se sentido, para Husserl, é aquilo que era para Kant: uma relação com o objeto, mais precisa­ mente, uma relação, na qual o objeto se dã como tal. Todavia, para Husserl, a intencionalidade não exaure a essência da consciência, que é uma "corrente de vivências" {Erlebnissé) e apreende-se a si mesma de forma direta e privilegiada, que nada mais tem a ver com a intencionalidade. Nesse aspecto, Husserl distin­ gue a percepção imanente da percepção trans­ cendente. A percepção transcendente é a per­ cepção da coisa no espaço, que nunca está presente à consciência em sua plena atualida­ de. Daí deriva o caráter em si do objeto trans­ cendente, caráter que exprime a possibilidade da C. de retornar ao objeto e de identífícá-lo. Mas justamente por estar ligada a essa simples possibilidade a existência da coisa nunca é ne­ cessária, mas contingente; tudo o que da coisa é dado à percepção transcendente pode tam­ bém não ser; a percepção transcendente é sem­ pre duvidosa (Ideen, I, § 46). A percepção imanente, ao contrário, é a percepção do cogito cartesiano, que tem por objeto as mesmas vivências (recordar, imaginar, desejar, etc.) Es­ tas não são dadas à C. do mesmo modo como a coisa é dada aos fenômenos subjetivos, isto é, através de aparições, sombreamentos, aproxi­ mações, que acenam para a unidade transcen­ dente do objeto: ao contrário, caracteriza-se pela imediação e pela absolutidade. "A percep-

CONSCIÊNCIA2 çào da v iv ên cia", d iz H usserl (Ibid, § 44), "é a visão direta de alg u m a coisa q u e se dá ou q u e p o d e d ar-se na p e rc e p ç ã o co m o absoluta e n ão m ais co m o a id e n tid a d e d as ap a rê n c ia s q u e a so m b reiam ... U m s e n tim e n to n ão a p a re c e p o r so m b re a m e n to s. S e la n ç o o o lh ar s o b re ele, te ­ n h o algo d e ab so lu to , d e sp ro v id o de asp ecto s q u e p o d eriam a p re se n ta r-se ta n to d e u m m o d o co m o de o u tro ". A p e rc e p ç ã o im a n e n te é, p o r­ tan to , a esfera d a p o siç ão ab so lu ta: im plica a im p o ssibilid ade de n eg ar sua existência. "E m bo­ ra a m in h a co rren te de C. só seja a p re en d id a de m o d o re s trito , e m b o ra seja d e s c o n h e c id a n a s p artes já tran sa tas ou ain d a v in d o u ra s, se lan ço o o lh ar so b re seu p re s e n te efetivo e se m e a p re e n d o a m im m esm o co m o p u ro sujeito d esta v id a, afirm o n e c e ssa ria m e n te : sou, esse v iv er é, eu vivo: cogito" (Ibid., § 46). D aí deriva q u e, e n q u a n to o ser im a n e n te (isto é, o ser da C. reflexa) é absoluto no sen tid o d e q u e, para existir, n ão tem n e c e ssid a d e de n ad a, o ser tra n sc e n d e n te (isto é, o m u n d o d as coisas) é relativ o à co n sciên cia. "T odo o m u n d o esp ácio te m p o ra l ao q ual o h o m e m e o eu h u m a n o p e rten ce m co m o re alid ad es sin g u lares s u b o rd i­ n ad as é, se g u n d o o seu se n tid o , u m ser p u ra ­ m e n te in te n c io n a l, n a m ed id a em q u e te m o sen tid o m e ra m e n te s e c u n d á rio e relativ o de u m ser para u m a co n sc iên c ia. É u m ser q u e a C. p õ e em su as e x p eriên cias, q u e é visível e d ete rm in á v e l só e n q u a n to p e rm a n e c e id ên tico na m u ltip licid ad e d as a p a riç õ e s, m as fora d is­ so é nad a" (Ibid., § 49). D aí deriva o caráter ab so lu to ou "apo d ítico " da su b je tiv id ad e, do eu tran sc en d e n tal, q u e é au to -suficien te no se n ­ tid o de q u e "p erten ce à sua essê n cia a p o ssib i­ lid ad e de a u to -a p re e n s ã o , d e a u to p e rc e p ç ã o " (Ideen, II, § 22); e d aí d eriva ta m b é m a s u p e rio ­ rid a d e m etafísica do esp írito : "O esp írito e só o e s p írito e x is te em si m e s m o e p o r si m e s ­ m o: o espírito é au tô n o m o e só n essa au to n om ia p o d e ser trata d o de form a v e rd a d e ira m e n te ra ­ cion al e ra d ica lm en te científica" (Krisis, § 345). A s c o n c e p ç õ e s da C. p ro v e n ie n te s da feno m en o lo g ia p o d e m o rd e n a r-se s e g u n d o d u as co rren te s o p o stas: a objetivísta e a esp iritu a ­ lista. A esp iritu alista co n tin u a a d o ta n d o co m o tem a o cogito cartesian o e ac en tu a a im an ên cia da consciência. A co rren te objetivista acen tu a o caráter objetivo da re la ção in te n c io n a l e, por isso, co n sid e ra o o bjeto co m o a u te n tic a m e n te tra n sc e n d e n te : em últim a in stân cia, essa co r­ ren te te n d e a d eix ar d e lado a n o ção de c o n s­ ciência. V inculam -se à corrente espiritualista as

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CONSCIÊNCIA2 d o u trin a s de J a s p e rs e de S artre. P ara J a sp e rs, an álise ex isten cial é a an alise d a co n sciên cia. "Existir", d iz J a s p e rs , "é C: eu ex isto co m o C. e só co m o o b jeto s de C. as co isas ex istem para m im . T u d o o q u e ex iste p ara m im d ev e en trar na C." (Phil., I, p. 7). S o b re a C , J a sp e rs tem o co n ceito p eculiar à fen o m en o lo g ia: "A C. n ão é u m ser co m o o da coisa, m as é u m ser cuja essê n cia é estar voltado para significar o obje­ to, Esse fe n ô m e n o o rig in ário , tã o m iracu lo so q u a n to em si m esm o co m p re e n sív e l, foi c h a ­ m ad o in te n c io n a lid a d e ". M as a C. n ão está v o l­ tad a só para o objeto, reflete-se so b re si m esm a e ta m b é m é, p o rta n to , A u to c o n sciê n c ia . "O eu p e n so e o eu p e n so q u e p e n so an d am ju n to s, d e tal m o d o q u e u m n ão fica sem o o u tro . O q u e p a re c e c o n tra d itó rio d o p o n to de vista ló ­ g ico aq u i é reai: u m n ão é um , m as dois, e to ­ d av ia n ão se to rn a d o is, m as, g raças à sua sin ­ g u la rid a d e , p e rm a n e c e um . E sse é o co n ce ito do eu form al em gerar (Ibid, p. 8) Ja sp e rs re s­ salto u assim o ca rá ter n ão tran sc en d ív e l e q u a ­ se m ístico d a C , q u e , p o r isso, co n stitu i to d o o seu c a m p o de e sp e c u la ç ã o . D e m o d o an á lo g o , S artre d eclara e x p lic ita m e n te q u e o estu d o da re a lid a d e h u m a n a d ev e c o m eç ar p elo cogito (Lêtre etlenéant, p. 127). A C. é, em p rim e iro lugar, C. de alguma coisa e de alg u m a coisa q u e n ão é c o n sc iên c ia. S artre ch a m a esse alg u ­ m a coisa de em si. O ser em si só p o d e ser d e ­ sig n a d o an a litica m ete, co m o "o ser q u e é o q u e é", e x p re ssã o q u e d esig n a sua o p a c id a d e , seu caráter m aciço e está tic o , p elo q u e n ão é n em p o ssív el n em n ec essário : é, sim p le sm e n te (Ibid, p p . 33-34). D ian te d esse ser em si, a C. é o para si, a p re se n ç a p ara si m esm a (Ibid., p. 119). A p re se n ç a p ara si m esm a im p lica u m a fissura, u m a s e p a ra ç ã o in tern a. U m a cren ça, p. ex ., é co m o tal s e m p re C. da cren ça; m as p ara cap tá-la co m o cren ça é n ec essário sep ará -la da C. p ara a q u al está p re se n te . M as nada há ou p o d e h av er q u e s e p a re o sujeito d e si m esm o . "A fissura in trac o n sc ie n c ial é u m n ad a fora d a ­ q u ilo q u e ela n eg a e só p o d e ter ser na m ed id a em q u e n ão se a v ê. E sse n eg ativ o , q u e é n ad a de ser e p o d e r n ad ifican te ao m esm o te m p o , é o nada. E m n e n h u m lu g ar p o d e ría m o s a p re e n ­ d ê-lo co m se m e lh a n te p u reza . E m to d o s os lu ­ g ares, de u m m o d o ou d e o u tro , é p reciso c o n ­ ferir-lhe o ser-em -si e n q u a n to nad a" (Ibid., p. 120). C o n d icio n an d o a estrutura da C , o n ad a é co n d iç ã o da to ta lid a d e do ser q u e é tal só para a C. e na co n sc iên c ia. M as ele d efine o ser da C. q u e é e x p re sso p o r S artre d esta form a: "O

CONSCIÊNCIA2 ser p elo q ual o n ad a v em ao m u n d o d ev e ser o seu p ró p rio nad a" Ubid, p. 59), o q u e significa que a C. é o seu p ró p rio n ad a na m e d id a em que se d e te rm in a a não ser o em -si a q u e se refere. P a ra d o x a lm e n te , p a rtin d o d a m esm a prem issa de H usserl, Sartre chega à conclusão sim etricam ente o p o sta. P ara ele, assim co m o para H usserl, a C. em sua p e rc e p ç ã o im a n e n te , isto é, em seu ato d e au to -reflex ão , é tu d o , é o absoluto. M as p o r su a fissura in te rn a co m o n e ­ gação do em -si, ela é o p ró p rio nada. Essa c o n ­ clusão é tão p o u c o ap ta a ex p rim ir ou a co m ­ p reen d er os fe n ô m e n o s relativ o s à C. q u a n to a de H usserl. Por o u tro lad o , H artm an n e H e id e g g e r a p re ­ sentam a alternativa objetivista da in terp retação da C. co m o in te n c io n a lid a d e . H artm an n ju lg a que a n o ção de "C. aberta", q u e p e n e tre sem li­ mites no m u n d o d as co isas, é falsa. A C. é e s ­ sencialm ente clausura e as coisas n u n ca en tram nela, m as p e rm a n e c e m além dela, ain d a q u a n ­ do co n h e cid a s. "A C. n ão tem co isas, m as re ­ p resen taçõ es, c o n c e p ç õ e s, im a g e n s d as coisas; e estas p o d e m c o in c id ir ou n ã o co m as c o i­ sas, isto é, ser v erd ad eiras ou n ão v erd ad eiras. Daí resulta q u e o c o n h e c im e n to n ão é sim p les ato de C , co m o re p resen ta r ou p en sar, m as um ato transcendente. U m ato s e m e lh a n te p re n ­ de-se ao sujeito ap enas p o r u m de seus lado s e com o o u tro e ste n d e -se p ara fora d ele; com este lado , p re n d e -s e ao ex iste n te q u e , p o r seu interm édio, passa a ser objeto. O co n h ecim en to é relação en tre u m sujeito e u m o b jeto ex iste n te. N essa relação , o ato tra n sc e n d e a C." (SystematíscbePhilosophie, § 11). D esse m o d o , a C. p e r­ de a su p re m a cia e o ca rá te r de círc u lo e n ­ cantado, do q ual n ão é p o ssív el escap ar. Para H artm ann, o c o n h e c im e n to é, p ara to d o s os efeitos, a tra n sc e n d ê n c ia da C. p ara u m o bjeto que existe in d e p e n d e n te m e n te dela. A C. ta m ­ bém p erd e o caráter de infalibilidade e p erd e-o a C. histórica, a C. coletiva. Esta n u n ca é a d e ­ quada a si m esm a, co m o seria se fo sse de um Espírito A b so lu to . O esp írito h istó rico revela, no m ais d as v ez es, su a p ró p ria n atu re za q u a n ­ do já é p assado . "Não se m ostra m ais à sua p ró ­ pria C , m as a o u tra. P ara a su a e sc o n d e -se atrás d aq u ilo ela sa b e d ele" (Ibid., § 19)- N a m esm a linha, p o ré m m ais ra d ic a lm e n te , H eidegger fez u m a an álise da ex istên cia h u m a n a que p rescin d e c o m p le ta m e n te do te rm o e da noção tra d ic io n a l de C. (Bewusstseín), m as utilizou e in te rp re to u a n o ç ã o de C. m o ral (Gewisseri), isto é, d a "voz d a C ". A elim in aç ão

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CONSCIÊNCIA2 d a n o ç ã o trad ic io n a l de C . d ev e-se ao u so q u e H eid e g g er fez da n o ç ã o de transcendência na an álise d a re la ç ã o do h o m e m co m o m u n d o . A tra n sc e n d ê n c ia n ão é p ara o h o m e m u m co m ­ p o rta m e n to en tre os o u tro s p o ssív eis, m as a p ró p ria essê n cia de su a su b jetiv id ad e; e o te r­ m o p ara o q u al o h o m e m tra n sc e n d e é o m u n ­ d o, q u e n esse caso n ão d esig n a a to ta lid ad e d as co isas n atu ra is ou a c o m u n id a d e d o s h o ­ m en s, m as a estru tu ra re la cio n ai q u e ca ra cte ri­ za a ex istên cia h u m a n a co m o tran sc en d ê n c ia . T ra n sc e n d e r p ara o m u n d o significa fazer do m u n d o o projeto d as a titu d es p o ssív e is ou das a ç õ e s p o s sív e is d o h o m e m ; m as e n q u a n to p ro jeto , o m u n d o re c o m p re e n d e em si o h o ­ m em q u e se ach a "lançado" n ele e su b m e tid o às su a s lim itaçõ es. "A tran sc en d ê n c ia ", d iz H eid eg g er, "exp rim e o p ro jeto do m u n d o d e tal m o d o q u e O-que-projeta é d o m in a d o p ela re a ­ lid a d e q u e ele tra n sc e n d e e já está co n ciliad o co m ela" (Vom Wesen des Grandes, III). Si­ m ultaneam ente a transcendência tam bém constitui o si mesmo do h o m e m , isto é, a id e n tid a d e do h o m e m sin g u lar ex isten te. "Na tra n sc e n d ê n c ia e atrav és d ela é p o ssív el d istin g u ir no in terio r do e x iste n te e d ecid ir q u e m é e co m o se é Sim esm o e o q u e n ão o é" (Ibid, II). A re la ção do h o m e m co n sig o m esm o e co m o m u n d o , descrita em te rm o s de tran scen d ên cia, d eixa de ter os c a ra c te re s tra d ic io n a is da C. (trancamento em si m esm a, im e d iaç ão , au to -reflex ão , e tc ) , d e so rte q u e H eid e g g er p o d e d isp e n sar até m esm o o te rm o co n sciên cia. E m sen tid o m ais trad icio n al, p o rém , é u tilizada a n o ç ã o de "voz da C ". Esta é e n te n d id a co m o u m a re la­ ção in trín seca do ser-aí do h o m e m , m ais p re c i­ sa m e n te u m a re la ção p ela q ual o h o m e m é re v o c a d o da ex stê n c ia an ô n im a e b a n a l do "d iz-se", "faz-se", e t c , p ara seu p ró p rio e au tê n tic o "p o der-ser", isto é, p ara a sua p o ssib i­ lid a d e co n stitu tiv a ú ltim a, o ser-p a ra -a-m o rte. "Para o q u e o ser é rev o cad o ? P ara o seu p ró ­ p rio S i-m esm o . P o rta n to , n ão p ara alg u m a co i­ sa à q u al o ser-aí, na co n v iv ên cia p ú b lica, co n ­ fira v a lo r e u rg ê n c ia de p o ssib ilid a d e ou de fuga, n em m esm o àq u ilo q u e ele to m o u , a q ue se d ed ico u , de q u e se a sse n h o re o u . O ser-aí, re la c io n a d o co n sig o m esm o e co m os o u tro s no q u a d ro d a m u n d a n id a d e , é ultrapassado n essa co n cla m aç ão " (Seind und Zeit, § 56). P o r­ ta n to , o ser-aí q u e c o m p re e n d e essa co n clam aç ào "o b ed ec e à p o ssib ilid a d e m ais p ró p ria d e su a ex istê n c ia . E sc o lh e u -se a si m esm o " (Ibid, § 58). A in da aq u i, p o rta n to , o n d e d e v e ­

CONSCIÊNCIA2 ríam o s en co n trar u m a relação intra-consciencial, há u m a re la ção de tra n sc e n d ê n c ia . A an álise ex isten cial de H eid e g g er foi um d u ro g o lp e co n tra o p rim a d o m etafísico d a C , tão te n a z m e n te afirm ada p ela filosofia m o d e r­ na e c o n tem p o rân e a. N ão só essa análise d eix a d e u tilizar o te rm o C. ou a n o ç ão de C , co m o tam b ém a distin ção en tre "interior" e "exterior", en tre o q u e está na e o q u e está. fora da C . d e i­ x a de ter sen tid o . T od av ia, o caso de H eid eg g er n ão é o ú n ic o na filosofia c o n te m p o râ n e a . O n atu ralism o in stru m en talista e o p ositivism o ló ­ gico ch eg am à m esm a n eg ação do co n ceito tra­ dicional de consciência. D ew ey ch ega a ignorar esse sign ificad o, q u e , co m o se viu , n ão é de u m a q u a lid a d e p síq u ica, m as de u m a atitu d e reflexiva, a atitu d e da v o lta p ara si m esm o ou da reflex ão so b re si. E n te n d e p o r C. o sim p les estar cô n sc io de si: "o estar d e sp e rto , v ig ilan te e aten to ao significado d os a c o n te cim en to s p re ­ sen tes, p assad o s ou futuros". Esse estar cônscio n ão é, co m o q u e r o re alism o , u m a e sp écie de luz q u e ilum ina ora u m a ora outra p arte d e um c a m p o d a d o , n em , co m o q u e r o id ea lism o , u m a força q u e m odifica os ac o n te c im e n to s. É "aquela fase de u m sistem a de sig n ificad o s q u e, em d ad o te m p o , sofre u m a retificação de d ireção , u m a tran sfo rm açã o transitiva". O siste­ m a d o s sign ificad os é o q u e D ew ey ch am a de espírito (v.) e é u m a fo rm ação social. A C. é-6 p o n to focai em q u e esse sistem a entra em crise ou sofre u m a tra n sfo rm a ç ã o . "O esp írito é co n tex tu a l p o rq u e ex isten te; a C. é focai e tra n ­ sitiva. O esp írito é, p o r assim dizer, estru tu ral e su b stan cia l, é o fu n d o ou o p rim e iro p la n o c o n stan te; a C. é p erc ep tiv a , é u m p ro cesso , u m a série d e aqui e de agora. O esp írito é u m a co n stan te lu m in o sid ad e; a C . é in te rm iten te , u m a série de jo rro s d e lu z de v árias in ten sid ades" (Experience andNature, p. 260 e ss.). A c o n d içã o da C. é a d ú v id a, o sen tid o d e situ a­ ção in d ete rm in a d a , s u sp e n sa , q u e u rg e a d e ­ te rm in aç ão e a re a d a p ta ç ã o . A idéia, q u e c o n s­ titu i o o bjeto d a C , q u e, aliás, é a p ró p ria C. em sua clareza e v iv acid a d e, n ad a m ais é q u e a p rev isão e o a n ú n c io d a d ireção em q u e a m u d a n ç a e a re a d a p ta ç ã o é p ossível; p o r isso, D ew ey diz q u e n u m m u n d o q u e n ão tivesse in stab ilid ad e e in certeza, a ch am a v ac ila n te da C. se ap ag aria para s e m p re (Jbid., p p. 351 ss.). A C. é assim re d u zid a à fu n cio n alid a d e , isto é, ao su rto de id éias e d iretrizes q u e serv em p ara retificar d e te rm in a d a situ a ç ã o . D esse m o d o , n ão está ligada à in tro sp e cç âo , à au scu lta çã o

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CONSCIÊNCIA2 in tern a ou, de alg u m m o d o , a u m a atitu d e de "reto rn o p ara si m esm o ". M as o d estin o da C. na filosofia c o n te m p o râ n e a p a re c e cu m p rir-se com a análise q u e Ryle fez dela, ou m elho r, das ex p re ssõ e s ling ü ísticas em q u e o c o n c e ito re ­ co rre (The Concept of Mind, 1949). S e g u n d o a te se de Ryle, n e n h u m d os u so s q u e os te rm o s "C." e "co n scien te" tê m na lin g u ag em co m u m autoriza a co n sid erar a C. co m o u m a esp écie de a u to lu m in o sid a d e ou fo sforescência q u e ac o m ­ p an h a certas o p e ra ç õ e s do hom em : p o rtan to , a C. e n te n d id a n esse se n tid o é u m m ito. T u d o o q u e se p o d e d izer é q u e "h ab itu a lm en te s a b e ­ m o s aq u ilo d e q ue n o s esta m o s o c u p a n d o , sem q u e , p o rém , seja n ec essário re c o rre r à história da fo sforescência p ara ex p lic ar co m o o s a b e ­ m os; q u e esse sa b e r n ão im p lica u m ato in c e s­ san te de ce n su ra ou e x a m e do fazer e do s e n ­ tir, m as só um a p ro p en são interalia a exprim i-los, se e q u a n d o n o s o co rre fazê-lo; q u e esse sab er n ão re q u e r q u e d e v a m o s to p a r co m algu m e v e n to de n atu re za esp ectral" (Ibid., trad. it., p. 164), isto é, co m aq u ela re a lid a d e "alm a" q u e se s u p õ e im a n e n te ao m e c a n ism o c o rp ó re o (v. ALMA). A C. n ão é u m acesso p rivilegiado ao c o ­ n h ecim en to da alm a ou ao co n h e cim en to de si". "D e m im m esm o p o sso d e sc o b rir as m esm as co isas q u e do p ró x im o e co m m é to d o s n ão d e s se m e lh a n te s. A s d ife re n ç as e x iste n tes no fo rn ec im e n to d o s d a d o s ex ig id o s to rn a m d ife­ re n te o g rau d os m eu s c o n h e c im e n to s, m as n em s e m p re em favor do c o n h e c im e n to d e si. P or alg u n s a sp e c to s im p o rta n tes, é m ais fácil verificar as m esm as co isas d e ti do q u e de m im m esm o ; p o r o u tro s, o co rre o co n trá rio . M as isso só na p rática, p o rq u e em p rin cíp io F ulan o acab a s a b e n d o ta n to d e si q u a n to de B eltrano . C om a e sp e ra n ç a em u m acesso p riv ileg iad o , v ai e m b o ra ta m b é m o iso lac io n ism o te ó ric o co g n o scitiv o , p e rd e m o s, ao m esm o te m p o , a d o ç u ra e o am a rg o r do so lip sism o " (Jbid, trad. it., p p. 157-58). O fato p rin cip al a d u z id o para su ste n ta r essa tese é q u e os erro s são freq ü e n ­ tes no ju íz o so b re os p ró p rio s e sta d o s m en tais: o q ue seria o b v iam en te im possível se a C. fosse a q u e la re la ç ã o im e d ia ta e infalível c o n sig o m esm a q u e se p reten d e ser. A co n clu são é, ev i­ d e n te m e n te , a n e g a ç ã o d a C. em favor d e um "c o n h ec im en to d e si" tã o p o u c o p riv ileg iad o , d ireto e infalível q u a n to o c o n h e c im e n to de q u a lq u e r o u tra coisa. O d ec lín io da n o ç ã o de C. na filosofia co n ­ te m p o râ n e a é u m d o s sinais m ais e v id en te s de u m a n ov a c o lo ca çã o do p ro b le m a do h o m e m .

CONSCIÊNCIA2

Elaborada pela filosofia alexandrina, essa no­ ção serviu de início para expressar o orgulhoso isolamento do sábio, que, como diz Plotino, extrai tudo de si mesmo e, assim, não tem ne­ cessidade das coisas nem dos outros homens para conhecer e viver. Para o sábio da era alexandrina, as relações com o mundo são acidentais e secundárias: ele encontra a verdade e a realidade em si mesmo. O Cristianismo valeuse do mesmo conceito para ressaltar a indepen­ dência do juízo moral em relação a toda cir­ cunstância externa e sua dependência só de um princípio ou realidade que nada recebe das coisas e dos homens, porque é Deus. A filoso­ fia moderna lançou mão do mesmo princípio a partir de Descartes, usando-o como instrumento de dúvida e de libertação. Dele extraiu tam­ bém "testemunhos" de verdades primeiras, absolutas ou inderiváveis, bem como de "da­ dos últimos" ou originários, usando-os para erigir pesados edifícios dogmáticos, cujo apoio era a fragílima base de uma noção histórica, mas assumida como estrutura real ou originá­ ria. Esse, porém, foi só o lado mais visível do uso da noção de C. Não se deve esquecer que, a partir de Descartes, essa noção serviu para introduzir dúvidas, levantar problemas, susci­ tar oposições ou rebeliões a crenças ou a siste­ mas de crenças estabelecidos institucionalmente. O recurso à C. serviu com muita freqüência para apresentar ideais ou regras morais ainda não aceitos pela moral corrente e destinados a superá-la, para sustentar a insurreição e a luta contra a autoridade constituída, para mostrar o caráter incerto e problemático de muitas cren­ ças e construções metafísicas. Em Descartes, serviu para pôr em discussão algumas certezas tradicionais, como p. ex. a da existência de um "mundo externo", e para iniciar pesquisas cien­ tíficas e filosóficas de grande importância. O próprio ceticismo de Hume é um dos resulta­ dos a que conduziu a noção de C, já que nas­ ceu do pressuposto de que o homem não dis­ põe de nada além de impressões e idéias, ou seja, de objetos imediatos de C, e que, por mais que arremeta com o pensamento, "nunca dará um passo além de si mesmo" (Treatise, I, 2, 6). Isso posto, o declínio da noção de C. na filosofia contemporânea deve-se às seguintes condições: Ia formação, em vários campos de pesquisa, de técnica de verificação e controle, às quais, mais do que ao testemunho íntimo, são confiadas as instâncias negativas e limitativas da crítica; 2a conseqüente desconfiança de

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CONSCIÊNCIA INFELIZ

certezas que se pretendem infalíveis e diretas, mas que são pessoais e incomunicáveis e mui­ tas vezes apresentam oposições mútuas; 3a abandono definitivo do ideal de isolamento do homem em relação ao mundo, e da crença na estrutura solitária da realidade humana; portan­ to, renúncia a compreender o homem em seus modos de ser e em seus comportamentos efe­ tivos abstraindo suas relações com as coisas naturais e com os outros homens e conside­ rando-o fechado em si mesmo pelo círculo in­ transponível da consciência. CONSCIÊNCIA EM GERAL (ai. Bewusstsein üeberhaupi). Termo empregado pela pri­ meira vez por Kant para indicar o complexo das "funções lógicas" comuns a todas as cons­ ciências empíricas, não obstante as diferenças individuais de tais consciências (Crít. R. Pura, § 20). A C. em geral, portanto, é idêntica àquilo que Kant chama de apercepçâo pura, ou sim­ plesmente C, em Antropologia (I, § 7, Anota­ ção), também "C. discursiva ou reflexa". Esse termo reaparece com mais freqüência em Prolegômenos. "Como fundamento do juízo de experiência está a intuição da qual tenho C, isto é, a percepção (perceptió), que é toda oriunda do sentido. Mas em segundo lugar concorre também o juízo (que é só do intelec­ to). Ora, esse juízo pode ser de duas espécies, conforme eu confronte simplesmente as per­ cepções e as ligue em uma C, na C. de meu estado, ou as una numa C. em geral" {Prol, § 20). Na filosofia contemporânea esse termo é usado para indicar a C. em seu significado mais geral, distinto do significado restrito e específi­ co de C. como C. clara e distinta, ou C. reflexa. Assim, para Husserl, a C. em geral é a vivência (Erlebnis) (Jáeen, I, § 42). Para Jaspers, é a sub­ jetividade como condição de todos os objetos possíveis. "Como C. em geral, sou a subjetivi­ dade, pela qual os objetos subsistem como rea­ lidade dos objetos e como universalmente váli­ dos" (PM., I, p. 13). CONSCIÊNCIA INFELIZ (ai. Unglückliches Bewusstsein). Uma das mais famosas figuras da Fenomenologiado espíritodeHegel. Represen­ ta a sua interpretação da filosofia medieval. Nela, Hegel vê o desembocar do Ceticismo e do Estoicismo, enredados na contradição de afirmar e negar, que querem manter como dois termos exteriores, conseguindo apenas criar uma "briga de crianças teimosas, em que um diz a quando o outro diz b, para dizer b quando o outro diz a". A contradição própria do ceticis­

CONSCIENCIALISMO m o to rn a -s e d ra m á tic a n a Id a d e M e d iev al, co m o o p o siç ã o en tre d u as C , u m a imutável, q u e é a d iv in a, e o u tra mutável, q u e é a h u m a ­ na. Esse co n tra ste co n stitu i a C. infeliz, q u e é "a C. de si co m o da essê n cia d u p licad a e aind a to ta lm e n te e n re d a d a n a co n tra d içã o ". A infeli­ cid a d e da C. co n siste, p o is, no fato de q u e a C. n ão se re c o n h e c e co m o u n id a d e dessas d u as C. e, p o r isso, n ão se identifica co m a C. im u tável. A devoção é a p rim eira ten tativ a de su p e ra r a c o n tra d iç ã o , s u b o rd in a n d o a C. m u táv el à im u ­ tável, d a q u al a p rim eira p re te n d e re c e b e r tu d o d e p resen te . O áp ic e da d ev o ç ão é o ascetismo, em v irtu d e do q ual a C. re c o n h e c e a infelicida­ d e e a m iséria d a carn e e te n d e a lib ertar-se dela, u n ifican d o -se co m a C. im u tável (D eus). M as co m essa u nificação te rm in a o ciclo da C. infeliz p o rq u e, re c o n h e c e n d o -se co m o C. im u tá­ v e l, a C . r e c o n h e c e u - s e p o r a q u ilo q u e é, isto é, co m o E sp írito ou "Sujeito A b so lu to " (Phánomen. des Geistes, I, IV, B; trad. it., p p. 185 e ss.). Essa figura ex p rim e b em o p rin cíp io da filosofia h eg elian a, se g u n d o o q ual a re ali­ d ad e é a C. co m o su b stân cia racio n al infinita, d o n d e C. "pacificada" ou "feliz" é só aq u ela q ue se re c o n h e c e u co m o to ta lid a d e da re alid ad e. CONSCIENCIALISMO (in. Conscientialísm; fr. Conscientialisme, ai. Konscientialisms; it. Coscienzialísmó). E sse term o p ro v av elm en te foi criad o p o r K ülpe (Die Realísíerung, 1912) p ara in d icar a d o u trin a q u e re d u z a re a lid a d e a o bjeto de co n sciên cia. N esse s e n tid o , esse te r­ m o eq ü iv aleria a id ealism o . É m ais co m u m fa­ lar-se hoje de C. co m referên cia a d o u trin a s q u e to m em a co n sciên cia co m o p o n to de p a rti­ da da filosofia, isto é, q u e co n sid e re m co m o tarefa ou m é to d o da filosofia a in tro sp e cç ão , a reflex ão so b re si m esm o , a reflex ão in tern a ou a ex p eriên cia in tern a: co isas estas q u e signifi­ cam to d a co n sciên cia. CONSCIENTE (lat. Conscius; in. Conscious; fr. Conscient; ai. Bewusst; it. Coscienté). E sse adjetivo é co m u m en te em p re g a d o no sen tid o de consciência1 (v.); seu u so filosófico, p o rém , c o rresp o n d e n te ao do term o "consciência2": daí, p. ex., "espírito co n scien te" significar a atitu d e d e au to -reflex ão de b u sca interior. CONSENSO UNIVERSAL (lat. Consensus gentium). N a obra de A ristóteles é co m u m a referên cia à "o p inião de to d o s" co m o p ro v a ou co n tra p ro v a da v e rd a d e ; em Etica aNicômaco, (X, 2, 1.172 b 36) diz ex p lic ita m en te : "A quilo em q u e to d o s c o n se n tem , d ize m o s q u e assim é, já q ue rejeitar sem elh a n te crença significa re ­

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CONSEQÜÊNCIA n u n c ia r ao q u e é m ais d ig n o de fé". O s estó ico s, p o r su a v ez, in sistiram no v alo r do C. u n i­ v ersal, d o n d e a im p o rtâ n c ia q u e tiv eram para eles as "n o çõ es co m u n s", p elo fato de se for­ m arem ig u a lm e n te em to d o s os h o m e n s, ou n a tu ra lm e n te ou p o r efeito da e d u c a ç ã o (DIÓG. L, V II, 51). T o d av ia, só os E clético s fizeram do C. co m u m o critério da v e rd a d e ; C ícero ex p ri­ m ia o p o n to d e vista d ele s q u a n d o dizia: "Em to d o s os assu n to s, o C . de to d a s as g e n te s d ev e ser c o n sid e ra d o lei n atu ral" (Tusc, I, 13, 30). A filosofia m o d ern a, q u e tem D escartes co m o p o n ­ to de p artid a, p re te n d e u in stau ra r u m a crítica radical do sab er co m u m e, p o r isso, n ã o viu m ais no C. co m u m , q u e su sten ta esse sab er, g a­ rantia ou v alo r de v e rd a d e . P o rta n to , só ra ra ­ m e n te re c o rre ao consensus gentium. Isso se o b serv a n a esco la e sco ce sa do S en so C om um , en c a b e ç a d a p o r T o m á s R eid (1710-96). O p õ e se s o b re tu d o ao c e tism o d e H u m e , e p ara s u p e rá -lo re c o rre ao C. u n iv ersal, q u e ap o iaria as idéias, criticadas p o r H u m e , de su b stân cia, cau sa, etc. (Indagação sobre o espírito huma­ no segundo os princípios do senso comum, 1764) (v. SENSO COMUM). O re c u rso ao C. co m u m m u i­ tas v e z e s co n stitu i u m a p ro v a da ex istên cia de D eu s (v. DEUS, PROVAS DE). P o r o u tro lad o tam ­ b ém serviu de fu n d am en to à n o ç ão de d ireito n atu ral (v. DIREITO). M as estes e o u tro s u so s e v e n tu a is n ão m o dificam a su b stân cia da n o ­ ção , q u e é a te n tativ a de co lo car ao ab rig o da crítica co n h e cim en to s ou p rec o n c eito s ju lg ad o s a b so lu ta m e n te v álid o s, m as cuja efetiva u n i­ v e rsa lid a d e seria m u ito difícil p ro var. CONSEQÜÊNCIA (gr. àKOÂO"U0óc; lat. Consequentia; in. Consequence, fr. Conséquence, ai. Konsequenz; it. Conseguenza). E m b o ra A ristó teles u tilize o v e rb o c o rre s p o n d e n te a esse su b stan tiv o p ara significar q u e a co n clu ­ são segue-se das p rem issas do silogismo (v.), esse te rm o foi in tro d u z id o p elo s estó ic o s para in d icar a p ro p o siç ã o co n d icio n al (v. CONDICIO­ N A L). O latim consequentia foi in tro d u z id o p o r B o écio co m o sin ô n im o de "p ro p o siçã o h ip o ­ tética" (c o n d icio n al). S e g u n d o ele, a C. p o d e ser acidental, c o m o q u a n d o se d iz "Q u an d o o fo g o é q u e n te , o céu é re d o n d o ", ou natural, co m o q u a n d o se d iz "Se a T erra ficar do lad o o p o sto , h av erá ec lip se da Lua". N este ú ltim o e x e m p lo , a C . ap ó ia-se na "p o sição d o s te r­ m o s", no se n tid o de q u e o fato d e a T erra estar em o p o siç ã o é a cau sa do eclip se d a Lua (DeSyllogismisHypotheticis, P. L. 640, 835 B). A b e la rd o reserv a o te rm o C. p ara as c o n e x õ e s

CONSEQÜENTE

necessárias que são verdadeiras ab aeterno, como "Se é homem, é animal" (Dialectica, ed. De Rjk, 19702, p. 160). Ockham fez a distin­ ção entre C. nesse sentido, que ele chamava de formal e que exprime uma conexão ne­ cessária ou intrínseca, e a C. material, que liga extrinsecamente duas proposições, como quando se diz "Um homem corre, portanto Deus existe", que é válida porque o antece­ dente é impossível (Summa log., III, III, 1). Esse termo é usado com significados seme­ lhantes ou análogos pelos lógicos nos séculos seguintes, mas, pelo modo como é tratado, muitas vezes se intrica (ou confunde) com o conceito de proposição hipotética (v.) ou de condicional (v.). Na lógica contemporânea, foi usado por Carnap (Logical Syntax ofLanguage, § 14) para indicar uma relação mais extensa do que a de derivabilidade, da qual, posteriormente, considerou sinônimo (Introduction to Semantics, § 37). Mas, como "condicional", esse termo confluiu para implicação (v.). CONSEQÜENTE (in. Consequent; fr. Conséquent; ai. Konsequent; it. Conseguente). Em Lógica, o segundo termo de uma conse­ qüência (v.). G. P. CONSEQUENTIS (FALLACIA). É a falácia (v.), consistente em supor indevidamente que uma consequentia (v.) ou implicação seja reciprocavel, o que normalmente não ocorre: "se de A se segue B, então de B se segue A" (ARISTÓTELES, El. sof, 5,167 b 1; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 58; etc). CONSERVAÇÃO. V. CONAÇÂO.

CONSIGNIFICANTE (lat. Consignificans). 0 mesmo que sincategoremático (v.). CONSTANTE (in. Constant; fr. Constant; ai. Konstante, it. Costanté). Termo derivado da matemática, na qual designa a variável de­ pendente cujo valor não varia com a variação da variável independente (v. FUNÇÃO). Em geral, chama-se constante toda uniformidade, de im­ portância relevante, que possa ser verificada em um campo qualquer. Em física, tais uniformidades chamam-se C. quando podem ser ex­ pressas por números (cf. B. RUSSELL, Introduc­ tion to Mathematical Phil, 18; trad. it., p. 223 ss.). Na lógica contemporânea, o significa­ do desse termo tem como modelo o signifi­ cado matemático: a C. é, simplesmente, o nome próprio de um número, assim também em lógica esse termo é empregado para indicar um nome próprio que tenha denotação. A variá­ vel é um símbolo que, em vez de ter a denota-

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CONSTITUTIVO

çào singular da C, representa a possibilidade de diversos valores. Os limites nos quais esses valores podem mudar chamam-se amplitude áà variável. Carnap observou que, para designar as várias espécies de C. e de variável, pode-se fazer referência a seu valor de expressão, como quando se diz "variável enunciativa" ou "variá­ vel predicado", etc; ou, como ocorre mais fre­ qüentemente, pode-se fazer referência aos seus valores ou designados, como quando se diz "variável proposicional", "variável individual", "va­ riável numérica", etc. {Introduction to Semantics, § 37) (v. FUNÇÃO; NOTAÇÃO).

CONSTITUIÇÃO. V. c o n stitu tiv o . CONSTITUTIVO (gr. avaxaxiKÓq- lat. Constitutivus; in. Constitutive, fr. Constitutif, ai. Konstitutiv, it. Constitutivo). 1. Na lógica antiga e medieval esse adjetivo referia-se à diferença (v.) chamada de constitutiva em relação à espé­ cie e de divisiva em relação ao gênero: p. ex., a diferança "racional", na definição do homem como "animal racional", constitui a espécie hu­ mana, mas divide o gênero animal em duas partes, a racional e a não racional (PORFIRIO, Isag, 10; PEDRO HISPANO, Summ. log., 2.12; JUNGIUS, Lógica, I, 2, 45, etc). 2. Kant empregou esse termo para designar o que condiciona a realidade dos objetos fenomênicos. As intuições puras (espaço e tempo) e as categorias são constitutivas, nesse sentido, porque condicionam todos os objetos possíveis de experiência. As idéias da razão pura têm, ao contrário, apenas um uso regulativo, de dirigir o intelecto para certo objeti­ vo, em vista do qual as linhas diretivas de todas as suas regras convergem num ponto que — embora nada mais seja que uma idéia (focus imaginarius), isto é, um ponto do qual na re­ alidade não partem os conceitos do intelecto, já que está fora dos limites da experiência pos­ sível — serve, porém, para conferir-lhes a maior unidade com a maior extensão (Crít. R. Pura, Apêndice à Dialética Transcendental) (v. IDÉIA). Em sentido análogo, Husserl utiliza a palavra "constituição" quando fala, p. ex., dos "proble­ mas da constituição da objetividade da cons­ ciência". Esses problemas consistem em ver como "as modalidades fundamentais de uma consciência possível" condicionam ou, como diz Husserl, predeterminam "todas as possibili­ dades (e as impossibilidades) do ser que é ob­ jeto da própria consciência" (Ideen, I, § 86). Por sua vez, Carnap esclareceu o conceito de cons­ tituição do ponto de vista lógico-lingüístico

CONSTRUCIONISMO co m o c o n c e ito de re in te g ra b ilid a d e . D iz-se q u e u m o bjeto ou c o n ce ito é rein te g rá v el n um ou m ais o u tro s o b jeto s se os e n u n c ia d o s q u e d izem re sp e ito ao p rim e iro se d eix am tra n s ­ form ar em e n u n c ia d o s q u e d izem re sp e ito ao s e g u n d o . N esse ca so , p o d e -se d iz e r q u e o p rim eiro o bjeto é "co n stitu íd o " p elo s o u tro s (DerlogischeAufbau der Welt, § 2). Essa p a la ­ v ra p asso u a fazer p arte da lin g u ag em co m u m : d iz-se q u e tem caráter ou fu n ção C. tu d o o q u e co n c o rre p ara c o n d ic io n a r de alg u m m o d o um objeto q u a lq u e r. CONSTRUCIONISMO (in. Constructionalisni). P ro du ção e uso d e constructos (v.). Esse term o às v ezes é em p reg ad o p or escritores anglosaxões. (Cf. p. ex., M . DUMMETT, em The PhilosophicalReview, 1957, p. 47). CONSTRUCTO (in. Construci). C. ou c o n s ­ tru ç ão lógica é te rm o u sa d o fre q ü e n te m e n te p o r e s c rito re s a n g lo -sa x ô n ic o s p ara in d ica r en tid a d e s cuja ex istê n c ia se ju lg a co n firm ad a p ela co n firm ação d as h ip ó te se s ou d o s siste ­ m as lingüísticos em q u e se en co n tram , m as q u e n u n ca é o b serv á v e l ou inferida d ire ta m e n te de fatos o b serv áv eis. Esse te rm o en tro u em u so d e sd e q u e H u sse rl e n u n c io u seu princípio-. "S em pre q u e for p ossív el, é p rec iso su b stitu ir e n tid a d e s in ferid as p o r c o n stru ç õ e s ló g icas" (Mysticism andLogic, 1918, p. 155). O s C. são d o ta d o s p e lo q u e se c h a m o u d e ex istê n c ia sistêmica, isto é, p elo m o d o d e ex istên cia p ró ­ p rio de u m a e n tid a d e cujas d escriçõ es são ana­ líticas no âm b ito de u m sistem a d e p ro p o si­ ç õ e s, ao p a s so q u e as e n tid a d e s in fe rid as teriam ex istên cia real, q u e é o m o d o de ex is­ tên cia atrib u íd o a u m a e n tid a d e a q u e se p o d e referir u m a p ro p o siç ã o sintética v e rd a d e ira (cf. L. W . BKCK, Constructions andInferredEntities, em Readings in the Philosophy of Science, 1953, p. 369). O s C . d ev eriam d e s e m p e n h a r to d a s as fu n çõ es d as en tid a d e s inferidas: ls re su m ir os fatos o b serv a d o s; 2e co n stitu ir u m o bjeto ideal para a p esqu isa, ou seja, p ro m o v er o p ro g resso da o b sev aç ão ; 3a co n stitu ir a b a se p ara a p re v i­ são e a e x p lic aç ão d o s fatos (Ibid, p. 371). C o n tu d o , é p ossível a verificação em p írica in d i­ reta d o s C. "A d efinição de u m C. em p írico ", diz B erg m an n , "p. ex., de u m campo elétrico, s e m p re fo rn ec e in stru ç õ e s p ara c o m p ro v a r, p ara d ete rm in a r a v e rd a d e ou a falsid ad e das asserções n as q uais se en co n tra o C: p. ex., 'Há u m ca m p o elétrico n as v izin h an ç as do objeto

B'" (Outline ofan Empiricist Phil. ofPhysics, em Readings, cit., p. 270).

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CONTEMPLATIVA, VIDA

CONSUBSTANCIAÇÃO (lat. Consubstantiatio-, in. Consubstantiation; fr. Consubstantiation; ai. Konsubstantiation; it. Consustanziazione). In te rp re ta ç ã o do sa c ra m e n to do altar,

s e g u n d o a q ual a su b stân cia do p ão e do vinho se u n e à do co rp o e do sa n g u e de C risto, com o sujeito d e seu s ac id en te s. Essa d o u trin a , sem ­ p re co m b atid a p ela Igreja, foi d efe n d id a no início do séc. XIV p o r O ck h am , n o s d o is escri­ tos intitulados De sacramento altarise Decorpore Christi; era aceita p o r L utero.

CONTEMPLATIVA, VIDA (gr. 9ecopr|Tixòç

(3íoç; lat. Vita contemplativa; in. Theoreticallife, fr. Vie théorétique, ai. Theoretisches Leben; it. Vita contemplativa). Id eal da v id a d ed ica d a ex­ clu siv am e n te ao c o n h e c im e n to . S e g u n d o W . J a e g e r (Genesi e ricorso deli'ideale filosófico delia vita, 1928, em Aristóteles, trad. it., p. 363 ss.), a atrib u ição de u m a v id a p u ram en te C. aos filósofos p ré-socráticos, p o r m eio de anedotas (com o a d e T ales q u e , p o r an d ar o lh a n d o para as estrelas, cai n u m p o ç o , e n q u a n to a criadinha de T rácias ri dele) é a p ro jeç ão , no p a ssa d o , do p o n to d e vista p latô n ic o -aristo télico , q u e exal­ tou a v id a C. acim a da p rática e a co n sid e ro u a ú n ica d ig na do filósofo e, em g eral, do hom em . P o d e-se d u v id ar da e x a tid ão d essa te se no que c o n c e rn e à filosofia p latô n ica, q u e dificilm ente p o d eria ser ch a m a d a de co n tem p la tiv a , p ois ti­ n ha d elib e ra d a s finalid ad es políticas. M as certa­ m e n te é ex ata no q u e d iz re sp e ito a A ristóteles (v. FILOSOFIA; SABEDORIA). U m a d as co n se q ü ê n ­ cias do id ea l c o n te m p la tiv o de v id a foi o d e sp re z o p ela "banausia" (v.), isto é, p e lo tra­ b a lh o m an u al; o utra co n se q ü ê n c ia foi a reco­ n h e cid a s u p e rio rid a d e das ciên cias cham adas te o rética s so b re as c h a m a d as p ráticas e, em geral, da atividade teorética. "Essa atividade", diz A ristó teles, "é p o r si m esm a a m ais elev ad a, já q u e a in telig ên cia é o q u e há d e m ais elevado em nós; en tre as co isas co g n o sc ív eis, as mais elev ad as são a q u e la s de q u e se o c u p a a inteli­ g ên cia". P o rta n to , a v id a teo rética é su p erio r à h u m a n a . "O h o m e m n ão d ev e, co m o dizem alg u n s, c o n h e c e r as co isas h u m a n a s, co m o ho­ m em , co n h e ce r as coisas m ortais, co m o mortal, m as to rn ar-se o m ais im ortal possível e fazer de tu d o p ara v iv er s e g u n d o o q u e n ele h á de mais elev ad o : e m b o ra isso seja p o u c o em q u an tid a­ de, su p e ra em p o tên cia e calo r to d a s as outras co isas" (Et. nic, X , 7, 1177 b 31). A ristóteles co n tra p u n h a ex p licitam en te, no cap ítu lo citado da Etica, a v id a te o rética , a do p olítico e a do g u e rre iro q u e , s e g u n d o os an tig o s, eram

CONTEMPLATIVA, VIDA as m ais elev ad as. S o b re essa n o ç ã o d ev eria basear-se to d a a filosofia p ó s-a risto télic a, dos epicuristas aos n e o p la tô n ic o s, d estin ad a a ex al­ tar a figura do "sábio", do h o m e m cuja vida se resum e ou se esg o ta na c o n te m p la ç ã o . A filo­ sofia m edieval co n tin u a essa trad ição . S e o Mis­ ticismo (v.) v ê na v id a C. a fin alid ad e do h o ­ m em e no ca m in h o q u e leva a ela a ú n ica atividade de v alo r, p ara a E scolástica, co m S. Tomás (5. Th, II, 1, q. 3, a. 5), a v id a C. é n ão só a b em -a v e n tu ran ça últim a e p erfeita a ser obtida na outra v id a, co m o ta m b é m a b em aventurança m en o r e im perfeita q u e se p o d e alcançar n esta. U m a d a s c a ra c te rístic a s do H um anism o e do R en ascim en to é a ru p tu ra dessa trad ição e o re c o n h e c im e n to do v a lo r da vida prática ou ativa, do trab alh o e da atividade m undana. E a R eform a, ao m en o s n esse p o n to , coincide com o R enascim ento. B acon afirm ava, nessa linha, o caráter prático e ativo do p ró p rio conhecim ento iscire estposse, Nov. Org, I, 3), no sentido de q ue este v isa a estab elecer o d o m í­ nio h u m an o so b re a n atu re za . A s an álises dos empiristas in g leses n o s sécs. XVII e XVIII m o s­ travam a co n ex ão en tre o co n h e cim en to e a ex ­ periência vivida do h o m e m e, co m H u m e, a subordinação da p rim eira à seg u n d a . N o séc. XVII, o Ilu m in ism o v ê no c o n h e c im e n to e s ­ sencialm ente u m in stru m e n to de a ç ã o , u m meio para agir so b re o m u n d o e m elh o rá -lo : o ideal da vida C. p a re c e a b a n d o n a d o . C o n tu d o , retorna e p rev alec e no R o m an tism o , p ara o qual o c o n h e cim en to é o p o n to final de c h e g a ­ da; portanto, a v id a C. é áp ice do p ro c e sso cósmico, aq u ele no qual esse p ro c e sso alcança a realidade últim a p o r m eio d a co n sciên cia, (entendida no sen tid o d e CONSCIÊNCIA1 [ver]). Hegel assim concluía sua Enciclopédia. "A Idéia, eterna em si e p o r si, atu aliza-se, p ro d u z -se e com praz-se em si m esm a e te rn a m e n te , co m o Espírito A bsoluto"; e ac re sc en ta v a , co m o um selo de sua obra, o trec h o de A ristó teles (Met., XI, 7), em que se fala da v id a divina co m o "p en ­ samento do p e n sa m e n to ". Esse re n a sc im e n to do espírito C , q u e se m an ifesto u em to d as as direções nas q u ais o R om antism o agiu, c o m e ­ çou a ser d u ra m e n te a tac ad o a p artir de m e a ­ dos do séc. XIX. M arx co n tra p ô s à filosofia C. a não-filosofia da p ráx is, e m p e n h a d a em tra n s ­ formar, m ais do q u e em co n h e ce r, a re alid ad e (Teses sobre Feuerbach, 1845, § 3, 11). N ietzsche insistiu no caráter de re n ú n cia e de enfra­ quecim ento vital da v id a C. e do d esin teresse teórico (Die Froeliche Wissenschaft, § 345). A s

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CONTEXTO filosofias da ação e o p rag m atism o insistiram n a s u b o rd in a ç ã o do c o n h e c im e n to à ação e às su a s ex ig ên cias. P or fim, o ex istencialism o c o n ­ sid e ro u as situ aç õ e s c h a m a d a s de co g nitiv as co m o m o d o s de ser do h o m e m no m u n d o , to r­ n a n d o sem se n tid o a d istin çã o en tre v id a C. e v id a prática. O re c o n h e c im e n to da ileg itim id a­ de d essa d istin çã o talv ez seja o traç o m ais ca­ racterístico da filosofia c o n te m p o râ n e a . P o r um lado o co n h e cim en to , em to d o s os seu s g rau s e fo rm as, im plica a ap lica çã o de m é to d o s, té c n i­ cas ou in stru m en to s in e re n te s à situ aç ão h u m a ­ n a no m u n d o , p o d e n d o ser c o n sid e ra d o s de n atu re za prática. P o r o u tro , a p ró p ria v id a C. n ão p assa de d elim ita çã o d o s in te re sses a certa esfera de p ro b le m a s e n ão a outra; p o rta n to é u m a d iretriz d e v id a prática, esco lh id a e d e lib e ­ rada. D esse p o n to d e v ista, a ex a lta çã o da vida C. a p a re c e so b re tu d o co m o d isto rçã o p ro fissio ­ nal do filósofo, q u e p rivilegia sua ativ id ad e, c o n sid e ra n d o -a s u p e rio r a to d a s as o utras. CONTEÚDO. V. COMPREENSÃO. CONTEXTO (in. Context; fr. Contexte, ai. Kontext; it. Contesto). C on ju n to d o s elem e n to s q u e co n d ic io n a m , de u m m o d o q u a lq u e r, o sign ificad o de u m e n u n c ia d o . O C. é d efinido p o r O g d e n e R ic h a rd s do s e g u in te m o d o : "C. é o c o n ju n to de e n tid a d e s (c o isa s ou ev en to s) c o rre la c io n a d a s de certo m o d o ; cad a u m a d e s s a s e n tid a d e s te m tal c a rá te r q u e o u tro s co n ju n to s de e n tid a d e s p o d e m ter os m esm o s c a ra cte re s e esta r lig a d o s pela m esm a relação ; re c o rre m q u a se u n ifo rm em e n te" (The Meaning oftheMeaning, 10- ed ., 1952, p. 58). Essa d efinição p are ce o b scu ra, m as fica m ais clara g raç as à e x p lic aç ão q u e se seg u e : "Um C. literário é u m g ru p o de p alav ras, in cid e n ­ tes, id éias, etc. q u e em d ad a o ca siã o a c o m p a ­ nha ou circ u n d a aq u ilo q u e d ize m o s ter um C , e n q u a n to C . determinante é u m g ru p o d essa e sp é c ie q u e n ão só o co rre re p e tid a m e n ­ te, m as é tal q u e p e lo m e n o s u m d e seu s m e m b ro s é d e te rm in a d o , q u a n d o os o u tro s sã o d a d o s" (Jbid, p. 58, n. 1). E m o u tro s au to re s, é c h a m a d o de C . o co n ju n to de p re s ­ su p o sto s q u e p o ssib ilitam a p re e n d e r o sen tid o de u m e n u n c ia d o . D iz S. K. L anger: "O n o m e d e u m a p e s so a , co m o to d o s s a b e m , traz à m e n te ce rto n ú m e ro d e a c o n te c im e n to s de q u e ela to m o u p arte. E m o u tro s te rm o s, u m a p alav ra m n em ô n ica e sta b e le c e u m C . no qual ela se n o s ap re se n ta; e n ós a u sa m o s in g e n u a ­ m e n te , e s p e ra n d o q u e seja c o m p re e n d id a co m seu C." (Philosophy in a New Key, ed.

CONTEXTUALISMO

Penguin Books, cap. V, p. 110). Em todo caso, é o conjunto lingüístico de que o enunciado faz parte e que condiciona seu significado (de modos e em graus que podem ser muito diferentes). CONTEXTUALISMO (in. Contextualism). Corrente do pragmatismo que acentua a mobili­ dade temporal dos eventos e os considera em estreita relação com os outros eventos que per­ tencem ao mesmo contexto. (Cf. S. C. PEPPER, Aesthetic Quality: A contextualistic Theory of Beauty, Nova York, 1938; L. E. HAHN, A Con­ textualistic Theory ofPerception, Berkeley-Los Angeles, 1942). CONTIGÜIDADE, ASSOCIAÇÃO POR (in. Association by contiguity, fr. Association par contiguité, ai. Berührungs-Association; it. Associazione per contiguitã). Uma das formas de associação de idéias, conhecidas já por Aris­ tóteles (De memória, 2, 451 b 20) (v. ASSOCIA­ ÇÃO DE IDÉIAS). CONTINGENTE (lat. Contingens; in. Contingent; fr. Contingent; ai. Kontingent; it. Contingente). 1. Os escolásticos latinos traduzi­ ram por esse termo o aristotélico èvSe%ó|J.evov (De int, 12, 20 b 35). Boécio, a quem se deve a determinação de boa parte da terminologia fi­ losófica latina, já observava quepossibüe e contingens significam a mesma coisa, salvo talvez pelo fato de não existir o negativo de con­ tingens, que deveria ser incontingens, assim como existe o negativo de possibüe, que é ímpossíbile(De interpretatione, [II], V; P. L, 64Q, col. 582-83). Todavia, na tradição escolástica, e sobretudo por influência da filosofia árabe, o termo C. passou a ter significado específico, di­ ferente do que se entende por "possível"; pas­ sou a significar aquilo que, embora sendo pos­ sível "em si", isto é, em seu conceito, pode ser necessário em relação a outra coisa, ou seja, àquilo que o faz ser. P. ex., um acontecimento qualquer do mundo é C. no sentido de que: Ia considerado de per si, poderia verificar-se ou não; 1° verifica-se necessariamente pela sua causa. Desse ponto de vista, enquanto o possí­ vel não só não é necessário em si, mas tam­ pouco é necessariamente determinado a ser, o C. é o possível que pode ser necessariamente determinado e, portanto, pode ser necessário. Por isso, a noção de C. é ambígua e pouco coe­ rente, mas seu uso na filosofia antiga e moder­ na é bem grande. Esse uso foi introduzido pelo necessitarismo árabe, especialmente por Avicena. "Se uma coisa não é necessária em rela­

CONTINGENTE

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ção a si mesma", dizia Avicena, "é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas ne­ cessária em relação a uma coisa diferente" (Met, II, 1, 2). O que é possível permanece sempre possível em relação a si mesmo, mas pode ocorrer que seja de modo necessário em virtude de uma coisa diferente de si (Ibid., II, 2, 3). Desse modo, tudo o que existe, de Deus à coisa natural mais ínfima, existe necessaria­ mente, segundo Avicena. Mas enquanto Deus e as realidades primeiras são necessárias em si, as coisas finitas são necessárias "para outra coisa", já que em si mesmas são possíveis; e nesse sentido são contingentes. Essa noção não se alterou substancialmente em toda a filosofia escolástica nem na filosofia moderna, que, no entanto, utiliza-a muito menos. S. Tomás, que define o C. como possível, isto é, como "o que pode ser ou não ser", reconhece que nele já podem ser encontrados elementos de necessi­ dade (S. Th, I, q. 86, a. 3). Duns Scot reproduz a noção de Avicena, defendendo-a da acusação de contradição (Op. Ox, 1, d. 8, q. 5, a. 2, n. 7). Essa noção reaparece com a clareza desejável na doutrina de Spinoza: segundo ele uma coi­ sa só pode ser considerada por um defeito de nosso conhecimento (Et, I, 33, scol. 1), já que na realidade, nada há de C. e tudo é determina­ do pela natureza divina para ser e para atuar de certo modo (Ibid, I, 29). A Escolástica falava também de "verdades C", que são as que se referem a eventos C. (p. ex., OCKHAM, In Sent., prol., q. 1. Z). Leibniz dizia que as verdades C. se distinguem das verdades necessárias assim como os números incomensuráveis se distin­ guem dos comensuráveis, isto é, no sentido de que, assim como é possível obter resolução dos números incomensuráveis à medida co­ mum, também é possível obter a redução das verdades necessárias a verdades idênticas. Isso, porém, exigiria um progresso infinito para as verdades C. (ou de fato), progresso que pode ser efetuado somente por Deus (Op., ed. Erdmann, p. 83). Em sentido análogo, fala-se hoje de "contingência lógica", no sentido de que não se pode comprovar se as proposições empíricas são verdadeiras ou falsas a partir de qualquer de seus caracteres lógicos: é o que faz C. I. Lewis (Analysis ofKnowledge and Valuation, p. 340). Carnap no mesmo sentido usa esse termo (Meaning and Necessity, § 39) (v. MODALIDADE; POSSÍVEL).

2. Na filosofia contemporânea, sobretudo na francesa a partir da obra de Boutroux, A

CONTINGENTIA

contingência das leis da natureza (1874), o term o C. p asso u a ser sin ô n im o de "n âo -d eterm inado", isto é, de livre e im previsível; d esigna esp ecialm en te o q u e de livre, n esse se n tid o , se encontra ou age no m u n d o n atu ral. B erg so n adota esse te rm o no m esm o sen tid o : "O p ap el da co n tin g ên cia é im p o rta n te na ev o lu çã o . C, o m ais d as v e z e s, são as fo rm as ad o tad a s, ou m elhor, in v en tad a s. C , re la tiv am e n te a o b stá ­ culos e n c o n tra d o s em tal lu g ar e em tal m o ­ mento, é a d isso ciação da ten d ên c ia prim ordial em diversas te n d ê n c ia s c o m p le m e n ta re s q u e produzem lin h as d iv e rg e n te s de e v o lu çã o . C. são as p ara d a s e os re to rn o s" (Evol. créatr, 11a ed., p. 277, 1911). N esse s e n tid o , c o n tin g ên cia identifica-se co m lib e rd a d e e am b as se o p õ e m a n ecessid ad e; ao p a sso q u e a p o ssib ilid ad e, segundo B ergson , é só a im ag em q u e a re alid a­ de, em su a au to cria çã o C , isto é, "im previsível e nova, p ro jeta d e si m esm a em seu p ró p rio passado" (Lapensée et le mouvant, p. 128). O uso do term o "con ting ên cia" n esse significado caracteriza as c o rre n te s do c h a m a d o indeterminísmo (v.) c o n te m p o râ n e o : d o u trin a s filo­ sóficas q u e in te rp retam a n atu re za em term o s de lib erd ad e e de finalid ad e, isto é, em te rm o s de espírito. A esse sign ificad o ta m b é m se re ­ porta o u so d esse te rm o p o r Sartre, p ara q u e m contingência é o fato de a lib e rd a d e "não p o ­ der não existir". C o n tin g ên c ia, p o rta n to , é a liberdade na re la ção do h o m e m co m o m u n d o {1'être et le néant, p. 567). CONTINGENTIA U m a d as p ro v a s da ex is­ tência de D eu s é co n h e c id a co m o a contíngentia mundi (v. DEUS, PROVAS DE). CONTINGENTISMO. Esta p alav ra

n ão faz referência ao significado tradicional ou clássico de contin g ên cia, m as ao sign ificad o c o n te m p o ­ râneo d esse te rm o co m o sin ô n im o de lib e rd a ­ de (no sen tid o infinito ou in c o n d ic io n a d o ). Portanto, refere-se so b re tu d o às v árias form as do espiritualismoiy.), q u e afirm am a p resen ça e a ação, no p ró p rio m u n d o da n atu re za , de u m Princípio Livre (divino). CONTINUO (gr. avvexéç, lat. Continuum, in . Continuous; fr. Continu; ai. Stelig; it. Conti­ nuo). A n o ção d e C. é m atem ática, e m b o ra os filósofos te n h a m co n trib u íd o p ara a sua e la b o ­ ração e a te n h a m u tilizad o m u itas v ez es. A p ri­ meira definição ex p lícita de C. é d ad a p o r A ris­ tóteles (q u e ta lv ez re to m e u m c o n c e ito de A naxágoras, Fr. 3, D iels), s e g u n d o o q ual C. é "o divisível em p a rte s s e m p re divisíveis" (Fís., VI, 2, 232 b 24), n ão p o d e n d o , p o rta n to , re su l­

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CONTINUO tar de ele m e n to s indivisíveis, d e áto m o s (Lbid., V I, 1, 231 a 24). E m A ristó teles, esse co n ceito altern a-se co m o u tro , m ais intuitivo e m en o s m atem á tic o , s e g u n d o o q ual C . é u m a e sp écie d e "contíguo", no sen tid o de q u e são contínuas as co isas cujos lim ites se to ca m e d e cujo co n ta­ to su rg e certa u n id a d e (Met., X I, 12, 1069 a 5 ss.). E ste ú ltim o c o n c e ito e n c o n tra v a -se em P arm ê n id e s (Fr. 8, 24, D iels) e n ão é u tilizad o p elo p e n sa m e n to m o d e rn o . O ú n ic o a lem brálo é P eirce, q u e se re p o rta e x p lic ita m en te a A ristó teles, d e c la ra n d o q u e n ão é to ta lm en te satisfatória a d efin ição d e C. d ad a p o r C an ­ to r (Chance, Love and Logic, II, 3; trad . it., p p . 153 s s .). A p rim eira definição d o m in o u a trad iç ão da m atem ática até L eibniz. E ste re ssalto u a im p o r­ tância filosófica da "lei de c o n tin u id a d e " e re ­ definiu C. S eg u n d o a lei de c o n tin u id a d e , o re p o u so p o d e ser c o n sid e ra d o u m m o v im en to q u e se d esv a n e ce d ep o is de ser co n tin u am en te d im in u íd o . D e m o d o an á lo g o , a ig u ald ad e é u m a d e s ig u a ld a d e q u e se d e s v a n e c e , assim co m o ac o n te ce ria no caso da d im in u içã o co n tí­ n ua do m aio r d e d ois co rp o s d esig u ais, dos q u a is o m e n o r c o n s e rv a s s e su a g ra n d e z a (Théod, II, § 348). A lei d e c o n tin u id a d e a c o n ­ selh a ad m itir infinitos g rau s na co n stitu iç ão e n a ação d as su b stân cia s q u e c o m p õ e m o u n i­ v erso . "C ada u m a d essa s su b stân cia s", d iz Leibniz, "con tém em sua n atu re za u m a lei de c o n ­ tin u id a d e da série de su a s o p e ra ç õ e s" (Op., ed. E rd m an n , p. 107). A lei de co n tin u id a d e ta m b é m v a le p ara o m u n d o d as re p re s e n ta ­ çõ es, no q ual "as p e rc e p ç õ e s n o táv eis p ro v ê m g ra d u a lm e n te d a q u e la s q u e são p e q u e n a s d e ­ m ais para sere m n o tad as" (Nouv. ess, In tro d .). L eibniz definiu C. no se n tid o de q u e, n ele, "a diferença en tre d o is caso s p o d e ser re d u zid a a m e n o s de q u a lq u e r g ra n d e z a d ad a" (MathematischeSchriften, ed. G erh ard t, V I, p. 129). É esse o c o n ce ito a q u e K ant alu d e: "A p ro p rie ­ d ad e d as q u a n tid a d e s, p ela q u al n ela s n ão há p arte q u e seja a m e n o r p ossível (um a parte sim p les) é c h a m a d a de c o n tin u id a d e d elas" (Crít. R. Pura, A n te c ip a ç õ e s da p e rc e p ç ã o ). N a m atem ática m o d e rn a , d u a s e tap as im p o rta n tes na definição do C. são as co n stitu íd as p elo s p o stu la d o s de D ed ek in d (Continuidade e nú­ meros racionais, 1872) e de C an to r (nos Mathematische Annalen, de 1878 a 1883). O p o s ­ tu lad o de D ed ek in d diz: "D ividindo-se to d o s os p o n to s de u m a reta em d u a s classes, de tal m o d o q u e cad a p o n to d a p rim eira p re c e d a

CONTÍNUO cad a p o n to d a se g u n d a , ex iste u m p o n to , e só um , q u e assinala a d iv isão d e to d o s os p o n to s em d u a s classes e da reta em d o is seg m en to s". O p o stu la d o de C an to r é m ais restrito: "D adas so b re u m a reta r d u as classes C e C de p o n to s, tais q ue: ls cad a p o n to de C esteja à e sq u e rd a de cad a p o n to de C; 2S to m a n d o -se u m s e g ­ m e n to q u a lq u e r y, seja p o ssív e l a c h a r u m se g m e n to m en o r q u e y do q ual u m ex trem o seja u m p o n to d e C e o o u tro u m p o n to de C; ex iste en tã o so b re a reta r u m p o n to de s e ­ p ara çã o d as d u as classes." R ussell e x p resso u o m esm o co n ce ito a p ro p ó sito do m o v im e n to , afirm and o : "O in terv alo e n tre d ois in stan tes q u a isq u e r ou d u as p o siç õ e s q u a isq u e r é s e m ­ p re finito, m as a c o n tin u id a d e do m o v im e n to n asce do fato de q u e , p o r m ais p ró x im a s q u e estejam as d u as p o siç õ e s c o n sid e ra d a s, ou os d ois in stan te s, h á u m a in finidade de p o siç õ e s aind a m ais p ró x im a s, o c u p a d a s p o r in stan tes q u e são ig u alm e n te m ais p ró x im o s" (Scientifíc Method in Philosophy, 1926, V ; trad . fr., p. 111). N o en ta n to , essas d efin içõ es de C. tê m caráter p ara d o x al p o rq u a n to p a re c e m q u e re r inferir o C. da im ag em do d e sc o n tín u o , isto é, de um co n ju n to de in stan tes, de p o n to s ou de p o si­ ções. N os ú ltim os te m p o s, d eu o rig em a d isc u s­ sõ e s a c alo rad as en tre os m atem á tic o s, alg u n s d os q u ais te n d e m a v o ltar à n o ç ã o "intuitiva" de C , a ssu m id o às v e z e s co m o co n ce ito o rig i­ nário. B ro uw er, p. ex., v ê a estru tu ra do C. na "ap ro x im ação q u e p ro g rid e m ais ou m en o s li­ v rem en te" (Cf. From Frege to Gódel, ed. J. v o n H eijen o ort, 1967, p. 342). O u so filosófico da n o ç ã o de C . tem , p o ­ rém , p o u c o ou n ad a q u e v e r co m essas e s p e ­ cu laçõ es m atem áticas. E ntre os p e n sa d o re s m o ­ d ern o s, u m d o s q u e m ais u tilizam essa n o ç ã o é M ach, q u e a e sclarece do m o d o seg u in te : "Se u m in telecto in v estig an te se h ab itu o u a re u n ir no p e n sa m e n to d ois fatos, ae b, p ro cu rará, no q u e for p ossív el, m an te r firm e esse h áb ito m e s­ m o em c irc u n stâ n c ia s d ife re n te s: em g era l, s e m p re q u e a se ap re se n tar, b ta m b é m será p e n sa d o . E sse p rin cíp io , q u e tem raiz na te n ­ d ên cia à ec o n o m ia e q u e se se m o stra b a sta n te claro ao s g ra n d e s p e n sa d o re s, n ós ch a m a m o s d e p rin c íp io d a c o n tin u id a d e " (Analyse der Empfindungen, IV, § 1; trad. it., p. 71). C om o se vê, a co n tin u id ad e aqui é rev o cad a ao p rin cípio do h áb ito , en c o n tra d o em H u m e, m as n ão é esclarecida co n c e itu a lm e n te . P o r o u tro lad o , D ew ey, q u e co n sid era a lei de c o n tin u id a d e co m o "o p o stu lad o fu n d am en tal da teoria n a tu ­

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CONTRAÇÃO ralista da lógica", d ete rm in a a n o ç ã o de co n ti­ n u id a d e m ais n e g a tiv a m e n te e p o r im a g e n s do q u e de form a rig o ro sa. D iz q u e ela "significa ex c lu são da ru p tu ra c o m p leta, p o r u m lad o , e d a sim p les re p e tiç ã o ou id e n tid a d e , p o r outro; n eg a a re d u tib ilid a d e do 'm ais alto ' ao 'm ais b aix o ', co m o n eg a as se p a ra ç õ e s e os co rtes ní­ tid o s. O c rescim e n to e o d ese n v o lv im e n to de u m a n atu re za viva, q u e v ai da s e m e n te à m a­ tu rid ad e, ilustra b em o significado dessa palavra" (Logic, cap. II; trad. it., p. 59). A qui, co m o se v ê, além do re cu rso à im a g e m do o rg an ism o v iv o só h á d u as d e te rm in a ç õ e s n eg ativ as que são : I a) ex c lu são de d iv isão e 2e) ex c lu são de u n id a d e en tre as p artes do co n tín u o . E m sen ti­ do ain d a m ais im p re ciso , essa p alavra é u sada q u a n d o se fala d e c o n tin u id a d e da ev o lu ção , cio d esen v o lv im e n to , do p ro g resso , ou da histó­ ria. A p ro p ó sito d esta últim a, a co n tin u id ad e pa­ re ce significar, na m aioria d as v ez es, a p erm a­ n ên cia de certo s e le m e n to s, m o tiv os ou fatores, p o rta n to certa u n id a d e ou se m e lh a n ç a en tre as v árias fases. A "c o n tin u id ad e da história da filo­ sofia", p. ex., é e n te n d id a q u a se s e m p re com o a p erm a n ê n c ia , através dela, de certas n o ções, diretrizes ou p rin cípio gerais. Por o u tro lado, se refletirm o s q u e aq u ilo q u e D ew e y ch am a de "p o stu la d o n atu ralista d a co n tin u id a d e " entre b io lo g ia e ló g ica é a ação c o n d ic io n a d o ra que as situ aç õ e s b io ló g icas e x e rce m so b re a o rg an i­ z a çã o e o d e se n v o lv im e n to d as p esq u isas, logo v e re m o s q u e a n o ç ã o de p e rm a n ê n c ia n ão é ap ta a definir o c o n ce ito su ficien tem e n te g e n e ­ ra liz ad o de c o n tin u id a d e . A esse re sp e ito , lim i­ ta n d o -n o s ao u so q u e essa p alavra tem na lin­ g u a g e m filosófica e co m u m d e hoje, p o d em o s d izer q u e, em g eral, se fala de continuidade

entre duas coisas sempre que é possível reco­ nhecer entre essas duas coisas u m a relação qualquer. P o rta n to , re la ç õ e s de c a u salid ad e ou

de c o n d ic io n a m e n to , de c o n tig ü id a d e ou de se m e lh a n ç a , p o d e m ser c o n sid e ra d a s sinais, p ro v a s ou m a n ife s ta ç õ e s d e c o n tin u id a d e ; assim co m o , p o r o u tro lad o , p o d e m ser assim co n sid e ra d a s até m esm o re la çõ es d e o p o sição , d e c o n tra d iç ã o , de d isp a rid a d e ou d e conflito, v isto q u e n em m esm o essas fo rm as d e relação im p licam u m co rte n ítid o en tre as co isas que o p õ e m , n em a falta de u m a re la ção q ualq uer. CONTRAÇÃO (lat. Contractio; in. Contraction; fr. Contraction; ai. Kontraction; it. Contrazione). T erm o e m p re g a d o p o r D u n s S cot para in d icar o d e te rm in a r-se e o restrin g ir-se da "na­ tu reza co m u m " (p. ex., a n atu re za h u m an a) a

CONTRADIÇÃO u m in d iv ídu o d e te rm in a d o , ad esse hanc rem (Op. Ox., II, d. 3, q. 5, n. 1). U tilizan do essa e x ­ pressão esco lástica no m esm o se n tid o (cf. De docta ígnor, II, 4: "A C. se d iz em re la ç ã o a algo, p. ex., a ser isto ou aq u ilo "), N icolau de Cusa ch am o u o m u n d o d e "D eus co n tra íd o ", no sen tid o de q u e ele, co m o D eu s, é o m áx i­ mo, a u n id a d e , a in finitu de, m as contraídas, isto é, d e te rm in a d a s e in d iv id u a liz ad as n u m a m ultiplicidade de co isas sing u lares (Ibid., II, 4). N a Escolástica tardia, certam en te p o r influência do E scotism o, essa p alavra às v e z e s foi e m p re ­ gada para in d ica r o d e te rm in a r-se do g ê n e ro nas esp écies e da e sp é c ie s n os in d iv íd u o s. CONTRADIÇÃO (gr. àvTÍcpacaç; lat. Contradictio; in. Contradíction; fr. Contradiction; ai. Widersprucb; it. Contraddizione). A ristó te­ les (An.post, I, 2, 72 a 12-14) d efine-a co m o "oposição q u e , p o r si só, ex clui o c a m in h o do meio"; em An. pr, I, 5, 27 a 29, tal re la ção é explicada co m o re la ção en tre p ro p o siç ã o u n i­ versal negativa e p articular afirm ativa, universal afirmativa e p artic u la r n eg ativa. E sses são os pares (AO, EI) d as propositiones contradictoriae no ch a m a d o "q u ad rad o d e P sello" dos textos m ed iev ais de L ógica. O essen cial nos pares de p ro p o s iç õ e s c o n tra d itó ria s é q u e ambas n ão p o d e m ser v e rd a d e ira s (princípio de C.) n em falsas (princípio do terceiro ex­

cluído). G. P. CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE (gr. àAícoAa xfjç àvTKpáoecoç; lat. Principiam contradictionis; in. Principie of contradiction; fr. Príncipe de contradiction; ai. Satz der Widerspruchs; it. Principio di contraddizione). T en d o nascido com o p rin cípio o ntológ ico, o princípio de C. só p asso u p ara o cam p o da lógica no séc. X V II, p ara to rn a r-se , n e sse m esm o sé c u lo , uma das "leis fu n d a m en tais do p e n sa m e n to ". Como p rin cíp io o n to ló g ic o , foi ad m itid o ex p li­ citam ente, pela p rim eira v ez, p o r A ristó teles, que o to m o u co m o fu n d a m en to da "filosofia primeira", ou m etafísica. S eg u n d o A ristó teles, esse p rin cípio serv e, em p rim eiro lugar, p ara delimitar o d o m ín io p ró p rio d essa ciên cia, p er­ mitindo ab strair o seu o b jeto , o ser como tal, de todas as d eterm inações às quais está ligado, do mesmo m o do co m o os ax io m as da m atem ática e da física p erm item ab strair seu s o b jeto s (res­ pectivam ente a quantidade e o movimento) de outras d e te rm in a ç õ e s às q u ais estã o lig ad o s (Mel, IV, 3). A ristó teles, p o rém , c o n sta n te m e n ­ te form ula esse p rin cíp io de d u a s m an eiras. Uma é estreitam e n te o n to ló g ic a, e se ex p ressa

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CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE assim : "N ada p o d e ser e n ã o ser sim u lta n e a­ m en te " (Ibid., III, 2, 996 b 30; IV, 2, 1005 b 24); a o u tra p o d e ria ser c h a m a d a de lógica e se ex ­ p ressa assim : "É im possível q u e a m esm a coisa, ao m esm o te m p o , seja in e re n te e n ão seja in e ­ re n te a u m a m esm a coisa so b o m esm o a sp e c ­ to" (Ibid., IV, 2. 1005 b 20), ou en tão : "É n e c e s­ sá rio q u e to d a a s se rç â o seja afirm ativa ou n eg ativa" (Ibid., III, 2, 996 b 29). A ristóteles co n sid era esse p rin cíp io in d em o n stráv el, m as ach a q u e p o d e ser d e fe n d id o d e seu s o p o si­ to res, en tre os q u ais os m eg áric o s, os cínico s, os sofistas e os h eraditistas, m o stran d o -se q ue, se eles afirm am algo de determinado, n eg am a n eg a ç ã o d esse algo e assim se v ale m d esse p rin cíp io (Ibid, IV, 4). P o rta n to , o v alo r d esse p rin cíp io é e sta b e le c id o p o r A ristó teles em re ­ lação ao q u e é d e te rm in a d o (tóô e TÍ). "Se a v e rd a d e ", d iz A ristó teles, "tem u m significado, n e c e ssa ria m e n te q u e m diz homem diz animal bípede, já q u e isso significa hom em . M as se isso for n ec essário n ão será p o ssív el q u e o h o m e m n ão seja an im al b íp e d e , p o is a n e c e ssid a d e sig ­ nifica ju sta m e n te q u e é im p o ssível q u e o ser n ão seja" (Ibid, IV, 4, 1006 b 28). A ssim , o p rin ­ cíp io d e C , re fe rin d o -se ao ser d e te rm in a d o , p erm ite ab strair d e sse ser o q u e há de n e c e s ­ sário: a substância ou a essê n cia su b stan cial: no ex e m p lo do h o m e m , o animal bípede é p re c isa m e n te a su b stân cia , a essên cia s u b sta n ­ cial ou a definição do h o m em . D esse m o d o , o p rin cíp io de C. leva a co n sid e rar a filosofia p ri­ m eira, q u e é a ciên cia do ser e n q u a n to ser, co m o teo ria da su b stân cia . D iz A ristóteles: "O q u e h á m u ito te m p o , ag o ra e s e m p re p ro c u ra ­ m o s, o q u e s e m p re será u m p ro b le m a para n ós, ou seja, 'o q u e é o ser', significa 'o q u e é a su b stân cia?'" (Ibid, V II, 1, 1028 b 2). O sign i­ ficado q u e o p rin cíp io de C. tem na m etafísica de A ristó teles re aliza -se, pois, n as n o ç õ e s fun­ d am en ta is d essa m etafísica, q u e são as de subs­ tância (v.), de essên cia necessária (v. ESSÊNCIA) e d e cau sa (v. CAUSALIDADE). M as p ara A ristó ­ te le s, esse p rin cíp io ta m b é m p o ssu i alca n c e ló ­ gico. Ele diz q u e , e m b o ra o p rin cíp io de C. n ão seja assu m id o e x p re ssa m e n te p o r n e n h u m a d e ­ m o n stra çã o , é a b ase do silo g ism o na m ed id a em q ue, c o n sid e ra n d o -se a n o ç ão de h o m e m ou a de n ão -h o m e m , d e sd e q u e se ad m ita q u e o h o m e m é u m an im al, se m p re resu ltará v e rd a ­ d eiro afirm ar q u e C álias é an im al e n ão um n ão -an im al; d iz q u e ele é o fu n d a m en to da re ­ d u ç ão ao a b su rd o (An.post., I, 11, 77 a 10). A estrutura silogística é assim su sten tad a, tan to na

CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE

sua forma positiva quanto na negativa, pelo princípio de C: o que não causa espanto, dado que para Aristóteles a estrutura silogística re­ produz a estrutura substancial do ser (v. SILO­ GISMO). Na forma dada por Aristóteles, esse princí­ pio permaneceu muito tempo como funda­ mento da metafísica clássica. As discussões do séc. XIII sobre o modo de expressá-lo com mais simplicidade e economia redundaram na formulação daquilo que depois se chamou de princípio de identidade (v.), mas não aba­ laram a supremacia do princípio de C. Descar­ tes (Princ.phil, I, 49) e Locke (Ensaio, I, 1, 4) ainda o admitiam como verdade indubitável, mas já ignoravam completamente seu valor ontológico, que, para Aristóteles, era primor­ dial. Mas foi Leibniz quem levou o princípio de C. de uma vez por todas para a esfera da lógi­ ca: considerou-o exclusivamente fundamento das verdades de razão, enquanto dizia que as verdades de fato baseavam-se no princípio de razão suficiente (Monad, §§ 11-32). Segundo Leibniz, esses dois princípios constituíam a base de todas as verdades e, portanto, de todo o edifício do conhecimento humano (Nouv. ess, IV, 2,1). Wolff ainda incluía o princípio de C. na ontologia, mas considerava-o como um princípio natural da mente humana (Ont, § 27). E Baumgarten encontrava a sua fórmula clássi­ ca: A + não-A = 0, chamando-o de princípio absolutamente primeiro e colocando-o à frente de sua ontologia (Met., § 7). Kant preferia expri­ mi-lo num de seus primeiros textos com fór­ mula: "Aquilo cujo oposto é falso é verdadeiro" (Principiorum Primorum Cognitionis Metaphysicae Nova Dilucidatio, 1755,1, prop. II, scol.). Mais tarde, em Crítica da Razão Pura, dizia: "A coisa nenhuma convém um predicado que a contradiga" e considerava-o "princípio geral plenamente suficiente de todo conhecimento analítico", eliminando dele, porém, a deter­ minação temporal contida na expressão aristotélica; porque, dizia ele, "enquanto princípio simplesmente lógico, não deve limitar suas expressões às relações de tempo" (Crít. R. Pura, Analítica dos Princípios, cap. II, séc. I). Esse era substancialmente o ponto de vista de Leibniz. Depois de Kant, o princípio de C. foi considerado uma das "leis fundamentais do pensamento" (KRUG, Logik, 1832, p. 45; FRIES, System derLogik, 1837, p. 121; HAMILTON, Lectures on Logic, I, p. 72), qualificação honrosa

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CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE

que distinguiu durante muito tempo os princí­ pios lógicos e que às vezes ainda é empregada. Um retorno ao uso metafísico do princípio de C. ocorreu com Fichte e com Hegel. Trata­ va-se então da metafísica subjetivista do idealis-mo, para a qual nada existe fora da autoconsciência racional. Fichte chamava o princípio de C. "princípio da oposição", expressando-o com a fórmula "- A não = A" (que se lê "não - A não igual a A"), que julgava exprimir o ato pelo qual o Eu opõe a si mesmo um nâo-Eu, isto é, uma realidade ou uma coisa ( Wissenschaftslehre, 1794, § 2). Hegel considerava o princípio de C, e o de identidade, como "a lei do intelec­ to abstrato" (Ene, § 115). E contrapunha-lhe a lei da "razão especulativa", que seria: "Todas as coisas se contradizem em si mesmas". Essa lei seria a raiz de qualquer movimento e da vida, servindo de fundamento para a dialética (Wssenschaft der Logik, ed. Glockner, I, pp. 545­ 46). Por outro lado a dialética (v.) é a identi­ dade dos opostos, de tal modo que a C, conquanto seja a raiz da dialética (do movi­ mento e da vida), não é a dialética, que, aliás, procede continuamente, conciliando e resol­ vendo as C. e estabelecendo para além delas o que o próprio Hegel chama de identidade ou unidade (d. Wissenschqft der Logik, I, p. 100). No mesmo sentido, Gentile falava do princípio de identidade como da "lei fundamental do pensamento" no campo da "lógica do abstra­ to" (Sistema di lógica, 1922, II, 1, § 6), ao mes­ mo tempo em que falava da unidade do Espí­ rito consigo mesmo e com a realidade. Essas e outras críticas semelhantes ao princípio de C. (assim como aos outros princípios lógicos) são inconcludentes. Por um lado, visam a um uso muito mais dogmático e metafísico desses prin­ cípios, pois tendem a utilizá-los para explicar "o movimento e a vida" da realidade inteira. Por outro, o algo das críticas são moinhos de vento, pois, quando Leibniz e Kant afirmavam que o princípio de C. é o fundamento das ver­ dades idênticas ou analíticas, não pretendiam dizer que ele é o fundamento de verdades do tipo "um planeta é um planeta", "o magnetismo é o magnetismo", "o espírito é o espírito", como julgava Hegel (Ene, § 115), mas aludiam às verdades matemáticas e lógicas redutíveis a tautologias. No entanto, coube à lógica matemática mo­ derna renunciar a considerar os princípios lógi­ cos como princípios da lógica ou mesmo como "leis fundamentais do pensamento". Já na obra

CONTRAPOSIÇÃO

de G. Boole (Laws ofThought, 1854), os princí­ pios lógicos desapareceram como axiomas da lógica e foram substituídos, nessa função, pela definição das operações lógicas fundamentais, cujos modelos são as operações da aritmética. Boole considerava o princípio de C. como um teorema derivado de uma expressão lógica mais fundamental (Ibid, cap. III, IV, ed. Dover, p. 49). A partir de Boole, os princípios assumi­ dos como fundamento da lógica são simples­ mente as definições de funções, constantes lógicas, variáveis lógicas, conectivos e opera­ dores. Os chamados princípios lógicos que ain­ da são honrados às vezes com o nome de "leis" reduzem-se a tautologias no cálculo das propo­ sições (cf., p. ex., REICHENBACH, The Theory of Probability, § 4), ou a teoremas do mesmo cál­ culo (cf., p. ex., A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 26, 13). Isso não quer dizer que a consistência for­ mal de um discurso, ou seja, a compatibilidade recíproca das asserções que o constituem, te­ nha perdido importância. Significa apenas que, para cada sistema lingüístico, essa compatibili­ dade é definida pelas regras de transformação ou de inferência, de implicação ou de sinonímia explicitamente adotadas no próprio siste­ ma ou às quais se faz referência tácita. O prin­ cípio de tolerância (v.), na forma dada por Carnap, afirma: "Não nos cabe impor proibi­ ções, mas só chegar a convenções". Isso signifi­ ca que "em lógica não há moral e que cada um está livre para construir sua própria lógica, isto é, sua forma de linguagem, como desejar. Tudo o que deve fazer, se quiser discutir o assunto, é declarar claramente seus métodos e, em vez de argumentos filosóficos, dar as regras sintáticas do seu discurso" (CARNAP, The Logical Syntax o f Language, § 17). CONTRAPOSIÇÃO (gr. àv%íQAClç,; lat. Contrapositio-, in. Contraposition; fr. Contraposition; ai. Kontraposition; it. Contrapposizione). Lfra das formas da conversão (v.) das propo­ sições, que consiste em negar o contrário da proposição convertida de forma tal que, p. ex., a partir de "todo homem é animal", se conclua que todo não-animal é não-homem" (cf. ARISTÚIELES Top., II, 8, 113 b ss.).

CONTRARIEDADE (gr. èvavxiÓTnÇ; lat. Contrarietas;in. Contrariety,fr. Contrariété, ai. Kontrarietat; it. Contrarietà). 1. Uma das qua­ tro formas da oposição (v.), mais precisamente a que ocorre entre "os termos que, dentro do mesmo gênero, distam maximamente entre si"

205

CONTRATUALISMO

(ARISTÓTELES, Cat, 6, 6 a 17). Estão em oposi­ ção contrária o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o calor e o frio, etc. Aristóteles observa que os contrários se excluem absolutamente, que não existe entre eles noção intermediária e que ao menos um deles deve pertencer ao objeto: p. ex., não há termo intermediário en­ tre doença e saúde, porque o organismo ani­ mal deve estar necessariamente sadio ou doente. Há, porém, termo intermediário entre branco e preto, entre excelente e péssimo, etc, por­ que nenhum desses caracteres deve neces­ sariamente pertencer a um objeto {Ibid, 10, llb 32 ss.). (Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log, 3. 32.) 2. Como termo distinto de suhcontrariedade (v.), a C. é a relação entre a proposição univer­ sal afirmativa ("todo homem corre") e a pro­ posição universal negativa ("nenhum homem corre"). Cf. ARISTÓTELES, De Int., 7,17 b 4; PEDRO HISpAnO, Summ. log., 1. 13. CONTRATUALISMO (in. Contractualism; fr. Contractualisme, ai. Kontraktualismus; it. Contrattualismó). Doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em geral, da comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre seus membros. Essa doutrina é bastante antiga, e, muito prova­ velmente, os seus primeiros defensores foram os sofistas. Aristóteles atribui a Licofron (discí­ pulo de Górgias) a doutrina de que "a lei é pura convenção (synthekê) e garantia dos direi­ tos mútuos", ao que Aristóteles opõe que, nes­ se caso, ela "não seria capaz de tornar bons e justos os cidadãos" (Pol, III, 9, 1280 b 12). Essa doutrina foi retomada por Epicuro, para quem o Estado e a lei são resultado de um contrato que tém como único objetivo facilitar as rela­ ções entre os homens. "Tudo o que, na con­ venção da lei, mostra ser vantajoso para as ne­ cessidades criadas pelas relações recíprocas é justo por sua natureza, mesmo que não seja sempre o mesmo. No caso de se fazer uma lei que demonstre não corresponder às necessida­ des das relações recíprocas, então essa lei não é justa" (Mass. cap, 37). Carnéades emitiu con­ cepção semelhante no famoso discurso sobre a justiça que proferiu em Roma. "Por que razão teriam sido constituídos tantos e diferentes di­ reitos segundo cada povo, senão pelo fato de que cada nação sanciona para si o que julga vantajoso para si?" (CÍCERO, De rep, iIl, 20). Eclipsado na Idade Média pela doutrina da origem divina do Estado e, em geral, pela comu­ nidade civil, o C. ressurge na Idade Moderna e,

CONTRATUAUSMO co m o ju sn a tu ra lism o , tran sfo rm a-se em p o d e ­ ro so in stru m en to de luta p ela reiv in d ica ção dos d ireito s h u m a n o s. A s Vindiciae contra tyrannos, p u b lic a d a s p e lo s calv in istas em 1579, em G en eb ra , re to m am a d o u trin a do co n tra to para reiv in d icar o d ireito do p o v o a re b e la r-se c o n ­ tra o rei sem p re q u e ele d e sc u ra r d o s c o m p ro ­ m issos do co n tra to original. N o m esm o e sp í­ rito, J o ã o A ltúsio g e n e ra liz o u a d o u trin a do co n trato , u tilizan d o -a para ex p licar to d as as for­ m as de asso c iaç ão h u m a n a . O co n tra to n ão é só co n tra to de g o v e rn o q u e re g e as re la çõ es en tre o g o v e rn a n te e seu p o v o , m as é ta m b é m co n tra to social no s e n tid o m ais am p lo , co m o ac o rd o tácito q u e fu n d a m en ta to d a c o m u n id a ­ d e (consociatio) e q u e lev a os in d iv íd u o s a co n viver, isto é, a p articip ar d o s b en s, d os se r­ v iç o s e d a s le is v ig e n te s na c o m u n id a d e (Política methodice digesta, 1603). H o b b e s e S pino za p u se ra m a d o u trin a do co n tra to a ser­ v iç o d a d efe sa do p o d e r a b s o lu to . A ssim H o b b es en u n c ia v a a fó rm u la b ásica do co n tra ­ to: "T ransm ito m eu d ireito de g o v e rn a r-m e a este h o m e m ou a esta asse m b léia, co n ta n to q u e tu ce d as o teu d ireito da m esm a m an eira" (Leviath, II, 17). Essa, d iz H o b b es, é "a o rig em do g ran d e Leviatã ou, co m m ais re sp e ito , do D eu s m o rtal a q u em , d e p o is de D eu s im ortal, d e v e m o s n o ssa p az e d efesa, p o is p o r essa a u to rid a d e co n ferid a p elo s in d iv íd u o s q u e o c o m p õ e m , o E stad o tem tan ta força e p o d e r q u e p o d e d iscip lin ar à v o n ta d e to d o s p ara a co n q u ista da p az in tern a e p ara a ajuda m ú tu a co n tra os in im igo s ex te rn o s" (Ibid, II, 17). P or sua vez, S p in o za ju lg a q u e o d ireito do E stado co n stitu íd o p elo c o n se n so co m u m só é lim ita­ do p o r sua fo rç a, q u e é o "p o d er d a m u ltidão" (Tractatuspoliticus, 2, 17). M ais freq ü e n te m e n te , p o rém , o C. é e m p re ­ g a d o p ara d e m o n stra r a te se d e q u e o p o d e r p o lític o é n e c e s s a ria m e n te lim ita d o . N esse sen tid o foi e n te n d id o p o r G ró cio, P u fen d o rf e e sp e c ia lm e n te p o r L ocke, q u e o u so u para d efe n d e r a re v o lu çã o liberal inglesa de 1688. D izia Pufendorf: "Se c o n sid e ra m o s u m a m u lti­ d ão de in d iv íd u o s q u e g o z am de lib e rd a d e e de ig u ald ad e n atu ral, e q u e re m p ro c e d e r à in s­ titu ição de u m E stado, é p reciso an te s de m ais nad a q ue esses futuros cid ad ão s façam um pacto no q ual m an ifestem a v o n ta d e de u n ir-se em asso ciação p e rp é tu a e de p ro ver, com d e lib e ra ­ çõ es e o rd en s co m u n s, su a p ró p ria salv ação e seg u ran ça. Esse p acto p o d e ser sim p les ou c o n ­ d icio n ad o : tem -se o p rim eiro q u a n d o alg u ém

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CONTRATUALISMO se o brig a a p artic ip a r da asso ciação , seja qual for a form a de g o v e rn o ap ro v a d a p ela m aioria; o se g u n d o , q u a n d o se ac re sc en ta a co n dição de q u e a form a d e g o v e rn o será ap ro v a d a por ele m esm o " (De iure naturae, 1672, V II, 2, 6). P o r sua v ez, L ocke fala do co n tra to co m o acor­ do en tre os h o m e n s p ara "u n irem -se n u m a so­ cied ad e política"; p o r isso, d efine-o co m o "o p acto q u e existe e d ev e n ecessariam en te existir en tre in d iv íd u o s q u e se asso ciam ou fundam u m E stad o " (Two Treatíses of Government, 1960, II, § 99). C riticad o p o r H u m e, o C. en­ co n tro u em R ou sseau u m a in te rp re ta ç ã o que, su b sta n c ia lm e n te , eq ü iv ale u a sua n eg aç ão . D e fato, o C. p re s su p õ e q u e os in d iv íd u o s com o tais te n h a m "direitos n atu rais" a q u e re n u n ­ ciam , p ara ad q u irir o u tro s, co m o co n tra to so­ cial. R o u sseau c o n sid e ra q u e os in d iv íd u o s co m o tais são a b so lu ta m e n te d e sp ro v id o s de d ire ito s e q u e só os têm co m o cid a d ã o s d e um E stado. O s h o m e n s, diz R ou sseau , to rn am -se ig u ais "por c o n v e n ç ã o e d ireito legal"; p o r isso, "o d ireito d e cad a in d iv íd u o ao seu esta d o par­ ticular está sem p re su b o rd in a d o ao direito sup re­ m o da co m u n id ad e" (Contrato social, 1762,1, 9)- Para R ou sseau , o co n tra to o rig in ário afigura­ v a-se m ais co m o u m m eio de "legitim ar" o vín­ cu lo social do q u e co m o re a lid a d e (Ibid., I, 1); a m esm a co isa foi n itid a m e n te afirm ada por Kant: "O ato p elo q u al o p ró p rio p o v o se co n s­ tituí em E stado, ou m elho r, a sim ples idéia desse ato, q u e p o r si só p erm ite c o n c e b e r su a legiti­ m id a d e , é o c o n tra to o rig in á rio s e g u n d o o q u a l to d o s (omnes et singuli) no p o v o re ­ n u n c ia m à lib e rd a d e ex te rn a p ara retom á-la im e d ia ta m e n te co m o m e m b ro s d e u m co rp o co m u m " (Met. der Sitten, I, § 47). H oje, difi­ cilm e n te a idéia fu n d a m en tal de C , na form a ela b o ra d a p e lo s escrito re s do séc. X VIII, p od e ser c o n sid e ra d a u m in stru m en to v álid o para c o m p re e n d e r o fu n d a m en to do E stad o e, em g eral, da c o m u n id a d e civil. C o n tu d o , en tre os sé c u lo s XVI e X V II, a idéia co n tratu alista teve n o táv el força lib e rta d o ra em re la ção ao s co stu ­ m es e trad iç õ e s p olíticas. H oje, co m o u so que as ciên cias e a filosofia fazem de co n ceito s co m o c o n v e n ç ã o , ac o rd o , co m p ro m isso , a n o ­ ção de co n tra to ta lv ez p u d e sse ser reto m ad a p ara a an álise da estru tu ra d as c o m u n id a d e s h u m a n a s, co m b ase n a n o ç ã o da re cip ro c id a­ de de c o m p ro m isso s e do caráter co n dicio n al d o s ac o rd o s d os q u ais se o rig in am d ireito s e d ev ere s.

CONVENÇÃO

V. CONVENCIONALISMO. CONVENCIONALISMO (in. Conventionalísni; fr. Conventionalisme, ai. Konventionalismus; it. Convenzionalismó). Q u a lq u e r doutrina CONVENÇÃO.

seg un do a q u al a v e rd a d e de alg u m as p ro p o si­ ções v álid as em u m ou m ais ca m p o s se dev a ao aco rd o co m u m ou ao e n te n d im e n to (tácito ou ex p resso ) d a q u e le s q u e u tilizam essas p ro ­ posições. A an títe se e n tre o q u e é v álid o "por convenção" e o q u e é v álid o "por n atu reza" já era fam iliar p ara os g reg o s. D em ó crito diz: "O doce, o am a rg o , o q u e n te , o frio, a co r são tais por convenção; só os átom os e o vácuo são tais em verdade" (Fr. 125, D iels). Ò seu o p o sto , ap lica­ do ao ca m p o p o lítico , foi tem a h ab itu al dos sofistas, so b re tu d o da ú ltim a g e ra ç ã o , q u e e n ­ contram ec o n os Diálogos de P latão . P ólos, em Górgias, T rasím a co , na República, su sten ta m que as leis h u m a n a s são p u ra c o n v e n ç ã o , cujo objetivo é im p ed ir q u e os m ais fortes tirem p ro ­ veito do d ireito n atu ral q u e lh es dá a força. É da n atu reza q u e o m ais fo rte d o m in e o m ais fraco; e isso a c o n te c e de fato q u a n d o u m h o ­ mem d o tad o de n atu re za id ô n e a ro m p e as ca­ deias da c o n v e n ç ã o e de serv o se to rn a se n h o r (Górg, 484 A ). P ara os cético s, a lei m o ral e j u ­ rídica eram c o n v e n ç ã o (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, I, 146). O co n tra tu a lism o d o s sécs. XVII e X V II to rn o u fam iliar a idéia de q u e o E stad o e, em geral, a c o m u n id a d e civil, b em co m o as norm as e os v alo re s q u e d ela se o rig in am , são produtos de u m co n tra to ou c o n v e n ç ã o orig i­ nária. A lu d in d o a essa d o u trin a. H u m e n o tav a que a c o n v e n ç ão , n esse sen tid o , d ev e n ão ser entendida co m o p ro m e ssa form al, m as co m o "um sen tim en to de in te re sse co m u m q u e cad a u m e n c o n tra em seu co ra ç ã o " (Inq. Cone. Morais, A p. 3); e acrescen tava: "Assim, dois h o ­ mens m ovem as v ela s de u m b arc o em co m u m acordo p ara o in teresse co m u m , sem q u a lq u e r prom essa ou co n trato ; assim , o o u ro e a prata foram a d o tad o s co m o m e d id a p ara as trocas; assim, o d iscu rso , as p alav ras, a líng u a estã o fi­ xados p elas c o n v e n ç õ e s e p elo ac o rd o h u m a ­ no" (Ibid., A p. 3). C om tais p alav ras, talv ez pela prim eira v ez, o c o n c e ito d e co n v e n ç ã o era utilizado fora do cam po* p olítico . Mas a ex te n são do C. p ara o d o m ín io c o g ­ nitivo só o co rre na se g u n d a m e ta d e do séc. XIX, q uand o , co m a d esco b e rta d as g eo m etrias não eu clid ianas, o caráter de v e rd a d e ev id en te dos axiom as g e o m é tric o s foi n eg a d o . D iz P oincaré: "Os ax io m as g e o m é tric o s n ão são ju íz o s sintéticos apriori n em fatos ex p erim en ta is; são

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CONVENCIONA1ISMO c o n v e n ç õ e s. N o ssa esco lh a en tre to d as as c o n ­ v e n ç õ e s p o ssív eis é g u iad a p o r fatos e x p e ri­ m en tais, m as co n tin u a livre e é lim itada ap e n a s p ela n e c e ssid a d e de ev itar a co n tra d içã o " (La science et Vhypothèse, II, cap. III). O m esm o P o in c aré re cu sa v a -se, p o rém , a atrib u ir caráter co n v e n c io n a l à ciên cia to d a e co n testo u L e Roy, no q u e se refere a essa e x te n sã o do C. (La valeur de Ia science, 1905). C o n tu d o , o d ese n v o lv im e n to p o ste rio r da m atem ática p erm itiu e s te n d e r o p o n to de vista de P o in c aré a to d a essa d iscip lina. A o bra de H ilbert in d u zia a v er na m atem ática sistem as h ip o té tic o -d e d u tiv o s n o s q u a is se d e d u z e m c o n se q ü ê n c ia s im p lícitas em certas p ro p o s i­ çõ e s o rig in árias ou ax io m as, se g u n d o reg ras q u e os p ró p rio s ax io m as d efinem , im plícita ou ex p lic ita m en te . A te se fu n d a m en tal do C. m o ­ d e rn o p o d ia ser assim fo rm u lada: as p ro p o si­ çõ e s o rig in árias, d e q u e p arte q u a lq u e r siste­ m a d ed u tiv o , são co n v en çõ es. O q u e q u e r dizer: 1Q n ão p o d e m ser co n sid erad as v erd ad e ira s nem falsas; 2a p o d e m ser escolhidas com b a se em d e te rm in a d o s critérios q u e d eix am , e n tre ta n ­ to, certa lib e rd a d e de esco lh a. G raças ao Cír­ culo de Viena (v.) e do em p irism o ló g ico , o C. assu m ia a form a q u e tem , atu a lm e n te, de tese g eral s o b re a estru tu ra ló g ica da lin g u ag em . A Visão lógica do mundo d e R udolf C arnap (1928) co n stitu i a p rim eira ex p o siç ã o d essa tese, q u e, no e n ta n to , fo ra p re p a ra d a p e lo Tractatus logico-philosophicus de W ittg en stein . "A ló g i­ ca", d iz C arn ap , "in clu in d o -se n ela a m atem á ti­ ca, co n siste em e stip u la ç õ e s c o n v e n c io n a d a s so b re o u so de sig n o s e tau to lo g ias q u e se b a ­ seia m n essas c o n v e n ç õ e s" (Logische Aufbau der Welt, § 107). A essa te se C arn ap d eu d ep o is o n o m e de "p rincíp io d e to le râ n c ia d as sin ta­ x es", p o rq u e se trata d e u m p rin cíp io q u e, ao m esm o te m p o em q u e to rn a in o p e ra n te s to d as as p ro ib içõ es, ac o n selh a a esta b e le c e r d istin ­ çõ e s c o n v e n c io n a is. "Em lógica", diz ele, "não há m oral. C ada u m p o d e co n struir co m o q uiser a su a lógica, isto é, a su a form a de lin g u ag em . S e q u ise r d iscu tir c o n o sc o , d ev erá a p e n a s in d i­ car co m o q u e r fazê-lo, d ar d e te rm in a ç õ e s sin tá­ ticas em v e z de a rg u m e n to s filosóficos" (Lo­ gische Syntax der Spracbe, 1934, § 17). H oje, p o d e -s e d ize r q u e essa te se é a m p la m e n te aceita, m esm o fora do em p irism o ló g ico . A s e ­ g u n d a o b ra d e W ittg en stein , Investigaçõesfilosóficas (1953)', levo u isso ao ex trem o , afirm an ­ do q u e q u a lq u e r lin g u ag em é u m a e sp écie de "jogo" q u e p arte de d ete rm in a d o s p ressu p o sto s

CONVENIÊNCIA de n a tu re z a c o n v e n c io n a l, re c o n h e c e n d o a fu n d a m en tal eq u iv a lê n c ia d o s jo g o s lin g ü ís­ ticos. D e ix a n d o de la d o esta ú ltim a te se e c o n ­ sid e ra n d o o C. d en tro d o s lim ites em q u e g e ra l­ m en te é m an tido , ou seja, o cam p o d a estrutura ló g ica d a lin g u ag em , ca b e re ssaltar o fato de q u e ele n ão im plica a b so lu ta m e n te , co m o às v e z e s se acredita, a p erfeita a rb itra ried ad e das c o n v e n ç õ e s ling ü ísticas. P o d em ser assim re su ­ m id o s os p o n to s b ásico s do C. co n tem p o rân e o : le a esco lh a d as p ro p o siç õ e s iniciais d e u m sistem a d ed u tiv o (axiomas [v.] ou postulados [v.]) d e v e o b e d e c e r a c rité rio s lim ita tiv o s, cujo o bjetivo é g ara n tir a possibilidade de repropor a escolha com vistas ao d esen v o lv im en to d ed u tiv o ; 2S a d e te rm in a ç ã o d as re g ras de d e d u ç ã o , o p e ra ç õ e s e p ro c e d im e n to s ta m b é m está su ­ je ita a u m a esco lh a lim itada, s e m p re co m v is­ tas à possibilidade de repropor tais reg ras, p ro ­ c e d im en to s ou o p e raç õ es; 3Q as esco lh as de q u e se fala n o s n es Ia e 2co n stitu em : a) objetivamente, o ca m p o d e in ­ v estig aç ão co m u m em q u e os p e sq u isa d o re s p o d e m m over-se; b) subjetivamente, o c o m p ro ­ m isso d os p e sq u isa d o re s. CONVF.NIÊNCTA. V . ACORDO. C O N V E R G Ê N C IA , L E I D E (in. Convergencylaw). F oi assim d e n o m in a d o p o r W h iteh ead o critério u sa d o p elo se n so co m u m e pela ciên cia p ara o b ter g e n e ra liz a ç õ e s fu n d a d a s na o b serv a çã o . "Se Ae Bsão d ois ev e n to s e se A é p arte d e A, B' é p arte de B; e n tã o , so b m u i­ to s a sp ecto s, as re la çõ es en tre as p a rte s A e B' serão m ais sim ples do q u e as relaçõ es en tre A e B. Esse p rin cípio reg e to d o s os esforços para se ch eg ar à o b serv a çã o exata" (Organization of Thought, 1917, p p . 146 ss.; The Concept of Nature, 1920; trad. it., p. 73). C O N V E R S Ã O (gr. ávxiGTpcxpri; lat. Con­ versão; in. Conversion; fr. Conversion-, ai. Umkehrueng; it. Conversioné). E m A ristó teles (An. pr, I, 1, 2) e n o s trata d o s p o ste rio re s de L ógica clássica (a risto télica), é a o p e ra ç ã o co m a qual d e u m e n u n c ia d o se ex trai o u tro (c o n sid e ra d o eq u iv ale n te, o q u e é m u ito p ro b le m á tic o ), m e ­ d ian te a troca das re sp ec tiv a s p o siç õ e s d o s te r­ m o s (sujeito e p re d ic a d o ). N atu ralm e n te, n em sem p re isso é p ossív el, e às v e z e s só p o d e ser feito co m a in tro d u ç ã o d e u m a m u d a n ç a no q u an tificad o r ("tudo" e "alguns"). M ais p rec isa­ m en te: a p ro p o siç ã o u n iv ersal afirm ativa (p. ex., "todos os h o m e n s são m ortais") co n v e rte se, per accidens, em p ro p o s iç ã o p a rtic u la r

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COPERNICANA, REVOLUÇÃO afirm ativa ("alguns m o rtais são h o m e n s"); a p articu lar afirm ativa e a u n iv ersal n eg ativa con­ v e rte m -se simpliciter, ou seja, m e d ia n te troca sim p les de term o s; a p articu lar n eg ativ a não p o d e ser co n v ertid a. C O N V IC Ç Ã O (in. Conviction; fr. Conviction; ai. Überzeugung; it. Convinzionè). T er­ m o de o rig em ju ríd ic a , q u e d esig n a u m conjun­ to de p ro v a s su ficien tes para "con v en cer" o réu, isto é, para fazê-lo re co n h e cer-se co m o tal. N o u so co m u m , esse te rm o significa u m a cren­ ça q u e tem suficien te b a se objetiva p ara ser adm itida p o r q u a lq u e r p esso a. N esse sen tid o, é definida p o r K ant: "Q u an d o u m a cren ça é vá­ lida p ara to d o s, seu fu n d a m en to , d esd e que d o ta d o d e ra zã o , é o b jetiv a m en te suficiente e ela se ch am a C." (Crít. R. Pura, C ân o n da R. P ura, seç. III). O ca rá ter o bjetivo da C. contras­ ta co m o caráter su b jetiv o da persuasão (v.). Cf. PERFXMANN e OLBRECHTS-TYTECA, Traitê de 1 argumentation, 1958, § 6. C O O R D E N A Ç Ã O (in. Coordination; fr. Coordination, ai. Koordination; it. Coordinazioné). R elação en tre o b jeto s situ a d o s n a m esm a o rd em , n u m sistem a de classificação; p. ex., d o is g ê n e ro s ou d u a s e sp écies estã o en tre si c o o rd e n a d o s , m as u m g ê n e ro e u m a espécie n ão estão c o o rd e n a d o s . C h am a-se d e coordenada o co n ju nto orde­ n a d o de n ú m e ro s q u e serv e p ara d esig n a r enti­ d a d e s g eo m étric as (p o n to s, lin h as, e tc ), ou en­ tão as características u tiliza d a s p ara distinguir ou o rd e n a r v árias classes d e objeto s.

COPERNICANA, REVOLUÇÃO (in Coper-

nican revolution; fr. Révolution copernicienne, ai. Kopernikanische Revolution; it. Rívoluzione copernicana). C o stu m a-se d ar e sse n o m e à m u d a n ç a de p ersp ectiv a re aliza d a p o r Kant, q u e, em v ez de su p o r q u e as estruturas mentais do h o m e m têm a n atu re za co m o m o d elo , su­ p ô s q u e a o rd e m da n atu re za tem as estruturas m en tais co m o m o d e lo . A referên cia a Copérn ico foi feita p elo p ró p rio K ant, no Prefácio à se g u n d a e d iç ã o (1787) d a Crítica da Razão Pura. D ew e y o b serv o u , a p ro p ó sito , q u e a re­ v o lu ç ã o de K ant foi m ais u m a re v o lu çã o ptolo m aica, p o rq u e fez do c o n h e c im e n to hum ano a m e d id a da re a lid a d e . A re v o lu çã o C. deveria co n sistir em re c o n h e c e r q u e o o bjetivo da filo­ sofia n ão é ser ou d e sc re v e r a to ta lid ad e do real, p o rém , m ais m o d e sta m e n te , b u sca r os va­ lo re s q u e p o d e m ser a sse g u ra d o s e divididos p o r to d o s, p o rq u e v in cu lad o s aos fundam entos

CÓPULA da vida social (The Questfor Certainty, 1930, p. 295). CÓPUIA (in. Copula; fr. Copule, ai. Kopulait. Copula). O u so p red ic ativ o de ser (v .). CORAÇÃO (gr. KapôítX; lat. Cor, in. Heart; fr. Coeur, ai. Herz; it. Cuorê). E ntre os an tigo s, só o pitagórico A lcm eão de C ró to n (séc. VI-V aC.) considerou o cérebro co m o sed e do p en sa­ mento ("Digo q u e é co m o c é re b ro q u e e n te n ­ demos", Fr. 17, D iels). A ristó teles co n sid e ro u o C. com o sed e d as s e n sa ç õ e s e d as e m o ç õ e s (Depari. an, II, 10, 656 a; De anim. mot., 11, 703 b), d ou trina q ue, graças à au to rid a d e de Aristóteles, p rev aleceu em to d a a A ntig üidade e na Idade M édia, até o séc. XVI, q u a n d o os n o ­ vos estudos de an a to m ia p u d e ra m m o strar q u e os nervos p artem do cé re b ro . M as a im p o rtâ n ­ cia dessa n o ção em filosofia n ão está n essa h e ­ rança arcaica, m as, na re a lid a d e , p e rm a n e c e u na história da filosofia p ara in d icar ex ig ên cias diferentes. N o N ovo T e sta m e n to , significa a re ­ lação do h o m em co n sig o m esm o , ta n to no d e ­ sejo (Mat., V , 8, 28) q u a n to no p e n sa m e n to e na vontade (ICor, V II, 37), m as na m ed id a em que p ensam ento e v o n ta d e se co n su m am em si mesmos ou p elo m en o s an te s q u e se m an ifes­ tem ex teriorm en te. M as o u so m o d e rn o d essa palavra sem dúvida deriva de Pascal, q u e frisou a im portância d as "razões do C." (Pensées, 277). A o C. Pascal atribuiu d u as e sp é c ie s de c o n h e c i­ mentos específicos: l2 o c o n h e c im e n to d as re ­ lações h um anas e de tu d o o q u e d ela s n asce, de tal m odo q u e o C. é o guia p riv ileg iad o do homem no dom ínio da m oral, da religião, da fi­ losofia e da elo q ü ên cia; 2- o c o n h e c im e n to dos primeiros p rin cíp io s d as ciên cias e e sp e c ia l­ mente da m atem ática. "O C. se n te q u e há só três dim ensões no e sp a ç o , q u e os n ú m e ro s são infinitos; em seg uida, a ra zã o d em o n stra q u e não há dois n ú m e ro s q u a d ra d o s d o s q u ais um sea o d ob ro do o u tro , etc. O s p rin cíp io s são sentidos, as p ro p o siç õ e s são fruto da co n c lu ­ são: uns e o utras têm a m esm a certeza, m as obtida por vias d iferentes" (Ibid, 282). Só o primeiro d esses d ois c o n h e c im e n to s p riv ileg i­ ados deveria c o n tin u a r a ser atrib u íd o ao C. na filosofia do séc. XIX. E n trem entes, K ant viu no C. apenas a te n d ê n c ia n atu ral q u e n o s to rn a mais ou m en o s ca p aze s de ac o lh e r a lei m oral (Religion, I, 2). H eg el e n te n d ia p o r C. "o c o m ­ plexo da sen sação ", isto é, da e x p eriên cia im e­ diata e p rim o rd ial do h o m e m , co m o q u a n d o se diz que "não b asta q u e os p rin c íp io s m o rais e a religião, e tc , estejam só na cab eça: d ev em

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CORAÇÃO estar no C , na sen sa ção " (Ene, § 400). Por o u tro la d o , ele viu na "lei do C." u m a figura de su a Fenomenologia do espírito, m ais p rec isa­ m e n te a q u e re p re se n ta a revo lta ro m ân tica co n tra a re a lid a d e em ato , co n tra a o rd em esta b e le cid a. A lei do C. n ão p ro p õ e u m a lei d eterm in ad a, m as só identifica a lei com as ex i­ g ên cia s de cada C , e n te n d e n d o q u e o c o n te ú ­ do p articu lar do C. d ev e v ale r co m o tal u n iv e r­ salm e n te. N isso está a co n tra d iç ã o d a lei do C , p o rq u e a p re te n sã o de fazer v aler u n iv e rsa l­ m e n te o c o n te ú d o de u m C. p articu lar ch o case com a m esm a p re te n sã o d e to d o s os o u tro s C. "Assim co m o , an tes, o in d iv ídu o achava a lei ab o m in áv el e rígida, ag o ra ach a a b o m in áv eis e av esso s às su a s ex c e le n te s in te n ç õ e s os C. dos h o m e n s". N a re a lid a d e , p ara H eg el, o q u e há de rígido e to rtu ran te para o C. singular n ão é a re a lid a d e d o s fatos, m as a lei d o s o u tro s C , co n tra a q ual o re c u rso à re a lid a d e é u m a lib e r­ tação (Phànomen. desGeistes, I, V , B, b ) . N a filo­ sofia m o d e rn a , e s p e c ia lm e n te no e sp iritu a lism o , q u e re c o rre co m freq ü ên cia à n o ç ão de C , esta ex p rim e su b sta n c ia lm e n te ex ig ên cias de caráter m o ral e relig io so . Foi L otze q uem , em Microcosmo (1856), co m eç o u a d ar ên fase às "a sp ira ç õ e s do C ", às n e c e s s id a d e s da alm a" ou "do sen tim e n to ", às "e sp eran ça s h u ­ m an as" co m o ex ig ên c ias q u e a filosofia d ev e im p o r co n tra o m ec an ic ism o da ciência; o b v ia­ m e n te , tais n e c e ss id a d e s e a sp ira ç õ e s n ad a m ais são do q u e as ex ig ên c ias m etafísicas im ­ plícitas n as cren ça s m o rais, assim co m o nas cren ça s re lig io sas trad ic io n a is. A s n e c e ssid a ­ d es do C. foram in clu íd as na d efinição de filo­ sofia p o r W u n d t, q u e viu n ela "a re ca p itu laç ão d o s c o n h e c im e n to s p artic u la re s de u m a in tu i­ ção do m u n d o e da v id a, q u e satisfaça às ex i­ g ê n c ia s do in te le cto e às n e c e ssid a d e s do C." (System derPhil, 4- ed., 1919,1, p. 1; Enleitung in die Phil, 3a ed., 1904, p. 5). N estas e em e x p r e s s õ e s s e m e lh a n te s , q u e se re p e te m c o n tin u a m e n te na filosofia d a se g u n d a m etad e do séc. X IX e n o s p rim e iro s d ec ên io s d este, o C. é o sím b o lo d as cren ça s trad ic io n a is q u e p o d e m ser resu m id as no re c o n h e c im e n to da o r­ d em p ro v id e n c ial do m u n d o , isto é, de u m a o rd em d e stin ad a a salv a g u a rd a r os v alo re s h u ­ m an o s e o d estin o do hom em . M uitas v ez es, na filosofia c o n te m p o râ n e a , o te rm o C. se altern a co m consciência (v.), p ara in d icar a esfera p ri­ v ile g iad a em q u e o h o m e m p o d e alca n ç ar as "realid ad es ú ltim as co m certeza ab soluta".

CORAGEM

CORAGEM (gr. àvôpeía; lat. Fortitudo; in. Courage, fr. Courage, ai. Muth; it. Coraggio). Uma das quatro virtudes enumeradas por Pla­ tão, chamadas depois de cardeais (v.), e uma das virtudes éticas (v.) de Aristóteles. Platão de­ fine-a como "a opinião reta e conforme à lei so­ bre o que se deve e sobre o que não se deve temer" (Rep., IV, 430 b). Aristóteles define-a como o justo meio entre o medo e a temerida­ de {Et. nic, III, 6, 1.115 a 4). Mas como virtude que constitui a firmeza de propósitos, a C. é, de certo modo, privilegiada e considerada uma das virtudes principais. Foi o que fez Aristóteles (Ibid, III, 7). Cícero afirmava: ''Virtude deriva de vir (homem), sendo a coragem sobretudo viril, ou seja, própria do homem; seus princi­ pais atributos são dois: desprezo pela morte e desprezo pela dor" (Tusc, II, 18, 43). O mesmo é dito por S. Tomás (S. Th, II, Il, q. 123, a. 2). Em sentido biológico-filosófico, a coragem foi definida por K. Goldstein: "A C, em sua forma mais profunda, é um sim dito à laceração da existência aceita como necessidade, para que possamos realizar plenamente o ser que nos é próprio". Nesse sentido, a C. é o contrário da angústia (v.), sendo uma atitude orientada para o possível, ainda não realizada no presente (DerAufbau des Organismus, 1934, p. 198). CORNUDO, ARGUMENTO (gr. KepatívriÇ; lat. Cornutus). Assim é chamado o sofisma de Eubúlides: "O que não perdeste, tens; não perdeste os cornos: logo, os tens" (DiÓG. L, VII, 187). COROLÁRIO (gr. TtóptO(ia; lat. Corollarium; in. Corollary, fr. Corollaire, ai. Korollar, it. Corollario). O que se deduz de uma de­ monstração precedente, como uma espécie de acréscimo ou ganho extraordinário (EUCLIDES, EL, III, 1); também pode ser uma espécie de proposição intermediária entre o teorema e o problema (PAPO, 648, 18 s.; PROCLO, In Eucl, p. 301 F). Esse termo estendeu-se para a lingua­ gem filosófica graças a Boécio (Phti. cons, III, 10). No primeiro sentido, o C. às vezes foi chamado de consectarium (JUNGIUS, Lógica hamburgensís, IV, 11, 13). A diferença entre teorema e C. é desprezada pela lógica contem­ porânea. CORPO1 (gr. 0WUX; lat. Corpus; in. Body, fr. Corps; ai. Koerper, it. Corpo). Objeto natural em geral, qualquer objeto possível da ciência natural. Como já notava Aristóteles (De cael, I, 1, 268 a 1), tudo o que pertence à natureza é constituído por C. e grandezas, por coisas que

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CORPO1

têm C. e grandeza ou por princípios das coi­ sas que os têm. A definição mais antiga e famosa de C. é a dada pelo próprio Aristóteles: "C. é o que tem extensão em qualquer direção" (Pis., III, 5, 204 b 20); e que "é divisível em qualquer direção" (De cael, I, 1, 268 a 7). Por "qual­ quer direção", Aristóteles entende altura, lar­ gura e profundidade: o C. que possui essas três dimensões é perfeito na ordem das gran­ dezas (Ibid., I, 1, 268 a 20). Tal definição permaneceu constante por muitos séculos. Foi aceita pelos estóicos (DiÕG. L, VII, 1, 135), que acrescentaram a solidez, e por Epicuro, que acrescentava a impenetrabilidade (SEXTOEMPÍRICO, Pirr. hyp, III, 39 ss.). A tradição escolástica também a reproduz (p. ex., S. TOMÁS, S. Th, I, q. 18, a. 2). E Descartes só faz resumir essa tradição com sua definição do C. como substância extensa. Diz: "A nature­ za da matéria ou do C. em geral não consiste em ser dura, pesada, colorida ou qualquer ou­ tra coisa que afete nossos sentidos, mas ape­ nas em ser uma substância extensa em com­ primento, largura e profundidade" (Princ.phil, II, 4). Essa definição não tem nada de novo em relação à tradicional, assim como não têm nada de novo as definições de Spinoza, que a repro­ duz (SPINOZA, Et., I, 15, schol.), e de Hobbes (Decorp, VIII, § 1). Só Leibniz inova o conceito de C. Ele distin­ gue o "C. matemático", que é o espaço e con­ tém só as três dimensões, do "C. físico", que é a matéria e contém, além de extensão, "resistên­ cia, densidade, capacidade de encher o espaço e impenetrabilidade: devido a esta última, um C. é forçado a ceder ou a deter-se quando sobrevém outro corpo" (Op, ed. Erdmann, p. 53). Por essa noção de C, Leibniz é levado a negar que o C. seja "substância": o que nele há de real é apenas a capacidade (vis) de agir e de sofrer uma ação (Ibid., ed. Erdmann, p. 445). Esta última definição talvez seja a retomada de uma velha definição atribuída por Sexto Em­ pírico a Pitágoras (Adv. math, IX, 366). Mas, com o significado que Leibniz lhe confere, abriu caminho para a elaboração do conceito científico de C. como "massa", como ocorreu na física newtoniana: por ser a relação entre força e aceleração, a massa pode ser expressa em termos de "capacidade de agir e de sofrer uma ação", segundo a definição de Leibniz. Se­ guindo essa linha de desenvolvimento, que vai da física de Leibniz à física clássica e desta à fí­ sica da relatividade, através da noção de massa

CORPO2

a noção de C. conduz à de campo (v.). Para a física contemporânea, um C. é somente "certa intensidade do campo" (EINSTEN-INFELD, The Evolution ofPhysics, III; trad. it., p. 253). A filosofia, porém, não seguiu de perto essa evolução sofrida pela noção de C. no domínio da física. No mundo moderno e contemporâ­ neo, ela nos oferece as seguintes alternativas: Ia A alternativa idealista, para a qual os C. são "representações", "percepções", "idéias", ou complexos de tais coisas. Essa alternativa, introduzida por Berkeley e aceita por Hume, foi a mais difundida na filosofia moderna e domina até hoje a filosofia contemporânea. Por maior que seja sua importância nessas filoso­ fias, essa alternativa não é importante do ponto de vista da própria noção de C, por implicar, simplesmente, a inexistência dos C, eliminan­ do assim o problema. 2a A alternativa que con­ siste em considerar os C. como utensílios, ins­ trumentos ou meios que o homem utiliza no mundo, caracterizando-os, assim, em termos de possibilidades de ação e de reação que ofe­ recem ao homem. Essa alternativa é própria da filosofia contemporânea, na qual foi introduzi­ da pelo existencialismo e pelo instrumentalismo americano. Com esse significado, porém, a noção de C. identifica-se com a de coisa, sendo mais comumente designada com esse termo. V. COISA. CORPO2 (gr. owu.a; lat. Corpus; in. Body, fr. Corps, ai. Leib, it. Corpo). A concepção mais an­ tiga e difundida de C. é a que o considera o instrumento da alma. Ora, todo instrumento pode receber apreço pela função que exerce, sendo por isso elogiado ou exaltado, ou então pode ser criticado por não corresponder a seu objetivo ou por implicar limites e condições. Essas duas possibilidades se alternaram na his­ tória da filosofia, que nos mostra tanto a conde­ nação total do C. como túmulo ou prisão da alma, segundo a doutrina dos órficos e de Platão (Fed, 66 b ss.), quanto a exaltação do C. feita por Nietzsche ("Quem está desperto e cons­ ciente diz: sou todo C. e nada fora dele", Also sprachZarathustra, I, Os odíadores do C). Na primeira tendência, o mito da queda da alma no C, exposto por Platão em Fedro, é re­ tomado pela Patrística oriental, especialmente por Orígenes (Deprínc, II, 9, 2). Scotus Erígena, nos primórdios da Escolástica, repro­ duzia-o (De dívis. nat., II, 25). Também essa concepção pressupõe a noção de instrumentalidade do C: no estado de queda, devido ao

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pecado, a alma tem necessidade do C, cujos serviços lhe são indispensáveis. Mas, obvia­ mente, a mais completa e típica formulação da doutrina da instrumentalidade é a de Aristóte­ les, para quem o C. é "certo instrumento natu­ ral" da alma, assim como o machado é o instrumento de cortar, ainda que o C. não seja semelhante ao machado, pois "tem em si mes­ mo o princípio do movimento e do repouso" (Dean, II, 1, 412 b 16). O materialismo, por não implicar necessariamente a negação da substancialidade da alma(v), tampouco impli­ ca a negação da instrumentalidade do C; mes­ mo que a alma seja corpórea, o C. pode ter função instrumental em relação a ela. Assim pensava Epicuro, que atribuía ao C. a função de preparar a alma para ser causa da sensação (Ep. a Herod, 63 ss.) e assim também pensa­ vam os estóicos, para os quais a alma é aquilo que domina ou, de vários modos, utiliza o organismo físico (AÉcio, Plac, IV, 21). Não é di­ ferente a concepção do C. no materialismo de Hobbes, que, afirmando que "o espírito nada mais é que um movimento em certas partes do C. orgânico" (/// Objections contre les méd. cartésiennes, 4), reconhece com isso a instrumentalidade do C. em relação a esse "movi­ mento", que é a alma. Nem mesmo o materialismo mais grosseiro do século XIX, para o qual a alma seria um produto do cérebro assim como a bilis é produto do fígado e a urina o é dos rins, obedece a esquema interpretativo diferen­ te: o cérebro, como o fígado e os rins, continua sendo um instrumento para a produção de alguma coisa. No extremo oposto, o espiritualismo, p. ex., dos neoplatônicos, também admi­ te a doutrina da instrumentalidade: "Se a alma é substância", diz Plotino, "será uma forma sepa­ rada do C, ou melhor, aquilo que se serve do C." (Enn, I, 1, 4). A doutrina da instrumentalidade domina toda a filosofia medieval. Diz S. Tomás: "A finalidade próxima do C. humano é a alma racional e suas operações. Mas a ma­ téria existe em vista da forma e os instrumentos existem em vista das ações do agente" (S. Th., I. q. 91, a. 3). Exceção a essa doutrina é a teoria da "forma de corporeidade", típica do agostinismo (v.) medieval, que consistia em atri­ buir ao C. orgânico uma forma própria ou subs­ tância independente. Mas o abandono definitivo do conceito da instrumentalidade do C. só ocorreu com o dualismo cartesiano. Crê-se comumente que a conseqüência da separação instituída por Descartes entre alma e C, como

CORPO2 d u as su b stâ n c ia s d iferen tes, te n h a sid o o e sta ­ b e le c im e n to da in d e p e n d ê n c ia da alm a em re ­ lação ao C. N a v e rd a d e , su a p rim eira c o n se ­ q ü ê n c ia foi e sta b e le c e r a in d e p e n d ê n c ia do C. em relação à alm a: p o n to de vista q u e, an tes de D escartes, n u n ca se ap re se n ta ra . C om efeito, a in stru m e n ta líd a d e do C. s u p õ e q u e este n ad a p ossa fazer sem a alm a, do m esm o m o d o co m o o m a c h a d o n ão serv e p ara n ad a se n ão é e m ­ p u n h a d o p o r algu ém . M as o re c o n h e c im e n to de q u e a alm a e o C . são d u a s su b stân cia s in d e p e n d e n te s im plica, co m o diz D escartes, q ue "todo o calo r e to d o s os m o v im e n to s q u e ex is­ tem em n ós p e rte n c e m só ao C , p o rq u a n to não d e p e n d e m ab so lu ta m en te do p en sam en to " (Pass. de 1'âme, I, 4). D esse n o v o p o n to de vista, o C. é v isto co m o u m a m á q u in a q u e se m o ve p o r si. "O C. de u m h o m e m v iv o", diz D escartes, "difere ta n to do co rp o de u m m o rto q u a n to u m reló g io ou o u tro a u tô m a to (p. ex., u m a m áq u in a q u e se m o va so zin h a) q u e está c a rreg ad o e co n tém em si o p rin cíp io co rp ó re o d os m o v im e n to s p ara os q u ais foi p ro jetad o , ju n ta m e n te co m to d o s os re q u isito s p ara agir, difere do m esm o reló g io ou da m esm a m á q u i­ n a q u a n d o estes estã o av ariad o s ou q u a n d o o p rin c íp io d e seu m o v im e n to d eix a d e agir" (Ibid, § 6). Essa afirm ação da re a lid a d e in d e ­ p e n d e n te do C. co m o a u tô m a to n ão é ta n to u m a te se m etafísica q u a n to u m a te se m e to ­ d o ló g ica, q u e p rescrev e a d ire çã o e os in stru ­ m en to s d as in d ag aç õ e s v o ltad as p ara a re ali­ d ad e do "C ". Foi e x a ta m e n te n e sse se n tid o q u e agiu h isto ric am en te a te se ca rtesian a, for­ n e c e n d o , d u ra n te m u ito te m p o , o p re ssu p o sto teó rico das investigações científicas so b re os cor­ p o s viv os. D o p o n to de vista filosófico, p o rém , o d u alism o cartesian o tin h a a d e sv a n ta g e m de criar u m p ro b lem a d e sco n h ec id o da co n ce p ç ão clássica de C. co m o in stru m en to : o p ro b lem a d a re la ção en tre alm a e co rp o . A c o n c e p ç ã o clássica, na v e rd a d e , já co m a definição do C. co m o in stru m en to da alm a, e d a alm a co m o form a ou razão de ser do c o rp o , reso lv ia a seu m o d o esse p ro b le m a , já q u e , n a re a lid a d e , essas d efin içõ es n ad a m ais são q u e so lu ç õ e s p o stu la d a s p ara o p ro b lem a. M as co m o d u a ­ lism o en tre alm a e C , o p ro b le m a v in h a à to n a co m to d a a su a crueza. C o m o e p o r q u e as d u as su b stân cia s in d e p e n d e n te s se co m b in am para form ar o h o m em ? E co m o o h o m e m , q u e, so b certo asp ecto , é u m a re a lid a d e ú nica, p o d e re su lta r da c o m b in a ç ã o d e d u a s re a lid a d e s in d ep en d e n tes? A filosofia m o d e rn a e c o n te m ­

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CORPO2 p o râ n e a e lab o ro u q u a tro s o lu ç õ e s p ara esse p ro b le m a . Ia A p rim eira d ela s co n siste em n eg ar a di­ v e rsid a d e d as su b stâ n c ia s e em re d u zir a subs­ tâ n c ia co rp ó re a à su b stân cia esp iritu al. Foi o q u e fez L eibniz, ao c o n c e b e r o C. viv o com o u m conjunto de m ô n a d a s, isto é, de substâncias esp iritu ais, a g ru p a d a s em to rn o de u m a "entelé q u ia d o m in a n te ", q u e é a alm a do anim al (Monad, § 70). D esse p o n to de v ista, "o C. é u m ag re g a d o d e su b stâ n c ia s e n ão é, ele pró­ p rio , u m a su b stân cia" (Op., ed. E rd m an n, p. 107). S ó a alm a é su b stâ n c ia . Essa solução d e L eibniz serv e de m o d e lo p ara num erosas o u tras a p re se n ta d a s pela filosofia m o d ern a e c o n te m p o râ n e a , so b re tu d o p ela s co rren te s do espiritualismo (v.). A ex p re ssã o clássica desse p o n to de v ista p o d e ser e n c o n tra d a em Mi­ crocosmo, de Lotze. P o d e m s e r c o n s id e ra d a s v a ria n te s dessa m esm a so lu ç ão as d o u trin a s de S ch o p en h au er e de B ergson . S c h o p e n h a u e r identifica o C. com a v o n ta d e , ou seja, co m o q u e ele julga ser o n ú m e n o ou a su b stân cia do m u n d o , cuja re p re s e n ta ç ã o é o fe n ô m e n o . D iz ele: "Meu C. e m in h a v o n ta d e sâo -u m a coisa só. O u: o que ch a m o de m eu C. co m o re p re s e n ta ç ã o intuiti­ v a c h a m o -o m in h a v o n ta d e e n q u a n to estou cô n sc io dela, de m o d o ab so lu ta m e n te diferen­ te, n ão co m p ará v el a n e n h u m o u tro . O u: meu C. é a o b jetividade de m in h a v o n ta d e . O u: pres­ cin d in d o do fato de q u e m eu C. é represen ­ ta ç ã o , ele n ã o é s e n ã o v o n ta d e " (Die Welt, I, § 18). B ergson , p o r sua vez, re to m a n d o parcial­ m en te a an tig a te se , afirm a q u e "n o sso C. é um in stru m en to de ação e s o m e n te d e ação"; não co n trib u i d ire ta m e n te p ara a re p re se n ta ç ã o e em g eral p ara a v id a d a co n sciên cia: serv e ape­ n as p ara se le c io n a r im ag en s com v istas à ação, p ara to rn a r p o ssív el a p e rc e p ç ã o q u e consiste n essa seleção . M as a co n sc iên c ia, q u e é m em ó­ ria, in d e p e n d e d ele (Matièreetmémoire, espec. R ésu m é et C o n clusio n ; ed. de G en eb ra , pp. 232 ss.). N a tu ra lm e n te , o ú ltim o resu ltad o d essa an álise de B erg so n é a re d u ç ã o do C. à p e rc e p ç ã o (assim co m o da co n sciên cia à me­ m ó ria ), ou seja, a n e g a ç ã o de q u a lq u e r realida­ de p ró p ria do C. 2a A se g u n d a so lu ç ão , b em p ró x im a da pri­ m eira, c o n sid e ra o C. co m o u m sinal àz. alma. T rata-se de d o u trin a b a sta n te antiga, q u e Platão (Çrat., 400 b) atrib u i ao s ofícios, m as cuja pre­ d o m in â n c ia só o co rre no R om an tism o . D iz Hegel: "A alm a, em su a co rp o ra lid a d e , inteiram en­

CORPO2 te form ada e co n stitu íd a co m o sua, está p ara si m esm a co m o sujeito sing u lar; e a co rp o ralidade é, d esse m o d o , a e x te rio rid a d e e n q u a n to predicado no q u al o sujeito se re c o n h e c e só a si. Essa ex te rio rid a d e n ão se re p re s e n ta a si mesm a, m as à alm a: e é o sinal d esta" (Ene, §411). D esse p o n to de v ista, o C. é a "m anifes­ tação externa" ou a "realização externa" da alm a: exprim e a alm a na form a de u m a e x te rio rid a d e que não é real co m o tal, m as tã o -so m e n te "sim ­ bólica". P o d em -se e n c o n tra r re síd u o s d essa concepção em to d a s as d o u trin a s q u e v ê e m no C. u m co m p lex o de fe n ô m e n o s ex p ressiv o s. 3a A terceira so lu ção co n siste em n eg ar a d i­ ferença d as su b stân cia s, m as n ão a d iferença entre alm a e C , e p o rta n to em c o n sid e ra r a alma e o C. duas m an ifestaçõ es de u m a m esm a substância. S pino za d eu form a típica a essa s o ­ lução, co n sideran d o a alm a e o C. co m o m o do s ou m anifestações d os d o is atrib u to s fu n d a m e n ­ tais da única S ub stân cia d iv in a, o p e n sa m e n to e a extensão. "E n ten d o p o r C ", d isse ele, "um modo que, de certa form a d ete rm in a d a , e x p ri­ m e a essência de D eu s co n sid e rad o co m o coisa extensa" (Et., II, def. 1). P o rta n to , a "idéia de C. e o C , ou seja, a m en te e o C , form am u m só e mesmo in d iv ídu o q u e o ra é c o n c e b id o so b o atributo do p e n sa m e n to , ora so b o atrib u to da extensão" (Ibid., II, 21, sco l.). Essa d o u trin a obviam ente im plica q u e a o rd em e a c o n e x ã o dos fenôm enos co rp ó re o s c o rre sp o n d e m p e r­ feitamente à o rd em e à c o n e x ã o d o s fe n ô m e ­ nos m entais e q u e , p o rta n to , re c o n stru in d o a ordem e a co n ex ão de u ns, é possível co n h e ce r a ordem e a c o n ex ão d o s o u tro s. P or essa v a n ­ tagem que p are ce a p re se n ta r (sem co n tar o fato de que ela ex clu i a p o ssib ilid a d e de m istu ­ rar e confundir as d u a s séries de fe n ô m e n o s, tom ando p. ex. co m o cau sa de u m fe n ô m e n o corpóreo u m fe n ô m e n o m en tal ou v ice-v ersa), a doutrina de S pino za foi u m m o d e lo p ara a doutrina do paralelismo psicofísico (v.) q u e presidiu à fo rm ação da p sic o lo g ia científica moderna, serv in d o -lh e co m o h ip ó te se de tra­ balho até há algu n s d ec ên io s. 4- A quarta so lu ção co n siste em co n sid erar o C. com o um a form a de e x p eriên cia ou co m o u m m odo de ser v iv id o , q u e te n h a um caráter específico ao la d o de o u tras ex p e riê n c ia s ou modos de ser. O s p re c e d e n te s d essa so lu ç ão são as doutrinas a q u e alu d im o s ao tratarm o s da 1- solu ção de S c h o p e n h a u e r e B ergson . Mas, enquanto essas d o u trinas ainda têm re sso ­ nâncias idealistas e im p licam a re d u ç ã o do C.

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CORPO2 ao esp írito , a h ip ó te se de q u e ora n o s o c u p a ­ m o s n ã o tem sign ificad o idealista e evita tal re ­ d u ção . Essa so lu ç ão en c o n tro u form a típica na feno m en o lo gia de H usserl, se g u n d o a q ual o C. é a e x p eriên cia q u e se isola ou in d iv id u a d e ­ p o is de su c essiv o s ato s de re d u ç ã o fen o m en o ló g ica. "Na esfera do que me pertence (da q ual se elim in o u tu d o o q u e re m ete a u m a s u b ­ je tiv id a d e alh eia), o q u e c h a m a m o s natureza p u ra e sim p les n ão p o ssu i m ais o caráter de ser o bjetivo e p o rta n to n ão d ev e ser co n fu n d i­ do co m u m estrato ab stra íd o do p ró p rio m u n ­ do ou do seu sign ificad o im a n e n te. E ntre os C. d essa n atu re za re d u z id a a 'o q u e m e p e rte n c e ', e n c o n tro m eu p ró p rio C , q u e se d istin g u e de to d o s os o u tro s p o r u m a p a rtic u la rid a d e única: é o ú n ic o C. q u e n ão é s o m e n te u m C , m as o m eu C ; é o ú n ic o C , n o in terio r do estrato ab stra íd o , re c o rta d o p o r m im no m u n d o ao q ual, de ac o rd o co m a e x p eriên cia, eu c o o rd e ­ no ca m p o s de se n sa ç ã o d e m o d o s d iferentes; é o ú n ic o C. de q u e d isp o n h o de m o d o im e d i­ ato, assim co m o d isp o n h o de seu s órgãos" (Cart, Med, § 44). D esse m o d o , o C . é c o n sid e ra d o e x p e riê n c ia viva, v in c u la d o a p o ssib ilid a d e s h u m a n a s b e m d e te rm in a d a s. D e m an eira a n á ­ loga, o fisiólogo K urt G o ld stein d istin gu iu e sp í­ rito, alm a e C. co m o p ro c e sso s d iferen tes m as c o n e x o s, q u e g a n h a m sign ificad o e relev ân cia so m e n te em su a c o n e x ã o . T ais p ro c e sso s são , n a v e rd a d e , c o m p o rta m e n to s d ife re n te s do o rg an ism o v iv o. E m p articu lar, o C. é "um a im ag em física d ete rm in a d a e m ultiform e" q u e se p o d e d e sc re v e r co m o u m fe n ô m e n o d e ex ­ p re ssã o , co m o u m co n ju n to de a titu d e s ou co m o fe n ô m e n o s q u e v ão d ar em to d o s os ó rg ão s p o ssív eis. S e o esp írito é o se r do o rg a­ n ism o , m ais p re c isa m e n te seu ser no m u n d o , o c o m p le x o d as atitu d es v iv id as, a alm a é o seu ter, isto é, a sua cap acid ad e cognitiva; e o C. é o devir, q u e n ão te m o s n em so m o s, m as q ue a c o n te c e em nós. E sse d ev ir é su b sta n c ia lm e n ­ te u m "d eb ate co m o m u n d o ", atrav és do qual o h o m e m acu m u la su a s ex p e riê n c ia s e form a as su a s c a p a c id a d e s (Der Aufbau des Organismus, 1927, p. 206 ss.). D esse p o n to de vista, o C. n ão é sen ão u m co m p o rtam e n to , ou m elhor, u m e le m e n to ou u m a co n d içã o do c o m p o rta ­ m en to h u m a n o . C o n c ep çã o afim é a d o u trin a de S artre, s e g u n d o a q ual o C. é a ex p eriên cia do q u e é "u ltrap assad o " e "p assado ". "Em cad a p ro jeto do Para-si [isto é, da co n sciên cia], em cad a p e rc e p ç ã o , o C. está lá: ele é o p assa d o im ed iato p o rq u a n to aflora ain d a no p re se n te

CORPOREIDADE, FORMA DE

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que lhe foge. Isso significa que ele é, ao mes­ mo tempo, ponto de vista e ponto de partida: um ponto de vista, um ponto de partida que sou e que, ao mesmo tempo, ultrapasso em di­ reção do que hei de ser" {Lêtre et le néant, 1945, pp. 391-92). Merleau-Ponty elucidou as teses implícitas nesse ponto de vista. O C. não é um objeto, uma coisa. "Quer se trate do C. de outrem, quer se trate do meu, não tenho outro modo de conhecer o C. humano senão vivendo-o, isto é, assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele". Mas essa vivência do próprio C. nada tem a ver com o "pensamento do C." ou com "a idéia do C." que formamos por reflexão atra­ vés da distinção entre o sujeito e o objeto. Essa experiência nos revela um modo de existência "ambíguo": se procuramos pensar o C. como um feixe de processos em terceira pessoa (p. ex., como "visão", "mobilidade", "sexualidade") perceberemos que essas funções não estão liga­ das entre si e com o mundo externo por uma relação de causalidade, mas estão todas fundi­ das e confundidas num único drama. MerleauPonty nota que Descartes já fizera a distinção entre C. concebido para os usos da vida, e C. concebido pelo intelecto (Phénoménologie de laperception, p. 231; cf. DESCARTES, Opera, III, p. 690). Deve-se observar que essa redução do C. a comportamento ou a modo de ser vivido, tão característica da filosofia contemporânea, não tem sentido idealista: não implica a negação da realidade objetiva do C. ou sua redução a espírito, idéia ou representação. Ao contrário, essa interpretação da noção de C. acentuou a objetividade da esfera de fenômenos em que o C. consiste, ao mesmo tempo em que procu­ rou definir essa mesma esfera de fenômenos em termos de possibilidades de experiência ou de verificação, segundo uma orientação fundamental da filosofia contemporânea em face da realidade em geral (v. REALIDADE). CORPOREIDADE, FORMA DE (lat. For­ ma corporeitatis). Segundo a tradição agostiniana da Escolástica (v. AGOSTINLSMO), é a realidade que o corpo possui como corpo orgânico, independentemente de sua união com a alma, e que o predispõe a tal união. Essa é a definição dada por Duns Scot (Op. Ox, IV, d. 11, q. 3; Rep. Par, IV, d. 11, q. 3). Trata-se de uma noção característica do agostinismo e usada na polêmica contra o aristotelismo, para o qual o corpo, como matéria, é potência e portanto não tem substancialidade ou forma.

CORRUPÇÃO

CORRELAÇÃO (gr. xà Tipóç ti àvxiKEÍLieva; lat. Correlatio; in. Correlation, fr. Corrélation, ai. Korrelation; it. Correlazione). Uma das qua­ tro formas de oposição enumeradas por Aris­ tóteles, mais precisamente a que ocorre entre termos correlativos, como a metade e o dobro. Os opostos correlativos não se excluem mutua­ mente porque um evoca o outro, no sentido de que o dobro se diz da metade e a metade, do dobro. São termos correlativos também o sabível e a ciência, que se dizem um em relação ao outro (Cat, 10, 11 b 23 ss.). Na lógica escolástica, essa relação foi expressa dizendo-se que, nela, o sujeito e o termo podem permutar-se, de tal sorte que, p. ex., Davié o sujeito da relação de paternidade enquanto é objeto da relação de filiação, cujo sujeito é Salomão; reci­ procamente, Salomão é o objeto da paternida­ de que está em Davi (cf., p . ex.,JUNGIUS, Lógica, I, 8, 6). Hamelin pretendia substituirá contradi­ ção pela C. na dialética hegeliana: para ele, os opostos dessa dialética são opostos correlativos, não opostos contraditórios (Essai sur les élémentsprincipaux de Ia réprésentation, 1907, p. 35). CORRELATIVA, JUSTIÇA. V. COMUTATIVO.

CORRESPONDÊNCIA (lat. Adaequatio; in. Correspondence, fr. Correspondance, ai. Übereinstimmung ou Korrespondenz; it. Corrispondenzd). Doutrina segundo a qual a verdade consiste na adequação, no acordo ou na C. de termo a termo entre o pensamento ou o conhe­ cimento ou entre as proposições lingüísticas, de um lado, e a realidade ou os fatos, de outro. É esse o critério de verdade pressuposto pela filosofia clássica e expresso pela definição escolástica de verdade como adequação do in­ telecto e da coisa (v. VERDADE). CORRUPÇÃO (gr. (pBopá; lat. Corruptio; in. Corruptiort; fr. Corruption; ai. Vergehen, it. Corruzioné). Segundo Aristóteles, constitui, juntamente com o seu oposto, a geração, a atualidade de uma das quatro espécies de mo­ vimento, mais especialmente do movimento substancial, em virtude do qual a substância se gera ou se destrói. "A corrupção", diz Aristó­ teles, "é uma mudança que vai de algo ao nàoser desse algo; é absoluta quando vai da subs­ tância ao nâo-ser da substância, específica quando vai para a especificação oposta". (Fts., V, 225 a 17). Para a doutrina da C. do homem, v. QUEDA; PECADO ORIGINAL.

CÓSMICO, CONCEITO

CÓSMICO, CONCEITO (ai. Weltbegriff). Kant assim denominou "o conceito que versa sobre o que interessa necessariamente a to­ dos", como, p. ex., o conceito de filosofia como guia da vida, em contraposição ao "conceito escolar" (Schulbegriff), que só interessa a quem aspira à aquisição de habilidades espe­ ciais (Crít. R. Pura, Doutrina do método, III, nota). COSMO (gr. KÓOLIOÇ). O mundo enquanto ordem (cf. PLATÃO, Górg, 508 a; ARISTÓTELES, Met, I, 3, 984 b 16). Segundo Diógenes Laércio, os pitagóricos foram os primeiros a cha­ marem o mundo de C; mas ele mesmo nota que isso era atribuído a Parmênides por Teofrasto e a Hesíodo por Zenão (DIÓG. L, VIII, 48). Essa palavra é usada indiferentemen­ te em lugar de "mundo" e sua noção constitui uma das interpretações fundamentais da no­ ção de mundo. Jaspers, porém, estabeleceu uma distinção entre mundo e C: o C. é a imagem do mundo que cada um forma, mas por isso mesmo não é o mundo como soma total de todas as coisas e os eus existentes, isto é, co­ mo totalidade omnicompreensiva (Phíl, I, pp. 979-80) (v. MUNDO). COSMOGONIA (gr. Koouoyovía; in. Cosmogony, fr. Cosmogonie, ai. Kosmogonie, it. Cosmogonia). Mito ou doutrina referente à ori­ gem do mundo (v. COSMOLOGIA; TKOGOMA). COSMOLOGIA (lat. Cosmologia; in. Cosmology; fr. Cosmologie, ai. Kosmologie-, it. Cosmologia). Foi assim que Wolff, e, com ele, a filosofia alemã do séc. XVIII, chamou a filosofia da natureza. Wolff definiu a C. como "ciência do mundo e do universo em geral, que é um ente composto e modificável"; dividiu-a em uma parte científica e uma parte experimental (C. generalis, 1731, § 1, 4), chamadas por Baumgarten de C. racional de C. empírica (Met., 5 351). Essa terminologia foi aceita por Kant, que entendeu por "idéia cosmológica" a idéia do mundo como "totalidade absoluta das coisas existentes" (Crít. R. Pura, Dial., cap. II, seç. I). A partir de Kant, entendeu-se por C. não mais a ciência da natureza, nem toda a filosofia da na­ tureza, mas só a parte da filosofia ou da ciência da natureza que tem por objeto a idéia do mundo e que procura determinar as caracterís­ ticas gerais do universo em sua totalidade. Po­ dem-se distinguir quatro fases da C, a partir do momento em que foram abandonadas as tenta­ tivas nitidamente míticas das teogonias (cf. M. K MUNITZ, Theories ofthe Universe, Glencoe, I

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COSMOLOGIA

11, 1957), quais sejam: Ia fase de transição do mito para a especulação; 2- fase clássica da C. geocêntrica e finitista; 3a C. moderna heliocêntrica; 4a a fase contemporânea, caracteriza­ da por várias alternativas de interpretação. Ia A primeira fase é caracterizada pelo aban­ dono do mito e pela tentativa de encontrar uma explicação racional ou natural do mun­ do. É a fase representada pela filosofia présocrática. Os pitagóricos tiveram maiores mé­ ritos porque: a) entenderam o universo como um cosmo (v.), isto é, como uma ordem obje­ tiva, exprimível na linguagem matemática, em figuras e números; b) com Filolau (séc. V a.C), foram os primeiros a rejeitar a concepção geocêntrica, acreditando que a Terra e todos os outros corpos celestes se movem em torno de um fogo central chamado Hestia e apresentan­ do, assim, a primeira doutrina heliocêntrica, defendida mais tarde por Heráclides Pôntico e Aristarco de Samos (séc. III a.C). 2- A segunda fase é a da astronomia clássi­ ca c da filosofia da natureza de Platão e Aristó­ teles. Caracteriza-se pela consolidação da con­ cepção geocêntrica do mundo através da obra de Eudoxo (séc. IV a.C), Hiparco (séc. II a.C) e Ptolomeu (séc. II d.C), bem como pela con­ cepção finitista e qualitativa da natureza, pró­ pria de Aristóteles. Este, com efeito, julgava que o mundo era necessariamente finito por­ que perfeito; e estabeleceu como sua caracte­ rística fundamental a divisão em duas partes qualitativamente diferentes: o céu, composto por éter, substância não engendrável e incor­ ruptível, que se move apenas em movimento circular (v. CÉU); e os corpos sublunares, com­ postos pelos quatro elementos que se movem a partir do centro ou para o centro da Terra (v. FÍSICA). Esta concepção prevaleceu na Idade Média. 3a A terceira fase inicia-se no fim da Idade Média, quando a concepção clássica foi posta em dúvida por Ockham, que reconhecia a pos­ sibilidade da infinitude do mundo e da exis­ tência de mais mundos (In Sent, I, d. 44, q. 1), ao mesmo tempo em que negava a diferença entre a substância celeste e a substância sublunar (lbid, II, q. 22). As possibilidades que Ockham deixou abertas transformaram-se em afirma­ ções categóricas no século seguinte, por Nicolau de Cusa (De docta ignor., 1440), unindo-se (assim como o finitismo aristotélico se unira à astronomia geocêntrica) à astronomia heliocêntrica de Copérnico e de Kepler na nova

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concepção do mundo que era exposta e defendida por Galilei (séc. XVII). Giordano Bruno reiterava, do ponto de vista filosófico, a conexão mais estreita entre a infinitude do mundo e a nova astronomia heliocêntrica. A fí­ sica de Newton representa a expressão da es­ trutura matemática de um mundo assim conce­ bido; e foi precisamente baseando-se nas leis da física de Newton que Kant tentou, pela pri­ meira vez, em Teoria dos céus (1755), uma cosmogonia científica que apresentava a hipó­ tese da formação de todo o universo a partir de uma nebulosa primitiva. Mais tarde, Laplace apresentava a mesma hipótese com mais rigor; limitando-se ao sistema solar {Exposição do sis­ tema do mundo, 1796), julgava ter demonstra­ do que o mundo não passa de gigantesca má­ quina dirigida por rigorosas leis matemáticas. Essa fase cosmológica culmina, pois, com o triunfo do mecanicismo, cujo exemplo mais conspícuo parece estar nos céus. 4a A quarta fase da C. começou na segunda década deste século e deveu-se ao uso dos no­ vos instrumentos ópticos e conceituais de que se começa a dispor nesse período. O uso dos grandes telescópios e a teoria da relatividade de Einstein foram os fatores fundamentais des­ sa transformação. Num texto de 1917, Conside­ rações sobre o universo como um todo, Einstein propunha pela primeira vez uma reforma radical da concepção do mundo que viera se formando a partir do Renascimento e que pare­ cia já estabelecida: propunha considerar o uni­ verso não mais como infinito, mas como finito e todavia não limitado (assim como não é limi­ tado um anel sem engaste, que se pode fazer girar ilimitadamente). Einstein considerava, portanto, que o espaço do universo era curvo, mais precisamente elíptico, no qual uma linha reta, suficientemente prolongada, voltaria so­ bre si mesma e acabaria por fechar-se. As pro­ priedades geométricas do espaço seriam, nesse caso, determinadas pela matéria, já que o grau de curvatura do espaço dependeria da densi­ dade da matéria. Por outro lado, as observa­ ções de Hubble, possibilitadas pelo uso do te­ lescópio de cem polegadas, permitiam resolver o problema da natureza das nebulosas e re­ conhecê-las como sistemas galácticos indepen­ dentes, e não como partes de nossa própria ga­ láxia. Hubble estabeleceu dois fatos de grande importância. O primeiro é que as nebulosas extragalácticas estão distribuídas pelo espaço de modo uniforme e homogêneo. O segundo é

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que os espectros dessas galáxias mostram um deslocamento para o vermelho, tanto maior quanto mais longínquas são as galáxias. Esse segundo fato é comumente interpretado no sentido de que as galáxias se afastem de nós e, ao mesmo tempo, umas das outras com uma velocidade tanto maior quanto mais distantes estiverem (EDWIN HUBBLE, The Realm ofthe Nebulae, 1936). Esse fato, ou melhor, essa interpretação do fato do deslocamento do espectro das galáxias para o vermelho levou a abandonar os modelos estáticos do universo, como o de Einstein, a que nos referimos, e de De Sitter (cf. deste, Kosmos, 1932), em favor de modelos dinâmicos, fundados na noção de "ex­ pansão" do espaço. Eddington e Lemaitre con­ tribuíram de forma eminente para o desenvol­ vimento e a difusão do modelo do universo em expansão(A. S. EDDINGTON, TheExpanding Universe, 1933; G. LEMAITRE, ThePrimevalAtom. An Essayon Cosmogony, trad. in., 1950). A di­ ferença entre os vários modelos de universo é expressa por Eddington nestes termos-. "Njm extremo temos o universo de Einstein, sem movimento e, portanto, em equilíbrio. Depois, à medida que prosseguimos ao longo da série, temos modelos de universo que mostram uma expansão cada vez mais rápida, até que, no outro extremo da série, tenhamos o universo de De Sitter. A proposição da expansão cresce ao longo da série, ao passo que a densidade di­ minui; o universo de De Sitter é o limite em que a densidade média da matéria celeste se aproxima de zero. A série dos universos em expansão acaba aí, não porque a expansão se torne demasiado rápida, mas porque já não há nada que possa expandir-se" (The Expanding Universe, 2, § 4). Mas o modelo de Einstein não se encaixava totalmente nas observações astro­ nômicas: era pequeno demais para represen­ tar o universo real. O modelo de De Sitter sa­ tisfazia às equações só a partir do pressuposto de que o espaço fosse vazio e que nele não houvesse matéria nenhuma. Por isso, o mode­ lo de Lemaitre ficou, durante alguns decênios, como o mais freqüentemente adotado. Depois da Segunda Guerra Mundial, a C. so­ freu nova guinada. Em 1949, os matemáticos ingleses Herman Bondi e Thomas Gold propu­ seram um novo modelo do universo partindo do paradoxo em que se detivera, mais de um século antes, o astrônomo alemão Olbers: se as estrelas estão distribuídas uniformemente no espaço e se o espaço é infinito, por que a luz

COSMOLOGIA delas n ão n os cega? N ão deveria cada p o n to do universo infinito re c e b e r u m a so m a infinita de luz? A o fo rm u lar esse p a ra d o x o , O lb ers p artia do p ressu p o sto de q u e o ca rá ter g eral do u n i­ verso é o m esm o n ão só em to d o s os lu g ares mas tam bém em to d o s os te m p o s. É e x a ta m e n ­ te desse p re ssu p o sto q u e p artem B on d i e G old. Ele im plica q u e a a p a rê n c ia de u m a re g ião qualquer do u n iv e rso foi no p a ssa d o e será sem pre no fu tu ro a m esm a do p re se n te . O ra, o único m o d o de co n ciliar esse p o stu la d o co m o m ovim ento de re c e ssã o d as g alá x ias (d e m o n s­ trado p elo d e slo c a m e n to de seu e sp e c tro para o v erm elh o) é ad m itir q u e n o v as g aláx ias se formam co n tin u am en te para co m p en sa r a d is­ persão d as v e lh a s. M as se n o v as g alá x ias se form am c o n tin u a m e n te , isso q u e r d izer q u e co n tinuam ente se cria m atéria nova no esp aço . Bondi e G old calcu laram q u e a criação d e n ova m atéria d ev e o co rre r na p ro p o rç ã o de u m á to ­ m o de h id ro g ê n e o p ara cad a litro do e sp a ç o intergaláctico a cad a b ilh ão d e a n o s (de BONDI, v. "T heories o f C osm o log y ", em The Advancement of Science, 1955, n. 45). E ssas id éias fo ­ ram lo g o re to m a d a s p e lo a s trô n o m o in g lês Fred H oyle, q u e m o dificou as e q u a ç õ e s da re ­ latividade g eral de E instein, de m o d o q u e elas perm itissem a co n tín u a criação da m atéria no espaço (The A'ature ofthe Universe, 1950). N o m o m en to em q u e foi fo rm u lad a, essa doutrina tin h a a v a n ta g e m de an u lar a im p o r­ tância do d esaco rd o en tre os astrô n o m o s so b re a idade do u n iv e rso , elim in an d o o p ró p rio p ro ­ blem a da d ete rm in a ç ã o da id ad e. D e fato, se a criação é co n tín u a e se n o v as g aláx ias n ascem co n tin u am en te no u n iv e rso , este d ev e ser p o ­ voado de g aláxias de to d as as id ad es. O u so de telescópios aind a m ais p o d e ro s o s n o s ú ltim os anos elim in o u as d isc re p â n c ia s so b re a av alia­ ção da id ad e do u n iv e rso , q u e foi fixada em cerca de cinco b ilh õ e s de an o s. Isso p ersu ad iu alguns astrô n o m o s a ad m itir u m m o d e lo n ão estático do u n iv e rso , co m o o de B on d i e de Hoyle, m as "evolucionista", p elo q ual se a d m i­ te que o u n iv e rso ev o lu iu do e sta d o p rim itiv o de gás altam ente co m p rim id o e q u en tíssim o ao estado atual q u e a p re se n ta estrelas, g aláxias e m atéria. Essa teo ria ad m ite na o rig em do universo u m a c o n te c im e n to catastrófico, ú n i­ co pelas c o n d içõ es em q u e se d e sen v o lv eu (G. GAMOW, "M o d em C osm o log y ", em Scientific American, 1954, n. 3; D. W . SCIAMA, "E volutionary P ro cesses in C osm o log y ", em The Advan-

cement ofScience, 1955, n. 54.

COSMOPOLITISMO

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E m b o ra essa s c o n c e p ç õ e s p re te n d a m ser p u ra m e n te científicas, n ão te n h a m o intuito de re to rn a r à v elh a C. finalista e tratem a criação co m o u m sim p les "fato" cuja id ad e m éd ia se p o d e e s ta b e le c e r m ate m a tic a m e n te , está claro q u e se fu n d a m e n ta m em alg u n s p re ssu p o sto s p o u c o ju stific á v e is. S em le v a r em co n ta q u e a e x p a n s ã o d o u n iv e rso é a d m itid a atra v é s da in te rp re ta ç ã o do d e slo c a m e n to do esp ectro das galáxias para o v erm elh o co m o recessão das g aláx ias (não se d ev e e sq u e c e r q u e o fato p o d e te r o u tras in te rp re ta ç õ e s), o p o stu la d o da u n i­ fo rm id a d e do u n iv e rso no te m p o e no esp aço n ão p assa de e x p re ssã o cam uflada da antiga idéia do m u n d o co m o to ta lid a d e ab so lu ta dos fe n ô m e n o s. Esse p o stu la d o , co m efeito, n ão é verificável n em falseável, e n ão p o d e ser tra ­ d u z id o em e n u n c ia d o s co n tro láv eis: n ão faz m ais do q u e ex p rim ir a idéia do m u n d o co m o "to talid ad e a b s o lu ta m e n te h o m o g ê n e a " , q u e n ão é m e n o s m etafísica do q u e a "in c o rru p ­ tib ilid ad e d o s céu s" de aristotélica m em ó ria (cf. as im p o rta n tes o b se rv a ç õ e s de M. K. MUNITZ, Space, Time and Creation, G le n c o e , III, 1957).

COSMOLÓGICA, PROVA (in. Cosmolo-

gícal argument; fr. Préuve cosmologique, ai. KosmologischerBeweis; it. Prova cosmologica). A ssim foi c h a m a d a pela filosofia alem ã do séc. XVIII a p rova da existência de D eus, q u e S. T o ­ m ás ch am av a exparte motus (S. Th, I, q. 2, a. 3) e q u e a trad ição escolástica extraíra da Física (VII, 1) e da Metafísica (XII, 7) de A ristóteles (v.

DEUS, PROVAS DE).

C O S M O P O IJT IS M O (in. Cosmopolitism; fr. Cosmopolitisme, ai. Kosmopolitismus; it. Cosmopolitismó). D ou trin a q u e te n d e a n eg ar a im p o r­ tân cia d as d iv isõ es p olíticas e a v er no h o m e m , ou ao m e n o s no sáb io , u m "cid ad ão do m u n ­ do". "C osm opolita" re sp o n d e u D ió g e n e s, o C í­ n ico , a q u e m lh e p e rg u n to u d e o n d e era (DIÓG. L, V I, 63). O C. ta m b é m foi d efe n d id o p elo s estó ico s. "C o n sid eram o s to d o s os h o m e n s", d i­ zia Z en ão , "co m p atrio tas e co n cid a d ã o s; q u e a vida e o m u n d o sejam u n o s co m o u m a g rei u n id a , criada co m u m a lei co m u m " (PLAUT., De Alex. virt., I, 6, 329). O C. co m o ideal diferente do u niversalism o eclesiástico foi co m p artilh ad o p o r Leibniz (Escritospolíticos; seleção e trad. it. de V . M ath ieu , p p. 141-42) e re to m a d o p elo Ilu m in ism o . K an t c o n sid e ra -o u m princípio regulador do p ro g resso da s o c ie d a d e h u m a ­ na p ara a in te g ra ç ã o u n iv e rsa l e, p o rta n to , co m o "o d estin o do g ê n e ro h u m a n o , ju stifica­

COSTUME

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do p o r u m a te n d ê n c ia n atu ra l n esse sen tid o " (Antr, II e). COSTUME (in. Custom, fr. Coutume, ai. Gewohnbeit; it. Consuetudiné). 1. O m esm o q u e habito (v.). 2. N o sen tid o so c io ló g ic o , q u a lq u e r atitu d e, esq u e m a ou projeto de co m p o rtam e n to q u e seja co m p a rtilh a d o p o r v ário s m e m b ro s de u m g ru ­ po. V iço já ap licava essa p alavra n esse sen tid o : "É frase digna de co n sideração a de D ion Cássio-, q u e o C. se assem elh a ao rei e a lei ao tirano; o q u e d ev e ser e n te n d id o do co stu m e razo áv el e da lei n ão an im ad a pela razão natural" (Scienza nuova, 1744, d ig n id a d e 104). N a lin g u ag em co n tem p o rân e a, com o term o C. d esig nam -se os u so s (folkways), as c o n v e n ç õ e s e c o m p o rta ­ m en to s m o ralm en te p rescrito s (mores-, V. COSTU­ M ES), q u e se d istin g u em p ela s d iferentes intensid a d e s das sa n ç õ e s q u e os reforçam . COSTUMES (lat. Mores; in. Mores). A titudes in stitu cio n alizad as de u m g ru p o social, às q uais se ap licam e m in e n te m e n te os q u alificativo s "boas" e "m ás" e q u e são refo rçad as p ela s s a n ­ çõ es m ais en é rg ica s p o rq u e c o n sid e ra d a s c o n ­ d içõ es in d isp en sáv eis de q u a lq u e r re la c io n a ­ m en to h u m a n o (v. ÉTICA). CREDO QUIA ABSURDUM. F rase atrib u í­ da a T ertu a lin o (séc. II) e q u e , em b o ra n ão se e n c o n tre em su a s o b ras, ex p rim e b em o an ­ tag o n ism o q ue ele estab eleceu en tre ciência e fé. Seu significado é ig u alm e n te e x p re sso p e ­ las se g u in te s p alavras: "O F ilho de D eu s foi crucificado; n ão é v e rg o n h o s o p o rq u e p o d eria sê-lo. O F ilho d e D eu s m o rreu; é crível p o rq u e inconcebível. S ep ultado , ressuscitou; é certo p o r­ q u e im possível" (De carne Christi, 5). CREDO UT INTELLIGAM. É o lem a de S. A n selm o (séc. XI) e de g ra n d e p a rte da E scolástica. A fé é o p o n to de p artid a da in d a­ g ação filosófica e n ad a se p o d e e n te n d e r se n ão se tem fé. E n tretan to , é p ró p rio do p re g u i­ ço so n ão p ro cu rar e n te n d e r e d e m o n stra r aq u i­ lo em q u e crê (Proslogion, 1). CRENÇA (gr. m otiç-, lat. Credere, in. Belief; fr. Croyance, ai. Fuerwahrhalten, Glaube, it. Credenzà). N o sign ificad o m ais g eral, atitu d e de q u e m re c o n h e c e co m o v e rd a d e ira u m a p ro ­ p o sição : p o rtan to , a a d e sã o à v a lid a d e de u m a n o ç ão q u a lq u e r. A C . n ão im plica, p o r si só , a v alid a d e objetiva da n o ç ã o à q u al a d e re n em ex clui essa v alid a d e . T a m p o u c o tem , n e c e ssa ­ riam e n te , alca n c e relig io so , n em é, n ec e ssa ria ­ m en te, a v e rd a d e rev elad a, a fé; p o r o u tro lado , ta m b é m n ão ex clu i essa d e te rm in a ç ã o e, n esse

CRENÇA s e n tid o , p o d e -se d izer q u e u m a C . p o d e p er­ te n c e r ao d o m ín io da fély). D e p er si, a C. im ­ plica a p e n a s a a d e sã o , a q u a lq u e r títu lo d ad o e p ara to d o s os efeitos p o ssív eis, a u m a n o ção q u a lq u e r. P o rta n to , p o d e m ser ch a m a d a s de C. as co n v icçõ es científicas ta n to q u a n to as confis­ sõ e s relig io sas, o re c o n h e c im e n to de u m p rin ­ cípio e v id e n te ou de u m a d e m o n stra ç ã o , bem co m o a ac eitaç ão de u m p re c o n c e ito ou de u m a s u p e rstiç ã o . M as n ão se p o d e ch am ar de C. a dúvida, q u e s u s p e n d e a a d e sã o à v ali­ d ad e de um a n o ção , n em a opinião, no caso de ex cluir as co n d iç õ e s n ec essária s p ara u m a a d e ­ são d esse g ê n e ro . P latão ch a m o u de C. a form a ou o g rau de c o n h e c im e n to q u e te m p o r o b jeto as coisas sen sív eis, já q u e ela co n tém u m a a d e sã o à re a­ lid a d e d essa s co isas, ao co n trá rio d a conjetura, q u e, te n d o p o r o b jeto as im a g e n s, as so m ­ b ras, e tc , n ão co n tém essa a d e sã o (Rep, VI, 510 a). A ristóteles ju lg a q u e a C. n ão é elim inável da o p in ião : "Não é possível", diz ele, "que q uem te n h a u m a o p in iã o n ão creia no q u e pensa" (Dean., III, 428 a 20). E m sen tid o an álo g o , m as co m re fe rên cia à fé, S. A g o stin h o definiu a cren ça co m o "p en sar co m a sse n tim e n to " (De Predest. Sanct, 2), d efinição q u e S. T o m á s usa co m o fu n d a m e n to de su a an álise da fé. "Esse ato q u e é crer", diz S. T o m ás, "contém a firm e ad e são a u m d os la d o s e n isso é se m e lh a n te ao ato de q u e m co n h e ce e en te n d e ; tod av ia, o co­ n h e c im e n to de q u e m crê n ão é p erfeito pela sua ev id ên cia, e nisso a crença está próxim a da d ú v id a, da su sp e ita e da o p in ião " (S. Th, II, 2, q. 2, a. 1). N a filosofia m o d e rn a , a p artir de L ocke, a lim itação crítica do c o n h e c im e n to le­ v o u a d istin g u ir o c o n h e c im e n to certo do p ro ­ v áv el, e no p ro v á v e l v ário s g rau s d e ad esão , d os q uais a C. é o m aior (Ensaio, IV, 16, 9). Mas foi o ceticism o de H u m e q u e g en eralizo u a no­ ção de C , v e n d o nela a atitu d e q u e co n siste em re c o n h e c e r a re a lid a d e de u m o bjeto . "A C ", d isse H u m e, "é só u m a c o n c e p ç ã o m ais vivida, viva, eficaz, firm e e sólida d a q u ilo q u e a im agi­ n aç ão p o r si só n u n ca é c a p az d e o bter." E "o ato d a m en te q u e n os to rn a a re a lid a d e , ou o q u e é to m a d o p o r re a lid a d e , m ais p resen te do q u e as ficções, fazen d o -a p esar m ais sob re o p e n sa m e n to e a u m e n ta n d o sua influência so­ b re as e m o çõ e s e a im ag in ação " (Inq. Cone. Underst, V , 2). H u m e co n sid e rav a a C. inex­ p lic áv el, e n te n d e n d o -a s im p le s m e n te com o e x p eriên cia ou se n tim e n to (feeling ou sentiment) natural e irredutível. "N ão p o d em o s", disse

CRENÇA ele, "ir além da a sse rç ão de q u e a C. é u m a experiência do esp írito q u e faz a d istin çã o e n ­ tre idéias do ju íz o e ficções da im ag in ação ". Mas u m d os resu ltad o s dessa análise foi p ô r em evidência o caráter esp ecífico de a d e sã o q u e o re co n h e cim e n to de u m a re a lid a d e q u a lq u e r possui. K ant n ão fez m ais do q u e aceitar e co n validar a g e n e ra liz a ç ã o d e H u m e co m os escla­ recim entos m eto d o ló g ico s q u e ad u ziu n a seção do C ân o n da R azão P ura (Crít. R. Pura, m as cf. tam b ém a Crít. do Juízo, § 90) q u e d e d i­ cou à o p in ião , à ciên cia e à fé. E n ten d e u p o r C. ''a v alid ad e subjetiva do ju íz o ", ou seja, a v a ­ lidade q u e o ju íz o p o ssu i "na alm a de q uem julga". E re c o n h e c e u três g rau s de C: opinião, que é u m a C. in su ficien te ta n to subjetiva q u a n ­ to objetivam ente; fé, q u e é u m a C. in su ficien te objetivam ente, m as co n sid e rad a sub jetiv am en te suficiente; e ciência, q u e é u m a C. suficien te tanto su b je tiv a q u a n to o b je tiv a m e n te . M as esses re p a ro s e d istin çõ es, a p e sa r do su c esso que tiveram , são u m ta n to co n fu so s. C om efei­ to, Kant co n sidera a o p in ião co m o u m a esp écie d e C , re c o n h e c e n d o q u e ca re ce d e ca rá ter de adesão. A lém d isso , ju lg a q u e só a fé te m ou pode ter influência s o b re a aç ão , ao p asso q u e , com o vira H u m e , essa é a característica p ró ­ pria da cren ça. O ca rá ter esp ecífico da C. foi ressaltado p elo s em p iristas in g leses do séc. XIX, por B rentan o e p e lo s p rag m atistas. S tuart Mill identificou "juízo" e "C ". "É n e c e ssá rio fazer a distinção", d isse ele, "entre a sim p les su g estão ao espírito de certa o rd em en tre as se n sa ç õ e s ou idéias — co m o , p. ex., a do alfabeto e a da tábua p itagó rica — e a in d ica çã o de q ue essa ordem é u m fato real q u e está a c o n te c e n d o , que ac o n te ce u u m a ou m ais v e z e s ou q u e acontece sem p re em certas circu n stân cias: q u e são as coisas in d ica d a s co m o v e rd a d e ira s p o r um a p red icação afirm ativa ou co m o falsas pela negativa" (Analysis of the Phenomena of the HumanMind [de JAMES MILL], cap . IV, § 4, n ota 48; tam bém System ofLog, I, 5, 2). D e re sto , a tese de q ue o ju íz o im p o rta C. já fora defendida por H ob b es (De corp, 3, § 8), p ara q u e m , no entanto, a C. co n sistia s o m e n te em co n sid e rar que sujeito e p re d ic a d o são d ois n o m e s de u m a só coisa. S tuart M ill, critican d o H o b b es n esse aspecto, p re te n d e m o strar q u e a a d e sã o im p lí­ cita no ju íz o n ão é só v erb al ou ling ü ística, m as diz respeito ao objeto do p ró p rio ju íz o , isto é, à realidade (Logic, I, 5, 4). T ese an álo g a foi su s­ tentada p o r F ranz B re n tan o do p o n to d e vista da in tencio nalidade da co n sciên cia. B re n tan o

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CRENÇA afirm o u q u e to d o o b je to ju lg a d o e x iste na c o n sc iê n c ia em fo rm a d u p la : co m o o b jeto re p re s e n ta d o e co m o o b jeto re c o n h e c id o ou n e g a d o , ou seja, "crido". "A firm am os", disse B re n tan o , "que, q u a n d o o o bjeto d e u m a re ­ p re se n ta ç ã o se to rn a o bjeto de u m ju íz o afirm a­ tivo ou n eg ativ o , a co n sc iên c ia refere-se a ele n u m a e sp é c ie de relação co m p le ta m e n te nova. O o bjeto está, en tã o , d u p la m e n te p re se n te para a co n sc iên c ia, co m o re p re s e n ta d o e co m o acei­ to ou n eg ad o , assim co m o , q u a n d o o desejo recai so b re u m o bjeto , esse o bjeto está p re s e n ­ te na co n sc iên c ia, ao m esm o te m p o co m o re ­ p re s e n ta d o e co m o d esejado " (Von derKlassification der psychischen Phãnomene, 1911, II, 1). B re n tan o , p o rta n to , fazia a d istin çã o en tre ju íz o e re p re s e n ta ç ã o co m o facu ld ad es p síq u i­ cas d ife re n te s e co n sid e rav a q ue o ju íz o era m a rc a d o p e lo ca rá te r d e a d e sã o da cren ça. H usserl ch am a esse m esm o caráter de "tético"; para ele, a C. é u m ato q u e "põe" o ser: ao caráter "tético" da C. c o rresp o n d e o caráter "real" de seu o bjeto (Ideen, I, § 103). A s m esm as ca­ racterísticas são a trib u íd as à C . n as an álises de C harles S. P eirce, q u e, ad e m a is, ressalto u na C. o ca rá te r de c o m p ro m iss o co m a aç ão . O s c a racteres da C , s e g u n d o P eirce, são os se g u in ­ tes: Ia é algo d e q u e to m a m o s co n sciên cia; 2a aq u ieta a irritação d a d úv id a; 3a im plica e s ta b e ­ lecim en to de um a regra de ação, d e u m h ábito. D esse co n ceito de C , Peirce extraía a regra q ue foi d e p o is assu m id a co m o p rin cíp io fu n d a m en ­ tal do p rag m atism o : "Para d e s e n v o lv e r o sig n i­ ficado de u m a co isa n ão d ev em o s fazer m ais do q u e d ete rm in a r os h áb ito s q u e ela p ro d u z, p o is aq u ilo q u e u m a coisa significa é sim p les­ m e n te o h áb ito q u e ela im plica. A id en tid a d e d e u m h áb ito d e p e n d e de co m o ele n os levará a agir, n ão só n as circ u n stân cias q u e p ro v a v e l­ m e n te su rg irão , m as n as circ u n stân cias q ue, e m b o ra im p ro v áv eis, possam surgir" (Chance, LoveandLogic, II, 2; Coll. Pap, 5. 397). S an ta y a n a e lu c id o u a c o n e x ã o da C. co m a p a rte ativa e p rátic a do h o m e m , ou seja, com a fo m e, o am or, a lu ta ou, de m o d o g eral, a e sp era do futuro. A qu ilo em q u e se crê n ã o é essê n cia p u ra (que, co m o tal, é só o bjeto de in tu iç ão ), m as u m a coisa ex isten te, e as coisas e x iste n tes se d ão so m e n te na "ex p eriên cia a n i­ m al", isto é, na re la ção de ação e re a ç ã o do o rg an ism o co m o m u n d o . Logo, s e g u n d o Santay an a, a C. na ex istên cia é u m a "fé anim al" (Scepticism and Animal Faith, 1923, cap. 15­ 16). Enfim , o u tro caráter da cren ça foi ev id e n ­

CRIAÇÃO

ciado por James: a capacidade de provocar, às vezes, sua própria confirmação. James enun­ ciou essa tese a propósito de C. metafísicas, como, p. ex., das C. na ordem e na bondade fi­ nal do mundo {The Will to Believe, 1897). Ele entendia que a vida pode adquirir sentido e va­ lor para quem acredita que ela os tem. Mas fora dessa esfera metafísica o fenômeno da C. que se realiza a si mesma hoje é amplamente reco­ nhecido e estudado nas ciências sociais, assim como se reconhece e estuda nessas mesmas ciências o fenômeno da "C. suicida", ou seja, da C. que se destrói a si mesma. Na filosofia contemporânea, a noção de C. é marcada pelas seguintes características: Ia a C. é a atitude da adesão a uma noção qualquer; 2a essa adesão pode ser mais ou menos justificada pela validade objetiva da noção, ou não se jus­ tificar de modo algum; 3a a própria adesão transforma a noção em regra de comportamen­ to (o que Peirce chamava de "hábito de ação"); 4a como regra de comportamento, em alguns campos a C. pode produzir sua própria reali­ zação ou seu próprio desmentido. CRIAÇÃO (gr. Tiovnaiç; lat. Creatio; in. Creation-, fr. Création; ai. Schoepfung; it. Creazioné). Em todas as línguas, essa palavra tem sentido muito genérico, indicando qualquer forma de causalidade produtiva: do artífice, do artista ou de Deus. Seu significado específico, porém, como forma particular de causação, é caracterizado: l9 pela ausência de necessidade do efeito em relação à causa que o produz; 2a pela ausência de realidade pressuposta no efeito criado, além da realidade da causa cria­ dora (e nesse sentido diz-se que a C. é "do nada"); 3U pelo menor valor do efeito em rela­ ção à causa; e eventualmente 4B pela possibili­ dade de que um dos termos da relação, ou ambos, estejam fora do tempo. A Ia e a 2a ca­ racterísticas diferenciam a C. da emanação (v.) além de diferenciá-la das formas ordinárias de causação. A 3a característica é comum à C. e à emanação e diferencia ambas das formas ordinárias da causação. A 4a característica, quando se verifica, aproxima a C. da emana­ ção (que é eterna porque necessária), mas nem sempre se verifica. Considera-se, em geral, que a C. é uma no­ ção de origem bíblica, mas na realidade não é possível colher na Bíblia as determinações aci­ ma expostas, que a definem e que são fruto da elaboração a que o pensamento cristão sub­ meteu esse conceito, pondo-o em relação positiva

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CRIAÇÃO

ou negativa com doutrinas próprias da filosofia grega. Assim, na Bíblia, diz-se claramente que Deus criou o céu e a terra (Geri., I, 1; Ps. 32, 6; 135, 5; Eci, 18; Act, 14, 14; 17, 24; etc), mas não fica tão claro que essa C. é do nada; aliás, o livro da Sabedoria (XI, 18) fala da C. do orbe da terra a partir de "uma matéria invisível". Por outro lado, na filosofia grega encontrava-se cer­ to conceito de C. que não se mostrou compa­ tível com o conceito de Deus peculiar aos cris­ tãos. O conceito de C. dado por Platão em Timeu ajusta-se às condições Ia e 3a, mas con­ tradiz a 2a. A C, para o Deus-artífice, é um ato voluntário de bondade que quer a multiplica­ ção do bem (Tim, 29 E), o que significa que o mundo não é necessário em relação à sua cau­ sa. Mas a ação criadora do Demiurgo é limita­ da: ls pelas estruturas do ser, isto é, pelas idéias ou substâncias que ele assume da sua obra como modelos; 2S pela matriz material que, com sua necessidade, limita a própria obra. Por isso, sua C. não é ex nihilo. Por sua vez o Deus de Aristóteles, como primeiro mo­ tor imóvel do mundo, é causa do movimento, ou seja, do devir e da ordem do mundo, mas não de seu ser substancial, que é tão eterno quanto o próprio Deus (Met., XII, 6, 1071 b 3 ss.). Quanto ao Deus dos neoplatônicos e de Plotino, sua ação criadora é a da emanação, caracterizada pela necessidade do processo criativo (v. EMANAÇÃO). Nesses modelos clássi­ cos, o conceito de C. choca-se com os atributos do Deus judaico e cristão, que não é causa ne­ cessária, mas cria o mundo por um ato livre e gratuito, e é infinito e onipotente, não poden­ do, portanto, encontrar limites à sua ação cria­ dora numa estrutura substancial ou numa ma­ téria que seja independente dele. Em vista dessas exigências, a primeira ela­ boração da noção de C. foi feita por Fílon de Alexandria (séc. I). Embora Fílon continue cha­ mando Deus de "Demiurgo" ou de "Alma do mundo", anuncia (se bem que com certa incer­ teza) a noção de C. afirmando que "Deus, criando todas as coisas, não só as trouxe à luz, mas criou o que antes não havia: não só cons­ trutor, mas na verdade fundador" (KTÍaTnç, Desomniis, I, 13). No mesmo sentido, a noção de C. foi elaborada pela Patrística e pela Escolástica. A elaboração patrística tem mais afinida­ des com os modelos clássicos. Irineu reivin­ dicava contra os gnósticos o caráter total (ex nihilo) da C, sem o qual se atribuiria a Deus a impotência de realizar seus projetos (Adv.

CRIAÇÃO

haeres, II, 1, 1). M as é s o b re tu d o n o s p a d re s da igreja o rien tal q u e se se n te a in fluência do m odelo em anacion ista, ev id en te em O rígenes (Deprinc, I, 2,10) e, n os p rim ó rd io s da E scolás­ tica, em S co tu s E rig en a (De divis. nat, IV, 7); este ju lg a in so lú v el a co n cilia çã o en tre a e te rn i­ dade do m u n d o e a C . d e ste p o r p arte de D eu s. A E scolástica árabe, co m A v icen a e A verróis, insistira na n e c e ss id a d e e na e te rn id a d e do m undo, n e g a n d o (A verróis) a C , ou re d u z in ­ do-a (A vicena) à m era a n te rio rid a d e do ser n e ­ cessário ao ser c o n tin g e n te (Met, V I, 2). E n e s ­ se asp ecto foram de p o u c a serv en tia as críticas de M aim ô n id es, q u e d efe n d e ra a "n o vid ade" do m u n d o , in sistin d o n os se u s c a ra cte re s arb i­ trários (Guide des égarés, II, 19). A p rim eira exposição lú cid a do c o n c e ito de C. d e v e u -se a S. A nselm o. "As co isas feitas p ela su b stân cia criadora", diz ele, "foram feitas do n ad a, assim com o sói d izer-se q u e alg u ém q u e era p o b re fi­ cou rico, e o u tro , q u e era d o e n te ficou são" (Monologion, 8). L ogo, n ad a a n te c e d e à o bra criadora, ex c eto D eu s: "A quilo q u e an te s n ão era agora é" (Ibid., 8). C om igual lu cidez, S. T o ­ m ás re ca p itu lav a as características q u e essa n o ­ ção viera ad q u irin d o na E scolástica latin a. A C. é "a em a n a ç ã o de to d o en te a p artir da cau sa universal, q u e é D eus". Ela n ão p re s su p õ e n e ­ nhum a re a lid a d e , p o is e n tã o h av eria u m a re a li­ dade n ão ca u sad a p o r D eu s; e n esse se n tid o é ex nihilo. Ex n ão significa a cau sa m aterial, com o se o n ad a fosse a m atéria de q u e o m u n ­ do é co m p o sto , m as s o m e n te a o rd e m de s u ­ cessão, pela qual o ser criado do m u n d o seg u ese ao n ão ser do p ró p rio m u n d o (S. Th, I, q. 45, a. 1-2). C om isso e co m o re c o n h e c im e n to de q ue "não é n ec essário q u e D eu s q u e ira algo que n ão ele m esm o " (Ibid., q. 46, a. 1), q u e im ­ plica o caráter v o lu n tá rio e g ratu ito d a C , estavam fixadas as características do co n ce ito . S. T om ás, p o ré m , n ão ju lg a v a q u e o c o n ce ito im ­ plicasse n ecessariam en te o início do m u n d o no tem po. A C , co m o ca u sa ç ã o d o m u n d o p o r parte de D eu s, p o d e ria m u ito b em ser etern a, no sen tid o atrib u íd o p o r S. A g o stin h o ao dizer: "Se u m p é s e m p re existiu no p ó , d e sd e a e ter­ nidade, so b ele s e m p re terá ex istid o a p eg ad a, in d ub itav elm ente p ro d u z id a p elo pé q u e calca­ va; do m esm o m o d o , o m u n d o s e m p re existiu p orqu e s e m p re existiu q u e m o criou" (De civ. Dei, X , 31). N esse caso , o b v ia m e n te , p e rm a n e ­ ceriam in alte rad as as características fu n d a m e n ­ tais I a, 2a e 3a da n o ç ão : S. T o m á s, p o rta n to , adm ite q u e o início do m u n d o no te m p o é

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CRIAÇÃO p u ra m atéria de fé (S. Th, I, q. 46, a. 2). Essa d o u trin a se ria re p r o d u z id a , se m v a ria n te s n o táv eis, p o r D u n s Scot (Rep. Par, II, d. 1, q. 3, n s 8). É esse o p ara d ig m a do u so d essa n o ç ão pela filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a . F re q ü e n ­ te m e n te , os filósofos q u e se serv iram d essa n o ­ ção d eram m aio r ên fase a u m a ou a outra de s u a s características, ou ac re sc en ta ram algum a característica q u e eqüivale à sua negação. D escar­ tes insistiu na co n tin u id ad e da C , o b serv a n d o q u e , se D eu s p ara sse de criar, o m u n d o d e i­ xaria de existir (Discours, IV; Princ.phil, I, § 21): o b se rv a ç ã o q u e n ão é n ov a (ach a-se em FÍLON, AH. leg, I, 5) e re a p a re c e co m freq ü ên cia na Id a d e M o d ern a. O u tro s, p o rém , co m o H egel, in sistem n a necessidade da C , co m o q u e, p o ­ rém , o c o n ce ito é im p licitam e n te n e g a d o (Philosophie derReligion, ed. G lo ck n er, II, p. 51 ss.). M as H eg el e, em geral, o id ealism o ro m â n ­ tico su b stitu íram a n o ç ão de C. p o r o u tro co n cei­ to e la b o ra d o p o r S pino za: a d eriv a çã o racion al e n ec essária d as co isas, co m o m o m e n to s ló g i­ cos, d e seu p rin cíp io , d eriv a çã o q u e S pino za identificara co m a inferência p ela qual "da n atu ­ reza do triân g u lo se g u e -se q u e os três ân g u lo s são ig u ais a d ois ân g u lo s reto s", ou seja, co m a n ecessid ad e g eo m étrica (Et, I, 17, scol.). D esde o início do séc. X IX , através do id ealism o ro ­ m ân tico e, d e p o is, do p o sitiv ism o ev o lu cio nista, d e se n v o lv e -se o u tra h ip ó te se a re sp e ito d a o rig em do m u n d o , m u ito d iferen te da h ip ó ­ te se da C . Seu p re s su p o s to é a n o ç ã o de pro­ gresso q u e o Ilu m in ism o sete ce n tista elab o rara em relação ao m u n d o h u m a n o e q ue o séc. X IX e s te n d e ao m u n d o n atu ral. E ssa n o ç ão d eu e n ­ sejo à n o ç ã o de desenvolvimento dialético, por u m la d o , e à de evolução ou desenvolvimento natural, p o r o u tro . A p rim eira foi u tilizada p elo id ealism o ro m ân tico ; a se g u n d a , p elo p o sitiv is­ m o. A m b as su b stitu em o fiat criad o r in stan ­ tâ n e o p e la formação gradual e progressiva. A m b as lev am a co n sid e rar co m o "m ítica" a p ró ­ pria n o ç ã o d e criação . N a re a lid a d e , estã o em an títe se direta co m as características fu n d a m e n ­ tais d essa n o ção . D esen v o lv im en to (dialético) e ev o lu ç ã o significam c a u saç ão n ecessária, m ed iata, p ro g re ssiv a e, se n ão te m p o ra l, p elo m e n o s co in c id e n te co m a su c e ssã o te m p o ra l. A C. c o n tin u o u c o n stitu in d o a altern ativa "m í­ tica", "m etafísica" ou "religiosa" da e x p lic aç ão do m u n d o , e m b o ra m u itas v e z e s a h ip ó te se de ev o lu çã o e d e d e se n v o lv im e n to se m o strasse tão "mítica" ou "m etafísica" q u a n to a da criação.

CRIAÇÃO

Apesar de tudo, a noção de C. não foi aban­ donada. Reaparece sempre que se apresenta uma concepção teísta ou deísta do mundo, como muitas vezes acontece, por obra do espiritualismo moderno (p. ex., com Whitehead, que insiste no caráter finalista da vida [Nature and Life, 1934, II]. Também na ciência, nestes últimos tempos, às vezes é apresentada como "fato", independentemente de qualquer cren­ ça metafísica ou religiosa. Alguns astrônomos modernos julgam que a expansão do universo (cujo sinal é o deslocamento do espectro das galáxias para o vermelho) exige, para que o estado do universo permaneça uniforme, a C. contínua de nova matéria. Chegou-se a calcular que a proporção de matéria criada é grosso modo equivalente à massa de um átomo de hi­ drogênio para cada litro de volume e para cada bilhão de anos (BONDI, Cosmology, 1952; cf. M. K. MUNITZ, Space, TimeandCreation, 1957, pp. 154 ss.). É certo que se pode pôr em dúvida a oportunidade científica do uso desse conceito nesse caso (v. COSMOLOGIA): de qualquer forma, está claro que o significado dele não tem aqui as características específicas que o identificam como forma de causaçâo, pois não faz re­ ferência a uma causa, isto é, a um criador. Pela forma como esse termo é usado por esses cosmólogos, significa apenas "aparição sem causa". Em sentido igualmente genérico, empregase essa palavra muito mais freqüentemente para corrigir ou retificar o conceito de evolução e para introduzir nesta os caracteres da imprevisibilidade, liberdade e novidade. Nesse sen­ tido, Bergson falou de "evolução criadora", para ressaltar a diferença e a complexidade das li­ nhas evolutivas e das formas orgânicas, bem como "a multiplicidade quase infinita de análi­ ses e sínteses entrelaçadas" que pressupõem: diferença e multiplicidade que o homem pode captar diretamente em si mesmo, na experiên­ cia da ação. "Que a ação cresce avançando, que ela cria à medida que progride, cada um de nós pode constatar quando se vê agindo" (Évol. créatr, 11a ed, 1911, pp. 270-71). Outros falaram, em sentido análogo, de "evolução emergente" (p. ex., C. LLOYD MORGAN em Emergent Evolution, 1923). Esse sentido da palavra, que dá ênfase às novidades e à imprevisibilidade do resultado de um processo, está implí­ cito nos usos dessa palavra que a relacionam com atividades humanas, como quando se fala, p. ex., de C. "artística", "literária" ou "científica".

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CRISE

Embora S. Tomás excluísse a C. dos processos da natureza e da arte (S. Th, I, q. 45, a. 8), o uso desse termo para qualificar esses processos tornou-se comum tanto em linguagem filosófi­ ca quanto corrente. Mas tudo o que esse uso implica é, precisamente, a acentuação do ca­ ráter de novidade imprevisível que têm alguns produtos das atividades humanas ou mesmo dos processos naturais, sem que, obviamen­ te, com esse uso o termo faça qualquer referên­ cia à significação precisa elaborada pela filoso­ fia medieval. CRIACIONISMO. V. TRADUCIANISMO. CRISE (in. Crisis; fr. Crise-, ai. Krisis; it. Crisi). Termo de origem médica que, na medi­ cina hipocrática, indicava a transformação deci­ siva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em sentido fa­ vorável ou não (HIPÓCRATES, Prognosticon, 6, 23-24; Epidemias, I, 8, 22). Em época recente, esse termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social. Na Introdução aos trabalhos científicos do século XIX,(1807), St.-Simon afir­ mava que o progresso necessário da história é dominado por uma lei geral que determina a sucessão de épocas orgânicas e de épocas crí­ ticas. A época orgânica é a que repousa num sistema de crenças bem estabelecido, desen­ volve-se em conformidade com ele e progride dentro dos limites por ele estabelecidos. Mas a certa altura, esse mesmo progresso provoca a mudança da idéia central sobre a qual essa época está apoiada e determina, assim, o iní­ cio de uma época crítica. Desse modo, p. ex., a idade orgânica medieval foi posta em C. pela Reforma e, sobretudo, pelo nascimento da ciência moderna. Comte repetiu essa distinção (Discours sur Vesprit positif § 32). Para St.Simon, assim como para Comte e muitos positi­ vistas, toda a época moderna é de C, no senti­ do de não ter ainda atingido sua organização definitiva em torno de um princípio único, que deveria ser dado pela ciência moderna, mas, inevitavelmente, encaminha-se para a realiza­ ção dessa organização. Esse diagnóstico depois foi compartilhado por todos os filósofos e polí­ ticos que se portaram como profetas de nosso tempo. Tanto os que acham que a nova e indefectível era orgânica será o comunismo quanto os que acham que essa época será ca­ racterizada pelo misticismo estão de acordo em diagnosticar a "C." da época presente e em indi­ car seu caráter na falta de "organicidade", ou

CRITÉRIO

seja, de uniformidade nos valores e nos modos de vida. A crença de que essa uniformidade existiu e de que deverá inevitavelmenbte re­ tornar é o pressuposto do sucesso alcançado pela noção de C, como se vê num dos textos em que ela foi analisada com mais brilhan­ tismo, O esquema das crises (1933), de Ortega y Gasset. Mas o ideal de uma época orgânica, em que não haja incerteza nem luta, é, por sua vez, um mito consolador que serve de escape para as gerações que perderam o sentido de segurança, visto que nenhuma época chamada orgânica, nem mesmo a Idade Média, foi isen­ ta de conflitos políticos e sociais insolúveis, de lutas ideológicas, de antagonismos filosóficos e religiosos, que testemunham a fundamental incerteza ou ambigüidade dos valores da épo­ ca. Quando, de resto, o diagnóstico da C. é acompanhado pelo anúncio cio inevitável ad­ vento de uma época orgânica qualquer, essa noção revela claramente seu caráter de mito pragmático, ideológico ou político. CRITÉRIO (gr. Kputípiov; lat. Criterium; in. Criterion;fr. Critère, ai. Kriterium; it. Critério). Uma regra para decidir o que é verdadeiro ou falso, o que se deve fazer ou não, etc. O pro­ blema de um C. capaz de dirigir o homem apresentou-se só no período pós-aristotélico da filosofia grega, quando a filosofia assumiu cará­ ter predominantemente prático. Assim, para Epicuro a sensação era o C. da verdade e o pra­ zer sensível, o C. do bem (DIÓG. L, X, 31). Para os estóicos, a representação cataléptica era o C. da verdade (Ibid, VII, 54) e o viver segundo a natureza era o C. da conduta (Ibid., VII, 87). Por sua vez, os cépticos, negando a validade desses C. estabeleceram como seu próprio C. a adesão aos fenômenos e a vida segundo os costumes, as leis e as instituições tradicio­ nais, bem como segundo suas próprias afei­ ções (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. h y p , 21-24). Está claro que toda filosofia, ainda quando não ela­ bora uma doutrina específica a respeito, tende sempre a apresentar ao homem um critério para dirigir suas opções, especialmente as que têm importância decisiva em sua vida. Kant usou, em vez de C, a palavra cânon (v.). CRÍTICA (in. Critique, fr. Critique, ai. Kritik, it. Critica). Termo introduzido por Kant para designar o processo através do qual a razão empreende o conhecimento de si: "o tribunal que garanta a razão em suas pretensões legíti­ mas, mas condene as que não têm fundamen­ to". A C. não é, pois, "a C. dos livros e dos sis­

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CRITICISMO

temas filosóficos, mas a C. da faculdade da ra­ zão, em geral, com respeito a todos os conheci­ mentos aos quais ela pode aspirar indepen­ dentemente da experiência"; portanto, também é "a decisão sobre a possibilidade ou impossibili­ dade de uma metafísica em geral e a determi­ nação tanto de suas fontes quanto de seu âmbi­ to e de seus limites" (Crít. R. Pura, Pref. à Xed.). A tarefa da C, portanto, é ao mesmo tem­ po negativa e positiva: negativa enquanto res­ tringe o uso da razão; positiva porcjue, nesses limites, a C. garante à razão o uso legítimo de seus direitos (Ibid., Pref. à 2- ed.). A C. assim entendida afigurava-se a Kant como uma das tarefas de sua época ou, como diz ele habitual­ mente, da "Idade Moderna"; de fato, constituía a aspiração fundamental do Iluminismo, que, decidido a submeter todas as coisas à C. da ra­ zão, nào se recusava a submeter a própria razão à C, para determinar seus limites e eli­ minar de seu âmbito os problemas fictícios (v. ILUMINISMO). Pode-se dizer que quem abriu esse caminho ao Iluminismo foi um de seus maiores inspiradores, Locke; este, segundo palavras contidas na Epístola ao leitor, a qual antecede o Ensaio sobre o entendimento humano, con­ cebeu o Ensaio com a finalidade de "examinar as capacidades próprias do homem e verificar quais objetos seu intelecto é capaz ou não de considerar". O Iluminismo adotou esse ponto de vista (v. COISA-F.M-SI). O título que Kant pen­ sara dar à Crítica da Razão Pura, ou seja, Os limi­ tes da sensibilidade e da razão (carta a Marcos Herz, de 7-VI-1771) exprime bem o significado que ficou ligado à palavra "C". Contra esse sig­ nificado, Hegel objetou que "querer conhecer antes de conhecer é absurdo, tanto quanto o é o prudente propósito de quem quer aprender a nadar antes de se arriscar a entrar na água" (Ene, § 10). Mas essa objeção é infundada, pois a C. kantiana não age no vazio nem precede o conhecimento, mas atua sobre os conhecimen­ tos de que o homem efetivamente dispõe, com o fim de determinar as condições de sua vali­ dade. Não se trata, portanto, de aprender a na­ dar fora da água, mas de analisar os movimen­ tos do nado para determinar as possibilidades efetivas que ele oferece, comparando-as às outras, fictícias, que levariam ao afogamento. CRÍTICA, HISTÓRIA. V. A RQ U EO LÓ G ICA , HISTÓRIA. CRÍTICA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B.

CRITICISMO (in. Criticism, fr. Criticisme, ai. Kritízísmus; it. Criticismó). Doutrina de

CROCODILO, DILEMA DO K ant, n os p o n to s b ásico s p elo s q u ais agiu na fi­ losofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a , e q u e p o ­ d em ser assim re su m id o s: Ia F o rm u laç ão crí­ tica (v.) do p ro b le m a filosófico e, p o rta n to , c o n d e n a ç ã o da m etafísica co m o esfera de p ro ­ b lem a s q u e estã o além das p o ssib ilid a d e s da ra zã o h u m a n a . 2- D eterm in a çã o da tarefa da filosofia co m o reflex ão s o b re a ciên cia e, em g eral, so b re as ativ id ad es h u m a n a s, a fim de d ete rm in a r as co n d iç õ e s q u e g a ra n te m (e lim i­ tam ) a v a lid a d e da ciên cia e, em g eral, das ativ id ad es h u m a n a s. 3e D istin ção fu n d am en tal, no d o m ín io do c o n h e c im e n to , en tre os p ro b le ­ m as relativos à origem e ao d esen v o lv im en to do c o n h e c im e n to no h o m e m e o p ro b le m a da v a lid a d e do p ró p rio c o n h e c im e n to , isto é, d is­ tin ç ão en tre o d o m ín io da p sico lo g ia (K ant d is­ se "fisiologia", Crít. R. Pura, § 10) e o dom ínio lóg ic o -tra n sc e n d e n ta l ou ló g ico -o b jetiv o , o n d e tem lu g ar a q u e stã o de iure d a v a lid a d e do c o n h e c im e n to , in so lú v el no te rre n o de facto. Essa d istin ção eq ü iv ale à d e sc o b e rta da d im e n ­ são ló g ico -o b jetiv a do c o n h e c im e n to q u e d e ­ v eria in sp irar a filosofia d os v alo re s, a E scola de M arburgo, o logicism o de Frege e, através de B o lzan o , a fe n o m en o lo g ia de H usserl. E m g e ­ ral, p o d e -se d izer q u e a p o lêm ic a da m a te m á ­ tica e da lógica m o d e rn a co n tra o psicologismo (v.) tem o rig em h istórica no C. k an tian o ; 4B C o n ceito de m o ra lid a d e fu n d a d a no im p erati­ v o ca te g ó rico e c o n ce ito d e im p erativ o c a te g ó ­ rico co m o form a da razão em seu u so p rático. E sses p o n to s c o n stitu em as características co m u n s de to d as as fo rm as d e C. e de n eo c ritic ism o . N ão c o n s titu e m , p o ré m , tra ç o s característico s ou d o m in a n te s do C. os fu n d a­ m en to s d a d o u trin a k an tia n a de arte, teleologia e religião; so b re eles, v. v e rb e te s c o rre s p o n ­ d en tes.

CROCODILO, DILEMA DO. V DILEMA CRONÓTOPO. F oi esse o n o m e d ad o p o r G io berti, em Protologia (I, p. 453-54), à u n id a ­

d e d e e sp a ç o e te m p o p u ro s, isto é, in tu íd o s p elo P e n sa m e n to D iv in o. O C. é D eu s m esm o , p o rq u e é a p ró p ria p o ssib ilid a d e infinita da criação; no p e n sa m e n to d iv in o , é u m a e sp écie d e m o d e lo e te rn o d o te m p o e do e sp aço . CRUCIAL (lat. Instantia crucis). O u so c o ­ m u m q u e se faz d esse adjetivo em e x p re ssõ e s co m o "experiência C ", "exem plo C ", "p erío do C ", no sen tid o g en érico de decisivo, rem o n ta a B acon (Nov. Org, II, 36), q u e d eu o n o m e de instâncias C. (das cruzes q u e se erigiam n as en ­ cru z ilh a d a s p ara in d icar a se p a ra ç ã o d as estra­

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CULPA das) ao s e x p e rim e n to s q u e p erm item esco lh er a h ip ó te se v e rd a d e ira e n tre as várias p o ssív eis p ara a e x p lic aç ão d e u m fe n ô m e n o . CUIDADO (lat. Cura; ai. Sorge, it. Cura). A p re o c u p a ç ã o , q u e , s e g u n d o H e id e g g e r, é o p ró p rio ser do ser-aí, isto é, da ex istên cia. O C. é a to ta lid ad e d as estru tu ras o n to ló g ic as do seraí e n q u a n to se r-n o -m u n d o : em o u tro s term o s, c o m p re e n d e to d as as p o ssib ilid ad es da ex istên ­ cia q u e estejam v in c u la d a s às co isas e aos o u tro s h o m e n s e d o m in a d a s p ela situ a ç ã o . H eid e g g er le m b ra a fábula 220 de H ig in o com o "um te ste m u n h o p ré-o n to ló g ico " da su a d o u tri­ na do c u id ad o . Essa fábu la te rm in a co m estas p alav ras: "C om o foi cuidado q u e m p rim eiro im ag in o u o h o m e m , q u e fique co m ele en ­ q u a n to ele viver" (Sein undZeit, § 42). Todavia, H eidegger ad v erte: "Essa e x p re ssã o n ad a tem a v er co m 'aflição', 'tristeza', 'p re o c u p a ç õ e s' da v id a co m o se re v e la m o n tic a m e n te em cada ser-aí. A o co n trário , é o n tica m en te possível algo co m o 'd e s p re o c u p a ç ã o ' e 'aleg ria', ju sta m e n te p o rq u e o ser-aí, o n to lo g ic a m e n te e n te n d id o , é c u id ad o (.cura); co m o ao ser-aí p e rte n c e de m o d o esse n cia l o se r-n o -m u n d o , seu ser em re la ção co m o m u n d o é e sse n c ia lm e n te o cu ­ p ação " (Ibid, § 12). CULPA (lat. Culpa; in. Guilt; fr. Culpabilité, ai. Schuld; it. Colpa). O rig in a ria m en te, term o ju ríd ic o p ara in d icar a infração de u m a norm a co m etid a "in v o lu tariam en te", sem p rem ed itação , em co n tra p o siç ã o a d elito (dolus), q u e é a tra n sg re ssã o p re m e d ita d a . Eis co m o K ant ex­ p rim e a q u e stão : "U m a tra n sg re ssã o in v o lu n ­ tária m as im p u táv el ch am a-se culpa; u m a tran s­ g ressã o v o lu n tá ria (unida à co n sc iên c ia de que se trata realm en te de u m a tran sg ressão ) cham ase delito" (Met. der Sitten, I, Intr. § 4). Para H eid e g g er, a cu lp a é "um m o d o de ser do seraí", u m a d ete rm in a ç ã o essen cial da existência h u m a n a e n q u a n to tal. D istin g u e d ois significa­ d o s d e ser c u lp a d o (c o rre sp o n d e n te s ao s dois sign ificad os do ai. Schuld, q u e significa dívida e cu lp a): estar em d éb ito co m alg u ém e ser cau sa, au to r ou re sp o n sá v e l p o r alg u m a coisa. "Nessa form a de 'ter culpa' de algum a coisa, po­ d e-se 'ser c u lp a d o ' sem 'estar em d é b ito ' com alg u ém ou ser-lh e d ev ed o r. E, v ice-v ersa, podese d ev er algo a alg u ém sem ter C. d isso (ser su a cau sa)" (Sein undZeit, § 58). E m sentido an á lo g o , J a sp e rs co lo co u a C. en tre as situaçõ es-lim ite da ex istên cia h u m a n a , isto é, entre as situ a ç õ e s a q u e o h o m e m n ão p o d e fugir (P M ., II, p p . 246 ss.).

CULTURA

CULTURA (in. Culture, fr. Culture, ai. Kultur, it. Cultura)./E sse te rm o tem d o is significa­ dos b ásicos. N o p rim eiro e m ais an tigo , signifi­ ca a formação do h o m e m , su a m elh o ria e seu refinam ento. F. B ac o n co n sid e rav a a C. n esse sen tid o co m o "a g e ó rg ic a do e sp írito " {De augm. scient., VII, 1), e sc la re c e n d o assim a o ri­

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CULTURA

g u n d o lu g ar, o h o m e m só p o d ia re aliza r-se co m o tal na vida em co m u n id a d e , na polis- a Re­ pública d e P latão é a e x p re ssã o m áx im a da e s ­ treita ligação q u e os g reg o s estabeleciam entre a fo rm ação d o s in d iv íd u o s e a v id a da c o m u n id a ­ de; e a afirm ação de A ristó teles d e q u e o h o ­ m em é por natureza u m an im al p olítico tem o m esm o sign ificad o. M as n u m e n o u tro asp ecto , gem m etafórica d esse term o . N o s e g u n d o sig n i­ a n a tu re z a h u m a n a de q u e se fala n ão é u m ficado, in d ica o p ro d u to d essa fo rm a çã o , ou d ad o , u m fato, u m a re alid ad e em p írica ou m ate­ seja, o co n ju n to d o s m o d o s de v iv er e de p e n ­ rial já ex istente, in d e p e n d e n te m e n te do esforço sar cu ltiv ad os, civilizad o s, p o lid o s, q u e ta m ­ de re aliza çã o q u e é a cu ltura. S ó ex iste co m o bém co stu m a m ser in d ica d o s p elo n o m e d e civílízação (v.). A p a ssa g e m do p rim e iro p ara o fim ou term o do p ro cesso de form ação cultural; é, em o u tro s te rm o s, u m a re a lid a d e su p e rio r às seg un do sign ificad o o co rre u no séc. XV III p o r co isas ou ao s fatos, é u m a idéia no sen tid o obra da filosofia ilum inista, o q u e se n o ta b em p latô n ic o , u m ideal, u m a forma q u e os h o ­ neste trec h o de K ant: "N um ser racio n al, cu ltu ­ m en s d e v e m p ro c u ra r realizar e en c arn ar em ra é a c a p a c id a d e de esc o lh e r se u s fins em g e ­ si m esm o s. ral (e p o rta n to de ser livre).; P o r isso, só a C. pode ser o fim ú ltim o q u e a~ natureza tem c o n ­ Esse c o n c e ito clássico de C. co m o p ro cesso dições de a p re se n ta r ao g ê n e ro h u m a n o " (Crít. d e fo rm ação esp ecific am e n te h u m a n a ev id en ­ do Juízo, § 83)- C om o "fim", a C. é p ro d u to te m e n te ex cluía q u a lq u e r ativ id ad e infra-hu(mais q u e p ro d u zir-se) d a "geórgica da alm a". mana ou ultra-humana. E xcluía, em p rim eiro N o m esm o s e n tid o , H eg el dizia: "Um p o v o faz lugar, as ativ id ad es utilitárias: artes, ofícios e, progressos em si, te m seu d e se n v o lv im e n to e em g eral, o tra b a lh o m an u al q u e se indicava seu crep úscu lo . O q u e se en c o n tra aqui, s o b re ­ d e p re c ia tiv a m e n te p elo term o banausia (v.), tudo, é a categ o ria d a C , de su a e x a g e ra ç ã o e q u e cabia ao escrav o ("in strum ento an im ado ") de sua d eg en eraçã o : p ara um p ov o, esta últim a p o rq u e n ão d istin g u ia o h o m e m do anim al, é p ro d u to ou fonte d e ruína" (Pbil. der Gesq u e ta m b é m age no se n tid o d e o b ter seu ali­ chichte, ed. L asson, p. 43). m en to e satisfazer às o u tras n ec essid ad es. Ex­ 1. N o significado re fe ren te à fo rm ação da cluía ta m b é m q u a lq u e r ativ id ad e ultra-humana, q u e n ão estivesse v o ltad a p ara a realização pessoa h u m a n a in d iv id u al, essa p alav ra co r­ do h o m e m no m u n d o , m as p ara u m d estin o resp o nd e ain d a hoje ao q u e os g reg o s c h a m a ­ u ltra te rre n o . P elo p rim e iro a sp e c to , o ideal vam paidéia e q u e os latin o s, na é p o c a de clássico de C. foi aristocrático; p elo se g u n d o , Cícero e V arrão, in d icav am co m a p alav ra humanitas: e d u c a ç ã o do h o m e m co m o tal, ou foi naturalista-, p o r am b o s, foi contemplativo e viu na "vida teó rica", in te ira m en te d ed ica d a seja, ed u cação d ev id a às "boas artes" p eculiares à b u sca da sa b e d o ria su p erio r, o fim ú ltim o da do h o m em , q u e o d istin g u e m d e to d o s os cu ltura. N a Id a d e M édia esse c o n ce ito foi p ar­ outros an im ais (AULO GÉLIO, Noct. Att, X III, cialm en te c o n se rv a d o e m o dificad o: m an te v e 17). A s b o a s artes eram a p o e sia, a elo q ü ê n c ia , se o caráter aristo crático e co n tem p la tiv o , m as a filosofia e tc , às q u a is se atrib u ía v a lo r e sse n ­ tran sfo rm o u -se ra d ic a lm e n te seu caráter n a tu ­ cial para aquilo q ue o h om em é e d ev e ser, p o r­ ralista. A s artes do Trívío (gram ática, retórica, tanto para a c a p a c id a d e d e fo rm ar o h o m e m dialética) e do Quadrívio (aritm ética, g e o m e ­ verdadeiro, o h o m e m n a su a form a g e n u ín a e tria, astro n o m ia, m ú sica), q u e aind a eram ch a­ perfeita. Para os g reg o s, a C. n esse sen tid o foi a m ad as de "liberais" (seg u nd o o co n ceito g rego, busca e a realização q ue o h o m e m faz de si, isto as ú n ic a s d ig n a s d o s h o m e n s livres), co n sti­ é, da v erd ad e ira n atu re za h u m a n a . E tev e dois tu ía m a b ase e o p re â m b u lo da C . m ed iev al, caracteres constitutivos: Ia estreita c o n ex ão com cujo o bjetivo foi, p o rém , a p re p a ra ç ã o do h o ­ a filosofia, na q ual se in clu íam to d a s as form as m em p ara os d e v e re s relig io so s e p ara a v id a da investigação; 2e estreita c o n e x ã o co m a v id a u ltraterren a. O in stru m en to p rin cip al d essa p re ­ social. E m p rim eiro lugar, p ara os g reg o s, o h o ­ p a ra ç ã o foi a filosofia, à q ual se atrib u iu a fu n ­ m em só p o d ia realizar-se co m o tal atrav és do ção esp ecífica de to rn a r acessív eis ao h o m e m conhecim ento de si m esm o e d e seu m u n d o , as v e rd a d e s re v e la d a s p ela relig ião , de fazê-lo portanto m ed iante a b usca da v e rd a d e em to d o s c o m p re e n d e r essa s v e rd a d e s n a m e d id a de os dom ínios q u e lh e d issessem resp eito . E m s e ­

CULTURA suas p o ssib ilid ad es intelectuais, de fo rn ecer-lh e as arm as p ara a defesa d essa s v e rd a d e s co n tra as te n ta ç õ e s da h eresia e da d escre n ç a. A ssim , a filosofia acab o u e x e rc e n d o fu n ção e m in e n te na C. m ed ie v a l, m as b e m d ife re n te da q u e ex ercera no m u n d o g reg o : d eix o u d e ser o c o m p le x o de in v estig aç õ e s a u tô n o m a s q u e o h o m e m o rg an iza e d iscip lina co m os in stru ­ m en to s n atu rais de q u e d isp õ e (sen tid o s e in te­ ligência) para ter v alo r su b altern o e instrum ental (Philosophia ancilla theologiae), para a co m ­ p re e n sã o , a d efesa e, s e m p re q u e p o ssív el, a d e m o n stra ç ã o da v e rd a d e relig io sa. S ó m ais ta rd e , a p a rtir do séc. X II, c o m e ç o u a re i­ vindicar, ao lado d essa função in stru m en tal, um c a m p o p ró p rio e esp ecífico d e in v estig ação , se b em q ue, ta m b é m este, su b m etid o às regras da fé. C o n tu d o p e rm a n e c e ra m n a Id a d e M édia o c a rá te r a ris to c rá tic o e o c a rá te r c o n te m ­ p lativ o, típ ico s do ideal clássico: este ú ltim o , aliás, a c e n tu o u -se e este n d e u -se co m o p re p a ra ­ ção e p re n u n c io da c o n te m p la ç ã o beatífica da alm a q u e se alçou à p átria celeste. O R en as­ cim en to , na ten tativ a d e re d e sc o b rir o significa­ do g e n u ín o do ideal clássico d e C , q uis re s ­ ta b e le c e r seu ca rá te r n atu ra lista : c o n c e b e u a C. co m o fo rm ação do h o m e m em seu m u n d o , co m o a fo rm ação q u e p erm ite ao h o m e m v iv er da form a m elh o r e m ais perfeita no m u n d o q u e é seu. A p ró p ria relig ião, s e g u n d o esse p o n to de v ista, é e le m e n to in te g ran te da C. n ão p o r­ q u e p re p a re para o u tra v id a, m as p o rq u e e n si­ na a v iv er b em nesta. O R en ascim en to , além d isso , m odificou o caráter c o n tem p la tiv o do ideal clássico, in sistin do no caráter ativo da "sa­ b ed oria" h u m an a. Pico delia M irandola e C arlos B ovillo insistiram no c o n ce ito de q u e é através d a sa b e d o ria q ue o h o m e m ch eg a à realização co m p leta e to rn a-se u m microcosmo no q ual o p ró p rio macrocosmo e n c o n tra a p erfeição . "O s ap ien te ", diz B ovillo {De sapiente, 8), "con­ quista-se, to m a p o sse e co n tin u a n a p o sse de si m esm o , ao p asso q u e o in sip ien te p e rm a n e c e d e v e d o r da n atu reza, o p rim id o p elo h o m e m su b stan cia l [isto é, p elo h o m e m q u e é sim ples coisa ou natureza] e ja m a is p e rte n c e a si m es­ m o." D esse p o n to de vista, a vida ativa já n ão é estran h a ao ideal de C; co m a v id a ativa, o tra­ b alh o p assa a fazer p arte d esse ideal, se n d o , p ois, re sg a ta d o de seu caráter p u ra m e n te u tili­ tário e servil. O R en ascim en to , co n tu d o , m a n te ­ v e o caráter aristo crático da C : ela é "sap iên ­ cia" e, como tal, reserv ad a a poucos.- o sap ien te d estaca-se do re stan te da h u m a n id a d e , tem seu

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CULTURA p ró p rio status m etafísico e m o ral, d iferen te dos o u tro s h o m e n s. A p rim eira ten tativ a de elim in ar o caráter aristo crático da C. c o u b e ao Ilu m in ism o . Este te v e d ois asp e c to s essen ciais: em p rim eiro lu­ gar, p ro cu ro u este n d er a crítica racion al a to d os os o b jeto s p o ssív eis de in v estig ação e c o n sid e ­ rou, p o rtan to , co m o erro ou p rec o n c eito tu d o o q u e n ão p a ssa sse p elo crivo d essa crítica. E m s e g u n d o lu g ar, p ro p ô s-se a difusão m áx im a da C , q u e d eix o u d e ser co n sid e rad a p atrim ô n io d o s d o u to s p ara ser in stru m en to d e re n o v aç ão da v id a social e in d iv idu al. A Enciclopédia fran­ cesa foi a m aior ex p re ssã o d essa se g u n d a te n ­ d ên cia, m as foi so m e n te u m d os m eio s pelos q u ais o Ilu m in ism o p ro c u ro u difu n dir a C. en ­ tre to d o s os h o m e n s e to rn á-la u n iv ersal. Esse ideal de u n iv e rsa lid a d e da C. p e rm a n e c e u , ca­ ra c te riz a n d o , até n o s s o s d ia s, u m a s p e c to essen cial da C , n ão o b sta n te a p o d e ro sa in­ fluência do R om antism o; este, p o r seu caráter re ac io n á rio e antiliberal, p ro cu ro u de v árias for­ m as re to rn a r ao c o n ce ito aristo crático de cul­ tu ra. E n tretan to , d o m ín io da C. alargava-se: as n o v as d iscip lin as científicas q u e se form a­ v am e ad q u iria m au to n o m ia m o strav am -se ipso fado co m o n o v o s e le m e n to s co n stitu tiv o s do ideal d e cu ltura, ele m e n to s in d isp en sáv eis para a fo rm ação de u m a v id a h u m a n a eq u ilib rad a e rica. "Ser culto" já n ão significava d o m in a r ap e­ n as as artes lib erais da trad iç ão clássica, m as c o n h e c e r em certa m ed id a a m atem ática, a físi­ ca, as ciên cias n atu rais, além d as disciplinas h istóricas e filológicas q u e h av iam form ado. O c o n ce ito de C. c o m eç o u e n tã o a significar "e n ciclo p ed ism o ", isto é, c o n h e c im e n to geral e su m á rio d e to d o s os d o m ín io s do saber. A p artir do início d este sécu lo p erceb eu se a insu ficiên cia d esse ideal en ciclo p ed ista, q ue, no en tan to , era fruto da m ultiplicação e da e sp e c ifiç â o d o s c a m p o s d e p e s q u is a e de su a s re sp ec tiv a s d iscip lin as. E m 1908, Croce lam en tav a q u e n os cin q ü e n ta an o s anteriores h o u v e sse p re v a le c id o "o tip o do h o m e m que tem n ão p o u co s conhecimentos, m as n ão tem o conhecimento, q u e fica lim itado a p e q u e n o cír­ cu lo de fatos ou se p e rd e em m eio a fatos dos m ais v a ria d o s tip o s, e q u e, assim lim itado ou p e rd id o , co n tin u a p riv ad o de u m a diretriz ou, co m o se diz, de u m a fé". C roce p o rém , achava q u e esse m al n ão era d ev id o à especificação d as d iscip lin as, m as ao p re d o m ín io do positi­ v ism o , q u e privilegiara a C. "naturalista e m ate­ m ática". E p ro p u n h a co m o so lu ç ão u m a C. que

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fosse "harmoniosa cooperação entre Filosofia e História, entendidas no seu significado am­ plo e verdadeiro". Mas essa solução era suge­ rida pelo espírito polêmico antípositivísta e pela orientação típica da filosofia crociana, na qual a C. científica e o próprio espírito científi­ co não encontram lugar. Na realidade, o pro­ blema da C. agravou-se ainda mais nos cin­ qüenta anos transcorridos após o diagnóstico de Croce. Não só o processo de multiplicação e especificação das correntes de pesquisa e, portanto, das disciplinas (naturalistas e nàonaturalistas) ampliou-se até assumir propor­ ções gigantescas, como também a crescente industrialização do mundo contemporâneo tor­ na indispensável a formação de competências específicas, possíveis apenas por meio de trei­ namento especializado, que confina o indiví­ duo num campo extremamente restrito de ati­ vidade e estudo. O que a sociedade mais exige de cada um dos seus membros é o desempe­ nho na tarefa ou na função que lhe foi confia­ da; e o desempenho não depende tanto da posse de uma C. geral desinteressada quanto de conhecimentos específicos e aprofunda­ dos em algum ramo particularíssimo de deter­ minada disciplina. Ora, essa situação, determina­ da por condições histórico-sociais cuja mudan­ ça ou cujo fim não é possível prever, não po­ de ser ignorada ou minimizada por aqueles que se ocupam do problema da cultura. Por­ tanto, é perfeitamente inútil erigir-se, com espí­ rito profético, contra ela, contrapondo-lhe o ideal clássico de C. em sua pureza e perfeição, como formação desinteressada do homem aris­ tocrático para a vida contemplativa. Por outro lado, também seria inútil ignorar ou minimizar os defeitos gravíssimos de uma C. reduzida a puro treinamento técnico em determinado campo e restringida ao uso profissional de co­ nhecimentos utilitários. É óbvio que dificilmen­ te uma coisa dessas poderia ser chamada de "C", porque esta palavra designa, como se viu, um ideal de formação humana completa, a rea­ lização do homem em sua forma autêntica ou em sua natureza humana. Competências espe­ cíficas, habilidades particulares, destreza e pre­ cisão no uso dos instrumentos, materiais ou conceituais, são coisas úteis, aliás indispensá­ veis, à vida do homem em sociedade e da so­ ciedade no seu conjunto, mas não podem, nem de longe, substituir a C. entendida como for­ mação equilibrada e harmônica do homem como tal. E, de fato, a experiência revela todos

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os dias os inconvenientes gravíssimos da edu­ cação incompleta e especializada, sobretudo nos países onde, por fortes exigências sociais, ela foi levada mais a fundo. O primeiro incon­ veniente é o permanente desequilíbrio da per­ sonalidade, que pende para uma única direção e fica centrada em torno de poucos interesses, tornando-se incapaz de enfrentar situações ou problemas que se situem um pouco além des­ ses interesses. Esse desequilíbrio, já gravíssimo do ponto de vista individual (pode produzir, como de fato muitas vezes produz, em certos limites, diversas formas de neuroses), também é grave do ponto de vista social, pois impede ou limita muito a comunicação entre os ho­ mens, fecha cada um em seu próprio mundo restrito, sem interesse nem tolerância por aque­ les que estão fora dele. O segundo inconve­ niente é que ele não dá armas para enfrentar as exigências que nascem da própria especia­ lização das disciplinas. De fato, quanto mais a fundo é levada essa especialização, tanto mais numerosos se tornam os problemas que sur­ gem nos pontos de contato ou de intersecção entre disciplinas diferentes; e esses problemas não podem ser enfrentados no domínio de uma só delas e apenas com os instrumentos que ela oferece. Em outros termos, a própria especia­ lização, que é por certo uma exigência impres­ cindível do mundo moderno, requer, em certa altura de seu desenvolvimento, encontros e co­ laboração entre disciplinas especializadas di­ versas: encontros e colaboração que vão mui­ to além das competências específicas e exigem capacidade de comparação e de síntese, que a especialização não oferece. Certamente, esses inconvenientes e proble­ mas não têm a mesma gravidade em todos os países. Em geral, pode-se dizer que onde o de­ senvolvimento industrial e econômico foi mais rápido esses problemas são mais agudos. Mas mesmo onde isso não ocorreu, esses problemas acabam surgindo mais cedo ou mais tarde (previsivelmente, mais cedo do que tarde) com a mesma gravidade, no momento em que, devi­ do às crescentes exigências do desenvolvimen­ to científico e industrial, a especialização alcan­ çar um estágio adiantado. De qualquer forma, o problema fundamental da C. contemporânea é sempre o mesmo: conciliar as exigências da especialização (inseparáveis do desenvolvi­ mento maduro das atividades culturais) com a exigência de formação humana, total ou, pelo menos, suficientemente equilibrada. É para

CULTURA te n ta r so lu c io n a r esse p ro b le m a q u e hoje se d isc u te a n o ç ã o d e "C. g era l", q u e d e v eria ac o m p a n h a r to d o s os grau s e form as d e e d u ca­ ção , até a m ais esp ecializa d a . M as está claro q u e a so lu ç ã o do p ro b le m a será a p e n a s a p a ­ re n te e n q u a n to n ão se tiv er u m a idéia clara do q u e é "C. geral". N ão se trata, o b v ia m e n te , de co n tra p o r u m g ru p o d e d iscip lin as a o u tro e de im por, p. ex., as d iscip lin as h istó ricas ou h u m a n ística s co m o "C. g eral", em o p o siç ã o à esp ecialização d as disciplinas "naturalistas". Isso seria im p ró prio p rin cip alm en te p o rq u e m esm o as d iscip linas c h a m a d as "h um anistas" n ão esca­ p am à p rem ê n c ia da esp e c ia liz a ç ã o e ta m b é m ex ig em tre in a m e n to esp e c ia liz a d o p ara serem en te n d id a s e p ro fic u a m e n te cu ltiv ad as. T am ­ b ém é ó b v io q u e a C. g eral n ão p o d e ser c o n s ­ tituída p o r n o ç õ e s v azias e sup erficiais, q ue n ão su scitariam in te re sse e, p o rta n to , n ão c o n ­ trib u iria m p a ra e n riq u e c e r a p e rs o n a lid a d e do indivíduo e sua ca p acid a d e de co m u nicar-se co m os o u tro s. C o n tu d o , é p ossível in d icar de m an eira a p ro x im ad a as características d e u m a C. geral q u e , co m o a clássica paidéia, esteja p re o c u p a d a co m a fo rm ação to tal e au tên tica do h o m e m . E m p rim e iro lugar, é u m a C. "aber­ ta", ou seja, n ão fecha o h o m e m n u m âm b ito estreito e circu n scrito de id éias e cren ças. O h o m e m "culto" é, em p rim e iro lugar, o h o m e m d e esp írito ab e rto e livre, q u e sab e e n te n d e r as id éias e as cren ça s alh eias ain d a q u e n ão p o ssa aceitá-las ou re c o n h e c e r sua v alid a d e . E m s e ­ g u n d o lugar, e p o r c o n se q ü ê n c ia , u m a C. viva e form ativa d ev e estar ab erta p ara o futuro, m as an corad a no p assado . N esse sen tid o, o h o ­ m em culto é a q u e le q u e n ão se d esarv o ra d ia n ­ te do n o v o n em foge d ele , m as sab e co n sid e rálo em seu ju sto v alo r, v in c u la n d o -o ao p assa d o e e lu c id a n d o su a s se m e lh a n ç a s e d isp a rid a d e s. E m te rc eiro lugar, a C. se fu n da na p o ssib ilid a­ d e d e abstrações operacionais, isto é, na c a p a ­ cid a d e d e efetuar e sco lh as ou ab stra çõ es q u e p erm itam co n fro n to s, av aliaçõ es g lo b ais e, p o r­ ta n to , o rie n ta ç õ e s d e n atu re za re la tiv am e n te estável. E m o u tro s term o s: n ão há C. sem as idéias q u e c o m u m e n te ch a m a m o s "idéias g e ­ rais", m as estas n ão d ev em n em p o d e m ser im p o stas ou aceitas, arbitrária ou p assiv a m e n ­ te, p e lo h o m e m culto na form a de id eo lo g ias in stitu cio n alizad as; d ev em p o d e r form ar-se de m o d o a u tô n o m o , s e n d o c o n tin u a m e n te co m e n su ra d a s co m as s itu a ç õ e s reais. É claro q u e, p ara a fo rm ação de u m a C. co m essas ca­ racterísticas form ais, são ig u alm e n te n e c e ssá ­

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CULTURA rio s o e n fo q u e h istó ric o -h u m an ístic o do p assa­ do e o esp írito crítico e e x p e rim e n ta l d a p e s­ q u isa científica, assim co m o é n ec essário o u so d isc ip lin a d o e rig o ro so d as ab stra çõ es, p ró p rio da filosofia, além da c a p a c id a d e de fo rm ar p ro ­ je to s d e v id a a lo n g o p raz o , q u e ta m b é m é fruto do espírito filosófico. D esse p o n to d e vista, o p ro b lem a da C . g eral n ão se co lo ca com o fo rm u lação de u m curriculum d e e stu d o s ú n i­ co p ara to d o s, q u e c o m p re e n d a d iscip lin as de in fo rm ação g en érica , m as co m o o p ro b lem a de en c o n tra r, p ara cad a g ru p o ou classe de ativ id ad es esp ecializa d a s, e a p artir d elas, um p ro jeto de trab alh o e de estu d o c o o rd e n a d o co m essas d iscip lin as ou q u e as co m p le m e n te , q u e en riq u e ç a os h o rizo n tes do in d iv íd u o e m a n te n h a ou re in te g re o eq u ilíb rio de sua p er­ so n a lid a d e . 2. N o se g u n d o significado, essa p alav ra hoje é e sp e c ia lm e n te u sa d a p o r so c ió lo g o s e an tro ­ p ó lo g o s p ara in d icar o co n ju n to d o s m o d o s de v id a criad o s, ad q u irid o s e tran sm itid o s de um a g era çã o p ara a o u tra, en tre os m e m b ro s de d e ­ te rm in ad a so c ie d a d e . N esse sign ificad o, C. não é a fo rm ação do in d iv íd u o em su a h u m a n id a ­ d e, n em sua m a tu rid a d e esp iritu al, m as é a fo rm ação coletiva e an ô n im a de u m g ru p o so ­ cial n as in stitu içõ es q u e o d efinem . N esse se n ­ tid o , esse te rm o talv ez te n h a sid o u sa d o pela p rim eira v e z p o r S p eng ler, q u e co m ele e n te n ­ d eu "con sciência p esso al d e u m a n aç ão in tei­ ra"; c o n sc iê n c ia q u e, em su a to ta lid a d e , ele e n te n d e u o rg an ism o vivo; e, co m o to d o s os o rg an ism o s, n asce, cresce e m o rre. "C ada C , cad a su rg im e n to , cad a p ro g re sso e cad a d eclí­ nio , cad a u m d e se u s g rau s e d e se u s p erío d o s in te rn a m e n te n ec essário s, tem d u ra ç ã o d e te r­ m in ad a, s e m p re igual, s e m p re re c o rre n te com form a d e sím b o lo " (Untergang des Abendlandes, I, p. 147). D o co n ce ito da C. assim e n te n d i­ da, S p e n g le r d istin g u ia o c o n ce ito de civiliza­ ção, q u e é o ap e rfe iç o a m e n to e o fim de um a C , a realiza çã o e, p o rta n to , o e sg o ta m e n to de su a s p o ssib ilid a d e s co n stitu tiv a s. "A civiliza­ ção", d iz S p eng ler, "é o d estin o in ev itáv el da cu ltura. N ela se atin g e o áp ic e a p artir do qual p o d e m ser re so lv id o s os p ro b le m a s ú ltim o s e m ais difíceis da m o rfo lo gia h istórica. A s civili­ z a çõ es são os e sta d o s ex trem o s e m ais refina­ d o s ao s q u ais p o d e ch e g a r u m a e sp é c ie h u m a ­ na su p erio r. S ão u m fim: são o d e v in d o q ue su c e d e ao devir, a m o rte q u e su c e d e à v id a, a cristalização q u e s u c e d e à ev o lu ç ã o . S ão um

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termo irrevogável ao qual se chega por neces­ sidade interna" (Ibid., Intr., § 12). Essas observações, cuja validade é compro­ metida pela falacidade da analogia entre orga­ nismo humano e grupo humano, sugerida a Spengler por seu biologismo explícito, só tive­ ram sucesso entre os representantes do profetismo contemporâneo. Mostraram, porém, a utilidade de um termo como C. para indicar o conjunto dos modos cie vida de um grupo hu­ mano determinado, sem referência ao sistema de valores para os quais estão orientados esses modos de vida. C, em outras palavras, é um termo com que se pode designar tanto a civili­ zação mais progressista quanto as formas de vida social mais rústicas e primitivas. Nesse sig­ nificado neutro, esse termo é empregado por filósofos, sociólogos e antropólogos contempo­ râneos. Tem ainda a vantagem de não privile­ giar um modo de vida em relação a outro na descrição de um todo cultural. De fato, para um antropólogo, um modo rústico de cozer um alimento é um produto cultural tanto quanto uma sonata de Beethoven. As muitas definições de C. hoje em dia só fazem dar expressões diversas a esses pontos básicos. Segundo Malinowski, a C. é "um composto integral de insti­ tuições parcialmente autônomas e coorde­ nadas" que, em seu conjunto, tende a satisfazer toda a amplitude de necessidades fundamen­ tais, instrumentais e integrativas do grupo so­ cial (A Scientific Theory ofCulture, 1944). Se­ gundo Kluckhohn e Kelly, a C. é "um sistema histórico de projetos de vida explícitos e implí­ citos que tendem a ser compartilhados por to­ dos os membros de um grupo ou por membros especialmente designados" (R. LINTON, The

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CURSO DAS NAÇÕES

Science ofMan in the World Crisis, 1945). Para Coon, é "a soma total das coisas que as pessoas fazem como resultado do fato de terem sido assim ensinadas" (TheStoryo/Man, 1954). Para Linton, é "um grupo organizado de respostas aprendidas, características de determinada so­ ciedade" (The Tree ofCulture, 1955). O caráter global (mas nem por isso sistemático) de uma C, na medida em que corresponde às necessi­ dades fundamentais de um grupo humano, a diversidade dos modos como as várias C. cor­ respondem a essas necessidades e o caráter de aprendizado ou transmissão da C, todos esses são traços característicos expressos por essas definições e que se repetem em quase todas as definições que hoje podem ser considera­ das válidas. CURIOSIDADE (ai. Neugierde). Juntamente com a tagarelice e o equívoco, é, segundo Heidegger, uma das características essenciais da existência cotidiana: caracteriza-se pelo de­ sejo contínuo e sempre renovado de ver. A C. nada tem a ver com a admiração de quem inicia a busca nem com a perplexidade de quem não compreende. Caracteriza-se pela impermanência no mundo circundante e pela dispersão em possibilidades sempre novas, pelo que a curiosidade nunca está parada (Sein und Zeit, § 36). CURSO DAS NAÇÕES. Esse é o nome dado por Viço à "constante uniformidade" demons­ trada, apesar da variedade dos costumes, pela história dos diversos povos; a história dos po­ vos pode ser dividida nas "três idades que, se­ gundo os egípcios, haviam antes transcorrido em seu mundo: dos deuses, dos heróis e dos homens" (Scienza nuova, IV) (v. RETORNOS).

D D. 1. Na lógica medieval, todos os silo­ gismos indicados por palavras mnemônicas que começam com D são redutíveis ao terceiro modo da primeira figura (Darii). Cf. PEDRO HIS­ PANO, Summ. log., 4.20. 2. No algoritmo de Lukasiewicz, indica a não-conjunção (cf. CHURCH, Introduction to Ma­ thematical Logic, n. 91). DABITIS. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o sétimo modo da pri­ meira figura do silogismo, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal afir­ mativa, uma premissa particular afirmativa e uma conclusão particular afirmativa, como p. ex.: "Todo animal é substância; alguns homens são animais: logo, algumas substâncias são ho­ mens" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.08). DADO (in. Given; fr. Donné, ai. Gegebeti; it. Dato). Em geral, o ponto de partida ou a base de uma indagação qualquer, o elemento, o an­ tecedente, a situação da qual se parte ou que serve de respaldo para formular um problema, fazer uma inferência, aventar uma hipótese. O D. tem, portanto, caráter funcional: o que se assume como D. para certo tipo ou ordem de indagação pode ser, por sua vez, tomado como problema para outro tipo ou ordem de pes­ quisa. A palavra moderna tem provavelmente ori­ gem matemática ("um segmento D.", "um nú­ mero D.", etc). Na filosofia moderna, a exis­ tência de D. últimos, irredutíveis, foi utilizada como a existência de um limite ao conheci­ mento, ou seja, de uma condição que ao mes­ mo tempo restringe e garante a validade do próprio conhecimento. Foi desse modo que Locke utilizou as idéias: sem idéias não é possí­ vel o conhecimento, que é percepção de uma relação entre as próprias idéias (Ensaio, IV, 3, 1). Para ele, além das idéias, também são ciadas

(embora ele não lhes dê esse nome) as condi­ ções da percepção, do conhecimento racional e do conhecimento sensorial; estas limitam a extensão do conhecimento, que acaba sendo menor do que o das idéias (Ibid, IV, III, 6). Para Kant, o D. é a presença do objeto na intui­ ção sensível (Crít. R. Pura, § 1): presença que torna a intuição uma faculdade passiva, não criadora, como poderia ser a intuição intelec­ tual de Deus (Ibid, IV, § 8). Como é óbvio, nes­ se sentido o D. é eliminado das filosofias que negam o caráter condicionado e limitado do conhecimento humano e o transformam em atividade criadora. Assim, Fichte de certo modo contrapõe o conceito de posição ao conceito de D.: "Fonte da realidade é o Eu. Só através do Eu e com ele é D. o conceito da realidade. Mas o Eu é porque se põe e põe-se porque é. Por­ tanto, pôr-se e ser são uma e a mesma coisa'1 (Wissenschaftslehre, 1794, § 4, C). Por outro lado, não é só o idealismo romântico que elimi­ na a noção e a função do dado. O próprio neocriticismo, que interpreta a doutrina de Kant como idealismo gnosiológico, nega a função do dado. Diz Cohen: "O pensamento não é sín­ tese, mas produção, e o princípio do pensa­ mento não é um D., de algum modo indepen­ dente dele, mas é a origem (Ursprung). A lógica do conhecimento puro é uma lógica da origem" (Logik der reinen Erkenntnis, 1902, p. 36). E, para Natorp, o D. não está no início do processo do conhecimento, como a sua matéria bruta, mas no fim do processo como determi­ nação final. Considera-se como D. o objeto que se conseguiu determinar completamente (Phi­ losophie, 1911, p. 60). Na filosofia contemporânea, interessada em estabelecer as condições limitativas do conhe­ cimento, a noção de D. volta a ter seus direitos. O espiritualismo francês, de Maine de Biran a

DADO-A-SI-MESMO ou AUTOPRESENTAÇAO 231 Bergson, co n sid ero u o D. co m o u m privilégio da exp eriên cia in terio r, isto é, da co n sc iên c ia. O

Ensaio sobre os dados imediatos da consciên­ cia, de B ergson (1889), apresenta-se co m o a te n ­

tativa de ra strea r o D. o rig in ário da co n sc iên c ia em sua p u reza, lib ertan d o -o d as su p erestru tu ras intelectuais. T al D. originário é, para B ergson, a duraçãodí\ co n sciên cia, ou seja, a v id a da c o n s­ ciência co m o au to criação e lib erd ad e. P ara g ra n ­ de p arte da filosofia c o n te m p o râ n e a , o D. é, com o p ara B ergson , u m D. d a co n sc iên c ia, q u e só p o d e ser d esco b e rto e re c o n h e c id o na b u sca da própria in terio ridade. Para H usserl, p o rém , o D. assu m e significado m ais g eral. S e g u n d o ele. qu alq u er p ro c e d im e n to rig o ro so , seja ele cien tí­ fico ou filosófico, tem o d ev er de voltar-se para o "dar-se o rig in ário " d as coisas e fazer as coisas fa­ lar. "Julgar as co isas racion al ou cientificam ente", diz ele, "significa v o ltar-se p ara elas, re m o n ta r dos d iscu rso s e d as o p in iõ e s às p ró p rias co isas, interrogá-las em seu d ar-se (Selbstgegebenheit) e elim inar to d o s os p re c o n d e ito s alh e io s a elas" (Ideen, I, § 19). A p e sq u isa fe n o m e n o ló g ic a , da forma co m o é c o n c e b id a p o r H usserl, co n siste em p ôr-se na co n d içã o em q u e as coisas se dão, em q ue se revelam na sua essência. D ew ey en ­ tende o d a d o co m o situ aç ão to tal de o n d e são extraídos os ele m e n to s p ara as so lu ç õ e s de um problem a. "O q u e é D ., no sen tid o estrito da p a­ lavra, é o ca m p o ou a situ a ç ã o total. O D ., no sentido de singular, seja objeto ou qualid ad e, é o aspecto, o m o m e n to ou o e lem e n to esp ecial da presente situ aç ão real. e é ab stra íd o d esta a fim de localizar e identificar seu s traço s p ro b le m á ti­ cos, co m referên cia à in d ag aç ão q u e se d ev e efetuar n a q u e le m o m e n to e n a q u e le lugar. Para ser m ais ex a to , o D. sin g u lar é m ais u m a a ssu n ­ ção do q u e u m D." (Logic, cap . VII; trad. it., p. 181). O u so filosófico e sta b e le c e , p o rta n to , dois conceitos diferentes da n o ção de D .: Ia o D . é o ponto de partida da an álise, isto é, a situ ação de que se p arte p ara re so lv er u m p ro b lem a ou as assunções ou os a n te c e d e n te s de u m a inferência ou de u m d iscu rso q u alq u er; 2- o D. é o p o n to de ch eg ad a da b u sca p o rq u e é o q u e se o b tém q uando se retiram do ca m p o de in d a g a ç ã o p re ­ conceitos, o p in iõ e s ou su p e re stru tu ra s falsificadoras, p e rm itin d o q u e se m o stre e m an ifeste a realidade e n q u a n to tal. O p rim e iro s e n tid o foi assum ido p o r L ocke, K ant e D ew ey; o s e g u n d o sentido, p o r N ato rp , B erg so n e H usserl.

DADO-A-SI-MESMO ou AUTOPRESENTAÇAO (ai. Selbstgegebenheit). A ssim c h a m o u H usserl (Ideen, I, § 67) a re p re s e n ta ç ã o em q u e

DATISI o o bjeto é d a d o de m o d o claro e visual: "Para cad a essên cia, assim co m o p ara cada m o m e n ­ to in d iv id u a l a ela c o rre s p o n d e n te , há u m a p ro x im id a d e ab so lu ta (por assim dizer) em q u e o seu d ar-se , em re la ção a u m a série de g rau s de clareza, é ab so lu ta , ou seja, é p u ra a u to p re sen taç ào " (ibid, § 67). E m o u tro s te rm o s, a essên cia to rn o u -se tã o tra n sp a re n te na re p re ­ s e n ta ç ã o q u e n ão há m ais n e n h u m a n te p a ro e n tre ela e ela m esm a. DARAPTI. Palavra m n em ô nica u sada pelos escolásticos para indicar o prim eiro dos seis m o ­ d os do silogism o de terceira figura, m ais p recisa­ m en te o q u e consiste em um a prem issa universal afirm ativa, u m a prem issa universal afirm ativa e um a co n clu são particular afirm ativa, com o no ex em p lo : "T odo h o m em é substância; to d o h o ­ m em é anim al: logo, alguns anim ais são substân­ cias" (PEDRO HISPANO, Summ. log, 4. 14). DARII. P alav ra m n e m ô n ic a u sa d a p elo s esco lá stico s para in d icar o terceiro d o s n ov e m o d o s do silo g ism o de p rim eira figura, m ais p re c isa m e n te o q u e co n siste em u m a p rem issa un iv ersal afirm ativa, u m a p rem issa p articu lar afirm ativa e u m a c o n c lu sã o p articu lar afirm ati­ va, co m o no ex e m p lo : "T odo h o m e m é anim al; a lg u n s s e re s c a p a z e s d e rir são h o m e n s: lo ­ g o , alg u n s sere s c a p a z e s de rir são anim ais" (PEDRO HISPANO, Summ. log, 4.07). DARWINISMOUn. Darwinism, fr. Darwinisme. ai. Danvinismus; it. Darwinismo). D o u tri­ na da ev o lu ç ã o b io ló g ica, se g u n d o os fu n d a­ m en to s e n u n c ia d o s p o r D arw in: Ia ex istên cia de pequenas variações o rg ân icas, q ue se v eri­ ficariam n o s se re s v iv o s so b a influência d as co n d iç õ e s am b ie n tais, d as q u ais alg u m as (pela lei da p ro b a b ilid a d e ) seriam b io lo g ic a m e n te vantajosas; 2- seleção natural, graças à qual so ­ b rev iv eriam , na luta pela vida, os in d iv íd u o s n o s q u ais se m an ifestassem as v ariaç õ e s o rg â­ n icas favo ráveis (Origem das espécies, 1859). T a m b é m são p artes in te g ran te s do D . a h ip ó te ­ se de q u e o h o m e m d e s c e n d e d e an im ais infe­ rio res (Descendência do homem, 1871) e o agnostícismo d ia n te d o s p ro b le m a s m etafísicos (V. AGNOSTÍCISMO; EVOLUÇÃO).

DATISI. P alav ra m n e m ô n ic a u sa d a p elo s e s c o lá stic o s p ara in d ic a r o q u a rto d o s seis m o d o s do silo g ism o d e terceira figura, m ais p re c is a m e n te o q u e c o n siste em u m a p r e ­ m issa u n iv ersal afirm ativa, u m a p rem issa p a rti­ cu lar afirm ativa e u m a c o n c lu s ã o p artic u la r afirm ativa, co m o no ex e m p lo : "T odo h o m e m é s u b stâ n c ia ; a lg u n s h o m e n s sã o an im a is:

DEBITO lo g o , alg u n s an im ais s ã o su b stân cia" (PEDRO HISPANO, Summ. log, 4.14). DÉBITO (in. Debt- fr. Dette, ai. Schuld; it. Debito). S e g u n d o K ant, o D . o rig in ário é o p e ­ c a d o o riginal ou m al ra d ica l: o h o m e m , p o r ter c o m e ç a d o co m o m al, co n traiu u m D. q u e já n ão lh e ca b e liq ü id ar e q u e é in tran sm issível p o r ser a m ais p esso al d e to d as as o b rig açõ e s (Religion, II, 2 C). H eid e g g er tirou essa n o ç ão da esfera m oral e estu d o u -a na esfera o n to lógica. C o n sid ero u o "estar em D." co m o um a d as m an ifestaçõ es do "estar em falta" (Schuld significa ta n to cu lp a q u a n to D .). N esse sen tid o , estar em D. é u m a d as fo rm as da co ex istên cia "no q u a d ro d as o c u p a ç õ e s, p ro v id e n c ia n d o ,

produzindo, etc. Outros modos dessa ocupa­ ção são sub trair, p lag iar, d efrau dar, to m ar, ro u ­

b ar, isto é, n ã o satisfazer o d ireito de p o sse de alguém ". M as essas são a p e n a s m an ifestaçõ es de um a c u lp a b ilid a d e essen cial e originária da ex istência, q u e é a de n ão ser seu p ró p rio fu n ­ d am e n to , de n ão ter em si o ser, m as de incluir o n ad a co m o su a p ró p ria d ete rm in a ção . São m anifestações dessa cu lp ab ilid ad e ontológica a cu lp a e o D. (Sein undZeit, § 58). DECADÊNCIA (ai. dais Verfallerí). E stado de q u e d a da ex istên cia h u m a n a no nível da b a n a lid a d e co tidian a, se g u n d o H eid eg g er. Isso, p o rém , n ão s u p õ e u m e sta d o o rig in al su p e rio r n em é u m e sta d o n eg ativ o e p ro v isó rio q u e p o ssa ser u m dia elim in ad o . O esta d o de D . é a q u e le em q u e a ex istên cia se alheia de si, e sc o n d e d e si m esm a su a p o ssib ilid ad e p ró p ria (q u e é a da m o rte) e en tre g a -se ao m o d o de ser im p esso al q u e é ca ra cte riza d o p ela tag arelice, pela c u rio sid ad e e p elo eq u ív o c o (Sein und

Zeit, § 38X DECISÃO (gr. mpoaípeaiç; in. Decision, fr. Décision, ai. Entscheidung ou Entschlossenheit; it. Decisioné). 1. E sse te rm o c o rre s p o n d e ao q u e

A ristó teles e os esco lá stico s c h a m a v am d e es­ colha, ou seja, o m o m e n to co n clu siv o da d eli­ b era çã o no q u al se ad e re a u m a d as alte rn ati­ v as p o ssív e is. A ristó te le s d efiniu a e sc o lh a com o "um a apetição d eliberada referen te a coisas q u e d e p e n d e m de nós" (Et. nic, III, 5, 1113 a 10); em sen tid o d eterm in ista, S p in o za identifi­ cou a D. com o d esejo ou "d eterm in a çã o do co rp o ", q u e p o d e ser d ed u z id a p o r m eio das leis do m o v im e n to e do re p o u so {Et, III, 2, sco l.). M as, livre ou d e te rm in a d a , a d ec isã o é c o n sta n te m e n te e n te n d id a p e lo s filósofos co m o o ato d e d iscrim in ação d o s p o ssív eis ou de a d e são a u m a d as altern ativ as p ossíveis. É ,

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DEDUÇÃO p o rta n to , u m ato an te c ip a tó rio e p ro jetan te, no q u al o fu tu ro é de certo m o d o d ete rm in a d o . E sses ca ra cte re s são e lu c id a d o s p o r H eidegg er, p ara q u e m a D. é "o p ro jeto e a d eterm in ação clara q u e, cad a v ez , ab re m as p o ssib ilid ad es efetivas". M as, p ara H eid e g g er, h á u m a só D. a u tê n tic a: a q u e o rienta, n ão p ara as possibili­ d a d e s da ex istên cia co tid ian a (q u e, em últim a an álise, são ímpossibilidades), m as p ara a p o s­ sib ilid a d e p ró p ria e certa da ex istên cia, isto é, a p o ssib ilid a d e da m o rte. Essa D. au tê n tic a não é s e n ã o "o tácito e an g u stia n te au to p ro jetar-se s o b re o m ais p ró p rio ser cu lp ad o "; ou ainda "aquilo de q u e o c u id a d o se acu sa e, en q u an to c u id a d o , a p o ssív el a u te n tic id a d e de si m esm o"

(Sein und Zeit, § 60). Isso significa que a D.

a u tên tica c o in cid e co m a c o m p re e n sã o da ex is­ tên cia h u m a n a co m o p o ssib ilid a d e d a m orte, isto é, co m o im p o ssib ilid ad e (v. EXISTENCIALISMO; POSSIBILIDADE). 2. N a lógica c o n te m p o râ n e a , u m p ro b lem a d e D . é o p ro b le m a de en c o n tra r u m p ro c e ­ d im e n to efetivo ou alg o ritm o (isto é, u m pro­ cedimento de D) g raç as ao q ual se p o ssa d e­ te rm in a r, p a ra u m a fó rm u la q u a lq u e r d e d a d o sistem a, se essa fó rm u la é u m teo rem a ou n ão , ou seja, se p o d e ser p ro v a d a ou não

(cf. CHURCH, Introduction to Mathematical Lo­ gic, § 15). DECLINAÇÃO(gr. KÀaiç). No latim, clinamen, desvio dos átomos da queda retilínea, admitido por Epicuro para possibilitar o choque entre os átomos, a partir do qual os corpos são gerados. Com efeito, os átomos que, no vácuo, se movem todos com a mesma velocidade nunca se encon­ trariam sem o clinamen (EPICURO, Ep. a Herod., 61; CÍCERO, Defin., 1,6,18; LUCRÉCIO, De rer. nat, II, 252). Gassendi, que, no séc. XVI, retomou a física epicurista, negou o desvio dos átomos. DEDUÇÃO (gr.
Deduction; fr. Deduction; ai. Deduction, it. Deduzione). R elação p ela q ual u m a co n clu são

d eriva de u m a ou m ais p rem issas. N a história da filosofia, essa re la ção foi in te rp re ta d a e fun­ d a m e n ta d a d e v árias m an ieras. P o d e m -se dis­ tin g u ir três in te rp re ta ç õ e s p rin cip a is: Ia a q u e a co n sid e ra fu n d ad a na essência necessária ou substância d os o b jeto s a q u e se referem as p ro p o siç õ e s; 2a a q u e a c o n sid e ra fu n d a d a na evidência sensível que tais o b jeto s ap resen tam ; 3a a q u e n eg a q u e essa re la ç ã o te n h a u m ú nico fu n d a m e n to e a c o n sid e ra d e c o rre n te d e regras cujo u so p o d e ser o b jeto d e ac o rd o . A in te rp re­ tação trad icio n al de D. co m o "o fato de o p arti­

DEDUÇÃO cular d eriv ar do u niv ersal" ou co m o "um ra c io ­ cínio q u e v ai do u n iv e rsa l ao p articular", e tc , refere-se a p e n a s à p rim eira d e ssa s in te rp re ta ­ ções e p o r isso é restrita d e m a is p ara p o d e r abranger to d a s as altern ativ as a q u e essa n o ç ão deu origem . Ia A d e fin iç ã o a ris to té lic a d e s ilo g ism o coincide co m a d efin ição g eral de d e d u ç ã o . Diz A ristóteles: "O silo g ism o é um racio cín io em q ue, p o sta s alg u m as co isas, se g u e m -se n e ­ cessariam en te a lg u m a s o u tra s, p e lo sim p les fato de aq u ela s ex istirem . Q u a n d o d ig o 'p elo sim ples fato de aq u e la s ex istirem ', p re te n d o d i­ zer que d ela s d eriva alg u m a coisa, e, p o r o u tro lado, q u a n d o d ig o 'd elas d eriva alg u m a coisa', preten do d izer q u e n ão é p rec iso ac re sc e n ta r nada de ex terio r p ara q u e a D . se siga n e c e ssa ­ riam ente" (An.pr, I, 1, 24 b 17 ss.). D efinido nesses te rm o s, o silo g ism o n ad a m ais é q u e a derivação de u m a p ro p o siç ã o d e o u tra, te n d o , pois, o sig n ificad o g e n e ra líssim o q u e ain d a hoje se atrib u i à p alav ra d e d u ç ã o . M as A ris­ tóteles a c re sc en ta q u e o silo g ism o p erfeito é a D. perfeita, aq u ela na q ual as p rem issas c o n ­ têm tu d o o q u e é n ec essário à D . d a c o n clu são (Ibid, 24 b 23). A ristó teles faz a d istin çã o en tre D. e d em o n stra çã o e en tre D . e in d u ç ã o . A D. se distin gu e da demonstração p o rq u e a d e ­ m onstração é u m a D. p artic u la r (Ibid., 25 b 26), mais p rec isam e n te a D . q u e te m "p rem issas verdadeiras, p rim eiras, im e d iata s, m ais c o n h e ­ cidas do q u e a c o n c lu sã o , an te rio re s a ela e causas dela" (An.post, I, 2, 71 b 18 ss.). E d is­ tingue-se de indução p o rq u e esta se co n tra ­ põe àq u ela p o r su a estru tu ra e sq u e m á tic a (An. pr, II, 23, 68 b 30 ss.). C o m o fu n d a m e n to da relação en tre as p re m issa s e a c o n c lu sã o , está a relação en tre os três te rm o s do silo g ism o , q u e A ristóteles e x p rim e co m o v e rb o vnápxziv (inesse = inerir): o sign ificad o d este é ex p li­ citado p o r A ristó teles, ao d ete rm in a r o m o d o com o é p o ssív el fo rm u lar silo g ism o s e ad q u irir "a cap acidade de p ro d u zi-lo s". A esse p ro p ó si­ to, ele diz q u e, em p rim e iro lu g ar, é n ec essário considerar o p ró p rio o bjeto co m o tal e su a defi­ nição, b em co m o as características q u e lh e são próprias; d e p o is, é p rec iso c o n sid e ra r as n o ­ ções q ue se se g u e m do o bjeto , as n o ç õ e s de que o objeto se seg u e e, enfim , as q u e ele ex ­ clui. E m o u tro s te rm o s, é p rec iso c o n te m p la r a essência ou substância do o bjeto , q u e é p re c i­ sam ente e x p ressa p ela d efin ição , e tu d o o q u e ela im plica ou p elo q u e é im p licad a. A ristó teles ainda se ex p ressa d iz e n d o q u e é n ec essário

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DEDUÇÃO c o n te m p la r a totalidade d a coisa, n ão a p arte, p. ex., n ã o o q u e se s e g u e "de alg u n s h o m e n s", isto é, da e ssê n c ia ou s u b stâ n c ia "h o m em " co m o resu lta da definição. E é p o r isso q u e A ristó teles in tro d u z u m a lim itação im portante-, o s ilo g ism o d e v e te r p re m is s a s u n iv e rsa is (Ibid, I, 27, 43 b 14). A estru tu ra su b stan cia l da re a lid a d e , tal co m o é esclarecid a na m etafísica, é, p o rta n to , o fu n d a m en to da teoria aristo télica da d e d u ç ã o . A s características fu n d a m en tais da teo ria aristo télica da d e d u ç ã o são as seg u in tes: d) m u ltip licid a d e d as p rem issas d eriv a d a s da fu n ção in d isp en sáv el do te rm o m éd io ; b) u n i­ v e rsa lid a d e d as p rem issas. A m b as essas ca ra c­ terísticas d e p e n d e m do fu n d am en to substancial da re la ção d ed u tiv a. C om efeito: Ia o term o m éd io é in d isp en sáv el p o rq u e a atrib u ição de u m p re d ic a d o a u m a coisa só p o d e ser feita co m referên cia à su b stân cia da p ró p ria coisa, e só em v irtu d e d essa referên cia p o d e m ser d e ­ te rm in a d a s a q u a lid a d e (afirm ação ou n eg a­ ç ã o ), a q u a n tid a d e (u n iv ersal ou p articular) e a m o d a lid a d e (essen cial ou acid en tal) da atrib u i­ ção d e d u z id a . 2a A u n iv e rsa lid a d e d as p re m is­ sas d eriva do fato de elas d e v e re m referir-se ao objeto em su a to ta lid a d e , ou seja, à su b stân cia ou à essê n cia n ec essária do o bjeto . Essa teoria da D . d o m in o u a filosofia e a lógica antiga, m e­ d iev al e m o d e rn a (salvo os reflex os da c o n c e p ­ ção estó ica de q u e falarem o s em seg u id a ), e, co m o identifica a D. co m o silo g ism o , p o d e ser e stu d a d a co m este ú ltim o term o . 2- P o d e-se p re su m ir q u e , à m ed id a q u e os p re s su p o s to s su b stan cia lista s u sa d o s p o r A ris­ tó te le s co m o fu n d a m e n to s da teo ria da D. fos­ sem p e rd e n d o p restíg io , o m esm o ac o n te ce ria co m as características da sua teoria, q u ais s e ­ ja m , a m u ltip licid a d e e a u n iv e rsa lid a d e das p rem issas. E é e x a ta m e n te isso o q u e o co rre na ló g ica d o s estó ic o s, q u e , d ife re n te m e n te de A ristó teles, são sen sistas. O s estó ic o s dividiam os ra cio c ín io s em d e m o n stra tiv o s ou ap o d ítico s, q u e co n clu e m p o r algo d e n o v o , e n ão d e m o n stra tiv o s ou a n a p o d ític o s (v. ANAPODÍT ico ), q u e n ão co n clu e m p o r n ad a d e n ov o. M as p riv ileg iav am estes ú ltim o s p o rq u e "não tê m n e c e ssid a d e de d e m o n stra ç ã o p ara sere m en c o n tra d o s , m as são d em o n stra tiv o s na m e d i­ da em q u e co n clu e m ta m b é m os o u tro s racio cí­ nios" (SEXTOEMPÍRICO, Pirr. hyp, II, 140,156; Aãv. dogm, II, 224 ss.). O ra, n o s ra cio c ín io s anap o d ític o s (do tip o "Se é d ia, há luz; é dia, lo g o , h á lu z"), a c o n e x ã o q u e co n stitu i a p rem issa "Se é dia, há luz" é clara p o r si m esm o e n ão

DEDUÇÃO p recisa de d e m o n stra ç ã o ; e é clara, en te n d a -se , co m b ase em critérios estó ic o s, p ela p re se n ç a do fato q u e ela ex p rim e p ara os s e n tid o s ou, p elo m en o s, p ela sua p o ssív el p resen ça . N essa teoria, p o rta n to , m u d a -se o fu n d a m en to da re ­ lação d ed u tiv a, q u e já n ão é, co m o p ara A ristó ­ te le s, a estru tu ra su b stan cia l d o s o b jeto s, m as o fato sen sív el ou se n siv e lm e n te verificável, ou seja, a ev id ên cia d a re p re s e n ta ç ã o catalép tica (DiÓG. L, V II, 45). P o rtan to , na te o ria estó ica n ão há v estíg io s d as características q u e to rn am a teo ria da D . de A ristó teles u m a teo ria do silo g ism o , ou seja, da n ecessária m u ltip licid a d e u n iv e rsa lid a d e d as p rem issas. O fato de os estó ico s h av ere m a ssu m id o co m o fu n d a m e n ­ tais os ra cio c ín io s a n a p o d itic o s e c o n sid e ra d o q u e os ra cio c ín io s d e m o n stra tiv o s são red u tív eis a eles significa q u e o fu n d a m en to ex p lícito d e sua teo ria da D . é o d a d o sen sív el. O p o n to de vista do fato su b stitu iu o p o n to d e vista racio n al da teoria aristo télica. M as, a p e sa r da im p o ssib ilid a d e d e co n ciliar esses d ois p o n to s de vista, a teo ria estó ica n ão n os ch e g o u atra­ v és da história em to d a a su a p u reza , m as c o n ­ fu n dida e u n id a co m a teoria de A ristóteles. O s p e rip a té tic o s (T eofrasto, E ud em o ) ac o lh e ra m ecleticam ente a doutrina estóica da D ., p o n d o -a ao la d o da aristo télica. A ssim , falaram p a ra le la ­ m en te em "silogism o categ ó rico " e "silogism o h ip o tético ", e so b essa d e n o m in a ç ã o , d e sc o ­ n h e cid a d e A ristó teles, e n te n d e ra m os silo g is­ m o s fu n d a d o s n os racio cín io s a n a p o d itic o s dos estó ico s. B oécio, q u e n o s tran sm ite esses fatos (De syllogismus hypotheticis, I, P. L, 64B col. 8 3 D , tran sc rev e u da m esm a form a, ou seja, p a ra le la m e n te e no m esm o p lan o , as d u a s d o u ­ trin as d ísp a res. N a id ad e m o d e rn a, L ocke b a ­ seo u a D . n a relação de c o n co rd ân cia ou de d isc o rd â n cia en tre as idéias, p e rc e b id a im ed ia­ ta m e n te na ex p eriên cia: "Inferir significa a p e ­ n as d ed u zir, em v irtu d e de u m a p ro p o siç ã o p osta co m o v e rd a d e ira , u m a o u tra co m o v e r­ d ad eira; ou seja, v er ou su p o r q u e exista u m a lig a çã o e n tre as d u a s id éias da p ro p o siç ã o inferida" (Ensaio, IV, 17, 4). S tuart Mill in ter­ p reto u a D . d e m o d o a n á lo g o , co m o a ap lica­ ção de reg ras g erais o b tid as p o r in d u ç ão a ca­ sos particulares. E adm itiu, p or isso, a p o s si­ b ilid a d e d e ra cio c in ar m esm o sem o u so de p ro p o siç õ e s g erais (Logic, II, 3, 5 ss.). 3a A terceira fase, ou m elh o r, a terceira alter­ nativa q u e, ao lo n g o da história, se ap re se n to u à teoria da D ., é a co n v e n c io n a lista , fo rm u lada pela lógica c o n te m p o râ n e a . A s reg ras da D.

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DEDUÇÃO n ão se b aseia m na su b stân cia d os o b jeto s a q ue se refere a D . n em na ev id ên cia sen sív el de tais o b je to s, m as são e s c o lh id a s a rb itrá ria m as o p o rtu n a m e n te . É esse o p o n to de vista in tro ­ d u z id o p o r C arn ap na o b ra A visão lógica do mundo (1928). Essa te se ad m ite "a p o ssib ilid a­ de de livre esco lh a d as reg ras de D .", isto é, o c a rá te r c o n v e n c io n a l d e to d a a ló g ica. D iz C arnap: "A lógica, ou seja, as reg ras da D. (na n o ssa te rm in o lo g ia , as re g ra s s in tá tic a s de tran sform ação) p o d e m ser esco lh id as arbitraria­ m e n te e são c o n v e n c io n a is s e m p re q u e assu ­ m id as co m o b a se p ara a c o n stru ç ã o do sistem a lin g ü ístico e s e m p re q u e a in te rp re ta ç ã o do sistem a for im p o sta n u m s e g u n d o m o m en to " (Foundations ofLogic andMathematics, 1939, § 12). É claro q u e , d esse p o n to de vista, a rela­ ção em v irtu d e da q ual u m a p ro p o siç ã o se se­ gue de outra n ão é d ad a de u m a v e z p o r to d as, m as p o d e ser d e te rm in a d a de v árias form as p o r reg ras ou c o n v e n ç õ e s o p o rtu n a s. C arnap d istin g u iu d u a s fo rm as d ife re n te s de D.: deri­ vação, q u e é m ais restrita, e conseqüencialídade, q u e é m ais am p la. A d eriv a çã o é u m a série finita de e n u n c ia d o s na q ual cad a p a sso é d e­ finido sem q u e se defina a.relação "derivãvel", q u e é definida p ela cad eia inteira d as d eriva­ ções. N um a série de co n se q ü ên cias, até m esm o cad a p asso da série (isto é, a re la ção "con se­ q ü ê n c ia direta") é in d efin id o . A d eriv a çã o é a re la ção de D . u sa d a em ló g ica e c o rre sp o n d e ao q u e c o m u m e n te se e n te n d e q u a n d o se diz "este e n u n c ia d o se s e g u e àq u ele" (TheLogical Syntax ofLanguage, § 14). A s v árias fo rm as de implicação (v.) re co ­ n h e c id a s pela lógica c o n te m p o râ n e a p o d em ser c o n sid e ra d a s o u tro s ta n to s m o d o s p ossí­ v eis de relação de d e d u tib ilid a d e . A lg un s lógi­ cos re strin g em hoje a re la ção de d ed u tib ilid ad e a certo tip o de im p licação , m ais p recisam en te à re la ção "estrita" ou sem ân tica: é o q u e faz, p. ex., Lew is (Knowledgeand Valuation, 1946, p. 212). O utro s, ao co n trário , ju lg am q u e, para es­ tab elecer a d ed u tib ilid ad e, b asta a im plicação m aterial cujo c o n ce ito foi esc la re c id o em Prin­ cipia mathematica-. é o q u e faz R ussell (Intr. to MathematicalPhii, cap. XIV; trad. it., p. 173). N a v e rd a d e , a m e n o s q u e n ão se assu m a ex­ p lic ita m en te co m o fu n d a m en to da D. a subs­ tân cia d as co isas ou su a ev id ên c ia sensível, se g u n d o a Ia ou a 2a d as altern ativ as co n sid era­ d as, to d o e q u a lq u e r tip o de im p licação pode ser c o n sid e ra d o re la ção d ed u tiv a. D o p o n to de vista da c o n v e n c io n a lid a d e da ló g ica, o con­

DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL ceito de D . n ão p o d e sofrer re striç õ e s e p o rta n ­ to deve e ste n d e r-se a to d a s as fo rm as q u e a re ­ lação de d eriv a çã o ou de c o n se q ü e n c ia lid a d e de um a p ro p o siç ã o em re la ç ã o a o u tra p o ssa assum ir. D ED U Ç Ã O T R A N SC E N D E N TA L (in. Trans­ cendental deduction; fr. Déduction transcen­ dentais, ai. Transzendentale Deduction; it. Deduzione trascendentalé). K ant ex traiu o te r­ m o D. da lin g u ag em ju ríd ica, na qual significa a d em o nstração da legitimidade da p re te n sã o que se form ula. N esse s e n tid o , falou da "D. da divisão de u m sistem a" co m o "p ro va de sua com pletitude e da sua co n tin u id a d e " (Met. der Sitten, I, intr., § III, n o ta). A n a lo g a m e n te , para a justificação do u so d o s co n ce ito s p u ro s, ou categorias, K ant ju lg o u in d isp en sáv el u m a D. (que, ju sta m e n te p o r referir-se a c o n c e ito s p u ­ ros, cham ou de transcendental [v.]), q u e tivesse por fim d e m o n stra r "o m o d o p elo q u al os c o n ­ ceitos apriori p o d e m referir-se a o bjeto s", e que, por isso, se d istin g u isse da "D. em p írica", que m o stra "de q u e m o d o u m c o n c e ito é adquirido p o r m eio da ex p e riê n c ia e da refle­ xão sobre ela". D esse m o d o , a D. em p írica diz respeito à p o sse de fato de u m c o n ce ito , e a D. transcendental, ao seu u so leg ítim o (Crít. R. Pura, § 13). A D. tra n sc e n d e n ta l co n siste em mostrar com o os o b jeto s da ex p e riê n c ia n ão seriam tais, ou seja, n ão seriam d a d o s co m o objetos à exp eriên cia, se n ão fo ssem p e n sa d o s segundo as categorias; e q u e o ato ou a fu n ção pela qual p o d em ser o rig in ariam e n te p e n sa d o s nas categorias é o "eu p en so ", ou percepção pura(v.). D iferente da D. tra n sc e n d e n ta l é a D. metafísica, q u e F ichte e n te n d e u co m o d e m o n s ­ tração sistem ática de to d a s as p ro p o siç õ e s da filosofia. "T odo o d e m o n strá v e l d ev e ser d e ­ m onstrado, to d a s as p ro p o siç õ e s d ev em ser deduzidas, co m ex c e ç ã o do p rin cíp io p rim eiro , suprem o e fu n d a m e n ta l, q u e é o E u = Eu" (Wissenschaftslehre, 1794, § 7). H eg el atrib u ía o m érito d essa ex ig ên c ia a F ichte: "À filosofia fichteana ca b e o p ro fu n d o m érito d e h av er advertido para q ue as d ete rm in a çõ es do p e n sa ­ mento devem ser d em o nstrad as em sua n ecessida­ de, que são e sse n c ia lm e n te d ed u tív eis" {Ene, 5 42). N esse sen tid o , a D. é a d e m o n stra ç ã o da necessidade de u m a d e te rm in a ção ; e to d a a doutrina de H eg el se o rg an iza em co n fo rm id a­ de com essa ex ig ên cia.

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D E D U T IV O (in. Deductive, fr. Déductif, ai. Deductiv-, it. Deduttivo). SISTEMA: in d ica-se hoje com esse n o m e o d iscu rso q u e se inicia com

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DEFINIÇÃO p e q u e n o n ú m e ro de reg ras assu m id as co m o p re m is s a s , e q u e s e m p re p o d e a s s u m ir c o ­ m o re g ra q u a lq u e r p ro p o siç ã o d ed u z id a d a ­ q u e las p rem issas e em co n fo rm id ad e co m as re g ras q u e elas p re sc re v e m (v. AXIOMATIZAÇÃO; CONVENCIONALISMO). MÉTODO: e n te n d e -se hoje p o r esse te rm o o m é to d o q u e co n siste em p ro ­ cu rar a co n firm ação de u m a h ip ó te se através da v erificação d as c o n se q ü ê n c ia s prev isív eis n essa m esm a h ip ó te se . R eich en b a ch m o strou o caráter c o m p lex o d esse m é to d o e sua irredutib ilid a d e à d e d u ç ã o p ro p ria m e n e dita. A dm itir q u e ex iste u m a re la ç ã o D. en tre u m a h ip ó tese e os d a d o s o b se rv a d o s significaria adm itir q ue a im p licação az> b n o s au to riza a co n sid e ra a co m o p ro v á v e l q u a n d o b é d ad o (Theory of Probability, 1949, § 84). D E FIN IÇ Ã O (gr. õpoç, ópuju ÓÇ lat. Definitio; in. Definitíon; fr. Définítion; ai. Definition; it. Definizione). D ec la raç ão da essên cia. D isting u e m -se d iv erso s c o n ce ito s de D ., q u e co rre s­ p o n d e m ao s d iv erso s c o n c e ito s de essência (v.), m ais p re c is a m e n te : 1Q c o n c e ito de D. co m o d e c la ra ç ã o d a essê n cia su b stan cial; 2° c o n c e ito d e D . co m o d ec la ra ç ã o da essên cia n o m in a l; 3Q c o n ce ito de D . co m o d eclaraç ão da essên cia-sig n ificad o . Ia A d ou trin a aristotélica da D . diz resp eito à essê n cia su b stan cia l. A ristó teles afirm a ex p lici­ ta m e n te q u e a D . c o n c e rn e à essên cia e à s u b s ­ tância (An.post, II, 3, 90 b 30). E os v ários sig ­ n ificado s de D. q u e ele e n u m era referem -se to d o s à essê n cia su b stan cia l. "A D . p o d e ser, em u m p rim e iro s e n tid o , a d e c la ra ç ã o n ão d e m o n strá v e l d a essên cia; n u m se g u n d o se n ti­ do, p o d e ser a d e d u ç ã o da essên cia e diferir da d e m o n stra ç ã o só pela d isp o sição d as p alavras; n u m te rc eiro s e n tid o , p o d e ser a co n clu são da d e m o n stra ç ã o da essên cia" (Ibid., II, 10, 94 a 11). N o p rim eiro sign ificad o, a D. refere-se a objetos q u e são substâncias, com o p o r ex. ao h o ­ m em ; no s e g u n d o e no terceiro caso , refere-se a o b jeto s q u e n ão são su b stân cia s, m as fatos, co m o p. ex. o tro v ão , d o s q u ais dizer essên cia significa d izer cau sa (Ibid., 94 a 1 s s .). E m to d o s os caso s, a D. d eclara a essên cia su b stan cia l de seu objeto. D iz A ristóteles: "A essên cia su b sta n ­ cial p e rte n c e às co isas das q u ais há definição. E n ão há D . q u a n d o há u m term o q u e se refere a alg u m a coisa: n esse caso to d as as p alav ras seriam d efin içõ es p o rq u e as p alav ras indicam s e m p re alg u m a coisa e até m esm o 'Ilía d a ' seria u m a d efinição. M as só há D. q u a n d o o term o significa algo de p rim ário , o q u e o co rre q u a n ­

DEFINIÇÃO do se fala de co isas q u e n ão p o d e m ser p re ­ d icad o s de o u tras co isas" (Met., V II, 4, 1030 a 6). É essa a D. co n stitu íd a p elo g ê n e ro p ró x im o e pela d iferença específica: e n te n d e n d o -se p o r g ê n e ro p ró x im o o p re d ic a d o essen cial co m u m a co isas q u e diferem em e sp é c ie (p. ex., o p re d ic a d o an im al co m u m a to d a s as esp écies anim ais) e p o r diferença o q u e d istin g u e u m a e sp écie da outra (Top., I, 8, 103 b 15). E sse c o n ce ito aristo télico de D. to rn o u -se clássico , fica n d o siste m a tic a m e n te lig a d o ao co n ce ito d e essê n cia su b stan cia l e de ser co m o n e c e ssid a d e . S p in o za só fazia e x p re ssa r isso co m o u tra s p alav ras q u a n d o dizia: "A v e rd a d e i­ ra D . d e u m a coisa q u a lq u e r n ão im plica n em ex p rim e n ad a além da n a tu re z a da coisa defi­ nida" (Et, I, 8, sch o l. II). D e p o is de A ristó teles e p o r influência da L ógica estó ica, o co n ce ito de D . to rn o u -se m u ito m ais e x te n so e flexível; B o é cio p o d ia e n u m e ra r 15 e sp é c ie s de D. (v. ad ia n te). A D . su b stan cia l, to d av ia, co n tin u o u se n d o vista co m o a ú n ica v e rd a d e ira e a u tê n ti­ ca, co m o se afigurou ao p ró p rio B o écio (De diffinitione, em P. L, 64S, col. 898). Esse foi o p o n to d e v ista c o m p a rtilh a d o p o r to d o s os e sco lá stico s e até p elo s n o m in a lista s ou term inistas q u e, p o rém , in sistiram n a im p o rtâ n c ia da d efinição n o m in al. O ck h am dizia: "A D. tem d ois significados, já q u e u m a é a D . q u e e x p ri­ m e o q u e é o o bjeto (quidrei) e a o u tra é a D. q u e ex p rim e o q u e é o n o m e (quid nominis). A D . q u e ex p rim e o q u e é o o bjeto p o d e ser assu m id a em d ois sen tid o s: n u m sen tid o lato, caso em q u e c o m p re e n d e a D. p ro p ria m e n te dita, e a D . descritiv a, e em se n tid o estrito , caso em q u e é u m d iscu rso b rev e q u e ex p rim e a n atu reza to d a da coisa e n ad a c o n tém q u e seja ex trín se co a essa coisa" (Summa log, I, 26). P o r o u tro lad o , a D . q u e ex p rim e o q u e é o n o m e é "um d isc u rso q u e d eclara ex p lic ita­ m e n te a q u e se refere im p licitam e n te co m um e n u n c ia d o " (Ibid., I, 26). O ck h am ex clu i da lógica as D. reais p o rq u e "o ló g ico n ão trata de co isas q u e n ão sejam sign o s" (Ibid, I, 26), m as n ão n eg a a le g itim id a d e d essa s D. fora da ló g i­ ca. P o r o u tro la d o , p a re c e -lh e u m e m b u ste (trufaticuni) ad m itir q u e d e u m m esm o o bjeto (p. ex., do h o m em ) haja u m a D. lógica, u m a D. n atu ral, u m a D. m etafísica. "O ló g ico , q u e n ão trata do h o m e m p o rq u e n ão trata d as coisas q u e n ão são sig n o s, n ão tem de definir o h o ­ m em , m as só en sin ar de q u e m o d o as o u tras ciên cias, q u e tratam do h o m e m , d ev em definilo. P o r isso, o ló g ico n ão d ev e co n sig n ar n e ­

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DEFINIÇÃO n h u m a D . do h o m e m , a n ão ser p ara e x e m ­ plificar; n esse caso a D. d ad a co m o ex e m p lo d ev e ser n atu ral ou m etafísica" (Ibid., I, 26). E sse p o n to de v ista foi a d o ta d o p ela lógica p o s ­ terio r. Ju n g iu s d istin g u ia três e sp é c ie s de D.: n o m in al, essen cial e científica, q u e c o rre sp o n ­ d em aos três sign ificad os do term o e s ta b e le c i­ d o s p o r A ristó teles (Lógica, 1638, IV, II, 6-8; II, 15). L eibniz reiv in d icav a, co n tra L ocke, a d istin ­ ção e n tre D. n o m in a l e D . real, d iz e n d o q u e "a essê n cia do o u ro é aq u ilo q u e o co n stitu i e lh e co n fere as q u a lid a d e s sen sív eis q u e lh e p e rm i­ te m ser re c o n h e c id o co m o tal e to rn a m n o m i­ nal a su a definição, ao p a sso q u e te ría m o s a D. real e cau sai se p u d é s se m o s ex p licar su a estru ­ tu ra ou co n stitu iç ão interior" (Nouv. ess., III, 3, 19). M as a n te rio rm e n te (n u m en saio de 1684), d istin g u ira e n tre "D. n o m in a is, q u e co n têm ap e n a s as n o tas p ara d isc ern ir u m a co isa das o u tras, e D . reais, d as q u ais co n sta q u e a coisa é possível" (Op., ed. E rd m an n, p. 80). W olff v a­ le u -se d essas o b se rv a ç õ e s p ara d izer q u e "a D. d a q ual n ão resu lta q u e a coisa d efinida é p o s­ sível se d iz n o m in al; e aq u ela de q u e resu lta ser p o ssív el a coisa d efinida, se diz real" (Log., S 191); e, para d iv id ir as D . n o m in a is em e sse n ­ ciais e ac id en tais, ac o m o d av a a seu m o d o — co m o dizia e x p lic ita m en te — as n o ç õ e s esco lásticas (Ibid., § 192). K ant, p o r su a v ez , e n te n ­ dia q u e definir era "ex p o r o rig in ariam e n te o c o n ce ito ex p lícito de u m a coisa d e n tro d e seu s lim ites", e n te n d e n d o p o r explícito a. clareza e a suficiência das n o tas, p o r limites a p rec isão e p o r originariamente o caráter p rim itiv o da d e ­ te rm in a ç ã o , q u e n ão d ev e p recisar d e d e m o n s ­ tra ç ã o (Crít. R. Pura, D o u trin a do m é to d o , I, seç. I, § 1). 2- A p o ssib ilid a d e da D . n o m in a l foi ad m iti­ d a p o r A ristó teles co m o v ia s u b o rd in a d a e p re ­ p ara tó ria à D. real: "E co m o a D. é a d eclaração d a essê n cia h av erá ta m b é m a d ec laraç ão d a q u i­ lo q u e o n o m e significa ou o utra d eclaração n o m inal: p. ex., o q u e significa o n o m e triân g u ­ lo" (An.post, II, 10, 93 b 28). A d istin ção entre D. real e D. nom inal n ão d esp ertav a o interesse da lógica estó ica, q u e n ão atrib u ía à D . a tarefa d e d eclarar a essê n cia su b stan cia l, p o rta n to não se en c o n tra n o s escrito res de in sp iraç ão p re d o ­ m in a n te m e n te estó ica, co m o C ícero (Top, 5, 26 ss.) e B o écio (De diffinitione, P. L, 6 4 a col. 901-02). P e d ro H isp a n o ta m b é m a ig n ora. É utilizada p elo s lógicos term inistas m ed ievais p or­ q u e lh es fo rn ece o m o d o de definir o objeto esp ecífico d a ló g ica, co m o ciên cia d o s signos (v. os tre c h o s d e O c k h a m acim a citad o s).

DEFINIÇÃO

Mas só se tem uma teoria da D. propriamen­ te dita, como declaração da essência nominal, quando a essência nominal é considerada a única possível, podendo-se, portanto, dizer o mesmo de sua D. Nesse sentido Hobbes dizia: "A D. não pode ser outra coisa senão a expli­ cação de um nome mediante um discurso". Quando o nome se refere a um conceito com­ posto, a D. é a resolução do nome em suas par­ tes mais gerais, de sorte que se pode dizer que a D. é "a proposição cujo predicado é resolutivo do sujeito onde isso é possível; e onde não é possível, exemplificativo deste" (De corp, 6, § 14). Do mesmo modo, Locke diz que "D. outra coisa não é senão dar a conhecer o significado de uma palavra mediante vários outros termos não sinônimos" (Ensaio, III, 4, 6); e julga que "o melhor modo de dar uma D. é enumerar as idéias simples que se combinam no significado do termo definido" (Ibid, III, 3, 10). Nessa tradição, Stuart Mill afirmava que D. "é uma proposição declaratória do significado de uma palavra" (Logic, I, 8, 1). Expressões semelhantes recorrem em filósofos e lógicos mesmo recentes, que não admitem a doutrina da substância e se inclinam para um ponto de vista nominalista. O mais das vezes, todavia, a teoria da D. nominal apóia-se no pressuposto de que um nome não tem nem pode ter mais de uma D.; esse pressuposto distingue a teo­ ria da D. daquela que chamamos teoria da essência-significado. 3B Pode-se dizer que esta última teoria foi proposta pelos estóicos. Crisipo afirmava que a D. é uma resposta (OOTÓôooiç, DIÓG. L, VII, 1, 60), entendendo com isso que qualquer res­ posta dada à pergunta "o quê?'' pode ser consi­ derada uma D. da coisa. Foi provavelmente com base nessa noção extremamente genera­ lizada da D. que começaram a surgir numero­ sas espécies de D., como em Cícero (Top, 5, 26 ss.) e, na sua esteira, em Boécio. Este enume­ rou 15 espécies de D., privilegiando, como se disse, a primeira, que é a D. substancial. As outras 14 espécies são as seguintes: Ia D. nocional, que dá certa concepção do objeto, dizendo mais o que o objeto faz do que o que é; 2a D. qualitativa, que se vale de uma quali­ dade do objeto; 3a a D. descritiva, feita com caracteres que ilustram a natureza de uma coi­ sa; é peculiar ao orador; 4a D. verbal, que con­ siste em esclarecer uma palavra com outra pa­ lavra; 5a D. por diferença, que consiste em esclarecer a diferença entre dois objetos, p. ex.,

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DEFINIÇÃO

entre o rei e o tirano; 6a D. por metáfora, como p. ex. quando se diz que a juventude é a flor da idade; 7a a D. por privação do contrário, como p. ex. quando se diz que o bem é o que não é mal; 8a D. porhipotipose, que é a elaborada pela fantasia; 9a D. por comparação com um tipo, como quando se diz que o animal é como o homem; 10a D. porfalta deplenitude no mes­ mo gênero, como quando se diz que o plano é aquilo a que falta a profundidade; IP D. laudativa; 12a D. por analogia; p. ex.: "o ho­ mem é um microcosmo"; 13a D. relativa; p. ex.: "pai é quem tem filho"; 14a D. causai, p. ex.: "dia é o sol sobre a terra" (De diffinitione, P. L., 54a, col. 901-07). A disparidade dessa relação de Boécio é tal que qualquer resposta à per­ gunta "o quê?" pode ser considerada definição. Desse ponto de vista, a herança da teoria estóica da D. é o conceito moderno de que D. é a declaração do significado de um termo, ou seja, do uso que o termopode terem dado cam­ po de investigação. Desse ponto de vista, não existe uma essência privilegiada do termo (nem nominal nem real), mas existem possibili­ dades diferentes de defini-lo para fins diferen­ tes; todas as possibilidades podem, embora em graus diferentes, ser declaradas essenciais aos seus fins. Assim, pode-se considerar D. qual­ quer restrição ou limitação do uso de um termo em determinado contexto. E em todos os ca­ sos a D. supõe o contexto, ou, como disse M. Black, um conjunto de pressuposições que constituem um preâmbulo à D., de sorte que sua forma é "Toda vez que as condições fo­ rem assim e assim, o termo íserá usado assim e assim" (cf. M. BLACK, Problems ofAnalysis, 1954, p. 34). Segundo a natureza do preâm­ bulo, a D. poderá ter caráter diferente. Se o preâmbulo faz referência a linguagens artifi­ ciais (como a lógica e a matemática), a D. será simplesmente uma convenção (proposta ou aceita) sobre o uso da palavra em tal lingua­ gem (D. estipulativd). Se o preâmbulo fizer referência a linguagens não artificiais ou só em parte artificiais (como a linguagem comum e as das ciências empíricas), a D. será a declara­ ção do uso corrente do termo em questão (D. lexical) ou a proposta ou aceitação de uma modificação oportuna desse uso (redefinição) (cf. R. ROBINSON, Definition, 1954). A essa ter­ ceira espécie pertencem as D. dos termos conti­ dos neste dicionário, que utilizam, simplificam ou retificam os usos de um termo em lingua­ gem filosófica, científica ou corrente.

DEIDADE D E ID A D E (lat. Deitas; in. Deity, fr. Déité, ai. Gottheü; it. Deita). E m g eral, a essê n cia ou n a­ tu reza divina; e esse é o sen tid o e n c o n tra d o em S. A g o stin h o (De Trin., i IV, 20) e S. T o m á s (S. Th, I, q. 39, a. 5 ad 6fi). N o séc. XII, p o rém , G ilbert de Ia P o rré e identificou D eu s co m a D ., d istin g u in d o de D ., q u e seria a fo rm a ou a essên cia co m u m , as três p e sso a s da T rin d ad e. Essa d o u trin a, q u e era u m a e sp é c ie de triteísm o, p o rq u e esta b e le cia en tre as três p esso as d iv in as e a D . a m esm a re la ç ã o q u e há en tre os in d iv íd u o s h u m a n o s e a h u m a n id a d e , foi c o n ­ d e n a d a p o r S. B ern a rd o no C on cilio de P aris de 1147 e no de R eim s de 1148. D esd e e n tã o os esco lástico s ev itaram o te rm o deitas (que a p a ­ rece ra ra m en te) e em seu lu g ar u sa ram sim ­ p le sm e n te Deus. Esse te rm o foi e m p re g a d o p o r A le x a n d er p ara in d icar "a q u a lid a d e em p írica p ro x im a m e n te s u p e rio r ao esp írito , em cujo n ascim e n to o u n iv e rso está e m p e n h a d o " , ou seja, q u e será a p ró x im a realização , e so b re cuja ev o lu çã o e m e rg e n te n ad a se sa b e (Space, Time and Deity, 1920, II, p. 346). D E IF IC A Ç Ã O (gr. Gécoaiç; lat. Deificatio; in. Deification; fr. Deification; ai. Vergoettung, it. Deificazione). Id en tificação do h o m e m com D eu s co m o te rm o e re aliza çã o da a sce n são m ística. E sse te rm o ach a-se em D io nísio A reop ag ita (De eccl. hyer., 2) e foi re to m a d o p o r S cotus E rigena (Dediv. nat., V , 31) e p ela m ís­ tica m ed iev al. B ern a rd o de C laraval diz, a re s ­ p eito do êxtase ou excessus mentis, na qual D eu s d esce à alm a h u m a n a e esta se u n e a D eus: "De q u e m o d o D eu s p o d erá estar em to ­ d as as co isas, se algo de h u m a n o p e rm a n e c e r no h om em ? P erm a n e c e rá c e rta m e n te a s u b s ­ tância, m as em outra form a, co m outra glória, com outra p o tên cia . Isto significa deificar-se" (De dil. Deo, 11, 20). E N icolau de Cusa: "A eli­ m in ação d e to d a alte rid ad e e d iv ersid ad e, a re so lu çã o d e to d a s as co isas n a U n id a d e , q u e ta m b é m é a tran sfu são da U n id a d e em to d a s as co isas, isso é tbeosís" (DefiliationeDei, 67, 1). D E ÍSM O (in. Deism;fr. Déisme, ai. Deismus; it. Deísmó). D ou trin a d e u m a relig ião n atu ral ou racional n ão fu n d a d a na re v e la çã o histórica, m as na m anifestação natural da d iv in d ad e à ra­ zão do h om em . O D . é u m asp e c to do Iluminísmo (v .), de q u e faz p arte in te g ran te . M as as d isc u ssõ e s em to rn o do D . fo ram in iciad as p e lo s c h a m a d o s p la tô n ic o s d e C a m b rid g e , e sp e cialm en te p o r H erb ert de C h erb u ry em sua o bra De Veritate (1624). E ntre os o u tro s deístas in g leses d ev em ser le m b ra d o s os n o m e s de

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DELIBERAÇÃO J o h n T o lan d , M ath ew T in dal, A n th o n y C ollins, A n th o n y S haftesbury. A o b ra p rin cip a l do D. in g lês foi Cristianismo sem mistérios (1696) de J o h n T o lan d (1670-1722). O D. d ifu n d iu -se fora d a In g laterra co m o e le m e n to do Ilum inism o : são d eístas q u a se to d o s os ilum inistas franceses, alem ã es e italian os. N em to d o s, p o rém , u sam a p alavra D. para d esig nar su as cren ças religiosas: V oltaire, p. ex., u sa a p alav ra "teísm o" (Dictionnairephilosophique, \1(A, art. Athée, Théiste). M as foi K ant q u e e sta b e le c e u claram en te a d istin ção. A s te se s fu n d a m en tais do D . p o d e m ser reca p itu la d a s assim : Ia a relig ião n ão co n tém e n ão p o d e co n te r n ad a d e irracio n al (to m an d o p o r critério de ra c io n a lid a d e a razão lo ck ian a e n ão a cartesian a); 2a a v e rd a d e da relig ião re v e­ la-se, p o rta n to , à p ró p ria ra zã o , e a re v e la çã o h istórica é sup érflu a; 3a as cren ça s d a religião n atu ra l são p o u c a s e sim p les: ex istê n c ia de D eu s, criação e g o v e rn o d iv in o do m u n d o , re ­ trib u ição do m al e do b em em v id a futura. N o te-se, p o rém , q u e em re la ção ao co n ceito d e D eu s n em to d o s os d eístas estav am d e aco r­ do. E n q u an to os d eístas in g leses atrib u em a D eu s n ão só o g o v e rn o do m u n d o físico (a g a­ rantia da o rd em do m u n d o ), m as ta m b é m o do m u n d o m oral, os d eístas fran ceses, a co m eçar p o r V oltaire, n eg am q u e D eu s se o c u p e d os h o ­ m en s e lh e atrib u em a m ais radical indiferença q u a n to ao seu d estin o ( Traité de métaphysique, 9). T od av ia, a "religião n atu ral" de R ou sseau é u m a form a de D . m ais p ró x im a da in g lesa p o r­ q u e atrib u i a D eu s ta m b é m a tarefa de g arantir a o rd e m m oral do m u n d o . E m to d o caso , o q ue há de p ec u liar ao D ., em re la ç ã o ao teísmo (v.), é a n eg a ç ã o da re v e la çã o e a re d u ç ã o do co n ­ ceito d e D eu s às características q u e lh e p o d em ser atrib u íd as pela ra zã o . E ssa é a d istin ção esta b e le cid a en tre D . e te ísm o p o r K ant (Crít. R. Pura, D ialética, cap. III, seç. VII) (v. DEUS). D ELIBERA ÇÃO (g r.P o ú tew tÇ ;lat. Consilium; in. Deliberation; fr. Délibération; ai. Überlegung; it. Deliberazioné). C o n sid era çã o d as al­ tern ativ as p o ssív eis q u e certa situ aç ão oferece à esco lh a. É o q u e A ristó teles q u e r d izer ao falar d o s limites d a D ., e x c lu in d o do âm bito dela n ão só o necessário (q u e n ão p o d e não ser), m as ta m b é m o fim. C om efeito, A ristóteles o b serv a q u e o m éd ic o n ão se p erg u n ta se quer ou n ão cu rar o d o e n te , o o ra d o r n ão se p e rg u n ­ ta se q u e r ou n ão p ersu ad ir, n em o p o lítico se q u e r ou n ão in stitu ir b o a leg islação . A o co n trá­ rio, u m a v e z p o sto o fim, e x a m in a -se co m o e

DEMAGOGIA

por quais meios se poderá atingi-lo; sobre esses meios, portanto, versará a deliberação. A D. conclui-se e culmina na escolha. O objeto de ambas é o mesmo, salvo pelo fato de que o objeto da escolha já está definido pelo proces­ so deliberativo a que a escolha põe termo (Et. níc, III, 3, 1112 a 21 ss.). Essas definições de Aristóteles tornaram-se clássicas. DEM AGOGIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.

DEMIURGO (gr. ôr|u.iot>pyóç;; lat. Demiurgus; in. Demiurge, fr. Demiurge, ai. Demiurg; it. Demiurgo). O artífice do mundo. Essa pala­ vra tem origem em Timeu, de Platão; nessa obra, a causa criadora do mundo é atribuída a uma divindade artífice que cria o mundo à se­ melhança da realidade ideal, utilizando uma matéria informe e resistente que Platão chama de "matriz do mundo" (Tim., 51 a). A obra criadora do D. (analogamente à de um artesão humano) não investe mas pressupõe os princí­ pios constitutivos da própria natureza, que são: le as formas ideais eternas; 2B a matéria com sua necessidade; 3S o espaço que não admite geração e destruição e que é a sede de tudo o que é gerado (Ibid., 52 b). Para Platão o D. também é o criador das outras divindades, que receberam a função de gerar os seres vivos (Jbid., 41 c). A noção de D. foi retomada várias vezes na história da filosofia. No séc. I, Numênio de Apaméia distinguiu o D. da Inte­ ligência como um Deus que atua sobre a ma­ téria e forma o mundo. O mundo seria o tercei­ ro D eus (EUSÉBIO, Praep. Ev., XIV, 5). N o séc. II, foi retomada pelos gnósticos: Valentino con­ siderou o D. como o último dos eons ou divinda­ des em anad as (CLEMENTE, Strom., IV, 13, 89). N a idade moderna a concepção do D. foi retoma­ da por Stuart Mill, que considerou o poder divi­ no limitado pela qualidade da matéria empre­ gada, pela substância ou pelas forças de que se compõe o universo e pela incapacidade de rea­ lizar da melhor forma os fins estabelecidos (Three Essays on Relig, 3a ed., 1885, p. 194). DEMOCRACIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.

DEMONÍACO (lat. Daemoniacus; in. Demoniac, fr. Démoniaque-, ai. Teuflisch; it. Demo­ níaco). No uso corrente, esse adjetivo faz refe­ rência exclusivamente aos demônios maus, logo significa o mesmo que diabólico. Segundo Kant, o diabolismo caracteriza-se pela malícia, pela intenção de acatar como motivo das ações o mal enquanto mal (Religion, I, 3). Quanto ao próprio diabo, Kant vê nele a personificação de um ensinamento moral que era assim posto ao

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DEMONSTRAÇÃO

alcance de todos, ou seja, do ensinamento de que não há salvação para os homens a não ser na aceitação dos princípios morais, e que a essa aceitação não se opõe a sensibilidade, que é disso acusada muitas vezes, mas certa per­ versidade ou falsidade simbolizada pela astú­ cia de Satã, graças à qual o mal entrou no mundo (Ibid, II, 2). DEMÔNIO (gr. GQÍICM lat. Daemon; in. Demon, fr. Démon; ai. Daemon, it. Demone). Ser di­ vino em geral, que não o supremo, ao qual é ha­ bitualmente reservada a função de mediação. Sócrates atribuía à voz que o chamava para sua tarefa e para o que devia ou não fazer ''algo de divino" (Soa|i(í)viov Ti, Ap, 31 D), expressão que significa simplesmente o caráter divino ou transcendente do chamamento. Depois, foram freqüentemente chamadas de D. as divindades inferiores ou subordinadas, que muitas vezes os filósofos identificaram com as admitidas pela re­ ligião tradicional. Já Platão admitira essas divin­ dades como criadas pelo Demiurgo (Tim, 41 a). Os estóicos pensavam do mesmo modo (DiÓG. L, VII, 147). Plotino diz que um D. é uma "ima­ gem de Deus" (Enn., VI, 7, 6) e que os D. estão na segunda ordem, logo depois dos deuses, ao passo que depois deles vêm os homens e os ani­ mais (Ibid., III, 2,11). O neoplatonismo siríaco, como Plutarco, multiplica os D., considerandoos todos emanações, mais ou menos remotas, da divindade suprema. O cristianismo adotou a seu modo a doutrina dos D., chamando de an­ jos os bons D. e reservando o nome de D. aos anjos m au s (v. ANJOS).

DEMONSTRAÇÃO (in. Demonstration; fr. Demonstration; ai. Demonstration; it. Dimostrazione). O termo D. e seu conceito (àTióôeiAiç, lat. demonstratio) foram introduzi­ dos na Lógica por Aristóteles (Top, I, 100 a 27; An. post., I, 2 e passirrí) como silogismo que deduz uma conclusão de princípios pri­ meiros e verdadeiros ou de outras proposi­ ções deduzidas silogisticamente de princípios primeiros e evidentes. Sua estrutura formal é a do silogismo; distingue-se, porém, do silo­ gismo dialético porque, como dirão os lógicos medievais, facit scire, é demonstrativa da es­ sência das coisas através do conhecimento das suas "causas". Substancialmente é esse o conceito de D. que passou para a filosofia moderna. Mas, enquanto do ponto de vista gnosiológico se acentuaram os caracteres de necessidade e evidência intuitiva da D. (Des­ cartes, Kant), do ponto de vista lógico eviden­

DEMONSTRAÇÃO POR ABSURDO

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DESCRIÇÃO

cio u -se o caráter de dedução form al a p artir cie p rem issas (D escartes, L eibniz), o q u e d is­ tin g u e a D . (cujo tip o ou ideal co n tin u a s e n d o a D . m atem ática) de o u tro s g ê n e ro s de p rova. N a Lógica c o n te m p o râ n e a , o te rm o D. n ão é m u ito u sa d o : em g eral d esig n a u m a se q ü ê n c ia d e e n u n c ia d o s tais q u e cad a u m d ele s é u m e n u n c ia d o p rim itiv o ou e n tã o é d ire ta m e n te d erivável de u m ou m ais e n u n c ia d o s q u e o p re c e d e m na se q ü ê n c ia (CARNAP, Logical Syn­ tax ofLanguage, § 10). D u ran te m u ito te m p o a D. foi c o n sid e ra d a a p ró p ria essê n cia da ciên­ cia (v .). D EM ONSTRAÇÃO P O R A BSU RD O . V. AB

d ev e ser o en te p ara ser perfeito" (Psicol., Pref, § 19)- O ápice d as ciências d eo n to ló g icas seria a ética (d o utrin a da ju s tiç a ). D E R IV A Ç Õ E S . V. r esíd u o s . D E SC O B E R T A (ai. Entdeckbeit). S eg un d o H eid eg g er, "a p o ssib ilid a d e do ser de to d o s os en te s não d o ta d o s do caráter do ser-aí" [isto é, d e to d a s as coisas do m u nd o] de ser p ro c u ra d o e d e te rm in a d o "através de u m p ro c e sso p arti­ cu lar q u e o d e sc o b re p a rtin d o do en te q u e pela p rim eira v e z se en c o n tra no m u n d o ". É, se g u n ­ do H eid e g g er, u m d o s ca ra cte re s fu n d am en tais d as co isas, e n q u a n to u tilizáveis, e p o rta n to , da mundanidade em geral (Sein und Zeit, § 18).

D E N O M IN A Ç Ã O (lat. Denominatio; in. Denomination; fr. Dénomination; ai. Benennung; it. Denominazione). E m re la ção ao s d en o m in ativ o s ou parônimos (v.), d istin g u id o s p o r A ristó teles d os equívocos e d os unívocos (v.), os n o m in a lista s do séc. X IV e m p re g a ra m esse te rm o p ara in d ica r a fu n ção d as "seg u n d as in ten çõ es", isto é, d os co n ce ito s ló g ico s (com o "conceito", "categoria", etc.) q u e n ão se refe­ rem a co isas, m as serv em só p ara d e n o m in á las. D iz P ed ro A u réo lo : "A ló g ica, q u e c o n sid e ­ ra as in te n ç õ e s s e g u n d a s, trata d as in te le cçõ e s n ão e n q u a n to co isas v e rd a d e ira s, m as e n q u a n ­ to se m e lh a n ç a s q u e d e n o m in a m as co isas" (In Sent., I, d. 23, a. 1). N esse se n tid o as in te n ç õ e s se g u n d a s são o b jeto s só "d en o m in ativ a m en te ", do m esm o m o d o co m o se p o d e ch a m a r de "César" u m retrato de C ésar. A Lógica de PortR oyal u so u a e x p ressã o "m o do s ex te rn o s" ou "D. extrínseca" para indicar os m o d o s em q u e a su b stân cia deriva d a aç ão d e outra coisa; p. ex.: ser am ad o , ser visto, ser d esejad o , etc. (ARNAULD, Logique, I, 2).

in. Description; fr. Description; ai. Beschreibung; it. Descrizione). E sse te rm o foi in tro d u ­ zido p elo s estó ico s, p ois a su a n o ç ã o p erm a­ n e c e ra e s tra n h a a A ristó te le s. S e g u n d o os e stó ic o s, a D. é "um d iscu rso q u e c o n d u z à co i­ sa atrav és d e su a s m arcas" (DIÓG. L , V II, 1, 60). Isso e s ta b e le c e a difereça en tre D. e definição, p o is e n q u a n to esta d eclara a essê n cia , q u e é u n iv ersal, a D. c o n d u z à coisa sin g u lar, faz refe­ rência à in d iv id u a lid ad e da coisa, àq u ilo q ue a d istin g u e d as o u tras. A p artir de B o écio (De differentiis topicis, II, P. L, 643, col. 1187), a D. c o m eç o u a ser ca ra cte riza d a , em re la ção à defi­ n ição , p elo u so de ca ra cte re s acid en ta is, m uito co m u m nela. O s ló g ico s m ed ie v a is extraíram seu c o n ce ito de Dialectica (cap. 14) d e Jo ã o D am a sc e n o (séc. V III): "A D. c o m p õ e -se de a c id en te s, de ca racteres p ró p rio s e acid en tais, co m o p. ex.: o h o m e m é ca p a z de rir, an d a ere­ to e tem u n h a s larg as. E sse é o c o n c e ito que ta m b é m se re p e te em Lógica de P ed ro H ispano: "A D . é o d iscu rso q u e significa o q u e é o ser de u m a coisa m e d ia n te ca ra cte re s acidentais" (Summ. log., 5. 12). O c k h am dizia no m esm o sen tid o : "A D. é u m d iscu rso su c in to co m p o sto d e ca racteres ac id en ta is e p ró p rio s" (Summa log., I, 27); d efinição q u a se id ên tica era aceita e d ifu n did a p ela Lógica de P ort-R oyal (II, 16) e p o r Ju n g iu s (Lógica hamburgensis, I, 1, 48). D essa d o u trin a trad ic io n a l a ló g ica c o n te m ­ p o râ n e a aceita só o significado g eral, isto é, o re c o n h e c im e n to do caráter in d iv id u a liz an te da d escriçã o . M as ch o c a -se co m a d ificu ld ad e re­ p re s e n ta d a p elo fato de a D . ser co n stitu íd a por p ro p o siç õ e s q u e têm sentido (no se n tid o de F reg e), c o n o ta ç ã o , m as n ão significado, den o taçà o , q u e co n siste n a referên cia a u m objeto e x iste n te . F rases co m o "O a u to r da Divina Comédia era italian o", "O atual re i da F rança é

SURDO.

DENOTAÇÃO. CONOTAÇÃO.

D E O N T O L O G IA (in. Deontology, fr. Déontologie, ai. Deontologie, it. Deontologid).T erm o criado p o r Je re m y B en th am (D. ou Ciência da Moralidade, p u b lic a ç ã o p ó stu m a de 1834) para d esig n ar u m a ciên cia do "co n v en ien te", ou seja, u m a m oral fu n d ad a na te n d ê n c ia a p erse g u ir o p razer e fugir d a d o r e q u e, p o rta n to , n ão lan ce m ão de ap e lo s à co n sc iên c ia, ao d ev er etc. "A tarefa do d e o n tó lo g o ", d iz B en th am , "é en sin ar ao h o m e m co m o dirigir su a s e m o ç õ e s de tal m o d o q u e as s u b o rd in e na m ed id a do p ossív el, a seu p ró p rio bem -estar" (Deont, I, 2). M uito di­ ferente d esse u so é o p ro p o sto p o r R osm ini, q u e e n te n d e u p o r "d eo n to ló g icas" as ciên cias n o rm ativ a s, ou seja, as q u e in d a g a m "com o

DESCRIÇÃO (gr. Ú7iOYpo«pií; lat. Descriptio;

DESCRITIVO

careca", "Pégaso era o cavalo alado capturado por Belerofonte" não parecem fazer nenhuma referência a qualquer objeto ou entidade, ou seja, não denotam nada; as duas últimas, aliás, descrevem objetos inexistentes, quais sejam, "o atual rei da França" e "Pégaso". Para evitar esse inconveniente, Russell (OnDenoting, 1905, agora em Logic andKnowledge, 1956, p. 39 ss.; Principia mathematica, I, p. 36) propôs in­ terpretar essas frases descritivas como se dis­ sessem: "Há uma entidade x que é o autor da Divina Comédia e é italiano", "Há uma entida­ de xque agora é rei da França e é careca", "Há uma entidade x que é um cavalo alado e foi capturado por Belerofonte". Desse ponto de vista, para ser verdadeira a negação de uma das frases descritivas acima Cp. ex., "O atual rei da França não é careca") deveria significar "É falso que há uma entidade que agora é rei da França e é careca", o que parece nada ter a ver com o sentido da frase. Frege admitira que toda expressão acabada deve pressupor a referência a um objeto, ou seja, um denotado, mas considerara possível que na linguagem comum, assim como na lin­ guagem matemática, existam expressões que têm apenas sentido e não significado, que são indeterminadas em termos de significado ( Über Sinn und Bedeutung, 1892, em Aritmética e lógica, p. 327), e Carnap aceitou substancial­ mente esse ponto de vista (Meaning and Necessity, 1957, §§ 7-8). Quine, por outro lado, aceitou a interpretação de Russel, mesmo ad­ mitindo que o compromisso ontológico expresso pela frase "Há alguma coisa que..." não faz re­ ferência necessária ao mundo da experiência, mas pode também referir-se a formas de exis­ tência mental ou mítica (From a Logical Point ofView, cap. I). Nesses termos, o problema da D. tem co­ nexões estreitas com o da natureza do signifi­ cado (v.). DESCRITIVO (in. Descriptive, fr. Descriptif, ai. Beschreibende, it. Descrittivo). Além do signifi­ cado genérico, correspondente ao do subs­ tantivo, esse adjetivo tem dois significados controversos, quais sejam: 1Q o de ciência D., que, a partir do séc. XVIII, foi contraposta à ciência explicativa e ao "espírito de sistema", que pretendia explicar os fenômenos recor­ rendo às causas da metafísica tradicional (cf. p. ex., D'ALEMBERT, Discoursde 1 'Encyclopédie, (Euvres, ed. Condorcet, p. 156-157); 2Q o da terminologia contemporânea, em que D. se

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DESENVOLVIMENTO

contrapõe a persuasivo como qualificação de significado fazendo-se a distinção entre signifi­ cado descritivo de um signo, que consiste em sua disposição a produzir conhecimento, de significado persuasivo, que consistiria em pro­ duzir uma resposta de natureza emotiva (cf. C. L. STEVENSON, EthicsandLanguage, 5a ed., 1950, cap. III, especialmente, p. 59) (v. SIGNIFICADO). DESEJO (gr. èjn0"U|iia; lat. Cupiditas; in. Desire, fr. Désir, ai. Begehren; it. Desideriò). Esse termo pode ter dois significados: le geral, de apetite, de princípio que impele um ser vivo à ação; para tal significado, v. APETTTF.; 2S mais restrito, de apetite sensível, pelo qual correspon­ de ao grego ènv0V)|a.ía e ao latim cupiditas. Nesse sentido, segundo Aristóteles, o D. é "o apetite do que é agradável" (De an., II, 3, 414 b 6). Analogamente, Descartes o definiu como "a agitação da alma causada pelos espíritos que a dispõem a querer no futuro as coisas que a ela se afiguram convenientes" (Pass. de Vâme, § 86). Equivalente a esta é a definição de Spinoza: "Tristeza ligada à falta da coisa que ama­ mos" (Et, III, 36, scol). Esses significados re­ petem-se ao longo da história da filosofia. Na literatura contemporânea essa palavra assumiu alguns significados novos. Dewey de­ finiu o D. como "atividade que procura agir no sentido de romper o dique que a retém. O objeto que se apresenta no pensamento como meta do D. é o objeto do ambiente que, se es­ tivesse presente, garantiria a reunificação da atividade e a restauração de sua unidade" (Human Nature and Conduct, pp. 249 ss.). Heidegger vinculou o D. à natureza do homem como ser projetante: "O ser para as possibilida­ des manifesta-se em geral como puro desejo. No D., o ser-aí projeta seu ser para possibilida­ des que não somente não são captadas na ocu­ pação, como também não se examina seria­ mente nem se espera a sua realização (Sein und Zeit, § 41). DESENVOLVIMENTO (in. Development; fr. Développement; ai. Entwicklung; it. Sviluppo, Svolgimentó). Movimento em direção ao me­ lhor. Embora essa noção tenha precedentes no conceito aristotélico de movimento (v.) como passagem da potência ao ato ou explicação do que está implícito (CÍCERO, Top, 9), seu signifi­ cado otimista é peculiar à filosofia do séc. XIX e está estreitamente ligado ao conceito de pro­ gresso (v.). Seu sinônimo mais próximo é evolu­ ção (v.), mas este último termo é mais fre­ qüentemente usado para indicar o D. biológico

DESESPERANÇA ou u m D. có sm ico , cujas raízes e an alo g ias estão no D. b io ló g ico . Sem referên cia a esse asp ecto p articular, esse te rm o foi u sa d o p o r H eg el, q u e o tran sfo rm o u n u m a d as ca te g o rias fu n d a m e n ­ tais de su a filosofia e o ex em p lifico u so b re tu d o na história. Ao lado do caráter progressista do D, H eg el d estac o u o u tro caráter fu n d am en tal: o D . p re s su p õ e aq u ilo de q u e é D ., isto é, o fim para o qual se m o v e e o p rin cíp io ou a cau sa de si m esm o . "O esp írito ", disse H eg el, ''q u e tem co m o te atro , d o m ín io e ca m p o de re aliza­ ção a história do m u n d o , n ão v ag u e ia n as o sc i­ la ç õ e s e x trín s e c a s do a c a s o , m a s é em si d e te rm in a n te ab so lu to ... O q u e q u e r é alcan çar seu p ró p rio co n ce ito , m as ele m esm o o o b scu rece p ara si, tem o rg u lh o e p ra z e r n esse alhearse d e si m esm o " (Philosophíe der Geschíchte, ed. L asson, p p. f 31-32). N esse se n tid o , o A b so ­ lu to é D. "O v e rd a d e iro é o integral. M as o integral é so m e n te a su b stân cia q u e se c o m p le ­ ta atrav és de seu d e s e n v o lv im e n to . Do Abso­ luto deve-se dizer que é essencialmente resul­ tado, q u e só no fim é o q u e é na v e rd a d e ; e ju sta m e n te n isso co n siste sua n atu re za , em ser efetividade, sujeito ou D. de si m esm o" (Phánomen. des Geistes, Pref., II, 1). O q u e esse co n ce ito tem d e n o v o em re la ção ao co n ce ito aristo télico do m o v im e n to é a ap lic a ç ã o ao m u n d o da h istória e a e x te n sã o a to d o s os as­ p ec to s da re a lid a d e . M as o ca rá ter finalista, p ro v id en cialista e su b stan cialista do D. ilustra­ d o p o r H e g e l te m c o r r e s p o n d ê n c ia co m a d o u trin a aristo télica do m o v im e n to , q u e ta m ­ b ém é finalista e p ro v id e n c ia lista , e x ig in d o ta m b é m q u e aq u ilo q u e se d e se n v o lv e seja p re ssu p o sto p elo p ró p rio D.: n ão é o u tro o significado da su p e rio rid a d e do ato so b re a p o ­ tência, a q u e é d e d ic a d o u m c é le b re estu d o de A ristó teles {Mel, IX, 8) (cf. A ro ). D E SE SPE R A N Ç A (in. Desperation;fr. Désespoir, ai. Verzweiflung; it. Disperazione). S eg u n ­ do K ierk eg aard , é "a d o e n ç a m o rtal", a d o e n ç a p ró p ria d a p e rso n a lid a d e h u m a n a e q u e a to r­ na in ca p a z de realizar-se. E n q u an to a an g ústia se refere à re la ção do h o m e m co m o m u n d o , a D . refere-se à re la ção do h o m e m co n sig o m es­ m o , em q u e co n siste p ro p ria m e n te o eu. N essa relação , se o eu q u ise r se r ele m esm o , p o is é finito, lo g o insuficiente a si m esm o , n ão c h e g a ­ rá ja m ais ao eq u ilíb rio e ao re p o u so . E se n ão qu iser ser ele m esm o ch o car-se-á ta m b é m c o n ­ tra u m a im p o ssib ilid a d e fu n d am en tal. E m um e o u tro caso tro p eç ará na D ., q u e é "viver a m o r­ te do eu", isto é, a n eg aç ão d a p o ssib ilid ad e do

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DESORDEM

eu na v ã tentativa de to rn á-lo auto-suficiente ou d e s tru í-lo em su a n a tu re z a (A doença mortal, 1849, esp . p arte I, C). T a m b ém para J a sp e rs a D. é u m d o s asp ecto s fundam entais da ex istência (Phil, II, 266 ss.; II, 225 ss.). DESIGNADO (kit. Designatum;in. Designate). N a lógica c o n te m p o râ n e a e n te n d e -se p o r essa p alav ra o o bjeto q u a lq u e r, ex iste n te ou in ex is­ te n te, q u e o sig n o p o d e d en o tar. O denotado, ao co n trá rio , é algo d e ex isten te. E ntre "desig­ n ação " e "d en o tação " e sta b e le c e -se d istin ção an álo g a, m as am b as significam a referên cia de u m sig n o ao seu o bjeto (cf. DEWEY, Logic, cap. XVIII; trad . it., p. 473; MORRIS, Foundations of lhe Theory ofSigns, § 7; trad. it., p. 69) (v. SEMIÓTICA). D E S IG N A D O R (in. Desígnator). T erm o e m p re g a d o p o r M orris p ara in d icar u m a e sp é ­ cie de sig n o , m ais p re c isa m e n te aq u ela pela q ual "o in té rp rete d isp õ e -se a seq ü ê n c ia s de re sp o sta s d e te rm in a d a s p o r u m o bjeto q u e tem ce rtas ca ra cte rística s" (Signs, Language and Behauior, 1946, III, 3). C arn ap em p re g o u esse term o para in d icar "todas as e x p ressõ e s às quais se aplica u m a an álise sem ân tica do significado, de tal m o d o q u e a classe d o s D. seja m ais vasta ou m ais restrita co n fo rm e o m é to d o de análise e m p re g a d o " (Meaning andNecessity, § 1). D ESM ITIFIÇ A Ç Ã O (ai. Entmythologisierung, fr. Démythisation, it. Demítizzazione). C orrente te o ló g ic a de R udolf B ultm an n q u e te n d e a li­ b e rta r a m en sa g e m cristã (ketygma) do m ito co sm o ló g ic o co m q u e está u n id a no N ovo T es­ ta m en to . L ibertada d as im a g e n s e d os sím bo lo s do m ito, a m en sag em cristã é u m d iag n óstico da ex istên cia h u m a n a no m u n d o , ou seja, do h o m e m e x iste n te h isto ric am en te n as o cu p a­ çõ es, na an g ústia, no in stan te de d ec isã o en­ tre p a ssa d o e futuro. A u m a ex istên cia assim e n te n d id a a s a lv a ç ã o a p r e s e n ta - s e co m o a c o n te c im e n to q u e d ev e o co rre r no fu tu ro e co m o q ual D eu s p õ e fim ao m u n d o e à sua história (R. BULTMANN, Offenbarung undHeilsgeschehen, 1941; Geschichte und Escatologie, 1958; Kerygma undMythos (de v ário s au to res), 5 v o ls., 1948-55]. D E S O R D E M (in. Disorder, fr. Désordre, ai. Unordnung; it. Disordine). N u m a an á lise céle­ b re (Évol. créatr, cap. III), B ergson m ostrou o ca­ ráter e a fu n ção p ositiva da n o ç ã o de d esor­ dem . Ela n ã o ex p rim e a au sên cia ab so lu ta de o rd em , m as só a au sên cia da o rd e m procurada e a p resen ça de u m a o rd em d iferen te (do m es­ m o m o d o co m o se diz "N ão h á v erso s" q u an d o

DESSEMELHANÇA se p ro cu ram v e rs o s e se e n c o n tra p ro s a ). Bergson red u z a d o is os tip o s fu n d a m en tais de ordem, que, su b stitu in d o -se u m ao o u tro , le ­ vam a falar de D.; são eles o g e o m é tric o e o vital: "Dos fe n ô m en o s astro n ô m ico s dir-se-á q u e manifestam u m a o rd em ad m iráv el, e n te n d e n ­ do com isso q u e p o d e m o s p rev ê-lo s m a te m a ­ ticamente. E e n c o n tra r-se -á o rd e m n ão m en o s admirável n um a sinfon ia de B ee th o v en , q u e é genialidade, o rig in alid ad e e, c o n s e q ü e n te m e n ­ te, a própria im p rev isib ilid ad e" (Ibid, 8- ed., 1911, p. 244) (v. ORDEM). D ESSEM ELH ANÇAÍgr. àU oícooiÇ ; lat. Dissimilitudo; in. Dissimilitude, fr. Dissimilitude, ai. Ungleíchheit; it. Dissimiglianzá). A falta ou a imperfeição da semelhança (v. SEMELHANTE).

DESTINO (gr. £ÍLiapLiévr|; lat. Fatum; in. Des-

tiny, fr. Destin; ai. Geschick, Schicksal; it. Desti­ no). A ção n ec essitan te q u e a o rd em do m u n d o exerce so b re ca d a u m de se u s se re s s in g u la ­ res. N a sua fo rm u lação trad icio n al, esse co n eito implica: Ia n e c e ssid a d e , q u a se s e m p re d e s ­ conhecida e p o r isso cega, q u e d o m in a cad a indivíduo do m u n d o e n q u a n to p arte da o rd em total; 2a a d a p ta ç ã o p e rfe ita d e c a d a in ­ divíduo ao seu lugar, ao seu p a p e l ou à sua função no m u n d o , v isto q u e, co m o e n g re n a ­ gem da o rd em total, cad a ser efeito p ara aq u ilo que faz. 0 conceito de D. é an tiq u íssim o e b a sta n te difundido, p o rq u e c o m p a rtilh a d o p o r to d as as filosofias q ue, de algu m m o d o , ad m item u m a ordem n ecessária do m u n d o . A qu i só farem os alusão às q u e d esig n a m ex p lic ita m e n te essa ordem com o te rm o em q u e stã o . O D. é n o ç ão dom inante na filosofia estó ica. C risipo, P osid ônio, Z enão, B o eto o re c o n h e c e ra m co m o a "causa necessária" de tu d o ou a "razão" pela qual o m u nd o é d irigido . Id en tificav am -n o com a providência (DiÓG. L., VII, 149). O s estó ico s latinos reto m am essa n o ç ã o e ap o n ta m seu s re ­ flexos m orais (SÊNECA, Natur. quaest., II, 36, 4 5 ; MARCO AURÉLIO, Memórias, IX , 1 5 ). S eg u n d o Plotino, ao D. q u e d o m in a to d a s as co isas ex ­ teriores só escapa a alm a q u e to m a co m o guia "a razão pura e im p assível q u e lh e p e rte n c e de pleno direito", q u e h au re em si, e n ão no e x te ­ rior, o princípio de su a p ró p ria aç ão (Enn., III, 1,9). Para Plotino, a p ro v id ê n c ia é um a só: nas coisas inferiores ch am a-se D.; n as su p e rio re s, providência {ibid., III, 3, 5). D e m o d o an á lo g o , para Boécio (que co m a Consolação dafiloso­ fia transmitia esses p ro b lem as à E scolástica lati­ na), D. e p ro vidência só se d istin g u em p o rq u e

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DESTINO

a p ro v id ê n c ia é a o rd e m do m u n d o v ista pela in telig ên cia divina e o D. é essa m esm a o rd em d e sd o b ra d a no te m p o . M as n o fu n d o a o rd em do D. d e p e n d e da p ro v id ê n c ia (Phil. cons, IV, 6 ,1 0). O livre-arbítrio h u m a n o sub trai-se d a p ro ­ v id ên cia e do D . só p o rq u e as açõ es a q u e dá o rig em se in clu em , e x a ta m e n te em sua lib e rd a ­ de, na o rd e m do D. (Ibid., V , 6). Essa so lu ç ão d ev eria in sp irar to d a s as so lu ç õ e s an álo g as da E scolástica, q u e co n se rv a o m esm o co n ce ito d e D . e d e p ro v id ê n c ia (cf., p . e x ., S . TOMÁS, S. Th, I, q. 116, a. 2). E m sua Teodicéia, L eibniz re p ro p u n h a a m esm a so lu ç ão (Théod., I, § 62). N a filosofia do R o m an tism o , e n q u a n to S chop e n h a u e r c o n sid e ra o D . co m o aç ão d e te r­ m in an te , no h o m e m e n a história, da V o n ta d e de v id a n a su a n a tu re z a d ila c e ra n te e d o lo ro sa (Die Welt, II, cap. 38), H eg el lim ita o D. à n e ­ c e ss id a d e m e c â n ic a . "À p o tê n c ia " , d iz ele, "com o u n iv e rsa lid a d e objetiva e v io lên cia c o n ­ tra o o bjeto , d á-se o n o m e d e D.: co n ce ito q ue se inclui n o mecanicismo p o rq u a n to o D . é c h a m a d o de ceg o , ou seja, sua u n iv e rsa lid a d e objetiva n ã o é c o n h e c id a p elo sujeito em sua p ro p r ie d a d e ou p a rtic u la rid a d e esp ecífica" (WissenschqftderLogik, III, II, 1, B, b; trad. it., III, p. 199). N esse s e n tid o , o D. é a p ró p ria n e ­ c e ssid ad e racio n al do m u n d o , m as e n q u a n to ig n o ran te de si m esm a e, p o rta n to , "cega". M as d u ra n te esse m esm o p e río d o , do p o n to d e v is­ ta d e n e c e ssid a d e "p u ram e n te racio n al", ta n to in te rp retad a co m o d ialética, q u a n to co m o d e ­ te rm in ism o cau sai, a p alav ra D . c o m eç o u a p a­ re c e r fan tástica ou m ítica d e m a is p ara d e sig ­ n ar essa n e c e ssid a d e . F oi e n tã o a b a n d o n a d a e su b stitu íd a p o r te rm o s q u e ex p rim e m a n a tu re ­ za objetiva e ca u sai da n e c e ssid a d e , co m o p. ex. n e c e ssid a d e , d ialética, d ete rm in ism o , ca u ­ salid ad e; no d o m ín io da ciên cia, é regida p elas "leis etern a s e im u táv eis da n atu reza". Q u a n d o a p alavra D . v olta, em N ietzsch e e no ex iste n c ia lism o alem ã o , tem n o v o significa­ d o: ex p rim e a ac eitaç ão e a v o liçâ o da n e c e ssi­ d ad e, o amorfati. N ietzsch e foi o p rim e iro a e x p re ssa r e sse conceito tão ca racterístico de certa te n d ê n c ia da filosofia c o n te m p o râ n e a . Ele in te rp re ta a n e c e s s id a d e do d e v ir c ó sm ic o co m o v o n ta d e de reafirm ação: d e sd e a e te rn i­ d ad e o m u n d o aceita-se e q u e r-se a si m esm o , p o r isso re p e te -se e te rn a m e n te . M as o h o m e m d ev e fazer aígo m ais q u e aceitar esse p e n sa ­ m en to : d ev e ele p ró p rio p ro m e te r-se ao anel dos anéis: "É p rec iso fazer o v o to do re to rn o de si m esm o co m o an el da etern a b ê n ç ã o de si e

DETERMINAÇÃO da etern a afirm ação de si; é p reciso atin gir a v o n ta d e de q u e re r re tro s p e c tiv a m e n te tu d o o q u e a c o n te c e u , de q u e re r p ara a fren te tu ­ do o q ue aco ntecerá" (WillezurMacht, ed. 1901, § 385). E sse é o amorfati, no q u al N ietzsch e v ê a "fórm ula d a g ra n d e z a do h o m em ". H eid e g g er não fez s e n ã o ex p rim ir o m esm o c o n ce ito ao falar do D. co m o d ec isã o au tên tica do h o m e m . D . é a d ec isã o de re to rn ar a si m esm o , d e tra n s ­ m itir-se a si m esm o e de assu m ir a h era n ç a das p o ssib ilid ad es p assa d a s. "A re p e tiç ã o é a tra n s ­ m issão ex p lícita, ou seja, o re to rn o a p o ssib ili­ d ad es do ser-aí q u e j á foram " (Seín undZeit, § 74). N esse sen tid o , o D . é "a h isto ric id a d e au têntica": co n siste em esc o lh e r o q u e já foi esco lh id o , em p ro jetar o q u e já foi p ro jetad o , em re a p re se n ta r p ara o futuro p o ssib ilid a d e s q u e já foram a p re se n ta d a s. É, em o u tro s te r­ m os, a v o n ta d e da rep etição , o re co n h e cim e n to e a ac eitaç ão da n e c e ssid a d e . Esse co n ce ito volta em J a sp e rs, q u e, no en ta n to , ex p re ssa -o com referên cia à id e n tid a d e esta b e le cid a en tre o eu e sua situ ação no m u n d o . O D . é a aceita­ ção d essa id en tidade: "A m o-o co m o m e am o p o rq u e só n ele esto u cô n sc io de m eu existir". A qui ta m b é m o D . n ad a m ais é q u e a ac eitaç ão e o re c o n h e c im e n to da p ró p ria n atu re za da n ecessid ad e, q ue, para Jasp ers, é a id en tidade do h o m e m co m su a situ aç ão (Phil, II, p. 218 ss.). Essa últim a n o ç ã o de D . ex p rim e b em certas te n d ê n c ia s da filosofia c o n te m p o râ n e a . N a o ri­ g em de sua lo n g a trad iç ão , essa n o ç ã o im p lica­ va: l9 u m a o rd em total q u e ag e s o b re o in d iv í­ d u o , d e te rm in a n d o -o ; 2- o in d iv íd u o n ão se a p e rc e b e n e c e ssa ria m e n te d a o rd em to tal n em de su a força n ecessitan te : o D. é cego. O c o n ­ ceito c o n te m p o râ n e o elim in o u am b as as ca ra c­ terísticas. P ara ele: ls a d e te rm in a ç ã o n ec essitante n ão é a d e u m a o rd em (nem m esm o para N ie tz sc h e ), m as a de u m a situ aç ão , a re p e ­ tição; e 2 S o D . n ão é ceg o p o rq u e é o re c o n h e ­ cim en to e a aceitação d elib e ra d a da situ ação n ecessitan te. D E TE R M IN A Ç Ã O (gr. 7 tp ó o 6 eo iç; lat. Determinatio; in. Determination; fr. Determination, ai. Bestimmung ou Bestímmtheit; it. Determinazioné). L im itação da e x te n s ã o de u m a n o ção co m o en riq u e c im e n to da su a inte n são , ou o re su ta d o d essa lim itação. A ristó te­ les já u sav a esse te rm o p ara in d icar o n o v o acréscim o d e n o tas ou características ao objeto co n sid e rad o . "F alando de D ., refiro-m e, p. ex., à p assa g e m da u n id a d e , q u e é su b stân cia d e s­ p ro v id a de p o siç ão , ao p o n to q u e é su b stân cia

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DETERMINAÇÃO d o tad a d e p o siç ão : essa p assa g e m d eriva de u m a D ." (An. post, I, 27, 87 a 34 ss.). Essa p alav ra foi e n te n d id a do m esm o m o d o n a lógi­ ca m ed iev al. P ed ro H isp a n o d iz q u e "a D. res­ trin g e o co n ce ito d aq u ilo a q u e se u n e , assim co m o a p alav ra 'm o rto ' re strin g e o co n ce ito de h o m e m q u a n d o se diz 'h o m e m m o rto '" (Summ. log., 7.46). W olff d e m o ro u -se n essa n o ç ão , en­ te n d e n d o p o r determinado "aquilo so b re o que se d ev e afirm ar alg u m a coisa" (Ont, § 112) e p o r indeterminado "aquilo so b re o q u e ainda n ão se p o d e afirm ar alg u m a coisa, em b o ra não se p o ssa ta m p o u c o afirm ar q u e algu m a coisa se lh e o p o n h a " (Jbid, § 105). A lém d isso , ligava essa n o ç ã o à n o ç ã o de ra zã o su ficien te, q ue o p ró p rio L eibniz ch am ara, n esse sen tid o , d e ra­ zão determinante (Jbid, § 117). S p in o za ex p re sso u u m a im p licação im por­ ta n te d essa n o ç ã o q u a n d o d isse " Omnis determinatio est negatio" (Epist., 59), e n te n d e n d o q u e q u a lq u e r acréscim o d e u m a n o v a nota a u m c o n c e ito faz q u e esse c o n ce ito seja negado em alg u n s d o s o b jeto s q u e an te s p o d ia m ser s e u s p re d ic a d o s. N essa v in c u la ç ã o da D . com a n eg aç ão , H eg el insistiu em su a d o u trin a da dia­ lética (v.). Para ele, p o rém , a D. o co rre p o r d e­ sen v o lv im en to in tern o e a u tô n o m o do conceito, e n ão p o r acréscim o s. D iz H egel: "D eterm inase o u n iv ersal e, assim , ele é o particular. A D. é su a d iferença. A ssim , ele é a to ta lid a d e e o p rin cíp io d e su a d iv ersid ad e, q u e é d eterm in a­ da so m e n te p o r ele m esm o " (Wissenschaft der Logik, III, 1, 1, B). N a lin g u ag em filosófica con­ te m p o râ n e a essa p alav ra é u sa d a p re d o m in an ­ te m e n te no se n tid o trad icio n al, co m o delim ita­ ção do sign ificad o. P eirce d istin g u e assim D. de d efinição: "Um sujeito é d e te rm in a d o em re la ção a cad a caráter in eren te a ele ou que é (u n iv ersal e afirm ativam en te) p red ic ad o dele, e é d e te rm in a d o ta m b é m em relação aos nega­ tivo s d esse s ca ra cte re s, no m esm o asp ecto . E m to d o s os o u tro s asp ecto s, o sujeito é indeter­ m in ad o . O definido d ev e estar re a lm e n te defi­ nid o" (Issues ofPragmaticism, 1905, em Values in a Universe of Chance, p. 210). P or outro lad o , o u so d e sse te rm o em C arn ap refere-se ao v alo r de v e rd a d e d os en u n c ia d o s: "Um enun­ ciad o é lo g ica m en te d e te rm in a d o se o seu va­ lor de v e rd a d e , q u e é sua e x te n sã o , é determ i­ n a d o p o r re g ra s sem ân tica s" (Meaning and Necessity, § 2); isso significa q u e u m en u nciado é lo g ic a m e n te d e te rm in a d o se é an alítico ou ta u to ló g ic o , e n esse caso su a v e rd a d e inde­ p e n d e d os fatos; m as é lo g icam en te indeter­

DETERMINANTE, JUÍZO minado se é sin tético e se, p o rta n to , su a v e rd a ­ de d e p e n d e d o s fatos. DETERMINANTE, JUÍZO . V. REFLEXIV O, Juízo.

DETERMINISMO (in. Determinism; fr. Dé-

terminisme, ai. Determinismus; it. Determinis­ mo). Esse te rm o re la tiv a m e n te re c e n te (K ant é u m dos p rim e iro s a e m p re g á -lo em Religion, I, Obs. ger., n ota) c o m p re e n d e d ois significados: ls ação c o n d ic io n a n te ou n e c e ssita n te d e u m a causa ou de u m g ru p o de cau sas; 2- a d o u trin a que re c o n h e c e a universalidade do p rin cíp io causai e p o rta n to ad m ite ta m b é m a d e te rm in a ­ ção necessária d as aç õ e s h u m a n a s a p artir de seus m otivos. N o p rim e iro se n tid o , fala-se, p. ex., de "D. das leis", "D. sociais", e tc , para in d i­ car co n ex õ e s de n atu re za cau sai ou c o n d ic io ­ nal. N o se g u n d o se n tid o , fala-se da d isp u ta e n ­ tre D. e in d e te rm in ism o , en tre q u e m ad m ite e quem neg a a n ec essitaç ão cau sai no m u n d o em geral e, em p articu lar, no h o m em . O estu d o dos p ro b lem as re fe ren te s ao Ia sign ificad o de D. deve s e r visto n o s v erb etes CAUSA, CONDIÇÃO e NECESSIDADE. NO 2Qsentido, a palavra D. foi utilizada p ara d esig n a r o re c o n h e c im e n to e o alcance u n iv ersal da n e c e ss id a d e cau sai, q u e constitui u m a o rd e m ra c io n a l, m as n ão fi­ nalista, e p o rta n to n ão se p resta a ser d e sig n a ­ da pelo v e lh o n o m e de destino (v.). O D . v in ­ cula-se, p o r isso, ao m ec an ic ism o , q u e é a te n ­ dência d o m in a n te da ciên cia do séc. XIX, assim com o da filosofia c o rre s p o n d e n te a essa fase da ciência. D. é a cren ça na e x te n sã o u n iv ersal do m ecan icism o, ou seja, na e x te n sã o do m ecanicism o ao h o m e m . C o m o K ant já viu (na nota citada), o D. au tê n tic o é na v e rd a d e um predeterminismo, a cren ça de q u e o m o tiv o determ inante da ação h u m a n a está no m o m e n ­ to p rec ed en te , de tal m o d o q u e n ão está em poder do h o m e m no m o m e n to em q u e se efetua. O D ., e n q u a n to m e c a n ic is m o , é na realidade p re d e te rm in a ç ã o d a ação em seu s antecedentes.

A partir d a se g u n d a m e ta d e do séc. XVIII, a polêm ica en tre D . e in d e te rm in ism o d e u -se entre os filósofos da ciência, p o r u m lad o , e os filósofos da consciência, p o r o u tro , p a re c e n d o que a ciência n ão p o d ia d eix ar de re c o n h e c e r a validade d o p rin cípio d e causa (v. CAUSALIDADE) e que, p o r o u tro la d o , a co n sc iên c ia era te ste ­ m unho irrefutável da lib e rd a d e do h o m e m (v.

INDETERMINISMO). Uma das primeiras dissertações

de Kant, Novos esclarecimentos sobre os pri­ meiros princípios do conhecimento metafísico

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DETERMINISMO (1755), d e stin ad a a d e fe n d e r a d im e n sã o u n i­ v ersal do p rin cíp io de c a u salid ad e, p o d e ser co n sid e ra d a u m a d as p rim eiras d efesas do D. (cf. e s p e c ia lm e n te P ro p . IX, Confutatio dubiorum). M as talv ez m u ito m ais eficaz te n h a sid o a d efesa feita p o r P riestley no se g u n d o v o ­ lu m e d e su a s Inquirições sobre a matéria e sobre o espírito (1777), in titu lad o Doutrina da necessidade filosófica. N essa o b ra, P riestley afirm ava c laram en te q u e os m o tiv o s in fluen ­ ciam a v o n ta d e co m a m esm a certeza e n e c e s­ sid a d e co m q u e a força da g ra v id a d e ag e so b re u m a p ed ra, e q u e , em b o ra o h o m e m fre q ü e n ­ te m e n te se c e n su re p o r n ão ter ag id o de o u tro m o d o , o ex a m e d e su a c o n d u ta d em o n stra q ue isso era im p o ssív el e q u e ele só p o d eria ter ag i­ do d a q u e le m o d o {The Doctríne of PhílosophicalNecessity, 2a ed., 1782, p p. 37, 90 ss.). E ssas são teses re p e tid a s co m freq ü ê n c ia na fi­ losofia positivista do séc. XIX. O D . científico foi fo rm u la d o de m o d o clássico p o r C laud e B ern ard , em su a Introdução ao estudo da me­ dicina experimental (1865). "O p rin cíp io a b ­ so lu to d as ciên cias ex p erim en ta is", dizia ele, "é u m D . necessário e co n siste n as co n d iç õ e s dos fe n ô m e n o s. S e u m fe n ô m e n o n atu ral q u a lq u e r é d a d o , u m e x p e rim e n ta d o r n u n c a p o d e rá adm itir q u e h o u v e u m a v ariaç ão n a e x p re ssã o do fe n ô m e n o sem q u e, ao m esm o te m p o , te ­ n h a m so b re v in d o co n d iç õ e s n o v as em sua m a­ nifestação . A lém d isso , ele te m certeza apriori d e q u e essas v a ria ç õ e s são d e te rm in a d a s p o r relaçõ es rigo ro sas e m atem áticas. A experiên cia m o stra -n o s a p e n a s a fo rm a d os fe n ô m e n o s, m as a re la ção de u m fe n ô m e n o co m u m a cau sa d e te rm in a d a é n ec essária e in d e p e n d e n te da ex p e riê n c ia , é fo rç o sam e n te m atem ática e a b ­ so lu ta. N ós ch e g a m o s assim a v er q u e o p rin ­ cíp io do criterium d as ciên cias ex p erim en ta is no fu n d o é id ên tico ao d as ciên cias m atem á ti­ cas p o rq u e , de u m lad o e de o u tro , esse p rin ­ cíp io é e x p re sso p o r u m a re la ção de ca u salid a­ de n ecessária e absoluta" (Jntroduction à 1 'étude de Ia médecine expérimentale, I, 2, 7). E xplici­ ta m e n te , B ernard este n d ia esse p rin cíp io ta m ­ b ém ao s sere s v iv o s {Ibid., II, 1, 5), e as p ró ­ p rias p alav ras co m q u e se ex p rim ia m o stram , de u m lado , o ca rá ter d e ax io m a racio n al (m ais q u e de ex ig ên cia em p írica) q u e ele v ia no p rin ­ cípio do "D. ab so lu to ", e, de o u tro la d o , o rigor co m q u e esse p rin cíp io era a p lica d o ao ca m p o da p e sq u isa e x p erim en ta l. E n tretan to , foram p re c isa m e n te os p ro g re sso s e x p e rim e n ta is da ciên cia — em p articu lar os da ciência e x p e ri­

DETERMINISMO

mental mais adiantada e amadurecida, a física — que levaram a abandonar aquilo que Claude Bernard chamava de "princípio do criterium experimental". Primeiro a teoria da relativade e depois a mecânica quântica puseram em crise a noção de causalidade necessária e, por conseguinte, a de "D. absoluto". Em 1930, Heisenberg, descobridor do princípio de indeterminação (v.) e um dos fundadores da mo­ derna física quântica, escrevia: "O conceito de universo que deriva da experiência quotidiana foi abandonado pela primeira vez na teoria da relatividade de Einstein. Por ela, vê-se que os conceitos usuais só podem ser aplicados a acontecimentos nos quais a velocidacie de pro­ pagação da luz pode ser considerada pratica­ mente infinita... As experiências com o mundo atômico obrigam-nos a uma renúncia ainda mais profunda dos conceitos até agora habi­ tuais. Com efeito, nossa descrição usual da na­ tureza e, em especial, a idéia de causalidade rigorosa nos eventos da natureza repousam na admissão de que é possível observar um fenô­ meno sem influenciá-lo de modo perceptível... Na física atômica, porém, a cada observação geralmente está ligada uma perturbação finita e até certo ponto incontrolável, o que era de se esperar desde o princípio na física das menores unidades existentes. Como, por outro lado, toda descrição espácio-temporal de um evento físico está ligada à observação do evento, se­ gue-se que a descrição espácio-temporal dos eventos e a lei causai clássica representam dois aspectos causais que se excluem mutuamente nos acontecimentos físicos" (Diephysikalischen Prinzipíen der Quantentheorie, 1930, IV, § 3). Quase ao mesmo tempo, Max Planck, desco­ bridor do quantum de ação, escrevia que, para poder salvar a hipótese do D. rigoroso, era necessário pensar num Espírito Ideal, capaz de abranger todos os processos físicos que se de­ senvolvem simultaneamente e, portanto, de predizer com certeza e em todos os detalhes qualquer processo físico. Naturalmente, do ponto de vista de um espírito desses, o princí­ pio de indeterminação, do fato de o homem precisar intervir nos processos naturais para poder observá-los, não valeria, visto ser ele, por hipótese, independente da natureza (Der Kausalbegriffin derPhysik, 1932, pp. 24-25). Mas essa hipótese, como é óbvio, não tem ne­ nhum fundamento científico ou filosófico. De Broglie, outro protagonista da física contempo­ rânea, afirmava que os argumentos de Von

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Neumann (v. CAUSALIDADE) provaram que: "As leis de probabilidade enunciadas pela mecâni­ ca ondulatória e quântica sobre os fenômenos elementares, leis bem provadas pela experiên­ cia, não têm a forma que deveriam ter se fos­ sem devidas à nossa ignorância dos valores exatos de certas variáveis ocultas. O único ca­ minho que ainda estava aberto ao restabe­ lecimento do D. em escala atômica parece, por­ tanto, fechar-se diante de nós" (Physique et Microphysique, X; trad. it., p. 209). Desse modo, o abandono da causalidade necessária e da doutrina do D. absoluto, que transformara a causalidade necessária em prin­ cípio universal do conhecimento científico, pa­ rece sancionado pelas maiores autoridades científicas do nosso tempo. Todavia, esse aban­ dono não é, automaticamente, a aceitação do indeterminismo, ou seja, do reconhecimento do acaso e do arbítrio absoluto nos fenômenos naturais. Assim como o abandono da noção de causa coincide com o uso cada vez mais amplo e consciente da noção de condição (v.), também o abandono da noção de D. absoluto, paralela à primeira, coincide com a aceitação de uma forma de D. que se vai esclarecendo paralelamente ao esclarecimento do conceito de condição. Ao declarar inutilizável o conceito de causa, a física contemporânea insistiu na possibilidade de previsão provável; e ao declarar, por isso mesmo, a queda do D. absoluto, tende a adotar um D. restrito ou, como diz o próprio De Broglie, "fraco" ou "imperfeito", fundado no reconhecimento de que "nem todas as pos­ sibilidades são igualmente prováveis" e de que "todo estado de um sistema microscópico com­ porta certas tendências que se expressam pelas diferentes probabilidades das diversas possibi­ lidades nele contidas" (Ibíd., p. 212). Em senti­ do análogo, no domínio das ciências sociais, Gurvitch falou do D. como de uma simples "contingência coerente" ou "coerência contin­ gente", que nunca é unívoca, mas sempre se caracteriza por constituir uma situação interme­ diária entre os opostos do contínuo e do des­ contínuo, do quantitativo e do qualitativo, do heterogêneo e do homogêneo, etc. (Déterminismes sociaux, 1955, pp. 28 ss.). Portan­ to, a palavra D. não foi abandonada, mas so­ freu uma transformação radical na linguagem científica e filosófica contemporânea. Não de­ signa mais o ideal de causalidade necessária e de previsão infalível, mas o método de cone­ xão condicional e de previsão provável.

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DETERMINISMO ECONÔMICO DETERMINISMO ECONÔMICO. V MATE

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DEUS

afirm a A le x a n d re {Defato, 2), a ex istên cia de u m d e stin o n ec e ssita n te ; isso significa q u e co n ­ sid e ra v a o In te le c to co m o cau sa livre, p o rta n to DEUS (gr. 0 eó ç; lat. Deus- in. God; fr. Dieu; al. criad o ra (v . CRIAÇÃO). M as n ã o s e tratav a ce rta­ Gott; it. Dio). S ão d u a s as q u alificaçõ es fu n d a­ m e n te de u m a criação a p artir do n ad a, assim mentais q ue os filósofos (e n ão só elas) atrib u í­ co m o n ão se trato u d e criação a p artir do n ad a ram e atrib u em a D..- a de Causa e a de Bem. n a d o u trin a de P latão e de A ristó teles. Para N a prim eira, D. é o p rin c íp io q u e to rn a p o ssí­ P latão , D. é o A rtífice ou D em iu rg o do m u n d o , vel o m u n d o ou o ser em g eral. N a se g u n d a , é cujo p o d e r cria d o r é lim itad o (1) p elo m o d e lo a fonte ou a g ara n tia de tu d o o q u e há de q u e ele im ita e q u e é o m u n d o d as su b stân cia s excelente no m u n d o , so b re tu d o no m u n d o h u ­ ou re a lid a d e s e te rn a s (Tim., 29 a) e (2) pela mano. T rata-se, co m o é ó b v io , de q ualificaçõ es m atriz m aterial q u e, co m su a n e c e ssid a d e , re ­ bastante g en érica s q u e só tê m s e n tid o p rec iso siste à obra in te lig en te do D em iu rg o (Ibid, 50 no âm bito d as filosofias q u e as em p re g a m . P o ­ d ss.). A s características da d iv in d a d e p latôn ica dem os, p o r isso, d istin g u ir as v árias c o n c e p ­ são , além do p o d e r su p e rio r (m as, p e lo s m o ti­ ções de D. p a rtin d o d os sign ificad os esp ecífi­ v o s acim a, n ã o ilim itad o), a in telig ên cia e a cos que essas q ualificaçõ es ad q u irem ; p o rtan to : b o n d a d e . G raças a esta últim a, criação é um ls quanto à re la ção de D . co m o m u n d o , pela ato livre, q u e tem em vista a m u ltip licação do qual D. é C ausa; e 2° q u a n to à re la ç ã o de D. b e m (Ibid, 29 e). A d o u trin a de A ristó teles n ão com a o rd e m m o ra l, p e la q u a l D . é B em . difere su b sta n c ia lm e n te da p latô n ic a. S o b retu ­ Como, ad em ais, é p o ssív el c o n c e b e r q u e da do n o s ú ltim o s d iálo g o s (p. ex., Pol, 269 e), divindade p o d e m p articip ar v ário s en te s ou q u e P latão insistira no c o n ce ito de D. co m o p rim e i­ ela é p ró pria de u m só en te , e co m o , p o r o u tro ro m o to r ou "guia d e to d a s as co isas q u e se lado, é possível ad m itir v árias v ias d e acesso do m o vem " e é p re c isa m e n te esse c o n c e ito q u e se hom em a D ., ta m b é m é p o ssív el ad m itir o u tro s to rn a p o n to de p artid a da te o lo g ia aristotélica. dois m o do s de d istin g u ir as c o n c e p ç õ e s de D.; P ara A ristó teles, D . é o primeiro motor ao qual 3S quanto à re la ção d e D. co n sig o m esm o , ou n e c e ssa ria m e n te se filia a cad eia d o s m o v im e n ­ seja, com su a d iv in d a d e ; 4" q u a n to aos acesso s to s (Fís, V III, 7; Met., X II, 6); ou a primeira possíveis do h o m e m a D . E sses q u a tro m o d o s causa d e q u e d e c o rre m séries cau sais, in clu ­ de distinguir as c o n c e p ç õ e s de D ., q u e p o d e m sive a d as ca u sas finais (Met., II, 2). M as é ju sta ­ ser en c o n tra d o s ao lo n g o da história da filo so ­ m e n te n o se n tid o d e cau sa final q u e D. é cria­ fia ocidental, tê m a v a n ta g e m de seg u ir com d o r d a o rd e m do u n iv e rso , q u e A ristó teles suficiente fid e lid a d e as in te ra ç õ e s h istó ricas c o m p ara a u m a fam ília ou a u m ex ército . "To­ da n oção em ex a m e , ou seja, os p o n to s q u e d as as co isas estã o o rd e n a d a s u m a em relação serviram de b ase p ara as p rin cip a is d isp u tas fi­ à o u tra, m as n e m to d as do m esm o m o d o : os losóficas. p eix es, os p ássa ro s, as p lan ta s têm o rd en s d i­ 1. DEUS E O MUNDO. ferentes. T o d av ia, u m a coisa n ão está para outra C on cep ção p ara a q u al D . co m o causa é o co m o se n ad a tiv esse a v e r co m o utras, m as aspecto fu n dam en tal de D.: as form as do ateístu d o está c o o rd e n a d o co m u m ú n ico ser. Isso mo(v.) são n e g a ç õ e s da ca u sa lid a d e de D. M as é, p. ex., o q u e o co rre n u m a casa o n d e os na história da filosofia essa ca u sa lid a d e foi e n ­ h o m e n s livres n ão p o d em fazer o q u e lh es apraz, tendida de m an eira s d iferen tes e se g u n d o es­ m as o n d e to d a s as co isas, ou p elo m en o s a sas diferenças é p ossível d istin g u ir as três c o n ­ m aio r p arte d elas, a c o n te c e se g u n d o u m a o r­ cepções seg uintes: A) D. co m o criado r da o rd em d em , ao p asso q u e os escrav o s e os an im ais do m u n d o , co m o cau sa ordenadora; B) D. c o n trib u e m co m p o u c o p ara o b em -e star c o ­ como n atu re za do m u n d o , co m o cau sa necesm u m e fazem m u ito p o r acaso" (Ibid, X II, 10, sitante, C) D . co m o cria d o r do m u n d o , co m o 1075 a 12). D o m esm o m o d o , o b em de um causa criadora. ex é rcito co n siste "ao m esm o te m p o em sua A) Deus como criador da ordem do mundo. o rd em e em seu co m an d an te , m as e sp ecialm en ­ Essa c o n ce p ç ão é p ro v a v e lm e n te a m ais antiga te n este ú ltim o , p o is ele n ão é o re su ltad o da da história da filosofia; o p rim eiro a en u n ciá-la o rd e m , m as é a o rd e m q u e d e p e n d e d ele" claram ente foi A n a x ág o ras, q u e co n sid e ro u o (Ibid, 1075 a 13). D ., p o rta n to , é co m o o c o ­ Intelecto co m o d iv in d a d e q u e o rd e n a o m u n d o m a n d a n te de u m ex é rcito ou o ch efe d e u m a AECD, I, 7, 14). O caráter cria d o r do In te le cto casa: é q u e m p ro d u z e m a n té m a o rd em q ue decorre do fato de A n a x ág o ras n eg ar, co m o RIALISMO DIALÉTICO.

DEUS co n stitu i a b o n d a d e do co n ju n to . Essa é ta m ­ b ém a d o u trin a de P latão; ex p o sta de form a m en o s m ítica, ou seja, fora do m ito te o g ô n ic o . A ristóteles n ão atribui n o v as características à d i­ v in d a d e , m as e s c la re c e e d e te rm in a as q u e P latão já lh e atrib u íra. A ssim , D. é n ão só o p ri­ m eiro m otor: é motor imóvel e, co m o tal, e ter­ no e afastado d as co isas sen sív eis; n ão tem g ran d ez a (logo, é indivisível, e sem p artes) e é d o ta d o d a p o tên cia n ec essária p ara m o v e r o m u n d o p o r te m p o infinito (Ibid, VIII, 7, 1073 a, 3). N ão é só in telecto , co m o já d issera P latão: é in telig ên cia s e m p re em ato, cujo o b jeto é o objeto m ais alto e ex c ele n te, ou seja, ela m e s­ m a; é intelecto do intelecto ou p e n sa m e n to do p e n sa m e n to (Ibid., X II, 9, 1074 b 30 ss.). O in­ tele cto na v e rd a d e ta m b é m p o d e co ch ilar e ter p o r o bjeto co isas in ferio res a si m esm o : o in te ­ lecto d iv in o d ev e ficar acim a d essas e v e n tu a li­ d ad es. A lém d isso , a d istin çã o en tre a p o tên cia e o ato e a re c o n h e c id a su p e rio rid a d e do ato em relação à p o tên cia p erm item q u e A ristóteles defina D. co m o atopuro, a tu a lid a d e a b so lu ta ­ m e n te d e sp ro v id a d e m atéria ou de p o te n ­ cialid ad e, d a n d o assim u m sig n ificad o m ais rig o ro so e filosófico à "in c o rp o re id ad e" da in ­ telig ência divina, já re c o n h e c id a a p artir de A nax ág o ras (Ibid, X II, 6,1 07 1 b, 12 ss.). A ristó teles esclareceu ta m b é m o co n ce ito d a b em -a v e n tu ra n ç a divina: "D .", d iz ele, "ex p erim en ta se m ­ p re u m a felicid ad e sim p les e ú n ica p o rq u e a ativ id ad e (que é a c o m p a n h a d o p elo prazer) n ão con siste só no m o v im en to , m as ta m b é m na im o b ilid ad e, e a felicid ad e está m ais no re p o u ­ so q u e no m o v im en to " (Et. nic, V II, 1154 b 26). Enfim , a p erfeição de D . to rn a -o a u to -su ­ ficiente: ao co n trário do h o m em , n ão tem n e ­ cessid ad e de am igo s: "A cau sa d isso é q u e para n ó s o b e m v em d e algo q u e n ão so m o s nós, m as ele é o b em p ara si m esm o " (Et. eud., VII, 12, 1245 b 17). E m bo ra m u itas d essa s d e te rm i­ n aç õ e s te n h a m sido a d o ta d a s e u tilizad as p o r d o u trin a s d iferentes, é fácil p e rc e b e r q u e estão estreitam ente v in cu lad as ao co n ceito p latôn icoaristo télico d e criad o r da o rd e m do m u n d o . T an to para A ristó teles q u a n to p ara P latão , a estrutura su b stan cial do u n iv e rso está além dos lim ites da criação divina. C ertam e n te, a im a­ g em d a d iv in d a d e q u e assu m e co m o m o d e lo de sua ação criado ra o m u n d o d as su b stân cia s etern as n ão tem m ais s e n tid o p ara A ristó teles (e p ara o p ró p rio P latão era u m "m ito", u m d is­ cu rso sim p le sm e n te "v erossím il"). M as p ara P latão , assim co m o p ara A ristó teles, a estru tu ra

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DEUS su b stan cia l do u n iv e rso é etern a , ou seja, não su scetív el de p rin cíp io ou de fim. D e fato, só a coisa in d iv id u al c o m p o sta de m atéria e form a te m n a sc im e n to e m o rte, s e g u n d o A ristóteles, ao p a sso q u e a su b stân cia q u e é fo rm a ou ra­ zão d e ser, ou a q u e é m atéria, n ão n asce nem p e re c e (Met., V III, 1,1042 a 30). D. m esm o par­ ticip a d essa e te rn id a d e da su b stân cia , p ois ele é su b stân cia (Ibid, X II, 7, 1073 a 3) e su b stân ­ cia no m esm o sen tid o em q u e o são as su b s­ tâ n c ia s finitas (Et. nic, I, 6, 1096 a 24). A su p e ­ rio rid a d e de D . co n siste a p e n a s na perfeição de su a v id a, n ão em su a re a lid a d e ou em seu ser, p o is, co m o diz A ristó teles, "n en h u m a su b s­ tância é m ais ou m en o s su b stân cia do q u e outra" (Cat, V, 2 b 25). A n o ç ã o de D . co m o criad o r da o rd em do m u n d o , q u e ch e g o u à p le n itu d e em A ristóteles, n ão foi re p ro p o sta n o s m esm o s te rm o s ao lon­ go da h istória da filosofia. O p a n te ísm o estóico e n e o p la tô n ic o , an tes, e o criacío n ism o cristão, d e p o is, im p õ em o u tras c o n c e p ç õ e s de D . que se alte rn am co m m ais freq ü ê n c ia na história do p e n sa m e n to . A ela, p o rém , p o d e m filiar-se as c o n c e p ç õ e s d e D . q u e , no m u n d o m o dern o, te n d e m a re c o n h e c e r lim itaçõ es n o s poderes da d iv in d a d e e a ex cluir d ela os ca ra cte re s infi­ n ito s e ab so lu to s. Essa é, p. ex., a co n cep ção de m u ito s ilum inistas e q u e foi b em expressa p o r V oltaire: "T oda o bra q u e n os m ostra os m eio s e u m fim rev ela u m artífice: lo g o , este u n iv e rso c o m p o sto de m eio s, cad a u m com seu fim, rev ela u m artífice p o d ero síssim o e in­ telig entíssim o " (Dictionnairephilosophique, art. D .; Traítédemétaphysique, 2). M as a qualifica­ ção d e artífice é ta m b é m a ú n ica q u e V oltaire co n sid e ra atrib u ív el a D. D e fato, ele se recusa a ad m itir q u a lq u e r in te rv e n ç ã o de D . no ho­ m em e no m u n d o m oral. D . é so m e n te o autor da o rd em do m u n d o ; o b em e o m al não são m a n d a m e n to s d iv in o s, m as atrib u to s do que é útil ou p rejud icial à s o c ie d a d e (Traité, 9). N o séc. XIX u m a c o n ce p ç ão an álog a foi defendida p o r S tuart Mill: p ara este, u m D. finito, lim itado em seu p o d e r p ela m atéria e p ela form a que u tilizo u , é tu d o o q u e a e x p eriên cia do m undo p erm ite co n clu ir acerca de u m cria d o r do m un­ do (Three Essays on Religion, 1874). Peirce e J a m e s re p ro p u se ra m , m ais re c e n te m e n te , um c o n c e ito a n á lo g o d e D . P eirce re c u sa -se a co n sid e rá-lo em sen tid o p ró p rio o niscien te e o n ip o te n te (Coll. Pap., 6. 508-09). Jam es, por sua vez, afirm a q u e "D. n ão é o ab soluto , m as é ele m esm o p arte de u m sistem a, e q ue sua fun­

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ção não é in te ira m en te d ife re n te da fu n ção das outras partes m e n o re s, p o rta n to da n ossa. T e n ­ do u m am b iente, ex istin d o no te m p o e o p e ra n ­ do na história co m o n ó s, ele d eix a de ser d ife­ rente d e tu d o o q u e é h u m a n o , e s c a p a à estática in te m p o ra lid ad e do p erfeito ab so lu to " (APluralistic Universe, 1909, p. 318). E m bo ra desse m o do D. seja in v estid o de m ais carac­ teres h um ano s do q u e n as d o u trin a s de P latão ou A ristóteles, o c o n c e ito clássico do D. o rd enador, cujo p o d e r é lim itad o p o r certas e stru tu ­ ras substanciais, ain d a é o traç o característico dessas co n ce p ç õ e s. B) Deus como natureza do mundo. S ob este título p o d e m ser a g ru p a d a s to d as as c o n ­ cepções de D. q u e de alg u m m o d o ad m itam uma relação in trín seca, su b stan cia l ou e sse n ­ cial dele com o m u n d o , de tal m an eira q u e o mundo seja e n te n d id o co m o c o n tin u a ç ã o ou prolongam ento da v id a de D. D ev e-se n o tar que a p rópria c o n c e p ç ã o de D. co m o criad o r da ordem do m u n d o , m e s m o d e m a rc a n d o uma sep aração en tre o m u n d o e D ., e s ta b e le c e a sem elhança en tre eles. P latão ch am a o m u n ­ do de "D. g erad o " (Tirn, 34 b ), e A ristó teles relata com ap ro v aç ão a cren ça co m u m de q u e os corpos celestes são d e u se s e de q u e "o div i­ no abrange to d a a n atu reza" (Met., X II, 8, 1074 b 2). M as essa c o n e x ã o to rn a -se m ais estreita e essencial na c o n c e p ç ã o de q u e ora n o s o c u p a ­ mos e que p o d e ser d e sig n a d a g e n e ric a m e n te pelo nom e de p a n teísm o . N esta, u m laço ne­ cessário ata o m u n d o a D . e D. ao m u n d o : D. não seria D. sem o m u n d o , assim co m o o mundo não seria m u n d o sem D. Isso n ão im ­ plica, porém , a perfeita id e n tid a d e e co in ci­ dência entre D. e o m u n d o ; ou m elh o r, essa identidade ou co in cid ê n cia só se verifica no sentido q ue v ai do m u n d o p ara D. e n ão no que vai de D. p ara o m u n d o . E m o u tro s te r­ mos, o m u n d o n ão é in te ira m e n te D .: está incluído na v id a d iv in a co m o seu e le m e n to necessário, m as n ão a esg o ta . A ex ig ê n c ia apresentada p elo ch a m a d o panenteísmo (v.) na realidade é típica de to d a s as fo rm as do panteísmo h istórico, co m o se p o d erá facilm en ­ te verificar pela d ig ressã o q u e seg u e . A ca ra c­ terística do p a n te ísm o p o d e ser e x p re ssa d i­ zendo q u e e le n ã o e s ta b e le c e n e n h u m a diferença entre ca u sa lid a d e div in a e ca u salid a­ de natural. N o in terio r do p a n te ísm o , p o d e m se distinguir três m o d o s p rin cip a is de v in cu lar mundo e D., q u ais sejam : 1Q o m u n d o é a ema­ nação de D.; 2a o m u n d o é a manifestação ou

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revelação de D.; 3a o m u n d o é a realização de D . O p rim e iro e o s e g u n d o d esse s m o d o s via d e reg ra se u n e m , o m esm o o c o rre n d o co m o s e g u n d o e o terceiro ; n ão se ach am , p o rém , e x p lic ita m e n te v in c u la d o s o p rim e iro e o te rc eiro . O p a n te ísm o assu m iu p ela p rim eira v e z for­ m a a c ab ad a no esto icism o . O s estó ico s "cha­ m av am D eu s de m u n d o , s e n d o D . a q u a lid ad e p ró p ria de to d a su b stân cia , im ortal e n ão g e ra ­ d o , cria d o r d a o rd em u n iv e rsa l, o q ual, se g u n ­ do os ciclos d o s te m p o s, co n su m a em si to d a a re a lid a d e e n o v a m e n te a g era d e si" (DIÓG. L, V II, 137). E d iziam q u e "D. im p re g n a to d o o u n iv e rso e to m a v ário s n o m e s co n fo rm e as m a­ térias d ife re n te s em q u e p en etra" (AÉCIO, Plac, I, 7, 33). O s estó ic o s ta m b é m afirm avam q u e D. é c o rp o (Stoicorumfragm, ed. A rnim , II, p p. 306-11), p o rq u e só o c o rp o p o d e ser causa, p o d e ag ir (DIÓG. L., V II, 56): d o u trin a q u e re to rn a em T ertu lia n o (De carne Christi, 11; De anima, 18) e em H o b b e s (Leviath, I, 12). O re c o n h e c im e n to da ca u sa lid a d e d e D. no m u n ­ do to rn a -o p a rtíc ip e da c o n d iç ã o g era l da c a u sa lid a d e m u n d a n a , ou seja, d a co rp o re idad e. O s p rec ed en te s dessa doutrina foram vistos ta n to na d o u trin a de H eráclito , do Logos ou F o g o d iv in o q u e tu d o p e n e tra (Fr. 30, 50, D ie ls), q u a n to na id en tificação feita p o r X en ó fanes de C olofão en tre D . e o U no e o T o d o (SIMPLÍCIO, Fís, 22). M as a ex p ressã o m ais m ad u ­ ra do p a n te ísm o d ev e ser vista no n e o p la to n ism o , p a rtic u la rm e n te em P lo tin o . E ste ela­ b o ra, ain d a q u e em form a de im ag en s, a n o ç ão de emanação (v.) q u e se to rn aria indisp en sáv el ao p a n te ísm o , p e rm itin d o e n te n d e r o m o d o co m o d e D . d eriva u m m u n d o q u e n ão se s e ­ p ara d ele. A re la ç ã o en tre D . e o m u n d o é assim esclarecida: ls o m u n d o deriva, n e c e ssa ­ riam e n te , d e D. assim co m o o p erfu m e em a n a n e c e ssa ria m e n te do c o rp o p erfu m ad o , e a luz, de sua fonte; 2a p o r esse laço de n ecessid ad e, o m u n d o é p arte ou asp e c to d e D ., aind a q u e p arte d im in u íd a ou inferior, p o is o p erfu m e ou a lu z q u e se afasta d e su a fo n te é inferior à p ró ­ p ria fonte; 3e D . é su p e rio r ao m u n d o , e m b o ra id ên tico a ele, na m ed id a em q u e p o ssu i o r­ d em , p erfeição e b ele za . E sses são os c a ra c ­ te re s q u e P lo tin o atrib u i a D . D . é o U no em face d o s m u ito s q u e d ele e m a n a m (Enn, III, 8, 9). "Ele é a p o tê n c ia de tu d o ; está acim a da v id a e é cau sa da vida; a ativ id ad e da v id a, q u e é tu d o , n ão é a re a lid a d e p rim eira, m as deriva do U no co m o de u m a fonte" (Ibid., III, 8, 10).

DEUS D o U n o em an a, em p rim e iro lugar, a In te lig ê n ­ cia na q ual re sid e m as estru tu ras su b stan cia is do ser e q u e , p o r isso, P lo tin o identifica co m o p ró p rio Ser, e, em s e g u n d o lugar, a A lm a, q u e p en etra e g o v ern a o m u n d o (Ibid, V , 1, 6). O m u n d o , e m a n a d o da In te lig ên c ia e g o v e rn a d o p e la A lm a, é có p ia p e rfe ita da d iv in d a d e e m a n a d o ra, s e n d o e te rn o e in co rru p tív el co m o o m o d e lo (Ibid, V , 8 1 , 12); ele "é u m D. b em a v e n tu ra d o q u e se b asta a si m esm o " (Ibid, III, 5,5). A n o ç ã o de e m a n a ç ã o , para a q ual ''o ser g e ra d o ex iste n e c e ssa ria m e n te ju n to co m o seu g e ra d o r e só é s e p a ra d o d ele p o r su a p ró p ria alterid ad e" (Ibid., V , 1, 6), v ê o m u n d o co m o p arte in te g ran te de D ., e D. co m o o rig em ú n ica do p ro c e sso em a n a tiv o , algo su p e rio r ao m u n ­ do e in ex p rim ív el n os te rm o s do m u n d o . D. p ro p ria m e n te n ão é n em ser ou su b stân cia , n em v id a, ou in telig ên cia, p o r ser su p e rio r a essa s co isas: elas, p o ré m co m o e m a n a ç õ e s su as, fazem p arte d ele. P ro clo cu n h a as p a la ­ vras a d e q u a d a s: "D. é su p e rsu b sta n c ia l, su p ervital e su p erin telig en te" (Inst. theol, 115); essas p alavras se to rn am n o s p rim ó rd io s da E scolástica cristã com S cotus E rigena: p ara ele, D. n ão é su b stân cia , m as S u p ersu b stâ n c ia ; n ão é v e r­ d ad e, m as S u p e rv e rd a d e , etc. (Dedivis. nat., I, 14). M as, ao m esm o te m p o , o m u n d o é D ., ou m elho r, co m o d iz S co tu s E rigena, m an ifestação de D ., teofania. O p ro c e sso da teofan ia v ai de D . ao V erbo , do V erb o ao m u n d o e do m u n d o re to rn a a D. D esse m o d o , "D. está acim a de to ­ d as as co isas e em to d as elas; é a su b stân cia de to d as as co isas p o rq u e só ele é; e c o n q u a n to seja tu d o em tocias as co isas, n ão d eix a de ser tu d o fora de to d a s as coisas" (Ibid., IV, 5). A característica da d iv in d a d e n essa c o n c e p ­ ção é su a "su p ersu b sta n c ia lid ad e ", seu ser aci­ m a do ser (de q u a lq u e r e sp écie de re alid ad e). P or essa característica, já em P lo tin o , D. só p a ­ rece acessível a u m a rre b a ta m e n to ex c ep cio n al ou s o b re n a tu ra l, ou seja, ao ê x ta se m ístico (Enn, V I, 7, 35). P or esse m esm o caráter, D. n ão p o d e ser o bjeto d e u m a ciên cia positiva, q u e d ete rm in e sua n atu re za , m as só de u m a "teologia negativa" q u e ajude a c o m p re e n d ê -lo d ete rm in a n d o o q u e ele não é. O co n ce ito de teolog ia n eg ativa, q u e está em P ro clo (Theol. plat., II, 10-11) d ifu n diu -se na filosofia cristã p o r o bra do p se u d o -D io n ísio , o A reo p ag ita, com a sua Tbeologia mystica. O co n ce ito de D. co m o S u p ersu b stân cia em a n a n te , da asce n são m ística q u e cu lm ina no êx tase e d a te o lo g ia n e ­ gativa são os três asp ecto s fu n d a m en tais do

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DEUS

c o n c e ito p a n teísta de D. q u e c o m p re e n d e em si o m u n d o e é id ên tico à sua n atu re za última. Q u a lq u e r d essas d e te rm in a ç õ e s, ao aparecer na h istó ria da filosofia, te n d e a re p ro d u zir as o u tras. T eo lo g ia n eg ativa e m isticism o foram , ao q u e s a b e m o s, as c a ra c te rístic a s do pante ísm o de A m alric d e B èn e e de D avi de D inant no séc. XII: o p rim e iro via em D. a essên cia ou form a d as coisas; o s e g u n d o , a m atéria d as pró­ p rias co isas (S. TOMÁS, In Sent., II, d. 17, q. 1, a. 1). E ssas m esm as características re p a re ce m na m ística do M estre E ck h a rt (séc. X IV ), para q u e m D . é "um a E ssência su p ra -e sse n c ia l e um N ad a s u p ra -e n te " (Deutsche Mystiker, edição Pfeiffer, II, p p. 318-19), d e tal m o d o q u e dele n ad a se p o d e d izer se n ã o q u e é u m a "quietude erm a", ao m esm o te m p o em q u e é preciso re c o n h e c ê -lo co m o a v e rd a d e ira essên cia das criatu ras. "Se D. p o r u m m o m e n to se retirasse d e la s, d iz E ck h a rt, "elas se re d u z iria m ao nad a" (Ibid., p. 136). N o séc. X V , N icolau de C usa re to m a a m esm a c o n c e p ç ã o : D . é a essên­ cia ou a su b stân cia do m u n d o e o m u n d o é um D . contraído, no s e n tid o d e q u e é u m D. que se d ete rm in a e se in d iv id u aliza n u m a m ultipli­ cid a d e de co isas sin g u lares (Dedocta ignor., II, 4). D . é tu d o em to d a s as co isas e to d a s as coi­ sas estã o em D ., já q u e ele é "a essê n cia de to­ d as as essên cias" e p o rta n to a co m p lic aç ão e a e x p lic aç ão da m u ltip licid a d e cósm ica: o ponto no q ual a m u ltip licid a d e se unifica e do qual c o m e ç a a d iv ersifica r-se (Ibid., II, 5; I, 2). G io rd a n o B ru n o , p o r su a v ez, u tiliza a tese n e o p la tô n ic a e m ística da tra n sc e n d ê n c ia e da in co g n o sc ib ilid a d e de D. para lim itar-se a consi­ d erar D. co m o n atu reza. C om o tal, D. é a causa e o p rin c íp io do m u n d o : cau sa no sen tid o de d e te rm in a r as co isas q u e co n stitu em o m undo, p e rm a n e c e n d o d istin to delas; p rin cíp io no sen­ tid o de co n stitu ir o p ró p rio ser d as co isas natu­ rais (De Ia causa, II, em Op. ital, I, 177). E m n e n h u m d o s caso s se d istin g u e da n atu reza: "A n atu re za é D . m esm o ou é a v irtu d e div in a que se m anifesta n as co isas" (Summa ter. met., em Op. lat. IV , 101). Q u a s e s im u lta n e a m e n te , J a c o b B o e h m e c o n sid e rav a D. co m o "um nada etern o " (Mysterium magnum, I, 2) e co m o raiz do m u n d o n atu ral, q u e n ão foi criad o do nada, m as de D ., e n ad a m ais é q u e a re v e la ç ã o ou a e x p lic a ç ã o d a e s s ê n c ia d iv in a (De tribus principiis, 7, 23). N ão têm u m significado muito d iferen te as fó rm u las co m q u e , no séc. XIX, S ch eü in g ex p re sso u o c o n ce ito de D . do ponto de vista de su a filosofia da n atu reza. D. é uni­

DEUS dade, id en tid ad e ou in d iferen ça do esp írito e da natureza, da lib e rd a d e e da n e c e ssid a d e , da consciência e da in co n sc iên cia (Werke, I, III, pp. 578 ss.). Essa id e n tid a d e ou in d iferen ça nada m ais é q u e a id e n tid a d e p a n teísta en tre o mundo e D. "D e o u n iv e rso ", diz S ch ellin g , "são um a coisa só ou são asp e c to s d istin to s de uma única e m esm a coisa. D. é o u n iv e rso considerado p elo la d o da id e n tid a d e e é o to d o porque é to d o o real, fora do q ual n ad a existe" (Md, I, IV, 128). Mas a d o u trin a de S ch ellin g im plica a n o ç ã o de que o m u n d o é n ão só a re v e la çã o de D ., mas tam bém sua re aliza çã o . Essa n o ç ão tem origem em S p in o za, e m b o ra n ão se e n c o n tre nele: deriva do ra cio n alism o g e o m e triz a n te de Spinoza, p elo q ual D. n ã o m ais se identifica ccm o m u n d o , m as co m a ordem do m u n d o , mais p recisam en te co m a o rd e m ra cio n al, g e o ­ m etricam ente ex p licáv el, do m u n d o . D iz Spinoza: "Nada há de c o n tin g e n te n as co isas, m as tudo é d ete rm in a d o a ex istir e a atu ar de certo modo pela n e c e ss id a d e da n a tu re z a d ivina" (Et., I, 29). E m bo ra se p o ssa d istin g u ir e n tre n a­ tureza naturante q u e é D ., e n a tu re z a "naturada", q u e são as co isas d e riv a d a s d e D. (Md., sco l.), na re a lid a d e a n a tu re z a n ad a mais é que a o rd em n ec essária d as co isas, e essa ordem é D. "De q u a lq u e r m o d o q u e c o n ­ cebermos a n atu re za , so b o a trib u to d a e x te n ­ são, do p e n sa m e n to ou d e q u a lq u e r o u tro , sempre e n c o n tra re m o s u m a só e m esm a o r­ dem, um a só e m esm a c o n e x ã o de cau sas, isto é, um a só e m esm a re a lid a d e " (Ibid., II, 7, scol.). A ssim , p ara S p in o za D . n ão é a U n id a d e inefável da q ual as co isas b ro ta m p o r e m a n a ­ ção, nem a C ausa criad o ra da o rd em , m as essa mesma o rdem em su a n e c e ssid a d e . Isso im p li­ ca que a d eriv ação n ec essária e re cíp ro c a das coisas, seg u n d o o ideal da ra c io n a lid a d e g e o ­ métrica, é a realiza çã o de D ., p e n sa m e n to este que foi ex p licitad o no R o m an tism o ju sta m e n te como referência à d o u trin a de S pino za. A c o n ­ cepção de q ue D. se revela e ao m esm o te m p o se realiza no m u n d o , m ais p re c isa m e n te n a necessidade racio n al do m u n d o , fu n d a m en tal no R om antism o. Sua m e lh o r e x p re ssã o está em Hegel. Este co m eç a in sistin d o na n e c e ss id a d e da revelação de D.: se D. n ão se re v e la sse, s e ­ ria um D. invejoso. "Q u an d o , na relig ião , se toma a sério a p alav ra D ., é ta m b é m p o r ele, que é co n teú d o e p rin cíp io da relig ião , q ue pode e deve co m eç ar a d e te rm in a ç ã o do p e n ­ samento; e se a D. for n e g a d a a re v e la çã o , n ão

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DEUS restará o u tro c o n te ú d o a atrib u ir-lh e se n ã o a inveja. M as se a p alav ra esp írito d ev e ter um se n tid o , ela significa a re v e la çã o de si" (Ene, § 564). O ra, essa revelação n ão é só revelação, é a realização d e D. co m o a u to co n sc iên c ia de si q u e ele alcan ça n o h o m em . "D. é D. só e n ­ q u a n to se sab e: seu sab er-se é su a au to c o n sciên cia n o h o m e m e o sab er q u e o h o m e m tem de D ., q u e p ro g rid e até o sab er-se do h o m e m em D." (Ibid, § 564). D esse p o n to d e v ista, a d istin çã o en tre "E ssência eterna" e su a m an i­ fe staç ão é u m estág io p ro v isó rio , s u p e ra d o p elo re to rn o da m an ifestação à essên cia etern a e p ela re aliza çã o da u n id a d e d e am b as. H egel d istin g u e três m o m e n to s do co n ce ito de D.: "em cad a u m d ele s o c o n te ú d o ab so lu to é re ­ p re s e n ta d o a) co m o c o n te ú d o e tern o q u e p er­ m a n e c e na p o sse de si em sua m an ifestação ; b) co m o d istin ç ã o e n tre e ssê n c ia ete rn a e sua m an ifestação q u e, m e d ia n te essa d istin ção , to r­ n a-se o m u n d o da a p a rên cia o n d e está o c o n ­ te ú d o ; c) co m o infinito re to rn o e co n ciliação do m u n d o a lh e a d o da essên cia, assim co m o esta re to rn a do m u n d o da a p a rên cia p ara a u n id a d e de sua p len itu d e" (Ibid., § 566). A re a ­ lid a d e p len a d e D. co n siste em re c o n h e c e r-se re aliza d o n o m u n d o e atrav és do m u n d o . Essa c o n c e p ç ã o de q u e ao m u n d o está c o n ­ fiada a realiza çã o de D. ou p elo m e n o s sua re a ­ lização últim a e total, co n stitu i a in sp iraç ão (e a característica) d o m in a n te do p a n te ísm o co n ­ te m p o râ n e o . B ergson ex p rim e esse p e n sa m e n to q u a n d o identifica D. co m o esforço criad o r da v id a (Deux sources, p. 235), ou seja, co m o m o v im e n to p elo q ual a v id a v ai além de suas fo rm as estáticas e d efinidas, e n c a m in a n d o -se p ara a criação de n o v as fo rm as m ais perfeitas. D o am o r m ístico p ela h u m a n id a d e q u e é a p o n ta av a n ç ad a do ím p eto vital, B erg so n e s p e ­ ra a re n o v a ç ã o d a h u m a n id a d e e a re to m ad a "da fu n ção essen cial do u n iv e rso , q u e é um a m áq u in a de fazer d eu se s" (Ibid, p. 234). A ex p re ssã o "m áqu in a de fazer d eu ses" é m uito significativa; ex p ressa b em a cren ça de q u e o m u n d o d ev e ser a realização de D. E m o u tro s filósofos re to rn a m v elh as fó rm u las, co m o a do m u n d o e n q u a n to "corpo de D .", m as co m n o v o significado: só se in c o rp o ra n d o , D. realiza-se co m o tal. A le x a n d er diz: "D. é o m u n d o in teiro p o rq u a n to p o ssu i a q u a lid a d e da d e id a d e . O m u n d o in teiro é o corpo d esse ser; a d e id a d e é seu espírito. M as o p o ssu id o r d a d e id a d e n ão é real, é ideal: co m o ex isten te real, D . é o m u n d o infinito n o seu nisus p ara a d e id a d e , ou, para

DEUS ad o ta r u m a frase de L eibniz, e n q u a n to está g ráv id o de d eid ad e" (Space, Time andDeity, II, p. 535). P o rta n to , cab e ao m u n d o p arir D ., ou sem m etáforas, é na via de ev o lu ç ã o n atu ral q u e v ai ap a rec er, em certo m o m e n to , a q u a li­ d ad e de d e id a d e q u e e n c o n tra rá su b stân cia em certo n ú m e ro d e sere s (Ibid, p. 365). Essa m es­ m a re la ção e n tre D . e o m u n d o foi ex p ressa p o r W h ite h e a d co m as seg u in te s an títeses: "E v e rd a d e q u e D . é p e rm a n e n te e q u e o m u n d o é fluente, assim co m o é v e rd a d e q u e o m u n ­ do é p e rm a n e n te e D . é fluente. É v e rd a d e q u e D . é u n o e q u e o m u n d o é m ú ltip lo , assim co m o é v e rd a d e q u e o m u n d o é u n o e D . é m ú ltiplo. É v e rd a d e q u e o m u n d o , em face de D ., é e m in e n te m e n te real, e q u e D ., em face do m u n d o , é e m in e n te m e n te real. É v e rd a d e q u e o m u n d o é im a n e n te em D . e q u e D . é im a n e n te no m u n d o . É v e rd a d e q u e D . tra n s­ ce n d e o m u n d o , e q u e o m u n d o tra n sc e n d e D. É v e rd a d e q u e D . cria o m u n d o , e q u e o m u n ­ do cria D." (Process andReality, p p. 527-28). E ssas an títe ses significam q u e , se D. e sp era do m u n d o a su a realização , o m u n d o e sp era de D. a sua u n id a d e . "O m u n d o ", diz W h ite h e ad , "é a m u ltip licid a d e d as a tu a lid a d e s finitas q u e b u s ­ cam u n id a d e perfeita. N em D. n em o m u n d o atin g em co m p le titu d e estática. A m b o s estã o na forja do ú ltim o fu n d a m en to m etafísico, o av a n ­ ço criativo p ara o n ov o. C ada u m d ele s, ta n to D . q u a n to o m u n d o , é in stru m en to da n o v id a ­ de do outro" {Ibid., p. 529). M esm o p ara o v e lh o p a n te ísm o , o m u n d o co m o e m a n a ç ã o ou re ­ v ela çã o de D . co n d icio n av a, de certo m o d o , a re alid ad e d e D . "D. n ão existia an te s de criar to d as as coisas", dizia S co tu s E rigena (Dedivis. nat, I, 72), d e fe n d e n d o a c o e te rn id a d e do m u n d o e de D . E, de fato, o q u e seria u m co r­ po p erfu m a d o q u e n ão e m a n a sse p erfum e, ou u m a lu z q u e n ão e x p a n d isse raio s em to rn o de si? A p ró p ria n o ç ã o d e em a n a ç ã o to rn a o m u n ­ do e, em g eral, tu d o o q u e d e D. d im an a, p arte in te g ran te de D . e c o n d içã o d e su a re alid ad e. T o d av ia, é só no m u n d o m o d e rn o — a p artir do R om antism o (q u e te v e em g ra n d e a p re ç o a lição de S p in o z a ), — q u e se p assa a afirm ar ex ­ p lic ita m en te q u e D . é, de algu m m o d o , criação do m u n d o . À s v e z e s, co m o em H eg el, D . já é real no m u n d o , em to d a s as d e te rm in a ç õ e s do m u n d o , p o rq u e é o p ró p rio esp írito , ou seja, a ra c io n a lid a d e au to c o n sc ie n te , q u e se realiza n ele co m o tal. O utras v ez es, D. é o te rm o do p ro cesso ev o lu tiv o , a fase na q ual esse p ro c e s ­ so atin g e u n id a d e ou p erfeição . E m to d o s os

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DEUS caso s, o p a n te ísm o c o n te m p o râ n e o inverteu o p o n to de vista trad ic io n a l: n ão é D . q u e dá c o rp o , s u b s tâ n c ia ou re a lid a d e ao m u n d o , m as o m u n d o q u e dá c o rp o , su b stân cia ou rea­ lid a d e a D. O Deus como criador. S eg u n d o a co n cep ­ ção d e cau sa criad o ra, D. n ão é so m e n te o p rim e iro m o to r e a cau sa p rim eira do devir e da o rd em do m u n d o , m as ta m b é m o au to r da estrutura sub stan cial do p ró prio m u n d o . Essa es­ tru tu ra, co n stitu íd a p ela s su b stân cia s, form as ou ra z õ e s ú ltim as d as co isas, n ão é coeterna co m ele (com o na c o n c e p ç ã o clássica), m as p ro d u z id a p o r ele. P ro d u zid a n ão p o r u m p ro ­ cesso n ec essário , m as co m ca u sa lid a d e livre, g raças à q ual o m u n d o se sep ara d e D. no pró­ p rio ato de n a sc im e n to de seu ser. P or outro lad o , n essa c o n c e p ç ã o , D. n ão é m ais o superser, m as o ser do q u al p ro v ê m o u tro s seres. Se­ g u n d o essa c o n c e p ç ã o , as características d a di­ v in d a d e d erivam da n o ç ã o de criação , em seu sign ificad o p ró p rio e esp ecífico (v. CRIAÇÃO). D ev e-se n o tar q u e esse sign ificad o só foi ela­ b o ra d o co m o in tu ito de d istin g u i-lo p o r o p o ­ sição à o rd e n a ç ã o e à e m a n a ç ã o . E m hebraico, g reg o e latim , assim co m o n as lín g u as m oder­ n as, o v e rb o "criar" te m s e n tid o g en é ric o , re fe rin d o -se, in d ife ren te m en te , à o b ra de um arte sã o ou à de u m criador; é só atrav és da e la b o ra ç ã o filosófica q u e essa n o ç ã o chega a co n fig u rar-se em su as características. Essa ela b o ra ç ã o co m eç a co m Fílon de Ale­ x a n d ria (séc. I), q u e p o r m eio da in terp retação aleg ó rica do V elh o T e sta m e n to definiu o con­ ceito de D. ora em o p o siç ã o às d o u trin a s da fi­ losofia g reg a, ora em c o n so n â n c ia co m elas. F oi o p rim eiro a afirm ar q u e D. tiro u o m undo "do n ão -ser p ara o ser" (De vita Mosis, II, 8) e q u e ele n ão só foi D em iu rg o co m o tam b ém o v e rd a d e iro fu n d a d o r do m u n d o (Desomniis, I, 13). M as n em m esm o F ílon e n te n d e u esse con­ ceito , em to d o o seu rig o r, p ois às v e z e s assim i­ la cria ção e im p o siç ã o de o rd e m à m atéria d e s o rd e n a d a e am orfa (Quis rer. div. heres., 32). A n o ç ã o de D . cria d o r v ai-se d eterm in an d o co m m ais clareza na p o lêm ica cristã co n tra os g n ó stico s: Irin eu , p. ex ., afirm a q u e D. n ão tem n e c e ssid a d e de in te rm ed iá rio s p ara a criação (Adv. haer, II, 1,1). L actâncio, p o r su a v ez, ne­ gava q u e, p ara a criação , D. tiv esse n ecessid a­ de de m atéria p re e x iste n te (Inst. div., II, 9). C ontra o e m a n a tism o , O ríg e n e s afirm ava que D . n ão p o d e ser c o n sid e ra d o n em co m o o todo n em co m o u m a p arte do to d o , p o rq u e seu ser

DEUS é h om o gêneo , a b so lu to e indivisível {Contra Cels, I, 23), se n d o ta m b é m s u p e rio r à p ró p ria substância já q u e n ão p artic ip a dela: p articip ase de D., m as D. n ão p artic ip a de n ad a (De Princ, VI, 64). A lém d isso , a u n ic id a d e de D ., na qual os filósofos cristão s in sistem ta n to p ara opor-se ao p o lite ísm o p a g ã o q u a n to p ara eli­ minar da n o ç ão de T rin d a d e q u a lq u e r re síd u o de m ultiplicidade de d iv in d a d e s, lev a-o s a ac e n ­ tuar a sep aração en tre D. e o m u n d o , p ois se D ., de algum m o d o , p artic ip a sse do m u n d o , p a rti­ ciparia ta m b é m da m u ltip licid a d e e da d iv er­ sidade que o co n stitu em (GREGÓRIO DE NISSA, Or. catech., 1). P elo m esm o m o tiv o , é a c e n tu a d a a eternidade, ou seja, a im u ta b ilid ad e d e D. em face da m u ta b ilid a d e e da te m p o ra lid a d e do m undo. P ara S. A g o stin h o , D ., e n q u a n to Ser, é o fu n d am en to d e tu d o o q u e é, o cria d o r de tudo. Com efeito, a m u ta b ilid a d e do m u n d o q u e está ao n o sso re d o r d e m o n stra q u e ele n ão é o ser e que, p o rta n to , p rec iso u ser cria d o p o r um Ser eterno (Conf., X I, 4). A n tes da criação n ão havia te m p o e n ã o h av ia n e m m e sm o u m "antes": n ão tem s e n tid o , p ois, p e rg u n ta r o q u e D. fazia "então". A e te rn id a d e está acim a de todo te m p o e em D. o p a ssa d o e o fu tu ro n ad a são. O te m p o foi cria d o ju n ta m e n te co m o m undo (Ibid, X I, 13). N o séc. X I A n selm o re ­ sumia em Monologíon os re su lta d o s de u m tra ­ balho já secu lar, e s c la re c e n d o os ca ra cte re s da criação a p artir do n ad a co m o "um salto do nada para alg u m a coisa" (Mon., 8) e in sistin d o na im p o ssibilid ade de ad m itir q u e a m atéria ou outra realid ad e q u a lq u e r p ree x istisse à o b ra de criação divina. A s co isas são tã o -so m e n te p o r participação no ser; isso significa q u e su a ex is­ tência p ro v é m u n ic a m e n te de D . (Ibid, 7). A nselmo adm itia q u e na m e n te divina estiv e sse o m odelo ou a idéia d as co isas p ro d u z id a s, m as este tam bém , a p e sa r de p re c e d e r à criação do m undo, foi criado p o r D. (Ibid., 11). C o n trarian ­ do, porém , u m d o s ca ra cte re s de D. cria d o r (a liberdade de criar), a d o u trin a de A b e la rd o d i­ zia que a criação é u m ato n e c e ssá rio de D ., ou seja, u m ato q u e n ão p o d e n ão o co rrer, v isto que D. n ão p o d e n ão q u e re r o b e m e q u e a criação é u m b e m (Theol. christ., V , P. L., 178, col. 1325). A característica fu n d a m en tal da d o u trin a da causa criado ra é q u e D. é o ser do q ual d e p e n ­ dem to d os os o u tro s seres. M as foi só através do neo plato n ism o á ra b e q u e se d e s e n v o lv e u o corolário im plícito n essa c o n c e p ç ã o , c h e g a n d o -

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DEUS se à d e te rm in a ç ã o de u m atrib u to q u e d ep o is p assaria a ser o p rim eiro e fu n dam en tal atributo d essa d o u trin a: o da necessidade do ser div in o. D e fato, se as co isas do m u n d o ex trae m seu ser de D ., este só p o d e ex traí-lo de si m esm o , ou seja, D. é o ser p o r n atu re za ou p o r essên cia, ao p asso q u e as co isas têm o ser p o r p artic ip a çã o ou p o r d eriv a çã o de D. D esse m o d o , d e te rm i­ n a-se u m a cisão no ser: de u m lad o o ser d e D ., do o u tro o d as criaturas; de u m lad o o ser p o r si, do o u tro o ser p o r p artic ip a çã o ; de u m la d o o ser necessário, do o u tro o ser possível. Essa d istin ção foi in tro d u z id a p o r A l F arabi (séc. IX), e g raç as a A vicena (séc. XI) p rev alec eu na E scolástica á rab e e cristã, to rn a n d o -se u m de seu s p rin c íp io s fu n d a m en tais. A vicena in terp reta a re la ção e n tre n e c e ssid a d e e p o ssib ilid ad e nos te rm o s da re la ç ã o aristo télica e n tre form a e m a ­ téria. A form a, co m o ex istê n c ia em ato, é n e ­ ce ssid ad e; a m atéria é p o ssib ilid ad e. O q u e n ão é n e c e ssá rio p o r si m esm o é n e c essaria m en te c o m p o sto d e p o tên cia e ato, p o rta n to n ão é sim p les. Tal é o ser d as criatu ras. M as o ser q ue é n e c e ssá rio p o r si é a b so lu ta m e n te sim ples, d e sp ro v id o d e p o ssib ilid a d e e de m atéria: é D. (Met, II, 1, 3). A distinção en tre ser n ecessário e ser p o ssív el e a d efinição de D . co m o ser n e ­ cessário foram in trod uzid as na E scolástica cristã p o r G u ilh erm e de A lvérnia (De Trinitate, 7) e to rn a ra m -se fu n d a m e n to da te o lo g ia de A lberto M ag n o e de T o m ás de A qu in o . E ste ú ltim o ex ­ p rim e a n e c e ss id a d e do ser d iv in o co m o id en ti­ d a d e en tre essê n cia e ex istên cia em D.: D . é o ser cuja essê n cia im plica ex istência. D e fato, tu d o aq u ilo q u e se ach a em alg u m a coisa p or p articip ação d ev e ser n ecessariam en te cau sad o p o r aq u ilo em q u e se ach a p o r essên cia; p o r isso, o ser d e to d as as coisas é criado ou p ro d u ­ zid o p o r aq u ilo q u e p o ssu i o ser p o r essên cia p ró p ria, isto é, p o r ser n ecessário (S. Th, I, q. 2, a. 3; q. 44, a. 1). A n e c e ssid a d e é, em o u tro s te r­ m o s a d efinição da p ró p ria n atu re za de D. Pois em b o ra a p ro p o siç ã o "D. existe", q u e ex p ressa essa definição, não seja de p er si c o n h e cid a no q u e se refere a n ós (que p o d em o s n ão en te n d e r o sign ificad o do n o m e D . e in te rp retá-lo , p. ex., c o m o c o rp o ), é to d a v ia c o n h e c id a p o r si, secundum se, ou seja, em si m esm a n ecessária (Ibid, I, q. 2, a. 1). A característica de n e c e ssid a d e , à q ual o p e n s a m e n to filosófico c h e g o u re la tiv a m e n te ta rd e, to rn a-se fu n d a m en tal p ara to d a s as d o u ­ trin as d e D . q u e su rg e m d e p o is. N icolau de C usa d efine D. co m o "n ec essid a d e ab soluta"

DEUS (De docta ignor, I, 22). À s v e z e s essa c a ra c te ­ rística é to m a d a co m o p o n to de p artid a da p ro ­ v a o n to ló g ica, co m o faz D escartes, p ara q u em "a ex istência n ec essária está co n tid a n a n a tu re ­ za ou no c o n ce ito de D ., de tal m o d o q u e é v e rd a d e d izer q u e a ex istên cia n ec essária está em D . ou q u e D. existe" (Secondes Réponses, p ro p . I, D é m o n stra tio n ). O u tras v e z e s n eg a-se a le g itim id a d e cie se m e lh a n te p ro v a, m as assu ­ m e-se ig u alm e n te a n e c e ssid a d e co m o d efini­ ção de D.; é o q u e faz p. ex. L eibniz. "É p re c i­ so", diz ele, "p ro cu rar a razão da ex istên cia do m u n d o , q u e é a to ta lid a d e d as co isas co n tin ­ g en tes, e é p reciso p ro cu rá-la na su b stân cia q u e traz co n sig o a ra zã o d e sua ex istên cia e q u e é, p o rta n to , n ec essária e eterna" ( Tbéod., I, § 7). P o rta n to , s u b s tâ n c ia n e c e s s á ria , p ara L eibniz, é D . (Monad, 38). N esse asp e c to , são p o u c a s as n o v id a d e s a p re se n ta d a s p ela s c o n ­ c e p ç õ e s de D . co m o cau sa criad o ra n a filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a . L im itam -se a re p e ­ tir as características trad ic io n a is, a co m eç ar da n e c e ssid a d e , q u e n a m aioria d as v e z e s é assu ­ m id a co m o p o n to d e p artid a p ara u m a d e ­ m o n stra çã o o n to ló g ica. É o q u e fazem , p. ex. L otze (Microkosmus, III, p. 457) e, n a sua e ste i­ ra, m u ito s re p re s e n ta n te s do esp iritu a lism o c o n te m p o râ n e o . A ú n ica ex c e ç ã o a essa te n ­ d ên cia é co n stitu íd a p o r K ierk eg aard e p o r to ­ d o s os q u e se in sp iram d ire ta m e n te em sua c o n c e p ç ã o de D . S eg u n d o K ierk eg aard , a re la­ ção en tre D. e o m u n d o é in co m p ree n sív el e só p o d e ser esclarecid a n e g a tiv a m e n te co m a n o ­ ção de d iferença ab so lu ta, de "salto" en tre o m u n d o e D. (Diário, VIII, A , 414). P o rtan to , K ierk eg aard n ão utiliza a n o ç ã o de cau sa para d ete rm in a r a re la ção en tre o m u n d o e D ., ev i­ ta n d o atrib u ir a D. a catego ria de n e c e ssid a d e . D . é "aq u ele p ara o qual tu d o é possível" (Die Krankheit zum Tode, I, c; trad. it., F ab ro , p. 247); essa d efinição de D. to rn a a fé possível p o r ser o fu n d a m en to da confiança n a q u e le q u e p o d e s e m p re en c o n tra r u m a p o ssib ilid a­ d e d e salv aç ão p ara o h o m e m m as ex clui a certeza fu n d ad a na n e c e ssid a d e da n atu re za divina. É ó b v io q u e , d esse p o n to de vista, a p ró p ria q u alificação de D . co m o cria d o r do m u n d o to rn a-se im co m p reen sív el, se n d o indife­ re n te afirm á-la ou n eg á-la. O m esm o v ale para a d o u trin a c o n te m p o râ n e a q u e, n e sse asp ecto , m ais se ap ro x im a d a in sp ira ç ã o de K ierk eg aard: a d e J a sp e rs. Q ualificar a tra n sc e n d ê n c ia do ser com os atrib u to s tra d ic io n a lm e n te d ad o s a D . ou co m o D. m esm o é, se g u n d o Ja sp e rs,

DEUS

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an u lar a d istân cia en tre a tran sc en d ê n c ia e o h o m e m , ou seja, an u la r a tra n sc e n d ê n c ia como tal. A ú n ica cifra ou sinal da tra n sc e n d ê n c ia é o frac asso q u e o h o m e m sofre q u a n d o tenta alca n ç ar a tra n sc e n d ê n c ia . E sse fracasso é o ú n ic o e a u tê n tic o sin al da tra n sc e n d ê n c ia , q u e é n e g a d a p o r to d a s as te n ta tiv a s d e to rn á -la p ró x im a e a c e s s ív e l, p e n sa n d o -a co m os te rm o s trad ic io n a is d a d iv in d a d e (PM ., III, 3, p p . 166 ss.).

2. DEUS E O MUNDO MORAL.

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A re la ção en tre D. e o m u n d o m oral (ou I m u n d o d o s v alo res) é o se g u n d o asp ecto de I d istin ção d as v árias c o n c e p ç õ e s de D. Sob esse ! a sp e c to é p o ssív el isolar, em p rim eiro lugar, as ; d o u trin a s q u e n ão atrib u em a D. n e n h u m a fun- ' ção d e o rd em m oral. E ssas d o u trin a s, porém , j são raríssim as, p o is co n stitu em fo rm as de um [ q u ase-ateísm o ; p o d e -se m en cio n a r V oltaire. Pa- I rad o x alm en te, V oltaire disse q u e a divindade se j d esin teressa c o m p le ta m e n te p ela co n d u ta dos I h o m e n s. A zar d o s co rd eiro s q u e se d eix am de- > v o rar p elo s lo b o s. "Mas se u m co rd eiro fosse di- • zer a u m lobo-. 'Faltas ao b e m m oral, D . te puni­ rá', o lo b o re sp o n d e ria : 'F aço o m eu b em físico i e p are ce q ue D . n ão está m uito p re o c u p a d o em i s a b e r se te co m o ou n ão '" (Traité de mét., 9). ; C o n tu d o , esse p o n to de vista, q u e é com parti- I lh ad o p o r o utro s ilum inistas, a p a rec e raram ente i na h istória da filosofia, em q u e a relação entre • D . e a o rd em m oral te n d e a to m ar co m o m ode- : Io a re la ção en tre D. e o m u n d o físico. N esse ; a sp e c to , p o d e m ser d istin g u id as três co n cep ­ çõ e s fu n d a m en tais: a) a q u e co n sid e ra D . com o I g a ra n te d a o rd em m oral do m u n d o ; b) a q ue o ; identifica co m a o rd em m oral; c) a q u e o consi­ d era cria d o r d a o rd em m oral. a) Deus como garante da ordem moral. j P or essa c o n c e p ç ã o , a o rd em moral, do m es- ! m o m o d o q u e a o rd em substancial do m un­ d o , é in d e p e n d e n te d e D.; m as D . co n c o rre de m o d o m ais ou m e n o s eficaz p ara m an tê-la ou p ara realizá-la, a c re sc e n ta n d o -lh e su a garantia. É essa a c o n c e p ç ã o d e P latão e A ristó teles, se­ g u n d o os q u ais D ., ap e sar de cria d o r da ordem n atu ra l, n ã o tem n e n h u m a re sp o n sa b ilid a d e s o b re a o rd em m o ral q u e é co n fiada ao s h o ­ m en s, lim ita n d o -se a ap o iá-la e a encorajá-la co m sa n ç õ e s p ró p ria s. N o m ito de Er, Platão atrib u i à p arc a L áquesis as se g u in te s palavras, d irigidas às alm as q u e estã o p reste s a escolher u m n o v o ciclo de vida: "A v irtu d e n ão to lera se­ n h o re s; cad a u m p artic ip a rá d ela m ais ou m e­ n o s, co n fo rm e a h o n re m ais ou m en o s. Cada

DEUS u m é im p u táv el p o r su a esco lh a: a d iv in d a d e não é im p u táv el" (Rep, X , 617 e). E na re a lid a ­ de o D em iu rg o p re d is p õ e to d a s as co isas "para não ser cau sa da m a ld a d e futura d o s sere s in d i­ viduais" (Tim., 42 d). Para P latão, a v irtud e, as­ sim co m o o v ício (logo, a to ta lid a d e da o rd em m oral), faz p arte da esfera de ca u sa lid a d e dos seres criad o s. T o d av ia , ser v irtu o so significa tam bém "ser am igo da d iv in d ad e'', e isso sign i­ fica "ser sem e lh a n te " à d iv in d a d e . "A d iv in d a d e é para n ós a m ed id a de to d a s as co isas, m u ito mais do q u e p o d e sê-lo u m h o m e m , co m o d i­ zem hoje" (Leis, IV, 716 c). A n a lo g a m e n te , s e ­ gundo A ristó teles, a d iv in d a d e e x e rc e sua fun­ ção a p e n a s no m u n d o n atu ra l e só p o r essa função é p o ssív e l d e te rm in a r se u s a trib u to s fundam entais (M otor im ó v el, C au sa p rim eira, P en sam en to do p e n sa m e n to , e tc ) . C o n tu d o , até A ristóteles ad m ite, co n fo rm e as cren ça s p o ­ pulares, q u e, "se os d eu se s se p re o c u p a m de algum m o d o co m as o b ras h u m a n a s, co m o p a ­ rece, é v ero ssím il q u e lh e s a g ra d e v e r n os hom ens algo de e x c e le n te e q u e co m estes tenham a m aio r afin id ad e, o q u e só p o d e ser inteligência" {Et. nic, X , 9, 1179 a 24). A c a ra c ­ terística n eg ativa d essa c o n c e p ç ã o é a au sên cia da n o ção de p ro v id ê n c ia , ou seja, de u m a ordem racion al criad a p o r D. ou q u e seja D ., em que os h o m e n s e se u s c o m p o rta m e n to s encontrem lugar. Sua característica p ositiva é ser D . g aran te da o rd e m m o ral, c o n q u a n to n ão estabeleça seu s ca m in h o s e seu s m o d o s de re a ­ lização. N o m u n d o m o d e rn o essas ca ra cte rísti­ cas são e n c o n tra d as n o s d efe n so res da religião natural (v.), a relig ião sem re v e la ç ã o p o r p arte de D., confiada u n ic a m e n te às forças da razão . Grócio, p. ex., afirm a q u e os e n u n c ia d o s da re ­ ligião natural são q u atro : "Prim eiro: D. ex iste e é uno; seg u n d o : D. n ão é co isa n e n h u m a q ue se veja, m as é m u ito s u p e rio r a elas; terceiro : as coisas h u m an as são cu id ad a s p o r D. e ju lg a d a s com perfeita eq ü id a d e ; q u arto : D. é o artífice de todas as co isas ex terio res" (De iure belli, II, 20, 45). C renças s e m e lh a n te s, q u e ex c lu e m das coisas h u m an as o p la n o p ro v id e n c ial, em b o ra reconhecendo a ajuda e a g aran tia divina, são freqüentes n os filósofos d o s sécs. XVII e XVIII. Talvez sua m elh o r e x p re ssã o esteja em R ousseau e em K ant. S e g u n d o R o u sseau , D. in ter­ vém para p ô r em ação "as leis da o rd em u n i­ versal", ag in d o de tal m o d o q u e, n esta v id a, quem se co m p o rta r c o rre ta m e n te e for infeliz será re co m p e n sad o na outra. A liás, p ara R ousseau, a ex ig ên cia d e v e r assim g a ra n tid a a

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DEUS o rd e m m o ral é o ú n ico m o tiv o ra zo áv el para crer na im o rtalid a d e da alm a (Emílio, IV). D o m esm o m o d o , p ara K ant, a ex istên cia de D . é u m p o stu la d o da razão prática p ois só D eu s to rn a p ossível a u n ião de v irtu d e e felicid ad e em q u e co n siste o su m o b em , q u e é o objeto da lei m o ral (Crít. R. Pratica, I, cap. 2, § 5). "D esse m o d o ", d iz K ant, "m ediante o co n ce ito do su m o b em , a lei m oral co n d u z à relig ião , ao c o n h e c im e n to de to d o s os d ev eres na form a de m a n d a m e n to s d iv in os; n ão co m o san çõ es, ou seja, co m o d e c re to s arbitrários e p o r si m esm o acid en ta is de u m a v o n ta d e alheia, m as co m o leis esse n cia is de to d a v o n ta d e livre p o r si m e s­ m a, q u e, p o rém , d ev em ser co n sid e rad as m a n ­ d a m e n to s do Ser su p re m o , p o rq u e só de u m a v o n ta d e m o ra lm e n te perfeita (santa e b o a) e ao m esm o te m p o o n ip o te n te p o d e m o s esp era r o su m o b em , q u e a lei m o ral n os obriga a ter co m o o bjeto de n o sso s esforços; p o rtan to , p o ­ d e m o s e sp e ra r alcan çá-lo m ed ia n te o ac o rd o co m essa v o n ta d e perfeita". C o n se q ü e n te m e n ­ te, p ara K ant D. é "1 B criad o r o n ip o te n te do céu e da te rra , e, do p o n to d e vista m o ral, leg isla­ d o r san to ; 2 S c o n se rv a d o r do g ê n e ro h u m a n o co m o seu b e n é v o lo g o v e rn a n te e cu ra d o r m o ­ ral; 3S g uard a de suas p ró prias leis, ou seja, ju sto ju iz" (Religion, III, II, O bs. g er.). Essa so lu ç ão de K ant ficou se n d o típica da co n c e p ç ã o em e x a m e , q u e lim ita o p o d er m oral de D. a u m a g aran tia q u e n ão d ete rm in a de m o d o algu m a ação d o s h o m e n s, m as, ao co n trário , d e certo m o d o é solicitad a pela p ró p ria au to n o m ia d e s ­ sa ação . b) Deus como ordem moral do mundo. Essa c o n c e p ç ã o , co m o a outra de D . criado r da o r­ d em m oral, ap ó ia-se no co n ceito de providên­ cia, de o rd e m racio n al cjue c o m p re e n d e n ão só os ev e n to s do m u n d o m as ta m b é m as açõ es h u m a n a s, o rd em q u e é D . m esm o ou q u e v em de D. O s p rim e iro s a form ular o c o n ce ito de p ro v id ê n c ia foram os estó icos, q u e d eram esse n o m e ou o n o m e d e destino (v.) ao g o v e rn o ra ­ cio n al do m u n d o , ou seja, "a razão p ela q ual as c o isa s p a s s a d a s a c o n te c e ra m , as p re s e n te s ac o n te c e m e as futuras ac o n te ce rã o " (STOBF.O, Ecl, I, 79). O s estó ic o s identificaram essa ra ­ zão , d e stin o ou n atu reza co m D ., "p re se n te nas co isas e n os fatos to d o s, e q u e assim u tiliza to d as as co isas se g u n d o sua n atu reza, p ara a e c o n o m ia do to d o " (ALEXANDRE, De fato, 22, p p . 191, 30). D o p o n to de vista d essa id en tificação n ão d ev eria n ascer o p ro b lem a da lib e rd a d e h u m a ­

DEUS na: essa lib e rd a d e d ev eria ser id en tificad a com a n e c e ssid a d e do d esíg n io p ro v id e n c ial ou ser n eg a d a co m o coisa im p o ssív el. A aç ão do h o ­ m em só p o d e a d e q u a r-se à o rd em ra cio n al do to d o p o rq u e o h o m e m é u m a p arte d e sse to d o . E co m efeito sa b e m o s q u e os estó ic o s re c o n h e ­ ciam a n e c e ssid a d e do agir h u m a n o ; só para C risipo o assentimento v o lu n tá rio do h o m em in te rv in h a co m o fa to r c o n c o m ita n te , s e n d o co m p ará v el à form a do cilin d ro , q u e c o n trib u i para q ue ele gire so b re o p lan o inclinado (CÍCERO, De fato, 41-43). P lo tin o re to m a o m esm o c o n ­ ceito de p ro v id ê n c ia: "D e to d a s as co isas for­ m a-se u m ser ú n ic o e u m a só p ro v id ê n c ia; se c o m e ç a m o s p ela s co isas inferiores ela é d esti­ no; no alto, é só p ro v id ê n c ia. T u d o no m u n d o inteligível é ou razão o u, acim a da ra zã o , In te li­ g ên cia e A lm a p u ra. T u d o o q u e d esce de lá é p ro v id ê n c ia, ou seja, tu d o o q u e está na A lm a p u ra e tu d o o q u e v em da A lm a p ara os seres an im ad o s" (Enn, III, 3, 5). A aç ão q u e em a n a de D. co in cid e , em o u tro s te rm o s, co m sua ação p ro v id en cial: os sere s h a u re m de D . n ão só o ser e a v id a, m as ta m b é m a o rd em d as aç õ es em q u e seu ser e su a v id a são ex e rcid o s. P lo tin o p ro cu ra n ão b u sc a r na o rd em p ro v i­ d en cial a o rig em do m al, m as o atrib u i a u m a e sp écie de ac réscim o ac id en ta l q u e alg u n s s e ­ res fazem à o rd em da p ro v id ê n c ia (Ibid, III, 3, 5). M as, p ara ele, a p ro v id ê n c ia e D. identifi­ cam -se, p ois "do P rin cípio q u e p e rm a n e c e im ó ­ v el em si m esm o p ro v ê m os se re s in d iv id u ais, assim co m o de u m a raiz, q u e p e rm a n e c e fixa em si m esm a, p ro v é m a p lan ta: é u m a floração m ú ltipla q u e re d u n d a na d iv isão d o s seres, m as na q ual cad a u m carreg a a im ag em do P rin cí­ p io " ilbid, III, 3, 7). S em d úv id a, m u itas d essa s e x p re ssõ e s e im a g e n s p o d e rã o ser e m p re g a d a s, co m o de fato se rã o , p ela s d o u trin a s q u e re c o n h e c e m em D . o cria d o r da o rd em m o ral, m as n ão o id en ti­ ficam co m essa o rd em , em b o ra só e n c o n tre m seu sign ificad o literal n essa id en tificação . A n e ­ g ação da lib e rd ad e h u m an a, ou m elho r, a in ter­ p retaç ão d essa lib e rd a d e co m o n e c e ssid a d e , é u m de se u s co ro lário s. G io rd a n o B ru n o e x ­ p resso u esse co ro lá rio co m a d o u trin a d e q u e, em b o ra as o raç õ e s n ão p o ssa m influir n os d e ­ creto s do d estin o , q u e é in ex o ráv e l, o p ró p rio d estin o deseja q u e lh e su p liq u e m para fazer o q u e esta b e le ce ra fazer. "Q uer ain d a o fado q ue, c o n q u a n to até J ú p ite r saib a ser ele im u tável, e q u e outra coisa n ão p o d e ser s e n ã o aq u ilo q u e d ev e ser e será, n ão d eix e de, p o r tais m eio s,

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DEUS co rrer c e le re m e n te p ara seu d estin o " (Op. cit, I, 31). P o r su a v ez, E sp in osa n eg a q u e D. seja cau sa livre no se n tid o de p o d e r agir diferente do m o d o co m o age: ele é livre a p e n a s no senti­ do d e q u e ag e "só p ela s leis de su a natureza" (Et., I, 17). A ssim , em S pino za, a n o ç ã o d e p ro vidência id en tifica-se co m a n o ç ã o d e n e c e ssid a d e : ne­ ce ssid a d e se g u n d o a q ual to d a s as co isas deri­ v am da n atu re za de D ., co m o ú n ica C ausa per­ feita e o n ip o te n te (Et, I, 33, scol. 22). F ichte só fazia re p ro p o r a te se d e S p in o za q u a n d o , num te x to q u e lh e v ale u a ac u sa ç ã o de ateísm o (Do fundamento da nossa fé no governo divino do mundo, 1798), identificava D. co m a "ordena­ ção m oral viva e atu a n te", n e g a n d o q u e D. fos­ se "um a su b stân cia p articular", d iferen te dessa o rd en aç ão . Essa identificação ficou co m o funda­ m e n to do R o m a n tism o . H eg el diz: "O v er­ d a d e iro b em , a razão div in a e u n iv ersal, é tam ­ b é m p o tên cia de re aliza çã o de si m esm o . E m sua re p re se n ta ç ã o m ais co n creta, esse b em , essa ra zã o , é D. O q u e a filosofia v ê e en sin a é que n e n h u m a força p rev alec e so b re a força do bem , ou seja, de D ., de tal m o d o q u e a im p eça de atuar: D . p re v a le c e , e a h istória do m u n d o não re p re s e n ta outra coisa se n ã o o p la n o da provi­ d ên cia. D. g o v e rn a o m u n d o : o c o n te ú d o de seu g o v e rn o , a e x e c u ç ã o de seu p lan o , e a h istó ria u n iv e rsa l" (Phil. der Geschichte, ed. L asson, p. 55). N ão o b sta n te a a m b ig ü id a d e de certas e x p re ssõ e s, o se n tid o da d o u trin a heg elian a aq u i re ca p itu lad a é e v id en te : D . é a ra­ zã o q u e h ab ita o m u n d o , e a ra zã o q u e habita o m u n d o é a p ró p ria re a lid a d e histórica. D e u m século a esta parte essa doutrina foi repetida com freq üência, sen d o às v e z e s d esig n a d a "doutrina da p ro v id ê n c ia im an en te". A in da serv e de base p ara alg u m as c o rre n te s q u e v isam re n o v ar a teolog ia cristã e a e m p e n h a r o cristianism o num a ação m ais direta e eficaz no m u n d o . A ssim , p. ex., B on h oeffer identifica a re a lid a d e com o b em e am b o s co m D eu s. P or u m lad o , o bem é a re a lid a d e p o rq u e n ão é u m a fó rm u la geral: o real é im p o ssív el sem o b em . P or o u tro lado, D . é a "realid ad e ú ltim a" n ão no se n tid o de ser u m a idéia ou a m eta final da re a lid a d e , m as no s e n tid o d e q u e "todas as co isas se m ostram d isto rcid a s se n ão são v istas n em reco n h ecid as em D .". D esse p o n to de v ista, a ética cristã é "a re aliza çã o , en tre as criatu ras de D ., da realida­ de re v e la d o ra de D. em C risto" (Ethik, 1949, II; trad . in., p p. 55 ss.). A n o v id a d e de d ou trinas d e sse tip o co n siste, p o r u m lad o , no ab a n d o n o

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das trad icio n ais e s p e c u la ç õ e s te o ló g ic a s e, p o r outro, n a ên fase n a fu n ção do C risto; "D. e o m u nd o estã o c o m p re e n d id o s em seu n o m e; p ortanto, n ão se p o d e falar d e D . e do m u n d o sem falar de C risto" {Jbid., p. 6 l). M as o p re s ­ sup osto teó rico é s e m p re o m esm o : a id e n tid a ­ de de D. co m o m u n d o m oral. c) Deus como criador da ordem moral. Essa terceira c o n c e p ç ã o é caracterizad a: le p ela d is­ tinção en tre D. e su a aç ão p ro v id e n c ial, s e n d o D. causalivreda o rd em m oral; 2" pela tentativa de salvar a lib e rd a d e do h o m e m . O p o n to de partida d essa c o n c e p ç ã o co n tin u a se n d o a n o ­ ção de p ro v id ê n c ia, da fo rm a ela b o ra d a p o r estóicos e n e o p la tô n ic o s. B o écio assim a d istin ­ gue da c o n c e p ç ã o de d estin o : "A p ro v id ê n c ia é a p rópria razão div in a co n stitu íd a co m o p rin cí­ pio so b eran o de tu d o , q u e o rd en a to d as as c o i­ sas, ao p asso q u e o d estin o é a o rd e m q u e reg e as coisas em seu m o v im e n to e p o r m eio do qual a p ro v id ê n c ia as liga, d a n d o a ca d a u m a o lugar q u e lh e co m p ete " (Phil. cons., IV, 6, 10). Essa d istin ç ã o n ão e q ü iv a le , o b v ia m e n te , a um a se p a ra ç ã o : p ro v id ê n c ia e d estin o em ú lti­ m a análise co in cid e m , já q u e o p rim e iro é a u nidade da o rd e m v ista p ela in telig ên cia d iv i­ na, e o s e g u n d o é essa m esm a o rd e m e n q u a n ­ to realizada no te m p o . O p ro b le m a a q u e u m a e outro d ão o rig em é o do livre-arbítrio, ca ra c­ terístico d essa c o n c e p ç ã o de D . B o écio a n te c i­ p a o esq u e m a d e to d a s as s o lu ç õ e s q u e d ep o is lhe serão d ad as, afirm an d o q u e as aç õ e s h u m a ­ nas estão in clu íd as, ju sta m e n te em su a lib e rd a ­ de, na o rd em p ro v id e n c ial {ibíd, V , 6). C om form a m ais p rec isa e circ u n stan ciad a, a m esm a solução (à q ual, em g eral, se ativ eram os filó so ­ fos m ed ievais) foi re p ro p o sta p o r S. Tom ás.este afirm a, p o r u m la d o , o ca rá ter in tegral ou totalitário da aç ã o p ro v id e n c ial, e p o r o u tro julga a p ro v id ê n c ia co n ciliável co m a lib e rd a d e hum ana, q u e se in sere, co m o tal, no q u a d ro da p rovidência. D iz S. T o m ás: "É p ró p rio da p ro v i­ dência o rd e n a r as co isas p ara u m fim. D ep o is da b o n d a d e d iv in a, q u e é u m fim se p a ra d o das coisas, o b em p rin cip a l, ex istin d o n as p ró p rias coisas, é a p erfeição do u n iv e rso ; esta n ão ex is­ tiria se n ão se e n c o n tra sse m n as co isas to d o s os grau s do ser. D aí se s e g u e q u e é da d i­ vina p ro v id ê n c ia p ro d u z ir to d o s os g rau s do ser e, p o r isso e p ara certo s efeitos, ela p re p a ­ rou cau sas n ec essária s, a fim d e q u e a c o n te c e ssem n e c e ssa ria m e n te , m as p ara o u tro s efeitos p rep arou cau sas c o n tin g e n te s a fim d e q u e aco ntecessem c o n tin g e n te m e n te em co n fo rm i­

DEUS d a d e co m a c o n d iç ã o d as cau sas próxim as". P o r isso, "aco n tece infalível e n ecessariam en te aq u ilo q u e a p ro v id ê n c ia div in a d isp õ e que a c o n te ç a assim , m as a c o n te c e de form a co n tin ­ g e n te aq u ilo q u e a p ro v id ê n c ia divina q u er fa­ z e r assim a c o n te ce r" (S. Th, I, q. 22, a. 2). N ão se trata, o b v ia m e n te , d e u m a so lu ç ão isenta de d ificu ld ad es, p o is n ão é fácil e n te n d e r com o a realiza çã o de u m d esíg n io p erfeito e m in u cio so p o d e ser co n fiada, m esm o q u e em p arte, ou em p arte m ín im a, ao c o m p o rta m e n to im p re­ visível de u m fator arbitrário. M as essa é a so ­ lu çã o re p e tid a c o n sta n te m e n te n o âm b ito d e s ­ sa c o n c e p ç ã o , q u e te n d e a re ssaltar a lib e rd ad e da c a u salid ad e div in a co m v istas à so lu ç ão do o u tro p ro b le m a fu n d a m en tal d a teo d ic éia, o do m al, e x p re sso p ela v elh a fórm ula: "SiDeusest, unde malum? Si non est, unde bonum?" O s escrito re s d o s sécs. XVII e XVIII (e sp e c ia lm e n ­ te B ayle, os d eísta s e Leibniz) d iscu tiram lo n ­ g a m en te esses p ro b lem as, sem en co n trar n ov as so lu ç õ e s (v. M A L ). D e u m la d o , B ayle d av a d e s ­ ta q u e à insuficiência d as so lu ç õ e s tradicionais e ju lg av a esse s p ro b le m a s in so lú v eis; d e o u tro , L eibniz re p ro p u n h a as so lu ç õ e s trad icio n ais in­ se rin d o -a s n o seu c o n ce ito d e m u n d o co m o o r­ d em q u e se o rg an iza e s p o n ta n e a m e n te e d e D. co m o p rin cíp io d essa o rg an iza çã o . E m v irtu d e d e sse co n ce ito , L eibniz p o d ia ad m itir u m d e ­ te rm in ism o n ão n e c e ssita n te , n o q u e diz re s­ p eito à v o n ta d e h u m an a n a o rd em p ro videncial (Disc. de mét., § 30), e re a p re se n ta r, com m ais p la u sib ilid a d e , a an tiga te se de q u e o m al n ão ex iste, n ã o tem re a lid a d e p ró p ria , m as é um in g re d ie n te in d isp e n sá v e l, e m b o ra in c ô m o d o , do m elho r d os m u n d o s possíveis (Théod, I, § 21). T od av ia, o c o n ce ito de D. co m o "substância n e c e ssá ria " c o n tin u a v a em L eib n iz (Monad., § 38), e esse c o n c e ito é dificilm ente co m p atív el co m a c a u sa lid a d e livre de D. C om o afirm ava A vicena, q u e foi o p rim e iro a en u n c ia r esse c o n ce ito , u m a su b stân cia só p o d e ter u m a ca u ­ sa lid a d e n ec essária e c o m u n ica r sua n e c e ssid a ­ de a tu d o o q u e dela p ro v ém . E m sua fo rm u la­ ção trad icio n al, essa c o n c e p ç ã o d e D . rev e la -se u m a c o m p o siç ã o sin crética, cujos elem e n to s n ão são to d o s co m p atív e is u n s co m os o utro s. C om efeito, ex trai d a c o n c e p ç ã o (b) o co n ce ito de p la n o p ro v id e n c ial, q u e , na história d a filo­ sofia, n asceu da identificação de D. co m o m u nd o ou co m sua o rd em . E co m b in a essa d o u trin a co m o u tra, de o rig em árab e, p ara a q u al D . é su b stân cia n ec essária , b e m co m o co m o ele­ m e n to g re c o -c ristã o -ju d a ic o , d e D eu s co m o

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cau sa livre. N ão é de e stra n h a r q u e da c o m p o ­ sição de e le m e n to s co n ce itu ais tão h e te ro g ê ­ n eo s te n h a m n ascid o conflitos e p ro b le m a s de ex trem a d ificu ld ad e. N a p ró p ria filosofia c o n ­ te m p o râ n e a , as so lu ç õ e s o ferecid as p ara tais p ro b le m a s n ão são d iferen tes d as citadas; às v e z e s, to rn a m -se ain d a m e n o s c o n v in c e n te s d ev id o à ên fase d ad a ao caráter n ec essário da re alid ad e divina p ela influência do im an en tism o ro m ân tico . 3. DEUS F. A DIVINDADE. O te rc eiro m o d o de d istin g u ir as c o n c e p ­ çõ e s d e D . co n siste em c o n sid e rá-la s q u a n to à re la ção e n tre D . e ele m esm o , ou, m ais p re c i­ sa m e n te , en tre D. e a d iv in d a d e . N a d istin ção ou na id en tificação en tre D. e a d iv in d a d e estão as d uas altern ativ as, p o lite ísm o ou m o n o teísm o . S e D. se d istin gu e da d iv in d ad e, tem -se um a relação se m e lh a n te à q u e ex iste en tre a h u m a ­ n id ad e e o h o m e m , p o d e n d o h av er m u ito s d e u ­ ses, assim co m o h á m u ito s h o m e n s. Se, p o rém , D. é id en tificad o com a d iv in d a d e , há u m só D ., assim co m o há u m a só d iv in d a d e . A p ro p ó ­ sito, é o p o rtu n o dar p o u ca im p o rtância ou aceitar co m m uita cau tela as q u alificaçõ es co m q u e os filósofos são c o m u m e n te c a ra c te riz a d o s. N a v e rd a d e , m u ito s fiósofos são q u alificad os de m o n o te ístas, q u a n d o n ão o são (p. ex., P latão, A ristó teles, P lo tin o , B ergson , e tc ) , e, co m o se verá a seg uir, o p o lite ísm o tem m ais difusão en tre os filósofos do q u e o m o n o te ísm o . E m to d o caso , para u m a d istin çã o rig o ro sa, cu m ­ p re ter em m e n te a p e n a s o critério in d ica d o (qual seja, a re la ção en tre D. e a d iv in d a d e ), q u e é o ú n ico q u e n ão se p resta a eq u ív o c o s. a) Politeísmo. C o m o v im o s, d ev em ser c o n ­ sid e ra d a s p o liteístas to d a s as d o u trin a s q u e ad ­ m item d e algu m m o d o a d istin ção en tre div in ­ d ad e e D ., p o rq u e , p ara essa s d o u trin a s, a d iv in d a d e p o d e ser c o m p artilh a d a p o r u m n ú ­ m ero in d efinido de en te s. Foi essa, sem d ú v i­ da, a d o u trin a de P latão. E m Timeu, o D em iu r­ g o d ele g a a o u tro s d e u se s, cria d o s p o r ele p ró p rio , p arte d e su as fu n çõ es cria d o ra s (Tim., 40 d), e em Leis a ex p re ssã o "D eus" (o theós) d esig n a a d iv in d a d e em g eral, q u e en c o n tra re alid ad e n u m a m u ltip licid a d e de d eu se s. A d e ­ m ais, além d os d e u se s, são re c o n h e c id o s o u ­ tros se re s d iv in o s, os d em ô n io s. "D epo is dos d e u se s, o h o m e m in te lig e n te h o n ra os d e ­ m ô n io s; d e p o is d estes, os h eró is" (Leis, 717 b ). A ristó teles, p o r sua v ez, ju lg a q u e a m es­ m a d em o n stra ç ã o v álid a p ara a ex istên cia do p rim eiro m o to r v ale ta m b é m p ara a ex istência

DEUS de ta n to s m o to re s q u a n to s são os m o vim en to s das esferas celestes; e co m o o n ú m e ro d as esfe­ ras era 47, s e g u n d o E u d ó x io , e 55, seg u n d o C alipo (os d ois a strô n o m o s a q u e m A ristóteles se referia), esse filósofo ad m ite 47 ou 55 divin­ d a d e s q u e, c o n q u a n to s u b o rd in a d a s ao prim ei­ ro m o to r, têm o m esm o nível d ele. A lém disso, ele fala c o n sta n te m e n te de "d eu ses" (Et. nic, X , 9, 1179 a 24; Met, I, 2, 983 a 11; III, 2, 907 b 10, e tc ) , e, a lu d in d o à co n v icç ão p o p u la r de q u e o d iv in o a b ra n g e to d a a n atu re za , ach a que esse p o n to essen cial, ou seja, "que as sub stân ­ cias p rim eiras são trad ic io n a lm e n te co n sid era­ das d e u se s", foi "d iv in am en te dito" e é u m dos e n sin a m e n to s p re c io so s q u e a trad iç ão salvou (Met.. X II, 8, 1074 a 38). E m o u tro s term o s, da su b stân cia divina p artic ip a m m u itas divinda­ des; n isso co in cid e m cren ça p o p u la r e filosofia. P or o u tro lad o . n ão se d ev e co n fu nd ir a in sistên cia de P lo tin o e d o s n e o p la tô n ic o s em geral n a unidade de D eu s com o re co n h e ci­ m e n to da u n ic id a d e d e D . D . é u n o , aliás é o U no p o rq u e é a u n id a d e do m u n d o e a fonte d e o n d e b ro tam ou e m a n a m to d as as ordens da re alid ad e. M as ju sta m e n te p o r isso não é ú nico : a u n id a d e n ão elim ina a m u ltiplicidade, m as a c o n tém em si m esm a. A liás, p ara Plotino, a m u ltip licid a d e d o s d e u se s é a m anifestação da p o tên cia divina; "N ão restrin g ir a div in dade a u m ú n ico ser. m ostrá-la tão m últipla q u a n to é em sua m an ifestação , eis o q u e significa co n h e­ cer a p o tên cia da d iv in d a d e , q u e é cap az de, m esm o p e rm a n e c e n d o o q u e é, criar u m a m ul­ tip licid a d e de d eu se s q u e se ligam a ela, exis­ tem p ara ela e v êm dela" (Enn., II, 9, 9). O bvia­ m en te , a m u ltip licid a d e de d e u se s em q ue a d iv in d a d e se m u ltiplica e se e x p a n d e , sem real­ m e n te se dividir, n ão ex lu i u m a h ierarq u ia e a fu n ção p re e m in e n te de u m d ele s (o D em iurgo ou o M otor de P latão , o P rim eiro M o to r de A ristó teles, o B em de P lo tin o ); m as o reco ­ n h e c im e n to d e u m a h ierarq u ia e de u m chefe da h ierarq u ia n ão significa a b so lu ta m e n te a co in cid ê n cia en tre d iv in d a d e e D ., n ão sen do , p o is, m o n o te ísm o . P or o u tro lad o , n ão seria ex a to s u p o r q ue o p o lite ísm o , e n te n d id o n a form a ex p o sta acim a, seja u m a altern ativa ex clusiv a da filosofia paga e q u e , p o rta n to , n ã o se a p re se n te m ais, d ep ois da ela b o ra ç ã o cristã do m o n o te ísm o . Essa ela­ b o ra ç ã o n ão c o n se g u e elim in ar os rep etid o s re ssu rg im e n to s do p o lite ísm o , seja em dou tri­ n as q u e , co m o a d as q u a tro n atu re za s de Scotus E rigena, re p ro d u z e m o e sq u e m a n eo p latô n ico ,

DEUS seja nas in te rp re ta ç õ e s trin itárias m en o s feli­ zes, q u e às v e z e s se in clin am p ara o p o lite ísm o . Foi o q u e ac o n te c e u , p. ex., com G ilbert de Ia Porrée (séc. XII), q u e to m av a p o r b a se a d istin ­ ção en tre deítas e Deusiv. DEIDADK). P o r o u tro lado, to d a fo rm a d e p a n te ísm o , an tig o ou m o ­ d erno, te n d e a ser p o liteísta, já q u e te n d e a d i­ fundir o ca rá ter da d iv in d a d e p o r certo n ú m e ro de en tes, d e b ilita n d o ao m esm o te m p o a s e p a ­ ração en tre esse s en te s e m a n te n d o a d istin ção entre d iv in d a d e e D. A ssim , p ara H eg el, as in sti­ tuições h istóricas n as q u a is se realiza a razão au to co n scien te, em p rim e iro lu g ar o E stad o, são v erd ad eiras d iv in dades: "O E stado", diz H egel, "é a v o n ta d e div in a e n q u a n to esp írito atual que se ex p licita coma forma reale co m o o rg a­ nização d e u m m u n d o " (Fil. dodir, § 270). São ainda m ais cla ra m e n te p o liteístas as fo rm as do p an teísm o m o d e rn o . B erg so n , A le x a n d re , W hitehead (d. os tre c h o s cita d o s em 1 B), c o n fe ­ rindo ao m u n d o o p o d e r de realizar a d iv in d a ­ de, re c o n h e c e m e x p lic ita m en te q u e esta, no m o m en to da re aliza çã o , co n cre tiza r-se-á n um a m ultiplicidade de sere s d iv in os. D e o u tro p o n ­ to de vista, H u m e conferira v alo r p o sitiv o ao politeísm o, q u e r p o rq u e este, ao ad m itir q u e os deuses de o u tras seitas ou n aç õ e s ta m b é m p arti­ cipam da d iv in d a d e , to rn a as v árias d e id a d e s com patíveis e o b sta à in to le rân c ia, q u e r p o r­ que ele é m ais ra cio n al, p o is co n siste "apenas num a co le çã o d e h istórias q u e , a p e sa r d e n ão terem fu n d a m e n to , n ão im p licam n e n h u m a b ­ surdo e x p re sso n em co n tra d iç ã o d e m o n stra ti­ va" (The NaturalHistory ofReligion, seç. X I e XII, em Essays, II, p p . 336 e 352). R en o u v ier defendia ex p licitam en te o politeísm o co m o ú nico corretivo do fan atism o relig io so e do ab so lu tism o filosófico. D izia: "O p ro g re sso da v id a e da virtude p o v o a o u n iv e rso de p e sso a s d iv in as e estarem os s e n d o fiéis a u m s e n tim e n to re lig io ­ so an tigo e e s p o n tâ n e o q u a n d o ch a m a rm o s de d euses a q u e le s q u e ac re d itarm o s c a p a z e s de honrar a n atu re za e a b e n ç o a r as o bras" (Psychologie rationelle, 1859, cap. XXV, ed. 1912, p. 306). E sse p o liteísm o n ão é in co n ciliável com a u n id a d e de D. p o rq u e o D. u n o seria, en tã o , a p rim eira d as p esso as su p e r-h u m a n a s.

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DEUS

A lexand ria, q u e afirm a q u e "D. é so litário , é u m em si m esm o e n ad a é se m e lh a n te a D."; p o rta n to , "ele está na o rd e m do u n o e da m ô n a d a , ou m elho r, é a m ô n a d a n a o rd em do D . u n o , já q u e to d o n ú m e ro é m ais re c e n te q u e o m u n d o , e assim o te m p o , m as D . é m ais v e lh o q u e o m u n d o e seu D em iurgo " {Ali. leg, II, 1- 3). N as d iscussões trinitárias da fase patrística e da E scolástica, a id e n tid a d e de D. co m a d i­ v in d a d e foi o critério d irim en te para re c o n h e ­ cer e co m b a te r as in te rp re ta ç õ e s q u e se incli­ n av am p ara o triteísm o . P o r certo , a T rin d ad e é c o n sta n te m e n te a p re se n ta d a co m o u m m isté­ rio q u e a ra zã o m al p o d e aflorar. M as o q ue im p o rta re ssaltar é q u e a u n id a d e divina só é c o n sid e ra d a cin d id a q u a n d o , co m a distin ção e n tre D . e a d iv in d a d e , se ad m ite, im plícita ou ex p licitam en te, q u e dela participam dois ou m ais se re s in d iv id u a lm e n te d istin to s. A m elh o r ex ­ p o siç ã o d esse p o n to de vista p o d e ser vista em S. T o m á s, q u e assim re su m e u m a lo n ga trad i­ ção (v. também, p. ex., RICARDO DE SÃO VÍTOR, De Trin, I, 17). "E ev id en te", diz S. T o m ás, "que aq u ilo p elo q u e algo sin g u lar é este sin g u lar de m o d o n e n h u m é co m u n icá v e l a o u tras coisas. P. ex., aq u ilo p elo q u e S ó crates é h o m e m p o d e ser co m u n ica d o a m uitos outros seres, m as aquilo p elo q u e ele é este h o m e m p o d e ser co m u n ic a ­ do a este a p e n a s. Se, p o rta n to , S ócrates fosse h o m e m co m fu n d a m e n to n aq u ilo p elo q u e é este h o m e m , assim co m o n ão p o d e h av er m ais de u m S ócrates, ta m p o u co p o d eria haver m ais de u m h o m em . M as esse é p rec isam e n te o caso de D ., já p o is D. é a p ró p ria n atu reza, de tal form a q u e ele, sob o m esm o asp ecto , é D . e esteD.; é im possível, p o rtan to , q u e haja m ais de u m D." (5. Th., I, q. 11 a 3). Esse é o m o tiv o p elo qual os te ó lo g o s m ed ie v a is insistem na simplicida­ de da natureza divina, q ue na realidade nada m ais significa do q ue a incom unicabilidade dessa n atu ­ reza e, p o rtan to , a im p o ssib ilid ad e de q u e ela seja c o m p a rtilh a d a p o r m ais de u m D. A p artir de S. T o m á s, a história da filosofia p o u c o a c re s­ ce n to u a esse s co n ce ito s. A d ec ad ên cia da es­ p ec u la ç ã o teo ló g ica to rn o u , aliás, os filósofos m e n o s sen sív eis à p rec isão d esse s co n ceito s, d e tal m o d o q u e , co m m uita freq ü ên cia, as q u a ­ lificações do m o n o te ísm o e p o lite ísm o são e m ­ b) Monoteísmo. C o m o se d isse, o m o n o - p re g a d a s ale a to ria m e n te , lim ita n d o -se o p o teísm o n ão se caracteriza pela p re se n ç a de u m a liteísm o a u m a m an ifestação da m en ta lid a d e hierarquia d e sere s e p o r u m cab eça d essa h ie ­ p rim itiv a, c o n q u a n to ele seja, co m o se viu , u m a rarquia, m as p elo re c o n h e c im e n to de q u e só altern ativa filosófica em cujo favo r está to d a a D. p o ssu i a d iv in d a d e e q u e D . e d iv in d a d e trad iç ão clássica e m u itas d as te n tativ a s m o d e r­ coincidem . N esse sen tid o , na história da filo so ­ n as d e in o v ar o c o n ce ito de D. fia, o m o n o te ísm o c o m p a re c e em F ílo n de

DEUS 4. A REVELAÇÃO DE DFAJS.

O q u a rto e ú ltim o m o d o de d istin g u ir as c o n c e p ç õ e s de D. co n siste em c o n sid e ra r a via d e ac esso a D . q u e essa s c o n c e p ç õ e s c o n c e ­ d em , ou n ão , ao h o m e m . A esse p o n to de vista d izem re sp e ito , e sp e c ia lm e n te , a d istin ção e a o p o siç ã o e n tre d eísm o e te ísm o , q u e c o n sis­ tem , grosso modo, em c o n sid e ra r a m an ifesta­ ção de D . co m o iniciativa do h o m e m (deísm o) ou de D. (teísm o ). P o rta n to , é p o ssív el d istin ­ g uir d u a s c o n c e p ç õ e s p rin cip a is: i) a q u e atri­ b u i à iniciativa do h o m e m e ao u so d as c a p a c i­ d ad es n atu ra is d e q u e d isp õ e o c o n h e c im e n to q u e o h o m e m tem d e D.; ii) a q u e atrib u i à iniciativa d e D . e à su a re v e la çã o o c o n h e c i­ m en to q u e o h o m e m tem de D . O b v ia m en te , essas d u a s c o n c e p ç õ e s p o d e m c o m b in a r e d ar lu g ar a iii), p ara a q u al a re v e la ç ã o só faz c o n ­ cluir e levar a c a b o o esfo rço n atu ra l do h o ­ m em p ara c o n h e c e r D. D esses três p o n to s de v ista, o p rim e iro é o m ais estrita m en te filosófico; os o u tro s d ois são p re d o m in a n te m e n te relig io so s. A filosofia g re ­ g a só co n h e c e u o p rim eiro . O s e g u n d o p o n to de vista p o d e ser v isto co m to d a a clareza em Pascal: "É o co ra çã o q u e se n te D ., n ão a razão . Eis o q u e é a fé: D. sen sív el ao co ra çã o , n ão à razão" (Pensées, 278). E P ascal ac re sc en ta lo g o: "A fé é u m d o m de D." (Jbid, 279). P or isso, a re v e la çã o au tên tica de D . ao co ra çã o do h o ­ m em é u m a iniciativa e x c lu siv am e n te divina, iniciativa q u e o h o m e m p o d e facilitar, é v e rd a ­ de, d o m in a n d o su a s p aix õ es, m as n ão solicitar ou p ro v o car. O te rc eiro p o n to de vista foi in s­ ta u ra d o p ela P atrística, q u e co n sid e ro u a re v e ­ lação cristã co m o o c u m p rim e n to da filosofia g reg a. Esta é p ro d u to da razão , do L ogos, q u e é o p rim o g ê n ito d e D ., e c o n té m v e rd a d e s ou g erm e s d e v e rd a d e q u e o cristian ism o leva ao d esen v o lv im e n to p len o (JUSTINO, Apol. séc, 13). O p rin cíp io d e q u e a re v e la çã o n ão an u la e n em inutiliza a ra zã o d o m in o u to d a a filosofia esco lástica e foi p o sto em d ú v id a só p ela s ú lti­ m as m a n ife s ta ç õ e s d e sta , no séc. X IV . N o R en ascim en to , in v erte-se: a re v e la çã o n ão c h e ­ ga no fim , p ara cu m p rir a o b ra da ra zã o , m as a inspira e a su sten ta d e sd e o início. A ra zã o só faz tran sm itir e ilustrar a v e rd a d e q u e D . re v e ­ lou em te m p o s re m o to s. E sse foi, p. ex., o p o n ­ to de vista de P ico delia M iran do la e de G iord a n o B ru no . E m am b o s os caso s, p o rém , a o bra da razão e a da re v e la çã o co la b o ra m , e n ã o são an titéticas.

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DEUS, MORTE DE O d eísm o do séc. X V III, assim co m o o seu p re c e d e n te h istó rico , a d o u trin a da relig ião n a­ tural dos sécs. XVI e XVII ( T ho m as M orus, H erbert d e C h erb u ry , L ocke), c o n tra p õ e à revelação h istórica a re v e la ç ã o n atu ra l, q u e o co rre atra­ v és da ra zã o , c h e g a n d o a v e r n o E vangelho (com o M atteo T indall) ap e n a s "um a republicação da lei da n atu reza" (O cristianismo antigo como criação, 1730). O b v iam en te, u m a d iv in d ad e que se rev ela à ra zã o só te m e só p o d e te r caracteres racio n ais; p o r isso, o d eísm o re strin g e os atri­ b u to s da d iv in d a d e aos q u e p o d e m ser d eter­ m in a d o s p ela ra zã o a p artir da re la ção en tre D. e o m u n d o . E m face d isso , o te ísm o , co m o diz K ant, "crê n u m D. v iv o, n u m D. cujos atributos p o d em ser d eterm in ado s p o r analogia com a natu­ reza e com fu n d a m en to na re v e la ç ã o " (Crít. R. Pura, d ialética, ca p ítu lo III, seç. 7). É preciso, p o rém , re ssaltar q u e, n a te rm in o lo g ia filosófica p re d o m in a n te d e p o is do R o m an tism o , utiliza­ d a so b re tu d o p elo p a n te ísm o , a "rev elação de D ." n ão é u m fato h istó ric o , m as m anifestação p ro g ressiv a de D. n a re a lid a d e n atu ra l e histó­ rica do m u n d o . A lém de p re d o m in a r n as filoso­ fias de H eg el e S ch ellin g , esse significado é im p o rta n te em filosofias do séc. X IX q u e o b e ­ d e c e m à m esm a in sp iraç ão . R osm in i ap resen ta co m o fu n d a m e n to da filosofia e, em g eral, do sa b e r h u m a n o , a idéia do ser, q u e é revelação direta do atrib u to fu n d a m en tal d e D . à m en te do h o m e m {Novo ensaio, § 1055); d e m odo a n á lo g o , G io b erti co n sid e ra co m o b ase do co­ n h e c im e n to a intuição, q u e é a rev elação im edi­ ata de D . ao h o m e m (Introdução, II, p. 46, 1). E ssa idéia tem trâ n sito em d o u trin a s dís­ p are s e ta m b é m p o d e ser vista n as q u e acen ­ tu am ao m áx im o a tra n sc e n d ê n c ia de D. e, p o rta n to , v ê e m su a ú n ica re v e la çã o possível n a in atin g ib ilid ad e. Essa é a d o u trin a de Jasp e rs, p ara q u e m o fracasso in ev itáv el do h o m e m em su a ten tativ a d e alca n ç ar a T ra n sc e n d ê n c ia é a ú n ica re v e la ç ã o p o ssív el, a cifra da p ró pria T ra n sc e n d ê n c ia (Phil., III, p. 134). D E U S , M O R T E D E (in. Death ofGod; fr. Mort de Dieu; ai. Gottertod; it. Morte di Dio). O a n ú n c io de q u e "D eus m o rre u " foi feito p o r N ietzsch e, no sen tid o d e q u e "a fé n o D. cristão to rn o u -s e in aceitáv el" 04 gaia ciência, 1882, § 108, 125, 343), m as hoje é co n sid e rad o sím b o lo d a re n o v a ç ã o do cristia n ism o , que p recisav a lib e rta r-se d as e stru tu ra s m itológicas e so b re n a tu ra lista s de q u e se rev estira n o s sé­ cu lo s an te rio re s, re e n c o n tra n d o a p u re z a de su a m en sag em . Essa "nova teo lo g ia" inspira-se

DEUS, PROVAS DE sub stan cialm ente na o b ra de B ultm an (v. D E S MHIFICAÇÂO) e d e B o n h o effer (v. DEUS, 2, b): contrapõe a fé à re lig iã o , n eg a a tra n sc e n ­ dência de D . (sen d o , p ois, q u a se u m p an teísm o) e tran sfere p ara o m u n d o h istó rico a esperança esca to ló g ica d os p rim ó rd io s do cris­ tianism o ao afirm ar q u e "D. n ão é, m as será", no sen tid o de q u e se realizará co m o am o r no seio de u m a c o m u n id a d e h u m a n a ajustada ao exem plo de Cristo (G. VARTANIAN, DeathofGod, 1961;T . A m zER, The GospelofChristianA theism, 1967). D EU S, P R O V A S D E (in. Arguments forGod; fr. Preuves deDíeu; ai. Gottesbeweise, it. Prove diDió). E n te n d e re m o s p o r essa e x p re ssã o n ão só as "d em o n straçõ es", m as ta m b é m os in d ícios ou as in d ica çõ es q u e fo ram c o n sid e ra d a s p ro ­ vas da ex istên cia de D. C ada u m a d essas provas n asceu de d e te rm in a d a c o n c e p ç ã o de D. e re co rre a certo tip o de ca u sa lid a d e , m as cada c o n c e p ç ã o ta m b é m se v a le de p ro v a s extraídas de c o n c e p ç õ e s d iferen tes, de m o d o que, via de reg ra, há certo sin c re tism o n esse ram o do p e n sa m e n to filosófico. N o en ta n to , existe u m a rg u m e n to q u e n ão se refere a n e ­ nhum a c o n c e p ç ã o de D . em e s p e c ia l, q u e en u nciarem o s em p rim e iro lugar. le O re cu rso ao c o n se n so co m u m é u m a prova q u e v e z p o r o u tra a p a re c e n a h istó ria da filosofia. D ele se v a le u A ristó te le s p ara d e ­ m onstrar q u e a d iv in d a d e re sid e no p rim e iro céu, e n ão ta n to q u e ela ex iste (De cael, I, 3, 270 b 17). M as esse a rg u m e n to foi m u ito d e ­ senvolvido p elo s p la tô n ic o s ec lético s do séc. I a.C, e é p ro v áv el q u e C ícero o te n h a ex traíd o deles. "Para d e m o n stra r a ex istê n c ia d o s d e u ­ ses, o arg u m en to m ais forte q u e p o d e m ad u zir é que n e n h u m p o v o é tão b á rb a ro , q u e n e ­ nhum h o m e m é em a b so lu to tão selv ag em , a ponto de n ão ter em sua m e n te in d ício da c re n ­ ça nos d eu ses" (Tusc, I, 30). P o d e -se c o n sid e ­ rar eq u iv alen te a esse a rg u m e n to a cren ça de que a idéia de D. é u m a d as id éias in atas ou constitutivas da n atu re za ra cio n al h u m a n a . Tal foi a tese d os n e o p la tô n ic o s de C am b rid g e no séc. XVII (H e rb ert de C h e rb u ry , C u d w o rth , M oore), q u e L ocke te v e p re s e n te em su a crítica do inatism o do Livro I do Ensaio. E foi essa a tese d efend id a no sé c u lo se g u in te pela esco la escocesa do se n so c o m u m (T h o m as R eid e Dougald S tw art). A afirm ação do ca rá ter in ato da idéia de D. eqüivale ao recurso ao consensus gentium, p o rq u e a p re se n ç a da idéia de D. em

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DEUS, PROVAS DE to d o s os h o m e n s é a ú n ica b ase p resu m id a p ara ad m itir o seu caráter in ato. 2S O arg u m e n to m ais an tig o e re sp eitáv e l, e ta m b é m o m ais sim p les e c o n v in c en te , é o da o rd e m ou d esíg n io do m u n d o , q u e, em term o s m o d e rn o s, se ch am a arg u m e n to teleológico ou físico-teológico. F oi ele q u e co n v e n c era A nax ã g o ra s a ad m itir a In telig ên cia co m o cau sa o rd e n a d o ra do m u n d o . P latão e A ristó teles fa­ ze m -lh e referên cia freq ü en te. O p rim e iro diz, p. ex.: "Q ue a In telig ên cia o rd en a to d as as c o i­ sas é afirm ação d ig n a do esp etá cu lo q u e n o s o ferecem o m u n d o , a lua, os astros e to d a s as re v o lu ç õ e s celestes" (Fil, 28 e). E A ristó teles, q u e re p e tira esse a rg u m e n to em seu d iálo g o ju v e n il Sobre a filosofia, ad a p ta n d o -lh e o m ito p latô n ic o da ca v ern a (os h o m e n s re c o n h e c e ­ riam a ex istê n c ia de D . assim q u e saíssem da cav ern a, só co m o lh a r a n atu reza) (Fr. 12", R ose), o p re s su p õ e q u a n d o co m p ara D . ao ch efe de u m a casa b e m o rg an iza d a ou de um ex é rcito (Met, X II, 10, 1075 a 14). P o d em o s ler esse a rg u m e n to na fo rm u lação de Fílon: "Se v irm o s u m a casa co n stru íd a co m cu id ad o , com v e s tíb u lo s , p ó rtic o s, a p a rta m e n to s para h o ­ m en s, m u lh ere s e p ara o u tras p esso as, terem o s u m a idéia do artista: n ã o a c h a re m o s q u e foi feita sem arte e sem arte sã o s. E o m esm o d ire­ m o s de u m a cid a d e , de u m n av io , ou d e um objeto q u a lq u e r co n stru íd o , seja ele p e q u e n o ou g ra n d e . D o m esm o m o d o , a q u e le q u e e n ­ trou n esse m u n d o co m o u m a casa ou n um a e n o rm e cid a d e e viu o céu q u e gira em círculo e tu d o co n tém , os p lan etas e as estrelas fixas m o v id o s p o r m o v im e n to id ên tico ao do céu, sim étrico , h a rm o n io so e útil ao to d o , e a terra q u e re c e b e u o lu g ar cen tral... esse h o m e m c o n ­ cluirá q u e tu d o isso n ão foi feito sem u m a arte p erfeita e q u e o artífice d esse u n iv e rso foi e é D ." (Ali. leg, III, 98-99). O b v ia m en te , co m o n o tav a K ant, esse a rg u m e n to co n clu i p ela ex is­ tê n c ia de u m D em iu rg o , isto é, do criad o r da o rd em do m u n d o , e n ão do criad o r do m u n d o . T o d av ia, foi ta m b é m u tiliza d o p o r a q u e le s q u e ad m item a ca u sa lid a d e criad o ra de D . Sua força p ro b a n te re sid e n a n o ç ão d e o rd em , m ais p re ­ c isa m en te no caráter ab so lu to d essa n o ç ã o (v. ORDEM). Esse foi, é e co n tin u a s e n d o o arg u ­ m en to m ais sim p les e p o p u lar, m as n em p o r isso o m ais frágil. S tuart Mill p ro c u ro u e x p re s ­ sá-lo de form a m ais rig o ro sa em q u a tro p artes, em c o n fo rm id a d e co m os q u a tro s m é to d o s in d u tiv o s: co n co rd ân cia, d iferença, re síd u o s e v a ria ç õ e s c o n c o m ita n te s (Three Essays on

DEUS, PROVAS DE Religion, 1875, co m o títu lo Theism, 1957, p. 27). C. S. P eirce d e u -lh e u m a form a n ão m u ito d iferen te da trad ic io n a l, ao c o n sid e ra r D . co m o Ens necessarium, cria d o r d o s três u n iv e rso s de ex p e riê n c ia (das id éias p u ras, d as co isas reais e d o s sig n o s), cuja ex istên cia p o d e ser d e m o n s ­ trad a pela o rd em d esse s três m u n d o s e p o r sua co n co rd ân cia (Coll. Pap., 6, 452 ss.; o te x to é de 1908). C o n tu d o , n ão se d ev e e s q u e c e r q u e o c o n c e ito d e ordem (v.) é re la tiv o ; c o m o o b serv av a P eirce, "um m u n d o alea tó rio é sim ­ p le sm e n te o n o sso m u n d o real do p o n to de vista de u m an im al co m o m ín im o a b so lu to de in telig ên cia"; p o rta n to , a n o ç ão d e o rd em difi­ cilm en te se p resta a re m o n ta r a n o ç ão de E spí­ rito O rd e n a d o r (Chance, Love and Logic, I, 5, 2; trad. it., p. 83). 3a U m a v a ria n te ou d e te rm in a ç ã o d e sse a rg u m e n to é a p ro v a causai q u e p o d e ser e n c o n tra d a em A ristó teles (Mel., II, 2) e d ep o is é re to m a d a p elo s au to re s á ra b e s (A vicena) e p o r S. T o m ás. F u n d a-se no p rin cíp io de q u e é im p o ssív el re m o n ta r ao infinito na série das ca u sas m ateriais e d as c a u sa s efic ien te s, ou d as ca u sas finais ou d as c o n se q ü ê n c ia s, e q ue, p o rtan to , d ev e h av er, em cad a série u m p ri­ m eiro p rin cíp io do q u al d e p e n d e a série to d a. C o m o a a rg u m e n ta ç ã o ta m b é m v a le p ara as cau sas finais, leva a v e r em D. o fim ú ltim o , o b em s u p re m o s e g u n d o o q u al se o rd e n a m to ­ d as as co isas do m u n d o (Jbid., X II, 7, 1072 b 2). Essa p ro va p o d e ser co n sid e ra d a u m a tra n si­ ção en tre a p ro v a te o ló g ic a e a do m o v im en to ; n a v e rd a d e , às v e z e s é in te rp retad a co m o u m a, às v e z e s co m o outra. 4 a A p ro va c o n sid e ra d a m ais só lid a no m u n ­ do clássico e m ed ie v a l é a do m o v im en to . Foi ex p o sta pela p rim eira v e z p o r P latão ( Leis, X , 894-95) e re e x p o sta p o r A ristó teles (Fís., V III, 1; Mel, X II, 7). N a E scolástica latina foi in tro d u z id a p o r A d e la rd o de B ath no séc. X I (Quaest. nat., 60). P o d em o s en c o n trá -la na ex ­ p o sição de S. T om ás, q u e é a m ais clara e su ­ cinta. P arte do p rin cíp io de q u e "tudo o q u e se m o v e é m o v id o p o r o u tra coisa". O ra, "se a q u i­ lo p elo q ual é m o v id o p o r su a v ez se m o v e é p reciso q u e ta m b é m ele seja m o v id o p o r outra coisa e esta p o r o utra. M as n ão é p ossível co n ti­ n u ar ao infinito; sen ão , n ão h av eria u m p rim e i­ ro m o to r e n em m esm o os o u tro s m o to re s m o ­ v eriam assim co m o , p. ex., o b astão n ão m o ve se n ão for m o v id o p ela m ão. P o rta n to , é p re c i­ so ch eg ar a u m p rim eiro m o to r q u e n ão seja m o vido p o r n e n h u m o u tro , e p o r ele to d o s e n ­

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DEUS, PROVAS DE te n d e m D." (5". Th, I, q. 2, a. 3). E sse arg u m en ­ to foi criticad o já no fim da Escolástica: O c k h a m n eg a a v a lid a d e d os d o is p rin cípios em q u e ele se funda. N a v e rd a d e , o b serv a ele, p o d e -se ra c io n a lm e n te afirm ar q u e alg u m a coi­ sa se m o v e p o r si, co m o a alm a, o anjo ou o p eso q u e te n d e p ara b aix o ; e q u e o p ro cesso ao infinito se dá fre q ü e n te m e n te na ex p e riê n ­ cia, p. ex. q u a n d o b a te n u m a d as extrem i-' d ad es de u m c o m p rim e n to c o n tín u o : a parte atin g id a m o v im e n tará a p arte m ais próxim a, esta m o v im e n tará o u tra, e assim p o r d ian te infi­ n ita m e n te (Cent. theol., C oncl. I, D ). Essa prova tam b ém conclui ap e n a s pela existência de um p rim e iro m o to r, e n ão d e u m a cau sa criadora, se n d o u tilizada co m esse fim p o r P latão e por A ristó teles. K an t co n sid e ro u essa p ro v a idênti­ ca às d u as p re c e d e n te s e o b serv o u q u e é difícil esta b e le ce r u m a p ro p o rç ã o p recisa en tre m ovi­ m en to e m o to r, ou seja, in d u zir da o rd em e do m o v im e n to a ex istên cia e os ca ra cte re s de um a cau sa infinita. "E spera", d isse ele, "que nin­ g u é m ja m a is te n h a a p re su n ç ã o d e co n h e c e r a re la ção en tre a g ra n d e z a do m u n d o p o r ele o b se rv a d a (por e x te n sã o e co n te ú d o ) e a oni­ p o tê n c ia , e n tre a o rd e m có sm ica e a su m a sa­ p iên cia, en tre a u n id a d e có sm ica e a u n id ad e ab so lu ta do criado r, etc." (Crít. R. Pura, Dia­ lética, c. III, seç. 6). 5e O c h a m a d o a rg u m e n to do graus fora ex­ p o sto p o r A ristó teles em seu m aio r d iálo g o ju ­ v en il, Sobre a filosofia-. "Em g eral, n as coisas em q u e há o m elh o r, há ta m b é m o ótim o; e co m o há o ó tim o n as co isas q u e ex istem de um m o d o ou d e o u tro , h av erá n ela s ta m b é m o ótim o, q ue p o d eria ser divino" (Fr. 16, Rose). Era re p ro d u z id o p o r C ícero da se g u in te form a: "N ão se p o d e afirm ar q u e em cad a o rd em de co isas n ão haja algu m te rm o ex trem o , u m a per­ feição ab so lu ta, p o is v e m o s q u e p ara um a p lan ta, p ara u m an im al, a n atu re za se n ão se lh e o p õ e força alg u m a, s e g u e seu cam in h o e ch e g a ao te rm o ú ltim o, e q u e a p in tu ra, a arq u itetu ra e as o u tras artes alca n ç am tam bém re su ltad o perfeito em su as o bras. O m esm o d ev e ser d ito p ara to d a n atu re za e co m m uito m aior razão: d ev e-se n ec essaria m en te produzir e realizar u m a form a a b so lu ta m e n te perfeita" (De nat. deor, II, 13, 35). Essa p ro v a foi reex­ p o sta p o r S. A g o stin h o (De civ. Dei, V III, 6) e en c o n tro u form a clássica em Monologion de A n selm o . D iz este: "Se n ão p o d e n eg ar que algu m as n atu rezas são m elh o re s do q u e outras, a ra zã o n os c o n v e n c e de q u e há u m a tão ex­

DEUS, PROVAS DE celente q u e n e n h u m a o u tra h av erá q u e lh e seja superior. D e fato, se essa d istin çã o de g rau s p resse g u isse ao infinito, d e m o d o q u e n ão houvesse u m g rau s u p e rio r a to d o s, a ra zã o seria lev ad a a ad m itir q u e o n ú m e ro d essas naturezas é infinita. M as co m o isso é c o n sid e ­ rado a b su rd o p o r q u a lq u e r u m q u e n ão seja carente d e ra zã o , d ev e h av er n e c e ssa ria m e n te um a n atu reza su p erio r, q u e n ão p o ssa ser s u ­ b o rd in ad a a n e n h u m a o u tra co m o inferior" (Mon, 4). O fu n d a m e n to d essa p ro v a é o p rin ­ cípio p latô n ic o d e q u e tu d o o q u e p o ssu i certa qualidade p o ssu i-a p o r p artic ip a çã o n a q u ilo a que essa q u a lid a d e in ere de m o d o essen cial e em inente; p. ex., tu d o o q u e é q u e n te é q u e n te por p artic ip a çã o no fo g o, q u e é q u e n te p o r essência (Fed., 101 d e ss.). E sse p rin cíp io fora adm itido ta m b é m p o r A ristó teles (Met., II, 1, 993 b 25), ao q u al fre q ü e n te m e n te re m etem os escritores m ed iev ais. 6" A p ro va ch a m a d a p o r S. T o m ás de ex possíbili et necessário, p o r L eibniz de contíngentia mundi, e p o r K ant, de p ro v a co sm o ló gica, é u m a d as m ais felizes; foi ex p o sta pela prim eira v e z p o r A vicena e está in tim am en te ligada à c o n c e p ç ã o de D . típica do n e o p la tonism o árab e. A vicena (Met, II, 1, 2) d istin gu ira o ser em necessário e possível, d efin in d o o possível co m o o q u e n ão ex iste p o r si, m as tem necessidacie de alg u m a coisa p ara existir. P o r­ tanto, se existe u m p o ssív el, ex iste algo q u e o faz existir; m as se esse algo é, p o r su a v ez, possível, re m ete ain d a a u m o u tro q u e seja causa de sua ex istência; e assim p o r d ian te , até se chegar ao ser n e c e ssá rio , q u e é o q u e existe por si. D essa p ro v a resu lta a definição de D. como ser n ec essário , cujo a n te c e d e n te p o d e ser en con trad o em A ristó teles (Met., XII, 7,1072 b 10). M as seu se n tid o é d ife re n te na filosofia árabe, em q u e visa afirm ar a n e c e ssid a d e de tudo o q ue existe, p o rta n to ta m b é m do p o ssí­ vel, que, se existe, ex iste n e c e ssa ria m e n te pela ação de u m a cau sa n ec essária . A p esar de seu s vínculos com o n ec essitarism o árab e, essa p ro ­ v a foi aceita p o r M aim ô n id es (Guide des égarés, II, 1) e p ela E sco lástica la tin a , na q u a l foi introduzida p o r G u ilh e rm e de A lv érn ia (De Trinitate, 7), na p rim eira m etad e do séc. XIII. Desde en tão , p asso u a ser u m a d as p ro v a s mais freq ü en tem en te re p e tid a s na h istória da filosofia, sen d o de fato a ú n ica ad u zid a n os sécs. XVII e XVIII, ou seja, ain d a no p e río d o em que m u ito s c o n ce ito s te o ló g ic o s e m e ta ­ físicos são criticado s e a b a n d o n a d o s. P o d e ser

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DEUS, PROVAS DE assim e s q u e m a tiz a d a : "Se algo ex iste , d ev e ex istir u m ser n ec essário . M as algo ex iste (p. ex., eu m esm o ), lo g o ex iste o ser n ecessário ". E m co n fo rm id ad e com esse esq u em a, essa prova é ex p o sta p o r D esca rte s (Secondes Réponses, p ro p . 3), p o r L ocke (Ensaio, IV, 10), p o r L eibniz (Théod., I, § 7; Monad., § 45) e p o r C larke (Demonstration ofthe Being and Attributes of God, 1705). A p ró p ria p ro va q u e B erk eley ex ­ traiu do p rin cípio esse estpercipi é u m a varian te da p ro v a co sm o ló g ic a : "As co isas sen sív eis re a lm e n te ex istem ; se re a lm e n te ex istem , são n e c e ssa ria m e n te p e rc e b id a s p o r u m esp írito in­ finito; lo g o , há u m E spírito infinito, ou D." (Dia­ logues Between Hylas and Philonous, II, Works, ed. Je sso u p , II, p. 212). K ant co n sidero u a p ro v a co sm o ló g ica co m o "um a p ro v a o n to ló g ica m ascarad a", u m a p ro va q u e p assa da c o n e x ã o p u ra m e n te co n c e itu a i en tre as n o ç õ e s de p ossível e n e c e ssá rio à afirm ação da re alid a­ de n ec essária (Crít. K. Pura, D ialética, cap. III, seç. 5). G. B oole, fu n d a d o r da lógica, tra n sc re ­ v e n d o em sím b o lo s o a rg u m e n to de C larke, m o strav a q u e n ã o há co n c lu sã o derivável das p rem issas q u e afirm am a v e rd a d e ou a falsida­ d e da p ro p o siç ã o "algo. q u e é ex iste p ela n e ­ c e ssid a d e de sua n atu reza", ou d a p ro p o siç ã o "algo q u e é ex iste p ela v o n ta d e d e o u tro ser", n e m d a c o m b in a ç ã o d as d u a s p ro p o siç õ e s (Laws ofThought, 1854, cap. 13). A essa p rova se d ev e a d efinição de D. co m o ser n ec essário , q u e é das m ais co m u n s, se n d o u sa d a m esm o p o r q u e m n ã o se v a le da p ro v a relativa ou d e s c o n h e c e sua v alid a d e . 1- A p ro v a o n to ló g ic a foi fo rm u lada no séc. X I p o r A n selm o de A osta. Sua característica é p assa r do sim p les c o n ce ito de D . à ex istência de D. Eis a fo rm u la çã o de A nselm o: "C erta­ m e n te aq u ilo d e q u e n ão se p o d e p e n sa r n ad a de m aio r n ão p o d e estar só n o in telecto . P o r­ q u e , se estiv esse só n o in telecto , p o d er-se -ia p e n sa r q u e estiv esse ta m b é m n a re a lid a d e , ou seja, q u e fo sse m aior. Se, p o rtan to , aq u ilo de q u e n ão se p o d e p e n sa r n ad a de m aior está só n o in telecto , aq u ilo d e q u e n ão se p o d e p e n sa r n ad a de m aio r é, ao co n trário , aq u ilo d e q u e se p o d e p e n sa r algo de m aior. M as c e rtam en te isso é im p o ssív el. P o rta n to , n ão h á d ú v id a de q u e aq u ilo d e q u e n ão se p o d e p e n sa r n ad a de m aio r ex iste ta n to n o in telecto q u a n to n a re a ­ lidade" (Prost., 2). Esse a rg u m e n to co n sta de d ois p o n to s: le o q u e ex iste n a re a lid a d e é "m aior" ou m ais p erfeito do q u e o q ue existe só n o in telecto ; 2- n eg ar q u e aq u ilo de q u e n ão

DEUS, PROVAS DE se p o d e p e n sa r n ad a de m aio r ex iste na re ali­ d ad e significa co n tradizer-se. A esse arg u m en to o m o n g e G au n ilã o , em seu Liberpro insipiente (A nselm o dirigira seu a rg u m e n to co n tra o n é s ­ cio do S alm o 13, q u e d isse "em seu co ração , n ão h á D ."), ad u ziu , em p rim e iro lugar, q u e se p o d e d u v id ar de q u e o h o m e m te n h a u m c o n ­ ceito d e D ., e, em se g u n d o lugar, q u e n ão se p o d e d e d u z ir do c o n c e ito d e u m ser p erfei­ tíssim o a ex istên cia d esse ser ta n to q u a n to n ão se p o d e d e d u z ir do c o n c e ito d e u m a ilha perfeitíssim a a re a lid a d e d essa ilha. E m Liber apologeticus A n selm o re sp o n d e u q u e se p o d e p e n sa r D ., co m o d em o n stra a p ró p ria fé q u e A n selm o e G au n ilã o p ro fessam , e q u e , se é p ossível p e n sá -lo , d ev e-se ad m iti-lo co m o ex is­ te n te, sem q u e isso v alh a p ara q u a lq u e r o u ­ tro ser, q u e , em b o ra p erfeito , n u n ca será aq u i­ lo de q u e n ão se p o d e p e n sa r n ad a de m ais p erfeito. R ejeitado p ela m aio r p arte d os esco lástico s (inclu sive S. T o m ás, S. Th, I, q. 2, a. 1 ad. 2S), q u e em g eral p referem os arg u m e n to s aposteríori, ou seja, ex traíd o s da re la ção de D. co m o m u n d o , o a rg u m e n to o n to ló g ic o tev e su c esso na filosofia m o d e rn a. Foi re p e tid o p o r D escartes, p ara q u e m a ex istên cia de D . está im plícita no c o n c e ito de D ., do m esm o m o d o q u e está im p lícito no co n ce ito d e triâ n g u lo q u e seu s ân g u lo s in te rn o s são ig u ais a d ois ân g u lo s reto s (Princ.phil., I, 14). L eibniz, p o r su a vez, aceito u essa p ro v a e fo rm u lo u -a co m o id en ti­ d ad e de p o ssib ilid ad e e re a lid a d e em D. S ó D ., d isse ele, ou seja, o ser n e c e ssá rio , tem o p ri­ v ilég io d e p rec isar existir, se ele é p o ssív el. E co m o n ad a p o d e im p ed ir a p o ssib ilid a d e d a ­ q u ilo q u e n ão e n c e rra n e n h u m lim ite, n e n h u ­ m a n e g a ç ã o e, em c o n se q ü ê n c ia , n e n h u m a c o n tra d iç ã o , só isso b a sta p ara c o n h e c e r a ex istên cia de D. apriori(Monad, § 45). S eg u n ­ do K ant, a p ró p ria p ro v a é co n tra d itó ria ou im p o ssível: será co n tra d itó ria se, já no co n ce ito de D ., se co n sid e rar im plícita a su a ex istên cia, p o r n esse caso n ão se tratar de sim p les c o n c e i­ to; e será im p o ssív el se ela for c o n sid e ra d a im plícita, p o is n esse caso a ex istên cia d ev erá ser acrescid a ao c o n c e ito sin te tic a m e n te , ou seja, p o r v ia da e x p eriên cia, ao p asso q u e D. está além de to d a e x p eriên cia p ossível (Crit. R. Pura, D ia l, cap. III, seç. 4). H eg el, p o rém , d e ­ fend eu essa p ro va afirm an d o q u e só no q u e é finito a ex istência é d iferen te do c o n ce ito , e q u e "D. d ev e e x p re ssa m e n te ser aq u ilo q u e p o d e ser p e n s a d o só c o m o e x is te n te , cu jo c o n c e i­ to im plica a existência. Essa u n id a d e de co n ceito

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DEUS, PROVAS DE e ser co n stitu i ju sta m e n te o c o n c e ito de D." {Ene, § 51). P o r aí se p o d e v e r q u e a prova o n to ló g ic a, m ais q u e p ro v a, é a ex p lic ita çã o do p ró p rio c o n ce ito de D . co m o ser n ecessário : co m efeito, o ser n ec essário ex iste p o r essên cia ou p o r n atu re za , isto é, p o r d efinição. C o n tu d o , essa p ro v a é re p e tid a co m freq ü ên cia na filoso­ fia m o d e rn a: L otze, p. ex., re p e te -a n o s m es­ m o s te rm o s de A n selm o (Mikrokosmus, III, 2e d , p. 557). 82 M u ito s e m e lh a n te à p re c e d e n te , p orém m ais an tiga, é a p ro v a ex traíd a d a sim p les p re­ sen ça da idéia de D . no h o m e m . C on siste em ju lg a r im p o ssív e l e x p lic a r essa p re s e n ç a de o u tro m o d o q u e n ão p ela p ro d u ç ã o d e D . m es­ m o , q u e p o r isso d ev e ser c o n sid e ra d o ex isten ­ te. A ssim ra cio c in av am J u s tin o (Apologia sec, 6), T ertu lia n o (De testimonio animae, 5) e Jo ã o D am a sc e n o (Defide orth, I, 1). E a essa trad i­ ção p e rte n c e u m a d as p ro v a s ca rtesian as da ex istên cia de D ., m ais p re c isa m e n te a de q ue o a u to r da idéia de D . d ev e p o ssu ir p elo m enos a m esm a p erfeição q u e é re p re s e n ta d a nessa idéia, e assim n ão p o d e ser o u tro s e n ã o D. m esm o (Discours, IV, Méd, II; Secondes Réponses, p ro . 3)- U m a form a a b re v iad a dessa p ro v a (ou da an terio r) co n siste em ju lg a r a p ro ­ p o siç ão "D. existe" co m o co n h e c id a de p er si, ou seja, co n h e c id a co m b a se n os p ró p rio s ter­ m o s q u e a co m p õ e m . É o q u e faz, p. ex., D uns S cot (Op. Ox., I, d. 2, q. 2, n. 3) em polêm ica co m S. T o m ás. S tuart M ill, q u e ch a m a essa p ro ­ v a de "arg u m en to da co n sciên cia", ju lg a-a ina­ c eitáv el p o r "n eg ar ao h o m e m u m de seus atrib u to s m ais fam iliares e p re c io so s, o de idea­ lizar o u, co m o se diz, de co n stru ir co m os m a­ te ria is d a e x p e riê n c ia u m a c o n c e p ç ã o m ais p erfeita q u e a co n tid a n a e x p eriên cia" (Three Essays on Religion, 1875, co m títu lo Theísm, 1957, p. 24). 9Q A p ro va moral é ac o m p a n h a d a , via de regra, p o r certo ceticism o q u a n to à v alid a d e das d e m o n s tra ç õ e s racio n ais. C o n siste em m ostrar q u e a ex istên cia d e D. é u m a ex ig ên c ia da vida m o ral, no se n tid o de q u e é c o n v e n ie n te ou n ec essário ao h o m e m crer em D . M as o adjeti­ v o "m oral" aq u i n ã o in d ica só a esfera à qual p e rte n c e a p ro v a, m as ta m b é m u m a lim itação da v a lid a d e da p ro v a p ara essa esfera. Um a p ro v a m o ral de D . é a Aposta de P ascal. S egun­ do P ascal, n ão se p o d e ad iar o p ro b le m a d e D. e p e rm a n e c e r n e u tro d ia n te de su a s soluções. O h o m e m d ev e e s c o lh e r en tre v iv er comoseD. ex istisse ou v iv er comoseD. n ão ex istisse; se a

DEUS, PROVAS DE razão n ão p o d e ajudá-lo n essa e sco lh a, q u e ele co n sidere q u al é a esco lh a m ais c o n v e n ie n te com o se estiv esse d ian te de u m jo g o ou de um a ap o sta em q u e é p rec iso c o n sid e rar, p o r u m lado , o la n c e e, p o r o u tro , a p e rd a ou a vitória ev en tu al. O ra, q u e m a p o sta na ex istê n ­ cia de D ., se g an h a r, g a n h a rá tu d o ; se p erd er, nada p erd erá: p o rta n to , é p rec iso ap o sta r sem hesitação. A ap o sta já é ra zo áv el q u a n d o se trata de u m g a n h o finito e p o u c o s u p e rio r ao lance, q u a n to m ais se o g a n h o é in fin itam en te superior ao la n c e. N em é p reciso d ize r q u e a distância infinita e n tre a ce rteza d a q u ilo q u e se aposta e a in certeza d aq u ilo q u e se p o d e g a n h a r equipara o b e m finito, q u e c e rta m e n te se a rris­ ca, ao infinito, q u e é in c e rto . T o d o jo g a d o r arrisca a certeza p ara g a n h a r a in ce rteza e arris­ ca o finito certo p ara g a n h a r o infinito in certo sem p ec ar co n tra a ra zã o . N um jo g o em q u e houver iguais p ro b a b ilid a d e s de v e n c e r ou de perder, arriscar o finito p ara g a n h a r o infinito é, obviam ente, da m aior c o n v e n iê n c ia (Pensées, 233). Essa a p o sta p a re c e falar m ais a líng u a das m esas de jo g o q u e a da v id a m o ral, m as é preciso o b serv ar q u e P ascal a u tiliza u n ic a m e n ­ te para co m b ate r a im p o tên cia de crer p ro d u ­ zida p elas p aix õ es, e q u e o re su lta d o d essa prova d ev eria ser o d e "co n co rrer p ara c o n v e n ­ cer, não p o r a u m e n ta r as p ro v a s da ex istên cia de D., m as p o r d im in u ir as p aix õ es". D e q u a l­ quer form a, é ó b v io q u e s e m e lh a n te p ro v a só tem v alidade m o ral em face do c o m p o rta m e n ­ to hum ano: n ão tem v a lid a d e teó rica. E sse m e s­ m o caráter é a b so rv id o na p ro v a m o ral da ex is­ tência de D. fo rm u lad a p o r K ant: p ara ele, D. é u m p o stu lad o da v id a m oral: su a ex istên cia é requisito p ara a re a liz a ç ã o do b em su p re m o , da união de v irtu d e e felicid ad e, q u e n ão se verifica na atu a çã o d as leis n atu rais. "O b em suprem o no m u n d o só é p ossível se ad m itir­ mos um Ser S u p rem o cuja ca u sa lid a d e se c o n ­ forma à in ten ção m o ral... Logo, a cau sa s u p re ­ m a da n atu reza, p o rq u a n to p re ssu p o sta p ara o bem su p rem o , é u m Ser q u e , m e d ia n te o in te ­ lecto e a v o n ta d e , é cau sa (p o rta n to , autor) da natureza, ou seja, é D." (Crít. R. Pratica, I, 1. II, cap. 2, seç. 5). Essa p ro v a, q u e K ant ex traiu das famosas co n sid e raç õ e s do v ig ário s a b o ia n o , no IV livro de Émile de R ou sseau , foi m u itas v ez es retom ada na filosofia c o n te m p o râ n e a . O utra forma da prova m oral é a a p re se n tad a p o rJa m e s, que reform ulou a ap o sta de P ascal (The Will to Believe, cap. I), reafirm an d o a u tilid a d e e a c o n ­ veniência da cren ça em D. co m v istas a u m a

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DEVER v id a m o ral ativa e co n fiante. N esse a sp ecto , D. é "objeto m ais a d e q u a d o do n o sso espírito". N um u n iv e rso sem D ., a ação m oral p are ce d e s tin a d a ao in su c e ss o ; p o r o u tro la d o , a aç ão m o ral e a fé em D . p o d e m co n trib u ir p ara refo rçar a ex istê n c ia do m u n d o invisí­ vel. "D. p o d e tirar força v ital e acréscim o de ser da n ossa fid e lid ad e " (Essays on Faith and Morais, p. 30). 1CF H á, p o r fim, u m a p ro v a fo rm u lada de v á rio s m o d o s, q u e p arte de alg u n s tip o s de ex p e riê n c ia im ed iata e p riv ileg iad a, in te rp reta­ d o s co m o re la ção d ireta co m D. D iz Filon: "Mas há u m a in telig ên cia m ais p erfeita e m ais p u ri­ ficada, in iciada n o s g ra n d e s m istério s, q u e c o ­ n h e c e a C ausa, n ão a p artir de seu s efeitos, assim co m o se c o n h e c e o o bjeto im ó v el a partir de su a so m b ra, m as q u e tra n sc e n d e u o efeito e re c e b e a a p a riç ão clara do ser n ão g e ra d o de tal m o d o q u e o c o m p re e n d e em si m esm o e p o r si m esm o e n ã o em su a so m b ra, q u e é a izào e o m u n d o " {Ali. leg, III, 100). P lo tin o e i is m ístico s ad m item essa form a de ex p eriên cia d ireta de D.; s e g u n d o B erg so n , ela é a ú nica p ro v a p o ssív e l da ex istên cia de D. A c o n co r­ d ân cia en tre os m ísticos, n ão só cristão s m as ta m b é m p e rte n c e n te s a o u tras relig iõ es, é "o sinal da id e n tid a d e de in tu ição q u e p o d e ser e x p lic ad a do m o d o m ais sim p les co m o a ex is­ tên cia real do ser co m o q ual acred itam estar em c o m u n ica ção " (Deuxsources, p. 265). D e fo rm a a te n u a d a , esse a rg u m e n to p o d e ser re ­ p e tid o no q u e se refere à b u sca p ura e sim ples d e D .: a p ró p ria b u sca , n a v a rie d a d e d os seu s p ro c e d im e n to s e resu ltad o s, p o d e ser u m a prova in trín seca da ex istên cia, sem q u e seja, p o rém , definível ou d ete rm in á v e l de m o d o a c a b a d o aq u ilo q u e se b u sca (PAUL WEISS, em Science, Philosophy andReligion, N ov a Y ork, 1941, I, p p . 413 ss.). É o q u e já P ascal dizia: "É p ro v a de D . n ão só o d esv e lo d o s q u e o p ro cu ram co m o ta m b é m a ceg u eira d os q u e n ão o p ro cu ram " {Pensées, 200).

DEVER (gr. xò KaGfjKOV; lat. Officium, in.

Duty; fr. Devoir, ai. Pflicht; it. Doveré). A ção s e g u n d o u m a o rd em racio n al ou u m a n orm a. E m seu p rim eiro sign ificad o, essa n o ç ã o tev e o rig em co m os estó ico s, para os q u a is é D. q u a lq u e r ação ou c o m p o rta m e n to , do h o m e m ou d as p lan ta s e an im ais, q u e se co n fo rm e à o rd e m racio n al do to d o . "C ham am d e d ever", d iz D ió g e n e s L aércio (VII, 107-09), "aquilo cuja esco lh a p o d e ser ra c io n a lm e n te ju stificad a... E ntre as açõ es re aliza d a s p o r in stin to , algu m as

DEVER

o são de D., outras contrárias ao D., algumas não estão ligadas a ele nem dele desligadas. De dever são as ações que a razão aconselha a cumprir, como honrar os pais, os irmãos, a pátria e estar de acordo com os amigos. Contra o D. são as que a razão aconselha a não fazer, como negligenciar os pais, não cuidar dos ir­ mãos, não estar de acordo com os amigos etc. Não são de dever nem a ele contrárias as ações que a razão não aconselha nem proíbe, como levantar um graveto, segurar uma pena, uma escova, etc." A conformidade com a or­ dem racional (que é, de resto, o destino, a pro­ vidência ou Deus) é aquilo que, segundo os estéticos, constituí o caráter próprio do dever. Os estóicos distinguiam, como relata Cícero, o D. "reto", que é perfeito e absoluto, e não pode encontrar-se em ninguém senão no sábio, e os D. "intermediários", que são comus a todos e muitas vezes realizados graças apenas à boa índole e a certa instrução (De off, III, 14). A doutrina do D., como se vê, na origem pertence a uma ética fundada na norma do "vi­ ver segundo a natureza", que é, de resto, a nor­ ma de conformar-se à ordem racional do todo. Portanto, não surgiu da ética aristotélica, que é inteiramente fundada no desejo natural de fe­ licidade e faz referência à ordem racional do todo. A ética medieval, que, por sua vez, toma como modelo a ética aristotélica, também igno­ ra a teoria do D. e concentra-se na teoria das virtudes, dos hábitos racionais adequados à consecução da felicidade e da bem-aventurança ultraterrena. O conceito de D. volta a predominar só na ética kantiana, que é uma ética da normatividade. Ela modifica o conceito estóico de D. como conformidade à ordem ra­ cional do todo, transformando-o em conformi­ dade com a lei da razão. Para Kant, D. é a ação cumprida unicamente em vista da lei e por res­ peito à lei: por isso, é a única ação racional au­ têntica, determinada exclusivamente pela for­ ma universal da razão. Diz Kant: "Uma ação realizada por D. tem seu valor moral não no fim que deve ser alcançado por ela, mas na máxima que a determina; ela não depende, portanto, da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio da vontade segundo o qual essa ação foi determinada, sem relação com nenhum objeto da faculdade de desejar." Em outros termos, "o D. é a necessidade de rea­ lizar uma ação unicamente por respeito à lei", indicando a palavra "respeito" a atitude que não leva em conta quaisquer inclinações natu­

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rais (Grundlegung zurMet. derSitten, 2). Nes­ se sentido, Kant chama de D. a ação "objetiva­ mente prática", ou seja, a ação na qual coinci­ dem a máxima segundo a qual a vontade se determina e a lei moral. "Nisso consiste a dife­ rença entre a consciência de ter agido em con­ formidade com o D. e a de ter agido por D., ou seja, por respeito à lei." A ação conforme à lei mas não realizada por respeito à lei é a ação le­ gal; a realizada por respeito à lei é a ação mo­ ral Portanto, moralidade e D. coincidem (Crít. R. Prática, I, 1, cap. 3). A doutrina kantiana do D. foi transformada por Fichte numa verdadei­ ra metafísica. "A única base sólida de todo o meu conhecimento", disse ele, "é o meu de­ ver. É ele o inteligível em si que, mediante as leis da representação sensível, transforma-se em mundo sensível" (Síttenlebre, § 15, em Werke, IV, p. 172). Isso no sentido de que o próprio muncio sensível outra função não teria que a de fornecer à atividade moral os limites ou os obstá­ culos, na luta contra os quais tal atividade teria meios de desempenhar sua função de li­ bertação. Na ética contemporânea, a doutrina do D. continua ligada à da ordem racional necessária, ou norma (ou conjunto de normas) apta a diri­ gir o comportamento humano. Isso significa que sempre que o fundamento da ética for a feli­ cidade, individual ou coletiva, a perfeição ou o progresso da vida individual ou coletiva, não haverá lugar para a noção de D. No século pas­ sado Bentham opunha-se ao D. em nome de uma ética fundada exclusivamente no interes­ se, julgando inútil e sem sentido o apelo ao D. (Deontology, 1834,1,1). No nosso século, Bergson também se opôs ao D. em nome de uma ética do amor. Para Bergson, o D., ou "obrigação moral", não passa de hábito de comportamen­ to dos membros de um grupo social. Esses hábitos podem variar, mas seu conjunto, ou seja, o hábito de adquirir hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade de um instinto (Deux sources, p. 21). Essa é a ética da sociedade fechada, mas também há a ética "absoluta" da sociedade aberta, que diz respeito a toda a hu­ manidade e é a que dá continuidade e faz pro­ gredir o esforço criador da vida, tendendo a uma forma de sociedade aperfeiçoada pelo amor. — Entre a persistência com novas rou­ pagens da ética clássica da felicidade, o ressur­ gimento de éticas misticizantes como a de Bergson, e as tentativas de reduzir a ética a um conjunto de desejos não elaborados ou de pre­

DEVERSER

ferências sem motivo, a doutrina do D., que transformava Kant em poeta ("Dever! Nome sublime e grande que nada contém de agradá­ vel que possa adular, mas desejas a submissão; que todavia não ameaças nada etc", Crít. R. Pratica, I, 1, cap. 3), perdeu quase todo o pres­ tígio, sem todavia ser substituída por algo de mais racional. D EV ER -SER (gr. xò ôéov; in. Oughtness; fr. Devoirêtre, ai. Sollen; it. Dover esseré). O possí­ vel normativo: aquilo que é bom que aconteça ou que se pode prever ou exigir com base em uma norma. Platão dizia que, se é verdadeira a doutrina de Anaxágoras, de uma Inteligência que ordena o mundo do melhor modo, então "o bem e o dever-ser sustentam e agregam to­ das as coisas" (Fed, 99c). Na filosofia moderna, essa noção foi ilustrada por Kant, que diz: "O D.-ser exprime uma espécie de necessidade e uma relação com princípios que não se verifi­ cam absolutamente na natureza. Nesta, o inte­ lecto pode conhecer só o que é, foi ou será. É impossível que alguma coisa deva ser diferente do que foi de fato em suas relações temporais. Quando se observa o curso da natureza, o D.ser não tem o menor significado. Não podemos perguntar o que deve acontecer na natureza, assim como não podemos procurar saber que propriedades deve ter o círculo, mas apenas o que acontece nela, ou quais propriedades este possui. O D.-ser exprime uma ação possível, cujo princípio é apenas um conceito, ao passo que o princípio de uma ação natural só pode ser um fenômeno. É verdade que a ação deve ser possível nas condições naturais se o D.-ser visar a elas; mas tais condições não atingem a determinação do arbítrio, mas apenas o efeito e a conseqüência dela no fenômeno" (Crít. R. Pura, Dial., cap. II, seç. 9, § 3). Essas determi­ nações de Kant deixam claro que a esfera do D.-ser é a ação humana: o D.-ser, que não tem sentido no mundo natural, é o princípio do mundo humano. Mas esse reconhecimento eqüivale a admitir que, no mundo humano, a distinção entre o que acontece de fato e o que se poderia esperar que acontecesse, a partir das normas que o regulam, deve manter-se constante. Onde é reconhecido ou introduzido o D.-ser obviamente é reconhecida e intro­ duzida a sua diferença possível em relação ao ser de fato, bem como a possibilidade de julgar este em relação àquele. Assim se explica por que Hegel, que põe como princípio de sua filosofia a identidade entre real e racional, nega

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DEVERSER

qualquer função ao D.-ser e considera-o mero fantasma. "À realidade do racional", diz ele, "contrapõe-se, de um lado, a visão de que as idéias e os ideais são apenas quimeras e que a filosofia é um sistema desses fantasmas cere­ brais, e, de outro, a visão de que as idéias e os ideais são algo excelente demais para ter rea­ lidade ou impotente demais para atingi-la. Mas a separação entre realidade e idéia é muito apre­ ciada pelo intelecto, que considera verazes os sonhos de suas abstrações e tem muito orgulho de seu D.-ser, que apregoa de bom-grado até mesmo no campo político, como se o mundo houvesse esperado esses ditames para apren­ der como deve ser e não é: pois se fosse como deve ser, aonde iria parar o pedantismo desse D.-ser?" (Ene, § 6). As obras de Hegel demoramse muitas vezes em observações irônicas e sar­ cásticas sobre o dever-ser que não é, sobre o ideal que não é real, sobre a razão que se su­ põe impotente para realizar-se no mundo. Segundo ele, a filosofia não tem a tarefa de considerar o que deve serv mas o que é "real e presente" (Ibid., § 38). É como a coruja de Minerva, que começa a voar no crepúsculo, ou seja, chega sempre tarde demais, quando a rea­ lidade já cumpriu o seu processo de formação e está pronta (Fil. do dir, Pref.). Em outras palavras, não cabe à filosofia outra tarefa senão reconhecer, justificar e exaltar como "racionali­ dade absoluta" o fato consumado. Trata-se, em substância, de uma recusa da filosofia de inse­ rir-se na realidade e de valer como sua força modificadora e diretiva. Essa recusa foi típica da filosofia romântica, que, segundo expres­ são do próprio Hegel, quis "estar em paz com a realidade" e abdicou da tarefa assumida pela filosofia do lluminismo, de transformar a reali­ dade. A atitude em face do D.-ser é, portanto, a pedra de toque das filosofias contemporâneas, porque revela se elas se orientam segundo a tra­ dição iluminista, clássica e renascentista, ou se­ gundo a tradição romântica, helenística e medieval. Mas é necessário lembrar que nem sempre a importância predominante atribuída à noção de D.-ser é sinal do caráter clássicoiluminista de uma filosofia. A chamada filosofia dos valores do século passado, que conta entre seus representantes principais com Windelband e Rickert, fez do dever-ser o centro da sua espe­ culação, mas o transformou em uma realidade suigeneris, o valor (v.) ou sua consciência, con­ siderada independente de suas manifestações

DEVIR ou VIR-A-SER

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DIACRÔNICO/SINCRÔNICO

empíricas; por isso, foi substancialmente infiel à Conceito não muito diferente foi expresso noção kantiana do dever-ser, em que declarava por Hegel ao dizer que o D. é a unidade do ser inspirar-se. De modo análogo, a interpretação e do nada. "O D.", disse Hegel, "é a verdadeira que Nicolau Hartmann faz do D.-ser eqüivale à expressão do resultado de ser e nada, como sua negação. O D.-ser, segundo Hartmann, só unidade destes: não é só a unidade do ser e do prescreve a realização daquilo que pode e deve nada, mas é a inquietação em si" (Ene, § 88). necessariamente realizar-se, quando nada falta Na grande Lógica, Hegel ilustrou e defendeu às condições de sua realização; por isso, é a longamente o significado dessa definição: "A própria possibilidade real, que é sempre uma verdadeira importância da proposição: 'nada efetividade, ainda que não pareça. (Mõglichkeit vem do nada, o nada é nada', está em sua oposi­ und Wirklichkeit, p. 266). Por outro lado, a noção ção ao devir em geral e, portanto, também à de D.-ser foi posta como base do positivismo criação do mundo a partir do nada. Aqueles que jurídico, por Hans Kelsen. Diz Kelsen: "O D.se acaloram defendendo a proposição de que o ser exprime o sentido específico no qual o com­ nada é o nada, não se apercebem de que nisso portamento humano é determinado por uma coincidem com o panteísmo abstrato dos eleatas norma. Tudo o que podemos fazer para descre­ e substancialmente também com o spinozismo. ver tal sentido é declarar que ele difere do sen­ A visão filosófica para a qual vale o princípio de tido pelo qual dizemos que um indivíduo se que o ser é somente ser e o nada somente nada comporta efetivamente de certa forma e que merece o nome de sistemas de identidade. Essa algo acontece ou existe efetivamente" {General identidade abstrata é a essência do panteísmo" Theory ofLaiv and State, 1945,1, 1, C, a, 5; trad. (WissenschaftderLogik, I, livro I, seç. I, cap. I, it., p. 36). Kelsen, todavia, reconhece que a C; trad. it., p. 76). Na verdade, o "nada" de Aris­ tensão entre norma e existência não deve ser tóteles é, com efeito, um nada privativo que, superior a certo máximo, nem inferior a certo assim como a privação aristotélica, está na cons­ mínimo: a conduta efetiva não deve coincidir tituição do devir. Portanto, todas as discussões completamente com a norma que a regula nem a que a definição hegeliana do D. deu origem discrepar completamente dela (Ibid, Apêndi­ entre os hegelianos (e também entre os não hece, IV, B, c; p. 444) (v. NORMA). gelianos) parecem hoje completamente ociosas. D E V IR o u V IR -A -SE R (gr. yÍYvea6oa; lat. D E V O Ç Ã O (in. Devotion, fr. Dévotion; ai. Fieri; in. Becoming; fr. Devenir, ai. Werdent; it. Andacht, it. Devozioné). Segundo Kant, "a dis­ Diveniré). 1. O mesmo que mudança (v. MOVI­ posição de espíritos que nos torna capazes de MENTO). sentimentos de dedicação para com Deus", e 2. Uma forma particular de mudança, a mu­ que se obtém mediante as práticas do culto dança absoluta ou substancial que vai do nada (expiações, mortificações, peregrinações, etc). ao ser ou do ser ao nada. Esse é o conceito de Atribuir a essa disposição o mesmo valor de Aristóteles e Hegel. Aristóteles afirmava; "Diz-se sentimento de dedicação a Deus é, segundo D. em muitos sentidos: ao lado daquilo que vem Kant, a ilusão religiosa, que confunde os meios a ser absolutamente (ànk&ç), há aquilo que vem a com o fim e dá ao meio um valor final (Reser isto ou aquilo. O D. absoluto é só das ligíon, IV, 2, § 1). Essa ilusão por sua vez é a substâncias: as outras coisas que vêm a ser pre­ base do falso culto a Deus, visto que o único cisam necessariamente de um sujeito, já que a culto verdadeiro é a boa conduta moral. O con­ quantidade, a qualidade, a relação, o tempo e o ceito de D. como atitude que, embora vincula­ lugar vêm a ser só em referência a certo sujeito; da à religião, não é a autenticamente religiosa, e enquanto a substância não pode ser atribuída foi fixado pelas observações de Kant. Hegel como predicado a nenhuma outra coisa, todas viu na D. uma das manifestações da consciên­ as outras coisas podem ser atribuídas como cia infeliz. "O seu pensar, como D., permanece predicado a uma substância" (Fís., I, 7, 190 a como um vago tilintar de sinos ou como nebu­ 30). Portanto, para Aristóteles, os princípios do losidade cálida, um pensar musical que não D. são os opostos, entre os quais está o D., e a chega ao conceito, único e imanente modo ob­ jetivo" (Phánomen. des Geistes, I, IV, 1). privação de um deles, já visto que "pode dizer que nada vem absolutamente do nada, mas D IA C R Ô N IC O /S IN C R Ô N IC O (fr Díachroaquilo que vem a ser, vem a ser do não-ser aci­ nique, in. Diachronic, synchrodental ou relativo, ou seja, da privação daquilo nic, ai. synchronique, Diachronik, synchronik, it. Diacronico, que é o termo do D." {Ibid., I, 8, 191, b 12). sincronicó). Termos introduzidos porFerdinand

T DIADE

de Saussure na lingüística, usados depois em outros campos, especialmente na antropolo­ gia cultural. Designam o eixo da símultaneidade [sincrônico], do qual se exclui qualquer intervenção de tempo, e o eixo das sucessões [diacrônico], no qual é possível considerar ape­ nas uma coisa por vez, mas onde estão situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas mudanças (Cours de linguistiquegénérale, 1922, p. 115). A dimensão S. constitui o sistema ou estrutura (v.) de uma língua, sistema este com­ posto por elementos lexicais, gramaticais e fonológicos que têm entre si relações defini­ das. A dimensão D. é o conjunto de variações sofridas por um sistema lingüístico sob a ação de eventos que não só lhe são estranhos como também não constituem um sistema. Essa distinção foi aceita pela lingüística estruturalista (Trubetzkoy, Jakobson, v. ESTRUTURALISMO) e por Lévy-Strauss, que fez a distinção entre dimensão D. e história, considerando o tempo de que fala esta última irreversível ou "estatístico", enquanto a dimensão D. conside­ ra o tempo como reversível e não cumulativo {Anthropologie structurale, 1958, p. 314). DÍADE (gr. 5i)áç; lat. Dualitas; in. Dyad; fr. Dyade, ai. Dyas; it. Diade). Segundo os pitagóricos, é "o princípio da diversidade e da desi­ gualdade, de tudo o que é divisível e mutável e ora está de um modo, ora de outro" (PORFÍRIO, Vita Pith., 52). Contrapõe-se à mônada, que é o princípio da unidade, do ser idêntico e igual. Nesse sentido, Aristóteles diz que "o número é derivado da mônada e da D. indefinida" (Met., XIII, 7, 1081 a 14): frase citada por Plotino e interpretada no sentido de que a D. é a Inteli­ gência (Nous) porque esta manifesta uma composição na multiplicidade dos seus objetos e na cisão entre o que pensa e o que é pensado (Enn, V, 4, 2). Em sentido análogo, Fílon dis­ sera que "a D. é a imagem da matéria, dividida e fracionada como ela" (AH. leg, I, 3; cf. DIÓG. L, VII, 25). No Renascimento essa noção foi retomada em sentido mais genérico. Em De monadeGiovda.no Bruno diz que do Uno brota a D. assim como do fluxo do ponto brota a linha; a D. constitui a estrutura de aspectos fundamentais do universo (essência e ser, ma­ téria e forma, potência e ato, etc). Com signi­ ficado análogo, esse termo foi usado por Schelling (Werke, I, X, p. 263). DIÂDICO (in. Dyadic). Esse adjetivo é usa­ do comumente na lógica contemporânea, mas sem referência ao significado do substantivo

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DIALÉTICA

correspondente. Uma relação D. é um fato rela­ tivo a dois indivíduos. P. ex., o fato de a ser semelhante a b, de a ser amante de b, ou de a e b serem ambos homens constitui uma relação, ao passo que o fato de a dar bc constitui uma relação triádica (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3, 625). DIALELO. V. CÍRCULO. DIALÉTICA (gr. ôvaAeKTiKii xéAvn; lat. Dialectica;in. Dialectic; fr. Dialectique, ai. Dialektik; it. Dialettica). Esse termo, que deriva de diálo­ go, não foi empregado, na história da filosofia, com significado unívoco, que possa ser deter­ minado e esclarecido uma vez por todas; rece­ beu significados diferentes, com diversas interrelações, não sendo redutíveis uns aos outros ou a um significado comum. Todavia, é possí­ vel distinguir quatro significados fundamentais: Ia D. como método da divisão; 2e D. como lógica do provável; 39 D. como lógica; 4e D. como síntese dos opostos. Esses quatro concei­ tos têm origem nas quatro doutrinas que mais influenciaram a história desse termb, mais pre­ cisamente a doutrina platônica, a aristotélica, a estóica e a hegeliana. Com base na documenta­ ção histórica correspondente, é possível che­ gar a uma caracterização bastante genérica da D., que de algum modo resuma todas as outras. Pode-se dizer, p. ex., que a D. é o processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito; ou en­ tão que é um processo resultante do conflito ou da oposição entre dois princípios, dois momentos ou duas atividades quaisquer. Mas trata-se, como se vê, de uma caracterização tão genérica que não teria nenhum significado histórico ou orientador. O problema histórico é mais de iden­ tificar claramente os significados fundamentais e as múltiplas e díspares relações que ocorrem entre eles (cf. Studi sulla Dialettica, de vários autores, em Rivista di Filosofia, 1958, n. 2). 1Q D. como método de divisão. Este foi o conceito de Platão. Para ele, a D. é a técnica da investigação conjunta, feita através da colabora­ ção de duas ou mais pessoas, segundo o pro­ cedimento socrático de perguntar e responder. De fato, para Platão, a filosofia era tarefa indivi­ dual e privada, mas obra de homens que "vi­ vem juntamente" e "discutem com benevolên­ cia"; é a atividade própria de "uma comunidade da educação livre" (Leis, VII, 344 b). A D. é o ponto mais alto a que pode chegar a investiga­ ção conjunta e compõe-se de dois momentos: a) O primeiro consiste em remeter as coisas

DIALÉTICA d isp ersas p ara u m a idéia ú n ica e em definir essa idéia de tal m o d o q u e p o ssa ser c o m u ­ nicada a to d o s (Fed, 265 c). E m República, P latão d iz q u e, ao re m o n ta r à idéia, a D. situase além d as ciên cias p artic u la re s p o rq u e co n si­ dera as h ip ó tese s d as ciên cias (q u e se m p re fa­ zem re fe rên cia ao m ú ltip lo sen sív el) co m o sim p les p o n to d e p artid a p ara ch e g a r ao s p rin ­ cípios, d o s q u a is d e p o is se p o d e ch e g a r às c o n ­ clu sõ es ú ltim as (Rep, V I, 511 b-c). M as esse s e g u n d o p ro c e d im e n to q u e v ai d os p rin cíp io s (por m eio d as idéias) às co n c lu sõ e s ú ltim as, n os d iálo g o s p o ste rio re s, é an a lisad o , ex p lic ita­ m en te , co m o o m é to d o d a div isão, b) O p ro c e ­ d im en to da d iv isão co n siste "em p o d e r dividir de n o v o a idéia em su a s esp écies, s e g u in d o su as in te ra çõ es n atu rais e ev ita n d o frag m en tar su as p a rte s co m o faria u m trin c h a d o r ca n h e stro" (Fed., 265 d). N esse asp e c to é p ró p rio da D . "dividir se g u n d o g ê n e ro s e n ão assu m ir c o ­ m o d iferen te a m esm a form a, ou co m o id ên tica u m a form a diferente" (Sof, 253 d). N um trec h o fam oso d e O Sofista, P latão e n u m e ra as três altern ativas fu n d a m en tais q u e o p ro c e d im e n to D . p o d e d ep ara r: le q u e u m a ú n ica idéia p e r­ m eie e a b a rq u e m u itas o u tras, q u e no e n ta n to p e rm a n e c e m s e p a ra d a s dela e ex te rio re s u m as às o utras; 2- q u e u m a ú nica idéia re d u za à u n i­ d ad e m u itas o u tras id éias, na su a to ta lid ad e ; 3e q u e m u itas id éias p e rm a n e ç a m in te ira m en te distin tas en tre si (Sof, 253 d ). E ssas três alte rn a­ tivas a p re se n ta m d o is caso s ex tre m o s, o da unidade de m u itas id éias em u m a d ela s e o de sua heterogeneidade radical, e u m caso in ter­ m ed iário , em q u e u m a idéia q u e a b ra n g e o u ­ tras sem fundi-las n u m a u n id a d e . A D . co n siste em re c o n h e c e r, nas situ aç õ e s q u e se a p re se n ta m , q ual d essas p o ssib ilid ad es é a ap ro p ria d a em p ro c e d e r c o e re n te m e n te . Se o b serv a rm o s o m o d o co m o P latão ap lico u o p ro c e d im e n to em Pedro, O Sofista e OPolítico, ch e g a rem o s a o u tro s e sclarecim en to s. U m a v ez definida a idéia, P latão d iv id e-a em d u as p artes q ue ch am a, re sp e c tiv a m e n te , de la d o e sq u e r­ do e lad o d ireito , c a ra cte riza d a s p ela p re se n ç a e pela au sên cia de certo caráter; d ep o is, div id e o lado direito d a d iv isão, em d u a s o u tra s p ar­ tes, q ue tam b ém serão ch am ad as de esq u e rd a e direita, u tilizan d o u m n o v o caráter; e assim p or d ia n te (Fed., 266 a-b ). E sse p ro c e d im e n to p o d e d eter-se em certo p o n to ou ser re to m a d o a p artir de o u tra idéia. Enfim , será p o ssív el re u ­ nir ou recap itu lar as d e te rm in a ç õ e s assim o b ti­ das do p rin cíp io ao fim (Sof, 268 c). E sse é o

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DIALÉTICA p ro c e d im e n to q u e P latão u tiliza em Pedro para definir o am o r co m o "m ania", d iv id in d o d ep o is a m an ia em m á (esq u erd a) e b o a (direita) e p ro c u ra n d o ain d a as d e te rm in a ç õ e s da b o a m a­ nia. E m O Sofista, esse m esm o p ro c e d im e n to serv e p ara definir a figura sofista. A ca ra cte rísti­ ca d esse p ro c e d im e n to é a p o ssib ilid ad e de escolha (em cad a p asso ) da característica cap az d e d ete rm in a r a d iv isão o p o rtu n a em d ireita e e sq u e rd a , ou seja, de tal m o d o q u e a linh a de articu lação do co n ce ito seja seg u id a , e n ão "cor­ tada". L ogo, a D. p latô n ic a n ão é u m m éto d o d e d u tiv o ou an alítico , m as in d u tiv o e sintético , m ais s e m e lh a n te ao s p ro c e d im e n to s da p e s ­ q uisa em p írica (não o b sta n te a p re te n sã o p la­ tô n ica de q u e ele p rescin d a d os "sentidos") do q u e ao s p ro c e d im e n to s do racio cín io a priori ou do silo g ism o . O q u e A ristó teles re p ro v a no m é to d o d a d iv isão , ou seja, o fato de n ão ter a c a p a c id a d e d ed u tiv a do silo g ism o (An.pr, I, 3 1,46 a 31 ss.), n ão é p ro p ria m e n te u m a crítica, p o rq u e o m é to d o d e P latão n ão tem essa p re ­ te n sã o . C ertam e n te, a p artir de "o h o m e m é um anim al" e da d iv isão se g u in te "o an im al é m o r­ tal ou im ortal" n ão se seg u e q u e "o h o m e m é m o rtal", m as só q u e "o h o m e m é m o rtal ou im ortal", m as o o bjetivo da d iv isão D. n ão é essa d e d u ç ã o , m as a b u sca, a esco lh a e o u so das caracteísticas efetivas de u m o bjeto , co m o fim d e esclarece r a n atu re za , ou m elh o r, as p o ssi­ b ilid a d e s (8t>váJ.eiç) d esse o bjeto . O co n ceito p latô n ic o de D. n ão te v e se g u id o re s d ireto s, em b o ra sejam e v id en te s as c o n e x õ e s en tre ele e as n o ç õ e s d e D . e la b o ra d a s p o r A ristóteles, p elo s estó ic o s e p elo s n e o p la tô n ic o s. E ntre estas, P lo tin o m arca a p assa g e m da co n c e p ç ã o p latô n ic a d a D . à m etafísica triád ica de P roclo. D iz ele q u e a D. "utiliza o m é to d o p latô n ic o da d iv isão p ara d istin g u ir as e sp é c ie s de u m g ê n e ­ ro , p ara defini-las e p ara ch e g a r aos g ên ero s p rim eiro s; co m o p e n sa m e n to faz co m b in aç õ e s co m p lex a s d esse s g ê n e ro s, até p e rc o rre r to d o o d o m ín io do inteligível; d e p o is, p o r cam in ho in v erso , da an álise, v o lta ao p rin cíp io " (Fnn, I, 3, 4). A qui o m é to d o p latô n ic o da d iv isão, que p ara P latão é o se g u n d o m o m e n to da D ., tor­ n o u -se o p rim e iro e a ele foi a c re sc en ta d o , co m o se g u n d o m o m e n to , "o re to rn o ao p rin cí­ pio", ou seja, à U n id ad e, a c e n a n d o assim para a q u e le q u e será o esq u e m a de P roclo. 2D. como lógica do provável. Para A ris­ tó teles, a D . é sim p le sm e n te o p ro ced im e n to racio n al n ão d em o n stra tiv o ; d ialético é o silo­ g ism o q u e , em v e z de p artir d e p rem issas v er­

DIALÉTICA d ad eiras, p arte de p rem issas p ro v á v e is, g e ra l­ m en te ad m itid as. "P rovável", diz A ristó teles, "é o q u e p a re c e aceitáv el a to d o s, à m aioria ou aos sáb io s, e, en tre estes, a to d o s, à m aioria ou aos m ais n o táv eis e ilustres" (Top, 1,1,100 b 23 ss.). P or ex ten são , A ristóteles ch am a de d ialético tam b ém o silo g ism o erístico , q u e p arte de p re ­ m issas q u e parecem p ro v á v e is, m as n ão são Ubid, 100 b 23 ss.). P o r esse co n c e ito , A ristó ­ teles atrib u ía a in v e n ç ã o da D . a Z en ão de E léia (DIÓG. L , V III, 57), q u e, em re fu ta çâo d o m o ­ v im en to , p arte d a te se p ro v á v e l, ou seja, aceita pela m aioria, de q u e o m o v im e n to ex iste. O m otivo do u so do te rm o "D." n esse se n tid o é ex p licad o p elo p ró p rio A ristóteles, d ize n d o q ue, "enquanto a prem issa dem onstrativa é a assu n ção d e u m a d as d u as p artes da c o n tra d iç ã o , a p re ­ m issa D. é a p e rg u n ta q u e a p re se n ta a c o n tra ­ d ição co m o altern ativa" (An. pr., I, 1, 24 a 20 ss.), e assim faz certa referên cia ao d iálo g o . Essa n o ç ã o de D ., q u e p e rm a n e c e se c u n d á ria e às v e z e s e s q u e c id a no p rim e iro p e río d o da E scolástica (na q u al p re v a le c e o c o n c e ito estó ico da D. co m o ló g ica), é re to m a d a , em b o ra sem elim in ar a o u tra, a p artir do séc. XII, q u a n ­ do u m co n h ecim en to m ais co m p leto do Organon de A ristó teles, m ais e s p e c ia lm e n te d o s Tópicos e d os Elencos sofísticos, ch am a a a te n ç ã o p ara a D., e n te n d id a co m o arte da d isc u ssã o e da ex ercitação lógica: arte q u e se v ale de p re m is­ sas p ro v á v e is e é, p o rta n to , D. no s e n tid o aristotélico do term o . E sse sign ificad o, p o rta n ­ to, é ad m itid o e ilu strad o m esm o p o r aq u e le s que c o n tin u am a c o n sid e ra r a D. co m o ló g ica geral ou ciência das ciências (com o p. ex. PED R O HISPANO, Summ. log;., 7, 41). F oi so m e n te J o ã o de S alisbury q u e te n d e u a restrin g ir o significa­ do de D. à "ciência d as co isas p ro v áv eis". M as ju stam e n te n esse sign ificad o ele d e sc o b re n o ­ vas ap lica çõ es da D. (para ele inútil se n ã o se unir a o u tras d iscip lin as), p o is, d ad a a dificul­ dade de o b te r c o n h e c im e n to s n e c e ssá rio s no dom ínio d as coisas n atu rais, as p rem issas p ro v á­ veis serão as ú n icas a q u e se p o d erá reco rrer: e elas são p ró p ria s da D. (Metalogicon, II, 13). D ante p a re c e referir-se a u m a c o n c e p ç ã o a n á ­ loga q u a n d o co m p a ra a D. a M ercú rio, o m en o r e o m ais o cu lto d os p lan etas; co m efeito, "a D. tem co rp o m e n o r do q u e q u a lq u e r o u tra c iên ­ cia; é p erfeitam e n te co m p ila d a e a c ab ad a no que de te x to se e n c o n tra na Arte velha e na nova; é m ais v ela d a do q u e q u a lq u e r outra c iên ­ cia p o rq u a n to p ro c e d e co m a rg u m e n to s m ais sofísticos e p ro v á v e is do q u e q u a lq u e r outra"

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DIALÉTICA (Convívio, II, 14). À c o n c e p ç ã o da D. co m o "arte da d iscu ssão " re p o rta m -se , via de regra, os h u m a n ista s a p artir de L oren zo V alia (Dialecticaedisputatíones, II, Prol. 693): aproxim am se, p o is, da retó rica, co m a q u al N izolio a id en ­ tifica e x p lic ita m e n te (De verisprincipüs, II, 5). P or o u tro lad o , P ed ro R am us acen tu av a na D. o a sp e c to in v en tiv o q u e os an tig o s j á tin h am re ­ c o n h e c id o na T ó p ic a e n ela v ia a arte da in v en ­ ção e, p o rtan to , "a p ró pria luz da razão" (Dialectique, 1555, p. 1, 69-119). M as o sc ila n d o en tre a retó rica e a d o u trin a d a in v en çã o , a D. m an ti­ n h a -se no âm b ito d a n o ç ã o aristotélica. T od av ia, a m ais n o táv el re co rrên cia histórica d essa n o ç ão só d ev eria o co rre r co m K ant; este p artia, e x a ta m e n te co m o A ristó teles, d a d esv a­ lo riza ção p relim in ar da D . co m o in stru m en to de co n h e c im e n to . Para K ant, a D. é u m a "lógi­ ca da ap a rên cia". Isso significa q u e ela é "um a ilusão n atu ral e inevitável, q u e se funda em p rin cíp io s su b jetiv o s e os to m a p o r objetivos", m as q u e está "in sep arav elm e n te ligada à razão h u m a n a , p e rm a n e c e n d o m e sm o d e p o is d e d e sc o b e rta a sua raiz" (Crít. K. Pura, D ialética tran sc en d e n tal, Intr., I). O bjeto da D. são as três id éias de A lm a, M u n d o e D eus: d elas, a p rim ei­ ra é fruto de u m p ara lo g ism o , a se g u n d a m o s­ tra su a ileg itim id ad e ao d ar lu g ar a an tino m ias in so lú v eis, a terceira é in d em o n strá v e l. O b v ia­ m en te , o sign ificad o k a n tia n o de D . identificase co m o s e g u n d o d o s d ois significados do te rm o d istin g u id o s p o r A ristó teles, ou seja, com a q u e le se g u n d o o q u al a D . é o p ro c e d im e n to sofistico. O p ró p rio K ant e sta b e le c e essa c o n e ­ x ão : "E m bora te n h a m sid o v ário s os significa­ d o s co m q u e os an tig o s u sa ram essa d e n o m i­ n aç ão de ciên cia ou d e arte, p o d e-se d ed u z ir co m seg u ran ça do u so q u e dela fizeram q u e a D . p ara eles n ad a m ais era q u e a lógica da aparência, a arte sofistica de d ar à ig n o rân ­ cia, aliás, às ilu sõ es v o lu n tá ria s, laiv os de v e r­ d ad e, im itan d o o m é to d o da fu n d a çã o q u e a ló g ica g eral p re sc re v e e se rv in d o -se d e sua tó p ica p ara co lo rir q u a lq u e r p ro c e d im e n to v a ­ zio" (Ibid., L ógica tran sc e n d e n ta l, Intr., III; cf. Grundlegung zur Met. derSitten, I). Por o u tro lad o , a esse m esm o co n ce ito de D . lig a-se a n o ­ çã o p ro p ria m e n te k a n tia n a d e D . transcen­ dental co m o "crítica do in telecto e da razão ao seu u so h ip erfísico , a fim de tirar os v é u s da a p a rên cia falaz d e su as in fu n d ad a p re su n ç õ e s" (Crít. R. Pura, L ógica tra n sc e n d e n ta l, Intr., § IV) ou, em o u tro s te rm o s, co m o u m kathartikon do in telecto (Logik, Intr., § II).

DIALÉTICA 3 S D. como lógica. O te rc eiro c o n ce ito d e D. d ev e-se ao s e stó ic o s, q u e a id en tific aram co m a lógica em geral ou, p elo m en o s, co m a parte da lógica q u e n ão é retó rica. C o n sid e ra n d o a re tó ­ rica co m o a ciên cia do b e m falar n o s d iscu rso s q ue d izem re sp e ito às "vias de saíd a", ao p asso q ue a D . é a ciên cia do d iscu tir c o rre ta m e n te n os d isc u rso s q u e c o n siste m em p e rg u n ta s e re sp o sta s ( DIÓG. L , VII, 1, 42). Essa id en tifica­ ção da D . com a lógica geral foi possibilitada pela tran sfo rm açã o rad ical a q u e os estó ico s su b m e te ra m a teo ria aristo télica do racio cín io . C om o, p ara eles, a d e m o n stra ç ã o era "utilizar as co isas m ais co m p re e n sív e is p ara ex p licar as m en o s co m p ree n sív eis" (Ibid., V II, 1, 45), e co m o as co isas m ais c o m p re e n sív e is eram as e v id en te s p ara os s e n tid o s (Ibid, VII, 1, 46), as b ases d e q u a lq u e r d e m o n stra ç ã o eram os ra­ ciocínios anapodíticosiy.), q u e se ap o iam d ire ­ ta m e n te n a ev id ên cia sen sív el. D e resto , p ara eles, o racio cín io em g eral co n stav a d e p re m is­ sa e c o n c lu sã o ; isso ta m b é m é o silo g ism o (Ibid, V II, 1, 45). Sua teo ria do racio cín io n ão p erm itia, p o is, a d istin çã o en tre p rem issas n e ­ ce ssariam e n te v e rd a d e ira s e p rem issas p ro v á ­ v eis em q u e, s e g u n d o A ristó teles, se fu n d av a a d istin ção en tre silo g ism o d em o n stra tiv o e silo ­ g ism o d ialético . A D. id en tifico u -se assim com a lógica, q u e, p ara eles, era u m a te o ria d os sig n o s e d as co isas sign ificad as e se definia co m o "ciência do v e rd a d e iro e do falso, e do q u e n ão é n em v e rd a d e iro n em falso" (Ibid., VII, 1, 42). P or "aquilo q u e n ão é n em v e rd a ­ d eiro n em falso" e n te n d ia m (com o resu lta do trec h o de C ícero citad o m ais ab aixo ) a c o n e x ã o da c o n clu são co m a p rem issa, cujas co n d iç õ e s d e v e rd a d e a D . esta b e le ce . Essa in te rp re ta ç ã o da lógica to d a co m o D. n ão é u m sim p les re to rn o à c o n c e p ç ã o p la tô n i­ ca de D. N a v erd ad e , a lógica estóica, tão centrada n as d e d u ç õ e s an a p o d ític a s (do tip o "Se é dia, h á luz"), n ã o c o n h e c e ra cio c ín io s q u e n ã o p ar­ tam de p rem issas h ip o tética s, e as p rem issas h ip o téticas são as q u e , m esm o p ara A ristó teles, d ão caráter d ialético ao racio cín io . A d o u trin a estóica da D. foi a m ais d ifu n did a na A n tig ü id a­ de e n a Id ad e M édia. F oi ad o ta d a p o r C ícero, q ue entendia p or D. "a arte q u e ensina a dividir um a coisa inteira em su as p artes, a ex p licar u m a coisa o cu lta co m u m a d efin ição , a esclarece r u m a coisa o b scu ra co m u m a in te rp re ta ç ã o , a en trev er p rim eiro e a d istin g u ir d e p o is o q u e é am b íg u o e, fin alm en te, a o b ter u m a regra com a qual se ju lg u e o v e rd a d e iro e o falso e se as

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DIALÉTICA

c o n se q ü ê n c ia s d eriv a m d as p rem issas assu m i­ das" (Brut., 4 1 , 152; cf. ta m b é m De or., II, 38, 157; Tusc, V , 25, 72; Acad, II, 2 8 ,9 1 ; Top, 2, 6). Q u in tilian o (Inst. or, X II, 2, 13) e S ên eca (Ep., 1,1) aceitam esse conceito da D ., q u e se en co n tra ig u a lm e n te n a p atrística o rie n ta l, p. ex. em O rígenes e G regório de N issa (Dehomínisopificio, 16), b e m co m o na p atrística latin a, p. ex. em S. A g o stin h o (De ordine, 13, 38). A trav és da tra­ d ição desses escritores e da o bra de Boécio (AdCic. Top, I, P. L, 6 4 a, col. 1047) a n o ç ã o da D . co m o ló g ica g eral, s e g u n d o o c o n ce ito estó ico , p ersiste p o r to d a a Id a d e M édia, co e x is­ tin d o co m o c o n ce ito m ais restrito de D. com o arte da d isc u ssão ou do racio cín io p ro v áv el, m esm o q u a n d o esse c o n c e ito se d ifu n de nas escolas a partir do séc. X II co m o efeito do m elho r co n h ecim en to d o s TópicosedosElencossqftstícos. Isid o ro de S evilha re to m ara o c o n ce ito estóico (Etymol, II, 22-24); o m esm o fez R áb an o M auro, q u e re p e te as p alav ras de A g o stin h o : "A D . é a disciplina d as disciplinas: ensina a ensinar, ensina a a p re n d e r, e n ela a p ró p ria ra zã o m anifesta o q u e é, o q u e q u er, o q u e v ê" (De clericorum institutione, III, 20). A b e la rd o , p o r su a vez, d e fe n d e a D . co m as m esm as p ala v ras d e A go s­ tin h o (Ep, 13), e H u g o de S ão V ítor co n sid eraas s e g u n d o o m o d e lo estó ic o , p arte da lógica ra cio n al ao lad o da retó rica (Didascalion, I, 12). A in da no séc. X III, P e d ro H isp a n o dizia em Sumtnulae logicales: "A D . é a a rte d as artes e a ciên cia d as ciên cias p o rq u e d e té m o cam i­ n h o p ara ch e g a r ao s p rin cíp io s de to d o s os m éto d o s. S ó a D . p o d e d iscu tir co m p ro b a b ili­ d ad e os p rin cíp io s d e to d a s as o u tras artes; por isso, n o a p re n d iz a d o d as ciên cias, a D . d ev e vir an tes" (1.01). E n co n tra-se an alo g ia n o c o n c e ito de Santay an a, de D. co m o "ciência ideal" ou form al, q u e c o m p re e n d e a m a te m á tic a e p ro c u ra "esclarecer e d e s e n v o lv e r a essê n cia do que d e sc o b rim o s, co m o fo co n as h a rm o n ias inter­ n as e n as im p licaç õ es d as fo rm as q u e n ossa a ten çã o ou n o ssa s m etas d efiniram in icialm en ­ te" (The Life ofReason, 1954 2, p. 436). 4 e D. como síntese dos opostos. O q u a rto co n ­ ceito d e D. é fo rm u la d o p elo Id ea lism o ro m ân ­ tico, em p articu lar p o r H egel; seu p rin cíp io foi a p re se n ta d o p ela p rim eira v e z p o r F ichte em Doutrina da ciência, de 1794, co m o "síntese d o s o p o sto s p o r m eio da d e te rm in a ç ã o re c íp ro ­ ca". O s o p o sto s de q u e falava F ichte eram o Eu e o N ão -eu , e a co n ciliação era d ad a pela p osi­ ção do N ão -eu p o r p arte do E u e p ela d ete rm i­

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DIALÉTICA nação q ue do N ão -eu se reflete so b re o Eu, p ro d u zin d o n e ste a re p re s e n ta ç ã o (Wissenschaftslehre, § 4, E). M as p ara H eg el a D. é "a própria n atu re za do p e n sa m e n to " {Ene, § 11), visto ser a re so lu ç ã o d as c o n tra d iç õ e s em q u e se en reda a re a lid a d e finita, q u e co m o tal é o b ­ jeto do in telecto . A D. é "a re so lu ç ã o im a n e n te na qual a u n ila te ra lid a d e e a lim itação d as d e ­ term inações in te le ctu ais se e x p re ssa m co m o são, ou seja, co m o su a n eg aç ão . T o d o finito tem a característica de su p rim ir-se a si m esm o . A D. constitui, p o is, a alm a do p ro g re sso cien tí­ fico e é o ú n ico p rin cíp io atrav és do q ual a c o ­ nexão im a n e n te e a n e c e ss id a d e en tram no conteúdo da ciência; nela ta m b é m está, s o b re ­ tudo, a elev ação v e rd a d e ira e n ão ex trín seca acima do finito" (Jbid, § 81). A D. co n iste: ls na co lo cação de u m c o n c e ito "abstrato e lim i­ tado"; 2- no su p rim ir-se d e sse co n ce ito algo "finito" e na p assa g e m p ara o seu o p o sto ; 3e na síntese das d u as d e te rm in a ç õ e s p re c e d e n te s, que co n serv a "o q u e há de afirm ativo na sua solução e na su a tran sp o siç ão ". H eg el dá a e s ­ ses três m o m en to s os n o m e s, re sp e c tiv a m e n te , de intelectual, d ialético e esp e c u la tiv o ou p o si­ tivo racional. M as a D. n ão é só o se g u n d o desses m o m en to s: é m ais o co n ju n to do m o v i­ m ento, e sp e cialm en te em seu re su lta d o p o siti­ v o e em sua re a lid a d e su b stan cia l. D e fato, pela identidade en tre ra cio n al e real, a D . é n ão só a lei do p e n sa m e n to , m as a lei da re a lid a d e , e seus resu ltad o s n ão são c o n c e ito s p u ro s ou conceitos ab strato s, m as "p en sa m en to s c o n c re ­ tos", ou seja, re a lid a d e s p ro p ria m e n te ditas, n e ­ cessárias, d e te rm in a ç õ e s ou categ o rias etern a s. Toda a re a lid a d e m o v e -se d ia le tic a m e n te e, portanto, a filosofia h e g elian a v ê em to d a p arte tríades de teses, an títe se e sín teses, n as q u ais a antítese re p re se n ta a "n eg ação ", "o o p o sto " ou "outro" da tese, e a sín tese co n stitu i a u n id a d e e, ao m esm o te m p o , a certificação de am b as. Hegel viu os p re c e d e n te s re m o to s d essa D. em Heráclito e P roclo. D e fato, H eráclito n ão só concebeu o ab so lu to co m o "u n id a d e d os o p o s ­ tos" com o ta m b é m c o n c e b e u essa u n id a d e como objetiva ou im a n e n te ao o bjeto ", ao c o n ­ trário de Z en ão , q u e co n sid e ro u p u ra m e n te subjetivas as co n tra d iç õ e s, s e n d o p o r isso u m a espécie de K ant da a n tig ü id a d e . "Em H eráclito", diz H egel, "e n c o n tram o s p ela p rim eira vez a idéia filosófica em sua form a e s p e c u ­ lativa... A qui fin alm en te v em o s terra: n ão há proposição de H eráclito q u e eu n ão te n h a a c o ­ lhido na m inha lógica" (Geschichte der Philo­

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DIALÉTICA sophie, ed. G lo ck n er, I, p. 343). P or o u tro lad o , P ro clo foi q u e m d esco b riu o caráter triád ico do p ro c e d im e n to d ialético , co n sid e ra n d o -o co m o o d eriv a r as co isas do U no e seu re to rn o ao U no. S eg u n d o P ro clo , esse m o v im en to d u p lo co n sta de três m o m en to s: ls a p erm a n ê n cia im u tável da C ausa em si m esm a; 2- o p ro v ir do ser d eriv a d o q u e, p ela su a sem e lh a n ç a com a cau sa, fica ligada a ela ao m esm o te m p o em q u e d ela se afasta; 3Q o re to rn o ou a co n v ersão do ser d e riv a d o à su a cau sa o rig in ária (Inst. theol, 29-3D - D esse m o d o , d iz H eg el, P roclo "n ão se lim ita ao s m o m e n to s a b s tra to s da tríad e , m as co n sid e ra as trê s d e te rm in a ç õ e s ab stra tas do ab so lu to , cad a u m a p o r si, com o to ta lid a d e da tríad e, o b te n d o assim u m a tríad e real" (Geschichte derPhilosophie, ed. G lo ck ner, III, p p . 73 ss. ). N a filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a a p alav ra D. tem , na m aioria d as v ez e s, o sig n i­ ficado h ele g ian o . P or u m la d o , esse significado é c o n se rv a d o p ela s n u m e ro sa s ram ificaçõ es do Id ea lism o ro m â n tic o e p o r o u tro é ad o ta d o p o r p o n to s de vista d iferen tes, m as q u e u tilizam a n o ç ã o em q u e este se b aseia. N a p rim eira d ire­ ção , p o d e -se o b serv a r q u e a ch am ad a "refor­ m a" da D. h eg elian a, de cuja au to ria G en tile se v a n g lo rio u , foi sim p le sm e n te a d istin ção en tre a D . do "p en sa d o ", do o b jeto do p e n sa m e n to , e a D. do "ato p e n sa n te " da co n sc iên c ia ou do E spírito ab so lu to . M as cad a u m a d essa s D. distin g u id a s p o r G en tile co n fig u ra-se co m o sín te ­ se d o s o p o sto s: sín te se de o p o sta s objetivid a d e s o b je tiv a m e n te tais (D. do p e n sa d o r), sín tese do eu e do n ão -eu (D. do p en san te) (Spirito come atto puro, V III, 6). M as co m isso n ão se in o v a o c o n c e ito d e D. C om o ta m ­ b ém n ão se in o va co m a d istin ção, e s ta b e le ­ cida p o r C roce, en tre o "nexo d o s distintos" (isto é, en tre as v árias categ o rias do p en sar, do agir e d as su as form as) e a "D. d os opo stos", q ue seria a u n id a d e e a o p o siç ã o en tre b elo e feio, v e rd a d e iro e falso, b em e m al, útil e inútil, no seio de cad a form a esp iritu al (Lógica, I, cap. 6). P or o u tro la d o , a n o ç ã o de D. foi u tilizad a p o r M arx, E ng els e seu s d isc íp u lo s no m esm o se n ti­ do atrib u íd o p o r H eg el, m as sem o sign ificad o id ealista q u e re c e b e ra no sistem a de H eg el. O q u e M arx ce n su rav a no c o n c e ito h e g e lia n o era q u e a D ., p ara H egel, é co n sc iên c ia e p e rm a n e ­ ce n a co n sc iên c ia, n ão a lc a n ç a n d o n u n ca o o bjeto , a re a lid a d e , a n atu re za , a n ão ser no p e n s a m e n to e co m o p e n s a m e n to . S e g u n d o M arx to d a a filosofia h eg elian a v iv e na "abstra-

DIALÉTICA

çâo" e por isso não descreve a realidade ou a história, mas só uma imagem abstrata desta que, por fim, é colocada como suprema verda­ de no "Espírito absoluto" (Manuscritos econômico-filosóficos, III; trad. it., pp. 168 ss.). Marx afirmava, portanto, a exigência de fazer a D. passar da abstração à realidade, do mundo fe­ chado da "consciência" ao mundo aberto da natureza e da história. "A mistificação", escre­ veu ele, "que a D. sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, o fato de ter sido ele o primeiro a descrever suas formas gerais de movimento de modo abrangente e claro. Em Hegel, a dialética está na cabeça. É preciso virála de pernas para o ar, para descobrir o cerne racional no envoltório místico" (O capital, I, 1, Post-scriptum à 2- ed.). Retomando a tentiva de Marx, Engels concebia a D. como a síntese das oposições (todavia relativas e parciais) que a natureza realiza em seu devir. "O reconheci­ mento de que essas oposições e diferenças estão realmente presentes na natureza, mas com validade relativa, e de que a rigidez e a va­ lidade absoluta com que são apresentadas são introduzidas na natureza só pela nossa refle­ xão constitui o ponto central da concepção D. da natureza" (Antidühring, Pref. à 23 ed.). Se­ gundo Engels, pode-se chegar às leis da D. por abstração, tanto da história da natureza quanto da história da sociedade humana. "Elas nada mais são do que as leis mais gerais de ambas essas fases da evolução e do próprio pensa­ mento" (Dialética da natureza, Dialética; trad. it., p. 56). Apesar disso, a noção de D. perma­ necia substancialmente inalterada como ocorre em geral nos escritores modernos que fazem uso dela. Assim, pode-se dizer que o conceito 4q de D. é marcado pelas seguintes característi­ cas: 1Q a D. é a passagem de um oposto ao outro; 2S essa passagem é a conciliação dos dois opostos; 3a essa passagem (portanto a conciliação) é necessária. Essa última caracte­ rística é a que opõe mais radicalmente a D. hegeliana aos outros três conceitos de D., cuja característica comum é a ausência da neces­ sidade. A maior parte dos filósofos modernos e de todos os que usam essa palavra fazem referên­ cia a essas três teses. Uma excessão é constituí­ da por Kierkegaard, que só aceita a primeira. Para ele, a D. é, em geral, a possibilidade de re­ conhecer o positivo no negativo (Diário, X', A, 456): conexão entre os opostos que não elimi­ na nem anula a oposição e não determina uma

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DIALOGO

passagem necessária para a conciliação ou pa­ ra a síntese, mas permanece estaticamente na própria oposição. Kierkegaard diz: "Estamos sós e termos todos contra nós é, em sentido dialético, ter todos por nós, pois o fato de que todos estão contra nós ajuda a evidenciar que estamos sós" (Ibid, VIII, A, 124). E muitas ve­ zes ele dá a essa D. sem conciliações o nome de "D. da inversão" ou "D. dupla" (Ibid.,VIU, A 84; VIII, A 91). Esse uso de Kierkegaard, embo­ ra não se possa dizer em conformidade com o conceito hegeliano de D., tem estreito paren­ tesco com um de seus elementos e, em todo caso, não propõe novo significado do termo. Para indicar a relação de oposição não concilia­ da, o termo mais adequado é tensão (v.). Por outro lado, o caráter oposto da D. hegeliana, o da unidade, foi assumido por Sartre como defi­ nição de toda a D.: "A D. é atividade totalizadora; ela não tem outras leis que não as re­ gras produzidas pela totalizaçâo em curso e estas se referem evidentemente às relações da unificação com o unificado, ou seja, aos modos da presença eficaz do devir totalizante nas par­ tes totalizadas" (Critique de Ia raison dialectique, 1960, pp. 139-40). . Portanto, ao longo de sua história, a noção de D. assumiu quatro significados fundamen­ tais aparentados mas diferentes. Embora o úl­ timo seja o mais difundido hoje em filosofia, e a ele sejam feitas as referências mais freqüen­ tes em linguagem comum ("D. da história", "D. da vida política", "D. espiritual", "D. dos parti­ dos", etc), também é o significado mais desa­ creditado por haver servido como uma espécie de fómiula mágica, capaz de justificar tudo o que aconteceu no passado e que se prevê ou se espera que aconteça no futuro. Se no futuro couber a essa palavra um uso cientificamente fecundo, certamente não será esse quarto signi­ ficado que ditará as regras desse uso. D IÁ L O G O (gr. ôiá^OYOÇ; lat. Dialogus; in. Dialogue, fr. Dialogue, ai. Díalog; it. Dialogo). Para grande parte do pensamento antigo até Aristóteles, o D. não é somente uma das for­ mas pelas quais se pode exprimir o discurso filosófico, mas a sua forma típica e privilegiada, isso porque não se trata de discurso feito pelo filósofo para si mesmo, que o isole em si mes­ mo, mas de uma conversa, uma discussão, um perguntar e responder entre pessoas unidas pelo interesse comum da busca. O caráter con­ junto dessa busca da forma como os gregos a conceberam no período clássico tem expres­

DIANOETICO

são natural no diálogo. A falta de confiança de Platão nos discursos escritos, porquanto não respondem a quem interroga e não escolhem seus interlocutores (Fed., 275 c) (o que talvez tenha levado Sócrates a não escrever nada e a concentrar toda a sua atividade na conversação com amigos e discípulos), também consolida a superioridade do diálogo como forma literária, que procura reproduzir o ritmo da conversação e, em geral, da investigação conjunta. Foi por certo esse o motivo que induziu Platão a man­ ter-se fiel à forma dialógica em seus escritos e a esquivar-se à pretensão do tirano Dionísio de reduzir sua filosofia à forma de sumário {Let., VII, 341 b). A exigência do D. está presente, de modo mais ou menos claro, em todas as for­ mas da dialética (v.), e não se pode dizer que esteja totalmente ausente da indagação filosó­ fica, que, mais do que qualquer outra, proce­ de através da discussão das teses alheias e da polêmica incessante entre as várias diretri­ zes de pesquisa. Além disso, o princípio do D. implica a tolerância filosófica e religiosa (v. TO­ LERÂNCIA), e m sentido positivo e ativo, o u seja, não como resignação pela existência de outros pontos de vista, mas como reconhecimento de sua legitimidade e com boa vontade de entendê-los em suas razões. Nesse sentido, o princípio do D. permaneceu como aquisição fundamental transmitida do pensamento gre­ go ao moderno e que, na atualidade, conserva valor eminentemente normativo (cf. G. CALOGERO, Logo e dialogo, 1950). DIANOETICO (gr. ôvavoTittKÓÇ; in. Dianoetic, fr. Dianoétique, ai. Dianoétik, it. Dianoetico). Intelectual. A palavra grega, adaptada às línguas modernas, permaneceu quase exclusivamente na expressão "virtudes dianoéticas", que, para Aristóteles, indica as virtudes próprias da parte intelectual da alma, ao contrário das virtudes éticas ou morais, pertencentes à parte da alma que, embora desprovida de razão, pode em uma certa medida obedecer à razão (Et. nic, I, 13, 1102 b). Para Aristóteles, as virtudes dianoéticas são cinco: arte, ciência, sabedoria, sapiência, intelecto (Md, VI, 3, 1139 b 15); sobre elas, v. os verbetes correspondentes. D IA N Ó IA (gr. ôtávoioc). Conhecimento dis­ cursivo que procede pela inferência de conclu­ sões a partir de premissas. Essa é a definição dada por Platão (Rep, VI, 510 b) e por Aristóte­ les, que nela vê o conhecimento científico "refe­ rente a 'causas e princípios'" (Met, V, 1, 1025 b 25). Essa palavra eqüivale, aproximadamente,

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DICTUM DE OMNI ET NULLO

ao que entendemos por razão, em sentido objetivo, e, no uso de Platão e de Aristóteles, implica certa discrepância com o sentido espe­ cífico de nous ou intelecto, porquanto este designa a faculdade — considerada superior — de intuir os princípios de que partem os procedimentos racionais (v. DISCURSIVO). D IA N O IO L O G IA (ai. Dianoiologie). É as­ sim que Lambert denominou a primeira das quatro partes do seu Novo Organon (1764), mais pre­ cisamente a que estuda as leis formais do pen­ samento. Só faz reproduzir a lógica formal de Wolff.^ D IÁ S T E M A (gr. ôváoTr)u.a). Propriamente, intervalo. Na lógica aristotélica, chama-se de D. a conjunção do sujeito com o predicado, ou seja, a proposição (An. pr., I, 4, 26 b 21; An. post., I, 21, 82 b 7; etc). D IA T R IB E (gr. ÔKXTpiPtj; lat. Diatríba; in. Diatribe; fr. Diatribe, it. Diatriba). Breve trata­ do ético. Esse termo também aparece como título de obras atribuídas aos estóicos Zenâo e Cleantes, bem como a outros filósofos antigos. D IB A T IS . Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o sexto modo do silogismo de primeira figura (Dabitis), com a diferença de assumir como premissa maior a proposição em que se encontra o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Alguns loucos dizem a verdade. Quem diz a verdade merece ser imitado. Logo, merecem ser imita­ das algumas pessoas que não deixam de ser loucas" (ARNAULD, Log, III, 8). D IC O T O M IA (gr. Ôl%CTOUJOCr in. Dichotomy, fr. Dichotomíe, ai. Dichotomie, it. Dicotomia). 1. Divisão de um conceito em duas partes se­ gundo o método diairético da dialética platôni­ ca (PLATÃO, Górg., 500 d; Pol, 302 e ; cf. LEIBNIZ, Nouv. ess,, III, 3, 10). (V. DIALÉTICA.) 2. Denominação clássica (cf. ARISTÓTELES, FÍS.,

VI, 9, 239 b 18) do primeiro argumento contra o movimento, de Zenão de Eléia, que pode ser assim exposto: para ir de A a B, um móvel deve antes percorrer a metade do trajeto A-B; e an­ tes ainda a metade dessa metade; e assim su­ cessivamente, de modo que não chegará nun­ ca a B(ARISTÓTELES, Fís, VI, 9, 239 b 10; Ibid,,

VI, 2, 233 a 2). V. AQUILES; FLECHA; ESTÁDIO. DICTUM. V. SIGNIFICADO. DICTUM DE OMNI ET NULLO. É o princí­

pio fundamental do silogismo: o que se diz de todos, diz-se também de alguns e de cada um; e o que não se diz de nenhum, tampouco se diz de alguns nem de cada um. P. ex., se todo

DIDÁTICA MORAL h o m e m é m o rtal, alg u n s h o m e n s sã o m o rta is e S ócrates ta m b é m , co m o in d iv íd u o , etc. (ARIS­ TÓTELES, An.pr., I, 1, 24 b 26; PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.01; JUNGIUS, Lógica, III, 11, 4-5; WOLFF, Log.,, § 346; KANT, Logik, § 63; HAMILTON,

LecturesonLogic, I, p. 303, etc). (V. SILOGISMO.)

D ID Á T IC A M O R A L (in. Ethical didactics; fr. Didactique morale, ai. Ethische Didaktík, it. Didattica moral). S e g u n d o K ant, é u m a p arte d a d o u trin a m o ral do m éto d o ; d iz re sp e ito ao a p re n d iz a d o d as v irtu d es. A ex ig ên cia de u m a D . m o ral p ro v é m do fato de a v irtu d e n ão ser inata, p o d e n d o e d e v e n d o ser en sin ad a {Met. derSitten, II, § 49). D IF E R E N Ç A (gr. õioccpopá; lat. Differentia; in. Difference, fr. Différence, ai. Differenz; it. Differenzd). D e te rm in a ç ã o da a lte rid a d e . A a lte rid ad e n ão im p lica, em si, n e n h u m a d e te r­ m in ação ; p. ex., "aé outra coisa q u e n ão b". A D . im plica u m a d e te rm in a ç ã o : aé d iferen te de b na co r ou na form a, etc. Isso significa: as co isas só p o d e m diferir se tê m em co m u m a coisa em q u e diferem : p. ex., a cor, a co n fig u ra­ ção , a form a, etc. S e g u n d o A ristó te le s, q u e estabeleceu claram en te essas distinções, as coisas diferem em g ên ero se têm a m atéria em co m u m e n ão se tran sfo rm am u m a n a o u tra (p. ex., se são co isas q u e p e rte n c e m a d ife re n te s c a te g o ­ rias); d iferem em e s p é c ie se p e rte n c e m ao m esm o g ê n e ro (Met, X , 3, 1054 a 23). A D. foi in clu íd a p o r Porfirio e n tre as quinque vocês (lit., cin co p alavras) (v.), ou seja, e n ­ tre os cinco p red ic áv eis m aio res. Porfirio c h a ­ m o u de constitutiva a D . q u a n to à e sp é c ie , e de divisiva a d iferen ça q u a n to ao g ê n e ro : p. ex., a ra c io n a lid a d e é a d iferen ça q u e co n stitu i a e sp é c ie h u m a n a e sep ara a e sp é c ie h u m a n a das o u tras do m esm o g ê n e ro . D istin g uiu ta m ­ bém : D . comum, q u e co n siste em u m ac id en te sep ará v e l e existe, p. ex., e n tre S ó crates s e n ta ­ do e S ó crates n ão se n ta d o ; D. própria, q u e ex iste q u a n d o u m a coisa difere da o u tra p o r u m ac id en te in se p ará v e l, co m o , p. ex., a ra ­ cio n alid ad e (Lsag, 9-10). E ssas d istin çõ es fo ­ ram re p ro d u z id a s na ló g ica m ed iev al (PEDRO HISPANO, Summ. log., 2 .11, 2.12). S ão até hoje aceitas c o m u m e n te , ta n to em filosofia q u a n to fora dela. D IFE R E N Ç A , M É T O D O D A (in. Method of difference; fr. Méthode de Ia différence; ai. DifferenzMethode, it. Método delia differenzd). U m d os q u a tro m é to d o s da p esq u isa e x p e ri­ m en tal e n u m e ra d o s p o r S tuart M ill, m ais p rec i­ sa m e n te o m é to d o e x p re sso pela s e g u in te re ­

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DIGNIDADE1 gra: "Se u m caso no q u al o co rre o fenô m en o in v estig ad o e u m caso no q u al ele n ão ocorre ap re se n ta m to d a s as circ u n stân cias em com um , ex c eto u m a ú n ica q u e o co rre só no p rim eiro , a circu n stân cia na q u a l os d ois caso s diferem é o efeito, a cau sa ou u m a p a rte in d isp en sáv el da ca u sa do fe n ô m e n o " (Logic, III, 8, § 2) (v.

CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; RESÍDUOS).

D IF E R E N Ç A O N T O L Ó G IC A (in Ontological difference, fr. Différence ontologique, ai. Ontologische Differenz; it. Differenza ontologicd). S eg u in d o H eid eg g er, é a d iferen ça en tre o ser e o en te; co n siste n a tra n sc e n d ê n c ia do seraí, ou seja, no seu co n fro n to co m o ser m e­ d ian te a co m p re e n sã o d este (Vom Wesen des Grandes, I; trad. it., p. 24). D IF E R E N C IA Ç Ã O (in. Differentiation; fr. Différentiatíon; ai. Differenzierung; it. Differenziazioné). P assa g e m do h o m o g ê n e o para o h e te ro g ê n e o , q u e, s e g u n d o S p en cer, é a natu­ reza fu n d a m en tal da ev o lu ç ã o (FirstPrincipies,

cap. XV). (V. EVOLUÇÃO.) D IF E R E N C IA L , P S IC O L O G IA (in Differential psychologie; fr. Psychologie différentielle, ai. Differentrelle Psychologie, it. Psicolo­ gia differenzialè). P or esse n o m e in d ica-se o co n ju n to d as té cn ic as p sic o ló g ic as q u e servem para verificar os m o d o s e as c a p a c id a d e s de re a ç ã o de u m in d iv íd u o ; d ize m re sp e ito , por­ ta n to , à p arte da p sico lo g ia q u e cu id a da p erso ­ n a lid a d e e às a p lica çõ es d essa p sico lo g ia, a psicotécnica (v.). D IG N ID A D E 1 (in. Dignity, fr. Dignité, ai. Würde, it. Dignitã). C om o "p rin cíp io da digni­ d ad e h um ana" en te n d e -se a exig ên cia enunciada p o r K ant co m o s e g u n d a fó rm u la do im p erativo categ ó rico : "Age de tal form a q u e trates a hu­ m a n id a d e , ta n to na tu a p esso a co m o na pessoa de q u a lq u e r o u tro , s e m p re ta m b é m co m o um fim e n u n c a u n ic a m e n te c o m u m m eio " (GrundlegungzurMet. derSitten, II). Esse im ­ p era tiv o e sta b e le c e q u e to d o h o m e m , aliás, to d o ser ra cio n al, co m o fim em si m esm o , p o s­ su i u m v alo r n ão relativ o (com o é, p. ex., um p re ç o ), m as in trín se co , ou seja, a d ig n id a d e . "O q u e tem p re ç o p o d e ser su b stitu íd o p o r algu­ m a o u tra co isa equivalente, o q u e é su p e rio r a q u a lq u e r p re ç o , e p o r isso n ão p erm ite n e n h u ­ m a eq u iv alê n cia , te m D." S u b stan cialm e n te, a D . de u m ser ra cio n al co n siste no fato d e ele "não o b e d e c e r a n e n h u m a lei q u e n ão seja tam ­ b é m in stitu íd a p o r ele m esm o ". A m o rtalid ad e, co m o co n d iç ã o d essa au to n o m ia legislativa é, p o rta n to , a c o n d iç ã o d a D . do h o m e m , e

DIGNIDADE2 m oralidade e h u m a n id a d e são as ú n ic a s co isas que n ão têm p re ç o . E sses c o n c e ito s k an tia n o s voltam em F.SC H ILL E R , GraçaseD. (1793): "A dom inação d os in stin to s p ela força m o ral é a li­ b erd ad e do esp írito e a e x p re ssã o d a lib e rd a d e do espírito no fe n ô m e n o ch a m a -se D ". (Werke, ed. K arp eles, X I, p. 207). N a in c e rte z a das valorações m o rais do m u n d o c o n te m p o râ n e o , que au m en to u co m as d u as g u e rra s m u n d ia is, pode-se dizer q u e a exig ên cia da D . do ser h u ­ m ano v en ce u u m a p ro v a, re v e la n d o -se co m o pedra de to q u e p ara a ac eitaç ão d os id eais ou das form as de v id a in stau ra d a s ou p ro p o stas; isso p o rq u e as id eo lo g ias, os p artid o s e os re ­ gim es q ue, im plícita ou ex p lic ita m en te , se o p u ­ seram a essa te se m o straram -se d esastro so s para si e para os o u tro s. D IG N ID A D E 2 (lat. Dignitas; it. Degnitã). Foi assim q u e os esco lástico s, na esteira de B oécio, traduziram a palavra axioma(cí., p. ex., TOMÁS, InMet., III, 5, 390). V iço co n se rv o u essa p a la ­ vra em italian o e su a s "D .", e x p o sta s na p arte da Scienza Nuova in titu lad a "D os e lem e n to s", constituem os fu n d a m e n to s de su a o bra. "P ro­ pom os ag o ra aq u i os se g u in te s ax io m as ou D. filosóficas e filológicas, alg u m as p o u c a s p e r­ guntas ra cio n ais e d isc re tas, co m o u tras tan tas definições esclarecid as; estas, assim co m o o sangue p elo c o rp o a n im a d o , d e v e m fluir p o r dentro d esta ciên cia e an im á-la em tu d o o q u e ela razoa so b re a n atu re za co m u m das n açõ es". D ILEM A (gr. 5& r|H .ua; lat. Dilemmas; in. Dilemma; fr. Dilemme; ai. Dilemma; it. Dílemma). E sse te rm o (q u e significa "prem issa dupla") co m eça a ser e m p re g a d o p o r g ra m á ­ ticos e ló g ico s do séc. II (cf. HERMÓGENES, De inv., IV, 6; GALENO, Inst. log., V I, 5) p ara in d icar os raciocínios insolúveis ou conversíveis (coropoi, àvnOTpé(povTa) q u e, s e g u n d o D ió g e n e s Laércio (VII, 82-83), a p a rec ia m co m freq ü ên cia nos livros dos estó ico s. U m d esse s D. se ch am av a "do crocod ilo": u m c ro c o d ilo q u e ra p ta um m enino e p ro m e te ao p ai q u e v ai restitu í-lo se adivinhar o q u e o cro c o d ilo v a i fazer, ou seja, se vai restitu ir o m e n in o ou n ão . S e o p ai re s­ ponder q u e o cro co d ilo n ão v ai restituir, o cro ­ codilo estará d ian te de u m D.: se n ão restituir, a resp o sta do p a i será v e rd a d e ira e, d e a c o r­ do com o p ac to , ele d ev erá d ev o lv e r o m en in o ; mas se o devolver, a re sp o sta do p ai estará er­ rada e este p erd erá o d ireito à re stitu iç ão (Schol. adHermog, ed. W alz, IV, p. 170). D. se m e lh a n ­ te contava-se a re sp e ito de P ro tág o ras, q u e le ­ vou a ju íz o seu d isc íp u lo E vatlos, d e q u e m d e ­

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DIORISMA v eria re c e b e r h o n o rá rio s q u a n d o v e n c e sse a p rim eira cau sa. P ro tá g o ra s ach av a q u e E vatlos d ev eria p ag ar-lh e em q u a lq u e r caso: se v e n c e s ­ se, p o r cau sa do p ac to , e se p e rd e sse p o r cau sa da sen ten ça , q u e o obrigaria a pagar. M as Evatlos p ô d e re sp o n d e r-lh e : "N ão te p ag are i em caso algum : se p erd er, p o r cau sa do pacto; se ven cer, p o r cau sa d a sen ten ça ". O D ., n esse caso, era do ju iz (AULO GÉLIO, Noct. Att., V , 10). N a ló g ica m ed ie v a l, p referia-se d ar a arg u ­ m e n to s d esse g e n ê ro as d e n o m in a ç õ e s Insolubiliaou Obligationes (y. ANTINOMIA). E sse ter­ m o re a p a re c e na ló g ica re n a sc en tista (cf., p. ex., L. VALLA, Dialect. Disput., III, 13) e d esta p assa à lógica d e ju n g iu s (Lógica Humburgensis, 1638, III, 29, D e à Lógica de A rn au ld (III, 16). N esse s e n tid o , o D. foi c h a m a d o p o r H am ilto n d e sophisma heterozeteseos ou sofism a de co n tra -in te rro g a ç â o (Lectures on Logic, I, p. 466). 2. M ais ta rd e , d e u -se o n o m e de D. a certa form a d e in terferên cia do se g u in te tipo : "Toda coisa é P ou M; S n ão é M; lo g o S é P" (cf. PEIRCE, Coll. Pap, 3.404). E sse s e g u n d o sig ­ n ificado de D. j á é d istin g u id o do p re c e d e n te p o r J u n g iu s (Log. hambiirg, III, 29, 10) e é d escrito co m o "silogism o h ip o tético -d isju n tiv o " p o r K ant (Logik, § 79), p o r H am ilto m (Lectures on Logic, I, p p . 350 ss.) e p o r o u tro s escrito res p o ste rio re s. D IM E N S Ã O (in. Dimension; fr. Dimension; ai. Ausdehruung; it. Dimensione). E n ten d e-se p o r esse te rm o to d o p lan o , g rau ou d ireção no q u al se p o ssa efetu ar u m a in v estig ação ou re a ­ lizar u m a ação . F ala-se, assim , de "D. de lib e r­ d ad e" p ara d e sig n a r os g rau s da lib e rd a d e ou as d ire ç õ e s em q u e ela p o d e m an ifestar-se; ou de "D. d e u m a p esq u isa" p ara d esig n ar os v ário s p lan o s ou n ív eis n os q u ais ela p o d e ser co n d u zid a . D IO N ISÍA C O , E SPÍR ITO (ai. Dionysisch Geist). In icialm en te co n trap o sto ao espírito apolíneo (v.), foi d ep o is e n te n d id o p o r N ietzsch e co m o atitu ­ d e p ró p ria do su p er-h o m e m e co m o o fu n d a­ m en to da "inversão de valo res" q u e N ietzsche p ro p u n h a . Para N ietzsche, D ionísio é "a afirm a­ ção religiosa d a v id a total, n ão re n e g a d a nem estilhaçada". E m o u tro s term o s, é o sím b o lo da aceitação integral e en tu siasta da v id a em to d o s os seu s asp ecto s e d a v o n ta d e d e afirm á-la e repeti-la (WillezurMacht, ed. 1901, § 479). D IO R IS M A (gr. 8vopiou.óç-, in. Diorism; fr. Diorisme, ai. Diorismus; it. Diorisma). E nunciaçào de u m p ro b lem a ou delim itação da sua p ro b ab ili­ d ad e. T erm o u sad o p elo s m atem ático s g regos.

DIREITA HEGELIANA

DIREITA HEGELIANA (in. Hegelian right-

fr. Droite hégélienne, ai. Hegelsche Rechte, it. Destrahegeliana). A s d e n o m in a ç õ e s "D." e "es­ q u erd a" h e g elian a fo ram e m p re g a d a s p ela p ri­ m eira v e z p o r D avi S trau ss (Streítschriften, III, T ü b in g e n , 1837); esse s d ois te rm o s ex traíd o s d os co stu m e s do P a rlam e n to fran cês d esig n a m as d u a s g ra n d e s c o rre n te s an ta g o n istas em q u e e sta v a c in d id a a n u m e ro s a ala d o s d is c íp u ­ los de H egel. A cisão era devida, p re d o m in a n ­ te m e n te , às p o siç õ e s q u e to m av am d ian te da relig ião. A D . h e g e lia n a te n d ia a v in c u la r a d o u ­ trina do m estre à relig ião trad icion al; a e sq u e rd a h eg elian a te n d ia a c o n tra p ô -la a q u a lq u e r for­ m a de religião. A D . h e g e lia n a p o d e s e r c o n s id e ra d a a escolãstica do h e g e lia n is m o : u tiliza a ra z ã o h eg elian a (ou seja, a sistem ática de e sp e c u la ­ ção de H egel) p ara ju stificar as v e rd a d e s re li­ gio sas. E sse é, de fato, o p rin cip al in tu ito dos m aio res re p re s e n ta n te s d essa D. co m o C. F. G õ sch el, B ru n o B au er (na p rim eira fase de sua ativ id ad e) e o h isto ria d o r da filosofia J. E. Erdm an n . N o ce n tro , S trauss p u n h a C. F. R osenk ran z, q u e foi o b ió g rafo en tu siasta de H egel (Vida de Hegel, 1844; Apologia de Hegel, 1858). (Cf. MÁRIO R ossi, Intr. alia storia delle interpretazioni di Hegel, I, M essina, 1953.) D IR E IT O (gr. xò ôíicm ov; lat. Jus; in. Lata, fr. Droit; ai. Recht; it. Dirittó). E m se n tid o g eral e fu n d a m en tal, a té cn ic a da co e x istê n c ia h u m a ­ na, isto é, a técn ica q ue visa a possibilitar a c o e ­ x istên cia d o s h o m e n s. C o m o técn ica, o D . se co n cretiza em co n ju n to de regras (n esse caso leis ou n o rm as), q u e têm p o r o b jeto o compor­ tamento inter-subjetivo, ou seja, o c o m p o rta ­ m en to d o s h o m e n s en tre si. N a h istória do p e n ­ sam en to filosófico e ju ríd ic o , s u c e d e ra m -se ou e n tre c ru z a ra m -se q u a tro c o n c e p ç õ e s fu n d a ­ m en tais so b re a v a lid a d e do D. Ia a q u e co n si­ dera q u e o D . p o sitiv o (con ju n to d o s D . q u e as v árias so c ie d a d e s h u m a n a s re c o n h e c e m ) b a ­ seia-se n u m D . natural ete rn o , im u tável e n e ­ cessário ; 2- a q u e ju lg a o D. fu n d a d o n a m oral e o co n sid era, p o rta n to , u m a form a d im in u íd a ou im perfeita d e m o ralid ad e; 3a a q u e re d u z o D. à força, ou seja, a u m a re a lid a d e histórica p o liticam en te o rg an izad a; 4 a a q u e c o n sid e ra o D. co m o u m a técnica social. 1. DIREITO NATURAL. ls A o b serv a çã o d a d isp a rid a d e e d a d isc re­ p ân cia en tre os D . v ig e n te s n as so c ie d a d e s h u ­ m an as, b em co m o do caráter im p erfeito d e tais D . lo g o co n d u ziu à n o ç ão de D . natural co m o

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DIREITO fu n d a m e n to ou p rin cíp io de to d o D. p ositivo p ossív el, ou seja, co m o co n d içã o de sua v alid a­ de. O D . n atu ra l é a n o rm a c o n sta n te e in v ariá­ v el q u e g a ra n te infídivelm ente a realiza çã o da m elh o r o rd e n a ç ã o d a s o c ie d a d e h u m an a: o D. p o sitiv o aju sta-se em m io r ou m e n o r grau, m as n u n c a c o m p le ta m e n te , ao D . n atu ra l p o r­ q u e co n tém ele m e n to s v ariáv eis e acid en tais q u e n ão são re d u tív e is a este. O D . n atu ra l é a perfeita ra c io n a lid a d e da n o rm a, a p erfeita a d e ­ q u a ç ã o d a n o rm a ao seu fim de g ara n tir a p o s ­ sib ilid a d e da co ex istên cia. O s D. p o sitiv o s são re a liz a ç õ e s im p erfeitas ou ap ro x im ativ as dessa n o rm a tiv id a d e perfeita. E sse p e n sa m e n to re ­ g eu , p o r m ais de d ois m il an o s, a h istória da n o ç ã o de D . P o d em o s distinguir d u as fases fu n ­ d a m e n ta is d essa lo n g a história: a) F ase antiga, na q ual o D. n atu ra l é a p a rtic ip a ç ã o da co m u ­ n id a d e h u m a n a n a o rd em racio n al do u n iv er­ so. C o m o , se g u n d o os estó ic o s (aos q u ais se d ev e a p rim eira fo rm u la çã o d essa d o u trin a ), a p a rtic ip a ç ã o d o s se re s v iv os n a o rd e m u n iv e r­ sal se dá p o r m eio do instinto, n o s an im ais, e p o r m eio da razão, n o s h o m e n s (DÍOG. L , VII, 85-87), o D . de n atu re za é às v e z e s in te rp retad o co m o in stin to e às v ez es co m o ra zã o ou com o in clin ação racio n al. M as em to d o s os caso s, é e n te n d id o co m o p artic ip a çã o n a o rd e m u n i­ v ersal q u e é D eu s m esm o ou v em de D eus. b) F ase moderna, na q ual o D . n atu ra l é a d iscip li­ n a ra cio n al in d isp en sáv el às re la çõ es h u m an as, m as in d e p e n d e d a o rd e m có sm ica e d e D eus. O co n ce ito de técn ica q u e p o d e e d ev e regu la­ m e n ta r da form a m ais c o n v e n ie n te as relaçõ es h u m a n a s a p re se n ta -se co m to d a clareza nessa fase da d o u trin a. a) Fase antiga — O re c u rso à n a tu re z a e à o rd e n a ç ã o q u e ela p rescrev e às re la çõ es hu­ m an as é in icialm en te u m a in stân cia p olêm ica co n tra as leis "c o n v en cio n ais", aq u ela s q u e "a m aioria" ch am a de ju stiç a ou q u e é ju stiç a para "a m aioria". Essa instância foi freq ü en te n o s so­ fistas. A ntifo n tes afirm ava q u e to d as as leis são p u ra m e n te c o n v e n c io n a is e p o r isso contrárias à n atu reza, e q u e o m elh o r m o d o de viver é se­ g uir a n a tu re z a , ou seja, p e n sa r no p ró p rio p ro ­ v e ito re se rv a n d o d eferên cia a p a re n te ou for­ m al às leis d os h o m e n s (OxirhinchusPapyri, ne 1364, IX, p. 92). Id éias s e m e lh a n te s a estas sào e x p re ssa s p o r alg u m as p e rs o n a g e n s d o s d iálo ­ g o s de P latão , co m o C álicies em Gõrgias (484 a) e T rasím a co e G lau co em República (338, 3, 367 c). M as m esm o n e sse caso o D. natural co n stitu i u m trib u n al d e a p e la ç ã o co n tra as

DIREITO c o n v e n ç õ e s so ciais e no fu n d o é s e m p re c o n ­ cebido co m o ju stiç a m ais su p e rio r e v erd ad e ira . N essa c o n ce p ç ão , ac en tu a-se o caráter utilitário do D. n atu ral, g ra ç a s ao q ual o D. n atu ral n ão visará à re aliza çã o de u m a o rd em , m as à c o n ­ secu ção de u m a v a n ta g e m , te n d o p o r isso ca­ ráter p rático m ais q u e esp ecu la tiv o . P o rta n to , nem s e m p re essa c o n c e p ç ã o tem o caráter a n ti­ social d e q u e se re v e ste em A ntifo n tes e n os outros sofistas. T a m p o u c o teria esse ca rá ter n a ­ queles q u e a re to m ara m alg u n s sé c u lo s d e p o is, epicuristas e céticos. E picuro dizia q u e o D. na­ tural é u m a c o n v e n ç ã o ex c o g ita d a p elo s h o ­ m ens para seu p ró p rio p ro v e ito , a fim de n ão se p reju d icarem u n s ao s o u tro s (DlÓG. L , X , 150). O s cético s, co m C arn é ad es, su sten ta v a m que "os h o m e n s s a n c io n a ra m o D . p ara seu próprio p ro v e ito , já q u e ele é m u d a d o d e ac o r­ do co m os co stu m e s e d e n tro de u m a m esm a so cied ad e, de ac o rd o co m os te m p o s: lo g o , não existe D. n atu ra l algum ; to d o s, sejam h o ­ m ens, sejam o u tro s seres v iv o s, são g u iad o s pelo p ro v eito p ró p rio , so b a d ire çã o da n a tu re ­ za; c o n se q ü e n te m e n te , ou a ju stiç a n ão existe em ab so lu to ou, se ex iste de algu m m o d o , é o cúm ulo d a estu ltice, p o rq u e ao d efe n d e r as v an tag en s alh e ia s estaria a g in d o em seu p ró ­ prio p rejuízo (LACTÂNCIO, Div. Inst, V , 16, 2-3; CCEÍO, Derep, III, 21). N essas d o u trin as a p o ­ lêm ica n ão se v o lta d ire ta m e n te co n tra o D. natural, m as co n tra sua in terp retação racionalista e otim ista, se g u n d o a q ual ele é a garantia infa­ lível de u m a o rd em perfeita. M as era ju sta m e n te essa g aran tia infalível que a outra co rren te fu n d a m en tal, q u e v ai de Platão e A ristóteles aos estó icos, aos ju ristas ro ­ m anos e ao s escrito re s m ed iev ais, v ia no D. natural. N a v e rd a d e , P latão definiu o D. ao d e ­ finir a ju stiç a co m o aq u ilo q u e p o ssibilita q u e u m g ru p o q u a lq u e r de h o m e n s, m esm o q u e b an d id o s ou la d rõ e s, co n viva e aja co m vistas a u m fim co m u m {Rep,, 351 c). A o q u e p arece, essa seria um a fu n ção p u ra m e n te form al do D ., graças à qual ele é sim p le sm e n te a té cn ic a da coexistência. M as A ristó teles já qualifica o D. tom ando co m o referên cia a co e x istê n c ia justa, racion alm en te perfeita. O D ., diz ele, é "o q u e pode criar e co n serv ar, no to d o ou em p arte, a felicidade da c o m u n id a d e política" (Et. nic, V , 1, 1129 b 11), d ev en d o -se re co rd ar q u e a felici­ dade, co m o fim p ró p rio do h o m e m , é a re aliza­ ção ou a p erfeição da ativ id ad e p ró p ria do h o ­ m em , ou seja, a ra zã o Ubid, I, 6, 1098 a 3). "A sanção do D .", diz ele em Política (I, 2, 1254 a),

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DIREITO "é a o rd em d a c o m u n id a d e política, e a san ção do D . é a d e te rm in a ç ã o do q u e é ju sto ". M as u m D. assim e n te n d id o é só o D. n atu ral, que é o m e lh o r e em to d a p arte o m esm o (Et. nic, V , 16, 1135 a 1). O D. fu n d a d o na co n v e n ç ã o e na u tilid a d e é a n á lo g o às u n id a d e s de m ed id a q u e v ariam d e u m lu g ar p ara o u tro ; o D . n atu ­ ral, ao co n trá rio , é '"aquilo q u e tem a m esm a força em to d a p a rte e in d e p e n d e da d iv ersid a­ de d as o p in iõ e s" (Ibid., V , 6, 1135 a 17). O s estó icos só fizeram explicitar o fu n d am en to dessa d o u trin a , id en tifican d o o D . n atu ra l co m a ju s ­ tiça e a ju stiç a com a ra zã o Q. STOBKO, Ecl., II, 184; PLUTARCO, De Stoic. Rep., 9); sua m elh o r e x p re ssã o está n u m fam o so trec h o de C ícero c o n se rv a d o p o r L actâncio: "Há c e rta m e n te u m a lei v e rd a d e ira , a reta ra zã o co n fo rm e à n a tu re ­ za, difundida en tre to d o s, co n stan te, eterna, que, c o m a n d a n d o , in cita ao d e v e r e, p ro ib in d o , afasta da frau de... N essa lei n ão é lícito fazer alte raç õ e s, n em é lícito retirar d ela q u a lq u e r coisa ou an u lá-la co m o u m to d o ... Ela n ão será d ife re n te em R om a, em A tenas, hoje ou am a ­ nhã, m as, co m o lei ú n ica, etern a e im u tável, g o v e rn a rá to d o s os p o v o s e em to d o s os te m ­ p os, e u m a só d iv in d a d e será g uia e chefe de to d o s: a q u e e n c o n tro u , elab o ro u e san cio n o u essa lei; e q u e m n ão lh e o b e d e c e r estará fugin­ do de s i m e sm o , e, p o r h av er re n e g a d o a p ró ­ p ria n atu re za h u m a n a , sofrerá as m ais graves p e n a s, m esm o q u e te n h a c o n se g u id o esca p a r d a q u ilo q u e em g eral é c o n sid e ra d o suplício"

(LACTÂNCIO, Div. Inst., VI, 8, 6-9; CÍCERO, De rep.,

III, 33). Esse co n ceito de D ., en tre o u tras coisas, in d u zia a re c o n h e c e r a ig u a ld a d e de to d o s os h o m e n s v isto q u e em to d o s eles, p ela sua n a ­ tu re za ra cio n al, re v e la -se a lei etern a da razão . E m C ícero, en c o n tra -se esse re c o n h e c im e n to (De leg, I, 28) e ta m b é m u m d o s co ro lário s m ais im p o rta n te s d a d o u trin a do D n atu ral: o p rin cíp io e o fu n d a m en to de q u a lq u e r D. d e ­ v e m ser p ro c u ra d o s na lei n atu ral d im an ad a an te s q u e ex istisse q u a lq u e r E stado; p o rta n to , se o p o v o ou o p rín cip e p o d e m fazer leis, estas n ão terão v erd ad e iro caráter de D. se n ão d e ri­ v are m da lei p rim eira (Ibid., I, 19-20, 28, 42, 45). E ssas afirm a çõ es fo ram re ite ra d a s p o r S ên eca, em q u e ta m b é m se e n c o n tra a teoria do "E stado de n atu reza", q u e d ev eria d o m in a r o p esn a m en to político p o r m uitos sécu lo s. Segun­ do essa teoria, an tes d as in stitu ições criadas por c o n v e n ç ã o p ela so c ie d a d e , existiu u m a id ad e em q ue os h o m e n s v iv eram sem lei, u n ic a m e n ­ te à m ercê da in o cên cia da n atu re za original.

DIREITO V iviam felizes, fru in d o sua co n v iv ên cia. N ão eram v irtu o so s, p o rq u e a su a in o cên c ia era fei­ ta m ais de ig n o rân cia , ao p a sso q u e a v irtu d e é p ró p ria da alm a d o u trin a d a e e x p e rie n te . M as a o rd em em q u e v iv iam era a m e lh o r p o ssív el p o rq u e d itad a p ela p ró p ria n atu re za , n ela até os chefes se in sp irav am , em su a sa b e d o ria (Ep., 90). A ssim , o m ito da id ad e de o u ro tran sfo r­ m a-se em m ito filosófico p o rq u e se u n e à n o ­ ção de D . n atu ral e é c a ra cte riza d o p o r ela. M as, afora esse m ito, os ju rista s ro m an o s e la b o ­ raram u m a d o u trin a do D. b a sta n te s e m e lh a n te à d o s estó ic o s. E m m e a d o s do séc. II, G aio , n as p rim eiras p alav ras d as su a s Instituições, q u e são citad as in clusiv e no Digesto, afirm ava: Ia existe u m D. d as g e n te s (Jusgentium) u n iv e r­ sal, q u e c o m p re e n d e p rin cíp io s re c o n h e c id o s p o r to d a a h u m a n id a d e ; 2- tais p rin cíp io s fo ­ ram en sin a d o s ao s h o m e n s p ela ra zã o n atu ral e, p o r isso, são co ev o s do g ê n e ro h u m a n o (Inst., I, 1; Dig., I, 1, 9; Ibid, XLI, 1, 1). O q u e G aio ch am av a de jus gentium era c h a m a d o d e D. n atu ral p o r P au lo , m as a d efinição era a m esm a (Dig, I, 1, 11). M ais ta rd e, no séc. III, d isting u iu -se o D. d as g e n te s do D . n atu ral. S eg u n d o U lp iano , o D . n atu ral é o q u e a n a tu re z a e n si­ n o u a to d o s os an im ais e p o r isso n ã o é p ró p rio ap e n a s do g ê n e ro h u m a n o , m as é co m u m a to ­ d os os an im ais q u e v iv em na terra, no m ar e no céu. D esse D . p ro v é m a u n iã o do m ac h o e da fêm ea, q u e n ó s ch a m a m o s d e m atrim ô n io , a p ro criaç ão e a e d u c a ç ã o d o s filhos, co isas essas de q u e ta m b é m os an im ais tê m e x p eriên cia. O D . d as g e n te s, ao co n trá rio , é a q u e le de q u e se v ale m to d a s as raças h u m a n a s, s e n d o p ró p rio so m e n te d os h o m e n s (Dig, I, 1, 1-4). Essa d is­ tin ção re p re se n ta o p ro d u to de o u tra in stân cia crítica, q ual seja, o re c o n h e c im e n to de q u e n em to d a s as leis u n iv e rsa lm e n te re c o n h e c id a s co m o tais p elo s h o m e n s se fu n d a m no D . n a ­ tural; p. ex.: a escrav id ão , co m o n ota o p ró p rio U lp ian o (Ibid, I, 1, 4), e m b o ra u n iv e rsa lm e n te ad m itid a, n ão se funda no D . n atu ra l p o rq u e o h o m e m é o rig in alm en te livre. M as co m essa d istin ção , o c o n ce ito de D. n atu ral m u d a v a , p e rd ia -se o v ín cu lo e n tre D. n atu ral e ra zã o . P o r ser co m u m a to d o s os a n i­ m ais, p o rta n to ta m b é m aos d e sp ro v id o s de ra ­ zão , o D . n atu ral n ão p o d ia m ais ser c o n sid e ra ­ do co m o d itad o pela razão e co in cid en te com a racio n alid ad e. P or isso, ele foi re m e tid o se g u in ­ d o-se o esq u e m a estó ic o , àq u ilo q u e, n esse esq u e m a, co n stitu ía o eq u iv a le n te da ra zã o n os an im ais, ou seja, o instinto. S e g u n d o os P ad res

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DIREITO da Igreja q u e , n esse asp e c to , co n tin u a m a tra­ d ição d o s ju rista s ro m a n o s, a lei n atu ra l está escrita no "coração" d os h o m e n s co m o u m a es­ p éc ie de força inata ou in stin to . D iz S. A gosti­ nho : "O D. natural n ão foi g era d o p o r u m a o pi­ n iã o , m as in se rid o em n ó s p o r u m a força inata, do m e sm o m o d o c o m o , n a relig ião , estã o a p ie d a d e , a g raça, a o b serv â n c ia, a v er­ d ad e" (Dediv. quaest., 31; cf. S. AMBRÓSIO, De off, 3). E foi ju sta m e n te esse o c o n ce ito legado à filosofia esco lática atrav és das Etimologias de Isid o ro de S evilha (séc. V II). D iz Isid oro: "O D. n atu ral é co m u m a to d a s as n a ç õ e s, s e n d o que em to d o s os lu g are s d eriv a do instinto natural, e n ão d e u m a co n stitu ição ; p. ex., a u n iã o do m ac h o e da fêm ea, a su c e ssã o e a ed u ca çã o d o s filhos, a p o sse co m u m de to d as as coisas e a lib e rd a d e de to d o s, a a q u isiçã o d as coisas q u e estã o no céu , na te rra e no m ar, etc." (Etym., V , 4). N ão cau sa estran h e za , p o rtan to , q u e os ju rista s m ed ie v a is te n h a m co n sid e rad o o D. n atu ral e x a ta m e n te co m o u m in stin to ou u m a te n d ê n c ia in ata, q u e e le s in te rp re ta m co m o sin al ou m arca p o sta no h o m e m por D eu s (PIACENTINO, Summa instit., I, 2). N o séc. X II G racian o d ividia to d a s as leis em d u a s par­ tes, atrib u in d o a D eu s as leis natu rais e aos cos­ tu m es, as leis h u m a n a s (Decretum, d. I). A id en ­ tificação da lei n atu ral co m a lei div in a constitui o fu n d a m e n to do D. canônico. O D . natural, n o tav a R ufino, c o m e n d a d o r d e G ra cia n o , é "um a força (vis) q u e a n atu re za im p rim e na criatu ra h u m a n a p ara levá-la a fazer o b em e a ev itar o m al". Ela ordena o q u e é útil, co m o p. ex. "am a o S en h o r teu D eu s"; proíbe o q ue é n o c iv o , co m o p. ex. "não m atarás"; demonstra o q u e co n v é m , co m o p. ex. "ten de tu d o em co m u m ", ou "seja u m a só a lib e rd a d e d e to ­ d os", etc. (Summa decr., d. I, D ictat. G rat., ad I). A d istin ção de G ra cia n o en tre lei div in a e lei h u m a n a é assu m id a co m o fu n d a m e n to d a d o u ­ trin a to m ista do d ireito . S e g u n d o S. T o m ás, há u m a lei eterna, u m a ra zã o q u e g o v e rn a to d o o u n iv erso e q u e existe na m en te divina; a lei na­ tural q u e está n os h o m e n s é reflex o ou "par­ ticip ação " d essa lei etern a (S. Th, II, 1, q. 91, a, 1,2). A lém d essa lei etern a , q u e p ara o h om em é natural, há d u as o utras esp écies de leis: a "in­ v en tad a p elo s h o m e n s e se g u n d o a q ual se dis­ p õ e d e d e te rm in a d o m o d o d as co isas a q ue a lei n atu ral já se refere" (Ibid., II, 1, q. 91, a. 3) e a divina, n ec essária p ara e n c a m in h a r o h om em ao seu fim so b re n a tu ra l (Ibid., a. 4). N o q ue diz re sp e ito ao fu n d a m e n to d e to d a s as leis feitas

DIREITO pelos h o m e n s, S. T o m á s re p e te a d o u trin a tra­ dicional, d e q u e n ã o é lei a q u ela q u e n ã o é ju s ­ ta, e, p o rtan to , "q u alq u er lei h u m a n a d ev e d e ri­ var da lei n atu ra l, q u e é a p rim eira regra da razão" (Jbid., q. 95, a. 2). E m g era l, p e rte n c e à lei natural tu d o aq u ilo a q u e o h o m e m se inclina n atu ralm ente; S. T o m á s d istin g u e três in clin a­ ções fu n d a m e n ta is p o r n a tu re z a : I a p ara o b em n a tu ra l, c o m p a rtilh a d a co m q u a lq u e r substância q u e, co m o tal, d eseja a p ró p ria c o n ­ servação; 2a p ara d e te rm in a d o s ato s, q u e fo ­ ram e n sin ad o s p ela n a tu re z a a to d o s os a n i­ m ais, co m o a u n iã o do m ac h o e da fêm ea, a educação d os filhos e o u tro s se m e lh a n te s; 3a para o b em , se g u n d o a n a tu re z a ra cio n al p ró ­ pria do h o m em , co m o a in clin aç ão p ara c o n h e ­ cer a v e rd a d e , v iv er em so c ie d a d e , etc. (5. Th., II, 1, q. 94, a. 2). A ssim , S. T o m ás co n sid era o D. natural, ao m esm o te m p o , in stin to e ra zã o v isto que inclui n e le ta n to a in clin aç ão q u e o h o m e m tem em co m u m co m to d o s os sere s da n atu re za e com os an im ais, q u a n to a in clin aç ão esp ecífi­ ca do hom em . Q u a n to a esta ú ltim a, ele e s ta b e ­ lece entre os p re c e ito s do D . n atu ra l e a razão prática a m esm a re la ção q u e há en tre os p ri­ m eiros p rin cíp io s d as d e m o n s tra ç õ e s e a razão especulativa: tanto os p receito s q u a n to os p ri­ m eiros p rin cíp io s são "c o n h ec id o s d e p er si", ou seja, ev id en tes. M as em to d as as suas d ete rm i­ nações, ta n to in stin tiv as q u a n to ra cio n ais, o D. natural é s e m p re a p a rtic ip a ç ã o na "lei eterna", na o rdem p ro v id e n c ial ou div in a do m u n d o . D uran te to d a a A n tig ü id a d e e a Id a d e M é­ dia, o D. n atu ral co n se rv o u a fu n ção de fu n d a ­ m ento e, às v e z e s p la to n ic a m e n te , de a rq u é ti­ po ou m o d e lo d e to d o D . p o sitiv o . Já n essa fase de sua h istó ria, a n o ç ã o de D. n atu ra l constituiu u m lim ite e u m a d iscip lin a p ara to d a forma de au to rid a d e estatal ou p o lítica, se rv in ­ do ao m esm o te m p o p ara justificá-la. M as ca­ beriam o u tras fu n çõ es à te o ria do D. n atu ra l a partir do início do séc. XVII. P o r u m la d o , ele viria a ser u tiliza d o na ju stifica çã o e n a reiv in ­ dicação prática d e n o v o s p rin cíp io s n o rm ativ o s, com o os da to le râ n c ia relig io sa e da lim itação do p od er do E stado. P o r o u tro , seria u tiliza d o para fundar u m n o v o ra m o do D ., o D . in te rn a ­ cional, e x a tam e n te no m o m e n to em q u e o su r­ gim ento d as m o n a rq u ia s ab so lu ta s e a ac eita­ ção m ais ou m e n o s ex p lícita do m aq u iav e lism o como co n d u to r de su as políticas p areciam fazer da força o ú n ico árbitro d as re la çõ es in te rn a c io ­ nais. M as para cu m p rir essas n o v as tarefas, a teoria do D. n atu ra l d ev ia sofrer u m a tran sfo r­

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DIREITO m aç ão radical: essa fu n ção c o u b e ao ju sn a tu ralism o m o d e rn o . b) Jusnaturalismo moderno — P ara o jusnaturalismo (v.) m o d e rn o , o D . n atu ral n ão é m ais o c a m in h o atrav és do q u al as c o m u n id a ­ d es h u m a n a s p o d e m p artic ip a r da o rd em có s­ m ica ou co n trib u ir p ara ela, e p assa a ser u m a té c n ic a ra cio n al d e co e x istê n c ia . C o n q u a n to A lb erico G en tile — q u e , an te s de G ró cio, aind a p ro c u ro u ex trair as n o ç õ e s n o rm ativ a s do D. n atu ra l da c o n sid e ra ç ã o do e sta d o de g uerra (Dejure belli, 1588) — u tilizasse o c o n ce ito de in stin to n atu ra l im u tável q u e m an te ria os h o ­ m en s u n id o s co m o m em b ro s de u m ú n ic o co r­ p o , to d o s os c o n c e ito s d esse g ê n e ro fo ram d e s ­ ca rtad o s p o r G ró cio. A teo ria do D . n atu ra l foi le v a d a p o r G ró cio ao m esm o p la n o ra cio n al da m atem ática, p ara o q u al o p ró p rio D escartes q uis lev ar a filosofia e to d a s as o u tra s p esq u isas científicas. C o m o fu n d a m e n to da o bra de G rócio, h á o re c u rso à ra zã o , q u e é o re c u rso à razão m atem ática, à qual os filósofos do séc. XVII ju lg a m esta r co n fiad as as v e rd a d e s da ciência. S eg u n d o G rócio, a m atriz do D. n atu ral é a p ró ­ pria n a tu re z a h u m a n a , q u e co n d u ziria os h o ­ m en s às re la ç õ e s so ciais m esm o q u e eles n ão tiv e ssem n e c e ss id a d e u n s d os o u tro s. P o r isso, o D. q u e se funda na n atu re za h u m a n a "teria lu g ar m esm o q u e se ad m itisse aq u ilo q u e n ào p o d e ser ad m itid o sem co m e te r u m d elito : q u e D eu s n ão ex iste ou q u e n ã o se p re o c u p a com as co isas h u m a n a s" (Dejure belli ac pacis, 1625, P rol., § 11). P o rq u a n to p ro c e d e p o r legíti­ m a d e d u ç ã o d o s p rin c íp io s d a n atu re za , o D. n a tu ra l d is tin g u e -s e do D . d a s g e n te s jus gentiuni), q u e n ão n asce d a n atu re za , m as do c o n se n so d e to d o s os p o v o s ou de alg u n s d eles e v isa ao p ro v e ito de to d a s as n a ç õ e s. P ela sua p ró p ria o rig em , o D. n atu ra l é p ró p rio do h o ­ m em , ú n ico ser ra cio n al, ain d a q u e se refira a atos c o m u n s a to d o s os an im ais, co m o a cria­ ção da p ro le (Ibid., I, 1, 11). É d efinido p o r G ró cio co m o "o m a n d a m e n to da reta razão q u e in d ica a le a ld a d e m o ral ou a n e c e ssid a d e m oral in e re n te a u m a aç ã o q u a lq u e r, m e d ia n te o a c o rd o ou o d e sa c o rd o d esta co m a n atu re za racio n al" (Jbid., I, 1, 10). A s aç õ es s o b re as q u ais v ersa o m a n d a m e n to são o b rig ató rias ou ilícitas d e p e r si, e p o rta n to são e n te n d id a s co m o n e c e ss a ria m e n te p rescrita s ou v e ta d a s p o r D eu s. N isso o D . n atu ra l d istin g u e-se n ão só do D . h u m a n o , m as ta m b é m do D . voluntá­ rio d iv in o , q u e n ão p re sc re v e n em p ro íb e as aç õ es q u e pela p ró p ria n a tu re z a são o b rig a tó ­

DIREITO rias ou ilícitas, m as to rn a ilícitas alg u m as açõ es, v e ta n d o -a s, e o b rig ató rias o u tras, p re s c re v e n ­ do-as. O D. n atu ra l é, p o rta n to , tã o im u tável q u e n ão p o d e se r m u d a d o n em p o r D eu s. "Assim co m o D eu s n ão p o d e fazer q u e d ois m ais dois n ão sejam q u atro , ta m p o u c o p o d e fa­ ze r q u e d e ix e de ser m al aq u ilo q u e , p o r razão in trín seca, é m al" (Ibid, I, 1, 10). L ogo, a v e r­ d ad eira p ro va do D. n atu ral é p ro v a a priori, q u e se o b tém m o stra n d o a c o n c o rd â n c ia ou d isco rdân cia n ecessária de u m a ação co m a n a­ tu reza racio n al e social. A p ro v a a posteriori, o b tid a a p artir d a q u ilo q u e , em to d o s os p o v o s ou n o s m ais civ ilizad o s, é tid o co m o le g íti­ m o , é a p e n a s p ro v á v e l e fu n d a -se na p re ­ s u n ç ã o d e q u e u m e feito u n iv e rs a l e x ig e u m a cau sa u n iv ersal (Ibid, I, 1, 12). D istin ­ g u e -se do D . n atu ra l o D . voluntário, q u e n ão se o rig in a d a n atu re za , m as da v o n ta d e , e p o d e ser h u m a n o ou d iv in o (Ibid., I, 1, 13-15). M as só o D. n atu ral fo rn ec e o critério d a ju stiç a e da injustiça: "Por injusto e n te n d e -se o q u e re p u g na n e c e ssa ria m e n te à n atu re za ra cio n al e s o ­ cial" (Ibid., I, 2, 1). A d o u trin a do D . n atu ral te v e de G ró cio a fo rm u lação m ais m ad u ra e p erfeita de su a lo n ­ g a história. C ertam e n te essa fo rm u la çã o é c o n ­ d icio n ad a p elo ra cio n alism o g e o m e triz a n te do te m p o . T écn ica ra cio n al, n os te m p o s d e G ró cio e D escartes, é técn ica g eo m étric a; nela, u m a p ro p o siç ã o só se justifica q u a n d o p o d e derivar, p o r d e d u ç ã o n ec essária , d e u m ou m ais p rin c í­ p io s e v id en te s. M as já ao m o strar q u e as n o r­ m as do D . n atu ral p o d e m ser d ed u z id a s da ex ig ê n c ia d e e x istê n c ia d e u m a s o c ie d a d e o rd e n a d a , G ró cio e sta b e le c e , e n tre essa e x i­ g ên cia e as n o rm as, u m a re la ç ã o condicional q u e ex p rim e b em o caráter d e técn ica. A c o n ­ c o rd ân c ia n ec essária en tre a n o rm a e a "n atu ­ reza racio n al e social", q u e ele assu m e co m o critério p ara d ecid ir da v a lid a d e da n o rm a, isto é, de sua n atu ralid ade, significa de fato o ju íz o so b re o caráter in d isp en sáv el da n o rm a p ara a p o ssib ilid ad e d e re la çõ es e n tre os h o m e n s. A s­ sim , para ele, o resp eito à p ro p ried ad e, o respeito ao s p a c to s, o re ss a rc im e n to d o s d a n o s e a co m in ação de p e n a lid a d e s são co n d iç õ e s in d is­ p en sá v e is d e q u a lq u e r co e x istê n c ia h u m a n a , co n stitu in d o , p o r isso m esm o , as n o rm as fun­ d am en tais do D . n atu ral. A d em ais, o re c o n h e c i­ m en to da in d e p e n d ê n c ia d esse D. em relação ao arbítrio h u m a n o e d iv in o tran sfo rm o u -o em p o d ero síssim a alav an ca na luta p ela lib e rd a d e do m u n d o m o d e rn o .

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DIREITO C o n tu d o , o ju sn a tu ra lísm o n em s e m p re per­ m a n e c e u fiel às fo rm u la çõ es de G ró cio. Locke, no Ensaio sobre a lei natural, n eg av a q u e essa lei fosse u m d ita m e da ra zã o , e co n siderav a-a co m o sa n c io n a d a e im p rim id a n os corações h u m a n o s p o r u m a p o tê n c ia su p erio r; desse m o d o , a ra zã o só faz d esco b ri-la, n ão sen do su a au to ra, m as sua in té rp rete (Law ofNature, Ia ed., 1954, p. 110). N isso, ad o tav a a d outrina de H o o k e r (Thelaws ofthe Ecclesiastic Politycs, 1594-97,1, 8), q u e, p o r sua v ez , ad o tav a a dou­ trin a to m ista. O s e g u n d o p a sso d ecisivo do ju sn a tu ra lism o m o d e rn o foi d a d o p o r H ob b es, g raç as a q u e m são elim in ad o s da n o ç ão de D. n atu ral alg u n s v estíg io s d o g m á tic o s q u e ainda p ersistia m na d o u trin a de G ró cio. P ara H ob b es, a lei n atu ral é, sem d ú v id a, "um d itam e da reta razão ", m as a razão de q u e ele fala é a razão h u m a n a falível. "Por reta razão no esta d o natu­ ral d a h u m a n id a d e e n te n d o , ao co n trário da m aio r p arte d o s escrito re s q u e a co n sideram u m a facu ld ad e infalível, o ato de raciocin ar, o racio cín io p ró p rio de cad a in d iv íd u o , v erd ad e i­ ro em te rm o s d e aç õ es q u e p o d e m g era r van­ ta g e n s ou p reju ízo s ao s o u tro s h o m e n s. Digo 'p ró p ria de cad a in d iv íd u o ' p o rq u e , ain d a que no E stad o a razão (ou seja, a lei civil) do Estado d ev a ser o b se rv a d a p o r to d o s os cid a d ã o s, fora do E stad o, p o rém , o n d e n in g u é m p o d e distin­ g u ir a ra zã o co rreta da falsa, a n ão ser confron­ ta n d o -a co m su a p ró p ria ra zã o , cad a u m deve c o n sid e ra r sua p ró p ria ra zã o n ão só co m o re­ gra de su as açõ es, re aliza d a s p o r su a conta e risco, m as ta m b é m co m o m e d id a d as razões alh eias em re la ção às co isas. D ig o 'v erdadeiro ', ou seja, d eriv a d o de p rin cíp io s v e rd a d e iro s cor­ re ta m en te elab o rad o s, p o rq u e to d a v io lação das leis n atu ra is re su m e -se n a falsid ad e d os racio­ cínios, na e stu p id e z d os h o m e n s q u e n ão ju l­ g am n ec essário à su a p ró p ria c o n se rv aç ão cum ­ p rir seu d e v e r p ara co m os o u tro s" (De eive, 1642, II, 1, n o ta). N esse im p o rta n tíssim o trecho de H o b b es, além da reafirm ação do caráter ra­ cional do D. natural, co m u m a to d o o jusnaturalism o m o d e rn o , e n c o n tra -se o p rim eiro e deci­ sivo re c o n h e c im e n to do ca rá ter falível, finito ou h u m a n o da ra zã o q u e funda o D. natural. G ró cio transferira o D. n atu ral da esfera da ra­ zão div in a (na q u al os escrito res an tig o s e m e­ dievais a situ av am ) para a esfera da razão hum a­ na, m as co n tin u ara atrib u in d o a essa razão o ca rá ter de in falib id ad e. H o b b e s dá m ais um p asso ao n eg ar esse caráter. P or fim , a razão "própria de cada ind iv ídu o ", ou seja, pró pria de

DIREITO cada u m e de to d o s os in d iv íd u o s h u m a n o s, é tribunal q u e ju lg a da le g itim id a d e ou n a tu ra li­ dade de u m a lei; e faz esse ju lg a m e n to em term os de p o ssib ilid ad e de ser inferida ou d e d u ­ zida de p rin cíp io s v e rd a d e iro s q u e , de resto , derivam to d o s d e u m p rin c íp io ú n ico , qual seja, "d ev e-se b u sc a r a p az se m p re q u e ela for possível; q u a n d o n ão , é p rec iso b u sc a r so c o rro para a guerra" (Ibid., II, 2). E m Dejure naturae etgentium (1672), S am u el P u fen d o rf fazia u m a síntese feliz d as d o u trin a s de G ró c io e de H ob b es ao d ize r q u e "a lei n atu ral d eriva dos ditam es d a reta ra zã o , no se n tid o d e q u e o intelecto h u m a n o é cap az de c o m p re e n d e r com clareza, a p artir da o b se rv a ç ã o de n o ssa c o n d i­ ção, q u e é p rec iso v iv er n e c e ssa ria m e n te do acordo co m as n o rm as do D . n atu ral e in v esti­ gar, ao m esm o te m p o , o p rin cíp io de o n d e tais norm as re c e b e m su a só lid a e clara d e m o n s tra ­ ção" (Dejure nat, II, 3, 8). Para Pufendorf, assim co m o p ara H o b b es, o p rin cíp io s u p re m o do D. n atu ral ex p rim e a ex ig ên cia da c o e x is­ tência pacífica en tre os h o m e n s (Jbid., II, 3, 8, 10). G raças a G ró cio , H o b b e s e Pufendorf, a doutrina trad ic io n a l do D. n atu ral tran sfo rm o u se em té cn ic a racio n al d as re la ç õ e s h u m a n a s, que, em b o ra estrita m en te d e p e n d e n te do c o n ­ ceito de ra c io n a lid a d e g eo m étric a p re d o m in a n ­ te n a é p o ca , co n stitu i u m a n o ç ã o q u e ain d a hoje p o d eria ser re c u p e ra d a co m v istas a u m a "teoria g eral do D ." (v. m ais ab a ix o ). A teoria de H u m e n ão é m ais q u e a re e la b o ra ç ã o em linguagem d iferen te e a retificação em p irista dessa d o u trin a, e n q u a n to a teo ria d e S pino za, co m p arad a a ela, re p re se n ta u m re to rn o à fase clássica da teo ria do D. n atu ral. Q u a n d o S p in o za diz: "C ada u m ex iste p or su p rem o D. n atu ral e faz o q u e d e c o rre da n ecessid ad e de su a n atu re za " (Et, IV, 37, scol. 2), está a p e n a s re to rn a n d o à c o n c e p ç ã o dos estóicos, se g u n d o a q ual o D . n atu ral n ad a m ais é q ue a n e c e ssid a d e de to d o ser d e ad e q u a r-se à o rdem racio n al do to d o . P o r o u tro lado , H u m e nega o estad o natural, q ualificando-o de "ficção filosófica", m as dificilm ente sua crítica p o d e ser en tend id a co m o crítica ao D. n atu ral. Q u a n d o ele insiste n a s u b o rd in a ç ã o de to d a s as n o rm as, co n ce rn en tes ao esta d o de p az ou ao esta d o de guerra, à u tilid ad e h u m a n a , só faz re p e tir u m a tese ap reciad a p elo s ju sn a tu ra lista s m o d e rn o s, em p articular H o b b es. O caráter u tilitário , efi­ ciente, d as reg ras q u e re g e m to d o s os tip o s de relações h u m a n a s, e n q u a n to d e stin a d a s a p o s ­ sibilitar essas re la çõ es, é ilu strad o p o r H u m e

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DIREITO co m u m e x e m p lo q u e n o s p a re c e m u ito evi­ d e n te , o d as n o rm as de tráfeg o. "As reg ras são n ec e ssá ria s s e m p re q u e en tre os h o m e n s haja u m a re la ção q u a lq u e r. S em elas, n em m esm o p o d e m p assa r u n s ao la d o d o s o u tro s n a rua. O s carreteiro s, os co c h e iro s, os p o stilh õ e s o b e ­ d e c e m a p rin cíp io s p ara d ar p assa g e m , e esses p rin cíp io s b aseia m -se p rin c ip a lm e n te na c o m o ­ d id ad e e n a co n v e n iê n c ia re cíp ro c as. A lgum as v e z e s, são arb itrário s ou p elo m e n o s d e p e n ­ d e n te s d e alg u m a e sp écie de an alo g ia ca p ri­ c h o sa , assim c o m o m u ito s ra c io c ín io s d o s a d v o g ad o s" (Inq. Cone. Morais, IV, ao final). A ssim , H u m e c e rta m e n te n ão ad m ite o caráter de ra c io n a lid a d e n ec essária q u e G ró cio atri­ b u ía às n o rm as q u e re g u la m as re la ç õ e s h u m a ­ n as, m as co m p artilh a da n o ç ã o fu n d a m en tal do ju sn a tu ra lism o m o d e rn o , d e q u e tais n o rm as co n stitu em u m a té cn ic a razoável, aind a q u e n em s e m p re ra cio n al, d as re la ç õ e s h u m a n a s. 2. DIREITO COMO MORAL. A s e g u n d a c o n c e p ç ã o de D ., fu n d a d o na moral, p re n u n c ia -se q u a n d o se co m eç a a atri­ b u ir à m o ral c a ra cte re s q u e os au to re s até aq u i ex a m in a d o s atrib u íam ao D. E m to d as as d o u tri­ nas do D . n atu ral, n em ch ega a n ascer o p ro b le ­ m a da d istin çã o e n tre m o ral e d ireito . O D. n atu ral é c o n sta n te m e n te id en tificad o co m o q u e é b em ou ju sto na o rd em das relaçõ es h u ­ m an as, p o rta n to co m a v e rd a d e ira m o ralid ad e; p o r o u tro la d o , a sua d iferen ça em re la ção ao q u e G racian o e T om ás ch am av am d e lei huma­ na e q u e G ró cio ch am av a de lei voluntária é a d istin ção en tre o q u e é ju s to e b o m em si m esm o (v e rd a d e ira m e n te m oral) e o q u e é ju s ­ to ou b o m só p o r p artic ip a çã o , p o d e n d o , pois, n ão ser ju sto e b o m , co m o de fato às v e z e s não é. N ão há d ú v id a, p o rta n to , d e q u e n o s au to res até aq u i e x a m in a d o s a esfera do D . natural co in cidiu co m a esfera q u e d e n o m in a m o s m o ­ ral, p o ré m ta lv ez fosse m ais ex ato d izer q u e eles sim p le sm e n te n ão faziam d istin ção en tre D. n atu ral e m oral. O p rim eiro sinal d essa d is­ tin ç ã o p o d e ser v isto na ten tativ a de L eibniz de fazer o D . n atu ra l d eriv ar da m oral, o q u e p a re ­ ce s u p o r certa d istin ção e n tre as d u a s esferas. L eibniz d iz q u e o D . é u m a "p o tên cia m oral" e q u e a o b rig açã o é u m a "n ec essid a d e m oral", e n te n d e n d o p o r m oral o q u e é n atu ral no h o ­ m em b o m , ou seja, o am o r ao p ró x im o no se n tid o da alegria pela felicid ad e alheia. "D es­ sa fonte", ac re sc en ta , "flui o D. n atu ral, q u e tem três g rau s: o D. estrito , q u e é a ju stiç a co m u tativa; a e q ü id a d e ou ca rid a d e , q u e é a ju stiça

DIREITO distributiva; a p ie d a d e ou a p ro b id a d e , q u e é a ju stiça u n iv ersal. E sses g rau s c o rre s p o n d e m aos três p re c e ito s seg u in te s: 'n ã o p reju d ic ar n in ­ g uém ', 'atribuir a cada u m o q u e lh e é d ev id o ' e 'viver h o n e s ta m e n te ' (ou p ia m e n te )" (De notionibusjúris etjustitiae, 1693, Op., ed. E rd m an n , p. 119)- J á n essa s fo rm u la çõ es de L eibniz a esfera da m o ral é e n te n d id a co m o o rig in ária e p rim ária em re la ç ã o à do D. n atu ra l. M as foi C ristiano T h o m asiu s (1655-1728) o p rim e iro a e x p re ssa r co m clareza e im p o r n a filosofia ju ­ rídica a d istin ção e n tre esfera ju ríd ic a e esfera m oral, m a rc a n d o assim a p a ssa g e m d a teoria do D. n atu ra l à te o ria do D. fu n d a d o n a m o ­ ra lid a d e . T h o m asiu s d istin g u iu três "fontes" do b em : a h o n e s tid a d e (bonestum), o d e c o ro (decoram) e a ju stiça (justum). A h o n estid a d e é o b em m ais alto e o seu o p o sto é a to rp ez a. A ju stiç a o p õ e -se ao m al ex trem o , q u e é a injusti­ ça. E o d e c o ro é u m b e m in te rm ed iá rio e p o r isso im p erfeito , s e n d o u m m al im p erfeito a fal­ ta de d e c o ro (Fundamenta júris naturae et gentium exsensu communi deducta, 1705,1, 4, § 89). C o rre sp o n d e n te m e n te , "a h o n e stid a d e d i­ rig e as aç õ es in te rn as d os ig n o ran tes; o d ec o ro , as açõ es ex tern as q u e v isam a angariar a b e n e v o ­ lência alheia; a ju stiça, as aç õ es ex te rn as, p ara q u e n ão p e rtu rb e m a p az ou a re stitu am q u a n ­ do for p ertu rb a d a " (Ibid, I, 4, § 90). À n o rm a d a h o n e s tid a d e p e rte n c e u m a o b rig a ç ã o inter­ na q u e é a m ais p erfeita e n ão o b rig a em face d o s o u tro s h o m e n s, m as em face de si m esm o . P erten ce à n o rm a da ju stiç a u m a o b rig açã o ex­ terna, s e g u n d o a qual "n in gu ém tem o D . em si m esm o ", v isto q u e "todo D . é ex te rn o , n ão in tern o" (Ibid, I, 5, § 16, 17, 24). "Do q u e se disse", a c re sc en ta T h o m asiu s, "infere-se q u e tu d o o q u e o h o m e m faz p o r o b rig a ç ã o in tern a e em c o n fo rm id ad e co m as re g ras da h o n e sti­ d ad e e do d e c o ro é re g id o p ela v irtu d e em g eral, e p o r isso o h o m e m é d ito v irtu o so , e n ão ju sto ; ao p asso q u e o q u e ele faz se g u n d o as reg ras d a ju stiça, ou p o r o b rig a ç ã o ex te rn a, é re g id o pela ju stiç a e faz q u e p o ssa ser ch a m a d o de ju sto " (Ibid., I, 5, § 25). C om essas p alavras, a esfera da m o ralid ad e e a esfera do D. são cla­ ra m en te d istin g u id as e c o n tra p o sta s: a p rim e i­ ra é a esfera p riv ad a da in te rio rid a d e ou, co m o T h o m asiu s às v e z e s ta m b é m diz, do "cora­ ção" (Ibid., I, 6, § 15, 18 e tc ); a se g u n d a é a esfera da ex te rio rid a d e e d as o b rig a ç õ e s p ara co m os o u tro s. P or isso, os d ev ere s p ara c o n ­ sigo m esm o são ex traíd o s p o r T h o m a siu s do p rin cíp io d a h o n e stid a d e m ais do q u e do p rin ­

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DIREITO cíp io da ju stiç a (Ibid, II, 2, § 2); o m esm o p rin cíp io do D. n atu ra l, do q u al to d as as nor­ m as de tal D. d ev em ser d ed u tív eis, é form u­ la d o p o r T h o m a siu s p rin c ip a lm e n te em term o s de v id a m oral: "É p rec iso fazer tu d o o q u e é p o ssív el p ara to rn a r a v id a d o s h o m e n s m ais lo n g a e feliz e ev itar tu d o o q u e to rn a a vida infeliz e ap re ssa a m o rte" (Ibid, I, 6, § 21). D e p o is de T h o m a siu s, a d istin çã o en tre a esfera do D. e a esfera m o ral to rn o u -se lugarco m u m da filosofia. W olff d ed u z ia o prim eiro co ro lário d essa d istin ção ao identificar o direito n atu ra l co m a teoria da filosofia p rática, ou seja, co m a ética, a p o lítica e a e c o n o m ia (Log., D iscu rsu s p rel., § 68). E K ant, q u e a re e x p ô s a seu m o d o , tran sfo rm o u -a n u m d os fu n d am en ­ to s da filosofia m o ral e ju ríd ic a m o d e rn a. Mas co m a p re d o m in â n c ia d essa d istin ção , a teoria do D . n atu ra l to rn a v a -se útil; o fu n d a m en to do D . era co lo c a d o ou re c o n h e c id o n a m oral e o p ró p rio D. era e n te n d id o co m o u m a form a re­ d u z id a ou im p erfeita de m o ralid ad e. U m dos p o n to s b ásico s da d o u trin a de K ant é a distin­ çã o en tre le g a lid a d e e m o ra lid a d e . "A pura c o n co rd ân cia e d isc o rd â n cia de u m a ação com a lei", d iz ele, "sem c o n sid e ra r o m ó vel da ação , ch am a-se legalidade (c o n fo rm id ad e com a lei), ao p asso q u e se te m a m o ra lid a d e quan­ do a idéia do d ev er, d eriv ad a da lei, é ao m es­ m o te m p o m ó vel da ação (d o u trin a m oral). O s d e v e re s im p o sto s pela leg islação ju ríd ica po­ d em ser a p e n a s d ev ere s externos p o rq u e essa leg islação n ã o ex ig e q u e a idéia do d ev er, que é to ta lm e n te in te rn a , seja de p e r si m otivo d e te rm in a n te da v o n ta d e do ag e n te e, com o te m n e c e s s id a d e d e m ó v e is a p ro p ria d o s às su a s leis, só p o d e ad m itir m ó v eis ex tern os. A leg islação m oral, ao co n trá rio , e m b o ra erija em d ev ere s ta m b é m aç õ e s in te rn as, n em p o r isso e x clu i as aç õ es e x te rn a s, m as refere-se em ge­ ral a tu d o o q u e é d ev er" (Met. der Sítten, I, Intr., § 3). P o rta n to , o D. é "o co n ju n to de con­ d içõ es p o r m eio d as q u ais o arb ítrio de um p o d e ajustar-se ao arb ítrio de o u tro , segundo u m a lei u n iv e rsa l da lib e rd ad e", e p o d e ser re p re s e n ta d o co m o "um a c o a ç ã o g eral e recí­ p ro ca", de tal m o d o q u e "D. e facu ld ad e de co agir significam a m esm a coisa" (Ibid, Intr. à d o u trin a do dir., § E). S ob esse asp e c to , não há d iferença en tre D. n atu ra l e D. p ositivo , que são distintos só na m ed id a em q u e o D . natural re p o u sa ex c lu siv am e n te em p rin cíp io s apriori, ao p asso q u e o D . p o sitiv o d eriva da vontade do le g islad o r (Ibid., D iv. da dou tr. do dir., § B).

DIREITO N essa d o u trin a de K ant há três p o n to s im ­ portantes: ls o caráter p rim á rio e fu n d a m en tal da norm a m oral, q u e é a ú n ica lei racio n al, e portanto dá o rig em à n o rm a de D .; 2- o caráter "externo", lo g o im p erfeito , da n o rm a de D. e, por co n seg u in te, o caráter im p erfeito e in co m ­ pleto da ação legal em re la ção à ação m oral; 3S o caráter n e c e ssa ria m e n te co ercitiv o do D. Es­ ses três p o n to s tiv eram g ra n d e im p o rtâ n c ia no desenvolvim ento su c essiv o da d o u trin a do D.; o prim eiro d ele s é, o b v ia m e n te , re su lta d o da doutrina do D , n atu ral. E tam bém in sp ira g ra n d e n ú m e ro de co r­ rentes da m o d e rn a filosofia do D ., m ais p re c i­ sam ente aq u ela s q u e p artem d a d istin çã o en tre a esfera externa da ação , co m o p e rte n c e n te ao D., e a esfera interna da in te n ç ão ou da c o n s ­ ciência, co m o p e rte n c e n te à m o ralid ad e. A s­ sim, a teoria do D. co m o "o minimum ético", proposta p o r Je llin e k (Die sozial-ethische Bedeutungvon Recht, Unrecht, undStrafe, 1878), implica, ao m esm o te m p o , q u e o D. d eriva da moral e q ue o D . se re d u z a u m a esfera m oral restrita ou d im in u ta. C o n c e p ç ã o an á lo g a foi sustentada p o r C roce, q u e a ex p rim ia com a fórmula da id e n tid a d e en tre ativ id ad e ju ríd ic a e atividade e c o n ô m ic a , id e n tid a d e q u e serv ia para fazer a d istin ção en tre D . e m oral, ao m e s­ m o tem po em q u e v in cu lav a os dois, de ac o rd o com a solu ção g eral a p re se n ta d a p o r K ant (Fi­ losofia daprática, 1909, p p . 370 ss.). O utro m o d o d e ex p rim ir a m esm a n o ç ã o de D. pode ser v isto na d o u trin a de R . S tam m ler, de D. com o te n d ê n c ia im a n e n te em to d o D. positivo e da m o ra lid a d e co m o p erfeição do D. correto, isto é, co m o p erfeição ú ltim a d este {Lebre vonrichtigenRecht, 1902, p. 87). A inda na m esm a lin h a s itu a -se o ru ss o L eo n P etrazycki (Introdução ao estudo do direito e da moral, 1905; Teoria do direito, 1907), q u e fez a distinção en tre as n o rm as m o rais q u e e s ta b e ­ lecem "o b rig açõ es livres", ou seja, n ã o c o n fe ­ rem aos o u tro s n e n h u m D. ou p re te n sã o , e as normas m orais q u e g a ra n te m tais o b rig açõ es em relação aos outros, ou seja, dão aos o u tro s o D. de p reten d e r o q u e a n o rm a g a ra n te (Low andMorality, trad. in., 1955, p p . 46-47). E re c e n ­ tem ente A . L. G o o d h a rt re a firm a v a , ao m e ­ nos em relação à Common Law anglo-saxônica, o fundam ento m oral do D ., e n te n d e n d o -o co m o obrigação ou d ev er-se r (oughtness), q u e n ão pode ser re d u z id o à c o e rç ã o e x te rn a ou à sanção (English Law and theMoralLaw, 1953, pp. 18 ss.).

DIREITO

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3. DIREITO COMO FORÇA.

D a n e g a ç ã o do D . n atu ral e d a lig ação da n o ç ã o d e D . co m a de co e rçã o ex tern a ou s a n ­ ção n asce a te rc eira c o n c e p ç ã o fu n d a m en tal de D., q u e o identifica co m a força. A característica esse n cia l d a força é garantir a realiza çã o da n o rm a, de tal m o d o q u e o D . co m o força é o D. realizado, ou seja, D . q u e g an h a co rp o e s u b s ­ tâ n c ia em in stitu iç õ e s h isto ric am en te ex iste n ­ tes. O p re s su p o s to d essa co rren te é, p o rta n to , a n e g a ç ã o do D . co m o d ev er-ser, aliás, do p ró ­ p rio d ev er-ser: é a id en tificação en tre n o rm a e re a lid a d e , en tre d ev er-se r e ser. E ste ú ltim o a s p e c to e x c lu i H o b b e s d essa c o rre n te d o u ­ trinai, p o is, u m a v e z q u e ele n ão identificou o d ev er-ser com o ser, adm itiu u m D. natural q ue é a saíd a ra zo áv el do h o m e m d e u m a situ aç ão h ostil q u e am e aç a d estru í-lo , e n ão co n sid e ro u q u e essa saíd a era in faliv elm en te g ara n tid a e p le n a m e n te re a liz a d a . A c o n c e p ç ã o do D . co m o força, co m b a se n a id en tificação en tre d ev er-se r e ser, n asce co m H egel. S eg u n d o ele, o D. é "um a ex istê n c ia em g eral q u e seja ex is­ tê n c ia da v o n ta d e livre" (Fil. do dir, % 29). Isso significa q u e o D . é u m a lib e rd ad e realizad a em in stitu içõ es h isto ric a m e n te d e te rm in a d a s, q u e co m o tais n ad a têm m ais a v er co m a lib e r­ d ad e e n te n d id a co m o arbítrio in d iv idu al. H eg el, co m o to d o o R o m an tism o re ac io n á rio do séc. XIX, v ia na lib e rd a d e do in d iv íd u o o c o n ­ ceito e a in sp iraç ão fu n d a m en tal do Ilum inism o e da R ev o lu ç ão F ran cesa, co n tra os q u ais e n te n ­ dia assestar su a d o u trin a. C itan d o a d efinição k an tiana de D. (v. acim a), ele observava: "A ci­ ta d a definição de D . c o n tém a o p in ião , c o rre n ­ te so b re tu d o d e p o is de R o u sseau , se g u n d o a q u al o q u e re r d ev e ser fu n d a m en to su b stan cial e p rim e iro p rin cíp io , n ão e n q u a n to racion al em si e p ara si, n ão e n q u a n to esp írito e esp írito v e rd a d e iro , m as e n q u a n to in d iv id u a lid ad e p ar­ ticular, e n q u a n to v o n ta d e do in d iv íd u o em seu arbítrio p articu lar. U m a v e z ac o lh id o esse p rin ­ cípio, o racio n al c e rta m e n te só p o d e a p a re c e r co m o lim itad o r d essa lib e rd ad e; lo g o , n ão c o ­ m o racio n alid ad e im anente, m as só co m o u n i­ v ersal ex te rn o , form al. Esse p o n to d e v ista é d e s p ro v id o d e q u a lq u e r p e n s a m e n to e s p e ­ cu lativo , e é rejeitad o p elo c o n ce ito filosófico, v isto ter p ro d u z id o , n as m en te s e na re a lid a d e , fe n ô m e n o s cuja h o rrib ilid a d e só tem p ara le lo n a su p erficialid ad e do p e n sa m e n to em q u e se fu n davam " (Ibid., § 29). A ssim , os "h o rro res" da R ev o lu ção F ra n c esa c o n stitu em u m p a ra le lo à "sup erficialid ad e" de e n te n d e r a lib e rd a d e n ão

DIREITO co m o re a lid a d e h istórica, m as co m o o d ev erser de u m a n orm a. C o n s e q ü e n te m e n te , H egel ach a q u e o D . é algo sa g ra d o , só p o r ser "a ex istên cia do c o n ce ito ab so lu to , da lib e rd a d e au to c o n sc ie n te ", e q u e u m D . su p erio r, ou seja, m ais real, s u b o rd in a u m D. m ais ab stra to , ou seja, m e n o s real ou im p erfeita m en te real. A s­ sim , a esfera do "D. ab strato " su b o rd in a -se à da "m o ra lid ad e", e a m b a s se su b o rd in a m à da "eticid ad e", q u e é a p ró p ria lib e rd a d e "tran s­ fo rm ada em m u n d o ex isten te" (Ibid, § 142). E a etic id ad e cu lm in a no E stad o , q u e é a re a lid a ­ de h istórica m áx im a e, p o rta n to , a m ais e lev a­ da, a ú n ica v e rd a d e ira e definitiva realização do d ireito . "O in g resso d e D eu s no m u n d o ", diz H eg el, "é o E stado; seu fu n d a m e n to é a p o tê n ­ cia da ra zã o q u e se re aliza co m o v o n ta d e . C om o idéia de E stado n ão se d ev em ter em m e n ­ te esta d o s p artic u la re s, in stitu içõ es p artic u la re s, m as co n sid e rar a Id éia p o r si, esse D eu s real" {Ibid., § 258, Z u satz). E m b o ra fale assim do E stad o "em si", q u e co n se rv a ca rá ter d iv in o ain d a q u e, em su a s m an ifestaçõ es p artic u la re s, se m o stre im p erfeito , assim co m o u m h o m e m co n se rv a ca rá ter h u m a n o m esm o q u a n d o é aleijado ou d eficien te, H eg el ju lg a q u e to d o s os E stad os são en c a rn a ç õ e s do "E spírito do p o v o ", a au to c o n sc iê n c ia q u e u m p o v o tem d e sua p ró p ria v e rd a d e e de seu ser, ou a "cultura" de u m a n aç ão (Phil. derGeschichte, ed. L asson, p. 93)- O D. n ão é s e n ã o a realiza çã o da lib e rd a d e no E stado: ex iste só co m o lei do E stado. C or­ re sp o n d e n te m e n te , a lib e rd a d e ex iste só co m o o b e d iên cia às leis do E stado. "Ao E stad o p er­ te n c e m as leis, e isso significa q u e o co stu m e n ão su b siste só na fo rm a im ed iata, m as na fo r­ m a do u n iv e rsa l, co m o o bjeto de u m sab er. O fato de esse u n iv e rsa l ser c o n h e c id o co n stitu i a esp iritu alid a d e do E stado. O In d iv íd u o o b e d e ­ ce às leis, e sab e q u e n essa o b e d iê n c ia está a sua lib e rd ad e; nela, p o rta n to , en tra em relação co m seu p ró p rio q u erer" (Ibid., p. 99). D u ran te m u ito te m p o a d o u trin a do D . n a ­ tural afirm ara q u e a n o rm a n atu ra l é a p ró p ria v o n ta d e d e D eu s, ou v ice-v ersa. H eg el afirm a q u e D eu s a p a re c e u ou re alizo u -se na história: é o p ró p rio E stado. A lei p ositiva é assim im b u í­ d a do v a lo r e do p restíg io q u e a tra d iç ã o atri­ b uía ao D . n atu ral. A o p asso q u e, ao lo n g o de to d a a trad iç ão , s o b re tu d o no m u n d o m o d e rn o , esse D ., e n te n d id o co m o lei div in a ou co m o p rin cíp io h u m a n o d e ra zã o , era u m trib u n al de a p e la ç ã o ao q u a l o h o m e m p o d ia re c o rre r, co m o de fato reco rria, co n tra a injustiça ou a

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DIREITO im p erfeiçã o do D. p o sitiv o , n a d o u trin a de H eg el n ão ex iste n e n h u m trib u n al de ap elação e, aliás, a p ró p ria d o u trin a n ão p assa d e nega­ ção d e sse trib u n al, q u e é e n te n d id o co m o fon­ te de p e n sa m e n to s "superficiais" e de aconteci­ m e n to s "horríveis". O in d iv íd u o n ão tem defesa contra o E stado ou o D. positivo; n ão p o d e de­ so b e d e c e r-lh e s e n em m esm o d iscu ti-los; e de fato, d isc u tin d o -o s, estaria a p e n a s co n tra p o n d o as ex ig ên c ias de seu in te le cto "finito" à racio­ n alid a d e "infinita" da história. O E stad o tem s e m p re ra zã o . D esse p o n to de v ista, ao D . só resta a força. A lg um as d essa s características da doutrina h e g elian a do D ., e s p e c ia lm e n te a re d u ç ã o do d ev er-se r ao ser, q u e é, de resto , o achatam en to d a n o rm a no fato, são co m p artilh adas ta m b é m p o r esco las q u e n ão se in sp iram na c o n c e p ç ã o g eral de H eg el. A ssim , a escola his­ tórica do D ., cujo re p re s e n ta n te p rin cip al é F. v o n S av ig ny (1779-1861), ao c o n sid e ra r o Esta­ do co m o "m anifestação o rg ân ica do p ov o", v ê no D . u m p ro d u to do "espírito do p o v o ", algo q u e en c o n tra re a lid a d e na v o n ta d e co m u m do p o v o (Über den Beruf unserer Zeit, 1814). C o m o últim a ju stifica çã o do ca rá ter histórico, p o rta n to nacional, do D ., os se g u id o re s dessa escola ad u zem a co n sid eração de q u e o D., vi­ sa n d o co n se rv ar a o rd em n acio n al, contribui no ca m p o da h istória p ara co n se rv a r e garantir a o rd em có sm ica d esejad a p o r D eus. J. Stahl d iz q u e o D . é "a o rd em v ital do p o v o , espe­ cialm en te da c o m u n id a d e d o s p o v o s, co m vis­ tas à co n se rv aç ão da o rd em có sm ica estabeleci­ da p o r D eu s. Ele é u m a o rd em h u m a n a , m as a serv iço da o rd em divina d e te rm in a d a p o r um m a n d a m e n to d iv in o e fu n d a d a na p erm issão divina" (Phil. desRechts, 1830, II, l e, p. 194). A o co n tário de H eg el e d a esco la h eg elian a, a es­ cola histórica n ão identifica o D. re aliza d o (ou E stado) co m D eu s, m as v ê no D. algo q u e pro­ v ém de D eu s e cuja ju stificação co n siste em s u b o rd in a r-se à o rd e m có sm ica estabelecid a p o r D eus. P o d e-se v er a m esm a o rie n ta ç ã o fu n dam en ­ tal (cuja m e lh o r e x p re ssã o ain d a é a doutrina de H egel) em to d a s as d o u trin a s do D . que de alg u m m o d o re la cio n em a o rig em e o funda­ m en to do D . co m o "Espírito do p o v o ", com a "N ação" ou co m o "E stado", re d u z in d o , portan­ to, a o b rig a to rie d a d e do D . à força coercitiva de u m a in stitu ição h istórica q u a lq u e r, co n side­ rad a co m o in stru m en to p ro v id e n c ial d a ordem có sm ica ou co m o essa m esm a o rd e m em sua

DIREITO m anifestação. D e fato, é d e se o b se rv a r q u e a ênfase ou m esm o a ex a lta çã o do ca rá ter "éti­ co", "racional", "p ro viden cial" ou de q u a lq u e r form a n ec essário e n e c e ssita n te do D. p o sitiv o têm com o co n se q ü ên cia sim etricam ente o po sta a atribuição de ca ra cte re s id ên tico s ao D. n a tu ­ ral. S e esses ca ra cte re s são a trib u íd o s ao D. natural, re c o n h e c e -se ao m esm o te m p o e com base nisso a p o ssib ilid a d e de discutir, av aliar e julgar o D. p ositiv o , re c o n h e c e n d o -se , p o rta n ­ to, im plícita ou ex p lic ita m en te , a p o ssib ilid ad e e a au to n om ia d esse ju íz o . M as q u a n d o esses caracteres são atrib u íd o s a p e n a s ao D. p o siti­ vo, nega-se q u a lq u e r p o ssib ilid a d e de discutir, avaliar e ju lg a r tal D ., n e g a n d o -s e p o rta n to a autonom ia e a p ró p ria p o ssib ilid ad e d e q u a l­ quer ju íz o e até m esm o da m ais in ó cu a d isc u s­ são sobre o D. É essa n e g a ç ã o q u e m u itas v e ­ zes as teorias d esse g ê n e ro p re te n d e m g aran tir e justificar.

4. DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL.

A c o n c e p ç ã o d e D . c o m o fo rça n eg a o D. natural p o r n e g a r q u a lq u e r d e v e r-se r, e n e g a qualquer d ev er-se r p o r co n sid e rar o D . a p e n a s com o força n e c e s s a ria m e n te re a liz a d o ra . N ão prescinde de c o n sid e ra ç õ e s de v alo r e, p a rtic u ­ larm ente, da id éia de ju stiç a , ou seja, de um tipo de c o e x istê n c ia p erfeita e n tre os h o m e n s, m as co n sid e ra o v a lo r ou a ju stiç a já d e s d e sem pre re a liz a d o s: co m o dizia H eg el, a ra z ã o não é tão im p o te n te q u e n ã o p o ssa re a liz a rse no m u n d o . A s c o rre n te s formalistas da m oderna filosofia do D . te n d e m , ao c o n trá ­ rio, a p re sc in d ir d e q u a lq u e r id ea l v a lo ra tiv o , ou seja, da p ró p ria n o ç ã o de ju stiç a , q u e é entregue à esfera p o lítica e m o ral, m as c o n ­ siderada e s tra n h a à do D . O D . n a tu ra l, co m o d elin eam en to n o rm a tiv o d e c o n d iç õ e s p e r­ feitas, d esse p o n to de v ista é m era ficção : o único D. d e q u e se p o d e le g itim a m e n te falar, que p o d e se r o b jeto d e c o n s id e ra ç ã o c ie n tí­ fica, e n ã o de d e s e jo s ou de a s p ira ç õ e s id ealizad o ras, é o D . p o sitiv o . M as o D . p o s i­ tivo n ad a te m de p e rfe ito ou d e tr a n s c e n d e n ­ te, não in clu i n e n h u m v a lo r ú ltim o e a b s o lu ­ to. É s im p le s m e n te u m instrumento p a ra alcançar ce rto s fins; e, co m o to d o in s tru m e n ­ to, p od e ser ju lg a d o em te rm o s da eficiência, da c a p a c id a d e d e g a ra n tir u m a o rd e n a ç ã o (qualquer) da s o c ie d a d e h u m a n a . S o b esse aspecto, o D . d e v e se r re c o n h e c id o c o m o u m dever-ser, c o m o u m a re g u la m e n ta ç ã o do com portam ento h u m a n o , co m a q ual esse co m ­ p ortam ento p o d e até n ã o se ajustar.

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DIREITO N essa c o n c e p ç ã o , co n flu em v ário s e le m e n ­ to s h isto ric a m e n te reco n h ecív eis: a v elh a idéia do D . co m o u tilid ad e, q u e sofistas, ep icu ristas e cético s já h av iam d efe n d id o n a A n tig ü id a d e e q u e n o m u n d o m o d e rn o foi re to m a d a p o r H o b b e s e H um e; e, em esp ecial, a idéia central do ju sn atu ralism o m o d ern o de q ue o D. é a ra­ cio n a lid a d e d as re la çõ es h u m a n a s (pacíficas ou n ão ) e q u e , p o rta n to , em sua esfera inclui-se q u a lq u e r re g u la m e n ta ç ã o racio n al de tais rela­ çõ es. E ste ú ltim o ta m b é m é o co n ce ito d e D. a ceito p ela teo ria form al, se b em q u e a p o lêm i­ ca trad ic io n a l d e o rd em ideal e perfeita da c o ­ m u n id a d e até ag o ra im p ed iu q u e essa teoria se id en tificasse em seu p re c e d e n te h istórico m ais ilustre e significativo. N ão há d ú v id a de q u e a idéia d e D . co m o té cn ic a ou in stru m en to para p o ssib ilitar as re la ç õ e s h u m a n a s, ta n to n a p az q u a n to n a g u e rra — idéia ex p rim ív el n a form a d e im p erativ o s h ip o té tic o s ou d e p ro p o siç õ e s c o n d icio n ais do tip o se... então— , é co m u m ao ju s n a tu ra lis m o clássico d e G ró cio , H o b b e s, P u fen d o rf e a o u tro s d e fe n so re s h o d ie rn o s da "teoria g eral do D." P o d e-se v e r u m p re c e d e n te d essa teo ria na d o u trin a de J o h n A ustin q u e definiu o D . co m o "regra fo rm u lad a p ara q u e u m ser in telig en te g u ie o u tro ser in te lig en te e te n h a p o d e r so b re ele'1. D . seria, p o rta n to , mando: e x p re ssã o da v o n ta d e de u m in d iv íd u o , injuntiva p ara o in d i­ v íd u o a q u e m é dirigida, n o se n tid o d e o brigálo a fazer o q ue o m a n d a n te re q u e r (Lectures onJurisprudence, 1861, 5- ed., 1885, I, p p. 88 ss.J. A s características fu n d a m en tais da d ou trina d e A ustin são duas: Ia re d u ç ã o do D . a um a n o rm a injuntiva, e n q u a n to m an d o ; 2a caráter racio n al, ou p elo m e n o s razoável, d esse c o ­ m a n d o , v isto em a n a r de u m ser in te lig en te e d irig ir-se a o u tro ser in te lig e n te . E ssas ca­ racterísticas ta m b é m se en c o n tra m em d o u tri­ n a s a p a re n te m e n te d ife re n te s da de A ustin, co m o p. ex. n a doutrina sociológica de E ug en E hrlich, p ara q u e m "o D. é u m a o rg an iza çã o , v ale d izer u m a n o rm a q u e atrib u i a cad a m e m ­ b ro d a asso c iaç ão sua p o siç ão n a c o m u n id a d e , seja ela d e p re e m in ê n c ia ou de sujeição, b em co m o seu s d ev eres" (Grundlegung der Soziologie desRechts, 1913, p. 18). N essa d o u trin a , o c o n ce ito d e o rd e n a ç ã o p rev alec e so b re o de m a n d o , m as a o rd e n a ç ã o , assim co m o o m a n ­ do de A ustin, é u m a n o rm a ap ta a realizar certa form a de co n v iv ên cia. K elsen, hoje o m aior d efe n so r e re p re s e n ta n te da teo ria form al do d ireito , re m e te -se a esse s p re d e c e s so re s. D is­

DIREITO tin g u e-se d e E hrlich p o r n ão ju lg a r q u e o c o n ­ ceito d e o rd e n a ç ã o b a ste p ara co n stitu ir o D ., p o rq u a n to n em s e m p re a o rd e n a ç ã o te m força injuntiva; e d istin g u e-se de A ustin p o r ju lg a r q u e tal força injuntiva n ão co n siste no m a n d o , m as no dever-ser do D ., ou seja, n a estru tu ra n o rm ativ a do p ró p rio D . M ais p re c isa m e n te , p ara K elsen o D. é "a té cn ic a social específica d e u m a o rd e n a ç ã o coercitiva", se n d o , p ois, ca­ ra cteriza d o p ela "o rg an ização d a força" (Gene­ ral Theory of Law and State, 1945, I, A , d; trad. it., p p . 19 ss.). A eficiên cia d essa té cn ic a é c o n d icio n ad a, se g u n d o K elsen, p o r su a c o e rê n ­ cia, q u e p o d e ser m e d id a a p artir de u m a "nor­ m a fu n d a m en tal", q u e serv iu d e b a se p ara a c ria ç ã o d as v á ria s n o rm a s d e d e te rm in a d a o rd em ju ríd ica. "O sistem a do p o sitiv ism o ju rí­ d ico , d iz K elsen, "exclui a ten tativ a d e d ed u z ir d a n atu re za ou d a ra zã o n o rm as su b stan cia is, q u e , e sta n d o além do D . p ositiv o , p o ssa m se r­ v ir-lh e de m o d e lo , ten tativ a cujo êx ito é s e m ­ p re a p a re n te , e q u e te rm in a co m fó rm u las q u e só tê m a p re te n sã o d e p o ssu ir c o n te ú d o . A o co n trá rio , ex a m in a co m sen so d e re sp o n s a b ili­ d ad e os p re s su p o s to s h ip o tético s de cad a D. p ositiv o , ou seja, su a s co n d iç õ e s m e ra m e n te formai? (ibid, A p., IV, B , c, p. 443). K elsen está cô n scio do p a re n te sc o q u e , so b esse as­ p ec to , seu "po sitiv ism o ju ríd ico " tem co m o ju sn a tu ra lism o clássico , e s p e c ia lm e n te co m a form a assu m id a na filosofia k an tia n a Qbid., p p . 445, 453), e m b o ra c o n tin u e d iz e n d o q u e o po sitiv ism o rejeita "a id eo lo g ia de q u e a teo ria ju sn a tu ra lista se v ale p ara ju stificar o D . p o siti­ vo" (Ibid., A p ê n d ic e, IV, B, h, p. 453). N a re a li­ d ad e, no ju sn a tu ra lim o ele n ão d istin g u e sufi­ c ie n te m e n te a fase m o d e rn a da fase an tiga e assim atrib u i à su a fase m o d e rn a a n o ç ã o da o rd em perfeita e p ro v id e n c ial d a ju stiç a, q u e caracterizav a a fase an tiga e e n tro u em crise co m G ró cio. N a re a lid a d e , a filosofia p olítica e ju ríd ica c o n te m p o râ n e a aind a n ão co n seg u iu re c u p e ra r os e n s in a m e n to s fu n d a m en tais da teoria do D . n atu ral, e s p e c ia lm e n te em su a for­ m u lação ju sn a tu ra lista de G ró cio a H u m e. O q u e im p ed iu ou o b sto u essa re c u p e ra ç ã o foi a cren ça d e q u e a q u ela teo ria se fu n d av a n um co n ceito "m etafísico" ou "p latô nico " de ju stiç a, além da ex ig ên cia de elim in ar da c o n sid e ra ç ã o "científica" do D. q u a lq u e r ideal v alo rativ o . M as na realid ad e o ju sn a tu ra lism o m o d e rn o n ão se ap o io u em d e te rm in a d o ideal de ju stiç a , m as na ex ig ên cia de q u e o D ., sejam q u ais fo rem as n o rm as p artic u la re s em q u e se co n cre tize , seja

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DIREITO SUBJETIVO eficien te no o bjetivo d e p o ssib ilitar as relações h u m a n a s. N essa ex ig ên cia, co m o se viu , G rócio e H u m e estão d e a c o rd o e m b o ra p o ssa m dissen tir q u a n to ao ca rá ter "n ec essa ria m en te ra­ cional" ou sim p le sm e n te "útil", lo g o razoável, do d ireito . O ra, o q u e se e sp era de u m a técni­ ca, q u a lq u e r q u e seja ela, é a eficiência. E o ju íz o so b re a eficiência de u m a té cn ic a não p o d e fu n d ar-se ex c lu siv am e n te em su a co e­ rên cia in tern a, co m o p re te n d e K elsen. É claro q u e h á u m a co n d iç ã o fu n d a m en tal p ara q ue a u m a técn ica q u a lq u e r c o n se rv e sua eficiência e a au m en te : é a retificabilidade da p ró p ria téc­ nica. D e fato, q u a n d o u m a té cn ic a q u alq u er p o d e ser o p o rtu n a m e n te m o dificad a e ad ap ta­ da às circ u n stân cias, sem m u d a r su b stan cial­ m en te , co n clu i-se q u e é ca p az de co n serv ar e de in crem e n tar a su a eficiência. P o rta n to , toda té cn ic a eficaz d ev e ser auto-retificável; essa é, na v e rd a d e , a ú n ica v a n ta g e m q u e a técn ica da ciên cia e x p e rim e n ta l, d e sd e G alileu até hoje, p o ssu i so b re as o u tras. D esse p o n to de vista, o ju íz o té cn ic o so b re d e te rm in a d o sistem a de D. é o ju íz o so b re a sua c a p a c id a d e de corrigir ou elim in ar su as p ró p rias im p erfeiçõ es, de tornarse m ais ágil e, ao m esm o -te m p o , m ais rigoroso. N ão é u m ju íz o q u e se refira à m era co erên cia do sistem a, n em u m ju íz o de v a lo r resu ltan te do co n fro n to do sistem a co m u m id eal prévio de ju stiça. É u m ju íz o c o n c re to e d iretiv o , capaz de influir n a ev o lu ç ã o h istórica do direito. O q u a d ro acim a, so b re as te o ria s filosóficas do D ., m o stra d efin itiv am e n te q u e n ão tem sen tid o q u a lq u e r te n tativ a de definir as rela­ çõ e s en tre D . e m oral, e n te n d e n d o ta n to o D. q u a n to a m o ral co m o d u a s ca te g o rias "eternas" do esp írito . D e fato, D. e m o ral d ev em ser con­ sid e ra d o s id ên tico s ta n to do p o n to de vista da teo ria do D . n atu ral q u a n to do p o n to d e vista da teo ria do D. co m o força. O b v ia m en te , a teo ria se g u n d o a q u al o D . se ap o ia na m oral faz u m a d istin ção en tre a m b a s e, na realid ad e, é a teo ria de tal d istin ção . Q u a n to à teo ria for­ m al do D ., p ro v a v e lm e n te p erm ite ta n to um a q u a n to outra so lu ç ã o (v. ÉTICA). D IR E IT O SU B JE T IV O (gr. tò SÍKOUOV; lat. Jus; in. Right; fr. Droit; ai. Recht; it. Diritto soggettivó). É o sign ificad o q u e a p alav ra D. a ssu m e em ex p re ssõ e s co m o estas: "D eclara­ ção d o s D. do h o m em ", "A lei g ara n te ao réu o D. de d e fe n d e r-se", "O D. ao ressarcim en to d o s d an o s". P u fe n d o rf foi u m d os p rim eiro s a ex p re ssa r co m clareza a d istin çã o en tre D . em s e n tid o objetivo, co m o "co m p lex o de leis", e

DISAMIS

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D. em sen tid o su b jetiv o , co m o "faculd ade de fazer algo, c o n c e d id a ou p erm itid a p ela s leis". A ssim co m o o h o m e m te m o p o d e r de fazer tu d o o q u e p ro m a n e d e su as fa cu ld ad es n a tu ­ rais, co n tan to q u e n ão seja p ro ib id o e x p re ssa ­ m ente p o r u m a lei, co stu m a -se d izer q u e a lei atribui o D . d e fazer tu d o o q u e n ão é p ro ib id o por n e n h u m tip o de lei. N esse se n tid o , o D. co n cern e à n o ssa lib e rd a d e ; a lei, ao co n trário , im plica a o b rig açã o p ela q ual a lib e rd a d e n a tu ­ ral é lim itada" (Dejure naturae, 1672, I, 6, 3). Essa d istin ção m an te v e -se até hoje n o s m e s­ m os term o s. D ISA M IS. P alavra m n e m ô n ic a u sa d a p elo s escolásticos p ara in d icar o te rc eiro d o s seis m o ­ dos do silo g ism o de terceira figura, m ais p re ­ cisam ente o q u e c o n siste em u m a p rem issa particular afirm ativa, u m a p rem issa u n iv ersal afirmativa e u m a c o n c lu sã o p articu lar afirm ati­ va, com o no ex e m p lo : "A lguns h o m e n s são substância; to d o h o m e m é anim al; lo g o , alg u n s anim ais sã o substância" (PEDRO HISPANO, Summ. log./4.14). D IS C IP L IN A (gr. u .á0 rm a; lat. Disciplina; in. Discipline, fr. Discipline, ai. Disziplín, it. Disciplina). 1. U m a ciên cia, e n q u a n to o bjeto de ap re n d iz a d o o u d e en sin o (v. MATHEMA). 2. F u n ção n eg ativ a ou co ercitiv a de u m a regra ou de u m co n ju nto d e reg ras, q u e im p e ­ de a tran sg re ssão à regra. F oi assim q u e K ant a entendeu ao defini-la co m o "a co e rçã o graças à qual a te n d ê n c ia c o n sta n te a tra n sg re d ir cer­ tas regras é lim itada e, p o r fim , d estru íd a". D istinguiu-a da cu ltura, "que só d ev e co n ferir u m a habilidade, sem ab o lir o u tra p ree x isten te ". A D. da razão p u ra é p arte im p o rta n te da d o u tri­ na tran sc en d e n tal do m é to d o , v isto q u e a ra ­ zão, em seu u so filosófico, n ão é lim itada ou su sten tad a p e la e x p e riê n c ia (c o m o o c o rre na física) n em p ela in tu iç ã o p u ra (com o o c o rre na m atem ática) (Crít. R. Pura, D outr. tran se, do m é t.,c a p .I).

DISCRETIVA, PROPOSIÇÃO (fr. Proposition

discrétivé). A Lógica de P ort-R oyal assim c h a ­ mou a p ro p o sição co m p o sta de ju íz o s diferentes, interligados p o r p artíc u la s co m o "m as", "tod a­ via", e tc , ta n to ex p re ssa s q u a n to s u b e n te n d i­ das; p. ex., "O d estin o p o d e tirar as riq u ez as m as n ã o a co ragem " (ARNAULD, Log, II, 9). D IS C R E T O (gr. S icop io uivo ç; lat. Discretus; in. Discrete, fr. Discret; ai. Diskret; it. Discreto).

Descontínuo (v. CONTÍNUO).

D ISC U R SIV O (lat. Discursivus; in. Discursive, fr. Discoursif; ai. Discursiv-, it. Díscorsivó).

DÍSPAR

E sse adjetivo c o rre sp o n d e ao se n tid o da p a ­ lavra g reg a dianóia (v.) p o rq u e d esig n a o p ro ­ c e d im e n to ra c io n a l q u e a v a n ç a in fe rin d o c o n c lu sõ e s d e p rem issas, ou seja, atrav és de e n u n c ia d o s n eg ativ o s ou afirm ativos sucessiv o s e c o n c a te n a d o s. S. T o m á s c o n tra p õ e esse p ro ­ cesso , c o n sid e ra d o p ró p rio da razão h u m a n a , à ciência intuitiva de D eu s, q ue en ten d e tu d o si­ m u lta n e a m e n te em si m esm o , com u m ato sim ­ p les e p erfeito da in telig ên cia (S. Th, I, q. 14, a. 7 ss.; Contra Gent., I, 57-58). Essa é a c o n ­ tra p o siç ã o q u e se ach a em P latão e em A ristó­ te le s en tre ra zã o (dianóia) e in telecto (nous). O s m o d e rn o s u tilizaram essa p alavra com o m es­ m o sign ificad o (HOBBES, Leviath., I, 3; WOLFF, Log, § 51). K ant a c o m p a n h o u esse u so . "O c o ­ n h e c im e n to q u a lq u e r in telecto ", d isse ele, "ao m e n o s do in te le cto h u m a n o , é u m c o n h e c i­ m en to p o r co n ce ito s: n ão in tu itiv o, m as D." (Crít. R. Pura, A nalítica, I, cap . I, seç. 1). E m to d a a su a o b ra K ant c o n tra p õ e c o n sta n te m e n ­ te o in te le cto D . ou h u m a n o ao h ip o tético "in­ te le cto in tu itiv o" de D eu s, q u e é cria d o r dos seu s o b jeto s (Ibid., § 2 1 ) (v. INTELECTO). D IS JU N Ç Ã O (in. Disjunction, fr. Disjonction; ai. Disjunktion; it. Dísgiunzione). N a L ó­ gica esco lástica, é u m a propositio hypothetica fo rm ad a p o r d u a s ca te g o rias u n id a s p elo sinal "vel" ("Sócrates currit vel Plato sedef). N a Ló­ gica c o n te m p o râ n e a , é u m a p ro p o siç ã o m o le ­ cu lar fo rm ad a p o r d u a s (ou m ais) p ro p o siçõ es atô m ic a s u n id a s p e lo sin a l "v" ("pvq"). E m am b as as L ógicas, a co n d iç ã o n ecessária e su ­ ficien te p ara a v e rd a d e d e u m a D. é q u e p elo m e n o s u m a d as d u as p ro p o siç õ e s c o m p o n e n ­ te s seja v erd a d e ira . G. P. D IS JU N T IV O (gr. 8ieÇet>YUÍvoç; lat. Disiunctívus, in. Disjunctive, fr. Disjonctif; ai. Disjunktive, it. Disgiuntivo). É o en u n c ia d o q u e c o n tém u m a altern ativa, ta n to em se n tid o inclusivo, co m o p. ex. "um a estrad a ou outra c o n d u z a R om a", q u a n to em sen tid o exclusivo, co m o p. ex. "ou é n o ite ou é dia". O s estó ico s, q u e fo ram os p rim e iro s a aten ta r p ara esses e n u n c ia d o s, e n te n d e ra m -n o s em sen tid o ex ­ clusivo (D ióG . L, V II, 1, 72). S ilo g ism o D. é o q u e te m co m o p rem issa m aio r u m a p ro p o siçã o disjuntiva (v. SILOGISMO). D ÍSPA R (lat. Diparatus; in. Disparate, fr. Dis­ parate, ai. Disparai; it. Disparato). F oi assim q u e C ícero c h a m o u o q u e está em o p o siç ã o c o n tra d itó ria co m o u tra coisa, co m o p. ex. n ão sa b e r em re la ç ã o a s a b e r (De Invent., 28, 42). B o é cio restrin g iu esse te rm o ao s o p o sto s c o n ­

DISPOSIÇÃO

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DISTINÇÃO

traditórios que, por serem muito diferentes, não têm entre si nenhuma contrariedade, como terra e roupa (De syll. hipot., I. P. L, 64e, col. 834). O significado proposto por Boécio preva­ leceu no uso filosófico e comum: D. são as coisas inconfrontáveis por sua diversidade. O conceito foi reintroduzido na lógica por Rodol­ fo Agrícola e elaborado pelos lógicos do séc. XVII, que consideraram os disparata e os opposita como as duas espécies dos dissentanea. Por estes últimos entendiam-se as coi­ sas diferentes entre si, a ponto de não poderem ser atribuídas reciprocamente, e por D. as "real­ mente diferentes ou tais que uma pudesse existir simplesmente sem a outra" (JUNGIUS, Log., V, 33, 1-3). Leibniz chamou de D. "as proposições que dizem que o objeto de uma idéia não é o objeto de uma outra idéia"; p. ex., o calor não é a mesma coisa que a cor (Nouv. ess, IV, 2, § 1). D IS P O S IÇ Ã O (gr. ôiáeecnç; lat. Dispositio-, in. Dispositíon; fr. Disposition; ai. Disposition; it. Disposizione). 1. Distribuição das partes em um todo, devida à ordem do todo. Foi assim que Aristóteles entendeu essa palavra (Met, V, 19, 1022 b 1) (v. ORDEM, 2). 2. Tendência, inclinação ou atitude. Nesse sentido, essa palavra foi entendida também por Aristóteles (Met, V, 20, 1022 b 10), que às ve­ zes a utilizou para indicar a virtude (Et. nic, II, 7, 1107 b 16, 30, etc). Os estóicos empregaram-na constantemente para definir a virtude-, "uma D. de alma coerente e concorde" (STOBEO, Ecl, II, 7, 60; CÍCERO, Tusc, IV, 34). Esse sig­ nificado persiste na filosofia medieval. Às ve­ zes, distingue-se D. de hábito. Pedro Hispano diz: "O hábito difere da D. por ser mais perma­ nente e duradouro, assim como são, p. ex., as virtudes e as ciências... As D., ao contrário, mudam facilmente, como p. ex. o frio, o calor, a saúde, a doença, etc. Os hábitos podem ser chamados de D., mas a recíproca não ocorre. Por isso, pode-se definir hábito como uma qua­ lidade dificilmente movível, e a D. como uma qualidade facilmente movível" (Sumrn. log., 3.23). O significado dessa palavra não mudou até hoje. Segundo Dewey, "a palavra D. signifi­ ca predisposição, prontidão para agir aberta­ mente de determinado modo sempre que se apresentar a oportunidade: essa oportunidade consiste na supressão da pressão exercida pelo domínio de algum hábito patente" (Human Nature and Conduct, 1922, p. 41). Já na lógica medieval as qualidades das coi­ sas às vezes eram chamadas de D. (PEDRO H IS ­

PANO, Summ. log., 12.08); os lógicos modernos repetem essa doutrina, afirmando às vezes que são D. também qualidades que, como quebrado ou dissolvido, parecem exprimir um fato. Popper observa a propósito que um químico não diria que o açúcar ou o sal se dissolveram na água se não esperasse poder recuperar o açúcar ou o sal mediante a evaporação da água (TheLogic ofScientific Discovery, 1959, p. 424). D ISPO SIC IO N A L." V. p o s sib ilid a d e . D ISPU TA T IO . Foi um dos métodos fundamen­ tais do ensino universitário na Idade Média. Suas origens provavelmente remontam à filoso­ fia grega, em particular a Aristóteles, mas foi só no séc. XI que esse método começou a ser re­ gulamentado por uma técnica adhoc, segundo o modelo do Sic et non de Abelardo. A dialéti­ ca, ou seja, a lógica, era habitualmente conside­ rada a técnica desse método, assim definido por João de Salisbury: "A disputatio se dá em torno das coisas que sejam duvidosas, apresen­ tadas de forma contraditória ou que nos propo­ nhamos demonstrar ou refutar de um modo ou de outro" (Metalogicus, II, 4). DISSENTÂNEO. V. DÍSPAR.

DISTELEOLOGIA (in. Dysteleology, fr. Dysai. Dysteleologie, it. Disteleologia). Termo criado pelo biólogo materialista Ernesto Haeckel para indicar a parte da biologia que estuda os fatos biológicos (monstruosidade, abortos, atrofias, etc.) que contradizem a exis­ tência de uma finalidade na formação dos orga­ nismos vivos (Weltrãtsel, 1899, cap. 14). D IS T IN Ç Ã O (lat. Distinctio; in. Distinction, fr. Distinction; ai. Unterscheidung; it. Distinzione). 1. A relação ou o aspecto segundo o qual pode ser reconhecida uma alteridade en­ tre objetos quaisquer que sejam. A doutrina da D. foi elaborada pela Escolástica com objetivos metafísicos e teológicos. S. Tomás conhece so­ mente a D. formal ou específica, que ocorre entre duas espécies diferentes, e a material ou numérica, que ocorre entre duas coisas perten­ centes à mesma espécie (S. Th, I, q. 47, a. 2). Mas no século seguinte Francisco Mayron podia enunciar nada menos do que sete espécies de D.: 1Q D. de razão (ratiane), como p. ex. entre Sócrates como sujeito e Sócrates como pre­ dicado da proposição ''Sócrates é Sócrates"; 2a D. ex natura rei, que é independente da ação do intelecto, como a que existe entre o todo e as partes, o efeito e a causa, o alto e o baixo, etc.; 3Q D. formal, que ocorre entre as coisas que não podem servir de predicado uma à outra, téléologie,

DISTRAÇÃO com o p. ex. e n tre o h o m e m e o asn o; n esta d istin ção D u n s S co t já in sistira lo n g a m e n te , u tilizand o -a p ara ex p rim ir a diferença en tre o indivíduo e a n atu reza co m u m (Op. Ox, II, d. 3, q. 6, n. 15) e e n tre os atrib u to s d iv in o s (Jbid., I, d. 8, q. 4, n. 17); s e g u n d o M ayron , esse tip o de D. p o d e ser fo rm u la d o p o r d efinição, d iv isão (ou classificação ), d escriçã o e d e m o n stra ç ã o , pois o q u e é in d iv id u a liz ad o p o r q u a lq u e r um d esses p ro c e sso s d istin g u e-se fo rm a lm en te das o utras co isas; 4S D. real, q u e o co rre e n tre as "coisas positivas" q u e são re c ip ro c a m e n te in ­ d e p e n d e n te s, tais q u e a ex istên cia d e u m a p o d e prescindir da ex istência da outra; 5e D. essencial, entre as co isas q u e p o d e m ser se p a ra d a s aind a q ue h ip o te tic a m e n te (p. ex., da aç ão de D eu s), com o m atéria e form a, ac id e n te e su b strato , p re c e d e n te e c o n se q ü e n te ; 6e D. total substan­ cial (subjectiva), e n tre as co isas q u e n ão co in ­ cidem em n e n h u m a re a lid a d e su b stan cia l; 1D. total representativa (objectiva), en tre as co i­ sas q u e n ão p o d e m te r o m esm o p re d ic a d o e sse n c ia l (quiditativum) (Formalitates, ed. V enetiis, 1517, p p . 23-24). D esca rte s sim plifi­ cou m u ito essa tá b u a co m p lic ad a, re d u z in d o as D . a três: real, m o d a l e de ra zã o . A D . real o co rre en tre d u a s ou m ais su b stân cia s, q u a n d o se p o d e p e n sa r n u m a su b stân cia clara e d istin ­ tam en te sem p e n sa r na o utra. A D . m o d a l o co r­ re ou e n tre a su b stân cia e o seu m o d o (ou m anifestação) ou en tre d o is m o d o s d iferen tes da m esm a su b stân cia . A D . d e ra zã o é a q u e se e sta b e le ce às v e z e s en tre a su b stân cia e u m de seu s atrib u to s, sem o q ual, p o rém , a su b stân cia não p o d eria sub sistir, ou en tre d o is atrib u to s, ig u alm en te in se p ará v e is, da m esm a su b stân cia (Princ. phii, I, 60-62). A d o u trin a d as D . n ão teve c o n tin u id a d e na filosofia m o d e rn a e c o n ­ te m p o râ n e a. 2. G rau da ev id ên cia (v. CLAREZA). DISTRAÇÃO (lat. Distractie, in. Distraction; fr. Distraction; ai. Zerstreutheit; it. Distrazione). 1. C on d ição em q u e a aten ção é d istan ciad a das idéias ou d as o c u p a ç õ e s d o m in a n te s e v o ltad a para o u tras co isas. J á K ant, co m m u ito b o m sen so , n o tav a q u e é fraq ueza, m ais do q u e fo r­ ça do esp írito , n ão p o d e r s e p a ra r-se d e algum a coisa a q u e se deu g ran d e aten çã o d u ran te m u ito tem po : fraq ueza q u e , se h ab itu al e v o ltad a p ara o m esm o o b jeto , p o d e d e g e n e ra r em lo u cu ra. P ortanto , a D ., co m o d iv e rtim e n to do esp írito , é co n d içã o da s a ú d e m en tal. P or o u tro lad o , a d istração c o n sta n te co n fere ao h o m e m a a p a ­ rência de s o n h a d o r e o to rn a inútil à so c ie d a d e

DIVERSIDADE

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(Antr, I, 47). N esse sen tid o a p alav ra eq ü iv ale divertimento (v.). 2. O co n trá rio da atenção (v.): ativ id ad e s e ­

a

letiva m alo g ra d a ou deficiente em re la ç ã o aos o b jeto s de u m cam p o . DISTRIBUIÇÃO (lat. Ditributio; in. Distribution; fr. Distribution, ai. Aufteílung; it. Distribuzioné). U m a d as d o u trin a s típ icas d a ló g ica term in ista m ed ie v a l, q u e e n te n d e u p o r esse te r­ m o "a m u ltip lica çã o de u m term o co m u m feita p o r m eio de u m sig n o universal: p. ex., n a fra­ se 'to d o h o m e m co rre', o term o corre é d istri­ b u íd o p ara q u a lq u e r te rm o inferior p elo sign o todo " (PEDRO HISPANO, Summ. log, 12.01). Ao c o n ce ito de D. d ev e-se a g ran d e im p o rtân cia q u e os ló g ico s te rm in ista s atrib u íam ao o p e ra ­ d o r todo(v.). E m b o ra a im p o rtân cia d esse o p e ­ ra d o r seja p o r v e z e s re c o n h e c id a na lógica c o n ­ te m p o râ n e a , falta a esta u m a d o u trin a da d istrib u ição . DISTRIBUTIVO (gr. ôtavejiriTtKÓÇ; in. Distríbutive, fr. Dístributif, ai. Distributiv-, it. Distributivo). 1. S eg u n d o A ristó teles, ju stiça D. é a q u e p re sid e à d iv isão d o s re cu rso s e b en s c o ­ m u n s, d e v e n d o essa d iv isão ser feita se g u n d o a c o n trib u iç ão de cada. u m p ara a p ro d u ç ã o d esse s b e n s {Et. nic, V , 4, 1131 b 25). E sse tipo de ju stiça é, p o rtan to , se m e lh a n te a u m a p ro p o r­ ção g eo m étric a d e p elo m en o s q u a tro term o s, n a q ual as re c o m p e n sa s d ad as a d u as p esso as estejam e n tre si co m o os m érito s resp ectiv o s (Jbid., V , 3,1131 a 15) (v. JUSTIÇA). 2. Lei D . é o n o m e d ad o a certo n ú m e ro de leis h a b itu a lm e n te ad m itid as em aritm ética e em lógica. N a aritm ética, a lei D. para a m u lti­ p lic aç ão e p ara a ad iç ão tem a form a seg u in te: x x (y + z) = (x x y) + (x x z) N o cálcu lo d as p ro p o siç õ e s e no cálculo das classes há leis d istrib u tiv as an álo g as. DIVERSIDADE (in. Diversity, fr. Diversité, ai. Verschiedenbeit;it.Diversitã). T od aalteridade, d iferença ou d e sse m e lh a n ç a . Esse term o é m ais g e n é ric o q u e os três acim a e p o d e in d icar q u a l­ q u e r u m d ele s ou to d o s ju n to s. P o d e o u tro ssim in d icar a sim p les d istin ção n u m érica q u a n d o d u as co isas n ã o diferem em n ad a, ex c eto p o r sere m n u m e ric a m e n te d istin tas. N esse s e n tid o , a D . é a n e g a ç ã o p u ra e sim p les da id en tid a d e ; W olff a definia d iz e n d o q u e "são d iv ersas as co isas q u e n ão p o d e m ser su b stitu íd a s u m a p ela o utra, p e rm a n e c e n d o co n sta n te s os p re ­ d ic a d o s q u e se a trib u e m a u m a d ela s, seja a b so lu ta m e n te , seja em d ad a co n d içã o " (Ont., § 183).

DIVERTIMENTO

DIVERTIMENTO (in. Diversion; fr. Divertissement; ai. Abwendung; it. Divertimento).

Qualquer atividade que afaste o homem das ocupações ou preocupações habituais. Pascal entendeu o D. como o meio de que o homem dispõe para escapar à consciência de sua pró­ pria miséria, e portanto também incluiu no D. os trabalhos e as ocupações habituais. "Como não puderam curar a morte, a miséria, a igno­ rância, os homens julgaram que, para serem felizes, melhor seria não pensar nelas" iPensées, 168, 131, 139, etc). Segundo Pascal, a busca de ocupações tanto mais agradáveis quanto mais absorventes, de espetáculos, de entretenimentos, etc, é conseqüência dessa ati­ tude, que significa fraqueza e infelicidade por­ que torna o homem dependente e passível de ser perturbado por mil acidentes (Jbid., 170). Opondo-se a Pascal, Voltaire observava: "Nossa condição é precisamente pensar nos objetos externos com os quais temos relações necessá­ rias. É falso achar que se pode levar um ho­ mem a deixar de pensar na condição humana, porque, seja qual for a coisa a que ele aplique seu espírito, está-lo-á aplicando a alguma coisa que se vincula a tal condição. Pensar em si, fa­ zendo abstração das coisas naturais, é pensar em nada: digo, atente-se bem, absolutamente nada" (Annotations sur lespensées de Pascal, § 38). Hume, por sua vez, reconhecia como jus­ tas essas considerações porque "o espírito não pode proporcionar sozinho seu próprio D. e naturalmente procura fora de si objetos que lhe possam dar sensação vivida e ponham suas capacidades em ação" (Treatise, II, 1, 4). Ponto de vista aceito também pela psicologia moderna. DÍVIDA. V. DÉBITO. D IV ISÃ O (gr. SmípecRÇ; lat. Divisio; in. Divisíon; fr. Division; ai. Einteilug; it. Divisioné). O processo da D., que Platão considerou como segunda fase da dialética (v.) e Aristóteles ne­ gligenciou como "silogismo fraco" (An. pr., I, 31, 46 a 31), foi reintroduzido na lógica dos estóicos que foram os primeiros a distinguir a D. da partição, a definira subdivisão como "uma D. depois da D." e a distinguir a D. por espécie da D. porcontrário ou por negação (DIÓG. L, VII, 61). Essa doutrina, que se encontra repro­ duzida sem variações na lógica do séc XIII (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 5.45), foi notavelmente enriquecida nos séculos seguin­ tes (OCKHAM, Summa logicae, I, 34; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, IV, 5-7) e exposta

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DOGMA

em último lugar por Hamilton, que ilustrou amplamente seus fundamentos tradicionais. Em primeiro lugar, a D., como D. lógica, dis­ tingue-se da participação, que é a decomposi­ ção de um todo em suas partes, porquanto é a distinção de objetos diferentes que podem ser significados pelo mesmo nome. A D. só pode ser feita com base num princípio que exprima um caráter essencial do objeto. Se os membros que resultam de uma D. são também divididos, tem-se uma subdivisão; se um mesmo grupo pode ser dividido com base em princípios dife­ rentes, têm-se co-divisões. Enfim, se uma D. tem só dois membros chama-se dicotomia; se três, tricotomia, etc.; se muitos, politomia. Ha­ milton também enunciou as seguintes regras da D.: Ia toda D. deve ter um princípio; 2- deve ter só um; 3a deve ser um caráter real e essen­ cial da noção dividida; 4a nenhum membro divisor do predicado deve, por si mesmo, exaurir o sujeito; 5a os membros dividendos, tomados conjuntamente, devem exaurir o sujeito; 6- os membros divisivos devem ser mutuamente excludentes; 7a a D. deve proceder continua­ mente de diferenças imediatas a diferenças mediatas (Lectures on Logic, II, 2- ed., pp. 22 ss.). O estudo da D. desapareceu da lógica con­ temporânea. Esse conceito foi substituído pelo de disjunção, que é um dos conectivos lógicos (v. CONECTIVO). D IV ISIB IL ID A D E (gr. ôiaípecnç lat. Divisibilitas; in. Divisibility, fr. Divisibilité, ai. Teilbarkeit; it. Divisibilitã). Propriedade de um todo, de poder ser decomposto em suas partes; se o todo é contínuo, essas partes são, por sua vez, divisíveis (ARISTÓTELES, FÍS., VI, 1, 231 b 11). Segundo Kant, uma das antinomias cosmológicas consiste em julgar possível e impossível a divi­ são ao infinito, portanto impossível e possível a existência de partes simples, ou seja, indivisíveis. Segundo ele, a antinomia resolvese reconhecendo que, embora o todo possa ser dado à intuição, o mesmo não ocorre com a divisão inteira, que consiste só na decomposi­ ção progressiva ou no retrocesso (Crtt. R. Pura, Dialética, cap. II, seç. 9). D O G M A (gr. 5ÓYU,CG lat. Dogma; in. Dogma; fr. Dogme, ai. Dogma; it. Dogma). 1. Opinião ou crença. Nesse sentido, essa palavra é usada por Platão (Rep., 538 c; Leis, 644 d) e contra­ posta pelos céticos à epocbé, ou suspensão do assentimento, que consiste em não definir a própria opinião em um sentido ou em outro (DIÓG. L, IX, 74). Kant entendeu por D. "uma

DOGMATISMO

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p ro p o siç ã o d ire ta m e n te sin tética q u e d eriva de co n ceito s" e co m o tal d istin ta de "um a p ro p o si­ ção do m esm o g ê n e ro , d eriv ad a d a co n stru ç ão dos co n ce ito s", q u e é u m materna. E m o u tro s term o s, os D . são "p ro p o siç õ e s sin té tic a s a priorí' d e n atu re za filosófica, ao p asso q u e n ão p o d eriam ser ch a m a d a s de D. as p ro p o siç õ e s do cálcu lo e da g e o m etria (Crít. R. Pura, II, D isciplina da R azão P ura, seç. I). 2. D ec isão , ju íz o e, p o rta n to , d e c re to ou o rd em . N esse se n tid o , essa p alav ra foi e n te n d i­ d a n a A n tig ü id ad e (CÍCERO, Acad, IV, 9; SÊNECA, Ep, 94) p ara in d icar as cren ça s fu n d a m en tais d as esco la s filosóficas, e d e p o is u sa d a p ara indicar as d e c isõ e s d os co n cílio s e d as a u to ri­ d ad es e c le siástic as s o b re as m atérias fu n d a ­ m en tais da fé. D O G M A T ISM O (in. Dogmatism-,fr. Dogmatistne, ai. Dogmatismus; it. Dogmatismó). O sig n i­ ficado d esse te rm o foi fixado p ela c o n tra p o ­ sição q u e os cético s e sta b e le c e ra m en tre os filósofos dogmáticos, q u e d efin em su a o p in ião so b re to d o s os a ssu n to s, e os filósofos céticos, q u e n ã o a d efinem (DIÓG. L , IX , 7 4 ). D esse p on to de v ista, são d o g m á tic o s to d o s os filó so ­ fos q u e n ã o são cético s. U m n o v o sign ificad o de D . foi o q u e K ant atrib u iu a essa p alav ra, ao identificar D. co m m etafísica trad ic io n a l, e n te n ­ d en d o p o r ele "o p re c o n c e ito d e p o d e r p ro g re ­ dir n a m etafísica sem u m a crítica da razão " (Crít. R. Pura, Pref. à 2a ed .). E sse D. filosófico, que co n siste em av e n tu ra r-se a razão em p e s ­ quisas q u e estã o fora de sua alçada, p o r e sta ­ rem além da esfera da e x p eriên cia p o ssív el, é in centiv ad o p elo "D. co m u m ", q u e co n siste em "raciocinar le v ia n a m e n te so b re co isas d as q uais não se c o m p re e n d e n a d a e d as q u ais n u n ca n in gu ém no m u n d o e n te n d e rá n ad a" {Ibid"). Essa p alavra foi u sa d a p o r F ichte, p ara in d icar o p o n to d e vista do re alism o , se g u n d o o q ual a re p resen ta ção é p ro d u z id a p o r u m a re alid ad e ex tern a, e n ão p e lo eu (Wissenschaftslehre, 1794,1, T eo re m a IV ), e p o r H eg el, p ara d e sig ­ nar o p o n to de vista o p o sto ao d a dialética, s e ­ g un do o q ual "de d u as afirm açõ es o p o sta s u m a deve ser v e rd a d e ira e o u tra, falsa" {Ene, § 32). Esses dois filósofos d era m assim início ao p é s ­ sim o co stu m e d e ch a m a r d e D . os p o n to s de vista d iferentes d os seu s p ró p rio s, em p re g a n d o a palavra sem n e n h u m a referên cia ao seu u so histórico. M ais co n fo rm e a esse u so é o signifi­ cado q ue H usserl lh e atrib u iu , q u e n ão im plica n en h u m a c o n d e n a ç ã o d a atitu d e c o rre s p o n ­ dente. "A ju sta atitu d e no ca m p o d as in d a g a ­

DOUTA IGNORÂNCIA çõ e s q u e ch a m a m o s de d o g m ático , em s e n tid o p o sitiv o , ou seja, pré-filosófico, e ao q ual p e r­ te n c e m as ciên cias em p íricas (m as n ão só es­ tas), é d eix ar h o n e s ta m e n te de lad o , co m to d a 'filosofia da n a tu re z a ' e to d a 'teoria do c o n h e c i­ m e n to ', q u a lq u e r ceticism o e assu m ir os d ad o s co g n itiv o s o n d e eles efetiv am en te se e n c o n ­ tram " (Jdeen, I, § 26). O D. se co n trap o ria assim à epoché fe n o m en o ló g ica, p ró p ria da filosofia (v. EPOCHÉ). D O M IN A N T E . V. RELAÇÃO, C, 5e. D O M IN A N T E , A R G U M E N T O . V . VITORIO­ SO, ARGUMENTO. D O M IN A N T E S (ai. Dominanten). O fisiólo g o J. R ein k e u so u esse te rm o p ara d e n o m i­ n ar as fo rças d e n a tu re z a e sp iritu al, in c o n s­ c ie n te s m as q u e ag em d e m o d o finalista, q u e p re s id e m às fu n ç õ e s d o s o rg a n ism o s e à v id a em g era l. E ssas fo rças seriam c o n h e c id a s só in d ire ta m e n te , atrav és d e se u s efeitos (Die Welt ais Tat, 1899,1957, Ted., p p. 273 ss.; Einleitung in die theoretischeBiologíe, 1902, p p . 168 ss.) (v. VIDA, VITALISMO). D O N A T IS M O (lat. Donatismus; in. Donatism; fr. Donatisme, ai. Donatismus). A d o u tri­ na de D o n a to de C asas N eg ras (séc. III), q u e foi u m d o s alvo s da p o lêm ica de S. A go stin ho . E ssa d o u trin a afirm ava a ab so lu ta in tran sig ê n ­ cia da Igreja d ian te do E stad o. C o m o c o m u n i­ d ad e de p erfeito s, a Igreja n ão d ev e ter co n tato co m a a u to rid a d e civil; as au to rid a d e s religiosas q u e to le ra m tais c o n tato s co m etem traição e p e rd e m a c a p a c id a d e d e ad m in istra r os sa c ra ­ m en to s. O D. teria to rn a d o im p o ssív el a fo rm a­ ção da h ierarq u ia relig io sa e, su b o rd in a n d o a v a lid a d e d o s sa c ra m e n to s à p u reza de v id a do m in istro , teria e x p o sto essa v alid a d e à d úv id a

constante (cf. S. AGOSTINHO, De baptismo con­

tra donatistas, 4 01 ; Contra litteras Petiliani donatistae, 401; Contra donatistas epístola de unitate ecclesiae, 405, e tc ). D O R (gr. ÀÚ7Lf lat. Dolon; in. Pain; fr. Douleur, ai. Schmerz; it. Dolore). U m a das to n a lid a ­ d es fu n d a m en tais da v id a em o tiva, m ais p re c i­ s a m e n te a n eg ativ a, q u e co stu m a ser assu m id a co m o sinal ou in d icação do caráter h ostil ou d esfav o ráv el da situ aç ão em q u e se en c o n tra o s e r viv o (v. EMOÇÃO). D O U T A IG N O R Â N C IA (lat. Docta ignorantid). C onsciência d os lim ites do saber, co m o p rin ­ cíp io ou fu n d a m e n to de u m sab er p o sitiv o . E s­ sa ex p re ssã o en c o n tra -se , talv ez p ela p rim eira v ez , em S. A g o stin h o (Ep. adProbam, 130, 15, § 28). R ep ete-se alg u m as v e z e s n a filosofia m e ­

DOXICO

dieval, sendo usada p. ex. por S. Boaventura, para caracterizar o êxtase: "Como por uma douta ignorância, nosso espírito é arrebatado acima de si, na obscuridade e no êxtase" (Breviloquium, V, 6). Mas sua difusão deve-se a Nicolau de Cusa, que deu esse título a uma de suas maiores obras (De docta ignorantia, 1440). Nicolau de Cusa, como os outros, usou a expressão com referência a Deus: a D. ignorância consiste em saber que nada se pode saber de Deus. Deus é infinito, logo está além de qualquer proporção com o finito, ou seja, com o homem: o que faz dele algo de incomensurável em relação aos poderes humanos, podendo ser entendido somente por via de alteridade, ou seja, negando ou levando ao extremo os caracteres conhecidos pelo homem (De docta ignor., I, 3; De coniecturis, I, 13; Apologia, p. 13) (v. IGNORÂNCIA).

DOXICO (ai. Doxisch). De doxa (opinião). Husserl indica com esse adjetivo todos os caracteres próprios da crença (ou doxa) (Ideen, I, § 103). DOXOLOGIAouPRATICOLOGIA(fr Do-

xologíe ou practicologie). F oi e s se o n o m e d a d o p o r L eib n iz a certas fo rm as d e e x p re s sã o q u e se c o a d u n a m co m o u so p o p u la r ou c o r­ re n te , a in d a q u e n ão sejam rig o ro s a m e n te e x a to s; p o r e x e m p lo , c o n tin u a -s e d iz e n d o q u e o sol n a s c e e se p õ e , m e sm o d e p o is de ac eita a te o ria d e C o p é rn ic o (Disc. de Mét., § 27). D U A L ID A D E (lat. Dualitas; in. Duality, fr.

Dualité, ai. Dualitãt; it. Dualitã). Relação que une dois objetos quaisquer, de tal modo que um pode transformar-se no outro median­ te operações oportunas. Esse pelo menos é o conceito definido em geometria, em que são chamadas de duais duas figuras que podem ser obtidas uma da outra, assim como a reta e o ponto, porque traçar uma reta passando por um ponto e marcar um ponto sobre uma reta são ambas operações duais. Em filosofia, a palavra não tem significado tão preciso: indica em geral um par de termos entre os quais haja uma re­ lação essencial: p. ex., matéria e forma, etc. DUALISMO (in. Dualism; fr. Dualisme, ai. Dualismus. it. Dualismo). Esse termo foi cunhado no séc. XVIII (aparece pela primeira vez, prova­ v elm e n te, em THOMAS HYDE, Historia religionis veterumpersarum, 1700, cap. IX, p. 164), para indicar a doutrina de Zoroastro, que admite dois princípios ou divindades, um do bem e outro do mal, em luta constante entre si. Bayle e Leibniz

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DUPLA VERDADE

empregam essa palavra no mesmo sentido, mas Christian Wolff dá-lhe significado diferente, ao dizer que são "dualistas aqueles que admitem a existência de substâncias materiais e de subs­ tâncias espirituais" (Psychol. rat., § 39). Esse foi o significado que se tornou mais comum e di­ fundido na tradição filosófica. Segundo ele, o fundador do dualismo seria Descartes, que re­ conheceu a existência de duas espécies dife­ rentes de substâncias: a corpórea e a espiritual. Essa palavra, todavia, muitas vezes foi estendi­ da para indicar outras oposições reais que os filósofos descobriram no universo: p. ex., a opo­ sição aristotélica entre matéria e forma, a me­ dieval entre existência e essência e uma oposição que ocorre em todos os tempos, entre aparên­ cia e realidade. Arthur O. Lovejoy examinou historicamente a revolta contra o D. (TheRevolt Against Dualism, 1930), insistindo na necessi­ dade de certa forma de D. ou pelo menos de "bifurcação da experiência" que justifique a dis­ tinção entre a aparência ilusória e a realidade (v. MONISMO).

DUCTIO PER IMPOSSIBILE. Ou ainda: per contradictoriampropositionem. Redução da tese

adversária ao absurdo por meio da demonstração da contradição que ela implica. Assume a for­ ma dos silogismos Baroco (v.) e Bocardo (v.) (JUNGIUS, Lógica, III, 14; cf. ARISTÓTELES, An. pr, I, 5, 27 a 36 ss.). DUPLA VERDADE (in. Double truth; fr. Double vérité, ai. Doppelte Wahrheit; it. Doppia veritã). Foi assim que os escolásticos latinos designaram a doutrina de Averróis sobre as relações entre religião e filosofia, sendo assim designadas depois todas as doutrinas seme­ lhantes. Segundo Averróis "a religião dos filó­ sofos consiste em aprofundar o estudo de tudo o que é; não se poderia render a Deus culto melhor do que conhecer suas obras, que leva a conhecê-lo em toda a sua realidade" (MUNK, Mélanges depbil. juíve et árabe, p. 456). Por outro lado, a pesquisa filosófica não pode ser de todos e a religião do filósofo não pode ser a religião do vulgo. A religião feita para a maioria segue e deve seguir um caminho "sim­ ples e narrativo", que ilumine e dirija a ação. Segundo Averróis, cabe à filosofia o mundo da especulação; à religião, o mundo da ação (Destructio destruitionum, d isp . 6, p p . 56, 79). Como se vê, o ponto de vista de Averróis nada tem em comum com o fideísmo grosseiro que contrapõe a verdade da razão à verdade da fé e se decida por esta num ato de arbítrio ou de

DUPLA VERDADE

deferência à autoridade. Mas depois a expres­ são dupla verdade serviu justamente para designar esse fideísmo, fosse ele sincero ou insincero. Assim, no último período da Escolástica, muitas proposições, consideradas de­ monstração impossível, são admitidas por fé; e Duns Scot delimita nitidamente a esfera da fé, que diz respeito à ação, e a esfera da filosofia, que diz respeito à especulação (Op. Ox., Prol., q. 3). Com Ockham e seus seguidores, essa posição torna-se ainda mais radical, visto re­ conhecer-se a impossibilidade de demonstrar todas as proposições fundamentais da fé. Ockham afirmava peremptoriamente que "os artigos de fé não são princípios de demonstra­ ção, nem conclusões, nem probabilidades" (Summa log., III, 1), querendo dizer que não são verdades evidentes, nem verdades de­ monstradas, nem proposições prováveis. Mas nem mesmo em Ockham se observa a atitude desconcertante que foi típica de muitos averroístas dos sécs. XIV e XV, consistente em de­ clarar friamente, sem a mínima justificação, que se acredita no contrário daquilo que se de­ monstrou, pois assim quer a fé ou a religião. Dizia, p. ex., João de Jandun (séc. XIV): "Con­ quanto essa opinião de Averróis não possa ser refutada com razões demonstrativas, eu digo o contrário e afirmo que o intelecto não é nume­ ricamente uno em todos os lugares... Mas isso não demonstro com nenhuma razão necessária porque não julgo possível; e se alguém sonhar fazê-lo, que se alegre (gaudeat). Essa conclu­ são, afirmo que é verdadeira e julgo indubitável unicamente pela fé" (De an, III, q. 7). E também a propósito de outros pontos funda­ mentais da fé cristã João de Jandun repete seu convite irônico: "alegre-se quem souber de­ monstrá-lo". É difícil crer na sinceridade de se­ melhante atitude, assim como é difícil acreditar na sincericiade de um Pomponazzi, que, depois de demonstrar a inconciliabilidade entre o des­ tino e o livre-arbítrio, declara explicitamente que é preciso crer na Igreja e portanto negar o destino (De fato, Perorat.): escapatória a que muitos recorreram entre os sécs. XVI e XVII. Na realidade, só esse ponto de vista (se assim se pode chamá-lo) deveria ser chamado de "du­ pla verdade", ao passo que para o outro, represen­ tado por Averróis, a verdade é uma só e a reli­ gião e a filosofia simplesmente a expressam de modos diferentes, uma para a especulação e outra para a ação. Numa forma ou noutra, po­ rém, a atitude da dupla verdade continua ten­

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DURAÇÃO

do, ainda hoje, seus defensores tácitos, tanto em filosofia quanto em religião e política. Quando se acha que nem todas as verdades devem ser ditas e proclamadas, que algumas verdades podem ser perigosas para a "maioria", sendo, pois, necessário calar sobre elas ou ignorá-las oficialmente, está-se encarnando, ainda que inconscientemente, a atitude que a tradição filosófica chamou de dupla verdade. Essa atitude pode caracterizar-se como crença no caráter aristocrático da verdade, ou seja, de que a verdade realmente se destina a uns pou­ cos e a "maioria" é incapaz de suportá-la. DURAÇÃO (gr. atcóv; lat. Aevum; in. Duration; fr. Durée, ai. Dawer, it. Durata). Período de vida de uma coisa ou de um acontecimento, limites de sua existência no tempo. Era assim que Aristóteles definia a D.: "Termo que abran­ ge o tempo de cada coisa viva e fora do qual nada dessa coisa incide naturalmente" (De cael., I, 9, 279 a 23). A duração abrange, por­ tanto, todo o período de vida de uma coisa, mas se a coisa de que se trata é o mundo, que abrange a totalidade do tempo, a D. é a própria eternidade, no sentido de um permanecer indefinido da existência no tempo (Ibid, I, 9, 279 a 25). Entre os antigos, portanto, o con­ ceito de D. tem dois significados: 1". os termos temporais que circunscrevem a existência de uma coisa qualquer; 2". o prolongamento inde­ finido do tempo, ou seja, a eternidade. Aqui consideraremos só o primeiro desses significa­ dos, já que o outro está incluído no verbete ETERNIDADE (V.). Descartes distinguiu o tempo, como número do movimento, da D. em geral, vendo nele "cer­ to modo de pensar essa D., de compreender numa medida comum a D. de todas as coisas" (Princ. phil, I, 57). Spinoza só fez repetir o mesmo conceito de Descartes ao definir a D. como "a existência das coisas criadas, enquanto persevera em sua realidade" (Cogitada metaphysica, I, 5) ou como "a continuação indefinida do exis­ tir" (Et., II, def. 5). Com Locke a noção de D. é explicada a partir da experiência interior. D. seria a generalização dessa experiência, como a extensão é uma generalização da experiência da distância obtida pela visão ou pelo tato. Locke diz "obtemos a idéia de sucessão ou de D. da reflexão em torno da sucessão das idéias que vemos aparecer, uma após a outra, em nosso espírito" (Ensaio, II, 14, 4). Diante disso, Leibniz observava que "uma série de percepções des­ perta em nós a idéia da D., mas não a substitui.

DURAÇÃO

Nossas percepções nunca têm uma sucessão tão constante e regular que possa corresponder ã do tempo, que é contínuo, uniforme e sim­ ples, como uma linha reta". Portanto, pode-se dizer que se conhece "a D. através do número dos movimentos periódicos iguais, dos quais um começa quando acaba o outro, como p. ex. o número de revoluções da terra ou dos astros" (Nouv. ess, II, 14, § 16, 22). Em outros termos, para Leibniz a noção de D. está ligada à de medida do tempo e esta última está ligada aos movimentos periódicos uniformes. E Kant ex­ primia substancialmente o mesmo conceito de duração ao observar que "só por meio do per­ manente a existência adquire, nas várias partes da série temporal, uma quantidade que se cha­ ma duração" (Crít. R. Pura, Anal. d. Princ, I. Analogia). A D. é, portanto, uma quantidade mensurável com fundamento na permanência: é um atributo da substância porquanto é o pró­ prio objeto que permanece no tempo (Jbid.). Donde se conclui que, enquanto os antigos remetiam a idéia de D. à de eternidade, os modernos, ao contrário, remetem-na à idéia de tempo, identificando-as. Bergson procura separar D. de tempo, pelo menos do tempo mensurável pela ciência, e acaba por transformá-la numa espécie de eter­ nidade. Para Bergson, o tempo da ciência é espacializado, ou seja, reduzido à sucessão de instantes idênticos. O tempo real ou D. é dado pela consciência, despojado de qualquer superestrutura intelectual ou simbólica, ou reco­ nhecido em sua fluidez original. Nessa fluidez não existem estados de consciência relativa­ mente uniformes que se sucedam uns aos outros, como os instantes do tempo espacializado da ciência. Existe uma única corrente fluida, onde não existem cortes nítidos nem separações, e na qual, a cada instante, tudo é novo e tudo é ao mesmo tempo conservado. Bergson diz: "Meu estado d'alma, avançando no caminho do tempo, vai-se dilatando conti­ nuamente com a D. que recolhe: pode-se dizer que faz uma avalanche consigo mesmo" (Evol. créatr., p. 2). O conceito de D. assim entendido é o princípio de toda a filosofia de Bergson: é invocado como memória, ou seja, conservação integral, em Matière et mémoire, para explicar a relação entre alma e corpo (v. ALMA); como ímpeto vital em Evolução criadora, para expli­ car a evolução da vida e sua divisão nas duas direções fundamentais que são instinto e inteli­ gência; e também como ímpeto vital em Deux

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DUVIDA

sources de Ia morale et de Ia religion, para ex­ plicar o desenvolvimento das sociedades hu­ manas e seu encaminhamento para uma socie­ dade mística. Finalmente, é o objeto próprio da intuição, que é o órgão específico da filosofia, destinada a apreender a espiritualidade como tal, da mesma forma como o intelecto destinase a apreender a matéria, ou seja, a imobilidade do mecanicismo. Como já se disse, essa noção de D., não obstante apresentar-se caracteriza­ da como mudança incessante, está mais próxi­ ma da noção de eternidade que da noção de tempo, visto que, na verdade, conserva tudo, é tudo e nada tem fora de si, precisamente como o aión de Aristóteles. DÚVIDA (gr. àTTopíot; lat. Dubium, in. Doubt; fr. Doute, ai. Zweifel; it. Dubbio). Esse termo costuma designar duas coisas diferentes, po­ rém mais ou menos ligadas: ls um estado subjetivo de incerteza, ou seja, uma crença ou opinião não suficientemente determinadas, ou a hesitação em escolher entre a asserção da afirmação e a asserção da negação; 2S uma situação objetiva de indeterminação ou a problematicidade de uma situação: seu caráter de indecisão em relação ao possível êxito ou à possível solução. Aristóteles foi o primeiro a re­ conhecer (pelo menos implicitamente) essa distinção de significados quando negou que a dúvida pudesse reduzir-se à "equivalência dos raciocínios contrários", porque é essa equiva­ lência que pode produzir a dúvida. E disse: "Quando raciocinamos em ambas as direções e todos os elementos do discurso parecem de­ senvolver-se com igual validade em cada um dos dois sentidos, ficamos em D. sobre o que fazer" (Top., VI, 7, 145 b 15). A "equivalência de raciocínios opostos" é a situação objetiva de indeterminação; a D. é a incerteza subjetiva, a incapacidade de decisão que ela comporta. Es­ ses dois aspectos encontram-se, de forma mais ou menos explícita, na história da filosofia, mas com predominância do aspecto subjetivo, que é considerado peculiar ou constitutivo da dúvi­ da. É isso o que se conclui de um comentário de Sexto Empírico (Pirr. hyp., I, 7) para quem a D. é "a hesitação entre afirmar e negar", con­ quanto os céticos não neguem os bons funda­ mentos objetivos dessa hesitação. E mesmo não negando seu fundamento objetivo, S. Tomás insiste no caráter subjetivo da D. como igno­ rância ou falta de informação, não a conside­ rando, portanto, essencial à escolha voluntária (S. Th, III, 2. 18, a. 4). Aparentemente, o cará­

DUVIDA

ter subjetivo da D. também prevalece em Descar­ tes: o cunho autobiográfico da busca cartesiana parece fazer da D. uma fase subjetiva dessa busca. Mas, na verdade, a D. cartesiana não é um elemento da história pessoal de Descartes, mas a fase crítica do tipo de saber próprio do tempo em que Descartes vivia, e que através dele chega a reconhecer a insuficiência e a fra­ gilidade de seus fundamentos. É o que o pró­ prio Descartes reconhecia: "Não concluiremos mal, dizendo que a física, a astronomia, a medi­ cina e todas as outras ciências que dependem do estudo das coisas compostas são dúbias e incertas; mas que a aritmética, a geometria e as outras ciências dessa natureza, que tratam de coisas bastante simples e gerais, sem se preo­ cuparem com sua existência ou inexistência na natureza, contêm algo de certo e de indubitável" (Méd, I). Embora a D. possa ser estendida às ciências matemáticas (aventando-se a hipótese de que um gênio maléfico se divertisse enga­ nando os homens), o certo é que, para Descar­ tes, estas escapam, por motivos objetivos, à incerteza subjetiva e permitem que ele extraia justamente delas as regras fundamentais do método (Discours, II). O caráter objetivo da D. tem sido freqüentemente evidenciado pela fi­ losofia contemporânea. Por um lado, em Husserl a D., como estado subjetivo, corresponde a um modo de dar-se ou de ser da coisa (Ideen, I, § 103). Por outro, para Dewey, a raiz da D. está na "situação problemática", que estimula ou determina a pesquisa, e a própria pesquisa deve levar a uma nova colocação. "Ao sistematizar a relação perturbada entre organismo e ambien­ te [que determina a D.], a investigação não se limita a afastar a D. restabelecendo a integração primitiva, de boa adaptação. Provoca novas con­ dições ambientais, que são ocasiões de novos problemas" (Logic, cap. 2; trad. it., p. 73). O valor da D. para a pesquisa filosófica foi admitido por todas as doutrinas que vêem na filosofia a procura e a aquisição da verdade, mais que a posse e a revelação desta. Às vezes, também se acreditou que a D. trouxesse em si

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DÚVIDA HIPERBÓLICA

ou implicasse uma certeza originária superior a toda dúvida. Essa é a corrente de pensamento que Descartes difundiu pelo mundo moderno e no qual baseou a evidência da consciência. Tem origem em S. Agostinho: "Quem sabe que duvida sabe a verdade, e está certo disso que sabe: logo, está certo da verdade. Portanto, quem duvidar de que exista a verdade, já tem em si mesmo uma verdade, a verdade de que não pode duvidar, já que nenhuma coisa ver­ dadeira é verdadeira sem a verdade. Portanto, não deve duvidar da verdade quem pôde por uma só vez duvidar" (De vera religione, 39) *E todos recordam a D. total de Descartes, que re­ dunda no cogito: "Enquanto assim rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar e imagi­ namos até mesmo que seja falso, supomos fa­ cilmente que não há Deus, nem céu, nem terra, e que não temos corpo; mas não somos capa­ zes de supor que não existimos enquanto duvi­ damos da verdade de todas as coisas, pois cau­ sa-nos tanta repugnância conceber que aquilo que pensa não existe realmente enquanto está pensando que, apesar de todas as suposições mais extravagantes, não poderíamos impedirnos de crer que essa conclusão, penso, logo existo, seria verdadeira e que, por conseguinte, seja a primeira e mais certa conclusão que se apresenta àquele que conduz seus pensamentos com ordem" (Princ.phil, I, 7). A certeza ligada à D. é a própria certeza do cogito e deve ser submetida às mesmas objeções (v. COGITO). A filosofia contemporânea, conquanto insis­ ta no aspecto objetivo da D. e, portanto, na extensão desse aspecto a todas as situações que podem constituir o ponto de partida para a pesquisa, tende a utilizar a D. "hiperbólica" (como se chamou a D. cartesiana) e a conside­ rar a D. circunscrita a uma situação ou proble­ ma determinado. Em outros termos, a D. não é vista hoje como início absoluto ou o primeiro princípio da pesquisa filosófica, mas como con­ dição pela qual uma situação suscita ou exige investigação. DÚVIDA HIPERBÓLICA. V. DÚVIDA

E E. 1. Na Lógica formal aristotélica, essa letra é usada como símbolo da proposição universal negativa (PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.21). 2. Na lógica modal tradicional, a proposição modal que afirma o modo e nega a proposição: p. ex., "É possível que não p", onde pé uma proposição qualquer (ARNAULD, Log, II, 8). 3. Na notação de Lukasiewicz, Eè usado para indicar a equivalência das proposições (A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic'., n^ 91). G. P.-N. A. ECLETISMO (gr. ÈKAeKTiKii ocipeoiç; in. Eclecticism, fr. Eclectisme, ai. Eklektizismus, it. Eclettísmo). A diretriz filosófica que consiste em escolher, dentre as doutrinas de diferentes fi­ lósofos, as teses mais apreciadas, sem se preo­ cupar em demasia com a coerência dessas te­ ses entre si e com sua conexão aos sistemas de origem. Esse termo acha-se em Diógenes Laércio (Proem., 21), que o usa com referência a um obscuro filósofo de Alexandria, Potámon, e foi adotado por Brucker (Historia critica philosophiae, II, p. 193). É comumente empre­ gado para indicar as seguintes tendências filo­ sóficas: 1- a adotada pela escola estóica a partir de Boeto de Síndon (morto em 119 a.C), da Academia Platônica a partir de Fílon de Arixa (séc. I a.C.) e pela escola aristotélica a partir de Andronico de Rodes (séc. I a.C), bem como por seus seguidores, dos quais o mais importante foi Cícero; o critério adotado pe­ los ecléticos dessa linha foi o acordo comum dos homens (consensus gentium); 2a o espiritualismo romântico de Cousin, que adotou pessoalmente o termo "ecletismo" para indicar seu método que visava levar ao nível da cons­ ciência as verdades implicitamente contidas nela (Du vrai, du beau et du bien, 1853, Pref.). ECOLOGIA (in. Ecology, fr. Ecologie, it. Eco­ logia). Estudo das relações entre o organismo

vivo e seu ambiente, que constitui parte fun­ damental da biologia; ou estudo das relações entre o homem como pessoa e seu ambiente social, que constitui parte da sociologia. Essa palavra é moderna e foi introduzida pelos anglosaxões. ECONOMIA (gr. OÍKOVOUÍOC; lat. Oeconomia-, in. Economy, fr. Economie, ai. Oekonomie, ital. Economia). Ordem ou regularidade de uma totalidade qualquer, seja esta uma casa, uma cidade, um Estado ou o mundo. No Novo Tes­ tamento essa palavra, às vezes, é usada para indicar o plano providencial (S. PAULO, Eph., I, 10). Orígenes chamou de "E." a encarnação do Verbo, pois ela restituiu providencialmente ao mundo a ordem e a sua verdadeira regra (Contra Cels., 11, 9). Mas, ao menos no que diz respeito às totalidades finitas, a melhor ordem é a que produz o resultado máximo com o esforço mínimo, de tal modo que mesmo a lei do menor esforço foi entendida, na história da filosofia, como "prin­ cípio da E.". Esse princípio, como regra meto­ dológica, não deve ser confundido com o prin­ cípio da ação mínima(v.), que, num primeiro momento, é um princípio físico e metafísico e, num segundo momento, uma lei da mecânica. Pode-se dizer que o princípio da E. foi formu­ lado pela primeira vez por Ockham, no séc. XIV, com a fórmula "Pluralitas non estponenda sine necessitate" e "Frustra fit per plura quodpotestfieriperpauciora". Ockham utili­ zou constantemente esse princípio para elimi­ nar muitas das entidades admitidas pela escolástica tradicional: p. ex., a specie, sensível ou inteligível, como intermediária do conheci­ mento (Ln Sent., II, q. 14, P). Mais tarde, com o nome de navalha de Ockham, esse princípio foi expresso com a fórmula "Entia non sunt multiplicanda praeter necessita tem", forma

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que se encontra a partir da Lógica vetus et nova o autêntico objeto da economia política, que (1654) de Clauberg. Kant refere-se a esse prin­ muitas vezes reivindica para si um caráter des­ cípio como expressão da exigência de buscar critivo, visto situar-se diante desse comporta­ na natureza (ou melhor, de realizar através de mento como qualquer outra ciência diante do seu conhecimento) a máxima unidade e simpli­ seu objeto específico (cf. MEKGER, Grundsãtze cidade possíveis. E diz: "A existência dessa uni­ der Volkswirtschaftslehre, 1871; trad. it., pp. 51­ dade na natureza é pressuposta pelos filósofos 70; MISES, Die Gemeinwirtschaft, pp. 98 ss.; na conhecida regra da escola, segundo a qual FF.TTER, Economic Principies, 1915, cap. 1; os princípios não devem ser multiplicados sem STRIGL, Die õkonomischen Kategorien und die necessidade. Com isso se diz que a natureza Organisation der Wirtschaft, 1923, passim-, das coisas dá azo à racionalidade e que a apa­ ROBBINS, An Essay on theNat. and Significance rente diversidade infinita não deve impedir- ofEc. Sc, 1935, cap. 1). É possível distinguir nos de supor que, por trás dela, haja uma uni­ três fases da E. política, que correspondem aos dade das propriedades fundamentais, da qual três diferentes fundamentos adotados como pode ser extraída a multiplicidade por meio de base ou diretriz da técnica econômica. 1- O múltiplas determinações" (CrítR. Pura, Dialética, comportamento racional do homem nas situa­ livro II, seç. III, Do uso regulativo das idéias; ções de escassez é assegurado por uma ordem Crít. doJuízo, Intr., I). natural que age automaticamente e que, desde A filosofia contemporânea insistiu e ainda que não perturbada, garante a cada homem e hoje insiste muito na importância dessa regra a todos o máximo de utilidade possível. Cha­ metodológica. Para isso contribuíram sobretu­ maremos essa concepção de teoria da ordem do Avenarius (Die Phil. ais Denken der Welt natural. 2- Não existe uma ordem natural que gemãss dem Princip des kleinsten Kraftmasses, garanta o comportamento econômico dos indi­ 1876) e Mach, que disse: "Os métodos pelos víduos, mas existe e pode ser determinada em quais se constitui o saber são de natureza eco­ todos os casos uma distribuição dos meios eco­ nômica" (Die Principien der Wãrmenlehre, 2- nômicos que realize a satisfação máxima dos ed., 1900, p. 39). Segundo Mach, é esse prin­ indivíduos interessados, constituindo, portanto, cípio que preside, p. ex., à formação dos con­ um estado de equilíbrio. Chamaremos essa se­ ceitos, que nascem da situação de desequilíbrio gunda fase de teoria do equilíbrio; 3a Não tem entre o número das reações biologicamente sentido procurar determinar um estado de equi­ importantes, que é bastante limitado, e a varie­ líbrio não compatível com a realidade econô­ dade, quase ilimitada, das coisas existentes. mica. O comportamento racional do homem Permitindo classificar adequadamente essa va­ nas situações de escassez só pode ser determi­ riedade, o conceito permite enfrentá-la do modo nado a partir da condição de ignorância e de mais econômico, ou seja, com o mínimo esfor­ falibilidade com que ele entra nessas situações. ço (Erkenntniss undIrrtum, 1905, cap. 8). Essa Essa terceira fase ainda está no início e se en­ exigência ainda hoje é considerada válida na contra delineada apenas na chamada teoria dos construção das hipóteses ou teorias científicas jogos. Indicá-la-emos, portanto, por esse nome. P Teoria da ordem natural. — Foi com base (v. TEORIA). nessa que a E. surgiu e se constituiu no ECONOMIA POLÍTICA (in. Political eco- mundoteoria moderno. Embora desde a Antigüidade nomy, economics; fr. Economie politique, ai. numerosas observações os fenômenos Politische Oekonomie, it. Economia política). econômicos tenham sido sobre coligidas e expressas Como nome de uma ciência, esse termo em ge­ em forma de teorias, leis ou conselhos, E. po­ ral designa a técnica de enfrentar situações de lítica é uma ciência recente que só teveaorigem escassez. Por situações de escassez são entendi­ as uniformidades observáveis na esfera das as situações em que, para realizar objetivos quando dos fenômenos econômicos e exprimiveis múltiplos e dotados de importância diferente, o como "leis" passaram a ser consideradas exem­ homem dispõe de tempo e de meios limitados plos ou casos de uma ordem total e abrangente e passíveis de usos alternativos. A técnica ado­ desses fenômenos. Isso aconteceu no séc. tada para enfrentar tais situações tem em vista XVIII, quando, com os fisiocratas, reconheceua maior satisfação possível que elas permitem; a existência de uma "ordem natural" nos fe­ e as regras que constituem tal técnica definem se nômenos A primeira definição da o comportamento racional do homem nas E. políticaeconômicos. foi feita por Dupont de Nemours, situações de escassez. Esse comportamento é

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como "ciência da ordem natural", e a doutrina dessa ordem era ilustrada no Tableau économique (1758) de François Quesnay e em Refléxions sur Ia formation et Ia distribution des richesses(1776) de Turgot. Essa doutrina é aná­ loga e correspondente à do jusnaturalismo (v.): a ordem natural é racional, portanto uma ordem segundo a qual todo indivíduo pode al­ cançar o maior proveito possível com o míni­ mo esforço. Graças a esse caráter, essa ordem garante a coincidência entre interesse particular e o interesse geral, de tal modo que "o mundo caminha por si mesmo", e o desejo de bemestar confere à sociedade uma tendência contí­ nua ao progresso. Mas está claro que, se a or­ dem natural dos fenômenos econômicos é a única possível, qualquer tentativa de intervir nela para modificá-la é, além de inútil, prejudi­ cial, e portanto a máxima fundamental da po­ lítica econômica deve ser a de deixá-la caminhar por sua própria conta. Laisser faire, laisser passer foi o lema que os fisiocratas opuseram aos obstáculos que a ordenação, ainda parcial­ mente medieval, das atividades econômicas e as doutrinas mercantilistas haviam multiplica­ do. Adam Smith só fez aceitar o princípio fisiocrático em An Inquiry into theNature and Cau­ ses ofthe Wealth ofNations (177'6), que costuma ser considerado o início da fase científica da economia. Segundo Adam Smith, existe uma ordem harmoniosa e benéfica das coisas, que se manifesta sempre que a natureza fica entre­ gue a si mesma. As instituições humanas mui­ tas vezes alteraram ou perturbaram a ordem natural, mas esta ainda pode ser encontrada sob as superestruturas históricas que a ocul­ tam. Deve ser tarefa da ciência descobrir as leis determinantes dessa ordem e prescrever os meios pelos quais ela pode ser integralmente realizada nas sociedades humanas. Abolidos os sistemas de proteção ou de restrição, "o sis­ tema simples e fácil da liberdade natural ins­ taura-se por si mesmo". A única regra que esse sistema comporta é a liberdade ilimitada dos sujeitos econômicos. De fato, em virtude dessa liberdade, permite-se a ação da força natural própria da natureza humana, que, com sua ação constante em todos os homens, garante a realização da ordem econômica: a tendência egoísta. Smith acredita que em todas as circuns­ tâncias os homens tendem a agir no sentido de seu verdadeiro interesse e que, assim agindo, não só realizam o seu bem pessoal, mas tam­ bém o bem coletivo. Em outros termos, como

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já acreditavam os fisiocratas, a ordem natural age como ordem providencial: a harmonia en­ tre o interesse individual e o interesse público está previamente garantida, e Smith não acha possível o conflito entre os dois interesses. Foi esse o princípio clássico do liberalismo econô­ mico, cujas exigências básicas Smith enuncia: a negação de qualquer função econômica do Estado e a concepção de que a concorrência é a grande força reguladora dos valores econô­ micos. As análises subseqüentes dos economis­ tas mostraram, todavia, que a ordem econômi­ ca não anda sozinha em todos os seus aspec­ tos e que nem sempre a ação das forças que a regem é benéfica. Em An Essayon thePrincipies ofPopulation (1798), Malthus mostrava que o desequilíbrio que tende a ocorrer entre a enti­ dade população e a entidade meios de subsis­ tência (que crescem em proporções muito dife­ rentes, a primeira superando de muito a se­ gunda) só é restabelecido à custa de grandes males, como epidemias, guerras e flagelos so­ ciais. E David Ricardo, em seus Principies of Political Economy (1817), evidenciava alguns conflitos essenciais entre o interesse geral e o interesse privado. Assim, o fenômeno da renda fundiária mostra que o proprietário de terras tem interesse no crescimento rápido das ne­ cessidades e na manutenção de preços altos, para os produtos agrícolas (condições que ele­ vam a renda fundiária): assim, o que é útil para ele empobrece os outros cidadãos. A análise do salário dos operários evidenciava o antago­ nismo entre salário e lucro, em virtude do qual um só pode crescer em detrimento do outro. Na mesma linha estão as críticas de Sismondi, em Nouveauxpríncipes deconomie politique (1819). Explica-se assim o surgimento das pri­ meiras doutrinas socialistas, que, embora reco­ nhecendo a realidade da ordem econômica, pretendem intervir nela e dirigi-la para resulta­ do melhor. Assim, St.-Simon {Vindustrie, 1817; UOrganisateur, 1819-20) delineava os princí­ pios de uma ordem econômica ideal, que se baseava no industrialismo, mas era isenta dos defeitos da ordem natural. Na sociedade nova, organizada segundo esse ideal, não deveria ha­ ver classes, só trabalhadores, e todas as nações se transformariam numa única associação pro­ dutiva cujo fim seria alcançar, através de traba­ lhos pacíficos, a prosperidade máxima. Outros socialistas como Owen, Fourier e Blanc, distinguem-se de St.-Simon por preconizarem uma organização social em que os indivíduos, reuni­

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dos em grupos autônomos {associação coope­ rativa, de Owen,falanstériode Fourier, oficina socialde Blanc), conservem certa independên­ cia e não percam o poder de iniciativa, como ocorre na associação única de que fala St.-Simon. Mas o verdadeiro ataque ao fundamento da ordem liberal, a propriedade privada dos meios de produção, foi feito por Proudhon. No texto Qu'est-ce que Ia propriété? (1840), Proudhon afirmava que "a propriedade é rou­ bo", não no sentido de que ela tenha como ori­ gem o fruto da apropriação violenta, mas na medida em que dá a quem a detém o direito de fruir e dispor a seu bel-prazer do fruto do tra­ balho e da capacidade alheia. No entanto, em meados do séc. XIX, a doutrina da ordem na­ tural tinha como expoentes máximos Bastiat e Stuart Mill. O primeiro a interpretava em senti­ do finalista, dizendo que a ordem natural se or­ ganiza com vista à perfeita autonomia social e reafirmando, assim, o princípio da bondade essencial das forças que agem nessa ordem (Harmonies économiques, 1849)- O segundo, em Principies ofPolitical Economy (1848), afir­ mava o caráter mecânico da ordem natural e via a garantia da mecanicidade dessa ordem na natureza da força que a produz: a tendência ao bem-estar individual. Portanto, as leis da E., em particular as da produção dos bens, conser­ vam o caráter de necessidade, e em face delas a única atitude possível por parte do Estado é o laisserfaire. Com efeito, tudo o que é produ­ zido pelo homem deve obedecer às condições impostas pela natureza. Mesmo que o homem não queira, os produtos que ele cria serão limi­ tados pela soma dos produtos acumulados an­ teriormente (o capital) e, em vista dessa soma, serão proporcionais à energia e à habilidade do homem, à perfeição das máquinas empregadas e ao uso judicioso da divisão do trabalho (lei do capital). Mesmo que o homem não queira, uma quantidade dupla de trabalho não produ­ zirá, no mesmo terreno, uma quantidade du­ pla de produtos (lei das compensações decres­ centes). Por outro lado, a distribuição âz riqueza é uma instituição exclusivamente humana, de­ pendente das leis e dos costumes civis, que va­ riam segundo o tempo e o lugar, podendo va­ riar sempre que os homens queiram. Por isso Stuart Mill, assim como toda a corrente do utilitarismo (v.), é partidário de reformas até ra­ dicais nesse campo, desde que visem unir o máximo da liberdade individual à maior justiça na distribuição das riquezas naturais. Essa

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constatação de Stuart Mill — de que a distribui­ ção da riqueza não é determinada necessaria­ mente pelo mecanismo da ordem econômica — já é uma infração grave ao princípio da or­ dem mecânica. Todavia, esse princípio e a con­ cepção da E. política que nele se funda resisti­ ram aos dois ataques ferozes lançados contra a E. clássica na segunda metade do séc. XIX pela escola histórica e pelo marxismo. A primeira, fundada por Wilhelm Roscher {Grundriss zu Vorlesungen über die Staatswissenschaft nach geschichtlicherMethode, 1843), partia do prin­ cípio de que a ordem natural não é um meca­ nismo, mas um organismo que carrega em si uma lei de sucessão graças à qual passa por diversos graus de desenvolvimento. A ciência econômica deve, portanto, levar em conta esse desenvolvimento e ser a descrição da natureza econômica e das necessidades de um povo, ou seja, "a anatomia e a fisiologia da ordem eco­ nômica". A escola histórica, que é o reflexo mais importante do romantismo no domínio da E., por vezes acentuou (como fez Hildebrand) a diversidade dos organismos econômicos na­ cionais, negando que a E. clássica tivesse des­ coberto as leis econômicas naturais válidas em qualquer tempo e país. Contudo, na própria história dos organismos econômicos, a escola procurou justamente encontrar a ordem única ou, como dizia outro representante seu, Karl Knies, a "única lei geral do desenvolvimento da humanidade", que determina a história de cada nação. Portanto, embora o conceito de organis­ mo permitisse acentuar alguns caracteres aos quais o conceito de mecanismo dava pouca im­ portância — o desenvolvimento e a individuali­ dade histórica dos sistemas econômicos — e enfatizasse, assim, a dificuldade de se chegar a delinear uma ordem econômica universal, a exigência dessa ordem e sua descoberta ainda eram, para a escola histórica, o fundamento da E. política. Teve esse significado também para a doutrina que, sob certo aspecto, representou uma guinada na E. clássica: o marxismo. Com efeito, a passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista, que Marx previa como inevitável e necessária, seria produzida precisa­ mente pelo funcionamento do mecanismo eco­ nômico: sua necessidade é a necessidade pró­ pria das leis desse mecanismo. Assim como o capital (no sentido exato da palavra, ou seja, o meio de proporcionar a mais-valia a partir da força de trabalho do operário) nasceu da des­ truição do artesanato e do trabalho livre, que

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obrigou as grandes massas proletárias a vender sua força de trabalho, determinando a concen­ tração e o poder do capital, esse mesmo pro­ cesso de concentração e de fortalecimento do capital, levado ao extremo, transformar-se-ia em sua negação. A concentração industrial afastará o proprietário cada vez mais da empre­ sa e fará que a empresa, portanto sua direção, sua iniciativa e seu trabalho, acabem passando para as mãos dos trabalhadores assalariados. Desse modo, a função social da classe capitalis­ ta terá enfraquecido e sua expropriação poderá ser feita sem que o organismo produtivo se res­ sinta. Paralelamente, o proletário terá sido trei­ nado pela própria organização das grandes em­ presas para geri-las e dirigi-las, estando pronto a assumir plenamente sua posse. Desse modo, a socialização dos meios de produção, sua trans­ ferência da classe capitalista para a operária, ocorrerá com a mesma fatalidade que rege as metamorfoses da natureza (Das Kapital, 1867, 1, 24, § 7). Num primeiro momento, o caráter mecâni­ co da ordem natural pareceu ser confirmado pela introdução da linguagem matemática na ciência econômica, devido a Augustin Cournot em Recherches sur lesprincipes mathématiques de Ia théorie des richesses (1838), mas que só se tornou definitiva e frutífera alguns decênios mais tarde graças a Jevons e de Walras. A rou­ pagem matemática da E. política ressaltava a analogia dela com a física, que Jevons foi um dos primeiros a enfatizar. "A teoria econômi­ ca", dizia ele, "tem grande analogia com a ciência da mecânica estática: as leis de troca são seme­ lhantes às do equilíbrio de uma alavanca, de­ terminadas pelo princípio das velocidades vir­ tuais. A natureza da riqueza e do valor mostra-se com clareza sempre que se considerem aportes infinitamente pequenos de prazer e de dor, precisamente como a teoria da estática foi ba­ seada na igualdade de aportes de energia in­ finitamente pequenos. Acredito que certos ramos dinâmicos da ciência da E. podem prestar-se a desenvolvimentos próprios" (The Theory ofPolítica! Economy, 1871, Pref. à Ied.). Mas com Jevons e com Walras já estamos num campo diferente de formulação da teoria econômica. 2a Teoria do equilíbrio. — Segundo essa teoria, que constitui a segunda concepção funda­ mental da E. política, o objetivo dessa ciência é determinar qual a melhor combinação possível dos elementos econômicos: essa combinação,

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justamente por ser a melhor, manter-se-á inde­ finidamente se não for alterada por nenhum motivo, ou tenderá restabelecer-se se for alte­ rada, sendo por isso um estado de equilíbrio (cf. PARETO, Man. diE.pol, III, § 22). Ora, a melhor combinação possível não é a única pos­ sível, mas uma entre muitas. Os pressupostos dessa teoria são dois: a) existem possibilida­ des ou alternativas diferentes na realidade eco­ nômica; b) entre as várias alternativas possí­ veis, uma só é a mais conveniente, a econômica; e esta última é necessariamente determinada pelas leis econômicas. O pressuposto a) exprime a mudança deci­ siva que a E. política sofreu por volta de 1870, em vista do abandono de um dos fundamen­ tos da teoria clássica, a da doutrina do valortrabalho. A teoria clássica, baseada no princí­ pio de que existe uma ordem econômica natural e necessária, não deixava alternativa à escolha individual; a rigor, não reconhecia nenhuma possibilidade de escolha. Os indivíduos só po­ dem seguir seu instinto econômico, e a ordem econômica é o efeito natural e inevitável desse instinto. Numa ordem assim, o fundamento das relações econômicas, das trocas, ou seja, o va­ lor, deve ser tão natural e necessário quanto a própria ordem: por isso a E. clássica, de Smith a Marx, vê a origem ou o princípio do valor no trabalho. O trabalho, como notava Marx (Das Kapital, I, 1, § 1), possibilita ter a medida exa­ ta do valor porque ele mesmo é exatamen­ te mensurável em sua duração temporal. Esse era, entenda-se, o valor de troca, já que o va­ lor de wsofora constantemente identificado com a utilidade, ou seja, com a capacidade de um objeto de satisfazer a uma necessidade. Essa teoria do valor chocara-se com várias dificuldades, mas só graças a Jevons, Menger e Walras foi superada por uma nova doutrina, da utilidade marginal. A característica dessa teoria é que, para ela, o valor é "a importância que nós atri­ buímos a determinados bens concretos ou quan­ tidades de bens, pelo fato de sabermos que a satisfação de nossas necessidades depen­ de da possibilidade de dispor desses bens" (MENGER, Grundsãtze der Volkswírtschaftslehre, 1871). O valor, portanto, nasce da limita­ ção dos bens em relação às necessidades e só essa limitação confere aos bens caráter econô­ mico. Os bens que existem em quantidade ili­ mitada (p. ex., o ar) não têm valor econômico, pois a disponibilidade de uma fração desses tais bens não tem nenhuma utilidade. Com

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essas considerações, estabelece-se a condição fundamental para a existência do valor econô­ mico: a raridade ou escassez dos bens dispo­ níveis. E estabelece-se também uma relação entre escassez e valor, em virtude da qual, à medida que aumenta o número das frações disponíveis de uma mercadoria, diminui o va­ lor de cada uma de suas frações. Nesse senti­ do, o valor de uma mercadoria consiste no que Jevons chamava de "grau final de utilidade" (Theory ofPoliticalEconomy, 1871, cap. 3), que Walras chamava de "raridade" (Elements of Purê Political Economy, 1874; trad. it., p. 103) e que Marshall chamará de "utilidade marginal" {Principies ofE, 1890): consiste, em resumo, na utilidade da última fração da mercadoria que satisfaz a uma necessidade. Walras definia em termos matemáticos a utili­ dade marginal como "a utilidade derivada da utilidade efetiva em relação à quantidade pos­ suída" (Elements, trad. cit., p. 103), e Pareto, em seu Curso de E. política (1896, § 26), dava ao mesmo conceito o nome de "ofelimidade elementar". Os pressupostos dessa teoria eram claramente enunciados por Menger em Untersuchungen über die Methoden der Sozialwissenschaften und derpolitíschen Oekonomie insbesondere (1883), que foi uma crítica de­ cisiva à escola histórica da economia. Menger observou que o ponto de partida e o ponto de chegada de toda atividade econômica são ri­ gorosamente determinados pela situação eco­ nômica do momento. As necessidades econô­ micas imediatas de qualquer sujeito econômico são determinadas por sua natureza e pela evolução que esta sofreu: os bens que esse sujeito tem a sua disposição são igualmente determinados pela situação econômica. Entre esses dois pólos desenvolve-se a atividade eco­ nômica do indivíduo. Ora, mesmo que sejam dados os pontos de partida e de chegada da atividade econômica, nem por isso está rigoro­ samente determinado apriorio caminho que, na realidade, o indivíduo seguirá para chegar à satisfação das necessidades. "O arbítrio, o erro e outras causas podem fazer (como de fato o fazem) que o homem tenha a liberdade de se­ guir rumos diferentes. Contudo, o certo é que, dadas aquelas premissas, um só é o caminho mais conveniente" (Ibid., Ap. 6). Portanto, se em qualquer E. são possíveis inúmeras dire­ ções da atividade do sujeito econômico, uma só é a direção mais conveniente, ou seja, a eco­ nômica; e só ela é rigorosamente determinavel.

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À corrente "realista", da escola histórica, que, tomando como objeto de considerações "os fenômenos reais da E. humana", podia chegar a "leis exatas", Menger contrapõe a corrente "exata", "que examina os fenômenos da economicidade, rigorosamente determinados, e assim consegue estabelecer algo que não são as leis exatas dos fenômenos reais — que em parte são absolutamente nâo-econômicas — mas as leis exatas da economicidade" (Ibid). A E. exata cie que falava Menger foi chamada "E. pura" por Walras, por Maffeo Pantaleoni (Principi di E. pura, 1889) e por Vilfredo Pareto. Este último, assim como Menger, insiste na ne­ cessidade de fazer determinadas abstrações para tornar possível a ciência econômica: abs­ trações que são da mesma natureza das realiza­ das pelas outras ciências. "Não conhecemos", diz Pareto, "e não conheceremos jamais ne­ nhum fenômeno concreto em todos os seus detalhes; só podemos conhecer fenômenos ideais que se aproximem cada vez mais do fe­ nômeno concreto" (Corso, § 35). Assim como a astronomia limita suas pesquisas à forma gené­ rica da terra, e a geografia e a topografia pos­ sibilitam aproximações progressivamente maio­ res, mas nenhuma descrição da terra conseguirá dar conta dos mínimos detalhes, também a "E. pura indica-nos a forma geral do fenômeno e a E. aplicada propicia uma aproximação maior, indicando as perturbações produzidas por cau­ sas que tinham passado despercebidas na pri­ meira aproximação, mas nenhuma teoria jamais nos dirá de que modo será regulada a vida econômica de cada indivíduo" (Ibid., § 35). Logo, é preciso distinguir os "fenômenos principais" dos "fenômenos secundários"; e não se deve confundir "o estado de equilíbrio com o esta­ do de transição de um equilíbrio a outro" (Ibid., § 36). Desse modo, o estado de equilíbrio tor­ na-se o verdadeiro objeto da ciência econômi­ ca. Supõe-se que esta tenha o objetivo de de­ terminar, em cada caso, o optimum da situação econômica. Por vezes, distinguiram-se dois mé­ todos fundamentais da teoria econômica do equilíbrio: o geométrico ou método de Marshall, dos equilíbrios parciais, o algébrico ou méto­ do de Losanna, do equilíbrio geral (cf. U. Rica, Giornale degli economisti, 1906). Mas tanto os equilíbrios parciais quanto o equilíbrio geral constituem construções ideais ou soluções-limite de problemas cujos dados são, estes sim, extraídos da experiência, mas que, em conjun­ to, só reproduzem de modo idealizado e retifi­

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cado a marcha dos fenômenos empíricos. Sob esse ponto de vista, Menger expressara com toda a clareza o pressuposto fundamental da teoria do equilíbrio ao observar que "premissa da regularidade dos fenômenos econômicos e, portanto, de uma E. teórica não é só o dogma do interesse individual sempre idêntico, mas também o da infalibilidade e da onisciência do homem nas a coisas econômicas" (Methode, 1, cap. 7). Como teoria do equilíbrio, ou seja, como determinação do optimum econômico median­ te leis necessárias, a E. política deve, portanto, pressupor a infalibilidade e a onisciência do sujeito econômico. Nesse ponto, mostra-se clara a analogia en­ tre esta fase da ciência econômica e a mecânica clássica (anterior à revolução provocada por Einstein). Esta pressupunha a existência de uma ordem necessária da natureza, determi­ nada por leis imutáveis, e com ela a existência de um sujeito físico, infalível e onisciente, que pudesse obter todas as informações pos­ síveis sobre essa ordem sem nela interferir minimamente. A E. do equilíbrio pressupõe, analogamente, a existência de um equilíbrio econômico determinado por leis necessárias, e com ele a existência de um sujeito econômi­ co, infalível e onisciente, capaz de obter todas as informações possíveis sobre esse equilíbrio sem interferir nele. Mas, exatamente como ocorreu com a física, esses pressupostos choca­ ram-se com dificuldades de ordem empírica. Os resultados obtidos pela teoria do equilíbrio muitas vezes se mostraram em conflito com a realidade econômica ou, na melhor das hipóte­ ses, aplicáveis só a casos-limite muito circuns­ critos. A teoria do equilíbrio vangloriou-se da "pureza" ou "exatidão", do "rigor" e da "neces­ sidade" de suas conclusões, mas, ao mesmo tempo, mostrou-se incapaz de descrever os fenômenos econômicos mais complicados e de prevê-los com aproximação suficiente. Essa é uma situação paradoxal numa época como a nossa em que se mede a validade da ciência por sua capacidade de previsão, que, de resto, é a capacidade de agir no respectivo campo de fenômenos. 3a Teoria dosjogos— A primeira investida contra a teoria clássica do equilíbrio foi de autoria de Keynes. Em 1936 ele escrevia: "Em­ bora a doutrina clássica em si mesma nunca tenha sido posta em dúvida por economistas ortodoxos até tempos recentes, a sua patente incapacidade de previsão científica com o pas­

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sar do tempo reduziu consideravelmente o prestígio de seus seguidores. Pois os economis­ tas de profissão, depois de Malthus, ficaram im­ passíveis diante da falta de correspondência entre os resultados de sua teoria e os fatos da observação; discordância essa que o homem comum não deixou de observar e que provo­ cou nele uma relutância crescente em dispen­ sar aos economistas o mesmo respeito que se manifesta em relação a outras categorias de cientistas, cujos resultados teóricos são confir­ mados pela observação, quando aplicados aos fatos". Em particular, quanto ao problema do emprego, Keynes observava que "a teoria clás­ sica representa o modo como gostaríamos que a nossa E. se comportasse, mas na reali­ dade ignora as verdadeiras dificuldades e é in­ capaz de enfrentá-las" {The General Theory of Employment, InterestandMoney, 1936, cap. 3, § 3). O próprio Keynes, porém, utilizava ampla­ mente os procedimentos da teoria clássica, que ele julgava verificáveis em determinadas condi­ ções (Ibid., cap. 24, § 3). Na realidade, só nos últimos anos começou a delinear-se no campo da E. uma nova tendência que põe de lado de­ finitivamente o pressuposto da teoria do equilí­ brio: a infalibilidade e onisciência do sujeito econômico. A chamada "teoria dos jogos" parte do pressuposto de que o indivíduo não con­ trola todas as variáveis de que depende o re­ sultado de seu comportamento. Ele nunca está na situação de Robinson Crusoé, que conhece perfeitamente suas necessidades e os elemen­ tos que devem servir para satisfazê-las, contro­ lando, portanto, tudo aquilo de que depende a sua utilidade total. Na realidade econômica a situação é completamente diferente, porque nela vários indivíduos estão em relação uns com os outros e o resultado do comportamento de cada um deles depende de variáveis diversas, das quais ele controla só uma parte, enquanto as outras dependem de outros indivíduos. O resultado geral, porém, depende simultanea­ mente de todas as variáveis. Ora, "essa situa­ ção", nota Morgenstern, "não pode ser de ne­ nhum modo definida como um problema de princípio, quaisquer que sejam as limitações e as condições acessórias em que se possa pen­ sar. Encontramo-nos diante de uma situação lógico-matemática, que a matemática não soube representar de algum modo até agora, para não falar da E. teórica. Ela nada tem em comum com o cálculo das variações, com a teoria das funções, etc, mas constitui uma novidade de

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natureza efetivamente conceituai. Portanto é preciso examinar se é possível resolver o pro­ blema de como deveria comportar-se um indi­ víduo ou uma empresa para que seu comporta­ mento possa ser considerado 'racional'. Por enquanto, a palavra 'racional' não tem nenhum significado nessa construção: só poderá ter sig­ nificado se for encontrada uma teoria que pos­ sa ser empregada em todas essas situações eco­ nômicas" ("Teoria dos jogos", em A Indústria, 1951, pág. 319). Em vista dessa situação, a teoria dos jogos rejeita qualquer analogia com os sis­ temas físicos porque julga não haver nada na fí­ sica que corresponda às situações tipicamente econômicas, e para elaborar seus procedimen­ tos de cálculo utiliza um modelo completamen­ te diferente, o dos jogos estratégicos. Nesses jo­ gos, a vitória do indivíduo depende não só dos seus movimentos, mas também dos movimen­ tos dos outros e de um componente aleatório. Cada jogador pode escolher entre várias es­ tratégias, ou seja, entre vários modos de jogar a partida. Diremos que ele se comporta "ra­ cionalmente" quando, entre todas as estraté­ gias, escolhe "a melhor". A determinação des­ sa estratégia ocorre através de procedimen­ tos matemáticos especiais de base estatística (NEUMANN e MORGENSTERN, Theoty o f Games and Economic Behavior, 1944). Para tanto, esses procedimentos exigem um complexo de observações econômicas extraordinariamente rico com base nos quais é possível realizar ge­ neralizações indutivas. Seja qual for o juízo so­ bre os detalhes técnicos dessa doutrina, é certo que, na economia contemporânea, ela represen­ ta a primeira ruptura decisiva com os pressu­ postos dogmáticos da teoria do equilíbrio e o encaminhamento para a determinação de uma técnica de comportamento racional nas situa­ ções de escassez que permite a previsão dos comportamentos efetivos. ECONÔMICA (in. Economics- fr. Economique; ai. Oekonomik, it. Econômica). 1. Com esse nome muitos autores contemporâneos de­ signam a ciência da economia; esse nome evita a ambigüidade do termo "economia", que pode indicar tanto a ciência quanto o seu objeto. 2. Foi assim que Croce chamou a parte da filosofia da prática que tem por objeto as ações utilitárias e econômicas entre as quais Croce coloca não só as ações assim chamadas comumente, mas também o direito, a política, a ciência, etc. (Filosofia deliapratica, E. ed ética,

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1909). Mas essa acepção do termo não teve fortuna (v. ECONOMIA). ECPIROSE. V._CONFLAGRAÇÃO. ECTESE (gr. eKÔeaiÇ; fr. Ectbèse, ai. Ekthesis, it. Ectesi). Exposição do significado de um termo (ARISTÓTELES, An.pr, 1, 34, 48 a 25) ou exibição de um exemplo (Ibid, I, 6, 28 b 14; CRISIPO, em Stoic. Fragm., II, 7). Leibniz designou com esse termo o enunciado de um teorema geométri­ co e o traçado da figura, que preparam a demons­ tração (Nouv. ess, IV, 17. 3). ÉCTIPO (ingl. Ectype, fr. Ectype, ai. Ektypus; ital. Ectipo). Termo introduzido pelos platônicos de Cambridge para indicar a natureza como algo diferente e dependente de Deus e co­ mo princípio da ordem e da regularidade do mundo. Como Deus não faz tudo diretamente e como nada acontece por acaso, deve haver um princípio (Plastic Nature, Nature, Spiritus naturaé) que execute a parte da providência divina referente à regularidade dos fenômenos. "A natureza", diz Cudworth, "não é o Arquétipo da arte divina, mas só o É.; é a marca ou a assi­ natura viva da sabedoria divina, que, através dela, age exatamente segundo seu arquétipo apesar de não compreender a razão do que faz" (The True Intellectual System ofthe Universe, I, 1, 3). Essa palavra foi empregada com o mesmo significado por Berkeley: "Reconheço um duplo estado de coisas: um, É. e natural; o outro, arquétipo e eterno. O primeiro foi criado no tempo; o segundo existia na eternidade no espírito de Deus" (Dial, Between Hylas and Philonous, ed. Jessop. III, p. 254). E Kant distin­ gue um intelecto arquétipo, que é o divino, que cria os objetos pensando-os, do intelecto E., que é o humano ou finito, não criativo, mas discursivo (Crít. dofuízo, 11, § 77). EDENTULI. V. PURPÚREA. EDUCAÇÃO (gr. 7iOü5efoe; lat. Educatio, in. Education; fr. Education. ai. Erziehung; it. Educazioné). Em geral, designa-se com esse termo a transmissão e o aprendizado das téc­ nicas culturais, que são as técnicas de uso, produção e comportamento, mediante as quais um grupo de homens é capaz de satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do ambiente físico e biológico e trabalhar em conjunto, de modo mais ou menos ordenado e pacífico. Como o conjunto dessas técnicas se chama cultura (v. CULTURA, 2), um a sociedade humana não pode sobreviver se sua cultura não é transmitida de geração para geração; as modalidades ou formas de realizar ou garantir

EDUCAÇÃO

essa transmissão chamam-se educação. Esse é o conceito generalizado de E., que se tornou indispensável graças à consideração do fenô­ meno não só nas sociedades chamadas civiliza­ das, mas também nas sociedades primitivas. As formas de E. nesses dois tipos de sociedade não apresentam diferenças de desenvolvimen­ to ou grau (como comumente se crê), mas de atitude ou orientação. A sociedade primitiva ca­ racteriza-se pelo fato de que nela a E. visa ga­ rantir a imutabilidade das técnicas de que dis­ põe; por isso tende a atribuir caráter sacro a tais técnicas, o que leva a proibir como sacríle­ ga qualquer inovação ou correção. Uma so­ ciedade civilizada está, acima de tudo, apa­ relhada para enfrentar situações novas ou em mudança; logo, tende a tornar flexíveis e corrigíveis as técnicas de que dispõe e a confiar à E. a tarefa não só de transmiti-las, mas tam­ bém de corrigi-las e aperfeiçoá-las. Sem dúvi­ da, essas duas orientações nunca se acham em estado puro: não existem sociedades absoluta­ mente primitivas, que não permitam — ainda que sub-repticiamente — correções ou modifi­ cações lenta em suas técnicas, assim como não existem sociedades absolutamente civilizadas que permitam a rápida e incessante correção das técnicas mais delicadas, que não são as técnicas de uso e produção de objetos, mas as que controlam a conduta dos indivíduos e seus comportamentos recíprocos. Podem-se, portanto, distinguir duas formas fundamentais de E.: I- a que simplesmente se propõe transmitir as técnicas de trabalho e de comportamento que já estão em poder do gru­ po social e garantir a sua relativa imutabilidade; 2- a que, através da transmissão das técnicas já em poder da sociedade, se propõe formar nos indivíduos a capacidade de corrigir e aperfei­ çoar essas mesmas técnicas. Ia O primeiro conceito de E., como se dis­ se, é posto em prática pelas sociedades primi­ tivas e também, parcialmente, nas sociedades secundárias, sobretudo no que tange à E. mo­ ral e religiosa. Consiste na transmissão pura e simples das técnicas consideradas válidas e na transmissão simultânea da crença no caráter sagrado, portanto imutável, de tais técnicas. Na tradição pedagógica do Ocidente, esse concei­ to de E., por motivos óbvios, foi formulado e defendido poucas vezes. Entre os que o defen­ deram com maior decisão e nitidez está Hegel: "O indivíduo deve recapitular os graus de for­ mação do Espírito universal, também segundo

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EFETIVO

o conteúdo, mas como figuras já depositadas pelo Espírito (...). Do ponto de vista do indiví­ duo, sua formação consiste na conquista do que ele encontra diante de si, consiste em con­ sumar sua natureza inorgânica e em apropriarse dela" (Pbánomen. des Geistes, Pref., II, 3). Hegel hipostasia aqui, como "Espírito univer­ sal", o sistema cultural da sociedade civilizada, mas o seu conceito de E. é típico da sociedade primitiva. 2a No segundo conceito de E., a transmissão das técnicas já adquiridas tem sobretudo a fina­ lidade de possibilitar o aperfeiçoamento dessas técnicas através da iniciativa dos indivíduos. Nesse aspecto, a E. é definida não do ponto de vista da sociedade, mas do ponto de vista do indivíduo: a formação (v.) do indivíduo, sua cultura, tornam-se o fim da educação. A defini­ ção de E. na tradição pedagógica do Ocidente obedece inteiramente a essa exigência. A E. é definida como formação do homem, amadurecimentodo indivíduo, consecução da sua/orma completa ou perfeita, etc.: portanto, como passagem gradual — semelhante à de uma planta, mas livre — da potência ao ato dessa forma realizada. Esses conceitos repetem-se com tal uniformidade na tradição pedagógica que não chegam a constituir novidade do pon­ to de vista filosófico. Segundo esse ponto de vista, a E. é cultura, no segundo dos dois sig­ nificados fundamentais deste termo; os pro­ blemas gerais correspondentes podem ser es­ tudados nesse verbete. EDUÇÃO (lat. Eductio; in. Eduction; fr. Eduction; ai. Eduction; it. Eduzioné). Termo usado na Escolástica para indicar a emergência da forma a partir da matéria, ou seja, a passa­ gem da potência ao ato (S. TOMÁS, S. Th., I, q. 90, a. 2). Leibniz emprega esse termo com o mesmo sentido (Théod, I, § 88). EFEITO (in. Effect; fr. Effet; ai. Wirkung; it. Effetto). Termo ou o resultado de qualquer tipo ou espécie de causação (v. CAUSALIDADE)._ EFETTCO (gr. EcpeKTiKÓç). Aquele que pra­ tica a suspensão do juízo, isto é, o cético pirroniano (v. EPOCHÉ; CETICISMO). EFETIVO (in. Actual; fr. Effectif ai. WirA klich; it. Effettivo ou Effetuale). O mesmo que real (v. REALIDADE). Em italiano e francês, esse termo ressalta o caráter que a realidade possui diante do que só é imaginado ou desejado; em inglês e alemão, ressalta o caráter que a reali­ dade possui diante do que é somente possível.

EFICIÊNCIA

EFICIÊNCIA (in. Efficiency, fr. Efficience, ai. Wirksamkeit; it. Efficienza).Em sentido pró­ prio, a ação da causa eficiente. Mas hoje, em todas as línguas, esse termo é empregado com significado diferente, como correspondência ou adequação de um instrumento à sua função ou de uma pessoa à sua tarefa. Diz-se também "E. de uma organização" para indicar a adequa­ ção de uma organização às suas funções, e, correspondentemente, fala-se de "ineficiência". Nesse sentido os filósofos também utilizam esse termo com freqüência, embora não se tra­ te de termo especificamente filosófico. EFLÚVIOS (gr. àrtOppoaí). Empédocles (séc. V a.C.) explicava o conhecimento com a hipó­ tese dos E., que emanam das coisas e pene­ tram nos sentidos por meio dos poros exis­ tentes em todos os órgãos e que são apropriados à espécie de E. que devem recolher (TEOERASTO, De sensu, 7; Fr. 89, Diels). EGOCENTRISMO (in. Egocentrismo fr. Égocentrisme, ai. Egozentrismus; it. Egocentrismo). Scheler designou com esse termo a atitude que consiste em confundir o mundo que nos cir­ cunda imediatamente com o "mundo" no senti­ do próprio do termo, ou seja, em atribuir ao ambiente imediato uma função universal ou cósmica. Com o E. assim entendido Scheler refracionou o solipsismo, o egoísmo e o autoerotismo. O solipsismo é a atitude egocêntrica que preside à concepção dos objetos do mun­ do real; o egoísmo é o E. em seu aspecto prá­ tico ou volitivo; o auto-erotismo é a atitude egocêntrica na vida amorosa (Sympathie, I, cap. 4, § 2). EGO e SUPEREGO. V. PSICANÁLISE. EGOÍSMO (in. Egoism; fr. Égoisme; ai. Egoismus; ital. Egoísmo). 1. Termo criado no séc. XVH para indicar a atitude de quem dá impor­ tância predominante a si mesmo ou aos seus próprios juízos, sentimentos ou necessidades, e pouco ou nada se preocupa com os outros. Platão já achava que o "amor desmesurado por si mesmo" (que nada tem a ver com a filáucia de que falava ARISTÓTELES, V. AMOR DE SI) é a causa de todas as culpas dos homens (Leis, V, 731e).Muitas vezes o E. foi considerado atitude natural do homem. Diz Kant: "A partir do dia em que o homem começa a falar em primeira pessoa, ele passa a pôr seu querido eu na fren­ te de tudo, e o E. progride incessantemente, sub-reptícia ou abertamente (por sofrer a opo­ sição do E. dos outros)" (Antr, I, § 2). Aliás, antes de Kant, Adam Smith (Teoria dos senti­

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EGOLOGIA

mentos morais (1759) e os moralistas franceses tinham visto no E. uma das emoções funda­ mentais do homem. Vauvenargues, que chama o E. de "amor próprio", distingue-o do amor de si(y), que é a filáucia de Aristóteles (De 1'esprit humain, 24). Kant distingue três formas de E.: E. lógico, de quem não acha necessário subme­ ter seu próprio juízo ao juízo alheio; E. estético, que se satisfaz com seu próprio gosto; E. mo­ ral, de quem restringe todos os fins a si mesmo e não vê utilidade no que não lhe traz proveito. Além dessas três espécies de E., Kant distingue o E. metafísico, que responde negativamente à pergunta: "eu, como ser pensante, tenho razão de admitir, além da minha existência, também a de um todo de outros seres que estão em comunhão comigo?" (Antr., I § 2). A antítese entre E. e altruísmo e a predição do futuro triunfo do altruísmo são típicas da ética positivista. O positivismo cunhou a pala­ vra altruísmo(y.) e, ao lado dos instintos egoísticos, admitiu a existência de instintos altruístas destinados a prevalecer com o progresso moral da humanidade (COMTE, Catéchismepositiviste, pp. 48 e ss.; SPENCER, Data ofEthics, § 46). Por outro lado, Stirner e Nietzsche sustentaram a moral do egoísmo. Stirner chamou seu anarquísmo(v.) de E. absoluto, que consiste na afir­ mação de que o indivíduo é a única realidade e o único valor (DerEinzige undseín Eigentum, 1845). Nietzsche por sua vez dizia: "O E. é par­ te essencial da alma aristocrática e por egoísmo entendo a fé inquebrantável em que outros seres devem sujeitar-se e sacrificar-se pelo ser que nós somos" (Jenseit von Gut und Bóse, 1886, § 265). Scheler deu a melhor caracteriza­ ção do E., distinguindo-o do amor de si ou filáucia. O E., segundo diz, não se dirige ao eu individual como objeto de amor desvinculado de todas as relações sociais. O egoísta não se comporta como se estivesse só no mundo, mas está tão absorvido por seu eu social que se apega somente aos seus próprios valores ou àqueles que podem tornar-se seus. Essa atitude é o contrário do amor de si, dirigido principal­ mente aos valores por si mesmos (Sympathie, II. cap. I, § 1). 2. O mesmo que solipsismo (v.). EGOLOGIA (In. Egology fr. Égologie; ai. Egologie, it. Egologia). Segundo Husserl, a es­ fera própria do ego obtida mediante a epoché egológica, com a qual, no campo da experiên­ cia fenomenológica, se abstrai de tudo o que pertence aos outros eus (Cart. Med, § 44).

EGOTISMO

EGOTISMO (In. Egotism; fr. Egotisme, ai. Egotismus; it. Egotismo). Termo de origem inglesa, difundido no resto da Europa por Stendhal, que o empregou também no título das suas memórias autobiográficas (Souvenirs dégotisme, 1892, mas escritas em 1832). Essa palavra significa a excessiva importância con­ cedida a si mesmo e às vicissitudes da vida pessoal, bem como a tendência a falar demais de si mesmo (cf. sobre a história da palavra, o prefácio de H. Martineau à edição dos Souvenirs de Stendhal, Paris, 1950). No sentido de subjetivismo ou culto do eu, essa palavra foi usada por G. Santayana (Egotism in German Philosophy, 1915). EIDÉTICO (in. Eidetic; fr. Eidétique; ai. Eidetisch; it. Eideticó). Termo introduzido na filosofia contemporânea por Husserl a partir de Investigações lógicas (1900-01) para indicar tudo o que se refere às essências, que são ob­ jeto da investigação fenomenológica (v. FENOMENOLOGIA). EIDOS. Este, que é um dos termos com que Platão indicava a idéia e Aristóteles a forma, é usado na filosofia contemporânea especial­ mente por Husserl para indicar a essência que se torna evidente mediante a redução fenomenológica (v. FENOMENOLOGIA). Para os signifi­ cados clássicos dessa palavra, v. FORMA; IDÉIA; ESPÉCIE. EJEÇÃO (in. Ejection; fr. Ejection; it. Eiezione). Termo criado por G. Clifford (Lectures and Essays, 1879) para indicar as sensações dos seres diferentes de nós, que nunca podem ser diretamente objeto de nossa consciência, sendo portanto projeções da consciência. O termo foi empregado também por Romanes (The World as an Eject, 1895) e por alguns outros. EK-STASE Heidegger e Sartre chamaram de E. (no sentido literal do termo êxtase, "estar fora" ou "sair") as três determinações do tem­ po, passado, presente, futuro, porquanto cada uma delas se move ou caminha para a outra, o presente para o passado, o presente para o fu­ turo, o futuro para o presente. Heidegger diz: "A temporalidade é o originário fora de si em si e para si. Nós chamamos de E. da temporalidade os fenômenos caracterizados como fu­ turo, passado e presente" (Sein undZeit, § 65). Em seguida, Heidegger viu nos E. temporais as manifestações do Ser (Was istMetaphysik?, 6a ed., 1951, p. 14). Analogamente Sartre fala da "relação extática interna" como da "fonte da temporalidade" (Uêtre et le néant, p. 256) (v. TEMPO, 3).

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ELEMENTO

ELÃ VITAL (fr. Elan vital). Segundo Bergson, é a consciência que penetra a matéria e a organiza, realizando nela o mundo orgânico. O E. vital passa "de uma geração de germes para a geração seguinte, por intermédio dos organismos desenvolvidos, que funcionam como traço de união entre os germes. Con­ serva-se nas linhas evolutivas entre as quais se divide e é a causa profunda das variações, pelo menos daquelas que se transmitem regular­ mente, que se adicionam e que criam espécies novas" (Evol. créatr, 8a ed., 1911, p. 95). A formação da sociedade, antes fechada e de­ pois aberta, a religião fabuladora e a religião dinâmica, segundo Bergson, são os produtos ulteriores do mesmo E. vital, ou seja, da consciência (Deuxsources, IV, trad. it., p. 295) (v. DURAÇÃO). ELEATISMO (in. Eleaticism; fr. Eléatisme, ai. Eleatismus; it. Eleatismó). Doutrina da escola que floresceu em Eléia (Magna Grécia) entre os sécs.VI e V a.C, formulada por Xenófanes de Colofão, elaborada por Parmênides e se­ guida e defendida por Zenão e Melisso. Os fundamentos dessa doutrina são os seguintes: 1Qunidade, imutabilidade e necessidade do ser, expressa pela frase: "Só o ser é e não pode não ser" (Fr. 4, Diels); 2- acessibilidade do ser só para o pensamento racional e condenação do mundo sensível e do conhecimento sensível como aparência. Esses dois princípios do E. foram um componente importante da filosofia grega posterior, especialmente de Platão e Aris­ tóteles, e constituíram uma das alternativas que se repetiram com mais freqüência na história da filosofia. ELECTRA (gr.'HXéiapa). Nome de um sofisma atribuído a Eubúlides (DIÓG. L, II, 108) e citado por Luciano (Vitarum auctio, 22); se­ gundo ele, Electra conhece e ao mesmo tem­ po não conhece Orestes: quando Orestes vai ao seu encontro, ela sabe que é Orestes, seu irmão, mas não o reconhece como Orestes por­ que não o conhece. É uma versão do sofisma chamado "velado", que também é atribuído a Eubúlides e comentado por Aristóteles (El. sof, 24, 179 a 33). ELEIÇÃO. V. ESCOLHA. ELEMENTO (gr.OTOi%eiov; lat. Elementum; in. Element; fr. Elément; ai. Element; it. Elemento). Este conceito recebeu dois signifi­ cados principais: le o de componente pri­ meiro de um todo composto; 2° o de termo ou resultado de um processo de análise ou

ELEMENTO

divisão. O primeiro desses conceitos é o mais antigo. Ia Embora Platão (cf., p. ex.: Teet., 210 e) tenha sido o primeiro a falar em filosofia dos E. (como nos diz DIÓGF.NES LAÉRCIO, III, 24), Aristó­ teles é o primeiro a fazer uma análise exaustiva desse conceito. "Por elemento", diz ele, "en­ tende-se o componente primeiro de uma coisa qualquer, que seja de uma espécie irredutível a uma espécie diferente: nesse sentido, p. ex., os E. das palavras [isto é, as letras] são os elemen­ tos de que consistem as palavras, nos quais se dividem em última análise porque não podem dividir-se em partes de espécie diferente. Se um E. for dividido, suas partes serão da mesma espécie; p. ex: uma parte de água é água, ao passo que a parte de uma sílaba não é uma sílaba" (Met., V, 3,1014 a 30). Aristóteles esclare­ ce também o sentido em que essa palavra foi usada (como o é ainda) para indicar as partes principais de uma doutrina, no sentido, p. ex., em que se diz "E. de Euclides". Diz ele que os E. das provas geométricas e das demonstrações em geral são aquelas demonstrações primeiras que reaparecem em outras demonstrações dife­ rentes Ubid, V, 3, 1014 a 35). Aristóteles nota também que podem ser metaforicamente cha­ mados de E. as entidades mais universais por­ que são simples e indivisíveis e podem repetirse em um número indefinido de casos. E talvez tenha sido justamente contra essa extensão do termo que os estóicos estabeleceram sua pró­ pria distinção entre princípios, que não podem ser gerados nem se corrompem, e os E., que podem ser destruídos pelas conflagrações pe­ riódicas a que o mundo está sujeito (DlÓG. L., VII, 134). No séc. XII, Guilherme de Conches dava o nome de E. aos átomos e de elementata à água, ao ar, à terra e ao fogo, que seriam compostos de átomos (Phílosophia, I, 21). 2a O segundo conceito de E. foi elaborado no séc. XVII por Robert Boyle, um dos funda­ dores da química moderna. Em Chymista Scepticus (1661), Boyle definiu como E. químico o corpo não composto que não se é possível decompor com os meios químicos de que se dispõe. Essa definição tinha a vantagem de não fixar antecipadamente quais são os corpos que devem ser considerados elementos. Pode ser facilmente generalizada para um campo qual­ quer, podendo-se definir como E., nesse cam­ po, aquilo que não é possível dividir com os instrumentos de análise disponíveis nesse mes­ mo campo. Desse ponto de vista, o que é "E."

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EMANAÇÃO

num campo pode não ser "E." em outro campo e o conceito é definido em cada caso só em relação aos instrumentos de análise e ao seu alcance. Do ponto de vista lógico, a noção de E. foi definida por Wittgenstein: "É claro que, ao ana­ lisar uma proposição, deve-se chegar a propo­ sições elementares, que constam de nomes em união imediata" (Tractatus, 4, 221). Nesse sen­ tido, a proposição elementar é o resultado da decomposição das proposições. Segundo Wittgenstein, ela "afirma a existência de um fato atômico" (Ibid., 4. 21); sua marca caracte­ rística é que "nenhuma proposição elementar pode estar em contradição com ela" (Ibid., 4. 211).

ELEMENTOS (ai. Elemente). R. Avenarius deu um significado especial a essa palavra, que, para ele, indica as qualidades sensíveis que formam os "complexos de E." que são as coisas (Kritik der reine Erfahrung, I, 16). ELENCO (gr. èÀ£yx°Ç; lat- Elenchus). Refuta­ ção. E. Sofístícos de Aristóteles: as refutações falsas. ELEUTERONOMIA (ai. Eleutheronomie). Palavra usada por Kant para indicar "o princí­ pio da liberdade em que se apoia a legislação interna", isto é, a legislação moral (Met. der Sitten, li, Pref.). EIÍCITA, AÇÃO. V. AÇÃO. ELITE. A teoria da £ ou classe eleita foi ela­ borada por Vilfredo Pareto em Trattato di so­ ciologia generale (1916), e consiste na tese de que é uma pequena minoria de pessoas que conta em qualquer ramo ou campo de ati­ vidade e que, mesmo em política, é essa minoria que decide sobre os problemas do go­ verno. Pareto entendia por E. o conjunto "da­ queles que têm os padrões mais elevados em seu ramo de atividade" (Trattato, § 203D e cha­ mava de "classe governante eleita" aqueles que, direta ou indiretamente, têm participação importante no governo. Fala também de "circu­ lação da classe eleita" (Ibid, § 2042) para indi­ car o fenômeno da passagem de grupos hu­ manos da classe eleita para a classe não eleita e vice-versa. O próprio Pareto indicava como fonte dessa teoria a tese de doutoramento de M. KOLABINSKA, La circulation des elites en France, Lausanne, 1912. Essa teoria foi um dos pontos fundamentais da doutrina política do fascismo e do nazismo. EMANAÇÃO (gr. 7rpoeívoa, àTtoppeív; lat. Emanatio; in. Emanation-, ir. Emanation; ai.

EMANATISMO

Emanation; it. Emanazione). Uma forma de causação com as seguintes características: Ia necessidade do efeito em relação à causa ou força que o produz; 2a continuidade entre cau­ sa e efeito, pela qual o efeito continua a ser parte de sua causa; 3a inferioridade de valor do efeito em relação à causa; 4a eternidade da rela­ ção entre causa emanente e efeito emanado. As características Ia, 2a e 4a diferenciam a E. da cria­ ção, ao passo que a característica 3a é comum à E. e à criação. As características 2a, 3a e 4a dife­ renciam a E. das formas comuns da causação. O conceito de E. foi elaborado pela primeira vez por Plotino: "Todos os seres, enquanto per­ manecem, produzem necessariamente em tor­ no de si e de sua substância uma realidade que tende para o exterior e provém de sua atualida­ de presente. Essa realidade é como uma ima­ gem dos arquétipos dos quais nasceu: é assim que do fogo nasce o calor e que a neve não retêm em si o frio. Mas são principalmente os objetos perfumados que provam isso, pois, en­ quanto existem, algo emana deles e em torno deles, uma realidade de que usufruem todos os que estão próximos. Além disso, todos os se­ res que chegaram à perfeição geram; por isso, o ser que é sempre perfeito gera sempre: gera um ser eterno, mas inferior a ele" {Enn., V, 1, 6). Esse trecho de Plotino contém a noção clás­ sica de E., que permaneceu inalterada na his­ tória da filosofia. De fato, apresenta-se com as mesmas características em Proclo {Instituições teol., pp. 27 ss.), em Scotus Erigena {De divis. nat, III, 17) e em todos os que utilizam essa noção. Em geral, caracteriza a relação que o panteísmo antigo (antes de Spinoza) estabelece entre Deus como força ou princípio animador do mundo e as coisas ou os seres do mundo. Emanatista é, p. ex., a relação entre o artífice interno, de que fala G. Bruno, e as coisas natu­ rais, que são manifestações suas, necessárias e eternas {De Ia causa, I). Mas não é emanatista, embora conserve algumas características da E. (a Ia, a 2a e a 4a), a relação que Spinoza esta­ belece entre Deus ou a Natureza e as coisas do mundo: relações por ele identificadas como aquelas graças às quais "da natureza do triân­ gulo resulta que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos", ou seja, com necessidade geométrica {Et., I, 17. scol); que é, de resto, uma forma de causação ordinária (v. CAUSALIDADE). EMANATISMO (in. Emanationism; fr. Emanatisme, ai. Emanatísmus; it. Emanatismó).

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EMINÊNCIA

Toda doutrina que reconheça como válida a teo­ ria da emanação. Devem ser considerados co­ mo formas de E. o neoplatonismo antigo, o naturalismo de Giordano Bruno, o panteísmo de Schelling e outras formas de panteísmo con­ temporâneo. EMERGÊNCIA (in. Emergence, fr. Émergence; ai. Emergenz, it. Emergenza). Termo empregado pelos anglo-saxões para indicar o caráter criativo da evolução (v. CRIAÇÀO). EMINÊNCIA (lat. Eminentia; in. Eminence, fr. Eminence, ai. Eminenz-, it. Eminenza). Prio­ ridade ontológica, ou seja, a perfeição. Eminen­ te significa "mais perfeito"; e eminentementesignifica "de modo mais perfeito". Essa noção tem origem na hierarquia dos seres, estabelecida em Instituições teológicas de Proclo e repeti­ da nos escritos do Pseudo-Dionísio (cf. espe­ cialmente De div. nom, VII). S. Tomás dizia: "Quando se diz 'Deus é bom' ou 'sábio', en­ tende-se não só que ele é causa da sabedoria ou da bondade, mas que essas coisas preexistem nele de modo mais perfeito (eminentius)" {S. Th, I, q. 13, a. 6). Na escolástica tardia, come­ çou-se a designar via Eminentiae a prova da existência de Deus que, da existência de graus diversos de perfeição no mundo, interfere a exis­ tência do grau eminente ou mais perfeito de todos (v. DEUS, PROVAS DE): sua expressão se encontra, p. ex., em Duns Scot {Op. Ox, 1, d. 2, q. 2, a. 1, n. 17), que se preocupa, em outro passo, em definir essa palavra no sentido de "aquilo que é mais perfeito e mais nobre se­ gundo sua essência e, nesse sentido, prece­ dente" {Deprimoprincipio, ed. Roche, p. 4). Descartes emprega esse termo com o mes­ mo sentido: "A pedra que ainda não existe não pode começar a existir agora, se não for produ­ zida por uma coisa que possui em si, formal ou eminentemente, tudo aquilo que entra na composição da pedra, isto é, que contém em si as mesmas coisas ou outras mais excelentes, que estão contidas na pedra" {Méd, III, 2; II Rép, def. IV). Por sua vez, Spinoza diz.- "Enten­ do por 'eminentemente' que a causa contém toda a realidade do efeito mais perfeitamente do que o próprio efeito" {Ren. Cart. Princ. Phil, I, ax. 8). Generalizando essa noção e expressando-a em termos negativos, Wolff di­ zia: "Por E. entende-se o ente que, a rigor, não existe, ao passo que existe algo que faz as ve­ zes dele e que propriamente não lhe pode ser atribuído" {Ont., § 845).

EMOÇÃO

EMOÇÃO (gr. róGoç; lat. Affectus ou Passio; in. Emotion; fr. Emotion; ai. Affekt; it. Emozione). Em geral, entende-se por esse nome qualquer estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no homem a percep­ ção do valor (alcance ou importância) que de­ terminada situação tem para sua vida, suas ne­ cessidades, seus interesses. Nesse sentido, no dizer de Aristóteles (Et. nic, II, 4. 1105 b 21), a E. é toda afeição da alma, acompanhada pelo prazer ou pela dor: sendo o prazer e a dor a percepção do valor que o fato ou a situação a que se refere a afeição tem para a vida ou para as necessidades do animal. Desse modo, as E. podem ser consideradas reações imediatas do ser vivo a uma situação favorável ou desfavorá­ vel: imediata, porque condensada e, por assim dizer, resumida no tom do sentimento, (agradá­ vel ou dolorosa), que basta para pôr o ser vivo em estado de alarme e para dispô-lo a enfren­ tar a situação com os meios de que dispõe. A primeira teoria das E. nesse sentido talvez tenha sido a enunciada por Platão em Filebo: ocorre a dor quando a proporção ou a harmo­ nia dos elementos que compõem o ser vivo é ameaçada ou comprometida; tem-se o prazer quando essa proporção ou harmonia se resta­ belece (17, 31 d, 32 a). Aristóteles, por sua vez, ao considerar o prazer vinculado à atuação de um hábito ou de um desejo natural (Et. nic, VII, 13, 1153 a 14), atribuiu-lhe a mesma fun­ ção de restituição ou restabelecimento de uma condição natural e, conseqüentemente, consi­ derou doloroso o que afasta violentamente da condição natural e é, por isso, contrário à ne­ cessidade e aos desejos do ser vivo (Ret., I, 11, 1369 b 33). Foi precisamente desse ponto de vista que no II livro da Retórica, Aristóteles fez uma das análises mais interessantes da história da filosofia sobre a E. Veja-se, p. ex., o que ele diz sobre o medo (Ret., II, 5, 1382 a 20 ss.): "O medo é uma dor ou uma agitação produzida pela perspectiva de um mal futuro, que seja ca­ paz de produzir morte ou dor". De fato, obser­ va Aristóteles, nem todos os males são temidos, mas só os que podem produzir grandes dores e destruições e mesmo estes só no caso de não estarem distantes demais, mas de parecerem próximos e iminentes. De fato, os homens não temem as coisas muito distantes: todos sabem que devem morrer, mas enquanto a morte não se aproxima não se preocupam com ela. O medo também é reduzido ou eliminado por condições que tornam os males menos temí­

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EMOÇÃO

veis ou os fazem parecer inexistentes. Por isso, muitas vezes a riqueza, a força, o poder e a abundância de amigos fazem que os homens descuidem-se dos males, tornando-se audazes e desdenhosos. Dessa análise emerge clara­ mente o conceito de E. como "índice" de uma situação, ou melhor, do valor que ela tem para a existência do homem. Para Platão e Aristóteles, as E. têm significa­ do porque têm uma função na economia da existência humana no mundo. Para os estóicos, porém, elas não têm significado nem função. Sob esse aspecto, a doutrina estóica é a mais tí­ pica e radical entre as que negam o significado das emoções. Seu fundamento é que a nature­ za proveu de modo perfeito à conservação e ao bem dos seres vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão. As E., porém, não são provocadas por nenhuma força natu­ ral: são opiniões ou juízos ditados por levian­ dade, portanto fenômenos de estupidez e de ignorância que consistem em "achar que se sabe o que não se sabe" (CÍCERO, Tusc, IV, 26). Os estóicos distinguiam quatro E. fundamen­ tais, duas das quais tinham origem em bens presumidos (desejo de bens futuros e alegria pelos bens presentes); e duas, em males pre­ sumidos (temor de males futuros e aflição pe­ los males presentes). A três dessas E., mais precisamente ao desejo, à alegria e ao temor, correspondiam três estados normais, próprios do sábio, que são, respectivamente, vontade, alegria e precaução, três estados de calma e de equilíbrio racional. Mas, no sábio, nenhum es­ tado corresponde à aflição do néscio, que é sentida por males presumidos e deve-se à falta de obediência à razão. A essas quatro E. fun­ damentais os estóicos reduziam as outras, con­ sideradas igualmente doenças ou enfermida­ des (ou seja, doenças crônicas) e capazes de gerar outras E. de aversão e de desejo (Ibid., IV, 24). O pressuposto dessa análise é a tese da perfeita racionalidade do mundo. O homem sábio só pode tomar consciência dela e viver de acordo com ela, "viver segundo a razão". O mundo, como ordenação racional perfeita, nada tem que pos-sa afligir ou ameaçar o sábio, que é o ser racionalmente perfeito: portanto, a afli­ ção ou o temor, assim como o desejo e o pra­ zer, provêm simplesmente de ver no mundo algo que não existe e que não pode existir: um bem que esteja além da razão ou um mal que possa ameaçar a razão. Portanto, as E. não pas­ sam de juízos errados, opiniões vazias e des­

EMOÇÃO

providas de sentido. O sábio está imune a elas pelo fato mesmo de ser sábio, de viver segun­ do a razão; e entre o sábio e o estulto, que é vítima dessas falsas opiniões, não há meio ter­ mo nem transição (CÍCERO, Definibus, III, 48). Para S. Agostinho, o ideal estóico da apatia parece desumano e irrealizável. "Não experi­ mentar a menor perturbação enquanto se vive neste lugar de miséria", diz ele, "só pode ser fruto de grande dureza de alma e de grande entorpecimento do corpo" (De civ. Dei, XIV, 9). S. Agostinho frisa o caráter ativo e responsável das emoções: "A vontade está em todos os movimentos da alma, ou melhor, todos os mo­ vimentos da alma não são mais que vontade. O que é, de fato, a cupidez ou o contentamen­ to senão vontade consciente com as coisas de­ sejadas? E o que é o medo e a tristeza senão vontade que repudia coisas não desejadas? Se­ gundo a diversidade das coisas desejadas ou evitadas, a vontade humana, ao permanecer atraída por elas, ou ao rejeitá-las, transformase nesta ou naquela E." (Ibid., XIV, 6). S. Tomás restabelece o conceito de E. como afeição, como modificação sofrida, relacionan­ do-a com o aspecto da alma no qual ela é potencialidade e pode receber ou sofrer uma ação (S. Th., II, I, q. 22, a. 1). Em particular, as E. pertencem mais à parte apetitiva da alma do que à apreensiva (embora se achem também nesta); especificamente, mais ao apetite sensí­ vel do que ao apetite espiritual, já que costu­ mam estar unidas a mudanças físicas (Ibid., q. 22, a. 2-3). Importante é a distinção que S. To­ más introduz entre as E. referentes à parte concupiscível e as que se referem à parte irascí­ vel. A faculdade concupiscível tem por objeto o bem ou o mal sensível enquanto agradável ou doloroso. Mas, assim como às vezes depara­ mos com dificuldades ou conflitos ao buscar­ mos o bem ou evitarmos o mal, também o bem ou o mal, quando difíceis de conseguir ou de evitar, são objeto da faculdade irascível. Portanto, as E. que concernem ao bem e ao mal tomados em si pertencem à faculdade concupiscível (p. ex., alegria, tristeza, amor, ódio, etc), enquanto as E. que se referem ao bem ou ao mal enquanto difíceis de conseguir ou de evitar pertencem à faculdade irascível (p. ex., audácia, temor, esperança, desespero, etc.) (Ibid., q. 23, a. 1). As E. que pertencem à parte concupiscível referem-se à ordo executionis, ou seja, ao movimento com que se reali­ za a consecução de um bem ou o afastamen­

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to de um mal; as pertencentes à parte irascível servem de mediadoras à consecução das emo­ ções concupiscíveis, ou seja, condicionam sua realização (Ibid., q. 25, a. 1). O significado des­ sa distinção é que, em um mundo sub ratione ardui, em que é difícil conseguir o bem e evi­ tar o mal, a previsão do bem ou do mal e o es­ forço para obter o primeiro e evitar o segundo servem de trâmite às outras emoções. Esses reparos têm o objetivo de garantir o significado e a "seriedade" das E. humanas, evi­ denciando sua função na economia da vida hu­ mana no mundo. É significativo que o mesmo intuito se encontre nas análises naturalistas das E., feitas nos sécs. XVI e XVII, que, como é óbvio, partem de formulações metafísicas e metodológicas completamente diferentes. As­ sim, Telésio reconhece claramente a função biológica do prazer e da dor, os dois pólos da experiência emotiva. Causam dor ao corpo e ao espírito vital as coisas que, dotadas de for­ ças prepotentes e contrárias, afastam-nos de sua disposição e os corrompem; ao contrário, causam prazer as coisas que, dotadas de forças semelhantes e afins, os favorecem, os vivificam e lhes restituem a sua própria disposição, se estiverem afastados dela (De rer. nat, VII, 3). Assim, as E. nascem da difícil situação em que o espírito vital e o corpo se encontram no mun­ do. O espírito, na verdade, está situado em lugar estranho e em meio a acontecimentos adversos, dos quais o corpo não chega a pro­ tegê-lo a ponto de evitar que se canse ou enfra­ queça; e o próprio corpo, que lhe serve de re­ vestimento e de proteção, é continuamente modificado e corrompido não só por forças ambientais, mas também por seu próprio calor, de tal modo que em pouco tempo pereceria se não se restaurasse com o alimento. Nessa situa­ ção, para poder sobreviver, o espírito vital pre­ cisa perceber e entender as forças de todas as outras coisas, desejar e perseguir as coisas que lhe dêem o meio e a faculdade de proteger-se do calor e do frio demasiados, bem como de nutrir-se e refazer-se, e que o comovam e o le­ vem à sua nova atuação. Também é preciso que sinta prazer quando essas coisas estão à sua disposição e que ame e venere as coisas que as proporcionam, ao mesmo tempo que se entristeça quando elas lhe faltem e odeie e dese­ je destruir aqueles que procurem privá-lo de­ las (Ibid., IX, 3). Desse modo, são geradas as E. fundamentais, amor e ódio, que têm ori­ gem, portanto, na situação em que o espírito

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do homem se encontra no mundo natural. Essa situação explica também as outras E., em virtu­ de das quais o homem está ligado aos seus semelhantes. Com efeito, o homem é levado à convivência não só para atender às necessida­ des que não poderia satisfazer sozinho, mas também pela tendência a gozar da companhia de seus semelhantes; essa tendência impele-o para as relações sociais e para o desejo de familiaridade e benevolência. Tais relações de­ terminam, portanto, outro grupo de E., como temor, dor, prazer e satisfação, inerentes ao comportamento recíproco dos homens. Enfim, um terceiro grupo de E. nasce da sensação de orgulho e satisfação que o espírito experimen­ ta ao sentir-se íntegro e puro, e ao reconhe­ cer nos outros a integridade e a pureza que deseja para si mesmo. Determina-se assim o sentimento de honra e o seu contrário, o des­ prezo, bem como outros semelhantes: todos referentes à situação natural do espírito huma­ no no mundo (Ibid, IX, 3). Muito próxima dessa análise de Telésio está a de Hobbes, que situava as E. entre as quatro faculdades humanas fundamentais, ao lado da força física, da experiência e da razão (De eive, 1,1). Hobbes relaciona as E. com os "princípios invisíveis do movimento do corpo humano" que precedem as ações visíveis e cosaimam ser chamados de tendências (conatus). As tendên­ cias chamam-se desejos, apetites ou aversões, em relação aos objetos que as produzem, e como tais são os constituintes de todas as E. humanas. De fato, o que os homens desejam também se diz que amam, e o que evitam se diz que odeiam; de tal modo que desejo e amor, aversão e ódio são a mesma coisa com a dife­ rença de que as palavras "desejo" e "aversão" implicam a ausência do objeto, ao passo que as palavras "ódio" e "amor" implicam sua presen­ ça. Aquilo, porém, que não se deseja nem se odeia, diz-se que se desdenha; assim, o des­ dém é uma espécie de imobilidade do coração, uma refratariedade a sofrer a ação de certas coisas. O tom agradável ou doloroso de uma E. garante sua função vital. "O movimento chama­ do apetite", diz Hobbes, "e, em sua aparência, deleite ou prazer, parece um reforço e um auxí­ lio ao movimento vital; portanto não é com impropriedade que se chamam de jucunda (de juvando) as coisas que dão prazer, porque aju­ dam e fortificam; ao passo que chamamos de molestas as coisas nocivas porque impedem e perturbam o movimento vital" (leviath, I, 6). O

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prazer ou deleite, portanto, é o sentido do bem: o enfado ou desprazer, o sentido do mal. E todo apetite, desejo ou amor é acompanha do por um prazer maior ou menor, como todo ódio ou aversão é acompanhado por uma dor maior ou menor. Assim entendidas, as E. con­ trolam toda a conduta do homem: a própria vontade, para Hobbes, não passa de "último apetite ou última aversão aderente à ação ou à omissão", e a deliberação que precede a vonta­ de não passa de "soma de desejos, versões, esperanças ou temores". Essa é a primeira vez que se reconhece a função determinante das E. sobre a totalidade da conduta humana. Embora Descartes compartilhe do ponto de vista estóico, de que a força da alma consiste em vencer as E. e deter os movimentos do cor­ po que a acompanham, enquanto a sua fra­ queza consiste em deixar-se dominar por elas, de tal modo que é puxada para todos os lados, sendo levada a lutar contra si mesma, a teoria das E. que ele expõe em Paixões da alma tem as mesmas características fundamentais das teo­ rias de Telésio e de Hobbes. Segundo Descar­ tes, as E. são as afeições, ou seja, as modifica­ ções passivas causadas na alma pelo movimento dos espíritos vitais, das forças mecânicas que agem no corpo (Pass. de 1'âme, I, 27). Essa ação dos espíritos sobre o corpo é mediada pela glândula pineal, onde, segundo Descar­ tes, reside a alma, sendo, portanto, também a sede das E. (Ibid, 34). A função natural das E. é incitar a alma a permitir as ações que servem para conservar o corpo ou para torná-lo mais perfeito, contribuindo com elas. Por isso, a tris­ teza e a alegria são as duas E. fundamentais. Graças à primeira, a alma adverte das coisas que prejudicam o corpo e por isso sente ódio pelo que lhe causa tristeza e desejo de livrarse, Graças à alegria, ao contrário, a alma adver­ te das coisas úteis ao corpo e, assim, sente amor por elas e desejo de adquiri-las e de conserválas (Ibid, 137). Obviamente tudo isso supõe a separação entre alma e corpo, ou seja, a noção de alma como "substância" independente, vis­ to que reduz a E. a uma preocupação da alma em relação ao corpo, à vida e à conservação deste. Segundo Descartes, a diferença entre as E. não provém da diferença entre os objetos, mas dos diferentes modos pelos quais os obje­ tos nos prejudicam, nos ajudam ou, em geral, têm importância para nós. O modo de ação habitual das E. consiste em dispor a alma a desejar as coisas que a natureza nos faz sentir

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úteis e a persistir nesse desejo, além de produ­ zir a excitação dos espíritos vitais que facilita os movimentos corpóreos úteis à consecução des­ sas coisas (Ibid, 52). Para Descartes, há só seis E. simples e primitivas: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza; todas as outras são compostas por essas seis ou são espécies delas. Ele rejeita a distinção tomista entre paixões per­ tencentes à parte concupiscível e paixões não pertencentes à parte concupiscível (Ibid, 68); o estranho é que nem o temor nem a esperança são admitidos no rol das E. fundamentais. En­ tretanto, nele está incluída a admiração, que é "a súbita surpresa da alma, que a impele a con­ siderar com atenção os objetos que lhe pare­ çam raros e extraordinários" (Ibid, 70). Essa é a única E. não acompanhada de movimentos corpóreos, porque não tem como objeto o bem e o mal, mas só o conhecimento da coisa que causa admiração. O que não significa que é desprovida de força, pois a surpresa da novida­ de, típica dessa E., reforça enormemente todas as outras (Ibid, 72). Se para Descartes a E. diz respeito à alma só em termos de sua relação com o corpo, para Spinoza ela é um modo de ser total que envol­ ve alma e corpo, que são dois aspectos de uma única realidade. Segundo Spinoza, as E. deri­ vam do esforço (conatus) da mente em perseverar no próprio ser por um período indefi­ nido. Esse esforço chama-se vontade quando se refere só à mente: chama-se desejo (appetitus) quando se refere à mente e ao corpo (Et., iii, 9 e, scol.). O desejo é assim a E. fundamen­ tal. A ele estão ligadas as outras duas E. primá­ rias, alegria e dor; a alegria é a E. graças à qual a mente, sozinha ou unida ao corpo, eleva-se para uma perfeição maior; e a dor é a E. graças à qual a mente desce para uma perfeição me­ nor (Ibid, iii, 11, scol.). O amor e o ódio são, apenas a alegria e a dor acompanhadas da idéia de suas causas externas; assim, quem ama esforça-se necessariamente por manter consi­ go e conservar a coisa amada, e quem odeia esforça-se por afastar e destaiír a coisa odiada (Ibid, iii, 13, schol.). Nessas observações, as E. são vinculadas ao esforço da mente e do corpo para a perfeição; na verdade, para Spinoza corpo e mente são duas manifestações da Substância, são eternas como a Substância; por­ tanto, não podem ser realmente ameaçados por nada, de tal sorte que as E. não podem ser a advertência dessa ameaça. Donde o pouco peso que o medo e a esperança têm na análise de

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Spinoza. Ambas as E. são relacionadas com o amor e ódio (Ibid, iii, 18, scol. 2) e atribuídas a "causas acidentais" (Ibid, iii, 50). De resto, todas as E., enquanto afeições ou modificações pas­ sivas (passiones), estão destinadas a desapare­ cer como tais, pois são idéias confusas destina­ das a tornar-se idéias distintas; uma vez idéias distintas, deixam de ser afeições (Ibid, V, 3) para tornar-se idéias sub specie aeternitatis, na ordem geométrica da Substância divina. São, então, determinações da natureza divina e dela derivam (Ibid, V, 29, scol.). Esse ponto de vista coincide substancial­ mente com o dos estóicos, visto resolver-se em negar a função das E. na economia da vida humana no mundo. E a mesma negação está implícita na doutrina de Leibniz, que vê nas E. somente sinais de imperfeição que impedem a alma de ser um Deus: "Tem-se razão em cha­ mar, como os antigos, de perturbações ou paixões aquilo que consiste em pensamentos confusos que têm algo de involuntário e de incógnito; o que, na linguagem comum, atri­ bui-se não sem razão à luta do corpo e do espírito, porque os nossos pensamentos confu­ sos representam o corpo- ou a carne e fazem nossa imperfeição" (Op., ed. Erdmann, 1, p. 188). Essa noção das E. como "pensamentos confusos" que, para a alma, derivam de sua re­ lação com o corpo, constituindo, portanto, a im­ perfeição do espírito criado finito, foi adotada por toda a escola de Leibniz e Wolff. Essa no­ ção obviamente implica que as E. não têm ca­ ráter próprio e específico se comparadas com as representações cognitivas: portanto, não têm sequer significado, a não ser representar a im­ perfeição da alma humana. Uma linha de pensamento que vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Rochefoucauld, Vauvenargues, Shaftesbury, Butler), até Rousseau e Kant, levou ao reconhecimento da categoria "sentimento" como princípio autô­ nomo de E. e à elaboração da noção moderna de "paixão" como E. dominante, capaz de pe­ netrar e controlar toda a personalidade huma­ na. Já se viu que para Hobbes todas as formas da ação voluntária passam pelas E. e são deter­ minadas por elas: a própria vontade é apenas uma E. que consegue prevalecer. Essa tese é compartilhada por toda a corrente a que aludi­ mos. Pascal foi o primeiro a dar primazia "às ra­ zões do coração, que a razão não conhece" (Pensées, 277); insistiu no valor e na função do "sentimento" como um princípio em si, que

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também é fonte de conhecimentos específicos (v. SENTIMENTO); e julgou impossível eliminar o conflito entre razão e E., sendo em todo caso impossível solucionar esse conflito eliminando uma das partes dele {Jbid, 412-13). Vauvenargues delineou assim a natureza das E.: "Ex­ traímos da experiência do nosso ser a idéia de grandeza, prazer e poder, que gostaríamos de aumentar sempre: e haurimos na imperfeição de nosso ser a idéia de pequenez, sujeição e miséria que procuramos reprimir: aí estão to­ das as nossas paixões... Desses dois sentimen­ tos unidos, ou seja, o de nossa força e o de nossa miséria, nascem as maiores paixões, pois o sentimento das nossas misérias impele-nos a sair de nós mesmos e o sentimento dos nossos recursos encoraja-nos a isso e arrebata-nos de esperança. Mas aqueles que sentem apenas sua própria miséria sem a força nunca se apaixo­ nam bastante, porque nada ousam esperar; tampouco se apaixonam aqueles que sentem sua força sem a impotência, pois têm muito pouco a desejar: é preciso, assim, que haja es­ perança de coragem, de fraqueza, de tristeza e de presunção" (De Vesprithumaín, 22). O pres­ suposto dessas observações é que não só é impossível compreender a natureza e o comportamento do homem sem levar em con­ ta as E., mas também que as próprias E. têm função diretiva sobre a totalidade da conduta humana, ou seja, tendem a transformar-se, se­ gundo a expressão de Pascal (Pensées, 106), em "E. dominantes". Shaftesbury foi provavel­ mente quem mais contribuiu para difundir esse ponto de vista em filosofia: "A rigor, não se pode dizer que um animal age, a não ser atra­ vés das afeições ou das E. próprias dos ani­ mais. De fato, nas convulsões em que uma criatura se fere ou fere outra, o que age é um simples mecanismo, uma máquina, uma peça de relojoaria, não o animal. Tudo o que é feito pelo animal como tal é feito só através de certa afeição ou E., como p. ex. o temor, o amor e o ódio que o movem. E assim como é impossível que uma afeição mais fraca prevaleça sobre outra mais forte, também é impossível que, sempre que as afeições ou E. forem mais fortes e formarem, graças a sua força e a seu número, o lado mais poderoso, o animal não se incline nesse mesmo sentido. Segundo essa balança das E., ele deve ser governado e conduzido à ação" (Characteristicks, 1749, Treatise IV, livro II, parte I, seção 3). Em outros termos, segun­

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do Shaftesbury a presença das E. é o que distingue um animal de um puro e simples mecanismo de tipo cartesiano. A classificação que Shaftesbury dá das emoções (no trecho ora citado) é característica do seu moralismo otimista. Em primeiro lugar, há as afeições naturais, que conduzem ao bem público-, em segundo lugar, as auto-afeições, que condu­ zem ao bem pessoal; em terceiro lugar, as que não tendem nem ao bem público nem ao pes­ soal, mas aos seus contrários, e, portanto, de­ vem ser chamadas de afeições inaturais. O con­ ceito em que ele insiste é o da balança ou do equilíbrio das E., em virtude do qual fala de uma "economia das E." com vistas à conserva­ ção das criaturas; assim, p. ex., uma criatura que não possua fortes meios de ataque e de defesa está sujeita a alto grau de temor, que é a E. que lhe possibilita salvar-se fugindo do perigo. Kant, que foi o primeiro a introduzir explici­ tamente a categoria do sentimento como autô­ noma e mediadora entre as admitidas tradi­ cionalmente (razão e vontade), reconheceu claramente o significado e a função biológica das E., embora fosse levado por sua doutrina moral, a simpatizar com a tese dos estóicos, de que elas são doenças da alma. "A E.", disse ele, "é tal predomínio das sensações que se produz a supressão do controle da alma (animus sui compôs); portanto, é precipitada, ou seja, cres­ ce rapidamente até tornar impossível a refle­ xão (Antr, § 74). Nisso é diferente da paixão, que, ao contrário, é lenta e reflexiva (v. PAI­ XÃO). Para Kant o ideal de apatia é "justo e no­ bre"; mas a natureza foi sábia quando deu ao homem a disposição à simpatia como guia tem­ porário, antes que a razão adquira todas as suas forças, pois assim, ao impulso moral para o bem, acrescentou um estímulo patológico (sensível) como sucedâneo temporário da razão.Portanto, até do ponto de vista moral a E. tem certa função, ainda que subordinada e pro­ visória. Do ponto de vista biológico, não pai­ ram dúvidas quanto a importância da emoção. A alegria e a tristeza estão respectivamente li­ gadas ao prazer e à dor: estes têm a função de impelir o sujeito a permanecer na condição em que está ou a deixá-la. A alegria excessiva (não atenuada pela preocupação da dor) e a tristeza extrema (não aliviada por nenhuma esperan­ ça), a angústia, são E. que ameaçam a existên­ cia. Mas na maioria da vezes as E. ajudam e sustentam a existência, e algumas, como o riso

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e o pranto, ajudam mecanicamente a saúde. A utilidade das E. decorre da função exercida em face da vida por seu tom fundamental, prazer ou dor. "O prazer", diz Kant (Antr, § 60), "é o sentido do crescimento da vida; a dor, do im­ pedimento à vida: a vida do animal, como já notaram os médicos, é o antagonismo contínuo entre prazer e dor." Nesse jogo de antagonis­ mo, a dor tem a primazia. De fato, aquilo que de modo imediato, ou seja, por via do sentido, me impele a abandonar meu modo de ser, é de­ sagradável para mim, aflige-me; o que, ao con­ trário, me impele a conservá-lo (a permanecer nele) é agradável para mim, apraz-me. Mas como o tempo nos foge, indo sempre do pre­ sente para o futuro e não vice-versa, somos obrigados a sair do estado presente sem saber em qual entraremos, sabendo apenas que é um estado diferente. Ora, essa perspectiva é a causa do sentimento agradável, o que significa que ele é precedido e condicionado pelo sentimen­ to de dor vinculado à necessidade de sair do próprio modo de ser. "A dor", nota também Kant, "é o aguilhão da atividade e é nela que sentimos a vida; sem dor, cessaria a vida". É estranho que essas observações de Kant, que outra pretensão não tinham senão caracterizar uma situação de fato, tenham sido amplificadas por Schopenhauer, fundamentando seu pessi­ mismo romântico. Viver, para Schopenhauer, significa querer; querer significa desejar; e o desejo implica a ausência do que se deseja, ou seja, deficiência e dor. Por isso, a vida é dor e a vontade de viver é o princípio da dor. Da satis­ fação do desejo ou da necessidade, surge um novo desejo, outra necessidade ou o tédio da satisfação prolongada. Nessa oscilação, contí­ nua, o prazer representa só um momento de trânsito, negativo e instável: é a simples cessa­ ção da dor (Die Welt, I, § 57). A distinção e a especificação dos conceitos de "E.", "sentimento" e "paixão" podem ser vistas no fato de que, na doutrina de Hegel, a paixão recebe tratamento privilegiado, enquanto o sentimento e, sobretudo, a emoção são re­ duzidos ao nível da "vã opinião" dos estóicos. Hegel fala das E. a propósito da forma do senti­ mento, que faz parte do espirito subjetivo, mais precisamente do momento dele que é a "psi­ cologia"; esta "indica em forma de narração o que é espírito ou alma, o que lhe aconte­ ce, o que faz" (Ene, 387). O sentimento, diz Hegel, tem forma de "particularidade aciden­ tal"; nele o espírito encontra sua "forma íntima

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e pior, em que já não está livre, como universa­ lidade infinita, mas seu conteúdo está como acidental, subjetivo, particular" (Ibid, 447). Obviamente, com essas expressões, Hegel pre­ tende referir-se às E., das quais o sentimento constitui a forma ou categoria universal; e às E. cabem portanto as qualificações de "particulari­ dade acidental" e "conteúdo acidental, subjeti­ vo, particular": expressões todas que, na lin­ guagem de Hegel, designam determinações provisórias ou aparentes, que só têm realidade na substância racional. Quanto aos "sentimen­ tos práticos", só podem ser considerados como tais egoísticos e maus, pois só estes perten­ cem à individualidade que se mantém contra a universalidade; o conteúdo desses sentimentos, portanto, só é determinado em antítese com o dos direitos e dos deveres (Ibid., 471). As expressões que Hegel emprega a propósito e que parecem referir-se ao conteúdo da forma do sentimento, ou seja, à esfera das E., sâo o equivalente exato da "vã opinião" dos estóicos e do "pensamento confuso" de Spinoza e Leibniz: indicam estados ou momentos que não têm significado próprio, mas só o signifi­ cado negativo de não serem perfeitamente redutíveis ao juízo, ou, em geral, às determina­ ções racionais. A partir da segunda metade do séc. XIX, as E. tornam-se objeto de indagação científica e sâo consideradas em estreita conexão com os movi­ mentos e os estados corpóreos que as acom­ panham. A primeira tentativa importante nes­ se sentido foi de Charles Darwin, em Expressão das E. no homem e nos animais, de 1872, que também utilizou pesquisas anteriores e assumiu como ponto de partida a distinção de Spencer entre sensações e emoções. Segundo Spencer {Principies ofPsichology, 1855, § 66), to­ das as experiências vividas (feelings) dividem-se em duas classes: sensações, produzidas por um estímulo periférico, e E, produzidas por um es­ tímulo central. Sensações e E. distinguem-se sobretudo porque as primeiras são relativamen­ te simples e as segundas são extremamente complexas. Ambas, porém, são mecanismos de adaptação ou de resposta a conjuntos uniformes de circunstâncias externas (Ibid, § 216). Darwin preocupou-se principalmente em estudar os movimentos ou as modificações somáticas que constituem a expressão das emoções. E julgou poder explicá-las mediante três princípios. ls Princípio dos hábitos úteis e associados, que ex­ primiu assim: "Quando uma sensação, um de­

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sejo, tiver produzido, ao longo de toda uma série de gerações, alguns movimentos volun­ tários úteis a dar satisfação ou alívio, ter-se-á uma tendência a realizar movimentos semelhantes sempre que essa sensação ou desejo voltar a apresentar-se, mesmo que de forma débil e mesmo que o movimento expressivo não tenha mais nenhuma utilidade. Movimentos dessa espécie são, em geral, herdados e pouco dife­ rem de ações reflexas (v.)". 2a Princípio da antí­ tese, segundo o qual se tem a tendência a reali­ zar movimentos opostos no caso de E. opostas, ainda que tais movimentos não tenham nenhu­ ma utilidade. 3e Princípio da ação direta do sis­ tema nervoso: quando a sensibilidade é forte­ mente excitada, o excesso de força nervosa é transmitido em direções definidas que depen­ dem da conexão das células nervosas e, em par­ te, do hábito, produzindo assim efeitos que re­ conhecemos como expressões emotivas. Os dois primeiros princípios apelam para a ação do hábito e da associação, à qual recorreu constan­ temente a psicologia do séc. XIX. Mas a mesma corrente de investigação psicológica, levada a considerar os fatos psíquicos em conexão estreitíssima com os corpóreos, logo levou a ver nos estados somáticos muito mais que a simples "expressão" das emoções. Em 1884 e 1885, James e Lange, independentemente um do outro, propunham a chamada "teoria somática das E.", que, apesar das críticas logo suscitadas, prevale­ ceu durante muitos decênios e serviu, como ainda serve em parte, de útil ponto de referên­ cia para teorias ulteriores. Eis como James expôs essa teoria: "Minha teoria sustenta que as mu­ danças corpóreas seguem-se imediatamente à percepção do fato excitante e que o sentimento que temos dessas mudanças, enquanto elas se produzem, é a emoção. O senso comum diz: Perdemos a nossa fortuna, ficamos aflitos e cho­ ramos; encontramos um urso, temos medo e fu­ gimos; um rival nos insulta, ficamos encolerizados e batemos. A hipótese que defendemos é que essa ordem de sucessão é inexata: que um estado mental não é imediatamente induzido pelo outro, que as manifestações corpóreas de­ vem interpor-se, entre um e outro, e que a fór­ mula mais racional consiste em dizer: ficamos aflitos porque choramos, irritados porque bate­ mos, assustados porque trememos, e não que choramos, batemos e trememos porque esta­ mos aflitos, irritados ou assustados conforme o caso. Sem os estados corpóreos que se seguem à percepção, esta teria forma puramente cog­

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nitiva, pálida, descorada e desprovida de calor emocional. Poderíamos então ver o urso e julgar oportuno fugir, receber o insulto e decidir rea­ gir, mas não sentiríamos realmente medo nem cólera" (The Theory of Emotions, 1884; trad. fr., p. 6l). A força dessa teoria está na observação de que, se em caso de alguma E. violenta, se prescindir de todas as sensações de sintomas físicos, não ficará nenhum resíduo, nenhuma "substância mental" emotiva, mas simplesmente um estado de percepção intelectual. "Não consi­ go imaginar", dizia James, "o que sobraria da E. do medo, se não estivesse presente o sentido da pulsação apressado do coração, da respiração ofegante, do tremor dos lábios, do enfraqueci­ mento das pernas, do arrepio e dos estreme­ cimentos viscerais. Poderia alguém imaginar um estado de raiva sem calor no peito, enrubescimento das faces, dilatação das narinas, aperto dos dentes, impulso para a ação violenta, ou seja, um estado de raiva que deixasse os múscu­ los imóveis e relaxados, a respiração tranqüila e o rosto plácido? Nesse caso não restaria da E. mais que um juízo trio e desapaixonado, segun­ do o qual cada pessoa ou certas pessoas mere­ cem castigo por seus delitos." Por dois ou três decênios sucessivos, pode-se dizer que os estu­ dos experimentais sobre as E. foram inspira­ dos nessa teoria. Mas foi precisamente no do­ mínio dos fatos experimentais que ela encontrou as primeiras objeções decisivas. Sherrington de­ monstrou que a expressão visceral da E. é pos­ terior à ação cerebral, que ocorre juntamente com o estado psíquico (1908), e Cannon (Feelings and Emotions, 1928) observou que as E. viscerais ocorrem em muitos estados orgâ­ nicos sem que tenham qualquer significado emocional. A febre e a exposição ao ar frio pro­ duzem muitas vezes aceleração do coração, aumento do açúcar no sangue, descarga de adrenalina, ereção dos pelos. A asfixia age do mesmo modo no estágio da excitação. A redu­ ção do sangue através da insulina provoca uma reação hipoglicêmica caracterizada por palidez, aceleração do coração, acréscimo de açúcar no sangue e suores profusos. Por isso é difícil com­ preender como reações que em si mesma não têm nenhum valor emotivo na maior parte dos casos em que ocorrem adquiririam, em outros casos, caráter de emoções propriamente ditas. Mas o defeito principal dessa teoria, justamente como "teoria", é que ela não explica absoluta­ mente a função das emoções. Não explica, p. ex., por que a visão do urso e a constatação de

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que ele não está empalhado nem acorrentado fazem tremer e empalidecer. Não explica, em outros termos, o caráter biológico das E., seu finalismo, parcial ou rela­ tivo embora, mas bastante evidente em certo número de casos. Precisamente por esse pris­ ma, Dewey e a escola psicológica de Chicago (especialmente Stanley Hall), retomando a ten­ tativa de Darwin, consideraram a E. como a recorrência alterada de certos movimentos teleológicos e a atribuíram a manifestações re­ siduais de instintos ancestrais. Assim, p. ex., os movimentos de agarrar, morder e arranhar, nos estados de cólera, seriam resquícios de atos próprios de animais selvagens, de que descen­ demos. O movimento de pôr a cabeça para a frente também seria uma recordação ancestral: encontra-se, com efeito, nos animais com chi­ fres e nos primeiros vertebrados aquáticos ou terrestres que utilizaram a cabeça para afastar obstáculos. Sem dúvidas essas teorias reinte­ gram a E. em sua natureza biológica, mas le­ vam a ver nela nada além do resíduo atual­ mente não significante de um movimento ins­ tintivo originariamente significante. Esse resí­ duo seria constituído por aquilo que a here­ ditariedade deixou sobreviver de movimentos instintivos que tinham significado de ataque ou defesa nos animais que em geral os possuíram, mas que depois deixaram de tê-los. Toda essa teoria está, pois, fundada na hipótese da trans­ missão hereditária de movimentos instintivos e no postulado de que as E. derivam mais des­ ses movimentos do que da situação em face da qual assumem significado de reações ou res­ postas. A referência a essa situação constitui, no entanto, o traço característico das mais impor­ tantes teorias contemporâneas. Para elas, a E. não se esgota na subjetividade como simples "estado de espírito" ou complexo de estados de espírito, mas sempre inclui uma relação com circunstâncias objetivas, que lhe conferem o seu significado específico. Desse ponto de vis­ ta, a E. é um comportamento ou o elemento de um comportamento que visa a enfrentar a situa­ ção ou a fugir dela, resolver o problema que ela apresenta ou a eludi-lo. Pode-se considerar que a psicanálise é o primeiro passo para a inter­ pretação da E. nesse sentido: ela evidenciou o significado dos fatos psíquicos em relação às situações que os determinaram. Na angústia, p. ex., Freud vê em primeiro lugar a preparação para enfrentar o perigo, que se manifesta pela

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exaltação da atenção sensorial e da tensão motora. Esse estado de expectativa ou de pre­ paração é biologicamente útil, pois sem ele o indivíduo estaria exposto a conseqüências gra­ ves. Dele derivam, por um lado, a ação motora, a fuga e, em grau superior, a defesa ativa; por outro lado, o que se sente como estado de an­ gústia. Se o desenvolvimento da angústia for contido em limites estreitos, ele não passará de apêndice, de simples sinal de perigo, e todo o processo de transformação do estado de pre­ paração angustioso em ação ocorre rápida e racionalmente. Quando, ao contrário, o desen­ volvimento do estado de angústia ultrapassa certos limites, torna-se contrário ao objetivo biológico e dá lugar às formas patológicas. Freud também julga que a situação cujo sinal é a angústia e, em geral, um estado afetivo pode não ser um acontecimento presente: pode tra­ tar-se de uma impressão profunda ou oculta, pertencente à pré-história, não do indivíduo, mas da espécie. Assim, pode-se dizer que o estado afetivo apresenta a mesma estrutura de uma crise de histeria, visto ser, como esta últi­ ma, constituído por uma reminiscência incons­ ciente. A crise de histeria pode ser comparada a um estado afetivo individual recém-formado, e o estado afetivo normal pode ser considerado a expressão de uma histeria genérica, que se tornou hereditária (Einführung in die Psychoanalyse, 1917, cap. 24; trad. fr., pp. 422-23). Em outros termos, tem-se conduta emotiva sempre que a E., em vez de transformar-se rapidamente de preparação em ação, na ação efetiva, desenvolve-se como E., agindo como inibição, recusa ou censura da própria ação. Nesse sentido explica-se a sua analogia com a histeria, que é, freqüentemente a recusa de reviver uma recordação desagradável. Assim como o sonho às vezes é uma fuga diante da decisão a tomar, assim como a doença de cer­ tas moças às vezes é uma fuga diante do casa­ mento, também a cólera é habitualmente a fuga diante de uma situação desagradável e o des­ maio por medo é a fuga diante de uma pers­ pectiva desfavorável, a procura de um refúgio ilusório. Em sentido análogo, Janet caracterizou a E. como a "reação do fracasso". Para Janet, a E. é a regressão brutal para uma forma de conduta inferior, menos adaptada à situação e incapaz de enfrentá-la. Como o comportamento psí­ quico mais elementar é a agitação convulsiva acompanhada por modificações das funções

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respiratória e circulatória, quando suficiente­ mente profunda, a E. dá início a convulsões ou simples modificações viscerais. Não se trata, porém, de uma regressão simplesmente mecâ­ nica: um idiota não experimentaria nenhuma E. ao deparar com o urso de que falava james, e muitos doentes em "estado de apatia" dei­ xam de sentir as E. que teriam sentido outrora nas mesmas circunstâncias. Trata-se, portanto, de uma reação ativa, de uma forma de regula­ mento da ação cujo ponto de partida é a rea­ ção do indivíduo. Mas trata-se também de uma reação inferior e desordenada que denuncia a recusa e a incapacidade de enfrentar uma situa­ ção: eqüivale, por isso, à consciência do fracas­ so diante de tal situação. Exemplo disso é a jo­ vem que ouve o pai dizer que tem dor no braço e que teme uma paralisia, e começa a chorar, a gritar, e a agitar-se, entrando em con­ vulsões, que se repetem alguns dias depois. Durante o tratamento médico, confessa que a idéia de cuidar do pai e de levar vida de enfer­ meira doméstica parecera-lhe insuportável. Nesse caso, a E. representa efetivamente uma conduta de fracasso, derivada da incapacidade de enfrentar a situação em perspectiva {De 1 'angoisse à 1 'extase, 1928, pp. 450 ss.). Por ou­ tro lado, os estados afetivos de elação e alegria constituem, segundo Janet, reações de êxito, ainda que não justificadas. A alegria nem sem­ pre é correta e nem sempre corresponde a um aumento real das faculdades, a uma criação real, como os filósofos consideraram. Ela pode ser equivocada e aparece simplesmente quan­ do o homem se comporta como se fosse vito­ rioso e quando esse comportamento de triunfo, verdadeiro ou falso, liberta forças que são bem ou mal utilizadas. Portanto, é principalmente um comportamento de esbanjamento, no qual as forças que tinham sido utilizadas na ação, ou pelo menos seus resíduos, expandem-se pelo organismo e são empregadas em outras ações não solicitadas por estímulos urgentes ou que já se desenvolviam em limites restritos (Md., p. 408). Desse ponto de vista, a E. mostra-se nociva porque suprime a ação eficaz e a substitui por convulsões absurdas. Contudo, segundo Janet, tem certa utilidade ou pelo menos certa fun­ ção, porquanto seu sujeito, na impossibilidade de responder à situação com uma reação de ordem superior, entrega-se a uma reação infe­ rior e primitiva, muito mais grosseira, porém capaz de dar-lhe certa proteção imediata. "Os

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comportamentos reflexos, as simples convul­ sões desordenadas, serviram a gerações intei­ ras de seres para afastar os contatos nocivos e para conseguir alimento. Não será natural que, em certa época, os seres em vias de aperfeiçoa­ mento, mas ainda incapazes de utilizar de modo constante os procedimentos aperfeiçoa­ dos, voltem instintivamente a esses atos primi­ tivos?" (Ibid., p. 471). Mas se a E. propriamente dita, ou seja, o choque emocional, é a regres­ são a uma forma grosseira e primitiva de rea­ ção, o sentimento é a forma de E. mais bem organizada e menos violenta que acompanha todo o desenvolvimento da ação sob forma de esforço, fadiga, tristeza, alegria. O sentimento é parte essencial da reação bem organizada. A E. contém confusamente elementos que per­ tencem aos sentimentos, mas os contém em desordem, não se identificando por isso com nenhum dos comportamentos sentimentais. "São os incidentes insignificantes, as pequenas discordâncias, que conduzem às grandes per­ turbações emocionais.É provável que o perigo real desperte o instinto vital, o amor pelos se­ res caros, o amor pela propriedade, e que essas tendências poderosas venham em socorro do ato falho, produzindo a reação do esforço: a presença dessa reação elimina a da E., que não é do mesmo gênero" (Les obsessions et Iapsychasténie, I, pág. 5, 578). Todavia, entre as emoções e os sentimentos, que são as suas formas superiores, elevem ser admitidos todos os graus intermediários; no fundo, trata-se de uma questão de palavras: já que "empregamos a palavra E. sempre que há uma mudança brusca da conduta após uma circunstância imprevista, mas todos os sentimentos podem nascer nes­ sas condições" (De 1'angoisse, p. 474). A psicologia da forma tornou mais precisa e aperfeiçoada, principalmente com Lewin e Dembo, a teoria das E. nesse sentido. A E. é interpretada como a "ruptura de uma forma" e a reconstituição de uma outra forma que valha como sucedâneo da primeira. A forma é certa situação que oferece um problema, cuja solu­ ção pode ser encontrada tão-somente em de­ terminada direção. Quando a procura e o esforço voltados para essa solução se inter­ rompem, o indivíduo refugia-se em atos sucedâ­ neos ou então procura evadir-se ou encerrar-se em si mesmo, estabelecendo entre si e o cam­ po hostil uma barreira de proteção. Atos suce­ dâneos, evasões, fechamento em si mesmo, esses são os comportamentos emotivos. Des-

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troem a estrutura diferencial do problema ine­ rente ao campo situacional e, por isso, produ­ zem o enfraquecimento da distinção entre real e irreal, com a conseqüência de que os objetos do campo perdem o seu valor próprio e ad­ quirem caráter uniformemente negativo. P. ex., a cólera é um modo de fugir de um problema que não se sabe resolver, recorrendo a uma ação de natureza inferior: aquele que está encolerizado assemelha-se ao homem que, não podendo desfazer os nós das cordas que o atam, agita-se convulsamente em seus laços. Na falta de uma solução adequada para o problema que a situação apresenta, a cólera procura um sucedâneo, uma evasão, em movi­ mentos desordenados que mascaram a falta da resposta adequada (GUILLAUME, Psych. dela for­ me, pp. 138 ss.). As teorias que acabamos de examinar são "psicológicas", no sentido de que se apresen­ tam como generalizações científicas fundadas em uma rica messe de observações de casos normais e patológicos (servindo estes ainda melhor do que os primeiros para ilustrar o fe­ nômeno em questão). Todavia, hoje as teorias filosóficas não se afastam muito das psicológi­ cas, pois umas e outras são levadas a conside­ rar os fenômenos emotivos (como também os outros fenômenos mentais) não como a resultan­ te de elementos atomisticamente considerados, mas na sua totalidade, na forma complexa e concreta, portanto, na situação global em que têm origem. Ademais, as teorias psicológicas e filosóficas concordam em considerar as E. como formas de comportamento específico, que exprimem um modo de ser fundamental do homem. Scheler, que é o filósofo contem­ porâneo mais interessado na vida emotiva e que procurou fundar, numa análise apropriada desta, toda a sua filosofia, parte da distinção en­ tre estados emotivos e funções emotivas; essa distinção pode ser expressa dizendo que os estados são afeições (modificações de natureza passiva) e as funções, ao contrário, são ativida­ des, reações aos estados emotivos. Segundo Scheler, os estados emotivos não têm, por si mesmos, caráter intencional, ou seja, não se re­ ferem imediatamente a objetos ou situações. Essa referência é sempre indireta, mediada por uma associação perceptiva ou representativa. P. ex., se me pergunto: "Por que hoje estou com este humor? O que causou em mim esta tristeza ou esta alegria?", a resposta a tal per­ gunta não é dada pelo estado emocional em

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que me encontro (humor, tristeza, alegria, etc), mas por um ato diferente e independente, no qual vinculo, com base na experiência ou no raciocínio, a E. com objetos ou situações co­ nhecidas. Em certos casos, o estado emotivo pode tornar-se um signo do objeto ou da situa­ ção, como quando certas dores anunciam o início de uma doença. Mas a relação simbólica entre o estado emotivo e seus objetos é sem­ pre mediada pela experiência e pelo pensa­ mento. O estado emotivo, em outros termos, pode estar ligado a uma situação de fato ou simbolizá-la, mas não contém em si a referên­ cia intencional a um objeto seu (Der Formalismus in derEthik, pp. 262 ss.). A diversidade entre estados emotivos e funções emotivas não impede que eles possam coexistir no mesmo ato ou momento de consciência. Um homem pode ser feliz e, no entanto, sofrer de um mal físico; poderia até acontecer, p. ex., que para um verdadeiro mártir da fé este sofrimento se tomasse um sofrimento feliz; pode até aconte­ cer que, desesperados no fundo da alma, sinta­ mos de um prazer sensível, que, aliás, o goze­ mos em nosso íntimo. Estados e funções, porém, não se misturam porque são dados e vividos de maneira diferente. Essa é a diferença que muitos psicólogos contemporâneos estabele­ cem entre emoções e sentimentos, entendendo por estes últimos os comportamentos emotivos superiores, que acompanham a ação em vez de bloqueá-la e que portanto se diferenciam do choque emocional (que dá lugar às neuro­ ses). Para Scheler, trata-se sobretudo de uma diferença de profundidade, desse ponto de vis­ ta, podem distinguir-se quatro graus de E., que correspondem à estrutura da existência huma­ na. São: Ia E. sensíveis; 2- E. corpóreas (esta­ dos) e sentimentos vitais (funções); 3B senti­ mentos psíquicos (sentimentos do eu); 49 sentimentos espirituais (sentimentos da perso­ nalidade). Todas essas E. fazem referência à vivência do eu ou da pessoa; mas a referência é diferente para cada uma das quatro espécies mencionadas, tornando-se mais intrínseca à medida que se consideram sentimentos supe­ riores. As E. sensíveis e as vitais tornam-se estados ou funções do eu só quando penetra­ mos os dados corpóreos e apreendemos o corpo como nosso, ou seja, como pertencente ao seu eu psíquico. Os sentimentos psíquicos, ao contrário, já são, originariamente, uma qua­ lidade do eu. "Sentir-se triste" ou, mais ainda, "ser triste" é algo de muito mais intrínseco ao

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eu do que o sentimento vital de bem-estar ou de mal-estar. Enfim, os sentimentos espirituais identificam-se com o eu no sentido de que não podem constituir estados distintos dele. Na bemaventurança e no desespero, aliás, já na sere­ nidade e na paz de espírito, qualquer estado particular do eu é como que anulado, pois esses sentimentos parecem brotar da própria fonte do ato espiritual e penetrar tudo o que nesses dados é dado do mundo interno e externo (Ibid., pp. 355 ss.). Scheler considera o sentimento assim entendido como um ato intencional (v. INTENÇÃO) cujo objeto especí­ fico é o valor, e distingue, portanto, quatro es­ pécies de valores correspondentes aos quatro graus do sentimento (v. VALOR). O importante na doutrina de Scheler é que o valor constitui o objeto próprio da E., ou pelo menos das fun­ ções emotivas, e é considerado uma realidade específica, irredutível às realidades percebidas ou conhecidas e de natureza absoluta. Doutri­ na análoga é exposta por Nicolai Hartmann, segundo a qual os valores se dão a priori no sentimento axiológico (Wertgefüht), que é o fenômeno autêntico da moralidade (Ethik, 1926, 3- ed., 1949, pp. 118 ss.) (v. SENTIMENTO). Mas seja qual for a apreciação que se faça de tais lucubraçòes metafísicas pode-se admitir que a E. consiste na percepção de um valor, ou seja, da forma específica que uma situação apre­ senta em relação às necessidades, aos interes­ ses e aos fins do homem, sem lançar mão de qualquer metafísica, visto que isso exprime bem os resultados das pesquisas psicológicas a respeito. A importância do sentimento como caracte­ rística essencial da existência humana no mundo, como parte da própria substância do homem, é ressaltada por Heidegger. Ele não vê as E. como simples fenômenos que acompa­ nham os atos de conhecimento e de vontade, mas como modos de ser fundamentais da exis­ tência na medida em que é uma existência no mundo, ou, como ele diz, um Dasein. Analisa a propósito o fenômeno do medo, que julga constitutivo da existência inautêntica, isto é, da existência "lançada no mundo" e abandonada às vicissitudes deste. Como tal, o medo não é um fenômeno temporal parcial, mas um modo de ser essencial e permanente. "Só um ente no qual, em sendo, está em jogo seu próprio ser pode ter medo. O temer abre esse ente ao risco, ao estar entregue a si mesmo" (Sein undZeit, § 30). Correspondente ao medo, mas no plano

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da existência autêntica, que não se entrega ao mundo e às suas vicissitudes, mas procura compreendê-lo na totalidade, é a outra situação afetiva fundamental, a angústia. Tem-se medo de algo que está dentro do mundo, que se apro­ xima ameaçadoramente e que pode ser removi­ do, ao passo que a angústia só pode ser sentida diante do mundo como tal. Ela não é provo­ cada, como o medo, por um fato particular ou por um acontecimento ameaçador, mas pelo simples estar no mundo, pela situação originária e fundamental da existência humana. E, como, justamente devido a essa situação, o homem tem de lidar com fatos ou acontecimentos que a qualquer momento podem revelar-se amea­ çadores, o medo pode ser considerado "uma angústia caída no mundo, inautêntica e oculta a si mesma". A angústia é, por isso, a situação emotiva fundamental, a que "abre primariamen­ te o mundo enquanto mundo". Como situação emotiva, a angústia não é só angústia em face de... mas é também angústia por... E assim como o em face de... também o por... refere-se ao ser no mundo como tal. Em outros termos, a angús­ tia não é tal em face de determinado modo de ser ou de determinada possibilidade humana. A ameaça que ela anuncia é indeterminada e não pode penetrar, ameaçando, nesta ou naquela possibilidade concreta e efetiva. Ao contrário, é a libertação das possibilidades determinadas e efetivas, porque é compreensão da possibilida­ de última e própria que compreende todas as possibilidades, que é a possibilidade do estar lançado no mundo. Por isso, ao mesmo tempo que a angústia isola o homem como solus ipse, esse isolamento não é o de um ente ou o de um objeto sem mundo, mas, ao contrário, põe o homem perante seu mundo e, com isso, põe o homem diante de si mesmo como ser-nomundo (Ibid., § 40). Heidegger pode afirmar, com base nessas análises, que "toda compreen­ são é emotiva", e ver no tom emotivo da angús­ tia a compreensão última, decisiva, que a exis­ tência pode ter de si mesma (Ibid., § 53). Heidegger concentrou a atenção na angústia e considerou-a como a única "E. autêntica" do ho­ mem, porque é a única E. que faz o homem compreender sua existência, ou seja, seu estar no mundo. Não negou, porém, as outras emo­ ções. Está bem claro que, para ele, as outras E. humanas pertencem ao nível da existência "inautêntica" ou "impessoal", da existência que não visa a compreender-se e possuir-se nessa compreensão, mas viver quotidianamente no cui­

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dado, ou seja, na preocupação sugerida pelas necessidades próprias e alheias. À utilização das coisas e ao preocupar-se com o mundo, que são os dois aspectos essenciais do ser-no-mundo, estão obviamente ligadas todas as E. e os afetos humanos, que, portanto, são rejeitados para o plano inautêntico da banalidade quotidiana. Embora Heidegger não trate desses afetos ou E. (nem sequer do amor, donde Sartre ter observado que, para ele, o Dasein, a realidade humana, não tem sexo), não se deve esquecer que, para Heidegger, a existência inautêntica não é aparência, ilusão ou realidade diminuída ou empobrecida, mas um modo de ser neces­ sário da própria existência. Na mesma linha da análise de Heidegger situa-se a de Sartre, que, porém, utiliza mais as análises e as teorias da psicologia contemporâ­ nea. Para Sartre, a E. é "certa maneira de apre­ ender o mundo"; ela é, portanto, em primeiro lugar, "consciência do mundo", embora se trate de consciência imediata e não reflexa. "O sujei­ to que procura a solução de um problema prá­ tico está no mundo, toca o mundo a cada ins­ tante, através de todos os seus atos. Se falha em todas as suas tentativas, se se irrita, sua irritação é um modo como o mundo lhe apare­ ce. E não é preciso que o sujeito, entre a ação que falha e a cólera, realize um retorno para si mesmo e intercale a consciência reflexa. Pode haver uma passagem contínua da consciência irreflexa 'mundo-agido' (ação) para a consciên­ cia reflexa 'mundo odioso' (cólera). A segunda é uma transformação da outra" (Esquissed'une théorie des émotions, 1947, p. 30). Mas o mun­ do a que a E. faz referência é um mundo difí­ cil. A dificuldade é uma qualidade objetiva cio mundo que se oferece à percepção; é ela que determina a natureza das emoções. Esta, para Sartre, é uma transformação do mundo, mais precisamente uma transformação pela magia. "Quando os caminhos traçados se tornam difí­ ceis demais ou quando não vemos absoluta­ mente o caminho, não podemos mais ficar num mundo tão urgente e difícil. Todas as vias estão barradas e, no entanto, é preciso agir. En­ tão procuramos mudar o mundo, viver como se as relações das coisas com as suas proprie­ dades não fossem controladas por processos deterministas, mas pela magia" (Jbid., p. 33). P. ex., o desmaio diante de um perigo iminen­ te não é mais que negação do perigo, vontade de anulá-lo. "A urgência do perigo serviu de motivo para uma intenção aniquilante que or­

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denou uma conduta mágica. E, de fato, eu ani­ quilei o perigo da forma como podia. Não se trata, porém, de brincadeira, mas de crença, de uma coisa séria, como demonstram as ex­ pressões orgânicas das emoções." Na E. a cons­ ciência visa combater os perigos ou modificar os objetos, sem distância e sem instrumentos, através de modificações absolutas e maciças do mundo. Esse aspecto do mundo é inteira­ mente coerente, diz Sartre; trata-se do mundo mágico. "Chamaremos de E. a queda brusca da consciência no mágico. Ou, se preferirem, há E. quando o mundo dos instrumentos se esvai bruscamente e o mundo mágico lhe toma o lugar. Portanto não se deve ver na E. uma desordem passageira do espírito, que viria per­ turbar de fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do retorno da consciência à atitude má­ gica, uma das grandes atitudes que lhe são essenciais, com a aparição do mundo correlativo, o mundo mágico. A E. não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras pelas quais ela compreende (no sentido heideggeriano de verstehen) o seu ser no mundo" (Jbid., p. 49). É significativo o fato -A resultante das ex­ posições anteriores — de as teorias das E. apre­ sentadas pelos cientistas não diferirem radical­ mente das apresentadas pelos filósofos, mas apresentarem muitas características substan­ ciais em comum. É também verdade que os filósofos utilizam essas teorias para extrair ila­ ções ou generalizações de natureza ontológicometafísica; mas, de certo modo, isso é um direi­ to deles. A concordância entre as teorias tem grande significado porque demonstra que, no terreno da analise interpretativa dos modos fun­ damentais de experiência, é possível que o acordo entre cientista e filósofo não seja me nor que o existente entre dois cientistas. Outro exemplo desse acordo é a teoria das E. apre­ sentada por Kurt Goldstein, médico e fisiólogo especialista em lesões cerebrais (cf. DerAufbau des Organismus, 1934; trad. fr. com o título La structurede 1'organisme, Paris, 1951). Goldstein acredita que a adaptação do organismo ao am­ biente acontece através de pequenas "reações de catástrofe" que não podem ser evitadas no embate do organismo com o mundo. Quando essas catástrofes ou choques ultrapassam deter­ minada medida, passam a ter significado de comportamento anômalo do organismo, de pe­ rigo para a sua capacidade de agir, para a sua existência. Está-se então diante de reações gra­

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ves de catástrofe que, do ponto de vista subjeti­ vo, assumem a forma emotiva de angústia. A angústia distingue-se do medo pela falta de objeto determinado.- ela não tem objeto. No medo, encontramo-nos diante de um objeto ao qual nos opomos, do qual podemos procu­ rar desembaraçar-nos ou do qual podemos fugir; temos consciência tanto desse objeto como de nós mesmos e podemos examinar o modo co­ mo devemos comportar diante do objeto, fixar o olhar sobre a causa do medo, que real­ mente se encontra no espaço diante de nós. Mas na angústia o doente "vive a impossibili­ dade de relacionar-se com o mundo sem saber por quê. É um sentimento de estremecimento que diz respeito à existência do mundo e à sua própria existência. Não pode tomar consciência do seu eu tanto quanto não pode fazê-lo do objeto, já que a consciência do eu é apenas o correlato da consciência do objeto... A angústia aparece, portanto, quando a realização de uma tarefa correspondente à essência do organismo foi impossível. Esse é o perigo da angústia" (Ibid, trad. fr., pp. 250-51). Em outros termos, a angústia é o sentido de ruptura entre o orga­ nismo e o mundo, ou melhor, a perda da possi­ bilidade de relação entre o organismo e o mun­ do. Desse ponto de vista, o que conduz ao medo é "o sentimento da possibilidade de sur­ gimento da angústia". Assim, pode-se com­ preender o medo a partir da angústia, e não vice-versa. Quem tem medo compreende, por certas indicações, que um objeto é capaz de colocá-lo em situação de angústia. Ora, a an­ gústia não é só um estado normal. Muitos esta­ dos angustiosos de indivíduos normais só não são reconhecidos como tais porque são relati­ vamente insignificantes para a personalidade global e para a sua existência; mas às vezes basta um insucesso, insignificante em si mes­ mo, mas que ocorra numa situação importante para o indivíduo, para transformá-lo em an­ gústia verdadeira, como acontece, p. ex., com a angústia dos exames. A capacidade de su­ portar a angústia varia de um indivíduo para outro: o doente de lesões cerebrais suporta me­ nos, a criança suporta mais, e o adulto ativo ain­ da mais. "Nesse último mostra-se a coragem ver­ dadeira, a coragem, que é o meio de sair da angústia. Ela é um sim dito ao estremecimento da existência, aceito como uma necessidade para a realização do ser que nos é próprio. Implica a capacidade de ordenar uma situação particular num conjunto maior, uma atitude orientada para

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o possível ainda não realizado. Além disso su­ põe a liberdade de decidir-se por esses possí­ veis. Justamente por isso, é uma característica do homem; pode-se, pois, compreender que quem sofre uma lesão cerebral, que é preci­ samente uma perda da categoria do possível, ou seja, uma perda de liberdade, fique comple­ tamente desarmado diante da situação da an­ gústia; está condenado a essa situação na me­ dida em que não está protegido contra ela por um empobrecimento enorme do seu mundo, que reduz seu ser humano às formas mais sim­ ples" (Ibid, pp. 260-61). Assim, a descida do paciente ao nível humano mais baixo é a últi­ ma defesa do organismo que vive a impossibi­ lidade de relacionar-se com o mundo. Além disso, a coragem não é a certeza de que os possíveis se realizarão, não é a garantia de que se destinam ao êxito, mas só o sentido do possí­ vel como tal, como possibilidade de êxito ou insucesso, como procura, esforço, tentativa, tra­ balho, criação, orientados para as possíveis vias de sucesso. O exame do conjunto das teorias da E. que se sucederam ao longo da história do pensa­ mento mostra que elas podem ser divididas em duas grandes classes, segundo o modo de considerar as E., como dotadas de significado ou como desprovidas de significado. Ia As teorias que atribuem significados às E. consideram-nas manifestações, indicações ou signos de situações objetivas em que o ho­ mem se encontra, seja por suas relações com as coisas do mundo, seja por suas relações com os outros homens. Por esse prisma, aparecem como os valores das situações, no que se refe­ re às possibilidades de vida, conservação, de­ senvolvimento, realização de interesses e tare­ fas que elas oferecem ao homem. Obviamente, o pressuposto desse reconhecimento do signi­ ficado objetivo das E. é que nem todas as si­ tuações são igualmente favoráveis, que muitas delas apresentam características que podem ameaçar a existência e as realizações do ho­ mem, ou que, em outros termos, na maioria das vezes o mundo se apresenta sub ratione ardui (como diz S. Tomás), ou é um mundo difícil (como diz Sartre). Mas um mundo difícil, um mundo onde o que favorece o homem pode apresentar-se sub ratione ardui, não é uma totalidade racional perfeita, não é caracte­ rizado pela plena correspondência de todos os seus aspectos com um princípio único e sim­ ples que garanta a vida e os interesses da exis­

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tência humana. Portanto, o reconhecimento do significado das E. está sistematicamente ligado à negação implícita ou explicita da natureza ne­ cessariamente racional do mundo em que o homem vive. 2- Por outro lado, tem-se a negação do signi­ ficado das E. em todas as teorias que as consi­ deram "vãs opiniões", entre as quais é típica a teoria estóica. Esse ponto de vista implica que o mundo é uma totalidade perfeita que assegu­ ra de modo absoluto a existência do homem e a realização dos seus interesses legítimos, ou seja, da parte racional e dos interesses racionais do homem. Nesse caso, prazer e afeição, temor e esperança, etc. são absolutamente isentos de sentido, pois qualquer situação em que o ho­ mem venha a achar-se será exatamente aquilo que deve ser em relação à entidade racional "homem" e portanto nada haverá nela de que as E. possam servir de advertência ou sinal. A teoria que considera as E. como "pensamentos confusos" (Spinoza, Leibniz, Wolff, etc.) não se distingue substancialmente da dos estóicos e tem as mesmas conexões sistemáticas. Um pensamento confuso não é um verdadei­ ro pensamento (não seria claro e distinto) e portanto está destinado a desaparecer, assim como uma opinião falaz ou um erro temporá­ rio diante da verdade. O pensamento confuso é o equivalente da "opinião vã" dos estóicos, e o pressuposto da teoria relativa é o mesmo dos estóicos, ou seja, a racionalidade absoluta e perfeita do mundo, que, não contendo ne­ nhuma ameaça para o homem, não justifica a percepção dessa ameaça, nem a satisfação ou a alegria de superá-la, nem a coragem ou as outras manifestações emotivas que levam a essa superação. O mesmo valor negativo é observado nas teorias que reduzem as E. a acidentalidades empíricas, a particularidades insignificantes (Hegel e os hegelianos): expres­ sões equivalente a "vãs opiniões" ou "pensa­ mentos confusos", que partem da mesma no­ ção de mundo desprovido de ameaças reais para o homem. O defeito dessas teorias não consiste tanto em deixar de justificar as E., mas em não poder explicar essas "vãs opiniões", esses "pensamentos confusos" ou essas "acidentalidades insignificantes" a que as E. são reduzidas. E de fato não se compreende como, num mundo racionalmente perfeito, possam nascer no homem, que é a parte mais racional­ mente perfeita dele, erros, preconceitos ou de­ terminações capazes de perturbar e ameaçar

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justamente essa racionalidade perfeita e a imperturbabilidade necessária que deveria acom­ panhá-la. Portanto, não é de surpreender que na inda­ gação contemporânea, bem mais atenta aos da­ dos e aos elementos de fato da condição hu­ mana, as teorias das E. sejam concordes em atribuir-lhes significado próprio e objetivo. Es­ sas teorias, e especialmente as apresentadas por médicos e psicólogos, também levam em conta os fenômenos patológicos, o que signifi­ ca o abandono do preconceito de que só os chamados fenômenos normais permitem en­ tender a condição humana, e de que subsiste uma separação precisa e radical entre fenôme­ nos normais e fenômenos patológicos, de tal modo que estes últimos possam ser circunscri­ tos num domínio à parte e declarados sem inte­ resse para a investigação científica e filosófica do homem. As teorias científicas e filosóficas contemporâneas partem da convicção de que não é possível compreender a existência do homem, seja como organismo, seja como eu ou pessoa, sem levar em conta a experiência emo­ cional. Também concordam quando conside­ ram essa experiência como reação normal e global do homem às situações em que se en­ contra, ou seja, como um comportamento ou conduta. Parece, todavia, haver uma distinção que nem todas fazem explicitamente e que, por isso, convém evidenciar: a distinção entre conduta emotiva e emoção-controle. Ocor­ re conduta emotiva quando a E. constitui a totalidade da reação do homem à situação; é a chamada "reação de fracasso", "reação mági­ ca" ou "reação de desastre". Por isso, é sempre patológica ou semipatológica porquanto im­ pede ou diminui a resposta correta do homem à situação, sua adaptação a ela. Mas é lógico que a conduta emotiva assim entendida não esgota o domínio das emoções. A E. também é parte integrante da conduta não emotiva, que constitui uma resposta adequada e normal à situação, e que pode ser definida como "racio­ nal". As E. da coragem, do esforço, da fadiga, da esperança ou do temor, da satisfação ou da insatisfação, etc. condicionam e controlam as formas de conduta mais eficazes, livres e cria­ tivas. Foi justamente por isso que Pierre Janet distinguiu a E.-choque, que define a reação de fracasso, da E.-sentimento, que controla a rea­ ção adequada, e Goldstein viu na coragem, como "sentimento do possível", o meio de sair da angústia, que é o sentimento da inadequação

EMOTIVO/EMOCIONAL

do organismo à sua função vital, à sua relação com o mundo. Nesse outro aspecto ou função, a E. pode ser considerada uma modalidade de controle do comportamento, um índice ou con­ dição da eficácia do comportamento ajustado e normal. Certamente a distinção entre condu­ ta emotiva e E.-controle não eqüivale a uma separação entre esferas diferentes, pois sem­ pre existe a possibilidade de que, a qualquer momento, uma se transforme na outra: contu­ do, suas respectivas funções são diferentes e sua diferenciação é a mesma que existe entre doen­ ça e normalidade. _ EMOTIVO/EMOCIONAL (in. Emotive; fr. Êmotif, ai. Affektif; it. Emotivo). Em geral, o mesmo que afetivo (v.). Stevenson (Ethics and Language, 1945) chamou de "significado E." a disposição que um signo lingüístico tem para produzir uma atitude (v.), uma disposição a agir, a desejar, etc, e não uma crença, um co­ nhecimento em geral. Por isso, especialmente na filosofia contemporânea anglo-americana, prevaleceu o uso de dar o nome "proposições E." às proposições que não descrevem um esta­ do de fato (v. DESCRIÇÃO), mas contêm uma prescrição, uma ordem, etc, como p. ex. as proposições morais. Esse uso, porém, é extre­ mamente impróprio e nos últimos anos foi quase totalmente abandonado. Na linguagem comum e na filosófica, é fre­ qüente atribuir à palavra E./Emocional um sig­ nificado puramente negativo, indicando-se com ela as coisas às quais não se saberia nem poderia atribuir um motivo suficiente e que, portanto, não parecem suficientemente "razoáveis". Nesse sentido, acaba-se qualificando de emocionais todas as escolhas (ou deliberações) que não obedeçam ao critério vigente no campo em que incidem. P. ex., dizemos que tem valor E. ou emocional um objeto que não é útil nem bonito, mas preferimos conservar; ou que somos "emocionalmente apegados" a certas crenças que, subentendemos, não são racio­ nalmente sustentáveis. Aqui também o uso desse termo não faz nenhuma referência a qual­ quer teoria positiva da emoção. EMPAHA (in. Empathy, fr. Empathie; ai. Einfühlung; it. Empatia). União ou Fusão emo­ tiva com outros seres ou objetos (considera­ dos animados). O termo alemão encontra-se em Herder ( Vom Erkennenn und Empfinden, Werke, ed. Suphan, VIII, p. 165) e em Novalis, Discípulos em Sais (Werke, ed. Friedemann, II,

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EMPÍRICO

p. 49). Foi retomado por Robert Vischer (Das optiscbe Formgefübl. Ein Beitrag zur Astbetik, 1873; reimpresso em Drei Abhandlungen zum ãsthetischen Formproblem, 1927, pp. 1-44), mas sua difusão se deve especialmente a Lipps, que o empregou para esclarecer a natureza da experiência estética (Asthetik, 2 vols., 1903, 2a ed., 1914). Segundo Lipps, essa experiência, assim como o conhecimento dos outros eus, ocorreria mediante um ato de imitação e de projeção. A reprodução das manifestações corpóreas alheias (devida ao instinto de imitação) reproduziria em nós mesmos as emoções que costumam acompanhá-las, colocando-nos assim no estado emotivo da pessoa a quem essas manifestações pertencem. É justamente essa projeção em outro ser de um estado emotivo despertado em nós pela reprodução imitativa da expressão corpórea dos outros (p. ex., quadro somático do medo ou do ódio, etc.) que seria o modo de comunicação entre as pessoas. Analogamente, a experiência estéti­ ca consistiria em projetar no objeto estético emoções propriamente humanas, ou seja, em dar "às coisas insensatas sentido e paixão", como dizia Viço. O conceito de E. foi abandonado por estar em conflito com certo número de fatos, sobre­ tudo com o fato evidenciado por Scheler de que os fenômenos de compreensão ou de sim­ patia nada têm a ver com a E. ou fusão emotiva (cf. SCHELER, Sympathíe, I, cap. I). Quanto à função estética atribuída à E., v. ESTÉTICA. EMPIRIA. V. EXPERIÊNCIA. EMPÍRICO (gr. èuneipucóç; in. Empirical; fr. Empirique, ai. Empirisch; it. Empírico). Esse adjetivo tem os seguintes significados princi­ pais, nem todos redutíveis aos significados do substantivo correspondente, experiência (v.). le Designa, em primeiro lugar, a espécie de saber que se adquire através da prática, através da repetição e da memória. Nesse sentido, cor­ responde ao significado ls de experiência e opõe-se a racional, assim como a experiência se opõe à arte e à ciência. 2Q E. significa intuitivo ou sensível e são cha­ mados de E. os elementos sensíveis de que é constituído o conhecimento intuitivo ou sensí­ vel. Esse significado corresponde ao significa­ do 2°, a) de experiência e seu oposto é intelec­ tual. Nesse sentido Kant chama de E. o material da experiência constituído pelas sensações, ao passo que chama a priori ou intelectuais as formas ou condições da experiência.

EMPIRIOCRITICISMO

3S E. é o atributo do conhecimento válido, do conhecimento que pode ser posto à prova ou verificado, e opõe-se a metafísico, enquanto atributo de uma pretensão cognitiva infundada, não verificável. Nesse sentido, esse adjetivo corresponde ao significado 2B, b) da palavra "experiência". 4e E. contrapõe-se a experimental quando indica a experiência bruta ou a observação não controlada, confrontada ao experimento, que é a observação controlada e provocada. 5S E. significa factual, e "enunciado E." é um enunciado que diz respeito a estados de fato. Nesse sentido, esse adjetivo contrapõe-se a analítico, que qualifica os enunciados que exprimem simples relações conceituais ou lin­ güísticas. EMPIRIOCRITICISMO (ai. Empiriokriticismus). Foi assim que R. Avenarius chamou sua "filosofia da experiência pura", que ele conce­ beu como ciência rigorosa, análoga às ciências naturais positivas, portanto excludente de qual­ quer metafísica. A tese fundamental do E. é que a experiência pura precede a distinção entre físi­ co e psíquico e, portanto, não pode ser interpre­ tada em bases materialistas nem idealistas. Os elementos da experiência pura são as sensações, que são acompanhadas pelos caracteres, quali­ ficações várias que as sensações recebem em suas diversas relações: p. ex., prazer e dor, apa­ rência e realidade, certo e incerto, conhecido e desconhecido, etc. O que chamamos de "coisa" e de "pensamento" não passam de diver­ sas formas de posição dos mesmos conjuntos de elementos, no sentido de que a sua diferen­ ça só depende de uma diversidade de "caracte­ res" e que essa diversidade depende da rela­ ção biológica com o ambiente circundante (Kritik der reinen Erfahrung, 1888-1890, 2 vols.). Algumas dessas teses, e especialmente a de que todas as coisas ou pensamentos se compõem de um complexo de sensações que não são entidades físicas nem entidades psí­ quicas, são aceitas e defendidas por Mach (Analyse der Empfindungen, 1900). EMPIRISMO (in. Empiricism; fr. Empirisme, ai. Empirismus; it. Empirismo). Corrente fi­ losófica para a qual a experiência é critério ou norma da verdade, considerando-se a palavra "experiência" no significado 2B. Em geral, essa corrente caracteriza-se pelo seguinte: Ia nega­ ção do caráter absoluto da verdade ou, ao me­ nos, da verdade acessível ao homem; 2S reco­ nhecimento de que toda verdade pode e deve

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EMPIRISMO

ser posta à prova, logo eventualmente modifi­ cada, corrigida ou abandonada. Portanto, o E. não se opõe à razão ou não a nega, a não ser quando a razão pretende estabelecer verdades necessárias, que valham em absoluto, de tal for­ ma que seria inútil ou contraditório submetêlas a controle. Foi desse modo que Sexto Em­ pírico caracterizou o E., e, com base nessas características, reconhecia o seu parentesco com o ceticismo; essas características continuaram sendo fundamentais em todas as doutrinas pos­ teriormente denominadas empíricas, quaisquer que fossem suas determinações peculiares. Sexto Empírico diz que o médico empírico, ou melhor, metódico, "nada afirma temerariamente acerca dos fatos obscuros, mas, sem pre­ tender dizer se são compreensíveis ou não, acompanha os fenômenos e destes toma aquele que lhe parece útil, assim como fazem os céti­ cos". E acrescenta: o que a medicina metódica e o ceticismo têm em comum é a falta de dogmas e a indiferença no uso das palavras, sendo comum também a regra de seguir as indicações da natureza e as fornecidas pelas necessidades do corpo (Pirr. hyp, I, 236-41). Depois de vários séculos, Leibniz dava o mes­ mo conceito de E., mas contrapondo nitida­ mente o procedimento empírico ao racional: "Os homens agem como os animais na medida em que o concatenamento de suas percepções só é realizado pela memória, assemelhando-se assim aos médicos empíricos, que só têm prá­ tica e nenhuma teoria. Em três quartos de nos­ sas ações nós somos apenas empíricos: p. ex., quando prevemos que vai amanhecer, estamos agindo empiricamente, pois estamos esperan­ do que aconteça o que sempre aconteceu. Só o astrônomo julga esse fenômeno com a ra­ zão. Mas é o conhecimento das verdades ne­ cessárias e eternas que nos distingue dos sim­ ples animais e nos faz ter razão e ciência, elevando-nos ao conhecimento de nós mes­ mos e de Deus" (Monad, §§ 28-29). A razão, nesse sentido, é infalível. Se como faculdade humana pocie enganar-se, como "concatenação das verdades e das objeções em boa forma, é impossível que a razão nos engane" (Théod., Disc, § 65). É muito provável que dessas ob­ servações de Leibniz nos tenha chegado o con­ ceito de E., de racionalismo e da oposição en­ tre ambos. O racionalismo (v.) defende a tese da necessidade da razão como "concatenação das verdades", e não como faculdade, no sen­ tido de que ela não pode ser diferente do que

EMPIRISMO

é e, portanto, não pode sofrer desmentidos e não exige confirmações. A tese do E. é de que essa necessidade não existe e que, portanto, toda e qualquer "concatenaçào de verdades" deve poder ser posta à prova, controlada e eventualmente modificada ou abandonada. A essa característica fundamental do E. e com base nela acrescentam-se outras, com as quais ele foi associado em cada fase de sua história: lg Negação de qualqiier_conhecimento ou princípiQ Jnato, que 3evjrsernecessã~ríãmente reconhecido como válido, sem qualquer atestaçào ou verificação. Essa característica, estabe­ lecida por Locke no primeiro livro de Ensaio, foi das que mais sobressaíram no séc. XVIII e às vezes serviu para definir o E., embora não passe de conseqüência derivada dele. 2a Negação do "supra-sensível", entendido co­ mo qualquer realidade não passível de verificação e controle de qualquer tipo. Ora, os melhores e mais diretos instrumentos de que o homem dis­ põe para a verificação de si mesmo e das realida­ des em que está mais diretamente interessado são os órgãos dos sentidos; desse modo, o E. apresenta-se na maioria das vezes como o recur­ so à evidência sensível enquanto método para decidir o que deve ser considerado real. Essa característica foi quase sempre usada para defi­ nir a natureza do E., sendo considerada funda­ mental. Na verdade, por mais importante que seja, não é fundamental, mas secundária e deri­ vada de outra, segundo a qual o E. é a exigência de que qualquer verdade só seja aceita se puder ser devidamente verificada e confirmada. 3a Ênfase naJnipQaância.da realidadeMual ou imediatamente presente aos órgãos de veri­ ficação e comprovação, ou seja, no fato: essa ênfase é conseqüência do recurso à evidência sensível. Essa é a característica que Hegel reco­ nhecia como mérito do E.: o princípio de que "o que é verdade deve estar na realidade e estar lá para a percepção", e portanto "aquilo que o homem quiser admitir em seu saber de­ verá ir ver pessoalmente, confirmar pessoal­ mente sua presença" (Ene, § 38). Desse ponto de vista, a atitude empírica consiste em ressal­ tar a importância dos fatos, dos dados, das condiçõesque tornam possível a verificação de uma verdade qualquer, pois a verdade só é verdade quando verificada como tal, e o único meio de verificá-la, se ela se refere a coisas reais, é confrontá-la com os fatos nos quais essas coisas se apresentam, por assim dizer, em pessoa.

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EMPIRISMO

Ar Reconhecimento do caráter bumanolimitado, parcial ou imperfeito dos instrumentos de que o homem dispõe para verificar e compro­ var a verdade, além da aplicação e do uso des­ ses instrumentos em todos os campos de pes­ quisa acessíveis ao homem e só neles. Essa é a característica limitativa ou crítica do E., que é tradicionalmente associado ao reconhecimento da limitação das possibilidades humanas, e, portanto, da restrição da investigação aos limi­ tes impostos por essas possibilidades, ao mes­ mo tempo em que é associado à decisão de prosseguir as investigações até onde tais possi­ bilidades o permitam e em qualquer campo que o permitam. Sob esse aspecto, o E. é subs­ tancialmente uma instância cética, que de dúvida geral transformou-se em dúvida organizada e metódica para experimentar, em todos os campos, o alcance da verdade que o homem pode obter. O E. alija da filosofia, e de qual­ quer pesquisa legítima, os problemas referen­ tes a coisas que não sejam acessíveis aos instrumentos de que o homem dispõe. Hume entendia o E. nesse sentido. Donde a constante polêmica do E. moderno contra a "metafísica", que é precisamente o campo desses problemas ou ao menos é assim considerada pelas corren­ tes empíricas. Mas no próprio domínio das rea­ lidades acessíveis ao homem, o E. freqüen­ temente encontra limites que lhe parecem intransponíveis, como p. ex. a "substância" de que fala Locke ou a "coisa em si" de que falam os empiristas do séc. XVIII e o próprio Kant. Essas características são típicas do E. moder­ no que se inicia com Locke. Não incluem, co­ mo se vê, nenhuma renúncia ao uso de instru­ mentos racionais ou lógicos, se adequados às possibilidades humanas. Não incluem sequer a renúncia a qualquer tipo de generalização, hi­ pótese ou teorizaçào, em qualquer escala ou grau, implicando só a exigência de que qual­ quer generalização, hipótese ou teorizaçào possa ser posta à prova e, portanto, confirmada ou refutada. A mais recente forma de E., qual seja, o E. lógico do Círculo de Viena (v.) e de algumas correntes inglesas e americanas, ajus­ ta-se às características acima expostas. Com efeito, "a exigência fundamental do E. lógico é que qualquer enunciado, para ter sentido, deve ser de certo modo verificado, confirmado ou submetido à prova" (CARNAP, Testabilíty and Meaning, em Phil. of Science, 1953, p. 73), e esse princípio leva a restringir a investigação apenas ao domínio dos significados lingüísticos

EMPIRISMO

que satisfaçam à tradicional exigência empirista de verificação e comprovação e a declarar "desprovidos de sentido" todos os outros. No que concerne ao pensamento antigo e medie­ val, não se pode dizer que apresente formas completas de empirismo. Nele podem ser fa­ cilmente encontrados aspectos ou tendências de E., mas não se observa o conhecimento nem a aceitação da exigência fundamental de que qualquer verdade seja verificada ou com­ provada por um método adequado. Mas en­ contra-se freqüentemente a característica 2-, o sensacionismo, que foi de fato compartilhado por cirenaicos, estóicos e epicuristas. Entre Platão e Aristóteles, o mais próximo do E. é Platão, apesar do interesse que Aristóteles demonstrou pelo mundo natural e da extensão de suas pesquisas nesse campo. De fato, o que Aristóteles considerava como objeto de investi­ gação em qualquer campo é a substância, a ra­ zão de ser das coisas, da qual são dedutíveis, por via silogística, todas as propriedades da coisa, e a substância, embora empiricamente seja aquilo que se apresenta sempre do mesmo modo, não é suscetível de verificação ou com­ provação pela experiência, mas a ela se chega por meio da dedução dos princípios evidentes comuns a todas as ciências e dos princípios próprios de cada ciência (v. SUBSTÂNCIA). O mé­ todo dialético de Platão (v. DIALÉTICA), no en­ tanto, parece consistir justamente na verificação e na comprovação das determinações atribuí­ das a determinada realidade; assim, essas de­ terminações podem ser abandonadas, corrigidas ou modificadas pelos empregos sucessivos do método. Mas o E. de Platão só pode ser reco­ nhecido pelos modernos, já que Platão contra­ punha o seu método precisamente à experiên­ cia e nele evidenciava as características contrárias: como aparece claramente no tre­ cho de Leis (citado no verbete EXPERIÊNCIA) em que à experiência do médico de escravos con­ trapõe o procedimento racional do médico de homens livres (Leis, IV, 720 c-d). Na Idade Mé­ dia, a tendência empirista manifesta-se na nega­ ção freqüente da realidade do universal, que sempre implica o recurso à experiência, e no reconhecimento da experiência como processo que permite verificar e comprovar a realidade atual das coisas; p. ex., como conhecimento intuitivo. Nesse sentido, a doutrina de Ockham é a principal manifestação do E. medieval. Final­ mente, a antítese estabelecida por Francis Bacon entre a antecipação da natureza, que, sem veri­

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EMPIRISMO LÓGICO

ficação nem comprovação, salta dos casos parti­ culares para os axiomas generalíssimos, e a in­ terpretação àa. natureza, que consiste em ir, "sem saltos e por graus", das coisas particulares aos axiomas (Nov. Org, I, 24), representa a certidão de nascimento do E. moderno e de sua oposição a qualquer forma de racionalismo dogmático. EMPIMSMO LÓGICO (in. Logical empiricism; fr. Empirisme logique, ai. Logischer Empirismus; it. Empirismo lógico). Com esse no­ me ou com o nome de positivismo lógico in­ dica-se a orientação instaurada pelo Círculo de Viena (v.) e depois seguida e desenvolvida por outros pensadores, especialmente na Amé­ rica do Norte e na Inglaterra. A característica fundamental dessa corrente é a redução da fi­ losofia à análise da linguagem. Nela, porém, podem ser distinguidas duas tendências fun­ damentais, segundo se entenda linguagem co­ mo linguagem científica ou linguagem comum. Essas duas tendências têm em comum um ar­ senal negativo e polêmico (a negação de qual­ quer "metafísica") que elas compartilham com todo o E. moderno e que justificam com a tese de que todos os enunciados metafísicos são des­ providos de sentido, porque não verificáveis empiricamente. Têm também em comum as duas teses propostas pela primeira vez por Ludwig Wittgenstein, em seu Tratado lógicofilosófico (1922): 1- os enunciados factuais, isto é, que se referem a coisas existentes, só têm significado se forem empiricamente verificáveis; 2- existem enunciados não verificáveis, mas verdadeiros com base nos próprios termos que os compõem; tais enunciados são tautologias, ou seja, não afirmam nada a respeito da realidade; a matemática e a lógica são conjun­ tos de tautologias. A) A tendência que atribui à filosofia a fun­ ção de analisar a linguagem científica conta so­ bretudo com os nomes de Rudolf Carnap e Hans Reichenbach. As obras deste último per­ tencem à metodologia da ciência. Ele estu­ dou os Fundamentos filosóficos da mecânica quântica (1944) e a Teoria da probabilidade (1949) como fundamento da indução, conside­ rando que a própria probabilidade baseia-se ex­ clusivamente na freqüência estatística. Por sua vez, Rudolf Carnap deu mais atenção à matemá­ tica e à física (A visão lógica do mundo, 1928; A sintaxe lógica da linguagem, 1934; Funda­ mentos da lógica e da matemática, 1939; Intro­ dução à semântica, 1942; Formalização da ló­ gica, 1943; Significado e necessidade, 1947;

EMPIRISMO LÓGICO

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Fundamentos lógicos da probabilidade, 1950; O contínuo dos métodos indutivos, 1952). Para a filosofia de Carnap, assim como para a de Reichenbach, conflui a corrente matemática da lógica contemporânea, especialmente o forma­ lismo de Hilbert, segundo o qual o trabalho da matemática consiste em fazer deduções, segun­ do regras determinadas, a partir de outras pro­ porções assumidas como fundamentais por convenção e chamadas de axiomas (v.). Carnap estendeu esse princípio a toda a lógica conside­ rando-a um conjunto de convenções sobre o uso dos signos, bem como de tautologias que se fundam nessas convenções (Logische Aufbau der Welt, § 107), e dando lugar assim ao con­ vencionalismo (v.) típico da filosofia contem­ porânea. Sobre as contribuições que essa cor­ rente filosófica tem dado a noções filosóficas e científicas fundamentais, como conceito, cau­ sa, número, probabilidade, assim como à meto­ dologia das ciências e à lógica, ver os verbetes correspondentes, além do verbete ENCICLOPÉDIA. B) A tendência que atribui à filosofia a fun­ ção de analisar a linguagem comum tem início com a segunda obra de Wittgenstein, Investiga­ ções filosóficas, que, antes de ser publicada 0953), circulara pela Inglaterra e começara a inspirar o trabalho filosófico de um grupo de pensadores. A tese dessa obra é que toda lin­ guagem é uma espécie de jogo que segue de­ terminadas regras, e que todos os jogos lin­ güísticos têm o mesmo valor. Por isso, segundo Wittgenstein, a única regra para a interpretação de um desses jogos é o uso que dele se faz; e, como a filosofia não tem outra função senão a de analisar a linguagem, cabe-lhe esclarecer as expressões lingüísticas em seu uso corren­ te. Essa corrente recebeu grande contribuição de Alfred Ayer, que já em 1936, no livro Lingua­ gem, verdade e lógica, apresentava ao público inglês as teses fundamentais do Círculo de Vie­ na, e de Gilbert Ryle, que, em Conceito do espí­ rito (1949), analisou com esse critério a noção de espírito, mostrando que, para entender e esclarecer as expressões da linguagem comum em que essa noção aparece, não há necessida­ de de afirmar a realidade substancial da alma nem de admitir que a consciência constitui um acesso privilegiado a essa realidade. A im­ portância dessa tendência consiste no fato de que, por meio de análises da linguagem comum, procura esclarecer as situações mais comuns e recorrentes em que o homem pode encon­ trar-se, ainda que só considerado como "ani­

EM SI

mal falante". Sob esse aspecto, o E. lógico é autenticamente uma forma de E. que identifica o mundo da experiência com o mundo dos significados próprios da linguagem comum. Contudo nem sempre e para nem todos os seus seguidores, essa tendência apresenta esse caráter: às vezes se perde em discussões esté­ reis e enfadonhas sobre a interpretação de ex­ pressões lingüísticas retiradas do contexto, logo desprovidas do significado e do alcance que têm em tal contexto e, por isso, das autênticas possibilidades interpretativas que só o contex­ to fornece. A esse respeito, Bertrand Russell (que é considerado um dos fundadores da escola) condenou claramente essa tendência verbalista, que torna a pesquisa filosófica inútil e enfado­ nha, e ressaltou a exigência de que a filosofia es­ tude não só a linguagem, mas a realidade, e se funde portanto no saber positivo dado pela ciên­ cia (cf. Hilbert Journal, julho de 1956). EM SI (gr. OCÍID lat. In se, in. In itself fr. En soi; ai. An sich; it. In sê). O que se considera sem referência a outra coisa, ou seja: 1Q indepentemente das relações com outros obje­ tos; 29 independentemente da relação com o sujeito considerante. ls) Platão e Aristóteles utilizam essa expres­ são no primeiro sentido. Platão fala do "belo mesmo", da "semelhança mesma", etc. (ex­ pressões que, em geral, foram traduzidas nas línguas modernas como "belo em si", "seme­ lhança em si", etc), para indicar o belo, a se­ melhança, etc, sem as relações com as coisas que deles participam (Fed., 65d, 75c; Parm., 130b, 150e, etc). Aristóteles emprega essa ex­ pressão no mesmo sentido, para indicar uma qualidade ou uma substância, como p, ex. "ani­ mal", que se considere independentemente das relações com sua espécie (cf., p. ex., Met. VII, 14, 1039 b 9). Esse significado também explica a acepção dada por Hegel a essa expressão, ao usá-la para designar o que é abstrato e imedia­ to, desprovido de desenvolvimento, reflexão, relação. "Em si", portanto, é o conceito em sua imediação, da forma como é considerado pela primeira parte da lógica, a Doutrina do Ser {Ene, § 83), no sentido de não ser para si (v.), de não ser resolvido na consciência. Nesse sen­ tido Hegel diz: "As coisas são chamadas de ser em si quando se abstrai do ser para outro, o que geralmente significa: quando são pensa­ das sem nenhuma determinação, ou como na­ das" (WissenschaftderLogik, I, I, seç. I, cap. II, B, a; trad. it., p. 124).

ENCARNAÇÃO

Com referência a esse significado, Hegel uti­ lizou a expressão para designar o que está em potência, que ainda não se desenvolveu e que só por isso pode ser considerado independen­ temente das relações com as outras coisas. O contrário de em si, neste sentido, é para si, que é a atualidade ou a efetividade de uma coisa, o enriquecer-se da coisa em seu desenvolvimen­ to, graças às suas relações com as outras (cf. Geschichte der Philosophie, I, Intr. A, 2). 2e) Na idade moderna, a partir de Descartes, essa expressão passou a ter com mais freqüên­ cia o significado de "independentemente da relação com o sujeito cognoscente", sobretudo na expressão coisa em si (v). De modo análogo, Sartre entendeu por "ser em si"o ser objetivo, externo e independente da consciência, chamando a consciência de ser para si (L'être et le néant, pp. 30, 115 ss.). Em sentido mais restrito, N. Hartmann entendeu o ser em si dos valores como sua "independência da opinião do sujeito" (Ethik, 2- ed., 1935, p. 149). Esse significado é bastante freqüente no uso filosófico: Bolzano falara de uma "proposi­ ção em si", entendendo "em si" nessas expres­ sões como o significado lógico-objetivo puro da proposição, da representação ou da ver­ dade, independentemente de serem pensa­ das ou expressas (Wissenschaftslehre, 1837, § 19, 25, 48). ENCARNAÇÃO (lat. Incarnatio; in. Incarnation; fr. Incarnation; ai. Menschuerdung; it. Incarnazionê). A unidade da natureza divina e da natureza humana na pessoa de Cristo. Esse é um dos dois dogmas fundamentais do cristianismo, sendo o outro o da Trindade. Depois das discussões patrísticas que, no séc. V, levaram a algumas interpretações que a Igreja condenou como heréticas, na Escolástica esse dogma foi uma das pedras de toque da capaci­ dade das filosofias de servir à interpretação e à defesa das crenças religiosas. Desse ponto de vista, não há dúvida de que a maior capacidade nesse sentido foi do tomismo, que deu a mais simples e elegante interpretação do dogma. S. Tomás toma como motivo justamente as duas heresias simetricamente opostas do séc. V. A interpretação de Eutíquio, que insistia na uni­ dade da pessoa de Cristo, também reduzia as duas naturezas a uma só, mais precisamente à divina, considerando simplesmente aparente a natureza humana revestida por Cristo. A inter­ pretação de Nestório, ao contrário, que insistia na dualidade das naturezas, também admitia

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ENCICLOPÉDIA

em Cristo a coexistência de duas pessoas, sen­ do a pessoa humana instrumento ou revesti­ mento da divina. A distinção real entre essência e existência nas criaturas e a sua unidade em Deus oferecem a S. Tomás a chave da interpre­ tação. Em Deus, a essência ou natureza divina é idêntica ao ser; logo, Cristo, que tem natureza divina, subsiste como Deus, como pessoa divi­ na, e é uma só pessoa, a divina. Por outro lado, a possibilidade de separar a natureza humana da existência faz que Cristo possa assumir a na­ tureza humana (que é alma racional e corpo), sem ser pessoa humana (Contra Gent, IV, 49; S. Th, III. 2. II, a. 6). Essa interpretação tomista constitui a doutrina oficial da Igreja católica. ENCICLOPÉDIA (in. Encyclopedia; fr. Encyclopédie, ai. Enzyklopàdie, it. Enciclopédia). Esse termo, que significa propriamente ciclo educativo, educação completa em suas fases, portanto nas disciplinas que lhe servem de fun­ damento, agora é usado para designar o siste­ ma das ciências, o conjunto total das ciências em suas relações imutáveis de coordenação e subordinação (na sua hierarquia), tais como podem ser reconhecidas ou estabelecidas pela metafísica (v.) ou por outra ciência predomi­ nante. Como investigação racional autônoma, a filosofia foi a matriz da qual as disciplinas isola­ das foram-se separando pouco a pouco, até alcançar autonomia; como metafísica, ou "ciên­ cia primeira", muitas vezes se reservou o direi­ to de julgar essas disciplinas em termos de alcance ou importância e de prescrever-lhes li­ mites e condições. Portanto, a tendência a ser ou a valer como E., ou pelo menos a estabele­ cer ou reconhecer uma E., foi um dos aspectos fundamentais do pensamento filosófico. O pri­ meiro projeto de E. pode ser visto nos quatro graus do conhecimento, estabelecidos por Platão no VII livro de A República. Aos dois graus da opinião (conjectura e crença) perten­ cem as artes e os ofícios que lidam com as coi­ sas sensíveis e com as suas imagens, portanto também a poesia e a arte imitativa. Ao primeiro dos dois graus racionais, a razão discursiva ou dianóia, pertencem a geometria, a aritmética, a música e a astronomia, ou seja, as disciplinas que partem de hipóteses e utilizam imagens, ainda que tenham por objeto conceitos puros. Ao quarto e último grau pertence tão-somente a dialética, que é a ciência do filósofo (Rep, VI 510). Aristóteles baseava sua E. na distinção en­ tre necessário e possível. O necessário (o que não pode ser diferente do que é) é objeto das

ENCICLOPÉDIA

ciências teóricas: filosofia, física e matemática. O possível é objeto das ciências práticas (ética e política) e das disciplinas poéticas (ou produ­ tivas), as artes (Et. nic, VI, 3-4). Enquanto estóicos e epicuristas concordaram em reduzir a sua E. a três ciências fundamentais, lógica, físi­ ca e ética, a Idade Média permaneceu substan­ cialmente fiel ao sistema enciclopédico de Aris­ tóteles, que culminou na teologia, a que todas as outras ciências se subordinavam (S. Tomás, 5. Th, I, q. 1, a. 5). No séc. XVII, Francis Bacon apresentou o projeto de uma E. fundada na tripartição entre ciências da memória, ciências da fantasia e ciências da razão (De augm. scient., II, 1). Essa distinção foi aceita por D'Alembert e serviu de base para a Encyclopédie. Diz D'Alembert: "A memória, a razão e a imaginação são as três maneiras diferentes pelas quais nossa alma atua sobre os objetos dos seus pensamentos... Essas três faculdades constituem as três divisões gerais do nosso sistema e os três objetos gerais dos conheci­ mentos humanos: a história, relacionada com a memória, a filosofia, que é o fruto da razão, as belas-artes, que nascem da imaginação" (Discourspréliminaire de VEncyclopédie, em CEuvres, ed. Condorcet, p. 112). Todavia, a E. francesa, cujo espírito iluminista se inspirava predomi­ nantemente no empirismo, não insistiu no ca­ ráter total e definitivo do sistema das ciências, mas entendeu a E. sobretudo como a tentativa de abranger, numa síntese rápida e completa, os resultados do saber positivo. E foi essa jus­ tamente a principal função da E. à qual se de­ veu a enorme difusão, no séc. XVIII, por toda a Europa, dos resultados das ciências e da crí­ tica racionalista da tradição. Esse mesmo con­ ceito foi assumido no século seguinte pelo positivismo como fundamento para a definição da filosofia; com Comte, porém, foi reduzido a sistema, com base naquilo que ele julgava ser sua descoberta fundamental, a lei dos três esta­ dos. Comte atribuiu graus às ciências segundo sua ordem cronológica de entrada na fase posi­ tiva, mostrando que essa ordem é também a que vai do grau máximo ao grau mínimo de simplicidade e generalidade. Começa dividindo a física em inorgânica e orgânica e observa que a primeira estuda fenômenos muito mais simples, pois, enquanto os fenômenos orgânicos depen­ dem dos inorgânicos, estes últimos não de­ pendem dos primeiros. A física inorgânica, por sua vez, será primeiro física celeste (ou astro­ nomia) e depois física terrestre, ou seja, física

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ENCICLOPÉDIA

propriamente dita, e química. Divisão análo­ ga será feita para a física orgânica: haverá uma física orgânica ou fisiológica, que concerne ao indivíduo, e uma física social (ou sociologia), que diz respeito à espécie. A E. das ciências será, portanto, constituída por cinco disciplinas fun­ damentais: astronomia, física, química, biolo­ gia e sociologia. De tal E. não fazem parte nem a matemática nem a psicologia: a matemática porque é a base de todas as ciências e portan­ to nâo pode ocupar um lugar à parte; a psico­ logia porque não é uma ciência, já que se fun­ da numa pretensa "observação interior", que é impossível, pois pressuporia o indivíduo divi­ dido em duas partes, uma observadora, a ou­ tra observada (Cours dePhil. Positive, I, pp. 75 ss.). Essa E. de Comte foi amplamente aceita pela cultura moderna e contemporânea mes­ mo fora do positivismo, porque levava em conta a situação e as funções reais das ciências, ain­ da que Comte às vezes tenha pretendido im­ por restrições ou limitações insustentáveis a tais ciências. A ela foi contraposta a E. das ciên­ cias de Hegel, que é a maior expressão do romantismo idealista. Para Hegel só existem três disciplinas fundamentais, que são a lógica, a filosofia da natureza e a. filosofia do espírito. As três ciências têm por objeto a Idéia, ou seja, a Autoconsciência infinita: a primeira conside­ ra a Idéia em si e por si, antes de seu desenvol­ vimento no mundo; a segunda considera a Idéia no seu "ser outro", no seu exteriorizar-se e alienar-se no mundo da natureza; a terceira, enfim, considera a Idéia que "retorna a si mes­ ma", que toma consciência de si como princí­ pio criador de tudo (Ene, § 18). Mas nessa E. não havia lugar para as ciências positivas, que se vinham constituindo autonomamente. Para Hegel, essas ciências não tinham valor de ver­ dade, porque fundadas em elementos que ele chama de "acidentais", nâo pertencentes à subs­ tância racional do mundo, que é a Idéia (Ihid., § 16). Hegel utiliza-as somente para extrair um material que depois elabora a seu modo no esquema enciclopédico descrito, mas sem ne­ nhuma consideração pelos métodos de pes­ quisa e verificação de que cada disciplina se serviu para elaborá-lo. Na segunda metade do séc. XIX e nos pri­ meiros anos do séc. XX, a E. positivista de Comte e a E. idealista de Hegel constituíram os dois modelos fundamentais a que os filósofos fizeram referência. Deve-se observar, porém,

ENCICLOPÉDIA

que enquanto a E. de Comte procura abranger as ciências e as disciplinas efetivas, que haviam se constituído com autonomia de métodos, complexidade e riqueza de resultados, a E. de Hegel alija esse conjunto de ciências e o rebai­ xa a simples fase preparatória ou temporária, substituindo-o por um conjunto de especula­ ções metafísicas que só têm sentido a partir de determinados pressupostos. A esse segundo tipo de E. pertence também a E. enunciada por Croce, fundamentada na distinção de duas for­ mas de espírito, a teórica e a prática, e na sub­ divisão de cada uma delas em dois graus, co­ nhecimento do individual e conhecimento do universal, volição do individual e voliçâo do uni­ versal. Croce distingue a estética, que tem por objeto o conhecimento individual, ou seja, a arte; a lógica, que tem por objeto o conheci­ mento do universal, ou seja, a filosofia; a ciên­ cia econômica, que tem por objeto a volição do individual e por isso compreende o estudo de tudo o que é útil, logo do direito, da economia, etc; e a ética, que tem por objeto a volição do universal (Fil. daprãtica, 1909, II, cap. 1). Essa E. também alija as ciências da natureza e as re­ duz a simples instrumentos práticos que, me­ diante "pseudoconceitos", fornecem meios de economizar energia para a ação {Lógica, II, cap. 6). A E. de Hegel e a de Croce foram sim­ plesmente iniciativas filosóficas unilaterais, que os filósofos de certas tendências aproveitaram. Não foram verdadeiras E. no sentido de exercer alguma ação de coordenação efetiva entre as pesquisas de cada ciência e da integração de seus resultados em um sistema de conhecimen­ to. É justamente essa a tendência de alguns filó­ sofos e cientistas contemporâneos de orienta­ ção neopositivista e neo-empirista que, para isso, trabalharam e trabalham numa E. interna­ cional da ciência unificada, cujos primeiros volumes começaram a ser publicados em 1938; cada um deles era dedicado aos fundamentos de determinada disciplina. É preciso, porém, observar que essa tentativa não demonstra acordo suficiente no modo de entender a uni­ dade da ciência: alguns, como p. ex. Neurath, entendem-na como combinação dos resultados das várias ciências e tentam axiomatizá-los num sistema único; outros, como unificação no campo da lógica ou no campo da semiótica (Morris) ou do ponto de vista do próprio méto­ do da ciência (Dewey) (cf. Encyclopedia of UnifiedScience, I, 1, 1938). Na verdade, hoje parece utópico querer reencontrar e expor de

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ENERGIA

modo definitivo, como sempre fez a metafísica, a unidade das ciências, visto que as próprias ciências não toleram durante muito tempo uma disciplina determinada, e cada uma se reserva ampla liberdade de pesquisa, organização e linguagem. Portanto, hoje parece claro que a exigência enciclopédica da filosofia é mais exe­ qüível na forma livre e descompromissada de reconhecimento da possibilidade de múltiplas relações entre as ciências e de pesquisa e de­ terminação dessas relações em campo do que na forma tradicional de "unificação" das ciên­ cias. E esse reconhecimento, essa pesquisa e essa determinação ainda constituem tarefas fundamentais da filosofia (v. METAFÍSICA; CIÊN­ CIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS). ENERGIA (in. Energy, fr. Energie, ai. Energie, it. Energia). 1. Qualquer capacidade ou força capaz de produzir um efeito ou de reali­ zar um trabalho. Nesse sentido E. é sinônimo de atividade (v.) e de força (v.); fala-se de "E. espiritual", "E. material", "E. nervosa", "E. físi­ ca", etc. 2. Como conceito físico, entende-se por E. a capacidade de realizar um trabalho; por traba­ lho, entende-se o deslocamento do ponto de aplicação de uma força. Esses conceitos só fo­ ram claramente formulados na primeira metade do séc. XIX. No entanto, a distinção entre E. potencial (ou de posição) e E. cinética (ou de movimento) deve-se a Leibniz, que em 1686 a exprimia numa dissertação intitulada Demonstratio erroris memorabilis Cartesii, como a dis­ tinção entre força viva e força morta. Leibniz considerava a força viva igual ao produto do "corpo" (massa) pelo quadrado da velocidade-, fórmula que depois foi corrigida, passando-se a considerar a força viva igual ao semiproduto da massa pelo quadrado da velocidade. A segunda guinada conceituai importante na evolução da noção de E. ocorre em meados do séc. XIX, com a descoberta do princípio de conservação da E. (ou primeiro princípio da termodinâmica) por Mayer (1842) e Joule (1843), que estabelece a equivalência entre E. mecânica e calor. Essa equivalência demonstra­ va que o calor é uma forma de E., por conse­ guinte, o conceito de E. extrapolava o domí­ nio mecânico. A generalização foi feita por Helmholtz na sua famosa dissertação Sobre a conservação da força (1847). A ele se deve o uso do termo E., que antes se confundia com força; considerou também como E. qualquer entidade que possa ser convertida em outra

ENERGISMO

forma e caracterizou a E. como indestrutível, pois comporta-se como qualquer outra subs­ tância: não pode ser criada nem destruída. Deste ponto de vista, os cientistas começaram a falar de numerosas formas de E.: magnética, elétri­ ca, química, acústica, etc, e a E. passou a ser a segunda substância da física, já que a primeira é a matéria. Todavia, tanto em ciência quanto em filosofia tentou-se reduzir também a maté­ ria à E. constituindo-se o energismo (v.). A terceira guinada conceituai importante dessa noção ocorreu com a teoria da relativi­ dade e com a mecânica quântica. Com a redu­ ção da matéria (v.) à densidade de campo (v.), o dualismo entre as duas substâncias tradicio­ nais da física clássica perdeu sentido. Por um lado, portanto, parece que a ciência acolheu o princípio do energismo, pois a matéria deixou de ser uma substância em si mesma, mas, por outro lado, pode-se dizer que o próprio energismo foi descartado, pois o conceito funda­ mental já não é de E., mas de campo (v.), e qualquer distinção qualitativa entre matéria e E. ou matéria e campo perdeu importância (cf. A. EINSTEIN-L. INFELD, The Evolution of'Physics, III; trad. ir, pp. 251 ss.). ENERGISMO (in. Energetism; fr. Énergétisme\ ai. Energetik, it. Energetismó). Monismo da energia, ou seja, redução de toda substância a energia. O E. foi defendido pelo próprio Helmholtz, que o apresentava como um ideal da ciência (v. ENERGIA), mas difundiu-se sobre­ tudo na Inglaterra, graças a William Rankine (1820-72). Entre o fim do século passado e o início do séc. XX, foi defendido pelo fundador da químico-física, Wilhelm Ostwald (1853-1932), cujas obras principais são: A energia e suas transformações, 1888; A crise do materialismo científico, 1895; As energias, 1908; O imperativo energético, 1912. Ostwald considerava como especificação do conceito de energia o pró­ prio conceito de vida; para ele, no campo das ciências formais, o conceito de energia corres­ pondia ao conceito de função (Grundriss der Naturphilosophie, 1908) (v. CIÊNCIAS, CLASSIFI­ CAÇÃO DAS). ENGAJAMENTO. V. COMPROMISSO. ENGENHO (lat. Ingenium; in. Ingenuity; Wit; fr. Génie, ai. Witz; it. Ingegno). Retoman­ do um dos significados tradicionais desse ter­ mo, Giambattista Viço chamou de E. a facul­ dade inventiva da mente humana. Contrapôs, portanto, o E. à razão cartesiana; analogamente, contrapôs à arte cartesiana da critica, fundada

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ENSOMATOSE

na razão, a tópica como arte que disciplina e dirige o procedimento inventivo do E. O E. tem tanta força produtiva quanto a razão, po­ rém menor capacidade demonstrativa (De nostri temporis studiorum ratione, § 5). Kant, por sua vez, entendia por E. o talento, ou seja, "a supe­ rioridade do poder cognitivo proveniente da disposição natural do indivíduo, e não do ensi­ no", e o distinguia em E. comparativo e E. logicizante (Antr, I, § 54). ENIGMAS (in. Riddles; fr. Enigme; ai. Rdtsel; it. Enigmi) Na literatura filosófica dos últimos decênios do séc. XIX deu-se o nome de E. do mundo aos problemas que, não tendo sido re­ solvidos pela ciência, eram considerados inso­ lúveis. Em 1880, o fisiologista alemão E. Du Bois-Reymond enumerava Sete E. do mundo-. V- a origem da matéria e da força; 2S a origem do movimento; 3a o surgimento da vida; 4^ a ordem finalista da natureza; 5Q o surgimento da sensibilidade e da consciência; 6e a origem do pensamento racional e da linguagem; 1° a liberdade da vontade. Diante desses E., Du BoisReymond achava que se devesse dizer não só ignoramus[ignoramos], mas também um ignorabimus [ignoraremos]. Alguns anos depois, o biólogo Ernst Haeckel, numa obra de enorme difusão, intitulada OsE. do mundo (1899), pro­ clamava que aqueles E. tinham sido resolvidos pelo materialismo evolucionista (v. MATERIALISMO). Embora essa palavra até hoje seja empre­ gada com fins retóricos, tornou-se imprópria para exprimir a atitude do homem moderno em face das limitações ou da imperfeição do seu conhecimento do mundo. E. significa pro­ priamente "adivinhação", e a expressão E. do mundo parece indicar que o mundo, como uma gigantesco jogo de adivinha, só tem uma solução que, uma vez encontrada, eliminaria todos os problemas. O que, por certo, é uma visão bastante pueril, pois o mundo não tem E., nem no plural nem no singular, mas só problemas para os quais existem soluções mais ou menos adequadas, nunca definitivas e sem­ pre sujeitas a revisões. ENOEMATICA (in. Ennoematic). Termo empregado por Hamilton para indicar a dou­ trina do conceito (Lectures on Logic, I, 1886, p. 130). ENSOMATOSE (gr. èvocoucrcoxnç). Doutri­ na segundo a qual a alma é infundida no cor­ po diretamente por Deus; Orígenes a contra­ põe à metensomatose ou metempsícose (v.) (In Joan, VI, 14 [86]).

ENTE

ENTE (in. Reing; fr. Être, ai. Selentes; it. Ente). O que é, em qualquer dos significados existenciais de ser. Às vezes, mas raramente, essa palavra é usada para designar somente Deus: é o que faz Gioberti, em sua fórmula ideal: "o E. cria o existente" (Introduzione alio studio delia fü, II, p. 183): onde "E." eqüivale a Deus, como ser necessário, e "existente" eqüi­ vale às coisas criadas. Habitualmente essa pala­ vra é usada em sentido mais geral. Diz Heidegger: "Chamamos de E. muitas coisas, em sentidos diferentes. E. é tudo aquilo de que fa­ lamos, aquilo a que, de um modo ou de outro, nos referimos; E. é também o que e como nós mesmos somos" (Sein und Zeit, § 2). Mas nes­ se sentido generalíssimo prefere-se hoje a pa­ lavra entidade (v.). ENTELÉQUIA (gr. èvTeAé%eicx; lat. Entelechia; in Entelechyfr. Entéléchie, ai. Enteleckie, it. Entelechid). Termo criado por Aristóteles pa­ ra indicar o ato final ou perfeito, isto é, a rea­ lização acabada da potência {Met., IX, 8, 1050 a 23). Nesse sentido Aristóteles definiu a alma como "a E. de um corpo orgânico" (De an, II, 1, 412 a 27). O termo que Ermolau Bárba­ ro traduzia para o latim como perfectihabia (LEIBNIZ, Théod, I, § 87) foi retomado por Leibniz para indicar as substâncias simples ou manadas criadas, pois elas têm certa perfeição ou autosuficiência que as torna origens das suas ações internas e, por assim dizer, "autômatos incorpóreos" (Monad., § 18). Na filosofia contempo­ rânea, esse termo foi retomado pelo biólogo Hans Driesch, que nele centrou o seu vítalísmo (v.). Para Hans Driesch, a E. é o princípio da vida nos seres animados: fator espiritual, irre­ dutível a agentes físico-químicos (A alma como fator elementar da natureza, 1903; O vitalismo, 1906). ENTIDADE (lat. Entitas; in. Entity, fr. Entité, ai. Entitãt; it. Entità). Objeto existente no sen­ tido 1". da palavra existência, provido de um modo de ser especificamente definível. Esse termo foi introduzido por Duns Scot, que o utilizou para distinguir o modo de ser do indi­ víduo, que ele chama de entitas positiva (o mesmo que baecceitas), do modo de ser da na­ tureza ou da espécie, que ele chama de entitas quiddítativa(Op. Ox., II, d. 3, q. 6). E. positiva seria, p. ex., Sócrates; E. quiditativa, a espécie homem. Essa terminologia foi incorporada pela escola scotista, sendo comumente empregada nas discussões sobre individuação, no séc. XIV. Leibniz aludiu a essas discussões numa de suas

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ENTROPIA

primeiras obras, De principio individui (1663), na qual usa o termo com o mesmo objetivo. Na lógica contemporânea esse termo é empregado para indicar todo objeto cujo status existencial possa ser definido, ou então, como também se diz, todo objeto a respeito do qual o uso lingüístico comporte um "compromisso ontológico". Carnap defendeu o uso desse ter­ mo, insistindo ao mesmo tempo no fato de que as E. de que se fala na lógica não são redutíveis a dados sensíveis, portanto não são enti­ dades reais (Meaning andNecessity, A. 4). ENTTMEMA (gr. èv8úur|na; lat. Enthymema; in. Enthymeme, fr. Enthymème, ai. Entbymem; it. Entimemd). Segundo Aristóteles, silogismo fundado em premissas prováveis ou em signos (An. pr., 70 a 10); é o silogismo da retórica. O E. fundado em premissas prováveis nunca con­ clui necessariamente, pois as premissas prová­ veis valem na maioria das vezes, mas nem sem­ pre. O E. fundado em signos às vezes conclui necessariamente. Assim, quando se diz que al­ guém está doente porque tem febre, ou que uma mulher deu à luz porque tem leite, cria-se um silogismo do qual simplesmente se omite a premissa maior, ou seja, que quem tem febre está doente, ou que toda mulher que deu à luz tem leite (Ret., I, 1357 a, pp. 33 ss.). Quando o signo é uma prova segura, vale como termo médio de um silogismo demonstrativo do qual se omitiu uma premissa considerada já conhe­ cida (An. pr, 70 b 1 ss.). Este segundo signifi­ cado de E. foi acolhido pela lógica medieval, que o considerou um "silogismo imperfeito", em que se deixa de expor uma premissa, como quando se diz "Todo animal corre, logo todo homem corre, omitindo a premisssa 'todo ho­ mem é animal'" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 5.04; ABELARDO, Dialectica, edição de Rijk, p. 463). ENTROPIA (in. Entropy, fr. Entropie; ai. Entropie, it. Entropia). A noção de E. está vin­ culada ao segundo princípio da termodinâ­ mica, formulada por Sadi Carnot em 1824 e enunciada em termos matemáticos por Clausius (1850). Esse princípio afirma que o calor só passa do corpo mais quente para o corpo mais frio, e que em toda transformação de energia num sistema fechado ocorre a degrada­ ção da energia, ou seja, a perda da energia total disponível no sistema. Chama-se degradação a passagem de uma forma de energia para outra forma que não possa ser acompanhada pela transformação inversa completa. Assim, é sem­

ENTROPIA

pre possível a transformação completa de ener­ gia mecânica em calor, mas a transformação in­ versa nunca é completa porque só uma parte do calor pode ser transformada em energia me­ cânica. O calor, portanto, é considerado uma forma inferior ou "degradada" de energia; por isso, o segundo princípio da termodinâmica é chamado de "princípio de degradação da ener­ gia". E. é a função matemática que exprime a degradação da energia que infalivelmente ocorre em toda transformação. O princípio da E. chamou sempre a atenção dos filóso­ fos, porque estabeleceu, em nível científico, a irreversibilidade dos fenômenos naturais. De fato, para a mecânica clássica ou newtoniana, todos os fenômenos são reversíveis: para eles, o tempo pode transcorrer indiferentemente em uma ou outra direção, do passado para o futu­ ro ou do futuro para o passado. O t das equa­ ções que exprimem o comportamento dos fe­ nômenos mecânicos é uma variável contínua, que não tem sentido determinado. O princípio da E., ao contrário, estabelece um sentido para os fenômenos, qual seja, a sua irreversibilidade no tempo. Cientistas e filósofos do fim do séc. XIX algumas vezes se dedicaram à previsão da morte do universo pela degradação total da energia, ou seja, pelo alcance do máximo de E., ou a excogitar possíveis meios de salvar o uni­ verso dessa morte (cf., p. ex., S. ARRHENIUS, Vêvolution desmondes; trad. fr., Seyrig, 1910). Outros deram uso mais filosófico à noção, en­ trevendo nela a estrutura fundamental do tem­ po, ou seja, a sua irreversibilidade. Reichenbach utilizou a E. para a determinação da direção do tempo. "A direção do tempo ex­ pressa-se para nós nas direções dos processos dados pelos sistemas parciais, que são numero­ sos no nosso ambiente. Iodos esses processos vão na mesma direção, a direção da E. crescen­ te. Esse fato está estreitamente ligado ao cresci­ mento geral da E. do universo, e é através da reiteração desse fato nos sistemas parciais que o desenvolvimento da E. no universo nos indi­ ca a direção do tempo" (TbeDirection o/Time, 1956, p. 131). Na verdade, a ciência hoje não parece autorizar a transposição dos sistemas fe­ chados ou parciais, nos quais vale a E., para o sistema geral do universo. Assim, não é fácil dizer qual o valor das especulações filosóficas em torno dessa noção. Na teoria da informa­ ção (v.), a partir das obras de Shannon e Wiener, utilizou-se o conceito de E. para medir a falta de informação sobre os detalhes da na­

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ENTUSIASMO

tureza de um sistema. Como a E. é constituída pela equivalência entre as possibilidades de desenvolvimento de um sistema, a informação, ao eliminar algumas dessas possibilidades, é uma E. negativa. Estabelece-se, assim, a equi­ valência entre E. e falta de informação e entre informação e E. negativa. Mas como, na trans­ missão de qualquer informação, tem-se uma perda de informação, admite-se que, assim como nos sistemas físicos, a E. tende a crescer também no campo da informação; por isso, a medida da informação pode ser definida pelo crescimento correspondente da E. negativa. ENTUSIASMO (gr. év9o"ucnaa|ióç,; in. Enthusiasm; fr. Enthousiasme, ai. Enthusiasmus; it. Entusiasmo). Em sentido próprio a inspira­ ção divina, donde o estado de exaltação que ela produz, com a certeza de possuir a verda­ de e o bem. A primeira crítica do E. do ponto de vista da filosofia é de Platão, em Ion. este pretende ciemonstrar que a arte do rapsodo, assim como qualquer outra atividade que de­ penda exclusivamente de inspiração divina, não é realmente uma arte, porque não dá nada a conhecer (Ion, 538; cf. Men, 99 c). Com o predo­ mínio da concepção religiosa em filosofia, ou seja, com o Neoplatonismo, o juízo sobre o E. muda: para Plotino, é o meio de alcançar o es­ tado final da visão perfeita, o êxtase (Enn., VI, 9, 11, 13). Os neoplatônicos do Renascimento (Ficino e Pico) retomaram o conceito de E. no mesmo sentido. É um dos conceitos centrais da filosofia de G. Baino, que concebeu a filosofia como religião da natureza, cujo instrumento principal é o E , que ele designava com vá­ rios nomes ("furor heróico", raptus mentís, contractio mentis, etc). A Bruno deve-se tam­ bém a distinção entre E. intelectual ou natural e E. religioso: este é próprio daqueles que "por se terem feito habitação de deuses ou espíritos divinos, dizem e operam coisas maravilhosas sem que destas eles ou outros entendam a ra­ zão". Graças ao E. intelectual, ao contrário, ocorre que alguns homens "com terem inato espírito lúcido e intelectual, por um estímulo interno e fervor natural, suscitado pelo amor à divindade, à justiça, à verdade, à glória, pelo fogo do desejo e pelo sopro da intenção, agu­ çam os sentidos, e no enxofre da faculdade cogitativa acendem o lume racional com que vêem mais que de ordinário; estes, ao fim, não falam nem operam como vasos e instru­ mentos, mas como artífices principais e eficien­ tes" (Degli eroici furori, III). Mas esse E. natu­

ENTUSIASMO

ral e intelectual, como se vê, tem o mesmo ca­ ráter do outro: dá aos sentidos e ao pensamen­ to um poder sobre-humano, elimina os limi­ tes em que o homem se acha "ordinariamente" encerrado e é assumido como justificação da infalibilidade ou da impecabilidade do homem. Quando, a partir da segunda metade do séc. XVII, com o Empirismo e o Iluminismo, esses limites são claramente reconhecidos, o E. tam­ bém é reconhecido pelo que é: uma justifica­ ção do dogmatismo e da intolerância; é o que faz Locke, em famoso capítulo de Ensaio (IV, 19). O E., que não se funda nem na razão nem na revelação divina, não é senão uma presun­ ção de infalibilidade: a luz a que os entusiastas fazem menção é "um ignisfatuus que os fará girar continuamente dentro desse círculo: é uma revelação, porque eles acreditam nisso firme­ mente; e acreditam firmemente porque é uma revelação" Qbid, IV, 19, 10). Segundo Locke, esse círculo é tudo o que o E. consegue en­ contrar como apoio. Leibniz concordava com Locke aduzindo certo número de exemplos de E. fanático e observava: "As dissensões dessas pessoas entre si deveriam convencê-las de que seu pretenso testemunho interno não é absolutamente divino e que precisa de outros sinais para justificar-se" (Nouv. ess, IV, 29, § 16). Mais tarde, Leibniz aderia às idéias expres­ sas por Shaftesbury (Recueil de diversespièces surlapbilosophie, Iareligíonnaturelle, Vhistoire, les mathématiques, etc, de Leibniz, Clarke, Newton, etc, Lausanne, 3a- ed., 1759, II, pp. 311-34). A Carta sobre o E. (1708) de Shaftesbury esta­ belece pela primeira vez a oposição entre E. e ironia, que foi um dos temas preferidos do iluminismo setecentista e é um dos temas do iluminismo de todos os tempos. Shaftesbury insistiu na capacidade liberadora do riso: "Estou seguro de que só existe um caminho para salvaguardar os homens e preservar o tino do mundo: a liberdade espiritual. Ora, o espírito nunca será livre se não houver ironia livre, porque contra as grandes extravagâncias e os humores bilio­ sos outro remédio não há além desse" {A Letter concerningEnthusiasm, 2; trad. it., Garin, p. 44). A razão e o que nela se apoia nada têm a temer do ridículo, mas o ridículo é uma arma podero­ sa contra a aparência que não é substância, logo contra o saber ilusório e a virtude hipócrita. A obra de Voltaire inspirou-se nessa concepção fundamental. O próprio Voltaire afirmava que o E. "é sobretudo a herança da devoção mal-

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ENUMERAÇÃO

entendida" e só concedia aos poetas o "entu­ siasmo razoável" (Dictionnairephilosophique, art. Enthousiasme, 1765). As Cartas Persas de Montesquieu são outra manifestação da mesma tendência. Em Kant a crítica do E. era crítica do fanatismo, e a luta contra o fanatismo era o obje­ tivo fundamental de sua atividade filosófica (v. FANATISMO). Mas, por uma das não raras ironias da história, essa luta deveria prenunciar uma das maiores explosões de E. fanático conhe­ cidas pela filosofia: o Romantismo. Por isso, não é de surpreender a defesa do E. num dos mani­ festos do Romantismo europeu, De VAllemagne, de Madame de Staêl (ed. de 1813, p. 603). Na filosofia contemporânea, Jaspers definiu o E. de acordo com o conceito tradicional e apreciou-o positivamente. "Na atitude entusiás­ tica", disse ele, "o homem se sente tocado em sua substância mais íntima, em sua essencialidade ou — o que dá no mesmo — sente-se arrebatado e comovido pela totalidade, pela substancialidade, pela essencialidade do mun­ do" (Psychologie der Weltanschauungen, I, C; trad. it., pp. 138 ss.). Contudo, Jaspers distinguiu o E. do fanatismo, no sentido de que, enquanto o entusiasta "se obstina em manter firmes suas idéias, mas tem vivacidade e vitali­ dade para aperceber-se do novo", o fanático "fica fechado em determinada fórmula ou numa idéia fixa" (Ibid, p. 162). ENUMERAÇÃO (in. Enumeration; fr. Énumération; ai. Aufzãhlung; it. Enumerazione). A quarta regra do método enunciada por Des­ cartes na segunda parte do Discurso-. "Fazer em tudo E. tão completas e revisões tão gerais que se esteja seguro de nada omitir". Assim expressa, essa regra refere-se mais ao controle dos resultados do procedimento racional do que à descoberta desses resultados. Tem maior alcance a regra correspondente (a VII) de Regulae addirectionem ingenii, em que a E. é identificada com a indução: "Essa E. ou indu­ ção é, portanto, a investigação de tudo o que se refere a dada questão, tão diligente e cuida­ dosa que a partir dela concluímos com certeza e evidência que nada negligenciamos... Por enumeração suficiente ou indução entendemos somente aquela da qual se conclui uma verda­ de com mais certeza do que com qualquer outro gênero de prova, salvo pela simples in­ tuição". Com isso parece que Descartes faz re­ ferência ao procedimento que Bacon chamara de "E. simples", em que via uma forma imper­

ENUNCIADO

feita de indução. Com efeito, para Bacon, essa indução é "um expediente pueril, que leva a conclusões precárias, expõe ao perigo dos ca­ sos contrários e conclui como pode de um nú­ mero menor de provas do que as necessárias". A essa indução Bacon contrapõe a verdadeira, que precede por eliminação e exclusão e é semelhante ao procedimento diairético de Platão (Nov. Org., I, 105). A crítica da indução por E. simples foi depois repetida por Stuart Mill (Logic, III, 3, § 2). A E. simples, nesse sentido, parece ser a indução de que falava Aristóteles (v. INDUÇÃO).

ENUNCIADO (gr. àÇcQLfoc; lat. Enuntiatum, Enuntiatio-, in. Sentence, fr. Enonce, ai. Aussage, it. Enunciató). 1. Expressão lingüística de sentido completo, que é verdadeira ou falsa. Neste sentido, também se costuma falar de E. indicativo ou declarativo, ou de asserção (v.). Conquanto corresponda ao logos apophantikósàe Aristóteles (Deinterpr., 4, 17 a 2), essa noção foi formulada claramente pelos estóicos, que definiram o E. (axiomà) como aquilo que pode ser verdadeiro ou falso e o distinguiram da interrogação, do comando, do juramen­ to, da apóstrofe e da expressão dubitativa (DIÓG. L. VII, 65-68). Nos gramáticos latinos ao termo estóico corresponde o termo effatum ou proloquium (AULO GÉLIO, Noct. Àti, X V I, 18, 2-8; APULEIO, De interpr, p. 205), e Cícero preferiu enunciatum (Defato, I, 1). Na lógica medie­ val, esse termo foi usado alternadamente com proposição. Pedro Hispano diz que "proposição", "questão", "conclusão" e "enunciação" são ter­ mos substancialmente idênticos que só se dis­ tinguem porque a questão é aquilo de que se duvida, a conclusão aquilo que se demonstra com um argumento, a proposição é aquilo que se põe na premissa e a enunciação é aquilo que se pronuncia sem condições (absolute) (Summ. log, 5.06). Esta identificação continua na lógica posterior (cf. p. ex. JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, II, I, 2). Freqüentemente esse termo é usado com o significado acima definindo na lógica contem­ porânea (cf. CARNAP, Lntroduction to Semantics, § 37; CHURCH, lntroduction to Mathematical Logic, § 04). Na lógica, E. não eqüivale à sim­ ples emissão de voz (utterancê), mas a uma fórmula ou esquema repetível, uma norma aproximavel. QUINE considera-o uma seqüên­ cia (em sentido matemático) dos seus sucessi­ vos caracteres ou fonemas ( Word and Object, § 40). Quando, conforme ocorre com freqüên­

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EPICURISMO

cia, se distingue E. de proposição, diz-se que o E. é verdadeiro quando exprime uma proposi­ ç ã o v e r d a d e ir a (KNEALE A N D KNEALE, The Development ofLogic, 1962, p. 53). Sobre a relação entre E. e proposição, v. PROPOSIÇÃO. 2. Qualquer expressão lingüística de sentido completo. Neste sentido, mais estritamente gra­ matical, o termo indica não só a expressão declarativa (asserção ou proposição), como tam­ bém as dúvidas, os comandos, as exortações, as apóstrofes, etc, frases que não podem ser declaradas verdadeiras ou falsas. 3. Mais raramente, quaisquer expressões lin­ güísticas, também de sentido não completo; p. ex., uma palavra isolada como "vermelho" ou "quadrado". QUINE também considera E. uma interjeiçâo como "ai" (Word and Object, 1960, §3). ENVOLVER (lat. Lnvolvere, in. involu; ai. Lnvolvieren; it. Lnvolgere). Implicar, conter. Spinoza dizia, com referência à Causa Primeira, que "sua essência envolve a existência" (Et, I, Def. 1). Esse termo corresponde ao inglês to enta.il, usado para indicar a implicação estrita ou form a. V. IMPLICAÇÃO.

EONS (gr. ociwveç). Termo empregado pelos gnósticos (séc. II), especialmente por Valentino, para designar Deus e os seres "eternos" que dele emanam (CLEMENTE, Strorn., IV, 13.89). EPAGÓGICO (gr. ÈTiaYWyiKÓÇ; in. Epagogic, fr. Epagogique; ai. Epagogik, it. Epagogico).

In d u tiv o (v, INDUÇÃO).

EPICURISMO (in. Epicureanism; fr. Epicuréisme, ai. Epikureismus; it. Epicureismo).Escola filosófica fundada por Epicuro de Samos no ano 306 a.C. em Atenas. Suas características, que têm em comum com as demais correntes filosóficas do período alexandrino a preocupa­ ção de subordinar a investigação filosófica à exi­ gência de garantir a tranqüilidade do espírito ao homem, são as seguintes: 1B sensacionísmo, princípio segundo o qual a sensação é o critério da verdade e do bem (este último identificado, portanto, com o prazer); 29 atomismo, com que Epicuro explicava a formação e a transformação das coisas por meio da união e da separação dos átomos, e o nascimento das sensações co­ mo ação dos estratos de átomos provenien­ tes das coisas sobre os átomos da alma; 3S semíateísmo, pelo qual Epicuro acreditava na exis­ tência dos deuses, que, no entanto, não desem­ penham papel nenhum na formação e no governo do mundo.

EPIFENÔMENO

EPIFENÔMENO (in. Epipbenomenon; fr. Epiphénomène, ai. Epiphãnomenon; it. Epifenomeno). Em alguns positivistas ingleses do séc. XIX (Huxley, Clifford, etc), essa palavra designou a consciência, considerada fenômeno secundário ou acessório que acompanha os fe­ nômenos corpóreos, mas é incapaz de reagir sobre eles (V. MATERIALISMO). EPIGÊNESE (in. Epigenesis; fr. Epigénèse, ai. Epigenese, it. Epigenesí). Com esse nome G. F. Wolff designou sua teoria sobre a geração dos organismos animais, segundo a qual os órgãos de um ser vivo não estão preformados no óvulo ou no embrião, mas se originam ex novo de uma matéria indiferenciada (Teoria da geração, 1759). Essa teoria, que Wolff baseava em observação microscópica dos órgãos das plantas e do embrião do pintainho, foi um golpe rude na teoria do preformismo, que tinha sido defendida no mesmo século por Malpighi e Bonnet. Kant observava, a propósito dessa teo­ ria, que ela tem a vantagem de atribuir à natu­ reza uma ação própria que difere do simples desenvolvimento; desse modo, ''lançando mão o menos possível do sobrenatural, deixa por conta da natureza tudo o que se segue ao pri­ meiro começo" (Crít. doJuízo, § 81). Kant cha­ mou a sua própria doutrina de "E. da razão pura", ao admitir que as categorias do intelecto são o fundamento da possibilidade de expe­ riência, ao contrário da doutrina tradicional, segundo a qual é a experiência que torna possí­ veis as categorias (Crít. R. Pura, § 27) (v. PRE-

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ÉPOCA

car, numa cadeia polissilogística, o sentido em direção ao condicionado, e a expressão perprosvllogismos para indicar o sentido em direção às condições. As duas expressões são usadas na dialética transcendental para esclarecer o pro­ cedimento mediante o qual a razão chega às idéias transcendentais, obtidas procedendo per prosyllogisnios, quando se considera como dada e completa a série de condições, ou seja, a totali­ dade das premissas (Crít. R. Pura, Dialética, 1, seç. 2) (v. POLISSILOGISMO). EPISTEMOLOGIA. V. CONHECIMENTO, TEORIADO.

ÉPOCA (gr. inoyr\ \ in. Epoch; fr. Epoque, ai. Epoche, it. Epoca). Tendo como referência o an­ tigo significado astronômico de É. como ponto do tempo em relação ao qual são definidas as posições dos astros e contados seus movimen­ tos (cf. PTOLOMEU, Alm, III, 9), essa palavra às vezes é usada para indicar um acontecimento de especial importância, que estabelece ou per­ mite reconhecer o caráter de um período histó­ rico. Nesse sentido, diz-se que certo aconteci­ mento "faz É.". Essa palavra passa a significar o período histórico caracterizado pelo aconteci­ mento. Essa noção distingue-se de idade (v.) porque, enquanto esta última é o conceito de uma lei de sucessão dos períodos históricos, a É. é o conceito do caráter central e determinante de certo acontecimento histórico. Nesse sentido, no início do séc. XIX, Saint-Simon distinguia as É. "críticas" e as "orgânicas" (v. CRISE). Hegel fa­ lava das É. da história do mundo como de vários graus (Stufen) do desenvolvimento unitário FORMAÇÃO). dessa história, distinguindo a É. caracterizada EPIQUÉIA. V. EQÜIDADE. unidade do espírito com a natureza, que é EPIQUIREMA (gr. è7UXdprfLioq lat. Epichi- pela o Mundo oriental, a É. caracterizada pela separa­ rema; in. Epicheirema; fr. Epichérèm; ai. ção dos dois termos, que se realizou no mundo Epicheirem; it. Epicherema). Esse termo, que grego como ideal de liberdade individual e no significa empresa ou "tentativa", foi definido por romano como subordinação do indiví­ Aristóteles como "raciocínio dialético" (Top, VIII, mundo ao Estado, e É. germânica, que se realizou 11, 162 a 16) (v. DIALÉTICA). Na realidade, esse duo no mundo cristão, na qual "o espírito divino termo também é usado por Aristóteles para in­ veio mundo e assumiu seu lugar no indiví­ dicar o artifício que consiste em esconder ou duo, ao agora está completamente livre, tendo expor só imperfeitamente algumas premissas em sique a liberdade substancial" (Phílosophie der da argumentação. Por isso, na Lógica moderna, Geschichte, ed. Lasson, pp. 136-37). o termo E. passou a indicar um prossilogismo (v.) cujas premissas são expressas de forma in­ Mas foi Dilthey quem introduziu a noção de completa. G. P. É. na. metodologia historiográfica. Segundo EPISSILOGISMOün. Episyllogisni;fr. Episyl- ele, É. é uma estrutura que tem centro em si logism;ai. Episyllogismus;it Episillo-gismo) .Silo­ mesma e por isso interliga num todo único gismo que assume como uma das suas premis­ todas as suas manifestações. Cada pessoa que sas a conclusão de outro silogismo. Este último nela vive tem em comum a medida das suas será então chamado de prossilogismo (v.). Kant ações, de seus sentimentos e sua compreen­ usou a expressão per episyllogismos para indi­ são. A tarefa da análise histórica é rastrear a

EPOCHE

coincidência de objetivos, valores e modos de pensar que constituem E., pois é só em rela­ ção com a estrutura total da E. que se pode calcular a importância da contribuição de um indivíduo (DerAufbau dergeschichtlichen Welt, em Gesammelte Schriften, VII, p. 155). Ado­ tando esses conceitos, Spengler acrescentava o caráter de necessidade: "Um acontecimento faz E. quando marca uma virada necessária, uma guinada do destino no desenvolvimento de uma cultura. Um acontecimento fortuito, que é a imagem cristalizada da superfície históri­ ca, poderia ser representado por outros casos correspondentes; a E. é necessária e prede­ terminada" (Der Untergang des Abendlandes, I, 2, 17). A esse uso está ligado o significado que Heidegger dá a esse^ termo: "Toda E. da história universal é uma E. do ser. A essência epocal do Ser entra no caráter temporal íntimo e oculto do Ser e caracteriza a essência do tempo pensada no Ser" (Holzwege, p. 311; cf. Chiodi, Vúltimo Heidegger, 1952, p. 29; ID., Lvsistenzialismo di Heidegger, 2a ed., 1955, pp. 191­ 92): Jaspers fala de uma É. axial, que correspon­ deria à idade histórica que vai do séc. VIII ao séc. II a.C, na qual ocorreram alguns acon­ tecimentos de relevo na história do mundo (pe­ ríodo clássico da Grécia; Confúcio e Lao-tsé na China; Upanishad e Buda na índia; Zaratustra na Pérsia; os profetas na Palestina, etc). A novidade dessa E. é que nela "o homem to­ mou consciência do ser em geral, de si mes­ mo e dos seus limites; tomou consciência de que o mundo é temível, de sua própria fraque­ za. Fez perguntas fundamentais, partiu do abis­ mo para a libertação e para a redenção" (Einführung in die Philosophie, 1950, cap. IX; trad. EPOCHÉ (gr. ino%\\). Suspensão do juízo, que caracteriza a atitude dos céticos antigos, particularmente de Pirro; consiste em não aceitar nem refutar, em não afirmar nem negar. O contrário dessa atitude é o dogmatismo, em que se dá assentimento a alguma coisa obscura, que constitui objeto de pesquisa científica (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 10, 13). Segundo o ceti­ cismo, essa atitude era a única possível para se atingir a imperturbabilidade. Com efeito, "quem duvida de que algo seja bom ou mau por natu­ reza não evita nem persegue coisa alguma com desejo: por isso, é imperturbável" (Ibid., I, 28). Na filosofia contemporânea, com Husserl e a filosofia fenomenológica em geral, a E. tem fi­ nalidade diferente: a contemplação desinteres­

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EQÜIDADE

sada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na sua totalidade. Com a E., diz Husserl, ''pomos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e pomos entre parênteses tudo o que ela compreende; por isso, a totalidade do mundo natural que está sempre 'aqui para nós', 'ao alcance da mão' e que continuará a perma­ necer como 'realidade' para a consciência, ain­ da que nos agrade colocá-la entre parênteses. Fazendo isso, como é de minha plena liberda­ de fazê-lo, não nego o mundo, como se fosse um sofista, não ponho em dúvida o seu existir, como se fosse um cético, mas exerço a E. fenomenológica, que me veta absolutamente qualquer juízo sobre o existente espácio-temporal" (Ideen, I, § 32). A E. fenomenológica dis­ tingue nitidamente a filosofia de todas as ou­ tras ciências que estão interessadas na existência do mundo e dos objetos nele compreendidos; por isso, faz do filosofar uma atitude puramen­ te contemplativa, à qual pode revelar-se, em sua genuinidade, a própria essência das coisas (Ibid, § 90; Cart. Med, § 8). Husserl vale-se da E. em vários níveis da sua investigação: para efetuar a redução da experiência à "esfera de propriedade" que pertence ao meu eu e da qual é eliminada qualquer remissão às outras subjetividades (Cart. Med, § 44); para atingir o chamado "mundo da vida" com a suspensão da validade de todas as ciências objetivas (Krisis, § 35); para alcançar "o eu constitutivamente operante na intersubjetividade" (Ibid, § 50); enfim, para alcançar "o ego absoluto, o ego enquanto centro funcional último de qualquer constituição" (Ibid., § 55). Com este último ato ruma-se para o ponto final da E., pois com o ego absoluto se está "na esfera da evidência apoclítica" (Ibid, § 55). EQUAÇÃO LÓGICA (in. Logical equation; fr. Equation logíque, ai. Logische Gleichung; it. Equazione lógica). Na Álgebra da lógica (v.) designa-se com esse termo uma fórmula que contém o sinal "=", à esquerda do qual situamse letras (termos) ligadas por operações lógi­ cas, à direita o símbolo "O" ou então "1". A solução consiste em eliminar incógnitas, se­ gundo técnicas elaboradas por vários algebristas lógicos. G. P. EQÜIDADE (gr. èjueímot; lat. Aequitas- in. Equity, fr. Équité; ai. Bülígkeit; it. Equitâ). Apelo à justiça voltado à correção da lei em que a justiça se exprime. Esse é o conceito clássico de E.,

EQÜIPOLÊNCIA

ERÓTICA

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EQUIVOCAÇÃO (in. Equivocation; fr. Equivocation; ai. Aequivokation; it. Equivocazione). No latim medieval, usava-se aequívocatio para traduzir a óu.(0V\)U.ía de Aristóteles (v. HOMONÍMIA). EQUÍVOCO1 (in. Equivocation; fr. Equivo­ que, ai. Aequivok, it. Equivoco). Segundo Heidegger, uma das manifestações essenciais, jun­ tamente com a tagarelice (v.) e a curiosidade (v.) da existência impessoal cotidiana. No E. "tudo parece ser compreendido, apreendido e expresso com pureza, e no entanto não é; ou então não parece, mas é". Ele "oferece à curio­ sidade o que ela está procurando e à tagarelice a ilusão de que com ela tudo se resolve" (Sein undZeit, § 37).

esclarecido por Aristóteles e reconhecido pelos juristas romanos. Diz Aristóteles: "A própria na­ tureza da E. é a retificação da lei no que esta se revele insuficiente pelo seu caráter universal" {Et. nic, V, 14,1137 b 26). A lei tem necessaria­ mente caráter geral; por isso às vezes sua aplica­ ção é imperfeita ou difícil, em certos casos. Nes­ ses casos, a E. intervém para julgar, não com base na lei, mas com base na justiça que a pró­ pria lei deve realizar. Portanto, nota Aristóteles, o justo e o eqüitativo são a mesma coisa; o eqüitativo é superior, não ao justo em si, mas ao jus­ to formulado em uma lei que, em virtude da sua universalidade, está sujeita ao erro. Fundamen­ tando-se em conceito análogo, Kant considera­ va, porém, que a E. não se presta a uma autênti­ ca reivindicação jurídica e que, portanto, não cabe aos tribunais, mas ao tribunal da consciên­ cia {Met. derSitten, Ap. à Intr., 1). EQÜIPOLÊNCIA (gr. iaoôwauáa; lat. Aequipollentia; in. Equipollence, fr. Equipollence, ai. Aequipollenz; it. Equipollenza). Relação en­ tre enunciados diversos que tem o mesmo va­ lor de verdade. A doutrina da E. foi exposta pela primeira vez por Galeno na obra Sobre as Proposições Eqüipolentes, reexposta em latim por Apuleio (no seu comentário a De interpretatione), do qual passou à lógica medieval (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.24-1.27). Jungius distinguia a E. gramatical, que existe entre frases de igual significado, embora com­ postas de palavras diferentes, da E. lógica, que ocorre entre enunciados simultaneamente ver­ dadeiros ou falsos que correspondam ao mes­ mo objeto extramental: como no caso dos dois enunciados: "Alguns homens não são amantes da sabedoria" e "É falso que todos os homens sejam amantes da sabedoria" {Log, II, 10, 2-3). No lógica contemporânea a E. (que se chama também equivalência) é simbolizada pelo signo = e definida, de acordo com a tradição, como coincidência de dois enun­ ciados em seu valor de verdade (W. V. O. QUINE, Methods ofLogic, § 9; CARNÁP, Meaning and Necessity, 3).

ERETRÍACOS (gr.'EpexpiKOÍ). Assim foram chamados, devido à origem de um dos funda­ dores, Menedemos de Erétria, os seguidores da escola socrática fundada por Fédon, o discí­ pulo de Sócrates que dá nome a um diálogo de Platão (DiÓG. L, i I, 17, 126). Mas das doutrinas dessa escola nada se sabe. ERÍSTICA (gr. èpDTVKri TèAvri; in. Eristic; fr. Eristique, ai. Eristik, it. Eristica). Arte de com­ bater com palavras, ou seja, vencer nas discus­ sões. Foi cultivada na Antigüidade pelos sofstas e pela escola megárica, cujos membros foram chamados, por antonomásia, de "erísticos" (DiÓG. L, II, 106). Em Eutidemos, Platão dá um exemplo vivo do modo como essa arte era exercida em seu tempo. Os interlocutores do diálogo, os irmãos Eutidemos e Dionisodoro, divertem-se em demonstrar, p. ex., que só o ignorante pode aprender, e logo depois que só o sábio aprende; que se aprende só o que não se sabe e depois que se aprende só o que se sabe, etc. O fundamento de semelhantes exercícios é a doutrina compartilhada por megáricos, sofistas e cínicos, de que o erro não é possível porque, não se podendo dizer o que não é (que eqüivale a não dizer), sempre se diz o que é, logo a verdade.

EQUIVALÊNCIA (in. Equivalency, fr. Equivalence, ai. Aequivalenz; it. Equivalenza). 1. Relação entre dois objetos que tenham o mes­ mo valor: p. ex., entre duas figuras planas que tenham a mesma área ou duas figuras sólidas que tenham o mesmo volume. 2. O mesmo que eqüipolência (v.).

ERÓTICA (fr. Erotique, ai. Erotik, it. Eró­ tica). Algumas vezes, utilizou-se esse termo para designar uma desejada (mas não realiza­ da) ciência do amor, da felicidade (RICKERT, System derPhilosophie, 1921) ou da vida emo­ cional em geral.

EQÜIPROBABÍLISMO . V. INDIFERENÇA, PRIN­ CÍPIO DE.

EQUÍVOCO 2. Adj. V. UNÍVOCO.

ERLEBNIS. V. VIVÊNCIA. EROS. V. AMOR. EROTÉTICO. V. CATECISMO.

ERRO

ERRO (gr. i|/£ü5oç; lat. Error, in. Error, fr. Erreur, ai. Irrtum; it. Erroré). O E. não perten­ ce à esfera das proposições (ou dos enuncia­ dos), mas à do juízo (v.), das atitudes valorativas. Com efeito, não consiste em uma proposição falsa, embora uma proposição falsa seja um elemento do E. consistente em acre­ ditá-la ou julgá-la verdadeira. Elemento do E. também podem ser uma proposição verdadei­ ra, se considerada falsa, e qualquer declaração de valor — moral, estética, política, econômica, etc. — se acreditada ou assumida como exata e desmentida por critérios ou regras reconheci­ damente válidos. P. ex., é um E. acreditar que pode haver duas moedas correntes simultanea­ mente no mesmo mercado, pois sabe-se que "a moeda ruim expulsa a boa". O erro pode con­ sistir também em julgar um objeto com base num critério estranho ao próprio objeto, ou melhor, ao campo de objetos a que ele perten­ ce, ou então em julgar com base num critério apropriado um objeto não discriminável por tal critério. Tem-se um E. da primeira espécie quando se quer decidir da realidade de um fato com base num critério moral ("não deve, não pode, ter acontecido assim"). Tem-se um E. da segunda espécie quando se quer decidir das verdades ou falsidades dos postulados ou pro­ posições iniciais das ciências ou de enunciados não significativos. Em geral, pode-se chamar de E. todo juízo ou valoração que contrarie critério reconhecido como válido no campo a que se refere o juízo, ou aos limites de aplicabilidade do próprio critério. Portanto, o contrário de um juízo errado não é um juízo "verdadeiro", como comumente se crê, mas um juízo "correto", "exato" ou "regular"; o oposto de E. poderia ser a correção. A possibilidade de E. supõe duas condições: d) que haja um critério válido de juízo aplicável na situação dada; b) que tal cri­ tério não seja necessário e infalível. Sem a con­ dição d) não haveria a possibilidade de distin­ guir o E. do que não é E. Sem a condição b) o E. seria impossível em princípio. Platão procurou satisfazer essas condições com a doutrina do E. exposta em O Sofista. Platão observou corretamente que o E. é im­ possível do ponto de vista dos eleatas e seus discípulos, segundo os quais "o ser é" e que o nào-ser não pode ser nem pensado nem ex­ presso. Nesse caso, efetivamente, qualquer coisa que se diga diz-se o que é, por isso diz-se a verdade. Mas se assim é, entre o sofista e o filósofo, entre o charlatão e o investigador ho­

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ERRO

nesto, não haverá nenhuma diferença e a pró­ pria investigação será inútil. A possibilidade do E. condiciona, em outros termos, a investiga­ ção da verdade e não se pode negar sem negar a própria verdade. Por isso, Platão abandona a tese eleática da necessidade do ser e define o ser como possibilidade (dynamis, Sof, 247 e). Como possibilidade, o ser não é nem um nem muitos, nem movimento nem repouso, etc, mas pode ser uma coisa ou outra, e tudo está em ver quais são as determinações dele que po­ dem unir-se e permanecer juntas, e quais, ao contrário, são as não suscetíveis disso. A ciên­ cia que estuda as combinações possíveis das formas (ou gêneros) do ser — ciência análoga à gramática, que estuda as combinações possí­ veis das letras, e à música, que estuda as com­ binações possíveis dos sons — é a dialética (v.). Em vista disso, o E. é simplesmente uma combinação de determinações do ser e de pa­ lavras que exprimem tais determinações, a qual não se conforme às regras da dialética; em outros termos, uma combinação que combine ou una o que, com base em tais regras, não pode ser combinado ou unido. Portanto, quem diz o falso não diz "o que não é" (o que seria impossível), mas diz algo diferente do que é: exprime uma combinação de formas (gêneros e espécies) não conforme às possibilidades objetivas de relação entre essas formas. O E. é como um conjunto de letras sem sentido ou um conjunto de sons sem harmonia (Sof, 263). Essa doutrina platô­ nica do E. é adaptada por Aristóteles aos prin­ cípios da sua filosofia. Aristóteles parte de uma definição do E. que repete a definição encon­ trada em O Sofista: 'O E. é a negação do que é ou a afirmação do que não é" (Met, IV, 7,1011 b 26). Mas "o que é" não é o mesmo para Aris­ tóteles e para Platão: para este, é a "possibilida­ de"; para Aristóteles, é a "substância" ou reali­ dade necessária. Aristóteles procura, portanto, definir a possibilidade do E. justamente em re­ lação à substância, neste caso em seu aspecto de essência necessária (Quod quid erat esse). Aristóteles reafirma a tese platônica de que o E. é possível só onde há "combinação", "síntese" de elementos diferentes. Onde há intelecçâo de indivisíveis não há possibilidade de E.; este sempre se verifica na síntese (òu, o que dá na mesma, numa divisão), e o princípio que reali­ za essa síntese é o intelecto (De an, III, 6, 430 b 2). Ora, nessas sínteses o intelecto está na verdade "se enuncia a essência segundo a essência substancial", mas não está na verdade

ERRO

"se enuncia uma coisa qualquer segundo uma coisa qualquer". Com efeito, para o intelecto a essência substancial ou necessária é o que o branco é para o olho: assim como ninguém se engana ao perceber o branco, mas alguém se pode enganar ao achar que o branco percebido é um homem, ninguém se pode enganar ao pensar o homem "segundo a sua essência ne­ cessária", ou seja, como "animal racional", mas alguém se pode enganar afirmando que "este é um homem" ou que "este homem é músico", ou seja, realizando sínteses ou divisões que não são guiadas pela essência necessária do objeto (Ibid, 430 b 26 ss.)- Com isso, Aristóte­ les restringe a possibilidade do E. à esfera das intelecções que não se referem à estrutura substancial do ser, já que essa estrutura é apreen­ dida nos seus princípios com um ato análogo à percepção das qualidades corpóreas, ato que, como "intelecção do indivisível", subtrai-se à possibilidade de erro. Em outros termos, a es­ trutura necessária do ser exclui a possibilidade de E. no que diz respeito ao pensamento do ser. O E. fica então circunscrito à esfera das afirmações acidentais, ou seja, que não têm lu­ gar na ciência. Mas, na realidade, mesmo na esfera das afirmações acidentais é difícil enten­ der, do ponto de vista aristotélico, a possibi­ lidade do E., visto que a necessidade da ciência silogística, constituindo a medida e o controle também da parte do conhecimento que não tem tal necessidade, elimina, mesmo dessa par­ te, a possibilidade de erro. Na verdade, a partir de Aristóteles, o problema que a filosofia deve enfrentar não é o da verdade, mas o do E., no sentido de que os princípios a que habitual­ mente a filosofia recorre implicam que o ho­ mem está "necessariamente" em verdade e ex­ cluem, assim, a possibilidade de erro. Portanto, as soluções mais comuns do problema do E. são as seguintes: Ia) o E. não existe; 23) o E. devese a uma força que intervém para perturbar o funcionamento normal do intelecto, precisa­ mente A) na vontade ou B) na sensibilidade. 1- Ambas essas soluções do problema do E. estão em S. Agostinho, mas a primeira acaba predominando. Para S. Agostinho o E. consiste "em julgar e acatar como supremo o que, de per si, é ínfimo" (De vera rei, 21), ou seja, em afastar-se "da ordem estabelecida por Deus, apesar de iludir-se achando que a conserva intacta" (Ibid, 20). O E. é, portanto, devido à "vontade maléfica", ou seja, ao propósito deli­ berado de prescindir da ordem divina do mun­

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do e da hierarquia dos valores que ela implica. Mas qual é a causa dessa vontade maléfica e como ela é possível na ordem divina do mun­ do? S. Agostinho nega que possa tratar-se de uma causa positiva e eficiente; trata-se de uma causa defeituosa ou deficiente. E querer encon­ trar a causa dessas defecções seria como que­ rer ver as trevas ou ouvir o silêncio. "As coisas que ficam sendo conhecidas não em sua forma positiva, mas como privação de algo, são de algum modo apreendidas, por assim dizer, exa­ tamente ao não serem conhecidas, tanto que, se as conhecêssemos, não as ficaríamos conhe­ cendo. Quando a acuidade da visão sensível percorre as espécies corpóreas, não vê trevas em lugar algum, a não ser no lugar onde começa a não ver as coisas. Assim, não cabe a nenhum outro sentido perceber o silêncio; a não ser ao ouvido, que, todavia, adverte-o quando não ouve nada. Assim, nossa mente vê com o inte­ lecto as espécies inteligíveis, mas onde elas se acham em forma negativa conhece-as não as conhecendo" (De civ. Dei, XII, 7). Assim, para S. Agostinho E. é o conhecimento de um não-conhecimento: como ouvir o silêncio. Em sentido próprio e rigoroso, é um não conheci­ mento e um não ser: ele não existe. Essa redu­ ção do E. ao nada é característica de grande parte das doutrinas filosóficas tradicionais. Spinoza expressa-o com a costumeira nitidez: "A falsidade consiste na privação de consciência que está implícita nas idéias inadequadas, fa­ lhas ou confusas". P. ex., os homens erram ao se acreditarem livres, porque estão cônscios de suas ações, mas desconhecem as causas que as determinam. Assim também erram quando acham que o Sol está próximo, porque são ativados pela ação do Sol, mas ignoram sua dis­ tância real (Et, II, 35, scol.). O E., portanto, não consiste na simples imaginação (que é a facul­ dade das idéias inadequadas e confusas), mas na falta de conhecimento, na falta da idéia que excluiria a existência dos objetos que a imagi­ nação crê presentes (Ibid, II, 17, scol.). Com outra terminologia, tradicional, Leibniz afirma­ va a mesma coisa, reconhecendo como causa do E. uma causa "deficiente", ou seja, a limítação ou a imperfeição da natureza humana (Théod., I, § 20). Para o idealismo romântico, o E. é o "finito", o "negativo", o "acidental": o que se destina a ser eliminado e a encontrar sua "verdade" no Infinito, no Necessário e no Posi­ tivo da Autoconsciência absoluta. Assim, a ri­ gor, não existe erro. Como dizia Gentile, expri­

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mindo bem a posição do idealismo romântico, "o E. é o superado: aquilo que, em outros ter­ mos, está em face do nosso conceito, como seu não ser. Portanto, assim como a dor, não é uma realidade que se oponha à realidade es­ pírito (Conceptus Suí), mas é a própria realida­ de aquém de sua realização, num momento ideal" (Teoria do espírito, cap. 16, § 8). Essa é a solução tipicamente dialética (no sentido hegeliano do termo) do problema do E.: o E. é o mo­ mento negativo, destinado a ser "superado" ou a "ser transformado em verdade" pelo momento positivo e concreto: como E., não existe. 23 A segunda solução típica do problema do E. consiste em atribuí-lo a uma faculdade dife­ rente do intelecto, mas capaz de agir sobre ele e de desviá-lo do seu funcionamento correto. A) A primeira alternativa nesse sentido é a que o atribui à vontade. Já se viu que S. Agostinho começou julgando o E. como o afas­ tamento voluntário da ordem das coisas estabe­ lecida por Deus. A idéia do caráter voluntário do E. acaba prevalecendo na última fase da Escolástica: é defendida por Duns Scot e Ockham. De fato, ambos entendem a vontade como a faculdade de executar atos opostos porquanto é absolutamente livre. A ela se deve o assentimento dado a uma proposição e, por­ tanto, também a faculdade de dar assentimento a proposições falsas ou de dissentir de proposi­ ções verdadeiras (OCKHAM, In Sent., II, q. 25, L). Para Ockham, o assentimento da vontade deve necessariamente seguir-se à evidência in­ tuitiva dos primeiros princípios da demonstra­ ção, ou das verdades empíricas ou conclusões das demonstrações; por outro lado, pode se dar assentimento ao que é desprovido de qual­ quer evidência (Jbid, II, q. 25, Y); nesses casos, determina-se a possibilidade de erro. Essa dou­ trina foi substancialmente reproduzida por Descartes, em sua tese de que "a vontade é maior que o intelecto, podendo, pois, dar as­ sentimento ao que não tem clareza e distinção suficientes para o intelecto. A vontade", diz Descartes, "pode parecer de certo modo infini­ ta porque nada percebemos que possa ser o objeto de outra vontade, nem mesmo da vonta­ de imensa de Deus, até a qual a nossa não pode estender-se. Essa é a causa de ordinaria­ mente levarmos a vontade além daquilo que conhecemos clara e distintamente; e quando assim abusamos dela não é de surpreender que aconteça enganar-nos" (Princ. phil, I, 35). De modo análogo, Locke dizia que "o E. não é

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uma falha do nosso conhecimento, mas um en­ gano do nosso juízo, que dá assentimento ao que não é verdadeiro". E enunciava quatro ra­ zões do assentimento errado: ls falta de provas; 2S falta de capacidade de usá-las; 3a falta de vontade de vê-las; 4Q cálculo errado de proba­ bilidades (Ensaio, IV, 20, § 1). Rosmini também atribui o E. à vontade, considerando-o decor­ rente da ausência do elemento ideal (Idéia do ser) ou do elemento real (sentimento ou sensa­ ção) da percepção intelectiva (Novo ensaio, §§ 1356-59). Mas, dada a formulação geral da teoria de Rosmini, que identifica a idéia do ser com a "forma da razão", a primeira espécie de E. pareceria implicar o poder da vontade de dissociar a razão da "forma". Finalmente, o pró­ prio Croce aceitou essa teoria do E.: "Quem comete um erro não tem nenhum poder de distorcer, desvirtuar ou macular a verdade, que é seu próprio pensamento, o pensamen­ to que opera nele como em todos; aliás, assim que toca o pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o poder pratico de passar do pensamento ao fazer; e o fazer, e não o pensar, é abrir a boca e emitir sons aos quais não corresponda o pensamento, ou, o que dá no mesmo, um pensamento que tenha va­ lor, precisão, coerência, verdade" (Lógica, 4ed., 1920, pp. 254-55). B) A outra alternativa dessa solução é que o E. se deve à sensibilidade ou, pelo menos, à ação da sensibilidade do intelecto. Essa é a doutrina de Kant a respeito. Um juízo errôneo — e o E., assim como a verdade, só pode exis­ tir no juízo — é o que confunde a aparência da verdade com a verdade. Essa confusão não seria possível se o homem não tivesse outra faculdade além do intelecto. Mas como o homem, além do intelecto, tem sensibilidade, não pode evitar a influência oculta da sensibili­ dade sobre o intelecto, e dessa influência nasce a possibilidade de confundir o subjetivo com o objetivo, ou seja, a aparência da realidade com a própria realidade (Logik, Einleitung, VII). Essa teoria kantiana retorna em alguns filósofos con­ temporâneos. P. ex., para C. I. Lewis o E. é devido à combinação dos dados mediados pela experiência com as suas interpretações ou integrações habituais, de natureza inte­ lectual (Analysis ofKnowledge and Valuation, p. 26). Em geral, a teoria do E. não é alvo de muita atenção por parte da filosofia contemporânea. Algumas correntes não elaboram uma teoria

ESCÂNDALO

do E. pelo mesmo motivo pelo qual Hegel não a elaborou: porque não admitem a possibilidade do erro. Para outras correntes, porém, o motivo é diferente: elas reconheceram a intrínseca fali­ bilidade (v.) dos procedimentos cognoscitivos de que o homem dispõe e, portanto, a possibi­ lidade do E. não se distingue da possibilidade do conhecimento. Em certo sentido, esse ponto de vista significa um retorno à teoria platônica do E. ou, pelo menos, ao seu pressuposto de que as determinações do conhecimento, assim como as do ser, não devem ser consideradas necessidades, mas possibilidades (v.). ESCÂNDALO (in. Scandal; fr. Scandale, ai. Skandal; it. Scandaló). Kierkegaard transfor­ mou o E. numa categoria religiosa, definindo-o como "o pecado de desesperar da remissão dos pecados". Para o intelecto humano, o per­ dão do pecado é a mais impossível de todas as coisas: desse ponto de vista, a religião é a "pos­ sibilidade do escândalo" {Die Krankheit zum Tode, II, B, B; trad. it., Fabro, p. 347; cf. Diário, XJA, 133). ESCATOLOGIA (in. Eschatology, fr. Eschatologie; Eschatologie, it. Escatologia). Termo moderno que indica a parte da teologia que considera as fases "finais" ou "extremas" da vida humana ou do mundo: morte, juízo uni­ versal, pena ou castigo extraterrenos e fim do mundo. Os filósofos usam às vezes esse termo para indicar a consideração dos estágios finais do mundo ou do gênero humano (cf. RENOUVIER, Nouvelle monadologie, 1899, VII, 139-40). ESCOCESA, ESCOLA (in. Scottish school; fr. Ecoleécossaise, ai. SchottischeScbule, it. Scuola scozzesè). Grupo de filósofos escoceses que compreende Thomas Reid (1710-96), Dugald Stewart (1753-1828), Thomas Brown (1778­ 1820), William Hamilton (1788-1856) e Henri Mansel (1820-71), cujas doutrinas fundamentais são: 1- recurso ao senso comum para garantir algumas verdades teóricas e morais considera­ das fundamentais para o homem (v. SENSO COMUM); 2- realismo natural, teoria de que o objeto imediato do conhecimento não é a idéia (como se julgara desde Descartes até Hume), mas a coisa externa (v. REALISMO). ESCOLASTICA (in. Scholasticism, fr. Scolastique, ai. Scholastik, it. Scolasticd). 1. Em sentido próprio, a filosofia cristã da Idade Mé­ dia. Nos primeiros séculos da Idade Média, era chamado de scholasticus o professor de artes liberais e, depois, o docente de filosofia ou teologia que lecionava primeiramente na esco­

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ESCOLASTICA

la do convento ou da catedral, depois na Univer­ sidade. Portanto, literalmente, E. significa filo­ sofia da escola. Como as formas de ensino me­ dieval eram duas (Jectio, que consistia no comentário de um texto, e disputatio, que consistia no exame de um problema através da discussão dos argumentos favoráveis e contrários), na E. a atividade literária assumiu predominantemente a forma de Comentários ou de coletâneas de questões (v. QUESTÃO). O problema fundamental da E. é levar o ho­ mem a compreender a verdade revelada. A E. é o exercício da atividade racional (ou, na práti­ ca, o uso de alguma filosofia determinada, neoplatônica ou aristotélica) com vistas ao acesso à verdade religiosa, à sua demonstra­ ção ou ao seu esclarecimento nos limites em que isso é possível, aprestando um arsenal defensivo contra a incredulidade e as heresias. A E., portanto, não é uma filosofia autônoma, como, p. ex., a filosofia grega: seu dado ou sua limitação é o ensinamento religioso, o dogma. Para exercer essa tarefa, não confia apenas nas forças da razão, mas chama em seu socorro a tradição religiosa ou filosófica, recorrendo às chamadas auctoritates. Auctoritas é a decisão de um concilio, uma máxima bíblica, a sententia de um padre da Igreja ou mesmo de um gran­ de filósofo pagão, árabe ou judaico. O recurso à autoridade é a manifestação típica do caráter comum e supra-individual da investigação E., em que cada pensador quer sentir-se apoiado pela responsabilidade coletiva da tradição ecle­ siástica. A E. medieval costuma ser distinguida em três grandes períodos: 1B a alta E., que vai do séc. IX ao fim do séc. XII, caracterizada pela confiança na harmonia intrínseca e substancial entre fé e razão e na coincidência de seus re­ sultados; 2a o florescimento da E., que vai de 1200 aos primeiros anos do séc. XTV, época dos grandes sistemas, em que a harmonia entre fé e razão é considerada parcial, apesar de não se considerar possível a oposição entre ambas; 39 dissolução da E., que vai dos primeiros decê­ nios do séc. XIV até o Renascimento, período em que o tema básico é a oposição entre fé e razão. Esse conceito da E. foi extraído da obra fun­ damental de M. Grabman, Die Geschicbte der scholastichen Methode (1909, reimpr. 1956). Não faltaram tentativas de considerar a E. como uma síntese doutrinária completa, na qual confluíam e fundiam-se contribuições individuais

ESCOLHA

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(p. ex., por parte de De Wulf, Histoire de Ia philosophie médíévale, 1900, e ed. seguintes), mas essas tentativas não têm base histórica e reduzem-se a alijar da E. grande número de autores e a estabelecer concordâncias e uniformidades fictícias entre os outros (cf. Abbagnano, Storia dellafil, 2a ed., 1958, 1, § 171, e a bibliografia correspondente). 2. Por extensão, pode-se chamar de E. qual­ quer filosofia que assuma a tarefa de ilustrar e defender racionalmente determinada tradição ou revelação religiosa. Para isso, via de regra, essa E. lança mão de uma filosofia já estabele­ cida e famosa; de tal sorte que, nesse sentido, a E. é a utilização de determinada filosofia para a defesa e a ilustração de determinada tradição religiosa (v. FILOSOFIA). Nesse sentido genérico são muitas as E., tanto na Antigüidade quanto no mundo moderno: na Antigüidade o neoplatonismo, o neopitagorismo, etc.; na Idade Média, a filosofia dos árabes e dos judeus; no mundo moderno, são escolásticas as filo­ sofias de Malebranche, de Berkeley, da di­ reita hegeliana, de Rosmini, de muitos espi­ ritualistas, etc. ESCOLHA (gr. ocipemç, 7ipoocípemç; lat. Electio; in. Choice, fr. Choix, ai. Wahl; it. Sceltá). Procedimento pelo qual determinada possibili­ dade é assumida, adotada, decidida ou realizada de um modo qualquer, preferentemente a ou­ tras. O conceito de E. está estreitamente vin­ culado ao de possibilidade (v.), de tal modo que não só não há E. onde não há possibilidade (vis­ to ser justamente a possibilidade o que se ofere­ ce à E.), como tampouco há possibilidade onde não há E., já que a antecipação, a projeção ou a simples previsão das possibilidades são esco­ lhas. Por outro lado, o conceito de E. é uma das determinações fundamentais do conceito de li­ berdade(v.). O conceito de E. é constante em Platão, que, usando o mito de Er, mostra que o destino do homem depende da E. que ele faz do modelo de vida: "Não havia nada de necessariamente preestabelecido para a alma porque cada uma devia mudar segundo a E. que fizesse" (Rep, X, 618 b). Mas foi Aristóteles quem fez a primeira análise exaustiva da E., distinguindo-a: ls do desejo, que é comum também aos seres irra­ cionais, ao passo que a E. não é (Et. nic, III, 2, 1111 b 3); 2S da vontade, porque também se podem querer as coisas impossíveis (p. ex., a imortalidade), mas não escolher (Ibid, 1111b 19); 3S da opinião, que também pode referir-se

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às coisas impossíveis (p. ex., as eternas) que não dependem de nós (Ibid, 1111 b 30). A essas determinações negativas Aristóteles acrescentou a determinação positiva de que a E. "é sempre acompanhada por razão e pensa­ mento" (Ibid., 1112 a 15). A essa determinação pode-se acrescentar outra, fundamental, ex­ traída das determinações negativas: a E. diz respeito só às coisas possíveis. Essa última de­ terminação, que é a fundamental, era explicita­ mente ressaltada por S. Tomás, que repetia substancialmente a análise aristotélica (S. Th., II, 1, q. 13, a. 5). A noção de E. sempre foi amplamente utili­ zada pelos filósofos, em especial na discussão do problema da liberdade (v.), mas não foi analisada com freqüência. A partir de Kierkegaard, a filosofia da existência enfatizou o valor da E. no que concerne à própria persona­ lidade do homem ou à sua existência, conside­ rando a E. sobretudo sob o ângulo da sua pró­ pria possibilidade, ou seja, como E. da escolha. Diz Kierkegaard: "A E. é decisiva para o con­ teúdo da personalidade: com a E. ela apro­ funda-se na coisa escolhida, mas se não esco­ lhe definha" (Werke, II, p. 1.48). Desse ponto de vista, a E. importante não é entre o bem e o mal, mas entre escolher e não escolher. "Com essa E., não escolho entre o bem e o mal, mas escolho o bem; mas, porquanto escolho o bem, escolho com isso a escolha entre o bem e o mal. A E. original está sempre presente em toda E. ulterior" (Ibid., II, p. 196). Esse conceito foi freqüentemente repetido no existencialismo contemporâneo. Segundo Heidegger, a E. autêntica é a E. do que já foi escolhido, a E. das possibilidades que já são do homem. "Repeti­ ção da E. significa escolhimento dessa E., opção por uma possibilidade que tem raiz no si-mesmo. Ao escolher a E., o ser-aí possibilita pela primeira vez o seu autêntico poder-ser" (Sein undZeit, § 54). Mas nesse sentido a "E. da E." é simplesmente a aceitação ou o reconheci­ mento daquilo que se é, renunciando-se a qualquer pretensão de mudança ou libertação. No mesmo sentido, Jaspers diz: "Não posso re­ começar e escolher entre ser eu mesmo e não ser eu mesmo, como se a liberdade fosse ape­ nas um instrumento. Mas, quando escolho, sou, e, se não sou, não escolho" (Phil, II, p. 182). Quer dizer: o que posso escolher é apenas meu eu-mesmo: o eu-mesmo que é idêntico à situação, ao lugar áz realidade em que me en­ contro (Ibid, I, p. 245). A E. da E. na verdade é

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a E. do que já se é e não se pode não ser. Esse conceito de E. da E. acaba eliminando a pró­ pria E., que, como Aristóteles reconhecera, es­ tá sempre ligada ao possível. Por outro lado, Sartre insistiu na perfeita arbitrariedade da E., identificou E. e consciência e viu, por isso, um ato de E. em todo ato de consciência (Z 'être et le néant, pp. 539 ss.). Isso pode ser verdade, mas de certo modo é oportuno sair em busca de um sentido mais específico de E., segundo o qual nem todos os atos sejam escolhas. Esse sentido pode ser precisamente o de E. da E., não como E. do que já foi escolhido, mas como E. do que pode ainda ser escolhido. Nesse sen­ tido, a "E. possível" é não só a E. que se ofere­ ce como possibilidade, mas a E. que, uma vez feita, afigura-se ainda possível. Entendido nes­ se sentido, o conceito de E. torna-se suscetível de tratamento objetivo e capaz de orientar a análise das técnicas de E. Desse ponto de vista, é indispensável determinar, em primeiro lugar o contexto das E., ou seja, o campo depossibilidadesiw) objetivas em que a E. deve atuar. P. ex., para o homem que sofreu uma afronta, as opções de vingança pela força ou pela violên­ cia são diferentes das que lhe são oferecidas pelo sistema jurídico em que vive. Além disso, sempre com referência a um contexto determi­ nado, pode-se fazer a distinção entre grau de E., que é o número de possibilidades ofereci­ das por determinado contexto, e extensão da E., que é o número de indivíduos que têm acesso a determinada E. em dado contexto. Entre extensão e grau pode haver todas as rela­ ções possíveis, pois o aumento no grau pode influir na extensão e vice-versa. O critério da repetibilidade das E., com base nas considera­ ções acima, especialmente com base nas nor­ mas técnicas do contexto, é adotado por todas as disciplinas (conquanto implicitamente): p. ex., um axioma matemático ou lógico continua­ rá sendo admitido (ou seja, sua E. se repete) enquanto não levar a uma contradição; uma técnica científica ou produtiva continuará em uso (ou seja, será sempre escolhida) en­ quanto não der ensejo a inconvenientes ou não for encontrada outra melhor; e assim por diante. Hoje, em todas as ciências, especialmente na matemática, na lógica, na psicologia e na sociologia, é grande o uso da noção de E. Mas, como se disse, raramente ela é analisa­ da por essas ciências, que pressupõem seu significado corrente. Por outro lado, as análi­

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ESCOLHAS, AXIOMA DAS

ses feitas pelos filósofos nem sempre dão con­ ta dos caracteres fundamentais da E. Bergson, p. ex., considerou as alternativas diante das quais se encontra situada toda E. como falsas "espacializações" dos estados interiores de he­ sitação; portanto, concebeu a E. como algo que, "à maneira de um fruto maduro, separase dos estados consecutivos do eu" (Les données immédiates de Ia conscience, 1889, p. 134). Mas está claro que, se as alternativas são fictí­ cias, fictícia é a própria E. que vive só no possí­ vel, que é constituído por alternativas. Ca­ racterística mais autêntica da E. humana foi evidenciada por Dewey: "A E. não é uma pre­ ferência que emerge da indiferença: é a emer­ gência de uma preferência unificada a partir de um conjunto de preferências competitivas". Portanto, a E. racional é apenas aquela que unifica e harmoniza diferentes tendências con­ correntes {Human Nature and Conduct, 1929, p. 193). Assim, Dewey alija da E. o critério de racionalidade, pondo-se num plano em que é possível sugerir inúmeros critérios. Tem, contu­ do, o mérito de ter ressaltado a importância da E. e sua onipresença. "A operação de E.", disse ele, "é inevitável em qualquer empreendimento que exija a reflexão. Em si mesma, não é falsificadora. A ilusão reside no fato de que a sua presença é oculta, camuflada, negada. Um mé­ todo empírico descobre e põe a nu a operação de E., como faz com qualquer outro aconteci­ mento" (Experience and Nature, 1926, p. 35). ESCOLHAS, AXIOMA DAS (in. Axiom of choice, fr. Axiome des choix, ai. Auswahlprinzip, it. Assíoma delle scelte). Tem esse nome um princípio enunciado por Zermelo em 1904, se­ gundo o qual, dada uma classe K cujos mem­ bros são classes não vazias a, b, c,... existe uma função/que estabelece a correspondência en­ tre cada classe a, b, c, e um elemento e um só da classe fia), fib),fic)... Esse postulado, na forma de um axioma multiplicativo, foi reexposto por Russell da seguinte forma: dada uma classe K, cujos membros são classes não vazias, que não têm nenhum membro em comum, existe uma classe A, cujos membros são todos membros dos membros de K e que tem só um membro em comum com cada membro de K. Zermelo demonstrou que os dois axiomas são equivalentes. Os matemáticos utilizavam com freqüência uma assunção desse gênero, mas a sua enunciação explícita suscitou dúvidas e discussões, substancialmente quanto ao conceito de "existência" dos membros de um conjunto.

ESCOTISMO

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ESCRAVIDÃO

0 postulado de Zermelo, se aplicado aos con­ juntos infinitos, significa simplesmente que se pode falar da existência de um membro do conjunto, mesmo não apresentando uma regra precisa que permita construir ou reconhecer esse membro (cf. K. GÕDEL, The Consistency of tbe Axiom of Choice and of the Generalized Continuum Hypothesis with the Axíoms ofSet Theoty, 1940; L. GEYMONAT, Storia e filosofia deWanalisi infinitesimale, 1948). ESCOTISMO (in. Scotism- fr. Scotisme, ai. Scotísmus; it. Scotismó) Doutrina de J ohn Duns Scot (1266-1308) e de seus discípulos, que tem as características abaixo enumeradas. V Doutrina do caráter prático da ciência teológica: esta não conteria verdades teóricas, mas só regras para a conduta humana em vista da salvação eterna. 2a Afirmação da indemonstrabilidade de um número relevante de proposições filosóficas e teológicas. Duns Scot acreditava ser impossível demonstrar, p. ex., todos os atributos de Deus ou a imortalidade da alma. Na obra a ele atri­ buída (cuja autenticidade é duvidosa), Theoremata, numerosas outras proposições teológicas são declaradas indemonstráveis. 3- Doutrina da univocidadedo ser, em opo­ sição ao tomismo: a metafísica é a ciência su­ prema, que tem por objeto o ser em geral, tanto o das criaturas quanto o de Deus. 4a Doutrina da individuação: a individuaçâo é a última determinação da forma, da matéria e do seu composto, ou seja, é a haecceitas (v. INDIVIDUAÇÂO). Essa doutrina foi interpretada pela escola de Scot em oposição à tomista, se­ gundo a qual a individuação depende da ma­ téria signata, no sentido de que a individuação depende das formas, mais precisamente da superposição de um número indefinido de for­ mas no mesmo composto. 5- Voluntarismo: doutrina do primado da vontade, que Duns Scot compartilha com Hen­ rique de Gand (v. VOLUNTARISMO). ESCRAVIDÃO (gr. õouXeía; lat. Servitus; in. Slavert; fr. Esdavage, ai. Sklaverei; it. Schiavitü). Entre os filósofos, a justificação da E. sem­ pre teve a mesma forma: a E. é útil não só ao senhor como também ao escravo. Por esse mo­ tivo, Aristóteles considera a E. uma das divisões naturais da sociedade, semelhante à divisão en­ tre homem e mulher: como há "quem é natu­ ralmente disposto ao comando" e "quem é na­ turalmente disposto a ser mandado", é graças à união que "ambos podem sobreviver". Portan­

to, A E. é "vantajosa tanto para o senhor quanto para o escravo" (Pol., I, 2, 1552 a). Citando Aristóteles, S. Tomás dizia: "Que um homem seja escravo e não outro é coisa que, de um ponto de vista absoluto, não tem razão natural, mas só razão de utilidade, porquanto é útil ao escravo ser governado por um homem mais prudente, e é útil a este último ser ajudado pelo escravo" (S. Th., II, 2, q. 57, a. 3, ad 2Q). O modo como Hegel comenta a figura servosenhor em Fenomenología do espírito obedece ao mesmo espírito de justificação. O senhor é a autoconsciência do escravo e o escravo é o ins­ trumento que elabora os objetos, a fim de que o senhor os usufrua e, desse modo, ele próprio participe, por mediação, da fruição do objeto, assim como, por mediação, o senhor participa da produção dele (Phãnomen. des Geistes, I. IV, A; trad. it., pp. 168 ss.). Por outro lado, o cristianismo tornara insig­ nificante a E. e, em um certo sentido, a sua condenação. Uma vez que tanto o judeu quan­ to o grego, tanto o servo quanto o homem livre, tanto o homem quanto a mulher "fazem uma só coisa em Jesus Cristo" (GaL, III, 28), não é importante ser escravo ou livre, mas ser "liberto do Senhor" (/ Cor, VII, 21-22). No mundo antigo, só os estóicos condenaram sem reservas a E.: "Só o sábio é livre, os maus são escravos: já que a liberdade não é senão auto­ determinação e a E. é a ausência de autodeter­ minação. Há, então, outra E., que consiste na sujeição ou na compra e na sujeição, à qual se contrapõe a senhoria, que é também maléfica" (DIOG. L, VII, 121). Ao lado da negação da E. como instituição social, os estóicos fizeram pre­ valecer o conceito da E. como estado ou situa­ ção moral. Dizia Sêneca: '"São escravos'. Sim, mas também homens. 'São escravos'. Sim, mas também companheiros de habitação. 'São escravos'. Sim, mas também amigos humildes. 'São escravos'. Sim, mas também companheiros de escravidão, se refletires que uns e outros es­ tão sujeitos aos caprichos da sorte" (Ep., 47): conceitos que se repetiram de várias formas na literatura romana, embora nada tivessem de correspondente no direito romano codificado, para o qual o escravo era a "coisa" do patrão. No mundo moderno, foi a filosofia iluminista que mostrou a noção de E. como absurda e repugnante: sua defesa da noção de igualda­ de significa a condenação da E. em todas as suas formas e graus (cf., p. ex., VOLTAIRE, Dictionnaíre Philosophique, 1764, artigo "Égalité").

ESCRÚPULO

ESCRÚPULO (in. Scruple, fr. Scrupule, ai. Skrupel; it. Scrupoló). Hesitação em agir, por incerteza na avaliação da situação, por não se saber se a ação projetada é correta ou não. Esse é o significado dessa palavra em frases como "Ter E." ou "Agir sem E.". Escrupulosida.de é a atitude de quem proce­ de com E., a fim de executar melhor um traba­ lho ou de desenvolver com mais precisão uma atividade qualquer. ESFERA (gr. ccpaípa, otpalpoç; lat. Gobus; in. Globe, fr. Globe, ai. Sphare, it. Sfera). Segun­ do os antigos, a figura perfeita, que compreen­ de em si todas as outras figuras e é a imagem da homogeneidade e da perfeição (cf. PLATÃO, Tim, 33 b). Parmênides comparava o ser a uma "E. perfeitamente redonda", porquanto ele é definido por todos os aspectos, sendo igual a si mesmo, de tal modo que em nenhum de seus aspectos é maior ou menor que ele mes­ mo (Fr. 8, 41, Diels). Empédocles chamava de esfero a fase perfeita do ser, em que predomina a amizade: "Mas em todos os aspectos era igual e inteiramente infinito, o esfero redondo que goza da sua solidão envolvente" (Fr. 28, Diels). No Renascimento, Nicolau de Cusa retomou essas especulações, insistindo na perfeição da figura circular (De docta ignor, I, 21) e atribuindo à alma a forma esférica (De ludo globi, I). ESFORÇO (in. Effort; fr. Effort; ai. Streben; it. Sforzo). Atividade tendente a vencer um obstáculo ou uma resistência qualquer. Essa noção foi introduzida em filosofia por Fichte, que a utilizou para mostrar que a realidade de­ riva do Eu: "A atividade pura do eu, reentrando em si mesma, em relação a um objeto possível é um E.; aliás, um E. infinito. Esse E. infinito é ao infinito a possibilidade de todo objeto: sem E., não há objeto" (Wissenschaftslehre, 1794, § 5, II; trad. it., pp. 213-14). Maine de Biran valeu-se dessa noção e identificou com a experiência imediata do E. tanto o princípio metafísico de causalidade quanto a liberdade do eu. Toma­ do na origem, E. é liberdade, ou seja, o eu como liberdade; em face da resistência que se lhe opõe, é necessidade (Fondements de lapsychologie, em CEuvres, ed. Naville, II, p. 284). Pode-se considerar esse conceito como uma continuação do conceito mais antigo de conação (v.). ESOTÉRICO, EXOTÉRICO (gr èacote piKÓÇ; èÇcrxepiKOç; in. Esoteric, exoteric;fr. Ésotérique, êxotérique, ai. Esoterisch, exoterisch; it.

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ESPAÇO

Esotérico, éssoterico). O primeiro destes termos encontra-se nos últimos escritores gregos para indicar doutrinas ou ensinamentos reservados aos discípulos de uma escola, que não podiam ser comunicados a estranhos (GALENO, 5, 513; JÂMBLICO, Comm. math, 18). O segundo termo é muitas vezes empregado por Aristóteles (Pol, 1278 b 31; Met, 1076 a 28; Et. nic, 1102 a 26, etc.) para designar suas obras populares, desti­ nadas ao público (em forma de diálogos, dos quais só temos fragmentos), em contraposição aos escritos acroamãticos, destinados aos ouvintes, que eram os apontamentos das li­ ções que chegaram até nós (v. ACROAMÁTICO). O adjetivo esotérico é usado na linguagem comum para designar obras que tratam de ciências ocultas, como magia, astrologia, etc. ESPAÇO (gr. xiópoc, tórcoç; lat. Spatium; in. Space, fr. Espace, ai. Raum; it. Spazió). A no­ ção de E. deu origem a três problemas diferen­ tes, ou melhor, a três ordens de problemas: Ia a respeito da natureza do E.; 2a a respeito da realidade do E.; 3a a respeito da estrutura mé­ trica do E. A resposta a este último problema só pode ser uma geometria, e as diversas respos­ tas a ele dadas constituem as diferentes geometrias. Para tais respostas, cf. GEOMETRIA. Ia O primeiro problema concerne ao verda­ deiro conceito de E. e é o problema da nature­ za da exterioridade em geral, ou seja, daquilo que torna possível a relação extrínseca entre os objetos. Einstein, no prefácio a um livro históri­ co sobre o conceito de E. (MAX JAMMER, Concepts of Space, 1954), distinguiu duas teorias fundamentais de E.: a) E. como qualidade posicionai dos objetos materiais no mundo; b) E. como continente de todos os objetos mate­ riais. A esses dois conceitos pode-se acrescen­ tar outro, fundado pelo próprio Einstein: c) E. como campo. a) A primeira concepção é de E. como lugar (v.), como posição de um corpo entre outros corpos. Nesse sentido, o E. é definido por Aris­ tóteles como "o limite imóvel que abraça um corpo" (Fís, IV, 4, 212 a 20), definição que Aristóteles reconhece idêntica ao conceito platônico que identificava E. e matéria (Tim., 52 b, 51 a). Segundo esse conceito, não haverá E. onde não houver objeto material; por isso, a tese principal dessa teoria do E. é a inexistência do vazio (cf. ARISTÓTELES, FÍS, IV, 8, 214 b 11). Essa é a teoria que prevalece na Antigüi­ dade e é aceita durante toda a Idade Média até mesmo pelos adversários de Aristóteles

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(cf. OCKHAM, Summulae physicorum, IV, 20; Quodl., I, 4). No Renascimento era defendida por Campanella (Desensu rerum, I, 12), sendo aceita e reexposta por Descartes nos termos da sua geometria. Entre lugar e E. Descartes estabelecia uma diferença apenas nominal, por­ quanto "o lugar assinala mais expressamente a situação do que a grandeza ou a figura e pen­ samos mais nestas quando falamos do E.". Mas as duas coisas são idênticas: "Se dizemos que uma coisa está em tal lugar, entendemos so­ mente que está situada de tal modo em relação a outras coisas; mas se acrescentamos que ocu­ pa tal E. ou tal lugar, entendemos ademais que ela é de tal grandeza e de tal forma que pode preenchê-lo exatamente" (Princ. phil, II, 14). Descartes negava, portanto, a existência do va­ zio (Ibid., II, 16); assim como a negava Spi­ noza, que compartilhava da mesma concep­ ção de E. (Et, I, 15, scol.). Leibniz, por sua vez, defendia essa concepção contra Newton e seus seguidores. "Se o E. é uma propriedade ou um atributo, deve ser a propriedade de alguma substância. O E. vazio e limitado, que seus de­ fensores supõem entre os dois corpos, seria propriedade ou afecção de que substância?" (IV Lettre à Clarke, 8; Op, ed. Erdmann, p. 756). Mas a velha concepção encontrava em Leibniz expressão nova e feliz, em termos de noção de ordem, que deveria tornar-se clássica: "Considero o E. (opondo-se a Newton e seus seguidores) como algo puramente relativo, do mesmo modo que o tempo, ou seja, como uma ordem de coexistências, assim como o tempo é uma ordem das sucessões. Isso porque o E. caracteriza, em termos de possibilidade, uma ordem de coisas que existem ao mesmo tem­ po, porquanto existem juntamente, sem entrar em seus modos de existir" (IIPLettre ã Clarke, 4; Op, ed. Erdmann, p. 752). A definição de Leibniz foi retomada por Wolff (Ont., § 389) e por Baumgarten (Mel, § 239). O próprio Kant defende-a nas primeiras obras e só resolve abandoná-la em 1768, em Sobre o primeiro fundamento da distinção das regiões no espa­ ço. Nessa obra ele declara insuficiente a con­ cepção do E. como ordem de coexistências: "As posições das partes do E. em relação entre si pressupõem a região segundo a qual elas es­ tão ordenadas nessa relação; entendida do modo mais abstrato, a região não consiste na relação que uma coisa tem com outra no E. (o que, propriamente, constitui o conceito de po­ sição), mas na relação do sistema dessas posi­

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ções com o E. cósmico absoluto". Todavia, a concepção posicionai do E. nunca é de todo abandonada pelo pensamento filosófico poste­ rior: parece pressuposta nas teorias idealistas do E. (v. mais abaixo), pelo que se pode extra­ ir do caráter genérico e confuso dos conceitos empregados, e foi defendida com energia e lucidez por Heidegger. Este afirmou que "nem o E. está no sujeito nem o mundo está ntí E.", mas que o próprio sujeito, ou seja, a realidade humana, o ser-aí, é espacial em sua natureza. E é espacial porque, como ser-no-mundo, em sua relação com as coisas, é dominado pela proximidade ou pela distância das coisas utili­ záveis, por um conjunto de relações possíveis que "a intuição formal" do E. só faz evidenciar nas várias disciplinas geométricas (Sein und Zeit, §§ 23-24). tí) A segunda concepção de E. considera-o como o recipiente que contém os objetos mate­ riais. Essa concepção nasceu com o atomismo antigo, e sua tese fundamental é a existência do E. vazio e de sua infinidade. Demócrito já expressara essas idéias; afirmava que os áto­ mos se movem no E. vazio e que esse E. é infi­ nito (Fr, 38-40, Diels). Epicuro herdou essa concepção (Carta a Heródoto; cf. Dióg. L., X, 67), que era defendida por Lucrécio Caro (De rer. nat., I, pp. 950 ss.). A mesma concepção de E. era compartilhada pelos estóicos, em par­ ticular por Zenão (DIÓG. L, VII, 140). A Obliterada durante muito tempo pela con­ cepção aristotélica, essa doutrina volta a apre­ sentar-se no Renascimento. Telésio afirma que o E. deve poder ser receptáculo de qualquer coisa, de tal modo que, estejam as coisas den­ tro dele ou distantes dele, ele permaneça idên­ tico e acolha prontamente todas as coisas que se sucedem nele, sendo ao mesmo tempo tão grande quanto as coisas que nele acham lugar. 0 E., portanto, é infinito e incorpóreo: a exis­ tência do vazio é um fato de experiência (De rer. nat, I, 25). A infinidade do E. era definida por Giordano Bruno no mesmo sentido (De 1 'infinito, universo e mondi, I). Essa concepção de E. prevaleceu na ciência graças a Newton, que dizia: "O E. absoluto, por sua própria natureza, sem relação com algo ex­ terior, é sempre semelhante e imóvel. O E. relativo é a dimensão móvel ou a medida do E. absoluto; nossos sentidos o determinam por sua posição em relação aos corpos, sendo mui­ tas vezes confundido com o E. imóvel; essa é a dimensão de um subterrâneo, de um E. aéreo

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celeste, determinado pela sua posição em rela­ ção à terra. O E. absoluto e o relativo são idên­ ticos em forma e grandeza, mas não perma­ necem sempre numericamente os mesmos. Porque, p. ex., se a terra se move, um E. do nosso ar, que, relativamente à terra, continua o mesmo, em certo momento fará parte do E. absoluto que o ar atravessa e, em um ou­ tro, será uma outra parte do mesmo E." (Philosophiae naturalis principia mathematica, 1687, I, def. 8 scol.). A polêmica de Leibniz contra essa doutrina não conseguiu impedir seu êxito. Quase um século depois, Euler di­ zia: "Suponhamos que todos os corpos que se acham agora no meu quarto, inclusive o ar, sejam aniquilados pela onipotência divina. Obte­ remos então um E. que, apesar de ter o mes­ mo comprimento, a mesma largura e a mesma profundidade de antes, já não contém nenhum corpo. Portanto, aí está, no mínimo, a possibili­ dade de uma extensão que não é um corpo. Semelhante E. sem corpo é denominado vá­ cuo; o vácuo, portanto, é uma extensão sem corpo" (Lettres à uneprincesse d'Allemagne, 69, de 21-X-1760; trad. it., p. 228). Já se viu que a noção newtoniana de E. acabou prevalecen­ do (talvez por influência do próprio Euler) na doutrina de Kant. Também prevaleceu em toda a física do séc. XIX, apesar das freqüentes críti­ cas à parte referente ao E. absoluto. Clerk Maxwell afirmava que "todo o nosso conheci­ mento tanto do tempo quanto do E. é essen­ cialmente relativo" {Matter and Motion, Dover publ., p. 12). Mach falava da "monstruosidade conceituai do E. absoluto" (Die Mechanik in ihrer Entwicklung, 1883; T ed., 1921, p. X). Essa teoria do E. foi, porém, assumida ou pres­ suposta pela física até Einstein. c) A terceira concepção fundamental do E. é a de Einstein, que prevalece na física contem­ porânea. À primeira vista, principalmente ao se considerar só a relatividade restrita, a concep­ ção de Einstein constitui um retorno à teoria clássica do E. como posição ou lugar. Diz Einstein a respeito: "Nosso E. físico, do modo como o concebemos por meio dos objetos e de seu movimento, tem três dimensões e as posições são caracterizadas por três números. O instan­ te em que se verifica o evento é o quarto número. A cada evento correspondem quatro núme­ ros determinados e um grupo de quatro nú­ meros corresponde a um evento determinado. Portanto, o mundo dos eventos constitui um contínuo quadridimensionar (EINSTEIN-INFELD,

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The Evolution ofPhysics, III; trad. it., p. 217). Nesse conceito de E., a novidade parece ser cons­ tituída exclusivamente pelo acréscimo da coorde­ nada temporal às coordenadas com que Des­ cartes definia o E. Mas na relatividade geral, o afastamento dos conceitos tradicionais é mais radical. Aí não tem mais sentido falar de E. sem considerar o campo, que é usado para representar os fenômenos físicos. Tanto os fenômenos inerciais quanto os gravitacionais são explicados por mudanças na estrutura métrica do campo: "Em vez de um sistema de referência rígido e fixo (observou-se com jus­ teza), agora se tem a oportunidade de consta­ tar as variações na curvatura do E. ou, o que dá no mesmo, o uso de critérios não euclidianos de medida e de cálculo em diferentes partes do campo como um todo, segundo as varia­ ções na densidade da matéria e da energia. Portanto, sem levar em conta o campo, não há nada e, contrariando até mesmo a relatividade restrita, nem sequer o E. vazio. Nesse sentido, o campo, segundo Einstein, substitui como concepção unitária tanto a matéria (ponderável ou imponderável) quanto o E." (M. K. MUNITZ, Space, Time and Creation, 1957, VII, I; trad. it., pp. 112-13). Paradoxalmente, portanto, a con­ cepção mais atualizada do E. não é senão a renúncia implícita ao conceito de E. e o en­ caminhamento para o uso de outros concei­ tos, menos vinculados a abstrações tradicio­ nais e mais capazes de descrever os resultados da observação. 2Q O problema da realidade do E. deu lugar a três diferentes teses: a) da realidade física ou teológica do E.; b) da subjetividade do E.; c) de que o E. é indiferente ao problema da realida­ de ou irrealidade. á) A tese da realidade física ou teológica do E. é típica da filosofia antiga. Concebendo o E. como lugar ou posição ou como recipiente, os antigos acreditavam na realidade do E. e consi­ deravam-no um elemento ou uma condição do mundo ou mesmo um atributo de Deus. En­ quanto para Platão, para Aristóteles e para os epicuristas o E. é constituinte do mundo, para os neoplatônicos é Deus. Essa concepção é atribuída por Sexto Empírico aos peripatéticos: "Parece que, para os peripatéticos, o primeiro Deus é o lugar de todas as coisas. De fato, se­ gundo Aristóteles, o primeiro Deus é o limite dos céus... E uma vez que o limite dos céus é o lugar de todas as coisas dentro dos céus, Deus será o lugar de todas as coisas" (Adv. math.,

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II, 33). A filosofia judaico-alexandrina adota essa concepção, que reaparece nos livros da Cabala. No séc. XVII, foi aceita por Campanella (De sensu rerum, I, 12), por Henry More (Enchiridion metaphysicum, I, 8) e por Spinoza, que concebeu a extensão como um atri­ buto de Deus e afirmou, portanto, que "tudo o que é, é em Deus" (Et., I, 15). O próprio Newton falou do E. como sensorium, órgão me­ diante o qual Deus move as coisas (Opticks, III, q. 31; Dover publ., p. 403), conceito critica­ do longamente por Leibniz em suas cartas a Clarke, mas aceito no séc. XVIII por vários escritores, inclusive o próprio Clarke. Como última manifestação desse ponto de vista podese considerar a doutrina de S. Alexander, se­ gundo a qual o E. e o tempo são a substância do universo e de Deus, estando entre si na mesma relação em que o corpo está com o espírito. Desse ponto de vista, o E. seria o "cor­ po" da realidade, logo de Deus, que está no ápice da realidade (Space, Time and Deity, 1920). ti) A tese da subjetividade do E. foi apresen­ tada pela primeira vez por Hobbes, que definiu o E. como "a imagem da coisa existente en­ quanto existente, ou seja, não se considerando dela outro acidente que não seu aparecer fora do sujeito imaginante" (De corp, VII, § 2). A análise que Locke fez do E. como idéia com­ plexa de modo também tem como pressupos­ to a redução do E. a uma idéia (Ensaio, II, 13, 2); essa redução é ainda mais radical em Berkeley, pela sua oposição ao conceito newtoniano de E.: "A consideração filosófica do movimento não implica a existência de um E. absoluto dis­ tinto do que é percebido pelos sentidos e rela­ tivo aos corpos: está claro que tal coisa não pode existir sem o espírito, considerando os mesmos princípios que demonstram tese se­ melhante sobre todos os outros objetos dos sentidos" (Principies ofHuman Knowledge, I, 116). Com base no mesmo pressuposto, Hume afirmava que "a idéia de E. ou extensão não é mais que a idéia de pontos visíveis ou tangí­ veis, distribuídos em certa ordem", e que por­ tanto "não podemos fazer idéia do E. ou do vá­ cuo onde nada haja de visível ou tangível" {Treatise, I, II, 5, ed. Selby-Bigge, p. 53). O empirismo havia, assim, afirmado a subje­ tividade do E., reduzindo-o a um conceito empírico, a uma idéia derivada de sensações. Leibniz e seus seguidores, por outro lado, con­ siderando o E. como "a ordem das coexistên-

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cias", faziam a mesma redução subjetivista, mas chegavam a considerar o E. como um conceito discursivo, universal, que exprime as relações das coisas entre si. A essas duas formas de subjetividade, Kant contrapôs a subjetividade transcendental do E., segundo a qual ele é a condição da percepção sensível. "O E. é uma representação necessária apriori, que serve de fundamento para todas as intuiçôes externas. Nunca se pode formar a representação da inexistência do E., ainda que se possa perfeita­ mente pensar que no E. não há objeto algum. O E. deve ser, portanto, considerado como a condição da possibilidade dos fenômenos, e não como uma determinação dependente de­ les; é uma representação apriori que está ne­ cessariamente no fundamento dos fenômenos externos" (Crít. R. Pura, § 2). Nesse sentido, o E. não é nem conceito nem percepção, mas "intuição apriori" ou "intuição pura", ou seja, condição de qualquer intuição externa pos­ sível. Assim entendido, corresponde exata­ mente ao "E. absoluto" de Newton, que este entendia como sensorium de Deus; para Kant é como o sensorium do sujeito cognoscente, isto é, a condição absoluta da possibilidade dos objetos externos. Na filosofia moderna e contemporânea a tese da subjetividade do E. assume a forma do caráter aparente ou ilusório do E. Idealismo e espiritualismo insistem nessa tese. Hegel afir­ mava que "o E. é mera forma, uma abstração, uma abstração da exterioridade imediata" (Ene, § 254): o que, todavia, não o impedia de procurar uma demonstração racional da neces­ sidade das três dimensões do E. (Ibíd, § 255). O idealismo de inspiração hegeliana considera o E. simples, aparência (cf. BRADLEY, Appearance and Realíty, 1893; GKNTILE, Teoria generale dello spirito, 1916, cap. IX). E o espiritualismo segue o mesmo caminho quando, com Bergson, vê o E. como a decadência, a dispersão ou a exteriorização da duração real da consciência (Essai sur les données immédiates de Ia cons­ cience, 1889; Évol. créatr, 3a ed., 1934, pp. 219 ss.). Teses análogas a essas foram e são fre­ qüentemente repetidas na filosofia contem­ porânea. c) A terceira alternativa que o problema da realidade do E. deixou aberta é a rejeição do problema e a afirmação de que o E. não é real nem irreal, embora possa, em alguma das suas determinações métricas, ser empregado na des­ crição da realidade. Esse ponto de vista come­

ESPAÇO VITAL

çou a amadurecer com a descoberta das geometrias não euclidianas, quando se percebeu a dificuldade de saber se uma dessas geometrias está incorporada na estrutura física do mundo. Embora os matemáticos se tenham pronuncia­ do algumas vezes em favor da resposta positiva a essa questão, optando em sua maioria pela geometria euclidiana, o caráter provisório e parcial dessas respostas mostra, mais do que qualquer outra coisa, a impossibilidade de re­ solver a questão e induz à adoção do ponto de vista que prescinde dela. Pode-se então afirmar que só motivos de oportunidade científica su­ gerem o uso de um esquema geométrico parti­ cular para a descrição de determinado campo de fenômenos. A esse respeito M. K. Munitz diz o seguinte: "Poderá ser mais conveniente e fe­ cundo usar um esquema métrico e não outro, mas não podemos dizer que são os fatos que nos levam a fazer isso. O problema é o seguin­ te: a adoção de um valor particular para a cur­ vatura, tomado em conjunção com o resto da teoria, permite-nos fazer inferências corretas a partir de dados fatos para outros fatos? Se a exatidão dos fatos observáveis inferidos for maior quando estabelecidos por uma teoria com sua métrica própria e não por outra, pode­ remos dizer que 'a métrica do universo é assim e assim'. Esta última expressão não passa de um modo sumário de aludir à superioridade relativa de dada teoria ou modelo do univer­ so" (Space, Time and Creation, VII, § 4; trad. it, p. 133). ESPAÇO VITAL. V. CAMPO. ESPÉCIE (gr. eiôoç; lat. Species; in. Kind, Species; fr. Espèce, ai. Ari, Species; it. Speciè). 1. Conceito que é parte ou elemento de outro conceito. Nesse sentido, essa palavra foi comumente empregada por Platão (cf. Sof, 235 d, Teet., 178 a etc), por Aristóteles (Met, X, 7, 1057 b 7; Cat. 2 b 7, etc.) e ilustrada em Isagoge de Porfírio, que lhe dá a seguinte definição: "A E. é o que se situa sob o gênero e a que o gênero é atribuído essencialmente". E acres­ centa: "A E. é o atributo que se aplica essen­ cialmente a uma pluralidade de termos que diferem especificamente entre si", observan­ do-se, porém, que esta última definição só se aplica à "E. especialíssima", que precede ime­ diatamente o indivíduo, como p. ex. o concei­ to de homem (Isag, 4, 10 ss.). Nesse sentido o conceito de E. permaneceu inalterado em toda a lógica tradicional, até que, com a afirmação da lógica matemática, foi substituído pelo con­ ceito de classe (v.).

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ESPÉCIE

No domínio da biologia, durante algum tem­ po esse termo teve um significado correspon­ dente ao descrito, entendendo-se por E. um tipo biológico bem definido por características hereditárias e subordinado a um outro tipo mais amplo {gênero). Mas na biologia contem­ porânea os conceitos de gênero e espécie dei­ xaram de referir-se aos significados tradicio­ nais, e por E. entende-se simplesmente uma classe de indivíduos cujos acasalamentos pro­ duzem indivíduos férteis, o que não ocorre com híbridos nascidos de acasalamentos entre indivíduos pertencentes a E. diferentes (C. PINCHER, Evolution, 1950, p. 21; KALMUS, Variation and Heredity, 1957, p. 29). 2. O mesmo que idéia no sentido platônico (v. IDÉIA). 3. O mesmo que forma no sentido aristotélico (v. FORMA). 4. Em relação ao significado 3 e na lingua­ gem da escolástica medieval, a E. é intermediá­ ria do conhecimento, ou seja, o objeto próprio da sensibilidade ou do intelecto, enquanto for­ ma que a sensibilidade ou o intelecto abstrai das coisas. Essa doutrina foi expressa com toda a clareza por S. Tomás, que, comentando o tre­ cho do De anima (III, 8, 431 b 21), em que Aristóteles diz que "a alma é de certo modo todas as coisas", observa: "Se a alma é todas as coisas, é necessário que ela seja as próprias coi­ sas, sensíveis ou inteligíveis — no sentido da afirmação de Empédocles, de que conhecemos a terra com a terra, a água com a água, etc. — ou então que ela seja as espécies. Mas por certo a alma não é a coisa, pois, p. ex., na alma não há as pedras, mas a E. da pedra". Ora, a E. é a forma da coisa. Logo, "o intelecto é a potência receptiva de todas as formas inteligíveis e o sentido é a potência receptiva de todas as for­ mas sensíveis" (cf. também S. Th, I, 2. 84 a, 2). A doutrina da E. ou, como também se diz, da similitude, como intermediária entre o objeto e a potência cognoscitiva humana, predomina durante o período clássico da escolástica: é aceita por Boaventura (In Sent., II, d. 39, a. 1, q. 2) e por Duns Scot (Op. Ox., I, d. 3, q. 7, n. 2, 3, 20), mas posta de lado pela escolástica do séc. XIV. Durand de Pourçain (In Sent, II, d. 3, q. 6, n. 10) e Pedro Aureolo (In Sent., 1, d. 9, a. 1) negam peremptoriamente a existência da E. e afirmam que o objeto do conhecimento é a própria coisa. Essa doutrina é veementemente ratificada por Ockham com o argumento de que, se a E. fosse o objeto imediato do conheci­

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ESPECIFICAÇÃO

mento, o conhecimento não seria conhecimen­ to do objeto, mas da sua imagem, assim como a estátua de Hércules não levaria a conhecer Hércules, nem permitiria julgar da sua seme­ lhança com ele se não se conhecesse o próprio Hércules {In Sent., II, q. 14, T). O ponto de vista que permitiu que esses escolásticos abando­ nassem a noção de E. foi o da intencionalidade (v.) do conhecimento, segundo a qual o ato de conhecer é uma relação com o objeto em pessoa. Todavia, a doutrina cartesiana da idéia como objeto imediato do conhecimento pode ser considerada, sob certos aspectos, a retomada da noção escolástica da E. (v. IDÉIA). ESPECIFICAÇÃO (in. Specification; fr. Spécífication; ai. Spezifikation, it. Specificazioné). Kant chamou de "lei transcendental de E." a re­ gra que "impõe ao intelecto procurar sob to­ das as espécies que se nos deparam certo nú­ mero de subespécies e, para cada diferença, certo número de diferenças menores" {Crít. R. Pura, Apêndice à Dialética transcendental). Essa lei tem o seu correspondente simétrico na lei da homogeneidade(v.), segundo a qual o múl­ tiplo deve ser continuamente posto sob gêne­ ros superiores; ambas as leis confluem na lei da afinidade (v.) de todos os conceitos, que permite a passagem de um conceito para o outro (Ibid.). O princípio da E. foi chamado por Hamilton de "Lei de heterogeneidade" (v. HOMOGENEIDADE).

Kant falou também de uma "lei da E. da na­ tureza", segundo a qual a natureza especifica suas leis gerais segundo o princípio de finalida­ de relativa à nossa faculdade de conhecer. Mas essa lei pertence à esfera do juízo reflexivo, ou seja, não faz parte da natureza, mas simples­ mente prescreve uma regra para a sua interpre­ tação (Crít. doJuízo, Intr., § V). ESPECULAÇÃO (gr. ôecopíot; lat. Speculatio; in. Speculation; fr. Spéculation; ai. Spekulation; it. Speculazioné). O termo tem dois significa­ dos: 1Q contemplação ou conhecimento desin­ teressado; 2Q conhecimento ultra-empírico ou sem base na experiência. No primeiro significa­ do, a E. se contrapõe à ação; no segundo, à experiência, ou ao conhecimento "natural". Ia Os antigos entenderam por E. a atividade cognoscitiva não utilizada para um fim qual­ quer, mas como fim em si mesma. O conceito de E., nesse sentido, foi fixado por Aristóteles, que qualificou de especulativas (ou teoréticas) as ciências naturais, porquanto "consideram a substância que tem em si mesma o princípio

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ESPECULAÇÃO

do movimento e do repouso". Com efeito, uma ciência desse gênero não é prática nem produ­ tiva. A atividade produtiva tem princípio na mente ou na habilidade do artista, e a ativida­ de prática na decisão de quem age. "Logo, se todo pensamento é prático, produtivo ou teó­ rico as ciências naturais são especulativas e consideram o que tem em si capacidade de mover-se" (Met., VI, I, 1025 b 18). O objeto das ciências especulativas é o necessário, já que só o necessário, que não pode ser diferente do que é, não dá o que fazer ao homem. E só na E. o homem encontra felicidade. "Quanto maior a E., maior também a felicidade, e encontra-se mais felicidade naquilo em que há maior espe­ culação. Isso não acontece por acaso, mas pela própria natureza da E., que tem valor em si mesma, de sorte que a felicidade é uma espé­ cie de E." {Et. nic, X, 8, 1178 b 28). Essa exaltação da E., que constitui um dos modos fundamentais de entender a função da filosofia (v.), foi herdada sobretudo pelo misti­ cismo neoplatônico. Plotino reduziu todas as atividades à E. e afirmou que a própria gera­ ção das coisas naturais é E.: E. de Deus {Enn, III, 8, 5). O misticismo. medieval identifica E. com contemplação, que é o grau mais alto da ascensão mística antes do êxtase (cf. RICARDO de S. VÍTOR, D e c o n te m p la tio n e , I, 3), mas S. Tomás a identifica com a meditação, que é o grau anterior {S. Tb., II, 2, q. 180, a. 3, ad 2a). Em todos esses usos, todavia, o signifi­ cado de contemplação desinteressada é predo­ minante e fundamental. 2e Kant introduziu um novo significado do termo, que é o predominante no uso moderno: "O conhecimento teórico é especulativo quan­ do se refere a um objeto ou ao conceito de um objeto a que não se pode chegar com nenhu­ ma experiência. A E. contrapõe-se, por isso, ao conhecimento natural, que só se refere a objetos ou predicados que podem ser dados em uma experiência possível" {Crít. R. Pura, O ideal da razão pura, seç. VII). Esse significa­ do permaneceu inalterado na tradição, mesmo porque Hegel adotou-o, modificando seu sinal, ou seja, considerando autêntico apenas o co­ nhecimento especulativo. Chamou de especu­ lativo ou positivo racional o terceiro momento da dialética, o da síntese, em que se tem "a uni­ dade das determinações na sua oposição". Essa unidade significa que "a filosofia nada tem a ver com meras abstrações ou pensamentos for­ mais, mas apenas com pensamentos concre­

ESPERANÇA

tos", ou seja, com pensamentos que são ao mesmo tempo realidades (Ibid, § 82). Além disso, é da filosofia especulativa a demonstra­ ção da necessidade de seus objetos {Ene, § 9). Assim, em Hegel, o adjetivo especulativo indica o ponto de vista que considera a realidade como racionalidade, a racionalidade como real, e ambas como necessidade. O adjetivo que Kant empregava para designar o que está além da experiência possível, portanto do conheci­ mento efetivo, é usado por Hegel para designar o conhecimento efetivo que, como tal, está além da experiência e das separações que nes­ ta aparecem. Os significados de E. e de especulativo fixa­ ram-se nessa alternativa. Entende-se por E. um conhecimento que não encontra fundamento ou justificação na experiência ou na observa­ ção; por um lado, esse é um motivo para decla­ rar ilusório ou quimérico tal conhecimento, por outro (mas cada vez menos), motivo para julgálo superior. ESPERANÇA (in. Hope, fr. Esperance, ai. Hoffnung; it. Speranza). 1. Uma cias emoções fundamentais (v. EMOÇÀO). 2. Uma das virtudes teologais (v. VIRTUDE). ESPIRITISMO (in. Spiritism; fr. Spiritisme, ai. Spiritismus; it. Spiritismo). Crença em fe­ nômenos mentais ou naturais não explicá­ veis por métodos comuns ou científicos e que devem ser atribuídos à ação de espíritos, sejam estes almas de pessoas mortas ou po­ tências angélicas ou demoníacas (v. METAPSÍQUICA). ESPIRITO (in. Mind, Spirit; fr. Esprit; ai. Geist; it. Spirito). Podem-se distinguir os se­ guintes significados: ls Alma racional ou intelecto (v.) em geral; esse é o significado predominante na filosofia moderna e contemporânea, bem como na lin­ guagem comum. 2Q Pneuma (v.) ou sopro animador, admiti­ do pela física estóica, passando desta a várias doutrinas antigas e modernas. É o significado originário do termo, do qual derivaram todos os outros. Esse significado ainda permanece nas expressões em que E. significa "aquilo que vivifica". Kant usou o termo nesse sentido em sua teoria estética: "No significado estético, E. é o princípio vivificante do sentimento. Mas aqui­ lo com que esse princípio vivifica a alma, a ma­ téria de que se serve, é o que confere impulso finalista à faculdade do sentimento e a insere num jogo que se alimenta de si mesmo e fortifi­

ESPIRITO

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ca as faculciades de que resulta" {Crít. doJuízo, § 49; Antr., § 71 b). Foi com esse sentido que a palavra E. permaneceu no uso corrente, em que às vezes se contrapõe a "letra", para indi­ car o que vivifica ou, sem metáfora, o signifi­ cado autêntico de alguma coisa. Nesse sentido, foi também empregada por Montesquieu no tí­ tulo da sua obra, O E. das leis. 3Q Substâncias incorpóreas, ou seja, anjos, demônios e almas dos mortos. Era nesse senti­ do que Locke empregava a palavra spirit (re­ servando mind a E. no significado ls) e dizia: "Com exceção de algumas pouquíssimas idéias que obtemos mediante a reflexão e tudo o que, a partir delas, podemos reunir a respeito do Pai de todos os E,, o eterno e independente autor deles, de nós e de todas as coisas, até mesmo da existência de outros E., não temos informa­ ção segura a não ser por via de revelação" (En­ saio, IV, 3, 27). E Kant, em Sonhos de um visio­ nário esclarecidos por sonhos da metafísica (1766), entendia Geist no mesmo sentido: "E. é um ser dotado de razão. Não é, pois, um dom maravilhoso ver E., já que quem vê homens vê seres dotados de razão. Mas prossigamos: esse ser que no homem é dotado de razão é apenas uma parte do homem; e essa parte, que o vivifica, é um E." (Tráumeeines Geistersehers, I, 1). Como Locke, Kant é cético sobre a existência do E. nesse sentido e, em todo caso, julga im­ possível demonstrá-la. Também com esse sen­ tido, a palavra E. permaneceu no uso corrente (V. ANJOS; DEM ÔNIO; ESPIRITISIVIO).

4- Matéria sutil ou impalpável que é a força animadora das coisas. Esse significado, deriva­ do do estoicismo, encontra-se com freqüência nos magos do Renascimento, sobretudo em Agripa (De oceulta philosophia, I, 14) e em Paracelso (Meteor, pp. 79 ss.). 59 Em relação mais estreita com o significa­ do ls, esse termo às vezes significa disposição (v.) ou atitude (y), como nas célebres expres­ sões de Pascal "E. de geometria" e "E. de finura" e em expressões correntes como "E. religio­ so", "E. esportivo", etc. Desses cinco significados, o único estrita­ mente vinculado à problemática da filosofia moderna é o primeiro. Foi Descartes quem introduziu e impôs esse significado. "Portanto, a rigor, não sou mais que uma coisa que pen­ sa, um E., um intelecto ou uma razão, termos cujo significado antes me era desconhecido" (Méd, II). E na resposta às segundas objeções ele esclarece, em forma de definição, o signifi­

ESPIRITO

cado do termo: "A substância na qual reside imediatamente o pensamento aqui é chama­ da de espírito. Embora esse nome seja equívo­ co, porque às vezes é atribuído também ao vento e aos liquores sutilíssimos, não conheço nenhum outro mais apropriado" (// Rép, def. VI). Embora nessa expressão de Descartes a noção de substância sirva de intermediária entre o significado novo e o antigo (substância incorpórea) do termo, seu uso em Descartes acaba por torná-la equivalente a consciência. Substância pensante, consciência, intelecto ou razão são, portanto, sinônimos de espírito. Locke, como se disse, usava o termo mind no mesmo sentido (cf., p. ex., Ensaio, II, 1, 5). Leibniz dizia: "O conhecimento das verdades necessárias e eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos dota de razão e ciência, elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus. É isso o que em nós se chama alma racional ou E." (Monad, § 29). Berkeley, por sua vez, adotou esse termo e estabeleceu suas equivalências: "Esse ser ativo e perceptivo é o que chamo de mind, spirit, soul (alma) ou myself (eu)" {Principies of HumanKnowledge, I, § 2). Hume entendia esse termo como alma, intelecto ou eu {Treatise, I, 4, 2, ed. Selby-Bigge, p. 207). Essas equivalências mantêm-se constantes no uso posterior do termo: assim, os problemas a que ele dá ori­ gem são os vinculados às noções de alma, consciência, intelecto, razão e eu. Nesses ver­ betes, encontrar-se-á a indicação dos proble­ mas que tiveram origem na noção de E. em suas diversas especificações. Aqui basta re­ cordar que alguns dos empregos paradoxais às vezes encontrados na filosofia contemporâ­ nea se referem na realidade ao significado tra­ dicional instituído por Descartes. Assim, quan­ do L. Klages contrapôs E. a alma, entendeu por E. o conjunto de atividades racionais, con­ frontadas com as tendências instintivas repre­ sentadas pela alma {Der Geist ais Widersacher der Seele, 1929). Por outro lado, G. Santayana entendeu E. no sentido — também cartesiano — de consciência: "Por E. entendo não só a intuição passiva implícita em ser dado de es­ sência, mas também o entendimento e a cren­ ça que pode acompanhar a presença da essên­ cia" {Scepticism and Animal Faith, cap. 26, Dover Publ., p. 272). De resto, chega a ser supérfluo advertir que, na expressão "ciências do E.", difundida por Dilthey, entende-se por E. a atividade racional do homem (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS).

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ESPÍRITO

Foi só com Hegel que se teve uma espe­ cificação diferente da noção de E., com as no­ ções de E. objetivo e E. absoluto. Se por E. subjetivo ele entende o E. finito, ou seja, alma, intelecto ou razão (E. no significado cartesiano do termo) {Ene, § 386), por E. objetivo ele entende as instituições fundamentais do mun­ do humano, quais sejam, direito, moralidade e eticidade, e por E. absoluto entende o mundo da arte, da religião e da filosofia. Nessas duas concepções, o E. deixou de ser atividade subje­ tiva para tornar-se realidade histórica, mundo de valores. Enquanto E. objetivo é o mun­ do das instituições jurídicas, sociais e históricas que culmina na eticidade (que compreende as três principais instituições históricas: família, sociedade civil e Estado), E. absoluto é o mun­ do da Autoconsciência, que se revela a si mes­ ma nas produções superiores, que são a arte, a religião e a filosofia {Ibid, §§ 486, 553). Para Hegel, as três formas de E. são manifestações da Idéia, da Razão infinita, mas é só no E. ob­ jetivo e no E. absoluto que a Idéia ou Razão se realiza plenamente ou chega à manifestação acabada ou adequada. Essas noções caracteri­ zam o idealismo romântico de inspiração hegeliana, que identificou E. com sujeito absolu­ to ou eu universal, como o fez Gentile {Teoria generale dello S., 1920), ou com Conceito, em sua universalidade ou concretude, que é a Ra­ zão absoluta, como o fez Croce {Lógica, 1920, pp. 26 ss.). Mesmo fora do idealismo, todavia, a noção do E. objetivo, como mundo de instituições histórico-sociais, de valores institucionalizados ou de formas de vida, foi acolhida e estudada. De fato, foi aceita por Dilthey, que por ela enten­ deu "a conexão estrutural das unidades vivas, que continua nas comunidades" e criticou o caráter absoluto e dogmático dessa noção em Hegel (Gesammelte Schriften, VII, p. 150; cf. P. ROSSE, Lo storicismo tedesco contemporâneo 1956, pp. 104-105). Nesse sentido limitado, a noção foi aceita por E. Spranger, que entendeu como ciência do E. a disciplina que cuida das formações ultrapessoais ou coletivas da vida histórica {Lebensformen, 1914, p. 7). Foi aceita igualmente por N. Hartmann, que considerou o E. objetivo como uma superestrutura que se eleva acima do mundo orgânico. Ao E. objetivo pertenceriam todas as produções espirituais: letras, artes, técnicas, religiões, mitos, ciências, filosofias, etc. Ele é o verdadeiro protagonista da história, segundo Hartmann {Das Problem

ESPIRITO NACIONAL

desgeistigen Seins, 1931, p- 262). Acima do E. Objetivo, Hartmann situa o E. vivo, que seria a unidade do E. objetivo e da consciência pes­ soal (Ibid, p. 259). Por certo Hartmann ainda está muito próximo da inspiração hegeliana. Mas o caráter impessoal e objetivo do E. tam­ bém é ressaltado por Dewey, que parte de pressupostos filosóficos diferentes: "Toda a his­ tória da ciência, da arte e da moral demonstra que o E. que aparece nos indivíduos não é, como tal, E. individual. É em si mesmo um sistema de crenças, de reconhecimentos e de ignorâncias, de aceitações e de recusas, de expectativas e de apreciações de significados, e foi instituído sob a influência do costume e da tradição" (Experience andNature, 1926, p. 218 ).

ESPÍRITO NACIONAL (in. National spirit; fr. Esprit d'une nation; ai. Volksgeist; it. Spirito nazionalé). Conceito introduzido por Montesquieu, que exprime o caráter fundamental da nação enquanto resultante de uma multi­ plicidade de fatores. Diz Montesquieu: "Muitas coisas conduzem os homens: o clima, a reli­ gião, as leis, os princípios de governo, as tradi­ ções, os costumes, os usos; a partir daí se for­ ma o E. geral, que é seu resultado" (Esprit des lois, 1748, XIX, 4). Em outro trecho, Montesquieu chama o E. nacional de "alma univer­ sal" (Mélanges inédits, p. 160), mas, em todo caso, estava bem longe de transformar esse conceito numa realidade em si. Esse passo foi dado por Hegel, que concebeu o E. nacional como o verdadeiro sujeito da história: "O E. da história é um indivíduo de natureza universal mas determinado: em geral, uma nação; o E. de que tratamos é o E. da nação. Os E. das na­ ções distinguem-se conforme a idéia que fazem de si mesmos, conforme a superficialidade ou a profundidade com que compreenderam e aprofundaram o que é o E." (Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, p. 36; trad. it., I, p. 43). Periodicamente, determinado E. nacional assu­ me o papel de "E. do mundo" (Weltgeisi), de guia e sujeito único da história. "O Weltgeisté o E. do mundo, tal como ocorre na consciência humana; os homens estão para ele como as realidades singulares estão para a totalidade que as consubstancia. E esse E. do mundo conforma-se ao E. divino, que é o E. abso­ luto. Assim como Deus é onipresente, está em todos os homens, aparece na consciência de cada um, isso é o E. do mundo" (Ibid., p. 37; trad. it., p. 44). A noção de E. do mundo foi

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ESPIRITUALISMO

muito repetida e em geral se encontra em to­ das as concepções providencialistas de his­ tória (v.). ESPIRITUALISMO (in. Spiritualism, Personalism; fr. Spiritualisme, ai. Spiritualismus; it. Spiritualismo). 1. Entende-se por esse termo toda doutrina que pratique a filosofia como análise da consciência (v.) ou que, em geral, pretenda extrair da consciência os dados da pesquisa filosófica ou científica. Essa palavra começou a ser utilizada no século passado por V. Cousin, que, no prefácio à edição de 1853 de sua obra Du vrai, du beau et du bien, assim escrevia: "Nossa verdadeira doutrina, nossa verdadeira bandeira é o E., essa filosofia tão só­ lida quanto generosa, que começa em Sócrates e Platão, que o Evangelho difundiu pelo mun­ do, que Descartes colocou nas formas severas do pensamento moderno, que no séc. XVII foi uma das glórias e das forças da pátria, que pereceu com a grandeza nacional no séc. XVIII e que no início deste século Royer CoUard reabilitou no ensino público, enquanto Chateaubriand e Madame de Staêl a transportavam para a literatura e para a arte... Essa filosofia ensina a espiritualidade da alma, a liberdade e a responsabilidade das ações humanas, as obri­ gações morais, a virtude desinteressada, a dig­ nidade da justiça, a beleza da caridade; e além dos limites deste mundo mostra um Deus, autor e modelo da humanidade, que, depois de tê-la criado evidentemente para um propósito excelente, não a abandonará no desenrolar misterioso de seu destino. Essa filosofia é a aliada natural de todas as causas justas. Susten­ ta o sentimento religioso, favorece a verdadeira arte, a poesia digna desse nome, a grande lite­ ratura; é o apoio do direito; rejeita igualmente a demagogia e a tirania, etc". Esse programa do E., magistralmente delineado por Cousin, foi adotado por todas as numerosíssimas formas assumidas por essa corrente filosófica na filoso­ fia moderna e contemporânea. O apoio às "boas causas", isto é, aos valores morais, políti­ cos, sociais e religiosos da tradição, continuou sendo preocupação constante do E., que, sob esse aspecto, tem o comportamento e a nature­ za de uma escolãstica (v.). O meio de realizar seu programa foi também indicado por Cousin: o recurso à consciência, à reflexão interior ou introspecção para o inventário dos dados indis­ pensáveis à especulação. O recurso à consciên­ cia, como o próprio Cousin observava, vincula o E. ao idealismo romântico, mas este não

ESPIRITUALISMO

compartilha com o idealismo romântico a iden­ tificação entre consciência finita (humana) e Consciência infinita (divina). Como defensor da teologia cristã tradicional (a principal das suas "boas causas"), o E. não admite essa identifica­ ção, que lembra panteísmo ou ateísmo (v.). A figura principal do E. do século passado ê Mame de Biran (1766-1824); a figura principal do E. do séc. XX é Henri Bergson (1859-1941). O E. tem congenialidade com a filosofia france­ sa, que hauriu em Montaigne e Pascal a prática de filosofar como interrogação da consciência. Mas em todos os países suas manifestações são numerosas, conquanto não muito diferentes. As grandes figuras da filosofia do risorgimento italiano, Galluppi, Rosmini, Gioberti e Mazzini, inspiraram-se na tradição espiritualista. Na Ale­ manha, a obra de Hermann Lotze inspirou e conduziu a retomada do E., e a obra Micro­ cosmo, desse autor, pode-se dizer que constitui o epítome do E. oitocentista, defendido de for­ ma inteligente contra o cientificismo positivista. No mundo contemporâneo, a obra de Bergson renovou o E. ao ir ao encontro, na medida do possível, das exigências da ciência e ao repropor suas teses fundamentais sobre proble­ mas específicos, como liberdade, alma, vida, moralidade, religião, etc. Em todas as suas for­ mas, porém, o E. tem em comum algumas teses fundamentais, que derivam do seu conceito da filosofia como análise da cons­ ciência e que podem ser assim resumidas: Ia Negação da realidade do mundo exter­ no, ou seja, o idealismo gnosiológico. Essa nega­ ção pode ser mais ou menos condicionada ou indireta, mas em última análise é inevitável, porque uma realidade exterior à consciência seria, por definição, inacessível a esta e contra­ diria o compromisso metodológico do espiritualismo. Logo, direta ou indiretamente, essa doutrina reduz a realidade a objeto imediato da consciência; 2- Conseqüente redução da ciência a conhe­ cimento falso, imperfeito ou preparatório. Os espiritualistas mais avisados, como Lotze e Bergson, reduziram a ciência a conhecimento preparatório. 3â Inventário, na consciência, de dados aptos a construir o mundo da natureza e o mundo da história em seu caráter finalista ou providencial. 4a Inventário, na consciência — e, portanto, no mundo da natureza e da história — , de da­ dos que remontariam a Deus ou a um princípio

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ESPONTANEIDADE

divino em alguma de suas especificações que se ajustasse à tradição teológica do cris­ tianismo. 5a Defesa da tradição e das instituições em que a tradição se encarna, porquanto a tradição é interpretada como manifestação no mundo humano do mesmo princípio divino que se re­ vela na consciência. A defesa das "boas cau­ sas", de que falava Cousin, na maioria das ve­ zes se traduz em conservadorismo político. 2. O mesmo que espiritismo. Esse uso é mais comum em inglês, mas pode ser encon­ trado também em italiano e em alemão (cf., p. ex., a obra de I. H. FICHTE, Derneue Spiritualismus, 1878). ESPONTANEIDADE (lat. Spontaneitas; in. Spontaneity, fr. Spontanéité, ai. Spontaneitãt; it. Spontaneitã). O adjetivo spontaneus não passa da tradução latina de SKOÚOTOÇ, que significa livre. Leibniz, que introduziu esse termo na lin­ guagem filosófica moderna, indica corretamen­ te sua origem e significado: "Aristóteles defi­ niu bem a espontaneidade ao dizer que uma ação é espontânea quando seu princípio está no agente. Spontaneum est, cuiusprincípium estin agente' {Et. nic, III, l,1110al7).É assim que nossas ações e nossas vontades dependem inteiramente de nós" (Teod, III, § 301). Em certo trecho, ele distingue liberdade de E., di­ zendo que "a liberdade é a E. de quem é inteli­ gente, de tal modo que o espontâneo no ani­ mal ou em outra substância desprovida de inteligência eleva-se no homem ou em outra substância inteligente e chama-se livre" (Op., ed. Erdmann, p. 669). Mas, levando em conta ou não essa distinção, a E. não é mais que o con­ ceito clássico da liberdade como causa sui: o que também deixa clara a definição de Wolff, segundo a qual ela é "o princípio intrínseco para determinar-se a agir" (Psychol. empírica, § 933). No mesmo significado, Kant falou do intelecto como "E. do conhecimento" enquanto "faculdade de produzirpor si representações" (Crít. R. Pura, Lógica transcendental, Introd., I). Nesse sentido, opõe-se a receptividade (v.) ou passividade (v.) sendo sinônimo de atividade, termo hoje mais freqüentemente empregado para indicar um processo ou uma mudança que é causa sui, ou seja, que não tem causa fora de si. Também Heidegger entendeu a E. como liberdade; para isso, identificou-a com a transcendência em que consiste a liberdade finita do homem: "A essência do si-mesmo (a ipseidadé), a essência daquele si-mesmo que

ESQUEMA

jaz já no fundo de toda E., consiste na transcen­ dência... Só porque constitui a transcendência, a liberdade pode revelar-se, no Dasein existen­ te, como modo particular de causalidade, isto é, como autocausalidade" (Vom Wesen des Grundes, 1929, III; trad. it., p. 65). ESQUEMA (gr. O5cn|i.a; in. Scheme, fr. Schéma-, ai. Schema; it. Schemã). No significado simples de forma ou figura, essa palavra é empregada comumente pelos filósofos. Foi Kant quem deu sentido específico a esse ter­ mo, entendendo com ele o intermediário entre as categorias e o dado sensível; esse interme­ diário teria a função de eliminar a heterogeneidade dos dois elementos da síntese, sen­ do geral como a categoria e temporal como o conteúdo da experiência. Nesse sentido o E. ou, mais precisamente, o E. transcendental, é "a representação de um procedimento geral graças ao qual a imaginação oferece sua ima­ gem a um conceito" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. I). Kant distingue vários tipos de E., segundo os quatro gaipos de categorias, e inclui neles o número (E. da quantidade) e a coisalidade (E. da qualidade). Em geral, os E. são determinações do tempo e constituem, por isso, fenômenos ou conceitos sensíveis de objetos de acordo com uma categoria determi­ nada (Ibid, Anal. dos Princ, cap. I). O E. foi entendido por Schelling de modo semelhante, distinguindo-se de imagem (em relação à qual é mais geral) e de símbolo; para Schelling, E. era a "a intuição da regra segundo a qual o objeto pode ser produzido", esclarecendo-se essa noção com o exemplo do artífice que deve criar um objeto de forma determinada e em conformidade com um conceito (.System des transzendentalen Idealismus, 1800, III, cap. II, 3a época; trad. it., p. 183). Esse significado atribuído por Kant e Schelling é o único significa­ do técnico dessa palavra, que às vezes ainda reaparece (cf., p. ex., LEWIS, An Analysis of Knowledge and Valuation, p. 134). Fora dele; esse termo significa simplesmente modelo, imagem geral, forma (como ocorre, p. ex., em BERGSON, Matièreetmêmoire, pp. 130ss.; Energie spirituelle, p. 161; Lapensée et le mouvant, p. 216) ou projeto geral. ESQUEMATISMO (gr. axriU-OCTia|ióç; in. Schematism; fr. Schématisme, ai. Schematismus; it. Schematismo). 1. Configuração ou estrutura. Esse é o significado comum do termo grego, a que Bacon se referiu quando falou do E. latente como de um dos dois as­

ESSÊNCIA

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pectos fundamentais dos fenômenos naturais (o outro é o processo latente ou processo para a forma). Por latente Bacon entendeu a configu­ ração ou estrutura dos corpos considerados estaticamente (De augm. scíent., II, 1), de sorte que o estudo do E. foi comparado por ele ao que é a anatomia para os corpos orgânicos (Nov.org., 11,7). 2. Kant entendeu por E. "comportamento intelectual por esquemas" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. I), e Schelling usava essa pala­ vra em sentido análogo (System des transzendentalen Idealismus, III, cap. II, 3a época). Sobre a doutrina kantiana do E., cf. E. PACI, "Critica dello schematismo trascendentale" em Rivista di Filosofia, 1955, n. 4; 1956, n. 1. ESQUERDA HEGELIANA (in. Hegelian left; fr. Gaúchehegélienne, ai. HegelscheLinke, it. Sinistra hegeliand). Enquanto a direita hegeliana(y.) é a escolástica do hegelianismo, a E. hegeliana tende a contrapor à doutrina de Hegel os traços ou características do homem que nela não foram adequadamente reconhecidos. No plano religioso, essa tendência abre caminho para a crítica radical dos textos bíblicos e para a tentativa de reduzir a mito toda a doutrina da religião (David Strauss, 1808-74). A religião era considerada por Ludwig Feuerbach (1804-72) como "a autoconsciência do homem, ou se­ ja, como a projeção na divindade do que o ho­ mem quer ser". No plano histórico-político, a E. hegeliana contrapôs à concepção hegeliana da história como racionalidade absoluta a interpretação materialista, que considera a his­ tória em função das necessidades humanas (K. MARX, 1818-83; F. ENGELS, 1820-95) (v. MATERIALISMO HISTÓRICO).

ESSÊNCIA (gr. xí eoiiV; lat. Essenta; in. Essence, fr. Essence, ai. Wesen; it. Essenza). Por este termo, entende-se Em geral qualquer res­ posta à pergunta: o quê? P. ex., nas expressões "Quem foi Sócrates? Um filósofo", "O que é o açúcar? Uma coisa branca e doce", "O que é o ho­ mem? Um animal racional", as palavras "um filósofo", "uma coisa branca e doce", "um ani­ mal racional" exprimem a E. das coisas a que se faz referência nas respectivas perguntas. Algumas dessas respostas limitam-se a indicar uma qualidade do objeto (p. ex., a de ser bran­ co e doce), ou um caráter (como o de ser filó­ sofo) que o objeto também poderia não ter. Outras, como p. ex. a que afirma que o homem é um animal racional, parecem indicar algo a mais, um caráter que qualquer coisa chamada

ESSÊNCIA

"homem" não pode não possuir e que, por isso, é um caráter necessário do objeto defini­ do. Nesse último caso, a resposta à pergunta o quê? não enunciou simplesmente a E. da coi­ sa, mas sua E. necessária ou sua substância, e pode ser assumida como sua definição. Portan­ to, deve-se distinguir: ls a E. de uma coisa, que é qualquer resposta que se possa dar à pergunta o quê?2") a E. necessária ou substância, que é a resposta (à mesma pergunta) que enuncia o que a coisa não pode não ser e que é o porquê da coisa, como quando se diz que o homem é um animal racional, pretendendo-se dizer que o homem é homem porque é racional. Os fundamentos que expusemos foram estabelecidos pela primeira vez por Aristóteles, que é o fundador da teoria da E., assim como é fundador da teoria da substância. É verdade que Aristóteles encontrava os precedentes dessa teoria em Platão, que por sua vez a atribuía a Sócrates. "Enquanto eu te pedia que me definisses a virtude inteira", censura Sócrates a Mênon, "tu evitas dizer-me o queela é e afirmas que toda ação é virtude, se realizada com uma parte de virtude, como se tu já houvesses dito o que é a virtude na sua inteireza e eu devesse reconhecê-la mesmo depois de a reduzires a cacos" (Men., 79 b). Nessas palavras, exigir que Mênon diga o que é a virtude em sua inteireza é exigir que ele enuncie a E. necessária, ou o que a virtude não pode não ser em qualquer circunstância. É a isso, exatamente, que Aristó­ teles dará o nome de substância. Mas nem toda E., ou seja, nem toda resposta à pergunta o quê?é uma definição desse tipo. Diz Aristóte­ les: "Quem indica a E. ora indica a substância, ora uma qualidade, ora uma de outras cate­ gorias. Quando, referindo-se a um homem, se diz que ele é um homem ou um animal, enten­ de-se sua E. como substância. Mas quando, re­ ferindo-se à cor branca, diz-se que é branca ou é uma cor, entende-se a E. como qualidade. Igualmente, quando se faz referência à grandeza de um côvado, afirmando que ela é a grande­ za de um côvado, entende-se que sua E. é quan­ tidade. O mesmo se diga nos outros casos" (Jop, I, 9, 103 b 27). Em outro trecho, Aristó­ teles contrapõe nitidamente a E. substancial à E.: "O enunciado sempre se refere a alguma coisa, assim como a afirmação, e é sempre ver­ dadeiro ou falso; mas o intelecto não é as­ sim, sendo verdadeiro quando enuncia a E. se­ gundo a E. substancial, e não verdadeiro quan­ do a enuncia relativamente a alguma coisa"

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(De an, III, 6, 430 b 26). Com isso, ele não põe no mesmo plano todas as respostas que podem ser dadas à pergunta "o quê?" Se à per­ gunta "O que és?" um homem responcie "músi­ co", sua resposta não exprime realmente o que ele é por si mesmo, sempre e necessariamente, ou seja, na sua substância. De fato, ele poderia muitíssimo bem não ser músico, e, havendo começado a sê-lo, pode deixar de sê-lo. Mas, se responder que é "um animal racional", então estará expressando o que não pode não ser ou o que é necessariamente como homem. Expri­ me, portanto, o que Aristóteles chama de to ti en einai(quodquideratesse), que é a substân­ cia considerada à parte de seu aspecto mate­ rial (Mel, VII, 7, 1032 b 14). Esta segunda res­ posta é a única que pode valer como definição da E. do homem, ao passo que todas as outras possíveis determinações de E. não valem como definição porque não dizem o que o homem é de per si ou necessariamente (Ibid., VII, 4,1029 b 13). Também por isso só a E. necessária ou substância é o verdadeiro objeto do saber ou da ciência. Sobre estes fundamentos Aristóteles assenta a estrutura necessária da realidade, que é o objeto específico da teoria da subs­ tância (v.). As considerações precedentes mostram que a teoria da E., embora diferente da teoria da substância, pode conduzir a ela e ser conside­ rada uma propedêutica dela. Portanto, não é de estranhar que, na evolução histórica do termo, seu significado muitas vezes tenha sido idêntico ao de E. substancial ou substância. Mesmo a linguagem comum, na qual freqüentemente se sedimenta o significado filosófico de uma longa tradição, emprega esse termo quase exclusi­ vamente no sentido de E. necessária. Devere­ mos então ter em mente a distinção entre os dois significados já enunciados, que Aristóteles ilustrou perfeitamente: ls a E. como resposta à pergunta "o quê?"; 2° a E. como substância. ls O significado geral e fundamental desse termo pode ser admitido também por filósofos que não compartilham a teoria da substância. Mas os estóicos, que não admitiram a teoria da substância, evitaram (ao que saibamos) o ter­ mo "essência". Para eles, a definição não mani­ festa a E. de uma coisa, mas foi definida (por Crisipo) como "resposta" (apódosis). Com isso, deram a entender que qualquer resposta à per­ gunta "o quê?" pode ser considerada definição da coisa sobre a qual se faz a pergunta. Com efeito, diziam que a descrição "é um discurso

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que conduz à coisa através de suas pegadas" (DIÓG. L, VII, 1, 60), vendo assim nos enun­ ciados lingüísticos um modo de orientar-se em relação às coisas, e não a expressão da subs­ tância das coisas. Desse ponto de vista, nem sequer se apresenta a possibilidade de passar da teoria da E. para a teoria da substância. Uma proposição ou um enunciado qualquer nada exprime que possa referir-se à substância e, portanto, declarar-se essencial ou acidental em relação a ela, dedutível ou não dedutível dela, mas exprime simplesmente um estado de fato, que, se é como se diz, verifica a proposição ou, se não é, torna-a falsa. P. ex., a proposição "é dia" é verdadeira se é dia; falsa, se não é dia (DIÓG. L., VII, 65). Em outros termos, a relação predicativa (ou o significado predicativo de ser [v.]) deve ser entendida, desse ponto de vista, como uma relação defato que remete à identi­ dade verificável entre o objeto significado pelo sujeito e o objeto significado pelo predicado, e não como uma relação de inerência ou per­ tinência, ou como uma relação qualquer que implique conexão substancial ou necessária. Quando, a partir do séc. XIII, começou a pre­ valecer a orientação estóica da lógica, até então quase obliterada pela orientação aristotélica, aparecendo o que se chamou de via moderna, ou terminista (em oposição à via antiga, aristotélica), o significado da cópula foi explicita­ mente definido em oposição ao significado que fora atribuído à cópula com base na teoria da substância. Assim, Alberto da Saxônia, depois de distinguir o significado existencial do signifi­ cado predicativo do verbo é, diz a propósito deste último: "Quando o verbo aparece como terceiro constituinte [da proposição, isto é, como cópula dos outros dois], significa certa composição do predicado em relação ao sujei­ to, graças à qual sujeito e predicado estão pelo mesmo objeto" (Log, I, 6). Essa doutrina será repetida com freqüência durante o séc. XIV (cf., p. ex., BURIDAN, Sophismata, cap. 2, concl. 10), mas é Ockham que mostra claramente seu significado, ao mesmo tempo polêmico e posi­ tivo: "Proposições como 'Sócrates é homem' ou 'Sócrates é animal' não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade, nem signifi­ cam que a humanidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que Sócrates é homem ou animal, nem que o homem ou o animal é uma parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou da substância de Sócrates. Significam apenas que Sócrates é na

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realidade um homem e é na realidade animal, não no sentido de que Sócrates é esse pre­ dicado 'homem' e esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa pela qual estão o predicado homem e o predicado animal: como quando acontece que esses dois predicados estão por Sócrates" (Summa log., II, 2). Essa contraposição da teoria da suposi­ ção à teoria da inerência é apenas um aspecto da contraposição da teoria da E. à teoria da substância. E tal contraposição na realidade é a mesma entre a formulação da lógica estóica e a da lógica aristotélica: a primeira fundada na enunciabilidade das situações de fato ("É dia" é verdadeiro se for dia); a segunda fundada na enunciabilidade da substância ("O homem é animal racional" porque a racionalidade é a essência necessária do homem). Depois disso, é fácil seguir as etapas princi­ pais dessa linha de interpretação da noção de E. na filosofia moderna e contemporânea. O problema criado pela desvinculação entre teo­ ria da E. e teoria da substância é o da possibili­ dade de certa hierarquia entre as determina­ ções se atribuídas a uma entidade qualquer, visto que nenhuma dessas determinações pode ser considerada necessária. Parece, p. ex., que no significado da palavra "homem" está muito mais implícita a "racionalidade" do que a deter­ minação de "bípede". Mas como pode isso acontecer se não existem determinações ne­ cessárias ou substanciais, se não se pode dizer que a racionalidade é "inerente" ao homem? A resposta que a teoria da E. dá a este problema está contida na noção de E. nominal. Hobbes, p. ex., diz que a E. é simplesmente "o caráter (accidens) graças ao qual damos nome ao objeto" (De corp, 8, § 23). Essa doutrina é ex­ posta e defendida por Locke, graças a quem se torna predominante na filosofia do iluminismo. Locke diz que a E. "nada mais é que a idéia abstrata à qual é associado o nome de uma espécie; por isso, tudo o que está contido nes­ sa idéia é essencial à espécie". E acrescenta: "Embora esta seja toda a E. das substâncias naturais que conhecemos ou com a qual as distinguimos em tantas espécies eu lhe darei o nome particular de E. nominal, para distinguila da constituição real das substâncias, de que depende essa E. nominal juntamente com to­ das as propriedades da espécie dada; por isso [a constituição das substâncias] poderá ser chamada de E. real" (Ensaio, III, 6, 2). A E. real é a substância no genuíno sentido aristotélico,

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como constituição ou forma que deveria explicariodas as qualidades ou caracteres de uma realidade e mostrá-los em suas interconexões necessárias (Ibid, 4, 9), mas, segundo Locke, tal E. real é inacessível ao homem. A doutrina da E. nominal foi a base da lógica moderna. Stuart Mill repete-a dizendo: "Proposição essen­ cial é a proposição puramente verbal que afir­ ma de uma coisa, sob um nome particular, só o que é afirmado sobre ela pelo próprio fato de chamá-lo por esse nome, e que, por isso, não dá nenhuma informação ou só a dá em relação ao nome, não à coisa" ILog, I, VI, § 4). Com poucas variantes, essa doutrina é repetida na lógica contemporânea. C. I. Lewis diz: "Tradi­ cionalmente, diz-se que todo atributo exigido para a aplicação de um termo pertence à E. da coisa nomeada. Sem dúvida, não tem significa­ do falar da E. de uma coisa, a não ser relativa­ mente ao fato de ela ser denominada por um termo particular" (Anafysis ofKnowledge and Valuation, p. 41). E Quine, sublinhando a dife­ rença entre a doutrina aristotélica da E. como substância e a "doutrina do significado", observa: "Deste último ponto de vista, pode-se concor­ dar (ainda que só para discutir) que no signifi­ cado da palavra 'homem' está implícita a racio­ nalidade, mas não o fato de ter duas pernas; contudo, pode-se considerar que ter duas per­ nas está implícito no significado de 'bípede', ao passo que a racionalidade não. Do ponto de vista da doutrina do significado, não faz sentido dizer de um indivíduo real, que é ao mesmo tempo homem e bípede, que sua racionalidade é essencial e que o fato de ter duas pernas é acidental ou vice-versa. Para Aristóteles, as coi­ sas têm E., mas só as formas lingüísticas têm significado. Significado é aquilo que a E. se tor­ na quando se divorcia do objeto de referência e se casa com a palavra" (From a LogicalPoint ofVietv, II, 1). Por outro lado, mesmo utilizan­ do amplamente a noção de essência em sua obra A visão lógica do mundo (onde, aliás, fala em "E. constitutivas"), Carnap reduz o significa­ do de E. de um objeto ao critério de verdade das proposições das quais os signos desse objeto possam fazer parte (Aufbau, § 161). Pode-se dizer, portanto, que a teoria da E. se resolve inteiramente na teoria do significado (v.). Por E. hoje não se entende nada mais do que a regra do uso correto de um termo. Embora não tenha em mira uma teoria do significado, o uso que Santayana fez desse ter­ mo E. vincula-se a este seu significado. As E.

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são os objetos da atividade cognoscitiva: consti­ tuem um reino infinito de que faz parte tudo o que pode ser percebido, imaginado, pensado ou, de algum modo, experimentado; não existem em nenhum espaço ou tempo, não têm substância nem lados ocultos, mas seu ser resolve-se em seu aparecer (The Realm ofEssences, 1927). As E. constituem um dos termos do dualismo metafísico de Santayana: o outro é a existência, que ele identifica com a matéria. Mas justamente por se distinguirem da existência, e portanto de qualquer forma de ação ou de energia, as E. não se concatenam entre si e não implicam nenhuma necessidade nem nenhuma forma de ser, mas permanecem puros objetos de intuição. Esta doutrina das E. de Santayana pode ser conside­ rada a última utilização metafísica da teoria da essência. 2- A teoria da E. como substância pode ser caracterizada como a que restringe o uso da palavra E. para indicar a E. necessária ou subs­ tancial. Aristóteles, como se viu, não identifica­ ra as duas coisas, embora se possa dizer que para ele a "verdadeira" E. de uma coisa, que a define em seu modo de ser, é a E. necessária. A identificação de E. com substância encontrase já em Plotino, que a relaciona com o estado das coisas no mundo inteligível, ou seja, no Nous divino, mas não só com esse estado. Diz: "Aqui, tudo está na unidade, de tal modo que são idênticos a coisa e o porquê da coisa... Na verdade, o que poderia impedir esta identidade e impedir que ela constitua a substância de cada ser? Assim é necessariamente, como vê quem procura compreender a E. necessária" (Enn, VI, 7, 2). No séc. XIII, ao procurar escla­ recer a confusa terminologia com que a filoso­ fia medieval até aquele momento traduzira os termos aristotélicos, S. Tomás fixava os signifi­ cados seguintes, que implicam a redução da doutrina da E. à da substância: "E. significa algo que é comum a todas as naturezas em virtude das quais entes diferentes são colocados em di­ ferentes gêneros e espécies, assim como a hu­ manidade é a E. do homem, e assim por diante. Mas, como aquilo em virtude do que a coisa se constitui no gênero e na espécie é o que se entende como a definição que indica o que a coisa é, os filósofos substituíram a palavra E. por qüididade, esse é o motivo pelo qual o Filó­ sofo, no VII da Metafísica, freqüentemente fala do quod quid erat esse, vale dizer, aquilo em virtude do que alguma coisa é o que é." A

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qüididade, acrescenta S. Tomás, também é cha­ mada de forma ou natureza, entendendo-se por este último termo "a E. da coisa segundo a ordem ou a ordenação que ela tem para a sua própria atuação, porquanto coisa nenhuma há desprovida de uma atuação própria. O termo qüididade, porém, é assumido como aquilo que é significado pela definição; o termo E. sig­ nifica que por ela e nela a coisa tem ser" (De ente et essentia, 1). Esta última distinção não se mantém inalterada em S. Tomás, que, em outro trecho, entende por E. "propriamente o que é significado pela definição" (5. Th., I, q. 29, a. 2). Mas durante muitos séculos essas determina­ ções tomistas serviram de fundamento para to­ das as teorias da substância, que devem ser estudadas em seu lugar próprio, o verbete SUBSTÂNCIA. Embora não conduza para uma teoria da substância, a acepção que Husserl atribui ao termo E. tem conexão com este seu segundo significado: "E. caracterizou sobretudo o que se encontra no ser próprio de um indivíduo como seu quid. Mas cada quid pode ser 'posto em idéia'. Uma visão empírica ou individual pode ser transformada em visão da E. (ideação), possibilidade que, esta sim, não deve ser en­ tendida como empírica, mas como essencial. O objeto intuído consistirá, portanto, na corres­ pondente E. pura ou eidos, que pode ser tanto uma categoria superior quanto uma particularização, até à concretude completa" (Ideen, I, § 3)- Para Husserl, E. é a E. necessária ou substancial de Aristóteles; é captada por um ato de intuição, análogo à percepção sensível (Ibid, § 23). Esta talvez seja a utilização mais moderna do antigo conceito aristotélico de E. substancial (v. DEFINIÇÃO; SER). ESSÊNCIA e EXISTÊNCIA (lat. Essentia et esse, essentia etexistentia; in. Essence andexistence, fr. Essence et existence, ai. Wesen und Existenz; it. Essenza ed esistenza). A distinção real entre E. e existência é uma das doutrinas típicas da Escolástica do séc. XIII. Foi exposta pela primeira vez por Guilherme de Alvérnia, em De trinitate(composto entre 1223 e 1228). Seus criadores foram os neoplatônicos árabes, especialmente Avicena (séc. XI), que a expuse­ ra em Metafísica (II, 5, 1). Foi adotada por Maimônides, que a modificou no sentido de reduzir a existência a um simples acidente da essência (Guide des égarés, trad. fr., Munk, pp. 230-33). Mas quem deu à doutrina sua melhor expressão foi S. Tomás, que também a remeteu

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ao significado que recebera de Avicena, negan­ do que a existência seja um simples acidente (Quodl., q. 12, a. 5). Por isso, é oportuno expor a doutrina na forma emprestada por S. Tomás. S. Tomás entende a essência no significado 2-, como E. necessária ou substancial. Ela é a "qüididade" ou "natureza" que compreende tudo o que está expresso na definição da coi­ sa; logo, não só a forma, mas também a matéria. P. ex., a E. do homem, definido como "animal racional", compreende não só a racionalidade (que é forma), mas também a animalidade (que é matéria). Da E. assim entendida distin­ gue-se o ser ou a existência da coisa definida: ser ou existência que é algo diferente da E. por­ que se pode, p. ex., saber o que (quid) é o ho­ mem ou a fênix sem saber se existe homem ou fênix, ou seja, sem saber nada acerca do ser ou da existência da coisa definida (De ente et essentia, 3). Portanto, substâncias como o ho­ mem ou a fênix são compostas de E. (matéria e forma) e existência, separáveis entre si; nelas, E. e existência estão entre si assim como potên­ cia e ato: a E. é potência em relação à existên­ cia; a existência é o ato da essência. Somente em Deus, porém, a E. é a própria existência, porque Deus "não só é a sua E. como também o seu próprio ser"; se assim não fosse, ele exis­ tiria por participação, como as coisas finitas, e não seria o ser primeiro e a causa primeira (S. Th, I, q. 3, a. 4). Esta doutrina da distinção real foi muitas ve­ zes considerada de origem aristotélica. Na reali­ dade, nada tem de aristotélico; aliás contradiz um dos cânones fundamentais da filosofia de Aristóteles, o que identifica o ser ou a existên­ cia com o ato e o ato com a forma; de sorte que não há forma que não seja ato, isto é, que não exista (a forma é a existência: v. ATO; FOR­ MA). Na realidade, a doutrina foi introduzida e utilizada com propósitos diferentes, que nada têm a ver com o aristotelismo. Avicena introdu­ ziu-a como elemento da doutrina da necessida­ de universal. Deus é necessário "em si mes­ mo" porque nele E. implica existência; as coisas finitas são necessárias "por outra coisa", por­ que, como sua E. não implica existência, elas existem apenas em virtude da necessidade di­ vina. Assim, tudo é necessário (cf. A. M. GOLCHON, La distinction de Vessence et de 1 existence daprès Ibn-Sina, 1937). S. Tomás, porém, lan­ ça mão da mesma distinção para ressaltar a diferença entre o ser de Deus e o ser das criatu­ ras, diferença que ele expressou com o princí­

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pio da analogicidade do ser (v. ANALOGIA), e para fazer que o próprio ser das criaturas, por resultar estranho à sua E., exija a intervenção criadora de Deus. Em outros termos, Avicena viu na distinção entre E. e existência um instru­ mento para a defesa do principio de que "tudo o que existe, existe por necessidade, e essa ne­ cessidade é Deus". S. Tomás utiliza a mesma distinção para defender o princípio de que "tudo o que existe, existe por participação no ser, e esse ser é Deus". A doutrina da distinção real inclui duas teses diferentes, mas conexas: d) ser e E. estão separados nas criaturas; b) ser e E. são idênticos em Deus. Ora, mesmo aque­ les que não aceitam a distinção real e, portanto, negam a proposição d), admitem a proposição b) como definição de Deus. Foi o que fez Averróis contra Avicena (Met., IV, 3); o que fez Duns Scot contra S. Tomás (Rep. Par, IV, d. 7, q. 2, n. 7). Ockham, ao contrário, negou ambas as proposições. Sobre a primeira afirma: "A E. não é indiferente ao ser ou ao não-ser, assim como não o é a existência; pois assim como a E. pode ser ou não ser, também a existên­ cia pode ser ou não ser. Os dois termos signi­ ficam, portanto, absolutamente, a mesma coi­ sa" (Quodl., II, 7). Sobre a segunda, afirma que a existência não pode ser contida analiticamente na E. de Deus porque seu predicado está não só em Deus, mas também em todas as outras coisas reais; portanto, é muito mais ampla do que a E. de Deus e não pode ser-lhe intrínseca (In Sent., I, d. 3, q. 4, G). A distinção entre E. e existência é peculiar à doutrina escolástica tradicional, e mesmo na fi­ losofia moderna e contemporânea só é retoma­ da por doutrinas a ela ligadas, sobretudo na elaboração dos conceitos teológicos. Fora do uso teológico, essa distinção foi retomada na filosofia contemporânea por Hartmann, como um dos fundamentos da sua ontologia. "Em cada ente", diz ele, "há um momento de exis­ tência (Dasein). Com isso deve-se entender o fato puro e simples de que, em geral, ele está aí. E em cada ente há também um momento de E. (Soseiri). A este pertence tudo o que consti­ tui a determinação específica ou a particulari­ dade do ente, tudo o que este último possui em comum com um outro ou em virtude do que se distingue do outro, em resumo, tudo 'aquilo que ele é'" (Zur Grundlegung der Ontologie, 23 ed, 1941, p. 92). Embora Hartmann pretenda distinguir o significado do ter­ mo que ele emprega, Sosein, do tradicional,

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essentia, esse significado coincide com o que a tradição escolástica e especialmente o tomismo atribuía à qüididade (quod quid erat esse) ex­ pressa pela definição. Hartmann também admi­ te a distinção real entre E. e existência e con­ sidera a E. como possibilidade e a existência como a atualidade dela (Ibid., p. 95). Com um sentido que nada tem a ver com a distinção real do neoplatonismo árabe e do tomismo, a relação E.-existência foi utilizada na filosofia contemporânea para definir a natureza do ho­ mem. Diz Heidegger: "A natureza desse ente (do ser-aí [Dasein], do homem) consiste no seu ser-para. A E. (essentia) deste ente, no que em geral é possível falar dela, deve ser entendi­ da a partir do seu ser (existentia)" (Sein und Zeit, § 9). Esse "primado da existência sobre a E." não significa, para Heidegger, nem a sepa­ ração real dos dois elementos, que para a Escolástica era própria das criaturas, nem sua identidade real, que para a Escolástica era pró­ pria de Deus; significa apenas que o modo de ser do homem, ou seja, a existência, só pode ser esclarecida e compreendida a partir do fato de que o homem está aí (existe), ou seja, existe no mundo e entre os outros entes (v. EXISTÊNCIA).

ESSENCIAL (in. Essential; fr. Essentiel; ai. Wesentlich; it. Essenziale). Além dos significa­

dos relativos à essência, este adjetivo tem o sig­ nificado mais comum e genérico de "importan­ te". Esse é o significado desse termo em expressões como "caráter E.", "qualidade E.", etc, que na maioria das vezes não fazem refe­ rência aos significados específicos de "essên­ cia", mas só pretendem ressaltar a importância de um caráter, uma quantidade, etc, a partir de certo ponto de vista. ESSENCIALISMO (in. Essentialism, fr. Essentialisme, ai. Essentialismus-, it. Essenzialismo). K. Popper chamou de E. metodológico "a corrente de pensamento introduzida e defendi­ da por Aristóteles, segundo a qual a pesquisa científica deve penetrar até a essência das coi­ sas para poder explicá-las" (The Poverty of Hístoricism, 1944, § 10). ESSÊNIOS. V. JUDAICA, FILOSOFIA.

ESTÁDIO (gr. CTtáSiov; lat. Stadium, in. Stadium; fr. Stade-, ai. Stadium; it. Stadio) O últi­

mo dos quatro argumentos de Zenão de Eléia contra o movimento. Pode ser expresso da se­ guinte forma: duas massas iguais, dotadas de velocidades iguais, deveriam percorrer espa­ ços iguais em tempos iguais. Mas, se duas mas­

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sas se movem, uma de encontro à outra, a par­ tir das extremidades opostas do E., cada uma delas gasta, para percorrer a extensão da ou­ tra, a metade do tempo que elas gastariam se uma delas estivesse parada: disso Zenão con­ cluía que a metade do tempo é igual ao dobro (ARISTÓTELES, FÍS,, VI, 9, 239 b 33). O argu­ mento volta a dizer que, ao se admitir a reali­ dade do movimento, admite-se a equivalência entre metade do tempo e dobro do tempo. ESTADO 1 (gr. noXueía; lat. Respublica; in. State, fr. Etat\ ai. Staat; it. Stató). Em geral, a organização jurídica coercitiva de determinada comunidade. O uso da palavra E. deve-se a Maquiavel (Opríncipe, 1513, § 1). Podem ser distinguidas três concepções fundamentais: Ia a concepção organicista, segundo a qual o E. é independente dos indivíduos e anterior a eles; 2a a concepção atomista ou contratualista, se­ gundo a qual o E. é criação dos indivíduos; 3a a concepção formalista, segundo a qual o E. é uma formação jurídica. As duas primeiras con­ cepções alternaram-se na história do pensa­ mento ocidental; a terceira é moderna e, na sua forma pura, foi formulada só nos últimos tempos. Ia A concepção organicista funda-se na ana­ logia entre o E. e um organismo vivo. O E. é um homem em grandes dimensões; suas partes ou membros não podem ser separados da tota­ lidade. A totalidade precede portanto as partes (os indivíduos ou grupos de indivíduos) de que resulta; a unidade, a dignidade e o caráter que possui não podem derivar de nenhuma de suas partes nem do seu conjunto. Essa concep­ ção do E. foi elaborada pelos gregos. Platão considera que no E. as partes e os caracteres que constituem o indivíduo estão "escritos em tamanho maior" e, portanto, são mais visíveis (Rep., II, 368 d); assim, começa a determinar quais são as partes e as funções do E. para pro­ ceder depois à determinação das partes e das funções do indivíduo (Jbid, IV, 434 e). Este é um modo de exprimir a prioridade do E.: a estrutura do E. é a mesma estrutura do homem, porém é mais evidente. Aristóteles, por sua vez, afirmava: "O E. existe por natureza e é an­ terior ao indivíduo, porque, se o indivíduo de per si não é auto-suficiente, estará, em relação ao todo, na mesma relação em que estão as outras partes. Por isso, quem não pode fazer parte de uma comunidade ou quem não tem necessidade de nada porquanto se basta a si mesmo não é membro de um E., mas fera ou

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Deus" (Pol., I, 2, 1253 a 18). Essas considera­ ções foram repetidas muitas vezes na história da filosofia (cf., p. ex., S. TOMÁS, De regimine principium, I; DANTE, De tnonarchia, I, 3), mas no mundo moderno só foram revigoradas pelo romantismo, que insistiu no caráter su­ perior e divino do E. Fichte dizia: "Na nossa época, mais do que em qualquer outra que a precedeu, todo cidadão, com todas as suas forças, está submetido à finalidade do E., está completamente compenetrado dele e tornou-se seu instrumento" (Grundzüge des gegenwãrtigen Zeitalters, 1806, X). Mas esta concepção foi formulada de modo mais simples e extremo por Hegel, que identificou o E. com Deus: "O ingresso de Deus no mundo é o E.: seu funda­ mento é a potência da razão que se realiza como vontade. Na idéia do E. não se devem ter em mente estados particulares, instituições particulares, mas considerar a idéia por si mes­ ma, este Deus real" iFil. do dir., § 258, Zusatz). O E. é um "Deus no mundo", ou seja, um Deus imanente: constitui a existência racional do ho­ mem. "Só no E. o homem tem existência racio­ nal. A educação tende a fazer que o indivíduo não permaneça como algo de subjetivo, mas se torne objetivo de si mesmo no Estado... Tudo o que o homem é, deve-o ao E.: só nele tem sua essência. O homem só tem valor e realida­ de espiritual por meio do E." {Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, p. 90). Na realidade, os caracteres que a concepção organicista sempre atribuiu ao E. — racionalidade perfeita, autosuficiência e supremacia absoluta — têm sua melhor expressão na tese de Hegel, de que o E. é Deus. Nem sempre, porém, a tese organicista foi formulada de modo tão rigoroso e extremo: o primado atribuído ao E. em relação aos indivíduos e a auto-suficiência do E. nem sempre convenceram de que o E. é Deus, mas sempre levaram a considerá-lo como algo divi­ no, que justificasse a sujeição dos indivíduos. O fim que as concepções organicistas sempre propuseram foi bem expresso por O. Gierke: "Somente do valor superior do todo em con­ fronto com o das partes é que pode derivar a obrigação do cidadão de viver e, se necessá­ rio, morrer pelo todo. Se o povo fosse apenas a soma de seus membros e se o E. fosse ape­ nas uma instituição para o bem-estar dos cida­ dãos, nascidos e nascituros, então realmente o indivíduo poderia ser coagido a dar sua ener­ gia e sua vida pelo E., mas não teria nenhuma obrigação moral de fazê-lo" {Das Wesen der menschlichen Verhànden, 1902, pp. 34 ss.).

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2- Para a concepção atomista ou contratualista, o E. é obra humana: não tem dignida­

de nem caracteres que não lhe tenham sido conferidos pelos indivíduos que o produziram. Foi essa a concepção dos estóicos, que consi­ deravam o E. como respopuli. Diz CÍCERO: "O E. {respublica) é coisa do povo, e o povo não é qualquer aglomerado de homens reunido de uma forma qualquer, mas uma reunião de pes­ soas associadas pelo acordo em observar a jus­ tiça e por comunidade de interesses" (De rep., I, 25, 39). Na história medieval e moderna essa concepção mesclou-se com a precedente. A partir do séc. IX constituiu o princípio teórico a que se recorreu freqüentemente nas lutas polí­ ticas (cf. R. e A. CARLYLE, History ofMediaeval Political Theory, I, seç. I, parte IV, cap. V; trad. it., I, pp. 269 ss.). Suas principais manifestações podem ser vistas no verbete CONTRATUALISMO. Em geral, essa concepção é simetricamente oposta à anterior: para ela, o E. não tem digni­ dade ou poderes que os indivíduos não te­ nham conferido ou reconhecido, e sua unidade não é substancial ou orgânica, não precede nem domina seus membros ou suas partes, mas é unidade de pacto ou de convenção e só vale nos limites de validade do pacto ou da convenção. Às vezes, porém, no próprio tronco do contratualismo enxertam-se as exigências peculiares ao organicismo: é o que acontece, p. ex., em Rousseau, quando ele afirma que "a vontade geral não pode errar". Rousseau, com efeito, distingue entre a vontade de todos e a vontade geral: "Aquela visa somente ao interes­ se comum; esta visa ao interesse pessoal e é a soma das vontades particulares; mas retire-se dessa vontade o mais e o menos que se destroem mutuamente e ficará, como soma das di­ ferenças, a vontade geral" (Contrat social, II, 3). Embora justificada como simples soma al­ gébrica das vontades particulafes, a "vontade geral" de Rousseau, com sua infalibilidade, assemelha-se à racionalidade perfeita do E. orgânico. 3a As duas concepções precedentes de E. têm em comum o reconhecimento do que os juristas hoje chamam de aspecto sociológico do E., ou seja, sua realidade social; o E. é conside­ rado, em primeiro lugar, como comunidade, como um grupo social residente em determina­ do território. Essa concepção fundamentou a descrição de E. formulada por juristas e filó­ sofos do séc. XIX (qualquer que fosse seu conceito filosófico de E.), de que o E. tem três

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elementos ou propriedades características: so­ berania ou poder preponderante ou supremo, povo e território. Desses três aspectos ou ele­ mentos eram feitas descrições estanques e in­ dependentes do conceito filosófico de E. a que se fazia referência implícita ou explicitamente. A melhor definição, nesse aspecto, foi dada porjellinek (Allgemeine Staatslehre, 1900), sen­ do repetida e exemplificada inúmeras vezes (cf., p. ex., W. W. WILLOUGHBY, The Funda­ mental Concepts ofPublic Law, 1924). O as­ pecto sociológico do E., porém, é negado por Kelsen, e essa negação é a característica básica de seu formalismo. Para Kelsen, o E. é simples­ mente a ordenação jurídica em seu caráter normativo ou coercitivo: "Há um único concei­ to jurídico de E., que é o de ordenação jurídica (centralizada). O conceito sociológico de mo­ delo efetivo de comportamento orientado para a ordenação jurídica não é um conceito de E., mas pressupõe o conceito de E., que é o con­ ceito jurídico" (General Theory ofLawand State, 1945; trad. it., p. 192). Em outros termos, o E. "é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordenação coercitiva, e essa ordenação coercitiva é o direito" (Ibid, p. 194). Kelsen não nega, naturalmente, que existam fatos, ações ou comportamentos mais ou menos liga­ dos à ordenação jurídica estatal, mas afirma que tais fatos, ações ou comportamentos são manifestações do E. só enquanto interpretados "segundo uma ordenação normativa, cuja vali­ dade deve ser pressuposta" (Ibid, p. 193). Essa doutrina presta-se a definir de modo simples e elegante os elementos tradicionalmente reco­ nhecidos como próprios do Estado. O território nada mais é que "a esfera territorial de validade da ordenação jurídica chamada E." (Ibid, p. 212). O povo nada mais é que a "esfera pessoal de validade da ordenação", ou seja, os limites do grupo de indivíduos aos quais se estende a validade da ordenação jurídica (Ibid., pp. 237 ss.). Quanto à soberania, Kelsen afirma que atribuí-la ao E. depende da escolha que se faz quanto às hipóteses de primado do direito esta­ tal ou do direito internacional. Na primeira hi­ pótese, o E. é soberano só em sentido relativo, pois nenhuma outra ordenação, que não a in­ ternacional, é superior à sua ordenação jurídi­ ca. Na segunda hipótese, o E. é soberano no sentido absoluto e original do termo (Ibid, p. 391). Essa doutrina representa uma notável simplificação do conceito descritivo tradicional

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de E., reunindo todos os elementos deste na noção fundamental de ordenação jurídica. Por outro lado, porém, estabelece a equivalência de todas as ordenações jurídicas enquanto tais, ou seja, de todas as formas de Estado. O forma­ lismo de Kelsen não permite, com efeito, esta­ belecer qualquer diferença entre E. absolutista e E. liberal, entre E. democrático e E. totalitário, entre E. coletivista e E. liberalista, etc. Inclusive a expressão E. de direito, com que se designa o E. que respeita ou garante os chamados "direi­ tos inalienáveis" do indivíduo, do ponto de vista de Kelsen é desprovida de sentido, já que, para ele, E. e direito coincidem. Contudo, justamen­ te por seu caráter formalista, a doutrina de Kelsen sobre o E., assim como a sua doutrina do direito (v.), abre caminho para a considera­ ção da eficácia (e portanto dos limites) da técnica coercitiva em cada uma de suas fases ou manifestações, ou seja, das ordenações em que se concretiza. Quando Humboldt falava dos "limites da ação do E." (Die Grenzen der Wirksamkeit des Staates, 1851) explicava esses limites justamente pela impossibilidade de o E. atingir certos fins com o único meio de que dis­ põe, ou seja, a técnica coercitiva. Por esse moti­ vo, Humboldt colocava além dos limites da ação do E. a religião, o aperfeiçoamento dos costumes e a educação moral, coisas que de­ pendem de uma disposição não controlável pelos instrumentos de que o E. dispõe. Por outro lado, o E. como ordenação jurídica difi­ cilmente poderia evitar o juízo (propriamente jurídico) sobre a compatibilidade recíproca das normas que constituem tal ordenação, o juízo (este também jurídico) sobre a eficácia de tais normas em alcançar seus objetivos, que é o juízo dado pela chamada ciência da legislação, nem o juízo (político) sobre a oportunidade de incluir, excluir ou modificar normas ou grupos de normas da ordenação em que ele consiste (v. POLÍTICA). ESTADO 2 (Jat. Status; in. State, fr. État; ai. Zustand; it. Stató). Condição, modo de ser ou situação. Desta última noção aproxima-se espe­ cialmente o significado desse termo na expres­ são E. de coisas, pela qual se pode traduzir o alemão Sachverhalto e o inglês state ofaffairs. A expressão alemã foi introduzida por Husserl em Logische Untersuchungen (1901, II, 1, pp. 472 ss.) e por ele definida como o correlato objetivo de juízo (cf. Ideen, I, § 6). Essa noção foi aceita por Wittgenstein, que por ela enten­ dia "uma combinação de objetos (entidades,

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coisas)" (Tractatus, 2). É essa expressão que às vezes se traduz por "fato atômico". Mas, embora o E. de coisas de que fala Wittgenstein seja um elemento inseparável do mundo, a expressão "fato atômico" não traduz literalmente a expressão original. A crítica de Bergson à concepção que a psi­ cologia do séc. XIX fazia da vida psíquica em seu conjunto repousa no conceito de E., consi­ derado por Bergson como uma forma ou um instantâneo imóvel tomado do vir-a-ser (cf. especialmente Évol. créatr., cap. IV, e a análise do "mecanismo cinematográfico do pensamen­ to"). Na verdade, a noção de E. não inclui absolutamente a de repouso ou imobilidade, mas a de relação de objetos entre si no conjun­ to de uma situação. Por Estado de natureza, v. NATUREZA, ESTADO DE. ESTÁTICA. V. MECANICISMO, I, a. ESTATISMO (fr. Étatismê). Em sentido pró­ prio, a doutrina que considera o Estado como única fonte do direito. Em sentido genérico, toda orientação política que atribua ao Estado funções ou poderes preponderantes em qual­ quer campo da atividade humana. ESTATÍSTICA (in. Statistics; fr. Statistique, ai. Statistik, it. Statistica). Coleta e interpretação de dados numéricos em determinado campo; ou então, em geral, a ciência que tem por objeto os métodos para a coleta e a interpretação dos dados numéricos. Nascida no terreno da ob­ servação dos fatos sociais, a E. estendeu-se já a numerosos campos de investigação e, em pri­ meiro lugar, ao domínio da física, inicialmente para a formulação de teorias especiais (a teoria cinética dos gases), depois para a formulação das leis da mecânica quântica. O conceito de lei E., ou seja, da uniformidade relativa da fre­ qüência de certo acontecimento, considerado numa escala numérica suficientemente extensa, foi formulado pela primeira vez pelo astrôno­ mo e matemático belga A. J. Quetelet (Physique sociale, 1869). A correnteprobãbilista da ciên­ cia moderna levou esse conceito a muitos cam­ pos de indagação (v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; FÍSICA; CIÊNCIA). ESTÁTUA (in. Statue, fr. Statue, ai. Statue, it. Statud). Hipótese imaginada por Condillac para demonstrar que todas as atividades psico­ lógicas derivam da sensação. "Imaginemos", diz Condillac, "uma estátua organizada inteira­ mente como nós e animada por um espírito desprovido de qualquer espécie de idéia. Su­ ponhamos também que o exterior, todo de

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mármore, não lhe permitisse o uso dos senti­ dos, cabendo-nos a liberdade de abri-los, à nossa escolha, às diversas impressões de que são capazes" (Traité des sensations, 1754, Pref.). ESTATUTO (in. Statute, fr. Statut; ai. Statut; it. Statutó). Conjunto de normas que definem o estado, ou seja, a condição ou o modo de ser de um grupo social. ESTÉTICA (in. Aesthetics; fr. Esthêtique, ai. Aesthetik; it. Estética). Com esse termo designase a ciência (filosófica) da arte e do belo. O substantivo foi introduzido por Baumgarten, por volta de 1750, num livro (Aestheticd) em que defendia a tese de que são objeto da arte as representações confusas, mas claras, isto é, sensíveis mas "perfeitas", enquanto são objeto do conhecimento racional as representações distintas (os conceitos). Esse substantivo signi­ fica propriamente "doutrina do conhecimento sensível". Kant, que também fala (Crítica do Juízo) de um juízo estético, que é o juízo so­ bre a arte e sobre o belo, chama de "E. trans­ cendental" (Crítica da Razão Pura) a doutrina das formas apriori do conhecimento sensível. Mas em Kant o substantivo E., alusivo à arte e ao belo, já não se referia à doutrina de Baumgarten; hoje, esse substantivo designa qualquer análise, investigação ou especulação que tenha por objeto a arte e o belo, independentemente de doutrinas ou escolas. Dissemos "arte e belo" porque as investiga­ ções em torno desses dois objetos coincidem ou, pelo menos, estão estreitamente mescla­ das na filosofia moderna e contemporânea. Isso não ocorria, porém, na filosofia antiga, em que as noções de arte e de belo eram consideradas di­ ferentes e reciprocamente independentes. A doutrina da arte era chamada pelos antigos com o nome de seu próprio objeto, poética, ou seja, arte produtiva, produtiva de imagens (PLATÃO, Sof, 265 a; ARISTÓTELES, Ret., 1,11,1371 b 7), enquanto o belo (não incluído no núme­ ro dos objetos produzíveis) não se incluía na poética e era considerado à parte (v. BELO). Assim, para Platão, o belo é a manifestação evidente das Idéias (isto é, dos valores), sendo, por isso, a via de acesso mais fácil e óbvia a tais valores (Fed., 250 e), ao passo que a arte é a imitação das coisas sensíveis ou dos acon­ tecimentos que se desenrolam no mundo sen­ sível, constituindo, antes, a recusa de ultrapas­ sar a aparência sensível em direção à realidade e aos valores (Rep., X, 598 c). Para Aristóteles,

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o belo consiste na ordem, na simetria e numa grandeza que se preste a ser facilmente abarcada pela visão em seu conjunto (Poet., 7, 1450 b 35 ss.; Met, XIII, 3, 1078 b 1), ao mesmo tempo que retoma e adota a teoria da arte como imi­ tação, apesar de, com a noção de catarse, retirála daquela espécie de confinamento à esfera sensível a que fora condenada por Platão (v. mais abaixo). A partir do séc. XVIII, as noções de arte e belo mostram-se vinculadas, como objetos de uma única investigação; essa conexão foi fruto do conceito de gosto, entendido como faculda­ de de discernir o belo, tanto dentro quanto fora da arte. A investigação de Hume Sobre a norma do gosto (1741) já supõe essa identifica­ ção, assim como a de Burke, Sobre a origem das idéias do sublime e do belo (1756; cf. V, I), e o ensaio cie G. SPALLETTI, Sopra labellezza (1765; cf. §§ 19-20). Mas foi sobretudo Kant quem estabeleceu a identidade entre artístico e belo, ao afirmar que "a natureza é bela quando tem a aparência da arte"; e que "a arte só pode ser chamada de bela quando nós, conquanto cons­ cientes de que é arte, a consideramos como na­ tureza" (Crít. dojuízo, § 45). Finalmente, Schelling invertia a relação tradicional entre arte e natureza, fazendo da arte a norma da natureza e não o contrário. Para Schelling, a arte é a rea­ lização necessária e perfeita da beleza a que a natureza só chega de modo parcial e casual (System des transzendentalen Idealísmus, 1800, VI, § 2; cf. "As artes figurativas e a natureza", 1807, em Werke, VII, pp. 289 ss.). Todavia, a tentativa de separar a ciência da arte da doutrina do belo ocorreu mais recente­ mente na Alemanha, com vistas a instituir uma "ciência geral da arte" em bases positivas (E. UTITZ, Grundlegung der allgemeinen Kunstwissenschaft, 2 vols., Stuttgan. 1914 e 1920; M. DESSOIR, Ãsthetik und allgcmeine Kunstwissenschaft, Stuttgart, 1923). Essa ciência de­ veria ter como objeto a arte em seus aspectos técnicos, psicológicos, morais e sociais, caben­ do à E. a consideração do belo, que para ela é tradicional e insuficiente para explicar todos os fenômenos artísticos, porquanto a arte dos primitivos, p. ex., e grande parte da arte mo­ derna parecem fugir à categoria do belo. Essas considerações, porém, não parecem decisivas. No uso comum e mesmo no erudito (próprio dos críticos de arte e dos filósofos), a noção de "belo" é suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizada, ainda que

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represente coisas ou pessoas que, por si mes­ mas, não poderiam ser chamadas de "belas" com base nos cânones correntes. Portanto, não se afigurou oportuno separar a E., como ciên­ cia filosófica do belo, da ciência da arte en­ quanto tal (cf. B. C. HEYL, New Bearings in Esthetics and Ari Criticism, 1943, pp. 20 ss.). Por outro lado, no próprio domínio da E. são cada vez mais discutidos problemas de ordem psicológica, social, moral, etc, o que não pare­ ce exigir um lugar à parte. A proposta em ques­ tão, portanto, só serviu para ressaltar a exigên­ cia de que esses problemas sejam cada vez mais debatidos no âmbito da E. Teve mais su­ cesso a proposta de Paul Valéry de distinguir da E. uma poética que deveria consistir "na análise comparada do mecanismo do ato do escritor e das outras condições menos defini­ das que esse ato parece exigir" (Variéte, 1944, V, p. 292). Pelo nome de poética, hoje se indica freqüentemente o conjunto de reflexões que um artista faz sobre sua própria atividade ou sobre a arte em geral; e se, com o uso dessa palavra, não se pretender aludir a uma forma de E. menor, debilitada ou provisória, seu uso não suscita objeções. A história da E. apresenta uma grande varie­ dade de definições da arte e do belo. Embora cada uma dessas definições tenha, via de regra, a pretensão de expressar de forma absoluta a essência da arte, hoje vai ganhando corpo a idéia de que a maioria delas só expressa tal essência do ponto de vista de um problema particular ou de um grupo de problemas. P. ex., está bastante claro que a definição de arte como imitação é a solução de um problema to­ talmente diferente do problema cuja solução é a definição da arte como prazer: de fato, a pri­ meira refere-se à relação entre arte e natureza; a segunda, à relação entre arte e homem. Por isso, as teorias E. só podem ser apresentadas com referência aos problemas fundamentais cuja solução constituem (ou pretendem consti­ tuir), sendo necessário, preliminarmente, expor tais problemas para poder apontar, a propósi­ to de cada um, as soluções mais importantes que já foram ou estão sendo propostas. Ora, os problemas fundamentais em tomo dos quais podem ser agrupados todos os problemas discutidos no domínio da E., permitindo orien­ tar-se em meio à variedade de tendências des­ sa ciência, são três: Ia a relação entre a arte e a natureza; 2° a relação entre a arte e o ho­ mem; 3a a função da arte.

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Ia Muitas definições de arte são determina­ ções da relação entre a arte e a natureza (ou, em geral, a realidade). Como se pode enten­ der a arte como algo dependente da natureza, independente dela ou condicionada por ela, é possível distinguir três diferentes concep­ ções de arte, sob esta perspectiva: a) arte co­ mo imitação, b) arte como criação; c) arte como construção. d) A definição mais antiga de arte na filoso­ fia ocidental, a de imitação, pretende subordi­ nar a arte à natureza ou à realidade em geral. Platão insiste na passividade da imitação artísti­ ca: o pintor só faz reproduzir a aparência do objeto construído pelo artesão (Rep, 598 b); o poeta só faz copiar a aparência dos homens e de suas atividades, sem aperceber-se realmente das coisas que imita e sem a capacidade de realizá-las (Jbid., 599 b). Para Aristóteles, o va­ lor da arte deriva do valor do objeto imitado: p. ex., devem pertencer ao objeto que a tragé­ dia imita, ou seja, ao mito, os caracteres que asseguram a produção da boa tragédia. "Assim como para serem belos os corpos dos seres.vivos devem ter uma grandeza que, em seu con­ junto, possa ser facilmente abarcada pelo olhar, também o mito deve ter uma extensão que possa ser facilmente abarcada, em seu conjun­ to, pela mente" (Poet., VII, 1451 a 2). Desse ponto de vista, ao artista cabe, quando muito, o mérito da escolha oportuna do objeto imitado, mas, uma vez escolhido o objeto, não pode fa­ zer mais do que reproduzi-lo em suas caracte­ rísticas próprias. Pouco importa se o objeto imitado é uma coisa natural ou uma entidade transcendente ou inteligível: a passividade da imitação permanece. Assim Sêneca diz que, quando o artista mantém o olhar voltado para um exemplar concebido por ele mesmo, esse exemplar na realidade está contido na mente divina (Ep., 65), isto é, não é criado. Do mesmo modo, observa Plotino: "Se alguém despreza as artes porque só fazem imitar as coisas naturais, é preciso dizer, em primeiro lugar, que as mes­ mas coisas naturais imitam outras coisas e, em segundo lugar, é preciso saber que as artes não imitam diretamente os objetos visíveis, mas contemplam as regiões de que estes provêm e, assim, são capazes de fazer muitas coisas por sua própria conta e de acrescentar o que falta às coisas naturais" (Enn., V, 8, 2). Assim, se­ gundo Plotino, o que a arte acrescenta à natu­ reza é por ela haurida da realidade superior (inteligível) para a qual tem voltado o olhar.

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Hoje a teoria da imitação é defendida e prati­ cada pelos partidários do realismo na arte, so­ bretudo nos países comunistas e em quem se inspira na ideologia comunista. Mas muitas vezes a interpretação que se faz da imitação elimina exatamente o caráter passivo que a caracterizava na formulação clássica. Assim, Lukács, que define a arte como "reflexo da realidade", entende que essa realidade é resul­ tado da interação entre natureza e homem, interação mediada pelo trabalho e pela socie­ dade, em seu momento histórico. Por isso, vê na arte "o modo de expressão mais adequado e mais elevado da autoconsciência da humani­ dade" (Àsthetik l, 1963, cap. VII, § III, trad. it., p. 575). Desse ponto de vista, a imitação não se distingue da criação. b) O conceito de arte como criação é pecu­ liar ao romantismo e foi posto em prática por Schelling. "É fácil entender no que o produto E. se distingue do produto de artesanato comum, porque toda criação E. é, em princípio, absotamente livre, porquanto o artista só pode ser impelido a ela por uma contradição que se ache na parte mais elevada da sua natureza, ao passo que qualquer outra criação é ocasionada por uma contradição exterior a quem cria e tem, por isso, objetivo fora de si" {System, cit., VI, § 2). Para Schelling, a arte é a mesma ativi­ dade criadora do Absoluto porque o mundo é um "poema" (Ibid., VI, § 3) e a arte humana é uma continuação, especialmente através do gê­ nio, da atividade criadora de Deus. Esse con­ ceito foi retomado por Fichte nas obras do se­ gundo período, Caracteres do tempo presente (1806), Essência do sábio (1805) e Destinação do sábio (1811) (cf. PAREYSOL, L'E. delVidealismo tedesco, 1950, pp. 388 ss.). Como se vê, a tese romântica da arte como criação compõe-se de duas teses diferentes: I, a arte é originali dade absoluta e os seus produtos não são referíveis à realidade natural; II, como originalida­ de absoluta, a arte é parte (continuação ou ma­ nifestação) da atividade criadora de Deus. Fo ram essas as teses fundamentais de Hegel em Lições de estética: "Poder-se-ia imaginar que o artista recolhe no mundo exterior as melhores formas e as reúne, ou que faz uma escolha de fisionomias, situações, etc, para encontrar as formas mais adaptadas ao seu conteúdo. Mas quando assim recolhe e escolhe ainda não fez nada, pois o artista deve ser criadore, em sua fantasia, com o conhecimento das formas ver­ dadeiras, com sentido profundo e sensibilidade

viva, deve formar e exprimir o significado que o inspira de modo espontâneo e com ím­ peto" (Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 240). Por outro lado, justamente por esse seu caráter de criação, a arte pertence à esfera do Espírito absoluto e, ao lado da reli­ gião e da filosofia, é uma das suas manifesta­ ções ou realizações no mundo. "A arte", diz Hegel, "por ocupar-se do verdadeiro como ob­ jeto absoluto da consciência, pertence à esfera absoluta do espírito e graças a seu conteúdo situa-se no mesmo plano da religião e da filoso­ fia. Pois também a filosofia não tem outro objeto a não ser Deus e é assim essencialmente uma teologia racional e um perpétuo culto divino a serviço da verdade" (Ibid, I, pp. 147-48). Nes­ se aspecto, Croce praticamente só fez repetir a doutrina de Hegel. "Como posição e reso­ lução de problemas (da fantasia ou estéticos), a arte não reproduz nada de existente, mas pro­ duz sempre algo de novo, forma uma nova si­ tuação espiritual e, portanto, não é imitação, mas criação. Do mesmo modo, criação é pen­ samento que também consiste em posição e resolução de problemas (lógicos, filosóficos ou especulativos, como se preferir chamá-los), e nunca em reprodução de objetos ou de idéias" (Nuovi saggi di E., 1920, p% 156). No mesmo sentido, Gentile escreveu: "É difícil renunciar a ver no artista um espírito criador livre. O pen­ samento comum encontra dificuldade em aper­ ceber-se claramente dessa criatividade do ho­ mem, mas, embora obscura, essa idéia do artista que cria um mundo seu está profunda­ mente arraigada em todo homem que se apro­ xima da obra de arte" (Fil. delVarte, 1931, 11, § 4). No âmbito da concepção romântica de arte, o princípio de arte como criação aparece como verdade evidente. O corolário principal dessa concepção é a pouca importância atribuída aos meios técnicos de expressão e a insistência na natureza "espi­ ritual", consciencial da arte. A esse respeito Hegel dizia: "A obra de arte só superficialmente tem a aparência da vida, pois no fundo é pe­ dra, madeira, tela ou, no caso da poesia, letras e palavras. Mas esse aspecto da existência ex­ terna não é o que constitui a obra de arte; esta tem origem no espírito, pertence ao domínio do espírito, recebeu o batismo do espírito e exprime tão-somente o que se formou sob a inspiração do espírito" {Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 55). Croce, por sua vez, confinou a técnica expressiva da arte ao

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domínio da "prática" e considerou-a como sim­ uma necessidade aplacada. O conceito pelo ples expediente de comunicação: "O artista, qual Kant exprimiu com mais freqüência o cará­ que deixamos a vibrar em imagens expressas ter construtivo (nem imitativo nem criativo) da que prorrompem, por infinitos canais, de todo arte foi a atividade lúdica. Como atividade liberal o seu ser, é homem integral e, portanto, tam­ ou não mercenária, a arte é "um simples di­ bém homem prático; como tal, está atento aos vertimento, ou seja, uma ocupação de per si meios que evitem a dispersão dos resultados agradável, que não necessita de outro objetivo" de seu trabalho espiritual, ao mesmo tempo (Ibid, § 43). Depois, a noção de atividade lúdica que possibilitam e facilitam a reprodução de foi empregada para definir algumas artes em suas imagens para ele e para os outros; por particular, especialmente a eloqüência, a poesia isso, realiza atos práticos que servem à obra de e a música (Ibid., § 51). Tem esse mesmo signifi­ reprodução. Esses atos, como todo ato prático, cado o conceito de atividade lúdica na doutrina são guiados por conhecimentos e por isso são de Schiller. O homem, sendo ao mesmo tempo chamados de técnicos; e, por serem práticos, natureza e razão, é dominado por duas tendên­ distinguem-se da intuição, que é teórica, e pa­ cias contrastantes: a tendência materiale a ten­ recem exteriores a esta, sendo então chamados dência formal; essas tendências são conciliadas de físicos, e, quanto mais são fixados e abstraí­ pela tendência ao divertimento, que visa reali­ dos pelo intelecto, mais facilmente são assim zar a forma viva, isto é, a beleza (Über die designados" (Breviario diE., em Nuovisaggi di ãsthetische Erziehung des Menschen, 1793-95, E., II, pp. 39-40). E Gentile confirmava: "Admi­ XV; trad. it., p. 71). A tendência à atividade tindo-se que o elemento estético consiste na lúdica harmoniza a liberdade humana com a ne­ subjetividade sentimental que conforma um cessidade natural. "Com liberdade ilimitada", diz pensamento, a representação na qual esse pen­ Schiller, "o homem pode reunir as coisas que a samento se desenvolve e atua refere-se unica­ natureza separou e pode separar as que a natu­ mente aos meios técnicos de expressão. Alfieri reza uniu... Mas só tem esse direito de soberania é o mesmo poeta nos sonetos e nas tragédias, no mundo das aparências, no reino irreal da etc." (Fil. deWarte, VII, § 8). imaginação e só enquanto se abstém escrupu­ losamente sua existência no cam­ c) Tem-se o conceito de arte como constru­ po da teoriade eafirmar de querer produzir sua exis­ ção quando não se considera a atividade E. tência efetiva" (Ibid., XXVI, p. 134). como receptividade ou criatividade puras, mas co­ mo um encontro entre a natureza e o homem Portanto, a aparência E. (ou atividade lúdica) ou como um produto complexo em que a obra é o domínio em que o homem e a natureza do homem se acrescenta à da natureza sem des­ colaboram, a natureza limitando e condicionando truí-la. Esse foi o conceito de arte de Kant, que a liberdade humana e esta, por sua vez, compon­ concebeu a atividade E. como uma forma de do e unificando os dados naturais. Esse é o juízo reflexivo, ou seja, uma das formas da conceito construtivo, que não deixou de apare­ faculdade que leva a ver a subordinação das leis cer esporadicamente mesmo na E. romântica naturais à liberdade humana ou o finalismo da do séc. XIX. O mais volumoso (senão o maior) natureza em relação ao homem. Para Kant, o tratado sobre essa E., E. ou ciência do belo finalismo da natureza não é "um conceito da na­ (1846-57) de F. T. Vischer, apesar de aceitar a tureza" nem "um conceito da liberdade", ou Idéia hegeliana, isto é, a Razão autoconsciente seja, não pertence só à natureza nem só ao ho­ como princípio do mundo da arte, dizia que a mem, mas ao encontro entre a natureza e o Idéia estava em luta incessante contra obstácu­ homem, pelo fato de que é na natureza que los e influências que Vischer chamava de "rei­ o homem deve realizar seus fins, experimentando no do acaso". Segundo Vischer, toda a vida do um sentimento de prazer (libertação de uma ne­ espírito é "a história da anulação e da assimila­ cessidade) quando essa realização lhe aparece ção do acaso" (Asthetikoder Wissenschaftdes possível, quando a natureza se mostra capaz de Schónen, § 41), mas é só na beleza que o acaso servir aos fins humanos (Crít. do Juízo, Intr., V). não é destruído, mas assimilado e organizado. No mesmo conceito de atividade E., Kant incluía Isso eqüivalia a ver na arte não uma obra de assim o de encontro entre o mecanismo natural criação, como a concebera Hegel, mas de cons­ e a liberdade humana: encontro no qual a arte trução condicionada. não prescinde da natureza, mas a subordina a si, Na E. contemporânea, predomina o concei­ e o homem frui dessa subordinação como de to de arte como construção. Foi explicitamente

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defendido por Valéry, que, com base nele, afir­ mou a excelência da arquitetura sobre todas as outras artes. "Aquele que constrói ou cria", escreveu Valéry, "comprometido que está com o restante do mundo e com o movimento da natureza, que tendem perpetuamente a dissol­ ver, a corromper ou a derrubar o que ele faz, deve entrever um terceiro princípio que ele tenta comunicar às suas obras, e que exprime a resistência que ele deseja opor, por meio dele, ao seu destino de ser mortal. Cria, em suma, a solidez e a duração" (Eupalinos, trad. it., p. 142). O mesmo conceito encontra-se repetido de várias formas nas considerações estéticas de muitos poetas contemporâneos (v. POESIA) e é expresso por Dewey na forma mais apropriada de colaboração ou oposição entre fazer e rece­ ber: "A arte, em sua forma, associa numa mes­ ma relação o fazer e o receber, a energia que sai e entra, que faz com que uma experiência seja experiência. O produto é a obra de arte E., graças à eliminação de tudo o que não contri­ bui para a organização mútua dos fatores da ação e da recepção e graças à seleção dos aspectos e das características que contribuem para a sua interpretação" (Art as Experience, 1934, cap. III; trad. it., p. 60). L. Pareyson, ao estudar a formação da obra de arte e ao pro­ por a sua teoria, delineou os caracteres da construção artística. "Fazer, inventando ao mesmo tempo o modo de fazer; considerar a realização bem-sucedida como critério em si mesma; produzir a obra inventando suas pró­ prias normas; fazer que a invenção coincida com a produção, a ideação com a realização, a concepção com a execução; agir de tal modo que a obra de arte seja ao mesmo tempo a lei e o resultado de sua própria formação, são essas as muitas expressões equivalentes para designar o processo de formação da arte e para indicar a coincidência entre en­ saio e organização no processo artístico" {Estética, 1954, p. 126). A tese fundamental dessa concepção de arte é a identidade en­ tre produção artística e técnica, assim como a distinção radical entre técnica e produção é a tese característica da concepção de arte como criação. A chamada arte abstrata, que, mais do que as outras, insiste na identidade entre técni­ ca e produção é, em seu conjunto, uma mani­ festação desse modo de entender a arte. 2a O segundo problema fundamental da E. é o da relação entre a arte e o homem, ou seja, da situação ou posição da arte no sistema de

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faculdades ou categorias espirituais. Podem-se distinguir a respeito três concepções funda­ mentais: A) a que considera a arte como conheci­ mento; B) a que a considera como atividade prática; O a que a considera como sensibilidade. A) A concepção da arte como conhecimento parece ser sugerida pela doutrina de Aristóte­ les, ainda que este tenha explicitamente atri­ buído a arte à esfera da atividade prática, como veremos. Mas ele observa que a arte tem ori­ gem na tendência à imitação, que é um aspecto do desejo de conhecer (Poet., IV, 1448b 5), afir­ mando sobre a poesia, em uma passagem céle­ bre, que ela é mais filosófica do que a história (Ibid, 9, 1451 b 5), o que parece querer dizer que ela tem maior valor teorético do que a história por estar mais próxima da primeira ciên­ cia teorética. Mas foi sobretudo o romantismo que insistiu no valor cognitivo da arte, vendo nela (Schelling) "o órgão geral da filosofia", porquanto a arte permite apreender a "identi­ dade entre a atividade consciente e a incons­ ciente", que é Deus ou o Absoluto (System, cit., VI, 1). Hegel atribuía à arte um grau a menos, situando-a abaixo da filosofia e da religião, mas reafirmava seu valor teórico ao incluí-la na esfera do "Espírito absoluto", que é o mais alto conhecimento (ou "autoconsciência") que o Absoluto pode alcançar de si mesmo (Ene, § 556). A E. de Croce e todas as que a tomam por modelo adotam essa inclusão. Desde a primeira formulação de sua doutrina, Croce insistiu na definição da arte como primeiro grau do conhecimento, ou seja, como "conhecimento intuitivo ou do particular" (É, 1902, cap. I). E sempre insistiu na tese de que a arte é "uma teorese, um conhecer", que religa o particular ao universal e portanto tem sempre a marca da universalidade e da totalidade (La poesia, 1936). Essa mesma tese também é o pressupos­ to da E. de Gentile, em que a definição da arte como sentimento significa apenas a redução da arte a pensamento "inatual", ou seja, que ainda não se realizou em um objeto (La filosofia deWarte, 1931, cap. IV). Mesmo a doutrina bergsoniana da arte, formulada a propósito da função da comicidade, reduz a arte à intuição, que é o órgão do conhecimento filosófico (Le rire, 1908, p. 160). Finalmente, a corrente críti­ ca que, em artes plásticas, foi chamada de cor­ rente da "visibilidade pura", por ver nas formas e nos graus das artes plásticas formas e graus

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da visão, algumas vezes adotou essa noção da arte como conhecimento. Assim, p. ex., K. Fiedler disse: "Só a verdade e o conhecimento parecem ser ocupações dignas do homem, e se quisermos dar à arte um lugar entre as mais elevadas tendências do espírito será preciso indicar como objetivo seu apenas o impulso para a verdade, o impulso para o conhecimen­ to" (Aphorismen, em Schriften überKunst, 1914, II, 8, pp. 147 ss.). E) A inclusão da arte na esfera da atividade prática é a tese explícita de Aristóteles. Dada a grande divisão entre ciências teoréticas ou cognoscitivas, que têm por objeto o necessário, e ciências praticas, que têm por objeto o possí­ vel, para Aristóteles a arte pertence ao domínio prático e constitui o objeto da poética, ou seja, da ciência da produção, enquanto a outra sub­ divisão da prática é a ciência da ação (Et. nic, VI, 4, 1140 a 1). Não obstante a forte influência de Aristóteles (ou talvez porque essa influên­ cia tenha sido anulada pela outra a que já nos referimos), a concepção da arte como ativi­ dade prática raramente voltou na história da es­ tética. Pode ser incluída nesse tópico a concep­ ção da arte como atividade lúdica, exposta pela primeira vez por H. Spencer, que considerou a arte como uma atividade que se desvinculou de sua finalidade de adestramento biológico e tornou-se fim em si mesmo (Principies of Psychology, 1855, §§ 535-36). Com algumas va­ riantes, essa teoria foi retomada por K. Groos, que associou a arte à "experiência sensorial lúdica" (Spiele des Menschen, 1889), mas foi so­ bretudo Nietzsche quem insistiu no caráter prá­ tico da arte, vendo nela uma manifestação da vontade de potência. Segundo Nietzsche, a arte está condicionada por um sentimento de força e de plenitude como o que se verifica na em­ briaguez. A beleza é a expressão de uma von­ tade vitoriosa, de uma coordenação mais inten­ sa, de uma harmonia de todas as vontades violentas, de um equilíbrio perpendicular infa­ lível: "A arte corresponde aos estados de vigor animal. É, por um lado, um excesso de consti­ tuição vigorosa que transborda para o mundo das imagens e dos desejos; por outro, é a exci­ tação das funções animais, por meio das ima­ gens e dos desejos de uma vida intensa; é a exaltação do sentimento da vida e um estimu­ lante à vida" (WillezurMacht, ed. 1901, § 361). É essencial à arte a perfeição do ser, o encami­ nhamento do ser para a plenitude; a arte é essencialmente a afirmação, a divinização da

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existência. O estado apolíneo (v.) nada mais é que a resultante extrema da embriaguez dio­ nisíaca: é o repouso de certas sensações extre­ mas de embriaguez. O A inclusão da arte na esfera da sensibili­ dade é uma tese platônica que reaparece no séc. XVIII com inversão de sinal. Platão confi­ nara a arte à esfera da aparência sensível e a caracterizara pela recusa de sair dessa esfera com o uso do cálculo e da medida (Rep. X, 602 c-d). Mas no séc. XVIII, a noção de arte como sensibilidade não é mais diminuição ou conde­ nação: a arte aparece como a perfeição da sen­ sibilidade. O nascimento e a elaboração do conceito de gosto (v.), paralelamente ao nasci­ mento e à elaboração da categoria sentimento (v.) condiciona a nova apreciação da esfera da sensibilidade, própria da filosofia dos setecentistas, e a inclusão das artes nessa esfera. Baumgarten achava que "o objetivo da E. é a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal" e que essa perfeição é a beleza (Aesthetica, 1750-58, § 14). É bem verdade que ele conside­ rava as representações E. como representa­ ções claras, mas confusas, e assim estabele­ cia uma diferença só de grau entre estas e as representações racionais (que são claras t dis­ tintas): o que, como Kant deveria observar freqüentemente, não é uma distinção suficiente entre sensibilidade e inteligência (Crít. R. Pura, § 8; cf. Crít. do Juízo, Intr., § III). Mas é também verdade que, muito embora com conceitos im­ perfeitos, Baumgarten tinha em mira reivindi­ car a autonomia da esfera sensível. Viço incluía a poesia nessa esfera, em oposição a tudo o que "sobre a origem da poesia se disse, primeiro por Platão, depois por Aristóteles, até os nos­ sos Patrizi, Scaligeri, Castelvetri" (Sc. nuova, 1744, II, Delia metafísica poética). Segundo Viço, a tese desses autores era da poesia como "sabedoria oculta", ou seja, "metafísica raciocii nada e abstraída", ao passo que a tese de Viço era de que a poesia fora metafísica "sentida e imaginada", tal como podia ocorrer em ho­ mens "que eram de nulo raciocínio, mas de sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias" (Ibid, 1744, II, Delia metafísica poética). Ora, segundo Viço, metafísica (isto é, conhecimen­ to) e poesia opõem-se totalmente: aquela puri­ fica a mente dos preconceitos da infância, esta neles imerge e derrama a mente; aquela resis­ te ao juízo dos sentidos, esta faz deles a sua norma principal; aquela debilita a fantasia, esta a requer robusta; enfim, aquela só confere pen­

L

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samentos abstratos e isentos de paixão, esta só confere pensamentos concretos e corpulentos, que movem com extraordinária violência os espíritos humanos (Sc. nuovaprima, 1725, III, 26, em Opere, ed. Ferrari, IV, p. 227). A fanta­ sia, que é o órgão da poesia, é definida por Viço como a faculdade que "altera e contrafaz" as coisas (5c. nuova, 1744, III, Dell' inarrivabile facoltà poética d'Omero); em geral, a fantasia é tanto mais robusta quanto mais débil o raciocí­ nio (Ibid., I, Elementi, 36). Com Kant, oficia­ lizava-se o nascimento da "faculdade do senti­ mento" e a tal faculdade atribuía-se o juízo E., procurando-se determinar, por conseguinte, os seus caracteres (Crít. doJuízo, Intr., § III). Na E. contemporânea, foi a essa faculdade que se atribuiu arte com mais freqüência. Segundo Santayana, "a beleza é um prazer considerado como a qualidade de uma coisa", sendo por isso sempre "uma emoção, um afeto da nossa natureza volitiva e valorativa" (The Sense of Beauty, 1896, § 11). Para Dewey, igualmente, a arte é "uma forma de sentimento" (Art as Experience, 1934, cap. IV). 3S O terceiro ponto de vista do qual se po­ dem considerar as teorias estéticas é o da fun­ ção atribuída à arte. Todas as teorias incidem em dois grupos fundamentais, que conside­ ram a arte a) como educação ou (3) como expressão. Como educação, a arte é instrumen­ tal; como expressão, é final. a) A teoria da arte como educação é mui­ tíssimo mais antiga e mais difundida. Platão condenou a arte imitativa por reputá-la nàoeducativa e, mais, antieducativa (Rep., X, 605 a-c), mas aceitou e defendeu as formas artísti­ cas nas quais entreviu instrumentos educacio­ nais úteis (Ibid., III, 395 c). Aristóteles afirma­ va que "a música não deve ser praticada só por um tipo de benefício que dela possa derivar, mas por usos múltiplos, já que pode servir à educação, à catarse e, em terceiro lugar, ao re­ pouso, ao soerguimento da alma e à suspensão dos afazeres" (Pol, VIII, 7, 1341 b, 35). O que ele diz sobre a música obviamente vale para todas as artes; igualmente, a catarse (v.) e o divertimento são procedimentos educativos. O conceito da arte como educação persistiu por toda a Idade Média e não foi sensivelmente alterado ou inovado pelas discussões estéticas do Renascimento. A tônica no caráter catãrtico da arte nada mais é que a ênfase em sua instaimentalidade educativa. Disso nem Viço duvida­ va, ao insistir nos "três trabalhos que a grande

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poesia deve realizar, quais sejam, encontrar fá­ bulas sublimes condizentes com o entendimen­ to popular e que o perturbe ao extremo, para atingir o fim a que se propõe, que é ensinar o vulgo a agir virtuosamente, assim como eles [os poetas] ensinaram a si mesmos" (Sc. nuova, II, Delia metafisica poética). Esse é ainda o ponto de vista tradicional, para o qual a arte é um ins­ trumento de aperfeiçoamento moral. Mas a própria teoria da arte como conhecimento per­ tence ao âmbito da concepção instrumental ou educativa da arte. Hegel expressou-a com toda a clareza possível. Procurando determinar o ob­ jetivo da arte na introdução de Lições de E., ele elimina as teorias para as quais a finalidade da arte é a imitação, a expressão (neste caso, se­ ria verdadeira a fórmula da artepela arte) ou o aperfeiçoamento moral, para insistir no seguin­ te: a finalidade da arte é a educação para a ver­ dade através da forma sensível que esta reveste na arte, e o aperfeiçoamento moral é uma con­ seqüência inevitável da educação teórica. "É preciso admitir", diz Hegel, "que a arte deve revelar a verdade na forma da representação sensível, que deve representar a oposição reconciliada [entre forma sensível e conteúdo de verdade] e que, portanto, tem objetivo em si mesma, nessa representação e manifestação" (Vorlesungen über Asthetik, ed. Glockner, I, p. 89). Mas a educação na verdade nada mais é que educação moral, e para Hegel a tarefa da arte é produzir a morte da arte, ou seja, passar para as formas superiores de revelação da Ver­ dade absoluta, que são a religião e a filosofia (Ibid.. III, pp. 579 ss.). Com certa atenuação ou confusão, esse ponto de vista foi repetido por Croce, que reconhece que o conhecimento E. se conserva no conhecimento filosófico assim como na arte se conserva a exigência moral ou a consciência do dever (Breviario diE., III). Às teorias que vêem na arte um instrumento educativo com vistas à moral e ao conhecimen­ to ultimamente se somaram as que nela vêem um instrumento de educação política. Essas são as doutrinas que falam do engajamento po­ lítico em arte e que exigem do artista uma orientação política precisa, uma obra harmoni­ zada com as classes ou os grupos sociais majo­ ritários menos favorecidos (ou com os partidos que os representam ou pretendem represen­ tá-los), que os ajude no esforço de libertação e, portanto, de conquista e de conservação do poder político. Do ponto de vista filosófico essa tese, própria das doutrinas estéticas inspi­

ESTÉTICA

radas na ideologia comunista, não é mais ab­ surda que as doutrinas tradicionais que estabe­ lecem como tarefa da arte a educação moral ou cognoscitiva. É verdade que a política tem exi­ gências mais mutáveis e mais arbitrárias que a moral ou o conhecimento: desse modo, o en­ gajamento político apresenta o risco de limitar de modo muito mais drástico que o enga­ jamento moral ou cognoscitivo as direções em que podem ser realizadas ou desenvolvidas as experiências artísticas e, portanto, bloquear antecipadamente experiências que poderiam mostrar-se fecundas. Mas a autonomia, ou seja, o caráter final e não instrumental da arte, tam­ pouco é garantida pela doutrina que vê na arte um engajamento cognoscitivo ou moral. p) A teoria da expressão consiste em ver na arte uma forma final das vivências, das ativida­ des ou, em geral, das atitudes humanas (v. EX­ PRESSÃO). O que caracteriza a atitude expressiva é apresentar como fim aquilo que para outras atitudes vale como meio. P. ex., ver, que é um meio para orientar-se no mundo e para utilizar as coisas, torna-se um fim em arte, de tal modo que o pintor outra coisa não quer senão ver e fazer ver. Por isso, também se diz que a expres­ são aclara e transporta para outro plano o mun­ do comum da vida: as emoções, as necessida­ des e também as idéias ou os conceitos que dirigem a existência humana. Dewey disse: "A emoção que foi elaborada por Tennyson, na composição In memoríam, não era idêntica ao sentimento de dor que se manifesta no pranto e no abatimento: a primeira é um ato de ex­ pressão, a segunda de desabafo. Todavia, é evidente a continuidade das duas noções, ou seja, o fato de a emoção estética ser a emoção originária, transformada através do material objetivo ao qual foi confiado o seu desenvolvi­ mento e a sua realização" (Art as Experience, 1934, cap. IV; trad. it., pp. 94-95). Deste ponto de vista, a arte não é natureza, mas, como diz Dewey, "natureza transformada pelo seu in­ gresso em novas relações" (Ibid, 1934, cap. IV; trad. it., pp. 94-95), ou, como ainda se poderia dizer, retorno à natureza. E não causa estra­ nheza se, freqüentemente, do Renascimento ao impressionismo, o retorno à natureza serviu para renovar profundamente e com êxito o estilo e o gosto da arte. A concepção da arte como expressão talvez se disfarce nas afirmações de quem insiste no caráter teórico ou contemplativo da arte, mas é mal disfarçada quando (como faz CROCE,

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ESTETISMO

Breviario di E., III) se ironiza ao mesmo tem­ po sobre a fórmula da arte pela arte, que é a melhor definição do caráter expressivo da arte. Nessa fórmula insistiram poetas e artistas mo­ dernos, que dela se valeram para defender a arte das tentativas de escravização ou manipu­ lação para fins que acarretariam a sua completa subordinação e lhe tolheriam toda liberdade de movimento. Os textos correspondentes estão citados no verbete POESIA. A fórmula que de­ fendem deve ser considerada ainda hoje a me­ lhor, a mais eficiente defesa da atividade E. e das condições da sua fecundidade. De fato, porque essa atividade, como qualquer outra, ocorre por tentativa, e bem pouco se pode di­ zer antecipadamente sobre o valor de uma ten­ tativa, prescrever algumas e proscrever outras, em nome de uma função moral, cognoscitiva ou política da arte, significaria aumentar enor­ memente o risco de insucesso, já que nada garante que a tentativa mais promissora não esteja entre as eliminadas ou condenadas ante­ cipadamente. O caráter expressivo da arte tam­ bém significa que as possibilidades de ver, con­ templar e fruir que a arte realiza, as novas aberturas para o mundo que ela revela, quando expressas na obra, estão à disposição de qual­ quer um que tenha condições de entender a obra. A expressão é, por natureza, sua comuni­ cação. A capacidade de julgar as obras de arte de certo estilo chama-se gosto, e o gosto tende a difundir-se e a tornar-se uniforme em determinados períodos ou em determina­ dos grupos de indivíduos. Mas, sem dúvida, as possibilidades comunicativas de uma obra de arte bem realizada são praticamente ilimitadas e também relativamente independentes do gosto dominante. Isso significa que nem todos verão a mesma coisa numa obra de arte, ou que nem todos vão fruí-la do mesmo modo. As respostas individuais diante dela podem ser inumeráveis e apresentar ou não uniformida­ de de gostos. Mas o importante não é essa uniformidade, mas a possibilidade que se abre a novas interpretações, a novos modos de fruir a obra. Aqueles que fruem uma mesma obra de arte (p. ex., os ouvintes de Beethoven) não são como os membros de uma seita ou os adep­ tos de uma mesma crença. Constituem, toda­ via, uma comunidade vinculada por um inte­ resse comum e aberta no tempo e no espaço. ESTETISMO (in. Aestheticism; fr. Esthétisme, ai. Asthetizismus; it. Estetismó). Qualquer doutrina ou atitude que considere fundamen­

ESTILO

tais e primordiais os valores estéticos e reduza ou subordine a eles todos os outros (mesmo e sobretudo os morais). Neste sentido, pode-se chamar de E. tanto uma doutrina como a de Novalis ou de Schelling, que vê na arte a reve­ lação do Absoluto, quanto a de Oscar Wilde ou de D'Annunzio, para quem prevalecem os valores estéticos na literatura e na vida. O E. foi caracterizado por Kierkegaard como a atitude de quem vive no instante, ou seja, vive para colher o que há de interessante na vida, desprezando tudo o que é banal, insigni­ ficante e mesquinho. O homem estetizante, por isso, evita a repetição, que sempre implica mo­ notonia e anula o atrativo das experiências mais promissoras. O símbolo ou a encarnação do E. é, portanto, Don Juan, o sedutor. Para Kierkegaard, a vida estetizante desemboca no tédio e, portanto, no desespero (Werke, II, p. 162). ESTILO (in. Style, fr. Style, ai. Stil; it. Stilé). Conjunto de características que distinguem de­ terminada forma de expressão. Em sua ori­ gem, no séc. XVIII, a noção de estilo foi ex­ pressa pelo lema francês lestyle cest Vhomme même e considerada a manifestação na forma expressiva das características do sujeito em sua relação com o material empregado. Hegel con­ siderou demasiado restrita essa concepção e incluiu no E. também as determinações que as condições da arte em questão produzem na forma expressiva; nesse sentido, pode-se distinguir, p. ex., na música o E. gregoriano do E. operístico; na pintura, o E. histórico do E. genérico, etc. (Vorlesungen über die Àsthettk, ed. Glockner, I, pp. 394-95). Neste sentido, o E. não seria o homem, mas a própria coisa. Em todo caso, porém, o E. seria uma certa uni­ formidade de caracteres, encontravel em deter­ minado domínio do mundo expressivo. "O E. se nos revela como uma unidade de formas, de tônicas e de atitudes dominantes, numa com­ plexa variedade de formas e conteúdos", es­ creveu Lucian Blaga, que insistiu em estender o fenômeno E. a todo o mundo da cultura (Orizzonte e stile, 1936; trad. it., 1946, p. 45). Às vezes, porém, viu-se no E. "o momento de in­ venção, que não é invenção formalista de pala­ vras ou de signos, mas de idéias" (G. MORPURGO TAGLIABUE, // conceito dello stile, 1951, p. 352). ESTÍMULO (in. Stimulus; fr. Stimulus, ai. Reiz-, it. Stimoló). Qualquer objeto capaz de ex­ citar um receptor, ou seja, de provocar resposta

ESTOICISMO

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num organismo vivo (v. AÇÃO REFLEXA; PERCEP­ ÇÃO; RESPOSTA)._ ESTDPULAÇÃO (in. Stipulation; fr. Stipulation; ai. Übereinhunft; it. Stipulazioné). O ato de estabelecer uma convenção, ou a própria convenção. ESTOICISMO (in. Stoicism; fr. Stoicisme, ai. Stoizismus; it. Stoicismó). Uma das grandes escolas filosóficas do período helenista, assim chamada pelo pórtico pintado (Stoá poikílé) onde foi fundada, por volta de 300 a.C, por Zenão de Cício. Os principais mestres dessa escola foram, além de Zenão, Cleante de Axo e Crisipo de Soles. Com as escolas da mesma época, epicurismo e ceticismo, o E. comparti­ lhou a afirmação do primado da questão moral sobre as teorias e o conceito de filosofia co­ mo vida contemplativa acima das ocupações, das preocupações e das emoções da vida co­ mum. Seu ideal, portanto, é de ataraxia ou apatia (v.). Os fundamentos do ensinamen­ to estóico podem ser resumidos da seguinte forma: l s divisão da filosofia em três partes: lógica, física e ética (v. FILOSOFIA); 2- concepção da lógica como dialética, ou seja, como ciência de raciocínios hipotéticos cuja premissa expressa um estado de fato, imediatamente percebido (v. ANAPODÍTICO; DIA­ LÉTICA); 3Q teoria dos signos, que constituiria o mo­ delo da lógica terminista medieval e o antece­ dente da semiótica moderna (v. SEMIÓTICA; SIG­ NIFICADO); 4a conceito de uma Razão divina que rege o mundo e todas as coisas no mundo, segundo um a ordem necessária e perfeita (v. DESTINO;

LIBERDADE; NECESSITARISMO);

5Q doutrina segundo a qual, assim como o animal é guiado infalivelmente pelo instinto, o homem é guiado infalivelmente pela ra­ zão, e a razão lhe fornece normas infalíveis de ação que constituem o direito natural (v. DIREI­ TO; INSTINTO); 6Q condenação total de todas as emoções e exaltação da apatia como ideal do sábio (v. APATIA-, EMOÇÃO); 7B cosmopolitistno (v.), ou seja, doutrina de que o homem não é cidadão de um país, mas do mundo; Sr exaltação da figura do sábio e de seu iso­ lamento dos outros, com a distinção entre lou­ cos e sábios (v. SÁBIO; SABEDORIA). Ao lado do aristotelismo, o estoicismo foi a doutrina que maior influência exerceu na histó­

ESTOIQUIOLOGIA

ria do pensamento ocidental. Muitos dos fun­ damentos enunciados ainda integram doutrinas modernas e contemporâneas. ESTOIQUIOLOGIA (in. Stoicheiology). Foi esse o nome dado por Hamilton à parte da ló­ gica que estuda os aspectos elementares ou constitutivos dos processos do pensamento. Dividiu a E. em noética, enoemática, apofântica e doutrina do raciocínio (Lectures on Logic, I, p- 72). ESTRITO (in. Strict; fr. Strict; ai. Streng; it. Strettó). Esse adjetivo às vezes se aplica ao di­ reito ou ao dever, para indicar seu caráter mais rigorosamente obrigatório. Kant diz: "Há ações de tal modo conformadas que seu princípio bá­ sico não pode sequer ser concebido sem con­ tradições como lei universal da natureza... Outras há em que não se encontra essa impos­ sibilidade interna, mas que são tais que é im­ possível querer que seu princípio básico seja elevado à universalidade de uma lei da nature­ za, porque semelhante vontade se contradiria em si mesma. Vê-se facilmente que o princípio básico das primeiras é contrário ao dever E. ou rígido (rigoroso), ao passo que o das segundas é contrário apenas ao dever em sentido lato (meritório)" (Grundlegung zurMetaphysik der Sitten, II). Em outro techo, Kant chama de di­ reito E. o que "também pode ser representado como uma possibilidade de coação geral recí­ proca, de acordo com a liberdade de cada um e segundo leis universais" (Met. der Sitten, In­ trodução à doutrina do direito, § E). Essas con­ siderações kantianas estão entre as mais preci­ sas nessa matéria e, todavia, estão bem longe de ser convincentes. ESTRUTURA (in. Structure, fr. Structure, ai. Strukture, it. Struttura). 1. Em sentido lógico, o mapa ou o plano de uma relação: assim, diz-se que duas relações têm a mesma E. quando o mesmo plano vale para ambas, ou seja, quando são análogas tanto quanto uma carta geográfica tem analogia com a região que representa. Nes­ se sentido, a E. é o "número-relação", conceito generalíssimo que eqüivale a plano, constru­ ção, constituição, etc. (RUSSELL, Introduction to MathematicalPhilosophy, VI; trad. it., pp. 74-75; HumanKnowledge, IV, 3; trad. it., pp. 362 ss.). A descrição formal de Russell molda-se ao uso corrente do termo, p. ex., ao uso encontra­ do na terminologia de Marx e dos marxistas. Nessa terminologia, E. é a constituição econô­ mica da sociedade em que se incluem as rela­ ções de produção e as relações de trabalho, ao

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ESTRUTURA

passo que superestrutura (v.) é a constituição jurídica, estatal, ideológica da própria socieda­ de (MARX, Zur Kritik der politischen Okonomie, 1859, Pref.; DeutscheIdeologie, I). Nesse sentido, a palavra E. é, por um lado, sinônimo de forma, no sentido presente no gestaltismo, que, aliás, é também chamado estruturalismo ou psicologia estrutural (v. PSI­ COLOGIA); por outro lado, é sinônimo de sis­ tema (no significado 2) como conjunto ou totalidade de relações. Foi nesse último sen­ tido que essa palavra passou para a lingüísti­ ca, para a estética e para os outros campos em que é hoje comumente usada. O próprio Saussure falara de sistema: "A língua é um sistema cujas partes todas devem ser consi­ deradas em sua solidariedade sincrônica" (Cours de linguistique générale, III, § 3). Esse termo, enfim, tem o significado genéri­ co de sistema e poderia ser substituído por ele sempre que se fala de estrutura como "um conjunto de elementos quaisquer, por­ tanto abstratos, entre os quais (ou entre alguns de seus subconjuntos) tiverem sido definidas relações igualmente abstratas" (Granger), ou como "um conjunto de .elementos submetidos a determinadas relações" (Mouloud) ("La notion de structure" na Revue Intern. de Phil, 1965, pp. 254, 315) ou de modos análogos {Sens et usage du terme Structure dans les sciences humaines et sociales, aos cuidados de R. Bastide, 1962, passim; The Structure ofLanguage, org. por Fodor e Katz, 1964, pp. 33 passim). O mesmo se pode dizer do uso desse termo em antropologia, sobretudo por Lévi-Strauss; este define a E. explicitamente como um siste­ ma de elementos tal que uma modificação qualquer de um implica uma modificação de todos os outros, considerando-a como um mo­ delo conceituai que deve dar conta dos fatos observados e permitir que se preveja de que modo reagirá o conjunto no caso da modifi­ cação de um dos elementos (Anthropologie structurale, 1958, XV, I, pp.306 ss.). 2. Em sentido restrito e específico, a E. não é um plano qualquer ou qualquer sistema de relações, mas um plano hierarquicamente ordenado, ou seja, uma ordem finalista intrín­ seca destinada a conservar o máximo possível seu plano. Neste sentido específico, essa pala­ vra foi usada por Dilthey, que com ela desig­ nou o instrumento explicativo fundamental do mundo humano e histórico. Ele falou de uma

ESTRUTURA

"E psíquica", entendida como "a ordem segun­ do a qual, na vida psíquica desenvolvida, os fatos psíquicos de qualidade diferente estão interligados por uma relação interna que pode ser imediatamente vivida" (Gesammelte Schriften, VII, pp. 3 ss.; cf. Critica delia ragione storica, trad. it., p. 63). E utilizou esse termo so­ bretudo para indicar as unidades elementares do mundo histórico, quais sejam indivíduos, épocas, comunidades, instituições, sistemas culturais, entendendo por ele, nesse sentido, uma conexão dinâmica centrada em si mesma, "vale dizer, que tem finalidade e seus critérios de avaliação em si mesma" (Der Aufbau der geschichtlichen Weilinden Geisteswissenschaften, 1910, VI, 2; trad. it., em Critica delia ra­ gione storica, VI, 1, 2, pp. 243 ss.). A conexão dinâmica ou vital em que Dilthey viu o caráter básico da E. foi traduzida por Spengler pelo conceito de organismo, do qual se serviu para descrever as épocas históricas que nascem, de­ clinam e morrem (v. ÉPOCA). Nesse sentido, esse termo é usualmente empregado em biolo­ gia. Segundo explicitação recente de um biólogo, E. seria "a forma relativa à função", assim como função seria a "E. que muda no tempo" (A. C. MOULYN, Structure, Function and Purpose, 1957, pp. 22-23). No behaviorismo, que hoje procura utilizar, com as devidas correções, a experiência da cibernética, fala-se de "E. hierárquica", ou de "plano", como de 'processo hierárquico do organismo, que pode controlar a ordem na qual uma seqüência de operações deve ser executada (MILLER, GALANtE r PRIBRAM, Plans and the Structure of Behavior, 1967, p. 16). Nesse sentido, a E. não é constituída simplesmente por um conjunto de elementos em relação, mas por uma ordem hierárquica que tem o objetivo de garantir o êxito de sua função e sua própria conservação. Pode-se dizer que a E. é caracterizada pelo fato de propor como fim sua própria possibilidade de ser (cf. ABBAGNANO, La struttura deWesistenza, 1939). Este significado, que parece o mais sutil, é, no entanto, o que mais corresponde ao uso desse termo na linguagem comum. A E. de um edifício é a correlação entre suas partes, que assegura a estabilidade do edifício e lhe permi­ te corresponder ao uso a que é destinado. Em uma organização qualquer, E. é o plano de atividades ou de órgãos que mantém em pé a organização e lhe permite realizar seus objeti­ vos. Não é semelhante a uma máquina pré-

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ESTRUTURALISMO

cibernética ou a um organismo no sentido préevolucionista, mas é um plano articulado de elementos que, dentro de certos limites, são suscetíveis de variações mais ou menos autô­ nomas. Tanto no significado 1 quanto no 2, a E. pode ser concebida de dois modos: I) Como algo que constitui a ordem ou a substância da realidade em exame e, portanto, determina ne­ cessariamente todas as suas determinações, de tal modo que as torna infalivelmente previsí­ veis (Lévi-Strauss, Sapir. V. verbete seguinte); II) como modelo (v.) ou constructoiy.) hipoté­ tico, passível de interpretações diversas, que exerça condicionamentos não necessitantes e possibilite apenas previsões prováveis (estruturalistas russos, cibernéticos). ESTRUTURALISMO (in. Structuralism; fr. Structuralisme, ai. Struktumlismus; it. Strutturalismo). Entende-se por este termo todo méto­ do ou processo de pesquisa que, em qualquer campo, faça uso do conceito de Estrutura em um dos sentidos esclarecidos. Esse termo nas­ ceu na Gestalt e na lingüística, em que o E. foi defendido pelos russos R. Jakobson, N. Trubetzkoy e inúmeros outros. Em antropologia, o ponto de vista estrutura.lista foi introduzido por Radcliffe-Brown, no prefácio à obra African Systems ofKinship andMariage (1950), tendo sido difundido na antropologia moderna por Lévi-Strauss (Anthropologie Structurale, 1958, espec. cap. XV). Também houve tentativas de estendê-lo a todas as ciências humanas. Em sua exigência mais geral, o E. não só tende a inter­ pretar um campo específico de indagação em termos de sistema, como também a mostrar que os diversos sistemas específicos, verifi­ cados em diversos campos (p. ex., antropolo­ gia, economia, lingüística), correspondem-se ou têm características análogas. Lévi-Strauss, p. ex., julga possível que uma mesma estrutura possa ser encontrada em três níveis da socieda­ de: no sentido de que as normas de parentes­ co e de casamento servem para assegurar a comunicação das mulheres entre os grupos, assim como as normas econômicas servem para assegurar a comunicação dos bens e dos ser­ viços, e as normas lingüísticas, a comunicação das mensagens (Anthropologiestructurale, cap. III, p. 95). O E. manifestou sua oposição a três frentes: historicismo, idealismo e humanismo. Contra o historicismo, que é substancialmente uma con­ sideração longitudinal da realidade, vale di­ zer, uma interpretação da realidade em termos

ÉTER

de devir, desenvolvimento e progresso, afirma o primado da concepção transversal (crosssectiorí), ou seja, da concepção que considera a realidade como um sistema relativamente cons­ tante e uniforme de relações. O sistema não é, por certo, considerado estático ou imóvel pelo E., porque se admite o estudo diacrônico, além de sincrônico, do sistema, mas o estudo diacrônico está subordinado ao sincrônico, con­ siderando as mudanças temporais como trans­ formações nas relações constitutivas de um sistema ou como oscilações dessas transforma­ ções em torno do limite constituído pelo pró­ prio sistema. Contra o idealismo, o E. afirma a objetivida­ de dos sistemas de relações, que, mesmo quan­ do concebidos como modelos conceituais, ou seja, como construções científicas, não se re­ duzem a um ato ou a uma função subjetiva, mas têm como função fundamental explicar o maior número de fatos constatados. Enfim, contra o humanismo o E. afirma a prioridade do sistema em relação ao homem, das estruturas sociais em relação às escolhas in­ dividuais, da língua em relação ao falante indi­ vidual e, em geral, da organização econômica ou política em relação às atitudes individuais. Sapir escreveu: "Para nós, as línguas são mais que sistemas de comunicação intelectual. São hábitos invisíveis que envolvem nosso espírito e predeterminam a forma de todas as suas expressões simbólicas (Language, 1922, cap. XI, trad. it., p. 218). Segundo Althusser, a estru­ tura global da sociedade determina todas as suas manifestações do mesmo modo que a Substância de Spinoza determina todos os seus modos (LireLe Capital, 1965, IX, trad. it., pp. 196 ss.). Esse determinismo é uma conseqüência da interpretação realista do conceito de estru­ tura, não se encontrando em sua interpretação como modelo (v.) ou constructo hipotético, passí­ vel de interpretações diferentes. Contudo, como historicismo, idealismo e humanismo indeterminista foram os traços característicos do clima idealista da primeira metade do séc. XX, o E., em suas várias formas, denuncia o dissolver-se desse clima na cultura contemporânea. ÉTER (gr. ai8iíp; lat. Aether, in. Ether, fr. Etber, ai. Ether, it. Eteré). Este termo, que Empédocles usou {Fr., 100.5, Diels) como equiva­ lente a ar e Anaxágoras (Fr., 15, Diels) como equivalente a fogo, foi empregado por Aris­ tóteles para indicar a substância que compõe os céus e que, por não ser gerada, por ser

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ETERNIDADE

incorruptível e inalterável, distingue-se dos quatro elementos que constituem as coisas sublunares. Aristóteles atribui o uso desse termo, que considera o mais adequado para indicar os céus como sede da divindade, a uma tradição muito antiga: "Os homens, querendo indicar que o primeiro corpo é algo diferente da terra, do fogo, do ar e da água, chamaram a região superior pelo nome de É., pelo fato de 'sem­ pre correr' para a eternidade do tempo. Anaxágoras, porém, entendeu mal o nome, confun­ dindo o É. com o fogo" (De cael, I, 3, 270 b 20). Posteriormente o E. foi chamado de "quinto corpo", "quinta substância" ou "quinto elemento" (Placit., I, 3, 22; 2, 25, 7; 2, 6, 2). Com o mesmo sentido atribuído por Aristóteles, essa palavra é mencionada em Epinômides, atribuído a Platão (981 c, 984 b). Os estóicos identificaram o É. com o fogo de Heráclito, dando-lhe, porém, a mesma função e a mesma dignidade atribuída por Aristóteles. "Acima de todos está o fogo, que chamam de É., que constitui tanto a pri­ meira esfera imóvel dos céus como as outras esferas móveis" (DIÓG. L, VII, 137). Cícero ilus­ trava da seguinte maneira essa teoria estóica: "Do É. surgem inumeráveis astros chamejantes dos quais o primeiro é o Sol, que tudo ilumina com sua luz esplendorosa e é muitas vezes maior e mais extenso do que a Terra inteira, e depois os outros astros de incomensurável grandeza" (De nat. deor., II, 36, 92; Acad, I, 7, 25). Essa noção não foi alterada na tradi­ ção medieval, enquanto se acreditou na diferen­ ça de natureza entre substância celeste e subs­ tância sublunar, o que foi negado, pela primeira vez, por Nicolau de Cusa (De docta ignor., II, 12). No início do séc. XIX, Fresnel restaurou o uso desse substantivo para designar um hipo­ tético meio elástico que daria sustentação às ondas luminosas. A hipótese do É. foi mantida em física até ser superada pela teoria da relati­ vidade geral. ETERNIDADE (gr. ài8ióxr|ç, odúv; lat. Aeternitas; in. Etemity, fr. Eternité, ai. Ewigheit; it. Eternita). Esse termo tem dois significados fundamentais: 1Q duração indefinida no tempo; 2- intemporalidade como contemporaneidade. A filosofia grega conheceu ambos os significa­ dos. Heráclito expressou o primeiro ao afirmar que o mundo "foi desde sempre, é e será fogo sempre vivo que se acende a intervalos e a intervalos se apaga" (Fr. 30, Diels). Parmênides, por sua vez, exprimiu o segundo: "O ser

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não foi, nem será, mas é no presente simulta­ neamente uno, contínuo" (Fr. 8, Diels). Platão contrapôs explicitamente os dois significados: "Da substância eterna dizemos erroneamente que era, que é e que será, mas na verdade só lhe cabe o é, ao passo que o era e o será de­ vem ser predicados apenas da geração que procede no tempo" (Tim., 37 e). Aristóteles utilizou ambos os conceitos. Por um lado o mundo fora do qual não há espaço vazio, nem tempo, abrange toda a extensão do tempo e é eterno (Decaelo, I, 9, 279 a 25). Nesse sentido, E. é duração (ocioòv). Por outro lado, as subs­ tâncias imóveis, motores dos céus, são eternas em outro sentido: no sentido de estarem fora do tempo. "Os entes eternos (xà aei õvca), por­ quanto eternos", diz Aristóteles, "não estão no tempo: não são abarcados pelo tempo nem por ele são medidos; o sinal disso é que eles não sofrem a ação do tempo, não estando no tempo" (Fís, IV, 12, 221, b 3). Essa distinção aristotélica tornou-se clássica. Plotino identificou a E. (oatcv) com o modo de ser do mundo inteligível, ou seja, com "o que persiste na sua identidade, que está sempre presente para si mesmo em sua totalidade, que não é ora um, ora outro, mas é, simultanea­ mente, perfeição indivisível, assim como a do ponto onde se unem todas as linhas sem se expandirem, ponto que persiste em si mesmo na sua identidade e não sofre modificações, que existe sempre no presente, sem passado nem futuro, mas é o que é e é sempre" (Enn., III, 7, 3). A esse respeito, Plotino repete a con­ cepção de Parmênides e de Platão: eterno é o que não era nem será, mas apenas é. S. Agos­ tinho analisou o tempo com base na contra­ posição entre tempo e E. (Conf., XI, 11; De civ. Dei, XI, 4, 6), e Boécio exprimia corretamente a distinção entre os dois conceitos de E.: "Não se pode legitimamente considerar eterno o que é condicionado pelo tempo, ainda que, como Aristóteles pensou do mundo, não tenha prin­ cípio nem fim, e ainda que sua vida se pro­ longue na infinidade do tempo. Pois, mesmo sendo infinita, sua vida não compreende nem abrange sua própria duração inteira, visto que ainda não compreende nem abrange o futuro e já não abrange o passado. Portanto, só o que abrange e possui igualmente, em sua totalida­ de, a plenitude de uma vida sem limites, de tal sorte que nada lhe falte do futuro e nada lhe haja escapado do passado, só esse é o ser que deve ser considerado eterno: ele se possui ne­

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cessariamente por inteiro no presente e possui no presente a infinidade do tempo" (Phil. cons, V, 6, 6-8). Depois de Boécio essa distin­ ção tornou-se lugar-comum em filosofia. S. Tomás fixou com precisão a terminologia cor­ respondente. A E., como "posse total, simultâ­ nea e perfeita de uma vida sem limites", carac­ teriza-se por: 1Q ausência de princípio e fim; 2° ausência de sucessão, porquanto é um presen­ te eterno. A duração (aevurn), porém, é pecu­ liar às coisas que estão sujeitas ao movimento local e para o resto são imutáveis, como ocorre com o céu, que é, por isso, algo de intermediá­ rio entre a E. e o tempo (S. Th, I, q. 10, a. 1, 5). Esse conceito de E. também foi adotado pelo racionalismo moderno. Spinoza identifica a E. com a existência da Substância, porque implíci­ ta em sua essência e, portanto, necessária. Esclarece: "Tal existência, enquanto verdade eterna, é concebida como a essência da coisa; no entanto, não pode ser explicada por meio da duração ou do tempo, mesmo que se conce­ ba a duração sem princípio e sem fim" {Et., I, def. 8, ciar.). Portanto, conceber as coisas sob o aspecto da E. (sub specie aeternitatis) significa concebê-las como manifestações da essência divina e necessariamente derivadas de sua na­ tureza (Ibid, V, 30). Leibniz afirma, contra Locke, a precedência de uma "idéia do abso­ luto", que serviria de fundamento à noção da E. (Nouv. ess, II, 14, 27). Toda a filosofia hegeliana é concebida do ponto de vista da E. assim entendida. Hegel nega que a E. possa ser en­ tendida negativamente como abstração ou negação do tempo, ou como se viesse depois do tempo (Ene, § 258). Para ele, a E. é o totum simul das determinações da Idéia. "A Idéia, eterna em si e por si, atualiza-se, produz-se e frui-se a si mesma eternamente como espírito absoluto" (Ibid., § 577). "Intemporalidade" e "presente eterno" são as expressões mais repetidas também na filoso­ fia contemporânea, sempre que se utiliza a no­ ção de eternidade. É a última expressão que aparece, p. ex., na obra de Lavelle, O tempo e a E. (1945), assim como em muitos outros idea­ listas e espiritualistas contemporâneos. McTaggart, porém, observara que conceber a E. como "eterno presente" é uma metáfora não de todo apropriada porque com ela se faz referência ao tempo, já que o presente é uma parte do tem­ po e supõe passado e futuro; propôs conside­ rar o eterno situado no futuro, no fim ou na consumação dos tempos (em Mind, 1909, p.

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355). Hoje, de fato, está bem claro que a con­ cepção 2 de E., tal como foi expressa, com uma uniformidade impressionante, de Parmênides até nós, não passa de imagem reduzida do tem­ po: é o tempo reduzido a uma de suas determi­ nações, a simultaneidade (o totumsimut), que, como hoje todos sabem, é não só temporalidade, mas temporalidade mensurável. Quanto à concepção da E. como aevum, ou seja, como duração temporal indefinida, choca-se com as objeções já expostas por Kant em sua crítica à cosmologia racional do séc. XVIII (v. COSMO-

LOGIA).

ÉTICA (gr. xò rjGiKá; lat. Ethica; in. Ethics; fr. Ethique, ai. Ethik, it. Eticà). Em geral, ciência da conduta. Existem duas concepções funda­ mentais dessa ciência: 1- a que a considera como ciência do /zm para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; 2- a que a con­ sidera como a ciência do móvel da conduta hu­ mana e procura determinar tal móvel com vis­ tas a dirigir ou disciplinar essa conduta. Essas duas concepções, que se entremesclaram de várias maneiras na Antigüidade e no mundo moderno, são profundamente diferentes e fa­ lam duas línguas diversas. A primeira fala a lín­ gua do ideal para o qual o homem se dirige por sua natureza e, por conseguinte, da "nature­ za", "essência" ou "substância" do homem. Já a segunda fala dos "motivos" ou "causas" da con­ duta humana, ou das "forças" que a determi­ nam, pretendendo ater-se ao conhecimento dos fatos. A confusão entre ambos os pontos de vista heterogêneos foi possibilitada pelo fato de que ambas costumam apresentar-se com definições aparentemente idênticas do bem. Mas a análise da noção de bem (v.) lo­ go mostra a ambigüidade que ela oculta, já que bem pode significar ou o que é (pelo fato de que é) ou o que é objeto de desejo, de aspiração, etc, e estes dois significados corres­ pondem exatamente às duas concepções de É. acima distintas. De fato, é característica da con­ cepção Ia a noção de bem como realidade perfeita ou perfeição real, ao passo que na con­ cepção 2- encontra-se a noção de bem como objeto de apetição. Por isso, quando se afirma que "o bem é a felicidade", a palavra "bem" tem um significado completamente diferente daquele que se encontra na afirmação "o bem é o prazer". A primeira asserção (no sentido em que é feita, p. ex., por Aristóteles e por S. To­

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más), significa: "a felicidade é o fim da conduta humana, dedutível da natureza racional do ho­ mem", ao passo que a segunda asserção signifi­ ca "o prazer é o móvel habitual e constante da conduta humana". Como o significado e o alcance das duas asserções são, portanto, com­ pletamente diferentes, sempre se deve ter em mente a distinção entre ética do fim e ética do móvel, nas discussões sobre ética. Tal distin­ ção, ao mesmo tempo que divide a história da E., permite ver como são irrelevantes muitas das discussões a que deu ensejo e que outra causa não têm senão a confusão entre os dois significados propostos. l2 Ambas as doutrinas éticas elaboradas por Platão, quais sejam, a que se encontra expressa em A República e a que está expressa em Filebo, pertencem à primeira das concepções que distinguimos. A É. exposta em A República é uma E. das virtudes, e as virtudes são funções da alma (Rep., I, 353 b) determinadas pela natu­ reza da alma e pela divisão das suas partes (Jbid, IV, 434 e). O paralelismo entre as partes do Estado e as partes da alma permite a Platão determinar e definir as virtudes particulares, bem como a virtude que compreende todas elas: a justiça como cumprimento de cada parte à sua função (Jbid, 443 d). Analogamente, a É. de Filebo começa definindo o bem como forma de vida que mescla inteligência e prazer e sabe determinar a medida dessa mistura (Fil., 27 d). A É. de Aristóteles é, aliás, o protótipo dessa concepção. Aristóteles determina o propósito da conduta humana (a felicidade), a partir da natureza racional do homem (Et. nic, I, 7), e depois determina as virtudes que são condição da felicidade. Por sua vez, a É. dos estóicos, com a sua máxima fundamental de "viver se­ gundo a razão", deduz as normas de conduta da natureza racional e perfeita da realidade J, STOBEO, Ecl., II, 76, 3; DIÓG. L, VII, 87). 0 misticismo neoplatônico colocou como propó­ sito da conduta humana o retorno do homem ao seu princípio criador e sua integração com ele. Segundo Plotino, esse retorno é "o fim da viagem" do homem, é o afastamento de todas as coisas exteriores, "a fuga de um só para um só", ou seja, do homem em seu isolamento para a Unidade divina (Enn, VI, 9,11). Por mais diferentes que sejam as doutrinas mencionadas, em suas articulações internas as formulações são idênticas, pois: a) determi­ nam a natureza necessária do homem, b) deduzem de tal natureza o fim para o qual sua

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conduta deve orientar-se. Toda a É. medieval mantém-se fiel a esse esquema. Assim, p. ex., toda a É. de S. Tomás é deduzida do princípio de que "Deus é o último fim do homem" (S. Th, II, 2, q. 1, a. 8), do qual se infere a doutri­ na da felicidade e a da virtude. Pode-se entre­ ver uma crítica contra essa formulação em Duns Scot e em muitos escolásticos do séc. XIV: as normas morais fundam-se pura e simplesmente no mandamento divino, com exceção da nor­ ma que impõe obedecer a Deus, que seria a única "natural" (Op. Ox., III, d. 37, q. 1; cf. OCKHAM, In Sent., Il, q. 5 H). Com efeito, esse recurso ao arbítrio divino é resultado do reco­ nhecimento da impossibilidade de deduzir da natureza do homem o fim último de sua conduta (Op. Ox., IV, d. 43, q. 2, n. 27, 32). Mas nem por isso se abriu uma alternativa à indagação ética. Na filosofia moderna, os neoplatônicos de Cambridge retomam a concepção estóica de ordem do universo que também vale para diri­ gir a conduta do homem; portanto, insistem no caráter inato das idéias morais, bem como, em geral, de todas as idéias gerais ou diretivas de que o homem dispõe (CUDWORTH, The True Intell. System, 1678, I, 4; MORE, Enchiridion, 1679, III). A filosofia romântica deu forma mais radical a essa concepção ética. Fichte exige que toda a doutrina moral seja deduzida da "auto­ determinação do Eu" (Sittenlehre, Intr., § 9). Por isso, vê como objetivo da moral a adequação do eu empírico ao Eu infinito; essa adequação nunca é completa e por isso provoca um pro­ gresso ad infinitum, a liberação progressiva do eu empírico de suas limitações (Ibid., em Werke, II, p. 149). Segundo Hegel, o objetivo da conduta humana, que é ao mesmo tempo a rea­ lidade em que tal conduta encontra integração e perfeição, é o Estado. Por isso, para Hegel, a É. é filosofia do direito. O Estado é "a totalida­ de ética", Deus que se realizou no mundo (Fil. dodir., § 258, Zusatz). O Estado é o ápice da­ quilo que Hegel chama de "eticidade" (Sittlichkeii), isto é, a moralidade que ganha corpo e substância nas instituições históricas que a garantem; ao passo que a "moralidade" (Moralítãt) por si mesma é simplesmente intenção ou vontade subjetiva do bem. Mas, por sua vez, o bem é "a essência da vontade em sua substancialidade e universalidade", ou então, "a liberdade realizada, o objetivo final e absolu­ to do mundo" (Ibid, §§ 139-42), ou seja, o pró­ prio Estado. Assim, pode-se dizer que, para

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Hegel, a moralidade é a intenção ou a vontade subjetiva de realizar o que se acha realizado no Estado. O conceito de Estado é o ponto de par­ tida e o ponto de chegada da É. de Hegel. A É. de Rosmini conforma-se à É. tradicional; segun­ do ele o bem identifica-se com o ser, de tal modo que a máxima fundamental da conduta pode ser assim formulada: "Querer ou amar o ser onde quer que seja este conhecido, segun­ do a ordem que ele apresenta à inteligência" (Princ. delia scienza morale, ed. nacional, p. 78). Mas, quer se defina a realidade como Ser, quer se defina como Espírito ou Consciência, a estrutura das doutrinas morais que enten­ dem inferir a moral de seu objetivo mostram grande uniformidade de procedimentos e con­ clusões. Consideremos, p. ex., na filosofia contemporânea, a É. de Green e a de Croce. Segundo Green, a Consciência infinita, Deus, é, ab aetemo, tudo o que o homem tem a possi­ bilidade de vir a ser, ou seja, o Bem ou Fim su­ premo, que é o objeto da boa vontade huma­ na; à razão cabe a tarefa de concebê-lo e de colocá-lo como fundamento de sua lei (Prolegomena to Ethics, 3a ed., 1890, pp. 198, 214). Querer o bem significa, .portanto, querer a Consciência absoluta, procurar realizar o que está presente nela. Do mesmo modo, para Croce a atividade ética é "volição do universal", mas o universal "é o Espírito, é a Realidade en­ quanto verdadeiramente real, enquanto unida­ de de pensamento e vontade; é a Vida apreen­ dida em sua profundidade como unidade; é a Liberdade, se uma realidade assim concebida for perpétuo desenvolvimento, criação, pro­ gresso" (Filosofia delia pratica, 1909, p- 310). Agir moralmente significa, portanto, querer o Espírito infinito, assumi-lo como um Fim: for­ mulação essa que (assim como a de Fichte, Hegel, Green) não se distingue da É. tradicio­ nal que (como a de Platão, Aristóteles, S. To­ más e Rosmini) recorre à Realidade ou ao Ser. Uma forma mais complexa e moderna da É. do fim pode ser vista na doutrina de Bergson, que distinguiu a moral fechada da moral aber­ ta. Moral fechada é aquilo que se entende comumente por esse termo. No mundo humano, corresponde ao que é o instinto em certas so­ ciedades animais, pois seu propósito é conser­ var a sociedade. "Suponhamos por um instan­ te", diz Bergson, "que, na outra ponta da linha [na ponta da linha evolutiva da inteligência, di­ ferente da linha do instinto], a natureza tenha desejado obter sociedades em que fosse permi­

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tida certa amplitude à opção individual: nessas sociedades, agiria de tal modo que, em termos de regularidade, a inteligência obteria resul­ tados comparáveis aos do instinto na outra ponta da linha: teria recorrido a hábitos. Cada um desses hábitos, que podem ser chamados de 'morais', será contingente, mas seu conjun­ to, ou seja, o hábito de contrair hábitos, por estar na base das sociedades, terá uma força comparável à do instinto tanto em intensidade quanto em regularidade" (Deuxsources, I; trad. it., p. 23). Do outro lado, porém, está a moral dos profetas e dos inovadores, dos místicos e dos santos. Essa é a moral em movimento, fun­ dada na emoção, no instinto, no entusiasmo: moral que é impulso de renovação coinciden­ te com o próprio impulso criador da vida. Segun­ do Bergson, essa dualidade de forças funda­ menta a moral: "Pressão social e impulso de amorsão duas manifestações complementares da vida, normalmente dedicadas à conserva­ ção, em linhas gerais, da forma social caracte­ rística da espécie humana desde a origem, mas excepcionalmente capazes de transfigurá-la graças a indivíduos que, assim como o surgi­ mento de uma nova espécie, representam um esforço de evolução criadora" (Ibid., p. 101). Assim, do ideal de renovação moral, Bergson deduziu a existência de uma força destinada a promover essa renovação, assim como do conceito de "sociedade fechada" deduziu a noção de moral corrente. Sua É., portanto, obedece à clássica formulação da É. do fim. Quando, na filosofia contemporânea, a no­ ção de valor (v.) começou a substituir a de bem, a antiga alternativa entre É. do fim e É. da motivação assumiu nova forma. Com efeito, o valor subtrai-se à alternativa própria da noção de bem, que pode ser interpretada ou em sen­ tido objetivo (como realidade) ou em sentido subjetivo (como termo de apetição). O valor possui modo de ser objetivo, no sentido de que pode ser entendido ou apreendido indepen­ dentemente da apetição; mas, ao mesmo tem­ po, é dado em certa forma de experiência específica. O valor, portanto, é constantemente reconhecido como dotado de três caracteres: d) objetividade; b) simplicidade, graças à qual é indefinível e indescritível, do mesmo modo que uma qualidade sensível elementar; c) ne­ cessidade ou problematicidade. Esta última é a alternativa que, no âmbito da noção de valor, substitui a alternativa entre subjetividade e ob­

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jetividade, típica da noção de bem. Ora, as doutrinas que reconhecem a necessidade do valor, ou seja, sua absolutidade, sua eternidade, etc, têm estreito parentesco com as doutrinas éticas tradicionais do fim, ao passo que as dou­ trinas que reconhecem a problematicidade do valor são estreitamente aparentadas com as doutrinas éticas da motivação. As doutrinas de Scheler e Hartmann estão entre as que afir­ mam a necessidade do valor. Scheler elaborou sua "É. material dos valores" justamente com o fim de imunizar a É. contra o relativismo a que conduz a É. material do bem, que vê no bem simples objeto de apetição. Segundo Scheler, as apetições (aspirações, impulsos ou desejos) têm seus fins em si mesmas, ou seja, "no senti­ mento, contemporâneo ou anterior, dos seus componentes axiológicos". Os fins da apetição podem tornar-se propósitos da vontade quando representados e escolhidos, tornando-se assim um dever-ser real, vale dizer, termos de uma experiência objetiva. Mas os valores são dados anterior e independentemente tanto em relação aos fins quanto em relação aos propósitos, sen­ do também dadas independentemente de tais fins e propósitos as preferências dos valores, isto é, sua hierarquia. Scheler diz: "De fato, podemos sentir os valores, mesmo os morais, na compreensão dos outros, sem que eles se transformem em objeto de aspiração ou sejam imanentes a uma aspiração. De modo seme­ lhante, podemos preferir ou pospor um valor a outro, sem com isso optar entre aspirações vol­ tadas para esses valores. Todos os valores po­ dem ser dados e preferidos sem nenhuma aspi­ ração" (Formalismus, p. 32). Em outros termos, a É. não se funda na noção de bem nem na de fins imediatamente presentes à aspiração ou em propósitos deliberadamente almejados, mas na intuição emotiva, imediata e infalível dos valores e das suas relações hierárquicas; in­ tuição é base de qualquer aspiração, desejo e deliberação voluntária. Hartmann expressou de forma mais didática, clara e eficaz essa mesma concepção de ética: "Existe um reino de valo­ res subsistente em si mesmo, um autêntico 'mundo inteligível' que está além da realidade e além da consciência, uma esfera ideal ética, não construída, inventada ou sonhada, mas efetivamente existente e apreensível no fenô­ meno do sentimento axiológico, subsistindo ao lado da esfera ôntica real e da esfera gnosiológica atual" (Ethik, 1926, p. 156). O "serem si" dos valores ressalta que eles não dependem

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da mesma intuição axiológica em que são da­ dos e, portanto, são necessários e absolutos, o que, como pretendia Hartmann, deveria con­ ter o avanço do "relativismo axiológico de Nietzsche" (Ibid, p. 139). No entanto, o "relativismo axiológico de Nietzsche" tem a mesma estrutura formal, ou seja, a mesma elaboração da E. de Hartmann e, em geral, da É. tradicional do fim, porque tam­ bém se funda em uma hierarquia absoluta de valores. Para Scheler e Hartmann, essa hierar­ quia, assim como os próprios valores, é de todo independente da escolha humana; aliás, toda escolha é pressuposta pela escolha, quer esta se conforme ou não a ela. Essa também é a crença de Nietzsche. Só que, para Nietzsche, essa hierarquia é diferente: é a hierarquia dos valores vitais, dos valores em que se en­ carna a Vontade de Poder: "Até hoje os valo­ res morais ocuparam posição superior; quem poderia duvidar deles? Mas retiremos esses valores de sua posição e mudaremos todos os valores: inverteremos o princípio da sua hie­ rarquia precedente" (Wille zur Macht; trad. fr. Bianquis, III, 503). O imoralismo de Nietzsche, seu "relativismo axiológico", que o leva a criti­ car a moral corrente e ver nela formas camufla­ das de egoísmo e hipocrisia, é simplesmente a proposta de uma nova tábua de valores, funda­ da no princípio de aceitação entusiástica da vida, na preeminência do espírito dionisíaco. É por esse motivo que Nietzsche pretende substi­ tuir as virtudes da moral tradicional pelas novas virtudes em que se exprime a vontade de po­ tência. É virtude toda paixão que diz sim à vida e ao mundo: "a altivez, a alegria e a saúde; o amor sexual, a inimizade e a guerra; a vene­ ração, as belas aptidões, as boas maneiras, a vontade forte, a disciplina da intelectualidade superior, a vontade de potência, o reconhe­ cimento para com a terra e para com a vida: tudo o que é rico e quer dar, quer recompensar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la" (Ibid., 5 479). Assim, daquilo que considerou a na­ tureza do homem, a vontade de potência, Nietzsche deduziu a tábua de valores morais que deveriam dirigir o homem para a realiza­ ção da vontade de potência num mundo de super-homens. A estrutura de sua doutrina não é, portanto, diferente da estrutura de muitas outras que, utilizando o mesmo processo, ten­ dem a conservar e justificar as tábuas de valo­ res tradicionais, deduzindo-as da natureza do homem ou da estrutura do ser.

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2° A segunda concepção fundamental da É. é a que se configura como uma doutrina do móvel da conduta. A característica dessa con­ cepção é que nela o bem não é definido com base na sua realidade ou perfeição, mas só como objeto da vontade humana ou das regras que a dirigem. Assim, enquanto na primeira concepção as normas derivam do ideal que se assume como próprio do homem (a perfeição da vida racional, segundo Aristóteles, o Esta­ do, segundo Hegel, a sociedade fechada ou aber­ ta, segundo Bergson, etc); na segunda concep­ ção procura-se em primeiro lugar determinar o móvel Ao homem, ou seja, a normas que ele de fato obedece; portanto, define-se como bem aquilo a que se tende em virtude desse móvel, ou aquilo que se conforma à norma em que ele se exprime. Assim, quando Pródico formulava sua moral em proposições condicionais ou im­ perativos hipotéticos, estava criando uma das primeiras É. do móvel. Dizia: "Se quiseres que os deuses te sejam benévolos, deves venerar os deuses. Se quiseres ser amado pelos amigos, deves beneficiar os amigos. Se desejares ser honrado por uma cidade deves ser útil à ci­ dade. Se aspiras a ser admirado por toda a Grécia, deves esforçar-te por fazer bem à Gré­ cia", etc. (XENOF., Memor.. II, i, 28). Do mesmo modo, Protágoras aspira a uma E. do móvel quando reconhece que o respeito mútuo e a justiça são as condições para a sobrevivência do homem. Esse é o sentido do mito de Prome­ teu, que Protágoras expõe no diálogo homôni­ mo de Platão (Prot, 322 c). E a obra conhecida com o nome de Anônimo deJâmblico reafir­ ma esse ponto de vista. "Mesmo que houvesse (mas não há) um homem invulnerável, insensí­ vel, com corpo e alma de aço, só aliando-se às leis e ao direito, fortalecendo-os e utilizando sua força por eles e em favor deles, poderia salvar-se, pois de outro modo não poderia resis­ tir" (Anôn.Jâmbi, 6, 3). Nessas formulações, o que se costuma evidenciar é o mecanismo dos móveis que fundam as normas do direito e da moral: para sobreviver, o homem conforma-se a tais regras e não pode agir de outro modo. Em tais formulações, o móvel da conduta hu­ mana é o desejo ou a vontade de sobreviver. Em outras formulações do mesmo gênero, esse móvel é o prazer. Aristipo afirmava que só o prazer é desejado por si mesmo, e via a confir­ mação disso no fato de que, desde a infância, os homens procuram o prazer sem vontade de­ liberada e, quando o alcançam, não procuram

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outra coisa, ao passo que evitam a dor, que é o seu oposto (DIÓG. L, II, 88). O princípio da É. de Epicuro tem o mesmo significado de reco­ nhecimento daquilo que, de fato, é o móvel da conduta humana: "Prazer e dor são as duas afeições que se encontram em todo animal, uma favorável e outra contrária, através das quais se julga o que se deve escolher e o que se deve evitar" (DIÓG. L, X, 34). Essa concepção de É. esteve ausente duran­ te toda a Idade Média e só é retomada no Renascimento. Lorenzo Valia foi o primeiro a reapresentá-la em De voluptate, afirmando que o prazer é o único fim da atividade humana e que a virtude consiste em escolher o prazer (De vol, II, 40). Telésio reapresenta a outra alternativa tradicional da mesma concepção (De rer. nat, IX, 2), extraindo as normas da É. do desejo de conservação que existe em cada ser. Com rigor e sistemaüzação, Hobbes via nesse mesmo princípio o fundamento da moral e do direito: "O principal dos bens é a autoconservação. Com efeito, a natureza pro­ veu a que todos desejem o próprio bem, mas para que possam ser capazes disso é necessá­ rio que desejem a vida, a saúde e a maior segu­ rança possível dessas coisas para o futuro. De todos os males, porém, o primeiro é a mor­ te, especialmente se acompanhada de sofri­ mento; mas, como os males da vida podem ser tantos, se não for previsto seu fim próximo, levarão a incluir a morte entre os bens" {De bom., XI, 6). Nessa tendência à autoconservação e, em geral, à consecução de tudo o que é útil, Spinoza viu a ação necessitante da Subs­ tância divina: "A razão nada exige contra a na­ tureza, mas exige por si mesma, acima de tudo, que cada um ame a si mesmo, que procure aquilo que seja realmente útil para si, que de­ seje tudo o que conduz o homem à perfeição maior e, de modo absoluto, que cada um se esforce, no que estiver a seu alcance, para con­ servar o próprio ser. O que é necessariamente tão verdadeiro quanto é verdadeiro que o todo é maior que a parte" (Et, IV, 18, scol.). Locke e Leibniz concordavam quanto ao fundamento da ética. Locke dizia: "Uma vez que Deus esta­ beleceu um laço entre a virtude e a felicidade pública, tomando a prática da virtude necessá­ ria à conservação da sociedade humana e visi­ velmente vantajosa para todos os que precisam tratar com as pessoas de bem, não é de sur­ preender que todos não só queiram aprovar essas normas, mas também recomendá-las aos

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outros, já que estão convencidos de que, se as observarem, auferirão vantagens para si mes­ mos" (Ensaio, I, 2, 6). E Leibniz, por sua vez, reconhecia como fundamento da moral o prin­ cípio de "adotar a alegria e evitar a tristeza", considerando-o, porém, mais relacionado com o instinto do que com a razão (Nouv. ess, I, 2, 1). Como se vê, a É. dos sécs. XVII e XVIII tem alto grau de uniformidade: não só ela é uma doutrina do móvel como também a oscilação que apresenta entre "tendência à conservação" e "tendência ao prazer" como base da moral não implica uma diferença radical, já que o próprio prazer não passa de indicador emocio­ nal das situações favoráveis à conservação (v. EMOÇÃO). Semelhante É. opõe-se radicalmente à É. do fim, ou seja, à É. em sua formulação tradicional que se encontra em Platão, em Aris­ tóteles e na Escolástica. A característica funda­ mental da filosofia moral inglesa do séc. XVTII, que tem importância particular na história da E., consiste em evidenciar e assumir como tema principal de discussão precisamente a oposição entre a É. do móvel e a É. do fim, que pareceu idêntica à oposição existente entre ra­ zão e sentimento. Hume diz: "Há uma contro­ vérsia surgida recentemente, que é muito mais digna de exame e que gira em torno dos funda­ mentos gerais da moral: se eles derivam da razão ou do sentimento, se chegamos ao conhe­ cimento deles por meio de uma seqüência de argumentos e de induções ou por meio de um sentimento imediato e de um sutil sentido in­ terno" (Inq. Cone. Morais, I). Hume afirma que o primeiro a aperceber-se dessa distinção foi Lord Shaftesbury; na verdade, Shaftesbury fa­ lou de um sentido moral, que é uma espécie de instinto natural ou divino, especificação no homem do princípio de harmonia que regula o universo (Características de homens, manei­ ras, opiniões e tempos, 1711). Já Hutchinson interpretava o sentido moral como tendência a realizar "a maior felicidade possível do maior número possível de homens" (Indagação sobre as idéias de beleza e de virtude, 1725, III, 8), fórmula que será adotada por Beccaria e por Bentham. Foi Hume quem encontrou a pala­ vra que exprimia essa nova tendência: o funda­ mento da moral é a utilidade. Em outros ter­ mos, é boa a ação que proporciona "felicidade e satisfação" à sociedade, e a utilidade agrada porque corresponde a uma necessidade ou tendência natural: a que inclina o homem a promover a felicidade dos seus semelhantes

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(lnq. Cone. Morais, V, 2). Portanto, razão e sen­ timento constituem igualmente a moral; segun­ do Hume, "a razão nos instrui sobre as diver­ sas direções da ação, a humanidade nos faz estabelecer a distinção em favor daquelas que são úteis e benéficas" (Ibid, Ap. I). Para Hume, o sentimento de humanidade, ou seja, a tendên­ cia a ter prazer pela felicidade do próximo, é o fundamento da moral, o móvel fundamental da conduta humana. Alguns anos mais tarde, Adam Smith chamará de simpatia esse senti­ mento do espectador imparcial que olha e julga a sua conduta e a dos outros (lhe Theory of Moral Sentiments, 1759, III, 1). Pelo fato de a concepção moral de Kant corresponder às características fundamentais da doutrina do móvel, está claro que deve ser inserida nessa tradição. Em primeiro lugar, Kant julga que "o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (cujo fundamento aparentemente deveria ser), mas depois dela e através dela" (Crít. R. Práti­ ca, I, 1, 3). Isto quer dizer que Kant compartilha a concepção (2) do bem, que corresponde à É. do móvel. Em segundo lugar, é justamente com base nos móveis (Bestimmungsgründê) que Kant classifica as diferentes concepções funda­ mentais do princípio da moralidade (Ibid., I, 1, § 8, nota 2). Em terceiro lugar, Kant considera a lei moral como um fato (Factum), porque "não pode ser deduzida de dados precedentes da ra­ zão, como p. ex. da consciência da liberdade", mas se impõe por si mesma como um sic volo, siciubeo (Ibid., § 7). Desse modo, Kant transferiu o móvel da conduta do "sentimento" para a "razão", utilizando o outro lado do dilema pro­ posto pelos moralistas ingleses. Com isso, quis garantir a categoricidade da norma moral, ou seja, o caráter absoluto de comando graças ao qual ela se distingue dos imperativos hipotéti­ cos de técnicas e prudência. Em vista dessa exi­ gência, a É. kantiana sem dúvida compartilha com a concepção (1) da É. a preocupação bási­ ca de ancorar a norma de conduta na substân­ cia racional do homem. Mas, deixando de lado essa preocupação absolutista (que deve ser explicada pelo "rigorismo" kantiano), a É. de Kant tem grande afinidade com a É. dos mora­ listas ingleses do séc. XVIII (pelos quais, aliás, nas obras iniciais Kant não escondeu sua sim­ patia), não só na formulação fundamental como também nos resultados. Se o sentimento, ao qual recorriam os moralistas ingleses, era a tendência à felicidade do próximo, a razão, à

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qual Kant recorre, é a exigência de agir segun­ do princípios que os outros podem adotar. Conquanto essa fórmula possa parecer mais rigorosa e mais abstrata que as empregadas pelos filósofos ingleses, seu significado é o mes­ mo. O que ambas pretendem sugerir como princípio ou móvel da conduta é o reconheci­ mento da existência de outros homens (ou, como queria Kant, de outros seres racionais") e a exigência de comportar-se em face deles com base nesse reconhecimento. O imperativo kantiano de tratar a humanidade, tanto na pri­ meira pessoa quanto na pessoa do próximo, sempre como fim e nunca como meio, não passa de outra expressão dessa mesma exigên­ cia, que os moralistas ingleses chamavam de "sentido moral" ou "sentido de humanidade". Infelizmente, a evolução sofrida pela filosofia moral de Kant a partir de Fichte teve como ponto de partida mais freqüente o seu arsenal dogmático e absolutista do que suas coloca­ ções fundamentais e a substância de seus en­ sinamentos morais. Tanto esses ensinamentos quanto a postura de que dependem estão de acordo com a É. setecentista, com a diretriz moral do iluminismo, mas com esta não se coa­ duna a contraposição estabelecida por Kant en­ tre o mundo moral e o mundo natural e, por­ tanto, entre a É. e a ciência da natureza. Essa oposição ingressa na doutrina de Kant a partir do arsenal absolutista de sua É., ou seja, a par­ tir do aspecto que a transformou em menina dos olhos dos metafísicos moralistas do séc. XIX, em pretexto para inumeráveis (e ino­ perantes) perquirições a respeito do caráter absoluto do dever, bem como do acesso que ele permitiria a uma Realidade superior e incondicionada (a do "númeno"), sem nenhuma relação com a realidade fenomênica e condi­ cionada da natureza. Ainda hoje, muitas vezes amigos e adversários da É. de Kant vêem nela exclusivamente esse aspecto; os primeiros para exaltá-la como ancoradouro seguro de todas as certezas referentes à vida moral, os últimos para condená-la como baluarte das ilusões me­ tafísicas no campo moral. Mas uma considera­ ção dessa É. que se subtraia a tais alternativas e a veja no quadro da É. setecentista, cuja pos­ tura compartilhou, ao mesmo tempo em que pretendeu fundamentá-la com necessidade ri­ gorosa, talvez permita apreciá-la mais adequa­ damente. Pode, efetivamente, abrir caminho para a utilização das análises kantianas com vistas à formulação da É. como técnica da con­

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duta, independente de pressupostos metafí­ sicos. Nesse ínterim, em clima positivista, a É. do móvel tinha a pretensão de valer como ciência exata da conduta. Helvétius dizia: "Acredito que se deve tratar a moral como todas as outras ciências e fazer uma moral como se faz uma fí­ sica experimental" {De Vesprit, 1758, 1, p. 4). Mas essa pretensão caracteriza sobretudo o utilitarismo do séc. XIX, encabeçado por Bentham. Segundo ele, os únicos fatos de que se pode partir no domínio moral são os prazeres e as dores. A conduta do homem é determinada pela expectativa de prazer ou de dor, e esse é o único motivo possível de ação. Com estes fun­ damentos a ciência da moral torna-se tão exata quanto a matemática, embora seja muito mais intricada e ampla (Jntroduction to the Princi­ pies of Morais and Legíslation, 1789, em Works, I, p. V). Desse ponto de vista, consciência, sen­ tido moral, obrigação moral, são conceitos fictí­ cios ou "não-entidades". A realidade que tais conceitos ocultam é o calculo dos prazeres e das dores em que repousa o comportamento moral do homem, cálculo cujos princípios Bentham quis estabelecer fornecendo a tábua completa dos móveis de ação, que deveria ser­ vir de guia para as legislações futuras. Na reali­ dade, a obra de Bentham inspirou a ação reformadora do liberalismo inglês e ainda hoje seus princípios estão incorporados na doutrina do liberalismo político. O utilitarismo de James Mill e de John Stuart Mill não passa de defesa e ilustração das teses fundamentais de Bentham. O positivismo inspirou-se no mesmo ponto de vista: a realização da moral do altruísmo, cujo arauto é Comte e cujo princípio é: "viver para os outros", também fica por conta de instintos simpáticos que, segundo Comte, podem ser gradualmente desenvolvidos pela educação, até que dominem os instintos egoístas (Catéchismepositíviste, 1852, p. 48). A É. biológica de Spencer adota essas teses. Spencer vê na moral a adaptação progressiva do homem às suas condições de vida. O que o indivíduo en­ xerga como dever ou obrigação moral é resul­ tado de experiências repetidas e acumuladas através de inúmeras gerações: é o ensinamento que essas experiências propiciaram ao homem em sua tentativa de adaptar-se cada vez mais às suas condições vitais. Spencer prevê ainda uma fase em que as ações mais elevadas, necessá­ rias ao desenvolvimento harmônico da vida, serão tão comuns quanto hoje o são as ações

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inferiores a que somos impelidos pelo desejo; nessa fase, portanto, a antítese entre egoísmo e altruísmo não terá mais sentido {Data ofEthics, § 46). Pode-se dizer que a É. do evolucionismo não passa da expressão, em termos de otimis­ mo positivista, da É. fundada no princípio da autoconservação que Telésio e Hobbes reintroduziram no mundo moderno. Na filosofia contemporânea, essa concep­ ção de É. não sofreu mudanças nem apresentou progressos substanciais. Bertrand Russell limi­ tou-se a repropô-la na forma mais simples e grosseira, afirmando que "a É. não contém afir­ mações verdadeiras ou falsas, mas consiste em desejos de certa espécie geral" (Religion and Science, 1936). Dizer que alguma coisa é um bem ou um valor positivo é outro modo de di­ zer "agrada-me" e dizer que algo é mau signifi­ ca exprimir igualmente uma atitude pessoal e subjetiva. Contudo, Russell acha que é possí­ vel influir nos próprios desejos, reforçando alguns e reprimindo ou destruindo outros. E julga também que isso deve ser feito por quem almejar a felicidade ou o equilíbrio da vida. Mas está claro que essa posição é contra­ ditória: se a É. nada tem a ver com desejos, fal­ tam motivos ou critérios para que um deles prevaleça sobre os outros. Na E. de Russell, perdeu-se um dos aspectos fundamentais da É. inglesa tradicional: a exigência do cálculo de tipo benthamiano, ou seja, da disciplina na escolha dos desejos, ou melhor, das alternati­ vas possíveis de conduta. No entanto, foi justa­ mente a esse ponto de vista tão mutilado que se filiou a concepção de É. predominante no positivismo lógico, segundo a qual os juízos éticos expressam tão-somente "os sentimentos de quem fala, sendo portanto impossível en­ contrar um critério para determinar a sua va­ lidade" (AYER, Language, Truth and Logic, p. 108; cf. STEVENSON, Ethics and Language, p. 20). O que, obviamente, é o ponto de vista de Russell, para quem a É. trata de desejos e não de asserções verdadeiras ou falsas; é um ponto de vista que marca a renúncia à compreensão dos fenômenos morais, e não um avanço em sua compreensão. Mostra-se mais frutífero o ponto de vista de Dewey, cuja É. se vincula à noção de valor. Dewey tem em comum com boa parte da filosofia do valor(y.) a crença de que os valores são não só objetivos, mas tam­ bém simples e, portanto, indefiníveis, mas não a crença de que eles são absolutos ou necessá­ rios. Para Dewey, os valores são qualidades

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imediatas sobre as quais, portanto, nada há a dizer; só em virtude de um procedimento críti­ co e reflexivo é que podem ser preferidos ou preteridos (Theory ofValuation, 1939, p 13). Mas eles são fugazes e precários, negativos e positivos, além de infinitamente diferentes em suas qualidades. Daí a importância da filosofia, que, como "crítica das críticas", em primeiro lu­ gar tem o objetivo de interpretar acontecimen­ tos para deles fazer instrumentos e meios da realização dos valores, e em segundo lugar, o de renovar o significado dos valores (Experience andNature, pp. 394 ss.). Essa tarefa da filo­ sofia é condicionada pela renúncia à crença na realidade necessária e no valor absoluto. "Abandonar a busca da realidade e do valor absoluto e imutável pode parecer um sacrifício. Mas essa renúncia é a condição para o empe­ nho numa vocação mais vital. Na busca dos valo­ res que podem ser garantidos e compartilhados por todos, porque vinculados aos fundamentos da vida social, a filosofia não encontrará rivais, mas coadjutores, nos homens de boa vontade" (The Questfor Certainty, p. 295). Essas conside­ rações de Dewey certamente circunscrevem o quadro em que a investigação ética contempo­ rânea deve mover-se, mas não lhe oferecem instrumentos eficazes. Ainda falta na É. con­ temporânea uma teoria geral da moral que corresponda à teoria geral do direito (v.), ou seja, uma teoria que considere a moral como técnica de conduta e se dedique a considerar as características dessa técnica e as modalida­ des com que ela se realiza em grupos sociais diferentes. Obviamente, uma teoria geral da moral não partiria de compromisso prévio com determinada tábua de valores; seu compromisso seria simplesmente com a consideração da constituição das tábuas dos valores que se ofe­ recem ao estudo histórico e sociológico da vida moral, com a descoberta, se possível, das con­ dições formais ou gerais de tal constituição. Mas poderia (e deveria) utilizar amplamente a É. do séc. XVIII e, em geral, a É. da motivação, apresentando-se como a continuação dessa concepção. A propósito das relações entre moral e direi­ to, cabe aqui reafirmar o que se disse a pro­ pósito do direito, ou seja, que tais relações po­ dem configurar-se de varias maneiras, mas nunca se especificam como relações de heterogeneidade ou independência recíprocas. A É. como técnica de conduta à primeira vista pare­ ce mais ampla que o direito como técnica de

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coexistência, mas se refletirmos que toda es­ pécie ou forma de conduta é uma forma ou espécie de coexistência, ou vice-versa, logo ve­ remos que a distinção dos dois campos é ape­ nas circunstancial, com vistas a delimitar pro­ blemas particulares, grupos de problemas ou campos específicos de consideração e estudo. ÉTICAS, VIRTUDES (gr. ii0iKai; àperaí; lat. Virtutes morales; in. Ethical Virtues; fr. Vertus morales; ai. Ethísche Tugenden-, ít. Virtú eticbé). Segundo Aristóteles, são as virtudes que correspondem à parte apetitiva da alma, na medida em que esta é moderada ou guiada pela razão (Et. nic, I, 13, 1102 b 16), e que consistem no justo meio (v. MEIO) entre dois extremos, dos quais um é vicioso por exces­ so, o outro por deficiência (Ibid, II, 6, 1107 a 1). As virtudes É. são: coragem, temperança, li­ beralidade, magnanimidade, mansidão, fran­ queza e justiça; esta última é a maior de todas (Ibid, III-V); cf. os verbetes respectivos. ETICIDADE (ai. Sittlichkeit). Hegel fez uma distinção entre moralidade, que é a vontade subjetiva, individual ou pessoal, do bem, e a E., que é a realização do bem em realidades histó­ ricas ou institucionais, que são a família, a so­ ciedade civil e o Estado. "A E.", diz Hegel, "é o conceito de liberdade, que se tornou mundo existente e natureza da autoconsciência" (EU. do dir, § 142). As instituições éticas têm uma realidade superior à da natureza, porque cons­ tituem uma realidade "necessária e interna" (Ibid, § 146). A mais elevada manifestação da E., o Estado, é Deus, que ingressou no mundo, um "Deus real" (Ibid, § 258, Zusatz). Essa dis­ tinção entre moralidade e E. só foi repetida entre os seguidores da escola hegeliana. ÊTICO-RELIGIOSAS, ANTINOMIAS (ai. Etisch-religiose Antinomien). Antíteses em que se expressa o conflito entre o ponto de vista ético e o ponto de vista religioso. Foram enunciadas por Nicolai Hartmann do seguinte modo: ls a ética está radicada nesta existência, enquanto a religião tende a uma existência ra­ dicada além desta; 2S a ética está voltada para o homem, a religião para Deus; 39 a ética afirma a autonomia dos valores, a religião os subordina à vontade de Deus; 4a a ética funda-se na liber­ dade humana, a religião transfere toda ini­ ciativa a Deus (Ethik, 1926, 3a ed., 1949, pp. 811-17). ETTOLOGIA (in. Etiology, fr. Étiologies; ai. Aetiologie, it. Etiologid). Pesquisa ou deter­ minação das causas de um fenômeno. Esse

ETNOGRAFIA

1 termo é usado quase exclusivamente em me­ dicina. ETNOGRAFIA (in. Ethnograph; fr. Etbnografie, ai. Ethnographie, it. Etnografiá). O mes­ mo que ETNOLOGIA. ÀS vezes, o primeiro está­ gio da pesquisa antropológica: observação e descrição, trabalho de campo (LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structumle, 1958, cap. XVII). ETNOLOGIA (in. Etbnology, fr. Ethnologie, ai. Ethnologie, it. Etnologia). Uma das discipli­ nas do tronco sociológico. Tem por objeto os modos de vida de grupos sociais ainda existen­ tes ou dos quais ainda se conserve abundante documentação. A E. se interessa sobretudo pelo estudo da cultura dos povos "primitivos". Distingue-se da sociologia apenas pela forte tendência, observada em seus cultores, a insis­ tir nas características individuais dos grupos estudados e, portanto, a não levar em conta os problemas sociológicos gerais. Lévi-Strauss considera a E. como o primeiro passo, depois da descrição etnográfica, para a síntese antro­ pológica: a síntese etnológica pode ser geográ­ fica, histórica ou sistemática (Anthropologie structurale, 1958, cap. XVII). ETOLOGIA1 (do gr. e6oç; in. Ethology, fr. Ethologie, ai. Ethologie-, it. Etologia). Termo cunhado por Wundt para designar o estudo histórico descritivo dos costumes e das repre­ sentações morais (Logik, II, 2, 369). Esse termo não teve muita repercussão e raramente é em­ pregado. O estudo descritivo dos costumes é parte integrante da sociologia. ETOLOGIA2 (do gr. AOÇ; in Ethology, fr. Ethologie; ai. Ethologie; it. Etologia). Termo cunhado por Stuart Mill para designar a ciên­ cia que estuda as leis da formação do caráter. Essas leis derivariam das leis gerais da psicolo­ gia, aplicadas às influências que as circunstân­ cias ambientais exercem sobre a formação do caráter. A E. se distinguiria da sociologia por­ quanto a primeira seria a ciência do caráter individual, e a segunda a ciência do caráter social ou coletivo {Logic, VI, 5, § 3). Essa palavra não teve repercussão, tendo sido quase universal­ mente aceita para designar a mesma ciência a palavra caracterologia (v.) . EU (lat. Ego; in. /, Self; fr. Moi; ai. Ich; it. Io). Este pronome, com que o homem se designa a si mesmo, passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento em que a refe­ rência do homem a si mesmo, como reflexão sobre si ou consciência, foi assumida como de­

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finição do homem. Foi isso que aconteceu com Descartes, que foi o primeiro a formular em ter­ mos explícitos o problema do eu. "O que sou eu então?", perguntava Descartes. "Uma coisa que pensa. Mas o que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, concebe, afirma, nega, quer ou não quer, imagina e sente. Certamente não é pouco que todas essas coisas pertençam à mi­ nha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam?... É de per si evidente que sou eu quem duvida, entende e deseja, e que não é preciso acrescen­ tar nada para explicá-lo" (Méd., II). Como se vê, aqui o problema do eu é imediatamente acom­ panhado pela sua solução: o eu é consciência, relação consigo mesmo, subjetividade. Esta é a primeira das interpretações historicamente da­ das do eu. Podem ser enumeradas as outras interpretações seguintes: eu como autoconsciência; eu como unidade; eu como relação. PA definição cartesiana do eu como cons­ ciência foi imediatamente acolhida e incorpora­ da à tradição filosófica. Locke adotou-a e a reelaborou com o fim de justificar uma caracte­ rística formal do eu: unidade ou identidade. Di­ zia: "Quando vemos, ouvimos, cheiramos, pro­ vamos, tocamos, meditamos ou queremos uma coisa, percebemos que a fazemos. O mesmo ocorre com nossas sensações e percepções atuais, e nesse caso cada um é para si mesmo o que ele chama de si mesmo, não se levando aqui em conta o fato de que o mesmo eu conti­ nue nas mesmas substâncias ou em substâncias diferentes. E como o pensamento é sempre acompanhado pela consciência do pensamen­ to, sendo ela que faz que cada um seja aquilo que cada um chama de si-mesmo, distinguindo-se assim de todas as outras coisas pen­ santes, nisso apenas consiste a identidade pes­ soal" {Ensaio, II, 27, 11). Em outros termos, segundo Locke, a identidade do eu não se fun­ da na unidade ou na simplicidade da substância-alma, mas unicamente na consciência, e é, aliás, essa consciência que se reconhece na diversidade das suas manifestações. Leibniz, em­ bora insistisse na importância daquilo que ele chamava de consciência ou sentimento do eu, não acreditava que ela apenas constituísse a identidade pessoal, e lhe acrescentava "a iden­ tidade física e real" {Nouv. ess, II, 27, 10). Este ponto de vista encontra-se freqüentemente ex­ presso na filosofia moderna e contemporânea, que às vezes acentuou o caráter ativo ou volitivo da consciência. Foi o que fez, p. ex., Maine de Biran: "A causalidade ou a força (ou

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seja, o eu), que se manifesta para si mesma só por meio de seu efeito ou do sentimento ime­ diato do esforço que acompanha todo movi­ mento ou ato voluntário, é precisamente como 0 primeiro raio, a primeira luz captada pela vi­ são interior da mente" (Nouv. ess. d'anthropologie, II, 1). Assim, para Maine de Biran, o eu é a consciência originária do esforço. Mas a melhor expressão da doutrina do eu como consciência foi dada por Kant, que dizia: "Eu, como pensante, sou um objeto do sentido interno, e me chamo alma. O que é objeto do sentido externo se chama corpo. Portanto, a expressão eu, como ser pensante, designa já o objeto da psicologia que se pode chamar de doutrina racional da alma, quando eu não que­ ro saber mais da alma do que aquilo que, inde­ pendentemente da experiência (que me deter­ mina mais de perto e concretamente), se pode concluir a partir desse conceito do eu, presente em cada pensamento" (Crít. R. Pura, Dialética, II, cap. 1). Ao lado desse eu como "objeto do sentido interno", ou seja, consciência (cf. Prol., 1 46), Kant admite uma outra espécie de eu, que marca a transição para uma segunda inter­ pretação desse conceito. A interpretação do eu como consciência foi freqüente na filosofia moderna e contemporânea. Rosmini dizia: "A palavra eu une ao conceito geral de alma a relação da alma consigo mesma, relação de identidade; contém, portanto, um segundo ele­ mento, distinto do conceito de alma: é uma alma que se apercebe de si mesma, se pronun­ cia, se exprime" (Psicoi, § 6). 2a A interpretação do eu como Autoconsciência nasce da distinção que Kant fizera entre o eu como objeto da percepção ou do sentido interno e o eu como sujeito do pensamento ou da apercepçâo pura, isto é, o eu da reflexão (Antr, I, § 4, nota; cf. AUTOCONSCIÊNCIA). Esta distinção, que, em Kant, jamais teria conduzido à substancialização metafísica do eu, dada a funcionalidade que Kant atribui ao eu, deveria ser assumida por Fichte como ponto de partida para a doutrina do Eu absoluto. Segundo Kant, o eu da reflexão ou da apercepçâo pura é a condição última do conhecer; Fichte faz dele o criador da realidade. "Por ser absoluto", diz ele, "o Eu é infinito e ilimitado. Ele dispõe tudo o que é; e o que ele não dispõe não é (para ele; mas fora dele nada existe). Mas tudo o que dis­ põe, ele dispõe como Eu; e dispõe o eu como tudo o que dispõe. Portanto, nesse aspecto, o Eu abarca em si toda a realidade, uma realida­

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de infinita e ilimitada" (Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II; trad. it., p. 207). Essas teses fo­ ram adotadas e ampliadas por Schelling, graças a quem se tornaram expressões características do romantismo. Na obra O eu como princípio da filosofia ou o incondicionado no saber hu­ mano (1795), ele identifica o Eu de Fichte com a Substância de Spinoza. "Nessa época", Schel­ ling escreveu a Hegel, "tornei-me adepto de Spinoza. Quer saber como? Para Spinoza o mundo é tudo, para mim tudo é o Eu." E embo­ ra Hegel negasse essa tese, considerando como saber absoluto (e, portanto, também como rea­ lidade absoluta) o saber em que desapareceu a distinção entre Eu e nâo-Eu, entre subjetivo e objetivo, também ele compartilha da tese do caráter infinito do Eu. Disse: "O Eu, essa cons­ ciência imediata de si, aparece em primeiro lugar, por um lado, como imediato, por outro como conhecido em sentido muito mais eleva­ do do que qualquer outra representação. Todas as outras coisas conhecidas pertencem de fato e certamente ao Eu, mas ao mesmo tempo são diferentes dele e, portanto, ganharam conteúdo acidental; o Eu, porém, é a simples certeza de si. Mas o Eu em geral é também, ao mesmo tempo, um concreto, ou melhor, o Eu é o concretíssimo, a consciência de si como de um mundo infinitamente múltiplo" (Wissenschaft derLogik, I, livro I; trad. it., I, pp. 65-66). Gentile apenas repetia a colocação fichtiana e ro­ mântica quando dizia: "O eu é certamente o indivíduo, mas o indivíduo como sujeito que nada tem a contrapor a si mesmo e que en­ contra tudo em si; por isso, é o concreto atual e universal. Ora, esse Eu, que é o próprio abso­ luto, é enquanto se põe; é causa sui" (Teoria generale dello spirito, XVII, § 7). 3aJá na interpretação do eu como consciên­ cia e como autoconsciência insiste-se às vezes no caráter formal do eu, ou seja, em sua uni­ dade ou identidade. Viu-se que, para Locke, o eu é a consciência que funda a identidade pes­ soal, e para Kant o eu da reflexão é "a unidade da apercepçâo pura" (Crít. R. Pura, § 16; v. APERCEPÇÂO). O próprio Hume vira em certa forma de unidade, ainda que fictícia, o caráter fundamental do eu, que ele comparara a uma república em que podem ocorrer mudanças nos homens que a governam, em sua constitui­ ção e em suas leis, sem que por isso ela perca a identidade. O homem, do mesmo modo, pode mudar suas impressões e suas idéias, permane­ cendo o mesmo eu (Treatise, I, 4, 6). Todavia

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para Hume, como se vê por essa mesma ima­ gem, a unidade não é absoluta nem rigorosa: é formal e aproximativa, fundada na constância relativa de certas relações entre as partes ou momentos do eu. Esse ponto de vista, talvez mais do que o outro que afirma a rigorosa unidade do eu, evidencia os limites e os pe­ rigos aos quais o eu está sujeito na experiência efetiva. 4a o conceito do eu como inter-relação nasce do reconhecimento do caráter mais evidente com que o eu se apresenta nessa experiência: o caráter de problematicidade, em virtude do qual ele é uma formação instável que pode estar sujeita à doença e à morte. A noção de interrelação é, de fato, mais genérica e menos com­ prometedora do que a noção de unidade. A unidade é uma forma de inter-relação neces­ sária, imutável e absoluta, uma inter-relação pode ser mais ou menos firme e romper-se. Foi sob o ângulo da "doença mortal" do eu, a desesperação, que Kierkegaard definiu o eu como "relação que se relaciona consigo mes­ ma". O homem é uma síntese de alma e corpo, de infinito e finito, de liberdade e necessidade, etc. Síntese é inter-relação, e a reversão dessa inter-relação, ou seja, a relação da relação con­ sigo mesma, é o eu do homem (Die Kmnkheit zum Tode, 1849, cap. I). Kierkegaard acrescen­ tava que precisamente por relacionar-se consi­ go mesmo, o eu é relacionar-se com outro: com o mundo, com os outros homens e com Deus. É nesta segunda inter-relação que por vezes os filósofos contemporâneos insistem. Santayana dizia: "Quando digo eu, esse termo sugere um homem, um entre os muitos que vi­ vem em um mundo que está em conflito com o seu pensamento, mas que o domina" (Scepticism andAnimalFaith, 1923, ed. 1955, p.22). De um ponto de vista diferente, Scheler chega a um conceito análogo do eu: "À palavra eu está associada a alusão ao tu, por um lado, e a um mundo externo, por outro. Deus, p. ex., pode ser uma pessoa, mas não um eu, já que para ele não há tu nem mundo externo" (Formalismus, etc, p. 405). É precisamente da inter-relação que Heidegger lança mão para definir o eu. "A assunção 'Eu penso alguma coisa' não pode ser adequadamente determina­ da se o 'alguma coisa' ficar indeterminado. Se, porém, o 'alguma coisa' for entendido como ente intramundano, então trará em si, não ex­ pressa, a pressuposição do mundo. E é justa­ mente esse o fenômeno que determina a cons­

EUBULIA

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tituição do ser do eu, quando pelo menos ele deve poder ser algo, como em 'Eu penso algu­ ma coisa'. Dizer eu refere-se ao ente que eu sou enquanto sou-no-mundo" (Sein undZeit, § 64). De forma só aparentemente paradoxal, Sartre afirmava, num ensaio de 1937, que "o eu não está, nem formal nem materialmente, na consciência; está fora, no mundo. É um ser do mundo, assim como o eu de um outro" (Rechercbes Philosophiques, 1936-37; trad in., The Transcendence of the Ego, Nova York, 1958, p. 32). No mesmo sentido, afirma Merleau-Ponty: "A primeira verdade é, sem dúvida, 'eu penso', mas sob a condição de que com isso se entenda 'eu sou para mim mesmo' sen­ do no mundo" (Phenoménologie de Ia perception, 1945, p. 466). Considerado em sua relação com o mundo, o eu às vezes é deter­ minado a partir do seu caráter ativo, da sua ca­ pacidade de iniciativa, do seu poder projetante ou antecipador. Dewey diz: "Dizer de modo significante 'Eu penso, creio, desejo', em vez de dizer somente 'Pensa-se, crê-se, deseja-se', significa aceitar e afirmar responsabilidades e expressar pretensões. Não significa que o eu é a origem ou o autor do pensamento ou da afir­ mação nem que é sua sede exclusiva. Significa que o eu, como organização concentrada de energias, identifica-se (no sentido de aceitar as conseqüências) com uma crença ou sentimen­ to de origem exterior e independente" (Experience and Nature, p. 233). São exatamente esses caracteres que constituem hoje o esquema geral para o estudo experimental da personali­ dade, que é um dos principais objetos da psi­ cologia. O eu só se distingue da personalidade (que é a organização dos modos como o indiví­ duo inteligente projeta seus comportamentos no mundo) por ser a parte da personalidade conhecida pelo indivíduo interessado e à qual, portanto, ele faz referência ao dizer "eu". A personalidade, por outro lado, é mais vasta: in­ clui também as zonas escuras ou de penumbra, as esferas de ignorância mais ou menos volun­ tária ou involuntária, que caracterizam o proje­ to total das relações do indivíduo com o mun­ do (v. PERSONALIDADE).

EUBULIA (gr. eí)|kn)A,ía; lat. Eubulid). Se­ gundo Aristóteles, é a boa deliberação, o juízo correto sobre a correspondência entre meios e fim. O bem deliberar é dos sábios, e sabedoria consiste no juízo verdadeiro sobre a correspon­ dência entre meios e fim (Et. nic, VI, 9, 1142 b

EUCOSMIA

5). No mesmo sentido, esse termo é definido EU COSM LV (gr. eÚKoauía). Comportamen­ to regrado, boa conduta (cf. ARSIÜIELES, Pol. IV, 1299 b 16). EU C R A SIA (gr. eÜKpaoíoc). Temperamento. Propriamente, justa mescla dos elementos que compõem o corpo (ARISTÓTELES, Depart. an.,

673 b 25; GALENO, VI, 31, etc).

EUDEMONIA V. FELICIDADE. E U D E M O N ISM O (in. Eudemonism, fr. Eudémonism; ai. Eudümonismus; it. Eudemonismó). Qualquer doutrina que assuma a felicidade como princípio e fundamento da vida moral. São eudemonistas, nesse sentido, a ética de Aristóteles, a ética dos estóicos e dos neoplatônicos, a ética do empirismo inglês e do Iluminismo. Kant acredita que o E. seja o ponto de vista do egoísmo (v.) moral, ou seja, da dou­ trina "de quem restringe todos os fins a si mes­ mo e nada vê de útil fora do que lhe interessa" (Antr., I, § 2). Mas esse conceito de E. é dema­ siado restrito, pois no mundo moderno, a partir de Hume, a noção de felicidade tem significado social, não coincidindo portanto com egoísmo ou egocentrismo (v. FELICIDADE). E U N O M IA (gr. eúvoLiía). A "boa ordem hu­ mana" contraposta à hybris, que é a atitude de quem desconhece os limites dos homens e a si­ tuação de subordinação que eles têm no mun­ do (PLATÃO, Soi, 216 b).

EU PENSO. V. COGITO.

E U PR A X IA (gr. etOTpaÇva). Bom comporta­ mento, ou seja, comportamento regrado, ou segundo as leis. Xenofonte designa com essa palavra o ideal moral de Sócrates (Mem., III, 9, 14). Aristóteles emprega a mesma palavra em oposição a dispraxia, que indica a conduta desregrada; Et. nic, VI, 5, 1140 b 7). E U T A X IA (gr. eÚTOtAíoc). A conduta bem regrada ou conforme à ordem cósmica. É um conceito estóico (Stoicorum fragmenta, III, 64), que Cícero se deteve a ilustrar (De officis, 1,40, 142). EUTiMiA (gr. eúGuLtíoc; lat. Tranquillitas). Era o título de uma das obras de Demócrito; significava a satisfação tranqüila, diferente do prazer, que consiste na ausência de temores, superstições e emoções (DIÓG. L, IX, 45). Os latinos traduziram o termo por tranquillitas (SÊNECA, De tranquillitate animi, II, 3). E U T R A N SC E N D E N T A L (in. Transcendental Ego; fr. Moi transcendental; ai. Transzen-

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EVENTO

dentales Ich; it. Io trascendentale). O mesmo çveEu 3bso)uto (v. Eu). EVANGELHO ETERNO (faC. £í/angeá'um aeternum). Orígenes empregou essa expressão

para designar a reveíação cias verdades supe­ riores que Deus faz aos sábios em todas as épocas do mundo, capaz de integrar e corrigir a revelação contida no E. histórico (Deprinc, IV, 1; Injohann, I, 7). E V E M E R IS M O (in. Euhemerism; fr. Évhémérisme, ai. Evhemerismus; it, Evemerismò). Doutrina de Euevêmero ou Evêmero de Messina (sécs. IV-III a.C), autor de uma Sagrada Escritura traduzida para o latim por Ênio, na qual se queria demonstrar que os deuses são homens corajosos, ilustres ou poderosos, divinizados depois da morte (CICERO), De nat. deor., 1,119). E V E N T O (in. Event; fr. Événement; ai. Geschehen, it. Evento). Na física contemporânea, uma porção do contínuo espácio-temporal. Nesse sentido, uma coisa, p. ex., um corpo, é um evento. Esse conceito foi esclarecido por Einstein em 1916 (Teoria restrita egeral da re­ latividade, § 27). Desde então, é conceito fun­ damental da física: o E. é- propriamente dito, o objeto específico da física, aquele a que se re­ ferem os seus meios de observação: caracteri­ za-se pelas três coordenadas espaciais e pela temporal. "O mundo dos E. pode ser descrito dinamicamente por uma imagem que mude com o tempo, observada sobre o fundo do espaço tridimensional. Mas também pode ser descrito por meio de uma imagem estática, projetada sobre o fundo do contínuo espáciotemporal ern quatro dimensões. Do ponto de vista da física clássica, as duas imagens, a dinâ­ mica e a estática, são equivalentes. Mas do ponto de vista da relatividade, a imagem estática é mais conveniente e mais objetiva (EINSTEININFELD, Evolution ofPhysics, IlI; trad. it., p. 218). Generalizando o conceito de Einstein, Whitehead falou de "E. puntiformes", que pos­ suem posição, um em relação ao outro. Tais E. constituiriam os pontos de um sistema espáciotemporal. Todo sistema teria um grupo particu­ lar de pontos, ou seja, uma definição própria da "posição absoluta" (Concept ofNature, 1920, cap. 5). Essas notas constituem uma tentativa de Whitehead de traduzir a física contemporâ­ nea para uma metafísica evolucionista. Por sua vez, P. W. Bridgmann pôs em dúvida a impor­ tância da noção de E., por não achar que todos os resultados das medidas físicas pudessem ser

EVIDENCIA

expressos em termos de coincidências espáciotemporais. Nesse sentido observa, p. ex., que a diferença entre um elétron negativo e um positivo não é contemplada na especificação das coordenadas {Logic ofModem Physics, 1927, cap. III; trad. it., p. 153). Mas, apesar dessas re­ servas, o conceito de evento continua tendo uma importância fundamental na física con­ temporânea e continua sendo considerado pelos físicos como a melhor caracterização do seu objeto. EVIDÊNCIA (gr. èvápTEia, lat. Evidentia-, in. Evidence-, fr. Evidence, ai. Evidenz; it. Evidenzd). Apresentação ou manifestação de um objeto qualquer como tal. Era assim que os antigos entendiam a E., especialmente epicuristas e estóicos, que a assumiam como cri­ tério de verdade. Os epicuristas identificavam a E. com a própria ação dos objetos sobre os órgãos dos sentidos (DIÓG. L, X, 52). Os estóicos entendiam por E. o apresentar-se ou darse das coisas aos sentidos ou à inteligência, de tal modo que estas resultem "compreendidas" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, II, 7). A represen­ tação cataléptica (v.) é justamente a represen­ tação evidente. Desse ponto de vista, a E. não é um fato subjetivo, mas objetivo: não está li­ gada à clareza e distinção das idéias, mas ao apresentar-se e manifestar-se do objeto (qual­ quer que seja). Assim, nem mesmo os céticos recusam o que se apresenta como evidente, embora evitem a asserção correspondente (SEX­ TO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 10). Descartes, porém, deu um conceito subjetivo de evidência. A "norma da E.", que ele expõe no Discurso, prescreve "nunca aceitar alguma coisa como verdadeira a menos que seja reco­ nhecida evidentemente como tal; isso significa evitar diligentemente a precipitação e a preven­ ção e só incluir nos juízos o que se apresenta tão clara e distintamente ao espírito, que não haja motivo algum para ser posto em dúvida" (Discours, II). Nessa regra a E. foi reduzida à clareza e distinção (v.) das idéias, e os proble­ mas correlativos se deslocaram do domínio do objeto para o da idéia, reapresentando-se nes­ te último como problemas objetivos. O pró­ prio Descartes (sobretudo em Regras para a direção do espírito) vinculara a E. à faculdade da intuição, não entendendo com essa palavra o testemunho dos sentidos ou o juízo da imagi­ nação, mas "a concepção firme de um espírito puro e atento que nasce apenas da luz da ra­ zão e que, sendo mais simples, é também mais

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EVOLUÇÃO

segura que a dedução" (Regulae ad directionem ingenii, III). A E. seria, assim, o caráter da in­ tuição e constituiria a certeza própria desta úl­ tima, assim como a necessidade racional cons­ titui a certeza da dedução. Esses conceitos dominaram grande parte da filosofia moderna, mesmo porque foram aceitos tanto por Locke, para quem "a certeza e a E. do nosso conheci­ mento provêm da intuição da concordância ou da discordância entre as idéias" (Ensaio, IV, 2, 1), quanto por Leibniz (Nouv. ess, IV, 11, 10). O caráter subjetivo da E. e sua conexão com uma faculdade humana mais ou menos miste­ riosa chamada intuição permaneceram em toda a filosofia moderna; só a filosofia contemporâ­ nea entendeu retornar ao antigo conceito de E. objetiva. A crítica da E. como "uma voz mística que de um mundo melhor nos grite: aqui está a ver­ dade!" foi feita por Husserl, que encontrou para a E. a definição de "preenchimento da inten­ ção". Significa que há E. quando a intenção da consciência, voltada para um objeto, é preen­ chida pelas determinações graças às quais o objeto se individualiza, se define e finalmente se apresenta à consciência em carne e osso (Logische Untersuchungen, II, § 39; Ideen, I, § 145; Erfahrungund Urteil, p. 12). Portanto, em toda a filosofia contemporânea que se inspira na fenomenologia, a E. readquiriu caráter obje­ tivo, voltando a designar a apresentação ou manifestação de um objeto como tal, qualquer que seja o objeto e quaisquer que sejam os métodos com os quais se pretende certificar ou garantir sua presença ou manifestação. Nes­ se sentido, Scheler falou de "E. preferencial" para indicar as inter-relações hierárquicas e objetivas dos valores que guiam e sugerem as escolhas humanas (Formalismus, p. 87). No mesmo sentido, às vezes são qualificadas de evidentes as proposições analíticas ou tautológicas cuja verdade resulta dos seus pró­ prios termos, como, p. ex., "O triângulo tem três lados". EVOLUÇÃO (in. Evolution- fr. Évolution, ai. Evolution; it. Evoluzionè). Essa palavra ainda conserva o sentido genérico de desenvolvimento(v.), mas, com mais freqüência, é usada para designar uma doutrina particular que se chama "teoria da E.". Ora, por essa expressão podem ser entendidas duas coisas diferentes: Ia teoria biológica da transformação das espécies vivas umas nas outras, que é a hipótese fundamental das disciplinas biológicas de um século a esta par­ k

EVOLUÇÃO

te; 2a teoria metafísica do desenvolvimento pro­ gressivo do universo em sua totalidade, que é uma hipótese admitida ou pressuposta por muitas doutrinas filosóficas modernas e con­ temporâneas. Embora esses dois significados tenham interagido ao longo da história da filo­ sofia, é oportuno mantê-los separados. (Para o segundo v. EVOLUCIONISMO.) O termo E. foi introduzido provavelmente por Spencer no seu ensaio sobre o Progresso, de 1857, mas essa palavra, assim como o con­ ceito, não teriam gozado de tanto sucesso sem o êxito do transformismo biológico, que teve início com Origem das espécies, de Charles Darwin (1859). A obra de Darwin era, de um certo ponto de vista, mais uma conclusão que um princípio (o que é demonstrado pelo êxito sem precedente): conclusão de um longo tra­ balho de pesquisas e de várias tentativas de ge­ neralização. A doutrina tradicional da imuta­ bilidade (ou fixidez) das espécies vivas fora reflexo, no domínio biológico, da doutrina da substância (v.), ou seja, da necessidade da estrutura ontológica do mundo, que prevale­ cera graças a Aristóteles na filosofia e na ciên­ cia antiga e medieval; isso explica por que a hipótese de transformação das espécies apre­ sentada por Anaximandro (Ps. PLUT., Strom, 2) e por Empédocles (Fr. 56-61, Diels), ainda que de forma fantástica, não deixou vestígios. Se­ gundo a metafísica aristotélica, todas as formas substanciais são imutáveis porque necessárias; isso significa que não podem ser criadas nem destruídas. Como formas substanciais, as espé­ cies vivas compartilham de tais características. Esse princípio aristotélico, cuja única exceção é a criação de Deus, durante muitos séculos cons­ tituiu o arcabouço da pesquisa filosófica e científica. Foi só a partir do início do séc. XVIII que alguns naturalistas começaram a conside­ rar a possibilidade da transformação das espé­ cies biológicas. Buffon admitia essa hipótese, mas declarava-se explicitamente partidário da fixidez das espécies (Histoire naturelle, 1749­ 1804). É provável que Kant se tenha inspirado nele quando, em 1790, levantou a hipótese de "parentesco real" entre as formas vivas, que proviriam de uma "mãe comum", e de desen­ volvimento contínuo da natureza desde a ne­ bulosa primitiva até os homens (Crít. doJuízo, § 80). Mas essas eram apenas intuições genéri­ cas, não confirmadas por nenhum sistema coordenado de observações. O primeiro a apre­ sentar cientificamente a doutrina do trans-

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EVOLUÇÃO

formismo biológico foi Jean-Baptiste Lamarck, em Philosophie zoologique (1809), para quem todavia a E. dos organismos devia-se às dife­ renças neles produzidas pelo maior ou menor uso dos órgãos, e que depois teriam sido fixa­ das pela hereditariedade. Sabe-se hoje que as mudanças nascidas dos hábitos não podem ser herdadas; portanto, o mérito de Lamarck não é o de ter descoberto o princípio da E., mas o de ter insistido na doutrina geral e em alguns aspectos importantes dela, como o da adapta­ ção ao ambiente. Foi só com Origem das espé­ cies (1859), de Charles Darwin, que se iniciou a moderna teoria da E. biológica. A teoria de Darwin admite duas ordens de fatos: lã existên­ cia de pequenas variações orgânicas que se verificam nos seres vivos em intervalos irregula­ res de tempo e que, pela lei da probabilidade, podem ser vantajosas para os indivíduos que as apresentam; 2- luta pela vida entre os indiví­ duos vivos, que se deve à tendência de cada espécie a multiplicar-se segundo uma progres­ são geométrica. Este último pressuposto foi sugerido a Darwin pela doutrina de Malthus (Essay on Population, 1798). Dessas duas or­ dens de fatos resulta que õs indivíduos nos quais se manifestem mudanças orgânicas van­ tajosas têm maiores probabilidades de sobrevi­ ver na luta pela vida, e, em virtude do princípio de hereditariedade, haverá neles acentuada tendência a deixar os caracteres acidentais como herança aos seus descendentes. Essa é a lei da seleção natural, que Darwin conside­ rou o esteio da doutrina da E. (Or. das espécies, IV, 18). Enquanto a doutrina de Darwin sofria, por um lado, os ataques dos partidários da velha metafísica e, por outro, era estendida e genera­ lizada como teoria da E. cósmica, eram apre­ sentadas novas hipóteses, em conflito com o princípio da seleção natural, que procuravam esclarecer como ocorreria a E. Por um lado, os neolamarckianos (entre os quais, especialmen­ te, o francês Giard [1846-1908] e o americano Cope [1840-97]) insistiam na relação do orga­ nismo com o ambiente, atribuindo a essa rela­ ção a capacidade de produzir as novidades or­ gânicas que depois seriam transmitidas por herança. Por outro lado, os neodarwinianos, que se agruparam especialmente em torno do biólogo alemão Weissmann (1834-1914), insis­ tiam na importância da seleção natural como único princípio da evolução. Ambas essas cor­ rentes, no esforço de demonstrar suas próprias

EVOLUÇÃO

teses, produziram fatos e observações novos em favor da teoria geral da E., mas pode-se di­ zer que nenhuma delas logrou demonstrar a falsidade das teses da outra. Hoje se sabe que tanto a adaptação ao ambiente (tese dos lamarckianos) quanto a seleção natural (tese dos darwinianos) exercem funções importan­ tíssimas na E. da vida e que uma coisa não exclui a outra. Nessa incerteza, inseriram-se as novas formas do vitalismo (v.), doutrina que, considerando que a vida não é explicável, em princípio, por fatores físico-químicos, reconhe­ ce como fundamento dela um princípio espiri­ tual que age de modo finalista. O vitalismo dá ênfase àquilo que parece ser um dos caracteres fundamentais da E. biológica: o finalismo. Este, que está estreitamente vinculado à doutrina da estrutura substancial do mundo, ou seja, à me­ tafísica aristotélica, é a parte dessa metafísica que mais resiste à morte. Como já notava Kant, seu campo privilegiado é o dos fenômenos vi­ tais. Esses fenômenos não parecem ocorrer por acaso. Ainda que De Vries tenha observado o súbito e casual surgimento de novas varie­ dades de plantas e tenha assumido esse fato como base real da E. {Teoria das mutações, 1901), sempre pareceu difícil defender o ca­ ráter casual e arbitrário de todo o processo evolutivo. Foi graças a essa dificuldade que as teorias vitalistas ganharam força. A mais famosa delas, no mundo contemporâneo, é a de Bergson, que atribui a E. ao élan vital, isto é, a uma grande corrente de consciência que é lançada na matéria e tende a dominá-la, tendo mais su­ cesso numa direção, menos em outra, e pro­ gredindo sobretudo nas duas direções fun­ damentais: do instinto nos artrópodes e da in­ teligência no homem (Évol. créatr., 1907). Mas, mesmo rejeitando a idéia de um plano to­ tal previamente disposto ou predeterminado (que, segundo Bergson, seria "um mecanicismo às avessas"), a teoria bergsoniana da E. ainda é finalista e passível das mesmas objeções que Bergson faz ao vitalismo: assumir como princípio de explicação a ignorância da explicação. Como observou Huxley, atribuir a E. a um élan vital explica a história da vida tan­ to quanto atribuir o movimento de uma máquina a vapor a um élan locomotif explica o fun­ cionamento dessa máquina. O recurso a um termo metafísico, que só faz cobrir uma zona de ignorância, mascarando-a como saber e, portanto, afastando ou desencorajando a pesquisa positiva tendente a diminuí-la, tam­

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bém é evidente nas outras formas de vitalismo contemporâneo. Assim, Driesch recorre à enteléquia, velho conceito aristotélico, à qual atribui a função diretiva na construção do orga­ nismo (Philosopbie des Organischen, 1908-09). Os estudos de genética (v.) encaminharam a teoria da E. para um terreno positivo de pesqui­ sas, transformando-a num quadro que abran­ ge os instrumentos e as possíveis direções da pesquisa biológica e evitando a dogmatização de princípios parcialmente provados, que fora a característica da fase precedente. Os fundamen­ tos da moderna teoria da E. podem ser assim resumidos: ls Separação da idéia de E. da idéia de pro­ gresso. E. não é necessariamente progresso, e muito menos progresso unilinear, necessário e constante. Seja qual for o critério escolhido para julgar o curso da E., ver-se-á que a história da vida oferece exemplos não só de progres­ sos, em relação a esse critério, mas também de retrocessos e degenerações. Huxley sugeriu como critério objetivo de progresso o da domi­ nação sucessiva de um grupo biológico: critério que levaria a constituir uma sucessão de ida­ des: "Idade dos invertebrados", "Idade dos pei­ xes", "Idade dos anfíbios", "Idade dos répteis", "Idade dos mamíferos" e "Idade do homem" (E., The Modem Synthesis, 1942). Mas também essa sucessão de idades tampouco é objetiva, porque obviamente é sugerida pelo critério de aproximação ao homem. Podem ser definidas outras linhas de progresso com base na expan­ são vital ou na adaptação ao ambiente, critérios que sugerem a organização das espécies ani­ mais segundo o grau de sucesso na realização de alguma dessas duas coisas. Outro critério que os biólogos utilizam com freqüência é a chamada lei de Willinston, segundo a qual "o número de partes de um organismo tende a reduzir-se e sua função tende a especializarse", ou seja, há uma tendência à simplificação mais do que à complicação. Outros indicam como critério a energia geral do organismo ou o nível do processo vital (SEWERTZOFF, Morphologische Gesetzmassigleeiten der E., 1931). Cada um desses critérios leva a organizar as espécies vivas ou seus maiores grupos de um modo que coincide apenas parcial e ocasional­ mente com a organização resultante dos ou­ tros critérios. 2Q Exigência de que os fatores invocados pa­ ra explicar a E. não só expliquem o que ocorre segundo um plano na organização da vida, mas

EVOLUÇÃO

também o que ocorre por acaso; não só a adaptação, mas também a falta de adaptação; não só os aspectos favoráveis e progressistas das transformações vitais, mas também os des­ favoráveis e negativos. A primeira conseqüên­ cia desse ponto de vista é o reconhecimento de que é inútil e cientificamente ilegítimo privile­ giar um fator evolutivo (p. ex., a seleção natu­ ral) e considerá-lo único e fundamental, como fizeram os neodarwinistas. A segunda conse­ qüência é o abandono completo do ponto de vista finalista, que exige a presença de um ob­ jetivo final na E. (cf., p. ex., B. S. HALDANE, The Causes ofE., 1932). 3a Eliminação de qualquer preconceito necessitarista na consideração do ciclo vital das espécies biológicas: nascimento, desenvolvi­ mento e morte não obedecem a esquemas preestabelecidos e muito menos têm como mo­ delo o ciclo de cada organismo. Normalmente, um tipo de organização persiste enquanto as suas relações de adaptação ao ambiente conti­ nuam sendo possíveis. Às vezes, a própria es­ pecificidade da adaptação produz a extinção, pois torna o organismo incapaz de enfrentar as mudanças de maior magnitude no ambien­ te. Nesse caso, obviamente, a extinção do gru­ po é provocada pela própria tendência à adap­ tação, que é um fator de sobrevivência. 4e Finalmente — e é a característica mais importante da teoria geral da E. —, o uso da noção de possibilidade permite evitar as dogmatizações apresentadas pelas alternativas: ordem-desordem, fim-acaso e assim por dian­ te. A vida tende a explorar as possibilidades que lhe são oferecidas. Alguns cientistas consi­ deraram o aumento da soma total de matéria viva no mundo como a principal lei da E. (A. J. LOTKA, em Human Biology, 1945, pp. 167 ss.). Isso quer dizer que a vida parece apegar-se a todas as possibilidades disponíveis. Quanto a esse aspecto, Simpson fala da "natureza essen­ cialmente oportunista do processo da E." {The Meaning ofEvolution, 1949, cap. 12). Todavia, nem na exploração das oportunidades que se lhe oferecem esse processo aparece perfeita­ mente sistemático. Oportunidades evidentes não foram aproveitadas e os intervalos entre as espécies vivas nem sempre foram preen­ chidos. "A regra de que todas as oportunidades da vida tendem a ser utilizadas não deixa de ter exceções. A extinção dos dinossauros pre­ cedeu de muito à preocupação de muitos dos seus modos de vida por parte dos mamíferos e

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não parece que todos tenham sido ainda ocu­ pados. Os ictiossauros foram extintos muitos milhões de anos antes que os delfins e seus parentes aproveitassem essa oportunidade. Não há razão evidente para que o modo de vida dos amonites, outrora tão numerosos, não possa ser agora adotado por grupos igualmen­ te abundantes, mas que seriam procurados em vão nos mares de hoje. Extinguiram-se muitos tipos que deixaram aberto um modo de vida, uma oportunidade que não foi imediatamente aproveitada porque nenhum outro grupo tem base estrutural ou reserva de mutações apro­ priadas para a mudança" (Ibíd., pp. 185-86). Todavia, o número altíssimo das possibilidades utilizadas explica os produtos mais felizes e complexos da E.: p. ex., entre as inúmeras so­ luções para o problema da fotorrecepção, são duas as melhores: o olho do polvo (que é um molusco) e o do homem. Mas os outros tam­ bém funcionam muito bem em seu próprio nível. Isso demonstra que a complexidade de um órgão não foi projetada antecipada­ mente como um plano a ser realizado, mas é produto da exploração de possibilidades favo­ ráveis que se apresentaram. 5S As características específicas dos fenôme­ nos vitais não são ignoradas nem negligencia­ das pela teoria da E., mas não são assumidas como fundamento para afirmar a tese da "irredutibilidade" ou da "originalidade" da vida. Tal tese, com efeito, desaconselharia a conti­ nuar submetendo os fenômenos da vida aos instrumentos objetivos de investigação de que a ciência dispõe e, por conseguinte, deteria a pesquisa biológica. Esta, para tanto, utiliza os instrumentos à sua disposição e só considera "explicado" aquilo a que pode chegar com a ajuda desses instrumentos. Trata-se de um materialismo metódico que pouco ou nada tem a ver com o materialismo doutrinai do séc. XIX (v. VIDA; VlTALISMO). EVOLUCIONISMO (in. Evolutionism; fr. Évolutionnisme, ai. Evolutionismus; it. Evoluzionismó). Por esse termo não se deve enten­ der a teoria geral da evolução, como quadro fundamental das pesquisas biológicas (v. EvoLUÇÀO), mas o conjunto de doutrinas filosóficas que vêem na evolução a característica funda­ mental de todos tipos ou formas de realidade e, por isso, o princípio adequado para explicar a realidade em seu conjunto. Em outros termos, o E. é uma doutrina metafísica que se refere à realidade como um todo e que, embora se va­

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lha das hipóteses e dos resultados da teoria biológica da evolução, sua tese vai muito além de tudo o que qualquer possível teoria científi­ ca possa legitimamente atestar. Nesse sentido, o E. foi assumido como esquema fundamental de muitas metafísicas, tanto materialistas quan­ to espiritualistas. A característica fundamen­ tal que essas metafísicas distinguem na evolu­ ção é o progresso. Para elas, evolução significa essencialmente progresso. Certamente essa foi a visão de Spencer, que deu início à série de metafísicas evolucionistas com um ensaio pu­ blicado em 1857 e intitulado Progresso. Se­ gundo Spencer, o progresso reveste todos os aspectos da realidade. No ensaio citado, escre­ ve "Quer se trate do desenvolvimento da Ter­ ra, quer se trate do desenvolvimento da vida sobre sua superfície, do desenvolvimento da sociedade, do governo, da indústria, do comér­ cio, da língua, da literatura, da ciência, da arte, no fundo de todo progresso está sempre a mesma evolução que vai do simples ao com­ plexo, através de diferenciações sucessivas." Nos Primeiros princípios, Spencer definia as­ sim a evolução: "é uma integração de matéria e a dissipação concomitante de movimento, durante a qual a matéria passa da homo­ geneidade indefinida e incoerente à heterogeneidade definida e coerente, e o movimento conservado sofre transformação paralela" (First Principies, § 145). Essa determinação da evolu­ ção como passagem do homogêneo indiferenciado para o heterogêneo diferenciado sem dúvida era sugerida a Spencer pela evolu­ ção biológica, que parece ir da ameba aos organismos superiores. Segundo Spencer, o sentido geral da evolução é otimista. A evolu­ ção é progresso e, ademais, progresso necessá­ rio, que, no que se refere ao homem, só ter­ minará com "a máxima perfeição e a mais com­ pleta felicidade" (Ibid, § 176). Ao contrário do que ocorreu na teoria da evolução biológi­ ca, que logo desvinculou a noção de evolu­ ção da de progresso, no E. filosófico o senti­ do otimista e necessarista da noção de progres­ so continua constituindo por muito tempo a característica fundamental da evolução. O E. materialista e o E. espiritualista têm isso em comum. Nenhuma dessas correntes chega a reelaborar o conceito em exame. Quando Ardigó define a evolução como "a passagem do in­ distinto ao distinto" (Opere, 1884, II, p. 350), assumindo portanto como modelo evolutivo

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EVOLUCIONISMO

o desenvolvimento psíquico e não o biológi­ co, as características formais da evolução não mudam: ela continua sendo apenas pro­ gresso universal necessário. O maior repre­ sentante do E. materialista foi o biólogo ale­ mão Ernst Haeckel. Sua obra Enigmas do mundo (1899), nos primeiros decênios do séc. XX, foi o catecismo desse materialismo, que via em todas as formas da realidade graus de evolução da matéria, organizados de modo progressista. Por outro lado, o E. espiritualista, que vê nas várias formas da realidade graus de desenvolvimento de um princípio espiritual, teve início com Wilhelm Wundt, que reconheceu esse princípio espiritual na vontade (System der Phil, 1889). Pensamento análogo inspirava a obra do francês Alfred Fouillée, que via na idéiaforça o substrato da evolução (L 'E. des idéesforces, 1890). Mas sem dúvida a mais notável manifestação do E. espiritualista é a doutrina de Bergson, que viu na evolução o produto de um elã vital, que é consciência, liberdade e criação (Evol. créatr, 1907). Em sentido análo­ go, C. Lloyd Morgan falou de Evolução emer­ gente (1923), entendendo que as fases da evo­ lução não são simples resultantes mecânicas das fases precedentes, mas contêm um ele­ mento novo que denuncia o caráter progres­ sista e criativo da evolução. Mas o conceito de evolução como progresso constitui ainda o fundo ou o pressuposto de outras doutrinas que, no entanto, não tomam a evolução por tema fundamental das suas elabo­ rações. Assim a noção de evolução emergente é assumida por Alexander em seu livro Espaço, tempo e deidade (1920) para explicar o desen­ volvimento global da realidade, cuja substância seriam espaço e tempo (que estão entre si como matéria e espírito). Outrossim, o conceito de processo, considerado fundamental por Whitehead (Process and Reality, 1929), outra coisa não é senão o mesmo conceito de evolução contaminado pelo conceito hegeliano de de­ vir, ao mesmo tempo que a evolução em sen­ tido naturalista fundamenta toda a obra de Santayana (cf. especialmente o Realm ofMind, 1940). Essas citações devem ser consideradas apenas exemplos da vastíssima difusão do E. na filosofia contemporânea, e portanto em todas as formas da vida intelectual. A crença de que a realidade é um processo único, contínuo e ne­ cessariamente progressista está nas entrelinhas de doutrinas filosóficas díspares e influenciou poderosamente a postura de certas pesquisas

EXATO

históricas, sociológicas, morais, etc. Essa crença, porém, não é corroborada por nada, e no único domínio em que a teoria da evolução é corrobo­ rada por provas de fato, o biológico, a evolução perdeu justamente os caracteres que os filósofos mais demonstraram apreciar: unidade, continui­ dade, necessidade e progresso. Nenhum desses caracteres é hoje aceito no contexto da evolu­ ção biológica. Portanto, a hipótese de que a rea­ lidade constitui um processo integrado por esses caracteres não é confirmada pelos conhe­ cimentos científicos e deve ser considerada sim­ ples hipótese metafísica, não possível de verifi­ cação, ainda que indireta. No entanto, essa hipótese continua a gozar de certo prestígio jun­ to a cientistas-filósofos. Assim, Teilhard de Chardin reconheceu na evolução o postulado geral ao qual devem adequar-se teorias, hipóteses ou sistemas; conseqüentemente, considerou a evo­ lução da substância viva espalhada pela terra como a de um único organismo gigantesco. O termo final da evolução seria um "Ponto Omega", uma "Superconsciência Universal" formada pela pluralidade unificada de pensamentos individuais que se combinam e reforçam no ato do Pensamento unânime (Le phenomène humain, 1955). Em especulações semelhantes é evidente o caráter metafísico da evolução EXATO (in. Exact; fr. Exact; ai. Exakt; it. Esattó). Assim é qualificado o procedimento (ou operação) no qual se reduza ao mínimo a probabilidade ou margem de erro que a situa­ ção comporta. Nesse sentido, diz-se que é E. a medida que tem um grau suficiente de aproximação (isto é, um mínimo de erro) ou uma previsão que tenha sido suficientemente verificada pelos fatos. Em geral, a exatidão nes­ se sentido é garantida pela observância das normas técnicas que orientam o uso dos proce­ dimentos válidos em dado campo: assim, diz-se que é E. todo procedimento realizado em conformidade com sua própria técnica. As ciências "E." são as que se valem exclusiva­ mente de tais procedimentos. EXCEÇÃO (in. Exception; fr. Exception; ai. Ausnahme, it. Eccezioné). 1. Apesar de se en­ contrarem na Antigüidade alguns vestígios de uma ética da E., como a expressa por Cálicles em Górgías e por Trasímaco em A República de Platão, ou seja, de uma ética que não vale para "a maioria" (oipolloi), é só na filosofia contemporânea que o caráter da "excepcionalidade" assume não só importância moral ou religiosa, mas também ontológica e metafísica.

EXEMPUFICAÇÃO

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Esse foi um tema introduzido por Kierkegaard e por Nietzsche; em Temor e tremor, o primei­ ro insistiu no caráter de "E. justificada" que o eleito de Deus representa em relação à lei mo­ ral (como é o caso de Abraão); o segundo insistiu no caráter de excepcionalidade do super-homem, a quem a "vontade de potência" confere um destino que foge a qualquer regra. Dos existencialistas, foi Jaspers quem insistiu na "excepcionalidade da existência", que é sem­ pre individual, singular, inconfundível e, por isso, não pode tornar-se objetiva e submeterse a limites ou normas (PM., II, 1932, p. 360). 2. Em significado lógico, v. QUANTIFICAÇÃO DO PREDICADO.

EXCEPTIVA, PROPOSIÇÃO (fr Proposition exceptive, it. Proposizione eccettuativa).

A Lógica de Port-Royal deu esse nome à propo­ sição "que afirma uma coisa sobre um sujeito, salvo de uma parte dele"; p. ex.: "Segundo os estóicos, todos os homens são loucos, salvo os sábios" (ARNAULD, Log,, II, 10, 2). EXCLUSIVA, PROPOSIÇÃO (fr Proposition exclusive). A Lógica de Port-Royal deu esse nome à proposição que afirma que um atri­ buto convém a um e a um só sujeito; p. ex. "A virtude é a única nobreza" (ARNAULD, Log., II, 10, 1). EXEMPLAR (in. Exemplary, fr. Exemplaire, ai. Exemplarisch; it. Esemplaré). O que funcio­ na como modelo ou arquétipo, no sentido de ser objeto de imitação e, portanto, causa formal ou ideal daquilo que a imitação produz. Algu­ mas vezes as idéias de Platão foram chamadas de causas exemplares, pela forma de causalida­ de que lhes é atribuída enquanto modelos. Kant observou que alguns produtos do gosto valem como exemplares. "Por aí se vê que o modelo supremo, o protótipo do gosto, é uma simples idéia que cada um deve extrair de si mesmo e segundo a qual deve julgar tudo o que é objeto de gosto" (Crit. doJuízo, % 17). EXEMPLARISMO (in. Exemplarism- fr. Exemplarisme, ai. Exemplarismus; it. Esemplarismò). Doutrina segundo a qual as coisas e os seres do mundo são imagens ou cópias de exemplares ou arquétipos que constituem o "mundo inteligível" ou que subsistem na mente divina. É uma doutrina que se acha no platonismo, no neoplatonismo, em S. Agostinho e na Escolástica. EXEMPLIFICAÇÃO (in. Exemplification; ai. Exemplifizierung; it. Esemplificazioné). Em

EXEMPLO

geral, a referência de um objeto qualquer a um conceito (significado, essência, classe, etc). EXEMPLO (in. Example, fr. Exemple, ai Beispiel; it. Esempió). Em Aristóteles, o TiocpáSeryjia é uma indução aparente ou retórica, que parte de um enunciado particular e passa por um enunciado geral em que a primeira premissa é generalizada. Na Lógica medieval, por simetria com o entimema (v.), "E." foi usado para de­ signar uma generalização indutiva que parte do particular e termina no particular, omitindo a premissa universal. EXISTÊNCIA (gr. TÒ vnàp%£iv; lat. Existentia; in. Existence-, fr. Existence, ai. Existenz; it. Esistenzd). Em geral, qualquer delimitação ou definição do ser, ou seja, um modo de ser de algum modo delimitado e definido. Este, que é o significado mais geral, também pode ser con­ siderado um dos significados particulares do termo, do qual é possível, então, enunciar três significados: 1Q o modo de ser determinado ou determinável; 2S o modo de ser real ou de fato; 39 o modo de ser próprio do homem. 1Q Como modo de ser determinado ou defi­ nido de certo modo, esse termo costuma ser usado na linguagem comum e nas diversas lin­ guagens científicas. Fala-se, com efeito, da E. de entes matemáticos e há, em matemática, um "teorema de E.". Analogamente, fala-se de E. "lógica" ou "conceituai" ou ainda de E. "fantás­ tica", do mesmo modo que os escolásticos falavam da E. "no intelecto" ou da E. "na rea­ lidade"; fala-se também de E. "em si" (da subs­ tância) ou de E. "em outra coisa" (das qualida­ des ou acidentes da substância). Todos esses casos só não têm em comum certa delimitação do significado de ser que, nas ciências exatas, baseia-se em definições precisas. Assim, no campo da matemática, a partir de Hilbert, E. é entendida como ausência de contradição; quando se afirma que a solução de um proble­ ma existe, pretende-se dizer simplesmente que nenhuma contradição impede admitir a E. da solução. Um teorema de E. é a prova rigorosa de que a solução existe (nesse sentido), mes­ mo que ainda não tenha sido descoberta. Esse é, pelo menos, o critério ao qual conti­ nua ligada certa escola de matemáticos con­ temporâneos, a dos formalistas, encabeçados por Hilbert. A outra escola, a dos intuicionistas, que tem à frente Brouwer e Heyting, assume como critério de E. em matemática a possibili­ dade da construção e julga que não se pode fa­ lar de entes matemáticos que não possam ser

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EXISTÊNCIA

construídos. Em um sentido ou em outro, po­ rém, o conceito de E. é definido com precisão em matemática e não se fala de E. em sentido diferente, nessa disciplina. Por outro lado, é fá­ cil ver que esse mesmo conceito de E. não tem sentido fora da matemática e, portanto, não pode ser estendido a campos diferentes. Se passarmos da matemática à física logo veremos que a E. dos entes de que ela fala é sempre im­ plicitamente definida pelas operações de medi­ da ou verificação que servem para estabelecer a observação desses entes. Analogamente, ain­ da, a E. de que se pode falar no domínio da ló­ gica é a definida pelas operações a que o objeto lógico pode ser submetido e se reduz, em última análise, à ausência de contradição. As chamadas ciências "morais" também se fun­ dam em definições implícitas ou explícitas da E. Em direito, uma lei "existe" se foi formulada, aprovada e promulgada nos modos e nas for­ mas previstos na Constituição do Estado. E um fato existe do ponto de vista jurídico se pode ser "provado" nas formas ou nos modos de lei, e qualificado em conformidade com as próprias leis. De forma semelhante, em economia, a E. de um evento consiste na possibilidade de ele ser observado como uniformidade estatística ou quase estatística. Em geral, toda ciência ou disciplina define de algum modo, explícita ou implicitamente, o significado a ser dado à pala­ vra "existência" em seu âmbito. Carnap distinguiu o problema interno da E. (interno a determinado campo, p. ex., à mate­ mática, à física ou à lógica) e o problema exter­ no da mesma E. O problema interno sempre pode ser resolvido empiricamente (quando se refere à realidade de fato) ou logicamente, quando se refere a proposições analíticas. O problema externo é, ao contrário, o que se refere à "E. ou realidade do sistema total das entidades". Assim, p. ex., existir ou não dado número primo é um problema interno da arit­ mética. Mas se existe ou não o sistema dos nú­ meros ou qual é a realidade dos números em seu conjunto são problemas externos que não têm resposta, sendo, por isso, pseudoproblemas, semelhantes ao da realidade do mundo externo ou à disputa entre nominalismo e realismo, que o Círculo de Viena já de­ clarara desprovidos de sentido (Meaning and Necessity, A 3). O caráter inevitável do compro­ misso ontológico, ou seja, da decisão acerca do significado ou dos significados que devem ser atribuídos à E. nos diferentes campos de inda­

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gação, foi evidenciado por Quine, que também ressaltou o fato de esse compromisso ontológico não ser meramente lingüístico, mas se assemelhar à aceitação de uma teoria científica (Fmm a Logical Point ofView, 1). A exigência desse compromisso obviamente é maior no do­ mínio da pesquisa científica. A linguagem co­ mum é muito menos precisa ao definir o modo de ser dos objetos aos quais atribui alguma espécie de existência. Seria por certo embara­ çoso explicar com precisão o que se pretende dizer quando se afirma, p. ex., que o objeto x tem E. "puramente fantástica" ou "puramente ideal", assim como é difícil dizer que tipo de E. cabe a um valor qualquer, como, p. ex., à bele­ za. Mas o que interessa aqui destacar é que, mesmo quando falta determinação precisa, co­ mo muitas vezes ocorre na linguagem comum, sempre está presente no uso da palavra "E." a referência a uma esfera limitada do ser ou à possibilidade de delimitá-la. Em geral, pode­ mos dizer: d) a palavra "E." possui significado próprio no âmbito de cada disciplina, que é ex­ plicitamente expresso ou implicitamente defini­ do pelas operações ou pelos procedimentos peculiares à disciplina; b) tal significado em geral só é válido no âmbito a que se estendem os instrumentos ou procedimentos da discipli­ na, ou seja, no campo específico dos objetos dessa disciplina, mas não tem significado fora desse campo e não pode ser estendido a cam­ pos diferentes, que não tenham relações defi­ níveis com o campo em questão. 2 O significado de E. como E. defato, vale dizer, aquilo que na realidade é ou subsiste, é o mais freqüente na história da filosofia. Aristóteles usava essa palavra com esse sentido ao dizer: "A ciência dá a razão de ser tanto de uma coisa quanto da sua privação, embora de modo dife­ rente; a razão de ser é de ambas as coisas, mas especialmente daquilo que existe" (Met., IX, 2, 1046 b 6; cf. De cael., II, 14, 247 b 22). Do mesmo modo, a palavra é usada por S. To­ más com o fim de definir a subsistência (subsistentiã) própria da substância, porquanto esta "existe não em outra coisa, mas em si mesma" (5. Th, I, q. 29, a. 2), ou de definir "o que é existente por si", quer dizer, o que é real sem ser qualidade ou acidente de outro real (Ibid., I, q. 75, a. 2), Obviamente, para S. Tomás, mes­ mo aquilo que não é "por si" pode ser conside­ rado existente, como p. ex. um acidente real. A esfera da E. como realidade de fato é defini­ da mais explicitamente por Henrique de Gand,

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que introduz a distinção entre esse essentiae e esse existentiae. O ser da essência é o grau ou modo de ser que cabe à essência como tal, independentemente do ser da E.; o ser da E. é a realidade efetiva que pode sobrevir ou não ao ser da essência. Uso análogo dessa palavra encontra-se em Spinoza {Et., 1,7), e em Leibniz (Nouv. ess, II, 7), além de Locke, que, para evitar equívocos, fala de "E. real" {Ensaio, II, 3, 21). E. também é realidade para Berkeley (.Principies of Knowledge, 3) e Hume ( Treatise, I, 3, 7). Justamente por considerar a E. como realidade de fato, Kant nega que ela possa ser reduzida a um predicado conceituai (Crít. R. Pura, Analítica, II, cap. 2, seç. 3, 4). Na filoso­ fia contemporânea, a palavra é usada no mes­ mo sentido. Quando Dewey define a metafísica como "conhecimento das características gené­ ricas da E." e fala da pretensão dos filósofos "de lidar com o conhecimento da E. e não com a imaginação", entende por esse termo a realidade de fato, independentemente do embelezamento e da deformação que ela sofre na descrição dos filósofos {Experience andNature, cap. II). Para mais detalhes sobre esse significado, v. SER; FATO; REALIDADE.

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3Q O terceiro significado específico desse termo é o que restringe ao modo de ser do homem no mundo. Esse significado encontrase no existencialismo (v.) como filosofia, cujo tema é a análise desse modo de ser. Já nos sé­ culos XVIII e XIX a alguns filósofos ocorreu insistir no significado específico da E. como modo de ser das criaturas finitas, dos entes criados. Viço observou que Descartes não de­ veria ter dito "Penso, logo sou", mas "Penso, logo existo"; a E. é o modo de ser próprio da criatura, porquanto significa estar embaixo ou em cima, e supõe substância, ou seja, o Ser di­ vino que a sustem e a cria (Prima Risp. ai Giorn. dei Lett, § 3). Essa distinção foi aceita e adotada por Gioberti (Intr. allostudio deliafil., 1840, II, cap. 4), mas não era suficiente para fazer da E. o tema de uma nova especulação. Outro passo nessa direção pode ser visto na chamada "filosofia da fé" de Hamann e Jacobi, que insistiu na irredutibilidade da E. à razão. Para Jacobi, a filosofia de Spinoza era o protóti­ po de toda filosofia que identifica E. com razão e, portanto, não deixa lugar à fé. Contra Spi­ noza, recorre a Hume, que identificou a E. com a fé, ou melhor, com a crença (Hume, überden Glauben, 1787). Schelling aderiu a essa tese na última fase de sua filosofia, que ele chamou de

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filosofia positiva e expôs nas obras intituladas Filosofia da mitologia e Filosofia da revelação. Para Schelling, a razão só consegue determinar as condições negativas da E., as condições que determinam o modo em que a E. deve ser pen­ sada, dado que o seja. Mas a condição positiva, graças à qual o ser existe, extrapola a filosofia negativa ou racional porque é criação, vontade de Deus de revelar-se; só essa diz respeito ao quodsit, à E. ( Werke, II, III, pp. 57 ss.). A polêmi­ ca de Schelling dirigia-se contra Hegel, assim como a de Jacobi visava a Spinoza. Mas mesmo nessas polêmicas a E., conquanto não fosse considerada solúvel pela razão ou pelo conceito, não é identificada com o modo de ser espe­ cífico do homem e própria dele apenas. Esse passo foi dado por Kierkegaard, que também preparou o instrumento fundamental para a análise da E.: o conceito de possibilidade. Kierkegaard remete-se explicitamente à polêmica, a que já aludimos, contra a redução de E. a conceito: "A E. corresponde à realidade indi­ vidual, ao indivíduo (o que Aristóteles já ensi­ nou); está fora do conceito, que, de qualquer forma, não coincide com ela. Para um animal, uma planta, um homem, a E. (ser ou não ser) é algo de muito decisivo; o indivíduo por certo não tem uma E. conceituai" {Diário, X2, A 328). Mas a E. como individualidade é apenas a E. humana. No mundo animal, é mais impor­ tante a espécie do que o indivíduo; no mundo humano o indivíduo não pode ser sacrificado à espécie. Nesse sentido, a singularidade da E. torna-a o modo de ser fundamental do homem. Tal modo de ser foi analisado por Kierkegaard no seu tríplice aspecto de relacionar-se com o mundo, consigo mesmo e com Deus. Mas nes­ ses três aspectos o relacionar-se nada tem de necessário: é instável e precário. Em todo caso, não é constituído por laços fortes e imutáveis, mas por simples possibilidades que até podem ser perdidas. Aos olhos de Kierkegaard, portan­ to, a E. como modo de ser constituído pelas relações do homem consigo mesmo, com o mundo e com Deus é analisável em um con­ junto de possibilidades cujo caráter é justa­ mente não possuir, por si mesmo, nenhuma garantia de realização. Certamente Deus pode conferir segurança e infalibilidade a tais possibi­ lidades (porque para Ele "tudo é possível"), mas até mesmo o relacionar-se do homem com Deus é apenas possível, e não necessário. Des­ sa interpretação da E. em termos de possibili­ dade nascem as características fundamentais da

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E., que são a angústia, como relacionamento do homem com o mundo, desesperação, como relacionamento do homem consigo mesmo, e paradoxo, como relacionamento do homem com Deus (v. EXISTENCIALISMO). Com isso, são estabelecidas as características da noção de E., no significado em que geral­ mente é empregada pela corrente existen­ cialista da filosofia contemporânea. A E. é: 1Q) o modo de ser próprio do homem; 2e) o relacio­ namento do homem consigo mesmo e com o outro (mundo e Deus); 3S) relacionamento que se resolve em termos de possibilidade. Essas características constituem a inspiração funda­ mental e comum das teorias da E. na filosofia contemporânea. Em virtude da segunda delas, diz-se que a E. é um modo de ser em situação, entendendo-se por situação o conjunto de rela­ ções analisáveis que vinculam o homem às coi­ sas do mundo e aos outros homens. Na filosofia contemporânea, foi Heidegger o primeiro a for­ mular uma análise da E. com bases nessas ca­ racterísticas. Em primeiro lugar, ele restringiu rigorosamente o significado de E. ao modo de ser do homem, empregando, para indicar o ser dos outros entes finitos, o termo "presença" (Vorbandenheif): "A natureza do Ser-aí con­ siste na sua E. As características que podem ser extraídas desse ente nada têm a ver por­ tanto com as 'propriedades' de um ente pre­ sente 'que tem este ou aquele aspecto', mas são sempre e somente possíveis modos de ser. Toda modalidade de ser desse ente é primor­ dialmente ser. Por isso, o termo Ser-aí [Dasein], pelo qual indicamos tal ente, exprime o ser, e não a qüididade, como ocorre quando se diz pão, casa, árvore" (Sein undZeit, § 9). Heidegger afirmava com igual clareza a resolubilidade da E., assim entendida em suas possibilidades. "O Ser-aí", diz ele, "é sempre a sua possibilidade, e ele não a tem' do mesmo modo como um ente presente [isto é, uma coisa] possui uma propriedade. Por ser essencialmente possibili­ dade, o Ser-aí pode, em sendo, 'escolher-se' e conquistar-se, ou então perder-se, ou seja, não se conquistar, ou só se conquistar aparente­ mente. Ele só pode perder-se ou não se ter ainda conquistado porque, em seu modo de ser, comporta uma possibilidade de autentici­ dade, ou seja, de apropriar-se de si mesmo" (Ibid, § 9). Da natureza possível da E. deriva, portanto, para a E. a alternativa entre o modo de ser inautêntico, que é o da E. cotidiana e impessoal, dominada pela tagarelice, pela

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curiosidade e pelo equívoco (v.), e a E. autênti­ ca, que é a de quem reconhece e escolhe a possibilidade mais própria do seu ser. Essa pos­ sibilidade própria é a da morte: essa conclusão constitui a característica da filosofia de Heidegger (v. EXISTENCIALISMO). Mas as análises de Heidegger evidenciaram algumas caracterís­ ticas da E. que se mostraram válidas para compreendê-la e interpretá-la, mesmo fora dos compromissos ontológicos ou metafísicos de que partiam aquelas análises. A E. como possi­ bilidade é transcendência para o mundo e, como tal, é ato de projetar. Mas o ato de proje­ tar é, ao mesmo tempo, inclusão do ser-aí projetante no mundo e sua submissão às condi­ ções do mundo. "O projeto de possibilidades, em conformidade com sua essência, vai fican­ do cada vez mais rico do que a posse em que o projetante se achava anteriormente. Mas seme­ lhante posse só pode pertencer ao ser-aí por­ que este, enquanto projetante, sente-se imerso no meio do ente. Mas, com isso, e em conse­ qüência de sua efetividade, o ser-aí já perde outras possibilidades. Mas é justamente essa perda de determinadas possibilidades do poder-ser-no-mundo, implícita na inclusão no ente, que põe adiante do ser-aí com seu mun­ do as possibilidades realmente alcançáveis no projeto do mundo" (Wesen des Grandes, III; trad. it., p. 68). Para quem observa não só outras formas de existencialismo, mas também outras doutrinas contemporâneas (instrumentalismo, naturalismo, neo-empirismo) e a pos­ tura das ciências modernas em suas pesquisas sobre o homem (biologia, psicologia, sociolo­ gia), parece extremamente importante e fecunda essa interpretação da E. como ato de projetar, em que o projetante já está condicionado pe­ las coisas ou pelos entes de cujas relações parte seu projeto, encontrando-se por isso di­ ante de possibilidades limitadas. Essa inter­ pretação também serve de base para entender a liberdade finita do homem. Heidegger diz: "prova transcendental da finitude da liberdade do ser-aí é que o projeto concreto do mundo, em seu impulso, ganha força e só se torna pos­ se com a perda [de possibilidades determina­ das]. Será que nisso não se mostra com clareza a essência finita da liberdade em geral?" (Ibíd., III; trad. it., p. 69). Essas características da E. são reconhecidas, ainda que com tônicas diferentes, pelas outras formas do existencialismo contemporâneo. Para Jaspers, também a E. é E. possível, definida pe­

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las relações consigo mesma e com a Transcen­ dência (Phil, I, p. 13). Mas são as relações com a Transcendência que dominam a E. na filosofia de Jaspers: as relações do homem con­ sigo mesmo e com o mundo são consideradas apenas formas imperfeitas, aproximadas e, em última análise, ilusórias e desastrosas do relacio­ namento do homem com a Transcendência. Mas o relacionamento com a Transcendência não se inclui entre as possibilidades humanas: des­ se modo, essas possibilidades são examinadas e avaliadas com base naquilo que, para o ho­ mem, é uma impossibilidade efetiva e supre­ ma (J bid, III, pp, 4 ss.). Possibilidade, transcen­ dência, projeto são também os termos com que a E. é analisada por Sartre, que, romanticamen­ te, vê nela a aspiração para o infinito, definindo o homem como 'o ser que projeta ser Deus" (Eêtreetlenéant, 1943, p. 653). Embora a possibili­ dade existencial tenha sido o tema dominante do existencialismo contemporâneo, com muita freqüência suas características específicas foram esquecidas ou negadas. Tais características po­ dem ser assim expostas: Y- Uma possibilidade sempre tem dois aspectos inseparáveis, em vir­ tude dos quais é, simultaneamente, possibilidade-de-sim e possibüidade-de-não. Nada garante a realização infalível de uma possibilidade, mas tampouco nada exclui infalivelmente a sua reali­ zação. Reduzir uma possibilidade ao seu aspec­ to positivo significa transformá-la em determina­ ção necessitante, em alguma coisa que não pode não ser. Reduzir a possibilidade ao seu as­ pecto negativo significa transformá-la em uma determinação negativa igualmente necessitante, ou seja, em alguma coisa que nãopodeser. Em ambos os casos, abandona-se o terreno da pos­ sibilidade para entrar no da necessidade (v.). 2- A possibilidade é uma determinação finita, sujeita a limites e condições que, ao mesmo tem­ po em que a efetivam e validam, delimitam seu âmbito. Portanto, a frase "possibilidade infinita" deve ser considerada contraditória: uma possi­ bilidade infinita é, na verdade, possibilidade de nada porque não comporta definição nem deli­ mitação. Analogamente, a frase "todas as possi­ bilidades" deve ser considerada sem sentido, se tomada sem outras determinações (do tipo, p. ex., "de que ;c dispõe" ou "que a situação y com­ porta"), visto que a totalidade absoluta das pos­ sibilidades constituiria a garantia infalível da realização de cada uma delas, privando-as pre­ cisamente do caráter de possibilidade. 3a Com os procedimentos disponíveis identifica-se um

EXISTENCIAL e EXISTENCIARIO

campo de possibilidades para estabelecer a dis­ tinção entre as possibilidades efetivas ou autên­ ticas e as fictícias. Os domínios da indagação científica e da atividade humana em geral po­ dem ser considerados campos de possibilidades nesse sentido (cf. ABBAGNANO, Struttura delVE., 1939; IntroduzionealVesistenzialismo, 1942, Aed., 1956; Possibilita eliberta, 1957). EXISTENCIAL e EXISTENCIÁRIO (ai. Existential, existentiell). A diferença entre esses dois termos foi estabelecida por Heidegger, no sen­ tido de que o primeiro significa uma deter­ minação constitutiva da existência, uma ca­ racterística ou um caráter essencial dela (cor­ respondente à categoria para as coisas), cuja determinação cabe à ontologia, ao passo que o segundo designa a compreensão que cada homem tem de sua própria existência ao deci­ dir sobre as possibilidades que a constituem ou escolhê-las (Sein undZeit, §§ 4, 9). A análi­ se de Heidegger é existencial porque tende a rastrear as características essenciais e peculia­ res à existência, ou seja, a construir uma ontologia cujo objeto é o ser da existência. A análise de Jaspers, ao contrário, mantém-se, e quer manter-se, no plano existenciãrio. Jaspers, com efeito, repudia a ontologia no sentido de ciência objetiva que considera os caracteres essenciais da existência (Phil, I, 24) e julga que a única análise possível da existência é ao mesmo tempo escolha e decisão, ou seja, pen­ samento existenciário (Ibid., I, 13 ss.; II, 1 ss., etc). E X IS T E N C IA IIS M O (in. Existentialism; fr. Exístentialísme, ai. Existentialismus; it. Esistenzialismó). Costuma-se indicar por esse termo, desde 1930 aproximadamente, um conjunto de filosofias ou de correntes filosóficas cuja mar­ ca comum não são os pressupostos e as conclu­ sões (que são diferentes), mas o instrumento de que se valem: a análise da existência. Essas correntes entendem a palavra existência (v.) no significado 3B, vale dizer, como o modo de ser próprio do homem enquanto é um modo de ser no mundo, em determinada situação, analisável em termos de possibilidade. A análi­ se existencial é, portanto, a análise das situa­ ções mais comuns ou fundamentais em que o homem vem a encontrar-se. Nessas situações, obviamente, o homem nunca é e nunca encer­ ra em si a totalidade infinita, o mundo, o ser ou a natureza. Portanto, para o E., o termo exis­ tência tem significado completamente diferente do de outros termos como consciência, espíri­

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to, pensamento, etc, que servem para interio­ rizar ou, como se diz, tornar "imanente" no homem a realidade ou o mundo em sua to­ talidade. Existir significa relacionar-se com o mundo, ou seja, com as coisas e com os ou­ tros homens, e como se trata de relações não-necessárias em suas várias modalidades, as situações em que elas se configuram só po­ dem ser analisadas em termos de possibilida­ des (v.). Esse tipo de análise foi possibilitada pela fenomenologiaiy?) de Husserl, que elabo­ rou o conceito de transcendência (v.). Se­ gundo esse conceito, nas relações entre su­ jeito cognoscente e objeto conhecido ou, em geral, entre sujeito e objeto (não só no co­ nhecimento, mas também no desejo, na volição, etc), o objeto não está dentro do sujei­ to, mas permanece fora, e dá-se a ele "em carne e osso" (Jdeen, I, § 43). Esse conceito manteve-se rigoroso na filosofia de Husserl, mas exerceu grande influência no E., para o qual as relações entre o ser-aí (isto é, o ente que existe, o homem) e o mundo sempre se configuraram como transcendência. Essa formulação do problema filosófico opõe o E. a todas as formas, positivistas ou idea­ listas, do romantismo oitocentista. O romantis­ mo afirma que no homem age uma força infi­ nita (Humanidade, Razão, Absoluto, Espírito, etc.) de que ele é apenas manifestação. O E. afirma que o homem é uma realidade finita, que existe e age por sua própria conta e risco. O romantismo afirma que o mundo em que o homem se encontra, como manifestação da força infinita que age no homem, tem uma ordem que garante necessariamente o êxito final das ações humanas. O E. afirma que o homem está "lançado no mundo", ou seja, entre­ gue ao determinismo do mundo, que pode tor­ nar vãs ou impossíveis as suas iniciativas. O romantismo afirma que a liberdade, como ação do princípio infinito, é infinita, absoluta, cria­ dora e capaz de produções novas e originais a cada momento. O E. afirma que a liberdade do homem é condicionada, finita e obstada por muitas limitações que a todo momento podem torná-la estéril e fazê-la reincidir no que já foi ou já foi feito. O romantismo afirma o progres­ so contínuo e fatal da humanidade. O E. desco­ nhece ou ignora a noção de progresso porque não pode entrever nenhuma garantia dele. O romantismo tem sempre certa tendência espiri­ tualista, tende a exaltar a importância da interioridade, da espiritualidade e dos valores ditos

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espirituais, em detrimento do que é terrestre, material, mundano, etc. O E. reconhece, sem pudores, a importância e o peso que têm para o homem a exterioridade, a materialidade, a "mundanidade" em geral, donde as condições da realidade humana que estão compreendidas sob esses termos: necessidades, uso e produ­ ção das coisas, sexo, etc. O romantismo consi­ dera insignificantes certos aspectos negativos da experiência humana, como a dor, o fracas­ so, a doença, a morte, porque não dizem res­ peito ao princípio infinito que se manifesta no homem e, portanto, "não existem" para ele. O E. considera tais aspectos particularmente sig­ nificativos para a realidade humana e insiste neles ao interpretá-la. A antítese entre os temas fundamentais do E. e os do romantismo é índice das diferentes categorias de que as duas correntes lançam mão para interpretar a realidade, entendendose por categoria um instrumento de análise, ou seja, um instrumento de descrição e interpreta­ ção da realidade. Dissemos que a análise exis­ tencial é análise de relações: estas se acentuam em torno do homem, mas imediatamente vão para além dele, porque o vinculam (de diver­ sos modos, que é preciso determinar) à reali­ dade e ao mundo de que faz parte ou, em outras palavras, aos outros homens ou às coi­ sas. Ora, essas relações não têm natureza está­ tica, não são, p. ex., apenas relações de identi­ dade, semelhança, etc. As relações do homem com as coisas são constituídas pelas possibi­ lidades de que o homem dispõe (em maior medida ou menor grau, conforme as diversas situações naturais e históricas) para usar as coi­ sas e manipulá-las (com o trabalho), a fim de prover as suas necessidades. E as relações com os outros homens consistem em possibilidades de colaboração, solidariedade, comunicação, ami­ zade, etc, que têm também graus e formas diferentes, conforme as diversas condições na­ turais, sociais e históricas. Ora, dizer que algu­ ma coisa é possível significa prever e projetar ativamente. Portanto as possibilidades huma­ nas geralmente têm mesmo um caráter de an­ tecipação (porque voltado para o futuro) das expectativas ou dos projetos, e as normas que as disciplinam — desde as normas da ciência e da técnica até as dos costumes, da moral, do di­ reito, da religião, etc. — servem para dar certo fundamento e certa garantia de êxito às expec­ tativas e aos projetos. Assim, p. ex., as normas técnicas servem para garantir que certo objeto

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(uma casa, uma máquina) possa ser construído ou produzido de modo a satisfazer determina­ da necessidade; as normas morais servem para garantir que as relações humanas possam desenrolar-se da forma mais pacífica e orde­ nada possível, etc. As expectativas ou proje­ tos, porém, continuam sendo o que são: possibilidades cuja realização é mais ou me­ nos segura, mas nunca infalível (uma casa pode cair, sua comodidade pode ser maior ou menor; uma máquina pode sair com defeito ou inútil; as relações humanas podem passar da ordem à desordem, da paz à hostilidade, etc). Por isso, a categoria descritiva e interpretativa fundamental de que o E. se vale é a da possibi­ lidade. As várias tendências do E. podem ser reco­ nhecidas e distinguidas a partir do significado que dão à categoria da possibilidade e do uso que dela fazem. Assim, é possível distinguir três tendências principais, cujos fundamentos são, respectivamente: 1Q impossibilidade do possível; 2a necessidade do possível; 3a possibi­ lidade do possível. Ia Já em meados do séc. XIX, Kierkegaard insistira na importância da categoria da possibi­ lidade, e por isso é a ele que os filósofos da existência costumam reportar-se. Mas Kierkegaard também insistira no aspecto nadificante do possível, que torna problemáticas e negati­ vas tanto as relações do homem com o mundo quanto as relações do homem consigo mesmo e com Deus. De fato, segundo Kierkegaard, as relações do homem com o mundo são domina­ das pela angústia, que leva o homem a perce­ ber que a possibilidade corrói e destrói as ex­ pectativas ou capacidades humanas além de destroçar cálculos e habilidades com a ação do acaso e das possibilidades insuspeitas (Concei­ to da angústia, 1844). A relação do homem consigo mesmo, que constitui o eu, é domina­ da pela desesperaçâo, ou seja, pela condição na qual o homem se encontra porque percorreu uma possibilidade após outra sem deter-se ou porque esgotou suas limitadas possibilidades, e o futuro se fecha diante dele (A doença mortal, 1849). A própria relação com Deus — que pa­ rece oferecer ao homem um caminho de salva­ ção da angústia e do desespero (porque "para Deus tudo é possível") — , por não ter garantias absolutas e por ser dominada pelo paradoxo, não pode oferecer certeza nem repouso (Te­ mor e tremor, 1843; Diário, passim). Desse modo, ao analisar a existência humana com

EXISTENCIALISMO

base na categoria do possível, Kierkegaard entendia o possível exclusivamente em seu aspecto ameaçador e negativo, vendo nele "aquilo que é impossível realizar-se", mais do que "aquilo que pode não se realizar". A filoso­ fia de Heidegger adota essa mesma interpreta­ ção. Não há dúvida de que, em análises que se tornaram clássicas, Heidegger deixou claro que a existência é transcendência e projeto, mas também mostrou que transcendência e projeto são, afinal, impossíveis, porque a transcen­ dência fica aquém do que deveria transcender e o projeto é dominado e anulado por aquilo que já é ou já não é mais. O caráter da existên­ cia que acaba prevalecendo na filosofia de Heidegger é a efetividade ou factualidade do ser-aí lançado no mundo, em meio aos outros entes, no mesmo nível deles e por isso à mercê de ser o que de fato é. Desse modo, a existência só pode ser aquilo que já passou. Suas possibili­ dades não são aberturas para o futuro, mas reincidência no passado e só fazem reapresentar o passado como futuro. Por isso, o transcender, o projetar, é uma impossibilida­ de radical, um nada nadificante. Não resta ou­ tra alternativa autêntica a não ser antecipar ou projetar esse mesmo nada. Isso é o "viver-para-a-morte", ou seja, para "a possibilidade da impossibilidade da existência" (Sein und Zeit, § 53). A "possibilidade da impossibilidade" se­ ria uma contradição em termos, se possibilida­ de não significasse aqui "compreensão". A existência é essencial e radicalmente impossí­ vel; o que é possível é a compreensão dessa impossibilidade. Viver para a morte é, precisa­ mente, tal compreensão. Como se viu, a característica da filosofia de Heidegger (ao menos na sua primeira fase, a única que pode ser chamada de existencialista) é a transformação do conceito de possibilida­ de, como instrumento de análise da existência, no de impossibilidade. O mesmo fato verificase na filosofia de Jaspers. De um extremo a outro de sua Filosofia, Jaspers fala da existên­ cia possível e sua análise é, explicitamente, análise das possibilidades da existência. Mas, assim como para Heidegger, no fundo tais possibilidades não são mais do que outras tan­ tas impossibilidades. Eu não posso ser senão o que sou {Phil, II, p. 182), não posso tornarme senão o que sou; não posso querer senão o que sou; e o que sou é a situação em que me encontro e sobre a qual nada posso (Ibid. I, p. 145). Jaspers diz explicitamente que as expres­

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sões "eu escolho", "eu quero" significam na realidade "eu devo" (Jch muss; Phil, II, p. 186), o que significa que a possibilidade de ser, de agir, de querer, de escolher, na realidade é a impossibilidade de agir, escolher e querer de modo diferente daquilo que se é, isto é, das condições de fato implícitas na situação que nos constitui. O mesmo predomínio do conceito de possi­ bilidade e a mesma transformação final em im­ possibilidade podem ser encontrados no E. de Sartre. Para esse E., a possibilidade última da realidade humana, a sua escolha originária, é o projeto fundamental em que se inserem todos os atos e as volições de um ser humano. Tal projeto é fruto de uma liberdade sem limites, absoluta e incondicionada: de uma liberdade que faz do homem uma espécie de Deus cria­ dor do seu mundo e o torna responsável pelo mundo. O homem é, de fato, definido por Sartre como "o ser que projeta ser Deus" (Lêtre et le néant, p. 653), mas trata-se de um Deus falido, seu projeto resolve-se em fracasso. Aquilo que na doutrina de Heidegger e de Jaspers é obra da necessidade factual que limita e destrói qualquer possibilidade de. transcender o fato, na doutrina de Sartre é obra da infinidade de possibilidades que se eliminam e se destroem reciprocamente, num jogo fútil e vão que pro­ voca náusea: pois nenhuma delas possui mai­ or validade ou solidez que a outra, sendo, pois, impossível escolher uma ou outra, a não ser ce­ gamente. Uma escolha absoluta ou "absoluta­ mente livre", como a que Sartre atribui ao ho­ mem, é perfeitamente idêntica à "não-escolha" ou à "escolha da escolha" de Heidegger e Jaspers, no sentido de que não é uma escolha, mas a própria impossibilidade de escolher. Mais uma vez, o conceito do possível se trans­ formou sub-repticiamente no do impossível. Dessa tendência deriva a noção de existencialismo como "filosofia negativa", "filosofia da angústia" ou "do fracasso", o que não é de todo exato, pois refere-se a apenas uma das corren­ tes existencialistas e, ainda assim, apenas a alguns de seus aspectos. Dessa noção comum derivou o uso generalizado desse termo não só para designar certas correntes literárias e artísti­ cas, mas também certos costumes, atitudes e até modos de vestir. Esse uso generalizado, apesar de ser ainda mais impróprio do que a noção comum que lhe deu origem, pode ser explicado observando que, na maior parte dos casos, serve para chamar a atenção sobre os as­

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pectos mais desfavoráveis, negativos e des­ concertantes da vida humana, ou seja, sobre os aspectos da vida humana enquanto é um simples poder ser, completamente desprovido de qualquer garantia de estabilidade e certeza. A chamada literatura existencialista tende, de fato, a dar destaque às vícissítudes humanas me­ nos respeitáveis e mais tristes, pecaminosas e dolorosas, bem como à incerteza dos empreen­ dimentos bons ou maus e à ambigüidade do bem, que pode dar origem ao seu contrário. De modo semelhante, atitudes, costumes e modas eram qualificados de "existencialistas" quando pretendiam ser formas de protesto contra o oti­ mismo superficial e a respeitabilidade burguesa da sociedade contemporânea. Seja qual for o julgamento que se faça sobre essas manifesta­ ções, cujo caráter superficial e grotesco muitas vezes é evidente, mas cuja responsabilidade não deve recair sobre a corrente filosófica de que estamos falando, está claro que, dessa for­ ma, o E. representou uma poderosa força de destruição do dogmatismo absolutista do séc. XIX, dos seus mitos otimistas e do seu falso sentimento de segurança, aliás tão duramente desmentidos pelas vicissitudes dos últimos decênios. Não pairam dúvidas, pois, quanto à função resolutiva e libertadora que essa forma de E. exerceu nos últimos vinte anos, mas tampouco pairam dúvidas quanto à sua inca­ pacidade de preparar instrumentos válidos que contribuam para a solução positiva dos proble­ mas humanos. 2- Se a primeira interpretação reduz as pos­ sibilidades humanas a reais ímpossibilidades, a segunda interpretação as considera, no extre­ mo oposto, como potencialidades, no sentido aristotélico do termo. Assim entendido, o possí­ vel perde seu aspecto negativo e preocupante, já que uma potencialidade está sempre "desti­ nada a realizar-se" (LAVEIXE, DU temps et de 1'étemité, 1945, p. 261). Essa transformação do possível, de categoria de instabilidade e incer­ teza problemática para categoria de estabilida­ de e certeza, é obtida graças à vinculação das possibilidades existenciais a uma Realidade absoluta da qual elas aufeririam garantia de rea­ lização infalível. Para Lavelle, essa realidade absoluta é o Ser (De 1'êfre, 1928; De Vacte, 1937; Du temps et de Véternité, 1945), para Le Senne (Obstacle et valeur, 1934), a realidade absoluta é entendida como valor infinito. A realidade absoluta também como Ser é enten­ dida por Mareei, que porém acredita que o ser

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só se revela no mistério de que se circunda e que, por isso, a única atitude possível do ho­ mem diante dele é a de amor e fidelidade {Journal Mêtaphysique, 1927; Être et avoír, 1935; Du refus à Vinvocation, 1940). Mas, qualquer que seja o modo de entender a reali­ dade absoluta, por se fundarem nela as possi­ bilidades existenciais transformam-se em róseas perspectivas de sucesso, e assim nada do que o homem realmente é e nenhum dos seus valores fundamentais podem perder-se, já que elas têm garantia absoluta e transcenden­ te. Essa corrente do E., que tem caráter e finali­ dade religiosa, do ponto de vista filosófico tem o defeito de constituir um panegírico da reali­ dade humana, e não uma tentativa de com­ preendê-la e de propiciar uma justificação post factum da experiência humana, muito seme­ lhante à tentada pelas filosofias românticas. A se admitir que todas as possibilidades existen­ ciais estão destinadas a realizar-se, porquanto fundadas no Ser ou no Valor, só se estarão encobrindo os insucessos e as misérias do ho­ mem com um manto verbal. A se admitir, ao contrário, que nem todas as possibilidades hu­ manas estão fundadas no Ser e no Valor, e que nem todas estão destinadas a realizar-se, propor-se-á o embaraçoso problema de fornecer um critério para reconhecer quais são as possi­ bilidades realmente fundadas: problemas para cuja solução o pressuposto do fundamento transcendente dessas possibilidades em nada contribui. 3e Enfim, para uma terceira interpretação, própria do E. italiano, as possibilidades existen­ ciais devem ser assumidas e mantidas como tais, sem serem transformadas em Ímpossibilidades nem em potencialidades. Nesse caso, a perspec­ tiva aberta por uma possibilidade não é nem a realização infalível nem a impossibilidade ra­ dical, mas a busca tendente a estabelecer os limites e as condições da própria possibilida­ de e, portanto, o grau de garantia relativa ou parcial que ela pode oferecer. Essa corrente do E. acentua a tendência naturalista e empirista já presente — ainda que de forma disfarçada ou imperfeita — nas outras correntes (N. ABBAGNANO, Struttura delVesistenza, 1939; Introduzíone alVesistenzialismo, 1942; Filosofia, religione, scienza, 1948; Possibilita e liberta, 1956; E PACI, Principi di una filosofia delVessere, 1939; Pensiero, esistenza, valore, 1940; Tempo e relazione, 1954). Segundo essa tendência, a in­ vestigação dos limites e das condições a que as

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possibilidades humanas estão submetidas só pode ser feita com a utilização de técnicas de verificação e controle de que a indagação positi­ va ou científica dispõe em todos os campos. Se uma hipótese, uma teoria ou uma proposição não passam de um "poder ser" que abre pers­ pectiva para o futuro, sua validade consiste não só em poderem ser postas à prova, mas também em poderem ser repropostas depois da prova, ainda como um "poder ser" para o futuro. Por isso, os critérios utilizados pelas ciências em ge­ ral e disciplinas em particular, com o fim de de­ cidir sobre a validade das suas proposições e da realidade dos seus objetos, podem ser assumi­ dos como determinações ou especificações do critério da possibilidade; ou, reciprocamente, este último pode ser assumido como a generali­ zação de critérios específicos. Desse ponto de vista, o homem nem é lançado sem defesas con­ tra a falência e o fracasso, nem está destinado ao triunfo final; contudo, possui as garantias par­ ciais e limitadas que lhe são oferecidas por suas técnicas, por seus modos de vida experimen­ tados e pelas possibilidades, que elas lhe abrem, de encontrar e experimentar novas possibilidades. Cf. A. SANTUCCI, E. e filosofia italiana, 1959. EXOTERICO. V. ESOTÉRICO.

EXPECTATIVA (in. Expectation, fr. Attente, ai. Erwartung; it. Aspettazionè). Antecipação de um acontecimento futuro (v. FUTURO). Uma das formas da atenção ou atenção expectante, que é o preparo para a ação e a disposição das condições mentais capazes de enfrentá-la (v. ATENÇÀO). Quando a E. é mantida no estágio de excitação, com inibição das disposições à reali­ zação da ação, torna-se um estado semipatológico ou patológico, devido à exaltação das emoções. (P. JANET, De langoisse à 1'extase, pp. 168 ss.X EXPERIÊNCIA (gr. èujieipía; lat. Experientia; in. Experience, fr. Experience, ai. Erfahrung; it. Esperienza). Este termo tem dois significados fundamentais: ls a participação pessoal em situações repetíveis, como quando se diz: "x tem E. de S", em que S é entendido como uma situação ou estado de coisas qual­ quer que se repita com suficiente uniformi­ dade para dar a x a capacidade de resolver alguns problemas; 2- recurso à possibilidade de repetir certas situações como meio de verifi­ car as soluções que elas permitem: como quan­ do se diz "a E. confirmou x", ou então: "a proposição p pode ser confirmada pela E.". No

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primeiro desses dois significados, a E. tem sem­ pre caráter pessoal e não há E. onde falta a par­ ticipação da pessoa que fala nas situações de que se fala. No segundo significado, a E. tem caráter objetivo ou impessoal: o fato de a pro­ posição/» ser verificável não implica que todos os que fazem tal afirmação devam participar pessoalmente da situação que permite confir­ mar a proposição p. O elemento comum dos dois significados é a possibilidade de repetir as situações, e isso deve ser considerado funda­ mental na significação geral do termo. Essa de­ terminação implica que: à) esse termo não é usado com propriedade quando se fala de uma E. "excepcional" ou até mesmo "única", a me­ nos que esses adjetivos sejam (como de fato muitas vezes são na linguagem comum) exage­ ros retóricos para indicar a pouca freqüência com que certa situação se repete ou a impro­ babilidade de que ela se repita para o mesmo indivíduo; h) esse termo não se restringe ne­ cessariamente a indicar situações "sensíveis", mas pode indicar situações de qualquer nature­ za em que se possa contar com suficiente repetibilidade. Além disso, o uso desse termo no significado 2e supõe uma condição funda­ mental, sem a qual a E. não pode exercer ne­ nhuma ação de averiguação; qual seja: c) a E. a que se recorre para a averiguação deve ser independente das crenças que é chamada a averiguar, de tal modo que as crenças não aca­ bem por determinar a averiguação. Sem essa importante limitação, uma ilusão repetida ou repetível poderia ser assumida como prova de validade. Portanto, pode-se falar (como muitas vezes se faz na linguagem contemporânea) de "E. religiosa" ou "E. mística", etc, só no signifi­ cado le do termo, mas essas formas de E. não podem ser utilizadas para verificar as crenças de que partem, pelo fato de que são inteira­ mente dependentes de tais crenças e não po­ dem ocorrer sem elas. Dos dois significados enunciados, o 2e é o comum a todas as corren­ tes do empirismo (v.), ao passo que o f é historicamente anterior e ainda hoje é compar­ tilhado por algumas correntes da filosofia. ls A primeira e mais evidente característica da primeira noção de E. é constituída pela oposição entre, por um lado, arte, e ciência ou conhecimento racional, por outro. Essa con­ traposição foi claramente enunciada por Platão a propósito da medicina. Platão diz que os mé­ dicos dos escravos "não averiguam as doenças" e "prescrevem o que lhes parece melhor pela

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E. como se tivessem uma ciência perfeita", comportando-se "como um tirano soberbo". O médico cios homens livres, ao contrário, "estu­ da as doenças, mantém os doentes desde o princípio em observação, procura a natureza do mal, estabelece relações estreitas com o doente e com seus familiares e, ao mesmo tem­ po, aprende com os doentes e ensina-lhes o que é possível" (Leis, IV, 720 c-d). O empirismo moderno consideraria compatível com a E. pre­ cisamente o comportamento que, nesse trecho, Platão contrapõe à própria E. Mas essa observa­ ção mostra a diferença que separa os dois sig­ nificados de E. aqui enunciados. Aristóteles deu forma clássica a essa doutrina no primeiro capítulo de Metafísica e no último de Analíticosposteriores. Sua tese fundamental é a redu­ ção da E. à memória. Aristóteles diz que todos os animais têm "uma capacidade seletiva ina­ ta", que é a sensação. Em alguns deles, a sensa­ ção não persiste; para estes, não há conheci­ mento fora da sensação. Outros, porém, finda a sensação, podem conservar alguns vestígios dela na alma. Nesse caso, depois de muitas sensações dessa natureza, determina-se em alguns animais uma espécie diferente de co­ nhecimento, que é o conhecimento racional. De fato, "a partir da sensação desenvolve-se aquilo que chamamos de lembrança, e da lem­ brança repetida de um mesmo objeto nasce a E., assim, lembranças que são numericamente múltiplas constituem uma experiência. Dessa E. ou do conceito universal que se fixou na alma como uma unidade que, estando além da multiplicidade, é una e idêntica em todas as coisas múltiplas, nasce o princípio da arte e da ciência: da arte, em relação ao devir; da ciên­ cia, em relação ao ser" (An. post., II, 19, 100 a 4). Assim entendida, a E. contrapõe-se à arte e à ciência, ao mesmo tempo em que é condição delas. É condição delas porquanto é ela que suscita a inteligência dos primeiros princípios da arte, da ciência. "Esses hábitos", diz Aristóte­ les, "não subsistem em nós separadamente, nem são produzidos por outros hábitos mais cognoscitivos, mas pela própria sensação, do mesmo modo como, p. ex., se um exército está fugindo e um soldado pára, pára também o sol­ dado que o segue e depois o outro, e assim por diante, até o princípio da fila" (An. post, II, 19, 100 a 9). Nessa comparação, a parada do pri­ meiro soldado é a permanência de certa sensa­ ção na memória (p. ex., do homem Cálias), a parada de outro soldado depois de várias filas

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já é um conceito (p. ex., homem), e a parada do princípio da fileira corresponde aos concei­ tos últimos e simples, que são os princípios da arte e da ciência e intuições pelo intelecto (Ibid, II, 19, 100 a 9). Note-se que o próprio uso do verbo "parar" com que Aristóteles ex­ pressa a persistência ou a estabilidade da lem­ brança — que constitui a E. e por fim leva à in­ teligência dos princípios — corresponde àquilo que é a característica objetiva da E.: a possibili­ dade de repetir as situações. Pela ação condicionante que a E. exerce sobre a inteligência dos princípios, Aristóteles chega a dizer que "conseguimos reconhecer os princípios primei­ ros com a indução; e, com efeito, a sensação produz desse modo o universal" (Ibid, 100 b 3 ss.). Mas é claro que entre um soldado qual­ quer parar e a primeira fila de soldados parar há uma diferença radical: a parada da primeira fila é a inteligência dos primeiros princípios, que são necessariamente verdadeiros, indepen­ dentemente de qualquer confirmação que a E. possa dar. Eles são, aliás, indiferentes à confir­ mação ou à refutaçâo e justamente por isso são objeto de um órgão específico, que é o intelecto. O reconhecimento desse órgão obvia­ mente é sugerido a Aristóteles pela exigência de fundar a validade necessária dos primeiros princípios, ou seja, de tornar esses princípios independentes de qualquer confirmação ou refutaçâo empírica. Esta estabelece o quase sem­ pre, não o sempre. Portanto, em face da inteli­ gência, que apreende os princípios, o processo preparatório que vai das sensações à E. é pura­ mente acidental e só apresenta a vantagem de ser o mais cômodo e óbvio para o homem. Mas para Aristóteles a E. permanece o que era para Platão: consiste em conhecer o fato que ocorre repetidamente, mas não a razão pela qual ocor­ re: assim, é conhecimento do particular e não do universal, de tal modo que saber e conhecer cabem à arte e à ciência, não à E. (Met., I, 1, 981 a 24). Portanto, em Aristóteles está total­ mente ausente a noção (própria do significado 2-, de E. como possibilidade de verificação e de averiguação das verdades alcançáveis pelo homem. Aristóteles não pode, portanto, ser chamado empirista. Para ele, a E. se reduz à repetição freqüente, mas não absolutamente constante de certas situações memorizáveis. Ao longo da história da filosofia, esse con­ ceito de E. permanece como uma das alternati­ vas possíveis, cujas características às vezes também influenciam o outro conceito. Os

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da à iluminação divina e que é a fonte das vir­ tudes sobrenaturais. Mas o caráter intuitivo da E. permaneceria mesmo depois que a E. so­ brenatural foi posta de lado pelo desenvolvi­ mento ulterior do empirismo. Segundo Ockham, a E., que é "o princípio da arte e da ciência", é o conhecimento intuitivo perfeito, que tem por objeto as coisas presentes, dife­ renciando-se por isso do imperfeito, que tem por objeto as coisas passadas (In Sent, II, q. 15, H; Prol, q. 1, Z). Intuitivo é o conhecimento "em virtude do qual se pode saber se uma coisa existe ou não. Se existe, imediatamente o inte­ lecto julga que existe. Além disso, intuitivo é o conhecimento mediante o qual se sabe que uma coisa inere em outra, que um lugar dista de outro, que uma coisa tem certa relação com a outra ou, em geral, uma verdade contingente qualquer, especialmente a respeito do que está presente" (Ibíd, Prol., q. 1, Z). Ockham consi­ dera que se pode ter conhecimento intuitivo método. só das coisas exteriores, mas também dos a) A teoria da E. como intuição considera a não estados internos do homem, como as 'inteE. como o relacionar-se imediato com o objeto lecções, as a alegria, a tristeza e seme­ individual, usando como modelo de E. o senti­ lhantes, devolições, que o homem pode ter E. em si do da visão. Desse ponto de vista um objeto mesmo, mas que não são sensíveis para nós" "conhecido por E." é um objeto presente em (Ibid, Prol. q. 1, HH). Essa segunda espécie de pessoa e na sua individualidade. A tese funda­ conhecimento intuitivo corresponde exatamen­ mental dessa concepção é a seguinte: existem te à reflexão de Locke. No espírito do ockhaunidades empíricas elementares. A concepção Jean Buridan declarava imperfeita a leva a admitir que existem dados elementares mismo, arte "doutrinai", ou seja, a que despreza a E.; originários aos quais é confiada em última aná­ arte, notava ele, não conhece o significado lise a função de verificação do conhecimento. essa dos seus princípios, nem das suas conclusões, Por sua vez, a existência das unidades em­ sendo apenas a arte que conhece pela píricas elementares permite estabelecer uma E. tantoperfeita os princípios, que a arte doutrinai se li­ classe privilegiada de proposições, que são as mita a pressupor, quanto as conclusões particu­ que exprimem diretamente essas unidades. lares a que eles conduzem (InMet., I, q. 8). A O recurso à E., quando formulado pela pri­ limitação da E. à intuição sensível foi reforçada, meira vez no plano filosófico, no séc. XIII, foi a partir do Renascimento, pelo anti-racionalisum recurso à intuição. "Sem a E.", dizia Roger rao. Como as verdades pretensamente válidas, Bacon, "nada se pode conhecer suficiente­ sem verificação ou averiguação, eram atribuí­ mente. Os modos de conhecer são dois: a argu­ das à "razão", a exigência de averiguação implí­ mentação (argumentum) e a experiência. A cita no recurso à E. parecia só poder voltar-se demonstração conclui e nos faz concluir a para a intuição sensível. Esta aparecia como questão, mas não dá certezas e não remove a fonte de verdades ou de procedimentos inde­ dúvida, já que a alma não se aquieta na intui­ pendentes da razão, logo capaz de exercer uma ção da verdade se não a encontrar por via da ação de freio ou limite sobre as pretensões da E." (Opus maius, VI, 1). Essas palavras de razão. A partir do séc. XVI, o recurso à E. pas­ Bacon já incluem o recurso à E. como averigua­ sa a ter significado claro de limite ou negação ção e norma da verdade humana. Mas também das pretensões da razão. Telésio justificava o incluem o conceito intuitivo da experiência. É sensacionismo identificando "o que a natureza verdade que, para Bacon, a intuição não é so­ revela" com "o que os sentidos testemunham" mente sensível: ao lado da E. sensível, que é (De rer. nat., proêmio), argumentando que a fonte ou critério das verdades naturais, Bacon natureza se revela à parte do homem que é na­ admite uma E. "interna" ou sobrenatural, devi­

escritores medievais, em geral, o repetem (S. e tc); como o repetem Spinoza (Et., II, 40, scol. 2) e Leibniz (Théod, Disc, § 65; Monad., §§ 28-29). 2- O recurso à E. como critério ou cânone da validade do conhecimento é característico do empirismo, distinguindo-o do sensacionísmo (v.). Este consiste simplesmente em asserir a natureza intuitiva, portanto privilegiada, do conhecimento sensível, mas sem que tal co­ nhecimento se constitua em guia e controle do conhecimento em geral. Os estóicos, p. ex., fo­ ram sensacionistas, mas não empiristas; os epicuristas, que, ao contrário, elaboraram e defenderam uma teoria da indução, foram também empiristas. No âmbito desse significa­ do da palavra, é possível distinguir duas inter­ pretações fundamentais, quais sejam: a) teo­ ria da E. como intuição; b) teoria da E. como

TOMÁS, S. Th., I, q. 54, a. 5; II, I, q. 40, a. 5,

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tureza, ou seja, à sensibilidade. E Leonardo da Vinci afirmava que "a sabedoria é filha da E." e que a E. nunca engana, apesar de poder enga­ nar-se o juízo sobre ela (Cod. Atl., foi. 154 r). Mas tanto em Leonardo da Vinci quanto em Galilei, ao lado da E. sensível aparece outro fundamento ou cânon do conhecimento huma­ no: o raciocínio matemático. Ao lado da "sensa­ ta E.", Galilei colocava explicitamente as "de­ monstrações necessárias" da matemática como outra via através da qual a natureza se revela ao homem (Carta à Grand. Cristina, em Op., V, p. 316). Essa já era uma limitação importante à interpretação da E. como intuição sensível, pois as demonstrações matemáticas não trans­ cendem o domínio da natureza (que, segundo Galilei e Kepler, está escrita inteiramente em caracteres matemáticos), sendo portanto cons­ titutivas da E. natural. Aliás, é significativo que o verdadeiro fundador do empirismo moder­ no, Francis Bacon, não seja de modo algum sensacionista e que, para ele, o guia do conhe­ cimento humano não é a simples E., que pro­ cede ao acaso e sem diretrizes, mas o expe­ rimento, que é a E. guiada e disciplinada pelo intelecto (Nov. Org, 1,82). A interpretação intui­ tiva da E. deveria, porém, prevalecer no empirismo setecentista graças a Locke e Hume. A teoria da E. de Locke pode ser resumida nos seguintes pontos: le redução da E. à intuição das coisas externas (sensação) ou dos atos internos (reflexão); 2- resolução da sensação e da intuição em elementos simples, entendidos cartesianamente como idéias, 3Q uso da noção de E. como critério ao mesmo tempo limitativo e fundamentador do conhecimento humano, já que este não pode ir além da E. que lhe forne­ ce as idéias e, ao mesmo tempo, recebe da E., com o material indispensável e com os nexos que esse material apresenta, o critério da sua validade (Ensaio, IV, cap. 3-4). Esse último aspecto é enfatizado por Locke inclusive como norma limitativa das pretensões cognoscitivas do homem porque assumido como limite da possível extensão do conhecimento humano. Na realidade, se considerarmos o fato de Locke ter imposto esse limite não só ao domínio do conhecimento, mas também ao da política, da moral e da religião, campos em que o conceito de relação direta com o objeto não tem senti­ do, deveremos concluir que, no conjunto de sua filosofia, ele realizou uma atitude empirista que vai além de sua teoria da experiência. Com Locke, delineou-se a concepção de E.

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como totalidade do mundo humano, ou se­ ja, como conjunto de sistemas de averiguação instituíveis nele, que é a característica da con­ cepção metódica da experiência. Mas está claro que em Locke também se encontra, pela pri­ meira vez, a definição das unidades empíricas elementares, que são as idéias e as relações imediatas entre as idéias. A mesma assunção, com outras palavras, encontra-se na teoria de Hume. O ponto de vista deste filósofo está expresso com toda clareza nas últimas frases de Investigação sobre o intelecto humano: "Se tomarmos um volume qualquer, como p. ex. de teologia ou de metafísica escolástica, pergunta­ remos: contém algum raciocínio abstrato sobre quantidades ou números? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou de existência? Não. Então, ponha-o no fogo, pois só contém sofismas e ilusões." De fato, para Hume, todos os objetos da investigação humana dividem-se em duas grandes classes: as relações entre as idéias e as coisas de fato. As relações entre idéias "podem ser descober­ tas com uma operação pura do pensamento, sem depender de coisas que existem em algum lugar do universo. Ainda que não existisse nem sequer um círculo ou um triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conser­ variam certeza e evidência" (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Portanto, as verdades dessa natu­ reza (que constituem a geometria, a álgebra, a aritmética e, em geral, a matemática) não preci­ sam de averiguação, mas sua verificação está à disposição do homem a qualquer momento e sem recurso a confirmações experimentais. No que concerne aos conhecimentos da realidade de fato, ao contrário, o seu único fundamento é a relação entre causa e efeito. Mas, por sua vez, o fundamento dessa relação é a E., e se per­ guntarmos qual é o fundamento das conclu­ sões tiradas da E., a resposta a ser dada, segun­ do Hume, é que esse fundamento nada tem de racional, mas é simples instinto. De fato, "todas as nossas conclusões experimentais fundam-se na suposição de que o futuro será conforme ao passado. Mas buscar a prova desta última supo­ sição com argumentos prováveis ou referentes à existência deve ser, evidentemente, um círcu­ lo vicioso, e tomar por admitido o que é duvi­ doso" (Inq., cit., IV, 2). Portanto, o que nos resta é o instinto, a aconselhar-nos a aceitar como boa uma inferência — a do passado para o fu­ turo — que não pode ter justificação racional nem empírica. O fundamento dessa crítica é a

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redução da E. às impressões e à relação entre as impressões, relação que também é intuída, ou seja, percebida aqui e agora, portanto, des­ provida de qualquer significado ou referência que transcenda a instantaneidade das impres­ sões. Hume operou a mais radical redução da E. à intuição, porque reduziu a intuição a intui­ ção instantânea, que nada significa fora de si. Desse ponto de vista, a construção de procedi­ mentos ou de esquemas de previsão é impossí­ vel: como censurou Kant, Hume tornava im­ possível a formação de uma ciência qualquer. Todavia, foi justamente a teoria da E. de Hume que, através de Mach, tornou-se o pres­ suposto do neo-empirismo contemporâneo. Mach resolvera o fato empírico em elementos considerados últimos e originários: as sensa­ ções. Um fato físico ou um fato psíquico não passa de um conjunto relativamente constante de elementos simples: cores, sons, calor, pres­ são, espaço, tempo, etc. Desse ponto de vista, a diferença substancial entre o físico e o psíqui­ co desaparece. "Uma cor", diz Mach, "é um objeto físico enquanto considerarmos, p. ex., sua dependência das fontes luminosas (outras cores, calor, espaço, etc), mas se a considerar­ mos em sua dependência da retina é um objeto psíquico, uma sensação" (DieAnalyse derEmpfindungen, 9a ed., 1922, p. 14). Essa doutrina conferia à noção de unidade empírica elemen­ tar a forma com a qual ela exerceu e ainda exerce função central no neo-empirismo con­ temporâneo. Wittgenstein valeu-se dela em Tractatus logíco-philosophicus (1922). Nessa obra, aceitava-se a distinção de Hume entre verdades de razão e verdades de fato, expri­ mindo-a na forma da oposição entre as pro­ posições da matemática e da lógica, que são "analíticas", "tautológicas", "não dizem nada" (Tractatus, 6,1; 6,11), e as proposições elementa­ res das ciências naturais que representam os "estados de coisas" {Sachverhalte) ou "fatos atômicos" (Ibid, 4, 1), os quais nada mais são do que as impressões de Hume ou as sensa­ ções de Mach: unidades empíricas elementa­ res. Por sua vez, em Visão lógica do mundo (1928), Carnap tentava reduzir todo o conheci­ mento científico aos termos da E. intuitiva, e a unidade empírica elementar a que recorria era a "Vivência elementar" (Elementarerlebnis), considerada como um elemento neutro, ante­ rior à distinção entre objetivo e subjetivo (Aufbau, § 67), segundo o modelo da "sensa­ ção" de Mach. Mas essa concepção de E., preci­

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samente como a de Hume (que, no fundo, era idêntica), impossibilitava a ciência ao impossi­ bilitar a formulação de regras para a previsão dos fenômenos. Foi essa, justamente, a crítica dirigida a Carnap pelo próprio Círculo de Viena (cf. K. Popper, Logik derForschung, 1934; cf. a nova edição inglesa, The Logic ofScientific Discovery, 1959). Conseqüentemente, Carnap modificou seu conceito de verificabilidade empírica. No texto Testabüity and Meaning (1936), diz ele: "Os positivistas acreditavam que todo termo descritivo da ciência podia ser definido por termos de percepção e, portanto, que todo enunciado da linguagem pudesse ser traduzido em um enunciado sobre as percep­ ções. Essa opinião foi expressa nas primeiras publicações do Círculo de Viena, inclusive na minha, de 1928, mas hoje penso que não era de todo adequada: a redutibilidade pode ser afirmada, mas não a ilimitada possibilidade de eliminação e retraduçâo" ("Testabüity and Meaning", em Readings in thePhil. ofScience, 1953, p. 67). Esse reconhecimento eqüivale a uma restrição da tese da verificabilidade em­ pírica dos enunciados científicos, tese que Carnap exprime dizendo: •"Todo predicado des­ critivo da linguagem da ciência é confirmável com base em predicados-coisa observáveis" (Ibid, p. 70). A confirmabilidade, com efeito, é uma exigência mais fraca e menos rigorosa do que a experimentabílidade: um enunciado pode ser confirmável sem ser experimentável: isso ocorre, por exemplo, quando sabemos que uma observação x nos daria condições de confirmar ou invalidar o enunciado, mas não estamos em condições de efetuar a observa­ ção x Mas essa restrição, que sem dúvida amplia o domínio dos enunciados significativos e dá à ciência o direito de empregar enunciados que não tem condições de pôr à prova, não consti­ tui uma retificação do conceito de experiência. O complexo aparato que Carnap propõe como instrumento de redução de qualquer enuncia­ do científico a enunciado experimentável ou, pelo menos, confirmável, apóia-se na crença de que existe correspondência estreita entre um enunciado verdadeiro e determinada E. in­ tuitiva. O modo como ele define o predicado observável realmente faz referência à E. ime­ diata, visto que Carnap declara, p. ex., que um campo elétrico não é absolutamente observá­ vel (Ibid., pp. 63-64). Em outros termos, nessa segunda fase do pensamento de Carnap, os "predicados observáveis" constituem as unida­

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des empíricas elementares que servem de fun­ damento aos enunciados sintéticos. Portanto, nessa segunda fase, com a distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, permanece ainda a noção intuitiva de E. e, com isso, a crença na existência de unidades empí­ ricas elementares. O que mudou foi apenas a qualificação de tais unidades elementares, que deixam de ser experiências subjetivas ou per­ cepções, mas determinações objetivas ou quali­ dades sensíveis. Essa fase do pensamento de Carnap pode ser considerada como o desen­ volvimento máximo da noção de E. como intui­ ção. De fato, o reconhecimento, por parte de Quine, dos "dois dogmas do empirismo" (natu­ reza intuitiva da E. e distinção entre enuncia­ dos analíticos e enunciados sintéticos) constitui a passagem para uma concepção diferente da experiência. Entrementes, é significativo o fato de a teoria da E. como intuição ser comparti­ lhada não só por empiristas, mas também por seus adversários, como p. ex. Husserl, que cen­ sura no empirismo a ignorância ou o desco­ nhecimento das "essências" e julga, portanto, que o verdadeiro procedimento cognoscitivo é a "visão essencial" do matemático. Segundo Husserl, a E. do naturalista, que, para ele, é "um ato fundamentador, que não pode ser substituí­ do pela simples imaginação", é apenas visão, intuição do individual (ldeen, I, §§ 7, 20). Esse conceito é confirmado por ele nas obras pós­ tumas, onde se lê que a E., "no seu signi­ ficado primeiro e mais pregnante", deve ser considerada "relação direta com o individual" (Erfahrung und Urteil, 1954, § 6). b) A teoria da E. como método considera-a operação (mais ou menos complexa, nunca elementarmente simples) capaz de pôr à pro­ va um conhecimento e capaz de orientar sua retificação. Uma operação que atinge esse obje­ tivo é repetível ou recorre a situações repetíveis, portanto nunca é: Ia uma atividade pessoal ou incomunicável (p. ex., subjetiva ou mental), que não possa ser repetida por qualquer pes­ soa; 2- intenção, imaginação ou anúncio de operação, mas a operação efetiva. Nesse senti­ do, "perceber" não é operação empírica quan­ do se refere à sensação que x tem do verme­ lho, mas sim quando é operação tendente a confirmar ou averiguar se, p. ex., há um objeto vermelho nesta sala, desde que essa operação possa ser realizada por qualquer pessoa nas condições adequadas. Portanto, o objeto em­ pírico não é a "sensação" ou a "impressão" de

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vermelho (como Carnap parece crer), mas a coisa vermelha, como p. ex. o livro ou a luz cuja presença pode ser confirmada nesta sala, seja com operações perceptivas normais (que podem ser praticadas por qualquer pessoa que tenha visão normal), seja com instrumentos (p. ex., um espectroscópio, etc). A sensação "ver­ melho" não é levada em conta; isso porque, mesmo não sendo diretamente acessível a alguns indivíduos (os daltônicos), um objeto vermelho não deixa de ser um objeto empírico para todos, inclusive para os daltônicos. A emp.iricidade de um objeto consiste no fato de ele poder ser verificado ou averiguado por quem quer que esteja na posse dos meios adequados; e o fato de existirem certos meios capazes de propiciar essa averiguação significa que eles podem ser utilizados tanto por quem crê quanto por quem não crê na existência do objeto, e que a eficácia dos meios não depende de uma ou de outra crença. Em sentido negati­ vo, essa noção de E. é caracterizada por: lg ausência de distinção entre verdades de razão e verdades de fato, ou entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, 2- pela ausência de postulação de uma unidade em­ pírica elementar. Pode-se dizer que essa noção de E. foi delineada pela própria prática da pesquisa científica desde seus primórdios. A "sensata E." de Galilei, que nunca estava separada do racio­ cínio matemático, tem esse caráter prático de averiguação e não pode ser interpretada como recurso à intuição imediata. O próprio funda­ dor do empirismo moderno, Francis Bacon, entendeu a E. como campo das verificações e das averiguações intencionalmente executadas. Dizia Bacon.- "Quando a E. vem ao nosso en­ contro espontaneamente, chama-se acaso; se procurada deliberadamente, tem o nome de experimento. Mas a E. vulgar outra coisa não é, senão um proceder às apalpadelas como quem vaga à noite de lá para cá na esperança de to­ par com o caminho certo, quando seria muito mais útil e prudente esperar o dia ou acender um candeeiro para achar o caminho. A ordem verdadeira da E. começa com acender o can­ deeiro, com o que se ilumina o caminho, co­ meçando-se com a E. organizada e madura, e não com uma E. irregular e às avessas; primei­ ro, deduz os axiomas, depois procede a novos experimentos" (Nov. Org, I, 82). Em outros termos, para valer como fonte de aferição dos conhecimentos, a E. deve incluir uma ordem,

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que, para Bacon, é de natureza intelectual, em­ bora depois deva servir de freio e norma ao próprio intelecto (Ibid, I, 101). A característica fundamental dessa concepção é a ausência de distinção entre verdades de razão e verdades de fato, ou seja, entre verdades que se fundam unicamente nas inter-relações de idéias e ver­ dades que derivam da experiência. A ciência moderna, a partir de Galilei, ignora essa dis­ tinção, que tampouco é reproduzida pela distinção kantiana entre juízos analíticos e sin­ téticos, porque tal distinção não concerne à validade dos juízos, mas à diferença entre juízos explicativose juízos extensivos, entre juízos que nada acrescentam ao conhecimento do sujeito e juízos que lhe acrescentam novas notas (Crít. R. Pura, Intr., 4). De fato, Kant elabora um conceito de E. segundo o qual a E. é irredutível à simples intuição sensível. Para Kant, a E. é o conhecimento efetivo e, por isso, inclui a totali­ dade das suas condições. Kant diz: "Toda E. en­ cerra, além da intuição dos sentidos para a qual algo é dado, o conceito de um objeto que é dado ou aparece na intuição, por isso, na base de todo conhecimento experimental há conceitos de objetos em geral como condições apriori; por conseguinte, a validade objetiva das categorias, como conceitos apriori, deverse-á ao fato de que só graças a elas é possível a E. (segundo a forma do pensamento)" (Ibid., Analítica, § 14). E ainda: "A E. apóia-se na uni­ dade sintética dos fenômenos, numa síntese, segundo conceitos, do objeto dos fenômenos em geral, sem a qual nunca seria um conheci­ mento, mas uma rapsódia de percepções que nunca poderiam adaptar-se umas às outras, no contexto regular de uma (possível) consciência inteiramente unificada, portanto, nem à unida­ de transcendental necessária da percepção. A E. tem, pois, como fundamento os princípios da sua forma a priori, ou seja, as normas uni­ versais da unidade da síntese dos fenômenos, normas cuja realidade objetiva sempre pode ser encontrada na E., como aquela das condi­ ções necessárias dela, aliás, da sua própria pos­ sibilidade" (Ibid, Analítica, II, 2, seç. 2). A E. não é, portanto, a "rapsódia" de percepções sensíveis, mas a ordem e a regularidade do conhecimento que constituem a contraparte subjetiva (ou "formal") da ordem e da regulari­ dade da natureza. Justamente como tal, a E., ou melhor, a possibilidade da E., é o critério último da legitimidade de qualquer conhecimento possível. Para Kant um conhecimento que não

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é uma E. possível não é um conhecimento objetivo, ou seja, autêntico (Ibid, Analítica, II, 2, seç. 2). Mas se esse é o conceito de E. que Kant elabora nem sempre é o que utiliza ao longo de sua obra. Se, de fato, esse significado fosse rigorosamente observado, Kant não po­ deria dizer, como diz bem no início da Razão Pura (Intr., 1): "Se bem que todos os nossos conhecimentos comecem com a E., nem por isso derivam todos da E." O conhecimento não pode derivar nem deixar de derivar da E., se ele éa experiência. Donde resulta que todo o conceito kantiano do a priori como o que é "independente da E." deriva do uso ambíguo desse termo, que, ao contrário da definição explícita que Kant lhe dá, às vezes se limita a indicar a intuição sensível, de tal modo que a ordem, a regularidade, as categorias e os prin­ cípios não se incluem em seu âmbito e devem ser considerados apriori. Está bem claro que, se a E. inclui ordem, regularidade, etc, os prin­ cípios que garantem tal ordem, ou seja, a for­ ma da E., não podem ser chamados de a priori, "independentes da E.", tampouco sendo possível assim designar o conteúdo da E., isto é, o seu material sensível. O significado dessa doutrina está na tese de que o conhecimento efetivo é o que se organiza segundo o princípio de causalidade, ou seja, se­ gundo uma ordem necessária. Fichte exprimia com exatidão essa tese kantiana ao dizer: "O sis­ tema das representações acompanhadas pelo sentimento da necessidade chama-se também E., seja ela interna ou externa. Por isso, a filoso­ fia tem a função de explicar toda E." (Erste Einleitungin die Wíssenschaftslehre, 1797, § 1, em Werke, I, 1, pp. 419 ss.). Desse ponto de vista, o método de explicação causai é, por ex­ celência, o método empírico. Por isso, a con­ cepção da E. como método tem sentido restrito em Kant: a E. como método identifica-se com a explicação causai. Na filosofia contemporânea, o conceito de E. como método foi defendido pelo pragmatismo e pelo instrumentalismo. Peirce dizia: "cuidamos somente da E. possível, E. na plena acepção do termo, como algo que não só afete os sentidos, mas seja também o sujeito do pensamento" (Chance, Love andlogic, 11, 2; trad. it., p. 131). Dewey, por sua vez, nega que a E. seja "um conteúdo objetivo" ou que se identi­ fique com um objeto singular. "Na E. efetiva, nunca se dá tal objeto singular ou evento isola­ do; um objeto ou evento é sempre uma parte, um momento ou um aspecto especial de um

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mundo ambiental experimentado, isto é, de uma situação. O objeto singular tem grande des­ taque devido à posição focai e crucial que ocu­ pa em dado momento, quando se visa determi­ nar alguns problemas de uso e fruição que o ambiente global apresenta. É sempre em certo campo que se verifica a observação deste ou daquele objeto." Por conseguinte, "os juízos de E. e os juízos formais acerca de objetos ou de eventos não se dão para nós quando isola­ dos, mas só quando vinculados a um contexto abrangente, que se chama situação" (Logic, III; trad. it., p. 111). As características que Dewey atribui à E. podem ser assim resumidas: Ia a E. não é consciência, logo não pode ser reduzida à intuição (Experience andNature, 1925, cap. I); 2a a E. não é somente conhecimento, embora inclua o conhecimento, mas compreende tudo o que, a qualquer título, pode ser experimenta­ do pelo homem (essa extensão já fora feita por Peirce, que entendera por E. "o curso da vida" [Coll. Pap., 3, 435] ou "a história pessoal" [Ibid., 4,911); 3a a E. é o campo de toda pesquisa possí­ vel e da projeção racional do futuro: nela, por isso, "a razão tem necessariamente função cons­ trutiva" (PM. and Civilization, 1931, pp. 24-25). Por importantes que sejam esses pontos, que exprimem algumas das exigências para uma teo­ ria metodológica, constituem uma abordagem genérica demais dessa teoria. Para isso, por outro lado, constitui condição preliminar a críti­ ca feita por Quine aos dois "dogmas" funda­ mentais do empirismo, quais sejam, à distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéti­ cos e reducionismo sensacionista. Quanto ao primeiro, Quine distinguiu os enunciados lógi­ cos (p. ex., "Nenhum homem não casado é casado"), cuja verdade permanece inalterada enquanto permanecer inalterado o uso das par­ tículas lógicas (não, se, então, etc), e as outras verdades chamadas analíticas (p. ex., "Nenhum solteiro é casado"), que têm esse nome porque certas palavras são assumidas como sinônimos (nesse caso: "solteiro" e "não casado"). Ora, os procedimentos para estabelecer a sinonímia são dois.- Ia definição: mas esta, salvo no caso de no­ vas notações introduzidas com convenções explícitas, não faz mais que esclarecer relações precedentes de sinonímia; 2a intercambialidade salva veritate (que é o critério proposto por Leibniz): mas "nada garante que a coincidência extensiva entre 'solteiro' e 'não casado' se baseie no significado e não em um estado de fato aci­ dental, como ocorre na coincidência extensiva

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de 'criatura com um coração' e 'criatura com rins'" (From a LogicalPoint ofView, II, 3). A intercambiabilidacle pressupõe a sinonímia, mas não a funda, assim como a analiticidade não pode fundar-se nas regras semânticas de uma linguagem artificial, já que tais regras definem o que é analítico para a linguagem em questão, mas não o significado de analiticidade, que está pressuposto. A conclusão de Quine é que não foi demarcado "um limite entre enunciados ana­ líticos e enunciados sintéticos. Que tal distinção deva ser feita é dogma não empírico dos empiristas, artigo metafísico de fé" (Ibid., II, 5). O se­ gundo dogma dos empiristas é a redução dos enunciados empíricos a termos de E. imediata, ou seja, a dados sensíveis. Quine mostra a rela­ ção dessa tese, tanto na forma mais ampla quan­ to na mais restrita, correspondentes às duas fases do pensamento de Carnap, com a distinção entre analítico e sintético. "Os dois dogmas", diz ele, "são idênticos na raiz. Vemos que, em geral, a verdade dos enunciados depende obviamente tanto da linguagem quanto do fato extralingüístico e notamos que essa circunstância óbvia acaba produzindo, não lógica mas natural­ mente, o sentimento de que a verdade de um enunciado é analisável em um componente lingüístico e um componente factual. Se formos empiristas, o com ponente factual deverá conduzir-nos a um conjunto de E. veríficadoras. No outro extremo, onde o componente lin­ güístico é o único que interessa, será verdadeiro o enunciado analítico. Minha opinião é que isso é uma tolice e que a raiz dessa tolice con­ siste em falar de um componente lingüístico e de um componente factual na verdade de todos os enunciados individuais. Tomada coletiva­ mente, a ciência tem dupla dependência, da lin­ guagem e da E., mas essa dualidade não pode ser estendida aos enunciados isolados da ciên­ cia" (Ibid, II, 5). Desse ponto de vista, o saber pode ser comparado a um tecido cinzento, que é preto para os fatos e branco para as conven­ ções lingüísticas nele entrelaçadas, mas no qual não há fios totalmente brancos nem fios total­ mente pretos (Carnap e a verdade lógica, em "Riv. di Fil.", 1957, na 1); ou então a um campo de força cujas condições limítrofes são a expe­ riência. "Um conflito com a E. na periferia", diz Quine, "ocasiona uma reacomodação no inte­ rior do campo. Os valores de verdade devem ser redistribuídos sobre algumas das nossas asser­ ções. A reavaliação de umas asserções implica a reavaliação de outras, em virtude das suas cone­

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xões lógicas, ao mesmo tempo que as leis lógi­ cas são outras tantas asserções do sistema, ou­ tros tantos elementos do campo... Mas o cam­ po total é tão subdeterminado pelas condições limítrofes, ou seja, pela E., que há grande ampli­ tude na escolha das asserções a serem rea­ valiadas à luz de uma E. contrária isolada" (From a Logical Point ofVietv, II, 6). Portanto, mesmo uma afirmação muito próxima da perife­ ria pode ser considerada verdadeira se compa­ rada a uma E. recalcitrante, considerando esta como ilusória ou reformando algumas das asserções chamadas de leis lógicas (como ocor­ reu, p. ex., com o princípio do terceiro excluí­ do). Mas nenhuma asserção está imune à revi­ são. É significativo que justamente um dos maiores lógicos contemporâneos tenha liquida­ do o pressuposto lógico da doutrina da E. como intuição, e que um dos maiores expoentes do neo-empirismo contemporâneo tenha procura­ do liqüidar esse mesmo conceito de experiên­ cia. Na realidade, este segundo intento não foi levado a cabo por Quine. Admitir para o campo total do saber a composição de conceito e sen­ sação que se nega aos componentes individuais do saber só pode ser considerada uma posição provisória. Quine fala ainda do "fluxo de E." (Jbid, II, 6) no mesmo sentido em que Hume podia falar do fluxo das impressões, e afirma que os objetos físicos, destacados desse fluxo, por seu caráter mítico, não são diferentes dos deuses de Homero. Nesse aspecto, ele sofre a influência da obra de Duhem (La théoriephysique, 1906). Mas pelas mesmas observações feitas por Quine o fluxo da E. deve ser conside­ rado um conceito mítico, pois seria uma su­ cessão ou corrente de intuições instantâneas, um suceder-se de unidades empíricas elementa­ res, e suporia, portanto, a existência de tais uni­ dades elementares que a crítica de Quine contri­ buiu para eliminar. Em conclusão, hoje se entrevê a exigência de passar da teoria gnosiológica da E. para uma teoria metodológica. Para a teoria gnosiológica, a E., como forma, elemento ou categoria em si, é formada por elementos próprios, característi­ cos e irredutíveis, aos quais, portanto, deve ser reduzido, direta ou indiretamente, todo enun­ ciado empírico. Uma teoria desse gênero tem como pressuposto uma classificação preliminar e rígida das formas de conhecimento e tam­ bém, portanto, das formas de atividade huma­ na (teoria-prática; lógica/linguagem/razâo-E.; enunciados empíricos-unidades empíricas ele­

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mentares; lógica centro-E. periferia). Uma teo­ ria metodológica da E. deveria, ao contrário, prescindir de qualquer classificação preliminar e, em todo caso, de qualquer rigidez classificatória das atividades humanas em seu conjunto. Suas análises deveriam ser aplicadas aos pro­ cedimentos efetivos de verificação e averigua­ ção de que o homem dispõe, seja como orga­ nismo, seja como cientista. A análise desses procedimentos deveria determinar as condições e os limites de validade de cada um. Só desse modo, o exame dos componentes lógicolingüísticos nunca se separaria do exame dos componentes factuais, segundo a exigência de Quine. A própria distinção entre tais compo­ nentes deveria ser supérflua em qualquer ní­ vel. Infelizmente, embora a psicologia contem­ porânea esteja bem à frente na análise dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe como organismo (pen­ se-se sobretudo nas contribuições que a psico­ logia funcional tem dado à análise da percep­ ção), a metodologia científica, ou seja, o exame dos procedimentos de verificação e confirma­ ção de que o homem dispõe na ciência, ainda não passa de intenção. Está claro que, do pon­ to de vista de uma tal metodologia, a E. seria somente o conjunto dos campos em que as técnicas de verificação ou averiguação de que o homem dispõe se revelassem eficazes. EXPERIÊNCIAPURA. V. EMPIRIOCRITICISMO. EXPERIMENTO (lat. Experimentam; in. Experiment; fr. Expériment; ai. Experiment; it. Esperimento). Embora essa palavra às ve­ zes seja usada para indicar a experiência em geral, seu valor específico é o de experiên­ cia controlada ou dirigida, ou seja, de obser­ vação (v.). Já na Idade Média esse termo foi usado com esse sentido (cf., p. ex., OCKHAM, In Sent., Prol., q. 2, G), mas esse significado só foi fixado por Bacon, que contrapôs o E. como experientia litterata, ou seja, guiada e sustentada por uma hipótese, à experiência que vai espontaneamente ao encontro do homem e é casual (Nov. Org., I, 83, 110). Wolff, por sua vez, dizia: "O E. é uma expe­ riência que diz respeito a fatos naturais que só acontecem quando intervém nossa ação" (Psychol. Empir., § 456). Kant falava no mesmo sentido de um "E. da razão pura", que consistia em ver se a hipótese da existência do incondicionado conduz ou não a contradição; se conduz a contradição, o E. demonstra que a ra­ zão não pode superar os limites da experiência

EXPERIMENTO CRUCIAL

(Crít. R. Pura, Prefácio à 2a edição). Ainda aqui se trata de uma experiência controlada. Claude Bernard, porém, às vezes chamava o E. de experiência, entendendo com isso "uma observação provocada com o fim de dar origem a uma idéia" (Introduction à Vétude de Ia médecine expérimentale, 1865, I, § 6). EXPERIMENTO CRUCIAL. V. CRUCIAL

EXPIAÇÃO (gr. SÍKti; lat. Expiatio; in. Atonement; fr. Expiation; ai. Sühne, it. Espíazione). Efeito salutar da pena. Platão consi­

derou a E. como o meio de curar as doenças da alma e acreditou que, assim como a eco­ nomia liberta da pobreza e a medicina liberta da doença, também a justiça liberta da intemperança e da injustiça (Górg., 478 a) (v. PENA). EXPLICAÇÃO1 (lat. Explicatio; in. Explication; fr. Explication; ai. Auslegung; it. Esplicazione). O contrário de complicação (v.). EXPLICAÇÃO2 (in. Explanation, Explication; fr. Explication, ai. Erklárung; it. Spiegazione). Em geral, todo processo tendente a determinar o porquê de um objeto, a tornar um discurso ou uma situação clara e acessível ao entendimento ou a eliminar dificuldades e conflitos de uma situação. Esse termo, já usado por Cícero nesse sentido (Definíbus, III, 4, 14; De nat. deor, III, 24, 62, etc), foi retomado por Nicolau de Cusa no sentido de manifesta­ ção: "Deus é a complicação de todas as coisas, porque todas as coisas estão nele; e é a expli­ cação de todas as coisas porquanto ele está em todas as coisas" (De docta ignor., II, 3). Sob a metáfora do "aplainar", "entender", "tornar explícito", esse termo oculta uma multiplicidade de significados que podem ser distinguidos se­ gundo as situações a que fazem referência. Temos, então, que: le em face de um termo, explicar significa determinar seu significado, interpretá-lo (v. IN­ TERPRETAÇÃO);

2a em face de um enunciado analítico, expli­ car significa substituir o enunciado em questão por um enunciado menos vago, mais exato ou, se possível, próprio de uma linguagem for­ mal (CARNAP, Meaning and Necesslty, § 2).

3a em face de uma situação humana de con­ flito, explicar significa eliminar as causas ou os motivos do conflito; 4e em face de um objeto em geral, seja ele coisa, evento ou pessoa, explicar significa for­ necer o porquê de ele ser ou acontecer. Desses quatro significados, é ao quarto que se refere o problema específico da natureza da

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E. As várias doutrinas que a filosofia e a meto­ dologia da ciência apresentaram sobre a natu­ reza da E. versam todas sobre o significado do porquê e sobre as possíveis respostas que ele pode ter. Desse ponto de vista, podem ser distinguidas duas espécies fundamentais de técnicas explicativas: A) técnica explicativa cau­ sai; B) técnicas explicativas condicionais. A) Existem dois tipos de E. causai, corres­ pondentes aos dois conceitos fundamentais de causalidade que se alternaram na tradição filo­ sófica e científica (v. CAUSALIDADE): a) o conceito de causalidade como dedutibilidade, b) o con­ ceito de causalidade como uniformidade. Como esses dois conceitos de causalidade têm a pre­ tensão de possibilitar uma previsão infalível, por E. causai pode-se entender, em geral, toda técnica que permita a previsão infalível de um objeto. Mas como a previsão infalível só é pos­ sível quando se trata de objetos necessários, ou seja, que não podem não ser ou não podem ser diferentemente do que são, a E. causai é, em todos os casos, a demonstração da necessi­ dade <\o seu objeto. Desse ponto de vista, afir­ mar que "x foi explicado" significa afirmar "x foi demonstrado em sua.necessidade" e por­ tanto "x era infalivelmente previsível". Sobre essa base comum, é possível distinguir: a) téc­ nica explicativa causai que recorre à dedutibilidade; b) técnica explicativa causai que re­ corre à uniformidade. a) A técnica explicativa que recorre à dedutibilidade é a da metafísica clássica, sobre­ tudo de Aristóteles. Embora tenha distinguido quatro espécies de causas, Aristóteles reconhe­ ce, para efeito de E., o primado da causa final como razão de ser, substância ou forma do objeto (Depart. an., I, 1, 639 b, 14; 642 a, 17; cf. CAUSALIDADE) Desse ponto de vista, a E. finalista é primordial e fundamental, coincidin­ do com aquela que, em termos modernos, se chama E. genética, por recorrer à causa efici­ ente, que, em última análise, coincide com a causa final. Nesse sentido, a E. causai identifi­ ca-se com a demonstração (v.), porquanto é demonstração da necessidade. Nesse aspecto, Hegel só fazia repetir o ensinamento de Aristóte­ les, quando afirmava ser tarefa da filosofia especulativa "a demonstração da necessidade", vendo só nela a satisfação da necessiciade pró­ pria da razão. Mas esse conceito de E. não se encontra apenas na metafísica: foi freqüente­ mente estendido para a ciência. Quando, con­ tra a análise positivista da ciência, E. Meyerson

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afirmava que a ciência não procura só a previ­ são, mas a E. dos fenômenos, estava reduzindo a E. à identificação, porque só a identificação permite a dedução do fenômeno. E diz: "Em virtude da causa ou da razão e com a ajuda de operação pura de raciocínio, devemos poder concluir no fenômeno. É o que se chama uma dedução. A causa, então, pode ser definida como ponto de partida de uma dedução de que o fenômeno é o ponto de chegada" {De Vexplication dans les sciences, 1927, p. 66; cf. Identité et réalité, 1908). Por outro lado, o pró­ prio positivismo remetera a E. ao domínio da dedução. Stuart Mill escreve: "Diz-se que deter­ minado fato está explicado quando se indica a sua causa, ou seja, a lei ou as leis de causação cujo exemplo é sua produção... De modo se­ melhante, diz-se que uma lei ou uniformidade de natureza está explicada quando se indica outra lei, ou outras leis, de que aquela lei é um caso e das quais ela pode ser deduzida" {Logic, III, 12, 1). Além disso, uma das tentativas mais conhecidas da "lógica da E.", no âmbito do positivismo lógico, que é a de C. G. Hempel e P. Oppenheim, obedece à mesma inspiração. Dando o nome de explanandum ao enunciado que descreve o fenômeno a ser explicado e de explanans à classe dos enunciados aduzidos na consideração do fenômeno (a preferência dada ao termo explanation e seus derivados, na literatura anglo-saxônica atual, é determi­ nada pela exigência de reservar o termo explication à análise dos enunciados), Hempel e Oppenheim assim descrevem as "condições ló­ gicas da adequação": "(R 1) O explanandum deve ser conseqüência lógica do explanans, em outras palavras, deve ser logicamente dedutível da informação contida no explanans, senão este não constituirá o fundamento ade­ quado para o explanandum. (R 2) O explanans deve conter leis gerais, e estas devem ser realmente necessárias à derivação do expla­ nandum. (R 3) O explanans deve ter um con­ teúdo empírico, ou seja, pelo menos em prin­ cípio, deve ser suscetível de comprovação por experimento ou observação". A essas con­ dições lógicas Hempel e Oppenheim acres­ centam uma "condição empírica", que é a se­ guinte: "(R 4) Os enunciados que constituem o explanans devem ser verdadeiros" ("The Logic of Explanation", 1948, em Readings in the Philosophy of Science, ed. Feigl e Brodbek, 1953, pp. 321-22). Essa doutrina da E. está em oposição à concepção que reduz a E. a prin­

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cípios ou elementos familiares, à qual recor­ rem os adeptos do segundo tipo de E. causai (Jbid,, p. 330). Essa mesma doutrina foi esten­ dida por Hempel ao campo da história ("The Function of General La ws in History", era Jour­ nal of Philosophy, 1942, pp. 35-48), com a exi­ gência de que a E. causai seja acompanhada pelo prognóstico infalível do fenômeno expli­ cado ilbid., p. 38). Observou-se com justiça que toda a sua teoria da E. pode ser adaptada à física newtoniana, mas é completamente inca­ paz de dar conta daquilo que se deve entender por E. na física quântica (N. R. HANSON, "On the Symmetry between Explanation and Prediction", em The Philosophical Review, 1959, pp349-58). Com maior razão, esse tipo de E. não pode ser considerado adequado no domínio da história e, em geral, das ciências (v. mais adiante). b) O segundo tipo de E. causai é o que re­ corre ao conceito de causa como uniformida­ de de interconexão dos fenômenos. Esse é o conceito introduzido por Hume e utilizado por Comte como fundamento da E. "positiva" dos fenômenos. Comte contrapôs à tentativa meta­ física de descobrir "os modos essenciais de produção" dos fenômenos a tarefa puramente descritiva da ciência positiva, que se limita a descobrir as leis dos fenômenos, ou seja, suas relações constantes (Cours dephü. positive, 4ed., 1887, II, pp. 169, 268, 312, etc). No estágio positivo, dizia Comte, "a E. dos fatos, reduzida aos seus termos reais, não é mais do que o nexo estabelecido entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a di­ minuir" {Jbid, I, p. 5). Esse ponto de vista her­ dava a contraposição estabelecida pelos iluministas, especialmente D'Alembert, entre o espírito de sistema e a descrição científica da natureza. Este é muito menos ambicioso do que o outro, pois não lança mão da dedutibilidade de um fenômeno (ou da sua descri­ ção) a partir de sua causa (ou de um conjunto de leis gerais), mas recorre à uniformidade ou constância das relações entre fenômenos e, portanto, à redução do fenômeno a ser explica­ do a tais relações constantes. É esse o valor dado, p. ex., à técnica explicativa causai porP. W. Bridgman: "A essência de uma E. causai consiste em reduzir uma situação a elementos de tal modo familiares que possamos aceitá-los como coisa óbvia e satisfazer a nossa curiosida­ de. Reduzir uma situação a elementos significa,

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do p o n to de vista o p e ra c io n a l, d e sc o b rir c o rre ­ co m o c o n d ic io n a n te s, ou m u d a n d o -o em d e ­ lações fam iliares e n tre os fe n ô m e n o s d e q u e a te rm in ad o sen tid o , o cu rso d os ac o n tecim en to s, situação se c o m p õ e " (The Logic of Modem to m a n d o co m o b a se as re g ras g erais d a e x ­ Pbysics, 1927, cap . II; trad . it., p. 50). E m s e n ti­ periência, p od eria ter to m ad o u m a direção de al­ do an álog o , R. B. B raith w aite disse: "Q u an d o g u m m o d o d iferen te, n o s p o n to s decisivo s para se p erg u n ta a cau sa de d e te rm in a d o ev e n to , o o n o sso interesse?" S e p u d e rm o s re sp o n d e r afir­ que se q u e r é a esp ecific aç ão do ev e n to p re c e ­ m ativ am e n te, o fato em q u e stão d ev erá ser co n ­ dente ou sim u ltâ n e o q u e, co n ju g a d o a alg u n s sid e ra d o u m d o s fatores c o n d icio n an te s do p ro ­ fatores cau sais q u e têm n atu re za de co n d iç õ e s cesso histórico; se a resp o sta for negativa, deverá p erm an en tes, seja suficien te p ara d e te rm in a r a ser e x c lu íd o de tais fato res (Kritische Studien ocorrência do e v e n to a ser e x p lic a d o , de ac o r­ auf dem Gebiet der kulturwissenschaftlichen do com u m a lei cau sai, n u m d o s sign ificad os Logik, 1906, II; trad. it., em // métododellescienze habituais de lei causai" (Scíentific Explanation, storico-sociali, p. 223). A m o d e rn a m eto d o lo g ia 1953, P- 320). C o m o , p o r leis cau sais, B raithd a h istória é u n â n im e em a b a n d o n a r os e s q u e ­ w aite e n te n d e as g e n e ra liz a ç õ e s em p írica s q u e m as de E. cau sai e em aceitar u m esq u e m a afirmam c o n co m itâ n c ia s de su c e ssã o ou sim ulc o n d icio n al q u e se co n fig u ra de m an eira s dife­ taneidade (Jbid,, cap . IX ), u m a E. q u e "esteja re n te s, s e g u n d o o m eto d o lo g ista . Q u a n d o , na de aco rdo co m u m a lei cau sai" é u m a E. q u e d o u trin a de S. Mill so b re a n atu re za da E., K. faz re fe rên cia a u m a u n ifo rm id a d e e m p iriP o p p e r o b serv a q u e "Mill e seu s c o m p a n h e i­ cam ente co n statada. E sse p o n to de vista é re ­ ro s h isto ricistas n ão c o n sid e ra m q u e as te n ­ petido de v árias fo rm as na filosofia c o n te m p o ­ d ê n c ia s g era is d e p e n d e m d as co n d iç õ e s ini­ rânea, ain d a q u e n em s e m p re n itid a m e n te ciais e trata m tais te n d ê n c ia s co m o se fossem separado do p re c e d e n te . leis ab so lu tas", ao p a sso q u e a ex p lic aç ão d ev e B) As té cn ic as ex p licativ as cau sais, ta n to a d ar co n ta, se p ossív el, d as "co n d içõ es n as quais elas p ersistem " (ThePovertyofHistoricism, 1944, fundada na d e d u ç ã o q u a n to a fu n d a d a na c o ­ § 28), está p ro c u ra n d o tran sfo rm ar o esq u e m a nexão uniform e, p re te n d e m conferir à E. cau sai ca u sai em u m e sq u e m a co n d icio n al. M as tal­ u m caráter infalível e g lo b a l q u e c o rre s p o n d e v e z a m elh o r fo rm u la çã o do e sq u e m a c o n d ici­ ao caráter de p rev isão certa atrib u íd o ao n ex o o nal, no q u e se refere ao seu p o ssív el u so nas causai. A técn ica ex p licativ a q u e p o d e ser c h a ­ d iscip lin as h istó ricas, seja a de W . D ray. "Em m ada d e condicional e lim in a do e s q u e m a alg u n s c o n te x to s, a ex ig ên cia d e E. estará sufi­ explicativo ju sta m e n te essas características. O s c ie n te m e n te satisfeita se m o stra rm o s q u e o prim órdios d esse co n ce ito p o d e m ser e n c o n tra ­ o c o rrid o foi possível, n ão h a v e n d o n ec essid ad e dos na d o u trin a de K ant, q u e ta m b é m e m p re ­ de m o strar, além d isso , q u e era necessário. gou em sen tid o p ró p rio o conceito de condi­ E m bo ra ex p lic ar u m a coisa, co m o d iz o p ro ­ ção (v.). K ant c o n tra p õ e a E. científica d os fessor T o u lm in , significa m u itas v e z e s 'm o strar fenôm enos à "h ip ó tese tra n sc e n d e n ta l" da m e ­ q u e ela p o d ia ser e sp e ra d a ' [The Place ofReason tafísica. Diz: "Para a E. d o s fe n ô m e n o s d ad o s, in Ethics, 1950, p. 96], o critério a p ro p ria d o não p o d em ad u zir co isas e p rin cíp io s q u e n ão p ara u m im p o rta n te d o m ín io d e caso s é m ais se relacio n em co m os fe n ô m e n o s d a d o s, s e ­ am p lo do q u e este; p ara ex p licar u m a coisa às gundo as já c o n h e c id a s leis d o s fe n ô m e n o s. v e z e s b asta m o strar q u e ela n ã o devia cau sar Uma h ip ótese tran sc en d e n tal em q u e, para a E. su rp re sa " (Laws and Explanation in History, das coisas naturais, se em p re g a sse u m a sim ples 1957, p. 157). D ray c o n tra p õ e esse esq u e m a idéia da razão n ão seria a b so lu ta m e n te u m a E., ex p licativ o , q u e ele ch am a de como-possivelporque aq u ilo q u e n ão é su ficien tem e n te e n ­ mente (hotv-possibly) ao cau sai, do por quetendido co m p rin cíp io s em p írico s seria ex p lic a­ necessariamente (why-necessarily), p o r q u a n ­ do com algo de q u e n ã o se e n te n d e coisa alg u ­ to os d ois e sq u e m a s são lo g ica m en te d iferentes ma" (Crít. R. Pura, D outr. do m é to d o , cap . I, e re sp o n d e m a d u a s e sp écies d iferen tes d e p er­ seç. 3). M as foi so b re tu d o no c a m p o da m e ­ g u n ta s, d e so rte q u e, "no caso da ex p lic aç ão todologia h istó ric a q u e e sse tip o d e E. foi como-possivelmente, ex ig ir u m c o n ju n to de elaborado; q u e m o in tro d u ziu de m o d o ex p líci­ co n d iç õ e s su ficien tes seria m u d a r a q u estão " to foi M ax W eb er: "A co n sid e ra ç ã o do significa­ (Ibid, p. 169). Esse p o n to de v ista, a p e sa r de do causai de u m fato h istó rico co m eç ará, an tes e la b o ra d o p ara as d iscip lin as h istó ricas, está de m ais n ad a, co m a seg u in te q u e stã o : e x c lu in ­ ig u alm e n te ap to a e n te n d e r a n atu re za d a E. do esse fato do co n ju n to de fato res assu m id o s

EXPLICITO

que se verifica agora no âmbito das ciências naturais, especialmente da mais avançada de­ las, que é a física quântica. Uma vez que nela também falta, além da condição de previsibi­ lidade infalível, a conexão causai necessitante, o único esquema possível de E. é a E. condi­ cional, que se limita a determinar a possibilida­ de do explanandum. Nesse sentido, pode-se dizer que a E. é a determinação da possibilida­ de determinada e verificável do objeto; onde determinada significa individualizada e reco­ nhecível com um método ou procedimento apropriado e, às vezes, mensurável segundo um esquema de probabilidade, e verificável significa repetível em condições adequadas (ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1957, VI, §§ 4-5; Problemi di sociologia, 1959, VIII, §§ 1-5). Deve-se observar, por fim, que o próprio procedimento da E. lógica, na forma descrita por Carnap e Reichenbach, inclui-se na catego­ ria de E. condicional. Segundo Carnap, a E. consiste em substituir um termo originário cha­ mado explicandum, que é um conceito vago ou familiar, por um novo conceito exato, que Carnap chama de explicatum e Reichenbach de explicans. Isso posto, a E. consiste, segun­ do Reichenbach, em determinar o significado do termo, e o significado se reduz a uma possibilidade lógica, física ou técnica, mas, em todo caso, a uma possibilidade (REICHENBACH, "Verifiability Theory of Meaning", em Proceedings ofthe American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 46 ss.; CARNAP, Meaning and Necessity, § 2) (v. POSSÍVEL; SIGNIFICADO; VERIFICAÇÃO). E X P L ÍC IT O (in. Explicit; fr. Explicite; ai. Explicit; it. Esplicíto). Expresso ou claramente expresso. "Tornar E." ou "explicitar" o signifi­ cado de um termo ou de uma proposição é ex­ pressá-lo ou reexpressá-lo com mais clareza. O termo oposto, "implícito", significa portanto o que não é expresso, mas somente sugerido ou não expresso claramente. E X PO N ÍV E L (in. Exponible, fr. Exponible, ai. Exponibel; it. Esponibile). Na Lógica me­ dieval exponibilia eram proposições obscuras porque, embora tivessem forma gramatical de proposições simples, na realidade ocultavam uma composição cuja análise (expositio) resol­ via sua obscuridade. Em Kant, "E." tem sentido análogo, porém mais específico, de proposição constituída por uma afirmação com uma nega­ ção disfarçada, que a exposição evidencia (Logik, § 31). G. P.

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EXPRESSÃO E X P O S IÇ Ã O (lat. Expositio; in. Exposition; fr. Exposition; ai. Erôrterung; it. Esposizione). 1. Análise de um conceito ou seu esclarecimento. Kant chama de E. transcendental "a definição de um conceito como princípio a partir do qual se possa ver a possibilidade de conhecimen­ tos sintéticos a priori" (Crít. R. Pura, § 3). Nesse sentido, a E. transcendental do concei­ to de espaço mostrará a possibilidade dos co­ nhecimentos a priori que podem provir desse conceito, isto é, a possibilidade da geometria. 2. Na lógica terminista medieval, é a prova de um silogismo de terceira figura por meio de um silogismo da mesma figura, no qual um ter­ mo médio singular exerce a função que, no pri­ meiro, era exercida por um termo médio co­ mum. P. ex., o silogismo "Alguns homens são dotados de virtudes, Todo homem é animal, Aguns animais são dotados de virtudes" pode ser exposto assim: "Sócrates é dotado de virtu­ de, Sócrates é animal, Alguns animais são dota­ dos de virtude" (OCKHAM, Summa log., III, 1, 13; JUNGIUS, Log;., III, 15). E X P R A E C O G N IT IS E T P R A E C O N C E S SIS. Fórmula com que se abrevia o princípio exposto por Aristóteles no início de Analíticos posteriores: "Toda doutrina e toda disciplina dis­ cursiva nascem de um conhecimento pre­ existente" (An.post, I, 1, 71 a 1). Boécio ressal­ tava a importância dessa máxima (P. L, 64a col. 741), que se tornara lugar-comum da escolástica. Locke julgava-a falaz, pois estava con­ victo de que o fundamento do conhecimento é o conhecimento intuitivo (Ensaio, IV, 2, 8). Mas Leibniz reivindicava, contra Locke, a valida­ de da máxima, porquanto expressa o procedi­ mento da matemática (Nouv. ess., IV, 2, 8). E X PR E SSÃ O (lat. Expressio; in. Expression; fr. Expression; ai. Ausdruck; it. Espressioné), Em sentido geral e moderno, manifestação por meio de símbolos ou comportamentos simbóli­ cos. Esse termo foi introduzido no uso filosófi­ co na segunda metade do séc. XVII, quando começou a substituir o termo aparência para indicar a relação entre Deus e mundo, graças à qual o mundo é "manifestação" de Deus. Spinoza e Leibniz usam o termo nesse sentido. Spinoza diz que um modo da extensão e a idéia desse modo são "uma só e mesma coisa expressa de duas maneiras; o que parece ter sido vagamente entrevisto, por alguns hebreus, que apresentam Deus, o intelecto divino e as coisas por ele percebidas como uma e mesma

L

419 coisa" {Et., II, 7, sco l.). L eibniz, p o r sua v ez, considera as su b stân cia s esp iritu ais ou m ô n adas como "E. ou m an ifestaçõ es" de D eu s (Disc. demét., § 9, 14; Monad., § 60). M as co m L eibniz com eça ta m b é m a h istória m o d e rn a d e sse te r­ m o, q u e do d o m ín io m etafísico p assa p ara o d o m ín io a n tro p o ló g ic o , o n d e é e m p re g a d o para d esig n a r o c o m p o rta m e n to tip ic a m e n te h u m a n o de falar p o r sím b o lo s ou utilizá-los. Leibniz diz: "O m o d e lo de u m a m áq u in a e x ­ p ressa a m á q u in a e, assim , u m d e s e n h o p lan o em persp ectiv a ex p ressa u m co rp o com três d i­ m en sõ e s, u m a p ro p o siç ã o ex p rim e u m p e n s a ­ m en to , u m sinal e x p re ssa u m n ú m e ro e u m a e q u a ç ã o a lg é b ric a e x p re s sa u m círc u lo ou outra figura g eo m étric a: to d a s essas E. têm em co m u m o fato d e q u e da sim p les c o n sid e ra ç ã o das re la çõ es da E. p o d e -se ch e g a r ao c o n h e c i­ m en to d as p ro p rie d a d e s c o rre s p o n d e n te s da coisa q u e se q u e r ex p ressa r. D isso resu lta q u e não é n e c e ssá rio p e n sa r n u m a se m e lh a n ç a re ­ cíproca e n tre E. e co isa, c o n ta n to q u e seja m an tida u m a certa an alo g ia de to d a s as re la ­ ções" (QuidsilIdea, Op., ed. G erh a rd t, V II, p. 263). E ssas co n sid e raç õ e s de L eibniz m arcam a e x te n são do te rm o E. a to d a e sp é c ie ou form a da re la ção en tre o sím b o lo e o q u e ele d esig n a e co n stitu em , p o rta n to , ta m b é m o início do u so desse term o para significar "frase", "enunciado", "fórm ula", etc. N o tre c h o citad o , L eibniz c o n ti­ nua o b se rv a n d o q u e "algum as E. p o ssu e m fun­ d am en to n atu ral, ao p asso q ue o utras, co m o as p alavras da lin g u ag em e os sinais d e q u a lq u e r g ên ero , d e p e n d e m , ao m en o s em p arte, de um a c o n v e n ç ã o arbitrária". E a c re sc en ta q u e a idéia é u m a E. n e sse sen tid o : "E m bora a idéia da circu n ferên cia n ão seja se m e lh a n te à circ u n ­ ferência tal co m o esta é, na n atu re za da p rim e i­ ra p o d e m ser d e d u z id a s v e rd a d e s q u e serã o , sem d úv id a, co n firm ad as p ela ex p eriên cia refe­ rente à circu n ferên cia real" (Ibid., p. 263). C o ­ m eçava a h istó ria m o d e rn a d esse term o ; com K ant ele en traria no d o m ín io da estética. C om efeito, K ant utilizo u o c o n c e ito de E. p ara clas­ sificar as b elas-artes. "Em g eral, p o d e -se dizer q ue a b ele za (da n atu re za ou d a arte) é a E. das idéias estéticas; a diferença en tre n atu re za e arte é q u e na arte a idéia p o d e ser o c a sio n a d a p o r u m co n ce ito , ao p a sso q u e n a b ela n a tu re ­ za b asta a reflex ão so b re u m a in tu iç ão d ad a, sem o c o n ce ito do q u e d ev e ser o o bjeto , para suscitar e c o m u n ica r a idéia, cuja E. o o b jeto é co n siderad o ." P ortanto , para classificar as b elasartes, p o d e m o s u tilizar "a m esm a e sp écie de E.

EXPRESSÃO q u e os h o m e n s u tilizam p ara falar, para c o m u ­ n icar do m e lh o r m o d o p o ssív e l n ão só seu s co n ce ito s, m as ta m b é m su as sen sa çõ es". E c o ­ m o essa e sp é c ie de E. co n siste na palavra, no g e sto e no to m , K ant d istin g u e as artes da p ala­ v ra, as artes figu rativ as e as artes m usicais. E ac re sc en ta : "P o der-se-ia ta m b é m co n d u zir essa div isão d ic o to m ic a m e n te , d istin g u in d o as b elas-artes n as q u e e x p rim e m o p e n sa m e n to e n as q u e ex p rim e m a in tu ição ; e estas últim as, s e g u n d o a form a ou a m atéria" (Crít. doJuízo, § 51). D esse m o d o , a n o ç ã o de E. serv ia a K ant para in terligar arte e lin g u ag em , o q u e se m a n ­ teria e refo rçaria na estética c o n te m p o râ n e a . P o r o u tro lad o , o c o n ce ito de E. era cada v e z m ais e m p re g a d o p ara d esig n a r a relação en tre as m an ifestaçõ es co rp ó re a s d as em o çõ e s e as p ró p ria s e m o ç õ e s: re la ção q u e, a p artir da o bra de D arw in (A E. das emoções no homem e nos animais, 1872), m o stro u -s e e sse n c ia l à teo ria d as e m o ç õ e s (v. EMOÇÃO). M as n em esse u so do te rm o , n em o u so ain d a m ais am p lo q u e d ele se fez em estética co n trib u íram m u ito p a ra d e te rm in a r o se u s ig n ific a d o , q u e na m aioria d as v e z e s é p re s su p o s to p ela s in v esti­ g a ç õ e s esté tic as ou p sic o ló g ic as, m as n ão é q u e stio n a d o n em esclarecid o em su a s possibili­ d a d e s co n stitu tiv as. P. ex., n ão esclarece m uito o sign ificad o de E. a id e n tid a d e estab elecid a p o r B e n e d e tto C roce, co m o fu n d a m en to d a sua estética, en tre intuição e E. (Estética, cap. I). V e­ re m o s, aliás, q u e a te n d ê n c ia a identificar essas d u a s co isas co n stitu i a fase prim itiva do co m ­ p o rta m e n to ex p ressiv o . T a m p o u c o são escla­ re c e d o ra s as d e te rm in a ç õ e s de D ew ey, se g u n ­ do as quais a E. é "o aclaram ento de um a em oção tu rv a ", s e n d o , p o is, a "o b jetiv ação d a e m o ­ ção" (Artas Experience, 1934, cap. IV). É p ro v á ­ v e l q u e e s s a s c a ra c te rís tic a s p o s s a m se r a trib u íd a s le g itim a m e n te à E. esté tic a, m as ain d a n ão a d e sc re v e m su ficien tem en te. Sem d ú v id a, é fo n te de co n fu são a o b serv a çã o de W õlfflin d e q u e "a arte é E., a h istória da arte é h istó ria da alm a" (Das Erklaren von Kunstwerken, 1921, § 3). M ais profícua foi a in v esti­ g a ç ã o so b re o co n ce ito de E. feita em ca m p o e strita m e n te filosófico. D ilthey já ressaltav a em Construção do mundo histórico (1910) a fun­ ção da E. e, em p rim e iro lu g a r, d a lin g u a g e m em re la ç ã o ao p e n sa m e n to d iscu rsiv o do ju íz o (Aufbau, III, 1). E H usserl v ia na E. a c o n se c u ­ ção p erfeita d o s atos significativos p ró p rio s da co n sc iên c ia teórica. C o m o tal, a E. n ão é m eio n em in stru m en to , m as u m e sta d o final, u m a

EXPRESSÃO co n clu são . "O estrato da E.", d iz H usserl, "sem co n siderar q u e fo rn ece E. a to d o s os o u tro s e le ­ m en to s in te n c io n a is é — e isso co n stitu i a su a p ecu liarid ad e — improdutivo. O u, se se quiser, sua produtividade, sua ação norm ativa, esgota-se n a ex p re ssã o e na form a do co n ce itu ai, q u e so b re v é m n ov a co m ele" (Ideen, I, § 124). D e s­ se m o d o , H usserl aco lh ia em su a filosofia u m a d as características q u e h oje são c o n sid e ra d a s p ró p rias da E.: ela n ão se lim ita a p ro v ir d a q u i­ lo q u e e x p ressa , m as, de ce rto m o d o , re aliza -o e aperfeiçoa-o. H eid eg g er insistiu n esse caráter afirm and o q u e "ao falar, o ser-aí se ex p ressa , m as n ão p o rq u e esteja an te s de tu d o en v o lto n u m dentro o p o sto a u m fora, m as p o rq u e , e n q u a n to se r-n o -m u n d o , já está fora, na sua co m p re e n sã o ". Isso e q ü iv ale a d efinir o h o ­ m em co m b a se em su a p o ssib ilid a d e de e x ­ p ressar-se, o q u e os g reg o s en trev ira m ao d e ­ finir o h o m e m c o m o "a n im al ra c io n a l" (em q u e ra z ã o e q ü iv a le a "d iscu rso ") (Sein und Zeit, § 34). M as os esc la re c im e n to s m ais im ­ p o rta n te s so b re o c o n c e ito de E. fo ram feitos p o r C assirer. Ele m o stro u a fu n ção co n stitu tiv a q u e as form as sim bólicas ex ercem na co n stru ­ ção d a v id a esp iritu al, d e q u e n ão são a sp ecto s acid en tais e d erivado s, m as fatores co n d icio n an tes. C assirer ta m b é m foi q u e m m ais co n trib u iu para esclarece r os ca ra cte re s e as c o n d iç õ e s da e x p ressã o . D istin g uiu no d e se n v o lv im e n to das form as lin g ü ísticas três está g io s, q u e d esig n o u , re sp e c tiv a m e n te , E. m im ética, E. an a ló g ic a e E. sim bó lica. N a E. m im ética ain d a n ão há te n sã o en tre o sig n o lin g ü ístico e o c o n te ú d o intu itiv o ao q ual se refere: as d u a s co isas te n d e m a re ­ solv er-se u m a n a o u tra e a co in cidir. "Só g ra­ d u a lm en te e n c o n tra m o s u m a distância, u m a d iferenciação crescen te en tre sign o e co n teú d o , e só e n tã o se realiza o fe n ô m e n o ca racterísti­ co e fu n d a m en tal da lin g u ag em , a s e p a ra ç ã o en tre som e sign ificad o. S ó q u a n d o essa s e p a ­ ração o co rre , a esfera do sign ificad o lin g ü ístico co n stitu i-se co m o tal. N o início, a p alav ra p e r­ te n c e à esfera da m era ex istên cia: o q u e se a p re n d e n ão é u m sig n ificad o , m as u m ser su b stan cial ou u m a força sua" (Phü. der symbolischenFormen; trad. in., I, p p . 186 ss.; II, p. 237). D o m esm o m o d o , o m ito n ão ap a rec e, no início, co m o im ag em ou "E. esp iritu al", m as co m o u m a re alid ad e objetiva ou arte essen cial d essa realid ad e. Essa característica da E. ce rta­ m en te é fundam ental e con stitu i a confirm ação, no p la n o an tro p o ló g ico , da d iv ersid ad e e n tre a E. e seu c o n te ú d o , já ev id en c iad a p o r L eibniz.

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ÊXTASE P o d e m o s e n tã o re su m ir do se g u in te m o do as características fu n d a m en tais da E., tais com o esclarecid a s p ela in v estig aç ão m o d e rn a: Ia a E. é u m a c o n se c u ç ã o , u m term o final, m ais do q u e u m in stru m e n to ou u m m eio; 2a a E. co n siste em m an ifestar-se p o r m eio d e sím b o lo s, se n d o , p o r isso, u m c o m p o rta­ m en to característico e p ró p rio do h om em ; 3a a E., ao m e n o s em su a form a m adura, im plica d iv ersid ad e, "distância", ou seja, alterid a d e en tre sím b o lo e c o n te ú d o sim b ó lico (ou, co m o ta m b é m se diz, en tre sím b o lo e intuição c o rre s p o n d e n te ) . P ela p rim eira característica, a E. se diferen­ cia da co m u n ic a ç ã o , q u e te m v a lo r in stru m en ­ tal: a lin g u a g e m co m o E. n ã o é u m sim ples m eio d e co m u n icação , m as u m m o d o d e ser ou d e re aliza r-se do h o m e m . N esse s e n tid o , dizse q u e a arte é E.: nela, co m efeito, os in stru m en ­ to s de c o m u n ic a ç ã o assu m em V alor final. N es­ se s e n tid o , S ch eler afirm a q u e o ato sex u a l é "um m o v im e n to d e E., n ão u m m o v im e n to co m v istas a u m objetivo". D e fato, n ão se quer, no am o r, o ato sex u a l (q u erê-lo significa inibilo), m as é o ato q u e e x p rim e o am or, q u e é o seu m o d o de re aliza çã o (Sympathie, I, cap. 7; trad. fr., p. 182). P ela se g u n d a característica, a E. é p ró p ria de q u a lq u e r e sp é c ie d e com ­ p o rta m e n to q u e co n sista na p ro d u ç ã o ou no u so d o s sím b o lo s, e sta n d o , p o is, lig ad a ao co n ­ ceito g eral d e linguagem (v.). P ela terceira ca­ racterística, a E. é diferente da in tu ição e de to ­ d as as re la çõ es de id en tificação . Ê X TA SE (gr. eiccrraaiç; lat. Extasis-, in. Ecstasy, fr. Êxtase, ai. Ekstase, it. Estasi). F ase sup ra-in telec tu al da a sc e n sã o m ística p ara D eus, fase em q u e a b u sca in te le ctu al d e D eu s cede lu g ar a u m se n tim e n to de estreita co m u n h ão ou m esm o d e id en tificação co m ele. E ssa p a­ la v ra (q u e n a lin g u a g e m c o m u m significa, a lé m d e a r r e b a ta m e n to , p a s m o o u e x a lta ­ ção ) foi e m p re g a d a no se n tid o acim a en u n ci­ ad o p o r v árias c o rre n te s relig io sas da filosofia a le x a n d rin a e e s p e c ia lm e n te p e lo s n eo p latô n ico s. F ílon caracterizava o Ê. co m o "transfor­ m aç ão da in telig ên cia", u m a tran sfo rm ação que n ão é re aliza d a p ela p ró p ria in telig ên cia, m as d ire ta m e n te p o r D eu s (Ali. leg, II, 31-32). Plotino caracteriza o Ê. co m o a su p re ssão d a alteridad e en tre a q u e le q u e v ê e a coisa v ista, e com o id en tificação to tal e en tu siástica da alm a com D eus. "N ão é m ais u m a visão", diz ele, "m as um m o d o d ife re n te de ver: Ê. é sim plificação e d o a ç ã o d e si m esm o , d esejo d e co n ta to , re p o u ­

EXTENSÃO so e c o m p re e n sã o d e co n ju n ção " (Enn, V I, 9, 11). A lin g u a g e m do am o r, e s p e c ia lm e n te do am or e n te n d id o co m o u n id a d e (v. AMOR), é freq ü en tem en te e m p re g a d a p elo s m ísticos para d escrever o e sta d o de êx tase, É o q u e m uitas v ezes faz P lo tin o (p. ex., Enn., V I, 7, 34), e o que farão os m ístico s m ed ie v a is, p ara q u e m essa n o ç ã o foi tran sm itid a s o b re tu d o g raç as às obras do p se u d o D io nísio A reo p ag ita. P ara ele, o grau m ais e le v a d o da a sc e n sã o m ística é a deificaçãoiy.}, ou seja, a tran sfo rm açã o do h o ­ m em em D eu s (De mystica theol., I, 1). É d esse m odo q u e B ern a rd o de C laraval (séc. XI) e n ­ tend e o Ê., c h a m a n d o -o ta m b é m de excessus mentis e c o n sid e ra n d o -o su p re m o g rau d a c o n ­ tem plação, em q u e a alm a se u n e a D eu s assim com o u m a g ota d 'ág u a q u e cai no v in h o d isso l­ ve-se e a d q u ire o sa b o r e a co r do v in h o (De diligencio Deo, 11, 28). É ta m b é m d essa m an ei ra q ue os m ístico s de S. V ítor co n sid e ra m o Ê. Segundo R icard o de S. V ítor, Ê. é o áp ic e do últim o g rau da a sc e n sã o a D eu s, ou seja, da alienação da m e n te d e si m esm a (De praeparatione ad contemplationem, V , 2). E S. B oaventura, p o r sua v ez, v ê no Ê. a elev aç ão acim a de si m esm o , até a fo n te do am o r su p ra in telectu al. É u m e s ta d o d e douta ignorân­ cia, n o q u al a o b s c u rid a d e d os p o d e re s cognoscitivos tran sfo rm a-se em lu z so b re n a tu ra l (Breviloquium, V , 6). Essa n o ç ã o p asso u sem m udanças p ara os m ístico s alem ã es do séc. X V (E ckhart, S uso , T au le r). G io rd a n o B ru no utilizou a te rm in o lo g ia m ística do Ê. (raptus mentis, excessus mentis) no seu d iálo g o Degli eroicifurori p ara in d icar a co n ju n ç ão do in te ­ lecto "heróico" co m "o seu o bjeto , q u e é a p ri­ meira v e rd a d e ou a v e rd a d e ab so lu ta" (I, 4), aliás, a p ró p ria n atu re za . N a Id ad e M o d ern a, o Ê. n e sse sen tid o atraiu sobretudo a a ten çã o d o s p sic ó lo g o s e d o s p si­ quiatras, q u e n ão co n se g u ira m p e rc e b e r n e ­ nhum a diferença, a n ã o ser no c o n te ú d o in te ­ lectual, en tre o Ê. relig io so e o Ê. p ro d u z id o por co n d içõ es an o rm ais da v id a p síq u ica ou por drogas (cf. J. H. LEUBA, The Psychology of Religíous Mysticism, 1925, e s p e c ia lm e n te cap. IX). S eg un d o P ierre Ja n e t, em to d o s os caso s o Ê. caracteriza-se por: 1Q su p re ss ã o q u a se c o m ­ pleta da ativ id ad e m o to ra e d isp o siç ã o à im o b i­ lidade; 2fi ativ id ad e m ais ou m e n o s in te n sa do pensam ento in tern o ; 3a g ra n d e s e n tim e n to de alegria (De 1'angoisseà Vextase, 1928, p. 497). EXTENSÃO (gr. CTiáÇTOCGiç; lat. Extensio; in. Extension; fr. Extension; ai. Ausdehnung; it.

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EXTENSÃO Estensioné). C aráter fu n d a m en tal d o s co rp o s físicos d o ta d o s d as três d im e n sõ e s do esp aço . C om b a se n e sse caráter, A ristó teles definiu o c o rp o (Fís, III, 5, 204 b 20). D esca rte s nad a m ais fez do q u e ex p rim ir esse m esm o co n ceito q u a n d o viu na E. "a n atu reza da sub stân cia m a­ terial, assim co m o o p e n sa m e n to constitui a n a­ tu re za da su b stân cia p en sa n te " (Princ. phii, I, 53) P ara S p in o za, E. era u m d o s atrib u to s fun­ d am en tais de D eu s, da N atureza (Et., II, 2). M as O ck h am , no séc. X IV , ev id en ciav a o caráter fu n d a m en tal da E. co m o atrib u to d o s co rp o s: "É im p o ssív el q u e a m atéria n ã o te n h a E.: n ão há m atéria q u e n ão ten h a u m a parte d istan te da o utra, d o n d e resu lta q u e , em b o ra as p artes da m atéria p o ssa m in terlig ar-se co m o as da ág u a ou do ar, n u n c a p o d e rã o ex istir n o m esm o lu ­ gar. O ra, a d istân cia re cíp ro c a d as p artes da m atéria é a E." (Summulaephysicorum, I, 19). P re c isa m e n te co m o ca ra cte rística d o c o rp o , p ara H o b b es a E. é o e sp a ç o real, ou seja, a grandeza do c o rp o , d iferen te do e sp a ç o im a­ g in ário , q u e é o e sp a ç o p u ro e sim p les, ou e sp a ç o v az io (De corp, 8, 4). A s co n sid e ra ç õ e s de L eibniz n ã o são m u ito d iferen tes. A o lado da antitipia(y), a E. é urna d as características fu n d a m en tais da m atéria. É a co n tin u id a d e no esp a ç o , g raç as à q ual su a s m o d ificaçõ es c o n s­ titu em a v a rie d a d e d as d im e n sõ e s e d as confi­ g uraçõ es (Op., ed. E rdm ann, p . 463). Locke iden­ tificava, co m o j á D escartes, a E. co m o esp aço (Ensaio, II, 13, 3). C om B erk eley , a E. co m eç a a re d u zir-se a fe n ô m e n o sub jetiv o. É d efinida p o r ele co m o u m a idéia, q u e ex iste e n q u a n to é p e rc e b id a (Principies of Knowledge, I, § 9): afirm ação q u e H u m e refo rço u d iz e n d o q u e a E. n ad a m ais é q u e u m a có p ia d e alg u m a im p re ssã o (Treatise, I, 2, 3). Essa su b je tiv aç ão da E., realizad a p elo em p irism o sete ce n tista do p o n to de vista da in tu iç ão sen sív el, no id ealism o ro m ân tico p ar­ te do p o n to de vista da razão especulativa. Schellin g p re te n d e d e m o n stra r a priori p o r q u e "se d ev e co n sid erar n ec essaria m en te q u e a m atéria se e ste n d e se g u n d o três d im en sõ e s", e faz essa s u p o sta d e m o n stra ç ã o d e d u z in d o as três d i­ m en sõ e s do esp aço do m o d o d e o p e rar da for­ ça d e atra ção e de re p u lsã o (System des transzendentale Idealismus, 1800, III, 2, D ed u ção da m atéria, C or.). D e m o d o a n á lo g o , M aine de B iran ju lg av a p o d e r d ed u zir "necessariam ente" a idéia d e E. d a idéia de esforço e resistência q u e ele im plica, n o se n tid o de q u e a E. seria u m a "c o n tin u id ad e d e resistên cia" (Fond. dela

EXTENSÃO e INTENSAO Psychologie, Giivres, ed. N aville, II, p. 272). T e n ­ tativa se m e lh a n te é a de B erg so n , q u e p ro cu ra en te n d e r a E. co m o o m o v im e n to o p o sto ao da vida, ou seja, co m o o m o v im e n to em q u e o eu, en treg an d o -se à fantasia cap rich o sa, esp alh a-se n u m a m u ltip lic id a d e de s e n sa ç õ e s e x te rn a s u m as às o u tras. A E. seria a distensãoáo esfo r­ ço do eu ÍÉvol. créatr., 8a ed., 1911, p. 220). C on ­ ceitos se m e lh a n te s ao s e x p o sto s p o r S chelling, M aine de B iran e B erg so n são m u ito co m u n s na filosofia da s e g u n d a m e ta d e do sécu lo p a s ­ sad o e d o s p rim e iro s d e c ê n io s do séc. XX. M as esse tip o de e sp e c u la ç ã o p e rd e u in te re sse filo­ sófico ou científico n o s ú ltim o s d e c ê n io s, d ev i­ do às m u d a n ç a s na n o ç ã o d e corpo (v.) p ro d u ­ zidas p ela física relativista. A n o ç ã o de c o rp o co m o in te n sid a d e p artic u la r de u m c a m p o de en erg ia n ão p recisa m ais ser d efinida em te r­ m os de E.; em o u tras p ala v ras, a E. p o d e ser e n te n d id a só co m o p o ssib ilid a d e de m ed ir a in te n sid ad e de en erg ia em d ad o ca m p o .

EXTENSÃO e INTENSAO. V. INTENSÃO e EXTENSÃO. EXTENSIONALIDADE, TESE DA (in The-

sis ofextensionality, fr. Thèse d'extensionalüé, it. Tesi delia estensionalità). A ssim foi c h a m a ­ da p o r R ussell {Principia mathematica, I2, XIV, p p. 659 ss.) e p o r C arn ap (Logische Syntax der Sprache, 1937, § 67, trad . in., p p . 245 ss.) a tese se g u n d o a q ual "para cad a sistem a n ão exte n sio n a l há u m sistem a ex te n sio n al no q u al o p rim eiro p o d e ser trad u z id o ". C om o os e n u n ­ ciad o s in te n sio n a is m ais im p o rta n te s são os m o dais, a te se em q u e stã o afirm a a trad u tib ilid ad e d os e n u n c ia d o s m o d a is em e n u n c ia d o s n ão -m o d ais. P. ex., os e n u n c ia d o s "A é p o ssí­ vel", "A = n ão A é im p o ssível", "A ou n ão A é n ec essário ", "A é c o n tin g e n te " eq ü iv a le ria m re sp ec tiv a m en te aos seg u in te s en u n c ia d o s: "'A' n ão é co n trad itó rio ", '"A = n ão A ' é c o n tra d itó ­ rio", "'A ou n ão A : é an alítico ", "'A' é sintético " (Logische Syntax der Sprache, § 69; trad. in., pp. 250 ss.) O p ró p rio C arn ap , to d av ia, a p re ­ sen tav a a te se da E. co m o sim p les su p o siç ã o , em b o ra p lau sív el, e a ex p rim ia p a ra d o x a lm e n ­ te, com u m e n u n c ia d o m o dal: "U m a lin g u a­ g em u n iv ersal da ciên cia pode ser ex te n sio n al (Ibid, § 67; trad. in., p. 245). M esm o d ep o is C arnap n ão se p ro n u n c io u so b re a v a lid a d e da tese (Meaning and Necessity, 1957, § 32).

EXTENSIVO e INTENSIVO (in. Extensive

and intensíve, fr. Extensifet intensif, ai. Extensiv und intensiv, it. Estensivo ed intensivo). A distinção entre g ran d eza E. e g ran d eza intensiva

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EXTERIORIDADE, INTERIORIDADE foi feita p o r K ant, p ara q u e m E. é "a q u an ti­ d ad e n a q ual a re p re s e n ta ç ã o d as p a rte s p ossi­ bilita a re p re s e n ta ç ã o do to d o (p o rta n to , p re­ ce d e-a n ec essaria m en te)"; p. ex ., as p a rte s do e sp a ç o ou do te m p o são q u a n tid a d e s E. nesse se n tid o , p o rq u e as q u a n tid a d e s esp aciais ou te m p o ra is são s e m p re in tu íd as co m o ag rega­ d o s ou m u ltip lic id a d e d e p artes d ad as p rev ia­ m en te. A q u a n tid a d e in tensiv a, ao co n trário , é a "que se a p re e n d e s o m e n te co m o u n id a d e e em q u e a m u ltip licid a d e só p o d e ser re p re se n ­ ta d a p o r a p ro x im a ç ã o à n e g a ç ã o = O". Q uer dizer: a q u a n tid a d e in tensiv a é a q u e sem p re te m g rau s; p. ex., o v e rm e lh o tem u m grau q u e , p o r p e q u e n o q u e seja, n u n ca é m ín im o , o m esm o o c o rre n d o co m o calor, o p eso , etc. E ssas são as q u a lid a d e s c o n tín u a s ou, com o diz K ant co m te rm o n e w to n ia n o , flu en tes (Crít. R. Pura, II, 2, seç. 3, A xiom as da in tu ição ).

EXTERIORIDADE, INTERIORIDADE (in.

Exteriority, interiority, fr. Exteriorité, intériorité, ai. Aeusserlichkeit, Innerlichkeit; it. Esteriorità, interioritã). O tem a filosófico d a o p o siç ã o en­ tre in te rio rid a d e e E. n asce ju n ta m e n te com a n o ç ã o de consciência (v.) e e x p ressa a o p o si­ çã o e n tre o q u e é alh e io à co n sc iên c ia e o que lh e é p ró p rio . Foi a p re g a ç ã o p o p u la r estóica q u e e x p lo ro u p ela p rim eira v e z esse tem a, o q u e se re p e te co m freq ü ê n c ia nas p ág in as de E picteto, M arco A urélio e Sêneca. E picteto diz: "É esta d o e m arca do h o m e m co m u m n u n ca esp e­ rar b en efício ou prejuízo de si m esm o , m as das co isas de fora. E stado e m arca do filósofo é e sp e ra r ou te m er de si m esm o to d a e qualq uer u tilid ad e ou d an o " (Manual, 48). E M arco A u­ rélio: "As co isas p o r si m esm as n ão ch eg am a to ca r a alm a, a ela n ão têm acesso n em podem m u d á-la ou rem o v ê-la. M as é a alm a q u e p o r si m u d a e m o difica-se, e sejam q u a is forem os ju íz o s q u e ela se ju lg a r d ig na de fazer so b re as co isas q u e a ro d eiam , do m esm o m o d o ela fará q u e p ara ela sejam as d itas co isas" (Memórias,, V , 19). S ên eca c o n tra p õ e "a aleg ria q u e nasce do interior" à q u e d eriva d as co isas exteriores (Ep., 23). N eo p lato n ism o e cristianism o são res­ p o n sá v e is p ela id en tificação d a in terio ridade co m a esfera da co n sc iên c ia e da E. com a esfera do m u n d o a q u e p e rte n c e m as coisas n atu rais e os o u tro s seres. O tem a da oposição en tre in te rio rid a d e e E. to rn o u -se , assim , um tem a clássico de to d a filosofia q u e reco rre à co n sc iên c ia co m o esfera de re a lid a d e privile­ g iad a ta n to p ela su a certeza q u a n to p elo seu valo r. A lin g u ag em co m u m ac o lh e u os signifi­

EXTRAPOLAÇÃO cados filo só ficos d as d u a s p a la v ra s, co m a significação d e c o n tra p o siç ã o e n tre o q u e é consciência e o q u e n ã o é. A m etafísica do espirüualismo (v.) e o m é to d o d a íntrospecção (v.) utilizam ig u alm ente esse lem a tradicional. Seria m u ito fácil m o strar o ca rá ter p u ra m e n te m etafórico (p o rta n to , a a u sên cia de sign ificad o preciso) d as e x p re s s õ e s em q u e a p a re c e m esses te rm o s ou os ad jetivo s c o rre s p o n d e n ­ tes. "R ealidade in tern a" e "realid ad e ex tern a", "m undo interior" e "m u n d o ex terior", "objetos internos" e "objetos ex te rn o s" são ex p re ssõ e s que, a rigor, n ão têm sen tid o , seja p o rq u e n ão se faz referên cia ao âm b ito fech ad o em re la­ ção ao q ual u m "extern o " e u m "interno" p o s ­ sam ser d e te rm in a d o s, seja p o rq u e tal âm b ito fechado, q u a n d o d ete rm in a d o , n ão é espacial, pois é a p ró p ria c o n sc iên c ia. H eg el u tilizou ab u n d an te m en te esses te rm o s q u e , ju sta m e n te por m eio de su a o b ra, p e n e tra ra m na te rm in o ­ logia filosófica. Ele identificava o in terio r com a "razão de ser" e o ex terior, co m sua m an ifes­ tação (Ene, §§ 138-39). M as tin h a o b o m se n so de acrescentar: "Assim co m o o h o m e m é ex ­ ternam ente, ou seja, em suas açõ es (por certo não na sua E. so m e n te c o rp ó re a ), ta m b é m é interno; e q u a n d o ele é só in te rn o — v irtu o so , m oral, só em in te n ç õ e s, d isp o siçõ es, etc. — e o seu ex terior n ão é id ên tico a tu d o isso, en tão u m é tão vazio q u a n to o o utro " (Jbid, § 140). E X T R A P O L A Ç Ã O (in. Extrapolation; fr. Extrapolation; ai. Extrapolation-, it. Estrapolazione). 1. C álculo d o s v a lo re s de u m a fu n ção com arg u m en to s q u e estã o além d a q u e le s para os quais j á se c o n h e c e m os v alo re s da função.

EXTRINSECO, INTRÍNSECO

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2. O m esm o q u e analogia (v.). E X T R E M O (gr. tò eaxortOV; lat. Extremum; in. Extreme, fr. Extreme, ai. Aeusserste, it. Es­ tremo). O q u e é p rim e iro ou ú ltim o em q u a l­ q u e r série. Foi assim q u e A ristó teles en te n d e u esse te rm o , n o ta n d o q u e os E. n ão são su b stân ­ cias, m as lim ites (Met., X IV , 3, 1090 b 9). N esse s e n tid o , d iz-se q u e o p o n to é o E. da linh a, a li­ n ha é o E. do p la n o e o p lan o é o E. do sólido . N o m esm o se n tid o , fala-se de u m a esp écie E. (últim a), q u e é a m ais p ró x im a do in d iv ídu o (Jbid, IIl, 3, 998 b 15). E. (últim o) é ta m b é m o m o to r im óvel, p o rq u e é o p rim eiro na série dos m o v im e n to s (Fís, V III, 2, 244 b 4). E. são tam ­ b ém os d o is te rm o s do silo g ism o q u e a p a re ­ cem na co n c lu sã o e cuja re la ção é esta b e le cid a p elo te rm o m éd io (An.pr, I, 4, 25 b 30). P od ese d ize r q u e essa p alav ra co n se rv a o m esm o sign ificad o até hoje (v. ÚLTIMO). E X T R IN S E C O , IN T R ÍN S E C O (in. Extrínsical, intrinsical; fr. Extrinsèque, intrinsèque, ai. Aeusserlich, innerlich; it. Estrinseco, intrín­ seco) . E m g eral, d iz-se q u e é in trín seco o q ue p e rte n c e à essê n cia ou à n a tu re z a de u m a co i­ sa e E. o q u e lh e é estra n h o . S e g u n d o a lógica trad ic io n a l, é in trín se co a .um o bjeto o caráter q u e en tra na definição d esse objeto; p. ex., a ra c io n a lid a d e , se o h o m e m é d efin id o co m o "anim al racio n al". D o p o n to de vista de um a ló g ica q u e n ão se fu n d e n a n o ç ã o de e ssê n ­ cia n ec e ssá ria ou de substância (v.), as d e ­ te rm in a ç õ e s E. ou in trín se co têm u m signifi­ c a d o m u ito m ais flexível, p o rq u e relativ as aos v ário s sign ificad os d e u m o bjeto q u a lq u e r (v.

SIGNIFICADO).

F F. N a lógica m ed iev al, os silo g ism o s cujos n o m e s m n e m ô n ic o s co m e ç a m co m essa letra são re d u tív e is ao q u a rto m o d o d a p rim eira fi­ g u ra (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log, 4. 20). FA BR ICA Ç Ã O (fr. Fabricatiori). A ativ id ad e p ró p ria da in telig ên cia, s e g u n d o B ergson . Essa é, co m efeito, "a fa cu ld ad e de fab ricar o bjeto s artificiais, e sp e c ia lm e n te u ten sílio s p ara fazer o u tro s u ten sílio s, e d e v ariar in d e fin id a m e n ­ te sua F.". D esse p o n to de vista, a v erdadeira d e ­ finição do h o m e m n ão é Homo sapiens, m as HomofaberiÉvol. créatr, 11a ed., 1911, P- 151; Lapensée etle mouvant, 3a ed ., 1934, p. 97). FÁ BU LA (lat. Fábula- in. Fable, fr. Fable, ai. Fabel; it. Favolá). A p artir do R en ascim en to , a co n vicção de q u e as "F. antigas" tin h am v alo r de sintom a ou revelação indireta da v e rd a d e levou a rein terp retar os m itos an tigo s, e m p re stan d o -lh e s por v ezes (com o se v ê n as o bras de B runo) sign i­ ficados filosóficos. Q u a n to ao v alo r d as F., B acon e V iço re p re se n ta m atitu d es fu n d a m en tais. B a­ co n achava q ue as F. estão entre o silêncio e o es­ q u e c im e n to d as id ad es p e rd id a s e a m em ó ria e a ev id ên cia d as id ad es m ais p ró x im a s, d e q ue p o ssu ím o s d o c u m e n to s escrito s. "As F.", e sc re ­ v eu ele, "não são p ro d u to d as su as é p o c a s n em fruto d a in v en çã o p o ética, m as u m a e sp é c ie de relíquia sag rad a e tê n u e aura d e te m p o s m e lh o ­ res, q ue da trad ição d as n açõ es m ais antigas c h e ­ garam até as tro m p as e as flautas d os g regos" {De sapientia veterum, 1609, Pref.). P o rtan to , B acon pro p en d ia a en trev er n as F. u m significado aleg ó ­ rico intencional. Essa tese é n eg ad a e co m b atida, u m século d ep o is, p o r V iço, p ara q u e m as F. são tais só do p o n to de vista d o s d o u to s, ao p asso q u e p ara os p o v o s p rim itiv o s q u e as criaram eram n arraç õ e s v e rd a d e ira s. "Os filósofos", diz V iço, "atribuíram às F. in te rp re ta ç õ e s físicas, m o rais, m etafísicas ou de o u tras ciên cias, s e ­ g u n d o lh es an im assem a fantasia o o u ro , os

co m p ro m isso s ou o ca p ric h o ; assim , co m o au x ílio d as su a s aleg o ria s eru d itas su p u seram n as co m o fáb u las. M as os p rim e iro s autores d essas F. n ã o e n te n d e ra m tais s e n tid o s dou to s, n em , p ela sua n a tu re z a rú stica e ig n oran te, p o d ia m e n te n d ê -lo s: an te s, p o r essa m esm a n a tu re z a , c o n c e b e ra m as F. co m o narrações v e rd a d e ira s... d as su a s co isas d iv in as e hum a­ nas" (5c. nuova, II, D elia m etafísica poética). E ssa idéia de V IÇ O ficou co m o fu n d a m en to da m o d ern a filosofia das form as sim bólicas (v. MITO). FA BU LA Ç Ã O (fr. Fabulatiorí). B erg so n de­ sig n o u d e sse m o d o a fa cu ld ad e ou o ato cria­ d o r de ficções ou su p e rstiç õ e s, em q u e con­ siste e sse n c ia lm e n te a religião estática, que, m e d ia n te ficções m ais ou m en o s co n so lado ras, p ro cu ra d efe n d e r a v id a co n tra o p o d e r desag reg ad o r da in telig ên cia (Deuxsources, cap. U). F aC T IC ID A D E (in. Facticity, fr. Facticité, ai. Faktizitãt; it. Effettivita). S e g u n d o H eidegger, o q u e caracteriza a ex istên cia co m o lan­ çada no m u n d o , ou seja, à m ercê d o s fatos, ou n o n ív el d o s fatos e e n tre g u e ao determ inism o d o s fatos. O "fato", q u e é s im p le sm e n te a pre­ sen ça d as co isas u tilizáveis, é o b jeto d e "cons­ ta ta ç ã o intuitiva". A F. da ex istên cia, ao contrá­ rio, só é acessív el a tra v é s da "com p reen são em o tiv a" (Seín undZeit, § 29). N esse sentido, a F. é u m m o d o de ser p ró p rio do hom em e d ife re n te da factualidade (v.), q u e é o m odo de ser d as co isas. D e m o d o a n á lo g o , Sartre d eu o n o m e de F. ao fato da lib e rd a d e , ou seja, ao fato d e q u e a lib e rd a d e n ã o p o d e n ão ser livre e n ã o p o d e n ão existir: n e sse caso, li­ b e rd a d e identifica-se co m n ec essid ad e do fra­ c a sso (L'être et le néant, p. 567). F A C T ÍC IO (in. Factitious; fr. Factice, ai. Gemacht; it. Fattizió). T erm o q u e se em prega q u a se ex c lu siv am e n te co m referên cia à classifi­ ca çã o ca rtesian a d as id éias em inatas, adventí-

FACTUALIDADE cias e factícias; as ú ltim as são as id éias "feitas e in v en tad as" p o r n ó s {Méd, III). FA CTU A LID A D E (in. Factuality, ai. Tatsàchlichkeit; it. Fatticita). H u sse rl d eu esse n o m e ao m o d o de ser do fato, e n q u a n to e sse n c ia l­ m ente "casual", ou seja, p o rq u a n to p o d e ser d i­ ferente do q u e é {Ideen, I, § 2). H eid e g g er fez a d istin ção e n tre a "F. do factum brutum de u m a sim p les p resen ça ", d e u m a coisa, e afacticidade{v.) da ex istê n c ia {Sein undZeit, % 29). FA C U L D A D E (gr. y u x n ç eiSoç ou u ó p io v ; lat. Facultas, in. Faculty, fr. Faculte, ai. Vermógen; it. Facoltã). 1. E n te n d e m -se p o r esse n o m e os poderes da alm a, ou seja, as e s p é ­ cies ou p a rte s em q u e é p o ssív el classificar e dividir su a s ativ id ad es ou p rin cíp io s ao s q uais são atrib u íd as tais ativ id ad es. A d istin çã o e n tre os p o d e re s d a alm a, b e m co m o a p ró p ria n o ­ ção de u m p o d e r q u e se refere à alm a, n ascem da óbv ia c o n sid e ra ç ã o da d iferença en tre as o p e raç õ es a trib u íd as à alm a e do fato de q u e essas o p e ra ç õ e s p o d e m o p o r-se en tre si. C om esse fu n d a m e n to , P latão d istin g u iu três p o d e ­ res, q u e ele ch a m a v a d e espécies (eí5r|, Rep., IV, 440 e) da alm a: p o d e r racional, g raç as ao qual a alm a ra cio c in a e d o m in a os im p u lso s co rp ó reo s; p o d e r concupiscível ou irracio nal, que p resid e ao s im p u lso s, ao s d esejo s, às n e ­ cessid ad es e c o n c e rn e ao co rp o ; p o d e r irascí­ vel, q u e é au x iliar do p rin cíp io ra cio n al e in ­ d igna-se e lu ta p o r aq u ilo q u e a ra zã o ju lg a ju sto {Rep., IV, 439-40). Já A ristóteles distinguiu: a) parte ((XÓpiov) vegetativa, q u e é a p o tên cia nutritiva e re p ro d u tiv a p ró p ria d o s sere s v iv os, a co m eçar p elo h o m em ; b) p arte sensitiva, q ue c o m p ree n d e a se n sib ilid a d e e o m o v im e n to , e é p ró pria do anim al; c) p arte intelectiva {dianoéticd), q u e é p ró p ria do h o m e m . O p rin cí­ pio m ais elev ad o p o d e fazer as v ezes d os inferio­ res, m as n ão vice-versa. A ssim , no h o m e m a alma intelectiva ta m b é m c u m p re as fu n çõ es q ue nos anim ais são realizadas p ela alm a sensitiva e nas p lan tas p ela v eg eta tiv a {Dean., II, 2, 413 a 30 ss.). P or su a v ez , o p rin c íp io d ia n o é tic o ou alm a in telectiva d iv id e-se em d u as p artes que são , re sp e c tiv a m e n te , a p a rte apetitiva ou prática (a v o n ta d e ) e a p a rte intelectiva ou contem plativa (o in telecto ) {Ibid, III, X , 433 a 14; Et. nic. V I, 1, 1139 a 3; Poi, 1133 a). Essa divisão seria aceita e d ifu n d id a d u ra n te m u ito s sécu lo s. O s e s tó ic o s , to d a v ia , h a v ia m p ro ­ posto outra, co n siste n te em q u a tro p rin cíp io s: à) p rin cípio d iretiv o ou h e g e m ô n ic o , q u e é a razão; b) sen tid o s; c) p rin cíp io sem in al ou es-

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FACULDADE p erm á tic o ; d) lin g u ag em (DIÓG. L , V II, SEXTO EMPÍRICO, Adv. math, IX, 102). N a

157; filo­ sofia m ed ieval, a p artição aristotélica, q u e acaba p o r p re v a le c e r no fim da E scolástica e é re p e ­ tid a p o r m u ito s p e n sa d o re s (p. ex., A lb erto M ag n o , S. T o m á s, D u n s Scot, O ck h am ), e n tre ­ laça-se com o tip o de p artição q u e fora in au g u ­ ra d o p o r S. A g o stin h o e q u e co n siste em ju lg ar q u e as p artes da alm a têm co m o m o d elo a T rin ­ d a d e divina. S. A g o stin h o d istin gu ira, co m efei­ to, três facu ld ad es da alm a: m em ó ria, inteligên­ cia e v o n ta d e , c o rre s p o n d e n te s às três p esso as da T rin d a d e , d efin id as re sp e c tiv a m e n te com o Ser, V erd ad e e A m or {De Trin, X , 18). Esta divi­ são e o u tra s an á lo g a s en c o n tra m -se freq ü e n te­ m e n te na E scolástica (é re p e tid a , p. ex., p o r S. ANSELMO, Monol, 67). A p artir d e D escartes, a ú n ica d iv isão ad m itid a foi a q u e A ristó teles c o n sid e ra ra p ró p ria da alm a in telectiva ou dian o é tic a, e n tre vontade (a p e tição ou desejo) e intelecto p ro p ria m e n te d ito , ou seja, a divisão fu n d a d a no u so p rátic o e no u so teó rico da ra zã o . P ara D escartes, a alm a é a p e n a s a alm a "racional", já q u e as fu n çõ es v eg eta tiv a e se n si­ tiva n ão p e rte n c e m à alm a racio n al n em a o u ­ tra e sp é c ie de alm a, p o rq u a n to são fu n çõ es m ecânicas, ex p licad as p elo m ecan ism o co rp ó reo {Discours, V ). A d iv isão e n tre in te le cto e v o n ta ­ de é en u n c ia d a p o r D escartes {Pass. de 1 'âme, I, 17) co m o en tre as ações d a alm a, q u e co m ­ p re e n d e m to d o s os desejos, entre os quais D es­ cartes inclui a v o n ta d e {Ibid, 18), e as paixões, q u e c o m p re e n d e m "todas as e sp é c ie s de p er­ c e p ç õ e s ou fo rm as d e c o n h e c im e n to ". Essa d iv isão é e lu c id ad a p elo m o d o co m o D escar­ tes a u tiliza n a su a teo ria do erro : este d e p e n d e do c o n c u rso de d u a s ca u sas, do in telecto e da v o n ta d e . C om o in te le cto o h o m e m n ão afirm a n em n eg a n ad a, m as c o n c e b e tã o -so m e n te as id éias q u e p o d e afirm ar ou n eg ar. O ato de afirm ar ou n e g a r é p ró p rio d a v o n ta d e . O ra, a v o n ta d e é livre e co m o tal é m u ito m ais am p la q u e o in te le cto e p o d e , p o rtan to , afirm ar ou n e g a r até o q u e o in te le cto n ão c o n se g u e p e r­ c e b e r clara e d istin ta m e n te {Méd, IV; Princ. phil, I, 34). C om isso esta b e le cia -se a d istin ção en tre in te le cto e v o n ta d e , o q u e seria aceito até K ant. É b em v e rd a d e q u e S p in o za n e g o u a ex istên cia de F. s e p a ra d a s na alm a, a d u z in d o q u e elas "são fictícias, e n tid a d e s m etafísicas ou u n iv e rsa is q u e fo rm am o s a p artir d as co isas particulares" {Et., II, 48). M as isso significa que para ele "v o n tad e e in telecto são a m esm a coisa" {Ibid, 49, co ro l.), s e n d o a d istin çã o p re ssu p ô s-

T FACULDADE

ta com fins polêmicos. O próprio Locke a reco­ nhece quando, a propósito da idéia de força, afirma que a vontade e o intelecto são as duas forças que explicam as transformações que ocorrem no nosso espírito (Ensaio, II, 21, §§ 5­ 6). Leibniz diz que os dois princípios agentes na mônada são a percepção e a apetição (Monad., §§ 14-15). Wolff, por sua vez, reco­ nhecia no conhecimento e na apetição as duas funções fundamentais do espírito humano e, com base nessa divisão, modelava a divisão da filosofia nos dois ramos fundamentais, filosofia teórica ou metafísica e filosofia prática (Log., Disc. Prael., §§ 60-62). Kant, somando as análises dos empiristas in­ gleses, interpunha entre o intelecto e a vontade uma terceira F., que chamava de "sentimento de prazer e desprazer". Com isso, as F. da alma elevaram-se a três (F. de conhecer, F. de sentir, F. de desejar) (Crít. do Juízo, Introd., IX), numa divisão que se tornaria clássica e freqüente­ mente seria apoiada por um suposto testemu­ nho da consciência (v. EMOÇÀO; SENTIMENTO). Entretanto, nenhuma dessas doutrinas impli­ cava que as F. da alma fossem poderes distin­ tos e independentes. Como já os antigos, tanto Descartes (Regulae, XII, 79) quanto Locke (En­ saio, II, 21, 6) e Leibniz (Nouv. ess., II, 21, 6) re­ conhecem explicitamente que a divisão das F. é uma abstração que não destrói a unidade da atividade mental. Assim, não representam gran­ des novidades a crítica de Herbart à doutrina das F. e a sua tese de que essas F. (intelecto, sentimento e vontade) são simples "conceitos de classe" mediante os quais se ordenam os fe­ nômenos psíquicos (Einleitung in die Phil, § 159). A psicologia associacionista compar­ tilhava esse ponto de vista, mas mantinha a mes­ ma tripartiçâo (p. ex., BAIN, Mental and Moral Science, 1868, p. 2; Logic, li, 275), e o Neocriticismo da Escola de Marburgo (Cohen, Natorp) reconhecia só três ciências filosóficas (lógica, estética e ética), correspondentes às três ativi­ dades do espírito. Foi só na psicologia e na filosofia contem­ porâneas, especialmente por influência do behaviorismo e da Gestalt, que a doutrina das par­ tes da alma, qualquer que fosse o modo de entendê-la, perdeu importância, deixando de constituir tema de investigação e debates. Co­ mo objeto de indagações, de fato, o comporta­ mento implica a prática e a fusão simultâneas de todos os princípios ou partes distintas ou distinguíveis da atividade da alma, da consciên­

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FALIBILISMO

cia ou do organismo, de tal modo que tais dis­ tinções deixam de ter interesse e fala-se de "comportamento racional" ou "comportamento emocional", num sentido em que essa distinção não tem mais razão de ser (v. BEHAVIORISMO; COMPORTAMENTO). 2. No significado mais geral, o mesmo que Poder (v.). FA L Á C lA (gr. oó(piO(J.a; lat. Fallacia; in. Fallacy, fr. Sophisme, ai. Fallacie, it. Fallacia). Termo com que os escolásticos indicaram o "silogismo sofistico" de Aristóteles. Pedro His­ pano disse: "F. é a idoneidade fazendo crer que é aquilo que não é, mediante alguma visão fantástica, ou seja, aparência sem existência" (Summ. log., 7.03). Aristóteles dividira os raciocí­ nios sofísticos em duas grandes classes: os atinentes ao modo de expressar-se, ou, como dizem os escolásticos, in dictione, e os in­ dependentes do modo de expressar-se, ou ex­ tra dictionem. Os primeiros são seis, a saber: equivocação, anfibologia, composição, divisão, acentuação, figura dictíonis. Os outros são sete: acidente, secundum quid, ignorantia elenchit, petição de princípio, non causa pro causa, conseqüente, interrogação múltipla (El. sof, 4). A doutrina das F. foi uma das partes

mais cultivadas da lógica medieval, mas perdeu quase toda importância na lógica moderna. Cerca de metade das Summulae logicales (séc. XIII) de Pedro Hispano é dedicada à refutação das falácias. Mas já na Lógica de Port-Royal a ela é dedicado um único capítulo (o XIX da parte III), que constitui cerca da vigésima par­ te do tratado. Na lógica contemporânea esse assunto desapareceu de todo, já que não po­ dem ser reduzidas a sofismas as antinomias (v.) de que ela trata. Nos verbetes referentes a cada um dos sofismas encontrar-se-á o que a lógica antiga e medieval entendia por eles. G. P.-N. A. F A L A N S T É R IO (in. Phalanstery, fr. Phalanstère, it. Falansterio).Termo empregado por Charles Fourier para designar a organização social utópica por ele prevista: um grupo de cerca de 1.600 pessoas vivendo em regime comunista, com liberdade de relações sexuais e regulamentação da produção e do consumo dos bens ( Tratado de associação doméstica e agrícola ou teoria da unidade universal, 1822). F A I ffllLIS M O (in. Fallibilism). Termo cria­ do por Peirce para indicar a atitude do pesqui­ sador que julga possível o erro a cada instante

FALSEABILIDADE

da sua pesquisa e, portanto, procura melhorar os seus instrumentos de investigação e de veri­ ficação (CM. Pap., 1.13; 1.141-52). Dewey res­ saltou a importância dessa atitude (Logic, cap. II; trad. it., p. 79). Esse termo agora é emprega­ do com freqüência por escritores americanos. FA LSE A B ILID A D E (in. Falsiflability, fr. Falsificabilitéj ai. Fülschungsmóglichkeit;it. Falsificabilitã). É o critério sugerido por Karl Popper para acolher as generalizações empíricas. O método empírico, segundo Popper, é o que "exclui os modos logicamente admissíveis de fugir à falseação". Desse ponto de vista, as asserções empíricas só podem ser decididas em um sentido, o da falseação, e só podem ser verificadas por tentativas sistemáticas de colhêlas em erro. Desse modo desaparece todo o problema da indução e da validade das leis na­ turais (Logic ofScientificDiscovery, § 6). Cf. EX­ PERIÊNCIA; VERIFICAÇÃO).

FALSO (gr. vj/e\)ôlíÇ; lat. Falsum; in. False, fr. Faux, ai. Falsch; it. Falso). V. FALIBILISMO; VERDADE. F A M H IA (in. Family, fr. Famille, ai. Famílie, it. Famiglia) Aqui só nos interessa registrar o uso lógico e metodológico desse conceito, que é recentíssimo. Uma "F. de conceitos" é um conjunto de conceitos entre os quais se estabe­ lecem relações diversas que não sejam redutíveis a um só conceito ou princípio. É precisa­ mente o que ocorre entre os membros de uma F. humana, os quais nem sempre têm uma úni­ ca propriedade comum, e, mesmo quando têm, ela não resume nem esgota toda a semelhança familiar. O uso dessa noção implica, portanto, o esforço de procurar sempre novas relações entre os conceitos, sem que seja necessário reduzir essas relações a um só tipo. O primeiro a propor e a empregar essa noção foi WITTGENSTEIN (PhilosophicalLnvestigations, § 110). Essa obra foi publicada em 1953, mas alguns anos antes seus conceitos fundamentais já eram co­ nhecidos; o conceito de F. foi utilizado por Weismann em Introdução aopensamento ma­ temático (Einführung in das mathematische Denken, 1936; trad. it., 1939). Cf. sobre o mes­ mo conceito: ABBAGNANO, Possibilita eliberta, 1956, passim. FA N A TISM O (in. Fanaticism, fr. Fanatisme, ai. Fanatismus; it. Fanatismo). Esta palavra (àefanum = templo) foi empregada a partir do séc. XVIII com o mesmo valor de entusiasmo (v.) para indicar o estado de exaltação de quem se crê possuído por Deus e, portanto, imune ao

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FANATISMO

erro e ao mal. No uso moderno e contemporâ­ neo, "F." acabou prevalecendo sobre "entusias­ mo" para indicar a certeza de quem fala em nome de um princípio absoluto e, portanto, pretende que suas palavras também sejam ab­ solutas. Já Shaftesbury dizia: "E é esse [entusias­ mo] que dá origem à denominação F. no senti­ do inicial, usado pelos antigos, cie aparição que arrebata o espírito" (Letter on Enthusiasm, 7; trad. it., Garin, pp. 78-79). Na verdade, Cícero já fala de "filósofos supersticiosos e quase faná­ ticos" (De divin., 2, 57, 118). Leibniz chamava de fanática a filosofia que atribui todos os fenô­ menos a Deus "imediatamente, por milagre" (Nouv. ess, Avant-propos, Op., ed. Erdmann, p. 204). Mas certamente a melhor definição filosó­ fica do F. foi dada por Kant. No sentido mais geral, F. "é uma transgressão, em nome de prin­ cípios, dos limites da razão humana". Há, além disso, o F. moral, que é "o ultrapassar dos limi­ tes que a razão pura e prática impõe à humanida­ de, que impede de atribuir o motivo deter­ minante e subjetivo das ações ditadas pelo de­ ver, ou seja, o móvel moral delas, em qualquer outra coisa que não seja a própria lei". O F. mo-ral consiste na pretensão de fazer o bem por inspiração, por entusiasmo, por um impul­ so benéfico da própria natureza, portanto em substituir a virtude, que é "a intenção mo­ ral em luta", pela "pretensa santidade de quem acredita possuir perfeita pureza de inten­ ções da vontade" (Crít. R. Prática, I, 1, 3). O fana­ tismo, nesse sentido, sempre foi objeto de polê­ mica na obra de Kant, que identificou e combateu suas principais manifestações no esforço de determinar os limites dos poderes humanos e a validade desses poderes nos seus limites. Num texto de 1786, O que significa orientar-se no pensar, Kant advertia contra a pretensão de superar os limites da razão recorrendo a facul­ dades ou poderes supostamente "superiores". Sua polêmica referia-se a Jacobi e a Mendelssohn, mas ele via a mesma pretensão no spinozismo, e, contra este e o fanatismo, reafirmava a exigên­ cia de determinar com precisão os limites da razão. Essas observações de Kant, para quem as considere hoje, parecem uma crítica anteci­ pada ao romantismo, que, nesse aspecto, foi o grande retorno ao spinozismo. Todavia, o próprio Hegel falou de F., restringindo-o, po­ rém, ao campo político e religioso. No cam­ po político, "o F. quer uma coisa abstrata, não uma organização": seu exemplo é a Revolução Francesa (Fil. do dir, § 5, Zusatz). No campo

FANTASIA

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religioso, o F. co n siste em s u b o rd in a r o E stad o à religião, de tal m o d o q u e seu lem a é: "Aos re ­ ligiosos n ão se im p o n h a n e n h u m a lei" {Jbid., § 270, Z u satz). M as H eg el n ão se dá co n ta de q ue a o n ip o tê n c ia do E stad o , q u e ele te o riz o u , é u m fanatism o. A p alav ra F. co n serv a hoje o significado de atitu d e, p o n to d e vista ou d o u trin a q u e , em q u a lq u e r c a m p o ou d o m ín io , d e sp re z e ou ig­ n ore as lim itaçõ es h u m a n a s. N ossa é p o c a c o ­ n h eceu o u tra form a d e F. m ais sinistra: o F. p o ­ lítico, q u e, e m b o ra n ão s e n d o u m a n o v id a d e do p o n to de v ista d o u trin a i, ab o liu os lim ites h u m a n o s em p o lítica e, c o n s e q ü e n te m e n te , ex alto u ou d iv in izo u certas c o n c e p ç õ e s p o lí­ ticas e os in d iv íd u o s q u e as e n c arn av am . A p ró p ria p alav ra F., na te rm in o lo g ia de alg u n s m o v im e n to s p o lítico s, p e rd e u a c o n o ta ç ã o n e ­ gativa q u e re c e b e ra d e sd e a A n tig ü id a d e , p a s ­ sa n d o a ter o v alo r de fid elid ad e a to d a p ro v a, q u e ig n o ra o b jeçõ e s ou lim ites. A e x p e riê n ­ cia m o stro u q u e essa fid elid ad e é a m ais frágil de to d as e, n a p rim eira o p o rtu n id a d e , tran sfo r­ m a-se em seu co n trário . C o m o já dizia K ant, a ra zo ab ilid ad e, co m o re c o n h e c im e n to d o s li­ m ites q u e ela im plica, é a ú n ica g aran tia de c o m p ro m isso a u tê n tic o , seja ele te ó ric o ou prático. F A N T A S IA (in. Fancy, fr. Fantaisie, ai. Phantasie, it. Fantasia). 1. O m esm o q u e im a­ g in ação . 2. A p artir do séc. XVIII o u so sim u ltâ n e o d os te rm o s F. e im a g in a çã o fav o receu a d istin ­ ção d o s sign ificad os, e F. c o m eç o u a in d icar a im ag in ação d esreg ra d a ou d esen fread a. Já na Lógica d e P ort-R oyal d iz-se q u e a im a g in a çã o é "a m an eira de c o n c e b e r as co isas m e d ia n te a ap licação do n o sso esp írito às im ag en s q u e e s ­ tão p in tad as no n o sso cé re b ro " (o q u e é u m co n ceito cartesian o e x p o sto na Regula X II), e essas im ag en s, q u e são as idéias d as co isas, d istin g u em -se das im a g e n s "p in tad as na fanta­ sia" (I, 1). E m o u tro s te rm o s, c o n tra p õ e m -se as im agens q u e são idéias, p ró p ria s da im a g in a­ ção, às im ag en s fictícias, p ró p ria s da fantasia. A n alo g am en te, K ant dizia q u e a F. é "a im ag i­ nação q ue p ro d u z im agens sem querer", d o n d e "fantasista" é a p esso a q u e se h ab itu o u a ju lg a r tais im agens co m o e x p eriên cias in te rn as ou ex ­ te rn as (Antr, I, § 28). E o b servava: "M uitas v e ­ zes g o sta m o s de b rin ca r co m a im a g in a çã o , m as a im ag in ação , q u e é F., fre q ü e n te m e n te ta m b é m b rin ca co n o sco , e às v e z e s co m m au g osto " (Ibid., % 31, a). N esse sen tid o , a F. é a

FAPESMO im a g in a çã o d e sre g ra d a e d esen fre ad a. Este é u m d o s sig n ificad o s d essa p alav ra até hoje, so­ b re tu d o n a lin g u ag em co m u m . 3. A o la d o d esse sign ificad o, o ro m an tism o e la b o ro u u m o u tro , s e g u n d o o q u al a F. é en ­ te n d id a co m o im a g in a çã o criadora, diferente, em q u a lid a d e m ais do q u e em g rau , d a im agi­ n aç ão re p ro d u to ra co m u m . N esse sen tid o , H eg el via a F. co m o "im ag in ação sim b o lizad o ra, aleg o rizad o ra e p o e tan te ", lo g o "criadora" (Ene, §§ 456-57). O s ro m â n tic o s ex a lta ram a F. assim en te n d id a . Para N ovalis, ela é "o m áx im o bem " (Fragmente, 535). "A F.", dizia ele, "é o sen tid o m arav ilh o so q u e em n ó s p o d e su b stitu ir to d os os se n tid o s. S e os se n tid o s e x te rn o s p arecem s u b m e te r-se a leis m ec ân ic as, a F. ev id en te­ m e n te n âo está lig ad a ao p re s e n te n em ao co n ­ tato de estím ulos an teriores" (Jbid, 537). D esse m o d o , o ca rá ter d e s o rd e n a d o ou re b e ld e da im a g in a çã o fantasio sa, em v irtu d e do q ual essa form a d e im a g in a çã o p arecia inferior às outras no séc. X V III, no séc. X IX p assa a ser elem e n to p ositiv o , u m m érito , u m a característica da liber­ d a d e criad o ra. A estética ro m ân tica atev e-se a essa v alo riz a ç ã o da fantasia. C roce diz: "A esté­ tica do séc. X IX forjou a d istin çã o , en co n trad a em n ão p o u c o s d o s seu s filósofos, en tre F. (que seria a fa c u ld a d e artística p eculiar) e im agina­ ção (q u e seria fa cu ld ad e ex tra-artística). A cu­ m u lar im agens, selecio n á-las, esm iu çá-las, com ­ b in á-las, p re s s u p õ e a p ro d u ç ã o e a p o sse de cad a u m a d as im a g e n s p elo esp írito ; a F. é p ro d u to ra , e n q u a n to a im aginação é estéril, apta a co m b in aç õ e s ex trín secas, m as n ão a gerar o o rg an ism o e a v ida" (Breviario di estética, 1913, PP- 35-36). E m se n tid o an á lo g o , G en tile cha­ m av a de F. a ativ id ad e artística co m o p u ro sen ­ tim en to ou "form a subjetiva inatual" do espírito (Fil. deWarte, § 5). M as, n esse sign ificad o ro ­ m ân tico , a F. d eix a d e ser u m a ativ id ad e ou u m a o p e ra ç ã o h u m a n a , definível ou descritível n as su a s p o ssib ilid a d e s e n o s seu s lim ites, para, co m o m an ifestação de ativ id ad e infinita, tornarse ela ta m b é m infinita, situ a n d o -se p o rtan to além de q u a lq u e r p o ssib ilid a d e de an álise e de v erificação . T rata-se, em o u tro s te rm o s, de con­ ceito m ág ico -m etafísico q u e n ão p o d e ser utili­ z a d o fora do clim a ro m ân tico q u e o criou ou p riv ileg io u . FA N T A SM A . V. IMAGEM. FA PE SM O . P alavra m n em ô n ica u sad a pelos e sco lá stico s p ara in d icar o o itavo d o s n o v e m o­ d o s do silo g ism o de p rim eira figura, m ais preci­ sa m e n te o q u e tem co m o p rem issa u m a p ro p o ­

FATALIDADE ou FATUM

sição universal afirmativa e uma proposição universal negativa e como conclusão uma par­ ticular negativa, como no exemplo: "Todo ani­ mal é substância; nenhuma pedra é animal; logo, algumas substâncias não são pedras" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.09; ARNAULD, Log. III, 8) FA T A L ID A D E o u FA T U M (in. Fate, fr. Fatalité, ai. Fatum; it. Fato). Destino, no significado 1Qdo termo, como necessidade desconhecida, portanto cega, que domina os seres do mundo enquanto partes da ordem total. A noção de fa­ talidade foi distinguida da noção de destino quando, entre as causas que constituem este último, se quis incluir a vontade e a ação hu­ mana. Nesse sentido, Leibniz contrapôs fatum mahometanum, que considera os aconteci­ mentos futuros que não dependem do que o homem pode querer ou fazer, à noção de desti­ no (ou de providência), segundo a qual o que acontecerá no futuro também é determinado, pelo menos em parte, pela ação humana (Théod., I, § 55). Em sentido análogo, Kant con­ trapõe a F. ã necessidade condicional, logo in­ teligível, da natureza (Crít. R. Pura, Postulados do pensamento empírico). Na filosofia moder­ na, a noção de F. é polêmica, pois quem a em­ prega não a considera válida; por isso, pode-se dizer que é espúria em filosofia. Mas não tem esse significado pejorativo na expressão amor fati, que é a definição moderna de destino (v.). Peirce também procurou isentá-la do significa­ do pejorativo dizendo: "F. significa simplesmen­ te aquilo que com certeza acontecerá e que não pode ser absolutamente evitado. É supers­ tição supor que certa espécie de acontecimen­ tos está submetida à F., assim como é supers­ tição supor que a palavra F. nunca possa livrar-se do caráter supersticioso. É F. que todos nós morreremos" (Chance, Love and Logic, I, cap. 2, § 4, nota; trad. it., p. 41). FA TALISM O (in. Fatalism- fr. Fatalisme, ai. Fatalismus; it. Fatalísmo). Leibnizjá distinguira do fatum estóico e cristão o "fatum mahometanum" ou "fatalidade maometana", segun­ do a qual "os efeitos aconteceriam mesmo se a causa fosse evitada, pois são dotados de neces­ sidade absoluta" (Op., ed. Erdmann, pp. 660, 764). Wolff empregava, para indicar essa dou­ trina, por ele atribuída a Spinoza, o termo F. no texto De differentia nexus rerum sapientis et fatalis necessitais(1723), que é justamente diri­ gido contra Spinoza. Na verdade, porém, todas as concepções de fatalidade (destino) elabora­

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FATO

das pelos filósofos admitem que dela fazem parte outras causas determinantes, mas que estas são, por sua vez, determinadas pelas ante­ cedentes, que são as próprias ações humanas, voltadas a evitar ou a alcançar certos resulta­ dos. E é, portanto, um termo polêmico com o qual os filósofos em geral designam a forma de necessitarismo de que não compartilham. Com mais rigor, esse termo pode ser adotado não para designar uma doutrina filosófica, mas a atitude de quem se entrega aos acontecimen­ tos sem procurar alterá-los nem reagir. FATO (in. Fact; fr. Fait; ai. Talsache, it. Fatto). Em geral, uma possibilidade objetiva de verifi­ cação, constatação ou averiguação, portanto também de descrição ou previsão - objetiva no sentido de que todos podem fazê-la nas condições adequadas. "É F. que oi' significa que x pode ser verificado ou confirmado por qual­ quer um que disponha dos meios adequados, e que pode ser descrito ou previsto de forma passível de aferição. A noção de F. é moderna, sendo mais restrita e específica que a de reali­ dade; nasceu sobretudo para indicar os objetos da pesquisa científica, que devem poder ser re­ conhecidos por qualquer pesquisador compe­ tente. Portanto, no que se refere à sua validade, o F. é independente de opiniões, preconceitos e mesmo de juízos e valorações que não sejam inerentes ao uso dos instrumentos capazes de confirmá-lo. Assim, tem duas características fundamentais: d) referência a um método apro­ priado de confirmação ou verificação; b) inde­ pendência em relação a crenças subjetivas ou pessoais de quem emprega o método. Precisa­ mente em vista dessas duas características, a capacidade de "olhar os fatos", de "considerar os fatos" ou de "aceitar os fatos" hoje é consi­ derada um dos requisitos fundamentais não só do cientista e do pesquisador em geral, mas de qualquer cidadão. Não obstante a importância que assumiu na cultura moderna, essa noção raramente foi alvo da atenção dos filósofos. A história de suas análises dessa noção é parca, podendo-se dizer que começa no séc. XVII, quando, com a dis­ tinção entre "verdade de razão" e "verdade de F.", também se começa a distinguir — ao me­ nos implicitamente — a esfera própria do fato. O primeiro a fazer essa distinção foi Hobbes: "Há duas espécies de conhecimento, das quais uma é o conhecimento de F. e outra é o conhe­ cimento da conseqüência de uma afirmação re­ lativamente a outra. A primeira é apenas senti­

FATO

do e memória, sendo conhecimento absoluto, como quando vemos um F. acontecer ou o lembramos; esse é o conhecimento exigido de uma testemunha. A outra tem o nome de ciên­ cia e é condicional..." (Leviath, I, 9)- Assim como Hobbes, Leibniz e Hume concordam em considerar que essa esfera é a experiência. Segundo Leibniz, as verdades de F. são con­ tingentes, ao passo que as de razão são ne­ cessárias porque baseadas no princípio de con­ tradição, de tal modo que seu contrário é impossível (Nouv. ess, IV, 2, 1). Para Hume, é sempre possível o contrário das verdades de F., pois nunca implica contradição, sendo conce­ bido pelo espírito com a mesma facilidade e clareza que há na conformidade à realidade (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Tanto Leibniz quanto Hume concordam em julgar que o fun­ damento da verdade de F. é o princípio da cau­ salidade. Dessa análise resulta portanto que o fato é: d) uma realidade contingente, atingida ou testemunhada pela experiência; b) uma rea­ lidade fundada em certa conexão causai. Uma noção de fato assim configurada é a que hoje se chamaria de noção de acontecimento, ou seja, de realidade contingente que pertence à ordem da natureza. Essa última qualificação é a que se expressa quando se julga que a verda­ de de F. baseia-se no princípio causai. Portan­ to, essa ainda não é uma noção de F. suficiente­ mente ampla, que possa valer em toda a extensão da pesquisa científica: para ela, as verdades ma­ temáticas não seriam verdades de fato. A ex­ tensão dessa noção foi realizada por Kant, para quem "os fatos são os objetos dos conceitos cuja realidade objetiva pode ser provada tanto pela razão quanto pela experiência: no primei­ ro caso, com base em dados teóricos ou práti­ cos; em qualquer caso, por meio de uma in­ tuição correspondente" (Crtt. do Juízo, § 91). Nesse sentido, segundo Kant, são fatos: as pro­ priedades geométricas das grandezas, porquan­ to podem ser demonstradas a priori; as coisas ou as qualidades das coisas que possam ser provadas pela experiência ou por testemunhas; a idéia da liberdade, cuja realidade, como uma espécie particular de causalidade, pode ser mostrada a partir da experiência moral {Ibid., § 91). Essa análise de Kant é importante porque: d) permite distinguir nitidamente a noção de F. da noção de acontecimento como noção mais geral, correlativa à possibilidade de uso de qualquer instrumento de verificação; desse ponto de vista, o acontecimento é uma espécie

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particular de F., mais precisamente um F. natu­ ral; ti) permite reconhecer o caráter empírico do F. como algo diferente do seu confinamento à esfera da sensibilidade: a própria razão deve tratar com fatos que não são externos a ela nem impostos do exterior, mas que encontra em si mesma, como condições do seu funcio­ namento. A partir daí, a noção de F. às vezes se apro­ xima da noção de fenômeno e outras vezes de um elemento ou condição da razão. Aproximase do fenômeno quando se fala de "F. puro", "cru" ou de "simples F.", pois nesse caso aludese ao dado imediato, à aparência simples ou grosseira, da forma como ela se apresenta à primeira vista. Mas está claro que não se pode ir muito longe nessa identificação. F. não é fenômeno: p. ex., o desvio da imagem de um bastão na água é um fenômeno, mas não um fato. Também é fenômeno o movimento apa­ rente dos céus, que desde o princípio a astro­ nomia procurou, de vários modos, reduzir a "F". O F. implica uma disposição ou uma inter­ pretação do fenômeno que provoque uma mu­ dança capaz de tornar o fenômeno descritível, previsível e verificável. O próprio Comte, que na maioria das vezes emprega as duas palavras indiferentemente, parece aludir a uma distin­ ção, como no seguinte trecho: "Esse F. geral (a gravitação) nos é apresentado como simples extensão de um fenômeno eminentemente fa­ miliar, que portanto consideramos perfeitamen­ te conhecido, o peso dos corpos na superfície da terra" (Phil. Pos, I, § 4). Mas no próprio âm­ bito do positivismo Claude Bernard acentuou a subordinação dos fatos à razão: "Sem dúvida, admito que os fatos são as únicas realidades que podem dar a fórmula à idéia experimental e, ao mesmo tempo, servir para aferi-la, mas isso sob a condição de que a razão os aceite... No método experimental, como em tudo, o único critério real é a razão. Um F. não é nada por si mesmo, mas vale apenas pela idéia a ele ligada ou pela prova que fornece" (Intr. à 1'étude de Ia médecine experimental, I, 2, 7). Essa interpretação do fato pareceu confirmada quando se notou o papel preponderante de­ sempenhado pela teoria na construção do "F. científico" (P. DUHEM, La théoriephysique: son objet e sa strueture, 1906). A estreita conexão entre F. e atividade racio­ nal, expressa de vários modos, em geral é reco­ nhecida pela filosofia contemporânea. A fenomenologia elaborou a noção de estado de

FATO

coisas (Sachverhalf) como objeto correspon­ dente de cada juízo válido e considerou como fato o estado de coisas em que está envolvida uma existência individual. Nesse sentido, uma coisa não é um F., mas é F. que essa coisa existe e que tem este ou aquele caráter, etc. (HUSSERL, Ideen, I, § 6). A noção de estado de coisas foi re­ tomada por Wittgenstein em Tractatus logicopbilosophicus, mas com uma concepção dife­ rente sobre a relação deste com o fato, porque viu no "estado de coisas" o elemento simples que entra na composição do fato. O estado de coisas seria, portanto, o "F. atômico", o compo­ nente elementar dos fatos ( Tractatus, 2). O que há de característico nessas concepções é a defini­ ção de fato (ou dos seus componentes) como objeto do juízo ou da proposição válida. Segun­ do Wittgenstein, o estado de coisas ou F. atômi­ co não é senão o objeto de uma proposição ele­ mentar (Ibid., 4, 21). Entende-se então por que, na linha de desenvolvimento dessa concepção, os fatos chegaram a ser identificados com pro­ posições. A identificação foi proposta por Ducasse (em "Journal of Philosophy", 1940, pp. 701-11) e aceita por Carnap, no sentido de que F. seria uma proposição: l9verdadeira, 2Sdotada de certo grau de completitude, ou seja, de de­ terminação (Meaning and Necessity, § 6, 1). É preciso notar que, para Carnap, o termo propo­ sição não significa expressão lingüística nem acontecimento mental ou subjetivo, mas algo de objetivo que pode ou não encontrar exemplo na natureza, sendo portanto comparável a "pro­ priedade" (Ibid., § 6). Portanto, a "proposição verdadeira", que Carnap identifica com o F., sig­ nifica simplesmente "objeto válido" ou um "es­ tado de F." real. O esclarecimento que deriva dessas reduções lingüísticas é puramente verbal e, se chega a ter alguma utilidade num tratamen­ to lógico, pouco ou nada diz sobre a natureza ou os caracteres do fato. Denuncia, no máximo, a tendência a reportar o F. a condições concei­ tuais ou lingüísticas. Por outro lado, com De­ wey, o pragmatismo insistiu no caráter "ope­ racional" do F., no sentido de que os F. "são apenas resultados de operações e de observações efetuadas com a ajuda dos órgãos sensoriais e de instrumentos auxiliares produzidos pela téc­ nica, sendo portanto escolhidos e organizados no intuito expresso de utilizá-los como dados para uma pesquisa ordenada" (Logic, VI, 5, § 4). Portanto, a análise que hoje se faz dessa no­ ção ignora a antítese entre fato e razão. A elimi­ nação dessa antítese sem dúvida também se faz

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sentir na elaboração do conceito de razão (v.). No que tange à noção de F. em relação à noção de razão, o F. configura-se como condição limitativa das escolhas racionais. Por exemplo, em física F. é todo objeto passível de observa­ ção, ou seja, todo estado ou situação que pode ser verificada e examinada com os instrumen­ tos de que a física dispõe. Mas os fatos físicos, nesse sentido, são os limites ou as condições da atividade racional no campo da física, ou seja, de qualquer construção teórica ou hipótese. Do mesmo modo, no campo da lógica, as implicações analíticas ou tautológicas valem como fatos, ou seja, como condições ou limites da investigação lógica (ABBAGNANO, Possibilita e liberta, VI, 7). Em geral, pode-se dizer que, enquanto é uma "possibilidade de verificação" que em cada campo assume o aspecto espe­ cífico ditado pelos instrumentos de investiga­ ção disponíveis, em relação à razão o F. tam­ bém é condição de outras possibilidades, ou seja, de escolhas ou operações que, por sua vez, são determinadas ou especificadas segun­ do a natureza de cada campo de indagação. F A U S T IS M O (ai. Faustismus). Segundo Spengler, o caráter da cultura ocidental, em contraposição ao apolinismo da cultura antiga. A alma fáustíca tem como símbolo o espaço puro ilimitado. Fáusticos são, segundo Spengler, a dinâmica de Galilei, a dogmática católica e a protestante, as grandes dinastias com sua política de gabinete, o destino de Lear e o ideal de Nossa Senhora, que vai desde a Beatriz de Dante até o fim do segundo Fausto de Goethe (UntergangdesAbendlandes, I, 3, 2, § 6). Tratase obviamente de uma caracterização arbitrária e fantasiosa. F É (gr. m craç ; lat. Fides; in. Faith; fr. Foi; ai. Glaube, it. Fede). Crença religiosa, como con­ fiança na palavra revelada. Enquanto a crença, em geral, é o compromisso com uma noção qualquer, a F. é o compromisso com uma no­ ção que se considera revelada ou testemunha­ da pela divindade. Nesse sentido, essa palavra já era utilizada por Sexto Empírico, ao falar dos raciocínios que parecem provir "da F. e da me­ mória", tais como o seguinte: "Se um Deus te disse que esse homem ficará rico, ele ficará rico. Mas este Deus aqui (e indico, suponha­ mos, Zeus) te disse que esse homem ficará rico. Logo, ficará rico." Nesses casos, nota Sex­ to, damos assentimento à conclusão não pela necessidade das premissas, mas porquanto te­ mos F. na declaração da divindade (Pirr. hyp.,

FE II, 141). S. P au lo resu m iu as características fu n ­ d am en tais da F. religiosa n as céleb res palavras: "F. é a g aran tia d as co isas e s p e ra d a s e a p ro v a d as q u e n ão se v êem " (Hebr, II, I). S. T o m ás esclareceu da se g u in te fo rm a as p alav ras de S. Paulo: "Q u an d o se fala de prova, d istin gu e-se a F. da o p in iã o , da su sp e ita e da d ú v id a, co isas em q u e falta a firm e a d e sã o do in te le cto ao seu objeto. Q u a n d o se fala de coisas que não se vêem, d istin g u e-se a fé da ciên cia e do in te le c­ to, n o s q u ais alg u m a coisa se faz ap a re n te . E q u a n d o se diz garantia das coisas esperadas faz-se a d istin ção en tre a v irtu d e da F. e a F. no significado co m u m [isto é, cren ça em geral], q u e visa à b e m -a v e n tu ra n ç a e sp era d a " (S. Th, II, 2, q. 4, a. 1). O s esco lá stico s ativ eram -se, com p o u c a s v a ria n te s, a essa d escriçã o d a fé. C om o m isticism o alem ão do séc. XIV, co m eço u a to m ar co rp o a d o u trin a do caráter p riv ileg ia­ do da F. co m o v ia de acesso original, d ireta e im ediata às realid ad es su p re m a s, esp ecialm en te a D eu s. M estre E ck hart v ê na F. o m eio p elo q ual o h o m e m atin g e a re a lid a d e ú ltim a de si e de D eus: a F., d iz ele, é o n a sc im e n to de D eu s no h o m em . Esse tem a re to m o u na ch a m a d a "filosofia da F." do séc. XVIII: H am a n n e J a c o b i atrib u em à F. o m esm o status p riv ileg iad o , a m esm a c a p a c id a d e d e co lo car o h o m e m d ire ta­ m en te em c o n tato com as re a lid a d e s ú ltim as e esp e c ia lm e n te co m D eu s, tra n sp o n d o os lim i­ tes e as in certezas da ra zã o . E m bo ra J a c o b i inclua na fé relig io sa ta m b é m a p a rte q u e m ais p ro p ria m e n te diz re sp e ito à cren ça ("Nós c re ­ m os q u e te m o s co rp o ; crem o s na ex istên cia d as co isas sen sív eis", Werke, IV, 211; III, 411), para ele é no caráter relig io so q u e se fu n da a certeza da F.: to d a F. é n e c e ssa ria m e n te F. da rev elação e esta é n e c e ssa ria m e n te F. em D eu s, religião (Ibid, II, 274, 284, ss.). O s ro m ân tico s reafirm aram a m iú d e esse status p riv ileg iad o da fé. Foi o q u e fez F ichte, q u e ex alto u a F. nas o b ras p o p u la re s do s e g u n d o p e río d o , co m o p. ex. em Missão do homem (1800), em q u e afir­ m a q u e "a F., d a n d o re a lid a d e às co isas, im p e ­ d e-as de ser v ãs ilusões: é a s a n ç ã o d a ciência", re p e tin d o as p alav ras de Ja c o b i: "T odos n a s c e ­ m os na F." {Werke, II, p p . 254-55). N os tex to s d e S chelling m u itas v e z e s o to m é a n á lo g o (Werke, I, 10, 183), e n q u a n to N ovalis d iz q u e a ciência é so m e n te u m a d as m etad es e q u e a F. é a outra m etad e (Fragmente, 391). N o ú ltim o p erío d o da E scolástica co m eço u a acen tu ar-se o u tro asp ecto d a F.: seu caráter prático, q u e n ão co n siste na su a d e p e n d ê n c ia

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FE d a v o n ta d e , m as na su a c a p a c id a d e d e dirigir a ação . D u n s S cot fo i o p rim e iro a insistir nesse caráter: "A F. n ão é um h áb ito esp ecu lativo , as­ sim co m o crer n ão é u m ato esp ecu la tiv o e a v isã o q u e s e g u e a cren ça n ão é u m a visão e sp ecu la tiv a , m as prática" (Op. Ox., p ro l., q. 3). P or "prático" D u n s S cot e n te n d e o q u e serve p ara dirigir a co n d u ta ; p o rta n to p ara ele a te o ­ logia é p rática, p o is as v e rd a d e s q u e ela ensi­ na n ão são te ó ric as, ou seja, n ec essária s e dem o n strá v e is, m as se rv e m u n ic a m e n te p ara diri­ g ir o h o m e m p ara a b e m -a v e n tu ra n ç a (Ibid., p ro l., q. 4, n. 42). A m esm a an títe se en tre o habitusáà F. e o habitus da ciência era adm itida p o r O ck h am , q u e re p u ta v a os d ois h áb ito s in­ co m p atív e is en tre si, o b s e rv a n d o q u e n ão se p o d e d izer q u e q u e m crê em alg u m a coisa cuja d e m o n s tra ç ã o e s q u e c e u re a lm e n te te m "F.", p o rq u e o o b jeto d e su a cren ça co n tin u a sen do a d e m o n stra ç ã o (In Sent., III, q. 8 R). N o m un­ do m o d e rn o , o caráter prático da F. foi defendido p o r S pino za: "A F. co n siste em ter, em relação a D eu s, os se n tim e n to s q u e são elim in ad o s q u a n d o se elim in a a o b e d iê n c ia a D eu s, e que estã o p re se n te s n e c e ssa ria m e n te q u a n d o está p re s e n te tal o b e d iê n c ia " . (Tract. theol.-pol, 14). P o rta n to , a F. é o co n ju n to de cren ça s que c o n d ic io n a m a o b e d iê n c ia à d iv in d a d e , seg u n ­ do S pino za. E sse c o n ce ito seria re to m a d o por K ant, p ara q u e m a cren ça te o ric a m e n te insufi­ cien te p o d e, so b re tu d o em seu asp ecto prático, ser c h a m a d a d e F. K ant g en era liza o conceito p rá tic o d a F., re c o n h e c e n d o n ela a atitu d e c o m p ro m issa d a q u e p o d e dirigir ta n to a habili­ d a d e , ou seja, a ativ id ad e q u e te m em vista fins arb itrário s e ac id en ta is, q u a n to a m o ralid ad e, q u e v isa a fins a b so lu ta m e n te n ec essário s. A F. q u e d irige a h a b ilid a d e é a F. pragmática, cujo in te re sse ra ra m e n te en fren ta desafios. A o con­ trário , a F. doutrinai é m ais co m p ro m issad a, m as ta m p o u c o ch e g a à ce rteza d a F. moral. Esta ú ltim a e sp é c ie de fé dá u m a certeza que n ão p o d e ser co m u n ica d a ; n ão é, p o is, d e natu­ reza ló g ica, m as co n stitu i u m a "certeza m oral" q u e se b aseia em fu n d a m e n to s su b jetiv os. "As­ sim , n u n ca d ev o dizer: é m o ra lm e n te certo que D eu s ex iste, e tc , m as: esto u m o ra lm e n te certo, etc. O u seja, a fé em D eu s e em o u tro m undo está tão p ro fu n d a m e n te e n tre la ç a d a co m m eu se n tim e n to m o ral q u e , assim co m o n ão corro o risco de p e rd e r este, ta m p o u c o te m o q u e aquela m e seja retirad a" (Crít. R. Pura, C ân o n e da Ra­ zão P ura, seç. 3). S eg u n d o K ant, a F. religiosa p o d e ser "F. relig io sa p ura", q u e é a p ró p ria F.

FE m o ral, ou "F, h istó ric a ", q u e é fé n a s leis estatutárias, q u e são as q u e in d icam o m o d o co m o D eu s q u e r ser h o n ra d o e o b e d e c id o . (Religion, III, I, § 6). A qu ilo q u e os esco lá stico s ch a m a v am de caráter prático da F., para K ant (e para os m o d e r­ nos) to rn o u -se o ca rá ter c o m p ro m issiv o da F., ou seja, o ca rá ter g raç as ao q ual a F. é an te s de m ais n ad a u m ato ex isten cial, u m a o rie n ta ç ã o dada à v id a do in d iv íd u o , ca p az d e tran sfo rm ála e n ão isen ta de riscos. E stes traç o s a p a re c e m claros na ú ltim a g ra n d e teo ria da fé q u e a filo­ sofia elab o ro u : a de K ierk eg aard . Para ele, o cristianism o in v erteu a re la ção e n tre F. e c iê n ­ cia. N a A n tig ü id a d e clássica, a F. é algo inferior à ciência p o rq u e se refere ao v ero ssím il; no cristianism o, a F. é su p erio r à ciência p o rq u e in­ dica a certeza m ais elev ad a, certeza q u e se re ­ fere ao p a ra d o x o , p o rta n to ao in v ero ssím il: ela é "a co n sc iên c ia da e te rn id a d e , a ce rteza m ais ap aix o n ad a q u e im p ele o h o m e m a sacrificar tudo, m esm o a v id a" (Diário, X 4, A 635). O ca­ ráter co m p ro m issiv o da F. co n siste em seu s laços co m a ex istên cia: te r fé significa existir de certo m o d o : "Para te r F., é p rec iso q u e haja um a situ ação q u e d ev e ser p ro d u z id a co m um passo ex isten cial do in d iv íd u o " (Ibid, X 4, A 114). "Esse p asso m arca a ru p tu ra co m o m u n ­ do e com seu ideal de in telig ib ilid ad e. O q u e é crer? É q u e re r (o q u e se d ev e e p o r q u e se deve), em o b e d iên cia re v e re n te e ab so lu ta, de fend er-se do v ã o p e n sa m e n to d e q u e re r co m ­ preender e da v ã im aginação de p o d er co m p ree n ­ der" (Ibid., X 1, A 368). S ob este p o n to de v ista, a F. n ão é feita d e certezas, m as de d ec isã o e risco. A F., d iz K ierk eg aard em Temor e tre­ mor, é a certeza an g u stia n te, a an g ú stia q u e se torna seg u ra de si e de u m a re la ção o cu lta com D eus. O h o m e m p o d e ro g ar a D eu s q u e lh e conceda a F., m as a p o ssib ilid a d e de ro g ar n ão é em si m esm a u m d o m divino? A ssim , há na fé um a in eg áv el c o n tra d iç ã o , q u e a to rn a p a ra d o ­ xal. O h o m e m é c o lo c a d o n u m d ilem a: crer ou não crer. P or u m lad o , a ele ca b e esco lh er, e por o utro q u a lq u e r iniciativa é im p o ssív el, p o r­ que D eus é tu d o , e dele deriva inclusive a fé. Esse co n ceito foi su b sta n c ia lm e n te re to m a d o por Karl B arth, q u e in te rp reto u a F. co m o in ­ serção d a E tern id a d e n o te m p o , d a T ra n sc e n ­ dência na ex istê n c ia (Comentário à Epístola aos romanos, 1919). R udolf B u ltm a n n ta m b é m atribui a fé à iniciativa divina, a p e sa r de afirm ar a exigência de lib ertar a F., so b re tu d o cristã, dos m itos co sm o ló g ic o s co m q u e ela tra d ic io ­

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FELAPTO n a lm e n te a p a re c e u n id a , p ro c e d e n d o à sua desmitificação (v.). In d o m ais lo n g e, D ietrich B on h oeffer c o n tra p ô s a F. à religião (v.), co n si­ d era d a co m o ex p ressã o m ítica e co n tin g en te da F., in aceitáv el n esta é p o c a d o m in a d a p elo racio n alism o , p ela ciên cia e p ela tecn o lo g ia. D es­ se p o n to de v ista, a c e n tu a -se o caráter prático da F., q u e se tran sform a em m o ral natural e h u m a n a , fu n d a d a n a u n id a d e en tre m u n d o e D eu s, en tre h u m a n id a d e e C risto (Etica, 1949; Resistência e rendição, 1951). É n esse co n ceito d e F., e n te n d id a co m o ação re n o v a d o ra do m u n d o h u m a n o , q u e se in sp ira o p an teísm o h u m a n ista d o s ch a m a d o s "novos te ó lo g o s" (v. DEUS e DEUS, MORTE DE). K arl J a sp e rs insis­ tiu n a id e n tid a d e en tre ex istên cia e fé so b o asp e c to filosófico, m as, n a esteira de K ierkeg aard , co n tin u o u re c o n h e c e n d o n a F. u m a re ­ lação direta com a T ra n sc e n d ê n c ia (Derphilosophische Glaube, 1948). F É , F IL O S O F IA D A (ai. Glaubensphilosophiè). C om este n o m e ou co m o de "filosofia do c o n h e c im e n to im ed iato " in d ica-se a filo so ­ fia de u m g ru p o d e filósofos alem ã es d a s e ­ g u n d a m e ta d e do séc. X V III, q u e fizeram p arte do Sturm undDrang(v.). A s p rin cip a is figuras d esta filosofia foram J. J. H am a n n (1730-88), c h a m a d o "o m ag o do N o rte ", J. G . H erd e r (1744-1803) e F. E. J a c o b i (1743-1819), a q u e m se d ev e a ex p re ssã o "filosofia d a F.". D e K ant, essa filosofia aceitav a a d o u trin a d os lim ites da ra zã o so m e n te p ara afirm ar a s u p e rio rid a d e da fé so b re a ra zã o . C o n sid erav a a F. co m o u m a re la ç ã o imediata — p o rta n to n ão sujeita a in ce rteza s ou d ú v id as — co m as re a lid a d e s su ­ p e rio re s e e s p e c ia lm e n te co m D eu s. J a c o b i e x p re s s o u e s sa s id é ia s em Cartas sobre a doutrina de Spinoza a Moisés Mendelssohn (1785), e no en saio DavidHume eaF. (1787). N a lógica da Enciclopédia, H eg el co n sid e ro u a d o u trin a d e J a c o b i co m o "T erceira p o siç ão do p e n s a m e n to s o b re a o b je tiv id a d e ", e criticou o im ed iatism o , q u e co n sid e ro u o caráter fun­ d a m e n ta l d a F. de q u e falava J a c o b i (Ene, §§61-74). F É A N IM A L (in. Animalfaitb). A ssim Santa y a n a c h a m o u a cren ça n a re a lid a d e p ro d u z i­ da no h o m e m p ela s e x p e riê n c ia s anim ais: fo ­ m e, sex o , luta, etc. (Scepticism and Animal Faitb, 1923) (v. CRENÇA). F É E C IÊ N C IA . V. escolástica . F E L A P T O . P alav ra m n em ô n ica u sa d a p elo s esco lá stico s p ara in d icar o se g u n d o d o s seis m o d o s do silo g ism o de terceira figura, m ais

FELICIDADE p rec isam e n te o q u e co n siste em u m a p rem issa universal n eg ativa, u m a p rem issa u n iv ersal afir­ m ativa e u m a c o n clu são p arcial n eg ativ a, co m o no ex e m p lo : "N en h u m h o m e m é p ed ra; to d o h o m e m é an im al; lo g o alg u m an im al n ã o é ped ra" (PEDRO HISPANO, Summ. log. 4. 14). F E L IC ID A D E (gr. eú5oau,oví(X; lat. Felicitas; in. Happiness; fr. Bonheur, ai. Glückseligkeit; it. Felicita). E m g eral, esta d o de satisfação d ev id o à situ aç ão no m u n d o . P or esta re la ção co m a si­ tu aç ão , a n o ç ã o de F. difere de bem-aventurançaiy.), q u e é o ideal d e satisfação in d e p e n ­ d en te da relação do h o m e m co m o m u n d o , p o r isso lim itada à esfera c o n tem p la tiv a ou re lig io ­ sa. O c o n ce ito de F. é h u m a n o e m u n d a n o . N asceu n a G récia antiga, o n d e T ales ju lg av a feliz "quem tem c o rp o são e forte, b oa so rte e alm a b em form ada" (DiÓG. L, I, 1, 37). A b oa sa ú d e , a b o a so rte na v id a e o su c e sso da for­ m ação individual, q u e co n stitu em os elem en to s d a F., são in e re n te s à situ aç ão do h o m e m no m u n d o e en tre os o u tro s h o m e n s. D em ó crito , de m an eira q u a se an álo g a, definia a F. co m o "a m ed id a do p ra z e r e a p ro p o rç ã o da vid a", q u e era m an te r-se afastado d o s d efeito s e d os ex ­ cesso s (Fr. 191, D iels). D e q u a lq u e r m an eira, F. e in felicid ad e p e rte n c e m à alm a (Fr, 170, D iels), u m a v e z q u e so m e n te a alm a "é m o rad a do n o sso d estin o " (Fr. 171, D iels). A relação q u e m u itas v e z e s se e sta b e le c e u en tre F. e p ra­ zer tem o m esm o sign ificad o, ou seja, é a c o n e ­ x ão en tre o esta d o definido co m o F. e a relação com o p ró p rio co rp o , co m as co isas e co m os h o m e n s. A te se se g u n d o a q u al a F. é o sistem a d os p raz eres foi e x p ressa co m to d a a clareza p o r A ristipo, q u e fez a d istin ção en tre p raz er e felicidade. S o m en te o p raz er é b em , p o rq u e só ele é d eseja d o p o r si m esm o , se n d o p o rta n to fim em si. "O fim é o p raz er p articu lar, a F. é o sistem a d o s p raz eres p artic u la re s, em q u e se so m a m ta m b é m os p a s s a d o s e os fu tu ro s" (DiÓG. L, II, 8, 87). E gesias, q u e neg av a a p o s ­ sib ilid ad e de F., n eg av a-a ju sta m e n te p elo fato d e q u e os p ra z e re s são d e m a sia d o raro s e p a s ­ sag eiro s (Ibicl., II, 8, 94). P or o u tro lad o , P latão n eg av a q u e a felicid ad e co n sistisse no p ra z e r e a ju lg av a, ao co n trário , re la cio n ad a co m a v irtu ­ de. "Os felizes são felizes p o r p o ssu írem a ju stiça e a tem p eran ça; os infelizes são infelizes p o r p o ssu írem a m ald ad e", d iz ele em Górgias(508 b ) ; no Banquete (202 c) são ch a m a d o s de feli­ zes "aqu eles q u e p o ssu e m b o n d a d e e b eleza". M as ju stiça e te m p e ra n ç a são v irtu d es; "possuir b o n d a d e e b eleza" significa aind a ser v irtuo so ;

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FELICIDADE e a v irtu d e o u tra coisa n ão é, se g u n d o Platão, s e n ã o a c a p a c id a d e da alm a de c u m p rir seu p ró p rio d ev er, ou seja, d e d irigir o h o m e m da m e lh o r m an eira (Kep, I, 353 d. ss.). P ortanto, ta m b é m a n o ç ã o p latô n ic a de F. é relativ a à si­ tu a ç ã o do h o m e m no m u n d o e aos deveres q u e aq u i lh e cab em . Q u a n to a A ristó teles, insis­ tiu no ca rá ter c o n te m p la tiv o da F. em seu grau su p erio r, a bem-aventurança (v.), m as ap re­ sen to u u m a n o ç ã o m ais am p la de F., definin­ d o-a co m o "certa ativ id ad e d a alm a, realizada em c o n fo rm id ad e co m a v irtu d e" (Et. nic, I, 13, 1102 b); ela n ão ex clui, m as inclui a satisfa­ ção d as n e c e ssid a d e s e d as asp ira ç õ e s m u n d a­ nas. A s p e sso a s felizes, s e g u n d o A ristóteles, d ev em p o ssu ir as três e sp é c ie s de b en s q u e se p o d e m distinguir, q u ais sejam , os exteriores, os do c o rp o e os da alm a {Ibid., 1153 b, 17 ss.; Pol., VII, 1, 1323 a 22). É v e rd a d e q u e "os bens e x te rio re s, assim co m o q u a lq u e r in stru m en to , têm u m lim ite d e n tro do q ual d esem p en h a m su a fu n ção u tilitária de in stru m e n to s, m as além do q ual se to rn a m p reju d iciais ou in ú teis para q u e m os p o ssu i. O s b e n s esp iritu ais, ao contrá­ rio, q u a n to m ais a b u n d a n te s, m ais úteis". Mas em g eral p o d e -se d ize r q u e "cada q ual m erece a F., na m ed id a d a v irtu d e , do tin o e da capaci­ d ad e d e b e m agir q u e p o ssu i, p o d e n d o se to­ m ar co m o ex e m p lo a d iv in d a d e , q u e é feliz e b e m -a v e n tu ra d a n ão g raç as ao s b e n s exterio­ re s, m a s p o r s i m e s m a , p o r a q u ilo q u e ela é, p o r n atu reza" (Pol., V II, 1, 1323 b 8). A F. é p o rta n to m ais acessív el ao sáb io q u e m ais facil­ m e n te se b asta a si m esm o (Et. nic, X , 7, 1777, a 25), m as é a isso q u e d ev em te n d e r to d o s os h o m e n s e as cid ad es. A ética p ó s-a risto télic a, ao co n trá rio , ocupase ex c lu siv am e n te da F. do sáb io ; a nítida dis­ tinção feita p elo s estó icos en tre sáb io s e loucos to rn a o b v ia m e n te in ú til p re o c u p a r-s e com estes ú ltim os. O sáb io é a q u e le q u e b asta a si m esm o e q u e ach a a F. em si m esm o , o que m elh o r se ch am aria b e m -a v e n tu ra n ç a . Plotino cen su ra na n o ç ão aristotélica de F. o fato de ela co n sistir em q u e cad a ser d e s e m p e n h e sua fun­ ção e atinja se u s p ró p rio s o bjetivo s, p od en d o ser p erfeitam e n te ap lica d a n ão só ao s hom ens, m as ta m b é m ao s an im ais e às p lan tas (Enn., I, 4, 1 ss.). N os estó ic o s P lo tin o critica a incoerên­ cia q u e co n siste em c o n sid e ra r a F. in d ep en ­ d e n te d as co isas e x te rn a s ao m esm o tem po q u e a p o n ta essas m esm as co isas co m o obje­ to da razão . P ara P lo tin o , a F. é a p ró p ria vida; p o r isso, en q u a n to p erten ce a to d o s os seres vi­

FELICIDADE vos, p e rte n c e e m in e n te m e n te à v id a m ais co m ­ pleta e perfeita, q u e é a da in telig ên cia p ura. O sáb io , em q u e m tal v id a se realiza, é u m b em para si m esm o : só te m n e c e ssid a d e de si para ser feliz e n ão b u sca as o u tras co isas ou en tã o as b u sca s o m e n te p o rq u e são in d isp en sáv eis às co isas q u e lh e p e rte n c e m (p o r e x e m p lo , ao co rp o ), e n ão a ele m esm o . A F. do sáb io n ão p o d e ser d estru íd a p ela m á so rte, p ela s d o e n ­ ças físicas ou m en tais, n em p o r q u a lq u e r cir­ cu n stân cia d esfav o ráv el, assim co m o n ão p o d e ser a u m e n ta d a p ela s circ u n stân cias favo ráveis (Ibid, I, 4, 5 ss.): p o r isso, é a p ró p ria b em aventurança de q ue g o z am os d eu ses. A filosofia m edieval ad o to u e en fatizo u esse s co n ce ito s, ad a p ta n d o a eles p o r v e z e s (com o fez S. T o ­ m ás) a p ró p ria d o u trin a aristo téü ca, m as e s ­ te n d e n d o -o s à to ta lid a d e d o s h o m e n s. A p artir do h u m an ism o , a n o ção de F. com eça a ser estrita m en te ligada à de p razer, co m o já havia o c o rrid o co m os cire n a ico s e com os epicuristas. A o b ra De voluptate de L o u ren ço Valia gira em to rn o d essa c o n e x ã o , q u e se acentua no m u n d o m o d e rn o . L ocke e L eibniz concordam n esse asp ecto . L ocke diz q u e a F. "é o m aior p raz er de q u e so m o s c a p a z e s, e a infe­ licidade o m aio r so frim en to ; o g rau ínfim o d a­ quilo q u e p o d e ser ch a m a d o de F. é estar tão livre de so frim en to s e ter ta n to p ra z e r p re se n te que n ão é p ossível c o n te n ta r-se co m m en o s" (Ensaio, II, 21, 43). E L eibniz: "C reio q u e a F. é u m p razer d u ráv el, o q u e n ão p o d eria a c o n te ­ cer sem o p ro g resso c o n tín u o em d ire çã o a n o ­ vos p razeres" (Nouv. ess, II, 21, 42). A n o ç ão de F. co m o p raz er ou co m o so m a, ou m elh o r, "sistema" d e p ra z e re s, s e g u n d o a e x p re ssã o do v elh o A ristipo, co m eç a a ad q u irir signifi­ cado social co m H um e: a F. to rn a-se u m p raz er que p o d e ser d ifu n d id o , o p ra z e r do m aior núm ero, e d essa form a a n o ç ã o de F. to rn a -se a base do m o v im e n to re fo rm ad o r in g lês do séc. XIX. E ntrem entes, K ant, q u e ju lg av a im p o s­ sível co n sid erar a F. co m o fu n d a m e n to da v id a moral, esclarecia eficazm en te a n o ç ã o d e F. sem reco rrer à de p razer: "A F. é a co n d iç ã o do ser racional no m u n d o , p ara q u e m , ao lo n g o da vida, tu d o aco n tece de aco rdo com seu desejo e v on tade" (Crít. R. Prática, D ialética, seç. 5). Trata-se, p o rtan to , de u m c o n ce ito q u e o h o ­ m em não h au re d o s in stin to s e q u e n ão d eriva daquilo q ue n ele é a n im a lid a d e , m as q u e ele constrói p ara si de m an eira s d iferen tes, q u e ele p od e alterar co m freq ü ên cia, m u itas v ez es arbitrariam ente {Crít. doJuízo, § 83). K ant ju lg a

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FELICIDADE q u e a F. é p arte in te g ran te do b em su p re m o , q u e p ara o h o m e m é a sín tese de v irtu d e e feli­ cid ad e. M as co m o tal o b em su p re m o n ão é realizável no m u n d o n atu ra l, seja p o rq u e nada g a ra n te n este m u n d o a perfeita p ro p o rç ã o en ­ tre m o ra lid a d e e F., em q u e co n siste o b em su ­ p re m o , seja p o rq u e n ad a g ara n te a satisfação p len a d e to d o s os d esejo s e te n d ê n c ia s do ser racio n al, em q u e co n siste a F. P o rta n to , para K ant, a F. é im p o ssív el no m u n d o n atu ral, sen ­ do tran sferid a p ara u m m u n d o inteligível, que é "o re in o da graça" (Crít. R. Pura, D o u trin a do M é to d o , cap . II, seç. 2). E m p rim e iro lugar, K ant te v e o m érito de e n u n c ia r co m rigor a n o ­ ção de F. e, em s e g u n d o lugar, de m o strar q ue essa n o ç ã o é em p iric a m e n te im p o ssív el, irrealizável. D e fato, n ão é p ossível q u e sejam satis­ feitas todas as te n d ê n c ia s, in clin açõ es e voliçõ e s do h o m e m , p o rq u e d e u m la d o a n atu reza n ão se p re o c u p a em v ir ao e n c o n tro do h o ­ m em , co m v istas a essa satisfação total, e de o u tro p o rq u e as p ró p ria s n e c e ssid a d e s e incli­ n aç õ e s n u n ca se aq u ie ta m no re p o u so da satis­ fação (Crít. doJuízo, § 83). A sso ciad a ao c o n ­ ceito de satisfação ab so lu ta e to tal — em q u e H eg el ta m b é m in siste (Ene, § 479-480) — , a F. to rn a -se o ideal de u m esta d o ou co n d iç ã o in a­ tingível, a n ão ser no m u n d o so b re n a tu ral e por in te rv e n ç ã o de u m p rin cíp io o n ip o te n te . N ão é d e ad m irar, p o rta n to , q u e to d a a p arte d a filo­ sofia m o d e rn a q u e p asso u p elo filtro do kantism o te n h a d e s p re z a d o a n o ç ã o de F. e n ão a te n h a u tiliza d o na an álise d aq u ilo q u e a ex is­ tên cia h u m a n a é ou d ev e ser. T o d av ia, com H u m e, o em p irism o in g lês havia in iciado (co­ m o já foi dito) u m n o v o d e se n v o lv im e n to d e s ­ sa n o ç ã o em se n tid o social, o q u e é p ró p rio do u tilitarism o . H u m e o b serv a ra q u e , "q u an d o se elo g ia alg u m a p e s so a b o n d o s a e h u m a n a ", n u n ca se d eix a de d ar d e sta q u e "à F. e satisfa­ çã o da so c ie d a d e h u m a n a em p o d e r co n tar co m su a aç ão e co m se u s b o n s serv iços" (Inc. Cone. Morais, II, 2). P o rta n to , identificara o que é m o ra lm e n te b o m co m o q u e é útil e b en éfi­ co. D ep o is d ele, B en th am re to m av a co m o fun­ d a m e n to da m o ral a fó rm u la de B eccaria: "A m aio r felicid ad e p ossív el, no m aior n ú m e ro de p esso as", fó rm u la em q u e ta m b é m se in sp ira­ ram J a m e s Mill e S tuart M ill, a c e n tu a n d o cada v e z m ais o seu caráter social. N esses au to res n ão se en c o n tra u m c o n ce ito rig o ro so de F., m as ta m p o u c o se e n c o n tra n ele s a rigidez e o ab so lu tism o q u e essa n o ç ã o sofrerá co m K ant, o q u e a to rn ara im p raticáv el. E les sab em q u e a

FELICIDADE F., p o r d e p e n d e r d e c o n d iç õ e s e circu n stân cias objetivas além d as atitu d es do h o m e m , n ã o p o d e p e rte n c e r ao h o m e m em su a in d iv id u a­ lid a d e , m as só ao h o m e m e n q u a n to m em b ro de u m m u n d o social. E em b o ra re la c io n e m F. co m p razer, d istin g u em os v ário s tip o s de p ra ­ zer, ad m itin d o a id en tificação a p e n a s co m os p ra z e re s so c ia lm e n te p artilh áv eis. N a trad iç ão cu ltural in g lesa e am e rican a , a n o ç ã o de F. p e r­ m an ec eu v iv a co m essa form a e, além do p e n ­ s a m e n to filosófico, in sp iro u o p e n sa m e n to s o ­ cial e p olítico . O p rin c íp io da m aio r felicid ad e co n tin u o u p o r m u ito te m p o s e n d o a b a se do li­ b era lism o m o d e rn o d e c u n h o an g lo -sa x ô n ic o . A C o n stitu ição am e rican a in cluiu en tre os d irei­ to s n atu rais e in alien áv eis do h o m e m "a b u sca da F.". A esta tra d iç ã o liga-se B ertra n d R ussell, q u e foi u m d o s p o u c o s a d e fe n d e r a n o ç ã o de F., aind a q u e n u m a o bra de ca rá ter p o p u la r {A conquista daF., 1930). O q u e R ussell a c re sc e n ­ ta de n o v o à n o ç ã o trad ic io n a l de F. (além de u m a co n v in c e n te an á lise das situ aç õ e s atuais de "infelicidade") é u m a co n d iç ã o q u e ele ju lg a in d isp en sáv el: a m u ltip licid a d e d o s in teresses, das re la çõ es do h o m e m co m as co isas e com os o u tro s h o m e n s, p o rta n to a elim in aç ão do "ego cen trism o ", do fe ch am e n to em si m esm o e n as p aix õ es p esso ais. T rata-se d e u m a c o n d i­ ção q u e co lo ca a F. em p o siç ã o d ia m e tra l­ m e n te o p o sta à d a au to -suficiên cia do sáb io , q u e os an tig o s c o n sid e ra v a m o g rau m ais e le ­ v a d o de F. P or o u tro lado , n ão c o n se g u in d o m ais u tili­ zar a n o ç ã o de F. co m o fu n d a m e n to ou p rin cí­ pio d a v id a m o ral, os filósofos d esin teressa ram se d essa n o ç ão . Para esse d e sin te re sse ta m b é m co n trib u iu a te n d ê n c ia , q u e n asceu co m o R o­ m an tism o e p re d o m in o u p o r m u ito te m p o , de ex altar a in felicid ad e, a d or, os esta d o s de p e r­ tu rb aç ão e insatisfação co m o ex p e riê n c ia s p o ­ sitivas e in trin se c a m e n te reg o zija d o ra s. C om efeito, n o s g rau s e n as fo rm as em q u e p o d e ser co n sid e rad a realizável, a F. é u m e sta d o de calm a, um a co n d ição de eq u ilíbrio p elo m en o s relativo, de satisfação p arcial e to d av ia efetiva, q u e é e x a tam e n te o o p o sto d a in q u ie tu d e ro ­ m ântica. A filosofia c o n te m p o râ n e a ain d a n ão se d etev e para an alisar a n o ç ã o de F. n o s lim i­ tes em q u e ela p o d e serv ir p ara d e sc re v e r situ a­ çõ es h u m a n a s e o rien tá-las. C o n tu d o , a im p o r­ tância d essa n o ç ã o é hoje ev id en c iad a p elo in te re s s e q u e a lg u m a s n o ç õ e s n e g a tiv a s co m o "frustração", "insatisfação", e tc , têm n a p sico log ia in d iv idu al e social, n o rm al e p a to ló ­

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FENÔMENO gica. E stas n o ç õ e s e o u tra s an á lo g a s indicam , p ois, a a u sên cia m ais ou m e n o s g rav e da con­ d ição de satisfação p elo m e n o s relativ a q ue a p alav ra F. tra d ic io n a lm e n te d esig n a. A im por­ tân cia d estas p ara a an álise de e sta d o s ou con­ d içõ es m ais ou m e n o s p a to ló g ic o s ev id en cia a im p o rtâ n c ia q u e a n o ç ã o p ositiva co rresp o n ­ d e n te te m p ara as c o n d iç õ e s n o rm a is da vida hum ana.

FENOMENICO, FENOMENOLÓGICO (in.

Phenomenal, phenomenological; fr. Phénoménal, phénomenologique, ai. Phànomenal, Phãnomenologisch; it. Fenomenico, fenomenológico). A d istin ção en tre os d ois adjetivos, que n ào d ev em ser co n fu n d id o s, foi b em exposta p o r H eid eg g er: "Por fe n o m e n ic o en ten d e-se aq u ilo q u e é d a d o e p o d e ser ex p licitad o se­ g u n d o o m o d o de e n c o n tro co m os fenô m e­ n o s, d aí falar-se em e stru tu ras feno m ên icas. F e n o m e n o ló g ic o é tu d o aq u ilo q u e é inerente ao m o d o d e d e m o n stra r e de ex p licitar e tudo aq u ilo q u e ex p rim e a c o n c e itu a ç ã o im plícita na p re se n te in v estig ação " (Seín undZeit, § 7). E m o u tro s te rm o s, p o d e -se falar de u m "objeto fe n o m en ic o " ou "realid ad e fen o m ên ica", mas d ev e-se falar em "investigação fenom enológica", em "e p o ch é fe n o m en o ló g ica", etc. O adjetivo fe n o m e n ic o qualifica o o bjeto q u e se revela no fe n ô m e n o , o adjetivo fe n o m e n o ló g ic o qualifi­ ca a m an ifestação do o bjeto em sua "essência", b em co m o a b u sca q u e p o ssib ilita essa m ani­ festação . F E N O M E N IS M O (in. Phenomenalism; fr. Phénoménisme, ai. Phánomenalismus; it. Fenomenismo). D o u trin a s e g u n d o a q ual o co­ n h e c im e n to h u m a n o lim ita-se aos fenôm enos, no s e g u n d o sen tid o do te rm o . Essa palavra de­ sig n a ta n to as filosofias q u e ta m b é m adm i­ te m a ex istên cia de u m a re a lid a d e diferente do fe n ô m e n o (com o as de K ant ou Spencer) q u a n to as filosofias q u e n e g a m q u a lq u e r reali­ d a d e q u e n ã o seja fe n ô m e n o (R enouvier, H o d g so n ). E sse te rm o foi c u n h a d o no séc. XIX, m as a filosofia fe n o m e n ista n a sc e u no séc. XVIII; é a filosofia do Ilu m in ism o . F E N Ô M E N O (gr. xà (paivóu.eva; in. Phenomenon; fr. Phénomene, ai. Phãnomen\ it. fenômeno). 1. O m esm o q u e aparência (v.). N esse sen tid o o F. é a a p a rên cia sen sív el que se c o n tra p õ e à re a lid a d e , p o d e n d o ser consi­ d e ra d o m an ifestação d esta, ou q u e se contra­ p õ e ao fato, do qual p o d e ser c o n sid e rad o idên­ tico (v. FATO). É este o s e n tid o q u e essa palavra n o rm a lm e n te a ssu m e na lin g u a g e m comum

FENÔMENO

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(m esm o q u a n d o esta faz alu são a u m a a p a rê n ­ cia p a ra d o x a l e insólita, co m o p o r ex e m p lo a m o n stru o sa ), s e n d o ta m b é m o sign ificad o e n ­ c o n tra d o em B a c o n (no De interpretatione naturaeproemium, 1603), em D escartes (Princ. phii, III, 4), em H o b b e s (De corp, 25, § 1) e em W olff (Cosm., § 225). 2. A p artir do séc. X V III, em v irtu d e da reab ilitação da ap a rê n c ia co m o m an ifestação da re a lid a d e aos s e n tid o s e ao in te le c to do h o m em , a p ala v ra F. c o m e ç a a d e s ig n a r o objeto esp ecífico do c o n h e c im e n to h u m a n o que aparece so b c o n d iç õ e s p a rtic u la re s, ca­ racterísticas da estru tu ra co g n o scitiv a do h o ­ m em . N este s e n tid o , a n o ç ã o de F. é co rrelativa co m a de coisa em si(v.), a ela re m e te n d o por o p o siç ã o co n trária. À m e d id a q u e se re c o ­ n hece q u e os o b jeto s do c o n h e c im e n to se re ­ v elam se g u n d o os m o d o s e as fo rm as p ró p ria s d a estru tu ra co g n o scitiv a do h o m e m , e q u e por isso eles n ão são as "coisas em si m esm as", as coisas co m o são ou p o d e ria m ser fora da relação co g n o scitiv a co m o h o m e m , o o bjeto do c o n h e c im e n to h u m a n o co n fig u ra-se co m o F., ou seja, co m o coisa a p a re n te n essa s c o n d i­ ções, o q u e o b v ia m e n te n ão significa coisa en ganosa ou ilusória. É na filosofia do séc. XVIII que se dá este p asso . H o b b e s, q u e , em p rin cí­ pio, reav alio u o F. co m o a p a rên cia g eral (De corp. 25, § 1; V. APARÊNCIA), n ã o atrib u iu q u a l­ quer significação lim itativa ou co rretiv a à p a ­ lavra F., co m a q u al d esig n a q u a lq u e r o bjeto p o ssív el do c o n h e c im e n to h u m a n o . M a u pertuis, q u e n as Cartas de 1752 afirm a q u e a ex tensão é u m fe n ô m e n o co m o to d a s as co isas co rp ó reas ((Euvres, 1756, II, 198 ss.), ex p rim e co n tu do a co n v icç ão , b a sta n te co m u m em seu tem po , d a lim itação do c o n h e c im e n to h u m a ­ no, e foi d esta co n v icç ão q u e K ant p artiu p ara sua distin ção en tre F. e n ú m e n o . S e g u n d o K ant, o F. é, em g eral, o o bjeto do c o n h e c im e n to en q u an to c o n d ic io n a d o p ela s fo rm as d a in tu i­ ção (tem p o e esp aço ) e p ela s ca te g o rias do intelecto. Diz: "F. é o q u e n ão p e rte n c e ao o b ­ je to em si m e s m o , m as se e n c o n tra s e m p re na relação e n tre ele e o sujeito, e é in sep aráv el d a re p re se n ta ç ã o q u e este te m d ele. P o r isso m esm o, os p re d ic a d o s do e sp a ç o e do te m p o são atrib u íd o s ao s o b je to s d o s s e n tid o s co m o tais, e nisso n ão há ilusão. A o co n trário , se atri­ b uo à ro sa em si a co r v erm e lh a, a S atu rn o os anéis ou a to d os os objetos externos em si a ex ­ tensão, sem levar em co n ta a re la ção d esses

FENOMENOLOGIA o b je to s co m o su jeito e sem lim itar m eu ju íz o a esta relação , en tã o n asce a ilusão" (Crít. R. Pura, E stética T ra n sc e n d e n ta l, § 8, O bs. ger., n o ta). T al sign ificad o, no q ual se estabelecia u m filosofem a m u ito d ifu n d id o no séc. XVIII, p e rm a n e c e u co m o u m d o s sign ificad os fun­ d am en tais d esse term o , m ais p recisam ente a q u e ­ le co m re la ção ao q ual se fala d e fen o m en ism o . E sse sign ificad o ca racteriza-se p ela lim itação de v alid ad e do co n hecim en to h um ano . N este sen ­ tido , F. n ão é o o bjeto q u e se m anifesta, m as o o b jeto q u e se m anifesta ao homem n as c o n d i­ çõ e s lim itativ as esp ecíficas q u e essa relação im plica. 3. T o d av ia , na filosofia c o n te m p o râ n e a , a p artir d as Investigações lógicas (1900-1901) de H usserl, F. co m eço u a indicar n ão só o q u e ap a­ re ce ou se m an ifesta ao h o m e m em co n d içõ es p artic u la re s, m as aq u ilo q u e a p a re c e ou se m a­ nifesta em si mesmo, co m o é em si, na sua essên cia. É v e rd a d e q u e p ara H usserl o fe n ô ­ m e n o n e ste se n tid o n ão é u m a m an ifestação n atu ra l ou e s p o n tâ n e a da coisa: ex ig e o u tras c o n d iç õ e s, q u e são im p o sta s p ela in v estig ação filosófica co m o fenomenologia (v.). O sen tid o fen o m en o ló g ico de F. co m o rev elação de essên ­ cia (HUSSERL, Ideen, I, Intr.) so m a-se p o rtan to ao significado crítico de F., sem co n tu d o elim iná-lo. N ele insistiu H eidegg er, co n sid e ran d o o F. com o o a p a re c e r p u ro e sim p les do se r em si e disting u in d o -o assim d a sim p les ap a rê n c ia (Erscheinungou blosseErscheinung), q u e é in d ício do ser ou alu são ao ser (que c o n tu d o p e rm a n e c e e sc o n d id o ) e q u e , p o r isso, é o n ão m anifestarse ou o e sc o n d e r-se do ser (Sein undZeit, § 7, A ). O b v ia m en te n este sen tid o a n o ç ã o de F. não se o p õ e m ais à de coisa em si: o F. é o em si da coisa em su a m an ifestação , n ão co n stitu in d o , p o is, u m a a p a rê n c ia d a co isa, m as id en tifi­ c a n d o -se co m seu ser. P o d em o s ag o ra resu m ir da seg u in te m aneira os três sign ificad os atu a lm e n te em u so d a p ala­ v ra F.: 1) ap a rê n c ia p u ra e sim p les (ou fato p u ro e sim p les), c o n sid e ra d a ou n ão co m o m a­ n ifestação d a re a lid a d e ou fato real; 2) objeto do c o n h e c im e n to h u m a n o , q u alificad o e d eli­ m itad o p ela re la ção co m o h o m e m ; 3) rev ela­ çã o do o b jeto em si. F E N O M E N O L O G IA (in. Phenomenology, fr. Phénoménologie, ai. Phãnomenologie, it. Fenomenologia) . D escrição d a q u ilo q u e ap a rec e ou ciên cia q u e tem co m o o bjetivo ou p rojeto essa descrição. É p ro v áv el q u e esse term o tenh a sido c u n h a d o pela escola de Wolff. Lam bert u ti­

FENOMENOLOGIA liza-o co m o títu lo da 4a p a rte do seu Novo Organon (1764) e co m ele e n te n d e o estu d o d as fo n tes d e erro . A qu i, a ap a rê n c ia , cuja d e s ­ crição é a F., é e n te n d id a co m o a p a rên cia ilu só ­ ria. K ant, p o rém , utiliza esse term o para indicar a parte da teoria do m o v im en to q u e co n sid era o m o v im e n to ou o re p o u so da m atéria so m e n te em re la ç ã o co m as m o d a lid a d e s em q u e eles a p a re c e m ao se n tid o ex te rn o {Metaphysische Aufangsgründe der Natur wissenschaft, 1786, Pref.). P o r sua v ez, H eg el c h a m o u d e "F. do es­ pirito" a história ro m an cead a da consciência, q ue, d esd e su as p rim eiras a p a rên cias sen sív eis, c o n ­ seg u e a p a re c e r p ara si m esm a em su a v e rd a ­ deira n atu re za , co m o C o n sciên cia Infinita ou U niversal. N esse sen tid o , identifica a F. do e sp í­ rito com o "devir da ciência ou do saber", e nela d esco b re o ca m in h o através do q ual o in d iv ídu o re p e rc o rre os g rau s d e fo rm ação do E spírito U niversal, co m o figuras já a b a n d o n a d a s ou e ta ­ p as de u m c a m in h o j á tra ç a d o e a p la n a d o (Phánomen. des Geistes, Pref., ed. G lo ck ner, p. 31). H am ilto n atrib u iu o u tro sig n ificad o a esse term o (Lectures on Logic, 1859-1860,1, p. 17), o de psicologia descritiva; foi co m tal significado, d e p u ra d escriçã o d a a p a rên cia p síq u ica, p re li­ m inar à ex p licação d os fatos p síq u ico s, q u e esse te rm o foi u sa d o co m freq ü ê n c ia p e la cu ltura fi­ losófica alem ã da seg u n d a m etad e do séc. XIX e n o s p rim e iro s a n o s do séc. XX. H artm an n inti­ tulou F. da consciência moraKPhünomenologie des sittliche Bewusstseins, 1879) a c o le tâ n e a de d ad o s em p írico s da co n sciên cia m oral, in d e p e n ­ d e n te m e n te d e su a in te rp re ta ç ã o esp ecu la tiv a . M as a ú n ica n o ç ã o hoje v iv a de F. é a a n u n ­ ciad a p o r H u sse rl em Investigações lógicas (1900-1901, II, p p . 3 ss.), correlativa ao 3S signifi­ cad o de fe n ô m e n o e d e p o is d e se n v o lv id a p o r ele m e sm o n as o b ra s s e g u in te s. O p ró p rio H usserl p re o c u p o u -s e em elim in ar a co n fu ­ são en tre p sico lo g ia e fe n o m e n o lo g ia . E scla­ receu q u e p sico lo g ia é a ciên cia de d a d o s de fato; os fe n ô m e n o s q u e ela c o n sid e ra são a c o n ­ te cim en to s reais q u e , ju n ta m e n te co m os sujei­ to s a q u e p e rte n c e m , in se re m -se no m u n d o e s p á c io -te m p o ra l. A F. (q u e ele c h a m a de "pura" ou "tran scen d en tal") é u m a ciência de essên cias (p o rtan to , "eidética") e n ão de d ad o s de fato , p o s sib ilita d a a p e n a s p e la redução eidética, cuja tarefa é e x p u rg a r os fe n ô m en o s p sic o ló g ic o s d e su a s ca ra cte rística s reais ou em p íricas e lev á-lo s p ara o p lan o da g e n e ra ­ lid a d e essen cial. A re d u ç ã o eid ética, v ale dizer, a tran sfo rm ação d o s fe n ô m e n o s em essê n cia s,

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FENOMENOLOGIA ta m b é m é re d u ç ã o fe n o m en o ló g ica em sentido estrito , p o rq u e tran sform a esses fe n ô m e n o s em irrealidadesildeen, I, In tr.). C om esse significa­ d o , a F. co n stitu i u m a co rre n te filosófica parti­ cular, q u e p ratica a filosofia co m o inv estig ação fe n o m e n o ló g ic a , ou seja, v a le n d o -se da redu ­ ção fe n o m en o ló g ica e da epochéiy?). O s resul­ ta d o s fu n d a m en tais a q u e esta in v estig ação le­ v o u , em H u sse rl, p o d e m ser re su m id o s da m an eira seg u in te : 1Q O re c o n h e c im e n to do ca­ ráter intencional da consciência (v.), em virtude do q u al a c o n sc iê n c ia é u m m o v im e n to de transcendência em d ire ç ã o ao o bjeto e o obje­ to se dá ou se a p re se n ta à co n sc iên c ia "em car­ ne e o sso" ou "p esso alm en te"; 2e ev id ên cia da v isão (intuição) do o b jeto d ev id a à p resença efetiva do o bjeto ; 3 S g e n e ra liz a ç ã o da n o ç ão de o bjeto , q u e c o m p re e n d e n ão so m e n te as coi­ s a s m a te ria is , m a s ta m b é m as fo rm a s de ca te g o rias, as essê n cia s e os "objetos ideais" em geral (Jdeen, I, § 15); 4e caráter privilegiado da "p erce p ç ão im a n e n te", ou seja, da co n sciên ­ cia q u e o eu te m d a s s u a s p ró p ria s e x p e riê n ­ cias, p o rq u a n to n essa p e rc e p ç ã o ap a rec er e ser co in cid e m p erfeitam e n te, ao p a sso q u e não co in cid e m na in tu iç ão do o b jeto ex te rn o , que n u n c a se id e n tific a co m s u a s a p a riç õ e s à co n sc iên c ia, m as p e rm a n e c e além d ela s (Ibid., § 3 8 ). N em to d o s estes p rin cíp io s são aceito s pelos p e n sa d o re s c o n te m p o râ n e o s q u e se v alem da in v estig ação fe n o m en o ló g ica: a p e n a s o prim ei­ ro d ele s (caráter in te n c io n a l da co n sciên cia, em v irtu d e do q ual o o bjeto é tra n sc e n d e n te em re la ç ã o a ela e to d av ia p re s e n te "em carne e osso") tem c ré d ito n ão só e n tre esses pen sa­ d o re s co m o ta m b é m ju n to a g ra n d e núm ero de filósofos c o n te m p o râ n e o s . F oi co m b ase na in v estig aç ão fe n o m e n o ló g ic a q u e N icolai Hartm a n n fu n d o u seu realismo (v.) m etafísico; o m esm o fizeram S ch eler p ara a an á lise d as emo­ ções (v.) e H e id e g g e r (co m o m é to d o para sua o n to lo g ia ). E ste ú ltim o e x p re ssa co m toda a clareza o ca rá ter p ró p rio da F. q u a n d o afirma: "A p alav ra 'F .' significa an te s de m ais n ad a um c o n ce ito de m é to d o . Ela n ão caracteriza a con­ sistên cia de fato do o b jeto da in d a g a ç ã o filosó­ fica, m as seu como... E sse te rm o ex p ressa um lem a q u e p o d e ria ser assim fo rm u la d o : às coi­ sas m esm as! — p o r o p o siç ã o às construções so ltas no ar e ao s ac h a d o s casu ais; em oposi­ ção à ad m issã o de c o n ce ito s a p e n a s ap aren te­ m e n te v erificad o s e ao s falsos p ro b le m a s que se im p õ e m de g e ra ç ã o em g e ra ç ã o co m o pro­

FENÔMENO ORIGINÁRIO blem as v e rd a d e iro s" (Sein undZeit, § 7). P o r­ tanto, o q u e a F. m o stra é aq u ilo q u e , acim a de tudo e n a m aio r p arte d o s ca so s, n ã o se m a n i­ festa, o q u e está e s c o n d id o , m as q u e é ca p az de ex p ressa r o se n tid o e o fu n d a m e n to d a q u i­ lo q ue, acim a d e tu d o , e n a m aio r p arte d os casos, se m an ifesta. N esse s e n tid o , a F. é a única o n to lo g ia p o ssív el (Ibid., § 7 C). A F. é en tend id a de m an eira an á lo g a p o r S artre (Z être et le néant, Intr., §§ 1-2) e p o r M e rle au -P o n ty (Pbénoménologie de Ia perception, P ref.). A form ulação fe n o m e n o ló g ic a da filosofia n ão im plica, p o rta n to , a re d u ç ã o da ex istê n c ia à aparência e n ã o p o d e ser co n fu n d id a d e m a­ neira n e n h u m a co m o fenomenismo (v.). O próprio c o n ce ito de fe n ô m e n o a q u e se faz referência é diferente n este caso. P o r o u tro lado , tam pouco im plica a elim inação da diferença entre parecer e ser, em b o ra esse an tig o d u a lism o seja elim inado. S artre diz: "O fe n ô m e n o de ser e x i­ g e a tra n sfe n o m e n a lid a d e do ser. Isto n ão q u e r dizer q ue o ser está esco n d id o atrás d os fe n ô ­ m enos (vim os q u e o fe n ô m e n o n ã o p o d e m a s­ carar o ser), n em q u e o fe n ô m e n o é u m a a p a ­ rência q ue rem ete a u m ser distinto (só e n q u a n to aparência o fe n ô m e n o é, ou seja, ele se indica sobre o fu n d a m e n to do ser). S eg u e-se q u e o ser do fe n ô m en o , c o n q u an to co ex ten siv o ao fe­ nôm eno, d ev e e sc a p a r à co n d iç ã o fe n o m ên ic a — de só existir n a m e d id a em q u e se n o s re v e ­ la — e, p o r c o n se g u in te , e x c e d e e fu n d a m e n ­ ta o co n h e c im e n to q u e se tem d ele" (Z être et le néant, Intr., § 2). A re la ç ã o en tre ap a rê n c ia e ser, n a o n to lo g ia fe n o m e n o ló g ic a , p o d e ser d e ­ finida ou an alisad a de m an eira s d iferen tes, m as não se am olda à trad ição q u e relacio n a ap arên cia e realidade. FENÔMENO ORIGINÁRIO. V. U RPH À N O MENON.

F E R IO . P alav ra m n e m ô n ic a u sa d a p e lo s escolásticos p ara in d icar o q u a rto m o d o da p ri­ meira figura do silo g ism o , m ais p re c isa m e n te o que consta de u m a p rem issa u n iv e rsa l n e g a ti­ va, de u m a p rem issa p artic u la r afirm ativa e de um a co n clu são p artic u la r n eg ativ a, co m o no exem plo "N enh um an im al é p ed ra; alg u n s h o ­ m ens são an im ais; lo g o , alg u n s h o m e n s n ão são pedra" (P edro H isp a n o , Summ. log., 4.07). FE R ISO N . P alavra m n e m ô n ic a u sa d a p elo s escolásticos p ara in d icar o sex to d o s seis m o ­ dos do silo g ism o de terceira figura, m ais p re ­ cisam ente o q u e co n sta de u m a p rem issa u n i­ versal n eg ativ a , d e u m a p rem issa p artic u la r afirmativa e de u m a co n c lu sã o p articu lar n e ­

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FETICHISMO gativa, co m o no ex e m p lo : "N enh um h o m e m é p e d ra ; a lg u n s h o m e n s são an im ais; lo g o , alg u n s an im ais n ão são pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 15). F E S P A M O . P alavra m n em ô n ica u sad a pela L ógica de P o rt-R o y al p ara in d ica r o o ita v o m o d o do silo g ism o d e p rim eira figura (isto é, Fapesmó), co m a m o d ificação q u e co n siste em to m a r p o r p rem issa m aio r a p ro p o siç ã o em q u e está co n tid o o p re d ic a d o da co n clu são . O e x e m p lo é o se g u in te : "N enh um a v irtu d e é u m a q u a lid a d e n atu ral; to d a q u a lid a d e natural te m a D eu s p o r p rim e iro autor; lo g o , há q u a li­ d a d e s n atu ra is q u e tê m D eu s p o r au to r e n ão

são virtudes" (ARNAULD, Log., III, 8).

FESTEV O . P alavra m n e m ô n ic a u sa d a pelo s esco lá stico s p ara in d ica r o te rc eiro d os q u atro m o d o s da s e g u n d a figura do silo gism o , m ais p re c isa m e n te o q u e co n sta de u m a prem issa u n iv e rsa l n eg ativ a, d e u m a p rem issa p articu lar afirm ativa e d e u m a co n c lu sã o p artic u la r n e ­ gativa, co m o no ex e m p lo : "N enh um a p ed ra é an im al; alg u n s h o m e n s são an im ais; logo,

alguns homens não são pedra" (PEDRO HIS­ PANO, Summ. log., 4.11).

F E T IC H IS M O (in. Fetishism- fr. Fétichisme, ai. Fetíchismus; it. Feticismó). C rença no p o ­ d er so b re n a tu ra l ou m ág ico de certo s objetos m ateriais (it. feticci; v. port. feitiço - artificial). M ais g e ra lm e n te , atitu d e de q u e m co n sid era a n im a d o s os o b jeto s m ateriais, e os tip o s d e re ­ ligião ou de filosofia b a s e a d o s n esta crença. N este s e g u n d o s e n tid o , esse te rm o n ã o é m ais u sa d o , p o r ter sid o su b stitu íd o p o r animismo (v.). E m g eral, os filósofos e m p re g a m essa p a ­ lavra em se n tid o d ep rec ia tiv o ; p o r ex e m p lo , M ach c h a m o u de F. a cren ça n o s co n ce ito s de cau sa e d e v o n ta d e (Populãrwissenschaftliche Vorlesungen, 1896, p. 269). C om te exaltara o F., p o r e n c o n tra r n e le alg u m a afin id ad e co m o p o sitiv ism o , p o rq u a n to am b o s v êe m em to d o s os se re s u m a ativ id ad e an á lo g a ou se m e lh a n te à h u m a n a , e assim e sta b e le c e m a u n id a d e fun­ d a m e n ta l do m u n d o q u e se ex p ressa n a teoria do G ra n d e S er {Politiquepositive, III, p. 87; IV, p. 44). K ant, p o r o u tro lado , ch a m o u F. a re li­ g ião mágica, de q u e m realiza certas aç õ es q u e p o r si n ad a c o n tê m d e ag rad áv el a D eu s, n ad a tê m de m o ral, co m o fim de o b te r fav o res div i­ n o s e satisfazer desejos p esso ais. N este sen tid o , o sace rd ó c io é "a co n stitu ição de u m a igreja em q u e reina o culto fetichista, o n d e o fu n d am en to e a essê n cia do cu lto n ão são c o n stitu íd o s p o r p rin c íp io s d e m o ralid ad e, m as p o r d isp o siçõ es

FICÇÃO estatu tárias, re g ras de fé e o b serv â n c ias" (Religion, IV,_seç. 2, § 3). F IC Ç Ã O (in. Fiction; fr. Fiction; ai. Fiktion; it. Finzioné). U m a filosofia da F., ou ficcionismo (Fiktionalismus), é a "Filosofia do co m o se" (1911) de V aihinger, q u e se p ro p õ e d e m o n s­ trar q u e to d o s os c o n ce ito s, as ca te g o rias, os p rin cíp io s e as h ip ó te se s de q u e la n ç am m ão o sab er co m u m , as ciên cias e a filosofia são F. d e s titu íd a s d e q u a lq u e r v a lid a d e te ó ric a , fre q ü e n te m e n te co n tra d itó ria s, q u e são aceitas e c o n se rv a d a s e n q u a n to ú teis. V aih in g er n ão ach a q u e essa situ a ç ã o seja p ato ló g ica , m as n o rm al, e q u e a ú n ica altern ativ a v iáv el é u tili­ zar as F. co n sc ie n c io sa m e n te . Está claro q u e, n esse sen tid o , a F. n ão é u m a h ip ó te se , pois n ão ex ig e v erificação ; a p ro x im a -se m ais do co n ce ito de mito (v). A filosofia da F. é u m d os d e sd o b ra m e n to s do co n ce ito k a n tia n o do como se (v.) na filosofia c o n te m p o râ n e a .

FICHTISMO. V. ROMANTISMO.

F ID E ÍS M O (in Fideism; fr. Fidéisme; ai. Fideismus; it. Fideismó). D esig n o u -se co m este term o a c o n c e p ç ã o filosófica e relig io sa d efe n ­ dida n as p rim e ira s d é c a d a s do séc. X IX p elo a b a d e B au tain , p o r H uet, p o r L am en n ais (este ú ltim o e s p e c ia lm e n te na o b ra Essais sur l'indifférence en matière de religion, 1817-1823); essa c o n c e p ç ã o c o n siste em o p o r à ra zã o "indi­ v id ual" u m a ra z ã o "com um ", q u e seria u m a esp écie d e in tu ição d as v e rd a d e s fu n d a m e n ­ tais, co m u m a to d o s os h o m e n s. Esta in tu iç ão teria o rig em n u m a re v e la ç ã o prim itiva q u e se tran sm itiria atrav és d a tra d iç ã o eclesiástica; as­ sim , serv iria de fu n d a m en to da fé cató lica. Essa d o u trin a v isava ju stificar o p rim a d o da tra d iç ã o eclesiástica. N a re a lid a d e , n eg av a à Igreja a p rerro g ativ a de ser a ú n ica d ep o sitá ria da tra d i­ ção autêntica e neg av a à trad ição o ap o io da ra­ zão. D ep o is da c o n d e n a ç ã o da Igreja (1834), entre os escrito res católicos esse term o assum iu c o n o taç ão p ejo rativ a, m as co n tin u a s e n d o u sa ­ do até hoje p ara in d icar, em g eral, q u a isq u e r atitu d es q u e co n sid e re m a fé co m o in stru m e n ­ to de c o n h e c im e n to s u p e rio r à ra zã o e in d e ­ p e n d e n te dela. F IG U R A (gr. ojcnua; lat. Figura; in. Figure, fr. Figure, ai. Figur, Gestalt; it. Figura). 1. C om este term o são d e sig n a d a s trad ic io n a lm e n te as form as fu n d am en tais do silo g ism o , d iferen tes d os modos (v .), q u e são esp ecificaçõ es de tais form as. A ristó teles d istin g u iu as d ife re n te s fi­ g u ras do silo gism o se g u n d o a fu n ção do term o m éd io , q u e serv e p ara m o strar a in erên cia do

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FIGURA p re d ic a d o ao sujeito d a c o n clu são . N a primei­ ra F., o te rm o m éd io serv e de sujeito na p re­ m issa m aio r e de p re d ic a d o na p rem issa m e­ nor. N a segunda F., serv e de p re d ic a d o em am b as as p rem issas, u m a d as q u ais n eg ativa, e a co n c lu sã o ta m b é m é n eg ativa. N a terceiraV, serv e de o b jeto em am b as as p rem issas e a c o n c lu s ã o é p artic u la r. A tra d iç ã o atrib u i a G alen o , fam o so m éd ic o e filósofo aristotélico do séc. II d .C , a d istin çã o de u m a quarta F., em q u e o te rm o m éd io serv e d e p re d ic a d o na p rem issa m aio r e de sujeito na p rem issa m e­ nor: os m o d o s d essa F. h av iam sid o incluídos p o r A ristó teles en tre os d a p rim eira. A sep ara­ ção foi feita p o rq u e se definiu co m o prem issa m aior a q u e c o m p re e n d e o p red ic ad o d a conclu­ são , e co m o p rem issa m e n o r a q u e co m p reen ­ de o su jeito da c o n c lu s ã o (PRANTL, Geschichte der Logik, I, p p. 570 ss.). C ada F., p o r sua vez, d iv id e-se em certo n ú m e ro de m o d o s, confor­ m e a q u a lid a d e e q u a n tid a d e d as p ro p o siçõ es q u e c o n stitu e m as p rem issas e a c o n clu são , ou seja, s e g u n d o as p rem issas e a co n c lu sã o , con­ sid e ra d a s in d iv id u a lm e n te , sejam u n iv ersais ou p artic u la re s, afirm ativas ou n eg ativ as. C om o na Escolástica se u so u a letra A p ara indicar a propo­ sição u niversal afirm ativa', a letra E p ara indicar a p ro p o siç ã o u n iv e rsa l n eg ativ a, a letra /p a ra in d icar a p ro p o siç ã o p artic u la r afirm ativa e a letra O p ara in d ica r a p ro p o siç ã o particular n eg ativ a (daí os v erso s: A affirmat, negat E, sed uníversaliter ambae, Ifirmat, negat O, sed particulariter ambae), fo rm a ra m -se palavras m n e m ô n ic a s p ara in d icar os v ário s m o d o s do silo g ism o , p ala v ras n as q u a is as d u a s prim eiras v o g a is in d icam as p rem issas e a terceira, a con­ clusão . A ssim , os n o v e m o d o s da p rim eira F. foram in d ica d o s p ela s p alav ras Barbara, Celarent, Darii, Ferio, Baralipton, Celantes, Debitís, Fapesmo, Frisemorum. O s q u a tro m o d o s da se­ g u n d a F. foram in d ica d o s p elas p alavras Cesare, Camestres, Festino, Baroco. O s seis m o d o s da te rc e ira F. fo ra m in d ic a d o s p e la s palavras Darapti, Felapto, Disamis, Datisi, Bocardo, Ferison. O s ú ltim o s q u a tro m o d o s da p rim eira F. são os q u e se a trib u em à q u arta F., quando d istin g u id a. A s iniciais d as p ala v ras m nem ônicas ta m b é m tê m sign ificad o. T o d o s os m odos in d ic a d o s p o r u m a p alav ra q u e co m e c e com B p o d e m ser re d u z id o s ao p rim e iro m o d o da pri­ m eira F.; os in d ic a d o s p o r u m a p alav ra que co m ec e co m C são red u tív eis ao se g u n d o m odo da p rim eira F.; os in d ica d o s p o r u m a palavra co m D inicial são re d u tív e is ao te rc eiro m odo da p rim eira F.; e os in d ic a d o s p o r u m a palavra

FIGURAE DICTIONIS (FALÁCIA)

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FILOLOGIA

com F inicial reduzem-se ao quarto modo da dossid). Essa palavra (que significa mais exata­ primeira F. (cf., sobre o uso das palavras mente "amor pela glória") foi usada por Platão mnemônicas, PEDRO HISPANO, Summ. log;., 4.18 para indicar os "amantes da opinião", em opo­ ss.). Para cada modo, ver as palavras relativas. sição aos "amantes da ciência", que são os filó­ 2. Com esse mesmo termo, que traduz o sofos. Os amantes da opinião são aqueles que alemão Gestalt, indicam-se as determinações gostam de ouvir belas vozes, olhar belas cores, da fenomenologia do espírito de Hegel. Tais etc, mas que não consideram o belo como um determinações são "figuras da consciência" ser em si (Rep, V, 480 a). Kant chamou de F. a atitude daqueles que rejeitam não só o método (Phãnomen. des Geistes, pref., ed. Glockner, pp. 36 e passini) ou "graus do caminho já da crítica, por ele proposto, mas também o mé­ traçado e batido" pelo Espírito Universal, ou todo da fundamentação de Wolff, que consiste seja, etapas através das quais a consciência em proceder estabelecendo princípios, definin­ chegou à consciência de si como Consciência do conceitos e buscando o rigor das demons­ Infinita e Absoluta. Como se sabe, entre as F. trações (Crit. R. Pura, Prefácio da 2a edição). da fenomenologia Hegel inclui também cria­ FILOGÊNESE. V. b io g e n é tic a , lei. ções fantasistas, o que estabelece uma dife­ FILOLOGIA (gr. (ptAoÀoyía; lat. Philologia; rença entre essas F. e as categorias, que são in. Philology, fr. Philologie, ai. Phílologie-, it. objeto da Enciclopédia. Com efeito, as catego­ Filologia). Para Platão, essa palavra significava rias são determinações necessárias e necessa­ amor aos discursos (Teet., 161 a); na idade mo­ riamente reais. derna, passou a designar a ciência da palavra, ou melhor, o estudo histórico da língua. Viço FIGURAE DICTIONIS (FALÁCIA). Para logismo in dictione (v. FALÁCIA), que consiste opôs F. e filosofia: "A filosofia contempla a razão no uso gramatical errôneo nas premissas, ge­ de onde parte a ciência do verdadeiro; a F. ob­ rando conseqüências paradoxais ou gramatical­ serva a autoridade, o arbítrio humano, de onde mente impossíveis ( "Omnis bomo est albus, parte a consciência do certo" (Scienza nuova, dign. 10). Seria tarefa dos filólogos o "conheci­ mulier est homo, ergo mulier est albus"). Cf. mento das línguas e dos feitos dos povos". F. e ARISTÓTELES, El. sof., 4, 166 b 10; PEDRO HISPA­ NO, Summ. log., 7.3 4SS.;JUN GIUS,Lógicahamb., filosofia completam-se no sentido de que os fi­ VI, 7, etc. G. P. lósofos deveriam "conferir" suas razões com a FILANTROPIA (gr. (piÀ,ocv0po7ría; lat. Phi- autoridade dos filólogos, e os filólogos deve­ riam "confirmar" sua autoridade com a razão lanthropia; in. Philanthropy, fr. Philanthropie, ai. Philanthropie, it. Filantropia). Amizade do dos filósofos. No conceito moderno, F. é a ciên­ homem para com outro homem. Essa palavra cia que tem por objetivo a reconstituição his­ foi assim entendida por ARISTÓTELES (Et. nic, tórica da vida do passado através da língua, VIII, 1, 1155, a. 20) e pelos estóicos, que atri­ portanto dos seus documentos literários. Por buíram essa amizade ao vínculo natural, gra­ conseguinte, os projetos e os resultados dessa ças ao qual toda a humanidade constitui um ciência, do modo como ela se formou, sobre­ único organismo. "Daí deriva", diz Cícero, "que tudo no séc. XLX, vão muito além da humilde ta­ também é natural a solidariedade recíproca entre refa à qual desejaram limitá-la os filósofos do os homens, graças à qual, necessariamente, um idealismo romântico. Hegel já se opunha aos homem não pode ser alheio a outro homem, "filólogos", historiadores que faziam seu traba­ pelo próprio fato de ser homem" (Definibus, lho em nome da história filosófica, única história III, 63). Diógenes Laércio atribui o conceito de capaz de descobrir apriorio plano providencial F. também a Platão, que o teria dividido em do mundo (Pbilosophie der Geschichte, ed. três aspectos: saudação, ajuda, hospitalidade Lasson, pp. 8 ss.). No mesmo sentido, Croce (DiÓG. L, III, 98). Na linguagem moderna, a chamava de história filológica a história dos significação desse termo restringiu-se ao se­ historiadores, à qual contrapunha a história gundo dos aspectos distinguidos por Platão. A "especulativa", que identificava com a filosofia atitude geral de benevolência para com os (CROCE, Teoria e storia delia storiografia, 1917; outros homens hoje é freqüentemente chama­ La storia comepensiero e come azione, 1938). da de altruísmo (v.). Na realidade, a história filológica é a história FILÁUCIA. V. AMOR SUL dos historiadores, ao passo que a história es­ FILODOXIA(gr. (piloôoÇíoc; lat. Philodoxia, peculativa nada mais é que a concepção providencialista do mundo histórico, que nada Philodoxy, fr. Philodoxie, ai. Philodoxie, it. Filo-

FILOSOFEMA

tem a ver com a historiografia científica (v. HISTORIOGRAFIA). O adjetivo/íYofógzconão pode sequer ser usado para designar formas monó­ tonas e mal realizadas de historiografia, pois a F. não é em nada responsável por elas. Tam­ pouco a função de conservação e recons­ tituição do material documentário e das fontes, que Nietzsche chamou de história arqueológi­ ca, (v.), é um tipo inferior de história, porque só é possível quando um interesse inteligen­ te guia as escolhas oportunas e as torna úteis à tarefa da crítica e da reconstituição históricas. F IL O S O F E M A (gr. (piAoaó(pr|Lia; lat. Philosophema; in. Philosopheme, fr. Phílosophème, ai. Philosophem; it. Filosofemd). Em geral, dis­ curso filosófico. Na lógica de ARISTÓTELES (Top., VIII, 11, 162 a 15) é o "raciocínio demonstrati­ vo". Fora da lógica: conceito ou lugar-comum filosófico. Neste segundo sentido é usado pelo próprio ARISTÓTELES (De cael, II, 13, 294 a 19) e pela tradição posterior. G. P.-N. A. F IL O SO F IA (gr. (pita>ao(píoc; lat. Philosophia; in. Phüosophy, fr. Philosophie, ai. Philosophie, it. Filosofia). A disparidade das F. tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significações de "F.", o que não impede reconhecer nelas algu­ mas constantes. Destas, a que mais se presta a relacionar e articular os diferentes significados desse termo é a definição contida no Eutidemo de Platão: F. é o uso do saber em proveito do homem. Platão observa que de nada serviria possuir a capacidade de transformar pedras em ouro a quem não soubesse utilizar o ouro, de nada serviria uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse utilizar a imortalidade, e assim por diante. É necessária, portanto, uma ciência em que coincidam fazer e saber utilizar o que é feito, e esta ciência é a F. (Eutid., 288 e 290 d). Segundo esse conceito, a F. implica: 1Q posse ou aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo possível;*2 uso desse conhecimento em benefício do homem. Esses dois elementos re­ correm freqüentemente nas definições de F. em épocas diversas e sob diferentes pontos de vista. São reconhecíveis, por exemplo, na defini­ ção de Descartes, segundo a qual "esta palavra significa o estudo da sabedoria, e por sabedoria não se entende somente a prudência nas coi­ sas, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode conhecer, tanto para a conduta de sua vida quanto para a con­ servação de sua saúde e a invenção de todas as artes" (Princ. phil, Pref.). Encontram-se

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FILOSOFIA

igualmente na definição de Hobbes, segundo a : qual a F. é, por um lado, o conhecimento cau­ sai e, por outro, a utilização desse conhecimen­ to em benefício do homem (De corp., I, § 2, 6), bem como na de Kant, que define o conceito cósmico da F. (o conceito que interessa neces­ sariamente a todos os homens) como o de "ei- [ ência da relação do conhecimento à finalida­ de essencial da razão humana" (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do método, cap. III). Essa finali­ dade essencial é a "felicidade universal"; por: tanto, a F. "refere tudo à sabedoria, mas através da ciência" (Ibid., infine). Não tem significação diferente a definição de F. dada por Dewey, como "crítica dos valores", no sentido de "críti­ ca das crenças, das instituições, dos costumes, das políticas, no que se refere seu alcance so; bre os bens" (Experience and Nature, p. 407). Estas definições (aqui citadas apenas como ,' exemplos) podem ser remetidas à fórmula de : Platão, citada no início, cuja vantagem é nada estabelecer sobre a natureza e os limites do sa­ ber acessível ao homem ou sobre os objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Portanto pode-se entender esse saber tanto como revê• lação ou posse quanto como aquisição ou bus­ ca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se para a salvação ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a realização de retificações ou mudanças no mundo. Por­ tanto, essa fórmula revela-se igualmente apta a exprimir as diferentes tarefas que a F. foi assu­ mindo ao longo de sua história. Por exemplo, , exprime igualmente bem tanto a tarefa das F. positivas ou dogmáticas quanto a das F. negati­ vas ou cépticas. Quando o cepticismo antigo se propõe realizar a imperturbabilidade da alma pela suspensão do assentimento (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 25-27), não faz senão entender a F. como uso de determinado conhecimento para conseguir uma vantagem. Analogamente, quando, na F. contemporânea, Wittgenstein afirma que o propósito da F. é levar ao desaparecimento dos problemas fi­ losóficos, eliminar a própria F. ou se "curar" dela (PhilosophicalInvestigations, § 133), não está recorrendo a conceito diferente de F.: li­ bertar da F. é a utilidade que o uso do saber (neste caso a retificação lingüística deste) pode proporcionar. Os dois elementos encontrados na defini­ ção de F. considerada apta a constituir o quadro

FILOSOFIA das p rin c ip a is a rtic u la ç õ e s d o s sig n ific ad o s d esse te rm o c o n stitu em p o r si m esm o s a p ri­ m eira d essas articulações. E m o u tras p alavras, é possível d istin gu ir os significados h isto ric am en ­ te d a d o s d esse term o : ls co m re la ção à n a tu re ­ za e v a lid a d e do c o n h e c im e n to ao q u al a F. se refere; 2 S co m re la ç ã o à n atu re za do alvo para o q ual a F. p re te n d e dirigir o u so d esse saber; 3 S co m re la ção à n atu re za do p ro c e d im e n to que se c o n sid e ra p ró p rio da filosofia. I. A filosofia e o saber— O u so do sa b e r ao qual o h o m e m tem ac esso d e alg u m m o d o é, em p rim e iro lu g ar, u m ju íz o so b re a o rig em ou a v alid a d e d esse sab er. E a p ro p ó sito do ju íz o sob re a v a lid a d e do sa b e r su rg e m im e d ia ta ­ m en te d u a s a lte rn a tiv a s fu n d a m e n ta is, q u e estab elecem a d istin çã o en tre d o is tip o s d ife­ rentes e o p o sto s de filosofia. A p rim eira alter­ nativa esta b e le ce a o rig em divina do saber: para o h om em , ele é u m a re v e la çã o ou u m d o m . A seg un da altern ativ a e sta b e le c e a o rig em h u ­ m ana do sab er: ele é u m a co n q u ista ou u m a p ro du ção do h o m e m . A p rim eira altern ativ a é a m ais an tiga e a m ais freq ü e n te no m u n d o , p rev alecen d o d e há m u ito n as filosofias o rie n ­ tais. A s e g u n d a altern ativa surg iu na G récia e foi h erd ad a p ela civilização o cid en tal. A) D e a c o rd o co m a p rim eira altern ativ a, o saber é u m a re v e la ç ã o ou ilu m in ação d ivina, com q u e se p riv ileg iaram a u m ou m ais h o ­ m ens, tran sm itid a p o r trad iç ão n u m g ru p o ta m ­ bém p riv ileg iad o de h o m e n s (casta, seita ou igreja). P o rta n to , n ão é acessív el ao s m o rtais com uns, a n ão ser atrav és d a q u e le s q u e são seus d e p o sitá rio s; ta m p o u c o é p o ssív e l aos m ortais, co m u n s ou n ão , a u m e n ta r seu p a tri­ m ônio ou ju lg a r de su a v alid a d e . F az p a rte in te ­ grante d essa in te rp re ta ç ã o d a o rig em do sab er a crença de q u e seu u so em b en efício do h o ­ m em — n este caso a "salvação" — ta m b é m é ditado ou p rescrito p ela re v e la çã o ou ilu m in a­ ção divina. P o rta n to , esta in te rp re ta ç ã o p are ce elim inar ou to rn ar su p érflu o o "trabalho" filo só ­ fico, q ue v ersa p re c isa m e n te s o b re esse u so . Mas na p rática isso é raro . A ex ig ên cia de a p ro ­ xim ar a v e rd a d e re v e la d a da c o m p re e n sã o h u ­ m ana co m u m , d e ad a p tá -la às circ u n stân cias e de fazer q ue ela a ten d a ao s p ro b le m a s n o v o s ou m odificados q u e os h o m e n s se p ro p õ e m , de defendê-la de n e g a ç õ e s, d esv io s, in cred u lidades d eclarad as ou o cu ltas, faz q u e o trab alh o filosófico e n c o n tre n esse co n ce ito do s a b e r um vasto c a m p o p ara d e s e n v o lv e r-s e e tarefas m ultiform es p ara en fren tar. C o n tu d o , esse tra­

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FILOSOFIA b a lh o é s u b a lte rn o e ancilar: n ão é n em p o d e ser d ecisiv o q u a n d o se trata de in terp retaçõ es fu n d a m en tais e d e in stân cias últim as. N a re v e­ la çã o e n a tra d iç ã o , e n c o n tra lim ites in tran s­ p o n ív e is q u e v e d a m q u a lq u e r p o ssib ilid ad e de d e se n v o lv im e n to em d ire ç õ e s d iferen tes das já d ete rm in a d a s. N ão p o d e co m b ate r e destruir as cren ça s e sta b e le c id a s, o p o r-se fro n talm en te à tra d iç ã o , p ro m o v e r ou p lan ejar tran sfo rm açõ es rad icais. Sua fu n ção é co n se rv a r as cren ça s es­ ta b e le c id a s, e n ão re n o v á-las ou aperfeiçoálas, p o rta n to , su a fu n ção é s u b o rd in a d a e in s­ trum ental, destituída de autonom ia e da dignidade de força diretiva. J á se d isse q u e q u a se to d a s as F. o rientais são d essa n a tu re z a , o q u e p o r v e z e s levo u a d u v id a r d e q u e p u d e s se m ser c h a m a d a s de filosofias. M as, na v e rd a d e m esm o o m u n d o o c id e n ta l m u itas v e z e s o ferece ex e m p lo s d e F. d esse tip o , aind a q u e n e n h u m a d elas ap re se n te os c a ra cte re s o ra e x p o sto s em to d o o seu rigo r. A p artir do n o m e do m ais im p o rta n te d esses e x e m p lo s, as fo rm as q u e esse tip o de F. assu ­ m iu no m u n d o o c id e n ta l p o d e m ser ch a m a d as d e escolãsticas. U m a esco lástica, ao co n trário d e u m a filosofia d e p u ro tip o o rie n tal; p re ssu ­ p õ e u m a F. a u tô n o m a e v a le -se dela p ára a d e ­ fesa e a ilu stra çã o d e u m a v e rd a d e relig io sa p ara co n firm ar ou d efe n d e r cren ça s cuja v a lid a ­ d e se ju lg a e s ta b e le c id a de an te m ã o , in d e p e n ­ d e n te m e n te de co n firm açõ es ou defesas. U m a esco lástica, co m o a p ró p ria p alav ra d iz, é e s ­ s e n c ia lm e n te u m in stru m e n to d e e d u c a ç ã o : serv e p ara a p ro x im a r o h o m e m , na m ed id a do p o ssív el, d e u m sa b e r c o n sid e ra d o im utável em su a s lin h as fu n d a m en tais, p o rta n to n ão su s­ ceptível de ap erfeiço am en to ou reno v ação . E ntre as tarefas — aliás, m ú ltip las, assim co m o são m ú ltip lo s os c a m in h o s de ac esso do h o m e m à v e rd a d e , b e m co m o os o b stá cu lo s en c o n tra ­ d o s n esse c a m in h o — assu m id as p o r u m a F. esco lástica, n ão está o ev e n tu a l a b a n d o n o das c ren ça s d e q u e ela é in té rp rete. A s seitas filosófico -relig io sas do séc. II a.C. (p. ex., os essê n io s), as d o u trin a s d e F ílon de A lex an d ria (séc. I d.C.) e d e m u ito s n eo p la tô n ic o s, a F. islâm ica e ju d a ic a , a P atrística e a E scolástica, b e m co m o , no m u n d o m o d e rn o , o o casio n alism o , o im aterialism o , a d ireita h e g e lia n a e b o a p arte do esp iritu alism o c o n te m p o râ n e o são e sco lá stico s no se n tid o o ra esclarecid o : F. q u e c o n siste m em u tiliza r d e te rm in a d a d o u trin a (p la to n ism o , aristo telism o , ca rtesian ism o , em p irism o , id ealism o , etc.) p ara a d efesa e a in ter­

FILOSOFIA p retaç ão d e cren ças q u e n ão p o d e m se r p o sta s em d ú v id a, co rrig id as ou n e g a d a s p o r esse tra ­ b alh o . C ertam en te, essas d iferen tes esco lásticas p o ssu em g rau s d iferen tes d e lib e rd a d e e esses g rau s às v e z e s v ariam , em cad a u m a d ela s, de u m a ép o ca para outra. P. ex., S. T om ás, ap esar de conferir à "F. h u m a n a " certa au to n o m ia , na m ed id a em q u e lh e atrib u i a c o n sid e ra ç ã o e o estu d o das co isas criad as co m o tais, ou seja, sua n atu re za e su a s p ró p ria s cau sas {Contra Gent., II, 4), co n sid e ra im p o ssív el q u e ela p o s ­ sa co n tra d ize r as afirm açõ es da fé cristã, q u e d ev e ser to m ad a co m o n o rm a do p ro c e d im e n to co rreto da ra zã o (Ibtd., I, 7). A in d a q u e as F. d esse tip o p o ssa m co n se g u ir re su lta d o s im p o r­ ta n tes, q u e p a ssa m a fazer p a rte do p a trim ô n io filosófico co m u m , seu ca m p o é rig id a m en te lim itado p elo p ro b le m a em to rn o do q u al elas g iram , de d efesa d e cren ça s trad icio n ais: suas p o ssib ilid ad es n ão se e s te n d e m à co rre ç ã o e re n o v a ç ã o de tais cren ças. E) P ara a se g u n d a altern ativa, o s a b e r é u m a co n q u ista ou u m a p ro d u ç ã o do h o m e m . O fu n ­ d a m e n to d esta c o n c e p ç ã o é q u e o h o m e m é u m "anim al racio n al" e, p o rta n to , co m o diz A ristó teles no início da Metafísica (980 a 21), "todos os h o m e n s te n d e m , p o r n atu re za , ao sa­ ber": "tendem " significa q u e n ão so m e n te d e s e ­ ja m o saber, m as tam b ém p o d em obtê-lo. O sa­ b er, so b esse p o n to d e vista, n ão é p riv ilég io ou p a trim ô n io re se rv a d o a p o u c o s; q u a lq u e r u m p o d e co n trib u ir p ara su a aq u isiçã o e p ara seu e n riq u e c im e n to , te n d o , p o r isso, d ireito de ju lg á-lo , ap ro v á-lo ou rejeitá-lo. S ob esse p o n to de v ista, a tarefa fu n d a m en tal da F. é a b u sca e a o rg an iza çã o do sab er. Q u a n d o T u c íd id es (II, 40) atrib u i a P éricles a frase "A m am os o b e lo com m o d e ra ç ã o e filo so fam o s sem tim id ez", c e rtam en te está e x p re s sa n d o a atitu d e e o e sp í­ rito g reg o , do q ual n asceu a F. n esta se g u n d a ac ep çã o do term o . P éricles n ão fazia alu são a u m a disciplina específica, m as à b u sca do sab er c o n d u z id a sem c o m p ro m is s o s p re c o n c e b i­ d os ou co m u m ú n ic o c o m p ro m isso de e x p e ri­ m en tar e p ô r à p ro v a to d a cren ça p ossív el. N este sen tid o, a F. é u m a criação original do es­ p írito g reg o e u m a co n d iç ã o p e rm a n e n te da cultura o cid en tal. É u m c o m p ro m isso no se n ti­ do de q u e q u a lq u e r in v estig ação , em q u a lq u e r cam p o , d ev e o b e d e c e r so m e n te às lim itaçõ es ou às n orm as q u e ela m esm a re c o n h e ç a co m o v álid as em fu n ção de su as p o ssib ilid a d e s ou de su a eficácia em d esco b rir ou confirm ar. N este se n tid o , F. o p õ e -se a trad iç ão , p re c o n c e ito ,

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FILOSOFIA m ito e, em g eral, à cren ça in fu n d ad a q u e os g reg o s ch a m a v am de opinião. É na diferença e n tre o p in iã o e ciên cia, en tre am o r à o p in iã o e am o r à sab ed o ria, q u e P latão m ais insiste ao esclarece r o c o n ce ito de F. (Rep., V , 480 a). A F. co m o in v estig aç ão é co n tra p o sta p o r Platão, p o r u m la d o , à ig n o rân cia e, p o r o u tro , à sab e­ doria. A ig n o rân cia é ilu são de sa b e d o ria e destró i o in ce n tiv o à in v estig ação (O Banq., 204 a). P or o u tro la d o , a sa b e d o ria , q u e é a posse da ciên cia, to rn a inútil a in v estig ação : os D eu­ ses n ão filosofam ilbid. 204 a; Teet., 278 d). A in v estig ação é o q u e d efine o status de F. Já H erãclito d issera: "É n ec essário q u e os h om ens filósofos sejam b o n s in v estig ad o res de m uitas co isas" (Fr. 35, D iels). E n q u a n to in v estig ação , a F. é "con q uista", co m o dizia P latão (Eutid., 288 d), ou esfo rço , co m o d iziam os estóicos (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math, IX, 13), ou "ati­ v id a d e " , co m o d iziam os e p ic u ris ta s (Ibid., X I, 169). M as se a F. é o c o m p ro m isso de fazer do sa­ b e r in v estig ação , co n d icio n a o s a b e r efetivo, q u e é "co n h ec im en to " ou "ciência". N o juízo q u e a p ró p ria filosofia em ite s o b re ele, esse c o n d ic io n a m e n to p o d e assu m ir três form as que d efinem três c o n c e p ç õ e s fu n d a m en tais da F., a m etafísica, a p ositivista e a crítica. I a P ara a pri­ m eira d elas, a F. é o ú n ic o sa b e r p o ssív el, e as o u tras ciên cias, e n q u a n to tais, c o in cid e m com ela, são p a rte s dela ou p re p a ra m p ara ela. 2P ara a se g u n d a d elas, o c o n h e c im e n to cab e às ciên cias p artic u la re s, e à F. ca b e c o o rd en ar e unificar seu s resu ltad o s. 3a Para a terceira delas, F. é ju íz o so b re o sab er, ou seja, av aliação de su a s p o ssib ilid a d e s e de seu s lim ites, em vista d e seu u so p e lo h o m e m . 1A p rim eira c o n c e p ç ã o da F. é a m etafísi­ ca, q u e d o m in o u na A n tig ü id a d e e na Idade M édia, d istin g u in d o ain d a hoje m u itas corren­ te s filosóficas. Sua característica p rin cip al é a n e g a ç ã o de q u a lq u e r p o ssib ilid a d e d e inves­ tig a çã o a u tô n o m a fora da F. U m co n h ecim en to ou é filosófico ou n ão é co n h e c im e n to . A dm i­ te-se m u itas v e z e s q u e, fora da F., ex iste um sab er im p erfeito , p ro v isó rio e p rep arató rio , mas n eg a-se q u e tal sa b e r p o ssu a v a lid a d e cognoscitiva p ró p ria. A ssim , P latão , p o r u m lado , cha­ m a a g eo m etria e as o u tra s ciên cias de F., refe­ rin d o -se em esp ecial à sua fu n ção educativa {Teet., 143 d; Tim., 88 c), e p o r o u tro lad o con­ sid era tais ciên cias (aritm ética e g eo m etria, as­ tro n o m ia e m ú sica) sim p le sm e n te p ro p ed êu ­ ticas p ara a F. p ro p ria m e n te d ita, ou seja, para

FILOSOFIA a d ialética, q u e teria, en tre o u tras, a tarefa de "d esco b rir a c o m u n h ã o e o p a re n te s c o e n tre as ciên cias e de d e m o n stra r as ra z õ e s p ela s q u ais estão in te rlig a d a s" (Rep, V II, 531 d). A ristó teles d efine a F. co m o "ciência da v e rd a d e " (Met., II, 1, 993 b 20), no se n tid o de q u e ela c o m p re e n ­ de to d a s as ciên cias te ó ric as, ou seja, a F. p ri­ m eira, a m atem ática e a física, e ex c lu i so m e n te a ativ id ad e prática: m as ta m b é m esta d ev e re ­ co rrer à F. p ara e sclarece r su a n a tu re z a e seu s fu n d a m en to s. T a n to P latão q u a n to A ristó teles ad m item co m o ciên cia p rim eira u m a d iscip lina d ete rm in a d a , q u e p ara P latão é a d ialética e p ara A ristó teles a F. p rim eira ou te o lo g ia , m as para eles essa d iscip lin a d e te rm in a d a ta m b é m é a m ais g eral. C om efeito, co n fo rm e já se viu, a d ialética p erm itia c o m p re e n d e r a lig a çã o e a n atu re za co m u m d as ciên cias, e a F. p rim eira, co m o ciên cia do se r e n q u a n to ser, tem p o r o bjetivo esp ecífico a essê n cia n ec e ssá ria ou substância q u e a cad a ciên cia ca b e in d ag ar em seu c a m p o p artic u la r (Depart. an, I, 5, 645 a 1). O u tras v e z e s, ao co n trá rio , a F. re so lv e-se n as d iscip lin as p artic u la re s, sem p riv ilég io de n en h u m a d elas. Era o q u e faziam os ep icu ristas, que a dividiam em can ôn ica, física e ética (DIÓG. L, X , 29-30), e os estó ic o s, q u e a d iv id iam em lógica, física e ética (AÉCIO, Plac, I, 2), c o n si­ d e ra n d o q u e essa s três p a rte s eram in te rli­ g ad as co m o os m e m b ro s d e u m an im al (DIÓG. L, VII, 40). Esta c o n c e p ç ã o , q u e identifica o sab er in te ­ gral com a F. e se re cu sa a re c o n h e c e r q u e haja ou p ossa h av er um sab er au tên tico fora dela sobreviveu à co n stitu iç ão d as ciên cias p a rtic u ­ la re s c o m o d is c ip lin a s a u tô n o m a s e c o n ­ s e rv o u -s e s u b s ta n c ia lm e n te in a lte ra d a em certas co rren te s filosóficas até n o sso s dias. A definição q ue F ichte d eu da F. co m o u m a "ciên­ cia da ciên cia em geral" (Über den Begriffder Wíssenschaftslehre oder der sogernannten Philosophie, 1794, § 1) n ão d eix a q u a lq u e r a u to ­ nom ia às ciências particulares, u m a v ez q ue, s e ­ g u n d o essa d efin ição , a d o u trin a da ciên cia "deve d ar su a form a n ã o só a si m esm a, m as tam bém a to d a s as o u tras ciên cias p o ssív eis", e constituir assim o "sistem a a c a b a d o e ú n ic o do espírito h u m a n o " (Ibid, § 2). Essa p re te n sã o m an teve-se in alterad a em to d a s as d efiniçõ es que o id ealism o ro m â n tic o d eu da filosofia. N ão é o u tro o sign ificad o d as o b se rv a ç õ e s de Schelling, p ara q u e m a tarefa d a F. é aclarar a co n co rd ân cia (q u e fin alm en te é id en tid a d e ) e n ­ tre objetivo e su b jetiv o , ou seja, en tre n atu re za

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FILOSOFIA e esp írito , c u m p rin d o , assim , a "ten dência n e ­ cessária de to d a s as ciên cias n atu rais" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr., § 1). H eg el afirm aria e x p lic ita m e n te q u e "as ciên cias p a rtic u la re s se o c u p a m d o s objetos finitos e do m u n d o d os fen ô m en o s" (Geschichte derPhilosophie, Intr., A , § 2; trad. it., I, p. 69); e q u e "um a coisa são o p ro c e sso d e o rig em e os tra b a lh o s p re p a ra tó rio s d e u m a ciên cia e outra coisa é a p ró p ria ciência", na q ual eles d e sa ­ p arecem para serem substituídos pela "necessida­ de do co n ce ito " (Ene, § 246). Isso significa q u e só a F., é ciên cia, p o rq u e só ela d em o n stra "a n e c e ss id a d e do co n ce ito ", u tiliza n d o e m an i­ p u la n d o a seu m o d o (co m o H eg el re alm en te fez) o m aterial p re p a ra d o p elas ch a m a d as ciên ­ cias em p íricas. P o rta n to , H eg el reserv av a para a F. o privilégio d e ser a "con sid eração p e n sa n te d o s objeto s" (Ibid., § 2). O c o n h e c im e n to p re ­ lim in ar ou p re p a ra tó rio assen ta em re p re s e n ta ­ çõ es; te m -se c o n h e c im e n to p ro p ria m e n te dito q u a n d o , co m a F., "o esp írito p e n sa n te através d as re p re s e n ta ç õ e s e tra b a lh a n d o s o b re elas p ro g rid e p ara o c o n h e c im e n to p e n sa n te e o c o n ce ito " (Ibid., § 1). Está claro q u e, ex p resso d esta m an eira , o c o n c e ito d e F. co m o to ta lid a­ de do s a b e r é u m a m an ifestação de arro g ân cia filosófica, in ex isten te n e sse m esm o co n ceito no p e río d o clássico . N aq u e la é p o ca , co m efeito, esse c o n c e ito agia co m o c o m p ro m isso e s p e c í­ fico d as d iscip lin as científicas, q u e g raç as a ele in g ressav am n a esfera da in v estig aç ão d e sin te ­ re ssad a, re c e b e n d o d ele in ce n tiv o e su ste n ta ­ ção em su a c o n stitu iç ã o co n ce itu ai. M as na c o n c e p ç ã o do id ealism o ro m â n tic o , as ciências esp ecíficas eram re b a ix a d a s à fu n ção de tra b a ­ lh o b raçal d e stitu íd o de v a lid a d e in trín seca. A essa m esm a fu n ção a ciên cia é re d u zid a tan to p elo id ea lism o q u a n to p elo esp iritu alism o . A d efin ição de F. co m o "teoria g eral do espírito" leva G en tile a co n sid e rá-la co m o a co n sciên cia q u e o E u ab so lu to tem de si m esm o : d essa co n sc iên c ia, os c o n h e c im e n to s em p írico s, b a ­ sead o s na distinção en tre objeto e sujeito e en tre os p ró p rio s o b jeto s, são u m a falsa ab stração (Teoria generale dello spirito, 1916, cap. 15, § 2). O u tro ssim , a p e sa r d a fo rm u lação m en o s b erran te , a d efinição d ad a p o r C roce de F. com o "m eto d o lo g ia da h istorio grafia" im plica a m e s­ m a arro g â n c ia filosófica. P ara C roce, o c o n h e ­ cim en to h istó rico é o ú n ico p ossív el, v isto q ue a h istória é a ú n ica re alid ad e: p o rtan to , a re d u ­ ção d a F. a m e to d o lo g ia d esse co n h e c im e n to eq ü iv ale a n e g a r q u e o sab er científico seja

FILOSOFIA co n h e cim en to ; d e fato, p ara CROCE, ele n ão é u m sab er, m as u m co n ju n to de e x p e d ie n te s p rático s (La storia, 1938, p. 144; Lógica, 1908, I, cap. 2). P o r o u tro la d o , o esp iritu alism o c o n ­ te m p o râ n e o se g u e , em su a m aio r p a rte , esse m esm o ca m in h o . P ara B ergson , a in tu iç ão é o ó rg ão da F. p o r ser a in tu iç ão a "visão d ireta do esp írito p o r p a rte do esp írito " (Lapensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 51), ou seja, o in stru ­ m en to p ara atingir, im ed iata e in faliv elm en te, a "d u ração real" q u e é a re a lid a d e ab so lu ta. Seu re c o n h e c im e n to da ciên cia co m o c o n h e c im e n ­ to a d e q u a d o ao m u n d o m aterial ou d as "coi­ sas" é p u ra m e n te fictício: p ara B erg so n , n em a m atéria n em as co isas tê m re a lid a d e co m o tais, p o rq u e n ão são se n ã o co n sc iên c ia, e a c o n s ­ ciência só p o d e ser a u te n tic a m e n te c o n h e c id a pela p ró p ria co n sciên cia: "Ao so n d a r su a p ró ­ pria p ro fu n d id ad e, a co n sc iên c ia n ão estaria p e n e tra n d o ta m b é m no ín tim o da m atéria, da v id a, da re a lid a d e em geral? Isso só p o d e ria ser c o n te sta d o se a c o n sc iên c ia se a c re sc e n ta sse à m atéria co m o u m ac id en te , m as n ós a c re d ita ­ m os ter d e m o n stra d o q u e essa h ip ó te se é ab su r­ da ou falsa, co n fo rm e o la d o p elo q ual é c o n si­ d erad a, co n traditó ria em si m esm a e d esm en tid a p elo s fatos" (Ibid,, p p . 156-57). O c o n c e ito de F. co m o c o n h e c im e n to p riv ileg iad o (seja qual for o asp e c to em q u e asse n te o p riv ilég io ) n ad a m ais é q u e u m a d as ta n tas e x p re ssõ e s do an ti­ g o c o n c e ito d e F. co m o sa b e r ú n ic o e ab so lu to . A s te n d ê n c ia s do p e n sa m e n to m o d e rn o q u e c o s tu m a m se r c h a m a d a s d e "m e ta físic a s" ca racterizam -se p re c isa m e n te p o r esse c o n c e i­ to de filosofia. H usserl e x p õ e assim o ideal cartesian o da F. q u e ele d eclara ad o tar: "Lem ­ b re m o s a idéia diretiva d as Meditações de D e s­ cartes. Ela v isa a u m a refo rm a to tal da F., p ara to rn á-la u m a ciên cia de fu n d a m e n to s a b so lu ­ tos. Isto im plica, p ara D escartes, u m a refo rm a paralela de to d a s as ciên cias, v isto sere m estas m em b ro s d e u m a ciên cia u n iv e rsa l q u e outra n ão é sen ão a p ró p ria F. É só na u n id a d e siste ­ m ática d esta q u e elas re a lm e n te p o d e m to rn arse ciências" (Cart. Med., 1931, § 1). E m su a últim a obra, H usserl estabelecia co m o p rim eira co n d ição da F. "um a 'e p o c h é ' de q u a lq u e r p re s ­ su p o sto d as ciên cias o bjetivas, d e q u a lq u e r to ­ m ad a d e p o siç ão crítica em to rn o da v e rd a d e ou d a falsidade da ciên cia, u m a 'e p o c h é ' até da idéia diretiva d a ciên cia, da idéia do c o n h e c i­ m en to objetivo do m u n d o " (Krisis, § 35). N ão o b sta n te o am p lo re c o n h e c im e n to da v alid a d e do m éto d o científico, as c o n sid e ra ­ çõ e s de J a sp e rs so b re a n atu re za da F. re d u n ­

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FILOSOFIA d am na m esm a n e g a ç ã o da ciên cia, u m a vez q u e n eg am au to n o m ia estru tu ral e v a lid a d e às c iê n c ia s e s p e c ífic a s (Phil, § 1, p p . 53 ss.; Existenzphii, 1938, In tr.). U m a d esv alo rização ain d a m ais ra d ica l d as ciên cias esp ecíficas é re aliza d a p o r H eid e g g er, p ara q u e m os p ressu ­ p o sto s da ciência m o d e rn a são o esq uecim ento do ser, a re d u ç ã o do h o m e m a sujeito e do m u n d o a re p re s e n ta ç ã o (Brief über den "Humanismus", em PlatosLebre von der Wahrheit, 1947, p. 88). 2a A s e g u n d a c o n c e p ç ã o de F. co m o ju ízo s o b re o sab er é a q u e te n d e a reso lv ê-la nas ciên cias esp ecíficas, a trib u in d o -lh e às v ez es a fu n ção d e unificar as ciên cias ou de re u n ir seus re su lta d o s n u m a "visão de m u n d o ". A origem d esta c o n c e p ç ã o p o d e ser vista em B acon , que co n c e b e u a F. co m o u m a ciên cia q u e , em pri­ m eiro lu g ar, dividiria e classificaria as ciências p artic u la re s e d e p o is conferiria a tais ciências a p o sse de seu s m é to d o s, do m aterial d e que elas d isp o ria m e d as té cn ic as p ara a utilização d e sse m aterial em p ro v e ito do h o m e m . E m De dignitate et augmentis scientiarum (1623), es­ b o ç a n d o o p la n o d e u m a e n c ic lo p é d ia das ciên cias em b ases ex p e rim e n ta is, B aco n atri­ b u ía à "F. p rim eira", p o r ele c o n sid e ra d a com o "ciência u n iv e rsa l e m ãe d as o u tra s ciências", a tarefa d e re u n ir "os ax io m as q u e n ão são pró­ p rio s d as ciên cias p artic u la re s, m as co m u n s a v árias ciências" (Deaugm. scient, III, 1). H obb es, p o r su a v ez , identificava a F. co m o co n h e­ cim en to científico: "A F. é o c o n h e c im e n to ad­ q u irid o a tra v é s d o ra c io c ín io c o rre to , dos efeitos ou fe n ô m e n o s, a p artir de su a s causas ou o rig en s; o u, re c ip ro c a m e n te , o co n h e cim en ­ to a d q u irid o s o b re as o rig en s p o ssív eis a partir d o s efeitos co n h e c id o s" (De corp, 1, § 2). D es­ te c o n c e ito de F. co in c id e n te co m o co n heci­ m en to científico, e no esfo rço d e esclarecê-la e este n d ê-la , p ro v e io o se n tid o do te rm o em in­ g lês, p ara o q ual H eg el já ch a m a v a a atenção (Ene, § 7 e nota; Geschichte derPhil, Intr., A , 2; trad. it, I, p. 70): s e g u n d o ele, esse term o n ão se ap licava s o m e n te à ciên cia da natureza, m as ain d a a certo s in stru m en to s, co m o term ô ­ m etro s, b a rô m e tro s, e tc , além d o s princípios g era is da política; este ú ltim o u so co n serv ou se n o s p aíses a n g lo -sa x ô n ic o s. P ara o próprio D escartes, a F. co m p ree n d ia "tudo aq u ilo que o esp írito h u m a n o p o d e sab er", e assim coinci­ dia em g ran d e m ed id a co m as p esq u isas científi­ cas, q u e , aliás, p ara D esca rte s d ev eriam ser re m e tid a s a c e rto s p rin c íp io s fu n d am en tais

FILOSOFIA (Princ.phii, P ref.). T o d o o Ilu m in ism o p artic i­ pou do c o n ce ito de filosofia co m o c o n h e c i­ m en to científico. "Filósofo, a m a n te da s a b e d o ­ ria, da v e rd a d e ", dizia V o ltaire iDict. Phii, art. P h ilo so p h e). E W olff m esm o ad m itia, ao lad o das ciên cias "racionais" em q u e div id ia a F., ciências em p íricas c o rre sp o n d e n te s, d o tad as de u m m é to d o a u tô n o m o , q u e é o e x p erim en ta l. P. ex., ao la d o da co sm o lo g ia g eral ou científi­ ca, W olff ad m ite u m a co sm olo g ia experimental "que h a u re d as o b se rv a ç õ e s a teo ria q u e é e sta ­ b elecid a ou q u e d ev e ser e sta b e le c id a na cosm ologia científica" (Cosm., § 4), e re c o n h e c e que é p ossív el, em b o ra difícil, q u e to d a a teoria da co sm o lo g ia g eral d eriv e d essas o b se rv a ç õ e s Ubid, § 5). D en tro d esse sign ificad o, o p o sitiv ism o deu d estaq u e à fu n ção da filosofia de re u n ir e co o r­ d en ar os re su lta d o s d as ciên cias esp ecíficas com vistas a criar u m co n h e cim en to unificado e g en eralíssim o . Esta é a tarefa atrib u íd a à F. p o r C om te e S p en cer. C o m te ach a q u e, ao la d o das ciências p artic u la re s, d ev e h av er u m "estud o das g e n e ra lid a d e s científicas", q u e , p ara ele, c o rre sp o n d e à "F. p rim eira" de B acon . Esse estu d o d ev eria "d eterm in ar e x a ta m e n te o e sp í­ rito de cad a ciên cia, d esco b rir as re la çõ es e a co n ca ten aç ão e n tre as ciên cias, re su m ir talv ez to d os os p rin cíp io s d essa s ciên cias no m en o r núm ero possível de p rin cíp io s co m u n s, sem p re em co n fo rm id ad e co m as m áx im as fu n d a m e n ­ tais do m é to d o p ositivo " (Cours de phil. po­ sitive, Ia lição, § 7; 2-lição, § 3). O co n ceito de F. com o ciên cia g e n e ra liz a d o ra e u n ificad o ra d os resu ltad os d as o u tras ciên cias foi e co n tin u a sen d o co rre n te na filosofia m o d e rn a e c o n ­ te m p o râ n e a. Foi aceito n ão só p o r co rren te s positivistas, m as ta m b é m p o r d o u trin a s e sp iri­ tualistas; estas ú ltim as a c re sc e n ta ra m -lh e em certos caso s u m a d ete rm in a ç ã o ou co n d içã o lim itadora: a g e n e ra liz a ç ã o e a u n ificação d e ­ vem c o rre s p o n d e r a u m a im agem do m u n d o que satisfaça às necessidades do coração. Essa é p re c isa m e n te a d efin içã o de F. d ad a p o r W undt, q u e re c o n h e c e u co m o fu n ção sua a "síntese d o s c o n h e c im e n to s esp ecífic o s em um a in tu ição do m u n d o e d a v id a q u e satisfaça as ex ig ên cias do in te le cto e as n e c e ssid a d e s do coração" (Syst. der Phil., 4- ed., 1919, 1. p. 1; Einleitungin diePhii, 3a ed., 1904, p. 5). D e s­ se p o n to de vista, a F. "é a ciência u niversal q u e deve unificar n u m sistem a c o e re n te os c o n h e c i­ m en to s u n iv e rsa is fo rn e c id o s p ela s ciên cias particulares": c o n ce ito m u ito freq ü e n te n a lite­

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FILOSOFIA ra tu ra filosófica d as ú ltim as d éc ad as do séc. X IX e d as p rim eiras do séc. XX, p o rq u a n to p e r­ m ite q u e a F. a p ro v e ite a m p la m en te os re su lta­ d o s o b tid o s p ela in v estig ação positiva ta n to no ca m p o d as ciên cias n atu ra is q u a n to no das ciên cias do esp írito . P or v ez es, te n d e -se a ac e n ­ tu ar, n esse se n tid o , o caráter u n itário e to talitá­ rio d esta ciên cia u n iv ersal; n esse caso, assim co m o na definição de W u n d t, ela é co n siderad a intuição ou visão do m u n d o . T al co n ceito é u m a d e te rm in a ç ã o u lte rio r do co n ceito de F. co m o "ciência u n iv ersal", u n ificad o ra e g en era liz ad o ra. M ach diz: "O filósofo ten ta o rientarse no co n ju n to d e fatos d e u m m o d o universal, o m ais c o m p le to p ossív el... S o m e n te a fusão d as ciên cias esp eciais m o strará a concepção do mundo p ara a q u al te n d e m to d a s as esp eciali­ zaçõ es" (Erkenntniss und Irrtum, cap . I, trad. fr., p p. 14-15). D ilthey d e m o n stro u b em esta c o n e x ã o e n tre F. e ciên cias esp eciais q u a n d o escrev eu : "A história da F. tran sm ite ao trab alho filosófico sistem á tic o os três p ro b le m a s da fun­ d a m e n ta ç ã o , ju stifica çã o e c o n e x ã o d as ciên ­ cias específicas, ju n ta m e n te co m a tarefa de e n ­ fren tar a n e c e ss id a d e in ex au rív e l de reflexão últim a s o b re o ser, o fu n d a m e n to , o v alo r, a fi­ n a lid a d e e su as in te rc o n e x õ e s na in tu ição do m u n d o , sejam q u ais fo rem a form a e a d ireção em q u e tal tarefa é realizada" (Das Wesen der Philosophie, ao fim; trad. it, em Critica delia ragionestorica, p. 487). Para Sim m el, a relação en tre fu n d a m e n ta ç ã o /u n ific a ç ã o d as ciên cias e in tu iç ão do m u n c lo (em q u e co n siste p ro p ria ­ m e n te a m etafísica) co n fig u ra-se co m o a d istin ­ ção en tre os d o is lim ites q u e d efinem o ca m p o da in v estig ação filosófica. "Um d eles co m p re e n ­ de as c o n d iç õ e s, os c o n ce ito s fu n d a m en tais, os p re s su p o s to s da p e sq u isa específica, q u e n ão p o d e m ser satisfeitos n esta p o rq u e , de certo m o d o , j á c o n stitu em a su a b ase; no o u tro , essa p esq u isa específica é levada a cab o em co n ex ão e em re la ção co m q u e stõ e s e co n ce ito s q ue n ão tê m lu g ar na ex p e riê n c ia e no sa b e r o b je­ tivo im ediato. A quela é a teoria do co n hecim en to , esta é a m etafísica do ca m p o esp ecífico em q u e stão " (Soziologie, 1910, p. 25; cf. P. R ossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, T o rin o , 1956, p p . 242 ss.). O ra, a p rim eira d estas ta re ­ fas é aq u ela q u e a filosofia crítica havia atrib u í­ do à F. (v. ad ia n te); a s e g u n d a d ela s é a q ue h avia sido atrib u íd a à F. p ela co rren te positivista q u e re m o n ta a B acon . A ú ltim a m an ifestação d e ste c o n ce ito d e F. no p e n sa m e n to c o n te m ­ p o râ n e o é a n o ç ã o de "ciência unificada", p ró ­

FILOSOFIA pria do n e o -e m p irism o , à q u al é d e d ic a d a a Enciclopédia internacional da ciência unificadaiâe 1938 em d ian te ). C o n tu d o , n esta obra o p ró prio co n ceito d e u nificação é d ú b io , s e n d o d efen d id o d e m an eira s d iv ersas p e lo s d ife re n ­ tes ad e p to s. N eu ra th e n te n d e -a co m o a c o m b i­ n aç ão d o s re su lta d o s d as v árias ciên cias e a axiom atização d eles n um sistem a ú nico ; D ew ey, co m o ex ig ên cia d e e s te n d e r a p o siç ão e a fu n ­ ção da ciên cia à v id a h u m a n a ; R ussell, co m o u n id a d e de m éto d o ; C arnap, co m o u n id a d e for­ m al ou lingüística; M orris, co m o d o u trin a geral d os sig n o s (Intern. Encycl. of Unifíed Science, I, 1, p p. 20, 33, 6 1 , 70). A p esar de tu d o , o c o n ­ ceito de filosofia co m o u n ificação e g e n e ra liz a ­ ção do sab er científico co n tin u a s e n d o p ro p o s ­ to n o m u n d o c o n te m p o râ n e o ; é d e fe n d id o , p. ex., p o r W h ite h e a d (Adventures of Ideas, 1933, IX, § 2). 3a A terceira c o n c e p ç ã o de F. co m o ju íz o do sab er p o d e ser c h a m a d a de crítica e co n siste em red u zir a F., so b esse p o n to de vista, a d o u ­ trina do c o n h e c im e n to ou a m e to d o lo g ia. S e­ g u n d o esta c o n c e p ç ã o , a filosofia n ão au m en ta a q u a n tid a d e do sab er, p o rta n to , n ão p o d e ser ch am ad a p ro p ria m e n te de "con h ecim en to ". Sua tarefa é v erificar a v a lid a d e do sab er, d e te rm i­ n a n d o seu s lim ites e co n d iç õ e s, su a s possibi­ lidades efetivas. O iniciador d esse co n ceito d e F. foi L ocke. T o d o o Ensaio n asceu — co m o ele ad v erte n a "E pístola ao Leitor", q u e o p re c e d e — d a n e c e ssid a d e de "ex am in ar a c a p a c id a d e d a m en te h u m a n a e v e r q u e o b jeto s estã o ao seu alca n c e e q u ais os q u e estã o acim a de su a co m p reen são ". M ais ex atam en te ainda, a F. te n d e a d esco b rir q u a is são as p o ssib ilid a d e s d a in te­ ligência, q ual a m a g n itu d e d essa s p o ssib ilid a­ des, a q u e tip o d e co isas elas se ajustam e o n d e n os falta seu so c o rro (Ensaio, Intr., § 4). O s lim ites d as c a p a c id a d e s h u m a n a s são re su m i­ d o s c la ra m e n te p o r L ocke n o te rc e iro c a p ítu ­ lo do IV livro do Ensaio. M as é no ú ltim o c a p í­ tu lo d a o bra, d e d ic a d o à d iv isão d as ciên cias, q ue esses lim ites ficam m ais claros. D istin g uem se três ciências principais: a F. n atu ral ou física, cuja tarefa é "o c o n h e c im e n to d as co isas co m o elas são em seu ser p ró p rio , su a co n stitu iç ão , su as p ro p rie d a d e s e o p e raç õ es"; a F. p rática ou ética, q u e é "a arte de b e m dirigir n o sso s p o d e ­ res e n o sso s atos p ara a c o n se c u ç ã o d as co isas b o a s e úteis"; e a d o u trin a d o s sinais, sem ió tica ou lógica, cuja tarefa é "co n sid erar a n atu re za d os sig n o s u tilizad o s p e lo esp írito p ara o e n ­ te n d im e n to d as co isas ou p ara tran sm itir a o u ­

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FILOSOFIA trem seu c o n h e c im e n to " (Ibid., IV, 21, §§ 2-4). N esta d iv isão d as ciên cias falta a F.: isto quer d izer q u e, p ara L ocke, a F. n ã o é u m a ciência no m esm o se n tid o da física, d a ética ou da ló g ica, ou seja, c o n h e c im e n to de o bjeto s, m as é ju íz o so b re a ciên cia, é crítica. Esse p o n to de v ista co n stitu i u m d o s filões p rin cip a is da filo­ sofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a . H u m e identi­ ficava a tarefa da F. ac ad êm ica ou cética, por ele p ro fessad a, co m a "lim itação de n o ssas in­ v e stig a ç õ e s às m atérias q u e m ais se ad a p ta m à lim itad a c a p a c id a d e da in telig ên cia hum ana" (Inq. Cone. Underst., X II, 3). E m K ant, a lim ita­ ção do co n h e cim en to é co n sid erad a fundam ento d a v a lid a d e do p ró p rio c o n h e c im e n to , seg u n ­ do c o n c e ito já u tiliz a d o p o r L ocke. C om efeito, p ara K ant, ta n to as co n d iç õ e s a priori do co­ n h e c im e n to (intuições p u ras, categorias) quanto su a s co n d iç õ e s aposteriori (d ad o em p írico ou in tu ição ) d ete rm in a m e lim itam as p ossibilid a­ d es co g n o scitiv as n o s e n tid o d e q u e n ã o só ex c lu e m certo s ca m p o s de in d ag aç ão , m as tam ­ b é m fu n d a m e n ta m a v a lid a d e ou a efetividade d as p ró p ria s p o ssib ilid ad es. K ant ex p ressav a o ca m p o da F. co m as seg u in te s p e rg u n tas: Ia o q u e p o sso saber?; 2a q u e d ev o fazer?; 3a o que p o sso esperar?; 4 a o q u e é o h o m em ? E acres­ cen ta: "A m etafísica re sp o n d e à p rim eira q ues­ tão; a m o ral, à seg u n d a ; a relig ião , à terceira; a an tro p o lo g ia , à q u arta. M as, n o fu n d o , poderse-ia re d u z ir tu d o à a n tro p o lo g ia , u m a v e z que as três p rim eiras q u e stõ e s re m e te m à últim a. C o n seq ü e n tem e n te , o filósofo d ev e p o d e r deter­ m inar: 1Q a fo n te do sab er h u m a n o ; 2- o cam po d e ap lica çã o p o ssív el e útil do sab er; 3e os limi­ tes da razão" (Logik, Intr., III). A o b jeção de H eg el a esse p o n to de v ista — "q u erer co n h e­ cer an te s d e c o n h e c e r é tão a b su rd o q u an to o p ru d e n te p ro p ó sito de certo alu n o , q u e queria ap re n d e r a n ad ar an tes de en trar na água" (Ene, § 10) — é p ura boutade, u m a v ez q u e a F. com o crítica s u p õ e q u e já se saib a n ad ar, q u e já exis­ ta u m s a b e r co n stitu íd o (o da c iê n c ia ), a partir do q u al se p o d e m in v estig ar as p ossibilid ad es de c o n h e ce r e d eterm in ar seu s lim ites. N a doutri­ n a k an tia n a , o n eo critic ism o co n tem p o rân e o m o dificou o tó p ic o re fe ren te à relig ião e, m an­ te n d o in alte rad o o c o n ce ito d e F. co m o crítica do sab er, re c o n h e c e u três d iscip linas filosóficas, q u ais sejam , ló g ica, ética e estética; en tend eu, p o r lógica, n a m aioria d as v e z e s, a teoria do co n h e c im e n to . Essa d o u trin a foi d efen d id a pela c h a m a d a esco la de M a rb u rg o (C ohen, N atorp,

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C assirer) e ta m b é m p e lo criticism o fran cês (R enouvier, B ru n sch v icg ). A p o siç ão d e d e sta ­ q ue d e q u e a g n o sio lo g ia ou te o ria do c o n h e ­ cim en to te m g o z a d o na filosofia c o n te m p o râ ­ nea (e n ão só e n tre as co rren te s n eo criticistas) é c o n se q ü ê n c ia do c o n ce ito d e filosofia co m o crítica do c o n h e c im e n to . A g n o sio lo g ia ou teo­ ria do conhecimento (v.), to d av ia, é c a ra c te ri­ zada p o r p re s su p o s to s e p ro b le m a s p a rtic u la ­ res; p o rta n to , o c o n ce ito de F. co m o crítica do saber n ão im p lica a id en tificação d a F. co m a d outrina do c o n h e c im e n to ou g n o sio lo g ia. D e fato, m esm o d e p o is da crise e do a b a n d o n o da g no siolog ia o ito cen tista, esse c o n ce ito c o n ti­ nua na form a da an á lise d o s p ro c e d im e n to s efetivos do c o n h e c im e n to científico e d e d e te r­ m inação d e se u s lim ites e de su a v a lid a d e . Esta análise é tem a ca ra cte rístico da metodologia (v.). P o rtan to , a m eto d o lo g ia p o d e ser c o n sid e ­ rada a ú ltim a e n c a rn a ç ã o da F. co m o crítica do saber. C o m o p a rte d a m e to d o lo g ia, ou co m o restrição de seu o bjetivo , p o d e -se e n te n d e r a definição de F. co m o "análise da lin g u ag em ", p ro po sta p ela p rim eira v e z p o r W ittg en stein , em Tractatuslogíco-philosophicus(1922). A tri­ b uind o "a to ta lid a d e d as p ro p o siç õ e s v e rd a ­ deiras" à ciên cia n atu ral, W ittg en stein n eg a q u e a F. seja u m a ciên cia n atu ral: esta p alav ra, diz ele, "deve significar alg u m a co isa q u e está aci­ m a ou ab aix o das ciên cias da n atu re za , n ão ao lado delas" {Tractatus, § 4 ,1 1 1 ). T o rn a-se en tã o tarefa da F. o a c la ra m e n to ló g ico da lin g u a­ gem . "A F. n ão é u m a d o u trin a , m as u m a ativi­ dade. U m a o b ra filosófica c o n siste e sse n c ia l­ m ente em elu c id aç õ e s. O s frutos da F. n ão são p ro p o siç õ e s filo só ficas, m as o a c la ra m e n to das p ro p o siçõ es. A F. d ev e aclarar e d elim itar com precisão as id éias q u e , de o u tro m o d o , s e ­ riam turvas e confusas" (Jbid., 4, 112). II. A filosofia e o uso do saber— O se g u n d o ponto d e vista so b o q u al se p o d e m b u sc a r constantes n o s sign ificad os h isto ric am en te atri­ buídos à F., p ara em seg u id a realizar d iv isõ es ou articulações de tais sign ificad os, é o q u e fi­ cou ex p resso n a 2- p a rte da d efin ição u sa d a com o p on to de p artid a d este artigo, qual seja, a F. com o w so d o sa b e r p e lo ser h u m a n o . A o lo n ­ go da história têm sido d a d a s d u a s in te rp re ta ­ ções fu n dam en tais d esse c o n ce ito de F. d) a F. é contemplativa e co n stitu i u m a form a de vida que é fim em si m esm a; b~) a F. é ativa e co n sti­ tui o in stru m en to de m o d ificação ou de c o rre ­ ção do m u n d o n atu ral ou h u m a n o . S e g u n d o a prim eira in te rp retaç ão , a F. ex a u re -se no in d iv í­

FILOSOFIA d u o q u e filosofa; p ara a seg u n d a in te rp retaç ão , a F. tra n sc e n d e o in d iv íd u o e c o n ce rn e às rela­ çõ e s co m a n atu re za e co m os h o m e n s, p o rta n ­ to à v id a h u m a n a social. Para u sar u m te rm o de clara sign ificação h istórica, p o d e-se ch am ar de "ilum inista" esta s e g u n d a in te rp retaç ão da fi­ losofia. a) O co n ceito de F. co m o co n tem p lação é tí­ p ico , em p rim e iro lugar, d as F. de tip o oriental, q u e e sta b e le c e m co m o o bjetivo da F. a salv a­ ção do h o m em . C om efeito, a salv ação é a li­ b e rta ç ã o d e q u a lq u e r re la ção co m o m u n d o , p o rta n to a re a liz a ç ã o de u m esta d o em q ue q u a lq u e r ativ id ad e é im p o ssív el ou sem sen ti­ d o . N o O cid e n te , o c o n ce ito d e F. co m o c o n ­ te m p la ç ã o h ão to i a p rim e ir a form a assu m id a p elo trab alh o filosófico (que foi, ao con trário , o da "sab ed o ria", da F. ativa e m ilitan te), m as foi a p rim eira ca ra cte riza ção ex p lícita d esse trab a­ lh o . Seu fu n d a m e n to é a n atu re za "d esin teres­ sad a" da in v estig aç ão filosófica. Q u a n d o em H e ró d o to (I, 30) o rei C reso d iz a S ólon: "O uvi falar das v iag en s q ue, filosofando, tens em p re en ­ d id o a fim de v er m u ito s países", o bv iam en te está a lu d in d o ao caráter d e sin te re ssa d o d essas v iag en s, q u e n ão foram re aliza d a s co m objeti­ v o s lu crativo s ou p olítico s, m as v isa n d o ap e n a s ao c o n h e c im e n to . O p ró p rio P latão co n tra p õ e o esp írito científico d o s g re g o s ao am o r e ao lu cro , típ ico d o s e g íp cio s e d o s fenícios (Rep., IV, 435 e). E q u e a b u sca do s a b e r n ão p o d e ser su b o rd in a d a ou su b m etid a a finalidades alheias a ela é fato q u e resu lta da p ró p ria n o ç ão dessa b u sca , a m an eira co m o ela se foi co n fig u ran d o na G récia an tiga (cf. I, B). M as já na n arração a trib u íd a a P itág o ras, q u e p ro v é m de u m tex to d e H eráclid es P ô n tico (DIÓG. L., P ro em iu m , 12) co m q u e se p re te n d e ju stificar o n o m e d e F., há algo m ais q u e a sim p les exig ên cia de d esin te­ re sse na in v estig aç ão . S eg u n d o essa trad ição , tran sm itid a p o r C ícero em Tusculanae (V, 9), P itág oras co m p arav a a v id a co m as g ran d es fes­ tas de O lím p ia, a o n d e alg u n s se d irig em a n e ­ g ó c io , o u tro s p ara p articip ar d as co m p e tiç õ e s, o u tro s p ara d iv ertir-se e, fin alm en te, alg u n s s o ­ m e n te p ara vero q u e ac o n te ce : estes ú ltim o s são os filósofos. A qui se ev id en cia a d istin çã o en tre o filósofo, in te re ssad o a p e n a s em v er, e o co m u m d os h o m e n s, d e d ic a d o a su a s o c u p a ­ çõ es. P o rta n to , a su p e rio rid a d e da c o n te m p la ­ ção so b re a ação está im p lícita n essa n arraç ão , q u e, p ro v av elm en te, tinh a o objetivo d e e n o b re ­ cer, p ela alu são a P itág o ras, o c o n c e ito d e F.

FILOSOFIA q u e se ia fo rm a n d o na esco la de A ristó teles. O caráter co n tem p lativ o d a F. (que n ad a tem a v er com o ca rá ter d e sin te re ssa d o d a in v estig aç ão em g eral), co m o u m a d as p o ssív eis re sp o sta s ao p ro b lem a do u so do sab er p elo ser h u m a n o , foi afirm ado e ju stifica d o p ela p rim eira v e z p o r A ristóteles. E sse caráter fu n d a-se na n atu re za necessária do o bjeto d a F., aq u ilo q u e "não p o d e ser s e n ã o o q u e é" (Et. níc, V i, 3, 1139 b 19)- S ob este p o n to de v ista, a j \ _é_j>at>_er e n ão sab ed o ria, já q u e a sa b e d o ria c o n siste em b em d elib erar, p o ré m n ad a há q u e d elib e ra r a re s ­ p eito d e co isas q u e n ão p o d e m ser de outra m an eira (Jbid, V I, 5, 1140 a 30). C om b ase n isso , A ristó teles e s ta b e le c e u m a o p o siç ã o e n ­ tre sa b e d o ria e sapiência (v.). H o m e n s co m o A n ax ág o ras e T ales são sa p ie n te s, m as n ão sá­ b ios: n ão in d ag am acerca do b em h u m a n o , n ão c o n h e c e m o q u e é útil a eles m e sm o s, m as ap en as coisas ex c ep cio n ais, m aravilhosas, raras e div in as. "N inguém ", d iz A ristó teles, "delibera so b re aq u ilo q u e n ão p o d e ser d e o u tra m a n e i­ ra ou so b re co isas q u e n ão têm u m fim ou cujo fim n ão é um b em realizável" (Ibid., V i, 7, 1041 b 10). M as, d esse p o n to de vista, q ual é o u so p ossível do sab er? S o m e n te um : a realiza çã o de um a vida contem plativa, d ed icad a ao co n h eci­ m en to do n ecessário . P o rtan to , p ara A ristóteles, a ativ id ad e co n tem p la tiv a é a m ais alta e b eatífica d as ativ id ad es: faz do h o m e m algo s u p e ­ rior ao p ró p rio h o m e m p o rq u e se co n fo rm a ao q u e de d iv in o ex iste n ele (Ibid., X , 7, 1177 b 26). A ssim , a d o u trin a de A ristó teles fixou os seg u in te s p o n to s no q u e se refere ao u so do sab er p elo ser h u m a n o : l s a F., te n d o co m o objeto o n ecessário , n ão p ro picia ao h o m em nad a a fazer; p o rta n to , é c o n te m p la ç ã o ; 2- a co n tem p la çã o é u m a form a d e v id a in d iv idu al privilegiada, p ois é a b em -a v e n tu ran ça . A sjiu as teses são típ icas d esta c o n c e p ç ã o da F,T q u e a p a rec e co m freq ü ê n c ia na h istória do p e n sa ­ m en to o cid en ta l e d o m in a em to d a a F. g reg a p ós-aristo télica, q u e cultiva o ideal do "sapiente", ou seja, d a q u e le em q u e m se realiza a v id a co n tem p lativ a. E picu ristas, estó ico s, cé p tic o s e n e o p la tô n ic o s c o n c o rd a m em ju lg a r q u e só o sa p ie n te p o d e ser feliz, p o rq u e só ele, co m o co n te m p la d o r p u ro , é au to -su ficien te. A finali­ d ad e q u e esses filósofos atrib u em à F. é in d iv i­ d ual e p esso al: a realiza çã o de u m a form a de v id a q u e fecha o sa p ie n te em si m esm o e na su a c o n te m p la ç ã o so litá ria . T a m b é m d e sse p o n to de vista o b v ia m en te a F. é u m esforço de tran sfo rm ação ou de retificação da v id a h u ­

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FILOSOFIA m an a; p o rta n to , n ão se d ev e to m ar ao pé da le­ tra a afirm ação d e A ristó teles de q u e ela n ão dá o q u e fazer. Essa afirm ação significa ap e n a s q u e ela n ão m odifica a estru tu ra do m u n d o , do c o n h e c im e n to c o n c e rn e n te ao m u n d o e das fo rm as de v id a social, m as p o d e m odificar a v id a do in d iv íd u o , to rn a n d o -o s a p ie n te e bem av e n tu ra d o . A p artir d essas características, é fácil co n h e­ cer a atitu d e co n tem p la tiv a em filosofia. Q uan ­ do S p in o za diz: "O h o m e m fo rte co n sidera p rin c ip a lm e n te q u e to d a s as co isas p ro ced em da n e c e ssid a d e d a n atu re za div in a e q u e, p or­ ta n to , tu d o o q u e ele ju lg a m o lesto e ruim e tu d o aq u ilo q u e a p a re n ta ser ím p io , horrível, injusto e to rp e n asce do fato de ele co n ceber as co isas d e m an eira o b scu ra , p arcial e confusa" (Et., X IV , 73, scol.), está ex p ressa n d o o conceito c o n tem p la tiv o da F. em sua form a clássica. E q u a n d o H eg el afirm a q u e a F., assim com o a coruja de M inerva q u e co m eç a a v o a r ao cair da noite, sem p re ch eg a q u a n d o tu d o já está fei­ to , p o rta n to d e m a sia d o ta rd e p ara dizer com o deve ser o m u n d o , está e x p re s sa n d o o m esm o c o n ce ito (Fil. do dir., Pref.). C om efeito, para H eg el, assim co m o p ara A ristó teles e Spinoza, o objetivo da F. é o necessário ; sua tarefa é pre­ cisam en te m ostrar a n ecessid ad e do q u e existe, ou seja, a ra c io n a lid a d e do real (Ene, § 12). S ob esse p o n to de vista, a F. é a justificação ra­ cio n al da re a lid a d e , e n te n d e n d o -se p o r realida­ de n ão só a da n atu re za , m as ta m b é m a das in stitu iç õ e s h istó rico -so ciais, a do m u n d o hu­ m an o . S ob esse prism a, n ão era m uito diferente o c o n c e ito q u e S c h o p e n h a u e r tin h a de F.: "E sp elh ar em c o n c e ito s, d e m o d o abstrato, u n iv e rsa l e lím p id o to d a a essên cia do m undo e assim , q u al im ag em reflexa, d ep ositá-la nos c o n ce ito s da ra z ã o , p e rm a n e n te s e sem p re as­ sen tad o s: isso é F., n ão outra coisa" (Die Weil, I, § 6 8 ). N a F. c o n te m p o râ n e a , o co n ceito de F. como c o n te m p la ç ã o p e rm a n e c e na feno m en o lo gia e no espiritualism o. A fen o m en o lo g ia é o esforço de realizar, p o r m eio da "ep o ch é", o p o n to de vista do "esp ectado r d esin teressad o ", do sujeito q u e n ão esteja su b m etid o às m esm as condições lim itativ as q u e to m a em c o n sid e raç ão . Husserl diz: "O eu da m ed itaç ão fe n o m en o ló g ica pode to rn ar-se o e s p e c ta d o r im p arcial de si m esm o, n ão só n o s caso s p artic u la re s, m as em geral; esse 'si m e sm o ' c o m p re e n d e q u a lq u e r objetivi­ d ad e q u e exista p ara ele, tal q ual existe para ele" (Cart. Med, § 15). E na ú ltim a o bra Husserl

FILOSOFIA v ê a filosofia co m o "m o v im en to h istó rico da rev elação da razão u niversal, inata co m o tal na h u m a n id a d e " (Krisis, § 6), a trib u in d o -lh e a tarefa de le v a r a ra z ã o "à a u to c o m p re e n s ã o , a u m a razão q u e se c o m p re e n d a c o n c re ta m e n te a si m esm a, q u e c o m p re e n d a q u e é u m m u n d o , u m m u n d o q u e é, em su a p ró p ria v e r­ d ad e, u n iv ersal" (Ibid., § 73). P o r o u tro lad o B ergson , ao d istin g u ir a F. co m o in tu iç ão ou c o n sc iê n c ia da duração te m p o ra l (do d ev ir da co n sc iên c ia) da ciên cia co m o c o n h e c im e n ­ to d o s fatos, v ê a ciência co m o "auxiliar da ação" e a F. co m o ativ id ad e co n tem p la tiv a . "A n o rm a da ciência", d iz ele, "é a q u e foi p ro p o sta p o r B acon: o b e d e c e r p ara co m an d ar. O filósofo n ã o o b e d e ce n em co m an d a: p ro cu ra sim patizar" (La pensêe et le mouvant, 3 ed ., 1934, p. 158). A idolatria do "sapiente", co m o co n d ição h u m a n a p rivilegiada ou p erfeita, e da F., co m o fo rm a fi­ nal e co n clu siv a do ser, são d ois traço s c a ra c te ­ rísticos p ara se c o n h e c e r a c o n c e p ç ã o da F. com o c o n te m p la ç ã o . A esta c o n c e p ç ã o p e rte n ­ cem as fo rm as do cep ticism o an tigo e m o d e rn o . Q u a n d o S exto E m pírico ap o n ta co m o finalidade da F. c é p tic a a im p e rtu rb a b ilid a d e q u e ela p erm ite re aliza r (Pirr. hyp, I, 25), ou q u a n d o H um e re d u z o m o tiv o d e seu filosofar — q u e ele ju lg a in c a p a z d e ag ir s o b re as cre n ç a s m ais arraigadas n o h o m e m — ao p razer q u e dele extrai (Treatise, I, 4, 7; Inq. Cone. Underst., X II, 3), am b o s estã o atrib u in d o à F. u m a fu n ção co n tem p lativa q u e se ex a u re n o âm b ito d a v id a individual. E n e sse m esm o âm b ito ex a u re -se a função d a F. co m o "terapia" da F., isto é, co m o libertação d as d ú v id as filosóficas, de q u e falam W ittgenstein (PhilosophicalInvestigations,§133) e alguns filósofos in g leses, se u s s e g u id o re s (cf. Revolution inPhii, 1956, p p . 106, 112 ss.). D e fato, n ão p are ce q u e esses filósofos a trib u am à terapia filosófica o u tra fu n ção a n ã o ser a de libertar o in d iv íd u o de su a s d ú v id as filosóficas perm itin d o q u e ele se "sinta m elh o r", do m e s­ m o m o d o q u e H u m e se sen tia m e lh o r co m suas d ú v id as cép ticas.

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FILOSOFIA

b aseá-la n a ju stiça. P ara ela, a ed u ca çã o do filó­ sofo n ão cu lm in a na v isã o do b em , m as no "re­ to rn o à cav ern a": p o rq u a n to o filósofo d ev e co­ locar à disposição da co m u nidade os resultados de su a esp ecu la çã o e utilizá-los p ara a direção e a o rie n ta ç ã o da m esm a. "C ada u m de v ós", diz P latão , "deve d e sc e r p ara a h a b ita ç ã o co m u m e a c o stu m a r-se a c o n te m p la r os o b jeto s n as tre ­ vas: p o rq u e , a c o stu m a n d o -se a elas, v erá bem m e lh o r q u e a q u e le s q u e s e m p re estiv eram lá e re c o n h e c e rá os ca ra cte re s e o o b jeto d e cada im agem , p o rq u e viu os v erd ad e iro s ex em p lares da b eleza, da ju stiça e do bem . A ssim , n ó s e vós c o n stitu ire m o s e g o v e rn a re m o s a cid a d e d e s ­ p e rto s, e n ã o s o n h a n d o , co m o a c o n te c e ag o ra n a m aio r p arte d as c id a d e s p o r cu lp a d aq u e le s q u e g u e rre ia m p o r cau sa de so m b ra s e d isp u ­ tam o p o d e r co m o se fosse u m b em " (Rep., VII, 520 c). A F. p latôn ica é to ta lm en te d o m in ad a por esse c o m p ro m isso ed u c a tiv o e p olítico : para P latão , a tarefa d a F. n ão é d ar a certo n ú m e ro d e h o m e n s a b e m -a v e n tu ra n ç a d a c o n te m p la ­ ção, m as d ar a to d o s a p o ssib ilid ad e de viver se ­ g u n d o a ju stiç a (Ibid., 519 e). Esta co n c e p ç ã o ativa da F. p e rm a n e c e u in o p e ra n te p o r m uito te m p o . F oi só no R en ascim en to q u e os h u ­ m an ista s a re to m a ra m , e n te n d e n d o F. co m o sab ed o ria. E m De nobilitate legu m et medicinae, C o lu ccio S alutati (1331-1406) dizia: "M uito m e ad m ira afirm ares q u e a sa b e d o ria co n siste n a c o n te m p la ç ã o , cuja serv a seria a p ru d ê n c ia , h a­ v e n d o e n tre elas a m esm a re la ção q u e h á e n ­ tre o ad m in istra d o r e o s e n h o r, e d ize re s q u e a sap iê n c ia é a m aio r d as v irtu d e s, p e rte n c e n te à m e lh o r p a rte da alm a, q u e é do in telecto , e q ue a felicid ad e c o n siste em agir co n fo rm e a sa­ p iência. E acrescen tas q u e, se n d o a m etafísica a ú n ica ciên cia livre, o filósofo q u e r q u e a e sp e c u ­ lação p rec ed a em tu d o a ação ... M as a v e rd a d e i­ ra sap iê n c ia n ão co n siste, co m o crês, n a e s p e ­ cu la çã o p ura. S e tirares a p ru d ên cia, n ã o acharás n e m s a p ie n te n e m s a p iê n c ia ... C h a m a ria s p o rv e n tu ra d e s a p ie n te a q u e m h o u v e sse c o ­ n h e c id o co isas ce le stes e d iv in as, sem q u e h o u ­ o a si m esm o, sem q u e h o u v e sse si­ b) O c o n ce ito de F. co m o ativ id ad e diretiva vdoesseútilp roaovsidam ig o s, à fam ília, ao s p a re n te s e à ou transform adora já está p resen te n a len d a dos pátria?" N o m esm o espírito, L eo nard o B runi, em Sete Sábios, q ue foi citada p ela p rim eira v ez p o r Isagogicon moralis disciplinae (1424), afirm ava Platão (Prot., 343 a ). O s S ete S ábios foram m o ra­ a su p e rio rid a d e da F. m o ral so b re a F. teó rica. listas e p o lítico s, e se u s d ita d o s referem -se à P o ste rio rm e n te , a co n so lid a ção d esta c o n ­ conduta de v id a e às re la ç õ e s co m os h o m e n s c e p ç ã o ativa da F. caracteriza o início da Id a d e (v. SÁBIOS). M as o p rim e iro g ra n d e e x e m p lo de M o d ern a. O s h u m a n ista s ac re d itav a m q u e só a F. ex p licitam en te c o n c e b id a co m a fin alid ad e F. m oral era ativa; p ara B acon ta m b é m é ativa a d e transform ar o m u n d o h u m a n o é a de P latão , F. q u e tem p o r o b jeto a n a tu re z a , p o rq u e se destinada a m odificar a form a da v id a social e a

FILOSOFIA d estin a a d o m in a r a n atu re za . E B aco n n ã o h e ­ sitou em ch a m a r de "pastoral" a F. de T elésio , q u e m u ito ap re ciav a e em p a rte seg u ia, p o r p a ­ re ce r-lh e q u e ela "co n tem p lav a o m u n d o p lac i­ d a m e n te e q u a se p o r ócio" (Works, III, p. 118). H o b b e s insistia na m esm a fu n ção da F. (De corp, I, § 6). D esca rte s, p o r su a v ez , ju lg av a-a ap ta a o b te r sa b e d o ria e ciên cia de tu d o aq u ilo q u e é útil e v an tajo so p ara o h o m e m (Princ. phil, Pref.) A m esm a fin alid ad e d iretiv a e co r­ retiv a foi atrib u íd a à F. p o r L ocke e p e lo s ilum inistas. C om L ocke, a F. to rn a -se crítica do c o n h e c im e n to e esfo rço d e lib e rta çã o do h o ­ m em d e ig n o rân cia s e p re c o n c e ito s. A m esm a c o n c e p ç ã o se m an té m no Ilu m in ism o do séc. X V III, q u e v ê a F. co m o esfo rço da ra zã o para asse n h o re a r-se do m u n d o h u m a n o , lib ertá-lo d o s erro s e fazê-lo p ro g red ir. D 'A lem b ert d e s ­ crevia assim a ação q u e a F. ex ercia em seu te m p o : "D os p rin c íp io s das ciên cias p ro fan as ao s fu n d a m en to s d a re v e la ç ã o , da m etafísica às q u e stõ e s de g o sto , da m ú sica à m o ral, das d isp u tas esco lásticas d o s te ó lo g o s, ao s o bjeto s de co m ércio do d ireito d os p rín c ip e s ao d ireito d o s p o v o s, da lei n atu ral às leis arbitrárias das n aç õ e s, n u m a p alavra, d as q u e stõ e s q u e m ais n o s p re o c u p a m às q u e m e n o s n os in teressam , tu d o foi d isc u tid o e an a lisa d o , ou p e lo m en o s co g itad o . N ov a lu z so b re alg u n s o b jeto s, n ova o b sc u rid a d e s o b re o u tro s fo ram os frutos ou o re su ltad o d essa eferv escên cia g eral d o s e sp íri­ to s, assim co m o o efeito do flux o e do refluxo do o c e a n o é levar p ara a m arg em alg u n s o b je­ tos e dela afastar outros" (CEuvres, ed. C ondorcet, p. 218). O co n ceito ilum inista de F. era co m p arti­ lh a d o p o r K ant, p ara q u e m a F., d e te rm in a n d o as p o ssib ilid a d e s efetivas do h o m e m em to d o s o s ca m p o s, d ev e ilu m in ar e dirigir o g ê n e ro h u m a n o em seu o b rig ató rio p ro g re sso ru m o à felicid ad e u n iv ersal (Recensão de "Idéias sobre aF. da história'de H erd er, 1784-85; cf. Crít. R. Pura, D o u trin a tra n sc e n d e n ta l do m é to d o , ca­ p ítu lo III ao final). A o insistir no ca rá ter n ec essário , p o rq u e ra ­ cion al, do ser, o R o m an tism o co n stitu iu , em seu co n ju nto, u m re to rn o à c o n c e p ç ã o c o n te m ­ plativa da F. O p ró p rio p ositivism o , q u e p re te n ­ dia e x p lic ita m en te re m e te r-se à d o u trin a de B acon, do sab er co m o p o ssib ilid a d e d e d o m í­ nio da n atu reza, n em sem p re se m an tém fiel ao re c o n h e c im e n to do ca rá ter ativo da F. S e p ara o positivismo (v.) d e cu n h o social (St.-Sim on, P ro u d h o n , C om te, S tuart M ill) a F. é p rin c ip a l­ m en te u m m eio d e tran sform ação d a so c ied ad e

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FILOSOFIA h u m a n a , p ara o p o sitiv ism o ev o lu cio n ista a F. te m m ais ca rá ter c o n te m p la tiv o do q u e ativo. A d efesa do m istério , q u e S p e n c er co lo ca e n ­ tre as tarefas da F., ou seja, o re c o n h e c im e n to da in so lu b ilid a d e d o s ch a m a d o s p ro b lem as ú lti­ m o s, p õ e a F. no m esm o p la n o co n te m p la ti­ v o da religião. A d iscu ssão sob re a solu b ilidade ou in so lu b ilid a d e d o s ch a m a d o s "enigm as do m u n d o " in cid e in te ira m e n te no p la n o d a F. co n tem p la tiv a . O p o sitiv ism o de A rd ig ò, o m on ism o m aterialista (H aeckel) e o ev o lu cio n ism o esp iritu alista (W undt, M o rg an , etc.) são igual­ m e n te co n te m p la tiv o s. N a re a lid a d e , o clim a ro m â n tic o está p re s e n te ta n to no p ositivism o q u a n to no id ea lism o e o rie n ta ta n to àq u ele co m o a este p ara o c o n c e ito de F. co m o co n ­ te m p la ç ã o d e u m a re a lid a d e n ec essária . C on ­ tra tal c o n c e ito in su rg e-se o "novo m aterialism o" d e M arx, q u e, ao m esm o te m p o , o p õ e-se ao m aterialism o te ó ric o de F eu erb a ch . "Os filó­ sofos", dizia ele, "até ag o ra só fizeram interpretaro m u n d o de d iv ersas m an eiras: trata-se ag o ­ ra de transformá-lo" (Tese sobre Feuerbach, 11). M as p o r m ais q u e M arx insista no esforço d e tran sfo rm açã o q u e d ev e caracterizar a F. co m o tal, o p ró p rio fu n d a m e n to da F. com o c o n te m p la ç ã o p e rm a n e c e firm e em sua d o u tri­ na. E sse fu n d a m e n to é, co m efeito, a necessi­ dade do real; p ara M arx, a tran sfo rm açã o da so c ie d a d e , ou seja, a p assa g e m da so c ied ad e cap italista p ara a so c ie d a d e sem classes, acon­ tecerá "com a m esm a fatalidade q u e caracteriza os fe n ô m e n o s da n atu reza" (Capit, I, 24, § 7). D esse p o n to de v ista, a tarefa da F. ap resentase co m o a de u m a pro fética C assan d ra, n ão de p ro m o v e r e o rie n ta r a tran sfo rm açã o . N esse asp e c to , é o n eo critic ism o q u e p o r v ez es es­ cap a ao clim a ro m ân tico . E m Uchronie, R enouv ie r p ro p ô s-se elim in a r "a ilu são da n eces­ s id a d e p re lim in a r, s e g u n d o a q u a l o fato co n su m ad o seria o ú nico , en tre to d o s os outros im ag in áv eis, q u e p o d e ria re a lm e n te acontecer" (Uchronie, 2- ed., 1901, p. 411). S e g u n d o ele, a "F. analítica da história" tem a tarefa de deter­ m in ar as c o n c a te n a ç õ e s g erais d o s fatos históri­ co s p ara dirigir o d e se n v o lv im e n to da história (Intr. à Ia phil. analytique de Vhistoire, 1864, p p . 551-52). P o r o u tro la d o , a d ete rm in a ção de "visão do m u n d o ", im p o sta à F. na segunda m e ta d e do séc. X IX p o r p e n sa d o re s d e proce­ d ên cia n eo criticista ou positivista, tem claro sig­ nificado co n tem p la tiv o . Foi co n tra a interpreta­ ção c o n tem p la tiv a da F. q u e o pragm atism o, d e sd e a o rig em , asse sto u su a s arm as, com o se

FILOSOFIA p o d e v e r no en saio Como tornar claras nossas idéias (1878) de C. S. P eirce. N esse e n sa io , P eirce afirm ava q u e to d a a fu n ção do p e n sa ­ m en to é p ro d u z ir h áb ito s de ação (ou cren ças) e q u e , p o rta n to , o sig n ificad o de u m c o n c e ito co n siste ex c lu siv am e n te n as p o ssib ilid a d e s de ação q u e ele define. M as essa s afirm açõ es de P eirce são im p o rta n te s ta m b é m de o u tro p o n ­ to de vista. P eirce n eg av a ex p lic ita m en te o p re s­ su p o sto da F. co m o co n tem p la çã o , v ale dizer, o caráter necessário do real. M ostrava q u e a re g u ­ larid ad e e a o rd em d o s ac o n te c im e n to s, b em co m o su a s in te r-re la ç õ e s c o n d ic io n a is, n ad a têm a v e r co m a n e c e ssid a d e , o q u e im p licaria a p o ssib ilid ad e d e p rev isão infalível {Chance, Love and Logic, II, cap . 2). A d efinição d ad a por D ew e y de F. co m o "crítica d os v alo res" (Experience andNature, p. 407) e x p ressa , p re ­ cisa m en te s o b re p re s s u p o s to s e s ta b e le c id o s por P eirce, a fu n ção d iretiv a da filosofia. S e­ g u n d o D ew ey , a tarefa d a F. é a an tiga, q u e está inscrita no p ró p rio sign ificad o etim o ló g ico da palavra: p rocura da sabedoria, em q ue sa b e d o ­ ria difere de c o n h e cim en to p o r ser "a aplicação d aq uilo q u e é c o n h e c id o p ela c o n d u ta in teli­ g en te das aç õ es da v id a h u m a n a " (Problems of Man, 1946, p. 7). N ão tem significado diferente a definição d ad a p o r M orris: "U m a F. é u m a o r­ g an ização sistem ática q u e c o m p re e n d e as c re n ­ ças fu n d a m en tais: cren ça s s o b re a n atu re za do m u nd o e do h o m e m , so b re o q u e é b em , s o ­ bre os m éto d o s a seg u ir no co n h ecim en to , sob re o m o d o co m o a v id a d ev e ser vivida" (Signs, Language andBehavior, 1946, V III, § 6; trad. it., p. 314). Para M orris, assim co m o p ara to d o o p rag m atism o , cren ça n ã o p assa d e n o rm a de co m p o rtam en to : a F., co m o o rg an iza çã o das crenças fu n d a m en tais, co n stitu i p o r isso aq u ilo que Sartre ch a m o u de "projeto fu n d a m e n ta l de vida". N a p ró p ria o b ra de S artre p o d e -se p e rc e ­ ber a p assa g e m da c o n c e p ç ã o co n tem p la tiv a de F., e x p ressa em Vêtre et le néant (1943), para a c o n c e p ç ã o ativa ou ilum inista, ex p ressa em Critique de Ia raison dialectique(J960). N a prim eira o bra, S artre p ro jetav a u m a in v estig a­ ção ch a m a d a "p sicanálise ex isten cial", cuja fi­ nalidade era "evidenciar, de m an eira rig o ro sa ­ m ente objetiva, a esco lh a sub jetiv a g raças à qual cada p e sso a se faz p esso a, ou seja, se faz anunciar a si m esm a aq u ilo q u e é" (Z 'être et le néant, p. 662). O re su lta d o de u m a in v estig a­ ção d esse g ê n e ro d ev eria ter sid o , se g u n d o Sartre, a classificação e a c o m p a ra ç ã o d o s v á ­ rios tipo s p ossív eis d e co n d u ta , p o rta n to o es­

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FILOSOFIA c larecim en to d efinitiv o da re a lid a d e h u m an a c o m o tal Qbid., p. 663). É ev id en te o caráter c o n te m p la tiv o de s e m e lh a n te d isciplina. M as em su a s e g u n d a o b ra S artre e n te n d e p o r F. a "totalização do sab er, m é to d o , idéia re g u la d o ­ ra, arm a o fen siva e c o m u n id a d e de lin g u a­ g em ", e ao m esm o te m p o co m o in stru m en to q u e age s o b re as so c ie d a d e s d e c a d e n te s para tran sfo rm á-las, p o d e n d o co n stitu ir a cultura e até m esm o a n atu re za de u m a classe inteira (Critique de Ia raison dialectique, p. 17). N o p rim e iro caso , a F. n ão dav a o q u e fazer ao h o ­ m em , p o r q u e o h o m e m n a d a p o d ia fazer: S artre definia o h o m e m co m o "paixão inútil" co m o p aix ão im p o ssív el de ser D eu s (Z être et le néant, p. 708). N o s e g u n d o caso , a F. in serese no m u n d o co m o força h u m a n a finita m as eficaz, e te n d e a tran sfo rm á-lo . S ub traíd a ao d estin o de fracasso e d e su c esso , a n o ç ã o de p ro jeto p resta -se a e x p re ssa r o ca rá ter diretiv o e o p e ra n te atrib u íd o à F. p ela s c o rre n te s n eo ilum inistas c o n te m p o râ n e a s. C om efeito, um p ro jeto p arte d os c o n h e c im e n to s d isp o n ív e is e d ete rm in a seu u so p o ssív el, a fim de g aran tir a existência e a co existência d os h o m en s. U m a F. q u e p ro jete n e ste s e n tid o (aliás, já esclarecid o p o r P latão) o u so h u m a n o do sa b e r o b v ia m e n ­ te é a d e te rm in a ç ã o de té cn ic as d e v id a q u e p o d e m ser p o sta s à p ro v a, co rrig id as ou re ­ je ita d a s . III. A filosofia e seus procedimentos — O te rc eiro p o n to de v ista p ara identificar co n stan ­ tes de sign ificad o q u e p erm itam re c o n h e c e r articu laçõ es fu n d a m en tais nas in te rp retaç õ e s do c o n ce ito de F., ao lo n g o d a h istória, é o q u e se refere ao procedimento ou método atrib u íd o à F. D esse p o n to ele v ista, as F. p o d e m ser div i­ d id as em a) F. sintéticas ou criativas, q u e p ro ­ d u z em co n c e p tu a lm e n te seu objeto, sem im por lim ites ou c o n d iç õ e s a esse tra b a lh o de c o n s­ tru ç ão ; e b) F. analíticas, q u e re c o n h e c e m a ex istên cia de dados, q u e elas d escre v e m ou analisam . A característica d as F. analíticas é a li­ mitação a q u e elas se ju lg a m su b m e tid a s p o r p a rte do d a d o , seja q u al for a m an eira co m o o c o n c e b e m . A característica d as F. sintéticas, ao co n trá rio , co n siste em n ão re c o n h e c e r essa li­ m itaç ão e em p re te n d e r q u e seu m é to d o seja in te ira m en te co n stru tiv o , c a p az de ex au rir to d o o o b jeto d a filosofia. d) O p ro c e d im e n to sin tético n ão p o d e lan ­ çar m ão da v erificação de situ aç õ e s, fatos ou e le m e n to s q u e sejam in d e p e n d e n te s dele; sua característica, p o rta n to , é v aler co m o verifica­

FILOSOFIA ção de si m esm o . S em p re q u e u m a filosofia p re ssu p õ e q u e a v a lid a d e d e se u s re su ltad o s d e p e n d e ex c lu siv am e n te de sua p ró p ria o rg a­ n ização in tern a, p o d e n d o , p o is, se r re c o n h e c i­ da e e sta b e le c id a de u m a v e z p o r to d a s, sem n e c e ssid a d e de q u e esses re su lta d o s sejam p o s ­ to s à p ro v a e co n firm ad o s p o r té c n ic a s ou p ro ­ ce d im en to s in d e p e n d e n te s dela, seu m é to d o p o d e ser c o n sid e ra d o sin té tic o . C om efeito, n este caso , seu m o d o d e p ro c e d e r e q ü iv ale à criação ou c o m p o siç ã o ex novo de seu o b je­ to, d e form a q u e n ã o ex ig e co n firm aç õ e s n em te m e d e sm e n tid o s. A F. de H eg el co n stitu i a e n c a rn a ç ã o m ais p u ra d e s se tip o . Q u a n d o H egel diz: "A F. n ão tem a v an tag e m de q u e g o ­ zam as o u tras ciên cias, d e p o d e r p re s su p o r q u e seu s o b jeto s são d a d o s im e d ia ta m e n te p ela re ­ p re se n ta ç ã o e (de p o d e r p re ssu p o r) co m o já ad m itid o seu m é to d o d e c o n h e c e r n o p o n to d e p artid a e no p ro c e d im e n to s e g u in te " (Ene, § 1), está afirm ando p recisam en te a exigência de q ue a F. co n stru a seu objeto e seu m éto d o p o r si m esm a e in te ira m en te . M as, p ro d u z in d o p o r si m esm a ta n to o o bjeto q u a n to o m é to d o , ela n ão tem de p resta r co n tas de seu s re su lta d o s, q uaisquer q u e sejam , a outras ciências ou a o utros p o n to s de vista ev e n tu a is. H eg el insiste n o ca ­ ráter a b so lu ta m e n te in d e p e n d e n te ou in co n d ic io n ad o d e seu m é to d o . "O m é to d o ", diz ele, p o r ex e m p lo , "assim co m o o c o n ce ito na c iên ­ cia, d e se n v o lv e -se p o r si m esm o e é a p e n a s u m a p ro g re ssã o im a n e n te e u m a p ro d u ç ã o de suas d eterm in açõ es" (Fil. do dir, § 31). E ainda: "A m ais elev ad a d ialética do c o n ce ito é p ro d u ­ zir e e n te n d e r a d e te rm in a ç ã o n ã o só co m o li­ m ite ou p osição , m as h au rin d o dela co n teú d o e re su ltad o p o sitiv o s, p o is u n ic a m e n te co m isso ela é d ese n v o lv im e n to e p ro g re sso im a n e n te. Essa dialética n ã o é u m fazer ex te rn o do p e n sa ­ m en to objetivo, m as a p ró p ria alm a do c o n te ú ­ d o, q u e faz b ro tar se u s ra m o s e se u s frutos o r­ g an ica m en te " (Jbid, § 31). A d iferen ça en tre esse m é to d o p ro d u to r, ou m elh o r, cria d o r de seu objeto e o m é to d o an alítico , q u e H egel identifica n as ciên cias d e p o is d e D esca rte s, é ex p ressa p o r ele da seg u in te m an eira: "O m é to ­ do in iciad o p o r D e sc a rte s rejeita to d o s os m é ­ to d o s in teressad o s em c o n h e c e r aq u ilo q u e, p o r n atu reza, é infinito; en treg a-se , p o rta n to , ao d e ­ sen fread o arbítrio d as im a g in a çõ es e asserçõ es, à p re su n ç ã o d e m o ralid ad e, ao o rg u lh o de s e n ­ tim en to s ou ao ex c esso d e o p in iõ e s e ra cio c í­ nios, v ee m e n tem e n te assestad os co n tra a F. e os filosofem as" (Ene, § 77).

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FILOSOFIA E ssa c o n c e p ç ã o atrib u i ao p ro c e d im e n to fi­ lo só fico a p ro d u ç ã o d e seu o b jeto , to m an d o co m o o b jeto o infinito, o A b so lu to ou D eus, q u e re so lv e ou an u la em si to d o s os fatos ou to d a s as co isas finitas. A n tes de e n c o n tra r em H eg el su a form a típ ica, essa c o n c e p ç ã o havia sid o ex p o sta p o r F ichte co m o ex ig ên cia de que a F., co m o d o u trin a da ciên cia, confira form a sistem ática n ã o só a si m esm a, m as ta m b é m a to d a s as o u tra s ciên cias p o ssív e is e garanta p ara to d a s a v a lid a d e d essa form a (Über den Begriffder Wissenschaftslebre [Sobre o co n cei­ to da te o ria da ciên cia], 1794, § 1). C om efeito, F ichte c o n sid e rav a q u e , ju n ta m e n te co m a for­ m a, a d o u trin a da ciên cia d ev eria p ro d u zir tam ­ b ém o c o n te ú d o e q u e o c o n te ú d o d a d ou trina da ciên cia d ev eria en c e rra r q u a lq u e r possível c o n te ú d o , q u e seria p o rta n to "o c o n te ú d o ab ­ so lu to " (Jbid., § 1). R e tro c e d e n d o u m p o u co m ais, v e m o s q u e a c o n c e p ç ã o do m é to d o sinté­ tico p o d e ser e n c o n tra d a em S p in o za , para q u e m o p ro c e d im e n to filosófico (que d en o m i­ na c o n h e c im e n to in tu itiv o, te rc eiro g ê n e ro de c o n h e c im e n to ou am o r in telectu al a D eus) é o q u e te m p o r o b jeto a necessidade co m que to d a s as co isas re su ltam da n a tu re z a divina. O am o r in te le ctu al a D eu s é o m esm o am o r com q u e D eu s se am a a si m esm o (Et., V , 36) e isso significa q u e o c o n h e c im e n to da n ec essid ad e co m q u e as co isas p ro v ê m de D eu s é o c o n h e ­ cim en to m esm o q u e D eu s te m d e si. D esse p o n to de v ista, o p ro c e d im e n to m atem á tic o da Ética a ssu m e im p o rtâ n c ia fu n d a m en tal na filo­ sofia d e S pino za: n ão é u m artifício ex p ositivo , m as a a d e q u a ç ã o do m é to d o d a F. ao p ro ced i­ m en to n ec essário co m q u e as co isas provêm de D eu s. A ssim c o n sid e ra d o , o m é to d o sintéti­ co re v e la -se em su a característica m ais ev id en ­ te: a p re te n sã o de v ale r co m o u m a vista d'olhos divina so b re o m u n d o , co m o o c o n h e cim en to q u e D eu s te m d e si e d o s se u s efeito s criados. E fácil p erc eb er, e n tã o , p o r q u e essa p reten sã o foi tão freq ü e n te em F. A ristó teles dizia: "So­ m e n te esta ciên cia é div in a, e em s e n tid o du­ plo : p o rq u e p ró p ria de D eu s e p o rq u e con­ ce rn e n te ao d iv in o. S ó a ela c o u b e ra m esses d ois p riv ilég io s; D eu s a p a re c e co m o a cau sa e o p rin cíp io de to d a s as co isas e só u m a ciência sem elh a n te, ou so b re tu d o ela, p o d e ser própria de D eus" (Met., I, 2, 983 a 5). A ristó teles cha­ m av a de teologia a F. p rim eira. V e rd a d e é que a F. p rim eira é tal p o r su a u n iv e rsa lid a d e e q u e ela é u n iv e rsa l s o m e n te n a m e d id a em q u e é ciên cia do ser e n q u a n to ser (Ibid., VI, I,

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1026 a 30). M as a ciên cia do ser e n q u a n to ser é te o lo g ia p o rq u e é a ciên cia da cau sa ou ra ­ zão d e ser a esta cau sa ou ra zã o d e ser é D eu s. P o r is s o , a F. a r is to té lic a p o s s u i c a rá te r d ec larad am e n te sintético e, aliás, p o d e ser c o n ­ siderada o p rim e iro e clássico e x e m p lo do p ro ­ ce d im en to sin tético . O b v ia m e n te , n ão é sin té ­ tica só p o rq u e te m D eu s co m o o bjeto d e sua in v estig ação , m as ta m b é m p o rq u e se c o n sid e ­ ra co in c id e n te co m o c o n h e c im e n to q u e D eus tem d e si. E p o r essa característica p o d e -se re ­ co n h e ce r facilm en te u m a F. sintética. b) O p ro c e d im e n to an alítico da F. re c o n h e ­ ce-se negativamente p ela au sên cia d e p re te n ­ são de v a le r co m o c o n h e c im e n to d iv in o do m u n d o e, positivamente, p elo re c o n h e c im e n to de lim ites p ara su a s p o ssib ilid a d e s e d e verifi­ cação d e seu s re su lta d o s. O p ro c e d im e n to a n a ­ lítico n ão é, p o r c o n se g u in te , a c o n stru ç ã o ex novo do seu o b jeto , m as a re so lu ç ã o d ele nos elem entos q u e p e rm ite m su a c o m p re e n sã o , ou seja, em su as c o n d iç õ e s. N estes te rm o s, a d e ­ te rm in a ç ã o do p ro c e d im e n to filo só fico p o r K ant foi feita p rim e ira m e n te n u m te x to de 1764, Sobre a distinção dosprincípios da teolo­ gia natural e da moral, e d e p o is na se g u n d a parte p rin cip al da Crítica da Razão Pura. N o prim eiro te x to , K ant c o n tra p u n h a o m é to d o analítico d a F. ao m é to d o sin tético da m atem á ti­ ca: "Aos c o n c e ito s g era is p o d e -se ch e g a r p o r dois cam in ho s: p ela ligação arbitrária d o s c o n ­ ceitos ou isolando os c o n h e c im e n to s q u e fo ­ ram esclarecid o s p o r su b d iv isã o . A m atem ática sem p re ch ega às d efin içõ es se g u in d o o p rim e i­ ro cam in h o ... A s d efin içõ es filosóficas, ao c o n ­ trário, são c o m p le ta m e n te d ife re n te s. N elas, o conceito das coisas já foi d ad o, m as de m aneira confusa e n ão su fic ie n te m e n te d ete rm in a d a . É preciso subdividi-lo, co m p ara r n os v ários casos as notas q u e foram s e p a ra d a s co m o co n ce ito dado, para d ep o is d e te rm in a r e lev ar a te rm o a idéia abstrata" (Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsãtze der natürlichen Theologie undderMoral, I, I, § 1). N a Crítica daRazão Pura, K ant d istin g u iu o c o n h e c im e n to filosófico, co m o c o n h e c im e n to p o r co n ce ito s, do co n h e cim en to m atem á tic o , q u e co n siste na construção de conceitos. K ant diz q u e a m a te ­ m ática p o d e co n stru ir c o n ce ito s p o rq u e d isp õ e de um a in tu ição p u ra q u e é a do esp a ç o -te m po. A F., p o rém , n ão d isp õ e de u m a in tu ição pura, m as s o m e n te de u m a in tu iç ã o s e n s í­ vel: os o bjeto s da F. d ev em , p o is, ser dados e por isso só p o d e m ser an a lisa d o s, e n ão

FILOSOFIA c o n stru íd o s, p e lo p ro c e d im e n to filosófico (Crít. R. Pura, D o u trin a do m é to d o , cap. I, seç. 1). K ant, p o rta n to , ac au te la os filósofos co n tra a p re te n sã o d e q u e re r o rg an iza r sua ciência s e ­ g u n d o o m o d e lo m atem á tic o . E m F., não há p ro p riam e n te definições (que sejam co nstruções d e c o n ce ito s), n em ax io m as, q u e são v erd ad e s e v id e n te s, n em d e m o n stra ç õ e s, q u e são p ro ­ v as ap o d ític as. E m re la ção a estas ú ltim as K ant diz: "A e x p e riê n c ia n os en sin a o q u e existe, m as n ão q u e isso n ão p o d e ser de o u tra m an ei­ ra. P rin cíp io s e m p írico s d e p ro v a n ão p o d em d a r-n o s n e n h u m a p ro v a ap o d ítica. D e co n ce i­ to s a priori (n o c o n h e c im e n to d isc u rsiv o ) n u n ca p o d e n ascer u m a ce rteza intuitiva, u m a ev id ên c ia, m esm o q u e o ju íz o p o ssa ser ap o d itic a m e n te certo" (Jbid, D o u trin a do m éto d o , cap. 1, seç. 1). D este p o n to de v ista, o p ro c e d i­ m en to d a F. está b e m lo n g e da p o ssib ilid ad e d e d ar ao h o m e m u m c o n h e c im e n to c o m p a rá ­ v el ao p o ssu íd o p o r D eu s. "A d e te rm in a ç ã o d o s lim ites de n o ssa ra zã o só p o d e ser feita s e g u n d o p rin cíp io s apriori, m as a lim itação da ra zã o , q u e v e m a ser o c o n h e c im e n to , m esm o q u e in d e te rm in a d o , d a ig n o rân cia q u e n u n ca p o d e se r c o m p le ta m e n te elim in ad a, ta m b é m p o d e ser c o n h e c id a aposteriori; v ale d izer q ue, em to d o c o n h e c e r, se m p re n o s re sta o q ue co n h e ce r" (Jbid, D a im p o ssib ilid a d e da satis­ fação cética). A F. n u n ca é u m a ciên cia p er­ feita, q u e se p o ssa e n sin a r ou a p re n d e r. "P odese a p e n a s a p re n d e r a filosofar, a ex ercitar o ta le n to da ra zã o n a a p lica çã o d o s seu s p rin cíp i­ os u n iv ersais a d e te rm in a d a s in v estig açõ es, m as s e m p re co m a ressalv a de q u e é d ireito da ra­ zã o in v estig ar esse s p rin cíp io s em su a s fontes, p ara co n firm á-los ou recu sá-lo s" (Ibid., D o u tri­ na do m é to d o , cap. III). E ssas c o n sid e ra ç õ e s d e K ant co n stitu em um c o n ce ito re la tiv am e n te a c a b a d o ou m ad u ro do p ro c e d im e n to an alítico em filosofia. Seu p re c e ­ d e n te im e d iato é L ocke, q u e disse: "N ão nos ca b e n e ste m u n d o c o n h e c e r to d as as co isas, m as sim as q u e c o n c e rn e m à n ossa c o n d u ta de v id a. S e p u d e rm o s en tã o ach ar as n o rm as g ra­ ças às q u ais u m ser racio n al co m o o h o m e m , c o n sid e ra d o no e sta d o em q u e se e n c o n tra n e ste m u n d o , p o ssa e dev a co n d u zir su a s o p i­ n iõ es e as aç õ es q u e dela d e p e n d a m , se p u d e r­ m o s ch e g a r a ta n to , n ão d e v e m o s ficar aflitos se o u tra s co isas e sc a p a m ao n o sso c o n h e c i­ m en to " (Ensaio, Intr., § 6). O c o n c e ito de F. co m o p ro c e d im e n to an alítico , co m v istas a d e ­ te rm in a r as co n d iç õ e s e, assim , os lim ites das

FILOSOFIA atividades h u m an as, in sp irou to d o o Ilum inism o setecen tista. M as n esse a sp e c to , re ssalv a d a s as d ife re n ç as d e v id a s ao s m e io s c u ltu ra is d is ­ p o n ív eis, o Ilu m in ism o se te c e n tista re to m av a o ideal ao Ilu m in ism o an tigo d o s Sofistas e de S ócrates, p ara os q u ais a F. v isav a à fo rm ação do h o m e m n a co m u n id a d e . O p ró p rio co n ce ito q u e P latão te m da F. p o d e ser c o n sid e ra d o m an ifestação d esse Ilum inism o , se g u n d o o qual a F. é in stru m en to do h o m e m . P latão de fato neg av a q u e a F. p u d e sse p e rte n c e r à d iv in d a d e . T an to q u a n to o am o r, ela é falta, p o rq u e d e s e ­ jo de sa b e d o ria p o r p a rte d e q u e m n ão p o ssu i a sa b e d o ria p ela p ró p ria n atu re za . O h o m e m é filósofo p o rq u e "está no m eio , e n tre a q u e le q u e sab e e a q u e le q u e ig n ora", ao p asso q u e a d iv in d a d e , q u e já p o ssu i o sab er, n ão p recisa filosofar (O Banq., 204 a-b). P or o u tro la d o , a dialética, m é to d o da F., é c o n c e b id a p o r P latão co m o a n á lise , co m o u m p ro c e d im e n to q u e perm ite distinguir o discurso v erd ad e iro do falso, m o stra n d o as co isas q u e p o d e m co m b in a r-se e a s q u e n ã o p o d e m c o m b in a r-s e (Sof., 252 d ­ e). P ara m o strar q u ais são as co isas q u e p o ­ d em e q u ais n ão p o d e m co m b in ar-se, a dialética p ro c e d e compondo v árias d e te rm in a ç õ e s em u m ú n ic o co n c e ito e d e p o is dividindo esse co n ce ito n as su a s artic u laç õ e s co m o faz um h áb il trin c h a d o r (Fed., 265 e). P o rta n to , a c a ­ da p asso , s u p õ e a esco lh a o p o rtu n a d as d e ­ te rm in a ç õ e s, a se re m c o m p o sta s n u m ú n ic o co n ceito , e d os a sp ecto s se g u n d o os q u a is d iv i­ dir esse co n ceito ; essa esco lh a, co m o q u a lq u e r outra, s u p õ e u m a u tilização d e elementos, p elo q u e o m é to d o p latô n ic o foi, co m ju stiç a, c o n si­ d era d o em p írico (Taylor, Plato, 4 a ed., 1937, p. 377). A c o n c e p ç ã o analítica tem co m o característi­ ca c o n sid e rar a F. co m o ativ id ad e humana, ou seja, lim itada em te rm o s de alca n c e e v alid a d e , cuja fu n ção é fazer escolhas, e n ão co n stru ir in totó seu o bjeto . D estas d u as características p ro ­ v ém a terceira, talv ez a m ais ó bv ia e visível: q ue co n siste em ser esse m é to d o , en tre o u tras coisas e em p rim eiro lugar, re c o n h e c im e n to e u tilização de dados, ou seja, de fato s, e le m e n ­ to s ou co n d içõ es, q u e não são p ro d u z id o s p elo p ró p rio m éto d o . A esco lh a d o s d a d o s e su a elab o raç ão co m v istas a u m a so lu ç ã o p ossível co n stitu i o problema (v.). A s F. an alíticas são , em geral, m arcad as p elo fato de q u e n elas a n o ç ão de p ro b lem a é fu n d a m en tal, ao p asso q u e n ão ex iste ou é co n sid e rad a se c u n d á ria e negligenciável nas F. sintéticas (com o aco n tece

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FILOSOFIA n as d e A ristó teles e H eg el). O u tra d ete rm in a­ ção d essa c o n c e p ç ã o (q u e ela só ad q u ire no m u n d o c o n te m p o râ n e o ) é a q u e c o n c e rn e ao campo do q u al a F. p o d e ou d ev e tirar seu s da­ d o s e co m o q u al a in te rp re ta ç ã o d e sse s ele­ m e n to s p o d e e d ev e ser co n fro n tad a. É recen ­ te a idéia de q u e os re su lta d o s da F., assim co m o os de q u a lq u e r o u tra in v estig ação , não são d efinitiv o s, m as p recisam ser p ro v a d o s e ex p e rim e n ta d o s. D evido a isso, D ew ey cham ou a F. de crítica das críticas. D isse: "A alguns p o d e p a re c e r u m a traiç ão c o n c e b e r a F. com o o m é to d o crítico p ara d e s e n v o lv e r os m éto d o s da crítica. M as até esse c o n c e ito de F. esp era ser p ro v a d o , e a p ro v a q u e o co n firm ará ou c o n d e n a rá c o n siste no re su lta d o final. A im ­ p o rtân cia do c o n h e c im e n to q u e ad q u irim o s e da e x p eriên cia q u e foi revivificada p e lo p en sa­ m e n to c o n siste em ev o car e ju stificar a prova" (Experience andNature, p. 437). E n tretan to , essa ex ig ên cia to rn a -se o p eran te só q u a n d o se d ete rm in a o ca m p o do q ual a F. ex trai se u s d a d o s e no q u al e n c o n tra p ossibili­ d a d e s d e co n firm ação . A d ete rm in a ç ã o deste ca m p o co n stitu i a característica da F. analítica d o s n o sso s te m p o s. Ora', os ca m p o s ao s quais p o d e m o s referir-n o s são a p e n a s dois: ls exis­ tê n c ia in d iv idu al; 2S ex istê n c ia social. Ia A s F. q u e reco rrem à ex istência individual p ara a b u sca de d a d o s e ev e n tu a l p ro v a das so lu ç õ e s c o n sid e ra m h a b itu a lm e n te a existên­ cia in d iv idu al co m o consciência e v êe m a cons­ ciência co m o d o m ín io da filosofia. N o m u nd o c o n te m p o râ n e o , a m ais c o n h e c id a e típica F. d esse tip o é a d e B ergson , q u e se o rg an iza ex­ p lic ita m en te co m o b u sca d o s "d ad o s im ediatos da co n sciên cia" e u tiliza esse s d a d o s p ara solu­ çõ e s q u e, p o r sua v ez, só p o d e m ser p o stas à p ro v a no âm b ito da co n sc iên c ia. A esse tip o de F. lig a-se ta m b é m a fe n o m en o lo g ia co n ceb id a p o r H usserl co m o "um re to rn o radical ao ego cogito p u ro , p ara fazer re v iv e re m os valores e te rn o s q u e d ele p ro ced e m " {Cart. Med., § 2). O defeito m e to d o ló g ic o d esse tip o de F. consis­ te no fato de q u e n ela s o d a d o , q u e d ev e servir co m o lim itação ou v erificação do p ro ced im e n ­ to an alítico , na v e rd a d e n ão é in d e p e n d e n te d e sse p ro c e d im e n to , p o rq u e só p o d e ser des­ co b e rto ou a ssu m id o co m b ase n o s p ressu p o s­ to s q u e o in sp iram . 22 F. q u e re c o rre m à ex istên cia social têm co m o p re c u rso ra a F. de P latão , q u e p reten dia p ro v a r os re su lta d o s da F. na v id a social. A o m esm o g ê n e ro p e rte n c e a F. de K ant, seg u n d o

FILOSOFIA PRIMEIRA

a qual os resultados da F. devem ser provados no domínio moral e político, ou seja, no campo das relações humanas em geral, e devem cons­ tituir um instrumento de progresso nesse cam­ po [cf. os textos Se o gênero humano estáprogredindo constantemente para o melhor, de 1798, Sobre o Ilumínismo, 1784, bem como os citados antes neste verbete, II, b], É tam­ bém à experiência inter-humana que Dewey se refere para submeter à prova resultados da F., ou seja, propostas que ela formula para a conduta de vida inteligente (Expertence and Nature, cap. X). Por outro lado, o existencialismo de Heidegger, embora não planeje pôr à prova os resultados de suas análises, toma os dados desta análise na existência cotidiana co­ mum, naquilo que acontece entre os homens "acima de tudo e na maioria das vezes" (Sein undZeit, § 9)- Finalmente, podemos inserir nes­ se mesmo panorama a F. considerada como análise da linguagem, que discerne nesta o fato intersubjetivo fundamental e, portanto, na aclaração e na retificação da linguagem o instru­ mento mais apto a eliminar equívocos e a retifi­ car relações intersubjetivas. Esta pelo menos pareceria a significação mais importante de tal F. Mas não se tem essa significação quando ela é entendida simplesmente como "terapia", cujo objetivo é livrar das dúvidas (consideradas fic­ tícias) produzidas pela filosofia. Neste caso, uma vez que ninguém, salvo o interessado, pode julgar se está suficientemente "curado", a pro­ va a que se submeteria a F. teria como campo a vida privada do indivíduo. F IL O S O F IA P R IM E IR A (gr TqÓTI) pX O acxpía; lat. Primaphilosophia-, in. Firstphilosophy, fr. Philosophie première, ai. Ersten Phi­ losophie, it. Filosofia prima). Foi esse o nome que por vezes Aristóteles deu à F. como ciência do ser (ou teologia), para distingui-la da física (F. segunda) e da matemática ( Fts, I, 9, 191 a 36; Met., VI, 1, 1026 a 16; etc). Bacon usou esse termo para indicar a "ciência universal", que seria uma árvore da qual partem, como tantos ramos, as ciências específicas, que tem por objeto os princípios comuns às ciências (Deaugm. scient., III, 1) (v. FILOSOFIA). Na sig­ nificação aristotélica, esse vocábulo foi substi­ tuído por metafísica (v.). FIM (gr. xéXoq, oi) eveKCX lat. Finis; in. End, Purpose, fr. Fin, But; ai. Zweck, it. Fine). Esta pa­ lavra tem as seguintes significações principais: Ia limite, no sentido com que Aristóteles diz: "a natureza procura sempre o F.", ou seja,

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FEVALISMO

"foge do infinito" (Degen. an., I, 1, 715 b, 16, 15). Dewey usou essa palavra no mesmo sen­ tido: "Podemos conceber o F. como devido ao cumprimento, à consecução perfeita, à saciedade, à exaustão, à dissolução, a alguma coisa que diminuiu ou cedeu"; em outras palavras, os F. são só "termos ou conclusões de episódios temporais" favoráveis ou desfavoráveis, bons ou ruins (Experience and Nature, pp. 97 ss.); 2- término ou perfeição, com o sentido que freqüentemente tem a palavra grega télos. Neste sentido diz-se que uma coisa "chegou ao F." sobre uma coisa que foi terminada; 3a motivo ou causa final, no sentido da quar­ ta das quatro causas aristotélicas (v. CAUSALIDA­ DE). Neste sentido a palavra italiana scopo, a francesa but, a inglesa purpose são mais bem empregadas, pois têm caráter objetivo, quer se entenda o F. como imanente à natureza, quer se entenda como motivo de um comportamento humano: é o termo final do projeto ou do pla­ no ao qual se refere; 4a intuito ou alvo, ou seja, F. em seu aspec­ to subjetivo, como aquilo que tem em mira certa intenção, mas que pode ser diferente do alvo atingido na realidade. FIN A L ID A D E (in. Purposiveness, Finality, fr. Finalité, ai. Zweckmãssigkeit; it. Finalità). Correspondência entre um conjunto de coisas ou de acontecimentos e um fim. Assim, p. ex., a F. de um plano ou de um projeto é a corres­ pondência ou a adequação desse plano ao fim a que visa. A F. da natureza é a correspondên­ cia da natureza com os seus supostos fins, etc. Essa palavra não se aplica, pois, exclusivamente à causalidade dos fins da natureza (à qua! se aplica a palavra finalismo), mas em geral desig­ na certa forma de organização ou ordem. F L N A IIS M O (in. Finalism; fr. Finalisme, ai. Finalismus; it. Finalismo). Doutrina que admi­ te a causalidade do fim, no sentido de que o fim é a causa total da organização do mundo e a causa dos acontecimentos isolados. Essa doutrina implica duas teses: Ia o mundo está organizado com vistas a um fim; 2a a explica­ ção de qualquer evento do mundo consiste em aduzir o fim para o qual esse evento se dirige. Essas duas teses freqüentemente estão uni­ das ou confundidas, mas às vezes elas são dife­ rentes e procura-se admitir uma sem admitir a outra. Segundo relato de Platão e de Aristóteles, Anaxágoras foi o primeiro dos antigos a ad­ mitir a causalidade do fim (PLATÃO, Fed., 97C; ARISTÓTELES, Met, I, 3, 984 b 18). Platão apre­

FINALISMO sen ta sua p ró p ria d o u trin a co m o u m a c o n se ­ q ü ên cia do p rin cíp io d e A n a x ág o ras d e q u e a in telig ên cia é a cau sa o rd e n a d o ra do m u n d o . "Se a in telig ên cia o rd e n a to d a s as co isas e d is­ p õ e cada coisa do m o d o m elhor", diz ele, "achar a cau sa g raç as à q u a l ca d a co isa é g e ra d a , d estru íd a ou ex iste significa d esco b rir q u al é a su a m elh o r m an eira de existir, m o dificar-se ou agir" (Fed., 97C ). D esse p o n to de vista o "m e­ lhor" ou o "excelen te" é a "v erdadeira" cau sa das co isas, ao p a sso q u e são cau sas s e c u n d á ­ rias ou co n c a u sa s as de n a tu re z a física h a b i­ tu alm en te a d u zid a s (Tim., 46 d; Fil, 54 c). M as a d o u trin a g raç as à q ual p re v a le c e u a c o n c e p ­ ção finalista na m etafísica an tig a e re c e n te é a aristotélica. A s d u a s te se s p ró p ria s do F. são p artes in te g ran te s da m etafísica aristotélica. P or u m la d o , A ristó teles afirm a q u e "tudo aq u ilo q u e é p o r n atu re za ex iste p ara u m fim" (De an, III, 12, 434 a 3D e identifica o fim co m a m esm a su b stân cia , "form a ou razão de ser da coisa" (Met., V III, 4, 1044 a 31). P or o u tro lad o , ju lg a q u e o u n iv e rso inteiro está su b o rd in a d o a u m ú n ic o fim, q u e é D eu s, do q u al d e p e n d e a o rd em e o m o v im e n to do u n iv e rso (Ibid., XII, 7, 1072 b). C om b ase nisso, A ristóteles d efen d e a c a u salid ad e do fim co n tra a tese q u e ele ch a­ m a de "n ecessid ad e", c o n siste n te em adm itir q u e as co isas n ão ac o n te c e m co m v istas ao seu re su ltad o m elho r, m as q u e, às v e z e s, o re su lta ­ do m elh o r é o efeito acid en ta l da n e c e ssid a d e . D e fato, assim co m o se d iz q u e , d a d a s certas cau sas, n e c e ssa ria m e n te ch o v eu , e q u e a c h u ­ v a p rovocou acid en talm en te a p erd a da co lh eita, sem q u e esta fosse a fin alid ad e da ch u va, p o d er-se-ia te n ta r ex p licar do m esm o m o d o a for­ m a d os o rg an ism o s an im ais (Fís, II, 8, 198 b 17). C ontra esse m o d o de racio cin ar, A ristóteles o b serv a q u e aq u ilo q u e a c o n te c e sempre ou geralmente não p o d e ser ex p lic ad o co m o ac a­ so, m as s u p õ e a n e c e ssid a d e da ação do fim (Ibid, II, 9, 200 a 5). N ão en c o n tra m o s, p o rém , em A ristóteles aq u ela form a p o p u la r da teleologia iniciada co m os estó ic o s, q u e co n siste em d em o n stra r q u e as co isas do m u n d o são feitas pela n atu reza em p ro v e ito do h o m e m . O fu n ­ d a m e n to d esta te le o lo g ia foi e x p re s s o p o r C ícero: "Para q u em en tão p o d eríam o s d izer q u e o m u n d o foi realizado ? E v id e n tem e n te p ara os seres viv os d o ta d o s de ra zã o , ou seja, p ara os d eu se s e para os h o m e n s; n ad a há d e fato q u e seja m ais ex c ele n te q u e eles, em v irtu d e de a razão ser su p e rio r a tu d o : assim , é crível q u e o m u n d o e tu d o o q u e no m u n d o ex iste foi feito

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FINALISMO p ara os d e u se s e p ara os h o m e n s" (De nat. deor, II, 133). E m vista de sua estreita co n ex ão co m a te o lo g ia , e n te n d e -se p o r q u e o F. sem ­ p re serv iu de fu n d a m e n to p ara a m etafísica te o ló g ic a. O s esco lá stico s in sistem so b re a su ­ p erio rid ad e cau sai do fim, q u e ch am am de "cau­ sa d as cau sas". S. T o m á s, se g u in d o as p eg ad as de A ristó teles, reso lv e na c a u sa lid a d e do fim a n e c e ssid a d e p ró p ria d o s m o v im e n to s naturais. "A n e c e ss id a d e n atu ra l q u e in ere n as co isas e as dirige"; escrev e ele, "chega às co isas im p ri­ m id a p o r D eu s, q u e as d estin a a u m fim, do m esm o m o d o co m o a n e c e ssid a d e co m q u e a flecha se d eslo ca e g raç as à q u a l se d irige para o alvo foi-lhe im p rim id a p o r q u e m a lan ço u e n ão p e rte n c e à flecha" (S. Th, I, q. 103, a. 1). E ste é o p e n sa m e n to fu n d a m en tal q u e d om ina e to rn a e x tra o rd in a ria m e n te u n ifo rm es to d as as te o ria s finalistas, tão a b u n d a n te s na história da F. até os n o sso s dias. H eg el co n sid e ro u um a g ra n d e in o v a çã o a su a d o u trin a do fim com o do "p ró p rio c o n c e ito em su a ex istên cia", e da fin a lid ad e co m o d e te rm in a ç ã o im a n e n te à n a­ tureza; co n tra p ô s essa d o u trin a a outra q u e co n ­ sid e ra v a trad ic io n a l, p ara a q ual u m intelecto "terren o" im p õ e , d e fora, seu s fins à n atu reza (WissenschqftderLogík, III, seç. II, cap. III; trad. it., p p . 216 ss.). M as na re alid ad e, co m o os tex ­ to s até ag o ra citad o s p ro v a m n a h istória da F., n ão ex iste d o u trin a de fin a lid ad e ex trín seca e im posta p o r u m in telecto ex traterren o, visto que, p o r finalidade do m u n d o , tanto A ristóteles quan­ to os estóicos e S. T om ás en ten d em a razão de ser do m u n d o , sua n e c e ssid a d e im a n e n te: S. T o­ m ás identifica e x p lic ita m e n te a impressio de D eu s s o b re a n a tu re z a co m a "n ecessid ad e in e re n te às co isas". C o m o tal, a n e c e ssid a d e é sem p re im a n e n te à to ta lid ad e cuja organização co n stitu i. E co m o já o b serv a v a A ristó teles, sob este asp e c to o F. n ão m u d a, q u e r se trate de to ta lid a d e s n atu rais, q u e r se trate de totalidad es artificiais; na c o n stru ç ã o de u m a casa o fim p e n e tra o m aterial u tiliza d o e n ão in ere a ele de m an eira d iferen te d aq u e le co m q u e inere às p artes de u m o rg a n ism o (Fís, II, 9, 200 a 34). E m to d o s os caso s, p ara u sa r a e x p re ssã o de H eg el, o F. é o p ró p rio c o n c e ito na su a existên­ cia: a re aliza çã o de u m c o n ce ito q u e d esd e o início d irige e g o v e rn a essa m esm a realização. P o rta n to , a p o lêm ic a de H eg el co n tra "o inte­ lecto ex traterren o " é te o ló g ic a — co n trapo sição de u m a te se p an teísta a u m a te se teísta — , m as n ão c o n c e rn e ao finalism o. S ignificação dife­ re n te te m a d istin çã o en tre fin alid ad e in tern a e

FINAIISM O

finalidade externa feita por Schopenhauer, que no entanto mantém inalterado o conceito tradi­ cional de F., apesar de sua tese sobre o caráter irracional e desordenado da força que rege o mundo. Para Schopenhauer, finalidade interna é "a harmonia de todas as partes de um orga­ nismo, de tal modo que a conservação deste e de sua espécie seja objetivo desta harmonia". Finalidade externa é, pelo contrário, a "relação da natureza inorgânica com a orgânica ou de partes da natureza orgânica entre si, o que pos­ sibilita a conservação da natureza orgânica toda e das espécies individuais" (Die Welt, I, § 28). Por outro lado, nesse aspecto a doutrina de Bergson não constitui uma inovação do F. tradi­ cional. No que se refere à finalidade orgânica, Bergson declarou-se contrário ao "mecanismo radical" e ao "F. radical", reconhecendo em ambos a negação do caráter "imprevisível" ou "criador" da evolução vital. A harmonia — diz ele — deve encontrar-se atrás e não à frente dessa evolução. "O futuro não está contido no presente sob a forma de um fim representado. Entretanto, uma vez realizado, explicará o pre­ sente assim como o presente o explicava, e ainda melhor; deverá ser considerado fim, mais que resultado. Nossa inteligência tem o direi­ to de considerá-lo abstratamente do seu ponto de vista habitual, visto que ela mesma é uma abstração realizada sobre a causa da qual em a­ na" (Évol. créatr., 8a ed., 1911, cap. I, p. 57). Mas tam pouco esta determ inação feita por Bergson inova muito o conceito clássico de F., cuja natureza não consiste, como julga Bergson, em negar os caracteres imprevisíveis ou novos que em ergem durante a realização do fim, mas unicamente em admitir a causalidade do fim e em considerar essa causalidade como princípio de explicação. A doutrina de Bergson não contribui para inovar esses dois aspectos, podendo, pois, ser reintegrada na concepção clássica de F., assim como podem ser reintegra­ das nessa concepção as doutrinas que, apesar de admitir o mecanismo, consideram-no com­ preendido no F. geral da natureza, e a ele su­ bordinado, com o fazem Leibniz (Op., ed. Gerhardt, III, p. 607; IV, p. 284), Lotze (Mikrokosmus, 1856, I) e, com eles, muitos espiritua­ listas contemporâneos. É só com a interpretação de Kant que o F. se inova significativamente. Essa interpretação n e­ ga a 2- tese do F., segundo a qual explicar um fe­ nômeno significa aduzir o objetivo. Para Kant, a explicação dos fenômenos só pode ser causai, e

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FEMALISMO

o juízo teleológico é reflexivo, não determinan­ te, ou seja, não apreende um elemento cons­ titutivo das coisas, mas um modo subjetivo, porquanto inevitável para o hom em representálas. "Há uma diferença absoluta entre dizer que a produção de certas coisas da natureza, ou mesmo de toda a natureza, só é possível por meio de uma causa que se determina a agir se­ gundo fins, e dizer que, segundo a natureza

particular de minha faculdade cognoscitiva,

só posso julgar da possibilidade das coisas e de sua produção concebendo uma causa que aja segundo fins, portanto um ser que produza de modo análogo à causalidade de um intelecto. No primeiro caso quero afirmar alguma coisa do objeto, e sou obrigado a demonstrar a realida­ de objetiva do conceito que admito; no segundo caso a razão só faz determinar o uso de minhas faculdades cognoscitivas, de acordo com sua natureza e com as condições essenciais de seu alcance e de seus limites" {Crít. dofuizo, § 75). Do segundo ponto de vista, que é o proposto por Kant, o F. não passa de conceito regulador do uso do intelecto hum ano: uso oportuno e necessário pelo fato de que o intelecto humano encontra limites bem precisos na explicação mecânica do mundo, sendo, pois, levado a re­ correr a uma consideração complementar. Esta, contudo, nunca pode valer como explicação, e sua única função é ajudar a procurar as leis par­ ticulares da natureza {Ibid., § 78). Esse ponto de vista kantiano (recentemente renovado por N.

HARTMANN, Philosophie der Natur, 1950), en­ quanto nega ao F. qualquer valor cognoscitivo e científico, atribuiu-lhe uma espécie de validade subjetiva, entre estética e moral, que se deve à limitação inevitável do conhecimento humano. Obviamente, a interpretação kantiana do F. repousa na tese dos adversários do F., que nega poder explicativo ao F. Só esta negação constitui, na realidade, o abandono do F. e só as razões que o apoiam constituem uma autên­ tica crítica a ele. Na realidade, o F. não é uma generalização empírica a partir da consideração de certo número de exemplos teleológicos; tampouco uma "disteleologia", ou seja, uma lis­ ta de casos contrários ao F., é uma crítica decisi­ va ao F. A doutrina de Platão e de Aristóteles a respeito, particularmente a deste último, mostra claramente o fundamento do F.: a crença em que a única explicação possível dos aconteci­ mentos é a que aduz o objetivo pelo qual acon­ teceram. Para Platão e para Aristóteles, o objeti­ vo é a forma ou a razão de ser da coisa, e a

FINALISMO d ete rm in a ção do o bjetivo é a ex p lic a ç ã o cau sai da coisa. C om eço u -se a d uv id ar d esse p rin cípio só n a id ad e m o d e rn a . O e p ic u rism o , q u e , com L ucrécio , n e g a v a o F. a d u z in d o q u e ele p õ e an te s o q u e v e m d e p o is (p. ex ., a v isã o an tes do olh o [LUCRÉCIO, De rer. nat., IV, 829 ss.D, n ão co n stitu i a n e g a ç ã o d esse p rin cíp io . A p rim eira crítica a ele p o d e ser e n c o n tra d a n a E scolástica do séc. XIV, em G. O c k h am , q u e , em p rim e iro lugar, m o stra q u e a aç ão do fim só p o d e c o n sis­ tir em im p elir a cau sa eficien te a ag ir e, em s e ­ g u n d o lu g ar, q u e essa aç ão é p u ra m e n te m eta­ fórica (In Sent., II, q. 3 G ). O c k h a m o b serv a q u e a ação do fim só p o d e ria co n sistir em ser d eseja d o ou a m a d o e q u e isso d e m o n stra o ca­ rá te r m etafó rico d essa ação . N ão te m se n tid o p e rg u n ta r a cau sa final d as aç õ e s n atu ra is, q u e se v erificam co m u n ifo rm id ad e; p. ex., n ão tem se n tid o p e rg u n ta r co m q u e fim o fo g o é g e ra ­ d o, p o is n ão é p rec iso q u e haja u m fim para q u e o efeito se p ro d u z a (Quodl., IV, q. 1). Esta talv ez te n h a sid o a p rim eira crítica feita ao v a ­ lor ex p licativ o do F. A lg u n s sé c u lo s d ep o is, a cau sa final era c o m p le ta m e n te d e sp re z a d a nae x p lic aç ão q u e T elé sio te n tav a d ar do m u n d o n atu ral (De rer. nat., 1565). E B ac o n ex cluía e x p lic ita m en te da in v estig aç ão e x p e rim e n ta l a c o n sid e ra ç ã o do fim (Nov. Org, II, 2). D izia: "A in v estig ação d as ca u sas finais é estéril: assim co m o u m a v irg em , co n sa g ra d a a D eu s, n ad a gera" (Deaugm. scient, III, 5). Por sua vez, G alilei (Op, V II, p. 80) e D esca rte s (Princ.phii, III, 3) elim in aram da ciên cia a c o n sid e ra ç ã o da cau sa final, e S p in o za c o n tra p ô s a n e c e ss id a d e com q u e as co isas p ro v ê m da n a tu re z a divina ao F., q u e c o n sid e ro u u m p re c o n c e ito , co n trá rio à o rd em do m u n d o e à p erfeição d e D eu s (Et., I, 36, A p.). A p artir d essa é p o ca , q u e m arca a origem da ciência m o d ern a, o F. deix o u de v aler co m o p ro c e d im e n to de ex p lic aç ão científica. V e rd a d e é q u e s e m p re se in sin u o u n a s la c u ­ n as d eix ad a s p ela e x p lic aç ão m ecan icista do m u n d o e sem p re foi co n sid e rad o co m p lem e n to desta ex p lic a ç ã o , além d o s lim ites p o r ela al­ can çad o s. Isso ac o n teceu p rin cip a lm e n te no d o ­ m ínio d as ciências b io ló gicas ou na esp ecu lação filosófica so b re os re su lta d o s d essa s ciên cias. A pesar d os su c e sso s o b tid o s n e sse c a m p o p elo estu d o fisico -q uím ico d o s fe n ô m e n o s b io ló g i­ cos, fre q ü e n te m e n te se re c o n h e c e u o m alo g ro ou m esm o a im p o ssib ilid a d e d e se re d u zire m esses fe n ô m e n o s a p rin c íp io s m ecan icistas. A s v árias fo rm as de vüalismo (v.) são cara cte riza­ d as p o r esse re co n h e cim e n to , p o rtan to , p elo re ­

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FINALISMO cu rso da u m a e x p lic a ç ã o te le o ló g ic a d os fenô ­ m en o s vitais. Esse recu rso , to d av ia, p areceu ine­ v itá v e l só n a m e d id a em q u e c ie n tista s e filósofos fo rm u la ram h ip ó te se s g lo b a is so b re a o rig em e a n atu re za da vida, u m a v e z q u e o tra­ b a lh o p ro p riam e n te científico, ao q ual se devem os su c e sso s da b io lo g ia e d a m ed ic in a co n tem ­ p o râ n e a , n ão e m p re g o u o u tro s in stru m en to s, m ateriais ou co n ceitu ais, q u e n ão perten cessem às ciên cias n atu ra is. E sse tra b a lh o , portanto, n u n c a p rec iso u da h ip ó te se finalista. P or outro lado , a situ ação h o d iern a é caracterizada por: Ia re c o n h e c im e n to da o rig in alid ad e d o s fen ô m e­ n o s o rg ân ico s em relação aos fe n ô m en o s físicoq u ím ico s, sem q u e tal o rig in a lid a d e rep resen te u m caráter finalista (v. EVOLUÇÃO; VITALJSMO); 2Q a b a n d o n o do ideal da ex p lic a ç ã o m ecân ica, de tal m o d o q u e deix o u de existir a diferença radical q ue, co m b ase no êxito d essa ex p licação , vinhase e s ta b e le c e n d o e n tre fe n ô m e n o s físicos de u m la d o e fe n ô m e n o s b io ló g ic o s e an tro p o ­ lógicos de o u tro lad o (V. CAUSALIDADE; EXPLICA­ Ç Ã O ). E m v irtu d e d esta situ aç ão , p o r u m lado alijo u -se a c a u sa lid a d e do fim do d o m ín io da ev o lu çã o o rg ân ica, e p o r o u tro lad o a ação des­ sa c a u sa lid a d e , tal q ual se a d m ite no hom em , p o d e n ã o ser c o n sid e ra d a d iferen te da ação da c a u sa lid a d e n atu ra l. S ob re a p rim eira questão, S im p so n afirm a: "O bjetivo e p la n o n ão são ca­ ra cterísticas da e v o lu ç ã o o rg ân ica e n ão consti­ tu em a ch av e para n e n h u m a d e su as operações, m as são características da n ov a ev o lu ção [social ou histórica] p o rq u e o h o m e m te m objetivos e p lan o s. A qu i o bjetivo e p lan o en tram definitiva­ m e n te n a e v o lu çã o , co m o re su ltad o e n ã o com o cau sa d o s p ro cesso s q u e a lo n ga história da vida n o s m ostra. O s objetivos e os p lan o s são nossos, n ã o do u n iv e rso , q u e n o s a p re se n ta indícios c o n v in c e n te s d a a u sên cia d eles" (TheMeaning ofEvolution, 1952, p. 292). M as, p o r o u tro lado, os o b jetiv o s e os p la n o s n ão c o n stitu em um a form a de c a u sa lid a d e à p arte, q u e faça do m un­ do n o q u al se v erificam u m d o m ín io privilegia­ do ou e sp ecial do ser. N o m u n d o h u m a n o a cau salid ad e do fim foi re in te g ra d a n a motivação (v.) q u e n ão difere fo rm a lm e n te da explicação ca u sai (C. G. HEMPEL-P. OPPENHEIM, "The logic o f ex p lan a tio n ", em Readings in the Phü. of Science, 1953, p p . 327-28); ou foi d escrita em te rm o s de c o m p o rta m e n to q u e im p licam ainda m e n o s re fe rê n c ia a u m tip o de ex p licação esp ecífic a (R o se b lu e th -W ie n e r-B ig e lo w , em Philosophy ofScience, 1943, p p . 18 ss.).

FENTTISMO E m co n c lu sã o , o F., hoje c o n sid e ra d o inútil em to d o s os c a m p o s de e x p lic a ç ã o científica, p e rm a n e c e co m o característica d as co rren te s m etafísicas q u e c o n sid e ra m m o d e sta d em ais para a filosofia a tarefa de criticar os v alo re s para co rrig i-los ou c o n se rv á-lo s, p ro p o n d o -s e a tarefa d e d em o n stra r q u e os v alo re s são g a ra n ­ tidos p ela p ró p ria estru tu ra do m u n d o o n d e o h o m e m v iv e e q u e eles c o n stitu e m o fim d essa estrutura. O F. p e rd e u c o m p le ta m e n te o ca rá ­ ter científico q u e p ossu ía o rig in ariam ente na G ré­ cia an tig a e p e rm a n e c e a p e n a s co m o u m a d as tantas e sp era n ç as ou ilusões às q u ais o h o m e m reco rre na falta de p ro c e d im e n to s eficazes ou em su b stitu iç ão d eles. F IN IT IS M O (in. Finitism; fr. Finitisme, ai. Finitismus; it. Finitismó). C om este term o , u sa d o ra ra m en te, e n te n d e -se to d a d o u trin a q u e afir­ m e a finitu de do m u n d o , q u e a d o te as teses das an tin o m ias co sm o ló g ic as e x p o sta s na Crítica da Razão Pura de K ant.

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FINS, REINO DOS

p o ssib ilid a d e s co g n o scitiv as são lim itadas pela in tu iç ão sen sív el, ou seja, p o r u m a intuição q ue d e p e n d e de o b jeto s d a d o s (Crít. R. Pura, § 8, IV). D o p o n to de vista m oral, o h o m e m é um ser F. p o rq u a n to su a v o n ta d e n ão se identifica co m a razão e a lei d esta v ale p ara a v o n ta d e só co m o im p erativ o (Crít. R. Pratica, § 1, scol.). Enfim , a facu ld ad e d e ju íz o estético e teleo ló g ico fu n d a -se na n a tu re z a F. do h o m em , na lim ita çã o de su a s p o ssib ilid a d e s co g no scitiv as, p o rq u a n to n ão d e te rm in a m c o m p le ta m e n te seu o b jeto , m as a p e n a s a form a d este (Crít. do Juízo, § 77). Essa significação da p alavra p erm a­ n ec eu em e x p re s sõ e s co m o "intelecto F.", "ser F.", "natureza F.", etc.: n as q uais F. n ão ex pressa u m a lim itação esp acial ou te m p o ra l, m as o ca­ rá te r co n d ic io n a l de certas p o ssib ilid a d e s q ue n ão são ap ta s a g ara n tir a o n isciên cia, a o n ip o ­ tê n c ia e a in falib ilid ad e. C om esta significação, esse te rm o foi aceito p elo ex isten cialism o c o n ­ te m p o râ n e o . H eid e g g er v ê o ca rá ter F. do h o ­ no fato de q u e q u a lq u e r p ro jeto seu de FINITO (gr. 7ce7iepao(i,évov; lat. Finitus-, in. mm em u n d o j á está d o m in a d o p elo p ró p rio m u n d o , Finite, fr. Fini; ai. Endlich; it. Finito). E sse te r­ q u e lim ita as p o ssib ilid a d e s p ro jetáv eis. H eim o tem as se g u in te s sig n ificaçõ es p rin cip a is, d e g g e r diz: "O p ro jeto d e p o ssib ilid ad es, em das q u ais as d u a s p rim e ira s c o rre s p o n d e m aos co n fo rm id a d e co m su a essên cia, está cad a v ez sen tid o s de infinito: m ais rico da p o sse n a q u al o p ro jetan te se e n ­ Ia C o m o d isp o siç ã o ou q u a lid a d e d e u m a c o n tra v a a n te rio rm e n te . M as u m a p o sse as­ g ran d eza em sen tid o m atem ático , F. é: d) o q u e sim só p o d e p erten ce r ao ser-aí p o rq u e ele, en ­ está co m p leto ou é ex au rív el, ou seja, n ão tem q u a n to p ro jetan te , se n te -se im erso no m eio do p artes fora de si: o co n trá rio de infinito p o te n ­ en te . M as, co m isso , já estã o s e n d o subtraídas cial; b) o co n ju n to n ã o au to -reflex iv o , ou s e ­ ao ser-aí o u tras p o ssib ilid a d e s, e isso em co n ­ ja , n ão e q u ip o te n te a u m a de su a s p a rte s ou s e q ü ê n c ia d e su a fa cticid a d e ... P ro va tra n s ­ s u b c o n ju n to s (no s e n tid o e s ta b e le c id o p ela c e n d e n ta l da finitu de da lib e rd a d e do ser-aí é teoria d o s co n ju n to s d e C an to r e D e d e k in d ). q u e o p ro jeto co n c re to do m u n d o só ad q u ire 23 N o sen tid o teológ ico, aq u ilo q u e en co n tra força e se to rn a p o sse na su b tra çã o . Será q ue lim ites ou o b stá c u lo s à su a p o ssib ilid a d e de n isso n ão se e v id en c ia a essê n cia F. da lib e rd a­ ser, à su a p otên cia. E sse co n ceito de F. rem o n ta de em geral?" (Vom Wesen des Grundes, III; a P lotino, q u e foi o p rim e iro a e n te n d e r o infi­ trad . it., p p. 68-69). N esse sen tid o , "F." é q u a ­ nito co m o n ão -lim ita çã o da p o tê n c ia (Enn., IV, lid a d e p ró p ria só do h o m e m ou d as p o ssib ili­ 3, 8; V I, 6, 18). M as foi p rin c ip a lm e n te n e sse d a d e s h u m a n a s, e finitude é o term o ab strato co n ceito q u e o R o m an tism o se b a se o u p ara c o rre sp o n d e n te . T o d a filosofia da existência é afirm ar a re a lid a d e do infinito. P ara H eg el, o u m a filosofia do F. p o rq u e in terp retação da ex is­ infinito é a p ró p ria re a lid a d e e n q u a n to p o tê n ­ tência em te rm o s de p o ssib ilid ad es co n d ic io ­ cia ilim itada de re aliza çã o , e n q u a n to A b so lu to . n a d a s (v. EXISTÊNCIA, 32). F. é aq u ilo q u e n ão tem p o tê n c ia suficien te para realizar-se, o id eal, o d ev e r-se r (Ene, § 95; F IN S , R E IN O D O S (ai. Reich derZwecke). Wíssenschaft der Logik, ca p . II, seç. I; trad . S eg u n d o K ant, é a c o m u n id a d e ideal d os seres it., I, p. 163). D este p o n to de v ista, F. é "ir­ ra cio n ais q u e o b e d e c e m u n ic a m e n te às leis da real" e e n c o n tra re a lid a d e só no in fin ito e ra zã o . O re in o d os F. — diz K ant — é "o c o n ­ com o infinito. ceito em v irtu d e do q ual to d o ser ra cio n al d ev e c o n sid e ra r-se fu n d a d o r de u m a le g islação u n i­ 3a A qu ilo q u e p o d e ser ou agir em d e te rm i­ v ersal p o r m eio de to d a s as m áx im a s d e sua nadas c o n d içõ es. Esse é o se n tid o co m o qual v o n ta d e , de tal m o d o q u e p o ssa ju lg a r-se a si essa p alav ra foi e n te n d id a p o r K ant. Ele ch am a m esm o e às su as aç õ es d esse p o n to de vista" o h o m e m d e "ser p e n sa n te F.", p o rq u a n to su as

FÍSICA

(Grundlegung zur Met. der Sitten, II). Nesse reino, entendido como "a união sistemática de vários seres racionais sob leis comuns", cada membro é, ao mesmo tempo, legislador e sú­ dito, valendo, portanto, como "fim em si mes­ mo" (Ibid, II). V. DIGNIDADE. F ÍS IC A (gr. (pi)(TiKr|; lat. Physica; in. Physics; fr. Physique, ai. Physik, it. Fisicd). Disciplina que tem por objeto o estudo da natureza; por­ tanto, suas características e seus métodos estão em relação com aquilo que entendemos por natureza (v.). Como disciplina específica, po­ de-se dizer que nasceu com Aristóteles, que a considerou a "filosofia segunda" e, no grupo das ciências teóricas, distinguiu-a da teologíae da matemática (Met., XI, 7, 1064 b 1). Pode­ mos distinguir três conceitos fundamentais des­ sa ciência, que se sucederam ao longo da história: 1Q F. como teoria do movimento; 2- F. como teoria da ordem necessária; 3S F. como previsão do observável. 1- Quando nasceu, com Aristóteles, a F. era a teoria do movimento e como tal se manteve até as origens da ciência moderna. Para Aristóte­ les, a F. tem por objeto "a substância que tem em si mesma a causa de seu movimento" (Met., Vi, 1, 1025 b 18); portanto, o modo como a F. considera as substâncias depende da natureza dos movimentos dos quais elas são dotadas. Dos quatro movimentos distinguidos por Aristóteles (substancial: geração e corrupção; qualitativo: mudança; quantitativo: aumento ou diminui­ ção; localtranslação [Fís, VIII, 7, 261 a 26]), o de translação é o primeiro e fundamental: todos os outros podem ser explicados pela translação dos corpos (Ibid, VIII, 7, 260a-b). A determina­ ção das várias substâncias físicas deve, por isso, ser feita com base no movimento de translação que é próprio de cada uma delas. O movimento de translação é de três espécies: do alto para o centro do mundo, do centro para o alto, em torno do centro ou circular. Os primeiros dois movimentos são contrários entre si e (como a geração e a corrupção consistem na passagem de um contrário ao outro) próprios dos corpos sujeitos à geração e à corrupção, ou seja, dos corpos terrestres ou sublunares, compostos por quatro elementos: água, ar, terra e fogo. O movi­ mento circular não tem contrários, porque mo­ ver-se da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita circularmente não modifica a ativi­ dade circular do movimento (De cael., 1,4); esse movimento é próprio da substância que com­ põe os corpos não-geráveis e incorruptíveis,

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que são os corpos celestes, e essa substância é o éter. Dos quatro elementos que compõem o mundo sublunar, dois (ar e fogo) movem-se de baixo para cima; dois (água e terra), de cima para baixo. A F. aristotélica, portanto, é qualita­ tiva por considerar que determinado movimen­ to é próprio de determinado elemento, estabe­ lecendo assim nítida divisão qualitativa entre os elementos e entre estes e o éter. Desta postura segue-se o princípio geral da F. aristotélica, que é: "Todo elemento move-se para a sua esfera, se não for impedido" (Fís., IV, 1, 208 b 10); esse princípio implica ou estabelece a existên­ cia de lugares absolutos, que são sedes natu­ rais dos elementos para as quais os elementos retornam quando delas são afastados. Esses lugares, segundo Aristóteles, são determinados pelo peso dos elementos. No centro do mundo está a terra, que é o elemento mais pesado (como se conclui, p. ex., do fato de a pedra cair na água ou afundar na água). Em torno da terra está a esfera da água, e em torno da esfera da água está a do ar, que é mais leve ainda, como de­ monstra o fato de a bolha de ar que se rompe na água subir à superfície. Em torno da esfera do ar está a do fogo, que é elemento mais leve, como prova o fato de as chamas que estão na superfície da terra tenderem para o alto, para a esfera que está acima do ar. Com base nisso, Aristóteles determina os caracteres do mundo: único porque os elementos se condensam cada um em sua esfera; finito porque acabado e per­ feito; como tal, ordenado para um único fim, que é Deus. Esta doutrina, que se baseia em pequeno número de experiências comuns e é admirável por sua elegância e simplicidade, foi a maior expressão, no pensamento antigo, da síntese dos conhecimentos naturais. Diante dela, a F. atomista dos epicuristas e a F. panteística dos estóicos têm mais caráter de especulação que de conhecimento científico. Foi realmente isso que os cientistas antigos pensaram, pois deixaram-nas completamente de lado remeten­ do-se constantemente à F. aristotélica; com ela Ptolomeu (séc. II) elaborou sua astronomia. A F. aristotélica dominou sem rival durante mui­ tos séculos, e, apesar das dúvidas levantadas por alguns escolãsticos no séc. XIV, só foi aban­ donada com Leonardo da Vinci, Copérnico, Kepler e Galilei, aos quais se deve a primeira organização da ciência moderna. 2° O segundo conceito fundamental da F. considera-a como estudo da ordem experimentável da natureza. Para esse conceito contribuí­

FÍSICA ram os aristotélicos do R en ascim en to , co m a d e ­ fesa da necessidadeâa o rd e m n atu ra l, os p la tô ­ nicos do R en ascim en to , em esp ecial N icolau de Cusa, co m a afirm ação do caráter m atem ático da o rd em n atu ra l, e a m agia, co m a p re te n sã o de atingir e ex ercer d o m ín io efetivo so b re a n a tu re ­ za. O co n ceito da n atu reza, q u e já está claro em G alilei, é de o rd e m o bjetiva, escrita em c a ra c ­ teres m atem á tic o s, n ec essária e d estitu íd a de finalidade, atin g ív el p o r m eio do e x p e rim e n to . Sobre este conceito de o rd em fundava-se a n o ç ã o de harmonia, q u e p ara K ep ler era a b a se da ciência da n atu re za (Harmonices mundi, 1619, IV, I). A o b ra de N ew to n co n d u zia à m atu rid ad e o co n ceito c o rre s p o n d e n te de F. P assav a a ser tarefa da F., ex p lícita e u n ic a m e n te , a descrição da o rd em n atu ra l. A F. aristo télica, co m o teoria do m o v im e n to , era d irigida ao estu d o d as c a u ­ sas do m o v im en to , q u e co in cid iam co m as su b s­ tâncias (form as ou cau sas finais) das co isas. N ew ton esclarecia em q u e se n tid o a d e te rm i­ nação da o rd em n atu ral d ev e ser o bjeto da c iê n ­ cia, c h e g a n d o a n eg ar, em o p o siç ã o à ciên cia aristotélica, q u e a F. fo sse ciên cia d as cau sas {Optice, 1740, III, q. 31). E m 1764 K ant assim descrevia o c o n c e ito n e w to n ia n o de ciência: "Com e x p eriên cias seg u ras e, no caso , co m o auxílio da g eo m etria ta m b é m , d ev em ser p ro ­ curadas as re g ras s e g u n d o as q u ais o co rre m certos fe n ô m e n o s da n atu re za " (Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsãtze der natürlichen Theologie und der Moral, 1763, II). Estas regras são as leis n atu ra is, q u e traç am a ordem d os fe n ô m e n o s n atu rais, ou seja, o m o d o necessário, p o rta n to u n ifo rm e e co n sta n te , de interconexão en tre eles. D escrev er essa c o n e ­ xão é tarefa da F. O ílu m ín ísm o e o p o sitiv ism o aplicaram esse co n ceito de F., q u e foi enfatizado por D 'A lem bert (Elements dephil, 1759, § 4) e serve d e b ase p ara a n o ç ã o de ciên cia e x p ressa por C om te: "O caráter fu n d a m en tal da F. p o si­ tiva é co n sid e rar to d o s os fe n ô m e n o s co m o subm etidos a to s n atu ra is in v ariáv eis, cuja d e s ­ coberta exata e cuja re d u ç ã o ao m ín im o n ú m e ­ ro possível c o n stitu em os o b jetiv o s de to d o s os nossos esforços, co n sid e ran d o -se ab so lu tam en te inacessível e sem se n tid o a b u sc a d a q u ilo a que se dá o n o m e de cau sas, sejam estas p rim á ­ rias ou finais" (Coursdephil.positive, liç. I, § 4). A s leis nad a m ais são q u e e x p ressõ e s da o rd em necessária da n atu re za . O co n ceito de F. co m o te o ria da o rd e m n a ­ tural co n tra p õ e -se ao c o n c e ito d e F. co m o te o ­

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FÍSICA ria do m o v im e n to p o r p re te n d e r lim itar-se a descrevera, n a tu re z a em su a o rd em , em v e z de explicã-la em su a s cau sas. A p artir d e N ew to n a d escriçã o o p õ e -se à ex p lic a ç ã o , co m o tarefa p ró p ria da F. O u e n tã o — o q u e d á no m e s­ m o — , c o n sid e ra -se q u e a ex p lic aç ão à qual a F. d ev e asp ira r le g itim a m e n te é a d ete rm in a ção da re la ção en tre d o is fe n ô m e n o s, de aco rd o co m u m a lei, o q u e , so b u m o u tro asp ecto , é sim ples descrição. P ortanto , a característica desse co n c e ito de F. é o re c o n h e c im e n to d as c o n e ­ x õ e s n e c e ssá ria s e n tre os fe n ô m e n o s, n as quais se co n cre tiza ou g a n h a co rp o a o rd e m n atu ral, b e m co m o a c ren ça n a e x p e rim e n ta ç ã o , n a v erificação em p írica d essa co n e x ã o . O co n c e i­ to de o rd e m n atu ra l c o in cid e co m o d a ca u sa­ lid a d e n ec e ssá ria (V. CAUSALIDADE) e p o rtan to co m o de p rev isib ilid a d e infalível d o s fe n ô m e ­ n o s n atu ra is. S e a n a tu re z a é a o rd e m n e c e ssá ­ ria, a F. co m o estu d o d essa o rd e m p o d e esta­ b e le c e r reg ras q u e p erm itam a p rev isão infalível d o s fe n ô m e n o s. E ssa é a cren ça q u e serv iu de b a se para a F. clássica até os p rim eiro s d ecên io s do séc. X X e q u e ta m b é m su ste n to u su a h ip ó ­ te se fu n d a m e n ta l: o mecanicismo (v.). Esta h ip ó te se tin h a, en tre o u tras, a v a n ta g e m de p o s ­ sibilitar a d escriçã o visual do cu rso d os fe n ô ­ m e n o s, d escriçã o q u e reco rria a im a g e n s v i­ su a is co m as q u a is p re te n d ia re p re s e n ta r (por m eio de p artíc u la s em m o v im en to ) a estru tu ra efetiva d o s fe n ô m e n o s. M as foi e x a tam e n te essa p re te n sã o q u e d eu o rig em às p rim e ira s dificul­ d a d e s, q u a n d o , co m a F. relativ ista, o co n ceito de campo (v.) c o m eç o u a su b stitu ir a re p re s e n ­ ta çã o v isu al d as p artíc u la s em m o v im en to . "Era n e c e ssá ria u m a corajosa im a g in a çã o científi­ ca", o b se rv a m E in stein e Infeld, "para re c o n h e ­ cer q u e o essen cial p ara a o rd e n a ç ã o e a co m ­ p re e n s ã o d o s a c o n te c im e n to s p o d e n ã o ser o c o m p o rta m e n to d o s co rp o s, m as o c o m p o rta ­ m e n to de alg u m a coisa q u e se in te rp õ e en tre eles, v ale d izer, o cam p o " {The Evolution of Physics, IV; trad . it., p. 302). A F. q u ân tica re ­ p re se n ta v a m ais u m p a sso p ara a d estru iç ão da possibilidade de u m a descrição visualizante. B ohr n o tav a: "Na a d a p ta ç ã o da ex ig ên cia relativista ao p o stu la d o do quantum d e v e m o s p re p a ra rn o s p ara u m a re n ú n c ia à v isu a liz aç ão (no s e n ­ tid o co m u m do term o ) ain d a m ais radical q u e a e n c o n tra d a na fo rm u la çã o d as leis q u â n tica s c o n sid e ra d a s até hoje. E n c o n tra m o -n o s no ca­ m in h o e n c e ta d o p o r E in stein ao a d a p ta rm o s n o sso s m o d o s d e p e rc e p ç ã o , d e riv a d o s d as s e n sa ç õ e s , ao c o n h e c im e n to cad a v e z m ais

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profundo das leis naturais" (Atomic Theory and the Description of Nature, 1934, p. 90). A re­ núncia à visualização na realidade também era renúncia à descrição, uma vez que a impossibi­ lidade de visualizar o curso completo dos fe­ nômenos é impossibilidade de descrever sua ordem necessária em sua integridade. De fato, essa impossibilidade foi reconhecida na F. com a introdução do chamado "princípio de indeterminaçâo" de Heisenberg (1927), com o qual a causalidade rigorosa dos fenômenos fí­ sicos era negada pela primeira vez, em virtude da impossibilidade de prever com exatidão o comportamento das partículas atômicas (v. CAU­ SALIDADE; INDETERMINAÇÂO). Com a queda da pretensão à causalidade rigorosa e, por conse­ guinte, da descrição da ordem total dos fenô­ menos, a F. não podia mais ser entendida como teoria da ordem necessária da natureza. 3SO terceiro conceito de F., que começou a ser traçado a partir de 1930, parte de uma deter­ minação já considerada fundamental pela noção de F. que a precedeu. Na esteira de Bacon, Comte já insistira na exigência de a ciência esta­ belecer previsões que permitissem o domínio sobre a natureza: "Ciência, donde previsão; pre­ visão, donde ação" (Cours dephil. positive, liç. II, § 3). Em 1894, Hertz, em Princípios de mecâ­ nica, dá ênfase ao mesmo conceito: "O mais imediato e, em certo sentido, o mais importante problema que o nosso conhecimento da nature­ za deve capacitar-nos a resolver é a previsão dos acontecimentos futuros, graças à qual pode­ remos organizar nossas ocupações presentes". À medida que a tarefa da descrição total da or­ dem dos acontecimentos ia sendo considerada fora das possibilidades da F., a tarefa da previ­ são ia adquirindo maior relevância. A limitação a essa tarefa aumentou enormemente o poder de ação ou de transformação da F. O princípio de complementaridade expresso por Bohr em 1927 marca o abandono definitivo da pre­ tensão de que a F. pudesse valer como teoria da ordem necessária. Segundo esse princípio, "não é possível realizar simultaneamente a descrição espácio-temporal rigorosa e a conexão causai ri­ gorosa dos processos individuais: uma ou outra deve ser sacrificada". Isso significa que a cadeia de causas e efeitos só poderia ser quantitativa­ mente verificada se o universo inteiro fosse con­ siderado como um sistema único, mas neste caso a F. desapareceria e ficaria apenas um es­ quema matemático (HEISENBERG, Die physikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930, IV,

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§ 1). Deste ponto de vista, embora não se possa descrever todo o curso de um fenômeno, podese calcular com exatidão o resultado de uma ob­ servação futura. Heisenberg diz: "Meçam-se, em certo instante, certas grandezas físicas com a máxima exatidão possível, ter-se-ão então, em cada instante seguinte, grandezas cujo valor pode ser calculado exatamente, ou seja, para as quais o resultado de uma medição pode ser pre­ visto com exatidão, contanto que o sistema ob­ servado não seja submetido a nenhuma pertur­ bação, exceto à própria medição" (Ibid, IV, § 1). Dirac enunciou o mesmo conceito dizendo: "O único objeto da F. teórica é o de calcular resulta­ dos que possam ser comparados com a experi­ mentação, sendo completamente inútil fazer uma descrição satisfatória de todo o desenvolvi­ mento do fenômeno" {Principies of Quantum Mechanics, 1930, p. 7). Assim, a F. transforma-se em teoria da previ­ são dos eventos observáveis e abandona as exigências descritivas de sua segunda fase, além das explicativas de sua fase anterior. Do ponto de vista filosófico, esse caráter funda­ mental da F. contemporânea foi perfeitamente expresso por Heisenbergquando disse que a F. do nosso tempo não nos fornece mais "uma imagem da natureza, mas uma imagem das nossas relações com a natureza" (Das Naturbildderheutigen Physik, 1955, p. 21). FISIC A L ISM O (in. Physicalism, fr. Physicalisme, ai. Physikalismus; it. Fisicalismó). Nome proposto por Neurath (em Erkenntnis, 1931. p. 393) como denominação do Círculo de Vie­ na, que via na linguagem o campo de indaga­ ção da filosofia, para acentuar o caráter físico da linguagem. Esse termo foi aceito por Carnap, para indicar o primado da linguagem fsica e sua capacidade de valer como lingua­ gem universal: "A linguagem da física", diz Carnap, "é uma linguagem universal, pois abrange os conteúdos de todas as outras lin­ guagens científicas. Em outras palavras, cada proposição de um ramo da linguagem científi­ ca é eqüipolente a algumas proposições da lín­ gua fisicalista e pode, portanto, ser traduzida para ela sem mudar seu conteúdo" (Philosophy and Logical Syntax, 1935, p. 89). Essa tradutibilidade das proposições significantes para uma proposição da física foi chamada F., que constituiu a idéia diretiva da Enciclopédia da ciência unificada (v. EMPIRISMO LÓGICO; ENCI­ CLOPÉDIA). Contudo, num segundo momento,

FÍSICA SOCIAL C arnap in te rp re to u o F. co m o a re d u tib ilid a d e de to d as as e x p ressõ e s lingüísticas à lin g u ag em coisal (v.) e n ão à form a p artic u la r de lin g u a­ gem coisal, q u e é lin g u a g e m física ("T estability and M e an in g ", em Readings in the Phil. of Science, 1953, p p . 69-70). FÍS IC A S O C IA L (in. Socialphysics; fr. Physique sociale, ai. Sozial Physik, it. Fisica socialé). C om e ste n o m e , C o m te d e s ig n o u o estudo d o s fe n ô m e n o s so ciais, a so cio lo g ia, cuja a u to n o m ia científica ele foi o p rim e iro a afirmar (Cours dephil. positive, liç. 46) (v. S O ­

CIOLOGIA). FÍSICO-TEOLÓGICA, PROVA. V DEUS, PROVAS DE. F IS IO C R A C IA V . ECONOMIA POLÍTICA.

F IS IO G N O M O N IA (gr. qvaioyvcayLÍa; in. Physiognomonics; fr. Pbysiognomonie, ai. Physiognomik; it. Fisiognomicá). A rte d e ju lg a r o caráter do h o m e m , seu m o d o d e sen tir e de pensar, a p artir de su a ap a rê n c ia visível, e s ­ p ecialm ente a p artir d o s tra ç o s fisio n ô m ico s. A ristóteles (seg u id o p o r m u ito s escrito re s an ti­ gos e m ed ievais) já ad m itira a p o ssib ilid a d e de julgar a n atu re za de u m a coisa co m b a se em sua form a c o rp ó re a (An. pr, II, 27, 70 b 7). Cícero falava de u m fisio g n o m o n ista , Z o p iro , que se v an g lo riav a de c o n h e c e r a n a tu re z a e o caráter d os h o m e n s p elo ex a m e de seu c o rp o , ou seja, de seu s o lh o s, seu ro sto e su a testa (De Fato, V , 10). M as foi p rin c ip a lm e n te no R en as­ cim ento q u e essa arte foi cu ltiv ad a, a co m eç ar por G iam battista delia P orta, q u e , em 1580, p u ­ blicou o livro Sulla F. umana. E sse tip o de estudo foi m u ito d ifu n d id o no séc. XV III p o r Lavater (Fragmentos F., 1775-78). O p ró p rio Kant re co n h e ceu o v a lo r da F. (Antr, 11, cap. III). H egel d istin g u e-a d as m ás artes e d o s e stu ­ dos inúteis p o rq u e ela afirm a a u n id a d e en tre interior e ex terio r (Phânomen. des Geistes, I, parte 1, cap. V ; trad . it., p. 281). N os te m p o s m odernos a F. ta m b é m tem d e fe n so re s n ão só entre os p sic ó lo g o s e ca ra c te ro lo g ista s, m as tam bém en tre filósofos. S p en g ler disse: "A m orfologia do q u e é m e c â n ic o e am p lo , ciên cia que d esco bre e o rd e n a re la çõ es cau sais, é c h a ­ mada de sistem ática. A m orfologia. do q u e é orgânico, da história e da v id a, de tu d o aq u ilo que traz em si d ireção e d estin o , é c h a m a d a F." (Untergang des Abendlandes, I, p. 134). R. Kassner afirm ou a id en tid a d e en tre psico log ia e F., alegando q u e a an tig a d istin ção en tre ser e aparecer n ão tem valor: "A p sico lo g ia d ev e e n ­ tão ser F. e q u a lq u e r o u tra é te d io sa e b an al,

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FORÇA p o is, co m o tu d o co n siste na visão , n ad a há q u e p rec ise ser m ais in v estig ad o ou d esco b e r­ to , re tira n d o u m a ca m ad a de ap arên cia d ep ois da outra" (Dasphysiognomische Weltbild, Intr.; trad . it. em O s elementos da grandeza human a ,1 9 4 2 ,p p . 6 1 s s .) . F IS Io G N o S E (in. Physiognosy). T erm o u sa­ do p o r P eirce p ara in d icar o co n ju n to das ciên ­ cias físicas (Coll. Pap, 1.242). F IS IO L O G IA (in. Physiology, fr. Physiologie; ai. Physiologie, it. Fisiologiã). N o sen tid o com q u e A ristó teles e o u tro s escrito re s an tig o s em ­ p re g a m essa p alav ra, estu d o d a n atu reza: o m esm o q u e física. A lg um as v ez es K ant tam bém a u so u co m essa sign ificação (Crít. R. Pura, D outr. tran se, do m ét., cap . III). F IS IO L O G IA P S IC O L Ó G IC A o u P S IC O FISIOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B. F IS S IS M O (it. Fissismó). T erm o italian o, q ue n ão e n c o n tra c o rre s p o n d ê n c ia n as o u tras lín­ g u a s, co m o q u al se d esig n a a d o u trin a da im u ta b ilid a d e d as e sp écies v iv as, em c o n tra p o ­ sição a ev o lu c io n ism o (v . EVOLUÇÃO). S u a t r a ­ d u ç ã o literal seria fixism o. FL E C H A (gr. ÒÍOTÓÇ; in . Arrow, fr. Flèche, a i. Pfeil; it. Freccid) O terceiro d o s q u a tro argu ­ m en to s a d u zid o s p o r Z en ão d e Eléia em o p o si­ ção ao m o v im en to . O arg u m en to b aseia-se em d ois p ressu p o sto s: le o te m p o é fo rm ad o de in stan tes; 2e em cad a in stan te a F. só p o d e o c u ­ p ar u m e sp aço igual ao seu c o m p rim e n to . Por esta se g u n d a tese, a F. é im óvel no in stan te, e co m o to d o te m p o é fo rm a d o p o r in stan te s, d u ra n te to d o te m p o em q u e se m o ve a F. está im óvel (ARISTÓTELES, FÍS., VI, 9 , 239 b 29). A ris­ tó teles ta m b é m in d ico u co rretam en te o p ressu ­ p o sto d esse arg u m en to , ou seja, a tese d e q u e o te m p o é co n stitu íd o d e in stan tes. V. DICOTOMIA;

AQUILES; ESTÁDIO.

F O G O (gr. Tiúp; lat. Ignis; in. Fire, fr. Feu; ai. Fuer, it. Fuoco). S ub stân cia q u e c o m p õ e o m u n ­ d o , s e g u n d o H eráclito . E ste co n sid e rav a o F. d o ta d o de in telig ên cia e cau sa p rim eira do g o ­ v e rn o do u n iv e rso (Fr. 65, D iels). P arm ên id es, n o s d isc u rso s "seg u n d o a o p in ião ", assu m ia a d u a lid a d e F .-trevas (e q u iv alen te à d u a lid ad e quente-frio [v.]) co m o p rin cíp io de ex p licação da ap a rê n c ia sen sív el (Fr. 8, D iels). O s estó icos id en tificaram o F., situ a d o n a e x tre m id a d e do u n iv e rso , co m o éter, q u e co n stitu i a p rim eira esfera im ó v el e as esferas m ó v e is d o s céus (DiÓG;. L, V II, 137). F O R Ç A (lat. Vis; in. Force; fr. Force; ai. Kraft; it. Forza). P re cisam e n te a ação causai, n ão no s e n tid o d e ex p lic ar ou ju stificar (com o

FORÇA razão d e ser), m as d e p ro d u z ir infalivelmente u m efeito. P o rta n to , d e fo rm a m ais g eral, to d a técn ica ap ta a g a ra n tir in faliv elm en te u m efeito ou q u e p re te n d a g aran ti-lo . N esse s e n tid o , dizse "o d ireito co m o F." ou "o E stad o co m o F." para d estac ar a in falib ilid ad e da re aliza çã o do d ireito ou da v o n ta d e do E stad o. E m tal se n tid o K ant dizia q u e h á q u a tro e sp é c ie s de co m b in a ­ çõ es da F. co m a lib e rd ad e e a lei: a) lei e liber­ d ad e sem F.: an arqu ia; ti) lei e F. sem lib erd ad e: d e sp o tism o ; c) F. sem lib e rd a d e e se m lei: b arb árie ; d) F. co m lib e rd a d e e lei: re p ú b lic a (Antr, II, D e lin eaç ão do ca rá ter do g ê n e ro h u ­ m an o , 2). E m se n tid o a n á lo g o H eg el falou de "F. da ex istência" no d o m ín io d as re la ç õ e s ju rí­ d icas en tre os E stad o s, a lu d in d o à frase de N ap o leão : "A re p ú b lic a fran cesa n ã o te m n e c e ss i­ d ad e d e re c o n h e c im e n to " (Fil. do dir, 331, A p ê n d .). A n o ç ã o de F. d ev e ser c o n sid e ra d a so b d ois asp e c to s fu n d a m en tais, a sab er: 1Q no seu u so p e la ciên cia; 2 S n a in te rp re ta ç ã o d ad a p ela filosofia. 1Q C o n sid era m o s aq u i a n o ç ã o de F. ex c lu si­ v a m e n te da fo rm a co m o se v e io c o n fig u ran d o d e sd e os p rim ó rd io s d a ciên cia m o d e rn a , e x ­ clu in d o d e seu âm b ito as n o ç õ e s de p o tên cia , d e cau sa efic ien te ou fo rm al, de q u a lid a d e o cu lta, e tc , to d a s d e ca rá ter m etafísico ou te o ­ ló g ico às q u ais se p o d e referir, re tro sp e c tiv a e g ro sse ira m e n te , o te rm o F. T o d o s esse s te r­ m o s têm u m a a m p litu d e h istó rica e p ro b le m á ­ tica co m p letam e n te diferente do term o em q u e s ­ tão, de tal m an eira q u e n ão p o d e m lan çar luzes so b re seu sig n ificad o ou ao s p ro b le m a s a ele atin en tes. P ortanto , en te n d e re m o s co m o term o F. a ação ca u sai infalível c o n sid e ra d a co m o : d) d iferente ou in d e p e n d e n te d e q u a lq u e r ag e n te ou form a m etafísica; ti) d iferen te ou in d e p e n ­ d en te de q u a lq u e r form a ou ag e n te psíq u ico ; c) suscetív el d e tra ta m e n to m atem á tic o . A n o ç ã o de F. ta m b é m d ev e ser d istin g u id a da n o ç ã o de en erg ia, a p e sa r d e os p ró p rio s cien tistas te re m p o r v e z e s co n fu n d id o os d o is te rm o s, ao fala­ rem (com o , p. ex., M ayer e H elm h o ltz) de c o n ­ serv ação da F., q u a n d o se trata da c o n se rv a ç ã o da en ergia. N este sen tid o, p o d e-se discenir o n ascim en to d a n o ç ão de F. n as o b se rv a ç õ e s de K epler, q u e co n sid e ro u a v irtu d e (virtus), à q u al se d ev em os m o v im en to s g rav itac io n a is, co m o sujeita a to d as as "n ecessid ad es m atem áticas" {Astrono­ mia nova, III, p. 241), n e g a n d o q u e ela p u d e s ­ se ser identificada co m a alm a (Mysterium cos-

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FORÇA mographicum, 1621, em Opera, ed. Frisch, I, p. 176). M as essa n o ç ã o só foi d efinida q u an d o se definiu co m p re c isã o o p rin cíp io da inércia co m o p rin cíp io fu n d a m en tal da física, com D es­ cartes. G alilei u tilizo u -a co m freq ü ên cia (p. ex., n o s Disc. sulle nuovescienze, em Op., V III, pp. 155, 344, 345, 442, 447, e tc ) , m as não a defi­ n e , co m o ta m p o u c o d efine a n o ç ã o de inércia, q u e ta m b é m u tiliza. E m re la ç ã o d ire ta com esta últim a, a F. é definida p o r D escartes, que diz: "A F. co m q u e u m c o rp o ag e co n tra outro c o rp o ou re siste à su a aç ão c o n siste a p e n a s em q u e to d a a coisa p ersiste , e n q u a n to p o d e , no m esm o estado em q ue se encontra, de acordo c o m a p rim eira lei já ex p o sta [lei da inércia]. D e tal m an eira , u m c o rp o u n id o a o u tro corpo p o s s u i F. p ara im p e d ir q u e seja d e le sep ara­ do e, q u a n d o é s e p a ra d o , há u m a F. q u e im­ p e d e a u n ião ; assim , q u a n d o se en co n tra em re p o u so , te m F. p ara p e rm a n e c e r em re p o u ­ so e p ara resistir àq u ilo q u e p o d e ria fazê-lo m udar; assim , se se m o ve, há u m a F. para conti­ n u a r m o v e n d o -se co m a m esm a v elo cid a d e e p ara o m esm o lado " {Princ. phii, II, 43). Mas foi N e w to n q u e m g en eralizo u a n o ç ã o de F., d a n d o -lh e ex p ressã o m atem ática p recisa. O se­ g u n d o p rin cíp io da d in âm ica n e w to n ia n a , ou seja, a p ro p o rc io n a lid a d e e n tre F. e aceleração im p rim id a (F= md), faz da F. u m a relação entre d u as g ra n d e z a s , sem n e n h u m a referên cia às essê n cia s ou q u a lid a d e s o cu lta s, cuja inutilida­ d e p ara a física era d e c la ra d a p e lo próprio N ew to n : "P reten d o d ar s o m e n te u m a noção m atem á tic a d as fo rças, se m c o n sid e ra r suas c a u sa s ou su a s s e d e s físicas" (Philosophiae naturalisprincipia mathematica, 1760, p. 5). A g e n e ra liz a ç ã o n e w to n ia n a p erm itia falar de F. da g ra v id a d e , de F. elétrica ou d e F. m agnética, d e tal m o d o q u e, n a se g u n d a m e ta d e do séc. X V III, o c o n ce ito de F. to rn o u -s e u m d o s mais p o p u la re s e d ifu n d id o s. C o n tu d o , d esp e rto u a d esco n fian ça d o s cien tistas, q u e m u itas vezes se re c u sa v a m v er n e le algo m ais q u e sim ples relação causai. D 'A lem bert observou que, se a re­ lação en tre causa e efeito n ão for considerada de n atu re za lógica, m as a p e n a s b a se a d a n a expe­ riência, a F. a distância (gravidade) n ão represen­ ta u m en ig m a m aio r do q u e a tran sm issão do m o v im e n to atrav és do c h o q u e , e de fato nada m ais faz q u e e x p ressa r, assim co m o esta últi­ m a, u m a relação confirm ada pela experiência (Elements dephil, 1159, § 17). P elos m esm os m o tiv os M aupertuis queria q ue o conceito de F. co m o "causa da aceleração " fosse elim in ad o da

FORÇA m ec ân ic a e s u b stitu íd o p ela s sim p les d e te rm i­ n açõ es da m ed id a da a c e le ra ç ã o (Examen philosophique de lapreuve de 1 existence de Dieu, 1756, II, §§ 23, 26). K ant n ão fez m ais q u e e x ­ pressar o m e sm o co n c e ito ao d ize r q u e "F. nad a m ais é q u e a re la ção en tre a su b stân cia A e q u a lq u e r outra coisa B" e q u e tal re la ç ã o só p od e se r d ad a p ela e x p e riê n c ia (De mundi sensibilis et inteligibilis forma et principiis, § 28), ou q u e a F. n ão é m ais q u e "a ca u salid a­ de da su b stân cia ", ou seja, "a re la ção do sujeito da ca u sa lid a d e co m o efeito" (Crít. R. Pura, Anal. d o s P rin cíp io s, cap. II, seç. III, S eg u n d a analogia da e x p e riê n c ia ). D este p o n to d e v ista, a in te rp re ta ç ã o d a F. c o m o a g e n te c a u sa i m isterioso e in acessív el, tal co m o se e n c o n tra , p. ex., em S p e n c e r (FirstPrincipies, § 26), é alijada de ciência. C o n tu d o, co m os sign ificad os atrib u íd o s p o r G alilei ou N ew to n , a n o ç ã o de F. ta m b é m n ão p red o m in ou p o r m u ito te m p o na ciên cia. L eib ­ niz já d esco b rira e esclarece ra o c o n c e ito de F. viva, q u e é o p ro d u to d a m assa p elo q u a d ra d o da v elo cid a d e, c o n c e ito q u e co n stitu i o p o n to de partida p ara a m o d e rn a n o ç ã o de en erg ia (MathematischeSchriften, ed. G erh a rd t, V I, p p . 218 ss.). Sua d o u trin a acerca da s u p e rio rid a ­ de da F. so b re a m atéria, q u e serv e de te rm o m édio para a re so lu ç ã o da m atéria em en erg ia espiritual (V. a d ia n te ), b a se ia -se p re c isa m e n te nesse co n ceito de energia. P orém , no sécu lo s e ­ guinte, a d esco b erta da co n se rv aç ão da energia (1842) p o r R ob ert M ayer e a o b ra de H elm h o ltz e de H ertz co n d u zira m à fo rm u lação d aq u ilo que se ch a m o u energismo da m e c â n ic a (cf. POINCARÉ, La science et Vhypothèse, p. 148). O energism o n eg a q u e a F. seja a "causa" do m o ­ vim ento e q u e, p o rta n to , esteja p re s e n te an­ tes do m o v im en to , e c o n sid e ra a id éia de e n e r­ gia anterior à de F. Esta ú ltim a é in tro d u z id a através d e sim p les d efinição e su a s p ro p rie d a ­ des são d ed u z id as a p artir da d efin ição e d as leis fundam entais. P o rta n to , no e n e rg ism o a idéia de F. já n ão im plica d ificu ld ad e algu m a: é um sim ples co n ceito c o n v e n c io n a l. N a m esm a linha en co n tram -se os Princípios de mecânica (1894) de H ertz, q u e só co n sid e ra m co m o fu n ­ dam entais as idéias de te m p o , e sp a ç o e m assa, considerando d eriv a d a s as id éias de F. e de energia. C o n tu d o, o c o n ce ito de en erg ia co n ti­ nuava sen d o im p o rta n te em física, so b re tu d o com referência ao co n ce ito de campo (v .), e n ­ quanto o co n ceito de F. co n tin u av a s e n d o o mesm o d e m o n stra d o p elo en e rg ism o : u m n o ­

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FORÇA m e p ara definir certas re la çõ es en tre algum as g ra n d e z a s físicas. A este p ro p ó sito R ussell d is­ se: "S u põ e-se q u e a F. seja cau sa da acelera­ ção ... M as a a c e le ra ç ã o é u m a sim p les ficção m atem á tic a, u m n ú m e ro , n ão u m fato físico... P o rta n to , se a F. é cau sa, é cau sa d e u m efeito q u e n ão se p ro d u z" (Principies ofMathematics, 1903, p . 4 7 4 ) 2S A s in te rp re ta ç õ e s filosóficas do co n ceito de F. se g u e m à d istân cia e co m p o u ca fidelida­ de o d e se n v o lv im e n to científico do seu co n ce i­ to. T o d as elas o b e d e c e m a u m e sq u e m a unifor­ m e e c o n siste m em in teg rar a n o ç ã o de F. na ex p e riê n c ia h u m a n a . Esta re d u ç ã o p o d e ter d u ­ p lo sign ificad o. Pode.- d) se r e n te n d id a co m o ju stifica çã o d a n o ç ã o e tran sfo rm á-la em c o n ­ ceito m etafísico; ti) ser en te n d id a co m o crítica à n o ç ão e m o strar, co m o caráter an tro p o m ó rfico , a falta de fu n d am en to . L eibniz é o iniciador das te n tativ a s no p rim e iro se n tid o e L ocke, no s e ­ g u n d o sen tid o . d) E m Système nouveau de Ia nature(l695) L eibniz n arra q u e, d e p o is d e se lib ertar do ju g o d e A ristó teles, ac re d itara no v á c u o e n os á to ­ m o s, m as q u e , d e p o is de m u itas m ed itaç õ e s, co n clu íra q u e as u n id a d e s ú ltim as n ão p o d e m ser m ateriais e q u e , p o rta n to , n ão p o d e m ser áto m o s de m atéria, m as de espírito. E acrescenta: "Era n e c e ssá rio , p o rta n to , reab ilitar as formas substanciais tã o d e sa c re d ita d a s hoje em dia, m as d e tal m an eira q u e fo ssem in telig ív eis e p erm itisse m u m a s e p a ra ç ã o en tre o u so q u e d ela s se d ev e fazer e o a b u so q u e d elas se tem feito. D esco b ri, e n tã o , q u e a n atu re za d elas co n siste na F. e q u e disto resu lta algo an álo g o à co n sc iên c ia e ao ap etite, se n d o , assim , n e c e ssá ­ rio co n c e b ê -la s à im itação d a n o ç ã o q u e tem o s d as alm as" (Systeme, e tc , § 3). Isto m o stra as b a se s do p rim a d o q u e L eibniz s e m p re c o n c e ­ d eu à n o ç ã o de F. em su a s in te rp re ta ç õ e s físi­ cas e m etafísicas: a F. é algo a n á lo g o à c o n s­ ciên cia (sentiment) e ao a p e tite , ou seja, a ex p e riê n c ia s in te rn a s do h o m e m . É certo q ue L eibniz e n te n d e u p o r F. a vis activa q u e , co m o se d isse, é en erg ia. M as isso n ão faz diferença do p o n to de vista de su a m etafísica, q u e é um a m etafísica da F. esp iritu al (cf. Nouv. ess., II, 21, § 1). Esta d o u trin a to rn a -se a rq u é tip o de to d a a co rre n te filosófica cujo s e g u n d o fu n d a d o r foi M ain e de B iran, no in ício do séc. XIX. Este co n sid e ra a p e rc e p ç ã o in te rn a e im ediata, vale dizer, a co n sc iên c ia q u e o eu tem d e si, co m o F. v olitiva e ativa, co m o re v e la çã o do m esm o ca rá te r o rig in ário d a re a lid a d e , q u e, p o r isso

FORÇA

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FORMA

v e z d e m o n stro u q u e n em da e x p eriên cia inter­ m esm o , seria ela m esm a F. D iz: "A p e rc e p ç ã o n a n e m de q u a lq u e r o u tra fo n te o espírito in tern a ou im ed iata é a c o n sc iên c ia de u m a F. p o d e ex trair u m a idéia clara e real de F.: "E cer­ q u e é m eu p ró p rio eu e q u e serv e d e e x e m p lo to q u e ig n o ra m o s a m an eira co m o os corpos p ara to d a s as n o ç õ e s g erais e u n iv e rsa is de ag em u m s o b re o o u tro , e q u e su a F. ou ener­ c a u sa e d e F." {Nouveaux essais d'anthrogia n o s é de to d o in c o m p re e n sív e l, p o rém so­ pologie, 1823-24, em ÇEuvres, ed. N av ille, III, p. m o s ig u a lm e n te ig n o ra n te s so b re a m an eira ou 5). P ra tic a m e n te n a m esm a é p o c a S ch o p e n F. co m q u e u m a m en te , c o n q u a n to suprem a, h a u e r realizav a a m esm a p a ssa g e m d a p sic o ­ ag e s o b re si m esm a e so b re os co rp o s. D e qual logia p ara a m etafísica, re c o n h e c e n d o co m o d e ssa s co isas, p e rg u n to , c o n se g u im o s fazer ú n ica F. co n stitu tiv a d a essê n cia do m u n d o a u m a idéia?... O q u e é m ais difícil co n ce b e r: que q u e o h o m e m p e rc e b e im e d ia ta m e n te em si o m o v im e n to n asce d e u m c h o q u e ou q u e nas­ m esm o , ou seja, a v o n ta d e {Die Welt ais Wille ce d e u m ato d e v o n ta d e ? T u d o o q u e co n h e ce­ und Vorstellung, 1819). Isso d ev e ser e n te n d i­ m o s é n ossa ig n o rân cia p ro fu n d a em am b o s os do no se n tid o d e q u e ao h o m e m m o stra-se caso s" {Inq. Cone. Underst, V II, 1). E ssa crítica co m o v o n ta d e a m esm a p o tê n c ia ativa q u e nas de H u m e é clássica e, so b certo a sp ecto , de­ o u tras p artes d a n a tu re z a se m an ifesta co m o finitiva. M ach co n sid e ro u "fetichism o" o uso F.: "Se, p o rta n to , eu d isser q u e a F. q u e faz a do c o n c e ito d e F., aliás ta n to q u a n to o d e cau­ p e d ra cair no c h ã o , em su a essê n cia , em si e sa, q u e d esejava su b stitu ir p elo co n ce ito de fora de q u a lq u e r re p re s e n ta ç ã o , é v o n ta d e , n ão fu n ção {Analyse der Empfindungen, 9a ed., se d ev erá atrib u ir a essa afirm ação o in se n sato 1922, p. 74; Populãwissenschaftlichen Vorlossign ificad o de q u e a p e d ra se m o v e s e g u n d o sugen, 1896, p. 259; trad. in., 1943, p. 254). Por u m m o tiv o c o n h e c id o p elo fato de q u e no h o ­ o u tro lado , p elo fato de esse co n ceito ter deixado m em a v o n ta d e se m anifesta d este m o d o " {Ibid., de d e sp e rta r o in teresse da ciência ta m b é m dei­ I, § 19)- Esta id en tificação da F. q u e o h o m e m x o u de ter in te re sse p ara a crítica m etodológica. co n h e c e p ela ex p e riê n c ia in te rio r co m a F. q u e P o rtan to , hoje se ap re se n ta co m o co n ceito cien­ ag e n o m u n d o c o n tin u a c o n s titu in d o a b a ­ tífico a n tiq u a d o , q u e serv e d e p re te x to (em bo­ se d as filosofias esp iritu alistas. A d o u trin a de ra ca d a v e z m ais ra ra m e n te ) p a ra esp ecu la­ B erg so n , se g u n d o a q u al u m elã vital, q u e se ç õ e s m etafísicas (cf. MAXJAMMER, Concepts of revela à co n sc iên c ia h u m a n a co m o duração Force, 1957: obra rica de in fo rm açõ es conquanto real, d á o rig em à v id a p e n e tra n d o e o rg a n iz a n ­ d ú b ia e confusa ao d elim itar a n o ç ã o de que do a m atéria {Évol. créatr., cap . I), o b e d e c e ao tra ta ). m esm o critério fu n d a m en tal. M as essa p o stu ra ta m b é m é assu m id a p e la s d o u trin a s m aterialis­ F O R M A (gr. (lopcpn, £Í5oç; lat. Forma; in. tas: adm itir, a e x e m p lo de H ae ck el {Die WelForm; fr. Forme, ai. Form; it. Forma). Esse ter­ trãtsel, 1899), u m a ú n ica F. q u e ex p lica to d o m o te m as se g u in te s sign ificaçõ es principais: devir do u n iv e rso e é an álo g a à q u e se revela Ia E ssência n ec essária ou su b stân cia das coi­ n a co n sc iên c ia do h o m e m significa o b e d e c e r à sas q u e têm m atéria. N esse se n tid o , q u e está m esm a in te rp re ta ç ã o da n o ç ã o d e F. p re s e n te em A ristó teles, F. n ão só se o põ e a b) P or o u tro la d o , a re d u ç ã o d essa n o ç ã o a m atéria, m as a p re s su p õ e . A ristó teles u sa, por­ ta n to , esse te rm o com referên cia às co isas natu­ ex p eriên cia in te rn a p o r v e z e s significou u m a rais q u e são c o m p o sta s de m atéria e F., e obser­ crítica à p ró p ria n o ç ã o , p o rq u e c o n sid e ra d a v a q u e a F. é m ais "n atureza" q u e a m atéria, co m o sinal do seu ca rá ter arb itrário . A este re s ­ u m a v e z q u e de u m a coisa d iz-se aq u ilo que p eito, L ocke ev id en c iara q u e a idéia d e p o d e r ela é em ato (a F.), e n ão o q u e é em potência {Power) d eriv ara da reflex ão do esp irito so b re (Fís., II, 1, 193 b 28; Met., IV, 1015 a 11). Desse su as o p e ra ç õ e s {Ensaio, II, 21, 4). C om o fim p o n to de v ista, n ão se p o d e d izer q u e são F. as de defender sua co n cepção do universo com o lin ­ su b stâ n c ia s im ó v eis {Deus e as inteligências g u ag em ou m an ifestação de D eu s, B erkeley foi motrizes), q u e são isen tas de m atéria, m as são lev ad o a retirar o caráter realista d o s co n ce ito s F. as su b stâ n c ia s n atu ra is em m o v im e n to . Don­ da ciência: "F., g rav id ad e , atra ção e te rm o s s e ­ de a p o lêm ic a de A ristó teles co n tra o platom elhantes convém ao fim de raciocinar e de fa­ n ism o , co m o o bjetivo de afirm ar a insepazer cálculos so b re o m o v im e n to e so b re to d o s ra b ilid ad e e n tre F. e m atéria. O s escolástícos os co rp o s q u e se m o v em , m as n ão ao fim de n ão se ativ eram rig o ro sa m e n te a essa termi­ c o m p re e n d e r a n atu re za do p ró p rio m o v im e n ­ n o lo g ia aristo télica e e ste n d e ra m o term o F. a to" {De motu, § 17; Siris, § 234). H u m e p o r sua

FORMA

qualquer substância, falando de "F. separadas" para indicar as idéias existentes na mente de Deus (ALBERTOMAGNO, S. Th., I, q. 6; S. TOMÁS, S. Th, I, q. 15 a. 1) e de "F. subsistentes" para indicar os anjos que não têm corpo e, portanto, não têm matéria (S. TOMÁS, S. Th, I, q. 50 a. 2). Além disso, falavam de "F. substanciais ou de F. acidentais" (Ibid., I, q. 76 a. 1), sendo esta última expressão, do ponto de vista aristotélico, no mínimo contraditória. Gil­ berto Porretano (séc. XII), em Desexprincipiis, separara as F. inerentes, correspondentes às primeiras quatro categorias de Aristóteles (substância, qualidade, quantidade, relação) das F. assistentes, correspondentes às outras categorias aristotélicas, de caracteres que não constituem a substância das coisas. Em todos os casos, a F. conserva os caracteres que Aristó­ teles lhe havia atribuído: é causa ou razão de ser da coisa, aquilo em virtude do que uma coi­ sa é o que é; é ato ou atualidade da coisa, por isso o princípio e o fim do seu devir. O conceito de F. assim entendido foi e conti­ nua sendo empregado também fora do aristotelismo e de seus derivados. Não possui deter­ minações diferentes das aqui apontadas a F. de que fala Bacon como objeto da ciência natural: essa F. é ato e causa eficiente, tanto quanto a F. aristotélica (Nov. Org. II, 17), e distingue-se desta apenas porque, como pensava Aristóteles, não pode ser apreendida pelo procedimento dedutivo ou pelo intelecto intuitivo, mas só pela indução experimental. Descartes referese à significação tradicional da palavra quando nega que existam "as F. ou qualidades sobre as quais se discute nas escolas" (Discours, V). E é com o mesmo significado que essa palavra é usada por Bergson, ao afirmar que "F. é um instantâneo de uma transição", ou seja, uma espécie de imagem intermediária da qual se aproximam as imagens reais em sua mudança e que é pressuposta como "a essência da coisa ou a coisa mesma" (Evol. créatr., IV ed., 1911, p. 327). Deste conceito de F. aproxima-se o senti­ do com que essa palavra é usada por Hegel, como "totalidade das determinações", que é a essência no seu manifestar-se como fenô­ meno (Ene, § 129). Nesse sentido, F. é o modo de manifestar-se da essência ou substância de uma coisa, na medida em que esse modo de manifestar-se coincide com a própria essência. É nesse sentido que Hegel empregava habitual­ mente essa palavra, p. ex. quando dizia: "O

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FORMA

conteúdo humano da consciência, produzido pelo pensamento, não aparece primeiro em F. de pensamento, mas como sentimento, in­ tuição, representação, F. que devem ser distinguidas do pensamento como F." (Ene, § 2). Foi exatamente com esse sentido que Croce e Gentile falaram de "formas do espírito", seja para estabelecer, seja para negar sua diversi­ dade. 2- Uma relação ou um conjunto de relações (ordem) que pode conservar-se constante com a variação dos termos entre os quais se situa. P. ex., a relação "Sep, então q" pode ser assu­ mida como a F. da inferência, porque permane­ ce constante quaisquer que sejam as proposi­ ções pe qentre as quais se situa. Assim, diz-se habitualmente que a matemática é uma ciência formal porque o que ela ensina não vale ape­ nas para certos conjuntos de coisas, mas para todos os conjuntos possíveis, já que versa sobre certas relações gerais que constituem o aspecto formal das coisas. Nesse sentido, a palavra F. foi usada pela primeira vez por Tetens, para indicar as relações estabelecidas pelo pensamento en­ tre as representações sensíveis que, por sua vez, constituiriam a "matéria" do conhecer (Philosophische Versuche über die menschliche Natur, 1776, I, p. 336). Kant fez distinção análoga na dissertação de 1770: "À representação perten­ ce, em primeiro lugar, alguma coisa que se pode chamar de matéria, que é a sensação, e, em segundo lugar, aquilo que se pode cha­ mar de F. ou espécie das coisas sensíveis, que serve para coordenar, por meio de certa lei natural da alma, as várias coisas que impres­ sionam os sentidos" (De mundi sensibilis et intelligibilisforma et ratione, § 4). Essa distin­ ção entre matéria e F. foi o ponto de partida de toda a filosofia kantiana, mas Kant nunca alte­ rou o significado de F., que continuou sendo relação ou conjunto de relações, isto é, ordem. Escreveu em Prolegômenos (§ 17): "O elemen­ to formal da natureza é a regularidade de to­ dos os objetos da experiência." Analogamente, a F. dos princípios morais é a simples relação na qual uma lei se encontra com os seres ra­ cionais, ou seja, sua validade para todos esses seres, sua universalidade (Crít. R. Prática, § 4). A partir de Kant o sentido dessa palavra nunca deixou de ser o de relação generalizável, or­ dem, coordenação ou, mais simplesmente, uni­ versalidade. Nesse sentido, Kant distinguiu ma­ téria e F. no conceito: "A matéria do conceito é o objeto; a F. dele é a universalidade" (Logik.,

FORMA E lem e n tarleh re , § 2). É n e ste se n tid o q u e hoje os ló g ico s u tilizam essa p alav ra p ara c a ra c te ri­ zar o o b jeto d e su a ciên cia. Era a ele q u e P eirce se referia {Coll. Pap, 4.611), e é a ele q u e , m ais re c e n te m e n te , re fe rem -se S tra w so n (Intr. to Logical Theory, 1952, p. 41), P rior {Formal Logic, 1955, § 1) e C h u rc h (Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 00). C arn a p d is­ se: "U m a teo ria, u m a reg ra, u m a d efinição ou co isas se m e lh a n te s d ev em ser c h a m a d a s de form ais q u a n d o n ão fazem n e n h u m a re fe rê n ­ cia ao sign ificad o d o s sím b o lo s (p. ex., d as p alav ras) ou ao s e n tid o d as e x p re s s õ e s (p. ex., d o s e n u n c ia d o s), m as u n ic a m e n te às e s ­ p éc ies e à o rd e m d os sím b o lo s co m os q u ais as e x p re ssõ e s são co n struídas" {Logische Syntax derSprache, 1934, § 1). É a esse significado de o rd em ou relação q u e está ligado o u so da palavra F. (Gestalt) na p sic o ­ logia c o n te m p o râ n e a , ao se re ssaltar o fato ex ­ p e rim e n ta l d e q u e im p re ssõ e s sim u ltâ n e a s n ão são in d e p e n d e n te s u m a s d as o u tras, co m o se fossem p e d a ç o s de u m m o sa ico , m as co n sti­ tu em u m a u n id a d e co m o rd e m definível (v. PSICOLOGIA). NO m esm o se n tid o , B o rn p ro p ô s q u e sejam c o n sid e ra d a s co m o "F. d as coisas físicas as in v arian te s d as e q u a ç õ e s, q u e tê m a m esm a re a lid a d e objetiva d as co isas q u e nos são fam iliares" {Experiments and Theory in Physics, 1943, p p. 12-13). N a p ró p ria estética há p elo m e n o s u m a sign ificação na q ual a p a ­ lavra F. p o d e ser re in te g ra d a na sign ificação de o rd em ou o rg a n iz a ç ã o d as p artes; é a significa­ ção esclarecid a p o r D ew ey: "Só q u a n d o as p ar­ tes co n stitu tiv as d e u m to d o têm o fim ú n ic o de co n trib u ir p ara a p erfeição d e u m a e x p e riê n ­ cia co n scien te é q u e o d e se n h o e a im agem p erd em o caráter so b re p o sto e to rn a m -se F." {Ari as Experience, cap. VI; trad. it, p. 140). A p ro x im a-se d essa m esm a sign ificação o u so da p alavra p o r F ocillon: "As relações form ais em u m a o b ra e en tre as v árias o b ras co n sti­ tu em u m a o rd em , u m a m etáfora do u n iv e rso " {Viedesformes, 1934, trad. it., p. 53). E m geral, p o d e-se d izer q u e , no âm b ito d e sse sign ifica­ d o, p assa-se à c o n sid e ra ç ã o d a F. to d a s as v e ­ zes em q u e certa re la ç ã o é g e n e ra liz a d a , v ale dizer, co n sid e rad a v álid a p ara certo n ú m e ro de term o s ou d e caso s p o ssív eis, ou q u a n d o n ão são co n sid e ra d o s os te rm o s en tre os q u a is está u m a o rd em , p ara atrib u ir im p o rtâ n c ia ou sig n i­ ficado so m e n te a essa o rd em . 3a U m a n orm a de p ro ced im e n to . N esse sen ti­ d o, fala-se d e F. em d ireito , no se n tid o de q u e

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FORMAL u m a "questão de F." d iz resp eito à relação entre o caso em ex a m e e as n o rm as de procedim ento, e n ão ao p ro b lem a q u e con stitu i a su b stân cia ou o m érito do caso . À s v e z e s o re c u rso à "F." ex­ p ressa a ex ig ên cia de au to n o m ia n u m p ro ced i­ m en to ou n u m a técnica. Esta é, freqüentem ente, a significação da insistência no caráter form al da arte. Q u a n d o , em arte, o re cu rso à F. n ão ex­ p ressa ex ig ên cia de o rg a n iz a ç ã o e o rd em (que d iz re sp e ito ao sign ificad o 2S), e x p ressa a exi­ g ên cia d e q u e os p ro c e d im e n to s ou as técnicas da arte sejam in d e p e n d e n te s d o s p ro ced im en ­ to s ou d as técn icas de o utras ativ id ad es, com o o

conhecimento, a moral, etc. (cf. CROCE, Bre-

viãrio de estética, p. 53). N esse sen tid o , passase a c o n sid e ra ç õ e s form ais, em certo cam po, q u a n d o se re c o n h e c e a in d e p e n d ê n c ia entre as té cn ic as u tilizáv eis n esse c a m p o e as em ­ p re g a d a s em o u tro s ca m p o s. FORMA, PSICOLOGIA DA. V PSICOLOGIA F O R M A Ç Ã O (ai. Bildung). N o sen tid o es­ pecífico q u e esta p alav ra assu m e em filosofia e em p e d a g o g ia , em re la ção co m o term o ale­ m ão c o rre s p o n d e n te , in d ica o p ro c e s so de e d u c a ç ã o ou de civilização , q u e se expressa n as d u a s sign ificaçõ es d e cultura, entendida co m o e d u c a ç ã o e co m o sistem a de v alo res sim­ b ó lico s (v. C ultu ra). FO R M A IS , C IÊ N C IA S . V . c iê n c ia s , classi­ fic a çã o d a s .

FORMAL (in. Formal; fr. Formei; ai. Formal;

it. Formalé). 1. E m c o rre s p o n d ê n c ia com o le sign ificad o d e form a: aq u ilo q u e p erten ce à essê n cia ou su b stân cia da coisa, p o r isso essen­ cial, su b stan cia l, atual. N esse sen tid o essa pala­ v ra foi e m p re g a d a p e lo s esco lástico s, p o r Des­ cartes {Mêd, III, // Réponses, def. IV) e por S p in o za {Et., II, 8). A esta sign ificação refere-se ta m b é m o u so q u e D u n s S cot faz do term o nas e x p re ssõ e s "d istin ção F." ou "razão F.". Distin­ ção F. é u m a distinção de essên cia ou natureza, m as sem im p licar sep ara çã o n um érica: ela inter­ ce d e, p. ex., en tre a n atu re za co m u m e a indivi­ d u a lid a d e d as co isas ou e n tre as v árias perfeiçõ e s de D eu s {Op. Ox., I, d. 8, q. 4, n. 17). 2. E m c o rre s p o n d ê n c ia co m o 2- significado de form a: o q u e p e rte n c e a u m a relação gen era lizáv e l ou e n tã o à o rd e m ou coordenação d as p artes. N esse s e n tid o , essa p alavra é em­ p reg ad a na ló g ica, na m atem ática m oderna e na estética. E m lógica esse te rm o foi am p la m en te utiliza­ do n u m sen tid o in tu itiv am en te claro, m as nunca

FORMALISMO

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determinado completamente. Na lógica medie­ val, formalis tem a significação fundamental de "inerente à forma", portanto "essencial", mas também — por conseguinte — "universal", "vá­ lido para todo conteúdo empírico relativo a certa forma"; por esta razão, como última sig­ nificação, "independente da natureza empírica dos conteúdos". Foi com esse sentido que esse termo passou para a lógica moderna e contem­ porânea: a partir de Leibniz, os termos "forma" (p. ex., os arguments enformem terminolo­ gia leibniziana) e "F." indicam certos esquemas, fórmulas, etc, em que os termos descritivos são substituídos por símbolos ("variáveis"), e portanto as propriedades, as relações, as conse­ qüências, etc, do esquema ou fórmula vigoram independentemente de qualquer possível desig­ nação dos termos significativos nela presentes. 3. Em correspondência com o 3S significa­ do da palavra "forma": aquilo que pertence ao procedimento, seja legal, de etiqueta, etc G. P.-N. A FO R M A LISM O (in. Formalism; fr. Formalisme, ai. Formalismus; it. Formalismd). Toda dou­ trina que recorra à forma, em qualquer das significações do termo. No fim do séc XIV, foram chamados de "formalistas" os partidári­ os da metafísica de Duns Scot, que se opu­ nham aos "terministas", partidários de Ockham (GERSON, De conceptibus, p . 806). Foi qualifi­ cado de F. o ponto de vista kantiano em ética, por recorrer às formas gerais das máximas, sem considerar os fins a que se destinam. Em mate­ mática foi chamado de F. o procedimento que pretende prescindir dos significados dos sím­ bolos matemáticos, especialmente a corrente de Hilbert. Também é considerada F. a grande importância atribuída aos procedimentos legais ou a certas normas de comportamento nas rela­ ções entre os homens. FO R M A L IZ A Ç Ã O (in. Formalisation; fr. Formalisation; ai. Formalisation; it. Formalizzazionê). Este termo é característico da lógica e da filosofia da ciência, contemporânea. Com "F. de uma teoria" entende-se o procedimento com que é construído um sistema meramente sintático de símbolos S, regido por alguns axio­ mas (e, eventualmente, por regras práticas de formação e derivação das fórmulas), dos quais, de acordo com as normas sintáticas do próprio sistema, derivam fórmulas que constituem transformações tautológicas do grupo de axio­ mas. Esse sistema sintático puro S constitui uma F. de dada teoria T (p. ex., da aritmética dos nú-

FORTALEZA

meros inteiros, da teoria dos conjuntos, ou do cálculo lógico elementar) sempre que Tseja uma interpretação verdadeira e possivelmente Z-verdadeira de S. Em geral, todas as teorias fun­ damentais das matemáticas puras contemporâ­ neas foram alvo de F.; ainda não está completa­ mente resolvido o problema da F. da lógica e, em geral, das metalinguagens empregadas pa­ ra a F. das teorias matemáticas. Entre outras coi­ sas, uma das maiores dificuldades para essa formalização de segundo grau é representada por um conhecido teorema (de Gõdel), segun­ do o qual uma teoria formalizada não pode con­ ter a prova de sua própria não contradição (v.

AXIOMATIZAÇÃO; MATEMÁTICA). G. P. FO RM ALIZADA, LING UAG EM . V. SISTEMA LOGÍSTICO. FORMAS, PLURALIDADE DAS. V. AGOS TINISMO. F Ó R M U L A (in. Formula; fr. Formule, ai. Formei; it. Formula). 1. Elemento de um cál­ culo (v.). Nesse sentido, a F. distingue-se da

proposição, que é o elemento de um sistema semântico (CARNAP, Foundations ofLogic and Mathematics, § 9). 2. O mesmo que enunciado ou proposição. 3. Mais em geral: uma seqüência finita linear de símbolos primitivos. Foi assim que A. Church definiu a F., chamando de "F. bem for­ mada" a F. que atende a certas regras funda­ mentais de uma linguagem ilntr. to Mathematical Logic, 1956, § 7). F O R M U L A ID E A L . Foi essa denominação dada por Gioberti à "proposição que expressa a Idéia de modo claro, simples e preciso", como a seguinte: "O Ente cria o existente, o existente retorna ao Ente" ijntr. ao estudo dafi­ losofia, 1840, II, pp. 147, 174; III, p. 3). A F. I. expressa o conceito neoplatônico de que o mundo provém de Deus e voltará a Deus atra­ vés do homem. F O R O ÍN T IM O (fr. For intérieur). Esta ex­ pressão origina-se da antiga frase francesa, ain­ da usada, e significa o tribunal da consciência (v.). F O R O N O M IA (in. Phoronomics; fr. Phoronomie, ai. Phoronomie, it. Foronomid). Pala­ vra criada por Lambert para indicar a doutrina que estuda as leis do movimento (Neues Organon, 1764), e retomada por Kant com senti­ do análogo {Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, 1786). fortaleza.

v. c o ra g e m .

FORTUNA FO R T U N A . V. SORTE. F O R T U IT O . O que é devido à sorte ou ao acaso (v.). F R E N O L O G L A (in. Phrenology fr. Phrénologie, ai. Phrenologie, it. Frenologia). Doutrina

que estuda as correspondências entre as dispo­ sições espirituais e a forma do crânio, es­ pecialmente suas protuberâncias. Essa doutrina foi sistematizada por F. J. Gall num livro in­ titulado Anatomia efisiologia do sistema nervo­ so (Anatomie etphysiologie du système nerveux, 1810). Hegel deu muita importância a esta pretensa ciência, enquanto dava muito menos importância a ciências mais sérias, discutindo-a longamente em Fenomenologia do espírito (I, parte 1, cap. V). Na verdade, esta obra (1807) é anterior à publicação da obra de Gall, mas o conteúdo desta última era conhecido graças às exposições que Gall fazia durante suas viagens à Europa. FREUDISMO. V. PSICANÁLISE. F R IS E S O M (O R U M ). Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o nono modo da primeira figura do silogismo, precisa­ mente o que consiste em uma premissa parti­ cular afirmativa, uma premissa universal negati­ va e uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Alguns animais são substância; nenhuma pedra é animal; logo, algumas subs­ tâncias não são pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 09) F R IS E S O S O M . Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o no­ no modo do silogismo de primeira figura (Frisesotnorum) com a diferença de assumir como premissa maior a proposição em que está o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Nenhum infeliz está contente; há pessoas contentes que são pobres; logo, há pobres que não são infelizes" (ARNAULD, Log., III, 8). FRUIÇÃO (lat. Fruitio; in. Fmition; fr. Fruition\ ai. Genus; it. Fruizione).Na Escolástica me­ dieval foi assim chamado o usufruto de Deus por parte do homem ou, em geral, por parte das criaturas racionais, na medida em que Ele constitui o fim último delas (cf. S. TOMÁS, S. Th, II, 1, q. 11, a. 3). A distinção entre a F. de Deus e uso das coisas já fora considerada fun­ damental por Pedro Lombardo, servindo de base as seções de seu Livro das sentenças (séc. XII). Também encontramos a distinção entre uso e F. em Hobbes: "Do bem que desejamos por si mesmo não fazemos uso, visto que o uso

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FUNÇÃO

é das coisas que servem de meios e de instru­ mentos, mas a fruitio é como o fim da coisa proposta" {De hom., XI, § 5). Às vezes essa pa­ lavra é usada em sentido análogo na filosofia contemporânea, p. ex. por Dewey (Fxperience and Nature, 1926, cap. 3), outras vezes com significação diferente como em S. Alexander (Space, Time andDeity, 1920), indicando a per­ cepção imediata que a consciência tem de si mesma (percepção imanente no sentido de Husserl) (v. CONSCIÊNCIA). Whitehead falou de autofruição (Autofruition) como característica da vida, porquanto esta se apropria dos proces­ sos físicos da natureza (Nature and Life, 1934, II). F U G A (ai. Flucht). Heidegger chamou de F. de si mesmo o homem entregar-se à banalida­ de da existência cotidiana. O retorno dessa F. é a angústia (v.), na qual o homem enfrenta sua maior possibilidade, que é a da morte (Sein undZeit, §§ 40, 41). Para o conceito de "F. do mundo", cf. ABBAGNANO, Introdução ao existencialismo, 1942, IV, § 4. FULGURAÇÃO (in. Fulguration; fr. Fulguration; it. Fulgurazionè). Termo com o qual Leibniz indicou o modo como as mônadas dimanam de Deus, porquanto nascem "por as­ sim dizer por meio de F. contínuas da divinda­ de de momento em momento" (Monad, § 47). Esse termo pretende ressaltar a continuidade da criação divina. FUNÇÃO (in. Function; fr. Fonction; ai. Funktion; it. Funzioné). Esse termo tem duas significações fundamentais: 1Operação. Neste significado o termo cor­ responde à palavra grega ergon, do modo como é empregada por Platão, quando diz que a F. dos olhos é ver, a F. dos ouvidos é ouvir, que cada virtude é uma F. de determinada par­ te da alma e que a F. da alma, em seu conjunto, é comandar e dirigir (Rep, I, 352 ss.). F., nesse sentido, é a operação própria da coisa, no sen­ tido de ser aquilo que a coisa faz melhor do que as outras coisas (Ibid, 353 a). Aristóteles emprega esse termo com o mesmo sentido, quando, em Etica a Nicômaco, procura desco­ brir qual é a F. ou a operação própria do ho­ mem como ser racional (Et. nic, I, 7). Além disso, insiste no caráter finalista e realizador da F.: "a F. é o fim, e o ato é a F." (Met., IX, I, 1050 a 21). Essa palavra é usada freqüentemente com esta significação tanto na linguagem cien­ tífica quanto na comum. Em filosofia, Kant cha­ mou de F. os conceitos que "se baseiam na

FUNÇÃO e s p o n ta n e id a d e do p e n sa m e n to , assim co m o as in tu iç õ e s sen sív eis se b a se ia m n a re c e p ti­ v id ad e d as im p ressõ es". E m o u tras p alavras, os conceitos são F. p o rq u e são atividade, o p eraçõ es, e não m odificações passivas com o as im p ressões sensíveis. A F. c o n c e p tu a l é d efin id a p o r K ant com o "u n id a d e do ato d e o rd e n a r d iv ersas re ­ p resen ta çõ es so b u m a re p re s e n ta ç ã o co m u m " Xcrít. R. Pura, A nal. tr a n s e , cap. I, seç. 1). C om sentido a n á lo g o , H usserl e n te n d e p o r F. a ativi­ dade da co n sc iên c ia q u e te n h a u m fim , de tal m odo q u e a c o n sid e ra ç ã o fu n cio n al su b stitu i a descrição e a classificação d as v iv ên cia s in d iv i­ duais p ela c o n sid e ra ç ã o "do p o n to de vista teleológico de su a F., q u e é a d e p o ssib ilitar um a u n id a d e sintética" (Ideen, I, § 86). A d istin ­ ção in tro d u zid a p o r C. S tu m p f e n tre ap a riç õ e s e F. p síq u icas te m o m esm o fu n d a m en to : as F. são o p e ra ç õ e s, e n q u a n to as ap a riç õ e s são m o ­ dificações p assiv as {Erscheinungen und psychische Funktionen, 1907). S cheler introduziu a m esm a d istin çã o e n tre e sta d o s e F. em o tivas: em relação ao e sta d o em o tiv o , a F. é a re a ç ã o ativa no se n tid o , p. ex., de q u e a sim p atia é um a F. q u e n ão p re s su p õ e u m a m o dificação em otiva p assiv a na p esso a q u e a se n te (Sympathie, I, cap. 3; trad. fr., p. 69). O c o n c e ito de operação p ara u m fim ou ca p a z de realizar um fm tam b ém está im p lícito no u so d essa n o ç ão pelas ciências b io ló g ic as e sociais. E m b io lo g ia, F. é a o p e ra ç ã o p o r m eio da qual u m a p arte ou u m p ro cesso do o rg an ism o c o n trib u i p ara a conservação do o rg an ism o to tal (cf., p. ex., BERTALANFFY, Modern Theories ofDevelopment, Nova Y ork, 1933, p p. 9 ss., 184 ss.). E m s o c io ­ logia a F. foi d efinida p o r D u rk h eim (Règles de Ia méthode sociologique, 1895) co m o a c o rre s­ pondência en tre u m a in stitu ição e as n e c e ssi­ dades de u m o rg an ism o social, v a le dizer, co m o a atividade pela q ual u m a in stitu ição co n trib u i para a m an u ten ç ão do o rg an ism o . C om o m e s­ m o espírito, R adcliffe-B row n define a F. de u m a atividade social re c o rre n te (co m o , p. ex ., a punição d os crim es ou u m a ce rim ô n ia fu n erá­ ria) com o "o p a p e l q u e ela d e s e m p e n h a na vida social co m o u m to d o e, p o r isso, a c o n ­ tribuição q ue ela dá para a m a n u te n ç ã o d a c o n ­ tinuidade estrutural" (Structure and Function in Primitive Society, 1952, p. 180). A significa­ ção de o p e raç ão ou de ação d irigida p ara um fim e capaz de realizá-lo p re d o m in a em to d as essas n oções.

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FUNÇÃO v e z p o r in ic ia tiv a p e sso a l d e ste ú ltim o (v. Mathematische Schriften, ed. G erh a rd t, I, p. 268) — inferiu do significado acim a o co n ce ito m a te m á tic o de F., m as a p rim eira ten tativ a de d efin i-lo foi feita p o r J o h a n n B ern o u illi em 1718 (cf. Opera, 1742, II, p. 241). H oje em dia, as d efin içõ es q u e os m atem ático s d ão d esse c o n c e ito de F. v ariam m u ito , m as em geral p o ­ d e m o s d izer q u e se trata de u m a regra q u e u n e as v a ria ç õ e s de certo te rm o ou de u m g ru p o de te rm o s co m as v a ria ç õ e s de o u tro te rm o ou g ru p o de te rm o s. N a F. d istin g u e-se a variável dependente, q u e é a p ró p ria F., e as variáveis independentes ou argumentos (v.), cujas v aria­ çõ e s são c o n sid e ra d a s d ad as ou d eterm in áv eis a rb itra riam en te . P eirce afirm a: "D izer q u e u m a q u a n tid a d e é a F. d ad a de certas q u a n tid a d e s q u e v a le m co m o a rg u m e n to s significa dizer s im p le sm e n te q u e os v alo re s d ele s estã o em d ad a re la ç ã o co m os v a lo re s d o s arg u m en to s, ou q u e u m a p ro p o siç ã o d ad a é v e rd a d e ira em to d o o conjunto de v alo res de sua o rd em . D izer sim p lesm en te q u e u m a q u a n tid ad e é uma F. de certas o u tra s significa n ad a dizer, já q u e se p o d e d izer o m esm o d e cad a co n ju n to de v a lo ­ res. Isso to d av ia n ã o to rn a -in ú til a p alav ra F., assim co m o d izer q u e u m co n ju n to de coisas q u e têm e n tre si alg u m a re la ç ã o n ão to rn a in ú ­ til a p alav ra re la ção ." D esse p o n to de vista, F. é a o p e ra ç ã o de ap licar efetiv am en te a regra q u e interliga as v a ria ç õ e s de d ois co n ju n to s de q u a n tid a d e s d e tal m o d o q u e se en c o n tre m os v alo res de algu m as d essas q u a n tid ad es q u a n d o os o u tro s são d a d o s (Coll. Pap, 4, 253). A ló g i­ ca c o n te m p o râ n e a a d o to u o c o n c e ito m atem á­ tico de função; e m p re g a o sím b o lo m atem ático d e F .,/C x ), p ara in d icar p ro p o siç õ e s da form a "a b ale ia é u m m am ífero", em q u e o sím b o lo x re p re s e n ta o a rg u m e n to , o sujeito do q ual se fala (a b ale ia ou o u tro m am ífero q u a lq u e r), ef c o rre s p o n d e à p ro p rie d a d e q u e se lh e atribui (m am ífero). O s in a l/ta m b é m é ch a m a d o de F. proporcional ou predicado. O objeto ao qual ele c o rre s p o n d e , ou seja, a p ro p rie d a d e d e n o ­ tad a, ch a m a -se ta m b é m F. situacional. Ser m a ­ m ífero é, p. ex., a p ro p rie d a d e ou F. situ acio n al d e n o ta d a p elo p re d ic a d o ou F. p ro p o sic io n a l "m am ífero".

O u so do co n ceito de F. n as ciências te n d e a s u p la n ta r o do c o n ce ito de cau sa, p o d e n d o ser co n sid e rad o e q ü ip o len te ao u so do co n ceito de c o n d içã o . E xp ressa a in te rd e p e n d ê n c ia d os fe­ 2- R elação. N o final do séc. XVI, o g ru p o de n ô m e n o s e p erm ite a d e te rm in a ç ã o q u a n tita ti­ v a d essa in te rd e p e n d ê n c ia sem p re s su p o r ou m atem áticos ao q u al p e rte n c ia L eibniz — e ta l­

FUNÇÃO PROPOSICIONAL assu m ir n ad a s o b re a p ro d u ç ã o d e u m fe n ô m e ­ no p o r p arte de o u tro . Já em 1886 M ach teria su g erid o q u e o co n ceito de F. deveria su p la n ta r o co n ce ito trad ic io n a l d e ca u sa lid a d e , p o r e n ­ te n d e r a d e p e n d ê n c ia re c íp ro c a d o s fe n ô m e ­ n o s (Analyse derEmpfindungen, 9 a ed., 1922, p. 74). N um estu d o de 1910 {Substanzbegriff und Funktionsbegriff) C assirer m o strav a a red utib ilidade de b o a parte d as n o ç õ e s científicas ao c o n c e ito de fu n ção . M ais re c e n te m e n te , D ew e y insistiu na d iferen ça de sign ificad o q u e esse c o n ce ito te m em física e em m atem ática. Q u a n d o se diz "o v o lu m e d e u m g ás é F. da te m p e ra tu ra e d a p ressã o ", d e sc o b re -se e verifi­ ca-se esta fó rm u la co m o p e ra ç õ e s de o b s e rv a ­ ção ex p erim en ta l: p o rta n to , a fó rm u la é co n tin ­ g e n te , assim co m o é c o n tin g e n te a re la ç ã o q u e ela d eterm in a. C o n tu d o , no caso da p ro p o siçã o y = X , cad a o p e ra ç ã o q u e co n fere u m v alo r a x ou a y in stitu i n e c e ssa ria m e n te u m a m o difica­ ção co rre sp o n d e n te no v alo r do o u tro m em b ro da e q u a ç ã o , e a o p e ra ç ã o d e atrib u ir u m v alo r é in te ira m en te d e te rm in a d a p elo sistem a do q ual a e q u a ç ã o faz p a rte {Logic, cap. XX , § 5; trad. it., p. 539). M as o b v ia m e n te esta d ife re n ­ ça n ão m odifica o p ró p rio co n ceito de F., cujas características p e rm a n e c e m c o n sta n te s em to ­ d as as ciên cias c o n te m p o râ n e a s q u e o u tilizam a m p la m en te . F U N Ç Ã O P R O P O S IC IO N A L (in. Propositional function; fr. Fonction propositionnelle, ai. Funktion; it. Funzioneproposizionalé). Esta n o ç ã o , in tro d u z id a p o r F rege (1879) e m ais ta r­ d e a m p la m e n te d e s e n v o lv id a p o r R ussell e W h ite h e a d em Principia mathematica, hoje é o o bjeto d e u m d o s ca p ítu lo s fu n d a m en tais da L ógica. A F. p ro p o sic io n a l é u m a F. q u e , c o n ­ fo rm e o n ú m e ro d as v ariáv eis in d e p e n d e n te s , é ch a m a d a de monãdica, diãdica..., n-ãdica, cuja su b stitu iç ão p o r sím b o lo s d e n o ta d o s p ro ­ d u z p ro p o siç õ e s q u e são seu s valores. P. ex.: "Sócrates é m ortal" é u m v alo r da F. p ro po sicio n al m o n á d ica , "x é m o rtal". S e a F. p ro p o sic io n a l é m o n á d ica , ta m b é m é c h a m a d a d e predicado (R ussell) ou d e propriedade, de o u tra m a n e i­ ra, é c h a m a d a d e relação (d iád ica, triád ic a... , n -ádica). A F. p ro p o sicio n al ta m b é m é passível d e o utras o p e ra ç õ e s (e n isso re sid e seu g ra n d e in teresse p ara a L ógica) q u e a tran sfo rm am em sím b o lo s d esig n a n tes: assim , u m a F. "O x" é tran sform ad a p elo o p e ra d o r "todos" [na n o ta ­ ção de R ussell, "Oc)."l na p ro p o siç ã o u n iv ersal "todos os x s ã o í>" [na n o ta ç ã o de R ussell, "(x) O x"]; p elo o p e ra d o r ex isten cial [na n o ta ç ã o de

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FUNDAMENTO R ussell, "(3x)"], na p ro p o siç ã o p artic u la r "pelo m e n o s u m xê O " [na n o ta ç ã o de R ussell, "(3x). < £ > x " ] ;p e lo o p e ra d o r "x "(nano taçãod eR u ssell) ou X (na n o ta ç ã o m ais re ce n te) é transform ada na d escriçã o ab strata da classe d o s x q u e são 4> [na n o ta ç ã o de R ussell, "x O x" ou "XOx"]. F U N C IO N A L (in. Functional; fr. Fonctionnel; ai. Funktional; it. Funzionalè). A s sig­ n ific a ç õ e s d e s te ad je tiv o c o rr e s p o n d e m às s ig n ific a ç õ e s fu n d a m e n ta is do su b sta n tiv o c o rre s p o n d e n te . A o Ia sign ificad o co rresp o n ­ d em os d as e x p re ssõ e s "p sico lo gia F." ou "aná­ lise s o c io ló g ic a F.". A o 2° sig n ific a d o cor­ r e s p o n d e m os s ig n ific a d o s d as e x p re ssõ e s "co rrelação F." ou "cálculo F.". A p sico lo g ia F., cujos fu n d a m e n to s fo ram d efe n d id o s especial­ m e n te p o r P eirce, J a m e s, M ead e D ew ey , con­ sid e ra os p ro c e sso s m en ta is co m o o peraçõ es atrav és d as q u ais o o rg a n ism o b io ló g ic o adap­ ta -se ao a m b ie n te e o d o m in a (cf. MORRIS, Six Tbeories ofMind, C hicago , 1932, cap . VI). A a n á lise F. em so c io lo g ia te n d e a m o strar "o p a p e l q u e as in stitu iç õ e s d e s e m p e n h a m n a to­ ta lid a d e de u m sistem a cu ltural", co m o afirma M alin o w sk i, o u, em o u tro s te rm o s, a contribui­ çã o q u e u m a in stitu ição d á p ara a m an u ten ção do co n ju n to social de que faz p a rte (MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, pp. 20 ss.). P or o u tro la d o , "co rrelação F." é uma re la ç ã o de d e p e n d ê n c ia re cíp ro c a, d e acordo co m o 2° sign ificad o de fu n ção . "C álculo F." é a q u ela p a rte d a ló g ica q u e an alisa a estrutura in tern a d as p ro p o siç õ e s, in d icad as p elo sím bo­

lo f (x). FUNCIONALISMO. V. PSICOLOGIA, F.

F U N C T O R (in. Functor, fr. Functor, ai. Funktor, it. Funtoré). C om esse te rm o os lógi­ c o s in d ic a m o s in a l d e u m a fu n ç ã o não p ro p o sic io n a l, isto é, n u m é ric a (REICHENBACH, Elements ofSymbolic Logic, 1947, p. 312; CAR­ N A P, Meaning andNecessity, § 2). F U N D A M E N T O (gr. a m a , Aóyoç; lat. Ratio, in. Foundation; fr. Fondement; ai. Grund; it. Fondamentó). C ausa, no se n tid o de razão de ser. Esta é u m a d as sign ificaçõ es p rin cipais do te rm o "causa", g raç as à q u al c o n té m a expli­ c a çã o e ju stifica çã o ra cio n al da coisa da qual é cau sa. A ristó teles diz: "A creditam os conhe­ ce r u m o b jeto d e m a n e ira a b so lu ta — não a c id e n ta lm e n te ou de m o d o sofistico — quan­ do ac re d ita m o s c o n h e c e r a cau sa p o r que a coisa é e acred itam o s co n h e ce r q u e ela é causa da coisa e q u e esta n ão p o d e se r de outra ma­ n eira" (An. post., I, 2, 7 1b 8). N esse senti­

FUNDAMENTO do, cau sa é ra zã o , logos (Depari an., I, 1, 639 b 15), p o is n ão só p e rm ite c o m p re e n d e r a o co rrência de fato da co isa, m as ta m b é m o seu "não p o d e r ser de o u tra m an eira", su a n e c e ss i­ dade racio n al. N a d o u trin a aristo télica, p o rta n ­ to, assim co m o em to d as as q u e dela p ro vêm , a cau sa-razão é u m c o n c e ito o n to ló g ic o q u e ex ­ pressa a n e c e ss id a d e do se r e n q u a n to s u b stâ n ­ cia. É n e sse se n tid o q u e H eg el u sa esse c o n c e i­ to: "O F. é a essê n cia q u e é em si e esta é essen cialm en te F.; e F. só é co m o F. d e alg u m a coisa, de u m o u tro " {Ene, § 121). D e fato, n e s ­ se sen tid o F. é "a essê n cia p o sta co m o to ta lid a ­ de" (Ibid., % 121), a ra z ã o da n e c e ss id a d e de um a coisa, co m o ju lg a v a A ristó teles. E m L eibniz, to d av ia, essa n o ç ã o ad q u iriu sentido d ife re n te e esp ecífico , d istin g u in d o -se n itidam en te d a n o ç ã o de cau sa essen cial ou substância n ec essária : p assa a d e sig n a r u m a conexão falha de n e c e ssid a d e , m as c a p az de possibilitar o e n te n d im e n to ou a ju stificação da coisa; o p rin c íp io d esta c o n e x ã o é c h a m a ­ do de princípio de razão suficiente {Principium rationis sufficientis, Satz vom zureichenden Grundé). L eibniz ch e g a à fo rm u la çã o desse p rin cíp io a tra v é s da c o n tra p o siç ã o en tre a co n ex ão livre m as d e te rm in a n te e a c o n e x ã o necessitante. Ele diz: "A c o n e x ã o ou c o n ca tenação é de d u a s esp écies: u m a é a b s o lu ta m e n ­ te necessária, d e tal m o d o q u e seu co n trá rio implica co n tra d içã o , e tal c o n e x ã o verifica-se nas v erd ad e s e tern a s, co m o as da g eo m etria; a segunda só é n ecessária ex bypotbesie, p o r as­ sim dizer, p o r a c id e n te , s e n d o c o n tin g e n te em si m esm a, u m a v e z q u e o seu co n trá rio n ão im ­ plica co n trad ição ." Esta s e g u n d a c o n e x ã o v e ri­ fica-se na relação e n tre u m a su b stân cia in d iv i­ dual e suas açõ es: p. ex., o fu n d a m en to do fato de C ésar ter atra v e ssa d o o R ub icâo está, sem dúvida, na p ró p ria n a tu re z a de C ésar, m as isso não indica q u e esse a c o n te c im e n to seja n e c e s ­ sário em si m esm o ou q u e o seu co n trá rio im ­ plique co n trad ição . D a m esm a m an eira , D eu s sem pre esco lh e o m elh o r, m as e sc o lh e -o li­ vrem ente, e o co n trário do q ue esco lh e n ão im ­ plica co n trad ição . "T oda v e rd a d e fu n d ad a n e s ­ ses tipos de d ec reto s é co n tin g e n te , c o n q u a n to certa, p o rq u e esses d e c re to s n ão m u d a m a p o s ­ sibilidade das coisas; e ap e sar de D eu s, co m o já disse, sem p re e sc o lh e r in d u b ita v e lm e n te o melhor, isso n ã o im p e d e q u e o q u e é m en o s perfeito n ão seja e c o n tin u e p o ssív e l em si m esm o, ainda q u e n ão ac o n te ça , p o rq u e n ão é sua im p o ssibilid ade q u e o faz rep elir, m as sua

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FUNDAMENTO im p erfeição . O ra, n a d a é n ec essário cujo o p o s ­ to seja p o ssív el" {Disc. de mét., 1686, § 13). C o m o m o stram os te x to s de L eibniz, o F. ou razão suficiente tem u m a ca p acid a d e explicativa diferente da cau sa ou razão de ser de A ristóteles. Esta últim a ex p lica a necessidade d as coisas, p o r q u e a co isa n ã o p o d e ser d iferen te do que é. O fu n d a m e n to ou razão su ficien te explica a possibilidade da. coisa, ex p lica p o r q u e a coisa p o d e ser ou c o m p o rta r-se de certa m aneira. F oi e x a ta m e n te p o r isso q u e L eib n iz d estin o u o p rin c íp io d e ra z ã o su ficien te a serv ir d e fu n d a­ m en to d as v e rd a d e s co n tin g e n te s, c o n tin u a n ­ do a adm itir, co m o fizera A ristó teles, o p rin cí­ p io d e c o n tra d iç ã o co m o b a se d as v e rd a d e s n e c e ssá ria s (De scientia universali, em Opera, ed. E rd m an n , p. 83). T o d av ia , foi só K ristian W olff q u e atrib u iu ao p rin c íp io do F. (ou p rin ­ cípio da razão suficien te) a co n d iç ã o de p rin cí­ p io de to d a a filosofia e do seu m é to d o . Foi co m b ase n ele q u e W olff definiu a filosofia co m o "ciência d as co isas p o ssív e is e e n q u a n to p o ­ d em existir" (Log., D isc. p rael., § 29) e c o n sid e ­ ro u co m o tarefa fu n d a m en tal d ela d ar a "razão p ela q u al as co isas p o ssív e is p o d e m ch e g a r a ser" (Ibid., § 31). D esse p o n to de v ista, to d a a ativ id ad e filosófica co n siste n a d e te rm in a ç ã o do F. (r a fe , Grund), e n te n d e n d o p o r F. "a ra ­ zão pela q ual algum a coisa é ou aco ntece" (Ibid., § 4). W olff, to d av ia, re in te g ra v a o p rin c íp io de razão suficiente na significação necessarista. D istin g u ia o principium essendi, q u e c o n té m a ra z ã o da possibilidade da coisa, do principium fiendi (ou do ac o n te ce r) q u e c o n tém a razão d a realidade (Ont., § 874), b e m co m o o principium cognoscendi, co m o q ual e n te n d ia "a p ro p o siç ã o p o r m eio da q u al se c o n h e c e a v e r­ d a d e d e o u tra p ro p o siç ã o " (Ibid, § 876). Está claro q u e ta n to o principium fiendi (que é o p rin cíp io d a cau salid ad e) q u a n to o principium cognoscendi (q u e é a d em o n stra çã o ) têm ca rá­ ter n e c e ssita n te , aliás ta m b é m p re se n te n a o bra d e B au m g a rten , q u e te n d e a in tegrá-lo n o de c o n tra d iç ã o (Met., § 20). Esta te n d ê n c ia era p re ­ d o m in a n te na esco la w o lfia n a (cf. CASSIRER, Erkenntnissproblem, V II, cap . 3; trad. it., II, p p. 596 ss.) e só sofreu a o p o siç ã o d e C rusius, q u e insistia n a d istin çã o do p rin cíp io de razão sufi­ c ien te do p rin cíp io d e c a u salid ad e, ju sta m e n te p ara ex clu ir do p rim e iro o caráter n e c e ssita n te (De usu et limítibusprincipii rationis determínantis, 1743, § 4), co rreç ão q u e K ant aceito u n u m a de su a s p rim eiras o b ras (Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova

FUNDAMENTO dilucidatio, 1755). Depois de Crusius, todavia, o caráter não necessitante do princípio de ra­ zão suficiente — caráter que convencera Leibniz de admiti-lo como um princípio em si — desa­ pareceu completamente. A mesma distinção estabelecida por Crusius entre princípio de ra­ zão suficiente e princípio de causalidade serviu para considerar os dois princípios como duas expressões do princípio de necessidade. Esse foi justamente o caminho seguido por Schopenhauer em sua obra Die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde (1813). Schopenhauer enumerava quatro formas do princípio de razão suficiente, ou seja, ao lado das duas distinguidas por Crusius, punha o princípio de razão suficiente do ser, que rege as relações entre os entes matemáticos, e o princípio de razão suficiente do agir, que rege as relações entre as ações e seus motivos. Con­ tudo, o caráter não necessitante do F. é confu­ samente reconhecido nos seus usos metafísicos. Schelling, em Untersuchungen üherdas Wesen dermenschlichen Freiheit (1809), entendeu por F. o desejo ou a vontade de viver, de que de­ pende tanto a existência do homem quanto a de Deus. Neste sentido, F. não é, obviamente, uma causa necessitante. Com sentido análogo, Heidegger disse: "a liberdade é o F. do F.". Explica: "A liberdade, por ser o fundo deste F., também é o abismo (sem fundo) do ser-aí. Não que seja infundado o relacionamento indivi­ dual e livre, mas no sentido de que a liberdade, em sua natureza essencial de transcendência, põe o ser-aí, como poder-ser em possibilida­ des que se estendem diante de sua escolha finita, ou seja, em seu destino" (Vom Wesen des Grundes, 1928, III; trad. it., pp. 77-78). Em outras palavras, para a existência humana o F. é o enraizamento no mundo, em virtude do que possibilidades projetadas são limitadas e comandadas pelo próprio mundo. O F. expressa o condicionamento que o mundo exerce sobre o homem em virtude do seu enraizamento no mundo. Emerge claramente desses textos o traço ca­ racterístico da noção em exame, que é expres­ sar um condicionamento não necessitante. Essa é de fato a significação mais comum e geral do termo tanto na linguagem comum quanto na filosófica. F. é o que explica uma preferência, uma escolha, a realização de uma alternativa e não de outra. Fala-se em F. todas as vezes em que a preferência ou a escolha é justificada ou quando a realização da alternativa é explicável.

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FUTUROLOGIA

Do mesmo modo, princípio "fundamental" é o que estabelece a condição primeira e mais geral pela qual alguma coisa possa existir, e ciência fundamental é a que contém as con­ dições que tornam possíveis as outras ciências (nesse sentido Wolff chamava a ontologia de Grundwissenschafí). Pode-se dizer, portanto, que no uso moderno essa palavra não tem sig­ nificação diferente de condição (v.). O iluminismo alemão do séc. XVIII, que ela­ borou o conceito de F., também elaborou a no­ ção de método do F. (ai. Grundlichkeii), cujas re­ gras foram ditadas por Wolff no IV capítulo do Discurso preliminar de Philosophia rationalis, e assim resumidas por Kant no prefácio da segun­ da edição da Critica da Razão Pura-. "Algum dia, no sistema futuro da metafísica, cumprirá seguir o método do célebre Wolff, o maior dos filósofos dogmáticos, o primeiro a dar exemplo (graças ao qual se tornou, na Alemanha, o criador do espíri­ to de Grundlichkeit que ainda persiste) de como se pode tomar o caminho seguro da ciência esta­ belecendo os princípios com regularidade, deter­ minando os conceitos com clareza, procurando o rigor das demonstrações e negando-se a dar sal­ tos na dedução das conseqüências." O método da fundamentação consiste em aduzir o F., ou seja, a razão justificativa, a cada passo do filoso­ far, e dele a filosofia ainda pode esperar uma sal­ vaguarda do arbítrio. F U R O R H E R Ó IC O . V. en tusiasm o . FU Sà O (in. Fusion; fr. Fusion; ai. Fusion; it, Fusioné). Termo usado em psicologia para in­ dicar uma forma de associação. Scheler vê na F. afetiva uma indicação da unidade metafísica do mundo da vida; essa unidade, porém, não eli­ mina a diversidade das pessoas, mas sim exi­ ge-as (Sympathie, I, cap. 4, §§ 3-5; trad. fr. pp. 108 ss.). F U T U R IÇ Ã O (in. Futurition; fr. Futurition; it. Futurizionè). Leibniz designa assim a deter­ minação dos acontecimentos futuros, possibi­ litando a Deus a sua previsão infalível (Théod., I, § 37) (v. PREDETERMINAÇÃO). Ortega y Gasset usa esse termo para indicar a orientação da vida humana em direção ao futuro. FU T U R O (in. Future, fr. Avenir, ai. Zukunfi; it. Avvenirê). Quanto ao primado do F. sobre as outras determinações do tempo em algumas formas de filosofia contemporânea, v. TEMPO. F U T U R O L O G IA (in. Futurology, fr. Futurologie, ai. Futurumlogie, it. Futurologid), Ter­ mo empregado por O. K. Flechtheim, a partir de 1943, para designar a ciência das perspecti­

FUTUROLOGIA v as p ro v á v e is do fu tu ro d e stin o do h o m e m , da so c ie d a d e e da cu ltura. Essa ciên cia n ã o p re ­ te n d e to m ar co m o b a se a p e n a s os d a d o s d as ciên cias ex a tas, m as in tro d u z ir "h ip ó teses de

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FUTUROLOGIA g ra n d e alc a n c e e te o ria s re fe ren te s às p e rs p e c ­ tivas do u n iv e rso , à futura ev o lu çã o da T erra e do clim a, d a flora e da fauna" (History and Futurology, 1966).

G GARANTIA (in. Security; fr. Assumnce; ai. Assecuranz; it. Assicurazioné). Royce sugeriu

um sistema de G. para realizar o que ele cha­ mava a "Grande comunidade" humana. A G. é, com efeito, uma associação baseada no princí­ pio triádico da interpretação: assim como nes­ ta há o intérprete que interpreta alguma coisa para alguém, assim na G. existem, na relação, o que é garantido, o garantidor e o beneficiário {A esperança na Grande comunidade, 1916). Royce também sugeriu a G. contra a guerra {Guerra e G, 1914). GEGENSTANDSTHEORIE. Teoria dos ob­ jetos, especialmente na forma que assumiu na obra de A. Meinong (v. OBJETO). GENERALIZAÇAO (in. Generalization; fr. Généralisation; ai. Verallgemeinerung; it. Generalizzazionè). Operação de abstração que dá ensejo a um termo ou uma proposição ge­ ral. Algumas vezes também se dá o nome de G. à indução (v.) ou à construção de uma hipótese (v.) que com mais propriedade deveriam ser chamadas de operações de universalização. Fala-se de G. principalmente em matemática. "Ampliar um domínio com a introdução de no­ vos símbolos, de tal modo que as leis válidas no domínio originário continuem valendo no domínio mais amplo, é um dos aspectos do característico procedimento matemático de G. A G. a partir dos números naturais para os racionais satisfaz tanto a necessidade teórica de remover as restrições para a subtração e a divisão, quanto a necessidade prática de que os números expressem os resultados de certas medidas. Essa ampliação do conceito de nú­ mero tornou-se possível com a criação de no­ vos números sob forma de símbolos abstratos, como 0, - 2, 3/4" (COURANT-ROBBINS, What is Mathematics?, II, § 2; trad. it., p. 109).

GÊNERO (gr. TEVOÇ lat. Genus; in. Genus, fr. Genre; ai. Gattung; it. Generè). Aristóteles distinguiu três significações desse termo: Ia ge­ ração, particularmente "a geração contínua de seres que têm a mesma espécie", e neste senti­ do diz-se "G. humano"; 2- estirpe ou raça como "primeiro motor" ou "aquilo que deu ser às coi­ sas de uma mesma espécie"; neste sentido falase do G. dos helenos porque descendem de Heleno ou do G. dos jônios porque descendem de Jônio; 3a o sujeito ao qual se atribuem as oposições ou as diferenças específicas, e neste sentido o G. é o primeiro constituinte da defini- : ção (Afeí., V, 28,1024 a 30 ss.). Essas três signifi- i cações já haviam sido usadas ocasionalmente | por Platão (para a primeira delas, v., p. ex., 0 j Banq., 190 c; para a segunda, O Banq., 191 c; j Ale. I., 120 e). Platão deu maiores explicações j sobre o terceiro sentido, que é o mais estrita- f mente filosófico, dizendo: "Cada figura é seme- I lhante a outra figura, porque no gênero todas as I figuras formam um todo. No entanto, as partes í do gênero ou são contrárias umas às outras ou I são diferentíssimas entre si" (Fil., 12 e). Para Aristóteles essa significação também é a mais importante e, em vista disso, pode-se dizer que o G. (juntamente com a espécie) é substância segunda. Aristóteles diz: "Só as espécies e os > G., além das substâncias primeiras, são chama- i das substâncias segundas: só eles manifestam : a substância primeira das coisas às quais se atribuem predicados. Será possível explicar o que é um homem só aduzindo a espécie ou o G.; e dizendo-se que é um homem, estaremos explicando melhor do que se o chamássemos í simplesmente animal? No caso de se aduzir ai- ; gum outro predicado, dizendo, p. ex., que eleé branco ou que corre, estar-se-á dizendo alguma > coisa que é alheia ao objeto em questão" (Cat., ; 5, 2 6 28 ss.). Em outros termos, os G. e as *

GENÉTICA

espécies são "substâncias segundas" porque entram na composição da definição da "subs­ tância primeira", ou seja, da essência necessária (v. SUBSTÂNCIA). "Como a substância é a essên­ cia necessária e a expressão desta é a defini­ ção (...) e como a definição é um discurso e um discurso tem partes, foi necessário distinguir quais são as partes da substância e quais não são, e se estas também são partes da definição; assim vemos que nem o universal nem o G. é substância" (Met., VIII, I, 1042 a 16 ss.). O G. não é substância, mas componente necessário da essência necessária, que é a substância. Dessa formulação de Aristóteles nasceu a contenda medieval dos universais (v.). Os uni­ versais são de fato o G. e a espécie. A outra alternativa fundamental para a solução da discussão foi proposta pelos estóicos, que de­ finiram o G., de modo nominalista, como "a conjunção de noções diferentes e permanen­ tes, como p. ex. animal, que abrange como suas espécies todos os animais" (DIÓG. L. VII, 60). Na filosofia moderna e contemporânea a palavra G., assim como a palavra espécie, ain­ da é esporadicamente empregada, mas sem as implicações ontológicas que possuía em Pla­ tão e Aristóteles. Além disso, em lógica, foi completamente suplantada pelo conceito de classe(v) . GENÉTICA (in. Genetics- fr. Génétique; ai. Genetik; it. Genética). Uma das ciências bioló­ gicas mais recentes e mais bem organizadas, que contribuiu decisivamente para o progresso dos estudos biológicos. Seu objeto específico é a transmissão das características hereditárias dos organismos de uma geração para outra e, por conseguinte, a mutação que os organismos sofrem em suas características hereditárias. O fundador da G. moderna foi o abade austríaco Gregor Mendel, que em 1866 publicou os re­ sultados de algumas de suas experiências so­ bre a hibridação de diferentes espécies de ervilhas e formulou as leis que até hoje rece­ bem seu nome. Essas leis exprimem um fato experimental que desmentia as crenças univer­ salmente aceitas até aquele momento. Acredita­ va-se, p. ex., que dois indivíduos, um genitor de pele branca e um outro de pele negra, ge­ rassem filhos de pele morena, e que estes indi­ víduos, unidos com outros de pele morena, gerassem filhos morenos, como se os dois caracteres ou tipos de "sangue" se houvessem misturado para sempre, assim como o leite se mistura ao café e não podem mais ser separa­

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dos. As leis de Mendel afirmam que os filhos provenientes da união de indivíduos que têm caracteres diferentes apresentam, pois, uma mistura de tais caracteres, mas não os transmi­ tem a seus descendentes, nos quais esses ca­ racteres vão se separando em proporções esta­ tísticas bem definidas. A G. moderna indica com o nome de gene o corpúsculo germinal portador de determinada característica física. O gene é uma unidade, ou seja, não se mescla. As características herdadas de um organismo re­ presentam o resultado da ação recíproca de seus genes. Habitualmente um ou dois pares de genes são os principais responsáveis pelas variações que se observam em determinados caracteres do organismo. Os genes dispôemse em ordem definida nas partes da célula chamadas cromossomos. Nem todas as características de um organis­ mo apto são determinadas pelos genes; por outro lado, em decorrência da ação recíproca entre os genes alguns caracteres tendem a de­ saparecer (são chamados recessivos) e outros a fortalecer-se (são chamados dominantes). Por­ tanto, um único gene pode exercer efeitos dís­ pares sobre o organismo, e o mesmo efeito pode ser produzido por combinações díspares de genes. Estas duas verificações privam a transmissão das características orgânicas do caráter de necessidade. Os geneticistas usam a palavra expressividade para indicar a medida em que o efeito de determinado gene se mani­ festa no indivíduo que o possui, e a palavra pe­ netração do gene para indicar a porcentagem de indivíduos que, possuindo o gene, manifes­ tam seus efeitos. O emprego desses termos demonstra que, entre a posse do gene e seu efeito (uma característica física), não há rela­ ção de necessidade, mas só uma relação esta­ tística, cujas condições podem ser determina­ das em cada caso. O gene não age como causa infalível, como força que produz necessaria­ mente determinados efeitos. As condições que delimitam seus efeitos são: Ia interação de to­ dos os genes; 2- ambiente. Esses conceitos da G. foram confirmados e desenvolvidos decisivamente pela bioquími­ ca. Hoje se sabe que o principal componente dos cromossomos é o ácido desoxirribonucfôco(DNA), cuja estrutura molecular foi defi­ nida por Watson e Crick em 1953 como um par de espirais que, quando separadas, podem, individualmente, reunir em torno de si os resí­ duos moleculares necessários à reconstrução

GENÉTICA

da espiral dupla original. O DNA é composto por quatro bases nucleotídicas que costumam ser indicadas com as letras C, T, G e A, consi­ deradas um alfabeto genético. Assim como as formas, poucas das quais constituem palavras e frases significantes (capazes de comunicar informações), os elementos do alfabeto genético podem combinar-se em numerosas formas, algumas das quais transmitem a mensagem ge­ nética, ou seja, determinam com certa probabi­ lidade a transmissão de caráter hereditário. Por­ tanto, o material genético é semelhante a uma mensagem escrita que, uma vez recebida pelo organismo, dirige e controla seu desenvolvi­ mento. Viu-se também que cada palavra do código genético é constituída por uma série de três de suas bases {tripletó); o gene é então concebido como uma seqüência de tripletos no DNA, e a mutação consiste na substituição de uma das letras do tripletó por outra. Essas subs­ tituições ocorrem aleatoriamente e constituem a única origem possível das modificações do texto genético e, portanto, das estruturas here­ ditárias do organismo. Quando tais modifica­ ções são nocivas à adaptação do organismo ao ambiente, produzem em escala macroscópica a senescência ou a morte do organismo. Contra a disseminação da G. moderna, um grupo de cientistas russos sustentou durante certo tempo a doutrina de Michurin, que, gra­ ças ao apoio de Lysenko, teve aprovação ofi­ cial da ciência soviética durante os anos de estalinismo. A doutrina de Michurin é uma for­ ma de lamarckismo, pois parte da crença no poder criativo do ambiente biológico. "A he­ rança", diz Lysenko, "é efeito da concentração das condições externas, assimiladas pelo orga­ nismo durante uma série de gerações ante­ riores." Isso nada mais é que o postulado da ri­ gorosa causalidade do ambiente. A doutrina de Michurin nega, portanto, todos os instrumentos conceptuais do probabilismo mendeliano: a não-hereditariedade dos caracteres adquiridos e até a existência do gene. Contra a tese funda­ mental de Michurin, J. Huxley observou: "Os lamarckianos e os partidários de Michurin têm razão quando sustentam que há uma relação entre o ambiente e os caracteres da adaptação do organismo. Enganam-se, porém, quando su­ põem que essa relação é simples e direta. Ela é complexa e indireta: as mutações ocorrem aleatoriamente e a seleção conserva as poucas mutações que favorecem os indivíduos naque­ le ambiente específico. Este é um dado de fato

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GÊNIO

científico, que nenhuma consideração apriori pode alterar" (Soviet Genetics and World Scien­ ce, trad. it., p. 151). Os conceitos de mutação aleatória e de seleção continuam sendo funda­ mentais na G. moderna. Monod escreveu: "As alterações genéticas são acidentais, ocorrem aleatoriamente. E como constituem a únicaongem possível das modificações do texto genéti­ co, que, por sua vez, é o único depositário das estruturas hereditárias do organismo, segue-se necessariamente que o acaso é a única origem de qualquer novidade e de qualquer criação na biosfera" (Le hasard et Ia necessite, 1970, p. 127). ^ GENÉTICO (in. Genetic, fr. Génétique- ai. Genetisch; it. Genético). Aquilo que pertence à geração ou efetua-se através da geração. Neste último sentido, Hobbes falou de definição ge­ nética ou por generationem. "A razão pela qual as coisas que têm causa e geração devem ser definidas através da causa e da geração é esta: o fim da demonstração é a ciência das causas e da geração das coisas, e, se não se tiver essa ciência na definição, não se poderá tê-la tam­ pouco na conclusão do silogismo que dela par­ te" {Decorp, VI, § 13). Essa noção passou mais tarde para a lógica de Wolff, que entendeu por definição genética "a definição que expõe a gê­ nese de uma coisa, ou seja, a maneira como ela pode realizar-se" (Log, § 195). O conceito desta definição está ligado ao princípio exposto por Hobbes em De homineÇK, § 5), qual seja: só se pode ter ciência demonstrativa das coisas que podem ser produzidas (como os entes matemá­ ticos e os entes morais ou jurídicos), porque delas se conhece seguramente a causa. A par­ tir da segunda metade do séc. XIX esse adjeti­ vo, particularmente quando se referia a ciên­ cias ou a partes de ciências, passou a ter signi­ ficado ligado ao de evolução (v.); uma teoria genética geralmente é a consideração do de­ senvolvimento evolutivo da coisa à qual a teo­ ria se refere (p. ex., "psicologia genética" = es­ tudo da evolução psíquica). GÊNIO (in. Genius-, fr. Génie; ai. Genie; it. Gênio). A partir da segunda metade do séc. XVII passou-se a indicar com esse termo (que, segundo Varrão, na origem indicava "a divinda­ de que é preposta a cada uma das coisas ge­ radas e que tem a capacidade de gerá-las", S. AGOSTINHO, De civ. Dei, VII, 13) o talento inventivo ou criativo nas suas manifestações superiores. Pascal já usa essa palavra com esse sentido: "Os grandes gênios têm seu império,

GÊNIO

seu esplendor, sua grandeza, suas vitórias e não precisam das grandezas carnais, que não têm relação com o que eles procuram" (Pensées, 793). E La Bruyère dizia: "E menos difícil para os grandes gênios topar com coisas grandes e sublimes do que evitar qualquer espécie de erro" {Caracteres, 1687, cap. 1). A estética do séc. XVII reduziu a noção de G. ao domínio da arte. Kant (provavelmente inspirado numa obra inglesa de GERARD, Essay on Genius, Ill4t) de­ fende este ponto de vista: "O talento de desco­ brir chama-se gênio. Mas esse nome só se dá ao artista, àquele que sabe fazer alguma coisa, não àquele que conhece e sabe muito; e não se dá ao artista que imita apenas, mas àquele que é capaz de produzir sua obra com originalida­ de; enfim, só se dá quando seu produto é ma­ gistral, quando, por mérito, merece ser imitado" (Antr, § 57). Esse é o sentido da definição de G. que Kant dá na Crítica doJuízo como de "talen­ to (dom natural) que dita regras à arte". Como ta­ lento, o G. foge a qualquer regra; mas como criador de exemplares distingue-se de qual­ quer extravagância. E natureza porque não age racionalmente; e é natureza que dita regras à arte. Kant observa que, justamente devido a estas últimas características, "a palavra G. deri­ vou de genius, que significa o próprio espírito do homem, o que lhe foi dado ao nascer, que o protege e o dirige, de cuja sugestões provêm as idéias originais" (Crítica do Juízo, § 46). Esse ponto de vista era aceito por Schopenhauer, que, considerando a arte como a visão das idéias platônicas, que são a primeira "objetivaçâo" da vontade de viver, vê na arte a "con­ templação pura" e, por isso, a essência do G. na preponderante aptidão para tal contempla­ ção. "Visto que esta", diz ele, "requer esqueci­ mento total de si mesmo e de suas relações, decorre daí que a genialidade é a mais comple­ ta objetividade, ou seja, a direção objetiva do espírito, que se opõe à direção subjetiva ten­ dente à própria pessoa, à vontade." Por conse­ guinte, enquanto para o homem comum o patrimônio cognoscitivo é "a lanterna que ilu­ mina o caminho", para o G. ele é "o sol que revela o mundo" (Die Welt, I, § 36). Essas obser­ vações de Schopenhauer constituem uma con­ tribuição para aquilo que poderíamos chamar de culto romântico do gênio. Obviamente, esse culto não se limita ao G. artístico. Fichte mos­ trava já a conexão do G. com a filosofia. A inventividade do filósofo requer "um obscuro sentimento da verdade" e esse sentimento é

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GÊNIO

exatamente o gênio. Para Fichte, mesmo que um dia a filosofia progredisse a ponto de con­ ter uma "teoria da invenção, não seria possível chegar a isso a não ser por meio do G." (Werke, ed. Medicus, I, p. 203). Fichte reconheceu no G. as mesmas características que Kant lhe atri­ buíra: inventividade e naturalidade. O G. "é um favor especial da natureza, que não se pode explicar ulteriormente" (Ibid, ed. Medicus, III, p. 92; cf. PAREYSON, A estética do idealismo ale­ mão, I, pp. 333 ss.). O obscuro sentimento da verdade, que Fichte atribui ao G., transformao naquilo que Schlegel chamava de "mediador entre o Infinito e o finito", aquele que "perce­ be em si o divino e, anulando-se, dedica-se a anunciar esse divino a todos os homens, a par­ ticipar dele e a representá-lo nos costumes e nas ações, nas palavras e nas obras" (Ideen, 1800, § 44). E verdade que, assim como Kant, Schelling afirmava que o G. é sempre e somente estético, mas ao mesmo tempo considerava a intuição estética o órgão da filosofia e, em geral, da ciência. O G. é, pois, o absoluto que se revela no homem e não pertence só a uma par­ te do homem (Werke, I, III, pp. 618 ss.). Hegel, por sua vez, dizia que a palavra G. era empre­ gada para designar não só os artistas, mas tam­ bém os grandes líderes e os heróis da ciência (Vorlesungen über die Asthetik, ed. Glockner, I, p. 378), mas pessoalmente reservava esse vocábulo para os artistas, definindo o G. como "a capacidade geral de produzir autên­ ticas obras de arte, acompanhada pela ener­ gia necessária à sua realização" (Ibid, p. 381). Na realidade, aqueles que Fichte cha­ mava de "doutos" ou de "videntes" (cf. Vorle­ sungen über die Bestimmung des Gelehrten, 1794), Hegel de "indivíduos da história cósmi­ ca" e outros de heróis (v.) são simplesmente expressões diferentes do mesmo conceito que, no domínio da arte, o Romantismo designou com o termo G., ou seja, encarnação do Infini­ to no mundo, mediadores entre o finito e o In­ finito (como dizia Schlegel), instrumentos da realização ou da revelação do Absoluto. O pró­ prio Kierkegaard, que por muitos aspectos pode ser considerado antagonista do Romantis­ mo, partilhou esse conceito de G. Disse: "O G. é um An-sich onipotente que, como tal, gos­ taria de sacudir o mundo inteiro. Por isso, para salvar a ordem, nasce com ele outra figura: o destino. Mas o destino é nulo, porque é ele mes­ mo que o descobre, e quanto mais profundo for o G., mais profundamente o descobre; por­

GENTES, DIREITO DAS

que o destino nada mais é que a antecipação da providência" (DerBegriffderAngst, III, § 2; trad. Fabro, p. 123). Na cultura contemporânea, o conceito do G. se manteve com essas características românti­ cas, que não desapareceram nem com a apro­ ximação entre G. e loucura, tentada por alguns antropólogos, particularmente por Cesare Lombroso. Essa aproximação baseava-se na consi­ deração dos chamados "fenômenos regressivos da evolução", em virtude dos quais os grandes avanços em uma certa direção são acompanha­ dos, na maioria das vezes, por uma parada nas outras direções. Por isso, Lombroso julgava encontrar formas mais ou menos atenuadas de loucura ou perversão nos indivíduos geniais (G. e degeneração, 1897), mas com isso não punha em dúvida a realidade do conceito, sem dúvida pressuposta. Por outro lado, quando, no fim de Duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson auspicia o advento de um "G. místico", que possa "arrastar atrás de si uma humanidade imensamente encorpada", vê nes­ se G. a encarnação ou a realização do elã vital que é o princípio do mundo (Deux sources, IV; trad. it., pp. 343 ss.). Como todo G. romântico, o G. preconizado por Bergson também é a encarnação do Absoluto e destina-se a realizar o Absoluto no mundo. Todavia, Kant já havia advertido para o perigo inerente ao uso desse conceito, que parece dispensar alguns homens da aprendizagem, da pesquisa e dos deveres comuns, e propusera a questão sobre quem contribui mais para o progresso efetivo do ho­ mem: os grandes gênios ou "os cérebros mecâ­ nicos" que se apoiam na bengala da experiên­ cia (Antr., § 58). GENTES, DIREITO DAS (lat. Ius gentium, in. Law ofnations;fr. Droit desgens; ai. Võlkerrecht; ít. Diritto delle gentt). 1. Identificado por Gaio (séc. II) com o direito natural, o direi­ to das G. foi distinguido deste por Ulpiano (séc. III); para ele, o direito das gentes é "aque­ le que todos os seres humanos utilizam e só es­ tes", enquanto o direito natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais e por isso não é próprio só do gênero humano (Digesto, 1,1,1-4). Essa distinção permaneceu subs­ tancialmente a mesma até o jusnaturalismo moderno. 2. A partir de Grócio, entende-se por direito das G. a norma não escrita que regulamenta as relações entre os Estados ou entre cidadãos de

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GEOMETRIA

Estados diferentes, ou seja, o direito natural internacional (v. DIREITO). GEOMETRIA (gr. yecofieTpía; lat. Geome­ tria; in. Geometry; fr. Géométrie; ai. Geometrie; it. Geometria). Em geral, a ciência que estu­ da as possibilidades métricas dos conjuntos. A estrutura métrica dos conjuntos pode ser con­ siderada: l9 única e necessária, como foi consi­ derada até a descoberta das geometrias nãoeuclidianas: nesse caso, a G. será a descrição das determinações necessárias de tal estrutura (o espaço euclidiano) e assumirá a forma de um sistema dedutivo único e perfeito; 22 multíplice ou indefinidamente variável: nesse caso serão possíveis G. diferentes, cujo objeto serão estruturas métricas espaciais diferentes ou dotadas de graus diferentes de generalida­ de. A primeira forma da G. iniciou-se com Pitágoras e com Platão, tornando-se modelo das ciências dedutivas. A segunda iniciou-se com a descoberta das G. nào-euclídianas e sua expressão mais clara foi o "programa de Erlangen". le Segundo relato de Proclo (In Eucl, 65, 11, Friedlein), foi Pitágoras quem "deu forma de educação liberal ao estudo da G., procurando seus princípios primeiros e investigando seus teoremas do ponto de vista conceptual e teóri­ co". Mas sabemos que é sobretudo a Platão que se deve a guinada conceptual e teórica da geome­ tria. Platão contrapõe explicitamente ao uso prático da G., ou seja, ao uso que a subordina às necessidades cotidianas e portanto às exi­ gências de construtores, estrategistas, etc, seu fim teorético, em virtude do qual ela tende a conhecer "aquilo que sempre é e não o que nasce e perece" (Rep, VII, 527b). Como todas as outras ciências propedêuticas, pertencentes à esfera do conhecimento racional ou dianóia, a G. vale-se de "hipóteses" que sabe justificar; tudo o que ela faz é entrelaçar coerentemen­ te "conclusões e proposições intermediárias" (Ibid, VII, 533c). Aristóteles também insistiu no procedimento abstrativo utilizado pela geome­ tria. Disse: "O matemático constrói sua teoria eliminando todos os caracteres sensíveis, como o peso e a leveza, a dureza e seu contrário, o calor e o frio, bem como os outros contrários sensíveis, e fica apenas com a quantidade e a continuidade, às vezes em uma só dimensão, às vezes em duas, outras em três, bem como com os atributos dessas entidades que sejam quantitativos e contínuos; e não os considera

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sob nenhum outro aspecto" (Met., XI, 1061 a 29). Mas foi também graças a Aristóteles que a G. ganhou organização lógica; de fato, essa organização, que se realizou plenamente nos Elementos de Euclides, no séc. III a.C, tem como modelo a ordem que, no Organon, Aris­ tóteles considerara própria de toda ciência, qual seja: o ponto de partida são os primeiros princípios (definições, axiomas e postulados), passando-se à dedução rigorosa a partir des­ ses princípios, sem recorrer à experiência ou a qualquer intuição. Mas essa mesma formulação lógica da G. antiga esclarece a natureza de seu objeto. Como dizia Aristóteles, esse objeto é a quantidade continua; e como dissera Platão, é "alguma coisa que é sempre", ou, na termino­ logia de Aristóteles, é uma substância ou essên­ cia substancial que, justamente por ser tal, pode ser definida, e cujas propriedades funda­ mentais o intelecto pode intuir, expressando-as nos axiomas. É preciso lembrar que, segundo Aristóteles, o procedimento dedutivo ou silogístico deve partir de premissas evidentes, intuídas pelo intelecto, e que essa intuição só pode existir com relação a propriedades ou a determinações necessárias da substância. O ca­ ráter substancial do objeto da G., no sentido exato e técnico que a palavra "substancial" tem em Aristóteles (v. SUBSTÂNCIA), é o pressuposto fundamental dessa fase conceptual da geome­ tria. Isto quer dizer que o contínuo espacial, que é o objeto da G., é pressuposto, em seu modo de existência específica e em suas deter­ minações necessárias, a partir das operações geométricas que a tomam como objeto. Esse contínuo é independente de tais operações porque é uma substância, porque é necessaria­ mente o que é e não pode ser diferente. A ne­ cessidade intrínseca das definições e dos axio­ mas e o caráter indispensável dos postulados (que tampouco podem ser mudados) expres­ sam, no âmbito desta fase conceptual, a neces­ sidade do objeto da G., ou seja, do espaço. Este tem essência necessária, cujos princípios ex­ pressam as determinações imutáveis e cuja de­ dução silogística põe em evidência as determi­ nações implícitas (mas igualmente necessárias). A interpretação do espaço feita por Kant, como "forma da intuição" ou "intuição pura", não constitui (e nem Kant teve essa intenção) uma inovação do conceito de geometria. Se­ gundo Kant, o espaço como intuição pura de­ via exatamente servir para garantir à G. seu pa­ pel de ciência que determina as propriedades

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GEOMETRIA

do espaço apriori, ou seja, independentemen­ te da experiência, e para garantir a tais proprie­ dades seu caráter apodítico, ou seja, sua neces­ sidade (Crít. R. Pura, § 3). 2a A segunda fase conceptual da G. só co­ meçou quando se realizou plenamente o signi­ ficado da descoberta das G. não-euclidianas. O V postulado de Euclides provocara discus­ sões desde a Antigüidade. No séc. XVIII, especialmente graças a Saccheri e de Lambert, e nos primeiros decênios do séc. XIX, graças a Legendre, essas discussões se acirraram, mas não levaram a conclusões, porque se achou absurdo admitir a possibilidade de uma G. di­ ferente da de Euclides. Só Gauss, Lobacevskij e Bolyai reconheceram e puseram em prática essa possibilidade. Em 1855, uma dissertação de RIEMANN, Sobre as hipóteses que fundamen­ tam a G., mostrava como, com mudanças opor­ tunas no V postulado, seria possível obter não só a G. de Euclides e a G. de Lobacevskij e Bolyai, mas também uma terceira G. (que mais tarde foi chamada de Riemann). O V postula­ do de Euclides exige que só haja uma paralela para uma reta dada; a G. de Lobacevskij e Bolyai exige que haja infinitas paralelas para uma reta dada. Riemann supôs que não hou­ vesse paralela nenhuma para uma reta dada, o que produz uma G. simetricamente oposta à de Lobacevskij e de Bolyai. A G. euclidiana é váli­ da para o espaço de curvatura constante nula. A G. de Lobacevskij vale para o espaço de curvatura constante negativa. A G. de Riemann vale para o espaço de curvatura constante posi­ tiva. Nesta última G., uma reta não pode ser prolongada até o infinito, mas é finita e fecha­ da, e é a G. que vigora na superfície da esfera (supondo-se que se considerem somente duas dimensões), portanto o modo mais natural de um navegador descrever o mundo. Assim, a G. euclidiana tornava-se um caso particular de uma G. bem mais ampla e geral, mas a verda­ deira significação dessa descoberta só ficou cla­ ra alguns anos depois, em virtude do emprego de um conceito que fora utilizado desde o iní­ cio pela chamada G. projetiva: o conceito de transformação. A G. projetiva, cujas primeiras menções se encontram nos trabalhos de Gaspard Monge (1746-1818), introduzia uma nova operação — a projeção — , que permite trans­ formar uma figura em outra, cujas proprieda­ des podem ser deduzidas das propriedades da primeira. O caráter peculiar dessas proprieda­ des, como foi mostrado por Poncelet (Tratado

GEOMETRIA

daspropriedades projetivas dasfiguras, 1822), consistia em sua invariância, ou seja, em per­ manecerem as mesmas ao longo das transforma­ ções que as figuras sofriam com a projeção. Em 1847, a G. de posição de Staudt, realizando uma exposição rigorosa da G. descritiva, mos­ trava que ela podia absorver em si toda a ciência geométrica. Nessa mesma linha, o passo decisivo foi dado por Felice Klein com seu progra­ ma de Erlangen, que constituiu a aula inaugu­ ral dada nessa Universidade em 1872. Segun­ do Klein, a G. nada mais é que o estudo das propriedades invariáveis em relação a um gru­ po de transformações, entendendo por grupo de transformações um conjunto de transfor­ mações em que, ao lado de cada transformação também está a transformação inversa (a que destrói o efeito da primeira). Desse ponto de vista, as propriedades a serem consideradas "geométricas" dependem do grupo de opera­ ções considerado fundamental. Quando este último varia, também varia o significado do termo geometria. Cayley demonstrou que o grupo fundamental da G. projetiva é mais amplo do que o das G. métricas. Outra ampliação realiza-se quando se passa da G. descritiva à topologia (ou analysissitusfv.J), que estuda as propriedades invariantes em relação ao grupo generalíssimo das transformações contínuas. É fácil, portanto, perceber a diferença de postura conceptual da G. contemporânea em relação à clássica. Ao contrário desta última, a G. contemporânea não pressupõe o objeto de seu estudo (o espaço), ou seja, não pressupõe que tal objeto tenha propriedades necessárias, expressáveis em definições unívocas, em axio­ mas evidentes e em postulados inevitáveis. São consideradas objeto da G. as propriedades que se mostrem invariantes por meio dos grupos de transformações, mas ao mesmo tempo procu­ ram-se realizar tipos de transformações sempre diferentes e considerar, portanto, invariâncias cada vez mais gerais. A estrutura lógica dessa G. obviamente nada mais tem a ver com a lógica aristotélica e com a estrutura da G. euclidiana. Poincaré descreveu essa estrutura como de sistemas hipotético-dedutivos (v. CONVENCIO­ NALISMO). Ao mesmo tempo em que a forma ló­ gica de tais sistemas é extremamente rigorosa e evita recorrer a elementos ou a operações intuitivas, essa G. perdeu o caráter de necessida­ de racional que caracterizava a G. clássica: seu objeto não é uma substância racional, mas

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GERAL

as invariâncias que podem ser obtidas por meio de operações oportunas livremente escolhidas. GERAÇÃO (gr. YÉVEOIÇ; lat. Generatio; in. Generation; fr. Génération; ai. Erzeugung; it. Generazioné). Segundo Aristóteles, "a mudan­ ça que vai do não-ser ao ser do sujeito, segun­ do a contradição": a passagem da negação da coisa à coisa. A G. pode ser absoluta, e nesse caso é a passagem do não-ser ao ser da subs­ tância, ou qualificada, e nesse caso é a passa­ gem do não-ser ao ser de uma qualidade da substância (Fís, V, I 225 a 12 ss.). O oposto de G. é corrupção (v.). G. e corrupção constituem a primeira das quatro espécies de mudança, mais precisamente a mudança substancial Ubid, 225 a 1) (v. DEVIR). GERAL (in. General; fr. General; ai. Gemeingültig; it. Generalè).. Essa palavra foi intro­ duzida no uso moderno pelo empirismo inglês que, por meio dela, designou o resultado de uma operação de abstração; por isso, é algo di­ ferente de universal, interpretado como nature­ za originária ou forma substancial. "As pala­ vras", diz Locke, "tornam-se G. pelo fato de fazermos delas signos de idéias G.; e as idéias tornam-se G. quando delas são afastadas as cir­ cunstâncias de tempo e de lugar, bem como de qualquer outra idéia que possa determiná-las no sentido desta ou daquela existência particu­ lar. Com esse meio da abstração, elas adquirem a capacidade de representar mais indivíduos, cada um dos quais, tendo em si conformidade com aquela idéia abstrata, é (como dizemos) daquela espécie" (Ensaio, III, 3, § 6). A idéia é G., então, quando é o resultado da abstração; a generalidade é obra do intelecto, embora a ela corresponda a semelhança das coisas natu­ rais. Como não existem naturezas ou formas universais, o universal reduz-se ao G., e às vezes Locke emprega os dois termos como sinôni­ mos (Jbid, III, 3, § 11). Esse termo era aceito com este sentido por Berkeley (Principies of Knowledge, Intr., § 12) e por Hume (Treatise, I, 1,7). Leibniz aceitava essa palavra e seu con­ ceito, apesar de afirmar que desse conceito não derivava a negação das essências universais. Dizia: "A generalidade consiste na semelhança das coisas individuais entre si, e essa seme­ lhança é uma realidade" (Nouv. ess., III, 3, 11). Stuart Mill aceitava essa terminologia, distin­ guindo substantivos individuais ou singulares e substantivos G.: estes últimos possibilitariam afirmar proposições G., ou seja, "afirmar ou ne­ gar alguns predicados de um número indefini­

L

g e s t a l t p s y c h o l o g ie

do de coisas ao mesmo tempo" (Logic, I, 2, § 3). Essa significação não prevaleceu na lógica con­ temporânea, que considera singular o termo cuja conotação impede sua aplicação a mais de uma coisa real, sendo G. o termo que não é singular nesse sentido. Lewis diz: "Saber se um termo concreto é singular ou geral é questão de conotação, não de denotação, ainda que um termo singular não possa denotar mais de uma coisa. 'O objeto vermelho da minha mesa' é um termo singular, e 'Objeto vermelho sobre mi­ nha mesa' é um termo G., independentemente dos objetos vermelhos que se encontram em cima da minha mesa" (Analysis ofKnowledge and Valuation, p. 45). Nesse sentido, o G. nada tem a ver com o universal: este é obtido com o uso do operador todos e refere-se à denotação, não à conotação de um termo. Por conseguin­ te, proposição G. é a que se chama função proposicional (v. FUNÇÃO), na qual o sujeito fica indeterminado. Dewey também insistiu na di­ ferença entre G. e universal, negando que a proposição "se humano, então mortal" seja equivalente à proposição "todo homem é mor­ tal. "São coisas radicalmente diferentes", disse Dewey, "formular proposições sobre traços ou características que descrevem uma espécie fa­ zendo abstração de cada exemplar da espécie e formular proposições abstratas sobre abstra­ ções" (Logic, XIX, § 2, trad. it., p. 497-98). GESTALTPSYCHOLOGIE. V. PSICOLOGIA GIMNOSOFISTAS (gr. yuAvooocpvoTÍ; lat. Gymnosophistae; in. gymnosophists; fr. Gymnosophistes; ai. Gymnosophisten; it. Gimnosofisti). Os "sábios nus" da índia; assim foram chama­ do s os faquires pelos escritores gregos (ARIS­ TÓTELES, Fragm, 35; ESTRABÃO, 16, 2, 39; PLUTARCO, Alex, 64, etc). Pirro, o fundador do cepticismo, visitou os G. na índia e imitou seus costumes (DIÓG. L, IX, 61). GIOBERTTSMO. V. ONTOLOGISMO. GLÓRIA (lat. Gloria; in. Glory; fr. Gloire; ai. Glorie; it. Gloria). Na terminologia bíblica e escolástica, G. é, por um lado, a homenagem que o homem faz a Deus e, por outro, a recom­ pensa que Deus dá ao homem, acolhendo-o em Sua fruição. Com esta última significação S. Tomás diz que a G. é "a perfeita fruição de Deus" (S. Th, III, q. 53, a. 3). Foi com esse sen­ tido que Spinoza identificou o amor intelectual de Deus com a G. da qual fala a Bíblia: "Esse amor ou beatitude é chamado de G. nos livros sagrados, não sem razão. Pois tal amor, refirase ele a Deus, ou à mente, pode ser chamado

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GNOSTICISMO

de satisfação da alma, que na realidade não se distingue da G." (Et, V, 36, Schol.). Des­ cartes atribuíra significado puramente munda­ no a esse termo, considerando a G. como "uma espécie de G. fundada no amor que se sente por si mesmo e deriva da impressão da espe­ rança de louvor por parte dos outros" (Pass. de Vâme, art. 204). GNÔMICO (in. Gnomical; fr. Gnomique; ai. Gnomisch; it. Gnomicó). Quem se expressa por meio de breves sentenças morais, como fi­ zeram os Sete Sábios (v. SÁBIOS), que, por isso, foram chamados de Gnômicos. GNOSIOLOGIA. V. TEORIA DO CONHECI­ MENTO. GNOSTICISMO (gr. yvüaiç, in. Gnosticism; fr. Gnosticisme; ai. Gnosticismus; it. Gnosticismd). Foram assim designadas algumas corren­ tes filosóficas que se difundiram nos primeiros séculos depois de Cristo no Oriente e no Oci­ dente. A literatura que produziram era rica e variada, mas perdeu-se, à exceção de poucos textos conservados em traduções coptas, che­ gando até nós apenas através dos trechos men­ cionados e, ao mesmo tempo, refutados pelos Padres Apologistas. O G. é uma primeira tenta­ tiva de filosofia cristã, feita sem rigor sistemáti­ co, com a mistura de elementos cristãos míti­ cos, neoplatônicos e orientais. Em geral, para os gnósticos o conhecimento era condição para a salvação, donde esse nome, que foi adotado pela primeira vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde se dividiram em nu­ merosas seitas. Estas utilizavam textos religio­ sos atribuídos a personalidades bíblicas, tal como o Evangelho de Judas, mencionado por Irineu (Adv. haer., I, 31,1). Outros textos dessa espécie foram encontrados em traduções coptas; entre eles, o mais importante é Pistis Sophia (publicado em 1851), que expõe em forma de diálogo entre o Salvador ressuscitado e seus discípulos, especialmente Maria Mada­ lena, a queda e a redenção de Pistis Sophia, ser pertencente ao mundo dos Eons (v.), bem como o caminho da purificação do homem por meio da penitência. Os principais gnósticos dos quais temos notícia são: Basílides, Carpócrates, Valentim e Bardesane, cujas doutrinas são conhecidas pelas refutações feitas por Cle­ mente de Alexandria, Irineu e Hipólito. Uma das teorias mais típicas do G. é o dualismo dos princípios supremos (admitido, p. ex., por Basilides), ligado a concepções orientais. A tentativa de união entre os dois princípios,

GNOSTOLOGIA

bem e mal, tem como resultado o mundo, no qual as trevas e a luz se unem, mas com pre­ domínio das trevas. GNOSTOLOGIA (lat. Gnostologiá). Termo cunhado por Calov em Scripta Philosophica (1650), para designar uma das duas disciplinas auxiliares da metafísica (a outra é a Noologia, [v.]), mais precisamente a que tem por objeto "o cognoscível enquanto tal". Foram chamados de gnostólogos alguns aristotélicos protestantes que ensinaram nas universidades alemãs na primeira metade do séc. XVII. Sobre eles, cf. PETERSEN, Geschichte der aristotelischen Philosophie im protestantischen Deutschland, Leipzig, 1921; CAMPO, Cristiano Wolff, Milão, 1939, I, pp. 144 ss. GOSTO (in. Taste; fr. Goüt; ai. Geschmack; it. Gustó). Critério ou cânon para julgar os obje­ tos do sentimento. Visto que só a partir do séc. XVIII o sentimento (v.) começou a ser reconhe­ cido como faculdade autônoma, distinta da fa­ culdade teorética e da prática, a noção de G. foi-se determinando, no mesmo período, em correlação com a noção do critério ao qual essa faculdade, em suas valorações, está adequada ou deve adequar-se. A faculdade do sentimen­ to logo recebeu como atribuição a atividade estética: assim, entende-se por G. sobretudo o critério do juízo estético, e foi com esse sentido que essa palavra se incorporou no uso corren­ te. Em seu sentido mais geral, o G. é definido por Vauvenargues como "disposição para julgar corretamente os objetos do sentimento" (Intr. à Ia connaissance de Vesprit humaín, \1A6, 12); e por Kant, que declara, em Antropolo­ gia (§ 69): "O G. (enquanto uma espécie de sentido formal) leva a compartilhar com ou­ tros os sentimentos de prazer e dor e implica a capacidade — agradável, graças a esse mesmo compartilhar — de sentir satisfação (complacentià) em comum com outrem". Em alguns de seus Ensaios morais epolíticos (1741), Hume entendeu o G. em sentido mais estritamente estético, conquanto também ligue o G. estreita­ mente com o sentimento em geral. A beleza é de fato um sentimento, e, como todo sentimen­ to é justo, não se referindo a nada além de si mesmo, cada espírito percebe uma beleza dife­ rente. Isso, porém, não impede que haja um critério do G., pois existe uma espécie de senso comum que restringe o valor do velho ditado "Gosto não se discute". Pode-se determinar um critério do G. recorrendo às experiências e às observações dos sentimentos comuns da natu­

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GOVERNO, FORMAS DE

reza humana, sem pretender qüe em todas as ocasiões os sentimentos dos homens se confor­ mem a esse critério. "Em cada criatura", diz Hume, "há um estado são e um estado de doen­ ça; só o primeiro nos dá o verdadeiro critério de G. e de sentimento. Se no estado de saúde do organismo houver uniformidade completa ou considerável de sentimentos entre os ho­ mens, poderemos daí inferir uma idéia da bele­ za perfeita, do mesmo modo como a aparência dos objetos, à luz do dia e aos olhos de um ho­ mem em bom estado de saúde, é considerada a cor verdadeira e real dos objetos, ainda que tanto durante o dia quanto durante a noite a cor seja apenas um fantasma dos sentidos" (Essays, I, p. 272). Por sua vez, E. Burke dizia: "Pela palavra G. entendo apenas a faculdade, ou faculdades, da mente que são impressiona­ das pelas obras da imaginação e pelas belasartes, formulando um juízo sobre elas" (A Philosophical Inquiry into the Origin ofOurldeas ofthe Sublime and Beautiful, 1756, Intr.; trad. it., p. 47). Para Kant, o G. é uma espécie de sen­ so comum (v.), aliás o senso comum em seu significado mais exato, porque pode ser defi­ nido como "a faculdade de julgar aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento suscitado por dada representação, sem a me­ diação do conceito" (Crít. do Juízo, § 40). Por­ tanto, a universalidade do juízo de G. não é a mesma do juízo intelectual, pois não se baseia no objeto, mas na possibilidade de comunicação com os outros. Em outros termos, o juízo de G. só é universal porque se fundamenta na comunicabilidade do sentimento iCrít. doJuízo, § 39). Kant também fez a distinção entre o G. como faculdade de julgar e o gênio como fa­ culdade de produzir (Ibid., § 48). Croce iden­ tifica essas duas faculdades, considerando idênticos o processo de criação e o de repro­ dução de uma obra de arte {Estética, cap. 16). Mas com isso o conceito de G. não muda; na realidade, a estética moderna e contemporânea conservou ou reproduziu, com modificações irrelevantes (do ponto de vista conceptual), a noção de G. elaborada pelos tratadistas do séc. XVIII, cujas características fundamentais expu­ semos. GOVERNO, FORMAS DE (gr a%f]\iam 7io?iiTeíaç; lat. Reipublicaeformae, in. Forms of government; fr. Formes de gouvernement; ai. Staatsverfassung; it. Forme di governo). Uma das mais antigas doutrinas políticas, talvez a mais antiga, é a distinção das três formas de G.

GOVERNO, FORMAS DE

(de um só, de poucos, de todos), enunciadas por Heródoto por meio da discussão de sete per­ sonagens persas, mas na realidade expondo noções populares de sabedoria grega. Heródoto pergunta: "Como poderia ser um G. bem instituído o domínio de um só homem, se ele pode fazer o que quer sem dar satisfação a nin­ guém? O monarca tende a tornar-se tirano. Por outro lado, o G. do povo é com certeza o me­ lhor, porque nele todos são iguais, mas tam­ bém tende a degenerar e a tornar-se desenfrea­ da demagogia. Por isso, a melhor forma de G. é uma boa monarquia" (III, 80-82). Em Repúbli­ ca, Platão punha acima dessa classificação o Es­ tado idealmente perfeito, a aristocracia ou G. dos filósofos. A primeira degeneraçâo da aristo­ cracia é a timocracia, ou seja, o G. fundado na honra que nasce quando os governantes se apropriam de terras e de casas. A segunda é a oligarquia, governo baseado no patrimônio, no qual os ricos mandam. A terceira forma é a democracia, na qual a todo cidadão é lícito fa­ zer o que quer. Finalmente, a forma extrema de degeneraçâo política é a tirania, que muitas vezes nasce da excessiva liberdade da demo­ cracia (Rep., VIII-IX). De modo mais sistemáti­ co, em O Político, Platão distinguiu três formas de regime político: G. de um só, G. de poucos e G. de muitos; essas formas, segundo sejam regidas por leis ou desprovidas de leis, moti­ vam respectivamente o G. régio ou tirania, a aristocracia ou oligarquia e as duas formas da democracia, a regida por leis e a demagógica {Pol., 291 d-e). Essa classificação foi repetida por Aristóteles (Pol., III, 7, 1279 a 27), que, no entanto, alude a outra divisão, na qual as for­ mas fundamentais seriam duas: "democracia, quando os livres governam, e oligarquia, quan­ do os ricos governam e, em geral, os livres são muitos e os ricos poucos" (Jbid, IV, 4, 1290b, I): classificação que seria simétrica a outras classificações diádicas, cuja autoria Aristóteles declara. Contudo a classificação triádica veio a ser tradicional e a ela os escritores políticos da Idade Média, do Renascimento e da Ida­ de Moderna se referem constantemente. A Bodin deve-se a observação de que as diver­ sas formas de ordenamento estatal são diversas formas de G., não formas diferentes de Estado (donde a permanência da expressão "formas de G." em francês, italiano e inglês). A sobera­ nia, que é o caráter fundamental do Estado, é una e indivisível: o Estado consiste na posse da soberania. O G., ao contrário, consiste no apa­

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GOVERNO, FORMAS DE

rato por meio do qual esse poder é exercido. Na monarquia, a soberania reside no rei, mas este pode delegar amplamente seu poder e governar de modo democrático, ao mesmo tempo que, numa democracia, o governo pode ser despótico (Sixlivres de Ia Republique, 1576). Hobbes parte do mesmo princípio: a diferença das formas de G. depende da diversidade das pessoas às quais é confiado o poder soberano. Têm-se democracia, aristocracia ou monarquia, segundo o poder soberano seja confiado ao povo, aos nobres ou ao rei. Quanto às chama­ das degenerações das formas de G., elas são apenas "três denominações diferentes dadas por quem odiava o governo ou os governantes" {De eive, 7, §§ 1-2). Montesquieu modificou a divisão tradicional, afirmando que o G. pode ser republicano (um conjunto de democracia e aristocracia), monárquico e despótico. Cada uma dessas três formas é regida por um "princípio" que, portanto, condiciona sua conservação e seu funcionamento. O G. popular baseia-se na virtude cívica e no espírito público do povo; a monarquia no sentimento de honra da classe militar; o despotismo, no temor (Esprit des lois, 1748, III). Com base nessa mesma doutrina de Montesquieu, a antiga tripartição das formas de G. começa a perder importância. Montesquieu viu claramente que a liberdade da qual os cida­ dãos gozam num Estado não depende da for­ ma de G. desse Estado, mas da limitação dos poderes garantida pela ordenação do Estado. Disse: "A democracia e a aristocracia não são Estados livres por natureza. A liberdade políti­ ca encontra-se nos G. moderados. Mas nem sempre existe nos Estados moderados: perma­ nece só quando não há abuso de poder... Para que não seja possível abusar do poder, é preci­ so que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Uma constituição pode ser de tal forma que ninguém seja obrigado a cumprir as ações às quais a lei não obrigue nem a dei­ xar de cumprir as que a lei permite" (Jbid., XI, 6). Essas palavras são verdadeiras ainda hoje, assim como eram verdadeiras no tempo de Montesquieu. A experiência histórica do mun­ do moderno e contemporâneo mostrou que a liberdade e o bem-estar dos cidadãos não de­ pendem da forma de G., mas da participação que os G. oferecem aos cidadãos na formação da vontade estatal e da presteza com que eles são capazes de modificar e de retificar suas diretrizes políticas e suas técnicas administrati­ vas. Por esses motivos, na moderna teoria po­

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lítica geral, a distinção ou classificação das for­ mas de G. não tem grande relevância; pode-se dizer que é a mesma de Heródoto, mas que deixou de expressar um problema efetivo da teoria e da prática da política. GRAÇA1 (in. Grace, fr. Grâce; ai. Anmut; it. Grazia). Uma espécie particular de bele­ za distinguida pela estética do séc. XVIII: a beleza em movimento. Edmund Burke dizia: "A G. é uma idéia não muito diferente da beleza, constituída pelos mesmos elemen­ tos. A G. é uma idéia relativa à postura e ao movimento: para serem graciosos, não de­ vem dar a impressão de dificuldade; bastam a leve flexão do corpo e a harmonia das par­ tes, de tal maneira que não se estorvem reci­ procamente e que não se mostrem separadas por ângulos bruscos e distintos. Nesta facilida­ de, harmonia e delicadeza de postura e de mo­ vimento consiste todo o encanto da G., o seu 'não-sei-quê'" (A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1756, II, 22). Essas idéias eram re­ petidas com freqüência pelos tratadistas do séc. XVIII. Num Ensaio sobre a beleza (1765), ao caráter da G. descrito por Burke, Giuseppe Spalletti acrescentava outro: a expressividade. "Já grandes autores observaram que essas qua­ lidades (agilidade e robustez) consistem nas flexões, nas curvas e na mistura delas, que, se forem acompanhadas por transparência que indique a conformidade com os movimentos internos causados pelos afetos da alma, pare­ cerão graciosas: prerrogativa cuja importância o feliz possuidor do gosto natural entende com tanta facilidade quanto lhe parece difícil expli­ car" (Op. cit., 37). Mas o maior teórico da G. foi certamente Schiller, que viu nesse conceito a mais consumada harmonia entre a liberdade moral e a necessidade natural. Schiller começa distinguindo a beleza imóvel ou arquitetônica, que é produzida pelas forças plásticas da natu­ reza por meio da lei da necessidade, da beleza em movimento, que é produzida por um espírito segundo condições de liberdade. A beleza arquitetônica honra o criador da natureza; a beleza em movimento honra quem a pos­ sui. A beleza em movimento assim é chamada porque uma modificação da alma só pode mani­ festar-se como movimento no mundo sensível (Über Anmut und Würde, 1195; Werke, ed. Karpeles, XI, p. 183). Esta segunda espécie de beleza é justamente a G., definida por Schiller como "a beleza de uma figura movida pela li­

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GRAÇA2

berdade" (Jbid., XI, p. 184; cf. L. PAREYSON, Vestetica deli'idealismo tedesco, Turim, 1950, 1, pp. 227 ss.). Essas observações tornaram-se clássicas e até hoje são repetidas, mesmo fora do contexto filosófico em que Schiller as inse­ ria, o qual caiu completamente em desuso. GRAÇA2 (gr. xàpic,; lat. Gratia; in. Grace, fr. Grâce, ai. Gnade; it. Grazia). Em geral, dom gratuito, sem retribuição; mais especifica­ mente, em sentido teológico, o dom da sal­ vação ou de alguma condição essencial da salvação que Deus oferece ao homem, inde­ pendentemente dos méritos (se existirem) do próprio homem. Nesses termos, a G. foi descri­ ta na Epístola aos romanos, de S. Paulo. O problema da magnitude e dos limites da G. sempre foi fundamental no cristianismo. Mar­ cou o ponto culminante da atividade filosófica e teológica de S. Agostinho e, depois de inúme­ ras discussões medievais, representou um dos maiores conflitos entre a Reforma e o Catolicis­ mo pós-tridentino. Reduzido a seus termos essenciais, o problema pode ser expresso da seguinte maneira. E doutrina fundamental do cristianismo que a salvação não é possibilidade humana. A revelação e a erícamação do Cristo são os instrumentos indispensáveis que, su­ prindo a deficiência da natureza humana, redu­ zida ou corrompida pelo pecado original, lhe retribuem a possibilidade de salvação. Mas a revelação e a participação dos méritos de Cristo podem ser concedidas e, em princípio, o são a todos os homens enquanto tais; por isso, a admitir-se (como fazem muitos padres da Igre­ ja oriental) que no fim dos tempos todos os homem serão salvos (doutrina da apocatãstase [v.]), a noção de G. não dá origem a graves problemas. Mas surge o problema quando se admite que nem todos os homens se salvarão e que no fim dos tempos ainda haverá justos e perversos, portanto, eleitos e condenados. Nes­ se caso, surge a pergunta: quem determina a salvação de cada homem, o próprio homem ou Deus? Diante desse problema só há duas res­ postas possíveis e, na realidade, são duas as doutrinas típicas da G.: lg a G. é determinante, ou seja, é Deus mesmo que, conferindo-a a uns e negando-a a outros, determina os hábitos e as disposições que tornarão o homem justo e o levarão à salvação; 2a a G. não é determinante, no sentido de que sua concessão por parte de Deus, mesmo sendo condição necessária da salvação, não determina a própria salvação,

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que exige a contribuição do homem. Essas duas soluções, ou melhor, esses dois tipos de soluções, permaneceram substancialmente inalterados ao longo da história dessa contro­ vérsia, apesar da variedade das expressões, atenuações ou nuanças que receberam durante esse tempo. l2 A primeira solução é apresentada por S. Agostinho na polêmica contra Pelágio, pela Re­ forma protestante e pelo jansenismo. Consiste em julgar que a humanidade toda pecou com Adão e em Adão e que, portanto, o gênero hu­ mano é uma só "massa condenada", a cuja pu­ nição nenhum membro pode escapar, a não ser pela misericórdia e pela G. não obrigatória de D eus (S. A G O STIN H O , De civ. Dei, XIII, 14). O fundamento dessa solução é que a verda­ deira liberdade do homem coincide com a ação agraciadora de Deus. Segundo S. Agostinho, a vontade só é livre quando não dominada pelo vício e pelo pecado e é essa a liberdade que só pode ser devolvida ao homem pela G. de Deus (Ibid, XIV, 11). Desse ponto de vista, o homem não possui méritos próprios, válidos perante Deus: seus méritos são dons divinos que de­ vem ser atribuídos a Deus e não a si mesmo (De gratia et libero arbítrio, 6). O De servo ar­ bítrio (1525) de Lutero, admitindo esse ponto de vista agostiniano, nega que o homem seja li­ vre. Segundo Lutero, não se pode admitir ao mesmo tempo a liberdade divina e a humana. A presciência e a predestinação divina impli­ cam que nada acontece sem a vontade de Deus, e isso exclui que no homem ou em qual­ quer outra criatura haja livre-arbítrio. À óbvia objeção que, nesse caso, Deus é o autor do mal, Lutero responde com a doutrina já de­ fendida pela última Escolástica (p. ex., por OCKHAM, In Sent., I, d. 17, q. 1 M ): D eu s n ão se

submete a normas: ele não deve querer uma coisa ou outra porque é justa, mas o que ele quer é justo por si mesmo (De servo arb, 152). Calvino expressava mais cruamente o mesmo conceito quando afirmava: "Digamos que o Se­ nhor decidiu, em seu parecer eterno e imutá­ vel, a quais homens conceder salvação e quais deixar em ruína. Digamos que os chamados à salvação são recebidos por sua misericórdia gratuita, sem nenhuma consideração pela dig­ nidade deles. Ao contrário, o ingresso na vida está fechado para todos os que ele quer entre­ gar à condenação, e isso acontece em virtude de seu juízo oculto e incompreensível, embora justo e equânime" (Institution de Ia religion

GRAÇA2

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chrétienne, 1541, 7). Augustinus(l64l) dejansênio contém tese idêntica a esta sobre a G. (v.

JANSENISMO).

29 O segundo ponto de vista foi formulado durante a Idade Média e está exposto, p. ex., na obra de Anselmo, Concordância da presciência da predestinação e da G. de Deus com o livre-arbítrio (1109)- Anselmo afirma que a predestinação de Deus leva em conta a liberda­ de humana, já que Deus não predestina nin­ guém violentando sua vontade, mas deixa sem­ pre a salvação em poder do predestinado. Todavia, em virtude de sua presciência, ele predestina só aqueles cuja boa vontade conhe­ ce antecipadamente (De concórdia prescientiae, etc. q. 2, 3). Solução análoga é dada por S. Tomás: "A preparação do homem para a G. tem Deus como móbil, o livre-arbítrio como movimento. Ela pode ser considerada sob dois aspectos: no primeiro, depende do livre-arbítrio e não implica a necessidade de obter a G. porque o dom da G. excede qualquer prepara­ ção da virtude humana; no segundo aspecto, tem Deus como móbil e implica a necessidade de obter a G. que é determinada por Deus, em­ bora não se trate de uma necessidade prove­ niente de coação, mas da infalibilidade, por­ quanto a intenção de Deus não pode deixar de ter efeito" (S. Th, III, q. 112, a 3). No período da Contra-Reforma, Luís de Molina, no texto

Liberi arbitri cum gratiae donís, divina praescientia, providentia, praedestinatione et reprobatione concórdia, voltou a propor a solução tomista, distinguindo a G. suficiente, dada a to­ dos os homens como condição necessária da salvação, da G. eficaz, que é infalível e segue a

boa vontade humana. Em realidade esta e aná­ logas distinções só servem para justificar o ca­ ráter não rigorosamente determinante da G., no sentido de que, em todo caso, ela deixa a salvo a liberdade humana e, com isso, também dei­ xa aos réprobos (e somente a eles) a responsabili­ dade de sua condenação. Toda a disputa gira em torno do significado de liberdade (v.), e, já que ambas as partes consideram a liberdade como autocausalidade — mas nenhuma delas considera tal causalidade — primária ou abso­ luta — , a substância da disputa reduz-se a bem pouco do ponto de vista conceptual. Para uma ou outra doutrina, a causa primeira de tudo, e, portanto, também da liberdade ou da salvação humana, é Deus. Contudo, essa disputa não é realmente conceptual, mas religiosa ou ecle­ siástica. A defesa de certo grau de liberdade

GRAMÁTICA

humana em relação à G. tende a acentuar a im­ portância da ação mediadora da Igreja, na qual o homem sempre pode achar, desse ponto de vista, a concessão compreensiva da G., ou seja, a ajuda sobrenatural para a salvação. Por outro lado, a acentuação do caráter determinante ou necessitante da G. tende a colocar o homem diretamente diante de Deus e de sua vontade inescrutável, já que o pecado, desse ponto de vista, não pode ser remido por ação mediado­ ra, mas, ao contrário, é sinal evidente de nãoconcessão da G., portanto, da futura condena­ ção. Entende-se por que este segundo ponto de vista, assim como ocorreu com o jansenismo, surge no próprio seio do catolicismo quando, em nome de certo rigorismo moral, se deseja insistir na gravidade do pecado e não se está disposto a considerá-lo um obstáculo fácil à salvação. GRAMATICA (gr. ypa(j.J.aTiKr| TÍxvr); lat. Grammatica; in. Grammar; fr. Grammaire; ai. Grammatik; it. Grammaticá). Segundo uma tradição registrada por Diógenes Laércio (III, 25), Platão foi o primeiro a "teorizar a possibili­ dade da G.". De fato, é freqüente nos textos de Platão a referência à G., cuja natureza é defini­ da com mais precisão no Crãtilo. O fundamen­ to dessa definição é a analogia entre a G. e a arte figurativa. Assim como um artista procura reproduzir os traços dos objetos com o dese­ nho e as cores, o gramático procura fazer a mesma coisa com as sílabas e as letras. Seu objetivo é "imitar a substância das coisas". Se ele chegar a reproduzir tudo o que pertence a essa substância, sua imagem será bela, mas, se deixar alguma coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente, sua imagem não será bela. Nes­ se aspecto, o gramático é um "artífice de no­ mes, portanto um legislador que pode ser bom ou mau" (Crat., 431 b ss.). Esse é o primeiro conceito de G. formulado, e é normativo por­ que, segundo ele, o gramático não descreve, mas prescreve: é um "legislador". Parece ser análogo o conceito de Aristóteles, que define a G. como "ciência do ler e do escrever" (7qp., VI, 5, 142 b 31). Esse conceito praticamente não foi alterado até a Idade Moderna. No fim da Escolástica começou-se a falar de uma "G. especulativa" (Tomaseu de Erfurt compôs uma que foi atribuída a Duns Scot), e Campanella incluiu uma G. semelhante em sua Philosophia rationalis (1638), que inclui Poética, Retórica e Dialética. No século seguinte, Wolff pôs entre as outras ciências a G. especulativa ou filosofia

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GRAMÁTICA

da G., "na qual se explicam as regras gerais pertencentes à G. em geral, sem levar em con­ ta os particularismos das línguas especiais" (Log., Disc. prael, 1735, § 72). Foi só com Humboldt que surgiu um novo conceito de G., no famoso texto Sobre a diver­ sidade da constituição da linguagem huma­ na (1836), a partir do qual a G. começou a ser concebida como uma disciplina não normativa ou legislativa, mas descritiva, sendo seu objeti­ vo investigar, na língua, as uniformidades que constituem regras ou leis. Por esse conceito moldaram-se todos os estudos modernos da G., que passaram a utilizar cada vez mais as considerações estatísticas (cf., p. ex., G. HERDAN, Language as Choice and Chance, Grõningen, 1956). No campo filosófico, Heidegger encarou a exigência de libertar a G. da lógica que toma as coisas como modelo, ou seja, o "instrumental intramundano": "A tarefa de liber­ tar a gramática da lógica exige uma compreen­ são preliminar e positiva da estrutura apriori do discurso como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente por meio de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devemse questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é suscetível de compreensão e não ape­ nas dos entes intramundanos conhecidos teori­ camente e expressos em frases" (Sein undZeit, § 34). Desse ponto de vista, não basta realizar uma "G. geral" baseada na generalização das regras de todas as línguas, visto que mesmo essa G. geral pode ser restrita demais no que diz respeito às formas lógicas em que se mol­ da. Heidegger acrescenta: "A semântica tem raízes na ontologia do ser-aí: sua sorte está ligada ao destino deste" ijbid, § 34). Em outros termos, Heidegger desejaria uma G. que levas­ se em conta não só e não tanto a estrutura das coisas, em que se molda a estrutura da oração, mas também e sobretudo a estrutura da exis­ tência humana, que é específica e diferente da estrutura das coisas. Esse também parece ser o pressuposto da G. gerativae transformacional de que fala Chomsky; com efeito, este se refe­ re freqüentemente a Descartes e, em geral, aos filósofos do séc. XVII, que ressaltaram o cará­ ter especificamente humano e criativo da lingua­ gem. Essa G. gerativa deveria solucionar o pro­ blema de "construir uma teoria da aquisição lingüística e de explicar as habilidades ina­ tas específicas que possibilitam essa aquisição"

grandeza

(Aspects ofthe Theory o/Syntax, 1956, I, § 4). Uma G. desse tipo, por um lado, seria "um modelo explicativo, ou seja, uma teoria da intui­ ção lingüística do falante nativo" e, por outro, mostraria que "as estruturas profundas são mui­ to semelhantes de uma língua para outra e as regras que as manipulam e interpretam tam­ bém parecem derivar de uma classe muito restrita de operações formais concebíveis" (En­ saios lingüísticos, trad. it., III, 1969, pp. 19 e 272). Essa G. seria, assim, a matriz de qual­ quer G. possível e também apresentaria os cri­ térios para a escolha de determinada G. na constituição de uma linguagem. GRANDEZA (gr. PÍ7E60Ç; lat. Magnitudo; in. Size, Magnitude; fr. Grandeur, ai. Grõsse; it. Grandezzd). Segundo Aristóteles, quanti­ dade mensurável, distinta da multiplicidade, que é a quantidade numerãvel, e a ela correspon­ dente. Aristóteles acrescenta que, enquanto a multiplicidade é potencialmente divisível em partes não contínuas, a G. é divisível em partes contínuas. Portanto, são G. o compri­ mento, a largura, a profundidade (Met, V, 13, 1020 a 7). Kant fez da G. um princípio da Razão Pura, mais precisamente um "axioma da intuição", mas não mantém imutável esse conceito. "A percepção de um objeto como fenômeno", diz Kant, "só é possível por meio da unidade sintética da multiplicidade da intui­ ção sensível dada, graças à qual a unidade da composição da multiplicidade homogê­ nea é pensada no conceito de uma G.; os fenômenos são todos G., aliás G. extensivas porque devem ser representados como intuições no espaço e no tempo". Segundo Kant, dizer G. extensivas significa que "a represen­ tação das partes torna possível a representa­ ção do todo e por isso a precede"; conceito que torna a matemática aplicável aos objetos da experiência (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 1). Tudo isso significa que a G. é uma quantidade empírica que pode ser aplicada à matemática, ou seja, que é mensurável. No pensamento matemático mo­ derno a relação entre a noção de G. e a de mensurabilidade se mantém, mas às vezes se inverte. E o que ocorre em Russell, para quem G. é a "propriedade que várias coisas mensurá­ veis podem possuir em comum". E acrescenta: "A crença de que haja semelhante proprieda­ de, pertencente a cada um dos termos de dado grupo, eqüivale logicamente à crença de que haja uma relação simétrica e transitiva entre os

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GRAU

componentes de cada par de termos desse gru­ po" (HumanKnowledge, IV, 6 ; trad. it., p. 411) (v. QUANTIDADE). GRAU (lat. Gradus; in. Degree, Grade-, fr. Degré; ai. Grad; it. Grado). A importância desta noção se deve à sua relação com a noção de infinitésimo e, por isso, só começa com Leibniz, que utiliza essa palavra com sentido me­ tafísico, e não matemático ou físico. Os escolásticos, porém, usavam essa palavra ao falarem de "G. de perfeição" do universo e, portanto, da "prova dos G." da existência de Deus (v. DEUS, PROVAS DE). Bacon falava de uma "tábua dos G." (v. TÁBUA), Locke aludia aos G. das idéias simples (Ensaio, IV, 2, 11) e, em sentido mais preciso e moderno, Galilei observava: "Segue-se que, diminuindo sempre nessa razão a velocidade antecedente, não haverá G. de ve­ locidade tão pequeno, ou melhor, de lentidão tão grande, no qual não se tenha constituído o mesmo móvel depois da partida da infinita len­ tidão, ou seja, do repouso, etc." (Disc. delle nuove scienze, III; Op., VIII, p. 199). Mas foi só com a lex continui, estabelecida por Leibniz, que a noção de G. passou a ser conceito fundamental da matemática, da física e da me­ tafísica. Segundo a lei da continuidade, pas­ sa-se por G. do grande ao pequeno, do re­ pouso ao movimento ou vice-versa, assim como se passa por G. das percepções eviden­ tes às que são pequenas demais para serem observadas (Nouv. ess, 1703, pref.). A partir de Leibniz o G. passa a ser noção fundamental da metafísica. Definida por Wolff como "quan­ tidade das quantidades" (Ont., § 747) e por Baumgarten nos mesmos termos (Met, § 246), Kant erigiu essa noção em "princípio da ra­ zão pura", expressando-a do seguinte modo: "Em todos os fenômenos o real, que é objeto da sensação, tem uma grandeza intensiva, ou seja, um G.". Para Kant, é nesse princípio, que serve de base às "antecipações" da percepção, que se funda o conceito de continuidade tanto em física quanto em matemática (Crít. R. Pura, Anal. dos princípios, seç. 3, 2a). Na realidade, a noção de contínuo e a de G. não são diferen­ tes. Como observava Leibniz, a lex continui leva a considerar, por exemplo, o repouso como um G. do movimento e, em geral, qual­ quer qualidade como um G. da qualidade oposta. Hegel expressou essa idéia ao falar da transformação da quantidade em qualidade ou vice-versa: "À primeira vista, a quantidade apa­ rece como tal contrapondo-se à qualidade; mas

GROTESCO

a quantidade também é uma qualidade, uma determinação que, em geral, se refere a si, dis­ tinta de sua outra determinação, a qualidade co­ mo tal. Contudo ela não é apenas qualidade, mas a verdade da qualidade é a quantidade; aquela mostra-se em transposição nesta (...). Para chegar-se à totalidade, é necessária a tran­ sição dupla, não só a transição de uma deter­ minação para a sua outra determinação, mas também a transição desta outra, o seu retorno, para a primeira" {Wissenschaft der Logik, I, I, seç. II, cap. III, C; trad. it., I, p. 39D. Engels enu­ mera essa tese de Hegel como a primeira lei fundamental da dialética (v. DIALÉTICO, MATERIALISMO), interpretando-a em sentido materialista: "Lei da conversão da quantidade em qualidade e vice-versa. No que se refere aos nossos obje­ tivos, podemos expressá-la no fato de que, na natureza, só podem ocorrer variações qualita­ tivas acrescentando ou subtraindo matéria ou movimento (a chamada energia), e isso de modo rigorosamente válido para qualquer caso" {Dialektík derNatur, Dialética; trad. it., p. 57). Na filosofia contemporânea, a noção de G. foi absorvida pela noção de continuidade. GROTESCO (in. Grotesque; fr. Grotesque; ai. Groteske; it. Grottescó). Uma espécie do cô­ mico, distinguida pelos tratadistas modernos. É caracterizado por Santayana como "um efei­ to interessante, produzido pela transformação de um tipo ideal, que exagere um dos seus elementos ou o combine com os de outros tipos". Nesse caso considera-se "a sua diver­ gência em relação ao tipo natural, e não em relação sua possibilidade interna" (Sense of Beauty, 1896, § 64). GRUPO (in. Group; fr. Groupe; ai. Gruppe; it. Gruppó). 1. No significado matemático, a palavra foi usada pela primeira vez por Evariste Galois, em 1830. O conceito elaborado poste­ riormente pela matemática serviu poderosa­ mente para a unificação das matemáticas e para a sua elucidação conceituai. Um G. é uma classe ou um conjunto dotado das seguintes ca­ racterísticas: d) seus elementos podem ser enti­ dades aritméticas, geométricas, físicas ou inde­ finidas; b) o número de tais entidades pode ser finito ou infinito; c) as regras de combinação de tais entidades podem ser as aritméticas ou geo­ métricas ou podem não ser definidas; d) a re­ gra de combinação deve ser associativa, mas pode ser tanto comutativa ou não-comutativa; é) todo elemento do conjunto deve ter o seu inverso. A classe dos números inteiros positivos

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GUERRA

e negativos, inclusive o zero, constitui um G. nesse sentido. Os dois conceitos fundamentais da teoria dos G. são os de transformação (v.), que é entendido no sentido mais lato, e o de invariância (v. INVARIANTE), em virtude do qual se chamam invariantes as propriedades de um objeto que permanecem as mesmas, por meio da transformação. 2. No significado sociológico, um conjunto de pessoas caracterizadas por uma atitude co­ mum ou recorrente. É esse o termo mais ge­ ral para indicar um objeto qualquer da pes­ quisa sociológica: de fato, o grupo pode ser definido dos modos mais diversos, e a diver­ sidade desses modos garante as dimensões de liberdade da própria pesquisa; cf. R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 3a ed., 1957, cap. VIII-LX; ABBAGNANO, Problemi

di sociologia, 1959, III, 8 .

GUERRA (gr. jróAeu,oç; lat. Bellum; in. War; fr. Guerre; ai. Krieg; it. Guerra). Alguns filóso­ fos da Antigüidade atribuíram um valor cósmico à G., uma função dominante na economia do universo. Foi o que fez Heráclito, que chamou a G. de "mãe e rainha de todas as coisas" {Fr. 53, Diels), afirmando que "a G. e a justiça são confitos e, por meio do conflito, todas as coisas são geradas e chegam à morte" {Fr. 80, Diels). Foi o que fez também Empédocles, que, ao lado da Amizade (ou Amor), como força que une os elementos constitutivos do mundo, pôs o Ódio ou a Discórdia que tende a desuni-los {Fr. 17, Diels). Outros filósofos, como Hobbes, afirma­ ram que o estado de G. é o estado "natural" da humanidade, no sentido de que é o estado a que ela seria reduzida sem as normas do direito, ou do qual procura sair mediante essas regras {Leviath, I, 13). Mas, não obstante essas idéias ou semelhantes, os filósofos esforçaram-se constantemente por evidenciar e encorajar os esforços dos homens para evitar as G. ou para diminuir as situações que lhes dão origem. Por vezes, ocuparam-se em formular projetos nesse sentido (v. PAZ). A exceção a essa regra é repre­ sentada por Hegel, que considerou a G. como uma espécie de "juízo de Deus", do qual a pro­ vidência histórica se vale para dar a vitória à me­ lhor encamação do Espírito do mundo. Hegel afirma, por um lado, que, "assim como o movi­ mento dos ventos preserva o mar da putrefação à qual o reduziria a quietude duradoura, a isso reduziria os povos a paz duradoura ou perpé­ tua" {Fil. do dir, § 324), e por outro lado julga que, no plano providencial da história do

GUERRA

mundo, um povo sucede ao outro no encarnar, realizar ou manifestar o Espírito do mundo, do­ minando, em nome e por meio dessa superiori­ dade, todos os outros povos. A G. pode ser um episódio dessa alternância, desse juízo de Deus proferido pelo "Espírito do mundo". "Em geral", diz Hegel, "a isso está ligada uma força externa que destitui com violência o povo do domínio e faz que ele deixe de ter primazia. Essa força ex­ terior, porém, só pertence ao fenômeno; nenhu­ ma força externa ou interna pode impor sua efi­

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GUIA, PRINCIPIO

cácia destruidora em face do Espírito do povo, se este já não estiver exânime, extinto" (Phi­ losophie derGeschichte, ed. Lasson, p. 47). Es­ sas afirmações de Hegel eqüivalem a justificar qualquer G. vitoriosa que, como tal, estaria nos planos providenciais da Razão. Constituem, por­ tanto, uma monstruosidade filosófica que, en­ tretanto, não deixou de ter defensores e segui­ dores, dentro e fora do círculo da filosofia hegeliana. GUIA, PRINCÍPIO. V. PRINCÍPIO.

H HÁBITO 1 (gr. èGoç; lat. Consuetudo; in. Habit, Custom; fr. Habitude, ai. Gewohnheit; it. Abitudiné). O mesmo que COSTUME1. Em ge­

ral, a repetição constante de um acontecimento ou de um comportamento, devido a um meca­ nismo de qualquer gênero (físico, fisiológico, biológico, social, etc.) Na maioria das vezes, esse mecanismo se forma por meio da repetição dos atos ou dos comportamentos e, portanto, no caso de acontecimentos humanos, por meio do exercício. Diz-se que "as coisas habitual­ mente acontecem assim" para indicar qualquer uniformidade nos acontecimentos, mesmo não humanos, conquanto não seja uma uniformida­ de rigorosa e absoluta, mas apenas aproximada e relativa, contudo capaz de permitir uma pre­ visão provável. Nesse sentido Aristóteles disse (Ret., I, 10, 1369b 6): "Faz-se por hábito aquilo que se faz por se ter feito muitas vezes", e acrescenta que "O hábito é, de certa forma, muito semelhante à natureza, já que 'freqüen­ temente' e 'sempre' são próximos: a natureza é daquilo que é sempre; o hábito é daquilo que é freqüentemente" (Ibid., I, 11, 1 370a 7). Com isso Aristóteles viu no hábito uma espécie de mecanismo análogo aos mecanismos naturais, que garante, de certa forma, a repetição uni­ forme dos fatos, atos ou comportamentos, eli­ minando ou reduzindo nestes últimos o esfor­ ço e o trabalho, tornando-os, assim, agradáveis. Com esse significado esse termo foi e é cons­ tantemente usado em várias disciplinas (biolo­ gia, psicologia, sociologia) e, em filosofia mo­ derna, tem sido tomado freqüentemente co­ mo princípio de explicação de problemas gnosiológicos ou metafísicos. O primeiro a usar esse conceito com essa finalidade foi Pascal, que insistiu na influência do hábito na crença: "É o costume (coutumé) que torna as nossas provas mais sólidas e dignas de cré­

dito: ele redobra o automatismo, que arrasta o intelecto sem que este se aperceba. É pre­ ciso conquistar uma crença mais fácil, que é a do hábito (habitude) e que, sem violência, sem arte, sem provas, faz-nos crer nas coisas e inclina todas as nossas forças para essa crença, de tal forma que nossa alma nela in­ cide naturalmente" (Pensées, nQ 252). Foi esse o ponto de vista que, um século depois, serviu de base à filosofia de Hume. Ele definiu o costu­ me como a disposição, produzida pela repeti­ ção de um ato, a renovar o mesmo ato, sem a intervenção do raciocínio (Inq. Cone. Underst., V, 1). E valeu-se desse conceito de hábito (cos­ tume) para explicar a função das idéias abstra­ tas, que ele considerou como idéias particula­ res assumidas como signos de outras idéias particulares semelhantes. O costume de consi­ derar interligadas idéias designadas por um único nome faz que o nome desperte em nós nem uma nem todas dessas idéias, mas sim o costume de considerá-las juntas, portanto uma ou outra, delas de acordo com as ocasiões. (Treatise, I, 1, 7). Hume recorre ao hábito para explicar a conexão causai: por termos visto vá­ rias vezes juntos dois fatos ou objetos, como p. ex. a chama e o calor, o peso e a solidez, so­ mos levados pelo costume a prever um quan­ do o outro se apresenta. O conjunto de nossa vida diária funda-se no hábito. "Sem o hábi­ to" — diz Hume (Jnquiry, cit., V, I) — "ignora­ ríamos inteiramente quaisquer questões de fato, além daquelas que se nos apresentam imediatamente à memória ou aos sentidos. Não saberíamos adaptar os meios aos fins, nem empregar nossos poderes naturais para produzir qualquer efeito. As ações termina­ riam, terminando também a parte principal da especulação".

HABITO1

De modo análogo, mas em campo diferen­ te, Bergson (talvez retomando uma idéia de Renouvier, Nouvelle monadologie, p. 298) uti­ lizou a noção de hábito/costume para explicar as obrigações morais, que não seriam exigên­ cias da razão, mas costumes sociais que garan­ tem a vida e a solidez do corpo social {Deux sources, p. 21). A interpretação do hábito como ação originariamente espontânea ou livre que depois se fixa com o exercício, de tal forma que pode ser repetida sem a intervenção do raciocínio e da consciência, portanto mecanicamente, pos­ sibilitou o uso metafísico dessa noção: uso que aparece com bastante freqüência na filosofia moderna e contemporânea, especialmente no idealismo e no espiritualismo. O primeiro a tirar proveito desse uso para a construção de uma metafísica da experiência interior foi Maine de Biran, em sua obra Influência do habito sobre a faculdade depensar(1803) • Enquanto os hábitos passivos, que dizem respeito às sen­ sações, reduzem a consciência, os hábitos ati­ vos, que dizem respeito às operações, facilitam e aperfeiçoam a consciência, constituindo, por isso, um instrumento para que o espírito se li­ berte dos mecanismos que tendem a formarse mediante a repetição dos seus esforços. Essa noção de hábito/costume, que, mes­ mo sendo expressa nos termos da denomina­ da "experiência interior" ou "sentido interior", já tem alcance metafísico (pois Maine de Biran acredita que os dados dessa experiência reve­ lam a própria realidade) e encontra correspon­ dência na doutrina de Hegel, que lhe dedicou alguns parágrafos da sua seção sobre o espíri­ to subjetivo, na parte dedicada à alma senciente {Ene, §§ 409-10). Hegel diz que, graças ao hábi­ to, a alma "toma posse do seu conteúdo e con­ serva-o de tal forma que, nessas determina­ ções, ela não está como sensitiva, não está em relação com elas, mas distingue-se delas, nem está nelas imersa, mas as possui sem sensação e sem consciência, movendo-se dentro delas. A alma, portanto, está livre delas, porquanto por elas não se interesse e com elas não se preocupe; e existindo nestas formas como em poder de si, está concomitantemente aberta a qualquer outra atividade e ocupação (tanto da sensação quanto de consciência espiritual em geral)". Por esta função do hábito, de oferecer à alma a posse de certo conteúdo, de tal forma que ela possa utilizar esse conteúdo "sem sen­ sação e sem consciência" (de modo que sensa­

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HABITO2

ção e consciência tornam-se livres novamente disponíveis para outras operações), Hegel res­ saltou a importância do hábito para a vida espi­ ritual. "O hábito" — disse ele — "é mais essencial para a existência do que qualquer espiritualida­ de no indivíduo, para que o sujeito exista como sujeito concreto, como idealidade da alma; para que o conteúdo religioso, moral, etc, pertença a ele como ele mesmo, a ele como a essa alma; para que não esteja nele apenas em si (como disposição), nem como sensação e como re­ presentação transitória, nem como interioridade abstrata separada do fazer e da realidade, mas no seu ser". Isto quer dizer que o hábito incorpora certo conteúdo no próprio ser da alma individual, como uma posse efetiva, que se traduz em ação real. Na esteira de Maine de Biran, Ravaisson propôs uma metafísica do hábito, que expõe num famoso trabalho {Sobre o habito, 1838). No hábito, Ravaisson viu uma idéia substan­ cial, ou seja, uma idéia que se transformou em substância, em realidade, e que age como tal. O hábito não é um mecanismo puro, mas uma "lei de graça", porquanto indica o predomínio da causa final sobre a causa eficiente. Permite, pois, que se entenda a própria natureza como espírito e como atividade espiritual, uma vez que demonstra que o espírito pode tornar-se natureza e a natureza, espírito. Permite organi­ zar todos os seres numa série cujos limites extremos são representados pela natureza e pelo espírito. "O limite inferior é a necessidade, o destino, se quisermos, mas na espontaneida­ de da natureza; o limite superior é a liberdade do intelecto. O hábito desce de um para outro, reaproxima esses contrários e, reaproximandoos, revela sua essência íntima e sua conexão necessária." A partir de Bergson, esses con­ ceitos foram retomados com freqüência no espiritualismo contemporâneo, para explicar de certa forma o "mecanismo da matéria" e reintegrá-lo na espontaneidade espiritual. HÁBITO 2 (gr. ifyç-, lat. Habitus, in. Habit; fr. Disposition; ai. Fertigkeit; it. Abitó). É preciso distinguir o significado deste termo do signifi­ cado de costume (v. HÁBITO1), com o qual é freqüentemente confundido. Significa uma dis­ posição constante ou relativamente constante para ser ou agir de certo modo. P. ex., o "hábito de dizer a verdade" é a disposição deliberada, neste caso um compromisso moral de dizer a verdade. É coisa bem diferente do "costume de dizer a verdade", que implicaria o mecanismo

HARMONIA

de repetir freqüentemente essa ação. Assim, "o hábito de levantar-se cedo pela manhã" é uma espécie de compromisso que pode represen­ tar esforço e sofrimento; "o costume de levan­ tar-se cedo pela manhã" não representa esforço algum, porque é um mecanismo rotineiro. Essa palavra foi introduzida na linguagem fi­ losófica por Aristóteles (Met., V, 20, 1022b, 10), que a definiu como "uma disposição para estar bem ou mal disposto em relação a alguma coi­ sa, tanto em relação a si mesmo quanto a outra coisa; p. ex., a saúde é um hábito, porque é uma dessas disposições". Nesse sentido, Aristó­ teles julga que a virtude é um hábito, por não ser "emoção" (como a cupidez, a ira, o medo, etc), nem "potência", como seria a tendência à ira, do sofrimento, à piedade, etc. A virtude é, antes, a disposição para enfrentar, bem ou mal, emoções e potências; p. ex., dobrar-se aos im­ pulsos da ira ou moderá-los (Et. nic, II, 5). O mesmo significado é retomado por S. Tomás, que o expõe da seguinte maneira (Contra Gent., IV, 77): "O hábito difere da potência porque não nos capacita a fazer alguma coi­ sa, mas torna-nos hábeis ou inábeis para agir bem ou mal". Esse conceito manteve-se praticamente inalterado até nossos dias. Dewey assim o expõe: "A espécie de atividade humana que é influenciada pela atividade precedente e, neste sentido, é adquirida; que contém em si certa ordem ou certa sistematização dos meno­ res elementos da ação; que é projetante, dinâ­ mica em qualidade, pronta para a manifestação aberta; e que é atuante em qualquer forma su­ bordinada e oculta, mesmo quando não é ativi­ dade obviamente dominante. Hábito, mesmo em seu emprego ordinário, é o termo que de­ nota mais esses fatos do que qualquer outra palavra" (Human Nature and Conduct, 1921, pp. 40-41). Dewey achava que os termos "atitu­ de" e "disposição" também eram apropriados a esse conceito; na verdade, estes dois últimos termos são usados com mais freqüência que hábito e com significados muito semelhantes. HARMONIA (gr. áp|J.ovía; lat. Harmonia-, in. Harmony, fr. Harmonie, ai. Harmonie, it. Armonia). A ordem ou a disposição finalista das partes de um todo, como p. ex. do mundo, ou da alma, foi denominada "Harmonia", pelos pitagóricos, por ser proporção ou mescla dos elementos corpóreos (cf. PLATÀO, Fed, 86 c). Empédocles valeu-se desse conceito para defi­ nir a natureza do esfero (Fr. 122, Diels). Esse

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HECCEIDADE

termo foi usado por Leibniz na expressão Har­ monia preestabelecida, para designar determi­ nado sistema de comunicação entre as substân­ cias espirituais (manadas) que compõem o mundo. Leibniz acredita que tais substâncias não podem influenciar-se reciprocamente, já que cada uma está "fechada em si mesma", e assim exclui a doutrina comumente aceita, da influência recíproca. Exclui também a doutrina por ele denominada assistência, que é própria do sistema das causas ocasionais de Guelinx e Malebranche, segundo a qual a comunicação entre as várias mônadas seria estabelecida cada uma por sua vez diretamente por Deus. A Har­ monia preestabelecida é a doutrina segundo a qual as várias mônadas, como muitos relógios perfeitamente construídos, estão sempre de acordo entre si, mesmo seguindo cada uma sua própria lei. Assim, a alma e o corpo vi­ vem cada um por conta própria, contudo em harmonia, porque Deus coordenou as leis de ambos. O corpo segue a lei mecânica, a alma segue sua própria espontaneidade: a H. entre eles foi predisposta por Deus no ato da criação (Phil. Schriften, ed. Gerhardt, IV, p. 500). Esse termo encontra-se com freqüência no espiritualismo, especialmente em Ravaisson. Whitehead utilizou-o para explicar a beleza, a verdade, o bem, assim como a liberdade, a paz e toda "a grande aventura cósmica". "A grande H." — diz ele (Adv. ofldeas, p. 362) — "é a H. de individualidades duradouras conexas na unidade do fundamento. É por essa razão que a noção de liberdade nunca abandona as civili­ zações mais avançadas; a liberdade, em cada um de seus muitos sentidos, é a exigência de vigorosa auto-afirmação". HECCEIDADE (lat. Haecceitas; in. Haecceity, fr. Heccéité, it. Ecceità). Termo criado por Duns Scot a partir do adjetivo haec, com que se indica uma coisa particular, para desig­ nar a individualidade, esta consiste na "reali­ dade última do ente", que determina e "con­ trai" a natureza comum (composta de matéria e forma) numa coisa particular, ad esse hanc rem. Esse princípio é invocado por Duns Scot para explicar de que maneira a coisa indivi­ dual se origina da "natureza comum", que é in­ diferente tanto à universalidade quanto à indi­ vidualidade. Esse termo não se encontra em Opus Oxoniense, que é o maior comentário de Duns Scot às Sentenças, de Pietro Lombardo, mas em Reportataparísiensia (II, d. 12, q. 5, n.

h e d o n is m o

1, 8 , 13, 14); foi muito usado pela escola escotista (v. INDIViDUAÇÃO). HEDONISMO (in. Hedonism; fr. Hédonisme, ai. Hedonismus; it. Edonismó). Termo que indica tanto a procura indiscriminada do pra­ zer, quanto a doutrina filosófica que considera o prazer como o único bem possível, portanto como o fundamento de vida moral. Essa doutri­ na foi sustentada por uma das escolas socráticas, a Cirenaica, fundada por Aristipo; foi retomada por Epicuro, segundo o qual "o pra­ zer é o princípio e o fim da vida feliz" (DlÓG. L, X, 129). O hedonismo distingue-se do utilitarismo do séc. XVIII porque, para este último, o bem não está no prazer individual, mas no pra­ zer do "maior número possível de pessoas", ou seja, na utilidade social. HEGELIANISMO (in. Hegelianism; fr. Hégélianisme, ai. Hegelianismus; it. Hegelismó). Doutrina de Hegel (1770-1831), na forma como agiu na cultura contemporânea, com maior difusão e profundidade. Pode ser assim re­ sumida: ls Identidade entre racional e real, em vir­ tude da qual a realidade é tudo aquilo que deve ser, ou seja, justifica-se absolutamente em todas as suas manifestações, que, portanto, são "necessárias" no sentido de não poderem ser diferentes daquilo que são. Desse ponto de vista, contrapor à realidade o "dever ser", uma norma ou um ideal à qual ela não se adequa­ ria, significa simplesmente erigir em juiz da rea­ lidade o intelecto finito (o interesse ou o arbí­ trio do indivíduo humano), e não a razão. 2a Interpretação da necessidade racional em termos de processo dialético, entendendo-se por dialética (v.) a síntese dos opostos. 39 Reconhecimento, como termo último des­ se processo, de uma autoconsciência absoluta, que também será chamada pelos partidários de Hegel de Espírito, Conceito Puro, Consciência Absoluta, Superalma, etc.; 4S Interpretação da história como realiza­ ção de um plano providencial no qual os po­ vos vencedores encarnam, alternadamente, o Espírito do mundo, ou seja, a Autoconsciência ou Deus. 59 Interpretação do Estado como encar­ nação ou manifestação do Espírito do mundo ou, em outros termos, como realização de Deus no mundo. Apesar de esses pontos básicos constituí­ rem o espírito da filosofia hegeliana, nem to­ dos entraram na constituição do patrimônio

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h e r m e n ê u t ic a

das correntes filosóficas que se inspiraram no hegelianismo. A direita hegeliana insistiu sobre­ tudo nas teses 2Q, 3e e 5B; a esquerda, nas teses 1Q e 2°. O neo-hegelianismo italiano, nas te­

ses 1B, 2ee 4b (v. ABSOLUTO; DIREITA HEGELIANA; IDEALISMO; ESQUERDA HEGELIANA)

HEGEMÔNICO (gr. 1ÊELOVKÓV; lat. Príncipatus; it. Egemonico). Segundo os estóicos, a

razão que anima e governa o mundo. "Chamo de parte regedora ou governo aquilo que os gregos denominam H., da qual pode e deve estar o mais excelente em cada gênero de coi­ sas. Assim, é preciso que também a parte em que está o governo de toda a natureza seja entre todas a melhor e a mais digna do poder e d o domínio sobre todas a s coisas" (CÍCERO, De nat. deor., II, 29). HELENÍSTICA, FILOSOFIA. Entende-se, com esta expressão, a filosofia da época ale­ xandrina — período seguinte à morte de Ale­ xandre Magno (323 a.C.) — , que compreende as três grandes linhas mestras: Estoicismo, Epicurismo e Ceticismo — v. os respectivos termos, b e n i como ALEXANDRINISMO. HENOTEÍSMO (ai. Henotheismus). Termo cunhado por Max Müller (Lect. on the Origin and Growth ofReligion, 1878) para indicar a crença segundo a qual, mesmo havendo uma única divindade para o povo ou nação a que se pertence, existem outras divindades para os outros povos e as outras nações. HeRaCLITISMO (in. Heracliteanism; fr. Héraditísme, ai. Heraklitismus-, it. Emdüismo). Indica-se, com este termo, o ponto mais rele­ vante da doutrina de Heráclito de Éfeso (séc. V a.C), ou seja, o princípio do devir incessante das coisas, expresso no famoso fragmento: "Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, nem tocar duas vezes uma substância mor­ tal no mesmo estado; graças à velocidade do movimento, tudo se dispersa e se recompõe novamente, tudo vem e vai." (Fr. 91, Diels). Heráclito, todavia, admitia um princípio único, subjacente ao movimento: o fogo; admitia, outrossim, uma ordem rigorosa nas mudanças, que garantia um retorno constante e periódico. h e r a n ç a s o c ia l. v. tr a d iç ã o .

HERMEnêUTICA (in. Hermeneutics; fr. Herméneutique; ai. Hermeneutik; it. Ermeneutica). Qualquer técnica de interpretação. Essa palavra é freqüentemente usada para indicar a técnica de interpretação da Bíblia (v. INTERPRETAÇÃO).

HERMETISMO

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HETEROGONIA DOS FINS

da Razão-, esta utiliza os indivíduos e suas pai­ xões como meios para realizar seus próprios se com este termo a doutrina filosófica contida fins. O indivíduo, em certo ponto, perece ou é em alguns textos místicos que apareceram no levado à ruína pelo sucesso: a Idéia Universal, séc. I d.C. e chegaram até nós com o nome de que provocara esse sucesso, já alcançou seu Hermes Trismegisto. Esses escritos tendem a fim (Pbil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 83). reintegrar a filosofia grega na religião egípcia. Nos heróis, age a mesma necessidade da histó­ Hermes é identificado com o deus egípcio ria, e por isso resistir a eles é inútil. "Eles são Theut ou Thot. Esses textos são escritos em levados irresistivelmente a cumprir sua obra" tom místico e defendem contra o cristianismo o ilbid., p. 77). Em conceito análogo inspirava-se paganismo e as religiões orientais. No séc. XV, T. Carlyle em sua obra Os heróis e o culto dos foram traduzidos para o latim por Marsílio heróis e o heróico na história (1841): "A histó­ Ficino e impressos pela primeira vez em 1471 ria universal, a história daquilo que o homem (Mercuri trismegisti liber de potestate et realizou neste mundo, substancialmente outra coisa não é senão a história dos grandes ho­ sapientia Dei, Treviso, 1471) . H. e o adjetivo "hermético" passam, pois, a mens que aqui agiram. Foram estes grandes designar qualquer doutrina abstrusa, difícil ou homens os líderes da humanidade, os inspirado­ acessível apenas a quem possua uma chave res, os campeões, e, lato sensu, os artífices de tudo aquilo que a multidão coletiva dos ho­ para interpretá-la. HERÓI (gr. fçCCÇ lat. Heros; in. Hera, fr. mens cumpriu e conseguiu" (Heroes, liç. 1). Esse "culto dos Heróis", como Carlyle denomi­ Héros; ai. Heros; it. Eroé). Segundo Platão, os nava, tem dois pressupostos: 1Q o caráter H. são semideuses nascidos de um deus que se apaixonou por uma mulher mortal ou de providencial da história, que, segundo se crê, um homem mortal que se apaixonou por uma destina-se a realizar um plano perfeito e infalí­ deusa (Crat,, 398c). Obviamente, com essa de­ vel em cada uma de suas partes; 2o o privilégio, finição Platão relegava a noção de H. à esfera concedido a alguns homens, de serem os prin­ do mito, assim como pertence ao mito a "idade cipais instrumentos da realização desse plano. dos H." de que falavam Hesiodo e o próprio Estas duas crenças constituem as característi­ Platão (v. IDADE); com isso, expungia essa n o ­ cas da concepção romântica da história; sub­ ção, pelo menos implicitamente, do campo da sistem e caducam com ela (v. HISTÓRIA). filosofia. Aristóteles admitia essa expunção, HERÓICA, IDADE. V. IDADE. quando observava: "Se houvesse duas catego­ HERÓICO, FUROR. V. ENTUSIASMO. rias de homens tais que a primeira diferisse da HETEROGENEIDADE, LEI DE. V. HOMO segunda tanto quanto se julgava que os deuses GENEIDADE. e os heróis diferiam dos homens, sobretudo HETEROGONIA DOS FINS (ai. Heteropela valentia física e pelas qualidades da alma, gonie derZweckê). Wundt batizou com o nome então sem dúvida ficaria evidente a superiori­ solene de "lei da H. dos fins" a observação não dade dos governantes sobre os governados, muito original de que os fins que a história rea­ etc." (Pol., VII, 14, 1332b 17). Foi só com o Ro­ liza não são os mesmos que os indivíduos ou mantismo que se começou a acreditar na existên­ as comunidades se propõem, mas resultam da cia de indivíduos excepcionais, nos quais se combinação, da correlação e do conflito das encarna a Providência Histórica e que, portan­ vontades humanas entre si e com as condições to, estão destinados a cumprir tarefas predomi­ objetivas {Ethik, 1886, p. 266; System der Phil, nantes. Hegel vê nos heróis, ou "indivíduos da 1889, 1, p. 326; II, pp. 221 ss.). Podemos lem­ história do mundo", os instrumentos das mais brar que Viço expressara o mesmo conceito altas realizações da história. São videntes; sa­ numa página famosa: "Porque os homens fize­ bem qual é a verdade do seu mundo e do seu ram este mundo de nações (que foi o primeiro tempo, qual é o conceito, o universal próximo princípio incontestável desta Ciência, depois a surgir; os outros reúnem-se em torno da ban­ do que perdemos a esperança de reencontrá-la deira deles, porque eles exprimem aquilo cuja em filósofos e filólogos), mas esse mundo, sem hora é chegada. Aparentemente, tais indivíduos dúvida, saiu de uma mente amiúde diferente e (Alexandre, César, Napoleão) nada mais fazem por vezes de todo contrária, e sempre superior, que seguir sua própria paixão, sua própria am­ a esses fins particulares que os homens se ha­ bição; mas, segundo Hegel, trata-se de astúcia viam proposto; esses fins restritos, transforma­ HERMETISMO (in. Hermetism; fr. Hermétisme, ai. Hermetismus; it. Ermetismó). Indica-

HETEROLOGICO

dos em meios para servir a fins mais amplos, foram sempre usados para conservar a gera­ ção humana nesta Terra" (Sc. nuova, 1744, Concl. da obra). HETEROLOGICO. V. AuTOLÓGico. HETERONOMIA. V. AUTONOMIA. HETEROZETESE (lat. Heterozetesis). O mes­ mo que Ignoratio Elenchi (v.). HEURÍSTICA. Palavra moderna originada do verbo grego eúpíOKto = acho: pesquisa ou arte de pesquisa. Diferente de Erística (v.). HIERARQUIA (gr. íepocpxíoc; lat. Hyerarchia; in. Hierarchy, fr. Hiérarchie, ai. Hiérarchie, it. Gerarchíd). Em sentido próprio, or­ dem das coisas sagradas, dos entes e dos valores supremos. O conceito (se não o termo) é neoplatônico (v., p. ex., PLOTINO, Enn., III, 2, 17), mas foi introduzido na filosofia ocidental atra­ vés dos dois textos do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que apareceram no começo do séc. VI, intitulados Sobre a H. celeste e Sobre a H. eclesiástica. O primeiro desses textos contém a organização das inteligências angélicas (v. ANGELOLOGIA); o segundo estabelece a corres­ pondência entre a H. angélica e a eclesiástica, que também se divide em três ordens. A pri­ meira é constituída pelos mistérios: Batismo, Eucaristia, Ordem Sacra. A segunda é constituí­ da pelos órgãos que administram os mistérios: bispo, sacerdote, diácono. A terceira é consti­ tuída por aqueles que, através desses órgãos, sào levados ao estado de Graça: catecúmenos, energúmenos, penitentes. Mais genericamen­ te, nos dias de hoje indica-se com esse termo qualquer organização de valores ou de autori­ dade: p. ex., "H. de valores", "H. burocrática", "H. partidária", etc. HILÉTICOS, DADOS (ai. Hyletische Data). Na terminologia de Husserl, dados constituí­ dos pelos conteúdos sensíveis, que compreen­ dem, além das sensações denominadas externas, também os sentimentos, impulsos, etc. Nesse sentido, as considerações e as análises fenomenológicas voltadas para esse elemento ma­ terial são chamadas de hilético-fenomenológicas, assim como as relativas aos correspondentes momentos noéticos são denominadas noéticofenomenológicas (Ideen, I, § 85). HILOMORFISMO (in. Hylomorphism; fr. Hylomorphisme; ai. Hylomorphismus; it. Ilomorfismo). Termo moderno, usado para indi­ car a doutrina do filósofo judeu Avicebron (Ibn-Gebirol, 1020-1069), em Fons vitae. Se­

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HILOZOISMO

gundo essa doutrina, aliás haurida em Liberde causis, de inspiração neoplatônica, tudo o que é compõe-se de matéria e forma. Donde se de­ duz que a substância espiritual, como p. ex. a alma, também não é forma pura, mas um com­ posto de matéria e forma. Avicebron, portan­ to, identificava a matéria com a substância, ou seja, com a primeira das categorias aristotélicas, que sustem (sustinet) as outras nove catego­ rias (Fons vitae, II, 6). HILOPATIA (in. Hylopathy). Foi assim que C. S. Peirce denominou o "monismo idealista", doutrina segundo a qual a matéria é "espírito que se tornou estéril" (Chance, Love and Logic, II, cap. I; trad. it. p. 121) . HILOZOÍSMO (in. Hylozoism, fr. Hylozoisme, ai. Hylozoismus; it. Ilozoismó). Crença ou doutrina segundo a qual a matéria vive por si mesma, ou seja, possui originariamente animação, movimento, sensibilidade ou qual­ quer grau de consciência. Essa doutrina não eqüivale à negação da matéria e à sua resolu­ ção em forças ou elementos espirituais (como faz opampsiquismo [v.]); ao contrário, costuma ser uma expressão do materialismo, doutrina que reconhece a matéria como única realidade. A expressão "H." já se encontra em Cudworth. Kant definiu o H. como a forma de "realismo da finalidade da natureza", para o qual "os fins da natureza se fundam no análogo de uma faculdade que age com intenção, a vida da matéria (que existe na própria natureza, ou é produzida por um princípio animador inter­ no, uma alma do mundo)" (Kritik der Urteilskraft, § 72; Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, Teor. 3, nota). Neste sentido, são hilozoístas todos os físi­ cos pré-socráticos (Tales, Anaximandro, Anaximenes, Parmênides, Heráclito, Empédocles), para os quais no princípio ou nos princípios materiais que admitem há alma e sensibilidade. Hilozoístas são os estóicos, para os quais o princípio constitutivo corpóreo do universo, ou seja, o fogo, é um sopro ou espírito animador e ordenador (DIÓG. L, VII, 156; CÍCERO, De nat. deor, II, 24). O H. antigo foi retomado pela fi­ losofia da natureza e pela magia do Renas­ cimento. Segundo Telésio, o calor e o frio, que são os dois princípios que agem na "massa corpórea" inerte, devem ser providos de sensibilidade porque, se não percebessem suas próprias impressões e as ações do princí­ pio oposto, não poderiam combater-se; con­ seqüentemente, todas as coisas da natureza são

500

h ip e r b ó l ic o

dotadas de sensibilidade. Essa doutrina é repe­ tida nos mesmos termos por Campanella (Del senso delle cose, I, 1) e por G. Bruno, em cujos Diálogos latinos, porém, encontra-se uma acen­ tuação no sentido pampsíquico do H. O H. é, pois, o pressuposto da magia, como tentativa direta para dominar as forças animadas da na­ tureza através de encantos (v. MAGIA). As últimas manifestações do H. são observa­ das no materialismo oitocentista: Haeckel, p. ex., acredita que os átomos são animados e que a matéria e o éter são dotados de sensibili­ dade e vontade (Die Weltràtsel, 1899) . Na filo­ sofia contemporânea pode-se dizer que o H. desapareceu, permanecendo o pampsiquismo (v.), que é a metafísica do espiritualismo (v.). h ip e r b ó l ic o .

v. d u v id a .

HIPERORGÂNICO (fr. Hyperorganique). Termo com que os escritores positivistas ca­ racterizaram o mundo propriamente humano, ou seja, psíquico e social. HIPERURÂNIO (gr. Ú7iepoi)pávioç). A re­ gião "além do céu", na qual, segundo o mito en­ contrado em Fedro (247 ss.), residem as subs­ tâncias imutáveis que são objeto da ciência. Trata-se de uma região não espacial, já que, para os antigos, o céu encerrava todo o espaço e além do céu não haveria espaço. Essa expres­ são, portanto, é puramente metafórica; em Re­ pública, o próprio Platão zomba dos que se ilu­ dem achando que verão os entes Inteligíveis olhando para cima: "Não posso atribuir a outra ciência o poder de fazer a alma olhar para cima, senão à ciência que trata do ser e do invisível; mas se alguém procurar aprender alguma coisa sensível olhando para cima, com a boca aberta ou fechada, digo que não aprenderá nada por­ que não há ciência das coisas sensíveis e sua alma não está olhando para cima, mas para bai­ xo, mesmo que ele estude ficando de costas na terra ou no mar" (Rep, VII, 529 b-c). HIPOLEMA (in. Hypolemmd). Foi esse o nome dado por W. Hamilton à premissa me­ nor do silogismo, porquanto está subsumida na premissa maior ou tema (Lectures on Logic, I, p. 283) . HIPÓSTASE (gr. Ú lrá K irÇ in. Hypostasis; fr. Hypostase, ai. Hypostase, it. Ipostasí). Com este termo Plotino denominou as três substân­ cias principais do mundo inteligível: o Uno, a Inteligência e a Alma (Enn., III, 4, 1; V, 1, 10), que ele comparava, respectivamente, à luz, ao sol e à lua (Ibid., V, Vi, 4). A transcrição latina desse substantivo é "substância", que, todavia,

h ip ó t e s e

foi usada pela tradição filosófica com significa­ do to ta lm e n te d iferen te (v. SUBSTÂNCIA). Nas discussões trinitárias dos primeiros séculos, esse termo foi preferido a pessoa (7tpóoco7iov), que, por significar propriamente máscara, pare­ cia evocar a imagem de algo fictício. A partir dessas discussões, o substantivo H. passou a designar a substância individual, a pessoa. S. Tomás diz: "Para alguns, a substância, na defi­ nição de pessoa, eqüivale a substância primei­ ra, que é a H.; todavia, não é supérfluo acres­ centar individual, uma vez que com as palavras H. ou substância primeira se exclui a relação entre o universal e a parte. De fato, não se diz que o conceito de homem ou a mão são H." (5. Th, I, q. 29, a. 1). Na linguagem moderna e contemporânea, esse termo é usado (mas raramente) em senti­ do pejorativo, para indicar a transformação falaz e sub-reptícia de uma palavra ou um con­ ceito em substância, ou seja, numa coisa ou num ente. Neste sentido fala-se também de hipostasiar (fr. hypostasier). HIPÓTESE (gr. ÚJiÓOeoiÇ; in. Hypothesis; fr. Hypothèse-, ai. Hypothese, it. Ipotest). Em geral, um enunciado (ou conjunto de enunciados) que só pode ser comprovado, examinado e ve­ rificado indiretamente, através das suas conse­ qüências. Portanto, a característica da H. é que ela não inclui nem garantia de verdade nem a possibilidade de verificação direta. Uma pre­ missa evidente não é uma H., mas, no sentido clássico do termo, um axioma. Um enunciado verificável é uma lei ou uma proposição em­ pírica, não uma hipótese. Uma H. pode ser ver­ dadeira, mas sua verdade só pode resultar da verificação de suas conseqüências. Era neste sentido que Aristóteles entendia a H., pois mes­ mo usando vez por outra esse termo em senti­ do muito amplo, como premissa de demonstra­ ção (compare, p. ex., Met., V, 1, 1013 a 16; 1913 b 20; Fís, II, 3, 195 a 18), define-a em seu signi­ ficado específico, excluindo-a do campo das premissas necessárias: "Aquilo que é necessá­ rio que seja e que é necessário que pareça necessário, não é hipótese nem postulado" (An. post, 1,10, 76 b 23). Axiomas e definições cons­ tituem as premissas necessárias do silogismo; H. e postulados são as premissas não necessá­ rias. Em particular, as H. estabelecem a exis­ tência das coisas definidas. As definições — diz ele — devem apenas levar-nos a compreender aquilo de que se fala; as H. estabelecem sua existência, para deduzir as conclusões (Ibid., I,

HIPÓTESE

10, 76b 35 ss.). Conseqüentemente, os racio­ cínios fundados em H. pressupõem uma espé­ cie de convenção ou acordo preliminar {An. pr., I, 44, 50 a 33) e não têm o valor probatório dos que se fundam em definições (Ibid., I, 23, 40b 22). Esta determinação da H. como premissa de grau ou qualidade inferior, isenta da necessida­ de própria das premissas autênticas, é caracte­ rística da posição de Aristóteles. Não se encon­ tra em Platão, para quem as premissas devem ser escolhidas com base no juízo comparativo, que se orienta para aquela que é "a mais forte" ou "a melhor" entre elas (Fed., 100a; lOld). Platão observa que a matemática e, em geral, as disciplinas propedêuticas nào partem de H., mas que "deixam-nas intocadas por não serem capazes de explicá-las" {Rep, VII, 533c). Em Parmênides são chamadas de H. todas as pos­ síveis vias de investigação, não se privilegiando nenhuma com nome diferente {Pann, 135 e). Platão declara às vezes que "investiga através da H.", como fazem os geômetras, ou seja, ra­ ciocinando assim: ''Em certas condições, obterse-á determinado resultado, mas se as condi­ ções forem outras, o resultado será diferente" (Men., 87a). O uso das H. em filosofia estabele­ ce uma diferença importante entre a filosofia de Platão e a de Aristóteles, no que concerne ao procedimento da própria filosofia e, em geral, do saber científico. Essa diferença, po­ rém, incide nos termos da noção geral de H., como acima expressa. No âmbito dessa no­ ção, é possível distinguir os seguintes signi­ ficados específicos: ls O antecedente de uma proposição hipo­ tética ou condicional, de um raciocínio anapodítico ou de um silogismo hipotético. A lógica estóica, ao contrário da aristotélica, privilegiou as proposições hipotéticas e os raciocínios anapodíticos, em conformidade com a for­ mulação geral da lógica como dialética (v. LÓGCA DIALÉTICA; CONDICIONAL; CONSEQÜÊNCIA; IMPLICAÇÃO). 2- Uma proposição originária assumida como fundamento de um discurso científico, como p. ex. um postulado ou um axioma de matemática. Realmente, não se afirma nem se nega a verdade desses postulados ou axiomas, mas reconhece-se sua validade se e na medida em que possibilitam o discurso matemático. Neste sentido, a matemática é denominada "sistema hipotético-dedutivo". Mas é possí­ vel encontrar proposições análogas aos pos­

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HIPÓTESE

tulados ou axiomas da matemática — e como eles assumidos por H. — em todas as ciências que alcançaram certo grau de elabo­ ração conceituai. 3S Uma condição qualquer. Este é o signifi­ cado do termo na expressão ex hipothesi. Aris­ tóteles fala daquilo que é "necessário por H.", ou seja, em virtude de determinada condição (Fís, II, 9, 199b 34 e ss.). 4S A explicação causai dos fenômenos. Nes­ te sentido, essa palavra foi usada freqüente­ mente nos sécs. XVII e XVIII. Locke advertia "para que a palavra princípio não nos engane nem se nos imponha, fazendo-nos aceitar como verdade incontestável aquilo que, no melhor dos casos, nada mais é que uma conjectura muito duvidosa, como ocorre com a maioria das H. da filosofia natural, para não dizer to­ das" {Ensaio, IV, 12, 13). E óbvio que, para Locke, H. é o que anuncia os "princípios", as causas dos fenômenos. Ainda mais explicita­ mente Leibniz dizia: "A arte de descobrir as causas dos fenômenos, ou as H. verdadeiras, é como a arte de decifrar, na qual muitas vezes uma conjectura engenhosa abrevia em muito o caminho" {Nouv. ess.,.IV, 12, 13), onde "H. verdadeiras" e "causas dos fenômenos" são iden­ tificadas. A renúncia de Newton (" hypotheses nonfingo" [nào formulo hipóteses]) refere-se exatamente a esse significado de hipótese. O texto de Newton é o seguinte: "Até agora, não pude deduzir dos fenômenos as razões dessas propriedades da gravidade, e não formulo hi­ póteses. Tudo o que nào se deduz dos fenôme­ nos deve ser chamado de H., e as H., tanto metafísicas quanto físicas, sejam elas de qua­ lidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental." A essas H. ele con­ trapõe as causas verdadeiras, que são as "ne­ cessárias para explicar os fenômenos" {Philosophiae naturalisprincipia mathematica, 1687, ao final). Em Optica (1704), Newton dizia que formular H. é recorrer às qualidades ocultas, assumidas como causas da metafísica aristotélica, às quais ele contrapunha os princípios (gravidade, fermentação, coesão), "que não considero qualidades ocultas, supostamente re­ sultantes das formas específicas das coisas, mas leis naturais gerais, pelas quais as coisas são formadas e cuja verdade se nos manifesta pelos fenômenos, mesmo que suas causas não te­ nham sido descobertas" {Opticks, III, 1 q. 31). Portanto, a renúncia de Newton às H. nada mais é que a renúncia à explicação em favor da

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descrição. Em meados do séc. XIX, a oposição entre descrição e explicação hipotética era re­ forçada pelo físico inglês J. Macquom Rankine: "Segundo o método abstrato, uma ciasse de objetos e de fenômenos é definida por descri­ ção, ou seja, mostrando-se que determinado conjunto de propriedades é comum a todos os objetos ou fenômenos da classe, e consideran­ do-os tais como os sentidos no-los dão a perce­ ber, sem nada introduzir de hipotético e só lhes atribuindo um nome ou símbolo. Pelo método hipotético, a definição de uma classe de obje­ tos ou de fenômenos é deduzida de uma con­ cepção conjectural acerca de sua natureza." E Rankine previa o abandono gradativo das teo­ rias hipotéticas e sua substituição pelas teorias abstratas (Outlínes ofthe Science o/Energetics, 1865, em Miscellaneous Scientifics Papers, p. 210; cf. P. DUHEM, La théoriephysique, 1906, pp. 80-81) . 5S Um procedimento especial que substitui a indução, para a formulação de princípios a se­ rem verificados experimentalmente. Para Stuart Mill, o procedimento científico é composto por três partes: indução, raciocínio e verificação. Ora, "o método hipotético suprime o primeiro desses três passos, a indução, para comprovar a lei, e limita-se às outras duas operações, ra­ ciocínio e verificação: a lei sobre a qual se raciocina é presumida, em vez de ser provada" (Logic, III, 14, 4). No mesmo sentido, Peirce põe a H. ao lado da dedução e da indução, como um tipo de raciocínio válido que se dis­ tingue da indução porque, enquanto esta "pro­ cede como se todos os objetos que têm deter­ minados caracteres fossem conhecidos", a H. é "a inferência que procede como se todos os caracteres necessários à determinação de certo objeto ou classe fossem conhecidos". Enquanto a indução pode ser considerada como a infe­ rência da premissa maior do silogismo, a hipó­ tese pode ser considerada como a inferência da premissa menor a partir das outras duas ("Some Consequences of Four Incapacities", em Values in a Universe ofChance, pp. 44 ss.). Este signi­ ficado do termo tornou-se raro. 6a O argumento de um discurso, enquanto proposto ou enunciado no início do discurso (ARISTÓTELES, Ret. adAl, 30, 1436 a 36; Ret, II, 18, 1391 b 13). 1 ° Uma teoria científica ou parte de uma teo­ ria científica. Nesse sentido, Mach diz: "Chame­ mos de H. uma explicação provisória que tem por objetivo fazer compreender mais facilmen­

te os fatos, que foge à prova dos fatos" (Erkenntniss undIrrtum, cap. 14; trad. fr., p. 240). Para este significado, v. TEORIA. HIPOTÉTICO (gr. ÍOToGeáKDÇ; lat. Hypotheticus; in. Hypothetical; fr. Hypothétique; ai. Hypothetisch; it. Lpotetico). Este termo tem signi­ ficado correspondente ao do substantivo. Para proposição hipotética, v. CATEGÓRICO; para si­ logismo hipotético, v. SILOGISMO. V. também

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ANAPODÍTICO; RACIOCÍNIO; CONDICIONAL; CONSE­ QÜÊNCIA.

HIPOTIPOSE (gr. ÍOTOTÚTTÜXRÇ; ai. Hypotypose). Este termo, que significa bosquejo ou es­ boço (neste sentido é encontrado no título da obra de SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp.), foi usado pelos retóricos para indicar a figura em virtude da qual um assunto é vividamente descrito em palavras (QUINTILIANO, Inst, IX, 2, 40). Kant utilizou essa palavra em sentido análogo, para expressar a relação entre a beleza e a moralida­ de: a beleza, como símbolo da moralidade, é a H. dela, ou seja, sua vigorosa manifestação in­ tuitiva. Enquanto as palavras e os outros sig­ nos são simples expressões dos conceitos, as H. são exibições ou manifestações do conceito em forma intuitiva (Crít.. doJuízo, § 59). HISTÓRIA (gr. íüxopía; lat. Historia; in. History, fr. Histoire, ai. Geschichte, it. Storia). Esse termo, que em geral significa pesquisa, informação ou narração e que já em grego era usado para indicar a resenha ou a narração dos fatos humanos, apresenta hoje uma ambigüida­ de fundamental: significa, por um lado, o co­ nhecimento de tais fatos ou a ciência que disci­ plina e dirige esse conhecimento (historia rerum gestarum) e, por outro, os próprios fatos ou um conjunto ou a totalidade deles (resgestaé). Essa ambigüidade está presente em todas as atuais línguas cultas (cf. H. I. MARROU, De Ia connaissance historique, 1954, pp. 38-39). Mas, em vista do maior uso do termo his­ toriografia para indicar o conhecimento histórico em geral, ou ciência da H. (e não a arte de escrever H.), pode-se colocar no verbete historiografia o tratamento dos significados atri­ buídos à H. ao longo do tempo, (como conhe­ cimento) e incluir neste verbete só os significa­ dos que foram dados à realidade histórica como tal. Tais significados são os seguintes: lg H. como passado; 2- H. como tradição; 3SH. como mundo histórico; 4S H. como objeto da histo­ riografia. Ia A H. interpretada como passado pode, com boas razões, ser considerada uma tauto-

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logia, mas o sentido em que Heidegger enten­ deu essa interpretação (Sein und Zeít, § 73), não parece puramente tautológico. Quando se diz: "Isto pertence à H.", entende-se que per­ tence ao passado, a um passado que tem pou­ ca eficácia sobre o presente. Por outro lado, quando se diz: "Não podemos subtrair-nos à H.", entende-se ainda a H. como passado, mas como um passado que age inevitavelmente so­ bre o presente. Assim também, dizer que "algo tem H." significa afirmar que tem passado e que é fruto desse passado. Nestas e em seme­ lhantes expressões, o significado desse termo permanece estritamente genérico: remete a uma dimensão do tempo e às relações que po­ dem ser estabelecidas entre ela e as outras di­ mensões. 2S Em segundo lugar, a H. pode ser entendi­ da como tradição, em que crenças e técnicas são transmitidas e conservadas através do tem­ po, seja tal legado verificável pela historio­ grafia, seja considerado como "evidente", mes­ mo permanecendo obscuro e não verificável. Ao conceito de tradição pode vincular-se o conceito de Heidegger sobre a historicidade autêntica, que é a escolha, para o futuro, das possibilidades que já foram, sendo, pois, a transmissão de tais possibilidades da existência para si mesma, uma repetição decidida, que Heidegger chama também de destino. "A deci­ são constitui a fidelidade da existência a si mes­ ma. Enquanto decisão permeada de angústia, a fidelidade é ao mesmo tempo o possível res­ peito em face da única autoridade que um exis­ tir livre pode reconhecer, ou seja, em face das possibilidades repetíveis da existência" (Sein undZeit, § 75). "Se o ser-aí só é autenticamente real na existência, sua factualidade constitui-se justamente no decidido autoprojetar-se para um poder-serque já foi escolhido. Mas então o que foi autenticamente um fato é a possibilida­ de existenciária em que se determinam efetiva­ mente o destino, a destinação comum e mun­ danamente histórica" (Ibid, § 76). Às vezes, porém, a tradição é entendida como conserva­ ção infalível e progressiva de todos os resulta­ dos ou conquistas do homem; nesse caso, o conceito identifica-se com o de H. como plano providencial (v. TRADIÇÃO). 3S O terceiro significado de H. é o mais rele­ vante filosoficamente; para ele, H. é o mundo histórico, a totalidade dos modos de ser e das criações humanas no mundo, ou a totalidade da "vida espiritual" ou das culturas. Nesse senti-

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do, a H. contrapõe-se a "natureza", que é a to­ talidade do que é independente do homem ou que não pode ser considerado produção ou criação sua, mas permanece aparentado com a natureza pelo seu caráter de totalidade, de mundo. É no âmbito desse conceito que se po­ dem distinguir as interpretações "filosóficas" da H., que constituem a chamada "filosofia da H.". Entre estas interpretações podem-se considerar principais as seguintes: a) H. como decadência; b) H. como ciclo; c) H. como reino do acaso; d) H. como progresso; é) H. como ordem pro­ videncial. d) A interpretação da H. como decadência é própria da Antigüidade, que a expressou com a doutrina das idades (v.) do gênero humano. A sucessão das cinco idades, descrita por Hesíodo, vai da idade de ouro, na qual os homens "viviam como deuses", à idade dos homens, na qual estes estão sujeitos a toda espécie de ma­ les, passando pela idade de prata, de bronze e dos heróis, que assinalam a decadência gradual do estado do gênero humano (Op, 109-79). Platão reduziu a três as idades, enumerando somente a idade dos deuses, dos heróis e dos homens, mas conservando o caráter de deca­ dência sucessiva que as idades apresentam quanto às condições materiais e morais dos ho­ mens (Crítias, 109b ss.). Retomada no mundo moderno (Viço, Fichte e outros), essa doutrina perdeu o significado pessimista e tornou-se oti­ mista: as idades estão em ordem de progresso e não de decadência. Mas não há dúvida de que, para os gregos, essa doutrina constitui uma interpretação da H. como decadência (v. IDADE). b) A noção da H. como ciclo está ligada à de ciclo do mundo, bastante difundida na An­ tigüidade grega. Para os estóicos a repetição do ciclo cósmico incluía a repetição da H. huma­ na no seu conjunto. Segundo eles, de fato, em cada novo ciclo do mundo, "haverá de novo Sócrates de novo Platão e de novo cada um dos homens com os mesmos amigos e con­ cidadãos, as mesmas crenças, os mesmos assuntos discutidos, e toda cidade, vilarejo ou campo igualmente retornarão" (NEMÉSIO, De nat. hom., 38). Pode-se ver na obra de Spengler uma revivescência moderna desse concei­ to de H. Para ele, os ciclos históricos, as cultu­ ras, não se repetem de modo idêntico, como julgavam os estóicos, mas a sua forma repetese identicamente: nascimento, crescimento e morte. "Toda cultura, todo surgimento, pro­

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gresso e declínio, bem como cada um dos seus graus e dos seus períodos inteiramente neces­ sários têm duração determinada, sempre igual, sempre recorrente, com forma de símbolo" (Der Untergang des Abendlandes, 1932, I, p. 147) (v. CICLO)!

c) O conceito da H. como reino do acaso não é freqüente na interpretação filosófica da história. Parece, contudo, que Aristóteles não estava muito longe dele quando contrapôs o historiador ao poeta, dizendo que a este último cabia representar o universal, "as coisas tais quais poderiam acontecer segundo a verossi­ milhança e a necessidade", ao passo que cabe­ ria ao historiador representar as coisas "real­ mente acontecidas", "o particular" e, como p. ex. "o que fez Aquiles e o que lhe aconteceu" (Poet., IX, 1451b 2-10). Não se deve esquecer que, para Aristóteles, só o universal é objeto de conhecimento científico e que o particular não pertence à ciência (Met., III, 6 , 1003 a 15). Mais explicitamente, Schopenhauer dizia: "A H. do gênero humano, a intimidade de aconte­ cimentos, a mudança dos tempos, os múlti­ plos aspectos da vida humana em países e sé­ culos diferentes, tudo isso é apenas a forma casual assumida pela manifestação da Idéia, que não pertence a esta, na qual está apenas a objetividade adequada da vontade, mas ao fe­ nômeno que fica sendo conhecido pelo indiví­ duo; e é tão estranha, tão inessencial e indife­ rente à Idéia quanto são estranhas às nuvens as figuras que representam, ao rio a forma dos seus sorvedouros e das suas espumas, e ao gelo suas figuras de árvores e flores" (Die Welt, I, § 35). Não se pode considerar, porém, neste tópico, o conceito da H. expresso por Maquiavel ao dizer que "a sorte pode ser árbitro da meta­ de das nossas ações, contanto que nos deixe ainda governar a outra metade, ou quase"; com­ parando a sorte a um rio que, quando irado, arrasta tudo, mas cujo ímpeto não é prejudicial ou causa menos danos quando o homem faz, a tempo, reparos e diques (Princ, 25). De fato, para Maquiavel, a sorte é o conjunto de condi­ ções que limitam, impedem ou frustram a ação do homem na H., mas não é a totalidade da H. No entanto, para A. Cournot o acaso servia para definir o domínio da H., que ele contra­ pôs ao da natureza, que é o domínio da ordem e da lei (Essai sur les fondements de Ia connaissance, 1851). d) O conceito de H. como progresso tem a característica de afirmar o caráter problemá­

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tico e não inevitável do progresso, pois, se o progresso é necessário, a H. é sobretudo uma ordem providencial cujos momentos são to­ dos igualmente perfeitos, porquanto indis­ pensáveis à perfeição ou ao aperfeiçoamento do conjunto. A H. como progresso problemático é uma idéia iluminista que supõe a medida do progresso, ou seja, uma norma ou um ideal de que a H. procura aproximar-se, ou que ela procura realizar, mas não encontran­ do jamais em si uma adequação perfeita. G. B. Viço expressou esse ideal no conceito de H. ideal eterna "sobre a qual transcorrem no tempo as H. de todas as nações, com surgimen­ tos, progressos, estados, decadências e fins" (Sc. nuova, De'principi). A H. ideal eterna é a ordem universal e eterna à qual a H. tempo­ ral, ou melhor, as várias H. temporais dos vários tempos e nações tendem a adequarse, sem nunca conseguirem por completo, aliás, às vezes precipitando-se na confusão e na ruína (Jbid, Conclusão da obra). Viço entendia a H. ideal eterna como sucessão pro­ gressiva de três idades (dos deuses, dos he­ róis, dos homens) e a permanência indefini­ da na última, que é a conclusão do ciclo. Voltaire, ao contrário, considerou como norma e me­ dida do progresso histórico a ilustração; a libertação da razão humana dos preconcei­ tos e a sua posição de guia da vida individual e social do homem (cf. especialmente o Essai sur les moeurs, 1740; Philosophie de 1'histoire, 1765). Kant seguiu o mesmo critério, suge­ rindo-o, porém, apenas como "fio condutor" para orientar-se filosoficamente na H. dos po­ vos. Escreveu: "À medida que as limitações à atividade pessoal forem sendo abolidas e que a liberdade religiosa for concedida a todos, produzir-se-á gradualmente, ainda que com in­ tervalos de ilusões e fantasias, a ilustração como um grande bem que a espécie humana po­ derá fazer derivar até dos objetivos ambiciosos de poder dos seus dominadores" (Ideezu einer allgemeinen Geschichte, 1784, tese VIII). Se­ gundo Jaspers, o único fim projetável da H. é a unidade da humanidade, não alcançá­ vel por meio da ciência ou da uniformidade lingüística ou cultural, mas da "ilimitada co­ municação daquilo que é diferente historicamen­ te, tal como se pode realizar num diálogo incessante, numa luta amorável" (Vom Ursprung undZiel der Geschichte, 1949). Certamente é possível propor outros critérios ou normas

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como medida do progresso na H., mas as características dessa noção não mudam en­ quanto se admite a inevitabilidade do pro­ gresso. e) Com a afirmação da inevitabilidade do progresso, o próprio progresso torna-se incon­ cebível (como viu Hegel), porque, se a H. é ne­ cessária, cada momento dela é tudo o que deve ser e não pode ser melhor nem pior do que os outros. A concepção da necessidade da H. é a concepção da H. como plano providen­ cial. A noção de plano providencial está implí­ cita em todas as formas de milenarísmo ou quiliasmo (v.): toda doutrina desse tipo inclui a idéia de desenvolvimento necessário dos feitos humanos até a consecução de um estado defi­ nitivo de perfeição. Foi esse, p. ex., o conceito de H. em Orígenes: para ele, os mundos suce­ dem-se no tempo como escolas nas quais os seres decaídos se reeducam (Deprinc, III, 6 , 3), e o ciclo total da H. é o retorno do mundo a Deus, que culmina na apocatãstase, na restitui­ ção de todos os seres à sua perfeição originária (Injohann, XX, 7). Mas o primeiro a formular claramente o conceito de plano providencial foi S. Agostinho, que viu na H. a luta entre a ci­ dade celeste e a cidade terrena: luta destinada a acabar com o triunfo da cidade celeste. Para esse triunfo, segundo S. Agostinho, Deus faz que também contribuam o mal e a má vontade {De civ. Dei, XI, 17). Os três períodos em que, para S. Agostinho, a H. se divide não são mais que o desenvolvimento do plano providencial. No primeiro, os homens vivem sem leise ainda não há luta contra os bens do mundo. No se­ gundo, os homens vivem sob a lei e por isso combatem contra o mundo, mas sào vencidos. O terceiro período é o tempo da graça, em que os homens combatem e vencem (Ibid, XIX, 15-26). No séc. XII, a profecia de Gioacchino da Fiore parte do mesmo conceito de H. e tem como modelo a divisão das idades feita por S. Agostinho. Gioacchino acredita que, depois da idade do Pai, que é a da lei, e da idade do Filho, que é a do Evangelho, virá a idade do Espírito, que é a da Graça, da inteligência ple­ na da verdade divina (Concórdia novi et veteris testamento, V, 84, 112). Todavia, o plano providencial da H., embo­ ra infalível e necessário, é, do ponto de vista religioso, imperscrutável em seus detalhes. O homem religioso crê nele e na sua perfeição, mas sabe que não pode compreender os cami­ nhos pelos quais se vai realizando. Posto dian­

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te do mal, confia em que o mal, em última ins­ tância, não triunfará, mas sabe que não pode di­ zer como isso acontecerá. Quando, no Roman­ tismo, a doutrina do plano providencial da H. se transforma em doutrina filosófica, o não-saber religioso transforma-se em certeza racional. Hegel afirmou muitas vezes que a diferença entre religião e filosofia é que a segunda de­ monstra, na sua determinação, essa relação entre Deus e o mundo, esse plano providen­ cial, e a primeira se limita a reconhecê-los (Ene, § 573; Philosophie der Geschíchte, ed. Lasson, I, p. 55). Entretanto, o ingresso des­ sa noção em filosofia deve-se sobretudo a Fichte. Em Caracteres da Idade Contemporâ­ nea (1806), Fichte afirmava energicamente a necessidade da H. e a sua redução a um plano providencial: "Qualquer coisa que realmente exista existe por absoluta necessidade: e existe necessariamente na forma precisa em que exis­ te" (Ibid., IX). E distinguia dois elementos no processo de civilização da espécie humana: um elemento apriori, que é o plano do mundo ou ordem providencial, e um elemento a posteriori, temporal ou empírico, constituído pelos fatos. A resultante dessa concepção é que "Nada é como é porque Deus queira arbitraria­ mente assim, mas porque Deus não pode ma­ nifestar-se de outro modo. Reconhecer isso, submeter-se humildemente e ser feliz, na cons­ ciência da nossa identidade com a força divina, é tarefa de todo homem" (Ibid, IX; trad. it. Cantoni, p. 67). Com essa distinção, Fichte pa­ rece atribuir certa autonomia (embora fictícia) aos "fatos"da H., em face do plano providen­ cial de que devem participar. Mas mesmo essa autonomia fictícia dos fatos desaparece na dou­ trina de Hegel: "Deus prevalece, e a H. do mundo não representa nada além do plano da providência. Deus governa o mundo: o conteú­ do do seu governo, a execução do seu plano é a H. universal... A filosofia quer conhecer o conteúdo, a realidade da idéia divina e justifi­ car a realidade vilipendiada. Com efeito, a ra­ zão é a percepção da obra de Deus" (Philoso­ phie der Geschichte, ed. Lasson, I, p. 55). Foi esse conceito de H. que Croce retomou e de­ fendeu nos primeiros decênios do séc. XX. Para ele, o sujeito da H. é o Espírito do Mundo ou a Razão, não o homem (Teoria e storia delia storiografia, 1917, p. 87). A H. é uma ordem progressiva que não conhece decadência, in­ terrupção ou morte (La storia comepensiero e come azione, 1938, p. 38). Ela é sempre jus-

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tificadora, nunca justiceira; e "só poderia tor­ nar-se justiceira tornando-se injusta, ou seja, confundindo o pensamento com a vida" (Teo­ ria estoria deliastoriografia, p. 77). Para Hegel e para Croce o caráter necessário e providencial da H. deriva da crença de que a H. é obra de uma Razão Absoluta cuja perfeição e cuja po­ tência não conhecem limites. Uma forma levemente atenuada dessa con­ cepção é a que considera a H. como revelação de Deus. Esse conceito não é estranho ao pró­ prio Hegel, para quem revelação de Deus no mundo e realização de Deus coincidem. Mas ele assinala a atenuação da relação entre os dois conceitos de revelação e realização. Essa atenuação já estava em Schelling, que definia a H. como "a revelação do Absoluto que se de­ senrola contínua e gradualmente", distinguindo três períodos: o primeiro, em que a providên­ cia aparece como destino ou força cega; o segundo, em que ela aparece como natureza; o terceiro, em que ela aparece como provi­ dência (System des transzendentalen Idealismus, seç. IV, Adendos, III, C; trad. it., p. 283 ss.). O conceito de revelação foi usado freqüente­ mente no fim do Romantismo do séc. XIX, bem no Espiritualismo e Idealismo do séc. XX. Nes­ sas suas manifestações, conservou a conexão da idéia de progresso que Schelling lhe atribuíra. Tal conexão, porém, não é indispensável. A re­ velação de Deus na H. pode não ser gradual, mas total e completa em cada ponto da H. Cada época, cada momento seu é, nesse caso, uma revelação completa de Deus, segundo as palavra* de Goethe: "O instante é a eternidade" e, segundo a frase do historiador Ranke, "Cada época está em relação imediata com Deus". Nesta forma, o conceito romântico da H. como ordem providencial também foi aceito por al­ guns historicistas alemães como E. Troeltsch (DerHistorismus undseine Probleme, 1922) e F. Meinecke (Dle Entstehung der Historismus, 1936; Vom geschichtlichen Sinn und vom Sinn der Geschichte, 1939), preocupados em salvar da mobilidade e da relatividade da H. o caráter absoluto dos valores e o caráter divino do cris­ tianismo (cf. PIETRO Rossi, Lostoricismo tedesco contemporâneo, 1956, parte VI). Por outro lado, não é indispensável que o conceito da H. como ordem providencial se ba­ seie na crença de uma providência de nature­ za divina, imanente ou transcendente. "Ordem providencial" significa "ordem necessária e per­ feita": e uma ordem semelhante também é atri-

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buída à H. por doutrinas que negam o conceito religioso de providência, como o positivismo social e o marxismo. Comte considerava a H. como o desenvolvimento progressivo da Hu­ manidade ou Grande Ser, que é "o conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para aperfeiçoar a or­ dem universal" (Politiquepositive, 1854. IV, p. 30), e reconhecia que De Maistre tivera o méri­ to de contribuir para preparar a verdadeira teo­ ria do progresso com a sua revalorização da Idade Média, já que só depois dessa revalorização a continuidade da tradição providencial foi restabelecida (Ibid., I, p. 64). Por outro lado, o marxismo considera a H. como um processo unilinear e progressivo que, por meio da luta de classes, necessariamente desembocará na so­ ciedade sem classes, que é a sociedade perfei­ ta. Marx diz, a propósito, que a passagem para a nova sociedade ocorrerá "com a mesma fata­ lidade que preside aos fenômenos da natureza" (Das Kapital, I, 24, § 7). Mas fatalidade significa necessidade e trata-se de uma necessidade providencial porque dela advirá o modo de vida definitivo e perfeito do gênero humano. 4S As interpretações, filosóficas da H. gra­ vitam quase todas em torno da noção da H. como totalidade ou mundo histórico. Na verda­ de, só essa noção permite falar da H. como objeto único e simples, avaliável em seu con­ junto uma vez por todas. A noção de mundo histórico, como todas as noções totalitárias e a própria noção de mundo (v.), está além das capacidades efetivas de investigação e compreensão de que o homem dispõe. A H. como objeto da historiografia nunca é um mundo nesse sentido, isto é, a totalidade abso­ luta dos acontecimentos humanos. Por vezes, um período histórico ou um conjunto de insti­ tuições é chamado de mundo (p. ex., "mundo antigo", "mundo oriental", etc.) apenas no sen­ tido de totalidade relativamente homogênea de culturas, e não em sentido absoluto. A própria expressão "mundo histórico", se tiver o signifi­ cado de "objeto geral das disciplinas historiográficas", não designa uma totalidade absolu­ ta, mas o campo relativamente homogêneo no qual atuam e se encontram as técnicas das dis­ ciplinas historiográficas. Por isso, quando se entender por "realidade histórica" simplesmente o objeto do conhecimento histórico, estar-se-á renunciando ípsofacto ao conceito de mundo histórico como totalidade absoluta e a qual­ quer juízo sobre essa totalidade. Estar-se-á re-

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nunciando, também, a considerar todos os fa­ tos como fatos históricos, visto que a afirma­ ção de que todos os fatos são históricos (pre­ sente, p. ex., em CROCE, Lastoria comepensiero e come azione, 1938, p. 19) é apenas outro modo de expressar a noção de H. como tota­ lidade absoluta. Por outro lado, se a H. não é o mundo histórico, não existe a história. Toda H., desse ponto de vista, é a H. de alguma coisa (um período, uma instituição, uma per­ sonalidade), mas não é um processo ou uma substância única ou universal que compreen­ da tudo dentro de si (cf. J. H. RANDALJR., Nature and Historical Experience, 1958, p. 28). Desse ponto de vista, as expressões "objeto históri­ co" ou "realidade histórica" são apenas nomes comuns para indicar qualquer tema de investi­ gação historiográfica. A metodologia historiográfica contemporânea, que historiadores e filósofos (em acordo fundamental) fizeram avan­ çar notavelmente nestes últimos tempos, permi­ te atribuir no objeto histórico os seguintes carac­ teres: Ia Individualidade ou unicidade, em vir­ tude da qual o fato histórico se apresenta como algo único e não repetível. O reconheci­ mento explícito deste caráter deve-se ao historicismo alemão. Já afirmado por Dilthey (Gesammelte Schriften, V, p. 236), foi ressalta­ do por Windelband (Práludien, IP, p. 145) e por Rickert (Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung, 1896-1902, pp. 251, 420, etc.) como conseqüência da distinção entre o procedimento generalizador das ciên­ cias da natureza e o procedimento individualizador das ciências do espírito. Este cará­ ter da H. às vezes suscitou desconfiança nos metodizadores porque pareceu um caráter "metafísico" (cf., p. ex., C. G. HEMPEL, em Readíngs in Philosophical Analysis, ed. Feigl e Sellars, 1949, p. 461; GARDINER, The Nature of Histórica!Explanation, 1952, p. 43). Por outro lado, ninguém nega que um acontecimento histórico seja único no sentido de estar indi­ vidualizado pelos dois parâmetros fundamen­ tais, a cronologia e a geografia (cf. o mesmo GARDINER, loc. cit.), e além disso muitos reco­ nhecem unicidade no acontecimento histórico, no sentido "de ser diferente dos outros, com os quais seria naturalmente agrupado sob um termo classificador, sendo também diferente quanto aos modos pelos quais desperta o inte­ resse dos historiadores que procuram explicálo" (W. DRAY, Laws and Explanation inHistory,

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1956, p. 46). O caráter de unicidade do aconte­ cimento provém das próprias técnicas historiográficas que servem para verificá-lo e ilustrá-lo, sendo reflexo dessas técnicas. O acontecimen­ to histórico só se mostra único e não repetível quando sua abordagem historiográfica é con­ duzida a bom termo, de tal modo que o ditado "a H. não se repete" exprime mais o ideal historiográfico (aliás, difícil de ser alcança­ do) do que um suposto caráter do processo histórico. 2- A correlação do fato com os outros fatos, graças à qual o fato é "explicado" ou "com­ preendido". Também quanto a este segundo caráter, a metodologia histórica contemporânea chegou a um ponto de concordância satisfa­ tória. Ainda que não falte quem queira inter­ pretar a conexão entre os fatos históricos como conexão causai (cf., p. ex., HEMPEL, loc. cit, p. 462 ss.) no intuito de mostrar que tanto a H. quanto as ciências naturais fazem uso de um único tipo de explicação, hoje já está bem claro que os historiadores rejeitaram a explica­ ção causai tanto quanto os estudiosos da Fí­ sica (cf., sobre este ponto, HISTORIOGRAFIA, e também CAUSALIDADE.; CONDIÇÃO; EXPLICAÇÃO). Com a recusa do esquema causai elimina-se também da H. a noção de lei que está ligada a ele, já que uma lei só faz expressar uma suces­ são causai de fatos. E com a eliminação do con­ ceito de lei também se eliminou o conceito de necessidade da. história. Nesse aspecto, é preci­ so lembrar que Kierkegaard foi o primeiro a re­ conhecer na H. a categoria da possibilidade: "O passado não é necessário ao momento em que vem a ser; não veio a ser necessário vindo a ser (o que seria uma contradição); e vem a sê-lo ainda menos por meio da compreensão que se tem dele (...) Se o passado viesse a ser necessário por meio da compreensão, ganharia aquilo que a compreensão perderia, pois então esta últi­ ma compreenderia uma coisa diferente e seria uma incompreensão" (PhilosophischeBrocken, 1844, IV, § 4). 3e O significado ou a importância que o acontecimento possui como opção historiográfica. Também este caráter é quase universalmen­ te reconhecido na metodologia contemporâ­ nea. Pode ser considerado conseqüência do ca­ ráter precedente, visto que a importância de um acontecimento consiste na capacidade por ele demonstrada de condicionar de um modo qual­ quer os outros acontecimentos, isto é, de pro­ duzir, no seu decorrer, variações que podem

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ser atribuídas ao acontecimento em questão. Fica suficientemente claro, porém, que o significado de um acontecimento (no sentido agora esclare­ cido) não é uma qualidade que lhe seja inerente de modo absoluto e que o acompanhe em qual­ quer contexto historiográfico, mas pode variar segundo os contextos ou as escolhas que os regem: de tal modo que um acontecimento im­ portante em um deles terá menos ou nenhuma importância em outro. O primeiro dos caracteres acima arrola­ dos, a individualidade, pode ser utilizado para distinguir o objeto historiográfico do objeto so­ ciológico ou, em geral, do objeto das ciências sociais, que possui o caráter oposto de repetibilidade (cf. AHBAGNANO, Problemi dísocio­ logia, 1959, II, 5). E o conjunto dos três carac­ teres serve para distinguir o fato histórico do fato jornalístico comum, que não é individua­ lizado, não tem conexões suficientes com outros fatos e não é significativo. HISTÓRIA IDEAL ETERNA. V HISTÓRIA HISTÓRIA UNIVERSAL. V. HISTORIO GRAFIA. HISTÓRICAS, FONTES (in. Historical sources; fr. Sources historiques; ai. Historische Quellen; it. Fontistoriche). Com esta expressão indica-se comumente o material da pesquisa historiográfica. As fontes H. costumam ser divi­ didas em restose tradições. Os restos são: 1) o que ficou das obras produzidas pelo homem (casas, pontes, teatros, utensílios, etc); 2) os modos de vida das comunidades (usos, costu­ mes, ordenações jurídicas, políticas, etc); 3) as obras literárias e filosóficas; 4) os documentos em geral. Os restos da produção humana cujo objetivo seria transmitir a memória de um acontecimento chamam-se monumento. O mesmo se diz dos documentos, cuja finalidade é transmitir para o futuro a conclusão de um fato, e das inscrições, medalhas, moedas, etc. Fontes de tradição são aquelas através das quais se transmitiu a memória dos fatos passados; podem ser orais e escritas (cf. G. G. DROYSEN, Grundzüge der Historik, 1882, § 20-24). HISTORICIDADE (in. Historicity, fr. Historicitè, ai. Geschichtlichkeit; it. Storicitã). 1. O modo de ser do mundo histórico ou de qual­ quer realidade histórica. 2. A existência de fato no passado; neste sentido se diz, p. ex., "a H. de Jesus", para

HISTORICISMO

indicar que Jesus foi uma pessoa real, não um mito. 3. A importância histórica que, às vezes, se atribui também a fatos presentes e contempo­ râneos. HISTORICISMO (in. Historicism- fr. Historicisme, ai. Historismus; it. Storicismó). Por esse termo, empregado pela primeira vez por Novalis {Werke, III, p. 173), podem ser entendidas três linhas de pensamento diferentes, a saber: Ia Doutrina segundo a qual a realidade é história (desenvolvimento, racionalidade e necessidade) e que todo conhecimento é co­ nhecimento histórico; foi expressa por Hegel (cf. especialmente Geschichte derPhílosophie, I, intr.) e por Croce (La storia comepensiero e come azíone, 1938, p. 51). Essa é a tese fun­ damental do idealismo romântico (v.), que supõe a coincidência entre finito e infinito, entre mundo e Deus, e considera a história co­ mo realização de Deus. Pode chamar-se H. ab­ soluto. 2- Uma variante da doutrina precedente, que vê na história a revelação de Deus no sen­ tido de considerar que cada momento da his­ tória está em relação direta com Deus e é permeado dos valores transcendentes que Ele incluiu na história. Foi o ponto de vista defen­ dido por E. Troeltsch e F. Meinecke (cf. o ver­ bete HISTÓRIA, 3, é). Pode-se chamar essa dou­ trina de H. fideísta porque a revelação de Deus no H. ocorre substancialmente por meio da fé. 3a A doutrina para a qual as unidades cuja sucessão a história constitui (Épocas ou Civili­ zações) são organismos globais cujos elemen­ tos, necessariamente vinculados, só podem viver no conjunto; afirma, portanto, a relati­ vidade entre os valores (que são alguns desses elementos) e a unidade histórica a que perten­ cem; sendo inevitável a morte desses elemen­ tos com a morte dessa unidade. Esse é o ponto de vista de Spengler e de outros, e pode cha­ mar-se H. relativista. Existe também, pelo me­ nos em polêmica, uma noção vulgar desse H., segundo a qual a história seria um movimento incessante que empolga tudo, mesmo a ver­ dade e os valores, imediatamente depois do instante em que florescem. A doutrina mais próxima dessa concepção é defendida por G. Simmel; para ele, a vida é um fluir incessante que resolve e concilia todas as coisas dentro de si: "O bem e o mal que fazemos e que recebe­ mos, o belo que nos deleita e o feio de que fiigimos, as séries acabadas e as que foram inter­

HISTORIOGRAFIA

rompidas na nossa vida, todas estas coisas, por mais díspares que sejam, constituem elementos da vida, como cenas de um destino, na cone­ xão das vivências que continuam incansável e ininterruptamente: em uma vida, cujo sentido, justamente como vida, supera todas as oposições que seus conteúdos possam apresentar, segundo outros critérios" (Hauptprobleme der Philosophie, 1910, IV; trad. it., p. 201) . O mes­ mo Simmel, porém, admitia alguma coisa que é mais que vida (v.), é a forma da própria vida que dela emerge e para ela retorna (Lebensanschauung, 1918, pp. 22-23) . 4a A corrente da filosofia alemã que, nos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX, debateu o problema crítico da história. O fato de, no séc. XIX, as disciplinas históricas terem sido alçadas ao nível de ciência criava um problema análogo ao que Kant se propu­ sera a respeito das ciências naturais: o pro­ blema da possibilidade da ciência histórica, ou seja, da sua validade. Esse problema foi debatido na Alemanha a partir dos textos de Dilthey, especialmente Einleitung in die Geisteswissenschaften (1883), em que ele procura estabele­ cer a diferença entre as disciplinas historiográficas e as ciências naturais, indicando como instrumento principal das disciplinas históri­ cas a "psicologia analítica e descritiva", cujo instrumento fundamental é a vivência (v.). Windelband e Rickert contribuíram, por sua vez, para delimitar conceitualmente o domínio das disciplinas historiográficas, distinguindo entre as ciências nomotéticas ou generalizantes, que são as naturais, e as ciências idiográficas ou individualizantes, que são as históricas (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS). OS problemas da expli­ cação (v.) e da compreensão (v.) da realidade histórica eram também debatidos nessas escolas não só por Dilthey, Windelband e Rickert, mas também por Simmel, Troeltsch e Meinecke; con­ tudo, a sua contribuição mais substancial veio de Max Weber, que encarou sobretudo o pro­ blema da explicação histórica e da causalidade da história. A herança dessa escola, que iniciou a elaboração da metodologia histórica, foi rece­ bida pelos modernos metodizadores da história (sobre os quais, V, HISTORIOGRAFIA) (cf. R. ARON, La philosophie critique de Vhistoire, Essais sur unethéorieallemandede Vhistoire, 2a ed., 1950; P. Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, 1956).

HISTORIOGRAFIA (lat. Historiographia, in. History, fr. Histoire-, ai. Geschichte, às vezes

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Historie, it. Storiografia). O termo historiographus aparece em Cornélio Agripa {De incertitude et vanitate scientiarum, 1527, Cap. V, em Opera, II, p. 2,27) e o termo historiographie é encontrado num idílio em prosa do poeta in­ glês Nicholas Breton (Wits Trenchmour, 1597). Foi adotado por T. Campanella para indicar "a arte de escrever corretamente a história" (Philosophiae Rationalis partes quínque, videlicet Grammatica, Dialectica, Rethorica, Poética, Historiographia, iuxta própria principia, 1638, p. 243). Permaneceu com esse significado em inglês e em francês (o alemão usa Historik), ao

passo que em italiano passou a significar, na esteira de Croce, o conhecimento histórico em geral ou o conjunto das ciências históricas. Dada a ambigüidade do termo história, é opor­ tuno dispor de um termo adequado para indi­ car o conhecimento histórico, na sua distinção da realidade histórica. As interpretações dadas sobre esse conhe­ cimento são fundamentalmente duas, que po­ dem ser qualificadas como A) historiografia universal; B) historiografia pluralista. A inter­ pretação do conhecimento histórico como his­ tória universal corresponde à interpretação da realidade histórica como mundo. A interpreta­ ção dela como história pluralista corresponde à interpretação da realidade histórica como obje­ to definível ou verificável só através dos ins­ trumentos de pesquisa de que se dispõe. A) A história universal, ou melhor, cósmica (ai. Weltgeschichte), é o conhecimento do plano providencial do mundo histórico (cf. HEGEL, Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 52). Tem duas características fundamentais: Ia É tarefa do filósofo, e não do historiador, e a obra do historiador pode servir-lhe apenas como auxílio não indispensável. Fichte, que a chama "história apriori", afirma: "Compreender com clara inteligência o universal, o absoluto, o eterno e o imutável que guia a espécie humana é tarefa do filósofo. Fixar de fato a esfera sem­ pre cambiante e mutável dos fenômenos atra­ vés dos quais marcha em passo firme a espécie humana, é tarefa do historiador, cujas descober­ tas são só casualmente recordadas pelo filóso­ fo" (Grundzüge des gegenwãrtigen Zeitalters, 1806, IX; trad. it., Cantoni, p. 67). Hegel, em polêmica com os grandes historiadores do seu tempo, degradados a "filólogos" (v. FILOLOGIA), afirmava: "Para conhecer o substancial, é preci­ so ter acesso a ele por meio da razão... A filosofia, na certeza de que o que impera é a razão, ficará

h is t o r io g r a f ia

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convencida de que o ocorrido encontrará lugar no conceito e não alterará a verdade, como hoje é moda particularmente entre os filólogos que, usando aquilo que chamam de acuidade, introduzem na história elementos francamente apriorísticos" (Op. dt., p. 8). Era isso que tinham em mente Croce, ao identificar filosofia e histó­ ria (.Teoria estória deliastoriografia, 1917, pp. 71 ss.), e Gentile, ao identificar história e história da filosofia (Teoriageneraledellospirito, 1920, XIII, 14). 2a É independente das limitações do mate­ rial historiográfico e dos instrumentos de pes­ quisa, podendo, pois, prescindir de qualquer história que tenha sido ou que possa ser escri­ ta. Fichte considerava a história a priori com­ pletamente independente da história a posteriori, que é do historiador (Op. cit.). Hegel afirmava que, para reconhecer a realidade substancial da história, é preciso "trazer consi­ go a consciência da razão: não olhos físicos, não um intelecto finito, mas o olho do concei­ to, da razão", e portanto confiar no modo de proceder rigorosamente apriorístico" (Phil. der Gescbichte, I, p. 8). Croce falava de uma "anamnese" do Espírito Universal que teceu a história e para o qual as fontes da história servem apenas como motivos de recordação (Teoria e storia delia storiografia, p. 16). O próprio Heidegger compartilha desta concepção da história cósmi­ ca; adverte que "história cósmica" significa em primeiro lugar "o historicizar-se do mundo na sua essencial unidade existencial com o Ser-aí"; em segundo lugar, "o historicizar-se intramundano dos instrumentos e das coisas"; em ambos os sentidos, a história cósmica é inde­ pendente do conhecimento historiográfico (Sein und Zeit, § 75), de tal sorte que é a escolha implícita na historicidade do Ser-aí que deter­ mina a escolha historiográfica (Ibid., § 76). B) A H. pluralista caracteriza-se, em primei­ ro lugar, pelo abandono de conceitos como "mundo histórico" ou "história universal" e pelo reconhecimento da pluralidade das formas do conhecimento histórico e da sua depen­ dência em relação ao material documentário disponível e aos princípios que orientam a esco­ lha historiográfica. Deste ponto de vista, o co­ nhecimento histórico autêntico versa sempre sobre objetos delimitados ou delimitáveis, nun­ ca sobre a totalidade da história; e nunca é juízo sobre essa totalidade, de sorte que ex­ clui, como desprovidos de sentido, os conceitos de progresso, decadência, etc, entendidos em

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sentido absoluto. Embora a antigüidade grega nos tenha legado exemplos excelentes de H. nesse sentido (p. ex., a obra de Tucídides e de Políbio), os fundamentos do que hoje se cha­ ma metodologia historiográfica começaram a aclarar-se só a partir do Renascimento e a ser definidos por historiadores e filósofos só nos últimos anos. Tais fundamentos podem ser re­ sumidos do seguinte modo: le O conhecimento histórico é perspectivista-. mantém afastamento em relação ao pas­ sado e quer entendê-lo no seu tempo e lugar, sem assimilá-lo ou reduzi-lo ao presente. O reconhecimento da alterídade entre a expe­ riência histórica e a realidade histórica, entre o sujeito histórico e o objeto histórico, ou entre o presente e o passado, é uma das condições fundamentais da pesquisa histórica. Constitui a contribuição do Humanismo para a metodo­ logia histórica. Pois, enquanto a Idade Média ignorava a perspectiva histórica, transformando os fatos e os acontecimentos mais heterogê­ neos e distantes em fatos e acontecimentos con­ temporâneos, o Humanismo procurou enten­ der o passado como passado, a antigüidade como antigüidade, o outro, como outro (cf. E. G A R IN , Medioevo e Rinascimento, 1954, II, 5). A exigência de "reviver" o passado, de fazêlo "voltar", seria falsificadora da história, se to­ mada ao pé da letra (cf. H. 1. MARROU, Dela connaissancehistorique, 1954, pp. 43 ss.), assim como seria falsificadora da história, se tomada ao pé da letra, a exigência apresentada por Croce (Teoria estória delia storiografia, pp. 3 ss.; La storia comepensiero e come azione, 1938, p. 5), de que toda história seja entendida como "his­ tória contemporânea". Um corolário da exigên­ cia da perspectiva histórica é o afastamento em relação ao passado, que Nietzsche atribuía à história crítica (ao lado da história arqueológica, que "conserva e venera", e da história monu­ mental, que exalta e encoraja, Unzeitgemãsse Betrachtungen, 1873, II), afastamento que Nietzsche entendia como abandono do passa­ do e encaminhamento do presente para novos caminhos, e que certamente é um dos ensi­ namentos da historiografia. Mas há também um afastamento em relação ao presente, inerente à atitude historiográfica preconizada sobretudo pelo Iluminismo, e expressa por P. Bayle em palavras que ficaram famosas: "O historiador deve esquecer que pertence a certo país, que foi criado em certa comunidade, que seu des­ tino se deve a isto ou àquilo e que fulano e

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sicrano são seus parentes ou seus amigos. Um historiador, enquanto tal, assim como Melquisedeque, não tem pai, mãe, nem genealogia" (Dictionnaire, art. Usson, rem. F.). O ideal pro­ posto por Bayle é difícil, para não dizer impos­ sível, porque, como os historiadores hoje reco­ nhecem (cf., p. ex., MARROU, op. cit, cap. II), a interferência ativa dos interesses e das tendên­ cias do historiador sempre condiciona, em cer­ ta medida, os resultados da sua investigação e até mesmo a descoberta dos fatos. Entretanto, a técnica da investigação historiográfica não ten­ de mais a descarnar ou desumanizar o historia­ dor, como queria Bayle, mas a limitar e a dis­ ciplinar a interferência dos seus interesses na pesquisa. 2" O conhecimento histórico é individualizante, porque individualizantes são os ins­ trumentos de que se vale. A individualidade ou unicidade (não-repetibilidade), amiúde atri­ buída aos fatos históricos, na verdade é refle­ xo dos instrumentos que os examinam (v. HIS­ TÓRIA). Em primeiro lugar, todo acontecimento histórico é individualizado pelos dois parâ­ metros fundamentais: cronologia e geografia. Em segundo lugar, a documentação da H. tem caráter individualizante. Um documento, uma moeda, uma inscrição sempre se referem a um único fato; o mesmo ocorre com o relato. Em terceiro lugar, têm caráter individualizante os critérios de escolha historiográfica, porque ten­ dem a pôr em evidência um fato entre outros, a ressaltar seu significado ou sua importância, portanto o seu caráter de algum modo "singu­ lar" ou "único". A unicidade do fato histórico às vezes foi criticada como caráter supostamente metafísico da realidade histórica (cf. os textos citados no verbete HISTÓRIA, 4, 1), m as não poderá suscitar objeções, se for entendida como resultado do caráter individualizante dos instru­ mentos historíográficos. Pode-se dizer que o grau de individualidade do fato histórico deriva do grau de êxito que a investigação historiográfica logra obter. Um fato se mostra nãorepetível quando a investigação historiográfica consegue reconstruí-lo em sua individualidade completa, mas essa individualidade é ideal historiográfico, mais que fato. 3a O conhecimento histórico é seletivo. Este é um dos pontos pacíficos na metodologia historiográfica (R. ARON, Introduction à Ia philosophie de Vhistoire, 1948; ed. 1952, pp. 131

ss.; P. GARDINF.R, The Nature ofHistorical Ex­ planation, 1952, pp. 104 ss.; M. BLOCH, Apologie

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pour 1'histoire, 1952, p. 2; H. I. MARROU, Dela connaissancehistorique, 1954, pp. 209 ss.; W. DRAY, Laws and Explanation in History, 1957, pp. 98 ss.; J. H. RA\DALL, Nature and Historical Experience, 1958, pp. 25, 45, etc). O caráter seletivo da H. também é reconhecido por K. POPPF.R, The Poverty of ' Hístoricism, 1944, § 31, e pelo marxista L. GOLDMANN, Sciences humaines etphilosopbie, 1952, p. 4. J. H. Randall ilustrou deste modo a função seletiva da H.: "O histo­ riador deve fazer uma escolha. Na infinita varie­ dade de relações revelada pelos acontecimen­ tos passados, deve escolher o que é importante ou fundamental para a sua história. Para que a seleção não seja apenas aquilo que parece importante para ele, para não ser subjetiva e arbitrária, deve ter um foco objetivo em alguma coisa que deve ser feita, em alguma coisa que ele considere obrigatória ou imposta aos ho­ mens, em algum Aufgabe ou facíendum, em algum trabalho que deve ser feito" (op. cit, p. 60). A possibilidade da escolha não implica a pos­ sibilidade de que o passado mude. "Não que o passado em si mesmo possa mudar; o que pode mudar é a seleção que o presente faz do pas­ sado. O que ésigniflcante e relevante no passado de cada coisa muda à medida que a própria coisa muda e se desenvolve" (op. cit, p. 36). A escolha historiográfica é feita, em primeiro lu­ gar, em relação aos fatos, mas também, e si­ multaneamente, em relação às hipóteses que estão incorporadas na própria verificação dos fatos. A escolha de uma hipótese não é neces­ sariamente sugerida ao historiador por suas pró­ prias simpatias ou tendências; às vezes, como ocorre no caso de Tucídides, a hipótese que ele apresenta e acha comprovada pelos fatos é contrária a todos os seus desejos. O pluralismo das escolhas, isto é, a possibilidade de efetuar opções historiográficas diferentes e de mudar e corrigir as já efetuadas, é uma das condições do conhecimento histórico. Por vezes, os filó­ sofos tentaram limitar, por princípio, a plura­ lidade das escolhas, ou seja, estabelecer um princípio que orientasse unilateralmente, em cada caso, a seleção historiográfica. Foi o que fez Hegel, ao afirmar que a história é "história do espírito", obrigando assim a escolha do historiógrafo a deter-se nas idéias e a declarar historicamente inexistente todo o resto. Foi o que fez também o materialismo histórico (v.), ao afirmar que a história é, em primeiro lugar, história das "relações de produção de traba­ lho", e que todo o resto é "superestrutura", que

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não determina, mas decorre. Não há dúvida de que essas tentativas de limitação da escolha historiográfica, especialmente a marxista, cha­ maram a atenção para fatos que podiam ser ou que eram negligenciados, aguçando, por assim dizer, o olhar do historiador para caminhos me­ nos trilhados. Em última análise, porém, e se assumidos como princípios absolutos para a limitação das escolhas, negariam a pluralidade das escolhas, impediriam a sua retificação, e aca­ bariam por falsear a história, ocultando esferas de fatos que não são os privilegiados por essa tendência. 4a O conhecimento histórico não visa à ex­ plicação causai, mas à explicação condicional. Embora não falte quem ainda insista no caráter causai da explicação histórica (cf., p. ex. HEMPEL, em ReadingsinPhílosophicalAnalysis, ed. Feigl. e Sellars, 1949, pp. 459 ss.; GARDINER, op cit,, pp. 65 ss.), tende a prevalecer entre os metodizadores da história a opinião de que as noções de causa e de lei têm pouca possibili­ dade de aplicação no domínio historiográfico (como também, aliás, no domínio da física). Nesse sentido, a obra citada de W. Dray é parti­ cularmente significativa (v. o verbete EXPLICA­ ÇÃO). A preferência pela explicação condicio­ nal reduz a importância da oposição entre explicação e compreensão, que por certo tem­ po pareceu expressar a oposição entre ciências da natureza e ciências do espírito. De fato, tan­ to a explicação quanto a compreensão consis­ tem na determinação da possibilidade do obje­ to (v. COMPREENSÃO).

5S O conhecimento histórico visa à deter­ minação de possibilidades retrospectivas. Esta é uma conseqüência da renúncia da H. ao es­ quema causai (que supõe a necessidade do objeto histórico) e do seu recurso ao esquema condicional. Este esquema consiste na determi­ nação de possibilidades, ou melhor, de proba­ bilidades retrospectivas. Essa característica já foi atribuída ao conhecimento histórico por Max Weber: "A consideração do significado causai de um fato histórico começará com a se­ guinte pergunta: excluindo os acontecimentos do conjunto de fatores considerados condicionantes, ou mudando-os para determinado sen­ tido, e tomando como base regras gerais da ex­ periência, seu curso teria podido tomar direção de algum modo diferente, nos aspectos decisi­ vos para o nosso interesse?" (Krítiscbe Studien auf dem Geliet der kulturwissenschaftlichen Logik, 1906; trad. it. em IImétodo dellescienze

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storico-sociali, p. 223). Por certo, qualquer his­ toriador julgaria sem sentido a tentativa feita por Renouvier, em Uchronie, de imaginar "o desenvolvimento da civilização européia tal com poderia ter sido, mas não foi". Contudo, como diz R. Aron: "Todo historiador, para ex­ plicar o que foi, pergunta-se o que poderia ter sido. A teoria limita-se dar forma lógica a essa prática espontânea do homem comum" (op. cit., p. 164; cf. MARROU, op. cit, p. 181). Por mais que os historiadores e os metodizadores da história continuem a falar de "causa", o sen­ tido que dão a essa palavra nada tem que ver com seu significado tradicional: por isso, seria interessante que, à mudança conceituai já ocor­ rida, se seguisse a mudança terminológica (Cf. uma bibliografia selecionada sobre a metodolo­ gia historiográfica em Theory and Practice in Historical Study: a Report ofthe Committee on Historiography, 1942, e cf. sobre os autores tra­ tados neste verbete: P. Rossi, Storia estoricismo nella filosofia contemporânea, 1960). HOLISMO (in. Holism; fr. Totalisme, ai. Holismys; it. Olismó). 1. Uma variante da doutrina da evolução emergente (v.), que consiste na inversão da hipótese mecanicista e em consi­ derar que os fenômenos biológicos não de­ pendem dos fenômenos físico-químicos, mas o contrário. Esta hipótese nada mais é que uma forma mal disfarçada de vitalismo. Cf. J. C. SMLTS, Holism and Evolution, 1927; J. S. HALDANE, ThePhilosophicalBasis ofBiology, 1931; DRIESCH, Zur Kritik des Holismus, 1936. 2. K. Popper denominou H. a tendência dos historicistas em sustentar que o organismo so­ cial, assim como o biológico, é algo mais que a simples soma dos seus membros e é também algo mais que a simples soma das relações existentes entre os membros (The Poverty of Historicism, 1944, § 7). HOLOMERIANOS (in. Holomerians- ai. Holomerianer, it. Olomeriani). Henri Moore deno­ minou assim os que acreditam que a alma re­ side na totalidade do corpo, e não em parte dele. (Enchiridion metaphysicum, I, 27, 1). HOMEM (gr. âv0pco7COç; lat. Honra, in. Man; fr. Homme, ai. Mench; it. Uomó). As definições de H. podem ser agrupadas sob os seguintes tí­ tulos: ls definições que se valem do confronto entre o H. e Deus; 2 definições que expressam uma característica ou uma capacidade própria do H.; 3a definições que expressam a capacida­ de de autoprojetar-se como própria do H.

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ls As definições do primeiro grupo são de natureza religiosa e teológica, mas também po­ dem ser encontradas em doutrinas que nada têm de religioso e teológico. Qualquer defini­ ção desse gênero baseia-se na expressão do Gênese. "E Deus disse: façamos o H. à nossa imagem e semelhança" (Gên., I, 26). Esta ex­ pressão servia freqüentemente de ponto de partida para especulações sobre a alma, espe­ cialmente sobre suas divisões (v. ALMA): na rea­ lidade, ela é a definição explícita do H. e, como tal, foi considerada pelos teólogos da Reforma. Por outro lado, Aristóteles, ao tratar da vida contemplativa, falou de um "elemento divino" do H., que, na mesma medida em que excede no todo que constitui o H., torna o H. virtuoso e bem-aventurado (Et. nic, X, 6 , 1177b 26). Mas esse tipo de definição do H. na tradição filosófica teve como inspiração constante a Bí­ blia. Viram o H. como imagem de Deus: CALVINO (Institutie, I, 15, 8) e ZWÍNGUO (Deutsche Schrifter, I, 56). Através das ricas amplificações de JACOB BOEHME (cf., p. ex., Aurora oderdie Morgenrôthe im Aufgang, Vi, I), esse conceito passou para a filosofia romântica alemã. Spinoza dizia que "a essência do H. é constituída por certas modificações dos atributos de Deus" (Et., II, 10. Corol.). Nas lições sobre a Destinação do douto, em 1794, Fichte apontava como tarefa do H. adequar-se à unidade e à imutabilida­ de do Eu absoluto, segundo a máxima "age de tal forma que possas considerar a máxima da tua vontade uma lei eterna para ti" (Über die Bestimmungdes Gelebrten, 1794, I). Mas o Eu absolu.to é o princípio ou a substância do H., e sua unidade e sua imutabilidade são apenas a unidade e a imutabilidade de Deus, de tal for­ ma que a melhor maneira de expressar a dou­ trina de Fichte a esse respeito é que o H., em seu princípio ideal, é Deus e deve esforçar-se por tornar-se tal. Analogamente, para Hegel o H. é essencialmente Espírito e o Espírito é Deus. Diz: "Conquanto considerado finito por si mesmo, o H. é também imagem de Deus e fonte da infinidade em si mesmo, pois é o fim de si mesmo e tem em si mesmo o valor infinito e a destinação para a eternidade" (Philosophie der Geschichte, ed. Gloekner, p. 427). Hegel define cristianismo como a posição de "unida­ de do H. e de Deus" (Ibid, p. 416). Nessas definições de H., a relação do H. com Deus é vista de forma positiva. Mas essa relação pode ser vista de modo ne­ gativo ou invertido, permanecendo substancial­

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mente a mesma. Feuerbach, p. ex., diz que o H. se revela e se define no seu conceito de Deus. "O ser absoluto, o Deus do H., é o ser do H.", diz ele (Wesen des Christentum, § í). Aquilo que o H. pensa de Deus é a definição de H.: "Pensas o infinito? Então pensas e afirmas a infinidade do poder do pensamento. Sentes o infinito? Sentes e afirmas a infinidade do poder do sentimento" (Ibid). As teses de existência ou inexistência de Deus não influem nessas de­ finições de H., que se ancoram ao confronto entre o H. e Deus. Assim, em Nietzsche, após a proclamaçâo de que "Deus morreu", Zaratustra anuncia o SuperH., como aquilo que está além do H. "A grandeza do H. está no fato de que ele é ponte e não fim: o que pode fazê-lo amar é o fato de ser ele uma passagem e um ocaso" (AlsosprachZarathustra, Prol., § 4). Em sentido análogo ao de Feuerbach e Nietzsche, mas acrescido do conceito de fracasso ao qual o H. está destinado, Sartre disse: "Se o H. possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus, ela não lhe foi conferida pelos grandes espetáculos da natureza nem pelo poderio da sociedade: mas Deus, valor e objetivo supremo da transcendência, representa o limite perma­ nente a partir do qual o H. se anuncia aquilo que ele é. Ser H. é tender para Deus; ou, se assim preferirem, o H. é fundamentalmente desejo de ser Deus" (Vêtre et le néant, pp. 653-54). .. 2-jAs definições que exprimem uma caracte­ rística ou uma capacidade atribuída ao H. são numerosas; a primeira e mais famosa é a de­ finição de H. como "animal racional". Essa definição expressa bem o ponto de vista do Iluminismo grego e o espírito das filosofias de Platão e Aristóteles. Mas não se encontra expli­ citamente ern Platão, que teria dito somente que o H. é animal "capaz de ciência" (Def, 415a), determinação que Aristóteles repete, considerando-a como peculiaridade do H. (Top., V, 4, 133 a 20). Mas em PolíticaAristóteles afirma que "o H. é o único animal que pos­ sui razão", e que a razão serve para indicar-lhe o útil e o pernicioso, portanto também o justo e o injusto (Poi, I, 2, 1253a 9; cf. VII, 13, 1382b, 5). Aceita pelos estóicos (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 26; J. STOBEO, Ecl, II, 132), essa defini­ ção tornou-se clássica e a ela recorrem habi­ tualmente os escritores medievais (cf., p. ex., S. TOMÁS, S. Th., II, 1, q. 71, a. 2; II, 2, q. 34, a. 5). É essa a única definição que penetrou na cultura comum, e os filósofos também se referem a ela

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para introduzir variações que se coadunem com o sentido específico que dêem à palavra razão. P. ex., a definição de Rosmini, "o H. é um sujeito animal dotado da intuição do ser ideal indeterminado" (Antropologia, § 23), ex­ pressa a mesma coisa que a definição tradicio­ nal, porque, para Rosmini, a "percepção do ser ideal indeterminado" é a razão (Nuovo saggio, § 396). A definição de De Bonald, famosa por algum tempo, "o H. é uma inteligência servida por órgãos" (ÇEuvres, 1864,1, p. 41; III, p. 149), também nada mais é que uma paráfrase da definição tradicional, porquanto nela o "servi­ ço dos órgãos" é equivalente a "animalidade". É ainda mais famosa a definição de Pascal, "o H. nada mais é que um junco, o mais frágil da natureza, mas é um junco pensante" (Pensées, 347), que também pode ser considerada va­ riante da definição traciicional, em que a co­ notação da fragilidade natural do H. tomou o lugar da "animalidade". Por outro lado, Descar­ tes dispensara a animalidade e reduzira o H. a pensamento, como consciência imediata: "Para falar com precisão, sou apenas uma coisa que pensa, um espírito, um intelecto ou uma razão" (Méd, II), Mas, na definição tradicional, a ani­ malidade servia, por um lado, para explicar a óbvia limitação da atividade pensante do H. e, por outro, para reconhecer no H. um ser ter­ restre ou mundano, que necessita de órgãos. Em sentido cartesiano, Hus.serl disse: "Se o H. é um ser racional (animal rationale), só o é na medida em que toda a sua humanidade é uma humanidade racional, na medida em que é latentementê orientado para a razão ou aber­ tamente orientado para a enteléquia que se revelou e guia, conscientemente e por neces­ sidade essencial, o devir humano" (Krisís, 1954, § 6). A última e mais atualizada versão da antiga definição diz que o H. é um animal simbólico, ou seja, um animal que fala (CASSIRER, Essayon Man, cap. II). Esta característica, na verdade, es­ tava presente no mesmo termo grego que sig­ nifica razão: logos, que é o discurso racional ou a razão que se faz discurso. Na filosofia con­ temporânea, essa definição serve para expres­ sar o poder condicionante da linguagem, do comportamento sígnico em todas as atividades do homem. Esse poder dificilmente poderia ser exagerado, e a definição em pauta está, com justiça, entre as mais difundidas e aceitas na fi­ losofia contemporânea. Contudo, não pode ser compreendida sem levar em conta a caracterís­

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tica da autoprojetabilidade, que o terceiro gru­ po de definições atribui ao homem. Uma segunda e mais específica determina­ ção, que tem servido freqüentemente para defi­ nir o H., é sua natureza política, sociável.; Já mencionada por Platão (Def, 415a), esta de­ terminação é estreitamente ligada por Aristóteles à natureza racional do homem. "Quem não pode fazer parte de uma comunidade ou quem não precisa de nada, bastando-se a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é fera ou Deus" (Poi, I, 2 , 1253 a 27). Obviamente, para Aristóteles, é estreita a conexão entre racio­ nalidade e política, podendo-se dizer o mesmo de todos aqueles que, depois dele, adotarem a mesma definição. Hobbes, que combatia essa definição, interpretava-a como se significasse: "O H. está apto, desde o nascimento, a viver em sociedade"; afirmava que, nesse sentido, ela é falsa, porque o H. só se torna apto para a vida social graças à educação (De eive, I, 2, e nota). Mas o significado mais óbvio dessa defi­ nição é que o H. não pode deixar de viver em sociedade; nesse sentido, nem mesmo Hobbes duvida de sua fundamental exatidão. No en­ tanto, essa definição não fói proposta para de­ terminar a natureza do H. em sua totalidade. Quem tem a pretensão de expressar a totali­ dade do H. é Bergson: "Se pudéssemos despirnos do nosso orgulho, se, para definir nossa espécie, nos ativéssemos estritamente àquilo que a história e a pré-história nos apresentam como característica constante do H. e da inte­ ligência, talvez não disséssemos Homo sapiens, mas Homofaber. Em conclusão, a inteligência, considerada naquilo que parece ser a sua tarefa original, é a faculdade de fabricar objetos ar­ tificiais, particularmente utensílios para fazer utensílios, e de variar indefinidamente a fabri­ cação deles" (Evol. créatr, 8a ed., 1911, p. 151). Na realidade, porém, o próprio Bergson admite que em torno da inteligência há um "halo de instinto", considerando possível o retorno da inteligência ao instinto, por meio da intuição: isso deveria significar que o H. não é apenas

Homo faber.

3S O terceiro grupo de definições compreen­ de as que interpretam o homem como possibi­ lidade de autoprojeçàp.t Quase todas as defini­ ções do segundo grupo, mesmo partindo de uma única determinação do H., considerada própria e fundamental, interpretam-na, ex­ plícita ou implicitamente, como possibilidade,

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como capacidade ou disposição. Ao defender a definição do H. como animal racional, Leibniz observa que o fato de os idiotas carecerem da razão não é uma objeção contra ela: basta que eles, mesmo que apenas com seu corpo, mos­ trem um indício de racionalidade (Nouv. ess., III, 6 , 22). Mas, na realidade, já em Aristóteles está suficientemente claro que a razão é uma possibilidade ou capacidade de juízo, não uma determinação necessitante, que somente a esse título constitui a definição do homem. O caráter indeterminado do H. talvez estivesse disfarça­ do na expressão de Demócrito: "O H. é aquilo que todos nós sabemos" (Fr. 165, Diels), mas está claramente expresso nas especulações dos neoplatônicos da Antigüidade e do Renas­ cimento sobre a "natureza média" ou "central"' do homem. Plotino já afirmava a este propósi­ to: "O lugar do H. é no meio, entre os deuses e os animais; às vezes tende para uns, às ve­ zes para outros; alguns homens assemelham-se aos deuses; outros, às feras; a maioria fica no meio" (Enn, III, 2, 8). Esse pensamento foi ilustrado no séc. IX por Scotus Erigena: "Não foi sem razão que o H. foi denominado oficina de todas as criaturas: de fato, todas as criaturas estão nele contidas. Ele entende como o anjo, raciocina como o H., sente como o animal irra­ cional, vive como um germe, constitui-se de alma e corpo e não está isento de coisa alguma criada" (De divis. nat, III, 37). Esses pensa­ mentos são repetidos no Renascimento por Nicolau de Cusa (De vísíone Dei, 6 ; Excitationes, V; De ludo globi, II) e por Marsílio Ficino (Xheol. Plat., III, 2), e ambos transferemnos para a alma do H.; Ficino chama a alma de cópula do mundo. Mas estão expressos de maneira clássica na oração De hominis dignitate, de Pico delia Mirandola, em que Deus diz: "Não te dei, Adão, um lugar determinado, um aspecto próprio, nem prerrogativa alguma, porque esse lugar, esse aspecto e essas prer­ rogativas que venhas a desejar, tudo segundo tua vontade e teu discernimento, deves obter e conservar. A natureza limitada dos outros está contida em leis por mim prescritas. Tu determinarás as tuas sem seres impedido por barreiras, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te confiei. — Pus-te no meio do mundo, para que de lá avistasses tudo o que nele existe. Não te fiz ce­ leste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífice de ti mes­ mo, te plasmasses e esculpisses na forma que melhor te aprouvesse. Poderás degenerar para

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as coisas inferiores; poderás, segundo o teu desejo, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas" (De hom. dign., f. 131 r). Com certeza, a ilimitada capacidade de autoprojeção do H. nunca mais foi exaltada com tanta elo­ qüência e com otimismo tão confiante quanto nesta página de Pico delia Mirandola. Todavia, o conceito iluminista de H. como razão projetante, limitada e impedida, mas eficaz, pode ser con­ siderado decorrente do conceito renascentista do homem. Kant dizia: "Numa criatura, a razão é o poder de entender além dos instintos natu­ rais as normas e os fins de uso de todas as suas atividades; ela não conhece limites para os seus desígnios. No entanto, a razão não age instin­ tivamente, mas por tentativas, com o exercício e aprendendo, para elevar-se pouco a pouco e passar de um grau de conhecimento a ou­ tro" (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in WeltbürgerlicherAbsicht, 1784, tese II). Kant julga, portanto, que só através da história da espécie humana na terra o homem realiza a sua natureza, que é a liberdade de autoprojetar-se com a razão, especialmente de proje­ tar para si uma sociedade civilizada alicerçada totalmente no direito. Essas idéias expressam bem o ponto de vista do iluminismo, ao qual o próprio Kant as atribuía. Com maior clareza ainda, Kant assim descrevia o caráter da espécie humana: "Para poder atribuir ao H. o seu lugar no sistema da natureza viva e assim caracterizálo, só resta dizer que ele tem o caráter que ele mesmo faz, porquanto sabe aperfeiçoar-se segundo os fins por ele mesmo criados; por isso, de animal capaz de raciocinar (animal rationabilè), pode tornar-se sozinho animal que raciocina (animal rationalef (Antr., II, e). Na filosofia contemporânea, esse conceito de homem foi herdado pelo existencialismo e pelo instrumentalismo americano. Por um lado, eles frisam que o H. é aquilo que ele mesmo pode e quer tornar-se, e por isso é constante­ mente problema para si mesmo e solução para esse problema, que projeta continuamente seu modo de ser ou de viver e que este projeto passa a constituir, em algum grau ou medida, seu modo de ser ou de viver efetivo. Por outro lado, ambas as correntes reconhecem as limita­ ções dessa possibilidade de projetar, que agem especialmente no fato de que, em certa medi­ da, cada projeto já encontra como dados(como relativamente não modificáveis) os elementos que utiliza, que tudo o que ele pode pro­ jetar para o futurojáfoi, de qualquer modo ou

h o m e o m e r ia s

forma, no passado, e que, portanto, o passado condiciona, em certos limites (considerados mais ou menos amplos), o futuro do homem. É neste sentido que Heidegger disse que o pro­ jeto é o modo de ser fundamental do H. (Sein undZeít, § 31) e Sartre falou de um projeto fun­ damental do mundo (Lêtreetle néant, p. 540). No mesmo sentido, John Dewey falou da mutabilidade da natureza humana e dos seus cha­ mados instintos ou impulsos fundamentais (Human Nature and Conduct, pp. 95 ss.; 106 ss.). Heidegger insistiu também sobre a limita­ ção da possibilidade de projetar, uma vez que todo projeto incidiria e se achataria naquilo que já foi, nisso consistindo a facticidade do H. (v. PROJETO). Sartre insistiu na liberdade absolu­ ta da possibilidade de projetar e considerou puramente arbitrária ou gratuita a escolha de um projeto qualquer (Lêtre et le néant, p. 721). Por outro lado, Dewey retomou o conceito iluminista de racionalidade (que é ao mesmo tempo condicionamento e liberdade) dos pro­ jetos humanos, e o existencialismo positivo deu ênfase aos mesmos caracteres de autoprojeção (cf. ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956,1, 7; II, 3; etc). Aliás, hoje parece que até os biólogos compartilham dessa concepção. G. G. Simpson diz: "O H. pode optar por desen­ volver suas capacidades como animal superior e tentar erguer-se ainda mais, ou sua escolha pode ser outra. A escolha é responsabilidade sua e apenas sua. Não existe automatismo que o eleve sem escolha ou esforço, nem existe uma tendência unilateral na direção certa. A evolução rião tem objetivos; o H. deve dar objetivos a si mesmo" (The Meaning ofEvolution, 6a ed., 1952, p. 310). HOMEOMERIAS (gr. ÓLiotOLiépetat; in. Homeomeries; fr. Homéoméries; ai. Homoiomerien; it. Omeomerié). Com esta palavra, que significa "partes semelhantes", Aristóteles de­ nominou as partículas, ou seja, as partes (que não são elementos, porque sempre divisíveis) que, segundo Anaxágoras, compõem um cor­ po e que são semelhantes a esse corpo. Assim, mesmo que em cada corpo existam partículas ou grãos de todos os outros corpos, em cada um predomina certa espécie de partículas, que dá nome ao corpo (ARISTÓTELES, De cael., III, 3, 302b 3; Met., I, 3, 984a 14; cf. DIÓG. L, II, 8 ; LUCRÉCIO, De rer. nat., I, 830; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., X, 25). HOMINISMO (ai. Hominismus). Termo criado por Windelband para designar o relati-

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HOMO HOMO

vismo, doutrina em que o homem é a medida de todas as coisas (v.. RELATIVISMO). HOMO FABER. É a definição de homem feita por Bergson, que viu na inteligência, ca­ racterística fundamental do homem, a faculda­ de de fabricar instrumentos inorganizados (La pensée et le mouvant, 1934, p. 105) (v. INTELI­ GÊNCIA). HOMOGENEIDADE (in. Homogeneity, fr. Homogénéité, ai. Homogeneitát; it. Omogeneitã). Relação entre coisas que pertencem ao mesmo gênero (p. ex., branco e preto), ou que têm a mesma composição (p. ex., as partes de um objeto composto do mesmo material), ou que têm entre si partes semelhantes, que se correspondem termo a termo (p. ex., dois re­ lógios construídos da mesma maneira). Spencer usou esse termo no sentido de não diferencia­ ção e definiu a evolução como a passagem do homogêneo para o heterogêneo, ou seja, do que não é diferenciado para o que é diferencia­ do em partes entre si diferentes (First Prin­ cipies, § 145). Kant denominou "princípio da H." a norma da razão de procurar unificações conceptuais cada vez mais amplas, gêneros cada vez mais elevados; essa norma seria a contraposição si­ métrica da norma de especificação (v.), com esta confluindo na lei de afinidade (v.) (Crít. R. Pura, Apêndice à dialética transcendental). Ha­ milton repetiu substancialmente essas noções de Kant e denominou "lei de H." o enunciado segundo o qual "dois conceitos, por mais dife­ rentes que sejam um do outro, sempre podem subordinar-se a um conceito superior; em outros termos, as coisas mais dessemelhantes devem, em alguns aspectos, ser semelhantes". Ao lado desta, Hamilton enunciou também "a lei de heterogeneidade", segundo a qual "todo conceito contém abaixo de si outros conceitos e por isso, quando dividido, desce sempre pa­ ra outros conceitos, nunca para indivíduos; em outros termos, as coisas mais homogêneas ou semelhantes devem, sob certos aspectos, ser heterogêneas ou dessemelhantes". Segundo Hamilton, essas duas leis governam toda a clas­ sificação das coisas em gêneros e espécies (HA­ MILTON, Lectures on Logic, § 40; vol. I, 2 ed., 1865, pp. 209-10). HOMO HOMO. É a definição de sábio feita pelo humanista francês Charles de Bouelles (1470 ou 1475-1553 aproximadamente) em seu livro De sapicutc. O sábio é a perfeição do ho­ mem porque é o homem que se formou com a

HOMOIUSIA ou HOMUSIA

sua inteligência e adquiriu consciência de si mesmo e do mundo (De sapiente, 22). HOMOIUSIA ou HOMUSIA (gr. óuoiODOÍa, ó(j.ouaí(x). Diz-se que toda a disputa teológica, que culminou com o Concilio de Nicéia (325), girava em torno de uma semivogal, ou seja, da diferença entre homoiusia, doutrina de Ário que admitia apenas a semelhança entre a subs­ tância de Deus-Pai e a do Logos, e a bomusia, doutrina de Atanásio, que admitia a identidade da substância de Deus-Pai com a do Logos. A decisão do Concilio a favor da bomusia esta­ beleceu a principal base dogmática da teologia cristã. HOMOLOGIA (gr. ÓLtoXoyícc; in. Homology, fr. Homologie, ai. Homologie, it. Omologiá). 1. Para os estóicos, este era o termo técnico para designar a conformidade com a natureza como norma fundamental de conduta (J. STOBEO, Ecl., II, 76, 3); termo que Cícero traduziu por convenientia (Definibus, III, 6 , 21). 2. Hoje, H. é um conceito científico que tem várias definições nas diferentes disciplinas. Em geometria deno­ minam-se homólogos os elementos de duas figuras semelhantes que se correspondem. Em biologia são chamados homólogos os órgãos que se correspondem pela sua situação em relação ao organismo todo, mesmo não exercendo a mesma função, como se verifica com os órgãos análogos (v. ANALOGIA). HOMONIMIA (in. Hornonymy, fr. Homonymie, ai. Homonymie, it. Omonimia). Aristóteles designa assim a ambigüidade de um termo, ou seja, o fato de um mesmo termo ser usado para denotar-coisas diferentes. A H. de frase deno­ mina-se anfibolia (v.) (v. EQUÍVOCO; UNTVOCO). HOMOTEISmO (in. Homotheism; ai. Homotheismus; it. Omoteismo). O mesmo que antropomorfismo (v.). Termo criado por Ernest Haeckel. HONRA (gr. jnjaij; in. Honor, fr. Honneur, ai. Ehre, it. Onoré). Toda manifestação de con­ sideração e estima tributada a um homem por outros homens, assim como a autoridade, o prestígio ou o cargo de que o reconheçam in­ vestido. Os antigos consideravam a H. como um dos bens fundamentais da vida social; Aris­ tóteles reconheceu que há uma virtude em re­ lação à H. assim como há uma virtude (libe­ ralidade) em relação ao dinheiro. Essa virtude é a magnanimidade (v.), cujo excesso é a ambição e cuja deficiência é a pusilanimidade (Et. nic, II, 7, 1107b 20). Essa grande importân­ cia atribuída à H., considerada "o prêmio da

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HORIZONTE

virtude e do bem fazer'' (Ibid., VIII, 14, 1163 b 3), provém da ética grega, da qual passou para os costumes e o direito da tradição ocidental, em sua formulação aristocrática. No mundo moderno, a "respeitabilidade" é o análogo desse antigo conceito. É óbvio, todavia, que "o bem fazer'' (eúepyeoía) — cujo prêmio, segundo Aristóteles, deveria ser a H., além de sê-lo para a virtude — inclui boa dose de conformismo aos preconceitos dominantes no grupo ou na classe social que confere aH .eao análogo moder­ no da H. a respeitabilidade, não incluída uma dose menor de conformismo. Portanto, não é de surpreender que a H. tenha freqüentemente sugerido e continue sugerindo ações imorais, maléficas, ou verdadeiros delitos, tanto na vida privada quanto nas relações entre os povos, em que a H. muitas vezes desempenha papel predominante no nascimento e na perpetuação de conflitos. HORIZONTE (gr. rcepiéxov; lat. Horizon; in. Horizon; fr. Horizon; ai. Horizont; it. Orizzonte). Limite que circunscreve as possibilida­ des de uma investigação, de um pensamento ou de uma atividade qualquer: limite que pode deslocar-se, mas que volta a mostrar-se após cada deslocamento. Esse termo foi introduzido na filosofia por Anaximandro (séc. VI a.C), que considerou o Princípio (infinito ou apeiron) como aquilo que "abarca todas as coisas e as dirige" (ARISTÓTELES, FÍS, III, 4, 203b 11). No sentido moderno, esse conceito foi elu­ cidado por Kant, que entendeu por horizonte o limite ou a medida de extensão do conheci­ mento e distinguiu o horizonte lógico, referente aos poderes cognoscitivos em relação ao inte­ resse do intelecto, o horizonte estético, referen­ te ao gosto em relação ao interesse do senti­ mento, e o horizonte prático, referente ao útil em relação ao interesse da vontade. Em geral, "o horizonte concerne ao juízo e à determina­ ção daquilo que o homem pode saber, conse­ gue saber e deve saber"; pode ser objetivo, sen­ do então histórico ou racional, ou subjetivo, sendo então universal ou absoluto, particular ou privado (Logik, Einleitung, § VI, A). Essa noção foi retomada na filosofia con­ temporânea primeiramente por Husserl, que entendeu o H. como limite temporal (com­ preendido como presente ou agora), no qual estão todas as vivências (Ideen, I, § 82), e de­ pois por Jaspers, graças a quem passou para o atual uso filosófico. Jaspers diz: "Sempre vive­ mos e pensamos num H. circunscrito. Pelo fato

HORMICA TEORIA mesmo de tratar-se de um H., temos o pressen­ timento de um H. mais vasto, que compreenda, por sua vez, o H. alcançado: surge assim o pro­ blema de um H. que abarque qualquer outro H. (H. conglobante, das Umgreifencié). No H. conglobante têm-se todos os tipos de realidade e de verdade, mas é também aquilo em que cada H. está compreendido, como naquele H. que tudo engloba e que não é mais pensável comoH." (Vernunft undExistenz, 1935, p. 29). Enquanto o conceito de H. conglobante, que é o H. de todos os horizontes possíveis, é típico da filosofia de Jaspers, o conceito de H. pode ser utilmente empregado por qualquer corrente filosófica para designar os limites de validade de determinada investigação ou o tipo de vali­ dade a que aspiram os instrumentos utilizados (cf. C. D. BURNS, The Horizon o f Experience, 1934; ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, pp. 95 ss.). HÓRMICA, TEORIA (in. Hormic theory, it. Teoria ormicá). Assim é comumente denomina­ da, na literatura anglo-saxônica, a teoria segun­ do a qual as emoções dependem de certos instintos fundamentais (óp|ir| = instinto), que estariam na base de toda a atividade psíquica. Essa teoria foi defendida por G. F. Stout, J. Dewey, S. Alexander, T. P. Nunn (o primeiro a empregar essa expressão) e, principalmente, por W. McDougall. Sobre a mesma, v. J. C. FLUGKL, Studies in Feeling and Desire, London, 1955 (v. EMOÇÃO). HUMANIDADE (lat. Humanitas; in. Humanity, fr. Humanité, ai. Humanitàt, Menschheit; it. Umanitã), Esse termo tem os seguintes significados principais: Ia Forma acabada, ideal ou espírito do ho­ mem. Era nesse sentido que os antigos usavam a palavra humanitas, correspondente ao grego paidéia, da qual derivou o substantivo huma­ nismo (v.) e seu conceito. Em sentido análogo, Humboldt considerava como fim da história "a realização da idéia de H." (Schriften, IV, p. 55). 2S Substância ou essência do homem, no significado aristotélico adotado pela metafísica clássica. Nesse sentido, S. Tomás dizia: "H. sig­ nifica os princípios essenciais da espécie, tanto formais quanto materiais, não levando em conta os princípios individuais. A H. é aquilo em vir­ tude do que o homem é homem; e em homem é homem não porque tem os princípios indivi­ duais, mas porque tem os princípios essenciais da espécie" (Contra Gent., IV, 81).

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HUMANISMO 3e Gênero humano, espécie humana como entidade biológica. Nesse sentido fala-se, p. ex., da história ou dos feitos da H. na terra, ou da evolução biológica da humanidade. 4- Síntese hipostasiada da história ou da tra­ dição do homem, segundo o conceito de Comte, que com esse termo expressa "o conjunto dos seres passados, futuros e presentes, que con­ correm livremente para o aperfeiçoamento da ordem universal" (Politiquepositive, IV, p. 30). Nesse sentido, para Comte, a H. constitui um Grande Ser, uma espécie de divindade que nada mais é que o mundo histórico hipostasiado. Comte pretendeu instituir o culto deste grande ser (v. SER, GRANDE). 5B Natureza racional do homem, dotada de dignidade e, portanto, fim para si mesma. Esse é o significado que essa palavra assume na segunda fórmula do imperativo categórico de Kant: "Age de tal maneira que trates a H. (Menschheit), tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre também como fim, nunca somente como meio" (Grundlegung der Met. der Sitten, II). A H. na pessoa dos homens é objeto do respeito (v.), que, para Kant, é o único sentimento moral (Met. derSitten, II, §11). 62 Disposição à compreensão dos outros ou à simpatia para com eles. Nesse sentido, a me­ lhor definição desse termo foi dada por Kant: "H. (Humanitàt) significa, por um lado, o sen­ timento universal da simpatia e, por outro, a faculdade de poder comunicar pessoal e uni­ versalmente; essas são duas propriedades que, juntas, constituem a sociabilidade própria da H. (Menschheit), graças à qual ela se diferencia do isolamento animal" (Crít. do Juízo, § 60; cf. Antr., § 88). HUMANISMO (in. Humanism; fr. Humanisme, ai. Humanismus; it. Umanesimo). Esse termo é usado para indicar duas coisas dife­ rentes: I) o movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade do séc. XIV, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura mo­ derna; II) qualquer movimento filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem. I) Em seu primeiro significado, que é o histó­ rico, o H. é um aspecto fundamental do Re­ nascimento (v.), mais precisamente o aspecto em virtude do qual o Renascimento é o reco­ nhecimento do valor do homem em sua totali­ dade e a tentativa de compreendê-lo em seu

h u m a n ism o

mundo, que é o da natureza e da história. Nesse sentido, costuma-se dizer que o H. se inicia com a obra de Francesco Petrarca (1304-74). Os prin­ cipais humanistas italianos são: Coluccio Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (1374-1444), Lorenzo Valia (1407-57), Giannozzo Manetti (1396­ 1459), Leonbattista Alberti (1404-72), Mario Nizolio (1498-1576). Entre os humanistas fran­ ceses: Charles de Bouelles (1470 ou 75-1553), Petrus Ramus (1515-72), Michel E. de Montaigne (1533-92), Pierre Charron (1541-1603), Fran­ cisco Sanchez (1562-1632), Justo Lipsio (1547­ 1606). Entre os espanhóis, lembramos Ludovico Vives (1492-1540) e, entre os alemães, Rodolfo Agrícola (1442-85). As bases fundamentais do H. podem ser assim expostas: Ia Reconhecimento da totalidade do ho­ mem como ser formado de alma e corpo e destinado a viver no mundo e a dominá-lo. O curriculum de estudos medieval era elaborado para um anjo ou uma alma desencarnada. O H. reivindica para o homem o valor do prazer (Raimondi, Filelfo, Valia); afirma a importância do estudo das leis, da medicina e da ética con­ tra a metafísica (Salutati, Bruní, Valia); nega a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa (Valia); exalta a dignidade e a liber­ dade do homem, reconhece seu lugar central na natureza e o seu destino de dominador des­ ta (Manetti, Pico delia Mirandola, Ficino). 2a Reconhecimento da historicidade do ho­ mem, dos vínculos do homem com o seu pas­ sado, que, por um lado, servem para uni-lo a esse passado e, por outro, para distingui-lo dele. Desse ponto de vista, é parte funda­ mental do H. a exigência filológica, que não é apenas a necessidade de descobrir os textos antigos e restituir-lhes a forma autêntica, estu­ dando e colecionando os códices, mas também é a necessidade de encontrar neles o autêntico significado de poesia ou de verdade filosófica ou religiosa que contenham. A admiração pela Antigüidade e seu estudo nunca faltaram na Idade Média; o que caracteriza o H. é a exigência de descobrir a verdadeira cara da antigüidade, libertando-a dos sedimentos acumulados du­ rante a Idade Média. 3a Reconhecimento do valor humano das le­ tras clássicas. É por esse aspecto que o H. tem esse nome. Já na época de Cícero e Varrão, a pa­ lavra humanítas significava a educação do ho­ mem como tal, que os gregos chamavam de paídéia; eram chamadas de "boas artes" as disci­

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h u m il d a d e

plinas que formam o homem, por serem pró­ prias do homem e o diferenciarem dos outros animais (AULO GÉLIO, Noct. Att., XIII, 17). As boas artes, que ainda hoje são denominadas dis­ ciplinas humanísticas, não tinham para o H. va­ lor de fim, mas de meio, para a "formação de uma consciência realmente humana, aberta em todas as direções, por meio da consciência histórico-crítica da tradição cultural" (GARIN, / 'educazione umanistica in Itália, p. 7) (v. CUL­

TURA).

4- Reconhecimento da naturalidade do ho­ mem, do fato de o homem ser um ser natural, para o qual o conhecimento da natureza não é uma distração imperdoável ou um peca­ do, mas um elemento indispensável de vida e de sucesso. O reflorescimento do aristotelísmo, da magia e das especulações naturalistas (graças a Telésio, G. Bruno e Campanella) constituem o prelúdio da ciência moderna. II) O segundo significado dessa palavra nem sempre tem estreitas conexões com o primeiro. Pode-se dizer que, com esse sentido, o H. é toda filosofia que tome o homem como "medi­ da das coisas", segundo antigas palavras de Protágoras. Exatamente nesse sentido, e com referência à frase de Protãgoras, F. C. S. Schiller deu o nome de H. ao seu pragmatismo (Studies in Humanism, 1902). Foi com o mesmo senti­ do que Heidegger entendeu o H., mas para rejeitá-lo; viu nele a tendência filosófica a to­ mar o homem como medida do ser, e a subor­ dinar o ser ao homem, em vez de subordinar, como deveria, o homem ao ser, e a ver no ho­ mem apenas "o pastor do ser" (Holzivege, 1950, pp. 101-02). Referindo-se a um sentido análogo, Sartre aceitou a qualificação de H. para o seu existencialismo (Lexistencíalisme est un humanísme, 1949). Em sentido mais geral, pode-se entender por H. qualquer tendência filosófica que leve em consideração as possibilidades e, portanto, as limitações do homem, e que, com base nisso, redimensione os problemas filosóficos. HUMANITARiSmO (in. Humanitarianism; fr. Humanítarisme, ai. Humanitát; it. Umanitarismo). V. FILANTROPIA.

HUMILDADE (gr. Tcurewcxppoaúvr]; lat. Humilitas-, in. Humility, fr. Humilité, ai. Demut; it. Umiltã). Atitude de abjeção voluntária, típica da

religiosidade medieval, sugerida pela crença na natureza miserável e pecaminosa do homem. Neste sentido, a H. é ilustrada e exaltada por Bernard de Clairvaux: "A H. é a virtude graças à

HUMILDADE

qual o homem se avilta com verdadeiro reco­ nhecimento de si mesmo" (De gradibus humilitatis etsuperbiae, em P. L , 182Q, col. 942). Nesse sentido, a H. era desconhecida do mun­ do antigo. S. Paulo, que foi o primeiro a empre­ gar essa palavra, entendeu-a como falta de espí­ rito de competição e de vangloria (Philipp, II), vendo seu modelo em Cristo, que, com a en­ carnação, rebaixou-se até o homem (Ibid, II, 3-11). Da mesma forma, S. Agostinho fala da H. sobretudo a propósito da via humilitatis, que é a encarnaçào do Verbo para a redenção dos ho­ mens: nesse sentido, contrapõe a H. cristã à so­ berba dos platônicos, que sabiam tantas coisas, mas ignoravam a encarnação (Conf, VII, 9). S. Tomás considerava a H. como a parte da virtu­ de "que tempera e freia o ânimo, a fim de que ele não tenda desmesuradamente às coisas mais altas" e veja nelas o complemento da mag­ nanimidade que "fortalece o ânimo contra o desespero e impele-o a perseguir as grandes coisas, de acordo com a reta razão" (S. Tb., II, 2, q. 161, a. 1). Mas é óbvio que, neste sentido, a H. nada mais é que a magnanimidade em significado aristotélico (v. MAGNANIMIDADE) e nada tem a ver com a H. no sentido atribuído por S. Bernardo. É freqüente a oposição dos filósofos ao sig­ nificado medieval de H.; outras vezes procu­ ram reconduzi-la a um significado compatível com a ética clássica. Spinoza negava que a H. fosse uma virtude e julgava-a uma emoção pas­ siva, porquanto ela nasce do fato de "o homem contemplar sua própria impotência". Entretan­ to, se ete pensa nessa impotência em relação a um ser mais perfeito, esse pensamento favore­ ce sua potência de ação e por isso não é H., mas virtude (Et, IV, 53). Kant distingue a H. moral, que é "o sentimento da pequenez do nosso valor, comparado com a lei", da H. espú­ ria, que é "a pretensão de, por meio da renún­ cia, adquirir algum valor moral de si mesmo, um valor moral oculto". A pretensão de supe­ rar os outros rebaixando-se é uma ambição oposta ao dever para com os outros; utilizar esse meio para obter o favor dos outros (Deus ou homem que seja) é hipocrisia e adulaçâo (Met. derSitten, II, § 11). Hegel afirmava que a H. "é a consciência de Deus e da sua essência como amor" (PhüosophischePropãdeutik, § 207, cf. Philosophie derReligion, ed. Glockner, II, p. 553). Entretanto, por outro lado, o protesto de Nietzsche, que vê na H. simplesmente um aspecto da "moral dos escravos", obviamente é

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HYSTERON PROTERON

dirigido ao típico conceito medieval de H. (cf. Werke, VII, pp. 348 ss.). HUMOR (in.Mood; fr. Humeur, ai. Stimmung; it. Umore). Estado emotivo que não tem objeto, ou cujo objeto é indeterminável, distinguindo-se, assim, da emoção propriamente dita. Esta distin­ ção foi proposta por W. Cerf. ("H. e emoções na arte", em Rivista di Filosofia, 1954, pp. 363 ss.) e parece oportuna para identificar, na vasta gama dos estados emocionais, os que recebem o nome de humor. O H. não tem objeto intencional no sentido de que não existe um H.âe..., assim como existe um medo de... ou alegria de... etc. Tem causa ou razão, mas não se refere a um objeto em particular e não constitui advertência quanto ao valor biológico de uma situação. Nesse senti­ do, Cerf afirmou que na arte não existem emo­ ções, mas apenas H. Heidegger chamou a atenção para o signifi­ cado existencial dos H.: "O fato de os H. pode­ rem transformar-se ou deteriorar-se significa somente que o ser-aí está sempre num estado emocional." O H. fundamental é o tédio, "o pe­ so do ser". Mas, em qualquer caso, o H. é aqui­ lo que torna manifesto "como alguém é e se torna" (Sein undZeit, § 29). HYBRIS (gr. í)p"ptç). Com este termo, intraduzível para as línguas modernas, os gregos entenderam qualquer violação da norma da medida, ou seja, dos limites que o homem deve encontrar em suas relações com os outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas. A injustiça nada mais é que uma forma de H., porque é a transgressão dos justos limi­ tes em relação aos outros homens. Neste sen­ tido, Hesíodo dizia: "Quando levada a cabo, a justiça triunfa sobre a H.: o néscio só entende quando sofre" (Op, 216-17). Para Platão, há H. sempre que é superada "a medida do justo"; portanto, a H. tem muitas faces, muitos lados e muitos nomes (Fed., 238 a). Aristóteles deu a esse termo um significado mais restrito: enten­ deu tratar-se de ofensa gratuita feita aos outros apenas pelo prazer de sentir-se superior: o que é insolência (Ret., II, 2, 1378 b 23). HYSTERON PROTERON. Estes termos, assim como Hysterologia e Protysteron, co­ meçaram a ser empregados no séc. IV a.C. pelos gramáticos gregos e latinos (p. ex., CHEROBOSCO, Trop., 27; SERVIO, Ad Vergilium, A, 9, 816) para indicar a figura retóri­ ca que consiste em dizer antes o que deve­ ria ser dito depois, como quando dizemos:

HYSTERON PROTERON

"Está bem e está vivo". Leibniz emprega esse ter­ mo no mesmo sentido, considerando-o equiva­ Lente a rebours e contrapondo-o a "círculo vi­ cioso" (Nouv. ess., IV, 2, 1). Mas depois essa expressão foi freqüentemente usada como si­

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HYSTERON PROTERON

nônimo de círculo vicioso ou de petição de prin­ cípio, para indicar uma argumentação que toma como premissa a própria conclusão, ou que utiliza como elemento de prova aquilo que de­ veria ser provado.

I 1. 1. Na lógica formal "aristotélica" esta letra é usada como símbolo da proposição particu­ lar afirmativa (PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.21). 2. Na Lógica modal tradicional, I designa a proposição modal que nega o modo e afirma a proposição. P. ex., "Não é possível que p" onde p é uma proposição afirmativa qualquer (ARNAL:LD, Log;., II, 8). G. P.-N. A. ID ou ISSO. V. PSICANÁLISE. IDEAÇÃO (in. Ideation; fr. Idéation; ai. Ideatiori; it. Ideazioné). Termo usado por Hus­ serl em Investigações Lógicas (1900-01) para designar aquilo que chamou de "intuição eidética" ou "visão das essências" Udeen, I, § 3). (v. FENOMENOLOGIA). IDEAL1 (in. Ideal; fr. Ideal; ai. Ideal; it. Ideale). É a noção de origem setecentista, da encarnaçào acabada, mas não real, da perfeição em determinado campo. Essa noção foi claramen­ te expressa por Kant, que a distinguiu da noção de idéia: "A virtude e, com ela, o saber humano em toda a sua pureza são idéias. Mas o sábio (do estóico) é um ideal, um homem que só existe no pensamento, mas corresponde ple­ namente à idéia de sabedoria. Assim como a idéia dita a regra, o I. serve de modelo (...). Em­ bora não se possa atribuir realidade objetiva (existência) aos I., nem por isso eles devem ser considerados quimeras; ao contrário, oferecem um critério à razão, que precisa do conceito do que é perfeito em seu gênero para, tomando-o como medida, avaliar e estimar o grau e a falta de perfeição" (Crít. R. Pura, Dialética, cap. III, seç. I). No domínio da estética o I. é a figura humana (Kritik der Urteil., § 17). Esse conceito de I. como perfeição concretizada num tipo ou numa forma de vida, mas não realizada, passou a ser comum, verificando-se toda vez que se acentua a separação entre o dever ser e o ser. Hegel, que negou esta separação, empregou a

noção do I. só no domínio da estética, visto ter concebido a arte como a "intuição concreta e a representação do Espírito Absoluto em si como do I." (Ene, § 556). A distância da realidade, que é a característica do I., é limitada por Hegel ao mundo da arte, porque nele a Idéia ou Ra­ zão autoconsciente não chega a realizar-se na sua forma própria, mas transparece, nas formas sensíveis da natureza, como o I. que está de algum modo além dessas formas ( Vorlesungen überdieAsthetik, ed. Glokner, I, pp. 112 ss.). Na religião e na filosofia, entretanto, que são as formas espirituais em que a Idéia tem realiza­ ção mais elevada, a noção de I. não tem lugar. Na filosofia contemporânea, que mesmo resta­ belecendo a distinção entre dever-ser e ser, própria da filosofia setecentista, recusa-se a considerar o dever-ser como já encarnado nu­ ma forma perfeita e como inatingível na reali­ dade, a noção de I., caracterizada por esses dois aspectos, deixou de ser usada e foi subs­ tituída pela noção de valor(y). Dewey disse a propósito: "Esta noção da natureza e da função dos ideais combina num todo contraditório o que há de vicioso na separação entre desejo e pensamento (...) Segue o curso natural da inte­ ligência ao pedir um objeto que unifique e sa­ tisfaça o desejo, e depois anula a obra do pen­ samento, ao considerar o objeto inefável e sem relação com a ação e a experiência presente" (Human Nature and Conduct, II, 8, p. 260). IDEAL2(in. Ideal; fr. Ideal; ai. Ideal, Ideellé). Esse adjetivo tem três significados fundamen­ tais, correspondentes: Ia ao primeiro significa­ do de Idéia, designando o que é formal ou per­ feito no sentido de pertencer à Idéia como forma, espécie ou perfeição; 2S ao segundo sig­ nificado de Idéia, significando o que não é real porque pertence à representação ou ao pensa­ mento; o próprio Hegel emprega este significa­

IDEAIIDADE do do termo quando afirma que o idealismo consiste em afirmar que "o infinito é I.", ou seja, não real (WissenschaftderLogik, I, I, seç. I, cap. II, nota 2); 3S ao termo ideal, designando o que é perfeito, mas irreal. IDEAUDADE (in. Ideality, fr. Idéalité; ai. Idealitàt; it. Idealitã). Termo introduzido por Kant para designar a subjetividade das formas da intuição e das categorias; neste caso se trata de I. transcendental, no sentido de que tais formas são condições da consciência (Crít. R. Pura, § 3). Na primeira edição da Crítica, Kant dissera: "A existência de todos os objetos dos sentidos externos é duvidosa. A esta incerteza dou o nome de I. dos fenômenos externos e à doutrina dessa idealidade denomina-se I.". Ubid., 1- ed., Paralogismos da Razão Pura, IV). Hegel inverteu esse conceito de L, afirmando que ela não deve ser entendida como negação do que é real, mas como sua conservação (Ene, § 403): "A I. pode ser chamada de qua­ lidade da infinidade", ou seja, a qualidade do real porque, segundo Hegel, só o infinito é real e o finito não é real (Wissenschaft derLogik, I, 1, cap. 2, A Passagem). Nicolai Hartmann em­ pregou esse termo num sentido mais próximo ao de Kant. Ele fez a distinção entre: I. inde­ pendente, pertencente a objetos irreais, mas subsistentes em si, como os objetos da Lógica e da Matemática, bem como os valores; e I. aderente, pertencente às formas ideais que cons­ tituem a essência do real (as leis ou relações ideais que o constituem) (Metaphysik der Erkenntníss, 1921, cap. 62). IDEALISMO (in. Idealisni; fr. Idéalisme; ai. Idealismus; it. Idealismo). Este termo foi intro­ duzido na linguagem filosófica em meados do séc. XVII, inicialmente com referência à doutri­ na platônica das idéias. Leibniz diz: "O que há de bom nas hipóteses de Epicuro e de Platão, dos maiores materialistas e dos maiores idealis­ tas, reúne-se aqui [na doutrina da harmonia preestabelecida]" (Op., ed. Erdmann, p. 186). Contudo, esse significado do termo, que por vezes é indicado como "I. metafísico", no sen­ tido de ser uma hipótese acerca da natureza da realidade (que consiste em afirmar o caráter espiritual da própria realidade) não teve longa vida. Essa palavra foi usada principalmente nos dois significados seguintes: 1Q I. gnosiológico ou epistemológico, por várias correntes da filo­ sofia moderna e contemporânea. 2S I. român­ tico, que é uma corrente bem determinada da filosofia moderna e contemporânea.

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IDEALISMO ls No sentido gnosiológico (ou epistemológico) esse termo foi empregado pela primei­ ra vez por Wolff: "Denomina-se idealista quem admite que os corpos têm somente existência ideal em nosso espírito, negando assim a exis­ tência real dos próprios corpos e do mundo" (Psycbol. rationalis, § 36). No mesmo sentido, Baumgartem diz: "Aquele que admite neste mundo somente espíritos é um idealista" (Met., § 402). Kant introduziu definitivamente em filo­ sofia esse significado do termo: "I. é a teoria que declara que os objetos existem fora do espaço ou simplesmente que sua existência é duvidosa e indemonstrável, ou falsa e impossí­ vel; o primeiro é o I. problemático de Descartes, que declara indubitável somente uma afirmação (assertió) empírica, 'Eu sou', o segundo é o I. dogmático de Berkeley, que considera o espa­ ço, com todas as coisas a que ele adere como condição imprescindível, como algo em si mes­ mo impossível e declara por isso que as coisas no espaço são simples imaginações" (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, refutação do I.). Kant denomina esse I. de material, para distingui-lo do I. transcendental ou formal (Prol, § 49), que é a sua própria doutrina da "idealidade transcendental" do espaço, do tempo e das ca­ tegorias; essa doutrina permite justificar o realis­ mo e refutar o idealismo. Mas, apesar dessa to­ mada de posição (mais explícita na segunda edição da Crítica do que na primeira, na qual falta a "Refutação"), a doutrina kantiana já este­ ve voltada para um significado idealista, sobre­ tudo graças à interpretação feita por Reinhold, em Letras sobre a filosofia kantiana (1786-87); segundo este último, o fenômeno, ou seja, o objeto do conhecimento empírico, como re­ presentação. Schopenhauer acreditava ex­ pressar a essência do kantismo ao iniciar sua obra O mundo como vontade e representação (1819) com a tese: "O mundo é a minha repre­ sentação." Esta tese, aceita como um princípio evidente do I. romântico, foi compartilhada na filosofia moderna e contemporânea, não só pelas formas desse I. como também pelas vá­ rias correntes do criticismo e por algumas corren­ tes do espiritualismo. São idealistas, neste senti­ do, as doutrinas de Renouvier, Cohen, Natorp, Windelband, Rickert, assim como as de Lotze, Eduard Hartmann, Ravaisson, Hamelin, Martinetti e outros: pensadores que, mesmo se opon­ do ao I. romântico, têm em comum com ele o pressuposto gnosiológico fundamental: a redu-

IDEALISMO

çâo do objeto de conhecimento a representa­ ção ou idéia. 2- No segundo sentido, o I. constitui o nome da grande corrente filosófica romântica que se originou na Alemanha no período pós-kantiano e que teve numerosas ramificações na filosofia moderna e contemporânea de todos os países. Por seus próprios fundadores, Fichte e Schelling, esse I. foi denominado "transcen­ dental", "subjetivo" ou "absoluto". O adjetivo transcendental tende a ligá-lo ao ponto de vis­ ta kantiano, que fizera do "eu penso" o princí­ pio fundamental do conhecimento. A qualifica­ ção subjetivo tende a contrapor esse I. ao ponto de vista de Spinoza, que reduzira toda a reali­ dade a um único princípio, a Substância, mas entendera a própria substância como objeto. Por fim, o adjetivo absoluto tem por finalidade frisar a tese de que o Eu ou Espírito é o princí­ pio único de tudo, e que fora dele não existe nada. Schelling diz, ao traçar a gênese histórica do I. romântico: "Fichte libertou o eu dos re­ vestimentos que em parte ainda o obscureciam em Kant, e colocou-o como único princípio à testa da filosofia; tornou-se assim o criador do I. transcendental... O I. de Fichte é o oposto perfeito do espinosismo ou um espinosismo in­ vertido, pois Fichte opôs ao objeto absoluto de Spinoza, que aniquilava qualquer sujeito, o Su­ jeito em sua absolutidade, o Ato ao ser absolu­ tamente imóvel de Spinoza; para Fichte, o eu não é, como para Descartes, um eu admitido só com o objetivo de poder filosofar, mas é o eu real, o verdadeiro princípio, o prius absoluto de tudo" (Münchener Vorlesungen: zur Geschichte der neueren Philosophie, 1834, Kant, Fichte; trad. it., pp. 108-09). Hegel, que tam­ bém chama de subjetivo ou absoluto o seu I., esclarece seu princípio desta forma: "A propo­ sição de que o finito é o ideal constitui o idea­ lismo. O I. da filosofia consiste apenas nisto: em não reconhecer o finito como verdadeiro ser. Toda filosofia é essencialmente I., ou pelo menos tem o I. como princípio; trata-se apenas de saber até que ponto esse princípio está efe­ tivamente realizado. A filosofia é I. tanto quan­ to religião" (Wissenschaft der Logik, I, seç. I, cap. III, nota 2, trad. it., pp. 169-70). Também receberam os nomes de I. subjetivo ou I. abso­ luto as derivações contemporâneas do I. ro­ mântico, que são substancialmente duas: a anglo-americana (Green, Bradley, McTaggart, Royce, etc.) e a italiana (Gentile, Croce). Ambas as derivações mantiveram aquilo que, para

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Hegel, era a principal característica do I.: a nãorealidade do finito e a sua resolução no infini­ to. Mas, enquanto o I. italiano seguiu mais de perto a corrente hegeliana, procurando estabe­ lecer essa identidade por via positiva, mos­ trando na estrutura do finito, na sua intrínseca e necessária racionalidade, a presença e a reali­ dade do infinito, o I. anglo-americano tratou de demonstrar a identidade por via negativa, mos­ trando que o finito, devido à sua intrínseca irracionalidade, não é real, ou é real na medida em que revela e manifesta o infinito. O título de uma das obras fundamentais do I. inglês, Aparência e realidade(1893), de F. H. Bradley, revela já o tema dominante do I. anglo-saxão, enquanto o título da obra fundamental de Gentile, Teoria do espirito como ato puro (1916), revela a inspiração fichteana e a trilha subjetivista do I. italiano. Quanto às principais característi­ cas de todas as formas do I. romântico, v. ABSOLUTO; ROMANTISMO.

IDEALISMO DA LIBERDADE (ai Idealismus der Freíheif). Um dos três tipos funda­

mentais de filosofia, isto é, de intuição do mundo, segundo Dilthey, mais precisamente o que é representado por Platão, pela filosofia helenístico-romana, por Cícero, pela especulação cristã, por Kant, Fichte, Maine de Biran, pelos pensadores franceses a este ligados e por Carlyle {Das Wesen der Philosophie, 1907, III, 2; trad. it., em Critica delia ragionestorica, p. 469). IDEATO (lat. Ideatum). O objeto da idéia (no 2° sentido). Spinoza, que entende por idéia adequada aquela que tem "as notas in­ trínsecas da idéia verdadeira", adverte: "Digo intrínsecas para excluir a nota que é extrínseca, ou seja, a correspondência da idéia com o seu I." (Et., II, def. 4). IDÉIA (gr. iôéa; lat. Idea; in. Idea; fr. Idée; ai. Idee; it. Idea). Este termo foi empregado com dois significados fundamentais diferentes: 1Q como a espécie única intuível numa mul­ tiplicidade de objetos; 2S como um objeto qual­ quer do pensamento humano, ou seja, como representação em geral. No primeiro significa­ do, essa palavra é empregada por Platão e Aris­ tóteles, pelos escolásticos, por Kant e outros. No segundo significado, foi empregada por Descartes, pelos empiristas, por boa parte dos filósofos modernos e é comumente usada nas línguas modernas. le No primeiro significado, a I., como unida­ de visível na multiplicidade, tem caráter privile­

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giado em relação à multiplicidade, pelo que é freqüentemente considerada a essência ou a substância do que é multíplice e, por vezes, como o ideal ou o modelo dele. Este é, clara­ mente, o ponto de vista de Platão, que, em Parmênides, atribui a Sócrates o conceito de que a I. é a unidade visível na multiplicidade dos objetos e, por isso, também a sua espécie (eidos). "Creio que acreditas haver uma es­ pécie única toda vez que muitas coisas te pare­ cem, p. ex., grandes e tu podes abrangê-las com um só olhar: parece-te então que uma única e mesma I. está em todas aquelas coisas e por isso julgas que o grande é uno" (Partn., 132 a). Como unidade, a I. se mostra, em Platão, o exemplar das coisas naturais: "Essas espécies" — diz ele — "estão como exempla­ res na natureza e as outras coisas se asseme­ lham a elas e são imagens delas; a participação dessas outras coisas na espécie consiste apenas em serem imagens da espécie" (Ibid, 132 d). No mesmo diálogo, Platão diz quais as coisas de que admitia I., quais as coisas de que não admitia e quais as coisas de que tinha dúvida, quanto a admiti-las. "Parece-te que há uma se­ melhança em si, separada da semelhança que nós temos, e um uno e muitos em si, bem como outras coisas deste tipo? — Parece-me que sim, disse Sócrates. — E admites que haja — continuou Parmênides — a espécie do justo em si, do belo em si, do bem em si e outras coi­ sas assim? — Sim, respondeu Sócrates. — E admites que haja uma espécie do homem sepa­ rada de nós e de todos os nossos semelhantes, uma espécie em si do homem, do fogo, da água? — Sempre tive dúvida — respondeu Sócrates — se convinha ou não reconhecer essas espécies assim como as outras. — E das coisas que pareceriam até ridículas, como cha­ péu, lama, imundície e todas as outras desti­ tuídas de valor ou vis, também duvidas que haja ou não uma espécie de cada uma delas, separada das coisas correspondentes que po­ demos manipular? — Certamente não — res­ pondeu Sócrates — , essas coisas são tais e quais nós as vemos, e seria absurdo acreditar que há uma espécie delas" (Ibid., 130 b-d). Deste trecho do Parmênides resulta que exis­ tem três classes de objetos: le Objetos dos quais com certeza existem idéias, que são: a) os objetos matemáticos, igualdade, um, muitos, etc.; b) os valores: o belo, o justo, o bem, etc.; 2S Objetos dos quais é duvidoso que existam I.: as coisas naturais, o fogo, a água ou o ho­

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mem; 3o Objetos dos quais com certeza não há I., que são as coisas vis ou geralmente as que não têm valor. Ora, pode-se tomar ao pé da le­ tra essa espécie de confissão platônica, pois um olhar nos demais diálogos demonstra que ele sempre falou de I. nos sentidos constantes das letras d) e b), que ele admitiu, ou melhor, introduziu, com o fim de chegar a certas de­ monstrações, formas naturais como o calor, o frio, a doença e a febre (Fed., 105 b e ss.) ou for­ mas artificiais, como a da cama (Rep., X, 597 b), mas nunca falou, a não ser para excluí-las, de formas correspondentes à terceira classe de ob­ jetos. Disso pode-se deduzir o que Platão en­ tendia ao afirmar (como ainda o fazia na fase crítica [Parm., 135 bl) a existência das I. "em separado das demais coisas", da multiplicidade das coisas. Existem I. de conceitos matemáti­ cos ou de valores: portanto, como já reconhe­ cera Natorp (Platos Ideenlehre, 1903), as I. não são supracoisas, ou seja, objetos transcenden­ tes cuja existência tem como modelo a existên­ cia das coisas, mesmo constituindo uma esfera à parte, mas normas, regras ou leis. Desse ponto de vista, o fato de estarem "separadas" das outras coisas significa simplesmente a indepen­ dência da regra das coisas que serve para jul­ gar. E por regra entende-se: Ia que são critérios para julgar as outras coisas no sentido que, por exemplo, a igualdade permite julgar se duas coisas são iguais ou não, e assim o belo por meio das coisas belas, etc. (Fed., 74 ss.); 2- que são causas das coisas no sentido de serem as razões pelas quais as coisas "geram-se, destroem-se e existem", porquanto constituem "a melhor maneira de existir, de modificar-se ou de agir" (Ibid, 97 c). Por fim, em correspondên­ cia com as duas classes de I. (as I. matemáticas e as I.-valores), Platão admitia duas ordens de conhecimento científico: o conhecimento dianoético, próprio das ciências propedêuticas (ciências matemáticas), e o conhecimento inte­ lectual ou filosófico, próprio da dialética (Rep., VII, 531 e ss.). A reiterada crítica de Aristóteles a essa dou­ trina (Met, I, 9, 990 b ss.; XIII e XIV passim) tem como alvo o ponto central dela.- as I. não são princípios de explicação nem causas. Só a substância ou essência necessária é causa e princípio de explicação, e isso vale para o bem e para aquilo que Platão denominava I., assim como para todas as outras coisas. Aristóteles diz: "A ciência de uma coisa consiste em co­ nhecer a essência necessária da coisa. Isso é

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verdadeiro no que se refere ao bem, assim como a todas as outras coisas, de tal modo que, se o bem não tivesse a essência necessária do bem, não teria ser e não seria uno. O mesmo pode ser dito sobre todas as outras coisas, que são o que são com base em sua essência ne­ cessária ou não são nada; portanto, se a sua essência não é, nada delas é" (Ibid, VII, 6 , 1031 b 6). Em outros termos, o status ontológico das I., se é que possuem algum, é o de todas as outras coisas: são reais porque são substâncias, não porque são unidades ou valo­ res. Portanto, as I., como formas ou espécies, são certamente reais, segundo Aristóteles, mas são reais apenas na medida em que as for­ mas ou espécies são a substância das coisas compostas (v. FORMA). A teoria da substância (v.) possibilitou a Aristóteles retirar das duas determinações, unidade e valor, o primado ontológico que Platão lhes atribuíra nas primei­ ras fases de sua filosofia. A teoria das I. não tem mais validade para Aristóteles, no sentido de as idéias não constituírem substâncias privi­ legiadas e muito menos exemplares ou mode­ los das coisas. Contudo, atribui à palavra I. o mesmo significado que Platão lhe dera: unida­ de que é ao mesmo tempo perfeição ou valor. Em seguida, ao longo de sua história, aca­ bam prevalecendo as determinações míticas ou popularescas que esse termo recebera na filo­ sofia platônica: modelo, arquétipo, perfeição, etc. Na Escolástica judaica e neoplatônica, as I. são consideradas objetos da Inteligência divina e identificadas com essa Inteligência. Fílon já as considerava como "potências incorpóreas", das quais Deus se serve para formar a matéria (De sacrif, II, 126). E Plotino as identificava com a própria Inteligência, mais precisamente com a inteligência "em estado de repouso, unidade e calma, que é distinta mas não separada da Inte­ ligência que contempla e pensa" (Enn., III, 9, 1). Neste sentido a I. é o objeto "interno" da inteligência divina, e como a inteligência não se distingue do ser e do ato do ser, a I., a forma do ser e o ato do ser são a mesma coisa (Ibid., V, 9, 8). Essa doutrina tornou-se lugar-comum da Patrística e da Escolástica. S. Agostinho re­ produziu-a ao afirmar que o Logos ou Filho tem em si as I., ou seja, as formas ou razões imutáveis das coisas, que são eternas, assim como ele mesmo é eterno, em conformidade com tais razões ou formas, são formadas todas as coisas que nascem e morrem (De diversis quaest., 83, q. 46). A partir de S. Agostinho,

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inúmeras vezes os escolásticos repetem essa doutrina quase nos mesmos termos. Anselmo considera a I. como uma espécie de "palavra interior": Deus exprime-se nas I. como o artífi­ ce em seu conceito, mas essa expressão não é uma palavra externa, um enunciado; é a coisa para a qual se volta a acuidade da mente cria­ dora (Monol, 10). S. Tomás dizia: "O termo grego idea diz-se em latim forma-, por idéia en­ tendem-se as formas de algumas coisas, exis­ tentes fora das próprias coisas. Essa forma pode servir para duas coisas: ou como exem­ plar daquilo cuja forma é, ou como princípio de conhecimento e, neste segundo sentido, diz que a forma das coisas cognoscíveis está no cognoscente" (S. Th, I, q. 15, a. 1). Ockham, que nega o caráter universal das I., não nega, todavia, que as I. existem em Deus, como "as coisas produziveis por Deus" (In Sent., I, d, 35, q. 5). O emprego desse conceito continuou mesmo fora da tradição platônica (NICOLAU DE CUSA, De coniecturis, II, 14; FICINO, em Parmenid., 23) O Renascimento repete-o sem va­ riantes: p. ex., Bacon (Nov. org, I, 23). E quan­ do o segundo significado desse termo já havia sido introduzido por Descares e difundido por cartesianos e empiristas, Kant restituiu-lhe seu significado platônico, entendendo por I. uma perfeição não real, "que supera a possibilidade da experiência". "As I." — diz Kant — "são conceitos racionais dos quais não pode existir na experiência nenhum objeto adequado. Não são intuições (como espaço e tempo) nem sen­ timentos (que pertencem à sensibilidade), mas conceitos de perfeições, dos quais é sem­ pre possível aproximar-se, mas que nunca se alcança completamente" (Antr, § 4.3). As três I. que Kant enumera como "objetos necessários da razão" (alma, mundo e Deus) são desprovi­ das de realidade exatamente porque estão além da experiência possível; no entanto, são regras para estender e unificar a experiência. Assim, para Kant, a I. conserva de alguma forma o caráter regulativo que Platão lhes atri­ buíra. Em todo caso, Kant julga "intolerável ouvir chamar de I. algo como, p. ex., a repre­ sentação da cor vermelha" (Çrít. R. Pura, Dialé­ tica, seç. I). No idealismo pós-romântico a noção de I. recuperou todo o alcance meta­ físico e teológico que já tivera no neoplatonismo tradicional. Schelling considera as I., por um lado, como as determinações da razão de Deus e, por outro, como as formas da objetivação corpórea: em outros termos, são o pon­

IDÉIA

to de encontro e de identificação entre a infini­ dade divina e o finito corpóreo (Werke, I, II, p. 187). Para Goethe, a I. é a força divina formadora da natureza (Werke, ed. Hempel, XIX. pp. 63, 158). Schopenhauer considera a I. como a pri­ meira e imediata objetivação da vontade de viver, portanto como "forma eterna" ou "o modelo" das coisas (Die Welt, I, § 25). Hegel, por fim, vê na I. "o verdadeiro em si e para si, a unidade absoluta do conceito e da objetivida­ de". Nesse sentido, ela não é representação nem conceito determinado. "O absoluto é a I. universal e única que, com o julgar, se especifi­ ca no sistema das I. determinadas, que no en­ tanto voltam para a I. única, sua verdade. Por força desse juízo, a I. é, em primeiro lugar, ape­ nas a única e universal substância, mas, na for­ ma verdadeira e desenvolvida, ela é como su­ jeito, por isso como espírito" (Ene, § 213). Nesta forma verdadeira e desenvolvida ela é I. absoluta, ou seja, Razão Autoconsciente, que se manifesta nas três determinações do espírito absoluto (arte, religião, filosofia) e se realiza no estado, também denominado por Hegel" reali­ dade da I." (Fil. dodir, % 258, comentário). Isso não passava de uma tradução para termos mo­ dernos da identidade que o antigo platonismo estabelecera entre a I. como objeto inteligível e a Inteligência. O idealismo contemporâneo, mesmo se inspirando em Hegel, não adotou a terminologia hegeliana nesse aspecto: deu à ra­ zão autoconsciente os nomes de Espírito, Absoluto ou Consciência, e não o de Idéia. Em todos os demais aspectos, a noção de I. per­ manece ligada à noção platônica de exemplar ou arquétipo eterno, e isso tanto para os que a aceitam quanto para os que a negam. 2- No segundo significado, I. significa repre­ sentação em geral. Esse significado já se en­ contra na tradição literária (p. ex., em MONTAIGNE, Essais, II, 4), mas Descartes introduziu-o na linguagem filosófica, entendendo por I. o objeto interno do pensamento em geral. Nesse sentido, afirma que por I. se entende "a forma de um pensamento, para cuja imediata percep­ ção estou ciente desse pensamento" (Resp. II, def. 2). Isso significa que a I. expressa aquele caráter fundamental do pensamento graças ao qual ele fica imediatamente ciente de si mesmo. Para Descartes, toda I. tem, em primeiro lugar, uma realidade como ato do pensamento e essa reali­ dade é puramente subjetiva ou mental. Mas, em segundo lugar, tem também uma realidade que Descartes denominou escolasticamente de

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objetiva, porquanto representa um objeto: nes­ te sentido as I. são "quadros" ou "imagens" das coisas (Mêd, III). Esta terminologia era ampla­ mente aceita pela filosofia pós-cartesiana. A Lógica de Port-Royal adotou-a, entendendo por I. "tudo o que está em nosso espírito quando podemos dizer com verdade que concebemos uma coisa, seja qual for a maneira como a con­ cebemos" (ARNAULD, Log, I, 1). Também foi aceita por Malebranche (Rech. de Ia ver., II, 1) e Leibniz, que considera as I. como "os objetos internos" da alma (Nouv. ess. II, 10, § 2). Este último, porém, pretendia reservar o termo I. apenas para o conhecimento claro, distinto e adequado, passível de ser analisado em seus constituintes últimos e isento de contradições (Phil. Schriften, ed. Gerhardt, IV, pp. 422 ss.) Spinoza, por sua vez, entendia por I. "o concei­ to formado pela mente enquanto pensa" e pre­ feria a palavra "conceito" a "percepção" por­ que a percepção parece indicar a passividade da mente diante do objeto, enquanto o concei­ to exprime sua atividade (Et., II, def. 3). Por outro lado, Hobbes já definira a I. como "a memória e a imaginação das grandezas, dos movimentos, dos sons, etc, bem como da or­ dem e das partes deles, coisas estas que, apesar de serem apenas I. ou imagens, ou seja, quali­ dades internas da alma, aparecem como exter­ nas e independentes da alma" (Decorp, 7, § 1). Mas, sem dúvida, foi Locke quem difundiu esse significado (Ensaio, I, 1, 8) e o impôs ao empirismo inglês e ao iluminismo, através dos quais entrou para o uso comum. Para Locke, assim como para Descartes, a I. é o objeto imediato do pensamento: I. é "aquilo que o homem en­ contra em seu espírito quando pensa" (Ibid., II, 1,1). No prefácio da IV edição do Ensaio, Locke insistia na conexão da I. com a palavra. "Esco­ lhi esse termo" — dizia ele — "para designar, em primeiro lugar, todo objeto imediato do espírito, que ele percebe, tem à sua frente e é distinto do som que ele emprega para servirlhe de signo; em segundo lugar, para mostrar que essa I. assim determinada, que o espírito tem em si mesmo, conhece e vê em si mesmo, deve estar ligada sem mudanças àquele nome, e aquele nome deve estar ligado exatamente àquela idéia" (Ibid., trad. it., I, p. 23). Estas obser­ vações permaneceram como fundamento dessa noção que, nesse aspecto, acabou por identifi­ car-se com a noção de representação. Wolff dizia: "A representação de uma coisa denomi­ na-se I. quando se refere à coisa, ou seja, quan­

IDÉIA GERAL

do é considerada objetivamente (Psychol. empírica, § 48). O iluminismo alemão aceitou esse significado atribuído por Wolff ao termo, mas este, como dissemos, depois seria impug­ nado por Kant. Nesse segundo significado, esse termo não se distingue de representação, e os problemas a ele relativos são os mesmos rela­ tivos a consciência em geral. Contudo, há um significado no qual a palavra I. (aliás, a única usada na linguagem comum) continua distinguindo-se de "representação": é aquele graças ao qual, tanto na linguagem comum quanto na filosófica, ela indica o aspecto de antecipação e projeção da atividade humana, ou, como diz Dewey, uma possibilidade. "Uma I. é, acima de tudo, uma antecipação de alguma coisa que pode acontecer: ela marca uma possibilidade" (Logic, II, 6 ; trad. it., p. 164). Com este signifi­ cado, esse termo conserva ainda hoje uma uti­ lidade específica. IDÉIA GERAL. V. GERAL. IDÉIAS, VARIEDADE DE (in. Varietyofldeas, fr. Varieté d ’idées\ ai. Ideensmanmigfãltigkeit; ít. Varietà di ideé). Só se admite variedade de I. no âmbito do 2- significado de idéia, en­ tendida como representação. Descartes distin­ gue três espécies de I.: inatas, que parecem congênitas no sujeito pensante, adventicias, que lhe parecem estranhas ou vindas de fora; e factícias, que são formadas ou encontradas por ele mesmo. À primeira classe de I. perten­ cem a capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras, imutáveis e eternas das coisas; à segunda classe pertencem as I. das coisas naturais; à terceira, as I. das coisas quiméricas ou inventadas (Méd., III; Lettres ã Mersenne, 16 dejunho de 1641, em CEuvres, III, 383). Esta classificação parece moldada à que Bacon fizera sobre os ídolos, dividindo-os em adventícios (adscitítia) e inatos-. "Os ídolos adventícios são introduzidos na mente humana por meio das doutrinas das seitas filosóficas ou através de demonstrações feitas com méto­ do errado. Os ídolos inatos pertencem à pró­ pria natureza do intelecto, que é propenso ao erro muito mais do que o sentido" (Nov. Org, Pref.). Os cartesianos e os wolffianos denomi­ naram I. material os movimentos que, segun­ do Descartes, são levados para o cérebro pelos nervos estimulados pela ação dos objetos exter­ nos que sensibilizam as diferentes partes do corpo (cf. Descartes, Princ.phil, IV, 196). Essa doutrina foi acatada pelos ocasionalistas, mas também por Wolff (Psychol. rationalis, § 118,

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IDENTIDADE

374), por Baumgarten (Met., § 560) e por Kant (Trãume eines Geistersehers, erlãutert durch Tráume der Metaphysik, 1766, I, 3). Fouillée deu o nome de Idéia-força "ao encontro do interno e do externo, uma forma que o interno toma pela ação do externo e pela reação pró­ pria da consciência" (L 'evolutionismedesidéesforces, 1890, p. XV), ou seja a unidade psicofísica que realiza o postulado do monismo psicofisico (v. MONISMO). EDENTIAL (ai. Identiat). Adjetivo criado por Avenarius para designar o conjunto de dois dos caracteresiy.), identidade e alteridade (Kritik der reinen Erfabrung, 1890, II, pp. 28 ss.). IDENTIDADE (gr. xaútóxriç; lat. ldentitas; in. Identity; fr. Identité; ai. Identitãt; it. Identitã). Este conceito tem três definições fundamentais: Ia I. como unidade de substância; 2a I. como possibilidade de substituição; 33 I. como con­ venção. P A primeira definição é de Aristóteles, que diz: "Em sentido essencial, as coisas são idênti­ cas no mesmo sentido em que são unas, já que são idênticas quando é uma só sua matéria (em espécie ou em número) ou quando sua subs­ tância é una. Portanto, é evidente que a I. é, de algum modo, uma unidade, quer a unidade se refira a mais de uma coisa, quer se refira a uma única coisa, considerada como duas, como acontece quando se diz que a coisa é idêntica a si mesma" (Met., V, 9,1018 a 7). Em outros termos, como diz ainda Aristóteles, as coisas só são idênticas "se é idêntica a definição da subs­ tância delas" (Ibid, X, 3, 1054 a 34). A unidade da substância, portanto da definição que a ex­ pressa é, desse ponto de vista, o significado da identidade. Como nota Aristóteles, pode haver uma I. acidental, como quando dois atributos acidentais ("branco" e "músico", p. ex.) se refe­ rem à mesma coisa, ao mesmo homem; contu­ do, essa I. acidental não significa de modo al­ gum que o homem (em geral) seja branco ou músico (Ibid., V, 9, 1017 b 27). Esse conceito de I. como unidade de substância ou (o que dá no mesmo) de definição da substância foi con­ servado e ainda está presente em muitas dou­ trinas. Foi adotado por Hegel, que definiu a essência como "I. consigo mesma" e, conseqüen­ temente, I. como coincidência ou unidade da essência consigo mesma (Ene, §§ 115-116). Tal conceito de I. é, pois, análogo e corresponden­ te à interpretação do ser predicativo como inerência (v. SER) e da essência como essência necessária (v. ESSÊNCIA).

IDENTIDADE, FILOSOFIA DA

2a A segunda definição é de Leibniz, que aproxima o conceito de I. ao de igualdade (v.): "Idênticas são as coisas que se podem substi­ tuir uma à outra salva veritate. Se A estiver con­ tido numa proposição verdadeira e se, pondose B no lugar de A, a proposição resultante continuar sendo verdadeira, e se o mesmo acontecer em qualquer outra proposição, diz-se que Ae B são idênticos; reciprocamente, se A e B são idênticos, a substituição a que nos referi­ mos pode acontecer" (Specimen Demonstrando Op, ed. Erdmann, p. 94). Definição análoga foi aceita por Wolff, que definia como idênticas "as coisas que se podem substituir uma à outra, salvaguardando quaisquer de seus predicados" (Ont., § 181). Com base neste sentido da pala­ vra, começou-se a falar de proposições idênti­ cas, que Leibniz distinguiu em: afirmativas, do tipo "Cada coisa é aquilo que é"; negativas, que são regidas pelo princípio de contradição (v.); díspares, que afirmam que "o objeto de uma idéia não é o objeto de outra idéia" (Nouv. ess., IV, 2, § 1). Estas observações de Leibniz sao repetidas com poucas alterações pela lógi­ ca contemporânea (CARNAP, DerLogische Aufbau der Welt, § 159; QUINE, From aLogicalPointof View, 1953, VIII, 1). 3a A terceira concepção diz que pode ser estabelecida ou reconhecida com base em qualquer critério convencional. De acordo com essa concepção, não é possível estabelecer em definitivo o significado da I. ou o critério para reconhecê-la, mas, dentro de determinado sis­ tema lingüístico, é possível determinar esse cri­ tério de forma convencional, mas oportuna. Esta concepção foi apresentada por F. Waismann num artigo de 1936 ("Über den Begriff der Identitãt", em Erkenntniss, VI, pp. 56 ss.), em polêmica aberta contra a definição carnapiana de I.; foi representada por P.T. Geach (em oposição a Quine), segundo o qual, quan­ do se diz "xé idêntico a y", tem-se uma expres­ são incompleta, abreviativa de ''xé o mesmo A de y", onde "A" é um nome cujo significado re­ sulta do contexto ("Identity", em Rev. ofMet., 1967, pp. 2-12). Esta é a concepção menos dogmática e mais ajustada às exigências do pen­ samento lógico-filosófico. IDENTIDADE, FILOSOFIA DA (in Identity-philosophy; fr. Philosophie de Videntité; ai. Identitatsphilosophie; it. Filosofia delia identita). Assim Schelling denominou sua fi­ losofia, porquanto define o Absoluto como I. do objeto com o sujeito, da natureza com o

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IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE

espírito, do inconsciente com o consciente (Werke, II, pp. 371 ss.) (v. NATUREZA, FILOSO­ FIA DA). IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE (lat Principium identitatis; in. Law of identity; fr. Prín­ cipe dHdentité; ai. Satz derIdentitãt; it. Princi­ pio di identitã). O reconhecimento explícito deste princípio como um dos princípios lógi­ cos ou ontológicos fundamentais, ao lado dos princípios de contradição e do terceiro excluí­ do, é coisa recente porque não passa da época de Wolff. Aristóteles ignora o princípio da I., o mesmo ocorrendo com toda a tradição medie­ val. O próprio Leibniz considera o enunciado: "Tudo é aquilo que é" como tipo das verdades idênticas afirmativas, sem atribuir-lhe a posi­ ção de princípio, que atribui apenas ao de contra­ dição e ao de razão suficiente (Théod., I, § 44; Monad., §§ 31-32, 35). Ele afirma: "As verdades primitivas de razão são aquelas a que dou o nome geral de idênticas porque parece que elas não fazem mais que repetir a mesma coisa sem dizer nada de novo. As verdades idênticas podem ser afirmativas ou negativas. As afirma­ tivas são como as seguintes: Cada coisa éaquilo que é, e outros tantos exemplos nos quais A é A, B é B" (Nouv. ess, IV, 2, § 1). Por outro lado, o reconhecimento da certeza das proposi­ ções idênticas era muito antigo: encontrandose já em S. Tomás, que dizia: ''Devem ser notó­ rias por si mesmas as proposições nas quais se afirma a identidade de uma coisa consigo mes­ ma, como em homem é homem ou nas quais o predicado está incluído na definição do sujei­ to como em homem é animal" (Contra Gent, I, 10). Por outro lado, Leibniz também conhecia a fórmula geral das I., como ocorria com Locke, que a enumerava entre as máximas cujo cará­ ter inato se reconhece, graças ao consenso uni­ versal que suscitam: "Aí estão dois dos célebres princípios, aos quais, mais que a qualquer ou­ tro, se atribui a qualidade dos princípios inatos: Tudo aquilo que é é, e: E impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo" (Ensaio, I, 1, 4). Tanto Locke quanto Leibniz parecem referir-se à fórmula da I. como máxima bem conhecida e reconhecida, mas que ainda não foi alçada ao nível de princípio ontológico ou lógico. Ora, essa fórmula começara a circular na Escolástica do séc. XIV, sobretudo entre os par­ tidários de Scot e Ockham, na tentativa de re­ duzir o princípio de contradição (que conti­

IDENTIDADE, PRINCIPIO DE

nuava sendo reconhecido como o primeiro princípio ontológico) à sua expressão mais simples e econômica. Esta tentativa é uma ma­ nifestação característica do uso do princípio de economia (v.), que era considerado guia me­ todológico por Ockham e por muitos escotistas. Antônio Andréa (morto em 1320) diz: "Digo que o princípio 'É impossível que a mes­ ma coisa simultaneamente seja e não seja' não é absolutamente primário, ou seja, primaria­ mente primeiro (...) Se perguntarem qual é ab­ solutamente o primeiro complexo e o primaria­ mente primeiro, direi que é este: 'O ente é ente.' Este princípio de fato tem termos prima­ riamente primeiros e ultimamente últimos, que não são portanto resolúveis em termos prece­ dentes; aliás toda resolução de conceitos diz respeito ao conceito do ente, como o é abso­ lutamente primeiro entre os conceitos essen­ ciais" (In Met., IV, q. 5). Buridan aludia a esta ou a semelhantes tentativas de reduzir o princípio de contradição a uma fórmula mais simples, que seria a da I.: "Alguns, entendendo que tem mais prioridade a simplicidade que a evidência e a certeza, dizem que as proposições categóri­ cas precedem as hipotéticas e que as assertórias precedem as modais, etc; conseqüen­ temente, propõem uma única grande or­ dem de princípios indemonstráveis. O primeiro princípio seria 'O ente é', donde se seguiria que 'o não-ente não é'. Depois viria 'O ente é ente', donde 'o não-ente não é ente', etc." (In Met., IV, q. 13). Do ponto de vista da simplici­ dade e da economia, a fórmula da I. parecia então mais primitiva que a da contradição; assim, os lógicos do séc. XIV começaram a atribuir a essa fórmula a posição tradicional­ mente atribuída apenas ao princípio de con­ tradição. Contudo, como dissemos, foi só com Wolff que se começou a reconhecer explicitamente no enunciado da I. o valor de princípio. Wolff o expôs com a denominação de "Princípio da certeza", que derivava do princípio de contradi­ ção. Em Ontologia (1729), disse: "Como é im­ possível que uma mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo, toda coisa, enquanto é, é; ou seja-, se A é, também é verdadeiro que A é. Se negares que A é, enquanto é, deveras então concordar que A é e não é ao mesmo tempo: o que se opõe ao princípio de contradição e por isso não pode ser admitido, por força desse princípio" (Ont, § 55). Wolff ligava o princípio à noção de necessidade (Ibid, § 288) e não lhe

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IDENTIDADE, PRINCIPIO DE

atribuía o caráter originário que atribuía ao princípio de contradição e ao de razão suficien­ te. Em Baumgarten, o princípio de I. deu mais um passo ao ser posto após o de contradição (que para ele continuava sendo "o absoluta­ mente primeiro"), mas no mesmo nível dele, como "Princípio de oposição ou de I.". Expres­ sou-o da seguinte forma: "Todo possível At A; ou seja, tudo o que é, é; ou então, todo sujeito é predicado de si mesmo" (Met., § 11). Por sua vez Kant, em Nova elucidação dos primeiros princípios do conhecimento metafísico (1755), dizia: "Dois são os princípios absolutamente primeiros de todas as verdades: um das verda­ des afirmativas, a proposição 'O que é, é'; o outro das verdades negativas, a proposição 'aquilo que não é não é'. Ambas essas proposi­ ções denominam-se comumente princípio de I. (Nova dilucidatio, prop. II). Com isto, o princípio de I. ingressava ofi­ cialmente no rol dos princípios fundamentais da lógica (apesar de na origem, com Wolff e Baumgarten, ele ter sido um princípio ontológico). Fichte valia-se dele como de uma pro­ posição absolutamente "certa e indubitável" (Wíssenschaftslehre, 1794, § 1). E como princí­ pio indubitável do pensamento também era visto por Schelling (Werke, I, IV, p. 116). Tudo isto dava a Hegel o direito de dizer que "o prin­ cípio de I., em vez de ser uma verdadeira lei do pensamento, nada mais é que a lei do intelecto abstrato. A forma da proposição a contradiz, senão porque a proposição também promete uma distinção entre sujeito e predicado e essa proposição não cumpre o que sua forma pro­ mete. Mas deve notar, em especial, que ela é negada pelas outras chamadas leis do pensa­ mento, para as quais é lei o contrário dessa lei" (Ene, § 115). Hegel, naturalmente, tinha ra­ zão, mas lutava contra um moinho de vento, pois os filósofos haviam admitido explicita­ mente esse princípio com o objetivo de dar fundamento de necessidade às verdades idênti­ cas. A lógica filosófica do séc. XIX continuou incluindo o princípio da I. entre as leis univer­ sais do pensamento (cf. HAMILTON, Lectureson Logic, I, pp. 79 ss.; DROBISCH, Logik, § 58; LBERWEG, System derLogik:, p. 183; WUNDT, Logik:, I, pp. 504 ss.; B. HERDMANN, Logik, I, pp. 172 ss., etc.) embora não faltasse quem lhe negasse qualquer significado (cf. P. HERMANT e A. VAN DE WAELE, Lesprincipales théories de Ia logique contemporaine, Paris, 1909, pp. 116 ss.). Para Boutroux, no princípio de I. estava expresso o

IDENTIDADE DOS INDISCERNIVEIS

ideal da necessidade racional (Lidêe de loi naturelle, 1895. cap. 2). Meyerson, obedecen­ do a conceito análogo, reduzia a identificação qualquer processo racional, ou seja, qualquer processo que consiga compreender ou explicar um objeto qualquer (Identité et realité, 1908; Lexplication dans les sciences, 1927). Por ou­ tro lado, a lógica matemática logo percebeu a inutilidade desse princípio para a validade de um raciocínio qualquer, e Peirce podia reduzir o significado dele ao dizer que "continuamos a crer naquilo que acreditamos até hoje, na ausência de qualquer razão em contrário" (Coll. Pap., 3, 182). Na lógica contemporânea, esse princípio não existe, pelo menos na forma de "princípio". Por vezes os lógicos fazem-no coincidir com este ou aquele teorema que expresse um dos significados da cópula (v. SER, I). Outras vezes, fora de lógica, consideram-no um postulado semântico, de que todo símbolo deve ter sempre o mesmo termo de referência, toda vez que ocorre no mesmo contexto (DEWEY, Logic, XVII, § 3)- Neste sentido, obvia­ mente, o princípio de I. não é lógico nem ontológico, e a rigor nem princípio é, mas apenas uma regra para o uso dos símbolos. IDENTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS (lat. Identitas indiscernibiliuni; in. Identity of indiscernibles; fr. Identité des índiscernables; ai. Identitãt der Ununterscheidbaren; ít. Identità degli indiscernibili). Princípio metafísi­ co que exclui a existência na natureza de duas coisas absolutamente iguais. Já conheci­ do pelos estóicos (cf. Cícero, Acad., III, 17, 18) e retomado no Renascimento ("Duas coi­ sas no universo não podem ser absolutamente iguais"; NICOLAU DE CUSA, De docta ignor., II, II), foi defendido e ilustrado por Leibniz, que se vangloriou de ter descoberto este princí­ pio e o princípio de razão suficiente, como sendo os dois princípios que "mudam o estado da metafísica, tornando-a real e demonstrati­ va" (IVLett. a Clarke, Op., ed. Erdmann, pp. 755-56). Leibniz expressou-o dizendo simples­ mente: "Não existem indivíduos indiscerníveis", ou "Pôr duas coisas indiscerníveis significa pôr a mesma coisa sob dois nomes" (Ibid., ed. Erdmann, pp. 755-56). E afirma: "Se dois indi­ víduos fossem perfeitamente semelhantes e iguais, enfim indistinguíveis por si mesmos, não haveria princípio de individualização e nem haveria, ouso dizer, distinção entre diferentes indivíduos" (Nouv. ess, II, 27, § 3). Para Leibniz esse é um argumento contra a existência dos áto­

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mos (dos átomos materiais, evidentemente), que seriam idênticos por definição. Aceito e defendido por Wolff (Cosm, §§ 246-48) e por toda a escola wolffíana, bem também — a seu modo — por Hegel (Ene, § 117), esse princípio foi rejeitado por Kant: "Em duas gotas de água é possível abstrair totalmente de qualquer dife­ rença interna (de qualidade e de quantidade), mas basta que elas sejam intuídas simultanea­ mente em lugares diferentes para considerá-las numericamente diferentes. Leibniz confundiu fenômenos com coisas em si mesmas, portanto confundiu com intettigibilia, ou seja, objetos do intelecto puro (conquanto as designasse com o nome de fenômenos porque as considerava re­ presentações confusas) e assim o seu princípio dos indiscerníveis tornava-se inatacável" (Crít. R. Pura, Analítica dos Princípios, Apêndice). Em outros termos, o princípio da I. dos indiscerníveis valeria para objetos do intelecto puro, não para fenômenos, que já são bastante indi­ vidualizados por sua posição no tempo e no espaço. Na filosofia contemporânea há poucos vestígios desse princípio. Alguns lógicos o ad­ mitem, mas interpretam-no a seu modo. Quine, p. ex., o expõe com o nome de "máxima da identificação dos indiscerníveis" desta forma: "Objetos indiscerníveis um do outro dentro dos termos de dado discurso devem ser considera­ dos idênticos para esse discurso" (From a Logícal PointofView, IV, 2). Outros o consideram indemonstrável e admitem que é logicamente pos­ sível que duas coisas tenham em comum todas as suas propriedades (BLACK, Problems of Analysis, 1954, I, 5). IDEOGRÂFICAS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS. IDEOLOGIA (in. Ideology; fr. Idéologie; ai. Ideologie; it. Ideologia). Esse termo foi criado por Destut de Tracy (Idéologie, 1801) para de­ signar "a análise das sensações e das idéias", segundo o modelo de Condillac. AI. constituiu a corrente filosófica que marca a transição do empirísmo íluminista para o espiritualismo tradicionalista e que floresceu na primeira metade do séc. XIX (v. ESPIRITUALISMO). Como alguns ideologistas franceses fossem hostis a Napoleão, este empregou o termo em senti­ do depreciativo, pretendendo com isso identificá-los com "sectários" ou "dogmáticos", pessoas carecedoras de senso político e, em geral, sem contato com a realidade (PICAVET, Les idéologues, Paris, 189D- Aí começa a histó­ ria do significado moderno desse termo, não

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mais empregado para indicar qualquer espécie de análise filosófica, mas uma doutrina mais ou menos destituída de validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros ou ocultos da­ queles que a utilizam. Nesse sentido, em meados do séc. XIX, a noção de I. passou a ser fundamental no mar­ xismo, sendo um dos seus maiores instrumen­ tos na luta contra a chamada cultura "burgue­ sa". Marx de fato (cf. Sagrada família, 1845; Miséria da filosofia, 1847) afirmara que as cren­ ças religiosas, filosóficas, políticas e morais dependiam das relações de produção e de tra­ balho, na forma como estas se constituem em cada fase da história econômica. Essa era a tese que posteriormente foi denominada matérialismo histórico (v.). Hoje, por I. entende-se o conjunto dessas crenças, porquanto só têm a validade de expressar certa fase das relações econômicas e, portanto, de servir à defesa dos interesses que prevalecem em cada fase desta relação. Foi exatamente com esse sentido que a I. foi estudada pela primeira vez em Trattato di sociologia generale (1916) de Vilfredo Pareto, apesar de, nesta obra, não ser usado o termo I. (que fora empregado em Sistemi socialisti, 1902, pp. 525-26). Em Pareto, a noção de I, corresponde à noção de teoria não-científica, entendendo-se por esta última qualquer teoria que não seja lógico-experimental. Se­ gundo Pareto, uma teoria pode ser considera­ da: le em seu aspecto objetivo, em confronto com a experiência; 2° em seu aspecto subjetivo, em sua força de persuasão; 3e em sua utilidade social, para quem a produz ou a acata {Trat­ tato, § 14). As teorias científicas ou lógico-experimentais são avaliáveis objetivamente, mas não nos outros modos, porque seu objetivo não é o de persuadir (Ibid, § 76). Portanto, só as teorias não científicas são avaliáveis com base nos outros dois aspectos. Ciência e I. perten­ cem, assim, a dois campos separados, que nada têm em comum: a primeira ao campo da ob­ servação e do raciocínio; a segunda ao campo do sentimento e da fé (Ibid, § 43). Com justeza foi frisada a importância dessa distinção, que, por um lado, torna impossível considerar ver­ dadeira uma teoria persuasiva (ou útil) ou persuasiva (ou útil) uma teoria verdadeira e, por outro, permite "compreender antes de con­ denar e fazer a distinção entre o estudioso dos fatos sociais e o propagandista ou apóstolo" (BOBBIO, "Vilfredo Pareto e Ia critica delle I.", Riv. diFil, 1957, p. 374). Do ponto de vista da

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IDEOLOGIA

análise da I., a doutrina de Pareto estabeleceu um ponto importante: a função da I. é em pri­ meiro lugar persuadir, dirigir a ação. Esse as­ pecto foi desprezado pelo outro teórico da ideo­ logia, Mannheim. Este distinguiu um conceito particular e um conceito universal de ideo­ logia. Em sentido particular, entende-se por I. "o conjunto de contrafações mais ou menos deliberadas de uma situação real cujo exato co­ nhecimento contraria os interesses de quem sustenta a I.". Em sentido mais geral, entendese por I. a "visão do mundo" de um grupo humano, p. ex., de uma classe social. Segundo Mannheim, a análise de I. no primeiro sentido deve ser feita no plano psicológico; a análise da I. no segundo sentido deve ser feita no pla­ no sociológico (ldeology and Utopia, 1953 [Ia ed. 19291, II, D- Num e noutro caso a I. é a idéia incapaz de inserir-se na situação, dominá-la e adequá-la a si mesma. Mannheim diz: "As I. são idéias situacionalmente transcendentes que nunca conseguem de fato atualizar os projetos nelas implícitos. Apesar de freqüentemente se apresentarem como justas aspirações da con­ duta pessoal do indivíduo, quando levadas à prática, seu significado muitas vezes é defor­ mado. A idéia do amor fraterno cristão, p. ex. numa sociedade fundada na servidão, é irrealizável e por isso ideológica, mesmo quando, para quem o entenda em boa fé, seu significa­ do constitui um fim para a conduta individual." (Ibid, IV, 1). Nisto a I. seria diferente da utopia, que chega a realizar-se. Como foi freqüente­ mente observado (cf. MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, pp. 489 ss.), o cri­ tério assim sugerido por Mannheim para a dis­ tinção (a ser estabelecida somente postfactum) entre I. e utopia, ou seja, a realização, inclui um círculo vicioso, pois o juízo sobre a adequação da realização, a avaliação dessa adequação só poderia ser feito com base numa distinção pré­ via entre I. e utopia. A característica de ambas as doutrinas lem­ bradas é a contraposição entre a I. e as teorias positivas, entre I. e ciência segundo Pareto, e entre I. e utopia (a teoria que se realiza), se­ gundo Mannheim. Conquanto Pareto tenha fei­ to a distinção entre juízo sobre a validade ob­ jetiva de uma teoria de juízo sobre sua força de persuasão e sobre sua utilidade social, a contra­ posição feita entre I. e teoria científica levou-o a constituir duas classes nitidamente distintas de teorias. Hoje está bem claro que, se uma teoria cientificamente verdadeira não tem, por isso

IDEOSCOPIA

mesmo, força persuasiva (fora do campo dos cientistas competentes), também está claro que uma teoria evidentemente falsa do ponto de vista científico não pode ter força de persuasão por muito tempo. Hoje, p. ex., ninguém faria qualquer forma de propaganda com base na inexistência dos antípodas. A força de persua­ são de uma teoria não está presa de modo imutável à própria teoria, mas depende do con­ texto social em que ela atua ou é utilizada. A verdade ou não-verdade científica da teoria certamente é um elemento do contexto, que, assim como os demais elementos, entra na constituição da força de persuasão da teoria. Portanto, deve-se frisar que o significado de uma I. não consiste, como achavam os escrito­ res marxistas, no fato de ela expressar os inte­ resses ou as necessidades de um grupo social, nem na sua verificabilidade empírica, nem em sua validade ou ausência de validade objetiva, mas simplesmente em sua capacidade de con­ trolar e dirigir o comportamento dos homens em determinada situação. O alcance ideológi­ co do princípio citado por Mannheim como exemplo, o amor fraterno, não reside no fato negativo de que esse princípio não se realize numa sociedade fundada na escravidão, mas no fato de, mesmo numa sociedade fundada na escravidão, esse princípio permitir con­ trolar e dirigir a conduta de grande número de pessoas. Em geral, portanto, pode-se denominar I. toda crença usada para o controle dos compor­ tamentos coletivos, entendendo-se o termo crença (v.), em seu significado mais amplo, como noção de compromisso da conduta, que pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de I. é puramente for­ mal, uma vez que pode ser vista como I. tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença irrealizável. O que transforma uma crença em I. não é sua validade ou falta de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação. IDEOSCOPIA (in. Ideoscopy). Foi assim que Peirce denominou "a descrição e a classificação das idéias que pertencem à experiência co­ mum ou surgem naturalmente em conexão com a vida comum, independentemente de sua va­ lidade ou não-validade, ou de sua psicologia" (Coll. Pap, 8.328).

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IGNORABIMUS

IDOLOLOGIA (ai. Eidologie). Doutrina que estuda os ídolos, ou seja, as aparições na cons­ ciência: uma parte da metafísica, juntamente com a metodologia, a ontologia e a sinecologia, segundo Herbart (Allgemeine Metaphysik, 1828, 1, 71). IDOLOS (gr. eiôcoAoc; lat. Idola, Simulacra; in. Idols; fr. Idoles; ai. Idole; it. Idolí). A doutrina dos I. foi exposta na antigüidade por Demócrito; segundo ela, a sensação e o pensamento são produzidas por imagens corpóreas provenientes de fora (J. STOBEO, IV, 233). Essa doutrina foi retomada e adotada pelos epicuristas (Ep. a Herod, 46-50; cf. LUCRÉCIO, Derer. nat., IV, 99, etc). Em sentido diferente, foi retomada por Francis Bacon, para quem os I. não são instru­ mentos de conhecimento, mas obstáculos ao co­ nhecimento; são "falsas noções" ou "antecipa­ ções", ou seja, preconceitos. Para Bacon, são quatro as espécies de ídolos. Duas delas têm raízes na natureza humana e Bacon denomi­ na-as idola tribuse ídola specus. Os I. tribus(â-à tribo) são comuns a todo o gênero humano e consistem, p. ex., em supor que na natureza há uma harmonia muito maior que a existente, em dar importância a determinados conceitos mais que a outros, etc. Os I. specus (da caverna) provêm da educação, dos costumes e dos ca­ sos fortuitos em que cada um venha a encon­ trar-se. Assim, a importância que Aristóteles atribuiu à lógica, após havê-la inventado, é um I. dessa espécie. Os I. provenientes do exterior também são de duas espécies: idolaforie idola theatri. Os I. /òn'(da praça) derivam da lingua­ gem freqüentemente usada ou de nomes de coisas que não existem (como sorte, primeiro móvel, órbitas dos planetas, etc.) ou de nomes de coisas que existem, mas são confusas (como gerar, corromper, grave, leve, etc). Os I. theatri (do teatro) derivam das doutrinas filosóficas ou de demonstrações errôneas e Bacon as deno­ mina assim porque compara os sistemas filosó­ ficos a fábulas que são como mundos fictícios ou cenas de teatro. A este propósito distingue três falsas filosofias: a sofistica, cujo maior exem­ plo é Aristóteles; a empírica, cujo maior exemplo é a alquimia; a supersticiosa, que se mistura à teologia e cujo maior exemplo é Platão (Nov. Org., I, 38-45). Recentemente, essa teoria de Bacon sobre os I. foi considerada antecessora do conceito moderno de ideologia (MANNHEIM, Ideology and Utopia, 1929, II, 2). IGNAVA RATIO. V. RAZÃO PREGUIÇOSA. IGNORABIMUS. V. ENIGMAS.

IGNORÂNCIA

IGNORÂNCIA (lat. Ignorantia; in. Ignorance-, fr. Ignorance; ai. Unwissenheit; it. Ignoranzd).Imperfeição do conhecimento, mais precisamente a deficiência, inseparável do sa­ ber humano e devida às limitações do homem. Kant distinguiu a I. em objetiva e subjetiva. A I. objetiva consiste na deficiência de conhecimen­ tos de fato (I. material) ou na deficiência de conhecimentos racionais (I. formal). AI. swfojetiva é I. douta ou científica (de quem co­ nhece os limites do conhecimento) [V. DOUTA IGNORÂNCIA] OU I. comum, que é a I. do igno­ rante. Kant acrescenta que a I. é inculpávelnas coisas cujo conhecimento ultrapassa o horizon­ te comum, mas é culpávelnas coisas cujo saber é necessário e atingível (Logik, Intr., VI). Esta observação de Kant ainda hoje é válida. IGNORATIO ELENCHI (gr. è>iéY%o') ccyvota). Uma das falácias extra dictionem enume­ radas por Aristóteles (El. sof, 6, 168 a 18), mais precisamente a que consiste na ignorância da­ quilo que se deve provar contra o adversário (cf. também PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 54; e ARNAULD, Log., III, 19, D (V. FALÁCIA). IGUALDADE (gr. ioóxriç; lat. Aequalitas; in. Equality; fr. Egalité; ai. Gleichheit; it. Eguaglianza). Relação entre dois termos, em que um pode substituir o outro. Geralmente, dois termos são considerados iguais quando podem ser substituídos um pelo outro no mesmo con­ texto, sem que mude o valor do contexto. Esse significado foi estabelecido por Leibniz (Op., ed. Gerhardt, VII, p. 228), mas Aristóteles limi­ tava o significado dessa palavra ao âmbito da categoria.de quantidade, e que dizia eram iguais as coisas "que têm em comum a quantidade" (Met., IV, 15, 1021 a 11). A noção de I. assim generalizada (como possibilidade de substituição) presta-se tanto para as relações puramente formais de equiva­ lência ou de equipolência quanto às relações políticas, morais e jurídicas que se denominam de igualdade. P. ex., a I. dos cidadãos perante a lei pode ser reduzida à possibilidade de substituição dos cidadãos nas situações previs­ tas pela lei sem que mude o procedimento da lei, de tal forma que, p. ex., o réu por um crime d nas circunstâncias c pode ser substituído por qualquer outro réu do mesmo crime na mesma circunstância, sem que o procedi­ mento legal seja alterado. Do mesmo modo, pode-se descrever a I. moral ou jurídica di­ zendo que, nela, x, que se encontre em de­ terminadas condições, possui prerrogativas

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ILU M IN ISM O 2

ou possibilidades não diferentes das possuí­ das por qualquer outro x nas mesmas condi­ ções. Esta claro que o juízo de I. só pode ser pronunciado com base em determinado con­ texto, com base na determinação das condi­ ções às quais os termos devem satisfazer para serem considerados substituíveis (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3 42-44). ILAÇÃO (lat. Illatio; in. Illatíon; fr. Illation; it. Illazíone). Em Apuleio e Boécio, esse termo traduz o estóico èTtupopá; indica a proposição na qual se conclui um silogismo. Esse termo desaparece na lógica medieval, sendo substi­ tuído por conclusio, para reaparecer na idade moderna indicando a complexa operação mental-discursiva graças à qual se chega a estabe­ lecer determinada proposição, ou essa mesma proposição. G. P. ILIACE. V. PURPUREA. ILIMITADO (in. Boundless; fr. Illimité; ai. Unbegrenzi; it. Illimitatd). A distinção entre infinito e ilimitado foi feita por Aristóteles, que denominava o ilimitado de "infinito por seme­ lhança". Enquanto no infinito é sempre possí­ vel tomar uma nova parte, mas essa parte é sempre nova, no I. a parte que se pode tomar nem sempre é nova. Um anel sem engaste é um exemplo de I.: é possível ir sempre além, ao longo de sua circunferência, mas estar-se-á passando sempre pelos mesmos pontos (Eis, III, 6, 207 a 2). Essa distinção, que ficou es­ quecida durante séculos, foi retomada por Einstein quando este afirmou que o mundo é finito e ao mesmo tempo I., exatamente no sentido aristotélico (Uber die spezielle und die allgemeíne Relativitãtstheorie, 1921, § 31; cf. EDDINGTON, The Nature ofthe Physical World, 1928, pp. 80-81) ILOCUÇÃO. V. PERFORMATIVO.

ILUMINISMO1 (in. Illuminism; fr. Illuminisme; ai. Illuminatísm; it. Illuminatismo). Pre­ tensão de ter visão pessoal e direta de Deus ou das realidades transcendentes. Esse termo foi definido por Kant como "uma espécie de de­ mocracia baseada em inspirações pessoais que podem diferir, de acordo com a cabeça de cada um" (Religion, III, V; B 143). ILUMINISMO2 (in. Enlightenment; fr. Phi­ losophie deslumières; ai. Aufklãrung; it. Illuminismo). Linha filosófica caracterizada pelo em­ penho em estender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência humana. Nesse sentido, Kant escreveu: "O I. é a saída dos homens do estado de minoridade devido a

ILUM INISM O 2

eles mesmos. Minoridade é a incapacidade de utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro. Essa minoridade será devida a eles mes­ mos se não for causada por deficiência intelec­ tual, mas por falta de decisão e coragem para utilizar o intelecto como guia. 'Sapere aude! Tem coragem de usar teu intelecto!' é o lema do I." (Was ist Aufklàrungí, em Op., ed. Cassirer, IV, p. 169)- O I. compreende três aspec­ tos diferentes e conexos: 1B extensão da crítica a toda e qualquer crença e conhecimento, sem exceção; 2e realização de um conhecimento que, por estar aberto à crítica, inclua e organize os instrumentos para sua própria correção; 3e uso efetivo, em todos os campos, do conheci­ mento assim atingido, com o fim de melhorar a vida privada e social dos homens. Esses três aspectos, ou melhor, compromissos funda­ mentais, constituem um dos modos recorrentes de entender e praticar a filosofia, cuja expres­ são já se encontra no período clássico da Gré­ cia antiga (v. FILOSOFIA). O discurso de Péricles em Tucídides (II, 35-46) é a melhor e mais autêntica descrição do I. antigo. Por I. moderno entende-se comumente o período que vai dos últimos decênios do séc. XVII aos últimos de­ cênios do séc. XVIII: esse período muitas vezes é designado simplesmente I. ou século das luzes. ls O I., por um lado, adota a/écartesiana na razão e, por outro lado, acha que é bem mais limitado o poder da razão. A lição da modéstia que o empirismo inglês, sobretudo em Locke, dera às pretensões cognoscitivas do homem não é esquecida: o empirismo, aliás, passa a fa­ zer pa/te integrante do I. A expressão típica desta limitação dos poderes da razão é a dou­ trina da coisa em si (v.), lugar-comum do I. e como tal compartilhado por Kant. Essa doutri­ na significa que os poderes cognoscitivos humanos, tanto sensíveis quanto racionais, vão até onde vai o fenômeno, mas não além. Assim, o I. é caracterizado, em primeiro lugar, pela extensão da crítica racional aos poderes cognoscitivos, portanto pelo reconhecimento dos limites entre a validade efetiva desses po­ deres e suas pretensões fictícias. O criticismo kantiano, que, como Kant afirma, pretende le­ var a razão ao tribunal da razão (Crít. R. Pura, Pref. à l1 edição), nada mais é que a realiza­ ção sistemática de uma tarefa que todo o I. assumiu. Ao lado desta limitação dos poderes cognoscitivos, primeira característica do I. por ser o primeiro efeito do compromisso de estender

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ILUMINISMO 2

a crítica racional a qualquer campo, há outro aspecto fundamental desse mesmo compro­ misso: não existem campos privilegiados, dos quais a crítica racional deva ser excluída. Sob este segundo aspecto, o I., mais que extensão, é correção fundamental do cartesianismo. De fato, para Descartes a crítica racional não tinha direitos fora do campo da ciência e da metafísi­ ca. Os campos da política e da religião deve­ riam continuar sendo tabus, e no próprio cam­ po da moral Descartes acha que a razão não tenha a sugerir outra coisa a não ser a reverên­ cia às normas tradicionais. O I. não aceita estas renúncias cartesianas; seu primeiro ato, aliás, foi estender a indagação racional ao domínio da religião e da política. O deísmoiy.) inglês é de fato a primeira manifestação do I.; consiste na tentativa de determinar a validade da reli­ gião "nos limites da razão" (como dirá Kant), mas de uma razão cujas possibilidades jã foram delimitadas previamente pela experiência. Por outro lado, os Tratados sobre o governo de Locke iniciam a crítica política iluminista, depois retomada e levada a termo por Montesquieu. Turgot, Voltaire e pelos escritores da Revolu­ ção. No domínio moral, a Teoria dos sentimen­ tos morais (1759) de Adam Smith, as obras dos moralistas franceses (La Rochefoucauld, La Bruyère, Vauvenargues), que punham em evi­ dência a importância do sentimento e das pai­ xões na conduta do homem, bem como as doutrinas morais de Hume, marcam a abertura deste campo de indagação à crítica racional e à busca de novos fundamentos para a vida moral do homem. Ao mesmo tempo, a obra de BECCARIA, Dei diritti e delle pene (1764), abria à indagação racional o domínio do direito penal. Obviamente, os resultados obtidos em todos esses campos são diferentes e sua importância varia. Mas o significado do I. não consiste na soma de seus resultados, mas no fato de ha­ ver aberto à crítica domínios até então fe­ chados e por haver iniciado em tais domínios um trabalho eficaz que desde então não foi interrompido. A atitude crítica própria do I. está bem expressa em sua resoluta hostilidade à tradi­ ção. Na tradição, o I. vê uma força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação destruir. Aquilo que impropriamen­ te tem-se denominado anti-hístoricismo iluminista na realidade é antitradicionalismo: a recu­ sa em aceitar a autoridade de tradição e de re­ conhecer nela qualquer valor independente da

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razão. O Dicionário histórico e critico (1697) de Bayle, concebido como coletânea e refuta­ ção dos erros da tradição, é o maior documen­ to da atitude constante dos iluministas de todos os países. Tradição e erro para eles coincidiam. E embora hoje essa tese possa parecer extre­ mista e tão dogmática quanto a tese que iden­ tifica tradição e verdade, não se deve esquecer que só ela, graças a um esforço hercúleo, pos­ sibilitou a libertação dos fortes entraves que a tradição impunha à livre pesquisa, permitindo chegar aos novos conceitos (de que ainda hoje dispomos) de história e de historiografia. Esta última vinha constituindo, nesse período, os cânones que lhe garantiam, na medida do pos­ sível, a Independência em relação a crenças e preconceitos no reconhecimento e na avalia­ ção dos fatos. Por outro lado, a história vinhase configurando como o progresso possível (v. adiante). 2e Já se disse que o empirismo fez parte do í. De fato, só a atitude empirista garante a aber­ tura do domínio da ciência e, em geral, do conhecimento, à crítica da razão, pois consiste em admitir que toda verdade pode e deve ser colocada à prova, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada (v. EMPIRISMO). ISSO explica por que o I. sempre esteve estritamente unido à atitude empirista. O empirismo é o ponto de partida e o pressuposto de muitos deístas; é a filosofia defendida por Voltaire, Diderot, D'Alembert e que, através da obra de Wolff, domina os rumos do I. alemão até Kant. Em estreita ligação com essa atitude está a im­ portância que o I. atribui à ciência. Com o I., a ciência, esta filha mais nova da cultura ociden­ tal, candidata-se ao primeiro lugar na hierar­ quia das atividades humanas. A física, cuja pri­ meira sistematização se encontra na obra de NEWTON {Princípios matemáticos de filosofia natural, 1687), é acatada pelos iluministas como a ciência mãe ou como a "verdadeira" filosofia. As pesquisas de Boyle encaminham a química para a guinada decisiva, que levou à sua orga­ nização como ciência positiva; a obra de Buffon e de outros naturalistas assinala, também para as ciências biológicas, etapas fundamentais de desenvolvimento. Mas, também aí, o mais impor­ tante não são os resultados obtidos, mas sim a direção do caminho tomado. Tudo o que esses resultados têm de dogmático, incompleto, pro­ visório, pode ser corrigido pelo próprio com­ promisso fundamental do I., de não bloquear a obra da razão em nenhum campo e em ne­ nhum nível.

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3a O I. não é somente uso crítico da razão; é também o compromisso de utilizar a razão e os resultados que ela pode obter nos vários campos de pesquisa para melhorar a vida indivi­ dual e social do homem. Esse compromisso não é compartilhado igualmente por todos os iluministas. Alguns deles, que contribuíram de forma eminente para o desenvolvimento da crítica racional do mundo humano, não o acei­ tam. Isso ocorre, p. ex., com Hume, que decla­ ra filosofar para seu próprio deleite. Mas, por outro lado, ele constitui a substância da perso­ nalidade de muitos pensadores iluministas e também de empreendimentos como a Enci­ clopédia, que tomaram para si a tarefa da luta con­ tra o preconceito e a ignorância. Essa luta, assim como a luta contra os privilégios empreendida pela Revolução Francesa com base nos com­ promissos e nas concepções iluministas, tem como objetivo declarado a felicidade ou o bemestar do gênero humano. Nesse aspecto, o I. é responsável por duas concepções de fundamental importância para a cultura moderna e con­ temporânea: a concepção de tolerância e a de progresso. O princípio da tolerância religiosa, que não só exige a convivência pacífica das várias confissões religiosas, mas também im­ pede que a religião se torne um instrumento de governo, encontra no I. a primeira defesa no sentido de defini-lo como elemento da cultura ocidental, não suscetível de negação no âmbito dessa mesma cultura (v. TOLERÂNCIA). Por ou­ tro lado, o compromisso de transformação, pró­ prio do I., leva à concepção da história como progresso, ou seja, como possibilidade de melhoria do ponto de vista do saber e dos modos de vida do homem. Voltaire, Condorcet e Turgot são os que mais contribuem para formular a noção de um devir histórico aberto à obra do homem, suscetível de receber as marcas que o homem lhe quer imprimir. Essa noção serviu para apagar o sentimento de fatalidade históri­ ca que impedia qualquer iniciativa de transfor­ mação. Mais tarde, o Romantismo dirá que a história é a própria Razão Absoluta, que nela, em cada um de seus momentos, tudo aquilo que deve ser é e o progresso é fatal ou inevi­ tável; e verá no I., que contrapôs a história à tradição e negou esta última, uma concepção "abstrata" ou "anti-histórica". Mas na realidade o que o Romantismo visava era apenas declarar inútil ou impossível o compromisso de trans­ formação: confiando na força da Razão Históri­ ca, pretendia imprimir o selo da eternidade nas

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instituições em que a via encarnada. Isso con­ modernos. Os estóicos distinguiam os dois sig­ firma que, se e quando a filosofia quiser as­ nificados empregando duas palavras diferen­ sumir a tarefa (que Platão já lhe atribuía) de tes: denominavam imaginação ((pávtao(Xa) a I. transformar o mundo humano, a atitude ilu- que o pensamento forma por sua conta, como minista e seus pressupostos fundamentais são acontece nos sonhos, e I. (cpavtaoía) a marca que a coisa deixa na alma, marca que é uma as primeiras condições dessa tarefa. ILUSÃO (in. Illusion, fr. Illusion, ai. lllusion; mudança da própria alma. A I. propriamente it. Illusíone). Aparência errônea, que não cessa dita é "aquilo que é impresso, formado e distin­ mesmo quando reconhecida como tal; p. exv to do objeto existente, que se conforma à sua ver como quebrado o bastão imerso na água. É existência e por isso é o que não seria se o doutrina antiga, que remonta aos epicuristas objeto não existisse" (DIÓG. L, VII, 50). Desse (DIÓG. L, X, 51) e se repete com freqüência em ponto de vista, as I. podem ser sensíveis e não tempos recentes, que as I. não pertencem aos sensíveis (como as das coisas incorpóreas); ra­ sentidos, mas ao juízo feito sobre o dado sen­ cionais ou irracionais (como as dos animais) e sível. Contudo, essas considerações hoje têm artificiais ou não artificiais (DIÓG. L, VII, 51). menos importância, pois nem a filosofia nem a Conceito igualmente geral da I. era o dos psicologia acham útil fazer uma distinção nítida epicuristas, que admitiam a verdade de todas entre dados sensíveis e funções intelectuais. Kant as I. porquanto produzidas pelas coisas: pois o definiu a I. como "o jogo que persiste mesmo que não existe não pode produzir nada (DIÓG. quando se sabe que o objeto pressuposto não L, X32). é real" (Antr., § 13). E nesse sentido, considerou Esses conceitos passaram para a Idade Mé­ a atividade dialéticada razão como I. "Em nos­ dia e foram utilizados com fins teológicos, para sa razão (considerada subjetivamente como facul­ esclarecer a relação entre a natureza divina e a dade cognoscitiva humana) existem normas e humana (cf., p. ex., S. Thomás, S. Th, I. q. 95). princípios de uso que têm todo o aspecto de prin­ Na filosofia moderna, foram retomados por cípios objetivos: por isso acontece que a neces­ Bacon (De augm. scient., II, 1, § 5) e Hobbes; sidade subjetiva de que haja certa conexão dos para este, a I. "é ato de sentir e só difere da nossos conceitos, em virtude do intelecto, seja sensação assim como o fazer difere do fato" considerada necessidade objetiva de determi­ (Decorp, 25, § 3). Mas, em filosofia, o termo I., nar as coisas em si mesmas. I. que nào pode ser em seu significado geral, começou a perder evitada, assim como não é possível evitar que terreno para idéia (v.), em Descartes, e repre­ o meio do mar pareça mais alto que na praia sentaçãoA7), em Wolff. A preferência por esses porque nós o vemos lá através de raios que são dois termos persiste na filosofia contemporânea, mais elevados que os daqui; assim como o as­ que só lança mão do termo I., em seu 2Q signi­ trônomo não pode impedir que a lua lhe pare­ ficado, quando quer acentuar o caráter ou a ça maior ao surgir, mesmo que nào se deixe origem sensível das idéias ou representações enganar por esta aparência" (Crít. R. Pura, de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Dialética, Intr., I). As qualificações "natural" e Bergson: "Vamos fazer de conta, por um instante, "inevitável" que Kant atribui à 1. transcendental, que nada sabemos das teorias sobre a matéria mas que são atribuíveis a qualquer ilusão, só e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as fazem expressar o caráter fundamental da I.: ao (discussões acerca da realidade ou da idealidade contrário do erro, nào deixa de existir mesmo do mundo externo. Estaremos então em presença ao ser identificada como I. da I. no sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, I. percebidas quando abro IMAGEM (gr. (pávxaoyia., (pavxaaíos; lat. meus sentidos, nào percebidas quando os fecho" Imago; in. Image; fr. Image; ai. Einbildung; it. (Matière et mémoire, cap. 1). Immagine). Semelhança ou sinal das coisas, que pode conservar-se independentemente das IMAGINAÇÃO (gr. (pavraaíoc; lat. lmagicoisas. Aristóteles dizia que as I. são como as . natio, Phantasia; in. Imagination; fr. Imaginacoisas sensíveis, só que não têm matéria (De tion-, ai. Einbildungskraft; it. Immaginazione). an, III, 8 , 432 a 9). Neste sentido a I. é: P Em geral, a possibilidade de evocar ou produ­ produto da imaginação (v.); 2° sensação ou zir imagens, independentemente da presença percepção, vista por quem a recebe. Neste se­ do objeto a que se referem. Aristóteles definiu gundo significado, esse termo é usado cons­ a I. nesses termos, sendo o primeiro a analisátantemente tanto pelos antigos quanto pelos la, em De anima (III, 3). Aristóteles distinguiu a

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I. em primeiro lugar da sensação, em segundo lugar da opinião. I. não é sensação porque uma imagem pode existir mesmo quando não há sensação; p. ex., no sono. I. não é opinião por­ que a opinião exige que se acredite naquilo que se opina, enquanto isso não acontece com a I., que, portanto, também pode pertencer aos animais. O caráter que aproxima a I. da opinião é que ela, assim como a opinião, também pode ser falaz. Aristóteles considerou a imaginação como uma mudança (kinesis) gerada pela sen­ sação, semelhante a esta, embora não ligada a ela. (De an., III, 428 b 26). Nesse sentido, a I. é condição da apetição, que tende para alguma coisa que não está presente e da qual não se tem sensação atual (Ibid, 433 b 29). Esse con­ ceito de I. permaneceu inalterado por muito tempo. Como Aristóteles já observara, a I. con­ fere à alma possibilidades várias, ativas ou pas­ sivas, que são enfatizadas por muitos filósofos. S. Agostinho diz: "As imagens são originadas por coisas corpóreas e por meio das sensações: estas, uma vez recebidas, podem ser facilmente lembradas, distinguidas, multiplicadas, reduzi­ das, ampliadas, organizadas, invertidas, recom­ postas do modo que mais agrade ao pensamento" (De vera rei, 10, § 18). Todas essas são possi­ bilidades próprias da imaginação. E S. Tomás, que pouca ou nenhuma importância atribui à I., que, assim como a sensibilidade, se limita a cap­ tar a semelhança e não a essência das coisas (S. Th, I, q. 57, a. I), atribui entretanto múltiplas funções ao seu produto, que é a imagem (Ibid., q. 93, a. 9). A definição de I. não muda muito nas fases Aposteriores da história desse termo, mas as funções a ela atribuídas tendem a ser cada vez mais numerosas e complexas. Francis Bacon, em De augmentis scientiarum (1623), o elaborar o plano de uma nova enciclopédia das ciências, colocava a I. ao lado da memória e da razão, como uma das faculdades funda­ mentais, a que serve de base para a poesia. Ainda mais radicalmente, Descartes, em Regulae aá directionen ingenii, reconhecia na I. a con­ dição de atividades espirituais diversas: "Essa mesma força, se aplicada com a I. ao senso comum, denomina-se ver, tocar, etc; se aplica­ da à I. apenas, coberta de figuras diversas, denomina-se lembrança; se aplicada à I. para criar novas figuras, denomina-se I. ou repre­ sentação; se por fim age sozinha, chama-se compreender" (Regulae, XII). Hobbes também via na I. uma condição fundamental das ativi­ dades mentais. Ele a vinculava estreitamente à

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sensação: "Na realidade, a I. nada mais é que uma sensação enfraquecida ou langorosa por estar distante do seu objeto" (De corp, 25, % 7). E via na I. a inércia do espírito. Assim como um corpo em movimento se moverá eternamen­ te se não surgir obstáculo, nós conservamos a imagem, ainda que mais confusa, de um obje­ to que não está mais presente ou diante do qual fechamos os olhos. É isso que os lati­ nos chamavam de I. e os gregos, de fantasia. Trata-se de uma sensação atenuada, comum aos homens e a outras criaturas, no sono e na vigília" (Leviath, I, 2). Hobbes relaciona com a I. a memória, a experiência e, por intermé­ dio destas, também o intelecto e o juízo (Ibid., I, 12). Essa função da I. na organização geral das faculdades humanas torna-se dado comum da filosofia dos sécs. XVII e XVIII. Spinoza, que é propenso a atribuir à I. todos os erros da mente humana, diz que a mente não erra porque ima­ gina, mas apenas porque acredita na presença das coisas imaginadas, que, por definição, não estão presentes. (Et., II, 17, Scol.). Hume, que concorda com Hobbes quanto à função funda­ mental da I., acredita que.o que distingue a I. propriamente dita da memória e que portanto está na base da crença, que acompanha a pró­ pria memória assim como acompanha a sensi­ bilidade, é unicamente o fato de as idéias da memória serem mais fortes e vivas que as da I. (Treatise, I, III, § 5). Obviamente, a função ge­ ral atribuída à I. em relação às outras ativida­ des do espírito implica que se diferenciem essas funções da outra específica, que leva o nome de I.; e isso leva à distinção de vários ti­ pos de I., que foram enumerados no séc. XVIII. Wolff distinguia a I. ("faculdade de produzir as percepções das coisas sensíveis ausentes" [Psychol. empírica, § 92]) da facultasfingendi, que consiste "em, através da divisão e da com­ posição das imagens, produzir a imagem de uma coisa nunca percebida pelos sentidos" (Ibid, § 138). Análoga a esta foi a distinção estabelecida por Kant, que vê na I. "a faculda­ de das intuições, mesmo sem a presença do objeto", dividindo-a em produtiva, que é "o poder de representação originária do objeto (exhibitio originaria) e precede a experiên­ cia", e reprodutiva (exhibitio derivativa), que "traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior". Só as intuições puras de espaço e de tempo são produtos da I. produtiva. A I. re­ produtiva, mesmo quando é denominada poéti­

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ca, nunca é criadora, porque não pode criar uma representação sensível que não tenha sido nunca antes dada à sensibilidade, mas dela sempre extrai seu material (Antr., I, § 28). O conceito de I. produtiva — que para Kant é puramente formal, pois só produz as condi­ ções da intuição (espaço-tempo) — fora utili­ zado mais amplamente na primeira edição de Crítica da Razão Pura, onde se falava de uma "síntese da produção na I.", considerada como a condição da síntese conceituai da apercepção. A partir de Fichte, o idealismo romântico atri­ bui à I. um alcance bem maior cjue o atribuído por Kant, que a confinara aos limites das con­ dições formais. Para Fichte, a I. é a ação recí­ proca e a luta entre o aspecto finito e o aspecto infinito do Eu, ou seja, o aspecto graças ao qual o Eu impõe um limite à sua atividade produtiva e o aspecto graças ao qual o supera e o distancia. A oscilação desse limite (que é a representa­ ção) do produto faz da I. algo de flutuante entre realidade e irrealidade. Fichte diz: "A I. produz a realidade, mas nela não há realidade; só depois de concebida e compreendida no intelecto, seu produto se torna algo de real" (Wissenschaftslehre, 1794, II. Dedução da re­ presentação, III). Essa função criadora da I. tor­ nou-se lugar-comum do Romantismo. Sobre ela, Hegel implantou a distinção entre I. e fan­ tasia. Ambas são determinações da inteligência, mas a inteligência como I. é simplesmente reprodutiva, ao passo que como fantasia é cria­ dora, é "I. simbolizante, alegorizante ou poetante" (Ene, §§ 455-57). Sobre o poder criador da fantasia, Hegel fundou seu conceito de gê­ nio (Vorlesungen überdieAsthetik, ed. Glockner, I, pp. 378 ss.). Tais observações constituíram o ponto de partida para a distinção entre fantasia e I., utilizada sobretudo pela estética românti­ ca e por suas ramificações, até Croce (v. FANTA­ SIA). Afora essa estética, hoje nem a filosofia nem a psicologia estabelecem mais, entre I. e fantasia ou entre I. reprodutiva e I. produtiva, a mesma diferença radical (de qualidade mais que de grau) cjue a estética romântica supunha. A fenomenologia, em particular, atribuiu uma função especial à I., pois a ela é confiada a re­ presentação das vivências como puros objetos de contemplação, o que constitui a própria pos­ sibilidade da fenomenologia. Por isso, Husserl diz- "Na fenomenologia, como em todas as ciên­ cias eidéticas, as representações, mais precisa­ mente as fantasias livres, têm posição privilegiada em relação às percepções" (Ideen, I, § 70). Isso

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acontece porque, ao representar-se como "li­ vres fantasias", as experiências humanas reve­ lam sua verdadeira natureza, porquanto se tornam puros objetos de contemplação de­ sinteressada. Deste ponto de vista Husserl afir­ ma paradoxalmente que "aficçãoé o elemento vital da fenomenologia" (Ibid., § 70). Mas, sem levar em conta essa função vital que a I. reprodutiva desempenha na fenomenologia, as tarefas que ela parece cumprir nas análises fi­ losóficas e psicológicas contemporâneas não são diferentes das que ela parecia cumprir nas análises dos filósofos do séc. XVIII. Por vezes se põe em relevo a função que a I. desempe­ nha nas ciências, especialmente na matemática (cf. p. ex., PEIRCE, CollPap, 4232), mas nem por isso se lhe atribui o poder criativo mágico que a estética romântica via nela. IMAGINAÇÃO TRANSCENDENTAL. V. IMA­ GINAÇÃO. IM A N E N C IA (in. Immanence; fr. Immanence; ai. Immanenz; it. Immanenza). Esse termo pode significar: 3a presença da finalidade da ação na ação ou do resultado de uma operação qualquer na operação; 2Q limitação do uso de certos princípios à experiência possível e recu­ sa em admitir conhecimentos autênticos que superem os limites de semelhante experiência; 3e resolução da realidade na consciência. le Era com o primeiro significado que os escolásticos falavam de ação imanente, que "permanece no agente", como entender, sen­ tir, querer, porquanto distinta da ação transitiva (transiens), que passa para uma matéria exter­ na, como serrar, esquentar, etc. (cf. por todos S. TOMÁS, 5. Th., I, q. 14, a. 2; q. 18, a. 3; q. 23, a. 2; q. 27, a. I etc). Essa distinção só fazia expressar a distinção feita por Aristóteles entre movimento (Klvrjcnç) e atividade (èvépTEm) no IX livro da Metafísica (6, 1048 b 18), consi­ derando como movimento a ação que tem fim fora de si, e atividade as ações que têm fim em si mesmas. Aristóteles empregara a esse pro­ pósito o verbo èvrjjtápAeiv, que significa inerir como parte essencial ou constitutiva. Spinoza empregou o adjetivo no mesmo sentido, afir­ mando que "Deus é causa imanente, não tran­ sitiva, de todas as coisas" querendo com isso dizer que "Deus é causa das coisas que estão nele", e que nada há fora de Deus (Et., I, 18). A distinção aristotélica foi retomada pelos wolffianos (cf. BAUMGARTEN, Met., § 211). É evidente que, neste sentido, I. significa permanência do fim, do resultado ou do efeito de uma ação no seu agente.

IMANÊNCIA, FILOSOFIA DA

2a O segundo significado desse termo cor­ responde ao emprego que Kant faz do adjeti­ vo, chamando de imanentes "os princípios cuja aplicação se tem em tudo e por tudo dentro dos limites da experiência possível", contrapon­ do-se, portanto, aos princípios "transcenden­ tes", que ultrapassam esses limites (Crít. R. Pura, Dialética, Intr., I; Prol, § 40). Nesse sentido, I. significa limitação do emprego de certos prin­ cípios ao domínio da experiência possível, e renúncia a estendê-los além dele. 3Q O terceiro significado de I. foi estabeleci­ do pelo idealismo pós-kantiano. Fichte diz: "No sistema crítico, a coisa é aquilo que está posto no Eu; no dogmático, aquilo em que o Eu é posto; assim, o criticismo é imanente porque põe tudo no Eu; o dogmatismo é transcendente porque vai além do Eu" (Wissenschaftslehre, 1794, I, § 3, D; trad. it., p. 77). Essa terminolo­ gia, que é seguida por Schelling, atribui ao adjetivo "imanente" a característica do idealis­ mo absoluto, para o qual nada existe fora do Eu. Contudo, é evidente a analogia desse signi­ ficado com o de Spinoza, para quem a ação de Deus é imanente porque não vai além de Deus. Nesse sentido, ai. é a inclusão de toda a rea­ lidade no Eu (ou Absoluto ou Consciência) e a negação de qualquer realidade fora do Eu. No mesmo sentido, Gioberti falava de "pensamen­ to imanente" (Protologia, I, p. 173) e insistia na imanência o idealismo italiano entre as duas guerras. Comum a esses três significados do termo é o conceito de imanente como tudo que, fazen­ do parte da-substância de uma coisa, não sub­ siste fora dessa coisa. IMANÊNCIA, FILOSOFIA DA (In. Immanence Philosophy, fr. Philosophie de limmanence; ai. Immanenzphilosophie; it. Filosofia delia immanenza). Com esta expressão Gui­ lherme Shuppe (1836-1913) designou o ponto de vista fundamental de sua filosofia, segundo o qual " o mundo está na consciência", porém não na consciência individual, mas na "cons­ ciência em geral", que é o conteúdo comum das consciências individuais (Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1894, 2- ed., 1910, § 31). IMANÊNCIA, MÉTODO DA (in. Method of Immanence; fr. Méthode d'immanence; ai. Immanenzmethode; it. Método delia immanenza). Assim foi denominado por Blondel, Laberthonnière e outros o método de apologétíca religi­ osa, que tende a mostrar que o divino é, de

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alguma maneira, imanente no homem, pelo menos sob forma de necessidade, aspiração ou exigência (BLONDEL, Lettre sur les exigences de Ia pensée contemporaine en matière d'Apologétique, 1896; LABERTHONNIÈRE, Essais dephilosophie religeuse, 1903). Le Roy deu a esse mé­ todo uma expressão ainda mais generalizada, denominando-o "princípio de I." e expressan­ do-o da seguinte forma: "tudo é interno a tudo, e no mínimo detalhe da natureza ou da ciência a análise encontra toda a natureza e toda a ciência" (Dogme et critique, 1907, p. 9) (v. AÇÃO, FILOSOFIA DA). IMANENTISMO (in. Immanentism; fr. Immanentisme, ai. Immanentismus; it. Immanentismo). 1. Indica-se com esse termo a doutrina que admite a imanência no 3S significado, ne­ gando qualquer realidade ou ser fora da cons­ ciência ou da autoconsciência. Neste sentido são doutrinas imanentistas o idealismo românti­ co, o idealismo gnosiológico e todas as formas do consciencialismo. 2. Esse termo também é usado para indicar a doutrina da imanência no Ia significado, em que eqüivale a panteísmo (v.). 3. Algumas vezes, especialmente em fran­ cês, esse termo é empregado para designar o método da imanência (v.). TMATF.RIATISMO (in. Immaterialisni; fr. Immatérialisme, ai. Immaterialismus; it. Immaterialismo). Termo criado por Berkeley para indicar a doutrina da negação de existência da realidade corpórea e da redução desta a idéias impressas nos espíritos finitos diretamente por Deus {Dialogues hetweenHylasandPhüonous, III; Works, ed. Jessop, II, pp. 259 ss.). Essa dou­ trina foi denominada e denomina-se mais comumente idealismo (no ls sentido). O argu­ mento fundamental adotado por Berkeley em favor do I. é que as coisas e suas propriedades não são mais que idéias que, para existirem, precisam ser percebidas {esse estpercipí), por­ tanto pensar coisas que não sejam percebidas eqüivale a defini-las como "não pensadas" mesmo enquanto são pensadas. A diferença entre as idéias reais, que são as coisas, e as idéias simplesmente imaginadas, que são comumente chamadas de idéias, consiste, segun­ do Berkeley, no fato de que as primeiras são produzidas no nosso espírito por Deus e as outras são produzidas por nós mesmos. Portan­ to, a mais simples percepção de uma coisa na realidade é a percepção de uma ação de Deus sobre nós e implica a existência de Deus, ao

IMEDIATO

passo que, a admitir-se a matéria, deve-se atri­ buir a ela a causalidade das próprias idéias e pode-se dispensar Deus. O materialismo é por isso o fundamento do ateísmo e da irreligião, assim como o I. é o fundamento da religião (Principies ofHuman Knowledge, I, 92 ss.). IMEDIATO (gr. auEOOÇ; in. Immediate; fr. Immédíat; ai. Unmittelbar, it. Immediató). Qua­ lifica-se geralmente com este termo todo obje­ to que pode ser reconhecido ou proposto sem a ajuda de qualquer outro objeto: p. ex., uma idéia que pode ser percebida sem ajuda de outra idéia, um fato que pode ser constatado sem ajuda de outros fatos, uma proposição que pode ser considerada verdadeira sem recorrer a outras proposições, etc. Assim, Aristóteles chamava de I. a premissa "à qual nenhuma outra é anterior" (An. post., I, 2, 72 a 7), ou seja, a premissa cuja verdade é obtida sem re­ correr à verdade de outras premissas. Em senti­ do análogo, Descartes afirmava entender por pensamento "tudo aquilo que está de tal forma em nós que nós o percebemos imediatamen­ te em nós mesmos" (IIRép., def. 1), onde ime­ diatamente lhe servia "para excluir as coisas que se seguem e provêm do nosso pensamento". Ainda analogamente Locke entendia por co­ nhecimento intuitivo a percepção da concor­ dância e da discordância entre as idéias por si mesmas e imediatamente, ou seja, sem ajuda de idéias intermediárias (Ensaio, IV, 2, 1). Faz parte do conceito de imediação, assim entendido, a pretensão de que o I. não precisa de outra coisa para exigir o reconhecimento de sua'validade. Assim, para Descartes a ime­ diação do pensamento constitui a própria vali­ dade da proposição Eu sou, e para Locke a imediação da relação entre as idéias torna esta relação mais segura do que a relação mediata, ou seja, demonstrativa (Ibid, IV, 2, 4). É, pois, supérfluo lembrar que as premissas imediatas de Aristóteles têm validade necessária como princípios primeiros da demonstração. Privilé­ gio análogo geralmente é atribuído às formas de conhecimento I., como p. ex. a intuição. Kant atribuia à intuição o privilégio de ser "o I. presença do objeto" (Prol, § 8), mas ao mesmo tempo negava que existisse uma intuição "não sensível", algo mais que uma modificação pas­ siva, que uma afeição. Mas a filosofia moderna e contemporânea falou com freqüência de in­ tuição não sensível: basta lembrar, por um lado, a intuição eidética de que fala Husserl e,

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por outro, a intuição simpática de que fala Bergson: a primeira tem por objeto as essências; a segunda tem por objeto a consciência em sua duração (v. INTUIÇÃO). Ambas essas intuições são caracterizadas pelo caráter L: captam os respectivos objetos sem necessidade de inter­ mediários. Hegel, provavelmente o crítico mais radical do privilégio da imediação, denominou "filoso­ fia do saber I." a filosofia da fé de Jacobi. Kant já se manifestara contrário a essa filosofia, re­ cusando-se a admitir que a fé ou qualquer outra atividade sentimental ou I. do homem pudesse ir além dos limites da razão, que são enfim os mesmos da experiência possível (Was heisst: Sich in Denken orientieren?, 1786). Mas a crítica de Kant é especialmente dirigida contra o fa­ natismo (v.) que ele vê implícito nessa posi­ ção, ao passo que a crítica de Hegel é dirigida contra a imediação. Para Hegel, a forma da imediação "dá ao universal a unilateralidade de uma abstração, de tal forma que Deus se tor­ na a essência indeterminada, mas Deus só pode ser chamado de espírito na medida em que se sabe, mediando-se em si consigo mes­ mo. Só assim é concreto, vivo, espírito: a saber de Deus, como espírito, exatamente por isso contém em si a mediação" (Ene, § 74). Para Hegel, a mediação (v.) é o retorno da cons­ ciência sobre si mesma, a autoconsciência, que é a forma última e suprema da realidade e, por isso, identificada por Hegel com Deus. Negar a mediação significa, portanto, negar a superio­ ridade da autoconsciência sobre a consciência. O I. é a forma mais simples da consciência, é "o intuir abstrato", que é o intuir no qual aquilo que intui (a consciência) se considera diferente daquilo que é intuído (o objeto da consciên­ cia). Esta crítica, como se vê, é típica da filoso­ fia hegeliana: faz parte integrante dela, mas não é utilizável fora dela. No mundo contem­ porâneo, em que o domínio do saber tende a ser coberto pelas várias disciplinas científicas, o I. perdeu seus privilégios, mas por razões que nada têm a ver com as aduzidas por Hegel. O objeto de uma investigação científica nunca é I., pois sua validade só pode ser estabe­ lecida com o auxílio de instrumentos ou pro­ cedimentos mais ou menos complicados, por­ tanto de forma indireta e mediata. Até os objetos da visão, que tradicionalmente constituíam o modelo dos objetos I., perderam esse caráter para a psicologia contemporânea, que tende a

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evidenciar as complexas estruturas e os pro­ I, 3). Ao lado da alma material, que é a única cedimentos mediatos da percepção (v.). Con­ que preside às operações humanas (inclusive a tudo, muitos filósofos ainda privilegiam algu­ moralidade) e é mortal, Telésio admite uma ma forma de conhecimento imediato. É o que alma divina, que é o sujeito da aspiração do fez Russell, ao admitir como ponto de partida homem à transcendência e é imortal (De rer. de todo conhecimento o conhecimento ime­ nat, V, 2). A demonstração da I. é uma das fi­ diato (acquaíntance), de cujos objetos "fica­ nalidades declaradas da filosofia de Descartes mos cientes diretamente, sem intermediá­ e um aspecto importante da filosofia de Leibniz rios" (Human Knowledge, 1948, p. 196 e pas- (Teod., I, 89) e da filosofia alemã pré-kantiana sim). Para Russell, qualquer conhecimento, em (BAUMGARTEN, Mel, § 776). A I. da alma conti­ última análise, deve ser reintegrado nesses "da­ nua fazendo parte de todas as formas monados egocêntricos". Ao mesmo tempo, Carnap dológicas do espiritualismo moderno e con­ considerou como elementos originários, que temporâneo, visto estar claro que a mônada, fazem parte da construção lógica dos objetos seja ela criada ou incriada, é em qualquer caso da ciência, as vivências elementares (Elemen- imortal. tarerlebnisse [Der Logische Aufbau der Welt, 2- A teoria da I. parcial tem origem em Aris­ § 65D. Mas nesses pressupostos e em outros tóteles. Após distinguir o intelecto ativo do pas­ semelhantes, a filosofia da ciência afasta-se das sivo, Aristóteles diz que "o intelecto ativo" é se­ análises e das conclusões da própria ciência. parável, impassível e sem mistura porque, por sua substância, é ato; e que só ele "é imortal e IMITAÇÃO. V. ESTÉTICA. IMORALISMO (in. Immomlism; fr. Immo- eterno" (De an, III, 5. 430 a 17). Por sua ralisme, ai. Immoralismus; it. Immoralismó). "impassibilidade", o intelecto ativo não conser­ Expressão adotada por Nietzsche para expressar va as determinações particulares, por isso não sua posição de antagonismo à moral tradicional se identifica com a totalidade da alma humana, e sua tentativa de efetuar uma "reviravolta dos que também compreende o intelecto passivo. valores". Nietzsche dizia: "Sabe-se qual é a pa­ Essa doutrina foi incorporada pelos estóicos lavra que preparei para esta luta, a palavra em sua metafísica, segundo a qual a alma do imoralista; minha fórmula também é conheci­ homem é uma parte do Espírito Cósmico e, da: além do bem e do mal" (Wille zur Macht, como este, é imortal (DiÓG. L, VII. 156). Cleantes afirmava que todas as almas durarão até a 1901, § 167, c). IMORTALIDADE (in. Immortality; fr. Im- conflagração final; Crisipo acreditava que so­ mortalité; ai. Unsterblichkeit; it. Immortalitã). mente as almas dos sábios durarão até esse Uma das crenças mais difundidas nas filosofias momento (DlÓG. L, VII, 157). e nas religiões do Oriente e do Ocidente. Do Na Idade Média, o aristotelismo árabe reto­ ponto de vista filosófico, pode assumir duas mou doutrina semelhante a esta. Averróis dava formas diferentes: Ia a crença na I. da pessoa um passo a mais que Aristóteles no que se individual, ou seja, da alma humana em sua to­ refere à relação entre o intelecto e o restante da talidade; 2g a crença na I. daquilo que a pessoa alma humana: não só o intelecto ativo, como individual tem em comum com um princípio julgava Aristóteles, mas também o intelecto eterno e divino, só da parte impessoal da alma. passivo (ou material ou Mico) estão separados É necessário, pois, considerar em terceiro lugar da alma humana, à qual só pertence o intelecto as provas aduzidas pelos filósofos em favor da aquisitivo ou especulativo, que é a disposição imortalidade. essencial para participar das operações do in­ 1- A I. da alma individual foi admitida por telecto. Este é, portanto, único, separado e di­ órficos, pitagóricos e por Platão. Os ecléticos vino, e a alma humana nada tem de verdadei­ (v. p. ex. CÍCERO, Tusc, I, 26-35) também a ramente imortal (De an, III, 1). Esse ponto de admitiram, bem como Plotino (Enn, III, 4, 6). vista, seguido pelos averroístas latinos, que re­ Na Patrística e na Escolástica, ai. da alma indi­ duziam a I. da alma a pura questão de fé (p. vidual é lugar-comum, e fora das disputas dos ex., MANDONNET, SigerdeBrabante, II, p. 167), aristotélicos ela também se mantém como lu­ também foi adotado pelos averroístas e pelos gar-comum no Renascimento. Os naturalistas alexandristas do Renascimento. Pomponazzi do Renascimento admitem a I. (CAMPANELLA, De afirmava a respeito que a diferença entre inte­ sensu rerum, II, 24; BRUNO, De triplici minimo, lecto ativo ou separado e o intelecto humano

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consiste no fato de o intelecto humano necessi­ tar do órgão físico (De immortalitate animae, 9). I. parcial ou impessoal também é a que Spinoza atribui à alma humana, ao dizer que "a mente humana não pode ser destruída total­ mente com o corpo, mas que dela fica alguma coisa que é eterna" (Et., V, 23); em outros ter­ mos, a alma é eterna enquanto modo ou mani­ festação da Substância Divina. O Romantismo não esteve mais interessado que Spinoza na I. da alma individual. Hegel dizia: "Para nós, o essencial da crença na I. é que a alma tem em si um fim eterno, totalmente diferente de seu objetivo finito e portanto um valor infinito. É essa superioridade que confere interesse à fé na sobrevivência da alma". (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 494; trad. it., II, pp. 267­ 68). Realmente, para Hegel o que é imortal, aliás eterno, é o Espírito do Mundo, que se encarna nos povos e nos Estados, que se alter­ nam como seus portadores. Por outro lado, todas as formas de panteísmo (v.), antigas ou modernas, admitiram uma I. parcial ou parti­ lhada, que na realidade significa a eternidade de um princípio que só parcial ou temporaria­ mente se encarna no homem. O próprio Bergson parece sugerir tal forma de I., ao conside­ rar o corpo como um simples "instrumento de ação" e ao identificar a alma com a corrente da "lembrança pura", que não tem mais individua­ lidade alguma (Matière et mémoire, Résumé et conclusion). 3a A maior parte das provas aduzidas pelos filósofos em favor da I. não são suficientemen­ te precisas para poderem ser invocadas em apoio a qualquer uma das crenças acima. As provas mais concludentes, pelo menos à pri­ meira vista, são as que partem dos dois concei­ tos que tradicionalmente definem a natureza da alma: a causalidade e a substancialidade. Mas estas também são as provas mais radicalmente criticadas. I. Uma das provas mais antigas é a dedu­ zida do movimento. Aristóteles relata que Alcméon de Cróton julgava a alma imortal e divina porque ela está sempre em movimento, assim como as coisas divinas, ou seja, a lua, o sol, etc. (De an, I, 2, 405 a 30). Platão ado­ tava essa argumentação: "Toda alma é imortal porque o que se move incessantemente é imortal. Aquilo que move outra coisa e é mo­ vido por outra coisa, ao parar de mover-se, pára de viver. Só o que se move por si, pelo

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que nunca falta a si mesmo, nunca deixa de mover-se, mas é também fonte e princípio de movimento para todas as coisas que se mo­ vem" (Fed., 245 d). A crítitica a esse argumen­ to foi feita por Aristóteles, para quem era im­ possível que a alma fosse movida, portanto que pudesse ser movida por outra coisa ou por si mesma (De an, I, 3). II. O segundo argumento é deduzido da de­ finição de alma como substância; como subs­ tância, a alma é ser em ato e, como ser em ato, é im orredoura (ARISTÓTELES, De an., III, 5, 430 a 17). Platão expôs este argumento no Fédon, em sua forma mais popular, asseverando que a alma, por participar necessariamente da idéia de vida, não pode deixar de viver, do mesmo modo como o número três, que participa ne­ cessariamente da idéia de ímpar, não pode dei­ xar de ser ímpar (Fed, 104-07). S. Tomás ex­ pressou o argumento de Aristóteles ao afirmar que "aquilo que tem ser por si não pode ser gerado e corrompido'', pois "o ser por si é pró­ prio da forma enquanto ato" (S. Th, I. q. 75, a. 6). Este argumento foi criticado por Duns Scot: para este, a alma não tem ser por si no sentido de subsistir por conta própria e de não poder ser a título algum separada do ser: isto signifi­ caria que nem Deus pode criá-la e destruí-la, o que é falso (Rep. Par., IV, d. 43, q. 2, nss 18-19). Esse argumento foi ainda mais radicalmente criticado por Kant, que demonstrou o caráter sofista da afirmação da substancialidade da alma, porquanto tal afirmação só faz transfor­ mar sub-repticiamente em substância a simples relação funcional que o sujeito pensante tem consigo mesmo, ou seja, o FM penso (Crít. R. Pura, Dialética, cap. I). III. O terceiro argumento é deduzido de um corolário da tese de substancialidade da alma, ou seja, da simplicidade da substância alma. Em vista dessa simplicidade, a alma não pode corromper-se, pois que a corrupção (como pas­ sagem de um contrário a outro) implica com­ posição, donde os corpos, também se forem simples (como os celestes), serão incorruptí­ veis. Platão afirmava que a alma, por ser invi­ sível como as idéias, deve ser imutável e indecomponível com elas (Fed., 78c ss.). S. Tomás expõe argumento análogo com outra forma, (cf. especialmente Contra Gent., II, 55). Uma variante dele foi dada por Mendelssohn, em Fédon (1766), com a tese de que a alma, em vista de sua simplicidade, não pode morrer por

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decomposição, mas nem por extinção. De fato, não podendo ela ser diminuída pouco a pouco e depois reduzida ao nada (já que não tem partes), não deveria haver espaço de tempo entre o instante em que ela é e aquele em que ela não é mais. Kant notava a propósito que, mesmo não tendo quantidade extensiva, a alma poderia e deveria ter, assim como a consciência, uma quantidade intensiva, ou seja, um grau (Crít. R. Pura, Confutaçâo do argu­ mento de Mendelssohn). IV. O quarto argumento é deduzido da pre­ sença da verdade na alma (PLATÃO, Mên., 86a). S. Agostinho diz: "Se aquilo que está num sujeito (subiectum) dura para sempre, necessariamente o sujeito também dura para sempre. Ora, toda ciência (disciplina) existe na alma como em seu sujeito; conclui-se necessariamente que a alma dura para sempre, se a ciência dura para sempre. Mas a ciência é verdade e a verdade dura para sempre; portanto, a alma dura para sempre também e nunca pode ser considerada morta" (Solil, II, 13). Esse argumento foi repetido por S. Tomás (Contra Gent., II, 55): "Sendo incorruptível o objeto do intelecto, o próprio intelecto será incorruptível." Foi criticado pelos alexandristas do Renascimento, particularmen­ te por Pomponazzi. "Para o intelecto é essen­ cial entender, através de imagens, como resul­ ta claro da definição de alma como ato de um corpo físico-orgânico. Por isso o intelecto, em cada uma de suas funções, necessita de um órgão. Mas aquilo que assim entende é neces­ sariamente, inseparável do corpo. Portanto o intelecto humano é mortal" (De imm. animae, 9). Argumento semelhante ao de Agostinho algumas vezes foi repetido por filósofos mo­ dernos com referência à presença de valores ideais na alma humana, ou seja, da Verdade, da B eleza e do Bem (p. ex., C. H. HOWISON, The Limits ofEvolutíon, 1901, cap. 6). V. Argumento análogo a este foi deduzido por S. Anselmo da presença do amor por Deus na alma. A alma humana, como criatura racio­ nal, "foi criada para amar sem cessar a Substân­ cia Suprema. Mas não poderia fazê-lo se não vivesse para sempre; portanto, a alma é feita para viver sempre, conquanto queira fazer sempre aquilo para que foi feita. Além disso, não estaria de acordo com a suprema bondade, sabedoria e onipotência do Criador reduzir a nada uma criatura por ele criada para amá-lo, até que ela o ame" (Monologion, 69).

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VI. O sexto argumento é extraído do desejo natural de imortalidade. S. Tomás diz: "Qual­ quer um que tenha inteligência naturalmente deseja existir para sempre. Mas um desejo na­ tural não pode ser vão. Portanto, toda substân­ cia intelectual é incorruptível" (S. Th., I. q. 75, a. 6). Conquanto S. Tomás aduza esse argu­ mento como simples signum da I., ele foi repe­ tido com freqüência. VII. O sétimo argumento apresenta a I. como exigência da vida moral do homem. Esse argumento não teve muita aceitação na Antigüidade: valeu mais como motivo, fre­ qüentemente inconfesso, para que os filóso­ fos procurassem provas demonstrativas da imortalidade. Duns Scot negava que fossem conclusivas as razões extraídas da aspiração da alma à bem-aventurança eterna e à justiça ca­ paz de retribuir o bem e o mal. A razão natural deveria pelo menos dar-nos a conhecer que a bem-aventurança eterna é o fim adequado à nossa natureza, o que não acontece; quanto à necessidade de prêmio ou de castigo, podese dizer que cada um encontra retribuição sufi­ ciente em sua própria ação boa e que o primei­ ro castigo do pecado é o próprio pecado (Op. Ox, IV, d. 43, q. 2, n2 27, 32). Portanto, para Duns Scot, a I. da alma era pura verdade de fé, não susceptível de tratamento demonstrativo. Pomponazzi retomou esse ponto de vista em sua crítica ao argumento moral (De imm. animae, 14). Na filosofia moderna, contudo, esse foi o argumento que obteve maior recep­ tividade, o que se explica com facilidade, visto que, com o declínio da metafísica antiga, as provas deduzidas da causalidade e da substancialidade da alma perderam valor. Na "Profis­ são de fé do Vigário saboiano" (Emílio, IV), Rousseau chegava a afirmar a imaterialidade, portanto a I. da alma, exatamente com base na exigência de uma justiça que nem sempre se vê realizada no mundo: "Mesmo que não hou­ vesse outra prova da imaterialidade da alma, além do triunfo do mau e da opressão do justo neste mundo, só isso bastaria para que eu não duvidasse dela. Contradição tão manifesta, dis­ sonância tão estridente na harmonia do univer­ so, levar-me-ia a refletir que nem tudo termina para nós na vida, mas que, com a morte, tudo retorna à ordem". Nesse aspecto, Rousseau constituía a voz eloqüente de grande parte do iluminismo e do deísmo do séc. XVIII, ainda que outra parte desse iluminismo pensasse,

IM ORTALIDADE

com Voltaire, que "a mortalidade da alma não é contrária ao bem da sociedade, como provam os antigos hebreus, que acreditavam na alma material e mortal" (Traité de métaphysique, 6). Kant só fez reexpor a tese de Rousseau, pres­ supondo a I. como um dos postulados da razão prática. Segundo Kant, a I. da alma e a existên­ cia de Deus são condições para a realização do bem supremo, que é a união de virtude e felici­ dade. Sem a continuação indefinida da vida hu­ mana além da morte, a realização da santidade mediante o progresso ao infinito não seria pos­ sível, portanto o homem nunca se tornaria dig­ no de felicidade. Mas para Kant esse postulado não é uma verdade teorética, mas uma neces­ sidade do ser moral finito: as considerações morais, em outros termos, não demonstram a I., mas mostram que ela é uma aspiração legí­ tima de quem age moralmente (cf. Postulados da Razão Prática). VIII. Por fim um argumento antigo, mas que sempre reaparece, é extraído do consensus gentium. Cícero assim o expressava: "Se o consenso universal é voz natural e se todos, em todos os lugares, estão de acordo em julgar que existe algo no que se refere aos que já morreram, também nós devemos ser do mesmo parecer e, se julgarmos que os dotados de espírito superior por engenho ou virtude estão em melhores condições para reconhecer a força da natureza porque são perfeitos por natureza, é verossímil — visto que os melho­ res se preocupam muitíssimo com a posterida­ de — que exista algo cuja sensação estão des­ tinados a ter depois da morte" (Tusc. ,1, 15, 35). O problema da I. há muito deixou de existir em filosofia. Isto nem tanto porque a solução positiva dele estivesse ligada a determinada fi­ losofia, a metafísica da substância, mas também e sobretudo por outras duas razões. A primeira delas é que a ética moderna desvinculou a mo­ ral de qualquer sanção ultraterrena, eliminando assim o primeiro e mais imediato interesse na solução positiva do problema da imortali­ dade. A segunda é que a moderna tendência da filosofia, que considera ilegítimo ou sem significado estender a análise filosófica além da espera de existência ou da experiência detectável com os instrumentos que o homem possui, negou, em princípio, a legitimidade e a conclusividade do próprio debate sobre a imortalidade. Não causa portanto estranheza o fato de serem escassos e pobres os trabalhos

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IMPERATIVO

sobre esse problema na filosofia moderna e contemporânea, principalmente depois de Kant. Seu interesse por ele acabou por limi­ tar-se à esfera da religião e da apologética religiosa. IMPENETRABILIDADE. V. ANTITIPIA. IMPERATIVO (in. Imperative, fr. Impératif, ai. Imperativ-, it. Imperativo). Termo criado por Kant, talvez por analogia com o termo bíblico "mandamento", para indicar a fórmula que expressa uma norma da razão. Kant diz: "A representação de um princípio objetivo, por­ quanto coage a vontade, denomina-se coman­ do da razão, e a fórmula do comando denomi­ na-se I." (GrundlegungzurMet. derSitten, II). Para o homem, norma da razão é uma ordem, pois a vontade humana não é a faculdade de escolher apenas o que a razão reconhece como praticamente necessário, ou seja, como bom. Se assim fosse, a norma da razão não teria ca­ ráter coativo e não seria uma ordem. Isso aconte­ ce com os seres dotados de vontade santa, de uma vontade que está necessariamente de acor­ do com a razão e que só pode escolher o que é racional. Mas, como o homem pode escolher também segundo a inclinação sensível, a lei da razão assume para ele a forma de ordem e por isso sua expressão é um I. (Crít. R. Prática, I, cap. III). Portanto, a palavra I. não passa de outro nome para a palavra dever (v.). Kant distinguiu os I. em hipotéticos e categóricos. O I. hipotético ordena uma ação que é boa relativa­ mente a um objetivo possível ou real. No pri­ meiro caso, ele é um princípio problematicamenteprático; no segundo caso, é um princípio assertivamente prático. O I. categórico ordena uma ação que é boa em si mesma, por si mes­ ma objetivamente necessária, sendo portanto um princípio apoditicamente prático. Os I. problematicamente práticos são os de habili­ dade (p. ex., as prescrições de um médico). Os I. assertivamente práticos são os da prudência: seu objetivo é a felicidade. Os I. categóricos são os da moralidade. Os primeiros poderiam deno­ minar-seI. técnicosouregras-, os segundos,l.pragmáticosou conselhos; os terceiros são I. morais ou leis da moralidade (Grundlegung, cit., II). Essas observações de Kant foram sobeja­ mente aceitas na filosofia moderna e contem­ porânea. Isto não quer dizer que a ética kantiana do dever também tenha sido tão aceita, sobretudo na forma proposta por Kant (v. ÉTI­ CA). O problema de poder ou não considerar as

IMPERSONA1ISMO

normas morais como imperativos é fundamen­ tal e muitas vezes teve resposta negativa. Toda a tradição militarista constitui um exemplo de semelhante solução negativa. A ética de Berg­ son é outro exemplo. Conceber a norma moral como I. (ou dever) significa julgar, como Kant, que ela seja um "fato da razão" um sic volo sic iubeo (Crít. R. Prática, cap. I, § 7, Escol.): coisa que nem todos se mostram dispostos a admitir. A partir da obra de OGDEN e RICHARDS, The Meaning ofMeaning (1923), o I., sobretudo o I. moral, foi freqüentemente considerado uma "proposição emotiva", ou seja, destinada a pro­ duzir ação, mas desprovida de significado cognoscitivo. Essa teoria, cuja melhor forma se encontra em Ayer (Language Truth and Logic, 2- ed., 1948) e Stevenson {Ethics and Lan­ guage, 1944), após breve sucesso deixou de ter defensores (STROLL, The Emotive Theory o f Ethics, Berkeley, 1954). IMPERSONALISMO (in. Lmpersonalisni). Termo muito pouco usado, é oposto de perso­ nalismo (v): significa simplesmente materialismo (v.). IMPERTURBABILIDADE. V. ATARAXIA.

IMPESSOAL (ai. Man; it. Anonimia). Segun­ do Heidegger, é o modo de ser nivelado da existência quotidiana, na sua "mediania" públi­ ca, isto é, nas formas que acaba assumindo na vida de todo dia. Em tal modo de ser, "cada um é os outros e ninguém é ele mesmo. O Se, onde está a resposta ao problema do Quem do Ser-aí quotidiano, é o ninguém ao qual cada Ser-aí se entregou na indiferença do seu serjunto" (Sein undZeit, § 27) (v. MEDIANIA). IMPLICAÇÃO (in. Lmplication; fr. Lmplication; ai. Lmplication; it. Lmplicazione). Na lógica contemporânea, este termo substituiu outros mais antigos, como condicional (v.) e conseqüência (v.), permitindo generalizar esses significados. A I. é a composição de duas proposições por meio do conectivo se... então, em que a primeira se chama antecedente e a segunda conseqüente. Tanto a linguagem comum quanto a científica oferecem exem­ plos de I. bem distintos. Consideraremos os seguintes: (1) Se x é solteiro, então x não é casado. (2) Se x é triângulo, então x tem os ângulos internos iguais a dois retos. (3) Se x é metal, então x é maleável. (4) Se x comete uma ação indigna, então x perde a estima dos amigos.

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IMPLICAÇÃO

(5) Se x cometer um crime, então xirá para a cadeia. (6) Se x me insulta, eu esbofeteio x (7) Se x me fizer um favor, então x será recompensado por mim. (8) Se xé um gênio filosófico, então eu sou o imperador da China. Se considerarmos esses diversos exemplos de I. (e outros que poderão ser enumerados), logo perceberemos que a conexão entre ante­ cedente e conseqüente é diferente em cada caso: o fundamento é diferente ou, como se poderia dizer, sua validade provém de contex­ tos diferentes. No exemplo (1), a validade de­ corre do fato de, no dicionário, verificar-se que "solteiro" eqüivale a "não casado"; em (2), do contexto da geometria euclidiana e de seus pos­ tulados; em (3), das observações empíricas ou da ciência; em (4) e (5), respectivamente, das normas morais e jurídicas vigentes em determi­ nado país; em (6) e (7), de minha decisão de reagir a certo tipo de comportamento de x; em (8) está apenas um modo de expressar minha convicção de que x não é um gênio filosófico. Diante dessa variedade de tipos de I., os ló­ gicos procuraram identificar a condição mais simples, geral e abstrata que torna válida uma I. qualquer, sem levar em conta o contexto a que ela se refere nem o fundamento apresenta­ do por seu conteúdo específico; identificaram essa condição na fórmula que Fílon de Mégara já defendera contra Diodoro Cronos, sobre a validade das proposições condicionais (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math, VIII, 113-14: cf. CONDIÇÀO): uma I. é válida sempre que não tenha antecedente verdadeiro e conseqüentefalso. As­ sim, também vale quando o antecedente e o conseqüente são falsos. Essa condição generalíssima e abstrata foi chamada de /. material e foi expressa por Russell (Principia mathematica, I, 1.01) com a fórmula: p^q= ~ pv q D f que se lê: p implica q " eqüivale por definição a "nâo-p ou q"; onde p e q representam, res­ pectivamente, o antecedente e o conseqüen­ te e o sinal ZD representa a I. material. De mo­ do correspondente, chamou-se de formal a I. que, além de preencher a condição de validade da I. material, para ser válida exige outras con­ dições. Nos exemplos antes enumerados, ape­ nas o (8) é I. material pura porque pode ser expressa dizendo-se "ou x não é um gênio filosófico ou eu sou o imperador da China". As outras, mesmo respeitando essa condição, exi­

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IMPLICAÇÃO

£I V q

gem outras (como vimos) que constituam seu fundamento. Assim, pode-se dizer que todas as I. formais são materiais, mas que nem todas as I. materiais são formais. Por isso, a I. será defi­ nida pela seguinte tábua de verdade (na qual p e q representam proposições quaisquer e Ve F, verdadeiro e falso): P <7 V V V. V F F F V V F F V (v. TÁBUA DE VERDADES) A I. material pode parecer paradoxal do ponto de vista do senso comum e das ciências empíricas. Por exemplo, ela permite reconhe­ cer como verdadeira a I. "Se 2x2 = 5, então Nova York é uma cidade pequena"; e como falsa esta outra: "Se 2 x 2 = 4, então Nova York é uma cidade pequena"(cf. TARSKI, lntroduction to Logic, 1941, § 8), nas quais não há nenhuma conexão causai ou contextual entre o antece­ dente e o conseqüente, mas a primeira signifi­ ca "ou 2x2 não são = 5 ou Nova York é uma cidade pequena", e a segunda: "ou 2 x 2 não são = 4 ou Nova York é uma cidade peque­ na". A I. material é sobretudo usada em ma­ temática; nela Hilbert baseou os axiomas da lógica das proposições ("Die Logischen Grundlagen der Mathematik", em Mathematische Annalen, 1923, pp. 151-65). Em forma de axio­ ma, a I. material significa que "a verdade de­ corre de qualquer coisa" porque, se qé verda­ deiro por si mesmo, decorre de qualquer p, não importa se verdadeiro ou falso, e que "tudo decorre do falso" porque, se p é falso, dele pode decorrer qualquer q, seja ele verdadei­ ro ou falso. Na realidade, a I. material abstrai completamente de qualquer conexão causai ou contextual entre o antecedente e o conse­ qüente (que pode ter fundamento bem diferen­ te) e constitui apenas a condição mínima sufi­ ciente para a validade de todas as implicações. Contudo, alguns lógicos procuraram tornar menos abstrato o conceito de I., aproximando-o mais do seu significado comum. Assim, o ameri­ cano C. I. Lewis (cf. LEWIS AND LANGDORF, Symbolic Logic, 1932, pp. 174 ss., 248 e ss.) falou de uma I. estrita, segundo a qual "pimplica q "seria sinônimo de "qé dedutível dep", no sentido de que seria contraditório afirmar o antecedente p e negar o conseqüente q. Esse conceito recorre ao conceito de possibilidade lógica e por isso

IMPREDICATIVA, DEFINIÇÃO

seria expresso pela fórmula ~ M(p~ q), em que M significa "possível", lendo-se assim: "não é possível que p seja verdade e q não o seja". Uma relação análoga de I. foi chamada de entailment [decorrência necessária] por mui­ tos escritores ingleses, a partir de Moore; este a ilustrou da seguinte forma: "p entails [implica necessariamente] q" quando e só quando tiver­ mos condições de dizer realmente que 'g decor­ re dep ou 'é dedutível dep no mesmo sentido em que a conclusão de um silogismo em Bárba­ ra decorre das duas premissas tomadas como proposição conjuntiva" (Pbilosopbical Studies, 1922, cap. IX; ed. 1960, p. 291). Carnap distinguiu a C-implicação, ou I. sintática, que é a ma­ terial de que falamos, e a L-implicação ou I. semântica, que corresponde à I. estrita de Lewis {lntroduction to Semantics, §§ 9, 14). Na lógica medieval, o termo I. era usado apenas para indicar uma forma da restrição (v.): como no exemplo "o homem que é bran­ co corre", em que a I. é constituída pela propo­ sição "que é branco", que restringe aos brancos os homens que correm. Nos manuais de lógica do séc. XVI a palavra implicatíoi utilizada como abreviação de implicai contradictionem, e esse uso também reaparece em De intellectus emendatione (1662) e em Cogitata metaphysica (1663) de Spinoza (cf. W. KNEALE AND M. KNEALE, The Development of Logic, 1962, p. 300). IMPLÍCITO (in. Implicit; fr. Lmplicite; ai. Verflechten; it. Lmplicito). Esse adjetivo tem três significados principais: 1Q I., no sentido lógico de implicação (v.), referindo-se ex­ clusivamente a enunciados, proposições ou asserções; 2S não explícito, ou seja, sugerido por certo contexto do discurso, como quan­ do se diz "x implicitamente admitiu que..."; 3S potencial ou virtual. Este último emprego é impróprio. IMPOSIÇÃO (lat. Lmpositio; in. Imposition, fr. Lmpositiort; it. Lmposizione). Na Lógica me­ dieval é o ato pelo qual um nome é destinado a significar uma coisa (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03). IMPOSSÍVEL. V. POSSÍVEL. IMPREDICATIVA, DEFINIÇÃO (in. Impredicative defínítion; fr. definition imprédicative-, it. Definizione impredicativd). Poincaré indicou com esta expressão a definição do membro de uma classe que faz referência à totalidade dos membros da classe e que, portanto, contém um círculo vicioso. Destas

IMPRESSÃO

definições surgem as antinomias lógicas que Poincaré queria evitar estabelecendo o princí­ p io q u e n ã o permite tais definições (POINCARÉ, em Revue de Métaphysique et de Morale, 1906, pp. 294-317; cf. também Dernières Pensées, 1913, IV) (v. ANTINOMIA). IMPRESSÃO (gr. TOJHXKnç; lat. Impressio; in. Impression; fr. Impression; ai. Eindruck, it. Im­ pressione). A teoria segundo a qual o conheci­ mento consiste numa marca ou impressão feita pelas coisas sobre a alma nasce com os estóicos. Estes diziam que "a imagem é um sinete na alma", tomando o nome da figura que o selo imprime n a cera (DIÓG. L , VII, 45). Cícero procurou eliminar o caráter físico da I. (Tusc, I, 61). Esse termo foi difundido na filosofia e na linguagem moderna por Hume, que entendeu por I. "todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição na alma" (Treatise, 1,1,1). E distinguiu as I. das idéias, que são cópias empalidecidas delas (Ibid., I, 1, 2). IMPRÓPRIO, SÍMBOLO. V SINCATEGOREMÁTICO. IMPULSÃO. V. INÉRCIA.

IMPULSO (in. Impulse, Urge, fr. Impulsion; ai. Impuls; it. Impulso). Incitamento súbito, mo­ mentâneo e difícil de controlar para determina­ da ação. Chama-se de "impulsivo" quem está sujeito a freqüentes ímpetos desse tipo. Esse termo não deve ser confundido com "instinto" (v.) nem com "tendência", que corresponde ao termo tradicional apetição (v.). IMPUTABILIDADE (gr. cxüíoc; lat. lmputatío; in. Irnputability, fr. Imputabilité, ai. Zurechenbarkeit; it. Imputabilitã). Possibilidade de atribuir uma ação a um agente, como causa­ dor; é diferente da responsabilidade (v.). INATISMO (in. Innatism, fr. Innatisme, ai. Nativismus; it. Innatismó). Doutrina segundo a qual no homem existem conhecimentos ou princípios práticos inatos, ou seja, não adquiri­ dos com a experiência ou pela experiência e anteriores a ela. O modelo de todo I. é a dou­ trina platônica da anamnese (v.): "Como a alma é imortal e nasceu muitas vezes e viu todas as coisas, tanto aqui como no Hades, nada há que ela não tenha aprendido: de modo que não espanta o fato de que possa recordar, seja em relação à virtude, seja em relação a outras coisas, o que antes sabia" (Men, 81 c). Mas a forma com que o I. passou para a tradição filosófica foi dada pelos estóicos. Estes admitiam como critério da verdade, ao lado da repre­

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INATISMO

sentação cataléptica, a antecipação, que é "a noção natural do universal" (DIÓG. L, VII, 54). Cícero assim expunha o ponto de vista estóico: "A Natureza deu-nos minúsculas centelhas, e nós, cedo estragados por maus costumes e por falsas opiniões, apagamo-las todas, de tal modo que fazemos desaparecer a luz da natu­ reza. Na verdade, em nossa índole, são inatas as sementes da virtude, e se lhes fosse possível desenvolver-se, a própria natureza nos guiaria para uma vida feliz" (Tusc, III, 1, 2). Essa espé­ cie de I. vincula-se à teoria do instinto (v.), pró­ pria dos estóicos, que é retomada por doutri­ nas cuja intenção é proteger da dúvida certas crenças fundamentais de natureza teórica ou prática. Nesse sentido, o I. foi retomado pelo platonismo renascentista, cuja continuação pode ser vista no platonismo inglês do séc. XVII, contra cujas teses fundamentais se dirige a críti­ ca do primeiro livro do Ensaio de Locke. O I. é depois retomado na Inglaterra, no século seguinte pela escola escocesa do senso comum (v.), ou seja, por Reid e Dugald Stewart. Mas já Descartes e Leibniz tinham dado ao I. um sig­ nificado novo. Para Descartes algumas idéias são inatas como "capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras, imutá­ veis e eternas das coisas" (Méd., III; lettre áMersenne, 16-VI-1641, CEuvr, III, 383). E Leibniz, de modo semelhante, considerava inatas as verdades que se revelam imediatamente como tais à luz natural, sem ter necessidade de outra verificação (Nouv. ess, I, 1, 21). Neste sentido, o inatismo não era mais uma espécie de escul­ tura que a alma traz consigo ao nascer, segun­ do a imagem que Cícero empregara (De nat. deor, II, 4, 12). Ao velho adágio escolástico, "Nihilest in intellectu, quodprius nonfuerit in sensu", Leibniz acrescentava a restrição "nisi ipse intellectus", entendendo dizer com isso que a alma dispõe, por sua conta, de categorias como o ser, a substância, o uno, o mesmo, a causa, a percepção, o raciocínio, etc, que os sentidos não poderiam fornecer-lhe (Nouv. ess. II, 1, § 2). Não é grande a distância entre essa forma de inatismo e a doutrina kantiana (que, toda­ via, não se costuma designar com esse termo), segundo a qual as formas a priori do conheci­ mento não derivam da experiência. O inatismo pertence, hoje, ao número das doutrinas não mais discutidas, porque já não são mais discuti­ dos os problemas cujas soluções elas consti­

INAUTÊNTICO

tuiriam. Na filosofia moderna, quando se admi­ te que alguma coisa precede a experiência (como o faz, p. ex., o idealismo hegeliano), esse algo não é um complexo de idéias ou de virtualidades, mas toda a razão ou todo o espírito (cf. A PRIORI). INAUTÊNTICO. V. AUTÊNTICO. INCEPTIVA, PROPOSIÇÃO (fr. Proposition inceptive ou désistive). A Lógica de Port-Royal denominou assim a proposição que afirma que uma coisa começou a ser ou deixou de ser; p. ex.: "A língua latina deixou de ser vulgar na Itália há muitos séculos." (ARNAULD, Lóg, II, 10, 4). INCLINAÇÃO. V. TENDÊNCIA. INCLUSÃO (in. Inclusion; fr. Inclusion; ai. Einschliessung; it. Inclusioné). Na Lógica das classes, a relação de I. entre duas classes a e (3 (símbolo "a z> p") subsiste quando todos os elementos da classe a pertencem também à classe P, mas não necessariamente o inverso (a I. é reflexiva e transitiva, mas não simétri­ ca). À relação de I. corresponde a relação de implicação entre os conceitos-classe correspon­ dentes. P. ex., a classe homem está incluída na classe mortal porque todos os homens são mortais. G. P. INCOERÊNCIA. V. COERÊNCIA.

INCOGNOSCÍVEL (in. Unknowable, Incognizable; fr. Inconnaissable; ai. Unerkennbar, it. Incognoscibíle). Termo empregado por Ha­ milton para designar o Absoluto ou Infinito, considerado além de qualquer possibilidade de conhecimento e objeto somente de fé. "Pensar é condicionar" — dizia Hamilton (Discussions on Philosophy, 1852, p. 13) — "e a limitação condicional é lei fundamental das possibilida­ des do pensamento... O absoluto só é concebí­ vel como negação da conceptibilidade". Con­ tudo, a esfera da crença é mais ampla que a do conhecimento: assim, conquanto não se possa conhecer o Infinito, pode-se e deve-se crer nele. (LecturesonMetaph., II, pp. 530-31). Essa noção foi retomada por Spencer, que também afirmou a incognoscibilidade do absoluto e, ao mesmo tempo, a necessidade de admiti-lo para tornar possível o relativo (FirstPrincipies, 1862, § 26). A noção do I. tornou-se então correlativa de agnosticismo (v.) e, assim como esta últi­ ma, foi estendida até designar a doutrina de Kant da coisa em si e da sua incognoscibilidade. Kant todavia não admitia a inconceptibilidade da coisa em si, como fazia Hamilton relativamente ao Absoluto, assim como não ad­

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INCONCEPTIBIIIDADE

mitia aquela espécie de correspondência hipo­ tética entre o I. e o fenômeno que Spencer de­ nominava realismo transfigurado (Lbid., § 50). O conceito de I. nunca ultrapassou os limites do positivismo evolucionista de cunho spenc e rian o (v. COISA EM S I). INCOMPATIBILIDADE. V. COMPATIBILIDADE.

INCOMPLETO, SÍMBOLO (in. Incompleto symboD. Em lógica matemática dá-se esse no­ me ao símbolo que não tem significado pró­ prio, mas só num contexto, para cujo significa­ do por sua vez contribui. INCOMPLEXUM. V. COMPLEXO. INCONCEPTIBILIDADE (in. Inconceivability, fr. Inconcevabilité, ai. Unbegreiflichkeit; it. Inconcepibilitã). O critério cartesiano de acei­ tar como verdadeiro tudo o que é evidente para a razão tem como correlativo negativo o critério de rejeitar o que não parece evidente para a razão ou o que, em geral, é incompatí­ vel com a razão. Esse é propriamente o critério das inconceptibilidades. Foi utilizado sobretu­ do por Leibniz, que o defendeu explicitamente: "Em verdade reconheço que não é lícito negar o que não se entende, mas acrescento que se tem o direito de negar (pelo menos na ordem natural) aquilo que não é absolutamente inte­ ligível nem explicável... A concepção das cria­ turas não é a medida do poder de Deus, mas a conceptibilidade ou força de concepção delas é a medida do poder da natureza, pois que tudo o que se conforma à ordem natural pode ser concebido ou entendido por alguma criatura" (Nouv. ess., Avant-Propos., Op, ed. Erdmann, p. 202). Em outros termos, pode-se admitir ser real na natureza aquilo que não se entende (que não se saiba explicar), mas não o que é inconcebível, ou seja, "incompatível com a ra­ zão". Mas Leibniz não explicou o que deve ser entendido por incompatibilidade com a razão, o que tampouco fizeram todos os (muitíssimos) que se referiram a esse critério; a primeira crí­ tica a esse critério encontra-se em Lógica de Stuart Miü, com referência ao emprego que de­ le fizeram Hamilton (Lectures on Metaphysics and Logic, 1859-60) e Spencer (Principies of Psychology, 1855). Stuart Mill notava como os antípodas eram declarados impossíveis pelos antigos, que achavam inconcebível que existis­ sem pessoas cuja cabeça estivesse na direção dos nossos pés, e que um dos argumentos mais difundidos contra o sistema copernicano havia sido a I. do imenso espaço vazio que aquele

INCONDICIONADO

sistema pressupunha (Lóg, V, 3, § 3; cf. II, 5, § 6; 7, §§ 1-3). Realmente, a incompatibilidade com a ra­ zão, que é a definição de I., não pode ter outro significado exato senão o de incompatibilidade com o sistema de crenças a que se faz referên­ cia. Obviamente semelhante incompatibilida­ de não pode valer como critério de juízo para a fidedignidade de uma noção qualquer. Se porém por I. se entende a contraditoriedade (como por vezes acontece), é preciso lembrar que o juízo sobre a contraditoriedade ou não cie duas asserções deve referir-se a um campo determinado, no qual estejam implícita ou explicitamente definidas as regras da coerência ou da compatibilidade. Pode acontecer, p. ex., que não seja contraditório em física aquilo que seria contraditório em matemática ou vice-ver­ sa; p. ex., a física não julga contraditório conce­ ber os fenômenos eletromagnéticos ao mesmo tempo como corpusculares e como ondulatórios. Mas para estes significados restritos e específi­ cos de contraditoriedade, a palavra I., em seu significado absoluto, é totalmente imprópria. Portanto, a filosofia contemporânea deixou de usá-la, não insistindo mais na antítese racionalinconcebível, mas na antítese significância-insignificância (v. SIGNIFICADO). INCONDICIONADO (in. Unconditioned- fr. Inconditionné, ai. Unbedingt; it. Incondizionato). Hamilton (Discussions on Philosophy, 1852) e Mansel (The Philosophy of the Conditioned, 1866) denominaram I. o Infinito ou o Absoluto, ou seja, Deus, porquanto escapa a todas as limitações do pensamento humano e por isso é inconcebível. Para o significado genérico do termo, v. CONDIÇÃO. INCONSCIENTE (in. Unconscious, fr. Inconscient; ai. Unbewusst; it. Inconscio). O ingres­ so dessa noção em filosofia deve-se a Leibniz, que frisou a importância das "percepções in­ sensíveis" ou "pequenas percepções", de que não se toma ciência e sobre as quais não se re­ flete. Para Leibniz, são essas percepções que "formam o não-sei-quê, os gostos, as imagens das qualidades sensíveis, claras no conjunto mas confusas nos detalhes, as impressões que os corpos que nos rodeiam exercem sobre nós e que envolvem o infinito, os vínculos que cada ser tem com o restante do universo" (Nouv. ess, Avant-propos, op., ed. Erdmann, p. 197). A existência dessa zona inconsciente tor­ nou-se lugar-comum na escola wolffiana (cf.

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INCONSCIENTE

WOLFF, Psychol. rationalis, §§ 58 ss.) e foi admi­ tida por Kant, que respondeu à objeção de Locke de que não se pode ter representações das quais não se tenha consciência, porque as ter significa exatamente estar consciente delas (Ens, I, 1, 5), afirmando que "podemos estar conscientes medíatamente de uma representa­ ção da qual não estejamos conscientes imedia­ tamente' (Antr., § 5). Mas foi só com Schelling que o I. tornou-se elemento fundamental das concepções metafísicas, ou seja, um dos aspec­ tos essenciais do Absoluto como Identidade en­ tre natureza e espírito (entre I. e consciência). "Esse eterno L", dizia Schelling, "que, como o sol eterno do reino dos espíritos, esconde-se em sua própria luz serena e, apesar de nunca se tornar objeto, imprime sua identidade às ações livres, é o mesmo para toda a inteligência e é ao mesmo tempo a raiz invisível de que todas as inteligências são apenas potências; é o eter­ no intermediário entre o subjetivo, que se autodetermina em nós, e o objetivo ou intuinte e é o fundamento da uniformidade na liberda­ de e da liberdade na uniformidade objetiva" (System der transzendentalen Idealismus, IV, F; trad. it., p. 280). Ainda mais radicalmente, Schopenhauer considerava I. a vontade que consti­ tui o númeno do mundo: "A vontade conside­ rada em si mesma é L: é um impulso cego e irresistível o qual vemos aparecer na natureza inorgânica e vegetal, bem como na parte vegetativa da nossa vida" (Die Welt, I, § 54). E como síntese do Espírito Absoluto de Hegel, da Vontade de Schopenhauer e do I. de Schelling, Edward Hartmann apresentava o princípio de sua filosofia: um princípio que ele denominava precisamente I. e do qual o espírito e a matéria teriam sido duas diferentes manifestações (Philosophie des Unbewussten, 1869). Pode-se con­ siderar que a filosofia de Bergson pertence a essa mesma linha; ele defendia o I. ao observar que a repugnância em conceber estados psico­ lógicos inconscientes vem do fato de se consi­ derar a consciência como propriedade essen­ cial dos estados psíquicos. "Mas" — observava ele — "se a consciência é somente o sinal ca­ racterístico do presente, daquilo que está sendo vivido, daquilo que está agindo, então o que não está agindo poderá deixar de pertencer à consciência sem deixar necessariamente de existir de qualquer modo" (Matièreet mémoire, cap. III, p. 147). Para Bergson, o I. assim enten­ dido identifica-se com a recordação pura, ou

INCONSCIENTE

seja, a corrente da consciência que é o próprio elã vital. Mas enquanto o I. era assim utilizado pela metafísica e enquanto a psicologia o admitia, mesmo a contragosto, como um dado de fato, seu conteúdo era completamente renovado por Freud, que apresentava as duas teses funda­ mentais da psicanálise da seguinte forma: "A primeira dessas premissas é que os processos psíquicos são em si mesmos inconscientes e que os processos conscientes são apenas atos isolados, frações da vida psíquica total." A se­ gunda proposição que a psicanálise proclama como uma de suas descobertas é a afirmação de que "tendências que podem ser classifica­ das apenas como sexuais, em sentido estrito ou amplo da palavra, agem como causas deter­ minantes de doenças nervosas ou psíquicas e que essas emoções sexuais desempenham pa­ pel importante nas criações do espírito huma­ no nos campos da cultura, da arte e da vida social" {Einführungin diePsychoanalyse, 1917, Intr., trad. fr., pp. 32-33). Desta forma, na psi­ canálise o I. deixava de ter o caráter indeter­ minado ou amorfo que tivera até aquele mo­ mento nas interpretações dos filósofos e dos psicólogos, para adquirir um conteúdo preciso e identificar-se com as tendências sexuais inibi­ das, negadas, camufladas ou ocultas. O grande sucesso inicial da psicanálise e a importância científica de que ela se revestiu no mundo con­ temporâneo (v. PSICANÁLISE) relegaram para se­ gundo plano a dificuldade teórica associada ao próprio reconhecimento da existência do in­ consciente. Obviamente, a objeção de Locke, tantas vezes repetida, de que "existir", para um estado mental, significa "ser percebido" ou "ser objeto de consciência", e que portanto um estado mental inconsciente é uma contradição em seus próprios termos, deixou de ter valor. Um esta­ do mental (p. ex. uma emoção, uma tendência, uma volição) pode "existir" mesmo sem ser "percebido ", no sentido de que oportunamen­ te pode ser evidenciado e reconhecido, com procedimentos apropriados (que são os empregados pela psicanálise), como condição de uma situação psíquica normal ou patoló­ gica. O próprio Freud insistiu na noção de sin­ toma: "Um sintoma forma-se para substituir alguma coisa que não conseguiu manifestar-se exteriormente. Certos processos psíquicos, não podendo desenvolver-se normalmente, e che­ gar até a consciência, dão origem a um sintoma neurótico" (Ibid., trad. fr., p. 303). Portanto, o I.

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INDEMONSTRÁVEL

existe em primeiro lugar como sintoma. Tratase da mesma solução teórica que Kant vira ao dizer que o I., mesmo não sendo percebido imediatamente, pode ser percebido mediatamente, mas esta solução teórica foi bem me­ lhorada, pois em Freud o I., como sintoma, nem precisa ser "percebido": é um fato que a observação clínica pode constatar. INCONSEQÜÊNCIA (in. Inconsistency; fr. Inconséquence, ai. Folgewidrigkeit.; it. Inconseguenza). Ausência de compatibilidade (v.) das proposições que constituem um sistema simbólico. P. ex., um conjunto de proposições é inconseqüente quando implica uma con­ tradição, quando dele deriva formalmente cer­ ta proposição p ou a negação de p. Em geral, pode-se dizer que a I. de um sistema qualquer é a possibilidade de contradição no próprio sistema. INCONSISTÊNCIA. V. COMPATIBILIDADE. INDAGAÇÃO. V. INVESTIGAÇÃO. INDEFINIDO (in. Indefinite; fr. Indéfini; ai. Unbegrenzi; it. Indefinito). Aquilo que não tem limite no espaço ou no tempo, que portanto é infinito no sentido negativo do termo. Este pelo menos é o significado da palavra estabelecido por Descartes, que assim fazia a distinção entre a indefinição das coisas e a infinidade de Deus, que "não tem limites em suas perfeições" e é por isso o único ser infinito (Princ. phii, I, 27; IRésp, § X). Portanto, essa palavra eqüivale a ilimitado (v.), mas não é usada com o sentido de "não definido", ou seja, não ex­ presso por uma definição. INDEMONSTRÁVEL (in. Undemonstrable, fr. IndémontrableAA. Unerweislich). it. Indimostrabile). Aquilo que não necessita de demons­ tração porque sua verdade é evidente. Neste sentido, são I. os primeiros princípios da lógica de Aristóteles (v. AXIOMAS) e os anapoditicos dos estóicos (v. AnAPODÍTICO). 2. As proposições primitivas ou em geral os antecedentes de um sistema simbólico qual­ quer que sirvam de fundamento das regras de demonstração próprias do sistema. Neste sen­ tido, são indemonstráveis os axiomas, as defi­ nições e as regras de transformação de todo sistema simbólico. 3. As proposições indecidíveis, isto é, as proposições que não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas em dado sistema simbóli­ co, mas que podem ser decididas num sistema mais amplo, onde porém se apresentam com outra forma. Neste sentido, são indemonstrá-

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INDETERMINISMO

veis as proposições que constituem as antino­ mias lógicas (v.); é I. a não-contradição em matemática e em geral dos sistemas simbólicos (v. ANTINOMIA; MATEMÁTICA; SISTEMA). 4. Toda crença ou pretensão que não pos­ sa ser apoiada por provas. Este é o signi­ ficado mais geral e indeterminado com que esse termo é usado freqüentemente na lin­ guagem comum. Assim, denominam-se I. certas crenças religiosas, bem como a pre­ tensão de crédito não apoiada em documen­ tos ou testemunhas. Asserções concernentes a fatos muitas vezes são declaradas I. pela mesma razão. INDEPENDENTE (in. Independent; fr. Indépendant; ai. Unabhángig; it. Indipendenté). Aquilo cujo ser, cuja validade ou cuja capacida­ de de ação não derivem de outro. Assim, dizse que um homem ou um Estado é I. quando sua vida ou sua conduta não depende da vida ou da conduta de outro homem ou de outro Estado. Diz-se que um acontecimento é I. de outro quando não mantém relação de causali­ dade com ele. Uma proposição qualquer é I. de uma outra proposição ou de um sistema de proposições se entre eles não houver relação de derivação. A determinação dos axiomas de um siste­ ma simbólico tem como requisito a indepen­ dência recíproca. De fato, seria inútil aceitar como axioma uma proposição que pudesse ser derivada dos outros axiomas do sistema (v. AXIOMA). INDETERMINAÇÃO (in. Indetermination; fr. Indetermination; ai. Unbestimmtheit; it. Indeterminazione). 1. Ausência da determina­ ção lógica (v. DETERMINAÇÃO). ÀS vezes, o mes­ mo que indecisão (v. VAGO). 2. Ausência da determinação causai (v. INDETERMINISMO). INDETERMINAÇÃO, RELAÇÕES DE (in Uncertainty relations; fr. Relations d'indétermination; ai. Unbestimmtheitsrelationen; it. Relazioni di indeterminazione). Em física subatômica essa expressão ou a expressão "princípio de I." designa desde 1927 o reco­ nhecimento da ação recíproca entre o objeto e o observador, portanto a perturbação que a observação produz sobre o objeto observado. Foi Heisenberg quem mostrou esse aspecto essencial da física quântica, expressando-o assim: "Nas teorias clássicas a interação entre o objeto e o observador era considerada despre­ zível ou controlável, de tal modo que se pode­

ria eliminar a influência por meio de cálculos. Na física atômica, essa admissão não é possível porque, em vista da descontinuidade dos acon­ tecimentos atômicos, qualquer interação pode produzir variações parcialmente incontroláveis e relativamente grandes. Essa circunstância tem como conseqüência o fato de que, em geral, as experiências realizadas com o fim de determi­ nar uma grandeza física tornam ilusório o co­ nhecimento de outras grandezas obtidas antes; na verdade, influenciam de maneira incontrolável o sistema sobre o qual se opera, portanto os valores das grandezas anteriormente conhe­ cidas são por elas alterados. Se tratarmos essa perturbação de modo quantitativo, veremos que em muitos casos o conhecimento simultâ­ neo de diversas variáveis tem um limite de exa­ tidão finito, que não pode ser ultrapassado" (Die physikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930, I, § 1). Quanto à influência que a descoberta das relações de I. exerceu no campo científico-filosófico, v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO). INDETERMINADO. V. DETERMINAÇÃO. INDETERMINISMO (in. Indeterminism; fr. Indétermínísme, ai. Indeterminismus; it. Indeterminismó). Termo introduzido na linguagem filosófica na segunda metade do séc. XVIII para designar a doutrina que nega o determinismo dos motivos, ou seja, a determinação da vonta­ de humana por parte dos motivos (v. DETER­ MINISMO). Leibniz dizia: "Quando se afirma que um acontecimento livre não pode ser previs­ to, confunde-se liberdade com indeterminação ou com indiferença plena ou de equilíbrio; e quando se quer dizer que a falta de liberdade impediria que o homem fosse culpado, faz-se referência a uma liberdade destituída de neces­ sidade e de coação, e não de determinação ou certeza" (Théod., III, 369). Kant afirmava: "Não há dificuldade em conciliar o conceito de liber­ dade com a idéia de Deus como ser necessário, porque a liberdade não consiste na contingên­ cia da ação (no fato de a ação não ser determi­ nada por nenhum motivo, ou seja, no I.), mas na absoluta espontaneidade que só é ameaçada pelo predeterminismo, uma vez que para ele o motivo determinante da ação é anteceden­ te no tempo; portanto, a ação não está mais atualmente em meu poder, mas nas mãos da natureza e, por esse motivo, sou irresistivel­ mente determinado" (Religion, I. Observação Geral, Nota). OI. compreendido nesse sentido, como negação do determinismo dos moti­

INDEPENDENTE

ÍNDICE

vos, é uma das características do espiritualismo francês (Ravaisson, Lachelier, Boutroux, Hamelin, Bergson etc. Compare A. LEVI, Vindeterminismo nella filosofia francese contempo­ rânea, Firenze, 1904) (V. LIBERDADE). ÍNDICE (in. Index). Termo usado por Peirce para indicar a relação objetiva (não mental) entre o signo e seu objeto. índices neste senti­ do são todos os signos naturais e os sintomas físicos. "Chamo de I. um desses signos" — diz Peirce — "porque um I. designado é o tipo de uma classe" (Coll. Pap., 3-361). INDIFERENÇA, LIBERDADE DE. V. LIBER­ DADE.

INDIFERENÇA, PRINCÍPIO DE (in. Principie of indifference, fr. Príncipe d'indifférence, ai. Indifferenzprinzip; it. Principio di indifferenza). Com este nome ou com os nomes de "princípio de equiprobabilidade" ou "prin­ cípio de nenhuma razão em contrário" indicase o enunciado de que os acontecimentos têm a mesma probabilidade quando não há razão para se presumir que um dele deva acontecer preferivelmente ao outro. Esse princípio foi exposto em Essai philosophique sur les probabilités (1814) de Laplace como segundo princípio do cálculo das pro­ babilidades (cap. 2); fundamenta a teoria a priori da probabilidade, que procura definir a probabilidade independentemente da fre­ qüência dos acontecimentos aos quais se refe­ re. Esse princípio foi abandonado por algumas teorias modernas sobre a probabilidade (LEWIS, Analysis ofKnowledge, 1946, cap. X; REICHENBACH, TheoryofProbability, 1949, §68) (v. PROBABILIDADE).

INDIFERENTES. V. a d iá f o r a . INDISCERNÍVEIS. V. IDENTIDADE DOS. INDISTINTO. Termo usado por Ardigó para definir a evolução, em substituição a "homogê­ neo", de Spencer. A evolução seria a passagem do I. ao distinto: termos extraídos da experiên­ cia psíquica, enquanto os de Spencer foram extraídos da biologia (ARDIGÓ, Opere, II, pp. 189 e passim). INDIVIDUAÇÃO (lat. Individuatio; in. Individuation, fr. Individuation, ai. Individuation; it. Individuazione). Problema da cons­ tituição da individualidade a partir de uma substância ou natureza comum: p. ex., consti­ tuição deste homem ou deste animal a partir da substância "homem" ou substância "animal". O primeiro a formular esse problema foi Avicenna (v. ÁRABE, FILOSOFIA), por quem foi trans­ mitido à Escolástica cristã. O pressuposto de

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INDIVIDUAÇÃO

origem é o princípio da necessidade da subs­ tância, que Avicenna expressa dizendo: "Tudo o que é tem uma substância graças à qual é o que é e graças à qual é a necessidade e o ser daquilo que é" {Lógica, I. ed. Veneza, 1508, fl. 3) (v.). Com base nesse princípio, "o animal é em si alguma coisa e é a mesma coisa, quer seja percebido, quer seja apreendido pelo intelec­ to; e em si não é nem universal nem particular" (Ibid, III. fl. 12 r.). Mas se é assim, o que o tor­ na individual, o que faz da substância "animal" este ou aquele animal? Segundo Avicenna, esse é o problema da individuaçào. E Avicenna en­ contrava em Aristóteles a resposta ao proble­ ma: a individualidade depende da matéria. Aristóteles de fato dissera: "Todas as coisas que são numericamente muitas têm matéria, visto que o conceito dessas coisas, como p. ex. ho­ mem, é uno e idêntico para todas, ao passo que Sócrates (que tem matéria) é único" (Met., XII, 8, 1074 a 33)- Essa solução é aceita por Avicena (In Met., XI, 1) e, através deste, por Alberto Magno (In Met, III, 3, 10) e por muitos outros escolásticos. S. Tomás apresentou uma variante dessa solução ao afirmar que o princí­ pio de I. não é a matéria comum (já que todos os homens têm carne e rosto e portanto não se diversificam nisso), mas a matéria signata ou, como ele diz, "a matéria considerada sob deter­ minadas dimensões" (De ente et essentia, 2). Em outros termos, um homem é diferente de outro porque unido a determinado corpo, dife­ rente pelas dimensões, ou seja, por sua situa­ ção no espaço e no tempo, dos corpos dos demais homens (S. Th, III, q. 77, a. 2). Esse mesmo tipo de solução é reproduzido na Ida­ de Moderna por Schopenhauer, que, conside­ rando a vontade como a substância única e comum de todos os seres, viu o princípio da I. no espaço e no tempo: "De fato, por meio do espaço e do tempo, aquilo que é uno na essên­ cia e no conceito mostra-se diversificado, como pluralidade justaposta e sucessiva" (Die Weil, I, §23). Por outro lado, a corrente agostiniana da escolástica foi levada a reconhecer o princípio da I. na forma das coisas, mais que na matéria. Boaventura julgava que a forma é a essência que restringe e define a matéria em determina­ do ser, e situava o princípio da I. na comunica­ ção (communicatió) entre a matéria e a forma, porquanto o indivíduo é um hoc aliquid, em que o hoc é constituído pela matéria e o aliquid pela forma (In Sent., III, d, 10, a 1, q. 3).

INDIVIDUAÇÃO

Ao mesmo tipo de soluções pertence a inter­ pretação que muitos discípulos de Duns Scot deram à haecceitas [ecceidade] como de uma forma final que completa e integra uma série de formas constitutivas do objeto natural (cf. HERVEUS NATALIS, Depluralitateformarum, 5). Finalmente, uma terceira solução do proble­ ma é autenticamente escotista. Duns Scot nega que a matéria ou a forma possam valer como princípios de individuação. A matéria, que é o sujeito indistinto, não pode ser o princípio da distinção e da diversidade (Op. Ox, II, d. 3, q. 5, n. 1). A forma é a própria substância ou natu­ reza comum, que é antecedente (e indiferente) tanto à universalidade quanto à individualida­ de. A individualidade consiste numa "última realidade do ente" que determina e restringe a natureza comum à individualidade, adessehanc rem. Esta última realidade ou, como ele tam­ bém chama, "entidade positiva" (Ibid, II, d. 3, q. 2) é a determinação última e acabada da matéria, da forma e do composto delas. Desse ponto de vista, o indivíduo não é caracteri­ zado pela simplicidade de sua constituição, mas pela complexidade e riqueza de suas de­ terminações. Como já dissemos, o problema da I. nas­ ce do caráter privilegiado atribuído à substân­ cia comum, que existiria de qualquer maneira antes e independentemente dos indivíduos. Portanto, desaparece quando se nega o caráter privilegiado da substância comum, o que acon­ tece com o nominalismo empirista da última escolástica. Ockham reconhece na substância co­ mum uma forma do universal e o comprometi­ mento na negação resoluta de toda realidade universal: "Nada que esteja fora da alma, nem por si, nem por algo real ou mental que se lhe acrescente, seja de que forma se considere ou compreenda, é universal, pois é tão grande a impossibilidade de que algo fora da alma seja de qualquer maneira universal (a não ser por convenção arbitrária, do mesmo modo como a palavra 'homem', que é particular, se torna uni­ versal) quão grande é a impossibilidade de que o homem, por qualquer consideração ou se­ gundo qualquer ser, seja o asno" (In Sent, I, d. 2, q. 7, S-T). Desse ponto de vista o problema da I. desaparece. Ockham diz ainda: "Deve-se ter em mente, sem sombra de dúvida, que qualquer coisa existente imaginável, por si, sem que nada lhe seja acrescentado, é uma coi­ sa singular e uma coisa de número: pois nada que se imagine é singular devido a alguma

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INDIVIDUALISM O

coisa que se lhe acrescente, mas a singularida­ de é uma propriedade que pertence ime­ diatamente a tudo, porque cada coisa é, por si, idêntica ou diferente de outra" (Expositio áurea, liberpredicabilium, Proemium). Quan­ do, numa de suas primeiras obras, Leibniz afir­ mou que "cada indivíduo é individualizado por sua entidade total", só fazia expressar em ter­ mos escotistas a mesma posição de Ockham, como ele mesmo reconhecia. (De principio indivíduí, 1663, § 4), pois a entidade total não passa da coisa existente enquanto tal. A mesma negação implícita do problema da individuação pode ser vista na solução aparente dada por Wolff: "O princípio da I. é a determinação com­ pleta de todas as coisas inerentes a um ente em ato" (Ont., § 229). Por outro lado, Locke disse­ ra: "Do que se disse é fácil descobrir o que é principium individuationis, sobre o qual tanto se indagou; está claro que ele é a própria exis­ tência, que determina um ser de qualquer espé­ cie, num tempo particular e num lugar particular, incomunicáveis a dois seres da mesma espécie" (AnEssay ConcerningHuman Understanding, II, 27, 4). Estas supostas "soluções" na realidade são negações do problema, que desaparece com­ pletamente (salvo raras exceções) da filosofia moderna, devido à dissolução do seu pressu­ posto: a prioridade ontológica da substância comum. INDIVIDUAL, PSICOLOGIA. V PSICOLO­ GIA, é). INDIVIDUALIDADE (lat. Individualitas; in. Individuality, fr. Individualité, ai. Indívidualitãt; it. Individualitã). Termo de origem medieval: o modo de ser do indivíduo. INDIVIDUALISMO (in. Individualism; fr. Individualisme; ai. Individualismus; it. Indivi­ dualismo). Toda doutrina moral ou política que atribua ao indivíduo humano um preponde­ rante valor de fim em relação às comunidades de que faz parte. O extremo desta doutrina é, obviamente, a tese de que o indivíduo tem valor infinito, e a comunidade tem valor nulo; essa é a tese do anarquismo (v.). Contudo o termo I. é habitualmente utilizado na acepção mais moderada, sendo, nesse sentido, o fun­ damento teórico assumido pelo liberalismo assim que surgiu no mundo moderno. É de fato o pressuposto comum do jusnaturalismo, do contratualismo, do liberalismo econômico e da luta contra o Estado, que constituem os as­

INDIVIDUALISMO

pectos fundamentais da primeira fase do libe­ ralismo (v.). l2 O jusnaturalismo consiste em atribuir ao indivíduo direitos originários e inalienáveis que ele conserva, mesmo que de maneira diferente ou limitada, em todos os corpos sociais de que faz parte (v. JUSNATURALISMO). 2QO contratualismo consiste em considerar que a sociedade humana e o Estado são resul­ tantes de convenção entre os indivíduos; na Idade Moderna a partir de Vindiciae contra tyrannos (1579) dos calvinistas de Genebra, essa doutrina foi freqüentemente usada como negação do absolutismo estatal ou como instru­ mento para limitá-lo (v. CONTRATUALISMO). 3a O liberalismo econômico, próprio dos fisiocratas e da escola clássica de economia política, é a luta contra a ingerência do Estado nos assuntos econômicos e a reivindicação da iniciativa econômica para o indivíduo. Este é um aspecto característico do liberalismo indivi­ dualista (v. ECONOMIA; LBERALEMO). 4S A luta contra o Estado e a tendência a estabelecer limites à sua ação é o caráter global do individualismo. Neste sentido, um dos mais significativos documentos do liberalismo mo­ derno é a obra de SPENCER, O homem contra o Estado (1884), na qual se combate a ingerência do Estado (portanto também do Parlamento) até no campo da saúde e do ensino público, além do campo econômico. O postulado subjacente a todos estes dife­ rentes aspectos do I. é a coincidência entre o interesse do indivíduo e o interesse comum ou coletivo. JI ordem natural que, em Riqueza das nações (1776), Adam Smith considerava carac­ terística dos fatos econômicos, servia como ga­ rantia dessa coincidência. Nisso também acre­ ditavam Benthan e James Mill. Quando foram observadas as anomalias da ordem econômica e se reconheceu que a simples limitação dos poderes do Estado não elimina essas anoma­ lias, nem a desordem ou as desigualdades so­ ciais, essa crença começou a ficar abalada, a fase individualista do liberalismo chegou ao fim e teve início a fase que recorria à ação do Estado e tendia a exaltar seu papel. Esse novo ponto de vista tachou o I. de "atomismo" por­ que pretendia que a sociedade nascesse de um conjunto de átomos sociais, os indivíduos; de "anarquismo" porque pretendia que o indiví­ duo não se submetesse à ação do Estado; de "egoísmo" porque desejava que as atividades econômicas se desenvolvessem segundo as di­

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INDIVÍDUO

retrizes do interesse privado. Desse modo, po­ rém, eram negligenciados os motivos históri­ cos que haviam provocado o surgimento da corrente individualista no liberalismo, prepa­ rando-se assim, inadvertidamente, o caminho para novas vitórias do absolutismo estatal. INDIVÍDUO (gr. aTOUOV; lat. Individuum; in. Individual; fr. Individu; ai. Individuum; it. Indivíduo). Em sentido físico: o indivisível, o que não pode ser mais reduzido pelo procedi­ mento de análise. Em sentido lógico: o que não pode servir de predicado. Para Aristóteles, oi., no primeiro sentido, é a espécie, porquanto, sendo resultado da divisão do gênero, não pode ser dividida (An.post., II, 13, 96b 15; Met., V, 10, 1018 b 5). À determinação da indivisibili­ dade os lógicos do séc. V acrescentaram a im­ possibilidade de servir de predicado. Boécio diz: "Chama-se de I. aquilo que não pode ser dividido por nada, assim como a unidade ou a mente, ou o que não pode ser dividido devido à sua solidez, como o diamante; ou o que não pode servir de predicado a outras coisas seme­ lhantes, como Sócrates" (AdIsag., II em P. L, 64, col. 97). Esse reparo tornou-se fundamental na lógica medieval, que o utilizou para definir o I.: "I. é aquilo de que se diz uma única coisa, como Sócrates e Platão" (Pedro Hispano, Summ. log, 209). S. Tomás fala de um I. vago(vagum), que corresponde à individualidade da espécie e de um I. único: "O I. vago, p. ex. o homem, significa uma natureza comum com determina­ do modo de ser que compete às coisas singu­ lares, que subsistem por si e são distintas das demais. Mas o I. único significa algo determina­ do que distingue; assim, o nome Sócrates signi­ fica este corpo e este rosto" (S. Th., I, q. 30, a. 4). OI. vago obviamente é apenas a unidade só numericamente distinguível de outras unida­ des. Era assim definido por Duns Scot: "Chamase de I., ou seja, o que é numericamente uno, aquilo que não é divisível em muitas coisas e se distingue numericamente de qualquer outra" (In Met., VII, q. 13, n. 17). Contudo, em Duns Scot mesmo encontramse as premissas de um conceito diferente de indivíduo: este, em seu modo de ser, em sua singularidade, é caracterizado por uma deter­ minação última ou "realidade última" da natu­ reza que o constitui (v. INDIVIDUAÇÃO), de tal forma que inclui um conjunto ilimitado de de­ terminações, em virtude das quais a natureza comum se restringe até se tornar este determi­

INDIVÍDUO

nado ente. Desse ponto de vista, o I. não é ca­ racterizado pela indivisibilidade, mas pela infi­ nidade de suas determinações. Esse conceito foi expresso claramente por Leibniz: "Embora possa parecer paradoxal, é impossível ter co­ nhecimento dos I. e encontrar o meio de deter­ minar exatamente a individualidade de uma coisa, a menos que não se a considere em si mesma. De fato, todas as circunstâncias podem repetir-se; as diferenças mínimas são imper­ ceptíveis; o lugar e o tempo, em vez de serem determinantes, precisam eles mesmos ser de­ terminados pelas coisas que contêm. O que existe de mais considerável nisto é que a indi­ vidualidade envolve o infinito e que só quem é capaz de compreendê-lo pode ter conhecimen­ to do princípio de individuação desta ou da­ quela coisa; se entendermos isso corretamente, veremos que se deve à influência que todas as coisas do universo exercem umas sobre as outras. É verdade que não seria assim, se exis­ tissem os átomos de Demócrito, mas nesse caso não existiria sequer diferença entre dois I. diferentes de mesmo aspecto e mesmas dimen­ sões" {Nouv. ess, III, 3, § 6). O pressuposto desta doutrina é que, na natureza, só existem I., ou seja, coisas singulares: pressuposto que, juntamente com os outros pontos principais, foi expresso com toda a clareza por Wolff. Este começa por afirmar que o I. é "aquilo que per­ cebemos com o sentido interno ou com o sen­ tido externo ou o que podemos imaginar enquanto coisa única" (Log, § 43), e continua definindo o I. como "o ente que é determinado sob todos os aspectos {ens omnimode determinatuni), no qual são determinadas todas as coisas que lhe são inerentes" (Jbid, § 74). Essa noção do I. como o que é absoluta ou infinita­ mente determinado foi utilizada com freqüên­ cia pela metafísica moderna. Foi essa noção que permitiu a Hegel (e a muitos que seguiram seu exemplo) falar de "I. universal" sem incidir numa contradição de termos: "A tarefa de acompanhar o I. desse seu estado inculto até o saber devia ser entendida em seu sentido geral e consistia em considerar o I. universal, o Espí­ rito autoconsciente, em seu processo de for­ mação. No que concerne à relação desses dois modos de individualidade, no I. universal cada momento se mostra no ato em que ganha a forma concreta e seu aspecto próprio. OI. parti­ cular é o espírito não acabado: uma figura con­ creta em tudo, cujo ser determinado domina uma só determinação, estando as demais pre­

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INDUÇÃO

sentes apenas em escorço" {Phãnomen. des Geistes, Pref., II, § 3; trad. it., p. 24). Do ponto de vista do conceito de I. como infinidade de determinações, Hegel certamente podia falar de I. universal, pois uma infinidade de determi­ nações só pode ser atribuída a um I. absoluto ou infinito. Diante disso, como diz Hegel, o I. finito caracteriza-se por uma única determina­ ção, estando as demais presentes apenas acessoriamente. Bergson faz referência ao mesmo conceito de I. quando afirma que "a individua­ lidade comporta uma infinidade de graus e em parte alguma, nem mesmo no homem, ela se realiza plenamente" (Evol. créatr., cap. I, ed. 1911, p. 13). Obviamente, esse conceito de indivíduo leva ou a hipostasiar a individualida­ de de um I. absoluto, como fez Hegel, ou a declará-la inatingível, como fez Bergson. Mas exatamente isso demonstra que se trata de um conceito inútil. Na filosofia contemporânea, o I. (assim co­ mo a noção análoga de elemento [v.]) é defi­ nido em relação com as exigências predo­ minantes nos vários campos de indagação, ou melhor, em relação com as várias exigências analíticas. No campo moral ou político o I. é a pessoa. No campo biológico, o I. pode ser, para certos fins, o organismo; para outros, a célula. Mas foi sobretudo no campo das ciên­ cias históricas que a filosofia e a metodolo­ gia contemporâneas utilizaram a noção de I. Windelband (Práludien, II, p. 145) e Rickert ( Grenzen dernaturwissenschaftlichen Begriffsbildung, p. 420) evidenciaram o caráter individualizante das ciências do espírito, diante do caráter generalizante das ciências natu­ rais. O conhecimento histórico visa a repre­ sentar o I. em seu caráter singular e irrepetível, ou seja, não como o caso particular de uma lei, mas como irredutível aos outros I. com os quais está em conexão causai. O I., neste caso o evento histórico (fato, pessoa, instituição etc), tem duas características: a singularidade e a não-repetibilidade (v. HISTÓRIA). INDUÇÃO (gr. ÈliaYCcyn; lat. Inductio-, in. Induction; fr. Induction; ai. Induktion; it. Induzíone). "A I. é o procedimento que leva do par­ ticular ao universal": com esta definição de Aristóteles {Top, I, 12, 105 a 11) concorda­ ram todos os filósofos. O próprio Aristóteles vê na I. um dos dois caminhos pelos quais conse­ guimos formar nossas crenças; a outra é a de­ dução {silogismo) {An. pr, II, 23, 68 b 30). Além disso, atribuiu a Sócrates o mérito de ha­

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ver descoberto os "raciocínios indutivos" (Met., XIII, 4, 1078 b 28). Entre a I. e o silogismo, Aris­ tóteles estabelece todavia uma grande diferen­ ça de valor. No silogismo dedutivo ("Todos os homens são animais; todos os animais são mor­ tais; logo, todos os homens são mortais") o ter­ mo médio (animal) constituí a substância ou a razão de ser da conexão necessária entre os dois extremos: os homens são mortais porque são substancialmente animais. Noraciocínio indu­ tivo, entretanto ("O homem, o cavalo e o mulo são duradouros; o homem, o cavalo e o mulo são animais sem fel; logo, os animais sem fel são duradouros"), o termo médio (ser sem fel) aparece na conclusão, o que significa que ele não é um porquê substancial, mas um simples fato (An.pr, II, 23, 68 b 15). Portanto, a I. não tem valor necessário ou demonstrativo, conquanto seja mais clara que o silogismo; seu âmbito de validade é o mesmo do fato, ou seja, da totali­ dade dos casos em que sua validade foi efeti­ vamente constatada. Pode, portanto, ser usada para fins de exercício, em dialética, ou com objetivos persuasivos em retórica (Rbet., I, 2, 1356 b 13), mas não constitui ciência porque a ciência é necessariamente demonstrativa (An. post., I, 2, 71 b 19)- Na filosofia pós-aristotélica, os epicuristas julgaram que a I. era o único pro­ cedimento de ínferência legítima, enquanto os estóicos negaram esse valor. Em Designis, de Filodemo, encontramos um relato preciso da polêmica que esse assunto provocou entre as duas escolas. Os estóicos diziam que não basta constatar que os homens que estão ao nosso redor são mortais para dizer que em qualquer lugar os homens são mortais; seria necessário estabelecer que os homens são mortais exata­ mente enquanto homens, para conferir neces­ sidade a essa inferência (Designis, III, 35; IV, 10; DE LACY, Philodemus on Methods oflnference, 1941, p. 31). O problema da I. já se apresentava nessa dificuldade proposta pelos estóicos. A eles os epicuristas objetavam que, desde que nada se oponha à conclusão, a ge­ neralização indutiva é válida (Ibid, VI, 1-14; XIX, 25-36; DE LACY, pp. 34, 66). Sexto Em­ pírico só fazia reexpor de forma mais radical a crítica dos estóicos, partindo da distinção entre I. completa e I. incompleta. "Uma vez que, par­ tindo do particular, desejam confirmar o univer­ sal por meio da I., farão isso percorrendo todos os particulares ou apenas alguns. Se alguns so­ mente, a I. será incerta, sendo possível que ao universal se oponha algum dos particulares

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omitidos na indução. Se todos, estarão em­ preendendo um trabalho impossível, porque os particulares são infinitos e ilimitados" (Pirr. hyp., II, 204). Fora Aristóteles quem afirmara que a I. era feita a partir de todos os casos particulares possíveis (An.pr., II, 23, 68 b 29), enquanto os epicuristas haviam afirmado o valor da I. in­ completa. Bacon, portanto, só fez retomar a al­ ternativa epicurista quando declarou pueril a I. completa ou per enumerationem simplicem. "Esta I. pode ser derrubada por qualquer instância contrária; além disso, considera sem­ pre as mesmas coisas e não atinge seu fim. Para as ciências, entretanto, é necessária uma forma de I. que escolha bem as experiências e conclua necessariamente, após as devidas ex clusões e eliminações" (Nov. Org, Distrib. Op.). Esta forma de I., que Bacon (embora com dúvidas) atribui a Platão (Ibid, 105), deve inverter a ordem da demonstração. Bacon diz: "Até agora era costume passar de chofre dos dados do sentido e das coisas particulares para as coisas gerais, como a pólos fixos da disputa, inferindo depois todas as outras coisas destas, através das coisas intermédias. Esse é um ata­ lho, excessivamente íngreme, pelo qual nunca se encontra a natureza, mas apenas questões. Ao contrário, os axiomas devem ser inferidos por graus sucessivos, chegando só no fim aos axiomas generalíssimos, que não são simples noções mas fatos bem determinados, sendo tais que a natureza os reconhece realmente como seus e inerentes à essência das coisas" (Ibid, Distrib. Op.). Em outros termos, para Bacon a certeza da I. consiste no fato de que, por fim, a I. redunda na determinação da for­ ma da coisa natural, entendendo-se por forma "a diferença verdadeira, a natureza naturante ou fonte de emanação" que explique o proces­ so latente e o esquematismo oculto dos corpos (Ibid, II, 1). Nesse sentido, a forma não passa da "substância" aristotélica: princípio ou razão de ser da coisa. Aristóteles achava que essa substância podia ser apreendida pelo proce­ dimento silogístico, intuitivo-demonstrativo; Bacon acha que ela pode ser apreendida pelo procedimento indutivo que selecione e orga­ nize as experiências. Portanto, a verdadeira diferença entre Bacon e Aristóteles é que, para Bacon, a nova disciplina do procedimento indutivo por ele proposta (disciplina que con­ siste na formação de tábuas que selecionem e classifiquem as experiências e na instituição de experiências de verificação) permite atingir

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com certeza a substância, de que, segundo Aristóteles, a I. só pode aproximar-se de ma­ neira incerta ou imprecisa e cuja necessidade só pode ser atingida pelo processo dedutivo. Graças a essa interpretação do procedimento empirista nos termos da metafísica aristotélica, Bacon pôde atribuir à I. incompleta a mesma "necessidade" que Aristóteles atribuía ao proce­ dimento silogístico. Desse ponto de vista, o problema da L, nos termos formulados pela crítica dos estóicos e de Sexto Empírico, nem sequer se apresentava. Por outro lado, o cartesianismo não estava interessado em propor o problema da I., vendo nela a mesma função preparatória e subordinada que Aristóteles lhe atribuíra. A Lógica de Port-Royal diz: "A indu­ ção apenas nunca é um meio certo para se che­ gar à ciência perfeita porque a consideração das coisas particulares é apenas uma oportuni­ dade para o nosso espírito prestar atenção às suas idéias naturais, segundo as quais julga so­ bre a verdade das coisas em geral. O que é verdade porque, p. ex., eu nunca teria tomado em consideração a natureza do triângulo, se não houvesse visto um triângulo que me deu ensejo de pensar no assunto; todavia não foi o exame particular desses triângulos que me le­ vou a concluir de modo geral e certo que a área de todos os triângulos é igual à área do retân­ gulo construído sobre sua base dividida por dois (visto que este exame é impossível), mas apenas a consideração do que está incluído na idéia de triângulo, que encontro no meu espíri­ to" (ARNAULD, Log., III, 19, § 9). Portanto, foi só depois que as ciências começaram a usar am­ plamente o procedimento indutivo, como aconteceu na segunda metade do séc. XVII, que o problema da I. como problema da vali­ dade do procedimento indutivo e do direito de usá-lo voltou a apresentar-se, sendo clara­ mente exposto pela dúvida cética de Hume: "Todas as inferências extraídas da experiên­ cia supõem, como fundamento, que o futuro se assemelhará ao passado e que poderes se­ melhantes estarão unidos a qualidades sensí­ veis semelhantes. Se houvesse alguma suspeita de que o curso da natureza pudesse mudar e de que o passado não servisse de regra para o futuro, toda a experiência se tornaria inútil e não poderia dar origem a nenhuma inferência ou conclusão. É impossível, portanto, que argumentos extraídos da experiência possam provar a semelhança entre o passado e o futu­ ro, visto que todos os argumentos desse tipo

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fundam-se na suposição dessa semelhança. Mesmo se admitindo que o curso das coisas sempre regular foi, só isso, sem nenhum argu­ mento ou inferência nova, não prova que no futuro continuará assim" Unq. Cone. Underst., IV, 2). Foi nesses termos que se propôs com fre­ qüência o problema da I. no mundo moderno. Foram-lhe dadas três soluções fundamentais: Ia objetivista; 2- subjetívista; 3a pragmática. Esta última marca a passagem da concepção necessitarista (pressuposta pelas outras duas) para a concepção probabilista da indução. Ia A solução objetivista consiste em conside­ rar a existência de uma uniformidade da natu­ reza que admite a generalização das experiên­ cias uniformes. Esta solução é muito antiga, tendo sido sustentada por Filodemo em sua polêmica contra os estóicos: "Do fato de todos os homens que conhecemos serem semelhan­ tes também no que se refere à mortalidade, inferimos que todos os homens, universalmen­ te, estão sujeitos à morte, visto que nada se opõe a essa inferência ou nos mostra que os homens não são suscetíveis de morrer. Recor­ rendo a essa semelhança, declaramos que, com relação à mortalidade, os homens que não co­ nhecemos pessoalmente são semelhantes aos que conhecemos por experiência". {De signis, XVI, 16-29; DE LACY, Ibid, pp. 58 ss.). Neste trecho, obviamente o direito à inferência indu­ tiva fundamenta-se na uniformidade revelada pelas semelhanças. De modo análogo, no fim da Escolástica, Duns Scot e Ockham baseavam a I. no princípio de causalidade. Duns Scot di­ zia: "Das coisas conhecidas por experiência digo que, embora não se tenha sempre expe­ riência de todas as coisas particulares, mas apenas na maioria das vezes, quem experi­ menta sabe infalivelmente que assim é, sempre e em todos os casos, com base na seguinte pro­ posição existente na alma: tudo o que deriva na maioria das vezes de uma causa não livre é o efeito natural dessa causa" (Op. Ox., I, d. 3, q. 4, n. 9); nesse trecho, efeito natural significa efeito uniforme porque necessário. Para Ockham, o fundamento da I. era o princípio: "Cau­ sas da mesma natureza (ratio) têm efeitos da mesma natureza" (In Sent, Prol., q. 2 G), e essa mesma solução era proposta no séc. XIX por Stuart Mill. O fundamento da I. é o princí­ pio das uniformidades das leis naturais, e esse princípio é o mesmo de causalidade. Este, por sua vez, não podendo ser reduzido a um instin­

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to infalível do gênero humano ou a uma intui­ ção imediata, só pode ser produto de indução. "Chegamos a essa lei geral" — diz Stuart Mill — "através da generalização das muitas leis de ge­ neralidade inferior. Nunca teríamos chegado à noção de causação (no significado filosófico do termo) como condição de todos os fenômenos, se muitos casos de causação ou, em outras pa­ lavras, muitas uniformidades parciais de suces­ são não se tivessem tornado familiares antes. A mais óbvia das uniformidades particulares su­ gere e torna evidente a uniformidade geral, e a uniformidade geral, uma vez estabelecida, per­ mite-nos demonstrar as outras uniformidades particulares das quais resulta" (Logic, III, 21, § 2). A uniformidade da natureza, portanto, é uma simples I. per enumerationem simplicem. O círculo vicioso é evidente, e nele incide qual­ quer solução análoga para esse problema. 2a A segunda solução do problema da I. é subjetivista ou crítica, encontrando-se no kantismo. Foi proposta pelo próprio Kant como resposta à dúvida de Hume sobre a possibilida­ de da generalização científica; consiste em admitir a uniformidade da estrutura categoria! do intelecto e, por isso, da forma geral da natu­ reza que dele depende. Kant diz: "Toda per­ cepção possível, portanto tudo aquilo que pode chegar à consciência empírica — isto é, todos os fenômenos da natureza quanto à sua unificação —, está sotoposta às categorias, das quais depende a natureza, considerada sim­ plesmente como natureza em geral, assim co­ mo ao princípio originário de sua necessária conformidade a leis (qual natura formaliter spectata). Mas nem a faculdade pura do inte­ lecto chega a prescrever, apenas mediante cate­ gorias, mais leis além daquelas sobre as quais repousa uma natureza em geral como regulari­ dade dos fenômenos no espaço e no tempo." Portanto, as leis particulares devem ser extraí­ das da experiência (Crít. da R. Pura, § 26). Isso significa que, em sua conformidade às leis, em sua uniformidade, a natureza depende das ca­ tegorias, ou seja, da estrutura uniforme do intelecto, e que, portanto, a uniformidade ou leis que podem ser encontradas na expe­ riência estão garantidas pela uniformida­ de da forma comum (intelecto-natureza). Esta doutrina é simetricamente oposta à da unifor­ midade natural, mas seu significado é o mes­ mo. Em Lacheli'er encontra-se uma transcri­ ção em termos espiritualistas da mesma tese fundamental (Fundamento da /., 1871): a pos­

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sibilidade da I. apóia-se na organização finalista do universo, ou seja, no fato de que a ordem da natureza é estabelecida pelo espírito (Fondement de Vinduction, Paris, 1907, p. 12). A este tipo de solução reduzem-se todas as justifi­ cativas espiritualistas ou idealistas. 3a A justificação pragmática foi proposta na filosofia contemporânea quando se reco­ nheceu a impossibilidade de uma justifica­ ção teorética, mas não se chegou a negar a legitimidade do problema, ou seja, da procura de justificação. A justificação foi buscada na interpretação probabilista da I. A mais simples expressão da regra da I. probabilista talvez seja a de Kneale: "Depois de observarmos certo número de coisas a e de descobrirmos que a freqüência das coisas (3 entre elas é f concluí­ mos que P (a, p) = / ou seja, que a probabili­ dade de uma coisa a ser p deve ser /" (Probability and Induction, Oxford, 1949, p. 230). Expressões mais complicadas que a própria regra são encontradas em Lewis (Analysis ofKnowledge, 1946, p. 272) e em Reichenbach (Theory ofProbability, 1949, p. 446; cf. Fxperience and Prediction, Chicago, 1938, pp. 339 ss.). Mas todos eqüivalem a dizer que, quando determi­ nado caráter recorre em certa proporção das amostras examinadas, pode-se supor que essa proporção vale para todos os outros exemplos do caso, salvo prova em contrário. Quando a proporção é igual a cem por cento das amos­ tras examinadas, quando o caráter em questão ocorre em todas, tem-se a generalização uni­ forme ou completa. É o que acontece quando se afirma que "todos os homens são mortais" porque o fato de ser mortal esteve constante­ mente unido ao fato de ser homem. Por outro lado, quando o valor numérico dessa propor­ ção é tomado como medida da possibilidade de que o caráter em questão reapareça em novo exemplo, tem-se um juízo de probabilidade (v.). Obviamente, a generalização completa e o juízo de probabilidade são aspectos da gene­ ralização estatística. Em vista disso, a justifica­ ção da I., do ponto de vista pragmático, pode ser feita asseverando-se: a) que a I. é o único meio de obter previsões; b) que ela é o úni­ co meio suscetível de autocorreção. a) Kneale diz: "A I. primária é uma diretriz racional não por ser certo que ela leve ao su­ cesso, mas porque é a única maneira de tentar­ mos fazer aquilo de que necessitamos: previ­ sões exatas" (Op. cit, p. 235). Contra esse

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argumento, que é aceito por muitos (cf., p. ex., op. cit., p. 475), Black observa que, se a I. é o único meio de obter previsões, o sucesso dessas mesmas previsões não a confirma, assim como o seu insucesso não a refuta (Problems ofAnalysis, 1954, pp. 174 ss.). E Black observa que esse argumento, assim como o outro análogo, de que a I. é o único método para verificar os outros métodos de previsão, tem a pretensão de justificar deduti­ vamente a I., de justificá-la com base em argu­ mentos que, como seus próprios proponentes reconhecem (REICHENBACH, op. cit., p. 479; J. O. WISDOM, Foundcitions oflnference in Natu­ ral Science, 1953, p. 229), têm caráter analítico ou tautológico. Os argumentos genuinamente práticos — observa ainda Black — não são dedutivos. Na vida quotidiana, numa situação cjue exige decisão, os indícios indicam com certo grau de segurança a ação que será mais adequada, mas ela não é dedutível daquela indicação e tampouco a conduta contrária im­ plica contradição {Problems of Analysis, p. 185). Portanto, esse tipo de argumentação não tem valor como justificativa do procedimento indutivo. b) O segundo argumento fundamental para a justificação prática da I. é sua capacidade de autocorreçâo. Peirce foi o primeiro a falar nes­ se caráter, discernindo nele a própria essência da I. (Coll. Pap, 2729). E Reichenbach disse: "O procedimento indutivo tem o caráter de um método de tentativa e erro projetado de tal forma que, nas séries que tenham um limite de freqüências, ele leva automaticamente ao su­ cesso num número finito de etapas. Pode ser denominado um método autocorretivo ou assintótico" (Op. cit, p. 446, § 87; cf. KNEALE, op. cit., p. 235). Contra esse argumento Black observou que o termo autocorretivo não é exa­ to, visto ser verdadeiro que a I. inclui a possi­ bilidade constante de revisão, mas, para dizer que as revisões são correções, seria necessário que elas fossem progressivas, ou seja, dirigidas para uma única direção e na direção apropria­ da. Mas é exatamente essa segurança que falta (Problems ofAnalysis, p. 170). Pode-se admi­ tir, com Black, que nem esse argumento é realmente uma "justificação" da I. no sentido universal ou dedutivo da palavra "justificação", mas que a possibilidade de autocorreçâo é caráter do procedimento indutivo, assim como de todo procedimento científico, é coisa que não se pode pôr em dúvida; ademais, é o caráter a REICHENBACH,

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que o próprio Black recorre para caracterizar o método científico (Op. cit, p. 23). A revisão, que a I. possibilita e à qual, aliás, todo o seu procedimento está intrinsecamente subordi­ nado, é correção no sentido preciso do ter­ mo, ou seja, eliminação dos erros revelados pelo próprio procedimento. Uma modificação que não fosse revisão ou correção nesse senti­ do não seria exigida e realizada pela indução. Com tudo isso, o estado atual do problema da I. parece bem expresso pela conclusão de Black, de que não só é impossível justificar a I., mas também que seu problema carece de sen­ tido, se por justificação se entende a demons­ tração da validade infalível do procedimento indutivo. "Insistir em que deve haver uma con­ clusão seria como dizer que, se um bom joga­ dor de xadrez conhece os movimentos a serem feitos numa partida de xadrez, ele também deve ser capaz de conhecer os movimentos a serem feitos num tabuleiro com uma só peça. Mas este não é um problema de xadrez e nada há que o jogador de xadrez possa resolver. O problema daquilo que devemos inferir quando sabemos apenas que alguns A são B não é um problema indutivo genuíno, e não há modo de resolvê-lo a não ser reconhecendo que seria inoportuno tentá-lo" (Op. cit, pp. 188-89; cf. Language andPhilosophy, 1952, cap. II). Em outros termos, o problema da I. em geral, as­ sim como o problema de inferir o futuro do passado ou os casos não observados dos casos observados, não têm sentido por falta de da­ dos, Se esses dados forem fornecidos, não haverá mais problema de I., mas problemas pertencentes aos domínios de cada ciência. Deve-se acrescentar, todavia, que a eliminação do problema da I. em sua forma clássica não exime o filósofo de analisar os procedimentos indutivos empregados por cada ciência, de confrontar tais procedimentos e de fazer as generalizações que possam surgir desse con­ fronto. Está claro, porém, que essa ordem de investigação, não empreendida até hoje, nunca levará à justificação cia indução, que, se fosse alcançada, teria como efeito imediato a elimina­ ção de todos os riscos dos procedimentos indu­ tivos e a redução destes procedimentos à certeza e à necessidade dos procedimentos dedu­ tivos. Na realidade, os procedimentos científi­ cos e, em geral, os comportamentos e as dire­ trizes racionaisáo homem consistem em limitar o risco, em torná-lo calculável, não em eliminálo. Portanto, os problemas filosóficos não po­

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INDUÇÃO MATEMÁTICA

dem ser propostos de tal forma que sua solução signifique a eliminação do risco. O caráter quimérico de tal postura evidencia, mais que qual­ quer outra coisa, a ilegitimidade do problema da justificação da indução. Essa tese foi expres­ sa por Popper de forma extremada, pois este considerou a I. um simples mito, que não é um fato psicológico, nem um fato da vida comum, muito menos um procedimento científico; e considerou que a ciência procede pelo método de tentativa e erro, ou seja, dá saltos bruscos, indo de uma observação única a uma conjectura ou uma hipótese que depois procura refutar e que é mantida enquanto a refutação não ocorre (Conjecturas andRefutations, 1963, pp. 3 ss.). INDUÇÃO MATEMÁTICA (in. Matbematical induction; fr. Incluction mathématique; ai. Mathematische Induktiort; it. Induzione matemática). Essa expressão designa o princí­ pio que serve para estabelecer a verdade de um teorema matemático em um número indefi­ nido de casos. Denomina-se também princípio de recorrência ou raciocínio por recorrência (POINCARÉ, La science et Vhipothèse, I, § 3). Peano assim definiu esse princípio: "Seja S uma classe, suponhamos que O pertença a essa classe e que todas as vezes que um indivíduo pertença a essa classe o seguinte também per­ tence a ela; então todos os números perten­ cerão a essa classe. Essa proposição denomi­ na-se princípio de I." (Formul. mat, § 10). Esse princípio nada tem em comum com a I. científica, a não ser o caráter de generalização (cf. MORRIS R. COHEN-ERNEST NAGEL, TheNature ofa Logical or Mathematícal System, § 6, em Readíngs in the Phil. of Science, 1953, p. 144). INEFÁVEL ou EVEXPRIMÍVELÜat Ineffabilis; in. Inexpressible, fr. Inexprimable, ai. Unaussprechlich; it. Inesprimibile). Na teologia místi­ ca, a partir das antigas religiões ocultistas, I. é aquilo que se revela no ponto culminante da experiência mística, o entusiasmo ou êxtase (cf. PLOTINO, Enn., VI, 9,11; PSEUDO-DIONÍSIO, Myst. TheoL, 1,1; S. BONAVENTURA, Itinerariummentis inDeum, VII, 5, etc). Na filosofia contemporâ­ nea Wittgenstein, na conclusão de Tractatits logico-philosophicus(1922), admite a existência do I.: "Realmente, o inefável existe. Ele se mos­ tra, é aquilo que é místico" (Tractatus, 6.522); "sentimos que, se todas as possíveis perguntas da ciência tivessem resposta, os problemas de nossa vida não seriam sequer aflorados. Certa­ mente não ficaria então pergunta alguma; e

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INÉRCIA

esta é justamente a resposta'' (Ibid, 6. 52). E o Tractatus encerrava-se com a afirmação: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Ibid., 7). Por outro lado, Carnap falava de uma "mitologia do I." e considerava essa palavra perigosa, porque apta a produzir confusões e incertezas. O enunciado "Existem objetos I.", traduzido para a linguagem formal, soa, para Carnap simplesmente "Existem designa­ ções de objetos que não são designações de objetos" ou "'Existem enunciados que não são enunciados" (LogischeSyntaxderSpracbe, 1934, § 81; trad. in., p. 314). INÉRCIA (in. Inertia; fr. Inertie; ai. Thagheit; it. Inerzia). A história deste conceito funda­ mental da mecânica moderna deve muito à filosofia. Era estranho à física de Aristóteles porque nela se julgava válida uma tese que o exclui: "tudo o que se move é movido necessa­ riamente por alguma coisa" (Fís, VII, 1, 241b 24). É óbvio que, a ser verdadeiro esse princí­ pio, um corpo não pode persistir em seu esta­ do de movimento sem a ação de outro corpo. A teoria do impetus, exposta pelos escolásticos do séc. XIV, constitui a primeira crítica a esse princípio de Aristóteles e.a primeira manifesta­ ção da noção de inércia. Ao princípio de Aris­ tóteles, Ockham opôs o exemplo da flecha, ou de qualquer outro projétil, que recebe um impulso e o conserva, mesmo sem ser acompa­ nhado em sua trajetória pelo corpo que lhe transmitiu o impulso (In Sent., II, q. 18, 26). Um discípulo de Ockham, Buridan (séc. XIV) retoma essa doutrina e a aplica ao movimen­ to dos céus: estes podem ser perfeitamente movidos por um impulso transmitido pela potên­ cia divina, que se conserva porque não é redu­ zido ou destruído por forças contrárias (InPhys., VIII, q. 12). Nicolau de Oresme e Alberto de Saxônia, que também pertenceram à corrente ockhamista do séc. XIV, na Universidade de Pa­ ris, retomam e defendem essa teoria. Desta tra­ dição escolástica a noção de I. passou para os fundadores da ciência moderna, Leonardo da Vinci e Galilei. Este último utiliza constante­ mente essa noção e a apoia numa espécie de experimento mental. Falando do movimento de uma esfera perfeita sobre um plano bem liso, ele pergunta: "Agora, digam-me o que aconteceria ao mesmo objeto móvel sobre uma superfície que não fosse aclive nem declive"? E responde: "ele seria perpétuo" (Op, VII, 273; cf. VIII, p. 243). Mas embora utilizasse corre­ tamente a noção de L, Galilei não formulou de

INERENCIA

modo explícito o princípio correspondente; o primeiro a formulá-lo foi Descartes, que estabe­ leceu como "primeira lei da natureza" o prin­ cípio de que "cada coisa continua no mesmo estado enquanto pode e só o muda quando se encontra com outras coisas" (Princ. phil, II, § 37). Alguns decênios depois, ao ser aceito por Newton como primeiro princípio da dinâmica em Princípios matemáticos da filosofia natu­ ral (1687), o princípio da I. ingressava defini­ tivamente na ciência moderna, onde foi e con­ tinua sendo, mais que uma "lei natural" (no sentido cartesiano do termo) ou uma verdade experimental, um postulado ou princípio ins­ trumental que permite o cálculo da força (v.) ou da energia (v.). Sobre a teoria do impetus, cf. DUHKM, Etudes surLéonard de Vinci, Paris, 1909. INERENCIA. V. SER, I. A. INFERÊNCIA (in. Inference; fr. Inference; ai. Inferiren; it. Inferenza). No latim medieval, encontra-se em muitos lógicos o termo in/erre, que designa o fato de, numa conexão (ou consequentia) de duas proposições, a primeira (antecedente) implica (ou melhor, contém por "implicação estrita") a segunda (conseqüente). Na filosofia moderna, o termo "I." é preferido pelos anglo-saxòes, ao passo que, em língua italiana, se prefere illazione (ilação). Na língua inglesa, esse uso é muito amplo, significando desde implicação (v.), como p. ex. emjevons e, em geral, nos lógicos ingleses do séc. XIX, até o processo mental através do qual, partindo de determinados dados, se chega a uma con­ clusão por implicação ou mesmo por indução (Stebbing, Dewey), Stuart Mill diz: "Inferir uma proposição de uma ou mais proposições ante­ cedentes, assentir ou crer nela como conclusão de qualquer outra coisa, isso é raciocinar no mais amplo significado do termo" (Logic, II, 1, 1). Essa palavra é empregada com o mesmo sentido generalíssimo por Peirce (Chance, Love and Logic, cap. VI) e por muitos lógicos con­ temporâneos (Lewis, Reichenbach, etc). De­ wey distinguiu ai., como relação entre signo e coisa significada, da implicação, que seria a relação entre os significados que constituem as proposições (Logic, Introdução; trad. it., p. 96), mas essa proposta não teve seguidores. G. P. INFIMTESIMAL (lat. Infinitesimus; in. Infinitesimal; fr. Infinüésimal; ai. Infinitesimal; it. Infinitesimale). Uma grandeza que pode vir a ser menor que qualquer grandeza determinável, ou, em termos menos apropriados, uma

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grandeza tendente a zero. Este conceito foi co­ nhecido pelos gregos, que o empregaram com freqüência; é pressuposto nas argumentações de Zenão de Eléia contra o movimento (v. AQUILES; DICOTOMIA; FLECHA; ESTÁDIO) e foi cla­ ramente expresso por Anaxágoras, que disse: "Com relação ao pequeno, não há mínimo, mas há sempre um menor, porque o que existe não pode ser anulado" (Fr. 3, Diels). Esse con­ ceito foi exposto por Aristóteles (Fís, III, 7, 207b 35), retomado pelos últimos escolásticos (cf. por todos OCKHAM, In Sent., I, d. 17, q. 8) e utilizado por Leibniz como fundamento do cálculo I., cujo primeiro documento importan­ te é o texto Novo método para os máximos e os mínimos (1682). INFINITO (gr. caretpov; lat. Infinitum, in. Infinite, fr. Infini; ai. Unendlich; it. Infinito). Este termo tem os seguintes significados prin­ cipais, entre os quais existem algumas seme­ lhanças: 11> I. matemático, que é a disposição ou a qualidade de uma grandeza; 2- I. teológi­ co, que é a não-limitaçâo da potência; 3S I. metafísico, que é a nào-completude. le A concepção matemática do I. elaborou dois conceitos diferentes: a) I. potencial como limite de certas operações sobre as grandezas; b) I. atual como uma espécie particular de grandeza. a) O conceito de I. potencial foi elaborado por Aristóteles, que negava que o I. pudesse ser atual, ou seja, real, tanto como realidade em si (substância) quanto como atributo de uma realidade (Fís, III, 5, 204 a 7 ss.). Isto quer dizer que o I. não é substância nem proprie­ dade ou determinação substancial, mas que "existe somente de modo acidental" (Ibid., 204a 28), como disposição de grandezas. Que disposição? Aristóteles dá dois significados fun­ damentais de I.: no primeiro, I. é "aquilo que, por natureza, não pode ser percorrido", no sen­ tido de que não pode ser visto. No segundo, I. é aquilo que pode ser percorrido, mas não todo, pois não tem fim; nesse sentido, é 1. por composição, por divisão ou por ambas (Ibid., III, 4, 204 a 3). Ora, o I. em sentido matemático é só este último, ou seja, o I. que pode ser per­ corrido, mas nunca de modo exaustivo ou com­ pleto. Neste sentido, o I. é tal "que sempre se pode tomar algo de novo, e o que se toma é sempre finito, mas sempre diferente. Assim, não se deve tomar o I. como um ser singular, como p. ex. um homem ou uma coisa, mas no sentido em que se fala de um dia ou de uma

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luta, cujo modo de ser não é uma substância, mas um processo que, apesar de finito, é sem­ pre diferente" (Ibid, III, 6, 206 a 27). Portanto, não é I. aquilo fora do qual não há nada, como se acredita comumente, mas sim aquilo fora do qual sempre há alguma coisa; conseqüente­ mente o I. participa mais do conceito de parte que do conceito de todo (Ibid, III, 6, 206 b 32; 207 a 27). Esse conceito aristotélico era utili­ zado por Lucrécio para defender a doutrina epicurista da infinidade do espaço, expresso com a imagem de uma flecha lançada a partir do limite extremo do universo, admitido por hipótese; quer a flecha encontre um obstáculo, quer continue além, o limite extremo do uni­ verso não é mais o mesmo porque é apenas o ponto de partida da flecha (De rer. nat., I, 967­ 982). Também nesta imagem I. é aquilo de que se pode sempre tomar uma parte, e aquilo que se toma é sempre finito mas sempre diferente. Este conceito de I. é essencialmente negativo: consiste na nâo-exauribilidade de determina­ das grandezas submetidas a certas operações, que são a composição (acréscimo de partes sempre novas) e a divisão em partes sempre novas. A primeira operação tende ao infinita­ mente grande; a segunda, ao infinitamente pe­ queno (infinitésimo [v.]): ambas definem o conceito de I. como inexauribilidade de partes dentro de partes. Mas assim entendido o con­ ceito é obviamente negativo: caracteriza a inexauribilidade ou incompletitude de uma série. Justamente a esse respeito Plotino observou que I. é aquilo que não pode ser exaurido em termos de .grandeza ou de número de suas partes (Enn, VI, 9, 6). E Kant, do mesmo ponto de vista, dizia: "O conceito verdadeiro (transcen­ dental) de infinidade é que a síntese seqüencial da unidade na medição de um quantum nunca pode ser acabada" (Crít. R. Pura, Dialética, cap. 2, seç. 2). Essa espécie de I. foi denomina­ da pelos lógicos da Idade Média I. sincategoremático (syncategorematicum) , que é o I. en­ tendido como disposição (não qualidade) de um sujeito, distinto do I. categoremático, que seria o I. como qualidade ou como substância (PEDRO HISPANO, Summ. log, 12, 57; OCKHAM, In Sent., I, d. 17, q. 8). Esse mesmo I. foi defini­ do pela matemática do séc. XVIII e da primeira metade do séc. XIX mediante o conceito de li­ mite (como o campo das séries, das sucessões, etc), mas os matemáticos daquela época não lhe atribuíram a posição de tipo de grandeza em si. Gauss dizia numa carta de 1831: "Protes­

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to contra o emprego de grandeza I. como algo completo, emprego que nunca foi admi­ tido em matemática. O I. é só uma façon de parler, a rigor, fala-se de limites, dos quais algumas relações são aproximadas quando se quer, enquanto a outras relações é permitido crescer além de qualquer medida", (cf. GEYMONAT, História e filosofia da analise infinitesimal, 1947, pp. 174-75). I paradossi dell'1. (185D de Bernardo Bolzano é uma obra que marca a primeira abordagem decisiva de um novo conceito do infinito. b) O segundo é o de I. categórico ou (me­ nos propriamente se diz) atual, ao qual só a ma­ temática moderna deu forma rigorosa. Contu­ do, a matemática chegou a esse conceito atra­ vés das discussões tradicionais sobre os denominados paradoxos do infinito. Já R. Bacon, para refutar a infinidade do mundo, fazia notar que, a admitir-se o I., deve-se concluir que a parte é maior que o todo a que pertence (Opus tertium, ed. Brewer, 41, pp. 141-42). Argumen­ tos semelhantes foram repetidos freqüentemente na Escolástica do séc. XIV, que no entanto, com Ockham, deu a tais argumentos uma res­ posta que indica o caminho.a ser depois segui­ do pela matemática da segunda metade do séc. XIX. De fato Ockham afirma: "Não é incompa­ tível que a parte seja igual e não menor que seu todo porque isso acontece toda vez que uma parte do todo é I. (...) Isso também acon­ tece na quantidade descontínua ou em qual­ quer multiplicidade, em que uma das partes te­ nha unidades não menores que as contidas no todo. Assim, em todo o universo não existe um número maior de partes que numa fava, por­ que numa fava há infinitas partes. Portanto, o princípio de que o todo é maior que a parte vale somente para todos os compostos de partes integrantes finitas" (Cent. Theol, 17 C; Quodl, I, q. 9). Essa corajosa limitação do valor de um axioma, que então parecia evidente, não teve seguidores durante muito tempo. O próprio Galilei, para evitar a possibilidade de igualdade entre a parte e o todo (a propósito da relação entre os quadrados e a série natural dos números), afirmou que "os atributos 'igual', 'maior' e 'menor' não têm lugar nos I., mas só nas quantidades finitas" (Scienze nuove, op, VIII, p. 79), deixando assim inalterada a verdade do pretenso axioma. Este acabaria por ser derru­ bado, sendo declarado fruto de uma generali­ zação falaz (cf. RUSSELL, Principies of Mathematics, 1903, p. 360), só quando G. Cantor

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(Mathematische Annalen, entre 1878 e 1883) e Dedekind (Continuidade e números irracio­ nais, 1872; O que sao e o que devem ser os números, 1888) enunciaram um novo conceito de infinito, que consiste em tomar como defi­ nição de I. o que até então parecera ser o "parado­ xo" do próprio I.: a equivalência da parte e do todo. Pode-se ilustrar essa concepção re­ correndo ao exemplo dado por Royce (The World and the Individual, 1900-01; cf. o En­ saio complementar "O um, os muitos e o I." anexo ao vol. 1 da obra). Suponhamos que exista um mapa idealmente perfeito, de tal forma que, se Aéo objeto reproduzido e A ' o mapa, este es­ teja em correspondência com A de tal modo que para cada elemento particular de A (a, b, c) possa ser determinado em A' algum ele­ mento correspondente (d, b', d), em confor­ midade com o sistema de projeção escolhido. Suponhamos além disso que esse mapa seja desenhado dentro e em cima de uma parte da superfície da região reproduzida, como p. ex. a Inglaterra. Se este mapa é — como deve ser por hipótese — idealmente perfeito, deve re­ presentar tudo o que existe sobre a superfície da Inglaterra, logo o próprio mapa. A repre­ sentação deste último, sendo por sua vez per­ feita, deverá conter a representação dele mes­ mo, e assim por diante, sem limite. Um sistema dessa espécie é claramente I., não por ser inexaurível, mas por ser auto-representativo, ou me­ lhor, auto-reflexívo. Em termos matemáticos, um conjunto auto-reflexivo é aquele que pode ser posto.em correspondência biunivoca com algum subconjunto seu. Esse é o caso da série natural dos números, que pode ser posta em correspondência biunivoca com seus subcon­ juntos, como p. ex. os quadrados, os números primos, etc. Segundo Cantor a potência comum de dois conjuntos entre os quais exista uma correspon­ dência biunivoca é o "número cardinal" dos dois conjuntos. Esse número é chamado de transfinito quando o conjunto é eqüipotente a uma de suas partes ou de seus subconjuntos. Dessa forma, o conceito de número cardinal I., que fora sempre negado como contraditório, ingressava na matemática. Mas logo deveria revelar-se fonte de novas dificuldades e pro­ blemas, que constituem os "paradoxos" da ló­ gica moderna, conquanto não fossem de todo desconhecidos da lógica antiga (v. ANTINOMIA). Mas o conceito de I. matemático não foi modi-

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ficado pelo estudo desses paradoxos e pelas soluções para eles propostas. 2q O segundo conceito de I. é de natureza teológica e surgiu no último período da filoso­ fia grega, com Fílon e Plotino. Este último distinguira a infinidade do número, que é "inexauribilidade" (Enn., VI, 6, 17), da infinidade do Uno, que é entretanto "a não-limitação da potência" (Ibid., VI. 9, 6). Com menor precisão de linguagem, esse conceito é expresso fre­ qüentemente pela Escolástica da Idade Média. S. Tomás, após observar que os primeiros filó­ sofos tiveram razão em julgar I. o princípio das coisas "considerando que as coisas derivam do primeiro princípio ao I.", distingue o I. da matéria, que é imperfeição porque a matéria sem forma é incompleta, e o I. da forma, que é perfeição porque é da forma que não recebe o ser de outrem, mas de si mesmo, ou seja, de Deus (S. Th, I, q. 7, a. 1). Chamar a forma subsis­ tente por si só de I. parece querer significar que o I. é aquilo que, para ser, não precisa de outra coisa, sendo portanto a ilimitada potên­ cia de ser. Não muito diferente é o sentido que parece ter a tese de Duns Scot sobre a infinida­ de como modo de ser de Deus. Duns observa que, se dissermos que Deus é supremo, estare­ mos conferindo a ele uma determinação que lhe cabe em relação às coisas que são diferen­ tes dele: é supremo entre todas as coisas exis­ tentes. Mas se dissermos que é I., estaremos dizendo que é supremo em sua natureza intrín­ seca, isto é, que transcende todo e qualquer grau possível de perfeição (Op. Ox, I, d. 2, q. 2, n. 17). A infinidade parece expressar aqui o "quo maius cogitari nequit" de S. Anselmo, ou seja, as perfeições de Deus estão além de qual­ quer grau alcançável pelas perfeições finitas. A clistinção cartesiana entre I. e indefinido (v.), que atribui apenas a Deus o atributo da infini­ dade, parece coincidir mais com a distinção entre o I. teológico e o I. matemático: distin­ ção também encontrada em Locke (An Essay ConcemingHuman Understanding, II, 17, 1) e Leibniz (Nouv. ess, II, 17, 2). Mas na filosofia moderna o conceito de I. como não-limitação da potência é realmente introduzido por Fichte, para quem o Eu é I. "suposto a partir de sua absoluta atividade", porquanto sua ativida­ de não encontra limites ou obstáculos. Supon­ do-se, ao mesmo tempo, um não-Eu, o Eu limi­ ta-se e torna-se finito. Mas por fim "a finidade I deve ser anulada: todos os limites devem desa- | parecer e ficar apenas o Eu I., como Um e j

INFINITO co m o T od o " (Wissenschaftslehre, 1794, 11, § 4, D ). A c o n tra p o siç ã o h e g elian a en tre "falso I." e "v erd a d e iro I." co n stitu i a m e lh o r ilu stração d essa n o ç ã o de I. na filosofia m o d e rn a. A falsa in fin id ad e é a in fin id ad e m atem ática do p ro ­ g resso ao I., p o is este "pára n a d ec la ra ç ã o da co n tra d içã o , co n tid a n o finito, d e q u e este é ta n to u m a co isa q u a n to a o u tra co isa" {Ene, § 94). O p ro g resso ao I. rem ete ao além do finito, m as n u n ca alcança esse além ; p o r isso, sua n e ­ g a ç ã o do finito é u m "dever-ser" q u e n u n ca é u m "ser". O v e rd a d e iro I. d esfaz essa c o n tra d i­ ção: n eg a a re a lid a d e do finito co m o tal e re so l­ v e-o em si. O v e rd a d e iro I., em o u tro s te rm o s, é aq u ilo q u e é, é a re a lid a d e . Ele "é e é d e te r­ m in a d a m e n te , ex iste, está p re se n te . S ó o falso I. está n o além , s e n d o a p e n a s a n e g a ç ã o do finito co m o tal... A v e rd a d e ira in fin id ad e to m a ­ da assim em g eral, q ual u m existir c o lo ca d o co m o afirm ativo co n tra a ab strata n e g a ç ã o , é a re alid ad e em se n tid o m ais elev ad o , n ão aq u ela a n te rio rm e n te d e te rm in a d a co m o sim p les re ali­ d ad e. A re a lid a d e ad q u iriu aq u i u m c o n te ú d o co n creto . Real n ão é o finito, m as o i." (Wissenschaft derLogik, I, I, seç. I, cap . II, C, trad. it., p p. 161-62). N esse s e n tid o , p ara u sar u m a frase do p ró p rio H eg el, o I. é a "força da ex is­ tência" (Fil. do direito, § 331, Z u satz), ou seja, a força g raças à q ual a ra zã o h ab ita o m u n d o e d o m in a -o , se n d o , p o rta n to , n ão -lim ita çã o de potência (Ene, § 6). E b em co n h e cid o o em p re g o q ue o p ró p rio H egel e to d a a filosofia ro m ân tica do séc. X IX fizeram d esse c o n ce ito de I.: ele serviu p ara ju stificar a re a lid a d e e n q u a n to tal, o fato, e a re p e lir a p re te n sã o de o in te le cto "abs­ trato" ju lg a r a re a lid a d e , de o p o r-se a ela e de nela in serir-se co m o c o m p ro m isso de tran sfor­ m ação. S eg u n d o a n o ç ã o d e in fin id ad e d e p o ­ tência, a re alid ad e, to d a a re a lid a d e em q u a l­ q u er m o m e n to , é tu d o aq u ilo q u e d ev e ser, um a v ez q u e ao p rin cíp io q u e a re g e n ão falta a p otên cia n ecessária para a realização integral. 3S O te rc eiro c o n ce ito de I. é o c o rre s p o n ­ d en te m etafísico do c o n c e ito m atem ático tra d i­ cional. J á v im o s q u e, p ara A ristó teles, o I. n u n ­ ca p o d e ser a c a b a d o , p o rta n to n u n c a p o d e ser u m todo; ele é p arte, in c o m p le titu d e e in ex au rib ilidade. A ristó teles, p o rta n to , n ã o co n co rd av a com M elisso, q u e d e n o m in a ra o to d o de I., e co n co rd av a co m o p e n sa m e n to d e P arm ên id es, q ue o co n sid e rara finito (Fís, 6, 207 a 15). M as essas d e te rm in a ç õ e s já h av iam sid o atrib u íd as ao I. p o r P latão: I. é aq u ilo q u e ca re ce de n ú ­ m ero ou d e m ed id a, q u e é su scetív el ao m ais

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INGENUIDADE ou ao m e n o s e p o rtan to exclui a o rd em e a d ete rm in a ç ã o (Fil., 24 a 25 b). É este o co n ceito m etafísico de I., e n c o n tra d o en tre os g reg o s p o rq u e e stre ita m e n te lig ad o ao seu ideal m oral d e o rd em e d e m ed id a. H isto ricam en te falan­ d o, esse c o n ce ito n ão u ltrap asso u os lim ites da G récia da id ad e clássica. INFINITO, JUIZO (ai. Unendlich UrteiD. K ant d e n o m in o u assim as p ro p o s iç õ e s n as q u ais o p re d ic a d o é c o n stitu íd o p o r u m a n e g a ­ ção , co m o , p. ex., "a alm a é n ão -m o rtal" (Logik, § 22, Crít. R. Pura, § 9). O te rm o I. já era e m p re ­ g a d o p ela ló g ica m ed iev al p ara in d icar os s u b s­ tan tiv o s n eg ativ o s, co m o p. ex. n à o -h o m e m (cf. PEDRO HISPANO, Summ, log, 1.04). INFLUXO (lat. Influxus, Influentia; in. Influx; fr. Influence; ai. Einfluss; it. Infliisso). A ção ex e rcid a p o r aq u ilo q u e é in c o rp ó re o so b re o q u e é c o rp ó re o . N esse s e n tid o , C ard a n o disting uia o I. da mudança, q u e é a ação de u m co r­ po so b re u m o u tro co rp o , e do alento, q u e é a ação do in c o rp ó re o so b re o in c o rp ó re o e dá-se ex clu siv am en te na alm a (De subtilitate, XXI, em Opera., 1663, III, p. 669 b-670 a). Esse term o tem sid o e m p re g a d o p ara indicar: le A ação d e te rm in a n te d os astros so b re o d estin o e a v id a d o s h o m e n s, co m o m ed ia d o ra d a aç ão div in a (cf. p . e x .: NICOLAU DE CUSA, De docta ignor, II, 12; P ico DEIXAMIRANDOLA, Adv. astralogiam, V I, 2 e passim); 2- A aç ão do g o v e rn o de D eu s so b re o m u n ­ do. N este sen tid o , C am p an n ela fala d os três "g rand es I." n o s q u ais se co n cretiza a ação de D eu s, q u e são a n e c e ssid a d e , o d estin o e a h ar­ m o nia (Mel, IX, I; Theol, I, 17, a. 1); 3Q A ação da alm a so b re o co rp o . N este se n ­ tid o , essa p alav ra foi e m p re g a d a n o s sécs. XVII e XVIII. L eibniz diz: "ao se q u e re r fu n d a m en tar a o p in iã o v u lg a r do I. da alm a so b re o co rp o co m o ex e m p lo de D eu s, q u e atua d e fora de si m esm o , te m -se u m a sem e lh a n ç a excessiva de D eu s co m a alm a do m u n d o " (IVLettre à Clarke, § 34). B au m g a rten ch am a essa d o u trin a de "Sistem a do I. físico" (Met., § 761). K ant cita essa m esm a "o p in ião vulgar," rejeitand o -a (De mundisensibílis, e tc , IV, § 17).

INFORMAÇÃO. V. CIBERNÉTICA. INGENUIDADE (in. Naivete; fr. Naiveté; ai. Naivetãt; it. Ingenuitã). N o séc. XVIII, este te r­

m o co m eç o u a ser e m p re g a d o p ara in d icar cer­ to m o d o de e x p re ssã o estética. K ant dizia: "A I. é a ex p re ssã o d a o riginária sin c e rid a d e n atu ral da h u m a n id a d e co n tra a arte de fingir, q u e se

ININTELIGÍVEL

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tornou uma segunda natureza" (Crít. doJuízo, § 54). A I. não deve ser confundida com a sim­ plicidade franca, que não dissimula a natureza só porque não compreende o que é a arte de viver em sociedade. É antes uma natureza que se faz presente ou se revela na própria arte (Ibid., § 54). Schiller inspirou-se nesses conceitos no ensaio Sobre a poesia ingênua e sentimental (1795-96): "O ingênuo é a repre­ sentação da nossa infância perdida, que fica em nós como o que há de mais querido, e por isso nos enche de certa tristeza e é, ao mesmo tempo, a representação da suprema perfeição do ideal, que suscita em nós sublime emo­ ção" (Werke, ed. Karpeles, XII, p. 108). A poe­ sia ingênua nesse sentido contrapõe-se à poesia sentimental: o poeta ingênuo é natureza; o poeta sentimental procura a natureza {Ibid, p. 125). Fora do domínio da estética, esse termo por vezes é usado para caracterizar as crenças filo­ sóficas do homem comum. Deu-se o nome de "Realismo ingênuo" à crença comum na reali­ dade das coisas. Embora, assim usado, esse adjetivo tenha certo tom depreciativo, a crítica mais recente tem demonstrado que nem sem­ pre as crenças ingênuas são as mais fracas (v. REALISMO). ININTELIGÍVEL (lat. Inexplicabilis; in. Unintelligible, fr. Ininteligible, ai. Unverstãndlich; it. Inintelligibilé). 1. Propriamente, aquilo de que não se consegue apreender o porquê e o como, ou seja, aquilo cuja causa, condição ou signifi­ cado é inapreensível, o inexplicável (cf. CÍCERO, Acad, III, -29, 95). Este termo, portanto, tem significado diferente e mais preciso que incon­ cebível (v.), que indica apenas uma incompati­ bilidade genérica com a razão. O próprio Leibniz estabelecia a diferença entre o que não se en­ tende e o que é inconcebível (Nouv. ess, Avant propôs, op, ed. Erdmann, p. 202). Diferença análoga é estabelecida entre esses dois termos por Peirce (Chance, Love and Logic, II, 2, trad. it., p. 137). 2. A propósito de discursos escritos ou fala­ dos: obscuro, confuso, mal exposto, incapaz de comunicar. INQUIETUDE (in. Uneasiness; fr. Inquie­ tude; ai. Unruhe; it. Inquíetudine). Locke defi­ niu esse termo dizendo que é o mal-estar da necessidade insatisfeita (An Essay Concer, II, 20, 6). Na segunda edição de Ensaio, Locke viu na I. assim entendida o móvel principal da vontade humana. Locke dizia: "Depois de re­

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fletir, sou levado a pensar que, ao contrário do que se acredita, o que determina a vontade não é ter os olhos voltados para um bem su­ perior, mas sim algum mal-estar (geralmente, o mais grave dos que atualmente afligem o ho­ mem) (...) Esse mal-estar também pode ser de­ nominado desejo, que é um mal-estar do espí­ rito pela falta de algum bem" (Ibid, II, 21, 31). Leibniz acatava com bons olhos essa tese de Locke (Nouv. ess, II, 20, § 6), que também foi acolhida e utilizada por Condillac (Traité des sensations, I, 3, § 2). INSOLUBILIA. Na lógica medieval, a partir do séc. XIV, receberam este nome e o nome de Impossibília os raciocínios que a lógica megárico-estóica chamava de ambíguos ou con­ versíveis, também chamados de dilemas (v.) e, mais tarde, de antinomias (v.). INSTABILIDADE (in. Instability). Precarie­ dade. Um dos traços fundamentais da existên­ cia, segundo algumas correntes contemporâ­ neas. Dewey diz: "O homem vive num mundo aleatório; pode-se dizer, cruamente, que sua existência implica risco. O mundo é o palco do risco: incerto, instável, terrivelmente instável. Seus perigos são irregulares* inconstantes, não podem ser associados a um tempo ou a uma situação determinada" (Experience andNature, cap. 2). A INSTÂNCIA (gr. ivoToemç; lat. Instantia; in. Instance, fr. Instance, ai. Instanz; it. Istanzà). 1. Na lógica aristotélica, I. é "uma premissa contrária a outra premissa" (An.pr., II, 26, 69 a 36). Aristóteles enumera quatro I. fundamen­ tais: o ataque à premissa do adversário; uma nova premissa; uma premissa contrária à do adversário; recurso a decisões precedentes (Top., VIII, 10, I6la 1; Ret, II, 25, 1402 a 34). 2. Bacon chamou de I. os casos experimen­ tais particulares de determinado fenômeno, como p. ex. do calor; denominou "tábuas das I." a relação de tais casos (Nov. Org., II, pp. 10 ss.) (v. TÁBUAS). Stuart Mill por vezes adotou essa terminologia (Logic, III, 9, 1, passini). INSTANTE (gr. tò èí;aí
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sas. A passagem do movimento ao repouso e vice-versa não ocorre a partir da imobilidade que ainda está imota nem do movimento que ainda se está movendo. A natureza um pouco estranha do I. está no fato de ser o ponto mé­ dio entre repouso e movimento, mesmo não estando ele no tempo, o que o torna ponto de chegada e de partida do que se está movendo em direção ao estar parado, e do que está pa­ rado em direção ao mover-se" (Parm., 156 d). Em outros termos, para Platão o I. não é nem o tempo nem a eternidade, nem o movimento nem o repouso, mas está entre eles e constitui o seu ponto de encontro. Essa noção foi reto­ mada por Kierkegaard, que viu no I. a inserção subitânea da eternidade no tempo e, portanto, a inserção subitânea da verdade divina no ho­ mem, isto é, o nascimento da fé (PbílosophischeBrocken, cap. IV; cf. Werke, II, pp. 108, lló ss.). O caráter instantâneo da fé exclui que ela possa ser suscitada ou produzida por processos de demonstração ou de persuasão. Daí a polêmica de Kierkegaard contra a igreja oficial dinamarquesa, travada no jornal, e que ele denominou precisamente O Instante. O conceito de I. volta no existencialismo ale­ mão, mas sem a ressonância religiosa que tinha em Kierkegaard. Jaspers diz: "O I. vivido é o fato supremo, calor de sangue, imediação, vida, presente corpóreo, totalidade do real, única coisa verdadeira e concreta. Em vez de partir do presente para perder-se no passado ou no futuro, o homem encontra a existência e o absoluto no I., único que os pode propor­ cionar. Bassado e futuro são abismos obscuros informes, tempo indefinido, ao passo que o I. pode ser a abolição do tempo, a presença do eterno" (Psychologie der Weltanschauungen, 1925, I, 3; trad. it., p. 132). O mesmo Jaspers relaciona a noção de I. com a atitude ética caracterizada pela máxima "vive oi.", expres­ sa na Antigüidade por Aristipo (séc. IV a.C). Este prescrevia "ter a mente no hoje, ou me­ lhor, naquele I. em que cada um faz e pensa alguma coisa, pois só o presente é nosso, não o I. que passou nem o que está sendo espera­ do: um já está destruído, o outro não sabemos se há de vir" (ELIANO, Var. historiae, XIV, 6). Essa atitude, que Kierkegaard chamava de "vida estética", às vezes é contraposta à ou­ tra que, sacrificando continuamente o presen­ te em favor do futuro, acaba tornando insigni­ ficante e instrumental toda a duração da vida. No séc. XVIII, Lessing e Rousseau discordaram

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dessa última atitude, convidando a dar a cada período da vida, a cada dia e a cada instante um valor autônomo e acabado. Essa atitude não coincide, porém, com a chamada atitude esté­ tica, pois, ao contrário, supõe que aos instantes da vida não se atribua o valor que por acaso tenham, mas o valor atribuído a todo um pro­ jeto de vida. Heidegger retomou ainda, em sen­ tido análogo, a noção de I., considerando-o como "o presente autêntico" e contrapondo-o ao agora, que é o presente inautêntico da vida cotidiana. O agora é a apresentação das coisas para as quais se voltam os cuidados cotidianos do homem; o I. é a decisão antecipadora da morte, isto é, do nada da existência: a mesma situação que, do ponto de vista emocional, é a angústia (Sein undZeit, § 68, 81). 2. O mesmo que instante ou agora (v.). INSTINTO (gr. óp|ltí; lat. Instinctus; in. Instinct; ai. Instinkt; it. Istínto). Um guia natural da conduta animal e humana não é adquiri­ do, não é escolhido e é pouco modificável. O I. distingue-se da tendência (v.) pelo caráter biológico, porquanto se destina à conserva­ ção do indivíduo e da espécie e vincula-se a uma estrutura orgânica.determinada; distin­ gue-se do impulso por seu caráter estável. Exis­ tem duas concepções fundamentais de I.: Xa metafísica, segundo a qual o I. é a força que assegura a concordância entre a conduta ani­ mal e a ordem do mundo; 2- a científica, segundo a qual o I. é um tipo de disposição biológica. I- A teoria metafísica dos I. foi fundada pe­ los estóicos. Para eles, a ordem providencial do inundo, que todos os seres estão destinados a manter, dirige a conduta animal por meio do ins­ tinto. Crisipo diz: "O I. primário do animal, por ser este desde o princípio dirigido pela nature­ za, é de cuidar de si mesmo {.Dos fins, Livro I). Diz também que o que está no mais íntimo de cada animal é a sua própria constituição e a consciência dessa constituição. Não é verossí­ mil que o animal se alheie de si ou que de algum modo aja de tal forma que se alheie de si ou não cuide de si mesmo. É preciso, pois, que a própria natureza o constitua de tal modo que ele cuide de si, fugindo às coisas nocivas e perseguindo as favoráveis. Donde se evidencia como falso o que dizem alguns, de o prazer ser o I. primário dos animais" (DIÓG. L, VII, 85). Através do I. a natureza leva o animal a cuidar de si e a conservar-se, contribuindo para man­ ter a ordem do todo. Cícero exprimia o concei­

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to estóico nos seguintes termos: "Para conser­ var-se, para conservar sua vida e seu corpo, toda espécie animal evita por natureza tudo o que parece nocivo, deseja e trata de arranjar tudo o que é necessário à vida, como alimento, abrigo e todo o resto. Também é comum a to­ dos os seres animais o I. sexual com vistas à procriação e certo cuidado para com suas crias" (Tusc, I, 4, 11; De/in, III, 7, 23; De off, I, 28, 101). Algumas vezes o direito natural foi equi­ parado ao instinto assim entendido, por ser comum não só aos homens mas também aos animais. No séc. III, Ulpiano fazia a distinção entre o direito das gentes, que é só dos ho­ mens, e o direito natural, que "a natureza ensi­ nou a todos os animais e por isso pertence não só ao gênero humano, mas é comum a todos os animais que vivem na terra, no mar e no céu. Desse direito decorrem o casamento, a procriação e a educação dos filhos, coisas estas de que os animais também têm experiência" (Dig, I, 1, 1-4). Essa concepção sempre ligada esteve ao pressuposto metafísico da existência de uma ordem providencial cuja manifestação nos ani­ mais e nos homens seria o I. S. Tomás aduzia como prova dessa tese que a providência se ocupa também das coisas individuais contin­ gentes, o I. natural de que os animais são do­ tados e que se manifesta nas abelhas e em mui­ tos outros animais (Contra Gent, III, 75). "Em nós semeado e infundido pelo princípio da nossa geração, nasce um rebento, que os gre­ gos chamavam de homem e que é o apetite natural do espírito (...). E assim parece que é, pois todo animal, assim que nasce, seja ele racional ou bruto, ama-se a si mesmo e teme e evita as coisas que lhe são contrárias e que ele detesta" (Conv, IV, 22; cf. Par, 1,112-14). Kant ainda falava do I. como da "voz de Deus à qual todos os animais obedecem" e que "na origem deve ter guiado os primeiros tempos do homem primitivo" (MutmasslicherAnfang der Menschengeschichte, 1786). Segundo essa concepção, as características do I. são as seguintes: I providencialidade, 2° infalibilidade, que deriva do caráter anterior e graças à qual o I. estaria sempre apto a garantir a vida do animal e a continuação da espécie; 3Q imutabilidade, que deriva das duas característi­ cas precedentes e que consiste na imperfectibilidade do I.; 4e cegueira, no sentido de que o I. foge ao controle do animal e o guia sem ne­ nhuma iniciativa direta de sua parte. Algumas dessas características por vezes foram pressu­

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postas e mantidas na concepção científica do I. Contudo, são típicas da concepção metafísica, sendo caracteres presumidos, deduzidos da função atribuída ao I. no cosmo, todos em oposição aos dados da observação. Essas ca­ racterísticas também são admitidas e defendi­ das habitualmente pelos filósofos que têm uma concepção provídencialista do mundo biológi­ co, como p. ex. os espiritualistas. Hegel tam­ bém falou de um "I. da razão" (Phánom. des Geistes, I, cap. V, "A observação da natureza"; trad. it., I, pp. 222, 225, etc), atribuindo a esse I. as características gerais mencionadas antes. Também é metafísica a teoria freudiana do I., especialmente do modo como é formulada em seus últimos textos. Os instintos são "a úl­ tima causa de toda atividade e sua natureza é conservadora: de cada estado atingido por um ser surge a tendência a restabelecer esse esta­ do quando ele foi abandonado." Os I. podem ser múltiplos, podem mudar de alvo e uns podem substituir os outros, mas em última análise é possível reconhecer dois instintos fundamentais em luta: Eros, ou I. de vida, e Thanatos, ou I. de destruição (Abriss der Psychoanalyse, 1940, cap. II). Ver PSICANÁLISE. 2- As teorias científicas do I. são de duas espécies: A) explicativas; B) descritivas. A) Existem três teorias explicativas funda­ mentais, que recorrem respectivamente: a) à ação reflexa; b) ao intelecto; c) ao sentimento (simpatia). a) A doutrina que explica o I. recorrendo à ação reflexa é a mais antiga. Foi defendida por SPF.NCER em Princípios de psicologia (1855): "Enquanto nas formas primitivas da ação refle­ xa uma única impressão é seguida por uma única contração, e enquanto nas formas mais desenvolvidas da ação reflexa uma única impres­ são é seguida por uma combinação de contra­ ções, nesta, que distinguimos como I., uma com­ binação de impressões é seguida por uma combinação de contrações; e quanto mais su­ perior for o I., tanto mais complexas serão as coordenações de direção e de execução" (Princ. of Psychology, § 194). Essa tese foi substancial­ mente aceita por Darwin, que a modificou no sentido de que o desenvolvimento dos I. seria devido à seleção natural dos atos reflexos que constituem os I. mais simples. Darwin diz: "A maior parte dos I. mais complexos parece ter sido adquirida mediante a seleção natural das variações de atos mais simples. Tais variações

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parecem resultar das mesmas causas desco­ nhecidas que ocasionam as variações ligeiras ou as diferenças individuais nas outras partes do corpo, que agem sobre a organização cere­ bral e determinam mudanças que, na nossa ignorância, consideramos espontâneas" (Descent ofMan, 1871, I, cap. 3; trad. fr., p. 69). Essa explicação do I. foi aceita não só por darwinistas e neodarwinistas, mas também pelos que ela­ boraram a teoria dos reflexos condicionados, que consideraram o I. como um reflexo condi­ cionado complexo (cf. PAVLOV, OS reflexos con­ dicionados; trad. it., p. 273). O defeito dessa teoria é que as variações casuais dificilmente poderiam explicar a formação de I. tão aperfei­ çoados e complexos como os dos insetos. b) A segunda teoria explicativa tem em vista justamente a formação desses I. mais comple­ xos e considera o I. como inteligência degrada­ da ou mecanizada. Essa doutrina, apresentada por Romanes {Mental Evolution in Animais, 1883), foi amplamente aceita pela psicologia do fim do século passado. Eqüivale a ver o I. como um hábito que se formou e se aprefeiçoou atra­ vés do desenvolvimento de uma espécie ani­ mal. Wundt, especialmente, contribuiu para a difusão dessa doutrina. Diz: "Os I. são movi­ mentos oriundos de atos de vontade simples ou compostos que depois, durante a vida indivi­ dual ou ao longo de um desenvolvimento ge­ ral, acabam mecanizados no todo ou em parte" (Grundzüge derphysiologischen Psych, 4a ed., 1893, II, pp. 510 ss.; cf. System derPhil., 2a ed., 1897, p. 590). Essa concepção algumas vezes foi utilizada pelos filósofos, com vistas a uma metafísica espiritualista (cf., p. ex., RENOUVIER, Nouvelle monadologie, 1899, p. 83), mas con­ tra ela existe o fato bem verificado de que os hábitos adquiridos não são transmissíveis por herança (v. HEREDITARIEDADE), constatando-se ademais que, para explicar a formação de I. aperfeiçoados, não basta a hereditariedade da disposição para contrair hábitos mais facilmen­ te, que parece provada em alguns casos (MacDougall). c) A terceira teoria explicativa é a que rela­ ciona o I. com os sentimentos, em particular com a simpatia. "I. é simpatia", diz Bergson. "Nos fenômenos do sentimento, nas simpatias e antipatias irrefletidas, sentimos em nós mes­ mos, de forma bem mais vaga e ainda demasia­ do penetrada de inteligência, algo do que deve acontecer na consciência de um inseto que age por instinto. Para desenvolvê-los em profundi­

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dade, a evolução distanciou elementos que na origem se interpenetravam" (Evol. créatr, 1911, 8a ed., pp. 190-9D- A evolução vital distanciou a inteligência do I., especializando o I. na tare­ fa de utilizar ou mesmo de construir instru­ mentos organizados, e a inteligência, na de fa­ bricar e utilizar instrumentos inorganizados (Jbid., p. 152). Segundo Bergson, a especialização do I. depende do fato de o I. ser utilização de um instrumento determinado para um fim deter­ minado: de um instrumento que, além do mais, é de enorme complexidade de detalhes, embo­ ra de funcionamento simplíssimo. Os instru­ mentos fabricados pela inteligência, ao contrá­ rio, são muito menos perfeitos, mas podem mudar continuamente de forma e adaptar-se às novas circunstâncias. Isso explica também por que o I. não é consciente ou o é minimamente: a consciência mede a distância entre a repre­ sentação e a ação (entre as diversas possibili­ dades de agir e a ação efetiva); no I. essa dis­ tância é mínima porque é mínima a parte passível de escolha (Ibid, p. 157). Scheler, fazendo re­ ferência a essa doutrina de Bergson, como ca­ paz de explicar os I. mais complicados (p. ex., o dos himenópteros, que paralisam, mas não matam escaravelhos ou aranhas para pôr seus ovos, cf. FABRE, Souvenirs entomologiques, I, 3S ed., 1894, pp. 93 ss.), declara considerar prová­ vel que "nos atos instintivos dessa espécie, que nos põem em presença de uma concatenaçào finalista, lógica, das fases de atividade de mui­ tos seres, estejamos apenas diante de um exa­ gero anormal daquilo que é a verdadeira fusão afetiva na esfera da atividade humana" (Sympathie, cap. I; trad. fr., p. 50). Essa é uma aceitação substancial do ponto de vista de Bergson, mas corrigindo aquilo que Bergson chama de simpatia para fusão afetiva (quan­ to à diferença entre as duas, v. SIMPATIA). A doutrina de Bergson foi amplamente aceita pelos filósofos, mas encontrou pouca acolhi­ da junto aos fisiologistas e psicólogos. Conti­ nua sendo uma das alternativas possíveis para uma explicação do instinto. Este, com efeito, pode ser relacionado com qualquer uma das duas atividades que supostamente dirigi­ rem a conduta humana: a inteligência e o sen­ timento. A interpretação (b) procura vincular o I. à inteligência; a interpretação (c), ao sentimento. B) Na psicologia contemporânea, a influên­ cia do gestaltismo, em sua concepção de aban­ dono definitivo da teoria dos reflexos que ten­

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dia a resolver o I. em atividades elementares (as ações reflexas), favoreceu também o aban­ dono de qualquer teoria explicativa e o recurso a teorias descritivas, fundadas em ampla base de observações. Desse ponto de vista, a descri­ ção do I. mais comumente adotada é a de G. E. Müller, que modificou oportunamente uma de­ finição de MacDougall: "O I. é uma disposição psicofísica, dependente da hereditariedade, muitas vezes completamente formada logo de­ pois do nascimento, outras vezes só depois de certo período de desenvolvimento, que orienta o animal a dar atenção especial a objetos de certa espécie ou de certo modo, e a sentir, depois de perceber esses objetos, um impulso para determinada atividade, em conexão com eles" (cf. D. KATZ, Mensch und Tier, 1948; trad. in., p. 1 71). Definições desse tipo tor­ nam inútil até mesmo o nome I., que, de fato, alguns psicólogos tendem a substituir por outros termos, menos comprometidos pelo uso secular (propensão, tendência). Às vezes, in­ siste-se no caráter totalitário da disposição instinti­ va, considerando-a como um "esquema unitá­ rio" que cresce e diminui como um todo (cf. R. B. CATTFXL, Personality, Nova York, 1950, p. 195). A etologia comparada distingue no I. aquilo que Konrad Lorenz chamou de meca­ nismo desencadeante, conjunto de condições que servem de estímulo para a conduta instinti­ va, e o ato consumador, constituído por um esquema ou plano de movimentos, hierarqui­ camente organizado, que é o comportamento instintivo propriamente dito. Essa organização hierárquica do comportamento instintivo tornase menos flexível à medida que nos aproxima­ mos da conduta em ato. Para Tinbergen, essa flexibilidade depende das mudanças no mun­ do externo {TheStudy oflnstinct, 1951, p. 110). Para Lorenz, o desencadeamento da conduta instintiva também pode ser provocado por um acúmulo de energia endógena (de natureza predominantemente físico-química) que, tanto no animal quanto no homem, constitui um /. de agressao, este instinto, se entregue a si mes­ mo, leva os homens à destruição recíproca, mas pode ser disciplinado e canalizado para alvos que não ponham em risco a convivên­ cia humana. A descarga da agressão sobre objetos constituídos seria o privilégio do ho­ mem, que pode mudar a direção de seu im­ pulso instintivo {Das sogenannte Bõse, 1963, cap. XII).

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Essa doutrina continua atribuindo ao I. o pa­ pel principal na determinação do comporta­ mento humano e animal, mas, por outro lado, chegou-se a duvidar que, para explicar esse comportamento, fosse possível utilizar o con­ ceito de I. (cf. o simpósio sobre esse assunto no British Journal of Educational Psychol., nov. 1941). Também se propõe uma concep­ ção "estatística" do I., segundo a qual ele é ape­ nas "o fator de um grupo inato e conativo" (BURT, "The Case for Human Instincts" na Rev., cit., 3a parte; cf. J. FLUGEL, Studies in Feeling andDesire, Londres, 1955). Essa negação do I. diz respeito sobretudo ao homem. Katz disse­ ra: "No homem, os I. determinam apenas a força de um impulso à ação e seu esquema geral. Esse esquema é indefinido e varia segun­ do a ocasião e o indivíduo. P. ex., em todas as crianças o I. lúdico desenvolve-se e floresce em certo período e depois morre. Mas o modo como as crianças realmente brincam varia muito. Além isso, é na infância que o homem está mais sujeito à influência dos instintos. Mais tar­ de, a conduta de vida é tão controlada pelas forças externas que é difícil distinguir sua base instintiva. Ao contrário dos animais, ele não passa a vida dentro da segurança dos I., mas tem a capacidade de formá-los" {Animais and Men, cit., p. 173). Em sociologia, às vezes se fala em I. como fator dominante da cultura ou dos seus aspectos fundamentais. Ao I. Pareto atribuía as ações "não lógicas" {Sociologia generale, 1923, § 157). Thorstein Veblen, em suas explicações sociológicas, freqüentemente recorria ao L: I. de eficiência, ao I. animista, etc. (cf. The Instinct of Workmanship and the State ofBusiness Enterprise, 1904). Hoje em dia esse ponto de vista é freqüentemente contestado. "A cultura não é instintiva sob nenhum as­ pecto: ela é exclusivamente aprendida. A partir da publicação de /., de Bernard, em 1924, foi impossível aceitar qualquer teoria do I. como a explicação do esquema cultural universal ou como a solução de certos problemas cultu­ rais" (G. P. MURDOCK, em R. LINTON, The Scien­ ce ofMan in the World Crisis, Nova York, T ed., 1952, pp. 126-27). INSTITUIÇÃO (lat. Institutio- in. Institution; fr. Institution; ai. Anstalt; it. Istituzione). 1. Na lógica terminista medieval, é a adoção de um novo vocábulo durante a discussão, pelo tem­ po que ela dura (cf. OCKHAM, Summa log, III, 3, 38). A finalidade dessa adoção é tornar a lin­ guagem mais concisa, discutir uma coisa desço-

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nhecida ou enganar o interlocutor ou permitir- que pode assemelhar-se ao sensível ou ser lhe responder mais facilmente às objeções. Neste compreendido nele (InPorphirium, I, P. L, 64, col. II). Essa distinção, estabelecida porBoécio, último sentido é uma das obrigações (v.). 2. Na sociologia contemporânea, esse termo foi retomada por Hugo de São Vítor. O I. é o é de uso freqüente e foi empregado, p. ex., por divino ou aquilo que de divino há no homem, Durkheim como objeto específico da sociolo­ p. ex., a alma (Didascalion, II, 3, 4). gia, definida precisamente como "ciências das INTELECTO (gr. voOç; lat. Intellectus; in. instituições" (Règlesdela méthodesociologique, Understanding; fr. Intellígence, ai. Verstand; it. 2- ed., p. XXIII). 1À instituição por vezes foi Intelletto). Este termo foi constantemente usado entendida como um conjunto de normas que pelos filósofos com dois sentidos: ls genérico, regulam a ação social (exatamente como faz como faculdade de pensar em geral e 2a especí­ Durkheim); outras vezes, em sentido mais ge­ fico, como uma atividade ou técnica particular ral, como "qualquer atitude suficientemente re­ de pensar. Com este segundo significado, esse corrente n u m grupo social" (cf. ABBAGNANO, termo é entendido de três maneiras diferentes: Problemi di sociologia, 1959, IV, 2). d) como I. intuitivo; ti) como I. operante; c) como entendimento, inteligência ou intelecção. INSTRUMENTAIISMO. V. PRAGMATISMO. l2 Platão e Aristóteles definem em geral o I. INSTRUMENTO (in. Instrument; fr. Instrument; ai. Werkzeug; it. Strumentó). Essa palavra como faculdade de pensar. Platão de fato dá o foi ampliada por Dewey, designando todos os nome de I. à atividade que pensa (Sof, 248emeios capazes de obter um resultado em qual­ 249a) e, portanto, confere limites, ordem e quer campo da atividade humana, prático ou medida às coisas (Fil, 30c; Tim., 48a); denomi­ teórico. Dewey diz: "Como termo geral, instru­ na pensamento (vOTjCTiç) o conjunto da ciência mental significa a relação meios-resultados e da dianóia, ou seja, as atividades superiores como categoria fundamental para a interpreta­ da alma contrapostas à conjectura e à crença, ção das formas lógicas, enquanto operacional reunidas sob o nome de opinião (Rep., VII, exprime as condições graças às quais a maté­ 534a). Por sua vez, Aristóteles declara entender ria: 1Q se torna apta a servir como meio e 2- por I. "aquilo graças a que a alma raciocina e efetivamente funciona como meio para a trans­ compreende" (Dean., III, 4, 429a 23), significa­ formação objetiva, que é o objetivo da indaga­ do genérico que já fora dado por Parménides (Fr. 16, Diels) e por Anaxágoras (Fr. 12, Diels). ção" (Logic, I, § 2, nota; trad. it., pp. 47-48). INTEGRAÇÃO (in. Integration; fr. Intégra- É óbvio que todos aqueles que, como Anaxátion, ai. Integration; it. Integrazioné). Este ter­ goras, Platão e Aristóteles, atribuíram ao I. a mo tem significados diversos em diferentes ra­ função de ordenar o universo não o entende­ mos dp saber. Em matemática, é o processo ram como atividade ou técnica específica, mas com o qual se determina o valor de uma gran­ no significado mais genérico de atividade deza como soma de partes infinitesimais toma­ pensante, capaz de escolher, coordenar e su­ das em número sempre crescente. Em biologia, bordinar. Mesmo a contraposição — tão fre­ significa o grau de unidade ou de solidarie­ qüente nos antigos e já presente em sua forma dade entre as várias partes de um organismo, extrema em Parménides (Fr. 8, Diels) — entre ou seja, o grau de interdependência dessas par­ I. e sentidos implica atribuir ao I. o significado tes. Analogamente, em psicologia significa o genérico de faculdade de pensar. Analoga­ grau de unidade ou de organização da persona­ mente, a substancialização que o I. sofre no lidade; em sociologia, o grau de organização neoplatonismo é a da faculdade de pensar em geral, em todas as suas múltiplas formas (cf. p. de um grupo social. Spencer, em Primeirosprincípios (1862), via ex., PLOTINO, Enn. III, 8, 9-10). Esse significado genérico foi conservado na na I. uma das características fundamentais da evolução cósmica enquanto passagem de um tradição filosófica até o Romantismo. S. Tomás estado indiferenciado, amorfo e indistinto para expressava-o contrapondo o I. aos sentidos: "O um estado diferenciado, formado e unificado substantivo I. implica certo conhecimento ínti­ (FirstPrincipies, § 94). mo; intelligere é como 'ler dentro' (intus INTELECTÍVEL (lat. Intellectibilis). O que legerè). Isso é evidente a quem considera a di­ não é sensível e não tem relação com o que é ferença entre o I. e os sentidos: o conhecimen­ sensível; nisto, é diferente de inteligível (v.), to sensível concerne às qualidades sensíveis

INTELECTO ex tern as; o c o n h e c im e n to in telectiv o p e n etra até a essê n cia da coisa" (S. Th, II, 2, q. 8, a. 1). P or o u tro la d o , te m -se o m esm o sign ifica­ do g e n é ric o q u a n d o esse te rm o é c o n tra p o sto à v o n ta d e , co m o a c o n te c e , p. ex., em L ocke: "A ca p a c id a d e d e p e n sa r é q u e se d e n o m in a I., e a c a p a c id a d e de q u e re r é o q u e se d e n o m in a v o n ta d e : d u a s c a p a c id a d e s ou d isp o siç õ e s da alm a às q u ais se dá o n o m e de facu ld ad e" (Ens, II, 6, 2). L eibniz, p o r sua v ez , e n te n d ia p o r I. "a p e rc e p ç ã o distinta u n id a à fa cu ld ad e de refle­ tir, q u e n ão ex iste na alm a d o s an im ais" (Nouv. ess, II, 21, 5). Essa n o ç ão foi d e p o is to m ad a p o r W olff (Psychol. empírica, § 275). A d efin i­ ção de I. co m o "faculd ade d e p en sar" é lu g ar co m u m n o séc. X V III; K an t só faz re p e ti-lo : "I. é a fa c u ld a d e d e p e n s a r o o b je to da in tu i­ çã o sen sív el" (Crit. R. Pura, L ógica, In tr., I) ou "o p o d e r de c o n h e c e r em g eral" (Antr, I, § 6, 40). M as de re p e n te , co m o R o m an tism o , o I. deix a de ter v a lo r d e fa cu ld ad e de c o n h e c e r em geral e d e sc o b re -se a "im ob ilidad e" do in te ­ lecto. Essa d e sc o b e rta é feita p o r F ichte: "O I. é I. só q u a n d o alg u m a co isa está fixada n ele; e tu d o o q u e se fixa fixa-se a p e n a s no in telecto . O I. p o d e ser d efinido co m o a im a g in a çã o fixa­ da p ela ra zã o , ou co m o a ra zã o p ro v id a de o bjeto s da im ag in ação . O I. é u m a fa cu ld ad e esp iritu al em re p o u so , inativa, é o p u ro re c e p ­ tácu lo do q u e foi p ro d u z id o p ela im a g in a çã o e que a razão d eterm in o u ou ain d a está p ara d e ­ term inar" (Wissenschaftslehre, Y19i, II, D e d u ­ ção da re p re se n ta ç ã o , III, trad. it., p. 184). M as foi p o r m eio de H egel q u e acab o u p re v a le c e n ­ do em filosofia a n o ç ã o de I. "im óvel", "rígido", "abstrato": "C om o I., o p e n sa m e n to d eté m -se na d e te rm in a ç ã o rígida e na d iferença en tre ela e as outras; para o I., esse p ro d u to ab strato e li­ m itad o é a u tô n o m o e ex isten te" (Ene, § 80). O I. é ca ra cte riza d o p ela im o b ilid a d e d e su a s d e ­ te rm in aç õ es: ele "d eterm in a e fixa su as d e te r­ m in ações" (Wissenschaft der Logik, Pref. à Ia ed ição , trad. it., p. 5). Essa im o b ilizaç ão é um falseam en to , co m o se v ê p ela form a co m o o I. en te n d e a re la ção en tre infinito e finito, o rig i­ n an d o o "falso infinito". "O fa lsea m e n to em q ue o I. in co rre em re la ção ao finito e o infini­ to, q u e co n siste em fixar co m o d iv e rsid a d e qualitativa a relação en tre am b o s, em afirm ar, ao d eterm in á-lo s, q u e são se p a ra d o s, e s e p a ra ­ d os em ab so lu to , tem co m o b a se o e s q u e c i­ m en to d aq u ilo q u e p ara o p ró p rio I. é o c o n ­

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INTELECTO ceito d esse s m o m en to s" (Ibid., I, I, seç. I, cap. 2, C, c, trad . it., I, p. 157). D essa form a, "fixar" "im obilizar", "d eterm in a r em ab so lu to " são as o p e ra ç õ e s q u e d e sc re v e m a ativ id ad e do I., em c o n tra p o siç ã o à ra zã o , ativ id ad e au tên tica do p e n sa m e n to q u e elim in a a fixidez e a rigidez d as d e te rm in a ç õ e s in te le ctu ais, s e n d o capaz de fluidificá-las e rela tiv iz á-las. E ssa co n tra­ p o siç ã o to rn a-se lu g ar-co m u m em g ra n d e parte da filosofia do séc. XIX: o I., p o rta n to , d esce de su a p o siç ã o de fa cu ld ad e d e p e n sa r e passa para a situação secundária ou sub ordinada de fa­ c u ld a d e de p e n sa m e n to abstrato, ou seja, de falso p e n sa m e n to . A p ersistê n c ia d esse lugarco m u m , sem q u a lq u e r ju stificação séria, p ode se r v erific ad a p e lo fato d e q u e , n o in ício do séc. XX, B erg so n p ro p ô s (Evolução criadora, 1907) a crítica do I. c o n sid e ra d o , se g u n d o o e s q u e m a h e g e lia n o , fa c u ld a d e q u e tem por objeto esp ecífico o q u e é im ó v el, in erte, ríg id o e m o rto , se n d o , p o rta n to , ra d ic a lm e n te inca­ p az de c o m p re e n d e r o m o v im e n to e a vida. D essa fo rm a, s u b s titu ía -s e a c o n tra p o s iç ã o h eg elian a I.-razão p ela c o n tra p o siç ã o I.-vida ou I.-co n sc iên cia, q u e in sp iro u e ain d a hoje inspi­ ra a lg u m as m an ifestaç õ es da filosofia co n tem ­ p o râ n e a . T od av ia, m esm o fora d essas antíteses este re o tip a d a s, a n o ç ã o do I. co m o faculdade de p e n sa r em g eral n ão está p re s e n te n a filoso­ fia c o n te m p o râ n e a , te n d o sido su b stitu íd a pela n o ç ã o de p e n sa m e n to ou razão (v.). 2° O re c o n h e c im e n to do sign ificad o g enéri­ co de I. p o d e o co rre r ou n ão em co n ju nto com o re c o n h e c im e n to de u m sign ificad o específi­ co. P o d em ser d istin g u id as três in terp retações fu n d a m en tais da fu n ção esp ecífica do I.: a) intuitiva; b) operante, c) de entendimento ou in telig ên cia. a) A n o ç ã o de I. intu itiv o foi elab o rad a por A ristó teles. Para ele, além de ser g eralm en te a facu ld ad e "graças à q u al a alm a raciocina e c o m p re e n d e " , o I. é ta m b é m u m a v irtud e d ian o ética , ou seja, u m h áb ito ra cio n al específi­ co. C o m o tal, é a fa c u ld a d e de in tu ir os princí­ p io s d as d e m o n stra ç õ e s, q u e n ão p o d em ser a p re e n d id o s p ela ciên cia — q u e é ap e n a s um h áb ito d em o n stra tiv o — n em pela arte e pela sa b e d o ria , q u e d izem re sp e ito "às coisas que p o d e m ser de outra form a", d esp ro v id as de n e c e ssid a d e (Et. níc, V I, 6 ,1 1 4 0 b 31 ss.). Além d essas "definições p rim eiras", o I. tam b ém tem a tarefa de in tu ir "os te rm o s ú ltim o s", ou seja, os fins aos q u a is d ev e su b o rd in ar-se a

INTELECTO

ação {Ibid., VI, 11, 1143b). Ao lado da ciên­ cia, o I. constitui a sabedoria, "que é ao mes­ mo tempo ciência e intuição das coisas mais excelsas por natureza" {Ibid, VI, 7, 1151b 2), sendo por isso a mais alta realização do ho­ mem. Essa função específica do I., de intuir os princípios comuns do raciocínio, foi admitida por S. Tomás (S. Th, I, q. 8, a. 1) e por muitos outros escolásticos, ao lado da função genérica de "pensar". Kant, por sua vez, fazia a distinção explícita entre I. no sentido genérico e I. como faculdade específica que está ao lado do juízo e da razão. Dizia: "A palavra I. também é enten­ dida em sentido mais particular quando o I. é subordinado, como membro de uma divisão, ao I. entendido em sentido mais geral, como faculdade superior de conhecer constituída por I., juízo e razão" {Antr., I, § 40). Nesse sentido específico, o I. é a faculdade de julgar, e o juízo que lhe compete é o juízo determinante, cujas leis constituem o objeto natural em geral (mais precisamente, a forma de tal objeto). Essas leis são "prescritas apriori" ao I., ou seja, dadas em seu funcionamento (Crít. R. Pura, Analítica dos conceitos, seç. I; Crít. doJuízo, Intr., § IV). Nesse sentido específico, como faculdade de julgar, o I. não é intuitivo no sentido de estar em relação direta com o objeto; aliás, é uma relação mediata com o objeto porque, enquan­ to juízo sobre uma representação, é, segundo a expressão de Kant, "a representação de uma representação". Mas é intuitivo no mesmo sen­ tido em que é intuitivo o I. específico de Aris­ tóteles: está em relação imediata com leis ou princípios fundamentais que entram na consti­ tuição e na organização da ciência e da estru­ tura de seus objetos. A diferença entre o ponto de vista de Aristóteles e o de Kant é que, para Aristóteles, o I. tem a função de formular os princípios primeiros utilizados pela ciência demonstrativa e de perceber a evidência deles; para Kant, ao cumprir a função de julgar, o I. põe em funcionamento os princípios que o constituem, mesmo sem necessidade de for­ mulá-los explicitamente. Essas duas alternativas são as únicas historicamente presentes na interpretação do I. como faculdade intuitiva específica. ti) A concepção operante do I. foi apresentada por Bergson, que a enxertou no conceito ro­ mântico do I. entendido como faculdade de imobilizar. Deste ponto de vista, o I. é "a facul­ dade de fabricar objetos artificiais, em especial

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INTELECTO

para fazer utensílios, e de variar indefinida­ mente sua fabricação" {Evol. créatr., 1911, 8a ed., p. 151). Portanto, é a solução de um proble­ ma que, numa outra linha evolutiva, levou ao instinto entendido como faculdade de utilizar instrumentos organizados. Devido à sua função operante, a inteligência tende a captar as rela­ ções entre as coisas, e não as próprias coisas; portanto, sua forma, e não a sua matéira; tem por objeto principal o sólido inorgânico, imó­ vel, e é caracterizada por uma incompreensão natural do movimento e da vida {Ibid., p. 179). Essa análise de Bergson influenciou muito a filosofia contemporânea, cujas correntes espi­ ritualistas e idealistas utilizaram freqüente­ mente suas conclusões para afirmar que "o I. abstrato" é, quando muito, eficaz no domínio da ciência, que também é conhecimento "abstrato", mas que pouco ou nada vale no domínio da consciência efetiva, que seria o fi­ losófico. Mas também fora do âmbito dessas intenções denegridoras que envolvem o I. e a ciência, a função operante do I., graças à qual ele é a capacidade de enfrentar com sucesso as situações biológicas, sociais, etc. nas quais o homem se encontre, acabou caracterizando o próprio I., sendo, portanto, difícil ver nele, hoje, um órgão de funções puramente teóricas. O pragmatismo certamente contribuiu para a formação deste ponto de vista, que se tornou lugar-comum da filosofia contemporânea. c) No terceiro significado específico de I., ele significa entendimento, sendo mais apro­ priadas, além de "entendimento", as palavras inteligência e intelecção (em italiano, intelligenza; em francês, entendement; em alemão, Verstehen). Essa acepção do termo, por sua vez, pode ser articulada em dois significados: et) Um significado comum e genérico, em que "entender" significa apreender o significa­ do de um símbolo, a força de um argumento, o valor de uma ação, etc. Em todos estes casos, a palavra exprime a possibilidade de efetuar corretamente determinada operação. P. ex., o entendimento de um signo consiste na possibi­ lidade de estabelecer corretamente (com base no uso ou em regras devidas) a referência en­ tre o sinal e seu referente. O entendimento de um argumento consiste na possibilidade de interligar suas partes de tal forma que o argu­ mento se torne probante, etc. Nestes casos, há tanta diversidade entre os vários significados de entendimento quanto entre os objetos e as situações às quais se faz referência. Em geral,

INTELECTO ATIVO

tudo o que pode ser dito desse ponto é que o entendimento designa certa capacidade de inserir-se no contexto de tais situações e de orientar-se nele. P) Um significado mais restrito e específico, no qual entendimento significa a compreensão de certo tipo de objetos, como p. ex. de um ho­ mem ou de uma situação histórica. Para tal significado do termo, v. COMPREENDER. IN T E L E C T O A T IV O (gr. voüÇTtouiTtxóç; lat. Intellectus agens; in. Active intellect; fr. Intellect actif\ú. ActiveIntellekt; it. Intellettoattivó). No­ ção de origem aristotélica que deu lugar a um problema longamente debatido pelos anti­ gos comentadores de Aristóteles, pela escolástica árabe, pela escolástica cristã e pelo aristotelismo renascentista. O problema nasce da dis­ tinção feita entre I. potencial e I. atual. "Assim como, em toda a natureza" — diz Aristóteles —, "existe alguma coisa que serve de matéria a cada gênero e alguma coisa que é causalida­ de e atividade, também na alma deve neces­ sariamente haver estas duas coisas diferentes. De fato, de um lado está o I. que tem a poten­ cialidade de ser todos os objetos e do outro lado está o I. que os produz, que se comporta como a luz: esta também permite que passem ao ato as cores que estão apenas em potência. Esse I. é isolado, impassível e sem mescla, pois sua substância é a própria ação" (Dean., III, 5, 430 a 10). Aristóteles acrescenta que só este I. atual e ativo é "imortal e eterno". Donde o pro­ blema: ele pertenceria à alma humana ou, gra­ ças à sua incorruptibilidade, faria parte da eter­ nidade e da atualidade perfeita, da divindade? Foram três as principais soluções para esse pro­ blema: Ia Separação entre I. ativo e alma humana. Esta é a solução defendida na Antigüidade pelo comentador de Aristóteles, Alexandre de Afrodísia (séc. II), que identificou o I. ativo com a causa primeira, com Deus. Assim, pertenceriam à alma humana: d) I. físico ou material (ílicó), que é o I. potencial, semelhante ao homem que é capaz de aprender uma arte mas que ainda não a domina; b) I. adquirido (é7iiKXTXVIÓÇ, adeptus), que é o aperfeiçoamento ou a completitude do anterior, o conjunto das ha­ bilidades próprias no homem educado, seme­ lhante ao artista que chegou a dominar sua arte (Dean., I, ed. Bruns., p. 138-39). Essa solução, negando à alma humana o único I. imortal e eterno que é o ativo, por um lado nega a imor­ talidade da alma e por outro acentua a depen­

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INTELECTO ATIVO

dência da atividade intelectual humana em re­ lação aos sentidos. Reaparece com freqüência na história da filosofia. É retomada pelo neoplatonismo árabe, com Al Kindi (séc. IX), Al Farabi (séc. IX) e Avicena (séc. XI); este último, todavia, não achava que essa solução contra­ riasse a imortalidade da alma, pois admitia que a dependência da alma em relação ao I. ativo, logo em relação a Deus, se mantivesse mesmo depois da separação entre alma e corpo, bas­ tando isso para conferir a imortalidade à alma (De an., 10). Essa doutrina também era aceita por Ib Bagia (séc. XII), Moisés Ben Maimon (Maimônides, séc. XII), o mais famoso dos filó­ sofos judaicos da Idade Média (Cuide des égarés, I, 50-52) e por Roger Bacon (Opus maius, ed. Bridges, p. 143). No Renascimento, essa solução foi defendida por Pietro Pomponazzi, que insistia nas condições sensíveis do funcionamento do I. humano e considerava impossível a demonstração da imortalidade (De immortalitate animae, 9). 2- A separação entre I. ativo e I. passivo na alma humana. Esta foi a solução proposta por Averróis. O I. material ou ílíco, que os defenso­ res da solução anterior atribuíam ao homem, também é considerado por Averróis separado da alma humana. Na alma humana, o I. mate­ rial nada mais é que uma simples disposição transmitida pelo I. ativo, e mais exatamente uma disposição a abstrair conceitos e verdades uni­ versais de imagens sensíveis. Portanto, ao ho­ mem só resta o I. adquirido, que Averróis de­ nomina também especulativo e que consiste no conhecimento das verdades universais (Dean., foi. l65a). Essa doutrina é típica do averroísmo medieval: foi defendida por Siger de Brabante (séc. XIII) na obra De anima intellectíva (edi­ tado em Mandonnet, Sigerde BrabantetVaverroisme latin auXIII"síècle, II, Lovaina, 1908). Essa solução teve numerosos seguidores no aristotelismo do Renascimento (cf. BRUNO NARDI, Sigieri di Brabante nelpensiero dei Rinascimento italiano, 1945). 3a Unidade do I. ativo e passivo com a alma humana. Esta tese foi sustentada no séc. IV pelo comentador de Aristóteles Temísio (De an, 103, 6; trad. it. p. 233), em polêmica com Alexandre, e mais tarde (séc. IV) pelo outro comentador Simplício, também neoplatônico. Foi retomada no séc. XIII, durante a polêmica contra o averroísmo que se deu na escolástica latina daquele tempo. Alberto Magno e S. To­ más opõem-se à separação entre I. de alma,

INTELECTUALISMO

defendida por Averróis e Alexandre. Admitem que, acima da alma humana, está o I. separado de Deus, mas acham que o homem participa desse I. e que o I. ativo faz parte da sua alma como uma luz acesa pelo I. divino (ALBERTO, De intellectu et intelligibili, II, 1-2; S. TOMÁS, 5. Th, I, q. 79, a. 4). Provavelmente foi contra uma obra de Siger que S. Tomás escreveu De unitate intellectus contra Averroístas, cuja res­ posta se encontra em De anima intellectiva, de Siger. A principal objeção de S. Tomás é que, se o I. fosse uma substância separada, quem entenderia não seria o homem, mas essa subs­ tância, ao que Siger responde que o I. não age no homem como um motor, mas operans in operando, eu seja, como princípio diretivo de sua atividade. No Renascimento, foi sobretudo Marsílio Ficino quem defendeu a unidade do I, com a alma humana (Tbeologia platônica, XV, 14). O problema do I. ativo é específico do aristotelismo e não tem sentido fora dele. Por­ tanto, deixa de ser debatido quando o aristotelismo deixa de determinar os rumos gerais da filosofia. Já entre o fim do séc. XIII e o início do séc. XIV existem filósofos que negam expli­ citamente o I. ativo e evitam, portanto, proporse esse problema. Durand de S. Pourçain diz que, assim como não se supõe um "sentido ativo", é inútil supor um I. ativo (In Sent., I, d. 3, q. 5 26), e Ockham afirma que a função de abstrair, atribuída ao I. ativo, desenrola-se naturaliter, como efeito das noções sensíveis e não exige o I. ativo, cuja noção, portanto, só tem"apoio na autoridade de santos e filósofos (In Sent, II, q. 25). Esse ponto de vista prevale­ ceu desde os primórdios da filosofia moderna, que abandona completamente essa questão. INTELECTUALISMO (in. Intellectualism- fr. Intellectualisme, ai. Intellektualismus; it. Intellettualismó). Com este termo Hegel designava a filosofia de Plotino, interpretando o êxtase como ato de sair da consciência sensível e "puro pensar". "A idéia da filosofia plotiniana" — dizia ele — "é portanto um I. ou um idealis­ mo superior que, certamente do lado do con­ ceito, não é ainda idealismo perfeito" (Geschichte derPhüosophie, I, seç. III, Plotino; trad. it., p. 41). Esse termo agora é usado pelas filo­ sofias da vida e da ação para tachar a corrente contrária, para a qual o intelecto (ou pensa­ mento ou razão) tem função dominante na consciência e na conduta do homem. Esse ter­ mo foi freqüentemente empregado pelo

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INTENÇÃO

intuicionismo bergsoniano, pela filosofia da ação, pelo modernismo, pelo pragmatismo, ou seja, por todas as filosofias que tendem a de­ preciar o valor do intelecto como via de acesso à verdade e como guia da conduta e a julgar muito mais importante a intuição, a simpatia, o instinto, a vida, a vontade, etc. Por vezes esse termo foi contraposto a voluntarismo (v.) para indicar a primazia atribuída ao inte­ lecto sobre a vontade; nesse sentido, tam­ bém foi empregado com a finalidade de carac­ terizar historicamente certos pontos de vista. Assim, falou-se do I. de S. Tomás e do voluntarismo de Duns Scot, aludindo ao peso dife­ rente que nesses filósofos têm as duas ativida­ des humanas fundamentais. Trata-se, porém, de significados e caracterizações pouco precisos. INTELIGÍVEL (gr. voritóç; lat. Intelligibilis; in. Intelligible, fr. Intelligible, ai. Intelligibel; it. Intelligibilé). Em geral, o objeto do intelecto. Aristóteles dissera: "todos os entes são sensí­ veis ou I." (Dean, III, 8, 431b 21). O I. é o ob­ jeto do intelecto assim como o sensível é o objeto dos sentidos. Essa simetria é mantida por todos os filósofos que admitem a distinção entre sensibilidade e intelecto. Platão denomi­ nou I. a esfera do conhecimento que com­ preende a dianóia e a ciência, distinta da es­ fera da opinião, que compreende a conjectura e a crença (Rep, VII, 534a). Para o neoplatonismo, o mundo I. compreende as três primeiras hipóstases: o Uno, o Intelecto e a Alma do Mundo (PLOTINO, Enn., II, 9, 1). Para Kant, o mundo I. é o mundo de que o homem faz par­ te como "atividade pura", ou seja, não sendo influenciado pela sensibilidade, mas agindo com base na espontaneidade da razão. "Por um lado" — diz Kant —, "o homem, por per­ tencer ao mundo sensível, está submetido às leis da natureza; por outro, por pertencer ao mundo I., está submetido às leis que não de­ pendem da natureza, portanto não empíricas, mas fundadas unicamente na razão" (Grundlegung zurMetaphysik der Sitten, III). Nesse sen­ tido, o mundo I. é o mundo moral. Em sentido mais específico, diz-se que é I. o que pode ser entendido ou compreendido, em correspondência com os significados 2a, c, de Intelecto (v.). INTENÇÃO (lat. Intentio; in. Intention; fr. Intention; ai. Gesinnung; it. Intenzioné). Pro­ priamente, a intencionalidade no domínio prá­ tico, ou seja, a referência de uma atividade prática (desejo, aspiração, vontade) ao seu pró­

INTENÇÃO

prio objeto. Nesse significado, a intencionalidade do ato moral pode ser reconhecida por qualquer doutrina moral. Todavia, a insistência no valor da I. como condição da moral é uma das características da ética do fim, distinta da ética do móbil (v. ÉTICA). Na ética do móbil, a moralidade da ação é julgada em termos de efi­ ciência em produzir o bem-estar, a felicidade, etc. Na ética do fim, entretanto, a ação é julgada em termos da direção que o sujeito imprime à ação, que é exatamente a intenção. A esse respeito, S. Tomás diz com justiça que "a I. é o nome do ato da vontade, estando pres­ suposto o ordenamento da razão, que orde­ na alguma coisa para um fim"; é que "a I. per­ tence primordial e principalmente àquilo que se move para um fim", sendo por isso "o ato da vontade" (S. Th, II, 1, q. 12, a. 1). Nesse senti­ do, a I. é própria da ética do fim. Portanto, sua noção não se encontra na ética aristotélica, em que a análise do ato moral é feita com base na ética do móbil; não se encontra nenhuma ética do mesmo gênero, como p. ex. o utilitarismo. Por outro lado, a moral teológica tende a insis­ tir no valor da intenção. Abelardo dizia: "Deus não toma em consideração as coisas feitas, mas o espírito com que são feitas, e o mérito e o va­ lor de quem age não consiste na ação, mas na I." (Scito teipsum, 3). A própria moral kantiana, sobretudo em seus aspectos de pregação leiga e edificante, insiste muito no valor da I.: a exaltação da "boa vontade" com a qual se inicia a Fundamentação da metafísica dos costumes na realidade é uma exaltação da intenção. E a primeira parte da Crítica da Razão Prática conclui-se com a exaltação da "I. realmente moral e consagrada à lei". Ao contrário, a dife­ rença entre a ética da I. e a ética objetiva foi bem expressa por Max Weber: "Na esfera da conduta pessoal existem problemas éticos específicos que a ética não pode resolver com base em seus próprios pressupostos. Antes de mais nada há a questão fundamental de saber se: a) o valor intrínseco da conduta ética — a 'vontade pura' ou a 'I.', como se costuma deno­ minar — basta para a sua justificação, segundo a máxima cristã: 'o cristão age bem e deixa por conta de Deus as conseqüências de sua ação' ou b) a responsabilidade das conseqüências previsíveis da ação deve ser tomada em consi­ deração. Toda atitude politicamente revolucio­ nária, em especial o sindicalismo revolucioná­ rio, partem do primeiro postulado; toda política realista, do segundo. Ambas invocam princí­

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INTENCIONALIDADE

pios éticos. Mas esses princípios estão em eterno conflito, o que não pode ser resolvido só por meio da ética" ("Der Sinn der Wertfreiheit der soziologischen und õkonomischen Wissenschaften", 1917; trad. in., em The Methodology ofthe Social Sciences, p. 16). A ética moderna e contemporânea, por ser predomi­ nantemente uma ética do móbil (v. ÉTICA) dá primazia àquilo que Weber denominou segun­ do postulado. Por outro lado, o ceticismo tão difundido na filosofia contemporânea, quanto à possibilidade de conhecer com probabilidade suficiente o que acontece no âmago da cons­ ciência individual, levou o behaviorismo a con­ siderar a I. como operação (ou como parte de uma operação) que constitui a execução de um plano ou projeto de conduta. Nesse caso, a fra­ se "tenho a intenção de ver João" significa sim­ plesmente que estou empenhado na execução de um plano de que faz parte encontrar com João (MILLER, GALANTER, PRIBBAN, Plans and the Structure ofBehavior, 1960, p. 6l). INTENCIONAIJDADE (lat. Intentionalitas; in. Intentionality, fr. Intentionnalité, ai. Intentionalitãt; it. Intenzionalitâ). Referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele: p. ex., de uma idéia ou representação à coisa pensada ou representada, de um ato de vontade ou de amor à coisa querida ou amada, etc. Essa noção foi inicialmente empregada com relação à atividade prática, donde o signi­ ficado, ainda hoje predominante, da palavra intenção (v.) que designa exatamente a refe­ rência da atividade prática ao seu objeto. O neoplatonismo árabe estendeu pela primeira vez seu sentido, para designar a relação entre o conhecimento e seu objeto, chamando os con­ ceitos de intenções. Ao determinar a diferença entre a lógica e as ciências reais, Avicena afir­ mou que, enquanto estas últimas têm por ob­ jeto as primeiras intenções (intensionesprimo intellectaé), ou seja, conceitos que se referem a coisas reais, a lógica tem por objeto as segun­ das intenções {intensionessecundo intellectaé), ou seja, conceitos que se referem a outros con­ ceitos (Met, I, 2). Alberto Magno reproduziu esta distinção {In Met., I, 1, 1), que se tornaria familiar aos filósofos do séc. XIII. S. Tomás, por sua vez, considerava a intenção como "a seme­ lhança da coisa pensada" (Contra Gent., IV, 11), distinguindo-a por vezes da espécie inte­ ligível pela sua indiferença à ausência ou à presença do objeto e pelo fato de abstrair das condições materiais sem as quais esta última não

INTENCIONALIDADE

existe na natureza {Ibid, I, 53), e outras vezes identificando-a com a espécie inteligível (S. Th, I, q. 85, a. 1, ad 4a). Mas o conceito de I. só ganhou destaque quando, entre o fim do séc. XIII e o começo do séc. XIV, começou-se a du­ vidar da doutrina da espécie(v.) como interme­ diária do conhecimento e deixou-se de ver no ato cognitivo uma "semelhança", uma cópia ou imagem da coisa. Durand de S. Pourçain afir­ mava que é o próprio objeto, e não a espécie, que se apresenta ao sentido e ao intelecto {In Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10) e Pedro Auréolo observava, a respeito* que, se a espécie fosse o objeto do conhecimento, este não diria respeito à realidade, mas apenas à imagem dela. Auréolo, portanto, julgava que o objeto do conheci­ mento era a coisa em seu ser intencional ou objetivo, ou seja, assumida como termo da I. do conhecimento {Ibid., I, d. 23, a. 2). O esse intentionale ou esse apparens, como também o denominava Auréolo, é a manifestação da coisa à I. cognoscitiva da mente {Ibid., I, d. 9, a. 1). Para Ockham, isso se afigurava como um anteparo inútil entre o intelecto e a coisa {Ibid., I, d. 27, q. 3 CC). Para ele, o ato cognitivo é uma intentio, no sentido de referir-se diretamente à coisa significada. Como intenção, o conceito não passa de signo que está no lugar de uma classe de objetos, qualquer um dos quais pode substituir o conceito nos juízos e raciocínios em que aparece {Ibid, I, d. 23, q. 1, D; Quodl, IV, q. 35; Summa log, I, 12). AL, como referência ao objeto, fora assim reduzida pela escolástica medieval à referência do signo ao seu designato, e por muito tempo deixa de ser utilizada como noção autônoma. Foi só no séc. XIX que Brentano redescobriu essa noção para torná-la como característica dos fenômenos psíquicos {Psichologíe vom empirischen Standpunkt, 1874). Estes podem ser classificados, segundo as características de sua I., de sua referência ao objeto, em repre­ sentação (o objeto está simplesmente presente), em juízo (é afirmado ou negado), em senti­ mento (é amado ou odiado). Esses três atos se referem a um "objeto imanente" e são atos intencionais, mas sua I., ou seja, sua referência ao objeto, é diferente para cada um deles. Ini­ cialmente Brentano julgou que o objeto da I. pudesse ser indiferentemente real ou irreal; de­ pois, em Klassification derpsychischen Phânomene{Y)\X), afirmou que o objeto da I. é sem­ pre real e que a referência a um objeto irreal é indireta, ocorrendo através de um sujeito que

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INTENSÃO e EXTENSÃO

afirme ou negue o objeto. Husserl inspirou-se nessas idéias de Brentano ao assumir a noção de I. não mais como característica dos fenôme­ nos psíquicos entendidos como um grupo de fenômenos que coexistam com outros fenômemos chamados físicos, mas como a definição da própria relação entre o sujeito e o objeto da consciência em geral. Husserl diz a este propó­ sito: "Acaracterística das vivências {Erlebnisse), que pode ser indicada como o tema geral da fenomenologia orientada objetivamente, é a intencionalidade. Representa uma característica essencial da esfera das vivências, porquanto to­ das as experiências, de uma forma ou de outra, têm intencionalidade... A I. é aquilo que carac­ teriza a consciência em sentido pregnante, per­ mitindo indicar a corrente da vivência como corrente de consciência e como unidade de consciência" {Ideen, I, § 84). Posteriormente, o próprio Husserl falou de "intencionalidade atuante", no sentido de que a vivência não se refere somente ao seu objeto, mas também a si mesma e é por isso ciência de si (v. ATUANTE). Seja como for, no âmbito da fenomenologia a I. era assumida como característica fundamen­ tal da consciência, e como tal ficou em boa parte na filosofia contemporânea, especialmen­ te na fenomenologia e no existencialismo (v. CONSCIÊNCIA). O conceito de transcendência (v.), mediante o qual Heidegger definiu a rela­ ção entre o homem e o mundo, outra coisa não é senão uma generalização da intencionalidade. Heidegger diz: "Se considerarmos qualquer relação com o ente como intencional, então a I. é possível apenas com base na transcen­ dência, mas é preciso atentar: I. e transcendên­ cia não se' identificam e esta não se funda naquela" {Vom Wesen des Grandes, I; trad. it., p. 24). INTENSÃO e EXTENSÃO (in. Intension and extension; fr. Intension et extension; ai. Sinn und Bedeutung; it. Intensione e estensione). Este par de termos foi introduzido por Leibniz, para expressar a distinção que a Lógica de Port-Royal expressara com o par compreensãoextensão (v.) e a lógica de Stuart Mill expressa­ ra com o par conotação-denotação (v.). Leibniz diz: "Animal compreende mais indivíduos que homem, mas homem compreende mais idéias e mais formas; um tem mais exemplos, o outro mais graus de realidade; um tem mais exten­ são, o outro tem mais I." {Nouv. ess, IV, 17, § 9). O emprego destes dois termos foi adotado por Hamilton: "A quantidade interna de uma no­

INTENSAO e EXTENSÃO

ção, sua I. ou compreensão, é constituída por diferentes atributos cuja soma é o conceito, no sentido de que este reúne os vários caracteres conexos num todo pensado. A quantidade externa de uma noção, ou a sua extensão, é constituída pelo número de objetos que são pensados mediatamente através do conceito" (Lectures on Logic, 2a ed., 1866, 1, p. 142). O uso desses doisAtermos ainda prevalece na lógica contemporânea, que os associou à dis­ tinção estabelecida por Frege entre sentido e significado. Frege disse: "Ao pensarmos num signo, deveremos ligar a ele duas coisas dis­ tintas: não só o objeto designado, que será denominado significado daquele signo, mas também o sentidoáo signo, que denota a maneira como esse objeto nos é dado" ("Über Sinn und Bedeutung", 1892, § 1, trad. it., em Aritmética e lógica, p. 218). Obviamente, o objeto é a extensão; o sentido é a intensão. Essa distinção é repetida ou pressuposta por quase toda a lógica contemporânea. A I. de um termo é definida por Lewis como "a conjunção de todos os outros termos, cada um dos quais deve ser aplicável àquilo a que o termo é corretamente aplicável". Nesse sentido, a I. (ou conotação) é delimitada por toda defi­ nição correta do termo e representa a intenção de quem o emprega, por isso o significado primeiro de "significado". A extensão ou denotação de um termo, porém, é a classe das coisas reais às quais o termo s e aplica (LEWIS, Analysis ofKnowledge and Valuation, 1950, p. 39-41). As mesmas determinações são feitas por Qui­ ne: a I. é o- significado; a extensão é a classe das entidades às quais o termo pode ser atribuído com verdade (From a Logical Point ofView, II, 1). Analogamente são usados os adjetivos intensional e extensional. este último é aplicado a pontos de vista que tomam em consideração a denotação das proposições, sem levar em conta, sempre que possível, seus significados intensionais. Por outro lado, o adjetivo intensional, sobretudo se aplicado ao cálculo das proposições ou das funçõesproposicionais(v.), significa que se toma em consideração a moda­ lidade das proposições, que não são levadas em conta pela consideração extensional, que se limita a examinar as funções de verdade das próprias proposições (CARNAP, Logical Syntax ofhmguage, § 67; ru s s e ll, Inquiry into Meaning and Truth, 1940, cap. 19) (v. ESTENSIONALIDADE, TESE DA).

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INTERESSE

INTERAÇÃO. V. AÇÃO RECÍPROCA; TRANSA­ ÇÃO.

INTERESSANTE (in. Lnteresting; fr. Intéressant; ai. Lnteressant; it. Interessante). Kierkegaard frisou a importância desse concei­ to, que ele considerou "uma categoria situada no limite entre a estética e a ética, portanto a categoria do ponto crítico". Sócrates foi, p. ex., o mais I. dos homens que já viveram e sua vida foi a mais I. das vidas vividas. Mas aquela existência foi-lhe destinada pela divindade e, na medida em que precisou conquistá-la por si, precisou conhecer dificuldades e dores (Furcht undZittern, em Werke, III, 131). IN T E R E S S E (in. Interest; fr. Intérêt; ai. Inte­ resse, it. Interesse). Participação pessoal numa situação qualquer e a dependência que dela re­ sulta para a pessoa interessada. Trata-se de um conceito moderno que Kant utiliza no domínio da estética, com a finalidade de afirmar o cará­ ter "desinteressado" do prazer estético: "Cha­ ma-se de I. o prazer que associamos à repre­ sentação da existência de um objeto. Esse prazer tem sempre relação com a faculdade de desejar, seja como causa determinante dele, seja como necessariamente atinente a tal causa. Mas quando se trata de julgar se uma coisa é bela, não queremos saber se sua existência importa ou pode vir a importar para nós ou para qualquer pessoa; só queremos saber como julgá-la ao contemplá-la" (Crít. doJuízo, § 2). Hegel, por sua vez, ao definir o I. como "o momento da individualidade subjetiva e de sua atividade", entendia com isso a presença do sujeito na ação {Ene, § 475). A noção de I. foi utilizada sobretudo em pedagogia, como participação do educando no saber, graças à qual o saber se lhe afigura útil. Essa foi uma das regras propostas para a educação em Emílio de Rousseau. Mas foi Herbart quem utilizou sistematicamente a noção de I., indicando como fim da educação a plurilateralidade dos inte­ resses. Segundo Herbart, o I. está no meio, entre ser espectador dos fatos e neles intervir; em outros termos, é uma participação ainda não totalmente ativa ou engajada. O I. também se distingue do desejo porque, enquanto o objeto deste último ainda não existe, o objeto do I. já está presente e real (AllgemeinePãdagogik, 1873, II, 1, 2, § 3). Dos pedagogos contemporâneos foi Dewey quem mais insistiu na valor do L, definindo-o como "o acompanhamento da identificação, através da ação, do eu com algum objeto ou idéia, através da necessidade de tal

INTERFENÔMENO

objeto ou idéia para a manutenção da autoexpressão" (Educational Essays, ed. por J. J. Findlay, p. 89)- Desse ponto de vista, o esforço, que, em pedagogia, às vezes se costuma con­ trapor ao I., implica uma separação entre o eu e o objeto que deve se aprendido ou domina­ do. Segundo Dewey, os caracteres do I. são a atividade, a projetividade e a propukividade. Pelo primeiro, o I. é dinâmico, impele à ação. Pe­ lo segundo, o I. tem objetivo fora de si, em algum objeto ou finalidade à qual se apega. Pelo terceiro, I. significa realização interna ou sentimento de valor (Jbid, pp. 90-91). Essa concepção do I., que é um dos pontos focais da pedagogia de Dewey, exerceu forte influência sobre a teoria e a prática da educação em todos os países do Ocidente. INTERFENÔMENO (in. Interphenomenorí). Termo criado por H. Reichenbach para indicar os eventos subatômicos não observáveis, ou seja, não imediatamente inferíveis pela obser­ vação, como p. ex. o movimento de um elétron ou de um raio luminoso da fonte até o encon­ tro com outra matéria. "Eventos dessa espé­ cie são apresentados por meio de cadeias de inferências de tipo muito mais complicado. São construídos na forma de interpolação dentro do mundo dos fenômenos, e na mecânica quântica a distinção entre fenômenos e I. é análoga à distinção entre coisas observadas e não observadas" (Philosophic Foundations of Quantum Mechanics, I, 6). INTERIORIDADE. V. EXTERIORIDADE. INTERMUNDOS (gr. |4,£TaKóo|Ata; lat. Intermundid). Espaços entre os mundos, onde, segundo Epicuro, habitam os deuses (DIÓG. L, X, 89; CÍCERO, De divin, II, 17, 40; De nat. deor, 16-19). INTERPRETAÇÃO (gr. épunveía; lat. Interpretatio; in. Interpretation, fr. Interprétation; ai. Interpretation, Auslegung;it.Interpretazíonê). Em geral, possibilidade de referência de um signo ao que ela designa, ou também a opera­ ção através da qual um sujeito (intérprete) estabelece a referência de um signo ao seu objeto (designado). Aristóteles denominou I. o livro em que estudou a relação entre os signos lingüísticos e os pensamentos e entre os pensamentos e as coisas. Ele de fato con­ siderava as palavras como "sinais das afei­ ções da alma, que são as mesmas para to­ dos e constituem as imagens dos objetos que são idênticos para todos", considerando ade­

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INTERPRETAÇÃO

mais como sujeito ativo dessa referência a alma ou o intelecto {De interpr, 1, 16a, 1 ss.). Boécio, graças a quem essa doutrina pas­ sou para a Escolástica latina, entendia por I. "qualquer termo que significa alguma coisa por si mesmo", incluindo entre as I. os subs­ tantivos, os verbos e as proposições, e ex­ cluindo as conjunções, as preposições e em geral os termos gramaticais que não signifi­ cam nada por si mesmos. Para ele, referên­ cia do signo ao que ele designa era o essen­ cial da interpretação (In librum de interpr. editioprima, I, em P. L, 64, col. 295). Nesta concepção, a I. é a referência dos sig­ nos verbais aos conceitos (as "afeições da men­ te") e dos conceitos às coisas. As características dessa doutrina podem ser assim fixadas: I- a I. é um evento que acontece "na alma", um even­ to mental; 2a o signo verbal ou escrito é dife­ rente da afeição da mente ou do conceito e se refere a este; 3a a relação entre signo verbal e conceito é arbitrária e convencional, ao passo que a relação entre o conceito e o objeto é universal e necessária. Esses princípios permaneceram inalterados por longo tempo. Apesar do desenvolvimen­ to ocorrido na teoria dos signos graças à ló­ gica estóica, medieval e moderna, a doutrina da I. continuou considerando por muito tempo que o processo interpretativo tinha sede na alma ou na mente, que era um processo men­ tal. Foi só na filosofia contemporânea que se propôs outra alternativa, qual seja, de há­ bito ou comportamento. Conquanto não fal­ te hoje quem considere a I. um processo men­ tal (C. K. ODGEN-I. A. RICHARDS, TheMeaning ofMeaning, 1952 [lâ ed., 19231, p. 57; DuCASSE, emJournal ofSymbolic Logic, 1939, n. 4), a semiótica americana apresentou outra dou­ trina fundamental da I., que toma como base o comportamento. Os pressupostos dessa doutrina são encontrados na obra de Peirce, que enten­ deu a I. como um processo triádico que se dá entre um signo, seu objeto e seu interpretante, constituindo este último a relação entre o pri­ meiro e o segundo termo (Coll. Pap, 5.484). Conquanto em Peirce restem ainda muitos pres­ supostos da antiga doutrina, ele não entendeu a I. como um ato simplesmente mental, mas como um hábito de ação, como a resposta ha­ bitual e constante que o intérprete dá ao signo (Jbid, 5.475 ss.). Esse é o ponto de vista de Morris, que prevalece na semiótica contem­ porânea (Foundations of a Theory of Signs,

INTERPRETAÇÃO

1938; Signs, Language and Behavior, 1946). Desse ponto de vista, a I. tem as seguintes características: le não é (ou não é apenas) um hábito mental, mas um comportamentoiy.), uma resposta objetivamente observável e constante de um organismo a um estímulo; 2S não existe diferença entre sinais mentais e sinais verbais, no sentido de os primeiros serem suscetíveis de I. necessária e os outros não; 3S a referência dos signos aos seus objetos não é nem neces­ sária nem arbitrária, mas determinada pelo uso (nas linguagens comuns) ou por convenções cabíveis (nas linguagens especiais). As observações anteriores dizem respeito à teoria da I. na semiótica (v.). É necessário po­ rém observar que, na linguagem científica e filosófica hodierna, essa palavra tem usos es­ pecíficos diversos, que só indiretamente po­ dem ser relacionados com o emprego a que aludimos. Fala-se de I. na ciência quando se estabelece a correspondência entre um siste­ ma axiomático e determinado modelo (v. AxioMÁTICA; MODELO), OU seja, um exemplo concre­ to ou um conjunto de entidades que satis­ faça às condições enunciadas pelo sistema axiomático. Nesse sentido, a geometria comum pode ser a I. de determinado sistema axiomático, como p. ex. da axiomática de Hilbert. Um outro uso do termo é o que se encontra nas disciplinas históricas, quando se fala da I. de determinado acontecimento, de um conjunto de acontecimentos ou de um período. Nesse caso, a I. é um aspecto da escolha historiográfica, e consiste na escolha das caraterísticas históricas consideradas dominantes e centrais, em relação às quais as outras se situam num plano subordinado e secundário. Nesse senti­ do, fala-se, p. ex., de I. materialista da história, quando os aspectos materiais (ou econômicos) são considerados primordiais e fundamentais (v. HISTORIOGRAFIA). A I. pode ter outros senti­ dos específicos e em outros campos de pesqui­ sa e também pode ter o sentido de explicação (como quando se fala, p. ex., da I. de um fe­ nômeno físico) ou, como fazia Bacon (Nov. Org, I, 26), da natureza em geral. Independen­ temente de todos os significados mencionados, Heidegger definiu-a como o desenvolvimento e a realização efetiva da compreensão: "A I. não é tomar conhecimento de que se com­ preendeu, mas a elaboração das possibilida­ des projetadas na compreensão" (Sein undZeit, § 32). Este conceito não é utilizável para a aná­ lise do uso desse termo nos vários campos.

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INTROSPECÇÃO

ENTERPRETANTE e INTÉRPRETE (in Inter­ pretam, Interpreter). Na semiótica contemporâ­ nea, os dois termos significam respectivamen­ te: a disposição em responder a um signo e aquele (em geral o organismo) que emprega o signo ou se expressa com ele (MORRIS, Foundations ofa TheoryofSigns, § 3) (v. SEMIÓTICA). INTERROGAÇÃO MÚLTIPLA (gr xó xà nkúw èpomínaxa ev noveív; noXx)C,rXi\aiç; lat. Plurium interrogationum fallacia; ai. Heterozetesis). Uma das falácias extra dictionem enu­ meradas por Aristóteles, mais precisamente a que consiste na redução de várias perguntas a uma só, apostando assim na unicidade da respos­ ta que o adversário é tentado a dar (ARISTÓTELES, El. Sof, 30, 181 a 30; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 62-7. 64;JUNGIUS, Lógicahamburgensís, VI, 12, 16; GENOVESI, Ars logico-critica, V, 11, 12; etc.) (v. FALÁCIA).

INTERSUBJETTVO (in. Intersubjective, fr. Intersubjectif, ai. Intersubjektiv-, it. Intersoggettivo). Termo usado na filosofia contemporâ­ nea para designar: Ia o que se refere às rela­ ções entre os vários sujeitos humanos, como quando se diz "experiência I."; 2- o que é vá­ lido para um sujeito qualquer, como quando se diz "conceito I." ou "verificação I." (v. UNIVER­ SAL, 2). ESTEMISMO (fr. Intimisme). Atitude que con­ siste em concentrar-se nas experiências inte­ riores. Diz-se especialmente de poetas e litera­ tos; em sentido ligeiramente depreciativo, de correntes que entendem a filosofia como uma espécie de autobiografia mascarada (v. EGOCENTRSMO ; EGOTISMO). INTRÍNSECO. V. EXTRÍNSECO. TNTROJEÇÃO (in. Introjection- ai. Introjektiori). Termo introduzido por Avenarius (Kritik der reinen Erfahrung, 1888-90) para designar o processo de falsear a experiência e reduzir o objeto a uma representação interna do eu, ad­ mitindo-se que os outros indivíduos também possuem semelhante representação interna. Dito processo, que é uma interiorização do objeto, dá origem à divisão ilusória entre experiência interna e experiência externa, enquanto a ex­ periência, segundo Avenarius, é uma só, sendo sempre uma relação direta entre um objeto e um organismo. INTROSPECÇÃO (in. Introspection; fr. Introspection, ai. Introspektion; it. Introspezíone). Auto-observação interior, observação que o eu faz dos próprios estados internos. Esse termo foi introduzido pela psicologia do séc. XIX para

INTUIÇÃO

designar o método psicológico fundamental, considerado insubstituível até o advento do bebaviorismo(v.). Contra a I. Comte opôs uma objeção de princípio: "O indivíduo pensante não pode dividir-se em dois, um que racioci­ na e outro que o vê raciocinar. Nesse caso, sendo idênticos o órgão observado e o órgão observador, como poderá ocorrer a observa­ ção?" (Cours dephü. positive, 1830, I, seç. 1, § 8). Comte concluíra, por isso, pela impossibi­ lidade da psicologia e a suprimira da sua enciclo­ pédia das ciências. Em 1868, Peirce respondia negativamente à pergunta "possuímos uma faculdade de I.?" e concluía que "a única ma­ neira de investigar uma questão psicológica é a inferência a partir de fatos externos" (Coll. Pap., 5.244-249; 7.418 ss.). Essa conclu­ são de Peirce é o primeiro indicador do enca­ minhamento da indagação psicológica para o behaviorismo (v.). INTUIÇÃO (gr. ÈJtipoX.ií; lat. Intuitos, Intuitio; in. Intuition; fr. Intuition; ai. Anschauung; it. Intuizioné). Relação direta (sem intermediá­ rios) com um objeto qualquer; por isso, implica a presença efetiva do objeto. A intuição foi entendida desse modo ao longo da história da filosofia, a começar por Plotino, que emprega esse termo para designar o conhecimento ime­ diato e total que o Intelecto Divino tem de si e de seus próprios objetos (Enn, IV, 4, 1; IV, 4, 2). Nesse sentido, a I. é uma forma de conheci­ mento superior e privilegiado, pois para ela, assim como para a visão sensível em que se molda,, o objeto está imediatamente presente. Boécio falava da "intuição divina", que é o gol­ pe de vista com que Deus abrange as coisas sem mudá-las {Phil. cons, V, 6). ES. Tomás dizia, referindo-se a Deus: "A sua intuição versa so­ bre todas as coisas que estão diante dele em sua presencialidade" (S. Th, I. q. 14, a. 13, cf. q. 14, a. 9). Por esse caráter, o conhecimento divino distingue-se do humano, que age com­ pondo e dividindo, por meio de atos sucessi­ vos de afirmação e de negação (Ibid, I, q. 85, a. 5). O caráter intuitivo do conhecimento divi­ no contrapõe-se aqui ao caráter de discurso do conhecimento humano (v. DIANÓIA; DISCURSIVO). Mas a filosofia medieval empregou esse ter­ mo para indicar uma forma particular e privile­ giada da consciência humana, em primeiro lu­ gar o conhecimento empírico. Bacon dizia que "a alma não se acalma na intuição da verdade se não a encontrar por força da experiência"

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INTUIÇÃO

(Opus maius, VI, 1). Duns Scot privilegiava como intuitivo (cognitio intuitiva) o conheci­ mento que "se refere àquilo que existe ou àquilo que está presente em determinada exis­ tência atual", distinguindo-o do conhecimento abstrativo (v. ABSTRATIVO), que abstrai da exis­ tência atual (Op. Ox, II, d. 3, q. 9, n. 6). Essa noção foi aceita por Durand de S. Pourçain (In Sent., Prol, q. 3 F) e por Ockham, que, tal como Bacon, identificava o conhecimento intuitivo com a experiência (In Sent, Prol., q. 1 Z). A partir de então, até Kant, o significado específico desse termo é experiência (v.). Mas, ao mesmo tempo, conserva-se o signi­ ficado genérico de relação imediata com um objeto qualquer. Nesse sentido, Descartes falava da intuição evidente (evidens intuitus), como um dos dois caminhos que levam ao conheci­ mento certo (o outro é o da "dedução necessá­ ria"), entendendo com ela a apreensão de qual­ quer objeto mental: "A intuição da mente estende-se às coisas, ao conhecimento de suas interconexões necessárias e a tudo o que o intelecto experimenta com precisão em si mes­ mo ou na imaginação" (Regulae ad directionem ingenii, 12). No mesmo sentido, Locke chamava de intuitivo o conhecimento que per­ cebe a concordância ou a discordância entre duas idéias imediatamente, ou seja, sem a in­ tervenção de outras idéias (An Essay Concer, IV, 2, 1), e chamava de I., exatamente pela sua imediação, o conhecimento que temos de nos­ sa própria existência (Ibid, IV, 9, 3). Ainda no mesmo sentido, Leibniz dizia que são conheci­ das por I. as "verdades primitivas" tanto de razão quanto de fato (Nouv. ess., IV, 2, 1), ou seja, as verdades que o intelecto apreende ou possui sem a mediação de outras. Este signifi­ cado era aceito por Stuart Mill: "As verdades são conhecidas de duas maneiras: algumas di­ retamente ou por si mesmas, outras através da mediação de outras verdades. As primeiras são objeto da I. ou consciência; as segundas, da inferência" (logic, Intr., § 4). Kant, por sua vez, referia-se ao sentido tradicional desse termo ao afirmar que "a I. é a representação tal qual seria pela sua decorrência da imediata presença do objeto" (Prol, § 8). Por isso, para Kant, a I. ge­ ralmente é o conhecimento para o qual o objeto apresenta-se diretamente. Mas Kant distingue a I. sensívelAa I. intelectual. Sensível é a I. de todo ser pensante finito, ao qual o objeto é dado: ela é, portanto, passividade, afeição (Crít. R. Pura,

INTUIÇÃO

Anal. dos conceitos, seç. 1). A I. intelectual é originária e criativa: nela o objeto é posto ou criado, portanto só se encontra no Ser criador, de Deus (Ibid, § 8, ao final; passim). Em outros termos, intelectual é a intuição divina da filoso­ fia tradicional: a presença do objeto a esta in­ tuição é inevitável e necessária porque o obje­ to é criado pela própria intuição. Essa distinção kantiana foi conservada pelo Romantismo, mas só com a finalidade de rei­ vindicar para o homem a I. intelectual ou cria­ tiva que Kant e os antigos reservavam para Deus. Isso é compreensível, visto que, para os românticos, o conhecimento humano é o mes­ mo conhecimento com que o Espírito Abso­ luto ou criador se conhece a si mesmo, ou pelo menos é um aspecto ou um momento dela. Assim, Fichte entende por I. intelectual "a consciência imediata de que eu ajo e daquilo que faço, sendo aquilo graças a que o Eu sabe enquanto faz" (Werke, I, p. 463). Por sua vez, Schelling afirma que "a filosofia trans­ cendental deve ser constantemente acompa­ nhada pela I. intelectual" e que o eu é "uma I. intelectual contínua", porquanto "se autoproduz". E acrescenta: "Assim como, sem a I. do espaço, a geometria seria absolutamente incompreensível, porque todas as suas constru­ ções são apenas formas e maneiras variadas de limitar essa I., também sem a I. intelectual a filosofia seria impossível porque todos os seus conceitos não passam de limitações diversas do produzir que se tem por objeto, em outraspala­ vras, a I. intelectual" (System ler transzendentalen"ldealismus, seç. I, cap. I, trad. it., p. 39). Hegel, por sua vez, identificava I. e pensa­ mento: "O puro intuir é o mesmo que o puro pensar... Fé e I. devem ser tomadas em sentido mais elevado, como fé em Deus, como I. inte­ lectual de Deus: vale dizer que se deve abstrair exatamente daquilo que constitui a diferença entre I. e fé, de um lado, e pensamento, de outro. Não se pode afirmar que fé e I., trans­ portadas para essa região mais alta, ainda se­ jam diferentes de pensamento" (Ene, § 63). A mesma tese é sustentada por Schopenhauer, que identifica intelecto e I., e pretende que até as conexões lógicas sejam reduzidas a elemen­ tos intuitivos (Die Welt, I, § 15). À mesma linha de conceitos pertence a noção de I. encontrada em Rosmini: como apreensão imediata da idéia do ser em geral (Nuovo saggio, § 1.159; Antro­ pologia, § 40, 505; Psicologia, § 13). E, apesar de opor-se a Rosmini quanto ao caráter inde­

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INTUIÇÃO

terminado e vazio da idéia de ser, Gioberti aceitava a noção de intuição como relação ime­ diata, total e necessária da mente humana com Deus e com sua ação criadora (Intr. alio studio deliafü, II, p. 46). Esta continuava sendo uma "I. intelectual", mas também é intelectual a I. de que fala Bergson, conquanto carregada de po­ lêmica antiintelectualista ou anti-racionalista. De fato, como órgão próprio da filosofia, ela possui as características da I. intelectual român­ tica: relação imediata ou direta com a realidade absoluta, ou seja, com a duração da consciên­ cia ou com o impulso criativo da vida. Bergson afirma: "AI. é a visão do espírito por parte do espírito." "I. significa principalmente consciên­ cia, mas consciência imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e até coincidência" (La pensée et le mouvant, 3a ed., 1934, pp. 35-36). As mesmas características formais encontram-se na I. eidética ou I. da essência da qual fala Husserl: "A essência é um objeto de nova espécie. Assim como o dado da I. individual empírica é um objeto indidual, também o dado da I. eidética é uma essência pura. Não se trata de uma ana­ logia externa, mas sim de uma afinidade radi­ cal. Também a I. eidética é uma I., assim como o objeto eidético é um objeto. A generalização dos conceitos correlativos 'I.' e 'objeto' não é arbitrária, mas exigida necessariamente pela natureza das coisas" (Ideen, I, § 3). Por fim, a I. que Croce identifica com a arte tem as mesmas características formais: é conhecimento originá­ rio e imediato, que por isso não distingue entre real e irreal; tem caráter ou fisionomia indi­ vidual e expressa diretamente o objeto (Estéti­ ca, cap. 1). Recapitulando as características comuns e as diferenciais da I. ao longo da história da filosofia, podemos dizer sobre as primeiras que a I. é uma relação com o objeto, carac­ terizada: ls pela imediação e 2- pela presen­ ça efetiva do objeto. Constantemente, com base nessas características, a I. é considera­ da uma forma de conhecimento privilegia­ do. Por outro lado, suas características diferen­ ciais podem ser assim distintas: le a I. pode ser exclusiva de Deus e considerada o conheci­ mento que o criador tem das coisas criadas; 2a pode ser atribuída ao homem e considerada a experiência como conhecimento de um objeto presente, sendo, nesse sentido, percepção (v.); 32 pode ser atribuída ao homem e considerada conhecimento originário e criativo no sentido

INTUIÇÃO

romântico. As três alternativas deixaram, em grande parte, de despertar o interesse da filo­ sofia contemporânea. A primeira de fato per­ tence à esfera das especulações teológicas. A segunda tende a ser substituída pelo conceito de experiência como método ou como conjun­ to de métodos (v. EXPERIÊNCIA). A terceira está estritamente ligada à metafísica do Ro­ mantismo (velho e novo): ascende e declina com ele. Em 1868 Peirce fez uma crítica do conceito de I., negando: 1Q que ela pudesse servir para garantir a referência imediata de um conheci­ mento ao seu objeto; 2- que ela pudesse constituir o conhecimento evidente que o Eu tem de si mesmo; 3e que pudesse capacitar a distinguir os elementos subjetivos de conhecimentos di­ ferentes. Ao mesmo tempo, Peirce afirmava a impossibilidade de pensar sem signos e de conhecer sem recorrer ao vínculo recíproco dos conhecimentos (Coll. Pap, 5.213-263). Essas negações e afirmações de Peirce foram e são amplamente aceitas pela filosofia con­ temporânea. Hoje, mais que aos filósofos, a I. serve aos cientistas, particularmente a matemáticos e ló­ gicos, quando estes querem frisar o caráter inventivo de sua ciência. Claude Bernard dizia: "A I. ou sentimento gera a idéia ou a hipótese experimental, ou seja, a interpretação anteci­ pada dos fenômenos da natureza. Toda a ini­ ciativa experimental está na idéia, pois só ela provoca a experiência. A razão ou o raciocínio servem apenas para deduzir as conseqüências dessa-idéia e para submetê-las à experiência" (Intr. ã 1 'étude de Ia médecine expérimentale, 1865,1, 2, § 2). Poincaré repetia, com referência à matemática, o que Bernard dissera a propó­ sito das ciências experimentais: "Demonstra-se com a lógica, mas só se inventa com a I. (...) A faculdade que nos ensina a ver é a intuição. Sem ela, o geômetra seria como o escritor bom de gramática, mas vazio de idéias" (Science et méthode, 1909, p. 137). Ainda segundo Poincaré, na matemática a exigência lógica leva à formulação analítica; a exigência intuitiva, à for­ mulação geométrica. "Assim, a lógica e a I. têm cada uma sua missão. Ambas são indispensá­ veis. A lógica, a única que pode dar certezas, é o instrumento da demonstração: a I. é o instru­ mento da invenção" (La valeur de Ia science, 1905, p. 29). Nesse sentido, como já se obser­ vou algumas vezes, a I. tem caráter mais negati­ vo que positivo: ela antecipa o que não decor­

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INTUICIONISMO

re da observação empírica ou não pode ser deduzido dos conhecimentos já possuídos. Portanto, parece designar apenas certo grau de liberdade do pesquisador e nada tem a ver com o significado filosófico tradicional do ter­ mo, no qual se insere o emprego que dele fazem os matemáticos intuicionistas (v. INTUICIONISMO, 4e). INTUIÇÃO DO MUNDO (ai. Weltanschauung). Sobre a filosofia como "I." ou "visão do mundo" v. FILOSOFIA. K. Jaspers escreveu Psi­ cologia da cosmovisão, distinguindo a imagem espácio-sensorial do mundo, a psicocultural e a metafísica (Psychologie der Weltanschauungen, 1925; trad. it., Roma, 1950). INTUICIONISMO (in. Intuitionism; fr. Intuitionnisme; ai. Intuítíonismus; it. Intuizíonismo). Com este termo são indicadas atitudes filosóficas ou científicas diversas, que têm em comum o recurso à intuição no sentido mais geral do termo. Em particular, relacionam-se sob o nome de I. as seguintes correntes: 1B a filosofia escocesa do senso comum, por admitir que a filosofia se fundamenta em certas verdades primitivas e indubitáveis, conhecidas por intuição (v. SENSO-COMUM); 2e a doutrina de Bergson, segundo a qual a intuição é o órgão próprio da filosofia; 39 a doutrina de N. Hartmann e de Scheler, segundo a qual os valores são objeto de uma intuição que se identifica com o sentimento (v. VALOR); 4a a corrente matemática fundada por L. E. J. Brouwer, inspirada nas idéias de L. Kronecker (1923-91), para quem o conceito de número natural fora dado à intuição humana, afirman­ do que os números naturais foram feitos por Deus e os outros pelo homem. As teses típicas do I. de Brouwer são as seguintes: Ia a existên­ cia dos objetos matemáticos é definida pela sua possibilidade de construção: por isso, só "exis­ tem" entes matemáticos que possam ser cons­ truídos; 2S o princípio do terceiro excluído não é válido para proposições em que haja referên­ cia a grandezas infinitas; 3Qas definições impredicativas não são válidas. A rejeição do princí­ pio do terceiro excluído implica a rejeição da dupla negação, portanto do método da prova indireta. Este método, entretanto, fundamenta a corrente formalista da matemática, patrocinada por Hilbert; segundo essa concepção, para estabelecer a existência de uma entidade mate­ mática basta a demonstração de que ela não implica contradição (cf. A. HEYTING, Mathe-

INVARIANTE

matische Grundlagenforschung, Intuitionismus und Beweistheorie, Berlim, 1934). IN V A R IA N TE (in. Invariant; fr. Invariant; ai. Invariante, it. Invariante). Uma proprie­ dade constante, mais precisamente, na teoria dos grupos, uma propriedade que permanece a mesma sob um grupo de transformações (v. GRUPO; TRANSFORMAÇÃO). IN V E N Ç Ã O (in. Invention; fr. Invention; ai. Hrfindung; it. Invenzioné). "Inventar alguma coisa" — disse Kant — "é totalmente diferente de descobrir. A coisa que se descobre admite-se como já preexistente, apesar de ainda não co­ nhecida, como a América antes de Colombo; contudo, o que se inventa, como a pólvora, não existia em absoluto antes de quem a in­ ventou" (Antr., I, § 57). Tradicionalmente, a capacidade inventiva denomina-se gênio (v.). Os problemas relativos à I. assumem aspectos diferentes nos vários campos: na lógica, têm sido por vezes debatidos a propósito da tópica (v.) ou da intuição (v.); na arte, a propósito do gênio (v.). IN V E ST IG A Ç Ã O (gr. Çr|Tr|Gtç; iat Lnvestigatio; Inquisitio; in. Inquiry, fr. Recherche; ai. Untersuchung; it. Ricercd). Ainda que o con­ ceito de I. se ligue estreitamente ao de filosofia (como acontece em PLATÀO, cf., p. ex., Teet., 196 d; Men., 81 e), dificilmente foi objeto da indagação filosófica. No mundo moderno, Dewey considerou a lógica como teoria da L- "To­ das as formas lógicas, com suas propriedades características, nascem do trabalho de L, e refe­ rem-se à sua aferição, no que concerne à con­ fiabilidade* das asserções produzidas." Nesse sentido, "a I. da I. é causa cognoscendidas for­ mas lógicas, ao passo que a indagação primiti­ va é causa essendi das formas reveladas por essa indagação" (Logic, 1939, 1: trad. it., p. 34). A P. é definida por Dewey como "a transforma­ ção controlada ou dirigida de uma situação indeterminada em outra, determinada, nas dis­ tinções e relações que a constituem, de tal ma­ neira que os elementos da situação originária sejam convertidos numa totalidade unificada" {Logic, VI, trad. it., p. 157). IN V O L U Ç Ã O (Iat. Lnvolutio; in. Lnvolution; fr. lnvolution; ai. Lnvolution; it. lnvoluzioné). 1. O oposto de evolução. Essa palavra foi empre­ gada por Kant para indicar a teoria biológica oposta à teoria da pré-formação individual, que ele denominava evolução (Crít. doJuízo, § 81). Hoje, com o nome de I. designam-se os fenô­ menos opostos aos da evolução, ou seja, os

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IRONIA

fenômenos regressivos da evolução. A. Lalande defendeu a tese de que o progresso em qual­ quer campo não depende da passagem do ho­ mogêneo para o heterogêneo, como queria Spencer, mas da passagem do heterogêneo para o homogêneo, que é a dissolução ou I. (Vidée directrice de Ia dissolution opposée à celle de Vêvolution dans Ia méthode des sciencesphysiques et morales, 1898, 2- ed., com o título Les illusions évolutionnistes, 1931). 2. Na lógica simbólica, o procedimento que corresponde à pontenciaçâo aritmética (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3.614-15). IO G A . Um dos principais sistemas filosófi­ cos indianos, que consiste essencialmente numa técnica de ascetismo. O texto fundamental des­ te sistema são os logassutra de Patanjali, obra provavelmente composta entre os sécs. V e o VI d.C, talvez com base em fragmentos ou documentos mais antigos. A I., cujas doutrinas coincidem substancialmente com as do sistema sanquia, mas com tônica teísta, consiste essen­ cialmente na descrição de exercícios graduais para obter a perfeita libertação da alma. Os graus fundamentais são oito: 1Q restrição mo­ ral; 2° cultura da alma com o estudo dos textos sagrados; 3Q posições convenientes à medita­ ção; 4q controle da respiração; 5e controle dos sentidos; 6B concentração; 7a atenção contínua; 82 recolhimento absoluto (samãdi), no qual desaparece a dualidade entre quem contempla e o objeto contemplado. D I. distingue-se a Hatha-ioga ou I. violenta, que sugere os exer­ cícios voltados para afrouxar os vínculos entre alma e corpo (v. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, pp. 98 ss.). IP S E D E X IT (gr. aÚTÜç êcpa). Frase com que os pitagóricos costumavam responder aos pedidos de elucidações sobre sua doutri­ na: "Ele disse." Ele era Pitágoras. Cícero aduz esse costume como exemplo do predomínio da autoridade sobre a razão (De nat. deor, I, 5, 10). IP S E ID A D E (Iat. Lpseitas; fr. Ipséitê). Termo usado por Duns Scot para indicar a singularida­ de da coisa individual (v. ECCEIDADE). IRASCÍVEL. V. FACULDADE. IR O N IA (gr. eipcoveíot; Iat. Ironia; in. Lrony; fr. Ironie; ai. Ironie; it. Lronia). Em geral, a atitude de quem dá importância muito menor que a devida (ou que se julga devida) a si mesmo, à sua própria condição ou a situações, coisas ou pessoas com que tenha estreitas relações. A história da filosofia co­

IRONIA

nhece duas formas fundamentais de I.: Ia socrática; 2a romântica. Ia A I. socrática é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute. Quando, na discussão sobre a justiça, Sócrates declara: "Acho que essa inves­ tigação está além das nossas possibilidades e vós, que sois inteligentes, deveis ter piedade de nós, em vez de zangar-vos conosco." Trasímaco responde: "Eis a costumeira I. de Só­ crates" (Rep, I, 336 e 337 a). Aristóteles só faz enunciar genericamente esta atitude socrática quando vê na I. um dos extremos na atitude diante da verdade. O verdadeiro está no justo meio; quem exagera a verdade é jactancioso e quem entretanto procura dimi­ nuí-la é irônico. E diz que, nesse aspecto, I. é simulação (Et. nic, II, 7, 1108 a 22). Cícero referia-se a esse conceito ao afirmar que "Na discussão, Sócrates freqüentemente se dimi­ nuía e elevava aqueles que desejava refutar; assim, dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a simulação que os gregos denominam I." (Acad, IV, 5, 15). S. To­ más referia-se a este conceito do termo, como uma forma (lícita).de mentira (5. Th, II, 2, q. 113, a. 1). 2a A I. romântica baseia-se no pressuposto da atividade criadora do Eu absoluto. Identifi­ cando-se com o Eu absoluto, o filósofo ou o poeta (que com muita freqüência coincidem, para os românticos) é levado a considerar a realidade mais concreta como uma sombra ou um jogo do Eu, a subestimar a importân­ cia da-realidade, não tomá-la a sério. Segundo Schlegel, a I. é a liberdade absoluta diante de qualquer realidade ou fato. "Transferir-se arbi­ trariamente ora para esta, ora para aquela esfe­ ra, como para outro mundo, não só com o intelecto e com a imaginação, mas com toda a alma; renunciar livremente ora a esta, ora àquela parte do próprio ser, e limitar-se com­ pletamente a uma outra; procurar e encontrar a sua unidade e o todo, ora neste, ora naquele indivíduo, e esquecer voluntariamente todos os demais: de tudo isso só é capaz um espírito que contenha em si como uma pluralidade de espíritos e todo um sistema de pessoas, e em cujo íntimo o universo que — como se diz — está em germe em todos os mundos, desabrochou, amadureceu" (Fragm., 1798, § 121). Estas observações sobre a I. foram conceitualmente sistematizadas na obra de C. G. F. Solger, Erwin (1815), na qual a I. era interpretada do ponto

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de vista da subjetividade, que se compreende como coisa suprema e que, por isso, rebaixa a zero todas as demais coisas, mesmo o que há de mais elevado. Apesar de se opor a alguns pormenores da doutrina de Solger, que definiu como "platônicos", Hegel a adotava ao descre­ ver a I. da seguinte maneira: "Considerem uma lei, singelamente tal qual é em si e por si: eu estou além e posso fazer isto e aquilo. Superior não é coisa, eu sou superior e senhor; acima da lei e da coisa, brinco com elas a meu bel-prazer e, nessa consciência irônica, em que permito que o supremo pereça, fruo-me a mim mes­ mo" (Fil. do dir, § 140). Para Hegel, a assim entendida como consciência da Subjetividade Absoluta que, como tal, é tudo, e diante da qual todas as outras coisas são nada, portanto como consciência do absoluto arbítrio de tal subjeti­ vidade, a I. é resultado da filosofia de Fichte, tal como foi entendida e interpretada por Schlegel (Fil. do dir, § 140, Zusatz). "Aqui o sujeito sabese em si mesmo como o Absoluto e não dá peso algum ao resto: sabe destruir constante­ mente todas as sua próprias determinações do justo e do bem. Pode dar a entender a si mes­ mo todas as coisas, mas só demonstra vaidade, hipocrisia, imprudência. A I. sabe que domina qualquer conteúdo: não toma nada a sério, brinca com todas as formas" (Geschíchte derPhíl, III, seç. 3, C, 3; trad. it., III, 2, pp. 370 71). Esse conceito caracterizou um dos aspec­ tos fundamentais do Romantismo alemão. Kierkegaard deu-lhe uma interpretação ate­ nuada ou metafórica, por um lado conceben­ do a I. socrática como superioridade de Sócra­ tes à iniqüidade do mundo (Diário, X3, A, 254), por outro lado entendendo a I. em geral como "a infinitização da interioridade do eu", mas como infinitização "interior", num significado que não tem mais a magnitude que Fichte atri­ buía à infinidade. "O que é a I.?" escreve ele. "A unidade de paixão ética, que acentua o eu infinitamente em interioridade, e a unidade de educação que, em seu exterior (no comér­ cio com os homens) abstrai infinitamente do próprio eu. A abstração faz que ninguém se aperceba da primeira unidade vivida e nisto está a arte da verdadeira infinitização da interioridade" (Diário, VI, A, 38, trad. Fabro). Como aqui a infinidade do eu é somente uma infinidade "interior", ou seja, a acentuação ao infinito do valor do eu na consciência, mas não é a infinidade efetiva e criadora do Eu

IRRACIONALISMO

absoluto dos românticos, a I. não tem mais o significado romântico: é apenas a oposi­ ção entre a consciência exaltada que o eu tem de si e a modéstia das suas manifestações externas. IRRACIONALISMO (ai. Irrationalismus). Termo com que, em italiano e alemão, são designadas as filosofias da vida ou da ação, que, como p. ex a de Schopenhauer, conside­ ram o mundo como manifestação de um princí­ pio não racional (v. AÇÃO, FILOSOFIA DA; VIDA, FILOSOFIA DA). IRREVERSÍVEL (in. Irreversible, fr. Irréversible; ai. Irreversibel; it. Irreversibile). Caráter das relações simétricas e dos processos que têm sentido determinado. Platão, no mito do Político, afirmou a reversibilidade do devir cósmico, declarando que o mundo, uma vez atingindo o termo do tempo que lhe foi desig­ nado, "recomeça a girar em sentido contrário", ou seja, inverte a ordem do tempo. Isto acon­ tece porque o mundo é, por um lado, a coisa mais perfeita possível, mas, por outro, é um corpo e, como tal, sujeito a mudanças. "Por isso, seu destino é refazer, seu giro em sentido inverso, sendo essa 'a mínima mudança possí­ vel do seu movimento'" (Pol., 269 c-e). Esse conceito, de que a reversibilidade do processo cósmico se deve à exigência de realizar a maior identidade possível consigo mesmo, era expresso por Leibniz nos termos da ciência do seu tempo. Leibniz dizia: "A sabedoria supre­ ma de Deus levou-o escolher sobretudo as leis do movimento mais aptas e mais conve­ nientes às razões abstratas ou metafísicas. No universo, conserva-se a mesma quantidade de força total absoluta ou de ação, a mesma quantidade de força respectiva ou de reação; a mesma quantidade de força diretiva. Além dis­ so, a ação é sempre igual à reação e o efeito inteiro é sempre equivalente à sua causa ple­ na" (Princ. de Ia nature et de Ia grâce, 1714, Op., ed. Erdmann, p. 716). Essa equivalência perfeita entre a causa e o efeito significa a reversibilidade do processo causai. A mecâni­ ca clássica admite essa reversibilidade. As equações que exprimem o comportamento dos fenômenos mecânicos não dão indicação alguma sobre o sentido em que o tempo transcorre. O /dessas equações é uma variável contínua que não tem sentido determinado, e isso significa que todo fenômeno mecânico é reversível. A irreversibilidade dos fenôme­ nos foi introduzida com a descoberta do se­

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ISOMORFISMO

gundo princípio da termodinâmica (chamado de Princípio de Carnot, 1824), segundo o qual o calor passa apenas do corpo mais quente para o corpo mais frio. Nesse caso, quando com essa passagem se alcança o equilíbrio da temperatura, é impossível voltar atrás. Do sistema em equilíbrio não é possível voltar ao sis­ tema do desequilíbrio térmico, que só possi­ bilita a passagem do calor e, portanto, o tra­ balho mecânico. Um sistema em equilíbrio térmico não pode fornecer trabalho mecâni­ co. Com isso estabelece-se a irreversibilidade dos fenômenos naturais que, sob cer­ to aspecto, são todos fenômenos térmicos. O Princípio de Carnot excluiu, assim, a imagem do devir do mundo que os antigos acredita­ vam realizar-se ciclicamente, retornando sobre si mesmo. A irreversibilidade dos fenômenos naturais levou a pensar na morte inevitável do univer­ so, quando fosse atingido o equilíbrio térmico que impossibilitasse qualquer transformação e, portanto, a vida. Foram numerosas as doutri­ nas que aventaram hipóteses que tentavam en­ trever sorte diferente para o nosso universo (cf. sobre elas MEYERSON, De Vexplication dans les sciences, 1927, pp. 203 ss.). Mas na verdade tanto a previsão da catástrofe quanto a das possíveis vias de salvação vão muito além do que é permitido pelo alcance do princípio de Carnot e, em geral, por um princípio cientí­ fico. Este de fato vale somente para sistemas fechados ou pelo menos relativamente isola­ dos, sendo um instrumento de previsão para esses sistemas, e não para o universo ou o mundo, que são uma totalidade aberta ou infi­ nita. Em sentido diferente e positivo, o signifi­ cado filosófico de irreversibilidade foi ilustrado por E. PACI, Tempo e relazione, 1954, cap. VI e passim (v. ENTROPIA). ISOLAR (ai. Isoliererí). No sentido de abstrair, como empregado por Kant, v. ABSTRAÇÃO. Wundt distingue a abstração isolante, que consiste em separar determinada parte de uma aparência complexa, da abstração generalizante, que consiste em pôr de lado, intencionalmente, algu­ mas notas conceituais (Logik, II, pp. 11 ss.). ISOMORFISMO (in. Isomorphism, fr. Isomorphisme; ai. Isomorphie-, it. Isomofismó).Ter­ mo empregado em lógica e em matemática para indicar a relação entre relações homogê­ neas de dois ou mais termos, que consiste na correspondência de termo a termo entre os ter­

ISONOMIA

mos das relações (cf. R. CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 71 c; A. CHURCH, Introduction to MathematicalLogic, § 55). IS O N O M IA (gr. iaovop.íot; lat. Isonomia). Segundo Alcméon de Cróton, é o perfeito equi­ líbrio das propriedades que constituem o cor­ po: a saúde; seu contrário é a monarquia, que é o predomínio de uma propriedade sobre a outra, o que constitui a doença (Fr. 4, Diels).

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ISSO

Segundo Epicuro, o perfeito equilíbrio e a per­ feita correspondência de todas as partes ou os elementos do todo no infinito. "Conseqüente­ mente, apesar de ser tão grande a multidão dos mortais, não menor é a dos imortais, e se os elementos de distribuição são inúmeros, os de conservação devem ser infinitos" (CÍCERO, De nat. deor, I, 19, 50). ISSO. V. ID; PSICANÁLISE.

J JAINISMO (in. Jainism). Uma das seitas fi­ losóficas da antiga índia, cujo nome provém de seu fundador Mahavira (séc. V a.C), denomi­ nado Jina, que significa "o Vitorioso". Admite uma pluralidade de realidades ou substâncias, divididas em dois grupos antagonistas: as subs­ tâncias vivas e as materiais (cf. Tucci, Storia deliafil. indiana, 1957, pp. 55 ss.). JANSENISMO (in. Jansenism, fr. Jansénisme, ai. Jansenismus-, it. Giansenismó). Doutri­ na do bispo Cornélio Jansênio (1585-1638), ex­ posta na obra Augustinus. Trata-se de uma ten­ tativa de reforma católica através do retorno às teses de S. Agostinho sobre a graça. Segundo Jansênio, a doutrina agostiniana implica que o pecado original tirou do homem a liberdade de querer, tornou-o incapaz para o bem e inclina­ do necessariamente ao mal. Deus só concede aos eleitos, pelos merecimentos de Cristo, a graça da salvação. Jansênio confrontava essas teses com o relaxamento da moral eclesiástica, especialmente jesuítica, segundo a qual a salva­ ção está sempre ao alcance do homem que, vivendo no seio da Igreja, possui uma graça sufi­ ciente, que o salvará se for favorecida pela boa vontade. Esta era a tese do jesuíta espanhol Molina (1535-1600), em que os jesuítas basea­ ram o seu proselitismo, que visava a conservar no seio da Igreja o maior número possível de pessoas. No dia 31 de maio de 1653 uma bula do papa Inocêncio X condenou cinco proposi­ ções nas quais a Faculdade Teológica de Pa­ ris condensara a doutrina do Augustinus de Jansênio. A favor de Jansênio estavam Antoine Arnauld e os denominados "solitários de PortRoyal". Estes julgaram que as cinco proposi­ ções condenadas não expressavam o pensa­ mento de Jansênio e que, portanto, condenação não dizia respeito ao jansenismo. Em favor disto Pascal publicou, em 1656, as Cartaspro-

vinciais. O J. continuou circulando por algum tempo em ambientes religiosos italianos e fran­ ceses (cf. F. RUFFINI, Studi sul giansenismó, Firenze, 1947). JOGO (gr. ratôiá; lat. Jocus, in. Play, Game, fr. Jeu; ai. Spiel; it. Gioco) Atividade ou opera­ ção que se exerce ou se executa por si mesma, e não pela finalidade à qual tende ou pelo re­ sultado que produz. Por este caráter Aristóteles aproximou o J. à felicidade e à virtude, pois essas atividades também são. escolhidas por si mesmas e não são "necessárias", como as que constituem o trabalho (Et. nic, X, 6, 1176 b 6). Esse conceito permaneceu substancialmente inalterado. O próprio Kant não faz outra coisa senão reproduzi-lo ao dizer que o J. é "uma ocupação por si só agradável e não necessita de outro objetivo", contrapondo-o ao trabalho, que é "uma ocupação por si desagradável (pe­ nosa) que atrai apenas pelo resultado que pro­ mete (p. ex., a remuneração)" (Crít. doJuízo, § 43). Mas Kant foi também o primeiro a em­ pregar filosoficamente o conceito de J. assim entendido, ligando-o estreitamente à atividade estética. Ele escreveu: "Todo J. variado e livre das sensações (que não vise a um objetivo) produz prazer porque favorece a sensação de saúde, haja ou não em nosso juízo racional pra­ zer pelo objeto ou mesmo fruição" (Jbid., § 54). Os J. podem ser divididos em J. de sorte, que exige um interesse, J. musical, que supõe ape­ nas a variação das sensações, e J. de pensa­ mentos, que é o J. propriamente estético (Jbid., § 54). Kant ressaltou a função biológica do ]., que serve para manter desperta e reforçar a energia vital na competição com as demais energias do mundo. Diz: "Dois jogadores pen­ sam estar jogando um com o outro; na realida­ de, é a natureza que joga com ambos; e a razão

JOGO

pode convencer-se quando refletimos em co­ mo os meios escolhidos dificilmente se adaptam ao objetivo" (Antr, § 86). Essas observações fo­ ram freqüentemente difundidas e ampliadas pelo pensamento moderno. Schiller diz.- "O animal trabalha se o móbil de sua atividade é a falta de alguma coisa; e brinca se o móbil é a plenitude de sua força, se é estimulado à atividade pela exuberância de vida" (Über die aesthetische Erziehung des Menschen, 27). O ivertimento não é estranho nem à nature­ za inanimada: a superabundância de raízes, ra­ mos, folhas, flores e frutos de uma árvore, em comparação com o que é necessário para a conservação da própria árvore e de sua espé­ cie, é o divertimento da natureza vegetal. "Da pressão da necessidade ou da seriedade física, através da pressão da exuberância, ou seja, do J. físico, a natureza passa ao J. estético e, antes de elevar-se, acima dos vínculos das finalida­ des, à sublime liberdade do belo, aproxima-se pelo menos um pouco dessa independência no livre movimento, que é fim e meio para si mesmo" (Ibid, 27). O conceito, já expresso por Kant, de que o J. tem a função biológica de adestrar para as atividades vitais, que garantem a conservação do organismo, torna-se lugar-co­ mum na filosofia e na pedagogia do séc. XIX. Para a formação desse lugar-comum contribuiu muito aquela espécie de metafísica do J. de inspiração romântica, mais precisamente em Schelling, que Froebel usou como base para a sua teoria da educação. Para Froebel, o J. está para a criança assim como o trabalho está para o homem e a criação está para Deus: é a mani­ festação necessária da atividade da criança as­ sim como o trabalho é para o homem e a cria­ ção, para Deus (DieMenschenerziehung, 1826, § 23). Portanto o J. infantil não é um passatem­ po: as disposições futuras do homem, tanto com relação às coisas quanto com relação aos outros homens, formam-se na primeira infân­ cia, através do J. E Froebel propõe que toda a educação da primeira infância se desenvolva através do J., do qual deu minuciosa regula­ mentação. Mesmo sem levar em conta os pres­ supostos metafísicos da doutrina de Froebel, a pedagogia moderna e contemporânea atribuiu ao J. um caráter privilegiado de condição ou instrumento da formação humana básica, en­ quanto a psicologia e a antropologia lhe atri­ buíram função biológica e social, ou seja, utili­ dade para a conservação do homem e da sua adaptação à sociedade, ao mesmo tempo em

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JOGO

que a estética reconheceu nele analogia com a atividade artística. As análises de Groos sobre o J. basearam-se nesses conceitos (Die Spiele der Menschen, 1889; Die Spiele der Tiere, 1896). Groos também utilizou esse conceito de J. para definir a atividade estética (Einleitung in die Aesthetik, 1892), mas a definição de J. continua­ va sendo a de Aristóteles: a atividade que tem em vista apenas o prazer pela atividade (Spiele der Menschen, p. 7). Desse ponto de vista, o J. foi freqüentemente considerado uma espécie de tendência inata ou de instinto vital, que é outra maneira de expressar a função que cum­ pre de adestrar o homem ou, em geral, o orga­ nismo vivo, para as atividades que garantam sua conservação no mundo. Ao reconhecimen­ to da função biológica, educativa e estética do J. acresceu nos últimos tempos o reconheci­ mento da função social. Tanto o J. como ativi­ dade direta quanto o J. como espetáculo cons­ tituem hoje duas das principais maneiras de emprego do tempo livre para grandes massas de trabalhadores, exercendo, portanto, a fun­ ção de corrigir e equilibrar as atividades sociais, o que ainda precisa ser mais bem estudado. Como já se disse, a importância crescente atribuída à atividade lúdica e a multiplicidade de funções a ela atribuídas em vários campos não modificaram seu conceito, que continuou sendo substancialmente o mesmo formulado por Aristóteles: atividade que tem fim em si mesma e que é procurada e exercida pelo pra­ zer intrínseco, e não pelo efeito ou pelo resul­ tado que dela deriva. Contudo, mesmo esse conceito hoje deve sofrer algumas retificações. Em primeiro lugar, deve ser retificada a contra­ posição, que ele implica, entre atividade lúdica e trabalho. Essa contraposição nem sempre se verifica e nunca é tão radical. Muitos trabalhos podem ser (ou tornar-se) interessantes, e, se isso acontece, passam a ser fins em si mesmos e adquirem, no todo ou em parte, um caráter • lúdico. É certamente difícil supor que todas as infinitas formas que o trabalho assumiu ou as­ sumirá possam vir a tornar-se intessantes e lúdicas, mas o fato de algumas deles serem ou poderem vir a ser elimina em princípio essa contraposição, definindo o ludismo como uma possibilidade em algumas atividades humanas, mais que como expressão da natureza de um grupo de atividades. Em muitos autores, po­ rém, essa contraposição persiste, especialmen­ te no que se refere ao trabalho alienado da sociedade industrial, e o jogo é considerado

JOGO

"expansividade livre" ou "atividade improduti­ va e inútil", porque anula as características re­ pressivas e exploradoras do trabalho e do ócio e "simplesmente brinca com a realidade". Des­ se ponto de vista, o próprio trabalho deveria tornar-se lúdico, ou seja, subordinar-se ao livre desenvolvimento das potencialidades do ho­ mem e da natureza (MARCUSE, Eros and Civilization, 1954, cap. IX). Na realidade, hoje não se pode aceitar sem restrições a definição tradicional de J., que evi­ dencia o seu caráter de absoluta espontaneida­ de e liberdade, contrapondo-o, pois, ao caráter coativo do trabalho que é determinado pelo fim ou pelo resultado que deve atingir. Esse ca­ ráter de espontaneidade não pode ser entendi­ do em sentido absoluto: de fato, todos os jogos têm restrições ou regras que delimitam suas possibilidades. Mesmo em J. simples e indivi­ duais existem tais restrições: não se pode, p. ex., lidar do mesmo modo com um cubo e com uma bola. Nos J. coletivos, as regras definem e regulamentam, sendo impossível ignorá-las. Na cultura contemporânea, quando se lança mão do conceito de J., como por vezes fazem filó­ sofos e economistas, está-se acentuando exata­ mente esse caráter de ser guiado por regras cabíveis, escolhidas e estabelecidas para pos­ sibilitar a realização do J. e a alternativa entre sucesso e malogro. Wittgenstein alude a isso quando fala em "J. lingüísticos", ou seja, lingua­ gens diferentes, cada uma das quais é regida por regras próprias (Philosophical Investigations, I, § 81). Assim, também considera a lin­ guagem matemática como J. e entende que jo­ gar é "agir de acordo com certas regras" (Remarks on the Foundations of Matbematics, IV, 1). Em economia (v.), a chamada "teoria dosj." considera que o J. é uma atividade limi­ tada por regras, graças às quais o jogador pode escolher, entre as várias estratégias possíveis, a que lhe assegure mais vantagens (NEUMANNMORGENSTERN, Theory of Games andEconomic Behavior, 1944). Nestes empregos, o significa­ do dessa palavra compreende: le limitação das escolhas, impostas à atividade do jogador pelas regras; 2Q caráter não rigorosamente determi­ nante dessas regras, que possibilitam escolher entre várias táticas e, eventualmente, determi­ nar a melhor tática caso por caso (que assegure sucesso ou o melhor resultado do J.). Obvia­ mente essas características não eliminam as tra­ dicionais, já expressas por Aristóteles, mas a elas se somam, corrigem-nas e às vezes as so­

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brepujam, como acontece no caso da teoria da linguagem como J. e da teoria dos J. na economia política. Recorreu-se a conceito análogo de J. na elaboração de uma teoria do comportamento individual que permitis­ se explicar as alterações psíquicas como "bri­ gas" de J.: confusão entre antigas e novas nor­ mas para as interações sociais, recusa em participar de um J. comandado por outros, não-aceitaçào da importância doj. (T. S. SZASZ, The MythofMental Illness, 1961). JUDAICA, FILOSOFIA (in. Jewish philosophy, fr. Philosophyjudaique, ai. Jüdischen Philosophie, it. Filosofia giudaica). A filosofia J. é de tipo escolástico (v. FILOSOFIA; ESCOLÁSTICA); consiste essencialmente na tentativa de interpretar a tradição religiosa J. em termos de filosofia grega, mais precisamente de neoplatonismo ou de aristotelismo. A filosofia J. nasceu, portanto, quando o judaísmo entrou em contato com o helenismo no séc. II a.C. Uma de suas primeiras manifestações é a seita dos essênios, dos quais nos falam Fílon, Josefo e Plínio, à qual parecem pertencer os documentos encontrados nas proximidades do Mar Morto em 1947, que costumam ser cha­ mados de "manuscritos do Mar Morto", (cf. BURROWS, TheDeadSea Scrolls, Nova York, 1956). Essa seita mostra profunda afinidade com o neopitagorismo, supondo-se que se tenha de­ senvolvido sob a influência dos mistérios órficopitagóricos. Era constituída por várias comunida­ des submetidas a disciplina severa, com certo número de regras ascéticas. Do ponto de vista doutrinai, os essênios interpretavam alegoricamente o Antigo Testamento de acordo, segun­ do tradição que atribuíam a Moisés; acredita­ vam na preexistência da alma e na vida depois da morte, admitiam divindades intermediárias ou demônios, bem como a possibilidade de profetizar o futuro. Fílon de Alexandria (que vi­ veu na primeira metade do séc. I d.C.) é a maior personalidade filosófica desse período da fi­ losofia J.: sua intenção é interpretar alegoricamente as doutrinas do Antigo Testamento me­ diante conceitos da filosofia grega. O resultado dessa interpretação é uma forma de neoplatonismo muito semelhante àquela que se de­ senvolverá em Alexandria por obra do neoplatonismoiv.). A segunda fase ocidental da filosofia J. de­ senvolveu-se na Idade Média, principalmente na Espanha, durante o domínio árabe. A essa fase pertencem Isaac (que viveu no Egito entre

JUÍZO

os sécs. IX e X); Saadja (séc. X); Ibn-Gebirol, que os escolásticos latinos conheceram com o nome de Avicebron, autor de uma obra famosa intitulada Fonte da vida (séc. XI), e Moisés Ben Maimoun, denominado Maimônides (séc. XII), autor do Guia dos perplexos. Os temas funda­ mentais dessa segunda fase da Escolástica J. são os seguintes: 1Qutilização do neoplatonismo árabe, especialmente da filosofia de Avícena, para a demonstração da existência de Deus; 2Qnegação do necessarismo característi­ co da filosofia árabe e, portanto, crítica das duas doutrinas decorrentes desse necessarismo: d) da eternidade do mundo e conseqüente defesa da criação como início das coisas no tempo por obra de Deus; b) do rigoroso de­ terminismo astrológico, com a reafirmação da liberdade humana. Estas teses aproximam mui­ to a Escolástica J. da Escolástica cristã, que de­ fende filosoficamente crenças religiosas análo­ gas. Portanto, a Escolástica cristã empregou muito a filosofia J., e especialmente a de Maimônides (cf. J. GUTTMANN, Die Phil. des Judentums, Munique, 1933). JUÍZO (gr. xò KptxiKOv, Kpícaç, lat. Judicium; in. Judgment; fr. Jugement; ai. Urteüskraft, Urteil; it. Giudizio). Este termo, oriundo da lin­ guagem jurídica, possui quatro significados principais: Ia faculdade de distinguir e avaliar ou o produto ou o ato desta faculdade, bem como sua expressão; 2° uma parte da lógica; 3e em relação a uma proposição, ato de assentir, discordar, afirmar ou negar; 4e operação inte­ lectual de síntese que se expressa na propo­ sição. le No sentido mais geral, entende-se por J. a faculdade de avaliar e escolher, própria de to­ dos os seres animados. Aristóteles dizia que o J. é uma das faculdades da alma dos animais (a outra é a faculdade motriz), sendo obra do pensamento e da sensação {Dean, III, 9, 432 a 15). Em especial, atribuía ao intelecto a capaci­ dade de julgar as qualidades sensíveis com o sensório e a substância das coisas com um meio diferente (Ibid, III, 4, 429, b 10). O signi­ ficado geral conservou-se constante na tradição filosófica e na linguagem comum. A faculdade de julgar consiste em avaliar, escolher, decidir. "Ter J." significa saber ser comedido nas esco­ lhas, ou fazê-las de acordo com as melhores regras. Nesse sentido, o J. é qualificado segun­ do os campos específicos em que age, falandose de "J. moral", "estético", "histórico", "políti­ co", etc. Esse termo ainda indica, em todas lín­

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guas, o resultado ou o produto da atividade judicativa e a expressão lingüística desta: por isso, chama-se de J. tanto a decisão ou a esco­ lha que elimine uma incerteza, dirima uma controvérsia ou elimine um conflito quanto a formulação verbal de alguns desses atos. Nesse sentido, a faculdade judicativa não se reduz ao intelecto, conquanto compreenda também o in­ telecto. S. Tomás observava que "a palavra j .' , que segundo a primeira imposição significa a correta determinação do que é justo, foi am­ pliada para significar a correta determinação em todas as coisas, tanto nas especulativas quanto nas práticas" (5. Th, II, 11, q. 60 a. 2 ad 1-). Kant, que definia o intelecto como "a facul­ dade de julgar" {Crít. R. Pura, Anal. transe, I, cap. I, seç. I; Prol, § 22), em Antropologia conceituava de modo mais geral o J., entenden­ do-o como "a capacidade intelectual de distin­ guir se cabe ou não uma regra", e afirmava que o J. não pode ser ensinado, mas só exercitado, e que o seu desenvolvimento chama-se "matu­ ridade" (Antr, 1, § 42). Locke havia restringido o J. à faculdade de utilizar os conhecimentos prováveis na falta do conhecimento seguro (Jud, IV, 14, 3), mas Leibniz observava que "ou­ tros chamam de julgar a ação realizada todas as vezes em que alguém se pronuncia com algum conhecimento de causa" {Nouv. ess, IV, 14). Nesse sentido, o J. é uma atividade valorativa, embora possa expressar-se (como de fato o fez com freqüência) por fórmulas verbais diversas, como regras, normas, exortações, im­ perativos, pareceres, conselhos, conclusões e, em geral, fórmulas que expressam uma escolha ou um critério de escolha. Peirce diz: "O hábito cerebral da mais alta espécie, que determinará o que faremos, tanto em imaginação quanto em ação, chama-se crença. Chama-se J. a re­ presentação, que fazemos para nós mesmos, de que temos determinado hábito" (Coll. Pap. 3, 160). Na mesma linha, Dewey considerou o J. como a conclusão de uma busca e a sistematizaçâo efetiva da situação que a provocou, se­ gundo o modelo do procedimento judiciário {Logic, 1939, cap VII). 2° Cícero deu o nome de "J." à dialética (v.) dos estóicos, que "foi inventada quase como árbitro e juiz do verdadeiro e do falso" {Acad., II, 28, 91). Disse ele: "Todo tratamento comple­ to da argumentação possui duas partes, uma que se ocupa da invenção a outra do _[.". Aristó­ teles foi o fundador de ambas, os estóicos se­

ju íz o

guiram diligentemente apenas o caminho do J. (Judíccuuli vias) na ciência que chamaram de dialética, mas descuidaram da arte da inven­ ção, que é a tópica (v\) (Top., 2, 6). Boécio aceitou a divisão de Cícero (P. L., 64; col. 73 a 1046). Essa doutrina passou para algumas cor­ rentes da lógica do séc. XVI. Pierre de Ia Ramée considerava que a divisão da lógica em in­ venção e J. baseava-se na distinção natural dos poderes da razão, graças à qual antes se pensa algo, para depois julgá-lo. Portanto, considera­ va que essa divisão estava presente na própria obra de Aristóteles e identificava J. com méto­ do (Scholae dialeclicae, I. cap. 8; ed., 1594, pp. 54-55; Dialectique, 1555, p. 4). lungius fa­ zia referência a essa distinção (Lógica bambitrgeusis, 1638, Prol. 24). 3" Na lógica terminista medieval entendeuse por "[.' ou "ato judicativo" o mesmo que os estóicos chamavam de asscnlimento (v.). Ockham, p. ex.. distinguiu dois atos do intelecto, o apreensivo (apprehcnsirns) e o judicativo (jiidicatirus). Através deste último "o intelecto não só apreende o objeto, mas também assente a ele e dissente dele, sendo um ato que só diz respeito a noções complexas, já que só assentimos com o intelecto naquilo que acreditamos ser verdadeiro e só dissentimos daquilo que acreditamos ser falso" (In Sent, Prol., q. 1 o, QuodL, ITI, q. 8). Nesse sentido, o ato judicativo é a aceitação ou a recusa de uma proposição (ou de uma demonstração); em outros termos, é a crença (v.). Vestígios ou repetições dessa doutrina podem ser encontrados em autores mais recentes. Na Psychologie vom empirischen Slandpunkt (IK7\) Franz Brentano dividia a atividade psíquica em duas classes: a da repre­ sentação, qtie é a manifestação de um objeto, e a do J., que é a aceitação do verdadeiro e a re­ cusa do falso. Frege julgava oportuno introduzir o uso do sinal|- para fazer a distinção entre o J. como reconhecimento ou náo-reconhecimento de uma verdade e um mero complexo de idéias (Begriffsschrift, 1879, § 2, trad. in. Geach. pp. 1-2). Para Meinong, um [. distingue-se de uma repre­ sentação pura porque contém o momento da convicção e porque essa convicção consiste em adotar a atitude de aceitação ou de recusa (liber Aunalimeu, 1902, p. 2). Pode-se considerar que a doutrina de Russell trilha esse mesmo caminho, por considerar a proposição como uma atitude psicológica (v. PROPOSIÇÃO).

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4y A partir de Descartes, entende-se por J. de preferência um ato ou uma operação men­ tal de síntese que encontra expressão na pro­ posição. Descartes afirmara que, além dos pen­ samentos, que são quase "imagens das coisas'', existem na alma otitros pensamentos que têm forma diferente: "Quando desejo, temo, afirmo ou nego é verdade que concebo algo como o sujeito da ação do meu espírito, mas, com essa ação. acrescento mais alguma coisa à idéia que faço dessa coisa; alguns dos pensamentos des­ se gênero são chamados de vontade ou ateiçòes; outros, de juízo' (Méd., III). A lógica de Port-Royal definia o J. como a operação que consiste "em unir e desunir as idéias, segundo convenham ou não" (AKNAILD, Log., Discours, I): o que Locke considerou definição do conhe­ cimento em geral (Saggio. IV, I, 2). Para Kant, J. é "a representação da unidade da consciência de representações distintas; ou a representação das relações entre estas representações, na me­ dida em que constituem um único conceito" (Logik, § 17). Kant, porém, considera que a uni­ dade entre as representações estabelecida pelo J. é objetiva, ou seja, não se baseia na associa­ ção psicológica das representações, mas na apercepção, que é a função lógica unificadora da consciência em geral, comum a todos os se­ res pensantes. Este é o sentido da definição que se encontra expressa de várias maneiras na Crítica da Razão Pura; p. ex., quando se diz que "o J. outra coisa não é senão o modo de reintegrar conhecimentos dados na unidade objetiva da apercepção" (Crít. R. Pura, § 19). Deste modo, uma operação subjetiva (por per­ tencer ao sujeito, mas objetiva por ser universal ou comum, em Kant é fundamento do J. e de sua validade. A doutrina de Kant determinou o predomí­ nio da concepção do J. como ato intelectual de síntese em toda a lógica filosófica do séc. XIX. Essa doutrina é repetida em quase todos os tra­ tados de lógica, e o monumental (leschichte der Logik im Abeudlande (4 volumes, 1855-70) de K. Prantl, adota constantemente a palavra J. nesse sentido, algumas vezes com estranhos efeitos anacrônicos. As especulações lógicas do idealismo de Hegel e dos hegelianos tomam como ponto de partida o conceito kantiano e vêem no J. a atividade que medeia entre o su­ jeito (particular) e o predicado (universal), que distingue e ao mesmo tempo unifica o univer­ sal e o particular (HKGEL, Wissenschaft der Logik, III, i, 2; Ene, % 166; GKNTILK. Sistema di

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lógica, I, 19222, pp. 192 ssj. Para Bradley e Bosanquet, o sujeito autêntico doj., ao qual se re­ ferem as qualificações ou a idéia que o consti­ tuem, é a realidade total, ou seja, o Absoluto ou Consciência (BRADLFY, Appearcmce and Reality, 1902-, p. 370; BOSANQIKT, Logic, I. 1888, p. 294). Por outro lado, os próprios lógicos mate­ máticos usaram freqüentemente a palavra "}.", porém em sentido diferente, passando então a prevalecer o termo proposição (v.). Contudo, foi no próprio campo cia lógica fi­ losófica que se esboçou a reação contra a no­ ção de J. como operação mental. Husserl esta­ beleceu inicialmente a distinção entre o ato judicativo e sua essência "intencional" ou "cog­ nitiva", que seria seu conteúdo objetivo (Logische Utitersuchunge}!, 1900, II. V, § 21), e mais tarde fez a distinção entre o |. como noeseiy.), que é o "julgar", e o J. como noema (v.), que é o "julgado", o "juízo formulado" que possibilita a consideração lógico-formal do próprio J. Am­ bos os aspectos são dados na vivência (Erlebnís) do julgar (Ideen, I. § 94).

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ao plano das proposições. A relutância do pen­ samento contemporâneo em estabelecer distin­ ções rígidas entre as atividades humanas impe­ de que se estabeleçam distinções nítidas entre as diversas atividades judicativas. Fala-se certa­ mente de um juízo estético, que é diferente do juízo intelectual ou do juízo moral, mas fala-se analogamente de juízo econômico, jurídico, etc, sem que isso implique a diversidade ou a respectiva autonomia de diferentes faculdades de juízo. Em geral, pode-se dizer que uma ati­ vidade judicativa assume o nome do campo específico a que ela se refere, de tal forma que é possível falar de juízos atinentes a campos especialíssimos, que obviamente se recusam a ser considerados "formas" ou "categorias" espi­ rituais. JUSNATURALISMO. Teoria do direito na­ tural configurada nos sécs. XVII e XVIII a par­ tir de Hugo Grocio (1583-1645), também re­ presentada por Hobbes (1588-1679) e por Pufenelorf (1632-94). Essa doutrina, cujos de­ fensores formam um grande contingente de au­ tores dedicados às ciências políticas, serviu de JU ÍZ O S , CLASSIFICAÇÃO DO S (in Clussification vf judgments-, fr. Classification des fundamento à reivindicação das duas conquis­ jugeinents-, ai. Einteilung der Urteile. it. Clas- tas fundamentais do mundo moderno no cam­ sificazione deigiudizi). 1. Com esta expressão po político: o princípio da tolerância religiosa e entende-se comumente a classificação das pro­ o cia limitação cios poderes do listado. Desses posições, ou seja, sua divisão em afirmativas e princípios nasceu de fato o listado liberal mo­ negativas, universais e particulares, categóricas derno (v. LIBERALISMO). O J. distingue-se da teo­ e hipotéticas, etc. Para tal significado, v. PROPO­ ria tradicional do direito natural por não consi­ derar que o direito natural represente a partici­ SIÇÕES, CLASSIFICAÇÃO DAS. 2. Mais propriamente, entende-se por esta pação humana numa ordem universal perfeita, expressão a divisão das atividades valorativas. que seria Deus (como os antigos julgavam, p, Nesse sentido, Kant distinguiu o juízo determi­ ex., os estóicos) ou viria de Deus (como julga­ nante (propriamente intelectual) do juízo refle­ ram os escritores medievais), mas que ele é a xivo (teleológico ou estético). Definindo em regulamentação necessária das relações huma­ geral o juízo como "faculdade de pensar o par­ nas, a que se chega através da razão, sendo, ticular como contido no geral", Kant considera pois. independente da vontade de Deus. As­ que no juízo determinante é dacio o geral (a re­ sim, o J. representa, no campo moral e político, gra, o princípio, a lei), cabendo subsumir-lhe o reivindicação da autonomia da razão que o particular (o múltiplo sensível), enquanto no cartesiani.smo afirmava no campo filosófico e juízo reflexivo é dado o particular (as coisas na­ científico (v. DIREITO). turais) cabendo encontrar o geral ao qual ele JUSTIÇA (gr. SiKatoaúvn; lat. Justitia; in. está subsumido, ou seja, o fim no qual as coisas Justice, fr. Justice, ai. Gerechtigkeít; it. Giustisão reintegráveís mediante um conceito (juízo zia). Em geral, a ordem das relações humanas teleológico) ou imediatamente, sem conceito ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. (juízo estético) (Críl. dojuízo, Intr.. § IV). Essas Podem-se distinguir dois significados princi­ distinções pertencem efetivamente ao plano de pais: 1- J. como conformidade da conduta a divisão dos juízos, como atividades valorativas, uma norma; 2"}. como eficiência de uma nor­ enquanto as demais distinções que Kant faz, ma (ou de um sistema de normas), entendencomo entre juízos analíticos e sintéticos ou as clo-se por eficiência de uma norma certa capa­ que se encontram na tábua dos juízos que ele cidade de possibilitar as relações entre os dá no § 9 da Crítica da Razão Pura, pertencem homens. No primeiro significado, esse conceito

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é empregado para julgar o comportamento hu­ mano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo sig­ nificado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. A pro­ blemática histórica dos dois conceitos, ainda que freqüentemente interligada e confundida, é completamente diferente. 1QNo primeiro significado, a J. é a conformi­ dade de um comportamento (ou de uma pes­ soa em seu comportamento) a uma norma; no âmbito deste significado, a polêmica filosófica, jurídica e política versa apenas sobre a natureza da norma que é tomada em exame. Esta pode ser de fato a norma natural, a norma divina ou a norma positiva. Aristóteles diz: ''Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que ttido aquilo que se conforma a lei é de alguma for­ ma justo: cie fato, as coisas estabelecidas pelo poder legislativo conformam-se à lei e dizemos que cada uma delas é justa" (/:/. nic, V, f, 1129 b 11). Neste sentido, segundo Aristóteles, a J. é a virtude integral e perfeita: integral porque compreende todas as outras, perfeita por­ que quem a possui pode utilizá-la não só em relação a si mesmo, mas também em relação aos outros (Ibicl., 1129 b 30). Mas também as duas formas da J. particular que Aristóteles enumera, que são a distributiva (v. DISTRIBUTIVO) e a cor­ retiva ou comutativa (v. COMITATIVO), consis­ tem em conformar-se a normas, mais precisa­ mente às que prescrevem a igualdade entre os méritos e as vantagens ou entre as vantagens e as desvantagens de cada um. A definição de J. feita por Ulpiano, adotada pelos jurisconsultos romanos (Díg.. i, 1, 10) como "vontade cons­ tante e perpétua de dar a cada um o que é seu" é outra maneira de expressar a noção de justi­ ça como conformidade à lei, visto pressupor que o que cabe a cada um já está determinado por uma lei. Kelsen tachou essa definição de tautológica por não conter indicação alguma sobre o que é o "seu" de cada um (General 1'heoiy ofLaiv and State, 1945, 1, I, A, c, 2); na realidade, prescreve apenas a conformidade a uma lei ou regra que estabeleça exatamente aquilo que cabe a cada um. A noção de con­ formidade à lei como definição de J. é uma constante mesmo naqueles que se opõem ao conceito tradicional de justiça. Assim, Hobbes afirma que a J. consiste simplesmente na ma­ nutenção dos pactos, e que. portanto, onde não há Estado como poder coercitivo que asse­

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gure a manutenção dos pactos, não existe J. nem injustiça (Levíath, 1, 15). Mas também nes­ te caso a J. não passa de conformidade a uma regra, mesmo em se tratando de tima regra simplesmente pactuada. Mesmo a interpreta­ ção feita por Kant da definição romana reduz a J. ao respeito a uma norma já estabelecida: "Se aquela fórmula fosse traduzida por 'dar a cada um o que é seu', estaria dizendo um absurdo, pois não é possível dar a alguém o que já tem. Para ter sentido deve ser assim expressa: incluise numa sociedade em que a cada tim possa ser garantido o que é seu contra qualquer ou­ tro" (Lexjitstitiae) (Met. der Sitten, I, Divisão da doutr. do Dir., A). Por outro lado, também aqueles que não vêem no conceito de ). nada mais além da tentativa de justificar determina­ do sistema de valores, pretendendo expungi-lo da teoria científica do direito, utilizam ou adap­ tam a mesma noção de justiça. Kelsen diz: "J. significa a manutenção de uma orcienaçào po­ sitiva mediante sua conscienciosa aplicação. Ela é J. segundo o direito. A proposição se­ gundo a qual o comportamento de um indiví­ duo é justo ou injusto no sentido de ser jurídico ou antijurídico significa que seu comportamen­ to corresponde ou não à norma jurídica que é pressuposta como válida pelo sujeito judicante por pertencer a uma ordenação jurídica positi­ va" (General Theory, cit., I, I, A, c, 5, trad. it.. p. 14). Esse conceito de J. não está submetido às conseqüências resultantes das diferenças, mesmo as mais substanciais, entre as doutri­ nas do direito. Qtier se entenda a norma como norma de direito natural, quer como norma moral oti de direito positivo, a J. é sempre considerada conformidade do comportamento à norma. 2" No segundo conceito, a J. não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma; ex­ pressa a eficiência da norma, sua capacidade de possibilitar as relações humanas. Neste ca­ so, obviamente, o objeto do juízo é a própria norma, e desse ponto de vista as diferentes teo­ rias da J. são os diferentes conceitos do fim cm relação ao qtial se pretende medir a eficiência da norma como regra para o comportamen­ to intersubjetivo. Platão foi o primeiro a insis­ tir na J. como instrumento. Sócrates pergunta a Trasímaco: Acreditas por acaso que uma ci­ dade, um exército, um grupo de bandidos ou de ladrões, ou qualquer outro amontoado de pes­ soas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto, poderia chegar a fazer alguma coisa

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se os seus integrantes cometessem injustiça uns para com os outros? — Não, de certo, respon­ deu Trasímaco. — E se nào cometessem injus­ tiça, não seria melhor? — Seguramente. — A razão disto, Trasímaco, é que a injustiça dá ori­ gem a ódios e lutas entre os homens, enquanto a J. produz acordo e amizade" (Rep, 351 od). Neste trecho a J. é desvinculada de qualquer objetivo que tenha valor privilegiado: ela não passa de condição para possibilitar a convivên­ cia e a ação conjunta dos homens: condição que vale para qualquer comunidade humana, mesmo para um grupo de bandidos. Da mes­ ma forma, no mito exposto a Protágoras no diá­ logo homônimo, Platão diz que, enquanto os homens nào tiveram a arte da política, que consiste no respeito reciproco e na J., não pu­ deram reunir-se em cidades e eram destruídos pelas feras. "Apesar de ajudá-los a obter ali­ mento, a arte mecânica não lhes era suficiente para combater as feras porque eles nào possuí­ am a arte política, de que faz parte a arte da guerra" (Prot., 322 b-c). Com mais freqüência, porém, filósofos e juristas nào mediram a J. das leis tomando como referência a sua eficiência geral no que diz respeito às possibilidades de relações humanas, mas a sua eficiência em ga­ rantir este ou aquele objetivei considerado fun­ damental, ou seja, como valor absoluto. Não faltou portanto quem julgasse impossível defi­ nir a J. nesse sentido, limitando-se a propor a exigência genérica de que, para ser justa, uma norma deve adequar-se a um sistema de valo­ res qualquer (CH. PF.RKLMAN, De Iajustice, 1945, trad. jt., 1959). Todavia, os fins aos quais se re­ correu com mais freqüência são: a) felicidade; b) utilidade; c) liberdade; d) paz. a) Foram os filósofos que mais recorreram à felicidade. Aristóteles diz: "As leis promulgadas sobre qualquer coisa visam à utilidade comum a todos ou à utilidade de quem se destaca pela virtude ou por outra forma; desse modo, com uma só expressão definimos como justas as coisas que propiciam ou mantêm a felicidade ou parte dela na comunidade política" (Et. nic, V. 1, 1129 b 4). A identificação do bem comum com a bem-aventurança eterna é um caso par­ ticular dessa doutrina (S. TOMÁS, De regimine princípum, III, 3). b) Já na antigüidade (p. ex., para os sofistas e para Carnéades) a J. foi identificada com a utilidade. No mundo moderno, Hume impôs eficazmente esse ponto de vista: "A utilidade e o fim da J. é propiciar a felicidade e a seguran­

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ça, mantendo a ordem na sociedade" (Inq. Cone. Morais, III, 1). A redução da |. à utilida­ de, e nào á felicidade, tem a característica de eliminar o caráter de fim último ou valor abso­ luto, levando a considerá-la como solução (às vezes a menos pior) cie determinadas situações humanas. É o que pensa Hume, corrigindo nesse aspecto o jusnaturalismo racionalista de Grocio, que à J. atribuía valor absoluto, e às normas que a garantem, absoluta racionalida­ de, pois para ele "as relações mútuas de socie­ dade" possibilitadas por tais normas eram fins em si mesmas, porque objeto último de desejo (Dejure belli acpacis, Intr., § 16). c) Foi Kant quem identificou J. e liberdade. "A tarefa suprema da natureza em relação à espécie humana" é uma sociedade em que a li­ berdade sob leis externas esteja unida, no mais alto grau possível, a um poder irresistível, o que é uma constituição civil perfeitamente jus­ ta (Idee zn einer allgemeinen Geschicbte in weltbürgerlicberAbsicht, 1784, Tese V). Segun­ do esse ponto de vista, o íluminisino é a condi­ ção que derivará da progressiva eliminação dos obstáculos opostos à liberdade da espécie hu­ mana (Md, Tese VIII). d) Por fim, além dá felicidade, da utilidade e da liberdade, os filósofos tomaram freqüen­ temente a paz como medida ou critério da J. de uma ordenação normativa. Esse parâmetro foi introduzido por Hobbes: para ele, é justa a ordenação que garanta a paz, afastando os homens do estado de guerra de todo.s contra todos, em que vivem no "estado natural". De fato. para Hobbes a primeira lei da natureza, a primeira das normas que permite afastar o ho­ mem do estado de guerra é a que prescreve perseguir a paz. "Para a igualdade de forças e de todas as outras faculdades humanas, os ho­ mens qtie vivem no estado natural, isto é, no estado de guerra, nào podem pretender que sua conservação seja duradoura. Por isso, ten­ der para a paz enquanto brilhar alguma espe­ rança de obtê-la, e só recorrer à guerra quando isso não for possível, é o primeiro ditame da boa razão, a primeira lei da natureza" (De cwe, I, § 15). No séc. XX. Kelsen contrapôs à J. como "ideal irracional" a paz como medida empírica da eficiência das leis: "Uma teoria pode fazer uma afirmação com base na experiência: só uma ordenação jurídica que não satisfaça aos interesses de uns em detrimento de outros, mas que chegue a uma conciliação entre os in­ teresses opostos, que reduza ao mínimo seus

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possíveis atritos, pode contar com Lima existên­ cia relativamente duradoura. Só uma ordena­ ção dessa espécie estará em condições de as­ segurar a paz social em bases relativamente permanentes a todos os que se lhe submetem. Embora o ideal de J. em seu significado origi­ nário seja totalmente diferente do ideal de paz, existe nítida tendência a identificar os dois ideais ou ao menos a substituir o ideal de J. pelo de paz" (General Theory, cit., 1. I, A, c, 4; trad. it., p. 14). Essa tendência, partilhada por muitos que julgam irrealizável o ideal de J. como felicidade ou liberdade, tende a julgar a eficiência das normas com base em sua funcionalidade nega­ tiva, ou seja. em sua capacidade cie evitar con­ flitos. Sem dúvida, conforma-se mais ao es­ pírito positivo de uma teoria do direito que pretenda ter como objeto nada mais do que a técnica da coexistência humana. Mas na reali­ dade o jusnaturalismo moderno, a partir de Grócio. já havia alcançado, pelo menos nesse aspecto, uma generalização maior, exigindo que as normas do direito natural servissem tan­ to para a paz quanto para a guerra, e que pu­ dessem, pelo menos em parte, valer para qual­ quer condição ou situação humana. Portanto, cio ponto de vista cia teoria geral do direito, mesmo a paz pode mostrar-se como objetivo restrito demais para julgar da eficiência (isto é. da J.) das normas do direito. A guerra, assim como os conflitos individuais e sociais, as com­ petições, etc, constituem situações humanas recorrentes, mesmo que indesejáveis; portanto, um juízo objetivo e sem preconceitos sobre as normas de direito deve medir sua eficiência também com relação a tais situações e ás pos­ sibilidades de superá-las. Na realidade, é possí­ vel aduzir apenas dois critérios como funda­ mento de um juízo objetivo sobre ordenações normativas, visto que só eles valem não como fins, absolutos ou relativos, mas como condi­ ções c/e validade de uma ordenação qualquer. O primeiro, já bastante conhecido na tradição filosófica, é o de igualdade como reciprocida­ de, segundo o qual cada um deve esperar dos outros tanto quanto os outros esperam dele. Na maioria das vezes em que a tradição filosófica deíiniu a J. como igualdade (o que fez com freqüência a partir dos pitagóricos). pretendeu ressaltar esse mesmo caráter da _[., o de reci­ procidade (cf. p. ex.. HOHBF.S, Leriath, I. 14; De eive, III, § 6). O segundo critério pode ser de­ duzido do caráter fundamental que garante a

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validade do saber científico no mundo mo­ derno: a autocorrigibilidade. Assim como o conhecimento científico se define como tal só quando organizado com vistas à sua própria verificação e, portanto, á sua autocorrigibilidade, também uma ordenação normativa definese como tal (ou seja, consegue ser eficiente como ordenação) só quando é organizada com vistas à sua eventual autocorreçào. Os dois cri­ térios citados, com as variações devidas, tam­ bém podem integrar-se. Podem conferir à pala­ vra J. um significado tão distante do ideal transcendente e da aspiração sentimental quan­ to da justificação interessada das ordenações em vigor. Não se deve esquecer também que a mais eficaz e radical defesa de determinada or­ denação ne varietur não foi feita pela demons­ tração, ou tentativa de demonstração da J. de tal ordenação, mas simplesmente ignorando-se e eliminando-se a própria noção de justiça. De fato, é isso o que acontece na filosofia do direi­ to de Hegel. que considera o Estado como Deus realizado no mundo e nega até a possibi­ lidade de discutir a ordenação jurídica sob qualquer aspecto. Hegel dizia: "O direito é algo sagrado em geral porque é a existência tio Conceito Absoluto" (Fil. do dir., § 30). O em­ prego do conceito de J. no segundo significado é o exercício do juízo, que deve ser possível para todos os homens livres, sobre as orde­ nações normativas que os regem. Que hoje esse juízo não pode ser exercido com base em noções tautológicas ou ideais quiméricos é fato reconhecido. Mas também é fato que ele pode e deve tornar-se objeto de uma disciplina espe­ cífica que o torne positivo e o mais rigoroso possível, sem subtraí-lo às suas condições em­ píricas. Desse forma, o conceito de J. ainda po­ de reassumir a função que sempre teve: a de instrumento de reivindicação e de libertação. Para a distinção das várias espécies de J., v. os verbetes: ATRIMTIVA, JI:STIÇA; COMI:TATIVO; DISTRIBITIVO. JUSTIFICAÇÃO (in. Justijicalion; fr. Justificatioiv, ai. Rechtfertigmig; it. Gíitstificazione). Este termo, de origem teológica, foi introduzi­ do na filosofia como sinônimo da dedução kantiana (v. DHIHÇÀO TKANSUÍNDKNTAL). A J. concerne á questão do direito de usar certos conceitos. Essa questão é fundamento da pos­ tura crítica da filosofia kantiana. Kant dizia: "Todos os metafísicos estão solene e legitima­ mente suspensos das suas funções enquanto não responderem satisfatoriamente à pergunta:

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'como são possíveis os conhecimentos sintéti­ cos a priori?', pois só essa resposta pode auto­ rizá-los a falar em nome da razão pura" (Prol., §5). Autorização e legitimação são os termos que Kant emprega para exprimir a exigência de J. Segundo Kant, o fato de um conceito ser empregado não é J. do direito de empregá-lo. Fm face dos conceitos é preciso distinguir, como fazem os juristas, uma questão de fato e uma questão de direito (quid in ris). A última é, precisamente, o objeto da J. ou dedução. A pro­ pósito, Kant distingue uma J. empírica, umaj. transcendental e uma J. metafísica. A dedução empírica consiste em mostrar de que modo se chega a um conceito por meio da experiência e da reflexão sobre ela. A dedução transcen­ dental consiste em mostrar de que modo os conceitos a priori podem referir-se aos objetos. A dedução metafísica consiste em mostrar "a origem a priori das categorias em geral, medi­ ante seu perfeito acordo com as funções lógi­ cas do pensamento" (Crít. K. Pura, § 13, 26). Para Kant a verdadeira J. de um conceito é a dedução transcendental, que consiste em mos­ trar a possibilidade da referência do conceito a um objeto empírico. Assim sendo, Hegel mu­ dou o conceito de J. quando a identificou com a exigência de mostrar a necessidade do con­ ceito. "A razão subjetiva" — disse ele — "exige

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a sua satisfação ulterior no que diz respeito à forma, e essa forma é, em geral, a necessida­ de" (Ene, § 9). E acrescenta: "Esse pensamento do modo de conhecimento, que é conheci­ mento filosófico, considerado tanto sob o as­ pecto de sua necessidade quanto de sua capa­ cidade de conhecer os objetos absolutos, precisa ser justificado. Mas a própria J. é um conhecer filosófico que, por isso, se realiza só dentro da filosofia" (Ibid., § 10). Portanto, o conceito de J. dá lugar a duas alternativas, se­ gundo a modalidade que se exija dela: Io a de­ monstração da necessidade de um conceito, ou seja, a demonstração de que ele não pode não ser e de que só pode ser do modo como 6; 2" o esclarecimento da possibilidade de um con­ ceito em relação a um campo determinado, ou seja, a determinação da possibilidade de uso do conceito. A filosofia contemporânea inclinase a admitir e a usar esse segundo significado do termo, o único que não depende de um ponto de vista idealista, considerando que um conceito é justificado nos dois casos seguintes: a) quando seu uso em contexto formal (mate­ mático ou lógico) não comporte contradição; b) quando o conceito possa referir-se a um objeto verificável (como ocorre nos contextos reais, isto é, nos campos dos conhecimentos empíricos).

K K. Na lógica de Lukasiewicz, a letra K é usada para indicar a conjunção mais comumente simbolizada com um ponto ".". Cf. A. CHURCH, Introduction to Mathemaücal Logic, ns 91. KANTISMO. V. criticismo.

KENNETICO (in. Kennetic). Neologismo cunhado por A. F. Bentley e tirado do escocês ken ou kenning. que significa "conhecer", para marcar a indagação transacional {Inquiry into Inquiries, 1954) (v. TRANSAÇÃO).

L L. Posposto ou anteposto a termos como conceito, verdade, etc, significa lógico. Em ge­ ral, como diz Carnap, um L-termo, p. ex., "Lverdadeiro", aplica-se toda vez que o termo ra­ dical correspondente, p. ex., "verdadeiro", se aplique com base em razões simplesmente ló­ gicas, em oposição a razões de fato (Introduc­ tion to Semantics, § f 4). LAICISMO (in Laicism; fr. Laicisme; it. Ixiicismo). Com este termo entende-se o princí­ pio da autonomia das atividades humanas, ou seja, a exigência de que tais atividades se de­ senvolvam segundo regras próprias, que não lhes sejam impostas de fora, com fins ou inte­ resses diferentes dos que as inspiram. Esse princípio é universal e pode ser legitimamente invocado em nome de qualquer atividade hu­ mana legítima, entenciendo-se por "legítima" toda atividade que não obste, destrua ou im­ possibilite as outras. Portanto, o L. não pode ser entendido apenas como reivindicação de autonomia do Estado perante a Igreja, ou me­ lhor, perante o clero, pois, como sua história demonstra, já serviu à defesa da atividade reli­ giosa contra a política e ainda hoje, em muitos países, tem essa finalidade; também tem o fim de subtrair a ciência ou, em geral, a esfera do saber às influências estranhas e deformantes das ideologias políticas, dos preconceitos de classe ou de raça, etc. O Papa Gelásio I, que, no fim do séc. V, ex­ punha num tratado e em algumas cartas a teo­ ria denominada "duas espadas", foi provavel­ mente o primeiro a recorrer explicitamente ao princípio do L, desconhecido na Antigüidade clássica porque esta não conheceu conflitos de princípios entre as várias atividades humanas. A teoria das duas espadas, ou seja, de dois po­ deres distintos, ambos derivados de Deus, (o do papa e o do imperador), servia a Gelásio I

para reivindicar a autonomia da esfera religiosa em relação à política. Durante muitos séculos foi doutrina oficial da Igreja e ainda no séc. XII o canonista Estêvão de Tournai expressava-a com extrema clareza (Summa decretorum, Intr.). O princípio expresso nesta doutrina con­ tinua o mesmo quando os papéis se invertem ou essa doutrina é invocada para defender o poder político contra o eclesiástico, como faz João de Paris em seu tratado Sobre o poder ré­ gio e papal (1302-3), como fez Dante alguns anos mais tarde, em De monarchia; e como fizeram Marcílio de Pádua no Defensorpacis (1324) e Guilherme de Ockham em suas obras políticas. Certamente as doutrinas políticas e eclesiásticas desses escritores eram diferentes e vez por outra opostas, mas está claro que a teoria dos dois poderes nada mais é que um apelo à autonomia das respectivas esferas de atividade e que a força do L. não está no particularismo das doutrinas, mas no reconheci­ mento de sua autonomia, que é o princípio do L. Esse princípio tornou-se exigência funda­ mental na vida civil nas comunas italianas, france­ sas, belgas e alemãs (cf. SALVKMIM, Studi storici, Florença, 1901; PIRENNE, Les villes du Moyen Âge, Bruxelas, 1927; DK LAGARDE, La naissance de Vesprit laique, ou déclin du Moyen Age, Louvain-Paris, 3a ed., 1956); o Renascimento e o Iluminismo não passam de duas etapas su­ cessivas de seu predomínio crescente na vida política e civil do Ocidente. Mas, como se disse, o princípio do L. não vale somente nas relações entre a atividade po­ lítica e a religiosa. Na primeira metade do séc. XIV, Ockham reivindicava com energia a auto­ nomia da atividade filosófica. A propósito da condenação de algumas proposições de S. To­ más pelo Bispo de Paris, em 1277, ele dizia: "As asserções, principalmente filosóficas, que não

LAICISMO

concernem à teologia não devem ser condena­ das ou proibidas, pois nelas qualquer um deve ser livre para ciizer livremente o que lhe apraz" (Dialogus inter magistnim et cliscipulum de imperalomm etpontificumpotestate, I, II. 22). Essa foi a primeira e certamente uma das mais enérgicas afirmações do princípio do L. em fi­ losofia, e deve-se a um frade franciscano do séc. XIV. No séc. XVII Galilei afirmava o mesmo princípio em relação à ciência, opondo-se aos limites e obstáculos que a autoridade eclesiásti­ ca pudesse impor à ciência. A Sagrada Escritura e a natureza — dizia ele — procedem ambas do Verbo Divino, mas, enquanto a palavra de Deus teve de adaptar-se ao limitado entendi­ mento dos homens, a natureza é inexorável e imutável, e nunca transgride os termos das leis que lhe foram impostas, pois pouco lhe impor­ ta se as suas razões recônditas são compreen­ didas ou não pelos homens: por isso. "os efei­ tos naturais que a sensata experiência nos po­ nha diante dos olhos ou que as necessárias de­ monstrações nos levem a concluir não devem por razão alguma ser postos em dúvida nem condenados, em nome cie trechos da Escritura cujas palavras tenham aparência diferentes" (Lett. alia Granel. Cristina, em op., V, p. 316). Galilei reivindicava assim a autonomia da ciên­ cia, nos mesmos termos em que Ockham rei­ vindicara a autonomia da filosofia. O princípio do L. foi fundamento da cultura moderna e é indispensável á vida e ao desenvolvimento de todos os seus aspectos. Os únicos adversários autênticos do L. são as correntes políticas totali­ tárias, que pretendem apoderar-se do poder político e exercê-lo com o único objetivo de conseivá-lo para sempre. Tais correntes preten­ dem de fato assenhorear-se do corpo e da alma do homem, para impedir qualquer crítica ou rebeldia. Embora o Romantismo do séc. XIX haja encorajado sua persistência ou revivescência, hoje essas correntes sofrem a oposição da mesma situação objetiva que exige, em qual­ quer campo, o desenvolvimento do saber posi­ tivo: esse saber, por sua vez, exige a autonomia de suas regras, o que é L. Por otitro lado, as correntes políticas totalitárias podem ser facil­ mente reconhecidas exatamente por sua atitu­ de em relação ao princípio do L: quer se apoie numa confissão religiosa, quer se apoie numa ideologia racista, classista ou cie qualquer outra espécie, tendem, em primeiro lugar, a diminuir e em última instância a destruir a autonomia das esferas espirituais, assim como tendem a

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diminuir e a destruir os direitos de liberdade dos cidadãos. No plano das inter-relações das atividades humanas, o L. desempenha o mes­ mo papel da liberdade no plano das inter-relações humanas: é o limite ou a medida que ga­ rante a essas atividades a possibilidade de orga­ nizar-se e desenvolver-se, assim como a liber­ dade é o limite e a medida que garante às rela­ ções humanas a possibilidade de manter-se e desenvolver-se. Considerado em sua estrutura conceituai e histórica, o princípio do L. não tem qualquer ca­ ráter de antagonismo a qualquer forma de reli­ giosidade, nem mesmo ao catolicismo. Em pri­ meiro lugar, ele freqüentemente foi útil aos ca­ tólicos na defesa da autonomia de sua atividade, constituindo ainda hoje a política oficial do cato­ licismo nos países em que ele não tem partido político à disposição, como p. ex. nos países anglo-saxões. Em segundo lugar, é interesse dos católicos, como de todos, que a adminis­ tração do Estado, as ciências, a cultura, a educa­ ção e, em geral, as esferas da atividade humana sejam organizadas e regidas por princípios que possam ser reconhecidos por todos, que sejam independentes da inevitável disparidade de crenças e ideologias e que, por isso, tornem efi­ cazes e fecundas as atividades que neles se fun­ dem. F. bastante óbvio que as administrações políticas que favorecem ceilos grupos de cida­ dãos em prejuízo de outros, em vista de suas crenças religiosas, são simplesmente ineficien­ tes e corruptas, não podendo reivindicar méri­ tos "religiosos". Da mesma forma, os poderes ju­ diciários que nào aplicam com escrúpulo e eqüidade a lei vigente do Estado, não ofere­ cem garantias a ninguém, porque também são ineficientes e corruptos. A ciência que serve a interesses de partidos, crenças e ideologias não pode ter méritos de nenhum tipo, não é uma ciência. Poderia ser comparada a uma medicina que tomasse como critério de cliagóstico, prog­ nóstico e cura os desejos do paciente ou de ou­ tras pessoas; uma medicina assim estruturada seria um caso de ciência "não laica", clerical ou partidária. O L. não atende ao interesse deste ou daquele grupo político, religioso ou ideológi­ co, mas ao interesse de todos. Contanto que o interesse de todos seja o desenvolvimento har­ mônico das atividades que asseguram a sobrevi­ vência do homem no mundo. LAMARQUISMO. V. FYOUÇÀO.

LATENTE (lat. Latem). F. Bacon chamava de L o processo natural que vai da causa efi­

LATITUDINARIO

ciente da matéria sensível à forma, ou seja, o processo de constituição da forma (Nov. Org., II, 1). Os processos psíquicos latentes dos quais falava a psicologia do século passado hoje são denominados inconscientes ou subconscientes. LATITUDINARIO (in Latitudinariam fr. Latítudinaire, ai. LatitiidinarieK it. Latitudinarío). Kant denominou com este termo aquele que, em alguns casos, admite a neutralidade moral, ou seja, a existência de atos ou carac­ teres humanos indiferentes do ponto de vista moral: "Estes são os L cia neutralidade, para quem o homem não é bom nem mau, poden­ do ser denominados indiferentistas, ou os L. da coalizão, para quem o homem é ao mesmo tempo bom e mau, podendo ser denominados sincretistas." O oposto de L. é rigorista, ou seja, aquele que não admite neutralidade moral al­ guma (Religion, I, Observação). Na igreja ingle­ sa do séc. XVII, o substantivo indicará os de­ fensores de Lima interpretação mais aberta dos dogmas tradicionais. LAXISMO. V. RIGORISMO. LEALDADE (in Loyally). Dedicação volun­ tária, prática e completa de uma pessoa a Lima causa. Foi assim que F. Royce a definiu em seu livro Filosofia da L. (1908), assumindo-a como princípio geral da ética. A L. inclui solidarieda­ de para com os outros indivíduos, ou melhor, para com a comunidade de indivíduos, e con­ tém o critério para julgar o valor das causas, visto que permite reconhecer como inaceitável uma causa que impossibilite ou negue a L. alheia. Portanto, segundo Royce, a L. à L. é o critério da vida moral. LEGALIDADE (in Legality- fr. Léga/ité: ai. Legalitál, Gesetzlichkeit; it. Legalitã). Confor­ midade de uma ação à lei. Kant distinguiu a L. assim entendida da moralidade propriamente dita: "A conformidade ou desconformidade pu­ ra de Lima ação em relação á lei, sem referência ao móbil da ação, denomina-se L. (conformida­ de à lei); quando, porém, a idéia do dever deri­ vada da lei é ao mesmo tempo móbil da ação, tem-se a moralidade (doutrina moral)" (Met. derSilten, Intr., § III; cf. Crít. R. Prát., I, cap. III). Com forma mais atenuada, essa distinção fora introduzida por S. Tomás, para distinguir a nor­ ma jurídica da norma moral (v. DIRITIO); Kant utiliza-a com a mesma finalidade em Metafísica

doscostumes.

T.EGATJSMO (in legalism, fr. Légalisme-, ai. I.egalisrnus; it. Legalismo). Atitude de obser­

vância literal da lei. Na moral, é o mesmo que

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rigorismo (v.). Fora da moral, consiste em dar valor excessivo às prescrições ou aos procedi­ mentos formais. LEI (gr. vóitoç; lat. Lex; in Law; fr. Loi; ai. Gesetz-, it. iegge), Uma regra dotada de necessi­ dade, entendendo-se por necessidade: V- im­ possibilidade (OLI improbabilidade) de que a coisa aconteça de outra forma; ou 2a uma força que garanta a realização da regra. A noção de L. é distinta da noção de regra e de norma. A regra (que é termo generalíssimo) pode ser isenta de necessidade; são regras não só as L. naturais ou as normas jurídicas, mas também as prescrições da arte ou da técnica. Norma é uma regra que concerne apenas às ações humanas e não tem por si valor necessitante: portanto não são normas as leis naturais e as regras técnicas, e as normas, p. ex. de natureza moral, não são coercitivas como as leis jurídicas. Desse ponto de vista, há apenas duas espécies de L: as L. naturais e as L. jurídicas. Como a noção de L. jurídica foi analisada no verbete DIREITO, restanos analisar a noção de L. natural. Podemos distinguir as seguintes interpretações funda­ mentais: ly L. como razão; 2" L. como unifor­ midade; 3" L. como convenção; 4y L como relação simbólica. 1I> A noção de L. como razão surgiu na Grécia antiga, com a transposição para o mun­ do natural do conceito cie justiça OLI de ordem que havia sido elaborado para o mundo huma­ no (cf. JAKGKR, Paidéia, I, cap. 6; trad. it., I, pp. 212 ss.). Anaximandro foi o primeiro a trans­ por a noção de clike do mundo da polis p-Má o mtinclo da natureza, entendendo o vínculo cau­ sai de nascimento e morte das coisas como uma L. que rege uma demanda judiciária, em que todos os seres — diz ele — "devem sofrer as conseqüências de sua injustiça na ordem do tempo" (Fr. 9, Diels). Heráclito, por sua vez, concebia essa L. como a própria razão ou Logos: dela "se alimentam todas as L. humanas" (Fr. 1 H Diels). Conquanto Platão (cf. Tim., 83 e) e Aristóteles (De cael, 1, 1, 268 a 13) usem só excepcionalmente a expressão "L. natural", foi graças a eles que o conceito de racionalida­ de da natureza e de expressibilidade dessa ra­ cionalidade em proposições universais e neces­ sárias acabou prevalecendo na história da filo­ sofia. Lucrécio utilizou a expressão "pacto da natureza" (foedus naturae: De rer. nat., V, 57, 924; VI, 906), e o conceito estóico de destino ou providência é expressão do mesmo ponto cie vista (DiÓG. I... VII, 149). Plotino admitia,

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inclusive para as coisas que escapam ao desti­ no, uma lei que dimana diretamente do Intelec­ to Divino (Enn., IV, 3, 15). A subjetivaçâo das L. da natureza, realizada por Kant na tentativa de ver a "fonte" delas no intelecto, mais preci­ samente nas formas a priori do intelecto (cate­ gorias), nào muda muito o conceito de L. natu­ ral que, também ele, continua sendo expressão da racionalidade da natureza, ainda que de uma racionalidade introduzida na natureza (co­ mo fenômeno) pelo próprio intelecto. Kant diz: "As L. naturais, se consideradas como princí­ pios do uso empírico do intelecto, possuem ao mesmo tempo cunho de necessidade e, portan­ to, pelo menos a presunção de uma determina­ ção que derive de princípios válidos em si, a priori e anteriormente a qualquer experiência. Todas as L. da natureza, sem distinção, estão sujeitas aos princípios superiores do intelecto e aplicam tais princípios a casos particulares do fenômeno. Só esses princípios dão o conceito que contém a condição e, por assim dizer, o expoente de urna regra geral, mas a experiên­ cia dá o caso que está submetido à regra" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, sec. 3). Schelling interpretava a formulação das L. natu­ rais como a transfiguração progressiva da nature­ za em racionalidade: "A ciência da natureza chegaria ao auge da perfeição se conseguisse espiritualizar perfeitamente tocias as L. naturais em L. da intuição e do pensamento. Os fenô­ menos (o material) devem desaparecer inteira­ mente, ficando apenas as L. (o formal). Assim, acontece que, quanto mais a L extrapola o campq da natureza, tanto mais se dissipa o véu que a envolve, os fenômenos tornam-se mais espirituais e por fim desaparecem totalmente. Os fenômenos ópticos nada mais são que uma geometria cujas linhas são traçadas por meio da luz, e mesmo essa luz já tem materialidade du­ vidosa" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr. § 1, trad. it., pp. 8-9). Pode-se dizer que toda interpretação racionalista da ciência adota até certo ponto essa tese de Schelling. Desse ponto de vista, a L. é apenas expressão da racionalidade da natureza, e sua formulação por parte da ciência tem o objetivo de reduzir a natureza à razão. 2e A concepção de L. natural como relação constante entre os fenômenos foi proposta pela primeira vez por Hume. Para ele, a L. natural é resultado de "uma experiência fixa e inalterá­ vel" (Inq. Cone. Underst, X, 1): a experiência da "conjunção constante de objetos semelhantes",

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à qual se reduz a relação causai. A conexão ha­ bitual e constante entre eventos diversos auto­ riza a falar de causalidade, permite a previsão de eventos futuros e exclui o milagre (Ibid., VII, 2). Essa concepção era adotada por Comte e, com ele, pela ciência positivista. "O caráter fundamental da filosofia positiva" — dizia Comte — "é considerar todos os fenômenos como sujeitos a L. naturais invariáveis, cuja des­ coberta precisa e cuja redução ao mínimo nú­ mero possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços." Essas L. não consistem em expor "as causas geradoras dos fenômenos", mas só expressam aquilo que interliga os fe­ nômenos mediante "relações normais de sucessão e de semelhança" (Cours dephü.positive, I, liç. I, § II). Do mesmo ponto de vista Stuart Mill considerava as L. como casos especiais da uni­ formidade da natureza. "As várias uniformidades, quando verificadas por aquilo que se con­ sidera uma indução suficiente, são denomina­ das, na linguagem comum, L. da natureza. Cientificamente falando, essa expressão é em­ pregada em sentido mais restrito para designar as uniformidades que foram reduzidas à sua expressão mais simples" (Logic, III, 4, § 1). Essa concepção dominou todo o positivismo clássi­ co e só entrou em crise com o reconhecimento do caráter econômico das L. naturais, efetuado por Mach. 3B O conceito de L. natural como convenção nasce da função econômica que Mach atribuíra ao conhecimento científico, ao afirmar o cará­ ter subjetivo das L. naturais. Só os nossos con­ ceitos e a nossa intuição — diz ele — prescre­ vem L. à natureza; "as L. naturais são as restri­ ções que nós, guiados pela experiência, pres­ crevemos à nossa expectativa dos fenômenos" (Erkenntniss undIrrtum, cap. 23; trad. fr., p, 368). O progresso da ciência leva à crescente restrição das possibilidades de previsão, ou seja, à sua crescente determinação e precisão. Esse reconhecimento do caráter econômico ou utilitário da ciência foi sobejamente encorajado pela filosofia de Bergson e pelo pragmatismo. A primeira, atribuindo à inteligência apenas a função vital de fabricar objetos e de orientar-se no mundo natural, transformava a ciência, que é a criação da inteligência, em "auxiliar da ação" (BERGSON, La penseé et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 158) e não podia atribuir às L. científicas qualquer validade teorética. O prag­ matismo, por sua vez, generalizando a tese da instrumentalidade da consciência encorajava a

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interpretação das L. científicas como simples instrumentos da orientação prática do homem no mundo. Algumas formas de espiritualismo e de idealismo interpretaram essa função econô­ mica da ciência como sinal de sua inferioridade teorética (e por vezes de todo o pensamento discursivo) em relação à filosofia e aos seus ór­ gãos específicos. Le Roy, levando ao extremo a crítica de Bergson, afirmou o caráter conven­ cional da ciência e por isso a natureza arbitrária de suas L. Para Le Roy, a tarefa da ciência é encontrar constantes úteis; e encontra-as por­ que a ação humana não comporta precisão ab­ soluta, mas exige apenas que a realidade seja aproximativamente representada, em suas rela­ ções conosco, por um sistema de constantes simbólicas denominadas L. (Science etphilosophie, 1899-1900). A mesma tese, num exagero quase caricatural, pode ser encontrada em Croce: "Como essas L. são construções nossas e apresentam o móvel como fixo, além de não serem irrepreensíveis nem isentas de exceções, definitivamente não existe fato real que não constitua exceção à sua L. naturalista". Isso acontece porque não existem uniformidades rigorosas, e um ursinho nunca é totalmente semelhante aos seus pais. "Donde se poderia definir: as L. inexoráveis da natureza são L. vio­ ladas a todo instante; ao contrário, L. filosóficas são as observadas o tempo todo. (...) As ciên­ cias naturais, que não propiciam conhecimen­ tos verdadeiros, têm ainda menos direito (se é lícito expressar-se assim) de falar em previsão" (Lógica, II, cap. 5; 4a ed, 1920, p. 218). Poincaré pronunciou-se contra a natureza conven­ cional das L., em polêmica com Le Roy. A L. não é uma criação arbitrária do cientista, mas a expressão aproximativa ou provisória de uma constância de ação que permite a previsão. É bem verdade que por vezes algumas L. são erigidas em princípio, escapando assim à veri­ ficação da experiência e à incessante revisão que esta comporta, mas nesse caso a L. deixa de ser verdadeira ou falsa para tornar-se apenas cô­ moda, e a verificação continua sendo feita so­ bre as relações que expressem "o fato bruto da experiência" (Le valeur de Ia science, p. 239). Poincaré observa também que "o cientista cria no fato apenas a linguagem na qual o enuncia", mas que, uma vez enunciada uma previsão em determinada linguagem, "não depende eviden­ temente dele que ela se realize ou não" (Lbid., p. 233). A mesma crítica era dirigida â tese do caráter convencional das L. científicas por

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Moritz Schilick. Utilizando a distinção entre enunciado e proposição, que é um enunciado dotado de significado (na medida em que real­ mente cumpre a função de comunicar), Schilick julgou que "o conteúdo próprio de uma lei natural consiste no fato de que a certas leis gra­ maticais (p. ex., de uma geometria) correspon­ dem algumas proposições definidas como des­ crições verdadeiras da realidade". Uma vez que esse fato é completamente invariante com rela­ ção a qualquer mudança arbitrária das regras gramaticais, não se pode reduzir as L. da natu­ reza a meras convenções lingüísticas. "Só as proposições são verdadeiras ou falsas, não os enunciados. Os enunciados realmente estão sujeitos a modificações arbitrárias, mas isto não diz respeito a quem se preocupa com o conhe­ cimento dos fatos. Com a ajuda das regras dos símbolos (cuja gramática deve ser conhecida porque sem ela os enunciados não teriam sen­ tido), é possível chegar a proposições genuí­ nas, cuja verdade não depende da predileção por símbolos" (Gesetz Kausalitãt, und Wahrscheinlichkeít, Viena, 1948; agora em Readings inPhil. ofScience, 1953, pp. 181 e ss.). 4S As críticas de Poincaré e Schilick à tese da natureza convencional da L. científica partem daquilo que se pode denominar quarta con­ cepção fundamental da L, que a vê como rela­ ção simbólica entre os fatos. Essa tese foi ex­ pressa pela primeira vez por Duhem, no livro sobre Teoria física, que assim a resumiu: "Uma L. de física é uma relação simbólica cuja aplica­ ção à realidade concreta exige que se conheça e se aceite todo um conjunto de teorias" (Théorie physique, 1906, p. 274). Isto quer di­ zer que os termos simbólicos que uma lei interrelaciona são abstrações produzidas pelo traba­ lho lento, complicado e cônscio que serviu para elaborar as teorias físicas, e que esse tra­ balho nunca está definitivamente acabado. "To­ da L. física" — diz Duhem — "é aproximada; conseqüentemente, para o lógico rigoroso, ela não pode ser verdadeira nem falsa; qualquer outra L. que represente as mesmas experiên­ cias com a mesma aproximação pode preten­ der, com o mesmo direito da primeira, o título de L. verdadeira ou, para falar com mais rigor, de L. aceitável" (Ibid., p. 280). Esses conceitos per­ maneceram substancialmente inalterados na fi­ losofia contemporânea. As observações de Schilick contra a convencionalidade das L. naturais e em favor do seu caráter simbólico constituem uma confirmação substancial do ponto de vista

LEI BIOGENETICA

de Duhem. Uma L é sempre um enunciado gramatical e sempre pressupõe a gramática da linguagem em que é expressa; mas, embora essa gramática possa ser considerada convencio­ nal, o mesmo não pode ser dito do significado da L, pois ele se refere a relações entre fatos verificavelmente constantes e capazes de possi­ bilitar uma previsão provável. Conquanto a te­ oria de Duhem tenha sido formulada antes do reconhecimento do caráter probabilista da ciência, aquilo que ele chamava de "aproxima­ ção das L. da natureza" abria caminho para o que hoje se denomina caráter probabilista das L. Ou melhor, a função que a metodologia das ciências tende hoje a atribuir cada vez mais à L. científica é a capacidade de previsão. Peirce disse: "Uma proposição não pode ser deno­ minada 'lei da natureza' enquanto sua capa­ cidade cie previsão não for submetida a pro­ va confirmada de tal forma que não persista dúvida sobre ela" ( Values in a Universe of Chance, p. 290). Uma L. geralmente é uma fórmula para a previsão. Desse ponto de vista, a L. deixa de ter a necessidade que a primei­ ra e a segunda interpretações lhe atribuíam. Sua validade 6 medida pela sua eficiência, e essa eficiência é medida pela possibilidade de obter com ela previsões suficientemente cor­ retas. LEI BIOGENETICA. V. BIOGKNF.TICA LEIBNIZIANISMO. V. CARACTERÍSTICA; F.SPIR1TCAIJSMO.

LEI DA MÍNIMA AÇÃO. V. AÇÃO MÍNIMA. LEI DAS TRÊS ETAPAS. V. POSITIVISMO. LEI MODAL. V. MODAL. LEI PSICOFÍSICA. V. PSICOLOGIA, b. LEKTON. V. SIGNIFICADO.

LEMA (gr. Ajjj.ja: in. Lemma; fr. Lemme: ai. Lemma, it. Lemma). 1. Proposição assumida co­ mo primeira premissa de um raciocínio (ARISTÓTFLI-S., Tüp, VIII, 1, 156 a, 21; DlÓG. L, VII. 76; CICI-RO. De divín. II, 53. 108). Nesse sentido,

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LIBERALISMO

um homem artificial, ainda que de maior estatura e força que o homem natural, para cuja prote­ ção e defesa foi idealizado" (Leiiath, Intr.); e deu esse título à sua obra política fundamental (1561). LIBERALISMO (in. Liberalism; fr. Libéralismc\ ai. Liberalismus, it. Liberalismo). Doutrina que tomou para si a defesa e a realização da li­ berdade no campo político. Nasceu e afirmouse na Idade Moderna e pode ser dividida em duas fases: Ia do séc. XVIII, caracterizada pelo individualismo; 2a do séc. XIX, caracterizada pelo estatismo. Ia A primeira fase é caracterizada pelas se­ guintes linhas doutrinárias, que constituem os instrumentos das primeiras afirmações políticas do L: a) jusnaturalismo (v.), que consiste em atribuir ao indivíduo direitos originários e ina­ lienáveis; b) contratiialismo (v.), que consiste em considerar a sociedade humana e o Estado como fruto de convenção entre indivíduos; c) L. econômico, próprio da escola fisiocrática, que combate a intervenção do Estado nos as­ suntos econômicos e quer que estes sigam ex­ clusivamente s e u curso natural ( v . ECONOMIA); d) como conseqüência global das doutrinas precedentes, negação do absolutismo estatal e redução da ação do listado a limites definidos, mediante a divisão d o s poderes ( v . ESTADO). O postulado fundamental dessa fase do L 6 a coincidência entre interesse privado e público. Jusnaturalistas e moralistas, como Bentham, acreditavam que bastava ao indivíduo buscar inteligentemente sua própria felicidade para estar buscando, simultaneamente, a felicidade dos demais. A doutrina econômica de Adam Smith baseia-se no pressuposto análogo da coincidência entre o interesse econômico do indivíduo e o interesse econômico da socieda­ de (v. INDIVIDUALISMO).

2a A segunda fase do L. começa quando esse postulado entra numa crise cujos precedentes Kant, chamava de L. a proposição que uma ciên­ se encontram nas doutrinas políticas de Rouscia extrai cie outra e aceita sem demonstração seau, Rurke e Hegel, bem como no fato de que. no terreno político e econômico, o L. in­ (Crít. doJuízo, § 68; Logik, § 39). 2. Teorema matemático lateral ou subordi­ dividualista parecia defender uma classe deter­ nado, fora d e s u a cadeia dedutiva (LITHMZ, minada de cidadãos (a burguesia), e não a tota­ lidade dos cidadãos. O Contrato social (1762) Nouv. ess, IV, 2, 8). de Rousseau já constitui uma guinada no indi­ LENINISMO. V. COMUNISMO. LEI1CIA (gr. eíxppoGÚvri; lat. Lactitia). V. vidualismo. Para Rousseau, os direitos que o jusnaturalismo atribuíra aos indivíduos perten­ ALHGRIA. LEVIATÃ (in. l.euíathan). Com esse nome, de cem apenas ao cidadão. "O que o homem per­ um monstro bíblico (Jacó, 40. 20), Hobbes de­ de com o contrato social é sua liberdade e o di­ nominou "o Estado — em latim civitas— , que 6 reito ilimitado a tudo o que o tenta e que ele

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pode obler; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui", Mas. na realidade, só "a obediência à lei que prescrita é liberdade", de tal forma que só no Estado o ho­ mem é livre (Contraísocial, I, 8). A afirmada infalibilidade da "vontade geral", resultante da "alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade" (Ibid.. I, 6),^ transforma aquilo que para o individualismo é Í\ coincidência do interesse individual com o interesse comum em coincidência — prelimi­ nar e garantida — do interesse estatal com o incavsse individual. Desta forma, ia-se afirmando a superioridade do Estado sobre o indivíduo contra a qual o L. se insurgira em sua primeira fase. Tal superioridade também é reconfirmada por Burke: "A sociedade 6 um contrato, mas, embora os contratos sobre objetos de interesse ocasional possam ser desfeitos a bel-prazer, não se pode considerar que o Estado tenha o mesmo valor de um acordo entre partes num comércio de especiarias e café. (...) Deve-se considerá-lo com reverência porque não é a participação em coisas que servem somente à existência animal.(...): é uma sociedade em to­ das as ciências, em todas as artes, em todas as virtudes e em toda a perfeição" (Reflection on tbe Revolution in Franca, 1790; Works, II, p. 368). Mas o ponto alto dessa nova concepção de Estado encontra-se na doutrina de Hegel, para quem ele é "o ingresso de Deus no mun­ do", razão pela qual seu fundamento é a potên­ cia da razão que se realiza como vontade" (Fil. do dir., § 258, Zusatz). Com essa exaltação do Estado concordava outro ramo do romantismo do séc. XIX, o positivismo: Comte preconizava um estatismo tão absolutista quanto o hegeliano (Système depolitiquepositive, 1851-54; IV, p. 65), e Stuart Mill, mesmo sem fazer conces­ sões às concepções absolutistas, deixava gran­ de margem à ação cio Estado, mesmo no domí­ nio que, para o liberalismo clássico, deveria fi­ car reservado exclusivamente para a iniciativa individual: o econômico (Principies ofPolitical Economy, 1848). O ensaio Sobre a liberdade (1859). de Stuart Mill, tendia, ao mesmo tempo, a retirar a liberdade do rol de condições indis­ pensáveis para o exercício da atividade moral, jurídica, econômica, etc. (segundo a concepção do L. clássico), e a transformá-la num ideal ou valor em si (independente das possibilidades que oferece). Isso não impede que essa obra seja uma das mais nobres e apaixonadas defe­ sas da liberdade.

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Nas primeiras décadas do séc. XX assistiu-se à continuação desse L. estatista. Tanto o idealis­ mo inglês quanto o italiano insistiram no cará­ ter divino cio Estado. Foi o que fizeram Bosanquet (The Phüosophical Theory of tbe State, 1899) e Gentile, que identificou o Estado com o Eu Absoluto (Genesi e stnittura delia societã, póstuma, 1946). A inspiração hegeliana preva­ lecia também na doutrina de Croce, que no entanto permaneceria fiel ao ideal clássico de liberdade, demonstrando-o na prática, durante o fascismo. Para Croce, L. é a doutrina do de­ senvolvimento dialético da história, que tudo absolve e justifica, mesmo o absolutismo e a negação da liberdade (Etica epolítica, 1931, p. 290). O socialismo marxista pode ser conside­ rado uma das manifestações dessa mesma for­ ma de L. (ao qual se liga diretamente através de Hegel) (v. MATEKIAI.ISMO). Os partidos políticos que. a partir do início cio séc. XIX, desfraldaram a bandeira liberal inspiraram-se em uma e em outra das diretrizes fundamentais ora expressas: individualismo ou estatismo. Portanto, um grande número de cor­ rentes políticas díspares e por vezes opostas puderam falar em nome do L. (DE RUGGIERO, Storia deiL. europeo, 1925): partidos que nega­ ram o valor do Estado (como o radicalismo inglês do século passado), partidos que exalta­ ram o valor do Estado (como a chamada "direi­ ta histórica" da Itália após o resorgimento), par­ tidos que recusaram qualquer ingerência do Estado em assuntos econômicos (como fazem ainda hoje alguns partidos liberais europeus), partidos que defendem a intervenção do Esta­ do na iniciativa e na direção dos negócios eco­ nômicos, partidos que consideraram a liberda­ de como condição para a prática de qualquer atividade humana e partidos que a relegaram para o empíreo dos "valores" puros. Esses con­ trastes são a manifestação evidente do caráter compósito da doutrina liberal, caráter este que decorre do modo aproximativo e confuso como foi tratada a noção que deveria ser fun­ damental para o L-. a de liberdade. O recurso casual ou sub-reptício a um ou outro dos con­ ceitos de liberdade elaborados na história do pensamento filosófico tornou a idéia liberal em política confusa e oscilante, conduzindo-a por vezes à defesa e à aceitação da nào-liberdade (v. LIBERDADE).

LIBERDADE (gr. èteu6epía; lat. Libertas; in. Freedom, Liberty; fr. Liberte; ai. Freiheit; it. Liberta). Esse termo tem três significados fun­

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damentais, correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem ser caracterizadas da seguinte maneira: l1 L. como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a L. é au­ sência de condições e de limites; 2a L. como ne­ cessidade, que se baseia no mesmo conceito da precedente, a autodeterminação, mas atri­ buindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo, Substância, Estado); 3a L. como possi­ bilidade ou escolha, segundo a qual a L. é limi­ tada e condicionada, isto é, fínita. Não consti­ tuem conceitos diferentes as formas que a L. assume nos vários campos, como p. ex. L. metafísica, L. moral, L. política, L. econômica, etc. As disputas metafísicas, morais, políticas, econômicas, etc, em torno da L. são domina­ das pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto, podem ser remetidas as formas es­ pecíficas de L. sobre as quais essas disputas versam. 1- Para a primeira concepção, de L. absolu­ ta, incondicional e, portanto, sem limitações nem graus, é livre aquilo que é causa de si mesmo. Sua primeira expressão encontra-se em Aristóteles. Embora a análise aristotélica do voluntarismo das ações pareça recorrer ao con­ ceito da L. fínita, a definição de voluntário é a mesma de L. infinita: voluntário é aquilo que é "princípio de si mesmo". Aristóteles começa afirmando que a virtude e o vício dependem de nós; e prossegue: "Nas coisas em que a ação depende de nós a não-ação também depende; e nas coisas em que podemos dizer não tam­ bém podemos dizer sim. De tal forma que, se realizar uma boa ação depende de nós, tam­ bém dependerá de nós não realizar má ação" (Et. nic, III, 5, 1113 b 10). Isso já fora dito por Platão no mito de Er. Mas para Aristóteles signi­ fica que "o homem é o princípio e o pai de seus atos, assim como de seus filhos" (Ibid). De fato, ''só para quem tem em si mesmo seu próprio princípio, o agir ou o não agir depende de si mesmo" (Ibid., III, 1, 1110 a 17); assim o homem "é o princípio de seus atos" (Ibid, III, 3, 1112 b 15-16). Essa noção de "princípio de si mesmo" é a definição da lei incondicionada, encontrada, p. ex., em Cícero: "Para os movi­ mentos voluntários da alma não se deve procu­ rar uma causa alheia, pois o movimento está em nosso poder e depende de nós: nem por isso é sem causa, visto que sua causa é sua pró­ pria natureza" (Defato, II). Em Epicuro, a no­ ção de L. tinha o mesmo significado de autode­

terminação absoluta, que para ele começava nos átomos, aos quais atribuía o poder de des­ viar-se da própria trajetória. Lucrécio diz: "Po­ demos desviar nossos movimentos sem sermos determinados pelo tempo nem pelo lugar, mas pelo que nos inspira nosso espírito; pois sem dúvida a vontade é o princípio desses atos e através dela o movimento se expande por to­ dos os membros" (De rer. nat., II, 260). A no­ ção de L. como autocausalidade ou autodeter­ minação (cxUIOTtpaYÍa) também é o fundamen­ to do conceito de L. como necessidade. Os estóicos admitiam que eram livres as ações que têm em si mesmas causa ou princípio: "Só o sá­ bio é livre, e todos os malvados são escravos, pois L. é autodeterminação, enquanto escravi­ dão é falta da autodeterminação" (DlÓG. L, VII, 121). Epicteto, conseqüentemente, dizia que eram "livres" as coisas que estão "em nosso po­ der", ou seja, os atos do homem que têm prin­ cípio no próprio homem (Dis., I, 1). Este conceito foi transmitido durante toda a Idade Média. Orígenes foi o primeiro a defen­ dê-lo no mundo cristão, esclarecendo-o no sentido de que a L. consiste não só em ter em si a causa dos próprios movimentos, mas tam­ bém em ser essa causa. Esta definição, que se aplica a todos os seres vivos, privilegia o ho­ mem porque a causa dos movimentos, huma­ nos é aquilo que o próprio homem escolhe como móbil, enquanto juiz e árbitro das cir­ cunstâncias externas (Deprinc, III, 5). Consi­ derações análogas ocorrem em De libero arbítrio de S. Agostinho (cf., p. ex., I, 12; III, 3; III, 25). Em outro trecho ele diz: "Sente que a alma se movimenta por si só quem sente em si a vontade" (Dediv. quaesi, 83, 8). Alberto Mag­ no dizia que era livre o homem que é causa de si e que não é coagido pelo poder de outro (S. Th, II, 16, 1). E, para S. Tomás, "o livre-arbítrio é a causa do movimento porque pelo livre-arbítrio o homem determina-se a agir". S. Tomás acrescenta que, para existir L, não é necessário que o homem seja a primeira causa de si mes­ mo, como de fato não é, pois a primeira causa é Deus. Mas a Primeira Causa não impede a autocausalidade do homem (Ibid., I, q. 83, a. 1; cf. Contra Gent., II, 48). A última escolástica manteve esse conceito de L, aliás acentuan­ do a indiferença da vontade com relação aos seus possíveis determinantes. Duns Scot afirma que "a L. da nossa vontade consiste em poder decidir-se por atos opostos, seja depois, seja no mesmo instante" (Op. Ox., I, d. 39, q. 5, n. 16).

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Esta possibilidade de decidir-se por atos opos­ tos expressa a perfeita indiferença da vontade com relação a todas as motivações possíveis. Ockham, mesmo negando a possibilidade si­ multânea de atos opostos, também frisa a indi­ ferença absoluta da vontade: "Por L entendese o poder de, indiferente e contingentemente, propor coisas diferentes, de tal forma que pos­ so causar ou não o mesmo efeito, sem que haja diversidade alguma, a não ser nesse poder" (Qiiodl., I, q. 16). Mas Ockham não julga que seja possível demonstrar que a vontade é livre nesse sentido. A L. só pode ser conhecida por experiência, pois "o homem sente que, mesmo que a razão lhe dite alguma coisa, a vontade pode querê-la ou não" (Ibid, I, cj. 16). Buridan observava a esse respeito que a L. não consiste em poder deixar de seguir o juízo do intelecto, porque, se o intelecto reconhecesse com evi­ dência que dois bens são perfeitamente iguais, não poderia decidir-se nem por nenhum dos dois; consiste, sim, em poder suspender ou impedir o juízo do intelecto (In Hth, III, q. 1-4). E assim propunha as premissas do caso que se denominou O As.no de Buridan (v.): este, por não ter L, morre de fome na mesma condição em que o homem pode suspender o juízo e fazer arbitrariamente a escolha. O conceito de autropraguia ou causa sui ocorre com freqüência na filosofia moderna e contemporânea. "A substância livre" — diz Leibniz — "determina-se por si mesma, seguin­ do o motivo do bem que é percebido pela inte­ ligência, que a inclina sem necessitá-la: todas as condições da L estão compreendidas nestas poucas palavras" Çlhéod, III, § 288). Este mesmo conceito levou Kant a admitir o caráter "numênico" da liberdade: "Se tivermos de admitir a L. como propriedade de certas causas dos fenô­ menos, ela deve, em relação aos fenômenos como eventos, ter a faculdade de iniciarpor si isponte) a série de seus efeitos, sem que a ativi­ dade da causa precise ter início e sem que seja necessária outra causa que determine tal início" (Prol, § 53). A ''faculdade de iniciar por si um evento" é exatamente a causa sui do conceito tradicional de liberdade. Esta é também deno­ minada, no mesmo sentido, "espontaneidade absoluta', ou seja, atividade que não recebe outra determinação senão de si mesma (Crít. R. Pura, I. livro I, cap. III, Elucidação crítica). Mas, mesmo como causa sui ou espontaneidade ab­ soluta, "a causa livre, em seus estados, não pode ser submetida a determinações de tempo.

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não deve ser um fenômeno, deve ser uma coisa em si e só os seus efeitos devem ser jul­ gados fenômenos" (Prol, § 53). Kant quis conciliar a L. humana, como poder de autode­ terminação, com o determinismo natural que, para ele, constitui a racionalidade da natureza; por isso considerou a L. como númeno, pois aquilo que, de um ponto de vista (dos fenôme­ nos), pode ser considerado necessidade, de outro ponto de vista (do númeno), pode ser considerado L. Mas o conceito de L. não sofreu inovação alguma com esse artifício kantiano. Esse mesmo conceito é expresso por Fichte: "A absoluta atividade também é denominada L. A L. é a representação sensível da auto-atividade" (Sittenlehre, Intr., 7, em Werke, IV, p. 9). Esse mesmo conceito está hoje presente em todas as formas de indeterminismo (v.). Nas formas espiritualistas do indeterminismo (que são as mais difundidas), a autodeterminação é considerada uma experiência interior funda­ mental, uma espécie de criação "interior"; tor­ na-se a "autocriação do eu". Maine de Biran afirma: ''A L. ou a idéia de L, tomada em sua fonte real, nada mais é que o sentimento que temos de nossa atividade ou desse poder de agir, de criar o esforço constitutivo do eu" (Essai sur les fondements de Ia psychologie, 1812, em (Euvres, ed. Naville, I, p. 284). Con­ cepção análoga pode ser encontrada em Mikrokosmus de Lotze (1, pp. 283 ss.) e, com algu­ ma atenuação, em Nouvelle monadologie, de Renouvier (pp. 24 ss.). O espiritualismo fran­ cês, com Sécretan, Ravaísson, Lachelíer, Boutroux, Hamelin, atém-se estritamente a esse mesmo conceito. "O conhecimento das leis das coisas" — diz Boutroux — "permite-nos domi­ ná-las e assim, em vez de prejudicar nossa L, o mecanismo torna-a eficaz." Portanto, não so­ mente as coisas internas, como queria Epicteto, mas também as externas dependem de nós (De Vidée de loi naturelle, 1895, pp. 133, 143). Des­ se ponto de vista, o motivo não é a causa necessitante da ação humana: a vontade dá preferência a um motivo mais que a outro, e o motivo mais forte não o é independentemen­ te da vontade, mas sim em virtude dela (f.a contingence de loís de Ia nature, 1874, p. 124). O conceito bergsoniano de L. outra coisa não faz senão reexpor essa mesma tese. Bergson afirma que o conceito de L. por ele defendido situa-se entre a noção de L. moral, isto é, da "independência da pessoa perante tudo o que não é ela mesma", e a noção cie livre-arbítrio,

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segundo o qual aquilo que é livre "depende de si mesmo assim como um efeito depende da cau­ sa que o determina necessariamente". Contra esta última concepção, Bergson objeta que os atos livres são imprevisíveis e que, portanto, não se lhes pode aplicar a causalidade, segun­ do a qual causas iguais têm efeitos iguais. Por isso, a L. continua indefinível; e deve ser iden­ tificada com o processo da vida consciente, ou seja, com a duração real (Essais sur les données immédiates de Ia consciente, 1899, pp. 131 ss.). Mas na realidade o conceito de livre-arbítrio partia precisamente da imprevisibilidade dos fatos humanos (os chamados "futuros con­ tingentes") e da autocausalidacle da vontade. A doutrina bergsoniana nega a indiferença da vontade aos motivos, somente para sustentar que a vontade cria ou constitui os motivos e confere-lhes a força determinante de que dis­ põem. Mas dessa forma a autodeterminação continua sendo definição de liberdade; como tal permanece também no conceito (proposto

por F. LOMBARDI, La liberta dei volere e

Vindividuo, 1941, p. 192) de ato ou movimento que "se reproduz ou se produz continuamen­ te", levando consigo, nessa autoproduçâo. "todo o mundo em que atua". Não tem sentido diferente a doutrina de Sartre, para quem a L. é a escolha que o homem faz de seu próprio ser e do mundo. "Mas exatamente por se tratar de uma escolha, na medida em que é feita, essa escolha geralmente indica outras tantas como possíveis. A possibilidade dessas outras esco­ lhas não é explicitada nem proposta, mas é vi­ vida no sentimento de injusüficabilidade e ex­ pressa na absurdidade da minha escolha, con­ seqüentemente do meu ser. Assim, minha L. devora a minha L. Sendo livre, projeto o meu possível total, mas com isto prorjonho que sou livre e que posso aniquilar esse meu primeiro projeto e relegá-lo ao passado1' (Letre et le néant, p. 560). Mas uma escolha que não tem nada a escolher, que não é limitada por deter­ minadas condições, de escolha só tem o nome; na realidade, é uma autocriação gratuita. A doutrina de Sartre só faz levar ao extremo o antigo conceito de L. como autocausalidade. Recorrem a este conceito tanto o indeterminismo quanto o determinismo. O que o deter­ minismo nega é o mesmo que o indeterminismo afirrna: a possibilidade de uma causa sui. Vimos que o próprio Kant considerava-a impos­ sível no domínio dos fenômenos e a confiava ao

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domínio do númeno: foi o que fez também Schopenhauer, que considerou válidas as razões apresentadas por Priestley em sua Doutrina da necessidade filosófica (v. DETERMINISMO) e afir­ mou que a L. como autocausalidade é apenas da vontade como força numênica ou metafísica, da vontade como princípio cósmico (Die Welt, I, § 55). Em geral o determinismo consiste em julgar universal o alcance do princípio de cau­ salidade em sua força empírica e portanto em negar a causalidade autônoma. Neste sentido, Claude Bernard afirmava a inércia dos corpos vivos tanto quanto dos inorgânicos, que é a in­ capacidade de entrar em movimento por si mesmos: e nessa inércia percebia a condição para o reconhecimento do determinismo abso­ luto (Intr. à Vétude de Ia medicine exjKrimentale, 1865, II, 8). O equivalente político da concepção de L. como autocausalidade é a noção de L. como ausência de condições ou de regras e recusa de obrigações; numa palavra, anarquia. Na maio­ ria das vezes, esse conceito é utilizado como instrumento de polêmica, para negar a própria L. Platão foi o primeiro a fazer isso quando pre­ tendeu demonstrar que da demasiada L. conce­ dida pelo regime democrático nascem a tirania e a escravidão. De fato, a recusa constante de limites e restrições "torna os cidadãos tão sus­ cetíveis que, tão logo se lhes proponha algo que pareça ameaçar sua liberdade, eles se me­ lindram, rebelam-se e terminam rindo das leis escritas e não escritas, porque não querem de forma alguma submeter-se a nenhum coman­ do" (Rep., VIII, 563 d). A L. aqui é entendida (não por Platão, como veremos mais adiante) como ausência de medida, recusa de normas. O ilimitado poder sobre todas as coisas, que, para Hobbes, constitui a L. em estado natural (De eive, I, § 7), tem o mesmo significado. Filmer acreditava estar expressando o significa­ do da doutrina de Hobbes quando dizia: "A L. consiste em cada um fazer o que lhe aprouver, em viver como quiser, sem estar vinculado a lei nenhuma" (Observations upon Mr. Hobbess Leviathan, 1652, p. 55). Mas talvez a melhor e mais coerente expressão dessa noção de L. seja o Único de Max Stiner: o indivíduo que não tem causa fora de si, que é sua própria causa e causa de tudo. Nessa forma extrema a tese da L. anárquica raramente é defendida: na maioria das vezes é pressuposta como termo de polê­ mica, reduzindo-se a ela (em boa ou má-fé) as demais concepções de L. política.

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2- A segunda concepção fundamental identi­ fica L. com necessidade. Esta concepção tem estreito parentesco com a primeira. O conceito de L. a que se refere é ainda o de causa sui; contudo, como tal, a L. é não atribuída à parte, mas ao todo: não ao indivíduo, mas à ordem cósmica ou divina, à Substância, ao Absoluto, ao Estado. A origem dessa concepção está nos estóicos, para os quais, como vimos, "a L. con­ siste na autodeterminação e portanto só o sá­ bio é livre" (DIÓG. L, VII, 121). Mas por que o sábio é livre? Porque só ele vive em conformi­ dade com a natureza, só ele se conforma à or­ dem do mundo, ao destino (DIÓG. L, VII, 88; STOBEO, Flor, VI, 19; CÍCERO, Defato, 17). A L. do sábio coincide, portanto, com a necessidade da ordem cósmica. Crisipo, porém, procura fu­ gir a essa conseqüência distinguindo as causas perfeitas e principais das causas auxiliares e próximas; o destino age sobretudo através das primeiras, mas entre as últimas está o assenti­ mento que o homem dá às coisas e, conse­ qüentemente, sua ação. É como acontece com o cilindro: basta dar um empurrãozinho para que ele role por um plano inclinado: graças à natureza do cilindro e do plano, ele continuará rolando se for empurrado, mas para que isso aconteça é necessário o empurrão. Da mesma forma, a ordem das coisas é tal que, uma vez iniciadas, as ações continuam de determinado modo, mas, para que sejam iniciadas, é neces­ sário o assentimento do homem e esse assenti­ mento permanece em poder dele (CÍCERO, De fato, 18-19). Todavia para Crisipo também a L. é apenas adequação entre assentimento huma­ no e ordem cósmica: as causas auxiliares per­ tencem à ordem necessária do mundo tanto quanto as causas principais, e o empurrão que faz o cilindro rolar pertence a essa ordem tanto quanto a forma do cilindro e o plano sobre o qual ele rola. Desse ponto de vista, negar que o homem como tal é livre e afirmar que ele é livre enquanto manifestação da autodetermina­ ção cósmica ou divina são a mesma coisa. Tudo fica muito claro na formulação de Spinoza: "diz-se que é livre o que existe só pela necessidade de sua natureza e que é determi­ nado a agir por si só enquanto é necessário ou coagido aquilo que é induzido a existir e a agir por uma outra coisa, segundo uma razão exata e determinada" (Et., I, def. 7). Nesse sentido, só Deus é livre, pois só Ele age com base nas leis de sua natureza e sem ser obrigado por nin­ guém (Ibid, I, 17, corol. II), ao passo que o ho­

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mem, como qualquer outra coisa, é determina­ do pela necessidade da natureza divina e pode julgar-se livre somente enquanto ignora as cau­ sas de suas volições e de seus desejos (Ibid., I, ap.; II, 48). Contudo, poderá tornar-se livre se for guiado pela razão (Ibid., IV, 66, scol.), se agir e pensar como parte da Substância Infinita e reconhecer em si a necessidade universal dela {Ibid., V, VI, scol.). Em outros termos, o homem torna-se livre através do amor intelec­ tual por Deus (que é exatamente o conheci­ mento da necessidade divina): amor que é idêntico ao amor com que Deus se ama (Ibid., V, 36, scol.). Nenhuma inovação foi introduzida nesse ponto de vista pela elaboração e amplia­ ção feitas pela filosofia romântica. Schelling afirma explicitamente a coincidência entre li­ berdade e necessidade: "O Absoluto age por meio de cada inteligência, ou seja, sua ação é absoluta porquanto não é livre nem desprovida de L, mas as duas coisas ao mesmo tempo: ab­ solutamente livre e por isso também necessá­ ria" {System des transzendentalen Idealismus, IV, E). Em Investigações filosóficas sobre a es­ sência da L. humana (1809), Schelling trans­ fere para Deus, ou melhor, para a natureza ou fundamento de Deus, o ato com que o homem escolhe essa natureza ou fundamen­ to, pelo qual todas suas inclinações ou ações serão determinadas. A tendência a atribuir a L. ao Absoluto e a identificá-la com a necessida­ de explicita-se assim como característica típica da concepção romântica. Hegel contrapõe "o conceito abstrato de L", isto é, a L. como exi­ gência ou possibilidade, à "L. concreta", que é a "L. real" ou "a própria realidade" do espírito ou dos homens (Ene, § 482; Fil. do dír, § 33, Zusatz). Essa L real, realidade mesma do ho­ mem, é o Estado, que, exatamente por isso, é considerado "Deus real" (Fil. do dir, § 258, Zusatz). O Estado é "a realidade da L concreta" (Ibid, § 260). Isso significa que ele "é a realida­ de em que o indivíduo tem L. e a usufrui, mas só quando o indivíduo é ciência, fé e vontade do universal. Assim, o Estado é o centro dos outros aspectos concretos da vida: direito, arte, costumes, bem-estar. No Estado, a L. é realiza­ da objetiva e positivamente". Isto não significa que a vontade subjetiva do indivíduo se realize através da vontade universal, que seria, portan­ to, um meio para ela; significa que a vontade universal se realiza através dos cidadãos, que, nesse aspecto, são seus instrumentos. "O direi­ to, a moral e o Estado, e somente eles, são

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positiva realidade e satisfação da L. O arbí­ trio do indivíduo não é L. A L. que é limitada é o arbítrio referente ao momento particular das necessidades" (Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, I, p. 90). Essa coincidência entre L. e necessidade, que leva a atribuir a L. ape­ nas ao Absoluto ou à sua realização no mun­ do (o Estado), por um lado passou a caracte­ rizar todas as doutrinas de cunho romântico e por outro foi utilizada, fora do âmbito de tais doutrinas, na defesa do absolutismo esta­ tal e na recusa do liberalismo político. Foi aceita por Gentile e por Croce: o primeiro identificando a L. com a necessidade dialética do Absoluto (Teoriagenerale áellospiríto, XII, § 20), o segundo identificando a L. com "a criatividade das forças que se denominam in­ dividuais e coincidem com a unidade do Uni­ versal" (Stonografia e ídealità morale, p. 58). Mas também foi aceita por Martinetti, para quem a L. é espontaneidade da razão, e a es­ pontaneidade da razão é a própria necessida­ de, de tal forma que, em qualquer caso, iden­ tificam-se L e espontaneidade, espontaneida­ de e concatenação necessária (La liberta, 1928, p. 349). Com (uitra aparência, essa doutrina retorna em algumas manifestações da filosofia contemporânea, como p. ex. no realismo de Nicolai Hartmann e no existencialismo de Jaspers. Segundo Hartmann, a L. consiste no fato de que, em cada plano do ser, acrescenta-se ao determinismo dos planos inferiores o deter­ minismo daquele plano. Os planos, em outros termos, são contingentes, um em relação ao outro, porqyanto cada um tem tima forma es­ pecífica de determinismo não redutível à forma dos planos inferiores; a L. seria então o superdeterminismo de vim plano do ser em relação aos outros. Hartmann diz: "A L. em sentido po­ sitivo não é vim minus, mas vim plus na de­ terminação. O nexo causai não permite vim minus porque sua lei afirma que uma série de efeitos, uma vez em movimento, não pode ser detida de modo algum. Mas admite um plus — se ele existir — porque svia lei não afirma qvie aos elementos de determinação causai de um processo não se possam acrescentar outros elementos de determinação" (Etbik, p. 649). No plano do espírito, esse plus de determina­ ção é constituído pela teleologia própria do ho­ mem, qvie impõe aos processos cavisais fins extraídos da esfera dos valores. Mas é óbvio que, nesse sentido, a L. outra coisa não é senão o acréscimo de um determinismo "superior" aos

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determinismos "inferiores": é portanto a autode­ terminação dos planos, qvie se acrescenta â deter­ minação externa. No mesmo sentido Jaspers afirma a vinidade de L. e necessidade, expressa na forma "posso porque devo" (no sentido da necessidade de fato, Icb muss: Phii, II, pp. 186, 195). Nesse caso a L, autodeterminação, per­ tence â situação existencial total, cuja expres­ são é o evi. Continuamos no âmbito da concep­ ção que identifica L com autocausalidade de uma totalidade metafísica (política, social, etc), ovi seja, com a necessidade com que essa tota­ lidade se realiza. Essa doutrina por vezes foi defendida por filósofos ovi escritores de ten­ dências liberais, mas na realidade é a insígnia do antiliberalismo moderno. De fato, no plano metafísico, reconhece como sujeito de L. ape­ nas o ser, a substância, o mundo; no plano po­ lítico, apenas o Estado, a Igreja, a raça, o parti­ do, etc.; atribui à totalidade assim privilegiada vim poder de autocausalidade ou autocriação que é vim ovitro poder igualmente absoluto de coerçào sobre os indivíduos, considerados manifestações ovi partes dele. 3a Enqvianto as duas primeiras concepções de L. possviem vim núcleo conceituai comum, a terceira não recorre a esse núcleo porqvie en­ tende a L. como medida de possibilidade, por­ tanto escolha motivada ou condicionada. Nesse sentido, a L. não é autodeterminação absoluta e não é, portanto, vim todo ovi um nada, mas vim problema aberto: determinar a medida, a con­ dição ovi a modalidade de escolha qvie pode garanti-la. Livre, nesse sentido, não é quem é causa sui ovi quem se identifica com vima tota­ lidade que é causa sui, mas quem possui, em determinado gravi ovi medida, determinadas possibilidades. Platão foi o primeiro a enunci­ ar o conceito segundo o qual a L. consiste na "justa medida" (Leis, 693 e); ilustrou esse con­ ceito como mito de Er. Segundo esse mito, as almas, antes de encarnar, são levadas a escolher o modelo de vida a qvie posteriormente ficarão presas. "Para a virtude, anuncia a parca Láquesis, não existem padrões: cada vim terá mais ovi menos, conforme a honre ovi a negligencie. Cada um é autor de sua escolha; a divindade está fora de questão" (Rep., X, 617 e). Mas o importante é qvie essa escolha, cujo avitor é cada indivíduo e evija causalidade, portanto, não pode ser atribviída à divindade, é limitada, em um sentido, pelas possibilidades objetivas, pelos modelos de vida disponíveis, e, em ou­ tro, pela motivação, pois — como afirma Platão

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— "a maior parte das almas escolhe de acordo com os costumes da vida anterior" (Ibid., 620 a). A situação mítica aqui ilustrada é de L. finita, de escolha entre possibilidades determi­ nadas e condicionadas por motivos deter­ minantes. Semelhante L. é delimitada: 1Q pelo grau das possibilidades objetivas, sempre em número mais ou menos restrito; 2S pela ordem dos motivos da escolha, que podem restringir ainda mais, até a unidade, a ordem das possibi­ lidades objetivas. Portanto, esse conceito de L. é uma forma de determinismo, ainda que não de necessarismo: admite a determinação do homem por parte das condições a que sua ati­ vidade corresponde, sem admitir que a partir de tais condições a escolha seja infalivelmente previsível. Esse conceito de L. foi completamente esquecido na Antigüidade e na Idade Média devido ao predomínio do conceito de L. como causa sui. Quando reapareceu, nos primórdios da Idade Moderna, assumiu, em oposição à no­ ção de livre-arbítrio, a forma de negação da L. de querem de afirmação da L. de fazer. Nessa forma é expressa por Hobbes. Este, identifican­ do a vontade com o apetite, afirma que não se pode não querer aquilo que se quer (não se po­ de não ter fome quando se tem fome, não ter sede quando se tem sede, etc), mas que é pos­ sível fazer ou não fazer aquilo que se quer (co­ mer ou não comer quando se tem fome, etc). Existe, pois, uma L. de fazer, não uma L. de querer (Dehom, II, § 2; Decorp, 25, § 13). Essa doutrina foi substancialmente aceita por Locke, que definia a L. como "o fato de se estar em condições de agir ou de não agir se­ gundo se escolha ou se queira" (Ensaio, II, 21, 27). Mas em Locke essa doutrina se complica e confunde, pois por um lado ele distingue apeti­ te de vontade, que julga constituída por um poder de escolha, preferência ou inibição (sus­ pensão do desejo, ibid., II, 23, 48), e por outro admite que tal escolha, preferência ou inibiçào é necessariamente determinada pelo motivo (que inicialmente ele identifica com o desejo do bem e depois com o mal-estar pró­ prio do desejo, ibid., II, 21, 31 ) • Portanto, é di­ fícil saber como, desse ponto de vista, se pode­ ria falar em L. de fazer ou de não fazer, visto que a escolha ou a preferência dada a uma ou a outra dessas alternativas é necessariamente determinada. De qualquer forma, a intenção da doutrina de Locke é clara: tende, por um lado,

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a garantir o determinismo dos motivos, negan­ do o livre-arbítrio como autocausalidade da vontade, e por outro a garantir a L. do homem contra o determinismo rigoroso. Locke con­ seguiu expressar muito melhor esse conceito no terreno político ao negar, em oposição a Filmer, que a L. consistisse em cada um fazer o que bem entendesse; e afirmou: "A L. natural do homem consiste em estar livre de poderes superiores sobre a terra, em não estar submeti­ do à vontade ou à autoridade legislativa de nin­ guém e em possuir como norma própria ape­ nas a lei natural. A L. do homem em sociedade consiste em não estar sujeito a outro poder legislativo além do estabelecido por consenso no Estado, nem ao domínio de outra vontade ou à limitação de outra lei além da que esse poder legislativo tiver estabelecido de acor­ do com a confiança nele depositada" (Two Treatises of Government, II, 4, 22). No Estado natural a L. consiste na possibilidade de esco­ lha limitada pela norma natural, que é uma norma de reciprocidade, segundo a qual devese atribuir aos outros as mesmas possibilidades atribuídas a si mesmo (Ibid., II, 2, 4). Em so­ ciedade, a L. consiste na possibilidade de es­ colhas delimitadas por leis estabelecidas por um poder para isso designado pelo consenso dos cidadãos. Em outros termos, a L. política supõe duas condições: Ia existência de normas que circunscrevam as possibilidades de escolha dos cidadãos; 2a possibilidade de os próprios cidadãos fiscalizarem, em determinada medida, o estabelecimento dessas normas. Desse ponto de vista, o problema da L. política é um proble­ ma de medida: a medida na qual os cidadãos devem participar da fiscalização das leis e a medida na qual tais leis devem restringir as possibilidades de escolha dos cidadãos. Esse sempre foi o problema do liberalismo clássico, ou seja, de qualquer liberalismo autêntico, seja ele antigo ou moderno. Montesquieu repropôs a doutrina da L. política de Locke em IJesprit des lois (1748, XI, 3-4). Hume e o Iluminismo reto­ maram a doutrina da L. filosófica. O primeiro afirmava: "Por L. só podemos entender um po­ der de agir ou de não agir, segundo a determi­ nação da vontade; isso significa que, .se decidir­ mos ficar parados, poderemos ficar, e se deci­ dirmos andar, também poderemos andar " (Inq. Cone. Underst, VIII, 1); ao mesmo tempo, res­ saltava o determinismo dos motivos, sem o qual as leis e sanções seriam inoperantes. O iluminismo, através de Voltaire, retomou essa

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mesma doutrina: L. de indiferença é "uma ex­ pressão sem sentido", pois significaria que no homem há "um efeito sem causa". Somos livres para fazer quando temos o poder de fazer (Dictionnairephilosophique, art. "Liberte"). Kant utilizou o conceito de L. finita para definir a L. jurídica ou política: ela é "a faculdade de não obedecer a outras leis externas a não ser as leis às quais eu possa dar meu assentimento" (Zum ewigen Frieden, II, art. 1, ns 1). A concepção de determinismo não necessarista consolidouse na orientação empirista. Stuart Mill mostrou que o fatalismo brota de um conceito de neces­ sidade que não se reduz ao de determinação. Ela significa apenas "uniformidade de ordem e capacidade de previsão". Mas para os defenso­ res da necessidade "é como se houvesse um vínculo mais forte entre as voliçòes e suas cau­ sas: como se, ao dizerem que a vontade é go­ vernada pelo equilíbrio dos motivos, estives­ sem dizendo algo além da afirmação de que, conhecendo-se os motivos e nossa habitual suscetibilidade a eles, fosse possível predizer a maneira como iremos agir" (Logic, VI, 2, § 2). Dewey traduz essa doutrina para os termos do pragmatismo, ou seja, do empirismo orientado para o futuro: "As vezes se afirma que, se é possível demonstrar que a deliberação determi­ na a escolha e é determinada pelo caráter e pe­ las condições, é porque não existe liberdade. É como dizer que uma flor não pode produzir fruto porque provém da raiz e do caule. A questão não diz respeito aos antecedentes da deliberação da escolha, mas às suas conse­ qüências. Qual é sua característica? Dar-nos o controle das possibilidades futuras que se abrem para nós. Esse controle é o núcleo da nossa liberdade. Sem ele, somos empurrados de trás. com ele caminhamos na luz" (Human Naiure and Conduct, 1922, p. 311). A L. de que Heidegger fala como "transcendência" e "proje­ ção" do homem no mundo também é uma L. finita, porque condicionada e limitada pelo mun­ do em que se projeta (Vom Wesen des Guindes, 1949, IlI, trad. it., pp. 64 ss.). Essa doutrina da L. consolidou-se e tornouse mais clara e coerente quando, a partir da dé­ cada de 40, a ciência desistiu do ideal de causa­ lidade necessária e de previsão infalível. O predomínio do conceito de condição sobre o de causa, da explicação probabilista sobre a explicação necessarista, que se delineou na físi­ ca atômica como efeito do princípio de indeterminaçào (v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO), tornou

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obviamente anacrônica a conservação do es­ quema necessarista para a explicação dos acon­ tecimentos humanos. Ao mesmo tempo, dei­ xou de ter sentido a oposição entre ciência e consciência, entre a exigência de causalidade própria da primeira e o testemunho de L. dada pela segunda. Por um lado. vimos que a cons­ ciência nào dá demonstrações de L. absoluta e que tampouco pode mostrar ser válida qual­ quer demonstração nesse sentido; por outro lado, vimos qtie a ciência nào exige a causali­ dade necessária que autorizaria a previsão infa­ lível dos eventos, mas um determinismo condicionante que autorize a previsão provável dos eventos. A conclusão é que o conceito de L. como autocausaçào (que ainda aparece em Bergson e Sartre) é tão pouco sustentável quanto o conceito de determinismo como ne­ cessidade. Correspondentemente, no plano po­ lítico o conceito de L. como poder de fazer o que apraz e o conceito de L. como poder abso­ luto da totalidade a que o homem pertence (Estado, Igreja, raça, partido, etc.) são igual­ mente mistificadores. Hoje, assim como nos tempos em que a noção no mundo moderno foi formulada pela primeira vez, a L. é uma questão de medida, de condições e de limites; e isso em qualquer campo, desde metafísico e psicológico ao até econômico e político. Hoje se destaca o fato de que a L. humana é "si­ tuada, enquadrada no real, uma L. sob con­ dição, uma L relativa" (Gi RVITCH, Détermismes sociaux et liberte hnmaine, 1955, p. 81). Ex­ pressa-se por vezes esse conceito dizendo que a L. não é uma escolha, mas uma "possibilida­ de de escolha", ou seja, uma escolha que, se feita, poderá ser sempre repetida em determi­ nada situação (ABBAGNANO, Possibilita e liber­ ta, 1956. passim). Dessa forma, pode-se dizer que a L. está presente em todas as atividades humanas organizadas e eficazes, notadamente nos procedimentos científicos cujas técnicas de verificação consistem exatamente em possibili­ dades de escolha no sentido acima. Válido é o procedimento que pode ser eficazmente em­ pregado por qualquer um, nas circunstâncias apropriadas: é uma "possibilidade de escolha" sempre ao alcance de qualquer um que se encontre nas condições oportunas. Analoga­ mente, as L. políticas são possibilidades de es­ colha que asseguram aos cidadãos a possibili­ dade de escolher sempre. Um tipo de governo não é livre simplesmente por ter sido escolhido pelos cidadãos, mas se, em certos limites, per­

LIBERTARISMO

mitir que os cidadãos exerçam contínua possi­ bilidade de escolha, no sentido da possibilida­ de de mantê-lo, modificá-lo ou eliminá-lo. As chamadas "instituições estratégicas da L". co­ mo a L. de pensamento, de consciência, de im­ prensa, de reunião, etc, têm o objetivo de ga­ rantir aos cidadãos a possibilidade de escolha no domínio científico, religioso, político, social, etc. Portanto, os problemas da L. no mundo moderno não podem ser resolvidos por fórmu­ las simples e totalitárias (como seriam as .suge­ ridas pelos conceitos anárquicos ou necessaristas), mas pelo estudo dos limites e das con­ dições que, num campo e numa situação deter­ minada, podem tornar efetiva e eficaz a possi­ bilidade de escolha do homem. LIBERTARISMO (in. Libertarianism). O mes­ mo que anarquismo. Libertário (in. Libertaríaii; fr. Libertaire): o mesmo que anárquico (v. ANAKQULSMO). LIBERTINISMO (fr. Libertinisme). Corrente anti-religiosa que se difundiu sobretudo em ambientes eruditos da França e da Itália na pri­ meira metade do séc. XVII; constitui a reação — em grande parte subterrânea — ao predo­ mínio político do catolicismo naquele período. Não tem idéias filosóficas bem determinadas, e a ela pertenceram: católicos sinceramente liga­ dos à Igreja, mas que achavam impossível acei­ tar integralmente sua estrutura doutrinária, co­ mo Gassendi, Gaffarel, Boulliau, Launoy, Marolles, Monconys; protestantes emancipados de qualquer preocupação religiosa, como Diodati, Prioleau, Sorbière e Lapeyrère; e céticos de­ clarados que se remetem a doutrinas do pa­ ganismo clássico ou pelo menos à forma por elas assumida no humanismo renascentista, co­ mo Guyet, Luillier, Bouchard, Naudé. Quillet, Trouiller, Bourdelot, Le Vayer. Portanto, a pro­ pósito do L, não é possível falar em corpo doutrinai coerente, mas sim de certo número de temas comuns, que podem ser resumidos da seguinte forma: 1Q Negação da validade das provas da exis­ tência de Deus e da possibilidade de entender e defender os dogmas fundamentais do cristia­ nismo. 2° Negação da moral eclesiástica e, em geral, da moral tradicional, e aceitação do prazer como guia ou ideal para a conduta da vida. O significado da palavra libertino no uso corrente deriva exatamente desse aspecto. 3" Aceitação da doutrina da ordem necessá­ ria do mundo, na forma como havia sido elabo­

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LIBERTISMO

rada e defendida pelos aristotélicos do Renasci­ mento: por conseguinte: a) negação da liber­ dade humana; b) negação da imortalidade da alma; c) negação da possibilidade do milagre, interpretado como fruto da imaginação ou co­ mo fato natural fora do comum. Estes aspectos doutrinais ligam o L. ao aristotelismo do Renas­ cimento. 4a Tese de que a religião é, em geral, um produto do embuste das classes sacerdotais. 5Q Aceitação do princípio da ''razão de Esta­ do", isto é. do maquiavelismo político. 6Q Destruição de crenças e práticas religio­ sas, sua ridicularização e, por vezes, sua tradu­ ção em imagens obscenas. 7o Fideísmo, que é a aceitação declarada, sincera ou não, das crenças tradicionais, em oposição às conclusões da razão, segundo o princípio da "dupla verdade" do aristotelismo renascentista (e do averroísmo medieval). 8e Caráter aristocrático atribuído ao saber, em particular à reflexão filosófica, e limites im­ postos à sua difusão e ao seu uso, para evitar o choque com os interesses do Estado e das insti­ tuições a ele ligadas. Este último aspecto, mais que qualquer outro, marca a diferença radical entre L. e lluminismoiv.), que consiste em romper os freios da crítica racional, em praticá-la em todos os campos (portanto também no campo político, além do religioso), na vontade de comunicar os resultados dela a todos os homens e de utilizálos para a melhoria cia vida humana. Contudo não há dúvida de que o L. é um elo importante entre o espírito do Humanismo e o espírito do Iluminismo, Seu melhor historiador, R. Pintarei, assim resume seu pensamento sobre ele: "A se acreditar — como tudo leva a crer — que o surto do espírito filosófico do fim do séc. XVII é em grande parte continuação do Renasci­ mento do séc. XVI, também será preciso con­ cluir que o L. tríunfatite dos Fontenelle e dos Bayle não teria existido sem o L. militante dos Le Vayer, Gassendi e Naudé, que também foi o L. sofredor, combatido, embaraçado por es­ crúpulos e temores, que só chegou a expres­ sar-se renegando-se" (Le libertinage érudit dans lapremière moitiéclu XVII" siècle, 1943, I, p. 576). LIBERTISMO (fr. Libertisme). Este termo foi empregado por Bergson (em Revue de Métaph. et deMorale, 1900, p. 661) em lugar da expressão mais comum "Filosofia da liberdade" para indicar o espiritualismo francês do séc.

LIBIDO

XIX, no qual se insere a própria doutrina de Bergson. LIBIDO. Termo que, em Freud e nos psica­ nalistas, serviu para designar a tendência se­ xual em sua forma mais geral e indeterminada. Freud diz: "Análoga à fome em geral, a L. de­ signa a força com que o instinto sexual se ma­ nifesta, assim como a fome designa a força com que se manifesta o instinto de absorção de alimentos" (Einführung in die Psychoanalyse, cap. 21; trad. fr., p. 336). Nesse sentido, as pri­ meiras manifestações da L. ligam-se a outras funções vitais: no lactente, p. ex., o ato de su­ gar provoca um prazer diferente do prazer pro­ vocado pela absorção do alimento, e esse pra­ zer passa a ser buscado por si mesmo. Freud afirma que a zona buco-labial é "erógena" e considera que o prazer propiciado pelo ato de sugar é sexual. Nesse sentido, a L. pode nada ter em comum com a esfera genital. Por isso, Freud acha que nada se ganha ao chamar a L. de instinto, como fez Jung (Lbíd, pp. 442 ss.; cf. C. G. JUNG, Wandlungen und Symbole derLibido, 1925). LICEU (gr. AÚKeiov). Esse foi o nome dado à escola de Aristóteles, ou Perípato, devido ao território em que estava situada, consagrado a Apoio Lício. Depois da morte de Aristóteles, a escola foi dirigida por Teofrasto de Êreso, até a morte deste (288 ou 286 a.C), que a orientou principalmente para a organização do trabalho científico e para as investigações pessoais. Teofrasto foi sucedido por Fstráton de Lâmpsaco, que a dirigiu por 18 anos; a seguir, a escola continuou seu,trabalho através de numerosos outros representantes dos quais nos chegaram poucas notícias e fragmentos. No primeiro sé­ culo antes de Cristo, Andrônico de Rocies pu­ blica as obras exotéricas de Aristóteles e dá iní­ cio a uma nova forma de atividade filosófica: o comentário aos textos do mestre. Nessa ativida­ de salientou-se especialmente Alexandre de Afrodísia, que viveu aproximadamente no ano 200 d.C. (cf. WKURLI, Die Schule des Aristóteles, Texte undKommentar, Basiléia, pp.1944 ss.). LIMITAÇÃO (lat. Limitatio; in. Limitation; fr. Limitation; ai. Limitation, Begrenzung; it. Limitazione). Na lógica do séc. XVII, começouse a chamar desse modo aquilo que na lógica medieval era chamado de restrição (resttictio, cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 11.01): a re d u ­ ção de um enunciado a um significado mais restrito. Segundo Jungius: "Diz-se que um enun­ ciado sofre L. quando é substituído por outro

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LIMITE

enunciado que declare que o predicado con­ vém ao sujeito mediante uma de suas partes ou acidente, e não imediatamente. P. ex.: "o etíope é branco' é limitado por 'o etíope é branco nos dentes'" (Lógica hamburguensís, 1638, II, 8, 8). Wolff expressa-se no mesmo sentido, mas faz a distinção entre proposição restritiva e limitada, porquanto a L. é assumida ab intrínseco, isto é, no próprio sujeito, como no caso do enunciado sobre o etíope, ao passo que a restrição é assu­ mida ab extrinseco, como no enunciado "o ar é leve no que diz respeito aos fluidos" (Log., § 1106). Kant deu o nome de L. à terceira cate­ goria da qualidade, que é "a realidade unida à negação" (Crít. R. Pura, § 11) e corresponde ao juízo infinito, proposição que afirma um predicado negativo (Lbid, § 9) (v. INFINITO, Juízo). Fm todos estes casos a L. era considerada uma restrição aplicada ao sujeito da proposição. Para W. Hamilton, entretanto, a restrição é apli­ cável ao predicado e tem o nome de L. somente em expressões como "A virtude é a única no­ breza" (Lectureson Logic, 2- ed.., p. 262). LIMITE (gr. népaç; lat. Limes; in. Limit; fr. Limite; ai. Grenze; it. Limite). Aristóteles distinguiu e enumerou perfeitamente os diferentes significados desse termo (Met, V, 17, 1022 a 4 ss.), que são os seguintes: 1- O último ponto de uma coisa, ou seja, o primeiro ponto além do qual não existe parte alguma da coisa e aquém do qual estão todas as partes dela. Hoje esse conceito é expresso dizendo-se que o L. é um ponto que não pode ser atingido; ou que é uma grandeza tal que a diferença entre ela e os elementos da série infi­ nita a que pertence é ou permanece inferior a qualquer grandeza atribuível (cf. PEIRCE, Coll Pap, 4.117; JORGENSEN, A Treatise ofFormal Logic, III, pp. 87 ss.). 2- A forma de uma grandeza ou de uma coisa que possui grandeza. 3'-' O término: tanto o terminus adquem, ou ponto de chegada, quanto, por vezes, o terminus a quo, ou ponto de partida. 4e A substância ou essência substancial de uma coisa, visto ser esse o L. de conhecimento da coisa, portanto da própria coisa. Nesse sen­ tido, L. significa condição. Para Aristóteles, a condição do conhecimento e do ser da coisa é a substância ou essência necessária (v. ESSENCIA; SUBSTÂNCIA).

O primeiro significado do termo está liga­ do ao uso que Kant fez dessa palavra; "Nos

LÍNGUA

seres extensos, L. sempre pressupõe um es­ paço que está além de certa superfície deter­ minada e que a inclui em si; a fronteira, po­ rém, não precisa disso, mas é a negação pura que qualifica uma grandeza, porquanto não é uma totalidade absoluta e perfeita. Ora, de al­ gum modo nossa razão vê em torno de si um espaço para o conhecimento das coisas em si, ainda que nunca possa ter conceitos determi­ nados sobre elas e se limite puramente aos fe­ nômenos" (Prol., § 57). Neste sentido, Kani de­ nominou conceito-limite o conceito de númeno, que serve "para circunscrever as preten­ sões da sensibilidade, sendo, pois, de emprego puramente negativo" (Crít. R. Pura; Anal. dos princ, cap. 3; cf. COISA EM SI). O que possui L, nesse sentido, é finito no significado 4 do termo. LÍNGUA (lat. Língua; in. Language, Tongue; fr. I.angue; ai. Sprache; it. Língua). Um conjunto organizado de signos lingüísticos. A distinção entre L. e linguagem foi estabelecida por Saussure, que definiu a L como "conjunto dos costumes lingüísticos que permitem a um sujeito compreender e fazer-se compreender" (Cours de linguistiqitegénérale, 1916, p. 114). Neste sentido, L, por um lado, é sistema ou es­ trutura (v.) e, por outro, supõe uma "massa fa­ lante" que a constitui como realidade social. Podem-se distinguir duas espécies de L: Ia his­ tóricas, cuja massa falante é uma comunidade histórica: p. ex. italiano, inglês, francês, etc; 2a artificiais, cuja massa falante é um grupo que se distingue por uma competência específica; são as L. das técnicas específicas (às vezes cha­ madas impropriamente de linguagens); p. ex.: L. matemática, L. jurídica, etc. LINGUAGEM (gr. kóyoç; lat. Sermo; in. Lunguage, Speech; fr. Language; ai. Sprache, it. Linguaggio). Em geral, o uso de signos intersubjetivos, que são os que possibilitam a co­ municação. Por uso entende-se: ly possibilida­ de de escolha (instituição, mutação, correção) dos signos; 2Q possibilidade de combinação de tais signos de maneiras limitadas e repetíveis. Este .segundo aspecto diz respeito às estruturas sintáticas da L., enquanto o primeiro se refere ao dicionário da L. A moderna ciência da L. tem cada vez mais insistido (como veremos) na importância das estruturas lingüísticas, ou seja, das possibilidades de combinações delimitadas pela L. Elementos como "Sócrates", "homem", "é", "e", "todos", "não", etc, são todos palavras, isto é, signos intersubjetivos, mas só podem fa­

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zer parte de um discurso com uma fLinçào de­ terminada: só podem combinar-se com os outros signos em modos limitados e reconhe­ cíveis. A L. distingue-se da língua, que é um con­ junto particular organizado de signos intersubjetivos. A distinção entre L. e língua foi estabe­ lecida por Ferdinand de Saussure, que a definia da seguinte forma: "A língua é um produto so­ cial da faculdade de L. e ao mesmo tempo um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício des­ sa faculdade nos indivíduos. Tomada em con­ junto, a L. é multiforme e heteróelita; sobrepos­ ta a domínios diversos — físico, fisiológico e psíquico — também pertence ao domínio indi­ vidual e ao domínio social; não se deixa classi­ ficar em categoria alguma de fatos humanos porque não se sabe como determinar a unida­ de" (Cours de linguistíque générale, 1916, p, 15). Do ponto de vista geral ou filosófico, o pro­ blema da L. é o problema da intersubjetividade dos signos, do fundamento desta intersubjetividade. O problema da "origem" da L, discutido nos sécs. XVII e XIX, é uma de suas formas; as duas soluções típicas são apenas dois modos de garantir a intersubjetividade dos signos lingüísticos. Dizer que a L. tem origem em con­ venções significa simplesmente que essa intersubjetividade é fruto de um acordo, de um contrato entre homens, e dizer que a L. se ori­ gina da natureza significa simplesmente que essa intersubjetividade é garantida pela relação entre o signo lingüístico e a coisa ou com o estado subjetivo a que ele se refere. É possível distinguir quatro soluções fundamentais para o problema da intersubjetividade da L. e, portan­ to, quatro interpretações de L: Ia L. como con­ venção; 2- L. como natureza; 3a L- como esco­ lha-, 4- L. como acaso. As três primeiras inter­ pretações já haviam sido distinguidas e caracte­ rizadas por Platão. As primeiras duas têm em comum a afirma­ ção do caráter necessário da relação entre o signo lingüístico e seu objeto (qualquer que seja). A tese convencionalista, ao afirmar a per­ feita arbitrariedade de todos os usos lingüísti­ cos, portanto a impossibilidade de confrontálos e corrigi-los, reconhece em todos a mesma validade. A tese do caráter natural da L. é leva­ da, por outro lado, a admitir as mesmas conclu­ sões. Uma vez que todos os signos lingüísticos são tais por natureza e cada um é suscitado ou produzido pelo objeto que expressa, todos são

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igualmente válidos, e é impossível confrontálos, modificá-los ou corrigi-los. Ambas as teses levam à conseqüência de que é impossível di­ zer o que não é, porque dizer o que não é sig­ nifica não dizer. Megáricos e cínicos, que, na fi­ losofia grega dos tempos de Platão, representa­ vam as duas teses em questão, tinham em co­ mum um pressuposto fundamental extraído (como relata Aristóteles) do princípio segundo o qual "nada pode ser predicado de uma coisa salvo seu próprio nome", princípio que não ex­ prime a necessidade da relação entre o signo lingüístico e seu objeto (Mel, V, 29. 1024 b 33; para os megáricos, em particular Estílpon; cf. PLUTARCO, AdColot, 23, 1120 a). Será fácil mos­ trar que essas características das duas doutrinas necessaristas da L. também são encontradas nas formas assumidas por tais doutrinas no mundo moderno. Ia A interpretação da L. como convenção teve origem com os eleatas. A inefabilidade do Ser (como necessário e único) devia levá-los a ver nas palavras nada mais do que "etiquetas das coisas ilusórias", como diz Parmênides (/>. 19, Diels). Esta concepção parece ser comparti­ lhada por Empédocles (Fr. 8-9, Diels), mas foi só Demócrito que a justificou com argumentos empíricos. Demócrito de fato fundamenta a tese da convencionalidade em quatro argu­ mentos: homonímia, em virtude da qual coisas diferentes são designadas pelo mesmo nome; diversidade de nomes para uma mesma coisa; possibilidade de mudar os nomes; e a falta de analogias na derivação dos nomes (Fr. 26, Diels). Os sofistas, com Górgias, insistiam na diversidade entre os nomes e as coisas e na conseqüente impossibilidade de se comunicar o conhecimento das coisas através dos nomes. "A L." — dizia Górgias — "não manifesta as coisas existentes, da mesma forma que uma das coisas existentes não manifesta sua nature­ za a outra" (Fr. 3, 153, Diels). Já dissemos que Estílpon afirmava a tese da impossibilidade de tuna coisa ser predicado de outra, o que ex­ pressa a necessidade de referência do signo lingüístico ao objeto. Platão aludia aos megáricos quando dizia: "Será que preferes a manei­ ra como Hermógenes e muitos outros falam quando dizem que os nomes são convenções e que são claros para aqueles que os estipularam e conhecem as coisas às quais correspondem, e que essa é a justeza dos nomes, de tal forma que não importa se a convenção é feita segun­ do o que já se tenha estabelecido ou o contrá­

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rio, como p. ex. chamar de grande o que hoje chamamos de pequeno ou de pequeno o que hoje chamamos de grande?" {Crat, 433 c.) Este convencionalismo puro, que afirma a pura arbitrariedade da referência lingüística, desapareceu a partir de Aristóteles e só reapa­ rece no pensamento contemporâneo. Aristóte­ les foi o primeiro a inserir entre o nome e o seu designado a afeição da alma, a represen­ tação ou conceito mental (idéia ou palavra inte­ rior ou qualquer outra denominação que venha a ter em seguida) que cinde e articula a relação entre o nome e o seu designado. A inserção desse termo permite reconhecer, ao mesmo tempo, o convencionalismo da L. e a necessi­ dade dos seus significados. Aristóteles de fato afirma que "um nome é um vocábulo semânti­ co segundo convenção", entendendo com "por convenção" que "nada é nome por natureza, mas apenas depois de se tornar símbolo" (De interpr, 2, 16 a 18; 26-28). As palavras, como sons vocais ou sinais escritos, não são as mes­ mas para todos; no entanto, referem-se às "afei­ ções da alma que são as mesmas para todos e constituem imagens de objetos que são os mes­ mos para todos" (Ibid., I, 16 a.3-8). Tem-se por­ tanto que: Ia os objetos são os mesmos para todos; 2g as afeições da alma, como imagens dos objetos, são as mesmas para todos; 3Q as palavras escritas ou faladas não são as mesmas para todos. Desta forma a relação palavra-imagem mental é convencional, ao passo que a re­ lação imagem mental-coisa é natural. A primei­ ra pode mudar sem qtie mude a segunda, e é apenas a imutabilidade ou necessidade da se­ gunda que determina a estrutura geral da L, que depende da "união e separação" dos sig­ nos, da forma como eles se unem e se sepa­ ram, e não do convencionalismo dos sinais. Se­ gundo Aristóteles, isso estabelece o caráter privilegiado da L. apofântica, em que têm lu­ gar as determinações de verdadeiro e falso, segtindo a união ou a separação dos signos reproduza ou não a união ou a separação das coisas. Aristóteles não nega que existam discur­ sos não apofânticos, como p. ex. a prece (Ibid., 4, 17 a 2), mas, privilegiando o discurso apofântico, faz dele a verdadeira L, pela qual as outras se moldam mais ou menos ou a partir da qual devem ser julgadas. De fato, a poéti­ ca e a retórica, que se ocupam da L. não apofântica. são tratadas por Aristóteles em co­ nexão com a analítica. Ora, a L. apofântica nada mais tem de convencional: suas estruturas

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são naturais e necessárias porque são as mes­ mas do ser, que ela revela. Esse convencionalismo aparente ou coxo que se pode combinar com a tese do caráter apofântico da L. é a forma assumida na Idade Média e na Idade Moderna. O nominalismo medieval retoma exatamente nessa forma a tese convencionalista. Ockham, p. ex., distin­ gue os signos "instituídos arbitrariamente para significar várias coisas", ou seja, as palavras, dos signos naturais, que são os conceitos (Summa log, I, 14), e essa posição só faz repro­ duzir substancialmente a de Aristóteles. É idên­ tica a posição de Hobbes, que, ao mesmo tem­ po em que insiste na arbitrariedade do signo lingüístico, diz que ele é "uma nota com a qual se pode revocar à alma um pensamento seme­ lhante a um pensamento passado" (De corp., 2, 4). Essa correspondência entre palavras e pensamentos é tomada por Locke como defini­ ção da função sígnica cia L: "As palavras que, por natureza, se ajustavam a esse objetivo fo­ ram empregadas pelos homens como signos de suas idéias: não por alguma conexão natural que exista entre determinados sons articulados e certas idéias, pois nesse caso haveria uma só L. entre os homens, mas por uma imposição voluntária, mediante a qual determinada pala­ vra é aceita arbitrariamente como marca de certa idéia" (Ensaio, III, 2, 1). A inserção do "signo natural", "pensamento" ou "idéia" entre a palavra e seu designado descaracteriza a tese convencionalista e, como vimos, aproxima-a da tese oposta, chegando a confundi-las. Essa tese reduz-se de fato à afirmação da arbitrariedade do signo lingüístico isolado, da palavra enten­ dida como som, mas não se estende ao uso propriamente dito das palavras (no qual consis­ te a L), portanto às regras desse uso. Eqüivale a dizer. p. ex., que no jogo de xadrez é indife­ rente chamar a torre de peão ou peão de torre, mas que é necessário que certa peça (peão ou torre) seja usada de uma forma e que outra peça (torre ou peão) seja usada de outra ma­ neira. A L. é o jogo de xadrez que, nesse caso, é declarado necessário: o convencionalismo das palavras, ou seja, dos simples sons articula­ dos, não diminui essa necessidade. Portanto, o restabelecimento da tese clássica do convencionalismo só ocorre com a elimina­ ção de qualquer intermediário entre o sinal lingüístico e seu designado; em outras palavras com a declaração de arbitrariedade, não dos

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sons isolados, mas do uso dos sons, ou seja, das regras que o limitam. Essa foi a posição de Wittgenstein, em sua segunda forma (Philosophische Untersuchungen). Wittgenstein admitiu a arbitrariedade, portanto a equivalência, de to­ dos os " jogos lingüísticos" em uso, admitindo que tais jogos podem ter caracteres e regras muito diferentes, de tal modo que chamá-los em conjunto de "L." significa apenas que eles têm inter-relaçòes diferentes (Philosopbical Investígations, I, 65). Desse ponto de vista, há um retorno das teses clássicas do convencio­ nalismo; em primeiro lugar, a impossibilidade de retificar a L. razão pela qual ela deve ser sempre declarada verdadeira e perfeita ou, co­ mo Wittgenstein prefere, em ordem: "Está claro que todo enunciado da nossa L. está em ordem assim como é. Isso quer dizer que não estamos perseguindo um ideal como se os nossos enunciados ordinariamente vagos ainda não ti­ vessem atingido um sentido irrepreensível e como se uma L. perfeita ainda estivesse para ser construída. Por outro lado, parece claro que onde há sentido deve haver ordem perfeita. Assim, deve haver ordem perfeita na mais vaga das proposições" (Ibid, 1, 98). Desse ponto de vista, o ideal lingüístico, a língua perfeita é algo já existente no uso. "O ideal" — diz Wittgenstein — "deve ser encontrado na realidade. En­ quanto não virmos como se encontra nela, não entenderemos a natureza desse deve. Achamos que deve estar na realidade porque achamos que já o vimos" (Ibid., 101). Pode-se dizer que esse ponto de vista coincide com o de Carnap. O "princípio de tolerância" ou "de convencionalidade", estabelecido por Carnap, expressa a perfeita equivalência dos sistemas lingüísticos. "Em lógica" — afirma Carnap — "não existe mo­ ral. Cada um pode construir como quiser a sua lógica, isto é, a sua forma de linguagem. Se quiser discutir conosco, deverá apenas indicar como quer fazê-lo e apresentar regras sintáti­ cas, em vez de argumentos filosóficos" (Lógica/ SyntaxofLanguage, § 17). Desse ponto de vis­ ta, a construção de uma L. ideal ou perfeita é feita com base naquilo que um certo tipo de !.. é de fato. Carnap diz: "Os fatos não determi­ nam se o emprego de uma certa expressão está correto ou errado, mas apenas a freqüên­ cia com que leva ao efeito para o qual tende e coisas desse gênero. Uma questão sobre o que está certo ou errado deve sempre referir-se a um sistema de regras. A rigor, as regras que re­ lacionaremos não são as regras da L. B, como

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ela é de fato, mas constituem antes um sistema lingüístico em correspondência com B, que de­ nominaremos sistema semântico B-S. A L . B pertence ao mundo dos fatos (...), mas o siste­ ma lingüístico B-S é algo construído por nós; tem todas as propriedades que estabelecemos por meio de regras e somente elas. Todavia, não construímos B-S arbitrariamente, mas le­ vando em consideração os fatos de B. Portanto, podemos formular a afirmação empírica de que a L. Besta, em certa medida, em harmonia com o sistema B-S" (Foundations ofLogic and Matbematics. I, 4). Por isso, segundo Carnap, o sistema semântico B-S tem as seguintes pro­ priedades: Ia constitui o critério com base no qual se pode julgar sobre a correção ou não da L. /?; 2-- as regras de B-S vão são convencionais porque são escolhidas com base nos dados de tato fornecidos por B. Carnap, portanto, admite simultaneamente a tese do convencionalismo cias L. e a tese da naturalidade dos sistemas se­ mânticos, isto é, das L. perfeitas. 2- A doutrina segundo a qual a L. existe "por natureza", e que a relação entre a L. e o seu objeto (seja qual for) é estabelecida pela ação causai deste último, também se caracteriza pelo reconhecimento da necessidade da relação se­ mântica. Enquanto a doutrina anterior afirmava que a relação semântica é sempre exata porque em qualquer caso é instituída arbitrariamente, a doutrina em exame afirma que é sempre exata porque escapa ao arbítrio e é instituída pela açào causai do objeto. Pode-se dizer que essa tese remonta a Heráclito (Fr. 23, Diels; 114. Diels), mas forexposta explicitamente pelos cí­ nicos, especialmente por Antístenes, cujo pon­ to de vista é expresso por Crátilo no diálogo homônimo de Platão: "As coisas têm nomes por natureza e artífice de nomes não é qual­ quer uni, mas só quem olha para o nome que por natureza é próprio de cada coisa e que é capaz de expressar sua espécie em letras e síla­ bas" (Crat, 390 d-e). Sabemos outrossim que Antístenes definira a L. dizendo ser ela "aquilo que manifesta o que era ou é" (DIÓG. L, VI, 1, 3), e que extraía dessa doutrina as mesmas conseqüências que os megáricos, com Estílpon, extraíam da tese do convencionalismo: "é im­ possível contradizer ou mesmo dizer o falso" (AKLSIÚIKLKS, Met., V, 29, 1024 b 33). Esta for­ ma de Antístenes é apenas uma das formas que a doutrina em exame pode assumir e assu­ miu ao longo de sua história. Essas formas são distinguíveis com base no tipo de objeto que se

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toma como designado pela L. Todas as formas dessa doutrina asseveram que a L. é apofântica, ou seja, que de certa forma revela seu objeto; diferem ao determinar o tipo de objeto que a L. revelaria de forma primordial ou privilegiada. Assim, é possível distinguir: a) a teoria da interjeiçãa, h) a teoria da onomatopéia; c) a teoria da metáfora; d) a teoria da imagem lógica. a) A teoria da interjeição, que Max Müller (Lectures on tbe Science of Language, 1861, cap. 9, trad. it., p. 363) chamou de teoria do puh-piih, foi exposta pela primeira vez por Epicuro.- "As palavras não são em princípio criadas por convenção, mas é a própria nature­ za humana que, influenciada por determinadas emoções e visando a determinadas imagens, leva os homens a emitir o ar da forma apropria­ da a cada emoção e imagem. As palavras são inicialmente diferentes devido à diversidade dos povos e dos lugares, mas depois tornam-se comuns, para que seus significados sejam me­ nos ambíguos e mais rapidamente compreensí­ veis" (DIÓG.. L, X, 75-76). Lucrécio expressava mais sucintamente o mesmo conceito: "A natu­ reza obrigou os homens a emitir os vários sons da L, e a utilidade levou a dar a cada coisa o seu nome" (De rei: nat., V, 1027-28). Em tem­ pos modernos essa doutrina foi retomada por Condillae (Sur lorigine des connaissances humaines, 1746, 1, §§ 1 ss.) e exposta de forma mais brilhante por Rousseau: "A primeira L. do homem, a L. mais universal e mais enérgica, a única da qual ele necessitava antes que fosse preciso convencer homens reunidos, é o grito natural. Por ser arrancado por uma espécie de instinto nas ocasiões prementes, para implorar socorro nos grandes perigos ou alívio nos ma­ les violentos, esse grito não tinha grande utili­ dade na vida comum, em que reinam senti­ mentos mais moderados. Quando as idéias dos homens começaram a estender-se e multipli­ car-se, estabelecendo-se comunicação mais es­ treita entre elas, quando foram buscados sinais mais numerosos e uma L. mais ampla, multipli­ caram-se as inflexões da voz e acrescentaramse os gestos, que, por natureza, são mais ex­ pressivos e cujo sentido depende menos de de­ terminações anteriores" (De Vinégalité parmi les hommes, I; cf. também o ensaio "Sobre a origem das línguas", em CEiwres, 1877, vol. I). Mas o problema que se opõe a essa doutrina é o da passagem de uma língua constituída por gritos simples ou interjeiçòes para uma língua

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objetiva, constituída por termos gerais ou abs­ tratos. Mesmo no mundo moderno não faltou quem visse na interjeiçào a origem dos sons que, gradualmente purificados, se transforma­ ram em verdadeira linguagem. Era o que pen­ sava, p. ex., O. Jespersen (Language, Its Na­ ture, Development and Origin, 1923, pp. 418 ss.); a mesma tese foi apresentada com mais ri­ gor por Grace de Laguna, que procurou definir melhor a passagem da interjeiçào para a L. como um processo de objetivação, graças ao qual as expressões emotivas vão sendo pouco a pouco substituídas por aspectos percebidos das situações efetivas (Speech, its Functíon and Development, 1927, pp. 260 ss.). Mais difícil de compreender é exatamente esse processo de objetivaçào e purificação dos gritos emotivos: mesmo porque até as doutrinas que a eles re­ correm evidenciaram e reconheceram explici­ tamente a diferença entre as palavras e as inter­ jeições (que não se distinguem dos gritos ani­ mais), além do fato de as palavras se afirmarem em prejuízo das interjeições. b) A teoria da onomatopéia, que Max Müller (Lectures cm the Science of Language, 1861, cap. 9) denominou teoria do bau-bau, afirma serem as raízes lingüísticas imitações dos sons naturais. Essa teoria era conhecida por Platão, que a critica observando que, "neste caso, aqueles que imitam o balido das ovelhas, os cantos dos galos e as vozes dos demais animais dariam nome aos animais cuja voz imitam" (Crat., 423 c). Essa teoria foi defendida por Herder, em Tratado sobre a origem da lingua­ gem (1772): ele considerou os sons naturais (p. ex., o balir de um cordeiro) como os sinais que a alma utiliza para reconhecer o objeto em questão. "O balido, notado como sinal distinti­ vo, passa a ser o nome do cordeiro. O sinal compreendido, graças ao qual a alma se reflete claramente numa idéia, é a palavra, li o que é a L. humana, senão o conjunto de tais palavras?" (Werke, ed. Suphan, V, pp. 36-37). A principal objeção a essa doutrina foi levantada pelos glossologistas: não é verdade que a origem de todas as raízes lingüísticas seja onomatopaica. Nem na formação dos nomes dos animais, em que se poderia presumir maior eficácia do prin­ cípio onomatopaico, ele tem realmente função dominante. Contra ele encontramos ainda a ob­ jeção filosófica, oposta por Platão, de que uma coisa é a imitação de um som e outra coisa é a imposição de um nome. Contudo, o princípio da onomatopéia foi muitas vezes utilizado pe­

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los glossologistas para explicar a formação das palavras originais nesta ou naquela língua e sua distribuição em grupos distintos. O próprio Cassirer admite como primeira fase da expres­ são lingüística uma etapa mimética, na qual "os sons parecem aproximar-se da impressão sensorial e reproduzir sua diversidade com a maior fidelidade possível" (Phil. der symbolischem Formen, 1923, 1, cap. 2, § 2). c) A terceira forma da doutrina da naturalida­ de da L. considera-a como metáfora. As teses ca­ racterísticas em que se expressa essa doutrina são as seguintes: 1- a L. não é imitação, mas criação (o que distingue esta teoria da ono­ matopaica); 2a a criação lingüística não leva a conceitos ou a termos gerais, mas a imagens, que são sempre individuais ou particulares; 3a o que a criação lingüística expressa não é um fato objetivo ou racional, mas subjetivo ou sentimen­ tal; e este é propriamente o objeto da lingua­ gem. Com tais características, essa teoria foi expressa pela primeira vez por Viço, para quem "o primeiro falar" não foi "um falar segundo a natu­ reza das coisas", mas "um falar fantástico para substâncias animadas, na maior parte imagina­ das divinas" (Scienza nuova, II, Da lógicapoética). Os primeiros poetas, segundo Viço, deram "os nomes às coisas a partir das idéias mais par­ ticulares e sensíveis, que são as duas fontes, esta da metonímia e aquela da sinédoque" (Ibíd., Corolários acerca dos tropos, 2). Conseqüente­ mente, os primeiros homens conceberam a idéia das coisas "por caracteres fantásticos e mu­ dos de substâncias animadas" e entenderam-se "com atos ou gestos que tivessem relações na­ turais com as idéias (como, p. ex., ceifar três ve­ zes ou mostrar três espigas para significar três anos)". Segundo Viço, isso é facilmente obser­ vado na língua latina, "que formou quase todas as palavras por transferências de naturezas, por propriedades naturais ou por efeitos sensíveis", mas "geralmente a metáfora constitui o maior corpo das línguas em todas as nações" (Ibíd., Corolários acerca dos tropos, 2). Essa teoria é expressa de modo bem mais imaginosa por Hamann, para quem a L, que é ''o órgão e o cri­ tério da razão", não é uma simples coleção de signos, mas "o símbolo e a revelação da própria vida divina" (Schriften, II, 19, 207, 216). No séc. XIX a teoria da metáfora, mesmo sem a postura metafísica ou teológica com que aparece em Hamann, é a característica comum das doutrinas que foram chamadas do din-don, pelo caráter ressonante da natureza humana. Assim, Max

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Müller afirmava que a L. é o produto de uma "faculdade criativa que dá a cada impressão, na maneira como penetra pela primeira vez no cérebro, uma expressão fonética", e que os fonemas assim criados sào depois selecionados e combinados naturalmente através do processo histórico de formação da L. (Lecture. cit., 9). O caráter metafórico da L, consistindo no recurso a termos ambíguos ou equívocos, favorece (de acordo com esta teoria) a origem e a formação do mito. Müller disse: "Na L humana é impossí­ vel exprimir idéias abstratas a não ser metafori­ camente, e não é exagero afirmar que todo o dicionário da religião antiga era composto por metáforas (...), sendo pois uma fonte contínua cie equívocos, muitos dos quais consagrados na mitologia e na religião do mundo antigo" (Contributions on the Science of Mythology, 1897, I, 68 ss.). Esti conexão da L. com o mito já fora feita por Viço, que, ademais, não equiparam a formação do mito a uma doença da L. As dou­ trinas modernas do mitoiv.) negam esta equi­ paração, mas mantêm a conexão do mito com a L Fm sentido análogo, Croce estabeleceu a conexão da L. com a arte em geral. Para ele, a L. tem natureza fantástica ou metafórica, estan­ do, pois, mais estreitamente ligada à poesia do que ã lógica. "O homem" — afirma Croce — "fala a todo instante como o poeta, porque, assim como o poeta, exprime suas impres­ sões e seus sentimentos na forma que chama­ mos de conversação ou familiar, e que não está separada por um abismo das outras formas que denominamos prosaicas, prosaico-poéticas, nar­ rativas, épicas, dialogadas, dramáticas, líricas, musicais, cantadas, e assim por diante" (Breviario di estética, 1913, II). Contudo, há um abis­ mo existente (e Croce afirma-o mais tarde) en­ tre a expressão poética, que aplaca e transfigu­ ra o sentimento (sendo por isso um conhecer), e os outros tipos de expressão (sentimental ou prosaica), que, estreitamente vinculados ao sentimento e á idéia, não realizam a transfigu­ ração própria da expressão autêntica e, portan­ to, nem podem chamar-se L. Para Croce, são apenas "sons articulados" (Lapoesia, 1936, pp. 9 ss.). Essa conclusão, à qual Croce — não sem coerência — levou a teoria em exame, mos­ tra os limites dessa mesma teoria, que é inca­ paz de explicar a passagem da L. metáfora pa­ ra a L. conceituai, da L. que é grito, gesto ou outro "caráter poético" (segundo a expressão de Viço) para a L. que é estrutura, organização e regra.

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d) A quarta forma é a da naturalidade da L, que a considera como expressão ou imagem da essência ou do ser das coisas. Essa doutrina é bem antiga, pois sua primeira manifestação é a teoria de Antístenes, segundo a qual^ "L. é aquilo que manifesta o que era ou é" (DIÓG. L, VI, 1, 3). Os estóicos, por sua vez, afirmaram que "falar significa pronunciar um som que sig­ nifica o objeto pensado" (SKXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 80). A característica dessa doutrina é que a atenção não se volta tanto para signos ou palavras, mas para suas conexões sintáticas, para as regras de seu uso nas proposições e nos raciocínios, portanto para as estruturas for­ mais da L. A esta linha pertence propriamente a teoria que denominamos de convencionalismo aparente ou coxo, segundo a qual os signos lingüísticos são escolhidos arbitrariamente, mas seus modos de combinação não são arbitrários: são naturais e necessários porque correspon­ dem aos modos de combinação dos conceitos mentais, que, por sua vez, correspondem aos modos de combinação das coisas. Essa teoria, desenvolvida por Aristóteles, foi reproduzida várias vezes pelo empirismo moderno e con­ temporâneo (v. acima). Nesta forma, caracteri­ za-se pela inserção, entre o signo lingüístico e a coisa, do conceito mental através do qual o sig­ no lingüístico, em seus modos de combinação, passa a participar da necessidade objetiva das coisas. Fundamento análogo tem a afirmação da naturalidade da L, feita por Fichte em Dis­ cursos à nação alemã (1808), em que se afir­ ma que "existe uma lei fundamental segundo a qual todo conceito assume um som através dos órgãos; um som que é aquele e não outro" (IV, trad. it., Allason. p. 78), ou a afirmação de Hegel de que "a L. confere ás sensações, intuiçòes ou representações uma segunda existên­ cia superior à existência imediata; uma existên­ cia universal, que tem vigor no domínio cia re­ presentação" (Ene, § 459). Mas a tese da naturalidade da L. só foi reto­ mada em sua forma rigorosa e, portanto, em seus princípios clássicos, pela lógica matemáti­ ca contemporânea. Esta de fato reafirmou o princípio da correspondência termo a termo entre os signos lingüísticos e as coisas, princí­ pio que os cínicos expressaram dizendo que a L. é aquilo que manifesta o que uma coisa era ou é. Este princípio, que faz da L. a reprodução pietórica da realidade ou, em geral, do ser, foi inicialmente defendido por Russell, mas sua formulação mais rigorosa está em Tractalus

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logico-philosophicus (1922) de Wittgenstein. O princípio era exposto por Russell da seguinte forma: "Em toda proposição que podemos apreender (ou seja, não só aquelas cuja verda­ de ou falsidade podemos julgar, mas todas as que pudermos imaginar), todos os constituin­ tes são realmente entidades das quais temos conhecimento direto" ("On Denoting", 1905, agora em Logic and Knouiedge, 1956, p. 56; cf. Mysticism and Logic, 1918, pp. 219, 221; The Problema ofPhilosophy, 1912, p. 91). Isso signi­ fica que a cada termo empregado nas proposi­ ções deve corresponder um termo ou entidade objetiva da qual se tenha conhecimento dire­ to (acquaintance), ou que deve existir uma correspondência termo a termo entre os ele­ mentos que entram na composição das propo­ sições e as entidades de que se tem conheci­ mento direto. Russell observa a propósito que "devemos atribuir um significado às palavras que usamos se desejamos falar com algum sig­ nificado e não por simples tagarelice, e o signi­ ficado que atribuímos às palavras deve ser algo do qual já tenhamos conhecimento" (Problems o/Pbii. p. 9D. Esta é simplesmente a reexposiçào da tese de Antístenes. segundo a qual fa­ lar significa dizer algo, mais precisamente algo que é. de tal forma que não é possível dizer o que não é; acrescenta-se a isso que o que é, ou seja, as entidades correspondentes aos termos da L, deve ser "diretamente conhecido". Russell baseava sua teoria da denotação nesse princípio: segundo ela, "quando existe alguma coisa de que não temos conhecimento imedia­ to, mas apenas uma definição com frases denotantes. as proposições nas quais essa coisa é introduzida por meio de uma frase denotante não contêm realmente a coisa como constituin­ te, mas os constituintes expressos pelas diver­ sas palavras da frase denotante" ("On Denoting", Ibid, pp. 55-6). Assim, p. ex., como não temos experiência direta do espírito dos outros, se A 6 um desses espíritos, não sabemos que "A possui esta e aquela propriedade", mas sa­ bemos apenas que "Fulano de Tal tem um es­ pírito com esta ou aquela propriedade". Toda­ via, se pudesse haver uma L. ideal, ela deveria conter unicamente elementos constitutivos últi­ mos, de tal forma que nela "só haveria uma palavra, e não mais de uma, para cada objeto sim­ ples, e as coisas que não fossem simples seriam expressas por uma combinação de palavras, cada uma das quais ali representaria uma coisa simples" ("The Phil. of Logical Atomism", Logic

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andKnowledge, pp. 197-98). Segundo Russell, a L. de Principia mathematica visa a ser a L. dessa espécie: nela só existe sintaxe, sem voca­ bulário (Ibid., p. 198). E isso a equipara à lin­ guagem proposta pelos doutos da Academia de Lagado, de que fala Swift em Viagens de Gulliver. a proposta era abolir as palavras porque, "desde que as palavras são apenas nomes para as coisas, seria mais cômodo as pessoas leva­ rem consigo as coisas necessárias para expressar os diversos assuntos sobre os quais pretendes­ sem conversar". Por isso, aqueles sábios carre­ gavam sacos repletos de objetos e conversa­ vam mostrando-se os objetos (Gullivefs Traveis, III. cap. 5). O mesmo ideal foi expresso por Wittgenstein (primeira maneira) com fórmulas simples e precisas. Eis algumas: "O nome significa o objeto: o objeto é o seu significado" ( Tractatus, 3.203). "A configuração dos signos simples na proposição corresponde a configuração dos objetos na situação" (Ibid., 3.21). "O nome 6 o representante do objeto na proposição" (Ibid.. 3.22). Wittgenstein expressou com toda a clare­ za desejável o conceito de linguagem (que ou­ tro não é senão "a totalidade das proposições". Ibid, 4.001) como representação pictórica do mundo. "A primeira vista" — diz ele — "não parece que a proposição, assim como está, p. ex., impressa no papel, seja uma imagem da realidade de que trata. Mas a notação musical, à primeira vista, tampouco parece uma imagem da música, assim como nossa escritura fonética (em letras) não parece uma imagem da nossa L. falada. No entanto, esses símbolos demonstram ser — inclusive no sentido comum do termo — imagens daquilo que representam" (Ibid, 4.001). Boa parte do empirismo lógico e. em geral, da filosofia contemporânea compartilha ou com­ partilhou dessa doutrina da L. como imagem lógica do mundo. A objeção fundamental a ela foi bem expressa por Max Black: "Não há mo­ tivo para a L. 'corresponder' ou 'assemelhar-se' ao mundo', assim como não há motivo para assemelhar-se ao mundo o telescópio com que o astrônomo o estuda" (Language and Philo­ sophy, V, 4; trad. it., p. 173). É interessante constatar que no outro ex­ tremo da filosofia contemporânea, o metafí­ sico ou ultrametafísico, tem-se conceito aná­ logo da linguagem. Heiclegger certamente não admite a correspondência termo a termo entre os elementos da L. e os elementos do ser, mas afirma com a mesma veemência de

LINGUAGEM W ittg en stein o caráter ap o fân tico da L. em re la­ ção à to ta lid ad e do ser. N esse sen tid o , d e n o m i­ nou a L. de "casa do ser". E acrescen to u : "Falar em casa do ser n ão significa ab so lu ta m e n te transferir a im agem da casa p ara o ser; u m dia, p artin d o de u m p en sa m e n to a d e q u a d o d a es­ sência do ser, será possível ch eg ar a co m p re e n ­ d er o q u e significam casa e h ab itar ("Brief ü b e r d en H u m an ism u s", em Platos Lehre von der Wahrheit, 1947, p. 112). E m o u tro s term o s, a L. é a rev elação im ediata do ser, e o h o m em tem acesso ao ser através da L. 3a A terceira d o u trin a fu n d am en tal da L. in­ terp reta-a co m o u m instrumento, co m o p ro d u ­ to de escolhas re p e tid a s e rep etíveis. Essa d o u ­ trina foi ex p o sta pela p rim eira v e z p o r P latão. D iante d as d u as teses o p o stas — co n v e n c io n a lid ad e e n atu ra lid a d e da L. — , P latão evita d e ­ cidir-se em favor de u m a d as d uas. E m Crãtilo afirm a: ''G ostaria q u e, na m ed id a do p ossível, os n o m es fossem se m e lh a n te s às coisas, m as te m o q u e — co m o diz H e rm ó g e n e s — essa atração d a sem elh a n ç a n os lev e p ara u m te rre ­ no esco rreg ad io e, assim , seja n ecessário lan çar m ão ta m b é m de u m m eio m ais g ro sseiro , q u e é a co n v e n ç ã o , p ara certificar-nos da ex atid ão dos nom es" (Crat, 435 c). Para Platão, os n om es d os n ú m e ro s, p. ex., dificilm ente p o d eriam ser c o n sid e rad o s n atu rais no sen tid o d e s e ­ rem sem elh a n tes ao q ue indicam . M as se n em a co n v e n ç ã o n em a n atu re za , ou seja, se n em a d esse m e lh a n ç a n em a sem elh a n ç a en tre a palavra e a coisa co n stitu em o significa­ d o, o q u e é e n tã o q u e o constitui? O u so. P latão diz: "Se o u so n ão é u m a co n v e n ç ão , s e ­ ria m elh o r dizer q u e n ão é a sem elh a n ç a a m a­ neira co m o as p alav ras significam , m as an tes o uso: este, ao q u e p are ce , p o d e significar tan to p o r m eio da sem elh a n ç a q u a n d o da d e s se m e ­ lhança" (Crat., 435 a-b). P latão e x p resso u aq u i u m a te se fu n d am en tal da lingüística m o d ern a: é so m e n te o em p re g o q u e esta b e le ce , ou m e ­ lhor, co n stitu i o significado das palavras. M as essa te se p re ssu p õ e outra, do caráter in stru ­ m en tal da L, q u e P latão ex p resso u ao dizer q u e a L. é u m in stru m en to e q u e, co m o to d o in staim en to , d ev e ajustar-se ao seu objetivo (Crat, 387 a). D esse p o n to de vista, o u so é a esco lh a re p e tid a ou co n v alid ad a q u e levou a forjar d ete rm in a d o in stru m en to lingüístico; e, assim co m o to d o s os o u tro s in stru m en to s, os lingüísticos ta m b é m p o d e m resu ltar m ais ou m en o s perfeitos e a d e q u a d o s à sua finalidade. Justifica-se assim aqu ilo q u e, para P latão, é a

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LINGUAGEM te se filosófica fu n d am en tal acerca da L: a fali­ b ilid a d e da L, a p o ssib ilid ad e d e dizer o q ue n ã o é (Sof., 261 b ). A ca ra c te rístic a c o m u m d a s d u as d o u trin a s p re c e d e n te s, co m o v im o s, é a n eg aç ão d essa tese. A tese do co n v e n c io n a lis­ m o neg a q u e a L. p ossa incluir o erro p o rq u e u m a co n v e n ç ã o só p o d e ter o m esm o v alo r de u m a outra. A te se da n atu ra lid a d e neg a q u e a L p o ssa incluir o erro p o rq u e d ev e re co n h e cer q u e a L. re p resen ta , de q u a lq u e r form a, aq u ilo q u e é, esta n d o p o rtan to sem p re no ca m p o da v e rd a d e . A m bas as teses ex cluem q u e a L. p o ssa ser ju lg ad a ou q u e o ju íz o so ­ b re a co rreç ão ten h a sen tid o . A o co n trário , a tese da L. co m o o p e ra ç ã o , u so , esco lh a, in­ clui essa p o ssib ilid ad e, p ois q u e v ê nela o p ro d u to d e o p e ra ç õ e s d e stin ad as a co n sti­ tuir u m in stru m en to eficaz e n ão co n sid era in­ falível o su cesso d essas o p e ra ç õ e s. O funda­ m en to objetivo d essa p o ssib ilid ad e é q u e "o d iscu rso n asce da u n ião re cíp ro c a d as e sp é ­ cies" (Sof, 259 d), e q u e as esp écies n ão estão to d as u n id a s n em to d as d esu n id as, m as algu­ m as podem ju n tar-se e o utras n ão. A s possibili­ d ad es d a L, p o rtan to , são lim itadas p elas p o s­ sibilid ades de co m b in aç ão d as e sp écies ou for­ m a s d o s e r (Sof., 2 6 2 c ) . Essa p o sição de P latão foi re p ro d u zid a por Leibniz: ''Sei q u e se co stu m a dizer nas escolas e em to d o lu g ar q u e os significados d as palavras são arbitrários (ex instituto), e é v e rd a d e que n ão são d e te rm in a d o s p o r u m a n ecessid ad e natu ral, m as são p o r força de ra zõ es naturais, n as q u ais o acaso d e se m p e n h a algu m p ap el, e às v e z e s p o r ra zõ es m orais, n as q uais se inclui a esco lh a" (Nouv. ess, III, 2, 1). H erd e r partia da m esm a c o n sid e raç ão p relim in ar e definia co m o ab stração a esco lh a q u e se faz de um a q u a lid ad e do o bjeto co m a finalid ad e de darlh e u m n o m e. "O h o m e m p õ e em ação a refle­ x ão n ão só q u a n d o p e rc e b e vivida e claram en­ te to d as as q u a lid ad e s de u m objeto, m as tam ­ b ém q u a n d o p o d e re c o n h e c e r u m a ou mais d elas co m o q u a lid ad e s distintivas. (...) E com q u e m eio s efetua tal reco n h e cim e n to ? Através da sua ca p a c id a d e de ab stração" (Werke, ed. S up h an , V , p. 35). Foi a partir d essa tradição q u e H u m b o ld t fo rm u lo u a d o u trin a q u e depois ex erceria tanta influência so b re a m oderna ciência da L. D esse p o n to de vista, a form ação d o s in stru m en to s ling ü ístico s é a fo rm ação de co n ex õ e s, de symploké (com o dizia Platão); p o rtan to , a L. n ão é u m c o m p lex o atom ístico de p alav ras, m as é d iscu rso o rg an izad o . Hum-

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boldt expressava claramente este conceito: 'Não podemos conceber que a L. tenha início na designação dos objetos por meio de pala­ vras e que proceda, num segundo momento, à organização dessas palavras. Na realidade, o discurso não é composto por palavras que o precedem, mas, ao contrário, as palavras se ori­ ginam do discurso" ("Eínleítung zum KawiWerk", Werke, VII, 1, pp. 72 ss.). Portanto, a co­ municação não se realiza a partir da palavra, mas das frases, e só estas são os instrumentos particulares que formam a L. (Ibid, pp. 169 ss.). Essas idéias dominaram e continuam dominan­ do a ciência da L. Encontram-se incorporadas nos conceitos utilizados por essa ciência, como p. ex. o de fonema. Fonema é "a unidade míni­ ma dotada de características sonoras distinti­ vas"; é, portanto, uma unidade de significado, não de som (BLOOMFIELD, Language, 1933, 5. 4). Cada língua escolhe seus fonemas, mas essa escolha não pode ser qualificada de "casual" ou "arbitrária", nem de "natural" ou "necessá­ ria", porque uma escolha condiciona ou limita as outras, e cada grupo ou série delas é condi­ cionada pela exigência de eficácia comunicati­ va da L. Portanto, os fonemas podem ser redu­ zidos a tipos, que a ciência da L. se propõe de­ terminar. A determinação desses tipos fornece o fundamento das escolhas que constituem as estruturas fundamentais da L. e assim explica, até certo ponto, essas estruturas, sem justificar sua perfeição ou sua infalibilidade. Na lingüísti­ ca contemporânea, a concepção de L. como instRimento é defendida principalmente pelos funcionalistas, que consideram a L. como "ins­ trumento de comunicação", através do qual a experiência humana se analisa em monemas que têm um conteúdo semântico ou uma for­ ma fônica: "esta, por sua vez, articula-se em unidades distintas e sucessivas, os fonemas, cuja natureza e cujas relações variam de uma língua para outra" (MARTINET, A Functional Vieiv of Language, 1962, cap. I). 4- A quarta concepção da L, que denomina­ mos de acaso, na realidade é uma especifica­ ção da terceira, ou melhor, é uma perspectiva de estudo aberta pela terceira concepção. Essa perspectiva é constituída pelo estudo estatístico da L. Sabe-se que as ações individualmente mutáveis e imprevisíveis apresentam uniformi­ dade e constância se consideradas em grande número. Certamente não se pode prever se certa pessoa vai casar-se o ano que vem, mas é

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possível prever com suficiente aproximação o número de pessoas que se casarão no próximo ano, em determinada comunidade, com base em estatísticas dos últimos anos. Da mesma for­ ma, podem ser estudadas as freqüências estatís­ ticas com que determinadas expressões ocor­ rem numa comunidade suficientemente ampla para que possam ser fixadas certas constantes estatísticas da L. e tomá-las como base para o estudo das estruturas lingüísticas. Com certeza tal pesquisa estatística não é indispensável para o estudo global da L. Também há outro méto­ do, de observação sociológica, no qual o obser­ vador lingüístico, participando da vida de uma comunidade, pode descrever os usos lingüísti­ cos. Esse, aliás, é o método até agora mais ado­ tado pelos glossologistas, que em raras oca­ siões, quase exclusivamente ao tratarem com obras literárias, recorreram ao método estatísti­ co. A propósito, pode-se lembrar a obra de Lutoslawski sobre o estilo de Platão (The Origin and Groivth ofPlato's Logic, 1897), que conse­ guiu pôr em bases novas e mais seguras a cro­ nologia dos textos do filósofo. Mas hoje não fal­ tam propostas para o uso sistemático do méto­ do estatístico com vistas à solução de todos os problemas da lingüística estrutural. G. Herdan diz a propósito: "Se considerarmos a língua como a soma dos signos lingüísticos mais a probabilidade de que eles se repitam no discur­ so individual, portanto nos vários modos como o evento sígnico pode ocorrer em conjunto com as relativas freqüências dos diferentes sig­ nos no uso efetivo, a concepção corresponderá a todas as exigências daquilo que se chama po­ pulação estatística de tais eventos, ou seu uni­ verso estatístico. Cada enunciado individual (parole, na terminologia de Saussure) serve de amostra dessa população" (Language as Choice and Change, 1956, 1.3). Desse ponto de vis­ ta, se examinarmos textos diferentes de uma mesma língua, descobriremos, por exemplo, que as freqüências relativas com que determi­ nado fonema foi empregado pelos escritores são mais ou menos as mesmas. Isso autoriza a considerá-las como flutuações da probabilida­ de constante desse fonema naquela L. Isso sig­ nifica que o falante ou escritor obedece a leis aleatórias, e que só quando se consideram gran­ des massas de formas lingüísticas é que se tem a impressão de determinação causai em seu uso. Em outros termos, aqui estaria ocorrendo o que acontece na física, para a qual o determinismo

LINGUAGEM, ANALISE DA

macroscópico é apenas o efeito de uma consi­ deração em massa dos eventos microscópicos. Para os defensores dessa concepção de L, por­ tanto, aquilo que, do ponto de vista intuitivo, aparece na L. como relação de causa e efeito (a determinação das escolhas lingüísticas), do pon­ to de vista quantitativo é apenas acaso. Assim, segundo essa teoria, as diferenças entre os textos não são explicadas pela intenção dos falantes ou pelo determinismo causai, mas pelas leis es­ tatísticas aleatórias (HERDAN, op. cit., 1.4; C. E. SHANNON e W. WEAVKR lhe Mathematical Iheory ofCommunication, Urbana, 1949). Esse ponto cie vista, por um lado, possibili­ tou as pesquisas da gramática gerativa. que é "um sistema cie regras que, de modo explícito e bem definido, atribuam descrições estruturais aos enunciados" (CHOMSKY, Aspects ofTheory ofSyntax, 1965, p. 8). Por outro lado, possibili­ tou o uso de modelos (v. MODELO) que algu­ mas vezes são considerados constituintes da própria realidade sistemática cia L. (SAPIR, Language, 1921) e outras vezes constntctos, ou seja, estruturas hipotéticas oportunamente construí­ das (RKVZIN, ModelsofLanguage. 1966, § 2). V. ESTRl i'1l iKAS; ESTRl "TI IRAL1SMO.

LINGUAGEM, ANÁLISE DA. V. EMP1R1SMO

I.ÓCilCO. LINGUAGEM FECH ADA. V. LINGUAGF.MOBJETO. LINGUAGEM FORM ALIZADA. V SISTEMA LOGÍSTICO.

LINGUAGEM-OBJETO (in. Object-language). Esta noção surge em correspondência com a de metalinguagem (v.) toda vez que uma lin­ guagem é considerada "semanticamente fecha­ da", por não conter, além cie suas expressões, os nomes dessas expressões ou termos (como "verdadeiro" e "falso") que a elas se refiram. Neste caso. é necessário distinguir a linguagem cia qualsefala. que é o assunto da discussão, e a linguagem com a qual sefala, com a qual de­ sejamos construir a definição de verdade para a primeira linguagem. Esta última é a metaliuguagem; a primeira é a L. A distinção entre L. e metalinguagem foi introduzida pelos lógicos poloneses por volta de 1919 e difundida por Tarski (cf. "The Semantic Conception of Truth". 1944, em Readiugs in Philosopbical Analysis, 1949, p. 60). Essa distinção foi aceita por Car­ nap (Foii)idations of Logic ciiitl Maibematics, 1939, § 3). Por vezes, todavia, a L e a metalinguagem coincidem, como p. ex. quando se fala em italiano sobre o italiano. A distinção

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vale sobretudo para as linguagens formaliza­ das (v.). LÍNGUA GESTUAL (in. Sign language). Com este termo entende-se a linguagem cons­ tituída por gestos; segundo as chamadas teorias psicológicas da linguagem, constitui a primeira fase de todas as linguagens. Wundt distinguiu duas espécies de gestos: indicativo e imitatwo. O gesto indicativo derivaria biologicamente do movimento de agarrar (Die Sprache, Vólkspsychologíe, I, 2- ed.. p. 129). Também foram estu­ dadas determinadas L. gestuais, como a dos napolitanos de classe baixa, a dos monges trapistas (que fazem voto de silêncio), a dos ín­ dios da América e de alguns grupos de surdosmudos. LÍRICO (in. Lyric, fr. Lyrique, ai. Lyriscb, it. Lírico). Adjetivo empregado por Croce para especificar a expressão artística como expres­ são do sentimento: "O que confere coerência eu nidade à intuição é o sentimento: a intuição só é intuição porque representa um sentimento e só pode surgir dele e sobre ele. (...) Ética e lí­ rica, ou drama e lírica, são divisões escolásticas do indivisível: a arte é sempre lírica, ou seja, ex­ pressão ética e dramática do sentimento" Uireviário di estética. 1912, em Nuouisaggi ciiestética, p. 28). Para Croce, o lirismo constitui o caráter subjetivo ou romântico da arte. LITIGIOSUS. Assim foi denominado o dile­ ma de Protágoras e de seu aluno Evatlos (AULO GF.LIO, Noct. Alt., V, 10) (v. DILEMA). LIVRE A R B ÍT R IO . V. I.IBERDADE.

LÓGICA (in. Logic. fr. Logique; ai. Logik: it. Lógica). A etimologia dessa palavra (de Aóyoç. que significa "palavra", "proposições", "ora­ ção", mas também "pensamento") é tão equí­ voca quanto a noção que encerra. Em Aristóte­ les, cujo grupo de textos, reunidos no Organon, constitui o primeiro estudo amplo dessa disci­ plina, falta a palavra para designá-la. No início de Analíticos, o trabalho mais estritamente "ló­ gico' dessa coleção, Aristóteles define, sem dar nome, a disciplina que se prepara para investi­ gar como ciência da demonstração e do saber demonstrativo (An. pr, I, 24 a 10 ss.), mas num texto não muito claro. Seus objetos são re­ lacionados na seqüência do trecho: a proposi­ ção (como enunciado apofântico, inserido num discurso demonstrativo), seus termos (sujeito e predicado) e o silogismo. Aqui e em outros textos (principalmente em Tópicosc Retórica), Aristóteles distingue dois tipos de discurso, dia­

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lético e demonstrativo: o primeiro parte do problemático e do provável e termina necessa­ riamente no provável; o segundo parte do ver­ dadeiro e termina no verdadeiro. Mas, à paite o valor cognitivo da premissa, adverte que, for­ malmente, os dois discursos são idênticos: con­ sistem sempre no silogismo e em suas estrutu­ ras típicas. O termo AO7txn (subentendido TÉ%vr) encontra-se nas obras dos e.slóicos para indicar a arte do discurso persuasivo em geral: dividese, portanto, em retórica e dialética, contendo esta última aquilo que será o objeto fundamen­ tal da L., a doutrina do discurso demonstrativo e dos objetos a ele ligados (proposição, ter­ mos, silogismo, etc). E só nos comentadores peripatéticos e platônicos de Aristóteles, ou nos textos dos ecléticos que a estes se referem (como Cícero ou Galeno), todos influenciados pela terminologia dos cstóicos, que o termo "L", empregado estritamente como sinônimo de "Dialética", é introduzido como nome da doutrina cujo cerne se encontrava em Analíti­ cos de Aristóteles, ou seja, a teoria cio silogismo e da demonstração. Boécio dá o nome de "L." (também aqui alternado com "Dialética") ao conjunto de doutrinas contidas no Organon de Aristóteles, ao qual se soma, como uma espé­ cie de introdução geral, a Isagoge de Porfírio. E as­ sim, durante toda a Idade Média (pelo menos a partir do séc. XII), a exposição, o estudo e o comentário da Isagoge de Portírio, seguida pe­ los livros do Organori (na ordem que se tornou tradicional: Categorias, De interpretaiione, Pri­ meiros analíticos, Segundos analíticos. Tópi­ cos, Refinação dos sofistas), freqüentemente com os comentários e as traduções ou redu­ ções cie Boécio, constituem uma ars (uma das "sete artes liberais") conhecida, indiferente­ mente, por Dialética ou Lógica. A diferença, introduzida durante o séc. XIII, entre ars vetns e ars nova não tem muita relevância tratandose de uma distinção meramente histórica e di­ dática enire os livros de Porfírio e de Aristóte­ les, de longa data conhecidos na tradução de Boécio (Isagoge, Categorias, De inteipretatione), e os livros que .se tornaram conhecidos de­ pois, com a difusão de novas traduções latinas do Organon. Em síntese, o ensino da L. em fins da Idade Antiga e na Idade Média compreendia os seguintes assuntos: 1° a teoria das qnínque roces ou predicãveis (gênero, espécie, diferen­ ça, próprio, acidente); 2- teoria das categorias ou predicamentos (substância, quantidade, qua­ lidade, relação, lugar, tempo, posição, posse.

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ação, paixão); 3" doutrina das proposições e re­ gras de conversação; 4Ü doutrina do silogismo categórico; doutrina do silogismo hipotético; 6q dialética: a) tópica; b) doutrina dos sofismas ou fallaciae. Estas podiam ser agrupadas em três partes: doutrina dos termos, doutrina das proposições, doutrina do raciocínio (categórico ou hipotético, apodítico ou dialético). A estas partes de origem aristotélica, ou (através de Boécio) estóica, o pensamento medieval acres­ centou algumas doutrinas que constituem uma contribuição original â tradição L. do Ocidente — doLitrina da designação e denotação (de proprietatibus terminornm), doutrina dos sig­ nos lógicos e das proposições moleculares (de syncategorematious), doutrina da implicação material (de consequentiis) — todas pertencen­ tes à parte da L. que hoje se denomina "semân­ tica". Para compreender as transformações havi­ das durante a Idade Média, não só na tradição doutrinária, mas também no âmbito dos obje­ tos incluídos no nome "L". é necessário atentar para algumas considerações. Uma vez que Aristóteles estava mais preocupado em criar a nova disciplina do que em fundamentá-la, e ainda mais preocupado em criar suas doutrinas fundamentais para aplicá-las a problemas filo­ sóficos "concretos" (principalmente à metafísi­ ca e à ética) do que em desenvolvê-las e expôlas sistematicamente, a L. não só ficou sem nome próprio para designá-la, como também permaneceu equívoca em termos de status como disciplina e pouco determinada em ter­ mos de matéria subiecta. Quais são propria­ mente os objetos de que a L. se ocupa? Entida­ des reais, pensamentos ou formas do discurso? Esse problema se apresenta já na Antigüidade tardia. Os universais (categorias, gêneros, espé­ cies), que parecem constituir propriamente os elementos nos quais se resolve o discurso lógi­ co, são substâncias reais ou não? Em Isagoge, Porfírio formula o problema, Boécio tenta uma solução que, todavia, gira em círculo e se mos­ tra insatisfatória; disso resultou a disputa me­ dieval entre realistas (Bernardo de Chartre.s, Guilherme de Champeaux, Anselmo cie Aosta e outros), que afirmam a existência real dos universais e para os quais a L. é uma espécie de ontologia, e os nominalistas(Rnscclin, Abe­ lardo e mais tarde Guilherme de Ockham), que negam a subsistência ontológica dos universais. Discutindo a questão dos universais, através de um profundo comentário ao texto de Boécio.

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Abelardo é o primeiro a fixar um plano próprio da L: esta é scientia sermocinalis; os termos da L. são sermones, portanto palavras, discursos; não meros sons (flatus voeis, como parece ter sustentado Roscelin), mas palavras com uma intenção (intentio) significativa, vale dizer des­ tinadas a significar coisas, ou melhor, qualida­ des, dadas na experiência. A partir de então, definem-se na L. medieval duas correntes ou métodos (vicie): a via antiquei (ou antiquorum), fiel à tradição realista, portanto de ten­ dência ontológica, e a via moderna (ou modernorum), que desenvolve uma L. "terminista", ou seja, puramente sermocinalis, em que os termos do discurso são considerados como tais, independentemente de qualquer hipótese metafísica sobre a existência real ou não de seu objeto. Foi esse, substancialmente, o ponto cie vista que se firmou na L. a partir do séc. XIII e no qual se basearam os textos escolares desta disciplina, usados até o início da Idade Moder­ na, como as Sitmmulae logicales de Pedro Hispano (séc. XIII); a partir daí difundiu-se defi­ nitivamente a convicção de que a questão dos universais pertencia mais à metafísica e à gnosiologia do que à L., que permanece relati­ vamente indiferente a eventuais respostas da­ das a esse problema. Contudo, impor-se-ia uma outra distinção, que em parte chegou até nos­ sos dias, no que se refere ao objeto da L; para uns, fatos mentais (Duns Scot, mas também S. Tomás de Aquino e alguns nominalistas); para outros, não se trataria propriamente de atos mentais, mas de formas estruturais intencional­ mente dirigidas para a constituição de conteú­ dos semânticos, e, como formas, independen­ tes tanto de tais conteúdos quanto dos atos mentais em que tais conteúdos são apreendi­ dos (Buridan e seus continuadores dos sécs. XIV e XV; Alberto de Saxônia, Nicola de Autrecourt, Marsílio de Inghen e outros). Esta últi­ ma posição, retomada por E. Husserl (e de ma­ neira menos clara por B. Russell e por L. Wittgenstein), determinará o atual renascimen­ to da concepção da L. como formalpura. Entrementes, propunha-se outro problema: a L. é ciência ou arte? Vale dizer: tratar-se-à de uma disciplina que, como p. ex. a matemática, expõe relações objetivas subsistentes entre os seus objetos (p. ex., entre as premissas do silogismo e a sua conclusão) ou uma técnica para obter discursos corretos e verdadeiros? Em geral, para os lógicos medievais a L. é as duas

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coisas; e, como arte, seria ao mesmo tempo um preceituário (Lógica docens) e um exercí­ cio ativo de discurso ou discussão controlado por esses preceitos (Lógica utens). A reação humanista contra a Escolástica, no campo da L, leva à exaltação deste último aspecto e a uma áspera polêmica contra o formalismo tradicio­ nal (Coluccio Salutati, Lorenzo Valia e outros). À L. "inglesa" (terminista), que, no ensino e no exercício escolar, perdia-se muitas vezes em estéreis argúcias e ardis disputativos (como a antiga erística dos tempos de Platão e Aristóte­ les), é contraposta a L.-retórica, na maioria das vezes cie inspiração ciceroniana, como busca dos meios de persuasão pelo discurso e ao mesmo tempo disciplina heurística para a pro­ cura das verdades no campo das coisas natu­ rais e humanas (históricas e éticas). Esse movi­ mento de reforma da L. culmina no ramismo (de Petrus Ramus, ou seja, Pierre de Ia Ramée). Ao lado dessa corrente deve-se lembrar outra, de inspiração peripatética, surgida em Pádua no séc. XVI, cujos expoentes máximos foram Fracastório e Zabarella, que centralizaram suas indagações no problema da inferência indutiva, suas dificuldades e seus pressupostos, ao qual o trabalho de Aristóteles apenas aludira. Tam­ bém nestes lógicos (ainda que, naturalmente, em formas menos drásticas que nos retores humanistas), o interesse pelas estruturas for­ mais do discurso dedutivo diminui muito em favor de uma concepção pragmática e metodo­ lógica da ciência da L. No início do séc. XVII, Francis Bacon em certo sentido leva a cabo esse processo, tentando, com Novum Organum (cujo nome é programático) uma reforma radical da L, concebida exclusivamente como metodologia científica geral. Descartada quase por inteiro a tradição L. peripatético-escolástica (centrada na teoria formal do silogismo), a L. humanista (de Ramus e outros) também destaca os aspectos mais propriamente metodológicos, com a fina­ lidade de transformá-los em "instrumento" para guiar e enquadrar a investigação científica. Com isso, a antiga noção de "L." muda completamente. O desinteresse pelo formalismo lógico e, em seu lugar, o interesse pelos problemas gnosiológicos, psicológicos e metodológicos de uma Lógica utens acentuam-se durante a Idade Moderna, de tal forma que, durante os sécs. XVII, XVIII e XIX, L. passa a ser o nome de uma série heterogênea de disciplinas filosófi­ cas, ensinadas nas escolas, "matéria" cujos ma­

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nuais expõem várias coisas diferentes: ao lado da silogística tradicional (freqüentemente re­ duzida a poucas noções e mantida mais por razões de tradição do que por interesse real), encontram-se anotações metodológicas, esbo­ ços de teoria do conhecimento, análises de de­ terminados conceitos gerais, etc. Típica nesse aspecto é a Art depenser dos mestres de PortRoyal, também conhecida pelo nome de Lógi­ ca de Port-Royal, que durante longo tempo foi o texto mais importante dessa disciplina e o modelo adotado e compendiado com maior ou menor fidelidade pelos demais tratados. Todavia, o "renascimento" da geometria eu­ clidiana, que teve início no séc. XVI e pros­ seguiu triunfalmente (pelo menos no que diz respeito ao aspecto lógico-formal) até quase os nossos dias, repropòe, juntamente com o mo­ delo do ''rigor" euclidiano, o problema de fixar as estruturas discursivas que constituem esse ri­ gor e das quais este resulta. Descartes (Regulae ad directionem ingenii, Discours de Ia méthode) e depois Pascal (Esprit degéométriee Art depersuader) começam a extrapolar, em forma de regras metodológicas, alguns aspectos des­ se "rigor", remetendo-se (mesmo em polêmica com a silogística tradicional) ao terreno de in­ dagações das formas estruturais de uma lingua­ gem perfeita (aqui, a linguagem matemática) e repropondo, portanto, alguns problemas fun­ damentais de L. formal, como o da definição (nominal e real) e o da validade da dedução a partir de axiomas. Simultaneamente, Hobbes, partindo também do euclidianismo da nova ciência (galileana) da natureza, dava um passo decisivo rumo à concepção da moderna L. for­ mal pura. De fato, Hobbes introduz a profícua idéia do raciocínio como "cálculo lógico", como combinação e transformação de símbo­ los segundo certas regras, que já em Hobbes se mostravam — e depois cada vez mais — con­ vencionais (seja qual for a maneira de se enten­ der posteriormente esse "convencionalismo"). Portanto, na história do pensamento, aparecia aquele convencionalismo que estava destinado a ser o ponto de vista mais eficaz para isentar a L. de todos os pressupostos dogmáticos e metafísicos, para libertá-la das contaminações psicologizantes (que continuarão a obstar seu desenvolvimento quase até nossos dias) e organizá-la como disciplina das estruturas for­ mais do discurso "rigoroso", segundo determi­ nados modelos ideolingüísticos. Contudo o pon­ to de vista convencionalista não estava destina­

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do a agir imediatamente sobre o pensamento lógico moderno, que nos filósofos acima cita­ dos foi buscar sobretudo a idéia do cálculo ló­ gico baseado na distinção das idéias em sim­ ples e complexas e na analogia (meramente for­ mal) entre certas operações lógicas e certas operações aritméticas. Representando os ter­ mos com símbolos genéricos (p. ex., letras do alfabeto: a, b, c,..., x, y, z; X, Y, Z; e semelhan­ tes) e as operações lógicas com símbolos vários (geralmente tomados de empréstimo à aritmé­ tica: +, x, =; etc.) é possível tentar desenvolver uma doutrina matemática (formal) do discurso. Leibniz fez numerosas tentativas neste sentido, todas porém infrutíferas e por ele abandona­ das; outras tentativas desse tipo (analogamente infmtíferas) foram feitas pela própria escola leibniziana, como p. ex. por Lambert, Holland. Castillon. Porém, mais do que nessas tentativas — talvez supervalorizadas pelos lógicos matemáti­ cos do nosso século — , a importância de Leibniz para o renascimento da L. após a crise desenca­ deada pelo Humanismo está na idéia (ampla­ mente desenvolvida pelos seus seguidores ale­ mães do séc. XVIII, Lambert, Wolff, Crusius) de uma "arquitetônica da razão" (não mais conce­ bida psicologicamente, mas de tal maneira que prenunciava o ponto de vista "transcendental" da filosofia posterior), explicitada nas formas e estruturas do discurso; essa "arquitetônica" constituirá o objeto da L. A herança leibniziana foi recolhida por Kant, que, em Logik, distingue nitidamente a L. da psicologia (com a qual os Iluministas tendiam a confundi-la) e da onto­ logia (com a qual alguns leibnizianos, particu­ larmente Crusius, tendiam a confundi-la), afir­ mando o caráter de doutrina formal pura: não do discurso, mas do pensamento,donde as possi­ bilidades de recaída numa espécie de psicologismo transcendental, inerentes ao kantismo. De fato, como se sabe, ao lado da L. formal pura, Kant coloca uma L. transcendental como doutrina das funções puras da consciência: os idealistas, em particular Fichte e Hegel, ao acentuarem tal interpretação psicologizante e transcendental, resolverão ambas as partes da L. kantiana na parte transcendental, interpre­ tando depois esta última como uma espécie de "metafísica da mente" ou do "pensamento". Desde então, em vastas zonas da filosofia con­ temporânea, todas elas mais ou menos influen­ ciadas pelo idealismo, o termo "L." perdeu in­ teiramente o sentido tradicional para retornar â acepção iluminista de "filosofia do pensamen­

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to" em geral. O fim do séc. XIX apresenta exa­ tamente esse quadro. A L. é entendida como uma "teoria do pensamento", portanto tratada com métodos naturalistas pelos positivistas (p. ex. Sigwart, Wundt e outros), e com métodos metafisico-transcendentais pelos idealistas. Hus­ serl (Lugische Untersuchiingen, I, 1900-1901) criticou profundamente este ponto de vista e, retomando as idéias de um lógico boêmio es­ quecido, B. Bolzano ( Wissenschaftslebre, 1838). repropòe a idéia da L. formal pura como dou­ trina das proposições em si (em sua pura apofanticidade lógica, logo independentes dos atos psicológicos em que são pensadas e da realida­ de sobre a qual versam) e da pura dedução de proposições a partir de outras proposições (em si). Já nessa primeira obra, porém ainda mais nas seguintes (particularmente em Formule und Iranszendentale Logik, 1928), Husserl retoma a idéia da razão como "razão formal", ou seja, pura arquitetônica do pensamento que se ex­ plicita historicamente na atividade científica, por um lado, e na reflexão lógica, por outro. O renascimento da L. formal pura, caracte­ rística da época contemporânea, deveria ocor­ rer, porém, graças ã retomada e ao desenvolvi­ mento — com idéias mais claras e maior inde­ pendência em relação a doutrinas metafísicas — das malogradas tentativas de Leibniz de construir a nossa disciplina na forma de cálculo simbólico. Esta obra foi iniciada por um grupo de filósofos e matemáticos ingleses em meados do século passado. G. Bentham, W. Hamilton, A. I)e Morgan empreenderam o esforço, histo­ ricamente decisivo, que viria a transformar a L. em disciplina matemática, superando o obstácu­ lo contra o qual se haviam chocado as tentati­ vas de Leibniz: o fato de, na L. aristotélica, as considerações quantitativas serem introduzidas apenas com relação ao sujeito da proposição, e não com relação ao predicado. Deve-se sobre­ tudo a Hamilton a chamada "quantificação do predicado", que é a análise das proposições se­ gundo formas que introduzem quantificadores ("todos", "algum") não só para o sujeito, mas também para o predicado, interpretando, p. ex., uma proposição do tipo "todos os homens são mortais" como "todos os homens são al­ guns mortais". Na realidade, não se trata de mera "correção" á L. aristotélica (em que a omissão de quantificadores para o predicado não era absolutamente casual), mas da introdu­ ção de um ponto de vista novo, puramente

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extensional, para o qual os conceitos são con­ siderados apenas como classes ou coleções de objetos, e as proposições são interpretadas como inclusões (ou exclusões) totais ou par­ ciais de classes em (ou de) classes (em "todos os homens são mortais", "a classe 'homem' está incluída na classe mortal'"). Desse modo, a Analítica de Aristóteles (compreendendo prin­ cipalmente a teoria da conversão e a do silogis­ mo) era transformada em — era substituída por — uma espécie de cálculo das classes. Par­ tindo desses estudos, uma série de lógicos e matemáticos ingleses (C. Boole, Jevons, Venn, Whitehead) e outros (Schrõder, Poretsky, Couturat) criaram uma disciplina mais formalizada e muito mais independente da L. tradicional, a Álgebra da Lógica: um cálculo ambivalente (ou seja, interpretavel como cálculo de classes e como cálculo de preposições) cuja forma exte­ rior em tudo se assemelha à álgebra simbólica comum, porém com algumas peculiaridades, como p. ex.: as equações só podem assumir os valores 1 ("universo de discurso", ou "verdadei­ ro") ou 0 ("classe vazia", ou "falso"); a . a= cie a + a = a-, etc. Essa álgebra da L. fornecerá os conceitos básicos e muito material doutrinário â Lógica matemática, criada entre o fim do séc. XIX e o início do séc. XX por G. Frege, G. Peano e B. Russell, que culmina em Principia mathematica de Russell e A. N. Whitehead, obra publicada entre 1900 e 1913- Nela, a L. passava a ser constituída por duas disciplinas fundamentais: o cálculo proposicional, segun­ do as operações principais de negação, disjun­ ção ou afirmação alternativa, conjunção ou afir­ mação simultânea, implicação material, e o cál­ culo das funções proposicionais (enunciados que contêm variáveis); este último dá origem à consideração de enunciados gerais e enuncia­ dos particulares ou existenciais, mediante os operadores "para cada x" e "existe pelo menos um A-tal que" (resp. '(x)'. e '(3X)'.). Desta última doutrina deriva a dos símbolos incompletos: descrições (como "o rei de França") e classes. O cálculo das classes, portanto, não é mais uma doutrina fundamental da L, sendo derivável do cálculo das funções proposicionais: todavia, devido ã sua importância, muitos lógicos con­ temporâneos ainda o consideram um capítulo à parte (o mesmo ocorre com as relações). Pos­ teriormente, Wittgenstein, em Tractatus, enun­ ciará uma espécie de segunda tese extensional para as proposições: distinguindo proposições

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atômicas (simples) de moleculares (complexas), afirmará que estas últimas dependem, para se­ rem verdadeiras ou falsas, da verdade ou da fal­ sidade dos componentes atômicos somadas às regras semânticas das operações de composi­ ção (p. ex., o enunciado "pou q" será verdadeiro se, e somente se, pelo menos p ou q for verda­ deiro): donde a formulação do cálculo proposicional com base em certos diagramas lógicos meramente combinatórios. Partindo deles, no período entre as duas guerras mundiais, alguns lógicos (principalmente poloneses) tentaram elaborar lógicas polícalentes em que outros enunciados além de 1 ("verdadeiro") e 0 ("fal­ so") podem assumir valores intermediários. Fal­ tava ainda, em Principia, obra exclusivamente voltada para a fundação cia aritmética dos nú­ meros naturais, um trabalho sobre a lógical modal, ou seja, um cálculo de valores modais como "possível", "necessário", etc, que será tentado posteriormente por lógicos como Lewis e Von Wright. A L. matemática tinha sobretudo dois objeti­ vos: Io constituir a disciplina matemática funda­ mental; todas as demais matemáticas — segun­ do a tese logicista defendida por Frege e por Russell — seriam suas ramificações mais ou me­ nos complexas, mas sempre com o mesmo material conceituai e nele reintegráveis; e 2Q constiaiir (de acordo com o programa formalista de Peano, desenvolvido posteriormente por D. Hilbert) métodos de formulação rigorosa e de controle lógico das disciplinas matemáticas pro­ priamente ditas. A L. torna-se, assim, um instru­ mento de análise filosófica. Graças a Russell e Wittgenstein, passa a constituir uma espécie de linguagem ideal ou perfeita, ou melhor, o es­ quema geral (porque meramente simbólico) de semelhante linguagem, segundo o qual depois seriam construídas linguagens (ou fragmentos de linguagens) científicas, nas quais deveriam ser traduzidos e, assim, analisados segundo as estruturas lógicas dessa linguagem os enuncia­ dos de cada disciplina em exame. Sob esse as­ pecto, a L. simbólica de Russell não está mais estreitamente ligada às matemáticas como tais: é a L. tout court, instrumento de análise científi­ ca e geral. F também foi aplicada à análise filo­ sófica pelo próprio Russell, por Wittgenstein, por Wisdom e em seguida (com total abando­ no dos pressupostos metafísicos do atomismo lógico cie Russell) pelos empiristas lógicos. Mas o programa de Russell, centrado na no­ ção de linguagem ideal, foi alvo de severas crí­

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ticas, principalmente — mas não apenas — por parte dos "analistas do uso", de Oxford. Por outro lado, em outros setores (p. ex., na escola alemã proveniente de Hilbert e de Scholze, e na escola polonesa de Lukasiewicz e Tarski) prevaleceram os interesses matemáticos e o in­ teresse pela própria L. como disciplina estrita­ mente matemática. Fssa é a origem da cisão (por ora parcial) da L. numa série de disciplinas cada vez mais formalizadas e matematizadas, com todos os complexos problemas inerentes à formalização de uma disciplina matemática fundamental (a metamatemática), para a qual não se pode usar uma outra linguagem formalizante sem cair num círculo: donde os proble­ mas enfrentados por Gódel, Hermes, Tarski e em parte também por Carnap. Fntretanto, na ex-escola de Viena (atualmente escola de Chi­ cago) e sob a influência de outras correntes (neopositivismo inglês, pragmatismo america­ no), principalmente por obra de Morris, Carnap e Hempel, a L. recebeu orientação sobretudo analítico-filosófica, com tendência a tornar-se parte de uma disciplina bem mais ampla, a semiótica ou teoria geral dos signos (cuja parte mais interessante é a teoria da linguagem), cria­ da por Ch. W. Morris sob o duplo impulso da sintaxe lógica de Carnap e da Lógica de Dewey. Com o abandono dos pressupostos consciencialistas ou mentalistas, bem como das ve­ leidades metafísicas, a ciência do pensamento torna-se ciência da linguagem, que é um com­ portamento humano típico e fundamental. A análise lógica torna-se análise lingüística, mas aquilo que a tradição considerava dimensão "L." é somente umaáàs dimensões da lingua­ gem, ou melhor, duas (segundo Morris e Carnap, numa distinção amplamente aceita, mas hoje também muito controversa): a dimensão sintática, na qual os signos cjue compõem o discurso (a linguagem) interligam-se segundo regras de formação e transformação (deriva­ ção) relativas à única forma do próprio discur­ so; e a dimensão semântica, na qual o discurso e os enunciados que o compõem podem ser verdadeiros ou falsos, ou seja, tratam de fatos e eventos; conseqüentemente — o que muitos fi­ lósofos, p. ex. os fenomenistas, contestariam — as palavras que o compõem tratam de coisas e qualidades. Estes são os dois aspectos funda­ mentais (L. matemática e L. formal analítica) em que se divide hoje a L; contudo essa divi­ são não significa separação em duas disciplinas diferentes, muito menos antitéticas, mas duas di-

LOGICISMO

reçòes diferentes da investigação lógica, mo­ vidas por dois tipos diferentes cie interesse teórico. G. P. LOGICISMO (in. Logicism, fr. Logicisme; ai. Logicismus; it. Logicismo). Com este nome cos­ tuma-se designar uma corrente de pensamento lógico-matemático que floresceu no fim do séc. XIX e no início do séc. XX. e cujos principais representantes foram R. Declekind, G. Frege e B. Russell; no séc. XX, teve muitos seguidores, sobretudo (mas não exclusivamente) no deno­ minado "Círculo de Viena" (Carnap). Os pensa­ dores dessa corrente sustentam que a matemá­ tica (pura) é um ramo da lógica, ou seja, que todas as proposições das matemáticas puras (particularmente da aritmética, portanto da aná­ lise) só podem ser enunciadas com o vocabulá­ rio e a sintaxe da lógica matemática, que assim se torna a disciplina matemática por excelên­ cia. Com esta convicção, Dedekind, Frege e Russell realizaram suas famosas análises do conceito de "número" (inteiro), exatamente para defini-lo apenas através de noções (sím­ bolos) da lógica matemática. Ao F. opõem-se o

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LOGOS

1° A doutrina do F. como substância ou cau­ sa do mundo foi defendida pela primeira vez por Heráclito: "Os homens são obtusos com re­ lação ao ser do I... tanto antes quanto depois que ouviram falar dele; e não parecem co­ nhecê-lo, ainda que tudo aconteça segundo o L." (Fr. 1, Diels). O F. é concebido por Heráclito como sendo a própria lei cósmica: "To­ das as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque esta domina tudo o que quer. e basta para tudo e prevalece a tudo" (Fr. 114, Diels). Fsta concepção foi tomada pelos estóicos, que viram na razào o "princípio ativo" do mundo, qtie anima, organiza e guia seu princí­ pio passivo, que é a matéria. "O princípio ativo" — diziam — "é o L. que está na matéria, é Deus: ele é eterno e, através da matéria, é artífice de todas as coisas" (DIÓG. F., VII, 134). O L. assim entendido, como princípio formador do mun­ do, é identificado pelos estóicos com o destino Ubicl, Vil, 149). No mesmo sentido, Plotino afirma: "O L. que age na matéria é um princí­ pio ativo natural: não é pensamento nem visão, mas potência capaz de modificar a matéria, po­ formalismoc o intuicioriismo(x. MATTMÁTK:A). tência que não conhece, mas age como o selo que imprime sua forma ou como o objeto que G. P. reproduz o seu reflexo na água; assim como o LÓGICO (in. Logical; fr. Logújite. ai. l.ogisch; círculo vem do centro, também a potência it. Lógico). 1. O mesmo que racional. vegetativa ou geradora recebe de outro lugar 2. O que diz respeito a determinado tipo de potência produtiva, isto é, da parte princi­ lógica. Nesse sentido denomina-se hoje "ver­ sua da alma, a qual lhe comunica esta potência dade lógica" a verdade que consiste na enun- pal modificando a alma geradora que reside no ciação de uma tautologia, conforme o conceito todo" (Him, II, 3. 17). Nesse sentido, o L. é o d a lógica como estudo d a s tautologias (v. LÓGI­ próprio Intelecto Divino ordenador do mundo: CA; RAZÃO). "Da inteligência emana o F. e emana sempre, LÓGICOS, PRINCÍPIOS. V CONTRADIÇÃO enquanto o Intelecto eslá presente em todos os PRINCÍPIO DIÍ; FUNDAMKNTO; IOHNTIDADK, PRINCÍ­ seres" (Ibicl. III, 2, 2). F.ssa concepção serviu PIO DK; TKRCHIRO I-:XCLlÍDO, PRINCÍPIO DO. de modelo para todas as formas do panteísmo LOGÍSTICA (in. Logistic. fr. Logistkjiw, ai. moderno (v. DlT's). Logistik; it. Logística). Na Antigüidade (p. ex., nos fragmentos do pitagórico Arquitas de Ta2° A doutrina do F. como hipóstase ou pes­ rento) o termo "L." às vezes era empregado soa divina encontra a primeira formulação em para indicar a aritmética pura. Feibniz empregou Fílon de Alexandria. Nessa doutrina, o F. é um esse termo como sinônimo de "cálculo lógico" ente intermediário entre Deus e o mundo, o ou "lógica matemática": com este significado de instrumento da criação divina. Diz Fílon: "A "lógica simbólica" ou "matemática" foi proposto sombra de Deus é o seu F.; servíndo-se dele por Couturat e Lalande ao Congresso Internacio­ como instrumento. Deus criou o mundo. Fssa nal cie Filosofia de Paris em 1904. Mas, depois sombra é quase a imagem derivada e o mode­ de ter algum sucesso, o termo "L." passou a ser lo das outras coisas. Pois assim como Deus é o raramente empregado. G. P. modelo dessa sua imagem ou sombra, que é o L.. o L. é o modelo das outras coisas" (Ali. leg.. LOGÍSTICO, SISTEMA. V. SISTHMA LOGÍS­ III, 31 ) *No cristianismo, o F. é identificado com TICO. LOGOS (gr. AÓroÇ; lat. Verbam). A razão Cristo. O prólogo do Fvangelho de S. João, ao enquanto V- substância ou causa do mundo; 2" lado das funções que Fílon já atribuía ao L. acrescenta a determinação propriamente cristã: pessoa divina.

LOGOS

"O L. fez-se carne e viveu entre nós" (Joann.. I. 14). Em sua elaboração da teologia cristã, os padres da Igreja insistiram nos dois pontos se­ guintes: I- a perfeita paridade do L.-Filho com Deufi-Pai; 2- a participação do gênero humano no L, enquanto razão. Justino. p. ex.. diz: 'Apreendemos que Cristo é o primogênito de Deus e que é o L, do qual participa todo o gênero humano" (Apol. prima, 46). Contra os gnósticos seguidores de Valentino, para os quais o L. é o último dos Kons. que, por estar mais próximo do mundo, destina-se a formálo, Iríneu afirma a igualdade de essência e dignidade entre Deus-pai e o L, e entre ambos e o Espírito Santo (Adi1, haeres, II, 13, S). Nes­ ses conceitos deveriam fundamentar-se as for­ mulações dogmáticas do séc. IV, especialmente as decisões do Concilio de Nicéia (325) sobre os dogmas fundamentais do Cristianismo: Trin­ dade e Encarnação. Mas entrementes a noção de L. continuou oscilando entre a interpretação de perfeita paridade entre L. com Deus e a que estabelece certa diferença hierárquica entre as duas hipóstases. A doutrina de Orígenes, que foi o primeiro grande sistema de filosofia cristã (séc. III), inclina-se para a segunda interpreta­ ção. Orígenes afirma que se pode dizer do L, mas não de Deus, que é o ser dos seres, a substância das substâncias, a idéia cias idéias: Deus está além de todas essas coisas (De princ, VI, 64). Portanto, o L. é coeterno com o Pai, que tal não seria se não gerasse o filho, mas não é eterno no mesmo sentido. Deus é a vida e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai é Deus, o filho é Deus (em Joann, II, 1-2). Como já se disse, a Igreja, em suas sessões concilia­ res, pronunciou-se contra essa interpretação, que ficou sendo o apanágio das tentativas heréticas, várias vezes renovadas ao longo da história. A doutrina do L. foi sempre religiosa. Os fi­ lósofos só recorreram a ela quando quiseram dar caráter religioso à sua doutrina. Foi o que fez Fichte na segunda fase de seu pensamento. Na Introdução à vida bem-aventurada (1806), Fichte utiliza o prólogo ao Evangelho de S. João para demonstrar a concordância do seu idealismo com o Cristianismo; portanto, reco­ nhece no L. aquilo que ele chama de a Existên­ cia ou Revelação de Deus (além do qual fica o Ser de Deus), ou seja, o Saber, o Eu, a Ima­ gem, cujo fundamento é a vida divina (Werke, V, p. 475).

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LOUCURA

LOQUACIDADE (gr. à6oA.eo/ía; lat. I.oquacitas; in. Loquacity, fr. Loquacüé; ai. Reclseligkeit; it. Loquacitã). Segundo Aristóteles, um dos caracteres das pessoas idosas, que es­ tão mais interessadas no passado que no futu­ ro (que já lhes promete pouco); por isso, gos­ tam de falar para rememorá-lo (Ret., II, 13. 1390 a 6). LOUCURA (gr. uopíoc; lat. Stultilía; in. Madness: fr. Folie; ai. Wahn; it. Pazzia). 1. O que Platão chamava de boa L, que não é doen­ ça ou perdição, foi interpretada de dois modos diferentes: 1- como inspiração ou dom divino; 2- como amor à vida e tendência a vivê-la em sua simplicidade. 1I> O primeiro significado encontra-se em Fedro, onde Platão afirma que "os maiores bens nos são ofertados através de uma L. que é um dom divino" (Fed., 244 a). Essa L. mani­ festa-se em quatro formas: a) L. profética, base da adivinhação, arte de predizer o futu­ ro; b) L. purificadora, que permite afastar os males por meio de purificações e de inicia­ ções no presente e no futuro; c) L. poética, que é inspirada pelas musas (Ibid., 244a, 245a); d) L. amorosa, a forma superior, à qual o homem é predisposto pela lembrança da beleza ideal, despertada nele pela beleza das coisas do mundo (Ibid., 249e). Obviamente, as três primeiras formas de L. têm inspiração divina e sào atribuíveis ao entusiasmo (v.). O amor, entretanto, é L. em sentido diferente, como aspiração ao ser autêntico, despertada por sua manifestação "mais amável e mais evidente", que é a beleza. Ora, este já é o se­ gundo significado de L. 2q No segundo significado, a L. é de fato amor à vida em sua simplicidade, contraposta â sabedoria artificiosa e sombria, bem como à ciência de quem sabe tudo menos viver e amar. O Flogio da loucura (Stultiae laus, 1509), de Erasmo de Roterdã, é a mais famosa defesa desse segundo significado do termo. Eis como Erasmo traça o retrato do sábio estóico: "Ele é surdo à voz dos sentidos, não sente emoção nenhuma, o amor e a piedade não impressio­ nam seu coração duro como diamante, nada lhe escapa, nunca deixa de duvidar, sua visão é de lince, tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo sua felici­ dade, julga-se o único rico da terra, o único sá­ bio, o único rei, o único liberto: numa palavra, julga-se o todo; e o mais interessante é que ele é o único a julgar-se assim". Ora, pergunta-se

LUGAR

Hrasmo, quem não preferiria a este sábio "um homem qualquer, retirado da multidão dos ho­ mens loucos, que, conquanto louco, soubesse comandar os loucos e obedecer a eles e fazer-se amar por todos; e que fosse complacente com a esposa, bom para os filhos, alegre nos banque­ tes, sociável com todos com quem convive, e por fim que não se considerasse alheio a tudo o que pertence à humanidade?" (/:'/., 30). A L. cie que fala F.rasmo é a simplicidade da vida, que se satisfaz nutrindo ilusões e esperanças; ou, no campo da religião, é a fé e a caridade contrapostas às cerimônias exteriores, aos ritos mecanizados e à hipocrisia dos grandes ban­ quetes (Ibid., 54). Kssa forma de L. nada tem, obviamente, com a inspiração divina, mas é humana, laica, e por isso seu elogio é um dos documentos mais significativos do Renasci­ mento. 2. O m esm o que psicose (v.).

LUGAR (gr. xónoç, lat. I.ocus; in. Place: fr. I.ieii; ai. Ort; it. Luogo). Situação de um corpo no espaço. Há duas doutrinas do L: Ia de Aristóteles, para quem o L. é o limite que cir­ cunda o corpo, sendo portanto uma realidade autônoma; 2a moderna, para a qual o L. 6 certa relação de um corpo com os outros. Ia Segundo Aristóteles, o L. 6 "o primeiro li­ mite imóvel que encerra um corpo" (Ms., IV, 4, 212 a 20); em outros termos, é aquilo que abar­ ca ou circunda imediatamente o corpo. Nesse sentido, diz-se que o corpo está no ar porque o ar circunda o corpo e está em contato imediato com ele. F.ssa concepção persistiu durante toda a filosofia medieval e também é repetida subs­ tancialmente pelos críticos da física aristotélica, como p. ex. Ockham (Summuhw in librasphys., IV, 20; Quodl.. I. 4). Com base nessa concep­ ção, existem "lugares naturais", nos quais um corpo naturalmente está ou aos quais volta quando deles é afastado: "lima coisa" — afir­ ma Aristóteles — "move-se naturalmente ou não naturalmente, e os dois movimentos são determinados pelos lugares próprios ou pelos lugares estranhos. O L. no qual Lima coisa per­ manece ou para o qual se movimenta não por natureza deve ser o L. natural de alguma outra coisa, como demonstra a experiência" (Decciel.. I, 7, 276 a 11). Toda a física aristotélica está baseada neste teorema (v. FÍSICA). 2a A teoria aristotélica dos lugares era alvo da crítica acerba de Galilei, em Dialaghi dei massimi sistemi (1632, Giornata seconda). Alguns anos depois, Descartes expressaria com

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LUGARES

toda a clareza o conceito de L. que emergia da nova postura da ciência: "As palavras 'L.' e 'espaço' nada significam de realmente dife­ rente dos corpos que afirmamos estarem em algum lugar, e indicam apenas seu tamanho e forma, e como estão situados entre os ou­ tros corpos. Para determinar essa situação, é necessário referir-se a outros corpos que consideramos imóveis, mas, como tais corpos podem ser diferentes, poetemos dizer que uma mesma coisa, ao mesmo tempo, muda e não muda de L." (Piinc. phil, II, 13). F Des­ cartes cita o exemplo do homem que está sen­ tado num barco que se afasta da margem: o L. desse homem não muda em relação ao barco, mas muda em relação à margem. Com essas observações, que exprimem a relatividade do movimento (relatividade de Galileu), chega-se ao conceito moderno de L. como relação entre um corpo e outro, tomado como referência. LUGARES (gr. TÓJTOI lat. Loci; in. Topics; fr. l.ieu.x; ai. Orter; it. l.uogbi). Segundo Aristóte­ les, são os objetos dos raciocínios dialéticos e retóricos, "assuntos comuns à ética, à política, à fsica e a muitas outras disciplinas, como p. ex. o argumento do mais e do menos" {Rei, I, 2, 1358 a 10). Estes seriam os L.-comtws. Mas existem também, segundo Aristóteles, L. es­ peciais ou próprios, que são os artigos consti­ tuídos por proposições pertencentes, p. ex., à fí­ sica, mas nos quais é impossível fundar propo­ sições concernentes à ética, ou reciproca­ mente. Os L.-comuns não têm objeto especí­ fico, por isso não aumentam o conhecimento das coisas; os L.-próprios, entretanto, espe­ cialmente se utilizam proposições oportuna­ mente escolhidas, contribuem para o conhe­ cimento das ciências especiais (Ret., I, 2, 1358 a 21). Os retores latinos salientaram a importân­ cia desse tipo de estudo, sobretudo dos L.-comuns, para a arte oratória, pois não aumentam o saber, mas são instrumentos de persuasão (CÍCKRO, 7b/;., 2. 7; De orat, II, 36. 152; QI:INTIUANO, /ml., V, 10. 20). Através das obras lógi­ cas cie Boécio (De diff. topicis. 1: P. /... 64", col. 1174), essa noção passou para a lógica medie­ val. Pedro Hispano define os L. como "a sede de um argumento ou daquilo de que se extrai um argumento conveniente à questão propos­ ta" (Summ. log., 5. 06). Como se disse, a parte da lógica que estuda os L. é a Tópica. Para Cícero, era a parte inven­ tiva da lógica, a que excogita os argumentos úteis ao convencimento, mais do que ao juízo

LULIANA, ARTE

sobre sua validade. K repreendeu os estóicos por haverem cultivado somente a dialética, ne­ gligenciando a Tópica (Top, 2, 6). Mas. na reali­ dade. Aristóteles não alude à capacidade inven­ tiva da Tópica, entendendo-a mais como um esludo voltado a reunir sob um número restrito de tópicos (que são exatamente os L) os argu­ mentos que estejam presentes em várias ciên­ cias ou em várias partes de uma mesma ciência. De qualquer forma, a crença no caráter inventi­ vo da Tópica passou para a tradição (através de BOHCIO, Decliff. top.. I; P. 1... 64Ü, col. 1173): aliás, quando se começou a reconhecer o cará­ ter improdutivo da lógica aristotélica, a ela foi contraposta a importância da Tópica como arte de invenção. Foi o que fizeram Pedro Ramus (Dialecticae institutio)ies, 1543) e Viço (De antiquissima italorum sapientia 1710), que considerou a Tópica como a arte cio engenho, que é a faculdade da invenção. Ainda, em Lógica bamburgensis (1638). de Jungius, há um vasto estudo sobre os L. lógicos, sob o títu­ lo de Dialética (livro V). Mas a Lógica cie PortRoyal (1662) já afirmava a escassa utilidade do estudo dos Tópicos. Arnaulcl disse: "Para for­ mar os homens numa eloqüência judiciosa e sólida, seria útil ensinar-lhes a calar mais que a falar, ou seja, a suprimir e eliminar os pensa­ mentos baixos, comuns e falsos mais que a produzir, como fazem, um amontoado confuso de raciocínios bons e maus, com os quais se enchem livros e discursos" (L.og.. cap. P). O estudo dos L. desse gênero serve, portanto, apenas para reconhecê-los e evitá-los. A Lógica de Port-Boyal enumerava três espécies deles: gramaticais, lógicos e metafísicos (Ibid.. cap. 18). Posteriormente, o estudo dos L. deixou de fazer parte integrante da lógica. Kant generaliza o conceito de lugar lógico entendendo por ele "qualquer conceito, qualquer título sob o qual se agrupem muitos conhecimentos", e fala de uma "Tópica transcendental", cujo objeto é "a determinação cio lugar que cabe a cada concei­ to na sensibilidade ou no conceito puro, segun­ do a diversidade do seu uso" (Crít. K. Pura, Anal. dos princ, Xota às anfibolias dos concei­ tos da reflexão). Nesse sentido, a Tópica coin­ cide com a "doutrina dos elementos" cia Crítica da Razão Pura. LULIANA, ARTE (lat. Ars hdliana. in. í.nllic art: fr. Art lullien; ai. Lullische Kunst). Ars mag­ na de Raimundo Lúlio (1235-1315), ciência uni­ versal que ensina a combinar os termos para a descoberta sintética cios princípios das ciências.

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LUZ1

Diferentemente cia lógica aristotélica. a ars mag­ na pretende ser um procedimento inventivo que não se limita a resolver as verdades co­ nhecidas, mas passa á descoberta de novas. A noção dessa arte, que no Renascimento teve seguidores enttisiastas, entre os quais Agripa, Bovillo e Bruno, foi retomada por Leibniz, que a denominou Característica Geral (v. CARACTE­ RÍSTICA). LUTA PELA VIDA. V. SEI.KCAO NATrRAL LLJZ1 (gr. (péyyoç; lat. Lumeu: in. I.ight: fr. I.umière: ai. Licbt- it. Lume). Critério diretivo do pensamento e da conduta do homem, com­ parado à L. procedente do alto ou de fora. Para Aristóteles, a ação do intelecto ativo sobre a alma humana era comparável à L. que põe em ato as cores que no escuro estão somente em potência (Dean., III, 5, 430 a 15). Os estóicos falavam da faculdade sensível e da represen­ tação cataléptica como de uma "L. natural": "Co­ mo uma L. natural para o reconhecimento das verdades, foram-nos dadas a faculdade sensível e a representação gerada através dela" (SEXTO EMPÍRlCO, Adv. matb.. VII, 259). K Cícero dizia: "A natureza deu-nos minúsculas centelhas que nós, estragados pelos maus costumes e pelas falsas opiniões, apagamos, levando ao total de­ saparecimento da L. natural" (Tusc, III, 1, 2). Plotino fala do Bem como "L. que ilumina o in­ telecto" (íinn., VI, 7, 24). Mas foi só com S. Agostinho que a noção de L. tornou-se funda­ mental, difundinclo-se através de sua obra e permanecendo viva na tradição ocidental. S. Agostinho atribui aos estóicos o mérito de ter visto em Deus "a L. das mentes" (De civ. Dei. VIII. 7). Essa L é a condição para o verdadeiro conhecimento e para a comunicação de verda­ des. A luz da verdade que. partindo de Deus, ilumina diretamente a alma e a guia é o concei­ to central cia filosofia agostiniana. "Mesmo os ignorantes" — diz S. Agostinho — "quando bem interrogados, respondem corretamente acerca de algumas disciplinas, pois neles está presen­ te, na medida em que podem recebê-la, a L. da razão eterna, na qual vêem as verdades imutá­ veis" (Relracliones, I, 4, 4). Isso significa que o funcionamento natural do intelecto humano exige a presença da I.. divina e que. para o ho­ mem, o conhecimento da verdade é a visão cia verdade em Deus, possível graças à direta ilu­ minação divina. Nos primórdios da Fscolástica essa doutrina toi reproduzida por Scotus Krigena (De divis. nat, II, 23), mas nas suas fa­ ses posteriores passou a ser um dos maiores

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pontos cie divergência entre a corrente agostiniana e a aristotélica. Essa divergência 6 tipica­ m ente expressa pelas posições de S. Boaventura e de S. Tomás. S. Boaventura refere-se às palavras de A gostinho, "'que, com letras cla­ ras e razões, dem onstra que a m ente, em seu conhecim ento certo, deve ser dirigida por re­ gras imutáveis e eternas; não através de uma de suas disposições (habitas), mas diretam ente por essas regras, que estào acima dela, na Ver­ dade eterna" (Desciencia Christi, q. 4). S. To­ más admite que "tudo aquilo que se sabe com certeza deriva da L. da razão que, por obra di­ vina, é inata interiorm ente no hom em " (De rer., q. 11, a. 1, a d 13)- Mas interpreta aristotelicamente essa L. como o conhecim ento inato dos primeiros princípios indem onstráveis "co­ nhecidos graças à L. do intelecto agente" (Con­ tra Gent., III, 46). Em outros termos, o conheci­ m ento hum ano da verdade não é visão em Deus, ou iluminação direta por parte de Deus: é o uso de uma "forma" que Deus com unicou à mente hum ana e que constitui, portanto, a "L. natural" dela (S. lh, I, q. 106, a. 1). Dessa L na­ tural S. Tomás distingue a L. da glória (lumen gloriae), que torna a criatura racional "deiforme", capaz de ver a essência divina; nega que a L. da glória possa ser uma disposição natural do hom em (Ibid., I q. 12, a. 5); diz o mesmo sobre o lunien gratiae, a graça justificante (Ibid., I, q. 106, a. 1). O significado do conceito de L. em Agosti­ nho, que é de ilum inação contínua por parte de Deus, conserva-se nas doutrinas cie inspira­ ção agostjjiiana no m undo m oderno e contem ­ porâneo. Para elas, o conhecim ento é uma "vi­ são em Deus": M alebranche (Recherche de Ia vérité, III, 2, 6), Rosmini (Nuovo saggio, § 396) e Gioberti (Introei, alio studio delia fil, 11, p. 175). Por outro lado, de acordo com a segunda interpretação, a L. natural acaba perdendo qualquer conexão teológica. O título que Des­ cartes deu a um diálogo inacabado, que deve­ ria sintetizar sua filosofia, dem onstra o modo como ele entendia es.sa noção: "Busca da ver­ dade com a I.. natural que, por si só, sem o au­ xílio da religião e da filosofia, determ ina as opi­ niões que um hom em honesto deve ter sobre todas as coisas que possam ocupar seu pensa­ mento, L. que penetra até os segredos das ciên­ cias mais curiosas." Assim entendida, a L. natu­ ral é o "bom senso oti razão" que, nas primeiras linhas do Discurso do método, é co nsid era­ da "a coisa mais bem distribuída do mundo";

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sobre ela se diz, em Princípios de filosofia (I, 30): "A faculdade de conhecer, que nos foi dada e que nós denom inam os L. natural, só percebe objetos verdadeiros, porquanto os apercebe, ou seja, conhece-os clara e distinta­ mente." Leibniz, por sua vez, afirma que "a L. natural supõe um conhecim ento distinto" (Nour. ess, I, 1, 21) e Wolff entendia por "L. da alma" a "clareza das percepções" (Psychol. empírica, § 35). Nestes em pregos, essa palavra não tem mais nada do significado tradicional, de L. que, proveniente de fora ou do alto, pe­ netre na m ente hum ana para guiá-la. A L. natu­ ral aqui é som ente a clareza do pensam ento hum ano. Ao falar cia máxima "É preciso seguir a alegria e evitar a tristeza", Leibniz afirma: "Trata-se de um princípio inato, mas que não faz parte cia L. natural, pois não fica sendo co­ nhecido de maneira luminosa" (Nouv. ess, I, 2, 1). O significado que a expressão "as L." assu­ miu no período iluminista é esclarecido por Leibniz. As L. são a clareza da crítica racional aplicada a todos os cam pos possíveis do saber e Lisada como critério diretivo do pensam ento e da conduta do homem. LUZ2 (lat. Lux, in. Light;h. Lumière, ai. Licht; it. Luce). Para certa tradição filosófica, cuja ori­ gem rem ota e provável estaria na religião persa que adorou Mitra com o "Espírito da L." (cf.

CUMONT, Oriental Religíons in Romein Paganism; trad. in., p. 155), a L. é um a realidade pri­

vilegiada de natureza incorpórea, via de comu­ nicação entre as regiões superiores do mundo e do hom em . A s características mais evidentes dessa doutrina são as seguintes: I- a L. é uma realidade superior privilegiada: é D eus ou de D eus; 2a a L. é incorpórea e serve de ligação entre o m undo incorpóreo e o m undo corpóreo; 3a a L. é a forma geral (essência ou na­ tureza) das coisas corpóreas. A s primeiras duas teses são de caráter religioso e de claríssima origem oriental. A terceira é propriam ente filo­ sófica e caracteriza o agostinism o medieval. Na filosofia ocidental, a metafísica da L. é introduzida por Parm ênides: "E como se diz que todas as coisas são L. e noite, e como L. e noite estào presentes nisto e naquilo, segundo suas possibilidades, o todo é pleno de L. e ao m esm o tem po de invisível treva; L. e trevas são iguais, pois nenhum a prevalece sobre a outra" (Fr 9). A substancializaçào da L. é freqüente em Enóadas de Plotino, em que às vezes não é fácil distinguir a L. com o metáfora da L. como substância (p. ex., Enn., V, 3, 9; IV, 3, 17). Apa­

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rece com toda clareza nas especulações dos gnósticos. de direta proveniência maniqueísta: '"Antes que o universo visível tivesse origem subsistiam dois princípios supremos: um bom e o outro perverso. A morada do primeiro, Pai de Grandeza, era na região da I.. File multiplicavase em cinco hipóstases: Intelecto, Razão, Pen­ samento, Reflexão, Vontade" (Bi ONAUTI. Frcunnientignostici, 1923, p. 55). \um dos livros da Cabala, o Zobar, a I.. é entendida como subs­ tância primitiva que às vezes aparece como céu, portanto como elemento no qual os outros se dissolverão no fim dos tempos (cf. SKROIYA, La Kabbüle, Paris, 1957, pp. 346 ss.). Essa dou­ trina passou para a filosofia hebraica da Idade Média e, dela. para a escolãstica cristã. Nesta, foi característica da corrente agostiniana, defen­ dida especialmente pelos íranciscanos. No séc. XIII, Roberto Grosseteste afirmava que todos os corpos têm uma forma comum que se une à matéria-prima antes de sua especificação nos vários elementos. Esta forma primeira é a L "A L." — diz ele — "difunde-se por si em todas as direções, de tal modo que de um ponto luminoso é imediatamente gerada uma esfera de L tão grande quanto se queira, a menos que encontre o obstáculo de algum corpo opa­ co. Por outro lado, a corporeidade é aquilo que tem por conseqüência necessária a extensão da matéria nas três dimensões" (De incboatioiie formamm, ecl. Baur, 51-52). Roberto identifica­ va assim a difusão instantânea da L. em todas as direções com a tridimensionalidade do espa­ ço, portanto L. com espaço. Quase nos mes­ mos termos Bonaventura de Bagnorea afirmava que a L. não é um corpo, mas a forma de todos os corpos: "A L. é a forma substancial cie todo corpo natural". Todos os corpos dela partici­ pam em maior ou menor grau; segundo essa participação têm maior ou menor dignidade e valor na hierarquia dos seres. Fia é o princípio

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cia formação geral dos corpos; a sua formação especial é devida â superveniência de outras formas, elementares ou mistas (In Scut.. II. d. 13 d. 2 ei. 1-2). Na segunda metade do mesmo séc. XIII a Pospeclira de Witel expõe idéias muito semelhantes. "A ação divina expande-se no mundo através da L. As substâncias inferio­ res recebem cias substâncias superiores a L. proveniente da fonte da divina bondade; em geral o ser de cada coisa provém do ser divino, toda intelegibilidade provém do intelecto divi­ no e toda vitalidade, da vida divina. O princí­ pio, o meio e o fim de todas essas influências é a L. divina, pela qual, através da qual e para a qual todas as coisas estão dispostas" (Perspecliva. ed. Baeumker, pp. 127-28). A óptica, que estuda as leis da difusão cia L, constitui inteira­ mente a física, porquanto todo o mundo físico é determinado pela difusão da L. (IbicL, p. 131). A última manifestação dessa física ou metafísica da L. talvez seja o projeto de Descartes de des­ crever o mundo do ponto de vista da L. "Assim como os pintores, não podendo representar no quadro todas as diversas faces de um corpo, escolhem uma das faces principais que voltam para a L e, deixando as outras na sombra, per­ mitem que delas apareça só o que se pode ver, também eu, temendo não poder pôr no meu discurso Ino projetado livro sobre o Mundo, que depois não publicoul tudo que tinha em mente, projetei expor amplamente apenas aquilo que pensava sobre a I.. Depois, na oca­ sião, projetei acrescentar algo sobre o sol e as estrelas fixas, porque é dessas fontes que ela deriva quase inteiramente; sobre os céus, por­ que a transmitem; sobre os planetas, os come­ tas e a terra, porque a refletem; em particular sobre todos os corpos que estão na terra, por­ que são coloridos, transparentes ou luminosos; por fim. sobre o homem, porque é seu especta­ dor" (Discours, V).

M V. MICROCOSMO. MAE (gr. (J.iíxrjp). Segundo Platão, a mãe do MACROCOSMO.

universo é a matéria amorfa, assim como o pai é o modelo eterno segundo o qual o Demiurgo o cria. "Essa mãe e receptora de tudo, de tudo o que de visível e sensível é criado, não deve ser chamada de terra, nem de ar, nem de fogo, nem de água, nem de outra coisa que destas nasça ou da qual estas nasçam; é uma espécie invisível e amorfa, capaz de tudo acolher, par­ tícipe do inteligível e difícil de se conceber" (Tini., 51 a-b). MAGIA (gr. (j.ayiKr) TÉ/VT); lat. Magia; in. Magic; fr. Magie, ai. Magie, it. Magia). Ciência que pretende dominar as forças naturais com os mesmos procedimentos com que se sujei­ tam os seres animados. O pressuposto fun­ damental da M. é, portanto, o animismo; sua melhor definição, ciada por Reinach, é de "estratégia do animismo" (Mytbes, citltes et religions, II, Intr., p. XV). Instrumentos des­ sa estratégia são: encantamentos, exorcismos, filtros e talismãs, por meio dos quais o mago se comunica com as forças naturais ou celestiais ou infernais, convencendo-as a obedecer-lhe. O caráter violento ou matreiro das operações com que se produz a obediência das forças na­ turais é outra característica da M., estratégia de assalto, que quer conquistar de vez, do contrá­ rio da estratégia da ciência moderna, que tende à conquista gradativa da natureza, sem lançar mão de meios violentos ou sub-reptícios. A M. é de origem oriental e difundiu-se no Ocidente no período greco-romano (cf. F. CIIMONT, Oriental Religions in Roman Paganism, cap. VII). Circulou mais ou menos oculta­ mente durante a Idade Média e voltou a agir ás claras durante o Renascimento, período em que muitas vezes foi considerada complemento da filosofia natural, ou seja, como a parte desta

que possibilita agir sobre a natureza e dominá-la. Era assim considerada por Pico delia Mirandola (De hominis dígnítate, fl. 136 v.) e por todos os naturalistas do Renascimento. Johannes Reuchlin, Cornélio Agripa, Teofrasto Paracelso, Gerolamo Fracastoro, Gerolamo Cardano, Giovambattista delia Porta, todos visam a eliminar o caráter diabólico atribuído durante a Idade Média à M., transformando-a na parte prática da filosofia. Delia Porta distinguiu nitidamente a M. diabólica, que se vale das ações dos espí­ ritos imundos, da M. natural, que não ultrapas­ sa os limites das causas naturais e cuja prática parece maravilhosa apenas porque seus proce­ dimentos permanecem ocultos (Magia naturalís, 1558, I. 1). Essa distinção foi repetida por Campanella, que também distinguia uma M. di­ vina que opera por virtude da graça divina, como a de Moisés e dos outros profetas (Del senso delle cose e delia magia, 1604, IV, 12). A respeito da M. no Renascimento, cf. GARIN, Medioevo eRinascimento, 1954, cap. III. Com o progresso da ciência, elimina-se o pressuposto da M., que é animismo, retiran­ do-se as bases da estratégia de assalto em que ela consistia. Francis Bacon, apesar de ser o maior herdeiro dessa exigência prática que a M. representava, compara-a ás novelas de ca­ valaria do ciclo do rei Artur, considerando-a proveniente da metafísica que indaga as for­ mas, ao passo que da física, que é a investiga­ ção das causas eficientes e materiais, nasce a mecânica como ciência prática (De augm. scient., III, 5). Portanto, no mundo moderno a M. desapareceu completamente dos horizon­ tes da ciência e da filosofia. No que concerne a esta última, constitui exceção a obra de Novalis, que no período romântico defendeu um 'idealismo mágico', segundo o qual boa parte das atividades humanas mais comuns é M.

MAGNANIMIDADE

Novalis diz: 'O uso ativo dos órgãos nada mais é que pensamento mágico, taumatúrgico, ou uso arbitrário do mundo dos corpos; de fato, a vontade outra coisa não é senão magia, enérgi­ ca capacidade de pensamento" (Fragmente, § 1731). E exprimia assim o princípio de seu idealismo mágico: "O maior mago seria aquele que soubesse também encantar-se a tal ponto que suas próprias magias lhe parecessem fenô­ menos alheios e autônomos. E não poderia ser esse o nosso caso?" (Ibid, § 1744). Alheia ao mundo da filosofia e da ciência, a M. permanece como uma das categorias interpretativas da sociologia e da psicologia. Sobre a função da M no homem primitivo, Malinowski assim se expressa: "A M. fornece ao ho­ mem primitivo um número de atos e de cren­ ças rituais já feitos, uma técnica mental e prática definida que serve para superar os obstáculos perigosos em cada empreendimen­ to importante e em cada situação crítica. (...) Sua função é ritualizar o otimismo do homem, reforçar sua fé na vitória da esperança sobre o medo" (Magic Science and Religion. ed. Anchor Book, p. 90). Mas a atitude primitiva não se encontra só no homem primitivo: o ho­ mem civilizado nela reincide em determinadas circunstâncias, que vão desde a falta de técni­ cas aptas a enfrentar situações difíceis até a in­ capacidade de descobrir como utilizar essas técnicas. Crenças mágicas são, portanto, fre­ qüentes na vida diária, ainda que muitas vezes não confessadas. Não sem razão, Sartre cha­ mou de comportamento mágico a reação emo­ tiva patológica que às vezes é a base de distúr­ bios mentais (v. EMOÇÃO). Além disso, para Jung, a origem da M. é a idéia de uma energia universal, latente no inconsciente de todo o gê­ nero humano e identificada com a idéia de Deus (Psicologia do inconsciente, 1942, cap. 5). Lévi-Strauss fez uma analogia entre a terapêuti­ ca mágica e a psicanálise (v.) porque, através da conscientização dos conflitos internos do paciente, ambas possibilitam uma experiência específica na qual os conflitos podem desen­ volver-se e manifestar-se livremente (Anthropologie stmcturale. 1958, pp. 217 ss.). MAGNANIMIDADE (gr. (ieyaÀo\(/-uxía; lat. Magrumimitas; in. Magnanimíty. fr. Magnanimité; ai. Grossmuth; it. Magnanimitã). Segun­ do Aristóteles, a virtude que consiste em de­ sejar grandes honras e em ser digno delas. Aristóteles dá muito relevo a essa virtude, porquan­ to ela acompanha e "engrandece" todas as

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MAIS-VALIA

outras: "Quem é digno de pequenas coisas e se considera digno delas é moderado, mas não magnânimo; a M. é inseparável da grandeza, assim como a beleza é inseparável de um cor­ po grande, já que os corpos pequenos serão graciosos e proporcionais, mas não belos" (Et. nic, IV, 3, 1123 b 71. A insistência nessa virtude é o sinal da persistência em Aristóteles da ética aristocrática arcaica (cf. JAKGF.R, Paidéia, I; cap. 1; tracl. it., I, pp. 43 ss.). Para Des­ cartes. VI. é o mesmo que generosidade; identi­ fica-se com a virtude de avaliar-se de acordo com seu próprio valor e não sentir ciúme ou inveja (Pass. de lâme, arts. 156-61). MAIÊUTICA (gr. M.oaeimxti xéAvri; in. Maieutics-, fr. Maícutique; ai. Müeittik; it. Maieulica). Arte cia parteira; em Teeteto de Platão, Sócrates compara seus ensinamentos a essa arte, porquanto consistem em dar à luz co­ nhecimentos que se formam na mente de seus discípulos: "Tenho isso em comum com as parteiras: sou estéril de sabedoria; e aquilo que há anos muitos censuram em mim, que interro­ go os outros, mas nunca respondo por mim porque não tenho pensamentos sábios a ex­ por, é censura justa" Cleet, 15c). MAIORIA DAS VEZES, NA (gr. È7ti xò noXv; in. Mostly. ai. Zumeist; it. Perlopiü). Esta ex­ pressão é empregada por Aristóteles para indi­ car o que acontece de modo uniforme e cons­ tante, mas nem sempre nem necessariamente; acidental é o que não acontece sempre nem na maioria das vezes {Mel., VI, 2, 1026 b 30). O que é sempre ou necessariamente constitui objeto das ciências teóricas; o que é na maioria das vezes constitui objeto das ciências praxipoiéticas; o acidental não pode ser objeto de ciência. Heidegger empregou essa expressão para indicar o conjunto dos modos de ser que constituem a "medianidade" (Seín und Zeít, § 9). V. MHniANIDAnií. MAIS-VALIA (in. Surplus value-, fr. Plus-vaItie, ai. Mehnvert; it. Phisvalore). Um dos con­ ceitos fundamentais da economia de Marx. Uma vez que o valor nasce do trabalho e outra coisa não é senão trabalho materializado, se o empresário retribuísse ao assalariado o valor total produzido pelo seu trabalho, não existiria o fenômeno puramente capitalista do dinheiro que gera dinheiro. Mas como o empresário não retribui ao assalariado aquilo que eorresponde ao valor por ele produzido, mas apenas o custo da sua força de trabalho (o suficiente para pro­ duzi-la, o mínimo vital), temos o fenômeno da

MAIS-VIDA, MAIS-QUE-VIDA

M., que 6 a parte do valor produzido pelo traba­ lho assalariado da qual o capitalista se apodera (cf. Das Kapital, I, seç. 3). MAIS VIDA, MAIS-QUE-VIDA (ai Mehrí.eben, Mehr-als-I.eben). Expressões cunhadas por G. Simmel para indicar, respectivamente, o processo da vida e as formas às quais ele clã lu­ gar. Como "M.-vida", a vicia é o processo que supera continuamente os limites que impòe a si mesma. Como "M.-que-vida", a vida 6 o conjunto das formas finitas que emergem do processo vital e a ele se contrapõem (Lebensanscbcmiing, 1918, pp. 22-23). MAL (gr. xò KOCKÓV; lat. Malim. in. liril; fr. Mal; ai. Base, it. Mede). Este termo tem uma va­ riedade de significados tào extensa quanto a do termo bem (v.), do qual é correlativo. Do ponto de vista filosófico, entretanto, é possível resumir essa variedade em duas interpretações fundamentais dadas a essa noção ao longo da história da filosofia: Ia noção metafísica do M. segundo a qual este é a) o nào-ser, ou h) uma dualidade no ser; 2- noção subjetivista, segun­ do a qual o M. é o objeto de aptidão negativa ou cie um juízo negativo. Ia A concepção metafísica do M. consiste em considerá-lo como o nào-ser diante do ser, que 6 o bem, ou em considerá-lo como uma dualidade do ser, como uma dissensào ou um conflito interno do próprio ser. ei) A concepção do M. como não apare­ ce nos estóicos e 6 claramente formulada pelos neoplatônicos. Por considerarem que a existên­ cia dos males condiciona a dos bens, de tal modo que, p. ex., não haveria justiça se não houvesse ofensas, não haveria trabalho se não houvesse indolência, não haveria verdade se não houvesse mentira, etc, os estóicos, em particular Crisipo, achavam que os chamados males não são realmente males, porque neces­ sários à ordem e ã ecnom ia do universo (AILO Gúuo, Nucl. At!., 1). Marco Aurélio ex­ primia perfeitamente este ponto de vista dizen­ do: "Toda vez que arrancas uma partícula qual­ quer da ordem e da continuidade do inverso a integridade do todo fica mutilada e comprome­ tida. (...) K realmente extirpas, na medida do teu poder, alguma coisa do universo toda vez que te queixas do que aconteceu; em um certo sentido, em assim fazendo, estás condenando à morte o universo inteiro em teu desejo" (Ric, V, 8). Uma vez que não se pode amar uma coi­ sa e considerá-la má, o ponto de vista estóico eqüivale a considerar bom tudo o que existe e

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a reduzir o M. ao nào-ser. Essa redução tornase explícita no neoplatonismo. Plotino diz: "Se tais são os entes e se tal é o que está além dos entes [isto é, Deusl, então o M. não existe nem naqueles nem neste, já que tanto um quanto o outro são bem. Conclui-se, portanto, que, se existir, existe no que não é. e que é uma espé­ cie de nào-ser. encontrando-se, pois, nas coisas mescladas de nào-ser ou partícipes do nào-ser" (Hnn.. I, 8, 3). Nesse sentido, Plotino identifica o M. com a matéria: a matéria é o nào-ser. "O M. não consiste na deficiência parcial, mas na deficiência total: o que carece parcialmente de bem não é mau e pode até ser perfeito em seu gênero. Mas quando há deficiência total, como na matéria, tem-se o verdadeiro M., que não tem parte alguma de bem. A matéria não tem sequer o ser que lhe possibilitaria participar do bem: pode-se dizer que ela é apenas em sen­ tido equívoco; na verdade, a matéria é o pró­ prio nào-ser" (Ibid., 1, 8, 5). A identificação do M. com o nào-ser tornase tradicional na filosofia cristã. É retomada por Clemente de Alexandria (Slrom., IV, 13), por Orígenes (Depriuc, 1, 109) e por S. Agostinho, que a difunde no mundo ocidental. S. Agosti­ nho diz: "Nenhuma natureza é M., e esse nome indica apenas a privação do bem" (Deciv. Dei. XI, 21). Portanto, "todas as coisas são boas, e o M. não é substância porque se fosse substân­ cia seria bem" (Conf, VII, 12). Hoécio afirma­ va: "O mal é nada, porque não o pode fazer Aquele que pode todas as coisas" (Pbil. cons., III, 12). A Escolástica é igualmente unânime nesse aspecto. S. Anselmo reiterou a doutrina do M. como nào-ser nos mesmos termos de S. Agostinho (De casn diabo/i. 12-16). Com Maimônides, a escolástica hebraica repete a mesma tese (Guia dos perplexos, III, 10), na escolástica cristã, é repetida por agostinianos, como Alexandre de Hales (S. Th, I, q. 18, 9), por aristotélicos, como Alberto Magno (S. Tb.. 1, cj. 27, 1), e por S. Tomás, liste último diz: "Uma vez que bem é tudo o que é apetecível e uma vez que a cada natureza apetece seu ser e sua perfeição, cumpre dizer que o ser e a perfeição de qualquer natureza são essencialmente bem. Portanto, não pode acontecer que 'M.' signifi­ que algum ser, alguma forma ou natureza; con­ clui-se, pois, significa apenas a ausência do bem" (S. Th, I, q. 48, a. 1) O verbo ser pode referir-se ao M. somente no sentido ''da verda­ de da proposição", como quando se diz que "a cegueira é do olho", sentido que não implica

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de modo algum a realidade (entitas rei) (íbid, I. q. 48. a 2). Após as observações cépticas de Pierre Bayle sobre a compatibilidade do M. (em todas as suas formas) com a onipotência divina e com a perfeição do universo, a teodicéia de I.eibniz está fundamentada na doutrina tradi­ cional do M como negação do bem. "Os pla­ tônicos, S. Agostinho e os escolásticos", diz Leibniz, "tiveram razão em dizer que Deus é a causa material do M.. que consiste em sua par­ te positiva, e não da forma dele, que consiste na privação, assim como se pode dizer que a corrente é a causa material do atraso na velo­ cidade de um barco, sem ser a causa da forma do próprio atraso, ou seja, dos limites desta ve­ locidade" (Théod., I, 30). Essas considerações de Leibniz fundamentaram todas as tentativas ultcriores de teodicéia (v.). Por outro lado, a nulidade do M. continuou sendo a tese adotada pelas doutrinas que identificam o ser com o bem ou, em termos modernos, com a racio­ nalidade ou o dever-ser; isso acontece em Hegel, para quem o M., entendido como vonta­ de malévola, é "a nulidade absoluta" dessa vontade (Ene, § 512). Do ponto de vista dos idealismos absolutos, como o de Hegel e de sua escola, apresenta-se novamente o proble­ ma tradicional da teodicéia: o da possibilidade do M.; a única solução disponível é ainda a tra­ dicional: a nulidade do M. Gentile dizia: "Não é erro e verdade, mas erro na verdade, como seu conteúdo que se resolve na forma; nem M. e bem, mas M. do qual o bem se nutre no seu absoluto formalismo" (Teoria getierale dello spirito, XVI, 10). Croce por sua vez afirmava: "O M., quando real, não existe senão no bem, que se lhe opõe e o vence: portanto, não exis­ te como fato nositívo: quando, porém, existe como fato positivo, já não é um M., mas um bem (e por sua vez tem como sombra o M., contra o qual luta e vence)" (Fíl. delia pratica, 1909, p. 139). Não-ser. nulidade ou irrealidade do M. é tese redescoberta toda vez que, de qualquer forma, se propõe a identidade entre ser e bem. b) A segunda concepção metafísica do M. considera-o como um conflito interno do ser, como a luta entre dois princípios. Segundo es­ sa concepção, o domínio do ser divide-se em dois campos opostos, dominados por dois prin­ cípios antagônicos. O modelo dessa concepção é a religião persa, de Zarathustra ou Zoroastro, que contrapunha á divindade (Abura Mazda

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ou Ormazd) uma antidivindade (Ahriman), que é o princípio do M. (cf. PETTAZZONI, La religione di Zarattistra, Bolonha, 1921; DuCHF.SKE-GUILLF.MIN, Orniazd et Ahriman, Paris, 1953). Essa doutrina constitui uma solução ex­ tremamente simples para o problema do M., pois, ao mesmo em que limita o poder das divindades, não trai o monoteísmo porque con­ cebe a potência limitante como antidivindade. Segundo essa solução, o M. é real tanto quanto o bem, e, como tal, tem causa própria, antitética à do bem. Essa doutrina evita a redução do M. ao nada, tão pouco convincente para o homem comum, e decorre do mesmo tipo de justifica­ ção de que lança mão a negação metafísica da realidade do M. O dualismo persa retornou no culto de Mitra: personagem que. segundo rela­ to de Plutarco. ocupava posição intermediária entre o domínio da luz, pertencente a Ahura Mazda, e o domínio das trevas, pertencente a Ahriman (De Iside et Osiride, 46-47; cf. I\ CUMONT, The Mysteries of Mithra, cap. I). Retornou também, com algumas atenuações, em algumas seitas gnósticas dos primeiros .sé­ culos da era vulgar, especialmente na de Hasüides (cf. BUONAUTI, Frammentignosticí, 1923, pp. 42 ss.), bem como na seita dos maniqueus, contra os quais S. Agostinho assenta uma de suas principais polêmicas (v. MAMQUF.ÍSMO). Mas ü filosofia nunca aceitou essa solução para o problema do M. na forma simples como foi originariamente formulada pela religião persa; nunca admitiu a separação dos dois princípios. Quando aceitou essa solução, modificou-a no sentido de incluir ambos os princípios em Deus, considerando o princípio do bem e o do M. unidos em Deus, justamente em virtude de seu conflito. Xo séc. XVII, Jacob Bóhme, insistindo na presença, em todos os aspectos da realida­ de, de dois princípios em luta, que são o bem e o M., atribuía a causa dessa luta à presença em Deus dos dois princípios antagonistas, que ele indicava com vários nomes: espírito e natu­ reza, amor e ira, ser e fundamento, etc. Em Deus, esses dois princípios estariam fortemen­ te ligados, numa espécie de luta amorosa. Bõhme dizia: "A divindade não repousa tranqüila, mas suas potências trabalham sem trégua e lutam amorosamente; movem-se e combatem: como acontece com duas criaturas que brincam uma com a outra, com amor abraçam-se e estrei­ tam-se; ora uma é vencida, ora a outra, mas o vencedor logo se detém e deixa que a outra retome seu jogo" (Aurora oderdieMorgenróte

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im An/gang, 1634, cap. XI, § 49). Em outras palavras, o dualismo do bem e do M. está em Deus mesmo e nele os dois princípios travam um combate "amoroso", no qual nenhum é de­ finitivamente derrotado. A subcorrente do pen­ samento filosófico chamada teosofia (v.) sem­ pre adotou essa solução para o problema do M.: no período romântico, retornou em Indaga­ ções sobre a essência da liberdade humana

(1809), de Schelling, em que este sustentava, assim como Bòhme, que em Deus está nào se') o ser, mas, como fundamento desse ser, há um substrato ou natureza que se distingue dele e 6 um anseio obscuro, um desejo inconsciente de ser, de sair da escuridão e alcançar a luz divina ( Werke, I, VIII, p. 359). No entanto, Schelling afirmava que, estando esses dois princípios estreitamente unidos em Deus, nào há nele distinção entre bem e M.: com a separação desses princípios no homem, nasce a possibi­ lidade do bem e do M., e de seu conflito (Ibid.. p. 364). Ainda em tempos relativamente recen­ tes, em relação mais direta com a religião persa, solução semelhante para esse problema foi pro­ posta por Ci. T. Fechner, que admitia haver em Deus a mesma dualidade entre vontade racio­ nal e instintos obscuros encontrada no homem (Zend Aresta. 5S ed., 1922, pp. 244-45). É possível entrever soluções análogas, porém me­ nos explicitas, em algumas formas de espiritualismo e na psicanálise (v.), mas trata-se, muitas vezes, de soluções de caráter religioso ou teosófico, que dificilmente podem ser con­ sideradas explicações filosóficas propriamente ditas. 2a A segunda concepção fundamental do M. nào o considera realidade ou irrealidade, mas objeto negativo do desejo ou, em geral, do juízo de valores. Kssa concepção é admitida por todos os que defendem „ chamada teoria subjetivista do bem. Hobbes, Spinoza e Locke compartilham essa teoria (para os relativos tex­ tos, v. IJI-:M), à qual Kant deu forma mais geral. Segundo Kant, "os únicos objetos da razão prá­ tica são o bem e o M. Pelo primeiro entendese um objeto necessário da faculdade de dese­ jar; pelo segundo, um objeto necessário da faculdade de repelir; mas ambos somente se­ gundo o princípio da razão" (Crít. R. Prática, cap. 2). Kant insistia sobretudo em retirar as determinações de bem e M. (em alemão, Cinte Rose) "da esfera da faculdade inferior de dese­ jar", à qual pertencem o agradável e o doloroso

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(em alemão, Wohl e Ubel). "O que devemos chamar de bem" — dizia ele — "é o objeto da faculdade de desejar segundo o juízo dos ho­ mens dotados de razão; o M. deve ser objeto cie aversão aos olhos de todos, de tal modo que para tais juízos, além dos sentidos, também há necessidade da razão" (Ibid). Contudo Kant concordava com a teoria subjetivista, ao julgar que o bem e o M. nào podem ser determinados independentemente da faculdade de desejar do homem, o que significa que eles nào são realidade ou irrealidade por si mesmos. A filo­ sofia moderna e contemporânea compartilha essa visão. Para ela, M, é simplesmente um desvalor, objeto de um juízo negativo de valor, e implica, portanto, referência à regra ou norma na qual se fundamenta o juízo de valor (v. VA­ LOR). Assim, p. ex., o terremoto é um M. quan­ do destrói vidas humanas ou fontes de subsis­ tência e bem-estar humano, mas nào é um M. quando nào provoca esse tipo de destruição, pois nesse caso nào contraria o desejo ou a exi­ gência humana de sobrevivência e bem-estar. Seja qual for o ponto de vista cie que se consi­ dere essa exigência, ela se expressa em regras ou normas que podem entrar em conflito com acontecimentos naturais ou com comportamen­ tos humanos. Esses acontecimentos ou com­ portamentos são chamados de males, com base nes.se conflito, e não porque tenham um stalus metafísico especial. Era desse ponto de vista que Kant interpre­ tava o "M. radical" da natureza humana como um princípio que alicerça o comportamento de todos os seres racionais finitos: afastar-se, oca­ sionalmente, da lei moral (Religioii 1, 3). F.sse princípio nada mais expressa que a possibilida­ de de transgredir as normas morais próprias do homem, definindo-se, então, o M. radical como a possibilidade geral de desvalor na conduta do homem. MAL RADICAL. V, MAL. MALTHUSIANISMO (in. Malthusianism, fr. Malthusianisme; ai. Malthusianismus. it. Malthusianesimo). 1. Doutrina econômica de Thomas Robert Malthus (1766-1834), exposta em Ensaio sobre apopulação(lf)8), que parte do princípio de que a população e os meios de subsistência crescem em proporções diferen­ tes, passando-se a considerar os meios para evitar o desequilíbrio entre ambos. Malthus ba­ seava-se no desenvolvimento da América do Norte, observando que ali a população tendia a crescer em progressão geométrica, duplicando

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a cada vinte e cinco anos, enquanto os meios de subsistência tendiam a crescer em progres­ são aritmética. Segundo Malthus, o desequilí­ brio assim determinado provoca a intervenção dos meios repressivos (miséria, vício e outros flagelos sociais) que dizimam a população, e nào há outra maneira de evitar a ação de tais meios a não ser substituindo-os por meios pre­ ventivos, que consistem no controle da natali­ dade. Para Malthus, portanto, o único remé­ dio para os males sociais seria a abstenção de casar-se por parte das pessoas que não estejam em condições de prover ao sustento dos filhos, recomendando-se ao mesmo tem­ po "a conduta estritamente moral durante esse período de abstenção". Essa doutrina propôs um problema que continua vivo e atual na sociedade contemporânea, levandose em conta os enormes índices de cresci­ mento da população mundial. 2. Em geral, a teoria e a prática do controle voluntário da natalidade. MANEIRISMO (in. Manner, fr. Manière, ai. Manier, it. Mauiera). A partir do séc. XVDI essa palavra foi usada para designar uma forma me­ nor de expressão artística, produto da busca malsucedicla de originalidade. Kant diz "O M. é uma espécie de contrafação, que consiste em imitar a originalidade e, portanto, em afastar-se o máximo possível dos imitadores, sem, po­ rém, possuir o talento de ser exemplar por si mesmo. (...) O precioso, o rebuscado e afetado que querem distinguir-se do comum mas care­ cem de talento lembram os modos de quem se escuta ou se movimenta como se estivesse em cena" (Cri/, doJuízo, § 49). No mesmo sentido, Hegel definia o M. como a forma de arte em que o artista, em vez de conservar a "objeti­ vidade" da arte, procura absorvê-la em sua individualidade "particular e acidental", con­ trapondo-a. portanto, á originalidade, eme é a "verdadeira objetividade" da obra de arte (Vorlesungen iiber die Asthetik, ed. Glockner, I, pp. 391 ss.). MANIFESTAÇÃO (in. Manifesta tion; fr. Manifestation; ai. Manifestation; it. Manifestazione). O mesmo que expressão, revelação ou fenômeno (v.), no sentido positivo deste últi­ mo termo. MANIQUEÍSMO (in. Manicheism; fr. Manichéisme, ai. Manichüismus; it. Manicbeismo). Doutrina do sacerdote persa Mani (lat. Manichaeus), que viveu no séc. III e proclamou-se o Paracleto, aquele que devia conduzir a doutri­

MAQUIAVELISMO

na cristã ã perfeição. O M. é uma mistura ima­ ginosa de elementos gnósticos, cristãos e orien­ tais, sobre as bases do dualismo da religião de Zoroastro. Admite dois princípios: um cio bem, ou princípio da luz, e outro do mal, ou prin­ cípio das trevas. No homem, esses dois princí­ pios são representados por duas almas: a corpórea, que é a do mal, e a luminosa, que é a do bem. Pode-se chegar ao predomínio da alma luminosa através de uma ascese particular, que consiste em três selos: abstenção de alimentarse de carne e de manter conversas impuras (signaculum oris); abstenção da propriedade e do trabalho (signaculum nianus); abster-se do casamento e do concubinato (sig)iaculum sinus). O M. foi muito difundido no Oriente e no Ociden­ te; aqui durou até o séc. VII. O grande adversá­ rio do M. foi S. Agostinho, que dedicou grande número de obras á sua refutaçào. Cf. H. C. Pi IKCH, Le manichéisnw. sou fondateitr. sa doctrine, Paris, 1949. MÂNTICA(gr. u.avTiKti téAvr); in. Mantic, fr. Mantique, ai. Mantica; it. Mantica). Visão an­ tecipada ou ciência das coisas futuras. V. assim que Cícero define a M. (De diviu, I, 1). ao citar e discutir o modo como essa ciência era enten­ dida pelos estóicos. Para estes, a M. fundamen­ ta-se na ordem necessária do mundo, no des­ tino: ao se interpretar essa ordem é possível antecipar os acontecimentos que ela determi­ na. "Os estóicos" — diz Cícero — "afirmam que só o sábio pode ser adivinho." Crisipo define a M. com estas palavras: "faculdade de co­ nhecer, ver e explicar os sinais por meio dos quais os Deuses manifestam sua vontade aos homens" (De diviu, II, 63, 130). MAQUIAVELISMO (in. Ma cbia velianism; fr. Machiavélisme, ai. Macbiavelismus; it. Machiavellismo). Doutrina política cie Maquiavel ou o princípio no qual ela é convencionalmen­ te resumida. A doutrina política do M. tem explicitamente o objetivo de indicar o caminho por meio do qual as comunidades políticas em geral (e a italiana em particular) podem renovar-se conservandose, ou conservar-se renovando-se. Tal caminho é o retorno aosprincípios, conforme a concep­ ção que o Renascimento (v.) tem da renovação do homem em todos os campos. O retorno aos princípios de uma comunidade política supõe duas condições: Ia que suas origens históricas sejam claramente reconhecidas, o que só pode ser feito por meio de uma investigação históri­ ca objetiva; 2- que sejam reconhecidas, em sua

MAQUIA VELISMO

verdade afetiva, as condições a partir das quais ou através cias quais o retorno deve ser realiza­ do. A objetividade historiogrática e o realis­ mo político constituem, assim, os dois pontos básicos do M. original. Graças a este segundo aspecto, Maquiavel foi considerado fundador da ciência empírica da política, ou seja, discipli­ na empírica que estuda as regras da arte de governar sem outra preocupação além cia eficãciadessas regras. Constituem parte integrante da doutrina de Maquiavel o conceito de acaso, que com sua imprevisibiliclade é sempre con­ dição da atividade política, e o conceito conexo do empenho político, em virtude do qual os homens "nunca devem entregar-se", no senti­ do de que* não devem desesperar nem renun­ ciar ã ação. mas participar ativamente dos acon­ tecimentos, pois o resultado deles, dada a presença do acaso, nunca é predeterminado. (Sobre a doutrina de Maquiavel e suas interpre­ tações, v. G. SASSO, A'. M., storia delsuopeusiero político, Nápoles, 1958.) Por M. entende-se também o princípio no qual. a partir do séc. XVII, a doutrina de Maquiavel passou a ser convencionalmente resu­ mida: de que "o fim justifica os meios". Tal máxima, porém, não foi formulada por Maquiavel, que* não considera o listado como fim ab­ soluto e não o julga dotado de existência supe­ rior à do indivíduo (no sentido atribuído, p. ex., por hixÍkl, Fil. do dir., § 337). Além disso. Maquiave-1 tinha grande simpatia pela honesti­ dade e pela lealdade na vida civil e política; portanto, admirava os Estados regidos por es­ sas virtudes, como p. ex. o dos romanos e dos suíços. Entretanto, como dissemos, seu objeti­ vo era formiilar regras eficazes de governo, tendo como base a experiência política antiga e nova. considerando que essa eficácia era indepen­ dente do caráter moral ou imoral das regras. Por outro lado, percebeu que* a moral e a reli­ gião podem ser — como ás vezes são — forças políticas que, como todas as outras, condicio­ nam a atividade política e seu êxito; percebeu também que às vezes isso não acontece e que* a ação política se mostra eficaz mesmo quando exercida em sentido contrário ao das leis da moral. Como essa era a realidade mais freqüente nas sociedades de seti tempo (especialmente a italiana e a francesa) — que* ele chama de "cor­ ruptas" — e como Maquiavel tem sobretudo em vista a aplicação de suas regras políticas à socie­ dade italiana para a constituição de um Estado unificado, explica-se sua insistência em certos

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preceitos imorais de conduta política, o que* acabou sendo mal expresso ou generaliza­ do na máxima de que "o fim justifica os meios". Esta, na realidade, foi a máxima da moral je­ suíta: Hegel cita-a na forma dada pelo padre jesuíta Busenbaum (1602-68): "Quando o fim é lícito, os meios também são lícitos"' (Medulla tbeo/ogiaeniora/is, IV, 3. 2), e justifica-a do pon­ to de vista formal (como expressão tautológica) e substancial (como "consciência indetermi­ nada da dialética do elemento positivo") (Fil. do dir, § 140, d); cf., sobre o M.. F. MHMI-CKK, Díe Idee der Staatsrdson in der neueren (Jescbichle, I925: trael. in., Machiavellianism, 1957). MARXISMO. V. COMUNISMO. MATHRIAI.ISMO DIALÉTICO, MATKKIALISMO HISTÓRICO. MATEMA (gr. uá8r||ia). Tudo o que é obje­ to cie aprendizagem. Nesse sentido. Platão diz que* a idéia do bem é "o maior M." (Rep.. VI, 505 a). Para Sexto Empírico, M. implicava, além cia coisa apreendida, quem a aprende e o mo­ do de aprender (Adr. math, I, 9), entendendo por "matemáticos" todos os cultores cie ciên­ cias, além dos filósofos. Kant restringiu essa pa­ lavra, designando com ela as proposições da matemática que* são obtidas por meio ela "cons­ trução de conceitos" (Crít. R. Pura, II, cap. 1, seç. 1). A palavra mais próxima ao uso clássico desse termo é disciplina (v.): ciência aprendida ou ensinada. MATEMÁTICA (gr. Ma9n,LiorctKií; htí.Matbematica; in. Mathematics; fr. Mathématique-, ai. Mathematik, it. Matemática). As definições filo­ sóficas de M. por um lado expressam orienta­ ções diferentes da investigação nessa área e, por outro, modos diferentes de justificar a va­ lidade e a função da VI. no conjunto das ciên­ cias. Podem ser distinguidas quatro definições fundamentais: lw M. como ciência da quantida­ de: 2a M. como ciência das relações; 3a M. como ciência do possível; 4a M. como ciência das construções possíveis. 1- "Ciência da quantidade" foi a primeira de­ finição filosófica da M. Essa definição foi clara­ mente formulada por Aristóteles, mas já estava implícita nas considerações de Platão sobre a aritmética e a geometria, que tendiam sobretu­ do a evidenciai" a diferença entre as grande­ zas percebidas pelos sentidos e as grandezas ideais, que» são objeto ela M. (Rep., VII, 525-27). Aristóteles dizia: "O matemático constrói sua teoria por meio da abstração; prescinde de to­ das as qualidades sensíveis, como peso e leve­

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za, dureza e seu contrário, calor e frio, e das outras qualidades opostas, limitando-se a consi­ derar apenas a quantidade e a continuidade, ora em uma só dimensão, ora em duas, ora em três, bem como os caracteres dessas entidades, na medida em que são quantitativas e continuativas, deixando de lado qualquer outro aspecto delas. Conseqüentemente, estuda as posições relativas e o que é inerente a elas: comensurabilidade ou incomensurabilidade e propor­ ções" (AM., XI, 3, 1601 a 28; cf. Ms., II, 193 b 25). Esse conceito de M. persistiu por muito tempo e só no século passado começou a parecei' insu­ ficiente para exprimir todos os aspectos desse campo de estudos. O próprio Kant traduzia-o para a linguagem de sua filosofia. Para ele, a M. distinguia-se da filosofia porque, enquanto esta procede por meio de conceitos, a M. procede por meio da construção de conceitos; mas a construção de conceitos só é possível em VL com base na intuição aprioricio espaço, que é a forma da quantidade em geral. E diz: "Quem pensou distinguir a filosofia da M. dizendo que esta tem como objeto apenas a quantidade to­ mou o efeito pela causa. A forma do conheci­ mento da M. é a causa de ela poder referir-se unicamente a quantidades. Na verdade, só o conceito de quantidade pode ser construído, ou seja, exposto apríorinâ intuição do espaço" (Crít. R. Pura, Dout. do mét., cap. I, seç. 1). O conceito de M. como construção— portanto, de algum modo como intuição— retornou na M. contemporânea (v. mais adiante, n. 4). Mas o conceito de M. como ciência da quantidade íoi repetido numerosas vezes pelos tilósolos. As longas e fantásticas di.squisiçòes cie Hegcl sobre os conceitos fundamentais da M., na grande Lógica, baseiam-senele (WisseuschaftderLogik, I. I, seç. II). F. mesmo muito mais tarde, Croce reteria-se destemidamente a esse conceito: "As M. fornecem conceitos abstratos que possibili­ tam o juízo numérico; constróem os instrumen­ tos para contar e calcular e para realizar aquela espécie de falsa síntese apriori, que é a nume­ ração dos objetos individuais" (Lógica, 1920, p. 238). 2a A segunda concepção fundamental cia M. considera-a como ciência das relações, portan­ to estreitamente ligada à lógica ou parte desta. Os antecedentes dessa concepção podem ser encontrados em Descartes, que afirmava: "Em­ bora as ciências comumente chamadas de ma­ temáticas tenham objetos diferentes, estão de acordo quanto a considerarem apenas as diver­

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sas relações ou proporções neles encontradas" (Discours, II). O conceito leibniziano de ars comhincitoria (v.) ou M universal sem dúvida pode ser considerado o início do conceito da M. como lógica, mas não impedia que o pró­ prio Leibniz aderisse ainda ao conceito tradi­ cional de M. como arte da quantidade (Dearte combitiatoria, 1666. Froemium, 7, em Op., ed. Erdmann, p. 8). Obviamente, a estreita cone­ xão da M. com a lógica começou a evidenciarse como característica da M. só quando a lógica assumiu a forma de cálculo matemático. Segun­ do Boole. uma vez. que "as últimas leis da lógi­ ca têm forma matemática", a apresentação da lógica em forma de cálculo não é arbitrária, mas representa algo que decorre das próprias leis do pensamento (Laws oj 'Ihougbt, 185), cap. I, § 10). Os estudos de Declekind sobreos fundamentos da aritmética (Was sínd un solleu die Zahlen?. 1887) seguem a mesma ordem de idéias. Mas quem mais contribuiu para inscrever a M. no domínio da lógica foi Frege e sua polêmica contra o psicologismo. F.m um ensaio de 1884, Frege mostrava a im­ portância do conceito de relação para a defi­ nição do número natural; dizia: "O conceito de relação pertence — tanto quanto o conceito simples — ao campo da lógica pura. Aqui não interessa o conteúdo especial da relação, mas exclusivamente sua forma lógica. Se algo pode ser afirmado sobre ela, a verdade desse algo é analítica e reconhecida a priori" (Hine logisbmathematische lintersuchung überden Begriff derZabl, 1884, § 70, trad. it., em Aritmética e lógica, p. 139). A partir daí. pode-se considerar consolida­ da a conexão da M. com a lógica através da teoria das relações; essa conexão foi constan­ temente pressuposta nas definições de M. Todavia mesmo as definições que têm esse fundamento em comum foram formuladas cie modos diferentes. A formulação mais óbvia de uma definição deste tipo é a que considera a M. como "teoria das relações". Poincaré ex­ punha essa definição na forma geral, afirman­ do: "A ciência é um sistema de relações. Só nas relações deve-se buscar objetividade, e seria vão buscá-la nos seres isolados" (La valeur de iascience, 1905, p. 266). Esse conceito foi ado­ tado por Russell, que via a coincidência entre M. e lógica justamente no âmbito da teoria das relações e julgava que o tema comum das duas ciências era a forma dos enunciados, definida como "aquilo que permanece invariável quan­

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do todos os componentes do enunciado são substituídos por outros", ou seja, quando o enun­ ciado se transforma em pura relação (Intr. to Mathematical Philosophy, 1918, cap. XVIII). Por outro lado, Peirce, mesmo admitindo a conexão entre M. e lógica, procurara distinguir ambas, afirmando que, enquanto a M. é a ciên­ cia que infere conclusões necessárias, a lógica é a ciência do modo de inferir conclusões ne­ cessárias. "O lógico nào está muito preocupa­ do com esta ou aquela hipótese ou com suas conseqüências exceto quando isso pode lan­ çar luzes sobre a natureza do raciocínio. O ma­ temático interessa-se muito pelos métodos efi­ cientes de raciocinar, visando à sua possível extensão para novos problemas, mas, enquan­ to matemático, não se preocupa em analisar as partes de seu método cuja correção é dada como óbvia" (Coll. Pap., 4.239). Essa distinção, porém, baseava-se na noção de lógica como ciência categórica e normativa (Ibid. 4.240), o que nào fez carreira na lógica contemporânea, cujo caráter convencional se acentuou cada vez mais(v. CONVKNCIONALISMO: LÓGICA). Portanto, a melhor definição de M., desse ponto de vista, é dada por Wittgenstein: "A M. é um método lógico. As proposições da M. são equações, portanto pseudoproposições. A proposição matemática não exprime pensamento algum. De fato, nunca precisamos de proposições ma­ temáticas na vida, mas as empregamos apenas com o fim de, a partir de proposições que não pertencem á M, tirar conclusões que se expres­ sam em proposições que tampouco lhe perten­ cem" (Traclalus, 1922. 6.2; 6.21; 6.211). As equa­ ções da JV1 correspondem às tautologias da lógica (Ibid, 6.22) e, como estas, nada dizem. Ponto de vista análogo foi expresso por Camap: "Os cálculos constituem um gênero particular de cál­ culos lógicos, distinguindo-se deles pela maior complexidade. Os cálculos geométricos são um gênero particular de cálculos físicos" (Foundatioris ofLogic andMathematics, 1939, § 13). Esta é a melhor formulação da tese do logicismoiv.). Segundo esse ponto de vista, em primeiro lugar deve-se construir uma lógica exata, para em seguida dela extrair a M., do se­ guinte modo: V definindo todos os conceitos da M. (vale dizer, da aritmética, da álgebra e da análise) em termos de conceitos de lógica; 2L) deduzindo todos os teoremas da M. a partir dessas definições e por meio dos princípios da própria lógica (inclusive os axiomas cie infini­ dade e de escolha) (cf. C. G. HEMPEL, "On the

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Nature of Mathematical Truth", 1925, em Readíngs in the Phílosophy of Science, 1953, p. 59). 3a A terceira concepção fundamental de M. pertence à corrente formalista e pode ser assim expressa: a M. é "a ciência cio possível", onde por possível se entende aquilo que nào implica contradição (v. POSSÍVEL, 1). Desse pon­ to de vista, a M. não é parte da lógica e nào a pressupõe. Do modo como foi concebida por Hilbert e Bernays (Grundlagen der Matbematik, I, 1934; II, 1939), a M. pode ser cons­ truída como simples cálculo, sem exigir inter­ pretação alguma. Torna-se, então, um sistema axiomático (v. AXIOMATIZAÇÀO). no qual: 1- to­ dos os conceitos básicos e todas as relações bá­ sicas devem ser completamente enumerados, integrando-se neles, por meio de definição, quaisquer conceitos ulteriores; 2" os axiomas devem ser completamente enumerados e destes deduzidos todos os outros enunciados em con­ formidade com as relações básicas. Nesse sis­ tema, a demonstração matemática é um procedimentopuramente mecânicoàA inferénda de fórmulas, mas ao mesmo tempo acrescenta-se ã M. formal uma metamatemática constituída por raciocínios nào formais em torno da M. "Desse modo" — disse Hilbert — "realiza-se, por meio de trocas contínuas, o desenvolvi­ mento da totalidade da ciência matemática, de duas maneiras: inferindo dos axiomas novas fórmulas demonstráveis por meio de deduções formais e acrescentando novos axiomas e a prova de não-contradição, por meio de raciocí­ nios que tenham conteúdo." A M. constitui, en­ tão, um sistema perfeitamente autônomo, ou seja, nào pressupõe um limite ou um guia fora de si mesma e desenvolve-se em todas as dire­ ções possíveis, entendendo-se por direções pos­ síveis as que nào levem a contradições. Portanto, é essencial para esse conceito da M. a possibilidade de determinar a posübiliãaí/cJ(não-contradição) dos sistemas axiomáticos. Mas foi justamente essa possibilidade que o teorema descoberto por Gõdel em 1931 pôs em dúvida: segundo ele, não é possível de­ monstrar a nào-contradiçào de um sistema S com os meios (axiomas, definições, regras de dedução, etc.) pertencentes ao mesmo sistema S; para efetuar tal demonstração, é preciso recorrer a um sistema 5i, mais rico em meios lógicos que SCÍJber formal unentscheidbare Sãtze der Principia Mathematica und verwandter Systeme", em MonatschriftefürMathematik und Physik, 1931, pp. 173-98). Esse

MATEMÁTICA teo rem a de G òd el te v e g ra n d e re sso n ân c ia na M . m o d e rn a. A té ag o ra foi possível d e m o n s ­ trar a n â o -c o n tra d iç â o de alg u m as p artes da M., com o p. ex. da aritim ética (d e m o stra d o p or G en tzen em 1936), m as n ão se av an ço u m u ito nessa d ire çã o ; p o r isso, a "ciência do possível" hoje acredita q u e sua m issão m ais difícil é m o s­ trar a "p o ssibilidade" de su as p artes. Q u a n to à possibilid ad e da M . co m o sistem a ú n ico e total, o b v iam en te foi ex clu íd a p ela fo rm u la çã o do teorem a de G ò d el, q u e ta m b é m m o stro u os li­ m ites da ax io m ática ao d e m o n stra r q u e n e ­ nhum sistem a ax io m ático co n tém "todos" os axiom as p o ssív eis e q u e, p o rtan to , n o v o s p rin ­ cípios d e p ro v a p o d e m se r c o n tin u a m e n te d esco b erto s. O utra c o n se q ü ê n c ia do te o rem a de G õd el é u m a lim ita çã o d as c a p a c id a d e s das m áq u in as ca lc u lad o ras, cuja co n stru ç ão toi en o rm em e n te facilitada p elo co n ce ito form alista da M . D e fato, p o d e -se co n stru ir u m a m á­ quina para reso lv er d e te rm in a d o p ro b lem a, m as não um a m áq u in a q u e seja cap az de reso lv er lodosos p ro b lem as (cf. E. NAGKL-G. R. NKWMANN, Gõdels Proof, 1958, p p . 9 » ss.). 4- S eg u n d o a q u arta c o n c e p ç ã o fu n d a m e n ­ tal, a M . é a ciência q u e tem p o r o bjeto a pos­ sibilidade de construção. T rata-se, co m o se vê. da n oção k an tia n a da M . co m o "co n stru ção de conceitos"; p o r isso, essa c o rre n te c o m u m e n te é cham ada de intuicionismo, m as seu s p re c e ­ d en tes p o d e m ser p e rc e b id o s n a p o lê m ic a antiformalisla de P oincaré, na obra de K ronecker (Uberdeu Zahlbegriff, 1887), na te n d ên c ia em pirista de alg u n s m a te m á tic o s fra n c e se s (Borel, L ebegue, B ay re), no filósofo v ien en se R K uufm ann. e em o u tro s. S eg u n d o B ro uw er, que é u m d o s p rin cip a is re p re s e n ta n te s do intuicionism o, a M . identifica-se com a p arte exata do p e n sa m e n to h u m a n o e p o r isso n ão pressupõe ciência alg u m a, n em a lógica, m as exige um a in tu ição q u e p erm ita a p re e n d e r a evidência d os c o n c e ito s e d as c o n c lu s õ e s. Portanto, não se d ev e ch e g a r às co n clu sõ e s a partir de regras fixas co n tid as n u m sistem a form alizado, m as cada c o n clu são d ev e ser d ire ­ tam ente verificada com b ase em sua p ró pria evidência. D esse p o n to de vista, o p ro ced im e n to c/e d em o nstração m atem ática n ão tem em vista a dedtiçào lógica, m as a co n stru ç ão de u m sis­ tema m atem ático. B ro u w e r insiste no fato de que, m esm o n o caso de u m a d e m o n stra ç ã o de im possibilidade atrav és da ev id ên cia de um a contradição, o LISO do princípio de co n tradi­ ção é a p e n a s ap a ren te : n a re a lid a d e , trata-se

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MATEOSIOLOGIA da afirm ação de q u e Lima co n stru ção m atem á ti­ ca, qLie d ev eria satisfazer a certas co n d içõ es, n ão é realizável (cf. A. HHYTING, Mathematische

Gntndlagenforschung. Inluitioiüsmus nnd Beweistheorie, 1934 [trad. ft\, 1955], I. 5, 1). N a es­

teira de B rouw er, H eyting d em ostrou que, apesar d e o p rin cíp io de c o n tra d iç ã o p o d er ser utiliza­ d o, o m esm o n ão a c o n te c e co m o p rin cípio do

terceiro excluído (\.) (Dieformalen Regehi der intuitionistischen Logik, in L. B. Preusz. Akad. Wiss, 1930).

O in tu ic io n ism o . a p e sa r cie d efinir a M . co m o a ciê n c ia d as c o n s tru ç õ e s p o ssív e is, n ão re co rre, co m o K ant, á in tu ição a priori do e sp aço , n em a form a algum a d e intuição em p írica ou m ística. A co n stru ç ão de q u e o in tu ic io n ism o fala é co n ce itu ai e n ão se refe­ re a fatos em p írico s. H ey tin g resu m iu desta form a o p o n to de vista de B ro uw er: 1" a M . pura é u m a cria ção livre do esp írito e n ão tem re la ç ã o alg u m a co m os fato s de e x p e ­ riência; 1" a sim p les c o n sta ta ç ã o de u m fato d e e x p e riê n c ia s s e m p re c o n tém a identifica­ ção d e u m sistem a m atem á tic o ; 3" o m éto d o da ciência da n atu re za co n siste em reu n ir os sistem as m atem á tic o s co n tid o s n as e x p e riê n ­ cias iso lad as em u m sistem a p u ra m e n te m ate­ m ático co n stru íd o com este fim (cf. HEYTING,

op. cit., IV. 3).

S e c o n sid e ra rm o s essa s c o n c lu sõ e s, v e re ­ m o s q u e a d istin ção en tre fo rm alism o e intuicio n ism o (entre a terceira e a q u arta c o n ce p ç ão da M.) n ão é tão radical q u a n to p o d eria p a re ­ cer. E m p rim eiro lugar, a c o n stru ç ão q ue os in tu icio n istas v êe m co m o o bjeto do p ro c e d i­ m en to m atem á tic o é form al e sua p o ssib ilid ad e é d ete rm in a d a p o r reg ras form ais. P or o u tro lad o , os lim ites do fo rm alism o ev id en c iad o s p elo te o rem a de G òd el ressaltam o v alo r de algu m as exigências ap re se n tad as p elo co n ceito in tu icio nista da m atem ática. E já q u e é difícil ig­ n o rar a im p o rtân cia do asp ecto lingüístico da AI., q u e serviu de b ase p ara o /ogicismo, o p e n ­ sa m e n to m atem á tic o c o n te m p o râ n e o é d o m i­ n a d o p o r certo ecletism o (cf. p. ex. E. W . BKTH.

Les fondements logiques des mathématiqiies, 2- ed., 1955). E n tretan to , do p o n to de vista fi­

losófico, v ale d izer, do p o n to de vista d o s c o n ­ ceito s b ásico s e d as o rie n taç õ e s g erais d e e stu ­ do, as diferenças nas definições en u n ciad as n este v e rb e te c o n tin u a m se n d o im p o rta n tes. MATEOSIOLOGIA (fr. Matbéosiologie). 'lerm o em p re g a d o p o r A m père para indicar a ciência q u e d ev eria ter p o r o b jeto , "por L m la d o , as leis

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a serem obedecidas no estudo ou no ensino dos conhecimentos humanos e. por outro lado, a classificação natural desses conhecimentos" (Hssai snr Ia philusopbie cies sciences, 1834. p. 31). MATÉRIA1. Km sentido gnosiológico v. FORMA. 2. MATÉRIA2 (gr. fIxII lat. Matéria-, in. Matten fr. Matièiv. ai. Materie-, it. Matéria). Um dos princípios c(ue constituem a realidade natural, isto é, os corpos, Sào as seguintes as principais definições dadas da M.: Ia M. como sujeito; 2a M. como potência; 3" M- como extensão; 4a M. como força; 5a M. como lei; 6a M. como massa; 7- M. como densidade de campo. As quatro primeiras definições sào filosóficas; as três últi­ mas, científicas. Ia Km Platão e Aristóteles a definição de M. como sujeito alterna-se com a de M. como potência. Segundo esse conceito, M. é receptivi­ dade ou passividade; nesse sentido, Platão chama-a de meie das coisas naturais, já que ela "acolhe em si todas as coisas sem nunca assumir forma alguma que se assemelhe às coisas, pois 6 como a cera que recebe a marca" ( Tim.. 50 h-d). Nesse sentido, M. é o material bruto, amorfo, passivo e receptivo, do qual as coisas naturais são compostas. Aristóteles chama esse material de sujeito (ÚJtOKeiuxvov): "Chamo de M. o sujeito primeiro de uma coi­ sa, a partir do qual a coisa não é gerada aci­ dentalmente" (Fís., I, 9, 192 a 3D. Como sujeito, a M. é "aquilo que permanece atra­ vés das mudanças opostas; assim, p. ex., no movimento o móvel permanece o mesmo, apesar de estar ora aqui, ora lá; na mudança quantitativa permanece o mesmo aquilo que se torna menor ou maior; e na mudança qua­ litativa permanece o mesmo aquilo que uma vez está com boa saúde e outra vez não" (Mel.. VIII, 1, 1042 a 27). Fm seu aspecto de sujeito, a M. é desprovida de forma, é in­ determinada, portanto incognoscível por si mesma (IbicL, Vil, 11. 1037 a 27; VII, 10. 1036 a 8): características estas eminentes na "M. primeira", que não é a que constitui o mate­ rial (p. ex., o bronze ou a madeira) de que uma coisa 6 feita, mas que é o sujeito co­ mum, incognoscível, de todos os materiais (Ibicí., IX, 7, 1049 a 18 ss.). O conceito de M. como sujeito passivo foi retomado pelos estóicos, que a designaram precisamente por esse seu caráter (Dióc. L, VII, 134). Fm virtu­ de dessa passividade, que dispõe a M. a rece­

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ber a ação criadora da Razão Divina (que é o princípio ativo), os estóicos chamaram a M. de "substância primeira" (DIÓG. L, VII, 150; cf. SHNKCA, Ep.. 65, 2). Plotino só fez levar ao extre­ mo essa concepção de M. ao afirmar que ela não 6 "alma intelecto, vida, forma, razão, limite (já que é ausência de limite), nem potência (pois o que poderia criar?). Desprovida como é de todos os caracteres, nem sequer é possível atri­ buir-lhe o ser, no sentido, p. ex.. em que se diz que existe movimento ou repouso; ela 6 real­ mente o nào-ser, uma imagem ilusória cia mas­ sa corpórea e uma aspiração à existência" (Fnri, III. 6, 7). Ksse conceito da M. foi constantemen­ te empregado com fins teológicos. Na patrística, foi repetido por Orígenes (Contra Cels, III, 41; Deprínc, 11, 1) e por S. Agostinho. Fste consi­ dera a M, segundo o conceito clássico, como "absolutamente informe e desprovida de quali­ dade", estando "próxima do nada", conquanto existente na medida em que é dotada da capa­ cidade de ser formada (Çaf, XII, 8; De natura boni, 18). S. Tomás, por sua vez, nega que a M. seja "potência operante" (S. Th, I, q. 44, ad. 3') e insiste em sua imperfeição incompletitudeou relativamente à forma (Ibiei. I, q. 4, a. 1). Mes­ mo atribuindo à M. certa realidade atual e ne­ gando, pois, que ela seja um "quase-nada" ou pura "possibilidade de ser", a escolástica agosliniana não renova o conceito de M. Duns Scot, p. ex., atribui certa realidade (eutilas) à M, mas, apesar disso, considera-a "receptiva de todas as formas substanciais e acidentais", segundo o conceito aristotélico (Op. Ox., II. d. 12, q. 1, n. 11), e nega-lhe potência ativa ao negar que nela estejam presentes razões seminais (Ibid., d. 18, q. 1, n. 3). Desse ponto de vista, a passi­ vidade ou receptividade continua sendo carac­ terística fundamental da M., à qual recorreram alguns naturalistas do Renascimento, como p. ex. Paracelso (Meteor., 72) e Telésio. Este últi­ mo considerou a M. como a "massa corpórea" destinada a sofrer a ação das duas "naturezas agentes", o calor e o frio (Derei: uat., I. 4). Fssa concepção foi compartilhada por Locke, para quem a M. é "morta e inativa" (Ensaio, IV, 10. 10), concepção esta freqüente ainda hoje na filosofia e no pensamento comum. Está pre­ sente, p. ex., em Bergson. para quem a M. é cessação potencial do movimento da vida, definindo-se pela "inércia", em contraposição ao que é "vivo" (Evol. créatr., 8a ed., 1911, pp. 216 ss.).

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2- Em Platão e Aristóteles o conceito de mento da natureza que nada produz a partir do M. como potência mescla-se ao conceito de M. nada" (InSent., II, d. 18. a. 1, q. 3). Esse conceito como sujeito. Platão diz que a M. "nunca perde de M. foi transmitido ao Renascimento por a potência" {'fim, 50 b). Aristóteles identifica a Nicolau de Cusa. que a considera como "pos­ M. com a potência: "Todas as coisas produzi­ sibilidade indeterminada", na qual existem, con­ das, seja pela natureza, seja pela arte, têm M, traídas, todas as coisas do universo. "A dispo­ pois a possibilidade que cada uma tem de ser sição da possibilidade" — dizia N. de Cusa — ou não ser é a M. de cada uma" (Mel, Vil, 7, "tem de ser contracta, e não absoluta, uma vez 1032 a 20). Mas, segundo Aristóteles, a potên­ que, se a terra, o sol e as outras coisas não cia não é apenas essa possibilidade pura de ser estivessem ocultas na M. como possibilidades ou não ser; é uma potência operante e ativa; contractas, não haveria razão para passarem ao "Uma casa existe potencialmente se nada hou­ ato, em vez de não passarem" (Dedocta igtior., ver em seu material que a impeça cie tornar-se II, 8). Em outras palavras, é só por estarem casa e se nada mais houver que deva ser acres­ presentes em estado contraído na M. que de­ centado, retirado ou mudado. (...) E as coisas terminadas possibilidades vêm à tona com a que têm em si próprias o princípio de sua gê­ criação. E nesse conceito que Giordano Bruno nese exi.stirào por si mesmas quando nada de basearia seu conceito de M. como princípio externo o impedir" (Met., IX. 7, 1049 a 9 ss.). ativo e criador cia natureza: "Para ser realmen­ Essa auto-suticiência da potência para produzir, te tudo o que pode ser, essa M. tem todas as graças à qual a M. não 6 apenas material bruto, medidas, todas as espécies de configurações e mas capacidade efetiva de produção, exprime dimensões, e porque as tem todas não tem um conceito que não é mais de M. como passi­ nenhuma, pois é preciso que aquilo que é tan­ vidade ou receptividade. Como potência ope- tas e diversas coisas não seja nenhuma delas rante, a M. não é um princípio necessariamente em particular." Nesse sentido, M. coincide com corpóreo. Plotino, que, como se viu, reduz a M. forma (De Ia causa, IV). ao nào-ser, por outro lado identifica-a, como 33 O conceito cie M. como extensão foi de­ potência, com o infinito (TJUL, II, 4, 15). e, ao fendido por Descartes: "Á natureza da M. ou lado da M. sensível, admite uma M. inteligível dos corpos em geral não consiste em ser uma que permanece sempre idêntica a si mesma e coisa dura, pesada, colorida ou capaz de afetar possui todas as formas, de tal modo que lhe nossos sentidos de qualquer outro modo, mas falta a razão de transformar-se (Ibül, II, 4, 3). apenas em ser uma substância extensa, em Nessa doutrina encontra-se a origem da tradi­ comprimento, largura e profundidade" (Princ. ção que insiste na atividade da M.: tradição phii, II, 4). Esse conceito tem grande aceitação que passa por Scotus Erigena (De cliris. nat., séc. XVII. Hobbes. p. ex., identifica a M. pri­ III, 14) e encontra nova fase na doutrina de no meira aristotélicos com o corpo em geral, Avícebrón (Ibn Gabirol) sobre a composição ou seja,doscom o "corpo considerado sem levar hilomórfica universal. Segundo Avicebrón, as em conta qualquer acidente, exceto a grandeza coisas espirituais também são compostas por ou extensão e a capacidade de receber formas M. e forma, e a M. identifica-se com a primeira e acidentes" (De corp, VIII, 24). con­ tias categorias aristotélicas, sendo substância ceito cie corpo em geral como M.O mesmo é aceito por porque "sustenta" as outras nove categorias Spinoza. que também o identifica com a exten­ (Tons ritae, II, 6). Foi só com base no caráter II, def. 1). ativo ou inativo da M. que David cie Dinant sãoHá(Et.,motivos acreditar que essa defini­ pôde identificar Deus com M. (ALBKRTO MAG­ ção cie M. estejapara implícita na hipótese atomista. NO, S. Th.. I, 4, q. 20; S. TOMÁS, V- Th., 1, q. 4, a. se sabe, o termo "M." aparece pela pri­ 8). Contudo, a M. mantém o caráter de ativida­ Como meira vez em Aristóteles com significado filosó­ de mesmo na escolástica agostiniana, que si­ fico, mas o próprio Aristóteles fala, referindo-se multaneamente insistia em atribuir-lhe realida­ a Demócrito. comum de todas as de positiva, detectando sua presença também coisas", e afirmadoque,"corpo segundo Demócrito, as par­ nos seres espirituais, segundo o conceito de tes cie tal corpo diferem em grandeza e confi­ Avicebrón. S. Boaventura diz: "A razão semi­ guração (Fís, III, 4, 203 a 33-203 b 1). nal é a potência ativa ínsita à M., e essa potên­ "grandeza e configuração" nada mais são Ora. que cia ativa é a essência da forma, visto que a extensão. Em outro trecho, Aristóteles enumera partir dela gera-se a forma através do procedi­ três diferenças entre os átomos: configuração,

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ordem e posição (Mel.. I, 4, 985 b 15), mas con­ figuração, ordem e posição nada mais são que extensão. Extensão também é a configuração à qual, segundo Kpicuro, se reduzem todas as qualidades cio átomo (DIÓG. L, X, 54). Assim, a hipótese atomista implica o conceito de M. como extensão, o que foi ressaltado por Guilheme de Ockham no séc. XIV: "E impossível haver M. sem extensão porque não é possível ha­ ver M. que não tenha as partes distantes umas das outras; por isso, ainda que as partes cia M. possam unir-se, como se unem as partes cia água e do ar, não podem estar no mesmo lugar" (Summ. phys, 1, 19; QuocIL. IV, q. 23). 4- O conceito cie M. como força ou energia é defendido pela primeira vez pelos platônicos de Cambridge, no séc. XVII, sendo depois acei­ to por Leibniz e por muitos filósofos do séc. XVIII. Segundo Cudworth. a M. é uma nature­ za plástica, uma força viva que é emanação di­ reta de Deus ( The Tme Jtitellectual System of the ['nirerse, 1. 1, 3). H. More, assim como Des­ cartes, reduz a M. a extensão, mas identifica a extensão com o espírito, resolvendo-a em par­ tículas indivisíveis que ele chama de manadas físicas e que nada mais têm de material (I-jicbiridion metaphysicum. I, 8, 8; I, 9, 3)- Essas con­ siderações metafísicas ganharam significado mais preciso em Newton e Leibniz. Newton jul­ gava impossível admitir que "a M. fosse isenta de qualquer tenacidade e atrito de partes, bem como de comunicação de movimento"; consi­ derava, portanto, que ela tivesse estreitíssima relação com as "forças" ou "princípios" que se manifestam na experiência (Optickis. 1704, III, 1. q. 31). Para Leibniz. a M., além da extensão, é constituída por uma força passiva de resistên­ cia, que é a impenetrabilidade ou anlitipia(\.) (Op., ed. Erdmann, pp. 157, 463, 466. 691). A mesma doutrina foi aceita por Woltf, que defi­ nia a M. como "um ente extenso provido de força de inércia", e acreditava que ela possuís­ se força ativa por si (Cosm, §§ 141-42). Essa interpretação cia M. tornou-se um dos temas comuns do Iluminismo e da polêmica dos iluministas contra Descartes. Diderot dizia: "Não sei em que sentido os filósofos supuseram que a M. é indiferente ao movimento e ao repouso. É certo, porém, que todos os corpos gravitam uns sobre os outros, que todas as partículas dos corpos gravitam umas sobre as outras, que nes­ te universo tudo está em translação ou in nisu. ou em translação e in nisu ao mesmo tempo"

(Príncipesphil. surla matière et le monvemenl,

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em Giuir.phil, ed. Verniére, p. 393). Essa con­ cepção também foi aceita por Kant que dizia: "A M. enche um espaço, não através de sua existência pura, mas por meio de uma força motriz, particular": a força repulsiva de todas as suas partes (Metaphysische Anfangsgründe der Natunvissenschaft, II. Lehrsatz, 2, 3). O concei­ to romântico de M. como força oti atividade, expresso por Schelling. p. ex., é apenas uma ampliação dessa doutrina. Segundo Schelling, as três dimensões da M. são determinadas pe­ las três forças que a constituem: força expansi­ va, força atrativa e uma terceira força sintéti­ ca, que correspondem, em sua natureza, ao magnetismo, á eletricidade e ao quimismo, res­ pectivamente (System der transzendentalen Idealismus, III, cap. II, Dedução da matéria; trad. it.. pp. 109 ss.). Mais genericamente, Schopenhauer identificava M. com atividade (Die Welt, I, § 4). No domínio científico, esse ponto de vista foi realizado como energismo (v.). G. Ostwald sustentou, no fim do século passado, que o conceito de M. era perfeitamen­ te inútil para a ciência da natureza, propondo a sua substituição pelo conceito de energia (Die 1'benríndung des wíssenschaftlichen Mctterialismus, 1895). 5a Embora não se possa chamar de conceito de M. a redução de M. a percepções ou idéias, proposta por Berkeley, porque isso é simples­ mente negá-la, é possível aceitar a definição dada por Mach, de que a M. é uma "conexão determinada de elementos sensíveis em con­ formidade com uma lei" (Analyse der Rrnpfindungen. XIV, 14). Essa definição não tende, de fato. a negar a matéria ou a reduzi-la a elemen­ tos subjetivos e psíquicos, mas a substituir a ri­ gidez e inércia tradicionalmente atribuídas à M. pela estabilidade relativa cie uma lei. Nesta definição, o conceito fundamental é de lei, entendida como expressão de uma conexão constante. A M. seria precisamente a cone­ xão constante na qual se apresentam agrupa­ dos os elementos últimos das coisas, ou seja, as sensações. 6a Os usos anteriores são todos cie natureza filosófica, apesar cie algumas vezes terem sido propostos ou sustentados por cientistas. No domínio da ciência, mais precisamente da me­ cânica, a noção de M. se identifica com a de massa (definida pelo segundo princípio da dinâmica como relação entre a força e a acele­ ração imprimida). A massa pode ser entendida como massa inercial ou como peso. O princí­

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pio cia "conservação da M.", que a ciência do séc. XIX considerava como um de seus pilares, ao lado do princípio da "conservação da ener­ gia", refere-se à M. entendida como peso, uma vez que seu significado específico foi-lhe dado somente pelas célebres experiências com as quais Lavoisier demonstrou (1772) que nas rea­ ções químicas (entre as quais a combustão) o peso do composto é a soma dos pesos dos componentes. J- Na ciência contemporânea, o conceito de M. tende a ser reduzido ao de densidade de campo. "Lima vez reconhecida a equivalência entre massa e energia, a divisão entre M. e campo parece artificiosa e não claramente defi­ nida. Não poderíamos então renunciar ao con­ ceito cie M. e edificar uma física do campo puro? O que impressiona nossos sentidos como M. na realidade é uma grande concen­ tração de energia em espaço relativamente limitado. Portanto, parece lícito equiparar a M. a regiões espaciais nas quais o campo é extre­ mamente forte" (EINSTKIN-INFHLD, lhelivolution o/Physics, cap. III; trad. it.. p. 253). F.sta ten­ dência da física contemporânea não pode ser confundida com o energismo, porque não implica a redução da M. â energia, mas a redução dos conceitos de M. e de energia ao de campo (v.). MATERTAT.TSMO (in. Materíalism. fr. Matéríalisirw, ai. Materialismus; it. Ma/erialismo). Este termo foi usado pela primeira vez por Robert Boyle em sua obra de 1674 intitulada The Kxcellence and Grounds ofthe Mechanical Pbilosopby (cf. EJCKKN, Geistige Slrómungen der Gegenwarl, 5a ed., 1916, p. 168). Esse ter­ mo designa, em geral, toda doutrina que atri­ bua causalidade apenas à matéria. Em todas as suas formas historicamente identificáveis (em que esse termo não seja empregado com fins polêmicos), o M. consiste em afirmar que a única causa das coisas é a matéria. A antiga definição de Wolff, segundo a qual são ma­ terialistas "os filósofos que admitem apenas a existência dos entes materiais, ou seja, dos corpos" (Psychol. rationalis, § 33), não é sufi­ ciente para apontar as formas históricas do M., porque levaria a incluir nessa corrente doutri­ nas que a repudiam (v. mais adiante). A partir daí é possível distinguir: V-'- o M. metafísico ou cosmológico, que se identifica com o atomismo filosófico; 2- o M. metodológico, segundo o qual a única explicação possível dos fenôme­ nos é a que recorre aos corpos e aos seus mo­

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vimentos; 3[> o M. prático, que reconhece no prazer o único guia da vida; 4o o M. psicojísico, para o qual os fenômenos psíquicos são causa­ dos estritamente por fenômenos fisiológicos. Estas são as formas historicamente reconhecí­ veis do M, além das formas conhecidas como M. dialético e M. histórico (v.), considerados à parte. Não se pode aceitar, porém, como histo­ ricamente legítimo o significado que Berkeley atribui ao termo, entendendo por materialistas todos aqueles que de qualquer maneira reco­ nheçam a existência da matéria (Principies of Htiman Knowledge, § 74), porque nesse senti­ do Aristóteles e os aristotélicos também seriam materialistas; tampouco é possível chamar os estóicos de materialistas, ainda que, para eles, tudo o que existe na natureza é corpo (DiÓG. L, VII. 1, 56; PLUTARCO, De Com. NolX uma vez que admitiam um princípio racional divino como causa do mundo; por motivos análogos, não se pode julgar que Tertuliano seja materialista por ter afirmado que "tudo o que existe é corpo" (Dean., 7; De cante Christi, 11). 1" O M. cosmológico é caracterizado pelas seguintes teses: a) caráter originário ou inderivável da matéria, que.precede todos os ou­ tros seres e é causa deles (portanto, não é M. a doutrina de Gassendi, para quem os átomos que constituem o universo foram criados por Deus); b) estrutura atômica da matéria; c) pre­ sença na matéria, portanto nos átomos, de uma força capaz de pô-los em movimento e de levá-los a se combinarem de tal modo que dão origem ás coisas (Demócrito admitia que os átomos se movem por conta própria desde a eternidade [ARISTOTKLKS, Pis, VIII, 1, 252 a 321, e esse pressuposto permaneceu em todas as formas do atomismo; a última forma histórica assumida pelo M., difundida nos últimos decê­ nios do séc. XIX pelo biólogo alemão Ernst Haeckel, admitia até mesmo que os átomos fossem dotados de vida e sensibilidade, além de movimento [Die Weltrütsel, 18991); d) nega­ ção do finalismo do universo e, em geral, de qualquer ordem que não consista na simples distribuição das partes materiais no espaço; é) redução dos poderes espirituais humanos à sensibilidade, ou seja, sensacionismo (sob esse aspecto, na Antigüidade o M. é representado pelas doutrinas de Demócrito e de Epicuro; na Idade Moderna, pelas doutrinas de alguns iluministas e de numerosos positivistas do séc. XIX). 2- O M. metodológico foi defendido primei­ ramente por Hobbes; sua tese fundamental con­

MATERIALISMO

siste em julgar que a noção de matéria, ou seja, de corpo e de movimento, é o único instru­ mento disponível para a explicação dos fenô­ menos. Hobbes afirmava de fato que o conhe­ cimento de uma coisa é sempre conhecimento de sua gênese, e que a gênese é movimento. Portanto, todo conhecimento é conhecimento do movimento, e movimento implica corpo. Por isso, chamou De coipore( 1655) o seu tra­ tado de filosofia primeira. Desse ponto de vis­ ta, a explicação materialista também é a única possível para as coisas que dizem respeito ao espírito e às coisas espirituais. Assim, Hobbes objetava a Descartes: "O que diremos se o ra­ ciocínio não passar de um conjunto e uma co­ nexão de nomes por meio da palavra 'é? Se­ gue-se dessa tese que, por meio da razão, não podemos concluir nada que diga respeito à na­ tureza das coisas, mas somente algo que diga respeito a seus apelativos; vale dizer: com ela vemos apenas se os nomes das coisas se agru­ pam bem ou mal, segundo as convenções que estabelecemos arbitrariamente para os seus sig­ nificados. Se assim for, como pode perfeita­ mente ser, o raciocínio dependerá dos nomes, os nomes dependerão da imaginação e a ima­ ginação talvez (isto segundo a minha opinião) dependa do movimento dos órgãos do corpo, e assim o espírito nada mais será que um movi­ mento em certas partes do corpo orgânico" (III, Ohjeclions, 4). Portanto, segundo Hobbes, o corpo é o único objeto possível do saber hu­ mano, e a filosofia divide-se em duas partes, a filosofia natural e a filosofia civil, segundo estude o corpo natural (a natureza) ou o corpo artificial (a sociedade) (De corp.. I, 9). Recentemente, o M. metodológico foi defen­ dido pelos filósofos do círculo de Viena, espe­ cialmente por Carnap, mas em sentido diferen­ te do de Hobbes e referindo-se à linguagem: tal M. é a exigência de traduzir para os termos da linguagem física os dados protocolares. a fim de construir com eles uma linguagem intersubjetiva. Esse M. identifica-se, portanto, com o ftsicalismo(v) e não implica nenhuma afirma­ ção sobre a existência da matéria (cf. lirkenntnís, 1931, p. 477), nem a dedutibilidade das leis biológicas e psicológicas a partir das leis fí­ sicas. Sem dúvida, segundo esse ponto de vis­ ta, a unificação das leis da ciência é meta da própria ciência, mas não se pode excluir nem prever que essa meta seja alcançada (CARNAP, l.ogical Foundations of lhe l'nity of Science. 1938, p. 61).

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MATERIALISMO

3q Em seu significado prático ou moral, o M. é termo que pertence mais à linguagem co­ mum do que à filosófica. Fala-se de "época ma­ terialista", de "tendências materialistas" ou do "materialismo" de grupos ou classes, para indi­ car a tendência ao conforto ou, mais precisa­ mente, uma ética que adote o prazer como úni­ co guia do comportamento. O termo filosófico para isso é hedonismo (v.); este muitas vezes é acompanhado pelo M., mas não necessaria­ mente. A ética de Epicuro e dos materialistas do séc. XIX é hedonista, mas não a ética de Demócrito. Por outro lado, o hedonismo pode estar presente em filosofias não materialistas: foi aceito, p. ex., pelos cirenaicos e pelos empiristas do séc. XVIII. Em sua forma extre­ ma, porém, o hedonismo constituiu uma mani­ festação característica do M psicofísico setecentista, que, desse ponto de vista, foi uma continuação do libertinismo (v.). A obra de Hm.vÉTirs, Del’esprit(\lA). é particularmente significativa a esse respeito porque contém uma exaltação indiscriminada do prazer, assim como outra obra de alguns anos antes, Lartde jouir ou 1'école de Ia roluplé (1751), de LA MKTTRIH. 4q O M. psicofísico consiste em afirmar que a atividade espiritual humana é efeito estrito da matéria, ou seja, do organismo, do sistema nervoso ou do cérebro. Essa tese apre­ sentou-se sob diversas formas nos sécs. XVIII e XIX; uma delas é a concepção do homemmáquina. Essa expressão foi usada pelo fran­ cês La Mettrie, como título de uma obra sua famosa (1748), mas o conceito também é ex­ presso na obra de DAVID HARTI.KY, Obsetvations ofMan (1749), e na de JOSF.PH PRIKSTLF.Y, Disquisitions Relating Io Matter and Spirít (1777). O Système de Ia nature, de Holbach, talvez seja a melhor expressão desse ponto de vista; segundo ele, todas as faculdades huma­ nas são modos de ser e de agir que resultam do organismo físico do homem, que, por sua vez, é determinado pela máquina do universo. Uma forma mais restrita e específica desse M. está presente na obra do médico francês PFKRE CABANIS. Rapports du physíque et du moral de lhomme (1802), para quem as atividades psíqui­ cas provêm do sistema nervoso. F.m meados do séc. XIX, essa dependência causai dos poderes espirituais humanos em relação ao sistema nervoso pareceu a muitos filósofos e cientistas um fato estabelecido. O M. daquela época par­ te desse pressuposto. Numa obra de 1854,

MATERIALISMO DIALÉTICO

Kõhler-gíaube und Wissenschaft, o naturalista

Karl Vogt afirmava que "o pensamento está para o cérebro assim como a bílis está para o fí­ gado ou a urina para os rins", afirmação que ia ao encontro de outra, feita pelo historiador e li­ terato francês Hyppolite Taine, de que "o vício e a virtude são produzidos como o vitríolo ou o açúcar, e cada dado complexo nasce do encon­ tro de outros dados mais simples, dos quais depende" (Ilistoíre de Ia littératmv anglaise. 1863. Intr.). Outra forma mais atenuada ou, se quisermos, mais "nobre" da mesma doutrina diz que a consciência é o epifenômeno dos pro­ cessos nervosos, no sentido que, enquanto é produzida por eles, não reage sobre eles mais do que a sombra reage sobre o objeto que a produz (Huxley, Clifford, Ribot). Em História doM. ( Geschicbte desMaterialismus. 1866), de Y A. Lange, a exposição do M. está centrada precisamente na sua forma psicofísica, na qual ele vê um salutar lembrete contra a pretensão de estender o saber humano além de certos li­ mites. Segundo Lange, o M. renasce sempre que o homem esquece esses limites e pretende dar valor objetivo a construções metafísicas que só têm valor de fantasia. Tanio em sua forma metafísica quanto na psicofísica, o M. da metade do séc. XIX tem ca­ ráter romântico, pois não se limita a ser uma lese filosófica dotada de maiores ou menores possibilidades de confirmação, mas pretende ser doutrina de vida, destinada a vencer a reli­ gião e a suplantá-la. Essa pretensão confere a tais doutrinas um tom violentamente polêmico e profético, transformado a "Ciência" na nova tábua da verdade absoluta. Essa atitude rece­ beu o nome de cientificistno (v.) e constitui a vanguarda romântica da ciência do séc. XIX; o M. foi seu credo. Mas esse credo foi em parte destruído pela própria ciência, em virtude da crise de sua concepção mecanicista nos últimos decênios do séc. XIX. MATERIALISMO DIALÉTICO (in. Dialectical malerialism; fr. Matérialisme dialectique, ai. Dialektischer Materíalismus; it. MatériaUsino dialettico). Entende-se por essa expressão a filosofia oficial do comunismo enquanto teo­ ria dialética da realidade (natural e histórica). Mais que de materialismo {\\), trata-se na reali­ dade de um dialetismo naturalista, cujos princí­ pios foram propostos por Marx (v. DIALÉTICA), desenvolvidos por F.ngels e depois, mais ou menos servilmente, seguidos pelos filósofos do mundo comunista, que são os únicos seguido­

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MATERIALISMO DIALÉTICO

res dessa filosofia. Segundo Engels. \ legel reco­ nheceu perfeitamente as leis da dialética, mas considerou-as "puras leis do pensamento", já que não foram extraídas da natureza e da histó­ ria, mas "concedidas a estas do alto, como leis do pensamento". Porém, "se invertermos as coisas, tudo se tornará simples: as leis da dialé­ tica que, na filosofia idealista, parecem extre­ mamente misteriosas, tornam-se logo simples e claras como o sol" (Anti-Dübhn}>, pref.). Se­ gundo Engels, são três as leis: Ia lei cia conver­ são da quantidade em qualidade e vice-versa; 2a lei da interpenetraçâo dos opostos; 3' lei da negação da negação. A primeira significa que na natureza as variações qualitativas só podem ser obtidas somando-se ou subtraindo-se ma­ téria ou movimento, ou seja, por meio de varia­ ções quantitativas. A segunda lei garante a uni­ dade e a continuidade da mudança incessante da natureza. A terceira significa que cada síntese é por sua vez a tese de uma nova antítese que dará lugar a uma nova síntese (ENGKI.S, Dialektik derNatm; passim). Segundo Engels, esse con­ junto de lei.s determina a evolução necessária — e necessariamente progressiva — do mun­ do natural. A evolução histórica continua, com as mesmas leis, a evolução natural. O sentido global do processo é otimista. A organização da produção segundo um plano, como se rea­ lizará na sociedade comunista, destina-se a ele­ var os homens acima do mundo animal, em termos sociais, tanto quanto o uso de instru­ mentos de produção o elevou em termos de espécie. Como se vê, o M. dialético de Engels nada mais é que a teoria da evolução (que nos tempos de Engels festejava seus primeiros triunfos), interpretada em termos de fórmulas dialéticas hegelianas, com prognósticos extre­ mamente otimistas. Costuma-se considerar que o materialismo histórico e o materialismo metafísico são partes integrantes do M. dialético. Sobre o primeiro, v. capítulo á parte. Quanto ao segundo, foi mais enfatizado por Lênin e pelos comunistas aissos do que Marx e Engels. Lênín assim resumia as te­ ses do materialismo: "Ia Há coisas que existem independentemente de nossa consciência, in­ dependentem ente de nossas sensações, fo­ ra de nós. 2a Não existe e não pode existir dife­ rença alguma de princípio entre o fenômeno e a coisa em si. A única diferença efetiva é a que existe entre o que é conhecido e o que ainda não o é. 3a Sobre a teoria do conhecimento, como em todos os outros campos da ciência,

MATERIALISMO HISTÓRICO

deve-se raciocinar sempre dialeticamente, ou seja, nunca supor que nosso conhecimento seja invariável e acabado, mas analisar o processo graças ao qual o conhecimento nasce da igno­ rância ou o conhecimento vago e incompleto torna-se mais justo e preciso" (Materialismus utid Empiriokritizismus, 1909; trad. it., p. 75). Como se vê, tampouco essas teses expres­ sam uma concepção materialista, mas cons­ tituem uma reivindicação do realismo gnosiológico. M ATERIALISM O H ISTÓ RICO (in Histó­ rica! materialism-, fr. Matérialisme historique, ai. IIistorischerMaterialismus; it. Materialismo storico). Com este nome Engels designou o cânon de interpretação histórica proposta por Marx, mais precisamente o que consiste em atribuir aos fatores econômicos (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção) peso preponderante na deter­ minação dos acontecimentos históricos. O pres­ suposto desse cânon é o ponto de vista antro­ pológico defendido por Marx, segundo o qual a personalidade humana é constituída intrhisecamente (em sua própria natureza) por re­ lações de trabalho e de produção de que o homem participa para prover âs suas neces­ sidades. A "consciência" do homem (suas cren­ ças religiosas, morais, políticas, etc.) é resulta­ do dessas relações, e não seu pressuposto. Esse ponto de vista foi defendido por Marx sobretudo na obra Ideologia alemã (Deutsche Ideologie, 1845-46). Em vista disso, a tese do M. histórico é de que as formas assumidas pela sociedade ao longo de sua história dependem das relações econômicas predominantes em certas fases dela. Marx diz: "Km sua vicia pro­ dutiva em sociedade, os homens participam de determinadas relações necessárias e indepen­ dentes de sua vontade: relações de produção que correspondem a certa fase de desenvolvi­ mento de suas forças produtivas materiais. Flsse conjunto de relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, que é a base real sobre a qual se erige uma superestrutura jurídica e política e â qual correspondem deter­ minadas formas sociais de consciência. (...) Por­ tanto, o modo de produção da vida material em geral condiciona o processo da vida social, política e espiritual" (Zur Kritik derpolitischen Òkonomie, 1859, Pref.: trad. it., p. 17). Marx elaborou essa teoria sobretudo em oposição ao ponto de vista de Hegel, para quem é a cons­ ciência que determina o ser social do homem;

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MATERIALISMO HISTÓRICO

para Marx, pelo contrário, é o ser social do homem que determina a sua consciência. Contudo, nào se deve achar que Marx fosse partidário fatalismo econômico, segundo o qual as condições econômicas necessariamente levariam o homem a determinadas formas de vida social. Nessas relações econômicas, que dependem de técnicas de trabalho, produção, troca, etc, o homem é elemento ativo e condicionante. Portanto, a condicionalidade que a estrutura econômica exerce sobre as superestruturas sociais é — pelo menos em parte — uma autocondicionalidade do homem em rela­ ção a si próprio {DeutscheIdeologie, 1, C; trad. it., pp. 69 ss.). Engels falou em seguida da "inver­ são da práxis histórica", ou seja, de uma reação de oposição da consciência humana â ação das condições materiais sobre ela. Mas do ponto de vista de Marx essa inversão não é necessá­ ria, visto não ser a superestrutura que reage à estrutura, mas o homem que, intervindo com suas técnicas para mudar ou para melhorar a estrutura econômica, se autocondiciona por meio dela. O M. histórico chamou a atenção dos his­ toriadores para um cânon interpretativo ao qual muitas vezes é indispensável recorrer para explicar acontecimentos e instituições histórico-sociais. A ele de fato recorrem, em maior ou menor grau, historiadores de todos os cam­ pos de atividade humana, porquanto algumas vezes o caminho aberto por esse tipo de expli­ cação histórica é o único possível. No entanto, nem sempre é o único possível. Hoje a tendên­ cia é interpretar o M. histórico como uma pos­ sibilidade explicativa, à qual se recorre em circunstâncias apropriadas, e não como um prin­ cípio dogmático (sobretudo na forma proposta por Engels). Em outras palavras, afirmar que acontecimentos ou situações histórico-sociais sempre devem ser explicados pelo determinis­ mo dos fatores econômicos é tese tão dogmática quanto qualquer outra que quisesse excluir absolutamente e em todos os casos o deter­ minismo de tais fatores. O historiador, diante de uma situação, deve verificar o peso relativo cios fatores determinantes, estabelecendo-o caso a caso. considerando as situações particulares, e não decidindo de antemão e em definitivo. Isento dessa postura dogmática, o M. histórico representa, para a técnica de explicação historiográfica, uma das possibilidades mais fecundas e um novo grau de liberdade à escolha historiográfica (v. HISTORIOGRAFIA).

MATHESIS UNIVERSALIS

MATHESIS UNIVERSALIS. Foi assim que Leibniz (Op, ed. Erdmann, p. 8) chamou a arte combinatória ou característica universal (v.). Husserl retomou esse termo para designar a lógica formal ou pura como "ciência eidética do objeto em geral", que ele assim caracteriza: "Objeto é para ela tudo e cada coisa; portanto podem ser constituídas as verdades infinita­ mente múltiplas que se distribuem nas inú­ meras disciplinas da mathesis. Estas últimas, por outro lado, remetem a um pequeno patri­ mônio de verdades imediatas ou fundamen­ tais, que nas disciplinas puramente lógicas fun­ cionam como axiomas" (Ideen, I, § 10; Logische lintemtchungen, I, último cap.). MATRIMÔNIO. V. CASAMENTO. MATRIZES, MÉTODO DAS (in. Method of matrices; fr. Méthode des matrices; it. Método delle mairici). Método de construção de tábuas de verdade (y. TÁBUA); consiste na enumeração sistemática das possibilidades de verdades para certo número de proposições simples, ou seja, na enumeração das combinações possíveis dos valores de verdade dessas proposições. Para uma proposição há duas possibilidades (verda­ deira ou falsa); para duas, quatro; em geral, para n proposições, 2" possibilidades de ver­ dades. Esse método foi introduzido por Peirce numa obra de 1885 (Coll. Pap., 4.359-403), de­ senvolvido por Schrôder (Álgebra der Logik, 1890) e empregado pelos lógicos poloneses, especialmente Lukasiewicz, para construção das lógicas polivalentes (que admitem o va­ lor possível, além de verdadeiro e falso) (cf. TARSKI, Logic, Semantics, Metamathematics, 1956, cap. IV), sendo hoje adotado por gran­ de número de lógicos matemáticos (cf., p. ex., BETH, Les fondements logiques des mathématiques, 1955, § 34). Esse método era conhecido na Antigüidade; Fílon de Mégara utilizou-o em sua análise das proposições condicionais, afirmando que tais pro­ posições serão verdadeiras nos seguintes ca­ sos: 1) se o antecedente e o conseqüente fo­ rem verdadeiros; 2) se o antecedente for falso e o conseqüente verdadeiro; 3) se o antecedente e o conseqüente forem falsos; e que serão fal­ sas quando o antecedente é verdadeiro e o con­ seqüente é falso (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., I, 309). V. CONDICIONAL; IMPLICAÇÃO. O método de matrizes geralmente serve para reconhecer se uma proposição do cálculo proposicional é verdadeira; por isso, pode ser enumerada entre as leis do cálculo (TARSKI,

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MECANICISMO

Introduction to Logic, § 13; CHURCII, Introduction to Mathematical Logic, I, § 15). MAXIMA (lat. Máxima propositio-, in. Ma­ xim, fr. Maxime, ai. Maxime, it. Massima). Este termo tem dois significados diferentes: l'J pro­ posição evidente; 2- regra de conduta. ly O significado de proposição evidente é o mais antigo e se encontra estabelecido a propó­ sito da teoria dos lugares lógicos. Boécio cha­ mou de "proposição máxima" a proposição indemonstrável mas evidente (In top. Cicer., I; De diff. topicis, II; em /> . L., 64L>, col. 1151, 1185), e esse significado permaneceu na lógica medieval. "A proposição máxima" — diz Pedro Hispano — "é a proposição mais conhecida ou mais primitiva possível, como, p. ex., 'O todo é maior que sua parte'" (Summ. log., 5.07). Mais tarde, acentuou-se algumas vezes o caráter de probabilidade da máxima: por máxima Jungius entende "um enunciado universal maximamente provável" (log. bamburgensis, 1638, V, 3, 5). Nesse significado, que é sinônimo de axioma, essa palavra era utilizada por Locke (Ensaio, IV, 12, 1) e por Leibniz (Nouv. ess, IV, 126). Agora não é usada, tendo sido substituída pelo termo axioma. 2q Foram os moralistas franceses da segun­ da metade do séc. XVII os primeiros a empre­ gar esse termo para designar uma regra moral. La Rochefoucauld intitulou sua coletânea de pensamentos Réílexions ou sentences et maximes mondes, (1665); Kant aceitou este uso, entendendo por M. uma regra de comporta­ mento em geral. Distinguia a M., como "princí­ pio subjetivo da vontade", da lei, que é o prin­ cípio objetivo, universal de conduta. O indivíduo pode assumir como M. a lei, outra regra ou mesmo afastar-se da lei (CirundlegungzurMet. derSitten, I, 1, nota; Crít. R. Prática, § 1. Def.; Religion, I, Obs.). Este segundo significado é o único que ficou. MECANICISMO (in. Mechanism- fr. Mécanisme, ai. Mecanismus-, it. Meccanicismo). Toda doutrina que recorra à explicação mecanicista. Entende-se por explicação mecanicista a que utiliza exclusivamente o movimento dos corpos, entendido no sentido restrito de movi­ mento espacial. Nesse sentido, é mecanicista a teoria da natureza que não admite outra expli­ cação possível para os fatos naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam, além da­ quela que os interpreta como movimentos ou combinações de movimentos de corpos no espaço. O M. pode ser considerado: le uma

MECANICISMO

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MECANICISMO

concepção filosófica do mundo; 2" um método ou princípio diretivo da pesquisa científica. 1" Como concepção filosófica do mundo, o M. apresentou-se desde a Antigüidade como atomísmo (v.). A concepção do mun­ do como sistema de corpos em movimento, como uma grande máquina, é típica do atomismo antigo. O materialismo dos sécs. XVIII e XIX retomou essa concepção, que tem as se­ guintes caracte-rísticas: a) negação de qual­ quer ordem fina-lista; a polêmica entre M. e finalismo começou a partir de séc. XVII, quan­ do o M. se firmou com o surgimento da ciên­ cia moderna; atualmente muitas vezes o ter­ mo M 6 interpretado apenas como negação do finalismo (v.); b) determinismo rigoroso, representado pelo conceito de causalidade necessária infiltrada em todos os fenômenos da natureza; hoje 6 con-siderada como náomecanicista qualquer concepção do mundo que negue o determinismo rigoroso. As duas características acima são tipicamen­ te expressas pela filosofia cie Hobbes. que constitui um dos melhores exemplos de M. filo­ sófico (v. MATFRIAI.ISMO). Por outro lado, a visão mais perspicaz que as filosofias antimecanicistas do séc. XIX assumiram perante o M. foi expressa por Lotze, em Microcosmo (1856): "a tarefa que cabe ao M. na ordenação do uni­ verso é universal, sem exceções no que se refe­ re ã extensão, mas absolutamente secundário no que se refere á importância" (Mikrokosnuis, I, Intr.; trad. it., p. 10); ou. em outros termos, o M. não passa de instrumento utilizado pelo Princípio Racional ou Divino do universo para cumprir seus objetivos. Na filosofia espiritua­ lista contemporânea, esse ponto de vista mes­ clou-se â crítica ab exthnseco dos princípios científicos do M. A partir das últimas décadas do séc. XIX. o M. como concepção filosófica geral deixou de ter seguidores pelos motivos a seguir expostos. 2- O M. científico pode ser considerado: a) na física; h) nas outras ciências. a) Na física, o M. consiste na tese de que todos os fenômenos da natureza devem ser ex­ plicados pelas leis da mecânica, e que, portan­ to, a própria mecânica deve ter um status privi­ legiado entre as outras ciências, porquanto lhes fornece os princípios explicativos. Ora. a mecâ­ nica como ciência é criação relativamente re­ cente. Arquimed.es conhecia os elementos da estática, que é a parte da mecânica que trata do equilíbrio das forças, mas a dinâmica, que é o

estudo dos movimentos dos corpos sob a ação das forças, era desconhecida dos antigos e foi inaugurada por Galilei e Newton. Depois, o princípio de ITAlembert unificou a estática e a dinâmica, mostrando que um problema de di­ nâmica pode ser transformado num problema de equilíbrio de forças, portanto cie estática, to­ mando em consideração forças fictícias chama­ das "forças inerciais"; assim, p. ex., a órbita cie um planeta em torno do sol pode ser interpre­ tada como equilíbrio entre a força de gravitaçâo e uma força centrífuga igual e oposta. Com essa concepção, a mecânica estava de algum modo concluída em termos de teoremas fundamentais, e a partir de então sofreu trans­ formações conceituais e lingüísticas que visa­ vam a torná-la mais coerente e simples. Desse ponto de vista, pode-se dizer que em meados do séc. XIX teve início uma segunda fase do desenvolvimento cia mecânica, graças sobre­ tudo a Hamilton, com a substituição da idéia de força pela idéia de energia. A primeira fase da mecânica foi caracterizada pela tentativa de explicar os fenômenos naturais reduzindo-os a inúmeras ações â distância entre os átomos da matéria. A segunda fase inspira-se na impor­ tância adquirida pelo princípio de conservação da energia (enunciado por Helmholtz em 1847) e pela expressão cias leis fundamentais da me­ cânica, em termos de energia cinética e poten­ cial. Uma terceira fase foi iniciada quase no fim do séc. XIX por Hertz, que procurou re­ duzir a dinâmica â cinemática admitindo como fundamental a lei do princípio mínimo: cada sistema livre persiste em seu estado de repou­ so e de movimento uniforme pelo caminho mais curto. O M. em física é relativamente indepen­ dente dessas mudanças da mecânica. Como já foi dito, a característica das teorias mecanicistas em física é utilizar exclusivamente as grandezas próprias da mecânica (torça, massa, energia, etc). Podemos distinguir: a teoria mecanicista da descontinuidade e a teoria mecanicista do contínuo. A teoria mecanicista do descontínuo é a teo­ ria atômica utilizada para explicar, além da luz (teoria corpuscular), vários fenômenos; físicos como a adesão, a coesão, a capilaridade; deu lugar à teoria cinética dos gases e âs primeiras teorias dos fenômenos elétricos. As teorias mecanicistas fundamentadas na continuidade só foram possíveis com a descoberta de instru­ mentos de cálculo diferencial mais complexos:

M EC A NIO SM O

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MEDIAÇÃO

o pressuposto de que os fenômenos vitais são regidos apenas por leis físico-químicas, mas não admitiu qualquer forma de vitalismo (v. EVOLUÇÃO; VITALISMO). Pode-se dizer, portanto, que o M. foi abandonado, mas é preciso acres­ centar que com ele também foram abandona­ das as tendências conceptuais às quais ele se contrapunha e cuja correção representava. MEDIAÇÃO (in. Mediation; fr. Médiation; ai. Vermittelung; it. Mediazione). Função que relaciona dois termos ou dois objetos em geral. Essa função foi identificada: 1" no termo médio no silogismo; 2" nas provas na demonstração; 3Qna reflexão; 4'- nos demônios na religião. 1B Segundo Aristóteles, o silogismo é de­ terminado pela função mediadora do termo médio, que contém um termo e é contido pelo outro termo (An. pr, I, 4, 25 b 35) (v. SILO­ FÍSICA). b) O M. não foi apenas um princípio di­ GISMO). retivo da física: a partir do séc. XVIII também 2~ Segundo a Lógica de Port-Royal, a M. é foi o princípio diretivo de todas as outras ciên­ indispensável em qualquer raciocínio. "Quan­ cias naturais, inclusive da biologia, da psicolo­ do apenas a consideração de duas idéias não é gia e da sociologia. Obviamente, fora da física, suficiente para se julgar se o que se deve fazer o M. teve um caráter bem menos rigoroso: nem é afirmar ou negar uma idéia com a outra, é para a explicação dos fenômenos biológicos, preciso recorrer a uma terceira idéia, simples psicológicos ou sociológicos mais simples che­ ou complexa, e esta terceira idéia chama-se gou-se â exatidão quantitativa dos modelos intermediária" (AKNAULD, Log, III, 1). Locke di­ mecânicos empregados para explicar, p. ex., o zia: "As idéias intermediárias, que servem para fenômeno da capilaridade ou o da interferên­ demonstrar a concordância entre outras duas, cia da luz. Fora da física, portanto, o M. foi uma são chamadas de provas; quando, com esse aspiração genérica, uma tese filosófica ou, na meio, percebe-se com clareza ou evidência a melhor das hipóteses, uma exigência genérica concordância ou discordância, elas são chama­ de método, mais que instrumento efetivo de das de demonstração" (Ensaio, IV, 2, 3). No explicação. Como instrumento de polêmica, de­ mesmo sentido ITAlembert afirmava: "Toda a fendeu a necessidade causai contra o finalismo; lógica se reduz a uma regra muito simples: em termos positivos, afirmou em todos os cam­ para confrontar dois ou mais objetos distantes pos a exigência da análise quantitativa. Afora uns dos outros utilizamos objetos intermediá­ isso, as teses do M. nos vários campos da ciên­ rios. O mesmo acontece quando queremos cia são reducionistas: em biologia, consiste em confrontar duas ou mais idéias; a arte do racio­ reduzir as leis biológicas a leis físico-químicas; cínio nada mais é que o desenvolvimento des­ em psicologia, consiste em reduzir as leis se princípio e as conseqüências dele resultan­ psicológicas a leis biológicas; em sociologia, tes" (GSuvres, ed. Condorcet, 1853, p. 224). consiste em reduzir as leis sociológicas a leis Segundo Hegel, a M. é a reflexão em ge­ biológicas e psicológicas. A utilidade dessas ral 3a(Werke, ed. Glockner, II, p. 25; IV, p. 553, tendências reducionistas foi desvencilhar o etc): "Um conteúdo pode ser conhecido como campo das respectivas ciências de estruturas verdade só quando não é mediado por outro, conceituais antiquadas, cie pressupostos metafí­ quando não é finito, quando, portanto, medeiasicos ou teológicos que estorvavam a pesquisa se consigo mesmo, sendo, assim, o todo em um, ou até mesmo a bloqueavam. Contudo, a ciên­ M. e relação imediata consigo mesmo." ou­ cia do séc. XX, sobretudo a partir do terceiro tras palavras, a reflexão exclui não só Em a ime­ decênio, abandonou a postura reducionista e, diação, queéa intuição abstrata, o saber imedia­ portanto, o M, sem voltar às posições às quais to, também a "relação abstrata", a M. de o M. se opunha. A biologia, p. ex., abandonou um mas conceito com um conceito diferente (as

seu exemplar é a hipótese de Fresnel sobre o éter elástico como meio de propagação das ondas luminosas. Ambas as teorias foram eli­ minadas da física pela teoria do campo (v.), em virtude da qual os conceitos da mecânica deixaram de ter validade como princípios explicativos gerais da física. Simultaneamente, a outra característica fundamental do M., o de­ terminismo rigoroso ou necessarista, foi elimi­ nada em virtude da consolidação da teoria quântica (v. CAUSALIDADE). Einstein e Infeld di­ zem a respeito: "As leis da física quântica não governam o comportamento de objetos par­ ticulares no tempo, mas as variações da proba­ bilidade no tempo" (The Evolution ofPhysic, IV; trad. it., p. 29S). Com essa transformação, a física saiu de sua fase mecanicista e consti­ tuiu-se como ciência da previsão provável (v.

M EDIADO R PLÁSTICO

provas de Locke), que Hegel considera tí­ pica (e com razão) do século do Iluminismo (Ene, § 74). 4" Na Antigüidade, aos demônios cabia uma função mediadora entre os deuses e os ho­ mens. O Demiurgo de Platão encarrega as di­ vindades inferiores ou demônios de criar as ge­ rações mortais e completar a obra da criação (Tini, 41 a-c). Plotino diz que os demônios são eternos, em relação a nós, servindo de "inter­ mediários entre os deuses e nossa espécie" (Enn, III, 5, 6). Mitra era concebido como me­ diador, mais precisamente como mediador en­ tre a divindade inatingível das esferas etéreas e o gênero humano (CIMONT. The Mysteries of Mithrci, pp. 127 ss.). Enfim, segundo a doutrina cristã, "somente a Cristo compete ser mediador de modo simples e perfeito", enquanto anjos e sarcerclotes são instrumentos de M. (S. TOMÁS, S. Tb., III, q. 26 a 1). MEDIADOR PLÁSTICO (fr. Médiateur plasti(jite). Assim foi chamada por alguns filó­ sofos cio séc. XIX a "natureza plástica" de que falava Cudworth como éctipo(v.), que é inter­ mediário entre Deus e o mundo (The 'Tme Intelleclual System ofthe Uniuerse, I, 1, 3). Essa expressão é usada por Laromiguière (Leçons dephil, 1815-18, II, 9) e por Galluppi (Lezioni di lógica e metafísica, 1832-1836, II, p. 273). MEDIANIDADE (ai. Durchschnittlichkeit). Segundo Heidegger, aquilo que o homem é em média, em sua existência quotidiana e indiferen­ te: determinação fundamental da existência, de que a análise existencial deve partir (Sein und Zeit, § 9). MEDIDA(gr. Liétpov; lat. Mensura;in. Measure, fr. Mesure, ai. Mass, it. Misura). Já Platão havia dividido a arte da M. em duas partes, situando na primeira as artes "que medem o número, o com­ primento, a altura, a largura e a velocidade em relação a seus contrários" e na segunda "as artes que medem a relação ao justo meio, ao conveni­ ente, ao oportuno, ao obrigatório, enfim ás deter­ minações que estão no meio entre dois extre­ mos" (Poi, 284 e). Conseqüentemente pode-se entender por medida: \" Relação entre uma grandeza e a unidade. A1'este propósito Aristóteles observava que a unidade pode ser entendida de dois modos: como unidade convencional ou aparente e comounidade absolutamente indivisível (Mel., X, 1-' 1053 a 22), e, nesse sentido, reconhecia as condiçõesi da M. na homogeneidade entre

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aquilo que se mede e aquilo com que se mede (Ihid, X, 1, 1053 a 22). 2" Critério ou o cânon daquilo que é verda­ deiro ou bem. Nesse sentido, Cleóbulo, um dos Sete Sábios, dizia: "O melhor é a M." (DIÓG. L, 1, 93)- Platão via na justa M. a ordem e a har­ monia das coisas (/'//., 24 c-cl) e para Aristóteles o meio (v.) era o cânon da virtude ética. No mesmo sentido essa palavra foi usada por Protágoras, em seu famoso princípio de que o homem é a M. das coisas, e por Aristóteles, quando via no homem virtuoso "o cânon e a M. das coisas" (Et. nic, III, 4, 1113 a 33). Nesse sentido, a M. é um dos conceitos fundamentais da cultura clássica grega. MEDITAÇÃO. V. MISTICISMO. MEDO. V. EMOÇÃO. MEGARISMO (in. Megarism; fr. Mégarisme-, ai. Megarismus; it. Megarismo). Escola socrática de Mégara, fundada no séc. V a.C. por Euclides (não confundir com o matemático Euclides, que viveu e ensinou em Alexandria qua­ se um século mais tarde). Outros represen­ tantes dessa escola são Eubulides de Mileto, Diodoro Cronos e Estílpon, que ensinou em Atenas mais ou menos em 320 a.C. Sua carac­ terística é unir o ensinamento de Sócrates à doutrina eleata. Para Euclides, o bem é um só, a Unidade, chamada por vários nomes: Sabe­ doria. Deus. Intelecto, etc. Portanto, assim como os eleatas, os megáricos contestavam a realidade do movimento, da mudança e da multiplicidade. Para isso, adotavam vários ar­ gumentos de natureza sofistica, como o do sorites (v.) ou do calvo, bem como acatavam a nega­ ção da possibilidade formulada por Diodoro Cronos (para esta última, v. POSSIBILIDADE). Al­ guns desses argumentos foram retomados pe­ los estóicos, nos raciocínios "ambíguos" ou "conversíveis", depois chamados de dilemas (v.) e hoje chamados de paradoxos ou antino­ mias (v.). MEIO1 (gr. i£OÓTTÇ; lat. Medietas, in. Mean; fr. Milieit; ai. Mittel; it. Medietã). Justo meio, meio-termo, entre os extremos, que, segundo Aristóteles, pode ser definido em relação às coisas ou em relação a nós: "Se cada ciência cumpre bem o seu papel quando visa ao justo meio e orienta suas obras para ele (donde se costuma dizer que nas boas obras nada se tem a tirar nem a acrescentar, porquanto o excesso e a falta arruinam o bom, enquanto o justo meio o salva), se os bons artistas trabalham com vistas a esse meio-termo, a virtude, que,

MEIO" assim com o a n atu re za , é m ais acu rad a e m e ­ lhor q u e q u a lq u e r arte, d ev erá te n d e r p rec isa­ m en te para o ju sto m eio" (Et. uic, II, 6. 1106 b 8). C o n tu d o , o ju sto m eio é d efinição ap e n a s da virtude ética (v.) ou m oral, p o rq u e só ela diz resp eito a p aix õ es ou açõ es su scetív eis cie e x ­ cesso ou deficiência (cf. tam bém S. TO M ÁS. S. lh., I. II, q. 59, a. 1) (v. VIRTIIDH). MEIO2 (in. Means; fr. Moyen; ai. Mittek it. Mczzo). 1. T u d o o q u e p o ssib ilita alca n ç ar um fim. cu m p rir um objetivo ou realizar um p ro jeto. S ob re a re la ção en tre M. e fim. v. VAI.OR. 2. A m b ien te , e s p e c ia lm e n te o b io ló g ic o . N esse sen tid o, essa palavra c o rresp o n d e ao fran­ cês milieit, q u e co m eço u a ser u sad a com esse significado em m eados cio século passado (v. A M BIKNTK). MELANCOLIA (gr. ui/U xç xoW |; in. Melemcholia; fr. Mélaucolie, ai. Melancholíe: it. Melanconia). P ro p riam e n te, h u m o r n eg ro (v. TK M PF.RAMHNTO). Fm linguagem com um , tristeza sem m otivo. MELIORISMO (in. Melíorísm. fr. Méliorísme, ai. Meliorism us\ it. Megliorismo). P alavra

recente, usada sobretudo pelos escritores anglo-saxòes para indicar uma visão de mundo que não é pessimista nem otimista, mas guiada pela esperança do melhor e pela vontade de realizá-lo. MEMÓRIA (gr. uviíur]; lat. Memória; in. Memoiy fr. Mémoire-, ai. Gedachtnis-, it. Me­ mória). Possibilidade de dispor cios conheci­ mentos passados. Por conhecimentos passados é preciso entender os conhecimentos que, de qualquer modo, já estiveram disponíveis, e não já simplesmente conhecimentos cio passado. O conhecimento do passado também pode ter formação nova: p. ex., dispomos agora de informações acerca do passado de nosso pla­ neta ou de nosso universo que não são recor­ dações. Conhecimento passado também não é simplesmente marca, vestígio, pois estas são coisas presentes, não passadas. A tristeza ou a imperfeição física causadas por um acidente não são a M. desse acidente, apesar de serem vestígios dele, ao passo que a recordação pode estar disponível e pronta, sem precisar da ajuda de nenhum vestígio, como no caso da fórmula para o matemático e, em geral, das lembranças decorrentes da formação ou de hábitos profis­ sionais. A M. parece ser constituída por duas condi­ ções ou momentos distintos: 1" conservação ou

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persistência de conhecimentos passados que. por serem passados, não estão mais à vista: é a retentiva; 2" possibilidade de evocar, quan­ do necessário, o conhecimento passado e de torná-lo atual ou presente: é propriamente a recordação. Esses dois momentos já foram clistinguiclos por Platão, que os chamou respecti­ vamente de "conservação de sensações" e "reminiscência" (Fii, 34 a-c). e por Aristóteles, que utiliza esses mesmos termos. Aristóteles tam­ bém propõe claramente o problema decorren­ te da conservação da representação como mar­ ca (impressão) de um conhecimento passado: "Se em nós permanecer algo semelhante a uma marca ou a uma pintura, como pode a percep­ ção dessa marca ser M. de alguma outra coisa e não apenas de si? De fato. quem lembra vê apenas a marca e só dela tem sensação; como pode então lembrar o que não está presente?" (DeMeni.. 1, 450 b 17). A resposta de Aristóteles a essa questão é que a marca na alma é como um quadro que pode ser considerado por si ou pelo objeto que representa. F. diz: "Assim como um animal pintado num quadro é animal e imagem, sendo ao mesmo tempo ambas as coi­ sas, ainda que o ser dessas coisas não seja o mesmo, podendo ele ser considerado como animal ou como imagem, também a imagem mnemônica que está em nós deve ser conside­ rada como objeto por si mesmo e, ao mesmo tempo, como representação de alguma outra coisa" (fbid, 450 b 21). Segundo Aristóteles, a explicação do processo da M., tanto como retentiva quanto como recordação, é inteiramen­ te física: a retentiva e a produção de impressão decorrem de um mofimento, assim como de um movimento decorre a lembrança/recorda­ ção. Contudo, a recordação, ao contrário da retentiva, é uma espécie de dedução (silogismo), pois "quem recorda deduz que já escutou ou percebeu aquilo de que se lembra; isso é uma espécie de busca" (Ibici, 453 a 11). Portanto, a recordação é própria apenas dos homens. Com isso, Aristóteles evidenciava outra característica fundamental da M. como recordação: seu cará­ ter ativo de deliberação ou de escolha. A aná­ lise platõnico-aristotélica cia M. trouxe à baila os seguintes aspectos: a) distinção entre retentiva e recordação; b) o reconhecimento do caráter ativo ou voluntário da recordação, diante do caráter natural ou passivo da retentiva; c) base física da recordação como conservação de movimento ou movimento conservado. Podese dizer que esses aspectos não mudaram ao

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longo da história desse conceito. Todavia, as tamente essa autoconservação. Tal é a concep­ doutrinas posteriores podem ser subdividi­ ção de M. por parte da filosofia espiritualista ou das em dois grupos, segundo o ponto de consciencialista. A melhor exposição dessa partida para a interpretação da M: M. como concepção encontra-se em Bergson (Matéria e retentiva ou conservação ou M. como recor­ M., 1896), que a contrapôs à concepção de M. dação. baseada na recordação. Bergson disse: "A M. A) A psicologia antiga ressaltou aspecto de não consiste na regressão do presente para M. como conservação, persistência, de conhe­ o passado, mas, ao contrário, no progresso do cimentos adquiridos. O modo místico como passado ao presente. É no passado que nós Plotino trata o assunto, além de negar a base fí­ nos situamos de chofre. Partimos de um estado virtual, que pouco a pouco, através de uma sé­ sica da M. e considerar o corpo mais como obstáculo do que como ajuda (Enn., IV, 3, rie de planos de consciência diferentes, vamos 26), afirma a proporção entre M. e força ou conduzindo até o termo em que ele se materia­ persistência de conservação: "Se a imagem per­ liza em apercepção atual, ou seja, até o ponto siste na ausência do objeto, já há M., mesmo em que se transforma em estado presente e que persista por pouco; se persiste por pouco, agente, enfim, até o plano extremo de nossa a M. 6 curta; se dura mais, a M. aumenta por­ consciência sobre o qual se desenha nosso cor­ que a força da imaginação é maior; e, se dificil­ po. A recordação pura consiste nesse estado mente falha, a M. é indestrutível" (Ibicl, IV, 3, virtual" (Malière etmémoire, 7- ed., p. 245). A 29). De maneira análoga, a lista feita por S. Agos­ M. pura (ou recordação pura) é a corrente de tinho dos "milagres" da M. baseia-se no con­ consciência em que tudo é conservado no esta­ ceito de M. como receptáculo dos conhecimen­ do de virtualidade. A limitação da lembrança tos ou, segundo sua expressão, "ventre da efetiva nào pertence à M., mas à recordação atual, que Bergson identifica com a percepção alma" (Conf, X, 14). Ksse é também o conceito dos filósofos medievais. S. Tomás dá-lhe o e que é uma escolha realizada na M. pura, para nome de "tesouro e local de conservação das as exigências da ação. Portanto, as lesões ce­ espécies" (V. Th, I, q. 29, a. 7), repetindo um rebrais nào afetam a M. propriamente dita, mas lugar-comum da filosofia medieval. Isso eqüiva­ apenas a reminiscência das lembranças na per­ cepção, ou seja, o mecanismo pelo qual a M. lia a insistir na M. como retentiva. insere no corpo e transforma-se em ação. Mas as concepções modernas e contempo­ se Essa teoria, que Bergson apoiava na análise râneas também vêem a M. como conservação; dos distúrbios das funções mnemônicas, carac­ retomando a concepção agostiniana do tempo teriza-se por dois pontos fundamentais: Io dis­ como distensio animi ou duração de consciên­ entre M. pura e recordação, entenden­ cia, vêem na M. a conservação integral do es­ tinção a conservação integral, pírito por parte de si próprio, ou seja, a persis­ do-se por M. depuraqualquer circunstância, do tência nele de toda.s as suas ações e afeições, independente espírito por parte do espírito; ora, é evidente de todas as suas manifestações ou modos de que essa M. nada tem a ver com memória ser. Essa concepção já foi exposta por Leibniz, observável; 2" negação de qualquerabase fisio­ que concebia a M. como conservação integral para a M. pura e limitação da base íisob forma de virtualidade ou de "pequenas per­ lógica ao fenômeno da percepção. Essa ne­ cepções" das idéias que não têm mais forma de siológica gação tampouco é confirmada por fatos; seu pensamentos ou de "apercepções"; donde precedente histórico é a teoria de Plotino. A observar, em oposição a Locke: "Se as idéias partir de Descartes (Princ. phil, IV, 196), a nào fossem mais que formas ou modos de pen­ base fisiológica da M. não é negada. mesma samentos, cessariam com eles; contudo o Sr. conservação integral do espírito por Aparte do mesmo reconheceu que elas são os objetos in­ espírito é a "corrente da consciência", de que ternos dos pensamentos e que, como tais, po­ fala pois ele também recorre ao con­ dem subsistir. Surpreende-me que possa, en­ ceitoHusserl, empregado por Leibniz e Bergson, de tão, subestimar essas potências ou faculdades virtualidade ou potencialidade como marca da puras, deixando-as, ao que parece, sob os cui­ M. Husserl diz: coisas podem ser vivendados dos filósofos da escola" (Nouv. ess, II, ciadas nào só na "As apercepçào, mas também na 10, 2). Em virtualidade ou faculdade pode e e nas representações afins à recor­ deve conservar-se integralmente todo ato ou recordação manifestação do espírito, já que o espírito é jus­ dação. (...) À essência dessas vivências per­

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tence a importante modificação que, do mo­ do de atualidade, transporta a consciência para o modo de inatualidade, e vice-versa. Num caso, a vivência é consciência explícita de seu objeto; em outro, é consciência implícita. apenas potencial" (Ideen, I, § 3*5). O pressupos­ to é sempre o da total conservação do conteú­ do da consciência: o fenômeno da recordação 6 ligado à passagem do conteúdo do estado atual para o potencial, ou vice-versa. B) Pertencem a um segundo grupo as teorias da M. cujo ponto de partida é o fenômeno da recordação. Hobbes, p. ex.. definiu a M. como "a sensação de já ter sentido" (Decoip., 25, 1), o que significa defini-la em relação ao ato de se reconhecer, naquilo que se percebe, o que já se percebeu outra vez. A partir desse ponto de vista, Wolff definiu a M. como "faculdade de reconhecer as idéias reproduzidas e as coisas por elas representadas" (Psychol.rationalis, § 278): conceito que também .se encontra em Baumgarten (Met., § 579). Desse ponto de vista, ten­ de-se algumas vezes a reconhecer o caráter ativo da M.. ou seja, a função da vontade ou da escolha deliberada ao evocar as recordações. Loke dizia: "Nessa evocação das idéias depo­ sitadas na M., o espírito não é puramente passi­ vo porque a representação destes quadros ador­ mecidos ás vezes depende da vontade" (Ensaio, II, 10, 7). Kant ressaltava igualmente esse caráter ativo: "A M. difere da simples imaginação re­ produtiva porque, podendo reproduzir volun­ tariamente à representação precedente, a alma não está à mercê dela" (Antr, 1, § 34). A esse mesmo grupo de doutrinas pertencem: a) as que interpretam a M. como inteligência; b) as que interpretam a M. como mecanismo asso­ ciativo. a) Hegel interpretou a M. como inteligência ou pensamento (sempre em seu aspecto de re­ cordação), vendo nela "o modo extrínseco, o momento unilateral da existência do pensa­ mento". K nota que a língua alemã confere ã M. "a elevada posição de parentesco imediato com o pensamento" (Ene, § 464). Segundo Hegel. a M. é o pensamento exteriorizado, pensamento que acredita encontrar algo de externo, a coi­ sa que é lembrada ou recordada, mas que na realidade encontra-se a si mesmo, porque a coisa lembrada ou recordada também é pensa­ mento. Por isso, Hegel diz que, "como M., o espírito torna-se, em si mesmo, algo de exter­ no, de tal modo que o que é seu aparece como algo que é encontrado" (Ibíd., § 463). Acjui a M.

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é interpretada sobretudo como recordação; é evidente o parentesco dessa doutrina com as espiritualistas ou consciencialistas: a identifica­ ção da JV1. com o pensamento tem o mesmo sentido da unificação da M. com a consciência ou com sua duração. b) O conceito de M. como mecanismo associativo foi expresso pela primeira vez por Spinoza do seguinte modo: "A M. nada mais é que certa concatenação de idéias que implicam a natureza das coisas que estão fora do corpo humano; essa concatenação se produz na mente segundo a ordem e a concatenação das afei­ ções do corpo humanei". Spinoza faz a distin­ ção entre a concatenação cia M. e a das idéias, "que ocorre segundo a ordem do intelecto, igual em todos os homens" (/:'/., II, 18, schol.). Não há dúvida, portanto, cie que Spinoza fazia alusão a um mecanismo associativo semelhante ao que mais tarde foi teorizado por Hume: "E evidente que existe um princípio cie conexão entre os diversos pensamentos ou idéias cio espírito e que, ao surgirem na M. ou na imagi­ nação, apresentam-se sucessivamente com certo grau de método e regularidade" (Inq. Cone. 1'nderst., III). Como se sabe, Hume enunciava três leis de associação: semelhança, contigüidade e causalidade; mas só as duas primeiras foram empregadas pela psicologia associacionista para explicar os fenômenos psíquicos (v. ASSOCIACIONISMO).

Grande parte da psicologia moderna ba­ seou-se na hipótese associacionista ao estudar os fenômenos da M., até que a psicanálise, por um lado, e a f>estalt, por otitro, mostrassem a importância dos interesses e cias atitudes volitivas na recordação, bem como a importância cie toda a personalidade no reconhecimento do já visto. O estudo experimental da M. confir­ mou as palavras de Nietzsche: "Fiz isto — dizme a memória. Não posso ter feito — sustenta meu orgulho, que é inexorável. Finalmente, quem cede é a M." (Jenseit von Cíut und Rose, 1886. § 68). Assim, as análises psicológicas mo­ dernas continuam girando em torno do fato da recordação, mais do que em torno da retentiva, que continua sendo preferida pelas teorias filo­ sóficas da memória. MENÇÃO. V. liso. MENDELISMO. V. GKNÉTICA. MENTALIDADE (in. Mentality ir. Mentalité, ai. Mentalitál; it. Mentalità). 1. Termo empregado pelos sociólogos para indicar ati­ tudes, disposições e comportamentos insti­

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tucionalizados em um grupo e capazes de caracterizá-lo. P. ex.: "M. dos primitivos", "M. burguesa", etc. 2. Spaventa chamou "M. pura" o pensamen­ to reflexo ou consciente, que, para ele, deve acompanhar também as primeiras categorias da lógica hegeliana (ser e essência) (Scritti ftlosofici 1901, passim). MENTALISMO (in. Mentalism). Vocábulo usado na maioria das vezes por escritores filo­ sóficos anglo-saxões para indicar coisas bem diferentes: ou como sinônimo de "subjetivismo" e "idealismo subjetivo" (do tipo de Berkeley) ou como sinônimo de psícologísmo(\.), ou seja, a tendência combatida pela Lógica hodierna, mas ainda tenazmente persistente, de considerar as formas, as figuras e as estrutu­ ras da Lógica como formações, representações e operações mentais (psicológicas), e de consi­ derar as regras da Lógica como "leis do pensa­ mento". Nos textos dos seguidores da metodo­ logia operativista e dos pragmáticos (p. ex., Dewey), "M." é usado em acepção ligeiramen­ te diferente, para designar a tendência empirísta a interpretar a experiência e os concei­ tos empíricos como meros "estados mentais", desprezando os aspectos objetivos (fisiológi­ cos, operativo-manuais, lingüísticos, históri­ cos, etc). G. P. MENTE (lat. Meus). 1. O mesmo que inte­

chamavam de ambíguos ou conversíveis e os modernos chamam de antinomias ou parado­ xos: consiste em afirmar que se mente; assim, quando se diz a verdade, mente-se, e quando se mente, diz-se a verdade. A conclusão é impossível. Atribuído a Kubúlides de Mégara (Dióü. L., II, 108), esse argumento é encontra­ do em muitos escritores antigos (ARISTÓTELES, El. soi. 25. 180 b 2; CÍCERO, Acad, II, 95; De divin, II, 4; AULO GÉuo, Noct. Att, 18, 2). Re­ tomado no último período da Escolástica, esse argumento ainda é discutido pela lógica como

MENTALISMO

lecto (v.). 2. O mesmo que espírito: conjunto das fun­

ções superiores da alma, intelecto e vontade (v. ESPÍRITO).

3. Q mesmo que doutrina. Nesse sentido, diz-se (ou melhor, dizia-se, porque esse signifi­ cado é antiquado) "M. de Aristóteles" para de­ signar a doutrina de Aristóteles sobre um assunto qualquer. MENTIRA (gr. \|/eüôoç; lat. Mendacíum, in. Lie, fr. Mensonge; ai. Liige; it. Menzogna). Aristóteles distingue duas espécies fundamen­ tais de M, ajaetância, que consiste em exage­ rar a verdade, e a ironia (v.), que consiste em diminuí-la. Estas são M. que não dizem respei­ to às relações de negócios nem à justiça; nesses casos não se trata de simples M., mas de vícios mais graves (fraude, traição, etc.) {Et. nic, IV, 7, 1127 a 13). S. Tomás deu minuciosa classifi­ cação da M. do ponto de vista da moral teológi­ ca (5. lb , II, 2, q. 110). MENTIROSO (gr. \|/e\jôó|ievoç; lat. Mentiens; in. Liar, fr. Menteur, ai. Lügner it. Mentitore). Um dos argumentos que os antigos

u m a das an tin o m ia s ló g icas (v. ANTINOMIAS).

MÉRITO (lat. Meritum-, in. Merit; fr. Mérite, ai. Verdienst; it. Mérito). Título para obter apro­ vação, recompensa ou prêmio. Diz-se não só de pessoas, mas também de obras, como p. ex. "o M. deste livro é...". O M. é diferente da vir­ tude e do valor moral, constituindo a avaliação da virtude ou do valor moral, com fins de re­ compensa, ainda que apenas uma aprovação. M E S O L O G IA . V. ECOLOGIA.

METÂBASE (gr. Ltexá(3aoíç etç àXko yévoç). Passagem, legítima ou não, para outro assunto ou para outro campo. Aristóteles diz: "Não podemos ultrapassar o. corpo e ir para outro gênero como passainos do comprimento para a superfície e desta para o corpo" (De cael, 1, 1, 268 b 1). Quintiliano considera essa passa­ gem como figura retórica (ínst. or, IX, 3, 25). METABIOLOGIAün. Metabiology, fr. Métabíologie; ai. Metabiologíe; it. Metabiología). Especulações metafísicas a partir de fenôme­ nos biológicos. Ou então: a análise da estru­ tura lingüistico-conceitual da biologia. METACRÍTICA(al. Metakritik). Este termo aparece como título de duas obras alemãs dedicadas à crítica do kantismo: na obra de HAMANN, Metacrítica do purismo da razão (1788), e na de HKRDER, M. da crítica da razào pura (1799). Esse termo significa "crítica da crítica". METAFÍSICA (gr. xà Ltexà xà qyuoiKá; lat. Metaphysica; in. Methaphysik, fr. Métaphysique, ai. Metaphysik it. Metafísica). Ciência primeira, por ter como objeto o objeto de todas as outras ciências, e como princípio um princípio que condiciona a validade de todos os outros. Por essa pretensão de prioridade (que a define), a M. pressupõe uma situação cultural determi­ nada, em que o saber já se organizou e divi­ diu em diversas ciências, relativamente inde­ pendentes e capazes de exigir a determinação de suas inter-relações e sua integração com

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base num fundamento comum. Essa era preci­ samente a situação que se verificava em Atenas em meados do séc. IV a.C. graças â obra de Platão e de seus discípulos, que contribuíram poderosamente para o desenvolvimento da matemática, da física, da ética e da política. O próprio nome dessa ciência, que costuma ser atribuído ao lugar que coube ao textos relati­ vos de Aristóteles na coletânea de Andronico de Rodes (séc. I a.C), mas que Jaeger atribui a um peripatético anterior a Andronico (.Aris­ tóteles; tracl. it.. p. 517), presta-se a expressar bem a sua natureza, porquanto ela vai além da física, que é a primeira das ciências particula­ res, para chegar ao fundamento comum em que todas se baseiam e determinar o lugar que cabe a cada uma na hierarquia do saber; isso explica, senão a origem, pelo menos o sucesso que esse nome teve. Platão apresentou a exigência da formação dessa ciência suprema depois de esclarecer a natureza das ciências particulares que consti­ tuem o currículo do filósofo: aritmética, geome­ tria, astronomia e música: "Penso que, se o estudo de todas essas ciências que arrolamos for feito de tal modo que nos leve a entender seus pontos comuns e seu parentesco, perce­ bendo-se as razões pelas quais estão intima­ mente interligadas, o seu desenvolvimento nos levará ao objetivo que temos em mira e nosso trabalho não será debalde: caso contrário, será'1 (Rep., 531 c-d). Nessa ciência das ciências, Platão reconhecia a dialética (v.), cuja tarefa fundamental seria criticar e joeirar as hipóteses que cada ciência adota como fundamento, mas que "não ousam tocar porque não estão em condições de explicá-las" (Rep., 533 c). A semelhante filosofia Aristóteles dava o nome de "filosofia primeira" ou "ciência que estamos procurando" e apresentava seu proje­ to nos treze problemas enumerados no tercei­ ro (B) livro da Metafísica. Esses problemas versam todos, direta ou indiretamente, sobre as relações entre as ciên­ cias e seus objetos ou princípios relativos: so­ bre a possibilidade de uma ciência que estude todas AS causas (996 a 18) ou todos os princí­ pios primeiros (996 a 26) ou todas as substân­ cias (997 a 15) ou também as substâncias eseus atributos (997 a 25) e as substâncias não sensí­ veis (997 a 34) e sobre outros problemas (como os das partes que constituem todas as coisas, da possível diversidade de natureza en­ tre os princípios, da unidade do ser, etc.), todos

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situados na zona de intersecçào e de encontro das disciplinas científicas particulares e de inte­ resse comum para elas. Portanto, a M, como foi entendida e projetada por Aristóteles, é a ciência primeira no sentido de fornecer a todas as outras o fundamento comum, ou seja, o objeto a que todas elas se referem e os princí­ pios dos quais todas dependem. A M. implica, assim, uma enciclopédia das ciências, um in­ ventário completo e exaustivo de todas as ciências, em suas relações de coordenação e subordinação, nas tarefas e nos limites atribuí­ dos a cada uma, de modo definitivo (v. ENCI­ CLOPÉDIA). A M. apresentou-se ao longo da his­ tória sob três formas fundamentais diferentes: Ia como teologia; 2- como ontologia; 3a como gnosiologia. A caracterização hoje corrente de M. como "ciência daquilo que está além da ex­ periência" pode referir-se apenas à primeira dessas formas históricas, ou seja. à M. teológi­ ca; trata-se também de uma caracterização im­ perfeita, porquanto leva em conta uma caracte­ rística subordinada, por isso inconstante, dessa metafísica. Ia O conceito de M. como teologia consiste em reconhecer como objeto da M. o ser mais elevado e perfeito, cio qual provêm todos os outros seres e coisas do mundo. O privilégio de prioridade atribuído â M. decorre, neste caso, do caráter privilegiado do ser que é seu objeto: é o ser superior a todos e do qual todos os outros provêm. Na obra de Aristóteles esse conceito mesclase com o outro, de M. como ontologia, que é a ciência cio ser enquanto ser. Isso é expresso da seguinte forma por Aristóteles: "Se há algo de eterno, imóvel e separado, o conhecimento disso eleve pertencer a uma ciência teorética, porém certamente não à física (que se ocupa das coisas em movimento), nem à matemática, mas sim a uma ciência que está antes de am­ bas. (...) Somente a ciência primeira tem por objeto as coisas separadas e imóveis. Embora todas as causas primeiras sejam eternas, essas coisas são eternas de modo especial porque são as causas daquilo a que. do divino, temos acesso. Conseqüentemente, há três ciências teoréticas: matemática, física e teologia; já que o divino está em todos os lugares, está espe­ cialmente na natureza mais elevada, e a ciência mais elevada deve ter por objeto o ser mais elevado. (...) Se nào existissem outras subs­ tâncias além das físicas, a física seria a ciência pri­ meira; mas se há Lima substância imóvel, esta

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será a substância primeira e sua filosofia, a ciência primeira e, enquanto primeira, também a mais universal porque será a teoria do ser en­ quanto ser e daquilo que o ser enquanto ser é ou implica" (Mel, VI, 1, 1026 a 10). Esta última frase permite ver como Aristóteles entrelaça o conceito de M. como ontologia ao conceito de M. como teologia. Este último, porém, é com­ pletamente diferente do outro. Com base nis­ so, o objeto da M. é propriamente o divino, e a prioridade da M. consiste na prioridade qtie o ser divino tem sobre todas as outras formas ou modos de ser. Desse ponto de vista, as ciên­ cias se hierarquizam segundo a excelência ou perfeição de seus respectivos objetos é medida confrontando-os com o ser divino. Esse fora o critério adotado por Platão na ordenação das ciências, privilegiando a ciência que tem por objeto "aquilo que é ótimo e excelente", ou seja, a própria perfeição (Fed., 97 d), e hierarquizando todas as outras tomando essa como referência (Kep.. VII, 525 a ss.). Conttido. essa concepção relegava todas as ciências dife­ rentes da M. a um nível de irremediável inferio­ ridade, e o objeto que alcançava não era justi­ ficar as outras ciências, fundamentando sua validade e enobrecendo sua investigação, mas desvalorizá-las com o confronto com a ciência primeira e com o caráter sublime de seu obje­ to. Provavelmente esse foi o motivo por que, a certa altura, Aristóteles começou a insistir no outro conceito da M. como ontologia, mesmo sem nunca renegar ou abandonar o primeiro. Entretanto, a M. teológica reaparece sempre que se estabelece a correspondência entre um ser primeiro e perfeito e uma ciência igualmen­ te primeira e perfeita. É teológica, portanto, a M. de Plotino, que, às ciências que têm o sensí­ vel por objeto, contrapõe as que têm por obje­ to o inteligível, ou seja, a realidade suprema: 'Entre as ciências que estão na alma racional, algumas têm por objeto as coisas sensíveis, se é que podem ser chamadas ciências, já que me­ lhor lhes caberia o nome de opiniões; elas vêm depois das coisas e são imagens delas. As outras, as verdadeiras ciências, têm por objeto o inteligível, chegam à alma provindas do inte­ lecto divino e nada têm de sensível" (Enn, V, 9, 7). Essa bipartiçâo da realidade em um domí­ nio superior e privilegiado e outro inferior e derivado é o pressuposto característico da M. teológica, que pretende ter como objeto a reali­ dade primária e privilegiada. É M. teológica, portanto, a doutrina de Spinoza, porquanto seu

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objeto é a ordem necessária do mundo, vale di­ zer, Deus (Et., II, 46-47). É também M. teológica a filosofia de Hegel, que afirma ter Deus como objeto: "A filosofia tem objetos em comum com a religião porque o objeto de ambas é a Verda­ de, no sentido altíssimo da palavra, porquanto Deus e somente Deus é a Verdade" (Ene, § 1). Portanto, diante da filosofia todas as outras ciências ficam em condição de inferioridade: seu objeto é o finito. o irreal, ao passo que o objeto da filosofia é Deus, o infinito. Hegel diz: "As ciências particulares, a exemplo da filoso­ fia, têm como elementos conhecimento e pen­ samento, mas ocupam-se dos objetos finitos e do mundo dos fenômenos. O conjunto de co­ nhecimentos relativos a essa matéria está. de per si, excluído da filosofia, com a qual não condizem nem esse conteúdo nem sua forma1' (GeschichtederPhilosophie, Einleitung, B, 2, a; trad. it., I, p. 69). É evidente que, não obstante os protestos antimetafísicos, explícitos a filoso­ fia do espírito de Croce também é uma M. teo­ lógica, pois tem por objeto a História eterna do Espírito Universal: realidade sublime, diante da qual os objetos cie todas as outras ciências são rebaixados à posição de aparências particulares ou de acidentalidade empírica (Teoria e storia delia storiografia, 1917; La storia como pensiero e come azione, 1938). Finalmente, é M. teológica a filosofia de Bergson, que pretende "prescindir dos símbolos" e entrar diretamente em contato com uma realidade privilegiada, de natureza divina, que é a corrente da consciên­ cia ("Introduction á Ia métaphysique", em La pensée et le mouvant, 5- ecl.. 1934, pp. 206 ss.), e qtie como tal se contrapõe à ciência, cha­ mada de simples "auxiliar da ação" (Ibid., p. 158). Todas as formas de espiritualismo ou consciencialismo tendem, mais ou menos cla­ ramente, para uma metafísica teológica dessa espécie. 2aA segunda concepção fundamental é a da M. como ontologia ou doutrina que estuda os caracteres fundamentais do ser: os que todo ser tem e não pode deixar de ter. As principais proposições da M. ontológiea são as seguin­ tes: Y- Existem determinações necessárias do ser, ou seja, determinações que nenhuma forma ou maneira de ser pode deixar de ter. 2- Tais determinações estão presentes em to­ das as formas e modos de ser particulares. 34 Existem ciências que têm por objeto um modo de ser particular, isolado em virtude de princípios cabíveis. 4" Deve existir uma

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ciência que tenha por objeto as determina­ ções necessárias do ser, estas também reco­ nhecíveis em virtude de um princípio cabí­ vel. 5a Essa ciência precede todas as outras e 6, por isso, ciência primeira, porquanto seu objeto está implícito nos objetos de todas as outras ciências e porquanto, conseqüentemen­ te, seu princípio condiciona a validade de to­ dos os outros princípios. A M. expressa nessas proposições via de regra implica: a) determi­ nada teoria da essência, mais precisamente da essência necessária (v. ESSÊNCIA); b) determina­ da teoria do ser predicativo, mais precisamente da inerência (v. SER, 1); c) determinada teoria do ser existencial, mais precisamente da neces­ sidade (v. SER, 2). As proposições acima expressam a for­ ma mais madura que a M. assumiu na obra de Aristóteles, precisamente nos livros VII, VIII, IX de Metafísica, ou seja, M. como teoria da substância, entendendo-se por substância "aquilo que um ser não pode não ser", a essência ne­ cessária ou a necessidade de ser (v. SUBSTÂN­ CIA). Nesse sentido, o princípio da M. é o de contradição, porque só ele permite delimitar e reconhecer o ser substancial. Aristóteles disse: Quem nega esse princípio destrói completa­ mente a substância e a essência necessária, pois 6 obrigado a dizer que tudo é acidental e que não há algo como ser homem ou ser ani­ mal. Se de fato há algo como ser homem, isto não será ser nào-homem ou não ser homem, mas estas serão negações daquele. Um só é o significado do ser, e este é a substância dele. Indicar a substância de uma coisa nada mais é que indicar o ser próprio dela" (Met., IV, 4, 1007 a 21). Desse ponto de vista, a substância é objeto da M. por constituir o princípio de expli­ cação de todas as coisas existentes. Aristóteles diz: "A substância de cada coisa é a causa pri­ meira do ser dessa coisa. Algumas coisas não são substâncias, mas as que são substâncias são naturais e postas pela natureza, estando, pois, claro que a substância 6 a própria nature­ za e que não é elemento, mas princípio" (Ibid., VII, 17. 1041 b 27). A substância nesse sentido não é uma realidade privilegiada ou sublime, que confira dignidade superior à ciência que a tem como objeto. Enquanto substâncias, Deus e o intelecto (como diz ARISTÓTKLKS, Et. nic, I, 6, 1096 a 24), ou mesmo Deus e um talo de ca­ pim (como se poderia dizer), têm o mesmo va­ lor, e as ciências que os tomam como objeto têm a mesma dignidade. Em uma passagem

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famosa de Partes dos animais, Aristóteles reco­ nheceu, explicitamente, a mesma dignidade em todas as ciências que tenham a substância como objeto: "As substâncias inferiores, por se­ rem mais acessíveis ao conhecimento, acabam tendo vantagem no campo científico, e por estarem mais próximas de nós e mais em con­ formidade com nossa natureza, a ciência delas acaba sendo equivalente â filosofia que tem por objeto as coisas divinas. (...) De fato, mes­ mo no caso das menos favorecidas do ponto de vista da aparência sensível, a natureza que as produziu proporciona alegrias indizíveis a quem sabe compreender suas causas e é filó­ sofo por natureza" (Depart. an, I, 5, 645 a 1). É óbvio que, desse ponto de vista, a prioridade da M. não consiste na excelência de seu objeto (como no caso da M. teológica), mas no fato de que a M., por ter a substância objeto especí­ fico, permite entender os objetos de todas as ciências tanto em seus caracteres comuns e fundamentais quanto em seus caracteres espe­ cíficos: sem a substância e, p. ex., sem o ser e a unidade que lhe pertencem, "todas as coisas seriam destruídas, já que cada coisa é e é uma" (Met., XI, 1, 1059 b 31). Em outras palavras: toda ciência, como tal, é o estudo da substân­ cia em qualquer de suas determinações; p. ex.: em movimento, a física; como quantidade, a matemática. A M. é a teoria da substância en­ quanto tal. Desse ponto de vista, a prioridade da M. so­ bre as outras ciências 6 lógica, não de valor. Trata-se de uma prioridade lógica decorrente da prioridade ontológica de seu objeto específi­ co. Consiste no fato de todas as outras ciências pressuporem a M. do mesmo modo como to­ das as determinações da substância pressu­ põem a substância; ora, a reforma feita por S. Tomás na M. aristotélica, no séc. XIII, visa a restringir a superioridade lógica da M. Segun­ do S. Tomás, a M. como teoria da substância não inclui Deus entre seus objetos possíveis, porquanto Deus não é substância (S. Th, I, q. 1, a. 5, ad 1"). A identidade entre essência e existência em Deus distingue nitidamente o ser de Deus do ser das criaturas, nas quais essência e existência são separáveis (Ibid., I, q. 3, a. 4). Portanto, a determinação dos caracteres subs­ tanciais do ser em geral não diz respeito a Deus, mas apenas às coisas criadas ou finitas. Com isso, a M. perde a prioridade em favor da teologia, considerada como ciência autônoma, originária, cujos princípios são ditados direta­

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mente por Deus. "E assim a teologia nada rece­ be das outras ciências, como se estas fossem superiores a ela. mas delas tira proveito, em sendo elas inferiores ancilares, assim como as ciências arquitetônicas tiram proveito de outras que lhe propiciam os materiais e assim como a ciência civil tira proveito da militar" (Ibid, I. q. 1. a. 5, aci 2"). Com a negação do caráter analógico do ser, realizada por Duns Scot, vol­ ta-se a reconhecer a prioridade cia M. Duns Scot define a M. como "a ciência primeira do saber primeiro", isto é, do ser (/;/ Met.. Vil, q. 4, n. 3)- Segundo ele, o ser que é objeto da M. é o ser comum-, comum a todas as criaturas e a Deus. embora não se trate de um gênero, que teria extensão restrita demais. A comunidade do ser compreende todo o domínio do inteligí­ vel: a ciência do ser, a M., é, portanto, a ciência primeira e mais extensa (Op. Ox., 1. d. 3. q. 3. a. 2. n. 1-4). A característica desse ponto de vista de Seot é fazer a distinção nítida entre a prio­ ridade de valor, que pertence ã teologia, e a prioridade lógica, que pertence à M. Essa distinção manteve-se ao longo da histó­ ria ulterior da M. ontológica. No séc. XVII, tal M. começou a ser designada pelo nome cie on­ tologia, que aparece em Schediasma histo­ rie um (1655), cie lacobus Thomasius (pai de Cristiano), e é justificada por Clauberg do se­ guinte modo: "Assim como se chama de teosofici ou teologia a ciência que trata de Deus, não parece impróprio que se chame de ontosofia ou ontologia a ciência que verse sobre o ente em geral, e não sobre este ou aquele ente designado por um nome especial ou distinto dos outros por certa propriedade" (Op. Phil.. 1691, I, p. 281). Uma ontologia assim entendi­ da, nitidamente distinta da teologia, não impli­ cava nenhum antagonismo, franco ou disfarça­ do, contra os dados da experiência. Ao contrá­ rio, essa ontologia começa a ser considerada como a exposição organizada e sistemática dos caracteres fundamentais do ser que a experiên­ cia revela de modo repetido ou constante. Esse 6 o conceito de Wolff, que conferiu a essa dis­ ciplina a força sistemática que lhe garantiu su­ cesso por algum tempo. Segundo Wolff, o pen­ samento comum já possui de forma confusa as noções que a ontologia expõe de forma distin­ ta e sistemática, ou seja, existe uma "ontologia natural" constituída das "confusas noções ontológicas vulgares". Esta pode ser definida como "o conjunto de noções confusas, corresponden­ tes aos termos abstratos com que expressamos

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os juízos gerais sobre o ser e adquiridas com o uso comum das faculdades da mente" (Ont.. § 21). Essa ontologia natural, que os escolásticos completaram sem tornar menos confusa, distingue-se da ontologia artificial ou científica, assim como a lógica se distingue dos procedi­ mentos naturais do intelecto (Ibid, § 23; lx>g., § 11). \ào ê um simples dicionário filosófico, mas uma ciência demonstrativa, cujo objeto é constituído pelas determinações que perten­ cem a todos os entes, seja de modo absoluto, seja sob determinadas condições (Ont., § 25). Assim, graças a Wolff, introduzia-se no orga­ nismo tradicional da M. ontológica uma exigên­ cia descritiva e empirista que tendia a eliminar o conflito entre apriorismo dedutivo da M. e experiência. Com base nessa mesma exigência. Wolff faz a distinção entre psicologia empírica, "na qual, a partir da experiência, estabele­ cem-se princípios que expliquem as causas do que pode acontecer na alma humana" (Log., Disc. prel.. § 111), e psicologia reacional, que 6 a "ciência de todas as coisas possíveis na alma humana" (Ibid.. § 58). Por outro lado, Wolff fa­ zia a distinção entre ontologia e as três discipli­ nas M. especiais: teologia, psicologia e física (da qual faz parte a cosmologia). cujos objetos respectivos seriam Deus. a alma humana e as coisas naturais (Ibid., §§ 55-59). A ontologia wolffiana possibilitava a inter­ pretação empírica dessa ciência, razão pela qual ela foi algumas vezes defendida pelos próprios iluministas. D'Alembert, p. ex., dizia: "Visto que tanto os seres espirituais quanto os materiais têm propriedades gerais em comum, como existência, possibilidade, duração, 6 cer­ to que esse ramo da filosofia, no qual todos os outros ramos haurem em parte seus princípios, seja denominado ontologia, ou seja. ciência do ser ou M. geral" (Discoursprólimínaire, § 7, em (Fiivres. ed. Condorcet. p. 115). Neste sentido, D'Alembert defende uma nova M., "que seja criada mais para nós. que fique mais próxima e presa á terra, tuna M. cujas aplicações se esten­ dam ás ciências naturais e aos diversos ramos da matemática. De fato, em sentido estrito não há ciência que não tenha sua M., se com isso entendermos os princípios gerais sobre os quais se constrói determinada doutrina, que são, por assim dizer, os germes de todas as ver­ dades particulares" (Ixiaircíssemenl, § 16). Foi em sentido muito próximo que Crusius (lintwurf der notwendigen Vernunflwahrheiten. 1745, § 1) e Lambeu (Architetonik, 1771, § 43)

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entenderam a ontologia. Com uma renúncia mais radical ao caráter sistemático da ciência, ainda hoje é defendida uma ontologia descriti­ va ou "elenotativa" que. ao mesmo tempo em que se limite "a observar e a registrar os traços da existência", também leve em consideração o instrumento dessa observação: a reflexão hu­ mana e as condições que a solicitam (DKWKY. Experiente and Sature, and Histórica! Rxperieuce, 1958, cap. 5). 3a O terceiro conceito de M. como gnosiologia é expresso por Kant. Na verdade, a origem desse conceito deve ser identificada na noção de filosofia ]>rinieira de Bacon: "Uma ciência universal, que seja mãe de todas as outras e que, no progresso das doutrinas, constitua a parte comum do caminho, antes que as sondas se separem e se desunam." Segundo Bacon, tal ciência deveria ser "o receptáculo dos axiomas que não pertençam às ciências particulares, mas sejam comuns a numerosas ciências" (De ciugm. scient., III, 1). Esse conceito de filosofia primeira tem uma história, que é a cio conceito positivista da filosofia, que tem em comum com o conceito kantiano de M. a maior ênfase nos princípios cios que nos objetos da ciência. Se­ gundo Kant, M. é o estudo da formas ou prin­ cípios cognitivos que, por serem constituintes da razão humana — aliás de toda razão finita em geral —, condicionam todo saber e toda ciência, e cie cujo exame, portanto. 6 possível extrair os princípios gerais de cada ciência. Kant expunha esse conceito da M. nas últimas páginas de Crítica da Razão Pura, mais preci­ samente no capítulo sobre a arquitelura. Kant diz que a M. pode ser entendida de duas for­ mas: como a segunda parte da "filosofia da razão pura", ou seja, como "sistema da razão pura (ciência), conhecimento filosófico total (seja verdadeiro, seja aparente) que deriva da razão pura em conexão sistemática" (e, nesse sentido, dela é alijada a parte preliminar ou propedêutica da filosofia da razão pura, que é a crítica), ou então pode ser entendida como a filosofia total da razão pura, incluindo a crítica. F. neste segundo sentido que Kant chamava a M de ontologia no documento de 1793. com o qual respondia a ao tema proposto pela Acade­ mia de Berlim: "Quais são os progressos reais da M. desde o tempo cie Leibniz e Wolff?". On­ tologia, M. e crítica coincidem do seguinte pon­ to de vista: "A crítica e só a crítica" — dizia Kant em Prolegômenos— "contém o plano bem veri­ ficado e provado de uma M. científica, bem

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como o material necessário a realizá-lo. Por qualquer outro caminho ou meio, ela é impos­ sível" (Prol.. A, 190). Assim, como M. "cientí­ fica" ou "crítica", a M. kantiana contrapunhase à M. dogmática tradicional, que Kant sub­ metia à crítica nas três partes distinguiclas por Wolff: teologia, psicologia e cosmologia. Mas nem na dialética transcendental, nem em outro lugar, Kant criticou a primeira parte fun­ damental cia M. wolffiana, que é a ontologia. Na realidade, o conceito fundamental de ontologia continuava válido para Kant. com a correção do caráter crítico ou gnosiológico desta, ou seja. com a passagem do significado realista para o significado subjetivista da disciplina em questão. Segundo Kant. da M. crítica ou ontológica fazem parte a M. da natureza e a M. dos costumes. A M. cia natureza compreende "to­ dos os princípios racionais puros decorrentes de simples conceitos (portanto, com exclusão da matemática) da ciência teórica cie todas as coisas". A M. dos costumes compreende "os princípios que determinam a priori e tornam necessário o lazer ou o não fazer", sendo, porlanto, a "moral pura" (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. 3). A característica da M. kantiana é sua pre­ tensão de ser "uma ciência de conceitos pu­ ros", ou seja, uma ciência que abarque os conhecimentos que podem ser obtidos inde­ pendentemente da experiência, com base nas estruturas racionais da mente humana. Desse ponto de vista, sua continuação histó­ rica na filosofia contemporânea é a ontologia fenomenológíca de Husserl. Diferentemente de Kant, Husserl não considera os princípios mui­ to gerais que seriam constituintes da razão em geral, mas os princípios que constituem o fun­ damento de determinados campos do saber, de uma ciência ou de um grupo de ciências, chamados, portanto, de materiais. Husserl diz: "Cada objeto empírico concreto insere-se com sua essência material em uma espécie material superior, em uma região de objetos empíricos. A essência regional corresponde uma ciência eidética regional ou, como podemos dizer tam­ bém, uma ontologia regional." Portanto, "toda ciência de ciados de fato ou de experiência tem seus fundamentos teóricos essenciais em ontologias regionais. (...) Assim, p. ex., a to­ das as disciplinas naturalistas corresponde a ciência eidética da natureza física em geral (a ontologia da natureza), porquanto à natureza factícia corresponde um eidos puramente

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apreensível, a essência' da natureza em geral, juntamente com uma massa infinita de rela­ ções essenciais1'. (Ideen, I, § 9). A afirmação do caráter "material" (determinado ou espe­ cífico) dos princípios ontológicos, que sem­ pre se referem a determinado gênero de essên­ cias ou campo do saber, leva Husserl a esta­ belecer o caráter "regional" da ontologia. De seu ponto de vista, a ontologia geral ou for­ mal nada mais é que a lógica pura, que é "a ciência eidética do objeto em geral" (Ibid., § 10) (v. MATHKSIS IMVKRSALS). No entanto, N. Hartmann, que tem em comum com Husserl o pressuposto fenomenológico, retornou à onto­ logia geral. Para ele, o objeto da ontologia é o ente, não o ser, já que o ser 6 unicamente "aquilo que há de comum em cada ente". O ser e o ente distinguem-se como a verdade e o verdadeiro, a realidade e o real, e assim por diante: há muitas coisas verdadeiras, mas o ser da verdade é um só. Analogamente, o ser do ente é um só, ainda que o ente possa ser vário e as diferenciações do ser pertençam ao desen­ volvimento da ontologia, e não a seu início, que versa sobre aquilo que é comum univer­ sal {(Imudlegung der Ontologie, 1935, p. 42). A postura francamente realista da ontologia de Hartmann parece aproximá-la da tradicional, especialmente de Wolff, mas na realidade o que para Hartmann constitui o objeto da onto­ logia é o modo como o ser é dado (Ibid., p. 48) á experiência fenomenológica: de tal forma que sua ontologia é parte integrante da corren­ te fenomenológica. A essa mesma corrente per­ tence a ontologia de Heidegger, entendida só como a determinação cio sentido da ser a partir do ser do ente que faz as perguntas e dá as respostas: o homem. Heidegger reafirma o caráter primário ou privilegiado da ontologia. "O problema do ser tende não só à determina­ ção cias condições apriori&à possibilidade das ciências que estudam o ente enquanto ente, e que portanto, ao fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão do ser, mas também à de­ terminação das condições de possibilidade das ontologias que precedem e fundam as ciências ônticas listo é, empíricas]" (Seín undZeit, § 3). Todas as doutrinas às quais nos referimos até agora (exceto as de Dewey e Randall) ad­ mitem o pressuposto em torno do qual a M. tra­ dicionalmente girou, situando, portanto, nos limites do conceito de M. Tal presssuposto é o caráter necessário e primário da M.: necessário por ter como objeto o objeto necessário de to­

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das as outras ciências; primário porque, como tal, é fundamento de todas as ciências. O que resta da M. na filosofia contemporânea — e não resta como mera sobrevivência, mas como parte viva da investigação — não possui mais estes caracteres tradicionais. A M. está de fato presente e attiante na filosofia contemporâ­ nea sob a forma de dois problemas conexos: lq a questão do significado ou dos significa­ dos de existência na linguagem das diversas ciências; 2° a questão das relações entre as di­ versas ciências e das investigações sobre obje­ tos que incidem nos pontos de intersecção ou de encontro entre elas. ly Com relação ao primeiro problema, falase hoje explicitamente de ontologia no sentido de compromisso em usar o verbo ser e seus sinônimos em determinado sentido. Quine, p. ex., diz: "Nossa aceitação de uma ontologia é semelhante, em princípio, à nossa aceitação de uma teoria científica, de um sistema de física: adotamos, no mínimo por sermos dotados de razão, o esquema conceituai mais simples no qual os fragmentos desorganizados da experiên­ cia bruta possam ser adaptados e distribuídos. Nossa ontologia estará determinada uma vez que tenhamos fixado o esquema conceituai total em que se adapte a ciência em seu sentido mais amplo; as considerações que determinam a construção racional de uma parte qualquer desse esquema conceituai (p. ex., a paite bio­ lógica ou física) não são diferentes, em termos de espécie, das considerações que determi­ nam a construção racional cie todo o esquema" (From a logícal Poínt of View, pp. 16-17). Kmbora objetando ao uso da palavra "ontologia", que pareceria fazer referência a convicções me­ tafísicas, quando na realidade se trata de uma decisão tão prática quanto "a escolha de um instrumento", Carnap confirmou substancial­ mente o ponto de vista cie Quine (Meaning andNecessity, § 10); é nesse sentido que se fala freqüentemente em ontologia na lógica e na metodologia contemporânea. 2B Com relação ao segundo problema, a su­ cessora da M. tradicional é a metodologia, que habitualmente discute os problemas das rela­ ções entre as ciências particulares e as questões decorrentes das interferências marginais entre as próprias ciências. Certamente a metodologia não herdou a pretensão de criar uma enciclo­ pédia das ciências que defina, de uma vez por todas, as tarefas e as limitações de cada uma delas; por isso, não reivindica a dignidade de

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METAMORAL

julgar as ciências e reinar sobre elas. Trata-se disciplinas matemáticas assim formalizadas, mais de organizar continuamente o universo bem como de verificar a correção das inferên­ conceituai do modo mais simples e cômodo: cias (deduções). Visto que, segundo conhecido que favoreça a comunicação contínua entre as teorema (de Gódel), não se pode provar a náociências sem atentar contra a indispensável contradiçào de um sistema matemático formali­ autonomia de cada uma delas. Com este objeti­ zado dentro desse mesmo sistema, D. Hilbert e vo, cumpre problematizar. em cada fase da sua escola recorreram à criação de sistemas pesquisa científica, as relações entre as diver­ particulares para a verificação cios sistemas sim­ sas disciplinas ou as diversas correntes de bólicos (ou seja, de cada disciplina da mate­ pesquisa, tanto em favor do desenvolvimen­ mática: álgebra, geometria, etc). Tais sistemas to das disciplinas particulares, quando em fa­ de verificação foram denominados metamavor do uso que delas o homem pode ou deve temáticos. Por analogia, ou melhor, por exten­ fazer, ou seja, cia filosofia. são cio termo, os lógicos poloneses e Carnap METÁFORA (gr. uexaepopá: in. Metaphor, chamaram de M. qualquer sistema lingüístico fr. Métaphore-. ai. Metapher, it. Metáfora). (p. ex., a linguagem da Lógica, da gramática, Transfe-rência de significado. Aristóteles diz: etc.) que não conduza a denotata extralin"A M. consiste em dar a uma coisa um nome güísticos, mas que, semanticamente, conduza a que pertence a outra coisa: transferência que símbolos e fatos lingüísticos, e de metalinpode realizar-se do gênero para a espécie, da güística qualquer expressão não que fale de espécie para o gênero, de uma espécie para coisas (reais ou ideais), mas de palavras ou dis­ outra ou com base numa analogia" (Poet., 21, cursos (p. ex.: "'Mário' é um nome próprio de 1457 b 7). A noção de M. algumas vezes foi pessoa, masculino e singular"; '"aceleração1 é empregada para determinar a natureza da lin­ um termo da Física"). A distinção entre lingua­ guagem em geral (v. LINGUAGEM). Como ins­ gem e M. assume grande importância na aná­ trumento lingüístico, hoje sua definição não é lise filosófica neopositivista, sendo um dos fun­ diferente cia definição de Aristóteles. Quanto à damentos da crítica à metafísica especulativa, M. mítica dos povos primitivos, que é substan­ na qual expressões metalingüísticas são siste­ cialmente a identificação da expressão metafó­ maticamente confundidas com expressões G. P. rica com o objeto, cf. CASSIRKK, Language and lingüísticas (v. LINGUAGEM-OBJETO). Mytb, 1946. METALÓGICO (in. Metalogical; fr. MétaloMETAGEOMETRIA (in. Metageometry- fr. gique, ai. Metalogiscb; it. Metalogico). 1. A par­ Métagéometríe-, ai. Metageontetria-, it. Métageo- tir de Carnap (Logische Syntax der Spracbe, ineíria). Geometria não euclidiana, ou seja, 1934; trad. in.. 1937, § 2), este termo passou a qualquer geometria que parta de axiomas dife­ ter o mesmo significado de "sintático": caracteriza rentes dos de Euclicles (v. GEOMETRIA). o estudo sistemático das regras formais de uma META-HISTÓRICO. Indicam-se com este língua (v. SINTAXE). termo os valores eternos que a história tende a 2. Schopenhauer chamou de metalógica a realizar e que constituiriam sua estrutura ou verdade dos quatro princípios do pensamento: plano providencial que a rege (v. HISTÓRIA). Identidade. Contradição, Terceiro Excluído e METALINGUAGEM (in. Metalanguage, fr. Razão Suficiente (Uber díe uierfache Wurzel Mélalanguage-, it. Metalinguaggio). Quando des Satzeii von zureichenden Clrunde, 1813, D. Hilbert introduziu a concepção de matemáti­ § 33). ca como sistema meramente sintático-dedutivo 3. Metalogícon é o título de uma obra de (sistema arbitrário de símbolos no qual, dados João cie Salisbury (séc. XII): significaria "defesa certos axiomas fundamentais e certas regras da lógica". operacionais, procede-se por meios meramen­ METAMATEMATICO (in. Metamalhemate simbólicos, ou seja, operando com as fórmu­ líc; fr. Métaniatbéivatique, ai. Metamatbemalas que constituem os axiomas e segundo as tiscb; it. Metamatematico). O mesmo que sin­ regras operacionais dadas, á inferência das tático ou metalogico. No sentido de Hilbert, "conseqüências", independentemente dos pos­ teoria da prova, ou seja, formalização da prova síveis ou eventuais significados extra-simbóli- matemática por meio cie um sistema logístico cos, intuitivos ou outros desses mesmos sím­ (v. PROVA). bolos), colocou-se o problema cie verificar a METAMORAL (in. Melamorcil; fr. Metanào-contradição dos sistemas de axiomas das Diorale; it. Metamorale). Estudo dos fundamen­

METAPSÍQUICA

tos da moral. Ou então: estudo das estruturas lógico-lingüísticas da moral. METAPSÍQUICA (in. Psychical research- fr. Métapsy chique-, ai. Parapsychologie, Metapsychik; it. Metapschica). Exame, sem preconcei­ tos e com visão científica, das faculdades humanas, reais ou imaginárias,, que são inex­ plicáveis com base nas hipóteses geralmente conhecidas. Hsta é, pelo menos, a definição dessa ciência por parte de seus seguidores mais sérios. Os lenômenos que ela investiga si­ tuam-se em duas categorias fundamentais: os chamados fenômenos mentais, que consistem em informações adquiridas por meios supranormais, ou fenômenos de percepção extraseiisorial, e os fenômenos físicos ou prodígios, como p. ex. objetos que flutuam no ar, batidas, ruídos, etc. A M. procura estabelecer a realida­ de desses fenômenos e apresentar as hipóteses cabíveis para sua explicação (cf. D. J. WEST, PsychicalResearch Today, Londres, 1954). METEMPÍRICO (in. 'Metempirícah fr. Mélempirü/tie; ai. Metempirisch; it. Metempíríco). O que está além dos limites da experiência possível (lkwks, Problems of Life and Mind. 1874, I, p. 17). METEMPSICOSE (in. Metempsychosis: fr. Métempsycbose, ai. Metempsychose it. Metempsicosi). Crença na transmigração da alma de corpo em corpo. Essa crença é muito antiga e de origem oriental, mas o termo só aparece nos escritores dos primórdios cia era cristã. Flotino ás vezes usa o termo metensomatose (Fnn.. II. 9, 6, 13), que seria mais exato. A crença, difundida pelas seitas órficas e pelos pitagóricos, foi aceita por Empédocles (fr. 115, 117, 119), por Platão (Tini.. 49 ss.; Kep.. X. 614 ss.), por Plotino, pelos neoplatônicos e pelo gnóstico Basilides (BUONAIITI, Frammenti gnostici, pp. 63 ss.). Cf. E. Roí IDE. Psyche, 1890­ 94; trad. it., Bari, 1916. METENSOMATOSE V. METEMPSICOSE. METEXIS (gr. LtéSeAiç). Participação. Essa palavra foi usada por Platão para indicar um dos modos possíveis de relação entre as coisas sensíveis e as idéias (Parm, 132 d). Os outros modos em que Platão concebeu essa mesma relação são: mimese ou imitação (Rep.. 597 a; Tini., 50 c) e presença da idéia nas coisas (Fed., 100 d). Ksse termo foi usado nessa forma por Gioberti. em Protologia, para designar o ciclo de retorno do mundo a Deus, que culmina numa renovação final, ou palingenesia (Prol.. II, p. 107). Gioberti usa esse mesmo termo (as­

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MÉTODO

sim como o termo mimese, com o qual indica o afastamento do mundo de Deus) para caracteri­ zar um termo de vários pares de coisas ou en­ tes do mundo: p. ex.. o corpo é a mimese. a alma é a M.; a fêmea é a mimese, o macho é a M., etc. (Ibid, p. 319). METÓDICA. Assim é chamada algumas ve­ zes a doutrina do método pedagógico: p. ex., rayneri, Primi principi di metódica (1850); rosmini, Delprincipio supremo delia metódica (1857). etc. MÉTODO (gr. MÍ9OÔOÇ; lat. Methodus: in. Method; fr. Méthode, ai. Methode; it. Método). Este termo tem dois significados fundamentais: 1" qualquer pesquisa ou orientação de pesqui­ sa; 2" uma técnica particular de pesquisa. No primeiro significado, não se distingue de "investigação" ou "doutrina". O segundo signi­ ficado é mais restrito e indica um procedimen­ to de investigação organizado, repetível e autocorrigível. que garanta a obtenção de re­ sultados válidos. Ao primeiro significado refe­ rem-se expressões como "M. hegeliano", "M dialético", etc. ou mesmo "M. geométrico". "M. experimental", etc. Ao segundo significado referem-se expressões como "M. silogístico", "M. residual" c. em geral, os que designam pro­ cedimentos específicos de investigação e verifi­ cação. Tanto Platão (Sqf. 218 d; Fed.. 270 c) quanto Aristóteles (Pol, 1289 a 26; Et. nic. 1129 a 6) empregam esse termo em ambos os significados; no moderno e contemporâneo, prevalece o segundo. Contudo, é preciso ob­ servar que não há doutrina ou teoria, quer científica quer filosófica, que não possa ser considerada sob o aspecto de sua ordem de procedimentos, sendo. pois. chamada de M. O próprio Descartes, p. ex., expôs o mes­ mo conteúdo do Discurso do método na forma de Meditações metafísicas e de Princípios de filosofia: o que por um lado era M.. por outro era doutrina. De modo geral, não há doutrina que não possa ser considerada e chamada de M., se encarada como ordem ou procedimento de pesquisa. Portanto, a classificação dos M. flosóficos e científicos sem dúvida seria uma classificação das respectivas doutrinas. Quanto ás doutrinas que com mais freqüência ou razão são chamadas de M., v. os capítulos respecti­ vos: ANÁLISE; AXIOMATIZAÇÀO; CONCOMITÂNCIA CONCORDÂNCIA: DEDfCÀO; DIALÉTICA; DlEERENCA; DEMONSTRAÇÃO; INDUÇÃO; PROVA; RESÍ­ DUOS; SILOGISMO; SÍNTESE; bem como os verbe­ tes dedicados a cada disciplina: FILOSOFIA; FÍ-

METODOLOGIA S1CA; GF.OMKTRIA; LÓGICA; MATEMÁTICA; CIÊNCIA,

etc. METODOLOGIA (in. Methodology, fr. MéIhodologie, ai. Methodologye, Methodenlehre. it. Metodologia). Com este termo podem ser designadas quatro coisas diferentes: Ia lógica ou parte da lógica que estuda os métodos; 2lógica transcendental aplicada; 3a conjunto de procedimentos metódicos de uma ou mais ciências; 4- a análise filosófica cie tais procedi­ mentos. Ia A lógica foi interpretada como M. na fase pós-cartesiana. Segundo a Lógica de PortRoyal, "a lógica é a arte de bem conduzir a própria razão no conhecimento das coisas, tanto para instruir-se quanto para instruir aos outros". No mesmo sentido, Wolff definia a lógica como "a ciência de dirigir a faculdade cognoscitiva no conhecimento da verdade" (Log, § 1). Esse conceito de lógica pode ser encontrado também na definição cie Stuart Mill, como "ciência das operações do intelecto que servem para a avaliação da prova" (Logic, Intr., § 7). Por outro lado, a M. também foi considerada uma parte da lógica. Pedro Ramus dividia a lógica em quatro partes: doutrina do conceito, do juízo, do raciocínio e do método (Dialeclicae institutiones, 1543): essa divisão, aceita pela Lógica de Port-Royal, tornou-se tra­ dicional e foi constantemente adotada pela ló­ gica filosófica cio séc. XIX (v. para todos BF.NNO FRDMANX, Logick, 1H92, I, § 7). Apartir de Wolff ([ °R-, §§ A05 ss-', a doutrina cio método (oi freqüentemente chamada de lógica prática. 2a A M. foi entendida por Kant como lógica transcendental aplicada ou "prática". Constitui a segunda parte principal da Crítica da Razão Pura, cujo objetivo é "determinar as condições formais de um sistema completo da razão pura"; compreende uma disciplina, um cânon, uma arquitetura e. finalmente, uma história da razão pura. O próprio Kant confronta essa par­ te de sua obra com a lógica formal aplicada ou prática: "Do ponto de vista transcendental, fa­ remos o que se procurou fazer nas escolas com o nome de lógica prática em relação ao uso do intelecto em geral, mas que se fez mal, porque, não se limitando a um modo especial de co­ nhecimento intelectual (p. ex., o puro), nem a certos objetos, a lógica geral nada mais pode fazer senão propor títulos de métodos possí­ veis e de expressões técnicas" (Crit. K. Pura, Doutr. transe, do método. Intr.).

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MICROCOSMO

3a Com o nome de Jvl. hoje é freqüentemen­ te indicado o conjunto de procedimentos técni­ cos cie averiguação ou verificação á disposição de determinada disciplina ou grupo de discipli­ nas. Nesse sentido fala-se, p. ex., de "M. das ciências naturais" ou de "M. historiográfiea". Nesse aspecto, a M. é elaborada no interior de uma disciplina científica ou de um grupo de disciplinas e não tem outro objetivo além de garantir às disciplinas em questão o uso cada vez mais eficaz das técnicas de procedimento de que dispõem. 4a Por outro lado, em estreita conexão com o sentido acima, a M. vem-se constituindo como disciplina filosófica relativamente autô­ noma e destinada à análise das técnicas de in­ vestigação empregadas em urna ou mais ciên­ cias. Nesse sentido, não são objetos da M. os "métodos" das ciências, ou seja, as classifica­ ções amplas e aproximativas (análise, síntese, indução, dedução, experimentação, etc), nas quais se inserem as técnicas da pesquisa cientí­ fica, mas tão-somente essas técnicas, considera­ das em suas estruturas específicas e nas condi­ ções que possibilitam o seu uso. Tais técnicas compreedem, obviamente, qualquer procedi­ mento lingüístico ou operacional, qualquer conceito e qualquer instrumento que uma ou mais disciplinas utilizem na aquisição e na veri­ ficação de seus resultados. Nesse sentido, a M. é sucessora ti) da metafísica, porque a ela ca­ bem os problemas que concernem às relações entre as ciências e as zonas de interferência (e algumas vezes de conflito) entre ciências di­ ferentes; ti) da gnosiologia, porquanto substi­ tui a consideração do "conhecimento"', enten­ dido como forma global da atividade huma­ na ou do Espírito em geral, pela consideração dos procedimentos cognoscitivos utilizados por um ou mais campos da investigação científica. Essa M. chama-se também "crítica das ciên­ cias". Embora o trabalho realizado por ela nes­ sa direção e iniciado nas primeiras décadas do séc. XX já seja considerável, está faltando até agora uma determinação precisa da tarefa e das orientações dessa disciplina. Cf. todavia autores vários, Fondamenti logici deliascienza, Turim, 1947; kl, Saggidicriticadellescíenze, Tu­ rim, 1950: ambos org. pelo Centro di Stucli Metodologici cli Torino. MICROCOSMO (gr. UAKpòç KÓOUOÇ; lat. Microcosnms; in. Microcosm, fr. Microcosmc* ai. Mikrokosmos; it. Microcosmo). A corres­ pondência entre o macrocosmo, que é o mun­

MICROCOSMO

do, e o M., que é o animal e por vezes o ho­ mem, é tema filosófico antigo, que nasceu da tendência a interpretar todo o universo com fundamento no universo menor, que é o ho­ mem para si mesmo. Aristóteles expunha da seguinte maneira esse principio de interpre­ tação, a propósito da possibilidade do movi­ mento autônomo: "Se isso é possível no ani­ mal, o que pode impedir que aconteça no mundo também? Se ocorre no M., pode acon­ tecer também no cosmo grande; e, se ocorre no cosmo, pode acontecer também no infinito, se é possível que o infinito se mova e esteja em repouso em sua totalidade." (Fís., VIII, 2, 252 b 25). Ora, essa é a objeção que Aristóteles faz a si mesmo, refutando-a ao negar a possibilidade de movimento autônomo do universo e ao admitir, por isso, o primeiro motor. A corres­ pondência entre M. e macrocosmo não é, pois, um princípio adotado por Aristóteles. Mas já em sua época era um princípio antigo, visto fundamentar a cosmogonia dos órficos, mais precisamente a doutrina de que o mundo nas­ ceu de um ovo: e nasceu de um ovo porque é animal (cf. A. OLIVIF.RI, Civiltà greca nellltalia meridionale, Nápoles, 1931, pp. 23 ss.). Platão mesmo chamou o mundo de "grande animal" (Tím., 30 b), provido de alma e inteligência, assumindo, assim, como realidade literal uma correspondência metodológica; esse foi o sen­ tido atribuído, depois dele, por estóicos, neopitagóricos e. em geral, por todos os que insistiram no caráter animado do universo. A correspondência entre M. e macrocosmo foi um dos temas preferidos da literatura mágica. A magia pretende dominar o mundo natural encantando-o ou domesticando-o co­ mo se faz com um animal; seu pressuposto é exatamente de que o mundo é um animal e de que todos os seus aspectos são controlá­ veis com procedimentos que se dirigem a eles como a atividades vivas. A correspondência M.-macrocosmo foi, portanto, um dos temas obrigatórios da magia renascentista. Cornélio Agripa afirmava que o homem reúne em si tudo o que está disseminado nas coisas, e que isso lhe permite conhecer a força que mantém o mundo integrado e utilizá-la para realizar ações miraculosas (De oceultaphilosophía, 1, 33). Ob­ servações análogas repetem-se em todos os escritores renascentistas que admitem a magia (p. ex., CAMPANELLA, De sensu rerum, I, 10). Paracelso baseava toda a ciência médica na correspondência entre macrocosmo e M.; por

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MILAGRE

isso, exigia que ela se fundamentasse em todas as ciências cjue estudam a natureza do univer­ so, quais sejam: teologia, filosofia, astronomia e alquimia (Dephüosophia oceulta, II, p. 289). Quando a ciência deixou de lado o princí­ pio antropomórfico na interpretação da natu­ reza, a correspondência entre M. e macrocosmo deixou de ser um guia útil de pesquisa e passou a ter aspecto de preconceito. Lotze, que deu o título de M. à sua obra fundamental, só admite essa correspondência na forma do condicionamento que o mundo exerce sobre o homem, procurando reduzir o alcance desse termo a limites estreitíssimos (Míkrokosmus, VI, K, 1; trad. it., II, pp. 312 ss.). MILAGRE (gr. xépaç; lat. Miraculunv, in. Miracle, fr. Miracle, ai. Wunderii, Miracolo). Fato excepcional ou inexplicável, considerado como sinal ou manifestação de uma vontade divina. Esta era a noção de M na Antigüidade clássica (p. ex., Ilíada, II, 234; Odisséia, III, 173; XII, 394, etc.) e a que predominou na Idade Média, sendo assim expressa por S. To­ más: "No M. podem ser notadas duas coisas: uma é o que acontece, que é certamente algo que excede a faculdade da natureza, e neste sentido os M. são chamados de potências (vir­ tudes); a segunda é a razão pela qual os M. acontecem, ou seja, a manifestação de algo de sobrenatural; neste sentido, os M. são chama­ dos comumente de sinais, enquanto são cha­ mados de portentos pela sua excelência e de prodígios porque mostram algo cie distante" (S. n., II, 2, q. 178, a. 1, ad 3y). Quando se começou a insistir na ordem ne­ cessária da natureza — como ocorreu com o averroísmo medieval, com o aristotelismo renascentista e, principalmente, com a primei­ ra afirmação da ciência moderna —, o M. co­ meçou a ser considerado "exceção" a essa or­ dem, portanto negado como tal ou reduzido a acontecimento incomum, mas concorde com a ordem natural. No livro Suglí incantesimi. Pomponazzi. p. ex., negava que os M. fossem acontecimentos contrários á natureza e estra­ nhos à ordem do mundo, admitindo-os apenas como fatos insólitos e raríssimos, que não acontencem segundo o ritmo habitual da nature­ za, mas a intervalos muito longas; esses fatos. porém pertencem à ordem natural, pela qual são determinados (De incantatíonibus, 12). Spinoza, por sua vez, afirmava que, "contra a natureza ou acima da natureza, M. não passa de absurdo, e que, na Sagrada Escritura, só é

MILENARISMO

possível entender por M. a obra da natureza que supera a inteligência dos homens ou que acredita superar" ( Traclatustheologico-politicm, cap. 6). Para Spinoza, Deus era mais bem co­ nhecido graças à ordem e à necessidade da na­ tureza do que por pretensos M. Mas Hume, que parte de uma concepção completamente dife­ rente, também nega a possibilidade do M.: "O M. é uma violação das leis cia natureza, e, como essas leis foram estabelecidas por uma expe­ riência fixa e inalterável, a prova contra o M., extraída da própria natureza do fato, 6 tão com­ pleta quanto se pode imaginar que o seja um argumento extraído da experiência" (Inq. Cone. Umlerst, X, 1), Todas as limitações que o con­ ceito de lei natural sofreu a partir de Hume não facilitaram a noção de M. do ponto de vista da ciência e da filosofia. Mas talvez se trate de uma noção que, do ponto de vista religioso, não oferece menor di­ ficuldade. Kierkegaard diz: No fundo, usar toda a sagacidade (como faz Lessing ao publi­ car os Fragmentos de Wolfenbütteln) na com­ provação do absurdo e da inivrossimilbcniça do M. para depois concluir a partir do fato de ser inverossímil: ergo, não é M. (mas seria mesmo M. se fosse verossímil?), é tão insensato quanto (e é esta a sabedoria da especulação) estorçar-se por compreender o M. ou por torná-lo compreensível, concluindo finalmen­ te: ergo, é um M. Um M. compreensível não é mais um M. Não, o M continua sendo o que é: artigo cie fé" (Diário, X1, A, 373). Desse ponto de vista obviamente ruem as objeçòes contra o M., mas ele deixa de ser, a qualquer título, objeto da pesquisa científica e filosófica. MILENARISMO. V. QflUASMO. MIMANSA. Um dos grandes sistemas filo­ sóficos da índia antiga, cuja fundação é atribuí­ da a Jaimini. É substancialmente uma interpre­ tação da doutrina dos vüdantas(y.) e pretende ser uma técnica de libertação. Opõe-se ao con­ ceito cie Deus criador e admite a realidade da matéria e das almas (cf. G. Ttxxi, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 127 ss.). MIMESE. V. METFXIS. MINIMUM. Assim chamou Lucrécio o áto­ mo (De rer. nat, I, 620). Nicolau de Gusa insis­ tia sobre a coincidência do máximo e do míni­ mo em Deus (Dedocta ignor., I, 4) e Giordano Bruno usou a palavra no sentido de Gusa (De mínimo triplici et mensura, 1, 7) (v. ÁTOMO). MISOLOGIA (gr. u.iaoÀoyia; in. Misology, fr. Misologie. ai. Misologie, it. Misologia). Termo

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MISTICISMO

criado por Platão para indicar o ódio aos ra­ ciocínios. Segundo Platão, "a M. nasce da mesma forma que a misantropia". Assim como a misantropia nasce de se ter confiado em alguém sem discernimento, a M. nasce de se ter acreditado, sem possuir a arte do raciocínio, na verdade de raciocínios que depois se mos­ traram falsos (Fed, 89 d-90 b). Segundo Kant, a M. nasce quando se confia à razão a tarefa de obter "a fruição da vida e a felicidade", tarefa para a qual ela não está apta, uma vez que seu destino, como faculdade prática, é conduzir à moralidade (Grundlegung derMetaphysik der Silte}/, I). Segundo Hegel, o saber imediato é uma forma de M. JJinc, § 11). MISTÉRIO (gr. (ruaxtípiov; lat. Mysterium; in. Mysteiy; fr. Mystère, ai. Mysterium; it. Mistero). No sentido em que a palavra começou a ser usada pelos escritores herméticos da An­ tigüidade (p. ex., Corpus bermeticum, I, 16), significa uma verdade revelada por Deus, que deve permanecer secreta. No Cristianis­ mo, essa palavra passou a indicar algo incom­ preensível ou cujo .significado é obscuro ou oculto. Nesse sentido, jacob Bóhme designava Deus como Mysterium magnum (título de uma de suas obras de 1623). A palavra é usada pelos modernos: Y- no sentido de verdade de fé indemonstrável, portanto em certo sentido incompreen­ sível: p. ex., "os M. da Trindade e da Kncarnaçào"; 2" no sentido de problema considerado insolúvel ou cuja solução se atribui ao domínio religioso ou místico: p. ex., "o M. do ser"; ainda hoje não faltam filósofos que, como Spencer (First Princ, § 14), acham que o M. é o domí­ nio da religião; 3" no sentido de qualquer problema cuja so­ lução seja difícil ou não imediata; neste sentido, um problema policial também é um mistério. MISTICISMO (in. Mysticism; fr. Mysticisme-, ai. Mysticismus; it. Misticismo). Toda doutrina que admita a comunicação direta entre o ho­ mem e Deus. A palavra mística começou a ser usada nesse sentido nas obras de Dionísio, o Aeropagita, pertencentes à segunda metade do séc. V e inspiradas no neoplatônico Proclo. Em tais obras é acentuado o caráter místico do neoplatonismo original, que é a doutrina de Plotino. Para isso, insiste-se na impossibilidade de chegar até Deus ou de realizar qualquer co­ municação com ele através dos procedimentos comuns do saber humano, cie cujo ponto cie

MISTICISMO

vista só se pode definir Deus negativamente (teologia negativa). Por outro lado, insiste-se também numa relação originária, íntima e pes­ soal entre o homem e Deus. em virtude da qual o homem pode retornar a Deus e unir-se fi­ nalmente a ele num ato supremo. Este é o êxtase, que Dionísio considera a deificaçào do homem. Esse é o esquema de toda doutrina mística, e foi extraído pelo pseudo-Dionísio dos textos neoplatônicos; contém muitos vestígios das crenças orientais, às quais deviam boa parte de sua inspiração. O M. medieval colocou-se algu­ mas vezes como alternativa que excluía o ca­ minho da busca racional: esse foi o caso de Bernad de Clairvaux (séc. XII), em quem a defesa da via mística é acompanhada pela po­ lêmica contra a filosofia e, em geral, o uso da razão. Outras vezes a via mística e a da especu­ lação escolástica são admitidas e reconhecidas, como fizeram Hugo e Ricardo de S. Vítor, também no séc. XII. O M. conserva os mesmos caracteres em S. Bonaventura, que cultiva igualmente a especulação filosófica e a mística. Por outro lado. a grande corrente do M. espe­ culativo alemão cio séc. XIV (Mestre Eckhart, Tauler, Suso e outros) opõe-se também a qual­ quer tentativa de empregar a razão no campo cia religião, mas sua característica é ser uma especulação sobre a fé, considerada como via de comunicação direta entre o homem e Deus. Não pertencem ao domínio da filosofia, mas sim ao domínio do M., os místicos práticos do Cris­ tianismo, como Santa Teresa, Santa Catarina de Siena, S. Francisco, Joana D'Arc e outros (cf. H. DKLACKOIX, Etude cCbistoíre et de psychologie dn mysticisme, Paris, 1908; J. H. lEiÜA. 'lhe Psycbology ofReligkms Mysticism, 1925). A prática mística consiste essencialmente em definir os graus progressivos da ascensão do homem até Deus, em ilustrar com metáfo­ ras o estado de êxtase e em procurar promover essa ascensão com discursos edificantes. Os graus da ascensão mística são habitualmente três: pensamento (cogitatio), que tem por obje­ to as imagens provenientes do exterior e destina-se a considerar as marcas de Deus nas coisas; a meditação (medilatio), que é o recolhimento da alma em si mesma e que tem por objeto a imagem de Deus; e a contempla­ ção (contemplatio), que visa a Deus mesmo. Esses graus estão ilustrados e subdivididos de vários modos pelos místicos, que habitualmen­ te dividem cada um desses graus em outros

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dois, enumerando assim, no êxtase, sele graus de ascensão, P. ex., segundo Bonaventura, o pensamento pode considerar as coisas em sua ordem objetiva (1 grau) ou na apreensão que a alma humana tem delas (II grau). A meditação pode contemplar a imagem de Deus nos pode­ res naturais da alma (memória, intelecto e von­ tade [III grani) ou ainda nos poderes que a alma conquista graças às três virtudes teologais (IV grau). A contemplação pode considerar Deus em seu primeiro atributo, ou seja, em seu ser (V grau), ou ainda em sua máxima potên­ cia, que é o bem (VI grau) (Itineraríum mentis in Deiirn, 1259). Para todos os místicos, acima de iodos os graus está o êxtaseA/.), ou excessus mentis, definido às vezes como "douta igno­ rância" (v.) e, em todos os caso, considerado como a "deificaçào do homem", ou seja, a sua união com Deus. Do ponto de vista filosófico-religioso, é importante a apreciação de Kierkegaard so­ bre o misticismo: o místico é "aquele que se escolhe em isolamento completo", ou seja, isolado do mundo e cios contatos humanos (AntAut, em Werke, II, p. 215), mas, assim agindo, comete certa indiscrição em relação a Deus. Isso porque, em primeiro lugar, desde­ nha a existência, a realidade na qual Deus o colocou, e. em segundo lugar, degrada Deus e a si mesmo. "Degrada-se porque é sempre de­ gradação ser essencialmente diferente dos outros graças a simples acidentalidade, e de­ grada Deus porque faz dele um ídolo e de si mesmo um favorito em sua corte" {Ibíci, Werke, II, p. 219). Na filosofia contemporânea o M. foi defen­ dido por Bergson, que nele viu a "religião dinâ­ mica", a religião que continua o elã criador da vida e tende a criar formas de vida mais perfei­ tas para o homem. "O amor místico' — diz Bergson — "'identifica-se com o amor de Deus por sua obra, amor que criou todas as coisas e é capaz de revelar a quem souber interrogá-lo o mistério da criação. É composto de essência mais metafísica que moral. Com a ajuda de Deus, ele gostaria de aperfeiçoar a criação da espécie humana e fazer da humanidade o que logo teria sido possível, se tivesse podido cons­ tituir-se definitivamente sem a ajuda do ho­ mem." Em outras palavras, é ao elã místico que se pode atribuir o restabelecimento da "função essencial do universo, que é uma máquina des­ tinada a criar divindades" (Deuxsources; trad. it., pp. 256, 349). Essa interpretação do M., feita

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por Bergson, não se diferencia do panteísmo validade moral ou religiosa ao M. O que o M. comum (v.). diz — supõe-se — não é demonstrável nem MISTIFICAÇÃO (in. Mystificatkm, fr. Mys- claramente concebível, mas sempre é claro o tificathm; ai. Mystificatkm; it. Mistificazione). seu significado moral ou religioso, ou seja o Interpretação de um conceito de modo obscu­ que ele ensina sobre a conduta do homem em ro, falaz ou tendencioso. Marx, p. ex., dizia: "A relação aos outros homens ou em relação à di­ M. que a dialética sofre nas mãos de Hegel não vindade. Assim, a respeito dos M. morais ex­ exclui em absoluto que ele tenha sido o pri­ postos em Górgias, Platão diz: "Talvez estas meiro ii expor cie maneira ampla c consciente coisas pareçam Aí. c/e mulheres velhas c as as formas gerais do movimento da dialética" considerareis com desprezo. E não seria desca­ (Correspondência Marx-Engels; trad. it.. V, p. bido desprezá-las se, com a investigação, pu­ 28). Segundo Marx, a dialética de Hegel era déssemos encontrar outras coisas melhores e "mistificacla" porque interpretada do ponto mais verdadeiras. Mas vós também, tu. Pólos e de vista idealista, e não materialista. De ma­ Górgias, que sois os gregos mais sábios de nos­ neira análoga, chama-se de M. o conceito de sos dias, não conseguis demonstrar que con­ liberdade segundo o qual ela coincide com ne­ vém viver outra vida que não esta" (Górg., 527 cessidade, o que, implicitamente, nega a liber­ a-b). Analogamente, atribui-se significado reli­ dade, etc. gioso ao M sempre que, com esse nome, são MITO (gr. |Uúeoç: lat. Mytbus; in. Mytb; fr. designadas determinadas crenças, como p. ex. Mythe-, ai. Mythos). Além da acepção geral de quando se diz "M. cosmogônico", "M. soterio"narrativa", na qual essa palavra é usada, p. ex., lógico", ou "M. escatológico", etc. Na linguagem na Poética (I, 1451 b 24) de Aristóteles, do pon­ comum prevalece essa acepção do significado to cie vista histórico é possível distinguir três em sua forma extrema, ou seja, como de crença significados do termo: l'J M. como forma ate­ dotada de validade mínima e de pouca verossi­ nuada de intelectualidade; 2U M. como forma milhança; nesse sentido, chama-se de mítico o autônoma de pensamento ou de vicia; 3Q M. que é inatingível ou contrário aos critérios do bom senso comum, como p. ex. "perfeição como instrumento de estudo social. ly Na Antigüidade clássica, o M. é considera­ mítica". do um produto inferior ou deformado da ativi­ A essa esfera de interpretação do M. perten­ dade intelectual. A ele era atribuída, no máxi­ cem as chamadas teorias naturalistas, que pre­ mo, "verossimilhança", enquanto a "verdade" valeceram no séc. XIX na Alemanha. Segundo pertencia aos produtos genuínos do intelecto. elas, o M. é produto da mesma atitude teórica Esse foi o ponto de vista de Platão e de Aristó­ ou contemplativa que dará origem à ciência; teles. Platão contrapõe o M. à verdade ou à nar­ consiste em tomar determinado fenômeno na­ rativa verdadeira ( Górg, 523 a), mas ao mesmo tural como chave para a explicação de todos tempo atribui-lhe verossimilhança, o que. em os outros fenômenos. Os fenômenos astro­ certos campos, é a única validade a que o dis­ nômicos, os meteorológicos e outros foram curso humano pode aspirar (Tini., 29 d) e, em invocados com esse fim. Mais recentemente, outros, expressa o que de melhor e mais ver­ outra escola sociológica viu no M. sobretudo a dadeiro se pode encontrar (Górg., 527 a). Tam­ lembrança dos acontecimentos passados. Km bém para Platão o M. constitui a "via humana ambos os casos essas "explicações naturalistas" mais curta" para a persuasão; em conjunto, seu do M. nada mais fazem que reduzi-lo a uma domínio é representado pela zona que fica forma imperfeita de atividade intelectual. além do círculo estrito do pensamento racional, 2- para a segunda concepção de M., este é na qual só é lícito aventurar-se com suposições uma forma autônoma de pensamento e de verossímeis. Substancialmente, Aristóteles assu­ vida. Nesse sentido, a validade e a função do me a mesma atitude em relação ao M: este às M. não são secundárias e subordinadas em re­ vezes é oposto ã verdade (Hist. An, VIII, 12, lação ao conhecimento racional, mas originá­ 597 a 7), mas outras vezes é a forma aproxima- rias e primárias, situando-se num plano dife­ liva e imperfeita que a verdade assume, quan­ rente do plano do intelecto, mas dotado de do, p. ex., explica-se "a razão de uma coisa em igual dignidade. Foi Viço o primeiro a expres­ forma de M." Ubid, VI, 35, 580 a 18). A esse sar esse conceito de M.: "As fábulas, ao nasce­ conceito de M. como verdade imperfeita ou di­ rem, eram narrações verdadeiras e graves minuída freqüentemente se une a atribuição de (donde ter a fábula sido definida como vera

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narratio) que no mais das vezes nasceram obs­ cenas, e por isso depois se tornaram impró­ prias, a seguir alteradas, então inverossímeis, adiante obscuras, daí escandalosas, e finalmen­ te incríveis, que são as sete fontes da dificulda­ de das fábulas" (5c. «., II, Pruove filos, per Ia discoverta dei vero Omero, IV). Portanto, a ver­ dade do M. não é uma verdade intelectual cor­ rompida ou degenerada, mas uma verdade autêntica, embora com forma diferente da ver­ dade intelectual, com forma fantástica ou poéti­ ca: "Os caracteres poéticos nos quais consiste a essência das fábulas nasceram, por necessida­ de natural, da incapacidade cie extrair as for­ mas e as propriedades dos assuntos; por con­ seguinte, devia ser maneira de pensar de povos inteiros que tivessem sido postos em tal neces­ sidade natural, que é nos tempos de sua maior barbárie" (Ibid, VI). Desse ponto de vista "os poetas devem ter sido os primeiros historiado­ res das nações" (Ibid., X), e os caracteres poéti­ cos contêm significados históricos que, nos pri­ meiros tempos, foram transmitidos de cor pelos povos (Ibid., IX). O Romantismo adotou esse conceito de M. c o ampliou em uma metafísica teológica. A Fi­ losofia da mitolugiaúe Schelling vê no M., con­ siderado como religião natural do gênero hu­ mano, uma das fases da auto-revelaçào do Absoluto. O M. faz parte integrante do proces­ so cie teofania; este nada tem a ver com a na­ tureza, ou melhor, tem a ver com ela só indire­ tamente, e na medida em que a natureza é revelação de Deus. O M. é uma fase da teogonia que está além e acima da natureza por­ que é a manifestação de Deus como consciên­ cia da natureza ou relação desta com o eu (Werke, II, I, pp. 216 ss.). Fora dessas especu­ lações, típicas do idealismo romântico, a dou­ trina do M. como forma autônoma de expres­ são e de vida encontrou ampla acolhida na filo­ sofia e na sociologia contemporâneas. Na filosofia, a melhor expressão desta interpreta­ ção do M. é o segundo volume de Filosofia das formas simbólicas (1925), de Cassirer, no qual a característica do pensamento mítico é avistada na distinção malograda ou imperfeita entre símbolo e objeto do símbolo, ou seja, na compreensão falha ou imperfeita do símbo­ lo como tal. Cassirer diz: "O M. surge espiri­ tualmente acima do mundo das coisas, mas, nas figuras e nas imagens com que ele substitui este mundo, vê outra forma de materialidade e de ligação com as coisas" (Philosophie der

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symbolischen Formen, II, 1925; trad. in., 1955, p. 24). Mais tarde, em Ensaio sobre o homem, Cassirer viu o caráter distintivo do M. em seu fun­ damento emotivo. "O substrato real do M. não é de pensamento, mas de sentimento. O M. e a religião primitiva não são por certo de todo incoerentes, não são totalmente desprovidos de senso ou razão. Mas sua coerência provém muito mais da unidade sentimental que de re­ gras lógicas. Essa unidade é um dos impulsos mais fortes e mais profundos do pensamento primitivo" (Fssay ou Man. cap. 7; trad. it., pp. 124-25). Contudo, essa concepção também pertence ao tipo de interpretação para a qual o M. é uma forma espiritual autônoma em rela­ ção ao intelecto. Também é desse tipo a interpretação socio­ lógica, para a qual o M. é produto de uma mentalidade pré-lógica. Esta foi a tese dos so­ ciólogos franceses Durkheim e Lévy-Bruhl. O primeiro afirmou que o verdadeiro modelo do M. não é a natureza, mas a sociedade, e que. em todos os casos, ele é a projeção da vida so­ cial do homem: projeção que reflete as ca­ racterísticas fundamentais dessa vida social (Les formes élémentaires de sa vie religieu.se, 1912). O segundo definiu o pensamento mítico como pensamento pré-lógico. no sentido que este prescindiria completamente da ordem necessária que. para o pensamento lógico, constitui a natureza, e veria a própria natureza como "uma rede de participações e de exclusòes místicas, na qual nada valem a lei de contradição e as outras leis do pensamento ló­ gico" (La mentalité primitive, 1922; L'âme primitive, 1928). 3o A terceira concepção de M. consiste na moderna teoria sociológica que se pode atri­ buir principalmente a Eraser ( The Golden Bough, 1911-15) e a Malinowski. Este último vê no M. a justificação retrospectiva dos elemen­ tos fundamentais que constituem a cultura de um grupo. "O M. não é uma simples narrativa, nem uma forma de ciência, nem um ramo de arte ou de história, nem uma narração expli­ cativa. Cumpre uma função suigeneris, intima­ mente ligada â natureza da tradição, à continui­ dade da cultura, â relação entre maturidade e juventude e à atitude humana em relação ao passado. A função do M. é, em resumo, refor­ çar a tradição e dar-lhe maior valor e prestígio, vinculando-a à mais elevada, melhore mais so­ brenatural realidade dos acontecimentos ini­

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ciais." Nesse sentido, o M. não se limita ao mundo ou à mentalidade dos primitivos. É in­ dispensável a qualquer cultura. "Cada mudança histórica cria sua mitologia, que, no entanto, tem relação indireta com o fato histórico. O M. 6 acompanhamento constante da fé viva, que precisa cie milagres, do status sociológico, que pede precedentes, da norma moral, que exige sanção" ("Myth in Primitive Psychology", 1926, in Magic, Science and Religion, 1955, p. 146). Por outro lado, Lévi-Strauss estudou a estrutura (v.) do M. nas sociedades primitivas, analisan­ do alguns em seus elementos mais simples ( mitemas) e estudando suas combinações pos­ síveis, que explicam também as semelhanças e diferenças entre M. vigentes em grupos huma­ nos diversos (Anthropologie structurale, 1958, cap. XI). Além disso, mostrou que o M. não é uma narrativa histórica, mas a representação generalizada de fatos que recorrem com unifor­ midade na vida dos homens: nascimento e morte, luta contra a fome e as forças da natu­ reza, derrota e vitória, relacionamento entre os sexos. Por isso, o M. nunca reproduz a situação real, mas opõe-se a ela, no sentido de que a re­ presentação é embelezada, corrigida e aperfei­ çoada, expressando assim as aspirações a que a situação real dá origem. Para caracterizar a relação entre o M. e a realidade que o inspira é adotada a palavra dialética(v.) ("The Story of Asdiwal", em lhe Structural Study ofMylh and Totemism, Leach, 1969, pp. 29 ss.). Outros autores preferem falar em retroalimentaçào (feedback), visto que o M. reage sobre a si­ tuação que o provocou, tendendo a modifi­ car o universo social do qual surgiu; este, uma vez modificado, provoca uma resposta no campo do M., e assim por diante (DOUGLAS, no mesmo volume, pp. 57 ss.). Em todos os ca­ sos, o M. apresenta-se como "filosofia nativa", segundem a expressão de Lévi-Strauss, que é a forma como o grupo social expressa sua pró­ pria atitude em relação ao mundo ou como procura resolver o problema da sua existência. Desse ponto de vista, o M. não é definido segundo determinada forma do espírito, como p. ex. o intelecto ou o sentimento, o que acon­ tece nas duas interpretações precedentes, mas em relação à função que desempenha nas sociedades humanas: função que pode ser es­ clarecida e descrita com base em fatos obser­ váveis. A desvalorização do M., presente na primeira concepção, e a sua supervalorização. presente na segunda, não têm lugar nesse ter­

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ceiro ponto de vista, o que certamente é uma vantagem. Outra vantagem é que ele explica a função exercida pelo M. nas sociedades mais avançadas e as características díspares que ele pode assumir nessas sociedades; nelas, podem constituir M. não só narrativas fabulosas, histó­ ricas ou pseudo-históricas, mas também figu­ ras humanas (heróis, líderes, etc), conceitos e noções abstratas (nação, liberdade, pátria, pro­ letariado), ou projetos de ação que nunca se realizarão (a "greve geral'1 de que falava Sorel como M. do proletariado; cf. Réfléxions sur Ia uiolence, 1906). A disparidade de conteúdo do M. demonstra a impossibilidade de relacionálo, com base em seu teor, com esta ou aquela forma espiritual, indicando que, ao contrário, é preciso estudá-lo em relação à função que exer­ ce na sociedade humana. MITO DA CAVERNA. V. CAVERNA. MITOLÓGICO (ai. Mythologisch). Na obra de Rudolf Bultmann este termo recebeu um significado especial, importante para a interpre­ tação que esse autor faz do Cristianismo: "M. é a forma de representação em que aquilo que não é mundano, que é divino, é representado como mundano, humano, o além como o aquém, em que, p. ex., a transcendência de Deus é pensada como distância espacial. Em conseqüência dessa representação, o culto é entendido como uma ação na qual os meios materiais transmitem forças imateriais." Nesse sentido, é óbvio que a palavra mito não tem o sentido moderno, "em que não significa nada mais do que ideologia" (Ketygma undMythos, 1, 1951, p. 22, n. 2). Cf. MIEGGE, VEvangeloeil mito, Milão, 1956. MNEMÔNICA, MNEMOTÉCNICA (lat. A rs nwmoriae, in. Mnemonics-, ir. Mnémoniqne-, ai. Mnemonik, Mnemotechnik, it. Mnemonica, Mnemotecnica). A arte de cultivar a memória. Trata-se de uma arte antiquíssima, que Cícero atribui a Simonides (De or, II, 86, 351). Essa arte foi cultivada pelos sofistas; Hípias vanglo­ riava-se de ser seu mestre (Hípias menor, 368 d; Hípias maior, 286 a). O gosto por essa arte ressurgiu no Renascimento e foi cultivada es­ pecialmente por Giordano Bruno, que lhe de­ dicou um grupo de obras (De nmbris ideanim, 1582; Ars memoriae, 1582; Cantus circaeus, 1582; 1'riginta sigillonim explicaiío, 1583, etc.) (v. CLAVIS UNIVERSALIS). A psicologia contempo­ rânea voltou a tratar desse assunto com meios experimentais. MÓBIL. V. MOTIVO.

MOBILISMO

MOBILISMO (fr. Mobilisme). A palavra é moderna (cf. CHIDK, Le mobilisme modenw, 1908); é pouco usada em italiano e em francês, mas serve para exprimir a atitude filosófica da­ queles que Platão chamava de "fluentes" (1'eet., 181 a), para quem tudo muda e nada está pa­ rado: como faziam na Antigüidade os seguido­ res de Heráclito e como fazem, na filosofia mo­ derna, os filósofos do devir. MODA (in. Fashiori; fr. Mode-, ai. Mode, it. Moda). Kant interpretou a M. como uma forma de imitação baseada na vaidade, porquanto "ninguém quer parecer inferior aos outros, mesmo nas coisas que não têm utilidade algu­ ma". Desse ponto cie vista, "estar na M. é ques­ tão de gosto; quem está fora de M. e adere a um uso passado é chamado de antiquado; quem não dá valor ao fato de estar fora de M. é um excêntrico"; Kant diz que "é melhor ser louco na M. do que fora dela", e que a M. só é real­ mente louca quando sacrifica a utilidade ou mesmo o dever em íavor cia vaidade (Antr., I, § 71). Na realidade, hoje essa análise de Kant não é mais suficiente, pois se sabe que a M. infiltra-se em todos os fenômenos culturais, in­ clusive nos filosóficos. Na Idade Moderna foram M. o cartesianismo, o iluminismo, o newtonismo, o darwinismo, o positivismo, o idealis­ mo, o neo-idealismo, o pragmatismo, etc: dou­ trinas todas que tiveram importância decisiva na história da cultura. Por outro lado, foram M. também movimentos culturais que pouco ou nenhum vestígio deixaram. Pode-se dizer que a função da M. é introduzir nas atitudes ins­ titucionais de um grupo ou, mais particularmen­ te, em suas crenças, por meio de rápida comu­ nicação e assimilação, atitudes ou crenças novas que, sem a M., teriam grande dificuldade para sobreviver e impor-se. Esta função específica, graças à qual a M. age como uma espécie de controle que limita ou enfraquece os controles da tradição, torna inútil a exaltação ou o des­ dém em relação â M. MODAL(in. Modal- fr. Module-, ai. Moda!; it. Module). Este termo designa a proposição na qual a cópula recebe uma determinação com­ plementar qualquer. Para as proposições M., v. iMODAUDADE. MODAL, LEI (ai. Modules Grundgesetz). Foi assim que Hartmann chamou a redução de todas as modalidades do ser (possibilidade e necessidade) à efetividade, isto é. ao ser de fato (Mõglicbkeit und Wirklichkeit, 1938, p. 71) (v. NECESSIDADE).

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MODALIDADE

MODALIDADE (kit. Modulitus; in. Modality, fr. Modalité, ai. Modulitát; it. Modulitã). Diferenças de predicaçào, ou seja, diferenças que podem ser produzidas pela referência de um predicado ao sujeito da proposição. Tais diferenças foram reconhecidas pela primeira vez por Aristóteles, de acordo com seu concei­ to do ser predicativo (v. SER, 1), que é a inerência. Ele diz que "uma coisa é inerir, outras coisas são inerir necessariamente e poder inerir, pois muitas coisas inerem, mas não necessariamente, outras não inerem nem necessária nem sim­ plesmente, mas podem inerir" (An. pr., I, 8, 29 b 29). Desse modo, Aristóteles distingue: 1Q inerência pura e simples do predicado ao sujei­ to; 2- inerência necessária; 3Q inerência possí­ vel. Posteriormente, os fomentadores de Aris­ tóteles deram o nome de modos à segunda e à terceira formas de predicaçào, e de "proposi­ ções modais" às proposições necessárias e pos­ síveis (AMMOMO, Deinterpr., f. 171 b; BOÉCIO, De interpr, II, V, P. I... 64, col. 582). Na Idade Média, deu-se o nome de proposição de inesse ou depuro inesse à proposição hoje conhecida como assertórica, e de modais ás proposições necessárias ou possíveis. (ABELARDO, Dialect., II, p. 100; PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.3D. Na Lógica (1638) de Jungius dá-se o nome de "enunciação pura" à proposição assertórica, e de "enunciação modificada ou modal" à propo­ sição necessária ou possível. O mesmo uso íoi adotado pela Lógica de Port-Royal (I, 80. e por Wolff (Log;., § 69). Pode-se dizer, portanto, que Kant nada mais fazia que reexpor esta longa tradição ao afirmar: "A M. dos juízos é uma fun­ ção particular deles, que tem o seguinte caráter distintivo: não contribui em nada para o con­ teúdo do juízo (já cjue, além da quantidade, da qualidade e da relação, nada mais há que for­ me o conteúdo do juízo), mas afeta apenas o valor da cópula em relação ao pensamento em geral. Juízos problemáticos são aqueles em que se admite a afirmação ou a negação como sim­ plesmente possível (arbitrário); assertóricos sào os juízos em que a alirmação ou a negação tem valor de realidade (verdade); são apoditicosos juízos em que a afirmação ou a negação tem valor de necessidade'1 (Crít. R. Pura, § 9, 4). Na lógica contemporânea o desenvolvimento da M. não foi levado a um grau suficiente de clareza conceptual e de elaboração analítica. Isto porque a lógica contemporânea molda-se pela matemática, que praticamente ignora, ou pode ignorar, o uso das M. Nào é de surpreen­

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der, portanto, que tenha sido exposta a tese da extensionalidade (v.), que eqüivale à elimina­ ção das M. dos enunciados. Contudo essa tese nào impediu que seus próprios defensores ten­ tassem uma interpretação das M. Russell afir­ mou que as M. nào são propriedades das pro­ posições, mas das funçõesproposicionais (v.): assim, seria necessária a função proposicional "Se x é homem, x é mortal", que é sempre verdadeira; seria possível a função "xé homem", que algumas vezes é verdadeira; e seria impossívela função "xé unicorno", que nunca é ver­ dadeira ("The Philosophy of Logical Atomism", 1918, cap. V, em Logic and Knowledge, pp. 230 ss.). Mas essa interpretação de Russell eqüivale simplesmente à inversão paradoxal das M., por­ quanto o sentido modal da expressào "Se x é homem, xé mortal" não é a necessidade, mas a possibilidade, pois ela na verdade significa "x pode ser mortal". Outra sugestão de Russell (op. cit., p. 23D é a identificação de necessário com analítico, com afirmações do tipo ".ré x". Carnap, por sua vez, ateve-se a essa interpretação quando tentou construir a M. com base no conceito de necessidade lógica, analiticidade, e definiu pos­ sibilidade como a negação de tal necessidade (Meaning and Necessity, 1957. § 39). É fácil notar que essa interpretação eqüivale à nega­ ção pura e simples das M. e nào pode valer como lógica delas. Por outro lado. Quine mos­ trou as dificuldades inerentes às abordagens das M. que se baseiam na quantificação, como a de Carnap (From a Logical Point of View, VIII, 4). A respeito da distinção das M. ou, como se diz hoje, dos valores modais das proposições, a tábua de valores mais antiga e autorizada 6 a apresentada por Aristóteles, em De interpretatione, que compreende seis valores: verda­ deiro, falso; possível, impossível; necessário, contingente (De int, 12, 21 b). Essa lógica com seis valores nào foi alterada na Idade Média (cf., p. ex., PKDRO HISPANO, Sitmm. log., 1.30), sendo desenvolvida e defendida também pelos lógicos contemporâneos, como p. ex. LEWIS (A Survey ofSymbolic Logic, 1918). Algumas ve­ zes, os valores modais foram reduzidos a cin­ co, com a identificação de possibilidade e con­ tingência (p. ex., O. BECKEK, "Zur Logik der Modalitàten", em fahrfür Phil. und Phánom. Forsbchung, 1930, pp. 496-548). Lukasiewicz e Tarski construíram uma lógica com três M.-. ver­ dadeiro, falso e possível (cf. os artigos em Comptes Reunds des Séances de Ia Société des

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SciencesetLettresde Varsovie, 1930, pp. 30, 50, 176). Carnap aceitou as seis M. da tradição aristotélica (Meaning and Necessity. § 39). O conceito de M. nào está bem claro nessas doutrinas da lógica contemporânea. Assim indi­ caremos apenas as confusões mais freqüentes: 1- tentativa de reduzir os enunciados modais a enunciados quantitativos: 2a tentativa de redu­ zir a M. a valor de verdade da proposição; 3a tentativa de tornar as M. predicados umas das outras. Ia A primeira tentativa consiste em estabele­ cer a correspondência entre enunciados univer­ sais e proposições possíveis. Assim, "todos os homens morrem'" seria equivalente a "os homens devem morrer", e "alguns homens são artistas" seria equivalente a "os homens podem ser ar­ tistas". Essas transcrições sem dúvida são insu­ ficientes, pois nem a proposição necessária nem a possível expressam fatos como as correspon­ dentes proposições universais e particulares (cf. A. PAP, Semantics andNecessary Truth, 1958, p. 368); ademais, a proposição possível tem significado distributivo ("todo homem pode ser artista"), que estaria excluído da proposição particular correspondente. Mas também é evi­ dente que nenhuma transcrição desse gênero é possível para proposições modais do tipo "x pode ser", que no entanto ocorrem em todos os ramos da ciência sempre que se trate de hipóteses, previsões, probabilidades, antecipa­ ções, etc. 2a A segunda confusão consiste em alinhar a M. entre os valores de verdade das proposi­ ções; essa confusão está presente mesmo nas chamadas lógicas das M. Ora, os valores de verdade das proposições (verdadeiro, falso, provável, indeterminado, etc.) pertencem a um nível diferente do nível da M., que é uma deter­ minação da predicaçào, ou seja, da relação entre sujeito e predicado cia proposição. Os valores de verdade pertencem à esfera de referência semântica das proposições; as M. pertencem à estrutura de relações das proposições. Indicam, portanto, se tal estrutura pode ser ou nâo dife­ rente do que é, se o conteúdo de um enuncia­ do (seu significado) pode ser ou nâo diferente daquilo que o enunciado expressa. As M. fun­ damentais são, então, duas e apenas duas: pos­ sibilidades necessidade, com seus opostos nãopossibilidadec impossibilidade. Elas modificam os valores de verdade das proposições no sen­ tido de limitá-los ou estendê-los, mas não de­ vem ser confundidas com tais valores: a pre-

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dicaçào recíproca supõe, aliás, a diversidade dos níveis, e pode-se dizer "necessariamente verdadeiro" ou "possivelmente verdadeiro" pre­ cisamente porque possibilidade e verdade, verdade e necessidade pertencem a duas esfe­ ras diversas e nào são excludentes entre si. 3â À terceira confusão é inerente à tentativa de predicaçào recíproca das M. Essa tentativa é tão contraditória quanto a de predicaçào recí­ proca entre os valores de quantidade ou cie verdade das proposições. A tese fundamental desse ponto de vista é a do caráter alternativo das M. Mas essa tese foi em geral desconhecida ou ignorada pelos lógicos da M. a partir de Aristóteles. Este último realmente cuidou da predicaçào recíproca das M. e afirmou, p. ex., que o que é necessário também deve ser pos­ sível, uma vez que nào se pode dizer que é impossível (Deint., 13, 22 b 11). Mas essa afir­ mação ou leva a considerar o necessário como possível, ou seja, como não necessário, ou leva a dividir em dois o conceito de possível (que é o caminho seguido por Aristóteles), com o re­ conhecimento de uma espécie de possível que se identifica com o necessário (y. POSSÍVEL). Por otitro lado, a afirmação recíproca (que Aristóteles ilustrou com o famoso exemplo da batalha naval), de que o possível é necessário no sentido de que necessariamente há um possível (p. ex., necessariamente amanhã haverá ou nào uma batalha naval), eqüivale a tornar necessária a indetenninaçào e a negar o possível como tal. De fato, "E necessário que .rseja possível" sig­ nifica que xdeve manter-se indeterminado sem nunca realizar-se; mas nesse caso x nào é um possível. Essas antinomias ou paradoxos sur­ gem do desconhecimento do caráter exclusivo das diferenças modais, em virtude do qual elas são alternativas inconciliáveis. Por outro lado, os valores de verdade podem ser predicados das M.; há um possível verdadeiro, como p. ex. "o homem pode ser branco", e um possível falso, como "o homem pode ser retângulo". E pode haver uma necessidade verdadeira e uma necessidade falsa, que é o absurdo. Esses repa­ ros exigiriam desenvolvimentos analíticos ade­ quados. Para mais observações, v. NECESSÁRIO; POSSÍVKL. MODALISMO (in. Modalism- fr. Modalisme; ai. Modalismus-, it. Modalismo). Esse nome é dado à interpretação da Trindade cristã que consiste em ver nas três pessoas divinas três modos ou manifestações da substância divina única. Essa interpretação sempre foi condena­

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da como herética pela Igreja cristã, que insistiu na igualdade e na distinção das pessoas divinas. No séc. III, o M. foi sustentado por Sabélio; viuse também uma espécie de M. na doutrina de Scotus Erigena e de Abelardo; este último foi criticado por S. BERNARDO (De erroribus Abelardi, 3, 8). Outro nome ciado à mesma heresia é monarquismo (v.). MODELO (in. Model; fr. Modele, ai. Modelh it. Modello). 1. Uma das espécies fundamentais de conceitos científicos (v. CONCEITO), mais precisamente o que consiste na disposição caracterizada pela ordem dos elementos de que se compõe, e não pela natureza desses ele­ mentos. Por isso, dois M. são idênticos se a re­ lação de suas ordens puder ser expressa como correspondência biunívoca, ou seja, tal que a um termo de um corresponda um, e apenas um, do outro, e que a cada relação de ordem entre os elementos de um corresponda idênti­ ca relação entre os elementos correspondentes do outro. O cálculo numérico ordinário é o melhor exemplo de correspondência biunívoca: se, de um lado, houver cinco livros e, de outro, cinco lápis, essas duas séries de objetos podem ser alinhadas na mesma, ordem ou os objetos podem ser colocados um sobre o outro. Do mesmo modo, a série dos números inteiros tem correspondência biunívoca com os números pares, e assim por diante. Para ser útil, um M. deve ter as seguintes características: 1) simplici­ dade, para que seja possível sua definição exa­ ta; 2) possibilidade de ser expresso por meio de parâmetros suscetíveis de tratamento mate­ mático; 3) semelhança ou analogia com a reali­ dade que se destina a explicar. Os M. mecânicos pareciam indispensáveis à ciência do séc. XIX, mas hoje diferentes disci­ plinas utilizam M. puramente teóricos: econo­ mia (que utiliza jogos), psicologia, biologia, antroplogia (cf. HKMPF.L, Aspects of Scientific Rxplanation, 1965, p. 445 e nota 28). LéviStrauss considerou a estrutura (v.) como um M. desse gênero, para a explicação dos fatos so­ ciais (Anthropologiestructurale, 1958, cap. XV). 2. O mesmo que arquétipo (v.). MODERNISMO (in. Modernism; fr. Modernisme. ai. Modernismus; it. Modernismo). Ten­ tativa .de reforma católica que teve alguma difusão na Itália e na França na última década do séc. XIX e na primeira do séc. XX; foi conde­ nado pelo papa Pio X com a encíclica Pascendi de 8 de setembro de 1907. Essa tentativa inspi­ rou-se nas exigências da filosofia da açãoiv),

M ODERNISM O

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nela haurindo o significado que deve ser atri­ buído aos conceitos fundamentais da religião: Deus, revelação, dogma, graça, etc. O M. inspi­ ra-se principalmente nas idéias de Ollé Laprune e de Blondel, que permaneceram alheios ao movimento, e conta com os nomes de I.aberihonnière, Loisy e Le Roy. Na Itália, assumiu es­ pecialmente a forma de crítica bíblica (Salvatore Minocchi, Ernesto Buonaiuti) e de crítica política (Romolo Murri), enquanto o debate fi­ losófico limitava-se a reproduzir, com escassa originalidade, as idéias do M. francês. Os pon­ tos básicos podem ser expostos assim: 1Q Deus revela-se imediatamente (sem in­ termediários) à consciência do homem. Laberthonnière cliz: "Se o homem deseja possuir Deus e ser Deus, é porque Deus já se deu a ele. É assim que podem ser e são encontradas na natureza as exigências do sobrenatural" (Essais dephilosophie religieuse, 1903, p. 171). Ksse princípio diminuía ou anulava a distância entre os domínios da natureza e da graça, bem como entre o homem e Deus. fazendo de Deus o princípio metafísico da consciência humana. Tal é o fundamento do chamado "método da imanência", que pretende encontrar Deus e o sobrenatural na consciência do homem. 2QDeus é sobretudo um princípio de ação, e a experiência religiosa é sobretudo uma expe­ riência prática. Esse ponto, que também deriva estritamente da Ação (1893) de Blondel, eqüi­ vale a considerar que religião e moral são coincidentes. Essa é uma das teses fundamen­ tais de Loisy (La religion, 1917, p. 69). 3- Os dogmas nada mais são que a expres­ são simbólica e imperfeita — porque relativa às condições históricas do tempo em que se constituem — da verdadeira revelação, que é a revelação feita por Deus mesmo à consciência do homem. Esse foi o ponto cie vista que Loisy defendeu na mais famosa obra do M., /. Hvangile et Téglise (1902). 4" Os instrumentos de investigação filológica devem ser aplicados sem limitações à Bíblia; isso significa que ela deve ser considerada e es­ tudada como um documento histórico da hu­ manidade, ainda que de caráter excepcional e fundamental. Esta foi a convicção tanto de Loisy quanto daqueles que, na Itália, aceitaram o ponto de vista do M. sobre esse assunto, especialmente Buonaiuti. 5o No campo da política, o Cristianismo não pode conduzir à defesa dos privilégios do clero ou de outros grupos sociais, mas apenas ao

M O DO

progresso e á ascensão do povo, cuja vida na história é a manifestação da vida divina. Tais foram as idéias políticas defendidas principal­ mente por Romolo Murri. Cf. E. BUONAIUTI, Le modemismecatholique, 1927; J. RIVIKRH, Lemodernisme dans Véglise, 1929; GARIN, Cronache clifilosofia italiana, 1943-55, 1956. MODERNO (lat. Modernu.% in. Modem, fr. Moderne, ai. Modem, it. Moderno). Este adjeti­ vo, que foi introduzido pelo latim pós-clássico e significa literalmente "atual" (de modo = ago­ ra), foi empregado pela Escolãstica a partir do séc. XIII para indicar a nova lógica terminista, designada como via moderna em comparação com a via antiqua da lógica aristotélica. Esse termo também designou o nominalismo, que está intimamente ligado à lógica terminista. Walter Burleigh diz: "Embora o universal não tenha existência fora da alma, como dizem os modernos, etc." (Kxpositiosuperartem veterem, Venetiis, 1485, f. 59 r; PRAXTL, Ceschicbte der Logik, III, pp. 255, 299, etc). No sentido histórico em que essa palavra é hoje empregada habitualmente, em que se fala de "filosofia moderna" neste dicionário, indica o período da história ocidental que começa de­ pois do Renascimento, a partir do séc. XVII. Do período M. costuma-se distinguir freqüente­ mente o "contemporâneo", que compreende os últimos decênios. MODERNOS. V. ANTIGOS. MODIFICAÇÃO REPRODUTIVA (ai Reproduktive Modífikalion). Assim Husserl cha­ mou as representações das coisas e das vi­ vências que já nos foram dadas uma vez em suas modalidades peculiares (Ideen, I, § 44). MODO (gr. xpóicoç; lat. Modus, in. Mode-, fr. Mode; ai. Modus-, it. Modo). Com este termo fo­ ram designadas: 1QAs diversas formas do ser predicativo (v. MODAI.IDADH). 2" As determinações não necessárias (ou não incluídas na definição de uma coisa). O M. já era entendido pela lógica medieval nesse sentido (cf., p. ex., PHDKO HISPANO, Sunwi. log;., 1.28). Foi retomado por Descartes, que enten­ deu por M. as qualidades secundárias mutáveis das substâncias e as contrapôs aos atributos. que constituem as qualidades permanentes ou necessárias. Descartes diz: "Já que não devo conceber em Deus variedade ou mudança alguma, digo que nele não há M. ou qualida­ des, mas atributos; também nas coisas criadas, o que nelas encontra sempre constante,

MODUS PONENS e MODUS TOLLENS

como a existência e a duração da coisa que existe e dura. chamo de atributo, e não M. ou qualidade" (Prínc. phii, I, 56). Esse conceito foi repetido por Spinoza (Et, I, def. 5) e por Wolff, que diz: "O que não repugna às determi­ nações essenciais, mas não é determinado por elas, chama-se M." (Ont, § 148). Por outro lado, a Lógica de Port-Royal não distinguiu o M. do atributo ou da qualidade, definindo-o como "aquilo que, sendo concebido na coisa de tal forma que não pode subsistir sem ela, determi­ na-a a ser de certa maneira e a ser denominada correspondentemente" (I, 2). Dessa definição, Locke aceitava a afirmação de que o M. não pode subsistir independentemente da substân­ cia e, assim, definia M. como "as idéias comple­ xas que, embora compostas, não contêm em si a suposição de subsistirem por si próprias, mas são consideradas dependências ou afecções das substâncias, tal como são as expressas pe­ las palavras 'triângulo', 'gratidão', homicídio', etc." (Ensaio, II, 12, 4). Faz parte desse mesmo conceito o significa­ do que Spinoza atribui ao termo, entendendo-o como "aquilo que está em outra coisa e cujo conceito se forma por meio dessa outra coisa" (Et., l, 8, scol. 2). No entanto, segundo Spinoza, o M. deriva necessariamente da natureza divi­ na e portanto se distingue do atributo pela sua particularidade, e não pela ausência de necessi­ dade: M. são as coisas e os pensamentos parti­ culares que expressam os atributos de Deus, pensamento e extensão (Ibid., I, 25 scol.; II, 1). 3Q Formas, espécies, aspectos, determina­ ções particulares cie um objeto qualquer. Esse significado é o mais geral e comum, sendo tam­ bém o menos preciso. 4I> Especificação das figuras do silogismo, segundo a qualidade e a quantidade das pre­ missas (v. FIGURA; SILOGISMO). MODUS PONENS e MODUS TOLLENS. Na lógica do séc. XVII. foram assim chamados os dois modos do silogismo hipotético: o primei­ ro, posto o antecedente, põe o conseqüente (se A é, é B\ mas A é, portanto é B), e o segun­ do, retirado o conseqüente, retira o anteceden­ te (se A é, é B-. mas A não é, portanto não é B) (JUNGIUS, Lógica, 1638, III, 17. 10-11; WOLFF, Log., §§409-10).

M O L E C U L A R , P R O P O S IÇ Ã O (in. Mole­

cularproposition; fr. Proposition moléculaire, ai. Molekular Satz; it. Proposizione molecolare). Termo que entrou em uso com o Trac­ tatus de Wittgenstein; correspondente ã pro-

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MONADA

positio hypothetica da Lógica de Boécio e dos escolásticos: é uma proposição formada por uma ou mais proposições atômicas (v.) ligadas por certas constantes lógicas, como "não", "c", "ou", "implica" ("se....... ") (negação, conjunção, disjunção, implicação) e outras. Na lógica de Russell as proposições funcionais correspon­ dem às proposições moleculares. G. P. MOLINISMO. V. GRAÇA.

MOMENTO (in. Moment; fr. Moment; ai. Moment: it. Momento). 1. Conceito mecânico: ação instantânea de uma força sobre um corpo. É assim que Kant define o M. (Metaphysische Anfangsgríinde der Naturwissenscbaft, Nota sobre a mecânica; Crít. K. Pura, Anal. dos princ, B, ao final). 2. Conceito temporal: parte mínima de tem­ po, desprovida de sucessão (cf. LOCKK, Ensaio, II, 14, 10). 3. Conceito dialético: fase ou determinação do devir dialético: p. ex., possibilidade e acidentalidade são "os M. da realidade" (HEGEL, Ene, § 145); a condição, a coisa e a atividade são "os três M. da necessidade" (HFGEL, ibid,, § 148); o ser e o nada são "os M. do devir" (HHGKL, Wissenschaft derLogik, I, I, seç. I, cap. I, C, nota 2; trad. it., vol. 1, pp. 87 ss.), etc. Esse conceito de M. como fase dialética é o mais co­ mum na filosofia contemporânea. 4. Conceito lógico: fase ou estágio de uma demonstração ou de um raciocínio qualquer. MÔNADA (lat. Monas; in. Monad; fr. Monade-, ai. Monade, it. Monade). Por ter signifi­ cado diferente de Unidade (v.), esse termo de­ signa uma unidade real inextensa, portanto espiritual. Giordano Bruno foi o primeiro a em­ pregar esse termo nesse sentido, concebendo a M. como o minimnm, como unidade indivisí­ vel que constitui o elemento de todas as coisas (De mínimo, 1591; De Monade, 159D. O termo foi retomado no mesmo sentido pelos neoplatônicos ingleses, especialmente por H. Mo­ re, que elaborou o conceito das "M. físicas", inextensas, portanto espirituais, como compo­ nentes da natureza (Enchiridion Metaphysicum, 1679, 1, 9, 3). A partir cie 1696, Leibniz lançou mão desse termo para designar a subs­ tância espiritual enquanto componente simples do universo. Segundo Leibniz, a M. é um áto­ mo espiritual, uma substância desprovida de partes e de extensão, portanto indivisível. Como tal, não pode desagregar-se e é eterna; só Deus pode criá-la ou anulá-la. Cada M. é di­ ferente das outras, pois não existem na nature­

MONADOLOGIA

za dois seres perfeitamente iguais (v. IDI-NTIDAEK DOS INDISCI-RKIVKIS). Toda M. constitui um ponto de vista sobre o mundo, sendo, portan­ to, lodo o mundo de determinado ponto de vista (Monad, 1714, § 57). As atividades funda­ mentais da M. são a percepção e a apetiçào, mas as M. têm infinitos graus de clareza e dis­ tinção-, as providas de memória constituem as almas dos animais, e as providas de razão cons­ tituem os espíritos humanos. Mas a matéria também é constituída por M., ao menos a ma­ téria segunda, já que a matéria primeira é a simples potência passiva ou força inereial (Op., ecl. Gerharclt, III, pp. 260-61). A totalidade das M. é o universo. Deus é "a unidade primitiva ou substância simples originária; todas as M., criadas ou derivadas, são suas produções e nascem, por assim dizer, por fulguraçào contí­ nua da divindade, de momento em momento" (Monad., § 47). As características dessa doutrina de Leibniz reaparecem sempre que os filósofos recor­ rem ao conceito de M., e estão substancialmen­ te presentes nas doutrinas metafísicas do espiritualismo contemporâneo. Atente-se para o sabor leibniziano do seguinte trecho de Husserl: "A constituição do mundo objetivo comporta essencialmente uma harmonia de M., mais precisamente uma constituição har­ moniosa particular em cada M. e, por conse­ guinte, uma gênese que se realiza harmonio­ samente nas M. particulares" (CartMed, § 49) (v. RSPMTI ALISMÜ). MONADOLOGIA (in. Monadology, fr. Monadologie, ai. Monadologie, it. Monadologia). Este termo serviu a Leibniz de título â breve ex­ posição de seu sistema, composta a pedido do príncipe Eugênio de Savóia. em 1714. O termo permaneceu para designar a doutrina das mônadas. Kant intitulou M. physica um escrito de 1756. K o termo desde aquela época ocorre freqüentemente (cf. p. ex. RKNOLVIER e PRAT, Nouvelle monadologie, 1899). MONARCÔMACO (in. Monarchomachist; fr. Monarchomachiste, ai. Monarchomache, it. Monarcomaco). Foram assim chamados no séc. XVII os seguidores do direito natural que combatiam o absolutismo monárquico. O nome ocorre pela primeira vez no título da obra do católico escocês GI.ILHF.RME BARKLAY, Deregno et regalipotestate adversas Buchanamtm, Brntum, Boucherinm, etrelíqnosmonarchomachos. Paris, 1600.

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MONOGENISMO

MONARQUIA. V. govkrno. formas de. MONARQUISMO. V. MODAI.ISMO. MONÁSTICO. Viço chamou de filósofos M. ou solitários os estóicos e os epicuristas. por­ quanto "querem o amortecimento dos senti­ dos" e "negam a providência: aqueles deixan­ do-se arrastar pelo destino, estes entregando-se ao acaso, e os segundos opinando que as al­ mas humanas morrem com os corpos". Aos filósofos M. Viço contrapôs os filósofos políti­ cos, especialmente os platônicos, que convém com os legisladores em admitir a providência e a imortalidade, além da moderação das pai­ xões (Scienza nuova, 1744, Degnitâ V). MONERGISMO. V. SINKKGISMO. MONISMO (in. Monism; fr. Monisme, ai. Monismns; it. Monismo). Wolff chamava cie "monistas" os filósofos "que admitem um único gênero de substância" (Psychol. rationalis, § 32), compreendendo nessa categoria tanto os ma­ terialistas quanto os idealistas. Porém, conquan­ to algumas vezes tenha sido usado para desig­ nar estes últimos ou pelo menos algum aspecto de sua doutrina, esse termo foi constantemen­ te monopolizado pelos materialistas; quando usado sem adjetivo, designa o materialismo. Isso se deve provavelmente ao fato de ter sido adotacio por um dos mais populares autores de obras materialistas, o biólogo F.rnst Haeckel (Der Monismns ais Band zwischen Keligion und Wissenschaft. 1893). Nesse sentido, o ter­ mo foi empregado no nome da Associação Monística Alemã (Deutsche Monistenbund), fundada em 1906 por Haeckel e por Ostwald, bem como no título de uma das mais antigas revistas filosóficas americanas, 'lheMonist, fun­ dada em 1890 por Paul Canis. MONOFILETISMO (in. Monopbyletism; fr. Monophylétisme, ai. Monophyletismus; it. Monofiletísmo). Doutrina para a qual todas as espécies vivas derivam de um único ramo originário. A doutrina contrária chama-se polifiletismo. MONOFISISMO (in. Monophysism, fr. Monophysisme; ai. Monopbysismus-, it. Monofisismo). Interpretação herética do dogma cris­ tão da Encarnaçâo: o Verbo ou Cristo teria uma só natureza, a divina. Essa interpretação foi sustentada no séc. V por Eutíquio, em oposição ao nes/oríanismo (v.), que sustentava a heresia oposta; foi condenado pelo Concilio de Calcedônia, de 451. MONOGENISMO (in. Monogenism, fr. Monogénisme, ai. Monogenismus; it. Monogenis-

MONOPSIQUISMO

mo). Doutrina para a qual todas as raças huma­ nas vivas descendem de um único ramo. A doutrina contrária chama-se poligenismo. MONOPSIQUISMO (in. Monopsychism; fr. Monopsychisme, ai. Monopsychísmus; it. Monopsichismo). Doutrina averroísta da unidade da alma intelectiva em todos os homens. V. INTKLKCTO ATIVO. MONOSSILOGISMO (in. Monosyllogism, fr. Monosyllogisme, ai. Monosyllogismus; it. Monosillogismo). Raciocínio constituído por um só silogismo, assim chamado em oposição a polissilogismo (v.). MONOTEÍSMO (in. Mouotheism; fr. Monothéisme; ai. Monotheismus-, it. Monoteismo). Doutrina da unicidade de Deus. V. DKUS, 3g, b. MONOTELISMO (in. Monotheletism; fr. Monotbélétisme-, ai. Monotheletisnms). Inter­ pretação herética do dogma da Encarnaçào, segundo a qual existe em Cristo uma única vontade, a divina, que constitui o traço de união das duas naturezas que há nele, a divi­ na e a humana. Essa heresia toi sustentada pelo patriarca de Constantinopla, Sérgio, no séc. VI e condenada pelo VI Concilio ecumê­ nico em 680. MONTANISMO (in. Montanism; fr. Montanisme, ai. Montanismus; it. Montanismo). Seita religiosa cristã do séc. II. assim chamada pelo nome de seu fundador Montano, ex-sacerdote de Cibele. Montano pretendia transferir para o Cristianismo o culto entusiástico de sua seita de proveniência: os montanistas viviam em contí­ nua agitação à espera da eminente volta do Cristo. Tertuliano pertenceu por algum tempo a essa seita. MONTÃO, ARGUMENTO DO (gr ocopeíxrjç Xóyoç, lat. Acervalisratiocinatio; in. Soriete-, fr. Soríte; ai. Sorites; it. Argomento dell'acetvó). Com esse nome faz-se referência a duas argu­ mentações, uma de Zenào de Eléia, outra de Eubúlides de Mégara. O argumento de Zenào de Eléia dirige-se contra a fidedignidade do conhecimento sensível e, em particular, do ouvi­ do: se um alqueire de trigo faz barulho ao cair, cada grão e cada partícula de grão deveria pro­ duzir um som ao cair, o que não ocorre (Diels, A 29). O argumento de Eubúlides, conhecido tam­ bém como sorites (v.) de ocopóç = monte, con­ siste em perguntar quantos grãos de trigo são necessários para formar um monte; bastaria só um grão? Bastariam dois?, etc. Como é impossível determinar em que ponto começa um monte, aduz-se esse argumento contra a pluralidade

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MORALIDADE

das coisas (CÍCKRO, Acacl, II, 28, 92 ss.; 16, 49; DIÓG. L., VII, 82). O mesmo argumento foi às vezes expresso de outra forma sob o nome de argumento do calvo (d. DiÓG. L, II, 108) e consiste em perguntar se um homem se torna calvo quando ser lhe arranca um fio de cabe­ lo. E quando lhe arrancam dois? E assim por diante. MONUMENTAL, HISTÓRIA. V. ARQUHOLO GIA, HISTÓRIA. MORAL1 (lat. Moralia; in. Morais; fr. Mo­ ra lt* ai. Moral; it. Morale). 1. O mesmo que Ética. 2. Objeto da ética, conduta dirigida ou dis­ ciplinada por normas, conjunto dos mores. Neste significado, a palavra é usada nas seguintes ex­ pressões: "M. dos primitiveis", "M. contemporâ­ nea", etc. MORAL2 (gr.rjíhKÓÇ; lat. Moralis-. in. Moral; fr. Moral; ai. Moral; it. Morale). Este adjetivo tem, em primeiro lugar, os dois significados correspondentes aos do substantivo moral: I-1 atinente à doutrina ética, 2" atinente à conduta e, portanto, suscetível de avaliação M, espe­ cialmente de avaliação M. positiva. Assim, não só se fala de atitude M. para indicar uma atitu­ de moralmente valorável, mas também coisas positivamente valoráveis, ou seja. boas. Em inglês, francês e italiano, esse adjetivo depois passou a ter o significado genérico de espiritual", que ainda conserva em certas ex­ pressões. Hegel lembrava este significado com referência ao francês {Ene, § 503); ele ainda persiste, p. ex., na expressão "ciências morais". que são as "ciências do espírito". MORALIDADE (lat. Moralitas; in. Moralily, fr. Moralíté-, ai. Moralilát; it. Moralitã). Caráter do que se conforma às normas morais. Kant contrapôs a M. à legalidade. A última é a sim­ ples concordância ou discordância de uma ação em relação à lei moral, sem considerar o móvel da ação. A M., ao contrário, consiste em assumir como móvel de ação a idéia de dever (Mct. der Sitiem, I, Intr, § 3; Crít. R. Pratica. I, 1, 3). No sentido hegeliano, a M. distingue-se da eticidade (v.) por ser a "vontade subjetiva", ou seja, individual e desprovida de bem, enquanto a eticidade é a realização do bem em institui­ ções históricas que o garantam (Ene, § 503; til­ do dir, § 108). M. e eticidade estão entre si como o finito e o infinito: isso significa que a eticidade é a "verdade" da M., do mesmo modo como o infinito o é do finito.

são dispersos entre os átomos" (Recordações, VI, 24). No mesmo sentido, Shakespeare dizia: "Alexandre morreu, Alexandre foi sepultado, Alexandre voltou ao pó. O pó é terra e com a terra se faz argila; por que a argila em que ele se transformou não poderia vir a ser a tampa de um barril de cerveja?" (Hamlet, a. V, cena I). Em todos esses casos entende-se por M. o fa­ lecimento do ser vivo, qualquer que seja, sem referência específica ao ser humano. Perante a M. assim entendida, a única atitude filosófica possível é a expressa por Fpicuro: "Quando nós estamos, a M. não está; quando a M. está, nós não estamos" (DiÓG. L, 125). No mesmo sentido, Wittgenstein disse: "A M. não é um acontecimento da vida: não se vive a M." (Tractatus, 6.4311). E Sartre ressaltou a insigni­ ficância da M: "A M. é um fato puro, como o nascimento; chega-nos do exterior e transfor­ ma-nos em exterioridade. No fundo, não se distingue de modo algum do nascimento, e é a identidade entre nascimento e M. que chama­ mos de facticidade" (Lêtreetle néant, 1955, p. 630). Entendida nesse sentido, a M. não concerne propriamente á existência humana. O contras­ te entre a M. assim entendida e a M. como ameaça iminente sobre a existência individual foi bem expresso por Léon Tolstoi no conto A Aí. de Ivan Iljitsch, no qual o protagonista, que reconhece como certa e válida a idéia genérica da M, como falecimento, rebela-se contra a ameaça que a M. faz pairar sobre ele. 2- Em sua relação específica com a existên­ cia humana, a M. pode .ser entendida: a) como início de um ciclo de vida; b) como fim de um ciclo de vida; c) como possibilidade existencial. a) A M. é entendida como início de um ciclo de vida por muitas doutrinas que admitem a imortalidade da alma. Para elas, a M. é o que Platão chamava de "separação entre a alma e o corpo" (Fed, 64 c). Com essa separação de fato, inicia-se o novo ciclo de vida da alma: seja ele entendido como reencarnaçào da alma em novo corpo, seja uma vida incorpórea. Plotino expressava essa concepção dizendo: "Se a vida e a alma existem depois da M., a M. é um bem para a alma porque esta exerce melhor sua atividade sem o corpo. E, se com a M. a alma passa a fazer parte da Alma Universal, que mal pode haver para ela?" (Hnn, 1, 7, 3)- Idêntico conceito de M. reaparece sempre que se considera a vida do homem sobre a terra como preparação ou aproximação de uma vida diferente, e quando se afirma a imortalida-

MORTE

cie impessoal da vida, como faz Schopenhauer, para ele a M. é comparável ao pôr-do-sol, que representa, ao mesmo tempo, o nascer do sol em outro lugar (Díe Weil, I, § 65). b) O conceito de M. como fim do ciclo de vida foi expresso de várias formas pelos filóso­ fos. Marco Aurélio considerava-a como re­ pouso ou cessação das preocupações da vida: conceito que ocorre freqüentemente nas con­ siderações da sabedoria popular em torno da M. Marco Aurélio dizia: "Na M. está o repouso dos contragolpes dos sentidos, dos movimen­ tos impulsivos que nos arrastam para cá e para lá como marionetas, das divagações de nossos raciocínios, dos cuidados que devemos ter para com o corpo" (Recordações, VI, 28). Leibniz concebia o fim do ciclo vital como climinuiçào ou involuçào da vida: "Não se pode falar de geração total ou de morte perfeita, entendida rigorosamente como separação da alma. O que nós chamamos de geração sem desenvolvimen­ tos e acréscimos, e o que chamamos de M. são involuções e diminuições" (Monacl, § 73). Em outros termos, com a M. a vida diminui e desce para um nível inferior ao da apercepçào ou consciência, para uma espécie de "aturdimento", mas não cessa (Príncipes de Ia nature et de Ia grâce. 1714, § 4). Por sua vez, Hegel consi­ dera a M. como o fim do ciclo da existência individual ou finita, pela impossibilidade de ade­ quar-se ao universal: "A inadequação do ani­ mal à universalidade é sua doença original e germe inato da M. A negação desta inadequação é o cumprimento de seu destino" (Ene, § 375). Finalmente, o conceito bíblico de M. como pena do pecado original (Cen, II, 17; Rom., V, 12) é. ao mesmo tempo, conceito dela como conclu­ são do ciclo da vida humana perfeita em Adão e o conceito de limitação fundamental imposta á vida humana a partir do pecado de Adão. S. Tomás diz a respeito: "A M., a doença e qual­ quer defeito físico decorrem de um defeito na sujeição do corpo à alma. E assim como a rebe­ lião do apetite carnal contra o espírito é a pena pelo pecado dos primeiros pais, também o são a M. e todos os outros defeitos físicos" (S. lh, II, 2, q. 164, a. 1). Porém este segundo aspec­ to, típico da teologia cristã, pertence propria­ mente ao conceito de M. como possibilidade existencial. c) O conceito de M. como possibilidade existencial implica que a M. não é um aconteci­ mento particular, situável no início ou no tér­ mino de um ciclo de vida do homem, mas uma

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MORTE

possibilidade sempre presente na vicia huma­ na, capaz de determinar as características fun­ damentais desta. Na filosofia moderna, a cha­ mada filosofia da vida, especialmente com Dilthey, levou á consideração da M. nesse sen­ tido: 'A relação que caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser é a re­ lação entre vida e M. porque a limitação da nossa existência pela M. é decisiva para a com­ preensão e a avaliação da vida" (Das Hrlebnis unddíeDichtung, 5a ed., 1905, p. 230). A idéia importante aqui expressa por Dilthey é que a M. constitui "uma limitação da existência", não enquanto término dela, mas enquanto condi­ ção que acompanha todos os seus momen­ tos. Essa concepção, que, de algum modo, re­ produz no plano filosófico a concepção de M. da teologia cristã, foi expressa por Jasper.s com o conceito da situação-limite como "si­ tuação decisiva, essencial, que está ligada à natureza humana enquanto tal e é inevitavel­ mente dada com o ser finito" (Psychologie der Weltanschaunngen, 1925, III, 2; trad. it., p. 266; cf. Phil, II, pp. 220 ss.). Referindo-se a esses precedentes, Heidegger considerou a M. como possibilidade existencial: "A M., como fim do ser-aí (Daseiri), é a sua possibilidade mais pró­ pria, incondicionada, certa e, como tal, inde­ terminada e insuperável" (Sein midZeít, § 52). Sob este ponto de vista, de possibilidade, "a M. nada oferece a realizar ao homem e nada que possa ser como realidade atual. Ela é a possibi­ lidade da impossibilidade de toda relação, de todo existir" (Ibid., § 53). Ejá que a M. pode ser compreendida só como possibilidade, sua com­ preensão não é esperá-la nem fugir dela, "não pensar nela", mas a sua antecipação emocio­ nal, a angústia (v.). A expressão usada por Heidegger ao definir a M. como "possibilidade da impossibilidade" pode com razão parecer contraditória. Foi sugerida a Heidegger por sua doutrina da impossibilidade radical da existên­ cia: a M. é a ameaça que tal impossibilidade faz pairar sobre a existência. A prescindir dessa in­ terpretação da existência em termos de neces­ sidade negativa, pode-se dizer que a M é "a nulidade possível das possibilidades do ho­ mem e de toda a forma do homem" (ABBAG­ NANO, Struttura delVesistenza, 1939, § 98; cf. Possibilita e liberta, 1956, pp. 14 ss.). Já que toda possibilidade, como possibilidade, pode não ser, a M. é a nulidade possível de cada uma e de todas as possibilidades existenciais; nesse sentido, Merleau-Ponty diz que o sentido da M.

MOTIVAÇÃO

é a "contingência do vivido", "a ameaça perpé­ tua para os significados eternos em que este pensa expressar-se por inteiro'" (Structure du comportement, 1942, IV, II, § 4). MOTIVAÇÃO (in. Motivation; fr. Motivation; ai. Motivation; it. Motivazione). 1. Cau­ salidade do motivo. Schopenhauer foi o pri­ meiro a distinguir nitidamente essa forma de causalidade das outras três, que são: causali­ dade da causa, causalidade da razão e causa­ lidade da razão de ser ( (her die vierfache Wttrzel cies Satzes vom zureichenclen Grundc, 1813, §§ 20, 29, 36). Schopenhauer diz: A eficiência do motivo vem a ser conhecida por nós não só exteriormente de modo mediato, como a de todas as outras causas, mas também interiormente, de modo imediato. (...) Daí resulta a importante proposição: a M. é a causalidade vista do interiormente. (...) É pre­ ciso, portanto, propor a M. como uma força especial do princípio de razão suficiente do agir, ou seja, como lei da M." ( Vierfache Wurzel. § 43). Mesmo sem o caráter privilegiado cie revelação imediata do modo de agir intrín­ seco da causalidade, que Schopenhauer lhe atribuía, a M. continuou indicando a ação de­ terminante do motivo, sejam quais forem os limites impostos a tal determinação. Os proble­ mas da M. são, por um lado, de natureza psico­ lógica e concernem ao modo de agir dos mo­ lhos, passível de observação pelos instrumentos de que a psicologia dispõe; e, por outro lado, .são de natureza filosófica, porquanto dizem respeito aos limites ou às modalidades de de­ terminação, portanto à liberdade e ao deter­ minismo (v.). 2. Husserl chamou de M. as conexões da ex­ periência que condicionam a possibilidade de experimentação ulterior "Experimentabilidade não significa possibilidade lógica, vazia, mas possibilidade motivada pela conexão da expe­ riência. Esta é uma cadeia contínua de M, que assume sempre novas M. e transforma as já for­ madas" (Ideen, I § 47). MOTIVO (in. Motive, fr. Motif; ai. MotíiK it. Motivo). Causa ou condição de uma escolha, ou seja, de uma volição ou de uma ação. O M. pode ser mais ou menos claramente reco­ nhecido por aquele sobre quem age: chamase algumas vezes de mobilou móvel (fr. Mo­ bile-, ai. Triebfeder) o M. que não tem caráter "racional", que não pode ser considerado uma "razão" da escolha.

MÓVEL, PRIMEIRO

Já Aristóteles dissera: "Visto que há três coi­ sas: primeiro, o motor, segundo, aquilo com que move, e terceiro, o que é movido, temse que o motor imóvel é o bem prático, o mo­ tor que também é movido é a faculdade apetitiva, e o que é movido é o animal" (Dean., III, 10, 433 b 14). O M. é aqui entendido como um motor único e imutável que é o bem, o fim ao qual tende a vida do animal. Mas no mundo moderno não se fala mais cie motor nesse sen­ tido, mas de M. Wolff interpretava esse termo como "a razão suficiente da voliçào ou da nolição" (Psychol. empírica, § 887), definição que — pode-se dizer — não sofreu modifica­ ções, a não ser no que se refere à diferença no grau de determinação atribuído ao M. O pro­ blema desses diferentes grátis de determina­ ção é o problema da liberdade (v.). Por outro lado, a importância do conceito de M. para a explicação da conduta humana foi algumas vezes posta em dúvida na filosofia contemporânea. Dewey. p. ex., afirmou que "todo o conceito de M. na verdade é extrapsicológico". Nenhuma pessoa de bom senso atribui M. aos atos de um animal ou cie um idiota, e é absurdo perguntar o que induz um homem à atividade. "Mas quando precisamos conduzi-lo a agir cie um modo específico e não de outro, quando queremos di­ rigir sua atividade para uma direção específi­ ca, então a questão do M. é pertinente. O M. é então o elemento cio conjunto total da ativi­ dade humana que, se suficientemente estimu­ lado, dará lugar a um ato que tem conseqüên­ cias específicas." Em outras palavras, menos que fator de explicação da conduta humana, o M. é instrumento para sua orientação (líuman Nature and Conducl, pp. 199-20). M O T O R . V. DKCS, PROVAS DÍ-;; MOVIMKNTO.

MÓVEL, PRIMEIRO (gr. TtptòTOV Ktvr|TÓV; lat. Primum mobile-, in. Firstmobile-, fr. Premier mobile, ai. Primüre Rewegliches; it. Primo mo­ bile). Aristóteles deu esse nome ao primeiro céu, ao qual o movimento é comunicado dire­ tamente pelo Primeiro Motor ou motor imóvel, sendo, pois, tão simples, ingerado e incorrup­ tível quanto o Primeiro Motor (De cael, II, 6, 288 a 14 ss.). O próprio Aristóteles compara a faculdade apetitiva da alma ao primeiro M., as­ sim como comparou o bem ao motor imóvel (Dean., III. 10, 433 b 14). O primeiro M. é o céu que Dante chama de "cristalino", ou seja, diáfano ou transparente, além do qual admite o céu empíreo ou sede dos bem-aventurados (Conv., II, 4; Par, 30, 107).

MOVIMENTO

MOVIMENTO (gr. KÍvr)OiÇ; lat. Motu.% in. Motíon; fr. Mouvement; ai. Bewegung; it. Movi­ mento). 1. Em geral, mudança ou processo de qualquer espécie. Esse significado corresponde ao do termo grego. Platão distinguia duas espé­ cies de M.: alteração e translaçào ( Teet, 181 d); Aristóteles distinguia quatro: além dos dois aci­ ma, o M. substancial (geração e corrupção) e o M. quantitativo (aumento e diminuição) (Fís., III, 1, 201 a 10). Para as espécies particulares do M, v. os verbetes relativos. O M em geral foi definido por Aristóteles como "a enteléquia daquilo que está cm potên­ cia" (Fís, III, 1, 201 a 10): definição que per­ maneceu célebre durante séculos. Significa que M. é a realização do que está em potência: p. ex., a construção, a aprendizagem, a cura, o cresci­ mento, o envelhecimento são realizações de potencialidades (Ibid, 201 a 16). No M. assim entendido a parte fundamental é a do motor, com cujo contato é gerado o M. "Qualquer que seja o motor" — diz Aristóteles — "ele sempre trará uma forma (substância particular, qualida­ de ou quantidade) que será princípio e causa do M., quando o motor mover, do mesmo modo como, no homem, a enteléquia faz o homem do homem em potência" (Ibid, III, 2, 202 a 8). A física aristotélica é, do princípio ao fim, uma teoria do M. nesse sentido (v. FÍSICA). Seu teorerra fundamental, "tudo o que se move é movi­ do por alguma coisa" (Ibid, VII, 1, 256 a 14), leva à teoria do Primeiro Motor imóvel do uni­ verso (v. DEUS, PROVAS DE). 2. Em sentido específico, M. local ou translação. Aristóteles afirma a prioridade desse M. sobre os outros três, que podem ser reduzidos a este último, único que pode pertencer às coi­ sas eternas, aos astros (Fís., VIII, 7, 260 b). Se­ gundo Aristóteles, as espécies do M. local ca­ racterizam os elementos do universo, inclusive o que constitui as substâncias celestes, ou seja, o éter que se move em M. circular (v. FÍSICA). Essa doutrina do M. permaneceu inalterada muito tempo porque toda a filosofia antiga e medieval repetiu-a sem modificações substan­ ciais, Uma teoria do M. que teve êxito no últi­ mo período da Escolástica foi a da forma fluenle, elaborada por Duns Scot. Segundo Duns Scot, um corpo que se move adquire alguma coisa: a todo instante não o lugar, que não c um atributo seu, residindo nos corpos que o circundam, mas uma espécie cie determinação qualitativa, análoga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece. Essa determinação é o

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MULTIPLICIDADE

onde (ubi). O M., portanto, é a perda ou a aquisição contínua do onde e nesse sentido é uma "forma fluente" (Qnodl., q. 11, a. 1). Essa doutrina foi criticada pela Escolástica dos fins dos sécs. XIII e XIV. Ockham submeteu-a a crí­ tica radical, considerando o M. como a mudan­ ça de relação de um corpo com os corpos que o circundam (Quodl, VII, q. 6). Este era o con­ ceito que a ciência deveria fazer prevalecer na Idade Moderna. Descartes expressou-o do se­ guinte modo: "M. é o transporte de uma parte da matéria ou de um corpo da proximidade dos corpos que o tocam imediatamente, e que consideramos em repouso, para a proximida­ de de outros corpos" (Princ. phil, II, 25). Sobre o conceito do M. na ciência contemporânea, v. RELATIVIDADE. MUDANÇA (in. Change; fr. ChangemenP, ai. Verándening; it. Mutamento). 1. O mesmo que movimento, 1 (v.). 2. O mesmo que alteração (v.). MULTIPLICaÇãO LÓGICA (in Logical miiltíplicatíon: fr. Multiplicaiion logigue-, ai. Logische Multiplikation; it. Molteplicazhme lógica). Na Álgebra da lógica (v.) chama-se assim a operação "ei . b", -que apresenta pro­ priedades formais análogas às da M. aritmética (é importantíssima a exceção "a. a = a"). Inter­ pretada como operação entre classes, "« . // passa a formar a classe que contém todos os elementos comuns às classes a e /; e apenas eles. Interpretada como operação entre propo­ sições, "a . b" indica sua afirmação conjuntiva. simultânea ("a e b"). G. P. MULTIPLICIDADE (gr. xà noXXá: in. Multiplicity, fr. Mnltiplicité, ai. Mannigfaltigkeit; it. MohepHcitã). O que é múltiplo e variado: "mui­ tos" em contraposição a "um", sobre os quais versavam de preferência as discussões dia­ léticas do séc. IV a.C, segundo relato de Pla­ tão (f/7., 14 d). O próprio Platão estabeleceu o conceito autêntico de múltiplo, que não é de dispersão ilimitada, mas de número; este, como dizia Platão, é ao mesmo tempo um e muitos porque é a ordem de uma M. determi­ nada ( Fil, 18 a-b) (v. NUMERO). O sentido dessa palavra voltou a ser de dispersão desordenada em alguns filósoíos modernos, como p. ex. no uso que Kant faz dela como "matéria" do co­ nhecimento, ou seja, do conteúdo sensível em seu estado desorganizado ou bruto, indepen­ dentemente da ordem e da unidade que ele receba das formas a priori da sensibilidade c do intelecto (Crít. R. Fura, § 1).

ramente amplificativo ou retórico; o significa­ do (e) é puramente religioso. Assim, é possível distinguir três conceitos fundamentais de M.: 1" M. como ordem total; 2- M. como totalidade absoluta; 3QM. como totalidade de campo. Os significados 1L> e 2- são articulações do signifi­ cado (fl); o significado 3" é o significado (/;). 1QDiz-se que Pitágoras foi o primeiro a cha­ mar o M. de cosmo, para ressaltar sua ordem (J. STOBKO, liei., 21, 450; Fr. 21, Dicls); o certo é que essa é a interpretação desse conceito que prevalece na filosofia grega. H aceita por Platão (Górg, 508 a). Aristóteles, que faz a distinção entre o todo (xò 7Tãv), cujas partes podem dispor-se de maneiras diferentes, e a totalidade TÒ QAOV), cujas partes têm posições fixas (Met., V, 26. 1024 a 1), diz a propósito do M: "Se a totalidade do corpo, que é um contínuo, está ora numa ordem ou numa disposição, ora em outra, e se a constituição da totalidade é um M. ou um céu, então não será o M. que se gera e se destrói, mas apenas suas disposições" (De caei, I. 10. 280 a 19). Aristóteles pretende di­ zer neste trecho que o M. é a constituição (ou estrutura) da totalidade (sua ordem) e que tal constituição ou estrutura permanece a mesma a menos que suas partes se disponham diferen­ temente. Isso eqüivale a definir o M. como a ordem imutável do universo. Analogamente, os estóicos faziam a distinção entre universo (xò 7iãv) como totalidade de todas as coisas exis­ tentes, inclusive o vácuo, e M., considerado como "o sistema do céu e da terra e dos seres que estão neles" e nesse sentido o M. é Deus (J. STOBHO, Kci, I, 421, 42 ss.). Esta interpreta­ ção cio M. prevaleceu na Antigüidade e foi ado­ tada pela filosofia cristã que nela encontrava um ponto de partida oportuno para as demons­ trações da existência de Deus (cf., p. ex., AGOS­ TINHO, De ordine, I, 2). Entrou em crise só quando a noção de ordem começou a incorpo­ rar-se à de natureza, mais que à de M.: o con­ ceito de totalidade passou a ter primazia. 2- Os primeiros a expor o conceito de M. como totalidade que abarca todas as coisas fo­ ram os epicuristas. Epicuro dizia: "O M. é a cir­ cunferência do céu cjue abrange os astros, a terra e todos os fenômenos" (DIÓG., L, X, 88). Mas foi só na filosofia moderna que esse con­ ceito prevaleceu, superando completamente o mais antigo, de M. como ordem. Leibniz diz: "Chamo de M. toda a série e toda a coleção de todas as coisas existentes, para que não se diga que podem existir vários M. em diferentes tem-

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pos e lugares. De fato, seria preciso contá-los todos juntos como um só M. ou, ;,e preferis, como um só universo'" (Tbéod, I, § 8). Desse ponto de vista, o M. é "o conjunto total das coi­ sas contingentes" {Ibicl, I, § 7); a elaboração posterior desse conceito insistiu especialmente nesse conceito de totalidade absoluta. Portanto, as noções de universo e de M, que os antigos tendiam a distinguir, são consideradas coinci­ dentes. Wolff diz: "A série cios entes finitos, tanto simultâneos quanto sucessivos, mas, inlerconexos, 6 chamada cie M. ou também de universo" (COSDL, § 48). Baumgarten esclare­ ce melhor o sentido de totalidade absoluta, afirmando que ela não pode ser parte de outra totalidade: "O M. é a série (a multidão, a totali­ dade) dos tinitos reais que nào é parte de outra série" (Meí., § 354). Essa determinação é repeti­ da por Crusius: "O M. é um concatenamento real de coisas finitas, de tal modo que não é parte de outro, ao qual pertença em virtude de um concatenamento real" (linlwurf der iiotiveudigeii Veniunft-Wahrbeiteii, 1745. § 350). K este o conceito criticado na dialética trans­ cendental de Kant. Kant observava que a palavra M., "no senti­ do transcendental de totalidade absoluta do conjunto das coisas existentes", indica uma to­ talidade incondicionacla porque deve incluir todas as condições da série (Crít. R. Pura, Anti­ nomia da razão pura. seç. 1). Isso supõe que o regresso do condicionado ã condição, que po­ de prosseguir infinitamente, seja esgotado e cumprido até compreender todas na condições; e como a totalidade das condições é o incondicionado, a completitude do regresso eqüiva­ leria ã compreensão do incondicionado. Mas é precisamente aí que, segundo Kant, está o erro dialético incluído no conceito de M., visto assu­ mir-se o condicionado em dois sentidos: no sentido de conceito intelectual aplicado a sim­ ples fenômenos e no sentido transcendental de categoria pura. Km outras palavras, da exigên­ cia de condição sempre nova (empírica) na sé­ rie dos fenômenos passa-se á exigência da tota­ lidade das condições, que é o incondicionado ou M., nào mais empírico (Ibid., seç. 7). Portan­ to, nào é de surpreender que a nocào de M., fundada como está num procedimento sofis­ tico, dê lugar a antinomias insolúveis que di­ zem respeito à finitude ou à infinidade do M., a seu início ou nào no tempo, à existência nele ou nào de partes simples e à presença ou ausência de liberdade (v. ANTINOMIAS KANTIA-

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NAS). Segundo Kant, só se chega à solução de tais antinomias renunciando-se à noção de M. ou considerando tal noção simplesmente como uma regra do conhecimento empírico, mais precisamente a que "exige o regresso na série das condições dos dados fenomênicos, regres­ so no qual nunca seja possível deter-se em algo absolutamente incondicionado" (Ibid., seç. 8). Desse ponto de vista, o M. nào é uma realida­ de, mas "um princípio regulador da razão". Pode-se dizer que essa crítica de Kant foi decisiva. F. bem verdade que tem sido esqueci­ da não só pelas doutrinas que constituem res­ quícios da metafísica teológica, mas também pelas doutrinas cosmológicas modernas, que se dizem "científicas" e especulam sobre o M. e sua criação (v. COSMOI.OGIA). Mas também é verdade que essas doutrinas logo se chocam com antinomias insolúveis, que reproduzem as kantianas. assim que recorrem ao conceito do M. como totalidade absoluta. Na realidade aquilo cie que a ciência pode falar é apenas o M. observarei, entendido como "o mais abran­ gente conjunto de objetos astronômicos que possa ser identificado com a ajuda dos instru­ mentos disponíveis em dada época" (M. K. Mi'MTZ, Space, Time and Creation, 1957, p. 93). Mas neste sentido o M. é uma totalidade de campo, nào uma totalidade absoluta. 3Q A terceira interpretação do conceito de M., que está de acordo com a crítica kantiana, identifica-se com a que enunciamos como sig­ nificado (/?): o M. é a totalidade de um campo ou cie vários campos de atividade, investigação ou relações. Desse ponto cie vista, a palavra M, sem adjetivos, nào designa uma totalidade absoluta, mas simplesmente o conjunto de um campo específico estudado pelo astrônomo ou pelo cosmologista. Nesse sentido, a palavra é perfeitamente análoga àquilo que a "matéria" é para o físico ou a "vida" é para o biólogo: indica um campo genérico, determinado pela com ergência ou pela sobreposição de determi­ nado grupo de técnicas de pesquisa (M. K. Mi MT/. o/), cil, p. 69). Em geral, desse ponto de vista, pode-se dizer que a noção designa "uni conjunto de campos definidos por técnicas relativamente compatíveis e em alguma medi­ da convergentes. Podemos assim falar de M natural", como conjunto de campos cobertos pelas ciências naturais, na medida em que suas téc­ nicas são relativamente compatíveis e conver­ gentes; ou de \M histórico", como conjunto de campos em que podem ser empregadas as

MUNDO DA VIDA

técnicas da investigação historiográfica, etc." (AHRAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, pp. 154-55). A esta mesma noção está ligada a de Heidegger, aceita pela filosofia existencialista, de M. como campo constituído pelas relações do homem com as coisas e com os outros ho­ mens. Heidegger diz: "É tão errôneo utilizar a palavra M. para designar a totalidade das coisas naturais (conceito cio M. naturalista) quanto para indicar a comunidade dos homens (conceito personalista). O que de metafisicamente essen­ cial contém o significado mais ou menos claro de M. é que este visa à interpretação do Daseiu humano em sen relacionar-se com o ente em seu conjunto" (Vom Wesen des Gnineles, 1929, I: trad. it.. p. 53). Obviamente, desse ponto cie vista, a palavra M. faz parte integrante da ex­ pressão "ser-no-M", que designa o modo de ser do homem "situado no meio do ente e re­ lacionando-se com ele", ou seja, em relação essencial com as coisas e com os outros ho­ mens. Nesse caso, M. significa o conjunto de relações entre o homem e os outros seres: a totalidade de um campo de relações (v. TODO; UNIVERSO). MUNDO DA VIDA (ai. Lebensivelt). Termo introduzido por Husserl em Krísis, para desig­ nar "o mundo em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão. primeiramente na experiência simples e de­ pois também nos modos em que sua validade se torna oscilante (oscilante entre ser e aparên­ cia, etc.)" (Krísis, § 44). Husserl contrapõe esse mundo ao mundo da ciência, considerado como um "hábito simbólico" que "representa" o mundo da vicia, mas encontra lugar nele. que é "um mundo para todos" (Ibid.. Beilage. XIX). MUNDO EXTERIOR. V. Ri AI 1DADI MUNDO MORAL (ai. Moralische Welt). Esse é o nome dado por Kant á "simples idéia" (que, como tal. é desprovida de realidade) de "um mundo conforme a todas as leis morais", idéia que só tem significado prático como guia da ação humana (Crít R. Pura, Doutrina do método, cap. 2, seç. 2). MÚSICA (gr. uo-uoiKri TEAvn; lat. Musica; in. Music; fr. Musique; ai. Musik it. Musica). Duas são as definições filosóficas fundamen­ tais dadas da M. A primeira considera-a como revelação de uma realidade privilegiada e divi­ na ao homem: revelação que pode assumir a fcrma do conhecimento ou do sentimento. A segunda considera-a como uma técnica ou um

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conjunto de técnicas expressivas que concer­ nem à sintaxe dos sons. Ia A primeira concepção, que passa por ser a única "filosófica", mas que na verdade é meta­ física ou teologizante, consiste em considerar a M. como ciência ou arte privilegiada, porquan­ to seu objeto é a realidade suprema, divina, ou alguma de suas características fundamentais. Nessa concepção é possível distinguir duas fa­ ses: a) para a primeira, o objeto cia M. é a harmonia como característica divina do uni­ verso; portanto, considera a M. como uma cias ciências supremas; b) para a segunda, o objeto da M. é o princípio cósmico (Deus, Razão Autoconsciente ou Vontade Infinita, etc), e a M. é a auto-revelação desse princípio na forma de sentimento. Ambas as concepções têm uma ca­ racterística fundamental em comum: a separa­ ção entre M, como arte "pura", e as técnicas em que esta se realiza. Platão reprova os músi­ cos que procuram novos acordes nos instru­ mentos (Rep.. VII, 531 b); o mesmo faz Plotino. Schopenhauer e Hegel falam em "essência" da M.. de sua natureza universal e eterna, por­ quanto é separável cios meios expressivos nos quais ganha corpo como fenômeno artístico. a) A doutrina da M. como ciência da harmo­ nia e de harmonia como ordem divina do cos­ mos nasceu com os pitagóricos. "Os pitagóricos, que Platão freqüentemente segue, dizem que a M. é harmonia dos contrários, unificação cios muitos e acordo dos discordantes" (Fll.oIAl . Fr. 10, Diels). A função e os caracteres cia harmonia musical são idênticos á função e aos caracteres cia harmonia cósmica: a M. é, por­ tanto, o meio direto para elevar-se ao conheci­ mento dessa harmonia. Kntre as ciências pro­ pedêuticas, Platão punha a M. em quarto lugar (depois da aritmética, da geometria plana e só­ lida e da astronomia), considerando-a a mais próxima da dialética e a mais filosófica (Fetl, 61 a). Contudo, para Platão, como ciência au­ têntica, a M. não consiste em procurar com o ouvido novos acordes nos instrumentos: desse modo, as orelhas seriam mais importantes que a inteligência (Rep., VII, 531 a).As pessoas que agem desse modo "comportam-se como os as­ trônomos, pois procuram os números nos acor­ des acessíveis ao ouvido, mas não chegam até os problemas, não indagam quais números são harmoniosos, quais não são e de onde vem sua diferença" (Ibid.. VII, 531 b-c). Por essa possibilidade de passar dos ritmos sensíveis ã harmonia inteligível, Plotino considera a M.

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como um dos caminhos para ascender até Deus: 'Depois das sonoridades, dos ritmos e das figuras perceptíveis pelos sentidos, o músi­ co deve prescindir da matéria na qual se reali­ zam os acordes e as proporções, e atingir a be­ leza deles por eles. Deve aprender que as coi­ sas que o exaltavam sào entidades inteligíveis; isto é harmonia: a beleza que nela se encontra é absoluta, não particular. Por isso, deve utilizar raciocínios filosóficos que o levem a crer em coisas que tem em si, sem saber" (Hnn, I, 3, DForam essas considerações que levaram a incluir a M. no rol das "artes liberais", conside­ radas fundamentais em toda a Idade Média. S. Agostinho expõe a transição da M. da fase da sensibilidade, na qual ela cuida dos sons, para a fase da razão, em que se torna contemplação da harmonia divina: "A razão compreendeu que neste grau, tanto no ritmo quanto na har­ monia, os números reinam e conduzem tudo à perfeição; observou então com a máxima dili­ gência a que natureza pertenciam e descobriu que eram divinos e eternos, porque com eles tinham sido ordenadas todas as coisas supre­ mas" U)t'ordi)u>, 11, 14). Em Nozzecli Mercúrio e delia filologia. Marciano Capella, em meados do séc. V, incluía a M. entre as artes liberais (re­ duzidas a sete), e com isso ela passava a ser um dos pilares da educação medieval. Alguns séculos depois, Dante comparava a M. ao pla­ neta Marte, pois, como ele, é "a mais bela rela­ ção" porque está no centro dos outros planetas, e o mais caloroso porque seu calor é seme­ lhante ao do logo; assim é a M.: "relativa, como se vê nas palavras harmonizadas e nos cantos, cuja harmonia é tão mais doce quanto mais bela é a relação"; ela "atrai para si os espíritos humanos, que são principalmente como vapo­ res do coração, pois quase cessam suas opera­ ções" (Cotiv., II, 14). O que Dante chama de "relação" é a harmonia de que falavam os an­ tigos; o caráter cósmico da M. é expresso na sua comparação com vim dos maiores astros cio universo. b) A doutrina da M. como auto-revelação do Princípio Cósmico tende a privilegiar a M. aci­ ma de todas as outras artes ou ciências e a vê-la como a via de acesso mais direta ao Absoluto. Estas são as características da concepção ro­ mântica, cuja melhor expressão se encontra na teoria de Schopenhauer. Segundo ele, enquan­ to a arte em geral é a objetivação da vontade de viver (que é o princípio cósmico infinito) em tipos ou formas universais (as Idéias platô­

nicas), que cada arte reproduz à sua maneira, a M. é revelação imediata ou direta dessa mesma vontade de viver. "A M." — diz ele — "é objetivação e imagem da Vontade tão direta quanto o mundo, ou melhor, quanto as Idéias, cujo fenômeno multiplicado constitui o mundo dos objetos particulares. A M. não é, portanto, como as outras artes, a imagem das idéias, mas a imagem da própria Vontade, da qual as idéias também são objetividade. Por isso, o efeito da M. é mais potente e insinuante que o das ou­ tras artes, visto que estas nos dão apenas o reflexo, ao passo que aquela nos clã a essência" (Die Welt, 1819, I, § 52). A doutrina de Hegel coincide com essa exaltação da M., mas acres­ centa a importante determinação de que a M. é a expressão do absoluto na forma do sentimen­ to (Gemüth). Hegel diz: "A M. constitui o ponto central da representação que expressa o subje­ tivo como tal, tanto em relação ao conteúdo quanto em relação á forma, pois participa da interioridacle e permanece subjetiva mesmo em sua objetividade." Em outras palavras, ao con­ trário das artes figurativas, ela não permite que a exteriorização fique livre para desenvolver-se por si mesma e chegar á existência autôno­ ma, "mas supera a objetivação externa e não se imobiliza nela, até transformá-la em algo de externo qvie tenha existência independente cie nós" ( Vorlesmigeu tiber die Àsthetik, ed. Glockner, III. p. 127). Isso quer dizer que na M.. ao contrário das outras artes, a forma sen­ sível em que a Idéia se manifesta e exprime é inteiramente superada como tal e resolvida em pura interioridacle, em puro sentimento. Desse ponto de vista, Hegel diz que o senti­ mento é a forma da M.: "O papel fundamental da M. não consiste em fazer ressoar a própria objetividade, mas, ao contrário, as formas c os modos nos quais a subjetividade mais íntima do eti e alma ideal se movem em si mes­ mas" (Ibid, p. 129). Com o reconhecimento do sentimento como forma própria da M. e como justificação da superioridade desta, a teoria romântica encontrou expressão definitiva. A radicalização dessa expressão acha-se na teo­ ria de Kierkegaard, cie que a M. "encontra seu objeto absoluto na genialidade erótico-sensual" (Aut Ant, "As etapas eróticas", etc; trad. fr., Prior e Guignot, p. 54). A definição cie M. como arte de expressar "os sentimentos" ou "as pai­ xões" através dos sons foi repetida infinitas ve­ zes, eheganclo-se a esquecer o sentido de suas implicações teóricas. Foi assumida como uma

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definição objetiva ou científica da M. (cf. HANSLICK, Vom Musikalisch-Shônen. 1854, a nota final do cap. 1), e nela se inspirou a obra de Wagner, que de fato compartilhava a filoso­ fia de Schopenhauer sobre M. Nietzsche, na juventude, adotou essa concepção, dela se desligando a partir de 1878 (com Humano, de­ masiado humano), quando começou a entre­ ver na obra de Wagner, que se orientava nos­ talgicamente para o Cristianismo, o abandono dos valores vitais da Antigüidade clássica e um espírito de renúncia e resignação. Mas nem mesmo Nietzsche se afastou realmente do con­ ceito romântico de M. Seu ideal de M. "meridio­ nal" (como a de Bizet) conserva ainda a caracte­ rística romântica de expressão de sentimentos, ainda que de um sentimento situado "além do bem e do mal". De fato, escreveu: "Meu ideal seria uma M. cujo maior fascínio consistis­ se na ignorância do bem e cio mal, uma M. que no máximo vibrasse por alguma nostalgia de marinheiro, por alguma sombra dourada, por alguma lembrança terna; uma arte que absor­ vesse em si, com grande distância, todas as co­ res de um mundo moral no crepúsculo, um mundo quase incompreensível, e que fosse su­ ficientemente hospitaleira e profunda para aco­ lher em si os últimos fugitivos" (Jenseits von Gut und Bóse, § 255). Ainda hoje se recorre freqüentemente à definição de M. como ex­ pressão de sentimentos ou pelo menos isso é pressuposto como coisa óbvia e certa (cf. p. ex., DI-WF.Y, Ari asHxperience, cap, 10; trad. it., pp. 278 ss.). Na Itália, isso foi reforçado pela doutrina crociana da arte como expressão de sentimentos, mas, obviamente, essa doutrina nada mais é que a generalização, para todo o domínio da arte, da definição romântica de M. Hsta definição ainda se materializa fre­ qüentemente na figura do músico, conside­ rado como sacerdote ou profeta que sabe ouvir a voz do Absoluto e traduzi-la para a linguagem sonora do sentimento, Ainda hoje raramente se renuncia a almejar essa represen­ tação romântica da M., graças à qual os ouvin­ tes da M. sentem-se arrebatados num horizon­ te místico, onde os acordes musicais são palavras de uma divindade oculta. 2- A característica da segunda concepção fundamental da M. é a identidade, que ela im­ plica, entre a M. e suas técnicas. Tal identidade foi claramente expressada por Aristóteles, ao reconhecer a multiplicidade das técnicas musi­ cais: "A M. não deve ser praticada por um úni­

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co tipo de benefício que dela possa resultar, mas para usos múltiplos, pois pode servir para a educação, para a catarse e, em terceiro lugar, para o repouso, o alívio da alma e a suspensão de todos os afãs. Disso resulta que é preciso fa­ zer uso de todas as harmonias, mas não de to­ das no mesmo modo, empregando para a edu­ cação as que têm maior conteúdo moral, e para outras finalidades as que incitam â ação ou inspiram â comoção" (Foi., VIII, 7, 1341 b 30 ss.). Essas considerações, que, em sua aparente simplicidade, parecem excluir a interpretação filosófica da M. na realidade expressam o con­ ceito de que a M. é um conjunto de técnicas expressivas que têm objetivos ou usos diversos e que podem ser indefinida e oportunamente variadas. Na realidade, esse conceito é o único que ajudou e sustentou o desenvolvimento da arte musical. Retornou no Renascimento, sendo assim expresso por Vicente Galilei: "O uso da M. foi introduzido pelos homens para o respei­ to e o fim indicado de comum acordo pelos sá­ bios; de outra coisa não nasceu senão, princi­ palmente, da necessidade de expressar com mais eficácia os conceitos do espírito deles ao celebrarem os louvores, a Deus, aos gênios e aos heróis, como.se pode em parte compreen­ der nos cantochãos e cantos eclesiásticos, ori­ gem desta nossa (M.) a várias vozes, e imprimilos, a seguir, com idêntica força nas mentes cios mortais, para a utilidade e a comodidade deles" (Dialogo delia M. antica e delia moderna, 1581, ed. Fano, 1947. pp. 95-96). Nestas pala­ vras de Galilei também se reconhece claramente o caráter expressivo das técnicas musicais: ca­ ráter que faz da M. uma arte no sentido moder­ no do termo (v. KSTKTICA). O conceito de técni­ ca expressiva é apresentado por Kant com a noção de "belo jogo de sensações", que ele utiliza para definir a M. e a técnica das cores. Kant observa que "não se pode saber com cer­ teza se uma cor e um som são simples sensa­ ções agradáveis ou se já são, em si mesmos, um belo jogo de sensações e, portanto, con­ têm, enquanto jogo, um prazer que decorre da forma deles no juízo estético". Alguns fatos, especialmente a falta cie sensibilidade artísti­ ca em alguns homens e a excelência dessa sensibilidade em outros, convencem a consi­ derar que as sensações dos dois sentidos, vi­ são e audição, não são simples impressões sen­ síveis, mas "efeito de um juízo formal no jogo de muitas sensações". Km todo caso, "segun­ do se adote uma ou outra opinião ao julgar

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o princípio da M., será diferente a definição des­ ta: ou será definida (como fizemos) como um belo jogo de sensações (da audição), ou como um jogo de sensações agradáveis. De acordo com a primeira definição, a M. é considerada uma arte bela, pura e simplesmente; de acordo com a segunda, é considerada, pelo menos em parte, uma arte agradável" (Crít. doJuízo. § SI). O conceito de "belo jogo de sensações" já tende a exprimir uma noção sintática da M. e, por acrés­ cimo, uma noção para a qual a investigação sintática pode ser dirigida livremente em todas as direções Cisto está implícito na palavra "jogo"). Em meados do séc. XIX essa noção foi for­ mulada com maior rigor e clareza na obra de HANSLICK, O belo musical (1854), que ainda hoje continua sendo uma das mais importan­ tes obras de estética musical. Hanslick cerra fileiras contra o conceito romântico de M. como "representação do sentimento". O objeto da M. é o belo musical, entendendo-se com isto "um belo que, sem decorrer nem depender de qualquer conteúdo exterior, consista unica­ mente nos sons e em sua interligação artística. As engenhosas combinações dos belos sons, sua concordância e oposição, seus afastamen­ tos e reuniões, seu crescimento e morte, é tudo isso que se apresenta em formas livres à intuição de nosso espírito e agrada como belo. O elemento primordial da música é a eufonia. sua essência é o ritmo" ( Vom MusikalischSchónen. 111; tracl. it., 1945, p. 82). Assim en­ tendida, a M. identifica-se com a técnica rea­ lizadora. Hanslick diz a respeito: "Se as pessoas não sabem reconhecer toda a beleza que vive no elemento puramente musical, grande par­ te da culpa deve ser atribuída ao desprezo pelo sensorial, que, nos antigos estetas, se dava em favor da moral e do sentimento, e em Hegel em favor da idéia. Toda arte parte do sensível e nele se move. A teoria do sentimen­ to desconhece esse fato, despreza completa­ mente ouvir e leva em consideração imediata o sentir. Acham que a M. é feita para o cora­ ção e que o ouvido é coisa desprezível" (íbíd, III, pp. 85-86). Por outro lado, Hanslick ex­ pressou com clareza o caráter que diferencia a linguagem musical da linguagem comum: "A diferença consiste em que na linguagem o som é somente um signo, é um meio para expressar algo completamente diferente des­ se meio, enquanto na M. o som tem importân­ cia em si, é objetivo por si mesmo. A autono­ mia das belezas sonoras, por um lado, e o

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absoluto predomínio da opinião de que o som é puro e simples meio de expressão, por outro lado, contrapõem-se de maneira tão definitiva que a mistura dos dois princípios é uma impos­ sibilidade lógica" (Ibid, IV, p. 113). Contudo esse caráter não se encontra apenas na lingua­ gem musical, mas em qualquer linguagem ar­ tística, em confronto com a linguagem comum (v. ESTÉTICA). Embora a noção de M. à qtial músicos, crí­ ticos e estudiosos de estética musical recorre­ ram e recorrem de modo explícito continue sendo de "representação dos sentimentos", foi a noção de M. como técnica da sintaxe dos sons, cujas regras podem ser indefinidamente mudadas, que prevaleceu na prática da cria­ ção musical e na busca de modos de criação novos e mais livres. A última e mais radical tentativa de libertar a língua musical da sinta­ xe tradicional é a chamada M. atonal, que nada mais é que a afirmação programática da liberdade da linguagem musical em escolher sua própria disciplina; esta, em certos casos, pode ser até a disciplina tonai. Schõnberg diz a respeito: "A emancipação da dissonância, ou seja, sua equiparação com os sons consonantes ocorreu de modo inconsciente, com o pressuposto de que stia compreensibilidade é favorecida por determinadas circunstân­ cias (em Harmonielehre explico isso com o tato de que a diferença entre consonância c dis­ sonância não é antitética, mas gradual, ou seja, as consonâncias são os sons mais próximos do som fundamental, e as dissonâncias são os mais afastados; por conseguinte, sua compreensibilidade é graduada, sendo os sons mais próximos mais facilmente percebidos que os afastados). Como não basta o ouvido para re­ conhecer e compreender as relações e as firnções, tais circunstâncias encontraram-se no campo da expressão e no campo — até en­ tão pouco considerado — da sonoridade" ("Gesinnung oder Erkenntnis?", 1926, em L. ROGNONI, Hspressionismo edodecafonia. 1954, p. 249). Desse ponto de vista, a tonalidade é defini­ da, de modo muito geral, como "tudo aquilo que resulta de uma série de notas, que é coordenada através da referência direta a uma única nota fundamental ou através de interli­ gações complicadas" (Harmonielehre. 1922, 3a ed., III, p. 488; em ROGNOM, Cp. cit., p. 243). Alban Berg observava que "a renúncia à tonalidade 'maior' ou 'menor' não implica

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absolutamente anarquia harmônica" porque, "apesar de, com a perda do 'maior' e do me­ nor' ter-se aberto mão de algumas possibili­ dades harmônicas, ainda ficaram todos os outros elementos essenciais da M. verdadei­ ra e autêntica ("Was ist Atonal", 1930, em ROGNONI, op. cit, p. 290). Seja qual for o juízo de gosto sobre as obras musicais inspi­ radas nesse programa, não há dúvida de que o próprio programa nada mais é que a li­ beralização da língua musical e de suas técni­ cas em relação aos obstáculos da sintaxe tra­ dicional, e o-início da busca de novas formas sintáticas, que até podem, ocasionalmente, coincidir com as tradicionais. Portanto, no campo da M., o atonalismo é a realização da mesma exigência de libertação. Representada pelo abstracionismo no campo da pintura: as­ sim como a pintura pretende prescindir das formas de representação ou percepção estabele­ cidas ou reconhecidas, a M. pretende prescin­ dir cias formas de harmonia musical estabelecidas c reconhecidas. Uma e outra estão em busca de

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MUTACIONISMO

novas disciplinas, de novas formas sintáticas para suas técnicas expressivas; uma e outra pressupõem (mesmo que nem sempre com conceitos claros) a noção de arte como "técnica da expressão", entendendo-se por expressão as formas livres e finais da sintaxe lingüística. Como foi essa a noção de M. que, no fim da Idade Média e no Renascimento, presidiu à gê­ nese da M. moderna, porquanto se apresentou desde o início como procura de técnicas ex­ pressivas, pode-se vislumbrar nela a condição que ainda hoje garante capacidade de desen­ volvimento à M. MUTACIONISMO (in. Mutationism: fr. Mutationisme, ai. Mutationismus; it. Mutazionismo). 1. O mesmo que evolucionismo (v.). 2. Doutrina que explica a transformação de uma espécie viva em outra através do surgi­ mento de pequenas mutações bruscas e here­ ditárias que se produziriam ao acaso, durante uma ou mais gerações. Essa doutrina foi apresentada por DE VRIFS na obra A teoria das mutações (1901).

N N. Na lógica de Lukasiewicz a letra N é usa­ da para indicar a negação, comumente sim­ bolizada por w de modo que Np significa oop (cf. A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, ny 91). NACIONALISMO (in. Nationalism; fr. Nationalisme, ai. Nationalismns, it. Nazionalismo). O conceito de nação começou a formarse a partir do conceito de povo, que havia do­ minado a filosofia política do séc. XVIII, quan­ do se acentuou, nesse conceito, a importância dos fatores naturais e tradicionais em detrimento dos voluntários. O povo (v.) é constituído es­ sencialmente pela vontade comum, que é a base do pacto originário; a nação é constituída essencialmente por vínculos independentes da vontade dos indivíduos: raça, religião, língua e todos os outros elementos que podem ser compreendidos sob o nome de "tradição". Di­ ferentemente do "povo", que não existe se­ não em virtude da vontade deliberada de seus membros e como efeito dessa vontade, a nação nada tem a ver com a vontade dos indivíduos: é um destino que paira sobre os indivíduos, ao qual estes não podem subtrair-se sem traição. Nesses termos, a nação só começou a ser concebida claramente no início do séc. XIX; o nascimento desse conceito coincide com o nas­ cimento da fé nos gênios nacionais e nos desti­ nos de uma nação particular, que se chama na­ cionalismo. O conceito de povo permanecia ligado aos ideais cosmopolitas do séc. XVIII. Mas já em Rousseau se encontra a condenação desses ideais: o apego de Rousseau ao conceito de cidade-estaclo, da forma realizada na Grécia antiga, levava-o a condenar o universalismo setecentista. Ao mesmo tempo, esse apego anacrônico levava-o a exaltar o valor do Estado nacional: "São as instituições nacionais que for­

mam o gênio, o caráter, os gostos e os costu­ mes de um povo, que o fazem ser ele mesmo e não outro, que lhe inspiram o amor ardente pela pátria, fundamentado em hábitos impossí­ veis de erradicar, que o fazem morrer de tédio entre outros povos, em meio a delícias das quais está privado em seu país" (Considérsur legoiwemement de Pologne, III). Mas foi prin­ cipalmente na época da restauração pós-napoleônica que o conceito de nação começou a assumir importância dominante como um dos produtos ou o produto fundamental da "tradi­ ção" à qual se atribuía naquele período a ori­ gem e a conservação de todos os valores fun­ damentais do homem. Em Discursos à nação alemã (1808) de Fichte, primeiro documento do N. alemão, o povo alemão é visto como "o único povo que tem direito de ser cha­ mado de povo, sem outra designação, ao con­ trário dos ramos que dele se separaram, co­ mo, aliás, indica por si só a palavra alemão" (Reden, VII), sendo assegurada pela própria providência da história o futuro desse povo superior. Com a noção de "espírito de povo", Hegel levava a cabo a elaboração do conceito de nação: "O espírito de um povo é um todo concreto: deve ser reconhecido em sua deter­ minação. (...) Desenvolve-se em tocias as ações e em todas as tendências de um povo e realizase até a fruição e a compreensão de si mesmo. Suas manifestações são religião, ciência, arte, destinos, acontecimentos. É tudo isso que con­ fere caráter a um povo, e não o modo como ele é determinado por natureza (como poderia sugerir o fato de a palavra natio ter derivado de nasci)" (Phil. derGeschichte, ed. Lasson, p. 42; trad. it., 1, p. 49). No espírito dos povos encarna-se, alternadamente, o Espírito do Mun­ do, a Razão Universal que preside aos destinos do mundo e determina a vitória do povo que

NACIONALISMO

seja sua melhor encarnaçào. Nesse conceito de espírito do povo como encarnaçào ou manifestação de Deus no mundo, portanto do caráter fatal e providencial da vida históri­ ca da nação, já estão compreendidos todos os elementos do N. europeu do séc. XIX e de qualquer N. Na Itália, Mazzini procurou conciliar os ideais universalistas do iluminismo com o N., e viu na "missão" de uma nação o modo como esta pode servir ao objetivo geral da humani­ dade. Era uma síntese bastante incoerente, mas que evitava a exaltação da força que depois se­ ria encontrada com tanta freqüência no N. europeu. Gian Domenico Romagnosi foi o pri­ meiro a apresentar uma teoria jurídica do estado nacionaJ ne.s.se sentido (Delia costituzione di una monarcbia nazionale rappresentativa, 1815): teoria adotada mais tarde por P. S. Mancini como fundamento do direito interna­ cional (Delia nazione como fondamento dei diritto dellegenti, 1851). Na França a afirmação do N. está ligada principalmente à obra do his­ toriador Michelet, que, com o livro Le peuple (1843), criava um dos principais documentos do N. profetizante. Na Alemanha, outro histo­ riador, Treitschke, empreendia a ilustração e a defesa do N. alemão, que, na origem, vinculouse à política de força de Bismarck e mais tarde à de Guilherme II. Na Rússia, por fim, Dostoievski erigiu-se em profeta do N. russo (cf. HANS KOHN, Prophets and Peoples, 1946, trad. it., 1949; The Ideal ofNationalism, Nova York 1944). Tanto a Primeira como a Segunda Guer­ ra Mundial foram travadas sob o emblema de um N. que perdera todo o contato com o universalismo setecentista e via na força o úni­ co sinal decisivo concedido pela Providência histórica à nação por ela favorecida. Essa idéia, entronizada pelo fascismo italiano e pelo nacional-socialismo germânico, não era nova: tra­ tava-se da velha idéia hegeliana e romântica do privilégio que o Espírito do Mundo con­ cede à nação em que prefere encarnar-se, pois o único sinal desse privilégio é precisa­ mente a força vitoriosa que tal nação pode exercer sobre as outras. Esse N. profético já não ô professado hoje em dia pelos povos europeus, que, graças à lição dada pelas duas guerras, foram reconduzidos aos ideais universalistas do iluminismo: tende, porém, a afir­ mar-se em outras regiões do globo terrestre, às quais só se pode desejar que aproveitem a ex­ periência cultural e histórica da velha Europa.

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NADA

NADA (gr. p.r)8év, xò (ir) õv; lat. Nihil, in. Nothing, Nothingness; fr. Néant; ai. Nichts; it. Nullci). Duas concepções do N. estão interca­ ladas na história da filosofia: Ia O N. corno nâoscr; 2- o N. como alteridade ou negação. Os fundamentos dessas duas concepções estão, respectivamente, em Parmênides e Platão. Parmênides afirmou que "o N. não é" (Fr. 6, 2) e que "não pode ser conhecido nem expressa­ do" (Ibid., 4); Platão, decidindo-se por uma espécie de "parricídio" em relação a Parmênides (Sof, 242 d), admitiu o ser do nâo-ser e de­ finiu o N. como alteridade: "Resulta que há um ser do nào-ser, tanto para o movimento quanto para todos os gêneros, já que em todos os gêneros a alteridade, qtie torna cada um deIç.s outro, transforma o ser de cada um em nào-ser, de modo que diremos corretamente que todas as coisas nào são e ao mesmo tem­ po são e participam do ser" (Ibid, 256 d). Assim, enquanto para Parmênides o N. é abso­ luto nào-ser, portanto não é pensável nem expressável de modo algum, para Platão o N. é a alteridade do ser, ou seja, a negação de um ser determinado (p. ex., do movimento) e a re­ ferência indefinida a outro gênero do ser (ao que não é movimento). 1- Górgias apoiava a tese de Parmênides ao afirmar que "o N. não é, porque, se exis­ tisse, seria ao mesmo tempo não-ser e ser: nào-ser enquanto pensado como tal, ser en­ quanto seria nâo-ser" (Fr. 3, 2,6). O N. defi-nido por essas proposições é o N. absoluto, "certa idéia negativa do N., daquilo que está infinitarnente longe de qualquer tipo de per-feição", cie que falava Descartes, opondo-a a Deus, que inclui todas as perfeiçôes (Méd., IV); ou o "conceito vazio sem objeto", que é a negação do "mais alto conceito de que se cos­ tuma partir nas filosofias transcendentais", do objeto de que falava Kant (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). O N. assim entendido foi utilizado sobretudo pela teologia e pela metafísica: por um lado serviu para definir Deus, quan­ do se quis insistir em sua heterogeneidade em relação ao mundo, ou para definir a maté­ ria, quando se quis insistir em sua heterogeneidade em relação às coisas; por outro lado, ser­ viu para introduzir no ser uma condição ou um elemento que explicasse certos caracteres dele. O primeiro uso ocorre freqüentemente na teologia negativa. Scotus Erigena já havia iden­ tificado Deus com o N. porque Deus é Supe-

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ressentia (acima da substância) e porque o N. é, por outro lado, "a negação e a ausência da essência ou substância, aliás de todas as coi­ sas que foram criadas na natureza" {De divis. nat, III, 19-21). Essa doutrina é freqüentemen­ te repetida na Idade Média: Deus é indicado como N., ou "N. do N.", ou "quintessência do N." Zohar, um dos livros da Cabala (cf. SÉROUYA, La Kabbale, Paris, 1957, p. 322); é cha­ mado de "N. supra-ente" por Mestre Fxkhart (op. cit., ed. Pfeiffer, p. 139) e de "N. eterno" por Bõhme (Mysterium magnum, I, 2). Em to­ das essas expressões, N. exprime a negação total das formas de ser conhecidas, julgadas inadequadas à natureza de Deus. O segundo uso do conceito de N. encontrase nos neoplatônicos, com o objetivo de acen­ tuar a diferença entre a matéria e as coisas, entre o caráter informe de uma e as determi­ nações das outras. Assim, para Plotino a maté­ ria é o não-ser porque desprovida de corporeidade, alma, inteligência, vida. forma, razão, limite, potência, que são todos os caracteres do ser. Segundo Plotino, "é preciso dizer que ela é não-ser, mas não no sentido em que o movi­ mento não é repouso ou ao contrário, mas que é realmente o nâo-ser, imagem ou fantasma da massa corpórea e aspiração â existência" (Hun, III, 6, 7). A matéria é caracterizada desse mes­ mo modo por S. Agostinho: "Se se pudesse dizer que o N. é e não é alguma coisa, diria que isso é a matéria" (Conf, XII, 6, 2). O terceiro uso encontra-se na filosofia mo­ derna e visa a resolver o ser no devir ou a pos­ sibilidade em impossibilidade. O primeiro objetivo é buscado pela concepção do N. sus­ tentada por Hegel. Este observa corretamente que o velho ditado Exnihilo nihilfit nada mais exprime que a negação do devir; contra essa negação, afirma a indissolubilidade e a conver­ sibilidade recíproca do ser e do N, E disse: "Do ser e do N. cumpre dizer que em nenhum lugar, nem no céu nem na terra, existe alguma coisa que não contenha em si tanto o ser quan­ to o N. Sem dúvida, quando se fala de certo algo e de algo de real, essas determinações não se encontram mais em sua completa verdade, em que estão como ser e como N., mas encon­ tram-se numa outra determinação e são enten­ didas, p. ex., como positivo e negativo... Mas o positivo contém o ser, e o negativo contém o tv, como base abslnwa. Assim, mesmo em Deus a qualidade (atividade, criação, potência, etc.) contém essencialmente a determinação do

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negativo; essas qualiciades consistem na produ­ ção de um outro" ( Wissenschaft der Logik, I, seç. 1, cap. 1, C, nota I, cf. Ene, § 87). A caracte­ rística desse tipo de doutrina é a tese de que o N .éo fundamento cia negação, e não a nega­ ção do N. Isso é expresso por Hegel no tre­ cho citado, quando ele diz que o positivo e o negativo contêm o N. como base abstrata. Na filosofia contemporânea a mesma tese é ex­ plicitamente apresentada por Heidegger: "É o N. a origem da negação, e não vice-versa" (Was istMetaphysik?, 1949, 5a ed., p. 33). Desse pon­ to de vista, o N. é "a negação radical da totali­ dade do existente" (Ibid.. 1949, 5a ed.. p. 27). é N. absoluto. Mas, ao mesmo tempo, constitui o fundamento do ser, mais precisamente do ser do homem, porquanto esse ser é instável (hinfãllig). A instabilidade do ser do homem é vivida na situação emotiva da angústia. "O existente não é destruído pela angústia de tal modo que fique, assim, o N. E como pode­ ria ser diferente, visto que a angústia se encon­ tra na mais completa impotência perante o existente em sua totalidade? Na realidade, o N. revela-se propriamente com e no existente, na medida em que este. nos escapa e se dissipa em sua totalidade" (Ibid.. 1949, 5a ed., p. 31). Isso significa que o N. é vivido pelo homem na medida em que o ser do homem (a existência) não é e não pode ser todo o ser: o ser do homem consiste em não ser o ser em sua totalidade, que é o N. do ser. Por isso, Heidegger diz que o N. é a própria anulação ("É precisamente o próprio N. que anula"; Ibid., 5- ed., 1949. p. 31), e que ele é "a condição que possibilita, em nosso ser-aí (Dasein). a revelação do existente como tal" (Ibid.. 5a ed., 1949. p. 32). O proble­ ma e a procura do ser nascem do fato de o ho­ mem não ser todo o ser, de que seu ser é o N. da totalidade do ser. Sartre substitui a noção de existência pela de consciência, mas conti­ nua a interpretá-la como ser do homem, que é o N. do ser; termina assim por repetir os con­ ceitos de Heidegger. Sartre diz: "O N. não é, o N. foi; o N. não se nadifica, o N. /oniadiíiçado. Portanto, deve existir um ser — que não pode­ ria ser o em-si — cuja propriedade é anular o N., regê-lo com seu ser, sustentá-lo perpetua­ mente com sua própria existência: um ser gra­ ças ao qual o N. chega às coisas" (1,'être et le néant, p. 58). Esse ser é a consciência, que. sendo consUluída por possibilidades, tsvá sem­ pre aberta para o N. "Sempre fica aberta a possibilidade de que ele se revele como N.

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Mas, pelo simples fato de se aventar que um existente possa resolver-se como N.. toda per­ gunta supõe que se realize um recuo nadificador em relação ao dado, que se torna sim­ ples apresentação, oscilando entre o ser e o N." (Jbid, p. 59). Desse modo, o homem tem a possibilidade de circunscrever "um N". que o isole", de colocar-se fora do ser, para questio­ ná-lo e subtrair-se ã sua totalidade. Está claro o que estas especulações sobre o N. pretendem sugerir: o ser do homem, constituído por possi­ bilidades que, como tais, podem não se realizar e que em todo caso excluem o ser completo ou total, e manifestando-se portanto de modo eminente na dúvida, no problema, na projeção, etc, é o N. do tudo do ser. Trata-se de especu­ lações que querem definir o finito (ít limitação própria da existência humana) utilizando dois infinitos: o tudo e o N. 2- A segunda concepção fundamental do N., cujos fundamentos estão em Platão, considera o X. como alteridade ou negação. Segundo essa concepção, não há "N, absoluto", aquilo que, na terminologia kantiana, é a negação de todo objeto. Nesta terminologia o N. é apenas privação de alguma coisa: como a sombra ou o frio (iiihilprivativum), como um ente imaginá­ rio (eus imaginariam) ou como o objeto de um conceito que se contradiz (nihil uegatímm) (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). Desse ponto cie vista o N. é um objeto (no sentido mais geral da palavra) e dele existe uma noção, ao contrário cio que pensava Wolff quando definia o X. como "aquilo a que não correspon­ de noção alguma" (Ont., § 57). Nesse sentido o velho Fredegiso de Tours (séc. IX) tinha razão ao afirmar que o N. é alguma coisa, por­ que "se alguém disser que lhe parece não ser N., essa mesma negação levá-lo-á a reconhecer que o N. 6 alguma coisa, uma vez que que dizer Parece-me que o N. 6 X.' eqüivale a dizer Parece-me que 6 alguma coisa' " (De nibilo ei tenebrís, em P. L, 105, col. 751). Isso significa que, uma vez que se fale em N., mesmo para dizer que é N., o N. é algo de que se fala, ou seja, um objeto em geral. Considerações desse gênero podem parecer puramente dialéticas, mas continuam tendo valor mesmo na lógica contemporânea (cf. GHYMONAT, Saggi difilosofianeorazionalística, Torino, 1953. pp. 101 ss.). Contudo, esse conceito de N. não teve muita acolhida por parte dos filósofos, por razões compreensíveis: não se presta a uso teológico

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ou metafísico. A melhor ilustração disso na fi­ losofia contemporânea encontra-se em Bergson: "A idéia de abolição ou de N. parcial forma-se durante a substituição de uma coisa por outra, a partir do momento em que tal substituição é pensada por um espírito que preferiria manter a coisa antiga no lugar da nova ou que pelo rnenos concebe essa preferência como possí­ vel. Do lado subjetivo, implica uma preferên­ cia: do lado objetivo, uma substituição; não passa de uma combinação ou, antes, de uma interfe­ rência entre o sentimento de preferência e essa idéia de substituição" (.Evol. créatr., 8a ed., 1911. pp. 305-06). Isso significa que se diz "não há N." quando não há a coisa que esperávamos encontrar ou que poderia haver, e que a idéia do IV. absolutoéuma "pseudo-idéiu", tão absur­ da quanto a de um círculo quadrado (Ibid., p. 307). Pode-se insistir um pouco menos no aspecto subjetivo desse conceito de N. e mais no aspecto objetivo; pode-se dizer, p. ex., cjue o N. exprime a negação ou a ausência de uma possi­ bilidade determinada ou de um grupo de pos­ sibilidades, sem recorrer â noção de preferên­ cia ou de substituição; mas a análise de Bergson continua substancialmente correta, tanto em sua tese positiva quanto na negativa. Ademais, está em conformidade com o conceito dos lógicos contemporâneos sobre a negação; p. ex., com o que Carnap expôs numa crítica ao conceito do N. de Heidegger, que se tornou famosa: para ele. nesse conceito estão resumidos todos os vícios da metafísica. Carnap afirmou então que a única noção de N. logicamente correta é a negação de uma possibilidade determinada; portanto, dizer "Não há N. lá fora" significa "Não há alguma, coisa que esteja fora", "~ (E x) x está fora" ("Überwindung der Metaphysik", em Erkenntnis, II, 1931, pp. 229 ss.). E como a negação cie que alguma coisa está lá fora impli­ ca que alguma coisa poderia estar lá fora, nesse sentido a negação é a exclusão de uma possi­ bilidade determinada. NÃO (ai. Nicht). Segundo Heidegger, o N. exprime a limitação fundamental da existência, visto que "o ser-aí. sendo como poder-ser, está sempre em uma ou em outra possibilidade, mas continuamente N. é uma ou outra porque, no projeto existenciário, recusa uma ou outra" (Sein mieiZeit, § 58). O N. exprime assim a exclusão das possibilidades sempre implícita nas esco­ lhas cias que o ser-aí (que é o homem) inclui em seu projeto. Nesse sentido. Heidegger fala do X. como culpa fundamental da existência:

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natureza, ou seja, através da razão ou do cora­ ção do homem. 2. Correspondendo ao segundo significado de natureza, chama-se de N. o que se inclui na ordem necessária da natureza, distinguindo-se da ordem sobrenatural, desejada ou estabeleci­ da diretamente por Deus. No âmbito de ambos os significados, N. contrapõe-se também a artificial, por ser aqui­ lo que é prodtizido pela causalidade da nature­ za, fora do arbítrio humano. 3. Em correspondência com o terceiro signi­ ficado de natureza, fala-se, p. ex., de "coisas N.'' para dizer "coisas externas", e de "causali­ dade N." para dizer "causalidade externa". 4. Hoje em dia, a denominação "ciências" N." leva em conta o 4" significado de nature­ za (v.). NATURALISMO (in. Naturalism; fr. Naturalisme-, ai. Naturalismus; it. Naturalismo). Esse termo tem três significados diferentes: Ia Doutrina para a qual os poderes naturais da razão são mais eficazes que os produzidos ou promovidos pela filosofia no homem. Nes­ se sentido, Kant dizia: "O naturalista da razão pura admite, por princípio, que através da ra­ zão comum, sem ciência (que ele chama de razão sã"), pode-se concluir mais sobre as ques­ tões superiores da metafísica, do que por meio da especulação. Afirma, pois, que o tamanho e a distância da lua podem ser determinados com mais segurança a olho nu que por meio da ma­ temática" (Crít. R. Pura, Doutrina do método, cap. IV). 2- Doutrina segundo a qual nada existe fora da natureza e Deus é apenas o princípio de mo­ vimento das coisas naturais. Nesse sentido, queé o mais difundido na terminologia contemporâ­ nea, fala-se do "N. do Renascimento", do "N. antigo", do A materialista", etc. 3q Negação de qualquer distinção entre na­ tureza e supranatureza e tese de que o limem NATIVISMO. V. INATISMO. pode e deve ser compreendido, em todas as NATURAL (gr. cpuoiKÓÇ; lat. Naturalis; in. suas manifestações, mesmo nas considera­ Natural; fr. Naturel; ai. Natürlich; it. Naturale). das superiores (direito, moral, religião, etc), Os usos deste adjetivo correspondem aos usos apenas em relação com as coisas e os seres do fundamentais do termo natureza. mundo natural, com base nos mesmos mn1. Correspondendo ao primeiro significado, ceitos que as ciências utilizam para explicá-los. N. pode ser: o que é produzido pelo princípio É esse o sentido atribuído ao termo N. per do movimento, ou o que se produz por si, muitos filósofos americanos (Santayana, Woctlespontaneamente. Neste sentido, falou-se de bridge,Cohen) epelopróprioDewey (Experien­ "direito N.", que consiste em conformar-se à ce and Nature, cap. III, e passim). ordem espontânea da natureza; ou de "religião NATUREZA (gr. (púoiÇ; lat. Natura, in. Na­ N.", que é revelada pela natureza ou através da ture, fr. Nature, ai. Natur, it. Natura). Paradefi-

"A idéia formal existencial do culpado deve, portanto, ser assim definida: ser fundamen­ to de um ser que é determinado por um N., ou seja, ser fundamento de uma nulidade" (fbid). NÃO-EU(in. Non-ego; fr. Non moí; ai. Nicht ich; it. Non io). Por este termo Fichtc indicava o mundo da natureza e em geral o mundo objetivo, na medida em que é posto pelo Eu mas oposto ao próprio Eu. ''Nada há que se­ ja posto originariamente, exceto o Eu; e só ele é posto absolutamente. Por isso, só se pode ter oposição absoluta pondo-se algo de oposto ao Eu. Mas o oposto ao Eu é = Não-Eu" ( Wissenschaftslehre, 1794, § 2. 9). NARCISISMO (in. Narcissism-, fr. Narcisisme; ai. Narzissismus-, it. Narcisismo). 1. Segun­ do Plotino, o mito de Narciso representa a si­ tuação do homem que, não sabendo que a beleza está dentro dele, procura-a nas coisas externas, nas quais tenta em vão abraçá-la (Enn.. I, 6, 8; V, 8, 2). Essa interpretação ganha des­ taque sobre o pano de fundo da preocupa­ ção fundamental de Plotino, que é a da busca interior, ou da inferioridade de consciência (v.). Algumas vezes, o significado desse mito foi invertido por autores modernos: o narcisismo não representaria a inutilidade da ten­ tativa de buscar no exterior o que é interior, mas o autêntico destino do homem, que é pro­ jetar-se para fora de si e amar como tal o que está dentro dele (cf. LAVEUK, L 'envurdeNarcisse, 1939). 2. Uma forma ou modo da sexualidade, segundo a psicanálise, mais precisamente aquela em que a libido (v.) reinveste o Ego desinvestindo o objeto, de tal modo que o Ego "se comporta em relação aos investimen­ tos objetais como o corpo de um animalzinho protoplasmático que ele emitiu" (FREUD, Intro­ dução ao narcisismo, 1914).

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nir este termo, lançou-se mão de uma série de conceitos, entre os quais há alguns pontos em comum. Os principais são os seguintes: le prin­ cípio do movimento ou substância; 2e ordem necessária ou conexão causai; 3Qexterioridade, contraposta à interioridade da consciência; 4a campo de encontro ou de unificação de certas técnicas de investigação. lg A interpretação da N. como princípio de vida e de movimento de todas as coisas exis­ tentes é a mais antiga e venerável, tendo condi­ cionado o uso corrente do termo. "Permitir a ação da N.", "Entregar-se à N.", "Seguir a N.", e assim por diante, são expressões sugeridas pelo conceito de que a N. é um princípio de vida que cuida bem dos seres em que se mani­ festa. Foi nesse sentido que Aristóteles definiu explicitamente a N.: "A N. é o princípio e a cau­ sa do movimento e do repouso da coisa ã qual ela inere primariamente e por si, e não por aci­ dente" (Fís., II, 1, 192 b 20). Como explica o próprio Aristóteles, a exclusão da acidentalidade serve para distinguir a obra da N. da obra do homem. A. N. também pode ser matéria, a admitir-se, como faziam os pré-socráticos, que a matéria tem em si própria um princípio de movimento e de mutação; mas é realmente esse mesmo princípio, portanto a forma ou a substância em virtude da qual a coisa se de­ senvolve e torna-se o que é {Fís, II, 1, 193 a 28 ss.). Por esse motivo a N. assume o significado de forma, substância ou essência necessária: uma coisa possui sua N. quando alcançou sua forma, quando é perfeita em sua substância. Em conclusão, segundo Aristóteles, a melhor definição da N. é a seguinte: "A substância das coisas que têm o princípio do movimento em si próprias": nesta definição podem ser incluídos todos os significados do termo {Met, V, 4,1015 a 13). Nesse sentido, a N. é não somente causa, mas causa final {Fís., II, 8,199 b 32). A tese do finalismo da N. costuma estar ligada a esse con­ ceito da N. Tal conceito, que é a síntese dos dois con­ ceitos fundamentais da metafísica aristotélica (substância e causa), dominou por muito tem­ po a especulação ocidental e nunca foi com­ pletamente obliterado por conceitos diferentes e concorrentes. Por sua causalidade, a N. é o próprio poder criador de Deus: é N. naturante. Mas como tal causalidade é inerente às coisas que produz, a N. é a própria totalidade dessas coisas, é N. naturada. Essa distinção, que se encontra em Scotus Erigena, mas sem os termos

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relativos (De divis. nat., III, 1), foi introduzida na escolástica latina por Averróis (De cael., I, 1), sendo amplamente aceita (cf. S. TOMÁS DE AQUINO. S. Th, II. 1, q. 85, a. 6). Spinoza nada mais fez que reexpô-la quase nos mesmos ter­ mos {Et, I, 29, schol.). A essa distinção, mais precisamente ao conceito de N. naturada, ligase o outro significado subordinado, de N. como universo ou conjunto das coisas naturais: con­ ceito que coexiste com o de N. como princí­ pio de movimento, por ser seu resultado, e — como veremos — com o de N. como ordem, por designar, neste segundo caso, a N. "mate­ rial" ( materialiter spectata). A exaltação especulativa da N. por parte do naturalismo renascentista recorre ao conceito de N. criadora ou universal. Nicolau de Cusa dizia: "É o Espírito difuso e contraído por todo o universo e por cada uma de suas partes que se chama de N. Portanto, de algum modo a N. é a reunião (complícatio) de todas as coisas ge­ radas através do movimento" (Dedocta ignor., II, 10). E Giordano Bruno afirmava: "A N. ou é Deus mesmo, ou a virtude divina que se mani­ festa nas coisas" (Summa terminorum, em Cp. latine, IV, 101). No mesmo sentido Spinoza identificava a N. com Deus (Et, I, 29, schol.). Esse conceito da N. atravessou o séc. XVIII e foi reafirmado por Wolff (Cosm, §§ 503-506) e por Baumgarten (Met.. § 430). Quando, naque­ le mesmo século, começou-se a contrapor a N. ao homem e a proclamar-se a "volta à N.", a N. à qual se recorreu continuava sendo a do antigo conceito aristotélico: princípio diretivo inato no homem sob forma de instinto; tal foi o conceito de Rousseau (De 1 'ínégalitéparmi les hommes, I). Essa noção já entrou no patrimônio das crenças comuns de nosso mundo, e por isso está presente, mesmo sem se fazer notar, nas mais elaboradas concepções filosóficas. Como se viu, compreende três conceitos coordenados ou eqüipolentes: d) a N. como causa (eficiente e final); b) a N. como substân­ cia ou essência necessária; c) a N. como totali­ dade das coisas. 2- A segunda concepção fundamental de N. considera-a como ordem e necessidade. A ori­ gem dessa concepção está nos estóicos, para os quais "a N. é a disposição a mover-se por si segundo as razões seminais, disposição que leva a cabo e mantém unidas todas as coisas que dela nascem em tempos determinados e coincide com as próprias coisas das quais se distingue" (DiÓG. L, VII, 1, 148). Nesta defini­

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ção é acentuada a regularidade e a ordem do devir à cjual a N. preside. A este conceito de N. está ligada a noção de lei natural, que. da An­ tigüidade ao séc. XIX, teve grande importância na moral e no direito (y.). De fato, a lei natural é a regra de comportamento que a ordem do mundo exige que seja respeitada pelos seres vivos, regra cuja realização, segundo os estóicos, era confiada ao instinto (nos animais) ou à razão (no homem) (DIÓG. L, VII, I, 85). O aristotelismo do Renascimento retoma o con­ ceito de N. como ordem. Em Defeito (séc. XVI), Pietro Pomponazzi defendia explicitamente o fado estóico, que é a necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus. E o pen­ samento que fundamenta as primeiras mani­ festações da ciência moderna, na obra de Leo­ nardo, Copérnico, Keplere Galilei, é o de ordem necessária e de caráter matemático, que a ciên­ cia deve descobrir e descrever. Segundo Leo­ nardo da Vinci: "A necessidade é tema e inventora da N., freio e regra eterna" (Works. ed. Richter, nQ 1135). Para Galilei, a N. é a ordem do universo, ordem única que nunca foi nem será diferente (Op., VII, p. 700). A insistência na N. como ordem e necessidade é acom­ panhada pela negação do finalismo da N., ca­ racterístico da primeira concepção (v. FINA­ LISMO). Esse conceito da N. permaneceu co­ mo fundamento da ciência moderna em todo seu período clássico. "A N. é bastante consonante e concordante consigo mesma", dizia Newton (Optiks, 1704, III, 1, q. 31), mas foi Boyle quem teve as idéias mais claras sobre isso, afirmando explicitamente: "A N. não deve ser considerada como um agente distinto c se­ parado, mas como uma regra, ou antes como um sistema de regras, segundo as quais os agentes naturais e os corpos sobre os quais eles agem são determinados pelo Grande Autor das coisas a agir e sofrer ação." Foi esta a concep­ ção da N. aceita por Kant. "Pela expressão N.' (em sentido empírico) entendemos a conexão dos fenômenos para sua existência segundo regras necessárias ou leis. Existem, portanto, certas leis apriori que tornam possível uma N.: as leis empíricas podem estar presentes e ser descobertas apenas através da experiência, portanto depois das leis originárias graças ás quais começa a ser possível a própria experiên­ cia" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap II. seç. 3, Terceira analogia). Em outro lugar Kant dis­ tingue a N. materialiter spectata da N. formaliler spectatci: a primeira seria "o conjunto

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de todos os fenômenos"; a segunda seria "a re­ gularidade dos fenômenos no espaço e no tempo" (Ibid.. § 26). Mas a primeira nada mais é que o material a que se aplica a segunda, e o conceito da N. continua sendo o de regularida­ de devida a leis (Prol., § 14). Esta doutrina foi repetida numerosas vezes na filosofia moderna e contemporânea. Entre os últimos que a repe­ tem pode-se lembrar Whitehead, para quem N. é "um complexo de entes em relação", em que a ênfase é posta na relação, atribuindo-se à filo­ sofia natural a tarefa de "estudar como se inter­ ligam os vários elementos da N. (The Concept ofNature, 1920, caps. I-II; trad. it., pp. 13. 28). 3U Para a terceira concepção, N. é a manifes­ tação do espírito, ou um espírito diminuído ou imperfeito, que se tornou "exterior", "acidental" ou "mecânico", ou seja, foi degradado de seus verdadeiros caracteres. Essa concepção encon­ tra-se claramente expressa em Plotino: "A sa­ bedoria é o primeiro termo: a N. é o último. A \. é a imagem da sabedoria e é a última pane da alma; como tal, só tem em si os últimos reflexos da razão. (...) A inteligência tem em si tudo; a alma cio universo recebe as coisas eter­ namente, sendo a vida a eterna manifestação do intelecto, mas a N. é o reflexo da alma na matéria. A realidade termina nela, ou até antes dela, pois ela é o termo do mundo inteligível: além dela, só há imitações" (Erin, IV, 4, 13). O conceito de N. como manifestação, no sentido de "exteriorização", com tudo o que a exterioridade tem cie diminuído ou degradado em relação â interioridade e à consciência, foi compartilha­ do (e continua sendo) por todas as metafísicas espiritualistas. E retomado pela teosofia renas­ centista e encontra-se, p. ex., em Jakob Bóhme (De signcitura rerum. IX). Mas íoi o roman­ tismo que o amplificou e difundiu. Novalis dizia: "O que é a N. senão o índice enciclopédi­ co sistemático ou o plano de nosso espírito?" (Fragmente. n° 1384). Foi Hegel quem ex­ pressou do modo mais rigoroso e completo esse conceito: "A N. é a idéia na forma de ser outro", isto é, da "exterioridade" (Ene, % 247). Como tal, não mostra, em sua existên­ cia, liberdade alguma, mas apenas necessidade e acidentalidade. Portanto, "na N.. não só a inter-relação das formas está á mercê de uma acidentalidade desregrada e desenfreada, como também nenhuma forma tem, por si. o concei­ to de si mesma". Hegel reconhece que a N. está sujeita a "leis eternas", mas isso não a salva: a N. é pior que o mal. "Quando a acidentalidade

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espiritual, o arbítrio, chega ao mal, até o mal é algo infinitamente superior aos movimentos dos astros e à inocência das plantas; porque quem assim erra, ainda é espírito, apesar de tudo" (Ibid., § 248). É bem verdade que nem toda a filosofia romântica compartilhou a con­ denação hegeliana da N. Schelling exaltou a N., considerando-a como parte ou elemento da vida divina. Numa obra de 1806, censura­ va Fichte por encarar a N. ora com um asce­ tismo grosseiro e insensato, considerando-a puro nada, ora de um ponto de vista pura­ mente mecânico e utilitarista, considerando-a um instrumento de que o Eu Absoluto lança mão para realizar-se ( Werke, I, VII, pp. 94,103). Na realidade, ao considerar a N. como manifes­ tação do Absoluto, Schelling não insistia tanto na inferioridade da manifestação em relação ao Princípio que se manifesta, mas sobretudo na estreita relação entre os dois. Esta é a outra alternativa oferecida pela concepção da N. de que tratamos. Por um lado pode-se insistir nos aspectos que distinguem a N. do espírito e que, de algum modo, os contrapõem, quais sejam, exterioridade, acidentalidade e mecanismo, mas, por outro lado, pode-se também ressaltar que a N., como manifestação do espírito, tem em comum com ele seus caracteres substan­ ciais. Foi o que fez Schelling, mas a primeira alternativa costuma prevalecer. O espiritualismo francês do séc. XIX compartilhou quase unanimemente a tese expressa por Ravaisson no fim de Rapport sur Iaphilosophie en France au XIX''"" ’sí'èc7c(lH68)": a N. é a degradação, em mecanicismo e necessidade, de um Principio Espiritual que é espontaneidade e liberdade. Essa concepção também prevaleceu no espiritualismo do séc. XX graças a Bergson. A N., como exterioridade ou espacialidade, é uma degradação do espírito. É assim que Bergson expõe o projeto de uma teoria do conhecimen­ to da N.: ''Seria preciso, com um esforço sui generisúo espírito, seguir a progressão, ou me­ lhor, a regressão do extra-espacial que se de­ grada em espacialidade. Se no.s situarmos pri­ meiramente no ponto mais alto de nossa própria consciência para em seguida deixarmonos cair pouco a pouco, teremos a sensação de que nosso eu se estende em recordações iner­ tes, exteriorizadas umas em relação às outras, em vez. de propender a um querer indivisível e agente. Mas isso é apenas o início, etc. (Evol. créatr., 11a ed., 1911, p. 226). O mesmo senti­ do de degradação é atribuído à N. na filosofia

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de Gentile, para quem ela é o "passado do es­ pírito", sendo, pois, um limite abstrato que o espírito recompreende em si e "domina" {Teo­ ria generale dello spirito, XVI, 18). 4- A quarta concepção de N. pode ser dis­ cernida de modo implícito ou na forma de pressuposto na prática efetiva da pesquisa científica e em algumas análises da metodolo­ gia científica contemporânea. Para esta, a N. é definida em termos cie campo (v.), mais preci­ samente o campo ao qual fazem referência e em que se encontram (ou algumas vezes se desencontram) as técnicas perceptivas e de ob­ servação de que o homem dispõe: as primeiras não são menos complexas que as segundas, apesar de se mostrarem como "naturais", ou seja, passíveis de serem postas em prática sem o concurso de projetos deliberados. A arte faz constante referência às técnicas perceptivas, pois sempre oferece alguma coisa a ser "vista" ou "sentida", mesmo quando pretende ser "abstrata" e prescindir das formas comumente oferecidas pela percepção comum. A ciência natural faz referência às técnicas de observa­ ção, pois, mesmo iniciando seu trabalho com a percepção, afasta-se desta rapidamente tanto no que se refere aos instrumentos de obser­ vação quanto no que diz respeito aos obje­ tos que consegue identificar (p. ex., "massa", energia", "elétrons", "fótons", etc), alguns dos quais se comportam de modo muito dife­ rente cias "coisas" que são objeto da percepção comum. Hoje, pode-se entender como N. o cam­ po objetivo ao qual fazem referência os vários modos da percepção comum e os vários mo­ dos da observação científica, do modo como esta é entendida e praticada nos vários ramos da ciência natural. Nesse sentido a N. não se identifica com um princípio ou com uma apa­ rência metafísica, nem com determinado siste­ ma de conexões necessárias, mas pode ser de­ terminada, em cada fase do desenvolvimento cultural cia humanidade, como a esfera dos pos­ síveis objetos de referência das técnicas de ob­ servação que a humanidade possui. Trata-se, como é óbvio, de uma concepção não dog­ mática, mas funcional, pois ainda não foram feitas indagações metodológicas suficientes para esclarecê-la; contudo, afigura-se corno uma exi­ gência da atual fase da metodologia científica. NATUREZA, CIÊNCIAS DA. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS. NATUREZA, ESTADO DE (in. State of na­ ture, fr. Etat de nature, ai. Naturzustand; it.

NATUREZA, ESTADO DE

Stato di natura). Condição do homem, antes da constituição da sociedade civil, segundo a dou­ trina do contratualismo (y.). Já em Platão, no III Livro de Leis, encontra-se a noção da condi­ ção em que os homens ficaram depois da des­ truição de suas cidades por enormes catástro­ fes: "Esta é a condição dos homens depois da catástrofe: uma terrível e ilimitada solidão, a terra imensa e abandonada; mortos quase to­ dos os animais e os bovinos, sobrou apenas um pequeno grupo de cabras, qual mísero res­ to, para que os pastores recomeçassem a vida" (Leis, III, 677 e). Esta não é a descrição de uma condição idílica, assim como não foi idílica a condição que Hobbes atribuiu ao estado de N., a guerra de todos contra todos: "Enquanto vi­ vem sem um poder comum ao qual estejam su­ jeitos, os homens encontram-se na condição que chamamos de guerra, e tal guerra é de um homem contra o outro" (Leviatb, I, 13). Isto acontece porque, sendo iguais por N., os ho­ mens também têm os mesmos desejos, e dese­ jando as mesmas coisas procuram preponderar uns sobre os outros (Lbid.). A fundação do Estado, de um poder soberano, é o único meio para sair da condição de guerra, própria do estado de N. Por outro lado, na Antigüidade, Sêneca exal­ tava o estado de N. como uma condição perfei­ ta do gênero humano. Na nonagésima Epístola a Lucüio, Sêneca descreve a idade de ouro, em que os homens eram inocentes, felizes e vi­ viam com simplicidade, sem buscar o supér­ fluo. Além disso, não tinham necessidade de governo e de leis porque obedeciam aos mais sábios. Mas, em certo momento, o próprio pro­ gresso das artes levou à avidez e à corrupção, contra as quais se tornou necessária a institui­ ção do Estado. A exaltação do estado de N. tor­ nou-se tema recorrente na filosofia do séc. XVIII; sua expressão máxima está na obra de Rousseau. Opondo-se a Hobbes, Locke já havia considerado o estado de N. como um estado de perfeição: é "um estado de perfeita liberda­ de, em que cada um regulamenta suas próprias ações e dispõe de suas posses e de si mesmo como bem lhe aprouver, dentro dos limites da lei da N., sem pedir permissão a ninguém, nem depender da vontade de ninguém ' (Second Treatise on Governement, II, 4). Mas foi Rousseau quem mais exaltou a perfeição do es­ tado de N., argumentando que nessa condição o homem obedece apenas ao instinto, que é infalível (De 1 ínégalitéparmi les hommes, I).

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"Tudo que sai das mãos do Criador é perfeito, tudo degenera nas mãos do homem": era assim que Rousseau começava o Emílio. No próprio Rousseau, porém, essa exaltação do estado de N. contrasta com o valor atribuído ao estado ci­ vilizado, com base no contrato social; na reali­ dade, em Rousseau a noção de estado de N. constitui o critério ou a norma para julgar a so­ ciedade presente e delinear um ideal de pro­ gresso. Após Rousseau, Kant entendia pot estado de N. "aquele em que não há justiça distributiva alguma" (Met. derSitten, I, § 41). E Hegel mostrava o equívoco de se ter inventado o estado de N. como condição de fato na qual valesse o direito natural; isso por se interpretar a expressão "direito natural" no sentido de di­ reito existente na N., e não de direito determi­ nado pela N. da coisa (Ene, § 502). A partir de Hegel, a noção de estado de N. deixou de inte­ ressar aos filósofos, mas permaneceu como no­ ção à qual o homem comum recorre de bom grado, sendo também utilizada pelas doutrinas políticas utopistas, que freqüentemente proje­ tam o estado de N. como uma perfeição do fu­ turo, e assim fazem também, algumas vezes, as imaginações fantásticas da ficção científica. NATUREZA, FILOSOFIA' DA (in. Philo­ sophy ofnature, fr. Philosophie de Ia nature, ai. Naturphilosophie; it. Filosofia delia natura), Esta expressão, diferente da tradicional "filoso­ fia natural" que designa a física ou as ciências naturais em geral, foi empregada pela primeira vez por Kant para designar uma disciplina niti­ damente distinta da ciência. Por filosofia da N. ou metafísica da N., Kant entendeu a disciplina que "abarca todos os princípios racionais puros que derivem de conceitos simples (portanto com exclusão da matemática) do conhecimen­ to teórico de todas as coisas" (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do método, cap. III). Assim en­ tendida, a filosofia da N. é uma das duas partes fundamentais da filosofia (a outra é a filosofia moral) e compreende apenas os princípios a priori nos quais se baseia o conhecimento da N., que são os fundamentos da física e das outras ciências teóricas da N., mas não as leis, cuja descoberta, na própria N., cabe à física (lbid., cf. Crít. doJuízo, Intr., I). Depois de Kant a expressão filosofia da N. passou a designar uma disciplina que estu­ da a N., mas não como ciência. Foi desse modo que Schelling interpretou a filosofia da N., dedicando-lhe a maior parte de sua atividade. Schelling julgava que a ciência baseada na

NATUREZA, FILOSOFIA DA

investigação experimental nunca é realmente ciência. De fato, a N. é a priori, no sentido de que suas manifestações individuais são de­ terminadas de antemão por sua totalidade, ou seja, pela idéia de uma N. em geral (Werke, I. III, p. 279). Substancialmente, a tarefa da filoso­ fia da N. é mostrar que a N. se resolve no espí­ rito (System der transzendentalen ldealismus, § 1), e esse objetivo permaneceu inalterado em todas as suas manifestações no séc. XIX; nesse sentido, foi grande a influência de Hegel, que considerou a filosofia da N. como uma das três grandes divisões da filosofia, sendo as outras duas a lógica e a filosofia do espírito. A lógica seria o sistema das determinações puras do pensamento. A filosofia da N. e a filosofia do espírito seriam ambas uma lógica aplicada; à fi­ losofia da N. caberia a tarefa "de levar para a consciência as verdadeiras formas do conceito, imanentes nas coisas naturais" (System der PhiL, ed. Glockner, I, pp. 87-88). A filosofia da N., assim entendida, nada mais é que a mani­ pulação arbitrária de conceitos científicos, extraídos de seus contextos, com o fim de re­ duzi-los a determinações racionais ou pseudoracionais; continuou assim inclusive quando quis escapar à formulação idealista e foi tratada do ponto de vista realista, como fez Nicolai Hartmann. A Filosofia da natureza(l9*>0), des­ te último, conserva a pretensão de entrever ou reconhecer o valor "metafísico" ou ''ontológico" dos resultados da ciência. Deveria ser tarefa da filosofia da N. a análise categoria! dos concei­ tos científicos. Hartmann afirma que ''o pensa­ mento matemático não pode dizer o que são extensão, duração, força e massa. Neste ponto, insere-se a análise categorial: é com os porta­ dores ou substratos da quantidade que se li­ gam os problemas metafísicos de fundo da fi­ losofia da N." (Pbilosophie der Natur, p. 22). Pode-se dizer que o último e mais restrito conceito de filosofia da N. foi apresentado pe­ los componentes do Círculo de Viena, nos primórdios do empirismo lógico. M. Schlick considerava a filosofia da N. como a análise do significado das proposições próprias das ciên­ cias naturais. "Desse ponto de vista" — dizia ele — "a filosofia da N. não é uma ciência, mas uma atividade dirigida ã consideração do significado das leis de X." (Philosopby of Na­ ture, trad. in., 1949, p. 3). Neste conceito há ainda alguns vestígios da filosofia como "visão do mundo" ou síntese dos resultados mais ge­ rais das ciências particulares. A metodologia

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contemporânea, ao contrário, tem acentuado cada vez mais a ilegitimidade de extrair as pro­ posições científicas de seus contextos e de encontrar nelas significados que vão muito além do que o próprio contexto autoriza. Com essa limitação metodológica, a tarefa da filoso­ fia da N. é cortada pela raiz. E tudo aquilo que ela legitimamente compreendia, que eram os problemas concernentes à linguagem científica em geral e às linguagens das ciências indivi­ duais, as relações entre as ciências, o estudo comparativo de seus métodos, etc, hoje en­ contra lugar no seio da metodologia das ciências. NATURISMO (in. Naturism, fr. Naturisme, ai. Natiirismus; it. Naturismo). 1. Doutrina ou crença de que a natureza é o guia infalível para a saúde física e mental do homem, e de que o homem deve "retornar" a ela em seus compor­ tamentos e costumes, afastando-se das criações artificiais e da sociedade. Essa doutrina funda­ menta muitas práticas e crenças populares do mundo contemporâneo, após ter sido doutrina filosófica no séc. XVm (v. NATURE­ ZA, ESTADO DH). 2. Menos propriamente: culto religioso da natureza. NÁUSEA (in. Náusea; fr. Nausée, ai. Ekel; it. Náusea).Experiência emocional de gratuidade da existência, ou seja. da perfeita equivalência das possibilidades existenciais. Essa noção foi introduzida na filosofia por Sartre e por ele ilustrada principalmente no romance intitulado La nausée. NAVALHA DE OCKHAM. V. ECONOMIA. NECESSÁRIO (gr. àvaymíoç; kit. Necessá­ rias; in. Necessary, fr. Nécessaire, ai. Notwendig, it. Necessário). O que não pode não ser; ou o que não pode ser. Esta é a definição nominal tradicional que constitui uma das noções mais uniforme e firmemente estabelecidas na tradi­ ção filosófica. Segundo essa definição, "o que não pode ser" é o impossível, que é o contrário oposto de N., sendo também N.. assim como o preto, que é a cor oposta do branco, também é cor. O contraditório do N., o não-N., é a outra modalidade fundamental, opossweKv.). As dis­ cussões lógicas contemporâneas sobre o N., quando não eqüivalem à negação expressa ou implícita dessa noção, nada mais são que a reapresentação dessa definição em termos de convencionalismo moderno. O primeiro a fazer uma análise exaustiva de "N." foi Aristóteles. Ele distinguiu: a) o N. como

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condição ou concausa, em virtude do que se diz, p. ex., que o alimento é N. à vida ou o remédio é N. à saúde, ou que ir a certo lugar é N. para receber certa quantia; b) o N. como for­ ça ou coação, em virtude do que se diz que é N. o que impede ou obsta à ação de um instin­ to ou uma escolha; c) o N. como o que não pode ser de outra forma, que é o sentido fun­ damental do conceito. De fato, segundo Aristó­ teles, os outros sentidos podem ser reduzidos a esse: "Diz-se que é N. aquilo a que somos coagidos quando uma força qualquer nos obri­ ga a fazer ou a sofrer alguma coisa que é contra o instinto, de tal modo que a necessidade con­ siste, neste caso, em não poder fazer ou sofrer de outra forma. O mesmo vale para as condi­ ções da vida e do bem, pois quando o bem, a vida ou o ser não podem existir sem algumas condições, estas são chamadas de necessárias e diz-se que a causa é a própria necessidade" (Met., V, 5, 1014 b 35). No sentido fundamen­ tal, as demonstrações são necessárias porque nào podem concluir de outra forma, e nào podem concluir de outra forma porque as premissas não podem ser diferentes do que são ílbid.. 1015 b 7). O significado a) de N. é designado por Aristóteles como necessidade hipotética: é a necessidade que se encontra nas coisas natu­ rais, mais precisamente na matéria delas, por­ quanto constitui a condição delas (Fís, II, 9, 200 a 30); De somno, 455 b 26; Depart. an., 639 b 24, 642 a 9). Já Platão havia admitido essa espécie de necessidade, julgando-a um dos constituintes do mundo (juntamente com a in­ teligência) e identificando-a com a matéria (Tim., 47 d ss). Finalmente, Aristóteles distin­ gue o que é N. em virtude de uma causa exter­ na e aquilo que é por si próprio a causa da ne­ cessidade. As coisas simples sào necessárias neste segundo sentido e portanto o sào de modo primário e eminente (Ibid, 1015 b 10). Mas o conceito da necessidade é sempre o mesmo. Estas concepções quase nào mudaram ao longo da história da filosofia. Os estóicos defi­ niram a necessidade tendo em mente enuncia­ dos verbais mais que condições de fato; por isso, chamaram de N. "aquilo que é verdadeiro e não pode revelar-se falso" (DIÓG. L, VII, 1, 75), onde "nào poder revelar-se falso" significa não poder ser diferente. Tampouco as distin­ ções estabelecidas por S. Tomás de Aquino mudam o conceito do N., conforme a divisão aristotélica das quatro causas. S. Tomás de

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Aquino enumera: a) necessidade material(ou exprincipio intrínseco), no sentido em que se diz que "é N. que tudo o que é composto por contrários se corrompa"; b) necessidade for­ mal, que é naturale absoluta, segundo a qual se diz que "é N. que um triângulo tenha os três ângulos iguais a dois retos"; c) necessida­ de final ou utilidade, segundo a qual se diz que o alimento é N. à vida ou um cavalo é N. à viagem; d) necessidade eficiente, ou necessida­ de de coação, segundo a qual somos coagidos por uma causa eficiente de tal modo que não se pode agir de outro modo. Em todos os ca­ sos, para S. Tomás de Aquino N. é "aquilo que não pode não ser" (S. Th, I, q. 82, a. 1,1; De ver, q. 22, a. 5). Está claro que essa distinção reproduz a aristotélica. A necessidade material e a final sào a necessidade hipotética de Aris­ tóteles; a necessidade por coação tem o mesmo nome em Aristóteles, e tanto para S. Tomás de Aquino quanto para Aristóteles a necessidade "natural e absoluta" é o significado fundamen­ tal da necessidade. Essas distinções, às vezes indicadas com outros nomes, não mudaram durante muito tempo na história da filosofia. Os escolásticos repetem-nas sem alterações, as­ sim como repetem, mesmo acreditando pou­ co, o significado fundamental de N. como aqui­ lo que não pode ser de outra forma (cf., p. ex., JOÀO RE SALISBURY, Metalogicus, II, 13). Avicena, a quem se deve a prevalência do conceito de necessidade em metafísica e em teologia, tanto na escolástica árabe quanto na cristã, partira da distinção aristotélica (Met., V, 5, 1015 b 10, já cit.) entre o que é N. para si e o que é N. para outra coisa (Met., II, 1, 2): distinção que funda­ menta a doutrina de Spinoza (Et, I, 33, schol. 1) e foi repetida inúmeras vezes a partir daí. As primeiras novidades conceptuais nessa história uniforme são a definição da necessi­ dade lógica e a introdução do conceito de necessidade moral por parte de Leibniz, que distinguiu: a) a necessidade geométrica, que pertence às verdades eternas e "cujo oposto implica contradição"; b) a necessidade física, que constitui "a ordem da natureza e consiste nas regras do movimento e em alguma outra lei geral que aprouve a Deus dar às coisas ao criálas"; c) a necessidade moral, que é "a escolha do sábio por ser digna de sua sabedoria", ou seja, a escolha do "melhor" ( Théod, Disc, 5 2). A necessidade física baseia-se na necessidade moral (foi Deus quem escolheu as leis da natu­ reza que constituem a necessidade física e sua

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escolha foi ditada pelo fato de que eram as me­ lhores possíveis); as necessidades física e moral são chamadas por Leibniz de hipotéticas; se­ gundo ele, estas nada têm a ver com a necessi­ dade absoluta, que é a impossibilidade do contrario(Nouv. ess., II, 21, 13). Leibniz utiliza essa distinção para defender a liberdade de Deus e a do homem, ao mesmo tempo em que põe a salvo a infalibilidade da previsão divina: "Aver­ dade de que amanhã escreverei não é absolu­ tamente necessária. Mas. supondo-se que Deus a preveja, é N. que ela se verifique, ou seja, é necessária a conseqüência de que ela se realize desde que foi prevista, já que Deus é infalí­ vel: isso é o que se chama de necessidade hipo­ tética'" (Théotl, I, § 37; cf. Disc. demét, 13). A diferença entre essa doutrina de Leibniz e a tradicional é que esta última considerava uma espécie de necessidade, integrante do significa­ do fundamental do termo, aquilo que Leibniz considera como liberdade e escolha: a necessi­ dade hipotética. Em outras palavras, Leibniz restringiu o significado de necessidade ao que Aristóteles e a tradição aristotélica considera­ vam como necessidade "primária", "absoluta" ou "natural", dando-lhe o nome de "geomé­ trica" ou "metafísica". A definição leibniziana dessa necessidade como "aquilo cujo oposto é impossível", ou "aquilo cujo oposto é con­ traditório", serve para limitar sua extensão ape­ nas às verdades matemáticas e a um restrito nú-mero de verdades metafísicas. Esse é o resul­ tado importante e duradouro da introdução do conceito de necessidade moral por parte de Leibniz. Quanto a esse conceito, a partir do momento que exclui a necessidade e é a pró­ pria definição da determinação livre, pode-se objetar a impropriedade do nome: ele não é "necessidade". No entanto, foi como tipo ou espécie de ne­ cessidade que ingressou na filosofia do séc. XVIII, juntamente com a distinção das for­ mas do N. proposta por Leibniz. Wolff reelaborou esta distinção, distinguindo: a) o absolu­ tamente N., que é "aquilo cujo oposto é impos­ sível ou implica contradição" (Ont., § 279); b) o hipoteticamente N., que é "aquilo cujo oposto implica contradição ou é impossível só em dada hipótese ou em determinada condição" {Ont., § 302); c) o moralmente N., que é "aquilo cujo oposto é moralmente impossível" (PM. pratica, I, § 115). A diferença entre o absolutamente N. e o hipoteticamente N. é que o primeiro exclui a contingência e o segundo não (Ibid, §§ 317-

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18). Ao contrário de Leibniz, Wolff não reduz a necessidade hipotética à necessidade moral, ou seja, à liberdade, mas identifica-a com a neces­ sidade regida pelo princípio de razão suficien­ te, ou seja, com a causalidade (Ibid, §§ 320 ss.). O próprio Wolff afirma que essa sua doutrina da necessidade é idêntica à tradicional, em par­ ticular à de S. Tomás de Aquino (Ibid, § 327), com a definição do N. como aquilo que não pode ser de outra forma; e certamente o é, salvo no que se refere ao reconhecimento da necessidade moral. Essa doutrina é simples­ mente reproduzida por Kant, que também faz a distinção entre ''necessidade material na exis­ tência", que consiste na conexão causai, e ne­ cessidade "formal e lógica na conexão dos con­ ceitos" (Crít. R. Pura, Anal.. II, cap. II, seção 3, Postulados do pensamento empírico); distin­ gue ainda dessas duas espécies de necessidade a "necessidade moral", como coação ou obri­ gação, que é o dever (Crít. R. Pratica, I, livro I, cap. III; trad. it., p. 96). A necessidade mate­ rial é a necessidade real ou hipotética. Kant diz: "Tudo o que acontece é hipoteticamente N.; esse é um princípio que subordina a transfor­ mação no mundo a uma lei, a uma regra da existência necessária, sem a qual a natureza não existiria" (Crít. R. Pura, 1. c). Na realidade, para Kant a conexão causai é "hipotética", por­ que a considera aberta nos dois lados e não acha legítimo considerá-la fechada como tota­ lidade ou série absoluta. Obviamente, se isso acontecesse, a necessidade hipotética tornarse-ia necessidade absoluta ou geométrica. Schopenhauer, por sua vez, achava que a ne­ cessidade não tinha outro sentido além de "inevitabilidade do efeito quando a causa foi posta", considerando até contraditório falar de um ser "absolutamente necessário", ou seja, "necessário sem condições" (Überdie vier/ache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, § 49). Mas com o idealismo romântico, foi a necessidade absoluta que assumiu o papel mais importante. Fichte afirmava: "Qualquer coisa realmente existe, existe por absoluta necessi­ dade; e existe necessariamente na forma preci­ sa em que existe. É impossível que não exista ou que exista de outra forma" (Grundzügedes gegenwãrtigen Zeitalters, 9). Absoluto também era o significado da necessidade que Hegel de­ finia como "unidade de possibilidade e realida­ de", definição que exprime a "presença da to­ talidade das condições" em cada momento do real e portanto da plena e absoluta necessidade

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do real. "Quando se têm todas as condições'1— diz Hegel — "a coisa deve tornar-se real" (Ene, § 147). "O N. é mediado por um círculo de circunstâncias: é assim porque as circunstân­ cias são assim, e ao mesmo tempo é assim imediato, é assim porque é" (Ibid, § 149). Desse modo a necessidade torna-se alma da realida­ de, dialética (v.) da Razão Real ou da Realidade Racional. Essa extensão da necessidade ao in­ finito não renova, como é óbvio, as característi­ cas do conceito, que continua sendo o mesmo definido por Aristóteles; assim como essas ca­ racterísticas não são renovadas pelo uso con­ temporâneo desse conceito, que mais insiste na necessidade do real, em seus diversos graus e formas: Nicolai Hartmann (cf. especialmente Mõglichkeitnnd Wirklichkeit, 1938) (v. POSSÍVEL). Agora podemos lançar uma vista d'olhos na sorte que a filosofia contemporânea deu às três formas do N., comumente admitidas a partir de Wolff, provando que esse conceito realmente não foi inovado. Ia O moralmente N., o obrigatório ou o que é de dever, embora algumas vezes continue re­ cebendo esse nome, não pode ser incluído nas formas do N.; 2a O hipoteticamente N., identificando-se com o causai (v.) ou o condicional (v.), com­ partilha o destino desses conceitos; 3a É ao absolutamente N., ao N. "geométri­ co" ou "lógico", que se faz mais freqüentemen­ te referência no domínio do saber filosófico e científico. Wittgenstein diz: "Existe apenas uma necessidade lógica, e assim existe apenas uma impossibilidade lógica" (Tractacus, 6.375). Quase todos os lógicos contemporâneos subscrevem, ou implicitamente admitem, essa tese de Wittgenstein. Não há acordo entre eles, no entanto, quanto à definição de necessidade lógica. As principais doutrinas a respeito são: a) doutrina da analiticidade, b) doutrina da re­ gra; c) doutrina da imunidade, d) doutrina da qualidade. a) A primeira é herdeira da definição leibniziana da necessidade lógica como "impossi­ bilidade do contrário". Peirce dizia que lógica ou essencialmente N. é aquilo que uma pessoa que não conhece os fatos, mas está perfeita­ mente a par das regras do raciocínio e das pala­ vras implícitas no raciocínio, sabe que é verda­ deiro. Tal pessoa, p. ex., não sabe se existe ou não um animal chamado basilisco ou se exis­ tem coisas como serpentes, galinhas e ovos, mas sabe que todo basilisco nasceu de um ovo

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de galinha chocado por uma serpente. "Isso é essencialmente N. porque é isso que a palavra basiliscosignifica."iColl. Pap., 4.67). Lewis, por sua vez, disse que "uma asserção é logica­ mente necessária se, e somente se, o contradi­ tório dela é incompatível consigo mesmo" (Analysis ofKnowledge and Valuation, 1946, p. 89), que nada mais é que uma reformulação da definição de Leibniz. No mesmo sentido Strawson disse que "uma asserção é necessária quando é a contraditória de uma asserção inconsistente" (Intr. to Logical Theory), 1952, p. 22). Carnap, observando que o conceito de necessidade lógica é comumente entendido no sentido de que se aplica a uma proposição p "se e somente se a verdade de p se baseia em razões puramente lógicas e não dependentes da contingência dos fatos, em outras palavras, se a pressuposição de não-p conduz a uma contradição lógica, independentemente dos fa­ tos", identificou a necessidade lógica com a verdade lógica e definiu a verdade lógica, na esteira de Leibniz. como a verdade que é válida em todos os mundos possíveis, ou, em sua terminologia, é válida em qualquer descrição de estado de um sistema.. Sua definição da des­ crição de estado esclarece esse conceito: "Uma classe de enunciados em SI que, para cada enunciado atômico, contém esse enunciado ou sua negação mas não ambas as coisas, nem ne­ nhum outro enunciado, é chamado de descri­ ção de estado em SI, porque ele obviamente dá a descrição completa de um possível estado do universo dos indivíduos em relação a todas as propriedades e relações expressas pelos predicados do sistema. Assim, as descrições de estado representam os mundos possíveis de Leibniz ou os possíveis estados de coisas de Wittgenstein" (Meaning and Necessity, §§ 2 e 39). Essa é a expressão mais rigorosa que a tese da redução da necessidade à analiticidade já teve. No entanto, não esteve imune a críticas (cf., p. ex., QUINE, From a Logical Point ofView, II; A. PAP, Semantics and Necessary Truth, pp. 150 ss.). b) A segunda interpretação da necessidade lógica reduz os enunciados à aplicação da ne­ cessidade a simples regras: regras de transfor­ mação ou, mais simplesmente, regras lingüísti­ cas. A doutrina segundo a qual as "verdades necessárias" da matemática (p. ex., a famosa proposição de que falava Kant, "7 + 5 = 12") nada mais são do que regras de transformação, re­ gras que permitem inferir uma fórmula de

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outra, permitindo, portanto, a possibilidade de substituições recíprocas das fórmulas, já foi ex­ posta pelo Círculo de Viena, especialmente por Schlick, e reaparece freqüentemente na litera­ tura contemporânea (cf., p. ex., K. BRITTON, em Proceedings of the Aristotelian Society, 21S, 1947). Aliás, como também reaparece a doutri­ na segundo a qual as proposições analíticas (ou tautologias) que constituem as "verdades necessárias" da lógica nada mais são que re­ gras lingüísticas ou, mais precisamente, regras semânticas. De fato o enunciado "todos os sol­ teiros são não casados" pode ser interpretado como uma regra para o uso da palavra "soltei­ ro", regra extraída do uso. A objeção algu­ mas vezes formulada contra essas doutrinas, de que elas privariam a verdade N. do nível de "proposição" porque uma proposição é sempre verdadeira ou falsa, enquanto uma regra, ao contrário, é sobretudo útil, conveniente, corre­ ta, etc. (cf., p. ex., PAP, op. cíl., pp. 179 ss.), não é muito concludente, porque demonstra ape­ nas a incompatibilidade entre essa interpreta­ ção de verdade N. e o conceito tradicional de proposição. c) A terceira interpretação da necessidade lógica é a dada por Quine, segundo quem ela seria a imunidade concedida a certas proposi­ ções em matemática e lógica, porquanto, em vista do caráter central que ocupam no sistema, sua revisão perturbaria enormemente esse sis­ tema, cujas características fundamentais tende­ mos a conservar na medida do possível. Desse ponto de vista, N. não significaria "aquilo que não pode ser de outra maneira", mas sim "aqui­ lo sem o que não se quer passar", não porque seja impossível passar sem ele, mas porque assim é preferível. Esta interpretação baseia-se na rejeição da distinção entre verdades analíticas (ou de razão) e verdades sintéticas (ou de fato), nas quais se baseiam as interpretações estuda­ das em a) (QUINE, Methodsof Logic, p. XIII; From a LogicalPoint ofView, II e VIII). Essa interpre­ tação obviamente eqüivale à eliminação do pró­ prio conceito de necessidade. d) A quarta interpretação considera a neces­ sidade como uma propriedade intrínseca das proposições, consideradas como objetos, no sentido de Carnap: precisamente uma proprie­ dade que as proposições possuem antes da formulação das convenções lingüísticas. Desse ponto cie vista, "explicar a necessidade dos princípios tradicionais da inferência dedutiva em termos de convenções lingüísticas significa

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pôr o carro à frente dos bois". Esta é a tese de A. PAP (SemanticsandNecessary Truth, espec. cap. 7; cf. também "Necessary Propositions and LinguisticsRules", em Archivio difilosofia, 1955, pp. 63-105). Segundo essa doutrina, a neces­ sidade lógica não se distingue de uma qualitas occulta. Dessas quatro interpretações, a única que não eqüivale à negação da necessidade é a primeira, que a identifica com analiticidade ou tautologicidade. Trata-se de uma interpretação intimamente ligada ao conceito que Wittgenstein expôs sobre a tautologia: "Entre os possí­ veis grupos de condições de verdade dão-se dois casos extremos: em um, a proposição é verdadeira para todas as possibilidades de verdade das proposições elementares, e nes­ se caso dizemos que as condições de verda­ de são tautológicas; no outro, a proposição é falsa para todas as possibilidades de verdade. as condições de verdade são contraditórias" (Tractatus, 4. 46). Por conseqüência, "a tautologia nào tem condição de verdade porque é incondicionalmente verdadeira, e a contradição a nenhuma condição é verdadeira" (Ibid., 4.461). Isso eqüivale a dizer que uma afirma­ ção incondicionalmente verdadeira, ou seja, uma tautologia, uma proposição N., como se queira chamá-la, é aquela que esgota todas as gamas de possibilidades. Este também é o sig­ nificado da doutrina de Carnap sobre a verda­ de lógica como "descrição de estado", ou seja, como verdade válida para todos os mundos possíveis ou para todos os possíveis estados de coisas. Desse ponto de vista, há necessidade sempre que é possível enumerar todas as possibilidades, e necessidade eqüivale, pra­ ticamente, a onipossibilidade. Não se trata de doutrina recente. No séc. XIV, Ockham só con­ siderava N. as proposições condicionais ou equivalentes ou as que tratam do possível, como, p. ex., "Se existe homem, o homem é animal racional", ou "Todo homem pode ser animal racional" (Quodl., V, q. 15). Como apenas convenções lingüísticas de outra natu­ reza podem limitar convenientemente a gama de possibilidades a que uma proposição faz re­ ferência, está claro que esse conceito de neces­ sidade é inteiramente reduzível a convenção. NECESSIDADE (gr. xpeía ou àváyicn; lat. Necessitas; in. Need; fr. Besoin; ai. Bedürfniss; it. Bisogno). Em geral, dependência do ser vivo em relação a outras coisas ou seres, no que diz respeito à vida ou a quaisquer interesses. Nesse

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sentido, fala-se de "N. materiais", "N. físicas", "N. espirituais", "N. de disciplina", "N. de "re­ gras", "N. de liberdade", "N. de afeto", "N. de felicidade", "N. de ajuda", "N. de comunica­ ção", etc. Qualquer tipo ou forma possível de relação entre o homem e as coisas, ou entre o homem e os outros homens, pode ser conside­ rado sob o aspecto da N., implicando que o ser humano depende dessas relações. Na história da filosofia, a noção de N., nesse sentido (v. NECESSÁRIO), foi tratada sob duas perspecti­ vas: 11) mais freqüentemente do ponto de vista moral, ou seja, como atitude a tomar diante das N., se de limitação ou de incentivo, ou de que modo e em que grau limitá-las; 2-) com menos freqüência, do ponto de vista da importância e do significado que a N. tem em relação ao modo de ser do homem, da possibilidade que ela representa para ele compreender e descre­ ver sua existência. O problema da disciplina das N., ou seja, da sua limitação qualitativa e quantitativa, é o problema da virtude, em espe­ cial da virtude ética, e seus desdobramentos históricos devem ser vistos no verbete Virtude. Aqui, cabe analisar o problema da N. como símbolo, sintoma ou elemento da condição hu­ mana. Na Antigüidade, Platão parece ter reco­ nhecido o valor da N.: esse parece ser o signifi­ cado da importância por ele atribuída ao amor, que, em O Banquete (204-05), interpretou em seu significado mais amplo como falta e busca do que falta. Além disso, em República (II, 369 b ss.), ele atribui a origem do Estado à N.: "Quando um homem se reúne com outro em vista de uma N., e com outro homem em vista de outra N., e quando essa multiplicidade de homens reúne no mesmo local vários ho­ mens que se associam para se ajudar, damos a essa sociedade o nome de Estado." É menos explícita a noção de N. encontrada na filosofia de Aristóteles: este certamente não ignora o seu peso na vida individual e social do homem (como demonstra sua Política), mas não lhe atribui função específica: mesmo a origem do Estado, para ele, deve-se à exigência de viver feliz, o que significa sobretudo vida virtuosa (Pol, VII, 2, 1324 a 5 ss.). A filosofia pós-aristotélica desinteressa-se das necessidades, ainda que Epicuro aconselhe a satisfazê-las (Mass. capit, 26; Fr. 200, Usener), pois está muito ocupada em esboçar o ideal de sábio, dedicado à vida puramente contemplativa. Tampouco lan­ çam mão da N. para interpretar a realida­ de humana a filosofia medieval e a moderna,

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que preferem enfatizar os elementos ou os caracteres que dão destaque à independên­ cia do homem em relação ao mundo, e não a sua dependência. Mesmo falando de um "sis­ tema de N.", Hegel prefere dizer que a N. é do­ minada pelo homem, e não o contáno-. "0 animal tem um círculo limitado de meios e modos de satisfazer âs suas N., que são igualmente li­ mitadas. O homem, ainda que dependa delas, demonstra ao mesmo tempo que as supera e universaliza, sobretudo através da multipli­ cação das N. e dos meios, bem como através da decomposição e da distinção da N. con­ creta" (Fil. do dir, § 190). A primeira afirmação clamorosa da importância das N., para a inter­ pretação do que o homem é ou pode ser, seria vista na filosofia de Schopenhauer, que inter­ pretou como N. — portanto como falta e dor — a vontade de vida que constitui a essência numênica do mundo. "A base de qualquer von­ tade é N., falta, ou seja, dor. à qual o homem está vinculado desde a origem, por nature­ za" (Die Welt, 1819, I. § 57). Fora da metafí­ sica, no terreno da antropologia, quem insistiu na estreita conexão entre N. e natureza huma­ na foi L. Feuerbach (GrimdsàtzederPhílosophie der Zukunft, 1844). Marx, nas obras juvenis (Economia e filosofia, 1844; Ideologia alemã, 1845-46). acentuou a importância das N. e, portanto, do trabalho destinado a satisfazê-las, chegando a tomá-las como tema fundamental de sua antropologia (v. PESSOA). Na filosofia contemporânea, além do marxismo, a impor­ tância da noção de N. para a interpretação da realidade humana é ressaltada de um lado pelo naturalismo e de outro pelo existencialismo. Dewey, p. ex., ao insistir na "matriz biológica" cias atividades humanas (portanto também da lógica), vê a N. como ruptura do instável equi­ líbrio orgânico e o início da busca que tende a restabelecê-lo (Logic, cap. II, trad. it., p. 63). por outro lado, na definição de "ser-no-munclo" por Heidegger. em que a existência do homem consiste em cuidado [cura] (v.), o ho­ mem depende do mundo, "está lançado no mundo, que domina as possibilidades huma­ nas de relações com as coisas e com os outros homens" (Sein undZeit, §§ 39 ss., cf. § 20). A no­ ção de N. que emerge dessas considerações não é de estado provisório de falta ou deficiência (tem-se necessidade de ar, apesar de este existir em abundância), mas de estado ou condição de dependência que caracteriza de modo específi­ co o homem e, em geral, o ser finito no mundo.

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NECESSITARISMO (in. Necessitarianism; fr. Nécessitarisme, it. Necessitarismo). Este ter­ mo, muito usado em inglês, é útil para indicar o conjunto das doutrinas que, de alguma manei­ ra, atribuem posição eminente ao conceito de necessário ou o utilizam sistematicamente. Po­ dem ser enumeradas pelo menos três doutri­ nas fundamentais desse gênero: Ia A doutrina que admite o destino, a ordem finalista ou providencial do mundo como or­ dem que determina necessariamente todas as coisas e a cada coisa garante o melhor resulta­ do. Esta doutrina pode ser chamada de providencialismo ou fatalismo, mas este último termo é empregado apenas por quem a com­ bate ou pelo menos se opõe a alguns de seus aspectos (v. DESTINO; PROVIDÊNCIA). O signifi­ cado de necessário ao qual tal doutrina faz re­ ferência é o a) de Aristóteles e c) de S. Tomás de Aquino. 2- A doutrina segundo a qual a ordem do mundo consiste na conexão causai universal; faz referência ao necessário no significado a) de Aristóteles, d) de S. Tomás de Aquino, b) de Leibniz, de Wolff e de Kant. Trata-se do deter­ minismo rigoroso ou clássico, que melhor seria chamar de causalismo (v. CAUSALIDADE; DE­ TERMINISMO). 3a A doutrina segundo a qual a necessidade constitui o significado primário e fundamental do ser, utilizando-o como critério para a avalia­ ção e a análise de todas as coisas existentes. Esse significado de N. é certamente o mais im­ portante e fundamental, ao qual o termo deve­ ria referir-se de preferência. Para essa doutrina, o necessário é a categoria fundamental, o hori­ zonte geral que abrange todos os instrumentos de investigação e explicação que é possível uti­ lizar. Freqüentemente essa doutrina não admite a necessidade no mesmo sentido da Ia e da 2a; Aristóteles e S. Tomás de Aquino, p. ex., que podem ser considerados exemplos importantes dessa doutrina, embora admitindo a necessida­ de do destino, não admitem a necessidade causai absoluta; no entanto são necessitaristas no sentido de que, para eles, o significa­ do fundamental do ser é a necessidade, e de que esse significado está presente na constru­ ção de todos os conceitos fundamentais de sua filosofia. No mesmo sentido, é necessitarista a doutrina de Hegel e são necessitaristas todas as doutrinas que se inspiram no idealismo ro­ mântico. Mas o aparato conceituai do N. difun­ diu-se muito além desta ou daquela doutrina:

NEGATIVO

conceitos como os de causa e substância, com todas as suas inferências, que são numero­ síssimas, dominam ainda vastas zonas do dis­ curso comum, científico e filosófico e induzem seu sentido necessitarista nas análises da ciên­ cia e da filosofia. NEGAÇÃO (gr. à7TÓ(pacJiÇ; lat. Negatio; in. Negation-, fr. Négation; ai. Verneigung, Negation-, it. Negazione). Termo com o qual se pode designar tanto o ato de negar quanto o conteúdo negado, ou seja, a proposição negati­ va, chamada em grego ànóqaoiq (lat. nega­ tio. Boécio) e definida como "enunciado que divide algo de algo" (De inteipr., 17 a 26), por­ quanto, segundo a mesma doutrina aristotélica, separa ou afasta dois conceitos. Substancial­ mente, a tradição lógica subseqüente conser­ vou essa doutrina e portanto este significado do termo N.; foram só os seguidores da teoria do juízo como assentimento (Rosmini, Fr. Brentano, Husserl) que consideraram a N. como ato de contestação (recusa, repúdio, Verneigung) de uma representação ou idéia. Na Lógica sim­ bólica contemporânea a N. é representada por um símbolo especial ("~") que, anteposto ao símbolo de uma proposição "p", transforma-a na afirmação de que "p" é falsa (Russell) ou numa nova proposição (molecular), função de verdade de "p", mais precisamente (na Lógica com dois valores) na proposição que é falsa quando "p" é verdadeira e verdadeira quando "p" é falsa (Wittgenstein, Carnap). G. P. NEGATIVO (gr. àjcoçcmKÓç; lat. Negatívusin. Negative-, fr. Négatif; ai. NegatiiK it. Negati­ vo). Aquilo que efetua ou implica uma nega­ ção, ou seja, uma exclusão de possibilidade. Uma entidade N. (p. ex., uma proposição) não implica que subsiste a entidade positiva corres­ pondente à qual depois é acrescentada a nega­ ção, mas é simplesmente a exclusão de uma possibilidade e, na maior parte das vezes, de uma possibilidade formulada somente com o fim de excluí-la. Os múltiplos usos desse termo podem inte­ grar-se neste significado fundamental. "Resulta­ do N." de um experimento significa exclusão de certa possibilidade de interpretação ou de explicação. "Efeito N." de certa operação signi­ fica exclusão daquilo que se esperava ser pos­ sível a partir da operação. "Atitude N." em re­ lação a uma doutrina ou a uma coisa qualquer é a atitude que exclui a possibilidade de que a doutrina seja verdadeira ou de que a coisa te­ nha um valor qualquer, etc.

NEOCRIT1CISMO

NEOCRITICISMO (in. Neo-Criticism; fr. Néocriticisme; ai. Neukantianisnius-, it. Neocriticismó). Movimento de "retorno a Kant" ini­ ciado na Alemanha em meados do século pas­ sado e que deu origem a algumas das mais importantes manifestações da filosofia contem­ porânea. As características comuns de todas as correntes do N. são as seguintes: Ia negação da metafísica e redução da filosofia a reflexão so­ bre a ciência, vale dizer, a teoria do conheci­ mento; 2- distinção entre o aspecto psicológico e o aspecto lógico-objetivo do conhecimento, em virtude da qual a validade de um conheci­ mento é completamente independente do mo­ do como ele é psicologicamente adquirido ou conservado; 3a tentativa de partir das estru­ turas da ciência, tanto da natureza quanto do espírito, para chegar às estruturas do sujeito que a possibilitariam. Na Alemanha, a corrente neocriticista foi constituída pelas seguintes escolas: ls de Marburgo (Marburger Schule), à qual per­ tenceram F. A. Lange, H. Cohen, P. Natorp, E. Cassirer, e à qual também se liga, em parte, Nicolai Hartmann; 2" de Baden (Badísche Schule), fundada por W. Windelband e H. Rickert, 3e historicismo alemão, com G. Simmel, G. Dilthey, E. Troeltsch, etc. Esta última escola formulou o problema da história ana­ logamente ao modo como as outras escolas kantianas formulavam o problema da ciência natural (v. HISTORICISMO). Fora da Alemanha, vinculam-se à corrente neocriticista C. Renouvier e L. Brunschvicg, na França, S. H. Hodgson e R. Adamson, na Inglaterra, e Banfi na Itália. NEO-HEGEIIAMSMO (in.Neo-Hegelianism; fr. Néo-Hegélianisme, ai. Neuhegelianismus-, it. Neohegelismó). Retorno ao idealismo român­ tico, ocorrido na Inglaterra, na Itália e na Amé­ rica nos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX. O N., assim como o idealismo romântico de que é sucessor direto, tem como tese fundamental a identidade entre finito e infinito, a redução do homem e do mundo da experiência humana ao Absoluto. O neo-idealismo anglo-americano e o italiano distinguem-se no modo de efetuarem essa redu­ ção. O idealismo anglo-americano faz isso por vias negativas, mostrando que o finito, por sua intrínseca irracionalidade, não é real, ou é real apenas na medida em que revela e manifesta o infinito. O idealismo italiano utiliza as vias posi­ tivas, mostrando na própria estrutura do finito, em sua racionalidade intrínseca e necessária, a

710

NEOPLATONISMO

presença e a realidade do infinito. Este era tam­ bém o modo sustentado por Hegel e por todo o idealismo romântico. À corrente inglesa per­ tencem C. H. Stirling, T. H. Green, B. Bosanquet, J. E. McTaggart e especialmente F. H Bradley, que é o seu maior representante. Na América, o maior expoente do N. foi J. Royce. Os maiores representantes do idealismo italia­ no foram G. Gentile e B. Croce. Sobre todos, v. IDEALISMO. NEO-IDEALISMO. V. NEO-HEGELIAMSMO.

NEOKANTISMO. V. NEOCRITICISMO. NEOPITAGORISMO (in. Neo-Pythagorianism; fr. Néo-pythagorisme, ai. Neupythagoreismus; it. Neopitagorismo). Revivescência da fi­ losofia pitagórica que se manifestou no séc. I a.C, tanto com o aparecimento de textos pitagóricos de falsa atribuição (Ditos áureos, Símbolos, Cartas, atribuídos a Pitágoras) e de outros atribuídos ao lucano Ocello e a Hermes Trismegisto, quanto com o florescimento de filósofos que declaravam inspirar-se nas dou­ trinas do pitagorismo antigo. Entre eles: Nigídio Figulo, Apolônio de Tiana, Nicômaco de Gerasa e principalmente Numênio de Apaméia (séc. 1 d.C). As doutrinas destes escritores nada têm de original, mas apresentam caracte­ rísticas que se tornaram próprias do neoplatonismo (v.). NEOPLATONISMO (in. Neo-Platonism; fr. Néoplatonisme, ai. Neuplatonismus; it. Neoplatonismo). Escola filosófica fundada em Alexan­ dria por Amônio Saccas no séc. II d.C, cujos maiores representantes são Plotino, Jâmblico e Procios. O N. é uma escolástica, ou seja, a uti­ lização da filosofia platônica (filtrada através do neopitagorismo, do platonismo médio e de Filon) para a defesa de verdades religiosas re­ veladas ao homem ab antiquo e que podiam ser redescobertas na intimidade da consciência. Os fundamentos do N. são os seguintes: 1Q caráter de revelação da verdade, que, portanto, é de natureza religiosa e se manifesta nas instituições religiosas existentes e na refle­ xão do homem sobre si próprio; 2- caráter absoluto da transcendência di­ vina: Deus, visto como o Bem, está além de qualquer determinação cognoscível e é jul­ gado inefável; 3<J teoria da emanação, ou seja, todas as coi­ sas existentes derivam necessariamente de Deus e vào-se tornando cada vez menos perfeitas à medida que se afastam d'Ele; conseqüente­ mente o mundo inteligível (Deus, Intelecto e

NEOPOSITIVISMO

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Alma do mundo) é distinto do mundo sensível (ou material), que é uma imagem ou manifes­ tação do outro; 4y retorno do mundo a Deus através do ho­ mem e de sua progressiva interiorizaçâo, até o ponto do êxtase, que é a união com Deus. No N. costumam ser distinguidas as seguin­ tes escolas: Siríaca, fundada por Jâmblico; de Pérgamo, à qtial pertencem, entre outros, o imperador] uliano, chamado o Apóstata; de Ate­ nas, cujo maior representante foi Proclos. Mas a influência das doutrinas fundamentais do N. sobre muitas correntes do pensamento filosó­ fico roram e continuam sendo profundas. O "platonismo" do Renascimento na reali­ dade é um N. que repete, com algumas varia­ ções, as teses acima expostas. As variações que caracterizam o N. renascentista (de Cusa, Pico delia Mirandola e Ficino) são relativas ã maior importância atribuída ao homem e à sua fun­ ção no mundo, de acordo com o espírito geral do Renascimento (v.). O N. inglês, ao contrá­ rio, é uma forma de racionalismo religioso que floresceu na escola de Cambridge no séc. XVII (Cudworth, Moore, Whichcote, Smith. Culverwel): por um lado, opõe-se ao materaislismo de Hobbes e, por outro, sustenta que as idéias fundamentais da religião foram impressas dire­ tamente por Deus na razão e no intelecto do homem, c por isso precedem o conhecimento empírico das coisas naturais. Mas mesmo no N. inglês são muitos os temas do Renascimento, especialmente de Ficino. NEOPOSITIVISMO (in. Neo-positivism, fr. Néo-positivisme, ai. Neupositivismus; it. Neopositivismo). 1. O mesmo que empirismo lógi­ co (v.). 2. Nome dado algumas vezes â doutrina de Bergson (LE ROY, Lhi positivisme nonveau, 1901). NEO-REALISMO (in. New Realism- fr. Néorealisme; ai. Neurealismus-, it. Neorealismo). Recebem esse nome as correntes do pensa­ mento contemporâneo cuja insígnia é a nega­ ção do idealismognosiológico (v.), a negação da redução do objeto do conhecimento a um modo de ser do sujeito. O idealismo gnosiológico foi o clima dominante da filosofia no séc. XIX, pois que era compartilhado não só pelo idealismo romântico, mas também pelo espiritualismo, pelo neocriticismo e, em geral, por todas as filosofias consciencialistas. Exce­ ções a essa tendência geral foram, inicialmen­ te, a filosofia da imanência de G. Schuppe e a

NEOTOMISMO

obra de O. Külpe (Einleitung in die Philosophie, 1895). Mas foi só a partir do ensaio de G. E. MOORE, 'A refutaçào do idealismo", pu­ blicado em Míndi 1903), que teve início a nova história do realismo. Depois disso, o realismo foi defendido na Inglaterra por B. Russell e S. Alexander. enquanto na América um volume coletivo datado de 1912 e intitulado O novo realismo afirmava as leses de um realismo atualizado, que, com outra forma, seriam repropostas alguns anos mais tarde em Ensaios de realismo crítico (1920). publicados por outro grupo de filósofos americanos. No primeiro gru­ po a figura mais conhecida foi W. P. Montague; no segundo grupo, G. Santayana. Mais tarde, o novo realismo encontrou seguidores em A. N. Whitehead e em N. Hartmann. O novo realismo contém correntes dou­ trinais tão diferentes quantos são os filósofos que o professam, mas há uma tese fundamen­ tal, comum a todos, que, além de constituir sua novidade e a característica que o distingue do realismo tradicional, também serve de li­ nha de defesa contra o idealismo. Essa tese é a seguinte: a relação cognitiva (a relação en­ tre o objeto do conhecimento e o sujeito, que é a mente que o apreende) não modifi­ ca a natureza do objeto. Essa tese inspira-se na noção matemática de "relação externa", que não modifica os termos relativos, Esta, como é óbvio, elimina completamente a de­ pendência existencial ou qualitativa do obje­ to do conhecimento em relação ao sujeito e torna o idealismo sem sentido. Apesar de afastados por todos os outros aspectos, Moore, Montague, Santayana, Alexander, Hartmann compartilham dessa tese. NEOTOMISMO (in. Neo-Thomism- fr. Néothomisme, ai. Neuthomismus; it. Neotomismo). Com este termo ou com o outro, bem menos apropriado, de "neo-escolástica" entende-se o movimento de retorno à doutrina de S. Tomás de Aquino, no seio da cultura católica, que foi iniciado pela encíclica Aetemi Patris de Leão XIII (4 de agosto de 1879). Esse movimento consiste na defesa das teses filosóficas tomistas contra as diversas tendências da filosofia con­ temporânea e. indiretamente, na reelaboraçâo e na modernização de tais teses. Uma das pri­ meiras figuras do N. foi o cardeal belga Désiré Mercier (falecido em 1925), enquanto entre as figuras mais conhecidas do mundo contempo­ râneo estão E. Gilson e I. Maritain. Habitual­ mente o tomismo aceita a problemática da filo­

NEOVITALISMO

sofia contemporânea, mas procura integrá-la na sistemática tomista. Um dos mais importantes efeitos da florescência neotomista foi a im­ portância que voltou a ser atribuída, a partir dos últimos decênios do séc. XIX, aos estudos de filosofia medieval, isto é. da escolástica clássica. NEOVITALISMO. V. VITALISMO. NESTORIANISMO (in. Nestorianism; fr. Nestorianisme, ai. Nestorianism us; it. Nestorianismo). Doutrina de Nestório, patriarca de Constantinopla (428-31), segundo a qual, havendo em Cristo duas naturezas, há também duas pes­ soas: uma habita na outra como em um tem­ plo. Nestório negava também que Maria fosse mãe de Deus e chamava de lenda paga a idéia cie um Deus envolto em fraldas e crucificado. Essa interpretação da encarnaçào já havia sido sustentada por Deodoro de Tarso (falecido por volta de 394) e por seu discípulo Deodoro de Mopsuéstia (falecido por volta de 428). Foi con­ denada pelo concilio de Éfeso de 431, mas subsistiu por muito tempo, e ainda sobrevive em grupos da Turquia asiática e da Pérsia. NEUTRALISMOGn. Neutralism). Termo em­ pregado por Pcirce como sinônimo de monismo (Chance, Love and Logic, II, 1; trad. it., p. 121) (v. MONISMO). NEUTRALIZAÇÃO (ai. Neutralisierung). Com este termo, Husserl indicou a suspensão da crença; "o que é existente, possível, veros­ símil ou discutível, como também o nào-existente, em qualquer negação ou afirmação, es­ tão presentes na consciência, não à maneira do real, mas sim como 'mero pensado' ou 'mero pensamento' " (Ideen, I, § 109) (v. EPOCHK). NEUTRO, MONISMO (in. Neutra! monism). Com esta expressão às vezes é designa­ da, nos Estados Unidos, a tese do neo-realismo segundo a qual as entidades que entram na composição do espírito e da matéria nào são mentais nem materiais, mas adquirem tais qua­ lificações em virtude das relações em que en­ tram. Na verdade este ponto de vista foi susten­ tado pelo empiriocriticismoiv.) de Avenarius e por Mach. NEXO (lat. Nexus; in. Bond; fr. Connexíon; ai. Zusammenhang; it. Nesso). Conexão das coisas entre si, na ordem causai ou final: Kant chama o primeiro de nexus effectivus e o se­ gundo de nexus finalis (Crít. do Juízo, § 87). Whitehead deu esse nome (nexus) às cone­ xões reais entre as coisas, por ele consideradas como elementos últimos da realidade, junta­

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NIILISMO

mente com as próprias coisas e com as percep­ ções (Process andReality, 1929). NEWTONIANISMO (in. Newtonianism; fr. Newtonianisme-, ai. Newtonianismus; it. Newtonismo). Com este termo foi designada princi­ palmente a doutrina de Newton da gravitaçào universal, que consiste na generalização das leis da gravitaçào a todo o universo e na formu­ lação dessas leis através da fórmula única: os corpos se atraem proporcionalmente ao produ­ to das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Essa lei foi enunciada por Newton pela primeira vez em Propositiones de motu (1684) e depois em Princípios matemáticos de filosofia natural (1687). NIAIA. Um dos grandes sistemas filosóficos da índia antiga, caracterizado pela importância da doutrina do conhecimento e de seus obje­ tos. O N. enumera quatro meios de conhe­ cimento: percepção, inferência, analogia e testemunho; define como verdadeiro o conhe­ cimento que nào está sujeito a contradições ou dúvidas, e que reproduz o objeto como ele é; e faz um inventário dos objetos cognoscíveis e de suas características. Entre estes inclui o mun­ do físico, com seus elementos, o homem, em seu corpo e suas atividades espirituais, o es­ paço ou o tempo. Deus e, em geral, as condi­ ções de existência das coisas físicas ou espiri­ tuais (cfr. G. Ti.cci, Storia deliafilosofia india­ na, 1957, pp. 112 ss.). NIILISMO (in. Nihilism; fr. Nihilisme, ai. Nihilismus; it. Nichílismo). Termo usado na maioria das vezes com intuito polêmico, para designar doutrinas que se recusam a reconhe­ cer realidades ou valores cuja admissão é con­ siderada importante. Assim, Hamilton usou esse termo para qualificar a doutrina de Hume, que nega a realidade substancial (Lectures on Metaphysics, I, pp. 293-94); nesse caso a paiavra quer dizer fenomenismo. Em outros casos, é empregada para indicar as atitudes dos que negam determinados valores morais ou políti­ cos. Nietzsche foi o único a não utilizar esse termo com intuitos polêmicos, empregando-o para qualificar sua oposição radical aos valores morais tradicionais e às tradicionais crenças metafísicas: "O N. não é somente um conjunto de considerações sobre o tema 'Tudo é vão', não é somente a crença de que tudo merece morrer, mas consiste em colocar a mão na massa, em destruir. (...) É o estado dos espíri­ tos fortes e das vontades fortes do qual não é possível atribuir um juízo negativo: a negação

NIRVANA

ativa corresponde mais à sua natureza profun­ da" (Wille zurMacht, ed. Krõner, XV, § 24). NIRVANA. Extinção das paixões e do dese­ jo de viver, portanto da corrente dos nascimen­ tos, na doutrina budista. ''Essa ilha incompará­ vel em que tudo desaparece e todo apego cessa, chamo de N., destruição da velhice e da morte" (Suttanípâta, V, 11). Na filosofia oci­ dental, Schopenhauer adotou essa noção, ven­ do nela a negação da vontade de viver, cuja exigência brota do conhecimento da natureza dolorosa e trágica da vida (Die Welt, I, § 71; II, cap. 41). NOÇÃO (gr. evvoioc, 7rpóA.r|\|nç; lat. Notio; in. Notion; fr. Notion; ai. Notion; it. Nozione). Dois significados fundamentais: um muito geral, em que N. é qualquer ato de operação cognitiva, e outro específico, em que é uma classe especial de atos ou operações cognitivas. Para Cícero, que introduziu esse termo, ele corresponde a evvoia, que tem significado muito geral, e a 7tpó?ir|i|n.ç;, que é a antecipação, uma espécie particular e privilegiada de conheci­ mento (Top., 7, 3D. Na Idade Média, João de Salisbury empregou esse termo no sentido ge­ ral, referindo-se precisamente ao grego Êvvota (Metal, II, 20); em sentido geral também era empregado por Jungius, que entendia a N. como "a primeira operação de nosso intelecto, pela qual exprimimos uma coisa com uma ima­ gem" (Log. hamburgensís, 1638, Prol., 3). Locke, ao contrário, pretendia restringir esse termo às idéias complexas "que parecem ter ori­ gem e existência constante mais no pensa­ mento dos homens que na realidade das coisas" (Ensaio, II, 22, 2), enquanto Leibniz observava que "muitos aplicam a palavra N. a qual quer espécie de idéias ou concepções, tanto às originais quanto às derivadas" (Nouv. ess., II, 22, 2). Berkeley. por sua vez, restringia esse termo ao conhecimento que o espírito tem de si mesmo e da relação entre as idéias: conheci­ mento que, por sua vez, não é urna idéia (Princ. of Human Knowledge, I, §§ 27, 89, 140, etc; cf. a nota ao § 27 da edição dos Principies, em Works, ed. T. E. Jessop, II, p. 53). Kant tam­ bém atribuía significado restrito a esse termo, entendendo por N. "o conceito puro, porquan­ to tem origem unicamente no intelecto", reser­ vando o termo "representação" para o significa­ do geral de N. (Crít. R. Pura, Dial. transe, I, seção 1). Wolff, inversamente, afirmara: "A re­ presentação das coisas na mente é N., por ou­ tros chamada de idéia" (Log, § 34).

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NOLIÇÃO

Nenhum dos significados específicos pro­ postos para esse termo teve grande aceitação; hoje resta quase exclusivamente o significado genérico de operação, ato ou elemento cog­ nitivo em geral. NOÇÕES COMUNS (gr. KOVOi êvvciOU.; lat. Notiones communes). São as antecipações (v.) dos estóicos, às quais freqüentemente se fez re­ ferência na história da filosofia: cf., p. ex., SPINOZA, Et., II, 38, Cor.; LF.IBNIZ, NOUV. ess., A vantpropos, etc. NODAL, LINHA (ai. Knotenlinie). Foi as­ sim que Hegel designou a passagem da quanti­ dade à qualidade que se dá por mudança da quantidade, p. ex., quando a mudança da quan­ tidade de calor na água produz a sua passa­ gem do estado líquido para o sólido ou para o gasoso (Wissenschafí der Logik, I, seção III, cap. 11, B; trad. it., I, pp. 444 ss.). Esse conceito teve mais aceitação fora do hegelismo que em seu seio. Kierkegaard extraiu daí seu conceito de salto (v.) e Engels fez da passagem da quan­ tidade para a qualidade uma das leis funda­ mentais da dialética (Dialektik derNatur, trad. it., p. 57) (v. DIALÉTICA; SALTO). NOEMA (ai. Noema). Na terminologia de Husserl, o aspecto objetivo da vivência, ou seja, o objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado (p. ex., o percebido, o recordado, o imaginado). O N. é distinto do próprio objeto, que é a coisa; p. ex., o objeto da percepção da árvore é a árvore, mas o N. dessa percepção é o complexo dos predicados e dos modos de ser dados pela ex­ periência: p. ex., árvore verde, iluminada, não iluminada, percebida, lembrada, etc. (Ideen, 1, § 88). O adjetivo correspondente é noemãtico. NOESE (ai. Noesis). Na terminologia de Husserl, o aspecto subjetivo da vivência, consti­ tuído por todos os atos de compreensão que visam a apreender o objeto, tais como perce­ ber, lembrar, imaginar, etc. (Ideen, I, § 92). O adjetivo correspondente é noétíco. NOÉTICA (in. Noetic; fr. Noétique, ai. Noêtik, it. Noetica). Foi assim que Hamilton de­ nominou a parte da lógica que estuda "as leis fundamentais do pensamento", que são os qua­ tro princípios: identidade, contradição, terceiro excluído e razão suficiente (Lectures on Logic, V, I, p. 72). Esse uso foi adotado por poucos autores. NOLIÇÂO (lat. Noluntas; in. Nolition; fr. Nolonté, ai. Nolitio; it. Nolontã). Não querer ou fugir. Esse termo é raríssimo, em todas as lín­

NOME

guas. Segundo S. Tomás de Aquino, "o dese­ jo do bem chama-se vontade, porquanto é o nome do ato de vontade, mas a fuga ao mal chama-se noluntas. Por isso, assim como a vontade é do bem, a noluntasé do mal" (S. Th., II, 1, q. 8. a. 1). No mesmo sentido, esse termo recorre em Wolff (Phil. practica, I, § 38). Está claro que neste sentido a N. é vontade po­ sitiva, assim como a chamada vontade. Outros autores, ao contrário, a entenderam no sentido de vontade inibida ou ausência de vontade (RENOUVIF.R e PRAT, Monadologie, p. 231). Este segundo sentido é decididamente impróprio. NOME (gr. õvo|ia; lat. Nomen; in. Name, fr. Nom; ai. Name, it. Nome). A palavra ou o sím­ bolo que indica um objeto qualquer. Os pro­ blemas a que o N. dá origem como palavra ou símbolo (p. ex., o de origem ou de validade) encontram-se no verbete linguagem (v.). Aqui cabe apenas lembrar as determinações especí­ ficas que os lógicos emprestaram ao conceito de N. Quando Platão define o N. como "instru­ mento apto a ensinar e fazer discernir a essên­ cia, do mesmo modo como a lançadeira está apta a tecer a tela" (Crat, 388 b), sua definição adapta-se a qualquer termo ou expressão lin­ güística. Aristóteles, ao contrário, foi o primei­ ro a analisar especificamente o N.: "O N. é um som vocal significativo por convenção, que prescinde do tempo e cujas partes não são sig­ nificativas se tomadas separadamente" (De int., 2, 16 a 19). Por "prescindir do tempo", o N. dis­ tingue-se do verbo, que sempre tem determi­ nação temporal. Por não ter partes significati­ vas por si mesmas, o N. distingue-se do dis­ curso. E como Aristóteles observe que a ex­ pressão infinita "não homem" não é um N.. os lógicos posteriores acrescentaram à sua defini­ ção de N. a caracterização "finita" e também "reta", para excluir os casos oblíquos do N., que interessam ao gramático, e não ao lógico (PEDRO HISPANO, Summ. log;., 1.04). O próprio Aristóteles advertia (De int, 2, 16 a 23) que o N. nem sempre é simples, e nesse sentido sua definição era modificada do seguinte modo por Jungius, no séc. XVII: "Por N. entende-se um símbolo ou signo, instituído para determinada coisa e para a noção que representa a coisa, quer se trate de um N. gramaticalmente único, quer se trate de um N. composto por mais vo­ cábulos (Log. hamburgensis, 1638, IV, 2, 10). Na lógica contemporânea, a função do N. foi analisada principalmente em função daquilo que Carnap chamou de "antinomia relaçào-N.".

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NOME

Esta antinomia fora vislumbrada por Frege ("Über Sinn und Bedeutung", 1892, em Aritmé­ tica e lógica, ed. Geymonat, pp. 215-52), mas foi formulada como tal por Russell ("On Denoting", 1905, agora em Logic andKnowledge, pp. 41-56). Resulta do fato de que dois N. sinônimos (que têm o mesmo significa­ do) devem poder ser substituídos um pelo outro sem que mude o significado e o valor de verdade de contexto. Ora, "Sir Walter Scott" e "autor de Waverley são nomes sinônimos, por­ tanto substituíveis. Contudo, se na frase "Jorge IV perguntou uma vez se Scott era o autor de Waverley' substituirmos "autor de Waverlef pelo N. sinônimo "Scott", a frase resultante será falsa, pois ficará: "Jorge IV perguntou uma vez se Scott era Scott." Essa antinomia recebeu duas soluções prin­ cipais na lógica contemporânea: a primeira consiste essencialmente em reduzir a denotaçâo a uma descrição em termos direta ou indi­ retamente redutíveis a experiências elementa­ res. Esta solução foi proposta por Russell (que a expôs no ensaio citado e depois no primeiro vol. de Principia mathematíca, 1910). Segundo Russell, a frase "Jorge IV, etc." pode significar: a) "Jorge IV queria saber se um homem e só um homem escreveu Waverley e se Scott era esse homem", ou b) "Um homem e só um ho­ mem escreveu Waverley e Jorge IV queria sa­ ber se Scott era esse homem". E Russell diz: neste segundo caso "o autor de Waverley ocor­ re de modo primário (primary oceurrence), porque supõe que Jorge IV tem algum co­ nhecimento direto de Scott. Na primeira, ao contrário, a frase ocorre de modo secundário, no sentido de que não supõe um conhecimen­ to direto de Scott" ("On Denoting", op. cit, p. 72). Essa teoria, além de pressupor a diferença entre conhecimento direto e conhecimento in­ direto, eqüivale a reduzir os- N. próprios a N. comuns e os N. comuns a N. próprios, que denotam elementos extraídos da experiência direta. Teorias semelhantes a estas foram apre­ sentadas por Quine (Methods of Logic, 1950, § 33; From a LogícalPoíntofVieiv, 1953, cap. 1) e por outros. A segunda solução da antinomia relaçào-N. é proposta pelo próprio Frege. Consiste em distinguir o significado (Bedeutung, Meaning), como denotação, do sentido (Sinn, Sense). A denotação é a referência do N. ao objeto: "Sr Walter Scott" e "autor de Waverley têm a mes­ ma denotação porque se referem ao mesmo

NOMINAL, DEFINIÇÃO

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objeto. O sentido, ao contrário, como dizia Fre­ ge, é "algo logo apreendido por quem conhece suficientemente a língua (ou em geral o con­ junto de signos) a que o N. pertence" ("Über Sinn und Bedeutung", § 1; ed. it. cit., p. 219): assim, dois N. podem ter sentidos diferentes, mesmo que se refiram ao mesmo objeto. Esse é precisamente o caso das duas expressões citadas, e, como é possível compreender o senti­ do de um N. sem conhecer sua denotação, per­ guntas como a que foi atribuída a Jorge IV significam um pedido de informações referen­ te à identidade de suas denotaçòes. Essa solu­ ção foi repetida com variações por Carnap (MeaningandNecessity, §§ 31-32) e por Church (Lntr. to MathematicalLogic, 1958, § 1). E parece ser uma solução preferível porque não exige pres­ supostos particulares sobre a natureza da lin­ guagem. NOMINAL, DEFINIÇÃO.

V. DEFINIÇÃO.

NOMINALISMO (in. Nominalism; fr. Nomínalisme, ai. Nominalismus; it. Nominalismo). Doutrina dos filósofos nominales ou nominalistas, que constituíram uma das grandes cor­ rentes da Escolástica. Os termos nominalista (nominalís) ou terminista (terminista) foram usados somente no princípio do séc. XV (v. TERMINISMO), mas O'ton de Freising, em sua crônica Gesta Friderici imperatoris (1, 47), afir­ mava que Roscelin fora "o primeiro em nossos tempos a propor em lógica a doutrina das pala­ vras (sententiam vocum)". No princípio do séc. XII o N. era defendido por Abelardo (v. UNI­ VERSAIS), mas seu triunfo na Escolástica foi de­ vido à obra de Guilherme de Ockham (c. 1280c.1349), que com razão foi chamado de Princeps Nomínalium. Assim exprimia Ockham sua con­ vicção sobre o assunto: "Nada fora da alma, nem por si nem por algo de real ou de racional que lhe seja acrescentado, de qualquer modo que seja considerado e entendido, é universal, pois é tão impossível que algo fora da alma seja de qualquer modo universal (a menos que isso se dê por convenção, como quando se considera universal a palavra 'homem', que é particular), quanto é impossível que o homem, segundo qualquer consideração ou qualquer ser, seja o asno" (In Sent., I, d. II, q. 7 S-T). Do ponto de vista positivo, o N. admite que o uni­ versal ou conceito é um signo dotado da capa­ cidade de ser predicado de várias coisas. O conceito já fora assim definido por Abelardo (v. UNIVERSAIS, DISPUTA DOS).

NON CAUSA PRO CAUSA

Ao traçar uma breve história do N., a propó­ sito de Nizólio, Leibniz dizia que "são nominalistas todos os que acreditam que, além das substâncias singulares, só existem os nomes puros e, portanto, eliminam a realidade das coisas abstratas e universais"; para ele, o N. assim entendido começava com Roscelin, e en­ tre os nominalistas, além do próprio Nizólio, estava também Thomas Hobbes (De stilo philosophíco Nízolii, 1670, Op, ed. Erdmann, p. 69). Essas observações e inclusões de Leibniz foram aceitas pelos historiadores da filosofia. Em época mais recente, esse termo desig­ nou a interpretação convencionalista da física: p. ex., Poincaré empregou em relação a Le Roy (La scíence et 1'hypothèse, p. 3). Algumas vezes os lógicos modernos usam esse termo para indicar a doutrina segundo a qual a linguagem das ciências contém apenas variáveis individuais, cujos valores são objetos concretos, e não classes, propriedades e simi­ lares (QUINE, From a Logical Point ofVieiv, VI, 4 ss.; CARNAP, MeaningandNecessity, § 10). NOMINALIZAÇÃO (ai. Nominalisierung). Husserl entendeu por "lei de N." a lei segundo a qual "a cada proposição e a cada forma par­ cial distinguível na proposição corresponde um elemento nominal" (Ldeen, I, § 119), o que sig­ nifica, p. ex., que à proposição "Sé P" pode corresponder o elemento único nominal "o ser Pde 5" na qual "ser P" pode significar a seme­ lhança, a pluralidade, etc. NOMOLOGIA (in. Nomology, fr. Nomologie; ai. Nomologie, it. Nomologid). Termo raramente usado na filosofia do séc. XIX para indicar a ciência da legislação. Husserl chamou de "N. aritmética" a matemática universal (Logísche Untersuchungen, I, § 64). NOMOTETICO(al Nomothetisch). Kant cha­ mou de N., o que dá leis, o juízo reflexivo (v.), porquanto fornece máximas para a unifi­ cação das leis naturais; afirma que não é N. o juízo transcendental, "que contém as con­ dições para a subsunção em categorias" e scj faz "indicar as condições da intuição sen­ sível nas quais se pode conferir realidade (aplicação) a um conceito dado" (Crít. do Juízo, § 69). Windelband chamou de nomotéticas as ciências naturais, em contraposição às ciências do espírito, ou ciências históricas, de­ nominadas idiográficas (Prãludien, 5a ed., II, p. 145) (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS).

NON CAUSA PRO CAUSA (gr. xò |iii aiTiov tóç aíxiov). Um dos sofismas enunciados por

NON-ENS LOGICUM

Aristóteles {El. sof, 5, 167 b 21), que consiste em assumir como causa (ou seja. como premis­ sa) aquilo que não o é, donde resultam uma conseqüência impossível e a aparente refu­ tação do adversário. É uma falácia que ocorre especialmente na redução ao absurdo. O exemplo dado por Aristóteles é o seguinte: Quem quiser reduzir ao absurdo a afirmação de que alma e vida são a mesma coisa assim procederá: a morte e a vida são contrárias; a geração e a corrupção são contrárias; mas a morte é corrupção, logo a vida é geração. Mas isto é impossível, porque o que vive não gera, mas é gerado; portanto, alma e vida não são a mesma coisa. A falácia aqui consiste em elimi­ nar a premissa "Alma e vida são a mesma coi­ sa" e substitui-la por outra: "Morte e vida são coisas contrárias" (cf. PFDRO HISPANO, Summ. log., 7.56-57; AKNALLD, Log., III, 19. 3; JLNGILS. Log., VI, 12, 11, etc). NON-ENS LOGICUM. Era assim que W. Hamilton chamava o ato do pensamento nega­ tivo, ou seja, não pensar em nada de preciso, que eqüivale a não pensar (Lectures on Logic, I, 2a ed., 1867, p. 76). NOOGONlA(al. Noogonie). Kant designou a doutrina de Locke "sistema de N.", porque descreve a gênese dos conceitos a partir da experiência (Crít. K. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). NOOLOGIA (lat. Noologia-, fr. Noologie, ai. Noologie, it. Noologia). Termo inventacio por Calov em Scripta philosophica (1650) para in­ dicar uma das duas ciências auxiliares da metafísica Ia outra é a gnosiologia (v.)], mais precisamente a que tem por objeto as fun­ ções cognitivas. Esse termo foi retomado no século seguinte por Crusius e outros, no mes­ mo sentido ou em sentidos análogos. Kant chamou de noologistas aqueles que, como Platão, acham que os conhecimentos puros derivam da razão, em contraposição aos empiristas, que os julgam derivados da experiência (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do método, cap. IV). Ampère propôs chamar de noológicas todas as ciências do espírito (Essai sur Ia phüosophie des sciences, 1834). Nenhum desses usos teve sucesso. NOOSFERA (fr. Noosphère). Termo empre­ gado por Le Roy para indicar o domínio cia evolução propriamente humana (portanto con­ traposto ao domínio da evolução biológica, biosfera), que se realiza somente com a ajucia de meios espirituais: indústria, sociedade, lin­

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NORMA

guagem, inteligência, etc. (Vexigence idéaliste et lefait de 1'évolution, 1927, pp. 195-96). NORMA (lat. Norma; in. Norni; fr. Norme, ai. Norm; it. Norma). Regra ou critério de juízo, A N. também pode ser constituída por um caso concreto, um modelo ou um exemplo; mas o caso concreto, o modelo ou o exemplo só va­ lem como N. se puderem ser utilizados como critérios de juízo dos outros casos, ou das coi­ sas às quais o exemplo ou o modelo se refe­ rem. A N. distingue-se da mãximaiv.) porque, ao contrário desta (no significado 2), não é apenas uma regra de conduta, mas pode ser re­ gra ou critério de qualquer operação ou ativi­ dade. Distingue da lei (v.) porque pode ser isenta de caráter coercitivo; p. ex., uma N. de costume torna-se lei qxiando se torna coercitiva em virtude de uma sanção pública. Trata-se de conceito recente, cuja origem está no neocriticismo alemão; formou-se atra­ vés da distinção e da contraposição entre o do­ mínio empírico do fato (da necessidade natu­ ral) e o domínio racional do dever ser (da necessidade ideal). Sua validade não deriva do fato de ser ou não aceita ou aplicada, mas apenas do dever ser que exprime. Os fi­ lósofos da escola de Baden (Windelband e Rickert) insistiram nesse caráter da N. Windelband disse: "O sol da necessidade natu­ ral brilha igualmente sobre o justo e o injusto. Mas a necessidade que advertimos na validade das determinações lógicas, éticas e estéticas é ideal; não a do Mussen e do nào-poder-ser-de outro modo, mas do Sollen e do poder-serde outro modo" (Prãludien, 4a ed., 1911, II, pp. 69 ss.). Foi também neste sentido que Kelsen entendeu a N., baseando nela sua teoria do di­ reito: "A N. é a expressão da idéia de que algo deve acontecer, em especial de que um indiví­ duo deve comportar-se de determinada manei­ ra. A N. nada diz sobre o comportamento efeti­ vo do indivíduo em questão" ( General Theory of Law and State, 1945, I, C, a. 5; trad. it., p. 36). Neste sentido, falou-se e fala-se de "trans­ cendência" da N. em relação às situações que ela regula: por tal transcendência, insistiu-se (às vezes oportunamente) na independência do valor da N. em relação à sua efetiva aplicação. P. ex., não há dúvida de que as N. destina­ das à obtenção de bom produto agrícola ou industrial, determinadas por disciplinas científi­ cas e tecnológicas apropriadas, continuam váli­ das independentemente do fato de serem igno­ radas ou desprezadas na maior parte dos casos.

NORMAL

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Essa independência, entretanto, não significa que as N. tenham uma origem misteriosa ou inacessível ou que estejam depositadas em alguma região do ser que tenha apenas uma relação indireta e distante com os campos da experiência humana que as mesmas visam a regular. As N. exprimem, habitualmente, a dis­ ciplina mais conveniente de determinadas ati­ vidades, com vistas a conferir-lhes a maior efi­ ciência e precisão possíveis. Portanto, se elas nem sempre são generalizações daquilo que já está sendo feito ou realizado — porque inclusi­ ve podem inspirar-se em uma ordenação com­ pletamente diferente — tampouco são alheias aos campos de atividade humana que visam a regular. Neste sentido Dewey dizia: "A diferen­ ça que se costuma registrar entre os modos como os homens pensam e os modos como devem pensar é semelhante à diferença que se observa entre o bom e o mau cultivo ou a boa e a má prática da medicina. Os homens pensam como não devem quando adotam métodos de investigação que a experiência das investiga­ ções anteriores mostra serem inadequados ao fim preestabelecido" (Logic, cap. VI; trad. it., p. 156). Desse ponto de vista, uma N. é simples­ mente uma fórmula técnica para o desenvolvi­ mento eficaz de determinada atividade. Portanto, é possível distinguir dois conceitos de N.: 1<J como critério infalível para o reconhe­ cimento ou a realização de valores absolutos (este é o conceito elaborado pela filosofia dos valores (v.), ainda aceito pelas doutrinas absolutistas); 2" como procedimento que garante o desenvolvimento eficaz de determinada atividade. NORMAL (in. Norma!; fr. Normal; ai. Nor­ mal; it. Normale). 1. Aquilo que está em con­ formidade com a norma. 2. Aquilo que está em conformidade com um hábito, com um costume, com Lima média aproximada ou matemática, ou com o equilíbrio físico ou psíquico. Neste sentido, diz-se, p. ex.. levar vida N.", para dizer uma vida segundo os costumes de certo grupo social, ou "tem peso N." ou " altura N.", para dizer que tem peso ou altura correspondentes à média dos indivíduos da mesma idade, raça, etc, ou " mente N.", "um organismo N.", para indicar a boa saúde mental ou física. F.ste uso do termo não é completa­ mente impróprio porque, embora as normas às quais se refere sejam obtidas de generalizações empíricas, são empregadas como critério de juízo e estabelecem uma "normalidade".

NUIXIBISTAS

NORMAIWO (in. Normative, fr. Normatif; ai. Normativ, it. Normativo). Este adjetivo tem dois sentidos principais, que correspondem aos dois sentidos atribuídos à palavra norma: le é N. o que prescreve a regra infalível para alcançar a verdade, a beleza, o bem, etc, ou seja, um bem absoluto; 2- é N. uma fórmula técnica que garanta o desenvolvimento eficaz de certa atividade. Na segunda metade do séc XIX foram chamadas de N., no 1B sentido, as ciências filosóficas especiais (lógica, ética e estética), às quais se atribuiu a tarefa de pres­ crever as normas com as quais o pensamento, a vontade e o sentimento deveriam ajustar-se para alcançar a verdade, o bem e a beleza (Windelband, Rickert Wundt, Simmel, Husserl e outros). Nesse sentido, a qualificação de N. foi repelida pelas disciplinas acima (v. capí­ tulos relativos). Não se pode, porém, negar que existam disciplinas N. no 2S sentido, de formular hipoteticamente técnicas aptas a ga­ rantir o desenvolvimento eficaz de determina­ das atividades. NOTA (lat. Nota; in. Note, fr. Note; ai. Merkma; it. Nota). Sinal ou característica de um objeto. Sobre o princípio: "a N. de uma N. é uma N. da própria coisa", pela qual Kant quis substituir o dictum de omni et nullo como fun­ damento do silogismo, v. SILOGISMO. NOTAÇÃO1 (in. Notation; fr. Notation; ai. Notation; it. Notazione). Têm este nome os símbolos primitivos cia lógica. A classificação mais comum de tais símbolos divide-os em quatro classes: constantes, variáveis, conectivos e operadores. Estes dois últimos algumas vezes sfio chamados, respectivamente, de operadores e abstratos (v. os verbetes individuais: CONF.O TIVO: CONSTANTE; OPERADOR). NOTAÇÃO2 (gr. èruM.oÀoyía; lat. Notatio; in. Notation; fr. Notation; ai. Notation). Em lógica, argumento (locus) inferido da etimologia do nome: como quando Platão diz que o termo soma (corpo) deriva de sema (túmulo), como argumento de que o corpo é o túmulo da alma (Crat., 400 c). Esse tipo de argumento é es­ clarecido por Cícero (7b/)., 8. 35) e retoma­ do pelos lógicos do séc. XVII (JUNGII:S, Log;., V, 25). NULLIBISTAS (in. Nullibists; ai. Nitllibisten). Foi assim que Henri Moore chamou os que acreditam que a alma não ocupa espaço e não tem. portanto, uma sede determinada no corpo (linchírídíon Metapbysicum. 1671, 1, n, D.

NUMENO

NÚMENO (gr. vooULtevov; in. Noumenori; fr. IVoumêne, ai. Noumenon-, it. Noumeno). Es­ te termo foi introduzido por Kant para in­ dicar o objeto do conhecimento intelectual puro, que é a coisa em si(v.). Na dissertação de 1770, Kant diz: "O objeto da sensibilidade é o sensível; o que nada contém que não possa ser conhecido pela inteligência é o in­ teligível. O primeiro era chamado de fenô­ meno pelas escolas dos antigos; o segundo, de N." (De mundi sensibilis, etc, § 3). Na realidade, a palavra N. às vezes é usada pelos filósofos gregos, não em contraposição a fenô­ meno, mas a sensível, como em Platão: "Se intelecção e opinião verdadeira são duas coisas diferentes, então sem dúvida existirão entes que, conquanto não sejam sensíveis para nós, são apenas pensados" (Tim., 51 d); algumas ve­ zes é usada em contraposição ao objeto direta­ mente apreensível, como nos estóicos: "A com­ preensão se produz com a sensação— e então é compreensão de coisas brancas, pretas, áspe­ ras ou lisas — ou com o raciocínio — e en­ tão é compreensão de nexos demonstrativos, como quando se demonstra que os deuses existem e que exercem a providência. Das coisas pensadas, algumas são pensadas se­ gundo a ocasião, outras segundo a seme­ lhança, outras segundo a composição e ou­ tras segundo contrariedades" (DiÓG. L, VII, 52). É mais freqüente nos antigos (sobretudo em Platão, em Aristóteles e nos neoplatônicos) o uso do termo inteligível (vOT)ióç), não em contraposição a fenômeno, mas a sensí­ vel (cf., p. ex., ARISTÓTELES, Et. nic, X, 4, 11 74 b 34). NÚMERO (gr. àpt0|tóç; lat. Numerus; in. Number, fr. Nombre, ai. Zahl; it. Numero). Na história deste conceito, podem-se distinguir quatro fases conceptuais diferentes, que deram lugar a quatro definições diferentes: Ia fase rea­ lista; 2- fase subjetivista; 3a fase objetivista; 4a fase convencionalista. IaA fase realista é caracterizada pela tese de que o N. é um elemento constitutivo da realida­ de, por ser acessível à razão, mas não aos senti­ dos. Essa foi a tese dos pitagóricos, que, segun­ do relata Aristóteles, acreditavam que "as coi­ sas são N.", ou seja, "compostas de N. como seus elementos" (Met., XIV, 3, 1090 a 21). A esta crença está ligada a definição de N. como "sistema de unidades", própria dos pitagóricos (J. STOBEO, Ecl, I, 18): essa definição serviu de modelo à de Euclides ("multidão de unidades",

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EL, VII, 2) e durante muito tempo fundamen­ tou a matemática. Para Platão, o N. encontravase onde houvesse uma ordem, um limite do ilimitado. Entre a multiplicidade ilimitada (p. ex., dos sons vocais) e a unidade absoluta, o N. se insere como um limite (p. ex., distinção e enumeração das letras do alfabeto), e por isso sempre se encontra onde há ordem e inteligên­ cia (Fil., 18 a ss.). Por outro lado, o N. neste sentido não está ligado a algo de visível ou de tangível: é, portanto, diferente do N. utilizado pelo homem em suas tarefas práticas (Rep., 525 d). Essa tese (que não é a dos platônicos de tendência pitagórica, que consideravam as idéias como N.; cf. ARISTÓTELES, Met., XIV, 3) é subs­ tancialmente apoiada por Aristóteles: "As enti­ dades matemáticas não são mais substâncias que os corpos; precedem na lógica, mas não na existência, as coisas sensíveis, e não podem existir separadamente. Mas, desde que não po­ dem sequer residir nas coisas sensíveis, não devem existir de modo absoluto, ou devem existir de algum modo especial, que não é a existência absoluta" (Met, XIII, 3, 1077 b 12). Este modo de existência especial, próprio das entidades matemáticas, é definido pelas pró­ prias proposições matemáticas: "E estritamente verdadeiro" — diz Aristóteles — "que existem entidades matemáticas e que elas são tais quais a matemática diz que são" (Ibid, XIII, 3, 1077 b 3D. Aristóteles pretende dizer que as entida­ des matemáticas têm uma existência análoga às entidades da física (p. ex., ao movimento): são abstraídas das causas sensíveis, mas não são separáveis destas. Desse ponto de vista, o número é "uma pluralidade medida ou uma pluralidade de medida", e a unidade não é um N., mas medida do N. (Met., XIV, 1, 1088 a 5): definição que repete a de Platão e antecipa a de Euclides, já lembrada. 2a A segunda fase conceptual da noção de N. pode começar com Descartes: "O N. que consideramos em geral, sem refletirmos sobre coisa alguma criada, não existe fora de nosso pensamento, assim como não existem todas as outras idéias gerais que os escolásticos incluem sob o nome de universais" (Princ.phil., I, 58). Em outras palavras, o N. é uma idéia, um ato ou uma manifestação do pensamento. A defini­ ção daí resultante é a de operação: o N. é uma operação de abstração executada sobre coisas sensíveis. Esse conceito é repetido muitas ve­ zes na filosofia moderna. Hobbes pôs o N. entre as coisas "não existentes", que são ape­

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nas "idéias ou imagens'' (De corp, VII, § 1). Locke vê no K. uma idéia complexa, mais pre­ cisamente um "modo simples obtido através da repetição da unidade" (Ensaio, II, 16, 2); no mesmo sentido, Leihniz diz que o N. é uma idéia adequada ou completa, ou seja, "uma idéia tão distinta que todos seus ingredien­ tes são distintos" (Nouv. ess, II, 31, D- Berkeley afirma que o número "é inteiramente criatura do espírito" (Princ. of Human Knowledge, I, 12). Newton afirma que por N. é preciso enten­ der "não tanto a multidão das unidades quanto a relação entre a quantidade abstrata de uma qualidade e uma quantidade do mesmo gê­ nero que se assume como unidade" (Arithmetica universalis, cap. 2). Definição análoga é a de Wolff, para quem "o N. geralmente tem com a unidade a mesma relação que uma reta qual­ quer pode ter com uma reta dada" (Ont., § 406). Esta definição, como a de Newton, faz do N. a operação com que se estabelece uma relação de medida. Kant só fazia expressar o mesmo conceito geral ao afirmar que o N. é um esquema (v.), mais precisamente que ele é "a representação que compreende a sucessiva adição de um a um (homogêneos)" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 1). A novidade do conceito kantiano é que o N. não é uma operação empírica, efetuada em material sensível, mas uma opera­ ção puramente intelectual, que atua sobre a multiplicidade dada pela intuição pura (do tempo), que é absolutamente homogênea. Isto faz do N. algo independente da experiência, dotado de um gênero de validade que não é o empírico; mas o N. continua sendo uma opera­ ção do sujeito. Enquanto esta concepção kantiana era representada várias vezes na filosofia do séc. XIX, Stuart Mill voltava ao conceito do N. como operação empírica de abstração: "To­ dos os N. devem ser N. de algo: não há N. em abstrato". Portanto, os N. são produtos de uma "indução real, de uma inferência real de fatos a fatos", e tal indução só é ocultada pela sua natureza abrangente e pela conseqüente gene­ ralidade de linguagem em que desemboca (Logic, II, 6, 2). De certo modo, as posições de Kant e de Stuart Mill são típicas dessa fase subjetiva do conceito de N.: o N. é uma operação intelectual pura para Kant, é uma generalização empírica para Stuart Mill, mas em ambos os casos per­ tence à esfera da subjetividade. Pertencem a essa concepção do N. as doutrinas de Cantor e de Dedekind. Para Cantor, o fundamento do N.

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é a faculdade que o pensamento tem de agru­ par os objetos e de abstrair da natureza e da ordem deles (o que dá lugar ao N. cardinal) ou apenas da natureza deles (o que dá lugar ao N. ordinziY). Dedekind, por sua vez, fundou o con­ ceito de N. na operação de emparelhar ou acoplar as coisas. Conquanto matematicamente profí­ cuas, essas noções mantêm o conceito de N. no âmbito da subjetividade. 5- A terceira fase conceptual da noção de N. (a de N. objetivo, mas não real) foi iniciada pela obra de Frege Fundamentos da aritméti­ ca (1884). Frege atribuía caráter conceptual ao N., mas também objetividade. Isto, em primei­ ro lugar, exclui que o N. seja uma operação ou uma realidade psicológica, uma idéia no senti­ do setecentista do termo: "O N. não constitui um objeto cia psicologia nem pode ser conside­ rado resultado de processos psíquicos, assim como não se pode considerar desse modo o Mar do Norte. Faço uma distinção nítida entre o que é objetivo e o que é palpável, real e ocupa espaço. P. ex.. o eixo terrestre e o baricentro do sistema solar são objetivos, mas eu não diria que são reais como o é a terra" (Die Grundlagen der Arithmetik, § 26; trad. it., pp. 70-71). A matemática já havia estabelecido a insuficiência da definição de N. como coleção de unidade, por isso levaria a excluir 0 e 1 como N. (Aristóteles reconhecia esse fato no que diz respeito ao 1; Met, XIV, 1, 1088 a 5). Frege assume como base da definição de nú­ mero a extensão (v.) do conceito c diz que "o conceito Fé tão numeroso quanto o conceito G sempre que existe a possibilidade de pôr em correspondência biunívoca os objetos perti­ nentes a Ge os pertinentes a F". Em vista disso, dá a seguinte definição de N.: "O N. natural que cabe ao conceito /-'nada mais é que a extensão a F do conceito 'tão numeroso quanto'" (Ibid., § 68, p. 134). Esta definição de Frege foi expres­ sa por Russell em termos de classes, e não de conceitos. Russell diz: "Quando se tem uma relação termo a termo entre todos os termos de um conjunto e todos os termos de outro, dize­ mos que os dois conjuntos são semelhantes. Podemos ver então que dois conjuntos seme­ lhantes têm o mesmo N. de termos, e definir­ mos o N. de um conjunto dado como a classe de todos os conjuntos semelhantes a ele. Re­ sulta a seguinte definição formal: 'o N. dos ter­ mos de ama classe dada define-se como a clas­ se de todas as classes semelhantes à classe dada'" (OurKnoivledge of the Externai World, 3a ed.,

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NUMINOSO

1926, cap. 7; trad. fr., p. 163). A definição de Russcll, que serviu de base para Principies of Mathematics (1905) e Principia mathematica, que ele publicou em 1910 em colaboração com Whitehead (as duas obras fundamentais da ló­ gica matemática contemporânea), teve grande aceitação na filosofia e na matemática contem­ porâneas. Contudo, algumas vezes pareceu restrita demais para as possibilidades de de­ senvolvimento da matemática hodierna, que não pretende ficar ligada a um conceito de N. que lhe seja de algum modo preestabelecido. 4- A quarta fase foi-se configurando em estreita conexão com a axiomática moderna, e pode ser associada com os nomes de Peano, Hilbert, Zermelo, Dingler. Para esta, o N. é um signo, definido por um sistema adequado de axiomas. Dingler diz: "Construímos uma série de signos (sinais gráficos) passíveis de repro­ dução, que deve possuir as seguintes proprie­ dades: a) a série tem um primeiro termo; b) a série possui uma regra de construção enunciável de modo finito tal que: a) está sempre de­ terminado univocamente qual termo da série vem imediatamente à direita de um termo já assinalado; (3) cada termo da série é diferente de todos os termos que o precedem â esquer­ da" (Die Methode derPhysik, 1937, cap. 11, 3,

§ 2; trad. it., pp. 137-38). Este ponto de vista pode ser resumido do seguinte modo: a) não existe um objeto ou entidade única chamada "N.", cujas especificações sejam os N. definidos nos diversos sistemas numéricos; b) a validade dos diversos sistemas numéri­ cos depende apenas da coerência intrínseca de cada sistema, definida pelos axiomas funda­ mentais; d o conceito de N. presente em um sistema numérico não está ligado a uma interpretação determinada, mas é susceptível de interpreta­ ções indefinidamente variáveis. Em outros ter­ mos o N. não está imune a interpretações (como um sinal que nada signifique) e não está ligado a uma interpretação única, privilegiada, mas caracteriza-se pela possibilidade de inter­ pretações diferentes. É esta a noção do N. que costuma ser pres­ suposta nos mais recentes estudos de matemá­ tica (v.). NUMINOSO (in. Numinous-, ai. Numiuosé). Foi assim que Rudolf Otto chamou a consciên­ cia do mysterium tremendum, que é algo mis­ terioso e terrível que inspira temor e venera­ ção; essa consciência seria a base da experiência religiosa da humanidade (Das Heilige, 1917; trad. it., Ilsacro, Bolonha, 1926).

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o O. Na Lógica formal "aristotélica" esta letra é usada como símbolo da proposição particular negativa (v. A). G. P. OBEDIÊNCIA (lat. Oboedíentia- in. Obedience, fr. Obéissance-, ai. Gehorsamkeit; it. Obbedienza). Segundo Spinoza, esse é o signifi­ cado específico de fé. Esta consiste "em ter por Deus sentimentos que, se ausentes, também está ausente a O. a Deus e que, ao contrário, estarão necessariamente presentes quando esti­ ver presente a O." (Tract. theologico-políticus, cap. 14). Esta redução da fé ã O. é expressão das doutrinas que reduzem fé a ato prático (v. FÉ). OBJEÇÃO (in. Objection; fr. Objection; ai. Einwurf; it. Obbiezione). Argumento cuja con­ clusão contradiz certa tese. Leibniz já observava que a verdade _não pode ser afetada por "O. invencíveis." "É preciso ceder sempre às de­ monstrações, seja as propostas para afirmar, seja as que se apresentem em forma de objeçôes. É injusto e inútil querer enfraquecer as provas dos adversários sob o pretexto de que são apenas O., visto que o adversário tem o mesmo direito e pode inverter os nomes, hon­ rando seus argumentos com o nome de provas e rebaixando os nossos com o depreciativo de O." (Théod., Discours, § 25). OBJETIDADE (fr. Ohjectité, ai. Objektitcit; it. Oggettitá). Termo utilizado por Schopenhauer para definir o corpo e as coisas naturais, que seriam ''a O. da vontade" no sentido de ser "a vontade objetivada, que se tornou representa­ ção" (Die Welt, I, § 18, 25, etc). oBjETIFICAÇÃO (ai. Objektation). Segun­ do Hartmann, este termo significa "tornar-se objeto para um sujeito" e define a natureza do conhecimento. A O. é o contrário de objetivaçào: esta é a transformação de algo subjetivo em objetivo, enquanto a O. exprime o proces­

so pelo qual um objeto independente do sujei­ to torna-se objeto de conhecimento (Systematische Philosophie, 1931, § 11). OBJETIVIDADE (in. Objectivity, fr. Objectivité\ ai. Objektivitãt; it. Oggettivitã). 1. Em sen­ tido objetivo: caráter daquilo que é objeto. Neste sentido, Husserl falava de uma "O. pri­ mária" que pertenceria às coisas e as privilegia­ ria diante dos outros objetos, como proprieda­ de, relações, estados de fato, conjuntos, etc. (Ideen, I, § 10) (v. OBJETO). 2. Em sentido subjetivo: caráter da conside­ ração que procura ver o objeto como ele é, não levando em conta as preferências ou os inte­ resses de quem o considera, mas apenas pro­ cedimentos intersubjetivos de averiguação e afe­ rição. Neste significado, a O. é um ideal de que a pesquisa científica se aproxima à medida que dispõe de técnicas convenientes. OBJETTVISMO (in. Objectivism, fr. Objectivisme, ai. Objektivismus; it. Oggettivismo). Qual­ quer doutrina que admita a existência de objetos (significados, conceitos, verdades, valo­ res, normas, etc.) válidos independentemente das crenças e das opiniões dos diferentes sujei­ tos. OBJETIVO1 (in. Objective, fr. Objectif, ai. Objektif-, it. Obbiettívo). 1. O mesmo que obje­ to, quando a palavra é adotada no sentido de fim ou meta (v. OBJETO). 2. No sentido específico proposto por Meinong, é o objeto do juízo, distinto do objeto da representação. P. ex., quando se diz: "É ver­ dade que existem antípodas", o O. é constituí­ do por "'que existem antípodas". O O. não é necessariamente existente. Se A não é, o nãoser de A é um O. tanto quanto o ser de A {Uber Anuahmen, 1902, pp. 142 ss.). OBJETIVO2 (in. Objective; fr. Objectif; ai. Objektiv; it. Oggetliva). O que existe como ob­

OBJETIVO2 je to , tem u m o b jeto ou p e rte n c e a u m o bjeto . F ste adjetivo tem , à p rim eira v ista, m ais sig n i­ ficado s q u e o su b sta n tiv o c o rre s p o n d e n te , v is­ to q u e , além d os sign ificad os lig a d o s a este ú ltim o , serviu p ara significar: o q u e é v álid o p ara to d o s, o q u e é ex te rn o em re la ção à c o n s ­ ciên cia ou ao p e n sa m e n to , o q u e é in d e p e n ­ d e n te do sujeito, o q u e está em c o n fo rm id ad e co m certo s m é to d o s ou reg ras, etc. T ais sig n i­ ficado s su rg iram p rin c ip a lm e n te da d e te rm in a ­ ção k an tian a do o b jeto de c o n h e c im e n to co m o o bjeto real ou em p iric a m e n te d a d o . É possível e n u m e ra r três sign ificad os fu n d a m e n ta is d esse term o : 1Q o q u e ex iste co m o o bjeto ; 2Q o q u e tem objeto; 3Q o q u e é v álid o p ara to d o s. O s d ois ú ltim o s estã o in tim am en te lig a d o s en tre si e co m os o u tro s sign ificad os arro lad o s. 1Q O p rim e iro sign ificad o c o rre s p o n d e ao sign ificad o fu n d a m en tal de o bjeto : O . é aq u ilo q u e ex iste co m o te rm o ou lim ite d e u m a o p e ­ ração ativa ou passiv a. A essa d efin ição c o rre s­ p o n d e em p rim e iro lu g a r o u so d esse te rm o n a últim a fase da E scolástica, a p artir de D un s Scot, q u a n d o foi e n te n d id o co m o o q u e existe co m o o bjeto do in telecto , e n q u a n to p e n sa d o ou im a g in a d o , sem q u e isso im p liq u e su a ex is­ tên cia fora do in telecto , n a re a lid a d e . N este s e n tid o esse te rm o era e m p re g a d o p o r Scot (De an, 17, 14), p o r A n tô n io A n d réa (Super artem Deterem, 1517, f. 87 r.), p o r F. M ayron (In Sent, I, d. 47, q. 4) e p o r D u ran d de S. P o u rçain (In Sent, I, d. 19, q. 5, 7). W alter B urleigh diz: "E m bora o u niv ersal n ão te n h a ex istên cia fora da alm a, co m o d izem os m o d e rn o s, n ão há d ú v id a de q u e , se g u n d o o p are ce r de to d o s, o u n iv ersal tem ex istên cia O. no in te le cto , visto q u e o in telecto p o d e e n te n d e r o leão u n iv e r­ salm e n te sem e n te n d e r este leão" (Super artem veterem, 1485, f. 59 r.). "Existir o b jetiv am en te" significa, n e ste caso , existir em fo rm a de re p re ­ se n ta ç ã o ou d e idéia, ou seja, co m o o b jeto do p e n sa m e n to ou d a p e rc e p ç ã o : esse sign ificad o re a p a re c e co m form a id ên tica em D escartes (Méd, III, 11), em S p in o za (Et., I, 30; II, 8 cor., etc.) e em B erk eley (Siris, § 292). E m to d o s esse s caso s, o O . n ão d esig n a o q u e é real n em o q u e é irreal, m as s im p le sm e n te o q u e é o b ­ je to do in telecto e p o d e , n u m a se g u n d a co n si­ d era çã o , rev elar-se real ou irreal. 2S E m c o rre s p o n d ê n c ia co m a lim itação im ­ p o sta p o r K ant ao o b jeto de c o n h e c im e n to co m o o bjeto "real", há u m se g u n d o sign ificad o d e O ., co m o o q u e tem p o r o b jeto u m a re a lid a ­

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OBJETIVO2

de e m p iric a m e n te d ad a. N este sen tid o , Kant afirm a q u e o c o n h e c im e n to é "O." ou "obje­ tiv a m e n te v álid o ". Já em su a s d istin ç õ e s ter­ m in o ló g ic as K ant in clui esse significado: "Uma p e rc e p ç ã o q u e se refira u n ic a m e n te ao sujeito, c o m o m o d ific a ç ã o d e seu e s ta d o , é sensa­ ção: u m a p e rc e p ç ã o O . é conhecimento. Esta ou é u m a in tu ição ou u m co n ce ito . A qu ela se refere im e d ia ta m e n te ao o bjeto e é singular; este lh e d iz re sp e ito de m o d o m ed ia to , por m eio de u m a m arca, q u e p o d e ser co m u m a v árias co isas" (Crít. R. Pura, D ialética, livro I, se ç ã o I). D esse p o n to de vista, "v alid ad e O." c "realidade" coincidem . K ant diz: "N ossas conside­ ra çõ es e n sin am a re a lid a d e , ou seja, a validade O . do e sp a ç o em re la ção a tu d o o q u e p ode­ m o s d efron tar n o m u n d o ex te rn o co m o objeto" (Ibid, § 3); e diz a n a lo g a m e n te so b re o tem po: "N ossas c o n sid e ra ç õ e s d e m o n stra m a realidade em p írica do te m p o , ou seja, su a v a lid a d e O. em relação a to d o s os objetos q u e p o d em estar li­ g a d o s ao s n o sso s sen tid o s" (Ibid., § 6). Assim, O . é o e m p iric a m e n te re al, e p ara K ant o e m p iric a m e n te real é p ro d u to de u m a síntese q u e , p ara ser efetu ad a n a co n sc iên c ia com um ou g en érica , v ale para to d o s os sujeitos pen­ san tes, e n ão p ara u m só d ele s (Prol., § 22). K ant diz: "O s ju íz o s são subjetivos q u a n d o as re p re s e n ta ç õ e s se referem a p e n a s a u m a cons­ ciência em um sujeito e n e le se unificam ; ou são O. q u a n d o estã o in te rlig a d o s em u m a cons­ ciência de m o d o g e n é ric o , ou seja, necessário" (Ibid, § 22). E ssas c o n sid e ra ç õ e s serv em de tran sição à definição de O. feita p o r K ant no d o m ín io p rático e se n tim e n ta l, ao ch am ar de O. as leis p ráticas "que p o d e m ser reconheci­ d as co m o v álid a s p ela v o n ta d e de cad a ser ra­ cional" (Crít. R. Prãt., § 1), e de "princípio O." o a c o rd o u n iv ersal no ju íz o esté tic o (Crít. do Juízo, § 22). 3S E ssas c o n sid e ra ç õ e s d e K ant possibilitam u m a tran sição p ara o te rc eiro significado funda­ m en tal de O ., o de "válido p ara to d o s". Este sign ificad o, m u ito d ifu n d id o n as esco las criticistas e id ealistas c o n te m p o râ n e a s, foi bem e x p re sso p o r P o in c aré: "U m a re a lid a d e com­ p le ta m e n te in d e p e n d e n te do esp írito que a c o n c e b e , a v ê ou a se n te , é u m a im possibilida­ de. S e ex istisse u m m u n d o ex te rn o n esse senti­ d o, ele n o s seria in acessível. M as o q u e cham a­ m o s de re a lid a d e O. é, em ú ltim a análise, aq u ilo q u e é co m u m a v ário s sere s p en san tes e p o d eria ser co m u m a to d o s" (Ia valeur de Ia science, 1905, p. 9). P o in c aré fazia essas consi­

OBJETIVO, IDEALISMO d era çõ es co m re fe rên cia à m atem á tic a, m as q uase sim u lta n e a m e n te M ax W e b e r im p u n h a esse m esm o c o n c e ito de o b jetiv id a d e à m e ­ to d o lo g ia d as ciên cias sociais, o b s e rv a n d o q u e "a v e rd a d e científica é v álid a p ara to d o s os q u e p ro cu ram a v e rd a d e " e q u e m esm o n as c iên ­ cias so ciais há re su lta d o s q u e n ão são su b jeti­ vos no se n tid o de sere m v álid o s p ara u m a só p esso a e n ão p ara as o u tras ("A o b jetiv id a d e nas ciên cias so ciais e na p olítica social", 1904, em TheMethodology ofthe Social Sciences, 1949, p. 84). Esse tipo de objetividade cham a-se hoje intersubjetividade, e suas condições fundam en­ tais são reco n h ecid as na posse e no uso de técnicas especiais que, em dado cam po, ga­ rantam a com provação e a aferição dos resulta­ dos de um a investigação. Portanto, "válido para todos" significa tam b ém "intersubjetivam ente válido", ou "em conform idade com um m étodo qualificado". A esse m esm o conceito de O. li­ gam -se os significados de "in d ep e n d en te do sujeito" e "externo à consciência". O que é O. no sentido de ser válido para tod o s é de fato in d ep en d en te deste ou d aq u ele sujeito, de suas preferências ou avaliações particulares; por ou ­ tro lado, o ún ico m eio de que o sujeito dispõe para disciplinar ou frear suas preferências e avaliações é reco rrer a p ro ced im en to s m eto d o ­ lógicos qualificados. Finalm ente, a equivalência entre O. e exterior é a tran sp o sição desses m es­ mos co n ceito s para o p lan o da lin g u ag em consciencialista em que o uso das palavras "ex­ terno" e "in tern o " se justifique de algum a m a­ neira (v. EXIERORDADE; REALIDADE). OBJETIVO, IDEALISMO (ai. ObjektiverIdealismus). U m dos três tipos fundam entais de fi­ losofia: intuição do m undo, seg u n d o Dilthey, mais p recisam en te a intuição b asead a no sen ti­ m ento e d o m in ad a pela categoria do valor. Nesse tipo de filosofia D ilthey incluía H eráclito, os estó ico s, S p ino za, L eibniz, S haftesbury, G oethe, Schelling, Schleierm acher, H egel; con­ siderava o pan teísm o um a de suas característi­ cas (Das Wesen der Philosophie, 1907, III, 2; trad. it., em Crítica da razão histórica, p. 469) (v. IDEALISMO DA LIBERDADE; NATURALISMO). OBJETO (lat. Obiectum; in. Object; fr. Objet­ ai. Objekt, Gegenstand; it. Oggetto). T erm o de q u a lq u e r o p e ra ç ã o , ativa, p assiv a, p rática, cognoscitiva, ou ling ü ística. O sign ificad o d essa palavra é g en era líssim o e c o rre s p o n d e ao sig n i­ ficado de coisa (v.). O . é o fim a q u e se te n d e , a coisa q u e se deseja, a q u a lid a d e ou a re alid a­ de p erc eb id a, a im ag em da fantasia, o significa­

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OBJETO do e x p re sso ou o c o n c e ito p e n sa d o . A p esso a é o b jeto de am o r ou d e ó d io , d e estim a, de co n sid e ra ç ã o ou de estu d o ; n e ste se n tid o , o p ró p rio eu é ou p o d e ser o bjeto . T o d a ativ id a­ de ou p assiv id a d e tem co m o te rm o ou lim ite u m O ., q u alificad o em c o rre s p o n d ê n c ia co m o ca rá ter esp ecífico de ativ id ad e ou d e p assiv i­ d ad e. A o la d o d e ste sign ificad o g e n é ric o e fu n ­ d am e n ta l, em q u e esse term o é in su b stitu ív el, en c o n tra -se alg u m as v ez es na lin g u ag em filo­ sófica e na co m u m u m sign ificad o m ais restrito ou esp ecífico , se g u n d o o q ual o O . só é O . se tiver alg u m a v alid a d e : p. ex. se é "real", "exter­ no", independente", etc. (v. OBJETIVO). NO en ta n to , este s e g u n d o sign ificad o n ã o elim ina o p rim e iro , m as o p re ssu p õ e . Essa p alav ra foi in tro d u z id a em filosofia p e ­ lo s esco lástico s, no séc. X III. É claram en te defi­ nida p o r S. T o m ás de A qu in o , q u e diz: "O. de u m a p o tên cia ou de u m h áb ito é p ro p ria m e n te aq u ilo so b cuja razão (ratio) se inclui tu d o o q u e se refere à p o tên cia ou ao h áb ito em q u e s ­ tão. P. ex.: o h o m e m e a p ed ra referem -se à v i­ são p o r te re m cor; p o rta n to , o q u e tem co r é o O. da visão " (S. Th, I, q. 1, a. 7). E ssa n o ç ã o de O. foi s u b sta n c ia lm e n te . re to m ad a p o r D un s Scot, q u e definiu o O. de u m sab er co m o m a té ­ ria (subjectum) do sab er, e n q u a n to ap re n d id a ou co n h e c id a . S eg u n d o Scot, u m a m atéria cogn o scív el to rn a-se O. c o n h e c id o atrav és de um h áb ito in telectu al relativ o a esse o bjeto (Op. Ox., Prol., q. 3, a. 2, ns 4). Ju n g iu s só fazia e x p ressa r co m m ais sim p lic id a d e a m esm a n o ­ ção ao afirm ar: "C ham a-se d e O. aq u ilo em to rn o do q u e v ersam as facu ld ad es, seu s hábitos e seu s atos" (Lógica, 1638, 1, 9, 37). W olff por sua v ez dizia: "O. é o en te q u e term in a a ação do a g e n te ou no q ual te rm in am as aç õ es do ag en te: de m o d o q u e é q u a se u m lim ite da ação " (Ont., § 949). Esse significado co n tin u o u s e n d o fu n d a m en ­ tal na filosofia m o d e rn a e c o n te m p o râ n e a . A q u e stã o do caráter real ou ideal do O. em geral ou de u m a classe específica de O. (p. ex., dos O. físicos ou coisas) n ã o te v e influência. A ssim , p o d e -se c o n sid e ra r O . do c o n h e c im e n to u m a idéia (com o q u e ria B erk eley ), u m a re p re s e n ­ tação (com o q u eria S c h o p e n h a u e r), u m a coisa m aterial (com o q u eria a esco la esco ce sa do se n so co m u m ) ou u m fe n ô m e n o (com o q ueria K ant), m as co m o O. é se m p re o term o ou lim ite da o p e ra ç ã o co g n o scitiv a. N o en ta n to , é K ant q u e m in au g u ra o u so restrito do te rm o , s e g u n ­ do o q ual o O ., ou m ais e x a ta m e n te o O. de

OBJETO c o n h e c im e n to é, de p referên cia , O. "real" ou "em pírico". K ant diz: "Há g ra n d e d iferen ça e n ­ tre ser algo d a d o à m in h a razão co m o O . em absoluto ou a p e n a s co m o O . na idéia. N o p ri­ m eiro caso , m eu s c o n c e ito s p a ssa m a d e te r­ m in ar o O .; no se g u n d o , o q u e ex iste d e fato é só u m e sq u e m a ao q u al n ão se atrib u i d ire ta­ m en te n e n h u m O ,, n em p o r h ip ó te se , m as q u e serv e a p e n a s p ara re p re s e n ta r o u tro s O ., em sua u n id a d e sistem ática, p o r m eio de su a re la­ ção co m a idéia. A ssim , digo: o c o n ce ito de u m a in telig ên cia su p re m a é u m a sim p les idéia; v ale dizer: sua re a lid a d e objetiva n ão d ev e c o n ­ sistir em q u e ele se refira d ire ta m e n te a u m O. (pois seu v a lo r o bjetivo n ão p o d e ser ju stifica­ do d esse m o d o ), m as é a p e n a s u m e sq u e m a , o rg a n iz a d o s e g u n d o as co n d iç õ e s d a m áx im a ra c io n a lid a d e do c o n ce ito de u m a coisa em geral" (Crít. R. Pura, D ialética, A p ê n d ic e ). E s­ sas c o n sid e ra ç õ e s de K ant são u m a re ite ra çã o de q u e a idéia da razão p u ra n ão tem p ro p ria ­ m en te O. p o rq u e O. é so m e n te o em p írico (a coisa natural), e a idéia refere-se a p e n a s in d ireta­ m en te a u m g ru p o d e tais o b jeto s. T o d av ia, esse sign ificad o esp ecífico do O . n ã o elim ina, n em para K ant, o sign ificad o g eral e fu n d a­ m en ta l. D e fato, esse filósofo n ão só c o n s id e ­ ra o co n ce ito de O. co m o o "m ais elev ad o " em filosofia (v. o fim d este v e rb e te ), co m o ta m b é m fala de u m a "distinção de to d o s os O. em geral em fe n ô m e n o s e n ú m e n o s", c o n sid e ra n d o o n ú m e n o co m o "o O . de u m a in tu ição n ão s e n ­ sível", ad m itid a em h ip ó te se s, q u e p o d e ria p e rte n c e r a u m in telecto d iv in o (Crít. R. Pura. A nal. cios P rin c , cap. III). P or o u tro lad o . para K ant, além do O. de c o n h e c im e n to , há "o O. cia razão prática", q u e é "a re p re s e n ta ç ã o d e um O. co m o de u m efeito p ossível através da lib e r­ d ad e" (Crít. R. Prática. I. Livro I. cap . 2); isso significa q u e n este caso o O. é o te rm o ou re ­ su ltad o de um a ação livre. O q u e em to d o caso co n stitu i o O. é su a fu n ção d e lim ite ou te rm o de u m a ativ id a d e ou de u m a o p e ra ç ã o q u a l­ q u er. Essa n o ç ã o n ão d e s a p a re c e n em nas for­ m as m ais rad icais de id ealism o : para o p ró p rio F ic h te, o O. é o lim ite da a tiv id a d e do Ku: "O E u p õ e -s e c o m o lim ita d o p e lo n ã o -e u " ( Wissenschaftslehre, 1794, § 4. A ), e o n à o -e u n ad a m ais é q u e O . (Ibid., § 4 E. III; tra d . it., p. 143). A n a lo g a m e n te , q u a lq u e r o u tra d e ­ te rm in a ç ã o q u e os filó so fo s p o s sa m c ria r s o b re a n a tu re z a do O . tem c o m o p o n to de p a rtid a a su a d e fin iç ã o g e ra l. P. ex ., o O. p o d e se r c o n s id e ra d o u m dado (c o m o c o s ­

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OBJETO tu m a m fa z e r os e m p iris ta s ) ou co m o u m p ro blema (com o fizeram os n eo criticistas; p. ex. N ato rp , PlatosIdeenlehre, p. 367), m as só pode ser u m a ou o u tra coisa se é c o n sid e ra d o com o o te rm o ou lim ite da ativ id ad e cognoscitiva. N a filosofia c o n te m p o râ n e a , o re cu rso à no­ ção de intencionalidadeiy.) p erm itiu reco n h e­ cer cla ra m e n te o caráter g eral da n o ç ã o de O. B re n tan o , q u e foi o p rim e iro a re in tro d u z ire ssa n o ç ã o , diz q u e "todo fe n ô m e n o p síq u ico inclui em si alg u m a co isa co m o O ., em b o ra n em sem ­ p re da m esm a form a. N a re p re s e n ta ç ã o , há algo re p re s e n ta d o ; no ju íz o , algo re c o n h e c id o ou n e g ad o ; no am or, algo am a d o ; no ó dio, algo o d ia d o , etc." (Psychologie vom empirischen Standpunkt, 1874, I, p. 115). E H usserl ainda g en e ra liz o u o co n ce ito , d istin g u in d o O . e "0. p erc eb id o ": "D eve-se n o tar q u e o O . intencio­ nal de u m a co n sc iên c ia (to m ad o co m o pleno co rrelato dela) n ão é a b so lu ta m e n te igual ao O. a p re e n d id o (erfasstes). C o stu m am o s pres­ s u p o r o ser a p re e n d id o no c o n ce ito d e O . (O. in te n c io n a l), p o rq u a n to , ao p e n sa rm o s nele ou falarm os so b re ele, te m o -lo co m o O. no sen tid o de ap re en d id o . (...) C om certeza só pode­ m os lidar com um a coisa física a p re e n d e n d o a , e o m esm o se diga de to d a s as objetividades fran ca m en te re p re se n tá v e is... A o co n trário , no ato de avaliar, de aleg rar-se, de am ar, de agir, lid a m o s co m valor, co m o O. da felicidade, co m o O. am a d o , co m a ação , respectivam ente, sem a p re e n d e r n ad a de tu d o isto" (Ideen, I, § 37). P aralela e a n a lo g a m e n te , M ein on g de­ fendia o sign ificad o g en era lissim o da noção de O. (Gegenstand), d iv id in d o -a n as classes de O. da re p re s e n ta ç ã o (Objekte) e d e O. do juízo (Objektive) (Über Annahmen, 1902, pp. 142 ss.). Q u a se ao m esm o te m p o , no d om ínio da lógica m atem ática, F rege d efen d ia um a noção s u b s ta n c ia lm e n te id ê n tic a do O ., identifican­ d o -o co m o sign ificad o: "O significado de uma p alavra é o O. q u e in d ica m o s co m ela" (Über Sinn undBedeutung, 1892, § 3; trad. it.. p. 222), p re te n d e n d o d izer q u e o O. é o term o ou limite d a o p e ra ç ã o lin g ü ístic a , do u so do signo. W ittg en stein , p o r sua v ez, dizia: "O n o m e va­ riável x é o sig n o do p se u d o c o n c e ito objeto. S em p re q u e o te rm o O. ('coisa', entidade", etc.) é u sa d o co rre ta m e n te , é e x p re sso no sim bolis­ m o ló g ico p e lo n o m e v ariáv el" (Tractatus, 4.1272). N ão m u ito d istan te d isso está a noção de O. ex p o sta p o r D ew ey. para q u e m O. é o re su ltad o de u m a o p e ra ç ã o de in vestigação: "0 n o m e O. será re se rv a d o á m atéria tratada, na

OBJETOS, TEORIA DOS m ed id a em q u e foi p ro d u z id a e o rg an iza d a de m o d o sistem á tic o p o r m eio da in v estig ação ; p ro le p tic a m e n te , o b jeto s são os objetivos da in vestigação. A am b ig ü id ad e q u e se p o d eria e n ­ co n trar n o u so do te rm o , n e ste se n tid o (pois de regra a palavra se aplica às co isas o b se rv a d a s e p e n sa d a s), é a p e n a s a p a re n te , v isto q u e as co i­ sas ex istem co m o O. p ara n ó s só se tiverem sido p re lim in a rm e n te d e te rm in a d a s co m o re ­ su ltad o s de in v estig ação " (Logic, cap . 6; trad. it., p. 175). É fácil v er q u e a d iferença en tre essas d efin içõ es de O. 6 a p e n a s a diferença entre as atividades ou as o p eraçõ es consideradas: O. é o term o do sign ificad o, se c o n sid e rarm o s a lin g u ag em e, em g eral, o u so d o s signos; é o term o de u m a o p e ra ç ã o d e in v estig ação se c o n ­ sid erarm o s a p esq u isa científica; e assim por diante; m as em to d o caso é (com o j á ju lg av am os esco lástico s) o te rm o ou o lim ite de d e te rm i­ n ad a o p e ra ç ã o . A.s.sim, a p alav ra O. é o te rm o m ais geral de q ue d isp õ e a lin g u ag em filosófica. K ant tinh a razão ao afirm ar q u e , se "o co n ce ito m ais e le ­ v ad o de q u e se c o stu m a p artir n a filosofia tra n sc e n d e n ta l é a d iv isão en tre p ossível e im ­ p o s sív e l" , v isto q u e to d a d iv isã o p re s s u p õ e u m co n ceito a ser d iv id ido , "deve-se ad u zir um conceito ainda m ais elev ad o , q ue é o co n ceito de O . em geral, a ssu m id o de m o d o p ro b lem átic o , sem d ec id ir se ele é algo ou nada" (Crít. R. Pura, A nal. d o s P rin c , N ota às an fibo lias dos co n ceito s da reflex ão ). É ó b v io q u e o co n ce ito de O. n ão c o in cid e in te ira m e n te com n e n h u m a de su a s esp ecificaçõ es p o ssív eis. A s co isas, os co rp o s físicos, as en tid a d e s lógicas e m a te m á ti­ cas, os v alo re s, os esta d o s p síq u ico s, e tc , são to d o s O ., esp ecific ad o s ou esp ecificáv eis p or m eio de m o d o s de ser p artic u la re s ou p ro c e d i­ m en to s de v erificação p articu lares; m as n e n h u ­ m a d essas classes de O . p o ssu i u m a o b jetiv id a­ de p riv ileg iad a e n e n h u m a se p resta a ex p rim ir, em seu âm b ito , a característica do O. em geral. O B JE T O S , T E O R IA D O S (ai. Gegenstandsibeorie). Foi assim q u e A . M e in o n g ch a m o u a ciência q u e co n sid e ra os O. co m o O . sem le ­ var em co n ta su a s e sp e c ific a ç õ e s (rea lid ad e ou irre a lid a d e , e t c ) . Essa ciên cia n ão é a m e ­ tafísica no s e n tid o tra d ic io n a l p o rq u e esta c o n ­ sidera a to ta lid a d e d os O . existentes, q u e são a p e n a s u m a p e q u e n a p a rte d o s o b jeto s p o s ­ sív e is (cf. Uber Annahmen. 1902; (íegeustandstheorie, 1904; Zur Gnmdlegutig der aligemeinen Werththeorie, 1923) (v. OBJKTIVO; OBJI-.TO).

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OBSERVAÇÃO O B R IG A Ç Ã O (lat. Obligatio; in. Obligationir. Obligation; ai. Verpflichtung; it. Obbligazione). 1. C aráter co ercitiv o , co n ferid o a u m a re ­ lação in te rp esso al p o r lei ju ríd ica ou p o r n orm a m oral. Esse caráter é d iferen te da necessidade (v.), se g u n d o a qual é im p o ssível q u e a coisa seja ou ac o n te ç a d e m o d o d iferente; a O. n ão im p e d e q u e a re la ção d e fato, p o r ela regida, se co n fig u re de m o d o d iferen te, m as im plica, n e s ­ te caso , a in te rv en çã o de u m a san ção . A lgum as v e z e s o caráter o b rig ató rio da re la ção ex p ressase com a n o ç ã o d e n e c e ss id a d e moral ou ideal (v. NECESSIDADE), sem q u e co m isto se p re te n ­ da re d u zi-lo à n e c e ssid a d e p ro p ria m e n te dita. B erg so n foi o ú n ic o q u e p ro c u ro u s u b sta n c ia l­ m en te re d u zir O . a n e c e ssid a d e de fato, e n te n ­ d e n d o p o r O. os co stu m e s sociais e p o r O. em geral "o co stu m e de co n trair co stu m es" (Deux sources. cap. I). 2. N a lógica term in ista m ed iev al, o c o m p ro ­ m isso em vista do q ual u m in te rlo cu to r ad m ite na d isc u ssão algo q u e an te s n ão adm itia. Esta é a d efin ição d ad a p o r O ck h am (Summa log., III, 38), q u e ad m ite seis e sp é c ie s de o b rig açõ es: in stitu ição , p etição , p o sição , d e p o siç ã o , d ub itaçào e o sít verum. A instituição (iustitutio) co n siste em atri­ b u ir a u m v o c á b u lo u m sign ificad o n o v o d u ­ ra n te a d isc u ssão , e n ã o m ais (Summa log., IN. III, 38). A petição (petitio) co n siste em o b rig ar o in terlo cu to r a este ou aq u ele ato q u e diga resp eito à sua fu n ção , co m o p. ex. a c o n c e d e r u m a p ro p o siç ã o (Ibid, III, III, 39). A deposição (depôsitio) é a o b rig açã o de su sten ta r um a p ro ­ posição com o falsa (Ibid., III, III, 42). A dubitação (dubitatio) é a o b rig açã o d e su ste n ta r algum a coisa co m o d úb ia (Ibid, III, III, 43). Q u a n to a posiçãoc o sít verum, v er o s v erb etes resp ectiv o s. O B SER V A Ç Ã O (in. Observatioujr. Observatioii; ai. Beobacbtung). V erificação ou c o n sta­ tação de u m fato, q u e r se trate de um a verifi­ cação e sp o n tâ n e a ou o ca sio n al, q u e r se trate de u m a verificação m etó d ic a ou plan ejad a. A O. foi alg u m as v ez es restrin g id a ao p rim eiro significado; n este caso , co n tra p õ e -se a e x p e ­ riên cia ou e x p e rim e n ta ç ã o co m o v erificação d elib e ra d a ou m etó d ica (cf. C. BHRNARD, Introduction ã l étude de Ia medicine expérimentale, 1865, I, cap . 1). O u tra s v e z e s foi restrin g id a ao se g u n d o sign ificad o, caso em q u e se c o n tra p õ e a ex p eriên cia in g ên u a, prim itiva, co m u m ou o casio n al (n esse se n tid o , este te rm o é e m p re ­ g a d o h a b itu a lm e n te n a lin g u ag em científica

OBSERVAÇÃO

contemporânea). Em vista disso, é possível es­ tudar ambos os significados, distinguindo-, le O. natural, em que as condições da O. não são planejadas ou planejáveis; e 2- O. experimental (ou experimentação), que é a O. planejada, ca­ racterizada pela aferição das variáveis. Neste segundo tipo de O., pode-se agir sobre a variá­ vel independente e estudar o comportamento correspondente da variável dependente, ou seja, da função vinculada. Qualquer O., seja natural ou experimental, apresenta a divisão entre sistema observante e sistema observado. A validade desta divisão foi posta à prova (e reconfirmada) pela física quântica, a propósito das relações de indeterminaçâo (v.), ou seja, cia ação que o sistema observante exerce sobre o sistema observado. Bohr e Heisenberg mostraram que, ao mesmo tempo que o limite entre sistema observante e sistema observado nào é rígido — no sentido de serem possíveis descrições diferentes de um mesmo fenômeno em que esse limite mude (cf. BOHR, ''Wirkumsquantum und Naturbeschreibung", em Naturwissenschaftoi, 1929 [26], pp. 484-85) —, se ele faltar, também faltará o ca­ ráter físico do sistema. Pode-se evitar calcular a ação perturbadora do sistema observante in­ cluindo-o no cálculo. Mas como mesmo as­ sim resta a indeterminaçào a respeito cia O. do sistema observante, seria preciso incluir no sistema observado nossos olhos também. Nes­ te caso — nota Heisenberg — "só se poderia tratar quantitativamente a cadeia de causas e efeitos quando se considerasse o universo in­ teiro como parte do sistema observado, mas então a física desapareceria, ficando apenas um esquema matemático. A subdivisão do mundo em sistema observante e sistema observado impede assim a nítida formulação da lei causai" {Die physikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930, IV, § 1). Como observa o próprio Heisenberg, por "sistema observante" não se deve entender necessariamente o observador humano, visto que por este se pode entender também uma chapa fotográfica ou um apare­ lho qualquer. Portanto, a divisão entre sistema observante e sistema observado, que a física julga indispensável para dar significado físi­ co (não puramente matemático) a seus enuncia­ dos, nào eqüivale â distinção filosófica tradi­ cional entre objeto e sujeito, á qual, por outro lado, também se opõe a afirmada mobilidade do limite de demarcação entre os dois sistemas.

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OCASIONALISMO O B ST Á C U L O (in. Obstacle, Hindrance, fr. Obstacle. ai. Hinderniss; it. Ostacolo). Limite à

atividade. Fichte definiu o O. do seguinte modo: "O que significa uma atividade e como se torna atividade? Simplesmente pelo fato de a ela se opor um O."(Sittenlehre, 1798, Intr., § VI; Werke, iV, p. 7). Cf. R. LE SI-NNK, Obstacle etraleur, 1934. O B V E R SÃ O (in. Obversion; fr. Obversion; ai. Obversion, it. Obversione). Este termo de origem recente (provavelmente devido a JFVONS, Elementary Lessons in Logic, p. 85) designa a transformação de uma proposição em uma proposição equipolente através da dupla nega­ ção: p. ex., a transformação da proposição "to­ dos os homens são mortais" em "nenhum ho­ mem é não mortal". O C A M IS M O (in. Ockhamism; fr. Occamisme: ai. Ockhamismus: it. Occamismo). Com este termo foi chamada desde o séc. XV a cor­ rente filosófica iniciada por Ockham no último período da Escolástica medieval, caracterizada pelos seguintes pontos básicos: llJ empírismo, como privilégio concedido à experiência (ou "conhecimento intuitivo") para a prova e a verifi­ cação da verdade; 2- nominalismo, negação da realidade dos universais e sua redução a signos naturais; 3Ü terrninismo, lógica da supo­ sição (v.), para a qual os conceitos são termos que estão em lugar das coisas reais; 4g ceptícísmo teológico, segundo o qual é impossível demons­ trar ou racionalizar as verdades da fé e atribuise às provas da existência de Deus apenas va­ lor provável. Por este último ponto, Lutero denominou-se e foi chamado de ocamista. Os outros pontos foram defendidos e ilustrados na escolástica da segunda metade do séc. XIV e dos primeiros decênios do séc. XV. O C A SIÃ O (in. Occashm; fr. Occasion; ai. Gelegenheit; it. Occasione). Situação que provo­ ca ou facilita a intervenção de uma ação livre. Causas ocasionais-, causas consideradas como ocasiões para a ação direta de Deus (v. OCA-

SIONALISMO).

Kierkegaard ressaltou o valor da O. como "categoria do f inito", que pode ser "pretexto ou causa". Neste sentido, a O. é a "última e verda­ deira categoria de transição da esfera da idéia à da realidade" (Autaiit, "Os primeiros amores"; trad. fr., Prior e Guignot, pp. 186 ss.). O C A SIO N ATISM O (in. Occasíonalisnth. Occasionalisme, ai. Occasíonalismus; it. Occasionalismo). Doutrina segundo a qual a única causa cie todas as coisas é Deus e que as chamadas

OCORRÊNCIA causas (seg u n d as ou finitas) são ap e n a s ocasiõ es de q u e D eu s se v ale p ara levar a cab o seu s d ec reto s. Esta d o u trin a foi d efe n d id a p ela p ri­ m eira v ez p ela seita filosófica á rab e d o s M otak allim u n (cf. MAIMÔNIDES. Guide des égarés, I, 73), se n d o d e p o is re to m a d a na id ad e cartesian a p elo s p e n sa d o re s q u e q u ise ram u tilizar a d o u ­ trina d e D escartes p ara d e fe n d e r cren ça s re ­ ligiosas trad ic io n a is (Louis D e L a F orge, G érard de C o rd e m o y , J. C lau b erg e A . G eu lin cx , q u e v iv eram no séc. X V II). G eu lin cx foi o m elh o r ex p osito r da d ou trina, q ue visa su b stan cialm en te a n eg ar ao h o m e m q u a lq u e r p o d e r efetivo no m u n d o e a atrib u í-lo a D eus. A o O. o p u se ra m se S pino za e L eibniz; era d e fe n d id o p o r M aleb ra n c h e , q u e a re sp e ito co n clu ía q u e , n ão p o d e n d o ser p ro d u z id o p elas co isas (que não são cau sas), o c o n h e c im e n to h u m a n o é um a visão das coisas em D eu s (Recherche de Ia véritó. 1674-75). O C O R R Ê N C IA (in. Token). Esse foi o n o m e q ue P eirce deu ao sinsigno, ou seja, "um ac o n ­ tecim en to sing u lar, q u e o co rre só u m a v ez, cuja id en tid a d e lim ita-se a essa ú n ica o co rrê n c ia e ao o bjeto ou coisa sin g u lar q u e é u m esp aço sing u lar ou u m ú n ico in stan te do te m p o ". P. ex., q u a n d o se diz q u e a p alavra "o" a p a rec e vinte v ez es em d ad a p ág in a de d e te rm in a d o livro, diz-se q u e o "o" é u m a O.; no en ta n to , q u a n d o se fala do artigo "o" n a líng u a p o rtu ­ g uesa, fala-se de u m tipoiColl. Pap, 4.537). Esse term o p asso u a ser e m p re g a d o c o m u m en te em filosofia de líng u a inglesa. A ssim , tokensentence, ou token-reflexive, é u m e n u n c ia d o do tip o "o e n u n c ia d o da lo u sa está m al escrito ", ou en tão u m e n u n c ia d o a d u z id o p u ra m e n te com o e x e m p lo , co m o o d isc u tid o p o r A ristó te­ les (Deint., 9. 19 a seg s.): "A m anhã h av erá um a batalh a naval". O C U LT A S, Q U A L ID A D E S. V . OCULTO. O C U L T IS M O (in. Occultismjv. Occultisme: ai. Okkultismus; it. Ocultismo). C rença em fe­ n ô m e n o s q u e se ju lg a m p ro d u z id o s p o r forças ocultas ou cren ça na v alid a d e das ciên cias o cu l­ tas. P or O. p o d e -se e n te n d e r o co n ju n to de tais ciências: m agia, astrologia, m etap síq u ica, te o so fia, etc. (v. v e rb e te s esp ecífico s). O C U L T O (in. Occult; fr. Occulte; ai. Okkult; it. Occulto). O q u e se escap a à v isão e só p o d e ser d e sc o b e rto p o r q u e m tem u m a se g u n d a visão, no sen tid o de ser iniciado n um a form a su ­ p erior de sab er. N este sen tid o ciên cia o cu lta é, em p rim eiro lugar, a m agia: C ornélio A gripa, em DeoceultaphilosophiadSlQ), incluía na m agia

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ONTOLOGICA, PROVA to d as as ciências possíveis. M as hoje tam b ém se ch am a de ciências O. a teosofia, a para psicologia, e tc , seja p o r lid arem com fe n ô m e n o s c o n sid e ­ ra d o s m an ifestaçõ es de forças O . seja p o rq u e se ac h e q u e o estu d o de tais fe n ô m en o s dev e ser re se rv a d o a q u e m se iniciou n um a o rd em su p erio r d e co n h e cim en to s esotéricos. A p artir do séc. XVII c o m e ç o u -se a ch a m a r d e qualidadesO. as cau sas form ais e finais do aristo telism o e da esco lástica, p re te n d e n d o -s e ressaltar com essa ex p re ssã o q u e re co rrer a tais cau sas e q ü i­ valia a re c o rre r a fato res m ais d e sc o n h e c id o s q u e os p ró p rio s fe n ô m en o s, in ca p a ze s, p o rta n ­ to, de ex p licá-lo s. "Os aristo télicos" — dizia N ew to n — "não d eram o n o m e d e q u a lid ad e s O. às q u a lid a d e s m an ifestad as, m as às q u a lid a ­ d es q u e s u p u n h a m estar n o s co rp o s co m o ca u ­ sas d e s c o n h e c id a s de efeito s m an ifestad o s" (Opticks, 1704, III, 1, q. 3D . O F E L IM ID A D E (in. Ophelimity- fr. Ophélimité: ai. Ophelimitát; it. Ofelimitã). T erm o criad o p o r V ilfredo P areto (Conrs d'éamomie politic/ue, L au sann e, 1896) para d e s ig n a ra q u a ­ lid a d e fu n d a m en tal d o s o b jeto s ec o n ô m ic o s, q u e é o v alo r do u so , q u e n em s e m p re co in cid e co m a u tilid ad e; p. ex., u m e stu p efa cien te tem O ., m as n ão u tilid ad e. O L IG A R Q U IA . V . GOVERNO, FORMAS DK. O N IR O L O G IA . In te rp retaç ão d os so n h o s (v. S o n h o ). O N IP O T Ê N C IA , O N IS C IÊ N C IA . V. T E O DICÉIA.

Ô N T IC O ü n . Otitiejr. Ontique/A. Ontisch; it. Ontíco). E xistente: d istin to de o n to ló g ic o , q u e se refere ao ser categ o rial, isto é, à e ssê n ­ cia ou à n atu reza do ex isten te. V. ex., a p ro p rie ­ d ad e em p írica de u m objeto é um a p ro p rie d a ­ de O.; a p o ssib ilid a d e ou a n e c e ssid a d e é um a p ro p rie d a d e o n to ló g ica. Essa d istin ção foi re s­ saltad a p o r H eidegg er: "'O n to ló g ico ', no se n ti­ do d ad o à p alavra pela v u lg a riz aç ão filosófica (e aq u i se m o stra a co n fu são radical) significa aq u ilo q u e , ao co n trário , d ev eria ser c h a m a d o de O ., ou seja, u m a atitu d e tal em re la ção ao en te q u e o d eix e ser em si m esm o , no q u e é e co m o é. M as n em p o r isso se p ro p ô s aind a o problema dosei; e m uito m en o s se atingiu aquilo q u e d ev e co n stitu ir o fu n d a m en to p ara a p o s ­ sib ilid a d e d e u m a 'o n to lo g ia '" ( Vom Wesen des Gniudes. I, ny 14; trad. it., p. 23). ONTOGÊNESE. V. BIOGENETICA, LKI. ONTOLOGIA. V. METAFÍSICA. ONTOLÓGICA, PROVA. V. DEUS, PROVAS DE.

ONTOLOGISMO O N T O L O G IS M O (in. Ontologism, fr. Ontologisme; ai. Ontologism us; it. Ontologisnio).

Doutrina segundo a qual "o trabalho filosófico não começa no homem, mas em Deus; não sobe do espírito ao Ente, mas desce cio Ente ao espírito" (GIOBKRTI, Intr. alio studío delia fil. 1840, 11, p. 175). O O. opõe-se ao psicologismo, que segue caminho oposto e é considerado típico da filosofia moderna, a partir de Descar­ tes. A tese fundamental do O. é de que o ho­ mem possui uma visão ou intuição imediata direta do ente: ou do ente genericamente en­ tendido como noção geral cio ser (como julga Rosmini) ou do ente entendido como o próprio Ente supremo. Deus (como julga Gioberti). Es­ ta tese fundamental deriva do agostinismo escolástico, que sempre insistiu na iluminação direta do intelecto humano por Deus. e. mais imediatamente, dos ocasionalistas e cie Malebranche, que reduziram toda espécie de co­ nhecimento à visão em Deus (v. AGOSTINISMO; OCASIONAUSMO). Contudo, o O. inclui-se no quadro do retorno romântico ã tradição que domina a filosofia européia na primeira metade do séc. XIX e ressalta os dois conceitos interli­ gados, revelação e tradição. De tato, intuição do ente é entendida como a revelação que o ente faz de si próprio ao homem. O O. de Rosmini limita essa revelação ã no­ ção geral cio ser ou "ser possível", entendido como forma fundamental e originária da mente humana e como condição de qualquer conhe­ cimento, que seria síntese entre a idéia do ser e um dado sensível (Nuuru saggio sull'origine delleidee, 1830, §§ 492, 537). O ato do conheci­ mento assim entendido é a percepção intelectiva (v.). Para Gioberti, porém. Deus revela-se ao homem (à intuição) em sua própria ativida­ de criadora, e a intuição expressa-se plena­ mente na fórmula "o Ente cria o existente', que relaciona três realidades: causa primeira, subs­ tâncias criadas e ação criadora (Int. alio studio deliafil, 1840, II, p. 183). Tanto Rosmini quan­ to Gioberti tacham a filosofia moderna ele subjetivista, de psicologista e de niilista, mas na realidade, como já dissemos, sua doutrina é francamente romântica e encontra correspon­ dência na filosofia do segundo Schelling, na de Schleiermacher e na de outros expoentes ro­ mânticos. Uma continuação do O. na filosofia contemporânea pode ser considerada a filoso­ fia de P. Carabelle.se, que procurou conciliar Rosmini com Kant. Carabellese considera a consciência, que é o ponto de partida e o úni­

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OPERACIONISMO

co fundamento da filosofia, como a consciência que o sujeito tem do ser, mas, ao contrário de Rosmini e cie Gioberti, considera o ser como absolutamente imanente à própria consciência. No entanto, também Carabellese chama esse ser de Deus e considera-o fundamento da obje­ tividade de todas as coisas particulares que a consciência pode atingir (Critica dei concreto, 1921; IIproblema teológico comefilosofia, 1931). O N T O T E O L O G IA . V. TKOLOGIA, 2Q. O P E R A Ç Ã O (lat. Operatio; in. Operationjr. Opératíon, ai. Operation: it. Operazione). 1. Atividade em geral. Este é o significado do ter­ mo na Idade Média, quando foi usado como tradução do grego ènérgeia, que eqüivale a atualidade ou atividade. Foi neste sentido que S. Tomás de Aquino empregou essa palavra (p. ex.. S. Th, II, I, q.3, a.2); para ele, vale o prin­ cípio de que "o modo de agir de cada coisa segue seu modo de ser" (Ibid., I, q. 89, a. 1). 2. Função no significado 1: atividade caracte­ rizada por certo tini e própria de um ser deter­ minado. Neste sentido se diz, p. ex., que "a O. da física é calcular resultados que possam ser confrontados com a experimentação", ou que "a O. da ciência é demonstrar", etc. 3. Função no significado 2: relação ou cor­ relação. Neste sentido, fala-se de O. matemáti­ cas ou lógicas. 4. Técnica manual, procedimento manipulativo a ser efetuado segundo determinadas regras; p. ex., O. de medida, O. de produ­ ção, etc. O P E R A C IO N IS M O (in. Operationism; fr. Opératkmisme, ai. Operationismns; it. Operazionismo). Doutrina segundo a qual o signifi­ cado de um conceito científico consiste unica­ mente em determinado conjunto de operações. O primeiro a propor essa doutrina foi P. W. Brídgman. que assim a ilustrou, com um exem­ plo que ficou clássico: "Conhecemos aquilo que chamamos de comprimento só se pode­ mos dizer qual é o comprimento de qualquer objeto, e o físico não exige mais que isso. Para encontrar o comprimento de um objeto deve­ mos executar certas operações físicas. Portanto, o conceito de comprimento é fixado quando são fixadas as operações com as quais o com­ primento é medido, ou seja, o conceito de comprimento implica nada mais nada menos que o conjunto de operações com as quais o comprimento é determinado. Fm geral, por um conceito não entendemos nada mais que con­

OPERADOR ju n to d e o p e ra ç õ e s; o conceito é sinônimo do conjunto de operações correspondente. S e o co n ceito é físico, tal co m o o c o m p rim e n to , as o p e raç õ es são o p e ra ç õ e s físicas reais, co m o p. ex. aq u e la s co m as q u ais o c o m p rim e n to é m edido; se o c o n ce ito é m en tal, co m o p o r ex. a co n tin u id a d e m atem ática, as o p e ra ç õ e s são m entais, e atrav és d ela s d e te rm in a m o s se d ad o conjunto de g ra n d e z a s é co n tín u o " (lhe Logic of Modem Physics, 1927, p. 5). C om o se v ê. as o p e raç õ es a q u e B rid g m an se referia são as do significado 4 e 1, m as su a d o u trin a e s te n d e u -se a q u a lq u e r e sp écie de o p e ra ç ã o e fora da física foi u tilizada so b re tu d o p elo s p sic ó lo g o s (cf. S. S. STHVKNS, "P sy ch o lo g y an d th e S cien ce of S cience", em Readings in Philosophy of Scien­ ce, ed. P. P., W iener, 1953, p p. 158-84). C om base n essa e x te n sã o da d o u trin a do O. e, c o n ­ s e q ü e n te m e n te , do c o n ce ito d e o p e ra ç ã o , os únicos c a ra cte re s atrib u ív eis ao tip o de o p e ra ­ ção q u e p o d e v aler co m o sign ificad o d os c o n ­ ceitos científicos são os de publicidade e repetibilidade: o p rim eiro exclui o caráter p esso al de certas ativ id ad es p u ra m e n te m en tais; o s e ­ g un do p rescrev e a in tersu b jetiv id ad e d as o p e ra ­ ções. H oje, p o rém , d u v id a-se de q ue o critério o p eracío n ista p ossa v aler p ara to d o s os c o n c e i­ tos científicos (cf., p. ex., G. BERGMANN, Philosophy of Science, 1957, p p . 56 ss.). O P E R A D O R (in. Operator, fr. Opémteur, ai. Operator, it. Operatore). E m lógica: u m sím b o lo im p ró prio (ou sincategoremático(\.)\, q u e p o ­ de ser u sad o , ju n ta m e n te com um a ou m ais v a­ riáveis e co m um a ou m ais co n stan tes ou form as, para p ro d u zir u m a n ova c o n sta n te ou form a. Esta é a definição d ad a p o r A . C h u rch (Intr. to Matbematical Logic, 1956, § 06); é a m ais g e ­ nérica e p erm ite incluir n o âm b ito d esse term o , além d os q u a n tifica d o re s, tam b ém ; o operador de abstração ou abstrator(que é in d ica d o p or um a v a riá v e l p re c e d id a p ela letra X) e ao qual, s e g u n d o alg u n s ló g ico s, se re d u z e m to ­ dos os o u tro s; e o O. de descrição ou descritor ('), que, q u a n d o é a variáv el do O ., co m o em (%). lê-se: " x tal que". O s O. quantificadoresou sim p lesm en te quantificadoressào: o universal, para o qual se u sa a n o ta ç ã o "(/)" , p osta an tes do o p e ra n d o e q u e se lê "para to d o s os A é v er­ dade que"; o existencial, p ara o q ual se usa h a­ b itu alm en te a n o taçã o (3) e q u e, se for a v ariá­ vel do q u a n tifica d o r, co m o em (3 x ), lê-se "existe u m x tal q u e". A ap licação de u m ou mais q u a n tifica d o re s a u m o p e ra n d o ch am a-se quantificação. A s n o ta ç õ e s citadas são as m ais

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OPINIÃO c o m u ra e n te e m p re g a d a s n a lógica c o n te m p o ­ rân ea, m as n ão são as únicas. Para m aiores in fo rm açõ es, co n fro n tar a citada Introduction d e C hurch. O P IN IÃ O (gr. õói;a; lat. Opinio; in. Opinion; fr. Opinion; ai. Meinung; it. Opinione). Este ter­ m o tem d ois significados: o p rim eiro , m ais c o ­ m u m e restrito, d esig na q u a lq u e r co n h e cim en to (ou crença) q u e n ão inclua g arantia algum a da p ró p ria v alid ad e; no seg u n d o , d esig na g en eri­ ca m en te q u a lq u e r asserçâo ou d eclaração , co ­ n h e c im e n to ou cren ça, q ue inclua ou n ão um a g arantia da p rópria v alid ad e. Este se g u n d o sig­ nificado é m ais u sad o do q u e ex p licitam en te definido. N o p rim eiro significado. O. co n tra p õ e se à ciência (v.). O p rim e iro sign ificad o já se en c o n tra em P arm ên id es, q u e c o n tra p õ e "as o p in iõ e s dos m ortais" á v e rd a d e (Fr., 1, 29-30). m as am b o s os sig n ificad o s já se e n c o n tra m em P latão . Este, p o r u m lad o , co n sid era a O. co m o algo in ter­ m ed iário en tre o c o n h e c im e n to e a ig n orân cia (Rep., 478 c), in clu in d o nela a esfera do c o n h e ­ c im en to sen sív el (conjetura e crença) (Ihid., VI, 510 a); d e ste p o n to de vista, afirm a q u e nem a O. v erd ad e ira fica im óvel na alm a. "até se ligar a u m ra c io c ín io cau sai" e to rn a r-s e ciên cia (Meu., 98 a; cf. FiL. 59 a). Por o u tro lado , co n si­ dera a O . co m o a co n v ersa q u e a alm a tem co n sig o m esm a, em q u e co n siste o p e n sa m e n ­ to ( Teet., 190 a-c); n este se n tid o a p ró p ria ciên ­ cia n ad a m ais é q u e um a e sp écie de o p in ião . O s d ois sign ificad os ta m b é m se en c o n tra m em A ristó te le s, q u e p o r u m la d o afirm a, co m o P latão , q u e , ao co n trá rio da d e m o n stra ç ã o e da d efinição, as O . estã o sujeitas a m u d a r e p o r­ ta n to n ão c o n stitu e m ciên cia (Me!., V il, 15, 1039 b 31): p o r o u tro lad o declara: "Por p rin ci­ p io e n te n d o as O. comuns n as q u ais to d o s os h o m e n s b aseia m su as d e m o n stra ç õ e s; p. ex.: q u e um a asse rç âo eleve ser afirm ativa ou n e g a ­ tiva, q u e n ad a p o d e s im u lta n e a m e n te ser e n ão ser, etc." Ubid., III, 2, 9 96 b 27). N a trad ição p osterio r, o significado g en érico p e rd e u -se , p e rm a n e c e n d o o o u tro . O s estó ico s d efiniram a O. co m o "assen tim en to fraco e ilu­ sório" (SKXTO EMPÍRICO, Adv. math, V II, 151-, cf. CÍCERO, Tusc, IV, 7, 15), e, no m esm o sen ti­ d o, E picu ro ch am o u d e O. "um a a ssu n çã o q ue p o d e ser v e rd a d e ira ou falsa" (D ióc. L. X , 33). C om o u tras p alavras, S. T o m ás de A q u in o ex ­ p ressav a a m esm a coisa: "A O. é o ato do in te­ lecto q u e se dirige para u m lad o da co n tra d içã o p o r m e d o do o utro " (V. Tb, I, q.79, a.9). W olff

OPINIÃO cham ava de O. "a p ro p o sição insuficientem en­ te provada" (Log, § 602), e Spinoza identificava a O. com o co n h ecim en to do prim eiro g ên ero , q u e é o m en o s elevado e seg u ro e provém de signos (Et., II, 40. Scol. II). Da m esm a form a K ant diz: "A O. é um a crença insuficiente tanto subjetiva q u an to objetivam ente, de q u e se está côn.scio". Estar cônscio consiste cm "não p o d er presum ir op in ar sem pelo m enos saber algo por m eio do qual o juízo p roblem ático tenha certa co n ex ão com a v erd ad e"; de outro m odo, "tudo não passa de jogo da im aginação, sem a m en o r relação com a v erd ad e" (Crít. R. Pura, D outr. do M étod o , cap. 2, seç. 3). K ant afirm a­ va tam bém (loc. cit.) que "nos ju ízo s que d e­ rivam da razão pura não é ab so lu tam en te per­ m itido opinar'', e que, portanto, não se pode op in ar nem no d om ínio da m atem ática nem no dom ínio m oral. M as H egel negava que h o u ­ vesse o p iniões, m esm o no dom ínio da filoso­ fia: "Uma O. é um a rep resen tação subjetiva, um p en sam en to casual, um a im aginação que crio desta ou daquela m aneira e que outro pode criar de m odo diferente; a O. é um p en sam en to meu, não um p en sam en to em si universal, que seja em si e por si. M as a filosofia não contém o p iniões, já que não existem o p in iõ es filosófi­ cas" (Geschichte der Philosophie, em Werke, ed. G loekner, XVII, p, 40; trad. it., vol. I, p. 21). Este p onto de vista foi co m partilhado, e ainda é, por todas as filosofias absolutistas; na reali­ dade, é o ponto de vista da m etafísica tradicio­ nal. O p o n to de vista ex p resso por Kant, a respeito da im possibilidade de opiniões em cam ­ po científico, foi com partilhado pela ciência positivista cio séc. XIX. Mas o falibilism o que prevalece hoje, tanto em ciência com o em fi­ losofia, torna-nos m enos d esd en h o so s e d e­ preciativos em relação à O. Por um lado, não se considera que a O. seja tão pessoal ou in co ­ m unicável q u an to afirm ara H egel. U m a O. científica ou filosófica pode ser com partilhada por m uitos, p recisam en te com o O., sem o d is­ farce ilusório ou sub-reptício de v erd ad e, ainda que rep resen te em determ in ad a fase da investi­ gação a h ipótese m ais racional ou a teoria mais apoiada pelos fatos. D ew ey diz: "Na solução de problem as que p reten d em m en o r exatidão que os casos jurídicos, os juízos são cham ados de O., para distingui-los dos juízos ou asserções justificadas. Porém , se a O. professada tem fundam ento, é pro d u to da investigação e, em tal medida, é um juízo" (Logic, 1939, VII; trad. it., p. 179). Por outro lado, m esm o as hipóteses

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ORDEM ou teorias m ais con so lidad as ap resen tam certa am plitude de interp retações possíveis, que dei­ xa grande m argem à diversidade de O. Final­ m ente a repugnância com partilhada (e com boas razões) por cientistas e filósofos a considerar a verd ad e científica ou filosófica com o absoluta e necessária, dim inui a diferença entre a verda­ de e a O., entre a O. e a ciência. O conceito de O. hoje não é diferente da definição dos anti­ gos: com prom isso frágil e sujeito a revisão, au­ sência de garantia de validade constituem hoje tam bém as características da O., m as seu cam­ po estend eu-se m uito m ais do que os antigos im aginariam ou do que im aginaram e imagi­ nam os filósofos absolutistas; acim a de tudo. p erd eu -se nitidez dos lim ites entre ciência e O., visto não haver lugar ou região da ciência em que não haja inlersecçáo entre O. e verdade. O P O S IÇ Ã O (gr. TààvTtK eíuevct; kit. Opposito; in. Opposition,iv. Opposition;a\. Gegensatz, Opposition-, it. Opposizione). R elação de exclu­ são entre term os ou objetos em geral. Aristóte­ les distinguiu quatro form as de O.: Ia O. correlativa, com o p. ex. entre o dobro e a m etade; 2â O. contrária, com o entre o bem e o mal, o bran­ co e o p reto , e tc ; 3a O. en tre posse e priva­ ção, com o entre a visão e a cegueira; 4a O. contraditória, que é a contradição (Cal, 10,11 b 15 ss.) (v. em cada um a destas form as os verbe­

tes separadamente: CONTRADIÇÃO; CONTRARIE-

DADK; CORRELAÇÃO; POSSH; e ainda QUADRADO nos OPOSTOS). O R D E M (gr. x áAtç; lat. Ordo; in. Order, fr. Ordre, ai. Ordnung; it. Ordine). lim a relação qu alquer entre dois ou m ais objetos que possa ser expressa por m eio de um a regra. Esta no­ ção, que é a m ais geral, foi expressa por Leibniz pela prim eira vez num a passagem do Discurso de metafísica (1668): "O que passa por extra­ ordinário é extraordinário som ente em relação a algum a O. particular, estabelecida entre as criaturas p orque, quanto á O. universal, tudoé perfeitam ente harm ônico. Tanto isso é verdade que no m undo não só nada acontece que esteja absolutam ente fora de regra, com o tam bém não se saberia sequer im aginar algo semelhante. Suponham os que alguém m arque uma quanti­ dade de pontos no papel, de um m odo qual­ quer: digo que é possível achar um a linha geom étrica cuja noção seja constante e unifor­ me seg un do certa regra, e tal que passe por todos esses pontos na m esm a O. com que fo­ ram traçados pela m ão. E, se alguém traçar uma

ORDEM linha contínua, ora reta, ora curva, ora de outra natureza, é possível achar um a n o ção , regra ou equação com um a to d o s os p o n to s dessa linha em virtude da qual as m u d an ças da linha sejam explicadas. P. ex., não há n en h u m rosto cujo contorno não faça parte de um a linha g e o m é ­ trica e não possa ser traçad o de um a só v ez por m eio de certo m ovim ento regulado. M as, q u an ­ do um a regra é m uito com plexa, o que lhe p er­ tence p assa por irregular. A ssim , p o d em o s dizer que, q u alq u er que fosse o m odo com o D eus tivesse criado o m undo, este teria sido sem pre regular e teria um a O. geral'' (Disc. de m é t, § 6). N este sentido, a O. consiste sim ples­ m ente na p o ssibilidade de ex p ressar com um a regra, ou seja, de m aneira geral e constante, uma relação q u alq u er entre dois ou m ais o b ­ jetos quaisquer. A no ção cie O., neste sentido, não se distingue da n oção de relação co n stan ­ te. M as este é ap en as o significado g en érico da noção. \o seu âm bito p o d em o s distinguir três noções específicas: Ia O. serial; 2a O. total: 3a grau ou nível. Ia A O. serial é própria da relação antes e depois. A ristóteles o bservou que esta relação recorre o n d e há princípio, p o rq u e neste caso as coisas p odem estar m ais ou m en o s próxim as do princípio. U m antes ou um d ep o is p o d e ser determ in ad o em relação ao esp aço e ao tem p o, ou em relação ao m o vim ento, à p o ten ciali­ dade, ou à disposição. M esm o no co n h ecim en ­ to algum a coisa vem antes de outra por defini­ ção ou no sentido de que a sen sação vem antes do conceito. E m geral, de d uas coisas vem an­ tes a que p o d e ficar sem a outra: seg u n d o Aris­ tóteles, essa é a ex p ressão m ais genérica dessa forma de O. (Met., V , 1018 b 9). A ristóteles parece deste m odo privilegiar com o O. serial a O. causai, em que a causa p o d e subsistir sem o efeito, m as o efeito não pode subsistir sem a causa, e por isso vem d e p o is dela: in te rp re ta ç ã o freqüente na tradição filosófica. A gostinho di­ zia, p. ex.: "Ou d em onstrais que algum a coisa pode aco n tecer sem causa, ou acreditais, com o eu, que nada aco n tece sem certa O. de causas ", identificando deste m odo a n o ção de O. com a de causalidade (D eord, I, 4, 11). Para Spinoza, a O. das coisas coincidia com a sua co n ex ão causai; considerava sinônim as as duas ex p res­ sões: "A O. de toda a natureza" e "o nexo das causas" (E t, II, 7. Fscol.). Kant não só fazia a m esm a identificação com o considerava a O. causai com o condição da O. tem poral: "Uma coisa pode ter lugar d eterm in ad o no tem p o só

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ORDEM sob a condição de se presum ir, no estado p re­ ced ente, um a outra coisa que ela precise seguir sem pre, seg u n d o um a regra; d o n d e resulta, em prim eiro lugar, que não posso subverter a série de tal m odo que o co n seq ü en te seja anterior ao p reced en te, e em seg u n d o lugar que, posto o estado p reced en te, d eterm in ad o acon tecim en­ to deve infalível e n ecessariam ente seguir-se" (Crít. R. Pura, Anal. dos P rin c, cap. II, seç. 3, A nalogias da experiência). A nalogam ente, para B ergson, a O. natural é "física", "geom étrica" ou "autom ática", e fora dela só há O. "vital" ou "desejada", isto é, a ordem dos fins (F.vol. créatr., 8' edição, 1911. p. 251-52). N o entanto, esse privilégio conferido á O. causai nem sem pre o b scurece o conceito for­ m al da O. serial. S. T om ás de A quino retom ava a definição de A ristóteles: "Fala-se sem pre de O. em relação a alguns princípios. F. assim com o se fala em princípio de m uitas m aneiras, ou seja, seg u n d o o lugar, com o q u an d o se fala do pon to, seg u n d o o intelecto, com o q uan d o se fala do princípio da dem o nstração , e seg u n ­ do as causas singulares, assim tam bém se fala de O." (S. lh , I. q.42, a.3). N esta passagem , a O. causai é som ente Lima exemplificação da O. geral. D o m esm o m odo. W olff definia a O. com o " óbvia sem elhança, graças á qual as coisas são postas um as à frente das outras ou um a depois da outra", em que a óbvia sem elh an ça é a constância de relação (O nt, § 472). O m esm o Kant expressava claram ente o conceito de O. serial ao identificar O. com regularidade, com o fez a prop ósito do conceito form al de natureza (Crít. R. Pura, § 26). C. I. Lewis observa que a O. aritm ética, que se im põe aos objetos natu­ rais, perm ite que "uma infinita m ultiplicidade seja subm etida a um a sim plicidade finita de regras" (M inei and the W orld-Order, 1929; ed i­ ção 1956, p. 363). O s m atem áticos e os lógicos, a partir de Cantor, consideram com o O. um a relação delim itada de certas regras. P. ex., se assum im os a relação precede, bastam as regras seg u in tes para obter um a O. sim ples: ..I" n e­ nhum term o precede-se a si m esm o; 2Ü se a p recede b e b p reced e c, então a p recede c 3Ü se a e b são dois term os diferentes quaisquer. a preced e bou b p reced e a. Pode-se ter, enfim, aquilo que C antor cham ou de "conjunto bem ord en ad o " ao adm itir um a quarta regra: em toda classe não vazia de term os há um prim ei­ ro term o, que p reced e todos os outros da m es­ ma classe (cf. A. CHI:RCH. Intr. toM atbem atical Logic, § 55).

ORFISMO 2a A se g u n d a e sp é c ie de O . co n siste na d is­ p o siç ão re cíp ro c a d as p artes d e u m to d o : co m o n o tav a A ristó teles, essa e sp é c ie de O . p o d e referir-se ao lugar, à p o tên cia ou à form a (Met., V , 19, 1022 b 1). Esta é a O. q u e os estó ico s definiam , s e g u n d o relata C ícero (lusc, 1, 40, 142), co m o "a d isp o siç ã o d o s o b jeto s em seu s lu g ares ju sto s e ap ro p ria d o s"; essa d efinição, co m o é ó b v io , p re s su p õ e q u e seja p re v ia m e n ­ te d isp o sto , para cad a o bjeto , o lu g ar ju sto e a p ro p ria d o , co m v istas ao fim a q u e se d estin a o o bjeto ; p o r isso, b aseia -se no co n c e ito de fim. S e a O. serial é e sse n c ia lm e n te O . cau sai, a O. total é e sse n c ia lm e n te O . final. F oi esta O . q u e A ristó teles co m p a ro u à do ex é rcito ou da casa, s o b re a q ual disse: "T odas as co isas estã o o rd e ­ n a d a s em to rn o d e u m a ú n ica coisa: co m o n u m a casa em q u e os h o m e n s livres e stip u la ­ ram to d a s as su a s ativ id ad es ou a m aio r parte d elas, e n q u a n to os escrav o s p o u c o co n trib u em para o b em co m u m " (Met., 12, 10, 1075 a 18). E a O. q u e S. T o m á s se A q u in o ch a m a v a de "O. d o s fins" ou "dos ag e n te s" (S. Th., I, 11, 2109 a 6), q u e K ant ch a m o u de O. m oral ou reino dos fins(\.), e B ergson de "O. vital" (livol. créatr., 8- ed., 1911, p. 251). O b v ia m e n te , q u a n d o essa O . é atrib u íd a ao m u n d o , co n sid e ra -se o m u n ­ d o, ou p elo m e n o s sua O ., co m o o p ro d u to de u m a g e n te livre. 3a F in alm e n te, o te rc eiro c o n c e ito d e O . é de grau ou nível. S. T o m á s de A q u in o já fazia a d istin ção en tre O. co m o h ierarq u ia e O. co m o grau in d iv idu al da p ró p ria h ierarq u ia: "No p ri­ m eiro sen tid o " — dizia ele — "a o rd em co m ­ p re e n d e d iv erso s g rau s; no se g u n d o , é u m ú n i­ co g rau , de tal m an eira q u e se fala de v árias o rd e n s de u m a ú nica h ierarqu ia" (S. Th, 1, q. 108, a. 2). N este se g u n d o sen tid o , a O. é sim ­ p le sm e n te o g rau , o p lan o ou o nível de um a O. total. O R F IS M O (lat. Orphismits; in. Oiphism; fr. Orphisme-, ai. Orphismus-. it. Orfismo). Seita filo só fico -religiosa b a sta n te d ifu n did a na G récia a partir do séc. V I a.C. e q u e se ju lg av a fundada p o r O rfeu. S eg u n d o a cren ça fu n d a m en tal d e s ­ sa seita, a v id a te rre n a era u m a sim p les p re p a ­ ração para um a vida m ais elev ad a, q u e p od ia ser m erecid a p o r m eio d e cerim ô n ias e d e ritos p u rific a d o re s, q u e co n stitu ía m o a rc a b o u ç o se c re to da seita. Essa cren ça p asso u para v árias esco las filosóficas da G récia antiga (P itágoras, F m p é d o cles, P latão ), m as a im p o rtân cia q u e alg u n s filólogos e filósofos d o s p rim eiro s d e c ê ­ nios do séc. X X atrib u íram ao O. na d e te rm i­

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ORGANISMO n a ç ã o d as características da filosofia g reg a já não é reconhecida por ninguém . Cf. O. KERN, Orphicomm fragmenta, B erlim , 1923; 1. M . LINFORTH, The Arts ofOrphens, 1941. O R G A N IC IS M O (in. Organicism; fr. Organicisme, ai. Organizismns; it. Organicismo). T o d a d o u trin a q u e in te rp rete o m u n d o , a n atu ­ reza ou a so c ie d a d e p o r an alo g ia co m o orga­ n ism o . O O . é, p o rtan to , b a sta n te an tig o e di­ fu n d id o , p ois n e le se in clu em ta n to as antigas e s p e c u la ç õ e s físicas do m u n d o co m o "grande an im al" q u a n to as e s p e c u la ç õ e s p o líticas em q u e o E stad o é c o n c e b id o p o r an alo g ia com o h o m em . M as, n a re a lid a d e , esse te rm o (que é re c e n te e d eriva da b io lo gia) faz h ab itu alm en te referên cia só a d o u trin a s re c e n te s, em particu ­ lar a de W h ite h e a d , o q ual d eu a seu p o n to de vista esse n o m e ou o de "filosofia do o rg an is­ m o". A d o u trin a d e W h ite h e ad ad o ta o co n ceito clássico de o rg an ism o co m o to ta lid a d e cujas p artes n ão p re c e d e m o to d o , e co n sid e ra o u n iv e rso in teiro co m o u m o rg an ism o n esse sen­ tid o (Process and Reality, 19291 Ela é u m O. ta m b é m p o rq u e atrib u i se n sib ilid ad e a to d o o m u n d o real (Ihid., p. 249). Fora da filosofia, esse te rm o às v e z e s foi e m p re g a d o para desig­ n ar as teo rias so c io ló g ic as q u e in terp retam a so c ie d a d e h u m a n a co m o u m o rg an ism o : p. ex. a de S p e n c er (Principies ofSociology, 1876). O R G Â N IC O (in. Organic, fr. Organique, ai. Organisch; it. Orgânico). Q u e é u m o rg an ism o ou p e rte n c e ao o rg an ism o . A lém d o s significa­ d o s relativ o s a esse te rm o , o adjetivo foi e é às v e z e s e m p re g a d o para in d icar a su b o rd in a çã o d as p artes ao to d o q u e se co n sid e ra típica do o rg an ism o . A ssim , S aint-S im on e C om te em p re­ g aram o adjetivo O. p ara in d icar as é p o c a s em q u e to d a s as m an ifestaçõ es da vida estão su­ b o rd in a d a s a u m ú n ico p rin cíp io , co m o aco n te­ ceu, p. ex., na Id a d e M édia em re la ção ao prin­ cípio te o ló g ic o (v. CRISE). O R G A N ISM O (gr. òpyaviK Ò v aw u a; lat. Corpus Organicurn-, in. Organism, fr. Organisme, ai. Organismus-, it. Organismo). O co rp o vivo n a q u ilo q u e o d istin g u e esp ecific am e n te do c o rp o n ão vivo. O c o n ce ito de O. foi form u­ lad o pela p rim eira v ez p o r A ristó teles da se­ g u in te m aneira: "Se o m ac h a d o tem de rachar a m ad eira, d ev e n e c e ssa ria m e n te ser d uro; e, se tem d e ser d u ro , d ev e n e c e ssa ria m e n te ser de b ro n z e ou cie ferro. O ra, e x a ta m e n te da m esm a m an eira, o c o rp o , q u e é u m in stru m en to com o o m a c h a d o — visto q u e cad a um a de su as par­ tes, assim co m o sua to talid ad e, tem um a íínali-

ORGANISMO d ad e p ró p ria — tem d e ser feito n e c e ssa ria ­ m en te assim e assim , se é q u e d ev e cu m p rir sua função" (Depari. an, I, 1, 642 a 10). N esta n o ção , o p o n to fu n d am en tal é q u e to d a a estru ­ tura do O. su b o rd in a -se à su a fu n ção , isto é. a seu fim de so b re v iv e r co m o O.; d essa c a ra c te ­ rística deriva a o u tra, d e s u b o rd in a ç ã o d as p ar­ tes ao to d o . F or isso. A ristó teles diz, a p ro p ó si­ to da c o m p o siç ã o d os an im ais, q u e u m a casa não ex iste em fu n ção d o s tijolos e d as p ed ras, m as são os tijolos e as p e d ra s q u e ex istem em função da casa (Ibid., II, 1, 646 a 27), e q u e "a ciência da n atu re za trata da c o m p o siç ã o e da to ta lid ad e da su b stân cia , e n ão d as p artes q u e não p o d e m existir s e p a ra d a m e n te da s u b stâ n ­ cia" (Ibid., I, 5, 645 a 33). A s u b o rd in a ç ã o das p artes ao to d o , q u e — só ele — é su b stân cia , passo u a .ser a característica fu n d am en tal do o rg an ism o . M as esta característica o b v ia m e n te é d e te rm in a d a pela estru tu ra finalista do o rg a­ nism o. J u sta m e n te p o rq u e ele, n a sua to talid ad e, dev e ser ap ro p ria d o ao fim a q ue se d estina e a ele su b o rd in a d o , ta m b é m as p a rte s do O . d e ­ v em ser s u b o rd in a d a s à to ta lid a d e do O . P o r­ tanto, a p artir d e A ristó teles, o c o n c e ito de fim p asso u a fu n d a m en tar a n o ç ão d e O . e assim co n tin u o u m esm o q u a n d o , co m D escartes, o O. co m eç o u a ser c o n sid e ra d o m áq u in a. D es­ cartes dizia: "A queles q u e sab em q u a n to s a u tô ­ m atos ou m áq u in a s s e m o v e n te s a h ab ilid a d e h u m a n a p o d e c o n stru ir com p o u c a s p e ç a s, c o m p ara tiv a m en te â in finidade d e o sso s, m ú s­ culos, n erv o s, artérias, v eias, e tc , q u e estã o no corpo de cada u m de nós, co n sid eram esse co r­ po co m o u m a m áq u in a q u e , saíd a d as m ão s de D eus, é in c o m p a ra v e lm e n te m ais b em o rg a n i­ zada e tem em si m o v im e n to s m ais ad m iráv eis do q ue as q u e p o d em ser in v en tad as p elo s h o ­ m ens" (Discours, V). C om efeito, um relógio ou um a m áq u in a n ão d eix am de ter u m objetivo, e, e q u ip a ra n d o o O . à m áq u in a, D esca rte s n ão tencio nav a n eg ar a sua finalidade, m as sim p les­ m en te a p re se n ta r a te se de q u e a estru tu ra finalista do O. n ão d e p e n d e de u m a força ex ­ terna a ele, da alm a, m as da v aried ad e e da c o ­ o rd e n a ç ã o d as p artes, ou seja, da o rg an iza çã o . Aliás, L eibniz, q u e insistiu m u ito na o rg a n iz a ­ ção finalista do u n iv e rso , ta m b é m co n sid e ro u o O . co m o m áq u in a: "T odo c o rp o o rg â n ic o é u m a e sp é c ie d e m áq u in a divina ou de a u tô m a ­ to n atu ral, q u e so b rep u ja in finitam ente to d o s os a u tô m a to s artificiais" (Monad.. § 64). S ó em K ant a fin alid ad e de u m au tô m ato ou de um a m áq u in a foi d istin g u id a da fin alid ad e do o rg a­

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ORGANISMO nism o . "N um reló g io " — o b serv a K ant — "um a p eça é o in stru m en to q u e serv e ao m o v im en to d as o u tras, m as n ão é a cau sa eficien te da p ro ­ d u ç ã o d as o utras: u m a p eç a existe, sim , em fu n ção d as o u tras, m as n ão p o r m eio d elas. Por isso. a causa p ro d u to ra do relógio e da sua for m a (...) está fora d ele . n um ser q u e p o d e agir s e g u n d o as id éias de u m to d o p ossív el, m e­ d ia n te sua ca u salid ad e". N o O ., ao co n trário , "cada p arte é co n c e b id a co m o ex iste n te so ­ m en te p o r m eio d as o u tras, para as o u tras e para o to d o , ou seja, co m o u m in stru m en to (ór­ g ão )": co m o "um in stru m en to q u e p ro d u z as o u tras p a rte s e é re c ip ro c a m e n te p ro d u z id o p o r elas". E m o u tro s te rm o s, as p artes de um O . são ao m esm o te m p o cau sa e efeito u m as d as o u tras, e to d as em re la ção â to ta lid ad e do o rg an ism o . N este sen tid o , o O . n ão p o ssu i a sim p les força m o triz, co m o a m áq u in a, m as ta m b é m p o ssu i "um a forca fo rm ad o ra tal q u e se co m u n ica às m atérias q u e n ão a têm . p o d e n ­ do assim o rg an izar; u m a força fo rm ado ra q ue se p ro p a g a e q u e n ão p o d e ser ex p licad a u n i­ c a m e n te pela fa cu ld ad e do m o v im en to " (C'rít. doJuízo. § 65). E stas n o ta s d e K ant, e s c la re c e n d o m u ito b em o finalism o in trín seco do O ., to rn am cie algu m m o d o inútil o finalism o g lo bal da n atu ­ reza e o re le g a m a se g u n d o p lan o . A o rg an iza­ ção finalista do O ., com efeito, p o d e ser co m ­ p re e n d id a ou ad m itid a in d e p e n d e n te m e n te cio finalism o u n iv ersal da n atu reza. T o d av ia, as es­ p e c u la ç õ e s da filosofia ro m ân tica so b re o O ., m esm o p a rtin d o d os c o n ce ito s k an tia n o s, te n ­ d em ju sta m e n te a reso lv er a finalid ad e in trín se­ ca do O. na fin alid ad e u niversal, ou m elho r, a este n d er a prim eira ao universo inteiro. Schelling, p. ex., diz: "No p ro d u to n atu ral está aind a u n i­ do aq u ilo q u e , ao ag ir liv rem en te, s e p a ro u -se a serv iço do fe n ô m en o . 'Io d a p lan ta é in teira­ m e n te aq u ilo q u e d ev e ser; nela, o livre é n e­ cessário, e o n ecessário é livre (...) S ó a natureza o rgânica dá a im agem co m p leta da lib e rd ad e e d a n e c e ssid a d e re u n id a s no m u n d o ex tern o" (System des transzendentalen Idealismus, V; trad . it., p. 289). A inda m ais arb itrariam en te, H eg el co n sid e ra a terra co m o p rim eiro O. p o r­ q u e é "um sistem a u niv ersal de co rp o s in d iv i­ d uais" (Ene, § 338); e afirm a q u e, ap e sar de a v ita lid ad e n atu ral ro m p e r-se n a m u ltip licid ad e d o s an im ais viv os, estes "são u m a ú n ica v id a na idéia, u m ú n ico sistem a o rg ân ico de vida" (Ibid.. § 337). A qui o O. n ão é c o n sid e ra d o em su as características esp ecíficas, m as sim p le sm e n te

ORGANISMO d isso lv id o no finalism o có sm ico . A esse m e s­ m o re su lta d o ch e g a a d o u trin a d e B ergson, q u e v ê no O . o re su lta d o de u m elà vital (ou c o rre n ­ te de co n sc iên c ia) q u e p e n e tra e sujeita a m a­ téria b ru ta. O q u e do p o n to de vista d a ciência é "m áquina", do p o n to de vista da filosofia é o eq u ilíb rio atin g id o p elo elà vital em seu esforço fo rm ado r. F. diz: "Para n ós, o conjunto da m á­ q uina o rg an izad a rep resen ta o co n ju nto do tra­ b a lh o o rg an iza tiv o (em b o ra m esm o este só seja v e rd a d e iro a p ro x im a tiv a m e n te ), m as as p eças da m áq u in a n ão c o rre s p o n d e m às p artes do tra b a lh o , visto q u e a m a terialid ad e d a m áq u in a n ão re p re se n ta m ais u m co n ju n to de m eio s em ­ p re g a d o s, m as u m co n ju n to de o b stá cu lo s c o n ­ to rn a d o s: é u m a n e g a ç ã o m ais do q u e u m a re a lid a d e positiva" (Evol. créatr., 8- ed., 1911, p. 102) A re a lid a d e p ositiva é so m e n te o elà vital, isto é, a co n sciên cia. A d isp u ta m etafísica en tre finalism o e m ecan icism o , ou e n tre m aterialism o e vitalism o, n ão influencia o c o n ce ito d e o rg an ism o . A qu ilo q u e, d e p o is de K ant, c o n v e n c io n o u -se ch am ar de "finalidade in tern a" do O. n ão foi p o sto em d úv id a n em (com o vim os) p o r q u e m co n ce b ia o O . co m o m áq u in a. P or o u tro la d o , a re so lu ­ ção d a fin a lid ad e intrínseca do O . n o finalism o c ó sm ico , a p re c ia d a p o r to d a s as fo rm as de v italism o e, em g eral, p o r to d as as in te rp re ta ­ çõ es m etafísicas do O ., n ão ajuda em n ad a a esclarece r o c o n c e ito d e O . p o rq u e , ao re c o r­ rer a um a te se g en érica , só dá u m a so lu ç ão a p a re n te ao p ro b lem a d e e n te n d e r as fo rm as esp ecíficas d e ação da fin alid ad e o rg ân ica. O s b ió lo g o s c o n te m p o râ n e o s te n d e m , p o rta n to , a fugir à an títe se en tre m e c an ism o e finalism o. G o ld stein ju lg a tào inútil o re cu rso à en te lé q u ia q u a n to o recu rso ao finalism o cósm ico, m as ju l­ g a in d isp en sáv el insistir n a ação do O. co m o to ta lid ad e . Isso leva a ad m itir o finalism o in ter­ no do O . "A h ip ó te se de u m a tarefa d e te rm in a ­ da" — diz ele — "é su p érflu a p ara a c o m p re e n ­ são do O ., m as a h ip ó te se de u m o bjetivo d e te rm in a d o (a realiza çã o da essên cia do O.) é b a sta n te profícua p ara a n o ssa c o m p re e n sã o do O ." (Der Aufbau des Organismus. 1934, p. 264). M ais re c e n te m e n te S im p so n disse: "Sa­ b e m o s q u e o fogo n ão é u m e lem e n to ou p rin cí­ pio s e p a ra d o , m as u m p ro c e sso e u m a organ iz a ç à o d a m a té ria em q u e a c o n d u ta da m atéria é d iferen te da q u e ex iste no n ào -fo g o . D o m esm o m o d o . n ão se re n u n cia à p e rsp e c ti­ v a m aterialista q u a n d o se co n sidera a vida co m o u m p ro c e s so e u m a o rg a n iz a ç ã o em q u e a

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ORGANON c o n d u ta da m atéria é d ife re n te da q u e se o b ­ serv a n o s esta d o s n ão -v iv o s" (TheMeaning of Evolution, 1952, p. 125). P or o u tro lad o , a ca­ p a c id a d e q u e o O. tem d e desfru tar d as possi­ b ilid a d e s ou o p o rtu n id a d e s q u e sua estrutura, su as p ró p rias v a ria ç õ e s ou m esm o o am b iente lh e o ferecem — q u e S im p so n ch am a d e opor­ tunismo d a v id a — o utra coisa n à o é sen ào a p ró p ria "finalidade in trín seca" da q ual falam os o u tro s b ió lo g o s. Isso fora re c o n h e c id o até por u m d os fu n d a d o re s do C írculo d e V iena, M o rta Schlick: "Um g ru p o de p ro c e sso s ou de órgãos é c h a m a d o de finalista em re la ção a u m efeito d efin id o se esse efeito for n o rm al na co o p era­ ção d os p ro c e sso s e d o s ó rg ão s. A qu i é preciso ressaltar a c o o p e ra ç ã o ; n u m caso específico, esse s p ro c e sso s, d e p e n d e n d o d as circunstân­ cias, p o d e m o co rre r de v árias m an eiras, mas são in te rd e p e n d e n te s e interligados de tal m anei­ ra q u e sem p re p ro d u ze m ap ro x im ad am e n te a m esm a e s p é c ie de efeito s" ("N atu rp h ilo so p h ie " , em Die Philosophie in ihren F.inzelgebieten, B erlim , 1925; trad . in. em Readings in the Pbilosophy of Science, 1953, p. 529). E ste c o n ce ito de finalism o d e c e rto n ad a tem a v er co m a te se do finalism o u niversal: trata-se de u m finalism o lim itad o , esp ecífico , q u e pro­ ced e p o r tentativas e tem êxito só em certos caso s, e n ào do p lan o u n iv e rsa l infalível, no qual to d o s os sere s se ach am salv ag u ard ad o s. A lg um as v ez es foi ch a m a d o de teleonomia(\'.). D esse p o n to de vista, o O . p o d e ser considera­ do co m o m áq u in a, m as um a m áq u in a dotada de u n id a d e fu n cio n al, co e re n te , in tegral e, ade­ m ais, ca p a z de au to c o n stru ir-se , com b ase num p lan o ou projeto q u e se m an té m relativam ente invariável de g era çã o em g e ra ç ã o (cf., p. ex., J.

MONOD, Le hasardet Ia necessite, 1970, cap. III). V. CIBERNÉTICA; SISTF.MA; ESTRUTURA.

O R G A N O N (gr. õ p Aavov; lat. Organum). Esse foi o títu lo d a d o p e lo s fo m e n ta d o re s gregos ao co n ju n to d as o b ras ló g icas d e A ristóteles: Categorias, Sobre a interpretação, Analíticos primeiros (d o is liv ro s), Analíticos segundos (dois liv ro s); Tópicos (oito livros) e Refutações sofísticas. D uas o u tras v e z e s o n o m e O. aparece co m o títu lo de livro: Novum Organum (1620), de F rancis B acon , q u e c o n tra p ô s explicitam ente sua lógica à lógica aristotélica, e Neues O. (1764) de J. H . LAMBERT, filósofo ilum inista alem ão com q u e m K ant m an te v e im p o rta n te co rresp o n d ên ­ cia. O u so d esse títu lo , p o rém , n ão tem relação ex ata co m a tarefa atrib u íd a à lógica (v.).

ORGAO

ÓRGÃO (gr. õpyocvov, lat. Organum; in. Organ-, fr. Organe, ai. Organ: it. Organo). No sen tid o esp ecífico da b io lo g ia, da q ual o term o p asso u à filosofia, o O. foi d efinido p o r A ristó ­ teles com b ase na fu n ção p o r ele d e s e m p e n h a ­ da e p o r an alo g ia co m o in o rg ân ico : "T odo in stru m en to e cad a p arte cio c o rp o tem u m fim p ró p rio , u m a aç ão específica. (...) A ssim co m o a serra 6 feita para serrar e n ão o co n trário , de tal m o d o q u e serrar é su a fu n ção específica, tam bém o co rp o é feito para a alm a e cada p ar­ te do co rp o tem p o r n atu re za sua p ró p ria fun­ ção" (Depart. an, I, 5, 645 b 12). E ste co n ce ito p erm a n e ce u c o n sta n te em b io lo g ia, filosofia e to d o s os o u tro s c a m p o s em q u e é e m p re g a d o . ORIENTAÇÃO (in. Orientatiou-ír. Orientalio)v, ai. Orientierung-, it. Orientamento). E ste term o foi in tro d u z id o na filosofia p o r K ant, q u e com ele d esig n o u o p ro b lem a de co m o d ev e a razão c o m p o rta r-se fora d o s lim ites, b a sta n te restritos, do c o n h e c im e n to em p írico , ou seja, do c o n h e c im e n to c o n c re to : "O rien tar-se no p en sa m e n to em geral significa d ete rm in a r-se no d o m ín io do v ero ssím il, s e g u n d o u m p rin cí­ pio sub/e/irodâ razão , em vista da insuficiência de p rin cíp io s o bjetivo s da razão " (Was Heisst: sich im Denken Orientierem?, 1786. A , 310). K ant excluía a p o ssib ilid ad e de q u e o h o m e m p u d esse o rientar-se co m b ase na fé ou n um su ­ p osto sab er intuitivo. Esse te rm o foi e m p re g a ­ do n o v a m e n te p o r Ja sp e rs, q u e deu o títu lo de "O. filosófica no m u n d o " ao p rim eiro v o lu m e da sua Pbilosophie (1932). S eg u n d o J a sp e rs, a O . no m u n d o realiza-se q u a n d o o h o m e m se co n sid era e lem e n to ou coisa do m u n d o , en tre in ú m ero s e le m e n to s ou co isas, e p ro cu ra ach ar d este m o d o sua p ró p ria vida. N o e n ta n to , re ­ d u n d a na a ip tu ra do m u n d o n u m a m u ltip lici­ d ad e de p ersp ectiv as có sm icas (Pbil., I, p p. 69 ss.). A lém d esse s sign ificad os esp eciais, esse term o é m u ito e m p re g a d o n a lin g u ag em c o ­ m um e filosófica c o n te m p o râ n e a , m as com sig ­ nificado b em p o u c o p reciso. ORIGEM (lat. Origo; in. Origiti; fr. Origine, ai. Ursprung; it. Origine). O te rm o tem dois significados fre q ü e n te m e n te co n fu n d id o s: ly co m eço , ato ou fase inicial; 2" fu n d a m en to ou p rin cípio. A 'volta às O .", característica da Re­ nascença (v.), é u m a n o ç ã o q u e se b aseia na confusão dos dois significados. N essa m esm a co n ­ fusão b aseo u -se a im p o rtância d o s ch a m a d o s p ro b lem as de origem , d iscu tid o s n os sécs. XVIII e XIX: O. d as id éias, da vida, da lin g u ag em , d as esp écies v iv as, e tc , v isto q u e n o s p ro b lem as

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OTIMISMO assim p ro p o sto s O. n ão significava a p e n a s n as­ c im en to no te m p o , m as ta m b é m p rin cíp io e fu n d a m e n to do o bjeto cuja o rig em se p ro c u ra ­ va. O m esm o sign ificad o eq u ív o c o en c o n tra v ase no an tig o p ro b lem a da O. do m al: .se D eus ex iste, d e o n d e v em o m al? E se n ão existe, de o n d e v em o b em ? (cf. S. AGOSTINHO, Conf, VII, 5). H. C o h en d e n o m in o u "Juízo de O." o ju íz o cm q u e algo é dado. co m o o p ró p rio p e n sa ­ m en to p o d e ach ar, e n ão co m o m aterial bruto: assim co m o o sinal x, em m atem ática, n ão sig ­ nifica in d e te rm in a ç â o , m as d e te rm in a b ilid a d e (.Logik, 1902, p. 8 3). ORTOGÊNESE (in. Orlhogenesís). D outrina .segundo a qual a ev o lu ç ã o cia vida se g u e ou te n d e a seg u ir u m a linha reta. A s in te rp reta­ çõ e s d a d a s p elo s b ió lo g o s a esse c o n c e ito são díspares; su b stan cialm en te, O. é a tese defendida p o r q u e m adm ite o finalism o da vida. À s v ezes, p o ré m m ais ra ra m e n te , o p o n to de vista o p o sto ã O . c h a m a -se poligênese: o re c o n h e c im e n to cie lin h as cie e v o lu çã o d iv ersas e d ísp a res nos fe n ô m e n o s da vicia (cf. C. ü . SIMPSON, The Meaning ofHrolntion. 1952, p. 132). O S T E N SIV O (gr. Ô8.1KTKÓÇ lat. Ostemimis; in. Ostensive, h. Ostensif.A. Ostensír; it. Osíeusiro). Q ualificam -se assim as p ro v as diretas. q u e p ro v a m p o sitiv a m en te a v e rd a d e d e um a tese, clistin g uin d o-se d as p ro v as in d iretas, q ue te n d e m a p ro v ar um a te se n e g ativ a m en te , com a d e m o n stra ç ã o da falsid ad e do seu co n trário . A s p ro v a s in d iretas são ch a m a d as ap ag ó g icas (v. ABDrçÀO; RKI)l:ç ÀO). A d istin ção ach a-se em A ristóteles (An.pi:, I. 23, 40 b 27) e é re p ro ­ d u zid a p o r L eibniz l.\our. ess., IV, 8, 2). S e­ g u n d o K ant, o u so d as p ro v a s ap a g ó g ica s d e ­ v eria ser a b o lid o em filosofia, e n q u a n to é leg ítim o n as ciên cias e x p e rim e n ta is (Crít. R. Pura. D o u trin a tra n se , do m é to d o , cap . 1, sec. 4). OTIMISMO (in. Optimism-Jv. Optimisme.íü. Optimismus; it. Ottimismo). E ste term o c o m e ­ çou a difundir-se na cultura eu ro p éia d u ran te as d isc u ssõ e s filosóficas so b re a o rd em e a b o n d a ­ de do m u n d o su scitad as p elo te rre m o to d e Lis­ b o a, em 1755. N um Poema sobre o terremoto de Lisboa (llA), V oltaire co m b ate ra a m áxim a "tudo está b em ", co n sid e ra n d o -a u m in su lto às d o res da vida; alg u n s a n o s d ep o is, no ro m an ce Cândido ou o O. (1759), fizera um a sátira feroz a essa m áx im a e à atitu d e q u e ela im plica. O O ., p o rém , tin h a o u tro s d efe n so res, en tre os q u ais K ant, q u e no m esm o an o de 1759 p u b li­ cou u m o p ú sc u lo in titu lad o "E nsaios de alg u ­

OUTRO

m as co n sid eraçõ es so b re o O." {Versuch einigerB etrachtungen überden Oplim ism us) (que depo is rep u d io u ), em qu e defendia a b o n d ad e do m u n d o com base na tese leibniziana de que "quando D eus faz um a esco lh a, esco lh e sem ­ pre o m elhor". C om o dizia V oltaire, o O. outra coisa não 6 sen ão a teoria do finalism o univer­ sal. Assim, em seu rom an ce, o D outor Pangloss, m estre de "m etafísico -teó lo g o -co sm o lo n ig o logia" diz: "Está d em o n strad o qu e as coisas não podem ser de outra m aneira: visto que tu d o foi feito para um fim, tu d o se dirige necessaria­ m ente ao m elhor fim. N otai que o nariz foi feito para su p o rtar lentes e por isso usam os lentes". Leibniz dissera que "D eus escolheu o m un d o m ais perfeito, ou seja, o m ais sim ples em h ip ó teses e ao m esm o tem p o o m ais rico em fenôm enos" (Disc. de m ét. § 6), e que, "se no m un d o não h o u v esse o m ínim o mal, não seria m ais o m un d o que, d ep o is de tudo co n ­ sid erad o e so m ad o , foi ju lg ad o o m elhor pelo criador que o escolheu" (Théod, I, 9). Isto pode ser expressei pela frase com qu e C ândido co n s­ ta n tem en te conclui su as infelizes p erip écias ("Vivem os no m elhor dos m un d o s possíveis"), que se tornou a expressão p o p u lar do otim ism o. O O. é característico das d outrinas que ad­ m item o finalism o universal, esp ecialm en te: 1k as dou trin as espiritualistas de fundo teológico, tais com o a m etafísica aristotélica e a escolástica, o leibnizianism o e as form as m o d ern as e co ntem p o rân eas do consciencialism o espiritua­ lista; 2Q das d o u trin as idealistas (no sen tid o rom ân tico do te rm o ), que co m p a rtilh am o p rin cíp io da co in cid ên cia en tre realid ad e e racio n alid ad e (expresso por V oltaire com a fra­ se "as coisas não p o d em ser de outro m odo"), tipificadas pela doutrina de H egel. O o p o sto do O. não é o pessim ism o, que, na form ulação de S cho p en h au er, ap esar de apregoar que "a vida é dor", ju lg a que o m u n d o está o rganizado com vistas à m elhor ordem (Die Welt, I, § 28), m as sim a n eg ação do finalism o, com o reco n h eci­ m ento do caráter im perfeito, acidental e p ro b le­ m ático das o rd en s observáveis no universo. O U T R O (gr. Gtíxripov; in. Othen fr. Autre, ai. Andere-, it. Allro). U m dos cinco g ên ero s su prem o s do ser, en u n ciad o s por Platão em Sofista, e que são: o ser, o rep o u so , o m o v im en ­ to, o idêntico e o O. O m otivo para adm itir o O. com o um g ên ero à parte é o seguinte: o rep o u so e o m ovim ento são-, p o rtanto, sob o aspecto do ser, são idênticos. M as tam bém são

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OUTRO, PROBLEMA DO

diferentes um do outro, e essa diversidade é exatam ente com o é a sua identidade (devida ao fato de que am bos são). O O. (o diferente) é, portanto, um gên ero igualm ente originário e irredutível ao s o u tro s q u atro (Sof., 254 ss.). O re­ co n h ecim ento do O. com o g ên ero su prem o é m uito im portante, pois perm ite que Platão re­ solva a antinom ia (típica da sofistica e da erístíca [v.]), seg u n d o a qual é im possível dizer o falso p o rq u e o falso é o que não é, e dizer o que não é significa dizer nada, ou seja, não dizer. Desse ponto de vista, o erro deveria ser declarado inexistente, e não haveria seq u er diferença pos­ sível entre o filósofo, que se p reo cu p a em esta­ belecer a distinção entre verdade e erro, e o sofista, que não se p reo cu p a com isso. Admiti­ do, porém , o O. com o g ên ero su p rem o , o nàoser poderá ser in terpretado: não com o o nada, m as com o o O. do ser, m ais precisam ente do ser de que se fala; p. ex., dizer que algo é não grand e ou não belo significa dizer que é O., diferente do gran d e e do belo, m as nem por isso é o oposto do ser, o nada (Ibid, 257 b ss.). Essa afirmação da realidade do nào-ser, enquanto O. ou diferente, é ap resen tad a pelo Estrangei­ ro eleata, principal protagonista do Sofista, como um a espécieA de "parricídio" em relação a Parm ênides, que afirmara que só o ser é, e qtie o não ser não é (Ibid, 242 d ). Essas observações de Platão, so b retu d o sob re a categoria do O., dep o is foram em p reg ad as com freqüência para esclarecer a noção de nada (v.). O U T R O , PR O B L E M A D O (in. Problem of others; fr. P roblèm e de 1 'autre-, ai. P roblem von frem den lchen, it. P roblem a dellaltro). N a fi­ losofia m oderna e contem porânea, essa expressão indica o p roblem a da existência de outros eus (espíritos ou p essoas), in d ep e n d en tes do eu qu e form ula o problem a. Esse problem a nasce de dois p o n to s de vista diferentes, m as vincula­ dos por alguns pressupostos com uns. O primei­ ro é o do idealism o rom ântico (v.) segundo o qual, sen d o a realid ad e um Princípio Infinito e universal (p. ex.. o Eu A bsoluto de Fichte), é preciso ver de qu e m odo ela se rom pe ou se m ultiplica na diversidade dos eus singulares. O seg u n d o é o p on to de vista gen ericam ente idea­ lista e espiritualista, segu ndo o qual originariam ente é dado a cada um de nós so m en te o eu e as suas experiên cias psíquicas, dentre as quais algum as (um a parte apenas) se refeririam a ou tros indivíduos. Fichte resp o n d eu ao prim eiro problem a, em D outrina m o ral (1798), afirm ando o caráter

OUTRO, PROBLEMA DO originário d a idéia do d ev er, da q ual d eriv a o re c o n h e c im e n to d o s o u tro s eu s. A idéia do d e ­ v er é a a u to d e te rm in a ç ã o o rig in ária do eu. m as ela n ão p o d eria ser re aliza d a se n ão ex istissem outros eu s, outros sujeitos em face d o s q u ais, so m en te, a idéia do d ev er p o d e ter sua d e te r­ m in ação e, p o rta n to , p o ssib ilid a d e de re aliza­ ção. P o rta n to , p ara F ich te, a re a lid a d e d os outros eu s é u m p o stu la d o m oral: a ex istência dos o u tro s eu s d ev erá ser ad m itid a e re c o n h e ­ cida, se o eu q u ise r realizar c o n c re ta m e n te a sua m o ra lid a d e (Sittenlehre, § 18). C om alg u ­ m as v a ria n te s, essa c o n c e p ç ã o foi re to m a d a por o u tro s filósofos, co m o p. ex. p o r R iehl em seu livro so b re o Criticismo (1886-87), e p o r C ohen, em Etica da vontade pura (1904); este últim o d e d u z a ex istên cia d as p esso as em geral do caráter ju ríd ic o e d as fu n çõ es p ú b licas do hom em , d e m o d o q u e a m u ltip licid a d e d os eus só existiria co m o m u ltip licid a d e de "p esso as jurídicas". P or o u tro lad o , o p o n to d e vista se g u n d o o qual o eu só c o n h e c e d e m o d o im e d iato a si m esm o e se u s esta d o s in terio res, ou seja, o p o n to d e vista do acesso p riv ileg iad o ao c o ­ n h ecim en to in terio r do eu (v. CONSCIÊNCIA), dá origem ao p ro b lem a d e se sab er co m o um a parte d a e x p eriên cia do eu p o d e referir-se a outro eu, e ao p ro b lem a ain d a m ais sério de sab er q u e g aran tia essa referên cia o ferece em favor da ex istên cia efetiva do o u tro eu. Para re sp o n d er a esses p ro b lem as foram fo rm u ladas duas teo rias. Ia A ex istência d o s o u tro s seria inferida p o r u m "juízo de an alog ia" a p artir das p erc e p ç õ e s q u e n o s rev elam m o v im e n to s a n á ­ logos àq u e le s p o r m eio d o s q u ais ex p rim im o s n osso p ró p rio eu. M as esta teoria, p e rte n c e n te à p sico log ia asso ciacio n ista, é d esm en tid a p elo fato de q u e a cren ça n a ex istên cia d os o u tro s seres a n im a d o s ta m b é m p o d e ser e n c o n tra d a nos an im ais e n as crian ças, q u e são in cap azes de ju ízo s an alóg ico s. 2- A seg u n d a teoria postu la u m ó rg ão esp ecífico para o c o n h e c im e n to da ex istência do o u tro , co m o p. ex. u m a e sp écie de in tu ição afetiva (Einfühlung), q u e n os poria em re la ção co m o q u e está além das m an ifes­ taçõ es c o rp ó re a s do o u tro , com a alm a do o u tro (cf., p. ex., TH. LIPPS. Aesthetik, I [19031; 2a ed., 1914, p. 106 ss.). M as o re cu rso a ó rg ão s d esta esp écie só faz re d u zir a ex istên cia d e o u tro s espíritos a o bjeto de u m a cren ça injustificável, logo irracional. N a filosofia c o n te m p o râ n e a , a p artir da o bra d e S c h e le r, Essência e forma da simpatia

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OUTRO, PROBLEMA DO (1923), o p re ssu p o sto subjetivista do p ro b lem a m o stro u -se cada v e z m ais frágil; e foi tam b ém atac ad o p ela p sico log ia c o n te m p o râ n e a , com b ase em o b se rv a ç õ e s ex p e rim e n ta is. S ch eler o b serv o u q u e n ã o ex iste n e n h u m p riv ilég io o nto ló g ico ou m etafísico a favor d o s p e n sa m e n ­ to s ou d o s se n tim e n to s q u e o eu ch am a de "m eus". M eu p en sa m en to m e é d ad o co m o "meu" do m esm o m o d o co m o o p e n sa m e n to d e o u tro m e é d a d o co m o p e n sa m e n to "alheio": esse é o caso co m u n íssim o e n o rm al, em q u e co m ­ p re e n d e m o s u m a co m u n ic a ç ã o q u a lq u e r q u e n o s é feita. E ntre o m eu e o alh eio há sem p re u m a c o n e x ã o estreitíssim a, e os d ois d e te rm i­ n am -se e c o n d ic io n a m -se re c ip ro c a m e n te , sem q u e as resp ectiv as esferas se d eix em ja m ais fixar rig id am en te, co m o prova o fato de q u e m uitas v ezes n ó s n ão sab em o s dizer se certa e x p e riê n ­ cia p síq u ica v em de n ós m esm o s ou de o u tro s (Sympathie, 111, cap . III). Isto eq ü iv ale a n eg ar o caráter p esso al e rig id a m en te sub jetiv o do Eu (v.) e a re c o n h e c e r q u e, a p artir de sua co n stitu i­ ção e em to d a s as su as m an ifestaçõ es, ele se m o v e n um a red e de relaçõ es intersubjetivas q u e o con stitu em e no qual estão reco rtad as as esferas co rrelativ as do "m eu" e do "teu". E ste p o n to de vista é freq ü e n te n a filosofia c o n te m p o râ n e a , e n c o n tra n d o -s e m esm o em esco las d iferentes. M ead afirm a q u e "o h o m e m só se to rn a u m eu na sua ex p eriên cia na m edida em q ue sua atitude suscita u m a atitu d e c o rre s p o n d e n te n as rela­ çõ e s sociais". N esse caso , au to co n sc iên c ia, ou eu, outra coisa n ão é sen ão a atitude generalizada d o s o u tro s em relação a nós. "A ssum im os o p ap el d aq uilo q u e p o d eria ser ch a m a d o de outro generalizado e, ao fazerm o s isto, a p a re c e m o s co m o o b jeto s so ciais, co m o eu" (Pbil. of tbe Present, p. 185). P or o u tro lad o , C arnap ex ­ p re s s o u p o n to d e v ista b a s ta n te p ró x im o d este, ao insistir no caráter se c u n d á rio e d e ri­ v a d o da d istin ção en tre o eu e o tu. "M esm o a cara cte riza ção d os e le m e n to s fu n d a m en tais do n o sso sistem a co n stitu tiv o co m o p siq u ica­ m en te p ró p rio s, isto é, co m o 'p síq u ic o s' e co m o 'm e u s', só a d q u ire significado com a co n stitu i­ ção d o s ca m p o s do n â o -p síq u ic o (c o n trap o sto ao p síq u ico ) e do 'tu'" (DerlogischeAufbau der Welt, § 65). E stas o b se rv a ç õ e s d e m o n stra m q u e é cada v e z m ais difícil susten tar p o n to s de partida so lip sistas, q u e p re te n d a m fu n d ar-se em d ad o s p e rte n c e n te s ao âm b ito da co n sciên cia p esso al. E m esm o u m a filosofia co m o a d e Sartre, para a q ual a outra ex istên cia é tal p o rq u a n to nàoé

OUTRO, PROBLEMA DO m inha, de tal m odo que a relação interpessoal 6 um a relação de n eg ação recíproca e só a n egação é "a estrutura constitutiva do ser ou ­ tro" (L'être et le néant, p. 285), apresen ta-se com o um tran scen d er do cogito. "O que, por talta de m elhor expressão, cham am os de cogito da existência do outro, confunde-se com o m eu próp rio cogito. É preciso que o cogitomc lance fora dele, so b re o O utro, assim com o m e lan­ çou fora dele sobre o em-si, e isto não m e rev e­ lando um a estrutura m inha apriori, que ap o n ­ taria para o outro ig u alm en te a priori, m as desco b rin d o em m im a presença concreta e inclubitável deste ou daciuele outro concreto, com o já m e revelou a m inha existência inconfrontável, co n ting en te e, todavia, necessária e concreta" (Jbül, pp. 308-09). Analogamente, paru

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OVO H usserl, a experiência do outro é um a espécie de Einfühlung ou em patia, em virtude da qual o outro se constitui por "apresentação" como "um outro eu m esm o" (Cart. Med, § 52). O p ró p rio eu age de tal m odo qtie "um a modifi­ cação intencional de si m esm o e da sua primordialidade chegue à validade sob o título de per­ cepção da estraneidade, percepção de um outro, de um outro eu" (Krisis, § 54 b). OVO (gr. w óv; in. Hgg- fr. Oeuf, ai. Ei; it. Uovo). Prim eiro princípio do m un do , segundo a teog on ia órfica ( Orpbicorum fragmenta, 53, 54 K ern). A con sid eração do m u nd o com o um gigantesco anim al está na base desse m ito, que tem vários p reced en tes orientais. Sobre estes e sobre o próprio m ito, cf. A. OUVIHRI, Civiltâgreca nelVltalia meridioiiale, J 93 J. p. 3-32.

p P. p. N a lógica c o n te m p o râ n e a , in d ica-se com P d e te rm in a d o cálcu lo d as p ro p o siç õ e s e com p (e as letras q u e seg u e m em o rd em alfa­ b ética q, r, etc.) u m a ú nica p ro p o siç ã o . P A ID É IA . V. CULTURA. P A IX Ã O (in. Passion; fr. Passion; ai. Leidenschaft; it. Passione). E ste te rm o p o d e sig n i­ ficar: 1o o m esm o q u e afeição, m odificação p as­ siva no sen tid o m ais geral do g reg o TráGoç e do latim passio (para este sign ificad o, v. AFF.IÇÀO); 2- O m esm o q u e emoção (v.), sign ificad o em q u e foi e m p re g a d o q u a se u n iv e rsa lm e n te até o séc. XVIII, até q u e se foi d e te rm in a n d o o sig n i­ ficado esp ecífico q u e hoje p ossu i; 3o aç ão de c o n tro le e d ire çã o p o r p arte de d ete rm in a d a em o çã o so b re to d a a p e rs o n a lid a d e d e u m in ­ d iv íd u o h u m a n o . É n este se n tid o , o ú n ico a p ro p ria d o e e s p e ­ cífico, q u e essa p alavra g e ra lm e n te é e m p re g a ­ da hoje. A ssim , a ex p re ssã o fran cesa, q u e se to rn o u in tern acio n al, "amour-passion", indica um a form a de e m o ç ã o am o ro sa q u e d o m in a a p erso n a lid a d e e é cap az de tra n sp o r o b stá c u ­ los m o rais e sociais (cf. ta m b é m " Crime depassion" ou "C rim e p assio n al"). N as frases "P. p elo jo g o ", "P. p elas m u lh ere s", "P. p elo d in h e iro ", ta m b é m está claro o sign ificad o d e te n d ê n c ia d o m in a n te e g lo bal da p e rso n a lid a d e , o q u e se p e rc e b e ig u alm e n te em e x p re ssõ e s co m o "P. política", "P. religiosa", etc. E sse c o n ce ito n asce co m as an álises d o s m o ralistas d o s sécs. XVII e XVIII, q u e ev id en c iaram a te n d ê n c ia q u e têm as e m o ç õ e s de p e n e tra r n a p e rso n a lid a d e e d om iná-la. P ascal dizia: "Q uando se c o n h e c e a P. d o m in a n te de algu ém , esta re m o s certo s de sab er a g rad ar-lh e" (Pensées, 106). N esta e x p re s ­ são , o adjetivo "d o m in an te" ex p rim e b em o caráter da p aix ão . E m Maximes, L a R och efo u lcau ld insiste co m certo cin ism o n esse caráter d o m in a n te d as p aix õ es ("Se resistim o s às n o s­

sas p aix õ es, é m ais pela fraq ueza d elas do q ue p ela n o ssa força", 122), e V au v en arg u es, em DiscourssurIa lib e rte (1 7 3 7 ), dizia: "Para resis­ tir à P. seria p reciso p elo m e n o s q u e re r resistir. M as faria a P. n ascer o d esejo de co m b ate r a P., na a u sên cia d a razão d e rro tad a e afugentada?" E acrescen tav a: "As p aix õ es en sin ara m a razão ao s h o m e n s" (Réílexions et maximes, 154). C om o m esm o esp írito , H elvetiu s declarav a: "As p a ix õ e s sào no ca m p o m oral o q u e o m o v i­ m en to é no ca m p o físico" (De 1 'esprit, III, 4), e C on d illac definia a P: co m o "um d esejo q u e n ão p erm ite ter o u tro s, ou q u e, p elo m en o s, é o m ais d o m in a n te " (Traitéciessensations, I, 3, § 3). Foi K ant q u em n os legou as d eterm in açõ es m ais precisas. A P. é a inclinação q ue im p ed e a ra z ã o de c o m p a rá -la co m as o u tra s in clin a­ çõ e s e assim de fazer u m a esco lh a en tre elas (Antr., § 80). P or isso, a P. ex clu i o d o m ín io de si m esm o , im p ed e ou im p o ssibilita q u e a v o n ­ ta d e se d ete rm in e co m b a se em p rin cíp io s (Crít. doJuízo, § 29). C om o b se rv a ç õ e s felizes, K ant ressalta a c a p a c id a d e q u e tem a P. de d o m in a r to d a a co n d u ta do h o m em , d e ap o d e ra r-se de su a p e rso n a lid a d e . A o contrarie? da em o ção , q u e é p rec ip ita d a e irrefletida, a P. é lenta e re ­ fletida p ara alca n ç ar seu objetivo, ap e sar de p o d e r ser v io len ta . A em o çã o é co m o u m a e n ­ x u rra d a q u e ro m p e o d iq u e; a P. é co m o um a c o rre n te q u e v ai a p ro fu n d a n d o seu leito . A em o çã o é co m o u m a e m b riag u e z q u e se d esv a­ n ec e, a p e sa r de d eix ar a d o r de cab eça, m as a P. é u m a in to x icação ou u m a d efo rm a çã o , q u e p recisa de u m m éd ico in te rn o ou ex te rn o da alm a; este, p o rém , g e ra lm e n te n ão sa b e p re s­ crev er a cura rad ical, m as q u a se s e m p re só p aliativ o s (Antr., § 74). E m vista do p erig o q ue a p aix ão re p re se n ta p ara a esco lh a ra cio n al e a lib e rd a d e m o ral do h o m em , K ant rejeita q u a l­ q u e r ex altação d as p aix õ es. E cita a frase: "N ada

PAIXÃO

de g ran d e no m u n d o nunca foi realizado sem paixões violentas", para com entá-la: "Pode-se adm itir isso a resp eito de diversas inclinações, aq u elas sem as q uais a n atu reza viva (inclusi­ v e a do hom em ) não p o d e passar, com o as necessid ad es naturais e físicas. M as que elas possam , ou m elhor, precisem to rn ar-se p ai­ xões, isto a Providência não quis. Esse tipo de explicação p o d e ser aceita num poeta, com o p. ex. em Pope, que escreveu 'Se a razão é bússola, as p aixões são os v en to s', m as o filó­ sofo não p o d e adm itir esse princípio nem m es­ m o para avaliar as p aixões com o um artifício provisório da Providência, que as teria co lo ­ cado na n atureza h um ana antes que os h o ­ m ens alcançassem um grau razoável de civi­ lização" (A ntr, § 80). O R om antism o aceita e adota o conceito de P. elab o rad o p elo s m oralistas franceses e por Kant, ou seja, de que a P. não é um a em oção ou um estado afetivo particular, m as o dom ínio total e profundo que um estado afetivo exerce sobre toda a personalidade (ou "subjetividade") do indivíduo. Por outro lado, inverte a valoraçáo negativa feita por Kant. É significativo que H egel, que exp resso u com m ais rigor o ponto cie vista rom ântico so b re o assun to, só tenha invertido as v alo raçõ es kantianas. H egel define a P. com o a "totalidade do espírito práti­ co posto num a única das m uitas determ in açõ es lim itadas que se o p õ em entre si" (linc, § 473). E acrescento u: "A d ete rm in açã o da P. im plica qu e ela se restringe a um a particularidade da d eterm in ação do q u erer, na qual im erge toda a subjetividade do indivíduo, seja qual for o co n teú d o dessa d eterm inação. M as por esse caráter form al, a P. não é boa nem má; sua form a só exprim e qu e um sujeito pôs num único co n teú d o to d o o interesse vivo de seu espírito, de seu talento, de seu caráter, de seu pra­ zer. N ada de g ran d e foi realizado, nem p o d e ser realizado, sem P. N ão passa de m oralidade m orta, na m aioria das vezes hipócrita, a que investe contra a form a da P. com o tal" (Ene, § 474). A qui, ao m esm o tem p o em qu e se insiste no caráter totalizante da P. — que limita a um único co n teú d o ou d eterm in ação "toda a subjetividade do indivíduo", "o interesse vivo do seu esp írito , etc." — , reto m a-se a frase criticada por K ant e declara-se exp ressão de m oralidade m orta ou hipócrita a co n d en ação feita por ele. E o m ais curioso é qu e Kant criti­ cara a n te c ip a d a m e n te o u tra cara cte rística da filosofia de H egel, ou seja, a justificação das P.

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PALAVRA

com o instrum entos da providência cósm ica, co­ m o "astúcias" da R azão Infinita, para realizar seus fins: tese que está entre as m ais caracterís­ ticas da filosofia da história de Hegel (Philosopbie der Geschichíe, ed. Lasson pp. 63 ss.). D e um p o nto de vista diferente, a exaltação da P. tam­ bém se en co ntra em N ietzsche, para quem era sintom a de fraqueza o "tem or dos sentidos, dos d esejos e das p aix õ e s, q u a n d o ela chega pa­ ra desaconselhá-los", co n sid eran d o a P. dom i­ nante com o "a form a suprem a de saúde" por­ q ue nela "a co o rd en ação dos sistem as internos e seu trabalho a serviço de um m esm o fim são m ais bem realizados: o que é m ais ou m enos a definição da saúde" (W ülezurM acht, ed. Krõner, § 778). Ponto de vista eq üid istan te entre a condena­ ção e a exaltação da P. parece prevalecer na cultura co n tem p o rân ea. D ew ey, p. ex., assim se expressa: "A fase em o cio nal, apaixonada da ação não p od e nem deve ser elim inada em prol de um a razão ex an gue. M ais paixões, não m enos, é a resposta. (...) A racion alid ade não é a força a ser invocada contra im pulsos e hábi­ tos, m as sim a conquista de um a harm onia que atue entre diferentes desejos" (Human N ature and Conduct, pp. 195-96). PA LA V RA (lat. Verbum- in. Word; fr. Parole, ai. Wort; it. Parola). 1. S eg un do a distinção feita por Saussure entre P., lí)igua(w ) e linguagem (v.), a P. seria a m anifestação lingüística do in divíduo. D iferentem ente da língua, que é um a função social, registrada passivam ente pelo indivíduo, a P. é "o ato individual de von­ tade e inteligência, no qual convém distinguir: 1Q as com b in açõ es nas quais o falante utiliza o código da língua para exprim ir seu pensam en­ to pessoal; 2 " o m ecanism o psicológico que lhe perm ite exteriorizar essas com binações" (Cours de linguístíquegéném le, 1916, p. 31). 2. O term o P. tem um a am bigü idad e eviden­ ciada p elos lógicos: por um lado, p o d e ser um evento individual, nov o a cada v ez que se re­ p ete (neste sentido dizem os, p. ex., que um livro é co m posto por cinqüenta mil palavras), por outro, p o d e significar a P.-significado, que é a m esm a, por m ais que se repita (neste senti­ do, so b re o m esm o livro, po d em o s dizer que é co m p o sto por cinco mil palavras). N o primeiro sen tid o, p. ex., se a P. está for repetida dez v ezes num a página será dez palavras; no segun­ do sen tid o, é um a palavra só. Peirce propôs cham ar a palavra no prim eiro significado token (ocorrência) e no se g u n d o significado type

PALINGENESE

(tipo, elem en to lingüístico) (Coll. Fap.. 4.537). Sobre o m esm o assun to, outros falam , resp ecti­ vam ente, e m signo e sím bolo (cf. M BLACK, L anguage andP hilosopby, VI. 2; trad. it.. pp. 181 ss.). PA L IN G E N E SE (gr. 7rodiyyEveoía; in. Palingenesis; fr. P alingénésie-, ai. Palingénésie, it. Palingenesti). S eg u n d o os estóicos, ren asci­ m ento do m undo depois do térm ino de um ci­ clo d e vida (NKMRS., De nat. bom., 3H. cf. MAR­ CO AURÉLIO, M em órias, X I, 1: "o p erió d ico renascim ento do m undo"). Esse term o foi u sa­ do freq ü en tem en te neste sentido ou em sen ti­ do análogo (p. ex., por C. BONNLT, Palingénésíe phílosophüjue, 1769, e p o r GIOBERT, Protologia, 1857) e às ve7.es tam b ém em sen ti­ dos restritos ou particulares: para designar o renascim ento da alm a ou, em sen tid o retórico, para indicar q u alq u er ren o v ação radical (v. APOCATÁSTASE). P A M P N E U M A T IS M O (ai. Panpneum atismus). T erm o em p reg ad o por Eduard V on H artm ann, no m esm o sen tid o de pam p siqu ism o (cf. Philosopbischen Fragm ente, p. 68). P A M P S IQ U IS M O (in. Panpsychisnr, fr. P anpsvchism e; ai. P anpsychism ns: it. Pcim psichismo). Este term o, m uitas vezes confundido com bilozoísm oiv.), designa na realidade um a teoria sim etricam ente oposta. E nquanto o hilozoism o consiste em atribuir à m atéria (ou às suas partes) p o d eres ou atividades psíquicas (sendo por isso m aterialism o). o P. consiste em reduzir m atéria a alm a, ou seja, a p ro p ried ad es ou atributos psíquicos (sendo, pois, espiritualism o). Com isso, a m atéria não é n egada (como faz o im aterialism o [v.]), m as seus atri­ butos fundam entais (p. ex. ex ten são , m ovi­ m ento, etc.) são red u zid o s à ação de forças oti atributos espirituais. N este sentido, p o d e-se discernir a origem do P. nos platônicos ingleses do séc. XVII (Es­ cola de C am bridge). Partindo do princípio de que "nenhum efeito p o d e sobrepujar a força da própria causa", C udw orth negava que a vida e o ser — m uito m enos a razão e o intelecto — pudessem derivar de m atéria sem vida. E co n ­ cluía que "o espírito é o ser p rim ogênito, o se­ nhor natural de tu d o o que existe" (The V rue Intellectual System ofthe Uni verse, I, 1, 4). M as com o as coisas não p o d em ser pro d u zid as pelo m ecanism o da m atéria, e com o D eus não p ro ­ duz im ediata e m ilagrosam ente todas as coisas, é preciso adm itir um a natureza plástica que seja um instrum ento inferior e su b o rd in ad o da­

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PANENTEISMO

quela parte da p rovidência que consiste no m ovim ento regular e o rganizado da m atéria (Ibid, I, 1, 3). Por sua vez, M ore elaborava o conceito da m ônada física, que seria um a partí­ cula tào p eq u ena a po nto de não poder ser m ais d iv id id a . A m ô n a d a física n ão tem grandeza física p ropriam ente dita, m as é ex­ tensa, e a ex tensão é um a qualidade espiritual, incorpórea, um atributo de D eus (Encbiridion. M etapbysicum , I, 9, 3; 1, 8, 15). D este m odo. C udw orth e M ore reduziam a m atéria e o m e­ canism o, em seus atributos fundam entais — ex ten são e m ovim ento — , a um a m anifesta­ ção de elem en tos ou forças espirituais. É m uito provável que Leibniz se tenha inspi­ rad o nesses autores d an do ao P. sua form a clássica. S egundo Leibniz, a m atéria é consti­ tuída por m anadas, no sentido de ser um agre­ g ad o de substâncias espirituais, com o um reba­ nho de ovelhas ou com o um am o nto ado de verm es. Por isso, os elem en tos da m atéria nada têm de corpóreo; são átom os de substância ou p o n to s m etafísicos, com o po deríam o s cham ar as mônacla.s (O p, ed. G erhardt. IV, p. 483). O P. de Leibniz foi rep ro d u zid o por Lotze em M icrocosm o (l, trad. it., p. 50); este identificou os átom os dos quais fala a teoria m ecanicista da ciência com os centros de força espiritual, ou seja, com as m ô nad as no sentido leibnista. O P. é a característica m etafísica do espiritualisra o co n tem p o rân eo (v. ESPIRITIAUSMO), seja ele francês (Ravaisson, Lachelier, H am elin), inglês (W ard) ou italiano (M artinetti, V arisco). P A N -A N IM IS M O . O m esm o que anim ism o (v.). P A N C AT.TSM O (in. P ancalism ; fr. Pancalism e: it. P ancalism o). T erm o e m p re g a d o por J. M . Baldw in para designar sua do utri­ na, seg u n d o a qual a beleza, com o objeto da atividade estética, realiza a conciliação entre a atividade cognoscitiva e a atividade práti­ ca, unificando o m u nd o da experiência (cf. G enetic Theory ofR ealíty. beíng tbe O utcom e o f G enetic Logic, as Issuing in tbe A estbetic Ibeory o fR ea lity called P ancalism , 1915). P A N C O S M IS M O (in. Pancosm ism . fr. Pancosm ism e, it. Pancosm ism o). O m esm o que m aterialism o. Este term o foi usado por G rote para d esignar a d outrina dos pré-socráticos hilozoístas (Plato a n d the O tber C om panions ofSócrates. I, 1, 18). N ão teve aceitação. P A N E N T E IS M O (in. Panentheism , fr. Panentheism e. ai. Panentheism us; it. Panenteismo). T erm o criado por Christian K rause (1781-

PANLOGISMO 1832) p ara d esig n a r u m a sín tese en tre o teísm o e o p a n teísm o , q u e co n sistiria em ad m itir q ue tu d o o q u e é, é em D eu s e ex iste co m o re v e la­ ção e realiza çã o de D eu s (Voríesungen über das System der Philosophie, 1828, p p. 254 ss.). N a re a lid a d e este é o p o n to de vista do p an te ísm o clássico , e p o rta n to n ão se v ê u tilid ad e n esse term o , q u e d e fato n ão te v e ac eitaç ão (v. DEUS). P A N L O G IS M O (in. Panlogism, fr. Panlogisme, ai. Panlogismus; it. Panlogismo). T erm o e m p re g a d o p o r J. E. E rd m an n p ara d esig n a r a d o u trin a d e H eg el (Geschichte der neueren Pbilosophie, 1853. III, 2, p. 853), ainda hoje u ti­ lizado (em b o ra co m p o u ca freq üência) para d e sig n a r essa m esm a d o u trin a ou d o u trin a s an álo g as q u e ad m itam a id e n tid a d e en tre ra cio ­ nal e real. P A N SA T A N ISM O (ai. Pansatanismus). T er­ m o e m p re g a d o p o le m ic a m e n te p o r O. Liebm an n p ara d esig n a r a d o u trin a de S ch o p e n h a u e r, n u m a c o n tra p o s iç ã o c a ric a tu rista ao p a n te ísm o (Zur analysis der Wirklichkeit, F ed ., 1880, p. 230). P A N S O F IA (lat. Pansophia). T erm o e m p re ­ g a d o p o r G. A . C o m e n íu s p ara d esig n a r o p rin ­ cípio "ensin ar tu d o a to d o s" (Pansopbiae Prodromus, 1639; Schola Pansophiae, 1670). K ant ch am a d e P. o co n ju n to d a poli-história, q u e é o c o n h e c im e n to h istó rico , e da polimatia, q u e é o c o n h e c im e n to racio n al (Logik, Intr.. § V I). P A N S P E R M IA (ai. Panspermie). D o u trin a d efen d id a p o r S. A rrh en iu s, de q u e a v id a so ­ b re a terra p ro v é m d e se m e n te s o rg ân ica s d i­ fu n d id a s p o r to d o o u n iv e rso ( Werden der Welten, 1907). P A N T E ÍsM o (in. Pantheism; fr. Pantheisme; ai. Pantheismus; it. Panteísmo). O term o panteísta foi u tilizad o pela p rim eira v e z p o r f. T o lan d (Socianimism TrulyStated, 1705); o p ri­ m eiro a e m p re g a r o term o P. foi seu ad v ersário Fay (1709). É a d o u trin a s e g u n d o a q ual D eus 6 a naturezaáo m u n d o (v. DEI:S) id en tifican d o a c a u salid ad e div in a com a c a u salid ad e natural. U m a d as fo rm as de P. h u m a n ista é a ch a m a d a "teologia sem Deus". V. DEUS; DEUS, MORTE DE. PA N T E L IS M O (ai. Panthelismus). O m es­ m o q u e voluntarismo (v.). E sse te rm o foi u sa­ do p o r E. V o n H artm an n (Philosophischen Frag­ mente, p. 68). PA R Á B O L A (gr. 7tapa(k>A,ií; lat. Parábola: in. Parable, fr. Parabole, ai. Parabel; it. Pa­ rábola). A rg u m e n to q u e c o n siste em ad u zir

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PARADOXO u m a c o m p a ra ç ã o ou um p ara le lo , co m o quan­ do S ó crates afirm a q u e os g o v e rn a n te s não de­ v em ser esc o lh id o s p o r so rteio , assim como n ão são esco lh id o s p o r so rteio os atletas para u m a co m p etição . É assim q u e A ristóteles ilustra essa n o ç ão (Ret.. II. 19, 1393 b 4). S entido aná­ lo g o en c o n tra -se n o s E v an g elh o s (cf. Marc, X II. 1). P A R A D IG M A (gr. 7rápaÔ £ryua; in. Paradigm; fr. Paradigme; ai. Paradigma; it. Pa­ radigma). M o d elo ou ex e m p lo . P latão em pre­ g ou essa p alavra no p rim eiro sen tid o (cf. Tim., 29 b. 48 e, e t c ) , ao co n sid e rar co m o P. o mun­ do d o s sere s ete rn o s, do q ual o m u n d o sensível é im agem . A ristó teles utiliza esse term o no se­ g u n d o sign ificad o (An. pr, II, 24, 68 b 38), so­ bre o que v. EXEMPLO. P A R A D O X O (gr. rapáôoÇ oç Aóyoç; in. Paradox, fr. Paradoxe. ai. Paradox, it. Paradosso). O q u e é c o n trá rio à "o p in iã o da m aioria", ou seja, ao sistem a de cren ças co­ m u n s a q u e se fez referên cia, ou contrário a p rin cíp io s co n sid e ra d o s só lid o s ou a proposi­ çõ e s científicas. A ristó teles, em Refutações sofísticas (cap. 12), co n sid era a re d u ç ã o de um d iscu rso a u m a o p in iã o p ara d o x al co m o o se­ g u n d o fim da Sofistica (o p rim e iro é a refutaçào. ou seja, p ro v a r a falsid ad e da asserçào do ad v ersário ). B ern h ard B olzano intitulou Para­ doxos do infinito (1851) o livro no qual intro­ d uziu o co n ce ito de infinito co m o u m tipo es­ p ecial de g ran d ez a, d o ta d o de características p ró p rias, e n ão m ais co m o lim ite de um a série. Esse co n ce ito seria c o n so lid a d o na matem ática p o r C an to r e D ed ek in g (v. INFINITO). A exem­ plo d ele, foram ch a m a d o s às v e z e s de P. as co n tra d iç õ e s o riu n d a s do u so do procedim en­ to reflexivo, na m aioria d as v e z e s ch am ad as de antinomias (v.). N o se n tid o relig io so , ch a m o u -se P. a afirma­ ção d os d ireito s da fé e da v e rd a d e do seu con­ te ú d o em o p o siç ã o às ex ig ên c ias da razão. P. é, p. ex., a tra n sc e n d ê n c ia ab so lu ta e a inefab ilid a d e d e D eu s, afirm ada pela teo lo g ia nega­ tiva (v .); P. é o "credo c/uia absurdum" (v.) de T ertu lian o ; P. é to d a a fé, se g u n d o Kierkegaard, p o rq u e to d as as ca te g o rias do p e n sa m e n to reli­ g io so são im p en sá v eis, e a fé, n ão obstante, crê em tu d o e a ssu m e to d o s os risc o s (cf. Die Krankheit zum 'Pode, 1849). K ierkegaard vu co m o P. a p ró p ria re la ção en tre o hom em e D eu s: "O P. n ão é u m a c o n c e ssã o , m as uma categoria: u m a d ete rm in a ç ã o ontológ ica que ex p ressa a relação en tre u m esp írito existente e

PARALELISMO PSICOFISICO

cognoscente e a v erd ad e eterna" (Diário. VII, A 11). PA RA LELISM O P SIC O F ISIC O (in. Psycbophysical parallelism ; fr. P araH elism e psycbophysique: ai. P sycho-physíscher Parallelism us; it. P arallelism opsicofisico ) . Esta ex­ pressão foi inventada por Fechner (Zei ida resta. II. p. 141), para designar a doutrina seg u n d o a qual os eventos psíquicos e os físicos constitu­ em duas séries paralelas, qu e não agem uns so ­ bre os outros, m as são causalm ente d eterm in a­ dos som en te pelos eventos h o m o g ên eo s: os m entais p elos m entais, e os físicos pelos físi­ cos. Essa d outrina era sugerida pela exigência (ou pelo desejo) de não su b m eter os eventos m entais à cau salid ad e dos ev en to s físicos e pela im possibilidade de co n sid erar estes últi­ mos d ep e n d e n tes dos prim eiros. D urante v á­ rias décad as, serviu de hip ó tese de trabalho para a psicologia ex perim ental, em sua fase inicial de o rganização com o ciência au tônom a ou relativam ente autônom a (v. PSICOLOGIA). Foi, portanto, adm itida e adotada por aq u eles que contribuíram para os prim eiros passo s dessa ciência, em particular por W undt. Kste en ten ­ deu com o "princípio do P. psicoíísico" o princí­ pio de que "todos os co n teú d o s em píricos que pertencem sim u ltan eam en te à esfera de consi­ deração m ediata ou científica e à im ediata ou psicológica estão em relação recíproca, p o r­ quanto cada ev en to elem en tar do cam po psí­ quico exprim e um evento co rre sp o n d en te no cam po físico" (System der Philosophie, 2- ed., 1897, p. 602). Essa doutrina co n trap u n h a-se, por um lado, ao m onism oiw ), qu e te n d e a re­ duzir os eventos m entais a eventos físicos ou, pelo m enos, a su b m eter os eventos m entais à causalidade dos eventos físicos, e, por otitro lado, ao espiritualism o (v.), que consiste na tentativa sim etricam ente oposta. Por isso, foi bem aceita com o h ipótese de trabalho de in­ vestigações que não queriam ancorar a sua va­ lidade em n en h u m a m etafísica. N o período em qu e a doutrina do P. consti­ tuiu o p ressu p o sto da psicologia experim ental e foi tem a de g ran d e n ú m ero de discussões entre p sicólogos e entre filósofos, alguns p ro ­ curaram ligá-la a ilustres p reced en tes históri­ cos; o mais óbvio desses p reced en tes era sem dúvida a m etafísica de Spinoza. Spinoza, com efeito, dissera que "um m odo da ex ten são e a idéia desse m odo são um a e m esm a coisa, expressa de duas m aneiras" (Et., II, VII, Schol.), e negara a interferência da causalidade da ex­

743

PARA SI

tensão e da causalidade do p en sam ento , afir­ m an d o que a causa de um p en sam en to é sem ­ pre um p e n sa m e n to e que a causa de tini corpo é sem pre um corpo (Ibid., III, 2), en­ q u an to a ordem e a co n catenação das coisas são sem p re as m esm as (Ibid, III, 2, Schol.). Es­ tas afirm ações podiam ser interpretadas com o expressão da doutrina do P., em bora a intenção cie Spinoza não fosse afirm ar a in depend ência causai recíproca entre fatos físicos e m entais, m as sim a sua su b o rd inação com um à causali­ d ade direta de D eus. A doutrina de Spinoza na v e rd a d e n ão é um P., m as um m o n ism o panteísta. Aliás, a doutrina cio P. não deve seus su cessos à sua v alidade m etafísica, m as, ao contrário, á lim itação do com prom isso m eta­ físico que ela im plicava, p o d en d o ser aceita com o hipó tese de trabalho in d ep e n d en tem e n ­ te da crença m onista ou espiritualista, não ex­ cluindo nem um a, nem outra. Q u an d o a psi­ cologia ab an d on o u essa doutrina, ela caiu em d esuso e deixou de ser tem a vivo cie discussão (v. PSICOLOGIA). P A R A L O G IS M O (gr. JiapaÀ oyiOM .óç; in. P aralogism ; fr. P aralogism e; ai. Paralogism us-, it. Paralogism o). D e A ristóteles (Kl. sof.. passim) em diante este term o é usado para indicar um silogism o ou q u alq u er argu m en to form al­ m ente falso (v. tam bém FALÁCIA). F m Kant. "P. da Razão pura" designa a falsa argum entação da psicologia racional, que se ilude achando que p od e deduzir do sim ples "eu penso" deter­ m inações m ateriais, m as a príori. do conceito (idéia) de "alma". G. P. P A R A P S IC O L O G IA V . IYIKTAP.SÍQUCA. PARA SI (in. Being for self; fr. P our sai: ai. Für-sich seiii; it. Fssere per se) O significado fundam ental deste term o é atribuído por Hegel: ser atual ou real (em contraposição a em si [v.|, ser possível), po rtan to ser que se desenv ol­ veu através da reflexão e da consciência. H egel diz: "D izem os que é para si aquilo que suprim e o ser outra coisa, a sua relação e a sua parti­ cipação com outra coisa, ou seja, aquilo que rejeita a outra coisa e abstrai dela. (... ) A consciência já contém em si, com o tal, a deter­ m inação do ser para si p o rq u an to se rep resen ­ ta o objeto por ela m esm a sentido, intuído, e tc , p o rq u an to tem em si o co n teú d o desse objeto. (...) M as a consciência de si é o ser para si aca­ b ad o e p osto, visto que nela o referir-se a outra coisa, a um objeto ex tern o , está su p erad o " (Wissenschaft der Logik. I, 3, A; trad. it., I, pp. 173-74). N este sentido, a consciência é para si

PARCIMÔNIA, LEI DA p o rq u e an u lo u a outra coisa (o o bjeto ex tern o) ou tiro u-a do ca m in h o , re so lv en d o -a em u m de seu s p ró p rio s c o n te ú d o s in tern o s. S artre re to ­ m ou este co n ce ito n a filosofia c o n te m p o râ n e a , c h a m a n d o de "ser para si" ou sim p le sm e n te "para si" a c o n sc iê n c ia e n q u a n to a n u la ç ã o ou "nada" do o bjeto , isto é, do em si (Lêtre et le néant, p p . 115 ss.). O m esm o sign ificad o 6 a trib u íd o à e x p re s sã o p o r M e rle au -P o n ty (Phénoménologie de Ia perception, 1945, pp. 423 ss.). PARCIM Ô NIA, LEI DA. V. ECONOMIA. PARENÉTICA (gr. 7rapatvéxiKf| léAvr); lat. Praeceptiva-, in. Parenetic, fr. Parénétique-. it. Parenetica). S eg u n d o os estó ico s, a p arte da m oral q u e c o n siste em p re sc re v e r p re c e ito s p rático s para a c o n d u ta de v id a n as v árias cir­ cu n stân cia s (cf. S ên eca, P.p.. 95). P aren ético : ex o rtató rio . P A R E N T E S E (in. Parentheses: fr. Parenthèse, ai. Parenthese-, it. Parentesi). X a lógica e n a m atem ática os P. são u m sinal de associação. A ssim , na ex p re ssã o In — (x-y)l. os P. in te rn o s serv em ex c lu siv am e n te para m o strar a asso cia­ ção d as p artes x-y da ex p re ssã o . N a te rm in o lo ­ gia da fe n o m en o lo g ia c o n te m p o râ n e a , "pôr e n ­ tre P." significa efetuar a su s p e n s ã o ou epoché fe n o m en o ló g ica (v. EPOCHÉ). P A R -IM P A R (gr. àpTiorripiTTOV; in. Evenodd\ fr. Pair-impair, ai. Gerade-ungerad: it. Parimparí). Era assim q u e os p itag ó rico s an ti­ g os d efiniam a u n id a d e , co m o p rin cíp io do n ú m e ro e d as co isas, p o rq u a n to ela seria li­ m itada co m o o ím p ar e ilim itada co m o o p ar ÍARISTOTKI.KS, Mel, I, 5, 986 a 15). P A R Ô N IM O (gr. 7iapw vuj.oç; lat. Denominaiivus). Foi assim q u e A ristó teles d e n o m in o u os o bjeto s cuja d e sig n a ç ã o p ro v é m de certo n o m e , com a m o dificação da d esin ên cia: co m o gramático, q u e deriva de g ram ática, e corajo­ so, de co ra g e m (Cat., 1, 1 a 11). O s P. têm em co m u m a essên cia ex p ressa pela definição (cf. B oécio, In Cat., I, P. L. 64, col. 167; P ed ro H isp a n o , Summ. log., 3-01; J u n g iu s , lógica hamburgensis, 1, 2, 16). N isso, são se m e lh a n te s aos sin ô n im o s ou u n ív o co s. A ristó teles c o n ­ sid e ra os P. co m o certa e sp é c ie de o b jeto s d esig n áv eis, ao lad o d o s h o m ô n im o s ou e q u í­ v o c o s e d o s sin ô n im o s ou u n ív o c o s (v. EQIIVOCO; ÜNÍVOCO). P A R S IS M O (in. Parsism: fr. Parsisme; ai. Parsismus; it. Parsismo). R eligião dualista dos an tig o s p ersas |(v. M A I, 1 b); Z orco strism o],

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PARTIÇÃO P A R T E (gr. p ip o ç ; lat. Pars; in. Part: fr. Part: ai. 7'eil; it. Parte). A ristó teles d istin gu iu três sig­ n ificado s p rin cip a is d esse term o : 1" aq u ilo que d ec o rre da d iv isão de u m a q u a n tid a d e , e neste sen tid o d ois é P. de três, a m e n o s cjue se res­ trinja o sign ificad o d e p arte à u n id a d e de m edi­ da, caso em q u e só u m (e n ão dois) é P. de três: 2" aq u ilo q u e d e c o rre da d iv isão de u m g ênero q u e n ão seja u m a q u a n tid a d e , e n e ste sentido são p artes as e sp écies de u m g ên ero ; 3g aquilo q u e d e c o rre da an álise de u m a p ro p o siç ã o que serv e de d efinição, e n este se n tid o o g ên ero é P. d a e sp écie (p o rq u e é a e sp é c ie q u e é defini­ da) (Met., V . 25, 1023 b 12). S. T o m á s de A q u in o p o r sua v e z ch a m o u d e p artes quanti­ tativas as do 1" sign ificad o de A ristó teles e de p artes essenciais as d o s 2- e 3L> sign ificad os (S. Th, I, q. 76, a. 8; III, q. 90, a. 2). E acrescen to ulh es a P. subjetiva, "na q u al está p resen te , si­ m u ltân ea e ig u alm e n te, to d a a v irtu d e do todo, assim co m o to d a a v irtu d e do an im al, p o rq u an ­ to se co n serv a co m o tal em q u a lq u e r espécie anim al", e a P. potencial, "na q ual está presente o to d o s e g u n d o to d a a sua essê n cia , assim co m o to d a a essên cia da alm a está p resen te em cad a u m a de su as p o tên cia s" (V. Th, III, q. 90, a. 3). M as é ó b v io q u e estas d u a s ú ltim as espé­ cies de P. fo ram ex c o g ita d as co m fins teológi­ cos. O u tras d istin çõ es foram in tro d u z id as com o u tro s in tu itos, co m o en tre a P. próxima e a P. remota, se g u n d o haja ou n ão , en tre a P. e o to d o , u m a outra P. (cf. JUNGICS. Log, I, 9, 11­ 12), e en tre a P. alíquota e a P. aliquanta, s e g u n d o a re p e tiç ã o d a p arte c h e g u e a adequar e x a ta m e n te o to d o ou re su lte, em certo pon­ to, m e n o r ou m aior q u e ele (cf. WOLFF, Ont., § 360). A m aioria d essas d istin çõ es hoje está em d e su so , e co m o a b a n d o n o do v elh o axiom a "a P. é m e n o r q u e o to d o " (v. INFINITO) O próprio c o n ce ito de P. d eix o u de ser d efin id o a partir do to d o e é h a b itu a lm e n te d efinido através de certo tip o de relação . A ssim , P eirce diz: "Uma P. de u m co n ju n to , c h a m a d o seu todo, é um co n ju n to tal q u e tu d o o q u e p e rte n ç a â P. p e rte n c e ao to d o , m as alg u m a coisa q ue per­ te n c e ao to d o n ã o p e r te n c e â P." (Coll. Pap, 4173). P A R T IÇ Ã O (gr. M epOM óç; lat. Partitio-, in. Partitiari; fr. Partition-, ai. Partitioií). O s estói­ cos d esig n a ram co m este te rm o "a ordenação de u m g ê n e ro em seu s lu g ares" (DiÓG. L, VII, 1, 62), ou seja, a e n u m e ra ç ã o d as partes que c o m p õ e m o to d o , co m o q u a n d o se enum eram

PARTICIPAÇÃO

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os m em b ro s do c o rp o h u m a n o ; p o rta n to , distin g u iram -n a d a d iv isão, q u e é a e n u m e ra ç ã o das espécies p e rte n c e n te s a u m g ê n e ro (CÍCKKO. Top, 5 -7 , 28-30)J v . d iv is à o ) . P A R T IC IP A Ç Ã O (gr. |ié9eAiÇ; lat. Partecipatio; in. Partícipation; fr. Partécipation; ai. Teünabme, Partizipation, it. Partecipazione). 1. U m d o s d ois c o n ce ito s de q u e P latão se v a ­ leu p ara definir a re la ção e n tre as co isas se n sí­ veis e as idéias; o o u tro é o de p re se n ç a ou parúsia (T tocpow ía). "N ada to rn a b ela u m a co i­ sa" — d isse ele — "a n ão ser a p re se n ç a ou a P. do b elo em si m esm o , seja q ual for o cam i­ nho ou o m o d o co m o a p re se n ç a ou a P. se realizam '' (Fed, 100 d). M ais ta rd e, P latão e n te n ­ deu a P. co m o im itação : "P arece-m e q u e as idéias estã o co m o e x e m p la re s na n atu re za , q u e os o u tro s o b jeto s se m e lh e m a elas e sejam suas cópias, e q u e essa P. d as co isas nas id éias c o n ­ siste em sere m im agem d elas" (Parni., 132 d). P latão n ão d eu m u itas o u tras d e te rm in a ç õ e s so b re esse im p o rta n te c o n ce ito da su a filosofia, m as a m etafísica m ed iev al a ele re co rreu q u a n ­ do p reciso u d istin g u ir "o ser p o r essên cia", q u e p erten ce so m e n te a D eu s, do "ser p o r P.", q u e p erten ce ãs criaturas; essa d istin ção g aran tia a su b o rd in a çã o do ser d as co isas ao ser de D eus. S. T om ás de A q u in o disse: "Assim o q u e tem fogo, m as n ão ô fogo, é a fo g u ea d o (ignitum) por P., ta m b é m o q u e tem ser, m as n ão é o ser, é en te p o r P." (S. Th, I, q. 3, a. 4). M as o am p lo uso q u e esse c o n ce ito te v e na m etafísica tra d i­ cional n ão co n trib u iu m u ito p ara esclarecê -lo , e ele c o n tin u o u tão in d efinido e o b sc u ro q u a n ­ to em P latão. 2. L. Lévy B ruhl utilizo u m u ito o c o n ce ito de p articipação p ara ilustrar a m e n ta lid a d e d os p ri­ m itivos: a p artic ip a çã o seria an te rio r à d istin ção entre as co isas q u e p articip am . "A p artic ip a çã o não se e s ta b e le c e en tre u m m o rto e u m ca d á ­ ver m ais ou m e n o s n itid a m en te re p re s e n ta d o s (caso em q u e teria a n atu reza de re la ção e d e ­ veria ser p ossível esclarecê-la p o r m eio do in te­ lecto); ela n ão v em d e p o is d as re p re s e n ta ç õ e s , nem as p re s su p õ e , m as é an te rio r a elas, ou pelo m e n o s sim u ltâ n e a. O q u e é d a d o em p ri­ m eiro lu g ar é a p artic ip a çã o " (Les carnets, I; trad. it., p. 36-37). P A R T IC U L A R (gr. Kocxà (iépoÇ; lat. Particularis; in Particular, fr. Particulier, it. Particolare). Q u e é u m a p arte ou p e rte n c e a um a parte. A p ro p o siç ã o P. foi definida p o r A ristó te­ les da m an eira seg u in te : "C ham o de P. a p ro p o ­ sição q u e ex p ressa a in erên cia a alg u m a coisa

PATOLÓGICO ou a n ão in erên cia a cad a coisa" (An. pr., 1, 1, 24 a 13). O co n trá rio da p ro p o siç ã o P. é a u n i­ v ersal (v .). A lógica m ed iev al in d ico u com a le ­ tra /a p ro p o siç ã o P. afirm ativa e com a letra O a p ro p o siçã o P. negativa. U m a p ro p o sição P. da form a "alguns / 'são I7 p o d e ser lida de várias as m an eiras: "algum F é G", "algum a coisa é ao m esm o te m p o F e G", "algum a coisa q ue é F é G", "Há u m FG", "E xistem FG", "FG ex iste", e tc . (cf. W . v . O . QUINE, Methods o f Logic, § 12). PARÚSIA. V. PARTICIPAÇÃO. PASSADO. V. TFMPO. PASSIVO (gr. 7ioc9r|TiKÓÇ; lat. Passivus-, in. Passive, fr. Passíf; ai. Passív; it. Passivo). Q u e sofre u m a ação . q u e é afetad o p o r alg u m a co i­ sa. É o adjetivo c o rre s p o n d e n te a afeiçào(w) e co n trá rio a ativo (v .). P A S T O R A L , F IL O S O F IA (lat. Pastoralis pbilosophía). Foi assim q u e B acon ch am o u a fi­ losofia "que co n tem p la o m u n d o p lac id am e n te e q u a se p o r ócio": ce n su ra q u e ele faz ta m b é m á filosofia de T elésio (Phil. Works, III, § 45). P A T É T IC O (in. Patbetic; fr. Pathétique, ai. Pathetísch; it. Patético). F. Schiller d esig n o u co m este te rm o u m a d as e sp écies do sublime (v.) p rático , m ais p re c isa m e n te o q u e d eriva de u m o b jeto a m e a ç a d o r em si m esm o para a n a­ tu reza física do h o m e m , p o rta n to d o lo ro so . N o su b lim e p rático co n tem p lativ o , ao con trário , não é o o bjeto , m as a su a c o n te m p la ç ã o q u e institui o te m o r e, c o n se q ü e n te m e n te , a su b lim id a d e (Vom Frhabenen, zur Weiteren Ausfuhrung einiger Kantischeu Ideen, 1793, IJber das Pathetische, 1793). P A T O L Ó G IC O (in. Pathological; fr. Pathologíque, ai. Pathologisch; it. Patológico). O q u e re p re se n ta d o e n ç a ou m an ifestação d e d o e n ç a. O ú n ico u so esp ecific am e n te filosófico d este te rm o e n c o n tra -se em K ant, em q u e d esig na tu d o o q u e d iz re sp e ito à "faculdade inferior de desejar", ou seja, ao co n ju n to d as in clin açõ es h u m a n a s n atu rais. D o p o n to de vista k an tia n o , n ão é P. so m e n te a ch a m a d a "faculdade s u p e ­ rior de desejar", q u e é a razão p rática in d e p e n ­ d e n te de to d as as in clin açõ es sen sív eis (Crít. R. Prática, § 3" Schol. I). J. B en th am ch am o u de patologia a c o n sid e ra ç ã o e a classificação dos m ó v eis sen sív eis d a c o n d u ta , in d ica n d o com esse te rm o "a teoria da se n sib ilid ad e passiva", e n q u a n to ch am av a de dinâmica "o u so p o ssí­ v el, p o r p arte do m o ralista e do legislad or, d e s ­ ses m esm o s m ó v eis p ara d e te rm in a r a co n d u ta

PATRIST1CA h u m a n a com v istas à m áx im a felicid ad e p o ssí­ vel" {Springs ofAction, 1817). P A T R IS T IC A (in. Patristic, fr. Patristique-, ai. Patristik, it. Patristica). In d ica-se co m este n o m e a filosofia cristã d os p rim e iro s sécu lo s. C on siste n a e la b o ra ç ã o d o u trin a i d as cren ças relig io sas do cristian ism o e n a sua defesa c o n ­ tra os a ta q u e s d os p a g à o s e co n tra as h eresias. A P. cara cte riza -se pela in d istin ção en tre reli­ g ião e filosofia. Para os p a d re s da Igreja, a re ­ ligião cristã é a ex p re ssã o íntegra e definitiva da v e rd ad e q ue a filosofia grega atingira im perfei­ ta e p arc ia lm en te . C om efeito, a R azão (Jogos) q u e se fez ca rn e em C risto e se rev elo u p le n a ­ m en te ao s h o m e n s n a sua p alavra é a m esm a q u e in sp irara os filósofos p ag ão s, q u e p ro c u ra ­ ram trad uzi-la em su as e sp e c u la ç õ e s. A P. co stu m a ser d iv id ida em três p erío d o s. O primeiro, q u e v ai m ais ou m en o s até o séc. III, é d e d ic a d o à defesa do C ristian ism o co n tra seu s ad v ersário s p a g ã o s e g n ó stico s (Justino, T acian o , A tenágo ras, T eófilo, Irinen. T ertu lian o , M in ú cio Félix, C ip rian o, L actâncío). O segundo p e río d o , q u e v ai do séc. III até a p ro x im a d a ­ m en te a m etad e do séc. IV, é c a ra cte riza d o pela fo rm u lação d o u trin a i d as cren ça s cristãs; é o p e río d o d o s p rim eiro s g ra n d e s sistem a s de filosofia cristã (C lem en te de A lexand ria, O ríg en es, B asílio, G reg ó rio N az ia n z en o , G reg ó rio de N issa, S. A g o stin h o ). O terceiro p e río d o , q u e v ai da m etad e do séc. V até o fim do séc. V III, é ca ra cte riza d o pela re e la b o ra ç ã o e pela siste m a tiz a ç ã o d as d o u trin a s já fo rm u la d a s, b em co m o p ela au sên cia de fo rm u la çõ es ori­ g in ais (N e in ésio , P se u d o -D io n ísio , M áxim o C onfessor, J o ã o D am a sc en o , M arcian o, C apella, B oécio, Isid o ro de Sevilha, B eda, o V en eráv el). A h e ra n ç a da P. foi re co lh id a, n o início do re n a sc im e n to caro lín g io , pela F.scolãstica (v.). P A Z (in. Peace; fr. Paix. ai. Friede; it. Face). A m ais fam osa d efinição de P. foi d ad a p o r C ícero, em Filípicas: "Faxest tnuiqitilla liber­ tas" (FbiL, 2, 44, 113), m u itas v e z e s re p e tid a . D e m o d o m ais g eral, a P. foi d efin id a p o r H o b b es co m o a ce ssaç ão do esta d o de g u erra, ou seja, do conflito u niversal en tre os h o m e n s. P ortanto , "p ro cu rar o b te r a P.", s e g u n d o H ob bes. é a p rim eira lei tia n atu reza (Leriatb., I, 14). C om o H o b b es, K ant ju lg av a q u e o esta d o de P. en tre os h o m e n s n ão é n atu ral e q u e, p o r­ tan to , ele tem de ser instituído, p ois "a a u s ê n ­ cia de h o stilid ad e n ão significa seg u ran ça , e se esta n ão for g ara n tid a en tre v izin h o s (o q u e só p o d e realizar-se n u m esta d o legítim o) p o d erá

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PECADO ser tra ta d o co m o in im igo a q u e le a q u e m se te­ n ha p e d id o essa g aran tia em v ão " (Zum ewigen Frieden, 1796, § 2). Para W h ite h e a d , a P. é um co n ce ito m etafísico, "a h a rm o n ia d as h arm o ­ n ia s q u e a p la c a a tu rb u lê n c ia d e stru tiv a e co m p leta a civilização" (Adventures ofIdeas, XX, § 2). P E C A D O (lat. Peccatum; in. Sin; fr. Péché, ai. Sünde. it. Peccato). T ran sg ressão inten­ cion al de u m m a n d a m e n to d iv in o. Esse term o tem c o n o ta ç ã o so b re tu d o relig io sa: P. n ão é a tran sg re ssão de u m a n o rm a m oral ou jurí­ dica, m as a tra n sg re ssã o de u m a n o rm a consi­ d erad a im posta ou estabelecid a pela divindade. O re c o n h e c im e n to do ca rá ter d iv in o de um a n o rm a e a in te n ç ão de tran sg red i-la são os dois ele m e n to s d esse co n ceito , sem os q u ais se con­ fu n d e co m os c o n ce ito s de cu lp a, d elito , erro, crim e, e tc , q u e d esig n a m a tran sg re ssão de u m a n o rm a m oral ou ju ríd ica. O c o n ce ito de P. foi e la b o ra d o pela teologia cristã n e sse s term o s. S. A g o stin h o definia o P. co m o "o q u e é dito , feito ou d eseja d o contra a lei etern a", e n te n d e n d o p o r lei etern a a vonta­ de divina cujo fim é co n se rv a r a o rd em no m u n d o e fazer o h o m e m d esejar cada v ez mais o b em m aior e cad a v e z m e n o s o b em m enor (Contra Faustum, XXII, 27). S. T o m á s de Aquino c e rta m e n te aceitava essa definição ao dizer q u e para o h o m e m a lei etern a é d ú p lice: "l'ma é p ró x im a e h o m o g ê n e a , é a p ró p ria razão h u m an a; a outra é a regra p rim eira, a lei eterna q u e é q u a se a razão de D eu s' 1 (S. Th, II, 1, q, 71, a. 6). S. T o m á s de A q u in o in siste, de um lad o , n a v o lu n ta rie d a d e (in ten cio n alid ad e) do P., em v irtu d e da q ual se p o d eria definir o P. u n ic a m e n te m ed ia n te a v o n ta d e , n ão fosse o fato d e os atos e x te rn o s ta m b é m p erten cerem ao P. e p o r isso d e v e re m ser m e n c io n a d o s em sua d efinição (Ibid, ad. 2S). Por o u tro lado, in­ siste em d izer q u e to d o P. é, co m o tal, u m P. co n tra D eu s, e m b o ra os P. co n tra D eu s consti­ tu am , de o u tro p o n to d e v ista, u m a categoria esp ecial (S". 77?.. II, 2, q. 72. a. 4, ad 1”). P o d e-se d izer q u e esse c o n ce ito de P. não se altero u atrav és d o s te m p o s. K ant repete-o ao definir o P. co m o "a tran sg re ssão da lei moral vista co m o m a n d a m e n to d iv in o" {Religion, 1, seç. IV; II, seç. 1, c; trad. it.. D u ran te , pp. 31, 68); o m esm o faz K ierk eg aard , ao afirm ar que o P. é perante Deus, e q u e co n siste em "buscar d e s e s p e r a d a m e n te a id e n tid a d e ou em fu­ g ir d e s e s p e ra d a m e n te à id e n tid a d e ", o que significa q u e co n siste no d e se sp e ro de n ão ter fé

PECADO ORIGINAL

(Die Krankheit zum Tode, II, cap. I, trad. it., F abro, p. 300). O q u e K ierk eg aard a c re sc en ta é o caráter excepcional d o P., q u e c o rre sp o n d e ao caráter e x c e p c io n a l da fé. O P. n ão é d e to ­ d os os d ias: "Ser p ec ad o r, n o se n tid o m ais rig o ­ roso, está b em lo n g e d e ser m eritó rio . N o e n ­ tanto, co m o se p o d e ac h ar u m a co n sciên cia essen cial do P. (o q u e aliás é in d isp en sáv el para o C ristianism o) n u m a v id a tão m e rg u lh a ­ da n a triv ialid ad e. tão re d u zid a à im itação v u l­ gar d o s o u tro s, q u e é q u a se im p o ssível d ar-lh e n om e, p ois é d e sp ro v id a d em ais de esp írito p ara p o d e r ser ch a m a d a de P.?" (Ibid, II, B, A créscim o A; trad. it., p. 328). P E C A D O O R IG IN A L (lat. Peccatum originale; in. Original sin; fr. Péché originei; ai. Erbsünd; it. Peccato originaté). A s d iscu ssõ es filosófico-teológicas a re sp e ito do P. original g e ra lm e n te tiv e ra m co m o o b jeto a m an eira com o esse P. se tran sm itiu de A d ão ao s o u tro s h o m en s. S. T o m ás de A q u in o e n u m era v a d u as h ip ó tese s p rin cip a is, ad u zid a s para a so lu ç ão d esse p ro b lem a: a h ip ó te se do traducianismo, seg u n d o a q ual "a alm a racio n al tran sm ite-se com a se m e n te , de tal m an eira q u e d e u m a alm a infecta d eriv am alm as infectas", e a h i­ pótese da hereditariedade, se g u n d o a q ual "a culpa da alm a do p rim e iro g e n ito r tran sm ite-se à p ro le, em b o ra a alm a n ão se tran sm ita do m esm o m o d o co m o os d efeitos do co rp o se tran sm item de p ai para filho". A m bas as h i­ p ó teses p are ciam in su sten tá v e is a S. T o m ás de A quino, e ele an u n c ia v a a sua d iz e n d o q u e "todos os h o m e n s n ascid o s de A dão p o d em co n siderar-se u m ú n ico h o m em , p o rq u a n to têm a m esm a n atu reza, receb id a do p rim eiro genitor, da m esm a m an eira co m o n as cid a d e s to d o s os ho m en s q u e p e rte n c e m à m esm a c o m u n id a d e se ju lg am u m só c o rp o , e a c o m u n id a d e inteira é co m o u m ú n ic o h om em " (II, 1, q. 8 1 , a. 1). A lguns sécu lo s d ep o is, em sua Teodicéia (1710), L eib n iz e n u m e ra ria as m e s m a s h ip ó te s e s (Théod, I, § 86), en tre as q u ais oscilou sem p re o p e n sa m e n to teo ló g ico . A liás, é só em K ant e em K ierk eg aard q u e se en con tra u m a in te rp re ta ç ã o filosófica (e n ão teológica) do P. original. K ant o b serv o u q u e não se d ev e co n fu nd ir a q u e stão da o rig em temporal de u m a coisa com a q u e stão d e sua origem racional, o p ro b lem a da o rig em te m p o ­ ral d ev e ser re so lv id o p ela d o u trin a bíblica do P. original, m as o da o rig em ra cio n al do m al deve ser so lu c io n a d o pela d o u trin a do "mal radical", se g u n d o a qual a d isp o sição inata do

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PEDAGOGIA h o m e m p ara o m al d eriva da n atu re za d e suas m áx im as. E diz: "A p ro p o siç ã o 'o h o m e m é mau significa ap e n a s q u e o h o m em está ciente da lei m o ral, m as ac o lh e u o p rin cíp io de afas­ tar-se o c a sio n a lm e n te d essa lei. D izer q u e ele é n\âi\por natureza s\gn\íic/ã q u e isso v ale para to d a a e sp écie h u m a n a , n ão n o sen tid o de q u e essa q u a lid a d e p o ssa ser d e d u z id a do co n ce ito de e sp é c ie h u m a n a (do c o n ce ito de h o m e m em geral) — p o rq u e en tã o seria n e c e ssá ria — , m as n o sen tid o de q u e o h o m e m , do m o d o co m o é c o n h e c id o p o r e x p eriên cia, n ão p o d e ser ju lg a d o d e o u tra m an eira ou n o sen tid o de q u e se p o d e p re s su p o r co m o o b jetiv am en te n ec essária a te n d ê n c ia ao m al em q u a lq u e r h o ­ m em , até no m elhor" (Religion, I, 3; trad. it., D u ran te , p. 18). S u b stan cialm e n te id ên tica a esta é a in te rp re ta ç ã o do P. orig in al d ad a p o r K ierk eg aard , q u e d iscern iu a co n d iç ã o e a reali­ d ad e p sico ló g ica d ele na angústia: "A p ro ib i­ ção d e D eu s an g ustia A dão p o rq u e d esp e rta n ele a p o ssib ilid ad e da lib e rd ad e. O q u e n a in o cên cia era o n ad a da an g ú stia p asso u en tã o a fazer p arte da in o cên cia, s e n d o aí ta m b é m u m n ad a. ou seja, a possibilidade angustiante depoder. D o q u e p o d e n ã o tem a m e n o r idéia; caso co n trá rio , p ressu p o r-se -ia, co m o a c o n te ­ ce h ab itu a lm e n te , aq u ilo q u e seg u e , q u e é a diferença e n tre o b em e o m al. E m A dão só há a p o ssib ilid ad e de p o d er, co m o form a su p erio r de ig n o rân cia , co m o e x p re ssã o s u p e rio r de an ­ g ústia, p o rq u e em se n tid o m ais e lev ad o esta p o ssib ilid a d e é e n ão é, e A dão am a-a e foge dela" (DerBegriffAngst, I. § 5; trad. it., F abro, p. 54). T a m b ém aq u i, co m o se v ê, n ão se trata da orig em tem p o ral, m as da o rigem racion al do P. o rig in al, e aq u i ta m b é m essa orig em é vista n u m a p o ssib ilid a d e , in d ete rm in a d a ou "indefi­ nida", co m o a ch am a K ierk eg aard , q u e é tam­ bém a p o ssib ilid a d e de agir co n tra a p ro ib ição divina. Para K ierk eg aard , assim co m o para K ant, o P. o riginal consistiria, p o rtan to , n a persp ectiv a d e u m a p o ssib ilid a d e , q u e , co m o tal, p o d e im p licar a infração à n o rm a m oral ou à p ro ib i­ ção divina. P E D A G O G IA (in. Pedagogv, fr. Pédagogie; ai. Pãdagogik, it. Pedagogia). E ste term o , q ue n a su a o rig em significou prática ou profissão de ed u c a d o r, p asso u d ep o is a d esig n a r q u a l­ q u e r teoria da educação, e n te n d e n d o p o r teoria n ã o só u m a ela b o ra ç ã o o rg an iza d a e g e ­ n érica d as m o d a lid a d e s e p o s sib ilid a d e s da ed u ca çã o , m as ta m b é m u m a reflexão ocasio n al ou u m p re s su p o s to q u a lq u e r da p rática e d u c a ­

PEDAGOGIA cion al. N este sen tid o , n a A n tig ü id a d e clássica a p ed ag o g ia n ão tinh a a d ig n id a d e de ciência au tô n o m a , m as era c o n sid e ra d a p arte da ética ou da política, c p o r isso e la b o ra d a u n ic a m e n te em vista do fim q u e a ética ou a p olítica p ro ­ p u n h a m ao h o m em . P or o u tro lad o , os e x p e ­ d ie n te s ou os m e io s p e d a g ó g ic o s só eram e s tu d a d o s em re la ç ã o à p rim e ira e d u c a ç ã o , m in istrad a na infância, p o rta n to às m ais e le ­ m en ta re s a q u isiçõ es (ler, escrev er, co n tar). A s­ sim , até certa altura, a reflexão p ed ag ó g ica é d i­ vid id a em d ois ram o s iso lad o s: u m de n atu re za p u ra m e n te filosófica, e la b o ra d o co m v istas aos fins p ro p o sto s p ela ética, e o u tro d e n atu re za em p írica ou p rática, e la b o ra d o co m v istas à p re p a ra ç ã o p rim eira e e le m e n ta r d a criança para a vida. P o d e-se d izer q u e esse s d ois ra m o s se u n e m p ela p rim eira v e z no séc. XVII, g raç as a G. A. C o m ên io , q u e p re te n d e u in teg rar n o d o m ín io da P. a o rg an iza çã o m eto d o ló g ica q u e F rancis B ac o n p re te n d e ra in te g ra r n o d o m ín io d as o u tras ciên cias. Para ta n to , e la b o ro u u m siste ­ m a p e d a g ó g ic o c o m p le to , fu n d a d o no p rin ­ cípio dapansofia(v.), q u e partia de c o n sid e ra ­ çõ es so b re os fins da e d u c a ç ã o para ch e g a r ao estu d o d os m eio s e d o s in stru m e n to s d i­ d ático s. A p artir d e C o m ê n io , a e x p eriên cia p ed ag ó g ic a do O c id e n te foi-se e n riq u e c e n d o e a p ro fu n d a n d o , co m as te n tativ a s d e ac h ar n o v o s métodos ed u cacio n ais. A s o bras de L ocke. R ou sseau , P estalozzi, F rô eb el são m u ito im p o r­ ta n tes d esse p o n to d e vista, in clusiv e p o r terem esses au to re s c o m b in a d o os m é to d o s e d u c a c io ­ nais, com as n o v as c o n c e p ç õ e s filosóficas q u e iam su rg in d o p o u c o a p o u c o . A ssim , p o d e ­ m o s d iz e r q u e L o c k e re p r e s e n ta a P. do em p irism o ; R o u sse a u , a P. do ilu m in ism o ; P estalozzi, a P. do criticism o; e F rô eb el. a do ro m an tism o . T o d av ia, a o rg an iza çã o científica da P. d ev e m u ito a H erbart, q u e foi o p rim eiro a d istin gu ir e u n ir os d ois ra m o s da trad iç ão p e ­ d ag ó g ica n u m sistem a co e re n te . H erb art disting uiu os fins da e d u c a ç ã o (q u e a P. d ev e h au rir da ética) e os meios e d u c a c io n a is (q u e a P. d ev e h au rir d a psicologia), p ro c u ra n d o e la b o ­ rar, distinta e c o rrelativ a m en te , essa s d u as p ar­ te s in te g ran te s. (Allgemeine Püdagogik. 1806; Umrispüdagogischer Vorlesiingen, 1835). A p artir daí, a p sico lo g ia to rn o u -se a p rin ci­ pal ciên cia au x iliar d a p ed ag o g ia . A ú n ica e x c e ­ ção infeliz a essa c o n e x ã o foi re p re s e n ta d a pela form a de id ealism o ro m â n tic o q u e p re ­ v aleceu n a Itália n o s p rim e iro s d e c ê n io s do

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PEDOLOGIA séc. XX. F ssa fo rm a de id e a lism o n eg av a a d iv e rsid a d e d as p esso as, ju lg a n d o -a s u n id as ao E sp írito U n iv ersal, e id en tificav a o desen vo lv i­ m e n to p esso al do h o m e m com o desenvol­ v im e n to u n iv e rsa l do E sp írito . E stas te se s eram a p re se n ta d a s co m o u m a so lu ç ão da P. n a filo­ sofia. G en tile dizia: "Q u an d o p o r esp írito só se e n te n d e o d e s e n v o lv im e n to , a fo rm ação , a e d u c a ç ã o , em su m a, do E spírito, a p ró p ria filo­ sofia (toda filosofia, co n ta n to q u e a realidade seja co n c e b id a ab so lu ta m e n te co m o Espírito) tran sfo rm a-se em P., e a form a científica dos p ro b lem as p ed ag ó g ic o s p articulares transformase em filosofia" (Sommario di pedagogia, II. 1912, p. 15). X a m esm a é p o c a , p o rém , fazia-se a ten tativ a sim e tric a m e n te o p o sta d e reduzir a P. a ciên cia m ecân ica, to m a n d o a física como m o d e lo e m u d a n d o seu n o m e para pedologia (v.), com a aleg aç ão de q u e, d o m in a n d o -se o m ec an ism o p sic o ló g ic o , p o d e -se dirigir a for­ m ação m en tal d os h o m e n s do m esm o modo co m o é p o ssív el dirigir as fo rças da natureza u tiliza n d o as leis da n atu reza. P o d e-se d izer q u e a P. c o n te m p o râ n e a , em sua form a m ais a m a d u re cid a , co m eça quando são p o sta s de lad o as p re te n sõ e s o p o sta s d e re­ d u zir o h o m e m a esp írito ab so lu to ou a meca­ n ism o , e o h o m e m co m eça a ser ju lg ad o e c o n sid e ra d o co m o n atu re za , sem ser degrada­ do o m ec an ism o . A n o ç ã o de condicionamen­ to (v. CONDIÇÃO) é a q u e p rev alec e hoje na P., alijando dela ta n to o in d ete rm in ism o idealista q u a n to o d e te rm in ism o m ecan icista. A lém dis­ so, a ex p eriên cia p ed ag ó g ic a hoje é enrique­ cida p elo estu d o d a e d u c a ç ã o n as sociedades p rim itiv as, o q u e p o ssib ilito u , p o r u m lado, u m a g e n e ra liz a ç ã o do p ró p rio co n ce ito de educação(v.) e, p o r o u tro , fazer co n fro n to s e para­ lelo s eficazes no te rre n o d os in stru m en to s edu­ cacio n ais. A lém da p sico lo g ia, a an tropologia e a so cio lo g ia ta m b é m c o n trib u e m hoje para pro­ v er a P. co m u m co n ju n to de in stru m en tais nas á rea s em q u e o p ro b lem a d os fins perm anece ab erto ; ad e m a is, do p o n to d e vista pedagógi­ co, os fins te n d e m hoje a ser ap re se n tad o s de form a h ip o tética, e n ã o da form a absoluta e d og m ática co m o eram p ressu p o sto s pela P. tradi­ cio n al (v. CULTURA-, EDUCAÇÃO). P E D O L O G IA (in. Paidology, fr. Pédologie, ai. Paidologie; it. Pedologia). C iência exata da e d u c a ç ã o , em o p o siç ã o à p ed ag o g ia , que seria a arte em p írica da e d u c a ç ã o . P elo menos foi o significado d a d o a esse term o p o r aqueles q u e o in tro d u z iram : o alem ã o O . Chrisman

PEDOTECNICA (Paidologie. 1894) e o francês E. B lum (cf. seu s artigos em Revuephilosophique, m aio 1897, no­ vembro 1898). Seu p re s su p o s to d ev eria ser a psico log ia ex p e rim e n ta l, da q ual seriam ex traí­ dos os in stru m e n to s e d u c a c io n a is relativ o s às várias id ad es cio h o m em . E sse c o n ce ito n ào d esap areceu; ao con trário , fu n dam en ta b oa parte da p sico lo g ia c o n te m p o râ n e a , m as o term o P., d ep o is de b re v e ac eitaç ão , foi a b a n d o n a d o . P E D O T E C N IC A (fr. Pédotechnié). U m a -S o­ cied ad e de P." foi fu n d ad a em 1906 em B ru­ x elas p o r D écroly: o te rm o tinh a o m esm o sig­ nificado de p ed o lo g ia . P E IR A S T IC A (gr. T O ipaaxtK ti TÉAvn). S e­ g u n d o A ristó teles, a arte d e su b m e te r um a tese à prova, d e d u z in d o su as c o n se q ü ê n c ia s. É um a parte da d ialética e d istin g u e-se da sofistica p o rq u e se d e stin a ao a d v e rsá rio ig n o ra n te , ao p asso q u e a sofistica te n d e a d erro tar ta m ­ bém q u e m p o ssu i ciên cia (El. sof, 8. 169 b 25; 171 b 4). P E L A G IA N IS M O (in. Pelagianism, fr. Pélagíanisme, ai. Pelagianismus-, it. Pelagianismo). D outrina do m o n g e in g lês P elág io , q u e, no iní­ cio do séc. V , en sin o u em R om a e C artago; em p olêm ica co m S. A g o stin h o , sua d o u trin a dizia que o p e c a d o de A dào n ào en fraq u e ce u a ca­ p a c id a d e h u m a n a d e fazer o b e m , m as é ap en as u m m au ex e m p lo , q ue to rn a m ais d i­ fícil e p e n o sa a tarefa do h o m e m . S. A go sti­ nho co m b ate u essa tese em m u itas o b ras, a partir de 412, d e fe n d e n d o a te se o p o sta: de q ue to d a a h u m a n id a d e p ec ara com A dào e em A dào e q u e, p o rta n to , o g ê n e ro h u m a n o é um a ú nica "totalidade co n d e n a d a ": n e n h u m de seus m em b ro s p o d e esca p a r à p u n iç ã o a n ào ser p o r m isericó rd ia e p ela g raça (nào o b ri­ gatória) de D eu s (cf. De civ. Dei, X III, 14) (v. GRAÇA). P E N A (gr. ôÍKn; lat. Poena; in. Penalty, fr. Peme, ai. Strafe, it. Pena). P riv ação ou castigo previsto p o r u m a lei p ositiva p ara q u e m se torne c u lp a d o de u m a infração. O c o n ce ito de pena varia co n fo rm e as ju stifica çõ es q u e lh e foram d ad as, e tais ju stificaçõ es v ariam s e g u n ­ do o o bjetivo q u e se te n h a em m en te: ly o rd em da justiça; 2" salv ação do réu; 3y defesa dos cidadãos. í- O m ais an tigo co n ce ito d e p en a é o q u e lhe atribui a fu n ção de re sta b e le c e r a o rd em da justiça. lista é a fu n ção atrib u íd a p o r A ristóteles, para q u e m a ju stiça n ào co n siste na P. cie talião , e o o bjetivo da P. é re sta b e le c e r a ju stiça em sua devida p ro p o rç ão : "Q u an d o alg u ém apa-

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PENA n h o u e o u tro b ate u , ou en tã o q u a n d o algu ém m ato u e o u tro m o rreu , n ào há re la ção d e ig u al­ d ad e en tre o d a n o e o d ireito , m as o ju iz p ro c u ­ ra re m e d ia r essa d e sig u a ld a d e com a P. q u e in­ flige, re d u z in d o a v a n ta g e m o btid a" (Ht. nic, V , 4, 1132 a 5; cf. 8, 1132 b 21). Este co n ce ito já fora e ste n d id o do h o m e m ao m u n d o p or A n a x im an d ro cie M ileto, q u e afirm ara: "T odos os sere s d ev em p a g a r u n s ao s o u tro s, se g u n d o a o rd em do te m p o , o p re ç o d a sua injustiça" (fr., 1, D iels). A P. serv e n este caso p ara re sta b e ­ lecer a o rd em có sm ica. Esta ta m b é m é a função atrib u íd a p elo p o n to d e vista relig io so . P lotino diz: C u m p rim o s a fu n ção q u e p o r n atu reza ca b e à alm a e n q u a n to n ào n os p e rd e m o s na m u ltip licid a d e do u n iv e rso ; e se n os p e rd e m o s so frem o s a P., ta n to co m n ossa p ró p ria p erd a q u a n to co m o d estin o infeliz q u e m ais tard e n os esp era" (Hun.. II, 3. 8); as m esm as p alavras ach am -se em S. A g o stin h o (De civ. Dei, V , 22). S. T o m á s de A q u in o diz: "C om o o p e c a d o é um ato co n trá rio à o rd em , é ó b v io q u e q u e m p eca ag e co n tra certa o rd em , s e g u in d o -se q u e p or essa m esm a o rd e m é re p rim id o ; e essa re p re s ­ são é a P." (S. Tb.. I, II, q. 87, a. 1). C om o m e s­ m o esp írito , K ant afirm ava d e m o d o só a p a re n ­ te m e n te p ara d o x al: "M esm o q u e a s o c ie d a d e civilizada se d isso lv esse com o c o n se n so d e to ­ d os os seu s m em b ro s (se, p. ex., u m p o v o q ue h ab ita sse u m a ilha d ec id isse se p a ra r-se e d is­ p ersar-se p elo m u n d o ), o ú ltim o assa ssin o q ue estiv esse n a p risão d ev eria an te s ser ju stiç ad o , para q u e cad a u m p ro ferisse a p en a p o r sua co n d u ta e o sa n g u e d e rra m a d o n ào recaísse so b re o p o v o q u e n ào exigiu p u n iç ão " (Mel. der Sitten, I, II. seç. 1, E; trad. it., p. 144). D o m esm o p o n to de v ista, H eg el co n sid e rav a a P. co m o "a v e rd a d e ira co n cilia çã o do d ireito c o n ­ sigo m esm o ", co m o "respeito objetivo e co n ci­ liação da lei q u e se restau ra atrav és da an u la ­ ção do d elito e assim se valida" (Fil. do dir., § 220). A s a n te rio rm e n te citad as são as p rin ci­ p ais o p in iõ e s q u e p o d e m ser co ligidas en tre os filósofos a favor da teoria da P. co m o re sta u ra ­ ção da o rd em da ju stiça. M as são p alav ras q ue in sp iraram e até hoje in sp iram n u m e ro sa s d o u ­ trin as ju ríd ic a s, b em co m o as in stitu içõ es e leis n elas fu n d ad as. 2- O c o n c e ito da P. co m o salv ação ou co rre ­ ção do réu m u itas v e z e s está lig ad o ao co n ce ito acim a. A sua defesa m ais c é le b re ta lv ez esteja em Górgias, de P latão , para q u e m é m elh o r so ­ frer a injustiça q u e co m etê-la, e para q u e m c o ­ m eteu injustiça a m elh o r coisa é su b m e te r-se à

PENA p en a. "Se u m a cu lp a é co m etid a" — diz P latão — "é p rec iso ir o m ais d e p re ssa p ossível a o n d e a P. p o ssa ser cu m p rid a, ou seja, ao ju iz , q u e é co m o u m m éd ic o , p ara q u e a d o e n ç a da injusti­ ça n ão se to m e crô n ica e n ão to rn e a alm a co r­ ro m p id a e in cu rável" (Górg, 480 a). C om efei­ to, "q u em c u m p re a P. sofre u m b em ", no sen tid o de q u e "se for p u n id o co m ju stiça, fica­ rá m elho r" e "libertar-se-á do m al" (Ibid., Ali a); assim , a P. é u m a p u rificação ou lib e rta çã o q u e o p ró p rio c u lp a d o d ev e q u e rer. Essa fu n ­ ção p u rificad o ra é m u itas v e z e s re c o n h e c id a p o r a q u e le s q u e v ê e m n a P. o re sta b e le c im e n to da ju stiça. A p esar de K ant afirm ar q u e "a P. n u n c a p o d e ser d e c re ta d a co m o m eio para atingir u m b em , seja em p ro v e ito do crim in o so , seja em p ro v e ito da so c ie d a d e civilizada, m as d ev e ser-lh e ap licad a a p e n a s p o rq u e ele c o m e ­ teu u m crim e" (Met. derSitten, I, II, seç. 1, E; p. 142), n e g a n d o assim q u a lq u e r c o n e x ã o en tre as d u as c o n c e p ç õ e s de P., S. T o m á s de A qu in o re co n h e cia essa c o n e x ã o e dizia: "As P. da vida p re se n te são m ed icin ais; assim , q u a n d o u m a P. n ão é suficien te p ara d ete r u m h o m e m , ac re s­ c e n ta-se o utra, co m o fazem os m éd ic o s q u e em p re g a m d iv erso s re m é d io s q u a n d o u m só não é eficaz" (S. Th., II, 2, q. 39 a. 4, ad 3y). A n a lo g a m en te , H eg el afirm ava q u e a P. n ão é so m e n te a co n ciliação da lei co n sig o m esm a, m as ta m b é m a co n ciliação do d e lin q ü e n te com sua lei, com a lei "co n h ecid a e v álid a p ara ele, d estin ad a à sua p ro teç ão "; n essa co n ciliação , o d e lin q ü e n te en c o n tra "a satisfação da ju stiç a e o seu p ró p rio in teresse" (Fil. do dir, § 220). 3Q A terceira c o n c e p ç ã o de P. atrib u i-lh e a fu n ção d e d e fe n d e r a so c ie d a d e . D este p o n to de vista, a P. é: a) u m m óvel ou estím ulo para a co n d u ta d o s cid ad ão s; b) u m a co n d iç ã o física q u e p õ e o d e lin q ü e n te n a im p o ssib ilid a d e de prejudicar. O s filósofos a c e n tu a ra m so b re tu d o o p rim eiro caráter. A ristóteles já n otav a q u e to ­ d o s aq u e le s q u e n ão tiv eram a so rte de re c e b e r da n atu re za u m a ín d o le liberal (e são os m ais n u m e ro so s) ab stêtn -se d o s ato s v e rg o n h o so s só p o r m e d o d as p en as. E diz: "A m aioria o b e ­ d ec e m ais à n e c e ssid a d e q u e à ra zã o , m ais às P. cjue à honra" (Et. nic, X , 9. 11 80 a 4; cf. 1179 b 11). M as o q u e A ristó teles c o n sid e rav a o m óvel das alm as serv is a c o n c e p ç ã o aq u i ex a m in a d a co n sid e ra v a o m ó v el ú n ic o e fu n d a m e n ta l. H o b b es afirm a q u e "é ineficaz a p ro ib iç ã o q u e n ã o v e n h a a c o m p a n h a d a p elo te m o r da P., s e n ­ d o, p o is, ineficaz um a lei q u e n ão c o n ten h a am b as as p artes, a q u e p ro íb e d e co m e te r um

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PENA d elito e a q u e p u n e q u e m o co m ete" (De eive. 1642, XIV, § 7). E ste c o n ce ito seria adotado pela filosofia ju ríd ica do llu m in ism o . É retom a­ do p o r S am u el Pufendorf, q u e atrib u i à P. a tarefa p rin cip al "de d issu ad ir os h o m e n s do p e c a d o co m seu rigor" (Dejure naturae, 1672, VIII, 3, 4), sem excluir, to d av ia, a co rreção do réu (Ibid.. VIII, 3, 9). M as foi com C esare Beccaria q u e esse c o n c e ito p rev alec eu : fundam entou sua o b ra Dei dititti e dellepene (1764). Segun­ do B eccaria, a P. n ão p assa de m o tiv o sensível para refo rçar e g aran tir a ação d as leis, de tal m an eira q u e "as p e n a s q u e e x c ed am da neces­ sid a d e de co n se rv ar a s a ú d e p ú b lica são injus­ tas p o r n atu reza" (Dei dirittíe dellepene, § 2). D o m esm o p o n to de vista, B en th am considera­ v a a P. co m o um a en tre as v árias esp écies de sanções(y.) cuja fu n ção é servir de "estim ulan­ tes d a c o n d u ta h u m a n a ", p o rq u a n to "transfe­ rem a c o n d u ta e su a s c o n se q ü ê n c ia s para a esfera d as e s p e ra n ç a s e d o s te m o re s: espe­ ra n ç as de u m e x c e d e n te de p raz eres; tem ores q u e p re v ê e m p o r a n te c ip a ç ã o u m ex ce­ d e n te de d ores" (Deontology, 1834, I, 7). O s m esm o s c o n ce ito s fu n d a m en tais fo ram valida­ d o s pela d e n o m in a d a "Escola P ositiva Italiana" (L o m broso. Ferri e o u tro s), q u e os defendeu co m certo su c esso n a d isc u ssão filosófico-jurídica a re sp e ito do d ireito p en al. N ão há d ú v id a de q u e a m aioria d os juristas, d o s filósofos do d ireito , d os có d ig o s e dos di­ reito s p o sitiv o s v ig en tes n as v árias n aç õ e s do m u n d o in sp iram -se n u m a c o n c e p ç ã o m ista ou eclética da P., c o n sid e ra n d o -a , na m aioria das v ez es, so b os três ân g u lo s aq u i ap resentad os. E ste sin c re tism o n ão cria n e n h u m a dificuldade do p o n to de vista te ó ric o , ain d a q u e os três p o n to s de vista n ão te n h a m o m esm o grau de h o m o g e n e id a d e . O s p rim eiro s d ois unem -se facilm en te e ta m b é m na p rática estã o freqüen­ te m e n te ju n to s, e n q u a n to o te rc eiro p erten ce a u m a o rd em d iferen te de p e n sa m e n to : os dois p rim e iro s in sp iram -se na ética d os fins; o ou­ tro, na ética do m óvel (v. ÉTICA). M as as dificulda­ d es c o m eç am no te rre n o p rátic o , q u a n d o é p rec iso e sta b e le c e r a medida d a p en a. Neste ca m p o , as três c o n c e p ç õ e s m an ifestam heterog e n e id a d e . D e ac o rd o com o p rim e iro ponto de v ista, to d as as infrações à o rd em da justiça são e q u iv ale n tes: um furto insign ifican te fere essa o rd em ta n to q u a n to u m crim e p erp etrado co m frau d e e v io lên cia. D e ac o rd o com o se­ g u n d o p o n to de vista, so m o s le v a d o s a crer q tie a p en a, assim co m o u m p u rg a tiv o , é mais

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eficaz quanto mais forte. É só de acordo com o terceiro ponto de vista, como notava Hegel, ou seja, segundo a periculosidade para a socieda­ de civil, que as P. podem ser convenientemen­ te graduadas (cf. HEGEL, Fil. dodir., § 218). Nes­ te terreno, portanto, a confusão e a mescla dos vários conceitos de P. está longe de ser inócua, sendo o motivo principal da desordem e das desigualdades existentes nos sistemas penais vigentes. P E N S A M E N T O (gr. VCTOIÇ, Siávoioc; lat. Cogitado; in. Thought; fr. Pensée, ai. Denken; it. Pensiero). Podemos distinguir os seguintes sig­ nificados do termo: 1" qualquer atividade men­ tal ou espiritual; 2- atividade do intelecto ou da razão, em oposição aos sentidos e à vontade; 3"Mividãdc discursiva; 4- atividade intuitiva, -. 1Q O significado mais amplo do termo, que indica qualquer atividade ou conjunto de ativi­ dades espirituais, foi introduzido por Descartes: "Com a palavra 'pensar', entendo tudo o qtie acontece em nós, de tal modo que o perceba­ mos imediatamente por nós mesmos; por isso não só entender, querer e imaginar, mas tam­ bém sentir é o mesmo que pensar" (Princ. phil, I, 9; cf. Méd., II). Esse significado é con­ servado pelos eartesianos (cf.. p. ex.. MALEBRANCHE, Kecherche de Ia vérité, I. 3, 2) e aceito por Spinoza, que inclui entre as maneiras do P. "o amor, o desejo e qualquer outra afeição da alma" (Et, II, axioma III). Locke fazia alusão a esse significado, mesmo notando que em in­ glês pensamento significa mais propriamente "operação do espírito sobre as próprias idéias" (P. discursivo) e preferindo por isso a palavra "percepção" {Ensaio, II, 9, D- O mesmo signifi­ cado era aceito por Leibniz, que definia o P. como "uma percepção unida à razão, cjue os animais, pelo que nos é dado ver, não pos­ suem" (Op, ed. Erdmann, p. 464), e obser­ vava que esse termo podia ser interpretado também com o significado mais geral de per­ cepção, e neste caso o P. pertenceria a todas as enteléquias (também aos animais) (Nouv. ess., II, 21, 72). A tradição desse significado inter­ rompe-se com Kant e não é retomada na filoso­ fia moderna. 2" No segundo significado, esse termo de­ signa a atividade do intelecto em geral, distinta da sensibilidade, por um lado, e da atividade prática, por outro. Neste significado Platão em­ prega, às vezes, a palavra vcvnaiç, como quan­ do designa com ela todo o conhecimento intelectivo, que encerra tanto o P. discursivo

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(ôtávoia) quanto o intelecto intuitivo (voüç) (Rep., VII, 534 a), e outras vezes a palavra Siávoioc, como faz quando define o P. em geral como o diálogo da alma consigo mesma. "Quando a alma pensa" — diz ele — "não faz outra coisa senão discutir consigo mesma por meio de perguntas e respostas, afirmações e negações; e quando, mais cedo ou mais tarde, ou então de repente, decide-se, assevera e não duvida mais, dizemos que ela chegou a uma opinião" (Teet, 190 e, 191 a; cf. Sof, 264 e). No mesmo sentido geral, Aristóteles emprega a pa­ lavra ôiávoioc como quando diz: "Pensávcl sig­ nifica aquilo sobre o que existe um P." (Met., V. 15, 1021 a 31). Este significado, que é o mais amplo (de­ pois cio precedente), tornou-se tradicional e é compartilhado por todos os que admitem a no­ ção do intelecto como faculdade de pensar em geral: na realidade as duas noções coincidem. S. Agostinho (De Trin, XIV, 7) e S. Tomás de Aquino (S. Th, II, 2, q. 2 a. 1) admitem esse significado genérico ao lado do significado es­ pecífico de P. discursivo (v. adiante). Neste sen­ tido, o P. constitui a atividade própria de certa faculdade distinta do espírito humano, mais precisamente a faculdade à qual pertence a atividade cognoscitiva superior (não sensível). Wolff definia neste sentido: "Dizemos que estamos pensando quando estamos cientes da­ quilo que acontece em nós, que representa as coisas que estão fora de nós" (Psychol. empiríca, § 23). Este significado constitui, hoje tam­ bém, o emprego mais comum desse termo na linguagem corrente. 3Q O terceiro significado de P. especifica-o como P. discursivo. É esse o P. que Platão cha­ mava de dianóia, considerando-o órgão das ciências propedêuticas (aritmética, geometria, astronomia e música), encaminhamento e pre­ paração para o pensamento intuitivo do inte­ lecto (Rep, VI, 511 d). S. Agostinho negava que o Verbo de Deus pudesse chamar-se P. neste sentido (De Trin, XV, 16); o mesmo fazia S. To­ más de Aquino, porque neste sentido pensar é "uma consideração do intelecto acompanhada pela indagação, sendo portanto anterior à per­ feição que o intelecto atinge na certeza da vi­ são" (S. Th, II, 2, q. 2, a. 1; cf. I q. 34, a. 1). Se­ gundo S. Tomás de Aquino, este é o significado "mais apropriado" da palavra "P.". Neste signifi­ cado, pode-se integrar o outro, que ele distin­ gue como terceiro (o primeiro é o genérico, conforme o n" 2), o P. como ato da faculdade

PENSAMENTO co g itativ a (virlus cogitativa) ou ra z ã o p articu lar ( ratioparticularis), q u e c o rre s p o n d e à c a p a c i­ d ad e estim ativa d o s an im ais e co n siste em re u ­ nir e c o m p a ra r as in te n ç õ e s particulares, assim co m o a ra zã o in telectiva ou P. d iscu rsiv o c o n ­ siste em re u n ir e c o m p a ra r as in te n ç õ e s universaisdbid., I, q. 78, a. 4). V iço só fazia e x p re ssa r os m esm o s c o n c e ito s ao afirm ar, em De antiquissima italoruni sapientia (1710), que a D eus perten ce a inteligência (intelligere), que é o c o n h e c im e n to p erfeito , re su lta n te d e to d o s os e le m e n to s q u e co n stitu em o o bjeto , e ao h o ­ m em p e rte n c e só opensamento(cogitare), q u e é co m o ir recolhendo alg u n s d o s ele m e n to s co n stitu tiv o s do o bjeto (De antiquissima italorum sapientia, I, 1). O em p irism o referia-se ã m esm a n o ç ã o de P. q u a n d o H u m e , p. ex., a frm ava q u e tu d o o q u e o P. p o d e fazer co n siste "no p o d er de co m p or, tran sp ortar, au m en ta r ou d im in u ir os m ateriais fo rn ec id o s p elo s sen tid o s e p ela e x p eriên cia" (Inq. Cone. Underst.. II; trad. it., 1910, p. 17). E este é, fin alm en te, o co n ce ito de Kant: "P ensar é in terligar re p re s e n ­ ta çõ es n u m a co n sciên cia" (Prol, § 22). O q u e significa "p en sar é o c o n h e c im e n to p o r c o n c e i­ to s", e ta m b é m "os c o n ce ito s, co m o p re d ic a d o s de ju íz o s p o ssív eis, referem -se a alg u m as re ­ p re s e n ta ç õ e s d e u m o b jeto ain d a in d e te rm i­ n ad o ", e p o rtan to , q u a n d o esse o b jeto n ão é d ad o à in tu ição sensível, tem -se u m "P. form al", m as n ão u m c o n h e c im e n to p ro p ria m e n te dito , q u e co n siste na u n id a d e de c o n ce ito e in tu ição (Crít. R. Pura, A nal. d os co n ce ito s, seç. 1, § 22). A o P. n este se n tid o referia-se H am ilto n, co n si­ d e ra n d o -o "ato ou p ro d u to da facu ld ad e d is­ cursiva, ou facu ld ad e d as relaçõ es" (Lectureon Logic, V , 10: I. p. 73). D esse p o n to de vista, a ativ id ad e do P. é definida em term o s de sín tese, unificação , co n fro n to , c o o rd e n a ç ã o , sele çã o , tran sfo rm ação , e tc , d o s d a d o s q u e são o fereci­ d os ao P., m as n ão p o r ele m esm o p ro d u z id o s. P o rtan to , a característica do P. visto co m o ativi­ d ad e d iscu rsiva é, em últim a an álise, negativa: o P. d iscu rsiv o n u n ca se identifica com seu o bjeto , m as v ersa so b re ele, ou seja, ca ra cte ri­ za-o e ex p ressa -o . N este se n tid o . F rege ch am a de P. o c o n te ú d o de u m a p ro p o siç ã o , o seu sentido (v.) ("Ü ber sin n u n d B e d eu tu n g ". § 5; trad. it., em Aritmética elógica, p. 225). N este m esm o se n tid o . W ittg en stein dizia: "O P. é a p ro p o siç ã o significante", e identificava P. e lin ­ g u a g e m com o fu n d a m en to de q u e "a to ta lid a ­ de das p ro p o siç õ e s é a ling u ag em " ( 'iractatus, 3, 5; 4; 4.001).

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PENSAMENTO 4" A característica do c o n c e ito de P. com o in tu iç ão é a su a id e n tid a d e co m o objeto. Neste se n tid o . P. é ativ id ad e do in telecto intuitivo, ou seja, do in telecto q u e é v isão d ireta do inteligí­ v el, s e g u n d o P latão (Rep., V I. 511 c), ou que, s e g u n d o A ristó teles, id en tifica-se co m o pró­ p rio inteligível em su a ativ id ad e (Met., XII, 2, 1072 b 18 ss.). Para o P. n este sen tid o os anti­ g os u sa ram c o n sta n te m e n te a p alavra intelecto (\)\ já v im o s q u e S. A g o stin h o e S. T om ás de A q u in o re cu sa ra m -se a e ste n d e r a ele o signifi­ cad o de "P.". M as no id ealism o ro m ân tico , ao m esm o te m p o em q u e o in te le cto era rebaixa­ do á faculdade do im óvel (v. INTELECTO), O P. era alçad o á p o siç ão já o c u p a d a p elo intelecto intuitivo, e id en tificad o co m ele. F ichte foi o p rim e iro a fazer isso, q u a n d o identificou o P. co m o E u ou A u to co n sciên cia Infinita ( Wissenschaftslebre, 1794, § 1); o m e s m o fizeram S ch ellin g e H egel. S ch ellin g afirm ava: "Meu eu co n tém u m ser q u e p re c e d e q u a lq u e r pensa­ m en to e re p re se n ta ç ã o . F. p o rq u e é p en sado ; e é p e n sa d o p o rq u e é. (...) P ro d u z-se com meu P., graças a um a cau salid ad e absoluta" ( Vomkh ais Prinzip derPhilosopbie, 1795, § 3). Hegel, p o r su a v ez. foi q u e m ex p re sso u com mais clareza a id en tificação do P. com a autoconsciên cia criad o ra, ou seja. co m o ativ id ad e que co in cid e co m sua p ró p ria p ro d u ç ã o . A o definir a lógica co m o "ciência do P.", afirm ava que "ela co n tém o P. p o rq u e é ao m esm o te m p o a coisa em si m esm a, ou co n tém a coisa em si mesma p o rq u e é ao m esm o te m p o o P. p u ro " ( Wssenschaft der Logik, Intr., C o n ceito geral; trad. it.. I, p. 32). E p a rtin d o do co n ce ito discursivo de P.. H eg el ch eg a ao seu co n ce ito intuitivo: "O P. no seu asp e c to m ais p ró x im o m ostra-se so b re tu d o em seu significado su b jetiv o comum co m o u m a ativ id ad e ou fa cu ld ad e espiritual, ao la d o de o u tras (sen sib ilid ad e , in tu ição , fanta­ sia, ap e tiç ão , q u e rer, e tc ) . O p ro d u to dessa ativ id a d e , ca rá ter ou form a do P. é o univer­ sal, o ab stra to em g eral. O P. co m o atividade é, p o r isso, o universal ativo, é p ro p riam e n te aquilo q u e se faz, v isto q u e o feito, o p ro d u to , é justa­ m en te o u n iv ersal. O P. re p re s e n ta d o com o su­ je ito , é o p e n sa n te ; e a e x p re ssã o sim ples do sujeito ex iste n te co m o p e n sa n te é o eu" (Ene, § 20). E m o u tro s te rm o s, o P. é ao m esm o tem­ po a ativ id ad e p ro d u tiv a e o seu p ro d u to (o un iv ersal ou co n ce ito ): ele é, p o rta n to , a essên­ cia ou a v e rd a d e cie tu d o (íbid., § 21). A partir de H egel essa n o ç ão intuitiva do P. foi às vezes q ualificada p elo s seu s d efe n so res co m o concei­

PENSANTE, PENSAMENTO to "especulativo" do P., e c o n sid e ra d o o ú n ico ad e q u ad o , p o r e n te n d e r o P. em sua in finidade e força criad o ra. M as n a re a lid a d e tratav a-se ainda da v e lh a n o ç ã o de in te le cto in tu itiv o estendida ao h o m em , sem levar m ais em co n ta os lim ites e as co n d iç õ e s q ue os an tig o s im p u ­ nham a essa e x te n são . PENSANTE, PENSAMENTO. V. ATIA LISM O. P E R A T O L O G IA . T erm o co m q u e A rdigó designou a p arte geral da filosofia, cujo objeto é o q ue se acha além d os ca m p o s p articu lares das ciên cias filosóficas e sp ecializa d a s, q u e são a psicologia e a socio lo g ia (Opere Filosofiche. II. 1884, passim). P E R C E P Ç Ã O (gr. àv n } jí\|/iç ; lat. Perceptkr, in. Perception; ir. Perception-, ai. Wabniehniimg, Perception: it. Percezione). P o d e m o s distinguir três sign ificad os p rin cip a is d este ter­ mo: Io u m sign ificad o g en era líssim o . se g u n d o o qual este te rm o d esig n a q u a lq u e r ativ id ad e cognoscitiva em geral; 2" um sign ificad o m ais restrito, se g u n d o o qual d esig na o ato ou a fun­ ção co g no scitiv a à qual se ap re se n ta u m o bjeto real; 3" u m sign ificad o esp ecífico ou técn ico , seg un do o q ual esse te rm o d esig n a um a o p e ra ­ ção d ete rm in a d a do h o m e m em su as relaçõ es com o am b iente. N o p rim eiro significado P. n ão se d istin gu e cie p e n sa m e n to . N o s e g u n d o , é o c o n h e c im e n to em p írico , im e d iato , certo e exaustivo do o bjeto real. N o te rc eiro significa­ do é a in te rp retaç ão d o s estím ulos. S ó no âm b i­ to d este ú ltim o significado, p o d e m o s en te n d e r o que a p sico lo g ia hoje d iscu te co m o "proble­ m a da p erc ep çã o ". 1" N o seu sign ificad o m ais g eral, o term o foi em p reg ad o p o r T elésio , se g u n d o q u em "a s e n ­ sação é a P. d as aç õ es d as co isas, d os im p u lso s do ar e d as m esm as p aix õ es e m u d a n ç as, e s p e ­ cialm ente d estas ú ltim as" (Derer. nat, VII, 3). F.s(a d ou trin a abria p o lêm ica co n tra a tese de que a sen sa ção co n siste sim p le sm e n te na ação das coisas ou na m o dificação do esp írito . T elésio, p orém , afirm a q u e ela co n siste na P. de um a ou de outra. A m esm a d o u trin a foi d efe n ­ dida p or B acon, q u e se re p o rtav a ex p lic ita m en ­ te à d istin ção de T elésio (Deaugm. scient.. IV, 3). D escartes, p o r sua vez, e m p re g a v a esse ter­ m o para in d icar to d o s os atos co g nitiv o s, q ue são p assiv o s em re la ção ao o bjeto , em o p o si­ ção ao s a to s d a v o n ta d e , q u e sã o ativ o s (Pass. delâme, I, 17). D escartes d iv id iu -as em : P. que se rep o rtam ao s o bjeto s ex tern o s, as q u e se rep o rtam ao co rp o e as q u e se re p o rtam ã alma (IbitL, I, 23-25). N este sentido geral, a p a la ­

PERCEPÇÃO vra foi u sada tam b ém p o r L ocke: "A P. é a pri­ m eira fa cu ld ad e da alm a ex ercid a em to rn o das n o ssas idéias; por isso, é a prim eira e m ais sim ­ ples idéia a q u e ch eg am o s p o r m eio da reflexão. (...) N a P. pura e sim p les, o esp írito g era lm e n te é p assiv o , n ão p o d e n d o d eix ar de p e rc e b e r o q u e em ato p erc eb e" (Ensaio. II, 9, 1). D a m es­ m a m an eira, L eibniz e n te n d e a P. co m o o q ue a alm a do h o m em e a alm a do an im al têm em co m u m , co m o "a ex p re ssã o de m u itas coisas em um a", e d istin g u e-a d a a p e rc e p ç ã o ou p e n ­ s a m e n to p elo fato de esta últim a ser a c o m p a ­ n h a d a pela reflexão (Noiw. ess., II, 9. 1; cl. Op.. ed. E rd m an n, p p. 438, 464, e tc ). N ão é diferen ­ te o sen tid o geral q u e K ant atrib u i ã palavra, q u a n d o dá n o m e de P. à "rep re sen ta çã o com co n sciên cia", d istin g u in d o -a em sensação (se fizer referên cia a p e n a s ao sujeito) e conhecinwtitoisc for objetiva) (Críl. R. Pura. D ialética, Livro I, seç. 1). E b a sta n te ó b v io q u e P. n esse sen tid o significa o m esm o q u e p e n sa m e n to em geral; o p ró p rio L ocke n otav a esta id en tid a d e de sign ificad o, m esm o p referin d o p e sso a lm e n ­ te a p alavra P., p o rq u e p e n sa m e n to , em inglês, indica "a o p e ra ç ã o do esp írito so b re as p ró p ri­ as idéias", e n q u a n to na P. o esp írito é g era l­ m en te p assiv o (Ensaio. II. 9, 1). 2U O se g u n d o sign ificad o do .term o é m ais restrito; ex p ressa o ato co g n itiv o objetivo, que a p re e n d e ou m anifesta u m objeto real determi­ nado (físico ou m en tal). E ste é o significado orig in ário do te rm o , tal qual foi u sa d o pelo s estó ic o s co m o e q u iv a le n te de c o m p re e n sã o (KOCTáAr\/i.ç): "O s estó ico s definem a sen sa ção d este m o d o : a se n sa ç ã o é P. p o r m eio do sensório ou da c o m p re e n sã o " (A écio, Plac. IV. 8, 1; cf. E picuro. Fr. 250; P lo tin o , Enn.. V I, 7. 3. 29, e tc ). C ícero trad u zia co m o perceptioo te r­ m o g reg o , te n d o p artic u la rm e n te em vista o sen tid o de re p re se n ta ç ã o catalép tica (Acad.. II, 6, 17; Definibus, III, 5. 17). E m se n tid o a n á lo ­ g o, esse term o foi u sad o p o r S. A g o stin h o (De Trin.. IV, 20) e p o r S. T o m á s de A qu in o ; este ú ltim o d esig n av a co m ele "certo c o n h e c im e n to ex p erim en ta l" (S. Th.. I, q. 63, a. 5, ad 2°). Essa palavra foi re in tro d u z id a no u so filosófico por T elósio e B acon (com o já d issem o s), e com eles seu sign ificad o co m eç o u a d istin g u ir-se do de se n sa ç ã o . M as foi só D escartes q u e e sta b e le ­ ceu o significado n o v o e m ais c o m p lex o do ter­ m o. F alan d o d as p e rc e p ç õ e s ex te rn as, ele afir­ m ava q u e, c o n q u a n to elas sejam p ro d u zid a s p o r m o v im e n to s p ro v e n ie n te s de co isas ex ter­ nas, "nós as re la cio n am o s com as co isas q ue

PERCEPÇÃO s u p o m o s ser su a s cau sas, d e tal m an eira q u e ac re d itam o s v er u m arch o te e o uv ir u m sino q u a n d o a p e n a s sen tim o s os m o v im e n to s q u e d ele s vêm " (Pass. de lâme, I, 23). A p artir de en tã o a d istin ção en tre se n sa ç ã o e P. to rn a -se fu n d a m en tal na teoria da p e rc e p ç ã o . Essa d is­ tinção é ex pressa p or C. B on n et (Fssai analytique surlesfacultes de Teime, 1759, XIV. 195-96) e pela esco la esco ce sa do sen so co m u m , e s p e ­ cialm en te p o r Reid (Inquiry into the Hunian Mínd, 1764, VI, 2°). E m v irtu d e d ela, a s e n sa ­ ção é re d u zid a à idéia sim p les de L ocke: a u m a u n id a d e e lem e n tar p ro d u zid a d ire ta m e n te no sujeito pela ação cau sai do o bjeto . A P.. p o r o u tro lado , to rn a-se u m ato c o m p le x o q u e in­ clui um a m u ltip licid ad e de se n sa ç õ e s, p resen te s e p assa d a s, e ta m b é m a sua referên cia ao o b ­ je to , ou seja, u m ato ju d ic a tiv o . Id en tific an d o P. e in tu iç ão em p írica , q u e é o c o n h e c im e n to o b jetiv o , o re su lta d o da ativ id a d e ju d ic a n te ex ercida so b re o m u ltíplice sen sív el, K ant (Prol., § 10) já co n sid e rara in clu íd o na P. o ato ju d ic a ti­ vo. A p re se n ç a de u m ju íz o na P. to rn a -se tem a co m u m na filosofia do séc. XIX. H eg el levava essa te se ao ex trem o q u a n d o co n sid e rav a a P. (e a coisa q u e é seu objeto) co m o u m p ro d u to do U niversal (da C o n sciên cia ou do P e n sa m e n ­ to): "Para n ós ou em si m esm o , o U niversal, co m o p rin cíp io , é a essên cia da P., e em face dessa ab stra çã o o q u e p e rc e b e e o q u e é p er­ ce b id o são o n ão -esse n cia l" (Pbãnomen. des Geistes, I, C o n sciên cia II, trad. it.. I, p. 97). M as ã p arte essa tese ex trem ista (q u e n o e n ta n to foi re p e tid a até há p o u c o te m p o p ela s esco las id ealistas), a d istin ção en tre se n sa ç ã o e P. e o re c o n h e c im e n to do c a rá te r ativ o ou ju d ic a tiv o d a V tiv e ra m co m o b a se a su a re fe rên cia ao o bjeto ex te rn o . Foi o q u e fizeram H am ilto n, q u e se in sp irav a na d o u trin a da esco la e s c o c e ­ sa (LecturesonMetaphysics, 5a ed., 1870, II, pp. 129 ss.), e S p en cer, q u e m u ito co n trib u iu para difundir esse p o n to de vista (Principies ofPsychology, 1855, § 353). B olzano (Wissenschaftslehre, 1837, I, p. l6 l) , B re n tan o (Psychologie vom empirischen Standpunkte, 1874, I, 3, § D, H elm oltz (Die Tatsachen in der Wahrnehmung, 1879, p. 36) en fatizaram a ação do p e n sa m e n to ou do in telecto na P.; B re n tan o identificava P. e ju íz o ou cren ça (loc. cit.). E m s e n tid o s e m e ­ lh an te , H usserl fazia a d istin çã o en tre 1'. e o u ­ tros atos in te n c io n a is d a co n sc iên c ia, com b ase em sua característica de "ap reen d er" o objeto (Ideen, I, § 37). N a p e rc e p ç ã o , a coisa m esm a está p re se n te em seu ser, assim co m o está p re ­

PERCEPÇÃO se n te na coisa o sujeito q u e p e rc e b e (cf. G. B rand, Welt, icb undZeit. 1955, 3). É só apa­ re n te m e n te d iferen te a n o ç ã o de B ergson da "P. p ura". B erg so n diz: "A P. o utra coisa não é se n ã o u m a s e le ç ã o . Ela n a d a cria: su a tarefa é elim in ar do co n ju n to d as im ag en s to d as as im ag en s so b re as q u ais eu n ão teria nenhum a p re te n sã o e, d e p o is, elim in ar d as im agens con­ se rv a d a s tu d o o q u e n ã o in teressa às necessi­ d a d e s d essa im agem p articu lar q u e denom ino co rp o " (Matíèreetmémoire, p. 235). D este modo. a P. d e lin e a ria , no in te rm in á v e l cam p o das im ag en s co n se rv a d a s na co n sc iên c ia, o objeto d e stin a d o a servir às n e c e ssid a d e s da ação e q u e d elim ita a ação possível cio m eu corpo. M as, m esm o assim , a tarefa da P. co n tin u a sen­ do a p re e n d e r ou d elin e ar u m o bjeto . O c o n ce ito de P. ao q ual essas d ou trinas fa­ zem referên cia é b a sta n te u nifo rm e: a P. é o ato p elo qual a co n sc iên c ia "a p ree n d e" ou "situa" u m o b jeto , e esse ato utiliza certo n úm ero de d a d o s ele m e n ta re s de s e n sa ç õ e s. E ste concei­ to, p o rta n to , su p õ e : ly a n o ç ã o de consciência co m o ativ id ad e in tro sp ectiv a e auto-reflexiva; 2" a n o ç ã o do o bjeto p e rc e b id o co m o entida­ de in d iv id u al p e rfe ita m e n te isolável e dada: 31' a n o ç ã o de u n id a d e s e le m e n ta re s sensí­ v eis. O a b a n d o n o d e s se s três pressupostos caracteriza a n ov a fase do p ro b lem a da P., p ró p ria da p sico lo g ia e da filosofia contem­ p o râ n e a s. 3<J S e g u n d o o te rc eiro co n ce ito , P. outra cdsa n ão é s e n ã o a in te rp re ta ç ã o d o s estím ulos, o re e n c o n tro ou a co n stru ç ão do significado
PERCEPÇÃO a) A o p rim e iro g ru p o d e teo rias p erte n c e , em p rim eiro lugar, a p sico lo g ia da form a ( Gestalttheorie), q u e é su b sta n c ia lm e n te um a teoria da p e rc e p ç ã o . O g estaltism o in icia-se com a obra de M ax W e rth eim er so b re a P. do m o v i­ m ento (1912) e tem co m o o u tro s e x p o e n te s W olfgang Kohler (GestaltPsycbcology, 1929) e K urt K offka (Beitrãge Zur Psychologie der Gestalt, 1919). Seu o bjetivo é o p o r-se aos p re s­ sup o sto s 2" e 3y da c o n c e p ç ã o trad icio n al de p ercep ção . M o stro u, em p rim e iro lu g ar, q ue não ex istem (a n ão ser co m o ab stra çã o artifi­ cial) s e n sa ç õ e s e le m e n ta re s q u e façam parte da c o m p o siç ão de u n i o bjeto , e, em se g u n d o lugar, q u e n ão ex iste um o bjeto d e P. co m o en tidade isolad a ou isolável. O q u e se p e rc e b e é um a to ta lid ad e q u e faz p arte de u m a to ta lid a­ de. O g estaltism o d e d ic o u -se a d ete rm in a r as "leis" com b ase n as q u ais essas to ta lid a d e s são constitu íd as, as "leis de o rg an iza çã o ", q u e são: da p ro x im id a d e, da se m e lh a n ç a , da d ire çã o , da boa form a, do d estin o co m u m , do fe ch am e n to , etc.; elas p o d e m ser v istas em ação m esm o em ex p eriên cias m u ito sim p les, co m o p. ex. as q ue revelam a te n d ê n c ia a ag ru p a r n u m a ú nica p er­ cepção sinais s e m e lh a n te s ou su ficien tem e n te p róxim os, ou en tã o co n stitu am u m a figura re ­ gular. A afirm ação fu n d a m en tal d essa teoria é que a P. s e m p re se refere a u m a to ta lid ad e , cujas p artes, se c o n sid e ra d a s s e p a ra d a m e n te , não ap resen tam as m esm as características: m aio ­ res sim p lic id a d e e clareza p o ssív eis e m aio res sim etria e re g u la rid a d e p ossíveis. T ais c a ra c te ­ rísticas p o r v e z e s le v a ra m os g e s ta ltista s a adm itir a teo ria do "todo d ete rm in a n te", s e g u n ­ do a q ual o to d o tra n sc e n d e stias p artes e as determ ina d in a m ic a m e n te de ac o rd o co m suas p ró prias leis. A ssim , o to d o a sse m e lh a -se ã "coisa" de q u e fala H usserl, a p ro p ó sito da P. tran sc en d e n te, p o rq u a n to a essên cia da coisa integra em si e ao m esm o te m p o tra n sc e n d e a totalidade d e su as m an ifestaçõ es. Esta é a te o ­ ria da P. su b sta n c ia lm e n te aceita em Phenoménologie de Ia perception (1 9 45 ) d e M . M erleau-P onty. Im p o rta n te v arian te d essa te o ­ ria é a do campo topológico d e L ew in, s e g u n d o a qual o in d iv íd u o , re d u z id o a u m p o n to sem d im en sõ es, está s u b m e tid o à ação das forças que ag em no c a m p o e q u e ele se n te co m o alheias ao seu co rp o . N esta c o n d içã o , o in d iv í­ duo é c o n sid e ra d o em "lo co m o ção ", isto é, com o q u e m o v e n d o -se para u m a m eta positiva ou co m o afastan d o -se de u m a m eta negativa. O esp aço em q u e o co rre esse m o v im e n to é o

PERCEPÇÃO d e n o m in a d o "esp aço d e vida", ou seja, a região o n d e o in d iv íd u o tem ex p eriên cia da sua ação , e sp a ç o q u e n ão tem p ro p rie d a d e s m étricas ou d ire çõ es d e te rm in a d a s, s e n d o p o r isso lopológíco. no sen tid o de p o d e r ter em q u a lq u e r m o m en to q u a lq u e r d im en sã o ou form a g e o m é ­ trica, ainda q u e m a n te n h a as p ro p rie d a d e s q ue p o ssib ilitam o m o v im e n to (LF.WIN, Principies of TopologicalPsychology, 1936). P o d em ser c o n ­ sid e ra d a s v arian te s d essa teoria: a de H eb b , para q u e m o ca m p o p erc ep tiv o c o rre sp o n d e a u n i ca m p o fisiológico, a u m "m ecanism o de ação n eu tra seletiva" q u e, para cada P. p articu ­ lar', se situaria em algu m p o n to do sistem a n er­ v o so cen tral (The Organization ofBehavior, N ova Y ork, 1949), e a teoria do "cam po tô n ico se n so ria r, se g u n d o a q ual "as p ro p ried ad es percep tiv as de u m o bjeto são fu n ção da m an eira co m o os estím u lo s p ro v e n ie n te s do objeto m o ­ dificam o esta d o 'tô n ic o -sen so rial' ex iste n te do o rg an ism o " ( WFRNFR e WAPNER, "T ow ard a G e­ neral T h e o ry o f P ercep tio n " em Psycbological Reriew, 1952, p p. 324-38). T o d as as te o ria s aq u i m e n c io n a d a s, c o n c e n tra d a s co m o estã o nos co n ce ito s de "totalidade" ou de "cam po", privi­ legiam de certo m o d o o asp ecto objetivo da p e rc e p ç ã o . b) U m se g u n d o g ru p o de teo rias tem em vista p rin c ip a lm e n te o asp e c to sub jetiv o da P. Para estas teo rias, n ão é v álid o nem m esm o o 1" p re ssu p o sto da 2- c o n c e p ç ã o de P., o da co n sciên cia. E stas d o u trin a s com efeito n ão re ­ co rrem à n o ç ão de co n sciên cia n em à c o n sid e ­ ração in tro sp ectiv a. U m a q u a n tid a d e en o rm e de o b se rv a ç õ e s ex p e rim e n ta is ev id en cio u a im ­ p o rtân cia, para a P., do esta d o d e p re p a ra ç ã o ou p re d isp o siç ã o do sujeito, aq u ilo q u e g era l­ m e n te se ch a m a de "d isp o siçã o " (sei) p ercep tu al. O fato fu n d am en tal é q u e estar d isp o s­ to para certo estím u lo e para certa re a ç ã o a um estím u lo facilita o ato de p e rc e b e r e possibilita a sua realização co m m aio r p ro n tid ã o , en erg ia ou in te n sid ad e. A d isp o sição , em o u tras p ala­ vras, é u m p ro cesso seletivo (1 V\Qd ete rm in a p re ­ ferências, p rio rid a d e s, d iferen ças q ualitativas ou q u a n tita tiv a s n aq u ilo q u e se p e rc e b e ; n ão é d iferen te do p ró p rio p ro cesso p e rc e p tiv o , nem é u m m ec an ism o in ato ou p refix ad o , m as um esq u e m a v ariáv el a p re n d id o ou c o n stru íd o , aind a q u e n em se m p re v o lu n ta ria m e n te (cf. o cap. 9 da o bra citada de A llpo rt). A s m ais re ­ ce n tes te o ria s da P. levam em c o n sid e ra ç ã o es.ses fatos. C om b a se n eles, a teoria transa­ cional, p. ex., co n sid era a P. co m o um a tran­

PERCEPÇÃO sação, com o um aco n tecim en to que ocorre en­ tre o organism o e o am b ien te, e não p o d e

portanto .ser red u zid o à ação do objeto ou do sujeito, nem à ação recíproca dos dois. C om o transação, a natureza da P. deriva da situação total em que está inserida e tem suas raízes tan­ to na experiência passada do indivíduo q uanto e m su as ex p e cta tiv as d e futuro (DFWF.Y e BFNTLFY, K)iuiving a n d the Known, 1949; CANTRII., AMHS, HASTORF, ITTKLSON, "Psychology and Scientific R esearch", em Science, 1949, pp.

461, 491, 517; ITTF.LSON e CANTIL, Perception: a

Transactional Approacb, 1954). D esse p onto de vista, é fácil evidenciar o caráter ativo e seletivo da P.. o fato de ela valer-se de indícios com base nos quais reconstrói o significado do objeto e. tam bém sua outra característica funda­ m ental, que é o fato cie ser co nstituída de probabilidades, e não de certezas. Essas carac­ terísticas são ap resen tad as pelo funcionalis­ mo, ch am ad o de "New Look" da teoria da P., e levaram à teoria da m otivação e á teoria das hipóteses. A prim eira, que é cham ada tam bém de teoria do "estado diretivo", funda-se no reco ­ n h ecim en to da influência que as n ecessid ad es físicas, as expectativas do indivíduo (p. ex., um castigo ou um prêm io) e a sua p erso n alid ad e exercem so b re o objeto p erceb id o e so b re a ra­ pidez e a intensidade d a P . (BKIINHR e KRF.CH, Perception and PersonalUy: a Symposium,

D urham , 1950). N a segunda teoria, confinem todos os d ad o s experim entais em que se fun­ dam entaram as teorias do p resen te g ru p o e boa parte dos d ad o s experim entais em qu e se fundam entavam as teorias do prim eiro grupo. A idéia fundam ental cia teoria da hip ó tese é que as p ercep çõ es (aliás, assim com o a lem ­ brança ou o pensam ento) constituem hipóteses que o organism o aventa em determ in ad as si­ tu ações e que são confirm adas, ab an d o n ad as ou m odificadas de acordo com essa situação. A disposição (set), da qual falava um a das teorias, é justam en te a p rep aração para um a h ipótese desse gên ero . A disposição constitui a ex p ecta­ tiva percep tu al, que se baseia na experiência p reced en te e antecipa a futura. K m geral, na P.. as disposições são estab elecid as d esd e m uito tem po, através da atividade perceptiva anterior, e pode estar pronta para entrar em ação q u an ­ do o organism o ingressa em dada situação. A través dela. o organism o escolhe, organiza e transform a as "inform ações" que lhe chegam do am biente. Essas inform ações são indícios ou sinalizações que servem para "evocar" a hi­

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PERCEPTO

p ó tese ou para confirm á-la ou desm enti-la. As principais correlações funcionais entre as variá­ veis qu e a teoria co m po rta são as seguintes: I) Q u an to m ais forte é a hip ótese, tanto maior é a p ro b abilidad e da sua evocação e tanto menor a som a de indícios necessária para confirmá-la. D isso resulta que, q u an d o a hipótese é fraca, para a sua confirm ação é necessária um a enor­ m e q u an tid ad e de inform ações apropriadas. li) Q u an to m ais forte é a h ipótese, tanto maior é a som a de indícios necessária para invalidá-la; e q u an to m ais Ira ca a hip ótese, tanto menor é a q u an tid ad e de indícios contrários necessá­ rios para invalidá-la (cf. o a rt. d e L. POSTMAN, em Social Psychology at the Crossroads, org. ROHRER e SHKRIF, N ova Y ork, 1951; e ALLPORT, op cit., cap. 15). O que essa teoria faz é resu­ mir, de forma m enos dogm ática, tanto os dados ex p erim en tais recolh ido s por um expressivo n ú m ero de o b serv ad o res q u an to as caracte­ rísticas essenciais atribuídas à P, pelas doutri­ nas co n tem p o rân eas da psicologia, a partir da Gestalttheorie.

Essas características p o d em ser recapituladas da seguinte m aneira: Io a P. não é o conhe­ cim ento exaustivo e total cio objeto, como jul­ g avam as teorias do n ú m ero 2, e sim uma in terpretação provisória e in co m p leta, funda­ m entada em indícios ou sinalizações. 2Q A per­ cep ção não im plica n enh um a garantia de vali­ dade, n enh um a certeza; m antém -se na esfera do provável. 3o C om o q u alq u er conhecimento provável, para ser validada, a P. precisa ser subm etida à prova, sen d o então confirmada ou rejeitada. 4U A P. não é um conhecim ento per­ feito e im utável, m as possui a característica da corrigibilidade. P E R C E P Ç Ã O IN TELEC TIV A . Foi assim que R osm ini cham ou o ato fundam ental do co­ n h ecim en to, en q u an to síntese entre a idéia do ser em geral e a idéia em pírica que deriva da sen sação (das coisas externas) ou do sentimen­ to (que o eu tem de si) (Nnoro saggío sulloriginedelle idee, 1830, §§ ¥)2, 537, e tc ) . P E R C E P C IO N IS M O (in. Percepcionismji. Percepcionismc, ai. Perctpttonismus; it. Percezionismo). É a doutrina que adm ite a realida­ de dos objetos da percep ção . O m esm o que realismo ingênuo (v. REALISMO). PERCEPÇÕES PEQUENAS.V. INCONSCIFNTE. P E R C E P T O (in. Percept). N a psicologia con­ tem p orân ea, o P. é a experiência pessoalde um objeto, a m aneira com o o objeto se mostra ao

PERCOLUÇÃO sujeito. Esse n o m e foi c u n h a d o p o r an alo g ia com coucept (co n ceito ). PERCOLUÇÃO. PF.RFORMATIVO. PERFECCIONISMO (in. Perfectionism, fr. Perfedionisme-, ai. Perfektíonismus, Perfektihilistnus; it. Perfezionismó). Esta p alav ra é (ra­ ram en te) e m p re g a d a em d o is significados: 1Q p ara in d icar o ideal m oral q u e co n siste em p er­ seg u ir a p ró p ria p erfeição m oral ou d e o u trem , ou seja, a c a p a c id a d e de agir em co n fo rm id ad e com o d ev er, q u e im plica ta m b é m a cu ltura das facu ld ad es físicas e m en tais do h o m e m . N este sen tid o , é P. o ideal m o ral e x p re sso p o r K ant na in tro d u ç ã o ao s e g u n d o v o lu m e da Meta­ física dos costumes-, 2- p ara in d icar a cren ça no p ro g resso , a c o m p a n h a d a p elo co m p ro m isso de co n trib u ir para ele. N este s e n tid o , a p alavra às vezes é u sad a na filosofia an g lo -sa x ô n ic a c o n ­ te m p o râ n e a. PERFECTIHABIA. Foi assim q tie E rm o lao B árbaro trad u z iu p ara o latim o te rm o g reg o "enteléquia" (cf. LEIBNIZ, Monad, § 4 8 ). PERFEIÇÃO (in. Perfection; fr. Perfection; ai. Volkommenhcil; it. Perfezione). Esta p a la ­ vra foi u sa d a p elo s filósofos so m e n te em rela­ ção aos significados 1 - e 3" cio adjetivo co rresp o n ­ dente: n ã o se co n sid e ra P. a P. relativa, ou seja, o esta d o de u m a coisa e x c e le n te en tre as de sua e sp écie. S. T o m á s de A q u in o diz: "A P. de um a coisa é d ú p lic e , ou seja, p rim eira e s e g u n ­ da. A p rim eira P. é a q u ela em v irtu d e da qual um a coisa é perfeita n a sua su b stân cia , e esta P. é a form a do to d o q u e e m e rg e da in te g rid ad e das partes. A seg u n d a P. é a do fim; m as o fim é a o p e ra ç ã o (assim co m o o fim do citarista é to ­ car citara) ou é a coisa à qual se chega através tia o p e ra ç ã o (assim co m o o fim do c o n stru to r é a casa q u e ele co n stró i). A p rim eira P. é cau sa da seg u n d a : a form a é co m efeito o p rin cíp io das o p e raç õ es" (S. Tb., 1, q. 73, a. 1). Esse m e s­ m o c o n c e ito era co m ex a tid ã o e x p o s to p or Kant: "A P. indica âs v ez es um c o n ce ito q u e p erten ce à filosofia tra n sc e n d e n ta l, o da to ta li­ d ad e d os ele m e n to s d iferen tes q u e , re u n id o s, co n stitu em u m a coisa; m as p o d e ser e n te n d id o tam bém co m o p e rte n c e n te â teologia, e en tã o significa o ac o rd o d as p ro p rie d a d e s de um a coisa co m um fim 1' (Met. derSitteti, Intr., V , A; cf. Crít. doJuízo, § 15). E stas d e te rm in a ç õ e s re ­ duzem a P.: 1" à in te g rid ad e do to d o ; 2" à reali­ zação do fim. M as te n d e m n a re a lid a d e a priv i­ legiar o p rim eiro c o n ce ito , q u e, ao ser ap lica d o à to ta lid ad e do ser, levou a trad iç ão filosófica a identificar P. e re alid ad e.

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PERFEITO S. T o m á s de A q u in o m esm o d escrev eu a P. de D eu s e da criatu ra co m o c o n siste n te n a p o s ­ se do ser: "D eus, q u e é a to ta lid a d e do seu ser, p o ssu i o ser s e g u n d o a v irtu d e integral do ser, e n ã o p o d e c a re ce r d e n e n h u m a n o b re z a q ue p e rte n ç a a coisa algu m a. A ssim co m o to d a a n o b re z a e a P. in erem a u m a coisa p o rq u e a coisa é. ta m b é m o defeito in ere a ela p o rq u e , de algu m m o d o , ela n ão é" (Contra Gent., I, 28). D este p o n to de vista, u m a coisa é ta n to m ais perfeita q u a n to m aior a su a p o sse do ser; e co m o D eu s p o ssu i to d o o ser, é to ta lm en te p erfeito. E ssas e q u a ç õ e s co n stitu íam lu g aresco m u n s da esco lástica m ed iev al. D u n s Scot re ­ p ete -a s, afirm an d o q u e a form a n as criatu ras im plica alg u m a p erfeição p o rq u e é fo rm a p a rti­ lh ad a e p arcial, e n q u a n to a form a n ão tem im ­ p erfeição em D eu s p o rq u e n ão é n em p artici­ p aç ão n em p arte (Op. Ox., I, d. 8, q. 4, a. 3, n. 22). D escartes reco rreu e x a ta m e n te a esse c o n ­ ceito de P. ao afirm ar q u e as id éias "que re p re ­ se n ta m su b stân cia s são sem d ú v id a algo m ais e c o n têm em si m ais realidade objetiva, ou seja, p artic ip a m p o r re p re s e n ta ç ã o de m ais g rau s de ser ou de P. do q u e as q u e re p re se n ta m só m o ­ d o s ou acid en tes" (Méd, III). S p in o za identifi­ cava e x p lic ita m e n te re a lid a d e e P. (Et.. II, def. 6), e L eibniz d eclarav a e n te n d e r p o r P. "a g ra n ­ d eza da re a lid a d e p ositiva to m ad a p re c isa m e n ­ te, p o n d o -se de lad o os lim ites das coisas q ue a p o ssu em " (Monad, § 41). K ant falava n este s en tid o de u m a P. transcendental, q u e é "a in te g rid ad e d e cad a coisa em seu g ên ero ", e de u m a P. metafísica, co m o "in teg rid ad e de u m a coisa s im p le sm e n te co m o coisa em g eral", d is­ tin g u in d o d elas a P. co m o ap tid ã o ou c o n v e ­ niência de u m a coisa a v ário s fins (Crít. ti. Prá­ tica. I, I, cap. I, escol. II). O co n c e ito de P. foi lix a d o , no cu rso u lterior da filosofia, p ela s s e g u in te s d e te rm in a ­ çõ es: co m o in te g rid a d e do to d o ou c o rre s p o n ­ d ên cia ao o bjetivo ; n o p rim e iro sig n ificad o , foi c o n sta n te m e n te id en tificad o co m o c o n ­ ceito de ser. Fora de sua p ersistê n c ia m etafísica e te o ló g ic a , a n o ç ã o d e P. é p o u q u ís sim o u ti­ lizada n a filosofia c o n te m p o râ n e a . Q u a n d o é u tiliza d a , a re fe rên cia ao s sig n ific ad o s tra d i­ c io n ais é e v id e n te : assim a c o n te c e , p. ex., em B ergson. q u e identifica a P. com o ab so lu to , e am b o s com a to ta lid ad e cio ser ("In tro d u c tio n à Ia m é ta p h isiq u e ". em I.apenséeel le mouvant, 3 a ecl., 1934, p . 2 0 4 ). PERFEITO (gr. x é te to ç ; lat. Perfech fr. Parfait; ai. Vollkommeu; it. Perfeito). A ristóteles

PERFORMATIVO

disiinguia três significados do term o: 1° aquilo a que não falta nenhum a de suas partes, ou além do qual não se p o d e achar n en h u m a parte que lhe p erten ça; 2" o que possui, em sua espécie, um a excelência que não p o d e ser sobrepujada, sendo, pois, P. o flautista ou o ladrão que não en co n trem rivais; 3y o que atingiu seu objetivo, desde que se trate de um bom objetivo (Met., V, 16, 1021 b 12 ss.). No prim eiro sentido, P. é o com pleto, aquilo a que não falte n en h u m a das partes integrantes. N o seg u n d o . P. é o ex­ celente em relação a otitras coisas cia m esm a espécie; no terceiro, P. é o real ou atual, p o r­ que cum priu seu objetivo. Hsses significados não m udaram ao longo da história da filosofia. É claro qtie. en q u an to o 2" significado é rela­ tivo e, p o rtan to , não m etafísico — p o rq u e exprim e só a excelência relativa de um a coisa num a o rd em estab ele cid a de coisas — , os outros dois são abso lu tos e p erten cem à tradi­ ção m etafísica. PERFORMATIVO (in. Performative: fr. Performatif, it. Performativo). Foi esse o nom e dado por L. A ustin ã classe de en u n ciad o s que, ap esar de terem form a de en u n ciad o s descriti­ vos, não o são e p re en c h e m duas co n d içõ es: 1- não descrevem , não relatam e não constatam nada, e tam p o u co são v erd ad eiro s ou falsos; 2a pro n u n ciar o en u n ciad o é realização de um a ação ou cie um a parte dela, m ais precisam en te de um a ação que não é no rm alm en te descrita com o um sim ples "dizer algo". E xem plos disso são o clássico "Sim" com que os noivos res­ p o n d em à p erg u n ta sacram entai durante a ceri­ m ônia nupcial, ou as frases seguintes: "Dou a este navio o nom e de 'R ainha E lizabeth", p ro ­ nunciada na cerim ônia de lançam ento de um navio ao mar, ao se q u eb rar um a garrafa contra o casco; "Deixo m eu relógio com o h eran ça a m eu irm ão", ou frases sem elh an tes, freqüentes em testam entos; "Aposto um m ilhão que am a­ nhã chove" (cf. How to do Yhings with Worcís,

1962, p. 5).

A ustin cham ou o P. de ílocuçãofillociition), para distingui-lo da locução, que é um a ex p res­ são com d en o tação e conotação, e da peiiocuçâo, que é a form a p ersuasiva de um a ex­ pressão (Ibicl.. pp. 98 ss.). PERIEKON. V. HOKI/.ONTK PER1PATETISMO. V. ARSTÜTELEMO. PERIPÉCIA (gr. 7iepv7iéxeia; in. Perípety fr. Péripétie, ai. Peripetie, it. Peripezia). Segundo A ristóteles, é um dos elem entos fundam entais da tragédia, mais p recisam en te do en red o trá­

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PERSONALIDADE

gico. C onsiste na m udança súbita de condições ou destino, que deve ocorrer de m odo verossí­ mil e necessário (Poet.. 11, 1452 a 22). PERMANÊNCIA (in. Permanence: fr. Permanence-, ai. Beharrlichkeit: it. Permanenza). Segundo Kant "a P. expressa, em geral, o tem po com o correlato constante da presença da aparência, da m udança e da concom itância". Em outros term os, P. é o tem po en q u anto dura­ ção (Crít. R. Puni, Anal. dos p rin c , cap. II, seç. 3, P rim eira an alo g ia) (v. ANALOGIAS DA KXPERIÈNCIA). PERPETUIDADE. V. ETERNIDADE. PERSEIDADE (lat. Perseitas; in. Perseity, fr. Perséité-, it. Perseità). T erm o em p reg ad o na Escolástica (mas raram ente) para indicar o estado e a condição do que é por si (v.). PERSONALIDADE (in. Personality fr. Personnalité, ai. Persònlichkeii, it. Personalità). 1. C ondição ou m odo de ser da pessoa. Neste sentido esse term o já foi usad o por S. Tom ás de A quino (S. Th.. I, q. 39. a. 3, ad 4") e é geral­ m ente u sado pelos filósofos (que m uitas vezes o em p reg am com o sinônim o de pessoa). 2. No significado técnico da psicologia con­ tem p orân ea, P. é a o rganização que a pessoa im prim e à m ultiplicidade de relações que a constituem . R neste sentido que N ietzsche fala­ va de pessoa, observ an d o que "alguns homens co m põ em -se de várias p essoas e a m aioria não é pessoa. O nde p red o m in arem as qualidades m edianas im p ortantes para que um tipo se per­ p etue, ser pessoa será luxo. (...) trata-se de rep re sen ta n tes ou de instru m en tos de transmis­ são" (Wille ZurMacht, ed. 1901, § 394). Estes conceitos de N ietzsche são sem elhan tes aos da psicologia co n tem p o rân ea. H. J. Eysenck diz: "P. é a o rganização m ais ou m enos estável e d u rad oura do caráter, do tem peram en to, do intelecto e do físico de um a pessoa: organiza­ ção que d eterm in a sua a d a p ta ç ã o total ao am b iente. C aráter designa o sistem a de com­ p o rtam en to conativo ( vontade) mais ou menos estável e d u rad o u ro da pessoa. Tem peram ento designa seu sistem a m ais ou m enos estável e d u ra d o u ro de co m p o rtam en to afetivo (emo­ ção); in telecto , seu sistem a m ais ou menos estável e d u rad o u ro de com p ortam en to cog­ nitivo (inteligência); físico, seu sistem a mais ou m enos estável e d u rad o u ro de configuração co rp ó rea e de dotação neuro-endócrina" ('lhe Structure of Human Personality, 1953, p. 2). N esta definição, em que entram elem entos já fixados por Roback, Allport, M cK innon. o ele­

PERSONALISMO

m ento d o m in an te é constituído pelo conceito de o rganização, estrutura ou sistem a, elem ento que perm ite prever o co m p o rtam en to provável de um a pessoa. N a o m uito diferente desta é a outra definição, p u ram en te funcional, cuja fina­ lidade 6 possibilitar as investigações relativas à P.: "P. 6 o que perm ite a previsão do que fará uma pessoa num a dada situação (R. B. CAITHL, Personality, 1950, p. 2). N este sentido, o eu dis­ tingue-se cia P. com o a sua parte co n h ecid a ou aberta á pessoa, ã qual esta faz referência u san ­ do o p ro n o m e eu; essa parte p o d e não coinci­ dir — e g eralm en te não coincide — com a totalidade da P. (v. Eu). P E R S O N A L ISM O (in. Personalismo fr. Personnalisme/à\. Personalismiis-, it. Personalismo) F.ste term o foi e é tisado para designar três doutrinas diferentes, m as interligadas. Ia A prim eira é doutrina teológica, que afir­ m a a p erso n alid ad e de D eus com o causa cria­ dora do m u n d o , em o p o sição ao panteísm o, ([ue identifica D eus com o m undo. Foi nesse sen tid o o rig in ário qu e o term o foi e m p re ­ gado p rim eiro p o r S c h leie rm a ch e r (Rede)i. 1799), e d ep o is por G oethe, F euerbach, Teichm üller, etc. 2- A segtinda é um a doutrina metafísica, se ­ gundo a qual o m u n d o é constituído por um a totalidade de espíritos finitos que, em seti co n ­ junto, con stitu em um a ordem ideal em que cada um deles conserva sua autonom ia. Esta concepção foi ap resen tad a pela prim eira vez por G. H . H ow ison, com o n o m e de P., em p o ­ lêmica com R oyce e, em geral, com o idealism o absoluto (na discussão publicada com o título The Conception of God, 1897). K m seguida, esse term o foi usado para designar a m esm a co n c ep çã o fun d am en tal por R en ou v ier (I.e personualisme, 1903), por W . E. H ocking e por outros escritores dos E stados U nidos, o n d e foi criada, inclusive, um a revista destin ad a a d e­ fendê-la (Tbe Personalist, 1919). O P., neste sentido, outra coisa não é sen ão um espiritu alism o m o n a d o ló g ic o de c u n h o le ib n iziano-lotzista, e de fato o term o P. designa nos Estados U nidos a d outrina que na E uropa é cham ada de espiritnalismo (v.). 3a A terceira é um a doutrina ético-política que enfatiza o valor absoluto da pessoa e seus laços de solid aried ad e com as o utras pessoas, em oposição ao coletivism o (que ten d e a ver na pessoa nada m ais que um a u n id ad e n u m éri­ ca), e ao individualism o (que ten d e a enfraque­ cer os laços de solid aried ad e entre as pessoas).

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PERSUASÃO

Foi com esse sentido qu e D ühring em pregou esse term o em Geschichte der National— Okotiomie(de 1899) — ; com esse m esm o sentido, voltou a ser u sado d ep o is da Segunda G uerra M undial por E. M ounier (Lepersonnalisme, 1950) e, na sua esteira, por n u m ero so s p en sad o res católicos, defensores do P. m etafísico. N a ora­ tória m ais ou m en os confusa, que é a carac­ terística do m in an te desta corrente, a nota con­ ceituai que se co nseg ue discernir é o conceito de pesso a com o auto-relação ou consciência. P E R S P E C T IV A (in. Prospect-.h. Perspective: ai. Perspektiue, it. Prospettiva). A ntecipação do futuro: projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia, etc. Esse term o expressa o m esm o conceito d esign ad o por possibilidade (v.), m as de um p o n to de vista m ais genérico e m enos co m p ro ­ m issado, xisto que p o d em ser p ersp ectiv as coisas qu e não têm consistência suficiente para serem p ossibilidades autênticas. N a filosofia co n te m p o râ n e a , esse term o foi em p reg a d o esp ecialm en te por O rtega y G asset, Blondel e M annheim , m as sem clara form ulação concei­ tuai. Por perspectirismo (ai. Perspektirismus) N ietzsche enten deu a co nd ição em virtude da qual "cada centro de força — e não só o h o ­ m em — co nstrói to d o o resto do u niverso partin do de si m esm o, ou seja, atribuindo ao universo dim ensões, form a e m od elo p ro p o r­ cionais à sua própria força" ( Werke, ecl. K rõner, XVI, § 636). Flsse term o às vezes foi usado para d esignar a filosofia de O rtega y G asset. P E R S P IC Á C IA (gr. àyj(ívoia; lat. Perspicacitas-, in. Perspicacity, fr. Perspicacité; ai. Scharfsinn; it. Perspicaccia). R apidez m ental, seg u n d o Platão (Carm, 160 a); justeza de m e­ tas, seg u n d o A ristóteles (El. nic, VI, 9, 1142 b 6). A prim eira definição capta a rapidez do p ro ­ cesso intelectivo; a outra, seu êxito; parecem definições co m p lem en tares. Kant, porém , defi­ niu a P. com o "a cap acid ad e de notar as m íni­ m as sem elhanças e clessem elhanças", que gera o b serv ações cham ad as sutilezas ou sim ples­ m ente p edantism o, q u an d o inúteis (Anlr., I, § 44) (v. SAGACIDADE). P E R S P IC U ID A D E (lat. Perspicuitas: in. Perspicuity, fr. Perspicnité, ai. Perspicuitat; it. Perspicnitá). F o term o latino que traduz o ter­ m o grego èvápTEia (cf. CÍCERO, Acad., II, 6. 17) (v. EVIDÊNCIA). PE R SU A SÃ O (in. Persiiasicni; fr. Persnasiom ai. Uberredwig, it. Persuasione). 1. Crença cuja certeza se apoia em bases principalm ente subjetivas, ou seja, pessoais e incom unicáveis.

PERSUASÃO A d istin ção en tre p e rsu a sã o e e n s in a m e n to ra­ cion al já foi esta b e le cid a p o r P latão , q u e dizia: "O p e n sa m e n to é g e ra d o em n ó s p o r via de e n sin a m e n to ; a o p in iã o , p o r via d a p e rsu a sã o . O p rim e iro b aseia -se s e m p re n u m racio cín io v erd ad e iro ; a o u tra ca re ce d e sse fu n d a m e n to . O p rim eiro co n tin u a firm e em face da P.; a o u ­ tra d eix a-se m odificar" ( 'fim , 51, e). K ant ex ­ p ôs claram en te este m esm o co n ceito ; "A cren ça q u e tem fu n d a m e n to n a n a tu re z a p articu lar do sujeito ch am a-se persuasão. É sim p les a p a rê n ­ cia p o rq u e o fu n d a m e n to do ju íz o , q u e está u n ic a m e n te n o sujeito, é c o n sid e ra d o co m o o b ­ je tiv o . P o rtan to , esse ju íz o só tem v a lid a d e p e s ­ soal e a cren ça n ão p o d e ser co m u n ic a d a " ( C.rít. R. Pura, D o u trin a do m é to d o , cap . II. seç. 3). D este p o n to de vista, a p e d ra d e to q u e q u e p erm ite d istin g u ir P e convicçüo(\.) é "a p o ssi­ b ilid a d e d e co m u n ica r a cren ça e re c o n h e c ê -la v á lid a p ara a ra z ã o d e q u a lq u e r h o m e m " (IbicL); a co n v icç ão é co m u n icá v e l; a P. n ão 6. A d istin çã o k an tian a foi aceita e sim plificada p o r C. P erelm a n n e p o r L. O lb rech ts-T y teca: "P ro p o m o s ch a m a r d e persuasiva a a rg u m e n ta ­ ção q u e p re te n d a serv ir a p e n a s a u m au d itó rio particular, e ch a m a r de cotwincentej. q u e a c re ­ dita p o d e r o b ter a a d e sã o de q u a lq u e r ser ra­ cional" (Traité de l'argunientath»i, 1958, § 6). À s v ez es, P. foi cli.stinguida de c o n v icç ão por, s u p o sta m e n te , en v o lv e r o s e n tim e n to além da razão e, p o rta n to , só ela ser ca p a z de d e sp e rta r o q u e P ascal ch am av a d e "au tôm ato ", q u e são os c o m p o rta m e n to s afetivos e h ab itu ais do h o ­ m em . P ascal dizia: "S om os a u tô m a to s ta n to q u a n to espírito; disso resulta q u e o in stru m en to de q u e se co n stitu i a P. n ão é a p e n a s a d e ­ m o n stra ç ã o " (Pensões. 252). D 'A le m b e rt ex ­ p resso u m u ito liem esse p o n to de vista: "A co n v icção tem m ais a v er co m o esp írito ; a P.. com o co ração . D iz-se q u e o o ra d o r n ã o d ev e a p e n a s co n v e n c er, ou seja, p ro v a r o q u e e n u n ­ cia, m as ta m b é m p ersu ad ir, ou seja, im p re ssio ­ n ar e co m o v er. A co n v icç ão s u p õ e alg u m a p ro ­ va; a P., n em se m p re . (... ) P e rsu a d im o -n o s facilm en te do q u e n os ag rada; ficam os ás ve7.es en tristec id o s ao n o s c o n v e n c e rm o s d aq u ilo em q u e n ão q u e ría m o s crer" (IEuvres posthumes, 1799, II. p. 89). O u tras v e z e s a P. foi c o n sid e ra ­ da a form a su p e rio r da certeza p o r estar ligada á v e rd a d e objetiva. Foi o q u e fez H eid eg g er, q u e a e n te n d e u co m o "um m o d o d e ser da ce r­ teza", m ais p re c isa m e n te o q u e se funda te ste ­ m u n h o da "coisa d esco b e rta ", q u e é v erd ad e ira (Seiu undZeit, § 52). A n a lo g a m en te , [a.spers

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PESSIMISMO p ô s a P. acim a da "confirm ação pragm ática" e da "evidência coercitiva", co m o o terceiro e ú ltim o g rau da v e rd a d e objetiva (Vernunft und Existenz, 1935, III, § 3)- P o r o u tro lad o , insistiuse so b re o caráter "em ocio nal" da P.. no senti­ do de q u e ela ap elaria p ara m o tiv o s "não racio­ nais'" (C. L. STEVENSON, Ethics and Language, 1944. cap. 6). O q u e e m e rg e d essa s indicações é o ca rá ter p esso al e, em certa m ed id a, inco­ m u n icáv el da P., ou m elh o r, d o s m o tiv os que fu n d a m e n ta m a cren ça na q ual ela consiste. 2. A to ou p ro c e d im e n to de p ersu ad ir, de in d u zir à p e rsu a sã o . PERSUASIVO (gr. TtiGavóv; lat. Persuasihle. in. Persuasive, ir. Persuasif, ai. [íberzeugend; it. Persuasivo). C ritério de v e rd a d e defendido p elo s cético s da N ova A cadem ia, em prim eiro lu g ar p o r C arnéacles. P ersu asiv a é a represen ta­ ção q u e se m o stra v erd a d e ira , q u e p o d e ser fal­ sa, m as q u e na m aioria d as v e z e s é verdadeira. C arn éad es dizia: "Visto q u e ra ra m en te topam os co m u m a re p re s e n ta ç ã o v erd a d e ira , n ão deve­ m o s re c u sa r-n o s a crer n a re p re se n ta ç ã o que n a m aioria d as v e z e s diz a v e rd a d e : com efeito, ju íz o s e aç õ es são re g u la d o s pela m aior ou m en o r freqüência" (SI:XTO EMPÍRICO, Adv. inath, VII, 175). A re p re s e n ta ç ã o p ersu asiv a , segundo os d isc íp u lo s cie C arn é ad es, ta m b é m dev e ser coerenteeponderada, ain d a q u e essas caracte­ rísticas n ad a ac re sc e n te m à su a cap acidade p ersu asiv a (Ibid., VII. 184). PESQUISA. V. INVESTIGAÇÃO. PESSIM ISM O (in. Pessimism-, fr. Pessimis­ mo-, ai. Pessimismns; it. Pessimismo). Km geral, cren ça de q u e o e sta d o d as co isas, em algu­ m a p arte do m u n d o ou em sua to talid ad e, é o p io r p ossível. Esse te rm o co m eç o u a ser em­ p re g a d o na In g laterra, no início do séc. XIX, co m o an títe se do o tim ism o . P o rtan to , a tese do P. p o d eria ser ex p ressa co m o a in v ersão da tese do o tim ism o , co m a a sse rç áo de q u e nosso m u n d o é o p io r d o s m u n d o s p ossíveis. M as ex­ p resso d esta form a o P. é u m a m etafísica, e p o d e -se falar em P. só a p ro p ó sito da filosofia de S c h o p e n h a u e r e de seu s se g u id o re s. Comum en te , p o rém , fala-se em P. ta m b é m em senti­ do m ais lim itad o e p arcial, q u a n d o o co rre pelo m en o s um a d as te se s seg u in te s: Ia N a vida h u m an a as d o res su p eram os prazeres, e a felicidade é inatingível. D esta forma, o P. foi d e fe n d id o p elo ciren aico E gesias, chama­ do de "p ersu aso r da m orte" (DlOG. L, II. 8, 94). 2J N a vida h u m a n a os m ales su p eram os b en s, de tal m o d o q u e ela é u n i co m p lex o de

PESSOA ac o n te cim en to s ru in s, ig n ó b eis ou re p u g n a n ­ tes. O P. foi d e fe n d id o d essa form a p elo P adre A pologista A rn ó b io , no início do séc. IV: para ele, a p ró p ria ex istên cia do h o m e m é inútil à eco n o m ia do m u n d o , q u e p e rm a n e c e ria o m e s­ m o se o h o m e m n ão ex istisse (Adi', nationes, II, 37). 3a A vida é, em g eral, m al ou dor. Esta é a tese do P. m etafísico, da form a d efe n d id a p elo b u d ism o an tig o e p o r S c h o p e n h a u e r (Die Welt, I, § 57 ss.). 4a O m u n d o é, em su a to ta lid a d e , m an ifesta­ ção de u m a força irracional: se g u n d o S ch o p en hauer, de u m a "v o n tad e de vida" q u e se d ila­ cera e se a to rm en ta (Die Welt. § 61); s e g u n d o E. H artm an n , de u m p rin cíp io in c o n sc ie n te q ue, ao to rn ar-se p ro g re ssiv a m e n te cien te, d estró i as ilusões q u e reg em o m u n d o (Philosopbiecies Liibewussten, 1869). T o d as as fo rm as do P. n eg am a p o ssib ilid a­ de de p ro g re sso e, em g eral, de q u a lq u e r m e ­ lhora no ca m p o esp ecífico em q u e v ig oram . O que elas n ão n eg am , no e n ta n to , é o caráter finalista cio m u n d o : ad m itid o e d efe n d id o tan to por S c h o p e n h a u e r (Die Welt, I, § 28) q u a n to por H artm an n (Op. cit.; tracl. fr., II, p. 65). O m ais e stra n h o é q u e a essên cia do otimismo (v.) está ju sta m e n te no finalism o, e o P. p re te n ­ de ser a an títe se do o tim ism o . P E S S O A (gr. 7rpóoom ov, imóaxaaiç. kit. Persona; in. Person; fr. Personne, ai. Persoii. it. Persona). N o se n tid o m ais co m u m do term o , o h o m em em su as re la çõ es co m o m u n d o ou consigo m esm o . N o s e n tid o m ais geral (p o r­ q u a n to essa p alav ra foi a p lic a d a ta m b é m a D eus), u m sujeito de re la çõ es. É p ossível d istin ­ guir as se g u in te s tases d esse co n ce ito : Ia fun­ ção e relação-substància: 2a au to -relação (relação consigo m esm o); 3" h ete ro rre la çã o (relação com o in u n d o ). Ia Essa p alavra d eriva de persona, q u e, em latim , significa m áscara (no se n tid o de per­ sonagem: in. Character, fr. ['ersonmige; ai. Rolle) c foi in tro d u z id a co m esse s e n tid o na lin­ g u ag em filosófica p e lo e sto ic ism o p o p u la r, para d esig n a r os p a p é is re p re se n ta d o s p elo h o ­ m em na vida: E picteto diz: "L em bra-te de q u e aqui n ão p assas de ato r de u m d ram a, q u e será brev e ou lo n g o s e g u n d o a v o n ta d e do p oeta. E se lh e ag ra d a r q u e re p re s e n te s a P. de u m m e n ­ digo, esforça-te p o r represen tá-la d ev id am en te. Faze o m esm o , se te for d estin ad a a P. de um coxo. de u m m ag istrad o , de u m h o m e m c o ­ m um . V isto q u e a ti cab e a p e n a s re p re se n ta r

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PESSOA b em q u a lq u e r P. q u e te seja d estin ad a, a o u tro p e rte n c e o d ireito d e esco lh ê-la" (Manual, 17, tracl. L eopardi; cf. Dissertazioni, I, 29, e tc ). O co n ce ito de p a p e l, n este se n tid o , p o d e ser re ­ d u z id o ao d e re la ção : u m p ap el outra coisa n ão é se n ã o u m co n ju n to d e re la ç õ e s q u e ligam o h o m e m a d ad a situ aç ão e o d efin em co m re s­ p eito a ela. P or isso, a n o ç ã o de P. re v e lo u -se útil q u a n d o foi p rec iso ex p re ssa r as re la çõ es en tre D eu s e o C risto (c o n sid e ra d o co m o o L ogos ou V erb o ), e en tre am b o s e o E spírito, m as ao m esm o te m p o foi fonte de m a l-e n te n d i­ d o s e h ere sias. C om efeito, p o r u m la d o a rela­ ção p arecia ter sid o so m a d a — a c id e n ta lm e n te so m a d a — à su b stân cia da coisa; este p elo m e ­ n os era seu co n ce ito na filosofia trad icio n al e, em particular, na aristo télica (v. RELAÇÃO). P or o u tro lad o , a p ró p ria p alav ra P., le m b ra n d o a m áscara d e te atro , p arecia im p licar o caráter a p a re n te e n ão su b stan cia l d a p esso a. D aí n a s­ ceram as lo n g a s d isp u ta s trin itárias q u e ca ra c­ te riz am a h istória d os p rim e iro s sé c u lo s cio C ristian ism o e em e le v a ra m às d e c isõ e s do C oncilio de N icéia (325). Para evitar a asso cia­ ção en tre a n o ç ã o de P. e a de m áscara, os escrito re s g reg o s ad o taram , em v ez de prósopon, a palavra hypóstasis, q u e , em seu signifi­ cad o d e "su p o rte", revela as p re o c u p a ç õ e s q ue su g eriram a esco lh a. M as so b re o caráter aci­ d en tal q u e a relação p are ce ter p o r n atu reza, m u ito s p a d re s da Igreja ac h ara m m elh o r sim ­ p le sm e n te n eg ar q u e a P. fosse re la ção , e in sis­ tir na sua su b sta n c ia lid a d e . Era o q u e fazia, p. ex., S. A g o stin h o , ao afirm ar q u e P. significa s im p le sm e n te "sub stân cia'', e q u e p o r isso o Pai é P. em re la ção a si m esm o (aclse). e n ão em re la ção ao Filho. etc. (De Trin.. V il, 6). C om b ase n isso , B oécio dav a a d efinição de P. q ue se to rn o u clássica em to d a a Id a d e M édia: "P. é a su b stân cia in d iv idu al d e n atu re za racional" (De duabus uaturis et unapersona Christi, 3 P. L., 64, col. 1345). M as. co m o n ota S. T o m á s de A q u in o (S. Th, I. q. 29, a. 4, contra), o p ró p rio B oécio adm itia q u e "todo a tin en te às P. signifi­ ca u m a relação "; além d isso , n ão havia outra m aneira de esclarecer o significado d as p esso as d iv in as, se n ã o a de esclarece r as re la çõ es en tre elas, com o m u n d o e com os h o m e n s. S. T om ás de A q u in o , p o rta n to , em u m de se u s tex to s m ais n o táv eis pela clareza e força filosófica (p re sc in d in d o do sign ificad o te o ló g ic o -re lig io so), ao elu c id ar o d o g m a trin itário , re sta b e le c e o significado do c o n c e ito de P. co m o relação , m esm o afirm and o sim u lta n e a m e n te a su b stan -

PESSOA cialid ad e da re la ção in divinis. "N ão há d istin ­ ção em D eu s, a n ão ser em v irtu d e d as re la çõ es de o rig em . C o n tu d o , em D eu s a re la ção n ão é co m o u m a c id e n te in e re n te ao sujeito, m as é a p ró p ria essên cia divina, de tai m o d o q u e s u b ­ siste do m esm o m o d o co m o su b siste a essên cia divina. A ssim co m o a d iv in d a d e é D eu s, a p a ­ te rn id a d e divina 6 D eu s Pai, q u e é P. divina: p o rtan to , a P. divina significa a re la ção e n q u a n ­ to su b siste n te , isto 6, significa a re la ção n a for­ m a da su b stân cia , q u e é a h ip ó sta se su b siste n te n a n a tu re z a d iv in a, e m b o ra aq u ilo q u e s u b sis­ te na n atu re za divina outra coisa n ão seja s e n ã o a n atu reza divina" (S. Tb.. I, q. 29, a. 4). D este m o d o , ao la d o do caráter su b stan cia l ou h ip o stático da P., era e n e rg ic a m e n te re ssaltad o o seu sign ificad o de relação . Isto no q u e se refere às P. div in as. N o q u e c o n c e rn e à P. em g eral, S. T o m á s de A qu in o afirm ava q u e , à d iferença do in d iv íd u o , q u e p o r si é in d istin to , "a P., n um a n atu re za q u a lq u e r, significa o q u e é d istin to n essa n a tu re z a , assim co m o na n a tu re z a h u m a ­ n a significa a carn e, os o ssos e a alm a q u e são os p rin cíp io s q u e in d iv id u alizam o h o m em " (Ihid, I, q. 29, a. 4). P o rta n to , s e g u n d o S. T o ­ m ás de A qu in o , m esm o n o se n tid o co m u m a P. é d istin ção e relação . 2- A p artir d e D escartes, ao m esm o te m p o em q u e se e n lra q u e c e ou d im in u i o re c o n h e c i­ m en to do caráter su b stan cia l d a P., ac en tu a-se a sua n atu re za de re la ção , e s p e c ia lm e n te de cmlo-relciçào ou relação do h o m e m co n sig o m esm o. O c o n ce ito d e P. n e ste sen tid o identifi­ ca-se com o de E u co m o co n sc iên c ia, e 6 an a li­ sad o so b re tu d o n o q u e se refere àq u ilo q u e se ch am a d e id e n tid a d e p esso al, ou seja. u n id a d e e c o n tin u id a d e da vida c o n sc ie n te do Eu. Lo­ cke afirm a q ue a P. "é u m ser in te lig en te e p e n sa n te q u e p o ssu i ra zã o e reflex ão , p o d e n ­ do o b serv a r-se (ou seja, co n sid e rar a p ró p ria coisa p e n sa n te q u e ele é) em d iv erso s te m p o s e lu g ares; e isso ele faz s o m e n te p o r m eio da consciência, q u e ê inseparável do p en sar e essen ­ cial a ele" (Ensaio, II, 27. 11). A P . é aq u i identificada co m a id e n tid a d e p esso al, com a relação q u e o h o m e m tem eo n sig o m esm o , e esta últim a co m a co n sciên cia. L eibniz está de ac o rd o co m L ocke n esse a sp ecto , m as insiste ta m b é m n a id e n tid a d e física ou real co m o o u tro c o m p o n e n te da P., além da id e n tid a d e m oral ou da consciência (Noiw. ess, II, 27, 9). A re la ção c o n sc ie n te do lio m e m co n sig o m esm o to rn a-se , a p artir d e en tã o , característica fu n d a­ m en tal da p esso a. W olff diz: "A P. é o en te q u e

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PESSOA co n serv a a m em ó ria de si m esm o , ou seja, lem ­ b ra-se q u e é o m esm o q u e foi an tes, n este ou n a q u e le estad o " (Psycbol. rationalis, § 741). F. K ant a n a lo g a m e n te afirm a: "O fato de o ho­ m em p o d e r re p re se n ta r seu p ró p rio eu eleva-o in fin itam en te acim a de to d o s os se re s vivos da terra. Por isso, ele é um a P., e p o r causa da u n id a d e de co n sc iên c ia p e rsiste n te através de to d a s as alte raç õ e s q u e p o d e m atin gi-lo , é uma só e m esm a P." (Antr, § 1). H eg el en te n d ia por P. o sujeito a u to c o n sc ie n te e n q u a n to "simples re íe rên cia a si m esm o na p ró p ria individualida­ de" (Fil. cio dir, § 35). L otze diz: "A essência da P. n ão se re p o rta a u m a o p o siç ã o p assada ou p re s e n te do eu ao n ão eu, m as co n siste no im e d iato ser p o r si" {Mikrokosmns, I, 1856, p. 575). E R en o u v ie r diz: "A co n sciên cia tom a o n o m e de P. q u a n d o é levada ao grau superior de d istin ção e e x te n sã o n o q ual atin g e o co­ n h e c im e n to de si m esm a e do u niversal, bem co m o o p o d e r de fo rm ar c o n ce ito s e aplicar as leis fu n d a m en tais cio esp írito , q u e são as cate­ gorias" (Noinvlle monadologie, 1899, p. 110. V isto q u e a P. é. n e ste s e n tid o , sim p lesm en te a re la ç ã o do h o m e m co n sig o m esm o (o q ue é a d efinição da co n sciên cia) id en tifica-se com a c o n sc iê n c ia , e essa id en tific aç ão é o único d ad o co n ce p tu a l q u e se p o d e ac h ar n a exalta­ ção retó rica da P. q u e caracteriza alg u m as for­ m as c o n te m p o râ n e a s de personalismo (v.). 3a C ontra a in te rp re ta ç ã o acim a de P. estào o b v ia m e n te as p o siç õ e s filosóficas q u e se recu­ sam a re d u zir o ser cio h o m e m â consciência e fazem p o lêm ica co n tra a form a m ais radical d essa in te rp re ta ç ã o , q u e é o hegelianism o. N este s e n tid o , a a n tro p o lo g ia da esq uerd a heg elian a e do m arx ism o , a p e sa r de n ão se ter p re o c u p a d o , a b e rta m e n te , em esclarece r o c o n ce ito de P., co n stitu i o início de um a reno­ v aç ão d esse c o n ce ito ou a e v id en c iaç ào de um a sp e c to so b re o q ual a trad iç ão filosófica se ca­ lara: a P. h u m a n a é co n stitu íd a ou condiciona­ da e sse n c ia lm e n te p ela s "relaçõ es de produção e de trabalhem", de q u e o h o m e m participa com j n atu reza e co m os o u tro s h o m e n s para satis­ fazer às su a s n e c e ssid a d e s (cf. MARX, Deutsche Ideologie. I). P or o u tro la d o , a d o u trin a moral k an tia n a já caracterizara o c o n ce ito de P. em te rm o s d e heterorrelaçào, ou seja, relação co m os o u tro s. Q u a n d o K ant dizia q u e "os se­ res racio n ais sào ch a m a d o s de p esso as porque a n atu reza d ele s os indica já co m o fins em si m esm o s, co m o algo q u e n ão p o d e ser em pre­ g a d o u n ic a m e n te co m o m eio" (Grundlegung

PESSOA Zur Met. der Silteii, II), declarava que a n atu ­

reza cia P., do ponto de vista m oral, consiste na relação intersubjetiva. No entanto, foi só com a fenom enologia que o conceito cie P. com o heterorrelaçâo ingressa explicitam ente na filosofia. H usserl, co n sid e ra n d o o eu com o o "pólo da vida intencional ativa e passiva e de todos os hábitos criados por ela" (Ccirt. Meei. § -t-í), acentuava essa relação com outra coisa, em que consiste a in ten cio n alid ad e. Mas é so b retu ­ do com Scheler que a P. 6 ex plicitam ente defi­ nida com o "relação com o m undo". Segundo ele, a P. é definida essen cialm en te por essa relação, assim com o o eu 6 definido pela relação com o inundo externo, o indivíduo pela relação com a sociedade, o corpo pela relação com o am ­ biente. Segundo Scheler, "o m undo nada mais é que correlação objetiva da P.; portanto, a cada P. individual corresponde um m undo individual" (Fonuaíísnuis. 1913, p- 408). As esferas objeti­ vas que se p odem distinguir no m undo (obje­ tos internos, objetos externos, objetos corpóreos, etc.) tornam -se concretos apenas enquanto partes de um m undo correlativo a um a I\. en q u an to dom ínio das possibilidades de ação cia própria P. A P., neste sentido, não deve ser confundida com a alm a, com o eu ou com a consciência: um escravo, p. ex., é todas essas coisas, mas não é P. p o rq u e não tem possibilidade cie agir sobre o pró p rio corpo, e assim um elem ento de seu m undo escapa-lhe (Ibid.. p. 499). "A P." — diz ainda S ch eler— "só se dá onde se dá um poder fazer por m eio cio corpo, m ais p recisa­ m ente um poder fazer que não se fundam enta apenas na lem brança cias sensações o casio n a­ das pelos m ovim entos externos e pelas ex p e­ riências ativas, m as que precede o agir efetivo {Ibid, p. 499). Não obstan te os n um erosos e nem sem pre coerentes vaivéns m etafísicos a que Scheler subm eteu sua doutrina, seu co n ­ ceito de P. com o de "relação com o m undo" foi fecundo, inclusive porque assum ido com o ponto de partida da análise existencial de H eidegger (Sein und Zeit, § 10); esta se centrou p recisa­ m ente no conceito da P. hum ana, de existên­ cia, com o relação com o m undo. Ksse conceito de P., que, com o vim os, não coincide com o de eu, foi form ulado em ter­ mos análogos e é g eralm ente em p reg ad o nas ciências sociais. A definição h abitualm ente re­ corrente nessas ciências, de P. com o "o indiví­ duo provido cie status social", faz referência à rede de relaçõ es sociais que co n stitu em o

PIETISMO status da pessoa. A consideração da P. com o u nidade individual, com a qual se licla no d o ­ m ínio co nsid erado por essas ciências, corres­ p o n d e á m esm a determ inação conceituai do term o com o agente m oral, sujeito de direitos civis e políticos ou, em geral, m em bro de um grupo social. O hom em é P. p orque, nos p a­ péis que desem pen ha, é essencialm ente clefiido por suas relações com os outros. P E SSO A JU R ÍD IC A /C IV IL /C O L E T IV A (lat. Perso)ia civilis; in. Jurístícperson-, fr. Personne juridique: ai. Juristiscbe Person; it. Persona civilé). Segundo H obbes. P. neste sentido é "aquilo a que se atribuem palavras e ações hum anas, próprias ou alheias": se á P. são atri­ buídas ações próprias, trata-se de uma P. natu­ ral; se lhe são atribuídas ações alheias, trata-se de P. fictícia (De bom, 15, § 1). Esta definição de H obbes é a mais genérica e ao m esm o tem ­ po a m ais exata das definições da P. civil e jurídica já dada pelos filósofos. O próprio Hegel define a P. neste sentido com o genérica "capa­ cidade jurídica" (/V/. do dir, § 36). P E T IÇ Ã O D E P R IN C ÍP IO (lat Petitio principií). É a conhecidíssim a falácia (v.). já analisada por Aristóteles ( Top, VIII, 13, 162 b; El. so/, 5, 167 b; An. pr.. II, 16, 64 b), que consiste em pressupor, na dem onstração, um equ ivalen­ te ou sinônim o do que se quer dem onstrar (cf. PEDRO HISPANO, Smnm. log;., 7x3). G. PPIC N Á T O M O S (ai. Pyknatomen). Foi esse o nom e que H aeckel deu aos átom os, dotados de m ovim ento e sensibilidade, que ele julgava elem entos constitutivos de todas as form as de ser, por serem p ro d uzid os por condensação (piçnose) da matéria primitiva (WKLTRATSKL. 1899; trad. it.. 1904. p. 296 ss.). PIEDADE. V. COMPAIXÃO. P IE T IS M O (in. Pietism; fr. Piétisme; ai. Pieiisnut; it. PietisDio). Reação contra a o rto d o ­ xia pro testante que ocorreu no norte da E uro­ pa, especialm ente na A lem anha, na segunda m etade do séc. XVII. Foi com andada por Felipe Spener (1635-1705), e um de seus exp oentes foi o p ed agog o August Franke (1663-1727). O P. pretendia voltar ás teses originais da Refor­ m a p rotestante: livre interpretação da Bíblia e negação da teologia; culto interior ou m oral de D eus e n egação do culto externo, dos ritos e de qualquer organização eclesiástica; com prom isso com a vida civil e negação do valor das d e n o ­ m inadas "obras" cie natureza religiosa. D este últim o aspecto deriva a aceitação de m uitos en sinam ento s de caráter prático e utilitário nas

PIRRONISM O instituições educacionais pietistas (cf. A RITSCHL, Geschichte des Pietismus, 3 vol., 1880-86). PIRRONISMO (in. Pyrrhonism, fr. Pyrrbonisme, ai. Pyrrhonismus; it. Pirronismo). For­ m a extrem a do ceticism o grego, tal comei foi defendida p o r Pírron de Elis, que viveu no tem ­ po de A lexandre M agno (Pírron aco m p an h o u -o em sua ex p ed ição ao O riente) e m orreu por volta do ano 270 a.C. C o n h ecem o s sua d o u tri­ na pelos Silloi (versos jo co so s) de T ím on de Fliunte e pelas exp o siçõ es de D iógenes Laércio e Sexto Em pírico. A tese fundam ental do P. é a n ecessid ad e de su sp en d e r o assentim ento. Visto que para o h o m em as coisas são inapreensíveis, a única atitude legítim a é a de não julgá-las v erd ad eiras ou falsas, nem belas ou feias, nem boas ou ruins, etc. N ão ju lg ar tam ­ bém significa não preferir ou não evitar: assim , a su s p e n s ã o do ju íz o é já p o r si m esm a ataraxia, ausência de p ertu rb ação. D iógenes Laércio conta que Pírron cam inhava sem olhar para nada e sem afastar-se de nada, arrostando carros, se os encontrasse, precipícios, cães, etc. (DIÓG, L, IX, 62). Mais tarde houve um retom o ao P., entre o fim do últim o século a.C. e o fim do II século cl.C. por obra de K nesidem os de C nossos (que ensi­ nou em A lexandria), de A gripa e do m édico Sexto Em pírico. Este últim o, que atuara entre os anos 180 e 210 d .C , d eixou três obras: Hipotipose pirrônica. Contra os dogmáticos e Contra os matemáticos, que co n stitu em Lima síntese de todo o ceticism o antigo. A tese pirrônica da su sp en são do assen tim en to é rigo­ rosam en te m antida, m as, com o guia para a conduta da vida, são adotadas a aparência sen ­ sível e as norm as da vida com um (Pirr. hyp., I, 21) (cf. MARIO DAI. PKA, I.o scetticismo greco, 1950). PISTIS SOPHIA. Segundo a cosm ogom ia cios gnósticos, é o últim o dos Hons (v.) (em ana­ ções), ou eon decaído, que dá origem à m atéria (H ipoi.rro, Philosophnmena. VI, 30 ss.) (cf. CiNOSTICISMO).

PITAGORISMOOn. Pythagoreanism, fr. Pytbagorisme, ai. Pytbagoreismus; it. Pitagorismo).

D outrina da antiga escola pitagórica; p o u co ou nada deve ao seu fundador, Pitágoras, sobre quem p ouco se sabe com certeza e que p ro v a­ v elm ente nada escreveu. A s teses característi­ cas do P. foram as seguintes: I a metempsicoseiv.), nas quais se baseavam as crenças m ísticas e os ritos da seita;

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PLÁSTICA, NATUREZA 2Ll os núm ero s con stituem os princípios ou os elem entos constitutivos das coisas; esta dou­ trina, por m eio do platonism o, tam b ém presidi­ ram os prim órdio s da ciência m oderna; 33 os corpos celestes (cjue para os pitagóricos eram dez, po r razões de sim etria) giram todos em torn o de um fogo central (Lestia), do qual o sol seria um reflexo. Esta é a primeira m anifestação daquilo que, na idade moderna, viria a ser o sistem a de C opérnico. (Cf. Ipitagorici, testimonianze e frammenti, aos cui­ dados de M aria T im panaro Cardini, Florença, 1958 e a bibliografia aí contida.) PLANO (in. Plane, fr. Piau; ai. Schichk it. Piano). Esta noção é em p reg ad a em filosofia para designar graus ou níveis do ser, caracteri­ zados por q ualidades próprias, não redutíveis ás de outros graus ou níveis. O conceito de P. foi intro du zido com esse sen tid o p or Boutroux: "No un iv erso é possível distinguir diversos m undos, que seriam com o P. sobrepo sto s uns aos outros. Acima do m undo da pura necessi­ dade, que é a q u an tid ad e sem qualidade, idên­ tico ao nada, po d em -se distinguir: o mundo das causas, o m undo cias noções, o m undo fí­ sico, o m undo vivo e o m undo pensante" (De Ia contingence des lois de Ia natnre, 1874. C oncl.). S egundo B outroux, cada P. é caracteri­ zado: ly por certa d ep e n d ê n cia cio P. inferior; 2-' pela irredutibilidade de suas qualidades funda­ m entais e de suas leis específicas ã qualidade ou ás leis cio P. inferior. N isso consistiria a con­ tingência &à realidade. C oncepção análoga foi ap resen tad a por N. Ilartm ann, que distinguiu quatro P. cia realidade: inorgânico, orgânico, psíquico e espiritual (Der Aujbau der realen Welt. 1940). 1 Iartm ann tam bém adm ite que cada P. da realidad e é regido por leis próprias c irredutíveis, m as, ao contrário de Boutroux. acentua a d ep en d ên cia dos P. superiores em relação aos inferiores. P. ex., as leis do mundo psíquico não são redutíveis ás do m undo orgâ­ nico, m as as p ressu p õ e, acrescentado-se-lhes: rep resentam , por isso, um snpradeterminisnw, que se som a ao determ inism o das leis inferio­ res. Portanto, a co nclusão a que chega a análise cia estratificaçâo do ser feita por H artm ann nào é a contingência, e sim a su pranecessid ade (v. I.IBHRDADH).

PLÁSTICA, NATUREZA (in. Plastíc nciture. Sature plastique-, ai. Plastiscb Xaliir. it. Xatura plástica). A força P. ou formadora, dirigida por D eus e dele dim anada, mas di­ ferente, à qual está confiada a tarefa de or­

fr.

PLATONISMO

ganizar a m atéria. É o con ceito de natureza ectipa, adm itido p elos platônicos de C am bridge (v. ÉCTIPO). P L A T O N IS M O (in. Platonism; fr. Platonisme, ai. Platonismus; it. Platonismó). O s ele­ m entos da dou trin a de Platão co n sid erad o s característicos d esd e A ristóteles p o d em ser recapitulados da seg u in te m aneira: 1L> A d outrina das idéias, seg u n d o a qual são objetos do co n h ecim en to científico en tidades ou valores que têm um status diferente do das coisas naturais, caracterizando-se pela un id ad e e pela im utabilidade (v. IDÉIA). C o m base nesta doutrina, o co n h ecim en to sensível, que tem por objeto as coisas na sua m ultiplicidade e m utabilidade, não têm o m ínim o valor de ver­ dade e podem ap en as obstar à aquisição do co ­ nh ecim en to autêntico. 2" A doutrina da su p erio rid ad e da sabedoria sobre o saber, ou seja, do objetivo político da filosofia, cuja m eta final é a realização da justiça nas relações hu m an as e p o rtan to em cada h o ­ mem (v. SABEDORIA). 3" A doutrina da dialética com o p ro ced i­ m ento científico por excelência, com o m étodo através do qual a investigação conjunta co n se­ gue, em prim eiro lugar, reco n h ecer um a única idéia, para depois dividi-la em suas articulações específicas (v. DIALÉTICA). Estes são tam bém os três asp ecto s p o lêm i­ cos q u e o p ô s A ristóteles e Platão; por m arca­ rem a diferença entre P. e aristotelism o, servi­ ram para caracterizar este últim o ao lo n g o do.s séculos. É óbvio qu e não esgotam a doutrina original cie Platão, que, p o rtanto, não coincide co m o "P". É preciso notar que as teses acim a expostas não caracterizam o d en o m in ad o P. da R enas­ cença. Este, na realidade, é um n eo p lato n ism o que lança m ão das teses fundam entais do neoplatonismo antigo (v.). PLEROMA (gr. 7iA.iípco|i(X.). S e g u n d o o gnóstico V alentim (séc. II), a totalidade da vida divina plena ou perfeita (IKENEI1, Adv. haer., I. 11, 1). PLURALISMO (in. Pluralismo fr. Pluralisme; ai. Pluralismus; it. Pluralismo). 1. A partir de Wolff, este term o foi co n trap o sto a egoísmo (v.) com o "a m aneira de p en sar em virtude da qual não se abarca o m u n d o no eu, m as nos co n sid e ra m o s e n o s c o m p o rta m o s a p e n as com o cidadãos do m undo" (Kant. Anlr., I, § 2). Mas en q u an to o term o egoísm o continuou d e­ signando um a atitude m oral, visto que, para a

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PNEUMA

doutrina m etafísica co rre sp o n d en te, prevale­ ceu solipsistnoiv.), o term o P., no uso que dele se fez em seguida, assum iu um significado m e­ tafísico, passan d o a designar a doutrina que adm ite p luralidade de substâncias no m undo. A ex p ressã o típica dessa d o u trin a é a m onadologia de Leibniz, e foi neste sen tido que o term o voltou a ser u sad o por alguns espiritua­ listas m o d ern o s (J. W ard, TheRealm ofEnds or Pluralism and Theism, 1912; W . Jam es, A Pluralistic Universe, 1909). Jam es insistiu particu­ larm ente na exigência prop osta pelo P.: a de não considerar o universo com o m assa com ­ pacta, em que tu d o está d eterm inad o no bem ou no mal e não há lugar para a liberdade, m as sim com o um a esp écie de república fe­ derativa na qual os indivíduos, apesar de so ­ lidários entre si, conservem autonom ia e liber­ dade. O universo pluralista, seg u n d o Jam es, é um pluriverso ou multiverso; sua u n id ad e não é a im plicação universal ou integração absolu­ ta, m as continuidade, contigüidade e concatenaçào: é um a un idade de tipo sinequia, no senti­ do atribuído a esta palavra por Peirce (A Phiralistic Universe, p. 32a). U m universo assim d istin g u e-se do u n iv erso m o n ad o ló g ic o de Leibniz ju sta m en te pelo caráter não absoluto nem necessitante da u n id ad e que o constitui. Ate1 m esm o D eus. no u niv erso pluralista, é finito. 2. N a term inologia co n tem p o rân ea, d esig ­ na-se freqü entem ente com este no m e o reco ­ nh ecim en to da possibilidade de soluções di­ feren tes para um m esm o p ro b lem a, ou de in terpretações diferentes para a m esm a realida­ de ou conceito, ou de um a diversidade de fato­ res, situações ou evoluções no m esm o cam po. Assim, fala-se em "P. estético" q u an d o se adm i­ te que um a obra de arte p od e ser considerada "bela" por m otivos diferentes, que nada têm a ver um com o outro; fala-se em P. sociológico q u an d o se adm ite ou se reco n h ece a ação de vários g ru p o s sociais relativam ente in d ep en ­ den tes uns dos outros. P N E U M A (gr. n v eü u a; lat. Spíritus: in. Pneuma; fr. Pneuma; ai. Pneuma; it. Pneu ma). Este term o só g an h o u significado técnico com os estóicos, que com ele designaram o espírito, ou sopro animador, com que D eus age sobre as coisas, organizando-as, vivificando-as e diri­ gindo-as. D iógenes Laércio diz: "Para os estóicos a natureza é um fogo artífice destinad o a gerar, isto é, um P. da espécie do fogo e da atividade form ativa (VII, 156; Plut., De stoíc.

PNEUMATICOS

repngu., 43, 1054). Virgílio aludia a essa co n ­ cepção com versos fam osos: "Spiritits intus alit '1 'olamque infnsaperarlus, M eus agitai m o/em et loto se corpore m íscet"(En., VI, 726), aos v er­ sos recorria G iordano B runo para ilustrar sua co n cep ção do Intelecto artífice ou "ferreiro do m undo" (De Ia cansa, princípio e uno. II). Os m agos do R enascim ento falavam no m esm o sentido cio espírito através do qual a alm a do m un do age so b re todas as p artes do universo visível (Agripa, D e occultaphilosophia. I, 14). N o livro da SabedoriaU , 5-7, e tc ) , o P. é en ten ­ dido no sentido estóico. K em sentido análogo, S. Paulo fala do "corpo p neum ático", que ele co n trap u n h a ao "corpo psíquico" ou anim al com o corpo vivo e vivificante que ressurgirá d ep ois da m orte (I Cor.. XIV, 44 ss.). N a trad i­ ção cristã, P. 6 o Espírito Santo, do qual S. T o ­ m ás de A quino dizia: "O no m e espírito nas coi­ sas corpó reas p arece significar certo m o v im en ­ to ou im pulso, visto que ch am am o s de espírito a respiração e o v ento. M as é próprio cio am or m over e im pelir a v o n tad e do am ante em d ire­ ção ao ser am ado. E com o a pessoa divina age pelas vias do am or, graças ao qual D eus é co n ­ v en ien tem en te am ado, ela cham a-se Espírito Santo" (S. Th.. I, q. 36, a. 1). Finalm ente, da m es­ m a doutrina do espírito vivificante deriva a dos espíritos "psíquicos", "anim ais" ou "corpóreos", que foram adm itidos pela m edicina antiga (v. PNFrMATlCOS) e pela m edieval, sen d o m en cio ­ nada m uitas v ezes pelos filósofos: os espíritos anim ais foram m en cio n ad o s por S. T om ás de A quino (In Senl., IV. 49. 3; cf. S. Th.. 1, q. 76, a. 7, ad. 2") e m ais tarde por T elésio (D erei: nat., V , 5), por Bacon (Nov. Org.. II, 7: D e angm. scient.. IV, 2), por H obbes (Decorp.. 25, 10) e esp ecialm en te por D escartes, que reex p ô s a doutrina de seu pró p rio p o n to de vista (Pass. de l ame. 1, 10). N o sentido com um cie ar ou so p ro , essa palavra é usada por alguns filósofos que conside­ ram a alm a com o ar: p. ex.. por A naxím enes, cuja doutrina 6 um corolário do princípio de que tud o é ar (Fi\ 2, D iels), e por Epicuro (Ad H e ro d , 63). PN E U M A T IC O S (gr. nveuuáxtK O i; lat. Spiritales: in. Pneum aties, fr. P nenm atiqites; ai. P nenm atiken it. P neum atici). Foram indica­ dos com este term o: lu os seg u id o res da escola m édica de G aleno, que, inspirando-se nos estóicos, identificavam no pneum a (v.) o princípio da vida; distinguiam : o p n eu m a psíquico, que reside no cérebro, o p n eu m a zoótico ou ani­

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m al, que reside no coração, e o pneum a físico ou natural, que reside no fígado, atribuindo a cada um deles funções especiais no organis­ mo; 2" alguns padres da Igreja e alguns gnósticos. que ressaltaram a distinção presen te no Novo T estam en to (v. PNIXMA) entre corpo psíquico ou anim al e corpo P., insistindo na superio­ ridade deste últim o; 3" alguns quím icos dos sécs. XVII e XVIII (Boyle, Black, Cavendish e outros), que iniciaram as investigações sobre os gases e descobriram certo núm ero de elemen­ tos e co m p osto s gasosos. P N E U M A T O L O G IA (in. Pneum atology, fr. P iieum alologie, Pueum alíqne; ai. P neum atologie, P nenm atik it. Pnenm atologia). Leibniz introduziu o term o P. para indicar "o conheci­ m ento de D eus. das alm as e das substâncias sim ples em geral" (Nouv. ess.. Avant-propos. Op., ed. E rdm ann, p. 199). liste term o preten­ dia significar "ciência dos espíritos" e foi reto­ m ado por W olff para indicar o conjunto da psicologia e cia teologia natural (Log-, 1728, Disc. Pref.. § 79). Crusius adotava o term o P. para in­ dicar "a ciência da essência necessária de um espírito e das distinções e qualidad es que po­ dem ser atribuídas apriori" (E n tw u rfdern otwendigen Vernuiiftwahrheiten, § 424). Rosm ini excluía da P. a consid eração de D eus e a restringia ao estu do dos "espíritos criados", isto é, da alm a hu m an a e do s anjos (Psicoi. 1850. § 27). D A lem bert restringia o term o à significa­ ção "cia prim eira parte da ciência do homem", qu e é "o co n h ecim ento especulativ o da alma hum ana", que ele indicava tam bém com o no­ m e de m etafísica particular. Para D'Alembert, o co n h ecim ento das operações da alm a consti­ tuía o objeto da lógica e da m oral (D iscours prélim iuaire de lEncyclopédie, em (Euvres, ed. C ondorcet, 1853, p. 116). Kant observava a res­ peito que a psicologia racional nunca poderá tornar-se pneu m ato log ia, ou seja, ciência pro­ priam ente dita. cia m esm a m aneira com o a teo­ logia não po de tornar-se teosotia (CríL do/uízo, § 89). Esse term o hoje está com pletam ente em desuso. PO D ER ES D O ESTADO. V ESTADO P O E S IA (gr. 7TOÍTatÇ; lat. Poesia; in. Poetty, fr. Poésie-, ai. D ichtung; it. Poesia). Form a defi­ nida da ex p ressão lingüística, que tem como condição essencial o ritm o. Podem -se distinguir três co n cep çõ es fundam entais: Ia a P. como estím u lo ou p artic ip açã o em otiva; 21' a P. co­ m o verdade; 3a a P. en q u an to m odo privilegia­ do de ex pressão lingüística.

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Ia A co n cep ção de P. com o estím ulo em o ­ tivo foi exposta pela prim eira vez por Platão: "A parte da alm a que, em nossas desgraças pessoais, ten tam o s refrear, q u e tem sed e de lá­ grim as e gostaria de suspirar e lam entar-se à vo n tad e — pois é essa a sua natureza — é ju s ­ tam ente a parte a que os p o etas dão satisfação e prazer. (...) Q u an to ao am or, ã cólera e a to ­ dos os m ovim entos dolorosos ou agradáveis da alma, qu e são inseparáveis de to d as as nossas ações, p o d e-se dizer que so b re eles a im itação poética p ro d u z os m esm os efeitos, visto que, em bora fosse preciso estancá-los, ela os irriga e nutre, transform ando-nos em servos das facul­ dades que. ao contrário, deveriam ob ed ecernos para que nos to rn ássem os m ais felizes e m elhores" (Rep.. X , 606 a-cl). Platão observa que o lado em ocional da arte não é m en o r por tratar de em o çõ es alheias, p o rq u e "necessaria­ m ente as em o çõ es alheias passam a ser nossas" (Ihitl., 606 b). N ão há dúvida, p o rtan to , de que para Platão a característica fundam ental da P. imitativa (assim com o da razão de sua co n d e ­ nação) é a participação em ocional em que ela se baseia, bem com o o reforço das em oções que ela c o n se g u e com tais p a rtic ip a ç õ e s. G iam bauista Viço não só esten d eu ao universo inteiro a p artic ip açã o em otiva, co n sid erad a própria da P., com o tam bém elim inou o caráter co nd enató rio que se en co n tra em Platão. "O sublim e trabalho da P." — escreveu ele — "é dar sentido e paixão ás coisas insensatas, sen ­ do pro p ried ad e das crianças de tom ar nas m ãos coisas inanim adas e. b rin can d o , conversar com elas com o se fossem p esso as vivas. Esta digni­ dade filológico-filosófica com prova que os h o ­ m ens do m un d o criança foram , por natureza, poetas sublim es" (Scienzci nnovci. 1744, D egn. 37). Portanto, seg u n d o V iço, a P. está ligada aos ''robustos sentidos" e ás "vigorosíssim as fantasias" dos ho m en s prim itivos ou brutos; seu tríplice objetivo é "achar fábulas sublim es que se ad ap tem aos interesses p o p u lares", "p erp e­ tuar ao m áxim o" e "ensinar o vulgo a agir vir­ tuosam ente" (Ibid, II., cf. Lettera a Chorarão degliA ngíoli). D este p o n to de vista, P. e filoso­ fia são antípodas, e "quanto m ais robusta é a fantasia, (anto m ais fraco é o raciocínio" (Ibid., D egn. 36). Esse m esm o conceito de P. com o estím ulo ou participação em ocional acha-se na teoria da em patia(x), que considera a ativida­ de estética com o a projeção das em o çõ es do indivíduo no objeto estético. S egundo o princi­ pal defensor dessa teoria, T h eo d o r Lipps, a

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em p a iia (\:.) é u m ato original, esse n c ia lm e n te in d ep e n d en te da associação de idéias e p ro ­ fu n d a m en te arraig ad o na p ró p ria estru tura do espírito hum ano (Àsthetik], 1903, pp. 112 ss.): deste m odo, é postulada com o um a facul­ dade à parte, á qual está confiada a função de anim ar a m aterialidade bruta do m und o ex te­ rior, to rn an d o o m un do m ais fam iliar e agradá­ vel ao hom em . Com base na distinção entre o uso sim hólicodn linguagem e o seu u.so em ocio­ nal, atribuiu-se á P. "a form a suprem a da lin­ g u ag em em otiva", cujo único objetivo é esti­ m ular •em oções e atitudes" (I. A . RICIIARDS, Principies of Litercny Criticism. 1924; 14a ecl., 1955, p. 273). A função sim bólica (ou científi­ ca) da linguagem consiste em sim bolizar a re­ ferencia ao objeto e em com unicar essa refe­ rência ao ouvinte, levan do-o a reco n h ecer a referência ao m esm o objeto. A função em otiva, por sua vez. consiste em exprim ir em oções, atitudes, e tc , e em evocá-los no ouvinte: fun­ ções que podem ser incluídas na da "evoca­ ção", que é o estímulo da em oção (C. K. OGDHN. I. A RICHARDS, lhe Meaning ofMeaning, 1923. 10a ed.. 1952. p. 149). O bviam ente, este p onto de vista não passa de repetição quase literal cia co n cep ção platônica. E não tem significado di­ ferente o m odo com o C. M orris definiu o dis­ curso poético: "principalm ente discurso valorativo e aprecialivo", cujo objetivo é "lem brar e sustentar valores já conhecidos" ou "explorar novos valores" (Signs, LcinguageandBeheirior. 1946, V . ~!) . 2a A co n cep ção de P. com o v erd ad e com eça com A ristóteles, que a considerou com o ten ­ dência á im itação, para ele inata em tod os os hom ens com o m anifestação da tend ência ao co n h ecim ento (PoeL, 6, 1448 b 5-14). S egundo A ristóteles, a im itação poética tem valid ade cognoscitiva su p erio ra im itação historiográfica, p o rq u e a P. não representa as coisas realm ente acontecidas, m as "as coisas possíveis, seg u n d o a verossim ilhança e a necessidade" (Ibid., 1451 a 38). Por isso. ela "é m ais filosófica e m ais ele­ vada que a história, porq u e exprim e o univer­ sal, en q u an to a história exprim e o particular. Com efeito, tem os o universal q u an d o um indi­ v íduo de certa índole diz ou faz certas coisas com base na verossim ilhança e na necessidade, e é essa a intenção da P.. que dá nom e á p erso ­ nagem justam en te com base n esse critério. Por sua vez tem os o particular q u an d o dizem os, p. ex.. o que A lcibíades fez e o que lhe ac o n te­ ceu" (Ibid., 9. 1451 b 1, 10). Estas fam osas

POESIA o b serv a çõ es de A ristóteles eq ü iv alem a co lo car a P. na esfera da v e rd a d e filosófica, já q u e esta ca p ta a essê n cia n ec essária d as co isas, e no d o m ín io d as v icissitu d es h u m a n a s a essê n cia é co n stitu íd a p ela s re la ç õ e s de v ero ssim ilh an ça c n e c e ssid a d e , q u e são o b jeto da p o esia. A P., p o rta n to , n ão p o ssu i u m g rau d e v e rd a d e infe­ rior à filosofia, m as sim a m esm a v e rd a d e , no d o m ín io q u e lh e é p ró p rio , o d os feitos h u m a ­ n os. Esta c o n c e p ç ã o de P. d o m in o u a trad iç ão filosófica, n a q u a l p o d e m o s d istin g u ir d u as in te rp re ta ç õ e s fu n d a m en tais: A) a P. tem u m a v e rd a d e de g rau ou n atu re za d ife re n te d a v e r­ d ad e in telectu al ou filosófica; B) a P. c o n tém a v e rd a d e filosófica ab so lu ta. A) A p rim eira p o siç ão está na o rig em da estética m o d e rn a. B au m g a rten afirm ou q u e o o bjeto estético , a b ele za , é "a p erfeição do c o ­ n h e c im e n to sen sív el e n q u a n to tal", e q u e p o r isso ele n ão co in cid e co m o o b jeto do in telecto , q u e é o c o n h e c im e n to d istin to (Aesthetica, 1750-58, § 14). C om o p erfeição cio c o n h e c i­ m en to sen sív el, a b ele za é u n iv e rsa l, m as de u m a u n iv e rsa lid a d e d iferen te do c o n h e c im e n ­ to, p o rq u e ab strai d a o rd em e d o s sig n o s, re ali­ z a n d o Lima form a de u nificação p u ra m e n te fe­ n o m e n a l (Jbid, § 18). S e g u n d o B au m g a rten , a P. é, p a rtic u la rm e n te , "um d isc u rso sen sív el perfeito", de tal m an eira q u e se u s v ário s e le ­ m e n to s (re p re se n ta ç õ e s , n e x o s, p ala v ras ou sinais q u e as ex p ressa m ) te n d e m ao c o n h e c i­ m en to d as re p re s e n ta ç õ e s sen sív eis (Meditationes philosophicae de nonnulis ad poema pertinentibus, 1735, §§ 1-9). A q ualificação "sen­ sível" esclarece o caráter da P.; g raç as a isso, ela tem p o r o bjeto re p re s e n ta ç õ e s claras, m as q u e se co n fu n d em , ao p asso q u e as re p re s e n ­ ta çõ es claras e distintas, ou seja, co m p le ta s e a d e q u a d a s , n ão são sen sív eis, p o rta n to n ão são p oéticas; d esse m o do , filosofia e P. n ão se en c o n ­ tram , p o is a p rim eira ex ig e as d istin çõ es de co n ce ito s q u e a s e g u n d a alija de seu d o m ín io (Medit, cit.. § 14). A n a lo g a m en te V iço afirm a­ va: "A sab ed o ria p o ética, q u e foi a p rim eira da g en tilid a d e , te v e de co m eç ar co m algu m a m e ­ tafísica, n ão a m etafísica arra zo ad a e ab strata d o s eru d ito s de ag o ra, m as sen siv a e im ag in ati­ v a tal co m o d ev e ter sido a de tais p rim eiro s h o m e n s, p o is eles eram de n e n h u m racio cín io , m as de s e n tid o s ro b u sto s e v ig o ro síssim a s fan­ tasias" (Sc. nuova, 1744, II, D elia sap ien za p o é ­ tica). M as foi H egel q u e m ex p re sso u m elh o r essa tese: "A P. é m ais an tiga q u e a lin g u ag em p ro sa ica artistica m en te fo rm ada. Ela é a re p re ­

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POESIA s e n ta ç ã o o rig in ária da v e rd a d e , é o saber no q ual o u n iv ersal n ão foi ain d a s e p a ra d o por sua ex istên cia viva no p articu lar, no q u al a lei e o fe n ô m e n o , o fim e o m eio aind a n ão foram co n tra p o s to s, p ara sere m d e p o is novam ente in terligado s p elo raciocín io , m as com preendem se u m no o u tro e u m a tra v é s do outro. Por isso, a P. n ão se lim ita a ex p rim ir através da im ag em tim c o n te ú d o q u e já é co n h e cid o por si em su a u n iv e rsa lid a d e , m as, ao contrário, de a c o rd o co m seu co n c e ito im e d iato , ela perm a­ n e c e na u n id a d e su b stan cia l, o n d e ainda não o co rre u tal s e p a ra ç ã o n em tal relação " (Vorlesiingeu üher die Asthetik, ed. C lockner, III, p. 239). C om isso, p ara H eg el, a P. (assim como to d a a arte) co n tin u a aq u ém ou ab aix o da filo­ sofia, p ois é só n esta q u e a Idéia se revela ou se realiza em sua v e rd a d e ira n atu re za , que é u n iv e rsa lid a d e ou ra zã o , n ã o im ed iação ou im agem ; m as a P. p e rte n c e à esfera da verdade ab so lu ta , ao la d o da filosofia e da religião (à qual está su b o rd in a d a ). N o id ealism o cie ori­ g em ro m ân tica, o c o n ce ito de P. co n tin u o u sen­ do s u b sta n c ia lm e n te o e x p re s so p o r Hegel. C roce, d e p o is de insistir na p rio rid a d e da arte so b re o c o n h e cim en to intelectual propriam ente dito , p o rta n to em sua relativa au to n o m ia em face da filosofia (com a q u al, p o rém , n un ca ne­ g o u q u e a arte c o m p a rtilh a sse o status de co­ n h e c im e n to ), ac ab o u in sistin d o cada v ez mais n as características de totalidade e universalida­ de da e x p re ssã o artística, q u e a ap ro x im am da v e rd a d e filosófica. A o co n trá rio do sentim ento, "a e x p re ssã o p o ética é u m a teorese, u m conhe­ cer, e p o r isso m esm o , e n q u a n to o sentim ento a d e re ao p artic u la r e, p o r m ais elev ad o e nobre q u e seja em sua o rig em , m o v e-se necessaria­ m en te na u n ila te ra lid a d e da p aix ão , na anti­ n om ia do b em e do m al e n a a n sie d a d e do pra­ zer e da dor, a P. reata o p artic u la r ao universal, a c o lh e co m ig u a ld a d e d o r e p razer, su p eran d o os, e, acim a do e m b a te d as p artes contra as p artes, elev a a v isão d as p artes no to d o , a har­ m o n ia so b re o co n tra ste, a e x te n sã o do infinito so b re a an g ú stia do finito. E ste cu n h o de uni­ v e rsa lid a d e e de to ta lid a d e é o seu caráter" (La poesia, 1936, p p. 8-9). A ssim , o v a lo r da P. estava ju sta m e n te em sua te o re tic id a d e , ou seja, na sua v alid a d e co g n o scitiv a; e v in ha a ser o q u e H eg el já h av ia d ito q u e era: u m a verd ad e filosófica q u e se m anifesta na im ed iação da im agem , e n ão na u n iv e rsa lid a d e do conceito. E) A o lad o d essa c o n c e p ç ã o , há outra que, a p e sa r de e stre ita m e n te a p a re n ta d a , n ão v ê na

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P. a ap ro x im aç ão da v e rd a d e ab so lu ta , m as a p ró pria v e rd a d e ab so lu ta. S chiller já se e x p re s ­ sara so b re a p o esia n esses term o s. N a o b ra So­ bre a poesia ingênua e sentimental (1795-96), afirm ou q u e o p o e ta é a n atu re za , ou seja, s e n ­ te n a tu ra lm e n te e p o rta n to im ita a n atu re za , ou sen te-se afastado d a n atu re za e v ai à su a p ro c u ­ ra n o stalg icam en te, co nfigurando-a co m o ideal. N o p rim e iro caso, o p o e ta é in g ê n u o , co m o n a antiga G récia; n o se g u n d o caso , é sen tim e n tal, co m o n a era m o d e rn a. M as em am b o s os ca­ sos, a P. é o ab so lu to . C om efeito, a P. in g ên u a é representação absoluta, c o n c lu íd a , to tal e definitiva; a P. s e n tim e n ta l é representação do absoluto, de u m ideal de p erfeição c o n su ­ m ad o , c o n q u a n to lo n g ín q u o ( Werke, ed. Karpeles, XII, p p. 122 ss.). S chiller v a le u -se d esse asp ecto para afirm ar re so lu ta m e n te a s u p e rio ri­ d ad e da P. s o b re a filosofia: n ã o h esitav a em d i­ zer q u e "o ú n ic o h o m e m v e rd a d e iro é o p o e ta, d ian te do q u al o m elh o r filósofo n ão p assa de caricatura" (FpistolãrioGoethe-Schiller, 7l-1795; trad. S an ta n g elo ). Essa te se re p re se n ta sem d ú ­ vida u m filão im p o rta n te e b em d e te rm in a d o da c o n c e p ç ã o ro m ân tica da p o e sia. S chelling dizia: 'A facu ld ad e p o ética é a in tu ição o rig in á­ ria n a sua p rim eira p o tên cia; e v ice-v ersa, a única in tu ição p ro d u tiv a q u e se re p e te n a m ais elev ad a p o tên cia é o q u e ch a m a m o s de facu l­ d ad e p o é tic a" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, V I, § 3). A fa cu ld ad e p o ética atualiza a u n id a d e d as ativ id ad es c o n sc ie n te e in co n scien te, q u e co n stitu i a n a tu re z a do Eu ab so lu to . "O q u e ch a m a m o s de n atu re za é um poema, fe ch ad o em c a ra c te re s m iste rio so s e ad m iráv eis. M as se o en ig m a p u d e s se ser re v e ­ lado, re c o n h e c e ría m o s n e le a o d isséia cio E spí­ rito, q u e, p o r m arav ilh o sa ilusão , b u sc a n d o -se , foge de si m esm o " (Ibid). N a filosofia c o n te m ­ p o rân ea, esse p o n to de vista foi re e x p re sso por H eidegg er: "A P. é a n o m in a ç â o fu n d a d o ra do ser e d a essên cia de to d a s as coisas; n ão é um sim ples d izer q u a lq u e r, m as é d izer p elo qual é re v e la d o in icialm en te tu d o o q u e n ó s d e b a te ­ m os e tra ta m o s d e p o is n a lin g u ag em de to d o s os dias. Por c o n se g u in te a P. n u n ca re c e b e a lin g u ag em co m o m atéria a ser m a n ip u la d a , p ressu p o sta , m as, ao co n trá rio , é a P. q u e c o ­ m eça a p o ssib ilitar a lin g u ag em . A P. é a lin g u a­ g em prim itiva de u m p o v o , e a essê n cia da lin g u ag em d ev e ser c o m p re e n d id a a p artir da essência da P." (Holderlin und das Wesen der Dichtung, 1936, § 5). C om o lin g u ag em o rig i­ nária, a P. é a p ró p ria v e rd a d e , isto é, a m a­

POESIA n ifestação ou rev elação do Ser (Holzwege, 1950, p p . 252 ss.). 3a A terceira c o n c e p ç ã o fu n d a m en tal à p ri­ m eira vista é m en o s filosófica q u e as o utras, p o rq u e n ã o consiste em atribuir à P. d eterm in ad a tarefa em d ad a m etafísica, n em em ligá-la a d e te rm in a d a fa cu ld ad e ou catego ria do esp íri­ to, ou em re se rv ar-lh e u m lu g ar na e n c ic lo p é ­ dia do sab er h u m a n o , m as a p e n a s em d e s c o ­ b rir certas características q u e a P. p o ssu i em su a s re aliza çõ es h istó ricas m ais b em -su c ed id as, e em re su m i-las n u m a d efin ição g en era liza d ora. T od av ia, é este o ú n ico p ro c e d im e n to q u e p o d e g e ra r um a d efinição funcional da P., q u e sirva para ex p re ssa r e o rie n tar o trab alh o efetivo d o s p o e tas. P o rtan to , para essa d efini­ ção os p o e ta s co n trib u íram m ais q u e os filóso­ fos, a p e sa r de estes ta m b é m terem p o r v ezes co n se g u id o ca p tar alg u n s d e seu s asp e c to s im ­ p o rta n te s. O b v ia m en te , d e ste p o n to d e v ista, a P., p elo m en o s à p rim eira vista, é a p e n a s um m o d o p riv ileg iad o de e x p re ssã o lingüística: p ri­ v ile g iad o em v irtu d e de u m a fu n ção esp ecial a ele atrib u íd a. O p riv ilég io atrib u íd o ao m o d o p o é tic o d e ex p re ssã o é fre q ü e n te m e n te d e te r­ m in ad o co m o "lib erd ad e". D ep o is de d izer q u e "as artes da palavra" são a elo q ü ê n c ia e a P., K ant afirm a: "A elo q ü ê n c ia é a arte de tratar u m a fu n ção do in telecto co m o livre jo g o da im ag in ação ; a P. é a arte de d ar a u m livrejogo da im a g in a çã o o caráter de função do "intelec­ to" (Crít, do Juízo, § 51). A qui, a n o ç ã o de "jogo" serv e para ressaltar o caráter livre da ati­ v id a d e p o ética em face de q u a lq u e r o u tro fim utilitário; a n o ç ã o de "função do in telecto " ser­ v e para d esig n a r a d iscip lina a cjue se sujeita a P., m esm o na lib e rd a d e de seu jo g o . D este p o n to de vista, a fu n ção da ex p ressão poética é a lib e rta çã o d a lin g u ag em de seu s u so s u tilitá­ rios e a sua e lab o raç ão n u m a d iscip lina a u tô n o ­ m a. D ew ey insistiu n as m esm as características da ex p ressã o p oética: "Se, en tre p ro sa e p oesia, n ão há u m a d iferença p assív el d e ser definida co m ex a tid ão , en tre p ro sa ico e p o é tic o h á um ab ism o , p ois são te rm o s ex trem o s q u e lim itam te n d ê n c ia s da e x p eriên cia. O p ro sa ic o realiza o p o d e r q u e as p alav ras têm de ex p rim ir "por m eio da ex ten são "; o p o é tic o , o d e ex p rim ir pormeio da intensão. O p ro sa ico lida com d e s ­ crição e n a rra ç ã o , ac u m u la n d o d eta lh es; o p o é ­ tico in v erte o p ro c e sso : "co n d en sa e ab revia, d a n d o assim às p alav ras u m a en erg ia e e x p a n ­ são q u a se ex p lo siv a". Por isso, na P. "cada p a la ­ v ra é im ag in ativ a, assim co m o , n a v e rd a d e ,

POESIA ta m b é m o foi na p ro sa até q u e, p elo d esg a ste do u so , as p alav ras foram re d u z id a s a sim p les en u m e ra d o re s"; "a força im aginativ a da literatu ­ ra é u m a in tensificação da fu n ção id ealizan te cu m p rid a p ela s p alav ras n a lin g u ag em co m u m " (Art as Experience, 1934, cap . 10; trad. it., pp. 284-85). A m aio r in te n sid a d e de q u e fala D evvey n ão é em o tiv a, m as ex p ressiv a: é a m aior força do sign ificad o d as p alav ras q u e n ão estão d esg astad as p elo u so . O ra, confiar à P. a função de co n serv ar e re stab ele ce r n a lin g u ag em a for­ ça de significação, de purificá-la, m an tê-la efi­ cien te, ren o v á-la e ap erfeiço á-la é o q u e, d e há u m sécu lo a esta parte, têm afirm ado m u ito s dos p o e tas q u e refletiram so b re o p ró p rio tra b a lh o . A s teses fu n dam en tais da c o n ce p ç ão da P. elab orad a e p ressu p o sta p elo s p o e tas m o d e rn o s p o d em ser recapitu lad as da seg uinte m aneira: ly A P. é in d e p e n d e n te de q u a lq u e r objetivo p rático ou utilitário. Este ca rá ter foi ex p re sso pela fó rm u la da artepela arte, à qual ad eriram no sécu lo p a ssa d o artistas co m o F laubert, G autier, B audelaire, W alter Pater. O scar W ilde e A llan P oe. O alvo co n tra o q ual se dirige essa fó rm u ­ la é a s u b o rd in a ç ã o da P. à e m o çã o , à v e rd a d e ou ao d ever; seu sign ificad o p ositivo é a lib e r­ d ad e da P. no s e n tid o afirm ado , p. ex., p o r K ant. F laub ert diz: "C o m po r v e rso s sim p le s­ m en te, escrev er u m ro m a n c e , cin zelar m á rm o ­ re, eram co isas b o a s n o s te m p o s em q u e n ão existia a missão social do p o eta. A gora q u a l­ q u e r o b ra d ev e ter sign ificad o m oral, e n sin a ­ m en to b em d o sa d o ; é p reciso q u e u m so n e to ten h a alca n c e filosófico, q u e u m d ram a pise n o s calo s d os m o n a rca s e q u e u m a aq u are la en o b reça os co stu m es. A m ania d e ad v o g ar in­ sin u a -se em to d a a p arte, ju n ta m e n te co m a sofreguidào de discutir, perorar, arengar" (Lettreà Lonise Colet, 18 de se te m b ro de 1846). N o e d i­ torial in tro d u tiv o do p erió d ic o Lartiste(14 de d e z e m b ro de 1856), G au tier p ro clam av a: "C re­ m os n a au to n o m ia d a arte; para n ó s a arte n ão é u m m eio para u m fim . U m artista q u e co rre atrás de u m o bjetivo q u e n ão seja a b eleza em n ossa o p in iã o n ão é artista". A fórm ula da arte pela arte é, p o rta n to , su b sta n c ia lm e n te a d efe­ sa da P. co n tra q u a lq u e r ten tativ a de to rn á-la in stru m e n to cie p ro p a g a n d a de u m o bjetivo q u a lq u e r. 2- A b eleza é o ú n ico fim da p oesia. V isto q u e a arte n ã o p o d e estar s u b o rd in a d a ao b em , à v e rd a d e ou a co isas q u e p re te n d a m ter tais características, re sta-lh e co m o ú n ico fim a b e le ­ za, m ais p re c isa m e n te a b ele za formal, q u e

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POESIA in d e p e n d e d os c o n te ú d o s q u e lh e são ofereci­ d o s pela e m o ç ã o ou p elo in telecto . Flaubert diz.: "P oeta da form a! Eis a g ra n d e palavra inju­ riosa q u e os u tilitário s la n ç am em face dos ver­ d a d e iro s artistas. (...) N ão há b e lo s pensam en­ to s sem b ela s fo rm as e v ice-v ersa... A quem escrev e em b o m estilo c e n su ra -se o descuido cia idéia, do fim m oral: co m o se a tarefa do mé­ d ico n ão fo sse cu rar, a do p in to r pintar, a do ro u x in o l can tar e co m o se a fin alid ad e da arte rião fo sse, an te s d e tu d o , o b e lo " (Lettreà Lonise Colet, 18 de se te m b ro de 1846). F Poe afirm ava: "A P.. e n q u a n to arte da palavra, é a criação rítm ica da b ele za . Seu ú n ico árbitro é o g osto : com o in te le cto ou co m a consciência ela só tem re la ç õ e s co laterais. A n ão ser por acaso, ela n ã o cu id a a b so lu ta m e n te do (levei riem da v e rd a d e " ("T he P o e tic Principie". Works, ed. H arriso n , XIV, p. 275). 3y O caráter da b ele za é objetivo; ela está além da e x p eriên cia em o tiva. F laubert dizia: "Q u an to m en o s se sen te u m a coisa tan to mais se tem ca p acid a d e para exprim i-la tal qual ela c (tal q ual ela é s e m p re , em si m esm a, na sua u n iv e rsa lid a d e , livre de to d a s as su as contin­ g ên cia s efêm e ras). V, p reciso , p o rém , ter a fa­ cu ld ad e de fazer-se sen ti-la, e isso é o gênio'' (Lettre ãLonise Colet, 6 de ju lh o de 1852). F. T. S. Fliot. a p o ia n d o esse c o n ce ito , escrevia: "AP. n ão é um livre m o v im e n to da em o ção , mas u m a fuga da e m o çã o ; n ão é a ex p ressão da p e rso n a lid a d e , m as a fuga da personalidade. N atu ralm e n te, p o rém , só os q u e p o ssu em per­ so n a lid a d e e e m o ç ã o sab em o q u e pretendern o s d izer q u a n d o alu d im o s á n ecessid ad e de fuga d e ssa s co isas. (...) A e m o ç ã o da arte é im p e s s o a l. E o p o e ta n ã o p o d e a lc a n ç a r es­ sa im p esso alid ad e sem en treg ar-se inteiram ente á o bra q u e d ev e ser feita" ( The Sacred Woocl 1920; tracl. it., p p . 124-25). N o m esm o sentido U ng aretti disse: "Toda a m in h a ativ id ad e poéti­ ca, d e sd e 1919. d ese n v o lv ia -se n esse sentido, u m sen tid o m ais o bjetivo , (... ) um a projeção e um a c o n te m p la ç ã o d o s se n tim e n to s nos obje­ to s, u m a ten tativ a de elev ar a id éias e a mitos a m inha p ró pria ex p eriên cia biográfica" (La tetra promessa. N ota de L eo ne P iccio n i). 4" A P. tem ca rá ter construtivo-, a b eleza tem caráter construído. Estas foram te se s de Poe. B au d elaire e V aléry. O p rim eiro descreveu a co n stru ç ão p o ética co m o u m a e sp écie de traba­ lh o arte sa n a l ("The P h ilo so p h y o f C om position" em Works, ed. H arriso n , XIV, p. 196). B au d elaire, p o r sua v ez, insistiu no co n ceito da

POESIA arte co m o composição: "T odo o u n iv e rso v isí­ vel é só u m arm az ém de im ag en s e de sig n o s aos q u ais a im a g in a çã o atrib u irá u m lu g ar e um v a lo r re la tiv o ; 6 u m a e s p é c ie d e fo rrag em q ue a im aginação precisa digerir e transform ar" ("Salon de 1859". (Euures, ed. L e D an tec, II, p. 232). M as foi V aléiy q u e m m ais enfatizou o ca­ ráter da arte co m o construção: "As criaçõ es do h o m em são feitas com v istas ao p ró p rio co rp o — e d á a esse p rin cíp io o n o m e de utilidade— ou co m v istas à p ró p ria alm a — e isso ele p ro ­ cura co m o n o m e de beleza. M as, p o r o u tro lado , q u e m c o n stró i ou cria, c o m p ro m e tid o co m o está co m o resto do m u n d o e com o m o ­ v im en to d a n atu re za , q u e te n d e m p e rp e tu a ­ m en te a d isso lv er, c o rro m p e r ou arru in ar o q u e ele faz, p recisa d isc ern ir u m te rc eiro p rin cíp io , q ue tenta co m u n ic a r às p ró p rias o b ras, cap az d e ex p rim ir a re sistê n cia q u e estas d e v e rã o o p o r ao seu d estin o de o b ras p ere cív e is. E m sum a, ele cria a solidez e a duração. Eis as g ran d es características d e u m a o bra co m p leta. S ó a arq u itetu ra ex ig e-as e elev a-as ao p o n to cu lm in an te. C o n sid ero -a a arte m ais co m p leta" (Eupalinos. trad. it., p p. 141-42). A ssim , o ca rá­ ter arq u ite tô n ic o da arte é c o n d ic io n a d o pela resistên cia q u e ela e n c o n tra n as forças n atu rais e pela vitória s o b re essa resistên cia. Por o u tro lado , u m co ro lário do caráter co n stru tiv o ou a rq u itetô n ic o da ativ id ad e p o ética é o controle sobre a inspiração, já re ssa lta d o p o r B au d elaire: "A lim ento s u b sta n c io so e re g u la r é a ú n i­ ca coisa n ecessária para os escrito res fecu n d o s. A in sp iração é d e c id id a m e n te irm ã do tra b a lh o c o tid ia n o . E sses d o is c o n trá rio s n ão se e x ­ clu em , ta n to q u a n to n ão se e x c lu e m os co n trá ­ rios q u e co n stitu em a n atu reza. A in sp iraç ão o b e d e c e , ta n to q u a n to a fom e, a d ig estão , o sono" ("Conseils au x jeu n es littérateurs", 6. (Eitvres, ed. L e D an tec, II, p. 388). 5" A P. tem ca rá ter comunicatiro. F laubert dizia: "O p o e ta d ev e sim p atizar co m tu d o e com to d o s p ara c o m p re e n d ê -lo s e d escre v ê los" (Lettre ü Mlle. Leroyer de Chantepie, 12 de d e z e m b ro d e 1857). E B au d elaire: "Prefiro o p oeta q u e está em p e rm a n e n te c o m u n ic a ç ã o com os h o m e n s cie seu te m p o , tro c a n d o com eles p e n sa m e n to s e sen tim e n to s q u e se tra d u ­ zem em lin g u ag em n o b re e su ficien tem e n te correta. S itu ad o n u m d o s p o n to s da circu n fe­ rência da h u m a n id a d e , o p o e ta re tra n sm ite na m esm a lin h a, co m v ib ra ç õ e s m ais m e lo d io ­ sas, o p e n sa m e n to h u m a n o q u e lh e foi tra n s ­ m itid o . O v e rd a d e iro p o e ta d e v e se r u m a

POESIA en c a rn a ç ã o " ("Pierre D u p o n t", (Euvres, ed. Le D an te c, I, p. 404). 6° D ev e-se b u sc a r a p erfeição form al, q u e é a ex a tid ã o ou p re c isã o ex p ressiv a . F laub ert q u eria q u e a P. fosse "tão ex ata q u a n to a g e o ­ m etria" (Lettre à Louise Co/et, 14 de ag o sto de 1853) e afirm ava: "Q u an to m ais u m a idéia é b ela ta n to m ais a frase é h arm o n io sa. A ex a ti­ d ão do p e n sa m e n to faz (ou m elh o r, é) a ex a­ tid ã o cia p alav ra" (Lettre à Mlle. Leroyer de Chantepie, 12 de d e z e m b ro de 1857). M allarm é insistiu n esse asp ecto da P.: "A arte su p re m a co n siste em m ostrar, com a p o sse im p ecáv el cie to d as as facu ld ad es, q u e se está em êx tase, sem d e m o n stra r de q u e m an eira se ch ega ao cum e" (Lettre à ILenri Cazalis, 21 d e n o v e m b ro de 1863). V aléiy escrev eu a re sp eito : "P rocurei a e x a tid ão n os p e n sa m e n to s, para q u e , p a te n te ­ m e n te g e ra d o s pela o b serv a çã o cias co isas, se tran sfo rm assem , co m o p o r u m p ro c e sso e s p o n ­ tâ n e o , n os atos da m in h a arte. D istribu í m in h as a te n ç õ e s, refiz a o rd em d o s p ro b lem as; c o m e ­ ço o n d e an te s eu term in av a, para ir u m p o u co m ais ad ian te. (...) A v aro de fantasias, c o n c e b o co m o se p erseg u isse" (Eitpalinos; tracl. it., p. 91). E U ng aretti disse no m esm o sen tid o : "ELI so n h a v a co m u m a P. em q u e os m istério s da alm a, n ão atraiçoado.s n em falsead o s em seu s im p u lso s, se co n cilia ssem co m um a ex trem a sab ed o ria do d iscu rso " (Quaranta souetti di Shakespeare, N ota íntr.). M allarm é e ste n d e u a p re o c u p a ç ã o da ex a tid ão à p ró p ria escrita: "O a rc a b o u ç o in telectu al do p o e m a d issim u la-se e s u s te n ta -s e — a c o n te c e — no e s p a ç o q u e isola as estrofes e o b ra n c o do p ap el: silêncio significativo, de c o m p o siç ã o tão bela q u a n to a tios p ró p rio s v erso s" (Lettre non datée ã Char­ les Morice, cf. 1 'ropossurIapoésie-, ed. M o nd o r, p. 164). 7-' F in alm en te, co m o re c a p itu la ç ã o d e to d o s os asp e c to s acim a e n u m e ra d o s da P., ta m b é m lhe é atrib u íd a a fu n ção cie m a n u te n ç ã o de u m a lin g u ag em eficiente. Essa fu n ção foi ex p li­ cad a com to d a a en erg ia e clareza p o ssív eis p or F.zra P ou n d: a fu n ção da literatura "não é a co e rçã o ou a p e rsu a sã o por v ias em o cio n ais" n em a c o a ção a ad o ta r certas o p in iõ e s. "Sua fu n ção tem a v er co m a clareza e o v ig o r de q u a lq u e r p e n sa m e n to ou o p in iã o . D iz re sp eito à p re se rv a ç ã o e ao e sm ero d o s in stru m en to s, à s a ú d e d a p ró p ria su b stân cia do p e n sa m e n to . C om ex c e ç ã o de caso s raro s e lim itad o s de in v en çã o n as artes p lásticas ou na m atem ática, o in d iv íd u o n ão p o d e p e n sa r e co m u n ica r o

POÉTICA

seu pensamento, o governante e o legislador não podem agir eficazmente e redigir suas leis sem as palavras, e a solidez e a validade dessas palavras dependem dos cuidados dos malditos e desprezados literatos" (Literary Essays; trad. it., p. 47). Desse ponto de vista, "a manutenção de uma linguagem eficiente é tão importante para as finalidades do pensamento quanto em cirurgia é importante manter os bacilos do téta­ no distantes das ataduras"; essa função cabe à P., que "6 simplesmente linguagem carregada de significado no máximo grau possível" (Ibid.. p. 49). A P. executa essa função de três manei­ ras; por isso, são três as espécies de P.: melo­ péia, na qual "as palavras, além do seu signifi­ cado comum, comportam alguma qualidade musical que condiciona o alcance e a direção desse significado"; fanopéia, que "é a projeção de imagens sobre a fantasia visual"; e logopéia. na qual as palavras são usadas não só em seu significado direto, mas também em vista de usos c costumes, do contexto, das concomitâncias habituais, das acepções conhecidas e da ironia (Ibid., p. 52). Não há dúvida de que essas observações de Pound constituem o ponto culminante da estética contemporânea da poesia. P O É T IC A . V. FSTKTICA. P O IÉ T IC O (gr. Jtoir|TiKÓÇ; in. Poietic, fr. Poiétique; ai. Poietik, it. Poietico). Produtivo ou criativo, enquanto diferente de prático. Segun­ do Aristóteles, a arte é produtiva, enquanto a ação não é (fít. nic, VI, IV, 1140 a 4). Plotino chamava as causas eficientes de P. (Knn., VI, 3. 18, 28). V. ENCICLOPÉDIA. P O L A R ID A D E (in. Polarí/y- fr. Polarité, Polarilüt; it. Polaritü). Conexão necessária

ai. de dois princípios opostos entre si. Neste sentido, o conceito foi empregado por Schelling na obra Sobre a alma do mundo ( 1798). A alma do mundo, segundo Schelling, age na natureza por meio das duas forças opostas de atração e repulsão, cujo conflito constitui o dualismo e cuja unificação constitui a P. da natureza (Werke, I, II, p. 381). Por vezes o conceito de P. foi generalizado, transformando-se em princípio. Na filosofia contemporânea, isso foi feito por Morris R. Cohen, que não o entendeu como princípio da identidade, "mas da necessária copresença e da subordinação recíproca das de­ terminações opostas". Na física, esse princípio seria representado pela lei de ação e reação e pela lei segundo a qual onde há força há tam­ bém resistência. Na biologia, seria expresso

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POLISSILOGISMO

pelo aforismo de Huxley, de que o protopkisma só consegue viver morrendo continua­ mente. Na ética, seria expresso pela interde­ pendência do sacrifício e da realização pessoal (Introduction to Logic, IV, 2; trad. it., p. 125). P O L Ê M IC O (in. Polemic; fr. Polemique; ai. Polemiscb: it. Polemico"). Kant entendeu por "u.so P. da razão" a defesa de seus enunciados contra as negações dogmáticas. As negações dogmáticas dos enunciados racionais são as negações cépticas, consideradas por Kant como as posições do dogmatismo negativo, simples­ mente preparatório com respeito à critica da razão que é o exame das limitações e dos limi­ tes exatos da razão (Crít. R. Pura, Doutrina transcendental do método, cap. I, seç. 2). P O L IÂ D IC O v in . Potyadic). Na lógica con­ temporânea, são qualificados com este termo os enunciados (ou relações) constituídos por três termos ou mais: p. ex., o enunciado "Fula­ no deve dinheiro a Sicrano", em que aparecem três termos. Fulano. Sicrano e dinheiro (cf. p. ex., DFAVEY, Logic, XVI; trad. it., pp. 413 ss.). POLIGÊNESE. V. ORTOGÊNKSE. P O L IG O N IA . Gioberti falou em "P. do cato­

licismo", que é a refração da palavra revelada na individualidade de cada um, que, apesar disso, continua una, assim como o polígono é uno, apesar de ter um número infinito de lados ÇRiformacattolica, ed. Balsamo-Crivelli, pp. 147­ 48). O mesmo que multilateridade. PO L IL E M A (in. Polilemma; fr. Polilemme, ai. Polilemma: it. Polilemma). Termo moderno para indicar um dilema (v.) com três alternati­ vas ou mais (Troxler, Logik., II, 1829, p. 102; B. Frdmann, Logik. 1892, §75). P O L IM A T IA (gr. 7r.o2nju.aeia). Saber muitas coisas. Heráclito disse: "Saber muitas coisas não ensina a ter inteligência; senão teria ensi­ nado isso a Hesíodo e a Pitágoras, e ainda mais a Xenofonte e a Hecateu" (Fr. 40. Diels). Kant chamou de P. o domínio dos conhecimentos racionais, enquanto poli-história seria o saber histórico ou dos fatos, e pansofia seria o con­ junto dos dois (Logik. Intr.. § VI). PO L ISS E M IA (in. L}olysemy, fr. L}ofysémie,

ai. Polysemic it. Polísemia). Diversidade de re­ ferências semânticas (dos "significados") pos­ suídas pela mesma palavra (cf. BKKAL, Essai de sémantique. cap. 14; S. ULLMANN, ThePrincipies o/Semanties. 2a ed., 1957, pp. 63, 114, 174). P O L IS S IL O G IS M O (in. Polysyllogisnv. fr. Polysyllogisme. ai. Polysyllogísmus; it. Polisillogiímo). Termo empregado no séc. XVIII para

POLITEISMO in d icar u m silo g ism o m u ltiplice ou co m p o sto , ou seja, u m a cadeia de silo g ism o s. Essa cad eia p o d e esta r o rd e n a d a de tal m o d o q u e to d o silo g ism o sirva de fu n d a m e n to p ara o q u e o s e g u e e d e co n se q ü ê n c ia para o q u e o p re ­ ced e. O silo g ism o d a série q u e c o n tém a ra ­ zã o da p re m issa d e u m o u tro silo g ism o é c h a m a d o prossílogismo; o q u e c o n tém a c o n ­ s e q ü ê n c ia d e o u tro s ilo g ism o é c h a m a d o epissilogismo (v.). T od a c o n c a te n a ç ã o cie ra ­ ciocín io s, p o rta n to , é co n stitu íd a p o r p ro ssilo g ism o s e ep issilo g ism o s (WOLFI-, L.og, §§ 4 92 ­ 9 4 ; KANT, Logik, § 8 6 ; HAMILTON. Lectures 011 Logic, § 6 8 ; B . ERDMAIW, Logik, § 8 5 ) . P O L IT E ÍS M O (in. Polytheism; fr. Polythéisrai* ai. Polytheism lis; it. Politeismo). (Sobre a n o ção d e P ., v . DKUS, 3 , a ) . O P . está liem lo n g e de ser um a cren ça prim itiva e g ro sseira, in c o n ­ ciliável com a reflexão filosófica. V isto q u e já está p re se n te n a d istin çã o en tre d iv in d a d e e D eus, na re a lid a d e são p o liteístas m u itas filoso­ fias às v e z e s c o n sid e ra d a s tip ic a m e n te m o n o teístas, co m o p. ex. a de A ristóteles. O P. foi às v ez es e x p lic ita m e n te d efe n d id o p o r filósofos m o d e rn o s. H u m e já o b serv a v a , em História natural da religião (1757), q u e a p assa g e m do P. para o m o n o te ísm o n ã o deriva da reflex ão filosófica, m as da n ec essid ad e h u m an a de adular a d iv in d a d e para o b ter su a b e n e v o lê n c ia , e q ue o m o n o te ísm o é a c o m p a n h a d o m u itas v ez es pela in to lerân cia e pela p e rse g u iç ã o , v isto q u e o re c o n h e c im e n to de u m ú n ico o bjeto de d e ­ v o ção leva a co n sid e rar a b su rd o e ím p io o cu l­ to de o u tras d iv in d a d e s (lissay, II. p p. 335 ss.). N a era m o d e rn a , a s u p e rio rid a d e do P. foi re s­ saltada p o r K en o uv ier (Psycbologíe ratíonelle, 1859, cap. 25) e J a m e s (A Pluralistic Universe, 1909), m as m u itas o u tras d o u trin a s são politeístas, in clusiv e a de B ergson . M ax W e b e r c o n ­ sidero u o P. co m o a luta en tre os d iv erso s v a lo ­ res ou as d iv ersas esferas cie v alo re s, en tre os q uais o h o m e m d ev e to m ar p o siç ão , luta q ue n un ca term in a co m a vitória de u m só valor. N este sen tid o , o m u n d o da ex p eriên cia n u n ca chega ao m o n o te ísm o , m as se d e té m no P. (Zwischen zwei Gesetze, 1916. em Gesammelte PolitischeSchriften, p p. 60 ss.). PO LÍTICA (gr. 7IOÀ.ITIKIÍ; lat. Política; in. Politics; fr. Politique, ai. Politik, it. Política). C om esse n o m e to ram d esig n a d a s v árias co i­ sas, m ais p rec isam e n te: Ia a d o u trin a do d ireito e da m oral; 2a a teoria do E stado: 3a a arte ou a ciência do g o v ern o ; 4 a o estu d o d os c o m p o rta ­ m en to s in tersub jetiv o s.

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POLÍTICA Ia O p rim e iro c o n ce ito foi e x p o sto em Etica, de A ristó teles. A in v estig ação em to rn o do q u e d ev e ser o b em e o b em s u p re m o , se g u n ­ do A ristó teles, p are ce p e rte n c e r à ciên cia m ais im p o rta n te e m ais arq u itetô n ic a: "Essa ciência p a re c e ser a p olítica. C om efeito, ela d eterm in a q u ais são as ciên cias n ec essária s n as cid ad es, q u ais as q u e cad a c id a d ã o d ev e a p re n d e r, e até q u e p o n to " (Et. nic. I, 2. 1094 a 26). Este c o n ­ ceito da P. tev e vida lo n ga na trad iç ão filosófi­ ca. H o b b es, p. ex., dizia: "A P. e a ética, ou seja. a ciência do justou do injusto, do equânimee do iníquo, p o d em ser d e m o n stra d a s a priori, v isto q u e n ó s m esm o s fizem os os p rin cíp io s p elo s q u ais se p o d e ju lg a r o q u e é ju sto e eq u ân im e, ou seu s co n trá rio s, v ale dizer, as causas da ju stiça, q u e são as leis ou as co n v e n ç õ e s" (Dehom.. X . § 5). N este se n tid o . A lthu sius dava a seu tratad o so b re o d ireito n atu ral o títu lo de Política methodice digesta (1603), e to d a s as o b ras so b re d ireito n atu ra l foram co n sid e rad as tra ta d o s d e P . (v . DIRKITO). 2a O s e g u n d o significado do term o foi ex ­ p o sto em Política de A ristóteles: "Está claro q u e ex iste u m a ciência à qual ca b e in d ag ar q ual d ev e ser a m elh o r co n stitu ição : q ual a m ais ap ta a satisfazer n o sso s ideais s e m p re q ue n ão haja im p e d im e n to s ex te rn o s; e q ual a q ue se ad a p ta às d iv ersas co n d iç õ e s em q u e possa ser p osta em prática. C om o é q u a se im possível q u e m u itas p esso as p o ssa m realizar a m elh o r form a de g o v e rn o , o b o m leg islad o r e o b o m p o lítico d ev em sab er q ual é a m elh o r form a de g o v e rn o em sen tid o ab so lu to e q ual é a m elh o r form a cie g o v e rn o em d e te rm in a d a s co n d içõ es" (Pol, IV, 1, 1288 b 21). N este sen tid o , se g u n d o A ristó teles, a P. tem d u as fu n çõ es: líl d escre v e r a form a d e E stad o ideal; 2a d ete rm in a r a form a do m elh o r E stad o possível em relação a d e ­ te rm in a d a s circ u n stân cias. E fetivam ente, a P. co m o teoria do E stad o seg uiu o ca m in h o u tó p i­ co da d escriçã o do E stad o p erfeito (seg u n d o o ex e m p lo da Republicada P latão) ou o ca m in h o m ais realista d o s m o d o s e d o s in stru m en to s para m elh o ra r a form a cio E stado, o q u e foi fei­ to p elo p ró p rio A ristó teles n u m a parte de seu trata d o . A s d u as p artes, to d av ia, n em sem p re são facilm en te d istin g u ív eis e n em s e m p re fo ­ ram d istin tas. Q u a n d o , a p artir d e H eg el, o E stad o co m eç o u a ser c o n sid e ra d o "o D eus real" (v . ESTADO) e o caráter d a d iv in d a d e d o E stad o foi aceito pela historiografia, a P., e n ­ q u a n to teoria do E stado, p re te n d e u ter cará­ te r d escritiv o e n o rm ativ o ao m esm o te m p o .

POLÍTICA A ssim , T reitseh k e esb o ç av a a sua tarefa no s e ­ g u in te sen tid o : "A tarefa da P. é tríp lice: em p rim e iro lu g a r d e v e in v e s tig a r, a tra v é s da o b se rv a ç ã o do m u n d o real d o s E stad os, q ual é o co n ceito fu n dam en tal d e Estado; em seg u n d o lugar, d ev e in d ag ar h isto ricam en te o q u e os p o ­ v o s q u iseram , p ro d u ziram e co n se g u iram e p o r q u e c o n se g u iram na vida política: em te rc e i­ ro lugar, fazen d o isto, c o n se g u e d e sc o b rir alg u ­ m as leis h istó ricas e e s ta b e le c e r os im p erati­ v o s m orais" (Politik, 1897, intr.; trad. it., I, pp. 2-3). C om o j á na o bra de T reitseh k e , a P. co m o teoria do E stad o m u ita s v e z e s foi te o ria do E stado co m o força, p ois este é de fato o signifi­ cad o de q u a lq u e r d iv in iza çã o do Estado (v.). 3P A P. co m o arte e ciên cia de g o v e rn o é o co n ce ito q u e P latão e x p ô s e d efe n d e u em Po­ lítico, co m o n o m e de "ciência regia" (PoL. 259 a-b), e q u e A ristó teles assu m iu co m o ter­ ceira tarefa da ciên cia p olítica. "Um terceiro ram o d a in v estig ação é a q u ele q u e co n sid era d e q u e m an eira surg iu u m g o v e rn o e de q u e m aneira, d ep o is de surgir, p ô d e ser co n se rv ad o d u ra n te o m aio r te m p o possível" (Ibid., IV. 1, 1288 b 27). Foi este o c o n ce ito de P. cujo re alis­ m o cru M aqu iavel a c en tu o u co m as p alavras fam osas: "E m u ito s im ag in aram re p ú b lic a s e p rin c ip a d o s q u e n u n ca foram v isto s n em c o ­ n h e c id o s co m o ex iste n tes. P o rq u e é tanta a d iferença en tre co m o se v iv e e co m o se d ev eria viver, q u e q u e m d eix a o q u e faz p elo q u e d e ­ veria fazer a p re n d e m ais a arru in ar-se do q u e a p reserv a r-se, p ois o h o m em q u e em tu d o q u e i­ ra p ro fessar-se b o m é fo rçoso q u e se arru in e em m eio a ta n to s q u e n ão são b o n s. D o n d e ser n ecessário ao p rín cip e q ue, d esejand o conservarse, a p re n d a a p o d e r ser n ào b o m e a u sa r disso ou n ão usar, s e g u n d o a n e c essid ad e" (Pri)ic, X V ). N este s e n tid o . W olff definia a P. co m o "a ciência de dirigir as aç õ e s livres na so c ie d a d e civil ou no E stado" (Log, D is c , § 65). Esta é a ciência ou a arte política à q ual se faz re fe rên ­ cia m ais fre q ü e n te m e n te no d iscu rso co m u m . R eferindo-se ju sta m e n te a este co n ce ito , K ant dizia: "E m bora a m áx im a 'A honestidade é a melhor P.' im p liq u e u m a teo ria in felizm en te d esm en tid a com freq ü ên cia pela p rática, a m á­ xim a ig u alm e n te teórica 'A honestidade é me­ lhor que qualquer P.' 6 im u n e a o b jeçò es; aliás é a co n d iç ã o in d isp en sáv el da P." (Zum eicigen Fríeden, A p ê n d ic e, I). H egel. p o r o u tro lado , dizia: "Já se d iscutiu m u ito so b re a an títe se e n ­ tre m oral e P. e so b re a ex ig ên cia de a se g u n d a co n fo rm ar-se à p rim eira. S o b re i.s.so c u m p re

POLITICISMO a p e n a s n otar, em g eral, q u e o b em do Estado tem u m d ireito c o m p le ta m e n te diferente do b em do in d iv íd u o , e q u e a su b stân cia ética, o E stado, tem sua ex istên cia, seu d ireito , imedia­ ta m e n te n u m a e x is tê n c ia c o n c re ta , e nào ab strata, e q u e so m e n te essa ex istência concre­ ta (e n ão um a d as m u itas p ro p o siç õ e s gerais. c o n sid e ra d a s co m o p re c e ito s m orais) p od e ser o p rin cíp io de sua aç ào e de seu co m p ortam en ­ to. A liás, a v isão do su p o sto erro q u e sem pre d ev e ser atrib u íd o à P. n esta su p o sta antítese b aseia -se na superficial id ad e d as concepções de m o ralid ad e, de n atu reza do E stad o e de su as re la çõ es do p o n to de vista m oral" (EU. do dir.. § 557). E stas p ala v ras de H eg el outra coisa n ào são s e n ã o a re ite ra çã o do p rin cíp io do maq u iav elism o . O q u e H egel ch am a d e existência do E stad o outra coisa n ào é s e n ã o a realidade efetiva de M aqu iavel. q u e a P. d ev eria sem pre ter p re se n te . A p e sa r de H eg el ter declarado su p e ra d a a an títe se en tre P. e m oral, o conflito en tre as d u a s ex ig ên c ias aind a está vivo na prática política e na co n sc iên c ia co m u m , e as fo rm as de eq u ilíb rio , p o r elas alcan çad as, ain­ da hoje são p ro v isó rias e instáveis. 4- F in alm en te, o q u a rto sign ificad o de P. co m eço u a ser u sa d o a partir de C om te, e identfica-se co m o de so cio lo g ia. C om te d eu o nome de Sistema de P. positiva (1851 -54) à sua obra m áxim a so b re so c io lo g ia , p o is ju lg o u que os fe n ô m e n o s p o lític o s, ta n to em coexistência q u a n to em su c e ssã o , estã o sujeitos a leis inva­ riáv eis, cujo u so p o d e p erm itir influenciar es­ ses m esm o s fe n ô m e n o s. Foi n esse sen tid o que G. M osca e n te n d e u p o r P. a ciên cia da socieda­ de h u m a n a . Justifico u esse te rm o da seguinte m an eira: '•C ham am os de ciência política o estu­ do d as te n d ê n c ia s acim a m e n c io n a d a s ["leis ou te n d ê n c ia s p sico ló g icas co n stan tes, às quais os fe n ô m e n o s sociais o b e d e ce m "! e escolhemos essa d e n o m in a ç ã o p o rq u e foi a prim eira a ser u sad a na história do sab er h u m a n o , porque aind a n ào caiu em d e su so e ta m b é m porque a n ova d e n o m in a ç ã o sociologia, ad o ta d a depois de A u g u ste C om te p o r m u ito s escrito res, ainda n ào tem sign ificação b em d e te rm in a d a e preci­ sa, c o m p re e n d e n d o , no u so co m u m , todas as ciên cias so ciais (Elementos de ciência política. 1922, I, 1, § II). M as neste sentido o term o hoje é im próprio. P O L IT IC IS M O (fr. Politisme, ai. Politismus. it. Politicismo). A prevalência ou a excessiva im portância que as exigências políticas às ve­ zes assum em na vida m oderna, em detrimento

POLITOMIA de o u tras ex ig ên c ias, co m o as científicas, artís­ ticas, m o rais, relig io sas, etc. PO LITO M IA(fr. Polytomie, ai. Polytomie, it. Polítomia). D ivisa» n ão d ico tô m ica. K ant o b ­ serva q u e a F. ex ig e in tu ição : ou a in tu ição a príori, co m o ac o n te c e com a m atem ática, ou a intuição em p írica, co m o nas ciên cias n atu rais. K m o u tro s te rm o s, a P. é se m p re em p írica, e n ­ q u a n to a d ico to m ia, p o r ser fu n d ad a no p rin cí­ pio d a c o n tra d iç ã o , 6 a priori (Logík, § fl5 ). POLIVALENTE, LÓGICA. V. TKRCKRO I'Xu .r íix ) , PRINCÍPIO DO. POLIZETÉTICA. V. INTERROGAÇÃO MÚLTIPLA. PONTE DOS ASNO S (lat. Pons asinonimin. Asses'bridge,h. Pontauxcuies-.íú. Hselsbríicke. it. Ponte degli asini). Foi c h a m a d o d este m o do , d ev id o à a p a re n te d ificu ld ad e, u m d ia­ gram a co n stru íd o p elo ló g ico P ed ro T artareto (cuja ativ id ad e literária term in a en tre os an o s 1480 e 1490), cujo fim era ajudar o e stu d a n te a e n c o n tra r o te rm o m éd io en tre as v árias figu­ ras do silo gism o . Esse d iag ram a é reg istrad o p or Prantl (Ceschichte der Logik. IV, p . 206). Por v ez es esse te rm o foi e s te n d id o , d e sig n a n ­ do alg u m a d ificu ld ad e de u m e n sin a m e n to ou d ou trina. PONTO (lat. Puncliiin. in. Poiut fr. Point; ai. Punkt; it. Punto). A o lad o do P. m atem ático e do P. físico, L eibniz ad m itiu o P. metafísico, q ue é a su b stân cia esp iritu al co m o e lem e n to co n stitu tiv o do m u n d o . D istinguia do seg u in te m odo as três e sp écies de P.: "Os P. físicos são indivisíveis só ap a re n te m e n te ; os P. m atem á ti­ cos são ex ato s, m as são a p e n a s m o d o s; só os P. m etafísicos ou d e su b stân cia , c o n stitu íd o s p e ­ las form as ou alm as, são ao m esm o te m p o e x a ­ tos e reais; sem eles n ão h av eria nad a cie real p o rq u e n as v e rd a d e ira s u n id a d e s n ão haveria m u ltiplicidade" (Système uouveau dela uatnre, 1695, § 11). O s P. m etafísicos n ão são outra coisa s e n ã o as mônadas (v .). PÔR (gr. T l9 r|v ai; lat. Ponere: in. Posit: fr. Poser. ai. Setzen; it. Porre). liste v e rb o foi u sa d o na lin g u ag em filosófica co m d ois d iferen tes sig­ nificados: 1" assev erar ou assu m ir co m o h ip ó te ­ se: 2" P. co m o ser, p ro du zir. lu O p rim eiro sign ificad o já era e m p re g a d o por P latão e A ristóteles: o p rim eiro no se n tid o de e sta b e le ce r um a h ip ó tese (Teet.. 191 c), o seg u n d o no sen tid o de e sta b e le c e r Lima p re ­ m issa (An.pr.. I, 1, 24 b 19) ou de ad m itir um a tese (7b/;., II, 7, 113 a 28). C o rre sp o n d e n te ­ m ente, a p alavra p o siç ão v ale g e n e ric a m e n te com o asserção , e K ant afirm a q u e a ex istência

POR SI p o d e ser p o sta, ou seja, assev erad a ou re c o ­ n h e cid a , m as n ão d ed u z id a (Dereiuzig mõgli-

che Beweisgmnd zu einer Demonstration des Daseins Gottes. I, § 2).

2° E ste v erb o foi u sa d o p o r Fichte no sen ti­ do de p ô r co m o ser. p ro d u zir ou criar: "O ser cuja essên cia co n siste p u ra m e n te em p ôr-se co m o ex iste n te é o Eu, co m o sujeito ab so lu to . F. p o rq u e se p õ e . é; e p o rq u e é, p õ e-se. O Eu. p o rtan to , é ab so lu ta e n e c e ssa ria m e n te para o Eu" ( Wissenschaftslehre, 1791, § 1). Este u so é m an tid o p o r toda a trad iç ão cio id ealism o ro ­ m ân tico e, em g eral, p o r to d a filosofia q u e id en tifiq u e razão co m re a lid a d e , p o rtan to ato lóg ico cie P. co m ato real de p ro du zir. POR A C ID E N T E (gr. KorcàcruLiPePriKÓÇ; lat. Per accideus). A qu ilo q u e é ou ac o n te c e sem c o n e x ã o n ecessária com o sujeito do a c o n te ­ cim en to , co m o q u a n d o ac o n te ce u m m úsico co n struir; co m efeito, en tre ser m ú sico e ser co n stru to r n ão há c o n e x ã o (cf. A ristóteles. Mel.. V, 7, 1017 a 10). POR IM POSSÍVEL. V. AliSl RDO PORÍSTICO (in. Poristic. fr. Poristiqite, ai. Poristie. it. Poristico). D e porisma = co ro lário . Este te rm o d esig n a aq u ilo q u e é co ro lário ou co n c e rn e a u m co ro lário . POR SI (gr. Ka8'aÚTÓ; lat. Per st-, in. By itself. fr. Par sai; ai. Fürsich). Ü q u e ex iste e m v irtu d e da sua su b stân cia e n ão p o r outra coisa; o q u e ex iste na co n sciên cia e pela co n sciên cia. E stes são os dois sign ificad os fu n d am en tais do te rm o , q u e re m o n ta m re sp e c tiv a m e n te a A ris­ tó te le s e a H cgel. A ristó teles (Mel.. V , 18, 1022 a 24 ss.) e n u ­ m erav a cinco sign ificad os d este term o : 1" D iz-se q u e um a coisa é p o r si o q u e ela é em v irtu d e de sua essên cia n ecessária ou s u b s ­ tâ n c ia . P. ex ., C álias é p o r si o q u e ele é s u b sta n c ia lm e n te , isto é, hom em ; 2- D iz-se q u e u m a coisa é p o r si o q u e ela é em v irtu d e de um a p arte de sua essên cia n ecessária, de um a p arte de sua d efinição (já q u e a d efinição ex p ressa a essên cia n e c e ssá ­ ria). N este s e n tid o , d iz-se q u e C álias é p o r si an im al, p o rq u e "anim al" faz parte da definição de Cálias; 3y E m te rc eiro lugar, diz-se q u e um a coisa é p o r si o q u e ela é em v irtu d e de um a de suas q u a lid a d e s ou d e te rm in a ç õ e s p rim árias. N este sen tid o , d iz-se q u e o h o m e m é v iv o p o r si, p o rq u a n to a vida é u m a de su as d ete rm in a çõ es p rim árias (sen d o p arte da alm a, q u e é s u b stâ n ­ cia do h o m em );

POSIÇÃO

4" D iz-se por si o qu e não tem , ou do qual não se considera, um a coisa externa. N este sentido, o hom em é por si en q u an to hom em , ou seja, p o rq u e sua causa é sua própria su b s­ tância, e não p o rq u e ele é anim al, b íp ed e, etc; 5Q D iz -se que é por si a coisa que é o que a ela p erten ce p ro p riam en te ou que p erten ce s o ­ m ente a ela. N este sen tid o , p o d e-se dizer que a alm a pensa por si. Estes cinco significados na realid ad e são to ­ dos integráveis no prim eiro, seg u n d o o qual se diz que é por si a coisa que existe em virtude de sua substância. C om efeito, o 2- significado refere-se às partes da substância; o 3Q significa­ do refere-se às q u alid ad es ou determ in açõ es que derivam da substância; o 4Q e o 5S significa­ dos referem -se à cau salid ad e própria da su b s­ tância. O significado fundam ental ou g en érico , seg u n d o o qual é por si o que é em v irtude da sua substância, é o m ais freqüente na história da filosofia. Este é, p. ex., o significado da ex p res­ são atribuída a S. T om ás de A quino ou a D uns Scot. S. T om ás de A quino afirma que "D eus é o próp rio ser su b sisten te por si" (S. T b , I, q. 44. a. 1), visto que o ser perten ce à essência ou substância de D eus (Ibid., 1, q. 3. a. 4), e que a alm a não p o d e co rro m p er-se p o rq u e é "forma su bsisten te por si" (Ibid., I, q. 75, a. 6). D uns Scot reserva o ser por si à form a total e perfeita que co m p reen d e to d as as partes, m as que não é parte (Quodi, q. 9, n. 17). A m bos os filósofos designam , p ortanto, com o por si o ser su b stan ­ cial, apesar de D uns Scot restringir o significa­ do m ais que S. T om ás de A quino. P O S IÇ Ã O (gr. 6ÉOIÇ; lat. Positio; in. Posit; fr. Position; ai. Setzung, Position; it. Posizione). 1. A ssunção não d em onstrada; 1° da prem issa de um raciocínio; 2" da existência de algum a coisa. ly N o prim eiro sen tid o , o term o é co n stan te­ m ente u sad o por A ristóteles (cf. An.post., I, 2, 72 a 15) e por toda a trad ição lógica m esm o recen te, na qual às v ezes é ex p licitam en te redefinido (cf. H. RKICHF.NHACH, The R ise o f Scientific Philosophy, 1951, p. 240). 2- Kant foi o prim eiro a distinguir P. relati­ va, que é o reco n h ecim en to do ser predicativo (ser expresso pela cópula) que põe em relaçào duas d eterm in açõ es de um a coisa, e a P. abso­ luta, que é o reco n h ecim en to da existência da coisa. Kant dizia: "Em um existente, nada é posto além do que já está no p uro possível (tra­ ta-se com efeito de seu s p red icad o s), m as atra­ vés de um existente é posto algo m ais que um puro possível, p o rq u e se trata da P. absoluta da

POSITIVISMO

m esm a coisa" (D er einzig m ógliche B ew eisg m n d z it einer D em onstration des D aseins Gottes, 1763, § 3). Para Kant, a P. é o reco­ n h e c im e n to (em pírico) de um a existência. N o idealism o rom ântico, a partir de Fichte, a P. foi en tend ida com o criação. D iz Fichte: "Aquilo cujo ser (ou essência) consiste ap en as em pôrse com o existente é o Eu com o sujeito absolu­ to. P o rq u e se p õ e, é; e p o rq u e é, põe-se" (Wíssenschaftslehre, 1794, § 1). O conceito de P., neste sentido, não se distingue do de cria­ ção. V olta a distinguir-se de criação em Husserl, para qu em a P. é a afirm ação da existência do objeto intencional. Ele distinguiu P. atual, que se tem qu an d o o objeto intencional está pre­ sente, da P. potencial, que se tem quando ele não está presen te (Ideen, I, § 113). H usserl usa ta m b ém o te rm o posicionalidade (alemão Posítionalitãt) para indicar em geral o caráter, com um a todas as vivências, de pôr o objeto intencional (com o existente, desejado, ou pre­ tendido, e tc ) . À s v ezes são ch am ado s de P. os pró p rios objetos físicos não definíveis em ter­ m os de experiência, m as reco n h ecid o s como ex istentes ap en as com o interm ediários úteis entre a experiência e a linguagem (QUINE, F rom a L ogical P oint o f View, II, 6). 2. N a lógica term inista m edieval, um a obri­ g a ç ã o ^.), m ais p recisam ente a que consiste em sustentar um a p ro p o sição com o verdadeira (O ckham , Sum m a lo g , III, III, 40). P O S IT IV IS M O (in. Positivism- fr. Pasitivisme, ai. Positivismus; it. Positivismo). Este termo foi em p reg ad o pela prim eira vez por SaintSim on, para designar o m éto do exato das ciên­ cias e sua ex ten são para a filosofia (De Ia religion Saint-Sim onienne, 1830, p. 3). Foi adota­ do por A ugusto C om te para a sua filosofia e, graças a ele, passou a ciesignar um a grande corrente filosófica que, na segu nd a m etade do séc. XIX, teve nu m erosíssim as e v ariadas mani­ festações em to d o s os países do m undo oci­ dental. A característica do P. é a rom antizaçào da ciência, sua d ev oção com o único guia da vida individual e social do hom em , único co­ n h ecim ento , única m oral, única religião possí­ vel. C om o R om antism o em ciência, o P. acom­ panha e estim ula o nascim ento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade m oderna e expressa a exaltação otim ista que aco m p an h o u a origem do industrialism o. É possível distinguir duas form as históricas fun­ d am entais do P.: o P. social de Saint-Simon, C om te e Jo h n Stuart Mill, nascido da exigência

PO SITIV ISM O JU R ÍD IC O de c o n s titu ir a c iê n c ia c o m o fu n d a m e n to de u m a n o v a o rd e n a ç ã o so c ial e re lig io sa u nitária; e o P. evolucionista de S p en cer, q u e este n d e a to d o o u n iv e rso o c o n c e ito de p ro ­ g resso e p ro c u ra im p ô -lo a to d o s os ra m o s da ciência (para o p o sitiv ism o e v o lu cio n ista, v. EVOLUCIONISMO). A s te se s fu n d a m en tais do P. são as seg u in te s: Ia A ciên cia é o ú n ico c o n h e c im e n to p o ssí­ vel, e o m é to d o d a ciên cia é o ú n ico v álido : p o rtan to , o re cu rso a cau sas ou p rin cíp io s n ão acessíveis ao m é to d o da ciên cia n ã o dá o rig em a c o n h e c im e n to s; a m etafísica, q u e re c o rre a tal m éto d o , n ã o tem n e n h u m valor. 2- O m é to d o da ciên cia é p u ra m e n te d escri­ tivo, n o sen tid o de d e sc re v e r os fatos e m ostraias re la çõ es c o n sta n te s en tre os fatos ex p resso s p elas leis, q u e p erm item a p rev isão d o s p ró ­ prios fatos (C om te); ou no sen tid o de m o strar a g ê n e se ev o lu tiv a d o s fatos m ais co m p le x o s a partir d o s m ais sim p les (S p en cer). 3a O m é to d o da ciên cia, p o r ser o ú n ic o v áli­ do, d ev e ser e ste n d id o a to d o s os ca m p o s de in d ag ação e d a ativ id ad e h u m an a; to d a a vida h u m an a, in d iv id u al ou social, d ev e ser g u iad a por ele. O P. p resid iu à p rim eira p a rtic ip a ç ã o ativa da ciên cia m o d e rn a n a o rg an iza çã o social e co n stitu i até hoje u m a d as altern ativ as fu n d a ­ m en tais em te rm o s d e c o n ce ito filosófico, m e s­ m o d e p o is d e a b a n d o n a d a s as ilusões to talitá­ rias do P. ro m ân tico , e x p re ssa s n a p re te n sã o de ab so rv e r n a ciência q u a lq u e r m an ifestação hum ana. P O S IT IV IS M O J U R ÍD IC O (in. Juridical positivism- fr. Positivismejuridique, it. Positivis­ mo giuridico). Foi esse o n o m e q u e H an s Kelsen d eu á sua d o u trin a form alista do d ireito e do E stad o (General Theory ofLaw and State, 1945; cf. e s p e c ia lm e n te o a p ê n d ic e "A d o u trin a do d ireito n atu ral e o V ju ríd ico ") (v. DIREITO; ESTADO). P O S IT IV IS M O L Ó G IC O (in. Logical Positivism\ fr. Positivisme Logique; ai. Neuposítivismus; it. Positivismo lógico). (V. EMPIRISMO LÓGICO.) P O S IT IV O (in. Positive, fr. Positif, ai. Positif; it. Positivo). 1. O q u e é p o sto , e s ta b e le ­ cido ou re c o n h e c id o co m o um fato. L eibniz ch am av a de "v erd ad es P." as v e rd a d e s d e fato, que se d istin g u em das v e rd a d e s de razão p o r­ que co n stitu em "leis q u e a p ro u v e a D eu s d ar à natureza" (Théod., D isco u rs, § 2). N o m esm o sen tid o , fala-se em religião P. co m o relig ião

PÓ S-PRED IC A M EN TO S esta b e le c id a de fato, q u e v ig ora co m o u m co m ­ p lex o de in stitu içõ es h istóricas, ao co n trário da relig ião n atu ra l, q u e p o d e n ão v ig o rar d e fato. F ala-se de direito P. co m o d ireito v ig en te em d e te rm in a d o E stad o , em c o n tra p o siç ã o ao d i­ reito n atu ra l, q u e p o d e n ão ter v a lid a d e de fato. A s e x p re ssõ e s "fato P." e "realid ad e P." têm v alo r an álo g o p o rq u e d esig nam o fato ou a re a lid a d e re c o n h e c id a ou re co n h e cív el co m o tal em v irtu d e de u m m é to d o objetivo . P o rtan ­ to, n esta a c e p ç ã o , o sign ificad o fu n d am en tal do te rm o é aq u ilo q u e v igora de fato ou tem re a lid a d e efetiva. C om te ex p ressa v a esse sig n i­ ficado ao afirm ar: "C o nsid erad a n a sua a c ep çã o m ais an tiga e m ais co m u m , a p alavra P. d esig na o q u e é real em o p o siç ã o ao q u e é q u im érico " (Discours sur Vesprit positif § 31). O p o siti­ v ism o ch a m o u de P. o m é to d o da ciência p o r­ q u e visa ao re c o n h e c im e n to p u ro e sim ples d o s fatos e d e su a s re la çõ es (v. POSITIVISMO). E m se n tid o n ão d iferen te d este, S chelling ch a­ m o u de P. o c o n h e c im e n to q u e co n sid e ra o ato co m q u e a re a lid a d e é p o sta. D istinguiu as c o n ­ d içõ es negativas do c o n h e c im e n to , q u e são aq u e la s sem as q u ais o c o n h e c im e n to n ão é possív el, d as co n d iç õ e s P., q u e são aq u ela s g ra­ ças às q u ais o c o n h e c im e n to se realiza. A s p ri­ m eiras são as fo rm as ra cio n ais do ser e d izem o q u e o ser p o d e ou d ev e ser; as seg u n d a s ex p re ssa m a ex istên cia e co n sistem su b sta n ­ cialm en te n a v o n ta d e de D eu s de m anifestar-se (Werke. II, III, p p . 57 ss.). 2. O m esm o q u e afirm ativo. N este sen tid o , o term o re c o rre em lo c u ç õ e s co m o "d eclara­ çõ e s P." ou "notícias P.", ou m esm o p ara d esig ­ n ar d o u trin a s q u e caracterizem se u s o bjeto s com afirm açõ es, e n ão co m n eg aç õ e s; p. ex., "teologia P.", em o p o siç ã o a teo lo g ia negativa; "existen cialism o P.", etc. 3. O m e sm o q u e p o sitiv ista, n o s e n tid o em q u e, a p artir de C om te, se diz "filósofos positivos". P Ó S -P R E D IC A M E N T O S (gr u e x à t à ç KcaTiYopíaç; lat. Postpredicaments-, in. Postpredicaments-, fr. Post-prédicamenls; ai. Postpradikamente, it. Postpredicamenti). C o m eçaram a ser ch a m a d o s co m este term o p elo s g lo sa d o re s de A ristó teles (p. ex., p o r F iló p o n o , séc. V I em Cat., 39 a, 33) os c o n c e ito s q u e A ristó teles an u n c io u d e p o is d as categ o rias, n o livro q ue tem este n om e; são eles: de oposição (opposito), d e prioridade(prius), d e simultaneídade (simul), d e movimento (motus) e de ter (ha-

POSSE bere) (CM.. 10-15). Para estes c o n c e ito s, v. os v e rb e te s relativ os. PO SSE (in. Possessiotv, fr. Possession; ai. Resitz; it. Possesso). 1. A lg um a g aran tia da p o s ­ sib ilid ad e d e d isp o r d e u m a coisa ou de usá-la. E ste é o c o n c e ito de K ant: "O q u e é m eu de d ireito (meum júris) é aq u ilo a q u e estou tão lig ad o q u e o seu u so p o r o utra p esso a, sem o m eu c o n se n tim e n to , se daria em m eu p re ­ ju íz o . A P. é a co n d iç ã o subjetiva da p o ssib ili­ d ad e de u so em geral" (Met. der Sitten, I, § 1). A n o ç ão cie P.. p o rta n to , diz re sp e ito ã relação en tre o h o m e m e as co isas, e e x p re ssa certa g aran tia (que p o d e ter sign ificad os e lim ites m u ito diferentes) d a p o ssib ilid a d e d e u so q ue d e te rm in a d o in d iv íd u o tem em re la ção a d e te r­ m in ad a coisa. É im p ró p ria a n o ç ão de P. com referên cia à.s re la çõ es en tre as p esso as. 2. N a sign ificação m ais g en era liza d a , esse te rm o d esig n a q u a lq u e r re la ç ã o p red icativ a e ex istencial; d ize m o s, p. ex., "A coisa x p o s ­ su i a q u a lid a d e a" ou "O o b je to x p o ssu i existência". N este se n tid o , o u so do term o co r­ re sp o n d e ao q u e se en c o n tra em A ristóteles, em o p o siç ã o a p riv aç ão (cf. Met., X , 4, 1055 a 33) (V. PRIVAÇÃO). P O S S IB IL ID A D E . V Possívn., P O SSÍV E L (gr. xò 5-uvaxóv; lat. Possibilis-, in. Possible; fr. Possible; ai. Mõglich; it. Possibile). O q u e p o d e ser ou n ão ser. Ksta d efinição n o m i­ nal g e ra lm e n te é p re ssu p o sta p ela s d efiniçõ es co n c e p tu a is d esse te rm o , m as só estas últim as p erm item tratar d os p ro b le m a s p e c u lia re s a essa n o ç ão . A s d efin içõ es co n c e p tu a is de p o s­ sível p o d e m ser: A) /lega/iras (de n atu re za lógica); B) positivas. P or sua v e z estas últim as p o d e m ser 1" de possibilidade real; 2" cie possi­ bilidade objetiva. A s três classes de d efiniçõ es d aí re su lta n te s c o rre sp o n d e m q u a se p erfeita­ m en te às três e sp é c ie s d e P. clistinguidas p o r A ristó teles em Metafísica: "O P. significa: 1Q o q u e n ão 6 n e c e ssa ria m e n te falso; 2" o q u e é v e rd a d e iro : 3> o q u e p o d e ser v e rd a d e iro " (Met.. V . 12. 1019 b 30). 1" A s d efiniçõ es n eg ativ as de P. são de n a tu ­ reza lógica; d efinem o P. co m o aq u ilo q u e não é n e c e ssa ria m e n te falso ou n ão inclui co n tra d i­ ção. Era com esse se n tid o q u e A ristó teles defi­ nia o P. no trec h o citado . F.ste c o n ce ito p asso u à trad iç ão filosófica com a d e n o m in a ç ã o de "P. lógico", d istin to do "P. real". S. T o m á s de Acjuino ch am a-o d e "P. ab so lu to " e diz q u e resulta ex babitudine terminorum, isto é. da n ão re ­ p u g n â n cia en tre p re d ic a d o e sujeito (S. 7b., I,

POSSÍVEL q. 25, a. 3). D u n s Scot ch a m a -o de P. lógico. c o n sid e ra n d o -o p ró p rio da "c o m p o siç ão do in­ te le c to ", p o r q u a n to os te rm o s d esta n ão in­ clu em co n tra d içã o (O p. Ox., I, d. 2, q. 6, a. 2. n. 10). O ck h am ju lg a q u e o P.. n e ste sentido, o u tra co isa n ão é s e n ã o o não-impossível (Suninia log.. II, 25). Foi este o c o n ce ito ressal­ ta d o p o r L eibniz: "Q u an d o v o s dig o que há u m a in fin id ad e de m u n d o s P., p ressu p o n h o q u e n ão im p liq u em co n tra d iç õ e s, assim com o se p o d e m escrev er ro m a n c e s q u e n u n ca se rea­ lizarão , m as q u e são p o ssív eis. Para q u e uma coisa seja P., b asta q u e seja inteligível" (Carta a Bourguet. 1712. em Op., ed. G erh ard t, III. p. 558). N este sen tid o . L eibniz clistinguia o P. do compossíveHv.). q u e é a p o ssib ilid a d e objetiva. A n o ç ã o cie P. n este s e n tid o co n tin u a na escola wolffista (Wolff. Onl., § 85; Cru.sius, Vemwiftwahrheiten. § 56; L am bert. Dianoiologie, § 39); K ant co n sid e rav a-a v álida em .seus lim ites, mas o p u n h a -lh e a n o ç ão d e p o ssib ilid ad e objetiva ( 'Dereinzig mõglicbe Beweisgrundzit eínerDemonstratioji des Daseins Gottes. 1763, II, D ­ A s d u a s te se s fu n d a m en tais d esta n o ção do P. são as seg u in te s: I) re d u ç ã o do P. ao não-impossível; II) inferência do P. a p artir do necessá­ rio, no se n tid o de q u e o n ec essário d ev e ser p ossível. T rata-se de d ois p rin cíp io s estreita­ m e n te in te rlig a d o s. A ristó te le s en u n c io u -o s pela p rim eira v ez no fam o so tra ta d o so b re o K, q u e se en c o n tra em De inteipretatíone. O ne­ cessário d ev e ser P. — ra cio c in o u A ristóteles — p orqu e, se n ão tosse P., seria im possível, o que 6 co n tra d itó rio (De int., 13, 22 b 28 ss.). A iden­ tificação do V co m o uão-impossíveljá e.slá clara n esse racio cín io , m as em to d o caso tor­ n o u -se ex p lícita co m A ristóteles. Ele observa que, tanto no caso de p ossibilid ad es pertencentes a en te s im u táv eis q u a n to d e p o ssib ilid ad es per­ te n c e n te s a en te s m u táv eis, é sempre verdadei­ ra a proposição "não 6 im p o ssível q u e seja" (De int.. 1.3, 23 a 13). A m esm a d ou trin a era rep etid a p o r S. T o m ás de A qu in o , q ue, no entan­ to, se restringia ex p licitam en te ao P. lógico (Con­ tra Gent., III. 86). A s m esm as teses estão pre­ se n te s n as d o u trin a s c o n te m p o râ n e a s sob re o P. P eirce diz: "F. essen cial ou lo g icam en te P. tu d o q u e u m a p esso a, q u e n ão c o n h e c e fatos m as está a p ar do racio cín io e tem fam iliarida­ de com as p alav ras q u e ele c o n tém , seja inca­ p az de d ec larar falso" (Coll. Pap.. 4, 67). Aqui a n oção de falso substituiu a de contraditório, mas o P. co n tin u a s e n d o re d u z id o àq u ilo q u e n ào é falso. C arn ap . p o r sua vez, d efine o P. com o o

POSSÍVEL "não im p o ss ív e l" (Meaning and Secessity. § 39-3)- Essa 6 a d efin ição m ais freq ü e n te na lógica c o n te m p o râ n e a . O b v ia m e n te , a n o ç ã o de P. n e ste sen tid o im plica u m c o n ce ito b em definido de im p o ssib ilid a d e , isto 6, da co n tra­ dição ou falsid ad e lógica. M as este co n ce ito n ão p a re c e estar â d isp o siç ã o d os ló g ico s, v isto o seu d e sa c o rd o so b re a n o ç ã o co n trária e co m ­ p lem e n tar d e im p o ssib ilid a d e , q u e é a n o ç ã o de necessidade (v.). 2- A definição d e P. co m o possibilidade real identifica o P. co m o p o te n c ia l(v .) e v ê no p o ­ tencial o q u e se d estin a in faliv elm en te a re ali­ zar-se. Foi g ra ç a s a essa in te rp re ta ç ã o q u e D eo d o ro C ro n o s, fam o so filósofo de M égara, afirm ava, co m o argumento vitorioso (w). q u e lu d o o q u e é P. se realiza, e o q u e n ão se re ali­ za não 6 P. (ARISTÓTELES, Mel., 9, 3. 1046 b 24 ss.; EPICTKTO, Diss., II. 19, 1; CÍCKKO, De fato, 6 ss.). D eo d o ro C ronos inferia d este p rin cíp io a tese da n e c e ss id a d e de tu d o o q u e é: n ad a cio que loi, é ou será, p ô d e ser, p o d e ou p od erá ser diferente de co m o loi, é ou será. M as o p ró p rio A ristóteles, q u e co m b atia a te se de D e o d o ro C ronos b a s e a n d o -se n o s o u tro s sign ificad os de P., ás v ez es adm itia a tese fu n d a m en tal d esta co n c e p ç ã o de p o ssib ilid a d e : "N ão p o d e ser v e rd a d e q u e alg u m a coisa é P. m as n ão será, pois n e ste caso n ão existiriam im p o ssib ilid ades" (Met., IX, 4, 1047 b 3). Esta c o n c e p ç ã o do P. foi aco lh id a pela E scolástica árab e a partir de A vicena. A d iv isão de A vicena en tre o ser n e ­ cessário e o ser P. é n a v e rd a d e a d iv isão en tre a q u ilo q u e e x tr a i se u s e r d e s i m e s m o (D eus) e aq u ilo q u e extrai seu ser de o u tro (as coisas criad as). D este p o n to de v ista, o P. 6 possível e n q u a n to n ão é nada; assim q u e c o m e ­ ça a ser. este é o sinal de q u e estã o p resen te s todas AS co n d iç õ e s ou cau sas do seu ser, e ele to rn o u -se n ec essário : n o sen tid o de n ec essário em relação a o utra coisa (Met., II. 1-2; A lgazel. Met., I, 8; e tc ) . Este "n ecessário em relação a outra coisa" era o conlínge)ite(\.). lista d o u trin a foi re p e tid a m u itas v e z e s na história da filosofia. U m a de su as m elh o re s ex ­ p ressõ es está em H o b b es: "C ham a-se d e im ­ possível o ato para cuja p ro d u ç ã o n u n c a h a v e ­ rá p o tê n c ia plena. P ois a p o tê n c ia p len a é aquela para a q ual co n c o rre m to d as as c o n d i­ ções n ec essária s à p ro d u ç ã o do ato: se n u n ca houver a p otên cia p len a, sem p re faltará algum a das co n d iç õ e s sem as q u ais o ato n ã o p o d e p ro d u zir-se, cie tal m o d o q u e esse ato n u n ca p od erá p ro d u zir-se, p o rta n to será u m ato im­

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POSSÍVEL possível. O ato q u e n ão é im p o ssív el, é possível. p o rtan to , to d o ato P. d ev e verificar-se d e te m ­ p o s em te m p o s: se n u n ca se verificasse, n u n ca co n c o rre ria m to d a s as co n d iç õ e s n ec essária s á sua p ro d u ç ã o , e ele seria en tã o , p o r definição, u m ato im p o ssív el, o q u e co n traria a h ip ó tese" (Decorp.. 10, § 4). Esta e la b o ra ç ã o cio co n ceito d e P. outra coisa n ão é s e n ã o a re p e tiç ã o do a rg u m e n to v ito rio so d e D e o d o ro C ro no s, q ue re a p a re c e to d a v ez q u e se re d u z o P. a um a potencialidade, n a q ual d ev am estar p resen te s to d a s as c o n d iç õ e s d e re a liz a ç ã o , e s ta n d o , pois. d estin ad a infaliv elm en te a realizar-se. Este é o c o n ce ito de P. e n c o n tra d o em H eg el, q ue d istin gu ia p o ssib ilid a d e real e m era p o ssib ilid a­ de; esta seria "a v ã ab stra çã o da reflex ão em si", ou seja, u m a sim p les re p re s e n ta ç ã o su b jeti­ va, ao p asso q u e se tem a possibilidade real q u a n d o o co rre m to d a s as co n d iç õ e s d e um a coisa, de tal m an eira q u e a coisa d ev e to rn ar-se real; é ó b v io q u e. n e ste caso , p o ssib ilid ad e real n ão se d istin g u e d e n e c e ssid a d e (Ene, § 147). A n o ç ã o de p o ssib ilid a d e real n este s e n tid o é fre q ü e n te m e n te e m p re g a d a p elo s seg u id o re s cie H egel, sejam eles id ealistas ou m arxistas. M uitas v e z e s esta n o ç ã o foi e m p re g a d a para d esig n a r a p re d e te rm in a ç ã o d os ev e n to s h istó ­ ricos em su as co n d iç õ e s, p o rta n to para fu n d a­ m e n ta r a p o ssib ilid a d e de p rev isão infalível cia e v o lu çã o futura da história. F oi d este m o d o q u e Ci. LUKACS u so u esse c o n ce ito (Geschicbte imdKlassenbeivitsstsein. 1923; trad. fr., 1960, p. 1()4 ss.). C om o m esm o significado de p o te n ­ cialid ad e, esse c o n ce ito está p re ssu p o sto n um livro de S. B u ch an an , em q u e a p o ssib ilid ad e é definida co m o "a idéia re g u la d o ra da an álise cio to d o em stias p artes", se n d o as p artes defi­ n id as co m o "a p o te n c ia lid a d e do to d o " (Possibility, 1927, p p. 81 ss.).

F in alm en te, o ú ltim o ex e m p lo d este c o n c e i­ to é a d e n o m in a d a "lei m o dal fu n d am en tal" de N . H artm an n , q u e c o m p re e n d e as seis te se s s e ­ g u in tes: "Ia o q u e é re a lm e n te P. 6 tam b ém re a lm e n te factível; 2a o q u e é re a lm e n te factível é ta m b é m re alm en te n ecessário ; 3' o q u e é re a lm e n te P. é ta m b é m real e re c ip ro c a m e n te n ecessário ; 4a aqu ilo cujo n ão ser é realm en te P. é ta m b é m re a lm e n te infactíveh 5:l o q u e é real­ m en te infactível é ta m b é m re alm en te im p o ssí­ vel; 6a aq u ilo cujo n ão ser é re a lm e n te possível é ta m b é m re a lm e n te im p o ssível" (Mõglichkeít itncí Wirklichkeil. 193. p. 126). E stas te se s n ão p assam de re d u ç ã o ex p lícita do co n ce ito cie p o ssib ilid ad e real n o c o n ce ito d e n e c essid ad e:

POSSÍVEL

redução à qual na v erd ad e não p o d eríam o s objetar. Faz parte desta n o ção do P. a red u ção do conceito de P. à ignorância ou à im aginação p o st faclum . O prim eiro cam inho foi seguido por Spinoza: "Cham o cie P. as coisas singulares, po rq u an to , co n sid eran d o as causas pelas quais elevem ser p ro d u zid as, ignoram os se elas es­ tão d eterm in ad as a produzi-las" (Et., IV, def. 4; C ogitM et., I, 3). O seg u n d o cam inho foi seg u i­ do por Bergson: "O P. 6 a m iragem do p resen te no passado; e com o sab em o s que o futuro aca­ bará por tornar-se p resen te e que o efeito da m iragem co n tinu ará a p ro d u zir-se, d izem os que em nosso p resen te atual, que será o p assa­ do de am anhã, a im agem do am anhã já está contida, apesar de não ch eg arm o s a alcançá-la. N isso está p recisam en te a ilusão" ("Le Possible et le réel", 1930, em Lapensée et le m ouvant. 3a ed., 1934, p. 128). 3l> O terceiro conceito de P. é de possibilida­ de objetiva, que rem onta a Platão. A possibili­ dade de agir ou de sofrer um a ação foi assum i­ da por Platão com o a definição do ser em geral (V. SKR). contra os m aterialistas, por um lado, e contra os idealistas, por outro. "Digo que é existente tu d o aquilo que tem por natureza a po ssibilidade de fazer um a coisa q u alq u er ou de sofrer um a ação (inclusive tu d o o que existe em m edida m ínim a e por um a vez só, e com respeito à coisa m ais insignificante). Por isso, faço a seg u in te definição: o,s ente.s não são outra coisa sen ão possibilidades" (Sof., 247 e). A ristóteles definia a possibilidade neste sen ti­ do com o "aquilo que pod e ser verdadeiro" (Mel., V , 12. 1019 b 32). E S. T o m ás cie A quin o defendia essa possib ilidad e contra o n ecessitarism o árabe: "O P. ou co n ting en te, que se op õe ao necessário, tem em seu conceito que não deve realizar-se n ecessariam en te q u an d o não é, visto que ele se segue n ecessariam en te da sua ca u sa' (Contra G ent, III, 86). O ckham incluía o m esm o conceito entre os significados do term o P., com o "aquilo que não está em ato, m as p oderá estar", ou que "não é nem n eces­ sário nem im possível" (Summa log.. II, 25). O conceito de com possíveK v.), de Leibniz, é ou ­ tra ex p ressã o dessa m esm a n o ção de p o s­ sib ilid ad e, d efen d id a p o r K ant já an tes de suas "Críticas", q u an d o , o p o n d o -se á escola wolffista, ele m ostrava a insuficiência do con­ ceito cie possibilidade lógica: "Existir possibili­ dade e no en tan to não existir n ada de real é contraditório, p o rq u e, se nada existe, nada de

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pensável é dado, e estarem os em contradição se ainda qu iserm o s que haja algum a coisa de P." (D er einzig m õgliche Bew eísgrundzu einer D em onstration des D aseins Gottes, I, 2, 2), Ou, em outros term os, "subtraindo-se do P. o m a te­ ria l e os dados, tam bém se nega a possibilida­ de" (Ibid, I, 2, 3). A qui, K ant parece negar até m esm o a legitim idade da n o ção de P. lógico. E m outro po nto , adm ite tam bém esta possibili­ dade: "O conceito é P. to das as vezes que não se contradiz. É este o caráter lógico da possibi­ lidade, e com isso o seu objeto é distinto do nihil negativum . M as não p o d e ser um con­ ceito vazio. (... ) Esta é um a advertência a não ded uzir im ediatam ente a p ossibilidade (real) das coisas da po ssibilidade (lógica) dos concei­ tos" (Crít. R. Pura, D ialética, II, cap. 3, seç. 4, n. [A 597, B 625]). A possibilidade objetiva ou real baseia-se, então, nos d ad os da experiência e é um a p o ssib ilid a d e que só a ex periência, e não o sim ples co nceito, autoriza a adm itir. To­ davia, não se trata de um a possibilidade real no sentido de que falam os ao nQ 2, isto é, de uma p o ten cialid ad e destin ad a infalivelm ente a reali­ zar-se: "As p ro p o siçõ es de que as coisas po­ dem ser P. sem ser reais e que, p ortanto , não se p o d e d eduzir a realidade a partir da possibili­ d ad e ajustam -se à razão hum ana" (Crít. do Juízo, § 76). Kant cham a de real ou transcen­ d en te a p ossibilidade que se baseia no s dados da experiência, m as não a identifica com a ne­ cessid ad e: ela só .significa q u e ao conceito p o d e co rre sp o n d er um objeto (Crít. R. Pura. Anal. dos P rin c, cap. III [A 244, B 3031). Se K ant insistia na co nexão do P. objetivo com a experiência, K ierkegaarcl insistia, em po­ lêm ica com H egel, na incleterm inação do P. R esp o nd en d o n eg ativam ente q u an d o lhe per­ g u n taram se o passado era m ais necessário que o futuro, K ierkegaarcl afirm ou que o P. não se torna necessário pelo fato de realizar-se, mas que p erm an ece P.: "O passado não é necessá­ rio no m om ento em que devêm ; não se tornou necessário po r devir (o que seria um a contradi­ ção); e torna-se ainda m enos necessário atra­ vés do en ten d im en to da pessoa". N este caso, com efeito, o passad o ganharia o que o intelec­ to perdesse: não seria en ten d id o pelo que é, m as por um a outra coisa (Philosophische Bwken, IV, Interm édio, § 4; trad. fr., pp. 162 ss.). Toda a esp ecu lação de K ierkegaard baseia-se nessa n o ção de possibilidade objetiva e indetermi­ nada, com a qual esclarece as n o çõ es de an­ gústia (v.) e de desesperança (v.). No entanto,

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Kierkegaard às vezes utiliza expressões que não são rigorosamente compatíveis com a indeterminaçào objetiva das possibilidades, como p. ex. "Tudo c P." ou "todas as possibili­ dades". Considerando as possibilidades como infinitas, acaba-se por excluir sua indeterminação e limitação: de tato, o que falta a uma delas para realizar-se infalivelmente pode ser supri­ do pelas outras, se elas forem infinitas; as possibi­ lidades transformam-se, então, em potencialida­ des necessárias. Na filosofia contemporânea, porém, o con­ ceito de possibilidade objetiva é entendido no seu sentido empiricamente determinado e finito. Peirce fala em "possibilidades substan­ ciais" (cm oposição às possibilidades lógicas), como as que se fundam em informações refe­ rentes aos fatos e a suas leis; e diz que tais pos­ sibilidades coincidiriam com a necessidade só na hipótese de uma informação onisciente (Coll. Pap, 4, 67). Devvey entende a possibili­ dade, no âmbito da matemática e, em geral, da investigação científica, como possibilidades de operações ou de transformações (Logic, XV e XX, 3). Wittgenstein afirma que possibilidade é o que se expressa por uma proposição sensata, que se distingue da tautología, que é a propo­ sição da lógica ou da matemática, que "nada diz", e da contradição (Tractalus, 5, 525). Em outros termos, para Wittgenstein, a proposição sensata é apenas a expressão da possibilidade de um fato. Lukasiewicz e Tarski formularam os princípios de uma lógica da P., cujo fim seria evitar o determinismo (v. os textos cita­ dos em TERCEIRO EXCLUÍDO. PRINCÍPIO DO). Reichenbach, por sua vez, distinguiu da pos­ sibilidade lógica a possibilidade física e a possibilidade técnica: a primeira significa algo que não contradiz as leis empíricas; a segunda, algo que pertence ao reino dos métodos práticos conhecidos ("Verifiability, Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy ofArts and Sciences, 1951, (80", p. 53)- Além disso, pôs a possibilidade fsica como fundamento da probabilidade ( Theory ofProbabílily, § 74). Mas está claro que esse ponto de vista pode ser generalizado, e que só se pode identificar uma possibilidade objetiva em contextos particulares, ou seja, com base cm condições c regras vigentes em determinado campo. P. ex.. no que diz respeito ao homem, a possibilidade física que ele tem de realizar determinada ação não coincide ne­ cessariamente com as possibilidades jurídicas

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ou morais que lhe são oferecidas pelo sistema social em que vive. Muitas das possibilidades que seu organis­ mo físico permitem efetivar são-lhe obstadas pelas normas jurídicas e morais. Portanto, para cada possibilidade objetiva é indispensável a referência a um contexto de condições e de re­ gras técnicas determinadas, e falar-se em possi­ bilidade sem especilicar esse contexto só pode dar ensejo a equívocos. Aliás, o mesmo se pode dizer das ciências: uma possibilidade lógico-matemática nem sempre é uma possibili­ dade física, ou seja, passível de efetivação com base em leis da física, e assim por diante (cf. J. R. LUCAS, The ConceptofProbability, 1970, p. 6 e passim). No campo da metodologia historiográfica, a noção de possibilidade objetiva foi considera­ da indispensável por Max Weber (Kritische Studien aufden Gebiet der Kulturivissenscbaftlichen Logik. 1906; cf. especialmente a segun­ da parte; trad. in., cm TheMethodology oflhe Social Sciences, pp. 164 ss.; trad. it. em IImétodo delle scienze storico-sociali, pp. 207 ss.) sendo empregada também em obras mais re­ centes (p. ex., W. DRAV, Lairs and Expianation in Ilistory, 1957, VI, 3; cf. HISTÓRIA; HISTORIOGRAFIA). NO campo das ciências bio­ lógicas, essa noção foi utilizada por Goldstein (Der Aufbtm des Organismus, 1934; trad. fr. 1951) e tende a ser utilizada no do­ mínio psiquiátrico (cf., p. ex., M. TORRE, "La categoria dei possibile in psicopatologia", em Note eRiviste dipsichiairia, 1957). Além disso, a genética e a teoria da evolução utilizam cons­ tantemente esse conceito, designando-o às ve­ zes com outro nome (p. ex., com o nome de oportunidade, cf. G. SIMPSON, The Meaning of Evohition. cap. XII, "The Opportunism of Lvolution"). Na sociologia, os conceitos que, implí­ cita ou explicitamente, recorrem à noção cio P. são os mais numerosos. Lévy-Bruhl falou do "limite do P." como constitutivo da experiência racional, por isso como deficiente ou ausente na mentalidade primitiva (I.es caniets, 1949; trad. it., p. 98 ss.). Toda a teoria da probabilida­ de, seja qual for a sua interpretação, baseia-se nessa noção de P. (cf., p. ex.. REICIIEXBACH. Theory ofProbability. § 74; e POPPER. que fala da probabilidade como "vector no espaço das possibilidades"; v. PROBABILIDADE). Finalmente, é quase supérfluo lembrar a importância que a noção de possibilidade objetiva tem na filosofia existencialista, em que constitui o principal

POST HOC ERGO PROPTER HOC

instrum ento de análise (v. EXISTKNCIAI.ISMO). Está claro que, de acordo com esta terceira in terp re­ tação, o o p o sto de P. não é im possível, m as nào-possível. P O S T H O C E R G O P R O P T E R H O C . Célebre

falácia (v.) que constitui um caso particular da falácia mm cansapro causaicf. ARISTÓTELES, El. s'q/.', 5, 167 b); esta consiste em estabelecer um a conexão causai, portanto necessária, com base num a conexão m eram ente acidental ou secun­ dária. N o caso de post hoc ergopropter hoc. o sofisma consiste em estabelecer um a conexão de causa e efeito entre A e R pelo sim ples fato de B vir depois de A. G. P. P O S T U L A D O (gr. Oüxrjua; lat. Postulaliim;

in. Postulate-, fr. Postulai; ai. Postulai; it. Postulato). Em geral, um a proposição que se adm ite ou cuja adm issão se deseja, com o fim de p o s­ sibilitar um a dem onstração ou um procedim ento qualquer. Esse term o n asceu na m atem ática e é elucid ad o por A ristóteles em correlação com axioma (\.). E nquanto os axiom as são ev id en ­ tes por si e têm de ser adm itidos necessariam ente, m esm o não sen d o dem onstráveis, o P., apesar de dem onstrável, é assum ido e utilizado sem d em onstração . A lém disso, o P. é um a p ro p o ­ sição ainda não adm itida ou aceita por aquele a quem é en d ereçad a (senão seria inútil pedirlhe que a adm itisse); nisso difere da hipótese (v.), q u e ta m b é m é um a p ro p o s iç ã o dem onstrável, não d em o n strad a, m as co n sid e­ rada v erdadeira por aquele a quem é dirigido o discurso (An. post, 10, 76 b 24 ss.). A distin­ ção entre axiom a e P. foi adotada por Euclides em seus Elementos-, enquanto os axiom as expres­ sam v erd ad es evid en tes e são ch am ad o s por Euclides de noções comuns, os P. expressam o que se p ro p õ e ser adm itido e co n cernem á existência de d eterm in ad o s elem entos g eo m é­ tricos. A distinção entre P. e axiom a deixou de ser usada na lógica e na m atem ática m oderna (v. AXIOMÁTICA). Kant cham ou cie "P. do p en sam en to em píri­ co" os princípios co rresp o n d en tes a priori ás categorias da m o d alid ad e, seg u n d o os quais é possível tu d o o qu e está de acordo com as cond ições form ais cia ex p eriên cia (intuiçòes puras e categorias); o que está de acordo com as con diçõ es m ateriais da experiência (com as sensações) é real; e aquilo cuja co n ex ão com a realidade é determ inada seg u n d o as condições universais da experiência é ou existe necessaria­ m ente (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 4) D epois, cham ou de "P. da razão prá­

POTÊNCIA

tica" as c o n d iç õ e s q u e to rn a m possível a m oralidade, isto é, a liberdade, a imortalidade e a existência de D eus (Crít. R. Prática, Dialética, seç. II). P O T Ê N C IA (gr. SÓVOCLUÇ; lat. Potentia; in. Power. fr. Puissance-, ai. Vermãgen; it. Potenzti). 1. Em geral o princípio ou a possibilidade de um a m udança qualquer. Esta foi a definição cio term o dada por A ristóteles, que distinguiu este significado fundam ental em vários signifi­ cados específicos, m ais precisam ente: ei) capa­ cidade de realizar m udança em outra coisa ou em si m esm o, que é a P. atira; b) capacidade de sofrer m udança, causada por outra coisa ou por si m esm o, que é a P. passiva; c) capaci­ dade cie m udar ou ser m u d ad o para m elhor e não para pior; d) cap acid ad e de resistir a qual­ q u er m udança (Mel.. V, 12, 1019 a 15; IX, 1, 1046 a 4). listas distinções praticam ente nào m udaram ao longo cia tradição filosófica (v. A ro). A tradição m edieval repetiu-as sem varia­ ções, e, ainda no séc. XVIII, W olff as repetia em fórm ulas epigráficas que em nada mudam os v elhos conceitos (Ont., 1729, § 716). Mesmo Locke, em sua fam osa análise dessa noção, nào lhe altera o conceito (Ensaio, II, 21, 1). O conceito, todavia, im plica um a ambigüi­ d ade fundam ental p o rq u e po de ser entendido: A) com o possibilidade: B) com o preform açàoe po rtan to p red eterm in ação ou preexistência do atual. Em A ristóteles e em to d o s aqueles que seguem a m etafísica aristotélica, am bos os sig­ nificados estão p resen tes e m uitas vezes são confundidos. A ssim , q u an d o A ristóteles defen­ de o conceito da potência contra a negação do m esm o feita por D eo d o ro C ronos (v. POSSIBILI­ DADE), en te n d e a P. no sen tid o A), ao passo que, ao afirm ar "que nào p o d e ser verdade dizer que algo é possível m as não será" (Met., IX. 4, 1047 b 3). ou ao afirm ar a superioridade do ato sob re a P., com base no princípio de que sem o ato a P. nào existiria (o ovo não existiria sem a galinha), está en te n d e n d o a P. como preform açào e p red eterm in ação. e consideran­ do-a com o um m odo de ser m enor ou prepara­ tório do ato (Ibícl, IX, 8, 1049 b 4). Confusão análoga acha-se no ensaio de B ergson "O pos­ sível e o real" (1930), pois nele B ergson, rejei­ tand o o conceito de possível com o "não-impossível", ou seja, com o "não im pedido de ser", identifica-o no entanto com o de poten­ cial e considera o po ten cial com o "a mira­ gem do p resen te no passado" (Ia pensée et le mouvant, 3a ed., 19.34, pp. 128-30). Visto

POTENCIAÇÃO, LÓGICA DA

que o conceito de potencial faz constante re­ ferência à atualidade ou realidade, enquanto o de possível não possui necessariamente essa referência, as noções de preformaçào, preexistência e predeterminaçào podem ser consideradas estreitamente conexas com a cie potência. 2. Faculdade ou poder da alma (v. FACUL­ DADE). 3. Domínio ou predomínio, como na ex­ pressão "vontade de IV. POTENCIAÇÃO, LÓGICA DA. Tentativa de lógica simbólica, que consiste em eliminar as leis de tautologia e de absorção e em intro­ duzir os símbolos de potência e de coeficiente. Kste tipo de lógica deveria fundar-se no princí­ pio de que qualquer relação iruxiiticíi os entes relativos, contrário ao princípio habitualmente admitido pela lógica simbólica contemporânea (cf. P. Mosso, Princlpi cli lógica dei P.. Turim, 1924; A. PASTORK, La lógica ciei P.. Nápoles, 1936). POVO (lat. Popnlus; in. People-, fr. Peuple ai. Volk it. Popolo). Comunidade humana ca­ racterizada pela vontade cios indivíduos que a compõem de viver sob a mesma ordenação ju­ rídica. O elemento geográfico não é suficiente para caracterizar o conceito de P.; como dizia Cícero, "P. não é uma aglomeração qualquer de homens, reunidos de qualquer maneira, mas uma aglomeração de gente associada pelo con­ sentimento ao mesmo direito e por comunhão de interesses" (Kep, I, 25, 39). Portanto, ao P. contrapõe-se a plebe, que é o conjunto das pes­ soas que, mesmo vivendo com o P., participam da mesma ordenação jurídica. Por outro lado, o conceito de P. distingue-se do de naçãoKx.) porque este contém um conjunto de elementos necessitantes que se somam à no­ ção de destino comum, ao qual os indivíduos não podem subtrair-se legitimamente. O con­ ceito de nação começou a formar-se a partir do conceito de P. quando, com Montesquieu, começaram a ser ressaltadas as causas naturais e tradicionais (clima, religião, tradições, usos e costumes, etc.) que contribuem para for­ mar o que Montesquieu chamou de "espírito geral" ou "espírito da nação" (Hsprit cies lois, XIX, 4-5). A diferença entre P., nação e plebe era estabelecida com bastante clareza por Kant (A)itr., II, O Caráter do povo), mas o conceito de P. era confundido muitas vezes com o de nação no n acio n alism o do séc. XIX (v. NACIO­ NALISMO; ESPÍRITO NACIONAL).

7X3

PRAGMÁTICO

PRAGMÁTICA (in. Pragmalicsjr. Pragmaticjue: ai. Pragmatik; il. Pragmática). Uma das partes da semiótica (v.), mais precisamente a que compreende o conjunto de investigações que têm por objeto a relação dos signos com os intérpretes, ou seja, a situação em que o sig­ no é usado. Fsse aspecto da semiótica já havia sido ressaltado por C. S. Peirce, Ogden e Richards, mas foi principalmente Morris que con­ siderou a P. como parte integrante da semió­ tica; seu ponto de vista é amplamente aceito na lógica contemporânea (cf. C. MORRIS, Poundations ofthe Theory of Signs. 193<">, cap. V; CARNAP, / omidations of Logic and Xíathematies, 1939, § 2). As outras partes da semiótica suo semântica e sintaxe (v.). PRAGMÁTICO (gr. 7rpayn.aTiKÓÇ; in. Praginatic; fr. Pragmatique; ai. Pragmatiscb; il. Pragmático). Esse adjetivo foi usado pela pri­ meira vez por Políbio. para quem há nítida dis­ tinção entre a história "P.", que cuida dos fatos. e a história que se ocupa cias lendas, como a que fala da genealogia das famílias e da funda­ ção cias cidades (IX, 1,4). Políbio acrescenta também que a história P. é a mais útil para ensi­ nar como o homem deve procedei' na vida social. Depois, esse adjetivo foi usado com freqüência na história política, especialmente alemã, a propósito de decisões constitucionais cujo caráter deveria ser ressaltado, sendo então chamadas de "sanções IV. Kant dizia: "Chaniam-se P- as sanções que não derivam propria­ mente tios direitos dos Estados considerados como leis necessárias, mas de compromisso para com o bem-estar geral. Uma história é composta pragmaticamente quando nos torna prudentes, vale dizer, quando ensina â socieda­ de de hoje a maneira de obter mais benefícios que a sociedade de ontem, ou pelo menos tantos benefícios quanto ela obteve" (Gnindlogung zurMet. derSitlen. II, Nota). Kant cha­ ma também de P. os imperativos hipotéticos da prudência que visam ao bem-estar (Ibid.. II, Nota). Ele chama de P. a fé fundada em juízo subjetivo da situação, como p. ex. a do médico que não conhece bem a doença que deve tratar (Crít. R. Pura. Doutrina do Método, cap. 2, seç. 3). li chama sua antropologia de P. porque ela considera o que o próprio homem faz de si mesmo, e não o que ele é por natureza (Antr., Pref.). Na linguagem contemporânea essa palavra voltou a ter o seu sentido inicial. Quando não

PRAGMATISMO

se refere a pragmatismo, designa simplesmen­ te o que é ação ou que pertence à ação. PRAGMATISMO (in. Pragmatism, Pragmaticism, fr. Pragmatisme, ai. Pragmatismus-, it. Pragmatismo). Esse termo foi introduzido na filosofia em 1898, por um relatório de W. James a Califórnia Union, em que ele se referia à doutrina exposta por Peirce num ensaio do ano 1878, intitulado "Como tomar claras as nossas idéias". Alguns anos mais tarde, Peirce declara­ va ter inventado o nome P. para a teoria segun­ do a qual "uma concepção, ou seja, o signifi­ cado racional de uma palavra ou de outra expressão, consiste exclusivamente em seu al­ cance concebível sobre a conduta da vida'; di­ zia também que preferira esse nome a praticismo ou praticalismo porque, para quem conhece o sentido atribuído a "prático" pela fi­ losofia kantiana, estes últimos termos fazem referência ao mundo moral, onde não há lugar para a experimentação, enquanto a doutrina proposta é justamente uma doutrina experimentalista. Todavia, no mesmo artigo, Peirce declarava que. em face da extensão do signifi­ cado de que o P. fora alvo por obra de W. James e de F. C. S. Schiller, preferia o termo pragmaticismo, para indicar sua própria con­ cepção, estritamente metodológica, do P. ("What Pragmatism Is", TheMonist, 190S; Coll Pap, S, 411-37). Desta maneira, Peirce acabava distinguindo duas versões fundamentais de P., que podem ser assim caracterizadas: Ia um P. metodológico, que é substancialmente uma teoria do significado; 2a um P. metafísico, que é Lima teoria da verdade e da realidade. Ia O P. metodológico não pretende definir a verdade ou a realidade, mas apenas um proce­ dimento para determinar o significado dos ter­ mos, ou melhor, das proposições. Peirce dizia no artigo do ano de 1878, geralmente conside­ rado data de nascimento do P.: "E impossível ter em mente uma idéia que se refira a outra coisa que não os efeitos sensíveis cias coisas. Nossa idéia de um objeto é a idéia de seus efei­ tos sensíveis. (...) Assim, a regra para atingir o último grau de clareza na apreensão das idéias é a seguinte: Considerar quais são os efeitos que concebivelmente terão o alcance prático que atribuímos ao objeto da nossa compreen­ são. A concepção destes efeitos é a nossa con­ cepção do objeto" (Chance, l.ove and Logic, I, 2. § 1; trad. it., p. 39). O princípio dessa re­ gra metodológica é que "a função do pensa­ mento é produzir hábitos de ação", crenças. A

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PRAGMATISMO

regra proposta por Peirce era, portanto, sugeri­ da pela exigência de achar um procedimento experimental ou cientifico para fixar as crenças, entendendo por científico ou experimental o procedimento que não recorre ao método da autoridade nem ao método aprioriilbid, 1,1, § 2, pp. 9 ss.). Pode-se dizer que pertence ao mesmo tipo o P. de Dewey, que, para evitar qualquer equívoco, preferiu o termo instrumentalismo (v.). "A essência do instrumentaHsmo pragmático" — escreveu ele — "é conce­ ber o conhecimento e a prática como meios para tornar seguros, na experiência, os bens, que são as coisas excelentes de qualquer espé­ cie" ( The Questfor Certainty, 1929, p. 37). Des­ te ponto de vista, Dewey compartilhava o experimentalismo de Peirce, porque para ele "a experimentação faz parte da determinação de qualquer proposição justificada" (Logic, 1939, p. 461), ao mesmo tempo em que evidenciava o caráter instrumental e operacional de todos os procedimentos do conhecer, considerados como meios para passar de uma situação indeterminada para uma situação determinada, ou seja, ao mesmo tempo distinta e unificada (Logic, cap. VI). É, portanto, bastante óbvio o parentesco desse tipo de P. com a metodologia científica contemporânea, em particular com o operacionismo (v.), por um lado. e com as te­ ses fundamentais da lógica simbólica, por ou­ tro. Os pragmatistas italianos Giovanni Vailatie Mário Calderoni ressaltaram este aspecto. 0 primeiro observava a propósito que o principal ponto de contato entre lógica e P. "está na tendência comum a ambos de considerar o valor e o próprio significado de uma asserçâo como algo intimamente vinculado ao emprego que se pode ou se deseja fazer deles na dedução e na construção de determinadas conseqüências ou grupos de conseqüências" ('Pragmatismo e lógica matemática", 1906, em // método delia filosofia, p. 198). Estas palavras definem bem o caráter funcional do P. de inspiração metodológica. 2a A concepção de P. metafísico encontrase em W. James e em F. C. S. Schiller; suas teses fundamentais consistem em reduzir verdade a utilidade, e realidade a espírito. A segunda des­ tas teses foi compartilhada pelo P. metafísico com boa parte da filosofia contemporânea; o próprio James reconheceu e gabou a concor­ dância substancial cie sua filosofia com a dos espiritualistas franceses, especialmente a de Bergson. A primeira tese é característica dessa

PRAGMATISMO

forma de pragmatismo. Sen pressuposto é o princípio que ela tem em comum com o P. metodológico: a instrumentalidade do conhe­ cer. Mas este pressuposto é entendido e reali­ zado por ela de modo totalmente diferente. Em primeiro lugar, ela procura evidenciar a depen­ dência de todos os aspectos do conhecimento (ou do pensamento) em relação a exigências da ação, portanto em relação às emoções em que tais exigências se concretizem. Também a "racionalidade", segundo James, é uma espécie de sentimento ("O sentimento da racionalida­ de" em The Willto Believe, 1897). Deste ponto de vista, as ações e os desejos humanos condicionam a verdade: qualquer tipo de ver­ dade, inclusive a científica. Portanto não é legí­ timo, deste ponto de vista, recusar-se crer em doutrinas que tenham condições de exercer ação benéfica na vida do homem só porque elas não são apoiadas por provas racionais sufi­ cientes. Em casos como estes, afirmava James, é preciso correr o risco de acreditar. K F. C. S. Scliíller levava esta doutrina às suas conse­ qüências extremas, ressuscitando palavras de Protàgoras, "o homem é a medida de todas as coisas", e afirmando a relatividade do conheci­ mento em relação à utilidade pessoal e social (Humanism. 1903). Enquanto Schiller se limita­ va a este relativismo. James abria caminho, através dele. ao teísmo e às doutrinas espiritua­ listas tradicionais, com a alegação de que elas são úteis à ação e benéficas à vida humana. Embora procurasse limitar o dogmatismo des­ sas doutrinas, insistindo no caráter pluralista do universo (v. PLUÍAUSMO) e no caráter finito da divindade (v. Dia s), o P. foi para ele essencial­ mente uma via de acesso à metafísica tradicio­ nal, lim dos motivos que James aduzia para justificar o exercício da vontade de crer é que a crença pode produzir sua própria justificação: é o que acontece às vezes nas relações humanas, quando acreditar que alguém é nosso amigo leva-nos a ter comportamento amistoso para com essa pessoa, conquistando a sua amizade. Dificilmente se pode fazer uso teológico ou metafísico dessa proposição: no entanto, ela tornou-se um princípio importante da sociolo­ gia contemporânea. Quanto ao resto, enquan­ to o P. metodológico teve continuação nos estu­ dos de lógica e de metodologia e em algumas correntes do neo-empirismo, o P. gnosiológico confluiu para as correntes espiritualistas (cf. H. W. SCHXFIDF.R, A llistoryofAmerican Pbilosophy. 2J ed., 1957).

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PRATICO

A este P. metafísico vinculam-se as outras manifestações fora do circuito anglo-saxão; em primeiro lugar, vincula-se com a filosofia de Hans Vaihinger. exposta na obra Filosofia do como se(Philosophie des Ais Ob, 1911), na qual ele afirma o caráter fictício de todo conheci­ mento e o caráter biológico da preferência por um conhecimento e não por outro. Vincula-se também ao P. pluralista de A. Aliotta (A guerra eterna e o drama da existência, 1917), em que está presente a mesma tônica espiritualista do P. de James (cf. de ALIOTTA, O sacrifício como significado do mundo, 1947). Finalmente, vin­ cula-se ao fideísmo pragtnatista de Miguel de Unamuno, na forma exposta no Comentário ao Dom Quixote (WOA) e em Do sentimento trá­ gico da L>ída(í9l$), e de José Ortega y Gasset (O tema do )iosso tempo, 1923; Sobre (jalileu. 1933: História como sistema, 1935, etc), que. porém, especialmente nas últimas obras, reve­ la a influência do existencialismo de Heidegger. PRÁTICO (gr. TpcxKriKÓÇ; lat. Prac/icus; in. Practícal; fr. Pratique; ai. Praktiscb, it. Prati­ co). Em geral, o que é ação ou diz respeito à ação. Há três significados: 1" o que dirige a ação; 2." o que pode traduzir-se em ação; 3" o que é racional na ação. 1Q O primeiro é o significado filosófico tradi­ cional. Platão já distinguia a ciência prática (p. ex.. construção civil), que é "inerente por natu­ reza às ações", da ciência cognitiva (como a aritmética), que nào se relaciona com a ação (Pol.. 258 d-e). Aristóteles dizia que "nas ciên­ cias P. a origem do movimento está em alguma decisão de quem age porque 'IV e escolha' são a mesma coisa" (Met., VI, 1, 1025 b 22). Para Aristóteles, as ciências P. eram a política, a eco­ nomia, a retórica e a ciência militar; a ética é parte fundamental da política (Et. nic. I, 2, 1094 b). Este significado continuou uniforme na tradição filosófica. P. ex., ([Liando S. Tomás de Aquino diz que teologia é. em parte, ciência prática (S. Th.. I, q. 1, a. 4) e quando Duns Scot afirma que ela é totalmente ciência P. (Op. O.x., Prol., q. 4, n. 31), estão fazendo referência ao significado tradicional: P. é o que dirige a ação. De modo semelhante, Wolff definia a filosofia P. como a ciência que "dirige as ações livres mediante regras generalíssimas" (Philos. practica. § 3), e, como Aristóteles, dividia-a em Éti­ ca, Economia e Política. Este significado preva­ lece no uso filosófico do termo. 2" No segundo significado, que pertence à linguagem comum mais que à filosófica, P. é

PRAXIOLOGIA

tudo aquilo que é fácil ou imediatamente traduzível em ação, no sentido, p. ex., de produzir sucesso ou proporcionar vantagem. Neste sen­ tido, uma idéia é chamada de "P." porque pode ser concretizada e levarão sucesso. Homem P. é o que tem idéias P., que são realizáveis com facilidade ou com probabilidades de vantagem ou sucesso. Este significado geralmente não tem lugar na linguagem filosófica. 3y O terceiro significado é o mais restrito e foi empregado por Kant. Este entende por P.: "Tudo o que é possível por meio da liberdade". Mas a liberdade nada tem a ver com o arbítrio animal; assim, o que é independente de estí­ mulos sensíveis, portanto pode ser determi­ nado por motivos representados apenas pela razão, chama-se de livre arbítrio; e tudo o que a ele se liga, como princípio ou como con­ seqüência, chama-se P." (Crít. R. Pura. Doutri­ na do Método, cap. II, seç. I). Esse uso restrito do termo, característico de Kant, nào teve se­ guidores. PRAXIOLOGIA (in. Praxiology-, Ir. Prcixéologie-, it. Prassiologia). Termo criado por Kotarbinsky, para designar "a teoria geral cia atividade eficaz", que deveria compreender a totalidade dos domínios da atividade útil dos sujeitos agentes, do ponto de vista da eficácia cie suas ações (Praxiology, An Introduclion to lhe Science ofl-fficient Action, Oxford, 1965: a obra polonesa original é cie 1955). V. TKCNOLOGIA. PRAXIS. Com esta palavra (que é a transcri­ ção cia palavra grega que significa ação), a ter­ minologia marxista designa o conjunto de rela­ ções de produção e trabalho, que constituem a estrutura social, e a ação transformadora que a revolução deve exercer sobre tais relações. Marx dizia que é preciso explicar a formação das idéias a partir da "práxis material", e que, por conseguinte, formas e produtos da cons­ ciência só podem ser eliminados por meio da "inversão prática das relações sociais existen­ tes", e nào por meio da "crítica intelectual" (A ideologiaalemã, 2;trad. it., p. 34) (v. MATKRIALISMO HISTÓRICO). Por "inversão da P.". Engels entendeu a reação do homem às condições materiais da existência, sua capacidade de inse­ rir-se nas relações de produção e de trabalho e de transformá-las ativamente: esta possibilida­ de é a subversão da relação fundamental entre estruturai: superestrutura, em virtude cia qual é somente a primeira (a totalidade das relações de produção e de trabalho) que determina a

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PRAZER

segunda, constituída pelo conjunto das ativi­ dades espirituais humanas (cf. ENGHI.S, Antidübring, 1878). PRAZER (gr. rjSovtí: lat. Voluplas; in. Pleasure. fr. Plaisir. ai. Litst: it. Piacere). P. e dor constituem os tons fundamentais de qualquer tipo ou forma de "emoção". A determinação de suas características depende da função que se atribui às emoções, e por isso está relacionada com a teoria geral das emoções. Aqui é preciso observar que, na tradição filosófica, essa palavra tem um significado diferente do de felicidade, mesmo quando ligada a ela: o P. é indício de um estado ou condição particular ou temporá­ ria de satisfação, enquanto a felicidade é um estado constante e duradouro de satisfação to­ tal ou quase total (v. FlíUCiDADi-:). A mais famosa definição do P. foi a de Aris­ tóteles, que. aliás, utilizava os conceitos de Platão (Rep, IX, 583 ss.; Fil, 53 c): "P. é o ato de um hábito conforme à natureza" (lit. we. Vil. 12, 1153 a 14), sendo preciso lembrar que hábito .significa "disposição constante". Essa de­ finição servia para desvincular o P. de sua co­ nexão com sensibilidade, visto que um hábito pode ser sensível ou nà.o. A partir do Renasci­ mento as definições de 1'. basearam-se em sua função biológica. Para Telésio, é aquilo que favorece a conservação do organismo (De rer. nat.. IX, 2). Descartes definiu a ale­ gria, considerada uma das seis emoções fun­ damentais, como "a emoção prazerosa da alma, na qual consiste a fruição do bem que as impressões do cérebro lhe representam como seu" (Pass. de 1 âme, § 91). Spinoza afirmava: "Entendo por alegria a paixão graças à qual a mente eleva-se a uma perfeição maior" (Et., 111, 11), o que é uma paráfrase da definição aristotélica. Enquanto Hobbes voltava à definição biológica, vendo no P. o sinal de um movimen­ to proveitoso ao corpo, transmitido pelos ór­ gãos sensoriais ao coração (De corp.. 25, 12). Nietzsche afirmava: "O P.: sensação de maior potência" ( WíUcZurMatcbt, ed. Króner, §660). Em oposição a essas teorias, que podem ser chamadas de positivas, encontra-se a teoria ne­ gativa de Schopenhauer, segundo a qual o P. é simplesmente a cessação da dor, de tal modo que ele é conhecido ou sentido apenas metliatamente, através da lembrança do sofrimen­ to ou da privação passada (Die Weil, I. § 58). A psicologia moderna manteve as caracterís­ ticas tradicionais atribuídas ao P.: reiterou sua função biológica, mas ao mesmo tempo, com

PRAZER, PRINCIPIO DO

base na observação, também confirmou o caráter ativo que Aristóteles reconhecia no P. (cf. J. C. FLUGEL, Studies in Feeling and Desire, 1955. p. 118 ss.). PR AZER, P R IN C ÍP IO DO (in. Pleasure principie, ai. Lustprinzíp it. Principio dipiacere). Fsse foi o nome que Freud deu a um dos dois princípios fundamentais que regem o funcio­ namento mental, mais precisamente o que di­ rige a atividade psíquica para libertar-se da dor. O outro princípio seria o da realidade, graças ao qual a busca do prazer não se dá pelas vias mais curtas, mas obedecendo às condições impostas pelo mundo externo (Triebe nnd Triebsch icksale, 1915). PREAMBULA FIDEI. Foi esse o nome que S. Tomás de Aquino deu ao conjunto das ver­ dades cuja demonstração é necessária à própria té, em primeiro lugar a da existência de Deus (In Boet. de Trinit.. a. 3) (v. DEIS. PROVAS DF: TOMISMO). PRÉ-ANIMISMO. V. ANIMISMO. PRECISÃO (in. Precision: fr. Précision; ai. Prácisione; it. Precizione). Procedimento pelo qual se considera cada parte de um todo. sem considerar o todo e as outras partes, de tal maneira se chegue a determiná-la em seus carac­ teres próprios. Foi desse modo que a Lógica de Arnauld (I, 5) definiu a P., considerando, por­ tanto, uma forma particular de abstração (v.). O resultado desse procedimento obviamente é a caracterização exata das partes de um todo; portanto, na linguagem corrente, "P." tornouse sinônimo de exatidão, e "preciso", de exato. PREDESTINAÇÃO (lat. Praedestinatio-, in. Predestination; fr. Prédestination; ai. Prádestination; it. Predestinazione). Na teologia cristã, é a escolha que Deus faz dos eleitos, da­ queles que se salvarão: segundo S. Agostinho, foi feita antes da criação do mundo (Depraedestinatione, 10). Para os problemas relativos a ela, v. GRAÇA. A P. é sempre P. à salvação, mas às vezes também foi defendida (e condenada pela Igreja) a P. dupla, para a salvação e para a condenação. Fsta doutrina foi defendida, p. ex.. pelo monge Godescalco de Corbie e com­ batida por Hinkmar (sea IX). Na era moderna, foi defendida pelos Calvinistas (v. PRETERIÇÃO). PREDETERMINISMO (in. Predeterminism, fr. Prédeterminisme; ai. Prãdeterminismus; it. Predeterminísmo). Termo empregado por Kant para designar o determinismo rigoroso, aquele segundo o qual "as ações voluntárias, enquan­ to acontecimentos de fato. têm suas razões sufi­

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PREDICATTVO

cientes no tempo anterior que, juntamente com o que ele contém, não está mais em nosso po­ der" (Religion, I, cap. IV, Observação Geral) (v. DETERMINISMO). PREDICADO (in. Predicate; fr. Predicai; ai. Prãdikat; it. Predicato). Na lógica aristotélica, a proposição consiste em afirmar (ou negar) algo cie alguma coisa: portanto, divide-se em dois termos essenciais, o sujeito, aquilo de que se afirma (ou se nega) alguma coisa, e o P. (Korrr|yopoú|i£vov), que é justamente o que se afir­ ma (ou nega) do sujeito: assim em "Sócrates é branco", "Sócrates" é o sujeito; "branco", o predicado. O P. pode ser essencial, próprio, ou simplesmente acidental. Através de Boécio. essa doutrina passou à Lógica medieval (cf. PEDRO HISPANO, 1.07: "Subiectum est de quo aliquid dicitur; praedícatnm est quocl cie alte­ ro dicitur") e, dela, a toda a Lógica ocidental. Na lógica contemporânea, com a crise da con­ cepção predicativa da proposição (segundo a qual a proposição consiste na atribuição de um P, a um sujeito), o termo "P." passou a ter uso oscilante. Russell (Princ. math, l2, pp. 51 ss.) dá o nome de "P." às funções proposicionais de primeira ordem, que contém somente variáveis individuais (substituíveis apenas por nomes próprios, que denotam indivíduos). Hilbert e Ackermann (Grnndzüge der tbeoretiscben Logik), retornando de alguma maneira ao uso clássico, entendem propriamente por "P." o functor de uma proposição funcional qual­ quer com uma ou mais variáveis. Analoga­ mente, mas com maior precisão. Carnap (cf. p. ex., Einfuhnuig in díe Symboliscbe Logik, 1954, pp. 4 ss.) usa "P." para indicar o símbolo de propriedades ou relação atribuídas a indi­ víduos. G. P. PREDICAM ENTO . V. CATEGORIA. PREDIÇÃO. V. PREVISÃO. PREDICATIVO (in. Predicative-, fr. Prédicatif.íú. PrãdicatiiKit. Predicativo). 1. Chamase P. o uso do verbo ser como cópula de uma proposição, ou seja, em seu significado não existencial (v. SER). 2. Chama-se de P. uma definição que não é impredicativa, no sentido que Poincaré deu a este termo (v. IMPRFDICATIVA, DEFINIÇÃO); por­ tanto, chama-se de P. também a teoria que ex­ clui por princípio as definições impredicativas (in o cálculo proposicional baseado nessa ex­ clusão (cf. p. ex., CHIRCII, Intr. to MatbematicalLogic, § 58) (v. ANTINOMIA).

PREDICÁVEIS

PREDICÃVEIS (gr. KaxriyopoÚLteva; lat. Praedicabilía; in. Predicablesi; fr. Prédicables-, ai. Prãdicabilien-, it. Prèdicabili). Os universais, porquanto aptos por natureza a ser predicados de muitas coisas. Porfírio foi o primeiro a enu­ merar os cinco universais simples ou primiti­ vos, que são gênero, espécie, diferença, próprio e acidente (Isaq, 1). Aristóteles enumerou como elementos de cada proposição ou pro­ blema quatro elementos, que são definição, próprio, gênero e acidente (Top, I, 4, 101 b 24), mas esta enumeração, ao incluir a defini­ ção (que é composta de gênero e de espécie), não leva em consideração a simplicidade dos elementos. A enumeração de Porfírio tornou-se clássica e passou a fazer parte integrante da lógica tradicional. Não teve seguidores, porém, a proposta kantiana de chamar de P. os conceitos do inte­ lecto derivados das categorias, que seriam os conceitos de força, ação, paixão (deriváveis da categoria da reciprocidade), surgir, perecer, mudar (deriváveis das categorias da modalida­ de), etc. (Crít. R. Pura, § 10). A noção desse termo desapareceu da lógica contemporânea (v. os verbetes particulares). PREENSÃO (in. Prehension). Termo com que Whitehead (Process andReality, 1929) de­ signou a percepção, porquanto nela o sujeito apreende ou "apropria-se" de uma "entidade real", uma coisa ou um evento. Na realidade, o próprio nome cie percepção já tem esta cono­ tação (v. PKRCITÇÀO). PREESTABELECIDA, HARMONIA. V. PRKFORMAÇAO. PREEXISTÊNCIA. V. MKTKMPSICOSH. PREFORMAÇÃOün. Preformalion-x. PréJòrmation; ai. Praformatíon: it. ['reformazio)ie). Com o nome de teoria da P. (ou preformismu) toi designada no séc. XV11I a teoria sobre a formação dos organismos, segundo a qual seus órgãos já estão preformados no ovo. Malpighi, em 1637, propusera essa teoria, reco­ nhecendo que os órgãos não se acham preformados no ovo assim como serão no embrião ou no adulto, mas em forma de filamentos ou estames, cada um dos quais é a potência de um órgão (La formcizione dei poliu neliuoro, 1637). Essa teoria foi aceita no séc. XVIII por muitos biólogos, como Haller, Spallanzani e Bonnet, que se chamavam "avisteis", para distingui-los dos "animaculislas", que no fim do séc. XVII afirmavam que o espermatozóide é

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PREMOÇÃO

um homúnculo que contém todas as partes do feto humano. A doutrina da P. era aceita por Leibniz, para quem "Deus formou previamente as coisas de tal maneira que os novos organis­ mos não passam de conseqüência mecânica de um organismo precedente" (Théod, pref.1. Se­ gundo Kant, uma vez admitido o princípio teo­ lógico para a produção dos seres organizados, só há duas hipóteses para explicar a causa de sua forma final: a do ocasionalismo, segundo a qual Deus intervém diretamente em cada nova formação orgânica, ou a da harmonia preestahelecida, segundo a qual um ser orgânico pro­ duz o seu semelhante. Por sua vez, esta última pode ser ou teoria da P. — se a geração fer considerada como simples desenvolvimento de uma forma preexistente — ou teoria da tpigenesia — se a geração for considerada como produção. Kant não escondia sua simpa­ tia pela teoria da epigenesía, porquanto parecia reduzir muito mais que a outra a ação das cau­ sas sobrenaturais e prestar-se mais a provas empíricas (Crít. do Juízo. § 81). A moderna teo­ ria da evolução eliminou o próprio fundamen­ to da oposição entre teoria da P. e teoria da epigenesia (v. EncENv.s.iA; EVOLUÇÃO). PREFORMACIONISMO ou PREFORMIS MO. V. PRKFORMAÇÀO. PREGUIÇA DA RAZÃO. V. RA/ÃO BKKXÍ ÇOSA. PRÉ-LÓGICO (fr. Prélugique). Adjetivo in­ troduzido por L. Lévy-Bruhl para caracterizara mentalidade dos povos primitivos, considera­ da indiferente ao princípio de contradição e fundada naparticipaçào{\.) (Lesfonctionsmentales dans les sociétés inférieures. 1910, pp. 78 ss.). Depois. Lévy-Bruhl abandonou esse con­ ceito: "Não há mentalidade primitiva que se distinga da outra por dois caracteres que lhes são próprios (místico e P.). Existe mentalidade mística mais acentuada e mais facilmente observável entre os primitivos do que em nos­ sas sociedades, mas que está presente em todo o espírito humano" {Les carnets, 1949, VI; trad. ít., p. 161). PREMISSA (gr. rtpÓTOtGiÇ; lat. Pmemissa-M. Premise-, fr. Premisse; ai. Prcimisse; it. Premessci). Toda proposição da qual se infere ou­ tra proposição. PREMOÇÃO (lat. Praemotio; in. Premotiom fr. Prémolioii; it. Premozione). Termo empre­ gado pelos teólogos cio séc. XVII para indicar a determinação física, por parte de Deus, da vontade humana: determinação física que nào

PRENOÇÃO

eliminaria a liberdade do homem. Malebranche discutiu essa noçào em Refléctions sur Ia P. physique (HO*)). PRENOÇÃO (in. Prenotion- fr. Prenotion; ai. Vorbegrijf; it. Premozioné). Termo intro­ duzido por Durkheim para indicar os conceitos pré-científicos fundados na generalização im­ perfeita ou apressada, que F. Bacon chamava de antecipações ou ídolos íkégles de Ia métbode sociologic/ne, p. 23) (v. ANTECIPAÇÃO). PREOCUPAÇÃO. V. CUIDADO; CUKA. PRÉ-PERCEPÇÃO (in. Preperception; fr. Preperception; ai. Praperzeption; it. Prepercezione). Assim foi às vezes chamada a função seletiva que a atenção intelectual exerce sobre a percepção sensível (cf., p. ex.. James. Princ. ofPsychoL, I, pp. 438-45). PRESCIÊNCIA. V. TIÍODICHIA. PRESCINDÊNCIA(in. Prescíssion).Abstração "prescindente", que Peirce distingue da abstra­ ção hipostática, como a operação de escolha que está implícita no mais simples fato de per­ cepção: p. ex.: perceber uma cor significa pres­ cindir da forma e em todo caso isolar essa de­ terminação "cor" das outras, às quais a cor esteja unida (Coll. Pap., 1.549 n: 2.428; 4.235) (v. ABSTRAÇÃO). PRESENÇA (in. Presence, fr. Présencc. ai. Auivesenbeil; it. Presenza). liste termo é em­ pregado em dois significados principais: ly existência de um objeto em certo lugar, pelo que se diz, p. ex., "estava presente à reunião de ontem à tarde'"; 2" existência do objeto numa relação cognitiva imediata; assim, diz-se que um objeto está presente quando 6 visto ou é dado a qualquer forma de intuição ou de co­ nhecimento imediato. No âmbito do primeiro significado, e com objetivos teológicos (para descrever a presen­ ça de Deus ou dos anjos nas coisas ou a pre­ sença do corpo de Cristo no pão do sacramen­ to do altar), os escolásticos distinguiam duas formas de P.: a chamada circunscriptíra, em que uma coisa está inteira em todo o espaço que ocupa, com parte em cada parte do espa­ ço, e a definitiva, em que uma coisa está inteira na totalidade do seu espaço e inteira também em cada uma das partes dessa totalidade. A primeira P. é um modo de ser quantitativo; a segunda exclui qualquer quantidade (cf., p. ex., S. TOMÁS DF. AQHNO, S. Th., 1. q. 52, a. 2; OCKHAM, Quodi, VII, q. 19).

Heidegger chamou de P. ou simples P. ( Vorhandenheit) o modo de ser das coisas, que é

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PRESSUPOSTO

diferente do modo de ser do homem, que é a existência (Sein nncl Zeit, § 9). Sartre, por sua vez, falou de "P. do para-si no ser", ou seja, da consciência, no sentido de que tal presença im­ plicaria que "o para-si é testemunha de si em P. do ser como não sendo o ser": o que significa­ ria que a P. no ser é "P. do para-si em não sen­ do" (I/être et le néant. pp. 166-67). PRESENTAÇÃO (in. Presentalion; fr. Présentation-, ai. Prásentation-, it. Preseiitazioue). Conhecimento imediato ou direto: percepção ou intuição. Ksse termo foi introduzido por Spencer. que fazia a distinção entre conheci­ mento presentativo (que se tem quando "o conteúdo de uma proposição é a relação entre dois termos, ambos diretamente presentes, como quando machuco o dedo e e.siou simul­ taneamente ciente da dore da sua localização") e o conhecimento representativo, que é a lem­ brança ou a imaginação do outro conhecimen­ to (Princ. ofPsychologv, § 423). Ksse termo foi aceito por muitos psicólogos no séc. XIX. mas hoje está em desuso. PRESENTACIONLSMO (in. Presentationism. fr. Piésentationisme, it. Presentazionismo). Foi assim que Hamilton chamou seu "rea­ lismo natural", doutrina segundo a qual a percepção 6 uma relação imediata com o objeto existente (Disserlationson Reici, p. 825). PRESENTE. V. INSTANTE; AGORA; TrMPO. PRESSUPOSTO (in. Presuppositiou; fr. Présiippositiorv, ai. Vorausselzung; it. Presnppos to). 1. Premissa não declarada de um raciocí­ nio, utilizada no decorrer de um raciocínio, mas que não foi previamente enunciada, não havendo, pois. um compromisso definitivo em relação a ela. Diferentemente da premissa, do postulado, da hipótese, etc. o P. é introduzido sub-repticiamente no decorrer de um raciocí­ nio, limitando ou dirigindo-o de maneira dissimulada ou oculta. Pode ser também de­ finido como regra sub-reptícia de inferência. Portanto, o princípio da eliminação dos P. e fundamental para todos os campos da inves­ tigação no mundo moderno. A expressão "eliminação dos P." (ai. Voraussetzungslosígkeit) parece ter sido cunhada apenas por Fr. Strauss (Leben Jesu, 1836, p. IX), mas a exigência que ela encerra está na origem da ciência moderna (que com Galileu procurou livrar-se dos P. metafísicos) e da filosofia moderna (que com Bacon e Descartes afir­ mou a exigência de uma investigação radi­ cal, fundada apenas em premissas declara­

PRESUNÇÃO

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PREVISÃO

das). A eliminação dos P. também tem o fim pressou-o nas palavras de abertura da Introdu­ de evitar que. em certo campo de investiga­ ção a Prinzipien derMecbíi)rik(lti9A): "O pro­ ções, atuem crenças pertencentes a campos blema mais imediato e, certamente, o mais diferentes que limitem a investigação de importante que nosso conhecimento da nature­ modo não controlável. Husserl fez uso mais za permite resolver é a previsão dos aconteci­ restrito e técnico do princípio da eliminação mentos futuros, de tal modo que possamos or­ dos ['.. lançando mão dele para delimitar a ganizar nossas atividades presentes de acordo esfera fenomenológica (Ld>iscbc inlersiicbini- com tais previsões". Para Peirce, a P. é a base da verdade prática da hipótese científica: "Na !>en, II, Intr., § 7). 2. O mesmo ([Lie premissa, postulado ou indução não é o fato previsto que, em alguma hipótese. Kste segundo significado pode levar medida, determina a verdade da hipótese ou a torna provável, mas sim o fato de ele ter sido a confusões. PRESUNÇÃO (lat. Praesiimptio: in. Pre- previsto com sucesso e de ser uma amostra sitmplioii; fr. Présomptiou, ai. Prãsuniptiuii; it. aleatória cie todas as P. que podem basear-se Presimzio)ie).\. Juízo antecipado e provisório. na hipótese e que constituem a verdade prática que se considera válido até prova em contrário. dela" (Co//. Pap.. 6.527). P. ex., "V. de culpa" é um juízo de culpabilida­ No neoempirismo contemporâneo, alguns de que se mantém até que seja aduzida uma filósofos tendem a reduzir a P. à explicação; prova em contrário; têm significado análogo as outros, a reduzir a explicação à previsão. No expressões "P. de verdade" ou "P. favorável" primeiro sentido, Carnap expressa-se dizendo ou "P. contrária" a uma proposição qualquer. que "a natureza cie uma P.. no que diz respeito 1. Confiança excessiva em suas próprias á confirmação ou à comprovação, é a mesma possibilidades; e neste senlido chama-se de de um enunciado sobre um evento presente não diretamente observado por nós, como p. presunçoso quem alimenta tal confiança. PRETERIÇÃO (in. Prctcritioii; fr. Prélcri- ex. sobre um processo em curso no interior de tioir, it. Prctcrizionc). Conceito utilizado pela uma máquina ou um acontecimento político na teologia calvinísta para atenuar a doutrina da China ("Testability and Meaning", em Keadings dupla predestinação: os réprobos são assim in tbe Pbil, of Science. 1953. p. 87). No segun­ porque Deus "os preteriu" em sua escolha (et. do sentido. Quine declara acreditar que o Calvin, Iiistitutions de kl religion cbréticimc, esquema conceituai da ciência é, em última análise, um instrumento para prever a expe­ 111 cap. 2A1 PREVISÃO (gr. Trpóyvcuotç; in. Predictioit, riência futura à luz da experiência passada fr. Prévision: ai. Xorausscige; it. Precisionc). l m (From a I.ogical Point of Vicie. II, 6). A identi­ dos objetivos fundamentais da explicação cien­ dade entre lógica da P. e lógica da explicação tífica, ou a própria explicação. Na ciência anti­ foi asseverada por Feigl (em Readini>s. cit., p. 417-]H), enquanto Hempel defendeu a tese da ga, a importância tia P. foi acentuada apenas em medicina (HIPOCRATKS, Prognoslikon. 1). identidade estrutural (ou da simetria) entre Galileu expunha esse conceito afirmando que explicação e P., no sentido cie que "toda expli­ "chegar ao conhecimento de tini único efeito cação adequada é potencialmente uma P., e. in­ para suas causas abre-nos o intelecto ao en­ versamente, toda P. adequada é potencialmen­ tendimento e á certeza de outros efeitos, sem te uma explicação" (Aspccls of Scieiitific necessidade de recorrer à experiência" (Discor- tixpkiiuitiou, 1965, p. 367). Popper. depois de si inlonio a clue m/oreseienze. Opere, ed. Utet, afirmar que todas as ciências teóricas, inclusive II, p. 799). A P. foi utilizada por Hume em sua as sociais, são ciências de P.. ressaltou a distin­ crítica da causalidade: "Por sermos levados ção entre a P. científica e a profecia histórica, pelo costume a transferir o passado para o tu- porque esta última carece do caráter condicio­ turo. em todas as nossas inferências, sempre nal da primeira: "As P. comuns cia ciência são que o passado se manifesta regular e uniforme, condicionais. Asseveram que certas mudanças esperamos o acontecimento com a máxima (p. ex., da temperatura da água numa chaleira) certeza e não damos ocasião a suposições con­ serão acompanhadas por certas transformações trárias" (liKj. (À)iic. Vnderst.. VI). Comte pôs (p. ex., a ebulição da água)" ((Jonjecliires and esse conceito em primeiro plano com sua fór­ Refutatioiis. 1965, p. 339). mula "Ciência, portanto P.-. P.. portanto ação" Reichenbach usou o termo pós-visibilidade (Cours depbil. pos, 1830. I. p. SI). Heltz ex­ (post-dictability) para indicar a possibilidade

PRIMADO

de determinar "os dados passados em termos de observações dadas" (Philosophic Foundalions of Quantum Mechanics. 1944. p. 13). O termo pós-visão ou retrovisão (postidictio)i or rvtrocJictiou) foi empregado para indicar o in­ verso lógico de uma P., ou seja, a inferência que procede de um acontecimento presente para trás. em direção a uma condição inicial já conhecida (HANSON, The Concept of lhe Po­ sition, 1963. p. 193)- V. EXPLICAÇÃO. PRIMADO (in. Primacy, ir. Primauté, ai. Primat; it. Primata). Importância primária de uma coisa ou o que condiciona uma coisa em relação às outras. Kant diz: "Por P. entre duas ou mais coisas ligadas pela razão, entendo a superioridade cie uma delas por ser o primeiro motivo que determina a ligação com Iodas as outras". Mais precisamente. "P. cia razão práti­ ca" significa a prevalência do interesse prático sobre o teórico, no sentido de a razão admitir, por ser prática, proposições que não poderia admitir no uso teórico e que não constituem uma de suas extensões cognoscitivas: os postu­ lados da razão prática (Crít. R. Prática, II. cap. 2, seç. 3). A palavra P. foi usada no campo político para indicar a função predominante que certo elemento (povo. nação, classe, gru­ po social, etc.) tem ou deve ter na totalidade à qual pertence. Giobertí falou neste sentido do P. moralecivildositalianos( 1843). Nesta exten­ são, o termo adquire significados ainda mais vagos e arbitrários que no primeiro significado. PRIMALIDADE (lat. Primalitas- ai. Primalitüt: it. Primalitã). Princípio constitutivo cio ser, segundo Campanella. Há três P.: poder ipotentia), saber (sapíeutia) e amor (amor), que em Deus são infinitas e nas coisas são limitadas pelos seus contrários — impotência, insipiência e ódio —, que constituem o não ser (Metaphisica. 1638. VI. Proem). Esse termo tem o mesmo valor de princípio (v.). PRIMÁRIAS e SECUNDÁRIAS, QUALI DADES. V. QlAUDADK. PRIMÁRIO (lat. Primarius; in. Primaty, fr. Primaíre; ai. Primar, it. Primário). 1. O que é primeiro ou mais importante num campo qual­ quer, ou o que é primeiro no sentido de con­ dicionar o que vem depois, sem ser condicio­ nado por ele. liste era uni dos sentidos — o fundamental — que Aristóteles atribuía á pala­ vra "primeira" (Mel, V, 11, 1019 a 2), sendo o mais freqüentemente relacionado com o uso do termo. "Qualidades IV, p. ex.. são as quali­ dades que não podem faltar nos corpos e que

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PRIMITIVO

condicionam as "qualidades secundárias". "Es­ cola P." é aquela que- todos devem freqüentar e que prepara aos outros tipos de escola. "Aten­ ção P." foi o nome dado por alguns psicólogos à atenção primitiva, originária, etc. Diz-se "im­ portância P." para dizer importância fundamen­ tal ou condicionante. 2. O mesmo que primitivo (v.). PRIMEIRO MOTOR. V. f)Kts. PROVAS DH. PRIMEIRO MÓVEL. V. MÓVKL, PRI.MKIRO. PRIMnWTSMO (in. Primitivism: fr. Primitivisme, it. Primitivismo). 1. Atitude ou mentali­ dade dos povos primitivos, especialmente no aspecto cie conformação do indivíduo aos va­ lores do ambiente. É neste sentido que esse termo é usado, p. ex., por Scheler (Sympatbie, cap. III; trad. fr., p. 362, n. 2). 2. Crença de que a forma mais perfeita de vida humana 6 a que existiu no primeiro perío­ do da humanidade (mito da idade do ouro), ou a que se observa nos povos primitivos, consi­ derados mais jovens (mito do "bom selvagem"). Quanto a este significado cie P., v. Lovejoy e Boas, Primitivism and Related Ideas in Antí(jiüty, 193a; Boas, Essays ou Primitivism and Related Ideas in lhe Middle Ages, 1948). PRIMITIVO (in. Primitive-, fr. Primitif, ai. Prímitiv, it. Primitivo). 1. O mesmo que origi­ nário (v.), nos dois sentidos deste termo: a) o que pertence à fase inicial de um desenvolvi­ mento ou de uma história, e neste sentido dize­ mos "a nebulosa IV, "a humanidade IV. etc: b) o que funciona como condição, princípio ou premissa, e por isso determina outras coisas, não sendo, porém, determinado por elas; neste sentido, dizemos "proposições IV, "função IV. Chamam-se "símbolos IV os introduzidos dire­ tamente, sem ajuda de outros símbolos. 2. O que é simples, no sentido de constituir a forma mais elementar que certo objeto pode assumir; neste sentido fala-se em "homens P." ou simplesmente "os IV. Durkheim utilizou esse significado para definir os P., juntamente com o significado estudado em (a) (Lesformes élementaires de Ia vie religiense. 1937, p. 1). Mas Lévy-Bruhl escreveu: "Com este termo im­ próprio, mas de uso quase indispensável, preten­ demos designar simplesmente os membros das sociedades mais simples que conhecemos" (Les fouctions mentales dans le sociétes iufcrieures, 1910, p. 2). No mesmo sentido, emprega-se hoje a palavra primário (v.). No que diz respeito às interpretações do mundo P., podem ser agrupadas em duas cias-

PRIMORDIAL

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ses: a) as que consideram o mundo P. como pré-lógico, pré-empírico e místico, portanto de constituição completamente diferente cia socie­ dade civilizada; esta foi a interpretação defen­ dida especialmente por Lévy-Bruhl (do qual além da obra citada, v.: La mentalitéprimitive, 1922; Lâme primitive. \L)21; Lexpérience mystique et le symboles chez les primitifs; 1938), mas corrigida por ele mesmo, no sentido de matizar ou atenuar a diferença entre a menta­ lidade F. e a não P., que é mais de grau que de qualidade (Les canteis, 1949); ti) as que admi­ tem nas comunidades P. a posse de abundante patrimônio de conhecimentos fundados na ex­ periência e na razão, considerando que o ho­ mem P. tende a recorrer ã magia ou ao misticis­ mo só quando os conhecimentos que possui não o ajudam mais. lista é a interpretação de­ fendida principalmente por Bronislaw Malinowski (Magic, Science etnd Religion, 1925) e hoje adotada por quase todos os sociólogos. PRIMORDIAL (in. Primordial; fr. Primor­ dial-, it. Primordialé). O mesmo que originá­ rio (v.). PRINCÍPIO (gr. àpxn; lat. Principiam; in. Principie; fr. Príncipe-, ai. Prinzip. Grundsatz; it. Principio). Ponto de partida e fundamento de um processo qualquer. Os dois significados, "ponto de partida" e "fundamento" ou "causa", estão estreitamente ligados na noção desse ter­ mo, que foi introduzido em filosofia por Anaximandro (Simplício, Fís., 24, 13); a ele recorria Platão com freqüência no sentido de causa do movimento (Fed.. 245 c) ou de fundamento da demonstração (Teet., 155 d); Aristóteles foi o primeiro a enumerar completamente seus significados. Tais significados são os seguintes: 1- ponto de partida de um movimento, p. ex.. de uma linha ou de um caminho; o melhor ponto de partida, como p. ex. o que facilita aprender uma coisa; 3o ponto de partida efeti­ vo de uma produção, como p. ex. a quilha de um navio ou os alicerces de uma casa; 4U causa externa de um processo ou de um movimento, como p. ex. um insulto que provoca uma briga: 5o o que, com a sua decisão, determina movi­ mentos ou mudanças, como p. ex. o governo ou as magistraturas de uma cidade; 6" aquilo de que parte um processo de conhecimento. TOTOO p. e-x A ptemsf,'A te \\m àwKmswv çào. Aristóteles acrescenta a esta lista: "'Causa' também tem os mesmos significados, pois to­ das as causas são princípios. O que todos os significados têm em comum é que, em todos.

PRINCIPIO

P. é ponto de partida do ser, do devir ou do conhecer" {Met., V. 1, 1012 b 32-1013 a 19). Esses reparos de Aristóteles contêm quase tudo o que a tradição filosófica posterior disse a respeito dos princípios. Talvez caiba distin­ guir outro significado: como ponto de partida e causa, o P. às vezes é assumido como o ele­ mento constitutivo das coisas ou dos conheci­ mentos. Este, provavelmente, era um dos senti­ dos da palavra entre os pré-socráticos, às vezes utilizado pelo próprio Aristóteles (Met., I, 3, 983 b 11; 111. 3, 998 b 30, etc). Neste sentido. Lucrécio chamava os átomos de P. (De rer. nal. II, 292, 573. etc), e os estóicos distinguiam elementos e P., pelo fato de que os P. não são gerados e são incorruptíveis (I)IÓG. L, VII. 1, 134). No séc. XVIII, ao definir o P. como "o que contém em si a razão de alguma outra coisa", Wolff (Ont., § 886) observava que esse signifi­ cado estava de acordo com a noção de Aristó­ teles e que os escolásticos não se haviam aiastado dela ( Ont., § 879). Baumgarten, a quem a terminologia moderna tanto deve, repetia a de­ finição de Wolff (Met., § 307). Kant. por um lado, restringia o uso do termo ao campo do conhecimento, entendendo por P. "toda propo­ sição geral, mesmo extraída da experiência por indução, que possa servir de premissa maior num silogismo", mas por outro lado introduzia a noção de "P. absoluto" ou "P. em si", vale dizer, conhecimentos sintéticos originários e puramente racionais, que ele julgava insubsistentes. mas aos quais a razão recorreria no seu uso dialético (Cnt. R. Pura, Dialética, II, A). Na filosofia moderna e contemporânea a noção de P. tende a perder importância. Com efeito, inclui a noção de um ponto de partida privilegiado, não de modo relativo (em relação a certos objetivos), mas absoluto, em si. Um ponto de partida desse gênero hoje dificilmen­ te poderia ser admitido pelas ciências. Poincaré observava com razão que um P. não passa de lei empírica que se considere cômodo subtrair ao controle da experiência por meio de con­ venções oportunas: portanto, um P. não é ver­ dadeiro nem falso, mas apenas cômodo (La valeur de Ia science. 1905, p. 239). Em mate­ mática e lógica, nas quais há oportunidades indicar as premissas de um discurso, e foi subs­ tituído por axioma ou postulado. Nestes cam­ pos, é freqüente dar-se o nome de P. a teo­ remas particulares, cuja importância para o

PRINCIPIO ATIVO

desenvolvimento ulterior de um sistema simbó­ lico se queira ressaltar. Peirce chamara de P. guia (Leading Principie) o P. que "se deve su­ por verdadeiro para sustentar a validade lógica de um argumento qualquer" (Coll. Pap, 3, 168; cf. DKWKY, Logic, I; traci. it., p. 46). PRINCÍPIO ATIVO (gr. TÒTTÜIOÜV). Foi esse o nome que os estóicos deram à Razão, à Cau­ sa ou Deus que dá forma à matéria (que 6 o P. passivo), produzindo nela os seres individuais (DIOG. L, VII, 134); identificaram esse princípio com o Fogo. no sentido de calor ou cie espírito animador (Ibicl., VII, 156; CÍCERO, Derutt. deor., 11. 24). PRINCÍPIO DE AÇÃO MÍNIMA; DE CAU SAUDADE; DE CONTRADIÇÃO; DE IDEN TIDADE; DOS INDISCERNÍVEIS; DE IN DIVIDUAÇÃO; DE RAZÃO SUFICIENTE; DO TERCEIRO EXCLUÍDO; etc V termos re­ lativos. PRIORIDADE (in. Priority fr. Priorité, ai. Prioritãt: it. Prioritã). 1. Precedência no tempo. 2. Caráter do que é primário (v.). PRIVAÇÃO (gr. OZÈpTJOlQ; lat. Privatio; in. Privation; fr. Privation; ai. Privation; it. Privazione). Falta daquilo que, por qualquer razão, poderia ou deveria ser. V. este o sentido da definição de Wolff: "Ausência cie uma realida­ de que podia ser ou â qual não repugna ser'' (Ont, § 273). Aristóteles incluíra entre os signi­ ficados desse termo (todos redutívei.s ao que acabamos de enunciar) também a falta de um atributo que não pertence naturalmente á coi­ sa, como quando se diz que uma planta não tem olhos (Met., V, 22. 1022 b 22). Mas essa ge­ neralização excessiva torna o conceito quase que inútil. O próprio Wolff fazia a distinção entre entidades privativas, que consistem na falta (como cegueira, morte, trevas, etc.) e em seus nomes relativos, de entidades positivasc seus nomes (Ont., § 273-274); essa distin­ ção foi reproduzida por John Sruart Mill. que observava a respeito; "Os nomes denominados privativos indicam duas coisas: ausência de certos atributos e presença de outros, a partir dos quais se poderia esperar naturalmente a pre­ sença cios primeiros" (Logic. I, 2, § 6). Kstas distinções conservaram-se na lógica tradicio­ nal do séc. XIX (cf., p. ex.. SiGWAfT. Logik... 1889. I, § 22). PROBABILIDADE (gr. TO EIKOÇ; lat. Probabilitas; in. Probability; fr. Probabilíté; ai Warbscheinlicbkeit; it. Probabilitã). Grau ou a medida da possibilidade de um evento ou de

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PROBABILIDADE

uma classe de eventos. Nesse sentido, P. sem­ pre supòe uma alternativa, e é a escolha ou preferência por uma das alternativas possíveis. Se dissermos, p. ex., "amanhã provavelmente choverá", estaremos excluindo como menos provável a alternativa "amanhã não choverá"; se dissermos "a P. de uma moeda ciar coroa é de metade", o significado dessa afirmação de­ corre do confronto com a outra alternativa pos­ sível, de ela dar cara. Podemos exprimir esse caráter da P. dizendo que ela é sempre função de dois argumentos. Outro caráter geral da P. (.seja qual for a interpretação) é que do ponto de vista quantitativo ela e expressa com um nú­ mero real cujos valores vão de 0 a 1. O problema a que a noção de P. dá origem é o do significado, ou seja, do próprio conceito de probabilidade. O cálculo de P.. p. ex.. não dá origem a problemas enquanto não é interpre­ tado: os matemáticos estão de acordo sobre todas as coisas que podem ser expressas por símbolos matemáticos, porém seu desacordo começa quando se trata de interpretar tais sím­ bolos. Carnap (lhe Tivo CoticcptsofProbability, 1945. agora em Readiugs in tbe Philosopby of Science, 1953, pp. 441 ss.) e Russell (Humau Kíiouiedge, 1948, V, 2) falaram da existência de dois conceitos diferentes e irredutíveis de P.; o primeiro chamou, respectivamente, de P. in­ dutiva (ou grau de confirmação) e P. estatística (ou freqüência relativa); o segundo falou em grau de credibilidade e 1'. matemática. Foram propostos outros nomes para esses dois tipos de P. Kneale deu o nome cie aceitabilidade ao primeiro tipo e de acaso (chance) ao segundo (Probability and Induction, 1949, p. 2.2.); Braithwaite denominou o primeiro de razoahilidade e o segundo de P. (Scientific Kxplanation, 1953, p. 120). Os dois conceitos defrontaram-se nos últi­ mos quarenta anos, procurando cada qual eli­ minar o outro, o que é tipicamente representa do nas posições de Von Moisés e de Jeffrevs. O primeiro rejeita, por ser subjetivo, o conceito de P. indutiva, considerando sem sentido uti­ lizar o termo P. fora do conceito estatístico (Probability, Statistics and Truth. 1928. ed. 1939. lect. I, III) O segundo acha que a chama­ da definição objetiva de P. é ínutilizável e que nem os estatísticos a empregam, porque "todos usam a noção de grau de crença razoável, em geral sem notarem que a estão usando" ("lheory ofProbability, 1939. p. 300). Visto que as observações de Carnap e de Russell tornam

PROBABILIDADE

79-í

PROBABILIDADE

essa polêmica sem significado, mas ao mesmo tempo confirmam a existência de dois concei­ tos diferentes de P., pode-se, com base em tais conceitos, lazer um apanhado das doutrinas re­ lativas. Para se evitarem qualificações polêmicas (e inexatas), como "subjetivo", "objetivo", etc, pode-se simplesmente considerar como carac­ terística distintiva dos dois conceitos de P. a função desempenhada por cada um deles e fa­ lar, conseqüentemente, de 1" P. singular, 2 " P. coletiva. V Para caracterizai' o primeiro conceito de P. pode-se dizer que ele tem em vista o grau cie possibilidade de um evento único e que, por­ tanto, seus argumentos são eventos, fatos ou estados de coisas ou circunstâncias, sendo a probabilidade expressa p o r p ro p o siçõ e s do tipo "Amanhã provavelmente choverá". O antece­ dente histórico remoto dessa noção é o concei­ to neo-acadêmico de representação persu a sira (v.), cujos graus eram enumerados por Carnéades, que os determinava por provas ou por indícios negativos ou positivos (v. PFRSI/ASIVO). Os criadores do cálculo de P. tinham em mente esse conceito de probabilidade. Bernouilli deu a seu tratado, primeira obra impor­ tante sobre o assunto, o nome de A rs conje c ta n d í (1713). A grande obra de Laplace, intitulada Tbéoríe ana lytiq ue cies p ro b a b ilités (1812). inspirava-se no mesmo conceito; em sua introdução, Laplace afirmava que "a P. dos eventos serve para determinar o temor ou a esperança das pessoas interessadas na existên­ cia deles" (H ssaiphilosophique su r lesp ro ba b ilités, I, 4), e toda a sua obra não trata de estatís­ tica, mas dos métodos para estabelecer a aceitabilidade das hipóteses. Desse ponto de vista, a P. era definida como "a relação entre os números de casos favoráveis e o de todos os casos possíveis". O princípio fundamental para avaliar as P. era o chamado p rin cíp io de in d ife­ rença ou de eqüiprobabilídade, segundo o qual, na falta de qualquer outra informação, assume-se que os vários casos são igualmente possíveis; desse modo, p. ex., quando se lança um dado, admite-se que cada uma de suas fa­ ces tem idênticas P. de aparecer, uma vez que cada face tem a mesma P. de 1/6 ( Op. cit.. I, 3). Embora esta teoria tenha sido acerbamente criticada, foi retomada em 1921 pelo economis­ ta inglês John Maynard Keynes, em seu Trata­ do sob re a P., e mais tarde exposta por F. P. Ramsey ( The F o u n d a tio n s o f M athem atics. 1931) e por H. Jeffreys (T h eo ry o fP ro b a b ility,

1939). Todos esses escritores definem a P. como um "grau de crença racional" e admitem a validade do princípio de indiferença, mas, como notou o próprio Carnap, o caráter subje­ tivo dessa definição é apenas aparente, pois o que eles procuraram determinar são os possí­ veis g ra u s d e confirm ação de determinada hipótese. De fato, os graus de crença só pode­ riam ser estabelecidos por métodos psicoló­ gicos, ao passo que, na realidade, os métodos propostos por esses autores nada têm de psico­ lógicos; são lógicas e referem-se à disponibili­ dade e à natureza das p ro va s que podem con­ firmar uma hipótese. Com base nesse conceito objetivo de P. singular, Carnap criou um siste­ ma de lógica quantitativa indutiva, com funda­ mento no conceito de confirmação em suas três formas: positiva, comparativa e quantitativa (I.ogical F o unda tions o fP ro ba bility, 1950). 0 conceito p o sitiv o d e co nfirm ação é a relação entre dois enunciados h (hipóteses) e p (pro­ va), que pode ser expressa por enunciados da seguinte forma: "b é confirmado por p " ; "hé apoiado p o rp "; "pé uma prova (positiva) para b"; "pé uma prova que consubstancia (ou cor­ robora) a assunção de h". O conceito com p ara­ tivo (topológico) d e co nfirm ação geralmente é expresso em enunciados que têm a forma "hé mais fortemente confirmado (apoiado, con­ substanciado ou corroborado, etc.) por p do que tí por /;'". Finalmente o conceito q u a n tita ­ tivo (ou m étrico) de co nfirm ação (conceito de g ra u de confirm ação) pode ser determinado nos vários campos por métodos análogos aos utilizados para introduzir o conceito de tem p e­ ratura, com o fim de explicar os de "mais quente" ou "menos quente" ou o de qitociente intelectual, para determinar os graus compara­ tivos de inteligência. Carnap também defendeu o princípio de indiferença (mesmo consideran­ do-o como forma limitada), aplicando-o às dis­ tribuições estatísticas, e não às distribuições individuais. A teoria de Carnap foi amplamente discutida e aceita. Foram propostas outras determinações do conceito de g ra u d e co nfir­ mação (cf. p. ex., HKIAIKR e OITKNHKIM, "A Syntactical Definition of Probability and Degree of Confirmation" em fo u rn a l o fS ym b o lic Logic, 1945, p. 25-60). O conceito de P. singular, ou seja, de grau de confirmação, é o único a que se faz geral­ mente referência nos acontecimentos da vida e que é assumido, explícita ou implicitamente, como orientador dos comportamentos indivi­

PROBABILIDADE

duais. É preciso observar que. entre os indícios ou provas que podem ser assumidos como confirmação de uma hipótese qualquer, co­ mo fundamento de um juízo de P.. nada impe­ de que se inclua a consideração cias freqüências estatísticas às quais se reduz o segundo concei­ to de P. As vezes, porém, a P. estatística taz parte de determinação da P. singular com sinal invertido; p. ex.. para quem aposta na loteria, a freqüência com que certo número toi sor­ teado nos últimos tempos é um indício cie P. negativa: para ele, são bons os números menos sorteados durante um período mais ou me­ nos longo. 2" O segundo conceito lundamental 6 de P. coletiva ou estatística, cujo objeto nunca são eventos ou fatos individuais, mas classes, espé­ cies ou qualidades de eventos, podendo, por­ tanto, ser expressos apenas por funçõesproposicioimis (\\), e não por proposições. Seu antecedente histórico mais distante é o concei­ to aristotélico do verossímil (v.): "Provável é aquilo que sabidamente acontece ou não na maioria das vezes, que é ou não na maioria cias vezes" (An. pr.. II, 27. 70 a 3; Rei., 1. II, 135"7 a 3Í). Mas a formulação rigorosa desse conceito só foi feita recentemente por Fischer (Philosophicül Tmuscictions ofthe Royal Society. série A. 1922), por Von Moisés (Probability. Sla/istics and '1'rutb, 1928). por Popper (I.ogikderForschung, 1934) e por Reichenbach ( Wabrscbeinlicbkeilslehn: 1935; Theory of Probability, 1948). Como ilustração dessa noção de P., pode­ mos escolher a elaboração de Von Moisés, com o conceito da freqüência-limite. Se para ;/ ob­ servações o evento examinado ocorre in ve­ zes, o quociente tn/nc a freqüência relativa cia ciasse de eventos em questão: relativa ao nú­ mero n cie observações. Mas se quisermos fa­ lar simplesmente em freqüência, sem limitar a extensão das observações, podemos supor que, à medida que o numerador e o denominador vão ficando maiores, a função m/n tende para um valor-limite. podendo-se considerar esse valor-limite como medida da freqüência, ou seja. como medida da P. no sentido proposto. Assim. p. ex.. se lançando uma moeda 1.000 vezes tivermos freqüência 550 para cara. se em 2.000 vezes tivermos freqüência 490, em 3.000 freqüência SOS. em 4.000, freqüência 49~\ em 10.000, freqüência 5.003, e assim por diante, visto que o valor-limite dessas séries é O.S. assumiremos esse valor-limite como valor da

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PROBABILIDADE

P. do acontecimento em questão. Mas esse acontecimento nunca é singular, portanto a P. assim calculada não servirá para prever o resultado do próximo lance da moeda e per­ mitir, p. ex., que um jogador escolha a sua aposta. A P. dessa espécie vale para classes de eventos, e não para eventos singulares. Não se pode falar. p. ex.. da P. de um indivíduo qual­ quer morrer no ano em curso, mesmo quando conhecemos o limite de freqüência da mortali­ dade no grupo ao qual ele pertence (cl. tam­ bém de YON MOISKS. Kleines Lebrbuch des Positivismns. § Í4). Keinchenbach afirmou a propósito: "A asserção que concerne à P. de um caso individual tem significado fictício. construído através da transferência de significa­ do do caso geral para o particular. A adoção dos significados fictícios não é justificável por motivos cognitivos, mas porque é útil aos objetivos da ação considerar tais asserçòes dotadas cie significado" ( Tbeory of Probability. p. 37"7). A outra característica funda­ mental da teoria é a eliminação do princípio de indiferença, ou seja. cia P. cipriori.A teoria es­ tatística da P. de fato nada pode dizer a respeito cia P. cie uma classe de eventos se antes não ti­ ver determinado as freqüências desse evento; portanto, qualquer grau de P. só pode ser de­ terminado eiposteriori. ou seja. depois de efe­ tuada a determinação das freqüências (Ri-iClll-NHACII, Op. Cil.. § 70. p p . 35 9 SS.).

A teoria coletiva ou estatística cia P. foi am­ plamente aceita na filosofia contemporânea (vejam-se, além das obras citadas, |. O. Wisno\[, Fonndalions of Inference in Mdtnrcil Science. 1952. e BRAITHVAITK. Scíenlífic lixflanation. 1953). Outra determinação dessa dou­ trina foi feita por Popper, principalmente com vistas à sua utilização na teoria quântica. domo dissemos, a P. estatística não se refere a even­ tos singulares, mas a classes ou seqüências cie eventos. Popper propõe considerar como deci­ sivas as condições sob as quais a seqüência é produzida, vale dizer, considerar que as lreqüências dependem das condições experimen­ tais e portanto constituem uma qualidade disposicio)Kil&.\ ordenação experimental. Popper diz: "Qualquer ordenação experimental é ca­ paz de produzir uma seqüência de treciüeneias que dependem dessa particular ordenação, se repetirmos a experiência mais vezes. Estas fre­ qüências virtuais podem ser denominadas pro­ babilidades. Mas, visto que as P. dependem cia ordenação experimental, elas podem ser

PROBABILISMO

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PROBLEMA

consideradas propriedades dessa ordenação. 3. Corrente da ciência contemporânea, que Caracterizam a disposição ou propensão da atribui caráter de probabilidade a grande nú­ ordenação experimental a dar origem a certas mero de conhecimentos ou a todos eles (v. freqüências características, quando o experi­ CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; DHTKKMNISMO). mento é repetido várias vezes" ("The Propensity PROBLEMA (gr. npófSA.riua; lat. Problema, Interpretation of the Calculus of Probability in. Problem, fr. Problème, ai. Problem, it. Pro­ and the Quantum Theory", em Observation and blema). Em geral, qualquer situação que inclua Interpretation. A Symposium ofPbilosophersand a possibilidade de uma alternativa. O P. não Pbysicists, ed. por Kõrner, 1957, p. 67). A van­ tem necessariamente caráter subjetivo, nào é tagem dessa interpretação seria considerar fun­ redutível à dúvida, embora, em certo sentido, damental "a P. do resultado de um experimen­ a dúvida também seja um problema. Trata-se to único em relação com suas condições, e mais do caráter de uma situação que nào tem não a freqüência dos resultados numa série de um significado único ou que inclui alternativas experimentos" (Ibíd., p. 68). Popper faz ana­ de qualquer espécie. P. é a declaração de uma logia entre esse conceito e o de campo (v,), situação desse gênero. A noção de P. foi elaborada pela matemática observando que nesse caso uma P. pode ser considerada um "vetor no espaço das possibi­ antiga, que a distinguiu cia noção de teorema lidades" (Ibid). Essa interpretação tende, ob­ (v.). Por problema entendeu-se uma proposi­ viamente, a diminuir a distância entre os dois ção que parte de certas condições conhecidas para buscar alguma coisa desconhecida. Alguns conceitos fundamentais de probabilidade. geômetras (provavelmente os da escola platô­ PROBABILISMO (in. Probabilism, fr. Pro- nica) acreditavam que sua ciência era consti­ babilisme, ai. Probabilísmus; it. Probabilismo). tuída essencialmente problemas; outros, 1. Ceticismo da Nova Academia que, mesmo por teoremas (PROCI.O, por Com. ao I de Euclides, negando a existência de um critério de verda­ 77, 7-81, 22, Friedlein). Aristóteles definia o P. de, considerava critério suficiente para dirigir a como um procedimento, dialético que tende à conduta da vida aquilo que Arcesilau chamava escolha ou â recusa, ou também à verdade de plausível (Siixm E., Adi: malh.. Vil. 158) e conhecimento" (7b/).. I. II, 104 b), no quale ao as Carnéades, de provável (Ibid, VII, 166; Pirr. palavras "escolha" ou "recusa" significam as hyp.. 1, 33. 226). alternativas que se apresentam aos problemas 2. Doutrina á qual Ireqüentemente recor­ cie ordem prática, enquanto "verdade" e "co­ ria a casuística dos jesuítas do séc. XVII, se­ nhecimento" designam as alternativas teóricas. gundo o qual, para não pecar, nos casos de Aristóteles exemplifica sua definição dizendo regra da moral duvidosa, basta ater-se a uma que pertence â primeira espécie o P. de saber opinião provável, considerando-se provável se o prazer é um bem ou não; à segunda espé­ a opinião defendida por algum teólogo. cie, o P. de saber se o mundo é eterno {Ibid.. Leibniz observava a respeito: "O defeito dos 1Ü4 b 8). Visto que, onde existem P. também moralistas laxistas foi, em grande parte, te­ existem silogismos contrários, os P., segundo rem uma noção demasiadamente limitada e Aristóteles, só podem nascer quando nào há insuficiente do provável, que eles identifica­ discurso concludente: em outros termos, o P. ram com o opinável de Aristóteles", enquanto pertence ao domínio da dialética, isto é, dos o provável é, segundo Leibniz, um conceito discursos prováveis, e nào ao da ciência. Sea muito mais amplo (Nouv. ess, IV, 2, 14). O P. como for, para Aristóteles o P. conserva o cará­ teve, especialmente no séc. XVII. inúmeras va­ ter de incieterminação que lhe é dado pela riantes, entre as quais podemos lembrar: o alternativa. No uso matemático do termo, po­ probabíliorísmo, segundo o qual, nos casos de rém, esse caráter foi-se atenuando. A lógica aplicação duvidosa de uma regra moral, não se medieval desprezara a análise e a definição deve adotar uma opinião provável qualquer, dessa noção, e quando ela volta a atrair a aten­ mas a mais provável, e o lutiorismo, segundo ção dos lógicos, no séc. XVII, o significado o qual é preciso seguir a opinião que se confor­ que eles lhe atribuem é extraído da matemá­ ma com a lei. Trata-se de doutrinas ou -disputas tica. Assim, Jungius diz que "o P. ou a proposi­ que não têm significado fora da casuística je­ ção problemática é uma proposição principal que alguma coisa pode ser feita, suíta do séc. XVII (cf. A. ScuMirr, Zur Geschi- enunciando mostrada ou achada" (lógica hamburgensis, chte des Probabilismus, 1904).

PROBLEMA

1638. IV, 11, 7). Leibniz notava que "por P. os matemáticos entendem as questões que dei­ xam em branco uma parte da proposição" (Nouv. ess, IV, II, 7). F, foi recorrendo ao uso matemático que Wolff definiu: o P. como "uma proposição prática demonstrativa", entendendo por "prática" a proposição "com a qual se afir­ ma que alguma coisa pode ou deve ser feita" e excluindo explicitamente o significado aristotélico do termo (Log., §§ 266, 276). Não muito di­ ferente é a definição de Kant: "P. são proposi­ ções demonstráveis que exigem provas ou expressam uma ação cujo modo de execução não 6 imediatamente certo" (Logík, § 5H). Também no pensamento moderno a noção de P. foi e continua sendo das mais negligen­ ciadas. Embora falem o tempo todo em P. e achem que 6 sua função solucionar certo nú­ mero deles, especialmente dos definidos como máximos", os filósofos não se preocuparam muito em analisar a noção correspondente. Na maioria das vezes o P. foi considerado como condição ou situação subjetiva e confundido com a dúvida. O próprio Mach o definia neste sentido, como "a discordância dos pensamen­ tos entre si" (Krkenntniss undlrrtum, cap. XV; trad. fr., pp. 252-53). Só recentemente foi reco­ nhecido o caráter de indeterminação objetiva, que define o P.: isto aconteceu na Lógica(1939) de Dewey, para quem o P. é a "propriedade lógica primária". O P. é a situação que constitui o ponto de partida de qualquer indagação, ou seja, a situação indeterminada. "A situação indeterminada torna-se problemática no pró­ prio processo de sujeição á indagação. Decorre de causas reais, como acontece, p. ex., no de­ sequilíbrio orgânico da fome. Nada há de inte­ lectual ou cognitivo na existência de situações desse gênero, a não ser que elas são a condi­ ção necessária para operações ou indagações cognitivas. O primeiro resultado do fato de promover a indagação é que a situação é reco­ nhecida como problemática (Logic. cap. VI. trad. it., p. 161). A enunciação do P. permite a antecipação de uma solução possível, que 6 a idéia: a idéia exige o desenvolvimento das re­ lações inerentes ao seu significado, que é o ra­ ciocínio. Finalmente, a solução real é a deter­ minação da situação inicial, em que se chega a uma situação unificada em suas relações e distinções constitutivas. Análise análoga a esta, em sua estrutura fundamental, foi feita por G. Boas, que define o P. como "a consciência de um desvio da norma" (lhe Inquíring Mind,

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PROBLEMÁTICO

1959, p. 56). Contudo, à análise de Dewey cabe acrescentar uma determinação fundamental: o reconhecimento do fato de que um P. não é eli­ minado ou destruído pela sua solução. Um "P. resolvido" não é um P. que não se apresentará mais como tal, mas é um P. que continuará a se apresentar com probabilidade de solução. A descoberta de um medicamento que cure uma doença é a solução de um P., mas nem por isso o P. está eliminado, pois a doença continuará a ocorrer; portanto, o que a solução permite é, em certos limites, resolver o P. todas as vezes que ele se apresente. Com base neste caráter do P., fala-se da problematicidadedos campos em que se apresenta o P. Neste sentido, o P. é diferente não só da dúvida (que, uma vez re­ solvida, está eliminada e é substituída pela crença), mas também da pergunta, que, uma vez respondida, perde o significado. PROBLEMÁTICA (ai. Problematik). Reunião ordenada ou sistemática de problemas. PROBLEMATICIDADE. Caráter de um campo de indagação em que os problemas não são eliminados pela sua solução. P. ex., "P. da experiência" é o caráter em virtude do qual, na experiência, os chamados problemas resolvi­ dos são apenas possibilidades de soluções pre­ viamente apresentadas para os problemas que vão surgindo, e que têm algumas garantias de sucesso. Esse termo é empregado freqüente­ mente na filosofia contemporânea, sem escla­ recimentos explícitos. PROBLEMATICISMO. Termo difundido na Itália por Ugo Spirito, para designar a doutrina da "vida como busca": Vida condenada a pro­ curar a verdade sem encontrá-la, oscilando en­ tão entre o dogmatismo e o cepticismo (La víta come ricerca. 1937). PROBLEMÁTICO (in. Problematic- fr. Pmblématíque-, ai. Problematisb; it. Problemático). 1. O que representa um problema ou diz res­ peito a um problema. 2. O que não implica contradições nem ga­ rantia de verdade, de tal modo que pode ser afirmado ou negado arbitrariamente. Este é o significado que Kant atribui ao termo: "A pro­ posição P. é a que exprime só uma possibilida­ de lógica (não objetiva), ou seja, a livre escolha de assumir tal proposição como válida" (Crít. R. Pura. § 9). "Chamo de P. um conceito que não contém contradições e que. como limita­ ção de conceitos dados, liga-se a outros conhe­ cimentos, mas cuja verdade objetiva não pode

PRO CESSÃO

ser conhecida de modo algum" (Ibicl.. Anal. dos Princ, cap. III). PROCESSÃO (gr. rcpóoôoç; lat. Processio; in. Processioir, ai. Procession; it. Processione). O que procede de Deus. segundo os Neoplatônicos: essa procedência dá origem a realida­ des de classe inferior, que se assemelham àquelas das quais provêm. "Toda P. realiza-se por meio de semelhança das coisas segundas com relação às primeiras", diz Proclo (Itist. Tbeol, 29; d". Pl.OTixo, limi.. IV. 2. 1. ti: Y, 2, 2; Scorrs ERIGKYA. De diris. nat., III. 17, 19, 25). A teologia cristã empregou a mesma no­ ção para determinar a relação entre as pessoas divinas. S. Tomás de Aquino distinguia -Aprocessio ad extra, na qual a ação tende para algo de ex­ terno, e a processio cid iníra. na qual a ação tende para algo de interno, como acontece na P. que vai do intelecto ao objeto cio entendi­ mento, que continua dentro do próprio intelec­ to. Neste segundo sentido, segundo S. Tomás de Aquino deve-se entender que a P. de pessoas divinas 6 de Deus pai (S. Th., I, q. 27. a. 1). PROCESSO (lat. Processas: in. Process-, fr. Processas-, ai. Process; it. Processo). 1. Procedi­ mento, maneira de operar ou de agir. P. ex., "o P. de composição e de resolução", para indicar o método que consiste em ir das causas ao efei­ to, ou do efeito às causas (cí., p. ex., S. TOMAS de Aquino, V Th.. III, q. 14, a. 5); "P. ao infini­ to", que é ir de uma causa a outra, infinitamen­ te (Ihid.. I, q. 16. a. 2). 2. Devir ou desenvolvimento, p. ex.. "o P. histórico". K nesse sentido que Whitehead emprega o termo para designar a formação do unindo (Process andRealily, 1929). 3. Concatenaçào qualquer de eventos, como p. ex. o "P. digestivo" ou "o P. químico". PRODUÇÃO (gr. Ttoíeoiç; lat. Produciio: in. Prodiiction, fr. Produciion-, ai. Prodiictiou-, it. Produzioiie). Pôr como ser alguma coisa que poderia não ser. Platào definia como arte pro­ dutiva "qualquer possibilidade que se tome causa de geração de coisas que antes não exis­ tiam" (Sof.. 265 b), e Aristóteles via na P. a fun­ ção da arte, distinguindo-a da açào e do saber: "Toda arte concerne à geração e procura os instrumentos técnicos e teóricos para produzir uma coisa que poderia ser e não ser e cujo princípio reside em quem a produz, e não no objeto produzido" (Et. nic. VI, -t, 11+0 a 10). Deste ponto de vista, a P. distingue-se da açào, que é a operação cujo fim está em si mesma; diferença na qual S. Tomás de Aquino insistiu

PROGRESSO

(v. AÇÀO). O platonismo, porém, diminuíra essa diferença. Plotino afirmou que, para a na­ tureza, "ser o que é significa produzir: ela é contemplação e objeto cie contemplação por­ que é razão; e como é contemplação c objeto de contemplação e de razão, produz. A P. é contemplação" (Hnn.. III, 8, 3). listas considera­ ções foram freqüentemente repetidas do ponto de vista idealista, o que não impede que a me­ lhor definição do termo em questão continue sendo a aristotélica. PRODUTO LÓGICO. K a figura (a . fo) re­ sultante de multiplicação lógica (v.). G. P. PROERESE V. kscolha. PROFUNDO (in. Profomid. Deep. fr. Profoud; ai. Tief, it. Profoncío). O que possui signi­ ficado oculto e inexprimíveí. Ksse termo adqui­ riu significado técnico na filosofia c na psicologia contemporânea para indicar aqui­ lo que fica fora da formulação explícita dos problemas, constituindo uma esfera que pode ser "sentida" ou "intuída" de alguma maneira, portanto interpretada ou expressa metaforicamente; indica também aquilo que, em algum campo cie indagação, foge ao al­ cance de seus procedimentos, mas manifesta sua presença de modo obscuro. Já Husserl opunha-se à noção de P. em filosofia: "A ciên­ cia propriamente dita. em tudo o que abrange a sua doutrina autêntica, não conhece sentido profundo. Cada momento de uma ciência per­ feita é um todo cie elementos cie pensamentos, cada um deles compreendido imediatamente, portanto sem sentido P." (Phil. ais slrenge Wissenschqfl. 1910, no fim, trad. it.. p. 81). Hoje. a noçào de P. prevalece principalmente em certas correntes psicológicas e antropológicas, como a psicanálise, o intuicionismo, o existencialismo, mas, apesar da riqueza de análises a que deu origem, já começa a suscitar reações críticas salutares. "As psicologias abissais" — escreveu V. Belaval — "e as filosofias que nelas se inspiram não criaram novos fenômenos: su­ puseram processos e intenções ocultas, pro­ puseram novas idéias sobre o homem, mas essas hipóteses ou idéias sempre deixam de ser formuladas na língua cios conhecimentos progressivos em que cada palavra designa univocamente um fenômeno determinado, e cada regra de sintaxe uma operação técnica precisa" (I.es coiiduítes déchec, 1953, p. 274). PROGRESSO (in. Progress-, fr. Progrès: ai. Portschríft; it. Progresso). Esse termo designa duas coisas: Ia uma série qualquer cie eventos

PROGRESSO

que se desenvolvam em sentido desejável; 2- a crença de que os acontecimentos históricos desenvolvem-se no sentido mais desejável, rea­ lizando um aperfeiçoamento crescente. No primeiro sentido, fala-se, p. ex.. do "P. da quí­ mica" ou do "P. da técnica"; no segundo sen­ tido, dizemos simplesmente "o P.". Neste se­ gundo sentido, a palavra designa não só um balanço da história passada, mas também uma profecia para o futuro. O primeiro sentido restrito do termo não dá origem a problemas e acha-se em toda parte. Os antigos também o possuíram, em particular os estóicos, que o empregaram para indicar o avanço do homem no caminho da sabedoria e da filosofia (J. STOHKO, HCL II, 6, 146: o termo O segundo sentido cio termo não foi co­ nhecido na Antigüidade clássica e na Idade Mé­ dia. A concepção geral que os antigos tiveram cia história foi a de decadência, a partir de uma perleiçào primitiva (idade do ouro), 011 de ciclo de eventos, que se repete identicamente sem limites (v. HISTORIA). Costuma-se atribuir a pri­ meira enunciaçào da noção de P. a Francis Bacon, que assim a expôs num famoso trecho do Novum Organnm (1620): "Por antigüidade deveria entender-se a velhice do mundo, que deve ser atribuída aos nossos tempos e não á juventude do mundo, aos antigos. Do mesmo modo como de um homem idoso podemos esperar um conhecimento muito maior das coisas humanas e um juízo mais maduro que o de um jovem, graças á experiência e ao grande núme­ ro cie coisas que viu. ouviu e pensou, também da nossa era (se ela tivesse consciência de suas forças e quisesse experimentar e compreen­ der) seria justo esperarmos muito mais coisas que dos tempos antigos, pois esta é a maiorida­ de do mundo, em que ele está enriquecido por inúmeras experimentações e observações" (Soi'. Orf>., I, 84). Bacon conclui com a expressão de Aulo Gélio (ou melhor, que Aulo Gélio atribuía a um antigo poeta): ventas filia WniporísiNoct. Att.. XII. 11). Alguns anos antes, conceitos se­ melhantes a estes haviam sido expostos por Giordano Bruno em Cena delle Cenerí (1584). No séc. XV11 a noção de progresso dá os pri­ meiros passos, principalmente por meio da disputa sobre os antigos e os modernos (v. ANTIGOS), enquanto no séc. XVIII, com Voltaire, Turgot e Condorcet, prevaleceria na concep­ ção da história. Mas foi só no séc. XIX que esse conceito se afirmou totalmente, tornando-se, já

799

PROGRESSO

nas primeiras décadas, a bandeira do Roman­ tismo e assumindo o caráter de necessidade. O conceito de necessidade do plano progressista da história era expresso por Fichte da maneira mais enérgica: "Qualquer coisa que realmente exista, existe por absoluta necessidade; e exis­ te necessariamente na forma exata em que existe". Hssa necessidade é racionalidade pura; "Nada é como é porque Deus o queira arbitra­ riamente, mas porque Deus não pode manifes­ tar-se de outro modo. (...) Compreender com inteligência clara o universal, o absoluto, o eterno e o imutável, que é o guia da espécie humana, é tarefa dos filósofos. Fixar de fato a esfera cambiante e mutável dos fenômenos, através dos quais prossegue a marcha segura cia espécie humana, é tarefa cio historiador, cujas descobertas são só casualmente lembra­ das pelo lilósolo" (Cnuulzüge des gegeiucártigoi Zeilalters, 1806, 9). Idêntica concepção era defendida pelo positivismo, que, com Augusto Comte, exalta o P. como idéia diretiva da ciência e da sociologia, considerando-o como "o desenvolvimento cia ordem" e esten­ dendo-o também ã vida inorgânica e animal (Politic/uepositive, 1851. 1, pp. 64 ss.). ()n the Origin ofSpecies (1859), de Darvvin, atribuía base positiva ou científica ao mito do P., aduzindo provas favoráveis ao transíormismo biológico interpretado em sentido otimista ou progressista. A obra de Spencer (First Princi­ pies, 1862) utilizava a noção de P. para dar da realidade uma interpretação metafísica que pretendia ser positiva ou científica. Fstas são apenas as etapas mais marcantes da afirmação de um conceito que dominou todas as manifestações da cultura ocidental do séc. XIX e ainda continua sendo pano de fundo de muitas concepções filosóficas e científicas. As principais implicações dessa noção são as seguintes: \- o curso dos eventos (naturais e históricos) constitui uma série unilinear; 2a cada termo desta série é necessário no sentido de não poder ser diferente do que é; 3a cada ter­ mo da série realiza um incremento de valor so­ bre o precedente-, 4a qualquer regressão é apa­ rente e constitui a condição de um P. maior. Às vezes, como na filosofia de Hegel, limitam-se as condições de validade da 3- proposição por se admitir que a história constitui um círculo no qual as fases mais elevadas, já realizadas, cons­ tituem as condições para as mais baixas, de tal modo que estas possuem a mesma racionalida­ de ou perfeição do todo (cf. HKGIX, Wissens-

PROJEÇÃO

chaft der Logik, I, I. I, cap. II, nota I, "O pro­ gresso infinito''; CROCE, La storia comepensiero e comeazione, 1938. p. 25). Mas nenhuma des­ sas quatro teses encontra apoio nas regras da metodologia historiográfica que permitem deli­ mitar, hoje, o campo da "história"; nenhuma delas é compatível com tais regras; portanto, a idéia de P. não pertence ao domínio da histo­ riografia científica. Por outro lado, na cultura contemporânea a crença no P. foi muito abala­ da pela experiência das duas guerras mundiais e pela mudança que elas produziram no cam­ po da filosofia, pondo por terra a tendência ro­ mântica que a tinha como pedra angular. Por­ tanto, no estágio atual dos estudos, essa iciéia só pode ser considerada válida como esperan­ ça ou empenho moral para o futuro, e não como princípio diretivo da interpretação historiográfica. Sobre o período áureo da crença no P.. cf. J. B. BUKY, Theldea ofProgress, 1932 (v. HISTÓRIA). PROJEÇÃO (in. Projection; fr. Projection; ai. Projektiori; it. Proiezione). Com este termo era freqüente designar, na psicologia do séc. XIX, a referência da sensação ao objeto, graças à qual o objeto é localizado no espaço circun­ dante, embora a sensação só ocorra no órgão do sentido. Quem mais contribuiu para o êxito desse termo foi Helmholtz (Physiologische Optik, 1867, p. 602). Hoje está em desuso, visto que o problema já não subsiste nos mesmos termos, em vista do novo conceito de percep­ ção (y.). Hoje, chamam-se projetivas as técnicas de averiguação psicológica que consistem em apresentar um material (especialmente figuras) de significação ambígua, que pode ser inter­ pretado segundo tendências, necessidades ou repressões, e cuja interpretação pode revelar o estado de quem o interpreta. O mais conhe­ cido destes artifícios projetivos foi criado em 1921 pelo suíço Rorschach (cf. H. H. ANDERSON, e G. L ANDERSON, An Introduction to Projective Techniques, 1951). Na psicanálise, o conceito de P. é usado para descrever o processo mediante o qual um indivíduo atribui a outro as atitudes ou os sentimentos de que sente vergonha ou que ache difícil ou penoso reconhecer em si mesmo (cf. J. R. SMITHIES, "Analysis of Projection" em British Journal of Philosophy of Science, 1954, p. 120). PROJETO (in. Plan; fr. Projet- ai. Projekt, Entwurf it. Progetto). Em geral, a antecipa­

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PROPEDÊUTICA

ção de possibilidades: qualquer previsão, pnedição, predisposição, plano, ordenação, predeterminaçâo, etc, bem como o modo de ser ou de agir próprio de quem recorre a possibilida­ des. Neste sentido, na filosofia existencialista, o P. é a maneira de ser constitutiva do homem ou, como diz Heidegger (que introduziu a no­ ção), sua "constituição ontológica existencial" (Sein und Zeit, § 31). Heidegger insistiu tam­ bém na tese de que tocio projetar-se, por ante­ cipar possibilidades de fato, incide sempre no fato e não vai além: de tal modo que a máxima cio homem que se projeta é "Sê o que és" (Ibid.). Em outro trecho Heidegger disse que o P. do mundo, em que consiste a existência hu­ mana, é antecipadamente dominado pela facticidade. que ele procura transcender, m* acaba reduzindo-se e nivelando-se com a facticidade (Vom Wesen des Grundes, 1929,3; trad. it., pp. 67 ss.). Sartre substancialmente repetiu esses conceitos de Heidegger, mas ressal­ tou a gratuidade perfeita dos "P. do mundo", em que consiste a existência. Chamou de "fun­ damental" ou "inicial" o P. constitutivo da exis­ tência humana no mundo e considerou-o contí­ nua e arbitrariamente modificável: "A angústia que, ao ser revelada, manifesta-nos à consciên­ cia a nossa liberdade, é testemunho da perpé­ tua possibilidade de modificar nosso P. ini­ cial'' (L'être et le néant, 1943, p. 542). Apesar de característica da filosofia existen­ cialista, a noção de P. passou a fazer parte da terminologia filosófica e científica contemporâ­ nea. Mostrou ser útil para expressar aspectos importantes das situações humanas tanto das mais gerais, analisadas pela filosofia, como das específicas, que constituem o objeto das dências antropológicas: psicologia, sociologia, etc. V. ESTRUTURA e MODELO. PROLEGÔMENOS (in. Prolegomena; fr. Prolégomènes; ai. Prolegomena ;it. Prolegomení). Estudo preliminar, introdutivo e simplifica­ do. Esse termo aparece no título de algumas obras de filosofia, como a de Kant, P. a toda metafísica futura (1783). PROLEPSE. V. ANTECIPAÇÃO. PROPEDÊUTICA (gr. 7ip07iou§£Í(X; in. Propaedeutics; fr. Propédeutique, ai. Propádeutík it. Propedêutica). Ensino preparatório. Foi assim que Platão chamou o ensino das ciências especiais (aritmética, geometria, astro­ nomia e música), relativamente à dialética (Rep, VII, 536 d). Ainda hoje se dá esse nome à

PROPENSÃO

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PROPOSIÇÃO

parte introdutiva de uma ciência ou de um cur­ tar (p. ex., o homem é um animal bípede ter­ so que sirva de preparação a outro curso. restre ou não?), a P. consiste na asserção (p. PROPENSÃO (lat. Propensio; in. Propen- ex., o homem é um animal bípede terrestre) sity; fr. Propension; ai. Neigung; it. Propensio- ou na asserção contraditória (7b/?., I, 4101 b ne). Tendência, no significado mais geral. Hu- 28). Porém, em qualquer caso, a verdade ou a me usava esse termo para definir o costume: falsidade de uma P. depende do fato de a com­ "Sempre que a repetição de um ato ou de uma posição ou divisão dos termos nos quais con­ ação particular produz P. para repetir esse ato siste corresponder ou não àquela que o intelecto ou ação sem a coação por raciocínio ou por encontra nas coisas existentes. Aristóteles processo intelectual, dizemos que essa P. é o diz: "Não és branco porque acreditemos que efeito do costume'' (Inq. Cone. Underst., V., D. és branco, mas. por seres branco, dizemos a PROPORÇÃO. V. ANALOGIA. verdade ao afirmarmos isso. Se algumas coisas PROPOSIÇÃO (gr. 7ipÓTaoiç; lat. Propositio; estão sempre unidas e não podem ser dividi­ in. Proposition; fr. Proposition; ai. Satz; it. das, e outras estão sempre divididas e não podem Proposizione). Enunciado declarativo ou aquilo estar unidas, se outras coisas ainda podem ser que é declarado, expresso ou designado por compostas ou divididas, o 'ser' consistirá em tal enunciado. Os dois usos do termo foram ser combinado ou ser dividido, e o 'não ser' nitidamente distinguidos por Carnap (Intr. to consistirá em ser dividido ou em ser vá­ Semautics, 1941, § 37), mas ainda são freqüen­ coisas" (Mel., IX, 10, 1051 a 34). Ao temente confundidos, conquanto a distinção rias combinar termos, a P. expressa a ação comtenha sido amplamente aceita na lógica con­ binante ouseus dissociante intelecto que se se­ temporânea (cf. CHURCH, Intr. to Mathema­ gue à combinação e à do dissociação das coisas tical Logic, § 04; W. KNKALE e M. KNKALF, The existentes. Development of Logic, pp. 49 ss.). Os dois usos Essa doutrina conservou-se substancialmen­ são determinados por dois conceitos diferentes te inalterada tradição antiga, exceção feita de P., mais precisamente os seguintes: 1) P. aos estóicos (ena pela aí iniciada), que como expressão verbal de uma operação men­ introduziram a noçãocorrente de enunciado(v.). A tra­ tal, freqüentemente chamada de juízo. 2) P. como entidade objetiva ou valor de verdade de dição medieval e boa parte da lógica moderna conservou-a. S. Tomás de Aquino dizia que a um enunciado. verdade e a falsidade estão no intelecto, por­ 1. A doutrina de que a P. é expressão verbal este procede compondo e dividindo: de uma operação mental foi formulada pela quanto toda P. uma forma significada pelo primeira vez por Aristóteles, para quem o con­ "de fato, emaplica-se a alguma coisa significada junto (jX\jLUTÀCKf dos termos (nome e verbo) predicado pelo sujeito ou se distancia dessa coisa" (S. Th., do discurso declarativo (À.óyoç ràrcxpavTiKÓç) I, q. 16, a. 2). Na linha da lógica terminista, corresponde a umpensamento(vór\[ia) ineren­ Ockham admitia uma "P. mental", que identifi­ te necessariamente ao ser verdadeiro ou falso; cava com ato do intelecto (liberperiermenias portanto, "o verdadeiro e o falso" versam sobre a composição e sobre a divisão (oúvôeoiç KOU proemium), ainda que para ele a verdade da P. Siaípeoiç) (De interpr, 1, 16 a 9 ss.). O dis­ dependesse da suppositio(\. abaixo, 2). A par­ curso declarativo é, assim, expressão de um tir de Descartes o termo "P." é substituído pelo pensamento que procede compondo e dividin­ termo "juízo", porque a atenção da lógica filo­ do: a composição dá origem à afirmação; a sófica estará cada vez mais concentrada na divisão, à negação (Ibid, 6, 17 a 23). Nos Analíti­ operação intelectual que encontra expressão cos (na teoria do silogismo), Aristóteles chamou na P. (v. Juízo, 4). o discurso declarativo de "pratasis" (cujo equi­ Mas até mesmo Russell reduz a P. a atitude valente latino é 'propositio'), ou seja, "premis­ mental, embora a distinguindo do enunciado. sa de raciocínio", definindo-a como "o discurso Na verdade, considera-a como "crença" ou "ati­ que afirma ou que nega alguma coisa de algu­ tude proposicional", e afirma que as P. devem ma coisa" (An. pr. I, 1, 24 b 16), ou como "a ser definidas como eventos psicológicos (ou fi­ asserção de um dos membros da contradição" siológicos) de certa espécie: imagens comple­ (Ibid. II, 12, 77 a 37). Desse ponto de vista, a P. expectativas, etc. Segundo Russell, isso é difere do problema (v.) apenas na forma, visto xas, evidenciado pelo fato de que as P. podem ser que, enquanto o problema consiste em pergun­ falsas (An Inquiry into Meaning and Truth,

PROPOSIÇÃO

cap. XIII, A; ed. Pelican Books, p. 172; Cf. Humari Knowledge, pp. 449-50) (v. Juízo, 3). 2. A doutrina segundo a qual a P. constitui o designado do enunciado assume formas dife­ rentes, segundo a natureza atribuída ao desig­ nado. Às vezes, este é entendido como "P. em si" ou "entidade" de algum tipo; outras vezes, como objeto, situação objetiva, estado cie coi­ sas ou caráter. Em todos os casos, essa inter­ pretação de P. não faz referência a atos ou a operações mentais. Os estóicos, que introduziram a noção de enunciado (v.). consideram que este expressa uma condição ou um estado de coisas. Assim, afirmavam que "quem diz 'É dia' mostra que acha que 6 dia. Ora, se realmente for dia, o enunciado que está diante de nós será verda­ deiro; se não for dia. será falso " (Dióg. L, VII, 65). Deste ponto de vista, o fato de ser dia é o significado ou o valor de verdade do enuncia­ do "E dia". A lógica terminista medieval desig­ nou o significado denotativo dos termos da P. com o conceito da suposição (v.), segundo o qual uma P. 6 verdadeira se os termos dos quais resulta correspondem ao objeto existen­ te (tf. OCKHAM. Sumnui hf>, II, 2). \as lawsof Tboughl (1854) Boole distinguia as P. primá­ rias, que expressam uma relação com a coisa, e as P. secundárias, que expressam uma rela­ ção entre proposições (Cap. IV, § 1). Mas Bolzano opusera á P. verbal a P. em siiSalz uri Sich). que é válida independentemente do fato de ser ou não ser expressa ou pensada, e cons­ titui o elemento da matemática pura ( Wissenschaftslebre, 1837, § 19). Retomando a polêmica de Husserl contra o psicologismo, Meinong distinguia em todo "juízo" (termo para ele equiva­ lente a V.) o objetivo(Objektív). que é o conteú­ do interno ciojuízo, e o objeto (Objek.t). que 6 a entidade externa à qual o juízo se refere ([".'her Annabmen, 1902, p. 52). Para todos os efeitos, essa distinção eqüivale àquela que Frege esta­ belecera entre sentido e significado ( Vber Sinu uudBedeuiung, 1892) (v. SIGNIFICADO). A propósito tia P.. Frege dissera que. enquanto o sentido (Sinn) da P. é um "pensamento" — não entendido subjetivamente, mas como "conteú­ do objetivo que pode constituir a posse comum cie muitos" —, o significado (Bedeiitung) da P. 6 o seu "valor de verdade", isto 6, "a circuns­ tância cie ser verdadeira ou falsa". Deste modo, a V pode ser considerada como um nomepróprio, e o verdadeiro ou falso 6 o objeto da P. Mas como todas as P. verdadeiras terão o mesmo

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PROPOSIÇÃO

significado (o verdadeiro), assim como todas as projeções falsas (o falso), segue-se que umaP. não pode reduzir-se apenas ao seu significado. nem apenas ao seu sentido (que seria uni pen­ samento puro), mas deve resultar do conjunto de ambos (IJber Sinn und Redeutung. § 5, em Phil. Writings q/G. F., ed. Geach and Black, pp. 63 ss.). Nas P. indiretas ou oblíquas, nas quais há verbos como "dizer"', "ouvir", "pen­ sar", "acreditar", "concluir" e semelhantes (como p. ex. em "Copérnico acreditava que as trajetórias cios planetas eram circulares"), a V secundária introduzida por que vale ape­ nas como o nome de um pensamento, po­ dendo por isso ser variada sem comprometer o valor da verdade cia P. inteira (Ibid, § 6; em Geach, pp. 66 ss.). Em torno desse conceito cie Frege giram as discussões da lógica contemporânea a res­ peito da natureza da P. Das duas dimensões da P. admitidas por Frege, Wittgenstein pro­ curou eliminar o sentido (Sinn). como "pen­ samento" ou "conteúdo objetivo", e usar essa mesma palavra para designar aquilo que Frege entendia por significado (Retleuluug). empregando esta última apenas como tlenotaçâo dos nomes e dos signos. "A P." — disse ele — "é uma figuração (fíild, picture) da realidade: de fato, tomo conhecimento da situação por ela representada tão logo com­ preendo a P. F. compreendo a P., sem que o seu sentido me seja explicado" ( Tractatits, 4.021). Desse ponto de vista, "a forma universal da P. 6: as coisas estão assim e assim" (Ibid.. 4. 5). Por essa razão, compreender uma P. significa simplesmente saber "como estão as coisas, no caso de ela ser verdadeira" (Ibid., 4.024), não sentlo, pois, necessário recorrer a um pensa­ mento ou a qualquer conteúdo objetivo. Por­ tanto, para Wittgenstein. o "sentido" de que folava Frege é inútil, porque o sentido tia P. éo seu próprio significado, e "a P. mostra seu sen­ tido" (Ibid.. 1.022). Por outro lado, Wittgenstein afirma que "a P. possui um sentido indepen­ dente dos fatos" (4.061) e que "as P. '/;' e 'nàop' tem sentido oposto, embora nelas se expresse uma única e mesma realidade" (4.0621), o que, na terminologia cie Frege, implicaria um senti­ do que não depende do significado. Opondo-se a Wittgenstein, alguns lógicos contemporâneos tendem a reduzir o significa­ do ao sentido, empregando o termo "signifi­ cado" (Meaning) para indicar aquilo que Frege chamava de sentido. Assim, Aver definiu a P,

PROPOSIÇÃO ATRIBUTIVA

como a "classe dos enunciados que têm o mes­ mo significado (significance) intencional para qualquer um que o entenda" (Langiiage Tmtb and Logic, [1936], 1948. p. 88). Neste mesmo sentido, Quine considerou as P. como "os significados dos enunciados" (From a lógi­ ca! Point of Vieir. VI, 2: p. 109; Word and Ohject. 1960, § 42). Mais próximos da posi­ ção de Frege estão Carnap e Church. Carnap distinguiu a extensão de um enunciado, que 6 seu valor de verdade, de sua intoisão, que 6 a P. que ele expressa. No sentido de Carnap. todavia, a P. é uma entidade tão objetiva quanto a "propriedade", embora apenas de natureza lógica. Segundo Carnap, pode-se falar de P. também a propósito de enuncia­ dos falsos, porque as P. são entidades com­ plexas, compostas por outras entidades: e ainda que se admita que os componentes últi­ mos de uma P. devem ser "exemplificados" (isto é, devem ser verdadeiros), nem por isso a P., em seu conjunto, deverá sê-lo (Meaning andNecessily. § 6; pp. 26-30). Church. que acei­ tou a terminologia de Frege, Lisa o termo "P." como equivalente ao termo "sentido", de Fre­ ge, e afirma dever-se a uma decisão de algum modo arbitrária o fato de recusarmos o nome de P. aos sentidos dos enunciados (das lingua­ gens naturais), porquanto expressam um senti­ do, mas não têm valor de verdade (Inlr. Io Malhemalical I.ogic. § 04. op. 27). Por outro lado, Bergmann utilizou o termo de Brentano e de Ilusserl. "intenção", para reinterpretar o "significado" de Frege. A intenção é o objeto dos atos intencionais, e a P. é o "caráter" corres­ pondente à intenção. "No paradigma", disse ele, "a intenção é um fato expresso em 'isto 6 verde'. Chamo de caráter correspondente 'a P. isto é verde' e uso P. como um nome geral para essa espécie de caráter" (I.ogic and Reality, 1964, p. 32). As discussões havidas entre os lógicos a res­ peito da P., bem como a respeito de stias equivalências ou sinonímias, além de outros pro­ blemas relativos, continuam centrados na distinção entre sentido e significado, ou suas distinções correspondentes. PROPOSIÇÃO ATRIBUTIVA; ATÔMICA; COMPARATIVA; DEÇLARATTVA; DESÇRITI VA; SECUNDARIA. V. esses adjetivos. PROPOSIÇÃO FUNCIONAL (in. Functionalproposition, fr. Proposition fonctionelle; ai. Funktionellsatz; it. Proposizione fiuizionale). Dá-se esse nome às P. moleculares (ou seja, P.

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PRÓPRIO

complexas, compostas de P. simples através dos conectivos lógicos 'não', 'ou', 'e'. implica'), cuja verdade (ou falsidade) seja unicamente função da verdade ou falsidade das P. compo­ nentes. A questão cie existirem ou não P. moleculares não funcionais foi amplamente discutida na Lógica contemporânea, contra a lese e.xlensionaí. defendida principalmente por Wittgenstein, segundo a qual todas as P. mo­ leculares são funções-verdade das componen­ tes; Russell e outros defenderam a possibilida­ de de P. compostas que não sejam funções, como p. ex.. "A crê em p" (onde 'A' é um nome de pessoa e p' é uma P.). PROPOSIÇIONAL CÁLCULO, FUNÇÃO. V. CAI.CII.O; FYNÇÂO PROPOSICIONAL. PROPRIEDADE (in. Propcrty, fr. Propriâlé; ai. Iiigenschaft; it. Proprielã). 1. Determinação ou característica própria de um objeto em um dos sentidos do termo próprio (v.). 2. Qualquer qualidade, atributo, determina­ ção que sirva para caracterizar um objeto oti para distingui-lo dos outros. PROPRIEDADE ÇOMUTATIVA, DISTRI BUTIVA. V. CO.MtTATIYO. DlSTRlBlTIVO. PROPRINÇIPIA. Termo usado por Campanella para indicar os tlois princípios que en­ tram na constituição das coisas fínitas, isto é. o Ser e o Não-ser (Met.. II, 2, 2) (v. PRIMALIDADI:). PRÓPRIO (gr. Tôtov; lat. Propriiinv. in. Proper. fr. Propre: ai. Higen; it. Próprio). 1. lana determinação que pertence a Ioda uma classe de objetos, pertencendo sempre e somente a essa classe, mesmo que não faça parte de sua definição. F.ste é o sentido fundamental do ter­ mo, da maneira como foi esclarecido por Aris­ tóteles Clbp, I, S, 102 a 18) e passou a fazer parte da tradição lógica (cf. Arnaukl, I.og, I, 7; Jungius. Lógica bamburgensis, I, I, 33). Neste sentido, o P., apesar cie não fazer parte da essência substancial de uma coisa, está estrita­ mente conexo a essa essência ou deriva dela de algum modo. O exemplo aduzido por Aris­ tóteles é o do aprendizado da gramática: esta determinação é P. do homem, no senti­ do de que quem é capaz de aprender gramá­ tica é homem, e é homem quem é capaz de aprender gramática: as duas determinações "homem" e "capaz de aprender gramática " são reciprocáveis. Neste sentido, o P. é uma deter­ minação privilegiada que está entre a essência e as determinações acidentais. 2. No entanto, mesmo Aristóteles chama cie próprias também as determinações acidentais

PROSSILOGISMO

ao fazer a distinção entre P. por si, "que é esta­ belecido com relação a todos os objetos e se­ para o objeto em questão de qualquer outro (como no caso de ser P. do homem ser um ani­ mal mortal que pode receber o saber)" e o P. em relação a outra coisa, "que distingue o obje­ to apenas de algum objeto dado e não de qual­ quer outro objeto" ( Top.. V, 1, 128 b 34). O "P. por si" é o P. no sentido estrito, ou seja. a determinação sem pre que pertence a todo o objeto dado, e somente a ele, enquanto o P. "em relação a outra coisa" foi distinguido por Porfírio (com base nas mesmas considerações de Aristóteles) em outras três determinações: Ia aquilo que pertence a uma única espécie, mas não a todos os indivíduos da espécie (nes­ te sentido ser filósofo é P. do homem); 2- aqui­ lo que pertence a todos os indivíduos de uma espécie, mas não a uma única espécie (serbípede é P. do homem); 3a aquilo que pertence a todos os indivíduos de uma única espécie, mas nem sempre (neste sentido, encanecer é P. do ho­ mem). Porfírio enumerava como quarto sig­ nificado o mais restrito (Isag., 12, 12 ss.). Os quatro significados de Porfírio foram habitual­ mente reproduzidos pela lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Sitm m . log., 2, 13), mas a partir da Lógica de Arnauld (I. V), mesmo mencionando-se as quatro distinções de Porfírio, preferiu-se limitar o conceito de P. ao mais restrito. Na realidade, em seu significado lato. o conceito de P. pode incluir qualquer deter­ minação, atribuída a qualquer título a um obje­ to, perdendo, assim, característica ou utilidade específica. Seja como for, a noção está estrita­ mente ligada à da lógica aristotélica e à sua estreita vinculação com a teoria da substância, sendo por isso abandonada pela lógica con­ temporânea. PROSSILOGISMO. V. POUSSII.OGISMO. PRÓTASE. V. PROPOSIÇÃO. PROTENSIVIDADE (in. Prolensity, ai. Protention; it. Protensione). Duração de consciên­

cia. Termo introduzido por Kant, que obser­ vava; "A felicidade é a satisfação de todas as nossas propensòes, tanto extensivas em sua multiplicidade quanto intensivas (em relação ao grau) e proteyisivas(em relação à duração)" (Crít. R. Pura ., Doutr. do Método, cap. II, seç. II). Husserl chamou de P. "a pré-lembrança reprodutiva em sentido próprio", ou seja, o estado de expectativa que prepara a reprodu­ ção da lembrança (Ideen, I, § 77).

804

PROTOTESE

PROTOCOLO (in. Protocol; fr. Protocol; ai. Protokoll; it. Protocolo). Termo introduzido pe­

lo Círculo de Viena para indicar o registro do dado imediato ou experiência direta (sensa­ ção, percepção, emoção, pensamento, etc). As "proposições protocolares" são as que contêm unicamente P. e por isso fazem referência dire­ ta aos dados imediatos; por serem instrumento da verificação empírica, não precisam de verifi­ cação porque sua verdade é garantida pelo P. que contêm, graças ao qual correspondem ime­ diatamente ao dado empírico (cf. R. Carnap, em Krkenntnis, II, 1931, pp. 437 ss.). A noção de P. está ligada â fase do neopositivismo que, para declarar significativa urna proposição, exigia a verificação direta da proposição mediante protocolos. Mas mesmo Carnap, a partir da obra Teslabilily and M eaning (1936), limitava essa exigência afirmando que, para serem significativos, os enunciados devem ser confirmáveis, ou seja, devem conter apenas "predicados-coisa observáveis". Estes preclicados-coisa não são mais P., isto é, dados da experiência imediata, mas nomes de qualida­ des elementares (p. ex., "vermelho"). Para uma crítica do conceito de P., no âmbito do positi­ vismo lógico, cf. K. Popper, Logik der Forschung , 1934, trad. in., 1958 (v. EXPERIÊNCIA). PROTOFILOSOFIA (in. Protophilosophy, fr. Protophilosophic-,ai.Protophilosophie,it. Protofilosofia) . Termo empregado principalmente pe­ los sociólogos para indicar a filosofia dos po­ vos primitivos, expressa na forma do mitoiy.). PROTOLOGIA(in. Pwtologyjv. Protologie, ai. Protologie, it. Protologia). Termo empregado por alguns escritores italianos do início do séc. XIX, especialmente por Ermenegildo Pini (P-, 3 vols., 1803), para designar aquilo que Fichte denominava doutrina da ciência ou ciência das ciências. Esse termo foi adotado por Vincenzo Gioberti na sua última obra, pu­ blicada postumamente (P., 1857). Gioberti defi­ ne a P. como "a ciência do ente inteligível, intuída através do pensamento imanente"; essa ciência é a base de qualquer outra, sendo tam­ bém anterior à ontologia. O uso desse termo parou em Gioberti. PROTON PSEUDOS (gr. 7pcõTÜV \|/eü8oç). Falsidade da premissa maior, que determina a falsidade do silogismo (Aristóteles, An. pr., II, 18. 66 a 16). PROTOTESE (in. Protothesis; fr. Protothèse, ai. Protothèse, it. Prototesi). Termo empregado por W. Ostwald para indicar as hipóteses sus­

PROTÓTIPO

cetíveis de verificação experimental no estado atual da ciência, que por isso se distinguem das que não o são (Die Hnergie und ihre Wandlungen, 1888, § 68). Na realidade, nenhuma hipótese é. como tal, diretamente verificável (v. HIPÓTESE; TEORIA). PROTÓTIPO (gr. rcpcoTÓnmoç; lat. Prototypus; in. Prototype, fr. Prototype, ai. Prototyp; it. Protótipo). Modelo originário. O mesmo que arquétipo (v.). PROTRÉPTICO(gr. 7tpoxpe7txiKÓç). Kxortaçào à filosofia (cf. PLATÃO, Hutici, 278 c; CRISIFO, Stoicurom fragmenta, III, 189). Essa palavra foi empregada como título de livro por Aristó­ teles, Epicuro, Cleante e outros. PROVA (gr. TEKüiiptOV; lat. Probatio; in. Proofjr. Preuve, aí. Beweis: it. Prova). Procedi­ mento apto a estabelecer um saber, isto é, um conhecimento válido. Constitui P. todo procedi­ mento desse gênero, qualquer que seja sua natureza: mostrar uma coisa ou um fato, exibir um documento, dar testemunho, efetuar uma indução são P. tanto quanto as demonstrações da matemática e da lógica. Portanto, esse ter­ mo é mais extenso que demonstração (v.): as demonstrações são P., mas nem todas as P. são demonstrações. O conceito foi estabelecido no sentido res­ trito por Aristóteles, que. ao dizer "Dizem que P. 6 o que produz saber", fez a distinção entre prova e indício, que proporciona apenas co­ nhecimento provável (An. pr, II. 27. 70 b 2). Em Retórica acrescentou: 'Quando se acha que o que foi dito não pode ser refutado, acreditase ter apresentado uma P., porquanto a P. é sempre demonstrada e perfeita"; o próprio silo­ gismo é uma P. necessária nesse sentido (Ret.. I, 2, 1357 b 5). O mesmo conceito de procedi­ mento que estabelece ou descobre um conhe­ cimento foi expresso pelos estóicos na defini­ ção do sinal indicativo, como "enunciado que. procedendo com conexões corretas, descobre o que se segue" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, II, 104), ou de raciocínio demonstrativo, que. "por meio de premissas estabelecidas, descobre por dedução uma conclusão patente" (Ibid, II, 135) Os entendimentos aos quais se faz alusão nes­ sas definições são P. por serem "aptos a desco­ brir", ou seja, por produzirem (e justificarem) conhecimentos. No séc. XVII, Locke reproduzia a seu modo (com o pressuposto cartesiano da superioridade da intuição) este conceito de P.: "As idéias intermediárias que servem para de­ monstrar a concordância entre duas outras

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PROVA

idéias são chamadas de P.; quando por esse meio é clara e evidentemente percebida a con­ cordância ou a discordância, dá-se-lhe o nome de demonstração, pois então a coisa é mostra­ da ao intelecto, e o espírito é levado a ver que ela é assim" (Ensaio, IV, 2. 3). Mas a doutrina de Locke marca uma guinada importante na histó­ ria do conceito de P. porque admite, pela pri­ meira vez, a possibilidade de P. prováveis. 'A probabilidade" — dizia Locke — "nào pas.sa de aparência da concordância ou discordância en­ tre duas idéias mediante a intervenção de P., cuja ligação nào é constante nem imutável, ou. pelo menos, não é percebido como tal, mas é ou parece ser na maioria das vezes, sendo su­ ficiente para induzir o espírito a julgar que a proposição é verdadeira ou falsa, e nào o contrá­ rio" (Ibid., IV, 15. 1). Wolff, por sua vez, mesmo identificando a P. com o silogismo, distingue-a cia demonstração, pois ela seria um silogismo "que utiliza apenas premissas que são defini­ ções, experiências indubitáveis e axiomas" (f.ug.. § 498). Mas foram principalmente Hume e Kant que estabeleceram as distinções fundamentais nesse campo. Hume propôs distinguir todos os argumentos em demonstrações, P. e probabili­ dades, entendendo por P. "os argumentos ex­ traídos da experiência, que não admitem dúvi­ da e objeções" (Inq. Cone. IJnderst., IV, nota); nessa distinção, as demonstrações se limita­ riam ao domínio das puras conexões de idéias, Kant. por sua vez, distinguiu quatro espécies de P.: Ia a P. lógica rigorosa, que vai do geral ao particular e é a demonstração propriamente dita; 2a o raciocínio por analogia; 3a a opinião veros­ símil; 4a a hipótese, que é o recurso a um prin­ cípio explicativo simplesmente possível (Crít. doJuízo, § 90). Afirmou que as P. demonstrati­ vas ou apodíticas acham-se apenas no domínio da matemática, visto que esta procede median­ te a construção de conceitos, e que os princí­ pios empíricos de P. não podem produzir nenhu­ ma P. apoclítica (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. I, seç. II). Esta era substancial­ mente uma aceitação do ponto de vista de Hume. Devvey também aceitou esse ponto de vista. observando que há, "por um lado, a demons­ tração racional, que é questão de rigorosa eonseqüencialidade no discurso, e, por outro, a demonstração puramente ostensiva"(Logic, cap. XII; trad. it., p. 327). É freqüente a distinção entre demonstração, "P. lógica" "P. dedutiva", "P. necessária" e a P. em geral (cf. p. ex., W. HAMILTON, Lectures on Logic, 1866, 11, p . 38; G.

PROVA B ER G M A W . Philosopby ofSc^ienc^e. 1957, p. 4).

mas. enquanto a análise dos procedimentos de P. usados pelas ciências individualmente (e portanto da noção de P. em geral) recebeu pouca atenção dos filósofos metodológicos e não fez progressos, a noção de P. lógica loi re­ petidamente elaborada por matemáticos e lógi­ cos. Os princípios da 'teoria da P." foram esta­ belecidos por I). Hilbert da maneira seguinte: "Lima P. é uma figura que deve ser apresentada como tal; consiste em conseqüências inferidas segundo o esquema: T em que cada uma das premissas (fórmulas Sc S —> 7) é um axioma (posto diretamente como tal), ou coincide com a fórmula final Tde um raciocínio anteriormente agregado à P., ou seja, consiste na assunção dessa fórmula final. Dizse que uma fórmula é suscetível cie P. se ela é axioma (isto 6, assumida como axioma por posicionamento) ou é a fórmula final de outra P. ("Die Logischen Grundlagen der Mathematik", em Matbematisch Anncilen. 1923, p. 152). Em outros termos, uma P. lógica 6 um procedimento que consiste na manipulação de fórmulas: manipulação que. por sua vez. é um conjunto de fórmulas. Church diz: "l'ma se­ qüência finita de uma ou mais fórmulas bem formadas será uma P. se cada uma das fórmu­ las bem formadas da seqüência for um axioma ou for inferida imediatamente das fórmulas pre­ cedentes cia seqüência, por meio de uma das regras de inferência" (Ititr. to Mathematical Logic. 1956. § 07). Wittgenstein já dissera a respeito: "A P. em lógica é apenas um expe­ diente mecânico para reconhecer mais facil­ mente a tautologia quando complicada" ( Trac­ tatus. 6. 1262). A teoria matemática da I'. consiste substan­ cialmente em reduzi-la á P. da não-contradiçâo. Ora. um teorema estabelecido por K. Góclel em 1931 afirma que, com a ajuda de uma parte da matemática, só se pode provar a não-contradição de uma parte mais restrita da própria mate­ mática, mas não se pode provar a nào-contradicào do conjunto da matemática ou de uma parte mais extensa dela. Pode-se, p. ex., de­ monstrar a não-contradiçào da teoria dos nú­ meros inteiros partindo da teoria dos números reais, m as não reciprocamente (cf. CARNAP,

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PRÓXIMO

f.ogical Syiitax of Lciiif>itcif>e. 1937. §§ 35-36;

QriNK, Mathematical Logic. 1940, cap. 7). 0 teorema cie Góclel. como observa Quine, leva à maturidade um novo ramo da teoria matemáti­ ca, conhecido como metamatemática ou "teoria da ]'.". cujo objeto é a própria teoria matemáti­ ca (Melbods of Logic. § 41). Ksse teorema esta­ belece, porém, que uma P. de coerência é sem­ pre relativa, pois seu resultado vale apenas na medida em que se admite a coerência do siste­ m a com base no qual ela é efetuada (cf. QUINE, From a LogicalPoinl of Vieir. pp. 99 ss.). Cf, também. E. Nagel e J. R. Nevvmann. (iodeis Proqf. 1958 (v. MATEMÁTICA). PROVÁVEL (in. Probable. fr. Probable. ai. Wahrscheinlich: it. Probcibile). 1. Evento ou proposição com grau comparativo suficiente de confirmação ou de credibilidade (v. PROBABILI­ DADE, 1). 2. Classe ou seqüência de eventos dotada de certo grau de freqüência relativa (v. PROEARILIDADE, 2). 3. Aquilo que é considerado verdadeiro pela maioria ou pelos competentes. liste é o concei­ to de endoxou. em que Aristóteles baseou a dialética (v.h tem pouco, ou nada a ver com as duas noções precedentes. PROVIDÊNCIA (gr. npóvota; lat. Providen­ cia: in. Prorideiice-, fr. Proridence: ai. Vorsehung; it. Prorrídenza). Governo divino do mundo, geralmente distinguido de destino, pois é considerado como existente em Deus, ao passo que o destino é esse governo visto através das coisas do mundo (v. DESTINO). A noção de pro­ vidência faz parte integrante cio conceito de Deus como criador da ordem do mundo ou como sendo Ele mesmo esta ordem (v. DKES). Para os problemas conexos ao conceito de P.,

V. MAL; TEODICÍTA.

PROVIDENCIALISMO (in. Providentialim. it. Prorvidenzíalisino). 1. Confiança na ação da providência. 2. Doutrina que vê na história uma ordem ou um plano providencial, (v. HISTORIA). PRÓXIMO (gr.xòv nkr\a '\0V\ lat. Proximus: in. Neigbbonr, fr. Procbaiit; ai. Nücbste. it. Prossimo). Xa interpretação do Evangelho de Lucas (X. 29-37) da máxima bíblica "Ama ao P. como a ti mesmo" (Levítico. XIX, 18). P. é o outro ho­ mem em geral, independentemente de quais­ quer laços de raça. de amizade ou parentesco, na medida em que ele é misericordioso para nós ou nós para com ele. Isso significa que a misericórdia eleve ser praticada em relação

PRUDÊNCIA

a qualquer homem que esteja conosco, nào se restringindo a um círculo determinado de pes­ soas. PRUDÊNCIA (kit. Prudentia-, in. Prudente, fr. Pnidence: ai. Klugheít; it. Prudeuza). V. S.v ISKDORIA. PSEUDOCONCEITO. R, "ficçôes concei­ tuais" ou "conceitos íinitos" foram os nomes dados por Croce às noções geralmente deno­ minadas conceitos, em contraposição ao "con­ ceito puro" ou "conceito autêntico" com que ele designou a Razão Universal em sua forma cognitiva. Os P. serviriam para conservar e clas­ sificar os conhecimentos adquiridos (Lógica, 1920, cap. 11). PSEUDOPROPOSIÇÕES (in. Pseudostalemeiit: ai. Pseudosdtzen; it. Pseudoproposizioni). Termo empregado por Carnap para indicar "expressões erroneamente conside­ radas proposições, mas que não possuem conteúdo cognitivo, embora possam ter com­ ponentes de significado nào cognitivo, por exemplo emotivo" (Meaning and Secessiiy. § 5). Segundo Carnap. muitas proposições cia metafísica clássica são P. nesse sentido (d. lirkennlnis, II, 1931). PSICANÁLISE (in. Psycboanalysis; fr. Psychaualyse: ai. Psychioanalyse: it. Psiccmalisi). A designação P. compreende: 1" um método de tratamento de certas doenças mentais; 2" uma doutrina psicológica; 3Uuma doutrina meta­ física; e, mais freqüentemente, certa mescla desordenada dessas três coisas. Os fundamen­ tos da P. foram resumidos por seu fundador, Sigmund Freud. na introdução de uma de suas principais obras, da seguinte maneira: 1" os processos psíquicos são em si mesmos incons­ cientes, e os processos conscientes são apenas atos isolados, frações cia vida psíquica total: 2" os processos psíquicos inconscientes são em boa parte dominados por tendências que po­ dem ser qualificadas tle "sexuais" no sentido restrito ou lato do termo. Kste último pressu­ posto na realidade 6 a característica funda­ mental da P.. que consiste essencialmente na tentativa de explicar a vida do homem (nào só a pessoal ou individual, mas também a pública ou social) recorrendo a uma única força, que é o instinto sexual ou libido (v.) no sentido téc­ nico deste termo (Piuführiing in díe Psycboanalyse, 1917. intr.). Do conflito entre os im­ pulsos sexuais tio inconsciente e as superestruturas morais e sociais constituídas por proibições e censuras acumuladas e consolidadas pela

807

PSICANÁLISE

infância, nascem os fenômenos a seguir des­ critos: a) Sonhos: expressões deformadas e simbólicas dos desejos reprimidos (cf. Díe Traumdeutung. 1900). b) Atos falhos, ou lap­ sos: distrações falsamente atribuídas ao aca­ so, chegando às brincadeiras e ao humorismo (cf. Zur Psychopathologie des Alltagslebeiis. 1901; Der Witz unel seine Redeutnug '/.um Unbewussten. 1905). c) Doenças mentais: que podem ser tratadas levando o paciente a identificar os conflitos dos quais elas emer­ gem, através cia conversação. A esse respei­ to, o sintoma de uma doença deve ser con­ siderado como "sinal e substituição de uma satisfação instintiva que ficou latente, resultado tle um processo de recalque" (Ilemmung, Symplom undAugst, 1926, cap. 2; tratl. it., p. 29). Um dos fenômenos característicos do trata­ mento psicanalítico é a transferência tios senti­ mentos do doente (positivos ou negativos, tle amor ou de ódio) para a pessoa do médico (Hinführuug, cit., cap. 27: tratl. Ir., pp. 461 ss.). d) Siiblimaçào: transferência do impulso sexual para outros objetos, o que ensejaria os fenôme­ nos chamados espirituais: arte, religião, etc. e) Complexos: sistemas ou mecanismos associa­ tivos, relativamente constantes em todas as pessoas, aos quais devem ser atribuídas as prin­ cipais perturbações mentais. A noção de com­ plexo e o seu termo foram introduzidos por um discípulo de Freud, C. G. [L NC'. ( Wandlungen und Symbole derLibido, 1912), mas já em Interpretaçào dos sonhos Freud esboçara todos os fatos fundamentais do chamado "complexo de Kdipo", em virtude do qual o menino inclui no amor pela mãe certo ciúme ou aversão pelo pai. Km 1923. na obra ligo e Id(Das Ich und das Ps). Freud expôs Lima teoria psicológica que foi amplamente aceita pela psicologia de sua épo­ ca. Dividia o espírito em três partes: ligo, que é organização e consciência, e por isso está em contato com a realidade e procura submetê-la a seus fins; Superego, aquilo a que geralmente se dá o nome de consciência moral e que é o con­ junto das proibições instiladas ao homem em seus primeiros anos de vicia, acompanhando-o depois, mesmo que de forma inconsciente; e Id, que é constituído pelos impulsos múltiplos da libido, sempre voltada para o prazer. lista doutrina, que foi revisada pelo próprio Freud mais tarde (cf. Hemmung, Symptom uudAugst, 1926). revelou-se bastante útil tanto para a des-

PSICANALISE

criçào e a interpretação das doenças mentais quanto para a teoria da personalidade. Freud e seus seguidores não apresentaram nem apresentam seus conceitos como hipóte­ ses ou instrumentos de explicação, mas como realidades absolutas, de natureza metafísica. Pode-se chamar de própria metafísica — e até de mitologia — a teoria formulada por Freud numa de suas últimas obras. Das L)ibehagen in der Kulluri 1930, trad. in., com o título de Civilisation andits Discontents, 1943). em que considera a história da humanidade como a luta entre dois instintos, o da vida (Eras) e o da morte (Tanatos): "É nessa luta que consiste essencialmente a vida, e por isso o desenvolvi­ mento da civilização pode ser descrito como a luta da espécie humana pela existência. Tratase de uma batalha de titãs, que nossas babás tentam compor com suas ladainhas sobre céu" (Civilisation andilsDiscontents, 1943, p. 102). Essa doutrina outra coisa não é senão a expres­ são — não muito atualizada — do dualismo maniqueísta. A importância da P. consiste, em primeiro lugar, em dar destaque ã função do fator sexual em todas as manifestações da vida humana. Pela primeira vez. esse fator deixou de ser uma zona de ignorância obrigatória para a ciência e para a filosofia e pôde ser estudado em seus reais modos de ação. Em segundo lugar, a P. forneceu um conjunto de conceitos que, con­ quanto não muito compatíveis entre si. pres­ tam-se a ser utilizados por vários ramos da psi­ cologia contemporânea, principalmente se isen­ tos do dogmatismo com que alguns .seguidores de Freud os trataram. F.ste segundo aspecto positivo tem, porém, uma contrapartida nega­ tiva: a P. dá a muitos diletantes a oportunidade de apresentar explicações aparentemente plau­ síveis e fáceis dos fenômenos humanos mais díspares, confundindo também, às vezes, essa explicação com uma justificação moral ou me­ tafísica. Em terceiro lugar, a P. teve o mérito de propiciar um instrumento de tratamento que con­ tinua .sendo eficaz, apesar de perdidas muitas das ilusões otimistas inicialmente suscitadas. Entre as muitas tendências interpretativas que modificaram em maior ou menor grau as doutrinas fundamentais da P., é possível lem­ brar duas, a de Jung e a de Adler. Jung conce­ beu o instinto fundamental do homem não como de natureza sexual, mas como uma ener­ gia originária e criativa que se identifica com o conceito genérico de divindade e constitui o

SOS

PSICÓIDE

inconsciente coletivo, que é a base comum da natureza humana (Psicologia do incosciente, 1942"1). Adler, ao contrário, identificou o instin­ to fundamental do homem com a vontade de po/ênciadc que falava Nietzsche, ou seja, ramo um espírito de agressão e de luta em conflito com outro instinto, o sentimento de comunida­ de humana, que liga o indivíduo a todos os outros. A interação dessas duas forças deter­ minaria o caráter de cada homem e suas mani­ festações patológicas (Conhecimento do ho­ mem, 1927). PSICANÁLISE EXISTENCIAL (fr. Psychanalyse exístencielle). Sartre deu este nome à análise filosófico-exístencial, porquanto ela pro­ cura determinar a "escolha originária" que está na base de todo "projeto humano de vida". 0 princípio dessa psicanálise é que "o homem é uma totalidade, e não uma coleção", e o su objetivo é "decifrar os comportamentos empíri­ cos do homem". Além disso, seu ponto de par­ tida é a experiência e seu método é o compa­ rativo (Lêtre et le néant, 1943, p. 656). A P. existencial distingue-se da de Freud, que Sartoe chama de "empírica", porque procura determi­ nar a escolha originária', não os "complexos" (Ibid, p. 657). PSICODÉLICO (in. Psychedelic). Adjetivo que deveria significar "o que manifesta a psique", cunhado para qualificar as expe­ riências produzidas pelo uso do ácido feárgico (LSD) ou de outras drogas, consideradas revelações cie uma realidade mais profunda que a manifestada na experiência comum e que seria de natureza divina ou representa­ ria a própria divindade imanente no mundo (cf. W. BRADF.N, The Private Sea, Londres, 1967). PSICOFÍSICA. V. PSICOLOGIA, h). PSICOGENESE (in. Psychogenesis; fr. Psychogénèse, ai. Psychogenese, it. Psicogenesi). Desenvolvimento dos processos mentais, ou o estudo desse desenvolvimento. PSICOGNOSE (in. Psychognosy). Termo empregado por Peirce para indicar o conjunto cias ciências psíquicas (Coll. Pap, 1.242). PSICOGRAPIA (in. Psychograph; fr. Psychographie, ai. Psychographie, it. Psícografia). Descrição dos processos ou das características psíquicas de um indivíduo. PSICÓIDE (in. Phychoid, fr. Psychoid; ai. Psychõide, it. Psicoide). Nome dado pelo biólo­ go vitalista H. Driesch à força psíquica que

PSICOLOGIA

809

preside à formação e ao desenvolvimento dos organismos (v. VITALISMO). PSICOLOGIA (in. Psychulogy, ir. Psychologie; ai. Psychologie; it. Psicologia). Disciplina que tem por objeto a alma, a consciência ou os eventos característicos da vida animal e huma­ na, nas várias formas de caracterização de tais eventos com o fim de determinar sua natureza específica. Às vezes, tais eventos são consi­ derados como puramente "mentais", ou seja, como "fatos de consciência"; outras vezes, como eventos objetivos ou objetivamente observá­ veis, ou seja, como movimentos, comporta­ mentos, etc, mas cm todo caso a exigência a que essas definições correspondem 6 a de deli­ mitar o domínio da indagação psicológica ao campo restrito âos fenômenos característicos dos organismos animais, em especial do ho­ mem. Do ponto de vista da formulação con­ ceituai (que interessa à filosofia) podemos distinguir as seis correntes fundamentais se­ guintes: a) P. racional; b) P. psicofísica; c) behaviorismo; d) gestaltismo; e) P. do profundo; /') P. funcional. a) A P. racional ou filosófica foi fundada por Aristóteles, o primeiro a coligir em seu li­ vro De Anima as opiniões que seus predecessores haviam expresso a respeito desse assun­ to. Essa P. tem por objeto "a natureza, a substância, e as determinações acidentais de alma", entendendo-se por alma "o princípio dos seres vivos" {De an, I, 1, 402 a 6). O pressuposto fundamental dessa P. está explícito nas seguintes notas: nos eventos estudados, pressupõe um princípio único e simples, uma substância necessária, da qual seja possível deduziràs determinações que esses eventos pos­ suem constantemente ou na maioria das ve­ zes. Neste sentido, a P. é uma ciência dedutiva da alma, cujos fenômenos particulares só são considerados como confirmações ocasionais dos teoremas que a constituem. Com muita ra­ zão, no séc. XVIII, Wolff dava a essa P. o título de "racional", porquanto ela trata de "derivar a priori, do único conceito de alma humana, to­ das as coisas observadas a posteriori como de sua competência" (log., Disc, prel., § 112). Mas foi mérito de Wolff acrescentar a tal P. uma outra, "empírica", definida como "a ciência que, através da experiência, estabelece os prin­ cípios capazes de esclarecer o que acontece na alma humana" (Ibid, § 111; Psycbologia em­ pírica, 1732, § 1). Neste sentido, a P. racional continua sendo uma corrente das filosofias que

PSICOLOGIA

se inspiram na metafísica tradicional, mas dei­ xou de ter eficácia sobre o desenvolvimento científico da psicologia. b) AP. psicofísica ou, mais simplesmente, a psicofísica constituiu a primeira corrente empí­ rica, experimental ou científica da psicologia. Wolff já lhe prescrevera um método indutivo ou experimental, característico de todas as ciências empíricas; no início do séc. XIX, Maine de Biran prescrevia seu campo de ação: a cons­ ciência (lissai sur les fondements de Ia psycbologie, 1812). No entanto, ainda não existiam todas as condições para a fase científica da psi­ cologia. Faltavam duas, estreitamente interrelacionadas: em primeiro lugar, o reconheci­ mento da estreita relação entre os eventos psíquicos e os físicos, através da ação do siste­ ma nervoso; em segundo lugar, a introdução de alguma técnica de medição. A concre­ tização dessas duas condições levou a P. a constituir-se como psicofísica. Isto aconteceu graças a Helmholtz, Weber, e Fechner: o pri­ meiro conseguiu medir, em 1850, a velocidade do impulso nervoso, enquanto o segundo enunciava a denominada "lei" da relação entre o estímulo e a sensação (segundo a qual o aumento do estímulo necessário para ser per­ cebido como tal é proporcional à intensidade do estímulo originário), e o último estabelecia a 'lei psicofísica fundamental", representada pela fórmula matemática que expressa a lei de Weber. Em 1860 Fechner publicava os Elemen­ tos de psicofísica, que a definiam como "a ciência exata das relações funcionais ou rela­ ções de dependência entre o espírito e o cor­ po". Esse foi o programa da P. científica nessa primeira fase de sua organização: programa no qual logo encontraram lugar os resultados das análises do empirismo inglês, desde Locke até Spencer. Este último, em Princípios de P. (18'TS). também definira como psicofísica a ta­ refa da P., afirmando que "a P. distingue-se das ciências em que se apoia [anatomia e fisiologia] porque cada uma de suas proposições leva. em conta tanto o fenômeno interno co­ nexo quanto o fenômeno externo conexo, ao qual se refere." (Principies ofPsychology, 3a ed., 1881, p. 132). Do empirismo inglês, a P. extraiu duas características fundamentais, que a acompanharam nessa primeira fase, de constituição: o atomismoiy.) e o associacionismo (\O. Desse modo, suas estruturas teó­ ricas fundamentais podem ser resumidas da seguinte maneira:

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Ia A P. tem por objeto os "fenômenos inter­ nos" ou "fatos da consciência", e seu principal instrumento de indagação é a introspecção ou reflexão. Graças a esse aspecto, a corrente em exame foi muitas vezes chamada de P. sub­ jetiva ou reflexiva, ou — mais raramente — "crítica". 2a Os fatos de consciência ou fenômenos internos são estudados pela P. em sua conexão funcional com os fenômenos externos (fisioló­ gicos ou físicos). Graças a esse aspecto, que é o mais característico da fase em questão, tal P. foi chamada de psicofísica ou também/ziiofógica (por Wundt). Com este aspecto tem re­ lação a hipótese que sustentou nesta fase o trabalho experimental da P.: o paralelismopsicqfisico (v.). 3a Tendência a resolver o fato de consciên­ cia por elementos últimos (sensações, emoções elementares, reflexos ou instintos elementares) e explicar os fenômenos mais complexos com a combinação de tais elementos (atomismo, associacionismo). 4S O caráter científico da P. é constituído pelo recurso aos procedimentos de indução, de experimentação e de cálculo matemático, que estabelece o caráter descritivo reivindica­ do pela P., analogamente ao que fazem as outras disciplinas empíricas. c) A P. da forma ou gestaltismo concentra seus ataques no 3B princípio fundamental da P. psicofísica, o atomismo e o associacionismo. Consiste em assumir como ponto de partida o princípio simetricamente oposto ao da P. asso­ ciativa: o fato fundamental da consciência não é o elemento, mas a forma total, visto que esta nunca é redutível à soma ou à combinação de elementos. Seus fundadores foram Weltheimer, Kõhler e Koffka; mesmo mantendo inalterado o 2a princípio fundamental da psicofísica, dei­ xou de falar em fatos e fenômenos de cons­ ciência para considerar formas, configura­ ções ou campos, em sua estrutura total. O gestaltismo tratou principalmente da percep­ ção, a respeito da qual acumulou um número enorme de traballlos experimentais (v. PER­ CEPÇÃO, 3, a).

d) AV. objetiva ou behaviorismo concentra seus ataques no 1Qprincípio fundamental da P. psicofísica, negando que o instrumento funda­ mental da P. seja a introspecção ou a reflexão e que os fatos de consciência ou fenômenos internos sejam objeto dessa ciência; afirma que, ao contrário, os objetos da P. são as rea­

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ções dos organismos aos estímulos, entenden­ do-se por reações movimentos ou fenômenos objetivamente observáveis, relacionados com os eventos do ambiente, que funcionam como estímulos. Em 1907, o fisiologista russo Bechterev publicava uma P. objetiva (depois tra­ duzida para inglês e francês), que defendia justamente essa tese, mais tarde difundida e defendida pelos estudos de Pavlov sobre os reflexos condicionados (v. AçÂo REFLEXA). Por­ tanto, pode-se dizer que aí tem início o behaviorismo. Esse nome, porém, só lhe foi atribuí­ do alguns anos mais tarde, pelo americano J. B. Watson, em um artigo de 1913 e depois num livro intitulado Comportamento, intro­ dução à P. comparativa {Behavior, An In­ troduction to Comparative Psychology, 1914). Nessa primeira fase, o behaviorismo assumia caráter de necessitarismo rigoroso; a reação do animal era considerada efeito causai necessário do estímulo, por isso infalivelmente previsível a partir dele. O abandono desse necessitarismo e o reconhecimento do caráter simplesmente estatístico ou probabilístico das constantes ve­ rificáveis nas reações de resposta dos organis­ mos aos estímulos constitui a fase mais moder­ na do behaviorismo (v. BEHAVIORISMO). é) As denominadas P. abissaisou P. do pro­ fundo concentram seus ataques no 4a princípio fundamental da P. científica clássica, conside­ rando a P. como ciência de interpretação, e não de descrição. Com efeito, para a psicanáli­ se, que é a maior e a mais coerente expressão das P. abissais, o ponto de partida da interpre­ tação não está nos fatos, como faz a descrição, mas nos sintomas, e a noção de sintoma é fun­ damental em psicanálise (v. INCONSCIENTE). Na interpretação dos sintomas a psicanálise segue uma única regra básica: reduzir o sintoma a símbolo ou expressão deformada de uma necessidade ou de um conflito de natureza vagamente sexual, atinente à libido (v. LIBIDO; PSICANÁLISE; SEXUALIDADE). São variantes da psicanálise a denominada P. individual de Alfred Adler, que insiste particularmente no ca­ ráter finalista dos problemas psíquicos (Pmxis und Theorie der Indívídualpsychologíe, 1924), e a P. analítica de C. G. Jung, que na realidade é muito pouco analítica (no sentido próprio do termo), pois não faz senão atribuir caráter simbólico a muitos sintomas que para Freud tinham significado direto (Coll. Pap. onAnalyticalPsychology, 1916). (V. INCONSCIENTE; PRO­ FUNDO.)

PSICOLÓGICO

f) Para a P. funcional ou funcionalismo, o objeto da P. é constituído pelas funções ou operações do organismo vivo, consideradas como unidades mínimas indivisíveis. O funcio­ nalismo inicia-se com uma obra de Dewey. (A)uceito do circo reflexo em P. (1896), na qual se afirmava categoricamente que o arco reflexo nào pode ser dividido em estímulo e resposta, mas deve ser considerado como uma unidade da qual apenas o estímulo e a resposta auferem significado. Para indicara unidade da função, o próprio Dewey empregou depois a palavra transação (\), que servia para ressaltar a im­ possibilidade de considerar os elementos de uma função qualquer como entidades autôno­ mas e independentes da relação de que partici­ pam (cf. Kiíowing and lhe Knoivn, 1949, em colaboração com A. F. Bentley). A corrente funcionalista abandona os pressupostos lü. 2" e 3" da P. tradicional. Abandona o 1" porque o objeto que se propõe estudar não é um fato de cons­ ciência, e sim uma função, ou seja, uma opera­ ção em virtude da qual o organismo entra em relação com o ambiente. Abandona o 2-' prin­ cípio fundamental porque o método de que este se vale não é introspectivo, mas objetivo ou comportamentista: as funções de­ vem ser estudadas mediante procedimentos de observação objetiva. Finalmente, o funciona­ lismo tem em comum com o gestaltismo o abandono do 3" princípio fundamental. Mas a principal novidade do funcionalismo é o probabílismo, que consiste em negar não só aos procedimentos da ciência, mas também a todas as funções cognitivas humanas (inclusive a per­ cepção imediata), o caráter de certeza infalível, e em atribuir a todas essas funções a possibili­ dade de atingirem uma validade apenas prová­ vel. Por este probalilismo, o funcionalismo constitui a inserção da P. no campo das idéias fundamentais da ciência contemporânea (et. BRI;\SWIK, Psychology in Terms of Objects, 1936, CANTRIL. AMKS. FIASTORF, IITHLSON, "Psycholofiy and Scientitic Research, em Science, vol. 110, 1949; CANTRIL. The "Why" of Maus Hxpehence. 1950; trad. it., As motivações da ex­ periência, 1958; v. também as obras citadas na bibliografia deste último livro). PSICOLÓGICO (in. Psychological; fr. Psychologic]ite:'d\. Psychologisch; it. Psicológico). 1. O que concerne à psicologia; nesta acepção, esse termo tem tantos significados quantas são as correntes conceituais da psicologia.

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PSICOLOGISMO

2. O que se refere à consciência do indiví­ duo, ou seja, às atitudes ou às valoraçòes indi­ viduais. Nesse sentido, dizemos, p. ex., que se trata de uma "questão puramente P." quando diante de uma questão cuja base nào pode ser encontrada nos fatos ou no âmbito de determi­ nado universo de discurso (p. ex., científico, lógico, etc). PSICOLOGISMO (in. Psychologism; fr. Psycbologisme-, ai. Psychologísmus; it. Psicologismo). 1. Kste termo tem origem no séc. XIX; designa em primeiro lugar qualquer filosofia ([ue assuma como fundamento os dados da consciência, como reflexão do homem sobre si mesmo. Foi assim que G. F. Fries (1773-1844) e F. E. Beneke (1798-1854) entenderam O P., em oposição ao idealismo hegeliano. Ambos assumiram explicitamente como método e ta­ refa cia tilosolia a auto-observaçào ou cons­ ciência. Desse ponto de vista, a psicologia, como descrição da experiência interna, tornase a única filosofia possível (cf. FRIES, Neue oder anthropologische Krítik der Yernunft, 1828; Beneke, Die Philosophie in ihrem Verhaltnis zur l-jfabntng, zur Specitlation mui Zum l.eben. 1833). Mais. genérica e polemi­ camente, V. Gioberti entendia por P. o procedi­ mento filosófico que vai do homem a Deus, contraposto àquele que vai de Deus ao ho­ mem. Este último é o ontologismo (v). O P. é considerado por Gioberti como a caracterís­ tica da filosofia moderna, de Descartes em diante (lutr. alio studio delia filosofia, 1840, II, p. 175). 2. No seu uso polêmico, o termo é constan­ temente empregado para designar a confusão entre a gênese psicológica do conhecimento e sua validade; ou a tendência a julgar justilicada a validade de um conhecimento, quando na verdade só se explicou seu acontecimento na consciência. Neste sentido, foi Kant o primeiro a esclarecer o conceito de P. (apesar de nào ter usado esse nome); foi quem iniciou a polêmica contra ele. fazendo a distinção a propósito dos conceitos apriori, entre a quaestiofactí de sua "derivação fisiológica", isto é, do seu aconteci­ mento na mente ou na consciência do homem, e a quaestiojuris, que consiste em perguntar o fundamento de sua validade, exigindo como resposta a dedução (v. DKDIÇ.AO TRA\SCI;NDI-NTAL) (Crít. R. Pura, § 12). Fssa distinção, sempre presente na obra de Kant, significa a descoberta da dimensão lógico-objetiva cio co­ nhecimento: irredutibilidade dessa dimensão à

PSICOLOGISMO

consciência ou às condições subjetivas do co­ nhecer foi defendida por muitas escolas kantianas: pela escola de Baden (Windelband, Rickert), pela de Marburgo (Cohcn, Natorp) e pela fenomenologia (Husserl), que, na filosofia dos últimos decênios do séc. XIX e nos primei­ ros do séc. XX, combateram constantemente o psicologismo. Herman Lot/e, em Lógicai 1874), insistiu sistematicamente no ponto de vista antipsicológico, fazendo a distinção entre ato psíquico de pensar, que existe só como deter­ minado evento temporal, e o conteúdo do pen­ samento, que tem outro modo de ser, o da vali­ dade. Na lógica matemática, Frege impusera o mesmo ponto de vista: ''Que não se tome como definição matemática a simples descrição do modo como se forma em nós certa imagem, nem como demonstração de um teorema o rol de condições físicas ou psíquicas que em nós devem ser satisfeitas para que possamos com­ preender seu enunciado. Que não se coniunda a verdade de uma proposição com o fato de ela ser pensada! É preciso lembrar bem: que uma proposição não deixa de ser verdadeira quan­ do não a penso, assim como o sol não deixa de existir quando fecho os olhos" (Die Grundlagen derArithmetik, 1884, Intr.; trad. it., em Arit­ mética e lógica, p. 23). Essas considerações eram repetidas quase literalmente por Husserl (Logische 1’ntersuchimgen, 1900, I, §§ 17 ss.), que mais tarde reforçava: 'se dissermos que um número é uma formação psíquica, incidi­ remos num absurdo, chocar-nos-emos contra o sentido intrínseco do discurso aritmético, que está acima de todas as teorias e em todos os momentos e claramente contemplável em sua plena validade" (Ideen, I, 1913, § 22), prevenin­ do contra a tendência a "psicologizar o eidético", a identificar as essências com a consciên­ cia que se tem delas em cada caso (Ibid., § 61). A corrente antipsicológica, nesse sentido, hoje é a base de filosofias aparentemente díspares, como p. ex. do existencialismo, na forma observada na obra de Heidegger, que é a análi­ se das situações humanas em sua essência, e não em sua ocorrência psíquica (cf. Sein und Zeit, § 7); o mesmo se pode dizer do empirismo lógico, cujo principal representante, R. Carnap, travou polêmicas constantes contra o P. (cf. Der Logiscbe Aufbau der Weil 1928, §§151 ss.; "Empiricism, Semantics, and Ontology", 1950, em Keadings in Phil. ofScience, 1953, p. 514). A polêmica contra o P. é, aliás, freqüente

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PSICOTERAPIA

no empirismo lógico (cf. p. ex.. A. Pap, Elements ofAnalytic Philosophy, 1949. p. 406). PSICOMETRIA (in. Psycbometry, fr. Psychométrie, ai. Psychometrie, it. Psicometria). Medida da freqüência, da intensidade ou da duração dos eventos psíquicos. Esse termo (psycheometria). bem como a exigência de se aplicarem medidas a fatos psíquicos, foram propostas de Wolff (Psychol. empírica, § 522, 616). O termo foi muito empregado pela psicofísicu, que às vezes se identificou com a psicometria. Atualmente está em desuso. PSICOPATIA (in. Psychopaty; fr. Psychopathie, ai. Psychopathie, it. Psícopalia). Distúr­ bio ou doença mental, ou as formas menos gra­ ves clessas doenças. Neste último sentido, a P. seria diferente cia psicose (vj. PSICOSE (in. Psycbosis; fr. Psychose; ai. Psychosc, it. Psicosi).Ko significado atualmente um uso, doença mental grave que implica per­ da ou distúrbio dos processos mentais. Psico>ii'iirose ou simplesmente neurose, doença ou distúrbio mental menos grave. Em geral, enten­ de-se por P. o enfraquecimento ou o desapareciniento da relação verificável com as coisas ou com os outros; essa relação é constituída pela personalidade (v.), e sua alteração, portanto, comporta o desequilíbrio da personalidade. Por relação verificávelpode-se entender a rela­ ção passível de confirmação, ou a que não seja desmentida por critérios comumente conside­ rados válidos, ou a que, de qualquer modo, não equivalha à negação de qualquer relação possível. PSICOSSOMÁTTCO (in. Psychosomatic, fr. Psychosomatiíjiie. ai. Psychosomatik, it. Psicosomatíco). Que concerne à influência das atitu­ des: mentais (modo de pensar e de sentir de uma pessoa) sobre os processos orgânicos. Chama-se psicossomático o ramo da medicina que; estuda tais influências (compare F. Alexander, Psvchosomatic Medicine, 1949). PSICOTÉCNICA (in. Psychotechnic; fr. Psycbotechnique; ai. Psychotechnik; it. Psi­ cotécnica). Aplicação da psicologia aos pro­ blemas do trabalho e da produção: engenha­ ria psicológica. PSICOTERAPIA (in. Psychotberapy, fr. Psychcithérapie, ai. Psychotberapíe, it. Psicoterapia). Solução dos conflitos individuais ou de grupo, ou o tratamento de estados mentais pa­ tológicos por meio de aconselhamento, es­ clarecimentos ou sugestões verbais, sem re­ correr a meios materiais. A psicanálise é a

PSIQUE

forma mais conhecida e difundida de psicoterapia. Uma forma mais recente é a denominada "P. nào diretiva", segundo a qual o método de tratamento consiste em procurar encontrar, através uma conversação amigável com o pa­ ciente, a imagem que ele faz de si mesmo e de seus objetivos na vida, ajudando-o a livrar-se dos conflitos (cf. C. R. ROC.FRS. Counselingand Psychotberapy. 1937) (v. PSICANÁLISE). PSIQUE (in. Psyche. fr. Psyché. ai. Psyche. it. Psiche). Alma ou Consciência. Ver esses dois termos. PSITACISMOGn. Psittacism-, fr. Psittacisme. ai. Psittazismus; it. Psittcicismo). Uso das pala­ vras sem referência aos objetos, como fazem os papagaios. I.eibniz dizia: "Raciocina-se mui­ tas vezes com as palavras, quase sem ter o ob­ jeto no espírito" (...); neste caso, "nossos pensa­ mentos e nossos raciocínios, contrários ao sen­ timento, são uma espécie de P." (Ao/»1, ess., II, 21. 35). Sobre a linguagem oratória considerada como uma espécie de P., cf. C. K. Ogden-I. A. Richards, Tbe Meaning of Meaning, 10a ed., 1952, p. 218. PUBLICIDADE (in. Publicity fr. Publicité. ai. Òffentlichkeit; it. Puhblicità). Segundo Kant. é o critério para reconhecer imediatamente a legitimidade de uma pretensão jurídica. Kant chama cie fórmula transcendental do direito público o seguinte princípio: "São injustas todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não seja suscetível de P." (Zitm ewigeu Freiden, apêndice II). PÚBLICO (in. Public, fr. Publique, ai. Offentlich; it. Pubblíco). Esse adjetivo foi usa­ do em sentido filosófico (especialmente por escritores anglo-saxões) para designar os co­ nhecimentos ou os dados ou elementos de conhecimento disponíveis a qualquer pessoa em condições apropriadas e não pertencentes á esfera pessoal e não verificável da consciên­ cia. Neste sentido, é P. o que Kant denominava objetivo (v.): aquilo de que todos podem par­ ticipar igualmente, podendo portanto tam­ bém ser expresso ou comunicado pela lingua­ gem (cf. B. RKSSFLL, Ilumati Knowledge, II, 1; trad. it., p. 8f). PUNIÇÃO. V. PENA.

PURIFICAÇÃO. V. GVIARSF. PURISMO (in. Purism; fr. Purismo-, ai. Purismus; it. Purismo). 1. F.m sentido moral: "es­ pécie de pedantismo relativo à observação do dever considerado no sentido mais lato"

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PURO

(KANT, Met. der Sitten, Doutrina da virtude, I. §7). 2. Em sentido lingüístico: espécie de pedan­ tismo relativo á pretensão de conservar a for­ ma clássica e original de uma língua. 3. Em sentido metafísico: espécie de pedan­ tismo relativo à separação excessivamente ri­ gorosa de uma faculdade humana da outra. A palavra foi usada nesse sentido por G. C. Hamann. como título de uma obra (Metacrítica do P. da razão, 1788, póstumo), na qual repre­ endia Kant por essa espécie de pedantismo com respeito à razão. PURO (in. Purê. fr. Pi ir, ai. Rein-, it. Puro). O que nào está misturado com coisas de outra natureza, ou, com mais exatidão, o que é cons­ tituído de modo rigorosamente conforme à própria definição. Esta segunda definição expli­ ca o enorme uso que os filósofos fazem desse adjetivo, porquanto, depois de definirem um objeto, muitas vezes se acham na obrigação de distinguir as condições em que o objeto se apresenta rigorosamente em conformidade com sua definição, das condições em que dela se afasta em alguma medida: nas primeiras condições, o objeto é chamado de P. Anaxágoras dizia que o intelecto é P. porque só ele, 'entre todos os entes, é simples e sem mistura" (AKISTOTF.LKS. De (in., 405 a 16). Platão falava eni prazer "P.", sem mistura de dor (Fil. 51 a, 52 c). I )escartes falava da matemática "P." (Méd., VI); Leibniz, da "P." razão (Op, ed. Erdmann, pp. 229-2.30. etc), assim como Wolfí (Psycbol. empírica, § 495). O primeiro motor de Aristóteles foi chamado cie "Ato P." por ser atividade per­ feita, desprovida de potência, mas essa expres­ são nào é aristotélica (cir. Mel, Xll, 6, 1071 li 12; 8, 1074 a 36). 2. Kant chamou de P., ou "absolutamente P.", o conhecimento "no qual, em geral, não se misture nenhuma experiência ou sensa­ ção, sendo por isso possível completamente a prion" (Cr/7. R. Pura, Intr., § VII). Neste sentido, razão P. "é a que contém os princípios para co­ nhecer algo absolutamente Apriori". Ciência da ra/.ào P. é uma crítica, e nào uma doutrina, por­ quanto nào pode proporcionar um sistema aca­ bado cia razão P., mas pode apenas ter função negativa, "servindo para purificar, e nào para anipliar, a nossa razão, libertando-a dos er­ ros" (Ibid). Neste sentido, o oposto de P. é empírico. Esse adjetivo foi usado no mesmo sentido por Fichte, que disse ser P. o Eu absolu­ to (ou a sua atividade), por ser diferente do eu

PURPUREA, ILIACE, AMABIMUS

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PURPUREA, ILIACE, AMABIMUS

empiricamente condicionado e porque sua ati­ vidade prescinde completamente da expe­ riência (Wissemchaftslehre. 1794. III, § 5. II). Este uso foi constante no idealismo de inspira­ ção romântica. Gentile chamou o pensamento pensante de ato P. por ser independente de condições ou de conteúdo empírico (Teoria gcuerale clello spirilo come alio puro, 1920). 3. Na linguagem comum, chama-se P. uma ciência ou uma disciplina tratada teoricamente, sem consideração de suas possíveis aplicações; neste caso. F. 6 o contrário de aplicado. Hamil­ ton já anotava a impropriedade desse uso (Leclures ou Logic, 1, 1866. p. 62). PURPUREA, ILIACE, AMABIMUS, ÉDEN TULJ. Termos mnemônicos da lógica tradicio­ nal para exprimir a equivalência das quatro proposições modais, cada uma representada por uma sílaba na seguinte ordem: possível, contingente, impossível, necessário. A vogai

que- se acha em cada uma das sílabas (A ou E ou /ou O indica se o modo deve ser afirmado ou negado e se a proposição deve ser afirma­ da ou negada. A significa a afirmação do modoe a afirmação da proposição; /:'. a afirmação do modo e a negação da proposição; /, a negação cio modo e a afirmação da proposição; l, a ne­ gação do modo e a negação cia proposição. Des­ ta ilianeira. todas as quatro proposições indica­ das pela mesma palavra são eqüipolentes, de tal forma que. se uma 6 verdadeira, as outras tanibém são verdadeiras (AKNAfm, Log, II. 8). V ex.. se p for uma proposição qualquer, para a palavra Pinpúrea temos: Possível = U = Não é possível que não p Contingente = L' = Não 6 contingente que nàc) p Impossível = E = K impossível que não/? Necessário = A = É necessário que p. Analogamente para as outras palavras.

Q QUACRISMO (in. Quakerism; ir. Quakerisme, it. Quaccherismo). A mais radical e li­ beral das correntes religiosas da Reforma. O movimento foi iniciado em 1649 na Inglater­ ra por George Fox, e o verdadeiro nome dos quacres foi "Sociedade dos Amigos" (Friends Sociely). O nome quacre toi cunhado pelo juiz Bennet porque durante um longo inter­ rogatório de George Fox este lhe disse que "tremia ante as palavras do Senhor". Entre as maiores personalidades religiosas que aderi­ ram a esse movimento estava W. Penn, que, no período das perseguições, emigrou para a América e fundou a colônia de Pennsylvania, e Robert Barkley, teórico do movi­ mento. O Q. caracteriza-se: 1Q pela resoluta aversão a qualquer forma de culto externo, de rito, de pregação, etc; 2" pelo reconheci­ mento de que o único guia do homem é a luz interior, proveniente de Deus; 3" pelo caráter ativo e otimista que semelhante fé interior ad­ quire nos quacres, que consideram o próprio pecado original como uma corrupção natural superável; 4Q pela condenação da violência, portanto pela aversão à guerra. Em Cartas sobre os ingleses (1734), Voltaire exaltava a justeza e a validade da religiosidade dos quacres (Cartas, IV) (cf. ELFRIDA VIPONT. The Story (if Quakerism, 1652-1952, Londres, 1954). QUADRADO DOS OPOSTOS. Indicado, segundo o uso escolástico, por A, E, I, e O, res­ pectivamente, a proposição universal afirmati­ va ("todo homem corre"), a universal negativa ("nenhum homem corre"), a particular afirmativa ("algum homem corre") e a particular negati­ va ("algum homem não corre") e dispondo-as em Q. deste modo: obtemos suas relações

A

co ntrárias

E

lógicas fundamentais. A e K são contrárias: ambas podem ser falsas, mas não podem ser ambas verdadeiras: A e O, F. e I são contraditó­ rias: não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas; I e O são subcontrárias: podem ser ambas verdadeiras, mas não ambas falsas; A e 1, E e O são subalternas, no sentido de que A se subalterna (implica) a I, E se subalterna (im­ plica) a O (mas não vice-versa). A origem deste célebre artifício didático, certamente medieval, é obscura. Foi atribuída erroneamente por Prantl ao platônico bizantino M. Pselo, e por isso o Q. é também chamado de "Q. de Pselo"; no entanto, está presente em documentação mais antiga, Introdnctiones in lógicam, cie Gui­ lherme de Thyreswood (segunda metade do séc. XII), embora não faltem exemplos de paradigmas e esquemas deste gênero em tex­ tos anteriores. QUADRÍVIO. V. CilTTKA. AlíIH QUAESTIO. Método escolástico de tratar um argumento a partir cio séc. XII. O primeiro exemplo desse método está em Sic et Non de Abelardo, que é uma coletânea cie opiniões

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QUALIDADE

(sentenliae) de Padres da Igreja, dispostas por problemas, de tal maneira que as várias senten­ ças aparecem como respostas positivas ou ne­ gativas do problema proposto (daí o título sim e não). Nu sua forma madura, a Q. 6 constituída pelas seguintes partes: Ia enunciado (ex.: Vtnim denm esse sit perse notum): 2a relação das ra­ zões favoráveis à tese que será rejeitada pelo autor (Adprimum sicproceditur Videtur quod deumesse sit per se notum); 3a relação das ra­ zões favoráveis à tese oposta (Sedcontra-,..) ; 4a enunciação da solução escolhida pelo autor (Conclusio); 53 ilustração dessa solução; 6a refu­ tação das teses aduzidas pela solução rejeitada, na ordem em que foram aduzidas (Adprimum ergo dicendum... Ad secundum...). A ordem em que as questões eram tratadas era fornecida por algum texto ao qual toda a coletânea servia de comentário: algum livro da Bíblia, alguma obra de Boécio ou de Aristóteles ou, mais freqüentemente, as Sentenças de Pedro Lombardo. Quaesliones quodlibetales ou mais sim­ plesmente Quodlibeta eram as coletâneas de questões que os aspirantes ao título em teolo­ gia deviam discutir duas vezes por ano (antes do Natal e antes da Páscoa) sobre qualquer tema. de quolibet. As quaestiones disputatae, ao contrário, eram resultado das diputationes ordinariaequc os professores cie teologia sus­ tentavam durante seus cursos sobre os mais importantes problemas filosóficos e teológicos (cf. so b re esses assu n to s, MARTIN GRABMAW, DieGeschichtederscholastischeiiMethode. 1911. nova ed., 19%). QUALIDADE (gr. Ttotóxriç; lat. Qualitas; in. Quality, fr. Qualité. ai. Qualitat. it. Qualitã). Qualquer determinação de um objeto. Como determinação qualquer, a Q. distingue-se da propriedade(v.), que. em seu significado espe­ cífico, indica a Q. que caracteriza ou individua­ liza o próprio objeto, sendo portanto própria dele. A noção de Q. é extensíssima e dificil­ mente pode ser reduzida a um conceito unitá­ rio. Podemos dizer que ela compreende uma família de conceitos que têm em comum a fun­ ção puramente formal de servir de resposta â pergunta qual'* Aristóteles distinguiu quatro membros dessa família, sendo esta ainda a me­ lhor exposição já feita sobre o conceito de qua­ lidade. 1. Em primeiro lugar, entendem-se por Q. os hábitos e as disposições, que se distinguem porque o habito é mais estável e duradouro que a disposição. São hábitos a temperança, a

ciência e, em geral, as virtudes; são disposições a saúde, a doença, o calor, o frio, etc. (Cai'., 8, 8 b 25; cf. Mel., V, 14, 1020 a «-12). A filosofia contemporânea âs vezes também recorre a há­ b ito s d isp o sicio n ais (cf., p. ex., C. 1.. STI-ATNSOK, litbicsandLcwguage, III, § 4, 19%, 5a ed., p. 46 ss.), mas o precedente aristotélico geralmente é ignorado. 2. Uma segunda espécie de Q. consiste na capacidade ou incapacidade natural; neste sen­ tido fala-se em lutadores, corredores, sãos, doentes, etc. ( Cat., 8, 9 a 14). Esta é a Q. que os escolásticos chamaram de ativa (cf., p. ex.. S. TOMÁS. V Th., III, q. 49. a. 2). 3. O terceiro gênero de Q. é constituído pelas afeições e suas conseqüências: estas são as Q. sensíveis propriamente ditas (cores, sons. sabores, etc). (Cat., 8, 9 a 27; cf. Met.. V. 14. 1020 a 8). Os e.scolá.sticos chamaram essas es­ pécies de Q. passivas (cf. S. TOMÁS, loc. cit.). 4. A quarta espécie de Q. é constituída pelas formas ou determinações geométricas, como p. ex. pela figura (quadrado, círculo, etc.) ou pela forma (retilínea, curvilínea) (Cat., 8, 10 a 10). Na história ulterior da filosofia pouco ou nada foi acrescentado a essas determinações e distinções feitas por Aristóteles sobre a qualidade. Querendo-se eliminar delas o que é devido à sua mais estreita conexão com a metafísica arístotélica, pode-se obter maior simplificação, e reduzir a três os quatro grupos acima, caracterizanclo-os da seguinte maneira: a) determinações disposiciouais, que com­ preendem disposições, hábitos, costumes, ca­ pacidades, faculdades, virtudes, tendências, ou qualquer outro nome que se queira dar às de­ terminações constituídas por possibilidades do objeto; b) determinações sensíreis, simples ou com­ plexas, que são fornecidas por instrumentos orgânicos: cores, sons, sabores, etc; c) determinações mensuráveis, que se sub­ metem a métodos objetivos de medida: núme­ ro, extensão, figura, movimento, etc. Com esta modificação, a divisão aristotélica corresponde exatamente â de Locke; com efei­ to, as Q. (a) são as que Locke incluiu na terceira espécie de Q.: "aquelas que todos concordam em considerar apenas como meras capacidades que os corpos têm de produzir certos efeitos. embora se trate de Q. tão reais no objeto quan­ to as que, para adenuar-me ao modo comum

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sr

QUALQUER

de falar, chamei de Q.. mesmo distinguindo-as das outras pelo nome de Q. secundárias" (Hnsaio, II, 8, 10). Por outro lado. as Q. (b) e (c) correspondem às c|iie Locke chamava, respec­ tivamente, de qualidades primárias c secundá­ rias (v. mais adiante). Assim retificada, a distin­ ção entre as várias espécies cie Q. abrange todo o campo das discussões e dos problemas a que deu origem na tradição iilosófica. a) À noção de determinação clisposicional faz referência não só a noção de Q. oculta, mas também a de força, que a suplantou nos primórdios da ciência moderna. Newton dizia: "Os aristotélicos não deram o nome de Q. oculta a qualidades manifestas, mas a Q. que eles supu­ seram além dos corpos, como causas desconhe­ cidas de efeitos manifestos: estas seriam as causas da gravidade, cia atração magnética e elétrica ou das fermentações, se supuséssemos tratarse de forças ou ações derivadas de Q. que desco­ nhecêssemos ou que fossem impossíveis de descobrir ou manifestar. Tais Q. ocultas impe­ dem o progresso da filosofia natural, e por isso foram abandonadas nestes últimos-anos" (Optics. 1740, III, 31). Com o mesmo espírito, Wolff definia como oculta a Q. "desprovida de razão suficiente", e acrescentava: "Q. oculta é, p. ex.. a gravidade se for concebida como força primi­ tiva ou como força que Deus infundiu à matéria, para a qual não se possa dar apriori nenhuma razão natural. Tal é também a força motriz, se for considerada uma força primitiva que Deus infundiu à matéria no momento da criação. Cer­ tamente Aristóteles e setis seguidores, que ad­ mitiram as Q. ocultas, usaram esse termo com o mesmo significado" ( Cosm, § 189). O reparo de Wolff é mais claro que o de Xewton: uma força será uma Q. oculta se dela não se der razão suficiente natural, mas não o será se for dada tal razão. Mas disso resulta também que tanto a noção de Q. oculta quanto a de lorça são integráveis na noção de Q. como disposição. O mesmo significado de Q. está presente no conceito de (/iialificaçâo. "Qualificar-se para" ou "ser qualificado para" significa ter a capaci­ dade ou a competência, ou seja, a qualidade clisposicional para realizar dada tarefa ou alcançar determinado objetivo. Às vezes, porém, o ter­ mo "qualificado" significa somente "limitado" ou "caracterizado por dadas condições", como acontece na linguagem jurídica. b, c) As Q. nos sentidos B e C são as Q. tra­ dicionalmente distingtiidas como primarias e secundárias. (As'termos "primário" e "secundá­

rio" remontam a Boyle. mas a distinção é bas­ tante antiga e remonta a Demócrito (l'r. 5, Diels). Depois de muitos séculos foi retomada por Galileu (cf. Opere. ed. nac. VI, p. 347, ss.). por Hoblies (Decorp., 25. 3). por Descartes (Princ. phil, I. 57; Méd.. VI) e por Locke (Ensaio, II, 3, 9), que a difundiu na filosofia européia. A base da distinção é a possibilidade de quantificação que as Q. no sentido c têm em relação ás do sentido h. por esta possibilidade, fogem às valorações individuais, mostrando-se indepen­ dentes do sujeito e plenamente "objetivas" ou "reais". Km segtiida a distinção foi combatida (p. ex.. por Berkeley), principalmente com o fim de mostrar que nem mesmo as Q. primárias são objetivas, e que todas são igualmente subje­ tivas, ou seja. consistem em "idéias" (Principies ofHitman Knowledge, 1, § K1). Segundo Husserl, o significado da distinção seria o seguinte: "A coisa experimentada fornece o simples boc. um .Y vazio que se torna portador das determi­ nações matemáticas e cias fórmulas inerentes, e c[ue não existe no espaço perceptivo, mas num espaço objetivo do qual o primeiro é apenas indício, ou seja, numa variedade euclideana tridimensional de que só'é possível fazer uma representação simbólica" (Ideen, 1, § 40). Neste sentido, as Q. objetivas delineariam a natureza de um objeto transcendente à percepção sensí­ vel, ao qual esta acenaria como a algo distante. Q U A L ID A D E DAS P R O P O SIÇ Õ E S (lat. Qitalitas proposítionum; in. Qtialíly ofpropositiuns; fr. Qualité des propus ilions; ai. Qitalitát des Urteils-, it. Qualità delie proposizioni). Foi provavelmente o neoplatônico Apuleio. contemporâneo de Galem >, o primein > a usar as palavras Q. e quutilidaáe para indi­ car, respectivamente, a distinção das proposi­ ções em afirmativas e negativas e em universal e particular (Deínl.. p. 266; cf. PRAÍNTL. Cescbichte der Logik, I, p. 581). Kant acrescentou aos dois juízos tradicionais de Q. o juízo infinito. (V. IM-IMTO, Jrizo) QUALIFICAÇÃO. V. QIWI.IDADI-:. QUALQUER (gr. raiç; lat. Omnis-, in. Any. fr. Cbaqne-, ai. feder, it. Og)ii). Na lógica contem­ porânea, "Q" é um operador de campo, cujo símbolo mais usado é "(x)". p. ex. em formulas como "(x)" . "/(x)", que se lê "para qualquer .r, f(x) é verdadeiro". Isso corresponde a um pro­ duto lógico (ou conjunção lógica) operado no campo de validade de (x). ou seja. à conjunção "f(a) e f(b) e /(c) e...". Sempre que/(x) for

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QUANTICA, FÍSICA

predicado, cia eqüivale à fórmula habitual Q. vé /"". ou então "todos os .v são /'" da lógica tradicional. Aristóteles utilizara "Q." na proposi­ ção universal afirmativa "Qualquer A 6 B", o que foi adotado pela lógica medieval. Neste uso. a função de "Q." não se distingue da de "todo/todos". No entanto, a lógica terminista medieval distinguiu dois significados de "to­ dos": o significado coletivo, quando se diz. p. ex., "Todos os Apóstolos são 12". donde não se segue que "Kstes Apóstolos são 12", e o signifi­ cado distributiro, quando se diz. p. ex.. "Todos os homens desejam naturalmente saber", don­ de se segue que "Qualquer homem deseja na­ turalmente saber". Neste último caso, "Q." indi­ ca uma disposição da coisa que pode funcionar como sujeifo ou prec/fcacío (Pi:i)i<() HÍSFÂSO, Summ. log;.. 12.04-06). Na lógica moderna, a distinção entre Q. e lodo foi feita por Frege (Grundgesetz der Ahthmetik, 1893, 1. § 17) e por Russell. Segun­ do este último, tal distinção consiste no fato de que uma asserção que contenha uma variável ,v(p. ex., "x= x") pode ser válida para todos os exemplos ou para um exemplo qualquer. sem decidir a qual exemplo se faz referência. Neste segundo caso, utiliza-se o operador qual­ quer. Assim, nas demonstrações de Euclides. toma-se como base de raciocínio um triângulo qualquer ABCsum determinar que espécie de triângulo é. Neste caso, o triângulo ABCvalc como variável real: ele é um triângulo qual­ quer. ainda que continue o mesmo durante toda a demonstração. O operador todos, ao contrário, tem como base variáveis aparentes. ([ue, seja qual for a determinação dada. não mudam o valor da função. Russell considera que a distinção entre todos e Q. é necessária ao raciocínio dedutivo (Malbematical Logic as liased ou lhe Iheory of Types, 1908, em Logic and Knowledge, p. 64 ss.; cf. Principies of Mathematics, § 60-61; Principia mathematíca). QUANTICA, FÍSICA. V. COMIM.KMK.NTARIDADIÍ; CONDIÇÃO; D H T K R M I M S M O ; FÍSICA; INDE­ TERMINADA.

QUANTIDADE (gr. 71000V; lat. Qnantitas; in. Quautity, fr. Quantité: ai. Quantilãt; it. Quautitã). Km geral, a possibilidade da medi­ da. Foi esse o conceito emitido por Platão e Aristóteles. Platão afirmou que a Q. está entre o ilimitado e a unidade, e que só ela é o objeto do saber; p. ex., conhece realmente os sons quem não admite que eles sejam infinitos nem procura reduzi-los a um único som, mas co­

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QUANTIDADE

nhece a Q. deles, ou seja. seu número (FiL, 17a, 18 h). Aristóteles, por sua vez, definiu a Q. como o que é divisível em partes determinadas <>u determináveis. Uma Q. nnmerável é uma pluralidade divisível em partes descontínuas. l'ma Q. mensurável é uma grandeza divisível cm partes contínuas, em uma, duas ou três di­ mensões. Uma pluralidade completa é um nú­ mero; um comprimento completo 6 unia linha; uma extensão completa é um plano; uma pro­ fundidade completa é um corpo (Mel., V, 13, 102" a 7). Essas determinações cie Aristóteles foram re­ petidas na escolástica e passaram a fazer parte das noções geralmente aceitas no início da Ida­ de Moderna. Pareceu indubitável que a materilátíea pudesse ser definida como "a ciência da Q." até que a evolução dessa ciência mostrasse qüe essa definição era restrita e imprópria (v. MATEMÁTICA). Foi justamente pensando na ma­ temática que no séc. XVIII Wolff definiu a Q. como "aquilo em virtude do que as coisas se­ melhantes, ressalvada a sua semelhança, po­ dem diferir intrinsecamente" (Cosm.. § 348), definição que poderia ser facilmente invertida dizendo-se que Q. é aquilo em virtude do que as coisas dessemelhantes, ressalvada a sua desSQmelhança, podem ser semelhantes. Mas com esta forma, que corresponderia mais aos con­ ceitos matemáticos modernos, não se estaria definindo a Q., e sim a grandeza (y.). De fato. em matemática o termo Q. tornou-se sinôni­ mo de grandeza, que é específico de certo cumpo cie indagação e que depende da esco­ lha oportuna de unidades de medida. Portanto, a Q. como categoria ou conceito generalíssimo nCio pertence mais às ciências, e no máximo pode-se dizer que constitui o caráter generalÍNsimo comum aos objetos díspares das ciên­ cias positivas, que é a possibilidade de serem medidos. A tendência geral do pensamento científico a reduzir qualidade a Q. foi interpretada de ma­ neira singular por Hegel, que falou em "linha nodal das relações de medida". A mudança gra­ dual da Q. levaria, em certo ponto (ponto ou "linha nodal"), á mudança da qualidade, c a mudança gradual desta nova qualidade levaria a outro ponto nodal. e assim por diante. Hegel observava que, do lado qualitativo, a passagem para uma nova qualidade "é um salto; a.s duas qualidades são postas de modo completamente extrínseco uma â outra", e que por isso a gradualiclade da mudança quantitativa não permi­

QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES

te compreender o devir ( Wissenschaft der f.of>ik, I. seç. 3". cap. 2; trad. it.. I. pp. 446—t7). Com isso ele negava que a passagem da Q. à cjiialidade ou vice-versa servisse para alguma coisa. Isso. porém, nào impediu que Lngels considerasse "a conversão Q. em qualidade" como lei fundamental da dialética e visse em llegel o descobridor dessa lei (Didlcktík der Sdlur, trad. it., pp. S7 ss.). (V. DIALKTICA; NOOAL LlNHA: SALTO).

QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES. 1 oi o neoplatônico Apuleio (v. Q\ AüDADt- DAS PROpoRCors) o primeiro a chamar de Q. a divisão das proposições em universais e particulares, individuais e indefinidas ARSTOITLKS, De /;//.. An. l»\, 1. 1). Kant reduziu a três as classes cios juízos segundo a Q., mais precisamente proposições universais, particulares e individuais {(, rít. R. Pm ei. 9). Hamilton também falou da Q. dos conceitos, distinguindo a Q. intensiva, que é a intenção ou compreensão, e a Q. ex­ tensiva, que é a extensão ou denotação (I.eclures ou Logic, i, pp. 140 ss.). QUANTIFICAÇÃO (in. Qiumtificalion; fr. (Jitantification; ai. Qiianlifikatioii; it. Qitcmtificazione). Km Lógica, designa-se por "Q." a operação mediante a qual. com o uso de sím­ bolos chamados quantificadores, se determina o âmbito ou a extensão de um termo da propo­ sição. Na Lógica de Aristóteles e em toda a Ló­ gica clássica derivada, conhecia-se apenas a Q. do sujeito da proposição: em Aristóteles, me­ diante os operadores "todo" e "em parte" ("|o predicadol B pertence a toclo\o sujeito] A"; "B pertence em parte a A"); na Lógica medieval ou moderna, por meio dos operadores "omnis"c "alit/iiis" ("omnisA est B"; "ciliijiüsA es/ B"). A proposição quantificada com "lodo" era chamada de universal; a quantificada com "em parle" ("algum") era chamada de particular; a não quantificada era chamada de indefinida. No séc. XIX a exigência de submeter a silogística tradicional a alguma espécie de cálculo mate­ mático induziu alguns lógicos ingleses (Bentham, 182'?; Hamilton. 1833) a quantificar tam­ bém o predicado, interpretando, p. ex., a proposição universal afirmativa "todos os A são 15' como "todos os A são alguns B". Deste modo, porém, a proposição era interpretada Linilaleralmente como uma relação de inclusão ou exclusão, parcial ou total, entre classes. A Lógica contemporânea retomou essa concep­ ção, mas integrou-a. Nela, porém, os quantificadores, ([lie agora são o quantificador universal

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QUEDA

na notação de Russell. "(x)" = "todos") e o quantificador existencial íc.s.. "(3x)" = "existe pelo menos um x que..."l, de novo referemse apenas aos argumentos ou variáveis de uma função proposicional, transformando estas em variáveis aparentes e as funções em proposi­ ções propriamente ditas (universais ou particu­ lares): p. ex.. "x é mortal" é uma função "(x). 'x é mortal'" (= "todos os x são mortais"), é Lima proposição universal. (1. P. QUANTIFICAÇÃO DO PREDICADO (in Quanlificalion of predicate). Opondo-se â ló­ gica tradicional. Hamilton defendeu o princípio da Q. cio predicado, afirmando: 1" o predicado é tão extensivo quanto o sujeito; 2" a lingua­ gem comum quantifica sempre que ocorre o predicado: diretamente, por meio do uso cie quantificadores (p. ex.. "Pedro, João, Tiago, etc. são todos apóstolos"), ou indiretamente, através da limitação e da exceção, como quan­ do se diz "A virtude é a única nobreza", ou então "Sobre a terra não há nada de grande a não ser o homem" (l.ectiires ou Logic, II, pp. 2S7 ss.). QUANTIFICADOR. V. OPKRAOOR.

QUANTIFRENIA (in. .Quanlopbrenia: fr. Qiiantophrénie. it. Quantojrenía). Foi assim que P. Sorokin chamou a "mania de quantificar a qualquer custo" no campo das ciências psico­ lógicas e sociais (Fads and Faihles in Modem SociologyandRelatedSciences, 19%, caps. VIIYIII). QUATERNIO TERMINORUM. I xpressâo Lisada para indicar o tipo mais comum de lalácia lógica, constituída pela duplicidade de sig­ nificado de um dos termos empregados no ra­ ciocínio, como no exemplo tirado de Sèneca: "Mus (o rato) é Lima sílaba; o rato rói o queijo; portanto a sílaba rói o queijo" (Jp.. t8) (v. FOUYOCACAO). QUEDA (g r. ÊK7TÜWGÇ; la t. Casits:in . Fali;fr.

(.'bule. ai. Fali: it. Cadnta). O mito da Q., se­ gundo o qual a alma humana teria decaído de Lm estado original de perfeição, no qual con­ templava a verdade de frente, na bem-aventurança, é exposto em Fedro (248a ss.) de Platão e repetido por Plotino (/;';/»., VI, 9, 9). por outros neoplatônicos. pelos gnóslicosív) e pelos padres da Igreja Oriental. Orígenes expli­ cou a formação do mundo sensível a partir da queda de substâncias intelectuais c|Lie habita­ vam o mundo inteligível: Q. devida á sua pre­ guiça e â aversão ao esforço exigido pela práti­ ca do bem. Deus estabelecera que o bem

QÜIDIDADE dependeria exclusivamente da vontade dessas substâncias intelectuais e deu-lhes liberdade. Sua Q. (e assim a formação do mundo sensí­ vel) depende exclusivamente cio mau uso des­ sas liberdades (Deprinc, II. o. 2; Fr. 25 A). Os gnósticos, ao contrário, negaram essa liberda­ de. No mundo moderno, a teoria da Q. foi retomada por Renouvier (Nora mouadolof>ia, 1899). O homem, saído das màos de Deus como criatura livre, ao usar a liberdade provo­ cou sua queda e, ao mesmo tempo, a ruína do mundo harmonioso criado por Deus. Poderá erguer-se através cia própria liberdade e da su­ cessão de provas dolorosas que o reeducarão, devolvendo-o á harmonia original do universo (V. APOCATASTASH).

QÜIDIDADE (lat. Quidditas: in. Qukktitv. fr. Quiddité, ai. Quidditcit; it. Qitiddità). Termo introduzido pelas traduções latinas fei­ tas no séc. XII (do árabe) a partir das obras de Aristóteles; corresponde á expressão aristotélica xó Ti r)v eivai (quod quid erat esse). Esse termo significa essência necessária (substan­ cial) ou substância (v. KSSHNCIA; SUESTANCA). QUIETISMOün. Quietísnr, fr. Quiétisme, ai. Quielismus; it. Quietismo). Crença de que o estado de graça ou de união com Deus pode ser obtido ponclo-se a vontade pessoal nas mãos de Deus, sem qualquer rito ou prática religiosa. O Q. foi adotado por muitas correntes religio­ sas, mas esse termo foi cunhado com referên­ cia à forma por ele assumida no catolicismo por obra de Miguel Molinos ( 1627-1696). cujas leses foram condenadas pelo papa Inocêncio XI em 1687. QUIETIVO (in Quielive: fr. Quiétif. ai. Quietiv, it. Quietiro). Foi assim que Schopenliauer chamou o conhecimento filosófico, por analogia e antítese com motivo, porquanto ele leva ã negação da vontade de viver, ao as­ cetismo: essa negação "ocorre depois que o conhecimento total do ser tornou-se Q. cio que­ rer" (Die We/t, I, § 68). Q.. neste sentido, tam­ bém é a atte como contemplação desinteressada das idéias platônicas (Ibid.. 1, § 70). QUILIASMOUn. Cbiliasm.h. Chiliasníe-.íú. (, 'biliasnuis; it. C.hiliasmo). Q. ou milenarismo

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QUODLIBETA é o nome que se dá hoje á crença no adven­ to de uma renovação radical do gênero hu­ mano e na instauração de um estado defi­ nitivo de perfeição. O Apocalipse de S. João é o principal documento de crenças seme­ lhantes, que foram muito freqüentes nos pri­ meiros séculos do cristianismo, voltando a apresentar-se também na Idade Média. Gioacchino da Fiore (séc. XII) preconizou o iminente advento de uma terceira era da his­ tória humana, a do Espírito Santo (Concór­ dia Abi'/ et Veteris Testameiilí, IV, 3T). Kart talou de um Q. filosófico "que aspira a um estado de paz perpétua, fundada na união das nações, como república mundial (Reli,i>io)i, I. 3). QUINQUE VOCÊS. São os cinco conceitos generalíssimos, ou cinco tipos de predicado universal (por isso chamados também de "predicáveis") cia Lógica clássica: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. O cerne da sua distinção e da problemática relativa está nos Tópicos de Aristóteles, mas o estudo formal e explícito delas como categorias fundamentais da lógica acha-se em Isagoge cie Porfírio. Foi sobretudo graças â versão e aos comentários cie Boécio sobre esta obra que elas passaram para a Lógica medieval. QUINTESSÊNCIA, (lat. Quinta essentia.m. Quiutessence, fr. Qníntessence; ai. Quuitessenz. it. Quinta essenza). 1. O éter, isto é, a substân­ cia que. segundo Aristóteles, compõe os céus, que é diferente dos quatro elementos que com­ põem os corpos sublunares (V. ÉTT.R). 2. Extrato corpóreo cie uma coisa, obtido pela sua análise alquímica mediante a separa­ ção do elemento dominante dos outros ele­ mentos que estão misturados nela. Segundo Paracelso. na Q. estão os arcanos, que são as forças ativas de um mineral, de uma pe­ dra preciosa, de uma planta; são utilizados pela medicina na feitura ele medicamentos (De misteriis naturalibus, I. 4). Neste senti­ do, emprega-se também o termo para indicar o princípio ativo de uma coisa ou a sua parte mais pura. QUODLIBETA. V. QUAKSTO.

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RAÇA. V. RACISMO. RACIOCÍNIO (gr. ÀOYIGU.ÓÇ; lat. Ratiocinatio; in. ReasoHing; fr. Raisonnement; ai. Vermuiftscbluss; it. Racionamento). Qualquer pro­ cedimento de inferência ou prova; portanto, qualquer argumento, conclusão, interência, indução, dedução, analogia, etc. Stuart Mill di­ zia: "Inferir uma proposição de uma ou mais proposições precedentes, e crer ou pretender que se creia nela como conclusão de qual­ quer outra coisa significa raciocinar, no mais amplo sentido do termo" (Logic, II, I, I). John Stuart Mill excluía do âmbito do R. somente "os casos nos quais a progressão cie uma ver­ dade para outra 6 apenas aparente, porque o conseqüente é mera repetição do antece­ dente" (Ibid., II, 1, 3): além disso, identificava raciocínio e inferência. Mas essa restrição desa­ pareceu do uso corrente do termo, que hoje compreende também as inferências tautológicas. consideradas próprias da matemática e da lógica (cf. P. E STRAWSON, Intr. to l.ogical Tbeory, 1952, p. 12 ss.). Portanto, a ilustração dos significados do termo pode ser achada nos verbetes que constituem a extensão do termo em questão, e especialmente nos seguin­ tes: DHI)('0À0, IxnrçÀo, PROVA, DFMOSTRACAO, IMT:RKNCIA. SILOGISMO, ARGIMHNIO, ANALOGIA. Contudo, a classificação fundamental dos R. divide-os em dednlivosc indiitivosliss-d distin­ ção, já estabelecida por Aristóteles (An. pr.. II. 23, 68 b 13), costuma ser utilizada ainda hoje. às vezes com nomes um pouco diferentes. Peirce, p. ex., falava em R. explicativos analíticos ou de­ dutivos, por um lado, e de R. explicativos, sinté­ ticos, ou indutivos, por outro (Chance, [.oveand Logic. I, 4, 3; trad. it., p. 67). que são justamente os nomes mais empregados para designar as duas espécies fundamentais do raciocínio.

RACIOCÍNIO APAGÓGICO. V. APAGOGICO. RACIOCÍNIO POR ANALOGIA. V. ANALO­ GIA. RACIONAL (gr. AoyiKÓÇ; lat. Rationalis, Rationabilis; in. Rational; fr. Ralionnel, Raísotinable, ai. Vernünftig; it. Razionale, Ragionevole). 1. Aquilo que constitui a razão ou diz. respeito à razão, em qualquer dos significados deste termo (v.). 2. Quem tem a possibilidade cio uso da ra­ zão; nesse sentido diz-se que o homem é um animal racional. S. Agostinho afirma que os sábios "chamaram de racionável ( rationabilis) quem faz ou pode fazer uso da razão, e de ra­ cional (rationalis) aquilo que é feito ou dito pela razão"; portanto, acha que é preciso cha­ mar de racionais os discursos ou os banhos, e de racionáveis aqueles que os praticam (De ordine, XI. 31 ) •Mas essa distinção não é facil­ mente defensável porque os antigos chama­ ram também o homem de racional (nt., p. ex.. QUNTILIANO. Inst.. V, 10, 56). Por outro lado. chamamos hoje de racionável também aquilo que se conforma à razão. 3- Que tem por objeto a razão, sua forma e seus procedimentos. Neste sentido, Sêneca (fp..X9. 17) eQuintiliano (/;/.;>?., XII. 2. 10) cha­ maram a lógica de "filosofia R.". o que foi imi­ tado por Wolff (í.og.. 1728) e por outros. RACIONATISMO (in. Ralionalisnr, IV. Ralionalisme; ai. Rationalismus; it. Razionalismo). Km geral, a atitude de quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em determinado campo. Esse termo foi usado a partir do séc. XVII para designar tal atitude no campo religio­ so; "Há uma nova seita difundida entre eles (presbiterianos e indepenclentesl. que é a dos racionalistas: o que a razão lhes dita, eles consi-

RACIONALISMO

deram bom no listado e na Igreja, até que achem algo melhor" (CI.ARKMX)N. State Papeis, II. p. XL. na data de l-t-X-19-iò). Nesse senti­ do Baumgarten dizia: "R. é o erro de quem elimina da religião todas as coisas que estão acima da própria razão" (li/bicaphilosophica. r65, § 52). Kant loi o primeiro a adotar esse termo como símbolo de sua doutrina, estendendo-o do campo religioso para os outros campos de investigação. Deu o nome de R. ã sua filosofia transcendental (no texto de 1804 sobre os "Avanços da Metafísica", Werke. V. 3. p. 101), ao passo que chamava de noologistas ou dog­ máticos os filósofos que a historiografia alemã do séc. XIX chamou depois de racionalistas: de um hido Phtiio e de outro os seguidores de Wolff (Cri/. R. /'ura. Doutr. do Método, cap. IV). No terreno da moral, defendia "o R. do juízo, que da natureza sensível toma apenas o que a Razão Pura pode pensar por si, ou seja, a conformidade com a lei", opondo-se por isso ao misticismo e ao empirismo da razão prática (Cri/. R. Prática. I, cap. II, Da tipologia do juízo puro prático). No campo estético, falava analogamente de um "R. cio princípio do gosto" (Críl. doJuízo. § 58). Finalmente, caracterizava como R. seu ponto de vista em matéria religio­ sa: "O racionalista, em virtude desse mesmo título, deve manter-se nos limites da capacidade humana. Portanto, nunca usará o tom contun­ dente do naturalista nem contestará a possibili­ dade nem a necessidade de uma revelação. (...) Porquanto sobre tais assuntos nenhum homem pode decidir o que quer que seja pela razão" (Religiou, IV, seç. I: trad. it., Durante, p. 169). Por outro lado. Hegel foi o primeiro a carac­ terizar como R. a corrente que vai de Descartes a Spinoza e Leibniz, opondo-o ao empirismo de origem lockiana. Por R. ele entendeu a "me­ tafísica do intelecto", que é a "tendência á subs­ tância, em virtude da qual se afirma, contra o dualismo, uma única unidade, um único pensa­ mento, cia mesma maneira como os antigos afirmavam o ser" (Geschichte der Philosophie. ed. Glockner, III. pp. 329 ss.; trad. it.. III, 2, pp. 68 ss.). A contraposição entre racionalismo e empirismo fixou-se depois nos esquemas tradi­ cionais cia história da filosofia, por mais que o próprio Hegel notasse seu caráter aproximativo. Quanto ao "R. religioso", Hegel afirmava que ele é "o oposto da lilosofia" porque coloca "o vazio no lugar do céu" e porque sua forma é um raciocinar sem liberdade, e não um enten­

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der conceitualmente" (Ibid., 1. p. 113: trad. it.. I, p. 95). Com base nessas observações históri­ cas, pode-se dizer que o termo em foco compreende os seguintes signilicados: 1" O R. religioso designa algumas correntes protestantes, ou um ponto de vista semelhante ao cie Kant. 2" O R. filosófico designa propriamente a doutrina de Kant (que adotou esse termo), ou então a corrente metafísica da filosofia moder­ na, cie Descartes a Kant. 3" F.m sua significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que recorra á razão. Mas. nessa acepção tão vasta, esse termo pode indicar as filosofias mais díspares e carece de qualquer capacidade de individu;)]>y.:)ç:)o. RACIONALIZAÇÃO (in. Rationalization. ir. Ralioualisatíon: ai. Rationcilisienmg, it. Razioualizzazioue). 1. Esse foi o nome ás vezes dado ao processo de constituição das ciências da natureza em disciplinas teóricas, com ado­ ção dos procedimentos da matemática; supu­ nha-se que esse processo se realizaria perfeita­ mente na mecânica racional (cf. HISSF.RL. hleeii. I, § 9). O ideal da R. foi atualmente substituído pelo da axiomatização (v. AXIOMATICA). 2. Termo freqüentemente empregado por psicólogos e sociólogos para indicar a tendên­ cia a procurar argumentos e justificações para crenças cuja força não está nesses processos ra­ cionais, mas em emoções, interesses, instintos, preconceitos, hábitos, etc. RACISMO (in. Racialism. fr. Racisme. ai. Rcissisnws; it. Rnzzismo). Doutrina segundo a qual todas as manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores (ou desvalores) dependem da raça; também segundo essa dou­ trina existe uma raça superior ("ariana" ou "nórdica") que se destina a dirigir o gênero hu­ mano. O fundador dessa doutrina foi o francês Gobineau.emseulissciisuri 'inégalitédesraces bumcihies (1853-55), que visava a defendera aristocracia contra a democracia. No início do séc. XX. um inglês naturalizado alemão, Houston Stewart Chamberlain, difundiu o mito do arianismo na Alemanha (Die Gniudlagen des XIX labrhunderts. 1899). identificando a raça superior com a alemã. Como o anti-semitismo era antigo na Alemanha, a doutrina cio deter­ minismo racial e da raça superior encontrou fácil difusão, traduzindo-se no apoio dado ao preconceito contra os judeus e ã crença de eme existe uma conspiração judaica para do­

RACISMO

minar o mundo; assim, o capitalismo, o marxis­ mo e, em geral, as manifestações culturais e políticas que enfraquecem a ordem nacional sào fenômenos judaicos. Depois da Primeira Guerra Mundial, os alemães viram no R. um mito consolador, uma fuga da depressão da derrota; Hitler transformou-o no carro-chefe de sua política, e a doutrina foi elaborada por Alfred Rosenberg. em Mito do século XX (1930). Rosenberg afirma um rigoroso determinismo racial: qualquer manifestação cultural de um povo depende cie sua raça. A ciência, a moral, a religião e os valores que a cultura descobre e defende dependem da raça e são expressões tia força vital da raça. Portanto, a verdade é ver­ dade apenas para determinada raça. A raça su­ perior 6 a ariana que provindo do Norte, di­ fundiu-se na Antigüidade para o Kgito, a índia, a Pérsia, a Grécia e Roma, dando origem às ci­ vilizações antigas, que decaíram porque os ari­ anos se misturaram com raças inferiores. Todas as ciências, artes e instituições fundamentais da vida humana foram criadas por essa raça. Em oposição a ela, está a anti-raça parasitária judai­ ca, que criou os venenos da raça, que são a democracia, o marxismo, o capitalismo, o inteIcctualismo artístico e até mesmo os ideais de amor, humildade e igualdade difundidos pelo cristianismo, que representa uma corrupção romano-judaica dos ensinamentos do ariano Je­ sus. V.m seu conjunto, essa doutrina foi apre­ sentada explicitamente pek) nazismo como um mito, criado, difundido e mantido pela força vital da raça. Isso não significa que não se pro­ curou racionalizá-la, atribuindo base científica ao conceito de raça, que era seu fundamento. Na realidade, porém, o próprio uso que o R. faz da noção de raça revela, do ponto de vista cien­ tífico e filosólico, a inconsistência da doutrina. 1 loje, o conceito de raça é considerado una­ nimemente pelos antropólogos como um re­ curso útil à classificação e capaz de fornecer o esquema zoológico no qual podem ser situa­ dos os vários grupos do gênero humano. Essa palavra, portanto, deve ser reservada exclusiva­ mente aos grupos humanos dotados de carac­ terísticas físicas diferentes, que podem ser transmitidas por hereditariedade. Tais caracte­ rísticas são principalmente: a cor da pele, a altura, a conformação da cabeça e do rosto, a cor e a qualidade dos cabelos, a cor e a forma dos olhos, o formato do nariz e a compleição física. Convencionou-se distinguir três grandes raças, que sào a branca, a amarela e a negra, ou

RADICALISMO

seja, a eaucasiana, a mongólica e a negróide. Portanto, os grupos nacionais, religiosos, geo­ gráficos, lingüísticos e culturais não podem ser chamados de "raças" por nenhum motivo; não constituem raças os italianos, os alemães, os in­ gleses, assim como não constituíram os latinos ou os gregos, etc. Não existe nenhuma raça "ariana" ou "nórdtca", assim como não Itá qual­ quer prova de que a raça ou as diferenças ra­ ciais exerçam algum tipo de influência nas manilestações culturais ou nas possibilidades de desenvolvimento da cultura em geral. Tampou­ co existem provas de que os grupos em que pode ser dividido o gênero humano diferem em sua capacidade inata cie desenvolvimento intelectual ou emocional. Ao contrário, os es­ tudos históricos e sociológicos tendem a forta­ lecer a idéia cie que as diferenças genéticas sào fatores insignificantes na determinação de di­ ferenças sociais e culturais entre grupos hu­ manos diferentes. Foram inúmeras as transfor­ mações sociais ocorridas sem relação com mudanças raciais. Tampouco está provado que as misturas raciais produzam resultados bioló­ gicos prejudiciais. E muito provável que não haja "raça pura" e que nunca tenha havido, até onde se possa averiguar nó passado. Os resul­ tados sociais das misturas raciais, sejam eles bons ou maus, podem ser atribuídos a fatores sociais. Em 1951, junto à WNF.SC0, em Paris, uma co­ missão composta por cinco geneticistas e seis antropólogos, de países diferentes, elaborou uma declaração sobre as raças, que consiste na exposição dos princípios acima mencionados (sobre eles, cí. Rira HKMÍDK.T, Racc. Science and Politics, 19 R); e RALPH LINTON, The Science ofMan in tbe World Crisis, 7aed.. 1952). Na rea­ lidade, esteja onde estiver e seja qual for a sua justificativa, o R. é da alçada da psiquiatria, que Veblen chamava de aplicada, ou seja, à arte de explorar para fins pessoais um preconceito preexistente. Trata-se neste caso de um precon­ ceito extremamente pernicioso porque contra­ diz e impede o encaminhamento moral cia hu­ manidade para a integração universalista e porque transforma os valores humanos (a co­ meçar pela verdade) em fatos arbitrários que. por expressarem a força vital cia raça, não têm substância própria e podem ser livremente ma­ nipulados com fins violentos ou abjetos. RADICALISMO (in. Radicalisnr, Ir. Radica­ lismo-, ai. Radikalismus; it. Radicalismo). 1. Po­ sitivismo social que se desenvolveu na Inglater-

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ia entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX; seus expoentes foram Jeremias Bentham (1748-1832), James Mill (1773-1836) e John Stuart Mill (1806-1873). Esta corrente valeu-se do positivismo filosófico, do utilitarismo moral e das doutrinas econômicas de Malthus e Ricardo para defender reformas "radicais" na organização do Estado e no sistema de distribuição das riquezas (v. LIBERALISMO). 2. Mais genericamente, esse termo 6 hoje usado para designar qualquer tendência filosó­ fica ou política que proponha a renovação ra­ dical dos sistemas vigentes, representada pe­ la transformação dos princípios nos quais se apoiem os sistemas de crenças ou as institui­ ções tradicionais. RAIZ (gr. p\C,(ü\xa; in. Root; fr. Racine-, ai. Wnrzel, it. Radico). Termo com que. na lingua­ gem filosófica, se designa freqüentemente um princípio primeiro ou um elemento último. Empédodes chamou de R. os quatro elementos (água, ar, terra e fogo) que compõem as coisas (Fr. 6, Diels); a partir daí, os filósofos utiliza­ ram freqüentemente esse termo para indicar elementos ou princípios. Schopenhauer, p. ex., deu a uma de suas dissertações o título de So­ bre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente (1813), razão porque o adjetivo radical passou a indicar o que diz respeito a um princí­ pio ou constitui um princípio. Kant deu o nome de "mal radical" à tendência do homem para o mal, inerente ã sua estrutura moral (cf. Religion, cap. I). Hoje, chama-se de radical a análise que remonte aos princípios ou ás primeiras origens. Husserl, p. ex., insistia na raclicalidade da filosofia como ciência dos verdadeiros prin­ cípios e das primeiras origens: "A ciência do que é radical deve ser radical também em seu métodoe sob todos os aspectos" (Phil.a!sstreiif>e Wissenscbaft, 1911; trad. it., p. 83). RAMIFICADA, TEORIA DOS TIPOS. V. ANTINOMIA. RAZÃO (gr. Àóyoç ; lat. Ralio, in. Reasoir, fr. Raison; ai. Vemitiift; it. Racione). Esse termo tem os seguintes significados fundamentais: ly Referencial de orientação do homem em todos os campos em que seja possível a inda­ gação ou a investigação. Nesse sentido, dize­ mos que a R. é uma "faculdade" própria do ho­ mem, que o distingue dos animais. 2" Fundamento ou R. de ser. Visto que a R. de ser de uma coisa é sua essência necessária ou substância expressa na definição, assume-se ás vezes por "R.'" a própria substância ou a sua

definição. Este é um significado freqüente na filosofia aristotélica ou nas correntes nela inspi­ radas. Quanto a isso, v. ESSÊNCIA; FINDAMKNTO; FORMA; St INSTÂNCIA. 3ÜArgumento ou prova. Nesse sentido dize­ mos: "Ele expôs suas R." ou "É preciso ouvir as R. do adversário". A esse significado refere-se também a expressão "Ter R.", que significa ter argumentos ou provas suficientes, portanto, estar com a verdade. Quanto a esse significado v. ARGUMKNTO; PROVA. 4" Relação, no sentido matemático. Nesse sentido fala-se também em "R. direta" ou "R inversa" (em inglês o termo empregado nesse caso é rathi). Quanto a esse significado, v. RELAÇÀO. No significado de referencial da conduta hu­ mana no mundo, a R. pode ser entendida em dois significados subordinados: A) como facul­ dade orientadora geral; B) como procedimento específico de conhecimento. A) Este é o sentido fundamental, do qual a palavra extraiu a potência de significado que a transformou, há séculos, no emblema da livre investigação. A R . é a força que liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões enraizadas mas falsas e das aparências, permitindo estabe­ lecer um critério universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos. Por outro lado, como orientador tipicamente huma­ no, a R. é a força que possibilita a libertação dos apetites que o homem tem em comum com os animais, submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida. Esta é a dupla função atribuída à R. desde os primórdios da fi­ losofia ocidental. A polêmica de Heráclito e Parmênides contra as opiniões da maioria, ou seja. contra as crenças discordantes e ilusórias aceitas pela maioria, foi assestada em nome da R., que deve ser o único critério orientador de todos os homens. Heráclito diz: "E preciso se­ guir o que é universal, comum a todos; e só a R. é universal. No entanto, a maioria vive como se cada um tivesse uma mente particular" (Fr. 2, Diels). E Parmênides: "Afasta o pensamento dessa via de investigação e não permitas que te levem para ela o costume de guiar-se por um olho que não vê, por um ouvido que ressoa, pela palavra: em lugar disso, julga com a R" (Fr. 1, 33-37, Diels). Platão e Aristóteles, por outro lado, opõem a R. â sensibilidade, queé fonte das cwnçjA comuns (PLATÃO. /Wm 83a: ARISTÓTKI.IÍS, Mel, 1,1, 980 b 26), e aos apetites que o homem tem em comum com os animais

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(PLATÃO, Tini., 70a; ARISTÓTELES, Et. nic, I, 13, 1102 b, 15). Em ambos os casos, R. tem, ao mes­ mo tempo, função negativa e positiva: negativa em relação às crenças infundadas e aos apeti­ tes animais; positiva no sentido de dirigir as atividades humanas de maneira uniforme e cons­ tante. Mas foi principalmente com os estóicos que prevaleceu a doutrina da R. como único guia dos homens. Para eles, havia uma espécie de divisão simétrica entre os animais e os ho­ mens: os animais são guiados pelo instinto, que os leva a conservar-se e a procurar o que é vantajoso; aos homens foi dado o guia mais perfeito, que é a R.; desse modo, para eles, vi­ ver segundo a natureza significa viver segundo a R. (Dióc;. L, VII, 1, 15-86). Esses conceitos constituíram um dos eixos da cultura clássica. Cícero dizia: "A R., única diferença que nos dis­ tingue do bruto, por meio da qual podemos conjecturar, argumentar, rebater, discutir, levar a termo e concluir, certamente é comum a to­ dos; diferente em termos de preparação, mas igual quanto a ser faculdade de aprender" (De leg, I, 10, 30). Sêneca exaltava a R. por sua imutabilidade e universalidade:. "A R. é imutá­ vel e firme no seu juízo porque não é escrava, mas senhora, dos sentidos. A R. é igual à R. as­ sim como o justo ao justo; portanto também a virtude é igual à virtude porque a virtude outra coisa não é senão a reta R.r (Ip., 66). Deste ponto de vista também a metafísica estóica da R., para a qual ela é — como diz o próprio Sêneca (Ibicl.) — "uma parte do espírito divino infundida no corpo do homem", não nega sua autonomia, mas, ao contrário, exalta-a e confir­ ma-a. Certamente foi nesses conceitos que S. Agostinho se inspirou ao fazer o elogio da R., que constitui os últimos capítulos de De online: "A R. é o movimento da mente que pode dis­ tinguir e correlacionar tudo o que se aprende" (De orei, II, 11, 30). É a força criadora do mun­ do humano: inventou a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências; é o que de imortal existe no homem (Ibicl., II, 19, 50). O entusias­ mo de S. Agostinho pela razão se explica facil­ mente: para ele, a vida é busca, e a R. é o princípio que institui e dirige a busca, tornan­ do-a fecunda. No entanto, o neoplatonismo já subordinara a R. ao intelecto, considerando-o superior á razão porque dotado do caráter intuitivo ou imediato que o transforma na visão direta da verdade. Segundo Plotino, a R. emana do inte­ lecto, "que está presente em todas as coisas

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que são" (Enn, III, 2, 2). Em outros termos, ela é a função formadora e plasmadora do intelec­ to; para dispor todas as coisas do mundo (boas e más) em sua ordem apropriada, ela deve adaptar-se ã matéria (Ibicl., III, 2, 11-12). Nesse sentido, a R. é a técnica da criação e do gover­ no do mundo, pois graças a ela os seres criados não se clestroem entre si, mas concordam e combinam-se da melhor maneira. Plotino diz: "Graças à R., cada ser age ou sofre ações se­ gundo necessidades, e não ao acaso e desorde­ nadamente" (Ibicl, II, 3, 16). Esse conceito de superioridade cio intelecto foi herdado pela escolástica medieval. R. e intelecto são identifi­ cados no significado geral de princípio orienta­ dor (cf.. p. ex., S. TOMÁS m: AQUINO, 3 Th, I, q. 29, a. 3, ad. 4y; q. 79, a. 8). Mas em seguida a razão é subordinada ao intelecto por seu cará­ ter discursivo, que parece inferior ao caráter intuitivo daquele (v. adiante). Mais tarde, o próprio Bacon considerava a R. como uma atividade especial do intelecto (ao lado da me­ mória e da fantasia), mais precisamente a fun­ ção cuja tarefa é dividir e compor as noções abstratas "segundo a lei da natureza e a evidên­ cia das próprias coisas" (De augm. scíetit.. II, 1). Assim, é só com Descartes que a R. volta a ser o guia fundamental do homem. Identificando razão e bom senso, Descartes restabelece o conceito clássico de R., e com base nele formula o problema novo do méto­ do. "A capacidade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que recebe o nome de senso ou R., é por natureza igual em todos os homens; portanto, a disparidade de nossas opi­ niões não provém do fato cie que umas são mais racionais que as outras, mas apenas de conduzirmos nossos pensamentos por cami­ nhos diferentes, sem levar as coisas em con­ sideração. Não basta ter o espírito são; o prin­ cipal é aplicá-lo bem" (Discours, I). Estas pa­ lavras famosas reintrocluziram no mundo moderno o conceito antigo (e especialmente estóico) de R. como guia de lodo o gênero humano. Assim, Spinoza surpreendia-se ao ver que às vezes queriam "submeter a R., máximo ciom de Deus e luz realmente divina, às pala­ vras", não se considerando crime "falar inclignamente desse verdadeiro testemunho do Ver­ bo de Deus, que é a R., declarando-a corrupta, cega e impura" (Tmct. theologico-jwliticus, cap. 15). Leibniz, por sua vez, insistia na velha tese de que a R. pertence ao homem e somente ao homem (your. ess, IV, 17, 2), e I.ocke atri-

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bufa à R. uma determinação fundamental, que constitui a única inovação autêntica do concei­ to moderno em relação ao clássico: "a R. é o instrumento do conhecimento provável, e não apenas do conhecimento estabelecido". Locke dizia: "Assim como a razão percebe a correla­ ção necessária e indubitável entre as idéias ou provas, em cada grau de qualquer demonstra­ ção que produza conhecimento, de maneira análoga também percebe a correlação provável entre as idéias ou provas em qualquer grau de uma demonstração à qual julgue ser devido o assentiniento" (Ensaio, IV, l"7, 2). Com essa de­ terminação, a R. era qualificada segundo a fun­ ção que lhe era atribuída pelo iluminismo setecentista: princípio de crítica radical da tradição e de renovação igualmente radieni do homem. Kanl tentava realizar plenamente o ideal ilumínista da R. Por um lado, idenliticava-a com a própria liberdade de crítica ("Sobre a liberdade de crítica repousa a existência da R., que não tem autoridade ditatorial, mas cuja sentença nunca deixa de ser o acordo dos cidadãos li­ vres, cada um dos quais deve poder formular sem obstáculos as suas dúvidas e até seu veto") e por outro pretendia levar a R. diante cie seu tribunal e instaura a "crítica da R. pura", que "não se imiscui nas controvérsias imediatamente referentes aos objetos, mas é instituída para determinar e julgar os direitos da R. em geral" (Crit. R. Pura, Teoria transcendental do méto­ do, cap. 1, seç. II). Está de acordo com o con­ ceito iluminista de R. a definição de Whitehead: "a tunçào da razão é promover a arte cia vida", no sentido cie que a R. teria a tarefa cie agir sobre o ambiente para promover formas de vida mais satisfatórias e perfeitas ('lhe Ennction ofReasim. 1929, cap. I; trad. it. Cufaro, pp. 6 ss.). Knquanto isso, aquilo que à primeira vista parece ser a maior garantia cia eficácia da R. — crer que ela habita a realidade e a domina, de tal modo que não há realidade não racional, nem racionalidade não real — na verdade constitui o abandono da função diretiva da R. Hegel, que afirmou com mais rigor esse ponto de vista, também negou a função diretiva da R.: "O que está entre a R. como espírito autoconsciente e a R. como realidade presente, o que diferencia aquela desta e não permite que se encontre satisfação nesta, é o estorvo de algu­ ma abstração que se não libertou e não se transformou em conceito. Reconhecer a R. no presente e, assim, fruí-lo é o reconhecimento racional que reconcilia com a realidade, o que

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a filosofia só concede àqueles que advertiram a exigência interior de compreender" (Fil. tio (lir.. Pref.; trad. it. Messineo, p. 17). Isso signi­ fica que a razão não guia, mas chega postfactiiin a compreender a realidade, a justificá-la. li) O reconhecimento da R. como guia cons­ tante, uniforme e (às vezes) infalível de todos os homens, em todos os campos da atividade destes, e acompanhado na maioria das vezes Pela determinação de um procedimento espe­ cifico no qual se reconhece a atuação própria da razão. As determinações já concebidas so­ bre a técnica específica cia R. podem ser resu­ midas nos seguintes conceitos fundamentais: a) discurso; li) autoconsciència; c) auto-revelaçào: d) tautologia. //) ü proeedímenio tli.scursiro é :> lécniai mais freqüentemente considerada própria da razão. A ele Platão recorre para marcar a dife­ rença entre a opinião verdadeira e a ciência: as opiniões podem dirigir a ação tão bem quanto a ciência, mas tendem a fugir para todos os lados, como as estátuas de Oédalo, enquanto níio "são amarradas por um raciocínio causai L\Ien, 98 a). Ksse atamento ou essa conexão é a técnica discursiva. Técnica discursiva é todo o procedimento silogístico de Aristóteles, á pane a determinação dos princípios, que são intuí­ dos pelo intelecto: discursivas são a silogística necessitante e a dialética (An.post., I, 33, 89 b ~: Et. iiic, VI, 11, 1U3 b 1). No mesmo senti­ do, os estóicos definiam a R. como "um sistema de premissas e conclusões" (I)IOG. I... VII, 1, iS). A função freqüentemente atribuída à razão (distinguir, correlacionar, comparar, etc. [v. os trechos de Cícero e S. Agostinho citados em A\) níio passa de expressão do mesmo procedi­ mento. S. Tomás de Aquino dizia: "Os homens chegam a conhecer a verdade inteligível proce­ dendo de uma coisa à outra; por isso são cha­ mados de racionais. F. evidente que raciocinar está para entender assim como mover-se está pura ficar parado, ou adquirir para ter: destas coisas, a primeira é própria do imperfeito; a segunda, do perfeito" (S. Th, I, q. 79, a. 8). No começo da Idade Moderna Descartes moldavase no mesmo procedimento para determinar siias regras do método: "Os longos encadeamentos de razões, todas simples e fáceis, do que os geômetras costumam lançar mão pura chegar às suas demonstrações mais difí­ ceis, deram-me a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem chegar ao co­ nhecimento cios homens correlacionam-se da

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mesma maneira" (Discours, II). A Lógica de Port-Royal expressava de maneira diferente os mesmos conceitos (ARNAILD, l.og., III, 1) em que também Locke baseava sua doutrina da razão: "Xa R. podemos considerar estes quatro graus: o primeiro e mais elevado consiste em achar e descobrir as verdades; o segundo, cm dispô-las de maneira regular e metódica, siste­ matizando-as numa ordem clara e justa, de tal modo que sejam percebidas com evidência e facilidade sua força e suas interconexòes: o ter­ ceiro, em perceber tais conexões: o quarto, em tirar uma justa conclusão" (Ensaio. IV, 17, 3). A distinção que Spinoza estabelecia entre o se­ gundo gênero de conhecimento, que ele cha­ mava de R., e o terceiro, que chamava de ciên­ cia intuitiva, é a distinção tradicional entre o procedimento discursivo e o intelecto intuitivo (HL, II. -IO. schol. 2). F. Leibniz só fazia encon­ trar a expressão mais simples para o mesmo conceito de R. ao afirmar que a R. é "a concatenação das verdades" (Op., ed. F.rdmann, p. 479, 393). Wolff dava o nome de "juízo discursivo" à operação da R., na medida em que consiste na correlação das proposições (Log., §§ 50-S1). O conceito de R. como discurso entra em crise com Kant, que, ao mesmo tempo em que atribui caráter discursivo a toda a atividade cognoscitiva humana, considerando que ape­ nas Deus possui o conhecimento intuitivo (v. DiscrRSjvo), distingue nitidamente a R. do inte­ lecto, apesar cio caráter discursivo comum aos cfoís. A R. 6 a faculdade "que produz os concei­ tos por si"; portanto, pode ser chamada de fa­ culdade dosprincípios. Mas os conceitos que a R. produz não têm base na experiência; por isso. são simplesmente fictícios. "Se o intelecto pode ser uma faculdade da unificação dos fe­ nômenos por meio de regras, a R. é a faculda­ de de unificar as regras cio intelecto por meio de princípios. Por isso, ela nunca visa imediata­ mente à experiência ou a um objeto qualquer, mas ao intelecto, para, por meio de conceitos, imprimir aos múltiplos conhecimentos deste uma unidade a priori; essa unidade, que po­ de ser chamada de racional, é de espécie to­ talmente diferente da outra que pode ser produ­ zida pelo intelecto" (Crít. R. Pura. Dialética transcendental, Intr. II. a). Assim como o inte­ lecto, a R. procede discursivamente, mas consi­ dera que os procedimentos discursivos do inte­ lecto se realizem em idéias de totalidade e unidade (alma, mundo, Deus), que são perfei­ tas, umas não podem ser confrontadas com a

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experiência, portanto puramente fictícias e ape­ nas fonte de raciocínios dialéticos, ou seja. sofísticos (v. Iní:iA; ANTINOMIAS). O resultado dessa distinção kantiana é que só é válido o procedimento do intelecto cujos conceitos deri­ vam imediatamente da experiência, e que o procedimento discursivo racional, com suas pretensões totalitárias, só dá origem a noções fictícias. Portanto, depois de Kant lica difícil manter a definição da razão como técnica discursiva. O conceito cia R. como discurso permite a consideração formal do procedimento racio­ nal: possibilita uma lógica, que é na realida­ de a lógica tradicional na forma elaborada pelos filósofos desde Aristóteles até o fim do séc. XIX. Entendida neste sentido, a lógica é ao mesmo tempo descritiva e normativa: descriti­ va em relação aos procedimentos próprios da R., normativa no sentido de que essa mesma descrição vale como regra para o LISO correto da razão. Nesse sentido, a lógica tradicional era definida com exatidão como "arte de racioci­ nar". /;) O conceito da R. como autoconsciêucía remonta a Fichte. Caracteriza-se pela identifi­ cação entre R. e realidade, e pressupõe o con­ ceito de R. como discurso. Como discurso, a R. é dedução; como dedução, tem um único princí­ pio, que é o F.u. Do Ku deriva, com necessi­ dade infalível, todo o sistema do saber, que é ao mesmo tempo o sistema da realidade. "Fon­ te de toda a realidade é o F.u. Somente com o Ku e pelo Ku é dado o conceito de realidade. Mas o Eu é porque se põe e põe-se porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma só e mesma coisa" ( Wísseuschaftslehre. 1794, § 4. C; trad. it.. p. 92). As equações em que essa doutrina se baseia são as seguintes: R. = saber dedutivo; saber dedutivo = realidade; realidade + saber = autoconsciência. Schelling expressava essas mesmas equações ao afirmar: "A natureza al­ cança seu fim mais elevado, que é tornar-se inteiramente objeto de si mesma, com a última e mais elevada reflexão, que nada mais é que o homem ou. de modo mais geral, aquilo que chamamos de razão. Temos assim, pela primeira vez, o retorno completo da natureza a si mes­ ma, estando evidente que a natureza é originariamente idêntica àquilo que em nós se revela como princípio inteligente e cons­ ciente (System des trajiszendentalen Idealismus, 1800. Intr., § 1; trad. it.. p. 9). F Hegel expressava o mesmo conceito da seguinte

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maneira: "A autoconsciência, ou seja, a certe­ za de que suas determinações são tão objetivas — determinação da essência das coisas — quanto seus próprios pensamentos, é a R.; esta, por ser tal identidade, é não só a substância ab­ soluta, mas também a verdade como saber" (Ene, § 439). Km outras palavras, para Hegel a R. é a identidade da autoconsciência como pen­ samento com suas manifestações ou determina­ ções, que são as coisas ou os acontecimentos; é a identidade de pensamento e realidade. De forma epigráfica, esse conceito era expresso por Hegel da seguinte maneira: "a R. é a certeza da consciência cie ser realidade: assim o idealis­ mo expressa o conceito de R." (Pbdnomen. des Geisles. 1, V, 1; trad. it., p. 209). É óbvio que. des­ se ponto de vista, a H. não é discursiva no sentido de concatenar expressões lingüísticas e inferir uma da outra por meio de regras deter­ minadas ou determináveis, mas é a inferêneia (pretendida) das determinações cio pensamento e da realidade, umas das outras, num processo único cuja perfeita "necessidade" é afirmada. F.ste ponto de vista impossibilita a consideração formal das técnicas racionais, que está ligada à concepção a) de R. Como autoconsciência, a R. nunca é formal: é sempre idêntica à realidade. Hegel diz: "O intelecto determina e firma as de­ terminações. A R. é negativa e dialética porque em nada resolve as determinações do intelec­ to. Kla é positiva porqtie gera o universale nele compreende o particular" ( Wissenschaft der I.ogik, Pref. da Ia ed.; trad. it., p. 5). Por "com­ preender o particular" entende-se que compreen­ de as coisas ou as determinações reais, que, em última análise, nada mais são que suas mani­ festações particulares. A negação da lógica for­ mal é parte integrante desse ponto de vista; por isso, retorna sempre que ele aparece. Basta lembrar que Croce rejeitava a lógica formal baseada no mesmo pressuposto hegeliano de identidade entre R. e realidade, expresso na forma cie identidade entre filosofia e história: "A riqueza da realidade, dos fatos, da experiên­ cia, de que pareceria carecer o conceito puro, portanto a filosofia, em virtude da declarada distância em relação às ciências empíricas, élhe devolvida e reconhecida; e não mais na forma diminuta e imprópria do empirismo, mas sim de modo total e integral. Isso se realiza pela conjunção, que é unidade, de filosofia e história" (Lógica, 1920, p. 392). t") O conceito de R. como auto-revelaçào ou evidência foi estabelecido por Husserl. Para

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el<-\ a R. é o manifestar-se fenomenológico dos objetos (que podem ser coisas ou essências), seja esse manifestar-se dotado de caráter neces­ sário ou apodítico, seja de caráter assertório. Husserl diz: "A visão por assim dizer assertória de uma individualidade, como p. ex. o perce­ ber uma coisa ou uma facilidade individual, distingue-se em seu caráter racional da visão apodíticadá compreensão de uma essência ou de uma relação de essências" (Ideen, 1, § 137). O termo mais abrangente, o conceito que compreede tanto a visão assertória, que é dada de fato, mas pode ser diferente, quanto a visão apodítica, que é necessária, é a consciência ra­ cional, que Husserl chama também, em geral, de evidência (Ibid.. 137). Desse ponto de vista, o caráter -fundamental da racionalidade é a vali­ dade do posicionamento: se o objeto é verda­ deiramente posto, o ato é válido, e a posição tem caráter racional (Ibid, § 139). Mas aquilo que do ponto de vista cio ato noético é a posi­ ção do objeto, do ponto de vista objetivo é a evidenciaçâo do objeto, seu dar-se ou seu re­ velar-se (Ibid, § 139). E como, em qualquer esfera do ser, o modo de auto-revelar-se dos objetos é diferente, todo tipo de realidade traz consigo "uma nova doutrina concreta da R." (Ibid., § 152). F.sse conceito de R. como autorevelaçâo ou auto-evidência é aceito inte­ gralmente por Heidegger: "Apenas porque a função do logos é fazer ver algo, fazer perceber o ente, logospode significar R." (Sein undZeii, § 7, B). Esse mesmo conceito é apresentado de forma mais mítica por Jaspers: "A R. não é de fato uma verdadeira nascente originária, mas, por ser conexão de tudo, é semelhante a uma nascente originária na qual vêm à /z/ztodas as nascentes" ( Vernunft undlixistenz, 1935. II, 5; trad. it., p. 50). A direção para a qual a R. se move é a infinita clareza, e aquilo que nela ten­ ta aclarar-se é a existência: "a existência alcança a clareza somente por meio da R.: a R. só tem conteúdo em virtude da existência" (Ibid., II, 6; p. 53). F óbvio que, mesmo deste ponto de vista. é impossível a consideração formal do pro­ cedimento racional. A R. nunca é formal por­ que é sempre preenchida pelo conteúdo que nela se manifesta evidente ou se esclarece. d) O conceito de R. como tautologia tem origem em Hume, que toi o primeiro a fazer a distinção nítida entre "relações de idéias" e "coisas de tato". "A primeira classe pertencem ciências como a geometria, a álgebra e a ariimítica; em suma, toda proposição intuitiva ou

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demonstrativamente certa [no sentido lockiano]. (...) As proposições dessa classe podem ser descobertas com uma pura operação do pensamento, e nào dependem de coisas que existem em algum lugar do universo" (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Na verdade, Hume não afir­ mou explicitamente o caráter tautológico ou (para usar um termo kantiano) analítico das proposições que expressam simples relações das idéias entre si, mas de algum modo o pres­ supôs quando insistiu no fato de que as propo­ sições que expressam coisas de fato nào são logicamente deriváveis uma da outra. Todavia, para formar a concepção de R. em foco inter­ veio também outro componente conceptual, exposto pela primeira vez por Hobbes: a redu­ ção da R. a cálculo das proposições verbais. Hobbes disse: "A R. nada mais é que o cálculo — a adição e a subtração — das conseqüências dos nomes gerais usados para caracterizar e significar nossos pensamentos: para caracteri­ zá-los quando calculamos para nós mesmos, para significá-los quando demonstramos ou comprovamos nossos cálculos para os outros homens" (Leviath., I, 5). Esta idéia de Hobbes concretizou-se apenas a partir de meados do séc. XIX, com a fundação da lógica matemática por parte de G. Boole (Laws ofTbought, 1854), que foi o primeiro a mostrar a impossibilidade de reduzir o raciocínio matemático às formas de raciocínio descritas por Aristóteles, dando início a uma lógica estreitamente ligada aos métodos de cálculo. O sucesso ulterior dessa lógica, principalmente graças a Frege e a Russell (v. LÓCÍICA), constitui um antecedente histórico indispensável do conceito de R. em exame. Que tal procedimento tivesse caráter tão lógico só ficou claro mais tarde, no Círculo de Viena, com a obra de Wittgenstein (1922). O fundamento dessa obra é a redução da R. à linguagem. Wittgenstein afirmava que "as pro­ posições da lógica são tautologias" ( Jractcitus, 6.1), que "nada dizem (são as proposições ana­ líticas) (Ibid., 6.11), e que "são sempre falsas as teorias que mostram uma proposição cia ló­ gica provida de conteúdo" (Ibicl., 6.111). F, acrescentava: "A característica especial das pro­ posições lógicas é que, só pelo símbolo, podese reconhecer que são verdadeiras, e este fato encerra em si toda a filosofia da lógica. Analogamente, um dos fatos mais importantes é que a verdade ou falsidade das proposições não lógicas não pode ser reconhecida somen­ te a partir da proposição" (Tractatus, 6.113).

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Assim, o procedimento racional julgado caracte­ rístico das disciplinas às quais Hume atribuía por objeto apenas as relações de idéias (lógi­ ca e matemática) foi reduzido à tautologia. Wittgenstein diz que as proposições da lógica, assim como as da matemática (Ibicl., 6.21), nada dizem. No entanto, isso não quer dizer que são inúteis, pois revelam a identidade de significado existente sob formas proposicionais diferentes e podem, portanto, ser usadas para a transformação de uma proposição numa ou­ tra que tenha o mesmo significado, mas forma diferente. Contudo, nenhuma das proposições da lógica e da matemática fornece qualquer informação acerca do mundo. A redução da R. a procedimento tautológico tem, pois, os seguin­ tes resultados: 1" são racionais, no sentido pró­ prio do termo, somente os procedimentos for­ mais da lógica e da matemática (como parte ou todo da lógica); portanto, racionalidade e logicidade coincidem; 2- racionalidade e logicidade nada têm a ver com realidade. Portanto, esse conceito da R. constitui a inversão simétrica cio conceito b), que, ao contrário, identificou racionalidade e realidade, e opôs ambas as con­ cepções à formalidade lógica pura, declarada sem valor (cf. sobre a concepção em exame, R. VÜN MISHS, Kleines Lehrbnch des Positivismns, 1939, § 10; trad. it., pp. 164 ss.; J. R. WKINBF.RG, An Examination qf Logical Posilivisni, 1950), cap. II; trad. it., pp. 86 ss.). As quatro alternativas típicas que a teoria da R. seguiu até hoje são claramente insuficientes em face da tarefa que se atribui à R. de guiar o homem em todos os campos. A primeira delas esgotou-se historicamente, e o abandono da lógica em que era expressa é um sinal desse esgotamento. As alternativas (b)c(c) impossibili­ tam a determinação de procedimentos rigoro­ sos; a (b) põe em risco a própria função diretiva da razão. A alternativa (d) possibilita o desen­ volvimento de uma disciplina autônoma, que é a moderna lógica matemática, mas é restrita demais para expressar as tarefas da R. em todos os campos. É certamente possível empregar em todos os campos as técnicas lógico-matemáticas construídas com base na noção de R. como tautologia, mas nem todos os procedimentos que podem ser definidos como racionais po­ dem ser reduzidos a tais técnicas. Em geral, comportamento racional é o que permite domi­ nar uma situação, enfrentar suas mudanças e corrigir os eventuais erros do próprio procedi­ mento. Portanto, a racionalidade de um proce-

RAZÃO DE ESTADO

climento só pode ser determinada em relação à situação específica que ele permite enfrentar. E a consideração da R. remete desde logo (como queria Husserl) à consideração das esferas ou dos campos específicos, unicamente em rela­ ção aos quais se pode decidir sobre a ra­ cionalidade de um procedimento. Deste último ponto de vista, a teoria da R. hoje não pode ser dada por uma metafísica da R., mas por investi­ gações metodológicas e críticas que, do exame de procedimentos autônomos de que o ho­ mem dispõe em cada campo de pesquisa, re­ montem às condições gerais em que esses pro­ cedimentos podem *er projetados. RAZÃO DE ESTADO. João Botero, que in­ troduziu essa expressão como título de um li­ vro seu (Delia rcigiou di stcito, 1589). usou-a para designar "a resenha dos meios aptos a fundar, conservar e ampliar um Estado", que é "o domínio firme sobre os povos". Mas na rea­ lidade essa expressão passou a indicar o prin­ cípio do maquiavelirimo vulgar, e isso graças ao próprio Botero, que, mesmo se opondo a Maquiavel, admitia o princípio de que os fins justificam os meios em política (v. MAQTIAVKI.ISMO). RAZÃO PREGUIÇOSA (gr. àpyòç A.óyoç; kit.

Ignararatkr.A. Fan/e\'eniiiuft;'tt. Kagionpigra). Raciocínio ou arguniento que leva à inércia. Já Platão chamava de' preguiçoso o argumento sofista de que é inútil indagar por que não se pode indagar aquilo que se sabe (uma vez que se sabe) nem aquilo que não se sabe, uma vez que não se sabe o que indagar (Meu., 86 b). Mas com o nome de R. preguiçosa chegou até nós especialmente um argumento de provável origem megárica, exposto pelo estóico Crisipo (Pu TAKCO, Moralia, II, p. 574 e: cf. Stoicorum fragmenta, II, p. i7"7), que Cícero assim rela­ tou: "Se for teu destino curar-te dessa doença, vais curar-te recorrendo ou não a um médico. Assim também, se for teu destino não te cura­ res dessa doença, não vais curar-te recorrendo ou não ao médico. Ora, teu destino é uma dessas duas coisas; portanto, de nada te adianta recor­ rer ao médico" (Defalo. 12. 28). Leibniz fez alusão a esse velho argumento megárieo ou estóico ( Tcod.. I, 55). Mais genericamente. Kant chama de R. preguiçosa "todo princípio que leve a considerar como absolutamente cumpri­ da a investigação, de tal modo que a R. se tranqüiliza, ao dar por cumprida sua tarefa" (Crít. R. Pura, Dialética. Apêndice à Dialética transcendental: do objetivo final, etc). E neste

REAIS CIÊNCIAS

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sentido mais geral que essa expressão costuma ser usada até nossos dias. R A ZÃO PU R A . V. Pr RO. RAZÃO SUFICIENTE. V.

FUNDAMENTO. RAZOÁVEL Vlat. RaJionabihs ou RiUioimin-,

in. ReasonabJe. fr. Raisonable, ai. Venuinftig, it. Ragiouerole). Aquilo que está em conformi­ dade com a razão ou com ;is regras que ela prescreve em determinado campo de pesquisa ou em geral. Neste sentido. Locke talava da "racionabilidade do cristianismo". Fala-se tam­ bém de "certeza R." para designar a certeza que pode ser deduzida das regras do domínio a que se faz alusão, mas não é absoluta. Devvey diz: "A racionabilidade é questão de relação entre os meios e os fins. (...) F R. buscar e esco­ lher os meios que, com toda a probabilidade, produzirão os efeitos desejados" (Logic. I; trad. it., pp. 4l--t2). Como correlativo cie racionabüidade. o ter­ mo R. implica uma conotação limitativa que, em primeiro lugar, exclui a infalibilidade da ra­ zão e, em segundo, inclui a consideração dos limites e das circunstâncias em que a razão vera a agir. Portanto, "ser R." significa, na língua comum, dar-se conta das circunstâncias c das limitações que elas comportam, renunciandose a atitudes absolutas, sejam elas teóricas ou práticas. RAZÕES SEMINAIS (gr. AÓyoi OKepuaxtKOÍ: lat. Nalionesseniinales). Partes da razão divina que dão origem às coisas. Segundo os estóicos, assim como todo ser vivo é produzido por uma semente, todas as coisas são produzidas por uma partícula da razão divina, que por isso é uma semente racional. Essa noção ressalta a predeterminaçào daquilo que é gerado (AKCIO, Plac. ir. 33; cf. J. STÜBKÜ, I-cl., I, P. 3); foi retomada pelos neoplatônicos (cf. PI.OTINO, Emi. II. 3. 16) e por S. Agostinho (Pe diivrsisc/itaestionibns. 83, q. 46), REAÇÃO

(in. Reaction-. fr. Réactioir. ai.

Reac/ion: it. Reazione). 1. Ação igual e de sentido contrário a determinada ação. E neste senti­ do que a física nevvtoniana utiliza essa palavra. 2. Em psicologia: qualquer resposta a um estímulo. Tempo de reação: intervalo entre estí­ mulo e resposta. .3. Em política: movimento que tende a anu­ lar ou a neutralizar os efeitos de uma revolução ou de uma mudança qualquer, ou mesmo im­ possibilitar a ocorrência de mudanças. REAIS CIÊNCIAS.

ÇÃO DAS.

V. CIÊNCIAS, CLASSIFICA­

REAL R E A L dat. Realis: in. Real: Ir. Réeh ai. Real: il. Reale). 1. Que se refere à coisa. P. ex.. "defi­ nição R. é a definição da coisa e não do seu nome. 2. Aquilo que existe de fato ou atualmente. Corresponde aos vários sentidos do termo rea­ lidade (x.). 3. I lerhart chamou de Reais os seres efetiva­ mente existentes, "cuja natureza simples e pró­ pria desconhecemos, mas sobre cujas condi­ ções interiores e exteriores é possível adquirir uma soma de conhecimentos que podem aumentar infinitamente". Tais entes são irrelativos entre si e por isso qualquer das suas rela­ ções deve ser considerada uma constatação acidental (züjallige Ansicl.il) que não qualifica c não modifica sua natureza (Hiiileituiif) in die Pbilosopbie. 1813. §§ 1S2 ss.). REALIDADE (in. Reality; IV. Réalité; ai. Realilat. \\"irklicbkeit: ít. Realtà). 1. Hm seu sig­ nificado próprio e específico, esse termo indica o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou independentemente dela. A palavra realilas foi cunhada no fim da escolastica. mais precisamente por Duns Neot. liste a usou sobretudo para definir a individua­ lidade, que consistiria na "última realidade do ente", que determina e contrai a natureza co­ mum ad esse bane reiu. à coisa singular (Op. O.Y.. II, d. 3. q- >. n. 1). Duns e seus discípulos preferiram chamar essa realitasóc baecceílas. Mais tarde, esse termo passaria a designar o esse in re&d cscolástica, p. ex. no sentido com que S. Anselmo pretendia passar, através da prova ontológica. do esse in inlellectn ("Knte superior a tudo") ao seu esse in re{li'osl. 2). ou então no sentido com que os escolásticos tala­ vam do universal /;/ iv, "incorporado nas coi­ sas". Assim, o oposto de R. é iclealidade, que indica o modo de ser daquilo que esta na men­ te e não pode ser ou ainda não foi incorporado ou atualizado nas coisas. A referência a coisas também evidente está em expressões como "definição real", para indicar a definição da coi­ sa, e não do nome, e "direitos reais", para indi­ car os direitos pertinentes às coisas, e não às pessoas. O problema suscitado diretamente pela no­ ção de R. é o da existência das coisas ou do "inundo exterior". Hsse problema nasceu com Descartes, ou seja. com o princípio cartesiano de que o objeto do conhecimento humano é somente a idéia. Desse ponto de vista, torna-se imediatamente duvidosa a existência da reali­

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dade a que a idéia parece aludir, mas sem pro­ vas, assim como uma pintura não prova a R. da coisa representada. Para justificar a R. das coi­ sas, Descartes recorreu à veridicidade de Deus: em sua perfeição. Deus não pode enganar-nos, não pode permitir que haja em nós idéias que nada representem (Méd.. IV). Mas Descartes chegou à existência de Deus não só reelaborando a prova ontológica como também admi­ tindo o princípio de que "na causa eficiente e total deve haver pelo menos tanta R. quanto no efeito", princípio com base no qual a idéia de Deus. que é a idéia tia máxima perfeição, deve ter como causa um ser que lenha tanta "K." quanto aquela que a idéia representa: Deus {Ibiii. 111). A evolução ulterior tio problema levou à negação tia realidade. O empirismo inglês, com Berkeley e Hunie. reduzi:! a R. das coisas ao ser percebido, negando-a, pois. como modo tle ser autônomo. Por outro lado, com I.eibniz. o racionalismo resolvia as coisas em elementos ou átomos (mônadas) de natureza espiritual, negando, também desse modo. o caráter específico ele sua R. (v. IM.-V1T:KIAI.ISMO). Kant de algum modo reafirmou a R. das coisas, mantendo na pahnra R. (Realilál) a sig­ nificação específica de R. das coisas ou. como ele mesmo tliz. "coisalidade" (Sachbeil) ((.'ríl. R. Pura. Analítica, II. cap. I). contrapontlo-lhe a "idealidade" do espaço e tio tempo, que são formas tia intuição, e não tias coisas (Ibid, § 3). Mas, para ele. o problema tliz respeito à exis­ tência (l)asein) mesma tias coisas. K o que ele examina em "Refutação do Idealismo". A solu­ ção então proposta é que "a consciência tle mi­ nha própria existência é ao mesmo tempo consciência tia existência tle outras coisas fora tle mim". A prova tlessa asserçào é que a cons­ ciência do tempo, isto é, da mudança, não seria possível sem a consciência tle algo permanen­ te: e esse algo permanente, não podendo ser datlo pela própria consciência do tempo, pode ser tlado apenas pela coisa exterior á consciên­ cia. Seja válida ou não essa demonstração, está claro que. por uni lado, Kant julgava válido o primado tia consciência estabelecido por Des­ cartes, para quem a R. tias coisas é um proble­ ma que exige demonstração, e. por outro, ten­ dia a destruir essa formulação, relacionando a consciência da existência com a existência tias coisas (V. CoisscifíNCiA). Hle nem sequer se pro­ punha o problema do modo de ser específico das coisas, do tipo de existência que lhes é próprio. Contudo, esse problema está intima­

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mente ligado ao da "existência" das coisas, e só uma resposta a ele (seja ela qual tor) pode dar significado â sua solução positiva. Isto porque, se as coisas existem, surge imediatamente a pergunta: qual 6 o sentido de sua existência? Portanto, deve-se considerar que o problema da R. é composto por esses dois problemas inseparáveis: o da existência e o do modo de ser específico das coisas. O idealismo póskantiano deteve-se mais no segundo que no primeiro desses problemas. Segundo Fichte, a R. consiste em geral na atividade do Eu, que "põe o objeto limitando-se" e transporta para o objeto uma parte de sua atividade. "A fonte da realidade ( Realitát) é o Ku" — diz Fichte. "Ape­ nas pelo Ku e com o Eu é dado o conceito da realidade. Mas o Hu é porque se põe, e se põe porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma e mesma coisa. Mas o conceito de pôr-se e o de atividade em geral são, por sua vez, uma só e mesma coisa. Portanto, toda R. é ativa e toda coisa ativa é R." ( Wissenschaftsleh re, § 4, E). Essa idéia de R. como atividade passou a fazer parte da bagagem do Romantismo e influen­ ciou o desenvolvimento posterior do proble­ ma. "Atividade é R. propriamente dita" — dizia Novalis (Fragmente, 190). Schopenhauer afir­ mava categoricamente "que a essência cios ob­ jetos intuíveis 6 a sua ação: que é na ação que consiste a R. do objeto, e que a pretensão de uma existência do objeto fora da representa­ ção do sujeito e mesmo de uma essência da coisa real diferente da sua ação não tem senti­ do; ao contrário, é uma contradição" (I)ie Welt, I, § 5). Como se vê, na origem da redução cie R. a atividade está um sentido idealista. Todavia, ela serviu para abrir uma nova alternativa de solução para o problema: a R. não seria simples objeto de conhecimento, mas um modo de ser que se revela melhor para outras formas de ex­ periência. A noção cie atividade, tão apreciada pelo Romantismo, representa o primeiro mo­ delo dessa solução. Por outro lado, o sensaeionismo de Condillac mostrara que a idéia de R. derivava cio sentido cio tato; mas o sentido era entendido por Condillac de maneira ativa e di­ nâmica, como guiado e sustentado pela neces­ sidade e por desejos (Traité des sensations, 1754, 1, 3, 1; I, 7. 3; II, 5, 5). Mais tarde, Destut de Tracy relacionara a idéia de R. com a expe­ riência da resistência que as coisas opõem ao movimento (Ideologia, 1801, cap. 8). Na filoso­ fia contemporânea, Dilthey defendeu idéia aná­ loga (Contribuição ã solução do problema da

origem da nossa crença na realidade do mundo exterior, em Gesammelte Schriftcn, 1890, V, 1, pp. 90 ss.). A resistência definiria o modo de ser da R., isto é, das coisas; cor­ respondentemente, a experiência dessa R. se­ ria mais volitiva e prática que cognitiva. Scheler aceitou esta interpretação da R. (Die Wissensformen und die Cesellscbaft, pp. 455 ss). Tese substancialmente análoga foi apresentada por Santayana no livro Ceticismo e fé animai (1923), no qual ele mostrava que a crença na realidade é devida a experiências puramente animais (fome, luta, etc.) e só é justificável com base em tais experiências. O mesmo Santayana expusera essa noção de R. em lüsays in Criticai Realism (1920), obra publi­ cada por sete filósofos americanos (v. RFALlSMO).

Na filosofia mais recente o problema da R. praticamente deixou de ser problema da "exis­ tência" cias coisas para tornar-se cada vez mais problema do modo de ser específico das coi­ sas. Suas formulações são feitas segundo a alternativa aberta pelas doutrinas que reconhe­ cem o caráter não simplesmente cognitivo da experiência da realidade. Heidegger negou ex­ plicitamente o primado da consciência, do qual nascia o problema da existência cias coisas. "Crer nã realidade do 'mundo exterior' (com ou sem direito), demonstrar essa realidade (sufi­ cientemente ou não), pressupor essa realidade (explicitamente ou não), tudo isso são tentati­ vas que pressupõem antes de mais nada o su­ jeito sem mundo, vale dizer, não consciente de seu mundo, que eleve, portanto, começar por fundar a segurança cie seu mundo" (Sein und Zeit, § 43, a). O problema da existência do mundo exterior ou cias coisas desaparece por si mesmo uma vez que se elimine o pressupos­ to falaz do "sujeito sem mundo", ou seja, pressu­ posto de que o homem não é já e sempre sobretudo um ser no mundo. Restabelecido este caráter fundamental do modo de ser do ho­ mem, que por isso é um 'ser-aí" (em que aí in­ dica sua relação com o mundo), o problema da R. torna-se o problema do modo como as coi­ sas do mundo se apresentam ao homem ou estão em relação com ele. Segundo Heidegger, esse modo de ser é a "simples presença", uma vez que a existência é o modo cie ser reservado ao ser-aí, ao homem. "Se a expressão R. signifi­ ca ser do ente (res) simplesmente presente no mundo (e de fato nada mais deve ser pensado dela) na análise desse modo de ser segue-se

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que o ente intramundano só é concebível ontologicamente se tor esclarecido o fenômeno da intramundanidade. Mas este se baseia no fe­ nômeno do mundo, que, por sua vez, enquan­ to momento essencial da estrutura do ser-nomunclo, pertence à constituição fundamental do ser-aí. O ser-no-mundo, novamente, é ontologicamente articulado na totalidade do ser cio ser-aí, que se caracteriza como Cuidado {(. ura)" (Ibitl. § 43, b). Precisamente porque o ser do ser-aí (a existência humana) é Cuidado, os entes de qtie essa existência se ocupa, que são diferentes dela — as coisas (cujo modo de ser ê a R.) — caracterizam-se pela instntmentalidade. "O modo cie ser desse ente é a instrumentaliclade, que, no entanto, não deve ser vista como tendências cie interpretação. (...) A instrumentalidacle é determinação ontológicocategoríal do ente como é em si" (Ibíd., § 15). De tal modo, Heidegger destacou o caráter ins­ trumental das coisas, em virtude cio qual elas podem valer como meios para o homem. Mas Heidegger julga que esse caráter não pertence às coisas na medida de sua relação com o homem, mas constitui seu ser "em si", sua essência. À parte essa pretensão, a análise de Heidegger pode ser considerada uma caracte­ rização do modo de ser das coisas ou da "R.", entendida em seu significado próprio e especí­ fico. Por outro lado, essa mesma análise mos­ trou o caráter arbitrário do "problema da R.", no modo como foi entendido a partir de Des­ cartes, como problema cie Lima R. "exterior" à consciência. Mostrou que tal problema surge cie um pressuposto filosófico infundado, re­ presentado pela tese do "sujeito sem mun­ do" ou, em outras palavras, de uma existência do homem que não consiste na relação com o mundo. É significativo observar que quase simul­ taneamente a essas análises de Heidegger o problema da R. exterior era considerado um "pseudoproblema" de um ponto de vista total­ mente diferente, do Círculo de Viena. Carnap (Scheinsprobleme in derPhüosophie, das Fremdpsychische und der ldealismus-streit, 1928) e Schlick (Positivismus undRealismus. reed. em Gesammelte Aufsütze, 1938) rejeitavam tanto a tese da irrealidade do mundo exterior quanto da sua R. tachando-as de pseuclo-afirmações, porquanto nenhuma das duas se prestava a veri­ ficações experimentais. Mas o Círculo de Viena não apresentou qualquer solução cio segun­ do aspecto — o mais legítimo — do problema

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REALIDADE

da R.: o modo cie ser das coisas. A esse respei­ to, limitou-se (como fazem seus seguidores até hoje) a repropor a velha tese de Mach (Amilyse der Hmpfindmif>en, 1900), segundo a qual as coisas são compostas pelos mesmos elementos últimos que compõem o eu (as sensações), e estes elementos últimos são neutros em si, ou seja, nem subjetivos, nem objetivos. Ksta tese obviamente não dá conta do caráter específico da R. cias coisas, não explica por que um con­ junto de tais elementos neutros assume, em cada caso diferente, as características cie uma "coisa" ou de um "eu". Além do significado cujas interpretações estudamos até aqui. a palavra R. também cos­ tuma ser usada nos outros significados abaixo, que devem ser considerados secundários por­ que são designados com mais propriedade por outros termos do vocabulário filosófico. 2. Em oposição a aparência, ilusão e outros semelhantes, R. significa às vezes o ser em qualquer dos seus significados existenciais. Assim p. ex., na obra de Bradley. Appearance and Realíty (1895), a oposição anunciada pelo título é entre o aparecer e o ser, uma vez que ele não é limitado à realidade no seu sentido específico, vale dizer, ao modo cie ser das coi­ sas. Dewey empregou a palavra no mesmo sentido, mas com uma conotação crítica: "Na sua fórmula mais breve, a R. torna-se existên­ cia, qual gostaríamos que fosse depois que analisamos seus defeitos e decidimos quais de­ vem ser eliminados; a 'R.' é aquilo que seria a existência se nossas preferências racionalmente justificadas estivessem tão completamente es­ tabelecidas na natureza que esgotassem e de­ finissem seu ser por inteiro, tornando, pois, desnecessárias a luta e a busca. O que é elimi­ nado (uma vez que a perturbação, a luta, o conflito e o erro ainda existem empiricamente, algo é eliminado), sendo excluído por defini­ ção da R. plena, é atribuído a um grau ou a uma ordem do ser que se afirma ser metafisicamente inferior; essa ordem recebe várias desig­ nações: aparência, ilusão, espírito mortal ou puramente empírico, em contraposição ao que é, real e verdadeiramente'" (Hxperience and Nature, cap. f, p. 54). 3. Em oposição a possibilidade, potêncialidade e às vezes também a necessidade, essa palavra significa atualidade, efetividade ou aquilo que se atualizou ou efetivou e possui existência de fato. O termo alemão Wirklichkeit, diferente de Realitãt, tem esse sentido específico, em­

REALIDADE PRESUNTFVA

bora os filósofos nem sempre se atenham estritamente a essa distinção. Nesse sentido, a palavra designa uma das categorias tia lógica tle Hegel. "A R. é a unidade imediata, que se produziu, da essência e tia existência, ou do interno e tio externo" (F.nc, § 1-42): com isso. 1 legel pretende tli/er que a R. ê a essência que se atualizou como existência, ou o interno que se manifestou efetivamente no externo. Quem insistiu na distinção entre Wirklicbkcit e Rea/itat i\n L o tz e (Mikrokosmos. III. p. S 3 A). X. Hartmann, por sua vez. utilizou a distinção, descobrindo na efetividade ( Wirklicbkcit) o sentido primário do ser (Mõglicbkcit mui Wirk­ licbkcit. 1938) (v. SHR). R EALIDADE PRESUNTIVA (ai. Prasitm/)tirc Wirklicbkcit). Foi assim que Husserl cha­ mou a R. das coisas em relação á "R. absoluta", necessária, tia consciência (Iclccn. 1, § 46). REALISMO (lat. Realismus. in. Recilisni, fr. Réalismc. ai. Rcalisiuus. it. Realismo). Fsta pala­ vra começou a ser usada em fins do séc. XV. designando a corrente mais antiga cia F.scolástica. em oposição ã chamada corrente "mo­ derna" tios nominalistas ou terministas. O pri­ meiro a usá-la foi provavelmente Silvestro Mazolino de Prieria. em Conipcndiuni dialccticcic. de 1 t96(ef. PKAML, GcscbicblcderI.ogik. IV. p. 292). O R. afirmava a realidade dos uni­ versais (gêneros e espécies), entendendo con­ tudo tle maneiras diferentes essa mesma reali­ dade (V. rMVI-RSAl.). No sentido mais genil e moderno, esse ter­ mo foi retomado por Kant na primeira edição tle Crítica da Razão Pura. para indicar, por um lado, a doutrina (oposta à que ele defendia) segundo a qual < > espaço e o tempo são indepen­ dentes tle nossa sensibilidade, que é o R. transcendental, e por outro lado uma doutrina sua, que admite a realidade exterior das coisas e que ê o R. empírico. Kant dizia: "0 idealista transcendental ê um realista empírico que atribui à matéria, como fenômeno, uma rea­ lidade que nào precisa ser deduzida, mas é imediatamente percebida" ( Crít. R. Pura. l-ed., Dialética transcendental, Crítica do quarto paralogismo da psicologia transcendental). Com Kant, esse termo entrou em filosofia, designan­ do doutrinas tle interesse atual, e não simples­ mente histórico. Fichte afirmava que "a doutri­ na da ciência é realista" porque "mostra que é absolutamente impossível explicar a consciên­ cia das naturezas finitas se não se admitir a existência cie Lima força independente delas.

REALISMO

oposta a elas. tia qual elas dependem em sua existência empírica" ( Wisseiischa/tslehre. 1794, § V. II; trad. it., 231). Schelling falava cie um idea­ lismo realista {Rcal-idcalismus) ou tle um R. idealista (Ideal-tvalismus) (Wcrkc. 1. X. p. 107) no mesmo sentido que Fichte. A partir tle en­ tão, o R. foi qualificado e definido das maneiras mais diferentes, e quase sempre as doutrinas que o adotaram como insígnia qualificaram tam­ bém como realistas as doutrinas do passado que coincidiam com seu ponto de vista. Assim, p. ex.. Platão foi considerado realista porque admitia a realidade tias idéias (seja qual tora significação disto), mas também loi definido como idealista porque tratava tle idéias. Seme­ lhantes análises (e as controvérsias que provo­ cam) não passam de perda de tempo. Menos inútil talvez, seja esclarecer o significado das formas mais conhecidas que o R. assumiu na filosofia moderna. Nesse caso, além das já cita­ das, podem ser lembradas as seguintes: ei) O R. empírico tle Kant assumiu vários nomes, permanecendo substancialmente o mes­ mo: independência tia existência tias coisas em relação ao ato de conhecer. \Y\ Hamilton cha­ mou esse ponto de vista de R. natural ou presciitacioiiismo. considerando-o típico da es­ cola escocesa, tia qual derivava sua filosofia (v. PRRSKNTAQOMSMO). C) famoso artigo tle G. E. Moore. publicado em Minddc 1903. "Rcfuiacáo do idealismo", inspira-se num ponto de vista análogo: defende a independência do objeto conhecido em relação ao ato psíquico com que é conhecido. Fssa independência era chamada de tese tio R. ingênuo (ai. Scüven Realismus) por G. Schuppe (Gruudriss der F.rkciiiilnistbcoric uud I.ogik. 1910. pp. 1-2). O. Külpe dava a esse mesmo ponto de vista o nome de R. científico (I)ie Realisieriuig. 11 1920. p. l-l8), enquanto J. Maritain, que defen­ deu a mesma forma tle realismo porque, se­ gundo ele. correspondia mais á tradição tomista, chamou-o de R. crítico (JJistiiiguerpoiir unir. 1932. p. 149). Finalmente, o mesmo tipo cie R. é chamado tle mcilcricilisniopAas defen­ sores cio malerialismo dialético: é o que faz. p. ex.. Lenin (Matcrialismo c cmpiriochlicismo. 1909, trad. it., p. a5). Fssa mesma forma tle R. sem adjetivos ou com adjetivos vários, é fre­ qüente na filosofia contemporânea: pode ser facilmente encontrada no existencialismo, no instrumentalismo. no empirismo lógico e em todas as correntes filosóficas que adotam o pensamento científico como ponto cie partida.

RECEPTIVIDADE

b) R. transfigurado CPransfignrared Realisni) de II. Speneer: "O R. com que estamos comprometidos sustenta simplesmente que a existência objetiva é separada e independente da existência subjetiva. Mas não afirma que cada um dos modos da existência objetiva seja na realidade aquilo que parece ser, nem que as conexões entre os modos sejam objetivamente aquilo que parecem ser. Por isso, esse R. distin­ gue-se claramente do R. cru; para marcar a distinção podemos chamá-lo propriamente cie R. transfigurado" (Principies ofPsychology; § -CJ2). c) O novo R. defendido em volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (F. 15.

IIOI.T, W. T. MAKWIN, W. P. MOMAGIK. R. B. PFRRY, \\ \ B. PITKIN. K. G. SPAIÍLDING. ibe.Xeic

Reaíísm, 1912) baseia-se no princípio segundo o qual a relação cognoscitiva não modifica os seres entre os quais se estabelece; portanto, o lato de os seres conhecidos parecerem estar apenas em relação conosco não implica que seu ser se esgote nessa relação. Segundo o novo R., também são seres objetivos os concei­ tos abstratos utilizados pela ciência; o próprio erro é um fato objetivo devido a uma distorção fisiológica. Ponto de vista análogo, também ba­ seado nas correntes da fenomenologia e do logicismo, foi defendido por Nicolai Hartmann numa série de obras que começaram com Cnmdzngc einer âletapbysik der lirkenntnis (1921). Constituem o R. de Hartmann as duas teses seguintes: 1' a relação cognitiva é extrínseca ao ser, que não é qualificado nem mo­ dificado por ela; 2- o ser é constituído não só por coisas, mas também por objetos ideais ou abstratos, ou por valores. d) O R. crítico foi defendido em um volume coletivo por um grupo de pensadores america­ nos (I). DRAKK, A. O. LOVKJOY. J. B. PKAIT, A. K. RI X:,I:KS, G. SANTAYANA, R. W. SKI.IARI:. C A. STRONC;,

lissays in CriticaiRealism, J92Ü). que defendia fundamentalmente o ponto de vista de Sanlayana, segundo o qual o objeto imediato ao conhecimento é uma essência (v.), ao passo que a existência nunca é apreendida imediata­ mente ou intuída, mas apenas afirmada, posta ou reconhecida por exigências emocionais e práticas que Santayana chamava de fé animal {Sceptícism and Animal Faith, 1923). RECEPTIVIDADE (in. Receptirily, Ir. Récep-

lirité, ai. Receptiritdt: it. Recettività). Capacidade de sofrer uma ação ou de registrar os efeitos cia ação sofrida. Kant chamou de R. a capacidade de receber impressões, e a opôs ao caráter ativo

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RECIPROCIDADE

do conhecimento, que se baseia na "esponta­ neidade dos conceitos" (j~ít. R. Pura, Lógica Transcedental, Intr., I). RECEPTOR (in. Receptor). Termo da psico­ logia contemporânea que designa qualquer ór­ gão ou estrutura com que o organismo recebe os estímulos. São R. tanto os órgãos dos senti­ dos (p. ex., olho, ouvido, etc.) quanto as estru­ turas nervosas que recebem estímulos da pele, dos músculos, das articulações, etc. Os primei­ ros são chamados de exterorreceptores-, os ou­ tros, de propriorreceptores. Às vezes fala-se também de oi/ororrcccptorespiim indicar os R. situados nas vísceras. RECIPROCAÇÂO (lat. Recíprocalio; in. Reciprocation; it. Recíprocazione). Na lógica de 1600, um modo de refutação que consiste em usar contra o adversário o mesmo argumento por ele utilizado; com isso, demonstra-se que o argumento é vicioso (cf. JUNCirs. Lógica hambiii[í>ensis. 1638, VI. 16. 20). RECIPROCIDADE (in. Reciprocity. fr. Reciprocitê; ai. \\'7ecbseltrirkitng; it. Rcciprocilã dazione). K o princípio da conexão universal cias coisas no mundo, em virtude do qual elas constituem uma comunidade, um todo organi­ zado. Portanto, a ação recíproca nada tem a ver com o princípio cie ação e reação enunciado por Newton. Kant faz da ação recíproca um princípio puro do intelecto, e vê nele a terceira analogia da experiência (v.X ex p ressa com as seguintes palavras: "Todas as substâncias, quando podem ser percebidas no espaço como simultâneas, estão entre si numa ação recíproca universal". Assim como a sucessão temporal tem fundamento na conexão causai, também a simultaneidade temporal tem fundamento na R. de ação entre as substâncias. Kant diz: "Sem comunidade, cada percepção (dos fenômenos no espaço) se separaria das outras, e a cadeia das representações empíricas, isto é, a expe­ riência, deveria recomeçar do início a cada novo objeto, sem que a precedente pudesse li­ gar-se a ele ou estar em relação temporal com ele." (Crít. R. Pura, Anal. dos prinç.. III. 3). O sentido da conexão recíproca é esclarecido em seguida por Kant da seguinte maneira (loc. c/7): "A palavra (iemeinscbafl [= comunidade] tem duplo significado: pode .significar tanto commnnio quanto comerciam. Aqui a empre­ gamos no segundo sentido, como comunidade dinâmica, sem a qual nem a comunidade espa­ cial (comi)innío spatiz) poderia ser conhecida empiricamente " Não admira que o Romantis­

RECIPROCO

mo tenha valorizado ao máximo essa noção, de caráter tão nitidamente metafísico e espiritua­ lista. Schelling afirma (System des transzendentalen Idealismus, p. 228) que "a relação de causalidade não pode ser construída sem a ação recíproca", enquanto Hegel (Ene, §§ 154 ss.) vê na passagem da causalidade á ação recí­ proca a passagem da necessidade ao desvendamento da necessidade, ou seja, ã liberdade. O que tudo isso significa é expresso com toda a clareza por Lotze, em Microcosmo (III2, p. 482): "A ação recíproca das substâncias finitas no mundo só poderá ser entendida se elas fo­ rem partes de Lima Substância infinita que as abranja todas em si mesma." Essa noção é fre­ qüente nas concepções espiritualistas do mun­ do, não passando cie transcrição, em termos mais modernos, d a simpatia universal (v. SIMPA­ TIA) q u e a s concepções mágicas (v. MAGIA) a d ­ mitiam entre as coisas do mundo. Portanto, não é de surpreender que Schopenhauer afir­ masse que "a ação recíproca não existe", por­ quanto "ela pressuporia que o efeito 6 a causa da sua causa, e que aquilo que segue é, ao mesmo tempo, o que precede" (Uber die vierfacbe Witrzel des Salzes vom zureichenden Grande, 1813, § 20). RECÍPROCO (in. Reciprocai; Converse, fr. Reciproque, ai. Reziprok it. Reciproco). Em ló­ gica, chama-se de recíproca a proposição obti­ da pela conversão da proposição dada, isto é, pela troca entre sujeito e predicado. O termo latino tradicional para tal proposição é conver­ sa, e foi empregado por Boécio (De syllogismo categórico, P. L, 64. col. 804; cf. HAMILTON, I.ectures o)i Logic, II, p. 259). Por "inversaEntende-se comumente a negativa de uma propo­ sição (v . CONVERSÃO).

T

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REDUÇÃO

pete mais ou menos do mesmo modo, a inter­ valos. 2. Designa-se também com este termo o raciocínio reflexivo ou auto-reflexivo cjue dá origem às antinomias lógicas (v. ANTINOMIAS). 3. Em matemática a expressão "raciocínio por R." designa o princípio da indução mateniática (v. INDUÇÃO MATEMÁTICA). RECUSA, GRANDE (in. Grecit refusal; fr. Orand refus; it. Grau rifiuto). É a recusa da realidade em favor da imaginação e das possi­ bilidades que ela desvenda em arte. Essa ex­ pressão foi empregada com esse sentido por André Breton no primeiro manifesto dos surrealistas (1924) (Les manifestes du suiréalisme, 1946). Foi adotada por H. Marcuse para «VLUCW "O protesto contai A repressão supéiflua, a luta pela forma definitiva de liberdade: viver sem angústia" (Erosand Civüization, 1954, cap. VII). V. UTOPIA.

REDENÇÃO (in. Salvation; fr. Salut; ai. fieil; it. Salvezza). Libertação de um mal mortal que ameace o corpo ou a alma do homem. A R. pode ser entendida: lp como libertação de um mal específico que pese sobre o homem no nuindo; este é o sentido com que o termo é entendido mesmo fora da religião; 2- como libertação do mundo, entendido como um mal em sua totalidade; portanto, é o rompimento definitivo da cadeia de nascimentos (budismo), ou libertação de sofrimentos, dores ou puni­ ções. Neste sentido, o termo tem significado especificam ente religioso (v. REUGIÀO).

REDUÇÃO (in. Reduetionjr. Réduction.ú. Reduktion; it. Riduzione). 1. Transformação de um enunciado em outro eqüipolente mais sim­ ples ou mais preciso, ou capaz de revelar a verdade ou a falsidade do enunciado originário. Fala-se também de "R. da ciência aos termos da RECONCILIAÇÃO. V. SÍNTESE. experiência imediata" (QUINE, From a Logical RECONHECIMENTO (in. Recognition; ack- point ofView, II, 5) ou de R. das extensões às nowledgment; Ir. Reconnaissance-, ai. Anerkn- intenções, das classes ás propriedades pARNAP, nung; it. Riconoscimento). 1. Em geral, conhe­ Meaning andNecessity, §§ 23, 33). cer algo por aquilo que é. Neste sentido diz-se, 2. Explicação que consiste em considerar p. ex., "Reconheci-o como ladrão", ou "Reco­ que certas ordens de fenômenos estão sujeitas nheço a justiça dessa observação". a leis mais bem estabelecidas ou mais precisas 2. Um dos aspectos constitutivos da memó­ que uma outra ordem de fenômenos; p. ex., a ria, porquanto os objetos lhe são dados como que consiste em considerar que os fenômenos orgânicos estão submetidos âs leis dos fenôme­ j á conhecidos (v . MEMÓRIA). nos físicos, enquanto estes últimos estão sujei­ RECORDAÇÃO. V. MEMÓRIA. RECORRÊNCIA (in. Recurrence, fr. Récur- tos âs leis dos fenômenos mecânicos. (Sobre rence; ai. Recntrenz; it. Ricorrenza). 1. Aquilo este tipo de explicação, cf. E. NAGEL, "The que volta a acontecer ou se repete a intervalos Meaning of the Reduction in the Natural 1949, em Science and Civilization, regulares ou irregulares. Neste sentido, chama- Sciences", ed. R. T. Staufer, 1949, pp. 99-138.) se de recorrente um acontecimento que se re­

REDUPLICAÇÃO 3. Por R. fenomenológica Husserl entendeu a cpocbé fenomenológica, que é a neutrali­ zação cia atitude natural, ou pôr o mundo entre parênteses (Ideen, 1, §§ 56 ss.). Às vezes, mais particularmente, ele entendeu por R. o momen­ to positivo da epoché, que 6 o da reflexão inter­ na sobre o ato, em busca de captar o ato em sua intencionalidade (cf. especialmente Krisis, 1954, p. 247).

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REFLEXÃO

cimento que o intelecto tem de si mesmo; 2a como consciência; 3a como abstração. Ia Mesmo não empregando o termo R., Aris­ tóteles admite o fato óbvio cie que o intelecto "pode pensar-se" (De an, III, 429, b 9). Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o termo "R.'1. S. Tomás de Aquino diz: "Ao re­ fletir sobre si mesmo, o intelecto entende, con­ forme essa R., tanto o seu entender quanto a espécie por meio da qual entende" (S. Th., I, q. 4. Q u an to a R. aos p rin cíp io s, v. RFTOKNO. 2. REDUPLICAÇÃO (gr èavaôÍTCÀcooiç; lat. 85, a. 2). Desse modo, atribui à R. uma função Reduplicatür, fr. Réduplication; it. Reduplícazio- específica porque o intelecto, cujo objeto é o ne). Com este termo, que significa predicação universal, só pode entender o particular refle­ repetida, eram indicadas em lógica algumas pa­ tindo sobre si mesmo e considerando aquilo de lavras usadas para relacionar o predicado com o que abstrai o universal (Ibid, 1, q. 86, a. 1). Os sujeito: como. enquanto, na qualidade de. etc. escolásticos, porém, não consideravam a R. V. ex.: "o homem, enquanto animal, é mortal". As como fonte autônoma de conhecimento. Isso proposições em que ocorre a R. chamam-se só acontece com Locke. reduplicativas (ARISTÔTFLFS, An.pr., I 38 49 a 26; 2a Com Locke inicia-se o conceito da R. 1)1 INS SCOT, In An.pr.. 1, 35 em Obras, I, p. 327 como consciência. Segundo Locke, a segunda a; |INGH;S, Lógica hamburgensis, II, 11, 22). das duas fontes principais (a primeira é a sen­ REDUTIBILIDADE, AXIOMA DE. V sação) de onde o intelecto aufere suas idéias é a R., entendida como "percepção das ações ANTINOMIAS. REFERÊNCIA (in. Reference-, fr. Référence-, exercidas por nossa alma sobre as idéias que ai. Bericht; it. Riferimento). 1. Em geral, o ato recebeu dos sentidos: tornando-se o objeto das de pôr um objeto qualquer em qualquer rela­ R. cia alma, essas ações produzem na inteligên­ ção com oLitro objeto. Neste sentido, esse ter­ cia uma outra espécie de idéias, que os objetos mo tem um significado bastante amplo: um exteriores não poderiam ter fornecido; tais são mesmo objeto (p. ex., um comportamento) as idéias daquilo que se chama perceber, pen­ pode referir-se ao seu autor, aos seus efeitos, sar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer, querer, ao seus fins, às suas intenções, às suas condi­ etc." (Ensaio, II, 1, 4). Além disso, Locke tam­ ções, etc. 0 sentido específico da R., ou seja, a bém chama a R. de sentido interno, nada mais relação que ela estabelece, 6 esclarecido ou sendo, então, que consciência, nome com que foi freqüentemente chamada pelos filósofos sugerido em cada caso pelo contexto. 2. Mais particularmente, chama-se de R. o ingleses posteriores. A definição cie Vauveato que estabelece uma relação entre o símbo­ nargues. "R. é o poder de dobrar-se sobre as lo e o seu objeto, ou seja, o ato de interpreta­ idéias, cie examiná-las, de modificá-las ou de ção (x). Foram sobretudo Ogden e Richards combiná-las de maneiras diferentes: ela é o que difundiram o uso do termo nesse sentido. grande princípio do raciocínio, do juízo, etc." Identificaram a R. com o pensamento, e ambos Unir. à Ia connaissance de lesprit huniain, com aquilo que chamaram de significado cog­ 1746, I, 2), bem como a de Leibniz, "a R. nada nitivo ( The Meaning ofMeaning, 10a ed., 1952, mais é que a atenção àquilo que está em nós, pp. 9 ss.). No âmbito deste significado, os mes­ enquanto os sentidos não nos dão inteiramente mos autores chamaram de referendo( referend) o que já temos em nós" (Nouv. ess, Avanto veículo ou o instrumento de um ato de R., e propos). têm o mesmo significado: a R. é cons­ de referente (. referent) o objeto a que o ato de ciência. Era exatamente com este termo que Kant a definia: "A R. (reflexio) não visa aos R. visa. objetos em si para chegar aos conceitos deles; REFERENTE. V. RF.FFRFNCIA. é o estado de espírito em que começamos a REFLEXA, AÇÃO. V. AÇÃO RFFLFXA. a descobrir as condições subjetivas REFLEXÃO (in. Rejlection; fr. Réjíexion; ai. dispor-nos que nos permitem chegar aos conceitos. Ela é Reflexion; it. Ri/lessione). Em geral, o ato ou o a consciência da relação as representa­ processo por meio do qual o homem considera ções dadas e as várias fontesentre de conhecimento" suas próprias ações. Este conceito foi determi­ (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, Anfibolia dos nado de três maneiras, a saber: Ia como conhe­

REFLEXÃO conceitos da reflexão). Além disso. Kant elistinguia a R. lógica, cjue é o simples confronto das representações entre si. da R. transcendental, dirigida para os objetos, que contém "a razào cia possibilidade da comparação objetiva das representações entre si. O objeto da R. trans­ cendental, portanto, são os conceitos cie identidade-diversidade, de concordância-posiçào, de interior-exterior, de matéria-forma. que repre­ sentam o fundamento cie qualquer possível confronto entre as representações" (Ibid.). O caráter ativo e criativo cia R.. que traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se investiga, e portanto produz tal natureza de algum modo. foi um dos pontos fundamentais da filosofia de Hegel: "Uma vez que, na R.. se obtém a verda­ deira natureza, e esse pensamento e minha ati­ vidade, essa verdadeira natureza é do mesmo modo produto do meu espírito, isto é, do meu espírito como Sujeito pensante, de mim na mi­ nha simples universalidade, como Eu que é por si mesmo, da minha liberdade" (/ A7itíttiopoác tornar-se objeto da chamada percepção interna e de­ pois objeto de uma avaliação reflexa, de apro­ vação ou desaprovação, etc." (Ideai, 1, § 68). Neste sentido, a R. é aquilo que Husserl chama de percepção ímanenle. que constitui unidade imediata com o percebido, sendo a própria consciência (Ibid.. § 68). Husserl distinguiu também a R. natural, que se realiza na vida co­ mum, da R. fenonienol(\i>icaou transcendental, feita através da epoché (v.) universal quanto á existência ou à náo-existência do mundo ( C.íirt. Meti., §15). 3a O terceiro conceito de R. considera-a como abstração, mais precisamente como abs­ tração falseadora; esse conceito pertence ao idealismo romântico. Começou com Fichte, que viu na R. o ato com que o eu se considera limitado pelo objeto: "() Eu tem em si a lei de refletir sobre si mesmo como algo que preen-

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REFLEXIVO/REFLEXIONANTE

che o infinito. Mas não pode refletir sobre si mesmo e. em geral, sobre nada, se aquilo so­ bre que reflete não é limitado. Portanto, o cum­ primento desta lei é condicionado e depende do objeto" (Wissenscbafts/ebn; IT94, § 8). Como esclarecia Schelling, neste sentido a K. é uma abstração, porque leva a separar o objeto do Eu do próprio Eu, enquanto, na realida­ de, o objeto não passa de produto do Eu. "Essa separação entre ato e produto, no uso ordinário cia linguagem, chama-se abstração. Portanto, como primeira condição da R. tem-se a abstração" (Syslcni des írcniszciiclciilcilen Idealisnuis. III, época III, I; trad. it., p. 179). Quanto a Hegel. ao mesmo tempo em que exaltava (como se viu) a R. como atividade que não só traz á tona, mas também produz a na­ tureza racional das coisas que investiga, considerava falseador o intelecto reflexivo. "Por intelecto retlexionante ou reflexivo devese entender, em geral, o intelecto abstrator. portanto separativo. que persiste em suas sepa­ rações. Fazendo face á razão, esse intelecto comporta-se como o intelecto humano comum, ou senso comum, e impõe sua visão de que a verdade repousa na realidade sensível: de que os pensamentos são apenas pensamentos (no sentido de que a percepção sensível lhes tki substância e realidade) e cie que a razão, que permanece em si e por si, nada produz além cie sonhos" ( Wissenscbajt der logik, Intr.; trad. it., I, p. 2"). Em outros termos, a R. caracterizase pela separação entre conceito e realidade, o que é uma falsa abstração: ao mesmo tempo, a razão caracteriza-se pela identidade entre con­ ceito e realidade. Assim, para Hegel, a filosofia da K. é a do senso comum, cujo ápice está na filosofia de Kant, que afirma a incognoscihilidade da coisa em si. Na filosofia contemporânea, esse termo é usado principalmente no 2" significado, sendo, portanto, sinônimo de consciência (nos senti­ dos 1 e 2 do verbete respectivo), introspecçâo, sentido interior, observação interior. REFLEX1BILIDADE (in. Reflectirity, fr. ReJlexirité; ai. Reüectiritdt; it. Rijlessivitã). Caráter da relação não aliorrelativa, ou seja. tal que um termo possa ter consigo mesmo. P. ex., a relação não maiorijiteé reflexiva (v. RKIACÀO). REFLEXIVA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B). REFLEXIVO/REFLEXIONANTE E DETER MINANTE (in. Repectíug and delerniinaul; fr. Rójlecbissaut et déteniüiiant; ai. Rejlectierend

REFORMA

mui HcstiniDwiiri; it. Riflei teu te e determinau/e). Juízo determinante e juízo R. são. segundo Kant. os dois modos de ação tia faculdade tio juízo (v. JrnicATivA. FAcnDADi-:). Km geral, ain­ da segundo Kant, o juízo 6 "a faculdade de pen­ sar o particular como conteúdo cio geral". Dado o geral (regra, princípio, lei), o juízo que realiza a suhsunçào do particular é chamado de deter­ minante. Se, ao contrário, é dado o particular, o juízo que encontra nele o geral é chamado de R. (Crit. dojiiízo, lntr.. § IV). 'Juízo determinante" significa juízo /uedetermina ou constitui o ob­ jeto: é o que, segundo Kant. faz o juízo intelec­ tual (considerado na ('n'l. R. Pura), que forma o objeto empírico unificando o material da expe­ riência segundo as categorias. Juízo R. significa juízo que já encontra o objeto constituído, de­ vendo, pois. limitar-se a refletir sobre ele para encontrar o modo de subordiná-lo a uma unida­ de ou lei simplesmente subjetiva; como fazem, por um lado. o juízo de gosto (que julga os ob­ jetos segundo o critério de belo) e. por outro, o juízo teleológico. que julga os objetos segun­ do o critério tio tini. REFORMA (in. Reformatíon-, fr. Reforniatioii. ai. Reformatiou; it. Riforma). Renovação religiosa ocorrida na Furopa durante o séc. XVI. como retorno às origens do cristianismo. Preparada pelo humanista Krasmo de Roterdã ( I i6(>153(>), a R. foi iniciada pelo monge agostiniano Martinho I.utero ( 1-I83-15 16). que. em 151". afixou nas portas da catedral de Wilienberg noxenta e cinco teses contra a ven­ da das indulgências. Fm sua orientação global, a R. protestante apresenta-se como uma das vias de realização do retomo cios princípios, lema tio Renascimento (v.). No domínio reli­ gioso, o retorno aos princípios levava a negar o valor da tradição, portanto tia Igreja, que se julgava sua depositária e intérprete. No texto Contra HenrUjite VIU da Inglaterra ( 1522). Lu­ tem contrapunha à tradição eclesiástica e a to­ dos os rituais e interpretações por ela acumula­ dos durante séculos o retorno direto à palavra tle Jesus Cristo, concretizada no Fvangelho. Se­ gundo Lutem, o ensinamento fundamental tio Kvangelho é a justificação por meio da fé. que implica dois corolários fundamentais. 1- l'm deles é a negação do valor das obras como técnicas religiosas (ritos, sacrifícios, cerimônias), com a redução tios sacramentos aos menciona­ dos na Bíblia (batismo, penitência e eucaristia), mas sem qualquer supervisão sacertlotal, sen­ do eles considerados expressão tia relação di-

REPUTAÇÃO

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reta tio homem com Deus. Ao culto sacertlotal. Lutem opôs o exercício tios tleveres civis, como único "serviço divino" com valor religioso.2" C) outro é a negação tia liberdade huma­ na e o reconhecimento da predestinação por parte tle Deus. A te é o sinal seguro dessa predestinação, portanto indício tle salvação (/A' liberlale cbrisliana, 1520). Foi este aspecto que deu origem á polêmica entre Krasmo e Lutem: à Diatribe de libero arbítrio (1524) tle Frasmo. Lutem respondeu com De serro arbítrio (1525). em que insistia no caráter imperscrulável da escolha divina (ef. PRF.ni:s-

TINACÃO).

Das outras duas liguras principais da R. pro­ testante, rlrich Zwinglio (1+84-1531) e João Calvino (1509-1 5(H). O primeiro foi bem alem tle Lutem na negação tias formas religiosas tradicionais, atribuindo ao próprio sacramento tia eucaristia valor meramente simbólico e negando a obediência passiva á autoridade política; o segundo considerou o retorno aos princípios especialmente como retorno à reli­ giosidade do Antigo Testamento. Fm Instituiçào da religião cristã (publicada em latim em 153() e em francês em 15 li lessa tradução é o primeiro texto literário tia prosa francesa]), Calvino propôs-se efetivamente a mostrar a unidade do Antigo e tio Novo Testamentos, extraindo daquele o princípio tle que o bom sucesso nas atividades tia vida é prova eviden­ te do favoreeimento de Deus. sinal tle sua pre­ dileção. Foi esse princípio que transformou o ealvinismo em ética inspiratlora da burguesia capitalista emergente, com seu espírito ativo e agressivo, marcado pelo desprezo por senti­ mentos e orientado para o bom êxito tios ne­ gócios. REFUTAÇÃO (gr. EÀeyKÜÇ lat. Confiilalo: in. (onfutation: fr. Refutatiou: ai. Widerleguug; it. C.onfutazíone). Método adotado por Sócrates, que consiste em evidenciar a con­ tradição á qual leva a asserçáo tio interlocutor, permitindo, pois. isentar o próprio interlo­ cutor da presunção de saber. Platão sempre consi­ derou esse procedimento como a propedêutica indispensável da investigação científica (Ap., 21 a ss.; Meu, 8» a-c: Sof.. 2.30 b ss.). Aristóteles definiu a R. como a "demonstração do con­ traditório" (/:/. sof, I. 165 a 2), isto é. como o silogismo que a tem como conclusão (que é assim "relutada"). Para Aristóteles, as R. (elen­ cos) sofísticas não são verdadeiras R.; suas duas classes (as que utilizam o modo de exprimir-se

REGIÃO

e as que prescindem dele) são não demonstra­ ções negativas, mas artifícios ou truques ver­ bais cuja finalidade é reduzir o adversário ao silêncio e de levar a melhor. REGIÃO (ai. Region). 1. Termo emprega­ do por Husserl para indicar "a unidade supe­ rior e completa de gênero, â qual pertence um concreto", ou seja, "a totalidade ideal de todos os indivíduos possíveis de uma essên­ cia concreta" (Ideen, I, § 16). P. ex., "todo obje­ to empírico concreto insere-se, com sua essên­ cia material, num gênero material superior, numa R. cie objetos empíricos" (Ibid., § 9). A natureza é uma região desse tipo (Ibid, § 10). Corres­ pondentemente, Husserl fala de uma "ontologia regional", referente às estruturas de determina­ da região. 2. O gestaltismo empregou esse conceito com sentido diferente, ligado à noção topológica correspondente (v. TOPOLOGIA). K. Lewin entende por R.: lu tudo aquilo em que um ob­ jeto do espaço de vicia (p. ex., uma pessoa) tem lugar ou move-se; 2" tudo aquilo em que se possam distinguir várias posições ou partes ao mesmo tempo, ou que seja parte de um todo mais amplo. Com base nessa definição, a própria pessoa é uma R. no espaço de vida, e também o espaço de vida, como um todo, é uma R. (Principies ofTopological Psychology, 1936, p. 93). REGIME (lat. Regimen). Em geral, orienta­ ção ou direção; em particular, orientação ou direção do Estado, o governo. REGRA (lat. Regula; in. Ride, fr. Règle-, ai. Regei; it. Rego/a). Chama-se de R. qualquer proposição de natureza prescritiva. Esse ter­ mo é generalíssimo e compreende as noções mais limitadas de norma, máxima e lei. Neste sentido, Wolfi definiu a regra como "uma pro­ posição que enuncia uma determinação em conformidade com a razão" (Ont., § 475). Kant, analogamente, afirmava: "Chama-se de regra a representação cie uma condição geral á qual certa multiplicidade pode ser submetida; quan­ do deve ser submetida, chama-se lei") (Crít. R. Pura, \- ed., Dedução dos conceitos puros do intelecto, 4). Esse significado generalíssimo continua caracterizando a R. (v. Li:i; MAXIMA; NORMA).

REGRESSÃO (in. Regression; fr. Regression; ai. Regression; it. Regressione). Em geral, movi­ mento inverso ou retorno. Freqüentemente com conotação pejorativa de regresso como movi­ mento oposto ao progresso. Às vezes, foi cha­

REGULA FIDEI

mado cie regressivo o método analítico, e de progressivo o método sintético (cf. HAMILTON, Icctures ou Logic, 11, p. 7). (V. AKÁLLSK.) REGRESSO (it. Ricorso). Com esse termo, Viço designou o retorno cia história sobre seus próprios passos, que se verifica quando os re­ médios que a Providência dispõe contra a corrupção dos estados se esgotam ou não agem eficazmente. O R. consiste em voltar ao estado de selvageria, em retornar aos rigores da vida primitiva, que dispersa e extermina os homens, até que o pequeno número de ho­ mens remanescentes e a abundância das coisas necessárias à vida possibilitem o renascimento da civilização, novamente com base na religião e na justiça (Ciência nova, 1744, Conclusão). REGULADOR (in. Regulative; fr. Régulatif; ai. Regulativ; it. Regalativo). KIUII chamou de R. o uso das idéias da razão pura como regras simples do trabalho intelectual, em oposição ao seu uso constitutivo, em virtude do qual elas sao consideradas constitutivas do objeto da atividade intelectual. "Afirmo que as idéias transcendentais nunca são de uso constitutivo, tal que por meio delas possam ser dados os conceitos de certos objetos, e que se forem assim entendidas serão simplesmente conceitos sofísticos (dialéticos). Ao contrário, têm um uso R. excelente e indispensável, que consiste em dirigir o intelecto para certo objetivo, em vista do qual as linhas diretivas de todas as suas regras convergem como para um ponto; este, enibora nada mais seja que uma idéia (Jòcus íiiiaginarius), ou um ponto do qual, na realida­ de, não partem os conceitos do intelecto por­ que ele está fora dos limites da experiência possível, ainda assim serve para conferir a tais conceitos a maior unidade com a maior exten­ são possível" (Crít. R. Pura, Apêndice â dialéti­ ca, Do uso regulador, etc). (V. IDÉIAS.) REGULA FIDEI. 1. Com esta expressão desiAna-se em teologia a regra que determina o objeto da fé, o conteúdo autêntico da revela­ ção. Na filosofia patrística e escolástica, foi ado­ tado como regra desse tipo o ''Símbolo dos Apóstolos" (SymbolumApostolorum), que com­ preendia, além do conteúdo da Bíblia, também o conjunto da tradição eclesiástica (decisões conciliares e papais, opiniões dos escritores aprovados pela Igreja, etc.) (cí. M. GRALMANX, Die Geschichte der scholastíschen Methode, I, pp. 76 ss.). Essa regra continuou válida para o cristianismo católico, mas o cristianismo pro­ testante limitou-a ao conteúdo da Bíblia. A dife­

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rença entre catolicismo e protestantismo gira precisamente em torno da diferença da regula fidei (v. REFORMA). 2. Com a mesma expressão designa-se às vezes o princípio segundo o qual a fé é a regra da verdade. É assim em S. Tomás de Aquino: "Uma vez que a fé se baseia na verdade infalí­ vel, e como é impossível demonstrar o contrá­ rio do verdadeiro, é evidente que os argumen­ tos aduzidos contra a té nào sào demonstra­ ções, mas argumentos refutáveis" (S. Tb, I, q. 1, a. 8). REGULARIDADE (in. Regularity fr. Régulautâ, ai. Regelmassigkeit; it. Regolarità). Em ge­ ral, conformidade com a regra. Kant viu na R. a condição ao mesmo tempo do pensamento e da realidade: "A R. que conduz ao conceito de um objeto é a condição indispensável (comlitio sitie qua non) para perceber o objeto numa única representação e determinar a multiplici­ dade em sua forma" (Crít. doJuízo, § 22, nota). Kant considera a própria natureza em geral como "R. dos fenômenos no espaço e no tem­ po" (Crít. R. Pura, § 26) (v. NATI RKZA). REIFICAÇÃO (fr. Réificatiou; ai. Verdinglichung; it. Reificaziom).'Ycrmo empregado por alguns escritores marxistas para designar o fenô­ meno, ressaltado por Marx, de que, na economia capitalista, o trabalho humano torna-se simples atributo de uma coisa: "A magia consiste sim­ plesmente em que, na forma de mercadoria, devolvem-se aos homens, como espelho, as características sociais de seu próprio trabalho, transformadas em características objetivas dos produtos desse trabalho, na forma de proprie­ dades sociais naturais das coisas produzidas; portanto a mercadoria espelha também a rela­ ção social entre produtores e trabalho global, como relação social de coisas existentes tora dos próprios produtos. Por meio desse quidpro c/uo os produtos do trabalho tornam-se merca­ dorias, coisas sensivelmente supra-sensíveis, isto é, sociais" (Das Kapital I, I, § 4). O termo R. para indicar esse processo foi usado e difundido por G. Lukáes (cf. Geschichte und Klassenkewusstsein. 1922; trad. fr., 1960, pp. 110 ss.). REINO (lat. Regnum; in. Realni; fr. Royaume\ai. Reicb; it. Reguo). Termo introduzido na filosofia por Bacon para indicar o domínio do homem sobre a natureza (cf. o título da primei­ ra parte do Novum Organum. "Aforismos sobre a interpretação cia natureza e sobre o R. do ho­ mem"). Leibniz usou esse termo com sentido diferente, como domínio ou campo de validade

de um princípio, e falou de um "R. tísico da natureza" e de um "R. moral da graça" (Monad., § 87). No mesmo sentido, Kant falou de um R. dos fins (v. FINS), de um R da liberdade (cf. Relighm. 11, seç. 11), de um R. da graça e de um R. da natureza (Crít. R. Pura, Doutrina transe, do método, cap. 11, seç. II). Mais recentemente, Santayana empregou esse termo com significa­ ção semelhante (Realws ofBeíng, 4 vols.: 'íbe Realni of físseiicc, The Realm of Maiter, 'lhe Realm ofTrulh, The Realm ffSpirit, 1927-40).

REGULARIDADE

REINO DOS FINS.

V. FINS.

RELAÇÃO (gr. xò TCpóç; lat. Ad aliijuid, Relütio; in. Relatiou; fr. Relatiorr, ai. Relatiou; it. Relazioue). Modo de ser ou de comportar-se dos objetos entre si. Esta definição não passa de esclarecimento verbal do termo, que não pode ser definido em geral de outro modo, ou seja, fora das interpretações específicas que os filósofos lhe deram. Esta é, aliás, a definição retificada que Aristóteles deu da R.: como aqui­ lo "cujo ser consiste em comportar-se de certo modo para com alguma coisa" (Cal., ~!, 8 a 33), o que coincide substancialmente com a defini­ ção de Peirce: "R. é um fato em torno de certo número de coisas" (Coll. Pap., 3.416). Os dois problemas fundamentais oriundos do conceito de R,, de cuja solução dependem as determinações cio próprio conceito, são os seguintes: 1- Devem ser consideradas incluídas, no conceito de relação, as determinações subs­ tanciais (essenciais ou qualitativas), ou tais de­ terminações devem ser excluídas do conceito? 2- As R. constituem entidades reais ou sào ape­ nas realidades mentais? Esses problemas, ob­ viamente, sào interdependentes, e com base nas respostas interligadas que lhes foram cia­ das ao longo da história é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) a que admite a objetividade e a realidade das R.; B) a que nega a realidade e a objetividade das R.; O a que admite a objetividade das R.. mas nào sua realidade. A) Platão certamente admitiu a objetividade das R.. mas é duvidoso que admitisse sua reali­ dade: "Creio que admites que, de alguns dos entes, se deve dizer que são unicamente por si, enquanto, de outros, que estão sempre em rela­ ção com outros" (Sof, 255 c-d). No entanto, os entes em R., assim como o diferente e o idênti­ co, não sào o ser (Ihid, 255 c-d): isso tam­ bém poderia significar que eles nào têm exis­ tência ou realidade como tais. A doutrina de Aristóteles é igualmente confusa neste pon­

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to. Hle distinguiu três espécies de R.: F! as aiianlilaliras. como as expressas por dobro, metade, etc.; 2' as potenciais, que consistem numa potência ativa ou passiva, como ser causa ou causado, cortar ou ser cortado, etc; 3'! as R. que têm termo num objeto real, como a medida com respeito ao mensurável, o conhe­ cimento com respeito ao cognoscível, a sensacào com respeito ao sensível (Mel.. V. 15, 1020 b 25). A 1J espécie já parece implicar a existên­ cia de R. reais (as da 2- e da 3a espécies); na realidade, o próprio Aristóteles diz que "algumas R. acham-se necessariamente dentro ou em torno das coisas às quais se relerem", e que "tal é o caso da simetria, da propriedade e da dispo­ sição" Cíop, IV, 4. 125 a 33). No entanto, boa parte do capítulo das Categorias dedicado às R. discute o problema de saber se entre as R. há substâncias: a conclusão, embora nào categóri­ ca, é negativa: certamente nào há substâncias primeiras entre as R.. e também é difícil dizer que as substâncias segundas sejam R. (Cal., "", 8 b 15). Além disso, um dos argumentos adu­ zidos por Aristóteles contra a doutrina das idéias é o fato de que ela levaria a admitir a realidade das R.: "A R. nào é sobretudo natureza ou subs­ tância; vem depois da qualidade e da quantida­ de e e, antes, uma determinação cia quantidade, como se disse, mas nào matéria" (Mel., XIV, 1, 1088 a 21). Neste caso. Aristóteles considera, evidentemente, apenas as R. da 1" espécie, mas a sua afirmação nào é condicionada por qual­ quer limitação. Não admira, portanto, que de­ pois tenham recorrido a Aristóteles tanto os que afirmavam quanto os que negavam a reali­ dade das R. Flotino reproduz a doutrina de Aristó­ teles com as mesmas confusões (limi., VI, 1. 6). A escolástica cristã estilizou-a na distinção entre R. de razão, R. potencial v R. real. o que corresponde exatamente às espécies distin­ tas por Aristóteles. Mas, por motivos teológi­ cos, a escolástica crista tinha interesse em ad­ mitir a realidade das R.. utilizando esse con­ ceito para esclarecer o dogma da trindade; essa era a tese defendida por S. Tomás cie Aquino contra "os que afirmaram nào ser a R. coisa de natureza, mas somente de razão", o que ele de­ clarou falso porque "as coisas têm uma ordem ou uma disposição natural umas com respeito às outras" (S. Th., I, q. 13, a. 7). Com base nis­ so. S. Tomás de Aquino reexpôs as distinções de Aristóteles, defendendo o caráter real das R. em que consistem a ciência e a sensibilidade, porquanto tais R. "são ordenadas para conhe­

8-1.2

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cer e perceber as coisas" (Ibicl.). As R. de razão são somente aquelas em que ambos os termos são entes de razão; são as R. existentes "quan­ do a. ordem ou a disposição só pode existir se­ gundo a apreensão da razão, como no caso de se afirmar que uma coisa é idêntica à outra" Ubid). Mas afirmar a realidade das R. significa privi­ legiar certo tipo cie R., moldando todas elas de acordo com a segunda e a terceira espécie de Aristóteles; mais precisamente, significa consi­ derar qualquer tipo de R. como Lima poten­ cialidade ou disposição, ou como uma condi­ ção ou um estado dos termos relativos. No fim do ,séc. XIII, Duns Scot insistiu nessa natureza tia U., propondo a doutrina cia R. como ivspectus. termo que pretende traduzir a palavra grega O)(ÉOtç (usada, por exemplo, por SM 1'i.iQo, AdCat.. 61 B) e significa disposição. O principal argumento aduzido por Scot em favor de Mia teoria era que, a nào se admitir tal respeclus. nào é possível compreender a com­ posição cios entes, visto que, se a união de cie /; nào passa de a e /; absolutos, o composto cie a e /; em nada difere de a e /; separados, logo nao é um composto (O/;. O.v.. II. d. 1, q. 4, n. 5). hssa doutrina foi adotada por todos os escri­ tores escotistas. mas combatida por Ockham c pelos nominalistas e terministas do séc. XV (ver mais adiante). No séc. XVII, Jungius ainda recorria a tal doutrina, considerando a K. como habjtudo ou respectus (Lógica banibiirgensis, I. 8, -4), Fm época recente, o problema das R. foi tratado de modo semelhante ao de Duns Scot por F. H. Bradley. que mostrou que as R. so podem ser entendidas como atributos do relativo, consistindo portanto numa qualidade ou modificação dos termos relativos. Seja como for. a relação e incompreensível porque só faz predicar o idêntico com o diferente e o diferen­ te com o idêntico (Appearance and Realíly. 1902. 2- ed.. pp. 21 ss.). Essa doutrina, conheci­ da conio "doutrina das R. internas", foi combati­ da especialmente pelos lógicos matemáticos. h) A segunda doutrina fundamental das R. nega sua objetividade e realidade, consideran­ do-as acidentais ou subjetivas. Foi proposta pela primeira vez por Avicena, que reproduzia um ponte) cie vista defendido pela seita maometana motakallinnun. valendo-se de teses aristotélicas análogas. Avicena dizia: "Ao afir­ mar-se que uma R. existe, imediatamente é preciso dizer que ela é um acidente, porque nào há dúvida de que nào pode ser entendida

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por si, mas sempre de algo com respeito a verdades, mas nào do espírito dos homens, algo" (Mel.. III, 10). Afirmar o caráter acidental porque há uma inteligência suprema que as das R. eqüivalia, para Avicena. a negar sua rea­ determina em todos os tempos" (Ibid.. II. 30, 4). lidade, uma vez que, como acidentes, as R. nào Em conformidade com este mesmo conceito. são substâncias. Quando essa doutrina foi reto­ Wolff definia a R. como "aquilo que nào con­ mada pelos filósofos nominalistas e terministas, vém à coisa de maneira absoluta, mas que só é no séc. XIV, assumiu a forma de redução da entendida quando se refere a outra coisa" R. a pura "entidade de razào", destituída de (I.og.. § 8S6): e completava: a R. "nào acrescen­ realidade ou fundamento fora da alma hu­ ta nenhuma realidade ao ente" (Ibid.. § 8S7). A mana. Tal 6 a doutrina sustentada por Hen­ subjetividade das R,, além disso, é o princípio rique de Gand (QuodL, IX, q. 3; V. q. 6). por fundamental do kantismo: "Se suprimíssemos Herveus Natalis (Quocli, I, q. 9) e por Pedro nosso sujeito ou mesmo apenas a natureza sub­ Auréolo. Este último afirmava: "A R. nào tem jetiva dos sentidos em geral, toda a natureza, existência nas coisas, prescindindo de apreen­ todas as R. entre os objetos no espaço e no são intelectivo-sensível. mas existe subjetiva­ tempo, aliás, o espaço e o tempo mesmo desa­ mente apenas na alma, porquanto nas coisas pareceriam" (Cri/, li. Pura. § 8). Nesse mesmo só há fundamentos e termos: o hábito e a cone­ princípio (aduzido na maioria das vezes de ma­ xão das coisas deriva da alma cognoscitiva" (In neira implícita) baseia-se boa parte da filosofia Sent., I, d. 30, q. 1). Este foi também o ponto de contemporânea. vista defendido porOckham, que institLiiu uma A terceira concepção fundamental consi­ crítica minuciosa da doutrina do respectus. Se­ deraOque são reais, mas são objetíras. gundo ele, esta doutrina multiplicaria as entida­ Ockham, asqueR.foinãoo mais resoluto crítico da reali­ des ao infinito: "Com o movimento do meu dade das R., afirmara também, a seu modo. seu dedo, eu encheria todo o universo, o céu e a caráter objetivo: "Nào é o intelecto torna terra de novos acidentes, pois que, mudando a Sócrates semelhante a um outro, assim que como posição do dedo com respeito às outras partes é o intelecto que o torna branco" (/;/ Seul.. I,nàod. do céu haveria outros tantos novos respeclus 30, cj, 1, P); isso significa que a relação, como nessas partes, que são infinitas, portanto have­ intenção ou conceito da alma, refere-se a várias ria infinitos novos acidentes" (QuodL. VII, q. 8; coisas isoladas ou é várias coisas isoladas, "as­ In Seul., II, q. 2. Y). Todo corpo conteria, por como o povo é vários homens e nenhum motivos análogos, infinitas realidades, uma vez sim homem é povo" (Ibid.). No entanto, nestas que todo corpo pode ser considerado duplo afirmações, assim como nas de Locke e de ou­ com respeito à sua metade, e esta metade pode tros que insistiam referência objetiva da R. ser considerada o dobro de sua metade, e as­ (como conceito ounaidéia), referência é en­ sim por diante (QuodL, VI. q. 10; Sitmmct log.. tendida como referência à tal realidade. I, 50). No entanto, Ockham nào afirma o cará­ A característica da doutrina moderna, nesse ter puramente mental das R., como fizera sentido, é que a objetividade da R. nào implica Avicena (v. abaixo). Essa doutrina reapareceu sua realidade, ou seja, reconhecer que a R. é no âmbito cio cartesianismo. Foi defendida por objetiva não implica que em todos os casos ela Locke, que considerou as R. como idéias com­ ocorra entre coisas ou entidades reais. Este plexas, que consistiriam em "considerar e con­ sentido da R. esta intimamente ligado ao senti­ frontar uma idéia com a outra" (Ensaio, II, 12, do que o ser predicativo assumiu na lógica 7), e reconheceu explicitamente o caráter sub­ contemporânea (v. SHR). Desse ponto de vista jetivo delas, embora nào excluísse a alusão às a matemática e a lógica foram definidas como coisas. Uma vez que os modos mistos e as R. "ciências das R." (v. LÓGICA; MATKMATICA). Fm nào têm outra realidade além da que possuem particular, no que diz respeito à lógica, podeno espírito humano, para tornar real essa espé­ se dizer que tanto o cálculoproposicio)ialt\uM~\io cie cie idéias só é preciso que elas sejam forja­ o de classes versam exclusivamente sobre R., das de tal maneira que haja possibilidade de porquanto são R. os conectivos (e, ou. não, existência em contormidade com elas" (Ibid.. se... enlíio) de que trata o cálculo proposicioII, 30, 4). Por sua vez. Leibniz afirmava que as nal e as entidades de que trata a álgebra das R. têm realidade mental ou fenomênica (Xour. classes. Contudo, o cálculo das R. também II. 12.7) e que, por conseguinte, "têm umaconstitui um ramo específico da lógica contem­ realidade dependente do espírito, tais como as porânea, ramo cujos avanços se devem espe­

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cialmente a li. Schróder (Álgebra der Logik, 1895) e a Peirce (The Logic ofRelatives. 1897. Coll. Pap., 3.456-526). Neste sentido restrito, entendem-se por R. as funções proposicionais diádicas ou poliádicas (com duas ou mais va­ riáveis), que sào escritas na forma f(x, y) ou, mais freqüentemente, xRy. As características mais gerais da R. neste sentido são as seguintes: 1- Se A1 ocorre não só entre x t y, mas tam­ bém entre y e x, diz-se que é simétrica. É si­ métrica, por exemplo, a relação entre dois irmãos. Caso contrário, é chamada de assi­ métrica. As R "antes", "depois", "à esquerda" sào assimétricas. 2- Se A"é tal que, quando .x'tem R. /('com y e ytem R. A1com z, também .rtem a R. A1com z, chama-se Iranstíiva. São transítívas as R. "me­ nor", "precede", "à esquerda"; é i)itransitivai\ R. de paternidade. 3a Se A*é tal que nenhum termo está em R. A" consigo mesmo, a R. é chamada de aliorrelaliva. Sào aliorrelativas as R. "irmão", "mari­ do", "pai", etc. 4a Se Ri: tal que, dados dois termos diferen­ tes do campo, x e y, pode ocorrer entre .vc )' ou entre y e x ou entre x e y e entre y e x, a R. é chamada de coerente. V. coerente a R. "maior ou menor"; não é coerente a R. "antepassado". 5a O termo xque tem R. A" com um ou mais termos ( y, z...) chama-se dominante, enquanto são chamados de dominantes inversos os termos com que o termo .v tem a R. A, quais sejam, os termos y, z, etc. Na R. de "paternida­ de", pai é dominante, "filhos" são dominantes inversos. 6a O campo da uma R. consiste no conjunto do dominante e dos dominantes inversos. No caso da R. de paternidade, o campo é o conjun­ to pai-filhos. 7a Diz-se que uma R. implica outra se esta é válida sempre que a primeira é válida. Kssas noções elementares definem a nature­ za objetiva, conquanto não real, das R., na for­ ma constantemente empregada pela lógica e pela matemática contemporâneas. Trata-se de características que generalizam ao máximo a noção de R., permitindo incluir nela e esclare­ cer com ela os conceitos mais díspares (cf. WIUTI:IÍI:AI) e RISSKLL, Principia matbematica, vol. 1, 1925). Para uma exposição sumária da noção das R. em função dos conceitos funda­ mentais da matemática, cf. RUSSILL Introduction to MathematicalPhílosophy, 1918; trad. it., 1947. Quanto aos aspectos matemáticos, cf. W.

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RELATIVIDADE, TEORIA DA

v. O. QUIKK, Methods ofL.ogic, 1942. especial­ mente o § 40. RELAÇÃO DE COISAS. V. ESTADO DK COISAS. RELACIONAI, (in.Relalional;ai.Relationnelit. Retazionale). O que é uma relação ou diz respeito a uma relação. O adjetivo exclui o significado relativista que pode ter o termo relati­ vo (v.). Portanto, é preferido pelos filósofos que, rnesmo insistindo na importância da rela­ ção, não pretendem chegar a conclusões relativistas. Nesse sentido, N. Hartmann distinguiu relaciona/idade de relatividade: p. ex., os valores estão em relação com o homem e com seu mundo sem perder sua absolutidade irrelativa (Kthik 1949, p. 140). O termo relacionismo( relazionismo) foi usado na Itália pa­ ra indicar uma filosofia que considera a relação como fenômeno essencial do universo e do homem, mas sem implicações relativistas (cf. Y. PA(;I, Dallesistenzialismo ai relazionismo, 1957, p. 45 e passim). RELATIVIDADE, TEORIA DA (in Theory of relatívíty, fr. Théorie de Ia relativité, ai. Relatiritütstheorie; it. Teoria delia relativitã). Com oste termo designam-se dois corpos de doutrinas formuladas por F.instein: o primei­ ro em 1905 como o nome de R. restrita e o segundo em 1913 com o nome cie R. geral. A R. restrita baseia-se no reconhecimento de que a escolha de um sistema de referências, indispensável para fazer medições, pode in­ fluenciar os resultados dessas medições; e que, não existindo um sistema de referências privilegiado (ou "absoluto"), â diferença do eme julgara a física clássica, por um lado é preciso explicitar o sistema segundo o qual é feita a medição e por outro lado é necessário encontrar fórmulas de conversão que tornem válidas tais medições também em outros sis­ temas. A R. geral é substancialmente a exten­ são do princípio cie R. a todos os sistemas, e não apenas aos sistemas ínerciais para os quais é válida a R. restrita; assim, é substan­ cialmente uma teoria eme recluz a gravitaçào a umu deformação do contínuo quadrimensional do espaço-tempo (cf. A. EINSTI-IN, L. IMKI.1), The Hvolution of Physícs, 1938, trad. it-, 1950; quanto à bibliografia, o volume dedi­ cado u Kinstein na coleção "Living Philosophers" de Schilpp, 1949). A teoria da R. teve numerosas interpretações filosóficas. Uma delas é a relativista, que a enten­ deu como continuação do relativismo filosófico (cf, p. ex., A. ALLIOITA, Relativismo, idealismo e

RELATIVISMO

teoria de Hinstein. 1948). Outra 6 a idealista ou espiritualista, defendida especialmente por A. Fddington ( The Naíure ofthe Phisical World, 1928; ThePhilosophy ofPhysical Science. 1939), mas na realidade a teoria da R. presta-se muito menos a interpretações filosóficas do que as teorias clássicas. A relatividade de que ela fala nada tem a ver com o relativismo: uma medida por certo 6 relativa, não ao homem nem ao sujeito cognoscente, mas ao sistema de referência, po­ dendo também ser expressa com base em ou­ tros sistemas. Tampouco se pode dizer que a teo­ ria da R. seja mais subjetivista ou idealista que a física clássica. A lição mais importante que a filosofia pode aprender com ela diz respeito ao método, e pode ser inferida das seguintes palairas de Kinstein: "Para o tísico, um conceito só tem valor quando é possível estabelecer se ele convém ou não. Portanto, precisamos cie uma definição da simultaneidade que forneça o mé­ todo para reconhecer por meio de experiências se dois relâmpagos foram simultâneos ou não. Fnquanto essa condição não se realizar, eu, como físico (e também como não físico), estarei me iludindo se achar que posso atribuir significado à expressão de simultaneidade" (l 'herdiespazielle itnddieallgemeine Relativiiãtstheorie, 1917, § 8: trad. it., p. 18). Essas palavras expressam a exi­ gência geral de que. para ser válida, qualquer proposição deve poder ser confirmada ou com­ provada por métodos hábeis (v. SIGNIFICADO). RELATIVISMO (in. Relatirism, fr. Relalifisine; ai. ReJcltlrlsmus-, it. ReJativismus). Dou­ trina que afirma a relatividade do conhecimen­ to, no sentido dado a esta expressão no séc. XIX. a saber: 1" como ação condicionante do sujeito sobre seus objetos de conhecimento; 2" como ação condicionante recíproca dos obje­ tos de conhecimento. Kste condicionamento duplo dos objetos cie conhecimento foi primei­ ramente tomado como fundamento cio R. por W. Hamilton, que, por um lado, insistia no fato de que todos os objetos existentes podem ser conhecidos apenas em relação com as faculda­ des humanas e em condições ditadas por essas mesmas faculdades (Leclitres ou Metaphvsics, 1, 1870, V ed, p. 148), e, por outro, na condicionalidade que os objetos de conheci­ mento exercem uns sobre os outros (Discussion ou Philosophy, 1852, p. 13). Com base nesses dois pontos (que nada tinham de original, pois podem ser facilmente reconhecidos como as teses mais genéricas do empirismo e do criticismo), Hamilton afirmava, ao mesmo tem­

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po, a ineognoscibilidacle e a existência do Ab­ soluto, uma vez que se pode crer também naqiiilo que não se conhece ( Leclnres, cit., II, pp. 530-531). Kssas teses foram utilizadas como apologética religiosa por F. L. Mansel IPbilosophyofthe CAjnditknied, 1866). Mas o principal responsável por sua difusão foi o positivismo. pt)is Spencer aceitava o ponto de vista cie Ha­ milton, admitindo a relatividade cio conheci­ mento humano, a ineognoscibilidacle do Ab­ soluto e sua existência (First Principies, 1862. §§ 23 ss.). Fora do positivismo, o R. foi aceito por algu­ mas correntes do neocriticismo e do pragmatis­ mo. No neocriticismo, H. Kenouvier /<ssc/is de critique génémle, 1854-64) insistiu na relativi­ dade do fenômeno, que só subsiste em relação com outros fenômenos e em relação com o sujeito cognoscente (lissíiis, I, pp. 50 ss.); G. Siiiimel afirmava que "o R. pode ser afirmado da seguinte maneira, com referência aos prin­ cípios do conhecimento: os princípios consti­ tutivos fundamentais, que expressam defini­ tivamente a essência das coisas, tornam-se princípios reguladores, que são apenas pontos de vista para o progresso do conhecimento" (pbilosopbie des Geldes, 1900. p. 68). No âmbi­ to do pragmatismo, o R. era defendido por F. F. S. Schiller; desse ponto de vista, era a negação das verdades "absolutas" ou "racionais" e o re­ conhecimento de que a verdade é sempre relativii ao homem, é válida porque útil a ele; por isso, Schiller via no ditado de Protágoras "o homem é a medida de todas as coisas" a maior descoberta da filosofia (Slndies in llumanism, 1902. pp. X ss.). A sofistica antiga, o ceticismo e (em parte) o empirismo e o criticismo torna­ vam-se, desse ponto de vista, manifestações de uni R. que buscava precedentes e tentava criar tradição. Na realidade, porém, o R. foi um fe­ nômeno moderno, ligado â cultura do séc. XIX, e constituiu uma espécie de subversão da filo­ sofia dogmática do séc. XX. Isso pode ser nota­ do com certa facilidade na manifestação extre­ ma (a única autêntica) cio R., que é a doutrina exposta por O. Spengler em seu livro A deca­ dência do Ocidente(1918-22). em que se afir­ ma não só a relatividade do conhecimento, mas também de todos os valores fundamentais da vida humana nas épocas da história consi­ deradas como entidades orgânicas, cada uma da-> quais cresce, desenvolve-se e morre sem relação com a outra. Segundo esse ponto de vista, a relatividade está não só na verdade reli­

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giosa e filosófica, mas também na verdade mo­ ral e científica. "Cada cultura" — dizia Spengler — "tem seu próprio critério, cuja validade co­ meça e termina com ela. Não há moral humana universal" (Der l Utergaug ciesAbendkiiules, I. cap. 1. p. 55). Nesta forma, que é a única rigorosamente coerente, o R. afirma a relatividade dos valores somente porcjue considera necessária a relação entre eles e a época histórica à qual pertencem, negando-lhes a possibilidade de serem relati­ vos a outros homens, a outras épocas ou a ou­ tras circunstâncias, obtendo assim uma autono­ mia parcial que desmentiria o R. F.sse mesmo ponto de vista é defendido com freqüência na­ quilo que hoje se chama de R. cultural, que parte do reconhecimento da diversidade dos costumes e das normas vigentes em culturas di­ versas. Esse R. tem raízes remotas (Heródoto, Protágoras e Discursos duplos, texto de inspira­ ção sofista, talvez da primeira metade do séc. IV a.C), mas hoje se apoia no reconhecimento qtiase universal da pluralidade e da heterogeneidade das culturas. Km sua forma extrema, foi defendido por Herskovits ( CulturalAuthropolog}1, 1955); a respeito, v. o volume coletivo Relatiris))! and lhe Sludy of Man, org. por SCHOECK e WlGGINS, 1961). RELATIVO (lat. Rekitirus; in. Relatire, fr. Relatif ai. Relativ-, it. Relativo). 1. Aquilo que participa de uma relação ou desempenha a fun­ ção de termo numa relação. Neste sentido, dizse "o fenômeno ,v é relativo a v como causa". 2. Termo que não tem significado, ou que não tem significado exato, a não ser em refe­ rência a outro termo. Neste sentido "maior", "menor", "duplo", etc. são R. porque são sempre citados com referência a alguma outra coisa. 3. Aquilo que vale somente em determinadas circunstâncias ou condições e não vale fora delas. Neste sentido, diz-se que o conhecimento é R. ou que os valores são R., e que o oposto de R. é "absoluto" ou "incondicionado". 4. O que é relação ou concerne a uma rela­ ção. Neste sentido, diz-se, p. ex., que "o conhe­ cimento é R.", "significando que ele consiste em estabelecer relações entre dados. Contu­ do, neste caso, o adjetivo relacionai(v.) é mais apropriado. 5. Como substantivo, o termo é usado por Schrõder (Álgebra der Logik, 1895) e por Peirce (Coll. Pap, 3.456.526: "The Logic of Relatives", 1897), sendo sinônimo de relação. RELEVANTE (in. Relevant; fr.Relevam, ai. Bedeutend; it. Rilevante). Chama-se de R. a um

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enunciado significante, especialmente se for importante para o significado total do contexto em que se acha. Às vezes também são chama­ dos de R. os elementos de fato, importantes para o juízo de determinada situação. RELIGIÃO (lat Relígío: in. Relighm. fr. Religion: ai. Religion-, it. Relígioue). Crença na ga­ rantia sobrenatural de salvação, e técnicas des­ tinadas a obter e conservar essa garantia. A garantia religiosa é sobrenatural no sentido de situar-se além cios limites abarcados pelos po­ deres cio homem, de agir ou poder agir onde tais poderes são impotentes e de ter um modo de ação misterioso e imperscrutável. A origem sobrenatural da garantia não implica necessa­ riamente que ela seja oferecida por uma divin­ dade e que. portanto, a relação com a divinda­ de seja necessária à R.: na realidade, existem K. ateístas, como o budismo primitivo, retomado e defendido neste seu caráter por escolas pos­ teriores (cf. G. Tvcci, Storia delia filosofia india­ na, pp. 71 ss.; 312 ss.). Além da determinação da relação cio homem com a divindade, a fun­ ção de demonstrar a existência desta e de es­ clarecer suas características e funções em rela­ ção ao homem e ao m undo sempre foi atribuída mais á filosofia qtie â R.; o cumpri­ mento dessa tarefa pode até ter caráter antireligioso, como aconteceu no epicurismo. que pretendeu estabelecer ao mesmo tempo a exis­ tência da divindade e sua indiferença para com o mundo e os homens, regulando com base nisso as relações da divindade e do homem. (EPICIRO, Carta a Meneceit, 123-24; FII.ODKMO, Depietate, p. 122; fr. 38, Usener). Por outro lado, hoje, para alguns teólogos, a relação entre o homem e Deus é artigo de fé, e não de R., porque não depende das formas míticas que a R. assumiu e é constitutiva da existência huma­ na no mundo (v. FÉ: DEI S; Di-:rs, MORTE DIO. Fm qualquer caso, a salvação de que a R. pretende ser garantia não se refere necessaria­ mente a este ou aquele mal do mundo: pode inclusive significar livrar-se do mundo, já que este é considerado um mal em sua totalidade, como cie fato acontece no próprio budismo. Além disso, na definição proposta, convém su­ blinhar a diferença entre a cre)iça na garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter ou conservar tal garantia. Por técnicas enten­ dem-se todos os atos ou práticas de culto: ora­ ção, sacrifício, ritual, cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia sobrena­ tural é a atitude religiosa fundamental, poden-

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cio ser simplesmente interior e pessoal (religio­ sidade individual); ao contrário, as técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia constituem o lado objetivo e público da R., seu aspecto institucional. l'ma R. natural d consti­ tuída simplesmente por essa atitude; Lima R. positiva é constituída essencialmente por essas técnicas. O conceito de R. compreende ambos os aspectos. Ftimologicamente, essa palavra signi­ fica provavelmente "obrigação", mas, segundo Cícero, derivaria de relegere: "Aqueles que cumpriam cuidadosamente todos os atos cio culto divino e, por assim dizer, os reliam aten­ tamente foram chamados de religiosos — de relegere — , assim como elegantes vem de elegere, diligentes de cliligere e inteligentes de intelligere-, de fato, em todas essas palavras nota-se o mesmo valor de legere, que está pre­ sente em R." (De ncit. c/eor., II, 28. ""2). Para Lactâncio (Inst. Div., IV, 28) e S. Agostinho (Retract., I, 13), porém, essa palavra deriva de religare, e a propósito Lactâncio cita a expres­ são de Lucrécio "soltar a alma dos laços da R." (De rei: nat, I, 930). Deve-se notar também que o grego não possui o equivalente exato cia palavra latina e moderna. Aocipeía significa serviço divino; por­ tanto, refere-se apenas ao segundo dos ele­ mentos da R. S. Agostinho (De civ. Dei, X, 1) estabelecia a correspondência entre religio e 0pr)07reía, mas também esta palavra se refere exclusivamente às técnicas cia R. As diterentes definições até hoje feitas de R. podem ser classificadas com base nos dois pro­ blemas fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da R., que na realidade é o problema do tipo de validade da R.; II. Com base no problema da função atribuída à R., ou seja, o caráter especí­ fico da garantia que ela oferece à salvação do homem. 1. Como acontece também em outros casos, o problema da origem consiste na realidade em saber que tipo de validade se pretende atri­ buir à R. V. possível distinguir três soluções para este problema, a saber: Ia a doutrina da origem divina da R.; 2- a doutrina da origem política; 3a a doutrina cia origem humana cia religião. Ia A doutrina da origem divina expressa o reconhecimento do valor absoluto (ou infini­ to) da R. \l óbvio que a pretensão cie ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em qualquer R., já que todas elas afirmam ter como funda­

mento uma revelação originária que garante sua verdade ou consideram as crenças e as instituições com que se identificam continuamen­ te confirmadas por testemunhos sobrenaturais, o que é o mesmo. Portanto, do ponto de vista cia filosofia, o reconhecimento cia origem divi­ na ou do valor absoluto da R. concretiza-se na tese de que a R. é revelação. Pode-se dizer que essa tese nada mais é que a expressão filosófi­ ca do valor absoluto que a R. se atribui. Esse ponto cie vista foi expresso com toda a clareza por Hegel: "No conceito da verdadeira R., que é aquela em que está contido o Espírito absolu­ to, está posto essencialmente que ela é revela­ da, e revelada por Deus" (linc, § 564). E acres­ centa que "se a Deus for negada a revelação, não restaria outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas. se é que a palavra espírito tem sentido, significa a revelação de si" (Ibid.. § 560. Não é diferente deste o conceito que Schleiermacher tinha de R: "O universo é uma atividade ininterrupta que se nos revela a todo momento. Todas as formas que ele produz, todos os seres aos quais dá, pela plenitude da sua vicia, uma existência particular, todos os acontecimentos que ele gera em seu seio sem­ pre rico e fecundo, correspondem a uma ação que ele exerce sobre nós; assim, em aceitar cada coisa particular como parte do Todo, cada coisa tinira como expressão do Infinito, consis­ te a R." (Reden überdie Religiou, 1799, II; trad. it., p. 39). Pode-se expressar essa mesma dou­ trina afirmando que a R. é a experiência do divino e que, como toda experiência, revela a realidade de seu objeto. Este era o conceito que Bergson tinha cia R. autêntica, ou seja, o misticismo: "Se as semelhanças exteriores en­ tre os místicos cristãos dependem de uma comunidade de tradições e de ensinamentos, seu acordo profundo é sinal de identidade de intuição, que pode ser explicada de maneira mais simples pela existência real do ser com o qual acreditam estar em comunicação" (Deit.x soitrces, III; trad. it., pp. 270-71). í! A doutrina da origem política reduz a R. a um estratagema político: portanto, anula seu valor intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele, "os antigos legisladores inventa­ ram a divindade como uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou más. a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu próximo, por medo cia vingança dos deuses". Esse estratage­ ma foi necessário porque "as leis realmente clis-

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suadiam os homens de praticar violências às claras, mas eles as cometiam às escondidas", de tal maneira qtie "algum homem talentoso e experiente inventou o temor dos deuses para que os malvados se sentissem amedrontados mesmo no que fizessem, dissessem ou pensas­ sem às escondidas" (SKXTO EMPÍRICO, Ac/r. math., IX, 54). Concepções análogas recorrem de vez em quando na história da filosofia: podem ser reconhecidas no libertinismo e em algumas cor­ rentes do iluminismo e do marxismo. 3" A doutrina da origem humana considera a R. como formação humana, cujas raízes es­ tão na situação do homem no mundo. Essa doutrina não está empenhada em atribuir à R. determinada validade, mas sim em compveentAèVA. wmo ienômeno humano v expressála num conceito suficientemente amplo para abranger todas as suas manifestações mais díspares. Essa concepção orientou-se para dois tipos de explicações. O primeiro considerou a religião como uma torma de satisfação da ne­ cessidade tcorética, ou seja, de conhecimento. O segundo considerou que a R. 6 sugerida ao homem pela situação em que ele se encontra no inundo, substancialmente por suas neces­ sidades práticas. Solução do primeiro tipo en­ contra-se em Hpicuro, para quem a origem da R. está nas imagens oníricas e na necessidade humana de explicar a regularidade dos movi­ mentos celestes (Li iCRí:cio, De rei: nat.,\, 116" ss.). A R. seria mais contemplativa que prática. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem prática; citando as palavras de Estácio "Primus in orbedeosfecil linior" ( 1'heb., III, 661), Hobbes afirmava que a principal causa do aparecimen­ to da R. é o temor que nasce da incerteza do luturo: "Por ser inegável que existem causas para todas as coisas que existem ou existirão, é impossível, para o homem que tenta preve­ nir-se contra os males que teme e obter os bens que deseja, deixar de viver em contínua preo­ cupação com o porvir, de tal maneira que to­ dos os homens, sobretudo os mais previden­ tes, vivem num estado semelhante ao de Prometeu." F. desse estado de temor, bem como tia esperança de garantir os bens de que neces­ sita e do desejo de atingir um conhecimento completo do mundo, que. segundo Hobbes, nasce a R. (Leviath.. 1. 12). Doutrina análoga, mas exposta de maneira mais pormenorizada, foi reapresentada por Hume em História natu­ ral dei religião (17V7). A R. não surge da con­ templação, mas do interesse do homem pelos

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acontecimentos tia vida e, portanto, das espe­ ranças e dos temores incessantes que o agitam. Suspenso entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas os bens cie que frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado (Natural fíistoiy of Religion, II. em lissays, II. p. 316). Voltaire ex­ punha da seguinte maneira esse mesmo con­ ceito: "fi natural que um povo, assustado com o trovão, afligido pela perda de stias colheitas, maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por todos os lados um poder invisível, tenha finalmente dito: 'Há algum ser superior a nós que nos faz bem e mal'" (Dictíounaire philosophiijue, 1764, v. ReUgkvn. ÍU. Kssa doutrina eclipsou-se no início do séc. XX. Por um lado, mesmo o conceito romântico cie R. como revelação ou sentimento tio infinito foi compartilhado até por filósofos que nega­ vam a validade da R. Feuerbach, p. ex., trans­ formando a teologia em antropologia, afirma­ va: "A R. 6 a consciência tio infinito: por isso, não é e não potle ser outra coisa senão a consciência que o homem tem da infinidade de seu ser, e não de sua limitação" ( Wesen der Cbristeiithum, 18-íl, § 1). Analogamente, Max Müller via a essência da R. na potencial capacidade humana de "apreender o infinito" ( Voiiesuiigen überdeii l'rspruiif> uud die F.ntwickhtng der Religion, 1880, p. 28). F.mbora, com essas expressões, se pretendesse ressaltar a origem humana da R., lançava-se mão de conceitos que se prestavam mais a exprimir sua origem divina e seu valor absoluto. Por outro kido. também no campo da investigação sociológica, que começava a examinar as for­ mas de R. tios povos primitivos, manifestava-se a tendência a considerar a R. como contempla­ ção, interpretando-a como concepção tio mundo (ou filosofia) certamente grosseira, mas não destituída de certa coerência. K. B. Tylor via a essência da R. primitiva no auimismoiw), que é a crença em seres espirituais considerados presentes em todas as coisas e causadores de todos os eventos (Primitive (hilture, 1871). Nesses termos, a R. seria Lima metafísica da na­ tureza. Segundo Durkheim. porém, ela seria metafísica da sociedade; para ele, R. é "o mito que a sociedade faz de si mesma", no sentido de que "sociedade é a realidade que as mitolo­ gias representaram com tantas formas diferen­ tes, mas que é a causa objetiva, universal e

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eterna da.s .sensações suigetwrísdc que é feita a experiência religiosa" (Formes élémentaires de Ia i'ie religieuse, 1937, p. 597). Isso quer dizer que a R. primitiva consiste em atribuir a uma suposta realidade as características da so­ ciedade primitiva: as que essa sociedade consi­ dera essenciais para si mesma. Essas teses ba­ seavam-se principalmente numa interpretação do tolcinisnio: para Durkheim, o totem 6 sím­ bolo da força que sustenta o indivíduo: a pró­ pria sociedade: nela, a mente primitiva haure todas as suas categorias para a interpretação do mundo. Assim, para Durkheim, a R. tem um ca­ ráter contemplativo, também atribuído a ela por outro grande sociólogo francês. I.ucien I.évy-Bruhl. que expressa essa tese identifican­ do com o misúeismo não só a K., mas a vida dos povos primitivos em sua totalidade (I.e.xpérieuce mystique et les symboles chez les príniitifs, 193<-i). Para todas essas correntes filo­ sóficas e sociológicas, a R. é. em sua origem, um fato cognitivo: é uma tentativa de explicar o mundo ou de formar uma idéia do mundo com base em certo número de experiências mais freqüentes na vida dos homens. O retorno à concepção setecentista de R., segundo a qual sua origem está na situação do homem no mundo, verifica-se apenas nas cor­ rentes mais modernas e críticas da sociologia. Foi W. Robertson Smith quem começou a insis­ tir na importância assumida pelo segundo dos dois elementos (as técnicas) na R. primitiva. "A R. nos tempos primitivos não foi um sistema de crenças com aplicações práticas: foi um corpo de práticas tradicionalmente fixadas, às quais todos os membros de uma sociedade se con­ formavam naturalmente. Os homens criam re­ gras gerais de conduta antes de começarem a expressar em palavras os princípios gerais; as instituições políticas são mais antigas que as teorias políticas e, de maneira semelhante, as instituições religiosas são mais antigas que as teorias religiosas" {hectares ou lhe Religion oftho Semites, 19(F, p. 16). Mais tarde, a obra de G. Prazer (The Coklen Bough, 1911-14) mostrava a estreita conexão entre R. e magia, partindo da consideração de que o homem é dominado em primeiro lugar pela preocupação de controlar os acontecimentos naturais, com o objetivo de submetê-los às exigências da vida. A diferença entre magia e R., segundo Frazer, consiste no seguinte: a primeira tende ao con­ trole direto dos acontecimentos naturais, ao passo que a segunda procura os meios de tor­

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nar propícios os poderes superiores que domi­ nam a natureza. Ksta foi a doutrina mais aceita por sociólogos e filósofos. A. Loisy sustentava um ponto de vista bem próximo ao cie Frazer (Hssai historicjue sur le sacrifico, 1920) e H. jVIalinowski apresentava novas provas para a mesma tese. Segundo Malinowski. a R. e a majjia surgem e funcionam em situações de ten­ são emocional: crises da vida, tentativas malo­ gradas, morte e iniciação nos mistérios da tribo, ;imores infelizes e ódios insatisfeitos. R. e maj>ia também têm em comum o fato de oferece­ rem uma saída para tais situações por meio de crenças e práticas que se referem ao domínio tio sobrenatural. Distinguem-se contudo pelo fato de a magia utilizar técnicas limitadas e sim­ ples, eTim/CiVo a H. cornpTeeTieVe vim corrjvinto de técnicas; a magia limita-se a uma classe cie pessoas que faz dela profissão, ao passo que a R. é assunto de todos, e cada indivíduo partici­ pa dela ativamente. Por fim, ambas têm fun­ dões diferentes: a da magia é suprir a deficiên­ cia ou a imperfeição dos instrumentos naturais c'om instrumentos sobrenaturais, enquanto a função da religião é fortalecer certas atitudes especiais, como a coragem e a confiança na luta contra as dificuldades (Xhigic. Science and fieligion, 1925). Não muito diferente desta, em­ bora expressa em termos teológicos e místicos, foi a tese defendida por Rudolf Otto em seu li­ vro intitulado O sagrado( 191"7). Segundo Otto, cleriva do medo o sentimento de estar em pre­ sença de um poder superior, que se cristaliza naquilo que ele chama de trememliim ou l)iaieslas; deriva do sentimento de desesperan­ ça, impotência, insignificância o sentimento criatunüdescrito no Antigo Testamento; e das fantasias compensadoras nasce o conceito da­ quilo que é completamente outro, que se mis­ tura aos acontecimentos mais corriqueiros sem deixar de parecer novo e estranho. Assim, os ingredientes do sobrenatural eram atribuídos, também por Otto. à situação do homem no inundo. F.sse foi o ponto de partida das mais modernas teorias da religião. Segundo Freud. a R. "dá aos homens inlormações acerca da fonte c tia origem tio universo, garante-lhes prote­ ção e felicidade final apesar da.s eambiantes v icissitudes da vida e guia seus pensamentos e nuas ações com preceitos apoiados na força da ;tutoridade" (A i\'eit] Series ofIntroductory ioclitros ou 1'sycho-Aualysís, 1933, p. 220). Com esses fundamentos, Freud acredita que a R. consiste na crença de um pai sobrenatural

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que protege os homens dos perigos, recom­ pensando-os ou punindo-os conforme o caso. Assim, a relação entre o homem e a divindade estaria moldada na relação entre pai e filho (Ibicl., pp. 222 ss.). Sem levarem conta o fundo psicanalítico desta concepção, pode-se dizer que ela não difere muito das outras menciona­ das anteriormente: a R. é entendida como cor­ retivo, defesa ou protesto diante da situação de incerteza que o homem encontra no mundo, liste é também o conceito que Bergson apre­ senta de R. estática, ã qual ele opôs a A, cliuâmica (o misticismo). R. estática seria. pois. "a reação defensiva da natureza contra o poder desagregador da inteligência", no sentido cie que a inteligência mostra claramente ao ho­ mem a incerteza e os perigos da vida, bem como a inexorabilidade da morte, enquanto a R. seria o conjunto das reações defensivas con­ tra as representações intelectuais da condição humana no mundo (Deux sourccs, 1932, cap. II, trad. it.. pp. 131 ss.). Estritamente sobre a R. primitiva, tese análoga foi defendida com base em ampla documentação por P. Radin em seu livro sobre a R. dos primitivos (Primitive keligion, ils Xatiire and Origiu, 1937). II. O segundo dos problemas aos quais as definições de R. já propostas pretendem ciar res­ posta é o da função específica cia R. Esse proble­ ma pode ser entendido em dois sentidos. Fm primeiro lugar, para o problema da garantia de salvação que a R. pretende oferecer ao homem, é possível distinguir três soluções principais: Ia a R. como meio cie libertar-se do mundo; 2a a R. como verdade; 3- a R. como moralidade. Km segundo lugar, o próprio problema pode ser entendido do ponto cie vista da lunçào exercida pela R. na sociedade ou na economia geral da vida humana (4a). Ia A garantia que a R. pretende oferecer ao homem pode ser antes de mais nada a de libertá-lo do mundo, que é considerado um mal. Essa é a doutrina do budismo: "Não se eleve fruir aquilo que nasce e se transforma, aquilo que se forma e constitui, que é instável, dependente cia velhice e da morte, fonte de doenças, frágil, surgido do trânsito dos alimentos. Fugir desse estado significa encontrar outro es­ tado, tranqüilo, situado além cio domínio do pensamento, estável, não nascido, não forma­ do, sem dor, sem paixão, felicidade que põe fim ás condições de miséria e destrói para sem­ pre os elementos da existência" (Itiviittakxu 43, trad. Pavolini). Esse estado de destruição da

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existência chama-se nirvana. Mas. segundo o próprio budismo, o nirvana também é o estado de bem-aventurança de quem. já nesta vida. eliminou o desejo e, portanto, o germe da futu­ ra existência. Desse ponto de vista, a salvação é concebida pelo budismo não só como liber­ tar-se do mundo, mas também como libertarse dos males do mundo. Esses dois aspectos estão presentes em muitas R., com exceção da de Israel, que ignora o primeiro: a promessa de bem-aventurança a ser alcançada além do mundo ou após a morte costuma ser acompa­ nhada pela promessa de felicidade, de paz ou de bem-estar já na vida terrena. Quando a feli­ cidade ou a paz pode ser alcançada nesta vida só com a superação da condição humana e da (leificação, que é a união com Deus e com o princípio cósmico, tem-se o »iisticis»io(\.). No misticismo. Bergson viu a R. dinâmica, a conti­ nuação supra-orgânica do clã vital, o impulso para a criação de uma sociedade nova, baseada no amor universal (Den.x sourccs, 1932. cap. III). Na realidade, o misticismo é apenas uma das soluções para o problema cia salvação, sen­ do típico de uma religiosidade pessoal, con­ templativa e solitária, para a qual as atividades e as relações humanas são alheias e insignifi­ cantes. 2a A garantia infalível tia verdade é preten­ são implícita em qualquer R. Do ponto de vista filosófico, essa tese apresenta-se como identi­ dade entre R. e filosofia, com diferenças pura­ mente formais entre elas. Essa foi, p. ex., a teoria defendida por Hegel: "A filosofia tem o mesmo objeto cia R. porque ambas têm como objeto a verdade, no sentido superior da pala­ vra, porquanto Deus. e somente Deus. é a ver­ dade" (Fiic § 1). Todavia, a R. distingue-se da filosofia por não expressar a verdade em forma de conceito, mas em forma de representação c sentimento. Hegel diz: "R. é a relação com o Absoluto na forma de sentimento, de represen­ tação, de fé; no seu centro, que tudo abarca, tudo está apenas como algo acidental e evanescente" (/*//. do c/ir., § 270). Portanto, aquilo que a R. intui de modo acidental, aproximativo e confuso é demonstrado com caráter de ne­ cessidade pela filosofia (Ene. § SA3). Está claro. porém, que a doutrina da identidade entre R. e filosofia também pode ser afirmada do ponto de vista da superioridade da R. como forma ou revelação da verdade: é o que faz a filosofia da fé de Haman, Herdei" e Jacobi, à qual o próprio I legel se opõe (v. Fi;, FILOSOFIA DA). Contudo é

RELIGIÃO

evidente c|ue nesse easo não é à religião que se confia a garantia da verdade*, mas a um órgão, a fé. da qual depende a validade da filosofia e tia R.. bem como de qualquer outro tipo de sa­ ber. Portanto, atribuir à R. como objetivo espe­ cífico a verdade na maioria das vezes significa, do ponto de vista filosófico, atribuir-lhe' a fun­ ção de manifestar a verdade numa forma sem dúvida infalível e certa, mas inferior à forma que" a verdade pode assumir em filosofia. As­ sim, para Gentile, a R. é "a exaltação do objeto subtraído aos vínculos do espírito, no que con­ siste a idealidade. a cognoscibilidade e a ra­ cionalidade do objeto" (Teoria gen. de/Io spirito. 1913. XIV. 7). Portanto, a essência da R. é o misticismo, que é a anulação do sujeito no objeto, eiu virtude do e\ue o ser ele Deus é o nào-ser do sujeito (í)iscorsi di ivligione. 1920. p. 78). A R. encontra sua verdade* apenas na filosofia, que resolve Deus no ato do pensamen­ to. "Como pode esse Deus ser uma vontade a reconhecer, suplicar e esconjurar, ã qual é pre­ ciso subordinar-se, se Deus está dentro do ho­ mem, do seu eu, sendo propriamente o seu eu em seu atualizar-se?" (Sistema di lógica. II. 1922, IV. 8. -4). De maneira mais clara e in­ sofismável. Croee disse que a R. é uma forma provisória e imperfeita cie filosofia, e por isso o lilósofo deveria ver o religioso como "o seu irmão menor, ele mesmo num momento ante­ rior" (/'//. delia pratica. 1909, p. 314). 3'1 É crença bem antiga que a R. garante os valores morais do homem, entendendo-se por morais os valores que* regulam a ordem da vida social. Era essa a função que Platão atribuía à R.: "A divindade que, segundo a tradição, rege o princípio, o fim e o curso de todos os seres, e procede conforme sua natureza no seu movi­ mento circular; atrás dela vem sempre a justiça punitiva para quem despreza a lei divina" (Leis, 715 e, 716 a). No mundo moderno, esse ponto de vista foi adotado e defendido por Kant: "A R., conside­ rada do ponto de vista subjetivo. 6 o conheci­ mento de todos os nossos deveres como man­ damentos divinos. A R. em que preciso antes saber que* alguma coisa é um mandamento di­ vino para considerá-lo meu próprio dever e a R. revelada (ou que exige uma revelação); ao contrário, a R. em que devo saber que algo é um dever antes de considerá-lo um manda­ mento divino, é a R. natural" (Keligiou. IV, seç. I). Kant observa que essa definição cie R. previ­ ne várias interpretações falsas desse conceito.

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REUGIAO

Fm primeiro lugar, exclui que a R. exija ciência cie' Deus e inclui que basta possuir a simples idéia de Deus. Km segundo lugar, essa defini­ ção previne a "falsa idéia de que a R. é um conjunto de dev eres especiais que' se relerem imediatamente a Deus", e impede, portanto, que. além cios deveres humanos ético-sociais, sejam admitidos "os serviços corteses com que poderíamos tentar compensar nossas faltas piira com os deveres da primeira espécie" (Ibid, IV, seç. I, nota). Nesta interpretação, po­ rém, o que* a R. garantiria seria o absolutismo ck) mandamento moral: não garantiria (porque isso é da alçada cia liberdade humana) a efetivação elo mandamento moral, isto é. a rea­ lização propriamente dita dos valores morais no mundo. Contudo, na maior parte das ve/.es pede-se ou atribui-se à R. esta segunda espécie de" garantia: de que os valores morais e, em geral, os que interessam ao homem e á sua vida espiritual não fiquem confiados unicamente á boa vontade humana, mas encontrem na provi­ dência divina a sah aguarda infalível, capaz de garantir seu triunfo final. Neste sentido, H. Hóffding afirmou que a R. é a "crença na con­ servação dos valores" (Religiouspbilusopbíe, 1902, p. 13); a fé religiosa seria a convicção "da solidez, da certeza e cia continuidade da rela­ ção fundamental dos valores com a realidade" (Ibid.. 1902, p. 105). Esse é precisamente o otimismo providencialista que muitas correntes filosóficas idealistas e espiritualistas haurem ou pretendem haurir na R., em nome do qual insti­ tuem apologéticas religiosas mais ou menos engajadas. 4a Não mais considerando a R. em termos ek* garantia sobrenatural cie sah ação. mas com referência às relações inter-humanas. nas quais se insere como sistema de crenças e de institui­ ções, é fácil evidenciar a sua utilidade biológica e .social. Não que haja acordo unânime entre os filósofos sobre esse aspecto. Ao afirmarem a não-ingerência da divindade nas atividades hu­ manas, os epicuristas tinham em vista eliminar o medo que os deuses inspiravam, pois consi­ deravam a R. como um motivo suplementar de preocupação e medo. e não de ajuda (cf. EPICt'RO. Fp. a Menaceu. 123; Ep. a Heródoto, 11; Mass. Cap, 1). Alguns sociólogos contemporâ­ neos tampouco deixaram de observar que muitas vezes os ritos religiosos e as crenças a eles associadas são motivo de angústia, de tal ma­ neira que o efeito psicológico do ritual parece ser um sentimento de insegurança e perigo (cf.

REMINISCENCIA

A. R. RADCUFFK-BRONXN, StructureandFunction in Primitive Society. 1952, pp. 148-49). Mas mesmo nesses casos é possível reconhecer a função social da R., na forma de fortalecimento cios laços sociais, principalmente nas socieda­ des primitivas UbícL, pp. 157 ss.). A. Loisy dizia: "F.ntregue à ação dos elementos, do clima, da­ quilo que a terra dá ou recusa, da boa ou má sorte na caça e na pesca, das vicissitucles na luta contra semelhantes, o homem acredita en­ contrar um meio de regularizar com simulacros de ação as suas possibilidades mais ou menos incertas. O que faz não tem utilidade para o objetivo almejado, mas ele ganha confiança em seus feitos e em si mesmo; ousa e, ousando, realmente obtém mais ou menos o que quer. Confiança rudimentar por vias humildes, mas 6 o começo da coragem moral" (Essai historiqitc sur Io sacrifico, 1920, p. 533). Esse ponto de vista foi desenvolvido mais tarde por Malinowski (Magic, Science and Religion, ed. Anchor Books, 1925, p. 89). Como vimos, é mais ou menos isso que Bergson pensa. Trata-se de ponto de vista válido sobretudo para as socie­ dades primitivas, mas também se sabe (v. PRI­ MITIVOS) que a sociologia contemporânea tende a eliminar o abismo entre mentalidade primiti­ va e mentalidade civilizada. Ultrapassados os limites de controle cios acontecimentos por meio de técnicas racionais — limites, ademais, bas­ tante estreitos — o homem reivindica liberda­ de cie fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras, a técnicas que lhe prometam sal­ vação infalível. Obtendo ou não o cumprimen­ to dessas promessas, a função dessas técnicas é bem clara: dar esperança e coragem, consolidar as relações com os outros homens e com o mundo. REMINISCENCIA. V. A NA M N RSK .

RENASCIMENTO (in. Renaissance.h. Renaíssauce-, ai. Renaissance-, it. Rinascimento). De­

signa-se com este termo o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XIV e vai até o fim do séc. XVI. difundindo-se da Itália para os outros países da Kuropa. A pa­ lavra e o conceito cie R. têm origem religiosa, como ficou demonstrado pelos estudos de Hildebrand, Walser e Burdach: renascimento é o segundo nascimento, o nascimento do ho­ mem novo ou espiritual de que falam o Kvangelho de São João e as Epístolas de São Paulo. Durante toda a Idade Média, tanto o conceito quanto a palavra designavam o retorno do ho­ mem a Deus, sua restituição à vida perdida

RENASCIMENTO

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com a queda de Adão. A partir do séc. XV, po­ rém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação moral, intelectual e políti­ ca decorrente do retorno aos valores da civili­ zação em que. supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-romana. Assim, o R. foi forçado a ressaltar as diferenças que o distinguiam do período medie­ val, em sua tentativa de vincular-se ao período clássico e de haurir diretamente dele a inspira­ ção para suas atividades. Contudo não faltam elementos cie continuidade entre a Idade Mé­ dia e o R.. e muitos dos problemas preferi­ dos por humanistas e filósofos do R. eram os mesmos já discutidos pela Idade Média, com as mesmas soluções. Isso explica por que a interpretação do R. sempre oscilou entre dois extremos: de um lado, a oposição radical entre ele e a Idade Média; de outro, a continuida­ de intrínseca entre os dois. A primeira posição foi defendida por Burckhardt (Die Kulttirder Rcnaissance in Italien, 1860), sendo repeti­ da e ampliada por Gentile e seus discípulos. A segunda concepção inspira-se sobretudo na obra de K. Burdach ( Vom Mittelalterzu Roformalion, Reuaíssance, Humanismus, 1926J e ganhou forma extremada com G. Toffanin (His­ tória do humanismo, 1933). As características fundamentais do R. podem ser brevemente recapituladas da seguinte maneira: l 1 Humanismo, como reconhecimento do valor do homem e crença cie que a humani­ dade se realizou em sua forma mais perfeita na Antigüidade clássica (v., a respeito, Hi1MAMS.MO).

24! Renovação religiosa, através da tentativa cie reatar os laços com uma revelação originá­ ria, na qual se teriam inspirado os próprios filósofos clássicos, como é o caso do platonismo (Nicolau de Cusa, Pico delia Miranclola, M. Ficino), OLI através da tentativa de restabelecer o contato com as fontes originárias do cristia­ nismo, ignorando a tradição medieval, como é o caso da Reforma protestante, (v. RKFORMA). 3a Renovação das concepçõespolíticas; com o reconhecimento da origem humana ou natu­ ral das sociedades e dos Kstados (Maquiavel) ou com a tentativa de voltar às formas históri­ cas originárias ou à natureza das instituições sociais jusuaturalismo. |v.|). 4" Naturalismo, como novo interesse pela investigação direta da natureza, tanto na forma do aristotelismo, das manifestações de magia ou da metafísica da natureza (Campanella c

REPETIÇÃO

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REPRESENTAÇÃO

Giordano Bruno) quanto na forma das primei­ cki R." (The Logic ofScientific Discovery, 1959, pp. 420 ss.) (V. INDUÇÃO; TEORIA). ras conquistas da ciência moderna. REPRESENTAÇÃO (lat. Repraesentatio, in. ReSobre o R. cf. a Bibliografia de H. BARON, "Renaissance in Italien", em Archivfür Kultur- pyesentation; fr. Représentation; ai. Vorstellung; geschichte, 1927,1931. (Em especial E. CASSIRER, it. Rappresentazione). Vocábulo de origem me­ Indivíduo e cosmo na filosofia do R, e os tex­ dieval que indica imagem (v.) ou idéia ([v.] no tos de E. Garin; em particular: Idade Média e 2" sentido), ou ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo con­ R., 1954). de conhecimento como "semelhança" cio REPETIÇÃO (in. Repetition; fr. Répétition; ceito objeto. "Representar algo" — dizia S. Tomás de ai. Wiederhohing; it. Ripetizione). 1. Termo in­ A(juino — "significa conter a semelhança da troduzido na terminologia existencialista por coisa" (De ver, q. 7, a. 5). Mas foi principal­ Kierkegaard. Este, para esclarecer sua signifi­ mente no fim da escolástica que esse termo cação, aproxímou-o da expressão aristotélica passou a ser mais usado, às vezes para indicar quod quid erat esse (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA), o significado das palavras. (Cf., p. ex., GRAque, significando literalmente aquilo que o ser ZIANO Dl ASCOI.I, Perihermenias, 2.) Ockham era, expressa a necessidade e a imutabilidade distinguia três significados fundamentais: do ser, a sua repetição. Kierkegaard va\e\i-se presentar tem vários sentidos. Em primeiro"Re­ lu­ desse coneeito sobretudo para descrever a natu­ gar, designa-se com este termo aquilo por meio reza da vida ética: à diferença da vida estética, do qual se conhece algo; nesse sentido, o coque procura evitar a R., buscando novidades a é representativo, e representar sig­ todo instante (sendo por isso simbolizada por nlrecimento nifica ser aquilo com que se conhece alguma Don Juan), a vida ética baseia-se na continuida­ coisa. Em segundo lugar, por representar en­ de, na escolha repetida que o indivíduo faz de si tende-se conhecer alguma coisa, após cujo mesmo e de sua tarefa, sendo, pois, simbolizada conhecimento conhece-se outra coisa; nesse pelo matrimônio (Die Wiederhohing, 1843; cf. sentido, a imagem representa aquilo de que é Diário, IV, A, 15 6). Heidegger, por sua vez, uti­ imagem, no ato de lembrar. Em terceiro lugar, lizou esse conceito para caracterizar a existência por representar entende-se causar o conheci­ autêntica, como ela se realiza na angústia. A an­ mento do mesmo modo como o objeto causa o gústia, por libertar o homem 'das possibilidades conhecimento" (Qiiodl., IV, q. 3). No primeiro nulas e liberá-lo para as autênticas", consiste em caso, a R. é a idéia no sentido mais geral; no retomar, para oporvir, as possibilidades que já segundo, é a imagem; no terceiro, é o pró­ foram no passado: isso é R. (Sein undZeit, § 68 prio objeto. Esses são, na realidade, todos os b). Desse ponto de vista, R. é decisão autêntica: possíveis significados do termo, que voltou "A R. é a transmissão explícita, ou seja, o retorno a ter importância com a noção cartesiana de às possibilidades do ser-aí que é já tendo sido. A idéia como "quadro" ou "imagem" da coisa (Aíéd, III) e foi difundido sobretudo por autêntica R. de uma possibilidade de existência que já foi, o fato de o ser-aí escolher seus heróis, Leibniz, para quem a mônada era uma R. do baseia-se existencialmente na decisão antecipa- uriiverso (Monad, § 60). Inspirado nessa dora, porque é nela que se escolhe a escolha doutrina, Wolff introduziu o termo Vorstelque liberta para a sucedaneidade da luta e para lung, para indicar a idéia cartesiana, no uso a fidelidade àquilo que deve ser repetido" (Jbid. filosófico da língua alemã (Vernünftige Ge§ 74). Isso quer dizer que a decisão autêntica, danken von Gott, der Welt und der Seele des em que consiste a historicidade da existência Menschen, 1719, I, §§ 220, 232, etc). Deve-se humana, é uma R. ou, pelo menos (como Hei- a Wolff a difusão do uso desse termo nas ou­ degger diz no mesmo trecho), uma réplica de tras línguas européias. Kant estabeleceu seu significado generalíssimo, considerando-o gê­ possibilidades passadas. nero de todos os atos ou manifestações cog­ 2. Na filosofia da ciência, o conceito de R. é nitivas, independentemente de sua natureza empregado para expressar o fundamento das de quadro ou semelhança (Crít. R. Pura, proposições indutivas, que (segundo Hume) se­ Dialética, livro I, seç. I), e foi desse modo riam a expressão da R. de casos (cf. HUME, Inq. que o termo passou a ser usado em filosofia. Cone. Underst., V, 1). Desse ponto de vista, a R. Hamilton defendia o uso dessa palavra tam­ muitas vezes foi considerada a justificação das bém em inglês (Lectures on Logic, 2- ed., 1966, proposições universais. K. Popper criticou essa I, p. 126). doutrina, que ele chama "doutrina do primado

REPRESENTATIVO

Mas neste sentido, os problemas inerentes à R. são os mesmos que inerem ao conhecimen­ to em geral (v. CONHKCIMKNTO) e ã realidade que constitui o termo objetivo do conhecimen­ to (v. REALIDADE), OU, em outra direção, os concernentes ã relação entre as palavras e os objetos significados (quanto a isso. v. SIGNO; SIGNIFICADO) . REPRESENTATIVO (in. Representativa fr. Représentalifiíü. Vorstelleml; it. Rappresentativo). 1. O sentido deste adjetivo é mais limitado que o do substantivo correspondente, uma vez que contém referência ao caráter de "semelhança" ou "quadro", excluído por alguns dos significa­ dos do substantivo. Assim, "idéia R." é a idéia que se concebe como imagem ou reprodução cie seu ohjeto. Diz-se que o eonhecrrnenfo íern natureza R. quando se acha que ele constitui imagem ou cópia do objeto. 2. Emerson chamou de homens R. aqueles que Hegel chamava de "indivíduos da história universal" ou outros românticos chamavam de "heróis": homens que são símbolos e. ao mes­ mo tempo, instrumentos de realização das aspirações de todos os homens (Represem ative Men, 1850). 3. No sentido político, sistema R. é o sistema que se baseia no princípio de delegação de certos poderes políticos a alguns cidadãos, feita por uma parte dos cidadãos. REPUGNÂNCIA. O mesmo que incompatibi­ lidade (v. COMPATIBILIDADE.). RES DE RE NON PRAEDICATUR. Máxima de Abelardo (citada porJoÀo DL SAÜSBURV. Metalogicus. II, 17), segundo a qual o universal não pode ser uma coisa nem uma palavra, mas somente uma expressão (sermo), uma vez que só a expressão pode ser predicado de várias coisas (v. UNIVERSAL). RESÍDUO FENOMENOLÓGICO (ai. Pbánomenologiscbe Residuum). Foi esse o nome que Husserl deu ao ser cia consciência que "não é atingido em sua essência absoluta pela neutra­ lização fenomenológica", isto é, pela epoché (Ideen. I,§ 33). R ESÍD U O S, M ÉTO DO DOS (in Method of residues; fr. Métbode des résidus; ai. Rückstandsmethode-, it. Método dei resídui). l;m dos quatro métodos da pesquisa experimental enumerados por Stuart Mill, mais precisamente o expresso pela regra: "Uma vez subtraída de um fenôme­ no a parte que, através de deduções anteriores, é identificada como efeito de determinados an­ tecedentes, o resíduo do fenômeno é o efeito

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RESPEITO

dos antecedentes restantes" (Logic, III, 8, § 5) (V. CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; DIFERENÇA). RESÍDUOS E DERIVAÇÕES (in. Residues and derivations; fr. Résidus et dérívations; it. Resídui echrivazioni). Com estes termos, Vilfredo Pareto designou os dois fatores das teorias não cien­ tíficas correspondentes às afirmações experi­ mentais e às deduções lógicas das teorias cientí­ ficas. Os resíduos são os instintos, os sentimentos, os interesses, etc, que constituem os materiais das teorias não científicas; as derivações são as sistAmatizações lógicas ou pseudológicas da­ das a esse material ( Trattato di sociologia Reiierale. 1916, §§ 803, 750, 210, 1397). (Cf. a discussão desta doutrina em TALCOTL PARNONS, Tbo Structure of Social Action, 2a ed., 1949, pp. 11X) ssJ RESPEITO (gr. odScóç; lat. Respectus: in. liespect; fr. Respect; ai. Acbtung; it. Rispetto). Reco­ nhecimento da dignidade própria ou alheia e comportamento inspirado nesse reconhecimen­ to. Demócrito foi o primeiro a transformar o R. em princípio da ética: "Não deves ter para com os outros homens mais R. que para contigo mesmo, nem agir mal quando ninguém o saiba mais do que quando todos o saibam; deves ter paru contigo mesmo o máximo R. e impor à tua alma a seguinte lei: não fazer o que não deve ser feito" (Fr. 264, Diels). No discurso com que Protágoras, no diálogo homônimo de Platão, expõe a origem da sociedade humana, diz-se que "temendo que nossa estirpe se extinguisse, Zeus ordenou que Hermes trouxesse o R. recíproco e a justiça para o meio dos homens, a rirn de que esses fossem princípios ordenadores das cidades, criando entre os cidadãos vínculos de benevolência" (Prol.. 322 e). O R. recíproco e a justiça são, assim entendidos, os dois ingre­ dientes fundamentais da "arte política', que é a técnica de vida em comunidade. Aristóteles, porém, incluiu o R. entre as emoções, excluindo-o das virtudes (/:'/. nic, II, 7, 1108 a 32), e o opôs ao temor (Ibid., 10, 9, 1179 b 11). Kant também o reduziu à esfera das emoções, considerando-o, porém, como um sentimento suigeueris. aliás como o único sen­ timento moral e não patológico. O sentimento de K. "é produzido apenas pela razão. Não ser­ ve ao juízo das ações nem como fundamento da lei moral objetiva, mas simplesmente como nióbilpan transformar essa lei em máxima". 0 R. Sempre se refere às pessoas, nunca às coi­ sas; é próprio do ser racional finito porque su­ põe a ação negativa da razão sobre a sensibi­

RESPONSABILIDADE

lidade, portanto a própria sensibilidade. Por isso, "não se pode atribuir R. à lei a um ser supremo ou a um ser isento de sensibilidade, para quem, portanto, esta não pode ser obstá­ culo à razão prática" (Crít. K. Prática, 1,1, cap. III). Mesmo fora da filosofia, a noção de R. foi fortemente influenciada por essas observações de Kant. Por R. entende-se comumente o empe­ nho em reconhecer nos outros homens, ou em si mesmo, uma dignidade que se tem o dever de salvaguardar. RESPONSABILIDADE (in. Responsibility, fr. Responsabilité; ai. Verantwortlichkeit; it. Responsabilità). Possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corri­ gi-lo com base em tal previsão. R. é diferente de imputabilidade (gr. odUa; lai. hnputatio; in. Imputability, fr. ímputabilitá; ai. Zurecbenbarkeit; it. Impiitabilitã), que significa a atribuição de uma ação a um agente, considerado seu causador. Platão aludia à noção de imputa­ bilidade quando, a propósito da escolha que as almas fazem de seu próprio destino, afirmava: "Cada qual é a causa de sua própria escolha, ela não pode ser imputada à divindade" (Rep., X, 617 e; cf. Tim, 42d). Wolff definia a imputaçáo como "o juízo em virtude do qual o agente 6 declarado causa livre daquilo que se segue ã sua ação, ou seja. do bem e do mal que dela decorrem para ele mesmo ou para os outros" (Philosophiapractica, I, § 527). Essa definição era simplesmente repetida por Kant: "A imputação (imputatio) no significado moral é o juízo em virtude do qual alguém é considerado como autor (causa livre) de uma ação que está submetida a leis e se chama fato" (Met. der Sitten, I, Intr., IV). A imputabilidade assim en­ tendida é um conceito completamente diferente do de responsabilidade. O termo R. e seu conceito são recentes: apa­ recem pela primeira vez em inglês e em fran­ cês em 1787 (em inglês, aparecem em Federalíst de Alexandre Hamilton, f. 64; cf. R. MCKEON, Revue Internationale de Philosophie, 1957', nQ 1, pp. 8 ss.). O primeiro significado do termo foi político, em expressões como "governo res­ ponsável" ou "R. do governo", indicativas do caráter do governo constitucional que age sob controle dos cidadãos e em função desse con­ trole. Em filosofia, o termo foi usado nas con­ trovérsias sobre a liberdade e acabou sendo útil principalmente aos empiristas ingleses, que qui­ seram mostrar a incompatibilidade ciojuízo moral com a liberdade e a necessidade absolutas (cf.

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RESSENTIM ENTO

HUME, Inq. Cone. Underst., VIII; STUART MILL, nota a AnalysisofthePhenomena oftheHuman MinddeJ. MÍLL, 1869, II, p. 325). Na verdade, a noção de R. baseia-se na de escolha, e a noção de escolha é essencial ao conceito de liberdade limitada (v. LIBERDADE). Está claro que, no caso da necessidade, a previsão dos efeitos não poderia influir na ação, e que tal previsão não poderia influir na ação no caso da liberdade absoluta, que tornaria o sujeito in­ diferente à previsão. Portanto, o conceito de R. inscreve-se em determinado conceito de liber­ dade, e mesmo na linguagem comum chamase alguém de "responsável" ou elogia-se seu "senso de R." quando se pretende dizer que a pessoa em questão inclui nos motivos de seu comportamento a previsão dos possíveis efei­ tos dele decorrentes (cf. o fascículo citado da Revue Internationale de Philosophie, especial­ mente os artigos de McKeon, Abbagnano e Weil. Para a distinção entre imputabilidade e R., cf. SCHELER, Der Formalísmus in der Ethik, pp. 504 ss.) (v. INTENÇÃO). RESPOSTA. V. AçÀo REELKXA.

RESSENTIMENTO (in. Resentment; fr. Ressen­ timento ai. Ressentimento it, Risentimento).Ódio

impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter. Essa noção foi introduzida por Nietzsche em Genealogia da moral(1887): "A revolta dos escravos na moral contemporâ­ nea começa quando o R. se torna criador e gera valores: R. dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a da ação, e que portanto só encontram compensação numa vingança ima­ ginária" {Genealogie derMoral, I, § 10). Segun­ do Nietzsche, a moral cristã é fruto do R., no sentido de ser manifestação do ódio contra os valores da casta superior aristocrática, inacessí­ veis aos indivíduos inferiores. Outra manifesta­ ção do R., ainda segundo Nietzsche, é a raiva secreta dos filósofos contra a vida, em vista do que a filosofia foi até agora "a escola da calú­ nia": calúnia contra o mundo real ou sensível, que os filósofos tentaram substituir pelo mun­ do ideal da metafísica e da moral (Wille zur Macht, cá. 1901, §§ 259, 287). Por sua vez, Scheler insistiu na ação do R. no campo moral, embora negando que ele possa ser aplicado á concepção cristã, à qual Nietzsche fazia alusão. Segundo Scheler, os produtos do R. são o humanitarismo e o altruísmo modernos, e não o amor cristão. O conceito de igualdade entre os homens, a afirmação do subjetivismo dos valo­ res e a subordinação de todos os valores à utili­

RESTRIÇÃO

dade são outros três produtos do R. na vida moderna, segundo a concepção de Scheler. ( Uber Ressentiment, 1912; trad. fr., 1958). (Cf. R. K. MKRTON. Social Theory and Social Stnicture, Ied., 1957, pp. 155 ss.). RESTRIÇÃO (lat. Restrictio; in. Restrilion-.k. Restriction: ai. Restriktioir. it. Restrizione). A partir da lógica do séc. XIII, esse termo desig­ na a limitação da extensão ou denotação de um lermo comum, de tal modo que ele se refi­ ra a um número menor de objetos designados (cf. Lamberto de Auxerre em PRANTL, Geschicbtc der Logik, III, p. 31. nu 130). Pedro Hispano distinguiu quatro espécies de R.: a que se faz com o nome, como quando se diz "homem branco", em que o termo homem não supòe (iion supponit pro) os negros; a que se faz perparticipío, como quando se diz "o ho­ mem discute correndo"; e a que se faz por implicação, como no caso "o homem, que 6 branco, corre" (Summ. log., 11.02). O pro­ cesso inverso 6 a ampliação ou extensão. Hamilton chamou de R. a relação de snbalternação (v.). RESTRIÇÃO MENTAL (lat. Reservei tio-, in. Reservalion-, fr. Restriction: ai. Reservatio)t. it. Ríserva). Um dos tópicos característicos da casuística católica do séc. XVII, bem como do probabilismo ou laxi.smo: a tese de que uma mentira deliberada não compromete quem a pronuncia e não é pecado. Na IX de suas Car­ tas provinciais (1656), Pascal fez uma crítica famosa a essa tese. RETIDÃO (gr. òp9óiT|Ç; K0ttóp6axiiç; Retiludo: in. Reclitucle-, fr. Redunde; ai. Recbllicbkeit; it. Rettitndine). Critério ou medida racional das coisas, ou seja, o princípio para julgá-las. Platão diz, por exemplo, que "a R. do nome é mostrar o que a coisa 6" ( Crat.. 428 e), entendendo que este é o critério para julgar acerca da justeza do nome. Com o mesmo sen­ tido Aristóteles usa a expressão reta razão (ôp8òçAóyoç), identificando-a com a sabedoria Et. nic, VI, 13, 1144 b 23). Mas foram sobretu­ do os estóicos que deram significado técnico ao termo, ao designarem com ele "a conveniên­ cia ou bem, que consiste em estar de acordo com a natureza" (CÍCKKO, De finibns. III. 14, 45). Como o acordo com a natureza é o critério de avaliação, a R. não é senão esse critério. Com sentido análogo, Duns Scot chamou as propo­ sições teológicas de rectitiulines. porquanto for­ necem o conhecimento do reto comportamento do homem em face de Deus (Op. Ox., Prol., q. 4, n. 31).

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RETÓRICA

Na filosofia contemporânea. Heidegger con­ trapôs a R. à verdade, entendida como revela­ ção do ser. Segundo Heidegger, foi Platão quem introduziu o conceito de verdade como R., ou seja. como critério do juízo humano, preparando assim o terreno para o nascimento do subjetivismo moderno ( Die Zeit des Weltbildes", em Ilolzwege, 1950, p. 84). RETÓRICA (in. Rheloric. fr. Rhétorique. ai. Rhetorik it. Retórica). Arte de persuadir com o uso de instrumentos lingüísticos. A R. foi a grande invenção dos sofistas, e Górgias de Leontinos foi um de seus fundadores (séc. V a.C). O diálogo de Platão intitulado Górgias insiste no caráter fundamental da R. sofista: sua independência em relação á disponibilidade de provas ou de argumentos que produzam co­ nhecimento real ou convicção racional. O obje­ tivo da R. é "persuadir por meio de discursos os juizes nos tribunais, os conselheiros no con­ selho, os membros da assembléia na assem­ bléia e em qualquer outra reunião pública" ( Górg.. 452 e); portanto, o retórico é hábil "em falar contra todos e sobre qualquer assunto, de tal modo que. para a maioria das pessoas, con­ segue ser mais persuasivo que qualquer outro com respeito ao que quiser" (Ibiel., 457 a). As­ sim entendida, a R. pareceu a Platão mais pró­ xima da arte culinária que da medicina: mais apta a satisfazer o gosto do que a melhorar a pessoa (Ibid..
RETÓRICA

F.sse eoneeito de R., estabelecido por Aristó­ teles, prevaleceu por muitos séculos. O huma­ nismo ressaltou a importância da R., na qual identificou, segundo o exemplo de Platão e Cícero, um valor substancial (cf. Testi itmanistíci sulktR. de M. Ni/olio, F. Patrizi, P. Ramus, org. por F. CIARIN, P. Rossi, F. VASOU. 1953). Com P. Ramus, a tarefa da R. volta a ser substancialmen­ te a que já lhe fora atribuída por Aristóteles: "A técnica de persuasão, que Ramus estuda nos textos de Cícero, essa capacidade de usar a lin­ guagem para criar as expressões mais bem feitas e tecnicamente elaboradas, deve contudo estar sempre unida ao exercício da filosofia, ã qual está confiada a construção essencial de todos os princípios cognitivos, com o uso da dialética. Por isso. à R., entendida no significado mais téc­ nico e particular, Ramus só concederá as duas funções propedêuticas da doentio e da pn>innicidtioi...). ao passo que. contra as opiniões de Quintiliano e de Cícero, atribuirá á dialética a tarefa de organizar a verdadeira substância do discurso lógico" (F. YASOLI. Op. cit.. pp. II7118). Depois do lloreseiniento cio Renascimen­ to, a sorte da R. decaiu, chegando ao desapareci­ mento quase completo que a caracterizou no séc. XIX. O dogmatismo racionalista iniciado por Descartes e adotado maciçamente no séc. XIX foi a maior causa da decadência da retórica. Onde a razão é tudo e pode tudo, uma arte que busque seus instrumentos da persuasão obvia­ mente está deslocada. Por isso, não admira que. com o abandono do dogmatismo racionalista, a R. volte hoje a ser homenageada como a arte clássica da persuasão, mas com a ressalva de que deve levar em conta uma multiplicidade de condições. O Traité de iargumentalion cie Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958) começa com as seguintes palavras: "A publicação de um tratado dedicado à argumentação e sua vinculação com a velha tradição da R. e da dialética gre­ gas constituem a ruptura com a concepção de razão e raciocínio que se iniciou com Descartes e deixou marcas na filosofia ocidental dos três últimos séculos." Não há dúvida de que essa ob­ servação é correta. Se a razão é infalível e a in­ vestigação humana pode ser confiada às suas regras infalíveis em qualquer campo, não há lu­ gar para a R., que é a arte da persuasão. Mas, se, na esfera do saber humano, a parte do incerto, do provável, do aproximativo é mais ou menos ampla, a persuasão pode ter alguma função e sua arte pode ser cultivada.

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RETORNO

RETORNO (gr. èTuaipocprv, Lu. Conuersio-, in. Relimi; fr. Retour. ai. Rückgang). 1. No neoplatonismo antigo, o movimento graças ao qual a alma percorre de volta o processo de emanação, reintegrando-se na sua origem (bem, causa. Deus, unidade) através da con­ templação. Plotino dizia: "A purificação é ne­ cessária á união: a alma une-se ao Bem, vol­ tando para ele. Mas então â conversão seguese a purificação? Exatamente: o R. acontece depois da purificação. O R.. então, é a virtude da alma? Sim, é a virtude que do R. resulta e deriva para a alma. K o que é o R.? F. a contemplação e a impressão que os objetos inteligíveis pro­ duzem na alma, do mesmo modo como a visão é produzida pelos objetos visíveis" (lúm.. I, 2. i). Proclos generalizava o conceito de R., atribuindo-o a todas as manifestações do ser, cada uma das quais efetuaria o R. a seu modo. "Cada ser realiza seu R. apenas em relação â substância ou também em relação à vida e ao conhecimento, visto que, ou recebeu da Causa apenas o ser, ou recebeu também a vida, ou re­ cebeu também a faculdade cognitiva. Se é ape­ nas, realiza um R. ã Substância; se vive. retorna à vida: se conhece, retorna ao Conhecimento. Com efeito, do mesmo modo como procedeu da Causa primeira, assim retorna para ela; e as medidas do R. são determinadas pelas medidas da processâo" (Inst. theoi. 39). 2. O Renascimento, ao retomar esta con­ cepção generalizada de Proclos, considerou o R. aos princípios como a única via de re­ novação radical da vida pessoal e social do homem. Pico delia Mirandola unia o antigo conceito neoplatònico de R. aos princípios com o novo princípio de via de renovação (Deente etit)H>. VII, Proem.). Maquiavel considerava a "redução aos princípios" a única via de renova­ ção das comunidades humanas, evitando-se a decadência e a derrocada, porquanto todos os princípios contêm em si algo de bom, de que as coisas podem retirar vitalidade e força primi­ tiva {Discursos, III, 1). E Campanella via o ca­ minho da renovação religiosa no princípio que ele julgava estar expresso no salmo XXII: Qnod remiuísceritur ei convertentur ad Domiiium itiiirersifines terrae. cujas primeiras duas pala­ vras ele usava como título do texto em que anunciava a renovação religiosa (Qnocl remiluscentur. 1615). Outrossim, a própria Reforma protestante obedecia â exigência de voltar aos princípios, remontando diretamente à fonte

RETRODUÇÃO

primitiva da religiosidade cristã, a Bíblia; por outro lado, a Contra-Reforma pretendeu recon­ duzir a Igreja à força expansionista que ela possuía em suas origens. Outra forma do mes­ mo princípio é a do R. ã natureza, considerada na maioria das vezes como princípio ou ori­ gem dos seres. Nesta forma, o R. aos princípios é uma exigência freqüente no pensamento dos séc. XVII e XVIII. 3. Eterno R. (v. CICLO DO MUNDO). RETRODUÇÃO (in. Retroduction). Termo introduzido por Peirce para indicar o primeiro estágio da investigação, que, assim como a indução, parte do conseqüente para o antece­ dente, mas é realizado de forma espontânea, ou seja, sem método rigoroso ("Reality of God". em Values in a Uniivrse of Chance, pp. 368 ss.) (V. ABDrçÀo). RETROSPECÇÃO (in. Retrospection; fr. Retrospection; it. Retrospezione). Bergson desig­ nou com esse termo a tendência a "relegar as realidades atuais para o passado, para um esta­ do de possibilidade ou virtualidacle" (Lapensée et le mouvant, 33 ecl., 1934, p. 26). REVELAÇÃO (in. Revelation; fr. Révélation: ai. Offenbarnng; it. Rivelazione). Manifestação da verdade ou da realidade suprema aos ho­ mens. A R. foi entendida de duas maneiras: Ycomo R. histórica; 2a como R. natural. 1- É histórica a R. que toda religião positi­ va adota como fundamento. Consiste na ilu­ minação com que foram agraciados alguns membros da comunidade, cuja tarefa teria sido encaminhar a comunidade para a salva­ ção. Neste sentido, a R. é um fato histórico, ao qual se atribui a origem cia tradição reli­ giosa. 2a A R. natural é a manifestação de Deus na natureza e no homem. Às vezes essa forma de R. é admitida ao lado da outra, outras vezes é negada ou subordinada à outras. Só o conceito de R. natural tem valor filosófico, sendo o outro especificamente religioso. Contudo a fi­ losofia hauriu o conceito de realidade natural e humana como manifestação de um princípio sobrenatural ou divino da própria religião, sen­ do esse conceito típico das filosofias que têm caráter ou finalidade religiosa. Na Antigüidade, esse conceito pertenceu aos neoplatônicos, para quem o mundo, como produto da emana­ ção divina, revela, pelo menos parcial ou im­ perfeitamente, a natureza divina que o produz. Desse ponto de vista, Scotus Erigena chamava de teofania(w) o processo de descida cie Deus

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REVOLUÇÃO

ao homem e de subida do homem a Deus; também chamava de teofanía toda a obra da criação, porquanto ela manifesta a substância divina que se torna sensível nela e através dela (pe divis. nat., I, 10; V, 23). Este conceito rea­ pareceu com freqüência na história da filosofia, mas a maior recorrência se deu na filosofia do romantismo (v.). Fichte, p. ex., dizia: "O saber é a existência, a manifestação, a perfeita ima­ gem da força divina" (Grundzüge dergegenWãrtigen Zeitalters, 1806, IX). liste pensamento domina também as filosofias de Scheling e cie Hegel. No entanto, cumpre observar que nelas a R. não é apenas manifestação: é também — cc>mo dizia Fichte — existência (isto é, realiza­ ção) de Deus. É essa a característica específica assumida pelo conceito de R. no romantismo e conservada de maneira mais ou menos decisiva nas filosofias da R. que constituem a segunda fase do romantismo e têm como lema a defesa da tradição. As filosofias de Maine de Biran, Rosmini, Ciioberti, Mazzini partem todas do princípio de que a consciência é a revelação de Deus. A propósito, Maine de Biran nada mais fazia que exprimir uma convicção bastante difundida ao afirmar que a R. não é apenas externa (tradição oral ou escrita), mas é tam­ bém interna ou da consciência, visto que ambas procedem diretamente de Deus «Hiivres, ecl. Naville, III, p. 96). O conceito de R. foi adotado como funda­ mento da filosofia de Heidegger, mas sem o tom religioso do séc. XIX. A R. do ser, segundo Heidegger, nunca é perfeita e exaustiva por­ que o ser se esconde ao mesmo tempo em que se revela: "O ser subtrai-se a si mesmo enquan­ to se revela no ente. Assim, o ser, iluminando o ente, ao mesmo tempo o desvia e o encami­ nha para o erro" (Ilolzwege, p. 310). Segundo Heidegger, a R. do ser ocorre através da lingua­ gem, que não é instrumento humano, mas o próprio ser em stia R. (Brief tiber deu Hunianisnnis, p. 81). Por outro lado, a concepção da linguagem como R. hoje nào pertence ape­ nas a Heidegger (v. LI\GI:AÜF.M), O que é mais urna prova da persistência em filosofia do con­ ceito teológico de revelação. REVERSÍVEL (in. Reversible, fr. Reversible. ai. Umkebrbar, it. Reversibile). São qualificados com este termo os processos que não têm sen­ tido definido (V. IRREVKRSÍVEL). REVOLUÇÃOün Revolution,fr. Révolutioit. ai. Revolution; it. Rivolnzione). Violenta e rápida destruição de um regime político, ou mudança

RIGORISMO

radical de qualquer situação cultural. Neste se­ gundo sentido fala-se de "R. filosófica", "artísti­ ca", "literária", "dos costumes", etc, ou tam­ bém de "R. copernicana". Mas está claro que. neste sentido, o uso da palavra visa somente a ressaltar a importância da mudança ocorrida, e nào tem significado preciso. O único significa­ do preciso do termo 6 o político, que teve iní­ cio no séc. XVIII. R. propriamente ditas foram a inglesa, a americana, a francesa e a russa, mas às vezes também são chamadas de R. transforma­ ções políticas que tiveram menor importância na história geral do mundo, apesar de serem marcos fundamentais na história cie determina­ do país. RIGORISMO (in. Rigorism-. fr. RAorisme, ai. Rii>orísmns;it.Rigorismo).1 \i Iterminologiareligiosa do séc. XVIII, R. opõe-se a laxismo e designou o ponto de vista cie todos aqueles que (especialmente jansenistas e padres do ora­ tório) hostilizavam o princípio cie moral relaxa­ da (cf. BAVLK, Diclioiiuaire hístorique et criti­ que, v. "Rigoristes"). Segundo Kant. foram comumente chamados de rigoristas os que nào ad­ mitiam "nenhuma neutralidade moral (adicipborti) nem nos atos nem nos caracteres huma­ nos", enquanto os outros eram chamados de latitudi)iários(Relii>íoii, I, Observação). O pró­ prio Kant, porém, na mesma passagem, de­ monstra aceitar pessoalmente o princípio rigorista, de tal modo que, nào sem razào. falou-se e continua-se falando de "R. moral" com refe­ rência à doutrina moral kantiana. RISCO (gr. KÍVSUVOÇ; in. Risk fr. Risque-, ai. Wcigniss, Cje/dhr, it. Rischio). Em geral, o as­ pecto negativo cia possibilidade, o poder nào ser. Essa noção é freqüente nas filosofias que reconhecem o possível, tais como nas de Platào e dos existencialistas contemporâneos. Aristóte­ les considerava o R. como "o aproximar-se daquilo que é terrível" (Rei., II, 5, 1382 a 33). Para Platào, o R. era belo e inerente à aceitação cie certas hipóteses ou crenças (Fed, 114 d). No existencialismo. o R. é considerado ineren­ te à escolha que o eu faz de si mesmo e a toda decisão existencial (cf. jasphrs, Pbil., II, pp. 1X0, 403, etc). A aceitação cio R. implícito nessa escolha é um dos pontos fundamen­ tais do existencialismo contemporâneo: "A pretensão implícita na decisão baseia-se nu­ ma indeterminaçào efetiva, ou seja, na possi­ bilidade de que as coisas se passem de ma­ neira diferente daquilo que eu decido; mas também se baseia no fato de eu, que decido,

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RITSCHI1ANISMO

assumir esse R., bem como na consideração de todas as possíveis garantias que eu possa obter (AHHAGNANO, Iiilroduzioiie ali 'esistenzialismo, 4a ed., 1957, I, 3). RISO. V. CÔMICO. RITMO (in. Rhytbm, IV. Rytbme, ai. Rhythmus; it. Ritmo). Alternância de fenômenos opostos n> mesmo processo. Este é o significado atri­ buído ao termo pelo positivismo, que o utilizou pçla primeira vez de modo específico, esten­ dendo seu significado primitivo de movimento regularmente recorrente. Spencer falou de uma lei do R., segundo a qual o máximo e o míni­ mo, a queda e a elevação, alternam-se no desenvolvimento cie todos os fenômenos; essa lei seria um dos princípios fundamentais da evokiçào (Firsl Principies, 11, cap. 10). Dessa mesma lei falaram Ardigó (Of>., II. p. 227; V. pp. 232, etc) e. mais recentemente, Whitehead: "Mo modo do ritmo, uma série de experiências que formam determinada sucessão de contras­ tei obteníveis no âmbito de um método preci­ so é regulada cie tal maneira que o fim de um ciclo é o estágio que antecede o início de um outro ciclo semelhante. O ciclo é tal que, ao completar-se, produz as condições para sua siiíiple.s repetição" (The Hioiction of Reason, 1929, cap. I, trad. it.. p. 25; cf. Tbe Aims of Hclticcitioii, cap. II. III). RITO (in. Rite-, fr. Rite. ai. Ritus-, it. Rito). Técnica mágica ou religiosa que visa a obter sobre as forças naturais um controle que as téc­ nicas racionais nào podem oferecer, ou a obter a manutenção ou conservação de alguma ga­ rantia de salvação em relação a essas forças. O conceito de R. como "pratica relativa às coisas sagradas" foi esclarecido por Durkheim (For­ mes élémeutaires de Ia vie religieuse. 1912, pcissim)(d. T. PARSONS, The Structure ofSocial Acuou. 2a ed.. 1949, pp. 420 ss., 673 ss., etc; cf. Rl-LIGIÀO). RITSCHLIANISMO(in. Ritschlianism; fr. Ritschlícinisme. ai. Rítscblianismiis; it. Ritscbiliauisinu). Corrente do cristianismo protestante do séc. XIX, iniciada por Alberto Ritschl (1822-89), segundo a qual a religião baseia-se exclusiva­ mente no sentimento e na revelação interior: essa revelação se concretiza especialmente nos juízos de valor, que são independentes dos fa­ to,*; t-1 elevam o homem para uma esfera supe­ rior à de sua limitação empírica. Ao fortalecer a revelação cio sentimento interior, a comunida­ de dos fiéis realiza as exigências dessa revela­ ção: o reino de Deus realiza-se nela (cf. K.

ROMANTISMO

BARTH, Die protestantische Theologie in 19, Jahrhundert, 1947). ROMANTISMO (in. Romanticisnrjr. Romantisme, ai. Romanticismus; it. Romanticismo). Designa-se com este nome o movimento fi­ losófico, literário e artístico que começou nos últimos anos do séc. XVIII, floresceu nos primeiros anos do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado co­ mum do termo "romântico", que significa "sen­ timental", deriva de um dos aspectos mais evi­ dentes desse movimento, que é a valorização do sentimento, categoria espiritual que a Anti­ güidade clássica ignorara ou desprezara, cuja força o séc. XVIII iluminista reconhecera, e que no R. adquiriu valor preponderante. Essa grande valorização cio sentimento é a principal herança recebida do movimento Sturm und Drang (v.). que constitui a tentativa de, através da experiência mística e da fé, superar os limi­ tes da razão humana, reconhecidos pelo iluminismo. Segundo os filósofos do Sturm und Drang, Haman, Herder e Jacobi. pode-se obter com a fé o que a razão não é capaz de dar, sendo a fé entendida como fato de sentimento ou de ex­ periência imediata. Mas, precisamente por isso, para os seguidores do Sturm und Drang (en­ tre os quais estiveram Goethe e Schiller. na juventude) a razão continuava sendo o que fora para o Iluminismo: uma força humana li­ mitada, capaz de transformar o mundo gradual­ mente, mas que não é absoluta nem onipoten­ te, estando, pois, sempre mais ou menos em conflito com o mundo e em luta com a realida­ de que se destina a transformar. Do Sturm und Drang passa-se para o R. somente quando esse conceito de razão é abandonado e começa-se a entender como razão uma força infinita (onipo­ tente) que habita o mundo e o domina, consti­ tuindo sua própria substância. O princípio da autoconsciência (v.), infinidade da consciên­ cia que é tudo e faz tudo no mundo, é fundamen­ tal noR.,e dele derivam os aspectos relevantes do movimento. Fichte foi o primeiro a identi­ ficar a razão com o Eu infinito ou Autoconsciência Absoluta, fazendo dele a força pela qual o mundo é produzido. A infinidade, nesse sen­ tido, era de consciência ou de potência, e não de extensão ou duração; seu modelo encontra­ va-se em conceitos da filosofia neoplatônica, especialmente em Plotino. Hegel, a propó­ sito, opunha o falso infinito, ou mau infinito, que é diferente do finito, isto é, da realidade ou do mundo e se opõe a ele e tenta transformá-lo

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ROMANTISMO

ou superá-lo, ao verdadeiro infinito, que se iden­ tifica com o finito, com o mundo, e se realiza nele e por ele. Este infinito é um Princípio es­ piritual criativo: aquele que Fichte chamou de Eu, Schelling de Absoluto e Hegel de Idéia. Mus o infinito, ou melhor, a infinidade da cons­ ciência pode ser entendida de duas maneiras. Em primeiro lugar, como atividade racional, que se move de uma determinação para outra com necessidade rigorosa, de tal forma que qualquer determinação pode ser deduzida da outra de modo absoluto e apriori. E este o con­ ceito de infinidade de consciência encontrado em Fichte, Schelling e Hegel (quanto ao segun­ do, apenas numa primeira fase de sua filosotia). Em segundo lugar, a infinidade de cons­ ciência pocíe ser entendida como atividade íívre, aniorfa, privada de determinações rigorosas, e tal que se coloca continuamente além de qual­ quer de suas determinações: neste sentido a infinidade de consciência é o sentimento. O sen­ timento é o infinito na forma do indefinido, e foi desta forma que Schleiermacher e a chamaxia escola romântica (E. Schlegel, Novalis, Tiçck e outros) reconheceram a infinidade da consciência. De fato, o R. literário começou com a obra de Schlegel (1772-1829), que, entre 1798 e 1800, publicou em colaboração com o irmão o periódico Atbenaeum, primeiro porta-voz da escola romântica. Schlegel apontava explicita­ mente Fichte como iniciador do movimento ro­ mântico, como descobridor do conceito român­ tico de infinito, mas interpretava o infinito como algo exterior e superior à racionalidade, como infinidade de sentimento. O mesmo con­ ceito do infinito aparece no poeta e literato Ludwig Tieck e em Novalis: este sustentava um idealismo mágico, segundo o qual o mundo não passa de uma grande obra de poesia. A essa mesma corrente pertence o teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834), que definiu a religião como "sentimento do infinito". Nesta interpretação do princípio de infinito baseia-se a supremacia que por vezes o R. atri­ bui à arte. Com efeito, se o infinito é sentimen­ to, revela-se melhor na arte que na filosofia, porque a filosofia é racionalidade, ao passo que a arte apresenta-se aos românticos como "expressão do sentimento". Para Schelling, que teridia a essa interpretação, a melhor manifesta­ ção do absoluto estava na arte, o mundo era uma espécie de poema ou de obra artística cujo autor seria o absoluto, para o homem a expe­

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riência artística era o único meio eficaz de apro­ ximar-se do absoluto, ou seja, do modo como o absoluto deu origem ao mundo. Quando o movimento romântico se difun­ diu fora da Alemanha, foi exatamente essa a sua bandeira. O R. de Madame de Staél e de Chateaubriand consiste sobretudo na exalta­ ção cios valores do sentimento, e foi com essa mesma forma que o R. encontrou expressão na Itália. Essas duas interpretações da autoeonsciência muitas vezes se opuseram; Hegel, principal­ mente, abriu polêmica contra a primazia do sentimento. No conjunto, porém, 6 sobretudo nessa oposição e nessa polêmica que consiste a característica fundamental do R. No entanto, pertence apenas à escola do sentimento um dos aspectos mais evidentes do R.: a ironia. c[iie representa a impossibilidade de a cons­ ciência infinita levar a sério e considerar sóli­ dos os seus produtos (natureza, arte. o eu), nos (juais vê apenas suas próprias manifestações provisórias. São, porém, caracteres comuns e fundamen­ tais de todas as manifestações do R. o otimis­ mo, o providencialismo. o tradicionalismo e o titanismo. Otimismo é a convicção de que a realidade é tudo aquilo que deve ser. e de que é em todos os momentos racionalidade e per­ feição. É devido a esse otimismo que o R. tende a exaltar a dor, a infelicidade e o mal, pois a infinidade do espírito também se manifesta nesses aspectos da realidade, superando-os e conciliando-os em sua perfeição. Hegel apre­ senta-nos o mundo romântico na felicidade de sua perfeita pacificação racional. Schopenhauer apresenta-o na infelicidade de suas oposições irracionais, mas ainda assim satisfeito por reco­ nhecer-se nesse contraste. A vontade irracional de Schopenhauer é um princípio tão otimista quanto a razão absoluta de Hegel. Com o otimismo metafísico do R. relacionase seu proriclencialismo histórico. A história é um processo necessário, no qual a razão infini­ ta se manifesta ou se realiza; por isso, nela nada há de irracional ou inútil. Nesse aspecto. o R. opõe-se radicalmente ao iluminismo. liste último contrapõe tradição e história: á força da tradição, que tende a conservar e perpetuar preconceitos, ignorâncias. violências e fraudes, opõe a história como reconhecimento dessas coisas tais quais são, e como esforço racional para libertar-se delas. Para o R., porém, tudo o que a tradição lega é manifestação da Razão

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Infinita: é verdade e perfeição. Portanto, o espírito ihiminista é crítico e revolucionário; o espíri­ to romântico é exaltativo e conservador. O con­ ceito de história como projeto providencial do mundo domina toda a filosofia do séc. XIX; mesmo no séc. XX, a filosofia só consegue li­ bertar-se desse conceito através de amargas experiências históricas e culturais. É nessa con­ cepção de história que mais se manifesta a afi­ nidade entre idealismo e positivismo no sen­ tido comum de romantismo. Comte tem o mesmo conceito de história de Fichte. Schelling — mais tarde — . ('roce e dos epígonos do romantismo no séc. XX. A história como manifestação de urii princípio infinito (Eu. Autoconsciência, R;tzâo. Espírito, Humanidade, ou qualquer ou­ tro nome que se lhe dê) é racionalidade total e perfeita, não conhecendo imperfeição ou mal. A forma extremada desse conceito de história está em Hegel (repetido por Croce): a histó­ ria não é progresso ao infinito, visto que. se assim fosse, cada um de seus momentos seria me­ nos perfeito que o outro; ela é infinita perfei­ ção de todos os seus momentos. A contraposição h(?geliana entre o "verdadeiro infinito" e o "mau infinito" não significa outra coisa. E óbvio que., num conceito da história semelhante, não hií lugar para o indivíduo e suas liberdades, pelos quais o iluminismo se batera. Há lugar apenas para os "heróis" ou "indivíduos da histó­ ria cósmica", instrumentos de que a providên­ cia histórica se vale para realizar astutamente seus fins. Aspecto importante do providencialismo romântico é o tradicionalismo: com efeito, a exaltação das tradições e das instituições que a encarnam é um dos aspectos típicos do movi­ mento romântico. A essa atitude deveu-se a revalorização da Idade Média, que é caracterís­ tica do R. A Idade Média afigurara-se ao iluminismo (assim como. antes, ao humanismo) como uma época de decadência e de barbárie, em que haviam sido perdidos os valores hu­ manos e racionais criados pela Antigüidade clássica. Para o R. nào existem épocas de de­ cadência ou de barbárie porque toda a histó­ ria é racionalidade e perfeição. Na Idade Mé­ dia, aliás, mais do que no mundo clássico, pode-se e deve-se ver — segundo o R. — a ori­ gem do mundo moderno: assim, o retorno â Idade Média constitui uma de suas palavras de ordem. Em virtude dessa mesma atitude, o R. alemão começou a exaltar as tradições ori­ ginárias da naçào alemã, surgindo a primeira

ROMANTISMO

forma de nacionalismo, que se difundiria e acabaria por tornar-se uma das marcas da cul­ tura européia do séc. XIX. De fato, o conceito de nação é composto por elementos tradicio­ nais (raça, língua, costumes, religião), que não podem ser negados ou renegados sem traição, pois constituem aquilo que a nação foi desde sempre. Ao contrário, o conceito setecentista de povo era definido pela vontade e pelos in­ teresses comuns dos indivíduos. Tradicionalismo e nacionalismo fincam raízes no terreno co­ mum cio providencíalismo romântico. Finalmente, um dos aspectos fundamentais e mais evidentes do R. é o titanismo. De fato, o culto e a exaltação do infinito têm como con­ trapartida negativa a inaceitabilidade do íinito ou a impossibilidade de satisfazer-se com ele. Nessa inaceitabilidade (ou insatisfação) estão as raízes da atitude de rebeldia contra tudo o que parece ser ou 6 limite ou regra e do desa­ fio incessante a tudo o que, por sua finitude, parece inferior ou inadequado ao infinito. Pro­ meteu é adotado como símbolo desse titanismo, numa interpretação muito distante cio espírito do antigo mito grego. Para este, Prometeu era o homem que transgredira a lei do destino para possibilitar a sobrevivência do gênero hu­ mano, sofrendo as conseqüências dessa transgressão. Para o R., porém, é o símbolo do desafio e da rebeldia ao finito: atitudes cuja razão de ser não está naquilo a que se opõem, mas apenas no fato de que aquilo a que se opõem não é o infinito. A atitude titânica não conduz, à crítica das situações de fato e ao es­ forço de transformá-las, pois não julga que uma situação de fato seja ou possa ser superior ou preferível a outra; exaure-se num protesto uni­ versal e genérico, e não pode empenhar-se em qualquer decisão concreta. O culto e a exaltação do infinito, o fato de não se contentar com menos que a infinidade, constituem características marcantes do espírito romântico. Como já foi dito, o próprio positivismo se enquadra nesse espírito. Ele estende o con­ ceito de progresso a toda a história do mundo: na verdade, é esse o sentido de "evolução". Faz. da história humana um progresso necessário e

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RUPTURA

infalível. E faz da ciência, que é sua manifesta­ ção humana preferida, o infinito da verdade, elegendo-a como única diretriz dos homens em todos os campos. As características assumidas pelo R. em polí­ tica, arte e costumes estão intimamente ligados aos aspectos ora esclarecidos. Fm política, o R. é defesa e exaltação das instituições humanas fundamentais, nas quais se personifica o Princípio infinito: F.stado, Igreja, com tudo o que im­ plicam. Em arte, busca a realização do infinito através de formas grandiosas e dramáticas, em que os conflitos são levados ao extremo para depois reconciliarem-se e pacificarem-se de maneira igualmente extremada e definiti­ va. Nos costumes, o amor romântico busca a unidade absoluta entre os amantes, sua identificação no infinito; em favor dessa unida­ de ou identificação sacrifica o sentido autêntico da relação amorosa e sua possibilidade de constituir a base para uma vida em comum (v. AMOR). ROSMENIANISMO. São designadas com este termo as principais características da filosofia cie Antônio Rosmíni Serbati (1797-1855), em especial: Ia tradicionalismo, como preocupação em defender os valores tradicionais e em justi­ ficar a tradição como produto ou manifestação de Deus; 2a ontologismo-. tese segundo a qual o espírito humano frui um conhecimento do ser imediato e indubitável, conquanto parcial, sen­ do tal conhecimento a base de todo saber (v. ONTOLOGIA): 3a escolasticismo: concepção da filosofia como instrumento para justificar as ver­ dades da religião. RUPTURAUil Zenissen hei t).Termo introduzi­ do pelas filosofias existencialistas. Para Jaspers, a R. do mundo se dá quando a busca da tota­ lidade absoluta, que tudo abarca, desemboca numa multiplicidade de perspectivas, cada uma das quais é relativa a determinado ponto de vista e nenhuma, portanto, pode eqüivaler a um mundo (PhiL, I, pp. 64 ss.). Segundo Heidegger, a R. do mundo ocorre com a ciência e a técnica, que organizam a separação entre o homem e a natureza (ErlüiüerungenzuHõlderlin, pp. 271 ss.).

s SABEDORIA1 (gr. (ppóvnaiç; lat. .Sapientia, Pntdentiai in. Wisdom, fr. Sagesse, ai. Weisbeit; it. Saggezza). Em geral, a disciplina racio­

nal das atividades humanas: comportamento racional em todos os domínios ou virtude de determinar o que é bom e o que é mau para o homem. O conceito de S. refere-se tradicional­ mente ã conduta racional nas atividades huma­ nas, ou seja, à possibilidade de dirigi-las da melhor maneira. Não é o conhecimento de coisas elevadas e sublimes, afastadas da humanidade comum, o que é expresso por sapientia, mas o conhecimento cias atividades humanas e da melhor maneira de conduzi-las. A superiorida­ de atribuída ã prudentia ou à sapientia de­ monstra a interpretação fundamental que se tem de filosofia: o predomínio da segunda é típico cio conceito de filosofia como contem­ plação pura: o primado concedido à prudentia expressa o conceito de filosofia como guia do homem no mundo (v. FILOSOFIA, II). Fm Aristóteles, encontra-se uma distinção nítida entre dois tipos de sabedoria, que não se encontra em Platão. F.ste chama de sofia (oocpía) a ciência que preside à ação virtuosa Utep., IV, 443 e: cf. 428 b), que corresponde à prudentia. Diz que ela é "a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela, pois trata da organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça" (ORanq., 209 a). As formas de saber que constituem fins em si mesmas são alheias à concepção filosófica de Platão. Fsse saber, no entanto, é exaltado por Aristóteles, que o considera a forma mais ele­ vada e divina: o outro tipo de sabedoria restrin­ ge-se a coisas meramente humanas, portanto, de menor valor. Desse ponto de vista, ela é de­ finida como "hábito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem" (Et. nic, VI, 5, 1140 b 4). Mas "o homem nào

é o melhor ser do mundo" Ubid., VI, 7, 1141 a 21); é um ser mutável, e a S. que lhe diz respei­ to é também mutável, ao passo que a verdadei­ ra sabedoria é sempre a mesma (Jbid, 1141 a 20 ss.). Portanto, Aristóteles põe esse tipo de sabedoria acima de tudo. sendo seu objeto aquilo que não pode mudar nem ser diferente do que é: o necessário. A distinção e a oposição feitas por Aristóte­ les mantiveram-se através dos séculos, e o modo de entender os dois tipos cie S. (que em algu­ mas línguas são indicadas pela mesma palavra) revela a orientação geral de determinada filoso­ fia: para a contemplação ou para a ação. Após Aristóteles, prevaleceu o ideal de sabedoria prática. Epicuro dizia que a $., "de que nascem todas as virtudes, é até mais preciosa que a filo­ sofia" (Cartasa Menec, 132). Os estóicos iden­ tificavam esse tipo de S. com virtude total, da qual todas as outras provêm (Dióü. I.. , VII, 125­ 26). O neoplatonismo, por sua vez, exaltava o outro tipo de sabedoria (PLOTINO, Enn., V, 8. 4). ao passo que S. Tomás reproduzia essa dis­ tinção, chamando a S. prática de prudentia e considerando-a "conselheira em todas as coisas referentes à vida humana, bem como o fim precípuo da vida humana" (S. Th, II, 1, q. 57, a 4). O mundo moderno dá preferência ao ideal prático da S., que retorna em Descartes (Princ. phil, pref.) e em Leibniz. F.ste último une, em sua definição, o aspecto teórico e o prático: "a S. é o perfeito conhecimento de todos os prin­ cípios e de todas as ciências, bem como da arte de aplicá-los" (DeIasagesse, Op., ecl. Frdmann. p. 673), mas a inclusão do aspecto prático sig­ nifica a refutaçáo do ideal de sapientia. Ao mesmo âmbito pertence a definição de Kant: "A S. consiste na concordância da vontade de um ser com seu objetivo final" (Met. der Sitten, II, § 45).

SABEDORIA2

Hegel acentuava o caráter humano e terreno cia S., ao falar de uma 5. terrena ( Weltweisbeit), que o Renascimento teria oposto como razão humana, à razão divina, à religião (Geschichle derPbilosophie, ed. Glockner, 1. pp. 92 ss.). Schopenhauer acentua ainda mais o caráter ter­ reno da S., entendendo por ela "a arte de levar a vida da maneira mais agradável e feliz possí­ vel" (Aphorismen zurLebensweisbeil, Pref.). Para os filósofos contemporâneos a palavra S., em suas duas acepções, parece solene de­ mais para que eles se detenham na tarefa de esclarecer seu conceito. No entanto, para eles. assim como para os antigos, a S. continua liga­ da à esfera dos afazeres humanos, e pode-se dizer que é constituída pelas técnicas antigas ou novas de que o homem dispõe para a me­ lhor conduta de vida. SABEDORIA2 (gr. oocpía; kit. Sapieniia-, in. Wisdom, fr. Sagesse, ai. Weisheit; it. Sapieiiza). É o conhecimento superior cias coisas excelen­ tes. Caracteriza-se: 1" por ser o grau mais ele­ vado de conhecimento, ou seja. o mais sólido e completo; 2" por ter como objetivo as coisas mais elevadas e sublimes, que são as coisas di­ vinas. Esse, pelo menos, foi o conceito inicial para distinguir os dois tipos de S., o que ocorreu em Aristóteles. Até ele, e mesmo em Platão, o con­ ceito era um só e identificava-se com o de sa­ bedoria como conduta racional da vida huma­ na (cf. PLATÀO, Rep. 428 b; 4-33 e). Aristóteles distinguiu e contrapôs as duas coisas: "A sofia é o mais perfeito dos saberes. Quem o detém deve saber não só o que deriva dos princípios, mas também conhecer os princípios. Assim, a 5. pode ser chamada ao mesmo tempo de inte­ lecto e ciência, e, encabeçando todas as ciên­ cias, será a ciência das coisas mais excelentes" (Et. nic, VI, 7, 11 4 Ia 16). Intelecto e ciência têm aí o sentido específico definido por Aristó­ teles: intelecto (voüç) como conhecimento di­ reto dos princípios da demonstração (Ibid.. VI, 6, 1141 a 7), ciência como "hábito cia demons­ tração" ou faculdade de demonstrar (Ibid., VI. 3 1139b 3D. Portanto, a S. (aocpíoO é o conheci­ mento mais certo e perfeito, por ser, ao mesmo tempo, conhecimento dos princípios e das de­ monstrações que deles resultam. Além disso, como tal, também é a ciência das coisas mais elevadas e sublimes. "Por natureza, há outras coisas muito mais divinas que o homem, como os astros luminosos de que se compõe o mun­ do. (...) Por isso se diz que Anaxágoras, Tales e outros homens desse tipo são sábios, porque

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SABEDORIA2

não conhecem as coisas que lhes são úteis, mas as coisas excepcionais, maravilhosas, di­ fíceis e divinas, porém inúteis, visto que não indagam acerca dos bens humanos" (Ibid. VI, 7, 1041 b 1). Portanto, o objeto específico da S. é o necessário, aquilo que não pode ser cie outro modo (Ibid., 1041 b 11), ao passo que a S. tem por objetivo as atividades huma­ nas mutáveis e contingentes. Essa doutrina de Aristóteles constitui um dos aspectos que mais acentuam a divergência entre ele e Platão, por­ quanto a filosofia de Platào tem em mira a sabedoria humana, enqtianto a de Aristóteles opõe a esta a sabedoria divina. A afirmação cio primado desse tipo de S. caracteriza as filoso­ fias cie tipo contemplativo, tanto quanto a afir­ mação da superioridade cia sabedoria prática caracteriza as filosofias orientadoras (v. FILO­ SOFIA. II). Em vista do caráter "divino" da S. (oocpía), não admira que nas filosofias de fundo religio­ so da época alexandrina e posteriores, ela tenha sido substancializada e entendida como uma espécie cie intermediária entre Deus e o mun­ do; um equivalente do logos (v.). Segundo Plotino. há uma S. que é substância, e nenhu­ ma outra S. é melhor que ela: "cria todos os se­ res, todos emanam dela; ela mesma é os seres que nascem com ela e com ela se identificara, de tal maneira que S. e substância são uma úni­ ca coisa "(A'»»., V, 8, -í). Esta concepção já se encontrava no livro bíblico cia Sabedoria, onde se cliz; "É um vapor da virtude divina e uma emanação sincera da luz de Deus onipotente. É esplendor cia luz eterna, espelho imaculado da majestade de Deus e a imagem de Sua bonda­ de. Embora sendo una, pode tudo, e, permane­ cendo em si, inova todas as coisas e transportase cie nação a nação nas almas santas, que constituem os amigos de Deus e os profetas" (Proc. VII, 25-27). Por outro lado, os gnósticos haviam personificado a S., transformando-a na última emanação ou co>i. que quer sair de seu estudo de desejo e alcançar o conhecimento di­ reto do Pai URINEI', Adi', llaer. II, 5). Os pró­ prios estóicos chamaram Deus, como alma do mundo, cie "perfeita S." (CÍCERO, Acad., I, 29). A filosofia medieval, com S. Tomás, retoma o conceito aristotélico de S. Segundo ele, a S. tern em comum com todas as ciências a ca­ pacidade de deduzir conclusões de princípios, mas também tem algo mais que as outras ciên­ cias, "porquanto julga todas as coisas, não só quanto às conclusões, mas também quanto

SABEDORIA POÉTICA

aos primeiros princípios; assim, é uma virtude mais perfeita que a ciência" (5. Th, III, q. 57, a. 2, ad 1"). Na filosofia moderna, esse termo conservou o significado de conhecimento perfeito, tanto por ser completo quanto pela natureza de seu objeto. SABEDORIA POÉTICA (it. Sapienza poé­ tica). No segundo livro de Ciência nova (1744), Viço deu esse nome à cultura primitiva do gênero humano, que se basearia na sensibi­ lidade, mais que na inteligência: "A S. poética, que foi a primeira S. dos gentios, teve que co­ meçar de uma metafísica não racional e abstra­ ta, como a dos doutos de hoje, mas sentida e imaginada, que devia ser a daqueles primeiros homens, assim como entm eles, de nenhum ra­ ciocínio mas de sentidos robustos e vigoro­ síssimas fantasias". Como partes cia S. poética. Viço fala de lógica poética, moral poética, eco­ nomia poética, história poética, física poética, cosmografia poética, astronomia poética, cro­ nologia poética e geogralia poética. SABEIIANISMO (in. Sabellianism; fr. Sabellianisme, ai. Sabellianismus; it. Sabellianismo). Doutrina trínitáría sustentada por Sabélío na primeira metade do séc. II cl.C: insistindo na unidade da Substância Divina, reduzia as Pessoas Divinas a três modos ou manifestações da Substância Única. Por isso. essa doutrina foi chamada de modalismo (v.). SABER (in. Knowíng, To knoir. fr. Saroir. ai. Wissen; it. Supere). Este verbo substantivado é usado com dois significados principais: 1" Como conhecimento em geral, e neste caso designa: qualquer técnica considerada ca­ paz de fornecer informações sobre um objeto; um conjunto de tais técnicas; ou o conjunto mais ou menos organizado de seus resultados. W. James aceitou a distinção estabelecida por J. Grote (Hxploratiophilosophicu, 1856, p. 60) en­ tre conhecer uma coisa, uma pessoa ou um objeto qualquer (que significa ter certa familiaridacle com esse objeto), e S. algo a respeito do objeto (o que significa ter dele um conheci­ mento talvez limitado, mas exato, de natureza intelectual ou científica) ( The Meaning of Tnith. 1909, pp. 11-12). Mas essa distinção di­ fundiu-se especialmente na forma dada por Russell em famoso artigo de 1905: "A distinção entre experiência direta (acqiiaintance) e co­ nhecimento sobre {knowledge aboul) é a dis­ tinção entre as coisas que nos estão imediata­ mente presentes e as que nós alcançamos

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SÁBIO

apenas por meio de frases denotativas" ("On denoting", 1905. em Logic and Knowledge. 1956, p. 41). Tal distinção constituiu um dos pontos altos da doutrina do Círculo de Viena; embora Carnap tenha reconhecido desde logo suas dificuldades ("Testability and Meaning" in Readings in lhe Philosophy of Science, 1953, pp. 48 s,s.) ela continuou sendo e ainda é o pressuposto de muitas doutrinas, inclusive a de Carnap (v. EXPKKIÊNCIA). 2" Como ciência, ou seja, como conheci­ mento cuja verdade é de certo modo garantida (para este significado v. CIÊNCIA). SÁBIO (gr. ao
SÁBIOS, SETE

vidade contemplativa, à qual se limitava o S.; as escolas pós-aristotélicas estendem o caráter de auto-suficiência do S. a todas as manifestações de sua vida, não limitada necessariamente à contemplação. 4a Renúncia. Foi nesse caráter que os estóicos latinos, Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio mais insistiram. Em vista da distinção feita por Epicteto entre as coisas que o homem pode dominar (seus estados de espírito), e as que ele não pode (as coisas exteriores), o S. deve renunciar às coisas externas e colocar o bem e o mal unicamente nas que estão em seu poder (Manual, 31). Isso implica a renúncia a ocupar-se das coisas e a aceitação da máxi­ ma "suporta e abstém-te" (A. GÉLIO, Noct. Att., XVII, 19. 6). 53 Consciência. Esta característica foi acres­ centada à figura do S. pelo neoplatonismo, que exaltou principalmente a faculdade de olhar para dentro de si, extraindo tudo de si mesmo. Plotino diz: "O S. extrai de si mesmo aquilo que manifesta aos outros: olha apenas para si: não só tende a unificar-se e a isolar-se das coi­ sas exteriores, mas também está voltado para si e encontra em si todas as coisas" (Enn, III. 8, 6; tf. I, 4, 4). Este movimento de olhar para si mesmo e encontrar tudo em si é a consciência (v.); segundo este ponto de vista, é só no S. que a consciência se realiza e vive. SÁBIOS, SETE (gr. Zocpioxai; in. Seven Sages; fr. Sept Sages; ai. Sieben Weisen. it. Sette Savi). Esse foi o nome dado a algumas perso­ nalidades da Antigüidade grega que expressa­ ram sua sabedoria em sentenças ou expres­ sões brevíssimas; por esta última característica também receberam o nome de gnômicos. Eles foram enumerados de várias maneiras pelos escritores antigos. Tales. Bias, Pítaco e Sólon estão incluídos em todas as listas. Platão, que foi o primeiro a enumerá-los, acrescentou Cleóbulo, Míson e Quílon (Prot.. 343 a). A Tales atribui-se o ditado ' Conhece-te a ti mes­ mo" (DiÓG. I... I, 40); a Bias foram atribuídas as frases "A maioria é malvada" (Ibid. I, 88) e "Pelo fardo se conhece o homem" (ARISTÓTKI.KS, Et. nic, V, 1, 1029 b 1); a Pítaco, o ditado "Aproveita o dia de hoje" (DiÓG. L, I, 79); a Sólon, a máxima "Leva a sério as coisas impor­ tantes" e a expressão "Não mais além" (Ibid, I, 60. 63); a Cleóbulo, a máxima "O melhor é a medida" (Ibid., I, 93): a Míson. o ditado "Procu­ ra as palavras nas coisas, e não as coisas nas palavras" (Ibid, I, 108): a Quílon, os ditados

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SAGRADO ou SACRO

"Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impos­ sível" (Ibid, I, 70). SACERDOTALISMO (in. Sacerdotalism). Termo usado principalmente por escritores anglo-saxões para designar a tendência a atri­ buir, em religião, a máxima importância ao aspecto eclesiástico e sacramentai, em detri­ mento do aspecto interior e espiritual. SACRIFíCiO (in. Sacrifice, fr. Sacrifice, ai. Opfer, it. Sacrifício). Destruição de um bem ou renúncia ao mesmo, em honra à divindade. O S. é uma das técnicas religiosas mais difundi­ das. Seu objetivo é a purificação de alguma culpa ou pecado: neste caso, é desinteressado, ou seja, não tem objetivo utilitário imediato. Seu objetivo também pode ser a consagração, que é uma finalidade mais ou menos utilitária, pois consiste em persuadir a divindade a dar garantias à coisa ou à pessoa que se consagra. Tanto a purificação quanto a consagração na maioria das vezes têm caráter simbólico, no sentido de que a dádiva sacrificada não tem apenas o valor econômico que a comunidade lhe atribui, mas também certa relação simbólica com o objetivo (purificação ou consagração) da cerimônia sacrificai. Essas características podem ser identificadas nas técnicas sacrificais de to­ das as religiões, seja qual for seu grau de de­ senvolvimento ou de refinamento intelectual (tf. S. RHINACH, Cultes. mythesetreligions, 1905; E. DIRKHEIM, Les formes élémentaires de Ia vie religieuse. 1912; A. LOISY, Essai bistorique sur le sacrifice. 1920; P. RADIN. Primitive Religkm. 1937). ' SAGACIDADE (gr. eiiouveaía; kit. Sagacitas; in. Sagacity, fr. Sagacité. ai. Sagazitãt; it. Sagacia). Perspicácia na investigação. Aristóteles identificou a S. com o ato de apreender (Et. nic, VI, 10, 1143 a 17), e Kant definiu-a como "o dom natural que consiste em julgar por an­ tecipação judiciam praevíum) onde pode ser encontrada a verdade e de aproveitar as meno­ res circunstâncias para descobri-la" (Antr, I, § 56). SAGRADO ou SACRO (gr. íepóç; lat. Sacer, in. Sacred; fr. Sacré, ai. Heilig; it. Sacro). Obje­ to religioso em geral, ou seja, tudo o que é objeto de garantia sobrenatural ou que diz respei­ to a ela. Como essa garantia às vezes pode ser negativa ou proibitiva, o S. tem caráter duplo, de santo e sacrílego: S. porque prescrito e exal­ tado pela garantia divina, ou porque proibido ou condenado pela mesma garantia (tf. DURKHKIM. les formes élémentaires de Ia vie

SALTO

religien.se, 1912). R. Otto chamou estes dois aspectos, respectivamente, de fascinante e tre­ mendo (Das Heilige, 1917). Heidegger, inter­ pretando uma poesia de Hòlderlin que identi­ fica a natureza com o S., considerou o S. como raiz do destino dos homens e dos deu­ ses: "O S. decide inicialmente, acerca dos ho­ mens e dos deuses, quem serào, como serào e quando serào" (Hrlauteerungen zu Hòlderlin. 194.3, pp. 73-74). Heidegger afirma também que "O S. nào é S. porque divino, mas o divino é divino porque S." (Ibíd., p. 58). SALTO (lat. Saltus; in. leap. fr. Saiit: ai. Sprutig; it. Salto). Termo empregado por Kierkegaarcl para indicar a "passagem qualitativa", brusca e sem mediação de uma categoria para outra ou de uma forma de vida para outra (p. ex., da vida ética para a vida religiosa) ou, em geral, de um estado para outro (p. ex., da ino­ cência para o pecado, do pecado para a fé. etc). Kierkegaard opôs essa noção de S. ã no­ ção hegeliana de mediação (v.) e ilustrou-a aproximando-a: l"do eutimema(x.)\ 2- da ana­ logia e da indução; 3" cia teoria hegeliana. lü Entimema é o silogismo contraído, no qual se omite uma premissa e se passa diretamente da premissa maior à conclusão ("Todos os animais são mortais, logo o homem é mortal") (Diário. VI A, 33). Nesse sentido, a palavra S. é encon­ trada em Kant com o mesmo uso: "S. (saltus) na dedução ou na prova é a conexão de uma premissa com a conclusão, de tal maneira que a outra premissa é negligenciada" (Logik. 1800, § 91). 2o A analogia estabelece uma relação entre coisas qualitativamente diferentes e a indu­ ção passa do particular ao universal (Diário. V A, 74). 3" A doutrina hegeliana sobre a mudan­ ça quantitativa que provoca uma mudança qualitativa é a fonte autêntica do conceito kierkegaardiano. Hegel dizia: "A água, com a mudança da temperatura, não só se torna mais ou menos quente, mas passa pelos estados só­ lido, gasoso e líquido. Esses estados diferentes nào nascem aos poucos, mas o próprio proces­ so gradativo de mudança na temperatura é por eles interrompido, e o aparecimento de um novo estado é um salto. Qualquer mudança e qualquer morte, em lugar de ser um contínuo pouco a pouco é um truncamento do pouco a pouco e um salto da mudança quantitativa para a mudança qualitativa ( Wissenschaft der Logik, I, seção III, cap. II, B; trad. it., pp. 418-419). Kierkegaard censura Hegel por haver limitado este conceito ao domínio da lógica (DerBegriff

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SANSIMONISMO

Angst, I, § 2: trad. it., p. 35 e nota). Jacobi, no entanto, usara a expressão salto mortale (em italiano) para caracterizar a passagem da fé ao conhecimento filosófico ( Werke, IV, pp. XL

ss.), ao passo que Kant utilizou a mesma ex­ pressão para indicar a passagem da razào para a fé cega (Religion. B 158). SALVAÇÃO. V. RKDENÇÀO. SAMSARA. V. BIDISMO. SANÇÃO (lat. Sanctio; in. Sanction: fr. Sanction: ai. Sanktion; it. Sanzioue). Há dois conceitos para este termo, correspondentes às duas orientações fundamentais da ética (v.). lu No primeiro, que corresponde à ética dos fins. a S. é a conseqüência agradável ou dolo­ rosa (recompensa ou castigo) que determinada ação produz em determinada ordenação (natu­ ral, moral ou jurídica). Neste caso, a natureza da S. depende da natureza da ordenação à qual se faz referência, existindo então S. naturais, morais e jurídicas, segundo a natureza da orde­ nação que a determine. 2" No segundo significado, a S. é, em geral, um estímulo à conduta. Este é o conceito de S. estabelecido por Bentham: "Os estimuladores da conduta transferem a conduta e suas conse­ qüências para a esfera das esperanças e dos te­ mores: das esperanças que nos oferecem um excedente cie prazeres; dos temores que pre­ vêem um excedente de dor. Esses estimuladores podem receber o nome de S." (Deo)itology, 1834,1, 7). Este mesmo conceito de S. foi aceito pelos utilitaristas ingleses (cf. STI/AKT MILL. Clilítarianisni, cap. III) (v. PENA). SANQUIA. Um dos grandes sistemas filosó­ ficos hindus, segundo o qual existem duas substâncias opostas, mas ambas eternas e infi­ nitas: as almas (purusba), que são múltiplas, simples e inativas, e a natureza (prakrti), que é única, complexa e dinâmica. Ksse sistema não admite a existência de uma divindade regula­ dora do mundo. Tudo nasce da natureza e vol­ ta a ela por um movimento circular que se repete indefinidamente (cf. G. Trcci, História da filosofia indiana, 1957, cap. V. e a biblio­ grafia respectiva). SANSIMONISMO (in. Saint-Simonism; fr. Saint-Simonisme; ai. Saint-Simonismus; it. Sansimonismo). Doutrina do conde Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825), exposta em numerosos textos, sendo os principais: Introduetion aux travaux scientifiques du XIX siôcle, 1807; Linduslrie, 1816-18; Nouveau christianisme, 1825, etc. Saint-Simon é o verdadeiro

SANTIDADE

fundador do positivismo social, cujo objetivo era utilizar a ciência e a filosofia nela baseada como fundamento de uma reorganização radi­ cal da sociedade humana. Na nova sociedade. 0 poder espiritual seria entregue aos cientistas, e o poder temporal, aos industriais. No Noro cristianismo, Saint-Simon definiu o surgimento da sociedade tecnocrática como retorno ao cristianismo primitivo. O S. contribuiu para a consciência da importância social e espiritual das conquistas da ciência e da técnica, incen­ tivando poderosamente o desenvolvimento industrial: ferrovias, bancos, indústrias e até a idéia de construir os canais de Suez e do Panamá couberam a sansimonistas (v. POSI­ TIVISMO). SANTIDADE (gr. ccvwXIjÇ; lat. Sauditas-, in. lloliness; fr. Saintetâ; ai. Heiligkeil: it. Sa)iiitã). Este termo tem dois significados fundamentais: um objetivo, que designa a inviolabilidade e em geral um valor a ser reconhecido e salva­ guardado; 2" um subjetivo, que designa o grau excelente e superior da virtude ou da religião como virtude. No primeiro sentido chama-se cie santo o que é sancionado ou garantido por uma lei hu­ mana ou divina: p. ex.. a santidade das leis, do juramento, etc. No segundo sentido, é chama­ do de santo o ser que realiza em si a vida mo­ ral ou religiosa no seu grau mais elevado. No primeiro sentido, Platão diz "atribuir correta­ mente a todos o que é justo e santo" (Pol.. 301 d); no segundo, ele nega que a S. consista em "fazer coisas agradáveis aos deuses" (Eut.. 6 e) e identifica a S. com o grau supremo de virtu­ de, que é a justiça (Rep., X, 615b; Leis, II, 663b, etc). Ainda neste segundo sentido. S. Tomás identificava a S. com a religião, isto é, com a mais alta virtude (S. Th.. II, 2, q. 81, a. 8). e Kant definia a S. como "a conformidade com­ pleta da vontade à lei moral". Assim, segundo Kant, a S. é "uma perfeição de que não é capaz nenhum ser racional do mundo sensível em nenhum momento de sua existência". Portanto, ela só pode ser admitida como limite do pro­ gresso infinito para a perfeição moral (Crít. R. Prática, I, II, cap. II, § 4). Por outro lado, Kant admite também a S. no sentido objetivo, que ele define como inviolabilidade. Assim, diz que "a lei moral é santa (inviolável)" (Ibid., § 5) e que "a humanidade deve ser santa para nós em nossa pessoa" (Ibid, § 5): nesses casos, obvia­ mente, a noção de S. é de valor supremo, que não pode ser ignorado. Essas observações de

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SEITA

Kant foram amplamente repetidas na filosofia moderna. SAPERE AUDE. Estas palavras de Horário (Epist. XII. 40) foram adotadas no séc. XVIII como lema do Iluminismo (" Ousa conhecer" ); neste sentido, foi citado por Kant em sua obra sobre o Iluminismo ( Was ist Atifk.lãriDig?, 1784, em Werke, ed. Cassirer, IV, p. 169). que, ao traduzi-lo, dizia: "Tem coragem de usar teu próprio intelecto". lá em 1736 essa frase fora adotada como lema por uma "So­ ciedade dos Aletófilos" de Berlim, que se inspirava em Wolff (cf. sobre os empregos dessa expressão: FRANCOVKNTURI, Rivista Storica Italiana, 1959, pp. 119 ss.). SARCASMO (gr. oapKaojióç; in. Sarcasm, fr. Sarcasmo-, ai. Sarkasmus; it. Sarcasmo). Iro­ nia unida á zombaria. O conceito é de ori­ gem estóica (cf. J. STOBKO. liei, II, 6, 222). SCHFBT .TMTNI. Termo que aparece no títu­ lo cie uma obra de J. G. Hamann (Golgotha und S.. 1784) dirigida contra Mendelssohn. 0 termo, provavelmente extraído de um texto de Lutero, significa inspiração divina e a exaltação que ela comunica, donde sua oposição simétri­ ca a "Gólgota", que é o símbolo da humilhação. (Cf. os esclarecimentos de L. SCHREINEIR no vol. II cie /. G. Hamanns Hauptschriften erklãrt, 1956; e V. VERRA, DopoKant. Ilcriticismo ne Weta pre-romantica, 1957, pp. 147 ss.). SECU N D Á R IA , PR O PO SIÇÃO (in Secondarypropositíon-, fr. Proposition secoudaire, ai. Sekundár Satz; it. Proposízione secondaria). Boole indicou com esta expressão as proposi­ ções que têm por objeto outras proposições, ao passo que chamou de primárias as proposi­ ções ([tie têm por objeto as relações entre coi­ sas (Laivs ofThought, 1854, cap. XI). SECUNDÁRIAS e PRIMÁRIAS, QUALIDA DES. V. Ql'ALinADK. SECUNDUM QUID ET SIMPLIOTER (FALÁCIA). Já identificada por Aristóteles (El. sof., 5, 167 a), é a falácia (v.) que consis­ te em passar de uma premissa, em que certo termo é tomado em sentido relativo, para uma conclusão em que o mesmo termo é tomado em sentido absoluto ("Se o nào-ser é objeto de opinião, o não-ser é"). (Cf. PEDRO HISPANO, Snmm. log., 7. 46 ss.) SEITA (lat. Secta; in. Sect-, fr. Secte, ai. Sekte, it. Setta). 1. Escola ou corrente filosófica. É nes­ te sentido que a palavra é empregada pelos escritores latinos (CÍCERO, Bnit., 31,120; QUINT., Inst. or., V, 7, 35, etc).

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SEMELHANTE

2. Grupo de pessoas que defendem com fa­ natismo ou intolerância uma crença qualquer. É este o sentido com que se usa hoje o adjetivo sectário. SELEÇÃO (in. Selectiotv, fr. Sélectioir. ai. Selektion; it. Selezíone). Escolha: entendida co­ mo procedimento consciente ou como resulta­ do de um procedimento não deliberado. Neste segundo sentido, C. Darwin falou de S. natural como procedimento através do qual a luta pela vida assegura a sobrevivência do mais apto (Orígin ofSpecies, IV, § 1). SEMÂNTICA (in. Semantics; fr. Sémantique, ai. Semantik). Propriamente, a doutrina que considera as relações dos signos com os objetos a que eles se referem, que é a relação de designação. Kste termo, proposto para tal doutrina por Bréal (Kssais de sémantiqtie. Science dessignifications, 1897), encontra justi­ ficação etimológica no verbo grego OTjjiaíveiv, introduzido por Aristóteles para indicar a fun­ ção específica do signo lingüístico, em virtude da qual ele "significa", "designa" algo. A S. seria portanto a parte da Lingüística (e mais especial­ mente da Lógica) que estuda e analisa a função significativa dos signos, os nexos entre os sig­ nos lingüísticos (palavras, frases, etc.) e suas significações. Embora seja esta a acepção mais difundida, hoje em dia, em filosofia e lógica esse termo também tem outras acepções. Por ex., A. Korzybski (Science and Sanitv) utiliza "S." para indicar uma teoria relativa ao uso da linguagem, sobretudo em relação ãs neuroses que, segundo esse autor, são efeitos ou causas de certos maus LISOS lingüísticos. Os lógicos poloneses em geral (e em particular Chwistek), que contribuíram sobremaneira para o surgi­ mento desse último ramo da lógica formal, não costumam distinguir entre proposição e enun­ ciado, entre significado lógico e forma lingüís­ tica de uma proposição, e usam esse termo para indicar a lógica formal em seu conjunto. Não obstante, foi graças ao impulso dado pelos estudos dos lógicos poloneses que, por volta de 1956, começou-se a delimitar o campo des­ sa nova disciplina. Foi graças a Ch. W. Morris e R. Carnap que no seio da semiótica (teoria dos signos em geral, dos signos lingüísticos em par­ ticular) começaram a ser distinguidos alguns aspectos fundamentais: pragmática, que estu­ da o comportamento gestual dos seres hu­ manos que fazem sinais por determinados motivos, para atingirem certos objetivos, etc. (portanto, é um ramo da psicologia e/ou da so­

ciologia); S., que, sem considerar as circunstân­ cias concretas (psicológicas e sociológicas) do comportamento lingüístico, restringe seu cam­ po de investigação â relação entre signo e re­ ferente (significatum, designatum, denotahtm); e sintática, que, abstraindo até mesmo dos sig­ nificados, estuda as relações entre os signos de determinado sistema lingüístico. S. e sintática na verdade constituem dois grandes capítulos que dividem a lógica formal pura. Desta última, porém, faz parte mais a 51. pura, que constitui cipriorias regras de um sistema sintático geral, do que a S. descritiva, que é uma investigação empírica com vistas â descrição de determina­ do sistema semântico (ou grupo de sistemas afins), portanto mais pertinente à lingüística que à lógica. Assim, a S.pura, mais que doutri­ na dos significados, é uma teoria geral da ver­ dade e da dedução nos sistemas sintáticos interpretados; por isso, distingui-la cia sintática torna-se difícil e problemático (cf. MORRIS, Foundations ofthe Theoty ofSigns. 193H, cap. IV; CARNAP, Foiuidatious of Logic and Mathematics, 1939, I, 2; Meaning and Necessity, 1957, p. 233; Introduction to Semantics. 1942; 2a ed., 1958; LINSKY, editor, Semantics and the Philosophy ofI.angtiage, 1952). Mais recentemente. Quine insistiu na di­ ferença entre a referência semântica propria­ mente dita, que seria o significar, e a refe­ rência do nomear. Tal diferença resulta, p. ex., do fato de que se pode nomear o mes­ mo objeto, como quando se diz "Scott" e "o autor de Waverley", mesmo que os significa­ dos sejam diferentes. A S. conteria, assim, duas partes: uma teoria do significado, â qual per­ tenceria a análise dos conceitos de sinonímia, significação, analiticidade, implicação; e uma teoria da referência, à qual pertenceria a aná­ lise dos conceitos de nomeação, verdade, denotação e extensão. Mas o próprio Quine ob­ serva que até agora a palavra S. foi empregada principalmente para a teoria da referência, embo­ ra esse nome fosse mais adequado à teoria do significado (From a Logical Point of View, 1953, VII, 1; II, 1). V. SIGNIFICADO. SEMASIOLOGIA. O mesmo que semân­ tica (v.). SEMELHANTE (gr. CMOIOÇ lat. Similis; fr. Semblable. in. Alik.e, Similar, ai. Ahnlicb; it. Simile). Aquilo que tem qualquer determina­ ção em comum com uma ou mais coisas. Aristóteles distinguiu os seguintes significados do termo: 1Q são S. as coisas que têm a mesma

SELEÇÃO

SEMENTES

forma, ainda que sejam substancialmente di­ ferentes; neste sentido sào S. um quadrado maior e um menor, bem como duas linhas retas desiguais; 2" são S. as coisas que têm a mesma forma, mas estão sujeitas a variações quantitativas, quando suas quantidades são iguais; 3" são S. as coisas que têm em comum a mesma afeição, como p. ex. o branco; 4Üsào S.. as coisas cujas afeições iguais são mais nu­ merosas que as afeições diferentes (Met., X, 3. 1054 b 3). É graças ao primeiro significado que em geometria as figuras são chamadas de S. (cf. EUCUDES, KL, VI, def. 1, 3; def. 11, etc). Na tradição posterior, a semelhança foi entendida especialmente em relação à qualidade comum (PKDKO HISPANO, Summ. log., 3. 29), mas às vezes também com relação à forma (S. TOMÁS, Contra GenL. I, 29; cf. S. Th.. I, q. 4a 3). Mais genericamente, Wolff dizia que "são S. as coisas que são idênticas naquilo em que deveriam distinguir-se uma da outra" (Ont., § 195). De­ terminações desse tipo definem pouco e di­ zem apenas que os critérios de semelhança podem ser variados indefinidamente; o im­ portante é que sejam declarados explicitamen­ te em cada caso. Foi só na matemática moderna que a noção de semelhança recebeu definição diferente, graças à teoria dos conjuntos. Sào considera­ dos S. os conjuntos que apresentem relação de termo a termo. Russell, p. ex., diz: "Diz-se que uma classe é S. a outra quando existe uma rela­ ção de termo a termo, em que uma classe é do­ minante enquanto a outra é o dominante inver­ so" (Introductioti to Mathematical Philosophy, cap. II, trad. it., p. 27). Esta noção tem grande importância para definição matemática do infi­ nito (v.). SEMENTES (gr. Ü7iép|!0CTa; lat. Semina). Assim foram chamados freqüentemente os ele­ mentos últimos das coisas. Anaxágoras foi o primeiro a usar esse termo para designar as partículas que Aristóteles chamou de homeomerias (Fr. 4, Diels). Esse termo foi usado de­ pois por Epicuro (Fr. 250, Uesener) e por Lucrécio (Derer. nat., VI, 201 ss.; VI, 444, etc). A mesma metáfora está presente na noção estóica de razões seminais (v.). SEMIOSE (in. Semiosis). O processo em que algo funciona como signo, que é o objeto da semiótica, no sentido de Morris (Fonndations of the Theory ofSigns, 1938, II, 2). Essa palavra é equivalente à expressão compor­ tamento gestual (por sinais), que o próprio

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SENSAÇÃO

Morris preferiu no volume Signs, Language and Behavior, 1946, I, 2 (v. SIGNO). SEMIÓTICA (gr. xò GTMCOXIKÓV; in. Semiotic, fr. Sémiolique, ai. Semiotik. it. Semiótica). Este termo, usado inicialmente para indicar a ciência dos sintomas em medicina (cf. GALENO, Op., ed. Kün, XIV. 689), foi proposto por Locke para indicar a doutrina dos signos, correspon­ dente à lógica tradicional (Ensaio, IV, 21, 4); depois foi empregado por Lambert como título da terceira parte do seu Novo Organon (1764). Na filosofia contemporânea, E. Morris utilizou o conceito de S. como teoria da semiose (v.), mais do que do signo, dividindo a S. em três partes, que correspondem às três dimensões da semiose: semântica, que considera a rela­ ção dos signos com os objetos a que se refe­ rem; pragmática, que considera a relação dos signos com os intérpretes; e sintática, que con­ sidera a relação formal dos signos entre si (Foundations of the lheory ofSigns, 1938, II, 3). Aceita por Carnap (Foundations of Logic and Mathematics. 1939, I, 2), essa distinção difundiu-se amplamente em filosofia e lógica contemporâneas (V. PRAGMÁTICA; SKMÂNTICA; SIN­ TAXE). SEM-LEI (it. eslege). Viço dá esse nome ao estado que "a providência divina impôs aos fe­ rozes e violentos que se conduzissem para a humanidade e se organizassem em nações, despertando neles uma idéia eonfusa de divin­ dade... E assim, por temor a tal divindade ima­ ginada, começaram a organizar-se de algum modo" (Scienza nuova, dign. 31). Segundo Viço esse tempo de estado prova a função que a religião exerceu no surgimento da sociedade civilizada. SENSAÇÃO (gr. aía6r|oiç; lat. Sensus, Sensio; in. Sensation; fr. Sensation; ai. Empfindnng; it. Sensazione). Este termo tem dois sig­ nificados fundamentais: 1Qum significado generalíssimo, em virtude do qual designa a totali­ dade do conhecimento sensível, ou seja, todos e cada um de seus elementos; 2e um significa­ do específico, em virtude do qual designa os elementos do conhecimento sensível, ou seja, as partes últimas, indivisíveis, de que suposta­ mente é constituído. Este segundo significado aparece somente na filosofia moderna. Io Para Aristóteles esse termo significa: a) as qualidades elementares, como branco, preto, doce, etc (Dean., 111, 2 passim); b) a percep­ ção do objeto real, chamada de S. em ato, que coincide com a realidade do objeto: pelo que

SENSAÇÃO

uma sensação auditiva em ato é idêntica ao som em ato {Ibid., III, 2, 425 b 26); c) a facul­ dade de sentir, em geral, ou senso comum (v.), ao qual atribui a função de perceber tudo o que c sensível e as próprias S. (ou seja, sentir o sen­ tir) (Desomno, 2, 445 a 17; Dean, III, 2, 246 b 11; 415 b 12); d) o sentido específico, como a audição, a visão, etc. (Desomno, 2, 445 a 14; De an, III, 2, passim); e) o órgão do sentido, chamado mais freqüentemente de sensório (De part. an, II, 10, 657 a 3; IV, 10, 686 a 8; De sensu, 3, 440 a 19). Esta terminologia mantémse por muito tempo na história do pensamento ocidental, até que, com Descartes, o conceito de S. começa a ser distinguido nitidamente do de percepção. 2a Descartes especificou mais o significado de S., entendendo por S. o simples advertir "movimentos provenientes das coisas'1; distinguiu-a de percepção, que é a referência à coisa externa (Pass. de Vâme, 1, 23). A partir desta distinção, que se consolidou cada vez mais de­ pois de Descartes, especialmente graças à esco­ la escocesa, a S. foi reduzida a unidade ele­ mentar do conhecimento sensível, o que Locke chamou de "idéia simples"; era considerada material de conhecimento, ao passo que a fun­ ção cognitiva propriamente dita, vale dizer, a referência ao objeto, cabia à percepção (v.). Foi esse o conceito aceito e difundido por Kant, que diz: "A S. é o elemento puramente subje­ tivo da nossa representação das coisas que estão fora de nós, mas é propriamente o elemento material dessa representação, o real. aquilo com que é dado algo de existente" (Crít. do Juízo, Intr., § VII; cf. Crít. R. Pura, § I; Dialética transcendental, livro I, seç. I: "Uma percepção que se refira unicamente ao sujeito, como mo­ dificação de seu estado, é S."). O caráter pri­ mordial ou elementar da S. também era acen­ tuado por Hegel, embora de maneira arbitrária e fantasiosa: "A S. é a forma da agitação obtusa do espírito em sua individualidade destituída de consciência e de intelecto." Em certo senti­ do, é verdadeira, segundo Hegel, a asserção de que "tudo está na S.", com o sentido de que ela é fonte e origem de tudo; mas fonte e origem significam apenas a primeira e mais imediata maneira como algo aparece, e a S. não se justi­ fica por si {Ene, § 400). O conceito de S. como elemento simples e último do conhecimento foi primeiramente aceito e ilustrado por filósofos, sendo depois utilizado como fundamento da psicologia na.s-

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SENSAÇÃO

cente pelos primeiros estudiosos que cultiva­ ram esta ciência. Condillac foi o primeiro a darse conta do alcance desse conceito. Se a S. é o elemento último do conhecimento, deve ser possível reconstituir, a partir dela, todo o mun­ do do conhecimento ou da atividade espiritual humana. Foi essa a demonstração que ele ten­ tou dar no Tratado das S. (1754), em que adotou como fundamento o princípio de que "o juízo, as reflexões, as paixões e, numa palavra, todas as operações da alma não passam da própria S. que se transforma de várias maneiras" (Traité dessensations, Compêndio da primeira parte). Mesmo polemizando contra o sensacionismo, Maine de Biran reconhece o caráter simples e elementar da S. {CEuvres, ed. Navine, II, p. 115); esse mesmo caráter da S. é reconhecido por Herbart (Allgemeine Metaphysik, 1828, II, p. 90). O conceito de caráter elementar da S. foi to­ mado como base da psicologia por H. Spencer, que afirmava: "as S. são estados de consciência primariamente indecomponíveis" (Principies of Psychology, 1855, § 211). Esse princípio era consagrado por G. Fechner em Elemente der Psychopbysik (1860) e por Wundt, que definia as S. explicitamente como "os estados de cons­ ciência que não podem ser divididos em partes mais simples" (Grundzüge derphysiologischen Psychologie, 1893, 4- ed., p. 281). Tornou-se lu­ gar-comum em psicologia, que em sua primei­ ra fase foi atomista e associacionista (v. PSICO­ LOGIA). Por outro lado, o modo como os filósofos interpretaram a S. quase sempre pressupôs um caráter elementar ou atômico. Helmholtz elimi­ nou dela o caráter representativo, consideran­ do-a simples sinal das coisas, mas reconheceu seu caráter elementar (Vortrage undReden, I. 1884, p. 393). Husserl considerava as S. como componentes elementares das experiências re­ presentativas (Logische Untersuchungen, II, p. 714), e Mach valeu-se de seu caráter elementar para considerá-las neutras (nem objetivas, nem subjetivas), portanto como componentes sim­ ples de qualquer objeto físico ou psíquico (Analyse der Empfindnngen, 1903, 4a ed., pp. 14, 17, etc). As experiências elementares de que R. Carnap falava em Visão lógica do munt/osào, mais uma vez, as S. (DieLogischeAufbaii der Welt, 1928, § 67). Quando o gestaltismo (v. PSICOLOGIA) elimi­ nou o atomismo e o associacionismo da antiga psicologia, o conceito de S. tornou-se pratica­

SENSACIONISMO

mente inútil. A psicologia fala ainda de S. para indicar sons, cores, etc, mas como esse mate­ rial é dado ao homem somente em relação com o objeto externo, ou seja, na percepção, é esta última que passa a interessar à psicologia, tor­ nando-se inútil o conceito de S. como unidade psicológica elementar. SENSACIONISMO (in. Sensationalism, fr. Sensualísme, Sensationisme. ai. Sensualismus-, it. Sensismo). Doutrina que reduz conhecimen­ to a .sensação e realidade a objeto da sensação. Kant chamava Epictiro de sensacionista (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. IV). Nas fi­ losofias modernas, esse nome foi reservado às doutrinas segundo as quais todos os conheci­ mentos derivam dos sentidos: essa tese foi en­ trevista por Hobbes (Leviatò., f. í), mas foi só Condillac que procurou demonstrá-la, dizendo que das sensações desenvolvem-se gradativamente os conhecimentos e as próprias facul­ dades humanas (Traité cies sensalions, 1754). Esse termo costuma ser aplicado a doutrinas desse tipo. É raro (e impróprio) que ele seja aplicado ao empirismo de cunho Iockiano (que admite, ao lado da sensação, uma outra fonte de conhecimento, que 6 a reflexão). SENSIBILIDADE (in. Sensibility, Feeling; fr. Sensibilité. ai. Sinnlíchkeit; it. Sensíbilitã). 1. Esfera das operações sensíveis do homem, con­ siderada em seu conjunto, o que inclui tanto o conhecimento sensível quanto os apetites, os instintos e as emoções. 2. Capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos. P. ex., "a S. dos vegetais". 3. Capacidade de julgamento ou avaliação em determinado campo. P. ex., "S. moral", "S. artística", etc. 4. Capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar. Nesta acepção, diz-se que é sensível quem se comove com os outros, e insensível quem se mantém indiferente às emoções alheias (V. SIMPATIA). SENSITIVO (in. Sensitiva fr. Sensitif, ai. Sensitii:). Sensível no 2- significado. Às vezes, quem é extremamente sensível. SENSÍVEL (gr. aioGrixóç; lat. Sensibilisin. Sensible, fr. Sensible; ai. Sensibel; it. Sensíbile). 1. Aquilo que pode ser percebido pelos sentidos. Nesta acepção, "o S." é objeto do co­ nhecimento S., assim como o "inteligível" é objeto do conhecimento intelectivo (ARISTÓTF.LES, Dean., II, 6, 418 a 7; KANT, Crít. K. Pura, Anal. dos princ, cap. III, Nota). Aristóteles distinguiu os S.própriostíos S. comuns(v. SFNSO COMUM),

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SENSO COMUM

e o S. acidentalào S. por si, na medida em que o primeiro é percebido acidentalmente, como acontece quando se percebe o branco ao se perceber que uma pessoa é branca (De An, II, 6. 418 a 16). 2. Aquilo que tem a capacidade de sentir. Nesta acepção, os animais são chamados de "seres S.", ou diz-se que ".ré particularmente S. a algo". Em inglês, é chamado de S. (sensible) quem possui bom senso ou, em geral, é capaz de julgar corretamente. 3. Quem tem capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar (v. SIMPATIA). SENSO (in. Sense; fr. Sens; ai. Siri n; it. Seiiso). Capacidade de julgar em geral. Com esta significação, a palavra é empregada nas se­ guintes expressões: bom S., que Descartes con­ sidera sinônimo de razão e define como "faculdacie de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso" (Discours, I); S. moral, que Shaftesbury (Characteristics of Men, 1111) e Hutchinson (System of Moral Philosophy, 1755) considera­ ram capacidade instintiva cie avaliação moral, portanto como guia infalível do homem; S. raciorialou S. lógico, que Romagnosi considerou corno atividade que julga e organiza as sensa­ ções (Che cos'è Ia mente sana. 1827, § 10). Com esta mesma acepção do termo relaciona-se a expressão S. comum, à qual foi dedicado uni verbete à parte, bem como expressões como S. pratico, S. financeiro, S. artístico, etc, que de­ signam a capacidade de julgar ou de orientar-se nos campos especiais, indicados pelo adjunto adriominal. SENSO COMUM (gr. Koivr) aíc0r|£atç; lat. Seiisus communis; in. Common sense; fr. Sens coinmuri; ai. Gemeinsinn; it. Senso comune). 1. Aristóteles designou com esta expressão a ca­ pacidade geral de sentir, à qual atribuiu duas funções: 1- constituir a consciência da sensa­ ção, que é o "sentir o sentir", porquanto tal consciência não pode pertencer a um órgão especial do sentido, como, p. ex., à visão ou ao tato (De somno, 2, 455 a 13); 2- perceber as determinações sensíveis comuns a vários senti­ do,';, como o movimento, o repouso, o aspecto, o tamanho, o número e a unidade (De an, III, I, 425 a 14). Essa noção foi admitida também pelos estóicos, que atribuíam ao S. comum as mesmas funções (J. STOBHO, liei, I, 50). Reto­ mada por Avicena (Dean., III, 30), passou para a escolástica medieval (cf. S. TOMÁS, S. Th, I, q. 78, a 4) e mais tarde também foi comumente aceita por todos os aristotélicos e pelos escrito­

SENSO COMUM

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res que se inspiraram de algum modo na psico­ logia aristotélica. 2. Nos escritores clássicos latinos, essa ex­ pressão tem o significado de costume, gosto, modo comum de viver ou de falar. Neste senti­ do, Cícero adverte que no orador é falta grave "abominar o gênero vulgar do discurso e o cos­ tume do S. comum" (Deor, I, 3, 12; cf. 2, 16, 68), e Sêneca afirma que "a filosofia visa a de­ senvolver o S. comum" (h'p., 5, 4; cf. 105, 3). Viço expressava numa fórmula lapidar o pen­ samento tradicional dos autores latinos ao afir­ mar: "O S. comum 6 um juízo sem reflexão, comumente sentido por toda uma ordem, todo um povo, toda uma naçào, ou por todo o gêne­ ro humano" (Ciência nova, 1744, Dignidade 12), e ao atribuir ao S. comum a função de con­ firmar e determinar "o arbítrio humano, incertíssimo por sua própria natureza, (...) no que diz respeito às necessidades ou utilidades hu­ manas" {Ibicl., Dignidade 11). Essa expressão teve o mesmo significado na Escola Escocesa. Km Investigação sobre o espírito humano se­ gundo osprincípios do senso comum (1764). T. Reid usa essa expressão para designar as cren­ ças tradicionais do gênero humano, aquilo em que todos os homens acreditam ou devem acreditar. Para essa escola, o S. comum é o cri­ tério último de juízo e o princípio que dirime todas as dúvidas filosóficas. Hoje, essa expressão costuma ter significado análogo, embora sem a conotação elogiosa atri­ buída pelos filósofos escoceses. Dewey. p. ex., ressalta o caráter prático do S. comum: "Visto que os problemas e as indagações em torno do ,S. comum dizem respeito às interações entre os seres vivos e o ambiente, com o fim de realizar objetos de uso e de fruição, os símbolos em­ pregados são determinados pela cultura cor­ rente de um grupo social. Eles formam um sis­ tema, mas trata-se de um sistema de caráter mais prático que intelectual. Esse sistema é constituído por tradições, profissões, técnicas, interesses e instituições estabelecidas no gru­ po. As significações que o compõem são efeito*, da linguagem cotidiana comum, com a qual os membros do grupo se intercomunicam" {Logic, VI, 6; trad. it., p. 170). 3. Na doutrina de Kant o S. comum é oprincípio do gosto, da faculdade de formar juí­ zos sobre os objetos do sentimento em geral. "Tal princípio só poderia ser considerado S. co­ mum, que é essencialmente diferente da inteli­ gência comum, que às vezes também é chama­

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da de S. comum (sensus communis), pois esta não julga conforme o sentimento, mas con­ forme conceitos, embora se trate em geral de conceitos obscuramente representados" (Crít. do Juízo, § 20). A inteligência comum (Gemeine Verstand) neste trecho é o S. comum dos escritores latinos e da escola escocesa, que Kant considera inútil em filosofia (Prol, A 197); essa também é a opinião de Hegel e de outros (cf. R. CAXTO.M, Trágico e senso comune, pp. 3 a ss.). SENSORIAL (in. Sensory, fr. Seusorieí, ai. Sensorisch; it. Sensoriale). Que concerne ao sensório, ^aos órgãos dos sentidos. SENSÓRIO (gr. orioStípiov; lat. Sensorium). Na terminologia aristotélica, o órgão de um sentido (Dean, II, 9. 421 b 32; Depart. an, II, 10, 657 a 3. etc): aquilo que hoje é chamado de receptor. SENSUALIDADE (lat. Sensualitas: in. Sen­ sualily; fr. Sensualité-, ai. Sínulichkeit; it. Sensualità) . Tendência a entregar-se aos prazeres sensíveis. SENSUALISMO (fr. Sensualismo). 1. A ati­ tude que consiste em atribuir uma importância excessiva aos prazeres dos sentidos. Em tal sentido a palavra é usada por Berkeley (Aleiphron, II. 1 6). 2. O mesmo que sensacionismo (v.). Kste emprego, que só aparece raramente em alguns escritores italianos e franceses do século passa­ do, é devido à sugestão do termo alemão cor­ respondente a sensacionismo: Sensualismus. SENTENÇA (lat. Sententia; in. Sentence, ai. Ausspruch; it. Sentenza). juízo, opinião ou má­ xima: p. ex., "as S. de Epicuro" (cf. CÍCERO, De nat. deor, 1, 30, 85). Na terminologia medieval, além do significado genérico, esse termo assu­ miu outro mais específico, de definição autênti­ ca do significado das Escrituras Sagradas e, em geral, de "concepção definida e certíssima". Uma coletânea de S. constituí uma Summa: a mais famosa foi a de PEDRO LOMBARDO, IJbri qtiattuorsententiarum, composta entre 1150 e 1152 (cf. M, GRABMAN, Die Geschichte der scholastischen Methode, II, pp. 21 ss.). SENTIDO (gr. cda6r|Giç; lat. Sensus; in. Sense, fr. Sons-, ai. Sínn; it. Senso). 1. Faculdade de sentir, de sofrer alterações por obra de objetos exteriores ou interiores. Essa foi a definição da­ da por Aristóteles (De an, II, 5, 416 b 33) que permaneceu na tradição filosófica. (S. TOMÁS, S. Th, I. q. 78, a. 3; DUNS Scoi, In Sent, I, d 3. q. 8; WOLFF, Psvchol. emp.. § 67; KANT, Antr, I,

SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO

§ 7, etc). Nesta acepção, o S. compreende tanto a capacidade de receber sensações quanto a consciência que se tem das sensações e, em geral, das próprias ações: capacidade que na filosofia moderna é chamada mais freqüente­ mente de S. interno ou reflexão (cf. LOCKE, En­ saio, II, I, 4; KANT, Crít. R. Pura, Estética, § 1). e às vezes de 5, fntimo(WÍAiNV. DE BIRAN, Journal Intime, I, pp. 13-14; CEuvres, ed. Tisserand, p. 15, etc.) ou consciência (v.). 2. Sensação ou conjunto de sensações, como quando se diz "os S. mostram que...", ou então apetites sensíveis, em especial os desejos sexuais. 3. Órgãos dos S., aquilo que se chama mais propriamente de sensório, ou. na terminologia moderna, receptor. 4. O mesmo que significado (v.). SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO, FA­ LÁCIA DO. V. COMPOSIÇÃO; DlVISÀO. SENTIMENTAL (in. Sentimental: fr. Senti­ mental; ai. Sentimentalisch; it. Sentimentale). O significado deste adjetivo, no uso comum, não tem relação com o significado geral de sentimento, mas costuma referir-se a uma emo­ ção particular, o amor. "Problemas $.", "crises S.", etc. são expressões que se referem a situa­ ções em que está em jogo o amor, mais preci­ samente o amor sexual. Freqüentemente esse adjetivo também inclui referência ao amor em sentido romântico (v.), como acontece no títu­ lo de dois romances famosos: A viagem S. de Sterne e Educação S. de Flaubert. Em sentido específico, esse adjetivo foi em­ pregado por F. Schiller para indicar uma e.spécie de poesia, em oposição à poesia ingênua (v. INGENUIDADE). SENTIMENTALIDADE ou SENTIMENTALISMO (in. Senti mentalism, fr. Sentimentalisme; ai. Sentimentallitãt; it. Sentimentalitã ou Sentimentalismo). Consiste em entregar-se às emoções próprias ou alheias, em exaltar-se com elas desproporcionalmente à força, aos li­ mites e à função dessas emoções. Kant viu no sentimentalismo a fraqueza de deixar-se domi­ nar, até contra a vontade, pela participação no estado emocional de outrem. Por isso, opôs à S. o autodomínio, que possibilita a sutileza de sen­ timentos graças à qual as emoções alheias não são julgadas segundo a força de quem julga, mas segundo a fraqueza de quem sente. Diante do autodomínio, é ridículo e pueril deixar-se dominar pela emoção alheia, compartilhando-a indiscriminadamente (Antr., I, § 62). Na realida­

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de, porém, existe sentimentalismo mesmo quando alguém se entrega às suas próprias emoções ou à sua manifestação externa, ilu­ dindo-se quanto à sua força e consistência, e aumentando sua importância. SENTIMENTO (in. Sentiment; fr. Sentiment; ai. Gefühl; it. Sentimento). Esse termo pode significar: Ia o mesmo que emoção, no signifi­ cado mais geral, ou algum tipo ou forma supe­ rior de emoção. Para este significado, v. EMOçÀO; 2- pressentimento, no sentido em que se usam frases como "sinto que algo não vai bem" para dizer que se tem uma opinião que não é possível justificar naquele momento; quanto a esse sentido, v. OPINIÃO; 3U fonte de emoções, como princípio, faculdade ou órgão que presi­ de às emoções, e do qual elas dependem, ou como categoria na qual elas se enquadram. É com este último sentido que essa palavra é comumente empregada hoje, p. ex. quando se opõe o "S." à "razão" (considerada como órgão ou faculdade de conhecimentos objeti­ vos), em frases como "não se faz política com sentimentos". Este emprego é justificado por uma tradição filosófica relativamente recente, só encontrada na Idade Moderna. Isto porque a filosofia antiga e a medieval não conheceram o S. como fonte ou princípio das afeições, afe­ tos ou emoções e portanto não usam essa no­ ção como categoria para organizar e classificar as afeições da alma. Nem a psicologia platôni­ ca, que distingue uma alma racional, uma concupiscível e uma irascível (Rep., IV, 12-15), nem a psicologia aristotélica, que distingue um prin­ cípio vegetativo, um sensitivo e um intelectivo (De an, II, 2), reconhecem uma fonte e um princípio autônomos das emoções: estas são repartidas entre as várias divisões ou princípios admitidos, sem exclusão do prin­ cípio racional ou intelectivo. O mesmo acon­ tece com a filosofia medieval, que segue as pegadas da psicologia aristotélica. Na reali­ dade, o reconhecimento de Lima fonte ou princípio autônomo das emoções relaciona-se com o reconhecimento da subjetividade huma­ na como algo irredutível a um conjunto de ele­ mentos objetivos ou objetiváveis ou a modifica­ ções passivas produzidas por tais elementos. Este reconhecimento caracteriza os primórdios da filosofia moderna e é, como todos sabem, uma contribuição do cartesianismo. Os pressupostos desse reconhecimento de­ vem ser buscados na linha de pensamento que

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vai de Pascal aos moralistas franceses e ingle­ ses (La Rochefoucauld, Vauvenargues, Shaftesbury e Hume) e chega até Rousseau e Kant, culminando neste último: essa é a linha que le­ vou à elaboração do conceito moderno cie pai­ xão como emoção dominante e à noção de gosto (v.) que está intimamente relacionada com a de sentimento. "S.", "coração", "espírito de fineza" foram expressões usadas por Pascal para indicar o princípio ou o órgão das emo­ ções, que é diferente do órgão ou do princípio dos raciocínios e irredutível a este. Pascal diz: "Os que estão acostumados a julgar com o S. nada entendem das coisas cio raciocínio por­ que logo querem penetrar a questão com um lance de olhos, desacostumados que estão a buscar princípios. Os outros, ao contrário, que estão acostumados a raciocinar por princípios, nada entendem das coisas do S., porque bus­ cam princípios, e não podem apreendê-los apenas com um lance de olhos" (Pensões, 3). Ao S. ou ao coração deve-se a mesma certeza que têm os primeiros princípios do raciocínio ("Os princípios são sentidos, as proposições são deduzidas, e em cada uma dessas duas for­ mas há certeza, embora obtida por caminhos diferentes'); ao S. e ao coração 6 atribuída a verdadeira religiosidade, da qual o raciocínio pode somente aproximar-se e da qual só pode dar expectativas (Ibid.. 282). Assim, os moralis­ tas ingleses e franceses acima citados contribuí­ ram para a elaboração e o reconhecimento da categoria do sentimento, por terem acentuado o papel dominante das emoções na vida do ho­ mem. Finalmente, é preciso lembrar que a "volta à natureza", proclamada por Rousseau como meio capaz de libertar o homem dos males produzidos pelos artificialismos sociais e de reconduzi-lo à bondade original, é entendida por ele como volta ao primitivo S. natural. O S. natural é um instinto, uma tendência originária que o conduz para o bem; quando não é altera­ da, afetada ou bloqueada, conserva o homem no bem e no bem permite-lhe progredir. Nestas famosas teses de Rousseau talvez se encontre a primeira aparição da categoria do S. como prin­ cípio autônomo da vida espiritual. Mas o pri­ meiro a falar em termos filosóficos sobre essa categoria e a incluí-la numa nova subdivisão dos pocleres ou das faculdades espirituais foi provavelmente Kant. Enquanto Wolff (e depois dele os wolffianos) admitia somente duas ativi­ dades fundamentais do espírito humano, co­ nhecimento e volição, objetos dos dois ramos

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fundamentais da filosofia, o teórico e o prático, KANT reconheceu um terceiro poder ou faculda­ de, o sentimento. "Todos os poderes ou facul­ dades da alma — diz KANT {Crít. do Juízo, Intr.. § III) — podem ser reduzidos a três, que não são redutíveis a um princípio comum: o poder cognitivo, o S. do prazer e da dor e o poder de desejar." O S. de prazer ou dor deve ser inse­ rido entre o poder cognitivo e o poder de de­ sejar; a ele cabe um princípio autônomo, que Kant chama de faculdade de ju íz o (v.). Assim, o S. 6 o campo de crítica da faculdade de juízo, assim como a faculdade de desejar 6 o campo de crítica da razão prática. Kant caracteriza o S. como o aspecto irredutivelmente subjetivo da representação. Diz (Ibid., § VII): "Aquilo que há de subjetivo numa representação e que não pode de modo algum tornar-se artigo de co­ nhecimento é o prazer ou a dor que estão liga­ dos á representação; isso porque através deles nada conheço do objeto da representação, ain­ da que eles possam ser efeito de algum conhe­ cimento." Em conformidade com esta reivindi­ cação cie autonomia do S. como categoria espiritual, em sua Antropologia pragm ática, Kant divide a primeira parte, dedicada ao "mo­ do de conhecer interior e exterior do homem", em três livros, dedicados respectivamente ao poder cognitivo, ao S. cie prazer e dor e ao poder apetitivo. Por sua vez, o segundo livro é dividido em duas partes principais, a pri­ meira das quais dedicada ao "S. de deleite e prazer sensível na sensação do objeto"; a se­ gunda, dedicada ao "S. do belo, que é em parte sensível e em parte intelectual, sendo próprio da intuição reflexa ou do gosto". Esta segunda parte resume de forma mais acessível os resul­ tados da Critica do Juízo; a primeira contém uma série de observações sobre o S. de prazer e dor em relação com os dados dos sentidos (cf. também M et. der Sitten, Intr. 1, nota) (v. EMOÇÃO). Com isso, o S. ingressara oficialmente na fi­ losofia como categoria independente. O pró­ prio Hegel aceita-o como determinação do espírito subjetivo e define-o como ''uma afei­ ção determinada", mas determinada de mo­ do simples, isto é, de tal modo cjue, mesmo quando seu conteúdo é sólido e verdadeiro (o que nem sempre acontece), ele assume a for­ ma de "particularidade acidental". Hegel acres­ centa: "Quando, ao discutir sobre uma coisa, alguém não recorre à natureza e ao conceito da coisa, ou pelo menos à razão e à universalida­

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de do intelecto, mas a seu S., nada se pode fa­ zer; porque desse modo essa pessoa está se recusando a aceitar a comunhão da razão e fe­ cha-se em sua subjetividade, em sua particulari­ dade" (Ene, § 447). Nesse aspecto, Hegel opõe-se à tendência literária do Romantismo, cuja bandeira foi a descoberta e a exaltação do S., considerando-o a forma mais íntima e ao mesmo tempo mais livre de vida espiritual. Para os românticos só pode ser artista quem — como diz Friedrich Schlegel (kleen, § 13). — "tem uma religião própria, uma intuição origi­ nal do infinito". Essa intuição original do inlinito é aquilo que os românticos chamam de sentimento. Em outras palavras, S. 6 a manifes­ tação do Infinito, de Deus, â intimidade da consciência. Portanto, as características que de­ finem o S. na concepção romântica são dois: 1° seu caráter de extrema subjetividade, consti­ tuindo o que há de mais subjetivo no sujeito; 2y sua capacidade de revelar o Princípio infinito da realidade. Km virtude deste segundo aspec­ to, o S. é entendido pelos românticos, alternada ou concomitantemente, como órgão da arte, da filosofia e da religião. Schleiermacher conside­ rou-o órgão da religião, afirmando que "só o S. revela o Infinito" (Reden, II; trad. it., p. 43), tese reexposta e defendida freqüentemente de­ pois disso. Em tempos mais recentes foi consi­ derado órgão da arte por Gentile (Filosofia da arte. 1931), porquanto a arte é "a subjetivi­ dade pura, íntima e inexprimível do sujeito pensante", e o S. é precisamente isso. Na con­ cepção de arte de Gentile, o S. conserva todas as conotações românticas: é o infinito espiritual na própria forma de sua infinidade, livre de determinações conceptuais necessitantes, cons­ tituindo "a subjetividade pura do sujeito" (Jbid.. pp. 176 ss.); como tal, a infinidade do S. é a infinidade do homem em sua universalidade, estando portanto acima e além da diversidade empírica dos homens, considerados individual­ mente" (Ibíd., p. 205). Mas a outra corrente do Romantismo oitocentista, o positivismo, tam­ bém não ficou alheia à exaltação do sentimento. Ao delinear as características do futuro regime sociocrático (dominado e dirigido por uma corporação de filósofos positivistas), Comte afirmou que esse regime será dominado mais pelo sentimento que pela razão e que, portan­ to, atribuirá papel importante às mulheres, que representam o elemento afetivo do gênero humano (Politiquepositive, I, pp. 204 ss.). Isto porque a moral dessa sociedade futura será o

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altruísmo, mas um altruísmo tão desenvolvido que criará inclinações e instintos benévolos que, tanto quanto o sentimento, agem sem necessi­ dade de reflexão. As preocupações religiosas e morais de Comte levaram-no a insistir no valor do S. e a exaltá-lo à maneira romântica. Mas fora do Romantismo, e contra ele, o S. foi aceito como categoria fundamental da vida espiritual, como uma das "faculdades" ou "poderes" do espírito. É curioso notar que, enquanto Kant admitia a tripartiçâo conhecime-ntos-vontade-S. com base apenas num mo­ desto mas válido motivo metodológico (porque os três grupos de fenômenos não são redutíveis a um princípio único), logo depois dele es.sa tripartiçâo começa a serdogmatizada: para Fries ela já é resultado imediato cia auto-observacâo (Anthropologie. I, 1837, § 4). Herbart. conquanto negasse a doutrina cias faculdades da alma, considerando-as "conceitos de classe" segundo os quais os fenômenos estudados se organizam, nem por isso deixou cie incluir en­ tre tais conceitos de classe o conceito de senti­ mento. Para Benecke. o S. era a base da moral e cia religião; esta última originar-se-ia do S. de dependência em relação a Deus, justificado pelo caráter fragmentário da vida humana e pela exigência de completitude, que só pode vir de Deus (System der Metaphysik, und Religionspbi/osophie, 1840). Para Rosmini o S. era a consciência que cada um tem de si, ponto de partida e base para o conhecimento da alma (Psicologia, § 69). A tripartiçâo das faculdades do espírito em conhecimento, sentimento e vontade mantevese como esquema praticamente constante na filosofia do séc. XIX. Para sua difusão muito contribuiu a obra de Cousin, que estabeleceu a correspondência entre essa tripartiçâo e três va­ lores absolutos: o Verdadeiro, o Belo e o Bem (Ou rrai, dit bean et du bien foi título da obra mais conhecida de Cousin, 1853). Se deixar­ mos de lado as críticas de caráter metodológico sobre a oportunidade de semelhantes esque­ mas rígidos de subdivisão no estudo dos fenô­ menos espirituais, podemos dizer que essa tripartiçâo ainda hoje é a mais difundida, ten­ do-se incorporado ao modo de pensar comum. Exceção é Croce. que reconduziu as formas do espírito às duas formas admitidas por Wolff: a teórica e a prática, criticando o S. como catego­ ria espúria e ambígua. Para Croce, S. era uma palavra "usada para denominar uma classe de fatos psíquicos constituída segundo o método

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naturalista e psicológico": noção que várias ve­ zes exerceu função negativa e crítica em estéti­ ca, historiografia, lógica e ética, pois contrapu­ nha às interpretações demasiado limitadas e estreitas tudo o que havia de "indeterminado" ou "semideterminado" fora dessas interpre­ tações. O testemunho a que recorria para rejei­ tar essa categoria é o da observação interior: "Quem quiser, investigue seu espírito e tente indicar um ato sequer que, ao contrário dos indicados acima latos teóricos e práticos], cons­ titua algo novo e original, e mereça a denomi­ nação especial de S." (Fil. da pratica, I, I, c. 2). Mas esse tipo de testemunho é extremamente variável e infenso a qualquer verificação; para Fries, p. ex., e para muitos outros, a distinção entre S. e outras atividades espirituais era tão claramente provada pelo testemunho interior quanto desmentida para Croce. Na realidade, o uso de tais categorias, como S., atividade teóri­ ca, atividade prática, só pode ser discutido, portanto submetido a limites e regras, com base na análise precisa de um grupo delimitável de fenômenos: análise que Croce nem sequer ten­ tou. Contudo, na filosofia contemporânea não faltam análises desse tipo, que figuram entre suas contribuições menos discutíveis para o co­ nhecimento do homem em seu mundo. Uma dessas contribuições — das mais importantes — é a de Max Scheler, que se referiu às pala­ vras de Pascal, "o coração tem razões que a ra­ zão desconhece", mas sem interpretá-las no sentido freqüentemente encontrado na filosofia moderna e contemporânea (v. CORAÇÃO), de que a razão deveria ter certa condescendência para com o S. e tentar corresponder às suas exigências, porém no sentido de que o S. tem suas próprias leis, seus próprios objetos e cons­ titui, portanto, um mundo diferente do racio­ nal. Scheler começa fazendo a distinção entre os estados emotivos simples, que não têm ca­ ráter intencional, ou seja, que não se referem imediatamente a um objeto próprio (v. EMO­ ÇÃO), e o S. originário e intencional, que, ao contrário, é uma reação particular ao estado emotivo e consiste nas atitudes extremamente variáveis e mutáveis assumidas diante do esta­ do emotivo: enfrentar, tolerar, fruir, suportar, etc. Estado emotivo, p. ex., é o prazer sensível correspondente ao caráter agradável de uma refeição, um perfume, um leve toque. O S. puro, ao contrário, consiste nas reações do eu a tal estado emotivo: p. ex., fruir em maior ou menor grau, tolerar, etc. Assim, enquanto um

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estado emotivo faz parte do conteúdo fenome­ nal, o S. puro está entre as funções destinadas a apreender tiú conteúdo. Desse ponto de vista, a tendência a suportar ou a fruir nada tem a ver com a sensibilidade em relação ao prazer e à dor. O grau de prazer ou de dor pode ser o mesmo, mas o sofrimento e o gozo por eles provocados em dois indivíduos ou no mesmo indivíduo em momentos diferentes podem ser completamente diferentes. Ora, enquanto os estados emotivos podem ser relacionados ape­ nas de modo indireto com os objetos ou os fa­ tos de que são efeito ou sinal, os sentimentos puros referem-se imediatamente a um objeto específico, que é o valor. Portanto, a relação entre S. e valor é a mesma observada entre a representação e seu objeto: a relação intencionaliv. INTENCIONALIDADK). Enquanto é neces­ sário um ato de reflexão para relacionar um esta­ do emotivo com o objeto de que é sinal ou que julgamos ter provocado, o S. relaciona-se com seu objeto específico, o valor, de modo ime­ diato, como acontece, p. ex., quando sentimos a beleza dos montes cobertos de neve ao pôrdo-sol. A conexão intencional entre S. e valor não tem, pois, nada a ver com um vínculo cau­ sai entre S. e objeto, e independe também da causalidade psíquica individual, ou seja, das leis que regem a vida psíquica do indivíduo. De fato, quando as exigências dos valores não são satisfeitas, sofremos, p. ex., por não nas sentir­ mos tão alegres quanto o valor de um aconte­ cimento mereceria, ou por não nos sentirmos tão tristes pela morte de um ente querido quanto esse fato exigiria (Formalismus, pp. 260 ss.). Assim, segundo Scheler, o S. dá acesso a um mundo de objetos tão reais quanto as coisas ou os fatos que constituem o objeto da representa­ ção, mas que nada têm a ver com eles, porque não são coisas nem fatos, mas valores. Scheler, portanto, está de acordo com Kant ao julgar que o S. não é "artigo de conhecimento", mas discorda dele quanto a julgar que ele não tem nenhum objeto e é, por isso, destituído de ca­ ráter intencional. Apenas as emoções sensíveis são destituídas de objeto e por isso constituem estados emotivos puros, ao passo que os sen­ timentos vitais e os psíquicos sempre podem revelar caráter intencional (referir-se a um objeto-valor); os S. espirituais revelam-no neces­ sariamente (para a distinção entre os graus emo­ cionais, V. EMOÇÃO). A análise de Scheler é muito importante porque lança novas luzes sobre a vida emocional do homem. Contudo, o próprio

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Scheler usou sua análise como fundamento de uma verdadeira metafísica dos valores, em que estes não são considerados somente objetos, no sentido próprio e restrito do termo (v. OisjF.ro). mas verdadeiras realidades, no sentido em que são chamadas de reais as coisas, as entidades e os fatos, com a diferença de que, diante de qualquer outra coisa, entidade ou fato, os valores seriam realidades últimas ou "absolutas". Hssa integração metafísica de uma análise meritória pelo modo como foi conduzida e pelas suas conclusões pode levantar dúvidas quanto à sua legitimidade. Com efeito, pode-se considerar que um dos resultados dessa análi­ se é estender o significado de "objeto" como termo ou fim de um ato intencional, cie tal modo que não sejam chamados de objetos apenas os que possam ser considerados reais no sentido cie terem características de fatos ou entidades subsistentes. Por realidade entende-se, pois, de modo estrito e rigoroso, o termo de um proces­ so cognitivo passível de verificação (v. RI:ALIDADI:), e não há razão para identificar a intencionaliclade emotiva com a intencionaliclade cognitiva; o próprio Scheler dá boas razões para fazer o contrário. Se as coisas são assim, ou seja, se a intencionaliclade do S. é diferente da intencionaliclade do conhecimento, sendo também diferentes seus respectivos objetos, deixa de ter fundamento a crítica de Scheler á tendência da psicologia contemporânea, de ne­ gar a "função cognitiva" dos S. Isto porque a psicologia contemporânea admite a função dos S. no comportamento vital do organismo, e considera-os anúncio de situações presentes ou futuras, o que permite enfrentar tais situa­ ções da mesma maneira como um dispositivo de alarme põe em movimento os meios de enfrentar um perigo. Assim como Scheler. Heidegger reconheceu a importância funda­ mental do S., que ele considera arraigado na substância humana, vale dizer, na estrutura antológica de sua existência. Heidegger chama de situação afetiva (Refindlíchkeit) o tom emo­ cional da ocupação cotidiana do homem, e vê nesse tom uma manifestação essencial do ser do homem no mundo: "O estado da situação afetiva constitui, essencialmente, a abertura do ser-aí no mundo" (Seín iindZeíl. § 29). Segun­ do Heidegger, a situação fundamental de um ente que, como o homem, vive num ambiente que lhe fornece as coisas a serem utilizadas e que, por isso, pode ameaçá-lo com a nàoinstrumentalidade. com a resistência das coisas.

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é a possibilidade de ser ameaçado pelas coisas e pelos acontecimentos do mundo e de reagir a essa ameaça com medo ou com coragem. Tam­ bém neste caso, se deixarmos de lado a lingua­ gem específica da ontologia de Heidegger, podemos dizer que sua análise concorda fun­ damentalmente com a da psicologia contempo­ rânea e qtie confirma a noção de S. como capa­ cidade de apreender o valor que um fato ou uma situação apresenta para o ser (animal ou homem) que deve enfrentá-la. Finalmente, é preciso lembrar que para Hartmann o S. — que serviu de base para a sua ética — é a "principal sede em que os valores se dão" (Etbik, 1926). SENTIMENTO FUNDAMENTAL Ut. Senti­ mento fomlamentctle) Com este termo Rosmini designou a consciência que o homem tem de seu eu e da conexão (que o constitui) entre alma e corpo. "Existe no homem, tal qual ele é por natureza no primeiro instante cie sua vida. 1") um sentimento único constante-fundamental, animal-espiritual; 2") Lima percepção racio­ nal, imanente, do sentimento animal" (Psicolo­ gia, 1850, § 256). SEPARAÇÃO (gr. ôtáKpiotÇ; lat. Separaiio-, fr. Séparation, ai. Treminng; it. Separazione). Resolução de um composto em suas partes ou em seus elementos, liste termo foi usado por Anaxágoras {Fr. 10, Diels) e por Hmpédocles (Fr. 58, Diels) (cf. PLATÃO. Sof, 243 b; ARISTÓTFI.KS. Met, I, 4, 985 a 25). SEQÜÊNCIA (lat. Sequentia-, in. Sequence-, fr. Séqnence, ai. Folgo-, it. Sequenza). Conjunto de termos entre os quais há uma relação de antes e depois (cf. PKIRCK, Coll. Pap.. 3.562 B). SER (gr. xòõv; lat. Frisou Esse, in. lieing-, fr. Etn'; ai. Seín; it. físsere). Preliminarmente, con­ vém distinguir os dois usos fundamentais des­ se termo: 1") o uso predícalivo, em virtude do qu;il dizemos "Sócrates é homem", ou "a rosa é vermelha"; 2") o uso existencial, em virtude do qual dizemos "Sócrates é" (= existe) ou "a rosa é" (= existe). Kmbora nem sempre explicita­ mente formulada, essa distinção é assumida ou pressuposta quase universalmente. Em Parmênides. Platão dá destaque à diferença entre a hipótese "o um é um" e a hipótese "o um é"; nesta última "é" significa "participação no S." (Pcirm, 137 e; 142 b). Aristóteles expressa de várias formas a mesma diferença: como dife­ rença entre é como terceiro predicado e é como segundo predicado (De int., 10. 19b 19); como diferença entre é como predicado por acidente ("Homero é poeta") e é predicado por

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«'("Homero é") (Deint., II, 21 a 25); eomo dife­ rença entre "S. alguma coisa" e "S. absolutamente1' (El. sof, 5, 167 a 1). Na diferença entre S. predicativo e S. existencial baseia-se ainda a distinção aristotélica entre tese e hipótese, como premissas cio silogismo: a primeira não assume a existência do objeto a que se refere; a segunda, sim (An. post., 1, 2, 72 a 18). A diferença entre esses dois significados de S. permanece constante na tradição filosófica posterior a Aristóteles. S. Tomás afirma: "S. tem dois significados: num modo significa o ato de S.: no outro significa a composição da proposição que o homem encontra ao juntar o predicado ao sujeito" (S. Th, 1, q. 3, a. 4; cf. De ente, 1). Na lógica terminista medieval distinguia-se o verbo S. como segundo constituin­ te (secundo adiacens) da proposição, do ver­ bo S. que aparece como terceiro constituinte (tertio adiacens), em função predicativa ou de cópula (OCKIIAM, Summa log., II, 1; ALBERTO 131- SAXÔNIA, Lógica, I, 5). Kant estabeleceu a distinção entre a posição predicativa ou re­ lativa, expressa pela cópula de um juízo, e a posição absoluta ou existencial, com que se põe a existência da coisa (Der einzig móglíche Beweisgrund ztt einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763. § 2). Na filosofia moder­ na e contemporânea, essa distinção é lugar-co­ mum, embora nem sempre seja explicita­ mente formulada. Na evolução sofrida pelas interpretações desses dois significados de S. ao longo da história, pode-se perceber uma correspondência entre as interpretações do primeiro significado e as do segundo. Contu­ do, por uma questão de clareza, o estudo de cada uma delas deverá ser feito em separado. 1-' Significado predicativo. Nas interpreta­ ções do significado predicativo é possível dis­ tinguir três doutrinas fundamentais: A4) inerência; B) identidade (ou suposição); O relação. A) Segundo a doutrina da inerência, S., na relação predicativa, significa pertencer ou inerir (gr. ÚTiáp/etV; kit. Inesse). "Sócrates é homem" significa que a Sócrates inere a essência ho­ mem; "a rosa é vermelha" significa que à rosa pertence a qualidade vermelho, e assim por diante. O fundamento dessa doutrina é a teoria aristotélica da substância (v.). De fato. as rela­ ções de inerência qtie podem ser expressas pelo verbo S. são esclarecidas e distinguidas por Aristóteles com base nas relações entre a substância e sua essência necessária, ou entre a substância e suas outras determinações catego-

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riais ou acidentais. Aristóteles diz: "Inerir, inerir necessariamente e inerir possivelmente são coisas diferentes" (An. pr, 1, 8, 29b 28). Inerência necessária é a da essência necessária (expressa pela definição) à coisa da qual é essência; inerir ou inerir possivelmente é refe­ rir-se à coisa com uma qualidade, quantidade ou qualquer outra das determinações categoriais não incluídas na definição da coisa ou pu­ ramente acidentais. Este é o significado da dis­ tinção aristotélica entre S. necessário (ou por si) e S. acidental. "Em sentido acidental, dizemos, p. ex., que o justo é músico, que o homem é músico e que o músico é homem, ou dizemos que o músico constrói quando acontece de o construtor ser músico ou de o músico ser cons­ trutor: em todos esses casos, dizer 'isto é aqui­ lo' significa 'A isto acontece aquilo'"(Afe/., V, 7, 101 7 a 7). Ao contrário, a inerência necessária ou por si não tem caráter acidental, e, mesmo ao especificar-se segundo as categorias, seu principal fundamento é a substância. Aristóte­ les diz: "Assim como 'é'inere a todas as coisas de modos diferentes, pois a algumas inere de modo primário e a outras de modo secundário, também o" o quê [essencial inere absolutamente à substância e só de certo modo às outras coi­ sas. A respeito de uma qualidade podemos até perguntar o que ela é, e por isso até uma qua­ lidade é exemplo de essência, mas não de modo absoluto. Assim, alguns afirmam que, por lógi­ ca, o nâo-S. é, todavia não é de modo simples, mas apenas como nâo-S.: o mesmo se diga da qualidade" Ubid., VII, 4, 1030 a 22). Portanto, segundo Aristóteles, o S. predicativo expressa a inerência ao sujeito de sua essência necessá­ ria, de determinações categoriais (que, embora não pertencendo à essência, dependem dela) ou de determinações acidentais. Esse significado de S. tem um sentido privilegiado, que é o inerir substancial, ou seja, o inerir da essência neces­ sária (expressa pela definição) à substância definida. "Sócrates é animal bípede" é um ca­ so de inerência predicativa privilegiada se "ani­ mal bípede" é definição do homem, porque é a inerência da essência necessária à substância. As outras determinações, como p. ex. "Sócrates é filósofo", constituem casos de inerência se­ cundária ou acidental. As características fundamentais desse con­ ceito do ser predicativo são: 1L> sua redução a um tipo único de relação, qualificada como pertença ou inerência; 2B privilégio concedido à forma necessária dessa relação, ou seja, à for­

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ma como ocorre essa relação entre substância e essência. Estas características são mantidas pela doutrina em exame ao longo de toda a sua história, que é longuissima. A tradição lógica medieval até o séc. XIII (quando do ressurgi­ mento das doutrinas dos estóicos através cia ria moderna) não conhece alternativa. As dou­ trinas modernas de caráter racionalista geral­ mente as compartilham. Leibniz diz: "Todo predi­ cado verdadeiro tem algum fundamento na natureza das coisas, e quando uma proposi­ ção não é idêntica, vale dizer, quando o pre­ dicado não está compreendido expressamente no sujeito, é preciso que esteja compreendido virtualmente: é isso que os filósofos chamam de i)i-esse, ao afirmarem que. o predicado está no sujeito" (Disc. de mét., 8). Do mesmo modo, para Hegel, o significado predicativo de S. é a identidade entre individual e universal, ou seja, aquela mesma relação entre substância e essência que para Aristóteles era o caso pri­ vilegiado de relação predicativa. Hegel diz: "A cópula é vem da natureza do conceito, que é de ser idêntico a si mesmo ao se tornar extrínseco: como momentos seus, o individual e o universal são determinações que não podem ser isoladas" (tine, § 166). Segundo Hegel, o juízo tende a expressar de modo mediato ou reflexo a unidade entre predicado e sujeito, vale dizer, a unidade de um conceito único que, através do próprio juízo e, mais completa­ mente, através do silogismo, articula-se em suas determinações necessárias (Wissenscbaft derI.ogik, III, I, cap. 2; trad. it., pp. 77 ss.). A doutrina exposta por alguns hegelianos ingle­ ses (BRADLKV, Principies ofLogic. 1883; BOSA.V yrr.T, Logic, 1888), de que S. predicativo signi­ fica referência de um conceito ao sistema total da realidade (de sorte que, no juízo, o conceito é uma qualificação essencial da Realidade Lniversal), representa a forma assumida pela doutrina hegeliana da cópula na filosofia con­ temporânea. Também nessa forma, pode-se re­ conhecer a teoria da inerência: a substância ou realidade â qual o predicado inere é a totalida­ de do real, em vez de ser (como na doutrina de Aristóteles) uma única substância. B) A segunda interpretação fundamental de S. predicativo é de identidade (v.) ou suposi­ ção (v.): segundo ela, a cópula significa identi­ dade do objeto ao qual o sujeito e o predicado da proposição se referem ou no lugar do qual estào (supponuntpro). Assim, p. ex., na ex­ pressão "Sócrates é branco", a cópula indicaria

simplesmente que o sujeito "Sócrates" e o predicado "branco" referem-se ao mesmo ob­ jeto existente, que. portanto, pode ser qualifi­ cado com um ou com o outro dos dois termos. A origem desta doutrina está provavelmente na lógica estóica, na qual é fundamental a refe­ rência cie qualquer enunciado a uma situação de fato imediatamente presente (v. ESSKNCIA). Mas é expressa claramente só na lógica do séc. XIII, em polêmica com a teoria da inerência. Ockham diz: "Proposições como 'Sócrates é um homem' ou 'Sócrates é um animal' não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade. Tampouco significam que a hu­ manidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que o homem ou o animal é uma parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou cia substância de Sócrates. Significam que Sócrates é na realidade um ho­ mem e é na realidade um animal: não no senti­ do de Sócrates ser esse predicado 'homem' ou esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa em lugar da qual esses dois predicados estão; como quando acontece que esses predicados estão no lugar cie Sócrates" (Summalog., II, 2; Qnocll., III, 5). Essa doutrina é expressa quase nos mesmos termos por Hobbes: "A proposição é um discurso que consta de dois nomes conjuntos: quem fala pretende dizer que, para ele, o segundo nome é um nome da mesma coisa cujo nome é o pri­ meiro, ou — o que dá no mesmo — o primeiro nome está contido no segundo. Por ex., o dis­ curso 'O homem é animal', em que os dois no­ mes estão reunidos pelo verbo é, é uma propo­ sição porque quem a enuncia pretende dizer que, para ele, o segundo nome 'animal' é nome da mesma coisa cujo nome é 'homem'" (Decuip., 1, 3, § 2). Essa doutrina foi substan­ cialmente reproduzida por Stuart Mill, que distinguia as afirmações "essenciais", ou seja, gerais, que só explicam a essência nominal de uma coisa (v. ESSÊNCIA), das proposições "reais", que sempre implicam a existência do sujeito a que se referem "porque, no caso de um sujeito inexistente, a proposição nada teria para asseverar" (Logic, I, VI, 2). A referência á realidade imediatamente dada ou intuída é a primeira característica fun­ damental da doutrina em exame. Os lógicos do séc. XIV chegavam a considerar falsa até mes­ mo proposições tautológicas como "A quimera é quimera", quando nelas o sujeito representa um objeto inexistente (OCKHAM, Summa log..

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II, 14). A segunda característica dessa doutrina relações cuja realidade está no sujeito cognoscen6 a identidade da referência objetiva dos ter­ te, embora não somente nele. Kant expressou esse mos da proposição (identidade da coisa em lu­ mesmo conceito ao afirmar que o ato de juízo, gar da qual estão). atividade própria do intelecto, é a síntese: "En­ O Segundo a terceira interpretação funda­ tendo por síntese, no sentido mais amplo dessa mental, a cópula é unia relação. Esta interpre­ palavra, o ato de unir diversas representações tação pode ser dividida em duas alternativas: a e compreender a sua multiplicidade num só primeira (a) considera que a relação predica- conhecimento" (Críl. R. Pura. § 10). Todas as tiva 6 subjetiva; a segunda (b) considera-a interpretações idealistas da relação predicativa objetiva. no mundo moderno partem dessa afirmação a) A interpretação do S. predicativo como kantiana. Atividade sintética, poder sintético do relação que é ato ou operação do sujeito espírito, síntese a priori. são expressões às pensante tem como pressuposto óbvio o quuis a interpretação idealista do kantismo. a princípio cartesiano de que o objeto imediato partir do Romantismo, emprestou um significa­ do conhecimento humano é apenas a idéia. do enfático e criativo, que de certo não tinham Desse ponto de vista, a proposição apresenta- na doutrina de Kant: de qualquer modo, expres­ se como juízo e começa a ter esse nome par­ sar?] o caráter subjetiva da atividade sintética. que juízo 6 exatamente o ato com que o espíri­ que como tal só pode operar entre "idéias" ou "representações", vale dizer, entre elementos to escolhe ou decide. Descartes diz: "Dos meus pensamentos, alguns são como imagens das ou estados do mesmo sujeito. A dificuldade coisas, e a eles só convém o nome de idéia: fundamental que se opõe a essa doutrina é a como quando represento um homem. Lima obvia consideração de que uma asserçâo qual­ quimera, o céu, um anjo, ou Deus. Outros pen­ quer não visa a estabelecer uma relação entre samentos têm, além destas, outras formas; p. duas idéias, representações ou conceitos, mas ex.. quando quero, temo, afirmo ou nego, entre os objetos aos quais se faz referência estou concebendo alguma coisa como objeto atnnés deles. Quando se afirma "Sócrates é um da ação de meu espírito, mas, com essa ação, homem", não se quer dizer que a representa­ acrescento alguma outra coisa á idéia desse ção Sócrates é homem, mas sim o indivíduo objeto; desses pensamentos, alguns são cha­ real ao qual o nome se refere. K em observa­ mados de vontades ou emoções; outros, de ções desse tipo que se baseia a alternativa juízos" (Méd, III). Portanto, segundo Descartes, objetivista. juízo é uma ação do espírito por meio da qual A doutrina da cópula como relação objeti­ "se acrescenta alguma coisa" ã idéia que se tem va b) foi apresentada pela primeira vez por De de um objeto; em outros termos, é um ato de Morgan (FormalLogic, 1847, cap. 3) e adotada unificação ou síntese. Esta noção é claramente pelo criador cia lógica matemática, Para expressa na Lógica, de Arnauld: "Quando digo este, a lógica tem duas espécies deBoole. relações: 'Deus é justo', 'Deus' é o sujeito dessa propo­ coisas e entre fatos; estas últimas também sição, justo' é o atributo, e a palavra 'é' marca entre poejem ser chamadas de relações entre proposi­ a ação cio meu espírito que afirma, ou seja, que ções (Ixiivs ofTbougbt. 1854, I, § 6). De acordo liga as idéias 'Deus' e 'justo' como convenientes coin essa teoria, a relação expressa pela cópula uma ã outra" (Log., II, 3). A definição lockiana é a mesma em todas as formas proposiciode conhecimento como "percepção de vínculo nai.s, não porque natureza esteja expres­ e concordância ou de discordância e oposição sa na proposição, sua mas porque é estabelecida entre nossas idéias" (Ensaio, IV, I, § 2) expres­ por convenção. A cópula pode então ex­ sa exatamente a mesma tese. Locke diz: "Tu­ pressar uma relação qualquer. Nesse senti­ do o que sabemos ou podemos afirmar sobre do, ela foi chamada por De Morgan (Camuma idéia qualquer reside em ser ou não essa bridge Philosophical Transactions. X, idéia igual a uma outra; em coexistir ou não de cópula abstrata. Peirce distinguiu os339) vá­ com alguma outra idéia no mesmo sujeito; em rios tipos de cópula da seguinte maneira: ter uma ou outra relação com alguma outra "Cópula transitiva é aquela para a qual é vá­ idéia; ou em ter existência real ou fora do es­ lido o modo Barbara. Schrõder demonstrou o pírito" (Ibid.. IV, I § 7). Portanto, mesmo em seu importante de que, se usamos A1para LISO existencial, o verbo S. só faz expressar re­ representar teorema a espécie de cópula cujo exemplo lações percebidas pelo espírito, vale dizer, as é 'maior que', então existe algum termo relativo r

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tal que a proposição 'Sc P seja precisamente equivalente a 'S é r a P e é r a qualquer coisa à qual Pseja r'. Cópula de inclusão correlatíva é aquela para a qual são válidos tanto o modo Barbara quanto a fórmula de identidade. Se representarmos essa cópula com é, existirá um termo relativo r tal que a proposição 'S éP' seja precisamente equivalente a 'Sé ra qualquer coisa à qual Pé r. Se a última proposição se seguir da penúltima, qualquer que seja o termo relativo r, a cópula será a de inclusão, usada por Peirce, Schróder e outros. De Morgan usa uma cópula que vale para qualquer relação que seja ao mesmo tempo transitiva e conversí­ vel, como p. ex. 'igual a' ou 'da mesma cor de'. Para cada cópula desse tipo existirá algum ter­ mo relativo rtal que a proposição 'S é P ' será exatamente equivalente a 'Sé ra cada coisa e só a cada coisa à qual Pé f Tal cópula pode ser chamada de identidade correlativa. Se a última proposição se seguir da penúltima, a cópula é a de identidade, usada por Thompson, Hamilton, Baynes, Jevons e muitos outros" (Coll. Pap, 3, 622). Com mais simplicidade, hoje se costuma distinguir uma cópula de per­ tença, simbolizada pore, que designa a relação entre um indivíduo e uma classe; uma cópula de inclusão, simbolizada por u, que designa a relação entre uma classe e outra classe; estas duas espécies de cópulas são distinguidas de operador (ou quantificador) existencial (v. OPKRADOR). De qualquer forma, a caracterís­ tica fundamental desta concepção de S. predicativo é a máxima generalidade: as outras interpretações de cópula podem ser consi­ deradas casos especiais de relação, e como tais analisados. Além desses, é possível consi­ derar outros casos. É exatamente essa teoria da cópula que possibilita a doutrina da proposição como função, segundo a qual o predicado é a função, e o sujeito é a variável da função (v. FUNÇÀO). 2" Significado existencial. O segundo signi­ ficado fundamental de S., o existencial, deve ser dividido em dois significados subordinados: I, como existência em geral; II, como existên­ cia privilegiada. I. Em primeiro lugar, S. pode significar exis­ tência no 1Q significado, geral e indeterminado, mas especificável ou definível de acordo com um critério qualquer. É nesse sentido que Aris­ tóteles afirma que "o S. se diz de muitos mo­ dos" (Met., VI. 2, 1026 a 32) e que se pode até dizer que o não-S. é (Ibid., VII, 4, 1030 a 23).

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Mas, tomado nesse sentido, o significado de S. coincide com o de existência (no Ia sentido), e seu estudo poderá ser encontrado no verbete EXISTÊNCIA. II. Em segundo lugar, S. pode significar existência privilegiada ou primária, na sua modalidade primeira e fundamental, da qual dependem todas as suas manifestações determináveis. Na maioria das vezes, este segun­ do significado é preparado e anunciado pelo acima exposto (2-, I). O S. se diz de muitos mo­ dos, mas apenas um é seu significado primário e fundamental. Esse é o ponto de vista de Aris­ tóteles (Met, VII, 4, 1030 a 21). É justamente da relação entre os múltiplos significados que, à primeira vista, parecem caber ao S. e o signifi­ cado único e fundamental nos quais eles de­ vem ser integrados, que nasce o chamado "problema do S.". Trata-se do problema do sig­ nificado primário, único e simples que se pre­ sume no S., mas que permanece mais ou me­ nos oculto na multiplicidade dos seus aspectos aparentes. A investigação metafísica, na sua forma clássica, funda-se nesse problema. Tra­ ta-se de ver se existe um significado primário de S.: em primeiro lugar, no sentido de expres­ sar melhor que os outros a existencialidade do S.; em segundo lugar, no sentido de possibilitar a integração dos outros significados, servindolhes de fundamento ou princípio. A indagação do problema do S. tende à de­ terminação de um significado que preencha esses dois requisitos. Mas a disputa a que dá origem só se compara à "batalha de gigantes" de que falava Platão (Sqf, 2A6), em que se defrontam os gigantes, ou "filhos da terra", para os quais toda a realidade é corpo, e os deuses, que afirmam a incorporeidade do S. e o redu­ zem às formas ideais. Xa realidade, o significa­ do de S. não é suficientemente estabelecido pelo caráter de corporeidade ou pela sua nega­ ção, porque um ser considerado corpóreo pode ter os mesmos caracteres formais de uni S. considerado incorpóreo, como ocorria com o S. de que falavam os dois grupos protagonistas da "batalha de gigantes". É bem verdade que os caracteres formais do S. evidenciados corno solução do problema, ou seja, como determi­ nação do significado primário de S., são sem­ pre extraídos de uma esfera particular do S., ou pelo menos de um grupo de entes, ou de um ente, de algum modo privilegiado e tomado como exemplo. Mas também é verdade que em todos os casos só se pode obter resposta ao

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problema do S. quando, entre <xs caracteres da esfera, cio grupo ou do ente considerado, se escolhe um que seja passível de generalização, vale dizer, que possa também referir-se às outras esferas, grupos ou entes. Nesse sentido, Platão desafiava os materialistas a dizerem o que há de comum entre as coisas corpóreas e as incorpóreas, desde que se diga que ambas sàoUbid.. 247d). Mas. apesar cie se procurar um significado primário formal (generalizável) do S.. pode-se dizer que todas as soluções para o problema só fazem privilegiar, ou seja. consi­ derar primária e fundamental, uma modalidade determinada do ser. Ora, como as modalidades pelas quais o S. pode ser enunciado ou asseve­ rado são três (necessidade, possibilidade e assertorieciacíej, teoricamente também são três as possíveis soluções para o problema do ser. Mas, uma vez que (como veremos) a assertoriedade se reduz à necessidade, ao longo da história da filosofia encontram-se duas solu­ ções fundamentais, bem evidentes por trás das aparentes multipliciclades e disparidades cias soluções propostas. Para a primeira dessas so­ luções (que indicaremos com a) o S. primário é a necessidade; para a segunda (que indicare­ mos com |3), o S. primário é a possibilidade. A solução a corresponde à interpretação A do significado predicativo; a solução (3 correspon­ de às interpretações B e C. Um caráter distinti­ vo das duas soluções, mas que deve ser consi­ derado secundário por nem sempre estar presente, 6 o que exporemos a seguir. Na in­ vestigação cio significado do ser, a primeira de­ las não toma em consideração a própria inves­ tigação, enquanto a segunda pode tomar esse fato em consideração, atribuindo-lhe impor­ tância na determinação do significado do ser. K o que fazem Platão e os existencialistas. a) A interpretação do S. segundo a modali­ dade cia necessidade prevalece na metafísica clássica. A famosa tese de Parmênides. "O S. é e não pode não ser" (Fr. 4, Diels), estabelece que o significado fundamental do S. é a neces­ sidade, o não poder não ser: no que se refere ao tempo, é eternidade (simultaneiclacle, tutum siniuí); no que se refere â multiplicidade, é uni­ dade: no que se refere ao devir (nascer e mor­ rer), é imutabilidade (fr. 8, 2-4, Diels). Aristóte­ les também dá prioridade à necessidade. Para ele, o princípio de contradição, que fundamen­ ta a sua "filosofia primeira" (ciência do S. enquanto S.), é o princípio que postula a ne­ cessidade do S., que se realiza na substância.

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Aristóteles diz: "Se a verdade tem significado, necessariamente quem diz. homem diz animal bípede porque isso significa homem. Mas se isso é necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: necessidade significa exatamente isto: é impossível que o S. não .seja" (Met., IV, 4. 1006 b 30). O aspecto pelo qual é necessário que um S. seja (o único gra­ ças ao qual o S. é objeto de ciência, visto que do S. acidental não há ciência, Ibicl., VI, 2. 1027 u) é a sua substância. Aristóteles diz: "K um só o significado do S.: a sua substância. Indicar a substância de uma coisa é indicar o seu S." (Ibid, IV, 4, 1007 a 26). Portanto, para ele, a substância é o sentido primário do S.: é tam­ bém o sentido fundamental, no qual os outros significados podem ser integrados, visto que, para Aristóteles, todas as determinações distinguidas ou distinguíveis cio S. são aspectos ou manifestações da substância (Ibid, VII, 17) (v. SUBSTÂNCIA). Este ponto de vista aristotélico foi decisivo liara o desenvolvimento posterior do proble­ ma do S. Graças a ele, o significado primário e fundamental do S. passou a ser (e continua sendo para grande parte cia filosofia) a neces­ sidade, com os atributos, que traz consigo, de imutabilidade, eternidade, unidade, etc. Mes­ mo quando esses atributos deixaram de referirse à estrutura formal do S. (o que ocorreu no neo-platonismo antigo e árabe e no aristotelismo medieval), e passaram a referir-se a um ente privilegiado (ou seja, não a todas as substân­ cias, mas à substância superior. Deus), conside­ rou-se que as outras substâncias derivariam ou participariam desta, e que derivariam ou parti­ cipariam de sua necessidade e de seus atri­ butos. Assim, segundo S. Tomás, a participa­ ção das coisas criadas no S. de Deus é participação da perfeição e da imutabilidade d'Kle (V. Th., I, q. 65. a. I). Mas o conceito que dominou a me­ tafísica medieval e, através dela. a moderna e a contemporânea, foi exposto por Avicena no séc. XI: a necessidade do S. como tal. Todo S.. enquanto tal, é necessário. Avicena dizia: "Se Uma coisa não é necessária em relação a si mesma, é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em relação a uma coisa diferente" (Met., II, I. 2). A propriedade essencial cio possível é exatamente esta: preci­ sar de outra coisa que o faça existir em ato. Mas, por isso mesmo, o que existe em ato exis­ te sempre necessariamente, só que às vezes sua necessidade provém cie outra coisa (Ibid..

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II, 2, 3). Os mesmos conceitos, expressos por Algazel (Met., I, I, 8), fundamentaram a escolástica judaica e cristã. No mundo moderno, o conceito de S. como necessidade foi reafirmado principalmente por Spinoza e Hegel. Spinoza viu o S. de Deus na necessidade, e o S. das coisas na necessidade com que derivam da substância divina (Et, I, 8, scol. II). Hegel expressou esse mesmo concei­ to com o famoso aforismo que serviu de base para toda a sua filosofia: "O que é racional é real; o que é real é racional." A racionalidade do real é a sua necessidade; em virtude dela, o real, em suas determinações fundamentais, só pode ser o que é. Por isso, Hegel diz que "a função da filosofia é entender o que é, pois o que é, é a razão" (Fil. do dir, Pref.). Também por isso não existe um dever S., um ideal, uma perfeição que seja diferente do S. e em cujo nome se esteja autorizado a criticar o S. ou a dar-lhe lições. "O que está entre a razão como espírito autoconsciente e a razão como realida­ de presente, o que diferencia aquela razão des­ ta e não permite que se encontre satisfação nesta é o empecilho de alguma abstração que não se libertou e não se tornou conceito" (Ibíd., Pref.). Noutras palavras, só com falsas abstrações distingue-se o que deveria ser do que é, racionalidade de S. real; isso significa que o S. real é tudo o que deve ser, e que sua modalidade, seu sentido primário, é essa ne­ cessidade. Por outro lado, toda a filosofia de Hegel está voltada para a demonstração da ne­ cessidade das determinações do S.: visa a mos­ trar que o S., em sua realidade, é tudo o que deve ser (Ene, § I). A necessidade continua sendo o caráter primário do S. em concepções filosóficas díspares. Quando Fichte afirma que S. e atividade do eu são a mesma coisa, está re­ conhecendo como caráter essencial dessa ati­ vidade a necessidade com que ela se põe e o não-eu (Wissenschaftslehre, 1798, § 1). Conce­ ber o S. como "Consciência" ou "Matéria" não faz diferença: as determinações qualitativas não influenciam sua determinação formal primária. Tanto o Absoluto dos idealistas (Green, Bradley e outros) quanto a matéria dos materialistas são S. necessários. Necessária é a História, de que fala Croce, tanto quanto é necessário o Ato Puro, de que fala Gentile. Este afirmava: "A necessidade do S. coincide com a liberdade do espírito" (Teoria generale, XII, § 20). Mesmo Rosmini, para quem a idéia do S. como "S. pos­ sível" é fundamento do conhecimento humano,

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vê na necessidade e na universalidade os caracteres primários do S. (Nuovosaggio, §§ 428­ 29). Husserl afirma energicamente a necessida­ de do S. que ele considera primário, que é o S. da consciência: "A tese do mundo, que é aci­ dental, opõe-se a tese do meu eu puro e do vi­ ver do eu. que é necessária e indubitável. Toda coisa dada, mesmo que presente em carne e osso, pode não ser; mas uma vivência, dada em carne e osso, não pode não ser. Esta é a lei essencial que define essa necessidade e essa acidentalidade" (Ideen, I, § 46). Característica típica dessa concepção do S., ou melhor, uma de suas teses fundamentais, é a identificação entre S. e racionalidade, que ser­ viu de princípio para a filosofia de Hegel. Algu­ mas vezes essa identificação foi entendida como imanentísmo (v.), no sentido de imanência do S. na consciência. Embora esta tam­ bém seja uma tese hegeliana, nada tem a ver com a outra. Foi expressa pela primeira vez por Parménides, que, exatamente nesse senti­ do, identificou S. e pensar (Fr. 5; Fr. 8, 34-36, Diels). Certamente a tese de Parménides nada tinha a ver com o imanentismo, porque a noção de consciência nem sequer tinha nascido (v. CONSCIÊNCIA): expressava apenas o caráter ra­ cional da necessidade ontológica. Esse mesmo caráter era expresso por Aristóteles, na doutrina de que a determinação fundamental da substân­ cia é a essência necessária, que é a razão de ser (Jogos) da coisa (Depart. an, I, 1, 639 b 15). Para Rosmini, o S. possível era a própria forma da razão (Nuovosaggio, § 396). A tese em ques­ tão, ao mesmo tempo em que expressa a neces­ sidade do S., postula um conceito correspon­ dente de razão em geral (v. RAZÃO). Ao que parece, a ontologia de Hartmann escapa a essa tradição, pois não assume a ne­ cessidade como significado primário do S., mas a efetividade (Wírklíchkeít), à qual seriam redutíveis possibilidades e necessidades. A efe­ tividade é a terceira alternativa da modalidade do S., a assertoriedade. O S. ao qual o deverser e o poder-ser se reduzem, segundo Hartmann, é o S. simplesmente existente, em sua pura efetividade ou atualidade, o S. que, no domínio da realidade de fato, apresenta-se "desse modo e não de outro", ou seja, como existência análoga à matéria. Mas os enuncia­ dos nos quais, segundo Hartmann, se expressa a redução do necessário e do possível ao atual demonstram que, na realidade, a efetividade ainda é e sempre foi necessidade. Esses enun­

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ciados são os seguintes: Io o que é realmente possível é também realmente efetivo; 2" o que é realmente efetivo é também realmente ne­ cessário; 3e o que é realmente possível é também realmente necessário. Negativamente: 4a aquilo cujo S. é realmente impossível também é real­ mente inefetivo; 5° o que é realmente inefetivo também é realmente impossível; 6Q aquilo cujo nào-S. é realmente possível também é realmen­ te impossível (Mõglicbkeit und Wirk.lichkeit. 1938, p. 126). Assim, o primado da assertoriedade não tem significado diferente do pri­ mado da necessidade. A ontologia de Hartmann pretendeu apresentar a terceira solução teoricamente possível para o problema do S., mas essa solução é idêntica, mesmo em sua enunciação. à interpretação do S. como neces­ sidade, típica da antiga metafísica. (3) O primeiro a formular a concepção de S. primário como possibilidade foi Platão, para quem essa concepção atende a duas exigências fundamentais: em primeiro lugar, explicar por que se diz que tanto as coisas corpóreas quan­ to as incorpóreas sãoiSof. 247 d); em segundo lugar, levar em conta o fato de que o S. é ou pode .ser conhecido (Ibid., 248 e). A primeira exigência exclui que a materialidade ou a imaterialidade possam fazer parte da definição do S. A segunda exclui que da definição do S. possam fazer parte determinações necessárias; p. ex.: que o S. seja necessariamente imóvel (ou seja, que "'tudo seja imóvel), ou que o S. esteja necessariamente em movimento (ou seja, que "tudo esteja em movimento"), etc. (Ibid.. 249 d). Em vista disso, Platão afirma que o ser é apenas possibilidade (Súva(J.iç): portanto, pode-se dizer que qualquer coisa é, desde que tenha uma possibilidade qualquer de praticar uma ação, ou então de ser submetida a uma ação por parte de outra coisa qualquer, ainda que insignificante e mesmo que essa ação seja mínima e só ocorra uma vez (Ibid., 247 e). Nes­ se sentido, possibilidade nada tem a ver com a potência de Aristóteles. A potência, de fato. é tal apenas em relação a Lima atualidade que. ela só, é o S. primário (v. ATO). Mas para Pla­ tão o S. primário é mesmo possibilidade. Pos­ sibilidades são também as relações reais entreos entes: estes não se mesclam nem deixam de mesclar-se em absoluto, mas apresentam deter­ minadas possibilidades de relações. O mesmo que acontece com as letras do alfabeto e com os sons — alguns podem misturar-se e outros não — acontece com todas as coisas: desse

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modo, não é tarefa da filosofia enunciar a tese universal da necessidade ou da impossibilida­ de da comunicação, mas estudar em particular quais são as coisas que podem (E6éA.£iv) unirse entre si e quais as que não podem {Ibid.. 252-53). Este conceito não dá ensejo a uma metafísica simetricamente oposta àquela que interpreta o S. como necessidade: não dá ense­ jo a nenhuma metafísica. E essa sua principal característica. De fato, se é possibilidade, o S. não tem determinações unívocas necessitantes: não é necessário que ele seja um, e não muito.s; imutável, e não mutável; imóvel, e não em movimento; eterno, e não temporal, etc. De duas determinações opostas e contraditórias, não é necessário que uma lhe pertença e a outra não: ambas podem pertencer-lhe em de­ terminadas mas diferentes condições. Portan­ to, não é possível enumerar definitivamente as determinações unívocas do ser. Platão chegara a essa conclusão em Parmênides; neste diálo­ go mostra-se que o S. não é um ou muitos, mas um e muitos ao mesmo tempo, no sentido de que tanto pode ser um quanto muitos (144 e), e que o mesmo vale para as outras suas deter­ minações eventuais. A desconcertante conclu­ são deste diálogo é que "o uno, sendo ou não sendo, ele e as outras coisas, em relação a ele e t;ntre si, todas, em tudo, são e não são. apare­ cem e não aparecem" (166 c): palavras que reconhecem a possibilidade de determinações opostas do S. e excluem que ele possa ser chama­ do de "um" ou "muitos", ou mesmo simples­ mente "S." em sentido único e absoluto. Deste ponto de vista, uma metafísica que seja o inventário sistemático das determinações unívocas e absolutas do S. é manifestamente sem sentido. Portanto, não se deve esperar que essa concepção dê formulações sistemáticas, análo­ gas ou correspondentes à filosofia primeira de Aristóteles, à metafísica clássica. Ao contrário, podemos dizer que essa concepção tende a evidenciar-se sempre que a determinação das características universais e necessárias do S. cede lugar ã investigação empírica: esta última é busca de possibilidade, não de determina­ ções necessárias. Deste ponto de vista, podese dizer que a tradição filosófica empirista ô herdeira e principal representante da concep­ ção de S. cuja primeira formulação se encontra no Sofista de Platão. Uma possibilidade pode ser determinada unicamente com base na expe­ riência, na observação dos fatos, nunca por meio puramente racional ou a priori. Atribuir

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ao S. o significado de possibilidade significa abrir caminho a indagações específicas, desti­ nadas a determinar, em cada caso, de que pos­ sibilidade se trata. Com fundamento na con­ cepção a, mesmo que as determinações do S. mudem, é necessário que mudem, pois a mu­ dança 6 determinada por princípio e absoluta­ mente previsível. Quanto à concepção p\ ao contrário, toda determinação, porquanto pos­ sível, só pode ser confirmada por investigação ad hoc. Sabemos que para os estóicos o significado do S. estava na possibilidade de praticar ou de sofrer uma ação; por isso, chamavam de entes apenas os corpos (PLUTARCO, Comm. Not, 30. 2, 1073; DIÓCI. L, VII, 56); mas, apesar de tê-los encaminhado para o materiaVismo, esse princí­ pio não constituiu a base de um empirismo coerente. O empirismo, ao contrário, surge sempre que se nega a tese fundamental da concepção oposta, que é a redutibilidade do S. a predicado. Tal negação pode ser considerada uma tese típica dessa concepção, assim como 6 típica da outra a identificação entre S. e racio­ nalidade. No fim da Escolástica, Ockham for­ mulava a tese de que o S. ou o não-S. de uma coisa só pode ser alcançado pelo ''conhecimen­ to intuitivo", que é a própria experiência (In Sent., II, q. 15 H; Ibicl., Prol., q. 1 Z); de tal modo, podia afirmar a irredutibilidade do S. a uma determinação conceituai e o seu significa­ do de possibilidade. E diz: "À pergunta a coisa existe?' só se pode responder quando se sabe se a coisa existe: isso acontece quando se co­ nhece uma proposição na qual o S. existencial é predicado do sujeito. Ora, uma proposição assim discutível (...) de nenhum modo pode ser conhecida com evidência, se a coisa sig­ nificada pelo sujeito não for conhecida intuiti­ vamente e em si: p. ex., se ela não for percebi­ da por um sentido particular ou se não for um inteligível não sensível que seja visto pelo inte­ lecto cie modo análogo àquele pelo qual a fa­ culdade visual externa vê o objeto visível. Assim, ninguém pode saber com evidência que o branco éou pode .serse não viu algum objeto branco; e embora eu possa acreditar nas pes­ soas que me falam da existência do leão, do leopardo e assim por diante, não conheço com evidência essas coisas" (Summa log., III 2). Aqui o sentido primário do S. é posto na pos­ sibilidade da experiência. Conseqüentemente, Ockham atribui necessidade apenas às propo­ sições condicionais ("Se o homem é, o homem

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é um animal racional"), enquanto nega que unia proposição afirmativa qualquer possa ser necessária. Todas as proposições afirmativas sãc> contingentes porque a proposição "O homcm é animal racional" seria falsa por falsa im­ plicação, se o homem não existisse (Quodl., V. q. 15). Esses reparos implicam duas tese fun­ damentais: 1-' o S. não é redutível a um pre­ dicado; 2e o S. 6 uma possibilidade que pode ser" expressa só por uma proposição contingen­ te. Esta última tese revela a modalidade primá­ ria que as observações de Ockham atribuem ao S.: essa modalidade é a possibilidade. O empirismo clássico do séc. XVTI-XVTII atém-se a essa modalidade. Locke contrapõe a certeza das proposições universais, que não dizem respeito à realidade, à contingência das proposições particulares, que dizem respeito à existência. "As proposições universais, de cuja verdade ou falsidade podemos ter conhecimento seguro. não dizem respeito à existência; as afirmações ou negações particulares, que não seriam cer­ tas se transformadas em gerais, referem-se ape­ nas à existência, pois declaram somente a união ou a separação acidentais das idéias em coisas existentes, idéias que. em sua natureza abstrata, podem não ter entre si nenhuma liga­ ção ou rejeição conhecida" {Ensaio, IV, 9, 1). Portanto, com exceção apenas da existência de Deus, conhecida por meio da demonstração, ou seja, por meio da relação que ela tem com outras existências, segundo Locke a existência é conhecida de modo contingente e imediato, através de uma relação direta com o objeto: relação que é intuição no caso da existência do eu e sensação no caso da existência das coisas. Isso exclui que a existência seja um predicado ou que de qualquer maneira possa sei' reduzida a uma determinação conceptual. Locke diz: "Como, com exceção da existência de Deus. não existe nenhuma conexão neces­ sária cie qualquer existência com a existência de algum homem em particular, segue-se que ninguém em particular pode conhecer a exis­ tência de outro ser senão quando este, atuando sobre ele. passa a ser percebido. O fato de se ter a idéia de uma coisa em mente não de­ monstra a existência dessa coisa, tanto quanto o retrato de um homem não serve de testemu­ nho de sua existência no mundo, ou tanto quanto as visões de sonho não constituem, por si, uma história verídica" (Jbid, IV, II, I). Esse conceito da sensação como órgào de conheci­ mento do que existe nada mais é que o antigo

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conceito estóico cie representação cataléptica, que "deriva de um ente subsistente e é impres­ sa e marcada por ele, de tal modo que se con­ form a a ele " (DIOG. L, VII, 46; SEXTO EMPÍRICO. Ac/r. matb, VI I. 248). Essa doutrina eqüivale a definir o S. das coisas como possibilidade de manifestação delas à percepção ou como per­ cepção mesmo. A definição de S. como possibilidade 6 ex­ plicitamente retomada pela filosofia alemã do séc. XVIII. em especial por Wolff: "Ente é o que pode existir e. conseqüentemente, cuja existên­ cia não repugna" (Onl, § 13-0. Mas como o que pode existir é possível, o que â possível é e>ile(lbicL, § 1 35). Mas nesta definição tudo de­ pende, obviamente, do significado de possível. E a propósito Woltt retoma um conceito talvez oriundo cie Duns Scot (in Seul, I, d. 2, q. 7). que se encontra já formulado em I.eibniz (1'héod.. II, § 22-t): "possível ê o que não impli­ ca contradição, vale dizer, o que não 6 im­ possível" (Onl, § 85). Desse ponto cie vista, a possibilidade era definida como simples ausência da impossibilidade, ou seja, como ne­ cessidade negativa. Portanto, nessa doutrina, a concepção de S. em termos de possibilidade era simples aparência. Kant, com muita firme­ za, viu o que se escondia por trás dessa apa­ rência: "O jogo de prestígio, em virtude do qual a possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz) 6 confundida com a possibilidade transcendental das coisas (em virtude da qual ao conceito corresponde um objeto), pode enganar e contentar só os inexperientes". A "possibilidade real" é a dada por Lima intuição sensível, isto é. pela experiência atual ou possí­ vel (Críl. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II). Conseqüentemente, "S. não é predicado real, ou seja, um conceito de alguma coisa que se pode acrescentar ao conceito de Lima coisa. (...) Se CLI disser Deus 6 ou que Deus existe, não estarei afirmando um predicado novo cio conceito de Deus, mas apenas o conceito em si, com todos os setis predicados, e o objeto em relação ao meti conceito. Ambos devem ter exatamente o mesmo conteúdo, porém nada se pode acrescentar ao conceito que expressa simplesmente a possibilidade quando penso seu objeto como dado (com a expressão: Kle é')" (Ibici, O ideal da razão pura, seção IV). Deste ponto de vista, está claro o caráter limita­ do e condicional de qualquer possibilidade ou S., portanto o caráter fictício ou tantasioso de uma "possibilidade absoluta", que valha sob

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qualquer aspecto (Ibid.. Anal. dos princ, Reftitação do idealismo). Na filosofia contemporâ­ nea, as doutrinas abaixo remetem-se a essa interpretação do significado do S. a) Teorias que, em matemática, em física e nas ciências em geral, definem a existência como modo de S. particular; p. ex., como "ausência de contradição", "possibilidade de construção" ou "possibilidade cie verificação". A modalidade não necessária do S. que assim se define é evidente (v. EXISTÊNCIA). b) Formas do empirismo. que só reconhe­ cem S. aos objetos de experiência possível. E. a possibilidade cie experimentação e observação que define o significado do S. (v. EXPERIÊNCIA). c) Teorias filosóficas que afirmam o primado da possibilidade. Seu precedente está na filoso­ fia de Kierkegaard. que foi o primeiro a propor uma interpretação da existência humana em termos de possibilidade (V. EXISTÊNCIA, 3). Por outro lado, o mesmo ponto cie vista pode ser reconhecido em alguns aspectos da íenoinenologia cie Husserl e nas doutrinas a ela liga­ das. Embora Husserl privilegie o S. da cons­ ciência e o considere necessário, ao contrário das realidades das coisas, a análise fenomenológica, sob esse aspecto, é Lima análise cie possibilidade; para ela, como disse Heidegger (Sein undZeil, § 7 C): "mais elevada que a rea­ lidade está a possibilidade". Husserl diz: "Para mim, o lato cie uma natureza, um mundo cul­ tural e humano, com as suas formas sociais, etc. existirem significa que as experiências cor­ respondentes me são possíveis, ou seja, que, independentemente de minha experiência real desses objetos, posso, a qualquer instante, realizá-los e desenvolvê-los em certo estilo sin­ tético. Isso signitica que me são possíveis outros modos de consciência correspondentes a essas experiências como atos cie pensamento indistinto, etc, e que é inerente a esses atos a possibilidade de eles serem confirmados ou invalidados por meio de experiências de Lim tipo previamente estabelecido" (Cart. Meei, § 37). Deste trecho significativo, decorre que a análise fenomenológica é uma análise em termos de possibilidade; vale dizer: a possibili­ dade é o significado primário que ela atribui ao ser. O mesmo acontece no existencialismo. Heidegger disse: "O ser-aí, enquanto com­ preensão, projeta o seu S. em possibilidades" (Sein itucl Zeit, § 52); na realidade, todas as análises cie Heidegger têm como tema as possibilidades do ser-aí, que constituem o

SER, GRANDE

tema da analítica existencial. Do mesmo modo, para Jaspers, as possibilidades objeti­ vas constituem a própria existência (Phii, § 18), enquanto Sartre afirma que "o possível é uma estrutura do para-sí, ou seja, da consciên­ cia" (1,'être et le néant, p. 34). É verdade que. para Sartre, distinguir-se-ia dessa estrutura o S. em si. que é o S. do fenômeno que não seria nem possível nem necessário, mas sim­ plesmente existente. Entretanto, Sartre atri­ bui a esse mesmo S. o caráter de contingên­ cia e não acha possível analisar o S. em si senão a partir do S. para si, a consciência: portanto, nessa doutrina, o primado da possibilidade é evidente. Cumpre observar, porém, que uma das ca­ racterísticas da concepção em exame é a recu­ sa explícita das soluções simples e globais para o problema cio S., ou a desistência de encontrálas; portanto, é o abandono do tratamento "me­ tafísico" desse problema. De fato, reconhecer o significado do S. como possibilidade exige que se passe imediatamente à consideração e ao estudo das possibilidades, nos campos específicos em que são condicionadas, onde têm "realidade". Logo, não é possível desen­ volver uma metafísica da possibilidade, toman­ do como modelo a metafísica clássica da necessicidade e visando a substituí-la. Uma tentativa desse gênero só teria como resultado o retorno puro e simples à metafísica da necessidade: isso se demonstra no próprio Heidegger, que, ao abandonar o terreno da análise exis­ tencial e passar á elaboração do "problema do S. em geral", voltou às teses clássicas da metafísica tradicional com o reconhecimento da necessidade do S. (Einführung in die Metapbysik, Tübingen, 1953). SER, GRANDE (fr. Granei Être). Foi desse modo que Comte designou a humanidade como primeira pessoa da trindade positivista; a segunda pessoa seria o Grande Fetiche (a Ter­ ra) e a terceira, o Grande Meio (o Espaço) (Syntbèse subjective ou système universal des conceptions propres ã Ihumanité, 1856). SER-AI (in. There-being ou Reingthereness; fr. Réalité-humaine, ai. Dasein; it. Esserci). O termo alemão, que 6 o originário, começa a ser usado no séc. XVIII. Em italiano, o termo esserci é usado por Spaventa (Princ. di fil, 1867, p. 134) para traduzir o correspondente termo hegeliano e, em inglês, There-being foi usado por Stirling em Segredo de //
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SER-AI

em inglês, e Realité-humaine, em francês, são usados hoje para traduzir o significado existen­ cialista do termo. Ele significa, na origem, exis­ tência real. tanto das coisas finitas quanto a de Deus. Nesse sentido, é empregado por Kant (Crít. R. Pura, Anal., II, cap. 2, seção 3, 4): "No simples conceito de uma coisa não se pode en­ contrar nenhum caráter de sua existência real (Dasein). Porque, ainda que ele seja tão com­ pleto que nada lhe falte para pensar o objeto com todas as suas determinações internas, a existência real nada tem a ver com isso. mas só com a questão de que uma coisa nos é dada, de tal modo que a percepção dela possa sem­ pre preceder o seu conceito". Nesse sentido, para Kant, é a segunda das categorias da moda­ lidade e opõe-se ao nào-ser (Ibid., § 10). Usan­ do essa palavra no mesmo sentido. Jacobi dizia que a filosofia tem a tarefa de desvendar e reve­ lar a existência ( Werke, IV, p. 72). Hegel fazia a distinção entre o Dasein, como simples deter­ minação do ser, e a existência, que é o ser em relação. Diz: "Etimologicanente. Dasein é estar em determinado lugar, mas a representação espacial não vem ao caso. O Dasein, ou ser de­ terminado, é em geral, em conformidade com seu devir, um ser com um não-ser, de tal modo que esse nào-ser está reunido em unidade sim­ ples com o ser" ( Wissenschaft der Logik, I, 1, secào I, cap. 1, A; trad. it., p. 109). Em palavras mais simples, o Dasein é o ser com determina­ do caráter ou qualidade, aquilo que se chama em geral de "alguma coisa" (Ene, § 90). Mas no uso filosófico contemporâneo, essa palavra ingressou com o significado atribuído pelo exístenciaüsmo, sobretudo por Heidegger, que a usou para designar a existência própria do homem. "Esse ente, que nós mesmos sempre somos e que, entre as outras possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos com o termo Dasein." (Sein undZeít, § 2). Assim entendido, o S. possui um "primado ôntico", no sentido de que deve ser interrogado pri­ meiramente, e um "primado ontológico", por­ quanto a ele pertence originariamente certa compreensão do ser: por isso, ele é também o fundamento de qualquer ontologia (Ibid., § 4). Na filosofia contemporânea, esse termo é habi­ tualmente usado no significado específico esta­ belecido por Heidegger, como ser do homem no mundo. Jaspers usa-o nesse sentido (Phil, 1, 6 ss.). Com significação semelhante, foi usa­ do por Husserl, que com ele designa a existên­ cia da consciência, considerada privilegiada por­

SERIE

que necessária: "Na essência de um eu puro, em geral, e de uma vivência em geral funda-se a possibilidade ideal de reflexão que tem o caráter de evidente e inextinguível tese do S." (Ideen, I, § 46). SÉRIE (in. Series; fr. Série, ai. Reihe, it. Se­ rie). 1. Conjunto de termos entre os quais haja qualquer relação definível. 2. Relação assimétrica, transitiva e coerente. Neste sentido, S. não é conjunto de termos, ou seja, campo de relação, mas a-própria relação; p. ex., as séries 1, 2, 3: 1, 3, 2; 2, 3, 1 são dife­ rentes embora tenham o mesmo campo (cf. B. RUSSKLL, Introduction to Mathematical Philo­ sophy, IV; trad. it., p. 47). (V. RELAÇÃO.)

SERIEDADE (in. Earnestness-, fr. Sérieux, a\. KrnsUit. Serielã). Kierkegaarci íez úa S. uma espécie de categoria moral, definindo-a como "a originalidade conquistada pelo sentimento, conservada na responsabilidade da liberdade e afirmada no gozo da bem-aventurança". A S. consiste na repetição e é condição para que a repetição não diminua o valor dos atos repeti­ dos (DerBegriffAngst. IV, § 2, c). SER LANÇADO. V. DECADÊNCIA; FACnCIDADI-. SER PARA SI. V. PARA SI. SERVO e SENH O R. V. ESCRAVIDÃO.

SEXO (in. Sex, fr. Sexe, ai. Sex, it. Sessó). 1. Raramente os filósofos trataram do sexo como componente do homem. Em O Banquete, de Platão, ao falar da origem do sexo, Aristófanes expõe o mito dos andróginos, dos quais, por meio de uma separação desejada por Zeus com fins punitivos, ter-se-iam originado os dois se­ xos complementares (O Banq., 189 c). Mas as especulações platônicas não versam propria­ mente sobre o sexo, mas sobre o amor. É o que também fazem muitos outros filósofos, inclusi­ ve Schopenhauer, que, em Metafísica do amor sexual, considera o amor sexual como um ex­ pediente de que se valeria o "gênio da espé­ cie", ou Vontade de Vida, para favorecer a obra obscura e problemática da propagação da espécie. No mundo moderno, a ação da psi­ canálise (v.) chamou a atenção dos filósofos para o $.; foram especialmente os fenomenologistas e os existencialistas que se interes­ saram pelos fenômenos a ele relativos. Max Scheler, no livro Wesen und Formen der Sympathie (1923; trad. fr., pp. 168 ss.), tentou atri­ buir ao ato sexual o valor de forma de expressão da personalidade humana. Por outro lado, en­ quanto Heidegger considerou o Daseiti des­ provido de sexualidade, Sartre considerou a

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SEXO

sexualidade como estrutura fundamental da existência; "Embora o corpo tenha uma tarefa importante, precisa remeter-se ao ser no mun­ do e ao ser para os outros: desejo um ser huniano, não um inseto ou um molusco, e dese­ jo-o na medida em que ele está, e eu estou, em situação no mundo, e na medida em que ele é outro para mim e eu sou outro para ele" (Lêtre et le néant. 1943, pp. 452-53). 0 sexo seria a estrutura fundamental da existência humana enquanto existência no mundo (cf. também ABBAGXANO, Strutluradellesistenza, 1939, § 55) (y. AMOR, PSICANÁLISE).

2. Os filósofos, ao contrário, insistiram fre­ qüentemente na diferença sexual. Para Aristó­ teles, a mulher constitui uma monstruosidade c\a nviuneza, inevitável porém para a conserva­ ção da espécie (Degen. an., 7, 775 a 15-17). A niulher difere do homem por participar em menor grau dos poderes da razão (Pol, 1260 a 11-14): portanto, seu lugar é de subordinação ao homem, a este cabendo comandar e a ela obedecer (Pol.. 1254 b 13-15; 1259 b 2-10). Por um vínculo constante na tradição, essa desva­ lorização da dignidade da mulher é acompa­ nhada pela exaltação da. família (que, segundo Aristóteles, existiria mesmo que não houvesse sociedade) e das tarefas e virtudes familiares da niulher (Pol, 1260 a 29-31; Et. nic, 1162 a 19­ 27). Exatamente por isso Schopenhauer defen­ deu a poligamia, que estaria destinada a com­ bater as pretensões da mulher ã equiparação e a eliminar o fenômeno da prostituição (Parerga und Paralipomena, II, 27, § 362 ss.). Por outro lado, Platão, mesmo admitindo a inferioridade da mulher (Rep, 455), considera­ va que homens e mulheres deviam ser admiti­ dos indiferentemente em todos os níveis da educação, para que às funções exercidas pelas classes superiores tivessem acesso apenas os indivíduos que demonstrassem capacidade de exercê-las, qualquer que fosse o sexo. Cínicos e estóicos afirmavam, como princípio, a igual­ dade entre homens e mulheres. A mulher de Crates andava pelas ruas de Atenas usando, como o marido, o saio tosco dos cínicos; e um ponto da doutrina estóica era que homens e mulheres deveriam usar as mesmas roupas (pioc. L, VII, 33). As mulheres eram aceitas na escola de Epicuro, na qual muitas exerceram cargos de direção. Na antropologia contemporânea, não se subestima a diferença entre os S., tanto quanto qualquer outra diferença biológica existente en­

SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO

tre os indivíduos humanos, mas faz-se a distin­ ção entre essa diferença e a exigência de pari­ dade de direitos, baseada no reconhecimento de que as funções subordinadas atribuídas ã mulher, na maior parte das sociedades conhe­ cidas, 6 um produto cultural, para o qual pou­ co ou nada contribui a diíerença entre as fun­ ções biológicas. SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO (gr XZKxóv: lat. Significaiio; in. Meaning; fr. Signification; ai. Bedeutung; it. Significato). Kntendese por este termo a dimensão semântica do procedimento semiológico, ou seja. a possibili­ dade de um signo referir-se a seu objeto. Os as­ pectos (ou condições) fundamentais do S. são dois: 1" uni nome, um conceito ou uma essênria Ip. i_vx., "Mussandio MMY/.OTIÍ". "homem", "autor de Os noiros"), usados com a finalidade de delimitar e orientar a referência: 2" o objeto (p. ex., respectivamente, Alessandro Manzoni, os homens, Alessandro Manzoni), ao qual o nome, o conceito ou a essência se referem. Os dois aspectos são inseparáveis; o segundo é fuuçào do primeiro porque é o nome ou con­ ceito que determina a que objeto se faz ou não referência. Mas os dois aspectos não se identificam porque o objeto pode ser o mes­ mo, ao passo que o nome ou conceito usado para a referência é diferente, como no caso de "Alessandro Manzoni" e "autor de Os noiros", que se referem ao mesmo objeto, mas são no­ mes diferentes. Tampouco as determinações que têm o mesmo objeto podem ser conside­ radas equivalentes, porque não podem ser subs­ tituídas umas pelas outras: p. ex.. perguntar se "Alessandro Manzoni é o autor de Os noivos" não é o mesmo que perguntar "se Alessandro Manzoni é Alessandro Manzoni". A di­ ferença entre os dois aspectos do S. (ou a rela­ ção entre eles) constitui a base dos problemas aos quais esse termo deu origem e das diferen­ tes definições que ele recebeu. Os estóicos, que fundaram a doutrina da S., reconheceram ambos os aspectos. "São três os elementos que se inter-relacionam: o S., aquilo que. significa e aquilo que é. O que significa é a palavra, como p. ex. "Díon'. O S. é a coisa indi­ cada pela palavra, que nós apreendemos ao pensarmos na coisa correspondente. Aquilo que é, ê o sujeito exterior, como p. ex. o pró­ prio Díon" (SKXTO KMTÍRICO, Ac/r matb, VIII, 12). Mais precisamente, para eles S. 6 uma "re­ presentação racional, graças ã qual é possível expor por meio de um discurso aquilo que é

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representado" (Ibki, VIII, 70; DiÓG. L, VII, 63). Nestas observações, os dois aspectos do S. são chamados respectivamente de "palavra", ou "representação racional", e "aquilo que 6", ou "sujeito". "Aquilo que 6", ou "sujeito", é o S. como objeto; a "palavra", ou "representação racional", é o S. como nome, conceito ou essência. Os estóicos reservam especialmente a este último aspecto o nome cie S.; nisso, são seguidos (como veremos) por alguns autores modernos. Na lógica medieval, a distinção entre os dois aspectos foi expressa como clislinção entre "significação" e "suposição". Pedro Hispano diz: "A suposição e a significação dife­ rem porque a significação é feita por meio da imposição de uma palavra para significar um oV>}vfc>, mvts 'A suyyosiçÀo v 11acepvàv* *-k; um \tvmo já significante para alguma outra coisa, como, p. ex.. quando se diz 'o homem corre', e o termo 'o homem' está no lugar de Sócrates e no lugar cie Platão. Portanto, a significação precede a suposição, e as duas coisas não são idênticas porque signilicar é próprio da pala­ vra, e a suposição é própria cio termo que já é composto de palavra e significado" (Sumiu, log.. 6.03). Aqui, entende-se por significatioo mesmo que os estóicos entendiam por lékton: o conceito ou a representação usada para a re­ ferência objetiva, ao passo que a própria refe­ rência objetiva 6 designada como suppositio. Mus, além das idéias dos estóicos, essa doutri­ na inclui a separação dos dois aspectos do S., atribuindo o primeiro aos termos tomados iso­ ladamente, o segundo aos conjuntos, ou seja. às proposições. Doutrina idêntica era exposta na Idade Média por Ockham (Sutnma log, I, 63), por Buridan (Sophismata, 2) e por Alberto da Saxônia (Lógica, II, I), ao passo que S. To­ más aludia a uma doutrina diferente apenas do ponto de vista terminológico, segundo a qual S. e suposição coincidem nos termos particula­ res mas não nos gerais, para os quais S. 6 essência (S. Th., I, q. 39, a. 4. no início). K na distinção entre os dois aspectos de S. que se baseia a distinção estabelecida pela lógica moderna de cunho tradicional entre os dois ele­ mentos do conceito, chamados ora de compreen­ são e extensão (v. COMPRIT.NSÀO), ora de in­ tenção e extensão (v. INTKNSÀO), ora de conotação e olenotação (v. CONOTAÇÃO). O primeiro par de termos foi introduzido pela Lógica de Port-Royal (I, 6): o segundo, por Leibniz (Nour. ess., IV, 17. § 9); o terceiro, por Stuart Mill (Logic, I, 1, § 5). Este último propunha restringir o sentido de S. à

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conotação, chamando-se de denotaçào a re­ ferência objetiva. Dizia: "Sempre que os no­ mes dados aos objetos comportam alguma in­ formação, ou seja, sempre que, propriamente, têm um S., o S. não reside naquilo que eles denotam, mas naquilo que eles conotam. Os únicos nomes de objetos que nada conotam são os nomes próprios; estes, a rigor, não têm significação" (Ibid, I, 2, § 5). O que ele enten­ dia por conotação aparece claramente no tre­ cho seguinte: "A palavra homem, p. ex., denota Pedro, Joana, João e um número indefinido de outros indivíduos, que ela designa como clas­ se. Mas essa palavra é aplicada a eles na medi­ da em que possuem certos atributos, e para significar que os possuem" (Ibid.). Os atributos que constituem o homem — p. ex., corporeidade, animalidade, racionalidade, etc. — formam, portanto, a conotação do nome "ho­ mem": aquilo que a tradição filosófica chamava de "essência" ou, mais tarde, "conceito". Portanto G. Frege nada mais fazia além de expressar urna antiga e nova tradição, ao dis­ tinguir sentido e significado. Dizia: "Ao pensar num signo (seja ele uni nome, uma expressão com várias palavras, ou uma simples letra) de­ vemos relacioná-lo com duas coisas distintas: nào só com o objeto designado, que se chama­ rá de significado (Bedeutung) desse signo, mas também com o sentido (Sirui) do signo, que denota o modo como nos é dado esse objeto". Frege advertia que, por sentido ou nome, enten­ dia "uma indicação qualquer que desempenhe a função de nome próprio, vale dizer, que seja um objeto determinado (tomando a palavra ob­ jeto no sentido mais amplo)" (UberSinn und Bedeutung, 1892, § 1; trad. it., em Aritmética e lógica, pp. 218-19). A mesma distinção era feita por Peirce, mas com terminologia dife­ rente: Peirce falava de objeto do signo e de inteipretante do signo, que é o sentido de Fre­ ge. Peirce diz: "O signo cria alguma coisa no espírito do intérprete e esse alguma coisa, por ter sido criado pelo signo, foi criado também, de modo mediato e relativo, pelo objeto do signo, embora o objeto seja essencialmente di­ ferente do signo. Essa criatura do signo é cha­ mada de interpretante" (Coll. Pap, 8.179, o texto é de 1903). Fssa terminologia foi substan­ cialmente aceita por Morris, que deu ao objeto o nome de designatum, e ao conceito o de interpretante (Fonndalions of the 1'heory of Signs, 1938, § 2). E verdade que Morris conside­ ra inútil o termo "significado", que lhe parece

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capaz de provocar muita confusão, e tenta evitá-lo em seu estudo (Ibid., § 12). Na realida­ de, porém, consegue evitá-lo apenas porque introduziu em sua análise do signo, com outros nomes, os dois componentes cio S. que a tradi­ ção distinguiu constantemente. Os lógicos contemporâneos manifestam a tendência, já presente em Stuart Mill, a restringir o uso da palavra significado á esfera da conotação. Lewis. reservando esse (ermo para ambos os aspectos, faz a distinção entre significação (signification) do termo (ou seja. a conotação) e sua referência objetiva, que ele distingue em denotaçào e compreensão: a primeira seria a classe de todas as coisas reais às quais o termo se aplica, a segunda seria a classe de todas as coisas possíreis às quais se aplica (Analysis of Knouiedge and Valuation, 1946, cap. III, pp. 39 ss.). Em seguida, Lewis faz a distinção entre significação e "significado-sentido" (sense meaiiing), que dela se distinguiria por ser o modo como o espírito se refere à significação (Ibid.. p, 113 e nota 3). Mas essas distinções nào mo­ dificam substancialmente a dicotomia tradicio­ nal do significado de significado. Essa mesma dicotomia é expressa por Quine, como dicotoniia entre S. (ou conotação, ou intensào) e nominaçào (naming), que seria a extensão ou denotaçào (Fm»? a I.ogical Poínl ofView, 1953, II, 1), e por Carnap, que nela baseia a dicotomia entre duas operações fundamentais possíveis em relação a uma expressão lingüística dada: a de "analisar a expressão com a finalidade de entendê-la, de apreender seu S., e a que con­ siste na investigação da situação de fato à qual a expressão se refere" (Meaning andNecessily, 1947, § 45). Além ciísso, insistiu no fato de que o conceito de significado intencional, como condição geral que um objeto deve preencher para que um falante X predique com esse sig­ nificado o objeto, é desprovido de qualquer re­ ferência psicológica e pode ser aplicado até a um robô (Ibid., p. 246 e nota 5). Por sua vez, Church adotou a terminologia de Frege, chaniando de sentido a conotação e de significado a denotaçào, e introduzindo a palavra conceito: "Diremos que um nome denota ou nomeia a sua denotaçào e expressa o seu sentido. Menos explicitamente, podemos dizer que um nome tom certa denotaçào e tem certo .sentido. Dizenios que o sentido determina a denotaçào ou é um conceito da clenotaçào" (hitroduction to MathemaiicalLogic, 1956, § 01). Em confronto com essa sólida e — ressalvando-se a varieda­

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de terminológica — uniforme tradição, estão as tentativas de modificá-la, quer unificando as duas dimensões (A), quer acrescentando no­ vas espécies de significados (13). A) A tentativa de unificar as duas dimensões do significado foi feita em ambas as direções: reduzindo sentido a significado, ou significado a sentido. A primeira tentativa foi feita por Russell e por Wittgenstein. Toda a teoria ex­ posta por Russell no artigo que escreveu em 1905 ("On Denoting", atualmente in Logic and Knowledge, 1956, pp. 41 ss.), no primeiro capí­ tulo de Principia mathematica, que escre­ veu com Whitehead (1910), e no seu outro livro, An Inquiry itito Meaning and Truth (1940), consiste, nas próprias palavras do autor, no fato cie que "não íiá significado, mas apenas, às vezes, uma denotaçào" (Logic and Knowledge, p. 46, nota). Na realidade, para Russell, o S. de um símbolo se reduz unica­ mente aos componentes do fato a que o sím­ bolo se refere. "Os componentes do fato que tornam verdadeira ou falsa uma proposição, conforme o caso, são os S. dos símbolos que devemos entender para entender a proposição" (Logic and Knowledge, p. 196). Desse ponto de vista, a linguagem ideal é a que tem apenas sin­ taxe e nenhum vocabulário, pois nela o voca­ bulário é inutilizado pela correspondência de cada termo com um objeto simples e de cada objeto simples com um termo (Lbid., p. 198; cf. LINGUAGEM). Essa doutrina foi expressa com ri­ gor por Wittgenstein: "O nome significa o obje­ to. O objeto é seu S." ( Tractatus, 1922, 3- 203). "À configuração dos signos simples na propo­ sição corresponde configuração dos objetos na situação" (lbid, 321). "O nome faz as vezes do objeto na proposição" (lbid. 3-22). Desse pon­ to de vista, mesmo as proposições aparente­ mente sem sentido são legítimas porque "se uma proposição não tem sentido, isso pode ser devido apenas ao fato de não termos dado S. a uma de suas partes constitutivas" (lbid, 5.4733), ou seja, de não termos estabelecido a corres­ pondência entre essa parte e um objeto. Essa conseqüência é importante porque constitui a redução ao absurdo do fato de se eliminar o sentido (Sinn) do S.: a referência ao objeto, não sendo guiada ou limitada pelo conceito, é sempre legítima, e só não aparece quando não é efetuada. A redução inversa, de S. a sentido, vale di­ zer, a tentativa de reduzir S., em seu conjunto, à conotação ou conceito, foi realizada por

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Hu.sserl. Este negou que o objeto constituísse o S. ou coincidisse com ele (Logische Untersuchungen, II, p. 46). Sua tese é que "o S. lógico é Uma expressão", no sentido de que ele eleva o sentido (Sinn) perceptivo da coisa "ao reino do logos, do conceituai, portanto do universal". Err\ outros termos, Husserl substitui a dicotomia objeto-conceito pela dicotomia sentido (ptírcebido)-conceito, na qual o conceito é a essência da coisa, a sua conceituaçâo ou ex­ pressão acabada (Ideen, I, § 124). Tentativa de redução análoga a esta foi feita por Royce, que, depois de fazer a distinção entre S. externo de uma idéia, que é a correspondência da idéia com o objeto, e seu S. interno, que é "o obje­ tivo consciente incorporado na idéia", reduz a este ú/tímo o próprio S. externo, com o funda­ mento de que é "a própria idéia que escolhe o objeto com o qual quer ser confrontada" {The World and the Individual, 1901, II, cap. I). 13) As principais tentativas de apresentar no­ vas espécies de S. em acréscimo ou em concor­ rência com as duas consagradas pela tradição sao as seguintes: Ia Definição de S. como uso. Esta é a tese encontrada em Philosophical Investigations (1953), de Wittgenstein. "Para uma vasta classe de casos — embora não para todos — , nos quais empregamos a palavra 'S.', esta pode ser assim definida: S. de uma palavra é seu uso na linguagem. O S. de um nome às vezes é expli­ cado indicando-se seu portador" (Op. cit, § 43). Mas, embora apresentada pelo próprio Wittgenstein e por outros em concorrência com a definição semântica de S., a noção de uso per­ tence a outra esfera de problemas e a outro ní­ vel de indagação. Com efeito, o problema a que diz respeito é o da formação dos significa­ dos; nas línguas naturais. O uso não éo S., mas determina-o, no sentido de que a ele é devida a conexão entre um objeto e uma palavra (ou em geral um veículo "sígnico"). Sem dúvida, as definições de um dicionário são estabelecidas pelo uso. mas exprimem a conotação e a denotaçào dos termos. Portanto, a teoria do uso não é uma teoria do S., mas uma teoria sobre a ori­ gem e a formação das línguas naturais. 2a A proposta de um S. emotivo, paralela­ mente ao S. "simbólico" ou "descritivo", foi fei­ ta por Ogden e Richards (Meaning of Meaning, 1923, ed. 1952, p. 149 e passim) e expressa por E. L. Stevenson da seguinte maneira: "S. emotivo é um S. em que a resposta (do ponto de vista de quem ouve) e o estímulo (do ponto de

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vista de quem fala) é um conjunto de emo­ ções" (Hthics andLanguage, 1944, p. 59). O S. emotivo assim entendido seria diferente do sig­ nificado simbólico, que consistiria em sua refe­ rência ao objeto, e o próprio significado pode­ ria ser definido em geral como a qualidade disposicional de um signo a produzir uma ou outra dessas reações, ou seja, um conjunto de emoções ou a referência ao objeto (Ibid., pp. 53 ss.). Deixando de lado o fato de que o uso do termo emotivo para indicar normas legais, prescrições técnicas ou comandos (coisas todas que caberiam na categoria dos significados emotivos) pode com motivo ser considerado aberrante (v. F.MOÇÀO), a doutrina em questão parece sugerida pelo fato cie que o significado denotatívo é restringido à referência a coisas reais, de tal maneira que muitos signos simples ou compostos parecem não ter denotação por­ que não se referem a coisas. Na realidade, a re­ ferência denotativa vale para objetos em geral (v. OHJETOS), e objetos são tanto as coisas reais quanto as quiméricas, tanto os planos, os proje­ tos, os desejos e as aspirações quanto as qua­ lidades sensíveis ou as entidades percebidas. Portanto, um enunciado que expresse uma ordem, um desejo ou um projeto pode ter, na situação a que tais coisas se referem, a sua denotação, vale dizer, seu objeto ou seu refe­ rente. Aliás, nem mesmo do ponto de vista lógico, que é o da teoria do significado, tais objetos podem ser distinguidos dos outros. 3a Na definição de significado como inten­ ção de quem fala, o S. seria aquilo que o falan­ te pretende dizer, sem se levar em conta a refe­ rência objetiva da palavra ou do enunciado empregado. Neste sentido, emprega-se "quer dizer..." (em inglês: Imean..., do verbo to mean, que tem a mesma raiz de meaning = S.), para esclarecer ou corrigir uma declaração. Está bem claro que qualquer descrição ou esclarecimento da intenção do falante só pode ocorrer através da determinação do objeto ao qual se refere, ou de sua conotação, ou seja, por meio do uso das dimensões próprias do significado. Portanto, tais dimensões são sim­ plesmente pressupostas pela definição em fo­ co. Às vezes é proposta como um S. acres­ centado ao tradicional (cf. M. BLACK, Problems ofAnalysis, 1954, pp. 55-56), porém está claro que a intenção do falante não é outra espécie cie significado, mas o modo como o falante usa as dimensões lógicas do significado.

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Associa-se a essa confusão entre intenção e S. o uso deste termo em frases como: "Um universo mecânico não teria S.", "Se tudo acon­ tecesse por acaso, a história não teria S.", nas quais a palavra S. obviamente eqüivale a inten­ ção ou objetivo, portanto a valor. 4a Proposta de um S. "pietórico" ou "imagético", paralelamente aos outros, porquanto "a linguagem pode ser empregada com a intenção primária de exprimir ou evocar pinturas (ou imagens) de um modo que difere do uso dos signos e formula possibilidades empiricamente significantes" (v. E. ALDKICH, Pictorial Meaning and Picture Thinking", em Readings in PhilosophicalAnalysis, 1949, pp. 175 ss.). Está claro que também esta proposta é sugerida pelo pressuposto (estranho a qualquer teoria lógica do S.) de que o objeto da referência é uma coi­ sa real ou uma situação de fato e de que não pode ser de outra natureza. Na realidade, os S. "pietóricos" têm conotação e denotaçào como todos os demais. 5a Definição do S. como vetor de campo, no sentido de que ele seria uma disposição atuali­ zada pelo objeto que se destaca do fundo de um campo ou contexto apropriado. Mais pre­ cisamente, ele seria a ativação ou a atualiza­ ção de uma resposta descritiva, provocada pelo objeto (A. P. USHHNKO, The Field Iheory ofMeaning, 1958, p. 109). Mas esta é uma teoria da formação dos S. (que pode ser dis­ cutida no âmbito da teoria da linguagem) e não traz inovações no que se refere à composi­ ção do significado do $., que continua determi­ nado por seus dois componentes: conotação e denotação (cf. Op. cit, pp. 75-76). SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE (in Kinds of meaning; fr. Espèces de signíficalion-, ai. Bedeutungsarten; it. Specie di significado). Po­ dem-se distinguir várias espécies de S. quando se deixa de fazer referência aos signos toma­ dos isoladamente e passa-se a fazer referência aos conjuntos de signos, aos enunciados. Estes podem ter: Ia um S. lógico; 2- um S. factual; 3y um S. expressivo. 1Q O enunciado tem S. tópico quando pode ser declarado verdadeiro ou falso com base no S. dos termos que o compõem. Têm S. desse gênero proposições do tipo "nenhum solteiro é casado", que também são chamadas de analíti­ cas ou tautologias e são objeto da lógica. (V. ANALÍTICO; LÓGICA.)

2- Têm S. factual os enunciados que, além de incluírem termos com S., são verificados por

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entanto, em sentido próprio e restrito, essa noção deve ser entendida como a possibili­ dade cie referência de um objeto ou aconteci­ mento presente a um objeto ou acontecimento não-presente, ou cuja presença ou não-presença seja é indiferente. Nesse sentido mais restrito, a possibilidade de uso dos S. ou semiose é a característica fundamental do comportamento humano, porque permite a utilização do passa­ do (o que "não está mais presente") para a pre­ visão e o planejamento do futuro (o que "ain­ da não está presente"). Nesse sentido, podese dizer que o homem é. por excelência, um animal simbólico, e que nesse seu caráter se ra­ dica a possibilidade de descoberta e de uso das técnicas em que consiste propriamente sua ra­ zão (v.). Ainda hoje é válida a doutrina do S. formu­ lada pelos estóicos. Estes chamavam de S,, de modo geral, "aquilo que parece revelar alguma coisa", mas em sentido específico chamavam de S. "aquilo que é indicativo de uma coisa obscura", não manifesta (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math, VIII, 143; Pirr. hyp., I, 99 ss.). Portanto, consideravam que os S. eram de duas espécies fundamentais: renwmorativos, que se referem a coisas apenas ocasionalmente obscuras, como p. ex. a fumaça, que é S. do fogo, e indicativos, que nunca são observados juntamente com a coisa indicada, que é obscura por natureza; neste sentido, diz-se que os movimentos do corpo são S. da alma Ubíd., VIII, 148-155). Sa­ METAFÍSICA; POPSIA). SIGNIFICANCIA (in. Significance-, ai. Be- bemos também que na capacidade de usar os dentsamkeit; it. Signíficanza). 1. O mesmo que S. os estóicos viam a diferença entre homens e animais (Ibid., VIII, 276), e que consideravam significado (v.). 2. Importância ou valor. Desse ponto de o S. um produto intelectual, identificando-o com "uma proposição constituída por uma conexão vista, diz-se, p. ex., que certos acontecimentos válida e reveladora do conseqüente 1' (Ibid, VIII, históricos são significantes. Os epicuristas, ao contrário, considera­ SIGNO (gr. crju.eiov; lat. Signum, in. Sign-, 245). que o S. tem natureza sensível, capaz de fr. Signe, ai. Zeíchen; it. Segno). Qualquer ob­ vam permitir e fundamentar a indução (Ibid.. VIII, jeto ou acontecimento, usado como menção cie 215 ss.; cf. INDUÇÃO). Mais tarde, nos moldes da outro objeto ou acontecimento. Esta definição, doutrina estóica, o S. continuou sendo definido geralmente empregada ou pressuposta na tra­ como relação de referência entre dois termos dição filosófica antiga e recente, é genera- conexos. S. Tomás não excluía que se pudesse líssima e permite compreender na noção de S. chamar de S. a causa de um efeito qualquer possibilidade de referência: p. ex., do oculto (S. Th, 1,70, a. 2, ad.sensível 2"). A lógica efeito à causa ou vice-versa; da condição ao ta distinguiu a referência do S. àquilo terminisque de­ condicionado ou vice-versa: do estímulo de nota, que é a relação cie significação instituída uma lembrança à própria lembrança; da pala­ da suposição (v.), que é a rela­ vra a seu significado; do gesto indicativo (p. arbitrariamente, ção pela qual o termo compreendido numa pro­ e.x., um braço estendido) à coisa indicada; do em lugar de alguma coisa (cf. PKDRO indício ou do sintoma de uma situação à pró­ posição estáSumin. log, 6.03). Ockham definiu o HISPANO, pria situação, etc. Todas essas relações podem ser compreendidas pela noção de signo. No S. como "tudo aquilo que, uma vez aprendido, um fato ou por um conjunto de fatos. Nesse sentido, têm S. factual as proposições das ciên­ cias naturais (física, química, etc). Semelhantes enunciados também costumam ser chamados de sintéticos, para distinguir dos enunciados analíticos da lógica. Reichenbach dividiu o S. factual em físico, que é a possibilidade física, ou seja, não contradiz as leis empíricas, e téc­ nico, que 6 a possibilidade técnica definida por métodos práticos conhecidos ("VeririabÜity Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 53 ss.). O S. lógico e o S. factual costumam ser cha­ mados de S. cognitivosou teóricos; os enuncia­ dos que possuem tais S. são reconhecíveis por possibilidade de serem declarados verdadeiros ou falsos. 5" Diz-se que têm S. expressivo as locuções que não têm S. teórico mas que apesar disso manifestam um estado de espírito do sujeito que os emprega ou servem para produzir esta­ dos de espírito análogos no .sujeito que os ouve. As interjeições, as exclamações, as expressões metafóricas têm S. desse gênero. Às vezes, especialmente por parte dos se­ guidores do empirismo lógico (v.), as expres­ sões da metafísica tradicional são consideradas enunciados desse gênero, negando-se-lhes qual­ quer valor cognitivo. Esse uso, porém, é polê­ mico e só pode ser registrado como tal (v. ARTK

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permite chegar a conhecer alguma outra coisa" (Sumr)ia log, I, 1). e fez a distinção entre S. natural, que é o conceito (ou intenção cia alma) enquanto produzido pela própria coisa do mes­ mo modo como a fumaça é produzida pelo fogo. e S. convencional, instituído arbitraria­ mente, que é a palavra Ubid., I. 14). A filosofia inglesa dos sécs. XVII e XVIII valeu-se ampla­ mente da noçào de S.. mas não o definiu de maneira nova. Hobbes dizia: "S. 6 o anteceden­ te evidente do conseqüente ou, ao contrário, o conseqüente do antecedente quando antes já tiverem sido observadas conseqüências seme­ lhantes; quanto mais vezes tiverem sido obser­ vadas, tanto menos incerto será o S." (I.eviatb.. I, 3). Berkeley utilizou a noçào de S. para defi­ nir a função das idéias gerais, eme seriam idéias particulares "adotadas para representar ou substituir outras idéias particulares do mes­ mo tipo" (Principies of Human Knouiedge. Intr., § 12). No último capítulo cie Ontologia. Wolff apresenta uma doutrina lúcida e incisi­ va do S., defininclo-o como "um ente do qual se infere a presença ou a existência passada ou futura de outro ente" (Ont.. § 952) e distin­ guindo, conseqüentemente, o S. demonstra/ii'o, que indica um objeto presente designado, o S. prognóstico, cujo ser designado é futuro, e o S. rememoratiro, cujo ente designado é passa­ do (Ihid, § 954). Com base nesses conceitos, é óbvio que qualquer procedimento cognoscitivo pode ser considerado semiológico. Km oposição a isso, Kant considerou, por um lado. as palavras e os S. visíveis (algébricos. numéri­ cos, etc.) como simples expressões dos concei­ tos, ou seja, como "caracteres sensíveis que de­ signam conceitos e servem apenas como meios subjetivos de reprodução, e. por outro lado, os símbolos como representações analógicas, infra-intelectuais, dos objetos intuídos (Crít. do Juízo, § 59; Antr, I, 38). Portanto, segundo Kant, "quem só sabe expressar-se de modo simbólico tem poucos conceitos intelectuais, e aquilo que freqüentemente se admira na vivida expressividade presente nos discursos cios sel­ vagens (e às vezes também dos supostos sá­ bios de um povo rude) não passa de pobreza de idéias, portanto também de palavras para expressá-las" (Ibicl., 38). No entanto, os kantianos não foram tão contrários quanto seu mestre a reduzir qualquer conhecimento ao uso de signos. H. Helmholtz considerava as sensações como sinais produzidos em nossos órgãos dos sentidos pela ação de forças exter­

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nas, e atribuía a validade desses S. ao fato de terem entre si uma ordem que reproduz a ordem existente entre as coisas, e não o fato de serem semelhantes às coisas (Die Tatsachen in der Wabniehmung, 1879). Na mesma linha de pensamento. E. Cassirer estudou as formas simbólicas da vida humana e seu significado conceituai (Die Philosophie der symboliscben formen, 3 vol., 1923-29), e chamou o homem de animal syuibolicum (Kssay on Man, 1944, cap. II; trad. it., p. 49). Quando, por influência da lógica matemáti­ ca, a teoria dos S. volta a ser estudada na filoso­ fia contemporânea, seus traços fundamentais não variam, mas é-lhe acrescentada outra or­ dem de considerações, mais precisamente as que se incluem na chamada pragmática (v.). vale dizer, as que concernem à relação do S. com seus intérpretes. Pode-se dizer que. desse ponto de vista, o objeto da semiótica, que é a teoria dos signos, não é mais o próprio S., mas a semiose (v.), ou seja, o uso dos signos ou o comportamento semiótico. Essa orientação foi inaugurada por E. S. Peirce. Depois de dar a definição tradicional cio S. (como "algo que, uma vez conhecido, conhecemos outra coisa), Peirce acrescentou que "S. é um objeto que. por um lado, está em relação com seu objeto e. por outro, em relação com um interpretante, de tal modo eme produz entre o interpretante c o objeto uma relação correspondente à sua pró­ pria relação com o objeto." 0 S. é, pois. uma reUiçào triádica entre o próprio S., seu objeto e o interpretante (Coll. Pap.. 2.243 ss.; 8.332). Conseqüentemente. Peirce classificava os S. se­ gundo três pontos de vista diferentes: por si mesmos; em sua relação com o objeto; em sua relação com o interpretante. Considerados em si mesmos, os S. podem ser: aparências ou jualissignos; objetos ou acontecimentos indi­ viduais, vale dizer, sinsignos (nessa palavra. >> é a primeira sílaba cie semel, siiuul, similar. etc); tipos gerais ou legissignos (Ihid.. 8.334). Considerado em relação ao objeto representa­ do, o S. pode ser: um ícone, como p. ex. uma percepção visual ou auditiva; um índice, como um nome próprio ou o sintoma de uma doen­ ça; ou um símbolo, cjue é um S. convencional (Jbid, 8.335). Km relação ao objeto imediato, o S. pode ser de uma qualidade, de um ente ou ele uma lei. Finalmente, em relação ao interpretante. o S. pode ser um rema. um enun­ ciado ou um tema. isto é, um termo, uma proposição ou um raciocínio (Ibid, 8.337). Essa

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classificação foi depois reexposta pelo próprio Peirce com outra terminologia, mais aceita. Chamou de tipo a forma definidamente significante, que não é uma coisa única ou um evento único, que não existe por si mas é de­ terminada por coisas que existem; chamou de ocorrência (tok.en) o evento singular que ocor­ re uma única vez, assim como uma palavra que se encontra numa única linha de uma única pá­ gina de uma única cópia de um livro; e cha­ mou de tom (tone) o caráter significante indefi­ nidamente significante, como o tom de voz (Co//. Pap, 4.537). Essas três espécies corres­ pondem ao legissigno, sinsigno e qualissigno da classificação anterior (v. PALAVRA; TIPO). Teve muito sucesso (imerecido) a classifica­ ção proposta por Ogden e Richards em The Meaning of Meaning (1923). Distinguiram o uso simbólico do uso emotivo dos S.; o uso sim­ bólico é a asserçào, ou seja, a referência do S. a um objeto; o uso emotivo tende a expressar e a produzir sentimentos e atitudes. "Na função simbólica incluem-se tanto a simbolização da referência quanto a comunicação dela ao ouvinte, vale dizer, a produção de referência semelhante no ouvinte. Na função emotiva incluem se tanto a expressão de emoções, ati­ tudes, disposições, intenções, etc. do falante, quanto a comunicação dessas emoções, etc, que é a sua evocação no ouvinte" (The Mea­ ning of Meaning, 10a ed., 1952, p. 149). Essa classificação foi utilizada (especialmente por E. L. STKVENSON, Fthics and Language, 1944) na análise da linguagem da moral e, em geral, da linguagem normativa, mas seus fundamentos não são consistentes, sobretudo pela impossi­ bilidade de propor um critério simples e sufi­ cientemente seguro para se fazer a distinção proposta nos casos particulares. Classificação mais adequada e menos preconcebida é a de Morris, que distingue os identificadores, que significam a localização no espaço e no tempo; os designadores, que significam as característi­ cas do meio-, os apreciadores, que significam um status preferencial; os prescrítores, que significam a solicitação de respostas específicas (Signs, Language and Behavior, 1946, III, 2; trad. it., p. 97). Desses S., chamados em con­ junto de lexicais, Morris distingue os S. forma­ dores, que significam que "a situação significada de outro modo é uma situação alternativa" (Ibid, VI, 1). Estes últimos são divididos por sua vez em determinadores, como "todos", "alguns", "nenhum"; em conectores, como vír­

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gulas, parênteses, cópula, conjunções e, ou, etc; e em modalizadores, que são, p. ex., pon­ tos de exclamação, etc Morris revalidou na filosofia contemporânea a teoria do S. estabe­ lecida por Peirce, introduzindo uma termino­ logia útil: chamou de veículo o objeto ou o acontecimento que serve como S.; de designa­ do o objeto a que o S. se refere; de ínterpretante o efeito do S. sobre o intérprete, ou seja, o sentido do S.; e de intérprete o sujeito do processo semiológico (Foiindations ofthe Theory of Signs, 1938, II, 2). Na esteira de Peirce, Morris também insistiu no caráter comportamental do processo semiológico; aliás, procurou definir o S. em termos exclusi­ vamente comportamentais. A definição a que chegou é a seguinte: "Se A orienta o comporta­ mento para um objetivo de maneira semelhan­ te (mas não necessariamente idêntica) á ma­ neira como B orientaria o comportamento para o mesmo objetivo no caso de se observar B, então A é um S." (Ibid, I, 2; trad. it., p. 21). É evidente a influência que a teoria cios reflexos condicionados exerceu sobre essa definição (v. AÇÃO REELKXA). Carnap — e com ele muitos outros — aceitou os fundamentos da teoria de Morris, bem como a divisão da semiótica geral nas três partes por ele propostas (cf. R CAKNAI\ Foiindations ofLogic andMathematics, 1939,1, 2; trad. it., pp. 6-7) (v. SEMIÓTICA). SILÊNCIO (lat. Silentium; in. Silence, fr. Silence-, ai. Schweígen; it. Silenzio). Atitude mís­ tica diante da inefabilidade do ser supremo (cf, p. ex., BOAVF.NTURA, Itínerarium mentis in Deum, VII, 5). Segundo Jaspers, a atitude dian­ te do ser da Transcendência (Phil, III, p. 223)- Segundo Wittgenstein, a atitude diante dos problemas da vida: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Tractatns, 7). SILOGISMO (gr. auÀXoyiOLtóç; lat. Syllogismus; in. Syllogisni; fr. Syllogisme, ai. Syllogismus; it. Síllogismo). Essa palavra, que na ori­ gem significava cálculo e era empregada por Platão para o raciocínio em geral (cf. Teet., 186 d), foi adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo, definido como "um discurso em que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente" (An. pr. I, 1, 24 b 18; I, 32, 47a 34). As característi­ cas fundamentais do S. aristotélico são: l'J cará­ ter mediato; 2- necessidade. O caráter mediato do S. decorre do tato de ser a contrapartida lógico-lingüística do conceito metafísico de subs­ tância. Em virtude disto, a relação entre duas

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determinações de uma coisa só pode ser estabelecida com base naquilo que a coisa é necessariamente: sua substância; p. ex., para decidir se o homem tem a determinação mor­ tal", só se pode levar em consideração a subs­ tância do homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar da maneira seguinte: Todos os animais são mortais; todos os ho­ mens são animais; logo todos os homens são mortais". Isso significa que o homem é mortal porque animal: a animalidade é a causa ou a razão de ser de sua mortalidade. Nesse senti­ do, diz-se que a noção "animal" desempenha a função de termo médio do S.: obviamente, o termo médio é indispensável no S. porque re­ presenta a substância, ou a alusão à substância, e somente esta possibilita a conclusão (An. post.. II, 11, 94 a 20). Portanto, o S. tem três ter­ mos, a saber o sujeito e o predicado da conclu­ são e o termo médio, mas é a função do termo médio que determina as diferentes figuras do silogismo (v. SILOGÍSTICA). Além das figuras, Aristóteles distinguiu várias espécies de silogis­ mo. O S. é por definição uma dedução neces­ sária: portanto, sua forma primária e privilegia­ da é o S. necessário, que Aristóteles chama também de demonstrativo, ou científico, ou S. do universal (An. pr., I, 24, 25 b 29). Dele se distingue o S. dialético, que se baseia em pre­ missas prováveis, sendo, pois, apenas provável (Md, II, 23, 68b 10; An.post., II, 8, 93 a 15). É também chamado de retórico-, uma espécie dele é o S. erístico, baseado em premissas que parecem prováveis mas não são ( Top, I, 1, 100 b 23). Dos S. necessários, a primeira e melhor espécie é a dos ostensivos (v.), que Aristóteles contrapõe aos que partem de uma hipótese (An. pr, I, 23, 40 b 23). Kstes últimos não são aqueles que serão chamados depois de S. hi­ potéticos, mas aqueles cuja premissa maior não é a conclusão de outro S.. nem é evidente por si, mas é tomada como hipótese (Ibid., I, 44, 50 a 16). Uma das espécies desses S. é aquele que conclui mediante a redução ao absurdo (Ibid., 50 a 29). Entre os S. ostensivos, os mais perfei­ tos são os universais da primeira figura, nos quais é possível integrar todas as outras formas de S. (Ibid, I, 7, 29 b 1). Finalmente, do S. de­ dutivo distingue-se o S. indutivo ou indução (Ibid, I, 23, 68b 15). Por outro lado, não são espécies de S. aquilo que Aristóteles chama de S. geométrico, médico, político (Top, I, 9, 170 a 32) eprãtico(Et. nic, VI, 12, 1044 a 3D. que se distinguem entre si apenas pelo conteúdo dos

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princípios a que se referem, e não pela forma lógica. A rigor, tampouco são espécies de S. os S. compostos, como o epiquírema ou o sorites; ou truncatlos, como o entimema: sobre cada um deles, v. os verbetes correspondentes. Também não é silogismo a divisão, que é um dos métodos da dialética de Platão, que Aristóteles chama de "S. fraco" (An. pr, 1, 31, 46 a 33). Os estóicos, que não fundamentaram sua lógica com a teoria da substância, mas com a da percepção, não consideraram como tipo fundamental de raciocínio o S., mas o raciocí­ nio anapodítico, que tem somente dois termos e cuja premissa maior é uma proposição condi­ cional ("Se é dia há luz. Mas é dia. Logo há luz"; v. ANAPODÍTICO). OS aristotélicos, a partir de Teofrasto, traduziram os raciocínios anapodíticos dos estóicos para os esquemas aristotélicos, acrescentando ao S. categórico de Aris­ tóteles, como duas outras espécies de S., o hipotético e o disjuntivo (cf. PRANTL, Geschichtc der logik, I, p. 375 ss.; os textos fundamentais são apresentados por Alexandre, Ad an. pr, f. 134 a-b). Essa doutrina íoi transmitida â filoso­ fia ocidental pela obra de Boécío, que se inspi­ rava em autores posteriores, principalmente em Galeno (De syilogismo hypothetico, em P. L, 64). A doutrina do S., assim completada, foi transmitida pela tradição sem mudanças subs­ tanciais; depois disso, os lógicos só deram livre curso à fantasia, atribuindo nomes para qual­ quer modificação insignificante nas estruturas tradicionais. fá dissemos que o fundamento do S. aristotélico é a teoria da substância (cf. Vi ANO, Ia lógica diAristotele, 1955, III, 6). Como estrutu­ ra necessária do ser, a substância garante a liga­ ção entre as determinações, cuja conexão é de­ monstrada pelo S.: assim, essa conexão nada mais é que a própria necessidade com que se interligam as determinações da substância. A necessidade dessa ligação é expressa na uni­ versalidade da predieação: universalidade que em Aristóteles serve de base para o "S. perfei­ to". Segundo Aristóteles, "dizer que uma coisa está contida na totalidade de outra coisa é o mesmo que dizer que um termo é predicado por todas as coisas do outro termo. E dizemos que se predica de todas as coisas sempre que não haja coisa alguma daquelas pelas quais o sujeito pode ser tomado de que não seja pos­ sível predicar a coisa em questão"(/l«.pr., I, 1, 24 b 26). Ser um termo na totalidade de outro

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termo é a relação de inerência que. segundo Aristóteles, expressa a necessidade do ser predicativo (v. SKR). Nessa relação de inerência Ixiseia-se a predicação de onuii, ou seja. a referência do predicado a qualquer coisa indicada pelo sujeito. Em seguida, na lógica medieval, foi justamente o princípio de omiti que se reconheceu como fundamento do S. His como era expresso por Pedro Hispano: "Ser dito de omni é quando não se admite no sujeilo nada de que o predicado não seja dito, como p. ex. todo homem corre'. Ser dito de niilloé ([liando não se admite no sujeito nada de ([lie o predicado não seja removido, como p. ex. 'nenhum homem corrc'"(Snmm. log., 4.01). Hsta lei fundamental do S. foi expressa nos mesmos termos por uma longa tradição (d., p. ex., Jr\c,it s, Lógica hambnrgensis. III. 11,4; WOI.FF, Log., § 346). Na lógica tradicional, 0 díctum de omiti et millo nunca leve significa­ do extensivo: a possibilidade de que alguma coisa seja dita de onuii não passa de inerência necessária do predicado ao sujeito. Kant quis dar ao S. um fundamento semântico, que ele expressou com as seguintes regras: "a nota [ca­ racterística 1 de uma nota é uma nota da própria coisa" (nota nolaeesteiiam nota rei ipsins); "o que repugna ã nota repugna à própria coisa { repngnaits itotae repngnat rei ipsiT, mas reconheceu que essa fórmula é apenas outro modo de expressar o princípio de omiti: modo cuja única vantagem é evitar a "falsa sutileza" da distinção das quatro figuras (Die falsche Spitzjindigkeit der vier syllogistiscben Figiiren, 1 62, § 2). Fm Lógica (\H()í.)), Kant recorreu ao fundamento tradicional do S., clefinindo-o como "o conhecimento da necessidade de uma pro­ posição mediante a subsunção de sua condi­ ção a uma regra geral dada" (Lvgik § 56): o princípio geral do S. é assim expresso: "O que está sob a condição de uma regra está também sob a própria regra". Kant observa que o S. pressupõe: a) uma regra geral; b) uma subsunção â condição que ela expressa; e acrescenta que "o princípio de que tudo está sob o universal e 6 determinável em regras universais também é o princípio da racionalidade ou da necessida­ de" (principiam ralíonalitatis, sen necessitatís) (Ibicl., § 57). Por outro lado, porém, Leibniz tentara ex­ pressar o fundamento do S, em termos de extensão, depois de distinguir claramente ex­ tensão e intensâo: "Ao dizer 'todo homem é animal' quero dizer que todos os homens estão

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compreendidos em todos os animais, mas ao mesmo tempo estou entendendo que a idéia de animal está compreendida na idéia de ho­ mem. Animal compreende mais indivíduos que homem, mas homem compreende mais idéias e mais formas: um tem mais exemplos, o outro tem mais graus de realidade; um tem mais ex­ tensão, o outro tem mais intensâo. Portanto, pode-se talvez dizer sem ferir a verdade que toda a doutrina silogística poderia ser demons­ trada pela doutrina cio continente e cio conteú­ do, do compreensivo e do compreendido, que é diferente da doutrina do todo e da parte, pois o todo sempre excede a parte, ao passo que o compreensivo e o compreendido às vezes são iguais, como acontece nas proposições recípro­ cas" (ISoitf. ess., IV. 1~\ 8). Mas foi principal­ mente Hamilton quem impôs o ponto de vista extensivo como fundamento do S.. com base naquilo que ele chamava de "lei cie identidade ou nào-identidade proporcional". segundo a qual o S. se baseia unicamente nas três possí­ veis relações entre os termos: 1" de co-ínclusào toto-lotal, ou seja, de identidade ou de absoluta conversibilidade ou reciprocação; 2- de coe.xchisão lolo-total, ou seja, de nào-identidade ou de absoluta nào-conversibilidade ou nàoreciprocaçào; 3" cie co-inclnsào incompleta, que implica uma relação de co-exchtsào in­ completa, ou seja, identidade ou nào-identidade parciais, ou conversibilidade ou recipro caçào relativas (Leclnres ou Logic, II. 1866, pp. 290 ss.). O próprio Hamilton teve a preocupa­ ção de ressaltar os precedentes de sua doutri­ na, mas não inclui entre eles o principal, que é Leibniz (Ibid., 346-18). A lógica posterior de inspiração aristotélica não seguiu, nesse aspec­ to, a doutrina de Hamilton, retornando à inter­ pretação intensiva do fundamento do silogis­ mo. Na realidade, o legado da proposta de Hamilton seria acolhido principalmente pela lógica matemática; esta, porém, a partir de sua primeira manifestação, as Leis do pensamento (1854) de G. Boole, alinhou-se com o empirismo (ver adiante) e negou ao S. seu primado de forma fundamental e típica do raciocínio. Boole dizia: "O S.. a conversão, etc. não são os últimos processos da lógica. Baseiam em outros processos mais simples, que constituem os elementos reais do método em lógica, e neles se resolvem. De tato não é verdade que qualquer inferência seja redutível às formas particulares cie S. e de conversão" (Laws of Thought. cap. 1, Dover Pubblications, p. 10).

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Segundo Boole, "os processos elementares da lógica são idênticos aos processos elementares da aritmética" (Ibicl, p. 11): afirmação que ser­ viu de base para toda a evolução posterior da lógica matemática. Mas com isso o S. era defini­ tivamente derrubado de seu trono de tipo fun­ damental do raciocínio dedutivo, feito que a crítica empirista não lograra totalmente. Desde então, o S. deixou de ser um capítulo autô­ nomo da lógica, e a preocupação dos lógicos em relação a ele consiste unicamente em mostrar que ele pode ser resolvido e expres­ so nas fórmulas de cálculo que preferirem: preocupação que não deixa de ser acompanha­ da por perplexidade (cf., p. ex., W. v. O. QHNK, Metbodsof Logic, 1952, § 14: A. CHIRCH, Introduction to Mathemutical Logic, J 956. § 46.22). Como já dissemos, independentemente da discussão sobre seus fundamentos, a validade do S. foi questionada várias vezes do ponto de vista do empirismo. Para Sexto Empírico, o S. ou era a repetição inútil do que já se conhece, ou um círculo vicioso: isso porque a premissa maior ("Todos os homens são mortais") impli­ caria já a verdade da conclusão ("Sócrates é mortal") (Pirr. hyp, I, 163-64; II, 196). Stuart Mill observava a propósito que não existe cír­ culo vicioso, porque, ao se chegar à proposi­ ção geral, a inferência terá terminado, e só nos restará "decifrar nossas observações" (Logic, II. 3. 2). Mas isso significa reduzir o S. á simples decifraçào de notas já possuídas. Bacon obser­ vara que "o S. torça o assentimento, mas não a realidade" (Nor. Org, I, 13). Foi essa a idéia que, graças a Loeke, prevaleceu no que se re­ fere á natureza do S.: este não descobre nem idéias nem a correlação entre idéias, que só a mente pode perceber, mas "demonstra apenas que, se a idéia do meio concorda com as outras a que se refere imediatamente de ambos os lados, então essas duas idéias distantes (ou das extremidades) certamente concordam". Assim, "a conexão imediata de cada idéia com aquelas a que se aplica de ambos os lados — conexão de que depende a força cio raciocínio — é bem percebida tanto antes do S. quanto depois dele, pois ao contrário quem faz o S. nunca poderia enxergá-la" (Ensaio, IV, 17, 4). Essa famosa crítica de Locke deu início á perda de supremacia do S., o que terminaria com o predomínio da lógica matemática na segunda metade do século XIX. SILOGÍSTICA (in. Syllogislic, fr. Syllogistique, ai. Syllogíslik it. Sillogistica). É a teoria

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SILOGÍSTICA

do silogismo (v.). Desenvolvida pela primeira vez por Aristóteles em Analylica priora, em poucos anos transformar-se-ia no cerne da lógi­ ca, continuando como tal até o advento da ló­ gica matemática contemporânea. A parte mais antiga é a teoria do silogismo dedutivo categó­ rico, exposta pelo próprio Aristóteles. Este fixa os quatro modos válidos da primeira figura (as figuras são caracterizadas pela posição do ter­ mo médio: na primeira, funciona como sujeito na premissa maior e como predicado na me­ nor; na segunda, é predicado em ambas as premissas; na terceira é sujeito em ambas, don­ de a necessidade de converter uma das premissas. Os modos dispòem-se assim: em primeiro lugar, os que concluem com uma proposiçào universal afirmulivn, depois o.s que concluem com uma universal negativa, em se­ guida os que concluem com uma particular afirmativa e finalmente os que concluem com uma particular negativa). A seguir, passa à aná­ lise dos modos possíveis da segunda e da ter­ ceira figuras, demonstrando sua redutibilidade. principalmente por meio da técnica de conrcrsào(v.), a modos correspondentes da primeira. Depois disso, Teofrasto formulou os modos da quarta figura, mas parece que seu reconheci­ mento e sua exposição como figura indepen­ dente couberam a Galeno. Todavia, mais tarde, vários lógicos como Averróis, Zabarella e. na idade moderna, Wolff e Kant, pronunciaram-se contrários a ela, pois a consideraram substan­ cialmente inútil. De fato os modos dessa figura não passam de modos indiretos da primeira, com permuta das duas premissas; além disso, alguns deles (o primeiro e o quarto) não "con­ cluem necessariamente" (condição essencial, segundo Aristóteles, para que haja silogismo). A essas quatro figuras, o.s lógicos modernos acrescentaram os cinco modos "fracos" obtidos da primeira e da segtinda (e quarta) por subalternação (substituição da conclusão universal por uma particular). Essa teoria, já amplamente explorada pelos fomentadores cio fim da Antigüidade, peripatéticos e neoplatônicos, e depois sintetizada por Boécio, foi reelaborada pelos lógicos me­ dievais, tornando-se extremamente formalista. Com efeito, coube aos grandes terministas me­ dievais transformar todos os modos em fórmu­ las, de acordo com uma técnica complicada: com quatro vogais (a, e, i, o) indicaram os qua­ tro tipos de proposição (respectivamente: uni­ versal afirmativa [a], universal negativa \el, par­

SILOGISTICA ticular afirm ativa [/]; particular negativa [o]); com B, E, D, F, indicaram os quatro m odos da prim eira figura, d esign and o -o s com as palavras-fórm ulas Barbara, Celarent, Darii, Ferio, em que as únicas letras significativas são as ini­ ciais e as três vogais (que indicam o tipo de p ro p o siç ão no que diz resp eito à prem issa m aior, à prem issa m en o r e à conclusão). Q u an ­ to aos m odos das outras três figuras, as três p ri­ m eiras vogais têm o significado de costum e; as iniciais indicam a que m odo da prim eira figura se reduzem ; além disso, são significativas algu­ m as letras m inúsculas p o sp o stas à vogai, que indicam o p erações a serem realizadas nas p ro ­ po sições indicadas p o r aq u ela v o g ai:s: conver­ são "simplíciter"; p : conversão "per accidens"; m: m etátese das prem issas; c. "reduetio ad im possibile". O ra, teoricam ente, os m odos m a­ tem aticam en te possíveis em q u alq u er figura são 16, obtidos com a co m b in ação dois a dois em todo s os m odos possíveis (com repetição); as quatro letras a. e, /', o (po is no silogism o o que decide são as prem issas, e as prem issas são d u as): aa, ea, ia, oct; ae, ee, ie, oe-, ai, ei, ii, oi; ao, eo, io, oo. Portanto, resultariam 64 m o­ dos, m as desses são válidos so m en te os se­ guintes 19: Ia figura: B arbara, C elarent, Darii, Ferio; 2a figura: C esare. C am estres, Festino, Baroco; 3a figura: D arapti, Disam is, Datisi, Felapton, B ocardo, Feriso; 4a figura: B aralipton, C elan tesío u C alem es), D abitis, Fapesm o, Frisesm orum . Mais os m odos "fracos": Barbari, Celaront, Cesaro, Cam estros, Calem os (obtidos de Barbara, Celarent, Cesare, C am estres, C alem es). Foram tam b ém os lógicos da Idade M édia que introduziram o silogism o com p ro p o siçõ es singulares (com o "Todos os h o m en s são m or­ tais; Sócrates é hom em ; logo Sócrates é m or­ tal"), que não se incluíam na S. p ro p riam en te aristotélica, totalm ente baseada na acepção uni­ versal dos term os, po rtan to no uso dos o p era­ dores "tudo" e "em parte" [alguns]. De origem estóica, m as devido em grande parte à elaboração dos lógicos m edievais (a partir de Boécio) é o im portante capítulo da teo­ ria do silogism o h ipotético e disjuntivo. O si­ logism o hipotético consiste em um a prem issa (dita m aior) que estab elece im plicação entre um enun ciad o e outro ("se A, B"), em um a p re­ missa (dita m enor) que afirm a ( m odusponens) ou nega (modus tollens), resp ectiv am en te, o

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SILOGISTICA an teced en te ou o co n seq ü en te da implicação c o n tid a na m aior; a c o n c lu sã o afirm a ou resp ectivam en te nega o co n seq ü en te ou o an­ teced ente:

modusponens: se A, B modus tollens: se A, B A não/J logo B logo não-/) A n alogam ente, o silogism o disjuntivo con­ siste em um a prem isssa (m aior) em que são afirm adas (modus tollendo ponens) ou reci­ p ro cam en te n egad as (m odusponendo tollens) duas p ro p o siçõ es, em um a prem issa (menor) em que é negada, ou, respectiv am ente, afirma­ da um a das disjuntas da prem issa maior, e na conclusão, que consiste em afirm ar ou, respec­ tivam ente, negar, a outra disjunta:

modus tollendoponens: A ou B TãiQ-B logo A modusponendo tollens: ou A ou B A

A ou B não-/) logo B ou A ou B B

logo não-/J logo nào-A4

A pesar de certas analogias forçadas, estes ti­ pos de "silogism o" rep resen tam um a estrutura co m p letam en te diferente da do silogism o cate­ górico, de tal m aneira que, se não se levasse em consideração a etim ologia, dificilm ente po­ deriam ser cham ados de silogism o; com efeito, para u sarm os a linguagem da lógica contem­ porânea, eles pertencem ao cálculo proposidonal sim ples e baseiam -se em im plicações materiais, ao p asso que os m odos do silogism o categó­ rico p erten cem ao cálculo das funções proposicionais e baseiam -se em im plicações for­ m ais. N ão o b s ta n te , na ló g ic a m oderna, p rin cipalm ente no séc. XIX, foi feita um a ten­ tativa (m as em bases m ais gnosiológicas e epistem ológicas que p ro p riam en te lógicas) de reduzir o silogism o categórico a silogism o hi­ potético, in terp retand o o prim eiro com o infe­ rência bipotético-dedutíva: "se todos os ho­ m ens são m ortais, e se Sócrates é homem, S ócrates é m ortal". M as a ex p o sição lógica com pleta desta últim a form a de inferência mos­ tra que na realidade ela não se reduz a nenhu­ m a das duas form as clássicas, perdendo-se a concisão rigorosa e a estrutura ternária destas. Faltaria considerar o silogism o indutivo, mas seu estudo não p erten ce à S. propriam ente dita (v. INDUÇÃO). G.P.

SIMBOLISMO

SIMBOLISMO (in. Symbolism; fr. Sytnbolisme, ai. Symbolismus; it. Simbolismo). 1. Uso dos signos, ou seja, comportamento semiológico ou semioseiv.). 2. Uso de um sistema de signos especial (p.

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SIMPATIA

de número de potências variadas que colabo­ ram para a unidade desse grande animal que é o universo." (Enti., IV, 4, 40). Plotino também dizia que "a S. é como uma corda esticada, que ao ser tocada numa das pontas transmite o mo­ vimento para a outra ponta.(...) K se a vibração ex., o "S. matemático"). 3. Liso de símbolos no 2^ sentido do termo: passa de um instrumento para o outro por S., de signos convencionais e secundários (signos também no universo há uma harmonia única, de signos, como ocorre na arte, na religião, que às vezes é feita de contrários, mas outras etc). Neste sentido, essa palavra é usada por vezes é feita também de partes semelhantes e Cassirer ao falar da expressão simbólica como congêneres" (Ibid., IV, 4, 41). A magia insereforma mais madura de desenvolvimento lin­ se na S. universal e, recorrendo a meios opor­ güístico, marcada pela distância entre o signo e tunos, aproveita-a para suas próprias finalida­ seu objeto" (lhe Philosophy ofSymbolic Forms, des, realizando assim efeitos que parecem II, p. 237); de fato, essa distância é própria do extraordinários e milagrosos. F.sse conceito de S., que pressupõe a animação de todas as coi­ comportamento semiológico. SÍMBOLO (in. Symbol;fr. Symbole, ai. Symbol; sas, é o fundamento da magia, sendo admitido it. Símbolo). 1. O mesmo que signo. É com esta igualmente por todos os mágicos da Renascen­ significação genérica que a palavra é mais usa­ ça (cf. CAMPANEI.I.A, De sensu rerum, IV. 1; 14; AGRIPA, De oceulta philosophia, I, 1; I, 37; da na linguagem comum. De vahetatererum. 1,1-2; G. B. ELMONT, 2. Uma espécie particular de signo. Segundo CARDAN, Opusculapbílosophica, I, 6, etc). Peirce: "Um signo que pode ser interpretado em conseqüência de um hábito ou de uma dis­ Com o declínio da magia no mundo moder­ posição natural" (Coll. Pap, 4.531). Segundo no, o significado de S. limitou-se a indicar a Dewey, um signo arbitrário ou convencional comunhão de emoções entre os indivíduos (Logic, Intr., IV, trad. it., p. 93). Segundo Morris: humanos. Hume foi o primeiro a insistir na um signo que substitui outro signo na orienta­ importância da S. no que se refere à formação ção de um comportamento (Signs, Language de todas as emoções humanas: "Nenhuma qua­ andBehavior, I, 8). Segundo outros, um signo lidade da natureza humana é mais importante típico, em contraposição ao signo individual, em si mesma ou em suas conseqüências do que é a palavra como significado (v. PALAVRA) que a propensão que temos a simpatizarmos (M. BLACK, Language and Philosophy, VI, 2; uns com os outros, a recebermos a comunica­ trad. it., p. 181). ção das inclinações e dos sentimentos dos SIMETRIA (in. Symmetr\>, fr. Symétrie, ai. outros, por mais diferentes que sejam dos nos­ Symmetrie; it. Simmetria). Mensurabilidade, sos, ou mesmo contrários. (...) A esse princípio proporção ou harmonia. Diz-se que é simétri­ podemos atribuir a grande uniformidade obser­ ca a relação entre os dois termos nos dois sen­ vável nos humores e nos modos de pensar dos membros de uma mesma nação: é muito mais tidos: p. ex., a relação "irmão" (v. RELAÇÀO). SiMpAHA (gr. 0"ULt7iá6eta; in. Sympathy, provável que essa semelhança surja da S. que fr. Sympatie; ai. Sympathie, it. Simpatia). Ação da influência do solo e do clima, que, apesar recíproca entre as coisas ou sua capacidade de de serem sempre os mesmos, não conseguem influência mútua. Esse conceito é antigo e des­ manter inalterado por um século inteiro o cará­ de a antigüidade foi aplicado tanto á realidade ter de uma nação" (Treatise, 1738, II, I, 11). É de humana quanto à física, mas foi usado pelos fi­ se notar que Hume atribuiu à S. o caráter que lósofos antigos principalmente em relaçào ao mais tarde seria ressaltado por Scheler e rejei­ mundo físico. Para os estóicos, a S. é o nexo tado por autores mais modernos: o fato de ela que interliga as coisas, mantém-nas ou as faz nào implicar nenhuma identidade de emoções convergir para a ordem do mundo (ARNIM, ou fusão emocional nas pessoas entre as quais Stoicorumfragmenta, II, p. 264). Para Plotino, ocorre. Adam Smith só fez adotar a idéia diretiva a S. era o fundamento da magia: "De onde de Hume, ao considerar a S. como base da vida provêm os encantamentos? Da S., graças à qual moral e ao entendê-la como "a faculdade de há uma concordância natural entre coisas se­ participar das emoções de outrem, sejam elas melhantes e discordância natural entre as coi­ quais forem" (Theory of Moral Sentiments, 1759, sas diferentes, e graças â qual também há gran­ I, 1, 3). Ocasionalmente, recorreu-se à S. no

SIMPLES

campo estético e biológico, chamando-a às vezes de empatia (v.). Bergson devolveu à S. o cará­ ter instintivo e viu nela a possibilidade de apre­ ender diretamente a natureza da vida: "O ins­ tinto é simpatia. Se essa S. pudesse estender seu objeto e refletir sobre si mesma, dar-nos-ia a chave das operações vitais, da mesma manei­ ra como a inteligência, desenvolvida e retificada, nos introduz na matéria" (Erol. créatr, 8- ed., 1911, p. 191). Por outro lado, numa obra famo­ sa sobre a S., Scheler distinguiu-a dos fenôme­ nos afins mas não idênticos, especialmente da­ quilo que ele chama de contagio emotivo ou fusào emotiva. A fusão emotiva consiste em ter a mesma emoção de outrem: p. ex., os pais que perderam um filho sentem a mesma dor. A S., ao contrário, não supõe a identidade de emo­ ções: participar da dor alheia por sentir pieda­ de não significa sentir a mesma dor. Por isso, para Scheler a S. era o componente da compreen­ são, que é condicionada pelo reconhecimento cia alteridacle entre as pessoas: "A S., a partici­ pação afetiva autêntica, 6 uma função e não comporta um estado afetivo na pessoa que o sente. O estado afetivo de B. implícito na pie­ dade que sinto por ele, para mim continua sendo o estado afetivo cie B: não passa para mim, quando o lastimo, e não produz em mim um estado semelhante ou idêntico" (SympaIhíe. 1923. 1; trad. fr., p., 69). SIMPLES (gr. á7T>.óoç: lat. Simple.x-, in. Simple-, fr. Simple; ai. Hinjdcb; it. Semplice). Aquilo que carece de variedade ou de composição, vale dizer, o que existe de um único modo ou é destituído de partes. Aristóteles entendeu o S. no primeiro sentido, como falta de variedade: "No sentido primário e fundamental o que é S. é necessário porque não é possível que o S. seja ora de um modo, ora de outro" (Met.. V. S. 1015 b 12). Leibniz usou essa palavra no se­ gundo sentido, ao definir a mônada como substância S.. porque sem partes (Monad., § 1). Foi graças a Wolff que esse conceito se consolidou com esse sentido (Ont., § 673). Na lógica termini.sta medieval usava-se com o mes­ mo sentido o termo incomplexum(= não com­ posto) , como contrário de complexo(v.): ou no sentido cie um termo constituído por uma só palavra, ou no sentido do termo de uma pro­ posição, constituído por uma ou mais palavras (cf. OCKHAM, Kxpositio áurea, p. 40 b). Por simplicidade como característica da.s hi­ póteses ou das teorias científicas, entende-se exigência de economia (v.; v. também TFORIA).

902

SINCATEGOREMÂTICO

Analogamente, por simplificação entende-se todo procedimento apto a tornar econômica a conceitualização ou a teorizaçào, ou seja, qual­ quer procedimento que reduza o número OLI a complexidade dos conceitos empregados. SIMULACRO. V. ÍDOLOS.

SINAL (in. Situai: fr. Signa/-, ai. Signah it. Segnale). 1. O mesmo que signo (v.). Morris en­ tende essa palavra no sentido cie signo natural (Signs. I.anguage and Bebavioi; 1. 8). 2. O mesmo que símbolo (v.). Neste segun­

do sentido, a palavra é empregada quando se fala, p. ex., de um "S. de perigo", em que S. é um signo convencional, um símbolo. SINCATEGOREMÂTICO (lat. .Syncategorcmatienm: in. Syncategorematic; fr. Syncatégorématique; ai. Synkategorematisch; ií. Sincategorematíco). Assim são chamadas, na gra­ mática e na lógica medievais, as partes do discurso que não têm significação em si, mas só a adquirem em contato com as outras partes do discurso: exemplos são as conjunções, as preposições, os advérbios, etc. Prisciano (II, 15) diz: "Segundo os dialéticos, as partes do discur­ so são duas. o nome e o verbo, porque juntas, e só elas. constituem um discurso completo; chamam as outras de sincategoremata, ou seja. co-significantes". Essa distinção é retomada na lógica de Pedro Hispano (Sitnmi. log., VII, 5. 11). em S. Tomás (/;/ Perihermeneias). em D tins Scot (In Praedicamenta, 12) e em Ockham (Sitmma log.. I, 4), que assim a ex­ põe: "Alguns termos são categoremáticos. outros síncategoremáticos. (...) Estes últimos não têm significado completo e preciso, e não significam coisas diferentes das significadas pelos categoremata; assim como em aritmética o zero nada significa por si mesmo, mas acres­ centado a outro algarismo adquire significado". Ockham aplicou essa distinção ao conceito de infinito e fez a distinção entre infinito ccitegoremático, que designa a quantidade do sujeito ao qual se aplica o predicado infinito, e o infi­ nito S., que designa apenas de que maneira o sujeito se comporta com relação ao predicado. Nesse sentido, infinito é aquilo que podemos tornar tão grande quanto queiramos, mas que apesar disso continua finito (OCKHAM, In Seul.. I. d. 17, q. 8): conceito que se tornaria funda­ mental na matemática moderna (v. INKIMTO). Essa palavra também se encontra nos lógicos modernos. Stuart JVJJ (Logic, ]., rap. JJ, $ 2)emprega esse termo para indicar palavras que nào podem ser usadas como nome mas como par-

SINCATETESE

tcs de nome. Esse termo é usado em sentido análogo por Husserl (l.ogische Intersuchiingen, II, § 4). Na lógica contemporânea, as partes S. da linguagem são chamadas mais freqüentemente de símbolos impróprios (porquanto não têm significação própria) c divididos em conectivos (v.) e operadores (v.). SINCATETESE. V. AsscNTi.MFNTO. SINCRETISMO (lat. Synkretismns; in. Syncretism: fr. Symcrétisme; ai. Synkretismns; it. Sincretísmo). Termo introduzido na terminolo­ gia filosófica por Brucker para indicar Lima "conciliação mal leita de doutrinas filosóficas completamente diferentes" (Historiei critica philosophiae, 1A44, IV. p. 750). Desde então, designa-se freqüentemente com essa palavra qualquer conciliação que se considere mal fei­ ta ou mesmo os pontos de vista que auspiciem uma conciliação indesejável. Esse termo tam­ bém foi empregado na história das religiões, para indicar os fenômenos de sobreposição e fusão de crenças de origens diversas. Neste caso o termo também é usado com disposição polêmica, para designar sínteses mal feitas, não tendo, portanto, significado preciso. Mais arbitrário ainda é o significado com que é empregado por alguns escritores france­ ses, para indicar a visão geral e confusa de uma situação qualquer (cf. RFNAN. Lcuvnir de Ia science. p. 301). SINCRÔNICO. V. DlACRÔMCO. SINDÓXICOUn. Syndoxic: fr. Syiu/oxit/ne: it. Sindossico). Termo empregado por J. M. Baldwin para indicar o conjunto de conheci­ mentos comuns que se formam nos indivíduos que têm as mesmas experiências, mas que nem por isso são necessariamente válidos (Ihought and 'Ihings, 1906, í, p. 146) (v. SINÔMICO).

SINECOLOGIA(al. Sinecbologie). Teoria da continuidade no tempo e no espaço, que, se­ gundo Herbart. é uma parte da metafísica, ao lado da metodologia, da ontologia e da idolologia (Kurze Uncidopadie der Pbilosophie, 18(. pp. 297 ss.). SINEQUISMOUn. Synecbisnv, fr. Synéchisme-, it. Sinecbismo). Termo empregado por IVirce para indicar o princípio de continuidade, que ele julga de primeira importância em todas as formas da realidade (cf. Chance, Lore and Logic, II. 3; trad. it.. pp. 44 ss.). SINERGIA (in. Synergy-, fr. Synergie; ai. Synergie, it. Sinergia). Coordenação de diferen­ tes faculdades ou forcas, ou então ação com­

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SINGULAR2

binada de diferentes fatores. Fvs.se termo é fre­ qüente na linguagem comum e científica, sendo empregado, p. ex., tanto para indicar a cooperação dos órgãos em um corpo vivo. quanto o fortalecimento recíproco da ação dos medicamentos. As vezes, mas raramente, foi empregado como sinônimo de simpatia ou de cooperação inteligente (cf. RIBOT, Psycbulogie des sentiments. 1896, p. 229: Eotiii.LKií, Morale des idées forces, 1908. p. 352). SINERGISMO (in. Synergism: fr. Synergisnie: ai. Synergismlis-, it. Sinergismo). Dou­ trina teológica segundo a qual a salvação do homem não depende apenas da ação de Deus, mas também da vontade humana, que colabo­ ra com ela para produzi-la. Essa doutrina foi sustentada porMelanchthon contra o monegismo de Lutero. que atribuía a salvação unicamente â ação de D eus (v. GRAÇA).

SINGULAR1 (in. Singular, fr. Singnlier, ai. F.inzíg, Singular, it. Singolare). Termo ou uma

proposição que denota um único objeto; em outras palavras, "forma (ou expressão) que contém uma única variável livre" (CHU«:H, Introduction to MathematicalLogic. 1956, § 02: cf. Qu\i-, Methods ofLogic. § 34). SINGULAR2(in. Single: fr. Singnlier, ai. Kinzeln; it. Singolo). 1. Que é um indivíduo (vj. 2. O indivíduo considerado como valor me­ tafísico, religioso, moral e político supremo. Neste sentido, é o tema preterido de algumas filosofias modernas e contemporâneas. Kierkegaard. polemizando com Hegel, afirmava o va­ lor existencial do S.: "A existência corresponde â realidade singular (o que já foi ensinado por Aristóteles): não é abarcada pelo conceito e, de qualquer modo, não coincide com ele". (Diá­ rio, X2 A, 328). O S. é superior ao universal, ao contrário do que julgava Hegel. "Nos gêneros animais sempre vale o princípio de que 'o indi­ víduo é inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é criado â imagem de Deus, tem essa característica, de o S. ser supe­ rior ao gênero" (Ibid, X2, A, -126). Km Kierkegaard, essa exaltação tio S. é acompanhada pela desvalorização da categoria "público", em que o S. desaparece; mas o público não é a co­ munidade na qual, ao contrário, o S. é reconhe­ cido como tal (Ibid.. X2. A, 390). O único (\.), de Stirner, e o snper-homem (v.), de Nietzsche, são concepções análogas à que. Kierkegaard indicou como singular. No mesmo sentido, Jaspers insiste no caráter excepcional do S. (Phil, II. p. 360).

SINOLON

SÍNOLON (gr. xò avvoXov; lat. Compositum). Com este termo, que significa "uma coisa

só", Aristóteles indicou o composto de matéria e forma, a substância concreta. "A substância é a forma imanente, cia qual, juntamente com a matéria, deriva aquilo que se chama de S. ou substância: p. ex., a concavidade é a forma da qual, juntamente com o nariz, (matéria) deri­ va o nariz achatado" (Met., VII, II, 1037 a 30). A tradução cio termo é "composto" ou "concreto". SINÔMICO (in. Synnomic; fr. Synnomique-, it. Sinnomico). Termo empregado por G. M. Baldwin para indicar o conjunto de conheci­ mentos comuns que se formam nos indivíduos, quando esses conhecimentos sào considerados "aptos ou apropriados a todos os processos lógicos como tais" (Thought and Things, 1906, II, p. 270). Sindóxico, ao contrário, é aquilo que é comum mas sem caráter cie normatividade (v. SINDÓXICO). SINONÍMIA (in. Synonimy fr. Synonymie-, ai. Synonimie, it. Sinonimia). A relação de S. é importante para os lógicos porquanto a utili­ zam para definir a noção de analiticidade (v.). Como o conceito de S. como "identidade de significado entre duas formas lingüísticas" não é suficiente, os lógicos costumam acrescentar alguma outra condição para definir a sinonimia. Lewis diz: "Duas expressões são sinôni­ mas se e apenas se: lu têm a mesma intensâo e se essa intensâo não é zero nem universal, ou 2" se sua intensâo é zero ou universal, mas elas são analiticamente confrontáveis" (Analysis of Knouiedge and Valuation, 1946, p. 86). Por 'expressões que têm intensâo zero ou univer­ sal", Lewis entende expressões como "ser'', "entidade", "coisa", "qualquer coisa" (Ibid, p. 87). Carnap, por sua vez, observou: "Se pedi­ mos a tradução exata de dada asserção de uma língua para outra, p. ex. de uma hipótese científica ou de um testemunho em tribunal, costumamos esperar mais que a concordância das intensões dos enunciados. (...) Mesmo se restringirmos nossa atenção a significados designativos (cognitivos), a equivalência lógi­ ca dos enunciados não será suficiente; será preciso que pelo menos alguns dos designadores constitutivos sejam logicamente equivalentes ou, em outras palavras, que as estruturas intensionais sejam semelhantes". A S. seria expressa, pois, por um "isomorfismo intensional", cujas regras Carnap ex­ põe (Meaning and Necessity, 1957, §§ 14, 15).

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SINTAXE

Contudo, as exigências expressas por Lewis e Carnap para a definição de S. continuam no campo da intensionalidade das formas lingüísti­ cas. É o que acontece também com a defini­ ção de Church (Introduclion to Mathema­ tical Logic, § 01). Quine demonstrou, nesse mesmo plano, como é difícil utilizar a S. para definir a analiticidade, pois "dizer que 'solteiro' e homem não casado' sào sinônimos do ponto de vista cognitivo, significa dizer que é analítica a asserção 'todos os solteiros e só eles sào homens não casados"'. Portanto, segundo Quine, a S. pode ser definida eximo a possibi­ lidade cie substituição recíproca cie dois ter­ mos, salva analyticitate, vale dizer, a possibi­ lidade de, numa expressão, substituir dois termos um pelo outro sem que a expressão perca o ca­ ráter analítico (trom a Logical Point of View, 1953, IL 3). SINÔNIMO (in. Synonym; fr. Synonyme, ai. Syyionym. it. Sinônimo). Segundo a definição aristotélica (Cat., 1 a 6; 3b 7), diz-se que são S. as coisas que têm em comum o nome e a defi­ nição da essência, assim como o homem e o boi são chamados (e sào) ambos animais. No uso moderno, porém, sào chamados de S. os vocábulos (ou enunciados) diferentes na forma da expressão, mas de igual conteúdo semânti­ co. Na lógica contemporânea sào chamados de S. os enunciados que têm forma diferente mas o mesmo sentido (designando a mesma pro­ posição): no entanto nem sempre é fácil distin­ guir sinonimia (semântica) de equivalência (sintática). SINOPSE (gr. aúvoxjnç; in. Synopsis; fr. Synopsis; ai. Synopsis; it. Sinossí). Visão de con­ junto. Platão emprega esse termo para indicar o primeiro momento do procedimento dialético, que consiste em reunir uma multiplicidade numa única idéia (Rep, 537 e; Fed., 265 d). Esse termo também foi empregado por Kant na primeira edição da Crítica da Razão Pura, na expressão "a sinopse apríori&A multiplicidade por meio do sentido" (Crít. R. Pura, § 14, ao final), que seria a apreensão da multiplicidade sensível nas formas da intuição (espaço e tem­ po) , que ele distingue da síntese imaginativa e da síntese conceituai. SINTAXE (gr. cruvTáÇiÇ; lat. Syntaxis; in. Syntax; fr. Syntaxe; ai. Syntux; it. Sinlassi). 1. Qualquer organização, combinação ou sistematizaçâo de partes. O estóico Crisipo define como "S. do todo" o destino que governa a ordem do mundo (Stoicorum fragmenta, II, p. 293).

SINTÉIJCO

2. Uma das dimensões do procedimento semiológico (v. SEMIOSK), que é a possibilidade de combinar signos com base em regras determinaveis. Neste sentido pode-se falar, p. ex., de "S. dos sons" ou "das cores", etc. 3. A ciência que estuda as formas gramati­ cais ou lógicas da linguagem, entendendo-se por formas as suas possibilidades de combina­ ção. Mais particularmente, Carnap definiu a S. lógica das linguagens como "a teoria formal das formas lingüísticas, a declaração sistemáti­ ca das regras formais que a regem, as lingua­ gens e as conseqüências decorrentes dessas regras". Carnap acrescenta que "uma teoria, uma regra, uma definição, etc. deve ser chama­ da de formal quando não faz qualquer referên­ cia ao significado dos símbolos (p. ex., das pa­ lavras) ou ao sentido das expressões (p. ex., dos enunciados), mas unicamente às espécies e à ordem dos símbolos com que as expressões são construídas" (Logische S yn ta x d e r Spracbe, 1934, § 1). Carnap identificou com a S. toda a lógica ou metodologia das ciências (Ibid., § 81), com base na consideração de que "para deter­ minar se um enunciado é ou não conseqüência de outro, não é necessária qualquer referência ao significado dos enunciados"; portanto, "uma lógica especial do significado ê supérflua; tuna lógica não formal' é uma contradição nos ter­ mos. A lógica é S." (Ibid., § 71). Mais tarde, o próprio Carnap admitiu a divisão da análise da linguagem ou semiótica em pragmática, se­ mântica e S., considerando o ponto de vista sintático como o procedimento que abstrai do fator semântico (F oundations o f L o g ic a n d M athem atics, 1939. § 8). S IN T É L IC O (in. Syntelic; fr. S yn téliq u e . it. Sintelico). Termo empregado por G. M. Baldwin para designar os elementos práticos co­ muns a vários indivíduos, mas nem por isso necessariamente válidos: elementos que cor­ respondem àquilo que é chamado de sindóxico no domínio do conhecimento ( T hought a n d Things, 1906, III 79-80). S IN T É R E S E (gr. o\)VTiipr)oiç; lat. Synteresisin. Synteresis; fr. Syntérèse, aí. Synteresis, it. Sinteresi). Diretriz da consciência moral do ho­ mem ou essa mesma consciência. Esse termo significa "conservação" e foi empregado pela primeira vez para indicar a conservação cio cri­ tério do bem e do mal por parte de Adão, depois da expulsão do Paraíso. Nesse sentido, foi São Gerônimo o primeiro a usar a palavra, designando com ela "a centelha de consciência

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SÍNTESE

que não se extingue no peito de Adào depois de sua expulsão do Paraíso" (Com ni. in K ze c h , em P. L, 25, col. 22). Reaparece em outros pa­ dres cia igreja (Basílio, Gregório, o Grande) e nos Vittorini. Mas foi só em Bonaventura e em Alberto Magno que se transformou em faculda­ de natural de juízo moral, que guia o homem para o bem e cria nele o remorso pelo mal. São Boaventura considera a S. como a iluminação que Deus concede ao intelecto humano no do­ mínio prático, correspondendo à iluminação que, no domínio teórico, o leva para a ciência. (In S e n t, II, d. 39 a. 2, q. 1). Portanto a S. é "o ápice da mente", o último grau da ascensão a Deus, o que precede imediatamente o arrebatamento final (Itinerarium m en tis in D eiun, I, 6). Definição análoga aparece em Alberto Mag­ no (S. T h , II, 16, q. 99). S. Tomás modificou seu conceito, transformando-o de noção místi­ ca cm noção moral, vale dizer, deixando de considerá-lo como luz proveniente do alto, e considerando-o como hábito moral. Diz: "A S. não é um poder especial superior à razão ou à natureza, mas é o hábito natural dos princípios práticos, assim como o intelecto é o hábito dos princípios especulativos" (S. Tb., I, q. 39, a. 12; D e ver., q. 16, a. 1). Assim como o intelecto apreende os princípios últimos que servem de fundamento à ciência, a S. apreende os princí­ pios que servem de fundamento à atividade prática. Esse conceito não foi alterado pelos escritores escolásticos posteriores (cf. p. ex., DiNS SCOT. Op. Ox., II, d. 39, q. 2, a. 4). Essa noção reaparece, mas raramente, em escritores posteriores: foi utilizada por Nicolau de Cusa, em seu significado místico (D e visioneD ei, ed. Bohnenstadt, pp. 150 ss.); foi empregada com o mesmo significado por B. Gracián: "É o trono da razão, a base da prudência, porque graças a ela custa pouco vencer. E presente do céu, o mais cobiçado. (...) Consiste na propensão ina­ ta a tudo o que mais se conforma à razão, sempre em conjunto com o que há de mais certo" (O ráculo m anual, 1647, § 96). S ÍN T E S E (gr. ouveEOtÇ; lat. Synthesis, in. S ynthesis; fr. Syntbèse; ai. Synthese-, ít. Sintesi). Este termo, além do significado comum de uni­ ficação, organização ou composição, tem os se­ guintes significados específicos: 1Q m éto d o cog­ nitivo oposto a análise; 2- atividade intelectual; 5 " u n idade dialética dos opostos; 4- unificação dos resultados das ciências na filosofia. 1'-' No primeiro significado, como um dos métodos fundamentais do conhecimento (em

SÍNTESE

oposição a análise), a síntese pode ser conside­ rada como o método que vai do simples ao composto, dos elementos às suas combinações, nos objetos cuja natureza se pretende explicar. A oposição dos dois métodos foi expressa pela primeira vez por Descartes (Rép. au.x II ob/ections; v. ANÁI.ISK); l.eibniz assim a expressava: "Chega-se muitas vezes a belas verdades por meio da S., indo do simples ao composto, mas quando é preciso encontrar o meio de tazer aqui­ lo que se propõe, a S, normalmente não basta (...) e cabe à análise ciar-nos o tio condutor, quando isso é possível, porque há casos em que a natureza do problema exige que se pro­ ceda tateando, e nem sempre é possível cortar caminho" (Nouv. ess, IV. 2, 7). Segundo Kant. o método sintético é "progressivo", ao passo que o analítico é "regressivo", vai do objeto às condições que o possibilitam (Prol., § 5, nota). Segundo Kant. o procedimento da filosofia é analítico, enquanto o da matemática é sintéti­ co, mas neste caso os dois termos não têm nenhuma relação com a classificação dos juízos em analíticos e sintéticos. Em geral, assim como o procedimento analítico é caracterizado pela presença de dados (inerentes ao objeto ou à situação a ser resolvida) que o guiam e contro­ lam, o procedimento sintético pode ser carac­ terizado pela ausência de tais dados e pela pre­ tensão, inerente a ele. de produzir por si mesmo os elementos de suas construções (v. FILOSOFIA). 2" No segundo significado, o termo designa a união do sujeito e do predicado na proposi­ ção, portanto o ato ou a atividade intelectual que realiza tal união. Foi neste sentido que Aristóteles utilizou o termo, ao dizer que "onde está o verdadeiro e o falso está também certa S. de pensamento semelhante à S. que há nas coisas" (Dean., III. 6, 430 a 27), e "o que cria essa unidade é o intelecto" (Ibíci.. 430b 5). Mas foi Kant quem mais utilizou o conceito de S., reduzindo a ela todas as espécies de atividade intelectual. Definiu a S. em geral como "o ato de unir diferentes representações e de com­ preender essa unidade num único conhecimen­ to" (Crít. R. Pura, § 10), e distinguiu numerosas espécies de S. com base nos elementos que nela se encontram. Km primeiro lugar, fez a distinção entre S.pura, na qual a multiplicidade não é dada empiricamente, mas apriori(como a do espaço e do tempo), e a S. empírica, em que a multiplicidade é dada empiricamente. A S. pura é "o ato originário do conhecimento, o primeiro fato ao qual devemos dar atenção se

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SÍNTESE

quisermos descobrir a origem primeira de nos­ so conhecimento" (IbicL). Portanto, a S. pura precede qualquer análise, pois só se pode analisar o que já se deu unido num ato cognoscitivo. A S. pura, que é possível a priori, pode ser distinguida da S. figurada (Synthesis speciosa) e da síntese intelectual (Synthesis intellectualis): ambas são transcendentais por­ que constituem a possibilidade de qualquer co­ nhecimento, mas enquanto a segunda unifica uma multiplicidade puramente pensada, a fi­ gurada é uma S. da multiplicidade cia intuição sensível, ou melhor, é uma S. da imaginação entendida como "faculdade de determinai a prioria .sensibilidade" (Ihid.. § 24). É nessa S. transcendental da imaginação que se baseia o cogito, ou apercepçào originária (v.). Mas. como todo conhecimento é síntese e o conhe­ cimento efetivo, segundo Kant, é a experiência, Kant chama a experiência de "síntese, segundo conceitos, do objeto dos fenômenos em geral" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 11. seç. II). Na primeira edição, Kant falara em três espécies de S.: IaS. cia apreensão ra intuição; 2a S. da reprodução na imaginação; 3J S. da recognição no conceito (Crít. R. Pura, 1- ecl., An. transe. I Livro, cap. 2, seç. 2). Mas tanto na primeira quanto na segunda edição Kant re­ duziu qualquer espécie ou grau de atividade cognitiva a S. Fsse foi um dos aspectos mais evidenciados e discutidos cie sua obra. Enquanto a noção de S. mudava de natureza no idealismo (v. mais adiante), era retomada e adaptada por outros filósofos de maneiras diferentes. Galluppi inverteu o ponto de vista kantiano, pondo a análise antes cia síntese. "A S. é a faculdade de reunir as percepções separadas pela análise. A análise é, pois. uma condição essencial para a síntese" (Saggiofil. sulla critica delia conoscenza, 1831, II, § 146). Além disso, fez a dis­ tinção entre a S. ideal objetiva, que consiste em reconhecer as relações objetivas que existem entre as coisas, S. imaginativa civil, que con­ siste em reunir numa representação complexa, que não corresponde a nenhum objeto, dife­ rentes representações, cada uma das quais tem um objeto, e S. imaginativa poética, que é uma espécie da precedente (Ibid.. III, §§ 147­ 149). Por sua vez, Rosmini chamava S. primiti­ veis sua "percepção intelectiva" (Nuovosaggio, § 46: § 528, etc). Em geral, o conceito de S. continuou expressando em filosofia a ativida­ de ordenadora. organizadora e sístematízadora do intelecto. Os neokantianos fizeram amplo

SÍNTESE

uso dessa noção. Para A. Riehl, em especial, a atividade sintética é a função fundamental da consciência e o a p rio ri de todo o conheci­ m en to (Derphilosophísche Kriticismus, II, 2, 188 7, p. 68). Outros neokantianos, como Cohen, preferiram o conceito de origem , e não de S. (Logik d e r rein em E rkenntnis, 1902, p. 36). Wundt introduziu esse conceito em psicologia e falou do "princípio da S. criativa", segundo o qual ''não só as partes que com­ põem uma S. aperceptiva adquirem, ao lado do significado que tinham isoladamente, um novo significado, devido à sua conexão na representação total, como também essa re­ presentação é um novo conteúdo psíquico, que é possibilitado pelas partes componen­ tes, mas não consiste nelas" (ürundriss d er P sychologie, 1896, p. 394). Por outro lado. a filosofia fenomenológica evidenciou a função da S. na "constituição das objetiv idades de cons­ ciência". Husserl acredita que todo objeto de conhecimento em geral é uma "unidade sinté­ tica", uma S. de consciência (Ideen, I, § 86). Faz a distinção entre S. conlinuativas, do tipo, p. ex., que constitui a espacialidade, e as S. articuladas, que são os modos particulares, em que atos separados uns dos outros se conectam num único ato sintético de grau su­ perior. São S. articuladas, p. ex., os atos de preferência ou as emoções simpáticas; além disso, há as S. coligantes, d isju n g en tes (que visam a isto ou àquilo) e explicitantes, que determinam as formas da lógica e da ontologia formal (Ideen, I, § 118). 3o A noção de S. como unidade dos contrá­ rios nasceu com o conceito correlato de d ia ­ lética (v.) e foi exposta pela primeira vez por Fichte, que diz: "O ato pelo qual se busca, nas comparações, a característica graças à qual as coisas comparadas são opostas entre si chamase procedimento a n titético (chamado ordi­ nariamente analítico). (...) O procedimento sin­ tético, ao contrário, consiste em buscar nos opostos a característica graças à qual eles são idênticos" ( Wissenschafíslehre, 1794, § 3-D, 3). A lei dessa identidade é que "nenhuma antítese é possível sem uma S. porque a antítese consis­ te precisamente em buscar nos iguais a caracte­ rística oposta, mas os iguais não seriam iguais se antes não tivessem sido postos como iguais por um ato sintético" (Ibid., § 3, D, 3). Schelling falava de um "processo que vai da tese à antítese e depois à síntese", em virtude do qual o eu afirma o objeto, opõe-se a ele e fi­

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SINTETICIDADE

nalmente volta a compreendê-lo em si mesmo (System d estranszendentalenIdealism us, 1800, III, cap. I; trad. it., pp. 58 ss.). Hegel, no entan­ to, preferiu os termos "identidade" ou 'unida­ de", mesmo lamentando que a palavra unidade indicasse, bem mais que "identidade" uma "re­ flexão subjetiva". A unidade ou a identidade que fecha uma tríade dialética é uma conexão objetiva; segundo Hegel, seria melhor chamá-la de "inseparabilidade" se, desse nome, não fosse excluída a natureza positiva da S. (W issenschaft d e r Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, e, nota 2; trad. it., p. 85). Na linguagem filosófica france­ sa e italiana, a palavra S. foi preterida a "iden­ tidade" ou "unidade" para indicar o momento resolutivo do procedimento dialético, que é realmente o momento produtivo e criativo. O. Hamelin falou em m éto d o sintético, que con­ sistiria em "mostrar a conexão necessária entre noções opostas"; sua mola seria a cotrelação, graças à qual os opostos remetem um ao outro e colaboram entre si (E ssai su r le s élém en ts p riiic ip a u x de Ia representativa, 1907, p. 20). Os idealistas italianos (Croce e Gentile) empre­ garam a expressão S. a p rio ri no sentido de ati­ vidade produtiva ou criadora. Com ela Gentile entendeu auto-síntese, que seria "posicionarse na sua própria identidade e diferença", que é a autocriaçào (Sistem a d i lógica, II, 3a ed., 1942, p. 83, cf. I, 2a ed., 1922, p. 27). Croce falou da S. a p rio ri como atividade criadora do espírito: "A S. a p rio ri pertence a todas as for­ mas do Espírito porque o Espírito, considerado genericamente, nada mais é que S. a p rio ri: e esta se explicita na atividade estética e na prá­ tica, bem como na atividade lógica" (Lógica, 4a ed., 1920, p. 141). Para ele, a S. a p rio ri era a identidade entre filosofia e história, pois ela "contém em si a historidade que seu descobri­ dor [Kant] omitia ou desconhecia" (Ibid., p. 369). 4y Finalmente, entendeu-se por S. a unifica­ ção dos resultados finais das ciências específi­ cas no seio da filosofia primeira, segundo o conceito positivista de filosofia (v.). Tal S. foi chamada de su bjetiva por Comte, que a consi­ derava imprescindível em vista das necessida­ des naturais do homem (S. subjetiva ou siste ­ m a u n iversal das concepções p ró p ria s do esta do n o rm a l da hum anidade, 1856, I). Pelo mesmo motivo, Spencer chamou o conjunto de sua obra de "Sistema de filosofia sintética"; o primeiro volume é constituído pelos P rim eiros p rin cíp io s (1862). S IN T E T IC ID A D E (in. S yn tb eticity). Valida­ de das proposições que depende dos fatos.

SINTETISMO

Feio menos este é o significado que hoje se costuma atribuir ao adjetivo sintético quando se refere a proposições ou enunciados. Kant, a quem se deve a introdução dos termos analíti­ co e sintético, empregou-os para distinguir os juízos explicativos e os juízos extensivos. Os primeiros nada acrescentam, por meio do predicado, ao conceito do sujeito, mas limitamse a dividir por meio da análise o conceito em seus conceitos parciais, que nele já eram pen­ sados, ainda que confusamente; os segundos, pelo contrário, acrescentam ao conceito do su­ jeito um predicado que não estava contido nele nem podia ser dele deduzido por análise" (Crit. R. Pura, Intr., § IV). Mas, segundo Kant, os juízos sintéticos são nào apenas os que se refe­ rem a coisas de fato, mas também os da mate­ mática e da física pura, porquanto baseados na intuição a priori do espaço e do tempo e nas categorias, sendo por isso chamados de "juízos sintéticos a priori". Na filosofia contemporâ­ nea, porém, a S. como caráter das expressões foi entendida no sentido das "proposições de fato" cie Humc ou das ^verdades de fato" de Leibniz (v. EXPERIÊNCIA; FATO), OU seja, como proposições que se referem a situações ou estados de coisas e que podem ser verdadeiras ou falsas em relação a elas. Carnap diz: "Uni enunciado sintético é verdadeiro às vezes — quando existem certos fatos — e às vezes falso; portanto, ele diz algo sobre quais os fatos que existem. Os sintéticos são os enunciados autên­ ticos acerca da realidade" (Lugische Syntax der Spracbe, § 14). Todavia, os lógicos muitas vezes preferem definir negativamente os enunciados sintéticos, como enunciados que nào são analí­ ticos nem contraditórios: é o que fazem, p. ex., Lewis (Analysís ofKnouiedge and Valuation, 1946, p. 35) e Reíchenbach (Tbeory of Probabüíty, 1949, p. 20). Assim como as proposições analíticas (v. ANALITICIDADE) são chamadas de "verdades necessárias" porque sua negação é impossível, também as propo­ sições sintéticas são chamadas freqüente­ mente de contingentes, no sentido de nào serem nem necessárias nem impossíveis (cf. CARNAP, Meaning and Necessity, § 39). SINTETISMO (ai. Synthetismus). Esse no­ me, que se baseia na unidade de ser e saber, foi dado à sua filosofia por um certo "Senhor Kmg", que desafiou Hegel a deduzir nem que fosse a pena com que escrevia, ao que Hegel respondeu que isso nào seria impossível, quando a ciência tivesse progredido suficiente­

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SISTEMA

mente, e nada houvesse de melhor a fazer (cf. W. T. KRUG, Fundamentalphilosophie, 1818; HEGEL, Ene. § 250, nota). Rosmini chamou de S. a união do princípio senciente com o corpo, sentido no ser animado, e em geral a união de elementos diferentes, um dos quais espiritual e o outro material, em todos os aspectos da rea­ lidade. Neste sentido, ele disse que o S. "é lei e chave da natureza cie todas as coisas cio universo" (Antropologia, § 325; Psicologia, I, §§34ss.). SINTOMA. V. INCONSCIENTE; PSICANÁLSE SISTEMA (gr. aúoTr|ua; in. System; fr. Systènie, ai. System: it. Sistema). 1. L'ma totalidade dedutiva de discurso. Essa palavra, desconheci­ da neste sentido no período clássico, foi em­ pregada por Sexto Empírico para indicar o con­ junto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de premissas (Pirr. byp, II, 173), e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado dedu­ tivamente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes derivam umas das outras. Leibniz chamava de S. o repertório de conheci­ mentos que nào se limitasse a ser um simples inventário, mas que contivesse suas razões ou provas e descrevesse o ideal sistemático da seguinte maneira: "A ordem científica perfeita é aquela em que as proposições são situadas segundo suas demonstrações mais simples e de maneira que nasçam umas das outras" (Methode de Ia certitude, Op, ed. Erdmann, pp. 174-75). Wolff, por sua vez, dizia: "Chama-se cie S. um conjunto de verdades ligacias entre si e com seus princípios" (Log, § 889). A noção de S. moldava-se assim na de procedimento mate­ mático. Kant subordinou-a a outra condição: a unidade do princípio, que fundamenta o siste­ ma, pois ele entendeu por S. "a unidade de múltiplos conhecimentos, reunidos sob uma única idéia"; afirmou que o S. é um todo orga­ nizado finalisticamente, sendo portanto uma articulação (aiUculalio), e não um amontoado (coacervatio): pode crescer de dentro para fora (per intussusceptíonem), mas nào de fora para dentro (per appositionem), sendo, pois, seme­ lhante a um corpo animal, cujo crescimento nào acrescenta nenhum membro, mas, sem al­ terar a proporção do conjunto, torna cada um dos membros mais forte e mais apto a seu ob­ jetivo (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. III). Com base nisso, Kant fala de "unidade sistemática do conhecimento, da qual as idéias da razão pura tentam aproximar-se" (Ibid.,

SISTEMA

Dialética, cap. II, seç. I). A unidade do S., ou seja, sua possibilidade de derivar de um único princípio, é a característica que determinou o sucesso dessa noção na literatura filosófica ro­ mântica. Constitui o ideal da teoria da ciência de Fichte: "Se não deve haver somente um ou vários fragmentos de S., nem mesmo vários S., mas um S. único e perfeito do espírito humano, então deverá haver um princípio fundamental absolutamente primeiro e supremo. H embora, a partir dele. nosso saber se expanda por si em tantas séries, das quais procedem outras sé­ ries e assim por diante, todas essas séries de­ vem unir-se num só elo, que não está preso a nada, mas se mantém e a todo o sistema por sua própria força" (U ber den B eg riffd er W issenschaftslehre, 1794, § 2; trad. it., p. 19). Na filosofia romântica é lugar-comum considerar o S. como forma da ciência, que supõe um princípio único e absoluto. A origem disso é o ideal matemático, no qual Leibniz, Wolff e o próprio Kant se haviam inspirado; mas esse ideal acaba por voltar-se contra a própria ma­ temática e sendo reivindicado exclusivamente para a filosofia. Shelling dizia: "Admite-se em geral que à filosofia convém uma forma espe­ cificamente sua. que se chama de sistemática. Pressupor tal forma não deduzida cabe a ou­ tras ciências, que já pressupõem a ciência da ciência, mas não a esta, que se propõe como objeto a possibilidade de semelhante ciência" (System d es tra n szendentalen ldealism us, 1800, I, cap. I; trad. it., p. 27). Hegel só fez sancionar o mesmo ponto de vista: "A ciência do Absolu­ to é essencialmente S., porque o verdadeiro, como concreto, é tal apenas na medida em que se desenvolve em si, se reúne e mantém em unidade, vale dizer, como totalidade, pois só pela diferenciação e pela determinação de suas diferenças são possíveis a necessidade destas e a liberdade do todo" (Une, § 14). Hegel acres­ centa que "um filosofar sem sistema não pode ser nada científico" porque expressa um modo de sentir subjetivo; e em oposição âs doutrinas românticas irracionalistas ou tideístas ele im­ põe a exigência sistemática. Essa mesma exi­ gência manteve-se e foi valorizada nas filosofi­ as idealistas. Croce dizia: "Pensar determinado conceito puro significa pensá-lo em sua rela­ ção de unidade e distinção com os outros to­ dos; assim, o que se pensa nunca é realmente um conceito único, mas um S. de conceitos, o Conceito" (Lógica, 4a ed., 1920, p. 172).

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SISTEMA

O ideal de S. como organismo dedutivo ba­ seado num único princípio continuou sendo patrimônio da filosofia, que o cultivou mesmo quando — a exemplo de Kant — declarou que esse ideal era inatingível pelo conhecimento humano. Contudo, esse termo foi e é empre­ gado também sem relação com este signifi­ cado, para indicar qualquer organismo dedu­ tivo, mesmo que não tenha um princípio único corno fundamento. É o caso dos S. cie que hoje se fala em matemática e lógica. Os S. hipotético-dedutivos. abstratos, axiomáticos, etc. não são S. por terem um princípio único; aliás, os seus princípios, que são os axiomas, de­ vem ser independentes entre si, não devem poder ser deduzidos um do outro (v. AXIOMA, ASIOMATI/.ACÀO). São chamados de S. unica­ mente por seu caráter dedutivo, e no mesmo sentido fala-se de S. numérico e, ás vezes, de *3. de axiomas" para indicar um simples con­ junto não contraditório de proposições primiti­ vas (cf. M. R. COHF.N H. NAGEL. "The Nature of a Logical orMathematical System", em R ead íng s itl the P h ilo so p h y o f S cien ce . 1953, pp. 129 ss-). Isso significa que o uso dessa palavra perdeu o significado forte ou elogioso de dis­ curso dedutivo. 2. Qualquer totalidade ou todo organizado. Neste sentido, fala-se em "S. solar", "S. nervo­ so", etc, e também de "classificação sistemáti­ ca ou, mais simplesmente, de S. em lugar de classificação, como fez I.ineu, quando quis insistir no caráter ordenado e completo de sua classificação (System a n a lu ra e . 1735). Desse ponto de vista, às vezes se faz a distiriçào entre o S. como conjunto contínuo de piirtes que têm inter-relações diversas e a estrutura (v.) ou a organização que os compo­ nentes dele podem assumir em determinado momento (W. BUCKLKY. S o cio lo g y a n d M od em System 'lheoty, 1967, p. 5). 3. Qualquer teoria científica ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu ca­ ráter escassamente empírico. No séc. XVIII fala­ va-se de "S. do mundo" para indicar as teorias cosmológicas (cf., p. ex., D'AI.KMKERT, (Euinvs. etl. Conclorcet, pp. 165 ss.). Leibniz chamava de S. stias teorias sobre a relação entre a alma e o corpo ou entre as diferentes substâncias (Svstèm e n o u rean de Ia n a tu re e t de Ia com m u n ica tio n dessubstances, 1695). Baumgarten chamava de S. p sico ló g ico s as "opiniões que parecem aptas a explicar a relação entre alma e corpo" (Met.. § 761); no mesmo sentido, mas de

SISTEMA LOGÍSTICO

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SITUAÇÃO

maneira depreciativa, os iliiministas falavam de ma um sistema, mas em seu uso puro, por S. e de espírito sistemático. Diderot dizia: simples conceitos, é apenas um sistema de "Chamo de espírito sistemático o costume de investigação, segundo princípios, da unida­ traçar planos e criar sistemas do universo, para de à qual a experiência só pode fornecer a depois pretender adaptar-lhes os fenômenos, matéria" (Crít. R. P ura, Doutr. do mét., cap. I, pela razão ou pela força" (G iuvres, p. 291). seç. I). F.ssa noção firmou-se principalmente D'Alembert falava igualmente de S. como "so­ no criticismo alemão. Natorp falava de "S. filo­ nhos dos filósofos" (cf. p. ex.. G iuvres, ed. sófica" no sentido cie investigação destinada a Conclorcet, p. 234). Hegel queixava-se desse conferir ao saber filosófico a unidade própria uso dos filósofos franceses, para os quais, se­ do sistema (P hilosophische System atik, § 1). gundo ele. S. coincidia com unilateralidade ou S IS T E M A T IC O (in. System alic, fr. Systém ao dogmatismo (G escbichte d e r P bilosophie, I. tique, ai. System atisch; it. Sistem ático). 1. Que cap. III, seç. I, B. 4; trad. it.. II. p. 293: I. cap. constitui sistema ou pertence a um sistema, III, seç. III, E; trad. it., III, 1, p. 29). Esse uso em qualquer dos sentidos dessa palavra. É nes­ manteve-se na França mesmo no séc. XIX (cf. te sentido que se diz "saber S." ou "erro S." E. BKKNAKD, In tro d uctio n ã Ia m ed icin e expéri2. Que tende para o sistema, mas não é mentale. 1865, I, II, § 6). um sistema: com referência a sistemática. SISTEMA LOGÍSTICO (in. Logistic sysiem; Neste sentido, N. Hartmann distinguia na fr. Systèm e lo gistic/ue, ai. I.o g istich es System ; it. história da filosofia o pen sam ento-sisten ui. Sistem a logístico). Cálculo lógico ao qual não se voltado para a construção do sistema, e o p en dá nenhuma interpretação. Para constituir um satnento-probtem a, que se mantém na inda­ S. logístico são suficientes: gação aberta (System atische P bilosopbie, 1" um vocabulário de símbolos primitivos: 1931, § 1). Além disso, segundo ele, 'já ficou para trás o tempo das visões S., e a filosofia 2- as reg ra s d e fo rm a çã o que determinam quais as combinações de símbolos primitivos S. acabou no terreno despretensioso mas sólido da indagação problemática" (D erpbisão permitidas e quai.s não são: 3" reg ra s de inferência, ou seja. de transfor­ lo so p h iscbe G edanke u n d seine G eschichte, mação das expressões compostas que dão ori­ III, 4; cf. Z u r G ru n dlegu ng d e r O ntologia; 1935, p. 31). gem a outras; 4Q algumas proposições primitivas ou a xio ­ SIT U A Ç Ã O (in. Situation; fr. Situatioti; ai. m as. Sititation; it. Situazione). A relação do homem Distingue-se do S. logístico a lin g u a g em fo r ­ com o mundo, na medida em que limita, m al, pois a esta última é dada certa interpreta­ condiciona e, ao mesmo tempo, fundamenta e ção. Para passar do S. logístico à linguagem for­ determina as possibilidades humanas como mal são. pois. necessárias algumas reg ra s tais. Esse termo foi introduzido por Jaspers, sem â ntica s que atribuam um significado às fór­ que; assim o explicava: "A situação externa, mulas do sistema. Pode-se dizer também que a apesar cie tão mutável e diferente, segundo o diferença entre S. logístico e linguagem formal homem ao qual se aplica, tem a seguinte carac­ 6 que o primeiro tem somente regras sin tá ti­ terística típica: para todos tem duas faces, incita cas e a segunda tem também regras sem â n ti­ e obsta, inevitavelmente limita e destrói, é am­ cas (d., sobre isso, A. CHURCH, "The Need for bígua e insegura" (P sycbologie d e r W eltansAbstract Entities in Semantic Analysis", em chciuungen , 1925, cap. III, § 2; trad. it., p. 268). P ro ceed in g s o f tbe A m erica n A ca d em y o fA rts Jaspers falava também de situ açõ es-lim ite que a n d S cien ces, 1951, pp. 100 ss.; In tro d u ctio n to possuem em grau elevado as características M a them a tica l Logic. 1956) (v. CÁLCULO, FOR­ próprias de qualquer S. do homem no mundo. MALIZAÇÃO). Tais são as situações imutáveis, definitivas, incompreensíveis, nas quais o homem se acha S IST EM A T IC A (in. S ystem atics; fr. Systém acorno se estivesse diante de um muro contra o tique, ai. S ystem atik; it. S iste m á tica '). Técnica, caminho ou meio de realizar o sistema. F.ssa quul se choca sem esperança. São elas: estar noção deriva do princípio kantiano de que o sempre em determinada situação; não poder sistema é o ideal regulador da investigação filo­ viver sem luta e sem dor; a necessidade de sófica, e não sua realidade. "No entanto — diz assumir culpas; ter a morte como destino Kant — o método pode sempre ser sistemático. (PhiL, II, p. 209). Nessas situações Jaspers via a Pois nossa razão (subjetivamente) é por si mes­ C(/>YI (v.) (revelação negativa) da existência.

SIT VERUM

Heidegger notou que esse termo também tem significado espacial, mas designa sobretudo a determinação pela qual a existência, como ser no mundo, decide acerca de seu próprio lugar (Seiri nnd Zeit, § 60). A existência impessoal acha-se diante de "S. gerais" e perde-se nas oportunidades mais próximas. A conciamação da consciência leva o homem à presença de sua situação própria e à exigência de uma deci­ são autêntica (Ibicl., § 60). Em sentido seme­ lhante se disse: "A necessidade da relação en­ tre a finitude do ente e a determinação cons­ titutiva do mundo e do outro ente é a S. exis­ tencial cio ente. (...) O constituir-se do ente na S. que o individualiza na sua finitude é o acon­ tecer do ente, sua bistoricidade fundamental (ABBAGNANO, Estrutura da existência, 1939, § 70). F Sartre disse: "Se opara-si\n consciência do homem] nada mais é que sua situação, de­ corre que o ser em S. define a realidade huma­ na, dando conta ao mesmo tempo de seu estar aíc de seu estar além. Com efeito, a realida­ de humana é o ser que está sempre além de seu ser-aí. F a S. é a totalidade organizada do ser-aí. interpretado e vivido por e para o ser. além deste mesmo ser" (L'être et le néant, 1943, p. 6.34). F.m sentido psicológico, mais precisamente gestáltico (v. PSICOLOGIA), esse termo foi utiliza­ do por Dewey, que identificou a S. com o cam­ po {Logic, 1939, I, cap. IV; trad. it.. pp. 111 ss.). Mas o próprio Dewey insistiu no ca­ ráter objetivo da S. (Ibicl.. cap. IV, § 1) trad. it.. 159 ss.). SIT VERUM. Lima das obrigações (v.) da lógica terminista medieval. Consiste em res­ ponder a Lima proposição como quem sabe que ela é falsa, ou como quem sabe que ela é verdadeira, ou como quem dela duvida (et. OCKHAM, Summa log., III, III, 44). SOBERANIA (in. Sovereignty, fr. Souveraiueté, ai. Souveranitüt. it. Sovranita). Poder pre­ ponderante ou supremo do Estado, considera­ do pela primeira vez como caráter fundamental cio Estado por Jean Bodin, em Síx livres de Ia républii{iie(\An(j). Segundo Bodin, a S. consis­ te negativamente em estar liberado ou dispen­ sado das leis e dos usos do Estado; positiva­ mente, consiste no poder de abolir ou criar leis. O único limite da S. é a lei natural e divina (Si.x livres de Ia republique, 9a ed., 1576, I, pp. 131­ 32). O termo e o conceito foram aceitos por Hegel: "As duas determinações, de os negócios e os poderes particulares do Estado não serem

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SOBERBA

autônomos e estáveis nem em si mesmos, nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas de te­ rem raízes profundas na unidade do listado — que outra coisa não é senão a identidade deles — constituem a S. do Estado" (/';'/. do dir., § 278). Hegel esclarece esta noção dizendo: "O idealismo que constitui a S. é a mesma determi­ nação segundo a qual, no organismo animal, as chamadas partes deste não são partes, mas membros, momentos orgânicos cujo isolamen­ to ou existência por si é enfermidade" (Ibid., § 278). Essas determinações de Hegel são diri­ gidas contra o princípio afirmado pela Revolu­ ção Francesa, de que a S. está no povo. Rousseau qualificara de soberano o corpo político que nasce com o contrato social (Conlrat so­ cial, I, 7) e assim definira o seu poder: "O cor­ po político ou soberano, cujo ser deriva tão-so­ mente da santidade do contrato, nunca pode obrigar-se, nem mesmo em relação a outros, a nada que derrogue aquele ato primitivo, que seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a outro soberano. Violar o ato graças ao qual existe significaria anular-se; e o que nada é nada produz " (Ibid, I. 7). Por­ tanto, o princípio da S. é ser o poder mais alto em certo território: isso não significa poder ab­ soluto ou arbitrário. Para a moderna teoria do direito, a S. pertence à ordenação jurídica (v. ESTADO), sendo entendida como a característica em virtude da qual "acima cia ordenação jurídico-estatal não existe outra" (II. KHLSKN. General 'íheoiyotl.aii'and State, 1945; trad. it., p. 390). Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito internacional, o Estado pode ser considerado soberano apenas em sentido relativo; se admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal, pode ser chama­ do de soberano no sentido absoluto e origi­ nário da palavra. A escolha entre as duas hi­ póteses é arbitrária (Ibid, p. 391). SOBERBA (gr. xofuvóxnç; lat. Sitperbia; in. Pricle-, fr. Orgueil; ai. Hochmuth, it. Superbia). Vício correspondente á virtude da magnanimidade(v.) e que tem como extremo oposto a pusilanimidade, na ética de Aristóteles. Segun­ do ele. "os soberbos são insensatos porque se enganam sobre si mesmos: empreendem ta­ refas honradas acreditando serem dignos delas, mas com isso só demonstram sua pmpria insu­ ficiência" (IX. nic, IV, 3. 1125 a 27). Essa defini­ ção tornou-se tradicional e foi repetida muitas vezes. Spinoza dizia: "A S. é uma alegria cuja

SOBRENATURAL

origem está em o homem sentir-se mais do que é" (Ibid., III, 26, scol.). SOBRENATURAL (in. Supernatitmk fr. Surnaturel; ai. Ubernatürlicb-, it. Soprannaturale). O que acontece na natureza, mas não decor­ re das forças ou dos procedimentos da natu­ reza e não pode ser explicado com base neles. E um conceito próprio da teologia cristã, que atribui à fé a crença no S. assim entendido (et. S. TOMÁS, S. ’lh., I, q. 99. a. 1). SOBRENATURALISMO (in. Supranatnralisni. fr. Surnaturalisme; ai. Supranaluralísmus; it. Soprannaturalismo).\. Km geral, a cren­ ça no sobrenatural. De modo mais específico, Kant chamou de S. "a doutrina que julga ne­ cessária para a religião em geral a fé na reveiaçào sobrértaíuraf" {Religiott, IX, l; frací. if.. Durante, p. 169). 2. Corrente filosófica que defende a tradição católica; difundiu-se na Itália e na França entre o fim cio séc. XVIII e o início do XIX e conta com os nomes de De Bonald, De Maistre, Rosmini, Lamenais, Gioberti. Seus partidários fo­ ram também chamados de teocráticos ou ultram u n d an ista s (v. TRADICIONAUSMO). SOBREVIVÊNCIA. V. IMORTAUDADH SOCIAL (in. Social; fr. Social; ai. Sozial; it. Sociale). Que pertence á sociedade ou tem em vista suas estruturas ou condições. Neste senti­ do, fala-se em "ação S.", "movimento S.", "questão S.". etc. 2. Que diz respeito á análise ou ao estudo da sociedade. Neste sentido, fala-se em "eco­ nomia S.", "psicologia S.", etc. Em especial, a expressão ciências S. designa o conjunto das disciplinas sociológicas, jurídicas, econômicas e às vezes também a ética e a pedagogia. SOCIALIDADE (in. Sociality, fr. Socialité, ai. Ceselligkeit; it. Socialità). O mesmo que so­ ciedade no primeiro sentido. G. H. Mcad en­ tendeu a S. em sentido mais vasto, atribuindo-a ao universo inteiro. "O caráter social do univer­ so consiste na situação de o novo acontecimen­ to estar ao mesmo tempo na velha ordem e na ordem nova, cujo prenuncio é sua realização. S. é a capacidade de ser várias coisas a um só tempo" (ThePhilosophyofthePresent, 1932, p. 49). SOCIALISMO (in. Socialism; fr. Socialismo-, ai. Sozialísmiis; it. Socialismo). Este termo, que se difundiu na Inglaterra (em oposição a indi­ vidualismo) nas primeiras décadas do séc. XIX, tem duas significações principais: Ia Uma significação mais ampla, desig­ nando, em geral, qualquer doutrina que de­

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fenda ou preconize a reorganização da so­ ciedade em bases coletivistas. Nesse sentido, são s. o de Platão e o de Marx, o de Owen e o de Proudhon, o de Lênin e o de Stálin. Referese a esse significado a distinção feita por Marx e Engels entre S. utópico, para o qual a socieda­ de socialista é um ideal que não leva em conta as vias ou os modos de realizá-la, e o S. cientí­ fico, que, sem apresentar qualquer ideal, prevê o advento inevitável da sociedade socialista com base nas próprias leis que determinam o desenvolvimento da sociedade capitalista (cf sobre esta distinção, especialmente: ENGELS, Anticlíibrinf>, 1878, introdução e cap. 1 da III parte). Neste sentido, o termo é muito vago e inclic:t qcra/quer aspiração, ideal, tendência ou dou­ trina que tenha em vista alguma transformação da sociedade atual em sentido coletivista. 2- Em sentido mais restrito, entendem-se por S. as correntes coletivistas que se distin­ guem do comunismo (v.) e se opõem a ele, enquanto: a) excluem a necessidade da ditadu­ ra cio proletariado; b) excluem que tal ditadura possa ser exercida, em nome do proletariado, por qualquer partido político; c) excluem a di­ ferença radical, que se observa nos países de regime comunista, entre a qualidade de vida da elite dirigente e a da maioria dos ci­ dadãos; d) excluem a subordinação da vida cultural às exigências do partido, à vontade de seus dirigentes; e) exigem respeito às regras do método democrático. A distinção das formas históricas que o S. assumiu diz respeito à política mais que à filo­ sofia, não pertencendo, portanto, à sua alçada. SOCIEDADE (lat. Societas; in. Society fr. Socjété, ai. Gesellscbaft; it. Socictã). No sentido geral e fundamental: 1Q campei de relações intt?rsubjetivas, ou seja, das relações humanas de comunicação, portanto também: 2Qa totali­ dade dos indivíduos entre os quais ocorrem essas relações; 3y um grupo de indivíduos en­ tre os quais essas relações ocorrem em alguma forina condicionada ou determinada. Io O primeiro significado, como se disse, é o fundamental; foi introduzido na cultura ociden­ tal pelos escritores latinos — especialmente por Cícero — que o hauriram no estoicismo. Nos escritores clássicos da Grécia, os aspectos estutal e social encontram-se fundidos e não se distinguem do conceito de polis-, graças ao cosmopolitismo dos estóicos, foram dissocia­ dos e, portanto, a S. passou a ser considerada

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independente do estado, da organização políti­ ca. Foi expondo a doutrina dos estóicos que Cícero disse: "Nascemos para a agregação dos homens e para a S. e a comunidade do gênero humano" (D efinihus, IV, 2, 4). Ksse conceito de S. 6 retomado pelo jusnaturalismo moder­ no, no qual é acompanhado pelo conceito de direito natural (o que já acontecia nos estóicos). O direito natural, aliás, 6 empregado pe­ los jusnaturalistas para delimitar o campo da sociedade. Huig van Groot (Grócio), p. ex., diz que "a conservação da S.. em conformidade com a inteligência humana, é fonte do direito propriamente dito" (D eju re b cllis aepacis, 1625. Proleg.. § 8). Analogamente, para Hobbes, a S, era uma associação decorrente das necessida­ des humanas e do temor, vale dizer, constituí­ da em última análise por relações humanas de utilidade recíproca (D eeive, 1642, 12). Pufendorf fundamentava a lei natural com o princípio se­ guinte: "Cada um, no que depender de si, deve promover e manter para com seus semelhan­ tes um estado de sociabilidade pacífica, condi­ zente em geral com a índole e as finalidades do gênero humano", e explicava que se devia entender por sociabilidade "a disposição do homem para com o homem, graças à qtial um se considera vinculado ao outro pela benevo­ lência, pela paz e pela caridade" (De ju r e m ttu ra e . 1672, II, 3). Também é possível encontrar uma definição indireta da S. nos tex­ tos que insistem na tendência natural do ho­ mem para a sociabilidade. como os que apare­ cem freqüentemente nas obras de Kant. "O ho­ mem tem inclinação a associar-se porque no estado de S. sente-se mais homem, vale dizer, sente que pode desenvolver melhor suas dis­ posições naturais. Mas também tem forte ten­ dência a dissociar-se (isolar-se) porciue tem em si também a qualidade anti-social de querer voltar tudo para seu próprio interesse, em vir­ tude do que deve esperar resistência de todos os lados e. por sua vez, sabe que terá de resistir aos outros" (Idee zu ein er allg em ein en G eschichte in iv eltb ü rg erlich er A bsieht, 1784, IV; trad. it., p. 127; M et. derSitten, II, § 47; Crít. do Juízo, § 41). Fichte expressava esse mesmo conceito ao dizer: "Chamo de S. a relação recí­ proca entre seres racionais" (D ie B estim m u n g des G elehrteu, 1794, II). Desse ponto de vista, a análise da S. pode ter como objetivo: a) Os fins que a totalidade do gênero huma­ no deve ter em vista e dos meios que a razão indica para a consecução de tais fins. As teorias

políticas dos autores gregos, p. ex.. de Platão e de Aristóteles, e as teorias jusnaturalistas anali­ sam a S. nesse sentido. b) As cond ições que, de fato, possibilitam as relações humanas. Essas condições foram defi­ nidas de várias maneiras, e sua definição pode ser considerada a primeira tarefa da sociolo gia (v.). Max Weber identificou-as na atividade so­ cial, que se realiza segundo uma ordem delibe­ rada e relativamente constante (U ber eiuige K a teg o rien d e r verstehendeu Soziologíe, 1913, V; trad. it., in // m éto d o d elle scieu ze storicosociali, pp. 262 ss.). Durkheim considerou ca­ racterísticos da S. humana os modos de agir que são impostos de fora e se consolidam nas in stitu içõ es (K ègles d e Ia m éth o d e sociologique, 1895. cap. 1). F. a própria ação. ou comporta­ mento, ás vezes é considerada elemento objeti­ vo que define o campo das relações humanas (cf. TALCÜTT PARSONS. The Strueture of Social A diou, 1949: 2 - ed., 1957). Kste segundo modo de entender a S. atribui-lhe explícita ou implici­ tamente o caráter de "campo" e a reduz portan­ to a uma construeto conceituai, isentando-a do caráter de totalidade real e do caráter de ideal normativo. 2 " O conceito cie S. como totalidade de indi­ víduos entre os quais há relações intersubjetivas. ou seja, como "mundo social", em geral está ligado ao conceito de S. como organismo ou "superorganismo". Os antigos já haviam comparado a comunidade política, o Fstado. a um organismo. Os estóicos compararam toda a S. — como comunidade de seres racio­ nais — a u m organismo (cf. MARCO AIÍRKUO, M em órias, VII. 13): esse paralelo continua na Idade Moderna. Comte chama a sociedade de "organismo coletivo" (C ours dephil. positive, IV, pp. 442 ss.). Por sua vez, Spencer chama de sup ero rg ân ica a evolução que conduz á S. e considera a própria S. como um organismo cujos elementos são, em primeiro lugar, as famílias e depois os indivíduos isolados. Segun­ do Spencer, o organismo social difere do orga­ nismo animal porque a consciência pertence apenas aos elementos que o compõem, pois a S. não tem órgãos de sentido como os animais, mas vive e sente apenas através dos indivíduos que a compõem (Tbe S tu d y ofSociology, 1873); Wundt expressou-se no mesmo sentido (System derP bilosophie, 2 ed., 1897, pp. 616 ss.). A hi­ pótese organicista continua por trás de muitas teorias políticas e sociológicas modernas. Pode ser considerada uma variante dessa mesma

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concepção a doutrina de Hegel, para quem a "S. civil" é uma fase imperfeita ou preparatória do Estado, que é a Idéia Divina realizada na terra: "A substância que. enquanto espírito, se parliculariza abstratamente em muitas pessoas (a família é uma só pessoa), em famílias ou em indivíduos, que por si estão em liberdade, são independentes e particulares, e perde seu cará­ ter ético; isso porque essas pessoas, enquanto tais, não têm na consciência e como objetivo a unidade absoluta, mas sua própria particulari­ dade e seu ser por si: daí nasce o sistema da atomística". Este sistema é precisamente a so­ ciedade civil como "conexão universal e media­ dora de extremos independentes e de seus interesses particulares" ou como "listado exte­ rior" (Fnc, § 523; Fil. do clir, § 184). Neste sentido, segundo Hegel, a S. civil compreende, em primeiro lugar, o sistema das necessida­ des; em segundo lugar, a administração da jus­ tiça; em terceiro lugar, a polícia e a corporação, ou seja, os órgãos que detêm a tutela dos inte­ resses particulares (Fil. do clir, § 188). O pró­ prio Marx manteve inalterado este conceito da S. civil, mas inverteu sua relação com o Estado e adotou-o como princípio de explicação do próprio Estado e, em geral, de todo o mundo ideológico: "Por meus estudos, fui levado à conclusão de que nem as relações jurídicas nem as formas do Estado poderiam ser compreen­ didas por si mesmas ou pelo chamado desen­ volvimento geral cio espírito humano, mas de que estão enraizadas nas relações materiais da existência, cujo conjunto é enfeixado por Hegel com o nome de S. ciril: a anatomia dessa S. ci­ vil deve ser buscada na economia política" (Ziir Krilik der politischeti Òkonomíe, 1859, Pref.; trad. it., Cantimorí. p. 10). Conceito aná­ logo de S. pareceu a Bergson ser o próprio ideal de S. "aberta", ou S. mística. "Uma S. mís­ tica que abarque toda a humanidade e que. animada por uma vontade comum, marche para a criação incessantemente renovada de Lima humanidade mais completa, certamente se realizará no porvir tanto quanto no passado existiram S. humanas funcionando de maneira orgânica â semelhança das S. animais. A aspi­ ração pura é um limite ideal como a obrigação nua" (Deuxsources. I, trad. it., p. 87). 3" Na linguagem comum e nas disciplinas sociológicas a palavra S. costuma ser usada no terceiro significado, de conjunto de indivíduos caracterizado por uma atitude comum ou insti­ tucionalizada. Neste sentido, designa tanto um

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grupo de indivíduos quanto a instituição que caracteriza esse grupo, como acontece nas ex­ pressões "S. comercial", "S. capitalista", etc. Esse emprego é tão óbvio que em geral não é sequer definido. As vezes é definido em rela­ ção com cultura, como fazem Kluckhohn e Kelly: "S. refere-se a um grupo cie pessoas que aprenderam a agir em conjunto; cultura referese aos modos de vida que distinguem esse gru­ po de pessoas" (R. ÜNTON, 'lhe Science ofMan in the World Crisis. 7J ed., 1952, p. 79). SOCINIANISMO (in. Socinicuiism: fr. Sociiiicniisnte, ai. Sociiiicmisnms; it. Socinianesinio). Doutrina religiosa de Lelio Socini (1525­ 62) e Fausto Socini (1539-160)), que exerceu influência especialmente na Polônia; seus prin­ cipais pontos são os seguintes: 1" negação do dogma trinitário: 2o negação do pecado original e da predestinação; 3" negação do valor das obras e da necessidade de mediação eclesiás­ tica; 4" recurso direto à Bíblia como meio único de salvação; 5" recurso à razão como único ins­ trumento para a interpretação autêntica da Bí­ blia. Além da Polônia, o S. difundiu-se na Ho­ landa e na Inglaterra, mas sua influência foi enorme em toda a cultura liberal moderna (d. D. CANTIMORÍ. Freliciilctlhmi dei Cincjüeceüto, Florença, 1939). SOCIOCRACIA, SOCIOLATRIA (in. 5o

ciocracy, sociolatiy, fr. Soeíocracie, sociolatrie, ai. Soziokratie, Soziolatrie, it. Sociocrazia, soziolatria). Termos criados por A. Comte para designar, respectivamente, o regime político baseado na sociologia, que ele concebe como análogo ou correspondente à teocracia medie­ val, baseada na teologia (Poliliqne positive, 1851, I, p. 403), e o culto da sociedade, que de­ veria tomar o lugar das religiões positivas (Catéchísmeposiliiisle, VI). SOCIOLOGIA (in. Sociology-, fr. Sociologie; ai. Soziologic*it. Sociologia). É a ciência da so­ ciedade, entendendo-se por sociedade o cam­ po das relações intersubjetivas. Esse termo foi criado em 1838 por A. Comte, para indicar "a ciência de observação dos fenômenos sociais" (Cours de phil. positive, IV, 1838), e é usado atualmente para qualquer tipo ou espécie de análise empírica ou teoria que se refira aos fatos sociais, ou seja. âs efetivas relações inter­ subjetivas, em oposição ás "filosofias" ou "me­ tafísicas" da sociedade, que pretendem expli­ car a natureza ela sociedade como um todo, independentemente dos fatos e de modo defi­ nitivo. Sem dúvida, na história cio pensamento

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ocidental sempre foram feitas observações úteis e decisivas no campo social, que encon­ traram lugar especialmente na ética e na políti­ ca. Contudo, tais observações não constituíam uma disciplina autônoma, dotada de metodolo­ gia própria: isso só começou com Comte. E possível distinguir dois conceitos fundamen­ tais de S., sucessivos no tempo: lu S. sintética (ou sistem ática), cujo objeto é a to talidade dos fenômenos sociais a serem estudados em seu conjunto, em suas leis; 2y S. analítica, cujo objeto são g ru p o s ou a sp ecto s particulares dos fenômenos sociais, a partir dos quais são feitas generalizações oportunas. Nesta segunda fase. a S. fragmenta-se numa multiplicidade de cor­ rentes de investigação e tem certa dificuldade para reencontrar sua unidade conceituai. í- Foi com Comte que nasceu a S. como sistema, como determinação da natureza da sociedade em seu conjunto, através da de­ terminação de suas leis. Nessa fase, tenta orga­ nizar-se à semelhança da física newtoniana: como ciência que. através de leis rigorosas, de­ lineia uma ordem necessá ria e o desenvolvi­ mento dessa ordem, não menos necessário. Portanto, Comte chamava a S. de física social. cuja primeira parte seria o estudo da ordem social (está tica ) e a segunda, o estudo do pro­ gresso social (dinâm ica) (C ours d e ph il. p o ­ sitive, IV, p. 292). Além disso, Comte atribuía ã S. a mesma função atribuída às outras ciências a partir de Bacon: dominar os fenômenos de que tratam em proveito do homem. Conse­ quentemente, a S. teria J função de "perceber nitidamente o sistema geral das operações su­ cessivas — filosóficas e políticas — que devem libertar a sociedade de sua fatal tendência à dissolução iminente e conduzi-la diretamente a uma nova organização, mais progressista e sólida que a fundada na filosofia teológica" (Ib id , IV. p. 7). A so ciocra cia (v.) seria assim o efeito inevitável da fundação da S. como ciên­ cia. Mesmo isentando a S. da tarefa de fundar uma nova humanidade, Spencer conservou seu caráter sistemático. Segundo ele, trata-se de uma ciência descritiva que visa a determinar as leis da evolução superorgânica, que regem o pro­ gresso do organismo social. Neste sentido, a S. é o estudo da ordem progressiva da sociedade como um todo (P rin cip ies o f Sociology, 1876, 1). Este conceito inspirou a primeira organiza­ ção da S. em todos os países do mundo. Aceito por W. G. Summer (Folkw ays. 1906) nos Esta­ dos Unidos, e por Wundt ( V olkerpsychologie,

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1900), com o nome de p sico lo g ia d ospo vos, na Alemanha, foi um conceito constantemente do­ minado pelo princípio de evolução, tomado em seu sentido otimista de progresso necessá­ rio: princípio q\ie inspirou também alguns estu­ dos sociológicos que se tornaram clássicos (como, p. ex.. os de E. WESTER.MARK sobre a O rigem e desenvon vim eiito d as idéia s m orais, 1906-1908). Mas a maior realização da S. siste­ mática talvez seja o Tratado de s. g e ra l (1916­ 23) de Vilfredo Pareto. que, sob outro aspecto, é também o início da crise desse tipo de S. Com efeito, Pareto. ao mesmo tempo em que quer realizar a S. como uma ciência positiva que estuda "a realidade experimental pela apli­ cação dos métodos já comprovados em física, química, astronomia, biologia e nas demais ciências", por outro lado repudia qualquer construção sistemática demasiado complexa e não hesita em qualificar de metafísicas e dog­ máticas as doutrinas sociológicas de Comte e Spencer (Tratado. § 5, 112). Segundo Pareto, o caráter essencial da ciência é iógico-experimental" e implica dois elementos: o raciocínio lógico e a observação do fato. Contudo, o obje­ tivo da ciência continua sendo o de tormular leis necessárias que descrevam em seu conjun­ to aquilo que Pareto chama de equ ilíbrio so ­ cial, por ele comparado às vezes a um sistema mecânico de pontos, outras vezes a um orga­ nismo vivo (C ours d eco n om iep o litiq u e, 1896. § 619). Entretanto, ele também insiste no sim­ ples caráter de 'uniformidade experimental" da lei e no fato de que todo fenômeno con­ creto é devido à intersecçào de certo número de leis diferentes (Tratado, § 99); isso signifi­ ca que toda explicação científica é aproximativa e parcial (Ibid., § 106). Ainda mais distante do ideal sistemático de S. é o corpo de análises que Pareto apresenta em seu Tratado, cujo ob­ jeto é principalmente aquilo que ele chama de "ações não lógicas", cujos elementos estariam nos resíd u o s e nas derivaçõ es (v.). 2 - Pode-se dizer que o marco da passagem da S. sintética para a analítica é a obra de E. Durkheim, que se afasta do pressuposto fun­ damental da S. sistemática, de que a sociedade constitui um todo ou um sistema orgânico. Durkheim diz: "O que existe, o que só é dado à observação, são as sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem, indepen­ dentemente umas das outras" (R èg les de Ia m étb o d e sociologique, 1895. 11a ed., 1950, p. 20). Paralelamente, Durkheim insistiu no cará­

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ter exterior do objeto da ciência social: "Os fatos sociais consistem em modos de agir, pen­ sar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um poder de coerçào graças ao qual se impõem a ele" (Ibid., p. 5). Considerar os fatos sociais deste modo significa considerá-los como coisas, independentemente de precon­ ceitos subjetivos e das vontades individuais (Ib id , pp. 11 ss.). Os mesmos motivos foram sistematizados na obra metodológica de Max Weber. A este cabe o mérito de ter sido o pri­ meiro a distinguir a S. das outras disciplinas antropológicas, especialmente das historiográficas. Ele identificou o objeto da S. na uniformi­ dade da atitude humana, que é dotada de senti­ do, ou seja, acessível à compreensão. Mais precisamente, atitude é a ação humana que: 1" refere-.se, segundo a intenção de quem age, à atitude dos outros; 2 " seu curso ê determinado também por essa referência; 3" pode ser explicada por essa referência ( U ber einige K a tego rien d e r verstehenden Soziologie, 1913, trad. it., em // m éto d o d elle scien ze storicosociali, p. 243). A segunda conquista importan­ te da S. de Max Weber é a nítida separação que pretendeu estabelecer entre a investigação empírica ou lógica, por um lado, e as avalia­ ções práticas ou éticas, políticas ou metafísicas, por outro lado (D er Sin n d er W etifreiheit d er so ziolo gisch en u n d õkon o m isch en W issenschaften, 1917; na coletânea citada, pp. 311 ss.). Ainda que, obviamente, seja mais fácil propor essa separação como exigência do que realizála na pesquisa, ela vale até hoje como regra que empenha a honestidade do pesquisador. Fm terceiro lugar, da obra de Weber dimana a exigência da investigação empírica particu­ lar, a única que pode determinar as uniformidades de atitudes que constituem o objeto da sociologia. Esses três pontos permaneceram no desenvolvimento posterior da S. contempo­ rânea. Esta aceitou com entusiasmo o convite de Weber no sentido da pesquisa empírica par­ ticular e da formulação de técnicas adequadas de observação. Hoje a S. dispõe de um impo­ nente conjunto de técnicas que podem ser clas­ sificadas em quatro grupos fundamentais: 1-' técnícus de o b serva çã o (observação direta, livre ou controlada, observação clínica, observação participante, etc); 2a técnicas d e entrevistei, que vão desde a entrevista livre até os questioná­ rios; 3U técnicas de exp erim en ta çã o a técnicas sociom étricas. estas últimas tendem a descrever as relações sociais espontâneas (consideradas

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componentes elementares cie todos os agrupa­ mentos) através da participação ativa dos pró­ prios sujeitos estudados (cf. MORKNCY, W ho S h a ll Sunive?, 1934); 4Q técnicas estatísticas, que a S. compartilha com muitas disciplinas sociais (et., para um quadro dessas técnicas, Tfaité de sociologie, dirigido por G. Gurvitch, 1958, pp. 135 ss.). Com o uso dessas técnicas, foi realizado grande número de "pesquisas de campo" nos sentidos mais díspares, tendo-se acumulado dessa maneira, sobretudo nos últi­ mos trinta anos, um material de observação volumoso e complexo. Mas a pesquisa sociológica não se desenvol­ veu no mesmo sentido em todos os países. Na Inglaterra, dedicou-se sobretudo a descrever o mundo dos primitivos, suas instituições e seus comportamentos fundamentais (cf. especial­ mente a obra de G. FRAZKR, The G olden B ough, 1911-14, 12 vols., e os textos de B. Malinowski e A. R. Radcliffbrown). Na França, além de des­ crever a mentalidade dos primitivos (cf. espe­ cialmente os textos de Lévy-Bruhl a partir de L e s fo n etio n s m en ta les d ans le s so ciétés inférieures, 1910), conservou o caráter teórico, de­ dicando-se ao estudo de problemas funda­ mentais, em especial por obra de Gurvitch (La vocation actuelle de Ia sociologie, 1950; D éterm inism es so cia u x e t lib erte hum aine, 1955). Nu Itália, depois cie haver dado uma contribui­ ção importante à S. sistemática com a obra de Pareto e de outros autores menores, calou-se no período entre guerras devido à influência negativa da cultura idealista, e só hoje vai readquirindo força e capacidade, atualizandose rapidamente nos métodos e interesses e de­ dicando-se ao estudo da sociedade italiana. Mas é sobretudo nos Estados Unidos que a pesquisa sociológica produziu uma quantidade considerável de trabalhos com as mais diferen­ tes orientações. Aqui só será possível indicar os principais caminhos tomados pela pesquisa sociológica: a) S. urbana: desenvolveu-se nos Estados [Inícios, principalmente graças ao incentivo de R. E. Park. dando origem a obras clássicas como as de R. S. e H. UND, M id dletoivn (1929) e M id dleto w n in T ransiction (1937) (cf. também o estudo clássico de PARK, Voe City, 1925, atual­ mente em llu ru a n C om m unities, 1952). b) Estudo da estratificaçâo e da mobilidade social: iniciou-se nos Estados Unidos, na época da crise (1929), e alcançou desde então resul­ tados importantes (cf., para um balanço, G.

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GADDA CÜNTI, Mobilitã e stratificazkme socialc, 1959). c) Estudo dos grupos étnicos: conta hoje com importante conjunto de obras, entre as quais a clássica obra de Thomas e Znaniecki, lhe Polish Peasant in Enrope and America (1918-21). d) Estudo da família: deteve-sc especialmen­ te na análise cia desorganização familiar e nos problemas conjugais (cf., p. ex., E. V. HAMIL­ TON, Estudos sobre o casamento, 1929). e) Análise da opinião pública e dos instru­ mentos de propaganda, que conta hoje com uma riquíssima literatura (cf., p. ex., R. K. MKRTON. Mass Persuasion. 1947). /) Estudo de pequenos grupos, cujos melho­ res resultados foram obtidos nos Estados Uni­ dos (cf. E. SHII.S, LO stato attuale delia S. ameri­ cana, em Qitaderni di $., 1953. n. 7). f>) S. industrial, termo com que se designa o estudo das relações em locais de trabalho e as influências reciprocas entre essas relações e a organização industrial (cf., para um balanço. FRANCO FRRRAROTTI, La S. industriale in Ame­ rica e in Europa, 1959). h) S. da religião, fundada por Max Weber (Die protestantische Ethik, und der Geist des Kapitalismus, 1904; Dieprotestantische Sekteu und derGeist des Kapítalismus, 1906, etc), que consiste na análise das interações entre as rela­ ções sociais e os fatos religiosos; nos últimos anos não obteve grandes resultados. i) S. do conhecimento, cuja fundação costu­ ma ser atribuída a Marx, que foi o primeiro a insistir nas interações entre o saber e as formas sociais; foi cultivada especialmente por Max Scheler (Die Wissensformen und die Gesellschaft, 1926) e por Karl Mannheim (Das Problem eíner Soziologie des Wissens, 1926). Como já dissemos, a quantidade de traba­ lhos realizados em muitos desses ramos da pesquisa sociológica é enorme, mas a sua uti­ lização conceituai não foi adequada. Shils dis­ se: "O principal defeito da sociologia america­ na é o inverso de sua principal virtude: sua indiferença, até agora dominante, para com a formação de uma teoria geral está estreitamen­ te ligada à sua avidez de precisão na observa­ ção imediata" (Lo stato attuale delia S. america­ na, em QuadernidíS, 19S3, n. 8). Essa situação não é exclusiva da S. americana, mas está pre­ sente em todos os países em que a pesquisa sociológica alcança certo grau de desenvolvi­ mento. Por isso, mesmo os que mais insistiram

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na importância das técnicas objetivas ás vezes sentem saudade da velha forma sistemática da S. (cf. PITIRIM SOROKIN, Fads and Faibles in Modem Sociology andKelated Sciences, 1956). Contudo, não faltam á literatura sociológica moderna certas tentativas importantes e felizes de estabelecer uma teoria sistemática do objeto da S.. que é a ação social (cf., p. ex., T. PARSONS, The Structure of Social Action, 1937. 2ed.. 1949), outras de consolidara relação entre a teoria social e a pesquisa social (cf., p. ex., R. K. MKRTON. Social Theory and Social Struc­ ture). ou mesmo de realizar a S. como uma "tipologia quantitativa e descontinuísta", alta­ mente teórica, como é a de G. Gurvitch ( Traité de sociologie. 1959, pp. 155 ss.). Portanto, o que se pode prever, dado o estado atual dessa disciplina, é a multiplicação e o fortalecimento das tentativas de conceituaçào teórica do mate­ rial a que se teve acesso através cie pesquisas especiais, sem contudo voltar à forma sistemá­ tica que a S. assumira na sua primeira fase dogmática. SOCIOLOGISMOün. Sociologism; fr. Sociologisme, ai. Soziologismus-, it. Sociologismo). Termo polemístico para designar a tendência a reduzir fenômenos morais ou religiosos a fatos sociais (cf. BOUTROUX, Science et religion. p. 342). SOCIOMETRIA. V. SOCIOLOGIA. SOCRATISMO (in. Socratism, fr. Socratisme-, ai. Socratismus; it. Socratismo). Doutrina de Sócrates, da forma como se consolidou na tradição antiga; seus fundamentos podem ser assim resumidos: 1- valor da indagação filosófi­ ca, sem o que a vida não é digna de ser vivida; 2- a indagação restringe-se ao homem, não ha­ vendo interesse por qualquer estudo da natu­ reza; 3" identificação entre ciência e virtude, no sentido de que é possível ensinar e aprender a virtude, e não é possível praticar o bem sem conhecê-lo; 4y importância atribuída ao ensi­ namento: nada se ensina, pois apenas se favo­ rece a criação intelectual dos ouvintes; 5U mé­ todo de interrogação e a ironia (vj. SOFISMA (in. Sopbism; fr. Sopbisme- ai. Sophisma; it. Sofisma). 1. O mesmo que fa­ lácia (v.). 2. Raciocínio caviloso ou que leva a conclu­ sões paradoxais ou desagradáveis. Neste senti­ do, esse termo tem uso muito vasto, e até os paradoxos(v.) e os argumentos duplos podem ser chamados de S.

SOFISTICA

SOFÍSTICA (in. Sophistics; fr. Sophistique, ai. Sophistik, it. Sofistica). 1. Aristóteles chamou de S. "a sabedoria (sapientia) aparente mas não real" (El. soph., 1, 165 a 21), e esse passou a indicar a habilidade de aduzir argumentos capciosos ou enganosos. 2. Em sentido histórico, a S. é a corrente filo­ sófica preconizada pelos sofistas, mestres de re­ tórica e cultura geral que exerceram forte influência sobre o clima intelectual grego entre os sécs. V e IV a.C. A S. não é uma escola filo­ sófica, mas uma orientação genérica que os S. acataram devido ãs exigências de sua profissão. Seus fundamentos podem ser assim resumidos: 1° O interesse filosófico concentra-se no ho­ mem e em seus problemas, o que os sofistas ti­ veram em comum com Sócrates. 2" O conhecimento reduz-se à opinião e o bem, à utilidade. Conseqüentemente, reconhe­ ce-se da relatividade da verdade e dos valores morais, que mudariam segundo o lugar e o tempo. F.rística: habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses contraditórias. 4- Oposição entre natureza e lei; na nature­ za, prevalece o direito do mais forte. Nem todos os sofistas defendem essas teses: os grandes sofistas da época de Sócrates (Protágoras e Górgias) sustentaram principalmente as duas primeiras. As outras foram apanágio da segunda geração de sofistas (cf. UNTERSTEIXER, 1 sofisti, 1949). SOLECISMOün. Solecism; fr. Solécisme-, ai. Solecismus; it. Solecismo). Em Aristóteles (El. sof, passim) e depois, na lógica de origem aristotélica, designa um dos objetivos da dialética sofistica, qual seja, a tentativa de induzir o interlocutor a aceitar um enunciado que con­ tém urna impossibilidade gramatical, como homines currit. Esse termo passou a indicar uma aberração gramatical de natureza morfológica ou sintática. G. P. SOLIDÃO (in. Solitude; fr. Solitude- ai. Fhisamkeít; it. Solitudine). Isolamento ou bus­ ca de melhor comunicação. No primeiro senti­ do, a S. é a situação do sábio, que, tradicional­ mente, é autárquico e por isso se isola em sua perfeição (v. SÁBIO). Afora esse ideal, o isola­ mento é um fato patológico: é a impossibilida­ de de comunicação associada a todas as formas da loucura. Em sentido próprio, contudo, a S. não é isolamento, mas busca de formas dife­ rentes e superiores de comunicação: "Não dis­ pensa os laços com o ambiente e a vida coti­

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SOLIPSISMO

diana, a não ser em vista de outros laços com homens do passado e do futuro, com os quais seja possível uma forma nova ou mais fecunda de comunicação. O fato de a solidão dispensar esses laços é, pois, uma tentativa de libertar-se deles e ficar disponível para outras relações so­ ciais" (ABBAGNANO, Problemi di sociologia. 1959, XI, § 8). SOLIDARIEDADE (in. Solidarity: fr. Solidarité, ai. Solidaritat; it. Solidarietà). Termo de origem jurídica que, na linguagem comum e na filosófica, significa: 1" inter-relação ou interde­ pendência; 2" assistência recíproca entre os membros de um mesmo gaipo (p. ex.: S. fami­ liar, S. humana, etc). Neste sentido, fala-se de solidarismo para indicar a doutrina moral e ju­ rídica fundamentada na S. (Cf. L BOURGEOTs . La solida ri té. 1897). SOLILÓQUIO (lat. Soliloquium). Colóquio da alma consigo mesma. Soliloquia foi o título que S. Agostinho deu a uma de suas primeiras obras, em que declarava desejar conhecer ape­ nas Deus e a alma, e nada mais (Sol., I, 2). S. Anselmo chamou de MonologUm o seu colóquio interior em torno cia essência de Deus. SOLIPSISMO (in. Solipsism- fr. Solipsisme; ai. Solipsísmus; it. Solipsísmo). Tese de que só eu existo e de que todos os outros entes (ho­ mens e coisas) são apenas idéias minhas. Os termos mais antigos para indicar essa tese são egoísmo (cf. WOI.FF, Psychologia rationalis. § 38; BAIMGARTEN. Met, § 392; GANUPPI, Saggio filosófico sulla critica delia conoscenza, IV, 3, 24, etc), egoísmo metafísi co(KANT, Antr, I, § 2) ou egoísmor«;m;o (SCHOPENHAUF.R, Die Welt,I, § 19). Kant empregou o termo S. para indicara totalidade das inclinações que produzem felici­ dade quando satisfeitas (Crít. R. Prática, I, livro 1, cap. III; tracl. it.. p. 85); esse mesmo termo foi empregado para indicar o egoísmo me­ tafísico por alguns escritores alemães da se­ gunda metade do séc. XIX (cf. SCHLBEfT-SXDERN, Grundlageu zn einer Erkenntnistheorie. 1884, pp. 83 ss.; W. SCHUPPI-, DerSolipsismus, 1898; H. DRIHSCH, Ordnungslehre, 1912, pp. 23 ss., etc). Como já notava Wolff, o S. é uma espécie de idealismo que reduz a idéias não só as coisas, mas também os espíritos (Psychol. rat.. § 38). Freqüentemente, o S. foi declarado irrefutável, pelo menos com provas teóricas: tal era a opinião de Schopenhauer (loc. cit.), muitas vezes repetida (cf. RENOUVIER. les dilemmes dela métaphysiquepurê, 1901; A. LEVI, Sceptica. 1921; SARTRE, Vêtre et le néant.

SOLIPSISMO

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SONHO

1943, p. 284). Na realidade, o S. só é irrefutável donar todo o sistema do positivismo lógico" do ponto de vista idealista (com o qual coinci­ (An E xa m ina tion o f L ó g ica ! P usilivism , cap. de), segundo o qual os atos ou as ações cio su­ VII; trad. it., pp. 235 ss.). Na realidade, o pres­ jeito são conhecidos de maneira imediata, pri­ suposto do positivismo qtie dá origem ao S. é reflexo cia tese idealista na teoria da lingua­ vilegiada e absolutamente segura. Foi a aceitação (explícita ou implícita) gem: os elementos da linguagem sào signos de dessa tese que por vezes levou a adotar o S. experiências imediatas, porque as experiênci­ como ponto de partida obrigatório da teoria as imediatas são a única realidade (v. EXI>I-:RIKN do conhecimento (cf., p. ex., DRIKSCH, Op. cit., CIA; LlNGUAGKM). p. 23) ou como procedimento m eto d o ló g ico SOMA LÓGICA (in. L ó g ic a !su m ; fr. S o m m e (ScHnsKRT-Sd.DKRN, Op. cit., pp. 65 ss.). Este Jpgique, ai. Logísche Summe; it. Somma lógica). último ponto de vista foi adotado pelo positi­ É a figura (a + b) resultante de uma adição ló g i­ vismo lógico, especialmente por Wittgenstcin ca (W). G.P. e Carnap. O primeiro, tendo observado que SOMÁTICO (in. S om atic fr. Som alíque, ai. "os limites de minha linguagem constituem os S o m atisch; it. Som ático). Corpóreo (v. CORPO). limites de meu mundo" ( Trcictatiis, 5, 6), con­ SOMATOLOGIAün. Som atolog)-, fr. Som acluiu "ser absolutamente correto o significado tulogie-, ai. Som atologie-, it. Sotnatologia). Parte do S., que, apesar de não poder ser dito. mani­ da antropologia que considera os aspectos tísi­ festa-se. O lato de os limites da linguagem (da cos do homem (V. ANTROPOLOGIA). linguagem que só eu entendo) constituírem os SOMBREAMENTO (ai. A bschaitung). Ter­ limites do meu mundo revela que o mundo é mo empregado por Husserl para indicar o o m eu mundo" (Ib id , 5.62) e que, portanto, modo parcial e aproximativo com que a coisa "eu sou o meu mundo" (Ib id , 5.63). Mas. assim externa é ciada à consciência perceptiva. P. entendido, o S. transforma-se imediatamente ex.: "A mesma cor aparece em seqüências con­ em realismo: "O S. rigorosamente desenvolvi­ tínuas cie sombreamentos de cores. O mesmo do coincide com o realismo puro. O eu do po­ vale para qualquer qualidade sensível e para sitivismo reduz-se a um ponto inextenso, e a qualquer figura parcial. Uma única e mesma fi­ realidade a ele se coordena" (Ib id , 5.64). O gura, dada em carne e osso como sempre a pressuposto desse discurso é a teoria segundo mesma, aparece continuamente 'de modo dife­ a qual a correspondência entre os elementos rente', em sombreamentos sempre diferentes cia linguagem e os cia realidade se dá termo a de figura. Essa é a situação necessária das coi­ termo, e os elementos da realidade se reduzem sas, que tem validade universal" (Icleeii, I, § 4). a fatos de experiência imediata, sendo, pois, SONHO (gr. èvÚ7txiov; lat. Som nium ; in. apenas m eus. Quando faltam tais fatos, falta o D rea m ; fr. R êve, ai. Traum ; it. Sogno). Ação da significado (o objeto) da palavra, e eu não a imaginação durante o sono. Esta é a definição entendo: portanto, Wittgenstein diz que os já proposta por (Tini., 45 e) e Aristóteles limites de minha linguagem são os limites do (D e sonm iis, 1, Platão 459 a 15), sendo também ado­ mundo. O mesmo pressuposto leva Carnap a tada pela psicologia moderna; dá origem falar de S. m elódico. Com muita razão Carnap a uma série de problemas quenesta, escapam com­ fala de S. a propósito da escolha dos elementos pletamente á alçada da filosofia (cf. a propósito básicos (G run d elem ente), porque, como atra­ desses problemas E. SKRVADIO, IIso g n o , 1955). vés de tais elementos (que servem de base para Freud os psicanalistas interpretaram o S. de a construção lógica do mundo) Carnap escolhe modo efuncionalista, tentarem determinar (assim como Wittgenstein) os fatos imediatos sua função na vida do ao homem. Freud, da experiência, ou, como diz ele, "a base psí­ o S. "é um meio de suprimir as Segundo excitaçòes quica própria", seu procedimento é solipsista quicas) que perturbem o sono, supressão (psí­ essa (D erlogischeA ufbau d e r Weil, 1928, § 64). J. R. realizada através de satisfações alucinatórias" Weinberg já observava que no positivismo lógi­ (Intr. à Ia p sycb a n a lyse, 1932, p. 151). O que co o S. lingüístico é inevitável; por isso, uma realização simbólica no S. na maioria vez que 6 necessário superá-lo para atingir a encontra das vezes são desejos proibidos, inibidos pela objetividade científica, "ou se alteram neces­ censura, que, portanto, sofrem uma elaboração sariamente alguns postulados do sistema para radical, cabendo ao psicólogo interpretá-la. isentar o positivismo das idéias metafísicas, ou (Ib id , pp. 189, 234). teoria de Freud foi — se esse método falhar — será preciso aban­ muito discutida, e nãoEssa parece apta a explicar

SONHO

todas as espécies de S. ou todos os seus aspec­ tos; apesar disso, foi a única a propor o proble­ ma da funcionalidade do S., vale dizer, da função que ele exerce na economia da vida psíquica. Os filósofos algumas vezes se dedicaram à análise do S. para mostrar a incerteza da discri­ minação entre ele e a vigília, utilizando-o como elemento de dúvida teórica. Platão dizia: "Nada nos impede de crer que as conversas que agora mantemos sejam mantidas em sonho, e quando em S. cremos contar um S.. a semelhança das sensações no S. e na vigília é realmente maravi­ lhosa" (Teci., 158 e). Por outro lado, "o tempo durante o qual dormimos 6 igual ao tempo em que estamos acordados, e em ambos nossa alma afirma que só as opiniões que tem naque­ le momento são verdadeiras; desse modo. por igual espaço de tempo dizemos que são verda­ deiras ora estas, ora aquelas, e defendemos umas e outras com a mesma energia" (Ibid., 158 d). Nos sécs. XVII e XVIII esse tema foi freqüentemente repetido por poetas e filóso­ fos. Shakespeare dizia: "Somos feitos da mes­ ma substância de que são feitos os S.. e nossa curta existência está contida no período de um sono" (lem pest, ato IV, cena I). Calderón de Ia Barca utilizou o mesmo tema em A vida é S. (1635): "São as glórias tão semelhantes aos S. que as verdadeiras passam por falsas, e as fal­ sas por verdadeiras? É tão pouca a distância entre umas e outras que é preciso saber se o que se vê ou frui 6 S. ou realidade?" (Ato III. cena X). Descartes empregava o mesmo tema como elemento de dúvida: "O que acontece em sonho não parece tão claro e distinto quan­ to o que acontece durante a vigília. Mas. pen­ sando a respeito, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado por simples ilusões, enquanto dormia. K, detendo-me nesse pensamento, vejo com clareza que não há indícios concludentes, nem sinais bastante seguros, que possibilitem distinguir com nitidez a vigília do S., a tal ponto que fico admirado, e minha admiração é tanta que quase me convence de que estou dormindo" (M éd , I; tf. P rinc.pbil, I, 4). A teo­ ria de Leibniz, segundo a qual a vida da mônada (substância espiritual) é "um S. bem regulado", constitui outra manifestação do mesmo tema. Leibniz diz: "Metafisicamente falando, não 6 impossível que haja um S. tão contínuo e duradouro quanto a idade de um homem. (...) Mas. desde que os fenômenos estejam interligados, não importa que sejam

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SORTE

chamados de sonhos ou não. porque a expe­ riência mostra que não nos enganamos ao aprendermos os fenômenos, quando eles são aprendidos segundo as verdades de razão" (Souv. c v s , IV, 2. 14). Voltaire dizia: "Se os órgãos, por si sós, produzem os S. da noite, por que não poderiam produzir, por si sós, as idéias do dia? Se a alma, por si só, tranqüila no descanso dos sentidos e agindo sozinha, é a causa única e o único sujeito de todas as idéias que temos dormindo, por que todas essas idéias são quase sempre irregulares, irracio­ nais, incoerentes?" (D ictiouuairepbi/osophiaiie, 1764, art. Songes). Schopenhauer talvez seja o último a apresentar esse tema em sua torma clássica: "A vida e os S. são páginas de um mesmo livro. A leitura contínua chama-se vida real. Mas quando o tempo habitual de leitura (o dia) chega ao fim e vem a hora de des­ cansar, então às vezes continuamos, fracamen­ te, sem ordem e conexão, a folhear aqui e aco­ lá algumas páginas: às vezes é uma página já lida, muitas outras vezes uma outra ainda des­ conhecida, mas sempre do mesmo livro" (D ie W eíl , 1, § 5). SONO e VIGÍLIA. V. SO N H O .

SORITES (lat. Acerrns; in. Sorites; fr. Sorite. ai. Sorites; it. Sorile). 1. Argumento de Eubúlides contra a multiplicidade (V. MONTÃO. ARcr.wr.NTo oo). 2. Silogismo composto ou polissilogismo (v.), no qual a conclusão do silogismo que pre­ cede é adotada como premissa do silogismo subseqüente, até se chegar a relacionar o ante­ cedente do primeiro silogismo com a conse­

qüência do último (cf. ARNAITD, Log., III, I; JUNc;n s, Lógica bamburgensis, III. 28; W OI.IT, Log., § í"74; HAMILTON, l.ecítires on Logic, p. 5)b,

etc). A expressão soriticussyllogismus deve ler sido usada pela primeira vez por Mário Victorino (séc. IV) (cf. PRANTL, Gescbicbte derLogik I, p. 663), mas foi difundida por Lourenço

V alia (Dialecticae dispulatíoHes, III.

12).

SORTE (gr. Ti>CT: lat. Fortuna; in. Fortune; fr. Fortune; ai. (Uück: it. Fortuna). Segundo Aristóteles, distingue-se do acaso (x.) porque se verifica no domínio das ações humanas e por isso não podem ter S. ou falta de S. os seres que não podem agir livremente. "Os seres ina­ nimados. os animais, as crianças, não fazem nada por S. porque não têm escolha: e a boa ou a má S. só lhes é atribuída por semelhança, da mesma maneira como Protarco disse que as pedras do altar têm sorte porque são homena­

SOTERIOLOGIA

geadas, enquanto suas companheiras são pi­ sadas" (Fís, II, 6, 197b D. Essa significação manteve-se no uso moderno da palavra. Seu conceito filosófico é. portanto, o mesmo de acaso (v.). SOTERIOLOGIA (in. Soteriologw ir. Soteríoiogie-, ai. Soteriologie-, it. Soleríologia). Dou­ trina religiosa da salvação. Sobre o aparecimen­ to de tendências soteriológicas no ocidente, v. a obra de F. CIMONT, Les religions oríentales clans lepaganismo romain, 1906, 2- ed., 1909. SPINOZISMO (in. Spinozism- fr. Spinozisme; ai. Spinozismus; it. Spinozismo). Doutrina de Baruch Spinoza (1632-77), nos principais aspectos reconhecidos pela tradição filosófica, que podem ser assim resumidos: 1" unicidade da substância do mundo e sua identificação com Deus, graças à qual Spinoza se refere ã substância com a expressão "Deussire uatura"; 2" aleísmo ou, como também se diz (com Megel), acosmísmo (\.), segtindo o qual Deus é o princípio e a ordem do mundo: 3" o necessitarismo, segundo o qual todas as coisas deri­ vam por absoluta necessidade da substância divina; 4- o geomelrísmo, afirmação cio caráter geométrico da necessidade cósmica que é o modelo do método geométrico da filosofia; 5" redução da liberdade humana ao reconheci­ mento e â aceitação da necessidade da ordem cósmica; 6" defesa da liberdade filosófica e reli­ giosa do homem, fundada na redução cia fé re­ ligiosa â obediência (v. Fí;). STATUS. Condição ou modo de ser. espe­ cialmente em sentido sociológico, como per­ tencente a determinado estrato social. STURM UND DRANG. Com esta expressão, que significa "tempestade e ímpeto" e foi título de um drama de Klinger, escrito em 1776, de­ signa-se um movimento filosófico e literário que surgiu na Alemanha na segunda metade cio séc. XVIII e constitui o antecedente imedia­ to do Romantismo. As atitudes peculiares desse movimento são simbolizadas pelas duas pala­ vras acima. Trata-se de manifestações irracionalistas cuja expressão filosófica se encontra nas doutrinas de Haman, Herder e Jacobi: estas re­ metem aos limites impostos por Kant â razão apenas para irem além da razão e recorrer à ex­ periência mística ou â fé (v. FK. FILOSOFIA DA). Do "S. und Drang" passa-se para o Romantis­ mo ao se passar do conceito kantiano de razão finitci— à qual se contrapõe a fé ou o senti­ mento, atribuindo-se-lhes poder cognoscitivo superior — para o conceito de razão infinita ou

SUBCONTRÁRIA, PROPOSIÇÃO

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capaz de atingir o Infinito; isso tem início com Fichte. em quem realmente se encontra a pri­ meira inspiração do romantismo (v.). SUAREZISMO (in. Siiaivzianism; Ir. Suarézismc it. SnarezisDio). Doutrina do espa­ nhol Francisco Suárez (15)8-1617), que é a maior expressão filosófica da Contra-Reforma católica. Trata-se, substancialmente, de um re­ torno decidido e rigoroso ao tomismo: stia obra Dispiita/íones metaphvsicae é um manual sis­ temático cie metafísica tomista. Suárez, porém, faz uma importante concessão â escolástica do séc. XIV. ao admitir a individualidade do real, vale dizer, ao reconhecer que cada coisa é tal por si mesma, e não pela matéria, pela for­ ma ou por outro princípio qualquer. Afastou-se também do tomismo na doutrina política ex­ posta em De legibits (1612), ao afirmar que o poder temporal dos príncipes provém apenas do povo: isso tem a finalidade cie privilegiar o poder eclesiástico, que proviria diretamente cie Deus. SUBALTERNAÇÃO (lat. Snballeniatío; in. Siibcilteniatiüiv, fr. Siibalteniatiou; ai. Subcilleruatioir. it. Snbahenioizione). Com este termo e com a expressão oposição subalterna, indica-se a relação entre a proposição universal e a par­ ticular correspondente e da mesma qualida­ de; p. ex., entre "todo homem é justo" e "al­ guns homens são justos", ou entre "nenhum homem é justo" e "alguns homens não são jus­ tos". A proposição universal chama-se snbaltemante e a particular, subaltemada (PI-DRO HISPANO. Snmm. log.. 1.1-í); JUNGIIS, Log. hambiirgensis, II, 9, 15; B. HKRD.MAW, I.ogik,

§ 70). Hamilton chamou a S. de restrição (Lectnres ou Logic, U2, p. 269). (V. QUADRADO DOS OPOSTOS.)

SUBCONSCIENTE (in. Subconscious- fr. Sttbconscíott: ai. liiterbeivusst; it. Subcosciente). O mesmo que inconsciente. Alguns psicólogos franceses do século passado procuraram dis­ tinguir o S. do inconsciente, considerando-o como consciência débil ou diminuída (Riboy, [anel e outros). Mas essa distinção pareceu falaz, e a palavra caiu em desuso (v. INCONSCII-NTI-:).

SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO (lat Propositio sitbcontmrici; in. Subcontrary propnsition; ai. Subcontrársatz; it. Proposizíone sub-cotitraria). Na lógica tradicional sào as­ sim chamadas, em suas inter-relaçòes, a pro­ posição particular afirmativa e a particular negativa; p. ex.: "alguns homens correm" e

SUBCONTRARIEDADE

"alguns homens não correm" (et., p. ex., PE­

DRO HISPANO, Summ. log., 1.13) (v. ÇHADRADO DOS OPOSTOS). SUBCONTRARIEDADE (lat. S ubcontraríelas-, in. Sitbcontrary, ir. S ubcontraire, ai. Subcontrár, it. S u h co n tra rietã ). Relação de opo­

sição entre proposições particulares. P. ex.: "Sócrates corre", "Sócrates não corre" (PEDRO HISPANO, Sum m . lo g , I. 27). Às vezes, a rela­ ção entre p o ssív e l e n ã o n ecessá rio (JiNC.u s, L óg ica bam burgensis, II, 12, 29). SUBDIVISÃO. V. DIVISÃO. SUBJETIVIDADE (in. Subjeclivity., fr. Snbje c liv itê ; ai. Su b jektivilá h it. Soggettività). 1. Ca­ ráter de todos os fenômenos psíquicos, en­ quanto fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de "meus". 2. Caráter do que é subjetivo no sentido de ser aparente, ilusório ou falível. Nes.se .sentido. Hegel situava na esfera cia subjetividade o dever-ser em geral, bem como os interesses e as metas do indivíduo. Dizia: "Uma vez que o conteúdo cios interesses e das metas está pre­ sente apenas na esfera unilateral do subjetivo, e que a unilateraliclacle é um limite, essa falta manifesta-se ao mesmo tempo como inquieta­ ção, como dor,como algo negativo" ( V oiiesung e n ü b er d ie A stbetik, ed. Glockner, p. 141). Kierkegaard quis inverter o ponto de vista hegeliano, colocando a S. acima da objetivida­ de: "O erro consiste principalmente no fato de o universal, em que — segundo o hegelianismo — consiste a verdade (e o individual tor­ na-se verdade só se nele subsumido), 6 uma abstração: o Estado, etc. Ele não chega a dizer que é a S. em sentido absoluto, e não chega á verdade, ou seja, ao princípio cie que realmen­ te, em última instância, o individual está acima do universal" (D iário, X 2 A 426). SUBJETTVISMO (in. S ubjectw ism ; fr. Subje ctiv ism e-, ai. S u b jectw ism us; it. S o g g ettivísm o ). Termo moderno cjue designa a doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados ou atos do sujeito (universal ou individual). Nesse sentido, o idealismo é S. porque reduz a reali­ dade das coisas a estados do sujeito (percep­ ções ou representações); analogamente, fala-se de S. moral e S. estético quando o bem, o mal, o belo ou o feio são reduzidos às preferências individuais. Esse termo é empregado na maio­ ria das vezes com intenções polêmicas, e por isso seu significado não é muito preciso.

SUBLIME

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SUBJETIVO (in. Subjective; fr. Subjectíf, ai. it. Saggettivo). Aquilo que pertence ao sujeito ou tem caráter de subjetividade. Esse adjetivo teve dois significados, corresponden­ tes aos do termo sujeito, mas somente o segun­ do ainda é usado. 1. A partir da escolá.stica do séc. XIII, o adjetivo significa simplesmente substancial. Ockham dizia: "Pode-se dizer com probabilidade que o universal não é algo real que tenha existência substancial (esse subjecüvnm ) na alma ou fora da alma, mas que existe na alma num modo de ser representativo (in esse objeclivo) que corresponde àquilo que a coisa externa é na sua existência substancial" (In S e n t, 1. d. 2, q. 8. E; cf. DtNS SCOT, D ean. 17, 14). Este significado mantém-se em toda a Idade Média. 2. O significado cie S. como pertencente ao eu ou ao sujeito do homem é encontrado pela primeira vez em alguns escritores alemães do séc. XVIII (sobre eles cf. CASSIRF.R, lirkenn tnisp ro b lein, 1908, livro VII). Já Baumgarten falava da "fé considerada subjetivamente", em oposi­ ção á "íé considerada objetivamente", que é o conjunto de crenças (AM., 1739, § 993). Algu­ mas décadas depois, discutia-se a beleza ou a verdade: seriam subjetivas ou objetivas? Enten­ dia-se por objetiva "uma propriedade dos ob­ jetos", e por S. "uma representação da relação entre as coisas e nós, ou seja, uma relação com quem as pensa" (J. E. Lossius, P h ysisch e U rsachen des W ahren, 1775, p. 65). A mesma dis­ tinção encontra-se em Tetens (P hilosophische Yersuche, 1776, I, pp. 344, 560, etc.). Foi desse uso do adjetivo que Kant extraiu o novo signifi­ cado atribuído ao substantivo sujeito. SUBLIMAÇÃO (in. Sublim atíon; fr. Sublim a tio n: ai. Sublim ieru ng; it. Su b lim a zio n e). Mecanismo psicológico de defesa, que consiste em transformar os impulsos sexuais em ativi­ dades psíquicas superiores, especialmente na produção artística. E.sse mecanismo foi assim descrito por Freud: "As excitaçòes excessivas que derivam de fontes diversas da sexualidade são desviadas e utilizadas em outros domí­ nios, de tal modo que as disposições que no início eram perigosas produzirão um aumen­ to apreciável nas aptidões e nas atividades psí­ quicas (Trais essais su r Ia tbéorie d e Ia sex u a lité . trad. fr., p. 177). SUBLIME (gr. íV/oç; lat. Sublim e; in. S u b li­ m e: ai. E rbabe)i\ it. Sublim e). 1. Forma lin­ güística, literária ou artística que expresse sen­ timentos ou atitudes elevadas ou nobres. Essa Subjektir.

SUBLIME

palavra começou a ser usada com tal sentido no sée. I a.C, tendo sido analisada no pequeno tratado So b re o S. do Pseudo Logino: "O S. é a ressonância da nobreza da alma, tanto que admiramos às vezes um pensamento singe­ lo, sem voz, por si, pela superioridade do sen­ timento. O silêncio de Ajax em N ekyia é maior e mais nobre que qualquer discurso" (D esubi, IX). No mesmo significado, essa palavra foi usada pelos autores latinos, principalmente por Quintiliano (Inst. ar, VIII, 3, 18; VIII, 3, 74; XI, I, 3; XI, 3, 153, etc). Este é também o significado com que essa palavra costuma ser usada; refe­ re-se não só a expressões lingüísticas ou literá­ rias, mas também a ações ou atitudes conside­ radas nobres ou elevadas. Foi nesse mesmo sentido que Croce entendeu o S., definindo-o como "afirmação subitânea de uma força moral poderosíssima", para expungi-lo da arte (E stéti­ ca, ¥ ed.. 1912, p. 107). 2. Em sentido próprio e estrito, o S. é o prazer que provém da imitação (ou da contempla­ ção) de uma situação dolorosa. Com esse senti­ do, essa noção vem diretamente do conceito aristotélico de tragédia: que deve provocar "piedade e terror"; por isso, como diz Aristóte­ les, o poeta trágico "deve propiciar o prazer que nasce da piedade e do terror por meio da imitação" (Poet. 14, 1453 b 10). No século XVIII, essa noção de tragédia deu origem a um pro­ blema que foi examinado por Hume num dos seus E n sa io s m o ra is ep o lítico s (1741): "Parece inexplicável o prazer que os espectador de uma tragédia bem escrita aufere cia dor, do terror, da angústia e de outras paixões que, em si mes­ mas, são desagradáveis e penosas" (é assim que Hume inicia o ensaio intitulado O f Traf> edy); sua análise serviu de fundamento para a obra de Burke, que em In q u iry ou the O rigin o f o u r Id ea s o f S u b lim e a n d B ea u tifu l (1756) distinguiu claramente o S. do Belo: "O Belo e o S. são idéias de natureza diferente: um tem fundamento na dor e o outro no prazer; embo­ ra possam depois afastar-se cia verdadeira na­ tureza de suas causas, estas continuarão sendo diferentes uma da outra, e essa diferença nun­ ca deverá ser esquecida por quem se propuser suscitar paixões" (Inquiry ou th e O rigin q / o u r Id ea s o f S u blim e a n d B ea u tifu l 1756, III, 27). O terror, a dor em geral, as situações de perigo são causas do S. (Ib id , IV, 5). 0 modo como essa causa pode produzir prazer (porque o S. é um prazer) é um problema que Burke resolve da mesma maneira que Hume; este, por sua

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vez, inspirara-se em Fontenelle U iâ/lexions su r Ia p o é tiq u e . 36): o prazer provém cio exercício, ou seja, do movimento que a dor e o terror provocam no espírito quando isentos do real perigo de destruição. Nesse caso — como diz Burke — o que nasce não é exatamente o pra­ zer, mas "uma espécie de horror deleitável, de tranqüilidade matizada de terror; este, porém, quando provém do instinto de conservação, é uma das paixões mais fortes. Isso é o S." (Ibid., IV, 7). Nas O bservações so b re o sen tim ento do b elo e do S . (1764), Kant repeliu substancial­ mente os mesmos conceitos, robustecendo-os com vasta exemplificação, de valor bastante duvidoso, pois continha entre outras coisas a caracterização dos diferentes povos, com base em suas atitudes em relação ao S. e ao belo (B eo b a cb tu n g en iib e r das G efü hl des Sch ôno i u n d E rhabenen, IV). Mas em C rítica do ju ízo . as idéias de Hume e Burke toram expressas com maior rigor conceituai, ganhando forma clássica. Segundo Kant, o sentimento do S. tem dois componentes: 1" apreensão de uma di­ mensão desproporcional ás faculdades sensí­ veis do homem (S. m atem ático), ou de um p o ­ d e r terrificante para essas mesmas faculdades (S. dinâm ico); I- o sentimento de conseguir reconhecer essa desproporção ou ameaça, e, por isso, de ser superior a ambas. Kant diz: "A qualidade do sentimento do sublime é ser ele, em relação a algum objeto, um sentimento de padecimento, representado ao mesmo tempo como fin a l; isso é possível porque nossa impo­ tência revela a consciência de um poder ilimita­ do do mesmo sujeito, e o sentimento só pode julgar esteticamente este último através da pri­ meira" (Crít. do Ju ízo, § 27). Por isso, Kant defi­ ne o S. como "o que agrada imediatamente pela sua oposição ao interesse dos sentidos" (Ib id , § 29. Obs. geral); com isso entende que, ao advertir a desproporção ou o perigo que o S. representa para a sua natureza sensí­ vel, o homem se dá conta de que, justamente por adverti-la, não é escravo dessa natureza, mas livre perante ela. Friedrich Schiller só fez expor e esclarecer as idéias de Kant ao afirmar que "se chama de S. o objeto para cuja repre­ sentação nossa natureza física sente seus pró­ prios limites, ao mesmo tempo em que nossa natureza racional percebe sua própria superio­ ridade, seu caráter ilimitado: um objeto diante do qual somos fisicamente fracos mas moral­ mente superiores, graças às idéias" ( Vom E rh a ­ benen, 1793). Schiller distinguiu o S. teórico.

SUBLIMINAR

que está em conflito com as condições do co­ nhecimento sensível, do S. prá tico , que está em condito com o instinto de conservação; no S. prático distinguiu o S. prático contemplativo e o S. prático patético: v. PATÉTICO (cf. PARKYSOX, A estética do id ea lism o alem ão, I, pp. 175 ss.). Hegel, por sua vez, expressou na oposição infinito-finito o conflito típico do Sublime: O S. é a tentativa de exprimir o Infinito, sem encon­ trar, no reino das aparências, um objeto que se preste a essa representação" (V orlesungen ü ber dieA sthetik, ecl. Glockner. I, p. 483). Por isso. "as formas por meio das quais aquilo que se manifesta 6 também abolido, de tal sorte que a manifestação dos conteúdos é também a supe­ ração das expressões, é a sublimidade: portan­ to, esta não consiste" — como diz Kant — "na subjetividade pura do sentimento e em seu poder de estar acima das idéias da razão, mas, ao contrário, baseia-se no significado representativo, em virtude do qual se refere a uma Substância Absoluta" (Ibid., p. 484). Portanto, Hegel viu no S. uma forma especial de arte, mais precisamente a arte simbólica. Nele, a dor e a situação de perigo que, para a estética do séc. XVIII. representam a causa do S., foram substituídas pela inefabilidade e pela majestade da Substância Infinita. Schopenhauer, contudo, limitou-se a reafirmar a teoria tradicional e considerou que o S. existe quando "os objetos, cujas formas significativas nos con­ vidam à contemplação pura, têm uma atitude hostil para com a vontade humana em geral (cuja objetividade se evidencia no corpo hu­ mano) e se opõem a ela ou a ameaçam com sua força superior" (D ie Welt, § 39). O último pensador a expor o conceito de S. nesses ter­ mos foi Santayana: "A sugestão do terror faz que nos refugiemos em nós mesmos; aí, como numa ação de ricochete, intervém a consciên­ cia da segurança ou da indiferença, e nós senti­ mos a emoção de distanciamento e libertação, em que consiste, realmente, oS." (T h eS en seo f B eauty, 1896, p. 60). SU B L IM IN A R (in. S u b lim inal; fr. Sublim in a l; ai. Su b lim inal; it. Su b lim in a le). O mesmo que inconsciente. Esse termo foi divulgado por F. Myers (H um an P erso n a lity a n d its Survival o fB o d ily D ea th , 1903), que com ele de­ signou o vasto domínio que está sob o lim ia r da consciência, onde se vai acumulando aos poucos o material que depois é utilizado na criação genial.

SUBSISTIR

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S U B O R D IN A Ç Ã O (lat. Su bordinado; in. S u b o rdination; fr. Su bordination; ai. Subordination, it. Su bord in a zio n e). Relação entre dois conceitos: um deles (o sub ordinado) faz parte da extensã o do outro (o sobre-ordeuado) (HAMILTON, Lectures o f Logic, V, p. 188; SIGWAKT, Logik. I, 2. pp. 343 ss.; v. HUSSF.RL, Ideen,

I. § 13).

SU B O R D IN A C IO N ISM O (in. Subordinationisnr, fr. Subo rd in atian ism o; ai. Subordin citia nism us; it. Su bord iiiazío nism o ). Doutri­

na trinitária dos Padres gregos do séc. II, em particular de Orígenes: afirma que o Filho tem natureza subordinada â do Pai. Assim, segundo Orígenes, a eternidade do Filho depende da vontade do Pai: Deus é a vida, e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai é Deus-Paí, o Filho é Deus (In J o h a in i., II, 1-2). S U B -R E P T ÍC IO (lat. SSurreptitius; in. Surrep litio us; fr. S ubreptice; ai. H rschlichen-, it. Surrettizio). Xo sentido do termo latino, o que se possui, conquista ou faz clandestina­ mente ou sem direito. Em filosofia, esse termo é usado especialmente para indicar um pressu­ posto ou uma hipótese de que se faz uso num raciocínio, sem assumir ou declarar explicita­ mente. Foi nesse sentido que Kant denominou de sub-repções das sensações ("Subreptione d erE m p fin d u n g en ". Crít. R. P ura, § 6) as quali­ dades sensíveis atribuídas aos objetos empí­ ricos com base nas sensações. SU B SIST IR (lat. Subsistem , in. T oSubsist; ir. Subsiste/-, ai. S ubsistirei!; it. Sussistere). Existir como substância, ou existir independentemen­ te do espírito ou do sujeito pensante. No pri­ meiro .sentido, esse termo (que no uso latino comum significa persistir ou durar) foi introdu­ zido por Boécio (Phil. c o n s, III, 11). passando a ser usado desse modo na tradição escolástica (GILBERTO DF.LA PORRE, In B o etb i de trinitate, P. L. 64°, 1281; S. TOMÁS, S. Th., I, q. 29, a. 2).

É usado com o mesmo significado pelos escri­ tores modernos, como p. ex. Descartes (IVRép., I), Arnauld (Log., 1, 2) e Kant, que chama de "categoria da inerência e da subsistência" a ca­ tegoria da substância (Crít. R. P ura, § 10). No segundo sentido, de existência que não depende do espírito ou do sujeito pensante, esse termo foi usado por Berkeley (D ialogues b etw een lly la s a n d P bilonous, I, W orks, ed. Jessop, II, p. 199, r.42) e por Kant (Crít. R. P ura, § 6, [B52, A36J); foi retomado por Peirce, que com ele designou o ser das relações ('A re­ lação por si é um ens ra tio n is e uma mera pos­

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sibilidade lógica; mas a sua subsistência tem natureza de fato" (Co//. P ap., 3.571, o texto é de 1903), e estendido por Russell (P roblem s o f P bi/osopfoy, 1912, cap. 9) ao modo de ser cios universais e pelos neo-realistas americanos a todas as entidades neutras, constituintes cio mundo, que, com sua agregação, podem for­ mar a consciência ou as coisas (The N e w R eeilisin, 1912). Este segundo signilicado é ainda bastante difundido na filosofia contemporânea. S U B S T Â N C IA (gr. OÜGÍCX lat. Substantia-, in. Substance-. fr. Substance; ai. Substauz: it. Sostanza). Esse termo teve dois significados fundamentais: 1- de estrutura necessária; 2° de conexão constante. O primeiro pertence á metafísica tradicional: o segundo, ao empirismo. 1" No primeiro significado, é S.: ei) o que 6 necessariamente aquilo que é; b) o que existe ne­ cessariamente. Ambas estas determinações fo­ ram expostas na metafísica aristotélica, que gira inteiramente em torno do conceito de S. A pri­ meira determinação é designada por Aristó­ teles com a expressão TÒ xí r|Veivai (cjiiodquiel era t esse), que pode ser traduzida como essên ­ cia n ecessá ria ; com efeito, ao pé da letra, essa expressão significa aquilo que o ser era, onde o imperfeito "era" indica a continuidade ou esta­ bilidade do ser, seu ser desde sempre e para sempre. A essência necessária é expressa pela definiçã o (v.) e 6 objeto do conhecimento científico (v. CIÊNCIA). A segunda determinação relaciona-se com a primeira: é S. o que existe necessariamente. Aristóteles diz: "Temos ciên­ cia das coisas particulares só quando conhece­ mos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o mesmo que ocorre com o bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por essência existe, e o que é uno por essência não é uno; e assim com todas as outras coisas" (M et, VII, 6, 1031 b 6). Aristóteles aduz esse argumento contra a separação que Platão faz entre a idéia e as coisas, mas, obviamente, esse argumento significa que tudo é o que é em virtude da essência necessária (que é a sua causa intrínse­ ca ou extrínseca) e que, portanto, tudo o que há de real ou de cognoscível nas coisas faz par­ te cia essência necessária e existe necessaria­ mente. Assim, para Aristóteles, a S. constitui a estrutura necessária do ser em sua concatenaçào causai, porque todas as espécies cie causas sáo determinações da S. (v. CAISALIDADI:). Pre­ cisamente neste sentido, Aristóteles afirma que

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a forma das coisas é eterna e não pode ser pro­ duzida nem destruída (M el., VII, 8; VIII, 3), pois a forma é a essência necessária das coisas compostas. Por outro lado, Aristóteles não se preocupou muito em enumerar toclos os mo­ dos cie ser da substância. Começa dizendo que, comumente, se fala de S. em quatro sentidos, senão em mais, a saber: como essência neces sária, como universal, como espécie e como su­ jeito (M et., VII, 3. 1028 a 32). Mas a S. como universal ou como espécie é excluída pela críti­ ca ao platonismo, ou — o que dá no mesmo — é chamada por Aristóteles de sub stância se ­ gunda, em confronto com a S. primeira, que é a autêntica (Cat., 5, 2 a 13). Restam, portanto, apenas a S. como essência necessária e a S. como su jeito (v.). Neste último significado, a S. pode ser a forma, a matéria ou o composto de ambas (Ibid., 1029 a 2). Em seus dois signifi­ cados legítimos, a S. exprime o significado fun­ damental do conceito do ser e, portanto, cons­ titui o objeto da metafísica. "Aquilo que há muito tempo vimos procurando e ainda procu­ ramos, aquilo que sempre será um problema para nós (o que é o ser?) significa isto: o que é a S." (M et, VII, 1, 1028 b 2). Por outro lado, a estrutura substancial do ser é o fundamento cio saber científico. A essência necessária das coi­ sas que nào têm causa fora de si é intuída dire­ tamente pelo intelecto e constitui os princípios primeiros que fundamentam a demonstração, ao passo que a essência necessária das coisas que têm causa fora de si pode ser revelada, se­ não demonstrada, pela própria demonstração. Em todos os casos, a necessidade da demons­ tração é a própria necessidade da S. (A n.posl., II, 9, 43 b 21; cf. toda a discussão precedente). A história posterior do conceito de S. repete o caráter que já havia servido a Aristóteles para defini-lo: a necessidade. Tal caráter é emprega­ do explicitamente por Plotino para a definição do termo (Rnu.. 1.. VI, 3. 4), mas é a Escolástica árabe, em especial Avicena, que mais insiste nele: "Dizemos que tudo o que é tem uma S. (essentia) graças â qual é o que é. e graças à qual é a necessidade disso e seu ser" ( Logic. I). S. Tomás, que, com as equivalências lingüísti­ cas estabelecidas em D e en te e t essentia. puse­ ra fim a um longo período de confusões termi­ nológicas (v. ESSÊNCIA), reduz a S. (interpretando corretamente os textos de Aristóteles) à qüid id ad e (essência necessária) e ao su jeito (S. T h , 1. q. 29, a. 2). Descartes só fazia expressar o mesmo caráter cie necessidade ao afirmar

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que "quando concebemos a S., concebemos uma coisa que existe de tal modo que, para existir, não tem necessidade de outra coisa se­ não de si mesma" (Princ. p hil.. I, 51). Spinoza observava com razão que essa é a própria defi­ nição da S. infinita (R. ca rtesi p rin cip ia p h ilosophiae, 1663), e a adotava para definir esta última: 'Entendo por S. aquilo que é em si e se concebe por si mesmo, ou seja, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa pela qual deva ser formado" (Et., I, prop. 111). A definição proposta por Wolff ("S. é o sujeito perdurável e modificável") é por ele mesmo considerada idêntica à definição tradicional e à cartesiana (Onl., § 768, 772). A definição tra­ dicional é simplesmente repetida por Baumgarten: " S. é o ente subsistente por si" (M el., § 19D. Leibniz conseguiu expressarem termos modernos o conceito tradicional de S.: "A natu­ reza de uma S. individual ou de um ser com­ pleto 6 ter uma noção tão perfeita que com ela seja possível abranger e deduzir todos os pre­ dicados do sujeito aos quais essa noção é atri­ buída" (D isc. de m ét., 1686, § 8). 0 próprio Leibniz aproximava esta noção da noção escolástica tradicional de fo rm a su b sta n cia l Ubicl., § 11), mas, na realidade, era a própria noção de essência necessária, que já Aristóteles concebia como o princípio do qtial podem ser deduzidas todas as determinações de um ente. Nada muda quando Kant começa a conside­ rar a S. como categoria mental, pois a função de tal categoria, segundo ele, é co n stitu ir os próprios objetos da experiência. Mas, com esta transformação o conceito não muda. A S. é a "necessidade interna de permanência dos fenô­ menos", e "para que o que se costuma chamar de S. no fenômeno possa ser substrato de qual­ quer determinação temporal, é necessário que nele qualquer existência, no passado ou no futuro, possa ser determinada de uma só e única maneira" (Críl. K. P ura, Anal. dos Princ, cap. 11, seç. III, 3). Km outras palavras, a perma­ nência que constitui a S. 6 necessidade: 6 só poder ser de uma única maneira. Neste mesmo sentido, Fichte chamava o eu cie substância: "Na medida em que se considera que o eu abrange todo o círculo absolutamente determi­ nado de todas as realidades, ele é Substan­ ciai...) S. é toda a reciprocidade pensada em geral; acidente é alguma coisa determinada que varia com alguma outra coisa variável" ( Wisseuscbajhlehre, 1794, II, § 4, D; trad. it., pp. 100­ 101). No mesmo sentido, Hegel afirmava ainda

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que o conceito é S.: "O conceito é a verdade da S., e como o modo determinado de relação da 5. é a necessidade, a liberdade mostra-se como a verdade da necessidade e como o modo de relação do conceito" ( W issenschaft d er Logik, ed. Glockner, II, p. 7; trad. it., III, p. 10; cf. Ene, § ISO, 152). A noção de necessi­ dade continuou a caracterizar a idéia de S. em todos os filósofos que a empregam. Rosmini incluía na idéia de S. em universal: ly o pensa­ mento da existência atual; 2- o pensamento do indivíduo que existe; 3- o pensamento "das determinações que ele deve ter para existir, isto é, o pensamento da necessid a d e de que ele seja com pleto e tenha tudo o que lhe é necessário para existir" (N uoiv saggio, 589). Pode-se dizer que até Wittgenstein emprega esse termo neste sentido tradicional: "S. é aqui­ lo que existe independentemente do que acon­ tece" (Tractatus, 2.024). 2O segundo conceito de S., como cone­ xão constante entre determinações simultanea­ mente dadas pela experiência, é o produto da crítica empirista ao conceito tradicional. Kssa crítica visa o caráter fundamental tradicional­ mente atribuído à $., a sua necessidade, por­ quanto tal necessidade não é resultado da ex­ periência. A incognoscibilidade cia S. em si mesma, por não ser objeto da experiência e só se dar na experiência como coleção de quali­ dades, já fora sustentada por Ockham no séc. XIV (In Sent., I, d. 2, q. 2; Q uodl, III, 6), mas coube a Locke difundir esse ponto de vista no mundo moderno. Neste sentido, a S. é tam­ bém chamada por ele de essência re a l ou fo r­ m a substancial, e sua crítica encontra-se no cap. 6 do Livro III, mais do que no famoso ca­ pítulo 2.] do Livro II: "No conhecimento e na distinção das S.. nossas faculdades não vão além de uma coleção de idéias sensíveis que observamos nelas; esta, mesmo que cria­ da com a maior diligência e exatidão de que sejamos capazes, estará sempre distante da verdadeira constituição interna de qtie tais qualidades derivam. (...) Quando nos ocorre examinar as pedras sobre as quais caminha­ mos ou o ferro que manejamos todos os dias, logo descobrimos que não sabemos como são feitos nem sabemos explicar as diversas quali­ dades que descobrimos neles. É evidente que a constituição interna de que dependem suas propriedades nos é desconhecida" (Ensaio, III, 6, 9). Aqui Locke identifica com justeza a S. com a "constituição interna" da qual deveriam

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derivar as qualidades da coisa: derivar no sen­ tido de que deveriam ser d ed u zíveis dessa constituição, de tal modo que pudessem ser explicadas e compreendidas em virtude dela. lista era na realidade a S. aristotélica como essência necessária das coisas. Declarando-a incognoscível, Locke reduz a S. a uma simples "coleção de idéias", abandonando a noção de necessidade em favor cia noção de simples co­ existência de fato das determinações percebi­ das. Assim, em Locke, o conceito de S. sofre uma transformação análoga á que o conceito de causa sofrerá nas mãos de Hume: de ne­ cessidade racional passa a ser uniformidade factual. A S. deixa cie ser necessidade racional, em virtude da qual as determinações de um ente estariam toefas raciona/mente ínteríigadas e seriam deriváveis da determinação fundamental que constitui a essência do ente, e passa a ser um conjunto de determi­ nações que de fato estão juntas, mas cuja necessidade não pode ser demonstrada. Hume expressava bem essa nova idéia de S. ao dizer que "as qualidades particulares que formam uma S. costumam referir-se a alg o des­ conhecido a que elas supostamente inerem. ou, deixando de lado essa ficção, são conside­ radas estreita e inseparavelmente interligadas por relações cie continuidade e de causacáo" (Treatise, I, J, 6; ed. Selby-Bigge, p. 16). A co­ nexão cie contigüiclade e causaçào tomou o lugar da necessidade racional. Formulação ainda mais rigorosa do mesmo conceito foi proposta por Mach: "A S. não passa de per­ sistência cia interconexão: persistência que nunca é absoluta ou rigorosa (A nalyse d er E m pfiudungen, XIV, § 14; trad. it., p. 3H 2). \o mesmo sentido, Dewey escreveu: "A condição, a única condição para que possa haver substancialiclade, é que a interdependência entre certas qualificações seja um sinal seguro de que, em se verificando certas interações, seguir-se-ão certos resultados" (Logic, cap. VII; trad. it., p. 187). A idéia de S., no seu significado tradicional de necessidade, e a idéia correlata de causa constituem os eixos de qualquer m eta física (v.). Portanto, são aceitas integralmente por qualquer metafísica de cunho tradicional, ao passo que as correntes empiristas tendem a ver no conceito de S. a interconexão que Hume já entrevira, ou tendem até a desprezá-la, opon­ do-lhe a idéia de função, vale dizer, de rela­ ção. Esta última passagem já foi realizada

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SUBSTRATO

por Mach, porquanto a "persistência da interconexão" nada mais é que a uniformidade de certas relações. SU B STA N C IA L (in. SubslantialSx. Siibstcm líel; ai. Substantiell; it. Sostanziale). 1. O que constitui uma substância ou pertence a uma substância: que é essencial ou que existe ne­ cessariamente. 2. O que é. num sentido qualquer, im­ portante ou decisivo: p. ex.. "uma contribuição substancial". SU BST A N C IA LID A D E (in. Sithstanliality, Ir. Substantialité, ai. Substantialíldí, it. SostanziaU tà). O modo de ser da substância (no sentido 1). Na primeira edição da C rítica da R a zã o P ura. Kant chamou de "paralogismo da S." o fato cie se atribuir ao "eupenso" o modo de ser Üa substância (Crít. R P ura, A, 3-49). Depois disso, Hegel preferiu empregar esse termo com <> simples significado de substância em geral ita xo fiM n g u a g e, § 6; M e a n in g a n d N ecessity, § 11; QUINK, M eth o d s o f Logic, %(>. e t c ) . SU B ST R A TO

(lat. Su b stra tu m ; in. Substraiiinv. fr. Su bstrat; it. Sostrato). Esse termo foi in­

troduzido pela escolástica do séc. XIV para in-

SUBSUNÇÃO

clicar o indivíduo real (su b stra tu m singulare. PKDKO AURÍÍOLO, In Seul., 1. d. 3S. cj. 4, a. 1). sendo depois retomado por I.ocke para desig­ nar aquilo que era tradicionalmente chamado de su bjectu m ou suppositum . ou seja, o sujeito ou a substância como sujeito (Ensaio, 11. 23. 1). Aceito por Berkeley (P rincipies ofH um ctn K now ledge, I, § 7) e por Leibniz (N ouv. e s s , 11, 25, 1), esse termo passou a ser muito usado e acabou prevalecendo, não sem riscos cie confu­

são (v. SUJFITO). S U B S U N Ç Ã O (kit. Subsum plio; in. Subsum ption; tr. S u bsum ption; ai. S u bsum ption; it. Sussunzione). Em sentido próprio, a assunção

da premissa menor do silogismo, chamada de h ipo lem a por Hamilton, para reservar o termo lem a II.) à premissa maior [L ediires (»i Logic, l2, p. 283; cf. WOLFK, L o i> , § 361). Kant talou de "S. de um objeto sob um conceito" (Crít. R. P ura, Anal. dos Princ, cap. I), e em sentido idêntico Husserl observava que "a S. de um indivíduo, em geral de um este aqui, sob Lima essência não deve ser confundida com a su­ bordinação de uma essência a uma espécie ou a um gênero superiores" (Ideeu, I. § 13). SU B T R A Ç Ã O (in. S u b tra ctio u; fr. Soustraction; ai. Subtractiou; it. Sottrazione). A no­ ção de S. lógica foi introduzida por Boole da seguinte maneira: "Se x representa uma classe de objetos, então 1 - x representa a classe con­ trária ou suplementar de objetos, que contém todos os objetos que não estão na classe .v" (Lctw s o f lhougbt, 1854. cap. III, Prop. III, Dover publ., p. 48; v. também PrJRCE, Co//. P a p , 3. 5, 9, 18, etc). Na lógica posterior essa noção desapareceu. SU C ESSÃ O (in. S itccessioii; fr. Succession; ai. F olge, it. Successione). 1. O mesmo que série no significado 2. 2. Unia série temporal; p. ex., "uma S. de eventos". SUCESSO (in. Success; fr. Succès; ai. Erfolg, it. Successo). Algumas vezes o instrumentalismo americano foi chamado de "Filosofia do S.", no sentido de ser uma filosofia que considera o S. a medida dos valores. Na realidade, o instrumentalismo também acentuou o caráter sempre relativo e provisório do S. Dewey disse: "O S. nunca é final ou terminal. (...) O mundo não pára quando a pessoa que obteve S. conseguiu o que quis, nem ela mesma pára, e o tipo de S. que ela obteve, assim como sua atitude em relação a ele, é um fator daquilo que advirá" (E lum an N a tu re a n d C onduct, p. 254).

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SUICÍDIO SUFICIENTE, RAZÃO. V. FUNDAMKNTO.

SUFISMO (in. Sufism ; fr. Sufism e: ai. Sufisn iu s; it. Sufism o). Misticismo árabe e persa (assim chamado porque os mantos de seus adeptos eram feitos de pêlos de camelo) que se desenvolveu a partir do séc. VIII por in­ fluência do cristianismo e culminou no neoplatonismo de Algazali (séc. XI) (cf. J. A. ARSHRKY. Sufism , 1950). SUGESTÃO (in. S uggesthm ; fr. Suggestíon. ai. Suggestion-, it. S u gg estio ne). 1. F.m gera\, qualquer tipo ou forma de associação psíquica. Peirce, p. ex.. diz: "O modo de S. com que a hi­ pótese sugere os fatos na indução é por contigüiclaele. conhecimento habitual de que as con­ dições das hipóteses podem ser realizadas era certos modos experimentais" (Co//. Pap.,1.218) (v. ASSOCIAÇÃO). 2. Qualquer influência exercida por uma pessoa sobre o comportamento de outra pes­ soa. Nesse sentido, esse conceito pertence à psicologia. SUICÍDIO (gr. èAaycoytí; in. Suicide-, fr. Suicide; ai. Selbstmord; it. Suicídio). Os fi­ lósofos condenaram o S. pelos seguintes mo­ tivos: 1- Porque é contrário à vontade divina. Platão afirma que "não é irracional que alguém não possa matar-se antes que a divindade lhe comande essa necessidade" (E ed , 62 c). Este é o ponto de vista constantemente afirmado pe­ los escritores cristãos (v. para todos eles: S. AGOSTINHO, Decir. Dei, I, 20; S. TOMÁS, S. Th.. II, 2. q. 64, a. 5). A afirmação de que o S. é con­ trário á ordem cio destino (PI.OTINO, E nn.. I, 9) ou â lei natural (S. TOMAS, S. Th, II, 2, q. 64, a. 5) não é diferente, visto que o destino ou a lei natural são manifestações da vontade divina. A esse argumento Hume replicava que nada escapa à vontade divina, nem a morte, natural ou voluntária, e que por isso o S. não pode ser considerado contrário á vontade divina ou à ordem das coisas (O fSuicide, em E ssays, ed. Green e Grose, II, p. 412). 2y Porque o S. não chega a separar comple­ tamente a alma do corpo. Este é o argumento aduzido por Plotino contra o S.; segundo ele, •quando o corpo é coagido por violência a se­ parar-se da alma. não é ele que permite a parti­ da da alma, mas foi uma decisão da paixão, seja ela tédio, dor ou ira" (Enn , I, 9). Esta também é a razão aduzida por Schopenhauer. .segundo quem "o S., longe de ser negação da vontade, é um ato de forte afirmação da vonta­

SUICÍDIO

de" porque "o suicida quer a vicia e só está des­ contente com as condições que lhe couberam" (D ie Welt, 1. § 69). 3Q Porque 6 transgressão de um dever para consigo mesmo, pois, como diz Kant, "o ho­ mem tem a obrigação de conservar a vida uni­ camente pelo fato de ser uma pessoa" (Met. d er Sitten, II, parte I, § 6). 4" Porque 6 um ato de covardia. Fichte observava a propósito que também pode ser considerado um ato cie coragem. Se, de fato, falta ao suicida coragem "para suportar uma vida que se tornou insuportável", o S. execu­ tado com fria premeditarão é a expressão do domínio da razão sobre a natureza, que é o instinto de autoconservação. E concluía: "Se confrontado com o homem virtuoso, o suicida é um covarde; se confrontado com o miserável que se submete à desonra e á escravidão para prolongar por alguns anos o sentimento mes­ quinho de existir, é um herói" (Sitíenlehre. 1798. em W erkc, IV, p. 268). 5" Porque é injusto para com a comunidade á qual o suicida pertence. Esta 6 a razão aduzida por Aristóteles (/;'/. nic, V. 11, 11 38a 9). A esse argumento Humc objetava que as obrigações do homem e da sociedade são mú­ tuas; assim, a morte voluntária não anula só as obrigações do homem para com a sociedade, mas também as da sociedade para com ele (O f Suicide, em ILssays, cit.. p. 413). Por outro lado, os filósofos consideraram o S. lícito ou necessário pelos seguintes motivos: 1° Porque pode ser um dever renunciar à vida quando continuar vivendo impossibilita o cumprimento do dever. Era assim que pensa­ vam os estóicos, cuja doutrina Cícero expõe da seguinte maneira: "Quem possui em maior nú­ mero as coisas segundo a natureza tem o dever de continuar vivendo; quem, ao contrário, tem ou se acredita destinado a ter em maior núme­ ro as coisas contrárias, tem o dever de sair da vida. Donde se segue que o sábio às vezes tem o dever de sair da vida mesmo sendo feliz, e o tolo, de continuar vivendo mesmo sendo infeliz" (De finibus, III, 18. 60; v. SHNKCA. lip.. 12). 2 " Porque é uma afirmação da liberdade do homem contra a necessidade. Epicuro dizia: "É uma desventura viver na necessidade, mas vi­ ver na necessidade não é em absoluto necessá­ rio''; e Sêneca comentava: "Agradecemos a Deus que ninguém possa ser retido em vida contra sua própria vontade: é possível esma­

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SUJEITO

gar a própria necessidade" (Hp., 12). A exal­ tação da morte por Zaratustra tem o mesmo motivo: "Louvo m inh a morte, a morte livre, que vem porque eu quero. E quando vou que­ rer? Quem tem uma meta e um herdeiro quer a morte na hora certa, pela sua meta e por seu herdeiro" (Also sp ra ch Z arathustra. I, Da livre morte). 3" Porque pode ser a saída para uma situa­ ção insustentável e o único modo de salvar a dignidade e a liberdade. Desse ponto de vista Humc afirmava que "o S. está de acordo com o interesse e o dever pessoal: isso não pode ser questionado por quem reconhece que a idade. a doença e a infelicidade podem transformar a vida num peso insustentável e torná-la pior que o aniquilamento" (O fSuicide, em F ssays, cit., p. 414). Na filosofia contemporânea, Jaspers aduziu o mesmo argumento em favor do S. (Phíl, 11, pp. 303 ss.), e Sartre escreveu: "Se estou mobilizado numa guerra, essa é a m inh a guerra: ela é á minha imagem e eu a mereço. Mereço antes de tudo porque podia ter-me subtraído dela com o S. ou com a deserção: essas possibilidades extremas devem sempre ser levadas em conta quando é preciso enfren­ tar alguma situação" (L'être e t le néanl, p. 639). SU I G E N E R IS . Expressão usada em frases escolástícas como: "Todas as coisas são medi­ das por alguma coisa do mesmo gênero", como p. ex. o comprimento pelo comprimento, o nú­ mero pelo número, etc. Kssa frase pode ser considerada uma premissa para se afirmar que, pelo fato de ser Deus a medida de todas as substâncias, ele pertence ao gênero das subs­ tâncias. Mas a doutrina escolástica a propósito alirma. ao contrário, que Deus não está em nenhum gênero, conquanto seja princípio do gênero das substâncias e de todos os outros gê­ neros (v. S. TOMÁS. S. Th.. I., q. 3. a. 5; C ontra G ent.. I, 25). S U JE IT O (gr. UTTOKauxvov; lat. Subjedum . Siipposititni; in. Subject; fr. Sujei: ai. Subjekt: it. Soggetto). Esse termo teve dois significados fun­ damentais: lu aquilo de que se tala ou a que se atribuem qualidades ou determinações ou a que são inerentes qualidades ou determina­ ções; 2o o eu. o espírito ou a consciência, como princípio determinante do mundo do conheci­ mento ou da ação, ou ao menos como capaci­ dade de iniciativa em tal mundo. Ambos esses significados se mantêm no uso corrente do ter­ mo: o primeiro na terminologia gramatical e no conceito de S. como tema ou asstinto do clis-

SUJEITO

curso; o segundo no conceito de S. como capa­ cidade autônoma de relações ou de iniciativas, capacidade que é contraposta ao simples ser "objeto" ou parte passiva de tais relações, 1" O primeiro significado pertence à tradi­ ção filosófica antiga. Aparece em Platão (Prot.. 3-49 h) e é deünido por Aristóteles como um dos modos da substância. Aristóteles diz: "S. é aquilo de que se pode dizer qualquer coisa, mas que por sua vez não pode ser dito de nada" (Meí.. VII, 3. 1028 h 36). Neste sentido, o 5. pode ser entendido: a) como a matéria de que se compõe uma coisa. p. ex. o bronze; b) como a forma da coisa, como p. ex. o desenho de uma estátua; c) como a união de matéria e forma, como p. ex. a estátua (Ihid.. 1029 a 1). Essas determinações pertencem estritamente à metafísica aristotélica. Mas o que importa é o sentido geral do termo: S. é o objeto real ao qual são inerentes ou ao qual se referem as de­ terminações predicáveis (qualidade, quantida­ de, etc). Este é também o conceito de sujeito dos estóicos, que o consideraram como objeto externo ao qual se refere o significado, ou seja, como a denotação do significado (SKXTO EMPÍ­ RICO, A clr. n ia th , VIII, 12; cf. SIGNIFICADO). OS epicuristas empregaram esse termo com o mes­ mo sentido (EPICIRO, E pístola. I, pp. 12, 24. Uesener). F, com essa tradição que se relaciona o uso gramatical do termo, que começou no séc. 11 d.C; Apuleio já chamava de suhjectiva ou su b clitci a parte do discurso que os antigos chamavam de nome, e cie d eclaratira a par­ te que os antigos chamavam de verbo (D e d og m ate P la lo n ís . III, p. 30. 30; cf. MARCIANO CAPELA. De nuptiis. IV, 393). Esse significado de "S." permanece inaltera­ do através de longa tradição. Os escritores me­ dievais adotam as determinações de Aristóte­ les: chamam a substância de su b jectu m ou su pp osüu m porquanto a ela inerem as qualida­ des ou as outras determinações (cf. S. TOMÁS, V 'lh.. I, q. 29. a. 2; DlNS Scor. O p . Ox, II. d. 3, q. 6, n. 8; OCKHAM, In Sent.. I. d. 2, q. 8, E). O sig­ nificado desse termo não muda quando por S. é entendida a alma como substância à qual inerem determinados caracteres ou da qual emanam determinadas atividades. Hobbes diz: "O S. da sensação é o próprio senciente. ou seja, o animal" (D ecorp., 25. 3). Locke chama o sujeito neste sentido de su b stra tu m ou su p o r­ te (E nsaio . II. 23, 1-2). É com esse mesmo sen­ tido que Hume se vale desse termo: "Eis que aparece Spinoza a dizer-me que só há modifi­

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cações e que o S. ao qual elas inerem é sim­ ples, não composto e indivisível" (Treatise, 1. IV. 5. ed. Selby-Bigge. p. 242). Por outro lado, esse mesmo significado mantém-se até mesmo no racionalismo alemão. Leibniz pretende con­ servar o significado tradicional de S. (Nonr. css., II, 23, 2) e. ao falar de disposições "que vêm asubjecto, ou da própria alma", está falan­ do de disposições que vêm da própria substân­ cia da alma (R em arquessur leL ivre de lo rig in e du m al. em Op., ed. Erdmann, p. 645). Por sua vez, Wolff define o S. como "o ente, enquanto dotado de essência e capaz de outras coisas além dela" (Ont.. § 7 11). No mesmo sentido. Baumgarten diz que o S. é o ente. determinado na matéria cie que é constituído (M el.. § 344). Aliás, o próprio Kant recorre a essa noção tradi­ cional de sujeito. Diz: "Há tempos observou-se que, em todas as substâncias, o S. propriamen­ te dito, aquilo que fica depois de retirados os acidentes (como predicados), portanto o ver­ dadeiro elemento substancial, nos é desconhe­ cido" (Prol.. § 46). 2" O segundo significado desse termo, como o eu. a consciência ou a capacidade de iniciati­ va em geral, teve início com Kant, que certa­ mente teve em mente o significado que a opo­ sição entre subjetivo e objetivo assumira em alguns escritores alemães, seus contemporâ­ neos (v. StiisjHTivo). Para Kant. S. é o eu p e n ­ so cia consciência ou autoconsciência que determina e condiciona toda atividade cognoscitiva: "Em todos os juízos sou sempre o S. determinante da relação que constitui o juízo". "Para o eu. para o ele ou para aquilo (a coisa) que pensa, a representação é apenas de S. transcendental dos pensamentos, = xque só é conhecido através dos pensamentos que são seus predicados e cios quais, à parte estes, não podemos ter o menor conceito" (Crít. R . P ura. Dial. transcendental. II, cap. 1). Nessas palavras de Kant pode-se reconhecer a passagem do ve­ lho para o novo significado de sujeito. O eu é S. na medida em que seus pensamentos lhe são inerentes como predicados: este é ainda o significado tradicional do termo. Mas o eu é sujeito na medida em que determina a união entre S. e predicado nos juízos, na medida em que é atividade sintética ou judicante, es­ pontaneidade cognitiva, portanto consciência, autoconsciência ou apercepção; e este é o novo significado de sujeito. A tradição pós-kantiana atém-se exclusiva­ mente a este segundo significado. Para Fichte,

SUJEITO

o S. 6 o Eu, que é "S. absoluto, não representa­ do nem representável", que "não tem nada em comum com os seres da natureza" ( W issenschaftslehre, 1794, § 3, d). Segundo Fichte, a diferença entre a Substância de Spinoza e o Eu Absoluto consiste no fato de que Spinoza não concebeu a substância como S. (Ibid., trad. it., pp. 78 ss.). Schelling fala no mesmo sentido de identidade ou unidade cio S. e de objeto na ALitoconsciencia Absoluta (System d es transzendentalen Idealisnuts, 1800, I. cap. 11; trad. it., p. 34). Por sua vez, Hegel dizia: "Tudo depende de se entender e expressar o Verdadeiro não somente como Substância, mas de maneira igualmente decidida como S. (...) A subs­ tância viva é o ser, que na verdade 6 S. ou — o que dá na mesma — é o ser que na verdade 6 efetivo, mas somente na medida em que a substância é o movimento de pôr-se a si mes­ ma ou é a mediação do vir a ser outra consigo m esm a" (Phanomen. des Geistes, Pref., II, 1). No mesmo sentido. Hegel afirma que a Idéia Absoluta 6 unidade de S. e objeto {Ene, § 214). E acrescenta: "A unidade da idéia é subjetivida­ de, pensamento, infinidade, e portanto deve ser distinguicla essencialmente da idéia corno substância do mesmo modo como se deve fa­ zer a distinção entre essa subjetividade clominadora, esse pensamento, essa infinidade e a subjetividade unilateral, o pensamento unila­ teral, a infinidade unilateral, ã qual ela se rebai­ xa ao julgar e definir" (E ne, § 215). Logo, a subjetividade como "subjetividade infinita", ou seja, não intelectual, prevalece sobre a obje­ tividade na "unidade S.-objeto" que é a Idéia ou o Absoluto. Mas Hegel também viu no S. como tal a capacidade de iniciativa ou o princípio da atividade em geral. "O S. é a ativi­ dade da satisfação dos impulsos, da racionali­ dade formal, vale dizer, é a atividade que tra­ duz a subjetividade do conteúdo (que sob esse aspecto é fim) na objetividade em que o S. se conjuga consigo mesmo" (E ne, § 475). Assim como Fichte, Schopenhauer insistia na impossibilidade cie representar o S.: "Aquele que tudo conhece e não é conhecido por nin­ guém é o Sujeito. É ele, pois, que tem o mundo em si; é a condição universal e sempre pressu­ posta de qualquer fenômeno, de qualquer ob­ jeto: porque o que existe, existe para o sujeito" (l)ie Weil, I, § 2). É quase supérfluo observar como o idealismo contemporâneo abusou des­ sas noções, especialmente o idealismo italiano. Gentile dizia: "A realidade espiritual objeto do

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SUJEITO

nosso conhecimento não é espírito e fato espi­ ritual, mas pura e simplesmente espírito, como sujeito. Como tal, ela só é conhecida na medida em que sua objetividade se resolve na ativida­ de real do S. que a conhece" (Teoria g en ercü e dello spiríto, 1920, 11, § 3). Croce emprega a palavra S. para indicar o Espírito do Mundo, a Razão ou a Plumaniclade, que é o princípio criativo da história (Sto río g ra fia e idea litã m orale, 1950, p. 21). Ficaram poucos sinais dessa pesada mitolo­ gia no restante da filosofia contemporânea. Por um lado, as correntes do iieocnlicism o(\.), ao insistirem no aspecto lógico-objetivo cio conhe­ cimento, relegaram para segundo plano a fun­ ção do sujeito; aliás, evitaram empregar seu conceito e o próprio termo em suas análises explicativas. Por outro lado, o S. como eu (ou o eu como S.) simplesmente desaparece em algumas filosofias contemporâneas porque de­ saparece a função diretiva e construtiva que ele deveria exercer. É o que acontece, p. ex., na fi­ losofia de Mach, em que o eu se torna simples­ mente um conjunto de sensações, de elemen­ tos cognoscitivos, e não tem mais função como S. (A nalyse d e r E m pfindungen, 1900, 1, 12). Em sentido análogo, Wittgenstein diz que o S. "não existe. Se eu escrevesse um livro 'O mundo como encontrei', deveria falar também de meu corpo, e dizer quais as partes dele que obede­ cem â minha vontade e quais não, etc, o que seria um método de isolar o sujeito ou de mos­ trar que, em sentido importante, não há sujeito. Com efeito, não se poderia falar dele sozinho nesse livro" (Tractatus, 1922, 5.631). O S. não existe porque "o S. não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo" (Ib id , 5.632), no sentido de que, assim como o olho, vê tudo mas não se vê a si mesmo, e portanto se resol­ ve inteiramente nos objetos vistos. Não é muito diferente o significado da tese de Santayana, de que "o espírito não existe" (Scepticism a n d A n i­ m a l E aith , 1923, cap. 26). Mas mesmo quando se reconhece a existência do S., sua função é reduzida ao mínimo pela corrente realista. Ao afirmar que "S. e objeto são sempre correlativos um ao outro e por isso inseparáveis". N. Flartmann está reduzindo a função do S. a "ima­ gem, representação ou conhecimento do obje­ to", excluindo inclusive a possibilidade de que ele modifique a natureza deste (Sistem a tiscb e P hilosopbie, 1931, § 10). Finalmente, mesmo quando não excluída, a função do S. não é considerada inconclicionada ou criadora, mas

SUMA

submetida a limites e condições, negando-se em todos os casos que ele possa valer como substância ou torça autônoma. Husserl diz: "O ego constitui-se por si mesmo na unidade de uma história. Ao se di7.er que, na constituição cio ego, estão contidas todas as constituições de todos os objetos que existem para ele. imanentes e transcendentes, reais e ideais, é preci­ so acrescentar que o sistem a d e constituições em virtude das quais tais objetos existem para o ego só é possível no quadro de leis genéticas" (Cart. M e d , 1931, 37). Desse ponto de vista, o S. 6 uma função, não unia substância ou uma força criadora. Heidegger disse: "Se para o ente que nós somos e que definimos como se r-a í for escolhido o termo sujeito, poderemos di­ zer: a transcendência implica a essência do S.. é a estrutura fundamental da subjetividade. Não que o S. exista a n tes como S. e depois, no momento em que alguns objetos se revelem presentes, ele possa a té m esm o transcendê-los. Ser S. significa ser existente na transcendência e enquanto transcendência" ( Vom W esen des j'ru n d e s, 1929. II; trad. it., p. 30). É preciso lembrar que, para Heidegger. transcendência (v.) ê relação com o mundo; portanto, o S. é por ele identificado com essa relação. De modo mais empírico, Dewey ressalta o caráter puramente funcional da subjetividade: "Uma pessoa, ou — mais genericamente — um orga­ nismo, torna-se sujeito cognoscente em virtude de seu empenho em operações de investiga­ ção controlada" (Logic, 1938, p. 526). Admitir que existe S. cognoscente independente da investi-gaçào e anterior a ela significa supor algo que ê impossível verificar empiricamente e que, portanto, não passa de preconceito metafísico. Hssa idéia fora exposta por Dewey já em Stu dies in I.o g ica l Theory, de 1903 (cf. também IL xp erien ce a n d N ature, 1926. cap. VI). SU M A . No séc. XII começou-se a designar com este termo os breves tratados sistemáticos sobre algum conjunto de conhecimentos. Abe­ lardo escrevia no prefácio â sua In tro d u çã o a Teologia-. "Kscrevi uma suma da sagrada erudi­ ção, como introdução â divina escritura" (P. /.., 68°, col. 979). As S. costumavam ter como título a matéria tratada (S. de vitiis e t virtutibits; S. de articulís fid eí; S. serm o n u m ; S. g ra m m aticalis, S. log icalis; etc). Depois do séc. XIII, começouse a dar preferência a esse termo, em vez de Sen ten tia e . para título cias exposições sistemáti­ cas de teologia. Os manuscritos da obra de Pietro da Capua (escrita por volta de 1200) já

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SUPERAR

recebem o título de Sum m a. Nas grandes obras sistemáticas cio séc. XIII esse termo é usado quaAe com exclusividade, (v. M. GRAHMANN, Gesçhichte der scbolastischen Metbode, II. pp. 23 ss.). SU N ITA S (in. Sitiantes-, fr. Sunnite, ai. Sunniten-, it. Suiaiiti). Corrente islamita ortodoxa que admite a validade de crenças práticas não prescritas no Alcorão, mas cuja origem seria o próprio Maomé. Os xiitas, ao contrário, negam o valor da tradição. SUPERADDITA, FORMA. Telésio extraiu essa expressão nos escolásticos de inspiração escOtista para designara alma supranatural, di­ retamente infundida no homem por Deus, que ele ;idmite estar ao lado da natural e material, com» su}eAo da \iiAa Tengiosa e da aspiração do liomem pelo que está além da natureza. Ao contrário da alma natural, a fo rm a S. não seria corruptível (D e rei: n a t, V. 3). SUPERAR (in. To sublate-, fr. Dépasser, ai. A u jh eb en ; it. Superare). Termo tisado por Hegel para indicar o processo dialético que. ao mesmo tempo, conserva e elimina cada um de seu.*! momentos. Hegel dizia: "Na língua, a palavni S. tem sentido duplo porqtie, por um lado, significa conservar, reter, e. por outro, fazer cessar, pôr tini. 'Conservar' já encerra o nega­ tivo, implica que algo foi privado de sua imediação, portanto de unia existência aberta a influências externas, com o fim de ser retido. Assim, o que é superado é ao mesmo tempo algo conservado que perdeu apenas a imedia­ ção, mas nem por isso é anulado." (W issenscb a ft d e r Logik, I, Livro I, seç. I, cap. 1. nota; tracl it., pp. 105-06). Kmbora Hegel, no mes­ mo trecho, faça um paralelo entre o significado cio termo alemão e o latim tollere, o uso em ita­ liano estabeleceu a equivalência do termo com superar. Su peração significa, conseqüentemen­ te, progresso que conservou o qtie havia de verdadeiro nos momentos precedentes, levan­ do-o a completar-se. Como exemplo desse conceito, pode-se citar o que Hegel diz sobre a superação no domínio da filosofia. "Toda as fi­ losofias foram necessárias e ainda são; nenhu­ ma desapareceu, mas todas foram conservadas afiniiativamente na filosofia comei momentos de um todo: os princípios são conservados, e a filosofia mais recente é o resultado de todos os princípios precedentes: nesse sentido, nenhu­ ma filosofia foi refutada. O que foi refutado não é o princípio de dada filosofia, mas apenas a suii pretensão de representar a conclusão últi­

SUPEREROGATÓRIO

ma e absoluta" (G escb icb te d e r F bilosophie. I, Intr.. A, 3. b). O idealismo italiano entre guerras usou e abusou desse termo. S U P E R E R O G A T Ó R IO (in. S u pererogcito>y). O que é feito ou dado sem estrita obri­ gação jurídica ou moral; trata-se de doação supérflua, portanto meritória. Hssa é uma pos­ sibilidade que a moral kantiana excluiria, por­ que, segundo Kant. o homem está sempre em débito para com o dever (R elíf> ío n , II, I. o trad. it.. Durante, p. 67). S U PE R E ST R U T U R A (in. Superslnicture, fr. Superstriicture, ai. Vberbau; it. Sopmstnttturcú. Termo empregado pelos marxistas para desig­ nar a ordenação política e jurídica, liem como as ideologias políticas, filosóficas, religiosas, etc. na medida em que dependem da estrutura econômica de dada fase da sociedade. Marx diz: "O conjunto de relações de produção cons­ titui a estrutura econômica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se ergue a S. jurí­ dica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida" (Zur K ritik d e r p o litisch en O kouom ie, 1859, Pref.) (v. MATKRIAUSMO HISTÓRICO). Esse termo também foi empregado por N. Hartmann para indicar um estrato ou plano do ser no qual se conservem somente a lg u m as das categorias do plano inferior; distinguirse-ia cia sobreformação (U berfornum g) por­ que nesta se conservariam todas as categorias do plano inferior. Por ex., o plano psíquico seria uma S. em relação ao plano orgânico, porque nele é abandonada a categoria espa­ ço, que ainda domina o ser orgânico. Assim, a diferença entre S. e sobreformação bloquea­ ria o caminho para a concepção mecanicista da vida psíquica (A u jb a u d e r ro cileu Weil, 1940). Algumas vezes o termo de Hartmann é traduzido como sob reco n stritçá o (it.. sopra co slruzio u e) (ei. BAKONF., .X ico la i H arlmann. p. .3-12). SUPER-HOMEM (gr. Ú7l£pávep(úJT0Ç: in. Supermcni; fr. Surbomme, ai. Uhermeiisch; it. Supeniom o). O termo que se encontra em Luciano (Calciplits . 16) e que algumas vezes foi usado para designar o homem-Deus (= Cristo; v. 1'. TASSO. I.ettere, V. 6). foi empregado antes por Ariosto (Orl. Fm :. 38. 62) para indicar uma humanidade extraordinária. Foi introduzido na Alemanha por Heinrich Miiller (Cleistliche F rbauu)ii> stii)ideu. 1664-66) e empregado por

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SUPERSTIÇÃO

vários escritores do Romantismo alemão, in­ clusive por Goethe (F au sto , 1, Noite). Mas foi só com \ietzsche que esse termo assumiu sig­ nificado filosófico e se tornou popular. O S. é a enearnaçâo da vontade de potência: "O ho­ mem deve ser superado. O S. é o sentido da terra. (...) O homem é uma corda esticada entre o animal e o S.. uma corda sobre o abismo" (Also sprcicb /.ara tbu slra , I. 3). O S. é a enearnaçâo cios valores vitais que Nietzsche contra­ põe aos valores tradicionais; para Nietzsche. é o filósofo criador de valores, dominador e le­ gislador, em oposição aos "operários da filoso­ fia", que são os comumente considerados filó­ sofos (Jeuseils rou Gut uuclBase, §211). A pesar de o conceito nietzschiano não ter nenhum sig­ nificado político preciso, acabou servindo de pretexto ao racismo e às concepções antide­ mocráticas em política. S U P E R IO R (lat. Superius-, in. Superior, fr. Supériem-, ai. Hõbei: it. Superioiv) 1. Km senti­ do lógico: mais extenso, que tem maior exten­ são ou denotaçâo. Nesse sentido, fala-se de "gênero S.". de "conceito S." ou, em geral, de "termo S.". Este uso remonta â lógica terminista do séc. XIV (PF.ORO HISPANO, Sunim . log., 2.08; 3.02: 12.13; cf. PRAYII. G cscbichte d e r L oi> ik. IV, p. 49). 2. O que pertence a uma fase mais avançada da evolução biológica: nesse sentido, fala-se de "espécies S." ou "animais superiores". 3. O que pertence â esfera das funções espirituais ou simbólicas do homem. Nesse sentido fala-se em "funções S." ou "interes­ ses superiores". 4. Aquilo a que, em algum sentido, se atribui grau mais elevado de dignidade ou valor; p. ex. "homem S." ou "formas superio­ res de arte ". SU PE R ST IÇ Ã O (gr. Seioiôoauovíot; lat. SIIperstitio; in. Superstitiou; fr. Superstitiou; ai. Aberglaube. it. Superstizíoue). Excesso ou aber­ rações da religião, ou então a forma de religião cie que não se compartilha. Eoi Cícero quem definiu a S. no primeiro sentido: "Não só os fi­ lósofos mas também os nossos antepassados distinguiram a S. da religião: aqueles que reza­ vam o dia inteiro e imolavam vítimas para que os filhos sobrevivessem [lat. sitpersles. sup erstitis - sobrevivente] foram chamados de supersticiosos, e depois essa palavra ganhou significado mais extenso" (D on at. tleor.. II, 28, 71-72). Essa definição foi repetida substancial­ mente por S. Tomás: "A S. é o vício que, por

SUPERVERDADE

excesso, se opõe à religião, pois se presta culto divino a quem não se deve ou na forma indevida" (S. Th., II, 2, q. 93, a. 1). No segundo sentido, foi definida por Hobbes: "O temor diante dos poderes invisíveis, se estes forem imaginados pelo espírito ou sugeridos por nar­ rativas publicamente admitidas, é religião; se sugeridos por narrativas nào admitidas publi­ camente, é S." (Leriath.. 1, 6). Na verdade, S. é um termo polêmico: para o estudo objetivo (antropológico ou sociológico) das crenças, nào existem superstições, e sem­ pre que se fala em S., está-se tomando como referência determinado sistema religioso, que é considerado o único verdadeiro. Assim, cada religião parece S. aos seguidores de uma reli­ gião diferente, e a única descrição exata do ter­ mo é a que se encontra em Hobbes. S U P E R V E R D A D E (lat. Su p errerita s). Um atributo de Deus. segundo Scotus F.rigena (D e dívis. nat, I. 14) (v. SUPRA-KNTK). SUPOSIÇÃO (gr. ÚTIÓBEOIÇ; lat. Suppositío; in. Supposition; jr . Suppositiotr, ai. Voraussetzung, S u p p osition; it. Su p p o sizio n e). 1. O mes­ mo que hipótese. 2. Na lógica terminista medieval, é o sig n i­ fica d o deno ta tivo dos termos presentes na pro­ posição, enquanto o significado em sentido estrito é o conotativo (v. SIGNIFICADO). Nesse sentido, a S. é definida como uma p o sitio p ro alio, um esta rem lu g a r de alguma outra coisa: p. ex., quando dizemos "o homem corre", o termo "homem" está em lugar de Sócrates, Platão ou algum outro (PKDKO HISPANO, Sum m . log.. 6.03; OCKHAM, Summa log., I, 63; EU KIDAN, Sophysm ata, 3; ALBKKTO DE SAXÕMA. Lógica) Com exceção de alguns casos isolados, a teoria da su ppo sitío é mais ou menos uniforme em to­ dos os lógicos do séc. XIV. Eles distinguiam três espécies fundamentais de S.: pessoal, sim­ ples e material. Tem-se a S. p e sso a l quando o termo está no lugar do objeto significado, qual­ quer que ele seja: coisa externa, palavra, con­ ceito, sinal escrito ou outra coisa. Assim, nas frases: "o homem é um animal", "o nome é par­ te da proposição", "a espécie é um universal", os termos homem, nome e espécie têm S. pes­ soal porque estão no lugar dos respectivos objetos. Tem-se S. sim p les quando o termo não está no lugar do objeto significado, mas de seu conceito. Assim, quando se diz "o homem é uma espécie", o termo homem não está no lugar de "o homem", mas do conceito "homem". Finalmente, tem-se S. m a teria l quando um ter­

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SUPRA ENTE

mo está no lugar da palavra ou do sinal escrito, como nas frases "homem é substantivo" ou "está escrito homem", onde homem está no lugar de uma palavra ou de tim sinal escrito. Cada um desses atributos da S. foi ainda sub­ dividido pelos lógicos do séc. XIV e estuda­ do em termos de dificuldades e problemas que apresentam. Para se ter uma idéia desses pro­ blemas, eis como Ockham enfrenta a dificulda­ de apresentada pela S. do termo "homem" na proposição "o homem é a mais elevada das criaturas". Aqui o termo "homem" nào pode ter uma S. simples porque nào é o conceito homem que é a mais elevada das criaturas; tam­ pouco pode ter uma S. pessoal, porque, subs­ tituindo-se homem' por algum homem indivi­ dual, o juízo toma-se falso. A solução é que a proposição tem uma S. pessoal, mas que deve ser limitada, dizendo-se que o homem é a mais elevada cie todas as criaturas que sejam d iferen ­ tes dele. nesse caso. a proposição é verdadeira para cada indivíduo humano (Sum m a log., 1, 66). A teoria da S. foi posta de lado quando a lógica terminista foi abandonada em favor da lógica mentalista. sob a influência do cartesianismo. Os problemas por ela tratados foram herdados pela teoria do conceito (cf. E. ARNOLD, Z u r G eschichte d e r Supposítionstheorie. em Symposion. III, 1954; E. A. MOODY, Iruth and C onseqüente in M ed ia era l Logic, 1953). S U PR A -A L M A (in. O versoul). Foi assim que R. W. Emerson definiu Deus, concebendo-o princípio imanente no mundo e no homem (Nature, 1836). S U P R A C O N SC IÊ N C IA (fr. Su praconscience). Termo usado por Bergson para indicar uma "verdadeira atividade criadora" ou uma "cons­ ciência pura", que, para ele, nào é a vida (Evol. créatr, 8a ed., 1911. pp. 267, 283, etc). SUPRACONSTRUÇÃO. V. SIIPKRKSTRIÍTIIRA. S U P R A -E N T E (gr. tmepoúoioç; ai. Ü berseiend; it. Su peressente). Encontramos esse adjetivo pela primeira vez em Proclo (Inst. theol, 115), mas Platão já dissera que o bem está além da substâ ncia (Rep., VI, 509 b), con­ ceito que se tornou basilar na filosofia de Plotino. para quem o tino está "além do ser" (LJUI., V, 5, 6) ou "antes do ser" (Ibid., III, 8, 10). Dionísio, o Areopagita usou o termo "supra-essencial" (D e d irin is nom inibus, II, em P. /.., 122y, col., 1 122), e Scotus Erigena valeu-se do termo superessentia (D e divis. nat., 1,14). O mesmo termo é encontrado ainda na tradição mística e teosófica. Mestre Eckhart fala de Deus

SUPRALAPSARIANISMO

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como de "Lima essência supra-essencial e um nada S." (Deutsche Mystiker des XIV Jabrhunderts, ed. Pfeiffer, II, pp. 318-19). A mesma qualificação aparece em Schelling (Werke, I, X, p. 260) (v. TEOLOGIA; TRANSCENDÊNCIA). SUPRALAPSARIANISMO (in. Supralapsarianism, Ir. Supralapsarianisme, ai. Supralapscirianismus; n. Sopralupsarismo). No sée. XVII, foi esse o nome dado à doutrina de que Deus predeterminou a queda (lapsus) cie Adão ab aetenio, para pôr em açào seus instrumentos de salvação. Essa doutrina foi sustentada por al­ guns teólogos calvinistas, mas negada por ou­ tros que se chamaram de iiifralapsariciiws. Leibniz discutiu longamente esses problemas no segundo livro da Teodicéia (1710) (y. GRA<:,4; PR1.I>!:STI\miico). Termo usado pelo positivismo para indicar o que está além da vida orgânica, vale dizer, a vida psíquica ou a vida social, espe­ cialmente esta última. Esse termo é usado fre­ qüentemente por Spencer.

SYNKATATHESIS

SUPRA-SENSÍVEL (in. Snpersensiblc- fr.

Supniseiisiblc

ai.

1'bersiwüich;

it.

Sopmseu-

sibi/e). Na terminologia kantiana (que pôs esse termo em uso), o mesmo que númeno: "Aquilo <)ue diz respeito à faculdade especulativa da ra>.ão. mas de que nenhum conhecimento é possível (iioiinioionmi non clcitnr scienliu)" (FortscbrfítederMeiaphysik, 1804, |A 55]). Por­ tanto, o S. é o domínio das idéias da Razão 1'ura, com tudo o que elas implicam para a vida moral do homem. Hegel empregou esse termo cm sentido análogo, mas positivo, para indicar aquilo que a aparência sensível é em sua na­ tureza racional: "O S. é o sensível e o perce­ bido postos como são em verdade", portanto como "o universal simples, o universal em que U multiplicidade não subsiste, em que nada há para conhecer": em suma, o universal do modo como Schelling o entendeu (Pbcuiumeíi. des Cjeistes, I, IV, 15; trad. it., p. J27 e nota). SUPREMO BEM. V. HFM SUPRKMO. SUSPENSÃO D O JUÍZO. V. KPOCIIF.. SYNKATATHESIS. V. ASSKNTIMHNTO.

T TABU (in. Ta boa; fr. Taboii; ai. Tabu; it.

'Tabu). Termo polinésio que significa simples­ mente p ro ib ir ou p ro ib id o e que passou a indi­

car a característica sagrada da proibição em to­ dos os povos primitivos e qualquer proibição não motivada em todos os povos. A generali­ zação nesse sentido do conceito 6 de autoria de Salomon Reinach. A melhor explicação cia função do T. encontra-se em A. R. RadcliffeBrown, que nele discerniu um instrumento para ressaltar a importância social de aconte­ cimentos, ações, interditos, normas, etc. Nesse sentido, o T. está ligado a qualquer pres­ crição ritual (S tn ifture a n d F u n ctu m in P ri­ m itive Sociely, 1952, cap. VII). Freud compa­ rou o T. à neurose obsessiva e viu entre as duas coisas quatro pontos semelhantes: 1" falta de motivação das proibições; 2" sua validação por meio de uma necessidade interior; 3" pos­ sibilidade de deslocamento e contágio dos ob­ jetos proibidos: 4" criação de práticas cerimo­ niais e mandamentos derivados das proibições ( Totem e T, 1913, cap. II; tracl. it., p. 37.) TÁ B U A (lat. Tabulei; in. Tahle, fr. Tahle, ai. 1 afel; it. Tavola). Esse termo foi várias vezes usado para indicar a apresentação organizada ou sistemático de conceitos. Os antigos falavam das ia h u la elo g ica e, que era a apresentação hie­ rárquica de conceitos dispostos segundo a maior generalidade: a árvo re de P o rfírio (v.) é a mais conhecida dessas tábuas. No mesmo sentido, denominavam T. os conjuntos de nor­ mas morais ou jurídicas (a lei das 12 tábuas, as T. de Moisés). Bacon deu o nome de T. às coordenações cias instâncias, ou seja, dos aspec­ tos particulares de um fenômeno (Nov. o>% , II, 10) e distinguiu as T. de presença, as T. de ausência, as T. dos graus ou comparativas e as T. exclusivas (Ibid. II, 11-13). A partir de

Kant fala-se de "'I'. das categorias" (v. CATE­ GORIA). T Á B U A R A SA (gr. nivat, àypacptíç; lat. Ta­ bula rasa). Expressão que indicou, às vezes, a

condição da alma antes cia aquisição dos co­ nhecimentos. Essa expressão nasce cia compa­ ração cio processo de aquisição de conheci­ mentos com o processo de impressão de sinais ou letras sobre tabuinhas cobertas cie cera ou cie escrita sobre página. Trata-se de compara­ ção bastante antiga, que jã se encontra em Esquilo (P ro in , 789). Platão comparava a alma a um bloco de cera onde se gravam as sensa­ ções e os pensamentos de que depois nos lembramos ( Teet., 191 cl; / //., 39 a). Aristóteles comparava o intelecto a uma tabuinha onde nada está escrito (D ecai., III, t, (30 a I). Os es­ tóicos comparavam a parte hegemônica cia alma a um papiro onde serão escritos os sinais das coisas, ou seja, as representações (PUTARCO, PklC. IV, 11; V. CIALKINO, IÜSt. pbilos., 92; SFXTO EMPÍRICO. A dv. m citlx, VII, 228). A mesma comparação é depois repetida com freqüência (FÍLON, Ali. leg., I, 32; BOHCIO. Phil. com, V. 4; etc), mas a expressão "tabuinha sem escri­ ta" encontra-se pela primeira vez no comentaclor de Aristóteles. Alexandre de Afrodisia (cerca cie 200 a.C); na Idade Média foi usada por S. Tomás (Dean., a. 8. resp.; S. T h , I. q. 89, a. 1. ad 3"). Locke utilizou essa imagem para expressar a tese da origem empírica dos conhecimentos (E nsaio . II, I, 2) e I.eibniz a usou na sua crítica a essa tese de Locke (Nouv. e s s , II, I, 2). Desde então essa expressão passou a indicar a tese empirista sobre a origem do conhecimento e a negação do inatismo. T Á B U A S D E V E R D A D E (in. Truth tables: fr. T ables de vérité; ai. W ahrheilsm õglichkeíten:

TÁBUAS DE VERDADE

it. Tarole d i verità). No cálculo das proposi­ ções, ']'. construídas pelo método de m a trizes (v.), que permite enumerar todas as possibi­ lidades de verdade para certo número de pro­ posições simples e assim identificar se uma proposição 6 verdadeira. Fssas tábuas são construídas com os símbolos dos conectivos ló­ gicos (v. CONHCTIVO) e, com V e F. indicam res­ pectivamente o valor de verdade e de falsidade de uma proposição. Assim, utilizando o símbo­ lo -/; para indicar a negação de p (ou que p é falso), tem-se a seguinte T.: ~P p F V F V significando que, se /; é verdadeiro, sua nega­ ção é falsa e, se pé falso, sua negação é verda­ deira. Se considerarmos a conjunção entre duas proposições, indicada pelo símbolo '.', teremos a seguinte T. de verdade-. P <1 p.q

F F que indica todos os valores possíveis de verda­ de para cada tipo cie conjunção entre as pro­ posições; por isso. pode ser assumida como a própria definição do conceito lógico de co n ­ ju n ç ã o (v.). Significa que a conjunção entre duas proposições conexas pela palavra "e" é válida só no caso de ambas as proposições se­ rem verdadeiras, como quando se diz "Está chovendo e há umidade". Tem-se disjunção quando se insere entre duas proposições a palavra "ou", representa­ da pelo símbolo v; na língua corrente, pode ler dois significados: um significado inchtsiro (em que "ou" corresponde ao latim rei), como quando se diz "Pode-se ir a Roma por este caminho ou pelo outro", em que pelo menos uma das duas proposições é verdade; e um significado exclusivo ("ou" nesse caso corresponde ao latim aut), como quando se propõe uma alternativa: "Vamos a Roma ou a Paris", em que pelo menos uma das propo­ sições é verdadeira e pelo menos uma é fal­ sa. A T. de verdade da disjunção geralmente é a seguinte:

TÁBUAS DE VERDADE

'1 pv q p V V V V F V F V V F F F que fornece o critério mais geral para a valida­ de de uma disjunção qualquer. Quanto á T. de verdade cia relação condicio­ nal, expressa através do conectivo se... e pelo símbolo 3, ver os termos IMPLICAÇAO H CONDI­ CIONAL. Com base nessas tábuas, é possível cons­ truir outras mais complexas, como a seguinte, que dá os valores de verdade das combinações condicionais possíveis entre as proposições condicionais e as disjuntivas (cf. TARSKY, Intr. to Logic, § 3); para a função (/; v q) (p.r), onde /;. q. r representam proposições quaisquer: (p.q)Z) (>z> r) p <1 r pq V V V V V V V F V V F F V F V V V V F F V F F V V V F V F F F V F V F ]V F F V F F F F F F F V Para simplificar o significado dessa 'I'., consi­ dere-se a quinta linha depois do cabeçalho: nela se supõe que p e q são proposições ver­ dadeiras e que ré uma proposição falsa. Com base na segunda T. fundamental, obtém-se que "p.q é uma proposição verdadeira e que "p 3 q" é uma proposição falsa; unindo-se "(p.q)z) (pz> ?-)", obtém-se uma implicação em que o antecedente é verdadeiro e o conseqüente é fal­ so e que, com base na T. das implicações, é falsa. O uso das T. pode ser ampliado a todos os teoremas cio cálculo das proposições. Assim como da T. de implicação material, cias outras T. derivam conseqüências que se mostram pa­ radoxais do ponto cie vista da linguagem cor­ rente. Vejamos as seguintes: se c/é verdadeiro, então c/se segue de qual­ quer p; ou, em outros termos, uma proposição

TALENTO

verdadeira se segue de qualquer outra propo­ sição; se p é falso, então /; implica um q qualquer; ou, em outros termos, uma proposição falsa implica qualquer outra proposição; quaisquer que sejampe q, ou p implica r/ou q implica p, em outros termos, pelo menos uma de duas proposições quaisquer implica a outra. Essas conclusões derivam das T. de verdade, sobretudo da T. de implicação, que constitui a simplificação e a generalização dos usos cor­ rentes na linguagem comum e nas disciplinas científicas (com exceção da matemática), em que as relações puramente lógicas entre as pro­ posições são submetidas a outras condições mais restritivas. No entanto, continuam a dar ensejo a discussões que alguns lógicos (como Tarsky) consideram ociosas. Como dissemos no verbete IMPLICAÇÃO, a es­ cola estóico-megárica, principalmente por meio de Fílon, foi a primeira a criar a T. da implica­ ção material. Na lógica moderna, a idéia da T. foi retomada por Boole (MathematiccilArwlysis of Logic, 1847), por Frege (Begriffsschrift, 1879) e por Pierce (1885; cf. Co//. Pap.. 3.370 ss.), sendo difundida por Wittgenstein (Tractatus, 1921, 4.31). TALENTO (lat. Talentum: in. Talent: fr. Talent: ai. Talent: it. Talento). O sentido meta­ fórico desse termo, derivado da parábola evan­ gélica dos T. (Mal., 25. 14-30), é de "superiori­ dade do poder cognoscitivo, que não provém cio ensino mas da aptidão natural do sujeito". Esta é a definição de T. encontrada em Kant (Antr., I, § 54), que também distingue os T. em engenho produtivo, sagacidade e originalida­ de: este último é o gênio. Essa doutrina kantiana foi repetida diversas vezes com poucas variações; está presente até na psicologia mo­ derna, embora acentuando-se a importância dos chamados T. específicos. TALIÃO (gr. xò ávn.7i£7Tov9óç; in. Talion, fr. '1 'alion; ai. Vergeltnug; it. Taglioneou Contrappasso). Forma de justiça segtindo a qual o ofensor deve sofrer o mesmo mal que causou ao ofendido. Segundo relatei de Aristóteles, foram os pitagóricos que definiram a justiça como re­ taliação (Et. nic, V, 5, 1132 b 21). Esse mesmo princípio inspira a lei mosaica do "olho por olho, dente por dente" (Levit., 24, 17-21). Dante modelou a estrutura moral do Inferno e do Purgatório segundo a lei de talião. TALMUD. Este termo, que na língua hebrai­ ca significa "ensino", designa a coletânea enci­

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TAREFA

clopédica da tradição judaica escrita em aramaico, que foi compilada durante oitocentos anos (de 300 a.C. a 500 d.C.) na Palestina e na Babilônia. Essa obra não é um simples comen­ tário do Antigo Testamento, mas uma síntese de filosofia, teologia, história, ética e folclore judaicos, acumulados durante oito séculos. O T. é composto por duas partes principais: o Mishnah. redigido na Palestina, e o Gemara. que é um comentário do primeiro. O Gemara. compilado na Palestina, é denominado jun­ tamente com o Mishnah. T deJerusalém; por outro lado, o Gemara compilado na Babilô­ nia é chamado, também com o Mishnah. de T. da Babilônia (v. II. L. STRACK-P. BII.I.HRliic.K, Kommentar zum Nenen Testament aus Talmnd undMidrasch. Mônaco, 1922-28). TANATISMO (in. Thanatisnv. ai. Thanatismtts; it. Tanatismo). Termo criado por E. Haeckel para indicar a sua doutrina da mortalidade da alma, em oposição a atanatismo (\\). TAOÍSMOUn. 'lhoism.fr. Taoisme.íú. 1 'aoisDIIIS; it. Taoismo). Doutrina de Lao-Tse (que vi­ veu na China provavelmente no séc. VI a.C), a quem se atribui o Tao Te Ching, isto é. o Livro do caminho e da virtude. Em oposição ao ca­ ráter racionalista, terreno e prático cio en­ sinamento de Confúcio, está o caráter místico, religioso e contemplativo do ensinamento de Lao-Tse; nele encontramos vestígios do panteísmo metafísico dos Vpanishad. Os dois as­ pectos principais do T. são: monismo panteísta, segundo o qual o tao, que é o caminho para a salvação, é também o princípio único do uni­ verso (todas as outras coisas suas são manifes­ tação); a ética do não fazer, ou seja, entrega à ação imanente do princípio cósmico e a renún­ cia a interferir nele ou a obstá-Io. (v. A. WALEY, The Way and Its Power, 1934). TAREFA (gr. epyov; lat. Officium, in. Task fr. Tache-, ai. Aufgahe, it. Compito). Limitação da atividade de uma pessoa ou de uma coisa, para garantir o melhor resultado dessa atividade. Nesse sentido, Platão entendia por T. de uma coisa "aquilo que só ela sabe fazer, ou pelo me­ nos que faz melhor que qualquer outra coisa" (Rep, I, 353 a): utilizava essa noção para definir a virtude (w). No mesmo sentido e com o mes­ mo fim, Aristóteles utilizou essa noção quando, para definir o que é felicidade, perguntava qual é "a T. do homem"; e respondia que a T. do ho­ mem é a atividade da alma conforme à razão, e não independentemente da razão (Et. nic, I, 6, 1098 aV). Esse conceito é freqüente, com o

TATO

mesmo significado, na filosofia contemporânea (v. FUNÇÃO; OPERAÇÃO). T A T O (in. Tact; fr. Tact; ai. Tact; it. Tatto). 1. Um dos cinco sentidos, que Condillac chama­ va de "sentimento fundamental", porque este é o "sentimento que a estatua (v.) tem da ação recíproca das partes do corpo e especialmente dos movimentos da respiração" (Traité des sensations, II, I). Segundo Condillac, o T. é também o sentido do qual provém a noção do mundo exterior (Ib id , II, 8, 30 ss.). 2. Sabedoria do mundo ou esp rit de finesse, como nas frases "ter T.", "proceder com T." ou "falar com T.", etc. T A T T W A M A S I Uma das formas funda­ mentais da filosofia do U panishad , que signifi­ ca exatamente "este és tu" e prescreve que todo homem deve reconhecer-se idêntico, em seu princípio (ou átm an), a qualquer ser ou coisa que esteja diante dele, pois o princípio universal, ou B rahm an, é idêntico em tudo. Essa locução indiana encontra-se especialmen­ te no C h a n d o g ya -U p a n ish a d (VI, 8, 7 ss.). T A U T O L O G IA (in. Tautology, fr. Tautologie, ai. Tautologie, it. Tautologia). Na termi­ nologia filosófica tradicional, T. significa gene­ ricamente um discursei (em especial, uma definição) vicioso porquanto inútil, visto repetir na conseqüência, no predicado ou no defin ien s o conceito já contido no primeiro mem­ bro: "M. de Ia Palisse, quinze minutos antes de morrer, ainda estava vivo". É só na álgebra da lógica que o termo "T" adquire significado téc­ nico, porquanto se introduzem com o nome de le i de T os teoremas (1) a u a = a, (.2) a n a = a |( 1): a afirmação disjuntiva de uma mesma pro­ posição p consigo mesma eqüivale à simples afirmação de /); a soma de uma classe a a si mesma é igual à simples classe a; (2) a afirma­ ção conjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale á simples afirmação de p; a interferência de uma classe a em si mesma é igual à classe a pura e simples]. Ao lado dessa lei, em P rin cip ia m a them atica, Whitehead e Russell introduzem um p rin cíp io de T.-. p v p. z> p. [a afirmação disjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma im­ plica materialmente a mesma p : "se p ou p , p"\. Em Wittgenstein (Tm ctatus, 1922, 4.46), o con­ ceito de T. adquire notável importância, pas­ sando a designar uma proposição molecular (funcional), cujo valor-verdade é "verdadeiro", sejam quais forem os valores-verdades das pro­ posições atômicas (variáveis proposicionais)

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TÉCNICA

que a compõem; p. ex.. "pv~p" ["chove ou não chove"]. Wittgenstein — adotado a contra­ gosto por Russell — chega a afirmar que a matemática pura (inclusive a Lógica) constam exclusivamente de T., aliás são a classe de to­ das as possíveis T. (Tm ctatus, cit., 6. I, 6.22). Na lógica atual (pós-Wittgenstein), o concei­ to de T. perdeu importância e foi substituído por uma multiplicidade de noções análogas, como proposição analítica, C -verdadeira, L -verda deira, conforme os casos e conforme os pontos de vista filosóficos dos diferentes autores. G. P. T A X IO N O M IA (in. Taxonom y, fr. Taxinom ie, ai. Taxinom ie-, it. Tassonom ia). Teoria da classificação nas ciências naturais. Termo cunha­ do e usado no séc. XIX. São chamadas de taxionômicas a botânica e a história natural. T E A N D R IC O (in. Theandric; fr. Théandrique, it. Teandrico). Termo da teologia cristã que se refere à união da natureza humana e da natureza divina na pessoa do Cristo. T E A N T R O P IS M O (in. T heantrophism ; fr. Ihéantropísm e, ai. Theantropism um ; it. Teantrupism o). 1. Doutrina da união da natureza di­ vina e da humana na pessoa do Cristo. 2. O mesmo que an trop om o rfism o (v.). TÉCNICA (in. Technic, fr. Technicjue, ai. Technik, it. Técnica). O sentido geral desse ter­ mo coincide com o sentido geral de arte (v.): compreende qualquer conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. Nesse sentido, T. não se distingue de arte, de ciên­ cia, nem de qualquer processo ou operação ca­ pazes de produzir um efeito qualquer: seu cam­ po estende-se tanto quanto o de todas as atividades humanas. É preciso, porém, chamar a atenção para o fato de que nesse significado do termo, que é bastante antigo e geral, não se in­ clui o significado atribuído por Kant, que falou de técnica da natureza para indicar a ca usalidade dela (Crít. do Ju ízo, § 72), mas negou que a filosofia — especialmente a filosofia prática — pudesse ter uma técnica, porque não pode con­ tar com uma causalidade necessária (Mel. d er Sitten, Intr., § II). O pressuposto desse significa­ do, porém, é a redução de T. a procedimento causai, ao passo que esse termo foi entendido (da melhor maneira) como procedimento qual­ quer, regido por normas e provido de certa eficácia. Nessa esfera de significado generalíssimo in­ cluem-se, portanto, os procedimentos mais díspares; estes, porém, podem ser divididos, g ro sso m odo, em dois campos diferentes: A ) T.

TÉCNICA

racionais, que são relativamente independen­ tes de sistemas particulares de crenças, podem levar à modificação desses sistemas e são autocorrigíveis; B) T. mágicas e religiosas, que só podem ,ser postas em prática com base em de­ terminados sistemas de crenças; não podem, portanto, modificar esses sistemas e apresen­ tam-se também como nào-corrigíveis ou nàomodificáveis. Essas T. constituem um dos dois elementos fundamentais de qualquer religião e podem ser indicadas com o nome genérico de ritos (v.). As T. racionais, por sua vez. podem ser distinguidas em: lüT. simbólicas (cognitivas ou estéticas), que são as cia ciência e das belas artes; 2" T. de comportamento (morais, políti­ cas, econômicas, etc); 3" T. cie produção. 1" As T. cognitivas e artísticas podem ser chamadas de simbólicas porque consistem essencialmente no uso dos signos. Distinguemse dos mctodos(\.) que, a rigor, são indicações gerais sobre o caráter das T. a serem seguidas. As T. simbólicas podem ser: de explicação, de previsão ou de comunicação, mas essas distin­ ções não são mutuamente excludentes. 2" As T. de comportamento do homem em relação a outro homem cobrem um campo extensíssimo que compreende zonas díspares: vão das T. eróticas às de propaganda, das T. econômicas às morais, das T. jurídicas às edu­ cacionais, etc. Nesse grupo também podem ser incluídas as T. organizai iras, que visam a en­ contrar condições para obter o rendimento máximo com o mínimo esforço em todos os domínios da atividade humana. Essa técnica é tratada pela tectologiaiv.) ou praxíologia (1.). 3" O terceiro grupo de T. é o que diz respei­ to ao comportamento do homem em relação à natureza e visa à produção de bens. Nesse sen­ tido, a T. sempre acompanhou a vida do ho­ mem sobre a terra, sendo o homem — como jã notava Platão (Prot, 321 c) — o animal mais indefeso e inerme de toda a criação. Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da 'I'., e a sobrevivência e o bem-estar de gru­ pos humanos cada vez maiores são condicio­ nados pelo desenvolvimento dos meios técni­ cos. O primeiro filósofo a reconhecer essa verdade foi Francis Bacon, no começo do séc. XVII. Para ele, a atuação da ciência tinha em vista o bem-estar do homem e visava a produ­ zir, em última análise, descobertas que facilitas­ sem a vida do homem na terra. Quando, em

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Nova Atlântida, quis dar a imagem de uma cidade ideal, não sonhou formas perfeitas de vida social ou política, mas imaginou um pa­ raíso da T., onde fossem levadas a efeito as invenções e as descobertas de todo o mundo. O sansimonismo (v.) e o positivismo (v.) do séc. XIX compartilharam a exaltação baconiana da técnica. Só depois do fim do século pas­ sado e nas primeiras décadas do séc. XX foi que começou a manifestar-se o que hoje se cha­ ma de problema da T. que nasceu das conse­ qüências produzidas pelo desenvolvimento da T. do mundo moderno sobre a vicia indivi­ dual e social do homem. Antes da Segunda Guerra Mundial, o conflito entre homem e T. foi o tema predileto da literatura profetizadora. Os profetas da decadência e da morte da civi­ lização ocidental (p. ex., O. SPHNGLKR, Der Moisch und die Technik, 1931). os defensores da espiritualidade pura (p. ex., I). ROPS, Le monde sa>is âme, 1932) haviam já identificado na máquina a causa direta ou indireta da deca­ dência espiritual do homem. Segundo esses diagnósticos, o mundo em que a máquina do­ mina não tem alma, é nivelador e mortificante: um mundo onde a quantidade tomou o lugar da qualidade e onde o culto dos valores do es­ pírito foi substituído pelo culto dos valores ins­ trumentais e utilitários. Depois do fim da Se­ gunda Guerra Mundial, essas acusações foram reforçadas e desenvolvidas; estão presentes em toda a obra de Albert Camus (v., p. ex., Ni bourreaux ni victimes, 1946). Para outros, o mal do "maquinismo" estaria no desarraigamento que ele produz no homem (S. WFIL, Lenracinement, 1948). Ao condenarem a T.. outros ainda implicam a "razão", que seria seu princípio, ou acalentam a utopia de um retorno à produção artesanal (M. m: CORTI:, Essaisiirla fin dune cirilisatiou, 1949; L. DI:PLI:SSY, LU machine ou 1'homme, 1949). Por outro lado. a partir da obra de Hi SSHRL, A crise das ciências enropéiasi 1954), a T. e a ciência em que ela se baseia passaram a ser freqüentemente conside­ radas uma degradação ou uma traição da Ra­ zão Autêntica, pois escravizam a razão a objeti­ vos utilitários, ao passo que sua verdadeira função é o conhecimento desinteressado do ser, a contemplação. Esse conceito constitui a base de todas as críticas dirigidas à sociedade contemporânea, que estaria fundada na técnica e dominada pela tecnocracia (v.). Mas hoje há uma vasta literatura que, apesar de não partir de preconceitos metafísicos,

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ideológicos ou teológicos, evidencia os aspec­ tos negativos da T., que podem ser resumidos da seguinte maneira: 1" exploração intensa dos recursos naturais, acima dos limites cie seu restabelecimento na­ tural, portanto o empobrecimento rápido e progressivo desses recursos; 2" poluição da água e cio ar por dejetos in­ dustriais, com a multiplicação dos meios mecâ­ nicos de transporte e com a maior densidade demográfica; 3" destruição cia paisagem natural e dos mo­ numentos históricos e artísticos, em decorrên­ cia da multiplicação das indústrias e da expan­ são indiscriminada dos centros urbanos; 4" sujeição do trabalho humano às exigên­ cias da automação, que tende a transformar o homem em acessório da máquina; 5" incapacidade da T. de atender às necessi­ dades estéticas, afetivas e morais do homem; portanto, sua tendência a favorecer ou determi­ nar o isolamento e a incomunicabilidade dos indivíduos. No que diz respeito aos três primeiros fato­ res, pode-se recorrer a uma contratécitica, que seria uma T. (ou um conjunto de T.) capaz de contrabalançar ou cie corrigir os efeitos devas­ tadores da T.: seus meios seriam suficiente­ mente potentes para diminuir (senào equili­ brar) os efeitos cia devastação. O quarto e o quinto aspectos são humanos, morais e políti­ cos; costumam ser considerados como consti­ tuintes do fenômeno da alienação (v.). Tanto em suas formas primitivas quanto nas requintadas e complexas, presentes na socie­ dade contemporânea, a T. é um instrumento indispensável para a sobrevivência do homem. Seu processo de desenvolvimento parece ir­ reversível porque só dele dependem as possi­ bilidades cie sobrevivência de um número cada vez maior de seres humanos e seu acesso a um padrão de vida mais elevado. Inclusive a dife­ rença entre T. e ciência, em que às vezes ainda se insiste, parece diminuir ou atentiar-se quan­ do se consideram as tarefas hoje atribuídas à ciência (v.). Hoje, o único remédio aos reais perigos da T. parecem ser o seti robustecimento e o seu desenvolvimento em todos os campos, e não a renúncia a seus benefícios. Isso se traduziria em, por um lado, buscar no­ vos instrumentos que não só controlassem mas também protegessem a natureza e, por outro, buscar novas T. de relacionamento humano que pudessem controlar e corrigir os efeitos

TECNOCRACIA

malignos das T. produtivas sobre o homem. A esperança de que isso possa acontecer baseiase apenas no fato de que a própria T. produtiva está a exigir cada vez mais que o homem tenha exatamente as capacidades de iniciativa, imagi­ nação criativa e solidariedade que o próprio sistema tecnológico parecia ameaçar. TECNICISMO (in. Technicism, ai. Techuizismus; it. Tecnicismo). 1. O mesmo que técni­ ca. Kant usa esse termo para indicar a técnica da natureza, ou seja, o mecanicismo (Críl. do Juízo. § 78). 2. Uso de palavras ou frases pertencentes à linguagem técnica. TECNOCRACIA (in. Technocracy, fr. Tecbnocratie-, ai. Technokratit*it. Tecnocrazia). Uso da técnica como instrumento de poder por par­ te de dirigentes econômicos, militares e políti­ cos, em defesa de seus interesses, considera­ dos concordantes ou unificados, com vistas ao controle da sociedade. Esse é o conceito de T. que se encontra nos escritores mais qualifica­ dos (p. ex.. C. \V. MILLS, The PowerElite, 1956), que permite defini-la como "a filosofia autocrá­ tica das técnicas" (G. SIMONDON, /)// monde dexistencedes objeta teçlmiques, 1958). Assim, as críticas mais radicais feitas à sociedade con­ temporânea trazem à baila a 7. A ela é imputa­ da não só a responsabilidade por todos os ma­ les da técnica (para os quais, ver TÉCNICA) e por não poder nem querer fazer nada para eliminálos, como também a responsabilidade de supri­ mir ou bloquear a liberdade de escolha do ho­ mem em todos os campos de atividade (do trabalho ao divertimento), com uma determina­ ção interna que o impede de exercer sua razão crítica e reprime seu instinto vital e a livre pro­ cura da felicidade. Marcuse escreveu: "O apara­ to produtivo tende a tornar-se totalitário na me­ dida em que determina não só as ocupações, as habilidades e os comportamentos social­ mente necessários, mas também as necessida­ des e as aspirações individuais. (...) A tecnologia serve para instituir novas formas de controle e coerção social mais eficazes e mais agradáveis" (One Dimensional Man, 164, p. XV). Desse ponto de vista, a T. (chamada também de "The F.stablishment" ou "O Sistema' por antonomásia) exercitaria um determinismo necessitante sobre todas as atividades humanas e impedi­ ria ou bloquearia qualquer forma de critica so­ cial, qualquer possibilidade de transformação. Por outro lado, porém, admite-se (como faz o próprio Marcuse, Ibid, p. 238) que "a racio­

TECNOLOGIA

nalidade pós-tecnológica" possa transformar a técnica em meio de pacificação e em instru­ mento para a a rte d e viver, nesse caso, a função da razão — cujo uso instrumental deu origem ã T. — convergiria para a função da arte. Outras vezes, põe-se em dúvida o caráter monolítico e necessitante da tecnocracia. Galbraith fala de tecnoestnitura para designar a for­ mação pluralista e heterogênea dos grupos que dirigem a sociedade industrial, admitindo a pos­ sibilidade de minimizar a subordinação das crenças às necessidades do sistema industrial e de considerar este último apenas "uma parte da vida (uma parte em processo de diminuição)", que pode ser subordinada aos fins estéticos que constituem a dimensão da vida e possibilitam a liberdade individual ( 'lhe N e w In d u stria l State, 1964, p. 399). Às vezes também se apresenta uma conotação "não pejorativa" de T. em corre­ lação com o conceito mais compósito que se tem hoje de classe social (cf.. p. ex., A. TorRAINI-, La socíétépos-ínaustríelle, 1969, cap. I).

TECNOLOGIA (in. Technology-, fr. Technologie; ai. Technologie: it. Tecnologia). 1. Estudo dos processos técnicos de determinado ramo da produção industrial ou de vários ramos. 2. O mesmo que técnica. 3. O mesmo que tecnocracia. T EC TO LO G IA . Termo criado pelo filósofo rus­ so A. Bogdanoy para indicar uma "ciência organizativa universal", que ensina a construir o mundo a partir dos elementos neutros dados na experiência (1 'ektologija, 1923). Essa dis­ ciplina, que também cuida da organização de todas as atividades humanas com o fim de determinar as condições de seu máximo rendi­ mento, foi depois chamada (nesse aspecto) de p ra xio log iaiv.) por Kotarbinsky. Integra os es­ tudos de organização e administração, de eco­ nomia política e cibernética (cf. CAI DE, MOLES e outros, M éth o d o lo g íe vens une scien ce de la ction, Paris, 1964). T É D IO (in. B o red o m ; fr. E nruii; ai. L a n gw eile; it. N oía). Moralistas e filósofos algu­ mas vezes insistiram no caráter cósmico e radi­ cal desse sentimento. "Sem o divertimento" — dizia Pascal — "haveria o T., e este nos levaria a buscar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento nos deleita e assim nos faz che­ gar distraídos à morte" (Pensées, 171). Shopenhauer observou que "tão logo a miséria e a dor concedem uma trégua ao homem, o T. che­ ga tão perto que ele necessita de um passatem­ po"; por isso, segundo ele, a vida oscilava conti­

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nuamente entre a dor e o T. (D ie Welt, I, § 57). Com mais profundidade e antecipando o existencialismo, Leopardi via no T. a experiên­ cia da nulidade de tudo o que é: "O que é o T.?" — perguntava. ''Nenhum mal ou dor em espe­ cial (aliás, a idéia e a natureza do T. excluem a presença de qualquer mal ou dor), mas apenas a vida plenamente sentida, experimentada, co­ nhecida, plenamente presente no indivíduo, ocupando-o por inteiro" (Zibaldone, VI, p. 421). Heidegger repetiu essas idéias, perceben­ do no T. o sentimento que revela a totalidade das coisas existentes, em sua indiferença: "O verdadeiro T. não é aquele provocado por um livro, por um espetáculo ou por um diverti­ mento que nos maçam, mas o que nos invade quando 'nos entediamos': o T. profundo que, como névoa silenciosa, recolhe-se nos abismos de nosso existir, comunga homens e coisas, nós com tudo o que há em torno de nós. numa singular indiferença. Esse é o T. que revela o existente em sua totalidade" (W as ist M etaphysik.P , 5a ed., 1949, p. 28). Nesse sentido, o T. está muito próximo da ná usea (v.), de que fala Sartre, também ela experiência da indife­ rença das coisas em sua totalidade. Seu prece­ dente talvez possa ser vislumbrado na melan­ colia (Schw erm ut), que, segundo Kierkegaard, é a desembocadura inevitável da vida estética. "Se perguntarmos a um melancólico qual a ra­ zão para ser assim e o que o desgosta, respon­ derá que não sabe, que não pode explicar. Nisso consiste a infinidade da melancolia" (Entweder-Oder, em Werke, II, p. 171). Nesse sentido, melancolia é a acídia medieval (Ibid., II, 168), sendo considerada por Kierkegaard a "histeria do espírito", o pecado fundamental, porquanto "é pecado não querer com profun­ didade e sentimento" (Ibid., p. 171). TEÍSMO (in. Theism; fr. Théisme-, ai. Theism its; it. 1 'eismo). Este termo, usado desde o séc. XVII para indicar genericamente a crença em Deus. em oposição a ateísmo (assim também em Voltaire, D iction n a ire p hilo soph iqu e, a. Théiste), foi definido por Kant, no seu signifi­ cado específico, em oposição a d eis m o (v.). Kant diz: "Quem só admite uma teologia trans­ cendental é chamado de deísta; quem admite também uma teologia natural é chamado de teísta. O primeiro admite que com a razão ape­ nas podemos conhecer um Ser originário do qual só temos um conceito transcendental, de Ser que tem realidade mas qtie não pode ter nenhuma determinação a mais. O segundo afr-

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TELEPATIA

ma que a razão tem condições de dar mais de­ gomento dei telegmmnia). Argumento ou exem­ terminações do objeto segundo a analogia com plo aduzido por F. A. Lange para ilustrar a tese a natureza, ou seja, pode determiná-lo como materialista de que as reações psíquicas depen­ Ser que, por intelecto e liberdade, contenha em dem dos estímulos físicos e de que é possível si o princípio originário de todas as outras coi­ reduzir o que comumente se chama cie alma ou sas. Aquele representa esse Ser apenas como consciência a mecanismos fisiológicos. O T. que causa do mundo (sem decidir se é uma causa anuncia a um comerciante a falência de um de que age pela necessidade de sua natureza ou seus correspondentes determina uma série de por liberdade), este representa-o como um cria­ reações que podem ser fisiologicamente descri­ dor do mundo" (Crít. R. Pura, Diál. transe, tas do mesmo modo como se descreve fisica­ III, seç. 7). Em outros termos, o deísta pode ser mente (em termos de ondulações luminosas) o também panteísta e acreditar na necessidade estímulo que as provocou (Geschicbte des da relação entre Deus e o mundo, embora tam­ Materialísmus, II, III, 2 e anotação 39; trad. it., II, bém possa não ser; o teísta contrapõe-se ao pp. 385 ss. e 661 ss.). Algumas vezes esse argu­ panteísta. Ademais, indo além daquilo em que mento foi invertido e usado para demonstrar a a razão pura permite acreditar, o teísta afirma a relativa independência das reações em relação respeito de Deus qualidades ou característi­ aos estímulos. O T. "Seu filho morreu" difere só cas não testemunhadas pela razão, mas pela re­ por Lima letra do T. "Meu filho morreu", mas velação; nesse sentido, como Kant diz mais produz uma reação completamente diferente adiante, no mesmo trecho, ele crê num "Deus que não corresponde á diferença física entre vivo" (v. também Crít. dojuízo, § 72). Essas ob­ os estímulos, nas pessoas que os recebem (v. C. servações de KANT definiram o significado do D. BROAD, The Mind and its Place in Natwv, termo no uso contemporâneo, em virtude do 1925, pp. 118 ss.). que T. se contrapõe não só a ateísmo mas tam­ TELEÓCLISE (ai. Teleoklise). Tendência à bém a deísmo e a panteísmo, admitindo-se atividade considerada própria dos Deus como pessoa, embora em sentido mais organismosfinalista, vivos. Termo raro. elevado do que o comumente atribuído ao ho­ TELEOFOBIAUü. Teleophobie). Aversão ao mem. finalismo. Nesse sentido, o T. é um aspecto essencial TELEOLOGIA (in. Teleology, fr. Téléologie; do espiritualismo (ou personalismo) contem­ ai. Teleologia: it. Teleologia). Este termo foi porâneo, especialmente na sua reação ao idea­ criado por Wolff para indicar "a parte da filoso­ lismo romântico, que é sempre tendencialmen- fia natural que explica os fins das coisas" (I.og, te panteísta. O T. foi explicitamente defendido 1728, Disc. prael., § 85). O mesmo que finalistanto pelo espiritualismo que reagiu ao hege- mo (v.). lianismo clássico (Fichte Júnior, Lotze e outros) TELEONOMIA. (in. Teleonomy, fr. Téléoou ao positivismo (Renouvier, Boutroux e ou­ nomie; it. Teleonomia). Termo usado pelos tros), quanto pelo espiritualismo que reagiu ao biólogos modernos para indicar a adaptação neo-idealismo romântico surgido nas primeiras funcional dos seres vivos e de seus artefatos décadas do séc. XX na Inglaterra, nos Estados â conservação e à multiplicação da espécie. Unidos e na Itália, do qual o próprio espiri- Deu-se o nome de informação teleonômica à tualismo extrai muitos dos seus temas. (V. para quantidade de informações que deve ser trans­ o T. anglo-saxão W. E. HOCKING, Meaning of mitida para que as estruturas vitais sejam reali­ God in Human Experience, 1912; A. SETH zadas e conservadas (cf., p. ex., |. MONOD. I.e PRiNGi.K-PArn.soN, TheIdea ofGocl in the I.ight of hasard et Ia necessite, 1970, pp. 26 ss.) Recent Phüosophy, 1917; CLEMENT C. J. WEBB, TELEOSE (ai. Teleosis). Perfeição. É a trans­ God and Personality, 1920, etc. Para o T. italia­ crição fonética da palavra grega. no: as obras de Carlini, Guzzo, Sciacca e ou­ TELEPATIA (in. Telepalhy, fr. Télépathic-, ai. tros). Telepathie, it. Telepatia). Uma forma de telegTELEGNOSE (in. 1'elegnosis). O mesmo que nose, mais precisamente a que consiste em vidência: faculdade de conhecer acontecimen­ conhecer os estados do espírito de pessoas dis­ tos distantes sem auxílio dos meios de conheci­ tantes ou de saber o que lhes está aconte­ mento normais (v. TELEPATIA). cendo, sem a ajuda dos meios de conhecimen­ TELEGRAMA, ARGUMENTO DO (in. 7c?- to normais. Esse termo foi proposto pela Socíety legram argument; ai. Telegrammbeispiel; it. Ar- forPsychicalResearches, de Londres, em 1882,

TEMA

e eomumente aceito. As vezes, como sinôni­ mo, usa-se Telesteski (v. D. J. WHST. Psychica! Research Today. 1954, cap. VI). TEMA (lat. Thenui; in. Tbeme. fr. Thème. ai. lhenia: it. lema). Assunto ou objeto de inda­ gação, discurso ou estudo. Na terminologia filosófica contemporânea são também usados os termos tematizar e Icmatizaçào para indi­ car a escolha ou a formação dos T., que 6 uma fase importante e muitas vezes decisiva da in­ vestigação. Heidegger. em especial, entendeu por tematizaçào a manifestação dos seres intramundanos, em virtude do que tornam-se obje­ tos (Sein nncl /.eit, 69 b). TEMPERAMENTO (gr. KpãoiÇ: lat. Temperamentum.m. Temper.fv. Tempéranient-.-A. Temperamenl: it. Temperamento). Disposição do homem a agir de um modo ou de outro segun­ do a mescla de humores que compõem seu corpo. A teoria do '1'. foi criada pelo pai da me­ dicina, Hipócrates (séc. V a.C). e propagou-se como teoria médica. Hipócrates admitia quatro humores fundamentais: sangue, fleuma (linhi. soro. muco nasal e intestinal, saliva), bile amarela e atrabile ou bile negra (considerada como secreção do pâncreas), correspondentes aos quatro elementos do macrocosmo. Confor­ me o humor predominante, temos os quatro T. fundamentais: sangüíneo, fleumático, bilioso e melancólico ou atrabiliário. (De nat. honi., 4). F.nconiram-se alusões a essa teoria ou a teorias semelhantes em Platão (O Bcinq., 188a; Tini.. 86B), em Aristóteles (Problem.. 30, 1). em Sêneca (De ira, II, 18 ss.). em Lucrécio (De rei: nat.. III, 288 ss.), em Piutarco (Qucwst. nat.. 26) e em outros, sem ligação com os pressu­ postos filosóficos de que esses autores partem, como demonstra a sua unânime aceitação. Na Idade Média a teoria dos T. também foi propa­ gada por meio da medicina, especialmente ára­ be (Avicena e Averróis), chegando aos médi­ cos e magos cio Renascimento. Paracelso substituiu os humores hipocráticos por seus três elemen­ tos (enxofre, sal e mercúrio), na classificação dos temperamentos. Contudo, a noção de T. não sofreu modificação até Kant, que. para resumi-la, distinguiu o aspecto fisiológico e o aspecto psicológico do T. "Fisiologicamente falando, o 'I'. é formado pela constituição físi­ ca (estrutura forte ou fraca) e pela compleição (fluido posto regularmente em movimento pela força vital, no que se inclui o calor ou o frio produzido na elaboração desses humores). Psi­ cologicamente falando, como T. da alma (do

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poder afetivo e apetitivo). essa expressão, deri­ vada da propriedade do sangue, refere-se à analogia entre os sentimentos e os desejos com as causas físicas e motoras (das quais a princi­ pal é o sangue)" (Anlr. II, 2). Depois, Kant re­ tomaria a antiga classificação hipocrática dos T.. que muitas vezes também teve aceitação na psicologia moderna (p. ex., V. Wri\i)T. Pbysio/ogiscbePsychologie, II1, pp. 519 ss.). Mas na psicologia, essa palavra deixou de ser usada desde o fim do século XIX, sendo substituída por caráter (x.).; que numa das suas acepções sig­ nifica a estrutura orgânica originária que con­ diciona as disposições naturais do indivíduo. O uso da palavra caráter marca também a passa­ gem dessa noção do domínio da medicina para o da psicologia e cia filosofia. TEMPERANÇA (gr. ococppoaúvri; kit. Temperantía: in. Temperance-. fr. Temperance. ai. Bt>sonnenheit; it. 1'emperauza). Uma das virtudes éticas de Aristóteles, mais precisamente a que consiste no justo uso dos prazeres físicos. Aris­ tóteles notava que a T. não se refere a todos os prazeres físicos (não compreende, p. ex.. os que derivam da visão ou da audição), mas ape­ nas os que derivam da alimentação, da bebida e do sexo (Et. )iic. 111, 9-12). Platão definiu a T. de modo diferente: para ele, era "a amizade e a concordância das partes da alma. existentes quando a parte que comanda e as que obede­ cem concordam na opinião de que cabe ao princípio racional governar, e assim não se lhe opõem"; segundo Platão, isso é T., tanto para o indivíduo quanto para o Estado (Rep.. IV. 442 b). Os estóicos definiram a T. como "a ciência das coisas a serem desejadas e das coisas a se­ rem evitadas" (J. STOBKO, liei. 11, 6, 102). A ética de Demócrito também cuidou do assunto: "A sorte nos clã a mesa suntuosa; a T. nos dá a mesa em que nada falta" (Fr. 210, Diels). TEMPO (gr. xpóvoç; lat. Tempus; in. Time. fr. Temps; ai. Zeil: it. Tempo). Podemos distin­ guir três concepções fundamentais: Ia o T. como ordem mensurável do movimento; 2a o T. como movimento intuído; 3a ° T. como estrutura de possibilidades. À primeira concep­ ção vinculam-se, na Antigüidade, o conceito cíclico do mundo e da vida do homem (metempsico.se) e. na época moderna, o conceito científico de tempo. À segunda concepção vin­ cula-se o conceito de consciência, com a qual o T. é identificado. A terceira concepção, deriva­ da da filosofia existencialista, apresenta algumas inovações na análise do conceito de tempo.

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1- A concepção de T. mais antiga e difundi­ ou melhor, a ordem do movimento externo da considera-o como ordem mensurável do píila ordem do movimento interno: "Se eu ten­ movimento. Os pitagóricos, ao definirem o T. tar construir uma simples idéia do T. abstrain­ como "a esfera que abrange tudo" (a esfera ce­ do da sucessão de idéias de meu espírito, que leste), relacionaram-no com o céu, que com o flui uniformemente e é compartilhada por to­ seu movimento ordenado permite medi-lo per­ dos os seres, estarei perdido e embaraçado por feitamente (ARISTOTHLKS. FÍS, IV, 10. 218 a 33). dificuldades inexplicáveis" (Princ iplesofHiunan Ao definir o T. como "a imagem móvel cia eter­ Knowledge, 1. 98). nidade". Platão ( Tini, 37 d) pretende dizer que. Essa concepção de T. fundamentou a mecâ­ na forma dos períodos planetários, do ciclo nica de Newton, que distinguia o T. absoluto e constante das estações ou das gerações vivas e 0 T. relativo, mas a ambos atribuía ordem e de qualquer espécie de mudança, ele reproduz uniformidade. "O T. absoluto, verdadeiro e ma­ no movimento a imutabilidade do ser eterno temático, na realidade e por natureza, sem rela­ (Ibici, 38 b-39 ti). A definição de Aristóteles, "o ção com nada de externo, flui uniformemente T. é o número do movimento segundo o antes (uequabüiter) e também se chama duração. O e o depois" (Fís, IV, II; 219 b 1). é a expressão 1 • relativo, aparente e comum é uma medida mais pcrreííYi c/essa' concepção, qtrc idcniiticx o sensíveí c/a duração porrnero c/o mo­ T. com a ordem mensurável do movimento. vimento"e externa" (Aatiiralis philosopbiaeprincipia. I, Não é diferente o significado da definição dos dof. VIII). Nessa definição de Newton. o unifor­ estóicos, segundo a qual o T. é "o intervalo do me fluir da duração absoluta é confrontado movimento cósmico" (DiÓG. L, VII, Ul). Na com a uniformidade do movimento é to­ verdade, intervalo não passa cie ritmo, ordem, mado como medida cio tempo. Leibnizqueesclaremovimento cósmico. Talvez não seja diferente o mesmo conceito do seguinte modo; "Co­ tampouco o significado da definição de Kpi- cki nhecendo-se as regras cios movimentos não curo: "O T. é uma propriedade, um acompa­ uniformes, é possível relacioná-los com os mo­ nhamento do movimento" (J. STOBKO. Fcl.. I. 8. vimentos uniformes inteligíveis e prever com 1A2). Na Idade Média, essa concepção do T. foi este meio o que acontecerá a diferentes movi­ compartilhada por realistas (ALBKKTO MAC.NO. i'. mentos reunidos. Nesse sentido, o T. é a medi­ Tb, I, q. 21. a. 1; S. TOMÁS, S. Tb, 1. q. 10, a. 1) do movimento, ou seja, o movimento uni­ e por nominalistas (OCKIIAM, /;/ Sent., II, q. 12), da, forme a medida cio movimento não que repetiram unanimemente a definição de uniforme"é (Nouv. II, 14, 16). Portanto, defi­ Aristóteles. Telésio. que criticava essa defini­ nia o T. como ess, "uma de sucessões" ção, reduziu o T. à duração e ao intervalo do (l'roisièm e lettre à Clarke,ordem §4): definição aceita movimento (Derer. )iat, I, 29). Hobbes definiu Wolff (Ont.. § 572) e por Baumgarten o T. como "imagem (phantasma) do movimen­ por (,Alet, § 239). Fssa era a concepção a que Kant to, na medida em que imaginamos no movi­ se referia implicitamente, ao afirmar, em Estémento o antes e o depois, ou seja, a sucessão"; tka transcendental, a idealidade transcendental "; considerava que essa definição estava cie acor­ de) T., ao lado de sua realidade empírica (v. do com a de Aristóteles (De corp, 7. 3). Des­ mais adiante). Mas a principal contribuição de cartes simplesmente repetia essa última, defi­ Kunt na interpretação do conceito T. não nindo o T. como "número do movimento" está na Estética transcendental, mas cie na Analíti­ (Princ. phil. I, 5 7). I.ocke criticava a vincu- ca dosprincípios, mais precisamente no estudo lação do T. ao movimento, estabelecida pela da segunda analogia, ou "princípio da série definição de Aristóteles, só para afirmar que o temporal a lei da causalidade". Aí T. está ligado a qualquer espécie de ordem Kunt reduzsegundo ordem de a ordem causai. constante e repetível; "Qualquer aparição pe­ Afirma que uma coisasucessão só "pode seu riódica e constante, ou mudança de idéias, que lugar no T. com a condição de conquistar que no estado acontecesse entre espaços de duração aparen­ precedente se pressuponha outra coisa ã qual temente eqüidistantes. e fosse constante e uni­ esta deva seguir-se, ou seja. segundo versalmente observável, poderia servir para urna sempre regra". A temporal não pode inver­ distinguir intervalos do T. tão bem quanto as ter-se porque, série "uma vez posto o estado pre­ que foram usadas na realidade" (Ensaio. II, 14, cedente, o acontecimento seguir-se in19). Para definir o T., Berkeley substituía a lalível e necessariamente";deve portanto, "é lei ordem do movimento pela ordem cias idéias. necessária de nossa sensibilidade e, conse­

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qüentemente. condição formal de todas as percepções que o T. precedente determine ne­ cessariamente o seguinte". Isso realmente per­ mite a distinção entre percepção real do T. e imaginação, que poderia e pode inverter a ordem dos eventos, transformando a sucessão temporal em "único critério empírico do efeito em relaçào ã causalidade da causa" (Crít. R. P ura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 3). Essa redução do T. à ordem causai, defendida por Kant em relaçào ao conceito de T. dominante em sua época (derivada da física nevvtoniana), loi reapresentada em nossos dias com relaçào à física einsteiniana. Ao afirmar a relatividade da medida temporal. Einstein na realidade não inovou o conceito tradicional cie T. como orcíem cie sucessão: só negou que a ordem cie su­ cessão fosse única e absoluta (v. llb e r die sp ezielle u n d d ie a llg em ein e R elativitatstheorie. 1921, §§ 8-9). Em confronto com a física de F.instein, H. Reichenbach voltou a propor a tese kantiana da identidade do T. com a causalida­ de: "O T. é a ordem das cadeias causais: este é o principal resultado das descobertas de Hinstein" (A lb ertlü nsleiri:P b ilo so p h er-S cientist. ed. por P. A. Schilpp, 1949, pp. 289 ss.). "A or­ dem do T., a ordem do antes e do depois, é redutível à ordem causai. (...) A inversão da or­ dem temporal para certos eventos, resultado que deriva da relatividade da simultaneidade, é apenas uma conseqüência desse fato funda­ mental, lima vez que a velocidade de transmis­ são é limitada, existem eventos tais que ne­ nhum deles pode ser causa ou eleito do outro. Para tais eventos, a ordem do T. não é definida, e cada um deles pode ser chamado de poste­ rior ou anterior ao outro" (Ibid., 1949, pp. 289 ss.). Ksses mesmos conceitos foram explicados por Reichenbach em seu livro póstumo The D irectio n o f Tim e (1956), no qual identifica a ordem do T. com a causalidade, e a direção do T. com a entropia crescente (v. especialmente §§ 6, 16). A redução do T. a causalidade pode ser con­ siderada a mais importante (mas não por isso a mais consistente) proposição filosófica apre­ sentada no campo da concepção do T. como ordem. Ao contrário, tem bem menos impor­ tância a discussão — a que muitas vezes os fi­ lósofos se inclinaram — sobre a subjetividade ou objetividade do T. Foi Aristóteles quem deu início a tais discussões, chegando à conclusão de que, se por um lado o T. como medida não pode existir sem a alma — pois só a alma pode

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medir—, por outro lado o movimento ao qual a medida se refere não depende da alma (Fís.. IV. 14. 223 a 20-29). No séc. XIV, retomando essas considerações, Ockham afirmava que não existiria T. se a alma não pudesse medir nem numerar (In S e n t, II. q. 12). Até Hobbes cha­ mava o T. de imagem (v. definição citada ante­ riormente). Menos significativa é a redução do I., de autoria de Locke e de Berkeley, à ordem das idéias: porque as idéias, para esses filóso­ fos, são os únicos objetos de que se pode falar. Quanto ao "subjetivismo" da concepção kantiana, segundo a qual o tempo é 'intuição pura", condição de qualquer percepção sensí­ vel, não passa de mal-entendido, pois só o T. pode ser considerado subjetivo com relaçào às coisas em si, que estão aiém cia consideração humana, mas é objetivo e real em relaçào às coisas naturais, em virtude do que o T. tem "realidade empírica" indubitável (Crít. R. P uni. §§ 6, 7). Além disso, o objetivismo da concep­ ção kantiana é demonstrado pela redução cio T. à ordem causai: tese a que os neo-empiristas chegaram sem conhecer sua proveniência kantiana. 2£! A segunda concepção fundamental de T. considera-o como intuição do movimento ou "devir intuído". Esta última definição é de Hegel, que acrescenta ser "o T. o princípio mesmo do Eu = Eu, da autoconsciência pura, mas é esse princípio ou o simples conceito ainda em sua completa exterioridade e abstração" (Jinc, § 258). Portanto, Hegel não identifica o T. com a consciência, mas com algum aspecto parcial ou abstrato da consciência. Sem essa limitação, Schelling dissera: "o T. outra coisa não é senão o sentido interno que se torna objeto para si" (System des tran szendenta len Idealism us, seç. III, Segunda época. D; trad. it., p. 141). A rigor, a concepção cie T. como intuição do devir traz em seu bojo a redução de T. a consciência. Isso já acontece em Plotino. Segundo este último, o T. nào existe fora da alma: "é a vida da alma e consiste no movimento graças ao qual a alma passa de uma condição de sua vida para outra" (F.nn.. III, 7.11); assim, pode-se dizer que até o universo está no T. só na medida em que está na alma, ou seja, na alma do mundo (Ibid , III, 7, 3). A S. Agostinho deve-se a melhor expres­ são e a difusão dessa doutrina na filosofia oci­ dental. O T. é identificado por Agostinho com a própria vida da alma que se estende para o passado ou para o futuro (extensio ou distensio anim i). S. Agostinho diz: "De que modo dimi­

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nui e consuma-se o futuro que ainda não exis­ te? F, de que modo cresce o passado que já não é mais, senão porque na alma existem as três coisas, presente passado e futuro? A alma de fato espera, presta atenção e recorda, cie tal modo que aquilo que ela espera passa, através daquilo a que ela presta atenção, para aquilo que ela recorda. Ninguém nega que o futuro ainda não exista, mas na alma já existe a espera do futuro: ninguém nega que o passado já não exista, mas na alma ainda existe a memória do passado. H ninguém nega que o presente care­ ça de duração porque logo incide no passado, mas dura a atenção por meio da qual aquilo que será passa, afasta-se em direção ao passa­ do" ( O »if, XI, 28, 1). A tese fundamental dessa concepção de T. foi enunciada pelo próprio S. Agostinho: "A rigor, não existem três T., pas­ sado, presente e futuro, mas somente três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro" (Ibici, XI. 20, 1). Na filosofia moderna, Bergson reexpôs essa concepção, contrapondo-a ao conceito científi­ co de tempo. Segundo ele, o T. da ciência é espa cializa d o e, por isso, não tem nenhuma das características que a consciência lhe atribui. Ele é representado como Lima linha, mas "a li­ nha é imóvel, enquanto o T. é mobilidade. A linha já está feita, ao passo que o T. é aquilo que se faz; aliás, é aquilo graças a que todas as coisas se fazem" (ha pensée et le motivam, 33 ed., 1934, p. 9). Já em sua primeira obra, lissa i s u r le s d o n n ées im m éd ia tes de Ia cunscíence, Bergson insistira na exigência de considerar o T. vivido (a du ra çã o da consciência) como uma corrente fluida na qual é impossível até distinguir estados, porque cada instante dela transpõe-se no outro em continuidade inin­ terrupta, como acontece com as cores do arcoíris. Esse ficou sendo o conceito fundamental de sua filosofia. Segundo Bergson, o T. como duração possui duas características fundamen­ tais: \- novidade absoluta a cada instante, em virtude do que é um processo contínuo de cria­ ção; 2 " conservação infalível e integral de todo o passado, em virtude do que age como uma bola de neve e continua crescendo à medida que caminha para o futuro. Não muito diferen­ te é o conceito de Husserl sobre o "T. fenomenológico". Ele afirma: "Toda vivência efetiva é necessariamente algo que dura; e com essa duração insere-se em um infinito contínuo de durações, em um contínuo p ien o . Tem necessa­

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riamente um horizonte temporal atualmente in­ finito de todos os lados. Isso significa que per­ tence a uma corrente infinita de vivências. Ca­ da vivência isolada, assim como pode come­ çar, pode acabar e encerrar sua duração; é o que acontece, p. ex., com a experiência de uma alegria. Mas a corrente de vivências não pode começar nem acabar" (Ideen, I. § 81). Isso significa que, assim como a duração bergsoniana, a corrente de vivências tudo conserva e é uma espécie de eterno presente. 3a O terceiro conceito de T. transforma-o em estrutura da possibilidade. Esse é o concei­ to encontrado em Heiclegger na obra S e r e T. (1927), que já no título anuncia a identidade dos dois termos. A primeira característica dessa concepção é o primado do fu tu ro na interpre­ tação do tempo; as duais concepções anteriores fundam-se no primado do presente. O T. como ordem do movimento é uma totalidade presen­ te porque toda ordem pressupõe a simultaneidade de suas partes, de cuja recíproca adapta­ ção ela nasce. A concepção de T. como devir intuído só faz interpretá-lo em função do pre­ sente, porque a intuição do devir é sempre um agora, um instante presente. Heiclegger. ao contrário, interpretou o T. em termos de possi­ bilidade ou de projeção: o T. é originariamente o p o r-rir (Z u -ku nft); mais precisamente: quan­ do o T. é autêntico (originário e próprio da existência), é "o porvir do ente para si mesmo na manutenção da possibilidade característica como tal". "Porvir não significa um agora, que, ainda não tendo se tornado atual, algum dia o será, mas o advento em que o ser-aí vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a antecipação que torna o ser-aí p ro p ria m en te porvindouro. de sorte que a própria antecipação só é possí­ vel porque o ser-aí, enquanto ente, sempre já vem a si" (S ein u n d Zeít, § 65). O passado, como um ter-sido, é condicionado pelo porvir porque, assim como são possibilidades autênti­ cas aquelas que j á foram , também j á fo ra m as possibilidades às quais o homem pode auten­ ticamente retornar e de que ainda pode apro­ priar-se (Ibid., § 65). Tanto o T. autêntico, em que o ser-aí projeta sua própria possibilidade privilegiada (o que já foi, de tal modo que suas escolhas são escolhas do já escolhido, isto é, da impossibilidade de escolher), quanto o T. ínan têntico , que é o da existência banal, como sucessão infinita de instantes, ambos são o so­ brevir do que a possibilidade projetada apre­ senta ao ser-aí (isto é, ao homem); portanto são

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um apresentar-se, a partir do futuro, daquilo que já foi no passado (Ibid., § 80, 81). A análise heideggeriana do T. sem dúvida contém um grande compromisso metafísico, porquanto o T. é considerado uma espécie de círculo, em que a perspectiva para o futuro é aquilo que já passou; por sua vez, o que já passou é a pers­ pectiva para o futuro. Nesse sentido, Heidegger laia de T. Imito, ou autêntico, já que T. inautêntico (que ele também chama de databilidade ou '/'.público) é o desconhecimento par­ cial da natureza do T. e a sua concepção como linha aberta e sucessão infinita de instantes (Sein undZeit, §§ 79-81). Todavia, a análise de Heidegger contém alguns elementos de inte­ resse filosófico notável porque constitui uma importante inovação na análise do conceito de tempo. Esses elementos são os seguintes: ly Mudança do horizonte modal, passandose da necessidade à possibilidade: o T. já não é integrado numa estrutura necessária, como a ordem causai, mas na estrutura da possibili­ dade. Esse aspecto pode ser utilizado para expressar adequadamente a transformação a que a noção de T. foi submetida pela relativi­ dade de Einstein. Com efeito, se dois eventos são simultâneos segundo certo sistema de refe­ rência mas podem não ser simultâneos segun­ do um outro, conclui-se que o T. não é uma ordem necessária, mas a possibilidade de vá­ rias ordens. 2" O primado do futuro na interpretação do 1'. não constitui apenas uma alternativa diferen­ te do primado do presente e a ele oposta, na qual se baseiam as outras duas interpretações principais, mas também oferece a possibilidade de não achatar sobre o presente as outras de­ terminações do T. e de entendê-las em sua natureza específica: o futuro como futuro (e não como "presente do futuro") e o passado como passado. 3Q A relação entre passado e futuro, que Heidegger enrijeceu num círculo, pode ser fa­ cilmente dissolvida com a introdução da no­ ção de possível. O passado pode ser entendido como ponto de partida ou fundamento das possibilidades porvindouras. e o futuro como possibilidade de conservação ou de mudança do passado, em limites (e aproximações) determináveis. 4" A introdução de novos conceitos interpretativos, expressos por termos como pro­ jeto ou projeção, antecipação, expectativa, etc. mostraram-se úteis nas análises filosófi­

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cas e passaram a fazer parte do uso filosófi­ co corrente. TEMPORAL (in. Temporal, h. Temporehú. Zeitlich: it. Temporale). 1. O que pertence ao tempo, diz respeito ao tempo ou acontece no tempo. P. ex.. ordem T., esquema T., etc. 2. O que é mundano, pertence à ordem do tempo, em contraposição ao que é espiritual e pertence â ordem da eternidade. A contrapo­ sição entre T. e espiritual é um dos temas do­ minantes do cristianismo paulino (v., p. ex., Ad cor, II, IV, 18; Adhebr, XI, 25; etc). TEMPORÁRIO (in. Temporary, ir. Temporairc ai. liinstweilig. it. Temporaneo). De pou­ ca duração, provisório. TENDÊNCIA (in. Tendency. fr. Tendance, ai. THfiz it. Tendenza). Entende-se porT. todo impulso habitual e constante para a ação. Nisso a T. distingue-se do impulso (v.), que é a ação súbita e temporária. Kant restringiu o significa­ do desse termo a apetite habitual, de natureza sensível (Antr, § 73). Schiller admitiu três T. fundamentais no homem; a primeira, de natu­ reza sensível instiga-o à mudança; a segunda. ou T. à forma, instiga-o ã imutabilidade; final­ mente, a terceira, ou T, ao jogo, instiga-o a combinar as duas primeiras (Briefe über die aesthetische Hrziehung, 12, 13). A esta dis­ tinção Fichte contrapôs outra, entre a T. ao conhecimento, que torna o homem um "ser representante", a T. prática, que visa à modifi­ cação e â formação das coisas, e a T. estética, que visa a determinada representação só em vista dela mesma, e não da coisa ou do conhe­ cimento da coisa (Werke, VIII, pp. 278-79). Mais recentemente, Jaspers distinguiu três ordens de T.: l3 as sensíveis, com correlato somático (fome, sede, sexo, etc); 2a as vitais mas sem localização somática (T. à auto-exaltaçào ou à submissão, à imigração, à sociabilidade, etc); 3a as espirituais, voltadas para a reali­ zação de valores (AllgemeinePsychopathologie. 1913). TENSÃO (gr. xóvoç; in. Tension-, fr. Tension. ai. Spannung; it. Tensione). 1. Conexão entre dois opostos que estào ligados apenas por sua oposição. Segundo os antigos (v. FÍLON, Rer. dív. Her, 43), esse conceito constituía a grande descoberta de Heráclito; este dissera: "Os ho­ mens não sabem como aquilo que é discordan­ te está em acordo consigo: harmonias de T. opostas, como as do arco e da lira" {Fr. 51, DIFLS). Nesse sentido, os estóicos também fala­ ram da T. que mantém o universo coeso (AR-

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NIM, Stoic. fragm., II, 134). Encjuanto a dialéti­ ca (v.) é a unidade dos opostos como síntese ou conciliação, a T. é o elo entre os opostos como tais, sem conciliação ou síntese. Por isso, as situações de T. não permitem prever conci­ liação; essa palavra é usada com esse sentido mesmo na linguagem comum, como quando se fala da "T. internacional". No mesmo senti­ do, fala-se de "T. psicológica" para indicar um estado latente de conflito. 2. Os estóicos (mais precisamente Cleantes; v. AKMM, Stoic. frag, I, 128) introduziram a noção de T. como força tendente a um resulta­ do: nesse sentido, é sinônimo de tendência ou de esforço, especialmente de esforço prolon­ gado ou penoso. TEOCRACIA (in. Theocracy, fr. Théocratie, ai. Theokratie, it. Teocrazia). 1. Regime político em que o governo é exercido pela casta sacer­ dotal. Nesse sentido foram T. o estado he­ braico, o estado maometano e o calvinismo cie Genebra. 2. Doutrina da supremacia do poder ecle­ siástico, do qual o poder civil extrairia direito e investidura. T. nesse sentido encontrar-se-ia na Idade Média. 3. Mais em geral, qualquer doutrina segun­ do a qual toda autoridade provém de Deus (v. AUTORIDADE). TEOCRASIA(gr. 6eoKpaoía; in. Tloeocrasy, fr. Théocrasíe, ai. Theocrasie, it. Teocrasia). União ou mescla da alma com Deus, no misticismo (v. JÂMBLICO, De vitapythagorica, 33, 240). TEODICEIA (in. Theodicea; fr. Théodicée, ai. Theodízee, it. Teodicea). Termo criado por Leibniz e que serviu de título a uma de suas obras (Ensaio de T. sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal, 1710), para demonstrar que há justiça divina por meio da solução de dois problemas fundamentais: o do mal e o da liberdade humana. Sobre o pri­ meiro problema, a T. de Leibniz responde mais especificamente às considerações desenvolvi­ das por Bayle em seu Dicionário (1697), qtie na realidade só ampliavam o que epicuristas já haviam dito em polêmica com os estóicos: "Deus não quer, ou não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode eliminar o mal. Se quer e não pode, é impoten­ te: o que Deus não pode ser. Se pode e não quer, é invejoso, o que igualmente é contrário a Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto não é Deus. Se quer e pode — única coisa que convém a Deus —, qual a

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origem da existência do mal e por que não os elimina?" (Fr. 374, Usener). A solução de Leibniz é a tradicional: o mal não é uma realida­ de; portanto, a responsabilidade por ele não re­ monta a Deus (v. MAL). Quanto ao problema da liberdade, Leibniz discute principalmente as vá­ rias formas assumidas pelo determinismo teoló­ gico na literatura protestante de seu tempo, para reivindicar a liberdade do homem no sen­ tido tradicional de autodeterminação (v. LI­ BERDADE). Deus predispõe sem determinar, e a liberdade do homem não consiste na indeterminaçâo absoluta, ou seja, no arbítrio de indife­ rença, mas na ausência de necessidade e de coa­ ção (v. LIBERDADE). A partir de Leibniz, a T. passa a ser considerada parte fundamental da teologia racional (v. TEOLOGIA). TEOFANIA (lat. Theophania; in. Theophany fr. Théophanie, ai. Théophanie; it. Teofania). Esse termo, que significa "visão de Deus", foi usado por Scotus F.rigena (séc. IX) para in­ dicar o mundo como manifestação de Deus. Segundo ele, T. é o processo de descida de Deus ao homem através da criação e de re­ torno do homem a Deus através do amor. T. também ô qualquer obra da criação que ma­ nifeste a essência divina, que assim se torna vi­ sível nela e através dela (De divis. nat, I, 10; V, 23). TEOGNOSE (ai. Theognosis). Conhecimen­ to científico de Deus (v. C. F. KrAuSE, Vorlesungen über das System derPhiolosophie, 1828, p. 27). Termo bastante raro. TEOGONIA (gr. 9eoyovía; in. Theogony fr. Théogonie, ai. Theogonie; it. Teogonia). Gera­ ção dos deuses e do mundo: cosmologia mítica (V. PLATÃO, Leis, X, 886 c) (v. COSMOLOGIA). TEOLOGAIS, VIRTUDES (lat. Virtutes theologicae; in. Theological vírtues; fr. Vertus theologiques;ai. TheologischeTugenden,it Virtú teologiche). Foram assim chamadas na Idade Média a fé, a esperança e a caridade, virtudes que dependeriam de dons divinos e que visa­ ram a obter a bem-aventurança a que o ho­ mem não pode chegar só com as forças da sua natureza. Por esse caráter sobrenatural, as vir­ tudes T. distinguem-se das éticas (v.) e dianoéticas(y) (v. S. TOMÁS, 5. Th, II, 1, q. 62, a. 1). Para as virtudes em separado, vejam-se os respectivos verbetes. TEOLOGIA (gr. 8EoA.oyía; lat. Tbeologia; in. Theology, fr. Théologie; ai. lheologie; it. Teolo­ gia). Em geral, qualquer estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou das coisas divi­

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nas. Foi nesse sentido generalíssimo que essa palavra foi entendida pelo grande erudito ro­ mano Marco Terêncio Varrão (séc. I a.C), cuja distinção de três T. foi transmitida por S. Agosti­ nho: T. m ítica ou fabulosa-, T. n a tu ra l ou fís i­ ca-, T. civil. A '1'. mítica ou fabulosa é utilizada pelos poetas e admite muitas ficções contrárias a dignidade e à natureza da divindade. A T. natural é a dos filósofos e estuda "o que os deuses são, o lugar em que residem, o gênero deles, sua essência, o tempo em que nasceram ou sua perenidade, e se o princípio deles está no fogo, como crê Heráclito, nos números, como afirma Pitágoras, ou nos átomos, como acredita Epicuro". Finalmente, a T. civil "deve ser conhecida e praticada pelos cidadãos, prin­ cipalmente pek» sacerdotes-, ensini quais as divindades a serem veneradas publicamente e quais as cerimônias e sacrifícios a serem reali­ zados" (AGOSTINHO, D e civ. D ei, VI, 5). Nesse sentido varroniano, Viço considerava a sua "ciên­ cia nova" como "uma T. civil e racional da providência", porquanto sua origem está na "sabedoria comum dos legisladores que funda­ ram as nações e que contemplarem Deus com o atributo de providencial" (Sc. n , 11. Corolário em torno dos aspectos principais dessa ciên­ cia). Em sentido mais especificamente histórico-filosófico, é possível distinguir: \- T. me­ tafísica; 2S T. natural; 3" T. revelada; 4e T. negativa. ly Aristóteles chamou sua "ciência primeira", a metafísica, de T.: entendeu-a ao mesmo tem­ po como ciência do ser enquanto ser (ou seja, da substância) e como ciência da substância eterna, imóvel e separada (ou seja, de Deus) (M et., VI, 1, 1026 a 10). Esse conceito de T. como metafísica persistiu por longos séculos. O estóico Cleantes incluía a T. entre as partes da filosofia (DIÓG. L, VII, 41). Para Plotino, a T. era a única ciência digna desse nome (Enn., V, 9, 7). Desse ponto de vista, os neoplatônicos muitas vezes chamaram os filósofos — inclusive os físicos e os materialistas — de teó­ logos, porquanto eles se ocupavam (como diz Proclo) dos "princípios primeiríssimos das coi­ sas subsistentes por si mesmas" (P iai. theoi. I, 3). F.sse é também o significado que Varrào atri­ buía à expressão "T. natural". Esse uso perdu­ rou na filosofia cristã: nem na patrística nem na primeira fase da escolástica seria possível en­ contrar uma delimintaçào exata entre T. e filoso­ fia. S. Tomás mesmo, na primeira fase de sua obra, aceitou a identidade entre T. e metafísica,

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eximo se vê no prólogo ao seu comentário à M eta física cie Aristóteles, onde ele diz que, cc>mo a metafísica considera em primeiro lugar as substâncias separadas ou divinas, em segun­ de' lugar o ente como tal e em terceiro lugar as causas ou os princípios primeiros, "é chamada de ciência divina ou T. quando considera as substâncias separadas; de metafísica quando considera o ente; (...) e de filosofia primeira quando considera as causas primeiras das coi­ sas" (In M e t, Proemium). No séc. XVII começou-se a fazer a distinção entre "filosofia primeira", que também foi cha­ mada de ontologia (v.), e T.; começou-se tam­ bém a fazer a distinção entre T. como ciência natural e T. baseada na revelação. Essas distincOes estão claramente estabelecidas em De atig u m entis scíentia rum (1623) de F. Bacon, que chamou de T. n a tu ra l o conhecimento que se pode obter de Deus "através da luz da natureza e da contemplação das coisas criadas' (De augm. scient, III, 2), e de T. inspirada ou sa g ra d a a que se baseia em princípios direta­ mente inspirados por Deus (Ibíd., III, 1). 2- O segundo conceito de T. é, portanto, o de" T. natural, que se distingue do anterior só pc'lo fato de compreender uma parte da metafí­ sica, e não a sua totalidade; mais precisamente a parte que tem por objeto as coisas divinas. A expressão de Bacon, "T. natural", foi retomada e difundida por Wolff: ele a definia como "a ciência do que é possível por obra de Deus", portanto como uma parte da filosofia, que é, ein geral, a ciência das coisas possíveis (Log., Disc. prael., 57). Baumgarten insistia no caráter racional da T. assim entendida: "T. natural é a ciência de Deus, na medida em que pode ser conhecido sem fé" (M et., § 800), e a considera­ va fundamento da filosofia prática, da T. e da T. revelada (Ibíd., § 601). Foi esse conceito de T. que, juntamente com seu conteúdo, Kant criti­ cou em C rítica da R a zã o P ura. Ele, porém, preocupou-se também em distinguir as várias espécies de 'I'., e, partindo da distinção básica entre T. racional e T. revelada, distinguiu na T. racional a T. transcen dental — que "concebe seu objeto simplesmente como razão pura, por meio de meros conceitos transcendentais (en s ofigínarium , realissim um , ens en tiu m )" —e a T. natural, que utiliza "conceitos tomados da natureza". Por sua vez, a T. transcendental pode ser cosm oteologia, se deduzir a existência de Deus da experiência em geral, ou ontoteologia, se deduzir sua existência a partir de

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conceitos, sem recorrer à experiência. Final­ mente, a T. natural pode ser T. física, se re­ montar aos atributos de Deus partindo da or­ dem e da constituição do mundo, ou T. m oral, se considerar Deus como o princípio da or­ dem e da perfeição moral (Craf. R. P ura, Dialé­ tica, cap. III, seç. VII). Algumas dessas distin­ ções persistiram e ainda são usadas no campo da T. eclesiástica. 3o A T. revela d a ou sa g ra d a extrai seus prin­ cípios da revelação. A primeira formulação ex­ plícita desse conceito é, provavelmente, tomista: S. Tomás afirma que "a sagrada doutrina é ciência porque parte de princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, que é a ciência de Deus e dos bem-aventurados' (S. T h , I. q. 1, a. 2). A "ciência de Deus e dos bemaventurados" coincide com os "artigos de fé" ou com a "revelação divina" (Ibid., a. 78). Era essa a T. que Duns Scot considerava ciência puramente prá tica , em confronto com a me­ tafísica, que ele considerava a ciência teórica por excelência: o único objetivo da '1". seria persuadir o homem a agir em vista da salvação (Op. Ox., Prol., q. 4, n. 42), e mesmo as verda­ des aparentemente teóricas teriam valor apenas prático como, p. ex., a proposição "Deus é trino", que incluiria simplesmente o conheci­ mento do justo amor que o homem deve a Deus (Ib id , Prol., q. 4, n. 31 ) *A negação do va­ lor cognitivo da T. persiste, no fim da escolástica, mesmo quando não se atribui caráter prático á sua totalidade. Ockham não conside­ rava a T. como ciência, mas como um simples conjunto de conhecimentos diversos, teóricos e práticos, baseados exclusivamente na autori­ dade e cujo único fim seria guiar o homem para a salvação (In Sent, Prol., q. 12, E-l). Esse con­ ceito não difere muito daquilo que Spinoza ex­ poria mais tarde em Tratado teológico-político (v. especialmente cap. 15). 4S O conceito da T. n eg a tiva surgiu e propa­ gou-se no misticismo. A distinção entre T. posi­ tiva ou afirmativa (que parte de Deus em dire­ ção ao finito por meio da determinação dos atributos ou n o m es de Deus) e T. negativa (que parte do finito em direção a Deus e o considera acima de todos os predicados ou nomes com os quais possa ser designado) encontra-se nos tratados do Pseudo-Dionísio, o Areopagita (D e m ysl. theoi, 1; D ediv. n o m , I, 4; 4, 2; 13, 1; D e eccl. b y e ra r, 2, 3), mas sua fonte está nos textos neoplatônicos, para os quais Deus está acima de todas as determinações finitas e

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TEOREMA

do próprio ser (v. TRANSCENDÊNCIA). Essa dis­ tinção é repetida por Scotus Erigena (D e divis. nat, II, 30) e retomada pelo misticismo especulativo alemão do séc. XIV (v. ECKEhArT, em PFHIFFKR, Deutsche Mysliker des 14 Ja h rh u nd erls, II, pp. 318-19) e pelo Renasci­ mento, com Nicolau de Cusa (D edocta ignor., I. 24; 26) e Charles de Bouelles (D e n ih ilo , 11, 1, 4). Pode-se considerar manifestação dessa T. — revivida através da experiência de Kierkegaard — a chamada "T. da crise" de K. Barth, salvo pelo fato de esta não consistir na negação dos atributos finitos de Deus, mas em consi­ derar a relação entre o homem e Deus como a negação de todas as possibilidades humanas (crise), que se reduziriam a meras impossibilidades, de lal modo que só dessa negação nasceria uma possibilidade de salvação, cuja origem não é mais humana, porém divina (Rõm erbrief, 1919). TEOLOGIZANTE, FILOSOFIA. Foi esse o nome dado por Croce à filosofia que cuida de problemas mal formulados e por isso irresolúveis, seja discutindo-os como problemas "máximos" ou "eternos", seja resolvendo-os com sistemas "imaginários", seja assumindo atitude agnóstica diante deles ("Sobre filosofia T. e as suas sobrevivências", em S ag gi filosofici, 1920, V, p. 297). T E O M A N C IA (in. Theom ancy, ai. Theom antie. it. Teom anzia). Adivinhação inspirada pela divindade (v. ENTUSIASMO). T E O M O N IS M O (ai. T heom onísm us). Dou­ trina segundo a qual Deus é a única realidade: o mesmo que acosmismo(\>.) oupanteísmo(v.). TEONOMIA (in. Theonomy, fr. Théonomie; ai. Théonomie; it. Teonomia). Governo ou le­ gislação de Deus. Esse termo às vezes é contra­ posto a autonom ia. TEOPANTISMO (in. lheopantism; fr. Théop a n tism e . ai. Tbeopantism us; it. Teopantism o). Doutrina segundo a qual Deus é a única reali­ dade: o mesmo que p a n teísm o (v.). T E O P N E U S T IA (in. Theopneusty, fr. Théopn eu stie-, ai. Theopneustie; it. Teopneustia). Ins­ piração divina, através da qual é comunicada a verdade revelada. T E O R E M A (gr. 6etópr|ua; lat. Tbeorem a; fr. Théorèm e, ai. Theoreni; it. Teorem a). Qualquer proposição demonstrável. Esse termo ingressou na linguagem matemática já na Antigüidade (v. ARISTÓTELES, Mel, XIV, 2. 1090 a 14), mas con­ servou, fora da linguagem matemática, o signi­ ficado de proposição não primitiva mas deriva­ da ou derivavel de outras proposições.

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T E O R IA (gr. 8ecopía;lat. Theoria-, in. Theory, fr. Tbéorie, ai. 'Ibeorie, it. Teoria). Este termo possui os seguintes significados principais: 1B Especulação ou vida contemplativa. Esse é o significado que o termo teve na Grécia. Nesse sentido, Aristóteles identificava T. com bem-aventurança (Et. nic, X, 8, 1178 b 25); T. opõe-se então a prática e, em geral, a qualquer atividade não desinteressada, ou seja, que não tenha a contemplação por objetivo. 2a Uma condição hipotética ideal, na qual tenham pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita ou parcialmente. Este significado está presente quando se diz: "Teoricamente, deveria ser as­ sim, mas na prática é outra coisa". Kant exami­ nou o problema da relação entre T. e prática nesse sentido num escrito de 1793 (Ü ber den G em enspruch: D a s m a g in d e r Ib eo rie ric h tig seiri, ta u g t a b er n ic h t fü r d ie P raxis), em que se encontram as seguintes definições cie T. e prá­ tica: "Chama-se T. um conjunto de regras tam­ bém práticas, quando são pensadas como prin­ cípios gerais, fazendo-se abstração de certa quantidade de condições que exerçam influên­ cia necessária sobre a sua aplicação. Inversa­ mente, o que se chama á c p rá tic a não é um ato qualquer, mas apenas o ato que concretiza um objetivo e é pensado em relação a princípios de conduta representados universalmente" (Op. cit, princ). 3aA chamada "ciência pura", que não consi­ dera as aplicações da ciência à técnica de pro­ dução, ou então as ciências, ou partes de ciên­ cias, que consistem na elaboração conceituai ou matemática dos resultados; p. ex., "física teórica". 4a Uma hipótese ou um conceito científico. Este último significado deve ser considerado especialmente neste verbete, visto que o pro­ blema da T. científica constitui um dos capítu­ los mais importantes da metodologia das ciên­ cias. Os resultados principais cias pesquisas nesse campo podem ser resumidos do modo seguinte: a) A T. científica é uma hipótese ou, pelo menos, contém uma ou mais hipóteses como suas partes integrantes. A ciência moderna abandonou a repugnância da ciência dos sécs. XVIII e XIX pelas hipóteses, tão bem expressa por Newton e outros (v. HIPÓTESE). ISSO aconte­ ceu porque a hipótese deixou de ser uma su­ posição sobre as causas últimas ou ocultas dos fenômenos. Kant já condenara as "hipóteses

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transcendentais" que recorrem a simples idéias racionais e declarara-se favorável às hipóteses empíricas, cuja característica é "a suficiên­ cia para determinar a p rio ri as conseqüências que já estão dadas" (Crü. R. P ura, Teoria do método, cap. I. seç. 3). Em 1865, ao falar das T., Claude Bernard afirmava seu caráter in­ dispensável e ao mesmo tempo hipotético, no sentido estrito do termo: "O experimentador formula sua idéia lou h ip ó tese exp erim ental] como uma questão, uma interpretação anteci­ pada da natureza, mais ou menos provável, da qual deduz logicamente conseqüências que a cada momento compara com a realidade, por meio da experiência" (Introduction à 1'étude de Ia m éd ecin e expérim entale, I, 2). E reco­ nhecia a fecundidade das hipóteses para a des­ coberta de fatos novos: "O objetivo das hipóte­ ses é não só levar-nos a fazer experiências novas, mas também descobrir fatos novos que não teríamos percebido sem elas" (Ib id , III, 1, 2). No início do séc. XX, Mach reconhecia expres­ samente a impossibilidade de a hipótese cien­ tífica (e a hipótese em geral) ser diretamente provada pelos fatos: "Damos o nome cie hi­ póteses ás explicações provisórias cujo fim é facilitar a compreensão dos fatos, mas que ain­ da escapa à comprovação pelos fatos" (Erken n tn iss u n d Irrtu m , 1905, cap. XIV; trad. fr., p. 240). E Duhem enumerava cia seguinte ma­ neira as condições às quais uma hipótese deve­ ria corresponder para ser escolhida como fun­ damento de uma T. física: ly a hipótese não deve ser uma proposição contraditória; 2g não deve apresentar contradição com as outras hipóteses da mesma ciência; 3a as hipóteses devem ser tais que, de seu conjunto, seja pos­ sível deduzir matematicamente conseqüências que representem, com aproximação suficiente, o co njunto das leis experimentais (L a tbéorie ph ysiqu e, II, 7, 1, p. 363). Poincaré, por sua vez, insistiu na necessidade de hipóteses em qualquer procedimento experimental, mas tam­ bém na necessidade de não multiplicar hipóte­ ses. Esta última advertência nada mais é que o antigo princípio de econom ia (v.), ou navalha de Ockham, sempre eficaz no campo das for­ mulações conceituais (La scien ce e t l'hypothèse, 1902, cap. IX). b) Uma T. científica não é um acréscimo interpretativo ao corpo da ciência, mas é o es­ queleto desse corpo. Em outros termos, a T. condiciona tanto a observação dos fenômenos quanto o uso mesmo dos instrumentos de oh-

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servaçào. Sobre esse ponto é clássico o livro de Duhem. A teoria física (1906; cf. especialmente o cap. IV da segunda parte). Esse é um aspecto às vezes aproveitado para demonstrar o caráter relativo e imperfeito do conhecimento científi­ co. Foi o que tez, p. ex., E. Le Roy (S cien ce et p h iloso p h ie, 1899-1900). Contudo, na realidade ele nào invalida a ciência, mas apenas a tese da separação nítida entre observação e T. e a tese da verdade absoluta da ciência. c) Além da parte hipotética, uma T. científica contém um aparato que permite a sua verifica­ ção ou confirmação. Duhem distinguia na T. físi­ ca quatro operações fundamentais: Ia a defini­ ção e a medida das grandezas físicas; 2- a escolha das hipóteses; 3a o desenvolvimento matemático da '[ '.; 4a o confronto entre T. e ex­ periência (La théoriepbysique, I, 2. § 1). Obvia­ mente, as três primeiras operações constituem a construção e o desenvolvimento da hipótese, enquanto a quarta é diferente e constitui a fase de confirmação. Analogamente, Norman R. Campbell distinguiu em qualquer T. física dois grupos de proposições: "um, que consiste em asserções sobre algum conjunto de idéias carac­ terísticas da '1'.; outro, que consiste nas relações entre essas idéias e outras idéias de natureza diferente". O primeiro grupo de idéias é a h ip ó te­ se; o segundo é o dicionário. A finalidade do di­ cionário é possibilitar a verificação indireta da hipótese. Campbell diz: "Deve ser possível de­ terminar, independentemente do conhecimento cia T., se determinadas proposições que contêm as idéias do dicionário são verdadeiras ou fal­ sas. O dicionário relaciona algumas dessas proposições, cuja verdade ou talsidade é conhe­ cida, com algumas proposições que compreen­ dem as idéias hipotéticas, afirmando que. se o primeiro conjunto de proposições é verdadeiro, então também o segundo é verdadeiro e viceversa; essa relação pode ser manifestada pela asserçào de que o primeiro conjunto implica o segundo" (Pbvsics: the Hlements, 1920, p. 122). Analogamente ainda, G. Bergmann disse que uma 'I'. científica consiste em: 1" axiomas; 2" teoremas; 3U provas dos teoremas; 4" definições (P hilosophyofScience, 1957, p. 35); nessa enu­ meração, as "provas dos teoremas" constituem o aparato de verificação da teoria. Duas observa­ ções são muito importantes a esse propósito. A primeira é que as modalidades e o grau da prova ou confirmação que uma '1'. deve possuir para ser declarada ou considerada "científica" nào são detiníveis segundo um critério unitário.

t e ó r ic o /t e o r E t ic o

Obviamente, a verdade cie uma T. psicológica ou de uma T. econômica exige um tipo de comprovação completamente diferente cio exi­ gido por uma T. física, visto que as técnicas cie verificação são completamente diferentes. Até mesmo os graus de confirmação exigidos são diferentes; muitas vezes, fora do campo da fí­ sica, são chamadas de "T.'" simples conjecturas que nào incluem o menor aparato comprobatórk >. A segunda observação é que cada aparato comprobatório exige a limitação das hipóteses conti­ das na T.; isso porque, sempre que essas hipóte­ ses puderem ser multiplicadas à vontade, a T. poderá manter-se até contra qualquer desmen­ tido empírico, e sua confirmação passa a ser irre­ levante (foi o que aconteceu, p. ex., com a T. dos epkíckis na cosmologia ptolemaka). Mas mesmo com essa limitação às vezes é difícil de­ cidir até que ponto a aquisição de algum dado experimental se concilia com a T. ou questiona todo o seu conjunto d) l"ma T. nào é necessariamente uma ex­ plicação do domínio de fatos aos quais se refe­ re, mas um instrumento de classificação e pre­ visão. Duhem observava: "T. verdadeira nào é aquela que dá uma explicação das aparências físicas conforme à realidade, mas sim a T. que represente cie modo satisfatório um conjunto de leis experimentais" (La théoriephysique, I. 2, 1). A verdade de uma T. está em sua valida­ de, e sua validade depende de sua capacidade de cumprir as funções às quais se destina. As funções de uma T. científica podem ser especi­ ficadas da seguinte maneira: 1" uma T. deve constituir um esquema de un ificação sistem á ti­ ca de conteúdos diversos; o g ra u d e a bra n g ên ­ cia de uma T. é um dos elementos fundamen­ tais na avaliação de sua validade; 2 " uma T. deve oferecer um conjunto de meios de re p re ­ sen tação conceitu ai e sim bó lica dos dados de observação. Sob esse aspecto, o critério ao qual deve satisfazer é o de econom ia dos m eio s conceituais, vale dizer, simplicidade lógica; 3" uma T. deve constituir um conjunto cie reg ra s de in ferên cias que permitam a previsão cios dados de fato. Este é considerado hoje uma das tarefas fundamentais das T. científicas, e a ca­ pacidade de previsão cie uma T. é critério fun­ damental para avaliá-la (v. S. Ton.MiN, lh e Philosophy of Science, 1953, p. 42; M. K. M rMTZ, Space Time and Creation, 1957. IV. I).

TEORICO/TEORETICOígr. eetopr|TiKÓÇ; lat.

S peculatirus; in. 'lheoretical; fr. Ihéo rétique; ai. T heoretisch;\\. Teoretico). Esse adjetivo corres­

TEOSE

ponde a especulação (}.); por isso, assim como este substantivo, possui dois significados fun­ damentais: 1L> o que é puramente cognitivo e opòe-se a prático; 2- o que não é redutível à experiência e opòe-se a empírico. No primeiro exemplo, fala-se de "ciências T."; no segundo, de "conceitos T.". TEOSE. V. DF.II K:ACÀO. TEOSOFIA (gr. Geoaocpíoi; in. Theosophy, fr. 'Ihéosophie-, ai. Theosophie; it. Teosofia). Este termo já era usado pelos neoplatônicos para indicar o conhecimento das coisas divinas, pro­ veniente da inspiração direta por Deus (PORFÍKIO, Deabst, IV, 1 7; JÂMBLICO. Demyst.. VII, 1; PROCI.O, 'lheol. plat.. V, 35). Foi retomada com o mesmo sentido por Jacob Bõhme (Sex puncUi fbetxuipbicti, J 620,- Qmiesliones tbeosophicae, 1623) e pelos outros místicos da Re­ forma; Kant observava que a limitação da razão "impede que a teologia se eleve à T., a concei­ tos transcendentais em que a razão se perde" (Crít. cio Juízo, § 89). E Schelling falava do teosofismo de (acobi, entendendo por teósofos os filósofos que se consideram diretamente ins­ pirados por Deus (Münchener Vorlesungen em Werke, X, p. 165). Em 1875, esse termo foi retomado pelos fundadores da Sociedade teosófica, entre os quais se encontrava Helena Petrowna Fslavatsky, autora de ísis sem véu (1877) e Dou­ trina secreta (1888), obras que expunham a nova T.: uma mistura de ocultismo e de crenças orientais, que supostamente estariam fundadas na inspiração direta por Deus. A atuação e as doutrinas dessa sociedade ex­ trapolam o campo da filosofia. Aqui nos li­ mitaremos a aludir ao cisma provocado por Rudolff Steiner, que o levou à formulação da a>itroposofia (v.). TER (gr. eAew; lat. Habere, in. To have, fr. Avoir, ai. Haben; it. Avere). Uma das dez categorias de Aristóteles, na qual ele mesmo distinguiu muitos significados, desde que pode referir-se a qualidade, quantidade, posse, dis­ posição, uma parte do corpo, conteúdo de um recipiente, uma propriedade ("T. uma casa ou uma fazenda"). Aristóteles também observa que se diz "T. uma mulher", mas que esse sig­ nificado é impróprio porque significa apenas que se mora com ela (Cat, 15, 15 b 3 ss.). F.ssas distinções são repetidas na lógica medie­ val (cf, p. ex., PKDRO HISPANO, Summ. log.. 3.37-38; JI:NGR:S, Lógica hamburgensis, I, 1-1, 24). Num significado assim amplo esse termo

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TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCIPIO DO

indica uma relação qualquer. Flegel, porém, queria restringi-lo à relação entre a coisa e suas propriedades (Ene, § 125). Mareei contrapôs o T. ao ser. O T. seria a categoria dominante na exterioridade das coisas, entre as quais o homem vive em sua função social ou vital, enquanto o ser seria a categoria própria da subjetividade, que é mistério (Htre et avoir, 1935). No T., no fazer e no ser. Sartre viu as três grandes categorias da existência humana. Mas o fazer se resol­ veria no T.. visto que qualquer forma de acuo ou de produção, inclusive o conhecer, é uma forma de apropriação; por outro laclo, o T. se reduz ao ser porque o desejo de T. no fundo é redulível ao desejo de "es­ tar cm rehiçào com calo objeto cm certa re­ lação de ser" (Letre et le iiéant [1943], 1955, pp. 663 ss.). Tanto na linguagem corrente quanto na lógi­ ca e na matemática, T. hoje indica apenas uma relação de qualquer gênero. TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO (in. Pri)iciple of excluded middle, fr. Príncipe du milieu ou tiers exclu; ai. Grundsalz vom ausgescblossenen Dritten; it. Principio dei terzo escJuso). Foi Baumgarten o primeiro a dar nome a esse princípio, considerando-o inde­ pendente do princípio de contradição (Met., 17.39, § 10), embora Wolff falasse da "exclu­ são do médio entre os contraditórios", como de um corolário do princípio de contradição CO»/., § 53). A história desse princípio está estreitamente relacionada com a do princípio de contradição, do qual não se separou até Baumgarten. Con­ tudo, Aristóteles formulou-o com toda a clare­ za ao dizer: "Entre os opostos contraditórios não há meio termo. Na verdade, contradição é o seguinte: oposição em que uma das partes está presente na outra, de tal modo que não há moio termo" (Met, X. 7, 1057 a 33). Essa for­ mulação não está isolada, porque (como se vê também no trecho citado), segundo Aristóteles, a txclusão do T. não pode ser eliminada da contradição (V. C. A. VIANO, La lógica diAristotele, 1955, pp. 35 ss.). A lógica medieval igno­ rou totalmente esse princípio, que só começou a ser diferenciado do princípio de contradição por Leibniz. Fste observou que o princípio de contradição contém dois enunciados verdadei­ ros: "Um, segundo o qual o verdadeiro e o fal­ so não são compatíveis na mesma proposição, ou uma proposição não pode ser verdadeira e

TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCIPIO DO

ialsa ao mesmo tempo; o outro, segundo o qual o oposto ou a negação do verdadeiro e do Falso não são compatíveis, ou não há um meio termo entre o verdadeiro e o falso, ou não é possível que uma proposição não seja nem ver­ dadeira nem Ialsa" (Nour. ess, IV, 2, 1). A partir de meados do séc. XVIII. por obra de Wolff e Baumgarten, o princípio do'I'. li. era introduzi­ do entre as "leis fundamentais do pensamen­ to", juntamente com os de identidade e de con­ tradição. Mas não teve a sorte cios outros: algumas vezes foi posto em dúvida. Segundo relato de Cícero, Epicuro considerava-o duvidoso para desvalorizar a dialética (Accul, IV, 30. 97). En­ quanto Hegel repetia contra ele as críticas que habitualmente dirigia a todos os princípios lógicos tradicionais (Ene § 119), Kant pro­ curava estabelecer uma exceção para ele na dissertação sobre as antinomias cosmológicas. Distinguiu a oposição cuialítica, que é a da contradição e exclui o meio termo, da oposição dialética, que, ao contrário, admite o meio ter­ mo. Se as duas proposições, "O mundo 6 infi­ nito quanto á grandeza". "O mundo é finito quanto á grandeza", forem consideradas em oposição analítica, o mundo só pode ser finito ou infinito. Mas elas só podem ser considera­ das em oposição analítica se admitirmos que o mundo é uma "coisa em si", ou seja, se admi­ tirmos como válida a idéia de mundo. Kant de­ clara negar essa validade: portanto, as duas proposições estão em oposição dialética, e po­ de-se afirmar que o mundo "não existe nem como um todo em si infinito, nem como um todo em si finito" (Crft. K. Pura, Dial. transe, cap. II, seç. VII). Isso eqüivale a declarar que o princípio do T. E. não é válido no caso da opo­ sição dialética e a introduzir um novo valor ló­ gico ao lado do verdadeiro e do falso, o indeterminado. A lógica contemporânea não deixou escapar a oportunidade de construir uma lógica que ex­ cluísse o princípio do T. E. Lukasiewicz em 1920 e depois Lukasiewicz e Tarski em 1930 elabora­ ram Lima lógica de três valores, correspondentes ao verdadeiro, ao falso e ao possível, simboliza­ dos pelos algarismos 1, 0, 1/2. Nessa lógica, o princípio do T. excluído não tem lugar, no senti­ do de que não é expressável por símbolos da lógica e não constitui um de seus teoremas (Vntersucbnngen überdenAussageukalküs, em Comptes rendas des séances de Ia Société des Sciences et des Lettres de Varsovie, 1930, pp. 30-

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TERCEIRO HOMEM

50, 51-77). Os próprios autores ditaram as regras para a construção de um sistema com um nú­ mero finito u de valores de verdade (Philosopbiscbe Bemerkiuigeu zn mehnvcrtigeu Systemen des Aussageiikalküls. nos mesmos Comptes rendus, 1930, classe III, pp. 51-77). E. L. Post (Intniditction to a íieneral lheory of Elementary Propositions, em American Journal ofMathemcitics, 1921, 43. 16.3) também elabora­ ra um tipo de lógica polivalente, e A. Heyting. por sua vez. construiu uma lógica formal intuicionista, com três valores, verdadeiro, falso e indeterminado, que se aplica à teoria intuicionista da matemática de Brovver e implica a re­ núncia â demonstração por absurdo (I)ie formate)! Regein der intuitionistischcn Logik, emSitziingesber.Preitss.Akad. Wiss. \Pbys.-Matb. Klasse], 1930, pp. 42-56). A lógica de três valores constitui, portanto. Lima alternativa aos sistemas lógicos tradicio­ nais. C. I. Lewis escrevia: "O princípio cio T. E. não está escrito nos céus: reflete, sim, a nossa obstinação em aderir ao mais simples de todos os modos de divisão e o nosso interesse predo­ minante pelos objetos concretos, em oposição aos conceitos abstratos. As razões pelas qLiais escolhemos um sistema lógico não derivam da própria lógica, assim como não derivam de princípios matemáticos as razões para escolher as coordenadas cartesianas em vez das pola­ res ou das coordenadas de Gauss" (Allernalive Systems ofLogic, em The Monist, 1932, p. 505). El Reichenbach demonstrou a utilidade cia ló­ gica de três valores para a mecânica quântica. dada sua natureza probabilista (Philosopbic boundations ofQuantum Mecbanics, § 30) (so­ bre essa questão, cf. também L. ROIGIHR, Traité dela connaissance, 1955, II, cap. VII). TERCEIRO HOMEM (gr. ipiioç âvQpíúKoç). Aristóteles alude várias vezes a um argLimento assim denominado, contrário ã doutrina platônica das idéias, dando-o por conhecido, portanto deixando cie expô-lo (Mel., I. 9, 990 b 17; VII. 13. 1039 a 2; El. sof 178 b 36). Segun­ do Alexandre de Afrodisia (In met., I, 9), esse argumento consistiria em dizer que, uma vez que um homem individual é semelhante ao ho­ mem ideal, deve existir um terceiro homem do qtial os dois participem. Mas esse é o argumen­ to aduzido contra a doutrina das idéias de Platão, qLie no entanto não menciona o exem­ plo do homem (Parm., 132a). Alexandre, po­ rém, menciona também outras formas desse ar­ gumento do T. Homem. 1" Uma delas é a usada

TERMINISMO

pelos solistas: quando dizemos "o homem está passeando", não estamos falando nem da idéia de homem (que é imóvel), nem de um homem em particular; devemos então estar falando de um homem de uma terceira espécie. 2y Fânias, discípulo de Aristóteles, em seu livro contra Diodoro Cronos, atribuía ao sofista Polixeno o seguinte argumento: se o homem existe por participar da idéia de homem, deve haver al­ gum homem que possua o seu ser em relação com a idéia; mas não será nem a própria idéia, nem o homem em particular. Finalmente, o próprio Alexandre nota que o argumento do T. homem, exposto na primeira forma, pode ser repetido ao infinito, porque a relação entre T. homem, por um lado, e idéia do homem particu­ lar p o r outro p o d e d a r lu g a r n o q uarto e quinto homem, e assim por diante. Como Platão expõe o argumento por meio de Partnênides, contra a interpretação da dou­ trina das idéias que estabelece uma separação nítida entre idéias e coisas, é provável que esse argumento fosse corrente na própria escola pla­ tônica; sua origem, porém, parece ser megárica ou sofistica (cf. a nota de W. D. Ross a M et., I, 9, na edição de M eta física por ele organizada, bem como a nota de DIF.S a P arm ênides, em Coll. des Univ. de France, VIII, p. 21). T E R M IN IS M O (in. Term inísm . fr. Term in ism e: ai, lerm in ism u s; it. Term inism o). Desde o começo do séc. XV, são designados pelos no­ mes de terministas (term inistae) ou nominalistas (nom inales) os defensores da tese nominalista na disputa sobre os universais (v. NOMINAI.ISMO; UMVF.RSAL), que eram, ao mes­ mo tempo, cultores da n o va lógica, considera­ da como o estudo das propriedades dos ter­ mos. Jean Gerson (que morreu em 1429) já fala cia disputa entre formalistas e terministas (D e conceptibus, em O pera. 1706, IV. p. 806). Num manuscrito do mesmo século, cia Biblioteca Colbert (publicado em parte por S. BAI.II/.I, M iscellatiea. IV, p. 531 f), encontra-se: "São de­ nominados nominalistas os doutores que não multiplicam as coisas significadas pelos termos segundo a multiplicação dos termos; realistas, ao contrário, são os que afirmam que as coisas se multiplicam segundo a multiplicidade dos termos. (...) Também são chamados de nominalistas os que usam estudo e diligência para conhecer todas as propriedades dos termos, das quais depende a verdade ou a falsidade das proposições; tais propriedades são a supo­ sição, a denominação, a extensão, a restrição, a

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TERMO

distribuição e os exponíveis, e que conhecem também as antinomias (obligationes) e os ver­ dadeiros fundamentos dos argumentos dialéti­ cos" (transcrito em PRANTL, G eschichle d er L ogik, IV, p. 187). O estudo das propriedades dos termos, de que se fala aí, partia da tendên­ cia geral desses filósofos e lógicos, segundo os quais o conhecimento e a ciência só têm por objeto os termos. Ockham diz a respeito: "Qualquer ciência, seja racional, seja real, é ciência só de proposições, e de proposições conhecidas, porquanto só as proposições são co­ nhecidas. Todos os termos dessas proposições são apenas conceitos, e não substâncias exter­ nas" (In Sen/., I, d. 2, q. 4, M, N) (v. LÓGICA: NOMINALISMO; UNIVF.RSAL).

T E R M IN O L O G IA (in. Terniinology, fr. Term inologie, ai. Tenninologie-, it. Term inologia).

Qualquer linguagem artificial: p. ex., "T. mate­ mática", "T. hegeliana", etc. T E R M IN U S A Q U O , A D Q U E M . Expres­ sões usadas a propósito do movimento: T. a I/H O denomina-se o lugar do qual um móvel procura afastar-se. T. a d quem denomina-se o lugar para qual o móvel procura dirigir-se (HOBBKS, D e corp.. 8, § 10; WOI.FF, C o sm , § 161). T E R M O (gr. õpoç; lat. "Term inus; in. Terrn; fr. Term e-.íü. T erm in u s;’\{. Term ine). Os signifi­ cados principais são os seguintes: ly Signo lingüístico ou conjunto cie signos. Fste é o significado que mais diz respeito á filo­ sofia (v. adiante). 2- Qualquer objeto ou coisa a que um dis­ curso se refira. Nesse sentido, é sinônimo de o bjeto (v.) ou de coisa (v.). 3y Limite de uma extensão. 4° Ponto de chegada de uma atividade ou resultado de uma operação. Nesse sentido, p. ex., o T. da vontade é a ação, o T. do intelecto é o conhecimento; 5" Ponto de partida ou ponto de chegada de um movimento. Nesse sentido, fala-se de term inus a qtto e de term inus a d quem (v.). No primeiro significado, que interessa à ló­ gica, é possível distinguir os seguintes significa­ dos subordinados: a) os elementos que compõem as premissas do silogismo categórico: sujeito e predicado; b) todos os componentes sim p les presentes nas proposições; nesse sentido, são T. não só o sujeito e o predicado, mas também os verbos, as preposições e as conjunções, ou seja, os componentes sin categ o rem á ticos (v.). ao passo

TERRORISMO

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TESTABILIDADE

que as proposições não são T. porque não são relatada por Diógenes Laércio, Protágoras te­ simples; ria sido o primeiro a mostrar como apoiar c) todos os componentes das proposições, Uma T. em argumentos (DIÓG. L, IX, 53). Na tanto simples quanto complexos. Nesse sentido terminologia dos lógicos medievais e dos muito geral, são T. não só o sujeito, o predica­ matemáticos prevaleceu esse significado: a do, o verbo e os componentes sincategore- T. designa uma proposição que se pretende máticos, mas também as proposições, já que demonstrar. podem fazer parte de outras proposições, co­ Com Kant, esse termo adquiriu novo valor mo quando se diz ' "Sócrates é homem' 6 uma filosófico: nas antinomias da razão pura T. é o proposição". enunciado afirmativo da antinomia (v.). 0 significado (a) é o definido por Aristóteles Na dialética pós-kantiana, o momento da T. (An. pr, I, 1, 24 b 16); persistiu até a lógica é o elemento positivo ou de posição, portanto medieval (v. PKDRO HISPANO, Summ. log., inicial, do processo ou do desenvolvimento 4.01). Os outros significados foram admiti­ dialético (v. DIALÉTICA, 4'-). G. P. dos pela lógica terminista do séc. XIV e po­ TESTABILIDADE(in. Testabilityjr. Testabidem ser encontrados em Ockham (Siimma Hté,ai. Testabilitát;it. TestabilítãouAtteslabilitã) hf>, 1. 2). A possibilidade de pôr li prova um enunciado. Em vista da diversidade de significados des­ portanto de confirmá-lo ou de desmenti-lo. sa palavra, foram numerosas e diversas as divi­ Esse termo é freqüentemente usado na lógica e sões do conceito. A divisão que os lógicos na metodologia contemporâneas. A testabiliterministas consideram fundamental é entre 'I'. dade compreende qualquer possibilidade de escrito, T. falado e T. pensado, corresponden­ confirmação, verificação, averiguação e aferi­ tes ãs três espécies de proposições distinguidas ção, na medida em que cada uma dessas possi­ por Boécio. Eles distinguiram também os T. bilidades pode redundar na prova (v.) ou na categoremáticosvsincategoremáticos(\'.)\ con­ falta de prova do enunciado em questão. cretos a abstratos (v.); conotativos e absolutos Carnap, porém, restringiu o significado des­ (v. CONOTAÇÃO); unívocos e equívocos (v.) se termo ao de verificação empírica incomple­ (sobre essas divisões, cf. OCKHAM, Summa ta, entendendo-o como "um procedimento que log, I, 3 ss.). conduz à confirmação, pelo menos em certo Na lógica moderna, essa palavra é assumida Arau, do enunciado ou de sua negação". Temno significado mais extenso, no sentido (c) (v. se T. quando efetivamente se possui um proce­ Cm RCH, IiUroductiontoMathematícalLogic, n. dimento desse gênero. Ao contrário, tem-se 4). Km matemática, é assumida com significado apenas confirmabilidade quando, mesmo não análogo, entendendo-se por T. qualquer com­ se possuindo esse procedimento, conhecemponente, simples ou complexo, de uma ex­ se as condições nas quais o enunciado seria confirmado. Assim, um enunciado pode ser conpressão. TERRORISMO (in. Terrorisnr. fr. Terroris- firmável sem ser testável: é o que acontece me; ai. Terrorismus; it. Terrorismo). Este termo quando se sabe que certa observação o confir­ pertence à filosofia só no significado de T. mo­ maria, mas não se têm condições de efetuar a ral, atribuído por Kant: seria a interpretação da observação ( Testabílity andMeaning, 1936, em história como decadência ou regressão (.Der Readings in lhe Philosophy ofScience, 1953, p. 47). Carnap também distinguiu o que é direta­ Streit der Fakultãten, 1798, It, 3). TESE (gr. 6É0IÇ; in. Thesis; fr. Thèse-, ai. The- mente e o que é indiretamente testável. Algo é se, it. Tesi). Este termo deriva dos textos lógicos diretamente testável quando "são concebíveis de Aristóteles, nos quais se encontra com dois circunstâncias nas quais consideremos o enun­ ciado tão fortemente confirmado ou nâo-confirsignificados principais: observação ou por algumas ob­ ly para designar o que o interlocutor põe no inado por uma que o aceitamos ou o rejeitamos início de uma dissertação como assunção sua servações, sem outras considerações; como, p. ex.. 'há (Top., II, 1, 109 a 9); chave na minha mesa'". Tem-se a T. in­ 2" para designar uma proposição assumida Uma direta de um enunciado quando se "provam como princípio (An. post, I, 2, 72 a 14). diretamente enunciados que estejam em Esses dois significados conservaram-se na relação lógicaoutros específica com o enunciado em tradição filosófica. O primeiro encontra-se já questão". Esses outros enunciados podem ser em PI.ATÀ0 (Rep, I. 335 a), e, segundo tradição

TESTEMUNHO

chamados de enunciados-prova (lesl senlences) Clnith and Confirmaiioii, 1936, em Readings in PhilosopbícalAnalysis. 1949, p. 124). TESTEMUNHO (in. Witnessing, Testimony, fr. Témoignage; ai. Zengniss; it. Testimonianzd). Recurso à experiência alheia ou às asserçòes alheias como método de prova para as proposições que expressem fatos. Aristóteles já observara que é possível referir-se "a questões de fato ou a questões de caráter pessoal", que também são questões de fato (Ret., I, 15, 13?6 a 23). O valor do testemunho nesse sentido é re­ conhecido pela Lógica de Port-Royal (1662): "Para julgar da verdade de um acontecimento e decidir-se a crer ou a não crer nele, não é preciso considerá-lo em si. como se faria com uma proposição cie geometria, mas é preciso considerar todas as circunstâncias que o acom­ panham, internas ou externas. Denomino in­ ternas às circunstâncias que pertencem ao fato em si, e externas AS que dizem respeito às pes­ soas por meio de cujo T. somos levados a crer nele" (ARNAI:LD, Log., IV, 13). Locke, por sua vez, introduzia o T. como um dos dois funda­ mentos do juízo de probabilidade (o outro é "a conformidade de uma coisa com o nosso co­ nhecimento, observação ou experiência"). Se­ gundo Locke, no T. dos outros é preciso con­ siderar: 1Q o número de testemunhas; 2- sua integridade; 3Usua capacidade; 4<J a intenção do autor, se o T. for extraído de um livro; 5Qa coe­ rência entre as partes e as circunstâncias da re­ lação; 6y os T. contrários" (Ensaio, IV, 15, 4). Leibniz admitia o valor do T. subordinadamente ao caráter de verossimilhança do acon­ tecimento testemunhado, como argumento "nào artificial", que se diferencia dos "artifi­ ciais", deduzidos das coisas através do raciocí­ nio. Todavia, observava que o T. pode fornecer um fato que leva à formação de um argumento artificial (Nouv. ess, IV, 15, 4). Hamilton assim resumia a teoria do T.: "O objeto do T. é cha­ mado de fato (factnm); sua validade constitui o que se chama de credibilidade histórica (credibílitas histórica). Para avaliar essa credibilida­ de, é preciso considerar: 1'-' a fidedignidade do T. (fides testinm); 2" a probabilidade objetiva do fato. A primeira baseia-se em parte na sinceri­ dade da testemunha e em parte na sua compe­ tência. A segunda depende da possibilidade absoluta e relativa do próprio fato. O T. é ime­ diato ou mediato. É imediato quando o fato re­ latado é objeto de experiência pessoal; é me-

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TEURGIA

diato se o fato é objeto de experiência alheia" (Lectures on Logic, 2a ed., II, pp. 175-76). TEST-SENTENCE. V. TESTABILIDADE. TETICA (ai. Thetik). Segundo Kant. "qual­ quer conjunto de doutrinas dogmáticas", em oposição a Antitétícaiy.) (Crít. R. Pura. Dialéti­

ca, livro II, cap. 2, seç. 2). TETICO (in. Thetic fr. Thélique, ai. The-

tisch: it. '/ético). Que afirma ou põe. Fichte cha­ mou de T. "o juízo no qual alguma coisa nào é posta como igual ou contrária a outra, mas ape­ nas como igual a si mesma". Esse juízo se distinguiria cio juízo antitético e do juízo sintético; mais precisamente se oporia ao juízo antitético. O supremo juízo T. seria "F.u sou", no qual, se­ gundo Fichte, "nada se afirma do eu, mas dei­ xa-se vazio o lugar do predicado para a possí­ vel determinação do eu ao infinito". Fste juízo seria "a absoluta posição do eu" ( Wissenschaftslehre, 1794, I, § 3. D7). Esse adjetivo foi usado na maioria cias vezes em sentido análogo ao estabelecido por Fichte. Husserl chamou de T. "os atos que põem o ser", ou seja, que têm caráter de crença (Ideen, I, § 103). _ TETRÂCTIS (gr. TETpaKTÚç). Segundo os pitagóricos, a soma dos primeiros quatro nú­ meros, ou seja, o número 10, representável por um triângulo cujo lado é o 4. (Carrn. anr, 48). A figura constitui uma disposição geométrica que expressa um número, ou constitui um nú­ mero expresso por uma disposição geométrica. Tinha caráter sagrado, e os pitagóricos costu­ mavam jurar por ela. TETRAFARMACON (gr. T£Tp0C9ápp.aKOV). Com este termo (que significa propriamente um medicamento composto por quatro ele­ mentos), Filodemo (Herc. Voi, 1005, 4) indi­ cou o conjunto das quatro máximas fundamen­ tais da ética epicurista: í- nào temer a divindade, que não se preocupa com homem; 2- não te­ mer a morte; 3a ter em mente a facilidade do prazer; 4a ter em mente a brevidade da dor (cf. EPICURO, Ep. aM enec, 123, 124. 133)

TEURGIA (gr. 6eo\)pyía; lat. Theurgia- in. Thenrgv, fr. Théurgie, ai. Theurgie-, it. Teurgia). Poder mágico ou purificador das técnicas religio­ sas, dos ritos. Já admitida por Porfírio (v. AGOSTI­ NHO, De civ. Dei, X, 9), segundo Jâmblico ela estaria acima da união espiritual com Deus, ou seja, do êxtase. Ainda segundo Jâmblico, a carac­ terística da T. é o valor autônomo que os ritos possuem, independentemente de quem os utili­ za, vale dizer, sua capacidade de comover ou

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TIRANIA

convencer as potências divinas (De m yst. a eg yp . , II, 11). S. Agostinho dedicou grande parte de sua obra à crítica da T., que, na sua opinião, se ende­ reçaria indiferentemente aos demônios ou aos anjos (Deciv. D ei, X, 10 ss.). Kant considerou a T. como "a ilusão da fantasia que consiste em acreditar possuir a inteligência de outros seres supra-sensíveis e de poder influir sobre eles"; para ele, assim como a teosofia, a T. é impossibi­ litada pelo reconhecimento cia limitação da razão (Crít. do Ju ízo , § 89). TIMOCRACIA (gr. TiLtOKpoaía; in. Timocracy.ír. Tim ocratie,íú. Tim okm tie, it. Tim ocrazia). 1. Forma de governo baseada no desejo de honrarias, que, segundo Platão, é uma corrupção da aristocracia (R ep., VIII, 545 b). 2. Forma de governo baseada na riqueza, segundo Aristóteles (Et. nic, VIII, 10, 1160 a 36). TIMOLOGIA V. AXIOLOGIA. T ÍP IC A (in. Typics; fr. Typique-, ai. Typik- it. Típica). Kant chamou de "T. do juízo prático" o que na C rítica da R a zã o P rá tica corresponde ao esq iiem a tism o (v.) transcendental da C ríti­ ca da R a zà o P ura. O tipo da lei moral é a própria lei moral que "pode ser manifestada de­ forma concreta no objeto dos sentidos", ou seja, livremente realizada no mundo sensível (Crít. R. P rática, livro I, cap. II). T ÍP IC O (in. Typical-Jv. Typique, ai. Typisch; it. Tipico). Fm geral, o que corresponde a um tipo, a um modelo ou a uma representação ge­ ral ou esquemática, ou então o que exprime ou realiza os caracteres do tipo. Assim, p. ex., a "beleza T.", exaltada por Ruskin, é a beleza idealizada segundo certo modelo. "Represen­ tação T." é uma representação generalizada e comum a uma classe de coisas. "Características T." são as que distinguem o tipo, ao passo que uma "experiência T." 6 a que pode servir de modelo a muitas outras experiências ou re­ sume suas características comuns. Como se vê, esse termo não tem um signi­ ficado rigoroso, mas sempre implica a referên­ cia ao que é comum e geral e que, justamente por isso, é considerado fundamental. T IP O (gr. XL0DÇ in. Type, fr. Type, ai. Typus; it. 'T ipo). No sentido de modelo, forma, esque­ ma ou conjunto interligado de características que pode ser repetido por um número indefi­ nido de exemplares, essa palavra já é usada por Platão (R e p , 379 a, 380 c, 396 e, etc.) e por Aristóteles (Et. nic, II, 2, 1104 a 1; M d , II, 7, 1107 b 14, etc). Galeno usou-a para indicar as

formas cia doença (O p , ed. Kühn. VII, 463), c essa palavra continuou com o mesmo signifi­ cado em muitos usos correntes da linguagem comum, científica e filosófica. A biologia e a psicologia utilizam muito esse termo e o con­ sideram fundamental. Kretschmer. p. ex., diz: •A quilo que chamamos, matematicamente, de pontos focais de correlações estatísticas, cha­ mamos também, em prosa mais descritiva, de T. constitucionais. (...) Pode-se reconhecer o T. verdadeiro pelo fato de ele sempre conduzir a maiores conexões de importância biológica. Sempre que há muitas e renovadas correlações com fatores biológicos fundamentais (...) es­ tamos diante de pontos focais da máxima im­ portância" (K õrperbau u n d C barakter, 1948). F.m psicologia, o T. é analogamente defi­ nido como "um grupo cie padrões correlativos", do mesmo modo como padrão é defini­ do como um grupo de atos comportamentais ou de tendências a ações correlativas (H. J. EYSFNCK, The Stru ctu re ofllum an P ersonality, 1953, pp. 13 ss.). O significado dessa palavra não muda na chamada "teoria dos T. lógicos" de Russell e Whitehead, na qual designa as formas ou os modelos dos conceitos (v. ANTINOMIA). Para Peirce, T. é a palavra ou o signo que não sejam uma coisa única ou um evento único, mas uma forma definidamente significante" que, para ser usada, deve ganhar corpo numa ocorrência (token); esta deve ser o signo de um T., portan­ to do objeto que o T. significa. P. ex., 6 T. o arti­ go "o" na língua portuguesa, que não pode ser visto ou ouvido porque não é um evento úni­ co, mas determina os eventos únicos, vale di­ zer, as ocorrências ou os exem plo s dele no dis­ curso escrito ou falado (Coll. P a p , 4.537) (v.

TIMOCRACIA

OCORRÊNCIA; PALAVRA; SlCiN O).

T IP O L O G IA (in. Typology> , fr. Typologie, ai. Typologie, it. 'T ipologia). Estudo dos tipos numa

disciplina ou ciência qualquer; p. ex., T. bioló­ gica, T. racial, T. psicológica, etc. T IQ U IS M O . V. CAUSALIDADE. TIR A N IA (gr. xúpavviç; lat. Tyrannis; in. Tyranny, fr. Tyranníe, ai. Tyrannei; it. Tirannide). Forma de governo em que o arbítrio de uma ou várias pessoas representa a lei. O con­ ceito de T. foi elaborado pelos gregos, junta­ mente com o de constituição livre. A definição de tirano já se encontra nos versos de Kurípides: "Não há pior inimigo que um tirano numa cidade, sob o qual desaparecem todas as leis comuns, e só uma pessoa comanda, tendo

TIRANIA

a lei em suas mãos" (SuppL, II, 429-32). Segun­ do Platão, a T. é conseqüência da excessiva li­ berdade em que às vezes incidem as democra­ cias. "Ao fugir da fumaça — como se diz — da servidão sob um governo de homens livres, o povo acaba caindo, com a T., no fogo da servi­ dão sob o despotismo de servos e, em troca da­ quela liberdade excessiva e inoportuna, é obri­ gado a vestir a túnica do escravo e a sujeitar-se à mais triste e amarga das servidões, a de ser servo dos servos" (R ep , VIII, 569 b-c). Aristóte­ les diz que a T. acumula os males da democra­ cia e os da oligarquia. Da oligarquia extrai a fi­ nalidade, que é a riqueza (única condição para se manter o poder e o luxo), bem como a falta cie confiança no povo. que é privado de armas, e a agressão à população, que é afastada das cidades e espalhada pelo campo. Da democra­ cia toma a luta contra os notáveis, sua destrui­ ção pública ou oculta, o seu exílio (Poi, V 1, 1311 a 8 ss.). Na Idade Média, ao mesmo tempo em que S. Tomás acha que "quando a monar­ quia se transforma em T. o mal é menor do que quando um governo de maioria se corrompe" (D e reg im in e prín cíp um , I. 5) e condena o tiranicídio, recomendando paciência aos súdi­ tos para suportar a T. ou confiando num poder superior para eliminá-la (Ibid., I. 6), João de Salisbury defende explicitamente o tiranicídio por considerar que o tirano é um rebelde con­ tra a lei à qual os reis, tanto quanto todos os ci­ dadãos, estão vinculados (P olicraticiis, IV, 7) . Hssas idéias depois foram freqüentemente re­ petidas pelos adversários irredutíveis da mo­ narquia e pelos jusnaturalistas do séc. XVI e XVII. Bodin dizia: "A maior diferença entre o rei e o tirano é que o rei se conforma às leis da natureza e o tirano as esmaga; um cultiva a pie­ dade, a justiça e a fé; o outro não tem Deus, fé ou lei'" (De Ia republique, 1576, II, 4, 246). Locke afirmava: "Onde acaba a lei começa a T., quando a lei é transgredida em prejuízo de ou­ tros: e todo aquele que, no exercício da auto­ ridade, exceder o poder que lhe foi conferido pela lei e usar a força para realizar em relação aos súditos o que a lei não lhe permite, está deixando de ser magistrado e, por estar delibe­ rando sem autoridade, pode sofrer oposição tanto quanto sofre oposição qualquer outro que viole pela força os direitos alheios" ( Tiro Treatises of Governement. II, § 202). Hobb es. ao contrário, afirmara que "quem se opõe a uma monarquia dá-lhe o nome de tirania" (I,er ia tb , II, 19, 2).

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O conceito de T. acompanhou a formação do liberalismo político porque serviu de pedra de toque ou de símbolo para tudo o que o libe­ ralismo condenava. Como tal, também constitui um dos temas da retórica revolucionária e libe­ ral a partir do séc. XVI. Hoje esse termo é bem menos usado, não porque os regimes tirânicos tenham desaparecido ou porque não haja mais o perigo de que estes se instaurem mesmo onde vigore certo grau de liberdade, mas ape­ nas porque ele parece pertencer a uma espécie de retórica fora de moda. A b so lu tism o o u to tali­ tarism o são os termos que substituíram tirania, mas o conceito não mudou, e estas mesmas pa­ lavras significam ainda: regime no qual o arbí­ trio individual ocupa o lugar da lei; escravidão imposta por escravos; governo que não pode ser mudado nem corrigir a não ser pela vio­ lência. TITANISMO. V. ROMANTISMO. T O D O 1 (gr. TÒTTÕV; lat. Totm m in. W bole, fr. Tout; ai. A li; it. Tutto). Um conjunto qualquer de partes, independentemente da ordem ou da disposição das partes. Nisso o T. pode ser distinguido da totalidade, em que a ordem das partes não pode ser modificada sem modificar a própria totalidade (v. MDNDO; TOTALIDADE; UNIVERSO). Com base nas determinações de Aristóteles (Met, V, 26, 1023 b 25), a lógica medieval distinguia: l" o T. u niversa l ou essencial, cujas partes constituem sua substância-, p. ex., "corpo vivo"; 2- o T. integral, cujas partes são quanti­ dades: quantidades semelhantes como em "água", ou quantidades dessemelhantes como em "árvore"; 3" o T. na quantidade, que é o universal tomado universalmente como "todo homem" ou "nenhum homem"; A - o T. n o m odo, que é o universal tomado sem determi­ nação, como "o homem"; 5o o T. n o lugar, que é uma determinação que compreende adver­ bialmente o lugar, como "em todos os lugares" ou "em nenhum lugar"; 6" o T. n o tem po, que é uma expressão que compreende adverbial­ mente a totalidade do tempo, como "sempre" e "nunca" (PF.DRO HISPANO, Sum m . log.. 5, 14­ 23). Nizolio reduzia a duas estas espécies, ar­ gumentando que só duas se encontram na na­ tureza, o T. continuo (que é uma coisa só) e o T. descontínuo, que é um conjunto de coisas singulares (De rerís príncipiis, 1, 10). A isso Leibniz acrescentava o T. dis/untiro, como p. ex. "o animal é homem ou bruto" (nota ao tre­ cho citado de Nizolio). Outras distinções estão

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registradas em Hamilton: o T. p o rsi, em que as partes estão interligadas necessariamente, co­ mo o corpo e a alma estão ligados no ho­ mem, e o T. p e r accidens, em que as partes es­ tão ligadas contingentemente. O T .p o rsi pode ser: lógico, como um universal; m eta físico ou real; físico ou substancial; m atem ático, quanti­ tativo ou integral; e coletivo ou de agregação (Lectiires on Logic, 2- ed., I, pp. 202 ss.). Na lógica moderna T. é um operador, mais precisamente o quantifícador universal simbo­ lizado pela notação "(x)" (v. OPERADOR). Quanto ã diferença entre todo e qualquer, ver este úl­ timo termo. T O D O 2. V. QrALQriíR. T O D O S . V. QuALyuKR. TOKEN._V. OCORRÊNCIA. T O L E R Â N C IA (in. Toleration;h. Tolérance; ai. Toleranz; ít. T olleranza). Norma ou princí­ pio de liberdade religiosa. Algumas vezes se considerou pouco apta a designar esse princí­ pio uma palavra que significa "paciência", mas na realidade ela foi o emblema dessa liberda­ de, desde as primeiras lutas empreendidas, por meio das quais se afirmou em formas ainda hoje frágeis ou incompletas. Por isso, não po­ deria ser substituída por nenhum outro termo. Desde que essas lutas se iniciaram, a T. foi en­ tendida como coexistência pacífica entre várias confissões religiosas, sendo hoje entendida, em sentido ainda mais geral, como coexistência pacífica de todas as possíveis atitudes religio­ sas. O critério para verificar se essa exigência está sendo realizada nas situações históricas ou políticas é um só: a sua realização significa que o cidadão não sofre violência, inquirição jurídi­ ca ou policial, diminuição ou perda de direitos ou qualquer tipo de discriminação em virtude de suas convicções, positivas ou negativas, em matéria religiosa. O princípio de T., ou pelo menos um corolário imediato, que é a possibilidade de re­ denção mesmo fora da fé cristã, encontra-se em alguns filósofos do séc. XIV, especialmente em Ockham. Este diz: "Não é impossível que Deus designe como digno da vida eterna todo aquele que viva segundo os ditames da justa razão e que só creia naquilo que sua razão na­ tural indicar como digno de crença. E se Deus assim dispõe, poderia salvar-se mesmo aquele que na vida só teve como guia a justa razão" (In Sent., III, q. 8, C). Por outro lado, a T. reli­ giosa já está implícita no conceito que Ockham tinha de Igreja infalível como comunidade dos

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TOLERÂNCIA

fiéis que viveram desde os tempos dos profetas até hoje {D ialogas in te r m a gistn im e t discipulum , I, IV, em GOLDAST, M onarquia, II, p. 402), e do papado como de um principado m in istra tivu s que não pode negar a ninguém os direitos e as liberdades que Deus concedeu a todos os homens e que o cristianismo veio reivindicar (D e im p erato nim etp o n tíficu m p o testate, IV, ed. Scholz, p. 458). O famoso conto de Boccaccio dos três anéis (D ecam eron, 28) ilustra a possibilidade de salvação concedida igualmente a maometanos, judeus e cristãos. Todavia, o princípio de T. começou a aparecer como elemento indispensável da vida civiliza­ da do Ocidente só depois da Reforma, nas lutas que opuseram as várias facções da cristandade. E provável cjue tenha sido explicitamente afir­ mado pela primeira vez pelo grupo de re­ formadores italianos que recusaram o dogma da Trindade, ou seja, os socinianos, obrigados por Calvino a fugir para a Transilvânia e para a Polônia, onde propagaram a sua doutrina. Em 1565, Giacomo Aconcio. em seu Stratagem ata Satanae, via a intolerância religiosa como uma armadilha de Satanás e afirmava que é essen­ cial á fé apenas o que encoraja a esperança e a caridade. Em 1580, por motivos de natureza política, Michel de Montaigne defendia a liber­ dade de consciência em um ensaio (fás., II, 19). Por volta de 1593, Jean Bodin defendia, em C oüoquium heptaplom eres, a necessidade da paz religiosa, a ser obtida com um retorno ã re­ ligião natural que eliminasse as controvérsias dogmáticas. Por sua vez, Huig van Groot consi­ derava fundamentais as crenças da religião na­ tural, e não coercitivas as crenças da religião positiva, freqüentemente ambíguas. Para ele, acreditar no cristianismo só é possível com a ajuda misteriosa de Deus-, por conseguinte, querer impô-lo pelas armas é contrário á razão (D e ju r e b elli acpacis, 1625, II. 20, 48-49). Em 1644, Milton escrevia seu discurso pela liberda­ de de imprensa, intitulado A reo pagitíca. Todas essas defesas do princípio de T. aduzem em seu favor argumentos políticos e religiosos, mais que filosóficos ou conceituais; aliás, na maioria das vezes os argumentos são especifi­ camente religiosos, tendo então valor apenas para quem compartilha as crenças religiosas a que fazem apelo. O primeiro a basear a defesa da T. em argu­ mentos objetivos foi Spinoza, que apresentou em seu favor o argumento por excelência, ou seja, a violência e a imposição não podem pro­

TOLERÂNCIA

mover a fé; portanto, as leis que se propõem esse fim são inúteis (Tractatits theologico-poliíicus. 1670, cap. 20). Desse ponto de vista, é clássica a E písto la so b re a 7 . (1689). Nesse texto. Locke demonstra que, ao examinar indepen­ dentemente o conceito cie Estado e o de Igreja, o princípio de T. acaba sendo o ponto de en­ contro de suas respectivas tarefas e interesses. O Estado 6 "uma sociedade de homens, estabelecida unicamente para conservar e pro­ mover os bens civis", entendendo-se por bens civis a vida, a liberdade, a integridade e o bemestar físico, a posse dos bens externos, etc. Por­ tanto, entre suas funções não está o cuidado com as almas e a sua salvação eterna, porque em relação a essa tarefa o magistrado civil é in­ competente como qualquer outro cidadão e não possui nenhum instrumento eficaz, visto que seu único instrumento é a coação, e nin­ guém pode ser obrigado a salvar-se. Por outro lado, a Igreja é "uma sociedade livre de ho­ mens, unidos espontaneamente para servir a Deus, em público, do modo que julgarem mais aceito por Ele. com o fim de obter a redenção de suas almas". Como sociedade livre e volun­ tária, não pode vincular ninguém por meio da força, e as sanções de sua competência são as exortações, as advertências e os conselhos, únicos capazes de promover a persuasão e a fé. O princípio de T. garante igualmente o in­ teresse religioso da Igreja e o interesse político do Estado, os direitos dos cidadãos e as exigên­ cias do desenvolvimento cultural e científico. Contudo, nem mesmo na E písto la de Locke o princípio de T. tem expressão completa, pois para Locke "quem nega a existência de Deus não deve ser tolerado de nenhum modo". Foi só com o triunfo do Iluminismo no séc. XVIII e do pensamento político liberal do séc. XIX que se chegou a reconhecer o princípio de T. em sua forma completa, que é a exposta acima. No entanto, a literatura posterior pouco ou nada acrescentou às justificações desse princípio apresentadas por Locke; nesse sentido, tam­ pouco se distingue o Tratado so b re a T. (1763) de Voltaire, cuja justa fama se deve à influência histórica que exerceu. O princípio de T. passou a fazer parte da consciência civil dos povos do mundo inteiro. Todavia, a sua realização nas instituições que regem a vida cie muitos povos é incompleta e está sempre sujeita a novos perigos. As discus­ sões a seu respeito muitas vezes são inspiradas pelo desejo de manter ou restabelecer privi­

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TOMISMO

légios em favor de alguma confissão religiosa específica, procurando-se, na melhor das hipó­ teses, fazer concessões formais ao princípio de T. (cf. em especial F. RUFFINI, L a lib erta relig io ­ sa, 1901; J. B. BURY, A H istory ofE reedom o f Tbonght, 1913; nova ect., 1952; W. K. JORDAN. The D evelo p m en t o f R elig iou s Toleratiou in E ngland, 1932 ss.). ' 2. Na linguagem comum e às vezes na filo­ sófica, a T. também é entendida em sentido mais amplo, abrangendo qualquer forma de li­ berdade, seja ela moral, política ou social. As­ sim entendida, identifica-se com p lu ra lism o de valores, de grupos e de interesses na sociedade contemporânea; às vezes se discerne nesse pluralismo um meio para manter o controle dos grupos sociais existentes em toda a socie­ dade, portanto um obstáculo à realização de uma nova forma de sociedade. Por "T. pura" entende-se às vezes a T. que se estende às polí­ ticas, às condições e aos comportamentos que n ã o deveriam ser tolerados por impedirem, ou mesmo destruírem, as probabilidades de uma existência sem medo ou sofrimento. Marcuse afirmou que, embora a T. indiscriminada se justifique nos debates inócuos e nas discussões acadêmicas, sendo indispensável na religião e na ciência, não pode ser admitida quando es­ tão em jogo a paz, a liberdade e a felicidade da existência, porque nesse caso eqüivaleria à re­ pressão de todos os fatores de inovação da rea­ lidade social (A C ritique o fF u re Tolerance, de WOI.FF, MOORF. JR. e MARCU.SK 1965). Contudo, nesse significado mais genérico, a palavra T. não se distingue de liberdade, e seus proble­ mas são os mesmos dos limites e das condi­ ções da liberdade política. T O L E R Â N C IA , P R IN C ÍP IO D E . V CON­ TRADIÇÃO, PRINCÍPIO DK; CONVKNCIONALISMO. T O M IS M O (in. Thom ism - fr. Tbom ism e-, ai. Thom ism us, it. Tom ism o). Fundamentos da fi­ losofia de S. Tomás, conservados e defendi­ dos pelas correntes medievais e modernas que nele se inspiram. Podem ser assim resumi­ dos: 1" A rela çã o entre ra zã o e fé consiste em confiar à razão a tarefa de demonstrar os p reâ m b u lo s da fé (v. PRFAMBULA ITDFI), de es­ clarecer e defender os dogmas indemonstráveis e de proceder de modo relativamente autônomo (excetuando-se o respeito das ver­ dades de fé que não podem ser contraditas) no domínio da física e da metafísica.

TÓPICA 2y Analogicidade do ser (v. ANALOGIA), se­

gundo a qual o termo ser, usado com referên­ cia à criatura, não tem significado idêntico, mas apenas semelhante ou correspondente, ao ser de Deus. Este princípio, que S. Tomás extraía de Avicena, serve para estabelecer a distinção entre teologia e metafísica e a dependência da metafísica em relação à teologia. 3" Caráter abstrativo do conhecimento, que consiste em abstrair do objeto, em qualquer caso, a espécie sensível ou a espécie inteligível (que corresponde à essência da coisa). 4" A individuaçào depende da matéria assi­ n alada (v. INDIVIDUAÇÃO). 5" A clássica explicação dos dois dogmas cristãos da Trindade e da Encarnaçâo (v. EN­ CARNARÃO; RFLAOÀO; TRINDADF). Fsses aspectos básicos distinguem clara­ mente o T. do escotismo (v\). que foram duas doutrinas proeminentes nos sécs. XIV e se­ guintes, e também constituem os tópicos de maior interesse da retomada do T. pela neoescolástica contemporânea. Para a formação histórica do T. contribuíram a obra cie Alberto Magno, mestre de S. Tomás, a obra de Avicena e a de Moisés Maimônides. TÓPICA (gr. TOKKr] TÉj(vr|: lat. Tópica; in. Topics; fr. Topiíjue-, ai. 7'opík; it. Tópica). Teoria dos lugares lógicos e a arte de inventá-los (v. Lt f.ARIS).

Kant chamou de '/'. transcendental A teoria dos lugares transcendentais, ou seja, as posi­ ções atribuídas aos conceitos na sensibilidade ou no intelecto puro. Essa T. deveria evitar a anfibolia (uso duvidoso) dos conceitos de re­ flexão (Ciít. K. Pura. Analítica transe, nota a anfibolia). Droysen falou também em T. hisloriográficet, que seria a coletânea das exposições do que foi historicamente investigado ( Crundzüge der Hisiorik, 1882, § 18). TOPOLOGIA (in. Topologv.h. Topologie-, ai. Topologie, it. Topologia). Com este nome, ou com o de analysis sitits, designa-se, há um sé­ culo, o estudo das propriedades das figuras geométricas que não variam mesmo quando as figuras são submetidas a transformações tão radicais que perdem suas propriedades métri­ cas e projetivas. O precursor da T. foi L. Euler (1707-83). mas sua primeira formulação encon­ tra-se na obra de A. E. Moebius (1790-1868) (cf. esp e c ia lm e n te O. VFBI.FN, Analysissitus. 2- ecl. 1931, e as p alavras GRITO; TRANSFORMAÇÃO).

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TOTEMISMO

Alguns dos conceitos da T. são aplicáveis a outras disciplinas, sobretudo no gestaltismo, que utilizou o conceito topológico de região (com as suas várias determinações), que se presta a expressar o espaço vital cie um orga­

nism o (K IR T LF.WIN. Principies of Topological Psycbology, 1936. e sp . ca p . XI e s.). (V. CAMPO: PSICOLOGIA.)

TOTALIDADE (gr. TÒOÀOV; lat. Vniversitas; in. Totality, fr. Totalité; ai. Allheit, Tolalital: it. Tolalilâ). l'm todo completo em suas partes e perleito em sua ordem. Este é o conceito de T. que se encontra em Aristóteles, que se distin­ gue cie todo. cujas partes podem mudar de dis­ posição sem modificar o conjunto (Mel., V. 26. 1024 a 1). Nesse sentido, o mundo (cosmos) é ürnrí 7'.. tiuis o universo não (r. Mlixno). Mesmo nas línguas modernas, a noção de T. conservou a característica da completitude e de disposição perfeita das partes. Segundo Kant, U "T. cias condições" corresponde, na síntese da intuição, â universalidade do predicado na premissa maior do silogismo. A noção de T. tias condições é a idéia da Razão Pura. Por­ tanto, segundo Kant. a idéia é a noção cie uma perfeição, ainda que não cie uma perfeição real [Crít. R. Pura, Dialética, livro I, seç. l-II) (v. Tono). TOTALITARISMO (in. Totalitarianism; fr. Totalitarismo, ai. / tatisnuts; it. Totalitarismo). Teoria ou prática cio listado totalitário, vale di­ zer, do Estado que pretende identificar-se com U vida dos seus cidadãos. Esse termo foi cunha­ do para designar o fascismo italiano e o nazis­ mo alemão. Às vezes também é usado pa­ ia designar qualquer doutrina absolutista. em qualquer campo a que se refira (é usado nesse sentido por G. H. SAHINF. A Hístoiy o/Political Tbeory, 1951. cap. 35; trad. it.. pp. 708 ss.). Muitas vezes, por extensão, entende-se por T. qualquer forma do absolutismo doutrinário ou político. TOTEMISMO (in. Talemisnr, fr. Totêmisme; ai. Tolemismus: it. Totemismo). Crença no to­ tem, ou organização social fundada nessa cren­ ça. O termo totem foi extraído do idioma dos índios norte-americanos e depois passou a in­ dicar o fenômeno (presente em todos os povos primitivos) de transformar uma coisa (natural ou artificial) em emblema cio grupo social e em garantia da sua solidariedade. Foi Durkheim quem mais enfatizou esse caráter do totem, Vendo nele a expressão cia unidade do grupo Social em sua inteireza e. portanto, nas inter-re-

TOTO-PARCIAL, TODO-TOTAL

laçòes dos clans em que o grupo se divide (Les fo rm es élém en ta ires d e Ia vie religieuse, 1912).

Ao lado desse caráter do T.. A. R. RadcliffeBrown evidenciou o seu caráter ainda mais universal, segundo o qual o T. constituiria "uma representação do universo como ordem moral e social"; portanto, a regulamentação da rela­ ção entre o homem e a natureza, além da regu­ lamentação da relação entre os homens, seria um elemento universal da cultura humana (Structure a n d F u n ctio n in P rim itive Society, 1952, cap. VI), Lévi-Strauss, porém, parece re­ duzir o T. a fenômeno lingüístico formal: "Aqui­ lo que se chama de T. é apenas uma expressão particular, através de uma nomenclatura espe­ cial formada por nomes de animais e de plan­ tas (ou, como diríamos, um código), que é seu único caráter distintivo, das correlações e oposições que podem ser formalizadas de outros modos: p. ex., como acontece em certas tribos das Américas, por oposições do tipo céu-terra, guerra-paz, em cima-embaixo, vermelho-branco, etc." (Le to tem ism e aiijoiird'bni, 1962, p. 172). Por outro lado, Freud apresentou uma in­ terpretação psicanalítica do 'I'.: "Se o animal totem é o pai, então os dois principais preceitos do T., de não matar o totem e de não usufruir sexualmente de nenhuma mulher do totem , coincidem substancialmente com os dois cri­ mes de Kdipo (que matou o pai e casou-se com a mãe) e com os desejos primitivos da criança, desejos cuja remoção insuficiente ou cujo des­ pertar talvez constituam a raiz de todas as psiconeuroses" {Totem etabu, 1913, IV, 3; trad. it., p. 146). Para uma interpretação semelhante a esta de Freud, v. J. G. FRAZFR, Totem ism a n d E xogam y, 1910.

TOTÓ PARCIAL, TOTO-TOTAL (in Totopa rtia l, Toto-total). Expressões usadas por W.

Hamilton para indicar, respectivamente, a pro­ posição na qual o sujeito é considerado univer­ salmente e o predicado, particularmente (ex., os homens são animais), e a proposição na qual tanto o sujeito quanto o predicado são considerados universalmente (ex. os animais são mortais) (Lectures on Logic, 11, p. 287). T R A B A L H O (gr. TIÓVOÇ; lat. L abor, in. L a ­ bor, fr. Travail; ai. A rb eit; it. L avoro). Atividade cujo fim é utilizar as coisas naturais ou modifi­ car o ambiente e satisfazer ás necessidades hu­ manas. Por isso, o conceito de T. implica: 1) d e­ p en d ên cia do homem em relação à natureza, no que se refere à sua vida e aos seus interes­ ses: isso constitui a necessidade, num de seus

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TRABALHO sen tid o s (v.); 2) rea çã o ativa a essa depen­ dência, constituída por operações mais ou menos complexas, com vistas à elaboração ou à utilização dos elementos naturais; 3) grau mais ou menos elevado de esforço, sofrimento ou fadiga, que constitui o custo humano do trabalho. Era principalmente nesse aspecto que se ba­ seava a condenação da filosofia antiga e medie­ val ao T. manual (v. BANAUSIA). Com esse mes­ mo aspecto, na Bíblia o T. é considerado parte da maldição divina, decorrente do pecado ori­ ginal (G ênese, III, 19). Num texto famoso de S. Paulo, o preceito "Quem não quer trabalhar não coma" deriva da obrigação de não onerar os outros com o cansaço e o sofrimento do T. (LITessal, III, 8-10). Era nesse mesmo sentido que S. Agostinho (D e o p erib u s m onachom m , 17-18) e S. Tomás (S. Th., II, II, q. 187 a. 3) pres­ creviam o T. como preceito religioso. Na exi­ gência de distribuir imparcialmente o sofrimen­ to e a degradação do T. manual inspiraram-se U topia (1516), de Thomas More, e A cidade do S o l (1602), de Campanella, que prescrevem para todos os membros de sua cidade ideal a obrigação do trabalho. Com base nisso, fixava-se a contraposição entre trabalho manual e atividade intelectual, entre artes mecânicas e artes liberais. Mesmo no Renascimento, a defesa quase unânime fei­ ta por literatos e filósofos da vida ativa em oposição à contem plativas a condenação unâ­ nime ao ócio (que perde o caráter de disponi­ bilidade para atividades superiores atribuído pela Antigüidade clássica) nem sempre levam à revalorização do T, manual. Um trecho de Giordano Bruno afirma que a providência dis­ pôs que o homem "se ocupe na ação das mãos e na contemplação do intelecto, de tal maneira que não contemple sem ação e não obre sem contemplação" (S p a ccio d elia bestia trionfante, 1584, em Op. itali., II, p. 152). Mas é sobretudo nos textos científicos e técnicos que se afirma, a partir do séc. XV, a dignidade do T. manual. Galileu reconhecia explicitamente o valor das observações feitas pelos artesãos mecânicos para a pesquisa científica (D iscorsi in torno a d ue nuovescienze, em Op., VIII, p. 49). Bacon fundamentava seu experimentalismo nas "ar­ tes mecânicas", que agem sobre a natureza e se enriquecem com a luz da experiência (Nov. O rg., I, 74), e considerava, pois, indispensáveis as operações materiais ou manuais para a ob­ tenção de um s a b e r que fosse ao mesmo tem­

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po p o d e r sobre a natureza, com vistas à satis­ fação das necessidades e dos interesses huma­ nos (Ibid., I, 83). Se Descartes dava pouca impor­ tância à parte técnica ou instrumental da ciência (que para ele continua sendo um sistema rigi­ damente dedutivo) e ao T. manual, Leibniz, ao contrário, insistia na importância do T. dos artesãos, dos agricultores, dos marinheiros, dos comerciantes, dos músicos, não só em pro­ veito da ciência, mas também da vida e da civilização (Phil. Schriften, VII, pp, 180 ss.). Essas idéias tornaram-se dominantes no Iluminismo. sobretudo graças a Bacon e a Locke; este último reconhecia na investigação experi­ mental, voltada para a determinação das pro­ priedades dos corpos físicos, único instru­ mento cie que o inteíecto humano dispõe para ampliar esse tipo de conhecimento, visto que a substância dos corpos continua desconhecida (Ensaio , IV, II, 25). Na esteira de Bacon, o ver­ bete "Art", de Diderot na F .ncyclopédie, critica­ va a distinção das artes em liberais e mecâni­ cas, considerando-a preconceito, tendente a "encher as cidades de raciocinadores orgu­ lhosos e de contemplativos supérfluos, e os campos de tiranetes ociosos, preguiçosos e ar­ rogantes". O Iluminismo, em geral, marca a reivindicação da dignidade do T. manual, a par­ tir do qual Rousseau desejava que Emílio ad­ quirisse as primeiras idéias sobre solidariedade social e sobre as obrigações que ela impõe (Em ile, [17621, IV). Kant, mesmo fazendo a dis­ tinção entre T. e arte, não considerava possível uma separação nítida porque até nas artes libe­ rais "é necessário algo de obrigatório e — como se diz — um mecanismo sem o qual o espírito não adquiriria corpo e evaporaria" (Crít. do Ju ízo , § 43). Foi só no Romantismo que se começou a es­ tabelecer a relação entre o T. e a natureza do homem. Fichte afirmava que até mesmo a ocu­ pação mais reles e insignificante, se estiver li­ gada à conservação e à livre atividade dos se­ res morais, é santificada tanto quanto a ação mais elevada (Sittenlehre, III. § 28). Foi Hegel quem formulou a primeira teoria filosófica do T., utilizando os resultados a que chegara Adam Smith na econom ia p o lítica (v.). Já em L içõ es de Ietia (1803-04), Hegel considerava o T. como "mediação entre o homem e seu mundo"; isso porque, diferentemente dos animais, o homem não consome de imediato o produto natural, mas elabora de maneiras diferentes e para os fins mais diversos a matéria fornecida pela na­

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TRABALHO

tureza, conferindo-lhe assim valor e conformi­ dade com o fim a que se destina (Fil. do dir., § 196). Só na satisfação de suas necessidades através do T. é que o homem é realmente ho­ mem, porque assim se educa tanto teoricam ente, por meio dos conhecimentos que o T. exige, quanto na prática , ao habituar-se ã ocupação, ao adequar suas atividades à natureza da maté­ ria e ao adquirir aptidões universalmente váli­ das. Por isso, ao contrário do bárbaro, que é preguiçoso, o homem civilizado é educado no costume e na necessidade da ocupação (Ibíd., § 197 e Zusatz). Através do T., "o egoísmo subje­ tivo converte-se na satisfação das necessidades de todos os outros'', de tal modo que, enquan­ to "alguém adquire, produz e usufrui, justa­ mente por isso está produzindo e adquirindo para o usufruto de outros" (Ib id , § 199). Hegel também evidenciou o crescimento indefinido das necessidades, a importância da divisão do T. e a relevância assumida pela distinção de classes, com base nessa divisão (Ib id , §§ 195, 241, 245). Viu também que a divisão do T. leva à substituição do homem pela máquina. Isso porque, com essa divisão, aumenta realmente a facilidade do T. — portanto da produção — , mas ao mesmo tempo ocorre a limitação a lima única habilidade, portanto a dependência incondicional do indivíduo ao contexto social. A própria habilidade torna-se mecânica e oca­ siona a substituição doT. humano pela máquina (Ene, § 526). Esses princípios hegelianos foram aceitos por Marx, que. no entanto, insiste no caráter n a tu ra l ou m a teria l da relação criada pelo T. entre o homem e o mundo, contra o ca­ ráter esp iritu a l atribuído por Hegel, que permi­ tia considerá-lo um momento ou uma mani­ festação da consciência. Segundo Marx, os homens começaram a distinguir-se dos animais quando "começaram a p ro d u zir seus próprios meios de subsistência, progresso este condicio­ nado pela organização física humana. Produ­ zindo seus meios de subsistência, os homens produzem indiretamente sua própria vida ma­ terial" (Ideologia alem ã, I, A; trad. it., p. 17). Portanto, o T. não é apenas o meio com que os homens asseguram sua subsistência: é a pró­ pria extrinsecaçào e produção cie sua vida. C1 um modo de vida determinado. A produção e o T. não são, pois, uma condenação para o homem: constituem o próprio homem, seu modo específico de ser e de fazer-se homem. Pelo T., a natureza torna-se "o corpo inorgânico do homem", e o homem pode ascender à cons­

TRABALHO ciência cie si m esm o, não tanto com o indiví­ duo, m as com o "espécie de n atureza universal" (Manuscritos econômico-políticos de 1844, I, trad. it.. pp. 230 ss.). O T. tam bém transform a o hom em num ente social p o rq u e o põe em contato com os o utros indivíduos, m ais cio que com a natureza: d esse m odo, as relações de T. e de p ro d u ção constituem a tram a ou a estru­ tura autência da história, cujos reflexos são as várias form as de consciência. Isso acontece, porém , no T. não alienado, que não se tornou mercadoria-, no trabalho alienado, que ocorre na so cied ad e capitalista, m anitesta-se o co n ­ traste entre a p erso n alid ad e individual cio p ro ­ letário e o T. com o condição de vida que lhe é im posta pelas relaç õ es das q u ais faz p arte com o objeto, e não com o sujeito {Ideologia alemã, I, C; trad. it., p. 75). D o po nto de vista da ética religiosa. K ierkegaard afirm ava a estreita co n ex ão do T. com a dignidade hum ana: "Q uanto m ais baixo é o escalão em que está a vida hum ana, m enos n e ­ cessidade há de trabalhar; q u an to m ais alto, tanto m ais essa n ecessid ad e se m anifesta. O dever de trabalhar para viver exprim e o u n i­ versal hum ano, inclusive no sentido de ser um a m anifestação da liberdade. F ex atam en te por m eio do T. que o hom em se torna livre; o T. dom ina a natureza: com o T. ele m ostra que está acim a da natureza (Entuvder-Oder, II, em Werke, III. p. 301). Essa estreita co n ex ão do trab alho com a existência hum ana, que en o b rece o T. e graças á qual ele é fim, além de m eio, passa a ser lu­ gar-com um em filosofia e, em geral, na cultura co ntem po rân ea. M esm o fora do âm bito m arxis­ ta, o caráter p en o so do T. não é atribuído ao T. em si, m as às condições sociais em que ele é realizado nas so cied ad es industriais. D ew ey diz: "F natural que a atividade seja agradável. Fia tend e a en co n trar saídas, e encontrá-las é, em si, gratificante p o rq u e m arca um êxito par­ cial. C) fato de a atividade produtiva ter-se tor­ nado tão in eren tem en te insatisfatória que os hom ens precisam ser induzidos a em p en h ar-se nela por vias artificiais é prova cie que as co n ­ diçõ es em que o T. se realiza im p ed em o conjunto cie atividades, em v ez de prom ovêlas, irritam e frustram as tend ên cias naturais, em vez de orientá-las para a fruição" (lluman Nature and Conduct, II, 3, pp. 123-24). Nietzsche. porém , via no T. Lima traição à esp i­ ritualidade alegre e contem plativa que deveria ser própria do hom em . E screveu a pro p ó sito

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TRADIÇÃO cios -Americanos: "O seu furibundo T. sem fôle­ go — - vício peculiar do N ovo M undo — já co­ m eça, por contágio, a asselvajar a velha Europa e a esten d er sobre ela um a prodigiosa falta cie espiritualidade". N otara que só o T. p rop orcio ­ na "íi boa consciência" e que, ao contrário, a in­ clinação ã alegria, cham ada de "necessidade de criação", com eça a ter v ergo nha de si m esm a (Die Froehlich Wissenscbaft, 18X2, § 329). Vira no T- assim co n ceb id o a m elhor polícia, que m antém to d o s su bjugados e co nsegu e im pedir v ig o ro sam ente o desenv olv im ento da razão, do desejo vio lento, cio gosto pela independência (Mofgenríitbe, 1881, § 173). A essas idéias de N iet/sch e rem ete-se, im plícita ou explicitam en­ te, qu em co n trap õ e en treten im en to e T. ou qu er transform ar o 'V. em en treten im ento. "O en treten im en to é improdutivo e inútil" — es­ creveu M arcuse — "exatam ente p orq u e apaga as características repressivas e ex p lorad oras do T. e da riqueza; m as ele 'sim plesm ente se entretém com a realidade". Por outro lado. o pró­ prio M arcuse afirma qu e um a ordem "não re­ pressiva" do T. é um a ordem de abuudcuicia, que ocorre "quando todas as necessid ades fun­ d am en tais p od em ser satisfeitas com um gasto m ínim o de energia tísica e psíquica, em tem po m ínim o" (lirasecivilização, cap. 9, trad. it., pp. 212-13). Por trás da co n d en ação cio valor do T., m ais que censura às form as alienadas que o T. assum iu na civilização co n tem p o rân ea, está a nostalgia da vida p uram en te contem plativa, a fé num a vida instintiva que, não fora reprim ida p elo T.. levaria o ho m em infalivelm ente ao paraíso p erdido. TRADIÇÃO (gr. 7iapáôom ç; in. Traditiotr, fr. Tradition-, ai. Uberlieferung: it. Tradizione). H erança cultural, transm issão cie crenças ou técnicas de um a g eração para outra. N o dom í­ nio cia filosofia, o recurso à T. im plica o reco­ nh ecim en to cia verdade da T., que, desse pon­ to úc vista, se torna garantia cie v erd ad e e, às vezes, a única garantia possível. Foi entendida nesse sentido pelo próp rio A ristóteles, que. em suas investigações, recorre freq üentem en te à T., co n siderando-a garantia de verdad e: "Nos­ sos an te p assa d o s, das m ais rem otas idades, transm itiram à po sterid ad e tradições em forma m ítica, seg u n d o as quais os corp os celestes são div in d ades e o divino abrange a natureza intei­ ra. O utras T. foram acrescentad as em form a de m ito, para persu adir a m aioria e com o objetivo de reforçar as leis e prom over a utilidade públi­ ca; elas dizem que os deuses têm form a de ho­

TRADIÇÃO m ens ou de o utros anim ais, d an d o sobre eles outros p o rm en o res sem elh an tes. M as, se con­ siderarm os ap en as o essencial em sep arad o do resto, ou seja, que as prim eiras substâncias são trad icion alm en te co n sid erad as divindades, p o ­ derem o s reco n h ecer que isso foi divinam ente dito e que estes e outros m itos, ainda que ex­ plorados, ap erfeiço ad o s e n o v am en te p erd i­ dos pelas artes e pela filosofia, foram co n serv a­ dos até hoje com o antigas relíquias. E ,só desse m odo que p o d em o s tornar claras as opiniões dos n o sso s a n te p a ssa d o s e p re d ec esso res" (Met.. XII, 8, 1074 b). Para A ristóteles, sua p ró ­ pria filosofia consiste em libertar a T. cie seus elem ento s m íticos, portan to em descobrir a T. autêntica ao m esm o tem p o em que se funda na garantia oferecida por essa m esm a 'f. Esse foi o ponto de vista que predom inou no últim o perío­ do da filosofia grega, esp ecialm en te na cor­ rente neoplatônica. Plotino dizia: "É preciso crer sem dúvida que a v erd ad e foi descoberta por antigos e santos filósofos; a nós convém exam inar quem as en co n tro u e com o p o d ere­ mos chegar a com preendê-la" (HIIH, III, 7, 1). Foi graças a essa idéia que, com base num a su­ posta T., se to rnou possível fabricar d o cu m en ­ tos fictícios q u an d o os au tênticos faltavam ; e as obras de falsas atribuições — as m ais fam osas foram as de H erm es T rism egisto — o b ed ecem à exigência de rem eter ao p assad o a doutrina em que se acredita e de atribuir-lhe, em bora fraudulentam ente, o prestígio e a garantia da tradição. D esde então, o conceito de T. não m udou, co nserv and o a aparência ou a prom essa dessa garantia. O g ran d e reto rn o da idéia de T. está no R om antism o. Era ldeen zttr P hilosophie der G eschichte d erM en sch heit (1783-1791), J. G. H erder exaltara a T. com o "cadeia sagrada que liga os h o m en s ao passado, conserva e tran s­ m ite tudo que foi feito pelos que os p re ce d e­ ram". H egel exaltou ex p licitam ente a T. e insis­ tiu no seu caráter providencial: "A T. não é um a estátua im óvel, m as vive e m ana com o um rio im petuoso que m ais cresce quanto mais se afasta da origem . (...) O que cada g eração produziu no cam po da ciência e do espírito é um a h e­ rança para a qual to d o o m un d o anterior contri­ buiu com sua econom ia, é um santuário em cujas p ared es os ho m en s de to d as as estirpes, gratos e felizes, afixaram tu d o o que os auxi­ liou na vida, o que eles hauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao m esm o tem p o, receber a herança e fazê-la fruti­

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TRADICIONALISMO ficar" (G eschicbte der Philosophie, ed. G lock­ ner, I, p. 29). N esse sentido, obviam ente, a T. ê ap en as outro nom e para designar o plano providencial da história (v. HISTÓRIA). Foi esse o po nto de vista do m inan te em to d o o R om antism o, sen d o o cham ad o tradicionalism o (v.) ap e n as Lima de suas m ani­ festações. A antítese dessa valorização da T. é a con­ cep ção seg u n d o a qual: 1" nem todos o s resul­ tados, nem os m elhores pro d u to s da atividade h um ana foram infalivelm ente con servados e in crem en tado s ao longo do desenvolvim ento histórico; 2" o que esse desenv olv im ento con­ servou nem por isso tem garantia de verd ad e O u de valor. C oncepção desse tipo foi assum icfa peío fíum inism o (por isso m esm o freqüen­ te m en te definido com o anti-historicista por quem vê a história com o ordem providencial Ou T.). O Ilum inism o erigiu-se contra a T., afir­ m ando que sua herança, na m aioria das vezes, ê erro, precon ceito ou superstição, e recorren ­ do ao ju ízo da razão crítica para contestá-la (v. ILUMIMSMO). C om o se vê, as discussões filosóficas sobre o significado e a im portância da T. na realidade são discussões sobre história (v j. N o cam po cia sociologia, porém , analisar a 'F. é o m esm o que analisar determ inada atitude, ou m elhor, U m tipo e espécie de atitude, m ais precisam en­ te a que consiste na aquisição incon scien te (não deliberada) de crenças e técnicas. N a ati­ tu d e tradicionalista, o indivíduo considera co­ m o seus os m odos de ser e de com portar-se que recebeu ou continua receb en d o do am ­ biente social, sem perceb er que são m odos de ser do g ru po social. N a T., não há distinção t;ntre p resen te e passad o, entre "mim" e os outros, sen d o por isso um a form a de co m u ni­ cação prim itiva e im própria (ABISAGNANO, P ro blem i di sociologia, 1959, XI, 3). S egundo esse ponto de vista, a atitude tradicionalista opõe-se à atitude crítica, graças â qual o indivíduo tem certa liberdade de ju ízo (que no en tanto nunca 6 absoluta ou infalível) em relação às crenças e técnicas que hauriu da tradição. A atitude críti­ ca tem co ndições antitéticas em relação âs da T.: alteridade entre presen te e passad o e entre os indivíduos. TRADICIONALISMO (in. Traditionalism ; fr. 'iraditionalism e-, ai. Traditionalism us; it. TradiZionalism o). 1. Defesa explícita da tradição, cujos p rincipais p ro tag o n istas p erten cem ao R om antism o francês: M adam e cie Staél (1766-

TRADUCIANISMO

1817), que, em De VAllemagne (1813), v ê a história hum ana com o progressiva revelação religiosa; René de C h ateaubriand (1769-1848), que, em Génie du cbristianisme (1802), vê o catolicism o com o d epositário da tradição das hum an idades; e em Louis de B onald (1754­ 1840). Jo se p h de M aistre (1753-1821) e Robert L am ennais (1782-1854), que se transform aram em palad ino s das duas principais instituições personificadoras da T., v erb erad as pelo Ilum inism o e hostilizadas pela R evolução: a Igreja e o Estado. Por isso, esses escritores tam bém foram cham ad o s de teocrãticos ou ultramontanistas (v. TEOCRACIA). 2. Em sen tid o m ais geral e filosófico, p o d ese en ten d er por T. o retorno ü tradição que m arcou o R om antism o da prim eira m etade do séc. XIX, entre cujos defensores estariam seus principais protagonistas (Fichte, Schelling, Hegel, M aine de B iran [1766-1824], A n tô n io R osm ini Serbati [1797-18551, V incenzo G ioberti [1801-521 e o pró p rio G iu sep p e M azzini [1805­ 72]) e ou tros escritores m en o res em vários p aí­ ses (p. ex., o inglês J. M artineau [1805-1900]). A idéia com um de to d o s esses p en sad o res é que tanto o p en sam en to individual qu an to a tradi­ ção da hum anidade baseiam -se num a revelação direta de D eus, que o hom em tem o dever de desenvolver com a reflexão individual e com a ação coletiva. A idéia do ser, de R osm ini, é a m elhor ex pressão conceituai dessa n o ção de revelação progressiva. A plicado à história, este conceito é o m esm o q u ep ro rid en cia lism o iv.). TRADUCIANISMO (in. Traducianism, ai. '1'radncianismus: it. Traducianismo). D outri­ na seg u n d o a qual a alm a dos filhos provém da alm a dos pais assim com o um ram o (tradux) provém da árvore. Essa doutrina já se en co n ­ trava nos estóicos (TEMÍSTIO, Dean., II, 5; GALENO, Op, IV, 699), foi aceita por T ertuliano (Dean., 22) e por outros escritores da patrística e d e­ fendida m ais tarde p elos teólo go s pro testantes que viam nela a p o ssibilidade de explicar a transm issão do p ecad o original. Era aceita por Leibniz (Théod, I, § 86). A m esm a d outrina foi, às vezes, indicada com o nom e de generacionismo. A doutrina oposta, de que toda as alm as são criadas exnovo cham a-se criacionismo (v.). TRÁ G ICO (in. Tragic, fr. Tragique, ai. Tragísch; it. Trágico). O co n ceito de T. foi, às vezes, discutido pelos filósofos nào só em rela­ ção à form a de arte que é a tragédia, m as tam ­ bém em relação à vida hum ana em geral, ou ao

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TRÁGICO

palco do m undo. O po nto de partida im plíci­ to ou explícito dessas d iscussões quase sem ­ pre é a d efin ição aristo té lic a de trag éd ia, seg u n d o a qual ela é "im itação de aconteci­ m entos que prov ocam p ied a d e e terror e que o ca sio n a m a p u rific açã o d essa s em o çõ es" (Poet.. 6, 1449 b 23). A s situações que p ro vo­ cam "piedade e terror" são aqu elas em que a vida ou a felicidade de p essoas inocentes é posta em perigo, em que os conflitos não são resolvidos ou são resolvidos de tal m odo que determ inam "piedade e terror" nos esp ectad o ­ res. W . H aeger escreveu: "na tragédia grega a felicidade, com o toda posse, não p o d e ficar m uito tem p o com quem a detém ; a perpétua instabilidade é in erente à sua natureza. A con­ vicção cie Sólon, de que há um a ordem divina no m undo, encontrou nessa noção (em bora tão dolorosa para o hom em ) o apoio m ais sólido. Esquilo tam bém é inconcebível sem tal convic­ ção, que po de ser cham ada m ais de n o ção que de crença" (Paidéia. II, cap. I; trad. it., p. 449). A s in terp retaçõ es da n atureza do T. no p en sam en to m o derno são três. Ia T. é o confli­ to co n tin u am en te resolvido e su p erad o na or­ dem perfeita do todo; 2a T. é o conflito não so­ lu cio nad o e insolúvel; 3a T. é o conflito que p o d e ser so lucio nado, m as cuja solução não é definitiva nem p erfeitam ente justa ou satisfa­ tória. \- O prim eiro conceito de T. é de Hegel, para quem o conflito em que consiste o T., em ­ bora co n stituindo a substância e a verdadeira realidade, nào se conserva com o tal, m as en­ contra justificação só na m edida em que é su­ p erad o com o contradição. "No entanto o objeti­ vo e o caráter T. são legítim os" — diz H egel — "porque é necessária a solução do conflito em qu e ele consiste. Por m eio dessa solução a eterna justiça se afirma so bre os fins e os indiví­ duos, de tal m odo que a substância m oral e a sua u n id ad e se restabelecem com o ocaso das ind iv id u alid ades que perturbam o seu repou­ so" ( Vorlesungen über díe Asthetik, ed. Glockner, III, p. 530). P ortanto, a so lução T. resta­ b elece a harm onia, e o qu e ela d estrói é apenas a "p articularidade unilateral" que não pôde concertar-se com a harm onia (Ibid., ed. Glockner, III, p. 530). O bviam ente, desse ponto de vista, que caracteriza o otim ism o ou providencialism o de caráter rom ântico, a tragédia é sim p lesm en te a ap arên cia de um a com édia substancial: tudo acaba bem , e o que se perde

TRÁGICO é a "particularidade unilateral" que não tem o m ínim o valor. 2a A seg u n d a in te rp re ta ç ã o do T. é de S chop en h au er, seg u n d o a qual o T. é conflito insolúvel. Para ele, "a tragédia é a rep resen ta­ ção da vida em seu asp ecto terrificante. É ela que nos ap resen ta a dor inom inável, a aflição da hu m an id ad e, o triunfo cia perfídia, o escarn eced o r d om ínio do acaso e a fatal ruína dos ju sto s e dos inocentes; por isso, ela co n s­ titui um sinal significativo da natureza do m u n ­ do e do ser" (Die Welt, I, § 51). M as a inevita­ bilidade e, portan to , a certeza de um destino m aléfico ou de um a injustiça im anente, assim com o a ínevitabilidade e a certeza da justiça e da harm onia, su prim em a tragicidade. D iante deles, de fato, a única atitude possível é a resig­ n ação ou o d ese sp ero : atitu d es que, assim com o as que lhe são opostas, excluem o con­ flito constitutivo do trágico. 3- A terceira co n cep ção foi ap resen tad a por Schiller na obra Uber naive imcl sentimentalischeDichtungdlA-Aò). Nela. o T. é ap resen ­ tado com o m anifestação da poesia sentim ental (v . INGKXUIDADE), m ais precisam en te cia poesia que rep resen ta o conflito entre o real e o ideal. A poesia sentim ental divide-se em sátira e ele­ gia: na sátira o p oeta tem por objeto o geral, c o n sid e ra n d o -o in su ficien te em relação ao ideal. A inda seg u n d o Schiller, q u an d o a insufi­ ciência do real é representada pelo conflito entre o real e nossas exigências m orais, tem -se a sátira séria, que é o T. ( Werke, ed. K arpeles, XII, p. 150). K m co n c eito s se m e lh a n te s in sp irav a-se a cham ad a "p an trag icid ad e" de H eb b el (v. Werke, X , p. 43). Bem m ais p arad o x alm en te, N ietzsche via no 'I'., por um lado, o caráter terrificante da existência, por outro a possibili­ dade de aceitar e transfigurar esse caráter ou por m eio da arte ou da v o n tad e de potência. A prim eira solução é a que N ietzsche atribui aos gregos em Die Geburtder 1'ragõdie (1872). O hom em grego, que tinha co n d içõ es de distin­ guir com clareza o horrível e o ab su rd o cia existência, conseguiu transfigurá-la por m eio do espírito dionisíaco, d o m an d o e sujeitando o horrível, qu e assim se transform a em sublime (o objeto da tragédia), e lib ertan d o da aversão aí) absurdo, que assim se transform a em cômi­ co (o o bjeto da co m éd ia) (Die Geburl der Tragòdie, § 7). M ais tarde, N ietzsche achou que a saída do terrificante da vida estaria na aceita­ ção da vida graças à v o n tad e de potência, con­ sid eran d o o T. com o aceitação dionisíaca do

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TRANSAÇÃO que é terrificante e incerto. Escreveu então: "A profundidade do artista T. reside no fato de que seu instinto estético considera as co n se q ü ên ­ cias rem otas e não se detém com visão estreita nas coisas próxim as; de que ele afirma a econo­ mia â larga, que justifica o que é terrível, m a­ ligno e problem ático, m as não se contenta ap e­ nas em justificá-lo" ( Wille zurMacht, ed. 1901, § 374). Essa co n cep ção do T. — que costum a ser exp ressa com im perfeição ou m esclada com as otitras duas — p ode ser reconhecida pelo fato de abrir espaço, em sua caracteriza­ ção, á problematicidadeda situação T., vale di­ zer, á p ossibilidade de ela ser decidida de um m o do ou de outro, sem que a decisão seja definitiva ou perfeita. Foi com esse espírito que M iguel de U nam uno entendeu a tragiciclade em Do sentimento T. da w 't/a(1913). expressando-a com o quién sabe? de D on Q uixote. N o m es­ m o se n tid o e x p re ssa ra m -se S ch eller ( Vom Vmsturz der Werte, 1953), Jasp e rs {Uber das Tragiscbe, 1952) e C antoni (Trágico e senso comune, 1964). P. Rom anell diz que, ao contrá­ rio da épica, em que o conflito se dá entre o bem e o m al, no T, o conflito se dá entre bens diferentes, valores h etero g ên eo s entre os quais a escolha é dolorosa e sem pre im plica sacrifí­ cio (Making ofthe Mexican Mind, 1952, p. 22). Esse caráter cio T. é bem realizado na tragédia grega. A tragédia de Sófocles baseia-se na con­ vicção de que existe um a o rd em divina no m u nd o, em virtude da qual ás v ezes o inocente precisa pagar por um erro eometidf) por outros. O fato cie a solução do conflito não p od er ser lím pida, de algo se perd er nessa solução e de esse algo não ser — com o dizia H egel — um a "particularidade unilateral" é o que constitui o fascínio e a verd ad e da tragédia. TRANQÜILIDADE. V. ATARAXIA TRANSAÇÃO (in. Transaction; fr. Transaction; ai. Transaction; it. Transazione). T erm o in troduzido em filosofia por D ew ey e R entley para indicar um a relação que não p ressu p õ e os term os relativos com o entidades em si. D ew ey diz: "Esse term o indica neg ativam en te que nem o senso com um nem a ciência elevem ser con­ sid erado s entid ad es, com o à parte, com pleto e circunscrito.(...) P ositivam ente, indica que d e­ vem ser m arcados pelas características e pelas propriedades encontradas em tudo o que se re­ co n h ece com o T.: p. ex., um negócio ou um a T. com ercial. Essa '1'. transform a um dos partici­ pantes em co m p rad or e o outro em ven dedo r: não existem com p rad o res e v en d e d o res a não

TRANSCENDÊNCIA

ser em 7. epor causa da T. em que são empe­ nhados" (Knowiug and lhe Knoivn, 1949, p. 270). Na Itália, esse termo foi empregado por Romagnosi: segundo ele, "do comércio entre o interior e o exterior" do homem nasce "sobre o pano de fundo do eu pensante uma T. que har­ moniza as leis do mundo interior com o exte­ rior, para formar um único mundo e uma única vicia" ((.'he cose Ia mente sana? [1827], ed. 1936, p. 100, 138). TRANSCENDÊNCIA (in. Trancendence, fr. Transcendance. ai. Transzendez, it. Trascendenza). l"sse termo foi usado com dois signifi­ cados diferentes: 1" estado ou condição cio princípio divino, do ser além cie tudo, de toda experiência humana (enquanto experiên­ cia de coisas) ou do próprio ser; 2" ato de es­ tabelecer uma relação que exclua a unificação ou a identificação dos termos. 1" No primeiro sentido, esse termo vinculase à concepção neoplatônica de divindade. Platão já dissera que o Bem, como princípio su­ premo de tudo o que é, comparável como tal ao sol que dá vida às coisas e as torna visíveis, está além da substância (E7téK£tvoc xfjç oüoíaç. Rep., VI, 509 b). A exemplo de Platão, Plotino repete que o I Ino está "além da substância" (linn, VI, 8, 1 9). mas acrescenta que ele tam­ bém está "além do ser" (èTCKEtva õvxoç, Ihid, V, 5, 6) e "além da mente" (È7téKEtva voü, Ihid., III, 8, 9), de tal modo que é transcendente (U7tepPef3r)KcúÇ) em relação a todas as coisas, mesmo produ/.indo-as e conservando-as no ser (Ihid.. V, 5, 12). Proclo diz: "Além de todos os corpos está a substância da alma; além de iodas as almas, a natureza inteligível: além de to­ das as substâncias inteligíveis, está o Uno" (Inst. theoi, 20). Kscoto Frigena e outros usaram o termo supra-ente (V.) para designar a T. abso­ luta, graças â qual Deus está além de todas as determinações concebíveis, até mesmo do ser ou cia substância. Nem sempre, porém, a T. é levada ao ponto de situar Deus além do ser, transformando-o de algum modo em "nada". A escolástica clássica, reconhecendo a analogicidade do ser, não põe Deus além do próprio ser: esta forma de T. é, ao contrário, própria da teologia negativa ou mística (v. TKOI.OGIA, 4). Fora da teologia, essa espécie de T. foi reco­ nhecida por Jaspers, que a contrapôs á existên­ cia: T. é o que está além da possibilidade de existência, é o ser que nunca se resolve no possível e com o qual a única relação que o homem pode ter consiste na impossibilidade

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TRANSCENDÊNCIA

de alcançá-lo. Nesse sentido, a T. se manifesta e não pode ser caracterizada nem como "divin­ dade", sem incidir na superstição. A única cer­ teza que se pode ter em relação à T. é que "o ser é. e é assim" (Phil, III, p. 1.34). Kntrementes, as correntes realistas da filoso­ fia contemporânea atribuíam T. âs coisas, aos objetos do conhecimento em geral ou ao ser de tais objetos. Nesse sentido, Husserl negava que uma coisa pudesse ser dada como imanente em qualquer percepção ou consciência, e defi­ nia o ser da coisa como ser transcendente, que é mais ou menos sombreado pelas aparições da coisa â consciência (Ideeti, I, § 41). N. Hartmann insistia na T. cio ser em relação ao conhecimento, porquanto o ser fica sempre além do objeto cognitivo imanente (Melaphysik derErkentitniss, 2a ed., 1925, p. 50). No mes­ mo sentido, a T. era combatida pelas várias formas do imanentismo (v.). 2y No segundo significado, T. é o ato de se estabelecer uma relação, sem que esta signifi­ que unidade ou identidade de seus termos, mas sim garantindo, com a própria relação, a sua alteridade. Fsse conceito também tem ori­ gem religiosa e neoplatônica. Plotino dizia que a contemplação é "para quem foi além de tudo" (tu ÚTOppóvxt ftávia, Hnn, VI. 9. 11). Num trecho famoso, S. Agostinho dizia: "Se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo", e acrescentava: "Lembra-te de que. ao te transcenderes a ti mesmo, estás transcen­ dendo uma alma racional e que, portanto, de­ ves visar ao ponto do qual provém a luz. da ra­ zão" (Devera relig, 39). Esse sentido ativo de T. ficou praticamente obliterado na filosofia tradicional e só foi reto­ mado pela filosofia contemporânea. Com refe­ rência â T. do ser ou da coisa em relação à consciência que a apreende ou ao ato de co­ nhecimento que é seu objeto, a própria cons­ ciência ou o ato de conhecimento foram cha­ mados de transcendentes. Assim, Husserl fala de percepção transcendente, que tem a coisa por objeto e em relação à qual a coisa é trans­ cendente, o que difere da percepção imanente. que tem por objeto as experiências conscientes que são imanentes á própria percepção (Ideeu. I, § 42, 46). N. Hartmann baseou o seu realismo no conceito de T.: "O conhecimento não é um simples ato de consciência, como o representar e o pensar, mas um ato transcendente. Um ato desses se liga ao sujeito só por um lado, mas sob forma de cifrei (v.) nas situações-limite(\.)

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por outro fica fora; por este último, liga-se ao existente, que. graças a ele, se torna objeto. O conhecimento é uma relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato trans­ cende a consciência" (Systernatiscbe Pbiloso/)bic. §11). No mesmo sentido ele chama de transcendente a relação cognoscitiva (Ibici, § 10). No entanto, a mais importante utilização do conceito nesse sentido foi a de Heiclegger, que definiu como transcendente a relação entre o homem (I)asein. ser-aí) e o mundo. "O seraí que transcende (eis uma expressão já por si tautológica) não ultrapassa nem um obstáculo anteposto ao sujeito de tal modo que o obrigue a permanecer em si mesmo (imanência). nem uni fosso que o separaria do objeto. Por stia vez, os objetos (entes que lhe estão presentes) não são aquilo em cuja direção ocorre a ultrapassagem. O que é ultrapassado 6 unicamente o ente, ou seja. qualquer ente que possa ser re­ velado ou revelar-se ao ser-aí, portanto o ente que o ser-aí é. enquanto, existindo, 6 ele mes­ mo" (]’<»)/ llesen des Cirandes, 1929. II). Hm outros termos, 6 pelo ato de T. que o homem, como ente no mundo, se distingue dos outros entes ou objetos e se reconhece como "ele mesmo". Heidegger, portanto, considera a T. como o significado do ser no mundo. "Quem ultrapassa e. portanto, vai além, deve como tal sentir-se situado no ente. O ser-aí. na medida em que se sente como tal. está incluído no ente de tal modo que. reabarcado nele, é por ele conciliado consigo mesmo. A T. é um tal pro­ jeto do mundo que quem projeta é dominado pelo ente que transcende e está já de acordo com ele. Com esse ser incluído do ser-aí, ligado com a T., o ser-aí ganhou base no ente. obteve o seu fundamento" (Ibid.. III). Sào caracterís­ ticas de Heidegger essa reincidência e esse achatamento da *!'. nos objetos transcendidos, do projeto nas suas condições de partida, do pos­ sível no eletivo, do iuturo no passado. Heidegger chama de decadência ou Jacticidade (v.) essa reincidência ou achatamento. Foi o que fez Sartre. que expressa o mesmo con­ ceito de T. afirmando que a consciência (opara-si), ao transcender para o ser (o em-si), está apenas se anulando para revelar e afirmar, através de si, o próprio ser (l. 'êlre et le néant, II. cap. III, espec. pp. 268-69). Para uma inter­ pretação da T. que fuja ao achatamento ou à nadificação, cf. AISBAONANO, Stnittura dellesistenza, 1939, § 18; ID., Introduzionealle-sistenzialismo. I, 6; etc.

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TRANSCENDENTAL

TRANSCENDENTAL (lat. Transceudentalis; in. Transcendental, fr. Transcendental; ai. Transzoidental, it. 7'rascendentale). Com este termo ou com transcendente, começaram a ser denominadas, no fim do séc. XIII, as proprie­ dades que todas as coisas têm em comum, que por isso excedem ou transcendem as diversidades de gêneros em que as coisas se distri­ buem. Esse nome já se encontra em F. Mayron (morto em 1325, Formalitates, ed. 1479, f. 22, r. A), e com certeza Lorenzo Valia (L)ialecticae dispittationes. I, 1) contribuiu para a sua difu­ são, mas os transcendentais ou transcendentes já haviam sido definidos por S. Tomás como as propriedades "que se acrescentam ao ente e que expressam um de seus modos que não é expresso pelo nome do ente"; e enumerava seis delas: eus, res. itnum, aliqnid, boimni. rentin(De rer, q. 1, a. 1), lista esta que se tor­ nou a mais difundida e acreditada entre todas. Fsse conceito de T.. com alguma mudança ocasional na lista dos termos, foi repetido inú­ meras vezes depois disso (CAMPANTU.A. Dialectica, 1, -4; G. BRINO. Dela causa, IV; F. BACON, De ai/gm. scient.. III, I; JrNGirs, Lógica bamburgeusis. I, 1, 45: SPINOZA, lit.. II, 40, escólio 1; BKKKKI.KY. Principie ofHitmau Knowledge, § 118; WOI.I-T, O///., §495. 503; BAI'MGARTI:\. Mel.. § 72. 89; HAMILTON, I.ectures ou Logic, I. p. 198). A essa tradição junta-se o uso kantiano do termo. Kant diz: "F.sses supostos predi­ cados T. das coisas nada mais são que exigên­ cias lógicas e critérios para qualquer conheci­ mento das coisas em geral e repousam nas categorias de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade). Mas essas categorias, que deve­ riam ser assumidas no significado material co­ mo pertencentes à possibilidade das coisas, na verdade eram usadas pelos antigos só com va­ lor formal, como constituintes da exigência lógica para qualquer conhecimento; todavia, transformavam inadvertidamente esses critérios do pensamento em propriedade das coisas em si mesmas" (Crít. R. Pura, Analítica. § 12). Fm outros termos, Kant considera que o antigo conceito de T. peca por dois motivos: 1" por­ que considera o T. simples conceito lógico-formal; 2" porque considera esse conceito formal como propriedade das coisas em si. Ao contrá­ rio, o conceito kantiano de T. consiste em: 1" considerar o T. como condição da possibilida­ de da coisa, ou seja. como conceito apriori ou categoria; 2" considerar a coisa, cuja condição é o T.. como fenômeno, e não como "coisa em

TRANSCENDENTAL si". C ontudo, para Kant, o T. não se identifica com as co n d içõ es a p rio rí do con h ecim ento hu m ano e dos seus objetos (que são os fen ô ­ m enos), m as é co n sid erad o o con h ecim ento (ou a ciência, se existe um a ciência) dessas cond içõ es apriori. Kant diz: "Não cham o de T. o co n h ecim en to que cuida dos objetos, m as o que cuida do nosso m odo de co n h ecer os obje­ tos, e que seja possível apriori" (Ibid, Intr.. VII). E esclarece: "Não se deve cham ar de T. qualquer co n h ecim ento apriori. m as ap en as o conh ecim ento qu e possibilite saber qu e rep re­ sen taçõ es (intuições ou conceito) são aplicadas ou são possíveis exclusivam ente apriori a co ­ m o isso se dá. Vale dizer: é T. o co n h ecim en ­ to da p ossibilidade do co n h ecim ento ou do uso dele apriori" (Ibid, Lógica, Intr,, II; v. Prol.. § 13. obs. III). D esse ponto de vista, T. não é "o que está além da experiência", m as sim "o que an teced e a experiência (apriori) m esm o não se destinando a outra coisa senão a possibilitar o sim ples co n h ecim en to em pírico" (Prol.. A pêndice, nota [A 204]). N o en tan to , é preciso observar que KANT não se atem rigo­ ro s a m e n te a esse sig n ifica d o do te rm o e que, m uitas vezes, cham ou de T. o que é in­ d ep e n d e n te da experiência ou de princípios em píricos (cf., p. ex., Crít. R. Pura. O ideal da razão p u ra, seç. 5, D e sco b e rta e ilu s­ tração cia aparência dialética). D e q u alq u er for­ ma, com base no significado ex p licitam ente aceito por Kant, p o d em ser ch am ad o s de T. ap enas os co n h ecim ento s que têm por objetos elem ento s a priori. e não estes m esm os ele­ m entos. Portanto, são T. a estética, a lógica e as suas partes, m as não o são as intuições puras, as categorias ou as idéias. M as m esm o este uso não é rigoroso, pois Kant cham a de T. as idéias e de u n id ad e T. o eu penso (Ibid.. § 16). Esse term o foi reto m ad o por Fichte para designar a teoria da ciência, pois m ostra que todos os elem en to s do co n h ecim ento estão no Eu, ou seja, na consciência: "Essa ciência não é trancendente, m as continua T. em sua p ro ­ fundidade. É v erd ad e que ela explica a co n s­ ciência com algum a coisa que existe in d ep en ­ d en tem en te da consciência, m as m esm o nessa explicação não se esq u ece de conform ar-se às suas próprias leis; e assim que reflete so b re ela, o term o in d e p e n d e n te to rn a-se n o v am e n te prod uto da faculdade de pensar, p ortanto algo d ep e n d e n te do PAI, p o rq u e deve existir para o Eu, no conceito do Eu". (Wissenschafislehre, 1794, § 5, II; trad. it., p. 231). Shelling entendia

TRANSCENDENTALISMO esse term o no m esm o sentido; para ele, no saber T., "o ato do saber chega a absorver o objeto com o tal", de tal m odo que é "um saber do sab er, p o rq u a n to p u ra m e n te subjetivo" (System des transzendeiitaleii Idealism us. 1800. Intt'., § 2). S ch o p en h au er atribui o m esm o senti­ do idealista: T. é "o co n h ecim ento que determ i­ na e estabelece, antes de q ualq uer experiên­ cia, tu d o o que é possível na experiência" ( Uber c/iei ierfacbe W urzeldesSatzesi< om zureichendeii Gninde. § 20). C om o resu ltad o destas d eterm in açõ es, o coriceito do T. foi-se fixando na filosofia con­ tem p o rân ea com o aquilo que pertence ao su­ jeito ou ã consciência com o condição do objeto c d'J. próprio, realkkick;. P o rtan to, qualifícou-tc de T. q ualqu er atividade ou elem en to da cons­ ciência de que d ep en d a a afirm ação ou a posi­ ção da realidade objetiva. A ssim , expressões coiiio "ponto de vista T." ou "conhecim ento T." eqiiivalem à ex pressão de Schelling "idealismo 'IV. ou seja, doutrina que m ostra qtie na cons­ ciência subjetiva estão as con diçõ es da realida­ de. Este con ceito de T. persistiu tanto nas esco­ las cie inspiração kantiana m ais estrita quanto nas escolas idealistas. G entile cham ava de "Eu 1'." o eu ab soluto ou universal, que cria a reali­ dade p en san d o ( Teoria generale dello spirito, 1920, I § 5). M antém -se o sen tid o idealista tambéiii em H usserl, que qualifica de T. a experiêiicia fenom enológica ou a reflexão que a ocasiona. "Na reflexão fenom enológica 'I'., saí­ m os cio terreno em pírico pratican do a epoché universal qu an to à existência ou à não-existência do m undo. P ode-se dizer que a experiência cio m u n do assim m odificada, a experiência T. consiste no seguinte: exam inam os o cogito transc e n d e n ta lm e n te re d u zid o e o descrevem os seiíi efetuar além disso a posição de existência n atural im plícita na p erce p ção espontânea" (Cóirt. M ed., § 15). Para H eidegger, porém . T. teni sentido objetivo p orq u e indica "qualquer m anifestação do ser no seu ser transcendente" (Sein undZeít, § 7 C). TRANSCENDENTALISMO (in. Transcendentalism, fr. Transcendentalism e-, ai. Transzendentalism ns; it. Trascendentalism o). Teoria do idealisiíio tran scend ental, vale dizer, do idealismo roiíiântico. O no m e foi introduzido nos países anglo-saxões, esp ecialm ente nos Estados Uni­ do?, por Emerson (v. O. B. FRONTHINGHAM, Trcinscendentalism in N ew F .ngland, 1876; no­ va ed., 1959).

TRANSCENDENTE

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TRANSFORMAÇÃO

TRANSCENDENTE (lat. Transcendeu*, in. p ercep ção das coisas em oposição à percep ção que a consciência tem de si m esm a (que é per­ Transcendent; fr. Transcendant; ai. Transzeucep ção im anente) Udeen, 1, § 46). N o m esm o dent: it. Trascendente). Este term o tem dois sentido, H artm ann cham a de ato T. o conheci­ significados fundam entais, co rresp o n d en tes aos m en to (Systematísche Philosophie, § II). H eidegdois significados de transcendência (v.): 1" o gt;r define com o T. "o que atualiza a ultrapasque está além de d eterm in ad o lim ite, to m ado sagem , o que se m antém na u ltrapassarem " com o m edida ou com o ponto de referência; 2(l'o m Wesen desG ntndes, II; trad. it., p. 29) (v. o p eração de transposição. TRANSCENDÊNCIA). 1" N o prim eiro significado, essa palavra TRANSCENDENTISMO. T erm o que só se assum e valores m uito diferentes, seg u n d o o ericontra no italiano, ás vezes u sado para de­ que se considere lim ite ou m edida. A s p ro p rie­ signar as doutrinas que adm item a transcendência dades transcendentais (v.) eram cham adas as­ d o ser divino. sim por serem T. em relação aos gêneros, dos quais eram co n sid erad as in d ep en d en tes. FalaTRANSCRIAÇÃO (in. Transcreation; fr. se de 'perfeição T." com o perfeição qu e supera lYanscréatíon; it. Transcreazione). T erm o usa­ todo s os graus alcançáveis. M ais freq ü en tem en ­ d o por Leibniz para indicar a ação com que te, esse term o é u sad o em filosofia para in d i­ D eu s dá razão à alm a sensível ou anim al. car o que ultrapassa os lim ites de algum a fa­ Leibniz prefere esta à hip ótese seg u n d o a qual culdade hum ana ou de todas as faculdades e a alm a anim al se eleva à razão por m eios pura­ do próp rio hom em . Assim , B oécio afirm ava m ente naturais (Théod., I, § 91 ) • que "A razão tran scen d e a im aginação p o rq u e TRANSEUNTE (in. Transeuntjr. Transeunl; ap reen de a esp écie universal que está ligada às ai. Transeunt;ü. Transeunte). 1. O m esm o que coisas singulares" (Phil. co n s, V , 4). S. T om ás transitiro (v.). afirm ava que a teologia 'tran scen d e todas as 2. M utável, passageiro. outras ciências tanto especulativas q u an to p rá­ TRANSFERENCIA. V. PSICANÁLISE ticas" po rq u e é m ais certa que elas e por tratar TRANSFINITO (in. Transfinite, fr. Transfh de coisas "que, pela elevação, tran scen d em a ni; ai. Transfhüt; it. 1'ransfínito). K xpressào usarazão" (V. lh , I, q. 1. a. 5). A o tratar da identi­ d;i por G. C antor para indicar os n ú m ero s dade do m ínim o absoluto e do m áxim o ab so ­ qvie estão além dos núm eros finitos. P. ex., se for luto em D eus, N icolau de Gusa diz que "isso T., o núm ero ordinal da classe que co m p reen ­ transcend e o n o sso intelecto, que não p o d e de todo s os n ú m ero s ordinais finitos, em sua com binar racio n alm en te as coisas que são co n ­ ordem natural (0, 1, 2, ...), será d en o tad o por traditórias em seu princípio" (Dedocta ignor, u m ôm ega m inúsculo (G . CANTOR, Contribu1, 4). tion to the F ounding o f the Theory o f Trans­ finite N um bers, trad. in ., 1915) (v. INFINITO). Foi m ais precisam en te a partir de Kant que C o n seq ü en tem en te, por "indução transfinita" T. passou a designar a n oção qu e ex ced e os li­ en ten d e-se a ex tensão da indução m atem ática m ites da experiência possível. Portanto, seg u n ­ (v) a um a classe de n ú m ero s ordinais arbitrá­ do Kant, são T. as idéias da razão pura: "Cha­ rios de m aneira sem elhan te ao m odo com o a m arem o s de im a n e n te s os p rin c íp io s cuja indução é aplicada a um a classe bem o rdenada aplicação se m antém em tu d o e por tu d o nos de n ú m ero s ôm ega. lim ites da experiência possível, e de T. os que devem ultrapassar esses lim ites" (Crtí. K. Pura, TRANSFORMAÇÃO (in. Transform ation; fr. Dialética, Intr., I; cf. Prol, § 40). É diferente dos TYansform ation; ai. Umformung, Transform aprincípios T. o uso tran scen d en tal dos princí­ tion. it. Trás fo r m azione). D ew ey viu na T. a pios im anentes, que se vale de princípios cog­ categoria fundam ental do raciocínio m atem áti­ nitivos legítim os, m as sem levar m uito em co n ­ co. "A T. dos co nteú do s conceituais, segu nd o ta os lim ites da experiência (Ibíd., D ialética, regras m etódicas que satisfaçam determ inadas Intr., I; cf. Prol, § 40). co n d ições lógicas, está im plícita tanto na co n ­ 2- N os significados anteriores, a palavra T. duta do raciocínio qu anto na form ação dos co n c e ito s q u e fazem p arte dele". P o d e-se designa o que está além cie certo limite. N a filo­ enunciar o princípio lógico da T. da seguinte sofia co n te m p o râ n ea, é m uitas v ezes usada m aneira: 1<J o co n teú d o do raciocínio consiste para designar um a atividade ou um a o p eração em possibilidades: 2" en q u an to possibilidade, co rresp o n d en te ao 2^ significado de tran scen ­ ele exige a form ulação em sím bolos (Logic, XX, dência. N esse sentido, seg u n d o H usserl, é T. a

TRANSFORMISMO 1: trad. it.. p. 516). C ostum a-se cham ar de re­ gras de T. as regras da inferêiicia dos sistem as logísticos ou das linguagens formais (v. SISTE­ MA LOGÍSTICO). TRANSFORM ISM O (in. Tmnsformism, fr. Transformísmc-. ai. Trunsfonnisivus-, it. Trasformismo). Com esse term o indica-se o evolucionism o biológico, que adm ite a transform a­ ção de uma espécie viva em outra (v. EVO­ LUÇÃO). T R A N S rnV ID A D E ün. Traiisitirity.fr. Tmnsitirité. ai. Transitiritat-, it. Transitiritã). Caráter cie um a relação que. se ocorrer entre x e y e entre ve z, tam bém ocorre entre .Te z. Esse ca­ ráter é próprio cias relações de identidade ou de igualdade com o tam bém das relações tne>i(»; precede, à esquerda de, etc. (v. B. RKSSKLI.. Introducliaii to Matbemalical Philosopby. cap. IV; trad. it., p. 44). No cálculo proposicional, as leis de '/'. da implicação material v da equivalência mate­ rial são as seguintes: "Se p im plica q e q im ­ plica r, e n tã o p im plica r (isto é: [pz>ql iq Z3 r| => [p 3 r|). Se /; é eq uivalente a q e q é equivalente a /; então pi- ec|uivalente a rü s to é: |p = ()] Iq = r](lp = r|)(v . A. CiKKCH, hilroduction to Malhematical Logic, I, § 48 e tc ). TRANSMIGRAÇÃO. V. MKTKMPSICONK. TRANSM UTAÇÃO DE VALORES (fr Transmutalion des raleurs; ai. Ihiuvertiuig aller Werlel it. Trasmutazione dei ralori). Frase fam osa com que N iet/sche resum iu a finalidade cie sua filosofia: "Inversão de todos os valores, eis m i­ nha fórm ula para um ato de suprem o reco n h e­ cim ento de si m esm a por parte da h u m an id a­ de, ato que em m im tornou-se carne e gênio. Meu destino exige qtie eu seja o prim eiro h o ­ m em honesto, que m e sinta em oposição ás m entiras cie vários m ilênios" (Hcce bomo, § 4). A inversão de valores consiste em substituir a tábua tradicional de valores, que se baseia na renúncia á vida, pelos novos valores oriundos da aceitação entusiástica (dionisíaca) da vida, m esm o em seus asp ecto s m ais cruéis (Genealogie der Moral, I, § 10; Die froeliche Wissenscbafte, § 344 etc.) (v. VALOR). TRANSNATURALdr. Transmitnn4.it. Trausnalitrale). T erm o pro p o sto por M. B londel p a­ ra indicar a situação do hom em , que está posto entre a natureza e a sup ran atu reza e durante a vida m ortal está d estin ad o a p rep arar-se para a vida eterna (llistoire et dogme. 1904, p. 68). T R A N SO B JET IV O (ai. Transobjektiv, it. Transobbiettivo). Term o usado por N. H artm ann

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TRIADICO para indicar a parte da realidade que fica além cios lim ites do co nh ecid o, portanto além cio o b ­ jeto de conhecim ento (Metaphysik der HrkennlHÍS. 2 a e d ., 1925, p . 5 0 ). TRANSPARÊNCIA (ai. Durchsichtigkeíl). As­ sim H eidegger cham ou a intuição que o ser-aí tem de si m esm o: "Existindo, o ser-aí tem a vi­ são de si só à m edida que se faz, de m odo originário, transparente em seu ser no m undo e em seu ser com os outros m om entos constitu­ tivos da sua existência" (Sein undZeit, § 31)T R A N SPA TIA íin. Trauspathy). T erm o usa­ do por escritores ingleses para indicar o contá­ gio em otivo ou a fusão em otiva, que difere da simpatia (v.). T R A N SPO SIÇ Ã O (in. Transposition; fr. Transposition: ai. Tnuispositiou; it. Trasposizio)ie). É assim cham ado o teorem a do cálculo proposicional, segu nd o o qual de "se p. então £/" pode-se inferir "não q. então não p". TRA N SRA C IO N A LISM O (in. Transrationalisni; fr. Trausrationalísine. ai. Transrationalismus; it. Tnuisrazioiialismo). Term o usado por A. C ournot para indicar a disposição natural do hom em a crer no sobrenatural, no m isterioso ou, em geral, no que está além da razão (Mcitérialisme. ritalisme. ratioiialisme, 1875, p. 385). TRA NSUBJETIV O (in. Transubjectire- ai. Trcnissubjektir: it. Trausoggettivo). O m esm o que Transcendente (v). TRANSUBSTANCIAÇÃO (lat. Transuslantiatio; in. TransHbstantiathm, fr. Transubstcwtiation; it. Transiistanziazione). Interpretação do sacram ento do altar, seg un do a qual a subs­ tância do pão e do vinho se transform a na substância do corpo ou do sangue de Cristo e, portanto, seus acidentes ficam sem substância. Essa é a interpretação de S. T om ás (.V. Th, III, cj. 77. a. 1), que foi aceita pelo Concilio de Trento. A interp retação alternativa, aceita pela Reforma, é a da co>isnbstanciaçào (v.). T R IA D IC O (in. Triadic, fr. Triadique-, ai. Tríadisch; it. Triadico). A divisão T. gozou fre­ q ü en tem en te de certo privilégio em filosofia. Sem falar da perfeição que os antigos pitagóricos atribuíam ao núm ero três, Plotino reco­ nheceu três fases da em anação, portanto três hipóstases da divindade, o Uno, o Logos e a Alma (F.nn, II, 9, 1). Mas foi principalm ente Proclo quem privilegiou o p rocedim ento T.. d iscernindo três fases em todo e q ualqu er pro­ cesso (ou em anação): l3 aquilo que procede perm anece sem elhan te a si m esm o; 2- diferen­ cia-se de si m esm o; 3a retorna para si m esm o

TRIADISMO

(Inst. theol, 31). Sobre essas três fases da em a­ nação H egel m oldou suas três íases da sua dialética, que consistem respectivam ente: Ia na iden tid ad e de um conceito consigo m esm o; 2a na co ntradição ou na alienação do conceito em relação a si m esm o; 3a na conciliação e na u n i­ dade das duas prim eiras fases (v. Ene. §§ 79­ 82). S egundo essa divisão T., H egel interpretou tanto a lógica q u an to a n atureza e o espírito ( Wissenschaft der Logik, ed. G lockner, II. pp. 340 ss.). H m bora H egel atribua a Kant o m érito dessa triad id d a d e dos pro cesso s racionais e — portanto — de toda a realidade (Ibid, p. 3A4), a justificação de Kant para o fato de suas "divi­ sões em filosofia pura serem quase sem pre T." é co m p letam en te diferente e provém da lógica. Kant disse: "Se for necessário fazer um a divi­ são apriori, esta poderá ser: analítica, seg u n d o o princípio de contradição, e então será feita sem pre em d uas partes (quodlibet ensest aiitA aut mm A); ou sintética, e nesse caso deverá derivar de conceitos apriorii...) e conterá (ly) a condição, (2y) um co n d icio n ad o e (3Q) o con­ ceito que nasce da união da condição com o co nd icio n ad o , acab an d o assim por ser necessa­ riam ente um a tricotom ia" (Cr/7. doJuízo. Intr.. N ota final). TRIADISMO (in. Triadism. fr. Triadisme. ai. Tnalismus. it. Triadismoou Trialismo). Dou­ trina de origem estóica que considera o h o ­ m em form ado por três princípios: alma. coipo e pneuma ou espírito; é repetida nas epístolas de S. Paulo (v. PNKUMA). TRIBUNAL (in. Tribunal; fr. Tribunal, ai. Gerichtshof, it. Tribunale). Esse term o foi usado por Kant para definir a finalidade da filosofia crítica: "A crítica da razão pura p o d e ser consi­ derada o verdadeiro T. para todas as suas contro­ vérsias, p o rq u e esta não se im iscui nas co n ­ trovérsias que se referem im ediatam ente aos objetos, m as é instituída para d eterm in ar e para ju lg ar os direitos da razão em geral, se­ gundo os princípios da sua prim eira instituição" (Crít. R. Pura, D outr. do m ét., cap. I, seç. 2). TRICOTOMIA (in. Tricbotomy, fr. Trichotomie-, ai. Trichotomie. it. Tricotomia). D ivisão em três partes, elem en to s ou classes. Esse ter­ m o é usad o quase exclusivam ente para a d o u ­ trina da tríplice co m p o sição da alm a, que se cham a tam bém triadismo. A teoria lógica cia T. foi elaborada no séc. XVII, com a advertência de que é preciso red u ­ zir a T. à dicotom ia sem pre que dois m em bros da dicotom ia tenham um a noção em com um .

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TRINDADE P ode-se dizer que o triângulo p od e ser retân ­ gulo ou o bliquángulo, poclendo-se ainda divi­ dir o triângulo obliqu án gulo em ob tusângulo e acu tân gu lo (v. JKNGUS, Lógica hamburgensís, 1638. IV, 7, 13). TRILEMA (in. Trilemnia-, fr. Trilemme-, ai. Trilemma-, it. Trilemnia). O s lógicos do séc. XIX deram esse nom e ao esquem a de inferên­ cia que te n h a co m o p rem issa m aior um a tricotom ia, em vez da dicotom ia do dilema (v.): "Cada coisa é ou F o u Q ou M\ 5 não é nem A /nem Q; logo, Sé P". N o m esm o senti­ do, fala-se de tetralem a ou de polilem a, m as trata-se de esquem as de inferência pouquíssim o aplicados. TRINDADE (in. Trinity, fr. Triuitó; ai. Dreifaltígkeit; it. Trinilã). U m dos dogm as fun­ dam entais do cristianism o, que afirma a un id a­ de da substância divina na T. das pessoas. A fór­ m ula desse dogm a foi fixada pelo Concilio de Nicéia em 325, e em sua form ulação d esem p e­ nharam papéis im portantes a obra do bispo Atanásio e a polêm ica contra a doutrina de Ário, que. tendia a acentuar a su b o rd inação do Filho em relação ao Pai e praticam ente ignorava a ter­ ceira pessoa da T rindade. A explicação clássica desse dogm a [assim com o do dogm a da enccimaçàoiv)] foi dada por S. T om ás, por m eio do conceito da relação. A relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção e. por outro, identifica-se com a m esm a e única es­ sência divina. A s pessoas divinas são constituí­ das por suas relações de origem : o Pai, pela pa­ tern id ad e (ou seja, pela relação com o Filho); o Filho, pela filiação ou g eração (ou seja, pela re­ lação com o Pai); o Espírito, pelo am or (ou seja, pela relação recíproca de Pai e Filho). Essas re­ lações em D eus não são acidentais (nada existe de acidental em D eus) m as reais; subsistem realmente na substância divina. Portanto, a su bs­ tância divina em sua unidade, ao im plicar as re­ lações, implica as diferenças das pessoas (S. Th.. I, q. 27-32 e esp. q. 29, a. 4). Esta interpretação basta, seg u n d o S. T om ás, para m ostrar que "o que a fé revela não é im possível". D o po nto de vista lógico, im plica um a doutrina historicam en­ te im portante sobre a natureza das relações (v. RKLAÇÂO). N o últim o p eríodo da escolástica, porém , o dogm a da T. recebeu duas interpretações: foi co n siderad o "verdade prática", por D uns Scot (Op. O.x.. Prol. q. 4, n" 31), ou algo que está além de q ualqu er possibilidade de enten d im en to , com o fez O ckham (In Sent, I. d. 30, q. 1 H).

TRINITARISMO

O dogm a da T. tam bém foi aceito pelas igre­ jas protestantes, com exceção da tend ên cia re­ presentada pelo socinicwismu (v.), que reto ­ m ou as doutrinas cie tipo ariano, com uns nos prim eiros séculos cio cristianism o. Essas dou tri­ nas toram reto m ad as pelos ch am ad o s unitá­ rios, que constituíram um m ovim ento religioso difundido p rin cip alm en te na Inglaterra e na A m érica do N orte a partir da seg u n d a m etade do séc. XVH1 (v. UMTARISMO). TRINITARISMO (in. Thnitarianism; fr. Triuité, it. Triiiilarismo). D outrina oficial da Igreja crista so b re a natureza de D eus com o um a única substâticia em três p esso as iguais e distintas (v. TKINIMDK). TRITEISMO (in. Tritheism, fr. Trithéisme, ai. Tritheism us: it. Triteismo). Com este term o designa-se co m u m en te a heresia trinitária que consiste em adm itir três su b stâncias divinas relativam ente in d ep en d en tes. Essa heresia foi sustentada no séc. V por Jo ão F ilopono e no séc. X I por Roscelin. que, seg u n d o relato de S. A nselm o, afirm ava que "as três p essoas da trin­ dade são três realidades, com o três anjos e três alm as, em bora sejam ab so lu tam en te idênticas em v on tad e e potência" (De fide Irinitatis, 3). G ilbert cie Ia Porrée tam bém se inclinava ao T.. ch am and o de deidadeii única essência divina, da qual participariam as três pessoas diferentes; é provável que G ioacchino D a Fiore (séc. XII) adotasse esse p o n to de vista. T rata-se cie um a doutrina constantem ente condenada pela Igreja. TRÍVTO. V. CULTURA, I. TROPOS (gr. xpÓ7ioi; lat. '1'rapes; fr. Tropes; ai. Trupeii; it. Tropi). Assim eram ch am ad o s os modos ou os cam inhos indicados pelos cépticos para chegar à su sp en são do assen tim en ­ to. Estes T. consistem na en u n ciaçào das situa­ ções das quais resultem opo sição de opiniões ou m esm o contradições. E nesidem o de Cnossos enum erava dez deles, que são os seguintes: ly

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TUTIORISMO

a diferença entre os anim ais, que estabelece um a diferença entre suas rep resen taçõ es; 2- a diferença entre os hom ens, p elo m esm o m oti­ vo; 3a a diferença entre as sensações; 4" a dife­ rença entre as circunstâncias, que tam bém in­ fluem na d iv ersid ade das op iniões; 5" a di­ ferença das p o siçõ es e dos intervalos; 6" a diferença das m isturas; 7" a diferença entre os objetos sim ples e o.s objetos com postos; 8<J a diferença entre as relações, visto que as opi­ n iões m udam seg u n d o as relações das coisas com o sujeito ju dicante: 9U a diferença entre a freqüência ou a raridade dos en co ntro s entre o sujeito ju d ican te e as coisas; 10" a diferença cia educação, dos costum es, das leis. etc. (Pin: byp., I. 36-163). Por sua vez, A gripa acrescentava outros cin­ co tropos, com o objeções contra a possibilida­ de de atingir a verd ad e: 1- a discordância das opiniões; 2a o processo ao infinito em que se incide q u and o se qu er aduzir um a prova, já que esta prova precisa de outra, e esta outra de um a m ais um a, e assim por diante; 5" a relação entre o sujeito e o objeto, que leva à variação da aparência cio objeto; 4° a hipó tese, que é o recurso a um a assunção sem dem onstração, p ortanto insustentável; S" o dialeto, ou círculo vicioso, q u an d o se assum e com o princípio de prova ex atam en te o q u e se deve provar (SEXTO EMPÍRICO. Pirr. byp, I, 164-69). Finalm ente, Sexto E m pírico enuncia outros dois tro pos, que são argu m en tos seg u n d o os quais não se p o d e co m p ree n d e r um a coisa nem com base em si m esm a nem com base em outra coisa (Pirr. hyp, I, 178-79).

TRUÍSMOUn. TntismAx. Tmisme-, it. Truis-

nio)-

Uma v erd ad e evidente m as óbvia, por­ tanto p o uco im portante ou p ouco útil. T anto o term o qu an to a noção são próp rios da língua inglesa. TUTIORISMO. V. PROHABIIJSMO.

u U. Na lógica tradicional, sím bolo da proposi­ ção inodal que consiste na negação cio m odo e na negação da proposição: p. ex., "não é possível que n ã o /r' (v. ARNAWLD. Lug, II, 8) (v. PURPIJRKA). UBI. Com esse advérbio latino (onde) D uns Scot indicou a d eterm in ação qualitativa que o corpo em m ovim ento adquire a cada instante do seu m ovim ento. O U. não é o lugar(ll) por­ que o lugar de um corpo não é um atributo dele, m as está nos corpos que o cercam ; é sem e­ lhante ao calor, que é adquirido pelo corpo que se aquece {QuodL, q. II a. 1). Essa noção foi criticada por Pedro A uréolo (In Sent. I, d. 17, a. 4), por O ckh am (In Sent., II, q. 9 c) e por G regó rio de Rimini (In Sent., II, d. 6, q. I, a. 2), que reduziram o m ovim ento do corpo que se m ove. T am bém é lem brada, com desprezo, por Locke (Ensaio, II, 23, 21). UBICAÇÃO. V. LfCAR. UBIQÜIDADE (lat. Ubiquitas; in. Ubíquity, ir. Ubiquité, ai. Allgegonuwt; it. Ubicjitità). Omodo de ser no espaço que os escolásticos do séc. XIV cham avam de definitivo (definitívus); con­ siste em estar tudo em todo o espaço, e tudo em qualquer parte do espaço. Esse m odo de ser era distinguido do cham ado circtinscritii>o (circumscriptivus), que consiste em estar tu d o em to d o o espaço (ocupado) e parte em cada parte dele (v., para esta distinção, OCKHAM, In Sent.. IV, q. 4; Qitocll., VII, q. 19; Decoip. Christi,6). O concei­ to de existência espacial definitiva servia para en ten d er a presença do corpo de Cristo no pão e a onipresença de Deus no m undo. Q uanto a esta últim a, Leibniz (lem brando os dois prim eiros m odos, que cham a de uhictés). fala de um a ubielé repletiva (Nonv. ess.. II, 23, 21). UCRONIA(fr. Ucbronie). F. o título de um ro m an ce de C harles R en ou v ier (Ucbronie,

1'utopiedans Vhistoire, 1876), em q u e o autor se p ro p õ e reco n stru ir "a história apócrifa do desen v o lvim ento da civilização européia, co­ m o poderia ter sido, m as não ioi". A finalidade do rom an ce é m ostrar a ausência da n ecessid a­ de em história (v. HISTÓRIA). ÚLTIMO (gr. TÒ EO%axov; in Ultimato-, fr. Ultime-, ai. Letzt; it. Ultimo). U m dos dois ex tre­ m os de um a série, m ais precisam ente aquele em que a série acaba. C om o é possível consi­ derar que um a m esm a série term ine em um dos extrem os no que se refere a determ in ado s objetivos (ou p on tos de vista) ou no outro ex­ trem o no que se refere a outros objetivos (ou p o n to s de vista), a palavra II. m uitas vezes é am bivalente, e as m esm as coisas são declara­ das U. e prim eiras. E o que acontece com fre­ qüência na term inologia aristotélica: nela, o m otor im óvel é qualificado de l). por ser o prim eiro cia série dos m ovim entos (Ffs, VIII, 2, 2A4 b 4); no en tan to , é cham ada de II., tam ­ bém , a espécie m ais próxim a do indivíduo (Met., III, 3. 998 b 15). A ristóteles tam bém cha­ m a cie V. um sujeito com o a água ou o ar (/te/., V , 6. 1016 a 23), m as qualifica a substância de U. substrato (Ibid., V , 8, 1017 b 24) e considera o princípio de contradição "uma opinião l!."' (Ibid., IV, 3, 1005 b 33). T am bém cham a de U. o fim (Ibid.. V , 16, 1021 b 25). T odos estes usos, ou outros bastante sem e­ lhantes a estes, p erm an eceram na trad ição filo­ sófica. N a Idade M édia a bem -av entu rança foi cham ada de "fim {'.", p o rq u an to é o fim além do qual não se p od e prosseguir (cf. S. TOMÁS, S. Tb., II, I. q. 1, a. 4). Hoje se fala de "proble­ m as V." ou de "razões l'." no m esm o sentido em que se poderia falar de prob lem as prim ei­ ros ou m áxim os e de razões prim eiras: isso dem onstra ainda um a vez que o term o pertence

UM, UNO principalm ente à retórica cio discurso filosófico e tem pouco valor conceituai (v. ExTRHMD). UM, UNO (gr. eíç: lat. [ 'nus-, in. Une, fr. Uii: ai. íiiii; it. f/zo). 1. O elem ento de um conjunto ou de um a classe qualquer, com o q u an d o se diz "O hom em é um anim al". N esse aspecto, diz-se que um a relação é de muitos para l '• se para cada .velo seu cam po houver um só v q u e tenha relação com x. Fala-se que a relação 6 de I.para muitos se para cada v dom inante inver­ so do seu cam po ho u v er um ú n ico .v qu e te ­ nha relação com y. Afirma-se finalm ente que a relação 6 cie V. fiara ['. se ela e o seu inverso forem de um para m uitos e de m uitos para um. N esse caso fala-se tam bém de um a co rresp o n ­ dência d e U. para 1T. (A. CIURCH. Introduction toMalbcmaticalI.ogic, pp. 556, 564). 2. O que 6 único, com o q u an d o se diz "Deus é U." (v. ÚNICO). 3. A u n id ad e no sentido pró p rio cio term o (v. UNIDADE-:). 4. O núm ero U., ou seja, o prim eiro term o da série natural dos núm eros ou, em geral, o prim eiro term o de um a série qualquer. 5. O U. hipostático ou teológico: D eus ou o Bem com o prim eiro term o do processo de em anação e últim o term o cio p ro cesso do re­ torno. N esse sen tid o H eráclito dizia "de todas as coisas o U., e do U. todas as coisas" (Fr. 10 DII-LS; cf. FMPKDOCI.ES, Fr. 17. D . M a s foram principalm ente os n eo p latô n ico s que usaram esse term o para designar a divindade ou o bem . que é tran scen d en te em relação ao ser e à inteligência, portan to , está além de qu alq u er m ultiplicidade. Plotino dizia: "É preciso que antes ele todas as coisas haja algum a coisa sim ­ ples e diferente de todas as coisas que vêm d ep o is dela; ela é em si m esm a, n ão se m is­ tura com as que a seguem , m as p o d e estar de algum m odo p resen te nas outras: esse é o II., não algum a coisa que seja una, m as sim ­ plesm ente o U." (Fnn., V, 4, 1). A ssim , a u nida­ de do prim eiro princípio deve ser entendida tão rigorosam ente que o próprio nom e "V.." p a­ rece im próprio a Plotino. "Este nom e [.'. talvez .só contenha a exclusão da m ultiplicidade. Os pitagóricos os designavam sim bolicam ente com o A poio, para indicar a negação de m uitos. (...) Pode-se usar essa palavra para com eçar a in­ dagação com um a palavra que d esigne a m á­ xim a sim plicidade, m as afinal é preciso negar esse m esm o atributo, que não m erece m ais que os outros designar a natureza que não po de ser atingida pelo ouvido nem co m p reen ­

UNIÃO dida por quem a denom in a, m as apenas por qu em a contem pla" (Ihid, V , 5, 6). Essas es­ p ecu laçõ es so b re o U. foram freq ü en tem en te retom adas pela teologia negativa e pelo panteísm o. E m Plotino e nos outros, são acom pa­ n h ad as pela exaltação da função da unidade em to do o dom ínio do conhecer e do ser (v. UNIDADE-:). Foi o que aconteceu nas especula­ ções platônicas do R enascim ento e tam bém no R om antism o, que assum iu o U no-T odo com o princípio do m undo coincidente com o próprio m undo, o que se vê de m o do m ais explícito na filosofia da natureza cie Schelling ( Werke, I. 111, p. 276). H egel, por sua vez, que via concreção na unidade (v.). via na V. abstração ou im e­ diação e insistia na relação do II. com muitos. ilustrando-a cie m odo fantasioso, com o uso das noções, arbitrariam ente, m anipuladas, de atarraco e rep ulsão (Wissenschaft derI.ogik, I, I, seç. 1, cap. III. R; trad. it.. pp. 181 ss.). O con­ ceito de U. nesse sen tid o é u sad o com freqüên­ cia tanto pelas dou trinas teístas qu anto pelas panteístas. Entre os que o utilizaram de m odo m ais am plo e rigoroso, deve-se lem brar Piero M artinetti (La liberta, 1928, p. 490; Ragione e fede, 19A2, 402), em b o ra na e sp e c u la ç ã o de M artinetti se sinta o efeito da separação radical entre D eus, com o U. absoluto, e realidade em ­ pírica e m ultíplice. em que insistira Africano Spir (Deukeu uncl Wirklicbkeit, 1873). UNHEIMLICH (H eidegger). D esam bientado, estranho. S egundo H eidegger, esse senti­ m ento é um cios aspectos da angústia (v.). Sen­ tir-se estran h o , d esa m b ien ta d o , significa "não se sentir em casa" no m undo; do p on to de vista ontológico-existencial, esse é o "fenôm eno mais originário" (Sein undZiet, § 40). UNIÃO (in. Union-, fr. Union,:ü. Verhindung; it. Unione). Q u alq uer form a de relação que perm ita considerar (a q u alqu er título) o con­ ju n to dos term os com o um todo. Esta é a defi­ nição dada por Leibniz (De arte combinatoria. 1666; Up., ed. E rdm ann, p. 8). U m todo não é n ecessariam ente um a u n id ad e ou um a totali­ dade (v. TODO), e o s graus d e coesão entre suas partes p od em ser m uito diferentes. Assim tam bém os graus da U. po dem ser m uito dife­ rentes. Kant dividiu a U. em com posição (composilío) e nexo (uexus). A prim eira é uma síntese não necessária; não liga necessaria­ m ente os seus term os; para Kant, pertencia à m atem ática e se dividia em agregações, que dizem respeito ás qu antidades extensivas, e em coalizão, que diz respeito ás q u antidad es in­

UNICO

tensivas. O nexo, ao contrário, é uma síntese necessária; p. ex. a síntese do acidente com a substância e do efeito com a causa. Pode subsis­ tir mesmo entre termos heterogêneos: pode ser física (nexo entre os fenômenos) ou metafísica (li. dos fenômenos na faculdade cognitiva a priori) (Ctil. li. Pura, Analítica, livro II, cap. 2. seç. 3, n. [H 2021). Kssa diferença de significado encontra-se tanto no uso corrente do termo quanto no filo­ sófico e no teológico. A teologia fala de uma "II. hipostática" (substancial ou necessária) entre a natureza humana e a natureza divina na pessoa do Cristo (v. FNCARNAÇÀO), mas fala também de LI. mística da alma com Deus, que náo 6 nem substancial nem necessária. A filo­ sofia tala de II. entre matéria e forma, e entre substância e acidente, que são necessárias, e fala ainda de LL entre alma e corpo, que não é necessária (cf. LHIBNIZ, O/;., Krdmann, p. 127). Na linguagem comum estão ultrapassados al­ guns desses usos; além disso se fala, p. ex.. de "LI. carnal"; ou de LJ. no sentido de concórdia, de solidariedade ou de associação para a defe­ sa de interesses comuns (U. operária, etc). ÚNICO (lat. Vnicus\ in. Ibiique, IV. Ihüque, ai. Einzig; it. Único). 1. O que não é a espécie de um gênero, entendendo-se por gênero uma determinação de que possam participar várias espécies. Nesse sentido só Deus é W. (v. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 3, a. 5).

2. O que está só na sua espécie, isto é, o único indivíduo pertencente a determinada espécie. Nesse sentido, na metafísica tradicio­ nal podem-se dizer que os anjos são II., pois é impossível existirem dois da mesma espécie, porquanto são desprovidos cie matéria, que distingue os pertencentes a uma mesma espé­ cie (cf. S. TOMÁS, S. Th, I, q. 50, a. 4). Stirner enten­ dia do seguinte modo a unicidacle: "Eu, o LI., sou o homem. A pergunta 'o que é o homem?' Em 'oquê?' procurava-se o conceito; em 'quem?', a questão resolvida, porque a resposta é dada por quem pergunta" (Der Einzige und seiti Eigentum, 1845; trad. it., p. 270). O "'o que" é o "quem", a espécie é o indivíduo (v. ANARytus.M0). 3. O que não é substituível em seu valor ou em sua função. Nesse sentido, qualifica-se de II. uma pessoa ou uma obra de arte; em mate­ mática, o valor de uma função. 4. O que não se repete ou não se repete de modo idêntico. Nesse sentido qualifica-se

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UNIDADE

de II. o acontecimento histórico como tal (v. HISTÓRIA).

5. O que pode ser efetuado de um só modo; nesse sentido dizemos que uma operação 61*.: p. ex., a decomposição de um número em fa­ tores primos. UNIDADE (gr. nouàç; lat. Unitas; in. Uuity, tr. Unité-, ai. Einheit: it. Unitã). 1. Em sentido próprio, o que é necessariamente uno. inc/irisírel: ou no sentido de ser desprovido de par­ tes ou de suas partes serem inseparáveis da totalidade e inseparáveis entre si. liste foi o conceito elaborado por Aristóteles, que distinguiu o que é uno por ,s7. ou essencialmente, do que é uno por acidente (Met.. V. 6, 1015 b 16); definiu a U. (|aotjàç) como alguma coisa indi­ visível, absoluta ou quantitativamente (Ibicl., 1016 b 24), e distingiu quatro espécies funda­ mentais de V.: a) a das totalidades contínuas, como p. ex. os organismos; b) a das formas ou substâncias; c) a numérica; d) a definitória, ou seja, a l'. de coisas que têm a mesma definição (Ibid., X, 1052 a 15-1052 b 15; v. V, 6, 1016 a I1016 a 35). Essas determinações aristotélicas não são perfeitamente coerentes porque, ao mesmo tempo que definem a l". como indivi­ sibilidade. incluem entre suas formas a conti­ nuidade que o próprio Aristóteles deíine como a divisibilidade em partes por sua vez divisíveis (v. CONTÍNUO). Seu significado, porém, está bem duro. A L".. ou seja. o uno por si, é, por um lado, a identidade da forma ou cia substância consi­ go mesma; por outro, a identidade dos objetos que têm a mesma definição (identidade dos indiscerníveis) e por outro ainda é o elemento ou o princípio do número. No que diz respeito ao número, esse concei­ to cie LI. durou muito tempo (v. NÚMKRO), mas das outras duas formas distinguidas por Aristó­ teles, a LL formal ou substancial foi a mais freqüentemente assumida como conceito ou ideal de LJ. na tradição filosófica. Os neoplatônicos ilustraram e exaltaram a LI. como condi­ ção necessária do ser, negligenciando a distin­ ção aristotélica entre a L".. que é necessária, e o uno. que não é. Para Plotino, a II. é sempre ne­ cessária: "Separados do um. os seres não exis­ tem mais. O exército, o coro, o rebanho não existiriam se não fossem um exército, um coro, um rebanho. A casa e a nave não são se não têm unidade, porque a casa é uma casa e a nave é uma nave, e, se perdessem a unidade, não seriam nem casa nem nave. Nem as grande-

UNIDADE /.as contínuas existiriam se não tivessem un id a­ de. D ivida-se um a grandeza: p erd en d o a U.. seu ser se transform a. O m esm o acontece para os corpos das plantas e dos anim ais, que. se per­ dem a L\ e .se dividem em m uitas partes, per­ dem o ser que possuíam e não são mais o que eram; transform am -se em outros seres que, em sendo, são um ser cada um (EIDL. VI. 9,1). Essas considerações foram decisivas para a história ulterior cio conceito de unidade. Repetidas por Proclo (Inst. theol., 21, etc.) e por D ionísio, o A reopagita (Dediv. iiom ., XIII, C-D), passaram para a filosofia m edieval (v. S. TOMÁS, S. Tio., I, q. II, a. 1) e foram retom adas por Nicolau de Gusa (Dedocta ignor., I, 5), que identificou a U. absoluta com o m áxim o absoluto e am bas as coisas com Deus, inspirando as especulações correspondentes de G. Bruno sobre o assunto. A substância das coisas consiste na U. (Dela cansa, principio et uno. V , em O/;., ed. G uzzo e A m eno, p. -1Õ9). Locke foi o prim eiro a polem izar o conceito de II. substancial. Afirma que "a U. de su b stân ­ cia" não perm ite en ten d er as várias esp écies de identidades, com o p. ex. a identidade da su b s­ tância do hom em , da pessoa, e tc , e que tais identidades devem ser esclarecidas ou explica­ das in d ep e n d en tem e n te um as das outras (En­ saio, II. 27, 8). M as já Leibniz voltava à defesa da identidade substancial, "única II. verdadeira e real" (Nour. e ss, II, 27, 4). W olff redefiniu a U. no sentido tradicional, en ten d en d o -a com o "a inseparabilidade das coisas por m eio das quais o ente é determ inado" (Ont., § 328); se­ gu nd o Wolff, d eterm in ação do ente nada m ais é que a razão ou a form a do ente (Ibid., § 116). O papel d eterm in an te que Kant atribui à sín­ tese (v.). em to d o s os graus e form as do co ­ nh ecim ento e, em geral, da atividade hum ana, orienta-se pelo m esm o privilégio co n ced id o à no ção de tinidade. Para Kant, U. é sinônim o de síntese ou de nexo necessário. Seu caráter esp e­ cífico é, em outros term os, a inseparabilidade do que é unificado ou sintetizado. C om o fun­ d am ento de tod o s os grátis ou form as de U., que constituem as form as e os graus do co n h e­ cim ento, Kant põe "a U. objetiva da p e rc e p ­ ção", que se m anifesta com o uso da cópula é. em sentido objetivo. S egundo Kant, essa có p u ­ la designa "a LI. necessária" do sujeito com o predicado e a relação dessa U. necessária com a apercep ção originária. Isso não q u er dizer que as rep resen taçõ es ligadas pela cópula se­ jam "necessariam ente su b o rd in ad as um a à

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UNIFORME outra", m as sim que elas são "subordinadas um a à outra por m eio da LI necessária da aper­ cepção" (Cr/7. R. Pura. § 19). C om o se vê, o uso k antiano do conceito de II. é, rigorosam ente, tradicional: Kant transfere para o eu penso, oti "V. necessária da apercep ção ", o fundam ento da V. necessária dos objetos, m as a noção m es­ m a de II. necessária" é aristotélica. N em m esm o H egel se afasta dessa n o ção , lam en tan d o que ela p tidesse ser entendida com o 'reflexão sub­ jetiva" e afirm ando que deveria, ao contrário, ser en ten did a no sentido de "não-separaçào e in separabilidade". M as este é ju stam ente o co n ceito aristotélico de l'. ( W issenschaft der Logik. I. livro I, seç. I, cap. I, n. 2). O uso desse term o, p resen te em toda a obra de H egel para indicar o terceiro m om en to da dialética, o da I '. ou id entidade dos o postos, conform a-se per­ feitam ente a esse conceito. N o uso filosófico corrente, esse term o nem sem pre conserva o significado próp rio de indivisibiliclade ou in separabilidad e, ou seja. de nexo necessário. C ontudo, esse significado está presente quando se fala da l'. de D eus, do m un­ do, da natureza, ou da história, e m esm o quan­ do se fala de LL idéias ou norm ativas, com o "U. da hu m anidade" ou "U. cia família", etc. 2. Em correlação com o significado acima, os filósofos cham am de LL os elem ento s consti­ tutivos ou os princípios gerais do ser. Sabe­ m os que. n esse sentido , para os pitagóricos "a li. é o princípio de todas as coisas" (DKXÍ. L. VIII, 25; J. STOBEO, Hei, I, 2, 58). N o mesmo sentido, o n eo p lato n ism o falou em M anadas ou de E n ad esiP R O C L O , Inst. theol.. 64) e Leibniz ch am o u de M anadas (l.) as su b stâ n c ia s es­ p iritu ais que, seg u n d o ele, seriam os elem en­ tos do m undo. N esses tisos, o term o conserva o significado de substância indivisível. 3. Em sen tid o genérico e im próprio o m es­ m o que um /uno (v.). UNIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS. V. ENCICLO­ PÉDIA. U N IFO R M E (gr. óu.O£lôí|Ç: lat. Uniformis; in. Uniforrn; fr. Uniforme, ai. Einfõrmig, it. Uni­ forme). 1. O que pertence â m esm a espécie ou à m esm a essência ou substância; esse era o sen­ tido atribuído por A ristóteles (Met., V, 2. 1013 b 31; I, 9, 991 b 23; VII. 7, 1032a 24, etc.) e aceito por S. Tom ás (In Sent.. II. d. 48, q. I, a. 1). Assim, qualificam-se de V. os objetos que têm o m esm o gên ero , a m esm a espécie ou, em geral, a m esm a natureza.

UNITARISMO 2. O que p erm an ece constante, im utável ou pelo m enos relativam ente constante e im utá­ vel. N esse sentido fala-se da uniform idade das leis da n atu re za (v. INDUÇÃO). 3. O que ap resen ta analogias ou sem elh an ­ ças parciais, evid en ciad as pela abstração precisiva, e é suscetível de previsão. N esse sentido, fala-se de uniform idade da nattireza ou da uni­ form idade da história ou do m undo h u m an o e social. Peirce ilustrou a uniform idade da se ­ gu inte m an eira: "Se esc o lh erm o s m uitos o b ­ jetos, seg u in d o o princípio de que eles devem p erten cer a determ in ad a classe, e julgarm os que todos têm um caráter com um , p erce b ere­ m os que, com grande freqüência, a classe intei­ ra tem o m esm o caráter. O u, se escolherm os m uitos caracteres de um a coisa ao acaso e d e­ pois acharm os um a coisa que tem to d o s esses caracteres, geralm ente p ercebem os que a se­ gunda coisa é bastante sem elh an te á prim eira" (Coll. Pap, 7.131). C om o observa o próprio Peirce, uniform idade n esse sentido poderia ser encon trad a m esm o num m undo em que tudo ocorresse ao acaso (Ibicl, 7.136). São essas as un iíbrm idades de que se valem as disciplinas científicas, tanto as naturais q u an to as sociais, assim com o o senso com um . O léxico de um a linguagem q u alq u er nada m ais é que a ex p res­ são de uniform idades desse tipo. A repetibilidade 6 o caráter fundam ental da uniform idade nesse sentido. 4. O que está em conform idade com um a ordem , ou seja, com um a regra ou um a lei qual­ quer. Nesse sentido, são qualificados de {'. os fenôm enos naturais que o bedecem a leis, mas na realidade essa espécie de uniform idade e a precedente são a m esm a coisa, visto que um a lei científica nada mais é que um a uniform idade no sentido 3. Isso foi evidenciado por J. Stuart Mill (System ofLogic, 111, IV, I) (v. RKGULARIDADH). UNITARISMO (in. Vnitarianism; fr. Unitarisme, ai. Unilarismus. Vnitismus, it. Unitarismo). 1. C orrente religiosa que defende a u n id ad e de D eus, em oposição à fórm ula trinitária do cris­ tianism o. F.mbora se ligue a antigas heresias religiosas, o socinianismo (v.) foi a prim eira forma m oderna cie l'.. constituindo depois a cor­ rente religiosa mais tolerante e liberal do m un­ do m oderno. D esenvolveu-se quase exclusiva­ m ente na Inglaterra e na A m érica do N orte. Na Inglaterra, a Associação Unitarisía foi criada em 1825, e dela deriva o nom e assum ido por

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UNIVERSAIS, DISPUTA DOS essa corrente m esm o fora da associação ou em n u m ero sas outras associações da Inglaterra e da América do Norte. V. W. E. CIIANNING, Works, 1886; Unitciiian Christhuiity and Other lissays. ecl. I. H. Barlett, 1957; A. A. BOWMAN. 'IheAbsurdity ofCbristianity and Other Essays, ed. C. W . H endel, 1958. 2. E m alem ão, especialm ente, esse term o eqüivale a patiteísmo (v.). I-ichte diz: "Se per­ g un tássem os qual o caráter da teoria da ciência no que se refere a unitarismo (ev KOt Ttõv) e dua­ lism o, a resposta seria: ela é unitarism o em seu aspecto ideal por saber que, com o fundam ento de todo o saber, encontra-se o eterno Uno, que está além do saber; e é dualism o no aspecto real, ao pôr o saber com o real" ( Wísseuschafts/ehre, 1801, § 32, em Werke, 11, p. 89). UN IV ERSA IS, D ISPU TA D OS (in Contro­ versy about universais; fr. Querelle des universaux; ai. Universalienstreit: it. Disputa degli universaií). Essa ex p ressão d esigna a disputa sobre o .sVcí/m'ontológico dos II, (gêneros e es­ pécies), que com eçou na Escolástica do séc. XI e caracterizou toda a filosofia m edieval, con­ tin u an d o dep ois, com form as p o uco diferen­ tes, na filosofia m oderna. Essa disputa foi m o­ tivada por um trecho da Isagoge (Introdução) de Porfírio ás Categorias de A ristóteles e pelos com entários de B oécio a ela relativos. O trecho de Porfírio é o seguinte: "Dos g êneros e das espécies não direi aqui se subsistem ou se são ap en as postos no intelecto, nem — caso su b ­ sistam — se são corpóreos ou íncorpóreos, se sep arad os das coisas sensíveis ou situados nas coisas, ex p ressan d o seus caracteres com uns" Usag, 1). Das alternativas indicadas por Porfírio nesse trecho, apen as um a não se encontra na história da disputa: aquela seg u n d o a qual os If, seriam realidades corpóreas. Em co m p en sa­ ção, um a alternativa que Porfírio não previra verificou-se historicam ente, pelo m enos se­ gu n d o dizem : o II. não existe nem no intelecto e é ap enas um nom e, um Jlatus rocis. Essa é a solução atribuída a R oscelin po r S. A nselm o (De fide Trinitatis. 2) e por João de Salisbury (Metal.. II 13; Policrat., VII, 12). As soluções dadas a esses problem as na Escolástica e d e ­ pois dela foram m uito n u m e ro sa s, e m uitas vezes diferem por n inharias. Realismo (v.) e nominalismo (v.) são as soluções fundam en­ tais, mas O ckham , na refutaçào sistemática que quis fazer ao realism o , en u m erav a seis for­ m as fundam entais deste (In Seul, I, d. 2. q. 4-8;

UNIVBERSAIS, DISPUTA DOS

Quodl.. V, q. 10-14; Summa log., I, 15-17; v. O. de Ockbam, II, § 8-II).

AIÍBAGNANO,

Mas o fundamental para entender tanto a origem histórica da disputa quanto o alcance permanente que ela pode ter é que suas duas soluções fundamentais, realismo e nominalismo, correspondem às duas tendências funda­ mentais da lógica antiga e medieval, a platônicoaristotélica e a estóica. Essas duas tendências correspondem à lógica antiga e à lógica moder­ na, nomes medievais daquilo que mais tarde foi chamado de formalismo e de terminismo (v. THRMINISMO). A primeira dessas correntes defen­ dia as doutrinas lógicas tradicionais; a segunda, a doutrina da suposição (v.) e os raciocínios antinômicos. Os tratados lógicos da Idade Mé­ dia justapõem os dois troncos doutrinários, mas a inconciliabilidade e o antagonismo deles se manifesta na disputa dos U., que denuncia a presença ativa, na Escolástica, de uma tradição lógica antiaristotélica, que é a estóica, haurida nas obras de Boécio e de Cícero. Realismo e nominalismo constituem, portan­ to, as duas soluções típicas e iniciais do proble­ ma. Para o realismo, isto 6, para a tradição lógica platônico-aristotélica, o U. é, além de conceptus menlis, a essência necessária ou substância das coisas. Para o nominalismo, ou seja, para a tradi­ ção estoicizante, o U. é um signo das coisas. O realismo e o nominalismo medievais constituem, assim, as duas alternativas sempre presentes na teoria cio conceito (v. CONCEITO). Mais especificamente, no que diz respeito ao realismo, é possível distinguir três formas fundamentais, que podem ser chamadas de platonizante, aristotélica e semi-aristotélica. A forma platonizante do realismo é atribuída por Abelardo ao seu mestre Guilherme de Champeaux (séc. XI): o U. seria a substância, e os indivíduos constituiriam acidentes dessa subs­ tância (ABELARDO, (Euvres, ed. Cousin, p. 513). A solução aristotélica é a mais comumente de­ fendida na escolástica, sendo expressa por S. Tomás, para quem o U. está in re como forma ou substância das coisas, post rem como con­ ceito no intelecto e ante rem na mente divina como Idéia ou modelo das coisas criadas (In Sent., II, d. 3, q- 2, a. 2). Esses três U. perfazem apenas um, vale dizer, identificam-se com a essência, a substância ou a forma da coisa, que existe ab aeterno no intelecto divino e que o intelecto humano abstrai da coisa (S. Th, I, q. 85, a. I). Finalmente, pode ser chamada de

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UNIVERSAL

semi-aristotélica a solução encontrada por Duns Sce>t. segundo o qual o verdadeiro II. existe so­ mente no intelecto, enquanto nas coisas exis­ te uma natureza comum que se distingue formdlmente da individualidade das coisas, e não nuinericamente (Op. O.v., II, d. 3, q. 6, n. 15). O caráter peculiar dessa solução está no princí­ pio de distinção formal (v. DlSTINÇÃO), que é uma das características da filosofia de Duns Scot. Por outro lado, o nominalismo é mais unifor­ me- Excetuando a mencionada tese de Roscelin (sobre a qual, de resto, não existem documen­ tos convincentes), o nominalismo, de Abelardo a Ockham. sempre sustentou as mesmas teses fundamentais, a redução do l". â função lógi­ ca üvi pre<Jikvibiik.VAíAe, dividindo-se apenas no que' diz respeito á atribuição ou não de realida­ de psíquica ao V. Ockham mostra-se indiferen­ te ;i este último problema: nega, obviamente, que." o U. seja uma species (v.), mas considera indiferente identificá-lo com o ato do intelecto ou negar que tenha uma realidade qualquer na alnia (In Sent., I, cl. 2, q. 8, E). Seu caráter fundamental é a função de signo, isto é, a sitpoS!'çvi"(v,), Esses foram os princípios fundamen­ tais da lógica terminista depois de Ockham; no­ ção análoga de U. encontra-se na teoria do coriceito defendida pelo empirismo inglês a partir do séc. XVII: Locke, Berkeley e Hume (v. CONCEITO. 2). in.

UNIVERSAL (gr. Kcx8óÀoi); lat. Universalis; Universal; fr. Universeh ai. Allgemein, it.

Universale). Esse termo teve dois significados principais: lfc significado objetivo, em virtude

do qual indica uma determinação qualquer, que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas; 2P significado subjetivo, em virtude do qual indica a possibilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro e ao falso, ao belo e -ãú feio, ao bem e ao mal, etc.) ser válido para todos os seres racionais. lp O primeiro significado é o clássico; Aris­ tóteles diz que Sócrates foi o descobridor do universal (Met., XIII, 4, 1078 b 28). Nesse sen­ tido, o U. pode ser considerado no duplo as­ pecto ontológico e lógico. Ontologicamente, o U. t a forma, a idéia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas t que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em co­ mum. O U. ontológico é a forma ou a espécie de Platão (v., p. ex., Parm, 132 a) ou a forma ou substância de Aristóteles: por isso, este afirma­

UNIVERSAL

va ((ue só existe ciência do U. (Dean.. II, 5, 417 b 23). Logicamente, o II. é\ seg u n d o A ristóte­ les, "o que, por sua natureza, pode ser p red i­ cado de muitas coisas" (De int, 7, 17 a 39): d e­ finição que foi quase universalm ente aceita na história da filosofia. Foi o U. nesse sentido que os lógicos m edievais atribuíram o caráter de signo (v.) e a função de suposição (v.). Era este o Lt. que M. N izolio interpretava com o um todo coletivo ou m ultitudo rerum singularium , de m odo qu e a p rep o sição "o hom em é anim al" ou significaria "todos os h o m en s são anim ais" (De verísprincipiis, I, 6); a isso Leibniz contesta­ va que. ao contrário, se trata de um todo distributiro, e assim a p ro p o sição significa que este ou aquele hom em , seja ele qual for, é anim al (O p, ed. F.rdm ann, p. 70). D esse m odo, nesse a sp e c to L eibniz re p ro d u z ia su b sta n c ia lm e n ­ te a doutrina nom inalista da sup o sição do U. (OCKHAM, Sum m u log., I, 70). Está claro que LI., nesse sentido, não é senão outro no m e para conceito, signo ou significado: por isso, os p ro ­ blem as a ele relacio n ad o s devem ser co n sid e­ rados sob esses verbetes. Por outro lado, o status o n tológico cio II. dava ensejo à cham ada disputa so b re os U., que ocup o u boa parte da filosofia m edieval e de algum m odo continuou e continua na filoso­ fia m oderna (v. LIMVKRSAIS, DISPUTA DOS). C om o dissem os, o U. no significado ontológico é a form a ou a substância das coisas: conceito que não é so m en te aristotélico e m edieval. Locke tam bém observada que o fun d am en to da u n i­ versalidade das p ro p o siçõ es só pode ser a substância, com o nexo necessário que ela im ­ plica entre suas d eterm in açõ es, e que onde falta o con h ecim ento da substância a universa­ lidade não é rigorosa (Ensaio, IV, 6, 7). A nalo­ gam ente, Kant observava que a u n iversalidade em pírica nunca é rigorosa ou verdadeira, e que a universalidade autêntica precisa estar funda­ da nas form as a p rio ri do co n h ecim ento , ou seja, nas form as que constituem as coisas com o fenôm enos (Crít. R. Pura, Intr., II ). H egel. por sua vez. insistia na u n id ad e do LL e do particu­ lar, que é o V. concreto, Idéia ou C onceito Real. Portanto, ao ('. abstrato, que é co n trap o sto ao particular e ao indivíduo, ele co n trap u n h a o II. concreto , que é a essência ou a natu reza p o ­ sitiva do particular ( W issenschaft der Logik, II, livro III, seç. I. cap. I, A; trad. it., III, pp. 42 ss.), e considerava ser tarefa da filosofia conhecer o LL concreto: "É tarefa da filosofia dem onstrar.

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UNIVERSAL

contra o intelecto, que o verdadeiro, a Idéia, não co n siste em g e n e ra lid a d e s v azias, m as em uni II. que, em si m esm o, é o particular, o d e­ term inado" (G eschíchte der Phílosophie, ed. G lockner, I, p. 58). N o m esm o sentido, Croce escrevia: "Se o conceito é LI. tran scen d en te em relação à representação singular, tom ada na sua singularidade abstrata, por outro lado é im anente em todas as rep resen taçõ es, portanto tam ­ bém na singular", identificando assim conceito com razão ou idéia (Lógica, 1920, p. 28). A "concníçào cio II." de que falam os escritores idea­ listas nada m ais é que o status ontológico atri­ b u íd o ao II. pela m etafísica tradicional. A o LL o ntológico ligam -se tam bém alguns outros usos do term o universal. Assim , "histó­ ria Vi." é a história que tem por objeto a form a ou a ordem global do m un do h um ano (v. H IS ­ TÓRIA). A "gravitaçào U." é um a força ou um princípio que rege a totalidade do m undo, e asfíim por diante. N estes usos do term o o seu significado objetivo está u n id o ao seu alcance ontológico. 2" N o seg u n d o significa, U. é o que é ou deve ser válido para todos. O conceito de U. n esse sentido nasceu no dom ínio da análise dos sentim entos, esp ecialm ente dos sentim en­ tos estéticos (v. G os'i'o). Já H um e se p rop un ha pro cu rar um a regra do gosto, "por m eio da qual possam ser h arm on izado s os vários senti­ m entos dos hom ens" (físsays, I, pp. 268 ss.), m;is foi K ant que, além de usar esse tipo de univ ersalidade no d om ínio da estética, esten­ deu-o para o d om ínio m oral e elucidou suas características específicas, definindo-o com o validade com um ou universalidade subjetiva. N o que diz respeito à esfera estética, Kant via no ju ízo de gosto sim plesm ente "a n ecessid ade objetiva de concordância do sentim ento de cada uni com o nosso próp rio sentim ento", e nesse sentido definia o belo com o "um prazer n eces­ sário", no sentido de ser um prazer que todos devem sentir do m esm o m odo (Crít. doJuízo, § 22.). N o dom ínio da ética, Kant afirm ava que unia lei só é prática se for "válida para a v o n ­ tade de to do s os seres racionais" (Crít. R. P rá­ tica, § 1), e considerava a un iversalidade subje­ tiva (possibilidade cie um a m áxim a valer com o lei para todo s os seres racionais) o critério para ju lgar se um a m áxim a é ou não um a lei m oral (Crundlegung der Metaphysik der Sitten, II). M as ele tam bém evidenciava a diferença entre essa u niversalidade subjetiva e a universalida­

UNIVERSALISMO de objetiva. Dizia: "Cada ju ízo objetivam ente U. é sem pre subjetivo; isso significa que, q u an ­ do o ju ízo é válido para tu d o qu e está com ­ p reen d id o em d ad o conceito, tam bém é válido para qualquer um que represente ura objeto .se­ gundo esse conceito". T odavia, o inverso nem sem pre é v erd ad eiro , isto é, nem to d o juízo que tem universalidade subjetiva ou v alidade com um tam bém é objetivam ente U.; esse é o caso da universalidade estética, que possui uni­ versalidade subjetiva, m as não objetiva (Crít. do Juízo, § 8). A partir de Kant, a u n iv ersalid ad e subjetiva to rn ou -se lugar-com um em filosofia, tanto qu anto a n oção de validade (v.), T alvez com m ais exatidão, essa esp écie de 1J. é hoje indicada pelo term o intersubjetivo (v.). A referência à intersubjetividade constitui o significado d esse term o em m uitas ex p res­ sões correntes, com o "linguagem II.". "educa­ ção li" , "consenso U.". "am or II.", etc. E m ou­ tras ex pressões, esse term o p o d e ter tanto o significado subjetivo qu an to o objetivo e lógi­ co: ]>. ex., "gênio II.". que p o d e ser en ten d id o com o o gênio que to d o s devem reco n h ecer ou recon hecem , ou com o o gên io que é gên io em relação a q u alq u er ram o do co n h ecim ento . UNIVERSALISMO (in. Univeisalism, h. Universalisme, A.llniversalismus-, it. Universalismo). 1. K m sen tid o teológico, doutrina de que D eus quer salvar todos os hom ens, não existindo, pois, pred estinação à danação. K a doutrina susten­ tada, entre outros, por Leibniz, que nesse senti­ do fala da oposição entre "universalistas" e "particularistas" Clhéod.. 1. § 80). 2. Fm sentido ético, qu alq u er doutrina co n ­ trária ao individualism o que afirm e a su b o rd i­ nação cio indivíduo a um a co m u n id ad e q u al­ quer (listado, povo, naçào, h u m an id ad e, e tc ). UNIVERSALIZAÇÃO. V. GKNKRAUZACÀO. UNIVERSO (gr. tò Tlãv: lat. Universum; in. Universe, fr. Univers-, ai. ['niversunv. it. Univer­ so). 1. Um todo qualquer: p. ex., "II. do discur­ so", "U. das estrelas fixas" ou "II. visível". 2. C) todo da natureza física, sem m encionar sua ordem . Este é o significado atribuído a esse term o por A ristóteles (Met, V. 26, 1024 a I) e pelos estóicos (J. STOHKO. Hei, I, 21, pp. 442 ss.). 3. O m esm o que mundo. Este uso prevalece entre os m od ern o s (v. M iw no; ToTAUnAOH; T o n o). UNIVERSO DO DISCURSO (in. Universo o f discourse, fr. U nivers du d iscou rs-, it. U niverso dei discorso). Esta expressão foi introduzida por

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UNÍVOCO e EQUÍVOCO D e M organ (Form al Logic, 1847, p. 37) e divulgada por B oole (Lairs o f Tbought, 1854, III, § 4) para indicar, em geral, "a ex tensão do cam po em cujo interior estão todo s os objetos do n o sso discurso". M ais tard e e com m aior precisão, esse term o passou a indicar, na álgebra da lógica, um a cias­ se não vazia, da qual, e so m ente da qual, sejam extraídos to d o s os elem en to s com que são constituídas to das as classes sobre as quais o cálculo é feito. D aí se co nclui facilm ente que o U. do discurso é a som a lógica de todas as classes que p o d em ser form adas com tais ele­ m entos. É indicado com o sím bolo "v" ou "1". N a interpretação proposicional. será constituí­ do pela disjunção (som a lógica) de todas as p ro p o siçõ es sobre as quais é feito o cálculo, ou da conjunção (produto lógico) de todas as pro­ p o siçõ es v erdad eiras. N a lógica das relações, o U. do discurso é, ainda, form ado por tod os os elem entos que podem entrar nas relações con sideradas; nesse caso deve conter pelo m enos dois elem entos, se forem consideradas apenas relações diádicas; pelo m enos três elem entos, se forem considera­ das tam bém as relações triádicas... pelo m enos n elem en tos se forem co nsid eradas as relações w -ádicas. A relação-U . é a relação "a v b" que existe entre to dos os pares possíveis de ele­ m entos do universo. N a lógica co n tem p o rân ea, esse conceito p erd eu im portância: q u an d o usado, é-o no sentido acim a definido. N a prática, porém , usase com freqüência a ex pressão "li. do discur­ so", para indicar o conjunto de elem entos (ter­ m os e p roposições) que constituem o cam po de d eterm inad a disciplina. G. P. UNÍVOCO e EQUÍVOCO (gr cnwcóvuuoç óJ.(óviJ(iOÇ; lat. Unívocus, aequivocus; in. Univocal equivocai; fr. Univoqtie, equivoque, ai. Eindeutig, Aequivok, it. Univoco. equivoco). Es­ tes dois term os receberam definições diferentes, seg u n d o tenh am sido atribuídos ao objeto ou ao conceito (ou nom e). 1. A ristóteles atribuiu-os ao objeto e enten­ deu por unívocos (ou sinônim os) os objetos que têm em com um tanto o nom e quanto a defi­ nição do nom e: assim , p. ex., tanto o hom em q u an to o boi são cham ad os cie anim ais. Cha­ m ou de equívocos (ou hom ônim os) os objetos que têm o n om e em com um , en q u an to as de­ finições evocadas pelo nom e são diferentes: nesse sentido, cham a-se de anim al tanto o lio-

URDOXA ou URGLAUBE m em q uan to um d esen h o (Cat., I, Ia I-II). Es­ sas definições sào rep etidas com freqüência na escolástica (p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. Log;., 301) e en co n tram -se em lógicos m ais recentes (p. ex., JUNGIUS, Lógicahamburgensis, I, 2, 4-9). 2. A lógica term inista julg o u "im própria" a referência dos dois term o s aos objetos e julg o u que eles deveriam referir-se propriam ente a p e­ nas aos signos, ou seja, aos conceitos ou n o ­ m es. D esse p o n to de vista, as definições de O ckham são as seguintes. "U. é ou a palavra ou o signo convencional que co rresp o n d e a um único conceito ou, m ais estritam ente, 6 aquilo que, por si só, p o d e ser p red icad o de várias coisas, ou é o p ro n o m e dem onstrativo de um a coisa. Equívoco, por outro lado, é o nom e que, significando várias coisas, não está su b o rd in a­ do a um único conceito, m as é único signo de vários conceitos ou intenções da alm a. O U. p od e derivar do acaso, com o acontece q u an d o o nom e de Sócrates 6 im posto a vários hom ens, ou de deliberação, quando se im põe certo no m e a certas coisas e se o sub o rd in a a um único conceito, m as depois, graças à sem elhança d es­ se conceito com outros, esten d e-se a outros o m esm o nom e" (Surnma log, I, 13). A inda hoje esses term os receb em as defini­ ções term inistas. A s discussões so b re a n atu re­ za da Linivocidade tinham im ediata ressonância teológica na Idade M édia; q uanto à disputa en ­ tre os defensores da linivocidade e os da analogicidade do ser, v. ANALOGIA. U RDO X A ou URGLAUBE. H usserl usou esse term o (que significa crença originária) para indicar a certeza qu e caracteriza a crença, ou seja, a referência segura da crença a um objeto existente (Ideen, I, § 104) (v. CRENÇA). URPHAENOMENON. T erm o u sad o por G oethe, que explicava da seguinte form a o seu conceito: "Na experiência, o m ais das vezes ca p ­ tam os apenas casos que, com certa atenção, p o ­ dem ser en q u a d ra d o s em rub ricas em píricas gerais. Estas, por sua vez, subordinam -se a rubri­ cas científicas que rem etem m ais além , de for­ m a que acabam os co n h e cen d o m elhor algu­ m as cond içõ es indispensáveis do que aparece. D aí para a frente, tu d o se sistem atiza g rad u al­ m ente sob regras e leis su p erio res, que não se m anifestam ao intelecto por m eio de palavras e hipóteses, m as à intuição por m eio de fenôm e­ nos. São estes os fen ô m en o s que cham am os de originários, p o rq u e na aparência nada está aci­

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ÚTIL m a deles, e, assim com o antes subim os, eles nos perm item descer g radu alm ente até o caso mais co m u m da experiência cotidiana". (Farbenlehre, 1808, § 175). USIOLOGIA (in. Usiology, fr. Asiologie; ai. Usíologie, it. Usiologia). D outrina das essências. T erm o raro. USO (in. Use, fr. Usage, ai. Gehrauch; it. Uso). O ato ou o m odo de em p regar m eios, instrum entos ou utensílios. Esse term o é usado em filosofia so b retu d o com referência a instru­ m entos ou m eios intelectuais ou com referên­ cia à própria razão. Kant falou de U. lógico da razão, por m eio cio qual são feitas inferências im ediatas, isto é, silogísticas, e de U. puro, por m eio do qual a razão se faz "uma fonte e sp e ­ cial de co nceitos e de juízos". Este últim o é o U. dialético da razão {Críl. R. Pura, D ialética, Intr., II, B-C). Kant distinguiu tam bém o II. teóricoc o U.prãtico&A razão ICrít. R. Pura, Pref. à segunda ed.) e finalm ente fez a distinção en­ tre U. empírico dos conceitos, que significa a sua referência a objetos da experiência possí­ vel, e U. transcendental, que significa a sua refe­ rência a objetos que estão além de tal ex p e­ riência (v. TRANSCENDENTAL). W ittgenstein lançou m ão da n oção de U. para definir o significado dos term os lingüísticos: "Para um a am pla classe de casos — em bora não para to d o s — nos quais em p reg am o s a palavra 'significado', ela po de ser assim defini­ da: o significado de um a palavra é o seu II. na linguagem " (Philosophical Investigations, § 43) (v. LINGUAGEM; SIGNIFICADO). O s lógicos co n tem p o rân eo s fazem a distin­ ção entre U. de um a palavra e sua menção. N a frase "o hom em é um anim al racional", a pala­ vra "hom em " é u sada m as não m encionada. A o contrário, a frase "em po rtugu ês, a tradução de man tem cinco letras", a palavra hom em é m encionada m as não usada. Finalm ente, na frase "a palavra hom em tem cinco letras" a palavra ho m em é ao m esm o tem p o usada e m encionada. Este últim o U. foj cham ado pelos escolásticos de suposição material (v. SUPOSI­ ÇÃO) e por C arnap de U. antônimo (CARNAP, lógica! Syntax ofLanguage, § 64; QUINE, Methods of Logic, § 7; CHURCH, Introductkm to MathematicalLogic, § 80). ÚTIL (in. Useful; fr. Utile, ai. Nützlícb; it. Utile). 1. O que é m eio ou instrum ento para um fim qualqu er. N esse sen tid o , a utilidade foi definida por A lberto M agno (S. Th, I, q. 8,

UTILIDADE MARGINAL a. 3), G eulinex (Ethica, III. 6) e H aum garten (Met., § 336); é um caráter das coisas. 2. M ais especificam ente, a partir de H obbes, cham ou-se de U. o que serve à conservação do hom em ou, em geral, satisfaz às suas n ecessi­ dades ou aten d e aos seu s interesses. H obbes afirm ava, a p ro p ó sito , que cada hom em é por direito natural árbitro do que lhe é U., e que "a m edida do direito é a utilidade"(D e eii>e, 1642, 1, 9-10). S eguindo H o bb es, Spinoza identifica­ va o com portam ento racional do hom em com a procura cio Ú.-. "A razão, não exigindo nada de contrário à natureza, req u er por si só, antes de m ais nada, que cada um se am e e procure o que lhe é U. e qu e realm ente assim seja." Entre as m uitas coisas Ú. e desejáveis, as m ais im por­ tantes são as que convém à natureza hum ana; por isso. a m ais im p o rtan te de to d as 6 a co n ­ servação do hom em , na sua própria pessoa e na do outro. "Os hom ens que são g overnados pela razão, ou seja, os que procuram o que lhe é U. seg un do a direção da razão, não desejam para si nada que tam bém não desejem para os outros ho m ens ju sto s, fiéis e honestos" (Et., IV, 18, schol.). N esse sen tid o , por um lado a utilidade torn ou -se fun d am en to da doutrina m oral cha­ m ada utilitarism o(v) e, por outro lado, conceito fundam ental da econom ia política (v.). N a pri­ m eira direção, H um e já perguntava ''por que a utilidade agrada", e encontrava a resposta a esta pergunta na natural sim patia do hom em para com o outro h o m em (Inq. Cone. M orais, V). A coincidência da utilidade individual com a social estava assim já postulada e passou a ser um dos tem as do m ilitarism o. B entham definia utilida­ de com o "a p ro p ried ad e de um objeto em vir­ tude da qual ele tend e a produzir benefício, vantagem , prazer, bem ou felicidade (Introduetion to the Principies ofMorais, 1789. I, I). N o cam po da econom ia política, por U. enten­ deu-se habitualm ente "tudo o que satisfaz um a necessidade"; a p ercep ção de que nem sem pre o que satisfaz um a n ecessid ad e econôm ica (é desejado com o tal) satisfaz a n ecessid ad e b io ­ lógica induziu Pareto a introduzir a n oção de ofelim idade (v.), que é o Ú. no contexto eco ­ nôm ico (Traité déconom iepolitique, n. 2028). UTILIDADE MARGINAL. V. ECONOM IA P O ­ LÍTICA. UTILITARISM O (in. Utilitarianísm; fr. Utilüarism e, A .JM litarism us; it. U tilitarismo). Em ­ bora se possa dizer que a identificação do bom

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UTILITARISMO c o m o útil rem onta a E picuro (v. ÉTICA), d o p o n to de vista histórico, o U. é um a corrente do p en sam en to ético, político e eco nô m ico inglês dos sécs. XVIII e XIX. Stuart Mill afirmou ter sido o prim eiro a usar a palavra utilitarista (utilitarian), extraindo-a de um a ex pressão usada por G alt em A nuais ofP aris (1812); de fato, a ele se deve o sucesso desse nom e. C ontudo, essa palavra foi usada ocasionalm ente por Bentham , a primeira vez em 1781. Os aspectos essen ­ ciais do li. po dem ser resum ido s do m odo se­ guinte: le E m prim eiro lugar, o U. é a tentativa de transform ar a ética em ciência positiva da con­ duta hum ana, ciência que B entham queria tor­ nar "exata com o a m atem ática" (Inlroduction to the P rincipies o f M orais, em Works, I, p. V). Essa característica faz do U. um aspecto funda­ m ental do m ovim ento positivista, ao m esm o tem p o em que lh e garante um lugar im portan­ te na história da ética (v.). 2- Por co nsegu inte, o U. substitui a co nsid e­ ração do fim, derivado da natureza m etafísica do hom em , pela con sideração dos m óveis que levam o ho m em a agir. N isto, liga-se à tradição hedonista, que v ê no prazer o único m óvel a que o hom em ou, em geral, o ser vivo, o b ed e­ c e (v. HEDONISMO). N esse aspecto, assim com o no p reced en te, o U. foi tratad o so b retu d o por J. B entham (1748-1832). 3S R econhecim ento do caráter supra-individual ou intersubjetivo do prazer com o m óvel, de tal m o do que o fim de q ualqu er atividade hum ana é "a m aior felicidade possível, com parti­ lhada pelo m aior n ú m ero possível de pessoas": fórm ula enunciada p rim eiram ente por Cesare Beecaria (Dei diritti e dellepene, 1764, § 3) e aceita por B entham e por todo s os utilitaristas ingleses. A aceitação dessa fórm ula su p õ e a coincidência entre utilidade individual e utili­ dade pública, que foi adm itida por to d o o libe­ ralism o m o d ern o (v. LIBERALISMO). A obra d e Jam es Mill e de Stuart Mill dedicaram -se principal­ m ente a justificar essa coincidência. Para Jam es Mill, ela decorria da lei da associação psicoló­ gica: cada um deseja a felicidade alheia porque ela está intim am ente associada com a sua pró­ pria felicidade (Analysis o f the P henom ena o f theH um anM ind, ed. 1869, II, pp. 351 ss.). Para Stuart Mill essa m esm a vinculação estava ligada ao sen tim ento de u n id ad e h um ana, que Com te evidenciara com sua religião da hum anidade (U tilitarianism, 2a ed., 1871, p. 61).

UTOPIA

4" A ssociação estreita do U. com as d o u tri­ nas da nascen te ciência econôm ica. D ois dos fundadores dessa ciência, M althus (1766-1834) e David Ricardo (1772-1823), foram m ilitaristas e com partilharam o espírito positivo e reform a­ dor do U. 5U Espírito reform ador dos m ilitaristas no cam po político e social: preocuparam -se em pôr sua doutrina m oral a serviço de reform as que deveriam au m en tar o b em -estar e felicidade dos h om en s em v ário s cam pos. N esse aspecto, o U. tam b ém foi d en o m in ad o radicalismo. Cf. S. LKSLIF, The English Utilitarians, três vols., 1900; E. ALBEE, A History ofEnglísh Utilitarianism, 1901, 2- e d , 1957. UTOPIA (lat. Utopia; in. Utopia; fr. Utopie, ai. Utopie; it. Utopia). T hom as M ore deu esse no m e a um a esp écie de rom an ce filosófico (De

optimo reípublicaestatu deque nova insula Uto­ pia, 1516), no qual relatava as co n d içõ es de vida num a ilha desco n h ecid a d en o m in ad a U.: nela teriam sido abolidas a p ro p ried ad e priva­ da e a intolerância religiosa. D epois disso, esse term o passou a designar não só q u alq u er te n ­ tativa análoga, tanto anterior q u an to posterior (com o a República de Platão ou a Cidade do Sol de C am panella), m as tam bém q u alq u er ideal político, social ou religioso de realização difícil ou im possível. C om o g ên ero literário, U. extrapola a consi­ deração filosófica: aqui só ob serv arem o s que ela foi e ainda é m uito divulgada, sen d o ad a p ­ tada até para rom ances de ficção científica. Cabe à filosofia avaliar a U., tanto a expressa em form a de rom an ce qu an to a expressa em form a de m ito ou ideologia, etc; qu an to a essa avaliação, os filósofos não estão de acordo. Para Com te, cabia à U. a tarefa de m elhorar as instituições políticas e de desenvolver as idéias científicas (Politiquepositive, I, p. 285). M arx e Engels, ao contrário, condenaram com o "utópi­ cas" as form as assum idas pelo socialism o em Saint Sim on, Fourier e P ro u d h o n, co n trap o n d o a elas o socialism o "científico", que prevê a transform ação infalível do sistem a capitalista em sistem a com unista, m as exclui qualquer previsão sobre a form a que será assum ida pela

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UTOPIA so cied ad e futura e q ualqu er program a para ela (v. SOCIALISMO). NO m esm o sentido , á U. — "obra de teóricos que, depo is de observarem e discutirem os fatos, p ro curam estabelecer um m odelo ao qual possam ser com paradas as socie­ d ad es existentes para m edir o bem e o mal que encerram " — Sorel co ntrap unh a o mito, ex­ pressão cie um grup o social que se prepara para a rev olu ção (Keflexions surIa violence, 4ed., p. 46). M annheim , ao contrário, co n sid e­ rem a 13. com o algo destinado a realizar-se, ao contrário da ideologia (v.), que nunca co n se­ guiria realizar-se. N esse sentido, a U. seria o fun­ d am en to da ren ovação social (Ideologie und Utopie, 1929, II, I; v. R. K. MKRTON, Social Theory and Social Stmcture, 1957, 33 ed., cap. XIII). E m geral, p o d e-se dizer que a U. representa a correção ou a integração ideal de um a situa­ ção política, social ou religiosa existente. C om o m uitas vezes aconteceu, essa correção p o d e fi­ car no estágio de sim ples aspiração ou sonh o genérico, reso lven do -se num a espécie de eva­ são da realidade vivida. M as tam bém p od e to r­ nar-se força cie transform ação da realidade, assum indo corpo e consistência suficientes p a­ ra transform ar-se em autêntica v o n tad e inova­ dora e en co ntrar os m eios da inovação. Em geral, essa palavra é considerada mais com re­ ferência à prim eira po ssibilidade que ã seg u n ­ da. A o prim eiro significado está ligada a cha­ m ada "teoria crítica da sociedade", desenvolvida por H orkheim er, A dorno e M arcuse (especial­ m ente por este últim o), que se concentra so ­ b retudo na crítica arrasadora da sociedade con­ tem p orânea. M arcuse escreveu: "A teoria crítica da sociedade não possui conceitos que possam lançar um a p o n te entre o presente e o futuro, não faz prom essas e não mostra sucessos, m as p erm an ece negativa" (One Dimensional Man, 1964, p. 257). E ainda: "Se hoje p u déssem o s form ular um a idéia concreta cia alternativa, não seria a de um a alternativa: as p ossibilidades da nova so cied ad e são tão abstratas, tão distantes e incôngruas em relação ao universo de hoje, qu e levariam ao m alogro q ualqu er tentativa de ick'ntificá-la em term os deste universo" (An Essay on Liberation, 1969; trad. it., p. 101).

V VACUÍSTAS (in. Vacnisls; fr. Vacuistes; ai. Vacuisten). Com este term o ou com o term o antiplenistas. são design ad o s os defensores da teoria do espaço vazio, en q u an to seus adversá­ rios foram ch am ad o s de plenistas (v. LASSVCITZ, C eschichte der A tom istik, II, p. 291). VÁCUO ou V A ZIO (gr. Kevóv; lat. Vaccum, in. Vaatum; fr. Vide, ai. Leere, it. Vuoto). A exis­ tência do V. é um dos asp ecto s fundam entais da con cep ção do espaço com o co n tinen te dos objetos (v. ESPAÇO). Leibniz falou de um "V. de form as" (vacttum form arum ) , que existiria se não existissem substâncias capazes de todos os graus de percep ção , tanto inferiores q u an to su ­ periores aos ho m en s (O p, ed. Erdm ann, p. 43D . V AGO (in. Vagne.fr. Vague, ai. Unbestimm t; it. Vago). D iz-se que um a palavra (ou um co n ­ ceito ou um a proposição) é V. se o seu signi­ ficado não for suficientem ente d eterm in ad o , de tal m odo q u e haverá casos em que p a re ­ cerá im possível decidir se ela é aplicável ou não. Assim a palavra distante é V. p o rq u e existem casos nos quais é im possível decidir se é p ossível falar de distân cia ou não; e n tre ­ tanto, não é V. a expressão "distante trinta q u ilô ­ m etros". Peirce definiu esse term o da seguinte m aneira: "Uma proposição é V. sem pre que se­ jam possíveis estados cie coisas tais que quem fala, m esm o os contem plando, ficaria intnnsecam ente indeciso quanto a serem afirm ados ou neg ad o s na proposição. Por intrínsecam ente indeciso p reten d em o s falar do que é duvidoso, não pela ignorância de quem interpreta, m as pela indeterm inaçào da linguagem de quem fala" (em BALDWIN, D ictionary ofP bilosophy. II, p. 748). A indeterm inaçào não deve ser iden­ tificada com am bigüidade nem com g en erali­

dad e, li. Russell, p orém , insistiu na dificulda­ de de distinguir o V. do geral, inclinando-se â in terp retação subjetiva da incerteza inerente ao que é V. (Analysis ofM ind, 1921, p. 184). M ax Black fez um a análise exaustiva da noção de V., p ro v o c a n d o um a d isc u ssão m uito fér­ til a esse p ro pósito (Vagueness em I.anguage a nd Philosophy, 1952, cap. II; na tradução ita­ liana, Vangueness é trad uzido por Indeterm inatezzci). VAIDA D E (in. Vcinity, fr. Vanité,ã\. Eitelkeit; it. Vanità. 1. N ulidade, coisa vã. É nesse sentido que essa palavra é em p reg ad a freqüentem ente na Bíblia (v. H clesiastes, 1, 2: "V. das V., disse o Eclesiastes; V. das V., é tu d o V."). 2. A m bição m esquinh a, vangloria, egocen­ trismo (v.). VAISESICA. U m dos principais sistem as fi­ losóficos cia índia antiga, cuja fundação é atribuí­ da a um brâm ane cham ado kanada, que afir­ m ou um a espécie de atom ism o, considerando que a m atéria é form ada por elem entos in­ divisíveis e se caracteriza por seis determ ina­ ções fundam entais: substância, qualidade, m o­ vim ento, generalidade, particularidade e inerênria. Esse sistem a tam bém adm ite a existência das alm as, dem on strada, por inferência, a par­ tir da im possibilidade de atribuir ao corpo even­ tos com o o con hecim ento , o prazer, o amor, etc; tam bém adm itia a existência de D eus, con­ sid erado com o causa e regulador do Karman (v. G. T rcci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 112 ss.). V A L Ê N C IA O n Valency, fr. Valence,á\. Wertheit-, it. Valenza). C o rresp o nd en te objetivo ou no em árico do valor, seg u n d o H usserl: "Por um lado falam os da sim ples coisa que é 'valente', tem caráter de valor, tem V.; por outro, falamos

VALIDADE

dos próprios valores co ncretos ou da objetivi­ dade de valor" (Ldeen, I, § 95). Peirce estabelecera um a analogia entre as p ro p ried ad es das p ro p o siçõ es e a V. quím ica (Coll. Pap., 3, 470-71). VALIDADE (in. Validity, fr. Validité. ai. Gtiltigkeit; it. Validitã). 1. U niversalidade subjetiva (v. UNIVERSALIDADE, 2): n esse sentido, é válido o que é (ou deve ser) reco n h ecid o com o ver­ dadeiro, bom . belo, etc. por todos. 2. C onform idade com regras de p ro ced i­ m ento estabelecidas ou reco n h ecid as. N esse sentido, diz-se que há v alidade na inferência que se conform e às regras da lógica, na lei que se conform e às regras constitucionais, na sen ­ tença que se conform e às leis, na ordem que seja ciada peia p essoa a q u em caije ciá-ia e nas form as estabelecidas pelas regras. Com esse sentido, V. deve ser distinguida de v alores de verdade, de justiça, etc. D e fato, um a inferência válida, isto é, realizada em conform idade com regras lógicas, não é um a inferência v erd ad ei­ ra, m as só será v erdadeira se as suas prem issas forem verdadeiras. Assim , um a lei ou um a sen ­ tença válidas nem por isso são justas, etc. (v., sobre a V. lógica nesse sentido, Peirce, Coll. Pap., 3168; 7.461). 3. U tilidade ou eficiência de um m eio ou de um instaim ento qualquer. N esse sentido, D ew ey afirmou que as pro p o siçõ es, com o m eios processivos para conduzir um a pesquisa, não são verdadeiras nem falsas, m as apenas válidas (só­ lidas, eficientes) ou inválidas (débeis, in ad e­ quadas) (Logic, XV; trad. it., pp. 382-83). É a esse significado de V. que se apela sem p re que se usa a ex p ressão válido para. O que se segue ao para é o fim ou a função em relação à qual se considera eficiente o instrum ento, o m eio ou a condição de que se trata. P. ex., um bilhete de viagem é válido para determ in ad o percurso; determ inada organização é válida para d eterm i­ nadas funções, etc. 4. Mais particularm ente e no dom ínio da lógi­ ca, C arnap p ro p ô s que se ch am asse de válido o enu nciad o (ou a classe de enunciados) que seja co nseq ü ên cia de um a classe nula de en u n ­ ciados, e de contraválido o en u n ciad o do qual qualquer en u n ciad o possa ser co n seqüência. O s dois term os, n esse sentido, co rresp o n d em , respectivam ente, a analítico e contraditório (lhe Logical Syntax ofImigmige, § 48). A nalogicam ente. Q uine propôs cham ar de válido o es­ quem a lógico que continua verdadeiro seja qual for a interpretação dada a seus sím bolos. P. ex..

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VALOR

o esq uem a p(p é um esquem a válido, en q u a n ­ to o esquem a p. V/é coerente, m as não é válido, p o rq u e é só verd ad eiro q u an do p é interp reta­ do com o v erdad eiro e q com o falso (Methods ofLogic, § 6). N esse sentido, V . significa apenas analiticidade ou v erd ad e lógica. VALOR (gr. à%ía-, lat. Aestimabüe. in. Value, fr. Valeur, ai. Wert; it. Valore). Em geral, o que dííve ser objeto de preferência ou de escolha. D esde a A ntigüidade essa palavra foi usada para indicar a utilidade ou o preço dos bens m ateriais e a dig nid ade ou o m érito das pessoas. C ontu­ do, esse uso não tem significado filosófico por­ qu e não deu origem a problem as filosóficos. O uso filosófico do term o só com eça q u an do seu significado é g eneralizad o para indicar qualquerobjeto de preferência ou de escoiiia, o que acontece pela prim eira vez com os estóicos, que introduziram o term o no dom ínio da ética e cham aram de V. os objetos de escolha m oral. Isso p o rq u e eles entendiam o bem em sentido subjetivo (v. BEM , 2). p o d en d o assim considerar os b en s e suas relações hierárquicas com o objetos de preferência ou de escolha. Por V., em geral, en ten d eram "qualquer contri­ b uição para um a vida segu ndo a razão" (DIÓG. L-, Vil, 105), ou, com o diz Cícero, "o qu e está em conform idade com a natureza ou é digno de escolha (selectionedignam): (De finibus, III, 6, 20). Por "estar em conform idade com a natu­ reza", entendiam o que deve ser escolhido em todos os casos, ou seja, a virtude; com o "digno de escolha", entendiam os bens a que se deve da.r preferência, com o talento, arte, progresso, entre as coisas do espírito; saúde, força, beleza entre as do corpo; riqueza, fama, nobreza, entre as coisas externas (DIÓG. L, VII, 105-06). A divi­ são entre V. obrigatórios e V. preferenciais será m ais tarde expressa com o divisão entre V. in­ trínsecos ou finais e valores extrínsecos ou ins­ trum entais. A retom ada dessa no ção no m und o m o der­ no só ocorre com a retom ada da noção subjetiva de bem : isso acontece com H obbes: "O V. de uin hom em , com o o de todas as outras coisas, é seu preço, o qu e poderia ser pago pelo uso do suas faculdades: p ortanto, não é absoluto, m as d ep e n d e da n ecessidad e e do ju ízo de outro. O preço de um hábil com an d an te militar é alto em tem po de guerra, p resen te ou imi­ nente, m as não em tem p o s de paz" (Leviath., I, § 10). T odavia, a noção de V. só suplantou a de bem nas discussões m orais do séc. XIX, e m es­ m o nessa época isso aconteceu po rq u e foi

VALOR

estendido o significado do term o que funda­ m entava então as ciências eco n ô m icas (v. E C O ­ NOMIA POLÍTICA). K ant identificara o bem com o V. em geral: "Cada um cham a de bem aquilo que aprecia e aprova, isto é, aquilo em que há um V. objetivo"; e acrescentava que n esse sen ­ tido o bem é bem para tod o s os seres racionais (Crít. doJuízo, § 5). N o entan to , lim itava-se a designar com a palavra V. o bem objetivo, ex­ cluindo o agradável e o belo. A extensão do ter­ m o para indicar não só o bem , m as tam b ém o verdadeiro e o belo, se deve aos K antianos, prin­ cipalmente à corrente psicologista do K antism o. P olem izando contra o pró p rio Kant, B eneke afirm ava que a m o ralid ade não p o d e d eterm i­ nar um a lei u n iv ersal da co n d u ta , m as p o d e e deve determ inar a o rd em dos V. que devem ser preferidos nas esco lh as individuais; os pró p rios V. são d eterm in ad o s pelo sen tim en to (G rundlinien der Síttenlehre, 1837, I, pp. 231 ss; G rundlinien des Naturrechtes, 1838, I, pp. 41 ss.). Essa orien tação da ética para os V., em filósofos que se inspiravam em Kant, sem dú ­ vida é devida à tend ên cia p sicologizante, que tem com o corolário a n oção subjetivista do bem . M as foi principalm ente W indelband quem falou, nos ensaios d ep o is reu n id o s em P relúdíos (1884), de um "V. de v erd ad e" e de um "V. de beleza", além de um "V. de bem ". Para a difu­ são d esse conceito e do term o V., N ietzsche contribuiu m uito com suas obras fundam entais Jenseítsvon G ut undBóse(1886) e ZurG enealog ie der M oral (1887). Foi m ais ou m enos a partir dessa época que o conceito de V. passa a ser fundam ental em filosofia, e as discussões em torno dele esgotam quase totalm ente o cam ­ po dos p ro b lem as m orais. É tam bém a partir da m esm a época que tend e a rep ro d u zir-se, no cam po da teoria dos V., um a divisão análoga à que caracterizara a teoria do bem : entre um conceito m etafísico ou absolutista e um conceito em pirista ou subjetívisla do V. O prim eiro atribui ao V. um status m etafísico, que in d ep en d e co m p letam en te das suas relações com o hom em . O seg u n d o consi­ dera o m odo de ser do V. em estreita relação com o hom em ou com as atividades hum anas. A pri­ m eira con cep ção é m otivada pela intenção de subtrair o V., ou m elhor, d eterm in ad o s valores e m odos de vida neles fundados, à dúvida, à crítica e à negação: essa inten ção parece pueril, se pensarm os que o v. m ais so lidam ente an co ­ rado na consciência dos ho m en s e que m ais paixões provoca tam bém é o v. m ais m utável e

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relativ o , a tal p o n to q u e às v ez es os filósofos se recusam p u d icam en te a considerá-lo au tên­ tico: o V .-dinheiro. 1Q A prim eira co n c ep çã o deve, por um la­ do, insistir na ligação do V. com o hom em e por outro na in d ep en d ên cia do V. A prim eira d eterm in ação é, de fato, constitutiva do V. e m arca a característica que o distingue do bem, com o é tradicion alm ente en ten d id o . A segun ­ da d eterm inação visa a conferir caráter absolu­ to ao V. O conceito K antiano do apriori pare­ cia conter am bas as determ inações; por isso, com W indelband e Rickent o conceito de V. foi elabo­ rado em relação com o de apriori. Para W indelband, o V. é o dever-ser de um a norm a que tam ­ bém p o d e não se realizar de fato, m as que é a única capaz de conferir verdade, b o n d ad e e b e­ leza às coisas julgaveis (Prãludien, 4 ã ed., 1911, II, pp. 69 ss.). N esse sentido, os V. não são coi­ sas ou supra-coisas, n ão têm realidad e ou ser, m as seu m odo de ser é o dever-ser(sollen). Rickert rep ete esse po nto de vista e reitera que o ser dos V. não consiste na sua realidade, m as em seu dever-ser. C ontudo, em Rickert os V. se transform am em realidades transcend entes. Rickert distingue seis dom ínios do V.: lógica, estética, m ística (que é o dom ín io da santidade im pessoal), ética, erótica (que é o dom ínio da felicidade) e filosofia religiosa. A cada um des­ ses d o m ínios co rresp o n d e um bem (ciência, arte, u n o -to d o , co m u n id ad e livre, com unidade de am or, m u nd o divino); um a relação com o sujeito (juízo, intuição, adoração, ação au tô n o ­ ma, unificação, devoção); e determ in ada intui­ ção do m undo (intelectualism o, esteticismo, m isticism o, m oralism o, eu dem o n ism o , teísm o ou politeísm o) (System derP hüosophie, 1921). A m ediação entre a realidade e os V. é es­ clarecida por Rickert com o conceito de sen ti­ do (Sinri): sen tid o é a referência da realidade, ou de parte dela, ao m und o dos V., por m eio da qual os V. ingressam na história e são rea­ lizados pelo ho m em {System der Phüosophie, I, pp. 319 ss.). T eorias dos V. m uito sem elhantes a esta foram elaboradas pelo teuto-am ericano U go M ünsterberg em P hilosophie der Werte, de 1908, pelo am ericano W . M . U rban ( Valuations: its N ature and Laws, 1919; The Intellegihle World, 1920), pelo italiano G uido delia V alle (Teoria generale eform ule dei V., 1916) e por n u m ero so s ou tros escritores. T o­ das essas teorias om item o problem a que está por trás de sua form ulação ou lhe dào soluções ilusórias. Por um lado, reco n h ecem que o V.

VALOR está de algum m odo p resen te no hom em , nas atividades hu m an as ou no m undo hum ano cuja norm a ou dever-ser constitui; por outro, exigem que ele seja in d ep e n d en te do reco n h e­ cim ento ou dos feitos h u m anos e que possua um status indiferente em relação ao m undo hu ­ m ano. N essas teorias, tende-se a atribuir aos V. as características do ser perfeito: unidade, u n i­ versalidade e etern idad e, em contraposição à m ultiplicidade, à particularidade e à m utabilidade das m anifestações em píricas cuja regra eles deveriam constituir. Por outro lado, com o regras dessas m anifestações, os V. devem ter com elas um a relação essencial, sem a qual não po deriam servir nem para julgá-las nem para dirigi-las. O conceito K antiano do a priori tran scen ­ dental não se revelara eficaz com o m odelo para um a solução desse problem a. Procurou-se outro tipo de solução, atribuindo-se a intuição do V. a um a experiência suigeneris, de n atu re­ za sentim ental. Segundo Scheler, o sentim ento é "uma form a de experiência cujos objetos são com pletam ente inacessíveis ao intelecto, que é cego para eles assim com o a orelha e o ouvido são insensíveis às cores"; essa form a de ex p e­ riência nos apresenta autênticos objetos dis­ postos num a ordem hierárquica eterna, que são os V. (Der Formalísmus in der Ethik, 3a ed., 1927, p. 262). Em outros term os, o V. é o objeto intencional do sentim ento, assim com o a reali­ dade é o objeto intencional do conhecim ento; e esse objeto é ap reen d id o em sua relação h ie ­ rárquica com os outros objetos da m esm a es­ pécie. A intuição sentim ental do V. é tam bém um ato de escolha preferencial que segue a hierarquia objetiva dos valores, constituída por quatro grupos fundam entais: V. do agradável e do desagradável, co rresp o n d en tes à função do gozo e do sofrim ento; V. vitais, co rresp o n d en ­ tes aos m odos do sentim ento vital (saúde, d o en ­ ça, etc); V. espirituais, ou seja, estéticos e cog­ nitivos; e V. religiosos (Op. cit., pp. 103 ss.). Esta solução de Scheler, porém , trazia de novo à tona, no dom ínio da intuição funda­ m ental, a m esm a antinom ia que caracteriza a interpretação neocriticista ou transcendental do valor. E essa antinom ia era ju stam en te tom ada com o caracterização do V. por H artm ann; este por um lado afirma que os V. são V. só em rela­ ção ao ser do sujeito, reco n h ecen d o p ortanto a relacionabilidade (e não relatividade) deles (Ethik, 3a ed., 1949, p. 141). Por outro lado,

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VALOR afirm a que os V. têm um "ser em si" in d ep e n ­ dente das opiniões do sujeito e que constituem autênticos objetos; estes, em bora não sejam reais com o os objetos das ciências naturais, têm um m odo de ser igualm ente im utável e absoluto (Ibid., p. 153). Com term inologia diferente po r­ que de natureza teológica, m as análoga, os m es­ m os dois aspectos antô nim os do V. foram ex­ pressos po r R. Le S enne, para quem o V. é um Deus-conosco; D eus, que é único e transcen­ dente; com o conosco está em relação com o hom em e é capaz de guiá-lo (Obstacle et valeur, 1934, pp. 220 ss.). 2e O sucesso do term o V. no m undo m oder­ no se deve em grande parte à obra de Nietzsche e ao escândalo que provocou com a preten­ são de inverter os valores tradicionais. N ietzsche declarava depositar suas esperanças "em espí­ ritos fortes e suficientem ente in d ep en d en tes para dar im pulso a juízos de V. opostos, para reform ar e inverter os valores eternos; em p re­ cursores ou hom ens do futuro, que no p resen ­ te constituam a sem ente que obrigará a vonta­ de dos m ilênios a abrir novos cam inhos, etc. (Jenseits von Gut und Base, § 203). N ietzsche considerou que a m issão de sua filosofia era a inversão dos V. tradicionais, ironizados com o "V. e tern o s" (Ecce homo, § 4). Essa in v ersão consistia su bstancialm ente em substituir os V. da moral cristã, fundada no ressentimento (v.), portanto na renúncia e o ascetism o, pelos V. vitais, que nascem da afirm ação da vida, de sua aceitação dionisíaca (Genealogie der Moral, I, § 10). ' Essa concepção de N ietzsche foi considera­ da um a espécie de relativism o dos V., e com o tal serviu de alvo para a polêm ica de todas as doutrinas absolutistas. N a realidade, em Nietzsche, são p ou co s os indícios de um a relativida­ de dos V.: sua intenção é, antes, restabelecer um a tábua autêntica de V., que é a dos V. vitais, em lugar dos V. fictícios, adotado s pela m oral do ressentim ento. A tese autêntica de N ietzsche é de intrínseca relação entre o ser do V. e o h o ­ m em , de tal m an eira que não há V. que não seja um a p o ssib ilid a d e ou um m odo de ser do hom em . É esta a tese característica da in­ terp retação do V. que cham am os de em pirista ou subjetivista. M einong foi o prim eiro a reapresentar explicitam ente essa tese, ao reduzir o V. de um objeto à sua "força de m otivação" ("Über W erth altun g und W ert" em A rchiv fü r system atische Philosophie, 1895, p. 341). Ehrenfels,

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observando que, com base nessa definição, só teriam V. os objetos existentes, definiu o V. com o sim ples "desejabilidade" (System der W ertheorie, I, 1897, p. 53). Essa definição de Ehrenfels é im portante p o rq u e introduz pela prim eira vez e de m odo explicito a co n o tação da possibili­ dade na n o ção de V. V. não é a coisa desejada, m as o objeto desejável: não é coisa no sen tid o de não ser n ecessariam en te um objeto real: não é desejado p o rq u e sim plesm ente pod e sêlo. N ão tem significado diferente a definição de V. ap resen tad a alguns anos m ais tarde por R. B. Perry, para qu em "todo objeto, qu alq u er que seja, ad q u ire V. q u an d o é investido por um interesse qualquer" (G eneral Theory o f Value, 1926, 2a ed., 1950, p. 116): de fato, o interesse, diferentem ente do desejo, é ap en as um a p o s­ sibilidade. Foi ex atam en te no âm bito dessa co n cep ção de V . que nasceu o relativism o dos valores; isso aconteceu no coração do historicism o, da co n ­ sideração da relação entre os V. e a história. O prim eiro a defender o relativism o dos V. foi Dilthey: "A própria história é a força que p ro ­ duz as d eterm in açõ es de V., idéias e m etas, com b ase n os q u ais se d ete rm in a o significa­ do de hom ens e acontecim entos" (G esam m elte Schriften, VH, p. 290). Portanto, os V . e as nor­ m as nascem e m orrem na história e não su b sis­ tem fora dela nem acim a de seu curso (Ibid, p. 290). O relativism o dos V. em relação à história foi afirm ado ainda m ais explicitam ente por Simmel. P artindo do reco n h ecim en to da relati­ vidade do V. econôm ico, Sim m el chegou ao reco n h ecim en to da relatividade de tod o s os V.: o V. nunca é um a en tid ad e objetiva, m as sua objetividade deriva ap en as da correlação entre sujeito e objeto. Portanto, não existem V . absolu­ tos, e são V. só aq u eles que, em determ in ad as condições, os h o m en s reco n h ecem com o tais. A esfera dos V. distingue-se da esfera da reali­ dade, não com b ase num status ontológico próprio, m as por um a qualificação categorial, que pode ser aplicada a qualquer objeto (Philosopbie des Geldes, 1900, I, § 1). O historicism o alem ão, todavia, não foi u nânim e em reco n h e­ cer essa relatividade; considerou-a sem p re co ­ m o um perigo, m as às vezes quis evitá-la. Foi T roeltsch o prim eiro a form ular claram ente a antítese entre relatividade histórica e absolutism o dos V., ao m esm o tem p o em que p ro cu ra­ va recup erar esse absolutism o no pró p rio âm ­ bito do historicism o. A so lu ção que ele deu à antítese é a coincidência entre os dois term os

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antinôm icos: cada p on to da história está em relação direta com a esfera dos V. absolutos e contém em si tais V. sem relativizá-los à sua mutabilidade (D er H ístorism us und seine Probleme, 1922, G esam m elteSchriften, III, p. 211). D o m esm o m odo, M einecke afirmava que a re­ lação com o A bsoluto é constitutiva da história, m as que essa relação vai do infinito para o finito, e não o inverso: de sorte que, enq uanto a histó­ ria en con tra fund am en to n os V. que realiza, o m odo de ser destes V. é irredutível à relativi­ d ade histórica e conserva validade incondicio­ nal (Die E ntstehung des H istorism us, 1936, II, p . 645). C om o se vê, no interior desta segunda inter­ p retação fundam ental do V., rep ro du z-se um a situação análoga à que se verificou na prim ei­ ra: a atribuição de duas características opostas ao V., ab so lu tid ad e e relatividade: a prim eira constituiria o m o do de ser do valor em si, o seg u n d o o seu m odo de ser na história. O pres­ su p o sto dessa o posição é o caráter de relativi­ d ade atribuído à história e em geral a tud o o q ue encontra lugar na história, en ten d id a se­ g u n d o o esquem a de B ergson com o um a cria­ ção contínua, em que tu do se cria e se destrói a cada instante. Portanto, não há vestígio de relativism o dos V. on de não há vestígio de relativism o histórico e on de há um conceito m e­ nos superficial e diletante de história. M esm o insistindo na p luralidade dos V. e das esferas de V., M ax W eber não via na história um a incessante criação de V., cada um deles relativo a um m o m en to da história, nem um a relação fu­ gaz com V. A bsolutos, m as um a luta entre dife­ ren tes V. à escolha do hom em (G esam m elte Politische Schriften, p. 63; v. PIKTRO ROSSI, LO storicismo tedesco contemporâneo, pp. 367 ss.). O m esm o reco n h ecim en to da m ultiplicidade dos V. e da im portância da escolha que essa m ultiplicidade está sem pre a exigir do hom em en co n tra-se em D ew ey, que, exatam ente por isso, definiu a filosofia com o "crítica dos V.": "A confusão em que to das as teorias do V. incidi­ ram, entre determ inada posição na relação causai ou sucessiva e o V. p ro p riam en te dito, é um a prova indireta de que toda valoraçâo inteligen­ te é tam bém crítica, isto é, ju ízo da coisa que tem V. im ediato. T oda teoria do V. é n ecessa­ riam ente um ingresso no cam po da crítica" (Experience and N ature, 1926. p. 397). M as a crítica dos V. nesse sen tido nada m ais é que a disciplina inteligente das escolhas hum anas. Tal disciplina im plica em prim eiro lugar a con-

VARIAÇÕES CONCOMITANTES sideraçào da relação existente entre meios e de tal m odo que n ão se p o d e ju lg ar dos fins a nào ser ju lg an d o ao m esm o tem p o dos m eios que servem para alcançá-los ( Theory of Valuation, 1939, p. 53)- Por outro lado, a crítica dos V. não po d eria ser eficazm ente instituída sem levar em conta outro aspecto dos V. em que R. Frondizi insistiu m uito: a co n ex ão entre V. e situação: "A org an ização econôm ica e ju ­ rídica, os hábitos, a tradição, as crenças religio­ sas e m uitas outras form as de vida que tran scen ­ dem a ética con trib u em para configurar d eter­ m inados v alo res que, ao contrário, são co n ­ siderado s ex istentes n u m m un d o estranh o à vida do hom em . E m bora o V. não possa d eri­ var exclusivam ente de elem entos de fato, tam ­ p ou co p o d e prescindir de co n ex ão com a rea­ lidade. Uma sep aração dessas co n d ena qu em a executa a m anter-se no plano d esen carn ad o das essências" (Qué son los valores?, 1958, p. 127). O s estu do s co n tem p o rân eo s, elab o rad o s com base n esse p ressu p o sto negativo, ev id en ­ ciaram os seguintes aspectos: le O V. nào é som ente a preferência ou o objeto da preferência, m as é o preferível, o dese­ jável, o objeto de um a antecipação ou de um a expectativa norm ativa (v. DEWEY, The Field o f Value: a Cooperative Inquiry, ed. Ray Lepley, 1949, p. 68; QYD-, KLUCKOHN e outros, em 7bward a General Theory ofAction, ed. Parsons e Schils, 1951, p. 422). 2" Por outro lado, não é um m ero ideal que possa ser total ou parcialm ente posto de lado pelas preferências ou escolhas efetivas, m as é guia ou norm a (nem sem pre seguida) das esco­ lhas e, em todo caso, seu critério de ju ízo (v. C. MORRIS, VarietiesofHuman Value, 1956, cap. I). 3a C o n seqü en tem en te, a m elhor definição de V. é a que o considera com o possibilidade de escolha, isto é, com o um a disciplina inteli­ gente das escolhas, que p o d e co n d u zir a elim i­ nar algum as delas ou a declará-las irracionais ou nocivas, e p o d e conduzir (e conduz) a pri­ vilegiar outras, ditando a sua repetição sem pre que determ in ad as con d içõ es se verifiquem . Em outros term os, um a teoria do V., com o críti­ ca dos V., tende a determ inar as autênticas p o s­ sibilidades de escolha, ou seja, as escolhas que, p o d en d o ap arecer com o possíveis sem pre nas m esm as circunstâncias, constituem p reten são do V. à universalidade e à perm anência.

fins,

VARIAÇÕES CONCOMITANTES, METO

D O DAS (in. Method of concomitant variations; fr. Méthode des variations concomitantes; ai.

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VELEIDADE

Methode der einander begleilenden Verãnderungen; it. Método delle variazioni concomitanti). Foi esse o nom e dado por J. Stuart Mill a um dos m éto do s indutivos já ilustrados por H erschel (A Discourse on the Study qfNatural Philosophy, § 145), que se expressa com

a seguinte regra: ''Q ualquer fenôm eno que va­ rie de q u alq u er m aneira sem pre que outro fe­ n ô m en o variar de algum a m aneira particular é causa ou efeito desse fen ôm eno ou está ligado a ele por m eio de algum fato de causaçâo" (Logic, III, VIII, § 6). A s outras regras da indução são o m éto do da concordância, o m étodo da diferença e o m étodo dos resíduos, so bre os quais v. os respectivos verbetes. VARIÁVEL. V. CONSTANTE. VEDANTA (in. Vedanta, fr. Vedanta; ai. Vedânta; it. Vedanta). U m dos grandes sistem as filo­ sóficos da índia antiga, codificado no Brahmasutra ou Vedântasutra, atribuído a Badarayana (talvez séc. III d.C ). O princípio do sistema é o Brahman ou Atman, considerado com o única realidade: o m undo é aparência enganadora, maya. Segundo esse sistema, Sankara supunha cjue o eu individual é idêntico a Brahm an ou Atm an, enquanto Ramanuja elaborava um siste­ m a teísta, distinguindo de Brahm an tanto o m un­ do criado quanto as almas individuais (DAS GUFIA, A History ofIndian Philosophy, 1932-55, III; C. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 136 ss.). VEICULO SIGNITIVO (in. Sign Vehicle). Um dos quatro co m p o n entes do processo sem iológico (ao lado do designado, do interpretante e do intérprete), seg und o M orris; mais p recisa­ m ente, o objeto ou coisa que funciona com o signo (Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, § 2) (v. SIGNO). VELEIDADE (in. Velleity, fr. Velléité, ai. Velleitàt; it. Velleitã). Esforço im potente ou m alsucedido. Esse term o encontra-se em Locke, que com ele designa "a gradação m ais baixa do d e­ sejo, que está m ais próxim a da inexistência" (Ensaio, II, 20, 6). Esse term o ap arece com sentido análogo em Leibniz, para quem é "uma espécie b astante im perfeita de v o n tad e con di­ cional", ou seja, de um a v o n tad e que, se pu­ desse, se em penh aria, m as não po de (Théod, III, 404). Esta co nsid eração está m uito mais próxim a do significado m oderno do term o, sen­ do tam bém , por outro lado, o significado mais antigo. S. T om ás entend ia por V. um a vo ntade an teced en te, que p o d e ser ou p erm an ecer su s­

VERACIDADE

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pensa, assim como a vontade do juiz que, co­ mo homem, gostaria que o réu vivesse, mas que, no entanto, deseja que ele seja enforcado (5. Th, I, q. 19. a. 6, ad. ]'-) VERACIDADE (in. Tnithfnlness; fr. Véracité, ai. Wahrhaftigkeit; it. Veracitã). 1. Caráter do discurso que exprime a convicção de quem o pronuncia e, portanto, não pode ser fonte de engano em quem ouve. Nesse sentido, Locke chamava a V. de "verdade moral", e a distinguia de verdade "metafísica", que é a confor­ midade das idéias às coisas (Ensaio, IV, 5, II). Mas para isso Leibniz usava a palavra V. (Nouu. ess., IV, 5, 11). 2. Às vezes, V. significa sinceridade, que não é uma qualidade do discurso, mas da pes­ soa que faz habitualmente discursos verazes. Nes­ se sentido, Descartes falara em "V. divina", afir­ mando que Deus não pode enganar-nos, no sentido de não poder ser causa de erros (Méd., IV). VERBAIISMOün Verbalism; fr. Verbalisme, it. Verbalismo). 1. Expressão verbal de pouco significado ou de significação indefinido; ten­ dência a valer-se dessas expressões. 2. Uma expressão verbal. VERBO1. V. LOGOS. VERBO2 (gr. pipa; lat. Verbum, in. Verb, fr. Verbe, ai. Zeitwort; it. Verbo). Como parte do discurso, o V. foi definido por Aristóteles como "o nome em cujo significado há uma determi­ nação temporal, cujas partes nada significam separadamente e que é o signo das coisas que se dizem de outra coisa" (De int., 3, 16 b 6). Essa definição foi conservada pela lógica me­ dieval (v. PEDRO HISPANO, Summ. log;., 1.05). Na lingüística moderna, a distinção entre nome e verbo tornou-se muito menos importante, vis­ to que, embora comum a muitas línguas, não existe em outras (BLOOMFIELD, Language, 1933, p. 20). VERDADE (gr. áW)0eia; lat. Ventas; in. Truth; fr. Vérité, ai. Wahrheit; it. Venta). Validade ou eficácia dos procedimentos cognoscitivos. Em geral, entende-se por V. a qualidade em virtude da qual um procedimento cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode ser aplicada tanto às con­ cepções segundo as quais o conhecimento é um processo mental quanto às que o conside­ ram um processo lingüístico ou semiótico. Ade­ mais, tem a vantagem de prescindir da distinção

VERDADE

entre definição de V. e critério de V. Essa dis­ tinção nem sempre é feita, nem é freqüente; quando feita, representa apenas a admissão de duas definições de V. P. ex., quando se faz a distinçào entre teoria da correspondência e critério de V., este é definido como evidência recorren­ do-se ao conceito de V. como revelação, e a teoria da V. como conformidade a uma regra, apresentada por Kant como critério formal ao lado do conceito de V. como correspondência, torna-se então uma definição da própria V. É possível distingtiir cinco conceitos funda­ mentais de V.: 1B a V. como correspondência; 2- a V. como revelação; 3Q a V. como conformi­ dade a uma regra; 4- a V. como coerência; 5-Q a V. como utilidade. Essas concepções têm impor­ tâncias diferentes na história da filosofia: as duas primeiras, em especial a primeira, sem dúvida são as mais difundidas. Não são nem mesmo alternativas entre si: é possível encontrar mais de uma no mesmo filósofo, embora usadas com propósito diferente. No entanto, por se­ rem díspares e mutuamente irredutíveis, de­ vem ser consideradas distintas. le O conceito de V. como correspondência é o mais antigo e divulgado. Pressuposto por muitas das escolas pré-socráticas, o primeiro a formulá-lo explicitamente foi Platão, na defini­ ção do discurso verdadeiro feita em Crãtüa "Ver­ dadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são" (Crat., 385 b; v. Sof., 262 e; Fil, 37 c). Por sua vez, Aristóteles dizia: "Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o quevnão é, é a verdade" (Met., IV, 7. 1011 b 26 ss.; v. V, 29, 1024 b 25). Aristóteles enunciava também as duas teses fundamentais dessa concepção de verdade. A primeira é que a V. está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa (Met,, VI, 4, 1027 b 25). 0 se­ gundo é que a medida da V. é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso: de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com V. que ela assim é, mas afirma-se com V. que ela é branca porque é (Met., IX, 10, 1051 b 5). Nas doutrinas anteriores a definição de V. e o critério de V. coincidem. Em outras doutrinas, mesmo mantendo-se fixa a definição de V., o critério de V. é considerado diferente; é o que acontece no estoicismo e no epicurismo. Estóicos e epicuristas continuam admitindo que a V. é a correspondência entre o conhecimento e a coisa (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math, VIII, 38; II, 9),

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mas julgam que o critério da V. é diferente, por­ que para os estóicos ele está na representação catalépticaiv.), que é a manifestação do objeto para o homem, enquanto para os epicuristas ele está na sensação, que é o próprio manifes­ tar-se da coisa (DIÓG. L, X, 31 ) • Nesses casos, a distinção entre V. e critério eqüivale a reconhe­ cer dois conceitos de V., considerados compa­ tíveis (ou não incompatíveis). Ademais, a coexistência de dois conceitos de V. não é rara. Muitas vezes a teoria da cor­ respondência é acompanhada pela teoria da V. como manifestação ou revelação. S. Agostinho, por um lado, define a verdade como "aquilo que é como aparece" (Solíl, II, 5) e por outro considera como V. "aquilo que revela o que é, ou que se manifesta a si mesmo"; nesse senti­ do, identifica a V. com o Verbum ou Logos, que é a primeira manifestação imediata e perfeita do ser, ou seja, de Deus (De vera rei, 36). Por sua vez, S. Tomás, retomando uma definição de Isaac Ben Salomon, do século IX, define a V. como ''adequação entre o intelecto e a coisa" (S. lh , I, cj. 16, a. 2; Contra Gent., I, 59; De ver.,

q. I, a. I), mas, ao mesmo tempo em que man­ tém, com relação ao homem, a tese aristotélica de que as coisas — e não o intelecto — são a medida da V. inverte essa tese no que diz res­ peito a Deus: "O intelecto divino é mensurante, e não mensurado; a coisa natural é mensurante e mensurada, mas o nosso intelecto é mensura­ do, e não mensurante, em relação às coisas naturais; é mensurante só em relação às coisas artificias" {De ver, q. I, a. 2). Portanto, existe também uma V. das coisas, que é aquilo em virtude do que as coisas se assemelham ao seu princípio, que é Deus; nesse sentido Deus é a primeira e suprema V. (S. T h , I, q. 16, a. 5). Esses conceitos são freqüentes na filosofia medieval. O conceito de V. como correspondência é am­ plamente empregado. Pedro Hispano (Summ. log., 3.34), Herveus Natalis (Quodl, III, I), An­ tônio Andréa {Super artem veterem, ed. 1508, f. 45rA) mantêm a teoria da V. como conformida­ de entre intelecto e coisa, embora polemizando sobre o modo de ser da coisa, ou mais exata­ mente dos objetos aos qviais o intelecto deve conformar-se. Em geral, na Escolástica da se­ gunda metade do séc. XIII e na do XIV. espe­ cifica-se que a "coisa" à qual o intelecto deve conformar-se é a "res íntellecta", isto é, a coisa como é apreendida pelo intelecto, não exterior ao próprio intelecto (v. Também DURAND DK

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VERDADE SAINT-POURÇAIN, In Senl., I, d. 19, q. 5). O con­

ceito de adequação ou conformidade, porém, perde alcance metafísico e teológico para as­ sumir significado estritamente lógico ou, como hoje se diria, semântico. A identificação polêmi­ ca, defendida por Ockham, entre "V." e "propo­ sição verdadeira" eqüivale propriamente à ne­ gação do valor metafísico da palavra V. (Summa log., I, 43; Q u odl, V. q. 24). Os platônicos de Cambridge mantêm, por motivos óbvios, o caráter metafísico e teológico da noção de corres­ pondência, falando de conformidade da coisa consigo mesma ou com a sua essência contida rio intelecto divino (v. HERBHRT DE CHERBURY, D e Veritate, 1656, pp. 4 ss.), mas Hobbes insiste no ponto de vista nominalista da V. como simples atributo das proposições (De corp., 3. § 7); is­ so também foi feito por Locke (Ensaio, II, 32. 3-19) e até por Leibniz, que rejeita a noção metafísica de V. como "atributo do ser" e limi­ ta-se a ver na V. "a correspondência das propo­ sições, que estão no espírito, com as coisas das quais se trata" (Nouv. e ss, IV, 5. 11). Wolff unia O conceito de V. como "concordância do nosso juízo com o objeto, ou seja, com a coisa repre­ sentada" (Log, § 505) — que ele chamava de definição nom inal da V. — com a noção lógica da V. como "determinabilidade do predicado por meio da noção do sujeito" — que ele chama­ va de definição reaK Lbid., § 513). Baumgarten retornava à noção de V. metafísica como "orclem da multiplicidade na unidade" (Met., § 89), enquanto Kant declarava pressupor simples­ mente a "definição nominal da V." como "acor­ do do conhecimento com o seu objeto", e pro­ punha o problema de encontrar um critério para a V. Excluindo a possibilidade de um crité­ rio geral, válido para qualquer conhecimento, ele se detinha no critério formal da V., que é a con­ formidade do conhecimento com as suas re­ gras (Crít. R. Pura, Lógica, Intr., III; v. adiante). Esse conceito de V. como correspondência nun­ ca esteve ausente, nem na filosofia mais recen­ te, pela qual às vezes é assumido como simples pressuposto, às vezes explicitamente defendi­ do. Isso aconteceu especialmente nas corren­ tes realistas (v., p. ex., BOL7ANO, W issenschaftslehre, I, § 25; A. MEINONG, Ü berAnnabm en, pp. 125 ss.). Exatamente no espírito do realis­ mo, N. Hartmann defendeu a concepção da V. como "coincidência com um objeto que deve ser entendido como tal" (System atische P hilo­ sophie, § 9). Hartman estende o conhecimento

VERDADE com o "reflexão do ser so b re si m esm o" (M eta­ physik derE rkenntnis, 1921, cap. 27, b). O s lógicos co n te m p o râ n eo s tam bém recor­ rem à doutrina da co rresp o n d ên cia, p ro cu ran ­ do form ulá-la de tal m odo que ela seja in d ep en ­ d ente de q u alq u er hip ó tese m etafísica. D este ponto de vista, qu em m elhor form ulou essa teoria foi Alfred T arski, que retom ou explicita­ m ente, além da definição aristotélica acim a, tam bém algum as definições análogas ou d e­ p en dentes delas, com o aquela seg u n d o a qual "um enunciado é verdadeiro quando designa um estado de coisa existente" (B. RUSSELL, A n Inquiry ínto M eaning a n d Truth, 1940, pp. 362 ss.). Tarski partiu de um a equivalência do seguinte gênero: "O en u n ciad o 'a n eve é b ran ca' é ver­ dadeiro se, e so m en te se, a neve for branca", para generalizá-la na fórm ula: "X é v erd ad eiro se, e so m en te se, p". U tilizando a noção sem ân ­ tica de satisfação en ten d id a com o a relação entre objetos arbitrários e d eterm in ad as ex­ pressões cham adas de "funções enunciativas" do tipo "xé branco", "xé m aior que y", e tc , T arski chegou à seguinte definição de V.: " Um enunciado será verdadeiro se fo r satisfeito p o r todos os objetos; caso contrário, será falso". Tarski salientou o fato de que a n o ção sem ân ­ tica de V. (com o ele a cham ou e com o habi­ tualm ente se cham a) n ada im plica q u an to às con dições nas quais um en u n ciad o com o "a neve é branca" p o d e ser asseverado. Indica só que, sem pre que afirm am os ou rejeitam os esse en un ciad o, dev erem o s estar p ro n to s a afirm ar ou rejeitar o enunciado correlativo "O en u n cia­ do 'a neve é branca' é verdadeiro". D esse m odo, ele considera que o conceito sem ântico de V. p o d e conciliar-se com q u alq u er atitude epistem ológica, sen d o n eu tro em relação a qual­ quer concepção realista ou idealista, em pirista ou m etafísica do co n h ecim ento (The Sem antic C onception of T ruth", 1944, em R eadings in P hüosophical A nalysís, 1949, pp. 52-84; a co n ­ cepção de Tarski foi exposta pela prim eira vez num texto p o lo n ês de 1933. trad u zid o para o alem ão em Studia philosopbica, de 1935. pp. 261-405). C arnap aceitava essa co n cep ção -d a verd ad e, m as ressaltava que ela diferia funda­ m entalm ente dos conceitos de crença, verifica­ ção, confirmação, etc. (Intm ductiori to Sem antics, § 7). M Black enfatizou a insignificância filosó­ fica dela (Language and Philosophy, IV, § 8). 2" A segunda co n cep ção fundam ental de V. considera-a com o revelação ou m anifestação.

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VERDADE T em duas form as fundam entais: um a em pirista e outra m etafísica ou teológica. A form a em pirista consiste em adm itir que a V. é o que se reve­ la im ediatam ente ao hom em , sen d o , p ortanto, sensação, intuição ou fenôm eno. A form a m e­ tafísica ou teológica afirma que a V. se revela em m o d o s de co n h ecim ento excep cion ais ou pri­ vilegiados, por m eio dos quais se torna evid en­ te a essência das coisas, seu ser ou o seu princí­ pio (Deus). A característica fundam ental dessa co n cep ção é a ênfase dada à evidência, assu­ m ida ao m esm o tem p o com o definição e crité­ rio da v erd ad e. M as a evidência, obviam ente, nada m ais é que revelação ou m anifestação. N o sen tido em pirista, a V. era considerada com o revelação p elos cirenaicos, que viam nas sen saçõ es a própria evidência das coisas (SEX ­ TO EMPÍRICO, Adv. m a th , VII, 199-200), pelos epicuristas, que consideravam a sen sação co­ m o o critério da V. (DIÓG. L, X, 31-32), e pelos estóicos, para os quais esse critério estaria na rep resen tação cataféptica (v.) (DiÓG. L, VII, 54). E m O ckham , a noção de conh ecim ento intuitivo é a n oção de m anifestação im ediata das coisas para o ho m em (das coisas em seus caracteres e nas suas relações) (In S e n t, Prol., q. I, Z). N o m esm o espírito, T elésio dizia que as coisas "retam ente observadas m anifestam por si m esm as a gran deza que cada um a tem , bem com o sua capacidade, suas forças, sua natureza"; para ele, a sen sação era essa revelação im edi­ ata das coisas (Derer. n a t, I, Proem .). Em geral todas as doutrinas que confiam à sensibilidade o co n h ecim ento das coisas tend em a discernir na sen sib ilidade a revelação da natureza das coisas e identificam com tal revelação a própria v erd ad e ou o critério de verd ad e. Por outro lado, da própria interpretação m e­ tafísica ou teológica da V. com o correspondência nasce o conceito de V. com o m anifestação do ser ou do princípio sup rem o . Plotino dizia: "A v erd ad e verd adeira não está de acordo com outra coisa, m as de acordo consigo m esm a: ela n ão enuncia nada fora de si, m as enuncia o que ela m esm a é" (E nn, V , 5, 2). N esse sen tid o , a V. é hipostasiacla: não é o caráter formal de certos p ro ced im en to s cognoscitivos, m as prin­ cípio m etafísico ou teológico que tem a m esm a substancialidade e a m esm a dignidade do princí­ pio que nela se m anifesta, ou seja. D eus. Esse conceito é tem a de num ero sas esp ecu laçõ es na filosofia patrística e escolástica. S. A gostinho afir­ m a dever existir um a natureza que esteja tão

VERDADE próxim a da u n id ad e qu e a rep ro d u z em tu d o e é una com ela; essa n atureza é a V. ou V erbo de D eus (De vera rei, 36). É com um na Escolástica a doutrina de que a verdade é o próprio in­ telecto ou V erbo de D eus (ANSELMO, D e V eritate, 14; S. TOMÁS, De ver., q. I, a. 4). Mais tarde, o m esm o conceito de V. com o revelação levou a reconhecer, com base no cri­ tério de evidência, a existência de V. eternas. D escartes viu no cogito(y) a evidência originá­ ria, pela qual a existência do sujeito pensante se revela ao pró p rio sujeito p en san te, e co n sid e­ rou que deveria ser co n sid erad o com o v erd a­ deiro tudo o que se m anifesta de m odo eviden­ te. N o âm bito do que se m anifesta desse m o ­ do, D escartes pôs as V. eternas, estabelecidas e garantidas pela im utabilidade de um decreto de D eus (M éd, IV; P rin c.phil, I, 49). S eg u n ­ do D escartes, as V. eternas são garantidas e rev elad as d iretam en te por D eus, e por isso sào eternas (Repouses, IV, 4). A ssim tam bém pensava M alebranche, em bora para ele, ao con­ trário de D escartes, elas não seriam postas, m as sim plesm ente reconhecidas e validadas por D eus (Recbercbe de Ia véríté, X éclairissem en t). M as o conceito da V. com o revelação foi m uito p re­ zada pelo R om antism o, que, em seu aspecto essencial, poderia ser classificado com o filoso­ fia da revelação (v. ROMANTISMO). Hegel dizia: "A idéia é a V.: porque a V. é a co rresp o n d ên cia entre a objetividade e o conceito. N ão no sen ­ tido de qu e se as coisas externas correspondem às m inhas rep resen taçõ es: estas sào , n esse ca­ so, a p e n as re p re se n ta ç õ e s ex atas que eu te­ nho com o indivíduo. M as no sentido cie que todo o real, enquanto verdadeiro, é a idéia e só tem V. por m eio da idéia e nas form as da idéia" (Ene, § 213). E m o utros term os, a Idéia é "a objeti­ vidade do co n ceito ", a racio n alid ad e do real, m as à m ed id a q u e se m an ifesta à consciência na sua necessidade, ou seja, com o saber ou ciên­ cia (System der Phüosophie, ed. G lockner, I, p. 423: Wissenschaft der Logik, ed. G lockner, II, p. 275): e o saber e a ciência sào a autom anifestaçào da Idéia, vale dizer, sua autêntica e com ­ pleta revelação. C om o m eio-term o entre a form a em pírica e a form a teológica dessa co n cep ção de V., está a con cep ção fenom enológica e existencialista. A fenom enologia é, seg u n d o conceito próprio, um m éto do que possibilita às essências m ani­ festar-se ou revelar-se com o tais. A epochéiy.) fenom enológica, ao pôr entre p arên teses a ati­

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VERDADE tu d e naturalista que consiste em afirm ar a reali­ dade das coisas no m undo, tende a possibilitar que as p róp rias coisas m anifetem sua essência. D esse p o n to de vista, a V . é a evidência com que os objetos feno m eno lóg icos se ap resen ­ tam q u a n d o a epoché é efe tu a d a (Ideen, I, § 136). Portanto, segundo Husserí, V. e evidência p ertencem não só aos objetos teóricos, m as a tod os os objetos da consideração fenom enológica, sejam eles valores, sentim entos, etc. (Ibid., § 139). Por sua vez, H eidegger insistiu no caráter de revelação ou de descobrim entoái V, recorrendo inclusive à etimologia da palavra grega. Assim, por um lado insistiu no nexo estreito entre o m odo de ser da V . e o m odo de ser do hom em , ou ser-aí, p o rquan to só ao hom em a V. pode revelar-se e revela-se (Sein nnd Z eit, § 44). Por outro lado, insistiu na tese de que o lu g a r da V. não é o juízo, e q u e a V . não é um a revelação de caráter predicativo, m as consiste no serdescoberto do ser das coisas, ou das próprias coisas, e no ser descob rid or do hom em (Ibid, § 44 b; v. Vom Wesen cies Gntndes, I, trad. it., p. 20). Heidegger, porém , tam bém ressaltou o fato de qu e cada d escob rim ento do ser, por ser parcial, tam bém é um cobrim ento dele; esse tem a é recorrente so b retu d o nos seus textos do segundo período. "O ser subtrai-se, ao m esm o tem p o em que se revela, ao ente. D esse m o do o ser, ao ilum inar o ente, desencam inha-o ao m esm o tem po para o erro" IH olzw ege, p. 310). 5" A terceira concepção considera a V. com o conform idade com um a regra ou um conceito. O prim eiro a enunciar essa noção foi Platão. "Ao tom ar com o fundam ento o conceito que consi­ dero m ais sólido, tudo o que m e pareça estar de acordo com ele será por m im posto com o ver­ dadeiro, quer se trate de causas, quer se trate de outras coisas existentes; o que não m e pareça de aco rd o com ele será por m im posto com o não v erd ad eiro " (F ed, 100 a). Essa co n cep ção reap a re ce esp o rad ic am e n te na história da filo­ sofia. S. A gostinho afirmava que "acima da n o s­ sa m ente há um a lei cham ada V." e que nós p o d em o s ju lgar todas as coisas em conform ida­ de com essa lei, que no entanto escapa a qual­ qu er ju ízo (D e vera rei., 3O-3D. N a literatura de inspiração agostiniana, esse tem a retorna com freqüência, porém a m ais im portante ex­ pressão deste co nceito de V . en co n tra-se em Kant. Este, de fato, não se vale dessa noção para a definição da V . (pois com o d issem o s, ele d e ­ clara p ressu p o r a definição nom inalda. V., que

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é a da co rrep o n d ên cia), m as com o critério de V. Segundo Kant, o critério p o d e referir-se só à form a da V., ou seja, do p en sam en to em geral, e consiste na conform idade com "as leis gerais necessárias do intelecto". "O que contradiz es­ sas leis" — afirma K ant — "é falso, p o rq u e o intelecto n esse caso contradiz suas próprias leis, p o rtan to a si m esm o." T odavia, esse crité­ rio form al não basta para estab elecer a v erd ad e m aterial, ou objetiva, do co n h ecim ento ; aliás, a tentativa de transform ar esse cân o n e de avalia­ ção form al em órgão de co n h ecim en to efetivo não passa de uso dialético, ou seja, ilusório da razão (Cn?. R. Pura, Lógica, Intr., III; Logík, Intr., VII). Esse critério foi acolhido e acen tu ado pelos n eo k an tian o s, so b retu d o p elo s da Escola de B aden. W indelband considerava que o obje­ to do conhecim ento, aquele que m ede e d eter­ m ina a V. do co n h ecim ento , não é um a realid a­ de ex tern a (que co m o tal seria in alcan çáv el e inco gn oscív el), m as a regra intrínseca do p ró ­ prio conhecim ento (Prãhuiien, 1884, 4- ed., 1911, passim ). Rickert identificava o objeto do co ­ n h ecim en to com a norm a à qual o co n h eci­ m ento deve ad eq u ar-se para ser v erd ad eiro (D er G egenstad der Erkenntnis, 1892). N esses n eo k antian o s, a conform idade com a regra — que K ant p ro p u sera sim plesm ente com o crité­ rio form al de V. — torna-se a única definição de V. 4- A n oção de V. com o coerência aparece no m ovim ento idealista inglês da seg u n d a m e­ tade do séc. XIX e é co m partilhada por todos os que participaram desse m ovim ento na Ingla­ terra e nos Estados Unidos. A parece pela prim ei­ ra vez em Lógica ou m orfologia do conhecim en­ to (1888) de B. B osanquet, m as sua difusão se deve à obra de F. H. Bradley, A ppearance and R eality (1893)- A crítica de B radley ao m u n d o da experiência hum ana partia do princípio de que aquilo qu e é contraditório não p o d e ser real; isso o levava a adm itir que V. ou realidade é coerência perfeita. A coerência, porém , atri­ buída à realid ad e últim a, ou seja, à C onsciência Infinita ou A bsoluta, não é sim ples ausência de contradição; é abolição de q u alq u er m ultiplici­ dade relativa e form a de harm onia que não se deixe en ten d er nos term os do p en sam en to hu ­ m ano (Appearance and Reality, 2a ed., 1902, pp. 143 ss.). S egundo Bradley, os graus de ver­ dade que o p en sam en to hum an o alcança p o ­ dem ser ju lg ad o s e classificados seg u n d o o grau de coerência que possuam , em bora essa coerência seja sem pre aproxim ativa e im perfei­

VERDADE ta (Ibid., p. 362). Esses conceitos aparecem em g ran d e n ú m ero de p en sad o res da m esm a ten­ dência (v. IDEALISMO), sem que a n o ção de coe­ rência seja por isso m odificada ou esclarecida (v. COERÊNCIA). OS p re ce d en tes dessa doutrina não estão tanto em H egel (a quem , todavia, os idealistas ingleses se referiam com m ais fre­ q ü ên cia), m as em Spinoza. N a realidade, não passa de transcrição daquilo que Spinoza cha­ m ava de "terceiro gênero de conhecim ento" ou "am or intelectual por D eus": con hecim ento da ordem total e necessária das coisas, que Spinoza identificava com o D eus {Et., V , 25). 5Q A definição da V. com o utilidade perten ­ ce a algum as form as da filosofia da ação, esp e­ cialm ente o pragm atism o. M as o prim eiro a form ulá-la foi N ietzsche: " Verdadeiro em geral significa ap en as o que é ap ro p riad o à conser­ v ação da hu m an id ad e. O que m e faz perecer q u an d o lhe dou fé não é v erd ad e para mim: é um a relação arbitrária e ilegítim a do m eu ser com as coisas externas" (. Wille zurM acht, ed. K róner, 78, 507). Foi o pragm atism o que difun­ diu essa noção, defendida p rim eiram ente por W . Jam es. Este, porém , identificou utilidade e V. só nos lim ites das crenças em piricam ente não verificáveis ou não d em onstráveis, tais co­ m o as m orais e as religiosas (The Will to Believe, 1897). A eq u ação entre utilidade e V. foi estendida a toda a esfera do con hecim ento por E. C. S. Schiller (Humanism, 1903 e textos se­ guintes). D esse p o n to de vista, um a p ro p o si­ ção, q ualqu er que seja o cam po a que p erten­ ça, só é verdadeira pela sua efetiva utilidade, ou seja, por ser útil para esten d er o con heci­ m ento ou para, por m eio deste, estender o dom í­ nio do hom em so b re a natureza, ou en tão por ser útil à so lidariedade e à ordem do m undo hu m an o. Critério sem elh an te foi ap resen tado por H. V aihinger em Filosofia do com ose(Philosophíe des Ais, 1911) e divulgado por M . De U nam uno em Vida de D on Q uijote y Sancho (1905) (v. PRAGMATISMO). T alvez se possa en tre­ ver um a form a diferente dessa m esm a co n c ep ­ ção na tese de D ew ey, da instrum entalidade dos procedim en tos cognoscitivos e do conheci­ m ento em seu conjunto, com vistas ao aperfei­ ço am ento da vida hum ana no m u ndo. C ontu­ do, em D ew ey não se encontra a definição de V. com o utilidade, m as ap en as a afirm ação do caráter instrum ental — p o rtan to válido, m as não v erdadeiro — das p ro p o siçõ es (Logic, XV, trad. it., p. 382-83) (v. VALIDADE).

VERDADE DUPLA

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VERDADE DUPLA. V. DUPLA VERDADE. VERDADEIRO (gr. áAriG éç; lat. Vemm; in. True, fr. Vrai; ai. Wahr, it. Vero). O s estóicos distinguiam V. de v erd ad e, p o rq u e o V. é um en un ciad o , logo é in co rp ó reo , en q u an to a v er­ dade, com o ciência qu e contém tod o s os V.. é um m odo de ser da parte hegem ônica do h o ­ m em , portan to corpórea. A dem ais, o V. é sim ­ ples, en q u an to a v erd ad e consta de m uitos V., e a verd ad e p erten ce à ciência, portan to ao sábio, en q u an to o V. p o d e ser tam bém do n é s­ cio (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp, II, 81-83; Adv. dogm., I, 38-42). N a Kscolástica o V. foi co n sid erad o um dos Iranscedentais (v.), isto é, dos caracteres que pertencem às coisas com o tais, in d e p e n d e n te ­ m ente dos seus g ên ero s, e por V. foi entendida a inteligibilidade da coisa (S. TOMÁS, 5. 777., q. 16, a. 3;_ ad. 3"). VERIDICO (in. Veridical, fr. Véridique, ai. Wabrhaftig; it. Verídico). 1. O m esm o que v e­ ra z ou v erd ad eiro (v. VERACIDADE). 2. O que contém um a parte ou um indício de verdade. P. ex., "sonho V", "alucinação V.", etc. VERIFICABILIDADE. V. VERIFICAÇÃO. VERIFICAÇÃO (in. Verification-h. Verificatiori; ai. Verifikation; it. Verificazione). 1. Em gera), q u alq u er p ro ced im en to qu e perm ita es­ tabelecer a verdade ou a falsidade de um en u n ­ ciado qualquer. Uma vez que os graus e os ins­ tru m en to s da V. p o d em ser inum eráveis, esse term o tem alcance generalíssim o e indica a apli­ cação de q u alq u er p ro ced im en to de atestaçào ou prova (v.). Esse term o tam bém p o d e ser usado para indicar a aferição de um a situação qualquer com base em regras ou instrum entos idôneos; nes.se sentido, fala-se em verificar as contas, os graus de um ângulo ou a autentici­ dade de certos d o cu m en to s, etc. N este sentido geral, esse term o tam bém é em pregado sem referência à experiência ou aos fatos, pod en cio-se falar em V. de um a ex p ressão m atem áti­ ca, de um en u n ciad o analítico da lógica, assim com o em V. de um en u n ciad o factual ou h ip ó ­ tese científica. Por outro lado, a no ção de V. às vezes é am pliada para nela incluir não só o p ro ced im en to que perm ite estab elecer a v er­ dade ou a falsidade de um enunciado, m as tam ­ bém o que perm ite estab elecer a v erd ad e, a falsidade ou a indeterminação do enunciado: isso com referência a um a lógica de três v alo ­ res, e não de dois (cf. REICHENBACH, "The Prin­ cipie of A nom aly in Q uantum M echanics", 1948,

VERIFICAÇÃO

em Reading in the Phil. of Science, 1953, pp. 519-20). 2. Em sen tid o restrito e específico, a V. diz resp eito aos en u n ciad o s factuais e é um p ro ­ cedim ento q u e recorre à experiência ou aos fatos. Foi exatam ente nesse sentido que o empirismo lógico (v.) enten deu a V. com o critério do significado das p roposições: critério que o Círculo de Viena (v.) interpretava da form a m ais rigorosa, d eclaran d o desprov ido s de sen ­ tido to d o s os en u n ciad o s que não se prestas­ sem a um a absoluta verificação em pírica. Esse p o n to de vista foi ex presso com tod o o rigor por C arnap em sua obra Der logische Aufbau der Welt (1928). A possibilidade de um a veri­ ficação absoluta foi, porém , negada, no âm bito do próprio Círculo de V iena, por K. P opper (Lo­ gik der Forschung, 1935) e depois por Lewis ("Experience and M eaning", em Phüosophical Reriew, 1934) e por N agel (em Journal ofPhilosophy, 1934). Assim, o próp rio C arnap m odi­ ficava seu p o n to de vista, e num ensaio de 1936 ("Testability and M eaning", agora em Readings in the Phil. ofScience. 1953, p, 47-92) falava de confirmação (confirmation) dos enunciados, em v ez de V. Sem pre qiie a V. com pleta não seja possível (e quase nunca é possível no campei da ciência), o princípio da verificabilidade expressa a exigência de um a confirmação gradualmen­ te crescente (Ihid., p. 49). D este ponto de vista, a aceitação ou a recusa de um enunciado factual co ntém sem p re um co m p o n e n te convencio­ nal, que consiste na decisão prática que se deve tom ar para considerar o grau de confirm ação de um en u n ciad o com o suficiente para a sua acei­ tação. Este p on to de vista é hoje am plam ente aceitei. 3. N o que diz resp eito ao p roced im en to de V. factual, p ou co foi dito até agora pelos filóso­ fos. R e ich en b a ch d ividiu esse p ro c e d im e n to em d uas fases, que são: 1-' introdução de um a classe fundam ental O de en un ciad os observacionais, ou seja, de significados primitivos ou diretos que não estão sob indagação durante o curso da análise; 1- um conjunto de relações de­ rivativas (ou regras de transform ação) D, que perm item ligar alguns term os com as bases O. D epois de definidas por indagação específica tanto a base O q uan to as relações derivativas /), o term o "verificado" p od e ser definido com o "o ser d erivado da base O nos term os das relações D '. A esta descrição R eichenbach acrescenta um a determ inação importante: a condição do sig­

VEROSSÍMIL

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VIDA

co n h ecim ento da sua g ên ese (De antiquissíma nificado não é a atual, m as a V . possível (sem ítalorum sapientia, 1710, § 1). M as esse co ncei­ a qual os enunciados históricos, p. ex., não te ­ to foi extraído cie H obbes, que o exp usera em riam significado); p o rtan to , a n o ção de V . p res­ De homine (1658). H obbes reduzira o dom ínio su põ e a de p o ssibilidade, e a esse resp eito Reido co n h ecim en to hu m an o, por um lado, à ch en b ach d isting u e a p o ssib ilid ad e lógica, a m atem ática, cujos o b jeto s são in te ira m e n te possibilidade física e a p o ssibilidade técnica, produzidos pelo hom em , e por outro lado à p o ­ distinguindo correspondentem ente três espécies lítica e à ética, que tam bém tratam de objetos de significados ("Verifiability T heory of M eaning", (leis, co nv enções, princípios) criados pelo ho­ em Proceedings of lhe American Academy of Arts and Sciences, 1951, pp. 46 ss.). Assim, a m em {De bom., 10). A n alo g am en te, V iço ini­ teoria de V . está ligada à n oção da possibili­ cialm ente lim itou o dom ínio do co nhecim ento hum an o à m atem ática (De antiquissima), e de­ dade (v.). VEROSSÍMIL (gr. eitó ç ; lat. Verisimiles; in. pois o estendeu para a história, Scienza nuova I.ikely, fr. Vraisemblable, ai. Wahrscheinlich; it. (1725). VETOR (in Vector, fr. Vecteur, ai. Vector, it. Verisimile). 1. O que é sem elh an te à v erd ad e, Vettore). E m m atem ática, um a grandeza deter­ sem ter a p reten são de ser v erd ad eiro (no sen ­ m inada em q u an tid ad e, direção e sentido. É tido, p. ex., de rep resen tar um fato ou um con­ h ab itualm ente rep resen tad o por um a flecha. ju n to de fatos). P ortanto, um a narrativa, seja W hiteh ead utilizou esse term o para indicar o um rom ance ou um a tragédia, p o d e ser V. sem referir-se da experiência sensível ao exterior ser m inim am ente provável, sem que exista q u al­ (Process andReality, 1929, p. 249). quer probabilidade de que os fatos m en cio n ad o s se tenh am verificado ou v en h am a verificar-se. VÍCIO (gr. K cm a ; lat. Vitiuni; in. Vice-, fr. N esse sentido, foi con stan te o em p reg o do Vice, ai. Laster, it. Vizio). 1. O contrário da vir­ conceito de V. na estética, a partir de A ristóteles. tu d e nos vários significados deste term o. Com "Narrar coisas efetivam ente acontecidas" — referência ao conceito aristotélico-estóico de dizia A ristóteles — "não é tarefa do poeta; dele virtude com o hábito racional da conduta, o V. é seria a tarefa de rep resen tar o que poderia um h ábito (ou um a disposição) irracional. N es­ acontecer, as coisas possíveis segundei v ero ssi­ te caso, são V . os extremos op osto s cujo m eiom ilhança ou necessidade" (Poet, 9, 1451 a 36). term o é a virtude: p. ex., a abstinência e a intem N esse sentid o , V. é o caráter de enunciados, perança diante da m od eração , a covardia e a teorias e expressões que não contradigam as tem erid ad e diante da coragem , etc. N este sen­ regras da possibilidade lógica ou as das p o ssibi­ tido, a palavra V. só se aplica às virtudes éticas. lidades teóricas ou hum anas. U m aco n teci­ Com referência às virtudes dianoéticas ou inm ento hum ano im aginado é V. se for considera­ telectivas, V. significa sim plesm en te a falta d e­ do com patível com o co m p o rtam e n to com um las: falta que, seg u n d o A ristóteles, é v erg o n h o ­ dos hom en s ou en co n trar explicações ou res­ sa so m en te com o participação m alograda nas paldo n esse co m p o rtam en to . coisas excelen tes de que participam to d o s os 2. O m esm o que persuasivoiy.) ou provável outros, ou quase todos, ou pelo m enos os que são sem elhantes a nós, ou seja, os que têm (v.). P opper, co n tu d o , fez a distinção entre v e ­ nossa idade ou que são de nossa cidade, família rossim ilhança (verisimilitude) e pro b ab ilid ad e, ou classe social (Ret., II, 6, 1383b 19; 1384a 22). porque, enq u anto esta últim a representa a idéia de aproxim ação da certeza lógica ou da v erd a­ 2. Portanto, o sentido m ais geral de V . é a de tautológica por m eio da grad u al d im in u i­ falta ou deficiência de algum a característica que ção do conteúdo inform ativo, a verossim ilhança um o bjeto q u a lq u e r (no sen tid o m ais am plo) representa a idéia da aproxim ação da v erd ad e deveria ter seg u n d o a regra ou a norm a qu e lhe ab ran gen te e, assim , com bina v erd ad e e con­ diga respeito. N esse sen tid o geral, pode-se falar teúdo, en q u an to a p ro b ab ilid ad e com bina v er­ e fala-se de V. lógico ou de V. jurídico, etc. dade e falta de co n teú d o (Conjectures andKeVIDA(gr. Çcof), p"íoç lat. Vita; in. Life, fr. Vie; futations, 1965, p. 237). ai. Leben; it. Vita). C aracterística que têm certos VERUM IPSUM FACTUM. Fórm ula utilizada fenôm enos de se produzirem ou se regerem por si m esm os, ou a totalidade de tais fenôm enos. por G. B. Viço para expressar o princípio de q u e Essa caracterização é aqui dada ap en as p or ser o hom em p o d e co n h ecer só o que ele m esm o aquela em to rno da qual é m ais am plo o açorfez, po rq u e o co n h ecim ento de um a coisa é o

VIDA do entre filósofos e cientistas, e a título p u ra­ m ente descritivo, sem que o reco n h ecim en to de um a característica própria dos fenôm enos da V. im plique o reco n h ecim en to de um prin­ cípio ou de um a causa em si desses fen ô m e­ nos. V erem os, aliás, que em certos níveis de V. a própria distinção entre o que é V. e o que não o é torna-se m uito difícil ou perd e sentido. A disputa entre vitalism o e antivitalism o não concerne ao problem a da caracterização da V., m as ao da origem e do d esen v o lv im en to da V.; qu an to a esse p roblem a, v. VITALISMO. D esde a A ntigüidade os fen ô m en o s da V. têm sido caracterizados com base em sua cap a­ cidade de au to p ro d u çào , vale dizer, com base na espontaneidade com que os seres vivos se m ovem , se nutrem , crescem , se rep ro d u zem e m orrem , de um m odo que, pelo m enos ap a­ rente e relativam ente, não d ep en d e das coisas externas. Platão identificava alma e V. (Fed., 105 c), p o rq u e considerava própria da alm a a capacid ad e de "m over-se por si" (F ed, 245 c). A ristóteles en ten d ia por V. "a nutrição, o cres­ cim ento e a destruição qu e se originam por si m esm os" (Dean., II, I, 412 a 13). e co n se q ü en ­ tem en te considerava que a V. é própria dos seres anim ais, pois estes "possuem em si m es­ m os um a potência ou um princípio tal que sofrem au m en to ou dim inuição nas direções opostas" (Ibid., II 413 a 27). Com base no m es­ m o conceito de V., Plotino afirm ava que "toda V . é p en sam en to " e que o p en sam en to "vive por si m esm o" (Fnn., III, 8, 8). S. T om ás afir­ mava que V. significa "a substância à qual convém por natureza m over-se ou conduzir-se esp o n ­ taneam en te e de q u alq u er m odo à ação" (S. T h , I, q. 18, a. 2); p o rtan to , a alm a é seu prin­ cípio (Ibid., I, q. 75, a. 1). Q uando, com D escartes e H obbes, surgiu o conceito m ecanicista da V. e com eçou-se a com ­ parar o hom em e, em geral, o organism o vivo a um a m áquina bem m ontada, o conceito de V. não m udou, visto qu e a hip ó tese m ecanicista era inspirada aos filósofos exatam ente pela cren ­ ça de que "os autôm atos p o d em m over-se por si" (DHSCARTRS, Traité de 1'homme, p. I; HOBBES. Leviath., I, Intr.). O que se negava neste caso era a identidade entre alm a e V.: assim , co n ­ siderava-se possível que a m esm a m atéria corpórea, em certas form as de organização, teria cond içõ es de m over-se ou de desenvolver-se por si. A disputa entre vitalism o e m ecanicism o (v. VITALISMO) versa so b re o seguinte: o m eca-

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VIDA nicism o afirma que a V. é devida a certa organi­ zação físico-quím ica da m atéria corpórea, en ­ quanto o vitalism o considera que essa organiza­ ção não é suficiente, e que a V. depende cie um princípio de natureza espiritual, que é, p. ex., a archeus (v.) de H elm ont, a natureza plástica (v.) de C udw orth, o dom inante(v) de Reinke. a enteléqnia (v.) de D riesch, o elà vital (v.) de B ergson. Leibniz objetava ao m ecanicism o e ao vitalism o que am bos contradizem o "grande princí­ pio da física", seg u n d o o qual "um corpo só se m ove se im pelido por um corpo vizinho c em m ovim ento"; considerava que a única teoria da V. com patível com esse princípio é a da harm o ­ nia p reestabelecida, seg und o a qual a V. con­ siste na con cordân cia cia ação das substâncias, preestabelecida por D eus (Sur le príncipe de lie. 1705, em O p , ed. K rdm ann, pp. 429 ss.). O conceito da V. com o auto-regulaçâo p arece ser sim plesm ente p ressup osto tanto por aquela disputa q uanto pela observação de Leibniz. E tam bém por Kant, quan do este afirma que "a V. é a cap acid ad e de atuar seg u n d o a faculdade de desejar", e n te n d en d o por faculdade de desejar "a faculd ade de, por m eio das re p re ­ se n ta ç õ e s, ser causa d os ob jetos d essas re ­ presentações" (Crít. K. Prática, Pref., anotação; A nfangsgriínde der N atunvissenschaft, III, teor. 3, anotação). O conceito de vida com o autoregulação tam bém era pressu p o sto por Schelling, para quem a diferença entre o orgânico e o inorgânico consiste no fato de que o orgânico tem em si sua própria org an ização ou sua p ró ­ pria form a de V., en q u an to o inorgânico é pri­ v ad o dela e faz parte de um a o rganização mais am pla, que é a V. da n atureza em seu conjunto (Werke, I, III, pp. 89 ss.). E m sentido análogo, H egel identificava a V. com "o princípio que dá início e m ovim ento a si m esm o" ( Wissenschaft der Logik, ed. G lockner, II, p. 250), ou, em o utros term os, com "o tod o que se desenvolve, resolve seu desenvolvim ento e m antém -se sim ­ ples nesse m ovim ento" (Fhãnomen. des Geistes, I, IV, 1). Por outro lado, C laude B ernard escre­ via: "As m áq u in as vivas são criadas e co n s­ tru ídas de tal m odo que, ao se aperfeiçoarem , vâo-se to rn an d o m ais livres no am biente cós­ m ico geral. (...) A m áquina viva m antém -se em m ovim ento porque o m ecanism o interno do o rg an ism o rep ara, por m eio de açõ es e for­ ças sem pre renascentes, as perdas constituídas pelo exercício das funções. A s m áquinas cria­

VIDA das pela inteligência do hom em , em bora infini­ tam ente m ais rudim entares, não são construídas de outra forma" (Intr. à 1 'étude de Ia medicine expérimentale, II, I, 8). Finalm ente, é preciso n o ­ tar que o elã vital, em que B ergson reco n h eceu a fonte da V., outra coisa não c sen ão cons­ ciência, e consciência criadora, que extrai de si m esm a tu d o o que produz. B ergson diz-. "O ela de V. de que falam os consiste num a exigência de criação. N ão p o d e criar de modo absoluto po rq u e en co n tra diante de si a m atéria, ou seja, o m ovim ento que é o inverso do seu ponto. Mas ele se apodera dessa matéria, que é a própria necessidade e tend e a nela introduzir a m aior som a possível de indeterm inaçào e liberdade" (Évol. créatr., 8 3 e d , 1911, p. 273). P arece ter o m esm o significado a ex p ressão de W hitehead, de que a vida é "autofruição individual e ab so ­ luta" (Nature and Life, 1934, II). Por outro lado, p arece que a própria ciência recorre a um a caracterização não m uito dife­ rente dos fen ô m en o s vitais, em bora, com o é óbvio, evite hipostasiar em en tid ad es ou prin­ cípios essa caracterização. O s fen ô m en o s que a ciência considera próprios da V. (m etabolism o, plasticidade, reatívidade, reprodução) são ju sta­ m ente aqu eles em que é evidente o caráter de um a auto-regulação. Q uando J. B. S. H aldane afir­ m a que ,se p o d e co n sid erar vivo "qualquer m o­ delo de reação química capaz de autoperpetuarse" ("The origin of Life", em RationalistAmuial, 1928, pp. 148-53), está ap en as ex p ressan d o , com outras palavras, o v elh o conceito da autoregulação, ao qual recorrem tam bém , em bora de m odo indireto ou com expressões am bíguas ou disfarçadas (com o "totalidade", "ciclicidade". "autonom ia", "se.letivid.acle", e tc ), inclusive os cientistas de nítida inspiração m aterialista. M as, ap esar cie serem quase un ân im es as opiniõ es em to rn o do conceito de auto-regulação, este dificilm ente poderia ser co n sid erad o um a caracterização suficiente dos fenôm enos vitais em tod o s casos. Por um lado, realm ente, em certos extrem os da escala biológica (p. ex., para os vírus), não é possível afirm ar que se trate de corpos vivos ou não. E m vista disso, já houve quem considerasse sem sentido o uso da palavra V. para referir-se aos sistem as situados na zona limítrofe, entre a V. e a m atéria inorgânica (N. W . PiuiF,, TheMeaninglessness ofthe Terms "Life"and "Living", em j . NEEDHAM e D. R. GREEN, Perspectives in Biochemistry, 1951, pp. 21 ss.).

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VIOLÊNCIA

Por outro lado, a teleonomia (v.), atribuída aos organism os vivos e interpretada com o ativida­ de orientada, coerente e construitiva, não im pe­ de que a biologia m oderna (baseada sobretudo na genética e na bioquím ica) considere os seres vivos com o máquinas quím icas, dotadas de uni­ dade funcional e capaz de autoconstruir-se. Es­ sas m áquinas exigem a intervenção de um siste­ m a cibernético que g o verne e controle a ativi­ dad e quím ica nos pontos estratégicos. Em bora hoje estejam os distantes do dia em cjue a estru­ tura dos sistem as que constituem os organism os superiores será totalm ente esclarecida, a ten­ dência da ciência m oderna nas pesquisas bioló­ gicas continua send o m arcada pela cibernética e pela bioquím ica (cf., p . ex., MONOD, Le hasard et Ia necessite, 1970, cap. II). VIDA, FILOSOFIAS DA (in. 1 'hilosophies of life, fr. Philosohies de Ia ríe, ai. Lebensphilosophieti: it. Fílosofiedelia vitu). Com esta expressão, utilizada especialm en te na A lem anha, são d e­ n o m in adas as filosofias que têm em com um a característica de con sid erar a filosofia com o V., m ais que reflexão sobre a vida. Trata-se de um a expressão polêm ica que pennite aproxim ar filo­ sofias diferentes com o as de N ietzsche, D ilthey, Sim m el, Spengler, Jam es, B ergson e outros; foi em p reg ad a com fins polêm icos no título de um livro de Rickert (Die Philosophie des Lebens, 1920). VIDA, TERCEIRA (fr. Troisième vie). Foi esse o nom e que M aine de Biran deu à vida re­ ligiosa ou mística do h o m em , q u e se d istin­ g u e da vida sim p le sm e n te humana p or ser a libertação dos afetos e das paixões, e da vida animal, que se caracteriza pelas sen saçõ es e p elos instintos (Nouveaux essaís d'anthropologie, 1823-24, em (Euvres, ed. Naville, III, p. 519). A terceira V. é a m esm a que no Evangelho de João se cham a de "V. seg u n d o o espírito". V ING A N Ç A . V. TAUÀO. V IOLÊNCIA (gr. pHd; lat. Violentia-, in. Violence, fr. Violence, ai. Gewaltsamkeit; it. Violenza). 1. A ção contrária à ordem ou à disposição da natureza. N esse sentido, A ristóteles distinguia o m ovim ento segundou naturezae o m o­ vim ento por V.-. o prim eiro leva os elem entos ao seu lugar natural; o seg u n d o afasta-os (De cael, I, 8, 276, a 22) (v. FÍSICA). 2. A ção contrária à ordem m oral, jurídica ou política. N esse sen tid o, fala-se em "com eter" ou "sofrer V.". A lgum as vezes esse tipo de V. foi exaltado por m otivos políticos. Assim, Sorel fez

VIRTUAL

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a distinção entre a V . que se destina a criar um a sociedade nova e a força, que é própria da so ­ ciedade e do estad o b u rguês. "O socialism o deve à V. os altos v alores m orais com que ofe­ rece salvação ao m u n d o m oderno" (Réflexions surla violence, 1966, trad. it., p. 133). VIRTUAL (in. Virtual fr. Virtuel; ai. Virtuell; it. Virtualé). O m esm o que potencial (v.). VIRTUDE (gr. á p e n í ; lat. Virtus, in. Virtue, fr. Vertii; ai. Tugend; it. Virtú). Este term o d e­ signa um a capacidade qualquer ou ex celên cia, seja qu al for a co isa ou o ser a q u e p e rte n ­ ça. Seus significados específicos p o d em ser re­ duzidos a três: 1Q cap acid ad e ou potência em geral; 2a c a p acid ad e ou p o tên cia do hom em ; 3S capacidade ou potência m oral do hom em . 1 N o prim eiro sentido, que é o da definição geral, a V. indica um a capacidade ou potência qualquer, com o p. ex. de um a planta, de um anim al ou de um a pedra. M aquiavel fala da "V." da arte da guerra (Opríncipe, 14), e Berkeley fala das "V. da água de alcatrão" (Subtítulo de Siris, 1744). 2" N o seg u n d o sentido, a V. é um a capaci­ dade ou p otência própria do hom em . Assim , p. ex., cham a-se de v irtu o so /v irtu ose quem p o s­ sui um a habilidade q ualquer, com o p. ex., para cantar, tocar um in strum ento ou usar a gazua. N ietzsche quis retom ar esse sentido de V.: "Reco­ nh eço a V. no seguinte: le ela não se im põe; 2a ela não su p õ e a V. em to d o lugar, m as p recisa­ m ente um a outra coisa; 3y ela não sofre pela ausência da V., m as considera essa ausência com o um a relação de distância graças à qual há algo de v eneravel na V.; 4I> ela não faz p ro p a­ ganda; 5Q não perm ite que n in g u ém se erija em juiz, p o rq u e é sem pre um a V. por si m esm a; 6e ela faz exatam ente tu d o o qu e é pro ibid o (a V., com o a en ten d o , é v erd ad eiro uetitumem toda a legislação do rebanho); 7S ela é V . no sentido renascentista, V. livre de m oralidade" ( Wille zurMacht, ed. 1901, § 431). 3° N o terceiro sen tid o , o term o designa um a capacid ad e do hom em no dom ínio m oral. D eve tratar-se de um a cap acid ad e uniform e ou continuativa, com o já declarava H egel (EU. do dir, § 150, anexo), po rq u e um ato m oral não constitui virtude. Essa condição, porém , nem sem pre é respeitada, e Locke, p. ex., fala de V. e de vício no sen tid o de atos m orais isolados (Ensaio, II, 28, 11). A s definições de V. nesse sentido estão co m p reen d id as nas seguintes rubricas: a) cap acid ad e de realizar um a tarefa

VIRTUDE

ou um a função; b) hábito ou d isposição racio­ nal; c) capacid ade de cálculo utilitário; d) sen ­ tim ento ou tend ência espontânea; e) esforço. a) A V. com o capacidade de realizar um a ta­ refa determ inada é conceito platônico. Assim com o os órgãos (p. ex., a função dos olhos é ver, e a possibilidade de ver é a V . dos olhos), a alm a tem suas p róprias funções, e sua cap aci­ dade de cum pri-las é a V. da alma (Rep, I, 353). Por isso, seg u n d o Platão, a diversidade das V. é determ inada pela diversidade das funções que devem ser cum pridas pela alm a ou pelo ho m em no Estado. A s quatro V. fundam entais ou cardeais (v.) são determ inad as pelas fun­ ções fundam entais da alm a e da co m un idade. b) A co n cep ção da V . com o hábito (v.) ou disposição racional constante encontra-se em A ristóteles e nos estóicos, send o a m ais difun­ dida na ética clássica. S egundo A ristóteles, a V. é o hábito que torna o hom em bom e lhe perm ite cum prir b em a sua tarefa (Et. nic, II, 6, 1106 a 22); é um hábito racional (Ibid., II, 2, 1103 b 32) e, com o tod os os hábitos, uniform e ou co n stan ­ te. O s estóicos, por sua vez, definiam a V. co ­ m o "uma disposição da alm a coerente e co n ­ corde, que torna dignos de louvor aqueles em qu em se encontra e é louvável por si m esm a, in d ep e n d en tem e n te de sua utilidade" (Cíc.KRO, Tusc, IV, 15, 34; STOBKO, Ed, II, 7, 60). Essas definições foram repetidas inúm eras vezes na filosofia antiga e m edieval e tam bém no p en ­ sam en to m oderno. E ncontram -se, p. ex., em A belardo (Theol. christ, II), A lberto M agno (S. Th, II, q. 102, a. 3), S. T om ás (S. Th, II, I, q. 55), Leibniz (que faz a distinção entre V. com o há­ bitos, e as ações co rresp o n d en tes, Nouv. ess., II, 28, 7) e W olff (Phil. practica, I, § 321). c) O terceiro conceito considera a V. com o cap acid ad e de cálculo utilitário. Foi Epicuro o prim eiro a ex po r essa n oção, co nsid eran do co­ m o V . su prem a (da qual to d as as outras d eri­ vam) a sabedoria, que é capaz de julgar dos prazeres que devem ser escolhidos e dos prazeres cie que é preciso fugir, e destrói as opiniões cau­ sad o ras das p ertu rb ações da alm a (DIÓG. L, X, 132). N o R enascim ento esse conceito foi d e­ fendido por T elésio, para quem a V. era a fa­ culdade de estabelecer a m edida certa das pai­ xões e das ações, para que delas não proviessem prejuízo ao hom em (De rer. nat. IX, 5). Mais tarde, co n cep ção análoga foi defendida por Hum e (Ink. Cone. Morais, I) e. em geral, pelo utilitarismo inglês, em especial por B entham , que

VIRTUDE definia a V. com o "disposição para produzir felicidade" (D eontology, X). A pesar de ser p e­ culiar ao em pirism o, esse conceito de V. foi com ­ partilhado p o r Spinoza: "Para nós, agir abso lu ­ tam ente seg u n d o a V., nada m ais é que agir, viver e conservar o p ró p rio ser (três coisas que significam o m esm o) seg u n d o a orien tação da razão sobre o fundam ento da busca do útil" (Et., IV, 24). d) O conceito de V . com o sentim ento ou disposição, vale dizer, com o esp o n tan eid ad e, encontra-se nos analistas ingleses do séc. XVIII, a com eçar por Shaftesbury: "Numa criatura sen ­ sível, que não é feito por m eio de um a afeição não pro duz nem bem nem m al em sua n atu re­ za, pois essa criatura só p o d e ser cham ada de bo nd osa q u an d o o bem ou o m al do sistem a com o qual ela está em relação for objeto im e­ diato de algum a em o ção ou afeição qu e a m ova" (Characteristics o/M en, T reatise IV, li­ vro I, part, 2, seç. I). Com base nisto, H u tchinson postulou um sentido m o ral com o fundam ento da V. (System o f M oral Sentiments, 1754, III, I) e A dam Sm ith definiu esse sentido m oral com o sim patia (Theory ofM oral Sentiments, 1759, III. 1). M as foi p rin cip alm en te o Ilum inism o fran­ cês que divulgou esse co n ceito : R ousseau fala­ va da p ied ad e com o "V. natural", qu e é "uma disposição co n v enien te a seres tão débeis e sujeitos a tantos m ales q u an to os hom ens", que antecede a reflexão (D e iinégalité parnii les bommes, D; no m esm o sentido, V oltaire consi­ derava que V. outra coisa não é sen ão "fazer o bem ao próxim o" (D ictionnairephilosophíque, art. Vertu). A ética do positivism o ateve-se a essa concepção, co n sid eran d o a V. com o m anifes­ tação do instinto altruísta (COMTK, Catéchisme positiviste, p. 48; SPF.NCF.R, Data o f Etbics, § 46). N a filosofia co n tem p o rân ea, p o d e-se distinguir concepção análoga na cham ada "m oral aberta" de B ergson, que é a m anifestação do ela vital (Deuxsoucers, 1932, cap. I). e) Finalm ente, a co n cep ção de V. com o es­ forço foi enunciada por R ousseau e adotada por Kant. R ousseau dizia: "Não existe felicida­ de sem coragem , nem V. sem luta: a palavra V. deriva da palavra força; a força é a b ase de toda virtude. A V . perten ce apenas aos seres de natureza débil, m as de v o n tad e forte: exata­ m ente por isso h o m en ag eam o s o hom em ju s ­ to; tam bém por isso, m esm o atrib u in d o b o n d a ­ de a D eus, não dizem os que Ele é virtuoso, porque suas b oas obras são por ele cum pridas

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VISÃO sem esforço algum " (Emile, V .). N esse espírito, Kant definiu a V. com o "intenção moral em luta", que não teria sentido caso o hom em tivesse aces­ so à santidade, ou seja, à coincidência perfeita da v o n tad e com o lei (Crít. R. Pratica, I, livro I, cap. III). Assim com o Cícero (v. CORAGEM) e R ousseau, ele uniu estreitam ente a noção de V. com a de coragem : "A qualidad e especial e o propósito elevado com que se resiste a um adversário forte m as injusto cham a-se coragem (fortitudo); q u an d o se trata do adversário en­ co n trad o pela in ten ção em nós m esm os, cha­ m a-se V. (virtus, fortitudo moralis). Portanto, a p arte da d o u trin a geral dos d ev eres que su b m ete a lib erd ad e interna (e não a externa) a leis é um a doutrina da V ." (Met. der Sitten, II, Intr., I). Em polêm ica com Kant, Schiller p rocurou integrar a doutrina K antiana na co n­ cep ção de V . com o esp o n ta n eid a d e ou senti­ m ento, d izen d o : "Não tenh o bom conceito do h o m em que p o d e confiar tão p o u co na voz do instinto que precise silenciá-lo o tem po to d o diante da lei m oral; respeito e estim o mais aq u ele que se entrega ao instinto com certa segurança, sem o risco de ser por ele desencam inhado" (ÜberAnm ut \tnd Würde, 1793, em W erke, ed. K arpeles, XI, p. 202). O conceito de alm a bela (v.) nascia exatam en te dessa noção da V. com o esp o n tan eid ade, à qual Kant res­ pondia que, se "o tem peram ento da V. for corajo­ so e p o rtan to alegre", a V., en tre os seus ou­ tros benefícios, tam bém po de ser acom panhada pela graça (Religion, I, O bserv., nota). Já H egel observava que no seu tem p o não se falava m ais tanto de V. (F/7. do dir., § 150, Zusatz), pois "falar de V. confina facilm ente com d eclam açâo vazia, pois assim se fala ap enas de algo abstrato e indeterm inado"; e que o discur­ so so b re a V. destina-se ao indivíduo enq uanto arbítrio subjetivo (Ibid., § 150). A observação de H egel tam b ém se aplica aos nossos tem pos, em qtie a discussão do p roblem a m oral deixou de ter forma de discurso sobre a V., para assum ir a form a de discurso so bre valores e norm as, de um lado, e so b re atitudes e m odos de vida de outro (v. ÉTICA).

VIRTUDES CARDEAIS, DIANOÉTICAS, DlANOÉTICO; ÉTICAS, VIRTUDES; TEOLOGAIS, VIR­ TUDES. ÉTICAS, TEOLOGAIS. V. CARDEAIS, VIRTUDES;

VISÃO (in. Vision, fr. vision, ai. Anschauung, Trãum erei; it. Visione). 1. N o sentido propria­ m ente filosófico, o m esm o que intuição (v.). 2. O sentido da vista.

VISIONÁRIO

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3- A lucinações, so n h o s, im agens de fantas­ m as ou de espíritos d ese n carn ad o s, co n sid era­ das reais. V ISIO NÁ RIO (in. Visionary, fr. Vísionnaire, ai. G eisterseher, it. Visionário). Q uem tem v i­ sões no terceiro sen tid o do term o. Este é o sentido da palavra do título da obra de Kant, Sonhos de um visionário esclarecidos p o r s o ­ nhos da m etafísica (1766), em que ele fazia um a analogia entre "os so n h ad o res da sen sa­ ção", que são os que acreditam ver espíritos desen carn ad o s, e os "sonhadores da razão", ou m etafísicos, que tam b ém vivem num m undo de so n ho s ou de visões particulares. VITALIDADE (in. Vitalüyjr. Vitalité/à\. Vitalitá; it. Vitalità). N o sen tid o corrente do term o, potência ou p len itu d e de vida. Esse term o co ­ m eçou a ser u sad o q u an d o N ietzsche ev id en ­ ciou e exaltou os "valores vitais", o p o n d o -o s aos v alo res ren u n ciató rio s da m oral tradicional (v. TRANSMUTAÇÃO). VITALISM O (in. Vitalism- fr. Vitalisme, ai. Vitalism us; it. Vitalismo). T erm o oitocentista p a­ ra indicar q u alq u er doutrina que co nsidere os fenôm en o s vitais com o irredutíveis aos fen ô ­ m enos físico-quím icos. Essa irredutibilidade p o ­ de significar várias coisas, pois vários são os p ro blem as cujas so lu çõ es dividem os p artid á­ rios e os adversários do V. lu Em prim eiro lu­ gar, significa que os fen ô m en o s vitais não p o ­ dem ser inteiram ente explicados com causas m ecânicas. 2" E m seg u n d o lugar, significa que um organism o vivo nunca poderá ser prodtizido artificialm ente pelo hom em num laboratório de bioquím ica. 3y E m terceiro lugar, significa que a vida so b re a terra, ou, em geral, no u n i­ verso, não teve origem natural ou histórica d e­ corrente da o rganização e do d esen volvim ento da substância do universo, m as é fruto de um plano providencial ou de um a criação divina. l9 S egundo o prim eiro p o n to de vista, p o ­ dem ser ch am ad o s de vitalistas tod o s os co n ­ ceitos clássicos que, identificando a vida com a alm a, excluem -na de q u alq u er influência das forças m ateriais. E m sentido m ais preciso, V. é a doutrina defendida por filósofos e cientistas entre m eados do séc. XVIII e m eados do séc. XIX, seg u n d o a qual o fundam ento do s fen ô ­ m enos vitais é um a força vital que não d ep e n ­ de de m ecanism os físico-quím icos. É caracte­ rística do V. declarar inútil a investigação cientí­ fica dos fen ô m en o s vitais, po rtan to ela nunca conseguirá ap reen d er a força que constitui a

VITALISMO

essência da vida. O V. nesta form a foi invali­ dado pelas d escobertas da bioquím ica, que, a partir de 1828 (data em que foi efetuada a fabri­ cação sintética da uréia), dem onstrou a possi­ b ilid ad e de produzir substâncias orgânicas em laboratório. O neovitalism o, levan do em conta essa possibilidade, reco n h ece a utilidade da in­ vestigação físico-quím ica dos fenô m en os vi­ tais, m as co n tin u a ad m itin d o a irredutib ilidade desses fen ô m en o s às forças fisico-quím icas, afirm ando que eles são dirigidos por um elem en­ to específico que recebe vários nom es {dom inan­ te [v.l em R einke, enteléquia [v.J em D riesch, elã vital [v.l em Bergson. A dificuldade principal desse aspecto do V. é a in o p o rtun idad e de adm itir um a causa des­ conhecida e inacessível, p o u co m ais que um n o m e e, além disso, capaz de torn ar insignifi­ cante ou descabida a observação científica dos fen ô m en o s vitais. Um a causa assim , ex atam en­ te por fugir à observação, nada explica ao p re­ ten d er tud o explicar; é um asilo da ignorância ou da razão indolente. 2- Q uase todas as form as de V. co n tem p o ­ rân eo com partilham , além da tese da irredutibilidade no sentido acim a, a profecia de que é im possível a ciência pro du zir vida em labora­ tório. O bviam ente, essa profecia está além de tu d o o que a ciência p ode afirm ar legitim am en­ te. É fato que a investigação bioquím ica até hoje não conseguiu produzir sínteses orgânicas que tenh am características evidentes de matéria viva, m as qtie ela não possa chegar a isso não é fato, e sim tuna asserção que só pode estar apo ia­ da num conceito ultracientífico ou m etafísico da vida. D esse po nto de vista, o interesse da ciência é um m aterialism o m etodológico qtie adm ite: 1Q q u e os fenô m eno s vitais tem carac­ terísticas próprias, diferentes das característi­ cas do fen ô m en o s físico-quím icos, m as não tão diferentes que criem um abism o entre am ­ bas as ordens de fenô m eno s e im possibilitem q ualquer passagem de um para outro-, 2- que se p o d e e deve levar adiante a análise científica dos fenôm en os vitais, com o a única capaz de explicar os fenôm enos. Esse é o ponto cie vista de um grupo num eroso de biólogos contem ­ porâneos (cf. a respeito G. G. SIMPSON, lhe M ea­ n in g ofE volution, cap. X). 39 Q u anto ao problem a da origem da vida na T erra ou, em geral, no universo a antiga crença na geração espontânea adm itia com o fato norm al, não m iraculoso, que a vida se ori­

VITORIOSO, ARGUMENTO

gina da matéria inorgânica. Essa crença já refu­ tada pelas experiências de Francesco Redi (1668) e de Lazzaro Spallanzani (1765), foi defini­ tivamente alijada da ciência por Pasteur (1862). Por outro lado, a hipótese da panspermia {y.), que admite a migração de sementes vitais no universo, ao mesmo tempo que não constitui uma resposta ao problema da origem da vida, parece ser contraditada pelas condições supos­ tamente existentes nos espaços interestelares, sobretudo pela ação bactericida dos raios ultra­ violeta. Nessa situação, só existem duas soluções alternativas. Pela primeira, a vida é obra direta ou indireta de Deus, de tal forma que sua ori­ gem nada tem de natural, mas é fruto de uma criação que ocorreu em dado ponto da história cósmica ou ocorre incessante e continuamente. Esta última é a versão aceita por Bergson (Evolution créatrice, 1907) e retomada porTeilhard de Chardin (Lephénomène humain, 1955). A segunda alternativa admite a possibilida­ de de que a vida na Terra tenha uma origem natural ou histórica que se deu a partir de determinada fase da organização da matéria inorgânica. Essa possibilidade pode ser exem­ plificada com boas razões científicas; isso foi feito, p. ex., por A. I. Oparin (L'originedelia vita sula terra, trad. it., 1956). Os últimos avanços da biologia devidos à genética (v.) e à bioquímica, dão destaque a essa possibilidade, que no en­ tanto só se realizaria se a ciência conseguisse reproduzir vida em laboratório e, assim, determi­ nar as condições que possibilitam efetivamente o seu desenvolvimento a partir da matéria inor­ gânica. Mas está claro que, se isso acontecesse, toda a discussão da origem da vida perderia sen­ tido, pois estaria determinada inclusive a data provável de stia origem em relação a história da Terra. VITORIOSO, ARGUMENTO (gr. ó ícupt eúrov ÀÓ70Ç). Argumento famoso, com o qual Diodoro Cronos, um dos seguidores da escola socrática de Mégara (séc. IV-V a.C), mostrava a identi­ dade entre o possível e o necessário. Esse argu­ mento era assim formulado: "Do que é possí­ vel não pode seguir-se algo impossível. Ora, é impossível que aquilo que passou seja diferen­ te do que foi. Mas se, num momento anterior, tivesse sido possível algo diferente do que foi, do possível teria surgido o impossível: logo, o que é diferente do que foi não era possível em nenhum momento. Por conseguinte, é impos­

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VOCAÇÃO

sível que possa acontecer algo que não aconte­ ça realmente" (EPICTETO, Diss, II, 19, I; v. CÍ­ CERO. De fato, 6 ss.). Limitando a possibilida­ de ao que realmente aconteceu, Diodoro afir­ mava a necessidade de tudo o qtie acontece, ou seja, é impossível que o que acontece possa acontecer de modo diferente de como aconte­ ce (v. NECESSÁRIO-, POSSÍVEL). Na filosofia con­ temporânea, esse argumento é adotado por N. Hartmann, com explícita referência a Diodoro Cronos (Móglichkeit und Wirklichkeit, 1938. pp. 186 ss.). VIVACIDADE (in. Vivacity). Característica fundamental que estabelece a distinção entre impressões e idéias, segundo Hume: impres­ sões e idéias assemelham-se, mas as primeiras têm mais "força e V.", e assim inclinam à crença (Treatise, I, I, 1; I, III, 7). VIVÊNCIA (ai. Erlehnis). Experiência viva ou vivida, a V. designa toda atitude ou expressão da consciência. Dilthey utilizou bastante essa noção assumindo-a como instrumento fundamental da compreensão histórica e, em geral, da com­ preensão inter-humana. Caracterizou-a do se­ guinte modo: "A V. é, antes de mais nada, a unidade estrutural entre formas de atitude e conteúdos. Minha atitude de observação, jun­ tamente com sua relação com o objeto, é uma V., assim como meu sentimento de alguma coisa ou meu querer alguma coisa. A V. é sem­ pre consciente de si mesma" (Grundlegiing der Geisteswissenschaften, II, 1, 2). Do mesmo modo, Husserl considerou a V. como um fato de consciência, logo, como um entre os demais conteúdos do cogito. "Consideramos as V. de consciência em toda a plenitude concreta com que se apresentam em sua conexão concreta — O fluxo da consciência — e na qual se uni­ ficam graças à sua própria existência. Portanto, é evidente que toda V. do fluxo que o olhar reflexivo consegue apreender tem uma essên­ cia própria, a ser captada intuitivamente, em conteúdo que pode ser considerado em sua carac­ terística intrínseca" (Ideen, 1, § 34). Carnap falou de V. elementares {Rlementarerlebnissen) co­ mo elementos originários de que se vale a constaição lógica do mundo, juntamente com as relações {Der logische Aufbau der Weil, 1928, § 65).

VOCAÇÃO (gr. KÀflGtç; lat. Vocatio; in. Vocation, fr. Vocation; ai. Benif it. Vocazione).

Na origem, um dos conceitos fundamentais do cristianismo paulino: "Quem for chamado numa

VOLUNTÁRIO V.. nela p erm aneça" (Ad cor, I, VII, 20). A V. é hoje um con ceito p ed ag óg ico e significa p ro ­ pensão para q u alq u er o cu p ação , profissão ou atividade. É diferente da aptidão, por ser a atra­ ção que o indivíduo sente por determ inada for­ m a de atividade, para a qual pode ser ou não apto. A aptidão p o d e ser controlada objetivam ente; a V. 6 subjetiva. Uma V. p o d e p ortanto ser tam ­ bém um beco sem saída (blind-alley vocation). VOLUNTÁRIO (in. Voluntary.fr. Volontaire. ai. Freiivillig. it. Volontario). 1. Q ue pertence ã vontade ou diz respeito ã vontade. 2. O m esm o q u e livre (v. LIBERDADE). VOLUNTARISMOCin. Voluntarism.fr. Vokmtarisme, ai. Vohtntarismn. % it. Volontarismo). Este term o, usado pela prim eira vez p o rT õ n n ies em 1883 e divulgado p o r W undt (v. FUCKEN. Geistige Stròm ungen der G egem vart, p. 33), foi em p re­ gado para indicar duas tend ên cias doutrinais diferentes: 1- a que afirma o p rim ado da v o n ta­ de sobre o intelecto; 2a a qu e v ê na v o n tad e à substância do m undo. Ia A prim eira tend ên cia é a gnosiológica e ética. Fsse tem p o foi aplicado para caracterizar algum as co rren tes da filosofia m edieval. H enri­ que de G and (m orto em 1293) afirm ou a su p e ­ rioridade da v o n tad e so b re o intelecto p o rq u e o hábito, a atividade e o objeto da v o n tad e são su periores aos do intelecto. D e fato, o hábito cia vo ntad e é o am or; o do intelecto é a sab e­ doria; o am or é su p erio r à sabedoria. A ativida­ de do q u erer identifica-se com o objeto dele, que é o fim, en q u an to a atividade do intelecto é sem pre distinta e separada do seu objeto. Finalm ente o objeto do querer é o bem . que é o fim absoluto, en q u an to o objeto do intelecto é o v erd ad eiro , que é um dos bens, p ortanto su b o rd in ad o ao fim últim o IQ uodi., I, q. 14). D uns Scot afirm ou o p rim ado da v o n tad e, m as com outro fundam ento: não 6 a b o n d ad e do objeto qu e causa necessariam en te o assenti­ m ento da v o ntade, m as é a v o n tad e que esco ­ lhe livrem ente o bem e livrem ente luta pelo bem m aior (Op. Ox., I, d. I, q. 4, n. 16). A esta doutrina está ligada outra, seg u n d o a qual o bem e mal consistem no m an d am en to divino. "D eus não p o d e q u erer algo que não seja ju sto po rq ue a v o n tad e de D eus é a prim eira regra'' (M d, IV, d. 46, q. I, n. 6). N o últim o p eríodo da F.scolástica o V. ocorre num a ou noutra dessas form as. A nálogo a essas concepções m edievais é o V psicológico, en co n trad o em T ònnies (G em eins-

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VONTADE

chaft und G esellschaft. 1887, pp. 99 ss.) e p rincipalm ente nas obras de W undt, que divul­ gou co nceito e term o. N esse sentido, V. não significa reduzir to d o s os p ro cesso s psíquicos a V., m as explicar esses processos segundo o m odelo ap resen tad o pelos processos da v on ta­ de (Wi'NDT, G rundzüge der pbysiologischen P sychologie, 1902, 5a ed., p p .1 7 ss.). Esse V. foi defendido na França por Fouillée (Psychologie des ldées-forces, 1893) e adotad o por n u m ero ­ sos psicólogos nas prim eiras décadas do séc. XX. 2a O V. m etafísico foi iniciado por Schopenhauer, para quem a v on tad e é substância ou n ú m ero do m undo, en q u anto o m undo natural é m anifestação ou revelação da vo ntade. Com o aparência ou fen ôm eno, o m u nd o é rep resen ­ tação; com o substância ou n úm ero , é vo ntade. A v o n tad e é a essência do corpo hu m an o , no qual é conhecida diretam ente e está em si m es­ m a, e essência de qualquer outro corpo, identifi­ cando-se com q u alq uer força do m u nd o (Die Welt, I, § 19). C om o tal, a vo n tad e determ ina o m undo da representação, definido por Schopenhau er com o "objetividade da vontade", e suhjulga esse m und o, m ostranclo-o nas form as de espaço, tem po e causalidade, que são as form as do fenô m en o (M d, § 23). Fssas idéias m uitas vezes foram parcialm ente acolhidas pelos fi­ lósofos do fim do século passado: basta aqui lem brar N ovos ensaios de antropologia (1813­ 24), de M aine de Biran, e Filosofia do incons­ ciente, de Fduarcl von H artm ann (1869). VOLUPTUOSIDADE. V PRAZER V ONTADE (gr. poúAr)OiÇ; kit. Voluntas: in. WiII: fr. Volurité. ai. Wille, it. Volontã). Fsse ter­ m o foi usad o com dois significados fund am en­ tais: 1" com o princípio racional da ação; 2" com o princípio da ação em geral. A m bos os significa­ dos, porém , pertencem à filosofia tradicional e à psicologia oitocentista, porqu e ligados à n o ­ ção de faculdade, ou p o deres originários da alma que se com binaram para produzir as m ani­ festações d o hom em (v. FACULDADE). M as hoje nem a filosofia nem a psicologia interpretam d esse m odo a conduta do hom em . A s noçõ es de comportamento (v.) e de forma (v.), bem com o a tendência funcionalista da psicologia (v.), não perm item falar de "princípios" da ati­ v id ade hu m an a e, portan to, a classificação intelecto-V. ou intelecto-sentim ento-V . perderam o significado literal. À s vezes, o term o V. é con­ servado, m as u nicam en te para indicar determ i­ n ad o s tipos de conduta ou certos asp ectos da

VONTADE conduta. E nesse sentido que devem ser en ten ­ didas as referenciais à psicologia co n te m p o râ­ nea contidas neste verbete. ly O prim eiro significado é o da filosofia clás­ sica: para ela, a V. é apetite racional ou co m p a­ tível com a razào, distinto do apetite sensível. que 6 o desejo(v.). A distinção entre estas duas coisas está em Platão, para quem retores e tira­ nos não fazem o que querem, em bora façam o que lhes agrada ou parece, visto que fazer o que se quer significa fazer o qu e se m ostra b o m ou útil, e isso é agir racio n alm en te ( G ó rg, 466 ss.). A ristóteles definiu a V. com o "apetiçào que se m ove de acordo com o que é racional" (Dean., III, 10, 433 a 23); o term o voluntários usado por A ristóteles para definir a escolha (v.), que seria "a ap etiçào voluntária das coisas que d e­ pen dem de nós" (Et. nic, III, 3, 1113 a 10). Os estóicos concordaram com esse conceito de V., por eles definida com o "apetiçào racional" (DIÜG. L, VII, 116). Cícero referia-se a essas doutrinas afirm ando que "a V. é um desejo com ­ patível com a razào, en q u anto o desejo o p o s­ to à razào, ou dem asiad o violento para ela, é a libidinagem ou a cu p id ez desenfreada que se en con tra em to d o s os in sensatos" (Titsc, IV, 6, 12). Esta concepção prevalece durante toda a Ida­ de M édia e é repetida por A lberto M agno (S. T h , I, q. 7, a. 2), S. T om ás (5. T h , I, q. 80, a. 2), D uns Scot (Rep. P a r, III, d. 17, q. 2, n. 3; Op. Ox., III, d. 33, q. 1, n. 9) e O ckham (In Sent., IV, 9, 14 G). T odas são rep etiçõ es liberais do conceito tradicional de V. com o apetite racional. M enos liberal 6 a repetição desse conceito em Spinoza. que en ten d e por V. "a faculdade de afirm ar ou cie negar, e não o desejo: faculdade graças à qual a m ente afirma ou nega o que é verdadeiro ou o que é falso, e não desejo com qu e a m ente deseja ou rep ele as coisas" (E t, II, 48, scol.X E ntretanto, ainda literal é a rep etição desse conceito por W olff (cham a-se "V. o apetite ra­ cional que nasce da rep resen tação distinta do bem ", Psicol. em pírica, § 880) e pelo próprio Kant, que en ten d e por V. a razão prática, isto é, a "faculdade de agir seg u n d o a rep re sen ta­ ção de regras" (G rundlegung der M etaphysík der Sitten, II). Eichte não pensava em nada m uito diferente ao afirm ar que a V. é a faculda­ de "de efetuar com consciência a passagem da indeterm inação para a determ inação": faculda­ de que a razào teórica obriga a p en sar que existe (Sittenlehre, § 14). Em sentido análogo,

1008

VONTADE H egel afirma que a V. é universal, "no sentido de universal com o racionalidade'" (EU. dodir., § 24). A distinção de Croce entre a form a eco­ nôm ica, utilitária, e a form a ética ou m oral da atividade prática co rresp o n d e à distinção tradi­ cional entre desejo e v on tade. S egundo Croce, a form a econôm ica seria volição do particular, ou seja, do útil; a form a m oral seria volição do universal, ou seja, apetiçào racional (Eilosofia delia pratica, 1909, pp. 217 ss.). N a n o ção de V. com o apetite racional tam ­ bém pode ser integrada a tendência da psicolo­ gia m oderna a fazer distinção entre V. e im pulso e a co n sid erar a V. con dicio nad a por um a m a ­ nipulação de sím bolos. G. M urphy, p. ex., diz: "V. é o no m e com o qual se designa um com ­ plexo p ro cesso interior que influencia nosso co m p o rtam en to de tal m odo que nos torna presa m eno s fácil da pura força bruta dos im ­ pulsos. Falam os com nós m esm os, introduzi­ m os m odos diferentes de expressar nossa situa­ ção, im aginam os as co n seq ü ên cias dos vários tipos de resposta e p rocuram os avaliar q uanto cada um deles nos agradará" (Introduction to Psychology, 1950, cap. IX, trad. it., p. 163). O q ue a psicologia m oderna cham a de "elabora­ ção de sím bolos" é o m esm o cjue na term inolo­ gia tradicional se cham ava "processo racional". Finalm ente, a m esm a n oção de V. está im­ plícita nas ex pressões V.pura, boa V., V. geral, V. de crer. S egundo Kant, V. pura é a V. determ inada ap en as por princípios a príorí, por leis racio­ nais, e não por m otivos em píricos particulares (G rundlegung der M et, der Sitten, pref.). Boa V., tam bém seg u n d o Kant, é a V. de co m p o rtar-se exclusivam ente de acordo com o dever; desse m odo, é exaltada por K ant com o o que existe de m elhor no m un do ou tam bém fora do m u nd o (Ibid., I). V. g era l é con ceb id a pelos ilum inistas co ­ m o a p ró p ria razào. D iderot diz: "A V. geral é em cada indivíduo um ato p uro do intelecto que raciocina no silêncio das p aixões sobre o que o hom em po de exigir de seu sem elh an te e so b re o que o seu sem elh an te tem direito de exigir dele" (Ari droit naturel, na Encyclopédie, V , p. 116). R ousseau fazia a distinção entre "V. de todos", que pod e errar, e V. geral, que nu n ca erra p o rq u e só tem em m ira o interesse com um (Contraísocial, II, 3). Finalm ente, a V. de crer, de que fala Jam es, nada m ais é que a racio nalid ade da fé, o direito de crer no que não é ab surdo, no que torna a

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vida m ais aceitável e. às v ezes, é posto em ser pela própria fé (The W ill to Believe, 1897). 2" Por outro lado, a V. às vezes foi identi­ ficada com o princípio da ação em geral, ou seja, com a apetiçào. O prim eiro a expor esse conceito generalizado da V. foi S. A gostinho, segundo quem "a v o n tad e está em to d o s os atos dos hom ens; aliás, to d o s os atos nada mais são que vontade" (Decir. Dei, XIV. 6). S. A nselm o re­ petia essa noção (Libero arbítrio, 14, 19). que na idade m oderna foi aceita por D escartes. Este, assim com o S. A gostinho, cham ou de V. todas as ações da alm a, em oposição às p ai­ xões: "O que cham o de ações são todas as nossas V., p o rq u e sentim os que elas vêm d ire­ tam ente do nosso espirito, e parece que d e­ p end em só dele, en q u an to as afeições são to ­ das as p ercep çõ es ou co n h ecim ento s que se encontram em nós m as não foram p ro duzidos por nossa alm a, que, p ortanto, os recebeu das coisas rep resen tad as" (Pass. de 1'âme, I, 17). H obbes faz um a crítica explícita à no ção tradi­ cional: "Não 6 boa a definição de V. com o apetite racional, co m u m en te proferida pelas escolas. Pois se fosse, não p oderiam existir atos voluntários contrários à razão. (...) M as se, em lugar de apetite racional, disserm os apetite resultante cie d eliberação anterior, en tão a V. será o últim o apetite a deliberar" (Leriath.. I, 6). O últim o apetite é o m ais próxim o da ação, ao qual a ação se segue. D esse p o n to de vista, a V. hum ana não é diferente da apetiçào anim al (De co ip , 2T, § 13). D e m odo análogo, Locke defi­ nia a V , com o "o p o d er de com eçar ou não com eçar, continuar ou interrom per certas ações do nosso espírito, ou certos m ovim entos do n osso corpo, sim plesm ente com um p en sa­ m ento ou com a preferência do pró p rio espíri­ to" (Hnsaio, II, 21, 5). F. H um e declarava: "Por V. não en ten d o outra coisa senão a im pressão interior que sentim os ou de que som os cônscios, q u an d o co n scien tem en te dam os origem a um novo m ovim ento do n o sso corpo ou a um a nova percep ção do nosso espírito" ( Treatise, II, III. I). H um e negava tam bém q u alq u er influên­ cia da razão so b re a V. assim en ten d id a, red u ­ zindo as cham adas voliçòes racionais às em o ­ ções tranqüilas, ligadas a instintos originários da natureza hum ana (com o b enevolência e ressentim ento, am or pela vida, gentileza para a criança) ou ao apetite geral pelo bem e a aver­ são ao mal (Ibid, II, III, 3). M uito sem elh an te a esta é a definição de Condillac: "Por V . se

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entende um desejo absoluto, em virtude do qual p en sam o s que a coisa desejada está em nosso poder" (T raitédessensations. I. 3. 9). C oncep­ ções m uito sem elhantes encontram -se freqüen­ tem ente nos ilum inistas e nos ideólogos do séc. XVIII e do início do séc. XIX. M ach re to m a ­ va essa con cep ção (Popidárw issenschaftlische Vorlesioigen, 1896, p. 72), e D ew ey repetia quase literalm ente a definição de H obbes ao dizer: "A V. não é algo op osto às co n se q ü ên ­ cias ou sep arad o delas. É a cansa das co n se­ qüências; é a causação em seu aspecto pessoal; O aspecto que preced e im ediatam ente a ação" (Hiü)iau Sature and Conduct, p. 44). A m es­ m a tendência geral perten ce a interpretação da V . com o m odo de ser do cuidado ( v j, seg u n ­ do H eidegger, sen d o o cuidado a m anifestação fundam ental da existência do hom em no m unclo, que consiste p rop riam ente em preocuparse com as coisas e cuidar dos outros (Seiu und Zeit, § 41). Por outro lado, certas interpretações da psicologia contem porânea podem ser enqua­ dradas na m esm a tendência geral: é o que acon­ tece com a famosa interpretação de M cDougall, segundo a qual a voliçào seria "o apoio ou o reforço que um desejo ou um a co nação recebe da co o p eração de um im pulso excitado no sis­ tem a dos sentim en tos de au toconsideraçâo" (Introduction to Social Psycology, 1908). Se­ g u n d o essas interpretações, de fato, seriam atos v oluntários aq ueles nos quais o im pulso d eterm in an te é constituído por um a atitude de respeito ou de exaltação do Eu diante de si m esm o. Finalm ente, nas ex pressões V. de viver e V. depotência, a V. é enten did a no sentido m ais geral. A V. de viverque, seg u n d o S cho pen hauer, é o n úm ero do m undo, nada tem cie racional: "é um ím peto cego, irresistível, que já vem os ap are­ cer na natureza inorgânica e vegetal, assim com o tam bém na parte vegetativa de nossa própria vida". Portanto, "o que a v. sem pre quer é a vida, ju stam en te p o rq u e esta é ap en as o m anifestar-se da V. na rep resen tação , e é sim ­ ples p leo nasm o dizer V. de viverem vez de V." (Die Weil. I, § 54). A nalogam ente, V. de potência é, seg u n d o N ietzsche. um im pulso fundam ental que nada tem de causação racional: "A vida, com o caso particular, aspira ao m áxim o sentim ento de p o ­ tência possível. Aspirar a outra coisa não é senão

VÓRTICE aspirar à potência. Essa V. é sem p re o que há de mais íntim o e profundo: a m ecânica é um a sim ples sem iótica das co n seq ü ên cias ( Wille zurMacht, e d , 1901, § 296). VÓRTICE (gr. Sívoç; lat. Vortex in. Vortex, fr. Vortex, ai. Wirbek it. Vórtice). C onceito fun­ dam ental da física antiga. A naxágoras co n sid e­ rava o V. com o o m eio de que se vale o inte­ lecto divino para o rd en ar o m u n d o (CLEMENTE, Strom., II, 14). D em ócrito considerava-o com o "a causa da g eração de todas as coisas" e id en ­ tificava-o com a n ecessid ad e (DIÓG. L, IX, 45). E picuro retom ava o m esm o conceito (Ibíd., X,

1010

VULGAR 90), que na Idad e M oderna ainda foi utilizado por D escartes (Phil. princ, II, 33). VULGAR (lat. Vulgaris,in. Vulgar, fr. Vulgaire-, ai. Gemein; it. Volgare). Essa palavra foi usada em sentido não pejorativo por Tertuliano, que deu valor ao testem unho contido nas expressões usa­ das pelo povo; elas são "V. porque com uns, co­ m uns porque naturais, naturais porque divinas" (De testimonio animae, 6). Viço dizia: "as tradi­ ções V. devem ter possuído razões notórias de verdade, em vista do que nasceram e foram pro­ pagadas por povos inteiros por longos intervalos de tem po" (Sc. nuova. dign., 16; v. dign., 17)

w WELTANSCHAUUNG. V. INTUIÇÃO no MUN­ DO.

X X. 1. À s vezes a letra .v é usada em filoso­ fia co m o sím b o lo da in có g n ita. Foi u sad a por Kant na prim eira ed ição da Crítica da Razão P ura e em O pus postitnutm : "O obje­ to transcen d en tal significa algum a coisa = .v. da qual nada sab em o s e da qual (segundo a atual co nstitu ição do n o sso intelecto) nada p o d em o s saber, m as que p o d e servir apenas co m o um c o rre la to cia u n id a d e cia ap ercepçào" (Crít. K. Pura, A, 250; v. Opus postumum. IX, 2, pp. 280, 308, 418, e tc ). O utras

vezes, nos n eo k an tian o s, o x constitui o in­ d ete rm in ad o que o p ro cesso ten d e a deter­ m inar, o incógnito ser do qual cada passo do c o n h ecim en to serve para ev idenciar um as­ pecto (NATORP. Pbilosopbie, 1921, 3a ed., pp. 41 ss.). 2, N a lógica co n tem p o rân ea, "x" é o argu­ m ento q ualqu er de um a função (v.). O sím ­ b o lo '(.Y)" é o q u an tifiead o r un iv ersal, um dos o p erad o res lógicos fundam entais (v. O P E ­ RADOR).

2 Z E L O T IPIA dat Zelotypià). S egundo Baum garten, é o am or qu e deseja que o am or do ser am ado lhe seja p ro p o rcio n al (M et, § 905). ZEN . C orrente budista fundada por B odhidharm a na China, no ano 527 d .C . e intro­ duzida no Ja p ã o por Ei-Sai em 1191, o n d e se desenvolveu com características próprias. Seu ensinam en to fundam ental é a elim inação da oposição — típica do b u dism o — entre o m u n ­ do das aparências (samsara) e o nhvana; sua tarefa é ensinar a ver (e realizar) o nirvana nas m ais sim ples e m odestas m anifestações da vida diária. U m m estre do Z. en u m era da seguinte m aneira os dez passos sucessivos que consti­ tuem o trabalho de toda a vida de um p artidá­ rio do '/..-. I- o partidário do Z. deve crer que existe vim en sin am en to (o Z.), transm itido fora da doutrina budista geral; 2 q deve ter co n h ecim en to definido d esse ensino; 3" deve en ten d er por que tanto o ser senciente qu an to o não senciente p o d em pregar o dharm a (a lei do m undo); 4o deve ser capaz de ver a substância com o se con tem p lasse algo vivido e claro liem na palm a de sua m ão; o seu passo deve ser sem ­ pre resoluto e firme; 5" deve ter "o olho do dharm a"; ( ) - deve trilhar "a senda dos pássaros" e "a estrada do além " (ou "estrada do m ilagre"); 7<) deve sab er d esem p en h ar tanto um papel positivo q u an to um papel negativo no dram a do 7.: 8" deve destruir iodos os en sinam en to s h e­ réticos e en g an ad o res e ap o n tar para os justos; 9" deve conquistar grande força e flexibili­ dade; 10- deve participar da ação e praticar dife­ rentes m odos de vida.

Nos últim os anos o Z. suscitou grand e in­ teresse nos países ocidentais, esp ecialm en te nos E stados U nidos, onde às vezes é estu d a­ do em relação com vários aspecto s da cultu­ ra o c id e n ta l (cf. a b ib lio g rafia co n tid a na tradução italiana de A. W . W A IT S, 'The Spírít o f Z , 1935. Para os dez g rau s da iniciação cio Z., v. CHANG-CHKNG-CHI, The Practice of Z , 1959, p. 33). ZER O (in. Zero; fr. Zero; ai. N ull; it. Zero). O Z. foi introduzido com o núm ero só na m atem á­ tica m oderna. Peano incluiu-o entre as noçõ es prim itivas do seu sistem a lógico (v. ARITMÍ.TICA). Russell definiu o Z. com o "a classe cujo ún ico m em bro é a classe nula" (Introduction to MathematícalPhílosophy, III; trad. it., p. 35). E m sen tid o m etafórico, às v ez es se diz. ponto Z. para indicar o p o n to de en co n tro ou de eq u ilíb rio de p o ssib ilid a d es d iferen­ tes. K ierkegaard diz: "O q u e eu sou é um nada; isso m e dá. e ao m eu gênio, a satis­ fação de c o n se rv a r m in h a e x is tê n c ia no ponto Z , entre o frio e o calor, entre a sab e­ doria e a estupidez, entre algum a coisa e o nada, com o um sim ples talvez" ( Werke, IV, p. 246). ZETÉTICO (gr. Çr|xr|TiK:óç; lat. Zetetic, fr. Zététitjiie;ai. Zetetisch; it. Zetetico). Investigativo ou inquisitivo. Este term o foi prim eiram ente aplicado p o rT rasilo para indicar um grup o de diálogos de Platão (DIÓG. L, III, ¥); V. ARISTOTKLHS Pol. 1256 a 12). Em seguida, foi assum i­ do com o d en om inação da atitude céptica: "A corrente céptica é cham ada de Z. por procurar e investigar; suspensira pela disposição da alma que. depois da indagação, m antém em relação ao objeto indagado; e ditbitativa por duvidar e indagar de todas as coisas (SKXTO EMPÍRI­ CO . Pirr. h y p , I, 7).

ZOOLATRIA

A lgum as vezes se cham ou de zetética a for­ m a de análise m atem ática que se refere à d e­ term inação das g ran d ezas desco n h ecid as. ZOOLATRIA (in. Zoolatry; fr. Zoolatrie- ai. Zoolatrie; it. Zoolatrià). C ulto aos anim ais, co n sid erad o s m anifestações ou en carn açõ es da divindade. A Z. esteve p resen te em m uitas religiões antigas: egípcia, frígia e siríaca (V. F. Cl MÜNT, I.es religiuns orieníales dans le paganisme romain, 1906 passim ) (v. TOTKM). ZOROASTRISMO (in. Zoroastrianism; fr. Zoroastrisme, ai. Zoroastrismus; it. Zoroastrismo). R eligião persa, co nhecida tam b ém co ­ m o masdeísmo ou parsismo, estabelecida por Z oroastro ou Z aratustra (século V I a . O , cujo principal d o cu m en to no Zeudavesta. O en si­ nam en to principal dessa religião é o dualism o entre dois princípios opo sto s, ch am ad o s res­ pectivam ente Ormuz {Abura Mazdah) e Arima>i (Angra Manyu), graças ao qual ela se

1014

ZWINGLIANISMO

ap resen ta com o solução para o problem a do m al (v. MAL, I, b). ZWNGLIANISMO (in. Zwinglianism; fr. Zwinglianisme, ai. Zwinglianismus; it. Zitinglismo). D outrina do reform ador suíço Ulrich Z w inglio (1484-1531), que com partilhou com o hu m anism o a idéia de que há um a sabe­ doria religiosa originária, da qual proviriam tanto os textos das Sagradas Escrituras q uan ­ to os dos filósofos p ag à o s. P o rtan to , para Z w inglio a revelação é universal, e D eus é a força que rege o m und o e revela-se em todas as coisas. São tam bém características da doutrina de Z w inglio a predestinação (v.) e a interpretação dos sacram en tos, inclusive da Eucaristia, com o cerim ônias sim bólicas. É so b re esse aspecto que Lutero e Z w inglio discordam , pois, ao con­ trário de Lutero, Z w inglio negava tam bém o valor absoluto da auto rid ade política.

O objetivo deste dicionário é colocar à disposição de todos um repertório das possibilidades de filosofar oferecidas pelos conceitos da linguagem filosófica , que vem se constituindo desde o tempo da Grécia antiga até nossos dias. O dicionário mostra como algum as dessas possibilidades foram insuficientemente elaboradas ou deixadas de lado. Ele apresenta, assim r um balanço do trabalho filosófico do ponto de vista de sua fase atual.

Martins Fontes

As escolas filosóficas, as correntes de pensamento sào apresentadas mostrando o seu surgimento e sua evolução. Os conceitos e as categorias são analisados em seu significado original e seus sucessivos desdobramentos. Termos específicos de outras disciplinas de caráter teórico (matemática, geografia, economia, física, psicologia, etc.) são analisados em suas relações com o discurso filosófico. Esta nova edição do famoso dicionário de Abbagnano foi totalmente revista, corrigida e confrontada com a mais recente edição italiana.

Títulos do nosso catálogo Dicionário Oxford, dé arte

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.

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Dicionário visual cie arquitetura

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Dicionário filosófico

André Comte-Sponville Dicionário das religiões

M ircea Eliade e Ioan P. Couliano ÍJicionário de filosofia

José Ferrater Mora

Vocabulário latino da* filosofia

Jean-M ichel Fontanier

Dicionário filosófico de citações

Léon-Louis Grateloup

Dicionário de obras filosóficas

Denis Huisman

Dicionário dos filósofos

Denis Huisman

Dicionário dos estilos arquitetônicos

Wilfried Koch Nicola Abbagnano nasceu em Salerno, Itália, em 15 de julho de 1901. Foi professor de história da filosofia na Universidade de Turim e cofundador do Centro de Studi di Metodologici. Faleceu em 9 de setembro de 1990.

Vocabulário técnico e crítico da filosofia.

André Lalande

Vocabulário da psicanálise

Jean Laplanche e J.-B. Pontalis Djiciónàrio de simbologia

Manfred Lurker

Dicionário dos deuses e demônios

Manfred Lurker

Dicionário

Renzo Tosi CAPA Marcos Lisboa

de sentenças latinas e gregas

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